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AVESSO DO

TRABALHO

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RICARDD ANTUNES E MARIA APARECIDA MORAES SILVA (ORGS.)

AVESSO DO

TRABALHO

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li!edição
EDITORA
EXPRESSÃO POPU LAR
-
São Paulo 2004
Copyright © 2004, by Expressão Popular
SUMÁRIO
Revisão:
Geraldo Martins de Azevedo Filho
Projeto gráfico, diagramação e capa: ZAP Desig-IZ
Impressão: Cromosete

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) APRESENTAÇÃO ..................................................................................... 7


(Biblioteca Central - UEM, Maringá - PR., Brasil)
� ANOTAÇÕES SOBRE O CAPITALISMO RECENTE E A
o Avesso do trabalho I Ricardo Antunes e Maria
A955 Aparecida Moraes Silva (orgs). -- 1. ed. -- São Paulo
REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA NO BRASIL
: Expressão popular, 2004 RICARDO ANTUNES •.••.•••••...........••.•.••.........•.••..••........•.••.••........••.•.•••........
13
416 p.
SE EU PUDESSE, EU QUEBRARIA TODAS AS MÁQUINAS
Livro indexado em MARIA APARECIDA MORAES SILVA .........................................................,....•• 29
GeoDados.http://www.geodaclos.uem.br.
ISBN 85-87394-49-5 A REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA NA INDÚSTRIA DE
CALÇADOS DE COURO EM FRANCA (SP)
1. Trabalho - Aspecto social. 2. i. Antunes,
Ricardo, coord. II. Silva, Maria Aparecida Mo raes, caard.
................................................................................, 79
VERA LUCIA NAVARRO

II. Título. TRABALHO, SOFRIMENTO E MIGRAÇÃO INTERNACIONAL:


CDD 2l.ed. 306.36
O CASO DOS BRASILEIROS NO JAPÃO
361.3 FÁBIO KAzuo OCADA................................................................................. 153
ELlANE M. S. ]OVANOVICH 911250
AS FORMAS CONTEMPORÂNEAS DA EXPLORAÇÃO DO
Todos os direitos reservados. TRABALHO NOS BANCOS
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207
ou reproduzida sem a autorização da editora.
A FEMINIZAÇÃO NO MUNDO DO TRABALHO: ENTRE A
l' edição: março de 2004 EMANCIPAÇÃO E A PRECARIZAÇÃO
1 a reimpressão: agosto de 2006 ClAUDIA MAZZEI NOGUEIRA ........................................................................ 243
"MORO NO MUNDO E PASSEIO EM CASA": VIDA E TRABALHO
EDITORA EXPRESSÃO POPULAR
DOS CAMINHONEIROS
Rua Abolição, 266 - Bela Vista LUCIENE DOS SANTOS •.•••.••.••.••.••..•.••.••• �.:.:.:
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APRESENTAÇÃO

"O mundo que fotografo é o do trabalho e o dos


trabalhadores"
Sebastião Salgado

Mas então Paul Arnheim haveria de se adiantar e dizer ao Senhor:


"Senhor, para que isso? O egocentrismo é a mais confiável qualidade
da vida humana. O político, o soldado e o rei usaram-no para orga­
nizar o Seu mundo com astúcia e força. Essa é a melodia da huma­
nidade: você e eu temos de admiti-lo. Abolir a força seria amolecer
a ordem; nossa tarefa é capacitar o ser humano a grandes coisas,
embora ele seja um bastardo!" E Arnheim sorria modestamente
para o Senhor, numa postura calma, para não esquecer como é im­
portante para 'todo ser humano reconhecer humildemente os gran­
des mistérios. E prosseguia no seu discurso: "Mas o dinheiro não é
um método tão seguro como a violência para tratar as relações hu­
manas? Ele não nos permite dispensar o ingênuo emprego dela? É
uma violência espiritualizada, uma forma espiritual de violência,
flexível, altamente evoluída e criativa. Os negócios não se funda­
mentam em astúcia e violência) em vantagem e exploração, s6 que
civilizadas, transferidas para o interior do ser humano revestindo­
se da aparência de sua liberdade? O capitalismo, como organização
do egocentrismo segundo a hierarquia da capacidade de obter di­ UNICAMP), revela uma outra face desta realidade. A partir
nheiro, é a ordem mais elevada e mais humana que conseguimos de anos de investigação em diferentes ramos da economia,
criar em Sua honra, Senhor; a atividade humana não tem critério de tornou-se possível conhecer o pesado fardo do trabalho sen­
medida mais preciso do que esse!" tido por mulheres e homens que estão inseridos na lógica da
Robert Musil. O homem sem qualidades. reprodução capitalista atual. Embora os protagonistas sejam
outros,o cenário e o script dos Tempos Modernos ainda encon­
Nos últimos anos, assiste-se, principalmente no Brasil, tram vigência em várias cenas da vida cotidiana no interior
. quer por intermédio dos meios de comunicação, quer dos do espaço do trabalho.
discursos políticos ou mesmo da academia, ao debate em Desde os escriros de�,sabe-se que uma das tendên­
torno do desemprego e da precarização e da exclusão social. cias do capitalismo é o crescim"'Ilto cada vez maior da base
Os tempos atuais,muitas vezes,são vistos de forma oposta �cnica por meio dos in��imentos em tecnologia e�ciac
àquelas imagens e cenas dos Tempos Modernos cujo principal Esta última vai sendo,paulatinamente,apropriada pelo capi­
protagonista - Chaplin - aparece como uma peça na imensa tal,configurando-se,assim,o domínio da maquinaria estendi­
engrenagem da maquinaria, que o exauria a ponto de do a todos os ramos da produção. Desenvolve-se uma nova
transformá-lo num autómato,repetidor de gestos e coman­ interação complexa entre trabaIQQ_,::ir.Q. .t':.JmR!JJhggçlftO, en­
dos. As imagens veiculadas ao se reportarem tão-somente ao tre a subjetividade laborativa em sua dimensão cognitiva e o
desemprego e à exclusão social, encobrem a realidade do universo tecnocientífico. Nos dias atuais,as mudanças opera­
trabalho e dos trabalhadores sob o véu da ideologia do cha­ das no mundo da produção e do trabalho vêm confirmando as
mado neoliberalismo,que desloca o trabalho do núcleo cen­ assertivas marxianas. Se. para alguns autores, trata-se,
tral que ele ocupa na vida dos indivíduos para os pontos equivocamente,do fim do trabalho,para outros,como os que
periféricos ou mesmo situados à margem da realidade social. estão neste volume,ao contrário,o trabalho ocupa dimensão
Segundo essa visão, o trabalho, hoje, teria perdido sua central nas formas de (des)sociabilidade contemporânea. O
centralidade e,cada vez mais,milhões de pessoas são con­ sistema global do capital "exclui" e "inclui",seguindo uma
denadas à condição de supérfluos,de descartáveis pelo sis­ lógica perversa,que não leva em conta a experiência e a histó­
tema global do capital em escala mundial. ria dos trabalhadores. Como lembrou recentemente Francisco
Este livro,com o título O avesso do trabalh&, (que repro­ de Oliveira,o capitalismo,cm sua feição neoliberal,opera quase
duz alguns artigos que compreendem o.volume duplo da da mesma forma que o nazismo,com Auschwitz "frios"; a ex­
revista Idéias (ano 9-2 / 1 0- 1 , 2003, publicada pelo IFSHI .traordinária expansão das forças produtivas torna supérfluo

8 o AVESSO DO TRABALHO C O L E ÇÃ O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O
enorme contingente de homens e mulheres que trabalham. A O mesmo se pode dizer em relação ao conceito de "ex­
taxa de desemprego não recua,mas se amplia explosivamen­ clusão". Vários autores têm demonstrado que a exclusão se
te. O sistema corta direitos e racionaliza (ideologicamente) o reporta aos grupos sociais que foram desalojados socialmen­
corte em nome de empregos que não ocorrem. Daí a seme­ te: os chefes de família desempregados,as minorias étnicas,
lhança com o nazismo. os jovens sem possibilidades de entrar para o mercado de
Assiste-se hoje à dupla transformação do trabalho,tanto trabalho,as mulheres em ocupações precárias e com tempo
quanto ao conteúdo da atividade,tanto quanto às formas de parcial,os migrantes,os velhos desprovidos de seguridade
emprego,transformação aparentemente paradoxal,pois esse social etc. Esse seria o perfil dos novos pobres. São assim
duplo processo ocorre em sentidos opostos. De um lado,há chamados não em razão dos baixos rendimentos,aquém de
a exigência de estabilização,de implicação do sujeito no pro­ suas necessidades de sobrevivência,mas em razão de lhes
cesso de trabalho,por intermédio de atividades que reque­ serem vedadas as oportunidades de incorporação no tecido
rem autonomia,iniciativa,responsabilidade,comunicação ou social, gerando as bases para a exclusão dos seus direitos.
intercomprcensão. Por outro lado, verifica-se um processo Para esses excluídos,impõe-se a miséria do mundo,do sen­
de instabilização,precarização dos laços empregatícios,au­ timento de seres desgarrados,à margem do meio social em
mento do desemprego prolongado e flexibilidade no uso da que vivem. São a ponta mais fragilizada daqueles que Marx
força de trabalho. Em duas palavras: perenidade e superflui­ caracterizou como "os que não têm mais nada a perder".
dade. E esse movimento é global e mundializado. Este livro situa-se no contexto destas reflexões. A partir
Portanto, é necessário não incorrer em erro quando se de pesquisas levadas a cabo durante vários anos com traba­
analisa o processo de mundialização do capital e seus efeitos lhadores urbanos e rurais,operários de diferentes indústrias,
sobre o trabalho. Por trás de uma aparente hegemonia ou bancários,caminhoneiros e migrantes brasileiros para o Ja­
universalidade de situações,há diferenças entre países ricos pão,homens e mulheres que vivem da venda de sua força de
e pobres,centrais e subordinados,e também no interior dos trabalho,no campo e nas cidades, foi possível compor o qua­
mesmos,sem contar aquelas referentes aos vários setores da dro desta coletânea, cujo contorno reflete as marcas do tra­
economia com inúmeras particularidades. Por outro lado,as balho,caracterizadas pela superexploração e também pelas
diferenças de gênero,entre homens e mulheres que traba­ incertezas em relação ao futuro.
lham,acrescidos da diversidade étnica,geracional e etária, Percorrer estradas na boléia de um caminhão conduzi­
tornam-se também imprescindíveis à compreensão da situa­ do por duas mulheres,pisar a terra do eito de canaviais,o
ção de classe dos trabalhadores. chão de grande indústrias,as mesas dos trabalhadores e tra-

10 o AVESSO 00 TRABALHO C O l E ÇAO T R A B A L H O E E M A N C I P A Ç Ã O 11 .


balhadoras bancárias,fabriquetas e cômodos improvisados ANOTAÇÕES SOBRE O CAP ITAL ISMO
para a execução das atividades nas casas de operários do RECENTE E A REESTRUTURAÇÃO
calçado,trabalhar na condição de arubaito (trabalhador tem­ PRODUTIVA NO BRASil
porário) numa montadora de automóveis no Japão, bem
como percorrer as mutações no processo laborativo nos ban­ RICARDO ANTUNES'
cos,refletir sobre a divisão sexual do trabalho,desmistificar
as engrenagens da engenharia produtiva (e produtivista),
desvelar os caminhos da liofilização organizacional,foi essa
empreitada realizada para lograr o conhecimento daqueles
cujas vidas são talhadas pelas próprias mãos. Vale,por fim,
lembrar, que este livro é conseqüência de um feliz inter­
câmbio intelectual entre docentes e pesquisadores da Não demasiado antigas, há muitas profissões que desapareceram,

Unesp, de Araraquara; da USP, de Ribeirão Preto, da hoje ninguém sabe para que serviam aquelas pessoas, que utilidade

Unicamp,de Campinas,e da Universidade Federal de São tinham...

Carlos. (Saramago, A Caverna)


É também o resultado,sob a forma de publicação,dos
seguintes projetos integrados: .Foram de grande monta as transformações ocorridas no
1 ) "Gênero e exclusão social", com o apoio do CNPq, capitalismo recente no Brasil,particularmente na década de
bem como do Grupo de Pesquisa "Terra, memória e mi­ 1990. Mutações políticas, com o advento do receituário e da
�---'---'----:--
grações" (CNPq), coordenado pela Professora Maria pragmática neoliberais, desencadeando uma onda enorme de
Aparecida Moraes Silva e pela Professora Vera Lúcia Navarro desregulamentações nas mais distintas esferas sociopolíticas.
----,,, ��

(sub-coordenadora) e Houvé também transform�çõe.�..n_<:.p_l�fl()..<.I..fl_()g';�fl�ação


2) "Para onde vai o mundo do trabalho?",com o apoio do
CNPq,bem como do Grupo de Pesquisa "Estudos sobre o I
Professor Titular de Sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
mundo do trabalho e suas metamorfoses" (CNPq), coorde­ da Unicamp. Publicou, dentre outros livros, Os Sentidos do Trabalho (Boitempo

nado pelo Professor Ricardo Antunes. Editorial) e Adeus ao Trabalho? (Ed. CortezlEd. Unicamp). Coordena também
a "Coleção Mundo do Trabalho", pela Boitempo Editorial. Este texto é parte
do Projeto Intregrado de PesquIsa "Para Onde Vai o Mundo do Trabalho?",
Os organizadores que conta com apoio do CNPq.

12 o AVESSO DO TRABALHO
sociotecnica do universo produtivo, redesenho da divisão in-
-
guiares da reestruturação produtiva do capital, através da
-"�--.-.--'-',---_..

ternacional do trabalho, met'illlQrfoses no mundo do trabalho exemplificação de alguns ramos e setores. Nos diversos tex­
Fn��sp-;;:;�d��rganização sindic�l, r;t���ri�lização da p;o· tos que compõem a coletânea, os leitores poderão encontrar
Quç�(),. dentre tantas outras conseqüências. um quadro bastante multifacetado e heterogêneo da
Esta contextuaiidade fez com que a configuração recente reestruturação, que certamente ajudarão para que possamos
do nosso capitalismo fosse bastante alterada, de modo que entender melhor as novas configurações no mundo do traba-
ainda não temos um desenho preciso do que vem se passan­ lho no BrasiL 1� �,C{;5';-l /;t" \�-7'
.
do. Somente poderemos redesenhá-lo, entretanto, através do . �
(S \:::}'-I -��yv
VL.Y \';t' tlv":,\,, ....\0 J" .
desenvolvimento e realização de densas pesquisas concretas " 'l()� O v n'l" ,\J
� v ""\S l' "f" \v"t...·
e reflexões analíticas capazes de oferecer esse (novo) desenho O capitalism6 brasileiro, particularmente seu padrão de

l()(�de195�
----_.-.-._. . ",.
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que, por cerro, comporta tanto elementos de descontinuidade acumulação industrial desenvolvido desde meaio�ja décacia
quanto de continuidade. _e especialmente � pós-Q:!, desenvolveu uma estru­
I ;1' ...: ra p odutiva bi-fr'<::l1t� de um lado, voltava-se para a prod ­
É este o objetivo desta edição: buscar alguns elemen­ I (JIi � � t:
tos que nos auxiliem na concreção do capitalismo brasi­ i � ção de be.us de consumo dlJLá.Y..eJií , como automóveis,
leiro recente, bem como das mutações que vêm ocorrendo eletrodomésticos etc., para um mercado interno restrito e se­

[j�)
I' O1
�;
no universo do trabalho, num período marcado pela
mundialização, transnacionalização e finanç"irizaçl\.o dos
. .
,5il. .P����.E.e:.l'. �m�nt.e:J o n.osso ..1l111"",rso
letivo; por outro lado, objetivava também desenvolver
.
.

dução pa�xporra2ãoJ tanto de prodl1tos P�Ú2!'L.<lll�l2!0


_rambénLç!�Qrodutos indJl�gia!iza9Q§; Quanto à sua dinâmica
a pro-

I i>�}\. O;produtlvo, Industnal e de servIÇQ.s. Se Já parece obsoleto


T !
< :
(jl9--'lJ':1 falar na "teoria dos três setores" (Lojkine,
/'VrDJ enorme'interpenetração entre as atividades industriais,
1995), dada à
interna, o padrão de acumulação estruturou-se através de um
processo de superexploração da força de trabalho, dado pela
articulação entre báixos salários, jornada de trabalho prolon-
i agrícolas e de serviços (de que são exemplos as expres­ ;g;;d� e def�;tissi�;-;nte;;sid�de-,;�-seiIsrTt;;:õs�·dentiõde
sões "agroindústria", "indústria de serviç9s", "serviços um patamar industrial significativo para um país que, apesar
� ---

....P�utivos"), também soa estranho, num país como o Bra- de sua inserção subordinada, chegou a se alinhar entre as oito
sil, falar-se abstratamente em socieQaci".g.ó.§ u�.t!!.aJ :,
Para não falar em "fim do trabalho".
Nesse texto,. de apresentação do presente volume, que­
grande; potênciasfidí'lStifais. E esse modelo econômico teve
enorme expansão ao longo das décadas de
Foi durante os anos de 1980,
a
ao final da ditadura mili­
1950 1970.
remos tão-somente indicar alguns traços particulares e sin- tar, que esse padrão produtivo',' começou
. .
a sofrer as primei-
_T_�__._, .�_.,_.__. -�.-,...----- - _ ' . __ . _ _ _
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'''1 o AVESSO 00 TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO


ras alterações. Embora seus traços mais genéricos estejam Iniciava-se, ainda de modo incipiente" o processo de
ainda vigentes, foi possível presenciar algumas mutações �q, organi::�r,;::'-J cujos determinantes foram: a),3
----,--,---
--

organizacionais e tecnológicas no interior do processo pro­ necessidade de as empresas brasileiras buscarem sua inser-
;�-
dutivo e de serviços, num ritmo inicialmente muito mais .- �
-�"R;;:�",--'
ção'na'comretii:iVidãdei�;;;��-;;i-;;;:;-;;-Cb)';;;----- d;�'
.lento,do,9,!!e aqueles experimentados pelos.l?aíses <;'�ntrais� presâs t;'ãn�nã�i�naisque levaram à adoção,por parte cl���'ãs
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,.;:.:..�;...;-_._ .-
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O Brasil,sob o fim da ditadura militar e no período Sarney, , subsidiárias no Brasil, de novos padrões organizacionais e
nos anos de 1980, ainda se encontrava relativamente dis­ tecnológicos,em alguma medida ifl:!:'!E<l�().� no "toyotismo"
tante do processo de reestruturação produtiva do capital e e nas formas flexíveis de acumulação; c) a necessidade de as �_.=.="."-,-

do projeto neoliberal,já em curso acentuado nos países ca­ em presas n a c io n a i s res p o,nd�sm_ �.() _§!."f!!lS�Ç!.�Q2.�()vo
_��__·."_·�_�o�n�_·_��_�,,-,,_,�__�.��,�_·__ �_,.,..,.o'�
...

pitalistas centrais. Mas também já sofria os,l?Eim���­ �ndicali.S.D10, que procurava estruturar-se mais fortemente
_

xos da nova divisão internacional do trabalho,em mutação nos locais de trabalho e que teve forte traço de confrontação,
sig;ifi;;-;�i;�:'s��'�i;g�l�;id;d��'d�d�"p�;�;;;-p�f;de-za'pi-
.. " ,,-'''-''- '' " - """" ---"
desde as históricas greves do ABC paulista, no pós-78
talismo hipertardio,passava, então,a ser afetada pelos no-
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(Antunes, 1997 e Alves,2000).

II i'\"�A� ::�::;;��;;��:�;:��;�;:;;'���;����:���!;�
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vos traços universai� do sistema global do capital,


desenhando uma particularidade brasileira diferenciada e�

-�, O'1\il'Y'l2s �través � a redu2.�0 da força de trabalh,o,de que foram exe_�:,


(Antunes, 1995 e 1997).

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Foi nessa década que ocorreram os primeiros impulsos I \ pío os setores automobliísttco eode autopés;as e,E.?sterioEl11.en!.e,
do processo de reestruturação produtiva em nosso país, le­ �!'�[l1 os têxtil_e ba::���i.::: dentre outros. De modo sintético
vando as empresas a adotarem,inicialmente de modo restri­
to,(l0vos padr�es9_������is e��()12gi<:()st-. fl'?vas formas
i., . V pode-se dizer que a necessidade de elevação da 1?!:()d1J5.i':!9�
ocorreu através de reorganização da produção,redução do nú-
�-��-'--"'-'.�-""._.-""__" .,__••l;.�_.�,__""

de organiz�ç!o ��cial e se!llªLdQt[�balho. Obse�;��:se-a ,[l1ero.ºe.çm!?fllh. ii1tel1s,ifisaÇãºc!ª,jg[Q"!.c!\tsls.E:ilJ2�!h9


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ampliação da informatização produtiva, principiaram-se os


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dos empregado� s!![gímento dos CCQ's (Círculos de Controle
�--�--"',--.,. --" ---_.', "- " >'--• •, - �-'"

usos do sistema just-in-time, da produção baseada em team


...... --�---�--'---'''�-- �
de Qualidade) e dos sistemas de produção just-in-time e kan-
work, nos programas de qualidade(,gtal,ampliando também ,.�,,___,,_,,_,_F"" "
�{ln,.cI�fltr"º§ llrillç:jlli!i�_�Ie.m�!)!���----"-----'
""-_"c___' _�_�__._..�������.__,___,,___
, =,_�",
.
.

o processo de difusão da microeletrônica. Deu-se o início, Durante a segunda metade de década de 1980,com a re­
ainda também preliminar, dos .!)1étodos den..o minados à oSuperação parcial da economia brasileira,an::plia��:?=s� as._i��­
t ões tecn()I�lfi�.�s: através da )ntr<;"<:!.�2!<:._�_�_�}.!toma.x!0
)(trfl part��ip��� ?,� mecanismos que procuram o envolvi;;:;���-d�;
.
nt�trabalhadores nos planos das empresas. �\I'�Da 'ik-VIil9
i!1c111�tria����ase. �icroelsg§rli,ǪJ}_()s'yetores..illstal�mecâni-
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16 o AVESSO DO TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E E MANCIPAÇÃO 170

- - -- - -----
co,automobilístico,!le:tfQÇll,tí!IÚ�(L",�sjçl",ryxgico, No setor au­ São Paulo para áreas do interior paulista (São Carlos),ou se
"tomobifístíc�,p�d��;e verificar a instalação de novas linhas, deslocaram para outras áreas do país,como o interior do Rio
destinadas à produção de novos veículos,que coexistiam com de Janeiro (Resende),ou ainda para o interior de Minas Ge­
as antigas linhas de montagem,configurando um grau relati­ rais (Juiz de Fora),ou outros Estados como Paraná,Bahia,
vamente elevado de diferenciação e heterogeneidade Rio Grande do Sul etc. (Alves,2000). Ainda nessa mesma
tecnológica e produtiva no interior das empresas,�",::'?/?;�­ década, no contexto da desregulamentação do comércio
neidad��1,l5"�q��tYl!l.��IE,!!'(;a�çI�E<;:<;:sgmy,ª-Ç�.2_P1:2ç1��1".�Eo �mundial,a indústria automobilística brasileira foi submetida
-Brasil(Antunes,1 997, Alves,2000 e Previtalli,2002).
_.---,-."""'"""
a mudanças no regime de proteção alfandegária,sendo re­
Foi nos anos de 1 990, entretanto, que a reestruturação
c -;-._'
duzidas as tarifas de importação de veículos (Previtalli,1 996).
,/) 5 produtiva do capital desenvolvell s�i���f\�a_IE_�f\ç<;:.e._IE.f\.osso Desde então,as montadoras vêm intensificando o pro­
=
Oifv�1, p.�1�",.através da implantação de vários receituários oriundos cesso de reestrmuráçao produtiva, atraves.:das-j;nQ�ções
tecnológicas,introduzindo robôs e sistema�AD!CANV en-
•.

I' v da acumlllaçã.2jle�ÍJel e do ideário japonês,com a if\!e.f\�.i�I::.


�C�Çã ��.�d{{e,qn,Pcq� uf7iiJA A2sis.t e:p1aius,!:i1Z:ti11!ç, kanban,�9() -;7;;];�;;-cÍ� ��d���;s � l';y:��7d�s empresas,b� m co� atra-
processo de gUf1lidª(kJQtal,��dasJormas de subs()pt_r�!�ç�()e vés dáintrodução demüdanças organizacionais,envolvendo
-det-';���i;i;�ÇãO da força,çI<;:trªQ.ªlh.2: Do mesmo modo,veri­ 'adesverticalização,horizontalização,redução de flíve1shie­
'fi�o��;�-�;;:;p;����;� de descentralização produtiva, carac­ � �

rárqujcos,i�pla�t�ção de novas fábricas ele tamanho reduzi­


terizada pela relocalização industrial, em que empresas ao'eestrütüiádásco�base em célulás prodUtivaS. As
tradicionais,como a indústria de calçados ou a indústria têx­ unidades produtivas mais antigas da Volkswagem,da Ford e
til,sob a alegação da concorrência internacional, iniciaram da Mercedes-Benz,situadas no ABC paulista,também de­
um movimento de mud.�f\9.as.g",()gráfi!-'o:�e�spaciai�,buscan­ senvolveram um forte programa de reestruturação,visando
do níveis mais rebaixados de remuneração da força de traba­ sua adequação aos novos imperativos do capital, no que
lho,acentuando os traços de superexploração do trabalho. concerne aos níveis produtivos e tecnológicos (Previtalli,1996
No setor calçadista,por exemplo,várias fábricas transfe­ e 2002).
"
riram-se, da região de Franca,no inte;i�;d�Es�
- -
t do'deS'ãõ Depois de um ensaio inicial significativo,mas estancado
Paulo, ou da região do Vale dos Sinos, no Estado do Rio pela crise que se abateu sob o governo Collor,foi com qj?1a­
Grande do Sul,para Estados do Nordeste,como_o ge�E.á�� no de Estabiliz�ção Econômica,denominado Plano Real,a
Bahia. Indústrias consideradas modernas, do ramo metal-
_'",,,7_,-,00. �;r�i;�d�"1<)94:'s�b�' g�;��;;� F �rnando Henriq;:;e 6;;;d�so,
mecânico e ,éIetrônico,transferiram-se da região da Grande que ?�P�ogJ:�l1l3S_cleqll�li<lade total,(}si�tel1lajust-Íll�timee
.
��

18 o AVESSO DO TRABALHO C Ol E Ç Á O T R A B A L H O E E M AN C I P A Ç Ã O 19
kanban,
-�--,
bem como a introdução de ganhos salariais vincula- ---_._�-_.-_.�._-,�-
de buscar também a ;!l_��_��().çlgsbancári()s às estratégias de
dos à lucraüyic!ªº"e à Qrodutividade das em[lresas, sob a
'-�,,--
. -,, -,,-,---,-._---_ .. , .
�---_ ..". - - - - ".-,----�------- - -- .. - " -�
autovalorização do capital reproduzidas nás instituições ban­
pragmática que se adequava fortemente aos desígnios cárias.
neoliberais,encontraram uma contextualidade propícia para Como conseqüência das. práticas flexív"i.s de contratação
o desmanche vigoroso da reestruturação produtiva, da da (orça de trabalho nos bancos (através da ampliação signi­
Q�õ�lizaç:�oorg:âniiaciona!� do enxugamento. Portanto,se o ficati�a da terceirização,da contr�taçãO de tral:Jaihadores por
processo de reestruturação produtiva no Brasil, durante os râl"efasou em tempo parCiâÍ), �ê�·,;cõr���-d;�;� ;;âi;r
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anos de 1980, teve uma tendência limitada e seletiva, foi precarização dos empregos e dos salários,aumentando o pro-
-..".-.._'n-,--_ ,,, _,' _�_V<..
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partir da década seguinte que ele se ampliou sobremaneira cesso de desregulamentação do trabalho e da redução dos
(Antunes, 1999 e Alves,2000). direitos sociais para os empregados em geral e para os
Outro,'?li:e;.�Et() importante podemos encontrar no seX.oç terceirizados em particular (Jinkings,2002 e Segnini,1998).
)in.�I1(;�iro. Aqui também se pode presenciar intenso impac­ Do ponto de vista do capital financeiro,essas formas de
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to em seu processo de reestruturação, sendo que os contra�ação permi tem_�§._�.�l!lP�r��ªs._gllJ}h9_L�normes de


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trabalhadores(as) bancário(as) foram fortemente atingidos
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lucratividade,ao mesmo tempo em que atingem f�;;�-;���e
pelas mudanças do seu trabalho,fundamentadas,principal­ a c�pacidad�d�;�sistê��;�a�s ba��áiTºif;�g;;;;-��t�;&;��s
mente,nas tecnologias de base microeletrônica e em muta- ."'----..,.-_.- --�---------- --" --- - -
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-·�··difi��lta�d� suaorgani��ção sindic�l. -À.�;;;�d;;; ��'d���;:
..

ções organizacionais. Essas novas políticas gerenciais foram volvimento informacional, os programas de ajustes
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instituídas nos bancos,principalmente,através de seus pro­ organizacionais reduzem ao máximo a estrutura administra­
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gramas de "qualidade total" e de "remuneração variável". �__


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tiva e os quadros funcionais das instituições financeiras. Fo­
Conforme nos mostraram Jinkings ( 1995 e 2002) e Segnini ram desativados ou drasticamente reduzidos grandes centros
( 1 998), a política de concessão de prêmios de llrodutividade ,
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de computação,serviços e compensação de cheques,ao mes­
aos bancários que superavam as metas de produção
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mo tempo em que setores inteiros foram extintos nas agên-
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cias bancárias e centrais administrativas. Enquanto crescem


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estabelecidas,acrescida do desenvolvimento de um eficien­


:m poderi��Ô�i�� �rand��·����iomeiad�� fi;;-�;;-ce�
,,,,__ ' _ ... " , _"v_ _
.

te e sofisticado sistema de comunicação empresa-trabalha­


dor bancário,através de jornais, revistas ou vídeos de ampla tos privados,com taxas de lucto enormes,o número de ban­

circulação nos ambientes de trabalho,bem como da amplia­ cários no país reduziu-se de aproximadamente 800 mil no
ção do trabalho em equipe,tudo isso acarrerou num signifi-
I'" �_�_._�__ ��,_,�"••,,"'_�_"�'
final dos anos de 1 980 para cerca de 4 1 0 mil emiOOO
cativo aumento da produtividade do capital financeiro,além (Jinkings, 2002).
_ . , _ ,

20 o A V E S S O D O T RA B A L H O C O L E Ç Ã O T R A B A L H O E E M AN C I P A Ç Ã O 21
Em relação à divisão sexual do SElli:>a, lho, à medida que se ,--- -
Repetitivos (LER), que reduzem a força muscular e compro­
desenvolviam os processos de automatização e flexibilização metem os movimentos daqueles que são portadores da doen­
�"c"c,,-
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do trabalho bancário, ocorreu paralelamente um movimento


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ça. Em contrapartida, os programas de qualidade total e de
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remuneração variável, amplamente difundidos no setor,


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de f���illi?:�ç"�O�g'1Si!�
t g()ri�"tJ não se ve­
rificou uma jgualdade de condiçõesqy.al1w à carreira e salá-
." " 0 _______�._.r----.--" __ ________� - , �__".�,__."
recriam estratégias de dominação do trabalho que procuram
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obscurecer e nublar a relação capital e trabalho. Os trabalha­


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rio entre homens e mulheres nos bancos. Uma série de


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dores bancários tornam-se parceiros, sócios, colaboradores do


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mecanismos sociais de discriminação - reproduzidos e in­


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tensificados nos ambientes de trabalho - estabelecem rela­ bancos e das instituições financeiras, num ideário e numa prag­
ções de dominação e de exploração mais duras sobre o mática que aviltam a condição laborativa (Jinkings, 2002)
trabalho feminino, que vão se traduzindo em desigualdades
e segmentações entre gêneros (Segnini, 1998 e Jinkings, II
2002). Esse processo de reestruturação produtiva (que exempli­
As mudanças apontadas nas características pessoais e pro­ jicamos acima a�_:J._<iQ,§"�setores automobilístico e bancá-
fissionais dos bancários são expressões da reestrururação pro-
�=,�""-�--�-�-,,--_.--_._--�--""--'-----"-----,,----
rio), ma� que ati�giu a qua;��;t�Úd;d� d���am;� produti;os '-'-�-""-- - -.,' -"

._dlltiya�m"cgI�P e de seus movimentos de tecnificação e e/ou de serviços, acarretou também alterações significativas
racionalização do trabalho. Visando adequar sua força de tra-"" na estrutura de empregos no Brasil. Se durante a década de"
balho às modalidades atuais do processo produtivo, as insti­ 1970, segundo Pochmann (2000), no auge da expansão do

tuições financeiras exigem uma emprego industrial, o Brasil chegou a possuir cerca de 20% "
" nova qualificação "para- os
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,trabalhadores do set()� Cj�e parece t�rl11aislll11a. -.2ignijicação do total dos empregos na indústria de transformação, vinte
anos depois, f::�� s�!:-, d e._�r�;;;j.9rrn2'�}�?�?:i::, � menos de
- - -

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ide{JI�1S.ica do que tecno�flln ci()l1al. Conforme nos mostra _
Jinkings, num"contexto de crescente desempregá e de aumen­ 13% do total da ocupação nacional. Ainda como resultado do
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to de formas precárias de contratação, os assalariados bancários processo de reconversão econômica, registraram-se, ainda se-
são compelidos a desenvólver uma f�maç�.2"".�� � .•
gundo Pochmann, ao longo dos anos de 1990, novas tendên­
polivalentc,
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na tentativa de manter
,' seu vínculos de trabalho' , , - ,- ,v.'_',_ -_·__.•._v· __�_�.,. _______
cias nas ocupações profissionais. Com ""a mudança da
dinâmica industrial voltada para o mercado interno", dada
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sendo submetidos à sobrecarga de tarefas e a jornadas de�ti'ã-


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balho extenuantes. Agravaram-se os problemas de saúde des­ "a motivação dependente de maior inserção competitiva ex­
ses trabalhadores nas últimas décadas e observou-se também terna:,
um aumento sem precedentes das Lesões por Esforços ra [vez] desde os anos de 1930, com �soluta e re1ª!jy�

22 o AVESSO DO TRABALHO CO L E Ç ÁO T R A B A L H O E E M A N CI P A Ç Ã O
de postoS de trabalho na indústria.cl� lllanl!f�Ell�a. Entre as sob a condução política em conformidade com o ideário e a
dé�ad;; d� i980;i990,';;�� � economi;trasileira - pragmátis:_�eEl1j1;)�fl2Ç2m�l1§gcl�jYi!.§!:ÜUglQfl,�.aglli.se�
perdeu próximo a 1,5 milhões de empregos no setor de ma­ guidas pelos governos.Ç.2IL2LiO: tI-IÇ, presenciamos várias
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nufatura" (Pochmann,2000). transformações,configurando uma realidade que comporta


Paralelamente à retração do emprego industrial,entre as tanto elementos de descontinuidade quanto de continuida­
décadas de 1970 e 1 990, os serviços aumentaram,em média, de em relação às fases anteriores. O que permite supor que,
50% sua participação relativa na estrutura ocupacional,sen­ _no estág;io.�tll�I<l.oc;apitalismo b;asileir��;;mbin;�����p�ô­
do em boa medida direcionadas para o setor informal, que "cesso�."de. enorllle:e:l1xug�����;�E;fôrça-detl"abalh;���;��_ - - " - ' �__��"_______�__�'�'_�'_" " _
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incorporou parcelas expressivas de trabalhadores,sobretudo cido às mutações sociotecnicas no processo produtivo e na


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no comércio,comunicações e transportes. Ainda segundo o ��g��i;�çã�;��i;í -·d�'t;;b� I h�.· A'fl��ibil;;:�çã�·�{�sre-


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autor: "Na década de 1990, os serviços passaram a absorver gulamentação, terceirização, as novas formas de gestão da
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mais postos de trabalho,sem compensar,entretanto,a des­ força de trabalho etc. estão presentes em grande intensida­
truição dos empregos verificada tanto no campo quanto na de,indicando que,se o "[ordismo" parece ainda dominante
indústria. Atualmente,o aumento do desemprego aberto re­ quando se olha o conjunto da estrutura produtiva industrial
flete justamente a incapacidade da economia brasileira para e de serviços no país,ele também se mescla com novos pro-
gerar expressivos postos de trabalho,não obstante o setor de .s;�§Mls_pLo.dmi.Y.Q.�,.,cpnseqüênc.ig da liofilização" º-�a-
--."._---�->-,��.� - "-_.�,._---�,.
- " _-"_._._""-�".��,-�---�""--,...,._"-��.",��

serviços continuar absorvendo uma parte dos trabalhadores cional,dos mecanismos da acumulação flexível e das práticas
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que anualmente ingressam no mercado de trabalho ou que __�_��_""'�'.'" .,�,'_�"_" ''''',�,'" ",
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"toyotistas" que foram (parcialmente) assimilada§.'12 setor '�'"'____ ' ", '
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são demitidas dos setores industrial e agropecuário". (op. cit.) !:,:o_�lltiv�_�����i!�ir(l:


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Se,em 1 999, o Brasil estava em terceiro lugar em volume Se é verdade que a baixa remuneração da força de traba­
de desemprego aberto,representandó 5,61 % do total do de­ lho - que se caracteriza como elemento de atração para o
semprego global (sendo que sua população economicamente fluxo de capital externo produtivo em nosso país - pode se
ativa representava 3,12% da PEA mundial),em 1986, esse constituir,em alguma medida,em alguns ramos produtivos,
índice encontrava-se em 13" lugar no desemprego global,re­ como elemento obstaculizador do avanço tecnológico em
presentando 2,75% da PEA global e 1,68% do desemprego nosso país, do mesmo modo a combinação o�t�d!_IJela
m�ndial (Pochmann,2000 e 2001). �ploraçª-º_Qi!.J�r2a.?S.trlll:li!.Ihº"ç()rrlp�drií�s pr(ld.Q;:i­
Portanto,a partir dos anos de 1 990, com a intensificação vos mais avançados constitui-se eme1emel1t()5111��0.fltl,!lll_a
do processo de reestruturação produtiva do capital no Brasil, ' ��;�i��ia�;�ando o�apit�lismo em nosso país: Isso porque,
.....""�,����>".""-'-.''' •._ ''-
--,._,;,,------- , - .' " .
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. .

24 o AVESSO DO TRABALHO C O L E Ç Ã O T R A B A L H O E E M AN C I P A Ç Ã O
para os capitais nacionais e transnacionais produtivos, inte- , .- " . "
" .""
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equipamentos informaciof}ai§" percebendo, porém, salários
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bastante dilapidados, sub-remunerados, em patamares muito ���-=-=.�"�"
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mente precarizadas.

truturação Produtiva no Brasil e Inglaterra. São Paulo, Ed. Boitempo,


Os textos seguintes, em seu sentido polimorfo e 1 995.
multiforme,nos oferecem um panorama presente nos diver­ JINKINGS, Nise. O Mister de Fazer Dinheiro, São Paulo, Ed. Boitempo,
sos setores e ramos produtivos,que auxiliam na compreen­ 1 995.
. Trabalho e Resistência na Ponte A/is/enosa. Campinas,
são do desenho atual do capitalismo brasileiro e sua .;�{ Ed. Unicam
��
l\lIv p, 2002.
reestruturação produtiva, com um olhãr atento para as for­ OJKINE , Jean. A Revolução Informaciona!. São Paulo, Ed. Cortez, 1995.
N0
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COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO 27


o A V E S S O D O T RA B A L H O
SE EU PUDESSE, EU QUEBRARIA
TODAS AS MÁQUINAS2

MARIA APARECIDA MORAES SILVA'

o objetivo deste texto é tecer algumas considerações so­


bre as mudanças ocorridas nas relações de trabalho na agri­
cultura brasileira, especificamente na cultura da cana­
de-açúcar em São Paulo, e seus desdobramentos sobre os
trabalhadores.
As reflexões serão baseadas, principalmente, em pesqui­
sas desenvolvidas na região de Ribeirão Preto, situada no
Nordeste do Estado de São Paulo, considerada uma das mais
ricas do país, e responsável por capitanear o atual processo
de modernização das usinas de açúcar e álcool, mediante a
mecanização do corte da cana, atividade que empregava um
grande número de trabalhadores.

2 Palavras de uma ex-cortadora de cana de Guariba, São Paulo.


3 Professora livre-docente do Programa de Pós-graduação em Sociologia da
Unesp/Araraquara e visitante do Programa de Pós-graduação em Ciências
Sociais da UFSCar.
A mecanização do corte da cana, responsável pela elimi­ chamados excluídos pelas máquinas. Segundo o IEA, a meca­
nação de trinta mil cortadores nos últimos dez anos, coloca nização do corte da cana já atinge 30% em todo o Estado de
uma grande questão acerca dos demitidos.4 Sabe-se que se São Paulo. Dados recentes apontam para um grande cresci­
trata de uma mão-de-obra desqualificada, desvalorizada, que, mento da produção de açúcar e álcool. De acordo com a
segundo as palavras de um trabalhador, "o cortador de cana UNICA (União da Agroindústria Canavieira de São Paulo), a
não passa de um cortador de cana, ele não é outra coisa". A região de Ribeirão Preto, a maior produtora de cana do país, a
situação se agrava em virtude da inexistência do seguro de­ colheita deverá passar de 72,2 milhões de toneladas em 2001
semprego. Ademais, boa parte desse contingente não possui para 80,8 milhões de toneladas em 2002, enquanto a produção
sequer o registro formal de trabalho. Portanto, trata-se de de açúcar passará de 4, 1 milhões de toneladas [em 2001] para
trabalhadores cujos direitos trabalhistas sempre foram inter­ 5,3 milhões de toneladas em 20025• Estima-se qué somente
mitentes, e se caracterizam por pertencerem ao campo dos na região de Ribeirão Preto, existam mais de quinhentas
excluídos da cidadania, mesmo quando estão empregados. colhedeiras de cana, sendo que cada uma possui capacidade
Em outro trabalho (Silva, 1 999), foi abordado o processo de colher setecentas toneladas por dia, o que corresponde à
histórico responsável por essa realidade. Ademais, vários auto­ substituição de cem homens. Desse modo, o equivalente a
res (Alves, 1991; Veiga Filho, 1 994; Scopinho, 1996), além de cinqüenta mil trabalhadores seria o saldo total das demissões
setores ligados aos movimentos sociais (Promotoria Pública provocadas por essas máquinas. Segundo cálculos existentes,
da cidade de Ribeirão Preto/Sp, Pastoral dos Migrantes, Sin­ para cada cem demissões, são abertas doze vagas para funções
dicatos) têm apontado para os efeitos perversos dessa moder­ especializadas, dentre elas, aquelas referentes aos condutores
nização no que tange aos trabalhadores. De um modo geral, as dessas máquinas, pois elas operam durante as 24 horas do dia,
temáticas da modernização e da exclusão ocupam um lugar subvertendo, portanto, totalmente os limites impostos pela
central em todas essas discussões. Neste momento, gostaria natureza no que tange ao trabalho na agricultura. O atual está­
de propor algumas reflexões tendo como eixo a realidade dos gio, definido pelas máquinas colhedeiras, representa o mo­
mento de um processo cuja história se caracterizado por várias
4 Em 1990, havia na região vinte e seis usinas e dezesseis destilarias; sessenta forças antagônicas, a saber: exclusão de boa parte dos traba­
mil trabalhadores eram empregados no corte da cana; a produção era de 55,7 lhadores; superexploração da força de trabalho, aliada ao pro­
milhões de toneladas de cana-de-açúcar e de 3,64 bilhões de litros de álcool.
cesso despótico de seu controle; acumulação primitiva, através
Em 2002, há quarenta e uma usinas, trinta mil cortadores de cana e a produção
de cana se elevou para 80 milhões de toneladas e para 3,7 bilhões de litros de
álcool (Folha de S. Paulo, Folha Ribeirão, 22 de julho de 2002, CI). 5
(Folha de S. Paulo, Folha Ribeirão. 2 de abril de 2002, C3)

30 o AVESSO DO TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO . 31


da tomada de terras para novas plantações de cana; utilização tura canavieira atinge as várias fases do processo produtivo,
das diversas áreas da ciência, como a química, biologia, física, desde a preparação do solo, plantio, colheita e transporte da
mecânica e outras como força produtiva geral, além da cana até a área industrial da usina. Isso tem sido feito por
informática e das modernas formas de administração e recur­ meio de inovações tecnológicas, biológicas, físicas, químicas
sos humanos etc." A interação de todos esses elementos veri­ etc. Desde os anos de 1970, muitos centros de pesquisas da
fica-se de maneira conflituosa, quer por intermédio da região, sem contar a implantação recente do curso de gradua­
resistência dos trabalhadores, quer pela própria concorrência ção de Engenharia de Produção Agronômica, da UFSCar,
entre os diversos capitais, pela formação de lobbies dos usineiros vêm desenvolvendo pesquisas na área da Biotecnologia, vol­
para a garantia dos privilégios no Congresso Nacional, ou mes­ tadas, principalmente, para as novas variedades genéticas da
mo pela pressão de movimentos sociais contra a queima da cana. Com isso, registraram-se melhoramentos expressivos
cana, ou da Promotoria Pública - que age contra o emprego de nos teores de sacarose, no controle de pragas e no prolonga­
crianças no corte, contra as queimadas ou a favor da reforma mento da vida útil da planta, aumentando, assim, o número
agrária nessa região, mediante a defesa da propriedade da ter­ de cortes, sem necessidade de replanta (Scopinho, 1995).
ra com a finalidade social e, mais recentemente, pela ocupa­ Observa-se, também, a criação das biofábricas de cana,
ção de terras de usinas, situadas na região, por trabalhadores verdadeiros laboratórios, onde as plantas são produzidas in
rurais excluídos. vitro e onde são controlados os aspectos fitossanitários. Isso
Diversos autores (Silva, 1981; Alves 1991; Veiga Filho et tem permitido a elevação dos níveis de produtividade em
a/ii, 1 994) mostram que o processo de modernização da cu 1- até 30%, além de aumentar a longevidade do canavial (Lee,
1992). Ao lado dessas transformações biológicas, há que se
registrar a enorme variedade de produtos químicos empre­
6 Nessa região, a produtividade por ha é de noventa toneladas, enquanto a média
nacional é de sessenta e cinco toneladas; apresenta um maior rendimento de
gados no controle de pragas, doenças e ervas daninhas, sem
açúcar e álcool (de 1 1 5 a 120 quilos de açúcar e de 85 a 90 litros de álcool, contar que a carpa manual foi substituída pela carpa quími­
enquanto a média nacional é de ce� quilos e setenta litros, respectivamente, ca. Tais inovações, sem sombra de dúvidas, aumentaram a
para cada tonelada de cana) ( Folha de S. Paulo, 28 de maio de maio, 1991, p.
produtividade do trabalho e diminuíram a quantidade de tra­
28). No Estado de São Paulo, há 135 unidades produtoras de cana de açúcar,
com uma colheita estimada em 165 milhões de toneladas e uma produção de balhadores empregados.
açúcar de 8,2 milhões de toneladas e 8,4 bilhões de litros de álcool. Para essa O plantio era caracterizado pela combinação de homens
enorme produção, cujo faturamento gira em torno de US$ 5,5 bilhões, há
máquinas. Essa fase exigia um grande dispêndio de energias
quatrocentos inil empregos diretos e 1,2 milhão indiretos. (Folha de S. Paulo,
6. caderno. 8 de janeiro de 1997. p. 1). por parte dos trabalhadores, pois eram obrigados a operar no

32 o AV E S S O DO TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO .33


ritmo dos tratores. Nos últimos anos da década de 1990, houve Fapesp em conjunto com a Copersucar e cerca de 60 laborató­

também a mecanização dessa atividade, que ocupava grande rios em todo o país (US$ 6 milhões), mapeou cerca de 238 mil

quantidade de mão-de-obra. Atualmente, já está sendo utili­ trechos de genes, que, quando combinados adequadamente,
zado um equipamento que junta a palha deixada depois da co­ representam 43 mil genes, dos quais cerca de um terço tem
lheita. O referido equipame nto permite tratar o solo sem todas as suas letras identificadas.' A lista do processo de mo­

necessidade de juntar a palha (Scopinho, 1995, p. 59). No que dernização não pára aí. No entanto, nos limites desse texto,

se refere ao trato da cultura, o processo de adubação é feito por objetiva-se à compreensão dos resultados desse processo vis­

máquinas, cada vez mais apropriadas para não danificar o ter­ à-vis os trabalhadores. Assim, as seguintes questões poderiam

reno e as plantas. A adubação com produtos orgânicos, tal ser elencadas: o que ocorre além dos canaviais? O que acontece

como a vinhaça, é realizada por caminhões que tracionam tan­ aos descartados pelas máquinas? Estar-se-ia diante da profe­
ques de plástico com reforço de fibra de vidro (os minhocões). cia do fim do trabalho? Os descartados são excluídos? A res­
Para a aplicação de produtos químicos, empregam-se também posta a essas questões não pode deixar de considerar as
aviões, diminuindo, drasticamente, a utilização de mão-de­ inúmeras clivagens existentes entre estes trabalhadores: os
obra (Scopinho, 1995, p. 59-60). Ademais da modernização da migrantes, provenientes de várias partes do país, as mulheres,
produção de açúcar e álcool, há fortes investimentos na os mais velhos, além das divisões ocupacionais, resultantes de
tecnologia da transformação do bagaço de cana em energia, processos distintos de qualificação. Portanto, além dos critérios
sobretudo após a crise energética do ano de 2001, sem contar de classe, os de gênero, regionalidade e idade devem ser leva­
que as usinas antes do período de racionamento já eram auto­ dos em conta na análise.
suficientes. Os dados de pesquisas levadas a cabo nos últimos anos
Os avanços da genética estão beneficiando várias usinas têm revelado o seguinte quadro:
dessa região. Graças a pesquisas desenvolvidas pela UFSCar, muitos dos excluídos desta modernização têm se transformado em
houve alteração genética da cana. Os efeitos foram o aumento verdadeiros itinerantes em busca de trabalho em várias regiões do
da produtividade e a melhora dos produtos derivados da cana país. Portanto, há uma ligação estreita entre o processo de moderni­
- açúcar e álcool. Segundo esses estudos, O aumento da pro­ zação e a mobilidade espacial de milhares de pessoas. Um ponto que
dutividade foi em torno de 20% na produção por hectare. An­ vale a pena ressaltar é que, ao mesmo tempo que essa região conti­
tes dos estudos, a média era em torno de 70 toneladas por nua atraindo grandes massas de migrantes, ela também expulsa ou-
hectare. Com a aplicação das pesquisas, esse número foi para
, (Folha de S. Paulo. Folha Ribeirão. 14 de julho de 2002, Cl)
85. Por outro lado, o Projero Genoma Cana, financiado pela

34 o A V E S S O DO T R A B A L H O COlEÇÃO TRABALHO E EMANCJPAÇÃO 35


-

tros milhares. Nesse sentido, houve a redefinição da cartografia mi­ ses, apontada por vários autores (Standing, 2000; Antunes, 2000;
gratória. Até os finais da década de 1990, a maioria dos migrantes era Mattoso, 1996; Gollac, 1 996), onde o processo de reestruturação
proveniente do interior da Bahia e do Vale do ]equitinhonha, MG. produtiva foi acompanhado do aumento da intensificação da ex­
Atualmente, o destino desses migrantes tem sido as usinas do Estado ploração da força de trabalho, além da insegurança laboral, da pre­
de Mato Grosso do Sul, principalmente no município de Rio Bri­ cariedade, dentre outros males impingidos aos trabalhadores.
lhante, onde, em passado recente, houve muitas denúncias de traba­ A ausência de alternativas, além da omissão do Estado,
lho escravo. Por outro lado, muitos trabalhadores residentes neSsa tem criado as bases para um deslocamento espacial e tempo­
região também se deslocaram para aquelas usinas, cuja mecanização ral incessante. Ao contrário da realidade de muitos países
do corte da cana é ainda muito insipiente. Este deslocamento de ricos, onde os direitos e a cidadania ainda preservam o status
trabalhadores - resultante da concorrência entre os capitais de com­ dos desempregados, a situação brasileira, especificamente
posição orgânica diferenciada - não pode ser entendido como uma desse contingente, é marcada pela despossessão e desenraiza­
simples transferência de força de trabalho entre as usinas (o que po­ mento constantes. São vidas definidas por um vaivém pere­
deria ser entendido como sendo a manutenção do mesmo nível de ne, por uma eterna migração forçada que lhes impinge a marca
emprego), porém, como uma estratégia para intensificar a explora­ de um destino social. Na luta pelo direito à sobrevivência,
ção e, pour cause, aumentar a captação geral do sobretrabalho. resistem à condição de párias, de mendigos. Os trajetos de
1\tluitos dos migrantes atuais são provenientes do 1\tlaranhão, Ceará, suas andanças refletem a busca de um ponto fixo na escala
Alagoas, Piauí, Estados que, no passado, tinham pouca participa­ social (Borges, 2002). Resistem ao processo descendente
ção nesse processo. A explicação que pode ser dada para a mudan­ imposto pela estrutura social e independente de suas vonta­
ça da cartografia migratória reside no fato de que houve uma enorme des. As pessoas não migram porque querem. Defende-se,
intensificação do ritmo do trabalho, traduzida em termos da média de antemão, a idéia de uma migração forçada, imposta pela
de cana cortada, em torno de dez toneladas diárias. Esse fato está estrutura social, econômica e política atua!.8 A migração é re­
diretamente relacionado à capacidade física, portanto, à idade, na sultado de um processo histórico e, ao mesmo tempo, causa
medida que, acima de trinta anos de idade, os trabalhadores à en­ de um outro. É justamente aí que residem as bases analíticas
contram mais dificuldades para serem empregados. Dessa sorte, a da ação dos sujeitos envolvidos. A exclusão não pode ser vista
vinda desses outros migrantes cumpre a função de repor, por meio
S "• • • !Uuiras pessoas que migram, migram porque decidiram migrar; migram
do fornecimento de maior força de trabalho, o con�sumo exigido
porque migrar era a melhor alternativa. Isso não quer dizer que seja a correta
pelos capitais cuja composição orgânica é maior. Essa realidade, alternativa, mas era a melhor alternativa no julgamento do migrante." Ver, a
num primeiro momento, não se diferencia daquela de outros paí- respeito, Martins (1998, pp. 19-34).

o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO 37


como algo absoluto, ptonto, fechado, finito. Entende-se a mi­ vas diferenciadas, como conexões de diferentes matizes so­
gração como uma abertura, como caminho para novos ciclos ciais, como, segundo as palavras de Castel, como "zona de
que se abrem e se fecham constantemente. Dessa sorte, con­ integração, zona de vulnerabilidade, zona de assistência, zona
sidera-se a exclusão em termos relativos, gerando, contradito­ de exclusão ou sobretudo de desafiliação" (p. 414). Ainda há
riamente, possibilidades e alternativas realizadas pelos próprios um outro ponto importante nas reflexões desse autor. A no­
sujeitos. Os atos de violência ligados ao tráfico de drogas, con­ ção de desafiliação não significa necessariamente a ausência
siderados negativos, a participação em movimentos sociais e de vínculos. Nesse sentido, as gangues de jovens desocupa­
políticos organizados, a inserção em trabalhos mais precários e dos possuem vínculos; no entanto, eles são frágeis, incapa­
a migração são fissuras abertas, provocadas pela exclusão. Nesse zes de criarem projetos sociais, capazes de sustentar as ações
sentido, defende-se a idéia da existência de um processo de dos sujeitos e lhes permitirem a integração social assentada
exclusão-inclusão precária, que remete à disjunção, porém com em relações de sociabilidade. Portanto, a noção de desafiliação
continuidade, ainda que precária. Esta idéia está ancorada na contém, além dos aspectos relacionados ao trabalho, aqueles
noção de desafiliação, proposta por Castel ( 1 995). "Falar de referentes às relações de sociabilidade, que se produzem na
desafiliação... não é pressupor uma ruptura, mas recompor um esfera do trabalho propriamente dita e em outras esferas so­
percurso. A noção pertence ao mesmo campo semântico da ciais, tais como a família, a comunidade etc. Nesse sentido,
dissociação, da desqualificação ou da invalidação social. vale lembrar a proliferação de gangues de jovens e adoles­
Desafiliado, dissociado, invalidado, desqualificado, em rela­ centes em vários municípios canavieiros dessa região, como
ção a quem?" (p. 15) Guariba, Serrana, Batatais, Pontal, Guará, dentre outras.9
Desse modo, essa noção pressupõe uma análise diacrô­
nica, longitudinal, um quadro de relações entre passado e
presente: o passado como O espaço da centralidade e da in­ 9
Segundo dados da Polícia Civil e Militar, atuam atualmente na região em
serção e o presente como O da exclusão-inclusão precária. tomo de vinte e cinco gangues. Guariba concentra o maior número (sete); em
Serrana há três, em Pontal duas e Guará duas. Os integrantes praticam o tráfico
Esse mesmo autor, parafraseando M. Pialoux, afirma sobre a
de drogas, roubos, homicídios, sem contar a cobrança de pedágios para a
existência de uma precariedade como destino (p. 4 1 1 ). Re­ circulação nas ruas e a imposição do toque de recolher (Folha de S. Paulo,
tomando as inflexões acerca das fissuras, dos poros existen­ Folha Ribeirão. 17 de março de 2002, Cl e C3). Outra cidade onde a violência
e criminalidade atingem altos índices é Vargern Grande do Sul com apenas 19
tes nesse processo, pode-se compreender o hífen, situado
mil habitantes. De 1999 a 2000, o número de homicídios quintuplicou na
entre a exclusão e a inclusão como um espaço que, além de
cidade. O desemprego de jovens é apontado como a causa principal para esse
unir os dois pólos, caracteriza-se como espaço de alternati- fato (Folha de S. Paulo, Folha Ribeirão. 7 de abril de 2002. C5).

o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO I , 39


Uma análise comparativa vis-à-vis outros setores da eco­ Qual o destino dessas pessoas, trabalhadores locais e
nomia apontam para a precariedade do trabalho, o cresci­ migrantes provenientes de várias regiões do país, principalmen­
mento vertiginoso do trabalho informal (mais de 50% dos te das áreas mais pobres, como o vale do Jequitinhonha e Esta­
trabalhadores brasileiros), o desemprego, sem contar as ten­ dos d o Nordeste? Como estão sobrevivendo? Sem ter a
tativas do atual governo em mudar o conteúdo da CLTlo. pretensão de dar respostas definitivas a essas questões, nem
No que tange à realidade de outros países", verifica-se o estabelecer relações mecânicas, e retomando as inflexões aci­
processo de desmonte da estabilidade laboral, o crescimento ma, propõe-se, primeiramente, o entendimento da exclusão,
do trabalho em tempo parcial, do temporário e também do enquanto processo. Reafirma-se a idéia de exclusão-inclusão
processo de feminização do trabalho, sobretudo nas ativi­ precária levando-se em conta os poros, as fissuras entre a exclu­
dades mais desqualificadas, aliadas ao trabalho em domicí­ são e a inclusão precária. Num segundo momento, propõe-se,
lio (Abreu, Sorj, 1995; Abreu, 1 994; Abreu, 1995; Brushini; a partir da história do processo de proletarização desses traba­
Standing, 2000). Tais estudos poderiam sugerir, à primeira lhadores, a redefinição do termo precariedade dado que seu
vista, que a realidade aqui tratada nada mais é do que a viver sempre teve essa marca. A formalidade e a estabilidade do
confirmação desse quadro universal. No entanto, se, por trabalho nunca existiram de fato, a não ser em momentos inter­
um lado, tais reflexões são extremamente importantes à mitentes. Pode-se dizer que esse trabalhador, na sua vertente
compreensão da situação de milhares de trabalhadores ru­ inicial de volante, já nasce enquanto precário, contingente,
rais, migrantes ou não, despedidos em razão do processo de eventual, inconsistente. A própria legislação não o reconhece
modernização das usinas de açúcar e álcool dessa região, enquanto trabalhador. No momento em que surgiu a legislação
por outro lado, essa realidade possui determinadas particu­ trabalhista, em 1943, os trabalhadores rurais não foram benefi­
laridades que não podem ser esquecidas, sob pena de per­ ciados, uma vez que, na maior parte do país, continuaram
der a historicidade desse processo. vigendo os contratos particulares entre empregados e patrões­
como os contratos de colonos - ou ainda as formas híbridas de
trabalho, como parceria, arrendamento, posse, dentre outras.
10 Assiste-se hoje, no Brasil, ao debate em torno das modificações da CLT.
l! E m 1963, foi votado pelo Congresso Nacional o Estatuto do
Na Itália, as tentativas de mudança do artigo da legislação trabalhista têm
ocasionado protestos em várias cidades, levando às ruas milhões de pessoas. Trabalhador Rural (ETR), pelo qual os direitos trabalhistas
O ajuste do artigo 1 8 do código trabalhista, que obriga as empresas a readmitir
eram estendidos ao campo. O ETR acrescentou alguns ele­
qualquer pessoa demitida sem justa causa, seria o começo de um conjunto de
reformas que, no futuro próximo, trariam grandes perdas aos trabalhadores
mentos importantes: .concessão de indenização por demissão
(Folha de S. Paulo, 17 de abril de 2002, AIS). sem justa causa, estabilidade no trabalho, regulamentação do

40 o AVESSO DO TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO 41


trabalho da mulher e da criança e a imposição do pagamento de ria, há um outro correlato, que é o da exclusão-desestrutu­
27,1% sobre cada jornada de trabalho, correspondente aos gas­ ração. Esses dois processos acham-se enovelados.
tos sociais. Eis aí um ponto bastante conflituoso, dado que os Antes da atual fase de modernização produtiva, a probabi­
trabalhadores permanentes eram mais onerosos e, por isso, eles lidade de emprego era muito grande, dado o desenvolvimen­
foram despedidos para serem, em seguida, admitidos como to das forças produtivas que requeriam grandes contingentes
volantes, isto é, uma força de trabalho mais barata, porque os de força de trabalho. Tal situação foi sustentada durante mais
gasros sociais não seriam computados (Silva, 1999, p. 64). Nesse de quatro décadas pelos excedentes, residentes em várias re­
cóntexro, foi produzido o processo de volantização dessa força giões deste país, que alimentaram o fenômeno migratório para
de trabalho, cujos resultados foram a eliminação dos direitos, já essa região (Silva, 1999). Quando ocorrem as transformações
que esses trabalhadores foram considerados como não-trabalha­ acima citadas, as cancelas das usinas se fecham aos milhares
dores, não-empregados, porque, em razão do trabalho ora numa que continuam chegando e também àqueles que foram gera­
fazenda, ora noutra, não foram reconhecidos legalmente como dos em seu território, impondo-lhes a determinidade do não­
possuidores de um empregador. trabalho. Como sói acontecer, mais uma vez, os critérios da
Logo, a questão, neste momento, é muito mais .substan­ não empregabilidade recebem a marca da naturalização. Os
tiva do que adjetiva. Ainda mais. No que tange à flexibilização rejeitados são as mulheres, consideradas frágeis, não adapta­
do trabalho, corolário de todas as discussões sobre o atual das aos trabalhos pesados, e os acima de 30 anos, considerados
processo de mundialização do capital, também é necessário incapazes. Aqueles, cuja atuação política remete em questão
fazer algumas considerações. No caso das usinas dessa re­ esse estado de coisas, também são descartados. Imprime-se
gião, na verdade o que existe é a inflexibilidade, definida aos trabalhadores a culpa do não-emprego.
por condições de contorno - cientificamente controladas. O 1àis inflexões podem ser mais aclaradas a partir de duas
novo no atual momento não é mais o Estado anárquico, considerações:
probabilístico, porém, determinístico, em que o não-empre­ apresentação de um quadro descritivo sobre � cartografia da "mo­
go ou, mais precisamente, a inflexibilidade do não-emprego bilidade espacial precária" existente. Apenas um estudo mais
caracteriza-se como um verdadeiro processo de fagocitose." aprofundado em várias partes do país poderia dar conta desse uni­
Assim sendo, além do processo de exclusão-inclusão precá- verso. Em virtude das imensas dimensões geográficas aliadas às
facilidades dos meios de transportes e à existência de muitas áreas

12 Fagocitose é ingestão e destruição de uma partícula sólida ou de um agrícolas, principalmente canavieiras, cujo grau de reenificação ainda
microorganismo por uma célula (Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa). é inferior àquele das usinas dessa região, cria-se a possibilidade de

42 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANC!PAÇÃO 43


inserção dos des pedidos, sob diferentes formas. Nesse quadro, a dores durante a colheita da laranja, implicando em menores
realidade analisada reportar-se-ia aos afetados pelos dois processos: ganhos, uma vez que o tempo do não-trabalho é ainda maior,
de exclusão-inclusão precária e de exclusão-desestruturação. sem contar o acréscimo dos descontos nos salários que conti­
Apresentação de um segundo quadro que afeta sobretu- nuam sendo por produção, ou seja, por caixas de laranja colhi­
do as mulheres, contrariando a tendência geral da maiOr das. O estatuto de cooperado, na verdade, significa o
empregabilidade feminina neste momento atual. atre/amento aos gatos, em virtude da impossibilidade de re­
clamações, fato que pode conduzir à demissão do trabalhador.
PRIMEIRO QUADRO - A PRECARIEDADE DOS PRECÁRIOS Durante os últimos sete anos, houve um grande crescimento
O aumento da precariedade do trabalho é manifestada pela do número de ações trabalhistas, movidas pelos trabalhadores
diminuição dos salários, atrasos constantes no pagamento dos contra essas cooperativas, fato que levou ao fechamento de
mesmos e presença das cooperativas de trabalhadores, que muitas delas pela Justiça do Trabalho, embora outras tenham
correspondem ao fim dos direitos adquiridos ao longo de várias renascido, inclusive com atuação na canavieira.13
décadas de lutas dos canavieiros dessa região. Segundo infor­
13 Essas falsas cooperativas não proliferaram apenas no campo. Em razão do
mações recentes, algumas usinas estão se utilizando de vales desmonte dos direitos trabalhistas no país, observa-se que elas abrangem muitos
(tíquetes) como forma de pagamento. Outras, ainda, estão outros setores da economia.
"As fraudes, segundo a Procuradoria Geral do Trabalho, saíram das
parcelando, em até três vezes, os salários. Quanto às coopera­
cooperativas que atuavam no meio rural para as cooperativas urbanas,
tivas de trabalhadores, elas, na verdade, representam uma especialmente a partir de 1997. Isso coincide com o fato de o Ministério do
maneira de escamotear os direitos, como o registro em cartei­ Trabalho combater com mais força as fraudes no campo...
"No meio rural, os bóias-frias muitas vezes nem sabiam que eram cooperados.
ra, bandeira de luta dos trabalhadores durante décadas segui­
Chegavam a trabalhar 1 5 horas por dia sem qualquer benefício oferecido por
das. Elas são chamadas na região de copergatas, em alusão aos uma coop �rativa, como por exemplo receber as sobras de dinheiro geradas
"gatos", arregimentadores desse mercado de trabalho. Essas em um ano." (Folha de S. Paulo, 7 de abril de 2002, B3).
Em 1990, havia 2.883.036 cooperados no país; em 2Q01, esse número sobe
falsas cooperativas proliferaram principalmente na citricultura.
para 4.779.147. As cooperativas do trabalho são as que mais cresceram . Em
Além da perda dos direitos, da volta dos "gatos", houve, com 1990, eram em número de 528, passando para 2.391 em 2001 (Folha de S.
a implantação dessas cooperativas, a diminuição do poder dos Paulo, 7 de abril de '2002, B4). Segundo ainda essa fonte, de cada cem

sindicatos, em razão de que os trabalhadores, teoricamente, trabalhadores no Brasil, sete são profissionais reunidos em cooperativas. A
expansão das cooperativas no ramo do trabalho, deveu-se ao desemprego e á
tornam-se cooperados, sócios da empresa, porque detêm a cota­
inclusão na CLT, em 1994, de um artigo que permite que o cooperado preste
parte do capital que as constituiu (Alves, Almeida, 2000). serviços a uma empresa sem vínculos empregatícios. A alteração foi feita por
Houve também o crescimento da rotatividade dos trabalha- meio da Lei n° 8.949, artigo 442 da CLT.

o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO . 45


;

Por outro lado, intensificam-se as exigências quanto à "Em Iracemópolis e Itápolis, as prefeituras estão pressionando as
qualificação, principalmente no tocante aos níveis de esco­ usinas para que sejam contratados apenas os trabalhadores locais."
laridade. Vários depoimentos de trabalhadores atestam para (CÁ e LÁ, ano 12, n" 99, junho/julho/1999)
uma exigência insólita: quatro anos de escolaridade para o "Na entressafra, aumenta a precariedade do trabalho.. Muitos tra­
trabalho no corte da cana e oito anos para aqueles que se balhadores se destinam às atividades da colheita de amendoim ,
destinam às tarefas da área industrial da usina. A fim de con­ cujo pagamento é em torno de R$ 0,01 (um centavo) por metro de
solidar essas afirmações, alguns exemplos, coligidos pela amendoim colhido. Outros colhem algodão pelo preço de R$ 1,00
Pastoral dos Migrantes em várias partes do país, são impor­ (um real ) por arroba." (CÁ e LÁ, ano 12, n" 91, fevereiro/março/
tantes para a ilustração do quadro. 1998)
"A turma, que trabalha com o gato Nenzão, está cortando sete ruas "Algumas prefeituras da região de Ribeirão Preto estão pagando
de cana." (Boletim CÁ e LÁ, ano 12, n" 99 A, agosto/setembro/1999) ônibus para levar os migrantes de volta para suas cidades. Uma
Isso representa um enorme retrocesso na luta dos trabalhadores delas é Santa Cruz das Palmeiras." (CÁ e LÁ, ano 12, n° 85, abril/
rurais dessa região. As greves em 1984 e 1 985 tiveram como princi­ 1997)
pal motivo a reivindicação da passagem de sete para cinco ruas. 14 "Em Santa Cruz das Palmeiras/SP, a contratação da mão-de-obra é
"Na zona rural do município de wlinas Novas, nas primeiras sema­ feita pelas usinas, que retira parte do salário dos trabalhadores para
nas do mês de maio, saíram em torno de trinta ônibus com traba­ pagar aos donos de pensão, uma vez que elas não possuem aloja­
lhadores, que se destinavam às usinas de São Paulo e Mato Grosso. mentos. Não há contrato de trabalho. Foram registradas duas mor­
Um trabalhador que não conseguiu emprego se jogou do ônibus e tes em razão de meningite e mais 14 casos notificados.
morreu, outro voltou doente cm estado de choque amarrado num "Na lavoura de laranja em Araraquara e Matão, nos salões de açú­
banco do ônibus." (CÁ e LÁ, ano 12, n" 98, abril/maio/1999) car, nas -atividades de ensacamento e empilhamento, da usina
Bonfim (Guariba), os trabalhadores estão sendo contratados pelas
14 Essas greves são conhecidas como as greves de Guariba, pois foi nessa cidade Copergatos, sem registro formal de contrato de trabalho." (VAIVÉM,
de trabalhadores rurais que os mov�mentos de revolta começaram. O maior
fator responsável pelos conflitos foram as mudanças implantadas pelas usinas ano 15, n° 68, julho, agosto, setembro/1996).
no processo de trabalho. Até então, o corte da cana era feito levando-se em Informações recentes apontam para a diminuição dos sa­
conta as cinco mas, ou seja, cada trabalhador cortava cinco fileiras de cana. A lários em vários locais. Na região de Araraquara/SP, a caixa
passagem para sete ruas implicava maior intensidade do trabalho, portanto, o
- de laranja está sendo paga a apenas R$ 0,50, enquanto no
aumento da mais-valia relativa, maior exploração, já que os salários
continuavam os mesmos. A maior vitória desses movimentos foi a fixação de ano passado (2001), o preço era correspondente a R$ 1,30.
cinco ruas (fileiras de cana). Na região de Ribeirão Preto, para compensar a fraca alimen-

46 o AVESSO 00 TRABALHO C O L E ÇÃ O TRABALHO E EMAN CIPAÇÃO 47


tação dos cortadores de cana e as exigências do aumento da po para cortar cana" se reporta aos usuários dessa droga du­
produtividade, os usineiros, orientados por nutricionistas, rante o trabalho. Estes casos são bastante próximos daqueles
estão distribuindo um componente à base de glicose aos tra­ descritos por Marx em O Capital, referentes às indústrias da
balhadores, depois do meio-dia, quando, em razão do au­ Inglaterra no século 19. Era o momento em que o capital não
mento do dispêndio de energia, há muitas manifestações de explorava apenas a força do trabalhador, mas o consumia in­
cãibras e fortes dores na coluna. A perda líquida do organis­ teiramente. Muitas vidas foram ceifadas em função das lon­
mo em função do alto ritmo de trabalho - o cortador dá 9.700 gas jornadas e das péssimas condições de trabalho. Na
golpes de facão para atingir a média de dez toneladas diárias expressão marxiana, o capital era o "vampiro" que se ali­
de cana - além de ocasionar as cãibras, provoca inúmeras mentava do sangue dos trabalhadores!
disfunções físicas que chegam a provocar enfartes. Foram No que tange às usinas dessa região, a intensificação do
colhidos muitos depoimentos de familiares de jovens que, trabalho, associada às condições insalubres - calor excessivo,
após a jornada de trabalho, sentiram muitas cãibras e dores fuligem da cana queimada misturada aos resíduos de
no peito, vindo a falecer em seguida. Na região da Alta agrotóxicos, posição curvada do corpo, pois a cana precisa ser
Paulista, mais precisamente no município de Pacaembu, os cortada a três centímetros do rés do chão à fraca alimenta­
trabalhadores estão sendo vitimados pela "birola", assim ção, reduz o trabalhador no final da safra a um "bagaço de
definida por eles. Em razão do esforço desmesurado, muitos cana", com os nervos esgotados, sem contar aqueles em cujos
são acometidos durante o tra b alho por convulsões, atestados de óbitos não aparecem as causas da morte, aque­
tremedeiras, suores, havendo casos de mortes no canavial, las que, após o trabalho nas estufas de preparação das gemas
segundo alguns relatos (Rumin, 2002). Para a reposição de para as mudas de cana, vêm a falecer de câncer na garganta.
energias, muitos trabalhadores fazem uso de medicamentos No caso inglês, Marx afirma que houve a necessidade da
(injeções amarelinhas), cujos efeitos para a saúde lhes são intervenção do Estado para conter o extermínio dos traba­
totalmente desconhecidos. Há alguns ànos, reportagens vei­ lhadores pelo capital. No caso brasileiro, não há nenhuma
culadas pela mídia televisiva chocaram o país ao revelarem o medida neste sentido. Os trabalhadores mortos e os incapa­
uso de drogas, como o crack, pelos cortadores de cana na re­ citados são substituídos constantemente pelos integrantes
gião de ]aú, a fim de aumentarem o ritmo de trabalho. O do enorme exército de reserva, geralmente provenientes das
Departamento de Toxicologia da Faculdade de Medicina da regiões mais pobres do país. A grande preocupação dos re­
Unesp/Botucatu possui registros sobre essa realidade, que presentantes desse capital gira em torno do emprego cada
continua ocorrendo. A expressão "estar com o diabo no cor- vez maior de tecnologias avançadas, algo comprovado nas

o AVESSO DO TRABAL H O COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO


p

Feiras Internacionais - Agrishow - realizadas anualmente na sofreu uma redução de 96% da área plantada nos últimos
cidade de Ribeirão Preto, que, neste ano de 2002, movimen­ dez anos. Nesse Estado, nos últimos dez anos, o número de
tou, com a venda de máquinas, cerca mais de um bilhão e desempregados do algodão foi de 19.097 trabalhadores, se­
duzentos milhões de reais, a qual compareceram além de gundo dados da Secretaria da Agricultura. Somente na safra
políticos e empresários nacionais, representantes de empre­ de 2002, O número de desempregados será de 7.600. O algo­
sas de vários países do mundo.t' dão, cuja colheita até alguns anos atrás era inteiramente ma­
Essa situação de superexploração do trabalho é evidencia­ nual, atualmente está sendo colhido por máquinas que
da, não apenas pela forma de salário baseada no quantum de substituem até duzentos trabalhadores (Boletim do Migrante,
produção e pela elevação da média de produtividade, atual­ Londrina/PR, ano 8, n° 32, junho de 2002, p. 2).
mente fixada em dez toneladas de cana cortada por dia, mas A utilização de grandes máquinas está ocorrendo tam­
também pela recente introdução de uma outra atividade re­ bém na colheita do café, muito embora essa atividade ainda
lacionada à colheita do amendoim. O amendoim é plantado continue sendo majoritariamente manual. Em virtude da
no canavial logo após o corte, para evitar os males causados à enorme safra esperada para este ano, essa cultura ainda for­
terra pelas máquinas em virtude da compactação do solo. nece emprego para grandes contingentes de trabalhadores
Durante a fase da colheita do amendoim, são utilizadas duas dessa região e de outras áreas do país. Segundo depoimentos
máquinas, uma para arrancá-lo e outra para debulhá-lo. En­ de fazendeiros de café, há a necessidade de fornecimento de
tre as duas máquinas, trabalhando em geral de joelhos, fi­ glicose e leite de soja aos migrantes durante a jornada de
cam os trabalhadores, geralmente velhos e crianças, cuja trabalho em razão da "fraqueza" de seus corpos. Vale a pena
atividade consiste em sacudir as plantas a fim de lhes retirar lembrar que, até há alguns anos atrás, esses trabalhadores
o excesso de terra para não comprometer o funcionamento vinham em família, incluindo as crianças que ajudavam os
da segunda máquina. Esse exemplo revela que o processo pais na colheita do café. Amalmente, em razão da proibição
de precariedade do trabalho nessa cultura está ligado aos cri­ de trabalho infantil, as crianças são deixadas sob a guarda de
térios de idade, gênero e regionalidade, como foi dito acima. parentes ou conhecidos em seus lugares de origem. Esse fato,
Retomando as reflexões sobre o avanço tecnológico aci­ além de onerar os parcos orçamentos, contribui para aumen­
ma expostas, pode-se citar um outro exemplo. A região de tar os problemas da sociabilidade familiar tendo em vista o
Londrina, maior produtora de algodão do Estado ..do Paraná, largo tempo de ausência dos pais. Muitas mães se referem à
saudade dos filhos, sobretudo quando há problemas de saú­
IS
(Folha de S. Paulo, Folha Ribeirão, 6 de maio de 2002, C l ) de e quando os mesmos não são bem cuidados. A situação de

50 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO


itinerância desses homens e mulheres, que, incessantemen­ 'Nligrantes), foram contactadas sindicaIis�as, representantes da
te, estão partindo em busca de trabalho, é pautada por rela­ Fetagri e dos usineiros. Foram feitos acordos com os mais de 400
ções de despossessão, cujos efeitos atingem o grupo familiar trabalhadores, maranhenses e baianos, pelos quais os mesmos re­
como um todo. Sentem-se desterritorializados, fora do lugar. ceberam os salários atrasados, muito embora muito aquém dos pre­
A expressão "aqui não é a terra, não é o lugar da gente" re­ ços estipulados pelos 'gatos'. Os trabalhadores receberam as
flete os significados simbólicos da ruptura com a terra, com o passagens de retorno." (Notícias - SPM, n° 51, setembro de 1998)
lugar de origem e com a sociabilidade pautada nas relações "Essa usina não atende às normas de segurança e saúde exigidas
de vizinhança, compadrio e parentesco existentes. por lei; as condições de saúde nos alojamentos são aviltantes e aten­
tam contra a dignidade e a saúde dos trabalhadores; os banheiros
A VULNERABILIDADE DOS VULNERÁVEIS são imundos, restos de comida estão espalhados pelo pátio, onde
Em recente visita a um alojamento de trabalhadores homens e moscas convivem em situação deprimente; os trabalha­
migrantes, ptovenientes do vale do Jequitinhonha/MG, cons­ dores em dia de folga só recebem o almoço às 15,30hs; eles não
tatou-se que um deles havia migrado em 1996 para as usinas dispõem de água para lavar suas roupas e para higiene pessoal; o
de São Paulo, em 1997 para as de Mato Grosso e, em 1 998, registro d'água só é aberto quando chegam da roça e não é suficien­
migrou para o Estado de Amazonas também para cortar cana. te para todos; o transporte e feito em caminhões-gaiola, próprio
Relatou que fora levado de avião por um "gato", aí perma­ para o transporte de gado; em caso de acidentes no trabalho, eles
necendo por três meses apenas, pois não suportara o calor de são levados para os alojamentos sem nenhum socorro." (VAIVÉM,
mais de 45 graus. Os dados da Pastoral dos Migrantes confir­ ano 19, n° 77, julho, agosto, setembro/1999)
mam a situação de itinerância de milhares de trabalhadores Essa situação guarda fortes semelhanças com aquelas
de um lado para o outro do país. No mês de março deste ano, vivenciadas pela autora deste texto e pela professora Marilda
durante o trabalho de campo, foi encontrado um trabalha­ de Menezes, por ocasião de uma visita aos alojamentos de
dor, que padecia de pneumonia, que acabara de chegar da trabalhadores paraibanas nas usinas da Zona da Mata de
Guiana Francesa, onde trabalhava como clandestino. Pernambuco. Um pequeno excerto das anotações do caderno
"Inúmeros maranhenses que trabalhavam na usina de Aleopam de de campo revela a situação de miserabilidade vivenciada:
Poconé/MT saíram a pé e de carona ao longo dos 120 km que os HHavia poucos trabalhadores no local, recentemente chegados do
levaria até Cuiabá. Paralisaram o trabalho porque há três meses não trabalho. Havia apenas um trabalhador de Fagundes. Os demais
recebiam, a não ser pressões, humilhações e comida de péssima eram oriundos do próprio Estado de Pernambuco. Alguns já haviam
qualidade... Após denúncias ao CPM (Centro de Pastoral dos trocado de roupa, outros estavam preparando o almoço. Em virtu-

52 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANC!PAÇÃO " 53


de do controle, estávamos muito apreensivos, não somente cm re­ isto é, mexido com uma colher de pau, quarenta vezes, o qual ser­
lação ao nosso trabalho, mas também aos trabalhadores. As condi­ ve como refeição por volta das 9:00hs. Em se tratando de uma ati­
ções de vida nesse alojamento eram semelhantes àquelas vistas pela vidade que exige um grande dispêndio de energia, pode-se avaliar
pesquisadora em julho de 1985, por ocasião de uma visita a um quão essa alimentação é deficiente e insuficiente para garantir a
barracão de migrantes, provenientes do vale do Jequitinhonha, na saúde e as condições mínimas de reprodução dessa força de traba­
região de Ribeirão Preto/SP. Lembrei-me daquela situação experi­ lho. Seus corpos refletem a situação à qual são submetidos. Corpos
mentada há quase 14 anos atrás, quando imaginei que, em nenhum esquálidos, rostos com marcas profundas estampados nos olhares
lugar, poderia encontrar algo semelhante. Precariedade, total des­ entristecidos, sem muitas indagações. Nosso tempo de permanên­
conforto são palavras pouco significativas para retratar esses luga­ cia nesse alojamento foi muito curto. A vigilância não nos permitiu
res. Somente o registro feito pela imagem poderá dar conta da um maior contato. Por isso, despedimo-nos dos trabalhadores e,
dimensão do processo de exploração, dominação, desqualificação e em seguida, dirigimo-nos a um outro, denominado Alojamento do
depredação desses homens. O alojamento é o prolongamento da­ Engenho Japomin, situado nas terras da Usina Santa Teresa, tam­
quilo que se observa no eito dos canaviais. Amontoados em quar­ bém em Pernambuco.
tos escuros, mal ventilados, sujos, esses homens sentem o peso de "A� aproximarmos do alojamento, percebi um pequeno conjunto
serem mercadoria barata num mundo em que os direitos apenas de casas, cercadas por uma cerca. Primeiramente, o conjunto de
existem no papel. Vivem vigiados e escondidos. Os quartos de dor­ casas, encravado no meio dos canaviais, cont.(j3.stava enormemente
mir estão cheios de roupas sujas, panelas, botas, redes, instrumen­ com a paisagem do Estado de São Paulo, onde as usinas foram res­
tos de trabalho, como os facões, lenha utilizada para o preparo da ponsáveis pela demolição de todas as casas dos antigos colonos de
comida. Trata-se de um lugar não de morada, mas de passagem. café. O resultado foi a homogeneização do espaço, possibilitando,
Tudo reflete miséria, e transitoriedade. As instalações sanitárias portanto, · uma nova leitura, através da qual a cana preenche o olhar
exalam um odor fétido, sem considerar que o local destinado ao dos observadores. Tal processo, ao destruir a história objetivada,
preparo da comida em nada se assemelha à uma cozinha. Aqui, engendrou a nova leitura do espaço, em que o antigo sucumbiu-se
nenhum cuidado referente à higiene existe. No centro de um grande diante do novo, não deixando rastros, a não ser nas lembranças da­
compartimento, há um conjunto de fogões a lenha, onde os traba­ queles que ali viveram.

lhadores preparam suas refeições às pressas. Os caldeirões, "A presença daquelas casas, portanto, causou-me um espanto enorme,

enegrecidos pela fumaça, trazem em seu interior um pouco de fei­ enquanto pesquisadora, proveniente do Estado de São Paulo, porque

jão com carne de sol. Pela manhã, quando saem para o trabalho, nelas vi ou pressenti algum rastro de uma história passada e presente.

levam um pouco de fubá cozido, denominado "quarenta voltas", A informação, transmitida por Marilda (Marilda Meneses, professora

54 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO , 55


da UFPB), de que se tratava de antigos moradores, sem dúvida remete cor do vento, olhar para aquele vale, caçar tatu. no final da tarde, é o que
à análise da resistência. No entanto, outros elementos surgiram nes­ ele almeja, depois de uma vida de intenso trabalho. No entanto, tal ar­
se cenário: a cerca e os quadros pintados nas cores verde e vermelha, gumentação, até o momento não fora levada em conta, porque nenhu­
nas paredes da frente de cada uma das casas. Em razão do conheci­ ma resposta lhe foi dada, apesar de dizer que está vivendo com o filho
mento prévio, Marilda procurou pelo Sr. Bil, um dos depoentes de sua que é trabalhador da Usina."
pesquisa. Antes de relatar a conversa com esse antigo morador, é ne- N o entanto, essa realidade não é relatada quando o
cessário algum comentário sobre esse espaço. Trata-se de dois conjun­ migrante regressa ao seu lugar d e origem. Pobres em
.
toS de casas, separados por uma rua. Não sabemos quantas famílias experiência, silenciam-se sobre a violência à qual são sub­
vivem ali nas vinte casas, aproximadamente. No fundo das casas, al­ metidos cotidianamente. Os migrantes que trabalham no
gumas plantações de mandioca, algumas bananeiras e mangueiras. corte da cana raramente contam sobre as condições extenu­
Em toda sua área, a cerca construída pela usina. antes do trabalho e das humilhantes condições de moradia
"Depois de informados da presença do Sr. Bil, que repousava na casa nos alojamentos. Vive-se um processo em que a memória é
de farinha, localizada nos fundos de sua casa, dirigimo-nos ao seu proibida (Silva, Menezes, 2000).
encontro. Após os cumprimentos e da alegria manifesta com a presen­ "Dois migrantes, tendo a família com residência em Mato Grosso
ça de Marilda e do padre Lírio, o Sr. Bil iniciou seu relato, contando­ do Sul, foram contratados com mais oito pessoas por um 'gato', que
nos sobre a cerca. Segundo ele, essa era uma decisão tomada lhes prometeu um salário de R$ 15,00, por hectare, para catar raízes
recentemente pelos atuais proprietários da Usina São José. Também e pedaços de madeira que restaram das queimadas ... Ao chegarem
se referiu às marcas nas paredes das casas. Na realidade, a cor verde à fazenda, foram morar num barraco de lona preta com mais 38
indicava que as pessoas tinham permissão para permanecer, enquanto trabalhadores... As camas eram feitas pelos próprios trabalhadores
a cor vermelha indicava o contrário, ou seja, haveria aí uma ação de com paus roliços, a comida e[ra de] péssima qualidade e a água
despejo embutida nessa decisão. No que tange à casa de Sr. Bil, ela barrenta... Por quatro meses de trabalho, receberam apenas R$
estava marcada com a cor vermelha. Segundo nos disse, tentou, por 50,00. Apesar das reclamações nada conseguiram e resolveram aban­
diversas vezes, dialogar com um dos administradores da Usina, utili­ donar o acampamento.
zando em sua argumentação o relato de sua própria história. Seus pais "Todo o grupo caminhou mais de 100 km ... hoje só pensam em
foram moradores da Usina, ele ali trabalhou durante 50 anos, e um dos retornar�como derrotados para junto de suas famílias." (Notícias ­
filhos está atualmente trabalhando, sem contar que, aos 79 anos, nunca SPM, n" 45, novembro/dezembro de 1997)
viveu em outro lugar, que não aquele. Seu discurso, sua defesa, assen­ "Migrantes em trânsito, os trecheiros, geralmente são provenien­
tam-se em sua história. Para ele, estar na casa de farinha, sentir o fres- tes do interior do Estado, com destino ao litoral ou ao Rio de Janei-

o AVESSO DO TRABALHO C O L E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O c 57
roo o trecheÍro geralmente não possui documentos; quando os têm gião, proveniente de várias partes do país, principalmente

estão em péssimas condições. Como pertences, carregam uma sa­ dos Estados de AL, PE, BA, MG, PB, GO e, em menor esca­

cola plástica."(VAIVÉM, ano 19, n" 76, abtil, maio, junho/1999) la, SP. A metodologia empregada se baseou nas definições
"Submetidos ao trabalho escravo na fazenda Novo Horizonte, em de áreas de origem, entendidas como os locais de moradia

Serrânia/Minas Gerais, 37 dos 58 trabalhadores rurais baianos, in­ desses trabalhadores. No entanto, no que se refere às migra­
clusive oito menores e quatro mulheres, aliciadas na cidade de ções temporárias, os lugares de destino são os mais diversos

Caetité/Bahia, agenciados POt um pastor da Igreja Assembléia de possíveis. A metodologia do estudo das trajetórias é um ins­
Deus, recebiam apenas R$ 2,00 por dia, alimentavam-se apenas de trumento valioso para detectar a realidade dessa mobilida­

arroz e passavam fome." A seqüência desse relato revela que os de. Em outros trabalhos (Silva, 1994; 1998), comprovaram-se
trabalhadores conseguiram fugir da fazenda e denunciar a situação casos de migração, para a mesma pessoa, para as mais dife­
de trabalho escravo à qual estavam submetidos. (VAIVÉM, ano 15, rentes áreas do país, sem contar que o número de vezes que
n" 67, abril, maio, junho/1996) migrou está relacionado à idade. Esse fato é um indicador da

A diminuição constante da oferta de emprego, provocada existência de uma permanente migração temporária. Eles

pela supressão de milhares de postos de trabalho durante mesmos afirmam que "o canavieiro é rodado, sem família,

todos os anos, tem contribuído para o aumento do contin­ vai atrás de onde ganha mais" (Aguiar, p. 308).
gente dos excedentários, principalmente adultos com mais Outro dado importante constatado por essas pesquisas é
de trinta anos, jovens sem experiência de trabalho, mulhe­ que parte desses migrantes são pequenos proprietários em

res e migrantes. Esse fato, aliado às conseqüências da suas regiões de origem. Nesse caso, estariam os migrantes

reestruturação produtiva em outros setores da economia, é do interior da Paraíba, Sudoeste baiano, da Chapada

um dos responsáveis pelo aumento da violência na região, Diamantina, da região Nordeste de Minas Gerais (vale do

sobretudo aquela advinda do tráfico de drogas, atividade que Jequitinhonha). Dedicam-se em geral à agricultura de sub­

está sendo desempenhada por muitos filhos de trabalhado­ sistência. São, portanto, camponeses pobres com terra, asso­

res rurais e também por migrantes. lados pelas secas constantes. Durante mais de quatro décadas,
esses camponeses trabalharam nas usinas da região de Ri­

A MOBILIDADE ESPACIAL PRECÁRIA beirão Preto, sobretudo os mineiros e baianos.

Recente estudo (Aguiar, 1 998) sobre o perfil dos Os migrantes de Fagundes não encontram nas grandes cidades o

canavieiros da bacia do Alto Paraguai/MT mostrou que há que esperavam e muitos acabam voltando ou migrando para outros

um deslocamento constante de trabalhadores para essa re- Estados. A juventude não encontra trabalho e muitas crianças es-

o AVESSO 00 TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO 59


58
tão trabalhando no corte de cana, nas usinas de Pernambuco. (No­ região de Ribeirão Preto. As mulheres se destinam às ativi­
tícias - SPM, n° 60, agosto/setembro de 1999) dades domésticas. Houve também a constatação de um gran­
Em muitas usinas, houve redução de salário e implantação de tur­ de número de menores de 14 anos de idade. Mais da metade
nos fixos de horário, prejudicando os que trabalham à noite. Além dos trabalhadores não possui registro formal, o que denota a
do pagamento sob a forma de tíquetes, o número de trabalhadores realidade precária de trabalho (Pastoral dos Migrantes, 1997).
migrantes diminuiu muito em relação à safra passada. Várias pre­ Segundo a Pastoral dos Migrantes,"a comunidade Lagoa
feituras estão forçando as usinas a empregarem trabalhadores lo­ das Costas, no município de Botuporã, está com 4 1 casas fe­
cais. (Notícias - SPM, n° 57, maio/junho, 1999) chadas, a maioria de famílias que foram trabalhar e morar em
Esse fato tem contribuído para o recrudescimento da São Paulo. A migração na entressafra para o plantio da cana
segmentação racial/étnica do trabalho, mediante o aprofunda­ na região de Ribeirão Preto é intensa. Na sua maioria são
mento do fosso entre trabalhadores "de fora" e os locais. jovens que estão vindo pela primeira vez; recebem salário
Durante o ano de 1 996, foi realizado pela Pastoral dos de R$ 230,00; alguns ficam para a safra de cana, enquanto
Migrantes um levantamento da realidade migratória nos outros partem para outros lugares." (CÁ e LÁ, ano 12, n° 84,
municípios baianos de Botuporã, Caturama e Tanque Novo. fevereiro/março/1997)
Foram aplicados mais de dois mil questionários, incluindo a Em Campos Novos/SC, foram encontrados migrantes
zona urbana e rural. A fim de se ter uma idéia da dimensão paulistas trabalhando na colheita do feijão. "Esses migrantes
da realidade migratória, apresentam-se as cifras para apenas são jovens entre 1 6 e 23 anos de idade, que parece terem
um dos municípios, Botuporã: 62% das famílias pesquisadas assinado a carteira de andarilhos. Entre eles, há algumas crian­
possuem entre um ou dois migrantes; a grande maioria é cons­ ças de 9 a 1 0 anos. Vindos principalmente de Itaporanga/SP,
tituída de homens, havendo também mulheres; quanto à permanecem em Campos Novos de janeiro a abril, arrancan­
idade, 48% está na faixa entre 1 5 e 15 [sic] anos; o tempo de do feijão. De maio a junho vão para São Paulo, para a colhei­
permanência no lugar de destino é inferior a um ano; em ta do café. Em julho e agosto vão para Nova Mutum/MT,
relação ao número de vezes que migrou, mais de 82% mi­ para a colheita de feijão. De setembro a outubro voltam para
grou entre 1 e 5 vezes; quase a totalidade dos migrantes mi­ São Paulo, também para a colheita do feijão. Vivem amonto­
gra sempre para os mesmos lugares. Essa pesquisa revelou, ados em pequenas casas, em Campos Novos, sendo muito
para o conjunto dos municípios, que os camponeses migrantes discriminados. Recebem salários baixos, não são registrados.
se destinam majoritariamente para a cidade de São Paulo, São considerados peões itinerantes. ( VAIVÉM, ano 16, n° 69,
onde se empregam na construção civil, e para os canaviais da outubro/1996 /março/1997)

60 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO 61


No início da safra de 2001, foram trazidos do Estado de Os EXCLUíDOS
Mato Grosso do Sul 374 índios da tribo dos Terena para o "'O catador de papel Joaquim Moreira) 34 anos, perambulou cinco
trabalho no corte da cana nessa região. "Foram abrigados em dias pelo Ipiranga e zona Sul de São Paulo ... além de sua sorte,
um galpão desativado da usina Santa Lídia, que não possuía relatou que funcionários da prefeitura de Santos lotaram duas
camas e banheiro para todos. As necessidades dos trabalha­ Kombis de sem-teto e os despacharam para São Paulo. Recente­
dores eram feitas ao lado do galpão. Eles foram trazidos com mente, um grupo de carentes, incluindo menores, foram largados
a promessa de salários de R$ 750,00 mensais, mas ganhavam na Via Outra por uma perua. Eles não denunciaram o fato nem
R$ 4,00 por dia, o que os obrigava a trabalhar aos sábados e falaram de onde vieram por medo de represálias. No dia 2 de feve­
domingos para que a renda mensal chegasse a R$ 1 20,00. reiro, o prefeito de Corumbá, Éder Brambila, admitiu que despa­
Tudo sem nenhum registro em carteira profissional." (Folha chou 32 moradores de rua porque eram mendigos de São Paulo c
de S. Paulo, Folha Ribeirão, 27 de janeiro de 2002, p. 1 ) Essa Minas Gerais." (Notícias - SPM, n" 56, abril/maio de 1 999)
denúncia foi feita pelo Sindicato de Trabalhadores Rurais "Só em Palmares Paulista cerca de mil trabalhadores foram dispen­
de Sertãozinho ao Ministério Público de Campinas. O resul­ sados, o que corresponde à metade da safra passada. Os ônibus es­
tado das investigações apurou um sistema de tráfico de índios tão voltando mais lotados do que os que chegam." (Notícias SPM, -

com a participação de usineiros, empresários e funcionários n" 49)


da Funai de Mato Grosso do Sul para a região de Ribeirão No mês de março de 2002, a Pastoral dos Migrantes de
16
Preto. Guariba/SP informou a chegada, trazidas por clandestinos,
de 60 famílias, provenientes do interior do Maranhão. Mui­
tas delas estavam com bebês e nada possuíam, além da rou­
16 o título da reportagem é o seguinte: "Tráfico de índios leva Procuradoria a

denunciar usineiros. Dez pessoas do interior de São Paulo e do Mato Grosso pa do corpo. Essas pessoas foram acomodadas no salão da
do Sul - entre usineiros, comerciantes e funcionários da Funai - foram igreja, receberam donativos da comunidade e mantinham as
denunciados pela Procuradoria de Ribeirão Preto pelos crimes de fonnação
esperanças de serem aceitas para o trabalho do corte da cana.
de quadrilha, aliciamento de índios e não cumprimento de leis trabalhistas. O
grupo aliciava índios de Aquidauana e Miranda (MS) para o trabalho semi­
Caso contrário, seriam colocadas num ônibus e levadas de
escravo em duas usinas de Ribeirão - Santa Lydia e Nova União. Tinha um volta para o local de origem, segundo as palavras de um agente
sofisticado esquema para dissimular os verdadeiros responsáveis pelo grupo. pastoral.
Esse esquema contava com a divisão das usinas em outras empresas - uma
Ser clandestino no próprio país, ser despachado como
delas com endereço no paraíso fiscal das Ilhas Virgens, (território do Reino
Unido no Caribe) - e a utilização de ao menos dois 'laranjas'." (Folha de S. mercadoria barata, constitui-se no contorno do quadro da mi­
Paulo, Folha Ribeirão, 27 de janeiro de 2001, p. 1). séria do mundo desses trabalhadores. Partem, acossados pela

o AVESSO D O TRABA L H O C O L E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C ! PA Ç Ã O

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fome e pelo desespero, regressam mais miseráveis ainda. Quan­ Vale ainda acrescentar que em torno de 30% das famílias
do partem, nutrem a esperança de melhores dias, possuem de trabalhadores rurais são chefiadas por mulheres. Em ra­
algum fulgor na alma. O regresso forçado imprime-lhes a mi­ zão da inflexibilidade do não-emprego, para muitas delas resta
séria da alma, amplia o estado de alienação em que vivem, a busca de outras alternativas, geralmente muito escassas,
estampando em suas faces uma única certeza, a de sobrantes. tais como o trabalho na colheita da laranja, ou, ainda, bicos,
como a venda de alguns produtos como bijuterias e cosméti­
SEGUNDO QUADRO cos, ou, simplesmente, a vivência da situação de desespero,
Em relação às mulheres, elas estão alijadas do corte da provocada pelas tensões, insegurança laboral, sem contar o
cana, sob o pretexro de não lograrem os níveis de produtivi­ sentimento de frustração, enquanto mães, em razão da in­
dade exigidos. Aquelas que conseguem trabalho, estão sen­ serção dos filhos no tráfico e consumo de drogas. No que
do relegadas às piores tarefas, como as de bituqueiras (que tange às colhedoras de laranja, a situação se caracteriza pela
consistem em recolher as bitucas, ou seja, os pedaços de cana perda dos direitos, em virtude da atuação das falsas coopera­
que não são recolhidos pelas máquinas após o corte), ou en­ tivas, dos baixos salários, insuficientes para o sustento fami­
tão como aplicadoras de veneno no controle das pragas da liar. As condições de trabalho na colheita da laranja definem
cana (atividades denominadas descarte), ou, ainda, nos vi­ o alto grau de exploração existente. Várias mulheres afirma­
veiros onde se preparam as gemas para a plantação da cana, ram que a distribuição de veneno ocorre simultaneamente
que, igualmente, demandam o manuseio de agro tóxicos. A ao ato da colheita. Ademais do odor, há alergias, coceiras,
prática da exigência do atestado de esterilidade (ilegal) con­ inapetência, muita sede e sensação da "boca seca". O depoi­
tinua existindo. Foram encontradas várias mulheres com do­ mento seguinte fornece alguns detalhes do cotidiano de tra­
enças em razão da utilização de agrotóxicos: alergias, coceiras, balho na laranja.
queimaduras, câncer de pele, de garganta e muitas doenças P: O que é essa banca?
que afetam os aparelhos respiratório, circulatório e digesti­ R: Então a banca como eu falei, a roça nunca ela é plana ela é sem­
vo. Duas delas morreram alguns meses depois de terem con­ pre meia torrinha por causa do negócio da água, aqui como é baixa­
cedido os depoimentos em razão de câncer na garganta e nos da assim: para baixo, você cata duas ruas, para baixo três. Aqui, essa
pulmões. Por outro lado, as bituqueiras padecem com sérios rua do meio é a rua da banca. Só que você não pega a rua todinha
problemas de coluna, em razão da postura corpoTal curvada, para você catar. Porque você não consegue nem em um mês. Então
obrigatória durante todo o desempenho da tarefa (Silva, 1 999, vamos supor: eu pego,com meu marido doze pés... doze assim. Vinte
cap. "As meninas do descarte" ). e quatro, trinta e seis, quarenta e oito, sessenta pés para mim e para

o AVESSO DO TRABAL H O C O l E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O
meu marido... porque o caminhão só vai passar aqui. É aonde você P: Mesmo assim ela ia trabalhar?
tem que carregar a caixa, é colocar aqui. Tanto faz do lado de baixo R: Ia. Inclusive, seu Eurides, ele pegou um negócio numa perna,
ou do lado de cima, no meio... é a rua onde o caminhão passa carre­ eu não sei. Faz dias que eu não vejo ele, nem sei se ele sarou.
gando, por isso que chama banca... entendeu? É longe um pé do P : Mas pegou doença?
outro. Você tem que pegar lá da última e trazer aqui. É aí que cansa R: Eu acho que é do veneno.
-a gente. A sacola cheia. Por isso que eu falo que a gente tomava P: Vocês já estavam trabalhando quando o fiscal foi ao pomar?
muito prejuízo naquela sacola de náilon porque elas espicham, você R: Chegou o fiscal. Quando o empreiteiro viu, avisou. Os de meno­
catava lá ela cheia) você vinha balançando até você chegar na ban­ res correram.
ca, aí você soltava, ela estava pela metade. Aí você tinha que voltar P: Ele avisou para dar tempo de fugir?
a catar a outra metade e completar. Entendeu? Te juro! Tinha dias R: Isso.
que eu nem jantava por causa daquele cheiro de veneno no nariz, P: Mesmo assim deu para ° fiscal pegar algum menor?
dava muita sede. Manteiga de cacau eu nem sei quanto. Os lábios R: Olha o que pegou... como não tinha nenhum documento... por
da gente chegavam a partir. Eu comprava muita manteiga de ca­ exemplo: eu que não era cadastrada, não tinha documento nenhum,
cau. E·u tomava muita água. Laranjal7 eu não suporto até hoje, eu ele veio perguntar para mim assim: a senhora vem da onde? Vem
compro para meu marido. Ele chupa. Mas eu não suporto. Outra de São Carlos, com quem? Com seu Jamil. A senhora é registrada?
coisa, esse pessoal do Antenor Garcia (bairro da periferia de São Não, porque eu não trouxe meus documentos ainda, eu comecei
Carlos), não sei como eles não morrem, porque lá ficam com as ontem. Mas fazia um mês já. Eu falei: eu não vou prejudicar o
mãos cheias de veneno, chegam a ficar melando, eles descascam a empreiteiro? Eu falei:_eu comecei ontem, meus documentos estão
laranja e comem. com ele, eu não sei quando vai registrar. Aí ele foi a todos os luga­
P: Tem muita gente assim com alergia? res, procurando.
R: Tem. A maioria. P: Ele não viu os menores trabalhando?
P: Dá para ver assim? R: Não. No dia seguinte já não foi nenhum menor.
R: Dá. Tinha uma senhora lá- que as pernas dela assim tinham até
ferida. Sabe assim aqueles ferimentos? Ela coçou e ficaram as feri­ Uma das marcas ·dos capitais nessa agricultura é o salário
das. por produção. Tal como foi mostrado por Marx, essa é uma
forma específica de aumentar o nível de exploração, uma

17 Nesse momento a depoente aponta para a fruteira sobre a mesa, mostrando as


vez que a produrividade do trabalho é elevada em função do
laranjas. maior esforço do trabalhador. No que tange ao corte de cana,

66 o AVESSO 00 TRABALHO C O L E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA ÇÃ O
o salário é em função das toneladas cortadas. No entanto, o aceita e desmistificava a situação da mulher como frágil,

cortador não tem conhecimento no final da jornada de traba­ medrosa, passiva. No momento atual, esses valores do patriar­

lho do resultado de seu trabalho em razão do sistema adota­ cado, que imputam à mulher a condição de incapaz para o

do: as canas cortadas são amontoadas em leiras e medidas; exercício de atividades pesadas, voltam à tona. Protegidas

depois de levadas para a usina, transformam-se em tonela­ por esses valores, as usinas, ao não empregarem as mulheres,
das, segundo o teor de sacarose. A passagem do sistema mé­ além de impingir-lhes o estatuto de sobrantes, apagam suas
trico para o peso não é conferida pelos cortadores, havendo, histórias enquanto trabalhadoras rurais e responsáveis em boa
segundo inúmeros depoimentos, fraudes em favor das usi­ parte pelos níveis de acumulação de seus capitais, uma vez

nas. Em relação à laranja, o fato da sacola de náilon "espi­ que sempre computaram mais de dezoito horas diárias de

char", implicando num maior volume, traz desvantagens aos trabalho, em razão da dupla jornada de trabalho. Contrarian­

colhedores, pois recebem por caixa, que, teoricamente, tem do a ideologia do patriarcado, associada à do capitalismo, a
a mesma capacidade da sacola. No entanto a obrigatoriedade história dessas mulheres é pautada pelo trabalho desde a ida­

de completar a sacola após o "espicho" para a obtenção do de de crianças, sem contar a importância da participação nas

mesmo volume de laranjas é revelador do roubo do exce­ greves e lutas por melhores salários. Nas greves de Guariba
dente de trabalho, traduzido na mercadoria laranja. ( 1 984 e 1 985), as mulheres realizaram piquetes e enfrenta­
O fato da trabalhadora "mentir" para o fiscal do Trabalho ram corajosamente os policiais com seus aparatos bélicos, en­
demonstra os níveis de precarização do trabalho nessa ativi­ viados pelo governo estadual para reprimir os movimentos
dade. Se revelasse a verdade - ausência de registro traba­ dos trabalhadores. Hoje, muitas delas, ademais do desem­
lhista - seguramente seria despedida. Ao "mentir", manteve prego, abandonadas pelos companheiros, engrossam as esta­
o emprego nas condições impostas, não criou problemas ao tísticas da feminização da pobreza neste país, porém não
empreiteiro e permitiu que a precarização do trabalho conti­ abandonam os filhos, lutam para a sobrevivência e mais: são
nuasse. A mentira e a fuga dos menores de idade são expres­ capazes de inventar a própria vida em meio aos desatinos;
sões de outra forma de exploração, a exploração moral, são capazes de trocar os podões pelas agulhas de crochê, pro­
traduzida pelo medo e pela violência simbólica. duzindo toalhas, almofadas e barrados, com uma teimosia
Desde o surgimento das grandes usinas, as mulheres com­ enorme para se manterem vivas. As mulheres são aquelas
puseram o exército de trabalhadores para o desempenho das que mais foram afetadas, além dos mais velhos. Considera­
atividades mais diversas. Enquanto havia necessidade de das frágeis, incapazes de garantirem os níveis de produtivi­
grande quantidade de mão-de-obra, a presença feminina era dade no corte da cana - em torno de dez toneladas - elas

68 o AVESSO DO TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO


foram relegadas às funções mais desvalorizadas e mais peri­ mais de 85% delas eram de analfabetos. A existência do tra­
gosas. A busca de outras alternativas de trabalho alia-se à balho infantil provocou o sutgimento do Movimento Projeto
consciência da situação em que vivem. Rezam para que as Vale da Cidadania, cuja finalidade era retirar as crianças do
máquinas se quebrem e reconhecem que continuam ocu­ trabalho, possibilitando-lhes a freqüência à escola, median­
pando os porões da sociedade, onde não são vistas pelos po­ te a participação do Estado na concessão de R$ 50,00 a cada
derosos. família que possuísse crianças nas carvoarias. A grande maioria
desses trabalhadores é proveniente do vale do Jequitinhonha/
ALGUMAS ALTERNATIVAS POLíTICAS MG.
"Em ItápoJis, Bebedouro, Catanduva e outras cidades da região, a Na região de Ribeirão Preto, existem, nos acampamen­
Justiça mandou fechar as Coopergatos e registrar os trabalhadores. tos dos Sem Terra, muitos migrantes que não conseguiram
Nos conratos que a Pastoral Migratória teve com sindicalistas, pre­ emprego nas usinas ou fazendas. A participação dos migrantes
feituras e assistentes sociais, nota-se uma preocupação muito gran­ no Movimento, que, no momento, é o mais expressivo do
de com o desemprego em massa nessa região; com isso, muitas país, é um indicador importante das possibilidades de mu­
famílias começam a passar necessidades básicas, sem perspectivas danças e buscas de alternativas por parte daqueles que estão
de solução." (CÁ e LÁ, ano 12, n" 87, junho/julho/1997) vivenciando os processos de exclusão-inclusão precária e de
No início da década de 1 990, em razão da expulsão de exclusão-desestruturação.
muitos migrantes itinerantes nas cidades da região de Ribei­ No início deste ano de 2002, iniciou-se um outro debate
rão Preto/Sp, as quais ado taram o sistema das cancelas para sobre a responsabilidade social das empresas em torno do
evitar a entrada dos "estrangeiros", ou, ainda, a prática da PAS (Programa de Assistência Social), regido pela Lei Fede­
circulação, via computador, das fichas dos in(aceitáveis), che­ ral, n" 4.870, de 1 965, segundo a qual 4% do total do
gando, até mesmo, àquela do trabalho forçado em algumas faturamento das usinas ( 1 % da cana, 1 % do açúcar e 2% do
cidades, muitos desses sobrantes saíram em busca de quais­ álcool) deve ser destinado ao fundo social para os trabalha­
quer alternativas de trabalho, mesmo aquelas consideradas dores. Até 1 989, o PAS foi fiscalizado pelo 1M (Instituto do
sub humanas. Talvez um dos casos limites dessa precarieda­ Açúcar e do Àlcool), quando foi extinto pelo Governo ColIor
de do trabalho possa se referir aos carvoeiros. Além de ser de Melo. Essa discussão tem procurado englobar vários se­
uma atividade extremamente penosa, é prejudiçial à saúde tores da sociedade civil e tem sido capitaneada pela Fercana
e emprega crianças. Recente pesquisa com as famílias de (Federação dos Trabalhadores da Cana). Nó cerne da dis­
carvoeiros em Ribas do Rio Pardo/Mato Grosso, revelou que cussão está a preocupação com a situação de instabilidade

70 o AVESSO DO TRABALHO C O LEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO


social vigente nos municípios onde a produção canavieira é Outros se empregam. Outros perambulam de um lugar a Outro
dominante. em busca de trabalho para a sobrevivência.
No que tange aos residentes nessa região, muitos tam­
CONCLUINDO bém estão migrando para outros lugares. Nos últimos anos,
Ao longo deste texto, objetivou-se traçar a carrografia dos têm-se observado os dois processos, da imigração e da emi­
excluídos da modernização da agricultura, tendo como gração, sobretudo daqueles mais velhos, que já não conse­
parâmetro a mecanização do corte da cana nas usinas da re­ guem os níveis de produtividade exigidos, em torno de dez
gião de Ribeirão Preto/SP. Quanto ao processo de acumula­ t/dia. Essa situação tem produzido um quadro de itinerância
ção de capital, essas usinas empregam as tecnologias mais generalizado, aliado à situação de desespero de muitas famí­
avançadas do país, quer seja na agricultura propriamente dita, lias, posto que não há o seguro desemprego e nem a aplica­
quer na área industrial. ção do Fundo de Assistência Social, previsto pela Lei Federal
A partir de meados dos anos de 1 980, elas começaram a n° 4.870, de dezembro de 1965. E m virtude dessa realidade,
utilizar as máquinas para a atividade do corte, que exigia assiste-se, como nos demais setores da economia, ao refluxo
em torno de cem mil trabalhadores, boa parte dos quais era do movimento sindical, o que tem contribuído para aumen­
constituída por migrantes temporários, provenientes das tar os níveis de exploração, em razão dos baixos salários e da
regiões mais pobres do país, como o vale do Jequitinhonha/ progressiva perda dos direitos trabalhistas, conseguidos após
MG e os Estados do Nordeste. Desde então, a cada ano, o muitas décadas de lutas.
espectro das demissões e do desemprego passou a atingir Neste texto, objetivou-se analisar o sucedâneo desse pro­
milhares de pessoas. Aliada a esse fato, as fazendas de café cesso de exclusão. Foi possível verificar que, na verdade, há
dessa região, que também utilizam grande quantidade des­ entre os dois pólos opostos, o da exclusão e o da inclusão,
sa mão-de-obra, vêm sistematicamente suprimindo a ofer­ uma zona de alternativas possíveis, caracterizadas sobretudo
ta d e emprego em razão d o emprego de colhedeiras pela mobilidade precária, pela vulnerabilidade, que se defi­
mecânicas. nem como momentos de luta para evitar a queda no fosso da
Apesar da diminuição dessa demanda, assiste-se a cada exclusão-desestruturação. Pode-se dizer, tal como o relato
ano a cenas de centenas de trabalhadores que, mesmo sem de uma das depoentes de P. Bourdieu ( 1 999, pp. 425-436),
terem a certeza de encontrarem trabalho, chegam às cidades essas pessoas têm a vida "suspensa por um fio". Vagando de
dessa região. Muitos são obrigados a regressar aos locais de um canto a outro neste imenso país, suportando as tarefas
origem, embarcando nos próprios ônibus que os trouxeram. mais pesadas, discriminadas, muitas vezes, suportando até

72 o AVESSO DO TRABALHO C O l E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O · 73

mesmo a escravidão, desprovidas dos mínimos direitos, in­ acampamentos e nas ocupações e assentamentos. Um total
clusive do direito de ir e vir, posto que muita cidades cons­ de mais de mil famílias acham-se assentadas em terras pú­
troem barreiras para evitar sua entrada, a única esperança blicas da região nos seguintes municípios: Araraquara, Boa
que possuem é não se tornarem mendigos, seres desgarra­ Esperança, Bocaina, São Simão e Pradópolis. A terra tem
dos, condenados à uma verdadeira morte social. Mesmo dis­ aparecido como alternativa ao desemprego e ao processo de
tantes, prendem-se à utopia de rever a família, de voltar um exclusão, principalmente para os trabalhadores que residem
dia à terra de origem, de encontrar trabalho para remeter aos nas cidades dessa região. Mais recentemente, o MST (Mo­
que ficaram. É esse sentimento de pertencimento à família, vimento dos Sem 'lerra) registrou a ocupação de terras per­
a um determinado lugar, à condição de trabalhador, de pro­ tencentes a uma das grandes usinas no município de Matão.
vedor, que lhes identifica, que lhes define. Essa é sua iden­ Essas terras estavam sendo arrendadas pela Usina Bonfim.
tidade, ainda que em trânsito, transitória, provisória. Aqueles Em todos esses casos, tudo leva a crer que a maioria dos ocu­
que chegaram à condição de mendigos, consideram-se como pantes seja constituída por trabalhadores locais e não por
excluídos, à margem, porém, assim mesmo, conservam a uto­ migrantes. Essa é uma das estratégias políticas dos sindica­
pia de, através da memória de trabalhadores que foram num tos e dos prefeitos da região, cujo intuito é a diminuição das
tempo passado, ainda reaver, num futuro próximo, o tempo tensões e da violência urbana. Por outro lado, ainda que ti­
e o espaço perdidos. midamente, iniciam-se as discussões em torno da aplicação
Ademais da diferenciação quanto à regional idade e ida­ do PAS em favor dos trabalhadores canavieiros, procurando
de, esse processo de exclusão-inclusão precária também tem envolver os governos locais e setores da sociedade civil.
a marca de gênero. As mulheres alijadas do trabalho, muitas Enquanto isso, uma mulher - que no passado foi cortadora
delas na condição de chefes de família, buscam as mais di­ de cana e hoje vive ° cotidiano do desemprego, da fome e da
versas alternativas para a sobrevivência, o que demonstra que miséria num gesto de desespero tal como os luddistas in­
o homem como provedor é um mito, situação também en­ gleses do passado, proclama:
contrada em outros países pobres da América Latina (Safa, "se eu pudesse, eu quebraria todas as máquinas".
1995).
Atualmente, os sindicatos de trabalhadores rurais da re­
gião e as federações, sobretudo a Feraesp (Fed.eração dos
Assalariados Rurais do Estado de São Paulo), estão concen­
trando suas atividades na luta pela terra, na organização de

74 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇAO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO


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o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO - 77


A REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA
NA INDÚ STRIA DE CALÇADO S
DE COURO EM FRAN CA ( SP )'8

VERA LUCIA NAVARRO"

INTRODUÇÃO
As transformações experimentadas pelo capitalismo nas
últimas décadas, em escala planetária, têm atingido profun­
damente o mundo do trabalho e afetado não apenas a dinâ­
mica das forças produtivas, mas também a dinâmica e a
composição da própria classe operária, que está se tornando
cada vez mais heterogênea, mais complexa e mais fragmen­
tada. Para Antunes, essas modificações foram tão intensas
" ... que se pode mesmo afirmar que a c1asse-que-vive-do-trabalho
sofreu a mais aguda crise deste século, que atingiu não só a sua

18 O presente trabalho é parte integrante da tese de doutoramento da autora,

intitulada "A produção de calçados em Franca: a reestruturação produtiva e


seus impactos sobre o trabalho", defendida na Unesp, campus de Araraquara,
em 1998.
19 Professora de Sociologia do Departamento de Psicologia e Educação da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e da Faculdade de Economia,
Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo, campus de
Ribeirão Preto.
materialidade, mas também teve profundas repercussões na sua exigir produtos mais variados, de melhor qualidade e a pre­
subjetividade e, no íntimo inter-relacionamento desses níveis, afe­ ços competitivos. Somada a isso, a adoção de políticas
tau a sua forma de ser." (Antunes, 1 995, p. 15) recessivas, de cunho neoliberal, levou à promoção, por parte
O novo padrão tecnológico conquistado neste final de sécu­ das empresas, de profundas transformações em seus proces­
lo, considerado como a "Terceira Revolução Industrial", tem sos produtivos. Tais mudanças na organização e nos proces­
modificado profundamente a estrutura produtiva dos países sos de trabalho que buscam aumento da produtividade,
capitalistas avançados e, em níveis diferenciados, a dos países melhoria de qualidade do produto e dos serviços, e a redu­
de desenvolvimento capitalista tardio, como o Brasil, ao incor­ ção dos custos de produção, têm resultado, em última ins­
porar de forma crescente a microeletrônica, a informática, a tância, e m u m a maior intensificação d o trabalho, na
telemática e a robótica, e ao adotar um novo e complexo con­ diminuição de postos de trabalho, no aviltamento do valor
junto de inovações organizacionais. Os efeiros desta verdadei­ dos salários e no aumento da informalidade do emprego, em
ra revolução tecnológica se fazem sentir na organização das um quadro que aponta uma precarização das condições e das
empresas, nos métodos de produção, no mercado de trabalho, relações de trabalho de uma parcela significativa da força de
na divisão do trabalho, nas relações de trabalho, nos sindicatos trabalho do país.
e nas políticas industriais e financeiras dos governos. Baltar e Proni lembram que os empregos fora do círculo
As conseqüências da reestruturação da produção capita­ dos estabelecimentos organizados e que não envolvem a as­
lista para o conjunto da classe trabalhadora têm sido drásti­ sinatura da carteira de trabalho no Brasil vêm se proliferan­
cas, dada a assustadora elevação das taxas de desemprego e a do desde a década de 1980, e que "a década de 1990 trouxe
crescente informalização do trabalho que atingem o mercado um agravamento dessa situação ... " (Baltar e Proni, 1 996, p.
de trabalho em escala mundial. 141). A grande expansão da subcontratação de mão-de-obra,
em contraposição à sua contratação direta, na década de 1990,
A REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA NO BRASIL E AS MUDANÇAS para Baltar, Dedecca e Henrique ( 1996), significa, muitas
NO MERCADO DE TRABALHO vezes, uma maior instabilidade e precariedade da ocupação.
No Brasil, a intensificação do processo de reestruturação Belluzzo, ao analisar. as conseqüências dessas novas formas
produtiva é observada a partir dos anos de 1990, em meio à de contratação, salienta que
aceleração do processo de globalização da economia e da "000 a argumentação liberal conservadora sustenta que o aparecimen­
abertura da economia brasileira à competição internacional. to e crescimento desta� formas espúrias de ocupação da força de tra­
O novo cenário aberto pelo mercado internacional passou a balho devem ser creditadas ao egoísmo e ao 'corporativismo' dos

80 o AVESSO 00 TRABALHO C O L E ÇÂ O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Â O 81
que ainda se apegam à segurança e à garantia dos 'velhos empregos'. vos, em boa parte das empresas no Brasil, vem sendo basea­
Essa resistência às inevitáveis transformações tecnológicas e da em um conjunto de métodos e técnicas de organização da
organizacionais acabariam prejudicando a oferta de empregos, por­ produção e do trabalho conhecido como modelo japonês ou
que as empresas, diante da concorrência exacerbada, só poderiam "toyotismo", cujo ideário vem se proliferando, no Brasil,
responder ao desafio com o avanço da flexibilização, a eliminação da desde o início da década de 1 980.
legislação que pretende regular as relações trabalhistas e a adoção Segundo Benjamim Coriat, o "toyotismo" representa
generalizada da livre negociação. Este, aliás, é um velho truque " ... o coerente conjunto de técnicas sobre as quais se funde hoje
retórico dos liberais: a responsabilidade pelas desgraças causadas pela em dia a competitividade de maior parte dos grupos industriais do
economia de mercado é sempre das vítimas." (Belluzzo, 1996, p. 14) mundo [e1 ... constitui um conjunto de inovações organizacionais
No Brasil, as idéias que impulsionam o debate sobre a cuja importância é comparável ao que foram em suas épocas as ino­
flexibilização do direito do trabalho, segundo Siqueira Neto, vações organizacionais trazidas pelo taylorismo e pelo fordismo."
são as mesmas que embalam o sonho das teses neoliberais (Coriat, 1 994, p. 13)
no estrangeIto. O modelo japonêszo de empresa e de organização social e
"De fato, a confusão sobre o assunto se instala quando os gerencial do trabalho vem sendo referenciado como uma for­
propaladores dessa nova onda destinada a proporcionar a salvação ma de organização da produção e do trabalho cuja finalidade
nacional, afoitamente, universalizam diagnósticos sobre assuntos seria a de combinar as exigências de qualidade e quantida­
que dependem de particularização nacional (inserção na concor­ de, contrapondo-se à especialização proposta pelo taylorismo,
rência internacional), vulgarizam o conceito de rigidez do direito e através da polivalência, da rotação de tarefas e do trabalho
do mercado de trabalho através de vaticínio superficial e banalizam em grupo. Outra importante característica desse modelo é a
a negociação coletiva do trabalho e o papel do Estado nas relações produção enxuta. Estão relacionados ao modelo japonês sis­
de trabalho . ... A indigitada reestruturação capitalista não apenas temas de organização da produção como o just-in-time, o

rompeu com o paradigma produtivo tecnológico anterior, como tam­ kanban, os CCQs (Círculos de Controle de Qualidade) e as
bém com os mecanismos de ·gestão e regulação do trabalho então células de produção, por exemplo.
consolidados." (Siqueira Neto, 1 996, p. 332)

20
Para uma análise mais detalhada das características do modelo japonês e sua
As MUDANÇAS NOS PROCESSOS PRODUTIVOS: A DIFUSÃO
implantação no Brasil, confira coletânea organizada por HIRATA, H. Sobre o
DOS MÉTODOS E TÉCNICAS DO "MODELO JAPONÊS" modelo japonês: automatização, novas formas de organização e de relações
A implementação das mudanças nos processos produti- de trabalho. Editora da Universidade de São Paulo, 1993.

82 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO


o just-in-time, com freqüência, é apresentado como um " ... o modelo japonês [no Brasil] reduz-se à adoção (ou à sua tenta­
sistema de organização da produção que é orientado para tiva) de uma ou mais técnicas ou sistemas tais como o just-in-time,
produzir um determinado produto na quantidade necessá­ kanban, manufatura celular, círculos de controle de qualidade,
ria e no momento certo. A produção é orientada pela de­ polivalência, controle de qualidade total, entre outros." (Salerno,
manda e O kanban seria o sistema de informação que 1 985, p. 139)
alimenta o sistema just-in-time, controlando a quantidade Esse mesmo autor afirma que a simples adoção de uma
da produção em cada etapa do processo. Esse sistema com­ ou mais técnicas integrantes do modelo japonês, cuja im­
põe-se de um conjunto de cartões coloridos, placas ou anéis plantação divorcia-se de alterações substanciais na organiza­
que indicam o que fazer, a quantidade a ser feita e onde ção da produção, são alardeadas como se a empresa tivesse
deve ser colocada a produção. Os CCQs são formados por adotado tal modelo como um todo.
grupos de trabalhadores que se reúnem (teoricamente de Cabe aqui salientar que é o setor automotivo que mais se
maneira voluntária) para discutir e buscar soluções para os destaca, no Brasil, nesse processo de reestruturação produti­
problemas da produção. As células de produção podem ser va, principalmente em função dos altos investimentos reali­
definidas como um tipo de arranjo físico da produção, em zados em inovação tecnológica e organizacional. Esse
que O maquinário, disposto em linhas ou em forma de U, processo, entretanto, atinge também vários outros setores da
possibilita a rotação de tarefas. Salerno ( 1 985) destaca que economia nacional.
o Brasil passou a ser considerado, já no início da década de Apesar de já ser significativa a produção sociológica a res­
1 980, um dos países do mundo em que os círculos de con­ peito dessa temática, ainda há muitos pontos que devem ser
trole de qualidade estaria obtendo maior aceitação. explorados para melhor compreensão dessas mudanças sociais.
No Brasil, a adoção e a difusão do modelo japonês não O fato de o processo de reestruturação produtiva no Brasil
vai se dar de forma homogênea entre os diferentes seto­ estar se dando, de forma heterogênea, nos diferentes setores
res da economia, entre as empresas de um mesmo setor e da economia e mesmo dentro de um mesmo setor torna im­
mesmo no interior de uma mesma empresa. E m muitos portante [a realização de] estudos de situações concretas de
casos, a adoção desse novo modelo de gestão da produção trabalho que auxiliem na compreensão dessas transformações,
significa tão-somente a adoção de algumas de suas técni­ que atingem de maneira mais ampla o trabalho e o emprego
cas ou sistemas. Salerno, ao estudar a introdução desses no país. As transformações que vêem ocorrendo na produção
sistemas no país, chama a atenção para esse aspecto ao de calçados, em Franca, possuem características que contri­
afirmar que buem para a elucidação de algumas dessas questões.

81/ o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO


As TRANSFORMAÇÕES NA PRODUÇÃO DE CALÇADOS manda crescente do mercado interno, estimulada pelo pro­
MASCULINOS DE COURO EM FRANCA-SP, A PARTIR DOS cesso de industrialização e urbanização vivido no país, so­
ANOS 1980, E SEUS IMPACTOS SOBRE O TRABALHO mou-se a expansão da produção destinada à exportação, que
Este trabalho, que teve como referencial empírico a pro­ recebeu uma série de subsídios governamentais.
dução de calçados de couro na cidade de Franca-Sp, objetivou No Brasil, a indústria de calçados de couro é caracteriza­

compreender as mudanças em curso na indústria de calça­ da pelo emprego intensivo de trabalho vivo, apresentando

dos dessa cidade, desde os anos de 1 980, e que se intensifi­ um baixo índice de concentração de capital e adotando um

cam e se ampliam a partir dos anos de 1990, e quais os processo de produção que, de forma geral, não se utiliza de

impactos dessas transformações sobre o conjunto da força de tecnologias sofisticadas. Esse ramo da indústria absorve uma

trabalho ali empregada. Partindo do pressuposto de que a quantidade significativa de força de trabalho barata e, em

reestruturação da produção estaria levando à uma degrada­ boa medida, especializada, detentora de conhecimentos ,

ção salarial, ao aumento do ritmo de trabalho, aumento do habilidades e destreza manuais ainda imprescindíveis à pro­
desemprego, do trabalho temporário, do trabalho em domi­ dução do calçado de couro.
cílio, ao enfraquecimento do poder de organização dos tra­ No geral, as mudanças ocorridas nas indústrias que pro­
balhadores, com sérias conseqüências para suas condições duzem calçados de couro têm se pautado mais pela adoção
de vida e trabalho, configurando também um quadro de agra­ de novas técnicas organizacionais e pelo recurso da
vamento das condições de saúde dos trabalhadores, o esrudo subcontratação do que pela renovação do aparato tecnológico
do processo e organização do trabalho revelou-se como eixo envolvido na produção dessa mercadoria, o que tem impli­
a partir do qual a análise se desenvolveu. Cabe mencionar cado a intensificação do trabalho, o aviltamento salarial, a
que o processo de trabalho não está sendo entendido apenas eliminação de postos de trabalho e a crescente informalização
do ponto de vista técnico, como um mero arranjo de coisas, do emprego nesse setor, com a intensificação das práticas de
mas, sim, no sentido analisado por Marx, que o considera ao subcontratação, por meio de empresas especializadas em
mesmo tempo como um processo técnico, econômico e social, confeccionar determinadas partes do calçado, bem como atra­
isto é, determinado por relações sociais de classe. vés do aumento da contratação do trabalho realizado em do­
A cidade de Franca, localizada na região Nordeste do micílio.
Estado de São Paulo, é considerada o maior pólQ produtor Dada a grande diversidade de produtos e de processos
de calçados masculinos de couro do Brasil. Sua indústria produtivos que compõem o conjunto da produção calçadista,
calçadista consolidou-se na década de 1970, quando à de- optei por restringir a pesquisa à produção de calçados mas-

86 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO


culinos de couro realizada no município de Franca, onde esse balho nas indústrias, proliferaram diversas modalidad�s de
segmento da produção é o mais significativo em todos os trabalho em domicílio e nas bancas. Francisco de Oliveira
aspectos: envolve o maior número de trabalhadores diretos e alerta [para o fato de1 que, com o crescimento dessas formas
indiretos, abriga empresas de todos os portes, representa a precárias de ocupação
maior parcela de faturamento no setor etc. Além disso, essa "o.. tudo se passa como se o capitalismo experimentasse um imen­
produção destina-se tanto ao mercado interno quanto ao ex­ so salto para trás: a volta ao putting OU!, o trabalho em domicílio,
terno e é realizada em parte nas indústrias, nas bancas - uni­ uma das mais cruéis formas de acumulação primitiva." (Oliveira,
dades produtivas prestadoras de serviços para as indústrias 1 994)

de calçados, especializadas em confeccionar determinadas Para apreender o conjunto de mudanças em curso, fez-se
partes do calçado - e parte em domicílio, envolvendo dife­ necessário reconstituir o processo de produção do calçado, o
rentes formas de relações de trabalho. que implicou acompanhar tanto as etapas da produção reali­
O trabalho assalariado, em retração no setor, quanto ao zadas no interior das indústrias quanto aquelas desenvolvi­
número de trabalhadores empregados, coexiste com o traba­ das nas bancas e em domicílio.
lho em domicílio, que possui, freqüentemente, fortes carac­
terísticas de trabalho familiar e está, tendencialmente, em o PROCESSO DE PRODUÇÃO DE CALÇADOS NO CONTEXTO DA
expansão. A importância da coexistência de relações de tra­ REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA
balho em que o regime do salário convive com outras formas O processo de produção do calçado de couro envolve uma
de apropriação do trabalho excedente pelo capital ficou evi­ série de operações que são organizadas em torno de cinco
dente durante a realização da pesquisa de campo, que se operações principais: a modelagem, o corte, o pesponto, a
estendeu de meados de 1 993 a 1997. montagem e o acabamento. O número dessas operações pode
Independentemente das variações ascendentes e decres­ variar de acordo com o modelo de calçado em produção, o
centes do volume da produção ao longo da década de 1 986- tipo de organização adotada ou o porte da empresa.
1 996, a indústria calçadista francana extinguiu pelo menos A fim de facilitar a compreensão desse processo, optei
16.500 postos de trabalho nesse período, em sua enorme por analisar cada uma dessas fases, seguindo o processo de
maioria em decorrência, não da incorporação de maquinaria produção do calçado desde o seu início até a fase do
mais desenvolvida ao setor, e, sim, da adoção de estratégias empacotamento. É justamente nos meandros desse "labora­
de gerenciainento da produção pelas indústrias. Ao mesmo tório secreto" que residem os efeitos perversos do modelo
tempo em que reduziram-se drasticamente os postos de tra- implantado (readaptado) sobre os(as) trabalhadores(as).

88 o AVESSO DO TRABALHO C O l E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O
A MODELAGEM: PAPEL ESTRATÉGICO NO CONJUNTO DAS tados, em papelão, a laser. Outro sistema CAM permite, ain­
ATIVIDADES da, que o couro seja cortado com jatos d'água, com o corte
A modelagem dos calçados passou a ter um papel sendo acionado diretamente pelo computador. Embora a
crescentemente estratégico no conjunto das atividades do Samello disponha do equipamento que permite o corte do
setor calçadista a partir de meados da década de 1980. Essa couro com jato d'água, esse sistema não é utilizado na pro­
posição deve-se principalmente às exigências de um merca­ dução, apenas na seção de modelagem. Em nenhuma em­
do altamente competitivo, fundado na oferta crescente de presa calçadista francana a operação de corte do couro é
novos modelos de calçados e na obsolescência rápida dos efetuada através do sistema CAM, a jato d'água ou mesmo a
modelos já existentes. laser.
Na última década e meia, em nível internacional, a mo­ Poucas são as empresas calçadistas de Franca que dis­
delagem de calçados conheceu, um grande avanço na utili­ põem de uma seção própria para a modelagem e, dentre
zação e desenvolvimento de sistemas CAD/CAM2l projetados estas, raras são as que contratam estilistas para o desenvol­
especificamente para o uso na indústria calçadista. Somente vimento de seus modelos. A grande maioria dos calçados
no final dos anos de 1 980, o sistema CAD passou a ser utiliza­ produzidos em Franca reproduz, com pequenas alterações,
do na produção brasileira de calçados, introduzido pela Cal­ os modelos desenvolvidos na Europa, principalmente na
çados Samello S.A. ( Reis, 1 994). Na seção de modelagem Itália, onde se localizam os principais centros lançadores
dessa empresa, o sistema CAD é emp�egado no desenvolvi­ de moda.
mento do design do sapato e no desenho das peças do molde, "Os italianos fazem a moda [de calçados de couro masculinos], os

na modelagem do calçado. Os dados do design são enviados brasileiros copiam através de equipes de fabricantes que visitam os

para um sistema CAM que permite a produção dos moldes, principais centros de moda europeus, como a França, a Alemanha

em papelão, das diversas peças que compõem o modelo de e a Itália . ... O que é interessante é que antes que os exportadores

um sapato e sua respectiva escalação. Esses moldes são cor- brasileiros façam a "cópia", os modelistas italianos e franceses vêem
ao Brasil observar a riqueza das cores e da cultura para se inspirar e

21
levar as idéias aos seus países de origem." (Batista, 1 996, pp. 56-8)
o CAD - ComputerAided Design e o CAM - ComputerAided Manufacturing
são tecnologias de base microeletrônica utilizadas na produção calçadista. O Assim como os modelos desenvolvidos no exterior são
CAD é utilizado na elaboração do design dos modelos e na modelagem do
_ reproduzidos e ligeiramente modificados pelas indústrias
calçado. O CAM pennite o acionamento de um sistema computadorizado de
francanas, aqueles desenvolvidos pelas grandes empresas
corte da matéria-prima do calçado com jato d'água, a laser ou com facas
mecânicas. calçadistas locais também são utilizados como "fontes" para

9° o AVESSO DO TRABALHO C O L E ÇÃ O TRABALHO E EMANCI PAÇÃO

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o desenvolvimento de modelos pelas empresas calçadistas destinada ao mercado externo costumam fornecer o design e
de menor porte c mesmo pelas concorrentes. até mesmo os moldes e a matéria-prima que serão emprega­
Em Franca, o trabalho do estilista é exercido com fre­ dos em sua produção.
qüência de maneira sobreposta, simultânea ao trabalho do " ... Quando a produção é destinada ao mercado externo, ... a indús­
modelista. Raros são os profissionais contratados como tria brasileira de calçados apenas corta os modelos previamente
estilistas. Na grande maioria das empresas que possuem se­ determinados pelos importadores, ficando sem liberdade para 'criar'.
ção de modelagem, o profissional responsável pela criação Essa situação existe desde o início das exportações e justifica a ex­
ou adaptação à produção local de modelos desenvolvidos no pressão muitas vezes utilizada tanto por empresários calçadistas
exterior, ou mesmo pelas empresas concorrentes, não é o quanto por representantes de classe: 'Nós não vendemos, somos
estilista, mas um prático, um modelista que realiza as modi­ comprados'." (Reis, 1994, p. 149)
ficações necessárias ao desenvolvimento de um novo modelo "Na produção para exportação, nós, da Samello, trabalhamos mais
diretamente sobre a forma sem, necessariamente, basear-se como mão-de-obra. A matéria-prima vem dos -E UA, o modelo tam­
em um estudo estilístico prévio. bém. Nós somos mão-de-obra, vendemos mão-de-obra, produzi­
" .. Quando nós falamos em estilista nós pensamos em criador de
o
mos o que eles pedem." (A.S., sapateiro da Calçados SameUo S.A.)
moda, naquele que cria a moda e a 'joga' no mercado. Aquele que
faz as criações: moda-inverno, moda-verão. No Brasil, [na produ­ o corte
ção de calçados masculinos de couro] você pode contar nos dedos, Na seção de corre, a reestruturação produtiva vem elimi­
se existir, quem faça isso. Na realidade, o nosso estilista é aquele nando, desde o final dos anos de 1 980, as chamadas funções
que vai ao exterior e constata quais são as tendências ... Ele vai, auxiliares, as quais vêm sendo crescentemente atribuídas ao
assiste aos desfiles, 'clica' (fotografa) ou desenha os modelos, che­ cortador, sobrepondo-se às operações do corte propriamente
ga aqui e fala: 'vai ser isto!'." (EA.F, técnico do setor de calçados j dito. A partir de 1 993, como medida de redução de custos, o
SenaijFranca, doravante citado EA.E, SenaiIFranca) corte começou a ser enviado para as bancas e para ser execu­
O aumento do mercado consumidor interno e a segmen­ tado nos domicílios dos trabalhadores, tanto em função de
tação que os calçados de couro passou a adquirir nesse mer­ incrementos da produção em algumas empresas quanto de­
cado nos anos de 1980 exigiram a oferta de um número maior vido à extinção dessa seção em outras.
de modelos de calçados. A produção destinada ao mercado A operação de corte do couro ou vaqueta [tipo de couro],
externo teve pequena participação no mercado de trabalho está entre aquelas operações consideradas mais qualificadas
dos modelistas. Os intermediários que negociam a produção e melhor remuneradas no setor calçadista. O bom aproveita-

92 o AVESSO 00 TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO 93


mento do couro, que é um dos mais caros insumos da indús­ peradas. A implantação de tecnologias de corte baseadas na
tria calçadista, depende, em boa medida, do conhecimento microele trônica, da mesma forma que o emprego dessas
adquirido pelo trabalhador ao longo de anos de trabalho, que tecnologias na seção de modelagem, só encontra um obstácu­
o capacita a avaliar corretamente suas características - seu lo à sua difusão na produção de calçados de couro no Brasil: o
tipo, maciez, textura, diferenças de cor, sentido das fibras, seu preço elevado, 22 o que restringe o seu uso por apenas
classificação etc. De forma geral, as máquinas desenvolvidas aquelas empresas que possuem altos volumes de produção,
para a produção de calçados de couro incorporam poucos as­ categoria em que não se enquadra a grande maioria das indús­
pectos qualitativos do trabalho anteriormente exigido do trias francanas produtoras de calçados. Apesar disso, a expec­
operário. Assim, grande parte dos operários da indústria de tativa do desenvolvimento desses equipamentos para o setor
calçados de couro necessita, além de apresentar as habilida­ calçadista é motivo de preocupação entre os sindicalistas lo­
des artesanais descritas, conhecer o conjunto de operações cais, devido à possibilidade de seu uso compartilhado por vá­
dos processo de produção envolvidos. nas empresas.
O couro, ao contrário de outras matérias-primas utiliza­ "Nós assistimos a apresentação da máquina de corte a jato d'água
das na confecção de calçados, como os tecidos e os materiais há algum tempo atrás. Ela consegue cortar cerca de 5 a 6 mil pares
sintéticos, não apresenta uniformidade, podendo variar na de sapatos por dia, com apenas uma pessoa operando. ... Ela tem
sua espessura, textura, coloração e apresentar defeitos como um esquema de computação que consegue fazer o aproveitamento
manchas originadas quando o animal está no pasto ou durante do material, mesmo quando este não é sintético, como é o caso do
seu abate. couro. Se essa máquina for implantada, pode dar origem, aqui em
As peculiaridades do couto são apontadas como um dos Franca, a uma empresa prestadora de serviços que iria efetuar o
principais i mpedimentos para adoção das modernas corte para pelo menos 5 ou 6 fábricas, eliminando muitos postos de
tecnologias já disponíveis para o corte, como o realizado a trabalho." (R.F., ex-presidente do Sindicato dos Trabalhadores da
jato d'água ou a laser. Indústria de Calçados de Franca e Região, doravante grafado como
Essa tecnologia, já incorporada à produção calçadista no STICF)
exterior desde a década de 1980 e mais recentemente no Bra­
sil, é empregada na produção de calçados sintéticos ou elabo­
22 Desenvolvido na Inglaterra pela USM, o Sistema Modular de Modelagem por
rados com outros materiais, que apresentam ca(acterísticas
Computador, que permite o corte do couro com jato d'água, tinha seu preço
uniformes. Embora ainda não seja utilizado no corte do cou­ estimado em US$ 300.000. no final dos anos de 1980. Cf. idem ibidem. pp.
ro, as dificuldades técnicas para seu emprego estão sendo su- 1 15-6.

94 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO 95


Na produção francana de calçados de couro, o corte é pro­ bém deve ocultar, através da disposição dos moldes sobre a
cessado de duas formas: mecanicamente, com a utilização vaqueta, os possíveis defeitos do couro, como as marcas dei­
de balancins de corte, e manualmente, a faca, empregando xadas pelo ataque de bernes e carrapatos, os arranhões pro­
as chamadas facas ou navalhas de cortador. vocados pelo arame farpado das cercas e as cicatrizes
No corte mecânico, utilizam-se moldes de ferro com lâ­ resultantes de marcas do criador feitas a ferro. Esses defeitos
minas de aço para cada peça a ser cortada. É preciso lembrar devem ser posicionados, durante o corte, nas peças que se­
que um determinado modelo de calçado pode demandar, às rão encobertas pela Costura ou pelos enfeites do calçado. Por
vezes, dezenas de peças, sendo produzido em escalação com­ isso, o cortador deve conhecer o tipo do calçado que está
pleta. Esses moldes metálicos, também chamados de facas, cortando.
são produzidos, em geral, fora das fábricas de calçados, por "Se é mocassim, o couro não pode esticar de lado. Se é um sapato
empresas metalúrgicas especializadas. No corte manual, uti­ montado, não pode esticar na borda: o couro estica em determina­
lizam-se moldes de papelão de cada peça que vai compor o do sentido ... Tem que ter muita prática." (J.S., sapateiro emprega­
calçado e uma faca ou navalha de cortador de lâminas de aço. do da Calçados Samello S.A.)
Nessa operação, a destreza e a habilidade do cortador são Apesar de a indústria de calçados de couro de Franca ain­
extremamente importantes. A firmeza das mãos ao segurar da fazer uso, em boa medida, do corte feito a mão, a substi­
os moldes, além de garantir a qualidade do trabalho, tam­ tuição do corte manual pelo corte mecanizado tem sido
bém é imprescindível para a segurança do trabalhador, evi­ crescente a partir dos anos de 1970, quando disseminou o
tando assim os acidentes. O gume da faca deve cortar a uso dos balancins de corte entre as maiores empresas
vaqueta em um ângulo de, aproximadamente, noventa graus, calçadistas do município. Seu uso aumenta a produtividade.
para que o acabamento do corte seja perfeito. Enquanto um cortador manual corta cerca de 60 a 70 pares
Ao fazer a disposição dos moldes metálicos ou de pape­ por dia, esse número pode chegar a 200 pares diários com o
lão sobre a vaqueta, o cortador deve buscar a melhor forma uso do balancim, dependendo do modelo do calçado.
para o seu aproveitamento e observar as partes do couro onde "Enquanto um cortador corta 60, 70 pares manualmente, com um
as fibras são mais resistentes, reservando-as para as peças do balancim você corta 1 00, 120, até 200 pares, dependendo do mode­
calçado que estarão sujeitas a maior impacto quando o calça­ lo. Isso significa que há um ganho de produtividade e que dimi­
do estiver sendo utilizado; e aquelas partes qlJe possuem nuiu o número de pessoas no corte." (EA.E, Senai/Franca)
melhor aspecto para cortar as partes mais visíveis do calçado, A principal mudança tecnológica adotada, a partir dos anos
principalmente a parte superior do cabedal. O cortador tam- de 1 980, no corte mecanizado das peças de couro foi a subs-

o AVESSO DO TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO 97


tituição dos balancins de acionamento mecânico, cuja ope­ com outras doenças (hipertensão, estresse, aumento do número de

ração exige um grande dispêndio de força física, pelos acidentes) fazem do ruído um agente reconhecível, mas com re­

balancins de acionamento hidráulico, mais rápidos, mais pre­ percussões pouco 'visíveis' para a maioria." (Azevedo, 1993, p. 401)

cisos, e de operação considerada mais segura. Apesar da predominância do corte mecanizado, a indús-
Atualmente, a quase totalidade do corte do couro meca­ tria .de calçados de couro de Franca não pode prescindir do
nizado é executado em balancins hidráulicos. A maior facili­ corte manual. O corte manual, nas empresas de maior porte,

dade de operação dos balancins hidráulicos, em relação aos é realizado tanto para a confecção das matrizes de cada novo
modelos mais antigos, permite sua operação por mulheres, modelo quanto para atender pedidos com poucos exempla­

que já se fazem presentes na seção de corte. No entanto, res de cada modelo.

esses equipamentos continuam produzindo muito barulho "Não é possível eliminar por completo o trabalho dos cortadores

quando operados. A vibração provocada pelo impacto da ban­ manuais porque, quando há uma modelagem nova, o trabalho des­

deira (parte móvel do balancim que, quando acionada, pres­ ses profissionais é necessário. Geralmente, os primeiros exempla­

siona os moldes) sobre as facas de corte é sentida em todo o res d e um determinado modelo são cortados a mão." (R. F.,

chão da fábrica. Nas visitas às fábricas, durante o trabalho de ex-presidente do STICF)

campo desta pesquisa, pude constatar o quanto incomoda e As grandes empresas calçadistas francanas, nos últimos

pode vir a ser prejudicial à saúde dos trabalhadores o ruído anos, vêm exigindo que seus cortadores sejam habilitados

provocado pelo acionamento dos balancins. Ao sair de tais tanto no corte manual quanto no corte mecânico. Entretan­

unidades industriais, perduram, por algum tempo, nos visi­ to, são poucas aquelas empresas que adotam programas de

tantes, os impactos e o barulho provocados pelos balancins. requalificação profissional de seus empregados, cabendo a
Em uma das empresas visitadas, todos os cortadores e os estes requalificarem-se por iniciativa própria.

demais trabalhadores da seção usavam protetores auriculares "Antes, nas empresas, havia cortadores manuais e cortadores para o

durante o trabalho e, mesmo assim, reclamavam do barulho balancim. Aí, com essas transformações que estão ocorrendo nas

produzido pelo equipamento. Inúmeros estudos empresas, eles estão exigindo que os cortadores manuais cortem

"... vêm evidenciando que os efeitos nocivos [do ruído] não se li­ também no balancim." (M.S., presidente do STICF)

mitam apenas às lesões do aparelho auditivo, mas comprometem Em muitas empresas, o corte só é realizado à mão en­

diversos outros órgãos, aparelhos e funções do organismo ... A quanto em outras não há mais a seção de corte; essa operação

cronicidade dos efeitos (são necessários vários anos para manifesta­ é repassada para as bancas, onde o corte pode ser executado
tanto com O uso de balancins quanto manualmente.
ção de surdez) e a dificuldade de estabelecer correlações diretas

o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÂO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO 99

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o bom aproveitamento da matéria-prima e a redução do "De 1 993 para cá, as empresas estão terce�rizando o corte ... Isso
número de trabalhadores que desempenham as funções auxi­ está ocorrendo porque o çorte, depois do pesponto, é a operação
liares são as principais preocupações dos técnicos na seção de que ocupa o maior número de pessoas dentro da fábrica." (P.A.R.,
corte. As exigências relativas à diminuição do desperdício de sapateiro e sindicalista)
matérias-primas, em especial do couro, e a maior qualidade De início, julgava-se que as operações realizadas em se­
do trabalho de corte tem sido cada vez mais intensas. Passa a ções que demandassem o emprego de máquinas caras e pe­
ser atribuição do cortador conferir seu próprio trabalho, tarefa sadas, ou que oferecessem dificuldades para o controle da
qUe, em algumas empresas, era exercida por um outro traba­ matéria-prima que saía da fábrica, como era o caso do corte
lhador contratado unicamente para essa função - o "conferidor" do couro, dificilmente poderiam vir a ser realizadas em ban­
ou a "conferideira". Esses trabalhadores tinham por função cas ou em domicílio. Até então, o corte era executado fora da
revisar as peças já cortadas, retirar aquelas que apresentavam fábrica em raras ocasiões, quando o volume da produção ul­
defeitos e devolvê-las ao cortador, gerando, muitas vezes, o trapassava o limite da capacidade produtiva da empresa.
chamado "retrabalho". A partir do momento em que essas Nesse caso, o corte era realizado em domicílio, à mão e, na
empresas passaram a reorganizar sua produção, coube ao grande maioria das vezes, por operários assalariados da pró­
cortador a função de revisar o próprio trabalho levando à pria empresa, considerados "de confiança".
extinção do trabalho da "conferideira" de corte. Com a saída do corte para ser realizado fora das indústrias,
"O cortador não se preocupava muito com a qualidade, porque a as empresas calçadistas adotaram estratégias para controlar o
"conferideira" avisava quando havia defeito. Hoje, as peças têm uso dessa matéria-prima, como a existência de funcionários
que sair bem cortadas, com qualidade, para que não sejam refei­ que passaram a atuar fora da empresa, fiscalizando o traba­
tas." (P.A.R., sapateiro c sindicalista) lho nas bancas.
"O corte do couro era uma operação que ficava mais restrita ao
A terceirização do corte: trabalho nas bancas interior das empresas porque era difícil o controle da matéria-pri­
e em domicílio ma. Hoje alguns gerentes de empresas não trabalham mais dentro
A principal mudança que ocorre com a operação do corte \ das fábricas. Ficam n.a rua, fazendo a fIscalização do trabalho que as

\
do couro é o repasse, que vem sendo feito pelas indústrias empresas tereeirizam." (R.E, ex-presidente do STICF)
de calçados, de parte ou mesmo de toda a operac;:ão de corte A seleção dos trabalhadores encarregados de realizar o
para terceiros. Esse processo ganha corpo a partir de 1993, corte em bancas ou em domicílio é rigorosa e é dada prefe­
quando começam a proliferar em Franca as bancas de corte. rência a ex-funcionários, considerados de confiança pelas

100 o AVESSO DO TRABALHO C O L E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O 101


empresas calçadistas. Em geral, os donos de bancas de corte
" ... 1\I1 as há também muitos cortadores que- foram dispensados das
são ex-funcionários das empresas que contratam seus servI­
empresas e receberam os balancins emprestados, contrataram um
ços. Algumas dessas bancas trabalham exclusivamente para
ajudante e estão trabalhando em casa." (P.A.R., sapateiro e sindica­
determinada empresa.
lista)
"Geralmente são ex-trabalhadores das empresas, gerentes, algum
A instalação desses balancins hidráulicos nas varandas ou
encarregado do setor de corte. São em geral empregados ligados a
garagens das casas dos trabalhadores requer adaptação na
cargos de confiança da empresa que acabam montando as bancas
estrutura desses imóveis, para que possam suportar os cons­
de corte para a empresa." (M.S., presidente do STICF)
tantes impactos ptovocados pela prensa hidráulica, quando
As bancas de corte que surgcm, a partir dos anos de 1 990,
acionada. Na grande maioria das vezes, é necessária a execu­
variam no tamanho, no número de trabalhadores emprega­
ção de reforços em todo o alicerce do imóvel e a instalação
dos e no tipo de instalação. As maiores possuem, em média,
de molas nos locais onde os balancins são acomodados. Es­
cinco balancins e empregam de dez a doze trabalhadores.
sas adaptações, entretanto, são impraticáveis para a maioria
Em sua maioria, são instaladas em locais próprios para essa
dos trabalhadores que instalam um balancim em seus domi­
atividade. Nessas bancas, executa-se também o corte manuaL
cílios. Além da falta de recursos necessários para um investi­
Entretanto, grande parte das bancas que realizam serviços
mento d e tal monta, há casos que o trabalhador se vê
de corte de couro ou de ourros materiais, como as forrações,
impedido de fazê-lo por morar em casa alugada, como depõe
por exemplo, são pequenas e dispõem apenas de um ou dois
um entrevistado:
balancins hidráulicos.
"Têm cortadores que adaptaram a casa para colocar o ba\ancim.
"As bancas de corte que estão surgindo possuem em geral um ou dois
Fizeram um alicerce próprio, com molas e muito concreto. Só que
balancins. Chegam a ter no máximo quatro a cinco funcionários. Eles
esse é um serviço que tem que sair do bolso do cortador. Tem gen­
cortam no balancim e também fazem o corte manual, porque o jogo de
te que nem é proprietário da casa onde mora, ou não tem como
lâminas é muito caro, só compensa mandar fazê-lo se o modelo ficar na
aumentar a sua casa� o que dirá para fazer uma adaptação dessas."
linha de produção de um a dois anos." (M.S., presidente do STICF)
(P.A.R., sapateiro e sindicalista)
Cresce, porém, o trabalho de corte realizado em domicí-
A transferência das atividades do corte do interior das
lio, execurado por um único operário que trabalha sozinho
fábricas para o domicílio dos sapateiros, além de penalizar o
em sua residência operando um balancim obtid�, na maioria
trabalhador pela inexistência de contratos que garantam cons­
das vezes, através de empréstimo ou como forma de paga­
tância de fornecimento de trabalho, pela existência de inter­
mento por ocasião de sua demissão da empresa.
mediários que leva ao aviltamento dos salários, também o

102 o AVESSO 00 TRABALHO


C O L E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O -103
penaliza ao fazê-lo arcar com os custos de instalação do cio da jornada e após cada parada... As adaptações, freqüentes no
maquinário em sua residência. Em muitos casos, o funciona­ nosso parque industrial, e responsáveis por um número enorme de
mento do balancim, além de colocar em risco a estrutura das acidentes do trabalho, devem ser totalmente eliminadas. Tais im­
residências, em sua maioria casas populares, também coloca provisos, comumente chamados de gambiarras aparecem rotineira­
em risco a saúde do trabalhador e de sua família. Se nas fá­ mente em função da necessidade 'imperiosa' da produtividade, de
bricas, onde o pavilhão industrial foi construído para abrigar não parar a máquina ... " (Whitaker, 1993, pp. 339-40)
esse tipo de maquinário, o impacto do balancim é apontado
como fator de risco à saúde do trabalhador, é possível dedu­ O "tressê": trabalho predominantemente feminino,
zir que esse risco é potencializado quando o balancim passa realizado em domicílio
a competir com a família do trabalhador pelo espaço da casa. Depois de realizado o corte, quando o modelo em produ­
O barulho e a trepidação provocados pelo balancim atingem ção possui "tressê", ou enfeites, as peças cortadas, antes de
não apenas o trabalhador e sua família mas também os seus seguirem para o pesponto, saem da fábrica e são encaminha­
vizinhos. das às "colocadeiras d e tressê" , às "tresseteiras" ou
"A instalação dos balancins em cómodos da casa, na varanda e na gara­ "colocadeiras de enfeites", que trabalham em domicílio.
gem tem gerado muita briga entre os vizinhos, pois o impacto do " O 'tressê' é terceirizado. A pala onde é colocado o 'rressê' ou os
balancim, além de incomodar pelo barulho, também faz trepidar a casa enfeites, sai da seção de corte e é mandada para fora da fábrica,
do cortador e a dos vizinhos, provocando até rachaduras. Não são todos para o 'tressê' ser feito em domicílio. Na indústria, a pala trabalha­
que têm condição de fazer as adaptações e ele coloca em risco a casa da com o 'tressê' volta para a seção de corte, onde é recortada no
dele e a dos vizinhos também." (P.A.R., sapateiro e sindicalista) tamanho exato da peça, e vai para a seção de preparação." (A. S.,
Entretanto, o que mais gera preocupação nessa ativida- intermediário de 'tressê'jfuncionário de uma indústria de calçados)
de, quando realizada em locais improvisados, é a falta de Desde a década de 1970, quando o volume da produção
adoção de medidas de prevenção de acidentes, de fiscaliza­ passou a exceder a capacidade instalada das fábricas
ção e manutenção desses equipamentos. As recomendações francanas, esse trabalho passou a ser realizado em domicílio.
quanto à segurança no trabalho com prensas (podemos con­ Se, inicialmente, as·empresas mantinham vínculos emprega­
siderar o balancim como um tipo de prensa) indicam que tícios com as trabalhadoras, esses vínculos foram se dissol­
uma série de medidas de inspeção e intervenção_preventiva vendo à medida que as próprias trabalhadoras começaram a
devem ser executadas periodicamente. compartilhar o trabalho com membros da família e a repassar
" ... Todos os dispositivos de segurança devem ser testados no iní- parte do trabalho para vizinhas, amigas e parentes.

10 4 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO


A partir do final da década de 1 980, à medida que um "Eu não pego o serviço direto da fábrica, é serviço repassado. O
número crescente de operações foram sendo deslocadas das irmão da mulher que me traz o serviço retira as peças na fábrica,
fábricas para as bancas e para os domicílios dos trabalhado­ entrega para ela, que traz para mim, e, quando há muito trabalho,
res, extinguiram-se os vínculos empregatícios entre as emc eu passo uma parte para outras. Quando eu repasso, eu ganho um
presas e os trabalhadores que trabalham fora das fábricas, ao pouco em cima desse serviço, porque eu repasso um pouquinho
mesmo tempo em que surgiu e se ampliou o número de in­ mais barato," (N.D., trabalhadora em domicílio/"tresseteira")
termediários entre as empresas e os trabalhadores. Muitas vezes, a trabalhadora que recebe as peças do in-
O trabalho das "colocadeiras de tressê" e de enfeites che­ termediário converte-se em uma líder de quarteirão, repas­
ga às trabalhadoras através de um intermediário que retira, sando parte dessas peças para outras trabalhadoras, vizinhas
nas indústrias, grande quantidade de trabalho a ser realizado ou parentes.
em domicílio, entrega as peças nas moradias das trabalhado­ Esse trabalho tem caráter familiar. A realização do traba­
ras, rerorna, no dia seguinte, recolhendo o trabalho pronto e lho de elaborar "tressê" ou enfeites conta com a participação
o leva de volta para as indústrias. dos filhos e do marido. O pagamento por par de peças exe­
" ... quando a mulher que me traz o serviço vem à noite, eu faço o cutadas é recebido pela trabalhadora responsável pelo "ser­
'tressê' à noite mesmo. Ela costuma vir buscar o trabalho pronto na viço", pela mulher que coordena o trabalho da família. A
manhã do dia seguinte." (N. D., trabalhadora em domicílio/ unidade produtiva familiar possui característica nuclear: com­
"tresseteira") preende a mulher, os filhos e o marido, quando as mulheres
Apesar do intermediário do "tressê" não possuir um lo­ são casadas ou vivem com seus companheiros, ou apenas a
cal próprio - uma "banca" - destinada à realização desse tipo mulher e os flIhos, quando sós. O trabalho dos maridos e/ou
de trabalho, recebe a denominação de banqueiro, de dono companheiros tem o caráter de "ajuda", assim como o dos
de banca, que, nesse caso, é sinónimo de intermediação do filhos. O marido "ajuda" quando retorna para casa, após ter
serviço. Esse intermediário também é responsável pelo re­ cumprido sua jornada de trabalho, e os filhos "ajudam", nos
cebimento da remuneração, nas indústrias, do trabalho exe­ períodos em que não estão na escola.
cutado em domicílio, e pelo pagamento semanal das É freqüente, nos bairros operários de Franca, que as
trabalhadoras, que recebem por par de peças executadas. O "colocadeiras" de "tressê" e de enfeites, a exemplo das
preço que a indústria paga por par de peças dimin_ui à medi­ costuradeiras manuais, reúnam-se para trabalhar em grupos,
da que aumenta o número de intermediários entre o "servi­ nas calçadas e varandas das casas. Elas partilham da compa­
ço" e o trabalho. nhia, uma das outras, mas não o trabalho: cada uma executa,

106 o AVESSO 00 TRABA L H O C O L E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O


com o auxílio de seus filhos, a sua cota de peças. Um dos com a roupa. . . É como se eu trabalhasse fora." (N.D., trabalhadora
.

grupos de "tresseteiras" visitado era composto por três uni­ em domicílio/"tresseteira")


dades produtivas familiares. Todos os membros desse grupo o trabalho de colocar "tressê" exige muita paciência e
possuíam laços de parentesco: a mãe; uma filha, acompanha­ habilidade. É executado normalmente sobre as palas de al­
da de seus dois filhos; outra filha, acompanhada de um filho. guns modelos de sapatos. Os instrumentos de trabalho são a
A idade das mulheres variava entre 36 e 55 anos e a das crian­ agulha, de aproximadamente 15 cm com a ponta curva e acha­
ças, entre um e 13 anos. Embora estivessem reunidas três tada, freqüentemente feita pela própria trabalhadora, e uma
gerações de trabalhadores, havia três cotas diferentes de tesoura média comum.
"tressê" sendo produzidas. "Nós mesmas fazemos as agulhas, com as 'barbatanas' de uma 'som­
Esse trabalho ocupa o dia todo das mulheres, sendo in­ brinha' . ... É de fabricação nossa .. É melhor para trabalhar do que
. .

terrompido apenas para o preparo do almoço e do jantar e, a de pressão [que é comprada]. Nós sempre trabalhamos com elas."
quando os filhos ainda são pequenos, para arrumá-los para a (N.D., trabalhadora em domicílio/"tresseteira")
escola. Às vezes, prolonga-se durante a noite e nos finais de Durante o corte das palas, nos balancins, são feitas as fen­
semana. Parte do trabalho doméstico é executado durante das por onde serão passadas as tiras fininhas de couro, for­
essas interrupções, mas é freqüente que os cuidados maio­ mando a trama. Há vários tipos de trama feitas em "tressê".
res da casa sejam realizados nas manhãs de segunda-feira, O trabalho é lento e cansativo: um par de palas demanda,
quando as cotas de "tressê" e de enfeites ainda não foram em média, de 30 minutos a uma hora, de acordo com a trama
distribuídas. e a habilidade da "tresseteira", e é executado com a traba­
"Eu começo sempre às oito horas da manhã e trabalho até as dez e lhadora sentada.
meia, quando vou preparar o almoço, dar uma 'arrumadinha' na "Com esta trama, mais difícil, eu faço um pé em 20 minutos. Há
casa. Retorno lá pelo meio dia e meia e trabalho até as cinco horas pessoas que ficam horas e não fazem um pé. O que 'manda' é a
da tarde, quando paro para fazer o jantar. .. Continuo a fazer o 'tressê' prática mesmo. ... Mesmo parando, eu faço 1 2 pares por dia". .. "É
.

à noite, até acabar a novela. ... . Nas minhas horas de folga, vou cui­ muito cansativo. Nós ficamos sentadas o dia inteiro. ... Para mim, o
dar da casa. Na verdade, não temos folga porque, quando acaba­ que mais dói é a coluna. ... Não dá para trabalhar em pé, porque
mos de fazer o 'tressê', aproveitamos para lavar a roupa, passar, não há como firmar a mão." (N.D., trabalhadora em domicíliol

limpar a casa. ... Na segunda-feira pela manhã não há serviço para "tresseteira")
fazer, porque a entrega costuma ser feita na hora do almoço ou à O bom aproveitamento da matéria-prima utilizada na
noite. Dá para você dar uma organizada melhor na casa e mexer confecção do "tressê" é outra exigência da empresa que re-

COlEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO . 10 9


108 o AVESSO DO TRABALHO
trabalho. Podemos aqui observar a influência do gênero
passa esse trabalho para ser realizado em domicílio. O inter­
nesse tipo de exploração de trabalho. A maioria das mu­
mediário entre a empresa e a trabalhadora é quem se ocupa
lheres entrevistadas, apesar de considerarem o trabalho
em controlar o uso da matéria-prima, exigindo das trabalha­
nas fábricas mais atraente pelo fato de este proporcionar
doras que aproveitem cuidadosamente a quantidade de tiras
maior estabilidade e remuneração e por garantir certos
de couro enviada pela fábrica, que é mínima.
"Você tem que saber aproveitar as tiras. Em cada pé são utilizadas
direitos trabalhistas - jornada fixa de trabalho, férias, 13 °

.4 tiras deste tamanho [mostra as tiras com 1,5 m cada]. Na fábrica,


salário, registro em carteira etc. - por estarem numa fase

eles fazem o cálculo de quanto couro será gasto por par [de palas].
do ciclo d e vida em que aumenta suas responsabilidades
domésticas e familiares, viam no trabalho em domicílio
A quantidade de tiras que eles mandam 'é a conta' de fazer a fi­
uma forma de conciliar as responsabilidades de "mães!
cha." (N.D., trabalhadora em domicílio/"tresseteira")
esposas!donas-de-casa" com uma atividade remunerada.
Embora haja máquinas para fazer "tressê", sua produção
Delgado lembra que
manual ainda não está ameaçada, devido à diferença de qua­
"O trabalho doméstico que vem junto ao compromisso de esposa e
lidade e à demanda dos importadores, que exigem que de­
mãe, por ser tido social e ideologicamente como responsabilidade
terminadas operações da confecção do sapato de couro sejam
'natural' familiar e feminina - apesar de todas as mudanças econô­
executadas manualmente.
micas e culturais - isenta o Estado (e o capital) de assumir a repro­
"Eu já vi o 'tressê' feito à máquina, só que não se compara ao ma­
dução social como sua tarefa. E não é considerado trabalho: o 'eu
nual. É feio. .. Mesmo uma pessoa que não entenda de sapato
0

não trabalho' ou o 'minha mulher não trabalha' referidos às donas­


percebe a diferença entre um e outro... " (N.D., trabalhadora em
domicílio/"tresseteira") de-casa na sua auto-representação e na representação coletiva que

Após a confecção do "tressê" ou dos enfeites, as peças delas se ,faz é também uma construção ideológica. A jornada de

retornam à empresa, onde são conferidas e encaminhadas à trabalho é extensiva, não tem fim nem feriado. Exaustiva, respon­

seção de corte, para serem recortadas e em seguida levadas à sável por um alto índice de distúrbios nervosos nas mulheres pela

seção de pesponto. sua extensividade, repetição e isolamento, ela se alia - no caso do

O trabalho das colocadeiras de "tressê", bem como o trabalho em domicílio a um outro trabalho que é determinado de

das costuradeiras manuais é um bom exemplo de como as fora, mas não conta com os limites conquistados para controlar a
mulheres estão submetidas a duplas ou a triplas- jornadas exploração do trabalho fabril; jornada de trabalho fixa, descanso

de trabalho. Essa jornada de trabalho j ustaposta aumenta semanal remunerado, férias, seguridade social." (Delgado, 1994, p.

consideravelmente o grau de exploração dessa força de 1 19)

110 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO 111


11& S

o pesponto: trabalho realizado nas fábricas, bancas e em cabedal é precedida de algumas operações preparatórias, que
domicílio podem ou não estar organizadas em seções próprias, como a
O pesponto é a seção que envolve o maior número de chanfradura e os serviços de mesa, como a passagem de cola,
trabalhadores na indústria de calçados23 e é também a que a colagem de peças, furação de peças e pregar ilhoses.
há mais tempo incorpora o trabalho realizado em domicílio. 24
Mesmo nas empresas que mantém em funcionamento as A chanfradura e os serviços de mesa: predomínio
seções de pesponto é usual o envio de parte das operações do trabalho feminino
exigidas nessa etapa da produção para ser feito nas bancas e As mudanças nessa etapa da produção têm levado à orga­
em domicílio. Predomina no pesponto o trabalho de mulhe­ nização do trabalho em grupos ou células de produção, em­
res que, em sua maioria, se dedicam às operações considera­ bora ainda predomine, entre as indústrias de calçados de
das auxiliares. No pesponto, as peças que vão compor o Franca, o trabalho de preparação organizado em linha. Quan­
cabedal são unidas através de costura mecânica. É a partir do o trabalho é organizado em linha, essas atividades podem
dessa operação que o calçado começa a tomar forma. ou não estar ligadas por uma esteira, ainda que operando
"Até o pesponto, quem olhar o produto e for leigo no assunto às apenas para o transporte do material em elaboração. A
vezes não consegue imaginar que aquilo ali vai ser um sapato, mas chanfradura é realizada por mulheres, em máquinas de
qualquer leigo que olhar para um sapato pespontado vai saber que chanfrar. Tal operação consiste em diminuir a espessura das
aquilo ali vai ser um sapato." (A.S.S., cronometrista de uma indús­ bordas das peças que serão sobrepostas para serem coladas e
tria de calçados) posteriormente costuradas. Esse trabalho, além de facilitar o
A costura mecanizada ocupa tanto mulheres quanto ho­ pesponto, dá uniformidade ao cabedal, proporcionando um
mens, e é considerada um trabalho qualificado. A costura do acabamento mais fino ao calçado. Cabe também ao operador
dessa máquina processar a limpeza dos resíduos de couro
23 " ••• no início de 1980, o IPT constatou que 36,7% dos operários da indústria que vão se acumulando na máquina de chanfrar durante a
calçadista [de Franca] estava trabalhando na seção de pesponto, sendo esta a
jornada de trabalho. É nesse momento que os riscos de aci­
seção mais dependente de mão-de-obra". Cf. RINALDI, D. M. C. Ofaçonismo
em Franca. Franca, UNESP, 1987 (Dissertação de Mestrado), p. 3 l . dentes nessa fase da' produção aumentam. Feita a chanfra­
24 "• •, o pesponto é a fase da industrialização mais facilmente deslocável dos dura, as peças são encaminhadas para as passadeiras de cola.
limites físicos da fábrica, por tratar-se de transferir, para as bancas, os cortes
Em muitas empresas, ainda é possível observar, na fase de
já preparados, uma matéria-prima leve e de fácil acomodação, transportável
em qualquer meio de locomoção (carro, moto, perua etc.)," Cf, idem ibidem,
preparação para o pesponto, uma grande divisão de trabalho.
p. 41. Algumas trabalhadoras se dedicam apenas a colar as peças,

112 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO


dobrar, colar o forro, colar espumas nas peças, furar, pregar peça, predominava até recentemente e era a estratégia utili­
ilhoses etc., enquanto outras martelam as peças coladas para zada para a obtenção de ganhos de produtividade.
dar maior firmeza à colagem. A reestruturação industrial tem trazido novas estratégias
A atividade considerada mais insalubre nessa fase da pro­ de planejamento da produção, alterando a forma de divisão
dução é a da coladeira de peças que faz parte dos chamados e organização do trabalho na seção de pesponto. A adoção de
serviços de mesa. A cola utilizada para colar as peças é acon­ grupos ou células de produção por algumas indústrias de cal­
dicionada em pequenas bacias sem nenhuma proteção sen­ çados tem sido mais comum na seção de pesponto. Com a
'
do inalada pela trabalhadora durante toda a jornada de introdução do sistema de células, a chanfradura, a prepara­
trabalho. Segundo técnicos do setor, apesar da recomenda­ ção e o pesponto passam a ser realizados em um espaço co­
ção do uso da cola em recipientes fechados, ou do uso de mum, reunindo as atividades de pespontar, chanfrar, dobrar,
máscaras protetoras, essas medidas não são observadas nem passar cola, furar, pregar ilhoses, cortar linha, queimar linha
nas indústrias nem nas bancas. O ritmo imposto ao trabalho etc.
impede que medidas de segurança como a adoção de reci­ Essa forma de se organizar o trabalho pressupõe uma
pientes fechados com pequenas aberturas apenas para a pas­ polivalência ou multifuncionalidade do trabalhador, ou seja,
sagem do pincel sejam adotadas. Terminadas essas tarefas a tendência é de cada trabalhador se ocupar, não mais de
de preparação, as peças estão prontas para receber o pesponto. uma única operação, mas de um grupo delas.
A organização do trabalho em moldes tayloristas/fordistas Nas células, as máquinas de pesponto ficam dispostas em
levou a uma rígida divisão do trabalho no pesponto. Subme­ mesas que são agrupadas, reunindo os "pespontadores" e as
tidos a essa forma de organização do trabalho, os "pespon­ coladeiras de peças. Algumas tarefas são agrupadas: a
tadores", ao longo de mais de três décadas, se especializaram coladeira de peças, além de passar cola e bater o martelo para
em determinadas operações do pesponto do cabedal. Alguns acelerar a colagem, também desempenha outras funções da
especializaram-se em pregar a taloneira, outros em pregar o preparação. Para trabalhar em sistema de células, o perfil do
vivo, fechar o forro, fechar o lado, fazer o "zigue" (costura "pespontador" deixa de ser aquele requerido até então pelo
em "ziguezague" aplicada na parte interior traseira do calça­ sistema de linha, especializado em uma única costura, e pas­
do), outros ainda se especializaram em pespontar a pala com sa a ser o do trabalhador capaz de realizar no mínimo três
costura simples, ou em pespontar a pala com costura parale­ tipos de costura e, preferencialmente, que saiba realizar to­
la. A atribuição de uma única tarefa a cada trabalhador, alia­ dos os tipos de pesponto dos diferentes modelos de calçados
da à forma de remuneração do trabalho, normalmente por produzidos pela empresa. Os longos anos de especialização

114 o AVESSO DO TRABALHO C O L E ÇÃ O TRABALHO E EMANCIPAÇÃO 115


em um determinado tipo de costura produziram "pespon­ em dinheiro. Os trabalhadores ficam entusiasmados e evitam, de tudo
tadores" especializados em apenas um tipo de pesponto e a quanto é jeito, interromper o trabalho. Evitam até ir ao banheiro. Se
passagem para a polivalência requer tempo e treinamento, tiver algum problema de saúde, ele tenta não faltar ao serviço, para
investimentos que, via de regra, as indústrias se negam a manter a produção do grupo. ... O trabalho em grupo tem sido uma
realizar, cabendo ao trabalhador, por sua conta e risco, sua forma de um trabalhador vigiar o outro. Como eles vão ganhar por
requalificação profissional. peça, se um não 'altar' o serviço o outro se sente prejudicado. É por
Com a maior diversificação de modelos, aumenta-se o isso que fica essa cadeia: um vigiando o outro para poder trabalhar e
número de tipos de costuras de adorno, denominadas "fan­ 'oltar' a produção." (M.S., presidente do STICF)
tasia". Além de realizar mais de um tipo de costura, cabe "Com esse sistema de trabalho em grupo, eles estão modernizan­
agora ao "pespontador" realizar algumas operações tidas como do a forma de exploração do trabalhador. [Um] se desdobra para
complementares ao pesponto, como cortar linhas, queimar trabalhar mais que o outro e um vigia o trabalho do outro. Para que
linhas e mesmo se ocupar de algumas das tarefas de prepara­ o dono da empresa vai entrar em conflito com o seu empregado se
ção, quando seu trabalho estiver adiantado. o próprio colega do lado pode fazer isso? ... Para a empresa é muito
"Antes, um era especializado em pespontar só o -vivo, outro só a confortáveL" (P.A.R., sapateiro e sindicalista)
paleta, só o traseiro, ou só os enfeites e, hoje, nós temos casos, prin­ A implantação dessas novas formas de organização do tra­
cipalmente nesse trabalho de célula, em que o trabalhador tcm que balho implica uma significativa redução da proporção de tra­
pespontar o cabedal todo, [cm que saber fazer todas essas costuras. balhadores auxiliares para cada "pespontador". Em alguns
É ele quem faz também o serviço de complementação do pesponto, casos, o número desses auxiliares é reduzido à metade.
cortar e queimar as linhas." (M.S., presidente do STICF) "No sistema de células, é uma coladeira para cada 'pespontador'.
Por outro lado, o trabalho em gtupO, que pressupõe o Só que para uma coladeira dar conta sozinha do trabalho de um
pagamento por produção do gtupO, torna-se uma forma efi­ 'pespontador', ela tem que ser muito boa e se desdobrar. Come­
ciente de controle sobre o trabalhador sem que seja necessá­ çam o trabalho mais cedo, trabalham em horário de almoço, saem
rio manter-se um supervisor na seção, como era prática mais tarde." (P.A.R., sapateiro e sindicalista)
habitual. Os próprios companheiros de trabalho são levados Apesar de o trabalho polivalente ser característico da or­
a controlar o ritmo e a qualidade do trabalho produzido pelo ganização do trabalho em sistema de células, a exigência de
gtupo. trabalhadores com habilidades para realizar diferentes ope­
"No trabalho em grupo, a empresa impõe uma meta. Quando o gru­ rações simultaneamente vem sendo feita mesmo quando o
po atinge essa meta, pode-se receber algum prêmio, que pode ser trabalho está organizado em linha.

116 o AVESSO DO TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO


b

gumas empresas, o uso simultâneo de dife


"Hoje, também na produção em linha, há necessidade de você ter rentes layouts, que
comportam essas duas (ormas de se organizar
o trabalhador polivalente da célula." (C.R., técnico do setor de cal­ o trabalho. Um
calçado como o mocassim, por exemplo,
çados SenaijFranca, doravante citado como c.R., Senai/Franca) cuja confecção é
mats sImples e o número de operações
O número de operações que caberá ao trabalhador reali- a serem realizadas é
menor, é mais fácil ser produzido em
zar dependerá de como a produção foi planejada e quanto linha do que outro
modelo que requer um número maior de
tempo foi calculado para a realização de cada tarefa, como costuras mecânicas
no cabedal.
fica claro no depoimento de um técnico do setor:
"Às vezes, o planejador cronometra e diz: ele vai pregar a taloneira, Nas grandes empresas, em que o volume
. de produção é
maIOr e a tendência a uma maior varie
pregar o 'vivo' e fazer qualquer outra costura. Dá tempo para ele dade de modelos se
faz presente, a adoção do sistema de célu
fazer isso ... tem que ser hábil nessas três coisas." (C. R., Senai/ las ou de grupos de
trabalho no pesponto é apontada como uma
Franca) estratégia mais
adequada à nova realidade.
A polivalência do trabalhador, estratégia utilizada para
"Hoje, está havendo uma diversificação muito grande,
diminuir os custos de produção e elevar a produtividade atra­ os clientes
estão pedindo, para cada pedido de modelo, um detalhe diferen
vés da eliminação dos tempos mortos, vem se firmando como te.
Isso fez com que a manutenção desse sistema de linha fosse difi­
um requisito fundamental para a garantia do emprego e para
aqueles que buscam um lugar no mercado de trabalho local. cultada." (S.H.S., instrutor, setor de calçados, Senai-Franca)

"Hoje é necessário que todo funcionário que esteja dentro da pro­ As constantes mudanças de modelos dificultam o traba­
dução seja polivalente, o que antigamente era chamado de curin­ lho do "pespontador", provocando quedas em seu rendimen­
ga... Hoje, o trabalhador tem que ser curinga por natureza, todos to. Os novos modelos que entram na linha de produção se
tem que ser curingas." (C.R., Senai/Franca) diferenciam pelo tipo de costura, por um maior ou menor
A opção pelo trabalho em linha ou em células é uma ques­ número de peças a serem pespontadas. A adequação contí­
tão de planejamento de cada empresa. A adoção de células nua do trabalhador às constantes mudanças de modelos, além
por uma determinada empresa não significa, necessariamen­ de se traduzir em maior dificuldade e maior intensificação
te, o abandono do sistema de linha por essa mesma empresa. de seu trabalho, corresponde à queda de produtividade e,
A célula não passa de uma estratégia de planejamento que conseqüentemente à diminuição do salário.
pode ser adotada ou não, dependendo do porte cfa empresa, "Por mais habilidoso que seja o 'pespontador', quando se troca o

do volume da produção e da variedade dos modelos a serem modelo, ele perde em produtividade até se adaptar àquele novo

confeccionados em determinado período. É comum, em al- modelo." (F.A.F., SenaijFranca)

o
118 AV E S S O D O T R A B A L H O COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO i19
o padrão tecnológico das máquinas de pesponto utiliza­ A partir de meados dos anos de 1980, a transferência do
das pela maioria das indústrias de calçados de Franca não pesponto para as bancas passou a ser utilizada como recurso
tem sofrido alterações significativas. Poucas empresas ado­ para reduzir os custos de produção, para "queimar gorduras",
taram a máquina computadorizada para bordar, realizar cos­ para tornar a produção mais flexível. Esse expediente foi adota­
turas de enfeites e personalizar os calçados. A maior parte do do pela maioria das empresas calçadistas de Franca e, mesmo
.
pesponto é realizado nas antigas máquinas de coluna, que aquelas que ainda mantêm suas seções de pesponto em funcio­
não dispensam a qualificação do trabalhador. namento, parte ou mesmo a totalidade do serviço de pesponto
Há máquinas de pesponto que estão há mais de 5 déca­ passou a ser executado fora de sua planta fabril. À medida que
das em operação nas indústrias francanas e ainda funcionam cresceu essa modalidade de subcontratação de trabalho, cres­
satisfatoriamente, como é o caso das "máquinas de coluna". ceu também a informalidade do trabalho dos sapateiros, num
"O que predomin� nas seções de pesponto, em Franca, é a máqui­ quadro de agravamento das condições de trabalho e de maior
na de coluna, oS o trabalho manual mesmo." (F.A.F.. Senai/Franca) exploração da força de trabalho empregada na produção de cal­
São nessas máquinas de coluna que os pespontares de çados. Nas bancas de pesponto, a grande utilização do trabalho
Franca exibem suas habilidades. de mulheres, jovens e crianças contribuiu para o barateamento
"Tem máquinas de pesponto que devem ter mais ou menos uns 60 da produção, num quadro mais precário das condições e das
anos; são essas máquinas de coluna que funcionam até hoje e são relações de trabalho. Nessas unidades produtivas, às crianças e
'pau para toda obra' dentro da empresa. É a máquina que aínda adolescentes são reservados os serviços de mesa, que incluem
hoje se faz um pesponto perfeito com a habilidade do trabalha­ as atividades de colar, dobrar e aparar, cortar linha, lixar peças
dor." (EA.E, Senai/Franca) de couro etc. Essas bancas, é bom lembrar, são montadas, em
Já estão disponíveis no mercado máquinas de pesponto sua maioria, em locais improvisados, pouco ventilados, contan­
computadorizadas, que podem ser programadas pelo siste­ do com iluminação inadequada, oferecendo pouca proteção aos
ma CAD, mas, devido ao seu preço elevado, não são utiliza­ trabalhadores. O ruído emitido pelas máquinas quando em ope­
das em Franca. ração superam os níveis de tolerância legalmente recomenda­
"Essa é uma máquina que poucas empresas têm o privilégio de ter. dos. Sob essas condições, o trabalho nos serviços de mesa,
São máquinas caríssimas, programáveis por computador, você pode potencialmente prejudiciais à saúde, se agravam, dada a exi­
programar num sistema CAD. Você utiliza um disquetcrgrava aquela gência do manuseio de produtos tóxicos, como colas e solventes.
costura que você quer fazer, dá o comando e ela vai contornar exa­ ", .. Prá mim, nos primeiros tempos, eu achava horrível. Não acostu­
tamente no local indicado." (EA.E, Senai/Franca) mava com o cheiro de jeito nenhum, não só da cola, como também da

120 o AVESSO DO TRABALH O COlEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO . 121


...

tinta. Não tinha nenhum meio de sucção do ar. O ar vinha tudo na Em alguns modelos de calçados de couro, a confecção do

cara, com fumaça, cheiro, pó e tudo." (L.C., sapateiro desempregado) cabedal é concluída com o pesponto; outros, porém, rece­

São poucas e falhas as estatísticas oficiais a respeito do nú- bem a costura manual, que pode ser feita tanto com o cabedal

mero total de bancas de pesponto, de corte, de "blanqueação", na forma quanto fora da forma.

de chanfradura etc. existentes em Franca, assim como também


são falhas e poucas aquelas referentes a outras modalidades de A costura manual e a participação do trabalho infantil na

trabalho realizado em domicílio, como a costura manual, a colo­ produção de calçados

cação de enfeites e de "tressê" e o número de crianças envolvi­ A seção de costura manual foi a primeira a ser suprimida

das na produção de calçados no município. A facilidade de se do interior das plantas industriais. Atualmente, a costuta

encontrar pessoas trabalhando nessas condições no município e manual realizada com o cabedal fora da forma é executada,

o reconhecimento, por parte dos empresários locais, dos sindi­ em quase sua totalidade, pelas costuradeiras manuais em

calistas, dos trabalhadores e dos demais moradores da cidade, domicílio, à exceção daquelas ocasionalmente contratadas

da existência de um número elevado de pessoas envolvidas nessa pelas empresas, quando do desenvolvimento de novos mo­

modalidade de trabalho dão a entender que os números oficiais, delos.

quando existem, não refletem a realidade. Na costuta manual feita em domicílio, a exemplo da ela­

Apesar de não corresponderem ao número real de bancas boração de "tressê" , predomina o trabalho de mulheres e crian­

existentes em Franca, os dados obtidos junto à prefeitura do ças. É principalmente, a partir dos anos de 1980, quando

município apontam para uma tendência de crescimento des­ aumenta a demanda por esse tipo de trabalho e quando prati­

sas unidades produtivas a partir da década de 1990. camente toda a costura manual deixa de ser realizada no inte­
rior das fábricas, que se registra um grande aumento da

Tabela 1: Número de bancas de pesponto e


participação do trabalho infantil na produção de calçados em

de costura manual em Franca: 1990-1993.


Franca. Se o trabalho infantil integrou a história da produção

Ano nQ de bancas de pesponto


de calçados em Franca quando, em sua origem, as crianças

'990 eram empregadas nas oficinas de calçados como aprendizes, o


486
'99' crescimento do trabalho em domicílio da costura manual e do
838
'992 "tressê" reintroduziu e ampliou o consumo dessa força de tra­
1.05'
'993 1.905 balho através do trabalho em domicílio, que assume caracte­

Fonte: Banco de Dados da Prefeitura Municipal de Franca. rísticas familiares, ou seja, passa a envolver todos os membros

122 o AVESSO DO TRABALHO C O l E Ç Ã O T R A B A L H O E E M AN C I PA Ç Ã O 123


da família. Na costura manual, o trabalho das crianças envolve Se nos anos de 1970, quando as seções de costura manual
as tarefas de medir e cortar as linhas que serão necessárias começaram a ser desmontadas nas empresas de maior porte,
para a costura, molhar os cabedais, arrematar e cortar os fios, a prática habitual era o repasse direto desse trabalho às
fazer "mosquinhas" (ponto em CtuZ, feito no alto da pala) ou costuradeiras, que deixavam as fábricas para trabalhar em
realizar os pontos considerados mais fáceis como o ponto "xis", seu domicílio, nos anos de 1 980, quando o trabalho em do­
[trabalho este] e é considerado como ajuda. As crianças aju­ micílio das costuradeiras j á está consolidado, quando as
dam as mães a cumprirem suas cotas diárias, não sendo remu­ costuradeiras podem ser encontradas espalhadas por toda a
neradas separadamente por seu trabalho. cidade, a intermediação deixa de ser exceção para se tornar
É possível, pois, afirmar que o aumento da exploração do regra.
trabalho infantil pelas indústrias de calçados de Franca radi­ « Era comum, na década de 1 970, costuradeiras trabalhando em casa
ca no [consolida-se com o] crescimento do trabalho realizado com registro em carteira. Era como se ainda estivessem dentro da
nas bancas e do trabalho realizado a domicílio, a partir dos empresa. À medida que foi sendo transferido todo o serviço de cos­
anos de 1980. O trabalho de crianças na produção de calça­ tura manual para ser feito em casa, tudo foi mudando. Foram esva­
dos em Franca, bem como em outras regiões produtoras de ziando as seções, eliminando esse espaço utilizado para a costura
calçados do país, vem sendo amplamente denunciado" e na empresa. A legislação trabalhista foi deixando de ser cumprida,
combatido desde o início da atual década, período que coin­ foram acabando os registros, o pagamento passou a ser por par e
cide com o crescimento da terceirização, que normalmente começou a entrar o 'gato'[o intermediário]. Na década de 1 980 já
significa produção doméstica, praticamente fora do alcance tinha muito banqueiro de costura manual intermediando esse ser­
da fiscalização trabalhista, que tem como conseqüência a fre­ viço. l\!\e parece que o Samello foi que segurou um pouco mais
qüente burla da legislação e o desrespeito às poucas con­ essa relação direta." (R.E, ex-presidente do STICF)
quistas trabalhistas já obtidas. A exemplo do "tressê", o preço pago pelas indústrias por
cada par costurado diminui à medida que aumenta o núme­
ro de intermediários. O banqueiro da costura manual, ou o
25 Uma pesquisa realizada em 1993; pelo Sindicato dos Trabalhadores das
Indústrias de Calçados de Franca e Região, apontava para a existência de "gato", como também é referido aquele que toma o serviço
cerca de quatro a cinco mil crianças empregadas em, aproximadamente, 1.900 na empresa e distribui para as costuradeiras, pode também
bancas da cidade, trabalhando na confecção de calçados. Cf. Central Única
contratar outra pessoa que irá se encarregar de repassar o
dos Trabalhadores - CUT e Sindicato dos Trabalhadores na-Indústria de
Calçados e Vestuário de Franca e Região. Mapeamento do trabalho infanto­
serviço às costuradeiras de seu bairro ou de sua rua. Deter­
juvenil em Franca, na categoria dos sapateiros. Franca, 1993, mimeo. minada costuradeira pode também receber uma cota que será

124 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO 125


dividida entre outras trabalhadoras de seu quarteirão. A cada nual na forma é mantida apenas para o atendimento de um
repasse o pagamento sofre aviltamento. É hábito dessas tra­ mercado consumidor restrito, de alto poder aquisitivo, que
balhadoras costurar sapatos nas varandas ou calçadas de suas busca a qualidade desse tipo de trabalho artesanal, ou mes­
casas durante o dia. À noite, o trabalho passa a ser realizado mo para diferenciar o produto e garantir as vendas para o
no interior das residências. Também de forma semelhante mercado externo.
ao que ocorre com as colocadeiras de "tressê" , a jornada de H, •• A costura manual na forma é feita para atingir um mercado muito
trabalho das costuradeiras manuais ultrapassa as oito horas restrito, é um trabalho muito difícil, fica caro o processo. Existe
diárias. Quando a demanda por esse tipo de trabalho aumen­ uma clientela que conhece esse tipo de sapato e gosta, mas é uma
ta, é comum a jornada de trabalho se estender até à meia­ coisa muito pequena." (C.R., Senai/Franca)
noite, não sendo interrompida nos finais de semana e feriados, "O comprador exige um trabalho mais artesanal. Às vezes, ele [o
quando as costuradeiras podem também contar com a ajuda costurador] faz um trabalho com muita qualidade, com os pontos
do marido ou de outros membros da família, que trabalham certinhos, e eles [os compradores1 reclamam: 'Olha, isso aqui está
em outro local durante a semana, incluindo aí o trabalho de parecendo ser [um trabalho de] máquina. Nós queremos um traba­
cnanças. lho mais artesanal. Por isso que os costuradores não foram ainda
Há uma grande variedade de pontos costurados manual­ trocados por máquinas'." (O.A., sapateiro, empregado da Calçados
mente, sendo os mais comuns os tipos "correntinha", Samello SA)
"chuleado", "caseado", "ponto atrás", �'xis" e "salmercar". Para algumas empresas, a manutenção da seção de costu­
Feita a costura manual, os cabe dais são devolvidos à fábrica; ra manual na forma faz parte de sua estratégia de marketing,
depois de conferidos, seguem para a seção de montagem. dada a qualidade do serviço executado.
Alguns modelos, porém, antes de serem montados, recebem ''" ... A seção de costura manual é a vedete da fábrica. Quando vêm
a costura manual feita com o cabedal calçado na forma. os visitantes, eles levam lá pra ver. ... Porque é o que vende o sapa­
to. A imagem do sapato é a costura manual na forma." (S.A., sapa­
A costura manual na forma: predomínio do teiro, empregado da Calçados Samello S.A.)
trabalho masculino O calçado que recebe a costura manual na forma entra na
O trabalho de costura manual na forma é realizado em seção escalado, ou seja, com o cabedal na forma e a linha a
seção própria dentro das indústrias e, na atualidad_e, raras são ser utilizada durante a costura já previamente escolhida,
as empresas calçadistas que ainda produzem calçados costu­ medida, cortada e separada de acordo com a cor e a espessu­
rados à mão em suas dependências. A seção de costura ma- ra que cada tipo de costura exige. O trabalho de separar e

126 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANC1 PAÇÃO ,,127

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organizar as linhas a serem utilizadas na costura manual na A existência de grande variedade de tipos de costura
forma era, até o início dos anos de 1 990, realizado por um manual, cuja execução apresenta diferentes graus de difi­
auxiliar dessa seção. Na atualidade, cabe ao próprio costurador culdade, determina a divisão do trabalho no interior dessa
exercer essas tarefas. seção. Aos costuradores mais experientes, que em geral são
Os instrumentos de trabalho utilizados pelo costutador os mais antigos na profissão, são encaminhadas as costuras
manual são a sovela, para fazer as fendas no couro, agulhas e consideradas de maior dificuldade, cabendo aos menos ex­
tesoura. A sovela é um instrumento de trabalho utilizado para perientes a execução daquelas consideradas mais simples.
furar o couro nos locais onde serão executados os pontos da Essa divisão do trabalho está relacionada à diferença no pa­
costura manual. gamento pelo serviço realizado, cabendo àqueles trabalha­
"Nós mesmos preparamos a sovela. Cortamos a corda de relógio ou dores que se ocupam das costuras mais d i fíceis uma
a mola de sofá em pedaços de 15, 20 cm, fixamos num pedaço de remuneração maior.
madeira para servir de cabo, vamos ao esmeril, acertamos, e faze­ ", .. a costura paralelo é a mais difícil. Então, às vezes, eles costu­
mos uma sovela bem afiada. ... " (S.A., sapateiro, empregado da mam dividir esse serviço. ... Aqueles que têm mais capaci.dade pe­
Calçados Samello S.A.l gam os sapatos difíceis." (S.A., sapateiro empregado da Calçados
As peças a serem costuradas não são previamente per­ Samello S.A.l
furadas para a passagem da agulha, diferentemente de al­ A constante mudança de modelos que entram na linha
guns modelos que são costurados à mão, fora da forma. Na de produção penaliza o trabalhador, tanto pelo fato de pro­
costura manual na forma, as fendas são executadas pelo vocar quedas em seu rendimento, quanto pelo maior des­
próprio costurado r com uma sovela ou com um tipo de agu­ gaste físico que proporciona e, conseqüentemente, pelos
lha cuja ponta é achatada e afiada, utilizada para efetuar a problemas de saúde daí decorrentes. São comuns os proble­
fenda no couro e o ponto ao mesmo tempo. O número de mas de saúde, relacionados ao trabalho, que acometem os
pontos necessários para a costura da pala do sapato depen­ costuradores, principalmente aqueles provocados por esfor­
de de vários fatores, como o tamanho e o tipo do ponto a ser ços físicos repetitivos, conforme podemos apreender nos
executado, o tamanho e o modelo do calçado que está sen­ depoimentos abaixo.
do produzido, e pode variar de um costurador para outro. " As mudanças de modelo acabam prejudicando a pessoa porque,
Esse é um trabalho demorado e exige do trabalhador uma se ela está fazendo um determinado tipo de serviço ... e muda o
grande atenção, pois um erro pode danificar, de maneira modelo, ela acaba não desenvolvendo seu serviço da mesma for­
irremediável, o cabedal. ma, Além do prejuízo para a saúde, a pessoa ainda corre o risco de

128 o AV E S S O 00 TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO


ser mandada embora se não servir mais para aquele tipo de servi­ O costurador manual na forma é considerado um traba­
ço." (O.A., sapateiro, empregado da Calçados Samello S.A.) lhador especializado, de grande qualificação. Por demandar
"Eu tive bursite. Tive que tomar 4 infiltrações, mesmo assim não um alto grau de habilidade, destreza, atenção e acuidade vi­
deixei de ir à fábrica. Eu chegava na fábrica e não conseguia costu­ sual, o limite para o aumento de sua produtividade esbarra
rar. O chefe da seção me punha para arrancar prego, fazer um na capacidade física do trabalhador, já que nessa etapa da
servicinho qualquer que não exigia muito do braço. Têm compa­ confecção não se utiliza qualquer tipo de máquina e o traba­
nheiros meus que foram afastados da costura por esse mesmo pro­ lho não pode ser dividido. Dado o seu alto grau de especiali­
blema e não conseguiram recuperar." (S.A., sapateiro empregado zação, o costurador manual na forma é um dos trabalhadores
da Calçados Samello S.A.) melhor remunerados dentre aqueles envolvidos na produ­
O costurador manual realiza seu trabalho em pé, exe­ ção de calçados de couro em Franca.
cutando constantes movimentos de abrir e fechar os bra­ Por volta de meados dos anos de 1980, a produção de
ços para esticar as linhas, cujas laçadas demandam força calçados costurados na forma entrou em declínio, ao mesmo
física. A execução repetitiva desses movimentos do torso tempo em que aumentou a produção de calçados com costu­
e braços ptovoca dores, principalmente nos ombtos, bra­ ras mais simples e rápidas, costurados fora da forma, pelas
ços, pulsos. A manutenção de longas jornadas de trabalho costuradeiras manuais que trabalham em domicílio, resulta­
em pé é responsável pelas dores nas pernas, problemas do das estratégias utilizadas pelas indústrias como forma de
circulatórios e varizes referidos pelos operários. Sendo reduzir os custos de produção, determinando a criação de
esses problemas tratados apenas de forma sintomática no mais modelos de calçados que levam costura manual fora da
âmbito da empresa: forma, realizada em domicílio.
" ... Chegando ao ambulatório, a primeira coisa que o médico faz "Até 1985, ainda tinha uma quantidade razoável de calçados costu­
é olhar e perguntar: 'Está doendo? Está sentindo dor? Muito rados na forma, mas se você considerar de 1975 a 1985, caiu bastan­
bem, então vou te aplicar um Voltarem'. Vem a enfermeira e te te. Veio num processo decrescente. A produção desse tipo de calçado
aplica uma injeção de Voltarem. Nós brincamos, na seção: �De diminuiu consideravelmente e ao mesmo tempo aumentou a cos­
onde você está vindo? Do doutor Voltarem?' Porque tudo, para tura manual fora da forma. Isso é claro." (R.F., ex-presidente do
ele, é Voltarem. Ele não 'tira uma chapa', não faz um exame, STICF)
nada . ... Na minha seção, não há um que não tenha_t.omado Vol­ Aliada à redução do tempo de giro do calçado em produ­
tarem. Todos tomaram." (S.A., sapateiro empregado da Calça­ ção no interior das indústrias, essas mudanças implementadas
dos Sarne 110 S.A.) na produção, que tiveram por objetivo a redução de custos e

' 30 o AVESSO DO TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO '3'


aumento de produtividade, repercutiram não apenas nas con­ tadas e divididas, reduzindo essa etapa do processo de produ­
dições de trabalho, mas também em alterações das relações ção do calçado de couro ao· momento que o cabedal é conforma­
de trabalho e mesmo na forma de confecção do calçado, o do, unido à palmilha e preparado para receber o solado.
que resultou no aumento da participação do trabalho realiza­ Embora muitas das operações envolvidas na montagem
do em domicílio e na incorporação do trabalho das crianças à terem sido mecanizadas, há ainda um conjunto de operações
produção. realizadas manualmente, conjunto que pode se ampliar ou
"A costura manual na forma foi diminuindo porque é muito mais reduzir de acordo com o modelo de calçado a ser produzido
.
simples costurar fora da forma, é também mais barato e mais fácil e a base técnica disponível na empresa. Segundo Ruas, essas
de terceirizar. A costura manual na forma é mais cara, seu processo operações manuais,
de produção é muito mais lento e, para mantê-la, a empresa precisa " ... à medida que estão posicionadas no interior do fluxo de produ­
de um capital de giro muito maior do que o calçado costurado fora ção, influenciam determinantemente seu ritmo geral. Mesmo que
da forma, isso sem falar na economia de espaço no interior das fá­ a maior parte desse fluxo seja composto por postos de trabalho
brica." (L.G.G., ex-diretor do Senai-Franca) mecanizados, a cadência da produção será determinada pelo ritmo
dos trabalhadores manuais, sendo ele, com certeza, menor do que
A montagem final do calçado e a extinção de postos de o das máquinas." (Ruas, 1985, p. 148).
trabalho As indústrias de calçados de Franca caracterizam-se por
Depois do corte do couro, da preparação das peças para o sua heterogeneidade no que se refere ao nível técnico de
pesponto (chafradura, furação, colagem das peças), do seus meios de produção. Essa característica é mais evidente
"tressê" , do pesponto, da costura manual e da costura manual na seção de montagem, onde se concentra a maior diversidade
na forma operações que completam a confecção do cabedal, de máquinas e de outros equipamentos utilizados na produ­
este segue para a seção de montagem onde será montado em ção do calçado de couro. Tal heterogeneidade existe mesmo
uma forma que reproduz o formato do pé. Montar o sapato já entre as empresas de grande porte e inclusive no interior de
foi sinônimo de fazer o sapato. As operações que envolvem o cada empresa. É comum a coexistência de maquinário com
pesponto eram consideradas preparatórias para a montagem, distintos padrões tecnológicos e, não raro, a montagem de
para o processo de trabalho que transformava o couro cortado alguns modelos de calçados é executada manualmente. Ain­
em sapato de couro. da hoje, mesmo em empresas de grande porte, que dispõem
Com a ampliação do volume de produção e a mecanização de um grande número de maquinário, alguns modelos de
crescente, suas operações foram sendo continuamente fragmen- calçados ainda são montados à mão.

132 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO

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"A parte que eu faço é a montagem de bico. Ivlontamos tudo ma­
de Franca até os anos de 1970, quando o uso de máquinas
nual, com prego, no sistema antigo. A gente prende o couro, puxa o
para a montagem do bico difundiu-se no setor.
corte com a tenaz e vai montando o bico." (O.A., sapateiro, empre­
" ... Até 1 970, o montador, mesmo nas grandes empresas, ainda
gado da Calçados Samello S.A.)
montava o sapato na 'tenária', montava manualmente. Na década
As empresas de maior porte reúnem o maior conjunto de
de 1 980 começou a ser mais difundido o uso das' máquinas de mon­
máquinas destinadas à montagem de calçados: máquina de
tar bico." (RA.F., Senai-Franca)
modelagem, máquina de pregar palmilha, máquina de aviar
Essas máquinas, de origem italiana, que até a segunda
palmilha, máquina de moldar contraforte, máquina de mon­
metade dos anos de 1970 só podiam ser adquiridas, dado o
tar bico, máquina de tachear base e máquina de montar la­
seu custo, pelas maiores empresas calçadistas francanas, atra­
dos. Raras são as empresas de porte médio que possuem todas
vés de importação, passaram a ser produzidas em Franca por
as máquinas disponíveis para o processo de montagem, o que
volta de 1977, sob licença, pela Poppi Máquinas e Equipa­
exige a realização manual de operações já mecanizadas em
mentos Ltda., ampliando seu uso entre as empresas de maior
outras empresas. A maioria das pequenas empresas, assim
porte.
como aquelas de porte médio que não dispõem de capital
" ... Em 1977, 1 978, a Poppi, em convênio com a Molina Bianchi,
para a aquisição de máquinas e equipamentos realizam a
começou a produzir essa máquina em Franca. Foi aí que se disse­
montagem manualmente, de maneira parcial ou na sua tota­
minou o uso de máquinas na montagem do sapato e começou a
lidade, ou optam pela produção de modelos de calçado tipo
mudar o sistema de trabalho." (RA.R, Senai-Franca)
mocassim, cuja construção pode prescindir do uso da maio­
Para as empresas menores, em que a produção não ultra­
ria dessas máquinas.
passa os mil pares por dia, a montagem do bico continua a
"Apesar de existirem essas máquinas, não são todas as empresas
ser executada manualmente.
que as utilizam. Não é compensador comprar uma máquina que é
"Se você visitar vinte fábricas, você vai encontrar vinte processos
capaz de montar 1.200 pares por dia se a produção da fábrica é de
diferentes de como se produzir um calçado." (C.R., Senai- Franca)
200 pares por dia." (RA.F., Senai-Franea)
A introdução do uso da máquina de montar bico deter-
A mais significativa mudança no padrão tecnológico nes­ minou uma significativa redução no número de montadores
sa fase da produção, incorporada pelas indústrias de calçados contratados pelas indústrias calçadistas francanas, pois cada
de Franca, foi a difusão do uso da máquina de m0ntar bico, uma dessas máquinas, que demandam o trabalho de apenas
.
que substituiu o trabalho manual. A montagem manual do um operador, são capazes de substituir o trabalho de cerca
bico do calçado predominou entre as indústrias de calçados
de vinte montadores manuais.

134 o AVESSO DO TRABALHO


COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO
" ... Uma máquina dessa pode montar até 1.200 pares por dia, de­ "calcanheira") e dos lados, a qualificação do montador, mes­
pendendo da habilidade do operador, enquanto a mesma quanti­ mo quando seu trabalho é realizado em máquinas, ainda não
dade de pares montados manualmente demandavam o emprego foi dispensada.
de dez a vinte montadores." (C.R., Senai- Franca) Na seção de montagem, no que tange à organização do
A diminuição de postos de trabalho para os montadores trabalho, predomina ainda o sistema de linha, com todo o
manuais nas empresas produtoras de calçados de couro mas­ maquinário distribuído ao longo de esteiras, mantendo-se a
culinos, em Franca, também foi determinada pelo advento programação e busca de sincronização dos tempos e movi­
'
da fabricação dos calçados tipo mocassim, dado que a mon­ mentos das diferentes operações mecânicas e manuais de
tagem desses calçados, demanda uma menor participação montagem. No entanto, a partir dos anos de 1 990, algumas
desse tipo de mão-de-obra especializada. indústrias de calçados francanas já vêm fazendo tentativas, a
Embora em número reduzido, há empresas calçadistas exemplo do que já vinham fazendo há mais tempo na seção
em Franca que possuem a máquina de montar base e lado, de pesponto, de organizar o trabalho da montagem em célu­
que conjuga a montagem dos lados e da parte traseira do las de produção. Nas células, as máquinas são dispostas em
calçado, o que também diminui o número de postos de tra­ forma de "u" ou em forma de um "L", diminuindo a distân­
balho para os montadores. cia entre cada uma delas, o que facilita a agregação e a rota­
"Essa máquina elimina uma operação da montagem, já que ela ção de tarefas.
monta ao mesmo tempo a base e os lados do sapato. São poucas as A adoção do sistema de células de produção por uma de­
empresas que possuem uma máquina dessas. Aqui em Franca, o terminada empresa não significa, necessariamente, o aban­
seu uso é muito recente, foÍ por volta de 1 995 que foram adquiri­ dono da organização do trabalho da montagem em sistema
das as primeiras máquinas." (F.A.F., Senai-Franca) de linha. Na realidade, a organização de montagem em célu­
"Eles arrumaram uma máquina para montagem que elimina, numa las ocorre quando é pequeno o número de pares de um de­
rodada só, doze trabalhadores. Ela elimina cinco ou seis montadores terminado modelo em produção e pode ser simultânea à
manuais, três ou quatro racheadores de base, três ou quatro passa­ produção em sistema de linha.
dores de cola. Essa máquina é operada por um só camarada e faz Independentemente de como o trabalho esteja organiza­
rodar todos esses outros." (O.A., sapateiro, empregado da Calçados do, se em sistema de linha ou de células, as mudanças que
Samello S.A.) estão sendo implementadas, visando à redução de custos,
Apesar de as diferentes etapas da montagem já se encon­ alteram as formas de gestão da força de trabalho, levando a
trarem mecanizadas, como a montagem do bico, da base (ou uma maior intensificação do trabalho, à redução de postos

o AVESSO DO TRABALHO C O L E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O
de trabalho e a alterações na forma de remuneração desse
além de agregar mais uma atividade às suas funções, contribui
trabalho.
para a redução de mais postos de trabalho, os dos revisores.
Na seção de montagem, a extinção de postos de trabalho
Para Antunes, o que vem sendo chamado de trabalho
tem atingido especialmente os trabalhadores menos qualifi­
polivalente, multi funcional,
cados - que exercem atividades de preparação ou que
"trata-se de um processo de organização do trabalho cuja finalida­
complementam as operações principais - os auxiliares. Nes­
de essencial, real, é a intensificação das condições de exploração da
sa seção, em que o número desses trabalhadores crescia à
força de trabalho, reduzindo ou eliminando tanto o trabalho impro­
medida que a divisão do trabalho se acentuava, é que é mais
dutivo, que não cria valor, quanto suas formas assemelhadas, espe­
perceptível a redução de postos de trabalho nas indústrias
cialmente nas atividades de manutenção, acompanhamento e
produtoras de calçados de couro em Franca. O corte no nú­
inspeção de qualidade, funções que passaram a ser diretamente
meros de trabalhadores auxiliares implica um reordenamento
incorporadas ao trabalho produtivo. Se no apogeu do taylorismol
da produção, de maneira que as tarefas antes divididas entre
fordismo, a pujança de uma empresa mensurava-se pelo número
vários trabalhadores são reagrupadas e exercidas por um úni­
de operários que nela exerciam sua atividade de trabalho, pode-se
co trabalhador. Ao ser atribuído um número maior de tarefas
dizer que, na era da acumulação flexível e da empresa enxuta me­
a um mesmo trabalhador, este se torna polivalente,
recem destaque e são citadas como exemplos a serem seguidos
multi funcional, qualificado para se manter no posto.
aquelas empresas que dispõem de menor contingente de força de
"Com o trabalho polivalente, você aumenta a produtividade c dimi­
trabalho e que apesar disso, têm maiores índices de produtivida­
nui os custos. O trabalhador. [polivalente] vai ficar mais hábil, mais
de." (Antunes, 1 999, p. 53).
rápido, mais produtivo, mais empregável." (F.A.F., Senai-Franca)
Essa poli valência do trabalhador, condição que vem sen- A fase de acabamento: velhas máquinas e "novas"
do crescentemente requisitada dos sapateiros em Franca, formas de organização do trabalho
significa, na realidade, uma sobrecarga de trabalho. O traba­ Realizada a montagem o calçado segue para a seção de
lhador polivalente nada mais é do quc um trabalhador que acabamento, outra seção que reúne um número elevado de
vê acrescida à sua tarefa uma outra tarefa antes atribuída a máquinas bastante rudimentares. O número de máquinas
um colega de trabalho que perdeu o emprego. dessa seção varia de acordo com o tipo de calçado em produ­
Desempenhando funções que eram atribuídas "os auxilia­ ção. Um calçado cujo solado é inteiramente composto por
res, além daquela que já realizava, esse trabalhador também couro demanda um número maior de operações realizadas
realiza a inspeção da qualidade de seu próprio trabalho, o que, no acabamento que aquele cujo solado é composro por ma-

o AVESSO 00 TRABALHO C O l E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O
teriais sintéticos, pois, de forma geral, o solado sintético che­ provoca, quer pelos riscos de acidentes, é ainda muito utilizada aqui
ga às fábricas de calçados com um certo grau de acabamento, em Franca." (E.G., economista e técnico do setor de calçados)
o que diminui a quantidade de operações a serem realizadas Após O rebaixamento, a base é lixada, "arrunhada" ou "ar-
nas unidades fabris. ranhada", para que sua superfície torne-se áspera, aumentan­
A reestruturação produtiva na seção de acabam ento, a do a aderência da sola. O pó produzido nessa operação era
exemplo de outras seções da produção já mencionadas, tam­ retirado por um trabalhador, com o uso de uma escova. Atual­
bém tem se caracterizado não pela adoção de novas tecnologias, mente, o mesmo trabalhador que "arrunha" se encarrega de
mas, sim, pela adoção de estratégias gerenciais que reduzem escovar a planta ou base do calçado que vai receber a cola.
os postos de trabalho e sobrepõem a cada trabalhador tarefas A preparação para a colagem é realizada por duas traba­
anteriormente realizadas por vários operários. lhadoras, as "passadeiras de cola", uma aplicando a cola na
A aplicação do solado é feita na seção de acabamento, base do calçado e a outra, no solado. Se houver respingos de
onde se conclui o processo de construção do calçado de cou­ cola nas bordas do solado ou no cabedal, as "passadeiras de
ro. A primeira operação dessa seção, quando se trata de um cola" devem removê-los, tarefa essa que era, anteriormente,
calçado com solado de couro, é o rebaixamento da planta. realizada por um trabalhador auxiliar, o "tirador de cola", cuja
Essa operação, realizada à máquina, objetiva dar uniformi­ função foi extinta. Em algumas empresas a tarefa de passar
dade à planta do calçado para receber o solado. A máquina cola vem, na atualidade, sendo desempenhada por um único
utilizada para o rebaixamento, uma das mais antigas do se­ trabalhador.
tor, é considerada uma das mais perigosas para o trabalhador, "O passador de cola, muitas vezes tá fazendo o trabalho de passar a
quer pelo risco de acidentes, quer pelo ruído que provoca, o cola na base e também na sola, o que antes era fcito por dois traba­
que é também bastante prejudicial. Apesar de haver uma lhadores, que, em geral, eram mulheres. Além disso, se sujar o
versão mais moderna dessa máquina, de acionamento hidrá­ cabedal ele mesmo terá que limpar. Antes tinha o 'tirador de cola'
ulico e quc provoca menos ruído, em muitas fábricas ainda só para fazer esse trabalho." (lvI.S., presidente do STICF)
" Apontar a sola, ou seja, pressioná-la à base do calçado,
se encontra em operação a antiga "máquina rex .

"A máquina rex, usada para rebaixar a base do sapato é uma máquina ajustando-a, prensar a sola, para aumentar sua aderência, e
pré-histórica. Muitas vezes ela incendeia porque, ao lixar as tachi­ retirar o calçado da forma eram operações realizadas por vá­
nhas da base do sapato, ela provoca centelhas, fagulhas que fazem rios operários. Desde o início dos anos de 1 990, essas tarefas
pegar fogo. Apesar de já existir outra mais moderna, essa máquina vêm sendo desempenhadas por um único trabalhador - o
pré-histórica, que coloca o trabalhador cm risco, quer peIo ruído que prensador.

140 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO I _ 141


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"Agora o mesmo trabalhador que aponta também leva o calçado organizado em células, quando um mesmo trabalhador pode
para a prensa, prensa, e depois já saca da forma. Então, o apontador operar as máquinas de "blanquear", de "pontear" e a de
de sola hoje faz o trabalho de três: do 'apontador', do prensador e fresar, seqüencialmente - é a chamada "rotação de tarefas".
do sacador de forma." (M.S., presidente do STICF) Do contrário, mantém-se o sistema de linha e as operações
Quando o modelo em produção possui solado de materi­ são realizadas ao longo da esteira.
al sintético, após ser levado à prensa (ou "sorveteira", como
também é denominada) e desenformado, já pode ser enca­ "PLANCHEAMENTO": o "SALÃO DE BELEZA" DO CALÇADO
minhado para o "plancheamento". Outros modelos, quando Após o acabamento, os calçados seguem para a seção de
necessário, além da colagem recebem também costuras no "plancheamento", onde se realizam as atividades de limpe­
solado. Alguns são colados e "blanqueados", outros colados za, de correção de pequenos defeitos remanescentes do pro­
e ponteados e outros ainda, além da colagem, podem rece­ cesso produtivo e os preparativos para o acondicionamenro
ber os dois tipos de costura. dos calçados nas caixas. Aqui também se pode observar o
Os calçados com solado de couro são fresados, têm a bor­ reagrupamento de tarefas e a extinção de postos de trabalho.
da acertada na máquina fresadeira. Essa é outra tarefa consi­ Ao chegar a essa seção, o calçado passa por uma limpeza,
derada qualificada na seção de acabamento. utilizando-se água, sabão e outros solventes, com o intuiro de
"Em alguns tipos de calçados como os sociais, que levam sola de se remover resquícios de cola, tintas e outros detritos. Essa
couro, o sapato tem que passar por urna máquina para ser fresado. atividade é predominantemente executada por mulheres.
Quem faz a fresa é o fresador. Esse não foi eliminado porque tem Após a limpeza, dependendo do modelo, o calçado é en­
que ser alguém qualificado. A fresa é uma faca mecânica, redonda, caminhado aos "esfumaceadores" que, utilizando-se de
que gira acionada por um motor. O trabalhador passa a beirada da aerógrafos e "bonecas" de pano, aplicam tintas, vernizes, óle­
sola nessa faca mecânica para lixar. É um serviço muito perigoso. A os, graxas e pastas no cabedal, e tintas e vernizes no solado,
fresa deixa a beirada da sola lisinha." (M.S., presidente do STICF) se esse for de couro. Nas indústrias que reorganizaram a pro­
Há modelos com duas solas, sobrepostas, uma de borra- dução, as tarefas desses dois operários foram agrupadas.
cha e uma outra de couro que também necessitam ser Após a aplicação das tintas e vernizes, o brilho do calçado

fresadas. Os modelos com solado de couro tem a sola lixada, é obtido através de sucessivas escovações, em uma tarefa

preparada para o recebimento de tintas e/ou vernizes. denominada pelos operários "abrir o lustro", após o que se

Caso o volume da produção de um determinado modelo pode observar a existência de defeitos e/ou imperfeições no

for considerado pequeno, o trabalho dessa seção pode ser couro, por menores que sejam. Constatada a sua existência,

10/1 2 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO 143


o calçado é encaminhado ao "plancheador" ou "consertador", formas de se obter maiores ganhos de produtividade e atra­
responsável pela correção de defeitos. Depois, o calçado é vés do incentivo à prática de horas extras, que em geral não
novamente lustrado e encaminhado para a colocação das vêm sendo remuneradas como tal. Algumas empresas, têm
"calcanheiras" . Nesse ponto, o calçado está praticamente "permitido" aos trabalhadores remunerados por peça iniciar
pronto e é enviado para a revisão. Em seguida, são colocadas a jornada de trabalho mais cedo e finalizá-la um pouco mais
as "buchas" e os "baguetes" . Feito isso, o calçado está pron­ tarde, para aumentar a sua produção.
to para ser acondicionado nas caixas e encaminhado à seção "As empresas que pagam por peça dão uma abertura para o traba­
de expedição. lhador começar o serviço mais cedo. Às vezes, ele começa meia
Com as mudanças que estão sendo introduzidas no pro­ hora mais cedo depois do almoço e, à tarde, ele pára meia hora mais
cesso de trabalho, a figura do "plancheador" tende a desapa­ tarde. Com isso, ele pensa que está ganhando mais. Mas na verda­
recer à medida que se exige dos trabalhadores uma qualidade de ele está mesmo é trabalhando mais. E essas horas a mais não são
maior em seu serviço e a reparação, pelo próprio trabalhador, pagas como hora extra." (M.S., presidente do STICF)
de qualquer erro cometido durante a confecção do calçado.
Em 1 996, em algumas empresas calçadistas francanas, as fun­ CONSIDERAÇÕES FINAIS
ções de executar a última lustração do calçado, colocar os Nos últimos anos, o processo de reestruturação das in­
"baguetes", as "buchas" e embalar os calçados já estavam dústrias de calçados de Franca tem se pautado mais pelo
sendo executadas por um único operário. "enxugamento" do quadro de pessoal e pela crescente ex­
"Lá no final da esteira tinha uma pessoa que só lustrava o sapato. ploração do trabalho informal, precarizado, subcontratado,
Hoje, em muitas empresas essa pessoa lustra, coloca o papel den­ encoberto sob o manto d o neologismo "terceirização", do
tro do sapato, coloca o "baguete" e coloca também o sapato dentro que pela renovação de seu aparato tecnológico, pela adoção
da caixa, fecha a caixa e manda embora. Essa pessoa está fazendo de novas tecnologias e novas formas de organização do tra­
sozinha a função de duas ou três. Isso aumenta o ritmo. Aqueles balho no interior das fábricas.
minutinhos que ela tinha para tomar uma água, ir ao banheiro, des­ Esses aspectos, revelados pela pesquisa, demonstram al­
cansar um pouco, desacelerar o organismo um pouco já não tem gumas das especificidades do processo de reestruturação pro­
mais." (P.A.R., sapateiro e sindicalista) dutiva em curso no país, que tem se pautado, em boa medida;
De maneira geral, a forma de remuneração continua vari­ pela simples exclusão de parte da força de trabalho empre­
ando de empresa para empresa, mas a tendência é a genera­ gada formalmente e sua posterior inclusão no mercado de
lização do pagamento por peça, que tem se tornado uma das trabalho através de formas precárias de exploração. Em Fran-

'''i''i o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO 1"i5


ca, esse processo é claramente exemplificado na figura das
balho é extremamente difícil dado que sua distribuição geo­
bancas, onde o trabalho dos funcionários e do dono da ban­
gráfica é pulverizada na malha urbana e pelo fato de essa
ca, é completamente dependente das demandas do merca­
exploração se dar no interior das residências, em que o aces­
do. Naquela cidade é também observada a intensificação da
so à fiscalização é difícil.
transferência de parte da produção do interior das indústrias
Com a ampliação do trabalho em domicílio, assistimos a
para o interior das residências. O trabalho em domicílio, onde
uma retomada de um recurso comum ao início do capitalis­
as atividades de costura manual e do "tressê" são desenvol­
mo industrial, mostrando a imensa capacidade do capital re­
vidas predominantemente por mulheres, é apresentado como
cuperar antigas relações d e trabalho para assegurar sua
uma oportunidade de aumento do rendimento familiar, em
reprodução ampliada.
que a mulher pode conciliar o trabalho com as tarefas de
A polivalência, a multifuncionalidade e a rotação de tare­
mãe, esposa e dona de casa. Entretanto, o que ocorre na prá­
fas parecem ser as principais modificações na organização do
tica é o predomínio do trabalho em domicílio, que passa a
trabalho implantadas em algumas empresas de calçados de
ser a atividade central da trabalhadora. A jornada de trabalho
couro de Franca. Essas estratégias, apresentadas pelo
da grande maioria dessas trabalhadoras ultrapassa as oito horas
empresariado local como "modernas" e "racionais" repre­
diárias, sendo habitual o trabalho no turno. De forma geral, o sentam, na realidade, para o trabalhador, uma superposição
trabalho dessas mulheres, além de receber remuneração in­ de tarefas e a intensificação do seu ritmo de trabalho, levan­
ferior e não estar coberto pela legislação trabalhista vigente, do a uma dilapidação ainda mais intensa da força de trabalho
não se interrompe nos finais de semana e nos feriados, quan­ ali empregada.
do há oferta de trabalho, configurando-se, assim, em um D e maneira geral, a adoção de novas estratégias de
quadro de superexploração que se agrava pelo grande nú­ gerenciamento da produção pelas indústrias calçadistas
mero de intermediários existentes entre a empresa que re­ francanas buscou a manutenção de um fluxo contínuo da
passa o serviço e quem realiza o trabalho. produção, baseou-se na economia de recursos materiais, hu­
Em Franca, o aumento do trabalho em domicílio tem tam­ manos e de tempo através do maior aproveitamento da ma­
bém facilitado a exploração do trabalho infantiL Ao se trans­ téria-prima, da realização de um número crescente de
ferir parte da produção para ser realizada no interior do operações da confecção do calçado fora das fábricas - em
ambiente doméstico, criam-se condições para que o traba­ bancas e em domicílio - da redução do tempo de confecção
lho de crianças seja explorado, ainda que sob o pretexro de do calçado, do número de trabalhadores assalariados, do nú­
'ajuda' às mães. O controle desse tipo de exploração do tra- mero de cargos de chefia, de fiscalização e de conferência

o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO


nas seções da fábrica. Para a realização dessas mudanças, GLOSSÁRIO
houve a necessidade de modificações no layout das fábricas, apontador de sola: trabalhador responsável pelo ajuste do solado ao
cabedal durante o processo de colagem.
em que se conjugam o uso de esteiras com a formação de
balancim: prensa de acionamento hidráulico, utilizada no corte das peças
células de produção, o que agilizou a produção simultânea
de couro e das forrações utilizadas na confecção do calçado.
de diferentes modelos de calçados, tornando-se necessária a bancas: denominação dada às unidades produtivas prestadoras de ser­
sobreposição das tarefas atribuídas aos trabalhadores. Essas viço para as indústrias de calçados de Franca, especializadas em re­
estratégias trouxeram como conseqüência o expressivo au­ alizar determinadas etapas da confecção de calçados. Ex.: banca de
pesponto, banca de corte, banca de chanfração, banca de panteação
mento das taxas de desemprego. Há de se destacar que re­
etc. Na região produtora de calçados do Rio Grande do Sul, essas
sultou dessas mudanças a elevação da qualidade do calçado
unidades produtivas são denominadas "ateliers".
masculino de couro produzido sem a incorporação significa­ baguete: haste plástica colocada no interior do calçado que tem por
tiva de meios de produção mais avançados, o que possibili­ função evitar sua deformação durante o transporte e armazenamento.
tou, para o setor calçadista francano, a manutenção de um blanquear: costurar o calçado na máquina blanqueadeira.
bucha: folhas de papel amassadas, com o formato do pé, utilizadas par
nível de rentabilidade calculado, para o mercado interno, 6,5
manter os calçados "armados".
vezes maior do que os setores que produzem calçados con­ calcanheira: espécie de palmilha, colada no interior do calçado, na re­
feccionados com outros materiais, como os esportivos tênis gião do calcanhar.
- os de plástico, borracha, sintéticos e têxteis, setores esses cabedal: conjunto das peças de couro devidamente pespontadas, que
corresponde à parte superior do calçado.
que alteram, significativamente, o nível tecnológico de sua
chanfrar: reduzir, mecanicamente, a espessura das bordas das peças de
base produtiva (Batista, 1996).
couro que irão compor o cabedal, facilitando a colagem das peças.
contraforte: forro utilizado para reforçar a parte correspondente ao cal­
canhar do calçado.
cortador: sapateiro responsável pelo corte das peças de couro e de ou­
tros aviamentos utilizados na confecção dos calçados.
costuradeira manual: sapateiro(a) especializada na costura manual de
calçados tipo mocassim. Trabalham, em geral, em domicílio.
esfumaceador: sapateiro que aplica tintas e vernizes no solado e no
cabedal com o auxílio de uma pistola de ar comprimido. Também
referido como jogador de tinta.
fantasia: tipo de costura que vai no cabedal como adorno.

14 8 o AV E S S O 0 0 TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO


máquina de chanfrar: máquina que reduz a espessura das bordas das
uma corruptela da palavra tenaz, instrumento utilizado por ferreiros
peças de couro que, posteriormente, serão sobrepostas e unidas pelo e serralheiros, ao qual se assemelha.
vaqueta: peça de couro curtido utilizada na confecção do cabedal.
pesponto.
máquina rex: máquina utilizada para lixar a planta do calçado, visando
facilitar a aderência e a eficiência do processo de colagem da sola. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
moldadeira: máquina que molda o formato ao cabedal dos calçados do ANTUNES, R.. Adeus ao trabalho.?' ensaio sobre as metamorfoses e a
tipo mocassim. centralidadedo mundo do trabalho. 2' ed. São Paulo/Campinas, Cortez/
montar: é dar formato ao cabedal com o auxílio de formas que reprodu­ Ed. da Unicamp, 1 995.
zem o formato dos pés. A montagem manual é feita com o auxílio da ------ . Os sentidosdo trabalho: ensaio sobre a afirmação e a
tenaz, utilizada para esticar o couro, de martelo e de prego. A monta­ negação do trabalho. São Paulo, Boitempo, 1 999.
gem mecânica é realizada em um consórcio de várias máquinas. AZEVEDO, Alice P. et alii. "Ruído - um problema de saúde pública
montadores manuais: trabalhadores especializados em montagem (outros agentes físicos)". ln: ROCHA, L. E. et alii. (org.). lsto é tra­
manual de calçados. balho de gC1lte?: vida, doença e trabalho 110 Brasil. São Paulo, Vozes,
pesponto: costura à máquina destinada a unir as peças que compõem o 1 993.
cabedal. O pesponto pode ter também função ornamental. BALTAR, P. E. de A., PRONI, M. W. "Sobre o regime de trabalho no
pespontador: sapateiro operador da pespontadeira, utilizada na costu­ Brasil: rotatividade da mão-de-obra, emprego formal e estrutura sa­
ra das peças que compõem o cabedal do calçado. larial." ln: OLIVEIRA, C. A. B. de, MATTOSO, J. E. L. (orgs.).
plancheamento: seção da fábrica onde o calçado recebe os retoques Crise e Trabalho 110 Brasil: modernidade ou volta ao passado? São Pau­
finais e a limpeza, antes de ser embalado. A origem do nome dessa lo, Seritta, 1 996.
seção é ligada ao uso do ferro de planchar, ferramenta de forma se­ BALTAR, P. E. de A., DEDECCA, C. S., HENRIQUE, W. "Mercado
melhante a uma colher, aquecida por uma resistência elétrica desti­ de trabalho e exclusão social no Brasil." ln: OLIVEIRA, C. A. B.
nada a esticar as rugas existentes no couro ao final do processo de de, MATTOSO, ]. E. L. (orgs.). Crise e Trabalho no Brasil: modemidade
fabricação do calçado. ou volta ao passado? São Paulo, Seritta, 1996.
pontear: unir, através de çostura na máquina ponteadeira, a entressola BATISTA, S. R. Viabilidade ecollônzico-finaceíra de se mo1itar uma illdús­
ao cabedal do sapato. trio de calçados. São Paulo, FAAp, pp. 56-8 (monografia), 1996.
sacador da forma: sapateiro que retira os calçados da forma ao final do BELLUZZO, L. G. de M. ln: OLIVEIRA, C. A. B. de, MATTOSO, J.
processo de montagem. E. L. (orgs.). Crise e trabalho no Brasil.- modernidade ou volta aopassa­
sorveteira: denominação dada à prensa utilizada para unir a sola à do? São Paulo, Seritta, 1 996.
entressola. CORIAT, B. Pensar pelo avesso: o modelo japonês de trabalho e orgatliza­
sovela: ferramenta constituída por uma haste de aço ponteaguda, na ção. Rio de Janeiro, Revan/UFRJ, 1994.
maioria das vezes confeccionada pelos próprios sapateir_o�, utilizada DELGADO, M. B. G. "Terceirização e trabalho feminino". ln:
para furar o couro. MARTINS, H. de S., RAMALHO, ]. R. (orgs.). Terceirizoção: diver­
tenária: espécie de alicate utilizado para puxar o couro durante a mon­ sidadee negociação no mundo do trabalho. São Paulo, Hueitee - CEDI/
tagem dos calçados. O nome desse instrumento possivelmente é NETS, p. 1 1 9, 1 994.

AVESSO DO TRABALHO C O L E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA ÇÃ O
'50 o
OLIVEIRA, F. de. lo; MARTINS, H. de S., RAMALHO, ]. R. (orgs.).
T RA B A L H O. S O F R I M E N TO E M I G RAÇÃO
Terceirização: diversidade e negociação no mundo do trabalho. São Pau­
lo, Hucitec - CEDI/NETS, 1 994.
I NT E RN A C I O NA L : O CAS O D O S
REIS, C. N. "A indústria brasileira de calçados: inserção internacional B RA S I L E I RO S N O J A PÃ O
e dinâmica interna nos anos 80", Tese de doutorado. Instituto de
Economia da Universidade Estadual de Campinas, pp. 1 15-9, 1994. FÁBIO KAZUO OeADA"
RUAS, R. Efeitos da modernização sobre o processo de trabalho: condições
objetivas de controfe na indústria de calçados. Porto Alegre, Secretaria
de Coordenação e Planejamento/Fundação de Economia e Estatís­
tica, 1 985.
SALERNO, M. S. "Produção, trabalho e participação; CCQ e kanbao
numa nova imigração japonesa". ln; FLEURY, M. T. L., FISCHER,
R. M. (coord.). Processo e relações de trabalho no Brasil: movimento
sindical, comissão defábrica, gestão e participação, o modelo japonês de
INTRODUÇÃO
organização da produção no Brasil (CCQ e kanban). São Paulo, Atlas,
1 985. Neste fim de século [20], toda a população mundial en­
SALERNO, M. S. "Modelo japonês, trabalho brasileiro". ln; HIRATA, contra-se subjugada pelo domínio totalitário do liberalismo
H. S. (org.). Sobre o "Modelo" Japonês: Automatização, Novas Formas
econômico, uma força que, nas últimas décadas, tem confi­
de Organização e de Relações de Trabalho. São Paulo, Edusp / Aliança
gurado, em escala internacional, uma conjuntura social que,
Cultural Brasil - Japão, p. 139, 1 993.
SIQUEIRA NETO, J. F. " Flexibilização, desregulamentação e o di­ em muitos pontos, assemelha-se a uma situação de guerra. A
reito do trabalho no Brasil". ln; OLIVEIRA, C. A. B. de, diferença, segundo Dejours (2000), é que não se trata de um
MATTOSO, J. E. L. (orgs.). Crise e trabalho no Brasil: modernidade conflito armado entre potências industriais e, sim, de uma
ou volta ao passado? São Paulo, Scritta, p. 332, 1 996.
guerra "econômica", em que estão em jogo a sobrevivência
WHITAKER, C. et alii. "A 'boca do leão'; acidentes de trabalho em
prensas". ln; ROCHA, L. E. el alii (org.). Isto é trabalho de gente?;
e a liberdade das nações. Nesta guerra econômica, o princi­
vida, doença e trabalho no Brasil. São Paulo, Vozes, pp. 339-40, 1 993. pal objetivo é o desenvolvimento da competitividade. Em
nome dessa j usta causa as empresas utilizam métodos cruéis
contra aqueles que trabalham, a fim de excluir os não aptos a

26 Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Unespl

Araraquara, sob orientação da Professora Doutora Maria Aparecida de


Moraes Silva.

152 o A V E 5 s o o_o T R A B A L H o
combater nessa guerra, ao passo que, dos que estão aptos à adversidade e à injustiça. Essa evolução se caracteriza

para o combate, exigem-se desempenhos sempre superiores pela atenuação das reações de indignação e de mobilização
coletiva, ao mesmo tempo em que se desenvolvem rea­
em termos de produtividade e de sujeição. Essa guerra im­
plica sacrifícios individuais e coletivos, sacrifícios consenti­ ções de indiferença à injustiça e ao sofrimento alheio. " ...
não se compreende como uma mutação política dessa
dos pelos próprios sujeitos, em nome da razão econômica.
amplitude p ô d e prod u z i r-se em tão p ouco tempo."
Como mostram as pesquisas sobre o sofrimento no traba­
lho, desenvolvidas na área dos estudos de psicodinâmica do tra­ (Dejours, 2000, p. 24).
No universo do trabalho, esse período se traduziu pela
balho, as motivações subjetivas da dominação e d o
consentimento têm papel decisivo para o processo de aceitação adoção de novos métodos de gestão empresarial, que vêm
questionando paulatinamente os direitos do trabalho e as
da adversidade social, pois, diante da idéia de uma possível der­
conquistas sociais válidas para o conjunto da população. Es­
rocada econômica, até mesmo "... cientistas e pensadores ad­
ses novos métodos geram muito sofrimento e se fazem acom­
mitem que... é preciso... recorrer a meios drásticos, sob risco de
panhar de urna imensa brutalidade nas relações trabalhistas.
se fazer algumas vítimas." (Dejours 2000, p. 13). A adesão a
E embora essa brutalidade seja denunciada, a denúncia per­
esse discurso economicista, segundo o ponto de vista da
manece sem conseqüência política, pois não há mobilização
psicodinâmica do trabalho, é uma manifestação de um proces­
so de "banalização do mal"." Este processo nada tem de novo, coletiva concomitante. Ao contrário, essa denúncia parece
compatível com uma crescente tolerância à injustiça.
pois esteve presente em todas as vertentes totalitárias, incluin­
Com base nessas considerações de Dejours (2000), acer­
do o nazismo. A novidade reside somente na identificação do
ca da crescente tolerância social em face do sofrimento alheio
processo, que se tornou mais visível recentemente, em virtude
e da injustiça social, este estudo tem por fim a análise de um
das mudanças políticas verificadas nas últimas décadas.
caso específico e atual de aceitação da injustiça social: qual
Como muitos estudos apontam, desde 1980, toda a so­
seja, o caso daqueles homens e mulheres que embarcam nos
ciedade se transformou qualitativamente, a ponto de não
aeroportos internacionais do Brasil, com destino ao Japão,
ter mais as mesmas reações que antes. Observa-se nesse
onde os postos de trabalho desqualificado já lhes foram re­
processo uma evolução das reações sociais ao sofrimento,
servados com antecedência, não por uma causalidade do des­
27 " ... a adesão à causa economicista ... funcionaria, ainda, como uma defesa tino e, sim, por forças econômicas exteriores ao sujeito, que
contra a consciência dolorosa da própria cumplicidade ... no agravamento da implicam responsabilidades humanas e por isso são capazes
adversidade social. ... um processo que é subjacente à eficácia do sistema
de serem contidas e alteradas.
liberal económico." (Dejours, 2000, p. 13).

COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO 155


o AVESSO 0 0 TRABALHO
APRESENTANDO A TEMÁTICA DA MIGRAÇÃO DEKASSEGU/ gundo Vainer ( 1 995), o imigrante japonês foi visto, simultane­
A compreensão do fenômeno migratório de trabalhado­ amente, como o melhor trabalhador que se podia importar,
res brasileiros rumo ao Japão requer uma retomada da histó­ mas, ao mesmo tempo, o mais inassimilável de todos os es­
ria dos imigrantes japoneses e de seus descendentes no Brasil, trangeiros. No conjunto, entraram no país cerca de 250 mil
pois a migração contemporânea atualiza, ainda que de modo japoneses entre os anos de 1908 e 1 960. Atualmente, são cerca
invertido, um modelo posto em prática pelos japoneses que de 1,5 milhões de nikkeis, englobando os imigrantes japoneses
aqui chegaram no início do século 20. Em ambos os casos, é e seus descendentes (Rossini: mimeo). No total, representa­
possível constatar que sempre há, reservado em algum lugar vam, no ano de 1991, em torno de 1 % da população brasileira
da memória, um projeto de retorno. Mesmo que esse proje­ (Sazaki, 1999).
to não seja posto em prática, sustenta a impressão de que se Do ponto de vista de uma análise macro-estrutural, as me­
vive um momento transitório, alimentando, assim, a espe­ didas restritivas tomadas pelo governo Vargas em relação aos
rança de que dias melhores virão. imigrantes estrangeiros, associadas ao desfecho da I I Guerra
Os imigrantes japoneses vieram para o Brasil com a cer­ Mundial, tiveram forte influência sobre a decisão dos japone­
teza de que enriqueceriam rápido, podendo retornar ao Ja­ ses de permanecerem no Brasil. Porém, da perspectiva de uma
pão em boas condições financeiras. Foram destinados ao análise que privilegie a dimensão subjetiva dos sujeitos, os
trabalho nas lavouras de café, num momento em que a cafei­ momentos difíceis vivenciados pelos imigrantes japoneses trou­
cultura já mostrava sinais d� declínio. Ao chegarem às fazen­ xeram à tona valores como o gambarê (traduz-se: esforço com
das, depararam-se com uma realidade distinta daquela resignação). O espírito gambarê é fu ndamental para se
veiculada pelas propagandas: não tinham casas, os salários compeender a motivação subjetiva dos japoneses no Brasil, pois
não correspondiam ao valor estipulado nos conrratos, não se foi sobre este ethos que se fundou a decisão dos imigrantes de
adaptavam à comida e não falavam o idioma português. Além aqui permanecerem e lutarem por condições melhores de vida.'"
disso, a população nacional não recebia o imigrante japonês
tão facilmente como se poderia imaginar, pois este, se aten­
28 Gambarê significa suportar resignadamente todas as adversidades impostas
dia às necessidades do país enquanto mão-de-obra habitua­ pelo "destino". Para os- japoneses, o esforço com resignação é um sinal de
da à agricultura, por outro lado, não era bem visto devido aos maturidade. O caminho para a maturidade prevê o aperfeiçoamento das virtudes
pessoais a fim de que a harmonia (wa) possa ser alcançada com a contribuição
seus diferentes costumes e traços físicos.
de cada um dos indivíduos. No Brasil a noção de gambarê se traduziu pela
Sob tais condições, perceberam que o sucesso rápido não necessidade de trabalhar ao máximo, economizar ao máximo e abrir mão de
seria tão fácil como haviam imaginado (Demartini, 1997). Se- luxos supérfluos (Sakurai, 1993).

o AVESSO DO TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO


Segundo Sakurai ( 1 993), os imigrantes japoneses, basea­ realização dos trabalhos não qualificados, para empresas ja­
dos no princípio do gambarê, "trabalharam arduamente para ponesas, cujo sucesso de competitividade está relacionado à
buscar um padrão de vida mais elevado e lutaram para dar adoção de novas técnicas de organização da produção, que
aos filhos condições de vencer no Brasil, mesmo à custa de intensificam o trabalho e ampliam o controle sobre a mão­
abrir mão de ser um 'genuíno' japonês" (Sakurai, 1993, p. de-obra, dentro e fora do local de trabalho.
58). Embora os filhos e netos tenham assimilado valores da Deixam para trás um país marcado por profundas desi­
cultura brasileira, não significa que o espírito gambarê tenha gualdades sociais e levam consigo a esperança de, um dia,
se diluído por completo; ao contrário, encontra-se vivo e atu­ retornarem para casa em boas condições financeiras. En­
ante entre os issei (imigrante japonês), nissei (filho de imi­ tretanto, diante da dramática conjuntura social, econômica
grantes japoneses) e talvez, em menor medida, entre os sansei e política em que se encontram os países da América Lati­
(netos de imigrantes japoneses) e os miscigenados. na, muitos desses trabalhadores parecem estar adiando, ou
Entretanto, apesar do grande esforço realizado e de to­ até mesmo descartando, o plano de retorno ao país de ori­
das as conquistas, na última década, problemas muito seme­ gem. Neste novo contexto migratório, os japoneses utili­
lhantes aos que foram vivenciados pelos imigrantes japoneses zam o trinômio 3K para designar o tipo de tarefa reservada
vêm levando seus filhos e netos a percorrerem o caminho a esses trabalhadores: Kitanai (sujo), Kiken (perigoso) e Kitsui
inverso em busca do suposto "Eldorado japonês" (Rossini: (pesado).
mimeo). O estudo realizado por Sales ( 1995) revela que, nos No Brasil, ainda é pouco conhecida a realidade enfrenta­
últimos anos, a evasão de brasileiros para o exterior vem cons­ da cotidianamente por esses migrantes que ocupam os pos­
tituindo uma nova categoria de trabalhadores assalariados, tos de trabalho desqualificado no Japão. Desse modo, o
sujeitos às maiores explorações e à falta de garantias traba­ presente artigo propõe-se a apresentar alguns resultados ob­
lhistas essenciais. O fluxo migratório Brasil-Japão é conside­ tidos por meio de um trabalho de pesquisa, que vem sendo
rado um caso particular, em virtude da presença de uma desenvolvido desde meados de 1996, acerca das condições
questão racial e étnica de grande relevo, tendo em vista a de vida e de trabalho experimentadas pelos chamados traba­
migração apenas dos descendentes de imigrantes japoneses. lhadores dekassegui. O estudo tem por objetivo trazer à tona
Inseridos no contexto de uma economia globalizada, os as percepções e representações forjadas no interior do pro­
trabalhadores dekassegui embarcam para o Japão, motivados cesso produtivo, a fim de desenvolver uma análise da reali­
_
não apenas pelo desejo de enriquecimento rápido, mas tam­ dade vivenciada por esses sujeitos, que, sob condições
bém pelo sentimento de procura das raízes. São destinados à historicamente determinadas, dão vida ao processo e encon-

o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO


tram-se situados na região mais periférica do chamado "mo­ perdidos do outro lado do mundo. Embora poucos estudos
delo japonês" de gestão. atentem para a questão da desagregação das relações famili­
Aprofundar o conhecimento por meio de uma análise que ares, as imprensas de ambos os países têm documentado com
privilegie a subjetividade desses trabalhadores não significa freqüência problemas decorrentes da imigração, como os inú­
descartar os estudos que partem de uma perspectiva objeti­ meros casos de famílias desagregadas, dos filhos abandona­
va (e estrutural) da realidade social, mas sim utilizá-los como dos, ou ainda os casos de esposas a procura de seus maridos
base teórica fundamental para os objetivos da investigação. desaparecidos no Japão. 29
Trata-se de aprofundar o conhecimento dessa realidade le­ O Centro de Informação e Apoio ao Trabalhador no Ex­
vando-se em consideração, além do debate acadêmico, o co­ terior (CIATE) é um órgão criado por iniciativa do Ministé­
nhecimento e a experiência destes que vivenciam a árdua rio do Trabalho japonês, em meados de 1992, com o propósito
rotina do trabalho desqualificado, informal, temporário e de organizar e institucionalizar o fluxo migratório de traba­
subcontratado. lhadores brasileiros rumo ao Japão. Porém, a instituição tem
controle apenas sobre uma pequena parcela dos trabalhado­
A MIGRAÇÃO DEKASSEGUI RUMO AO JAPÃO res que migram. Em uma entrevista realizada com um re­
No Brasil, a emigração rumo aos países desenvolvidos é presentante d o CIATE, no dia 7 de outubro de 1 998,
um fenômeno recente, que adquiriu grandes proporções elementos importantes foram fornecidos acerca das dificul­
durante a década de 1980. Por se tratar de um fenômeno dades reais enfrentadas, tanto pelos trabalhadores que mi­
recente, Reis e Sales ( 1 999) atentam para o fato de que ain­ gram, quanto por seus familiares que ficam. Dificuldades
da são poucas as publicações existentes em torno dessa ques­ relacionadas: à desagregação das famílias; ao desaparecimento
tão. Porém, o tema, embora pouco estudado, tem chamado a de trabalhadores; aos acidentes de trabalho sem direito a in­
atenção da imprensa, que vem noticiando com freqüência denizações; aos casos de esgotamento nervoso; e a casos de
incidentes vivenciados e/ou causados por brasileiros no ex­ morte por overdose de trabalho (karoshi).
terior, ou ainda os problemas enfrentados pelos familiares
que aqui foram deixados. 29 Sayad, ao estudar a migração de trabalhadores argelinos para a França,

Nos jornais publicados diariamente, destinados a infor­ conseguiu apreender a dimensão subjetiva desse processo migratório,
cOI�preendendo assim que " ... nas percepções coletívas [só] se aceita
o ••
mar a comunidade brasileira no Japão e seus fa..miliares no
abandonar o universo familiar ao qual se pertence ... com a condição de se
o ••

Brasil, é comum, nas páginas de classificados, a existência convencer de que isso não passa de uma provação, passageira por definição
de pequenos anúncios de pessoas que procuram familiares ..." (Sayad, 1998, p. 57).

160 o AVESSO DO TRABALHO C O l E ÇÃ O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O


Uma outra evidência do fenômeno da desagregação fa­ munerado, de assegurar a reprodução dessa força de traba­
miliar é a existência do Grupo Pérola, uma instituição de lho. Há também casos de casais que migram levando consi­
auxílio a pequenas entidades, que, desde outubro de 1995, go os filhos, ou ainda, casos de filhos de brasileiros dekassegui
vem atuando no fornecimento de cestas básicas, brinque­ que nascem no Japão, sem direito à cidadania japonesa, além
dos, roupas e medicamentos a algumas famílias de trabalha­ dos inúmeros casos de famílias inteiras que migram, sem
dores ausentes, que, em razão do processo migratório, foram previsão de um dia retornar.
submetidas a uma condição de desagregação e carência ma­
te rial. Com O auxílio de donativos, a entidade mobiliza o tra­ A ORIGEM DA MIGRAÇÃO BRASIL - JAPÃO
balho de um grupo de mulheres voluntárias, na confecção No Japão, como conseqüência das inovações introduzidas,
de produtos artesanais, destinados a levantar fundos para a a produção industrial acelerou vertiginosamente durante a
compra de mantimentos. De acordo com o relato concedido década de 1980, sobretudo nos setores automobilístico e
pela diretora do Grupo Pérola, uma das principais dificulda­ eletro-eletrônicos considerados os carros-chefe da economia
des enfrentadas pela entidade é a recusa da ajuda assistencial japonesa. Como em outros países de capitalismo avançado,
por parte dessas famílias. em virtude do alto índice de escolarização da população ja­
Descobriu-se que uma das estratégias que vêm sendo ponesa, surgiu o problema da carência de mão-de-obra para
adotadas pelos casais que migram consiste em deixar seus os setores inferiores da escala profissional. Como mostra o
filhos pequenos no Brasil, sob responsabilidade das avós. Tal artigo publicado por Oliveira ( 1 999), desde então, migrantes
prática vem criando problemas, seja porque a faixa salarial vindos do Sudoeste Asiático e do Oriente Médio invadiram
dos trabalhadores que partem é insuficiente para garantir o os postos de trabalho desqualificado sob condições ilegais. A
sustento das famílias que ficam, seja em razão da idade avan­ presença indesejável, porém indispensável30, desses traba­
çada dessas mulheres, ou ainda em razão da desagregação lhadores migrantes criou uma situação de desconforto por
dos laços familiares, que freqüentemente resulta na dissolu­
ção dos casais e abandono dos filhos. 30 Sazaki (1999) atenta para o fato de que o problema da carência de mão-de­
Na medida do possível, essas mulheres lutam para ga­ obra para realização -de trabalhos desqualificados levou à falência muitas
pequenas e médias empresas por não conseguirem honrar o compromisso de
rantir a subsistência dos netos. Atravessam sérias dificulda­
atender a quantidade demandada pelo mercado. Segundo a autora, essas
des, mas recusam a ajuda assistencial. Por essa via informal, empresas encontram-se situadas no final da cadeia produtiva, atendendo por
grupos de mulheres, em idade avançada, são reinseridos na meio de um sistema de subcontratação às encomendas das grandes empresas

esfera produtiva, cumprindo o papel, precarizado e não re- montadoras numa relação vertical de cooperação.

162 o AVESSO DO TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO 16 3


.
parte do governo japonês, na medida em que agredia os pa­ fatores de expulsão de migrantes brasileiros, ao passo que nos
drões de homogeneidade e pureza racial, elementos funda­ países ricos o desenvolvimento econômico criou um proble­
mentalmente valorizados na cultura japonesa. ma inverso, qual seja, a carência de mão-de-obra para a reali­
Uma das soluções encontradas a esse problema foi bus­ zação de tarefas desqualificadas (Sazaki, 1999; Oliveira, 1999).
car mão-de-obra supostamente japonesa fora do Japão, nos Assim, essas análises objetivas do processo migratório,
países em crise da América Latina, que haviam sido precedi­ tendo em vista a centralidade e a exclusividade da classe
dos pela imigração japonesa em décadas passadas. Foi dada, social como categoria de análise, tendem a enfatizar o aspec­
assim, preferência à contratação apenas dos descendentes to econômico das relações sociais de produção. Dessa pers­
de japoneses nascidos nos países latino-americanos, em ra­ pectiva, a realidade social adquire o simples aspecto de
zão da suposta proximidade étnico-cultural (Oliveira 1 999). relações sociais de compra e venda de uma força de trabalho
No Brasil, segundo dados do IBGE do ano de 1991, 1 % da destituída de qualquer forma de subjetividade e concebida
população brasileira era constituída por descendentes de como um corpo social assexuado, da mesma forma todas as
imigrantes japoneses, o que faz do país a maior colônia japo­ motivações culturais e valorativas que orientam as condutas
nesa fora do Japão (Sazaki, 1 999). dos atores sociais são reduzidas ao determinismo de uma cau­
As primeiras notícias da migração de nikkei-brasileiros para salidade econômica.
o Japão surgiram por volta do ano de 1985. Posteriormente, o É preciso ter em vista o fato de que, da perspectiva do
fenômeno tomou grandes proporções em decorrência de uma indivíduo que migra, o aspecto econômico é apenas um dos
alteração na Lei de Controle de Imigração, votada no parla­ elementos que atribuem significado causal ao ato de migrar.
mento japonês em junho de 1990, sob pressão de interesses Um outro elemento que influi decisivamente sobre a moti­
da classe empresarial japonesa. Essa lei redefiniu as condi­ vação subjetiva, no caso dos trabalhadores dekassegui, é a per­
ções de entrada e permanência dos trabalhadores dekassegui cepção da pertença étnica, que se traduz pelo sentimento de
latino-americanos no mercado de trabalho, tirando-os da clan­ procura das raízes.
destinidade e lhes reservando os trabalhos desqualificados Tal qual fora definido por Berger e Luckmann ( 1991), a
rejeitados pelos naturais da região. sociedade deve ser. concebida como uma realidade ao mesmo
Do ponto de vista da análise objetiva do processo migrató­ tempo objetiva e subjetiva, de modo que qualquer tentativa
rio, a recessão econômica, a inflação e o desemprego, que de compreensão teórica adequada da sociedade, deve dar conta
marcaram profundamente a década de 1980 nos países da Amé­ de ambos esses aspectos. Assim, segundo os autores, a análise
rica Latina, são apontados pelos estudiosos como os principais de uma determinada realidade social deve ser entendida em

o AVESSO DO TRABA L H O COlEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO


termos de um processo dialético em curso, composto de três
lhores condições de existência posta em prática, pelos imi­
momentos: exteriorização, objetivação e interiorização. Esses
grantes japoneses no Brasil, a partir de 1 908. Assim, o movi­
três momentos devem ser pensados como ocorrendo simulta­
mento migratório é marcado pela noção de fracasso da
neamente. Por essa razão, qualquer análise que considere ape­
empreitada migratória dos japoneses no Brasil. Por essa ra­
nas um ou dois deles será insuficiente.
zão, apesar da ascendência japonesa, esses imigrantes não
Woortmann ( 1995) atenta para o faro de que a migração
são bem aceitos pelos naturais da região, também pelo fato
temporária para o Japão é percebida como um aprendizado
de não falarem o mesmo idioma e não possuírem os mesmos
de valores, uma lição de vida e sobrevivência inesquecível,
costumes. No país de origem, em virtude da ascendência
assumindo, assim, a forma de um "rito de passagem" para a
nipónica, também são considerados estrangeiros, de modo
autoconstrução simbólica do indivíduo e, ao mesmo tempo,
que, na concepção de Rossini (mimeo), são considerados
projetando uma "imagem espelhada" da que os imigrantes
"autênticos desenraizados".
japoneses tinham do Brasil, no início deste século, qual seja:
a idéia de um lugar a partir do qual seria possível criar as
APRESENTANDO A EXPERIÊNCIA DE CAMPO
condições de uma ascensão social, no momento posterior ao
Assim, visando aprofundar o conhecimento dessa reali­
regresso à terra natal.
dade, a investigação teve início a partir de uma experiência
Isso explica uma das razões que levam muitas famílias a
de campo vivenciada coletivamente tanto pelo pesquisa­
incentivarem os filhos a migrarem rumo ao Japão. O migrante,
dor, quanto por seus entrevistados - durante um período de
ao retornar para seu local de origem, torna-se outra pessoa,
trabalho temporário ( 2 1 / 1 2/ 1 996 - 2712/1997) na linha de
estabelecendo os dois momentos diferenciais de sua vida: o
montagem de automóveis de uma determinada empresa ja­
antes e o depois da mudança. Como que numa replicação do ponesa, do setor automobilístico, situada na cidade de Kosai
passado, a tradição, mesmo que enfraquecida, organiza a (Japão),3! na condição de mão-de-obra migrante e temporá-
migração em sentido inverso, mas segundo o mesmo princí­
pio hierárquico. Assim, os trabalhadores dekassegui, ao emi­ 31 A fim de vislumbrar o ritmo da intensidade do trabalho realizado, faz-se
imperativo salientar que cada uma das linhas produzia um automóvel pequeno
grarem para o Japão, de um lado atendem à sua "voz da
a cada 585 e um grande a cada lmin20s. Dessa forma, em cada linha eram
tradição" e, de outro lado, correspondem às expectativas de montados, por turno, cerca de 420 automóveis de diferentes modelos. Era
um retorno com êxito (Woortmann, 1995). comum também o trânsito de robôs de carga pelos corredores. Por intermédio
de alto-falantes, o som de música sintética cadenciava o ritmo da montagem.
Esta ida (ou retorno) de nipo-brasileiros ao Japão tam­
Durante o trabalho na esteira, mergulhava-se em um estado quase hipnótico
bém representa uma continuação renovada da luta por me- de seqüências de movimentos repetitivos.

166 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO I - 16 7


ria, subcontratada para realização de tarefas desqualificadas, experiência como um pOnto de junção entre a estrutura
durante os períodos de maior demanda do mercado. Tratou­ conceptual e o processo histórico, restituindo aos homens
se de uma experiência fundamental na medida em que apro­ e às mulheres os papéis de sujeitos ativos na construção
ximou o pesquisador de seu objeto de estudo, a ponto de da história, ou seja, pessoas reais que, permeadas por in­
proporcionar uma situação em que o pesquisador passa a cons­ teresses, necessidades e antagonismos, experimentam as
tituir parte integrante da realidade social investigada.32 situações e relações de produção sob condições historica­
Nesse sentido, o trabalho de pesquisa que aqui se apre­ mente determinadas.
senta é resultado de um conjunto de experiências do qual o Tendo em vista essa noção histórica da experiência
pesquisador fez parte, experiências vivenciadas de modo vivenciada pelos sujeitos, "o relato da experiência do pes­
individual e coletivo. Assim, a escolha por este tema de in­ quisador na fábrica" introduz a perspectiva do trabalhador,
vestigação está associada a acontecimentos externos que re­ migrante, dekassegui, que vivencia as relações de produção,
percutiram diretamente sobre as trajetórias de vida, tanto do tanto no espaço de trabalho, quanto no espaço privado re­
pesquisador quanto de seus entrevistados. presentado pelos alojamentos. A observação participante do
Fundamentado na experiência vivenciada, cabe decla­ pesquisador e a análise dos relatos orais permitem a constru­
rar que há uma grande distância entre a discussão teórica, ção de uma leitura da realidade que privilegie a subjetivida­
que parte de uma perspectiva estrutural e objetivista da de dos atores sociais, revelando o intenso controle presente
realidade social, e a realidade social vivenciada, enquanto tanto no espaço produtivo quanto fora dele. O resultado des­
um processo constituído por homens e mulheres. Tendo ta análise é um mergulho no universo subjetivo das relações
em vista essa distância, Thompson ( 1 9 8 1 ) estabeleceu a capitalistas de produção, permitindo, assim, apreender e tra­
zer à tona elementos que fogem ao olhar de uma análise ob­
jetiva do processo produtivo/migratório.
32 "A proximidade social e a familiaridade asseguram efetivamente duas das Porém, embora a experiência de campo e os relatos orais
condições principais de uma comunicação 'não violenta'. De um lado... dá... dos trabalhadores sejam elementos de grande valor para a
.
garantias contra a ameaça de ver suas razões subjetivas· reduzidas ... aos
pesquisa, tomados isoladamente não são suficientes para a
determinismos objetivos, .. Por outro lado, encontra-se... assegurado_ .. um
acordo imediato... sobre os pressupostos concernentes aos conteúdos e as construção de uma análise de cunho sociológico. Tendo em
formas de comunicação: esse acordo se afirma na emissão apropriada... de vista o fato de que cada um dos sujeitos experimentou indi­
todos os sinais não verbais (jeedbacks), coordenados com os sinais verbais,
vidualmente apenas uma parcela limitada da realidade, os
que indicam quer como tal o qual enunciado deve ser interpretado, quer como
ele foi interpretado pelo interlocutor." (Bourdieu, 1997, p. 697) relatos tomam rumos diferentes e algumas vezes contraditó-

168 o AVESSO 0 0 TRABALHO C O L E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA ÇÃ O


rios." Desse modo, a consulta bibliográfica e a coleta de da­
A proposta deste trabalho situa-se na confluência dessas
dos em jornais e revistas foram de importância fundamental
duas linhas de discussão, tendo por objetivo, não apenas o
em razão dos objetivos desta pesquisa, revelando a existên­
estabelecimento da articulação entre ambas, mas também a
cia de uma confluência entre dois eixos de discussão teórica
inserção no debate das percepções e representações dos tra­
que, embora se desenvolvam separadamente, possuem uma
balhadores que, apesar de estarem à margem da discussão teó­
forte relação de complementaridade.
rica, vivenciaram a realidade cotidiana do trabalho como parte
O primeiro conjunto de estudos refere-se à existência de
integrante do processo produtivo. Da perspectiva do sujeito
uma análise que parte da ótica do capital e que se assenta numa
que vivencia o processo, torna-se inevitável a confluência dos
visão objetiva acerca do processo de globalização da economia,
dois eixos de investigação, pois não há como serem concebi­
da reesttuturação da produção, do advento do modelo japonês
dos separadamente. Desse ponto de vista, o processo migra­
e das transformações no processo de trabalho. Já o segundo con­
tório encontra-se imbricado no processo produtivo e a relação
junto aborda o tema das migrações internacionais, decorrentes
entre ambos é de complementaridade. Trata-se de dois temas
do processo de reesttuturação mundial do capitalismo. De acor­
profundamente interrelacionados, mas que no âmbito dos es­
do com o interesse deste trabalho, as bibliografias pertinentes
tudos acadêmicos se desenvolvem separadamente.
ao tema das migrações internacionais incidem sobre o caso es­
pecífico do fluxo migratório de brasileiros para o Japão, com­ o RELATO DA EXPERIÊNCIA DO PESQUISADOR NA FÁBRICA
preendido como uma das conseqüências do advento do modelo
De acordo com o horário regulamentado pela empresa,
japonês em meio ao processo de globalização. todos os trabalhadores do turno da manhã devem acordar às
cinco horas, para tomar o café da manhã, servido, exatamen­
33 No mesmo sentido, Queiroz (1987) cita o trabalho realizado por Gennaine TiIlion, te, a partir das cinco horas e vinte minutos. O õnibus desti­
sobrevivente de um campo de concentração nazista - RavensbfÜck - onde esteve
nado a transportar os trabalhadores do alojamento para a
detida durante a segunda grande guerra. Além de sua própria experiência, a
fábrica parte exatamente às cinco horas e cinqüenta minu­
autora utilizou, como urna das fontes de dados, relatos orais de outros
sobreviventes. Ao analisar os diferentes relatos, verificou que as narrativas tos. O percurso, de Hamamatsu para Kosai, leva cerca de
tomavam rumos diferentes e por vezes se contradizíamo A partir disso, constatou uma hora, momento em que muitos aproveitam para dormir
que cada um dos envolvidos vivenciou a experiência individualmente, captando
mais algum tempo. Sob esse regime de trabalho aprende-se
apenas uma parcela da realidade. Concluiu, assim, que não seria possível basear
sua análise de cunho sociológico somente nos relatos obtidos; teria de contar que cada minuto é valioso.
também com uma ampla coleta de dados, para dar maior confiabilidade à imagem Pela manhã, um breve momento de silêncio antecede
que se desejava construir do campo de concentração.
um longo dia de trabalho. Já na entrada do galpão sombrio

o AVESSO DO TRABA L H O COLEÇÃO TRABALH O E EMANCI PAÇÃO " 171


da fábrica, o cheiro de graxa e de borracha impregnam as Após duas horas e meia de trabalho, o sinal musical (9:30
narinas, pois faz poucas horas que as máquinas pararam de horas) anuncia um intervalo de cinco minutos, ou trezentos
funcionar. Entre as estruturas de ferro existem corredores, segundos, precisamente contados (9:30 horas - 9:35 horas).
cuja função é conduzir operários e máquinas a seus locais de Todos correm para seus locais de descanso. Durante os cinco
trabalho ao longo da linha de montagem. Uma única esteira minutos, alguns trabalhadores conversam, fumam e se exal­
percorre ziguezagueando pelo espaço interno de cada galpão, tam com jogos de cartas, ourros optam pelo isolamento. A fu­
desfilando as carcaças de cores e formas variadas. Os traba­ maça de um cigarro aceso denuncia a ineficácia dos dutos de
lhadores chegam pouco antes das sete horas da manhã, ves­ ventilação. Se os duros de ar não aspiram a fumaça do cigarro,
tem seus uniformes, guardam seus pertences em armários também não aspiram eficazmente eventuais gases tóxicos pro­
sem cadeados e sentam-se nas áreas reservadas para descan­ duzidos pela queima de combustíveis. Todos perguntam an­
so, à espera do sinal para começar o trabalho. siosamente pelo tempo que resta para voltar ao trabalho. Soa
De repente, a estrutura ganha vida e tudo entra em movi­ novamente o sinal musical (9:35 horas) e todos correm para
mento. Por meio de alto-falantes, a gravação de uma voz femi­ seus postos. O próximo intervalo será para o almoço de qua­
nina põe-se a falar em japonês. Em seguida, uma melodia renta e cinco minutos ( 1 1 :45 horas - 12:30 horas).
começa a tocar, cadenciando o trabalho. No piso superior, as O refeitório situa-se a cerca de quatrocentos metros do
carcaças se põem a caminhar em velocidade constante. Por local de trabalho. No imenso refeitório da fábrica, trabalha­
todos os lados, sirenes piscam e os ruídos ensurdecedores da dores de diversas nacionalidades se esbarram sem se mistu­
estrutura de metal em funcionamento misturam-se com a rar, formando um mosaico colorido de uniformes diferentes.
música sintética. Um outro sinal musical anuncia o início da Pratos d e diversos preços são expostos em balcões, chá e água
jornada e todos se põem a trabalhar (7:00 horas). Parafusadeiras são cortesias da casa. Todos comem apressadamente. A con­
movidas a ar comprimido emitem uma interminável seqüên­ ta é paga com cartão magnético, o valor é somado e descon­
cia de impactos ensurdecedores. Em alguns trechos da linha, tado d o salário. Uma estratégia adotada por muitos
certas tarefas, como a colocação dos vidros e a abertura das trabalhadores, para economizar tempo, consiste em levar o
portas, são execuradas por robôs. Pelos corredores trafegam almoço de casa e comer ao lado da linha de montagem, nas
empilhadeiras movidas a gás e robôs de carga equipados com áreas de descanso, ou entre as caixas de peças. O sinal musi­
sirenes, alto-falantes, sensores e câmeras. A prim6ra impres­ cal anuncia que restam cinco minutos para reiniciarem as
são chega a lembrar um sofisticado parque de diversões, a se­ atividades, as máquinas recomeçam a funcionar e todos co­
gunda impressão sugere a imagem do inferno. meçam a se preparar.

o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO


Reiniciadas as atividades, após o almoço (12:30 horas), turnos alternados semanalmente, aplicado apenas sobre a

restam pela frente mais uma hora e meia de trabalho, um parcela masculina da mão-de-obra. Ao final de cada jornada

outro intervalo de cinco minutos ( 14:00 horas 14:05 horas), de trabalho, diurna ou noturna, o corpo esgotado tem de ca­

seguido de mais uma hora e quarenta minutos de trabalho, minhar cerca de um quilómetro até o ónibus, que o conduzi­

chegando, enfim, ao final de uma jornada de oito horas e dez rá ao alojamento. A esse respeito, uma frase ouvida de um

minutos de trabalho ( 15:45 horas), ou teidi. Ocorre então mais dos trabalhadores temporários ilustra a impressão que se tem,

um intervalo (15:45 horas - 15:50 horas). A mão-de-obra fe­ quando o adestramento produtivo ainda não foi consumado:

minina é dispensada, ficando assim, as trabalhadoras proibi­ "Esse mês eu trabalhei vinte e dois dias e vinte e duas vezes eu

das de realizarem horas-extras. Tem início a hora-extra, ou pensei que não fosse agüentar. .. "

zangyo ( 1 5:50 horas), de caráter compulsório. Quem se recu­ Ao chegar ao luxuoso alojamento, reservado aos traba­

sar a cumprir uma hora e meia de hora-extra corre o risco de lhadores temporários (arubaito), o jantar servido, assim como

ficar marcado, não apenas pelos chefes, mas principalmente as condições de alojamento ( 1 8:00 horas - 20:00 horas), são

pelos companheiros de seção, que ficarão ainda mais sobre­ privilégios estratégicos, que os demais peões não possuem.

carregados, caso alguém se retire. Os pratos servidos são diferenciados de acordo com a nacio­

Ao final de cada jornada de trabalho, foram montados mais nalidade, tratando-se também de uma estratégia de segrega­

de quatrocentos automóveis. Enquanto metade dos traba­ ção. A qualidade inferior da comida servida aos brasileiros,

lhadores da fábrica trabalha, a outra metade repousa nos alo­ em muitos momentos, tornou-se motivo de descontentamen­

jamentos. Alguns minutos antes de terminar a hora-extra, tos e protestos por parte de alguns estudantes brasileiros; e

começam a chegar os trabalhadores do turno oposto. Nesse de constrangimento e solidariedade por parte dos trabalha­

momento, uma sensação de alívio invade todos aqueles que dores húngaros que, por serem "estagiários" contratados di­

trabalham e os poucos minutos que restam demoram a pas­ retamente pela montadora, dispunham de uma alimentação

sar. Finalmente, soa o último sinal ( 1 7:20 horas). Cada posto de qualidade e quantidade superior.

de serviço é substituído por um trabalhador descansado, o


A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO NA ÓTICA DOS SUJEITOS
hantai-ban, que irá se ocupar das mesmas tarefas enquanto o
trabalhador do turno que se retira recupera as energias no No interior da fábrica, em que foi vivenciada a experiên­

alojamento. cia de campo, a linha de montagem se divide em três partes,

O obcecado controle sobre a força de trabalho faz com ou retas. Cada uma das partes subdivide-se em seções. Em

que se utilize mais um outro mecanismo de dominação: os cada seção há um chefe imediato, ou hantyo, um líder, dois

17"1 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO ,, 175


helps e cerca de cinco ou seis peões. Na primeira parte da " ... parece que eles gostam de prejudicar .o outro. Quem tá lá pá...

esteira, onde estão as tarefas mais árduas de montagem ma­ mciro quer sempre dominar quem chega depois... . "

nual, são alocados trabalhadores brasileiros, peruanos e boli­ O fragmento do relato do entrevistado G confirma a im-
vianos. Na segunda e na terceira parte da esteira trabalham pressão do entrevistado A da seguinte forma:

japoneses, indianos, húngaros e chineses. O trabalho femi­ " ... os brasileiros que deveriam ser os nossos apoios ... em vez disso,

nino é utilizado, apenas durante a jornada diurna de traba­ eram os próprios caras que faziam pressão na gente ... ",

lho, nas subesteiras de montagem de painéis e motores, em A divisão do trabalho, a ausência de conteúdo significativo

que o trabalho realizado requer maior habilidade das mãos. da tarefa, o sistema hierárquico, as modalidades de comando"
A rigorosa hierarquia está presente em cada uma das se­ as relações de poder e as questões de responsabilidade são
ções, estimulando a competição e contaminando as relações elementos enumerados por Dejours ( 1 992); que definem com
no chão de fábrica. Entre os trabalhadores há uma norma maior clareza o significado do termo "organização do traba­
implícita, traduzida pelo entrevistado A da seguinte forma: lho", É precisamente do contato forçado com essa organiza­
"... quem tá lá há muito tempo quer pegar o serviço mais fácil, ção do trabalho que surge o sofrimento mentaL A perversidade
porque... se julga com mais vantagem do que quem não tá lá há da organização do trabalho consiste, não apenas na contami­
muito tempo... " nação premeditada das relações sociais no chão de fábrica, mas
Após adquirir certa experiência, o trabalhador sabe quais também na instrumentalização dessas relações moldadas para
são os trabalhos mais leves. Em muitos casos, para conseguir a produção intensificada de mercadorias, As relações molda­
um "serviço mais fácil", torna-se necessário ascender-se na das e premeditadamente contaminadas pela organização do
hierarquia, ao posto de help, ou, na melhor das hipóteses, ao trabalho criam relações sociais tensas, Como nas situações
posto de hantyo. O critério utilizado para a promoção dos peões vivenciadas pelo entrevistado C, as relações moldadas ocor­
é a bajulação ao superior e a total obediência às imposições rem, no plano real, da seguinte maneira, Da primeira vez:
da organização do trabalho. Por essa razão, em muitos casos, " ... o cara queria colocar todo o serviço nas minhas costas... não
é comum no discurso desses trabalhadores o sentimento de agüentei o serviço, aí acabei ficando estressado com o cara... Quase
desconfiança e a idéia de que os compatriotas são menos dig­ briguei com o cara,.ah! num briguei assim de porrada, mas briguei...
nos de confiança que os próprios japoneses. Inserido no pro­ bate boca... assim ... .
"

cesso produtivo, a impressão do trabalhador A, ç;m relação Em razão da briga, o trabalhador foi transferido para a
aos compatriotas, parece estar de acordo com a lógica da or­ outra fábrica, No novo local de serviço um novo atrito ocor­
ganização do trabalho: reu pelo seguinte motivo:

o AVESSO 0 0 TRABALHO C O L EÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO


" ... tava de saco cheio já do cara... aí o cara veio cobrar de mim, ele para demonstrar serviço, intensificando ainda mais o ritmo
falou assim: se você me pagar cinco mil ienes eu falo pro hantyo que do trabalho.
.
você... não tá agüentando o servIço, aI. eI es te mu damo " . A operação exaustiva do ato de distinguir o modelo do
Finalmente, as experiências proporcionadas pela organi­ carro, para, em seguida, selecionar e encaixar as peças espe­
zação do trabalho levaram-no a concluir que: cíficas para cada modelo, exige um esforço monótono, não
,•... é melhor você trabalhar com japonês do que com brasileiro.. ". .
apenas do corpo, mas também do aparelho psíquico. A adap­
Desse modo, a organização do trabalho, além de instituir tação ao condicionamento produtivo requer o adestramento
a desagregação entre os trabalhadores brasileiros, preserva do corpo e da mente, mediante a repressão das reações es­
intacta a relação harmoniosa com o chefe, criando-se, ainda, pontâneas. Costuma-se dizer, entre os trabalhadores
um vínculo de dependência e cumplicidade, elementos res­ dekassegui, que os três primeiros meses são os piores, pois é o
ponsáveis pela criação de um discurso cooptado aos interes­ período em que o corpo e a mente ainda não foram devida­
ses da empresa, como mostra a continuação do depoimento: mente adestrados de acordo com o ritmo da produção; e a
"o .. pelo menos o meu hantyo é gente fina pra caramba, deixava eu saudade intensa do país de origem agrava ainda mais o qua­
ficar sossegado lá, trabalhava fazendo meu serviço, ele aumentou o dro psicológico do trabalhador recém-chegado. No mesmo
meu serviço lá depois, mas... mesmo assim; era sossegado... " .
sentido, Dejours ( 1 992) afirma que não há nada mais penoso
A velocidade da linha é determinada por uma máquina, que a adaptação a uma tarefa repetitiva. Por esse motivo,
que, vez por outra, intensifica o trabalho sem qualquer tipo
uma vez superado o período de adaptação, basta manter o
de consulta. Na linha, cada trabalhador fica responsável pela
desempenho. " M a i s d i fícil que a manutenção da . ..

realização de uma seqüência repetida de tarefas, o que per­


peiformance produtiva é a fase de treinamento que a prece­
mite um preciso controle sobre a qualidade do trabalho exe­
de." (Dejours, 1992, p. 46)
cutado. Cada erro cometido na execução de uma tarefa é A seqüência repetida de tarefas que cada trabalhador
detectado na seção seguinte e o trabalhador responsável pelo executa em uma linha de montagem constitui um conjunto
erro é advertido, sistematicamente, pelo help. A função da de tarefas vazias de significado. A ausência de conteúdo sig­
advertência sistemática consiste em condicionar o trabalha­ nificativo no trabalho desqualificado faz com que sua execu­
dor a cometer o menor número possível de erros nas tarefas ção se torne desinteressante. O contato forçado com uma
executadas, por meio de uma eficiente vigília. Qwndo a fi­ tarefa desinteressante provoca no trabalhador sentimentos
gura autoritária de algum chefe transita entre os trabalhado­ de indignidade e desqualificação. O sofrimento no trabalho
res, durante o trabalho, o receio faz com que todos se esforcem surge a partir do momento em que todas as tentativas de dar

o AVESSO DO TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO


significado ao trabalho falharam. Nesse momento, ocorre o nova forma de interação com o trabalho, como mostra a con­
bloqueio do desenvolvimento da relação homem/conteúdo tinuação do relato:
significativo do trabalho, criando sensações de insatisfação e " ... no começo eu achei, nossa, no começo eu chorava, falava: meu,
ansiedade. Dessa forma, o condicionamento produtivo pro­ quando vai dar as horas? E u quero sair daqui! Aí eu comecei a pen­
voca no indivíduo alterações nas esferas da vaidade, das as­ sar, não, eu tô aqui fazendo um serviço assim, tão manual, eu pen­
pirações, dos desejos individuais e nos investimentos afetivos. sei: não, eu vou trabalhar um pouco com a capacidade intelectual,
O relato da entrevistada F ilustra o período em que tra­ vou começar a pensar em coisas, assim, produtivas, nê, aí eu come­
balhou, desde o momento em que foi mudada de serviço e cei a pensar em coisas que me... pegasse muito meu tempo, tipo
teve dificuldades de readaptação, passando pelas várias ten­ religião... comecei a pensar na origem do ser humano, nossa, no
tativas de dar conteúdo significativo ao trabalho: futuro do Brasil, mil e uma coisas, temas que vinham na minha
"... no começo eu fiquei uma semana trabalhando, na seção da pin­ cabeça eu tentava explorar ao máximo, pra ter que pensar, pra não
tura mesmo... eu acabei uma semana lá e é muito bom... eu gostava ficar pensando no cotidiano, sabe, aí depois eu comecei a mudar de
muito de trabalhar lá porque eu conversava com as meninas, sabe, tática, não vinha mais tema interessante na minha cabeça, eu falei:
era, era gostoso, apesar da monotonia sabe, mas depois eu mudei não, eu vou aprender japonês e comecei a levar livro em japonês...".
para um serviço, nossa, quase morri! Quando me mudaram eu qua­ O tempo na fábrica é precisamente controlado por com-
se morri! Eu ficava numa sala fechada, isso eu fiquei durante os putadores, o que faz com que os sinais soem exatamente nos
três meses, foi definitivo, nê, eu ficava numa salinha fechada só eu mesmos segundos dos dias anteriores. Esta mesma precisão
com a pistolinha de ar e passava as peças, os tanques, nê, sem ser controla a vida de todos os trabalhadores fora da fábrica, apri­
pintados e eu tirava os ciscos, os ciscos invisíveis (risos), tinha uma sionando-os em uma rotina de trabalho desumanizante, que
máquina que fazia a mesma coisa, a máquina jogava o ar assim para acaba por Conduzir o indivíduo a uma vivência depressiva. O
tirar os ciscos do tanque e eu ficava do lado para confirmar a eficá­ tempo fora do trabalho é rigorosamente determinado pelo
cia da máquina... mas era um serviço muito monótono porque não tempo de trabalho; nesse sentido, a vida dos trabalhadores é
tinha ninguém pra conversa{ e eu ficava o dia inteiro, ° dia inteiro dominada integralmente pelo processo produtivo. Assim
mesmo, sabe... ". como dentro da fábrica, nos alojamentos o autoritarismo das
A mudança de local de trabalho anulou a eficácia do me­ normas cumpre a função de manter a disciplina necessária à
canismo de defesa, elaborado coletivamente pelas trabalha­ continuidade da produção intensificada de mercadorias. A
doras. O isolamento imposto pela organização do trabalho despersonificação do indivíduo em favor do adestramento
criou a necessidade de um novo aprendizado, ou seja, uma produtivo contamina as relações dentro e fora do local de

180 o AVESSO 0 0 TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO

'�.......................................
... ..
dos trabalhadores. Em mUItos casos, para se ganhar mais
trabalho, constituindo uma fonte suplementar de sofrimen­
momentos coletivos de descontração, muitos trabalhadores
to. Por esse motivo, segundo o relato do entrevistado A:
optam por reduzir as horas de sono, o que provoca um des­
"... geralmente, quem fica muito tempo no Japão acaba ficando
gaste mais intenso do corpo e da mente. Aquele que recusa
meio esquisito, eu acho que influencia... todo mundo que tá há
o momento de descontração e se retira para o quarto, revela­
muito tempo no Japão tá estranho já... eu diria sabe o que mais
se entregue ao sentimento de depressão. O depoimento da
você nota, frio! O cara fica frio ... sabe, você fica... começa a convi-
entrevistada F ilustra, com clareza, o sentimento de depres­
o ver com esse cara, você convive um ano com ele, o dia que você
são pelo qual passam todos que se submetem à organização
fala que vou embora, o cara só te dá a mão e diz: 'chau' .. .,"

do trabalho:
Com o passar do tempo, todos aprendem que é necessá­
"Todo mundo passou por isso... todo mundo que foi pro Japão,
rio conversar algum tempo antes de dormir, para que não
todo mundo que foi pro Japão tem um abalo emocionaL. todo
fique a impressão de que o dia passou sem momentos de
mundo, sabe, tem uns que é mais forte, comigo eu acho que não é
descontração. Mesmo com o corpo cansado, é importante que
muito forte, eu não fiquei muito, assim, sabe... num pirei, mas todo
haja um momento de descontração. Nesse sentido, o mo­
mundo, todas as ... eu dividia o quarto c?m mais três meninas, nê, e
mento de descontração, antes de dormir, constitui mais uma
uma foi lá pra ficar um ano, outra pra ficar três meses e meio e era
forma de defesa elaborada coletivamente contra a solidão
legal porque a gente conversava bastante e dá pra perceber que,
imposta pela organização do trabalho. O relato do entrevis­
sabe... não tem quem vá pra lá que não chore, que não fique assim
tado A confirma a eficácia desse mecanismo de defesa:
abalada... .
"

"A pior hora pra mim, lá no Japão... era a hora de dormir, porque eu
A vivência depressiva é um sentimento familiar àqueles
tinha que subir pro quarto e eu ficava sozinho, era a pior hora... fazê
que se submetem à organização do trabalho e deve ser com­
o quê? Quando você deita na cama, você fica pensando e quando
batido a todo custo. Entregar-se ao sentimento de depressão
você fica pensando você perde o sono, mesmo cansado... então
significa, em última instância, desistir de viver. Nesse senti­
quando tava todo mundo lá em baixo, ia pro centro, voltava, ficava
do, quando se luta para superar a depressão, luta-se pela pró­
jogando bilhar e tal, você não pensava em nada, a hora que eu subia
pria vida, contra um.perigo real, imposto pela organização do
pro meu quarto, que eu ficava sozinho, aí começava... nossa! Eu tó
trabalho. A luta travada contra o isolamento imposto se tra­
aqui no Japão... .
"

duz pela necessidade de estar sempre acompanhado de ami­


Algumas vezes, o medo vem à tona quando� ao se isolar
gos, ou parentes. Os distúrbios no sono comprovam que os
do grupo à espera do sono, a consciência desperta. Dessa
trabalhadores têm consciência dos riscos e perigos criados
forma, a organização do trabalho provoca distúrbios no sono

C O L E ÇÃ O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O
o AVESSO DO TRABALHO
--
I

pela organização do trabalho, como mostra o entrevistado B constitui parte integrante das condições objetivas de traba­
ao afirmar: lho, atuando no sentido de dar legitimidade às formas sociais
"... você passa por dificuldades pra você aprender com isso, eu acho de exploração e de dominação. Por essa razão, a consciência,
isso positivo, agora, o que não pode é você sucumbir, nê." que emerge das condições reais de vida e de trabalho, tende
O perigo real criado pela organização do trabalho se ex­ a ocultar as reais condições em que são produzidas as rela­
pressa pelo número, não divulgado, de trabalhadores que, ou ções sociais. Esse ocultamento da realidade social define o
foram vítimas de acidentes de trabalho, ou encontram-se pre­ conceito de ideologia.
sos, ou sucumbiram à doença mental, ou morreram repentina­ Permeados por essa ideologia, os discursos dos trabalha­
mente por overdose de trabalho (karoshz), ou se suicidaram, dores tendem a legitimar as condições de exploração e domi­
vencidos pela depressão, ou ainda pelo número indefinido de nação, vivenciadas nas malhas do processo produtivo. Tendo
famílias que vêm se desintegrando ao impacto da organização em vista que a ideologia emerge da consciência de atores en­
do trabalho, como é o caso das famílias dos entrevistados B e volvidos no processo, compreende-se que não lhe cabe o pa­
D. Sob tais condições de trabalho, é compreensível o alto ín­ pel de promover uma ruptura com as relações sociais de
dice de rotatividade da mão-de-obra, ou tum-over. produção; pelo contrário, deve atuar no sentido de promover a
As empreiteiras, na tentativa de conter o alto índice de inserção dos sujeitos nas relações moldadas e determinadas
tum-over, utilizam-se de práticas, como: o individamento dos pela lógica do sistema produtor de mercadorias.
trabalhadores, o parcelamento das despesas e a apreensão A idéia de busca das raízes, os salários percebidos pelos
dos passaportes. Beneficiadas pela ignorância dos trabalha­ trabalhadores como relativamente altos, a vivência da expe­
dores em relação às leis, criam dívidas que aprisionam o in­ riência como uma situação transitória, a imagem de um Bra­
divíduo ao trabalho. Por essa razão, em muitos casos, a luta sil violento e miserável, construída pelos veículos de
pela vida consiste em tentar mudar para um trabalho mais comunicação de massa, e o acesso ao universo fascinante do
leve, ou, como vêm acontecendo em muitos casos, arrumar consumo são alguns dos elementos que fazem parte da reali­
as malas e fugir, deixando o passaporte nas mãos da dade social vivenciada pelos trabalhadores dekassegui e cons­
empreiteira, impossibilitando, assim, o retorno ao Brasil. tituem argumentos sólidos contra a idéia de retornar ao país
de origem. Esses argumentos se fundem em um discurso
o FARDO DAS DUAS IDEOLOGIAS que legitima as condições reais de superexploração da força
As condições materiais de vida e de trabalho determi­ de trabalho, deixando no ar a impressão de que a intensa
nam a consciência dos atores envolvidos. Essa consciência produção de mais-valia ocorre harmoniosamente.

o AVESSO DO TRABALHO C O l E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O
tomas psicossomáticos provocados pela organização do tra­
Mesmo que seja negado pelos atores envolvidos, o fato é
balho, como problemas gástricos generalizados, surgem no
que as condições de trabalho impõem ao conjunto de traba­
discurso dos trabalhadores C, O e E como se tivessem sido
lhadores situações de risco e perigo constantes, que vão des­
provocados por uma eventual má alimentação. Oa mesma
de acidentes com máquinas e materiais tóxicos, até acidentes
forma, os riscos criados pela organização do trabalho à saúde
provocados por fenômenos naturais, como terremotos. Por
física e psíquica devem ser negados sistematicamente, como
outro lado, há também o perigo criado pela organização do
se não existissem.
tr:;lbalho, que tende a condicionar o trabalhador à cadência
Quando falha a ideologia defensiva, deixando em evi­
produtiva, por meio da neutralização do protetor natural do
dência os efeitos perversos inerentes ao trabalho, ela perde
corpo, o aparelho mental.
também a sua funcionalidade e o indivíduo se depara com
00 ponto de vista do estudo de psicopatologia do traba­
todas as adversidades que deveriam ser ocultadas pelo me­
lho, apresentado por Oejours ( 1 992), há uma forma específi­
canismo de defesa. Foi o que aconteceu com o entrevistado
C:;l de ideologia que emerge das situações reais de risco e
E, que se viu desprovido de defesas ao ser isolado pela orga­
perigo: a ideologia defensiva. A ideologia defensiva substi­
nização do trabalho. A sua experiência dramática exemplifica
tui os mecanismos individuais de defesa contra um perigo
o que acontece com o trabalhador quando, diante de uma
real, por essa razão, deve contar com a participação obrigató­
situação de risco e perigo reais, este não participa da ideolo­
ria de todos os envolvidos. Uma ideologia defensiva tem o
gia defensiva.
objetivo de ocultar uma ansiedade particularmente grave e
No período em que trabalhou, o entrevistado E era me­
se dirige contra perigos e riscos reais. Segundo o autor
nor de idade, migrou para o Japão motivado pelo sentimento
" ... é a partir dela que se pode compreender porque um indivíduo
de procura das raízes, razão pela qual não se incomodou com
isolado de seu grupo social se encontra... desprovido de defesas
o salário equivalente ao das trabalhadoras. Em razão de sua
face à realidade a que ele é confrontado." (Dejours, 1 992, p. 36).
pouca idade, foi restrito à jornada de trabalho diurna; tal
A atuação da ideologia defensiva é eficaz a ponto de ocul-
medida segregou-o de ambos os grupos de trabalhadores
tar completamente qualquer indício de medo na fala dos tra­
masculinos, pois trabalhavam em turnos alternados. Não se
balhadores. Entretanto, ela falha quando ocorre um acidente
adaptou à rotina imposta e logo nos primeiros dias apresen­
de trabalho, ou um trabalhador sucumbe à doença psicosso­
tou sintomas fortes de vertigem, gastrite, dores de cabeça e
mática, ou é isolado devido ao tipo de tarefa designada. Nes­
depressão. Acreditava estar intoxicado pela alimentação e por
ses casos, o fato tende a ser visto pela coletividade como um
várias vezes foi levado ao hospital, onde nada era constata-
fenômeno isolado. Encobertos pela ideologia defensiva, sin-

COlEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO


186 o AVESSO 0 0 TRABALHO
do. Retornou para o Brasil sofrendo distúrbios emocionais, sofrimento, proporcionados pelas condições objetivas de
consultou um cardiologista e um clínico geral, que nada cons­ vida e de trabalho.
tataram; por fim, consultou um psiquiatra que, por sua vez, Por essa razão, apesar das adversidades vivenciadas no
recomendou o uso de um calmante e um antidepressivo. interior do processo produtivo, tende-se a considerar o con­
No estudo em questão, é particularmente intensa a pre­ junto da realidade enfrentada a partir de uma perspectiva
sença do elemento ideológico, atuando no sentido de ocul­ positiva, como uma experiência de vida "enriquecedora",
tar as contradições e legitimar as formas sociais d e o que, em certa medida, não deixa de ser verdade. Nesse
dominação e exploração. A interiorização de u m discurso sentido, ao considerar a condição de dekassegui como uma
em defesa do sistema é expressão de uma bem sucedida "experiência válida", elementos subjetivos influem dire­
estratégia de dominação. Compreender como se consoli­ tamente na construção das representações dos trabalha­
da a introjeção da dominação requer um aprofundamento dores, contribuindo para a legitimação das relações de
da análise em torno dos conceitos weberianos de poder e dominação e das formas instituídas de exploração do tra­
dominação. balho.
É freqüente a existência de trabalhadores dekassegui
RESISTÊNCIA À LUZ DOS CONCEITOS DE PODER E que, após um longo período de trabalho, interiorizam o
DOMINAÇÃO discurso dominante a pOnto de se ressentirem quando al­
O acesso à dimensão subjetiva permitiu compreender guém faz uma crítica às condições de vida e de trabalho
que a experiência que se constrói no interior do processo enfrentadas no Japão. Em certa ocasião, durante a expe­
de produção é marcante na vida de cada um dos entrevista­ riência de campo, um dos trabalhadores regulares da fá­
dos e entrevistadas. Porém, para o sujeito que vivencia a brica desaprovou rispidamente certas críticas realizadas
rotina de trabalho, a realidade nem sempre é percebida pelo pesquisador às condições objetivas de trabalho. Ma­
como uma vivência dramática· de dominação e de explora­ nifestou seu ressentimento com frases do tipo: "se não
ção da força de trabalho. A percepção da realidade não é, e agüenta por que veio ? ! " , ou então: "se não está satisfeito
nem pode ser, constituída apenas por experiências trági­ volta para o Brasil!".
cas. Em contrapartida aos momentos difíceis, existem tam­ Quando o domínio do capital se consolida, ajustando o
bém os "bons momentos", momentos de companheirismo, indivíduo às normas e à cadência do processo produtivo,
solidariedade, aventura, prazer e euforia, elementos subje­ obtém-se como produto final da dominação um discurso
tivos que se entrelaçam com os momentos de dificuldade e em favor da empresa. Os discursos cooptados aos interes-

188 o AVESSO DO TRABALHO C O l E Ç Ã O T R A B A L H O E E 1V1 A N C I P A Ç Ã O


ses da empresa evidenciam a interiorização de uma domi­ taturo também estabelece quem e em que medida se deve
nação envolvente, manipulatória e autoritária, fato que nos obedecer. A vigência de um contrato que legitima a domi­
remete a uma análise mais aprofundada das motivações nação racional caracteriza um estado avançado da relação
subjetivas que legitimam a dominação, à luz dos concei­ de dominação legal.
tos de poder e dominação formulados por Max Weber. Os fragmentos do relato do entrevistado A ilustram a
Na concepção de Weber ( 1 987), a oportunidade exis­ maneira como a assinatura de um contrato torna legítima a
tente dentro de uma relação social, de se impor a própria dominação e a exploração do trabalho. No momento em que
vontade a outro(s), mesmo contra resistência, define o con­ lhe foi perguntado se havia alguma queixa com relação às
ceito de "poder". Já o conceito de dominação é mais pre­ condições de trabalho, sua resposta foi imediatamente a se­
ciso, significando a probabilidade de se obter a obediência guinte:
a um determinado comando. A dominação, de acordo com "Não, eu não tenho queixa. Por que eu não tenho queixa? Não vou
o autor, pode ter seus fundamentos em três diferentes mo­ dizer que a fábrica era perfeita, era uma exploração, claro, era puxa­
tivos de submissão: a tradição, o afeto, ou a racionalidade. do, tal, pagava pouco até pelo trabalho, mas eu penso assim: eu fui
Os tipos ideais de dominação legítima não são encontra­ sabendo de todas as condições, então, a partir do momento em que
dos na realidade em sua forma pura, são abstrações utili­ eu aceitei essas condições, eu não posso reclamar, eu posso assim
zadas racionalmente como instrumento teórico que não concordar...".

permite uma aproximação do real. Trata-se de um recurso E m seguida, a condução d a entrevista remeteu a memória
metodológico que tem por finalidade garantir a objetivi­ do depoente ao momento que precedeu o embarque para o
dade do conhecimento. Japão, ainda no aeroporto internacional de Guarulhos, onde
Segundo Weber (1 973), em uma empresa capitalista, cuja todos os trabalhadores assinaram um documento simbólico,
base do fu ncionamento técnico é a disciplina, as relações no qual se comprometiam a não reclamar das condições de
entre dominantes e dominados correspondem ao tipo de trabalho e de moradia. Esse momento representou o início da
dominação racional. O ato de dominar, no contexto de uma relação de dominação nos moldes do tipo de dominação racio­
empresa capitalista, constitui uma ação racional com rela­ nal. No contexto do -modelo japonês, o contrato de trabalho
ção a fins e encontra apoio sobre uma base jurídica na qual assinado é simbólico, em razão da informalidade das formas
se fundamenta a sua legitimidade. Diante de ul)1a domina­ de contratação de mão-de-obra temporária. Apesar da valida­
ção do tipo racional, obtêm-se a obediência dos dominados de do documento assinado ser legalmente nula, no plano sim­
em virtude das regras estabelecidas por um estatuto. O es- bólico continua a cumprir a função de legitimar o poder.

1 9° o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO


"... como que era mesmo (esforço para recordar o conteúdo do do­ alojamentos, o banho sem privacidade, as cãmeras de vídeo
.
cumento assinado)... ah! sim, cumprir os regulamentos da Acade- InstaI ad as, 34 o desconh eciment o das leis, da língua e da

mia e não reclamar de nada... mas você acha que esse termo tem cultura japonesa, formam um conglomerado de elemen­
algum valor? Claro que não! ... Eu assinei, só que... pra você assinar tos racionalmente organizados tendo em vista um objeti­
um documento que tenha validade lá ele tem que tá escrito em vo específico: a obtenção de uma obediência servil e
português e em japonês. E como só tava escrito em português não resignada, dentro e fora do espaço de trabalho. A obediên­
tem validade lá no Japão." cia servil dos corpos adestrados é a condição necessária
A obediência ao comando implica que a autoridade do para se obter a máxima exploração do trabalho, com o con­
dominante seja reconhecida pelo dominado como legítima. sentimento do dominado.
O documento simbólico, mesmo que não possua autentici­ A ampliação do controle sobre a força de trabalho é uma
dade, cumpre a função de tornar legítima a dominação racio­ característica central do modelo japonês e visa transformar
nal sobre os trabalhadores. A dominação pautada nessa sujeitos dotados de individualidade e de subjetividade em
racionalidade com relação a fins vem permitindo ao modelo autômatos polivalentes, constituídos de músculos e ossos. O
japonês produzir, tanto a mais-valia relativa, mediante a in­ domínio é eficaz a ponto de introjetar-Ihes o discurso do sis­
tensificação do trabalho e a redução dos poros da jornada, tema produtor de mercadorias. Entretanto, o êxito da domi­
quanto também volta a produzir a mais-valia absoluta, am­ nação não elimina a existência de formas de resistência ao
pliando a jornada de trabalho por meio da imposição de ho­ trabalho. Existem poros nas malhas da dominação, em que
ras extras compulsórias. se manifestam formas individuais e coletivas de resistência
A exigência de uma postura orientada segundo o espí­ ao trabalho.
rito gambarê, a l i a d a a e l e men tos obje tivos como: a A organização da produção flexível preserva quase que

subcontratação de mão-de-obra imigrante, o contrato sim­ intacta a clássica separação entre concepção e execução do
bólico, a rigidez das normas estatuídas unilateralmente,
34 o entrevistado C foi trabalhador temporário (arubaito) da Suzuki por dois
as modalidades de bônus de freqüência, a dependência anos consecutivos, de 1996 a 1997 e de 1997 a 1998. Segundo seu relato, da
de transporte e m o r a d i a , a vistoria nos q u artos, a segunda vez em que retomou ao Japão, haviam instalado câmeras de vídeo
pelos corredores do alojamento, alegando a necessidade de se solucionar
alternância de turnos, a execução mecânica de tarefas alie­
prob�emas de furtos. A desconfiaça dos trabalhadores em relação aos furtos
nadas, a segmentação dos trabalhadores, a di'lisão sexual
recaiam sobre os próprios funcionários do alojamento, uma vez que mantinham
do trabalho, a polivalência da mão-de-obra, a hierarquia secretamente cópias das chaves dos cofres, onde os trabalhadores guardavam

estabelecida, as relações moldadas, a vigilância oculta nos seus valores.

o AVESSO 0 0 TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO 193

......
w;:: ,u - -- _�m -�

o elaboração de um protesto anônimo, escrito em idioma in­


tagem de um aperfeiçoament
trabalho, acrescentando a van
hecI­ glês e afixado no vestiário do alojamento.JS O ato foi bem
opriação sistemática do con
progressivo, mediante a apr
se­ aceito pelos estudantes brasileiros e compreendido pelos
execução mecânica de uma
mento dos trabalhadores. A

conteúdo significativo ontinu
a trabalhadores húngaros; a repercução do protesto foi maior
qüência de tarefas vazias de
que o esperado. A represália ocorreu no dia 24 de janeiro,
interessante. A reslstenCla ao
fazendo do trabalho algo des
quando um dos monitores, também brasileiro, cumpriu a
formou, ao longo do final do
trabalho desinteressante con
ordem de repreender o gtupo de trabalhadores temporários,
uma instituição histórica, que
século 19 e todo o século 20,
dizendo :
desenvolvimento do modo de
permeou todo o processo de
as
ndo a evolução das tecnologi
se alguém pretende fazer politicagem, é melhor voltar para o
"o..

produção capitalista, orienta


nter a continuidade das rela- Brasil e se filiar à UNE, porque lá é lugar de fazer arruaça... nós
produtivas, no sentido de se ma
somos de um país que ainda tem muita coisa para aprender.. ".
dominação.
ções sociais de produção e de
.

, . Inicialmente, a experiência de campo foi programada para


e do alo jam ent o, as pra ticas de
No cot idia no da fábrica
s um período de três meses de duração, do dia 1 9 de dezem­
meio de condutas ind ivid uai
resistência se expressam por
ou ass u­ bro ao dia 20 de março. Em razão das condições dramáticas
c col etiv as. Pod em
pos sui r um a eficácia de fato,
mei o de exploração e dominação, o pesquisador optou por anteci­
mir em a forma de uma man ifestação sim bóli ca. Em
al, grand e parte par a data de retorno para o dia 1 o de março, após ter quitado
ao domínio conso lidad o por parte do capit
das práticas de resistência não visam o controle do pro­ todas as dívidas contraídas. A agência de turismo ligada à

cesso produtivo, mas limita m-se a amenizar as formas de empreiteira e encarregada pelas passagens do grupo de tra­
.
exploração e o desgaste acent uado do corpo e da mente balhadores designou um funcionário para informar pessoal­

Tod o comp ortam ento que visa rompe r com a homo ­ mente que não seria possível antecipar a data de retorno, em

geneização impos ta pela organização do trabalho, ou de razão da indisponibilidade de vagas no vôo do dia 10 de mar-

algum modo se opor às formas de domin ação, consti tui 3S o protesto surgiu em razão da pouca quantidade e da má qualidade da
um ato de resistência. alimentação servida apenas aos estudantes brasileiros. Escrito a caneta em

No caso do pesquisador em campo, uma das manifesta­ folha de papel, o protesto dizia: "ln 1945 the United States ofAmerica dropped
tWQ atomic bombs over tWQ japaneses cities, killing many japaneses faroilies.
ções simbólicas adotada foi a decisão de quase nunca lavar
Now a day, all Japan loves the 'american way' and try to speak english. ln the
o uniforme da empresa, uma vez que para layar as roupas past Brazil received many japaneses families, but now the japaneses hate the
sujas de graxa era necessário pagar. Outra medida tomada brazilians. Is it intelligent?". No dia seguinte, a qualidade da comida foi
equiparada à dos japoneses.
individualmente, no dia 22 de janeiro de 1997, consistiu na

I
o AVESSO DO TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO � 95
19 4

..........................
... .............J
ço. Só seriam alteradas as datas daqueles que pretendessem to" de trabalho, 27 de fevereiro de 1997. O dia 28 de feverei­
prolongar a estadia no Japão. ro serviu para um último passeio pelas ruas de Hamamatsu.
Ao contactar diretamente a JAL (Japan Air Lines), no dia Na madrugada do dia Io de março, um ônibus a serviço da
4 de fevereiro, descobriu-se a falsidade da informação trans­ empreiteira conduziu o pesquisador, juntamente com um
mitida pela agência de turismo. Segundo a empresa aérea, grupo de trabalhadores temporários, rumo ao Aeroporto de
haviam muitas vagas disponíveis no vôo do dia I o de março. Narita, onde um vôo doméstico levaria o grupo para o aero­
A alteração da data de embarque foi efetuada sem o consen­ porto internacional de Nagóia. Ainda no Aeroporto de Narita,
timento da empreiteira, diretamente com a empresa aérea. em meio ao tumulto da fila de embarque, uma voz desco­
No dia 7 de fevereiro, a empreite ira descobriu a alteração da nhecida vinda de um casal brincou com o pesquisador, di­
data de embarque, designando um dos chefes (catyo) para zendo em português: "quase que você fica, hemr'. Sem ter
repreender a atitude do investigador. conhecimento, o grupo de trabalhadores estava sendo vigia­
Durante o trabalho, o pesquisador foi chamado para se do por esse casal desconhecido, provavelmente contratados
apresentar à seção dos chefes, quanto ameaças foram feitas pela empreiteira, ou pela agência de turismo.
por um dos chefes catyo, no intuito de fazer com que se vol­ Antecipar a data de retorno para o Brasil assumiu a dimen­
tasse atrás na decisão de antecipar a partida. As ameaças fo­ são de uma verdadeira luta individual e coletiva contra a orga­
ram três: 1 ') O pesquisador não receberia o "Certificate of nização do trabalho. O êxito na antecipação da data de
Practice and Training'; 2') O ônibus da empresa não conduzi­ embarque foi vivenciado pelo pesquisador e seus companhei­
ria o pesquisador até o Aeroporto de Narita, o que represen­ ros como uma vitória contra o autoritarismo da organização do
taria uma certa dificuldade de locomoção, uma vez que o trabalho. Por essa razão, da perspectiva simultânea de sujeito
pesquisador desconhece o idioma japonês; e 3') o encerra­ investigador e objeto de investigação, o próprio ato de pesquisar
mento da folha de pagamento seria efetuado no dia 27 de adquire o caráter de uma prática de resistência contra a opres­
fevereiro, fazendo com que o pesquisador perdesse uma são do trabalho. Trazer à tona as formas de dominação e as
quantia, ínfima, de cinco mil ienes, referente a uma parcela práticas de resistência por meio da fala dos próprios sujeitos
do bônus de freqüência ao trabalho. consiste numa tentativa de desideologização das consciências,
O pesquisador permaneceu irredutível diante das amea­ que permita um reposicionamento dos trabalhadores e traba­
ças. Das três ameaças realizadas, apenas a terceiraJoi levada lhadoras diante da realidade opressora em que se encontram.
adiante. No "Certificate of Practice and Training' concedido Durante a experiência de campo e por meio dos relatos
pela empreiteira consta a data de encerramento do "contra- obtidos, pode ser constatada a existência de uma grande va-

o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO 197


riedade de formas de resistência ao trabalho, que vanam desses atores vem se estruturando no interior do processo
desde faltas coletiva mente organiz adas por segmen tos produtivo. As práticas de resistência traduzem a forma como
minoritários de mulheres e trabalhadores temporários, até vem se dando a interação dos trabalhadores dekassegui com o
fugas, sabotagens na produção, desvio de peças, desperdícios, autoritarismo das normas criadas pela organização do traba­
brincadeiras organizadas coletivamente e pequenas burlas lho. O advento do modelo japonês, ou "toyotismo", como
transmitidas oralmente entre os trabalhadores, como, por padrão inovador de organização do trabalho e da produção,
exemplo, ligar o aquecedor do alojamento com alfinetes, ou não conseguiu erradicar do processo produtivo as práticas de
a máquina de lavar roupas com pedaços de arame. resistência, que persistem entre os trabalhadores industriais
As refeições realizadas no local de trabalho, em vez de no desde o final do século 1 9 até os dias de hoje.
refeitório, também adquirem o caráter de resistência coleti­
va, visando ampliar o momento de descanso e romper com a CONSIDERAÇÕES FINAIS
homogeneização das condutas, imposta pela organização do No atual contexto produtivo, entretanto, as práticas de re­
trabalho. O espírito da malandragem presente na cultura bra­ sistência ao trabalho não suscitam uma mobilização política
sileira, e assimilado pelos nikkeis, também constitui um efi­ entre os trabalhadores e dessa forma não aspiram romper as
caz instrumento de resistência, invocado pelos trabalhadores relações sociais de produção. Estas práticas atuam no sentido
contra o rigor das normas japonesas. Na seção onde o pes­ de perpetuá-Ias, tornando-as suportáveis. Por essa razão, as
quisador foi inserido, os trabalhadores regulares eram jovens motivações subjetivas do consentimento tem aqui um papel
na faixa etária de dezessete a vinte e quatro anos. Nessa se­ decisivo para a compreensão, tanto do sentido da resistência
ção, os trabalhadores divertiam-se realizando brincadeiras ao trabalho, quanto das estratégias defensivas levantadas co­
infantis, ao mesmo tempo em que trabalhavam. A brincadei­ letivamente contra um sofrimento psíquico que impele o tra­
ra consistia numa estratégia coletiva para tornar suportável a balhador à loucura e à descompensação psíquica.
rotina de trabalho. Para tornar compreensível o sentido da resistência ao tra­
Tais formas de resistência ao trabalho sobrevivem em balho, no contexto da reestruturação produtiva, é preciso
meio ao sofisticado sistema de vigilância individual, criado considerar que, ainda hoje, a divisão social do trabalho - no
pelo modelo japonês. O conjunto dessas práticas constituem momento em que institui a separação entre a força de traba­
um saber coletivo, que visa tornar suportável a� condições lho e os meios sociais necessários à produção, promovendo
objetivas de dominação e exploração da força de trabalho. assim o que Marx definiu como alienação do trabalho - dá
Sob condições historicamente determinadas, a experiência início a uma relação de estranhamento entre o sujeito que

o AVESSO 0 0 TRABALH O C O l E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I P AÇ Ã O
trabalha e o produro de seu trabalho. A partir dessa relação A despersonalização do indivíduo em favor de um ades­
de estranhamento, instituída pela alienação do trabalho, tem tramento produtivo, a depredação da força de trabalho, o efi­
início um duplo processo, de fetichização da mercadoria e ciente controle que recai sobre os trabalhadores dentro e fora
de reificação do trabalhador. da fábrica e a interiorização de uma dominação envolvente,
O fetiche da mercadoria é inerente à produção capita­ manipulatória e autoritária, manifesta no relato dos entrevis­
lista e diz respeito ao fenômeno através do qual o produto tados, traduzem o grau de coisificação ao qual são submeti­
do trabalho sofre um processo de subjetivação, adquirindo dos esses trabalhadores, no interior do processo produtivo. A
a aparência de objeto de encanto e desejo, aos olhos do informalidade das formas de contratação de mão-de-obra
trabalhador, que também é um consumidor. "Esse caráter imigrante e a intensa depredação da saúde física e psíquica
fetichista do mundo das mercadorias provém... do caráter também atribuem à mercadoria "força de trabalho" o caráter
social peculiar do trabalho que produz mercadorias." (Marx, de uma "coisa descartável", seguindo dessa forma a lógica
1985, p. 7 1 ) contemporânea do sistema que produz mercadorias.
Como decorrência dessa fetichização d o produto do tra­ É contra esse processo de depredação e de objetivação
balho, ocorre, inversamente, a coisificação das relações sociais; do sujeito que se levantam, de modo consciente ou não, o
em outras palavras, a alienação do trabalho objetiva o sujeito conjunto das práticas de resistência operária. A análise da
que trabalha, reduzindo-o ao estatuto de mercadoria, ou seja, dimensão subjetiva do ser comum, imerso na vida cotidia­
" força de trabalho" " , paga pelo seu valor d e troca e na, ensina que o mundo do trabalho instaurado pelas rela­
consumida até a exaustão, enquanto valor de uso, como tra­ ções capitalistas de produção não é apenas um mundo de
balho objetivado. carências materiais. Trata-se, antes de mais nada, de um
mundo carente de sentido. E é por isso que o indivíduo, no

36 "Por força de trabalho ou capacidade de trabalho entendemos o conjunto das trabalho, resiste e se debate. Porque, imerso na vida cotidia­
faculdades físicas e espirituais que existem na corporalidade, na personalidade na, sua identidade deixa de lhe pertencer. Por isso ele se
viva de um homem e que ele põe e� movimento toda vez que produz valores de
debate, exatamente para dar sentido àquilo cujo sentido
uso de qualquer espécie." Segundo Marx, para que se encontre à disposição no
mercado a força de trabalho como mercadoria, diversas condições precisam ser
lhe escapa. E lhe escapa porque lhe foi retirada a capacida­
preenchidas. "0.0 a força de trabalho como mercadoria só pode aparecer no mercado de de compreender o seu estranhamento e de lidar com
o •• vendida como mercadoria por seu próprio possuidor o •• livre proprietário de sua
ele, pois a fábrica é fundamentalmente "o lugar original de
capacidade de trabalho " 0 [Essa} relação exige que o proprietário da força de
trabalho só a venda por determinado tempo, pois ... se a vende ... de uma vez
produção da alienação, do conformismo e do medo".
transformawse ... em um escravo..." (Marx, 1985, p. 139). (Martins, 2000, p. 165)

200 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO 201


o estudo de psico dinâmica do trabalho tem um papel subjetivas, não deixam de ter conseqüências importantes para
importante para a análise do sofrimento psíquico no mundo a mobilização coletiva e política. Por essa razão, é de vital
contemporâneo. A partir de estudos clínicos e sondagens rea­ importância a análise da subjetividade no trabalho, tanto para
lizadas na França, a pesquisa constatou que, embora as con­ se compreender a atual situação de impotência da classe ope­
dições objetivas de trabalho empurrem os trabalhadores rumo rária, quanto para se diminuir o descompasso entre as novas
à descompensação psíquica e à doença mental, o que ocorre tecnologias de gestão e a possibilidade de resistir contra esse
na maioria dos casos é que eles permanecem na normalida­ ptocesso.
de. Dessa forma, é a própria "normalidade" que se torna
enigmática. Esse estado de normalidade não significa a ausên­
cia do sofrimento psíquico. A indagação principal, a partir de
então, passa a ser: como fazem eles para não enlouquecer,
sendo que a organização do trabalho leva-os nesta direção?
(Dejours, 2000)
A razão disso está na elaboração coletiva de estratégias
de defesa. Essas estratégi as coletivas cumprem um duplo
papel: tornam as condições de trabalho suportáveis, ao mes­
mo tempo em que ocultam o sofrimento e o perigo imposto
por essas condições. A estratégia coletiva de defesa exige
este ocultamento da realidade, constituindo assim uma ideo­
logia defensiva. Nesse sentido, esse trabalho de investiga­
ção constitui um esforço para romper com esse silêncio
estratégico, uma forma de elucidar esses mecanismos racio­
nais de dominação, que manipulam as relações sociais tendo
em vista um conhecimento da dinâmica da dimensão subje­
tiva do trabalho.
Nesse novo contexto, em razão da manipulação da sub­
jetividade dos trabalhadores, aqueles que tentam lutar de­
param-se com situações e dificuldades que, mesmo sendo

202 o AVESSO DO TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO 203


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no Brasil contemporâneo: Programa internacional de avaliação e acom­ política mundial, que Eric Hobsbawm denomina "décadas
panhamento das migrações internacionais no Brasil. Vai I. São Paulo,
de crise",38 um amplo processo de reestrururação do capital
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VOLKOFF, S. "O Tempo, a Saúde, a Seleção: 'Três Questões Relativas
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Trabalho. São Paulo, Edusp - Aliança Cultural Brasil - Japão, 1 993,
J7 Professora no Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade
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Federal de Santa Catarina com bolsa de Recém-Doutor pelo CNPq, autora de
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pp. 7-34. M. Santarrita; revisão técnica M. C. Paoli. 2a ed., São Paulo, Companhia das
Letras, 1997.
39 Esse movimento contemporâneo de reorganização do capital é interpretado
por diversos pensadores como expressão de uma crise capitalista profunda,
de dimensão estrutural, e dos mecanismos engendrados na tentativa de sua

206 o AVESSO DO TRABALHO


As transformações em curso no capitalismo mundial, que sociais que pensam esses movimentos, deflagrados em "um
resultam em um novo conjunto de relações internacionais e período de rápida mudança, de fluidez e de incerteza", nas
locais, atingem todas as esferas da vida social e se traduzem palavras de David Harvey. O autor, apontando alguns dile­
em mudanças na configuração espacial dos processos de acu­ mas teóricos para a apreensão da lógica desse processo, su­
mulação de capital, na organização da produção e do consu­ gere que talvez o capitalismo esteja em um momento de
mo e no sistema de dominação política e ideológica do capital. transição entre um modo de acumulação de capital fordista­
A expansão sem precedentes dos mercados monetários in­ keynesiano e um novo regime de acumulação, chamado pro­
ternacionais e o domínio da esfera financeira no movimento visoriamente de "acumulação flexível":
geral do capitalismo, a introdução de agressivas modalida­ Não está claro se os novos sistemas de produção e de marketi
ng,
des produtivas para alcançar a máxima intensificação do tra­ caracterizados por processos de trabalho e mercados mais flexíve
is ,

balho, assim como as políticas de liberalização do comércio, de mobilidade geográfica e de rápidas mudanças nas práticas de
de privatização do Estado e de ataque aos direitos do traba­ consumo garantem ou não o título de um novo regime de acumula­
lho e à organização sindical são expressões da reestruturação ção ( ...). Há sempre o perigo de confundir as mudanças transitórias
e da mundialização contemporâneas do capital. e efêmeras com as transformações de natureza mais fundamental
A natureza da atual crise capitalista e o significado das da vida poIítico-econômica. Mas os contrastes entre as práticas po­
transformações econômicas, sociais, culturais, políticas e ideo­ lítíco-econômicas d a atualidade e as do período de expansão do
lógicas que afetam a dinâmica do capitalismo contemporâ­ pós-guerra são suficientemente significativos para tornar a hipóte­
neo têm sido objeto de muitas controvérsias entre os cientistas se de uma passagem do fordismo para o que poderia ser chamado
regime de acumulação "flexível" uma reveladora maneira de ca­
superação. Ver MÉSZÁROS, I. Beyond capital. London: Medin Press, 1995 racterizar a história recente.40
(edição brasileira: Para Além do Capital, Ed. da Unicamp/Boitempo, 2002); No âmbito produtivo, a acumulação "flexível" combina for­
CHESNAIS, F. A mundialização do capital, tradução de S. Foá, São Paulo,
mas sofisticadas de apropriação de mais-valia - apoiadas na
Xamã, 1996; TEIXEIRA, E "Modernidade e crise: reestruturação capitalista
ou fim do capitalismo?", in: F. Teixeira e M. Oliveira (orgs.). Neoliberalismo
teleinformática e em práticas de controle e gestão do trabalho
e reestruturação produtiva: as novas determinações do mundo do trabalho. que mistificam e obscurecem os mecanismos de dominação do
São Paulo, Cortez; Fortaleza, Universidade Estadual do Ceará, 1996;
capital - com formas mais antigas, baseadas no prolongamento
BRENNER, R. "A Crise emergente do capitalismo mundial: do neoliberalismo
à depressão?", Outubro - Revista do Instituto de Estudos Soêialistas, n° 3,
São Paulo, Xamã, 1999; ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre 40 HARVEY, D. Condição pós-moderna, tradução de A. Sobral e S. Gonçalves,
a afirmação e a negação do trabalho. 3" edição, São Paulo, Boitempo, 2000. 2' ed., São Paulo, Loyola, 1993. p. 119.

208 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO


da jornada de trabalho e no arrocho salarial, incrementando e financiamento das economias, tanto em países industrializa­
aperfeiçoando a exploração capitalista do trabalho. dos quanto naqueles situados na periferia do capitalismo
Os bancários, corno milhões de trabalhadores atingidos mundial.
pela reestruturação contemporânea do capital, experimen­ Itzhak Swary e Barry Topf destacam a adoção de medidas
tam a instabilidade do emprego e a intensificação do traba­ de desmantelamento da regulamentação protetora dos siste­
lho na sua vida cotidiana. Todavia, enquanto segmento da mas financeiros nacionais, no contexto de liberalização eco­
classe trabalhadora diretamente vinculado aos movimentos nõmica, como fator importante dc aumento da vulnerabilidade
comandados pelo capital financeiro - lidando na sua ativida­ dos bancos. Segundo os autores, a desregulamentação expôs
de diária com essa fração do capital que se valoriza conser­ os sistemas bancários nacionais à concorrência de grandes gru­
vando a forma dinheiro - os bancários vivem de modo singular pos financeiros estrangeiros e de instituições não bancárias,
as transformações do capitalismo mundializado. que concentram elevadíssimas somas de capital monetário e
se tornam centrais nos movimentos contemporâneos de ex­
ELEMENTOS DA REESTRUTURAÇÃO NOS BANCOS pansão financeira.42
Um processo intenso de reorganização operacional e do De fato, na realidade capitalista que François Chesnais
trabalho desenvolve-se nos bancos para moldá-los ao modo qualificou de "regime de acumulação mundial predominan­
através do qual o capital se reproduz na atualidade. Isso por­ temente financeiro" ,43 os bancos não são mais as instituições
que os movimentos recentes de liberalização econômica, dominantes. Agora, os grandes investidores institucionais e
desregulamentação e mundialização do capital, que conver­ organizações financeiras não bancárias - tais como os fundos
teram o sistema financeiro internacional em um "mega-mer­ de pensão e as sociedades de investimento coletivo - lide­
cad o único de dinheiro", tiveram um efeiro desestabilizador ram as transações nos mercados monetários mundiais.
nos sistemas bancários nacionais. Como assinala Dominique Portanto, é para enfrentar esse atual ambiente finan­
Plihon:' a natureza especulativa do sistema financeiro inter­ ceiro e a intensificação da concorrência nos mercados na-
nacional e sua frágil relação com a esfera produtiva ocasiona­
ram uma forte queda na participação dos bancos no 42 SWARY, L e TOPF, B. La desregu[aciónjinancieraglobal: la banca comercial
en la encrucijada. México, Fondo de Cultura Económica, 1993, pp. 544-6.
41
f
PLIHON, D. "Desequilíbrios mundiais e instabilidade inanceira: a 43 CHESNAIS, F. A mundializaçãofinanceira: gênese, custos e riscos, São Paulo,
responsabilidade das políticas liberais. um ponto de vista keynesiano", in: F. Xamã, 1999. Ver também «A emergência de um regime de acumulação mundial
Chesnais, A mundialização financeira: gênese, custos e riscos, tradução de predominantemente financeiro", Praga - Estudos Marxistas, nO 3, São Paulo,
C. Caccicarro et alii, São Paulo, Xamã, 1999. Hucitec, 1997.

210 o AVESSO DO TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO 211


iE

um processo elevado d e educação formal e alta capacitação técnica no


cionais e internacionais que se dese ncad eia
diversos paí­ setor bancário mundial, enquanto se reduz a participação
de reestruturação dos sistemas bancários em
1980 . Por um de trabalhadores em funções administrativas, considera­
ses do mundo capitalista, desde os anos de
e a centrali­ das menos qualificadas do ponto de vista da divisão capi­
lado, esse processo estimula a concentração
i q u i daçõ es, talista do trabalho.
zaçã o de capi tal no setor , ao prom over l
os. Por ou­ Diversos estudos sobre os sistemas financeiros de países
privatizações, fusões ou incorporações de banc
acion al das capitalistas centrais detectam um deslocamento das ativida­
tro, impl ica em uma redefinição do perfil oper
mercados de des administrativas para as comerciais nos bancos, privilegiando
instituições bancárias, que se volta m para os
te espe cula­ o contato com o cliente e sofisticando a prestação de serviços
capit al, dese nvol vend o ativi dade s pura men
ando novos financeiros. Marnix Dressen e Dominique Roux-Rossi, ao
tivas, diversificando serviços e prod utos, utiliz
esses movI­ analisarem transformações recentes nos bancos franceses, des­
instrumentos financeiros. Ao mesmo tempo,
reorganização tacam o "declínio da cultura administrativa", baseada em ta­
mentos são acompanhados de med idas de
de trabalho refas rotineiras e no tratamento impessoal, em favor da "cultura
produtiva que mud am as relações e condições
contin­
e significam precarização do emprego para grande do bancário em contato com o cliente", o bancário-vendedor.
'
gente dos assalariados bancários. Os bancos franceses, objetivando desenvolver sua ação nos
Segundo enfatiza estudo da Organização Internacio­ negócios e na venda de "produtos" e serviços, automatizam,
nal do Trabalho,44 a crescente concorrência nos mercados terceirizam ou integram às atividades de vendas grande quan­
monetários compele os bancos a se converterem em "em­ tidade de tarefas administrativas.45
presas dinâmicas", orientadas para os negócios. Nessa pers­ No Brasil e em outros países da América Latina, a reorga­
pectiva, a concepção de novos produtos bancários, o nização dos sistemas financeiros nacionais desenvolveu-se
desenvolvimento tecnológico e o maior investimento na no contexto da adoção de medidas de liberalização comercial,
qualificação da força de trabalho são pilares essenciais das desregulamentação financeira e privatização da economia,
opções mercadológicas dos bancos. A OIT aponta a ten­ ao longo dos anos de 1 990. Tais medidas, que permitiram
dência de aumento na proporção de pessoal com grau mais uma significativa ampliação dos fluxos de capitais estrangei-

44 OIT _ Organização Internacional do Trabalho. Los bancos multinacionales y 45 DRESSEN, M. et ROUX-ROSSI, D. Restructuration des banques et devenir

sus prácticas sociales y laborales. Madrid, Ministerio de Trabajo y Seguridad des salariés, Paris, La Documentation Française, 1996, Collection Cahier
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212 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO '213


ros na região, atrelavam cada vez mais as políticas econômi­ çava 33, 1 1 %.47 Estudo da Associação Nacional das Institui­
cas e monetárias desses países aos dinamismos das economias ções de Mercado Aberto (ANDIMA) segue na mesma di­
hegemônicas e os inseriam, de modo subordinado, aos movi­ reção, mostrando que entre os dez maiores bancos privados
mentos da mundialização financeira. do setor, em março de 2001, seis eram controlados pelo ca­
Como assinalam Cristina Freitas e Daniela Prates,"" no pital estrangeiro. Essa crescente participação externa no se­
decorrer da década observou-se uma forte expansão de gru­ tor decorreu, especialmente, da aquisição e/ou incorporação
pos financeiros estrangeiros na América Latina, viabilizada de bancos privados nacionais e de instituições estatais.48
pelas políticas de abertura econômica e estimulada pela pres­ Como informam os dados do Banco Central, o fortaleci­
são concorrencial nos mercados financeiros mundiais. Tomava mento do capital estrangeiro foi acompanhado por um enco­
vulto um processo de fortalecimento do grande capital pri­ �
lhim nto dos segmentos privado nacional e público, cuja
vado transnacional nos sistemas bancários de países da re­ pamclpação no total de ativos do sistema recuou de 56,85%%
gião, com o aumento expressivo da participação estrangeira para 42,56% e de 33, 53% para 24,33%, respectivamente, en­
nesses sistemas, o recrudescimento da concentração e da tre 1988 e 2000. No que concerne aos bancos públicos, essa
centralização de capital no setor e o desenvolvimento de pro­ participação permanece relativamente elevada, apesar do in­
gramas de privatização de instituições bancárias estatais. tenso processo de privatização e de liquidação de instituições
No sistema bancário brasileiro, os movimentos recen­ que reduziu de modo drástico o sistema estatal bancário,'9 em
tes que levam a um crescente poder do capital privado
transnacional ficam muito evidentes quando observamos 47 Banco Central do Brasil, Relatório especial: Bancos brasileiros de dezembro!
1988 a dezembro/2000 - O Sistema Financeiro Nacional de 1989 a 2000, in:
os dados contidos em relatório do Banco Central sobre a
www: 4.bcb.gob.br/deorf/e88-2000 I texto htm.
participação dos bancos no total dos ativos do sistema, en­ 48 ANDIMA"': Associação Nacional das Instituições de Mercado Aberto. O novo
tre 1988 e 2000. Segundo o relatório, em dezembro de 1988 peifil do sistema financeiro, Rio de Janeiro, Andima, 200l .
49 Dos 29 bancos federais e estaduais componentes do sistema bancário estatal
os bancos com controle estrangeiro no Brasil respondiam
brasileiro em 1988, restavam 16 em dezembro de 2000, de acordo com dados
por 9,62% dos ativos totais do sistema bancário nacional, do Banco Central. A privatização do Banco Estadual de São Paulo - Banespa,
enquanto que no final do ano 2000 esse percentual alcan- maior instituição bancária do sistema estadual, dificultada por um movimento
forte e contínuo de resistência dos banespianos, organizado pelo Sindicato
dos Bancários de São Paulo e pela Associação dos Funcionários do Banco do
Estado de São Paulo (AFUBESP), foi finalmente concretizada em novembro
46 FREITAS, M. C. e PRATES, D. "Abertura financeira na América Latina: as
de 2000, quando a instituição foi adquirida em leilão pelo grande grupo
experiências da Argentina, Brasil e México", Revista Economia e Sociedade,
financeiro estrangeiro Santander.
I I . Campinas. dezembro de 1998. pp. 185-6.

o AVESSO DO TRABALHO C O L EÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO


2 14
razão da presença do Banco do Brasil e da Caixa Econômica quantitativos e qualitativos da situação das empresas privadas na­
Federal, que representam mais de 25% do total dos ativos do cionais. Uma vez que o capital estrangeiro utiliza o seu Estado na­
setor bancário. cional como um instrumento poIítico-díplomático-econômico de
Em análise das implicações da mundialização financeira pressão para alcançar seus objetivos econômicos, a desnacionalização
sobre a representação de classe do empresariado financeiro, aumenta a vulnerabilidade externa do Brasil e compromete a sobe­
Ary Minella assinala que o grau de concentração de recursos rania nacional. "5 !
no país sob controle de alguns grandes grupos financeiros Especialmente após a implementação do programa de
privados confere a esses grupos, não apenas o poder econô­ estabilização monetária conhecido como "Plano Real", em
mico de gerenciar um gigantesco fluxo de capital, mas tam­ meados dos anos de 1 990, aprofundou-se a reestruturação
bém poder político quanto à definição de p o líticas do sistema bancário brasileiro." De modo semelhante aos
macroeconômicas.50 processos desencadeados nos países capitalistas centrais ao
Reinaldo Gonçalves também relaciona a concentração de longo da década de 1980, no Brasil os "ajustes" no sistema
poder econômico e político com a concentração de capital e bancário direcionam-se para a redução de custos operacionais
o crescimento dos fluxos de capital estrangeiro no país, na - apoiada na intensificação tecnológica e na terceirização _ e
última década. Segundo o autor, durante o governo de a concepção de novas estratégias mercadológicas, baseadas
Fernando Henrique Cardoso ( 1 995-2002), o país experimen­ na diversificação e sofisticação de produtos e serviços.53
tou um processo veloz e profundo de privatização e de Numa conjuntura de estabilização monetária relativa e
"desnacionalização da economia brasileira", que fortalece o de intensificação da concorrência, especialmente em face da
poder econômico e político do grande capital privado presença de grandes grupos financeiros internacionais no
transnacional. Nas suas palavras: mercado interno, a expansão das atividades de negócios con-
"A maior presença de empresas estrangeiras na economia brasilei­
ra significa uma mudança na correlação de forças políticas nosfronts 5 1 GONÇALVES, R. Globalização e desnacionalização, São Paulo, Paz e Terra,
1999. p. 197.
interno e externo. Essas empresas têm fontes externas de poder
52 Para um maior detalhamento da reestruturação no sistema financeiro brasileiro
que lhes fornecem uma 'alavancagem política', distinta em termos dos anos 90, consultar MlNELLA, A. "Elites financeiras, sistema financeiro
e governo FHC", in W. Rampinelli e N. Ouriques (orgs.). Nofio da navalha ­
crítica das reformas neoliberais de FHC. 2" edição, São Paulo, Xamã, 1998.
50 MINELLA, A. "Globalização financeira e as associações de baôéos na América 53 RODRIGUES, A. "O emprego bancário no Brasil e a dinâmica setorial (1990
Latina", Seminário Interno do Programa de Pós-Graduação em Sociologia a 1997)". Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Economia,
Política. Florianópolis, UFSe. 2002. pue. São Paulo, 1999. p. 35.

21 6 o AVESSO 0 0 TRABA L H O COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO 217


verteu-se em condição imprescindível de sobrevivência dos caixas automáticos, internet e sistemas homebanking5S _ e a
bancos, segundo a interpretação de banqueiros e assessores progressiva substituição do "papel-dinheiro" pelo cartão
da área. Paralelamente, instituem-se ajustes organizacionais magnético, convertem as agências em lojas informatizadas
fundamentados na tecnologia informacional e microele­ de "produtos" e serviços financeiros.
trónica, em práticas flexíveis de remuneração e de contratação As mudanças nas condições de trabalho repercutem tam­
da força de trabalho e na adoção de programas de "qualidade bém nos traços constitutivos dos bancários, enquanto cate­
total". Tais movimentos de reorganização produtiva impli­ goria profissional. As medidas de reesttuturação dos bancos
cam profundas modificações nos ambientes laborais das ins­ excluem, com maior freqüência, os trabalhadores considera­
tituições financeiras, afetando dramaticamente o emprego dos menos qualificados ou não adaptados aos princípios em­
bancário e hipertrofiando uma população trabalhadora exce­ presariais d a "qualidade total" e da "excelência" do
dente no setor. Dos cerca de um milhão de bancários regu­ atendimento ao cliente. Vão sendo demitidos, prioritaria­
larmente contratados no setor, em meados da década de 1 980, mente, os bancários responsáveis por tarefas de infra-estru­
restavam cerca de 388 mil ao término do ano 2000, segundo tura de apoio ou d e atendimento simplificado, postos de
dados do DIEESE.54 trabalho que são continuamente substituídos por máquinas
De fa to, a s potencial idades d o desenvolvimento automatizadas ou por trabalhadores subcontratados pelos
tecnológico e científico da atualidade são revertidas em sim­ processos de terceirização. Simultaneamente, são valoriza­
ples ferramentas das estratégias de mercado e de reorganiza­ dos os profissionais com capacidade de gerenciamento, há­
ção do trabalho no âmbito bancário. Com o suporte beis em vendas e capazes de compreender os movimentos
teleinformático, desativam-se os grandes centros d e do mercado financeiro, aptos a um atendimento personali­
processamento d e dados, de serviços e de compensação que zado aos clientes preferenciais dos bancos, com alto rendi­
reuniam numerosos contingentes assalariados nos anos de mento e potencial investidor.
1 960, 1970 e de 1980. Paralelamente, o movimento de mi­ A atual ênfase dos bancos na "excelência" do atendimen­
gração do tradicional atendimento nas agências bancárias para to, como forma de diferenciação mercado lógica e na venda
o atendimento eletrónico - através de centrais telefónicas, de "produtos" e serviços financeiros como importante me­
canismo d e rentabilidade, se faz acompanhar d e uma

54 DIEESE _ Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio­


Económicos, Linha Bancários. Seter Financeiro: conjuntura, resultados, 55 Sistemas eletrônicos que permitem a conexão do computador do cliente ao do

remuneração e emprego, São Paulo, 2001, mimeo. banco.

218 o AVESSO D O TRABA L H O COlEÇÃO TRABA L H O E EMANCIPAÇÀO 219


pontos de atendimento, disseminan
redefinição da identidade profissional do bancário alocado do o ·medo e a ansiedade
nos locais de trabalho, Em particular,
nas agências, postos e centrais de atendimento. Ele conver­ a implementação de pro­
gramas de pressão à aposentadoria
te-se em bancário-vendedor, que deverá estar capacitado a ou demissão - Programa
de Desligamento Voluntário (PDV)
um atendimento integral ao cliente. Seja compondo equi­ - e as transferências arbi­
trárias de bancários converteram-se
pes, seja atuando individualmente, os bancários-vendedores em instrumento impor­
tante de redução da força de trabalho
são compelidos a vender títulos, seguros, aplicações e todos ali empregada e do
desmonte do setor bancário estatal no
os demais "produtos" e serviços disponibilizados, mediante país.
6 Ao ana lisar características essencia
metas impostas pela administração dos bancos. 5 is da atual reestru­
Nas instituições bancárias estatais, sucessivas medidas de turação nos bancos, Liliana Segnini
destaca os seguintes fe­
reorganização produtiva destinam-se a convertê-las em em­ nômenos sociais como suas principa
is marcas:
presas lucrativas, adaptadas ao cenário de mundialização fi­ -alto tÍldice de desemprego, como conseqüê
ncia de práticas gerenciais
nanceira, atraentes ao capital privado transnacional. É um relativas à flexibilização funcional do trab
alho, reduç-ao de nIVelS • .

movimento que, em geral, antecede os processos d e hierárquicos e política tecnológica direc


ionada para a diminuição
privatização desses bancos, n o quadro d a desmontagem do de pOStos de trabalho e o aumento da prod
utividade;
sistema bancário estatal brasileiro implementada no gover­ - terceirização eprecariz-ação do trabalho, como
estratégia de redução
no FHC. Nele, programas que visam a máxima produtivida­ de custos e elevação da produtividade expressa
em condições de
de do trabalho sucedem-se febrilmente, inspirados nas trabalho caracterizadas por jornadas laborais mais
longas, salários
experiências de grandes bancos privados. relativamente inferiores e maior exploração do trabal
ho, quando
Um conjunto de inovações tecnológicas e gerenciais sus­ comparadas às condições regularmente contratada
s nos bancos',
tenta, sistematicamente, os movimentos de ajustes opera­ - intensificação do trabalho, em decorrência da fusão
de pOStos de
cionais e organizativos desses bancos, permitindo a extinção trabalho e da redução de níveis hierárquicos, de um lado,
e, de
de postos de trabalho, reduzindo o porte de unidades e de outro, das políticas de gestão e controle do trabalho que visam a
"maximização dos resultados" Y

56 IZUMI, P. "O bancário frente a exigência de um novo perfil de qualificação".


Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Administração da 57 SEGNINI, L (crg.). "Reestruturação nos bancos no Brasil: desemprego,

Pontifícia Universidade Católica. São Paulo, pue, 1996� JINKINGS, N. subcontratação e intensificação do trabalho", Relatório final, Programa de Pesquisa
"Trabalhadores bancários: entre o fetichismo do dinheiro e o culto da em Ciência e Tecnologia, Qualificação e Produção, Departamento de Ciências
excelência", ln B. Aued (erg.) Educação para o (Des)Emprego. Petrópolis Sociais Aplicadas à Educação, Faculdade de Educação, Centro de Estudos de
(RJ), Vozes, 1999. Educação e Sociedade, Unicamp, Campinas, 1998, mimeo, pp. 476�81.

220 o AVESSO DO TRABALHO COlEÇÃO TRABALH O E EMANCIPAÇÃO


Esse processo complexo de transformações nos bancos não é somente na mobilização dos corpos, exigida pelo siste­
engendra modificações importantes também nas relações de ma taylorista, ou do coração, como defendiam os princípios da
poder que se desenvolvem nos ambientes laborais. Paralela­ Escola de Relações Humanas,58 que se baseiam as atuais es­
mente a inovações tecnológicas e organizacionais característi­ tratégias gerenciais: "é a mobilização total do indivíduo que
cas do padrão produtivo na era da acumulação flexível, as se deseja obter; é não somente sua energia física e afetiva,
instituições financeiras praticam novas formas de controle e mas também sua energia psíquica que se procura captar".59
gestão do trabalho que tentam obter [pela] a adesão dos traba­ A disciplina e o controle do trabalho ficam obscurecido
s

I
lhadores ao projeto contemporâneo de reptodução capitalista. por meio dessas políticas de gestão, chamadas de "parti
cipa­
Mascarando seus instrumentos coercitivos, os mecanismos tivas", que se apresentam como instrumentos de demo
crati­
do poder organizacional nos bancos instituem artifícios diver­ zação dos ambi entes laborais. De fato, as novas
práticas
sos para disciplinar e intensificar o trabalho, por meio de pro­ gerenciais buscam construir uma aparente identidade
de in­
gramas de "qualidade total" e de "remuneração variável". O I teresses entre capital e trabalho e perseguem a adesã
o abso­
estabelecimento de metas e a premiação salarial por produtivi­ luta d o traba lhado r às estra tégia s merc adoló gicas
das
dade, a criação de equipes "de qualidade" nos locais de traba­ empresas. O discurso patronal, cotidianamente difundido
nos
lho para, supostamente, estimular a participação dos bancários órgãos de comunicação interna das empresas ou nos progra
­
em decisões relativas ao processo de trabalho, as campanhas de mas de treinamento, ressalta os desafios da concorrênci
ae
vendas de "produtos", além do desenvolvimento de um siste­ chama a colaboração e a mobilização de seus assalariados
em
ma intenso e sofisticado de comunicação banco-trabalhador são face dos projetos empresariais.
estratégias concebidas para aperfeiçoar as condições do contro­ Por meio da constituição de equipes de trabalhadores vin­
le e da dominação do trabalho na atualidade. culadas aos programas de "qualidade total" - cuja principal
incumbência seria conceber formas produtivas mais racionais
As ATUAIS PRÁTICAS DO PODER ORGANIZACIONAL - do treinamento de trabalhadores instrutores da "qualidade"
O modo contemporâneo de gestão e controle do trabalho 58 O movimento consubstanciado na Escola de Relações Humanas, que se
rccria padrões de dominação de classe que substituem a rígi­ desenvolveu como reação às idéias tayloristas de gerência, teve em Elton
da hierarquia e o despotismo aberto do regime de acumulação MAYO (Human Problems of an Industrial Civilization, 1933) seu principal
idealizador. Para uma análise crítica desse movimento, ver TRAGTENBERG,
de capital fundado no taylorismo e no fordismo, teI)-tando cons­
M., Administração, poder e ideologia, 23 ed., São Paulo, Cortez, 1989.
truir um tipo de trabalhador integrado ideologicamente ao S9 AUBERT, N. e GAULEJAC, V. Le cout de l'excellence. Paris, Éditions du

capital. Como assinalam Nicole Aubert e Vincent de Gaulejac, Seuil. 1991, p. 84.

222 o AVESSO DO TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO 223


e de seus princípios, da criação de concursos e campanhas para elementos implícitos, informais, adquirem muitas vezes proe­
premiação de idéias e sugestões inovadoras relacionadas ao minência sobre componentes formais da qualificação, relativos
processo e às relações de trabalho, as novas práticas gerenciais à educação escolar e profissional, instalando-se nos ambientes
visam incorporar o saber prático acumulado no cotidiano laborais um estado de insegurança e instabilidade, no qual a
laboral, usando-o em proveito do capital. Ao mesmo tempo, valorização de atributos como colaboração, mobilid ade e
objetivam eliminar resistências, buscando assegurar a obten­ engajamento orienta políticas de admissão, treinamento, pro­
ção da eficácia e da produtividade máximas do trabalho. moção e demissão.
É nesta perspectiva que novos atributos são incorporados à Ao analisar a luta histórica da classe trabalhadora por
qualificação do trabalho no movimento contemporâneo de melhores condições de existência, Christophe Dejours des­
reestruturação produtiva, que introduz processos laborais mais taca o fortalecimento da organização sindical e política dos
integrados e formas sistêmicas de organização do trabalho. Con­ trabalhadores e sua contestação dos métodos tayloristas de
forme Lúcia Bruno, nos setores mais dinâmicos da economia trabalho, em meados do século 20. O taylorismo cindia radi­
mundial, a classe trabalhadora apresenta qualificações mais ge­ calmente trabalho intelectual e manual, neutralizando a ati­
néricas e são valorizados conhecimentos e habilidades não re­ vidade mental dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que
queridos sob a lógica taylorista de utilização da força de trabalho.60 introduzia novas exigências fisiológicas - especialmente de
Novos conceitos difundidos no mundo empresarial ressaltam a tempo e ritmo de trabalho - nos ambientes produtivos.
necessidade de uma formação geral e polivalente no âmbito da Dejours assinala que é "o corpo dócil e disciplinado" criado
empresa flexível e remetem a uma redescoberta da "valoriza­ pela nova modalidade produtiva que aparece como principal
ção do trabalhador". Entretanto, como analisa Helena Hirata,6I objeto do sofrimento no trabalho: "corpo sem defesa, corpo
explorado, corpo fragilizado pela privação de seu protetor
60 BRUNO, L. "Educação, qualificação e desenvolvimento económico", in L. natural, que é o aparelho mental". É nesse quadro que sur­
Bruno (arg.). Educação e trabalho no capitalismo contemporâneo. São Paulo, gem novos temas nas lutas dos trabalhadores, expressos em
Atlas, 1996.
palavras de ordem contra o trabalho alienado, o despotismo
61 HIRATA, H. "Da polarização das 'qualificações ao modelo da competência",
in C. Ferretti et alii. (orgs.). Novas tecnologias, trabalho e educação, 5a ed., taylorista, a separação entre trabalho intelectual e manual, o
Petrópolis, Vozes, 1999. Uma análise crítica das concepções contemporâneas sofrimento mental no trabalho."
de educação e formação da força de trabalho encontra-se também em
FRIGOTTO, G. "Educação e formação humana: ajuste neo"'Conservactor e
alternativa democrática", in P. Gentili e T. Silva, Neoliberalismo, qualidade 62 DEJOURS, C. A loucura do. trabalho: estudo de Psicopatologia do Trabalho.

total e educação, 4a ed., Petrópolis, Vozes, 1996. São Paulo, Oboré Editorial, 1987, pp. 14·25.

22 4 o AVESSO DO TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO 2 25


Como observamos anteriormente, a busca de novos padrões
também dos estudos desenvolvidos por Michel Gollac e Serge
de acumulação diante da crise contemporânea do capital resul­
Volkoff, baseados em pesquisas de 1984 e 1991 em países da
tou na emergência de modelos de racionalização do trabalho
Europa, que destacam a intensificação do trabalho, median­
alternativos ao taylorista/fordista. Esses movimentos de reorga­
te o grande aumento da pressão sobre o ritmo das tarefas,
nização produtiva, que decorrem diretamente das atuais exi­
como fator essencial de agravo das atuais condições laborais.
gências da concorrência intercapitalista e da mundialização
Os autores analisam as técnicas de gestão da força de traba­
contemporânea do capital, buscam também controlar as lutas
lho no interior das empresas, que vinculam as atividades a
da classe trabalhadora, ao incorporarem temáticas anteriormen­
serem realizadas e seu ritmo às flutuações e exigências do
te formuladas nas reivindicações e revoltas operárias. Contra­
mercado consumidor, como "o coração dos novos métodos
põem a atividade apresentada como polivalente e enriquecida
de gerenciamento". Ao mesmo tempo, constatam que se
de conteúdo ao trabalho repetitivo e rotineiro do sistema
mantém a tradicional pressão decorrente da organização do
taylorista, o trabalhador dotado de inteligência e criatividade ao
trabalho e de seus mecanismos burocráticos, assinalando que
operário disciplinado, a participação e o envolvimento do traba­
"o ritmo de trabalho tende a ser determinado por normas,
lhador à rígida cisão entre concepção e execução.
controlado pela hierarquia e legitimado pelas exigências da
No entanto, estudos sobre as condições de vida e traba­
clientela". 65
lho da classe assalariada em diversas regiões do mundo capi­
Nos bancos, como em outros segmentos da classe traba­
talista têm constatado uma degradação dessas condições.63 É
lhadora, a pressão por produtividade apresenta-se diluída e
o caso do ensaio de Loic Wacquant, que analisa a inseguran­
mistificada pelas "leis" do mercado e exigências atribuídas à
ça salarial nos EUA e constata que metade da população do
concorrência interbancária e aos clientes. Da mesma forma,
país vive sob o constante medo da perda do emprego.64 E
os mecanismos de dominação entranhados nos programas de
"qualidade total" e "remuneração variável" atuam para mas­
63 Um tratamento mais detalhado dos agravos da atuaI reestruturação produtiva
carar e intensificar a exploração capitalista do trabalho nos
do capital à saúde dos trabalhadores encontra-se em HUEZ, D. "La
précarisation de la santé au travail", in: B. Appay e A.Thébaud-Mony, ambientes bancários, como já assinalamos. Pois, criando equi­
Précarisation sociale, travail et santé. Paris, Institut de Recherche SUf les pes de qualidade, organizando campanhas de vendas de "pro-
Sociétés Contemporaines (IRESCO), 1997 e SELIGMANN-SILVA, E.
Desgaste mental no trabalho dominado. Rio de Janeiro, Editora UFRJ; São
Paulo, Cortez, 1994.
65 GOLLAC, M. et VOLKOFF, S. "Citius, altius, fortius: l'intensification du
64 WACQUANT, L. "La généralisation de I'insécurité salariale en Amérique",
travail". Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nO 114. Paris, Seuil,
Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nO 1 15. Paris, dezembro, 1996.
setembro. 1996.

226 o AVESSO DO TRABALHO


COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO 227
dutos" e serviços, determinando metas de produtividade trabalhadores pela sobrevivência do banco num contexto de
individuais e coletivas, estabelecendo um sistema complexo competição acirrada. Ao mesmo tempo, atribui às "exigências
de premiações e punições, esses programas constituem-se do mercado" e aos desejos dos clientes a pressão por ritmo
em importante instrumento da gestão do trabalho nos ban­ intenso de trabalho e qualidade das tarefas executadas.
cos. O controle burocrático tem sua importância reduzida Outra fonte de pressão por produtividade e de intensifi­
nesse cenário, no qual predominam a ansiedade e o medo, a cação do trabalho que se sobrepõe à supervisão burocrática é
sobrecarga de trabalho, bem como os artifícios gerenciais para o sistema de remuneração "variável". De fato, ao individua­
fragilizar a luta sindical e os laços de solidariedade entre tra­ lizar os rendimentos, promovendo diferenças salariais em
balhadores. função do cumprimento de metas por trabalhador, por uni­
As "chefias intermediárias" responsáveis diretas pelo dades ou equipes de trabalho, esse sistema maximiza a ex­
controle e supervisão do trabalho nas diversas seções dos ploração do trabalho e conduz a atitudes pouco solidárias nos
bancos - eram elementos centrais nas relações de poder ali ambientes laborais.
estabelecidas durante a década de 1980. Enquanto personi­ E m uma conjuntura nacional de altos índices de de­
ficação do poder organizacional no local de trabalho, consti­ semprego e subemprego, a reestruturação nos bancos e
tuíam-se na expressão inequívoca da autoridade patronal. A suas medidas d e ajuste, que reduzem drasticamente a
imprensa sindical do período registra milhares de denúncias quantidade de força de trabalho, são também fatores de
relativas a situações de arbitrariedade nas relações entre che­ maior intensidade do trabalho e de fragilização das práti­
fias e trabalhadores, bem como às formas despóticas de con­ cas coletivas de resistência. De um lado, por potencia­
trole e supervisão do trabalho, manifestadas em práticas lizarem a submissão, diante da ameaça diária da demissão;
administrativas repressivas nos ambientes laborais. de outro, por aumentarem a sobrecarga de trabalho e as
Nos dias de hoje, a disciplina e o controle do trabalho exigências de cumprimento de metas aos que permane­
bancário não dependem mais primordialmente das ações re­ cem empregados.
pressivas das chefias intermediárias. À supervisão burocráti­ O modo como as atuais estratégias gerenciais afetam o coti­
ca, sobrepõe-se a autoridade do mercado, à qual o banco, diano bancário e tensionam as relações de trabalho é explicitado
suas unidades e sua força de trabalho devem submeter-se em depoimento de uma bancária detentora de cargo de gerên­
incondicionalmente. O discurso institucional vincula o de­ cia média em um banco estatal, no qual sucessivos programas
sempenho da força de trabalho aos resultados obtidos pela de reorganização do trabalho foram implemenrados, inspirados
empresa na concorrência interbancária, responsabilizando os nas experiências dos bancos privados:

228 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO 229


"( ... ) cada vez mais a gente está exigindo dos colegas que traba­ mercado consumidor. A expressiva redução das chefias in­
lhem as seis horas contratadas, porque senão alguém vai trabalhar termediárias nos bancos de 16% em 1 986, para 12% uma
por ele. Isso faz com que um funcionário fique em cima do outro. década mais tarde67 - não implicou na superação da pressão
(... ) O que eles querem é que tudo o que for repetitivo a máquina advinda da divisão hierárquica do trabalho. Entretanto, a ela
faça e libere o funcionário para vender. E você vai ter que pagar o somam-se relações de poder apoiadas nas possibilidades da
seu salário, hoje em dia é assim. Eles estão fazendo o funcionário teleinformática e sustentadas pelo sistema político-ideológi­
se conscientizar disso, o gerente também. Foi-se o tempo em que co que se difunde por meio de programas de ação neoliberais
o gerente ficava atrás da mesa e não corria atrás de cliente. O ge­ e apresenta como soberanas as forças do mercado capitalista,
rente agora é cobrado também." 66 em âmbito local e mundial.
No jargão empresarial interpretado pela gerente bancária, A tradição despótica inspirada nos métodos tayloristas de
"pagar o salário" significa aderir incondicionalmente aos cri­ trabalho vai sendo pouco a pouco suplantada, à medida que
térios de rentabilidade e lucro da empresa. Nos bancos, sob o se disseminam nos bancos os princípios de gestão constitu­
discurso da "qualidade do atendimento" e "busca da exce­ tivos da reestruturação contemporânea do capital. À autori­
lência de serviços e produtos", o bancário que vende sua força dade do capital personifiçada na figura do chefe sobrepõe-se
de trabalho ao capitalista financeiro é constrangido também a uma outra forma de autoridade, da qual são portadoras as
incorporar o ideário do capital e suas determinações de produ­ metas de produtividade e de vendas impostas pelas direções
tividade. É necessário que ele se represente, como elemento dos bancos. Mais difusa, todavia concreta nos mecanismos
do processo produtivo, não mais como encarnação do trabalho de quantificação do trabalho executado, essa nova forma de
assalariado que se defronta antagonicamente ao capital, mas autoridade conjuga-se, harmoniosamente, à autoridade das
como o próprio capital personificado. leis do mercado para garantir a dominação capitalista sobre o
Ainda que mascarado por novos mecanismos de domina­ trabalho.
ção do trabalho, o controle burocrático persiste nos ambien­ Nessa forma de autoridade do capital mistificada pela
tes laborais bancários, agora legitimado pelas exigências do mediação intensa dos valores de mercado, um instrumento
gerencial adquire proeminência e garante as relações de hie­
66
Entrevista com gerente de Expediente do Banco do Brasil, realizada pela autora rarquia no local de trabalho: a avaliação de desempenho fun­
em outubro de 1997, Note-se que, na segunda metade da década de 1990, o
- cional, efetuada em geral por gerentes responsáveis pelo
Banco do Brasil e outros bancos estatais eram palco de planos de
"modernização" organizacional e administrativa inspirados nas experiências
67
das instituições bancárias privadas. Segundo estudo de RODRIGUES, A., op. cito

230 o AVESSO 0 0 TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO 231


trabalho em determinada seção ou divisão da empresa, com ções de trabalho. Complexos mecanismos de poder contro­
periodicidade anual ou semestraL Nela é mensurada a pro­ lam o trabalho nas centrais onde se realizam as atividades de
durividade do trabalhador e qualificada sua atuação, confor­ telemarketing no atendimento bancário à distância, via telefo­
me requisitos e metas exigidos, determinando rendimentos ne e computador. Apoiados na teleinformática, esses meca­
advindos de programas de remuneração variável e possibili­ nismos compõem uma "arquitetura do controle" nesses
dades de carreira. espaços laborais, atuando para que se exacerbe o "olhar hie­
Mecanismos importantes do poder organizacional nos rárquico", muitas vezes invisível na atualidade. É o que assi­
bancos, as avaliações de desempenho sintetizam os atuais nala Selma Venco,68 ao relacionar as estratégias de dominação
conceitos dos bancos relativos à qualificação da força de tra­ do trabalho ali desenvolvidas à análise de Michael Foucault69
balho, expressos nos critérios qualitativos e quantitativos de sobre a construção do poder disciplinar.
avaliação do trabalhador. Atributos, habilidades e modos de A utilização de cartões magnéticos como via de acesso às
comportamento considerados fundamentais à eficiência do diversas unidades de trabalho, possibilitando à empresa con­
trabalho e à competitividade da empresa são analisados no trolar e registrar a entrada e saída dos trabalhadores, além de
processo de avaliação, juntamente com O desempenho em sua locomoção no decorrer da jornada laboral, é um instru­
relação a metas de produtividade estabelecidas e a campa­ mento importante do poder disciplinar nas centrais de aten­
nhas de vendas de "produtos". O perfil de cada bancário é dimento dos bancos. Ao mesmo tempo, o software que
construído, pela empresa, a partir da conjugação desses ele­ organiza e controla o trabalho - distribuindo chamadas tele­
mentos e atributos incorporados à noção contemporânea de fónicas entre os operadores, orientando procedimentos,
qualificação, os quais se constituem nos alicerces da avalia­ mensurando o tempo de duração do atendimento, emitindo
ção de desempenho funcionaL relatórios de produtividade, registrando interrupções do tra­
Nos ambientes bancários, em face das atuais estratégias balho, gravando todas as ligações telefónicas - constitui-se
de dominação e disciplina do trabalho, rolhidos pelo medo também em ferramenta essencial do olhar hierárquico ali
do desemprego, muitos trabalhadores intensificam seu tra­ instaurado. Papel de relevo nos procedimentos para discipli-
balho e tentam seguir os critérios patronais de competência
e as exigências de produtividade, com sérios agravos às suas
68
condições de saúde. Especialmente nas agências !;>ancárias e VENCO, S. "Telemarketing nos Bancos: o Emprego que Desemprega".
Dissertação de Mestrado. Departamento de Ciências Sociais Aplicadas à
centrais de atendimento, a determinação de metas nas ven­
Educação, Faculdade de Educação, Unicamp, Campinas, 1999.
das de "produtos" e serviços centraliza e tenciona as rela- 69 FOUCAULT, M. Vigiar e Punir, Petrópolis, Vozes, 1977.

232 o AVESSO DO TRABALHO C O L EÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO 233


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nar o trabalho exerce, igualmente, a distribuição espacial das po máximo desejado - a indicação intermitente no monitor
centrais. O ambiente físico é segmentado em reduzidos com­ de computador da "fila" de clientes aguardando atendimen­
partimentos, com um terminal de computador e um headphone to, assim como a gravação das ligações - como "medida de
(fone de ouvido), onde o operador, separado dos compa­ segurança" e " s u bsídio a treinamentos", no discurso
nheiros de trabalho por divisórias laterais e sob intensa gerencial - constituem efetivos instrumentos da domina­
concentração, realiza sua atividade. A denominação de ção do capital nos ambientes laborais de te!emarketing.72
"baias"'o conferida a esses compartimentos é extremamente Para os trabalhadores que exercem a função de caixa nas

expressiva do seu significado controlador e "adestrador", na agências bancárias e têm na fila de clientes - como presença

medida em que determina o espaço de cada trabalhador, iso­ visível - um objeto cotidiano de pressão, a produtividade é

la-o e limita seus estímulos visuais e auditivos.'l mensurada pela quantidade de autenticações73 efetuadas,

Venco ressalta as contradições do discurso e das exigên­ registradas na fita do terminal de computa dor. A intensa

cias empresariais relativas ao trabalho dos operadores, que, automatização do atendimento bancário não implicou me­

de um lado, enfatiza a importância da qualidade do atendi­ nos trabalho para os caixas, que passaram a acumular diver­

mento e, de outro, pressiona pelo contato ágil e objetivo, sas funções antes realizadas na "retaguarda" das agências,

em busca de maior produtividade. Os operadores são ins­ desde a difusão do sistema on-line, na década de 1 980. Nos

truídos a realizar o atendimento em um tempo mínimo de anos de 1990, no contexto de intensificação dos movimentos

30 segundos e máximo de dois minutos, de modo objetivo, de reestruturação dos bancos, com a redução drástica de as­

conforme normas de conduta estabelecidas e transmitidas salariados no setor e a sobrecarga de trabalho nos ambientes
nos programas de treinamento do banco. Mecanismos de laborais, os bancários-caixas sofrem, como antes, a dupla pres­
controle como o timer- que sinaliza "tempo excedido" sem­ são derivada da fila de clientes, de um lado, e dos mecanis­
pre que o atendimento ultrapassar os dois minutos deter­ mos patronais de controle do trabalho, de outro. Um
minados - o software - que permite ao coordenador da comportamento cortês e servil ao cliente é exigido desse tra­
unidade acesso simultâneo a todas as ligações recebidas e balhador, que, todavia, deve seguir normas (muitas vezes
sua interferência quando o atendimento extrapolar o tem-

n lbidem, op. cit., pp. 74-80.

70 o termo é utilizado para denominar o compartimento ao qual os animais são 73 o termo "autenticação" refere-se a cada uma das operações efetuadas pelo

recolhidos nas cavalariças ou estábulos. bancário-caixa no processo de atendimento, ou seja, depósitos, pagamentos,

" VENCO, S., op. cit., pp. 54-57. entrega de talonários, saldos etc.

234 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO 235


extremamente rígidas) relativas a tempo de atendimento e cento e poucos funcionários. Hoje estou numa agência maior, que
exigências de produtividade. tem menos da metade do quadro de funcionários. [. ] As filas conti­
..

A qualidade do atendimento alardeada nos documentos nuam imensas. E tcm muita pressão por parte da chefia, da gerência.
institucionais do sistema financeiro nacional não atinge a Você vai conseguir trabalhar legal com alguém ali atrás te pressio­
p
porção am lamente majoritária de clientes e usuários dos nando! [ . . ] Uma moça teve uma diferença de 1 .200 reais e um rapaz
.

bancos, nem significa mudança qualitativa nas condições do também, no mesmo dia, de mil reais. Na semana seguinte eles tive­
trabalho bancário. A implementação de políticas que seg­ ram que pagar. [ ... ] Ou paga ou vai embora."74
mentam a clientela bancária elitiza o atendimento e restrin­ A fração feminina da força de trabalho nos bancos, que
ge o uso das sofisticadas inovações propiciadas pela representa mais de 40% do total de bancários no país, vive
teleinformática às frações da população que detêm maior relações de dominação e de exploração mais duras, quando
poder econômico, clientes preferenciais. Aos segmentos com comparadas às condições do trabalho masculino. Apesar de
pequena capacidade de consumo dos "produtos" dos ban­ seu alto nível de escolaridade e de se verificar um aumento
cos estão destinados os serviços simplificados de auto-aten­ gradual da presença feminina em postos de gerência e de su­
dimento e o caixa tradicional, onde se mantêm grandes filas pervisão, as mulheres seguem ocupando, sobretudo, cargos
de clientes e usuários. hierarquicamente pouco relevantes na estrutura ocupacional
A jornada diária dos bancários-caixas segue marcada pela dos bancos, relacionados a atividades simplificadas e
sobrecarga de trabalho e pela tensão permanente expressa repetitivas. Como assinala Liliana Segnini,'4 a inserção das
no medo de "diferenças de caixa", assim como pela forte
pressão de supervisores e gerências quanto ao cumprimento 74 �ntrevista com bancária-caixa do Bradesco, realizada pela autora em dezembro
de 1998.
de metas relativas à quantidade de autenticações e à venda
75 SEGNINI, L. Mulheres no trabalho bancário: difusão tecnológica,
de "produtos". O depoimento a seguir relata as condições qualificação e relações de gênero. São Paulo, FAPESPIEDUSP, 1998. Sobre
de trabalho em uma agência bancária: os processos de segregação ocupacional que marcam a divisão sexual do
trabalho ver também: OLIVEIRA, O. e ARIZA, M. "División sexual dei trabajo
"Quando eu entrei no banco, em 1 989, era uma loucura. Naquela
y exclusión social". Revista Latinoamericana de Estudios deI Trabajo,
época, o banco vivia cheio, todos os dias. Depois amenizou um pou­ publicação semestral da Associação Latino-americana de Sociologia do
co isso, com a automação. Agora, eu acho que a gente está Trabalho (ALAST), n" 5, São Paulo, ano 3, 1997; HIRATA, H. "Rapports
sociaux de sexe et division du travail", in J. Bidet e J. Texier, La crise du
sobrecarregada. Porque tcm toda essa evolução do sist.Çma, mas tam­
travai!, actuei Marx confrontation, Paris, Presses Universitaires de France,
bém saiu muita gente do banco. Se a gente parar para pensar, quan­ 1995; HIRATA, H. Nova divisão sexual do trabalho? Um olhar voltado para
do eu entrei no banco, trabalhava numa agência menor, e éramos a empresa a sociedade. São Paulo, Boitempo, 2002.

23 6 o A V E S S O DO T RA B A L H O C O l E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O 2 37
mulheres no trabalho bancário reafirma tendências observa­
entre bancários,'6 perdem importância no cenário da atual
das em diversos outros países, nos quais uma série de meca­
desmontagem do sistema bancário estatal e dos programas
nismos sociais de discriminação - que marcam historicamente
de reestruturação, que imprimem traços característicos de
as relações de gênero e se reproduzem nos ambientes laborais
empresa privada aos bancos que permanecem públicos. Com
- constituem assimetrias importantes nas possibilidades pro­
suas possibilidades de resistência reduzidas, os bancários vin­
fissionais e salariais de homens e mulheres.
culados a esse sistema assistem à perda de direitos, conquis­
As profundas transformações nos padrões de trabalho,
tados nas lutas sindicais desde o início do século passado. O
que degradam condições laborais e de emprego, afetam
crescente índice de suicídios de assalariados de bancos esta­
duramente também uma outra fração da força de trabalho
tais, nos anos de 1 990,77 é revelador dos custos sociais do
nos bancos: os bancários vinculados ao sistema financeiro
atual processo de reorganização do capital e de suas formas
estatal. A política econômica brasileira dos anos de 1 990,
de destruição da subjetividade do trabalho.
que desenvolveu intensivamente programas de libera­
No contexto de precarização social e desregulamentação
lização monetária, desregulamentação salarial e priva­
da economia, o cotidiano laboral de grandes contingentes de
tização, como assinalamos, atinge de modo drástico as
bancários é marcado pela insegurança, pela ansiedade e pelo
relações de trabalho nas instituições estatais, tradicional­
medo. O sofrimento psíquico de muitos desses trabalhado­
mente marcadas por diferenças importantes em relação às
res, derivado do controle, da pressão, da intensidade do tra­
estabelecidas nos bancos privados, caracterizadas pela ar­
balho, do medo de erro e da demissão, das relações tensas e
bitrariedade e diversidade nas condições de contratação,
competitivas nos ambientes laborais, desgasta a saúde men­
carreira e demissão. O sistema de concurso público como
tal, "contaminando" o tempo livre de trabalho. As Lesões
meio de ingresso e a constituição de quadros de carreira
por Esforços Repetitivos (LERs) - essa síndrome do mundo
orientando as decisões sobre promoção e remuneração,
produtivo na era da eletrônica - atingem grande número de
constituíram critérios regulamentados de ascensão profis­
sional e uma condição (implícita) de estabilidade do em­
76 Um tratamento mais detalhado destas distintas experiências é oferecido em
prego nas instituições estatais.
JINKINGS, N. Trabalho-e resistência na ''fonte misteriosa": os bancários no
As desigualdades na situação de trabalho entre os assala­ mundo do dinheiro e da eletrónica. Campinas, Editora da Unicamp; São Paulo,
riados de bancos privados e aqueles de estatais, ail.quais cons­ Imprensa Oficial do Estado. 2002.
77 A esse respeito, consultar XAVIER, E. Um Minuto de Silêncio: Réquiem aos
tituíram distintos perfis profissionais e prod uziram
Bancários Mortos no Trabalho. Porto Alegre, Sindicato dos Bancários de Porto
experiências de organização e ação sindical diferenciadas Alegre, 1998.

23 8 o AVESSO 0 0 TRABALHO
COlEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO 239
bancários, degradando suas condições físicas e repercutindo anos de 1980, que mobilizou grande quantidade de bancá­
sobre a vida psíquica e sociaL rios em assembléias, passeatas e greves, em todas as regiões
Para a ampla maioria dos bancários brasileiros e grandes do país, dá lugar a atividades e manifestações com partici­
parcelas da classe trabalhadora em todo o mundo, a pação mais restrita d e uma base sindical tolhida pelo medo
reestrururação capitalista contemporânea destina formas mo­ do desemprego ou integrada ideologicamente às estratégias
dernas de exploração - apoiadas na tecnologia microeletrônica patronais.
e na teleinformática - que convivem com formas mais antigas Essas são determinações que mudam em profundidade
e limitadas, baseadas no prolongamento da jornada laboral. As as condições do trabalho bancário e revelam o que acontece
estratégias contemporâneas de acumulação de capital elevam no conjunto da vida social, submetida aos movimentos de
os níveis do desemprego estrutural, ampliam a precarização valorização do capital.
do trabalho e racionalizam violentamente os ambientes pro­
dutivos, criando sofisticadas táticas para intensificar e contro­
lar o trabalho. Nos ambientes laborais dos bancos, uma forte
ofensiva ideológica persegue o envolvimento e a adesão dos
trabalhadores ao ideário patronal e aos projetos mercadológicos
das empresas, de tal modo que eles se representem como o
próprio capital personificado.
A resistência do trabalho contra a exploração capitalista
enfrenta maiores obstáculos, nesse cenário político e eco­
nômico hostil às lutas da classe trabalhadora, que coloca
seus movimentos de rebeldia em face de novos impasses e
desafios. O sindicalismo bancário, desde a década de 1990,
expressa os limites e dificuldades do movimento sindical
nos dias de hoje e experimenta um momento de refluxo,
atuando defensivamente diante da reestruturação produti­
va do capital. A ação sindical nos ambientes laborais não
tem sido capaz de impedir seus efeitos lesivos para as con­
dições de vida e trabalho dos bancários. A luta coletiva dos

24 0 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCfPAÇÃO 24 1


A F EM I N IZAÇÃO N O M U N D O D O
T RA BA L H O : E N T R E A EMAN C I PAÇÃO
E A P RECARIZAÇÃO

CLAUDIA MAZZEI NOGUEIRA"

o nosso texto'9 apresenta as recentes tendências do tra­


b a l h o fem i n i n o , e m particular após o processo de
reestruturação produtiva, desencadeada nas últimas déca­
das do século 20, especialmente no período que se inicia a
partir da crise do taylorismo/fordismo, bem como na era da
acumulação flexível. Direcionamos nossa pesquisa para o
universo do trabalho porque, com esse enfoque, pudemos
não só analisar algumas das diferenças e especificações de
gênero, mas também a exploração existente sobre a mu­
lher na relação de classes.

78 A autora é mestre e doutoranda em Serviço Social pela Pontifícia Universidade


Católica de São Paulo (PUC-SP).
Pertence ao Conselho Editorial da Revista Margem Esquerda editada pelo
Boitempo Editorial SP - Brasil.
79 Esse texto é parte da dissertação de mestrado defendida na pue-sp (Faculdade
de Serviço Social), com o mesmo título, em março de 2003.
Iniciaremos este texto indicando resumidamente elemen­ mento físico incompleto, mas com membros mais flexíveis. Por isso,
tos da inserção da mulher no mundo do trabalho no processo a primeira preocupação do capitalista ao empregar a maquinaria foi
histórico, ressaltando de modo bastante pontual alguns tra­ a de utilizar o trabalho das mulheres e das crianças. Assim, de po­
ços da entrada da mulher no universo do trabalho nas socie­ deroso meio de substituir trabalho e trabalhadores, transformou-se
dades pré-capitalistas, para, na seqüência, tratar do período imediatamente em meio de aumentar o número de assalariados ,

recente. colocando todos os membros da família do trabalhador, sem distin­


Sabemos que, nos primórdios da divisão social do traba­ ção de idade ou sexo, sob o domínio direto do capital. O trabalho
lhó, tanto a mulher livre quanto a mulher escrava tinham o obrigatório para o capital tomou o lugar dos folguedos infantis e do
seu espaço de trabalho pertencente à esfera doméstica, pois trabalho livre realizado em casa, para a própria família, dentro de
eram responsáveis pela manutenção da subsistência e repro­ limites estabelecidos pelo costume. ( ... ) Lançando à máquina to­
dução, passando por vários campos, como o da alimentação, dos os membros da família do trabalhador no mercado de trabalho ,

higiene dos homens e crianças. Marx e Engels, em 11 ldeofo­ repartindo o valor da força de trabalho do homem adulto pela a
gia Alemã, já indicavam, entretanto, que a escravidão na fa­ família inteira. ( 1971 : 449/450)
mília, e m bora a i n d a tosca e latente, era a primeira Portanto, a inserção da mulher na grande indústria, ou
manifestação da propriedade. Em suas palavras: seja, a divisão do valor da força de trabalho por toda a famí­
A primeira divisão do trabalho é a que se fez entre o homem e a lia, rebaixa o valor do trabalho masculino. O capitalismo usa­
mulher para a procriação dos filhos, ao que Engels acrescentou, na va, então, essa divisão sexual do trabalho para incentivar a
Origem da Família da Propriedade Privada e do Estado, que o pri­ competição entre os trabalhadores, rebaixando os salários em
meiro antagonismo de classes que apareceu na História coincide decorrência do ingresso da força de trabalho feminina, incor­
com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mu­ porada à classe trabalhadora e percebendo salários ainda mais
lher na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opres­ reduzidos. Desse modo, a classe trabalhadora, composta por
são do sexo feminino pelo masculino. ( 1 977: 70/71 ) mulheres, jovens, crianças e pelos próprios homens, foi re­
Com o advento da Revolução Industrial, a presença fe­ duzida à condição de simples força de trabalho vivo, ou seja,
minina ampliou-se intensamente, suprindo as lacunas que matéria de exploração do capital, visando à ampliação de seu
eram conseqüências das transformações no mundo produti­ ciclo reprodutivo e sua valorização.
vo. Ainda segundo Marx: Vale destacar que, apesar dessa dimensão da exploração
Tornando-se supérflua a força muscular, a maquinaria permite o da força de trabalho, Engels expressou uma visão positiva da
emprego de trabalhadores sem força muscular ou com desenvolvi- inserção da mulher no mundo do trabalho, no que se refere a

21j 'l o AVESSO DO TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCJ PAÇÃO 2lj5


seu processo de emancipação. Ele afirma em seu livro A Ori­ triarcal e com a família monogâmica, essa situação alterou­
gem da Famífia, da Propriedade Privada e do Estado que: se, com a direção do lar perdendo seu caráter social e se trans­
Hoje, na maioria dos casos, é o homem que de que ganhar os meios de formando em serviço privado. Isso converteu a mulher, ainda
vida, alimentar a família, pelo menos nas classes possuidoras; e isso lhe segundo Engels, em primeira criada, sem mais tomar parte
dá uma posição dominadora, que não exige privilégios legais especiais. na produção social. (op. cit.: 79)
Na família, o homem é o burguês e a mulher representa o proletário. Foi com o advento do eapitalismo e da grande indústria,
No mundo industrial, entretanto, o caráter específico da opressão eco­ ainda segundo Engels, que o caminho da produção social abriu­
nômica que pesa sobre o proletariado não se manifesta em todo o seu se novamente para o contingente proletário. Mas o fez de modo
rigor senão quando suprimidos todos os privilégios legais da classe dos excludente, uma vez que a mulher, restrita aos seus deveres
capitalistas e juridicamente estabelecida a plena igualdade das duas familiares, ficava excluída do trabalho social e da condição de
classes. (... ) De igual maneira, o caráter particular do predomínio do assalariamento. E, se quisesse participar do trabalho industrial,
homem sobre a mulher na família moderna, assim como a necessida­ como trabalhadora assalariada, teria de abandonar as obriga­
de e o modo de estabelecer uma igualdade social efetiva entre ambos, ções domésticas, uma vez que a "família individual moderna
não se manifestarão com toda a nitidez senão quando homem e mu­ baseia-se na escravidão doméstica, fránca ou dissimulada, da
lher tiverem, por lei, direitos absolutamente iguais. Então é que se há mulher, e a sociedade moderna é uma massa cujas moléculas
de ver que a libertação da mulher exige, como primeira condição, a são as famílias individuais". (op. cit.: 80)
reincorporação de todo o sexo feminino à indústria social, o que, por Ao que Saffioti acrescentou, ao afirmar que a divisão se­
sua vez, requer a supressão da família individual enquanto unidade xual do trabalho se encontrava presente, não só na relação
econômica da sociedade. (1977: 80-81 ) de produção e reprodução, mas também na relação de gêne­
O autor acrescenta ainda que o quadro não é diferente ro. A aurora afirma ainda que:
quando se compara a igualdad e; jurídica do homem e da A grande maioria dos homens, centrando sua visão sobre a mu­
mulher no casamento. A desigualdade legal, herdada de épo­ lher como sua concorrente real no mercado de trabalho, deixa de
cas anteriores, não era causa e, sim, efeito da opressão eco­ perceber a situação feminina, e a sua própria, como determinadas
nómica sobre a mulher. Nas comunidades primitivas, ou no pela totalidade histórica na qual ambos estão inseridos. Deixan­
antigo lar comunista, na divisão do trabalho, a direção do­ do-se mistificar pelo prestígio que lhe é conferido se obtiver pelo
méstica ficava sob controle das mulheres, enquanto a busca seu - trabalho remuneração suficiente para permitir-lhe manter a
de alimentos era de responsabilidade masculina. Mas essa esposa afastada das funções produtivas, não percebe que a mu­
era uma atividade soeial. Posteriormente, com a família pa- lher não ativa economicamente pode significar uma ameaça ao

o AVESSO DO TRABALHO C O L E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O 2lj7


seu emprego enquanto trabalhadora potencial e que o trabalho de produção desencadeou um processo intenso de reestrutu­
não pago que ela desenvolve no lar contribui para a manutenção ração produtiva, em que se destaca a alteração e, em alguns
da força de trabalho tanto masculina quanto feminina, "diminuin­ casos, a substituição do padrão produtivo baseado no
do, para as empresas capitalistas, o ônus do salário mínimo de taylorismo/fordismo, já em crise, dando origem ao que a
subsistência, cujo capital deve pagar pelo emprego da força de literatura tem denominado como sendo "toyotismo" (ou ele­
trabalho". Em outros termos, sendo incapaz de analisar, a situa­ mentos dele), ou ainda aquilo que David Harvey, olhando
ção da mulher como determinada pela configuração histórico-so­ para as experiências do Ocidente, denominou como
cial capitalista, não percorrendo a atuação das estruturas parciais "acumulação flexível" .
mediadoras na totalidade, abstrai não apenas a mulher, mas tam­ E m suas palavras, esta fase caracteriza-se:
bém a si próprio da conjuntura alienante que o envolve. Para a Pelo confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apóia na
visão globalizadora, "libertar a mulher de sua alienação é, ao mes­ flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de traba­
mo tempo, libertar o homem de seus fetiches". ( 1976: 41 -42) lho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo
Portanto, ao longo da revolução industrial e do advento surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas
do capitalismo, podemos afirmar que o capital utilizou-se da maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mer­
mulher no mundo do trahalho, o que acarretou significados cados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação
distintos: se, por um lado, o ingresso do trabalho feminino comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível
.
no espaço produtivo foi uma conquista da mulher, por outro envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento de­

lado, permitiu que o capitalismo ampliasse a exploração da sigual, tanto entre setores quanto entre regiões geográficas, crian­

força de trabalho, intensificando essa exploração através do do, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado

universo do trabalho feminino. Esses são exemplos claros de "setor de serviços (. . . ) ". (op. cit. : 140)

como a dimensão de classe se articula com a dimensão de É importante salientarmos que a chamada crise do tayloris­
gênero, quando se pensa na questão da exploração do traba­ mo/fordismo traz, em seu significado mais profundo, uma crise
lho pelo capital, particularmente no período recente, que é o estrutural do capital, em que a tendência decrescente da taxa de
objetivo deste nosso texto. lucro se evidenciava. (Antunes, 1999: 3 1 ) Afirma ainda o autor
que a resposta do capital à sua própria crise levou à reorganização

II do capital e de seu sistema ideológico e político de dominação. O

o capitalismo, no decorrer da História, metamorfoseou­ exemplo mais evidente dessa resposta é o advento do neolibe­

se de inúmeras maneiras. Mas, a partir de 1 973, esse modo ralismo, que tem como características básicas as privatizações do

o AVESSO DO TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO 2 49

...
...... _ .....----------------�
Estado, a desregulamentação dos direitos trabalhistas e "a nos processos de trabalho é a flexibilização acompanhada por
desmontagem do setor produtivo estatal, da qual a era Thatcher/ ênfases na modernização, eficiência e técnicas associadas de
Reagan foi a expressão mais forte". (op. cit. : 3 1 ) gestão, por exemplo, o 'toyotismo' ." 81
Foi nesse contexto que, ao longo dos anos d e 1980 e 1 990, A lógica da flexibilização na atual reestruturação produti­
ocorreu a expansão da hegemonia económica, política e ide­ va do capitalismo juntamente com o neoliberalismo, estabe­
ológica do neoliberalismo, inicialmente na Inglaterra, Esta­ lece relações com o crescimento do emprego das mulheres.
dos Unidos e Alemanha e, posteriormente, atingindo vários Por exemplo: o trabalho terceirizado freqüentemente possi­
países em diferentes continentes, quando passou a intensi­ bilita a realização de tarefas no domicílio, concretizando o
ficar-se a crítica ao Estado do bem-estar social (welfare state) trabalho produtivo no espaço doméstico. Beneficiando, des­
e em particular aos direitos sociais. 80 Houve também um cla­ sa forma, os empresários que não têm a necessidade de pa­
ro processo de desmonte dos direitos dos(as) trabalhado­ gar os benefícios sociais e os direitos vinculados ao trabalho
res(as), os quais, desde então, vêm sofrendo uma progressiva de homens ou de mulheres. Direitos esses que mesmo os
"flexibilização" do trabalho, um crescimento da informaliza­ trabalhadores formais (com carteira assinada) têm ameaça­
ção (sem registro em carteira) e uma conseqüente perda das dos, como bem demonstra a discussão política a respeito da
conquistas trabalhistas. flexibilização da CLT (Consolidação das Leis de Trabalho)
Mary Castro (200 1 : 275) analisa esse momento indican­ nos últimos anos no BrasiL
do que "o neoliberalismo tem de ser discutido não só como Cabe lembrar que, quando o trabalho produtivo é reali­
uma forma de organização da economia política, mas tam­ zado no espaço doméstico, o capital, ao explorar a mulher
bém como um tipo de cultura pelo qual se amplia a sujeição enquanto força de trabalho, apropria-se com maior intensi­
dos e das trabalhadoras, inclusive minando vontades, auto­ dade dos seus "atributos" desenvolvidos nas suas atividades
estima e dignidade. Outra característica do ethos neoliberal reprodutivas, vinculados às tarefas oriundas de seu trabalho
reprodutivo. Dessa forma, além de o capital intensificar a
80
No Brasil, as políticas neolibera�s são observadas pontualmente desde o final
desigualdade de gênero na relação de trabalho, ele acentua a
dos anos d.e 1980. A partir dos anos de 1990, com os governos de Fernando
Collor de Mello e de Fernando Henrique Cardoso, o neoliberalismo avançou, dimensão dúplice da sua exploração, ou seja, explora o tra-
através de políticas monetárias, de privatizações das empresas públicas e do
afastamento do Estado do setor produtivo, das flexibilizações e desregula­
-
mentações, dentre outras medidas. Estas mudanças afetaram, mais uma vez, o 81 Sobre as conseqüências destas mudanças no universo da subjetividade da classe
mundo do trabalho, trazendo conseqüências significativas não só para o trabalhadora, ver as indicações de Sennett, (1998). Sobre a questão gênero/
trabalhador, mas principalmente para a mulher trabalhadora. classe, ver o clássico estudo de Mitchel (1977).

25 0 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO 25 1


depende produção". Essas novas características apresentadas pela
balho feminino tanto no espaço produtivo quanro
desse no espaço reprodutivo. política neoliberal têm relevantes conseqüências na divisão

Portanto, a crise estrutural do capitalismo" e, em parti­ sexual do trabalho, tanto no espaço produtivo quanto no
ista e reprodutivo. (Hirata, 2001/02: 143)
cular, o esgotamento do padrão de acumulação taylor
leo Ainda segundo Hirata, nos anos de 1 990, a mundialização
fordista, bem como a reestruturação produtiva do capita
icati­ do capital emitiu efeitos complexos, além de contraditórios,
advenro do neoliberalismo, trouxeram mudanças signif
acional afetando desigualmente o emprego feminino e o masculino.
vas para o mundo do trabalho, tanto no plano intern
quanto no nacional. É sempre importante ressaltar
que tais Em relação ao emprego masculino, a autora afirma que hou­
o e da ve uma regressão e/ou estagnação. Já o emprego e o trabalho
mudanças levaram ao cresc imen to da precarizaçã
.83
informalidade do trabalho, como lembram Hirata e Doaré feminino remunerado cresceram. Paradoxalmente, apesar de
( ... ) assiste-se a uma dupla transformação paradoxal do trabalho, por­ ocorrer um aumento da inserção da mulher trabalhadora, tanto
que ela parece ir em sentido oposto: de um lado, a implicação do sujei­ no espaço formal quanto no informal do mercado de traba­
to no processo de trabalho e, de outrO, a precarização do emprego, com lho, ele se traduz, majoritariamente, nas áreas em que pre­
o desenvolvimento de formas flexíveis do trabalho e o crescimento do dominam os empregos precários e vulneráveis, "como tem
desemprego. Este último movimento é grande e globalizado, e parece sido o caso na Ásia, Europa e América Latina". (op. cit.: 143)
dizer respeito às mulheres, em primeiro lugar, enquanto a implicação O quadro apresentado possibilita uma reflexão sobre o
requerida pelos novos modelos de organização do trabalho parece di­ papel feminino no mundo do trabalho, marcado por uma
zer respeiw tendencialmente aos assalariados do sexo masculino das flexibilização mais acentuada, como, por exemplo, o traba­
grandes empresas industriais dos países do Norte. (1999: 10) lho em tempo parcial realizado majoritariamente por mulhe­
Com o neoliberalismo, as políticas do governo impulsio­ res. A intensificação da precarização no trabalho é também
nam a mundialização, principalmente com "a liberação das uma dimensão relevante, visto que as trabalhadoras "são
trocas comerciais, com a desregulamentação, a abertura dos menos protegidas tanto pela legislação do trabalho quanto
mercados e novas lógicas de desenvolvimento das firmas pelas organizações sindicais"84. Mas há ainda um outro papel
multinacionais, tendo como corolários as privatizações, o reservado à mulher trabalhadora: o papel a que Helena Hirata
desenvolvimento da subcontratação e da externalização da
84 Muitas autoras têm oferecido vários estudos que nos auxiliam para uma melhor
82 Ver Mészáros·, 2002; Bihr, 1998; Antunes, 1999. compreensão da questão feminina no espaço sindical. Ver por exemplo, Castro
83 Hélene Lê Doaré é pesquisadora juntamente com a socióloga Helena Rirata (1993) e Araújo e Ferreira (2000). Sobre a questão feminina e a legislação

no GEDISST,CNRS em Paris. social, ver Pena (1981: 145/173) e AraújolRiedel (s/data).

o AVESSO 0 0 TRAB A L H O COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO 25 3


a que as QUADRO I
atribui o sentido de um experimento. A autora afirm
EVOLUÇÃO DAS MULHERES PERTENCENTES A POPULAÇÃO
como ins­
mulheres trabalhadoras são utilizadas pelo capital ECONOMICAMENTE ATIVA UNIÃO EUROPÉIA %) -
1983 - 1996 1em
de em­
trumentos para desmantelar ainda mais as normas 1983 1987 1991 1992 "993 1994 "995 1996
prego dominantes, levando a uma precarização ainda
maior Europa dos Doze* - 39.3 40,6 41.3 41,5 4',8 �2,O
.

o contin­
Europa dos Quinze 42.3 42.5
para o conjunto da classe trabalhadora, incluindo Alemanha** 39,1 39.5 40,9 42,6 42.5 42,7 42,9 43,1
2002)
gente masculino. (op. cit.: 144. Ver também Hirata, Áustria 42,9 43,4
, ana­
Para darmos uma base de concretude ao nosso artigo
Bélgica 36,9 38,5 ljo,Q 40,6 41,2 41,2 41,4 41,5
tes do tra­
Dinamarca 45.5 46,0 46,6 46,8 46,9 46,2 45,5 45,7
lisaremos no item seguinte as tendências mais recen Espanha 32,9 35,3 36,1 36,6 37.5 38,2 38,5
ndo
balho feminino, na Europa, América Latina e Brasil, utiliza Finlândia 47,9 47,8
sobre a
subst ancia lmen te pesq uisas e dado s empí ricos
França 4',9 43.3 44,3 44,6 45,0 45,2 45,5 45,5
CEPAL, Grécia 34,1 35,8 35,8 36,8 37,0 37,3 37,9 38,7
femi nizaç ão do traba lho realiz ados pela OIT, Irlanda 31,1 32,8 34,1 36,6 37,3 37,6 38,4
os sala­
35,4
DIEE SE, SEADE, IBGE etc., contemplando os desvi Itália 34,1 35,6 37,1 36,8 36,7 37,0 37,3 37,8
ral ou par­
riais, a jomada de trabalho (trabalho em tempo integ Luxemburgo 33,5 35,2 35,6 37,2 36,4 37,2 36,0 37,0
cial), o emprego temporário, o subemprego e o desem
prego. Países Baixos 33,8 37,6 39,5 40,4 40,6 41.1 41,3 4',8
Portugal 41,8 43,8 44,4 44,7 45,0 45,0 45,2
Reino Unido 40.3 42,4 43,3 43,7 43,7 43,8 43,8 44,0
- - -
III Suécia - -
- 47.7 47.7
A análise dos dados na Europa mostra que se evidencia
� _ '
*Na Eur pa dos ooze estao excluídos os dados da Suécia, Finlândia e Austria
** �
A partlr de 1991 e em todos os quadros trata-se de dados a respeito da Iemanha
. .
um significativo crescimento da população trabalhadora femi­ reumflCada (40,9% em 1990)
Fonte: Eurostat, Enquêtes sur les forces de travai! (Apud Maruani, 2000: 7)
nina em relação à população ativa durante as décadas de 1980
e 1990. Particularmente nos Países Baixos, na Irlanda, Espanha,
Em plena crise do emprego, que se intensificou ao longo
Reino Unido, Portugal, Grécia, França, Bélgica, Alemanha e
dos anos de 1980 na União Européia, segundo Maruani (2000)
Itália, a tendência de crescimento é bastante evidente, ten­
"a atividade feminina não parou de crescer". Esse período
dência que só é contrastada pela Dinamarca, cujos percentuais
caracterizou-se pela feminização do contingente assalariado,
permaneceram estáveis, ainda que contemplando níveis sig­
em particular no setor terciário (serviços). Desde a década de
nificativos de feminização da força de trabalho.85
1 960, do norte ao sul da Europa, assistimos a um crescimento
espetacular da atividade feminina enquanto o emprego mas­
85 Utilizamos neste item referente à Europa, os dados apresentados por Maruani culino é marcado ou pelo imobilismo ou pelo declínio, Pela
(2000 e 2002)

COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO 255


2 54 o AVESSO DO TRABALHO
í"
r

primeira vez na História do mundo assalariado, as mulheres ca e Portugal. Os últimos dados relativos.à Europa mostram
ingressaram intensamente no mercado de trabalho em um que os desníveis de salários se escalonam entre 10% e 32%.
período de desemprego e de carência de emprego. (2000: 5) (op. cit.: 5 1 )
Durante os anos de 1 960, as mulheres representavam 30%
da população ativa européia; em 1 996, essa cifra se elevou QUADRO II
para 42,5%. ( ... ) Entre 1983 e 1 996, a parcela feminina da DIFERENÇA DE SALARIOS* ENTRE HOMENS E MULHERES _

UNIÃO EUROPÉIA '995 (em - %)


população ativa aumentou em todos os países. Mesmo nos Alemanha (ex-Alemanha Oriental) .............................. 10,1%
países em que a participação feminina é tradicionalmente �Iemanha (ex-Alemanha Ocidental) ........................... 23,l.
mais avançada, o crescimento foi importante, como é
notadamente o caso da França, Portugal e Reino Unido.
Apesar do crescimento da inserção da mulher trabalhadora
no mundo do trabalho, essa inserção ocorre nos espaços em
§�' d .. : �f
::�ç: ;:��� ; :::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: :�:�
que a precarização é mais acentuada, como por exemplo, no Grécia (somente indústria) .......................................... 32,0
trabalho em tempo parcial, ou, ainda, com grande diferencia­
ção salarial. (op. cit.: 5)
Podemos notar, no quadro abaixo, que somente a Dina­
marca e a Suécia encontram-se entre os países com pequeno
desvio salarial; já a Espanha, Reino Unido, Portugal, Países
* Trata-se das remunerações em tempo integral
Baixos e Grécia encontram-se entre aqueles com níveis de e excluídas as gratificações.
A diferença é calculada, em porcentagem, entre os ganhos
mensais das mu­
diferenciação bem mais acentuados. lheres e os gànhos dos homens.
Aliás, isso configura uma situação aparentemente contra­ Fonte: Eurostat. "Enquête sur la structure des rémunérations",
in Statistiques
em bref, n<> 6, 1-999. (apud Maruani, 2000: 52)
ditória: no mesmo período histórico em que a Europa cami­
nha no sentido da unificação da sua legislação, a igualdade
de salários entre homens e mulheres não existe em nenhu­ Ao contrário, portanto, de uma pretensa equalização sa­

ma parte. Em toda a Europa, as mulheres têm salários signi­ larial nos países de capitalismo avançado da União Européia,

ficativamente menores que os homens. Mais ain.da: durante a configuração atual da divisão sexual do trabalho carrega

o decênio 1980/1990, essas desigualdades foram acrescidas consigo a persistência da segmentação e da remuneração di­

em um conjunto de países, como é o caso da Itália, Dinamar- ferenciada entre homens e mulheres.

o AVESSO DO TRABALHO C O L EÇ Ã O T R A B A L H O E E M A N CI PA Ç Ã O

..........________ J
E u ropéia, os 1 6 ,4% dos empregos em tempo parcial
Tal desigualdade é bastante acentuada quando se com­
correspondiam a 3 1 ,6% de mulheres e somente 5,5% por ho­
para o número de homens e mulheres em relação às suas
mens. Os Países Baixos são os únicos onde a proporção de
inserções nos empregos de baixos salários existentes na União
homens, a tempo parcial de trabalho, aumentou significativa­
Européia, conforme mostra o próximo quadro:
mente, quase triplicando, pois em 1983 totalizavam 6,9% de
homens em tempo parcial, chegando em 1996 a 1 7%. Mas, se
QUADRO III
VARIAÇÃO DO EMPREGO ASSALARIADO compararmos a quantidade de mulheres em tempo parcial (que
ENTRE E
1983 1998 (Em milhares) se encontra na faixa de 68,5% em 1 996), mantém-se a "regra"
Homens Mulheres Juntos da feminização do trabalho em tempo parciaL (op. cit.: 80)
+ +
539 + 2.119 2.658
Emprego total + +
241 + 1..115 1·356
Emprego de baixos salários QUADRO IV
Dos quais: + 931 + 1.198 o EMPREGO EM TEMPO PARCIAL _

Salários baixíssimos + 267


- 26 + 184 + 158 UN IÃO EUROPÉIA - 1983 -1996
Salários baixos %
do emprego % do emprego %do emprego
Fonte: tNSEE, Enquête emploi. (apud
, 11.1)
Maruani 2002:
lolal feminino masculino
1983 1996 1983 1996 1983 1996
Nesse terceiro quadro, que apresenta a variação de em­ Europa dos Dez 12,1 27.6 2.8
-
prego assalariado entre 1 983 e 1998, notamos que a grande Europa dos Quinze 16.4 31.6 5.5
maioria dos novos empregos criados é ocupada predominan­
Alemanha 12,6 16.5 30,0 33.6 1.7 3.8
Áustria 14.9 28.8 4.2
temente por mulheres, confirmando a tendência de Bélgica 8.1 14.0 19.7 30.5 2.0 3.0
feminização do mundo do trabalho. Deve-se acrescentar, ain­ Dinamarca 23.8 21,5 44.7 34.5 6.6 10.8
da, que mais da metade desses empregos percebe baixos salá­ Espanha 8.0 17,0 3.1
rios, dos quais a grande concentração se encontra na faixa de
Finlândia 11.6 15.6 7.9
França 9.7 16.0 20,0 29.5 2.5 5.2
baixíssimos salários, confirmando também uma tendência à Grécia 6.5 5.3 12,l. 9.0 3.7 3.3
"pauperização" (Maruani, 2002: 1 12) e à desvalorização do tra­ Irlanda 6.7 11.6 15.6 22,1 2.7 5.0
balho feminino, que vem caracterizando a divisão sexual do
Itália 4.6 6.6 9.4 1."2·.7 2,4 3.1
Luxemburgo 6.7 7.7 18,0 18.4 1.2 1.5
trabalho também nos países de capitalismo avançado. Países Baixos 21,2 38.1 50.3 68.5 6.9 17,0
Em relação ao trabalho em tempo parcial, qu� muitas ve­ Portugal 8.7 13,0 5.1
zes implica em salários menores e poucos direitos trabalhis­
Reino Unido 19,0 24.6 42,1 44.8 3.3 8.1
Suécia 24.5 41.8 8.9
tas, apontamos, no quadro seguinte, que, em 1 996, na União Fonte: Eurostat, Enquêtes sur les forces de travai!. (apud Maruani, 2000: 81)

COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO 259


o AVESSO DO TRABALHO

........--------------�
&2

Podemos notar que, na União Européia, a taxa de QUADRO V


AMÉRICA lATINA (9 PAfsES): ACESSO A POSTOS DE TRABALHO
feminização do trabalho em tempo parcial é de 8 1 %. Na Eu­
ASSAlARIADO SEGUNDO O G�NERO
ropa do Norte, encontram-se os níveis mais altos de Países Homens Mulheres
feminização do trabalho em tempo parcial, por exemplo, nos Ano N' % Ocupação % Sexo N' % Ocupação% Sexo
Tipo 1*
Países Baixos (68,5%), Reino Unido (44,8%), Suécia (41,8%),
Bolívia 1989 226.216 60.7 64.1 126·486 44.7 35.9
Dinamarca (34,5%) e Alemanha (31,6%). No extremo opos­ 1994 330.8n 62.9 64.1 185.028 44.4 35.9
to, na Europa do Sul, encontramos os menores índices de '997 340·537 57.8 62.6 203·527 44.9 37.4
feminização do emprego em tempo parcial, como, por exem­
Chile 1987 1.263·624 69.4 61,2 802.393 78.6 38.8
'994 1.859·322 73.6 62,1. 1.135·712 78.9 37.9
plo, a Grécia (9%), Itália ( 1 2,7%) e Portugal ( 13%). (idem 1998 1.904.487 73.9 58.3 1.362.346 8005 41.7
ibidem) Costa Rica 1988 197·312 75.1 62.6 117·744 80.5 3M
'994 230.298 73.9 61,2 146.074 78.6 38.8
'997 237·454 71.3 60.8 152.827 75.5 39.2
IV México 1984 5·996·701 79.8 68.4 2·n2·587 74.4 31.6
verificarmos que tam­
Na América Latina, apesar de 1989 7·946.210 79.7 66.4 4·012.670 no2 33.6
fem iniz ação do tra­
bém vem ocorrendo um proc esso de
1996 9·741.657 75.9 64.8 5.296.543 71.3 35.2
dos países de Uruguai 1986 380·733 73.1 60.0
balho, há algumas especificidades próp rias
253.896 72.8 40,0
exem­
'990 459·051 73,6 5705 338.615 76,4 42,5
capit alism o depen dente ou subor dinad o como, por '997 459.164 69.8 55.0 375.762 76,2 45,0
o
plo, quand o constatamos, no quadr o a segui r, que, mesm Tipo 11**

r no
com o acentuado cresc iment o da inserç ão da mulhe
Argentina 1990 1.814.789 68.7 63.1 1.060.831 70.9 36.9
1997 2.015.939 72.5 61.3 1.271.448 74,2 38.7
mund o do trabalho, ainda ocorre uma predo minân cia mas­ Colômbia 1990 713.999 68.5 58.6 503.632 73.7 41.4
culina . Na Colôm bia, por exemplo, de 1 990 a 1 997, houve 1997 895·887 61,9 51.9 829.478 72.3 48.1
uma diminu ição da força de trabalh o mascul ina de 58,6% Brasil*** 1.990 17·821.800 72,8 60,l. 1.817.000 73.7 39.9
para 5 1 ,9%, enquanto que a femini na cresceu, no mesmo
1996 18.490.021 68.1 55,9 4·582·457 75.9 44.1
Venezue!aJ-990 2.313.903 67.9 62.5 1·387·361 76.7 37,5
período , de 41,4% para 48,1 %. Podemo s citar também o '997 3.025.901 63.3 61,3 1.911.368 65,8 38,7
caso do Uruguai, onde, em 1986, os trabalhadores mascu­
Fonte: CE�AL,. bas�a o em pesqUisa nos aomlCl lOS os palses respectivos {Adaptado
por Claudia Nogueira I.
*Segundo a justific:ativa apr�sentad� por leon, os países de Tipo I são aqueles onde "as
linos compun ham 60% da força de trabalho e, em 1997, ref?rmas estruturaIs foram mtroduzldas a partir do final da década de �980 e de modo
maiS compl�to". (2002: 12)
esse percentual diminui u para 55%, e o contingente das **Os países de Tipo II são aqueles onde "as reformas foram introduzidas mais tardia­
mente, de forma parcial". ( op. cit.; �2)
trabalhadoras aumentou de 40% para 45%, nesse mesmo *** A discussão referente aos dados do Brasil será feita, de modo detalhado, no próxi­
mo .Item: ��mtlvemos
. �s dados a�resentados nas tabelas originais, para que se possa
período. ter uma Ideia comparatIVa do Bras!! com outros países da América latina.

260 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO


Portanto, da mesma forma que ocorre na União Euro­
Se os dados evidenciam uma desigualdade significativa
péia, na América Latina o crescimento da mulher no mundo
da remuneração referente ao trabalho feminino em relação
do trabalho também é nítido e as mesmas formas de
ao masculino, é muito importante lembrar que, no contexto
precarização (guardadas algumas particularidades) também
da divisão sexual do trabalho, a maior parte dos empregos de
estão presentes. Por exemplo, apesar de ocorrer uma nítida
baixos salários é realizada em tempo parcial.
diminuição salarial para toda a classe trabalhadora, entre os
Podemos verificar, no quadro abaixo, que na Bolívia,
anos de 1990 e 1998, a desigualdade do piso salarial entre
por exemplo, em 1997, em um total de 1 18.5 13 trabalhado­
homens e mulheres continuou muito acentuada no conti­
res em tempo parcial, 69.787 eram mulheres e 48.726 eram
nente latino-americano. Por exemplo, conforme Laís Abramo,
homens. N o Chile, em 495.152 trabalhadores em tempo
os salários das mulheres em 1998 correspondiam, em média,
parcial, 3 1 3 .5 1 1 eram mulheres e somente 18 1.641 eram
a 64% dos salários dos homens. Porém, no conjunto das ocu­
homens.
pações caracterizadas por condições mais desfavoráveis de
Ao compararmos a inserção feminina e masculina no tra­
trabalho e com alta concentração feminina (como, por exem­
balho em tempo parcial e integral, pudemos notar, também
plo, o serviço doméstico, as trabalhadoras por conta própria
no quadro acima, que a predominância maior da mulher ocor­
não especializadas e as mulheres empregadas em microe­
re na jornada de trabalho em tempo parcial, com exceção da
mpresas), a diferença salarial era "ln uito superior: os salários
Colômbia, que tem uma pequena diferença, a favor das mu­
das mulheres correspondiam a pouco mais da metade (52%)
lheres, em relação ao trabalho em tempo integral.
dos salários dos homens. (Abramo, 2000: 02)86
Ainda que, em termos relativos, tenha ocorrido oscilação
na participação da força de trabalho feminina, a crise no mun­
S6 Lais Abramo, ainda que possa parecer ironia, resume a "explicação patronal" do do trabalho se acentuou, acarretando, entre outras conse­
para a desigualdade salarial entre homens e mulheres da seguinte forma: "Para
qüências, enorme ofensiva neoliberal que, a partir dos anos
algunos de los empresarios consultados, las menores remuneraciones que
reciben las mujeres se deben básicamente a que ellas están dispuestas a ganar
de 1 980/1990, atingiu toda a América Latina, do qual o in­
menos que los hombres, como lo demostraría el hecho de que no es habitual tenso processo de reestruturação produtiva é prerrogativa
que negocien las ofertas de remuneraciones y que se conformen más fundamental.
rápidamente con las primeras ofertas que se les presenten. Se dice además,
Para que possamos finalizar esta análise referente à Amé­
que esta actitud tiene relación con la centralidad de lafamilia en sus vidas, lo
que significada que, para ellas, el trabajo no es una obligad6n, como si lo rica Latina, apresentaremos, a seguir, alguns dados sobre o
seda para los hombres; debido a eso estarían dispuestas a ganar menos, con desemprego feminino e a sua tendência evolutiva, em
tal de tener más tiempo para lafamilia ". (op. cit.: 6)
contraponto ao desemprego masculino.

o AVESSO DO TRABALH O
C O L E Ç A o T R A B A L H O. E E M A N C ! P A Ç A o
QUADRO VI QUADRO VII
AMÉRICA LATINA (9 PAfSES): PESSOAS OCUPADAS (ASSALARIADAS) AMÉRICA LATINA: PAfsES SElECIONADOS
SEGUNDO O SEXO E JORNADA INTEGRAL E PARCIAL TAXA DE DESEMPREGO DE HOMENS E MULHERES POR NfvEIS DE
jornada SALARIOS '990 - 1998 (Em % )
-

Menos de 40 horas 40 horas ou mais Baixo Médio Alto Total


Número % Número % 1990
Bolívia 1997 Homens .... 48.726 ........ 8.3 291.811 ...... 49.5 Homens 9.3 3,6 1,5 5,1
Mulheres ... 69·787 ........ 15.4 133.740 ...... 29,5 Mulheres 11,8 4,7 2,2 6,1
..
Total ...... .. 118.513 ....... 11.4 425.551 ...... 40,8 Diferença* 2,5 1,1 0,7 1
Chile .
Homens ... 181..641. . 7.1 o• • • • 0 1.722.700 ... 66,9 Relação** 1.26 1,3 1,46 1.19
Mulheres ... 313.511. ....... 18.5 1.048.483 .. 62,0 1998
Total .......... 495.152 ...... 11.6 2·771.183 ···· 64,9 Homens '3 5.5 2,9 7,6
Costa Rica 1997 .
Homens ... 21.002 ........ 6,4 213.287 ...... 65,0 Mulheres 19,2 8,8 4,5 11,2
Mulheres ... 31.964 ........ 16,o 119.624 ...... 60,0 Diferença* 6,2 3,3 1,6 3,6
.
Total ......... 52.966 ........ 10.0 332.911 ...... 63,1 Relação** 1.47 1.6 1.55 1.47
Fonte: Elaboração OII. com base em tabulações de
pesquisas nos domicilios
México 1996 Homens .... 1.100.549 ... 8,6 8.641.109 ... 67,3 dos países selecionados. As cifras correspondem à média
ponderada de 12 paí­
Mulheres ... 1.450.338 ... '9.5 3.846.204 .. 5',8 ses latino-americanos, como uma força de trabalho que
equivale a 91% da PEA
Total .......... 2.550.887 ... 12.6 12.487.313·· 61,7 urbana da região. ln OIT, Panorama Laboral, 1999.
* Diferença entre as taxas de desempr
Uruguai 1997 Homens .... 72.582 ........ 11.0 386.391 ..... 58,7 ego de homens e mulheres.
** Relação (coeficiente) entre as taxas
de desemprego de homens e mulheres.
Mulheres ... 170.791 ....... 34.7 204.922 ..... 41.6
Total .......... 243.373 ....... 21,1 591.313 ....... 51,4
Argentina 1997 ...•
Homens 358.716 ...... 1.3.3 1·593·809 ··· 59,2 Como podemos ver, o desemprego vem ocorrendo tanto
0• •
Mulheres 516.054 ······ 31,3 703.434 ...... 42,7 entre o contingente masculino quanto entre o feminino. No
Total .......... 874.770 ...... 20,' 2.297.243 ... 52,9
Colômbia 1997 Homens .... 86.566 ....... 6,' 797·586 ...... 55,8 entanto, os níveis do desemprego feminino têm sido mais
Mulheres .. ,129.796 ...... 11,4 695.866 ..... 61,1 intensos na' América Latina, conforme as tendências que
Total .......... 216.362 ...... 8,4 1.493.452 ... 58,1 estamos indicando nesse item. Podemos perceber também
Brasil 1996 Homens .... 2.075.838 ... 7,7 16.407.603 . 60,5 que as diferentes formas de precarização social, da qual o
Mulheres ... 4.409.075 ... 22,9 10.169.242 . 52.9
Total .......... 6.484.913 ... 14,0 26·576.845· 57,4 desemprego é um exemplo, vêm atingindo sempre de ma­
Venezuela 1997 .
Homens ... 269.504 ...... 5.6 2·756·397 ... 57,7 neira mais intensa o mundo do trabalho feminino.
Mulheres ... 431.397 ...... 14,9 1.479.971 ... 51.0 Ao analisarmos o quadro VII verificamos, por exemplo,
Total .......... 700.901 ...... 9,1 4·236·368 .. 55,1
Fonte: (EPAL, com base em tabu!ações de pesquisas nos domicílios dõs· pafses se!ecio­ que, em 1990, nos trabalhos de baixo salário, o índice de
nados. (Adaptado por Claudia Nogueira ) desemprego masculino era de 9,3% e o feminino era de
1 1 ,8%. Oito anos mais tarde, os índices de desemprego, ain-

o AVESSO 0 0 TRABA L H O COLEÇAo TRABALHO E EMANCIPAÇÃO


,----

da em relação aos trabalhos de baixo salário, aumentaram. porcentagem de homens nessa situação, e também está au­
Para os homens, ele saltou para 13% e, em relação às mulhe­ mentado nos anos de 1990." (ibidem: 3)
res, ele foi para 19,2%, indicando que o desemprego atinge Podemos concluir que, comparando os dados sobre o tra­
toda a classe trabalhadora, mas de forma muito mais intensa balho feminino referentes aos países latino-americanos com
quando se trata da força de trabalho feminina. Cabe lembrar os dados dos países europeus, apesar de ter ocorrido uma
que essa tendência apontada se mantém também nos em­ precarização do trabalho nos países de capitalismo avança­
pregos de médios e altos salários. do, foi na América Latina, particularmente após a reestrutu­
Portanto, esses elementos nos levam a afirmar que a ração produtiva e a presença neoliberal, que esse processo
desigualdade de gênero no espaço produtivo da América mais se acentuou. Isso não significa que a precarização tenha
Latina acentua-se na maioria dos itens que analisamos. ocorrido somente em relação à força de trabalho feminina,
Em contrapartida, as tendências mais favoráveis às mu­ pois, quando analisamos os dados referentes ao trabalho
lheres podem ser assim sintetizadas: a) diminui a diferen­ masculino (que não é o nosso objeto de estudo), verificamos
ça da participação entre homens e mulheres; b) diminui que as alterações ocorridas no mundo do trabalho também
moderadamente a diferença dos salários, que permanece atingiram os homens trabalhadores, ainda que de forma me­
alta; c) diminui também moderadamente a diferença do nos intensa. O que reafirma a tese de que a divisão social e
trabalho informal, ou seja, de cada 1 00 novos empregos sexual do trabalho, na configuração assumida pelo capitalis­
femininos 54 foram gerados no seror informal, sendo que mo contemporâneo, intensifica fortemente a exploração do
para os homens essa cifra alcançou a casa dos 70. (Abramo, trabalho, fazendo-o, entretanto, de modo ainda mais acentua­
2000: 3) do em relação ao mundo do trabalho feminino.
Por outro lado, persistem as tendências desfavoráveis às Nas próximas páginas deste artigo indicaremos algumas
mulheres: a) (... ) aumenta significativamente a taxa de de­ especificidades do trabalho feminino no Brasil, tomando
semprego das mulheres, em especial das mais pobres, assim como base as décadas de 1 980/1990, que se caracterizaram
como a diferença do desemprego entre homens e mulheres; fortemente pela presença da reestruturação produtiva e pe­
b) a porcentagem de mulheres ocupadas no setor informal las mutações do mundo do trabalho.
sobre o total da força de trabalho femenina é superior à por­
centagem de homens na mesma situação e está aumentado v
durante os anos de 1990; c) a porcentagem de mulheres que A tendência da feminização do trabalho (e sua acentuada
não conta com nenhum tipo de proteção social é superior a precarização) também se mantém no Brasil. No período de

266 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO


1981 a 1998 ocorreu um constante crescimento da população
economicamente ativa feminina (PEAl, chegando a alcançar
1 1 1,5% de aumento, aumento esse muito mais acentuado
que o masculino. A proporção do aumento de mulheres em
relação aos trabalhadores é nítida: salta de 3 1 ,3%, em 198 1 ,
para 40,6%, e m 199887• Nessa mesma época, o contrário ocor­
reu com os homens: recuo de 68,7%, em 1981, para 59,3%,
em 1998, como mostra o próximo quadro:

87 Segundo Cristina Bruschini, parte deste aumento, de 1993 em diante, foi


provocado pela ampliação do conceito de trabalho adotada pelo IBGE. Este
passou, desde 1992, a incluir atividades para o autoconsumo, a produção
familiar e outras até então não consideradas como trabalho. Como essas
atividades sempre foram realizadas por mulheres, os efeitos da nova metodologia
incidiram sobretudo sobre elas, enquanto as taxas masculinas permaneceram
inalteradas no período. A nova metodologia, no entanto, ainda não avançou
suficientemente a ponto de incluir a atividade doméstica realizada pelas donas­
de-casa, que continua a ser classificada como inatividade econômica. Agora
mais visíveis e em maior número, as trabalhadoras passam a representar, em
1998, uma parcela de 40,6% da força de trabalho brasileira. E acrescenta: "O
novo conceito de trabalho inclui: a) ocupações remuneradas em dinheiro,
mercadorias ou benefícios (moradia, alimentação, roupas etc.), na produção de
bens ou serviços; b) ocupações remuneradas em dinheiro ou benefícios no
serviço doméstico; c) ocupações sem remuneração na produção de bens e
serviços, desenvolvidas durante pelo menos uma hora na semana; em ajuda a
membro da unidade domiciliar, conta-própria ou empregador; em ajuda a
instituição religiosa, beneficente ou de cooperativismo, como aprendiz ou
estagiário; d) ocupações desenvolvidas pelo menos uma hora por semana na
produção de bens e na construção de edificações e benfeitorias para o uso
próprio ou de pejo menos um membro da unidade domiciliar". (Bruschini e
Lombardi, s/data)

268 o AVESSO 0 0 TRABA L H O COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO


No que diz respeito aos menores salários, a mulher encon­
tra-se sempre predominante, quando comparada aos homens.
Ambos, homens e mulheres, nos mesmos setores de ativida­
des, concentram-se em faixas distintas de salários, apontando
uma acentuada desigualdade em relação aos valores médios
pagos para os trabalhos realizados conforme o sexo. Por exem­
plo no quadro abaixo, verificamos que a mulher se encontra
presente de modo majoritário em todos os setores de ativida­
des em que o valor salarial está estipulado em até dois salários
E

mínimos; ao contrário, de modo minoritário, à medida que os o � -o
... N
M
M

ro

valores salariais vão se elevando. A única exceção é em rela­
ção ao setor agrícola, no qual, por exemplo, encontramos a
cifra de 16% de mulheres e de 55% de homens que ganham
até dois salários mínimos. No entanto, essa discrepância é
amplamente elucidada quando observamos a coluna que se
refere aos trabalhadores(as) agrícolas sem nenhum rendimen­
to, indicando que 81,9% das mulheres encontram-se nessa si­
tuação, contra 27,9% dos homens, uma verdadeira radiografia
do espaço agrário brasileiro.
Essa questão é também tratada por Hirata e Doaré ( 1999:
17/18), quando afirmam que:
As desigualdades de salário - compreendidas em trabalho igual -
são constatadas por toda parte do mundo, até em países que assina­
ram as convenções da OI1� que as proíbem. C . . ). No setar industrial ro
v

<1J 'ª
dos países desenvolvidos, o salário médio das mulheres representa " 'o
c
� o
o v
três quartos do salário masculino, devido, em parte, -a. uma menor E ..
12 "
..
.. ro
qualificação do posto, mas também a uma repartição desigual entre
os ramos econômicos e os pOStos ocupados. �
�] ro

270 o AVESSO DO TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO ",71


E acrescentam: QUADRO X.*
A divisão sexual do trabalho doméstico, com gratuidade do exer­ RENDIMENTOS DOS OCUPADOS E OCU
PADAS. POR HORAS
cício desse trabalho pelas mulheres, funda e legitima socialmente SEMANAIS TRABALHADAS - BRASIL
'995 -

Grupos de horas semanais Total


as disparidades de salários citadas acima. Assim, a divisão sexual do
trabalhadas no trabalho principal (milhões) %
trabalho situa-se no centro dessas desigualdades de estatuto e salá­ Homens
41.863.309 100
"rio. Pode-se, além disso, ressaltar que essas desigualdades são re­ Até '4 1.001.056 100
forçadas pela representação do trabalho masculino como sendo de
15 a 39 6.546.326 100
40 a 44 14.882.407 100
valor superior ao do trabalho e das "qualidades" femininas. 45 a 48 8.774.228 100
Em relação à jornada de trabalho, podemos perceber, no 49 ou mais 10.645·768 100
Mulheres 27.765.299
quadro seguinte, que, em geral, quanto menor é o tempo de 100
Até '4 3.414.902 100
trabalho, maior é a presença feminina. Por exemplo, na jor­ 15 a 39 9.620.11.6 100
nada de trabalho de 40 a 44 horas semanais, encontramos 40 a 44 7.760·331
45 a 48 100
7.760.331 mulheres. Para a mesma quantidade de horas tra­ 3.273.359 100
49 ou mais 3.689.793 100
balhadas, a presença masculina é quase o dobro, totalizando Fonte: FIBGE, PNAD 1995 Ita . . .
b 4·2] I ln Bruschlnl.
. (2000: 46), Obs.: Excluídos
a cifra de 14.882.407. Se aumentarmos ainda mais as horas casos de "Sem declaração" nos totais
das categorias.
*Adaptado por ClaUdia Nogueira
trabalhadas, para 49 horas ou mais, observamos que a relação
praticamente triplica: os homens se encontram na faixa de
10.645.768 e as mulheres na faixa de 3.689.793. Já nos traba­ Os dados apresentados mostraram que, no contexto da

lhos de até 14 horas semanais os dados mostram que são flexibilização d o mundo do trabalho, da reestruturação pro­
3.414.902 de mulheres, contra 1.001. 156 de homens; de 15 a dutiva e das políticas neoliberais, o aumento da inserção das

39 horas, temos 9.620. 1 1 6 milhões de mulheres e 6.546.326 mulheres continua ocorrendo. Portanto, a questão que se

de homens. mantém é de como compatibilizar o acesso ao trabalho pelas


mulheres, que, por certo, faz parte do processo de emanci­
pação feminina, com a eliminação das desigualdades exis­
tentes na divisão sexual do trabalho, já que essa situação de
desigualdade entre trabalhadores e trabalhadoras atende aos
interesses do capital. Isso se verifica, por exemplo, ao cons­
tatarmos que a tendência do trabalho em tempo parcial está

27 2 o A V E S S O D O T RA B A L H O C O l E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O 273
reservada mais para a m ulher trabalhadora. E isso ocorre por­
responsabilidade exclusiva d o sexo feminino". (Hirata,
que o capital, além de reduzir ao limite o salário feminino,
1999: 8)
ele também necessita do tempo de trabalho das mulheres na
Além disso, existe a conotação de que o trabalho e o salá­
esfera reprodutiva, o que é imprescindível para o seu pro­
rio feminino são complementares, no que tange às necessi­
cesso de valorização, uma vez que seria impossível para o
dades de subsistência familiar. Embora saibamos que hoje,
capital realizar seu ciclo produtivo sem o trabalho feminino
para algumas famílias, essa premissa não é mais verdadeira,
realizado na esfera reprodutiva.
pois o valor "complementar" d o salário feminino é
Portanto, se a participação masculina no mundo do tra­
freqüentemente imprescindível para o equilíbrio do orçamen­
balho pouco cresceu no período pós-1970, a intensificação
to familiar, especialmente no universo das classes trabalha­
da inserção feminina foi o traço marcante nas duas últimas
doras. (op. cit.: 8). Por isso, ao mesmo tempo em que se deu
décadas. Entretanto, essa presença feminina se· dá mais no
um enorme avanço da presença feminina no mundo do tra­
espaço dos empregos precários, em que a exploração, em
balho, esse avanço foi marcado por uma enorme precarização,
grande medida, se encontra mais acentuada, como pudemos
que vamos indicar no último item do nosso texto.
ver nas pesquisas realizadas na Europa, América Latina e no
Brasil. Essa situação é um dos paradoxos, entre tantos ou­ VI
tros, da mundialização do capital no mundo do trabalho. O Para concluirmos nosso trabalho, retomaremos a
idéia bá­
impacro das políticas de flexibilização do trabalho, nos ter­ sica que dá título ao nosso artigo - "A Feminização
no Mundo
mos da reestruturação produtiva, tem se mostrado como um do Trabalho: entre a Emancipação e a Precarizaçã
o" - tentan­
grande risco para toda a classe trabalhadora, em especial para do entender se a crescente inserção da mulher no
mundo do
a mulher trabalhadora. trabalho no capitalismo contemporâneo vem trazen
do alguns
Pelo que vimos, podemos entender que a precarização elementos que favorecem e fortalecem o complexo
processo
também tem sexo. Prova disso é que, na Europa, na Améri­ de emancipação feminina, ou se esses mesmos elementos
vêm
ca Latina e, particularmente no Brasil, a flexibilidade da (também) acarretando uma precarização diferenciada da força
jornada de trabalho feminina só "é possível porque há uma de trabalho, afetando de maneira mais intensa a mulher traba­
legitimação social para o emprego das mulheres por dura­ lhadora. A feminização do mundo trabalho é por certo positi­
ções mais curtas de trabalho: é em nome da conciliação en­ va, uma vez que permite avançar o difícil processo de
tre a vida familiar e a vida profissional que tais empregos emancipação feminina e, desse modo minimizar as formas de
são oferecidos, e se pressupõe que essa conciliação é de dominação patriarcal no espaço doméstico. Mas é também

274 o AVESSO 00 TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO 275


r

marcada por forte negatividade, pois ela vem agravando signi­ de classe social a que pert�ncem; diferenciação interna fortem
ente
ficativamente a precarização da mulher trabalhadora. marcada por práticas sociais e políticas das mulheres, notada
mente
Esse lado negativo, por sua vez, é conseqüência da forma distintas das dos homens; 2) a ocupação, que reflete o tipo de
inser­
pela qual o capital incorpora o trabalho feminino, cujas ca­ ção das mulheres na estrutura de classes.
racterísticas, como a polivalência e a multiatividade, são de­ Essa síntese nos possibilita afirmar que, na ação que bus­
correntes das suas atividades no espaço reprodutivo, o que ca a emancipação do gênero humano, há uma inter-relaçã
o
as torna mais apropriadas às novas formas de exploração pelo entre as trabalhadoras e os trabalhadores. Esse proce
sso tem
capital produtivo. Trata-se, portanto, de um movimento con­ no capital e em seu sistema de metabolismo social a fonte
da
traditório, uma vez que a emancipação parcial, uma conse­ subordinação e alienação. E a luta contra esse sistem
a de
qüência do ingresso do trabalho feminino no universo metabolismo social é, ao mesmo tempo, uma ação da
classe
produtivo (tão fortemente destacada por Engels), é alterada trabalhadora contra o capital e sua dominação (ação esta
que
de modo significativo, por uma feminização do trabalho que pertence ao conjunto da classe trabalhadora), mas é també
m
implica simultaneamente uma precarização social e um maior uma luta feminina contra as mais diferenciadas forma
s de
grau de exploração do trabalho. opressão masculina. (Antunes,1 999: 1 10)
Do mesmo modo, a nossa análise também recusa a falsa Como vimos, o capitalismo, ao mesmo tempo em que
dicotomia que freqüentemente tem sido estabelecida entre cria condições para a emancipação feminina, acentua a sua
gênero e classe. Ao contrário, essas categorias somente po­ exploração ao estabe lecer uma relaçã o aparen temen te
dem ser realmente compreendidas, quando analisadas de "harmónica" entre precarização e mulher, criando formas
modo inter-relacionado. A análise de Saffioti ( 1 997: 63/64) diferenciadas de extração do trabalho excedente. Quando se
corrobora nossa afirmação ao acrescentar que, na sociedade toma o trabalho em seu sentido ontológico, pode-se ver que
capitalista, ocorre ele possibilita um salto efetivo no longo processo da emanci­
(. .. ) a eXIstência de três identidades sociais básicas: a de gênero, a pação feminina. E, à medida que a mulher se torna assalaria­
de raça/etnia e a de classe sóciaL Não se trata, porém, de três iden­ da, ela tem também a possibilidade de lutar pela conquista
tidades autônomas, em virtude, justamente, de estarem arados os da sua emancipação, pois se torna parte integrante do con­
antagonismos que lhes dão origem. Cabe mencionar, a propósito, junto da classe trabalhadora. Isso porque, como nos mostrou
que operárias costumam identificar-se como "mulheres trabalha­ Marx:
doras", explicitando duas dimensões importantes de sua identida­ Para que coincidam a revolução de um povo e a emancipação de
de: 1) o gênero, definidor da heterogeneidade da classe ou fração uma classe particular da sociedade civil, para que uma classe valha

o A V E S S O D O T RA B A L H O COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO 277


por toda a sociedade, é necessário, pelo contrário, que todos os de­ ceiro Ivíundo' - do domínio do capital, que sempre se afirma como
feitos da sociedade se condensem numa classe, que determinada sistema incuravelmente hierárquico de dominação e subordinação.
classe resuma em si a repulsa geral, que seja a incorporação do obs­ Assim, de forma paradoxal e inesperada (pois a 'classe' das mulhe­
táculo geral; é necessário, para isso, que uma determinada esfera res atravessa todos os limites de classes sociais), a emanCipação fe­
social seja considerada como crime notório de toda a sociedade, de minina comprova ser o 'calcanhar de Aquiles' do capital: ao
tal modo que a emancipação dessa esfera surja como autoeman­ demonstrar a total incompatibilidade de uma verdadeira igualdade
cipação geral. Para que um estado seja par excellence o estado de com o sistema do capital nas situações históricas em que essa ques­
libertação, é necessário que outrO seja o estado de sujeição por tão não desaparece, não pode ser reprimida com violência (ao con­
antonomásia. ( 1 970: 1 13) trário do que acontecia com a militância de classes no passado),
Nesse sentido, importantes questões se unem em torno nem esvaziada de seu conteúdo e 'realizada' na forma de - critérios
da necessária emancipação feminina articuladamente com formais vazios. (op. cit.: 224)
o processo de emancipação geral da sociedade. Como nos Isso recoloca a interconexão imprescindível entre gêne­
lembra Mészáros (2002: 223), as "promessas não cumpri­ ro e classe, especialmente quando a perspectiva é a da eman­
das e impossíveis de serem realizadas pelo sistema do capi­ cipação humana ou social. Nesse sentido, cabe lembrar que
tal transformam a grandiosa causa da emancipação feminina o processo de emancipação feminina não se resume unica­
numa impossibilidade dentro do domínio do capital." Por­ mente nas suas relações diretas com o capital, no espaço pro­

,
tanto, não há nenhuma outra forma de se alcançar a eman­ dutivo, mas que está presente também nas especificidades
cipação da mulher, "que veio à tona há muito tempo, mas das suas funções reprodutivas. E, ainda segundo o autor:.
adquiriu urgência num período da história que coincidiu A verdadeira igualdade dentro da família só seria viável se pudesse
com a crise estrutural do capital", sem que ocorra ·uma me­
tamorfose "substantiva nas relações estabelecidas de desi­ i reverberar por todo o 'macrocosmo' social - o que, evidentemente,
não é possível. Essa é a razão fundamental pela qual o tipo de famí­
gualdade social."
E complementa o autor, afirmando que devemos:
I lia dominante deve estar estruturado de maneira apropriadamente
autoritária e hierárquica. Deixando de se adaptar aos imperativos
(... ) enfrentar não apenas a exigência de emancipação feminina, estruturais gerais do modo de controle estabelecido - conseguindo
mas também suas associações inerentes relativas à necessária eman­ afirmar-se nos ubíquos 'microcosmos' da sociedade, na validade e
cipação dos seres humanos em geral - tanto em termos estritos de no poder de auto-realização dos intercâmbios humanos baseados
classes nos países de capitalismo avançado, quanto nas perversas na verdadeira igualdade-- a família estaria em direta contradição ao
relações destes com as massas ultra-exploradas do chamado 'Ter- ethos e às exigências humanas e materiais necessárias para assegu-

o AVESSO 0 0 TRABA L H O C O L E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O 279


rar a estabilidade do sistema hierárquico de produção e de repro­ o contingente masculino e o feminino. Assim, o processo de
dução social do' capital, prejudicando as condições de sua própria feminização do trabalho tem um claro sentido contraditório, mar­
sobrevivência. (op. cit.: 271) cado pela positividade do ingresso da mulher no mundo do traba­
Podemos perceber, portanto, que uma relação de igualdade subs­ lho e pela negatividade da precarização, intensificação e 'ampliação
tancial no espaço reprodutivo (como no espaço produtivo) não é do das formas e modalidades de exploração do trabalho. Enfim, é nes­
interesse e, nem tampouco, faz parte da lógica do capital, que no sa dialética que a feminização do trabalho, ao mesmo tempo, eman­
máximo "permite" uma relação de igualdade apenas formal. Já Marx cipa, ainda que de modo parcial, e precariza, de modo acentuado.
( 1 983: 166/167) nos lembrava que. na "relação com a mulher como Oscilando, portanto, entre a emancipação e a precarização, mas
a presa e a criada da luxúria comunitária está exprimida a degrada­ buscando ainda caminhar da precarização para a emancipação.
ção infinita em que o ser humano existe para si mesmo, pois o se­
gredo dessa relação tem a sua expressão inequívoca, decidida,
manifesta, desvelada, na relação do homem com a mulher e no
modo como é tomada a relação natural, imediata do gênero."
Tudo isso evidencia que o capital se opõe frontalmente ao processo
de emancipação da mulher, visto que ele necessita, para a preser­
vação do seu sistema de dominação, do trabalho feminino, tanto no
espaço produtivo quanto no reprodutivo, preservando, em ambos
os casos, os mecanismos estruturais que geram a subordinação da
mulher.
Desse modo, o nosso texto procurou mostrar, por um lado, que o
ingresso da mulher no mundo do trabalho é um avanço no seu pro­
cesso emancipatório, ainda que este seja limitado e parcial. Mas,
por outro lado, esse avanço encontra-se hoje fortemente compro­
metido, à medida que o capital vem incorporando cada vez mais o
trabalho feminino, especialmente nos estratos assalariados indus­
triais e de serviços, de modo crescentemente f)recarizado,
informalizado, sob o regime do trabalho parI-time, temporário etc.,
preservando o fosso existente, dentro da classe trabalhadora, entre

280 o AVESSO DO TRABALH O COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO


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As reivindicações feitas pelos caminhoneiros denuncia­
ram à sociedade uma série de problemas que os mesmos vêm
enfrentando nas rodovias brasileiras, no seu dia-a-dia de tra-

SS Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Unesp, campus


de Araraquara, sob orientação da Professora Doutora Maria Aparecida de
Momes Silva.
89 Revista [stoé. n" 1557, 4/8/1999, p. 27.

o AVESSO DO TRABALHO
r balho, tais como: preços abusivos dos pedágios, baixos pre­ portando rodos os tipos de cargas: alimentos, matérias-pri­
ços dos fretes, longas jornadas de trabalho, roubos de cargas, mas, produtos industrializados, químicos e explosivos. É co­
fiscais rodoviários corrupros e rodovias mal conservadas. mum esses trabalhadores permanecerem nas estradas dez,
Sem dúvida, os caminhoneiros constituem-se numa ex­ vinte dias, ou até mais de um mês, realizando viagens de
pressiva categoria de trabalhadores, cuja participação no trans­ longas distâncias e longe de suas famílias. Seu convívio social
porte rodoviário de cargas é efetivamente essencial à diário restringe-se aos encontros com colegas de trabalho nos
economia brasileira. Dentre 1,2 milhão de caminhoneiros, postos e restaurantes de estrada e aos acenos aos conhecidos
350 mil são autónomos, ou seja, proprietários dos veículos. O durante a extensa caminhada.
seror conta ainda com 50 mil transportadores de cargas pró­ Analogamente às "mãos" da estrada, os caminhoneiros
prias e 12 mil empresas transportadoras rodoviárias de car­ vivem entre a ordem e a desordem, a liberdade e a constrição,
ga.90 Desse modo, a importância dos caminhoneiros na vida o excesso de trabalho e o desemprego, a coragem e o medo,
económica do país pode ser traduzida por eles mesmos, atra­ o rigor da lei e o poder do crime organizado, aos quais estão
vés de um simples adesivo estampado nos pesados veículos, expostos, ora como vítimas, ora como vilões. Ao contrário
com a frase "sem caminhão este país não anda". dos trabalhadores que ocupam um mesmo espaço físico e
Podemos afirmar que a categoria dos motoristas rodoviá­ fixo ao longo da jornada de trabalho, os caminhoneiros que
rios de cargas está organizada de forma bastante heterogê­ realizam percursos de longas distâncias permanecem, durante
nea. Enquanto uma parte realiza seu trabalho apenas em áreas seus trajetos, afastados das aglomerações da vida urbana. No
urbanas, sem percorrer rodovias estaduais e/ou federais, ou­ entanto, as cidades são seu ponto de partida e de chegada,
tra parte dedica-se a pequenos itinerários, nas estradas permanecendo, contudo, estranhos a elas. Na maioria das
vicinais. Nos dois casos, o caminhoneiro pode retornar à sua vezes, o contato limita-se ao local de destino da carga. Por­
casa ao final da jornada de trabalho. Sua presença em face da tanto, independentemente da sua posição na organização do
família é praticamente diária. Há ainda um terceiro grupo de trabalho - empregado ou autónomo - ambos estabelecem
caminhoneiros que realiza viagens de longos percursos, tan­ relações sociais com empresas de vários portes, cujo objetivo
to nas principais rotas nacionais e internacionais de abasteci­ é a distribuição das mercadorias.
mento, demarcadas por rodovias muito movimentadas, Um outro aspecto singular dessa profissão consiste no seu
quanto em localidades pitorescas de regiões longín g uas, trans- caráter de "trabalho masculino". Todavia, apesar da presen­
ça majoritária de homens ao volante dos caminhões, as mu­
90 lbidem. lheres vêm diluindo as fronteiras às quais demarcam os limites

286 o AVESSO DO TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO


í entre "trabalho masculino" e "trabalho feminino". Na refe­
rida profissão, a participação feminina tem sido constante,
so de socialização. São eles: virilidade, coragem, força física,
autoconfiança, ausência do medo, entre outros. O trabalho e
a sexualidade representam os principais elementos
ainda que tímida se comparada ao número expressivo de ca­
definidores da masculinidade. Desse modo, seu desempe­
minhoneiros do sexo masculino.
nho é colocado à prova tanto na esfera pública quanto na
Nossa análise buscará entendê-los a partir das relações
esfera privada. Mas embora os valores acima citados apre­
de gênero e de classe. No tocante às "relações de gênero",
sentem-se como "tradicionais", podemos considerar outras
estas não se restringem às diferenças sexuais (no sentido bio­
masculinidades. Ou seja, ainda que estejam "condenados a
lógico), ou seja, não se limita às relações entre homens e
vencer", muitos homens vêm questionando o papel social a
mulheres, como condição determinante para as desigualda­
eles atribuído e buscam novas referências, ao recusarem a
des de gênero. Assim, há que considerarmos as relações so­
imagem do "homem sem fraquezas." No caso dos caminho­
ciais construídas inclusive entre sujeitos do mesmo sexo. O
neiros, a incorporação dos tradicionais atributos da masculi­
gênero tomado somente a partir das diferenças sexuais re­
nidade é condição básica para o exercício da profissão, tanto
sultaria na universalização dos sujeitos, vindo a dificultar a
para os homens quanto para as mulheres. Tal aspecto reforça
articulação das diferenças entre mulheres e Mulher e entre
a noção de que o gênero é uma construção social e não bioló­
homens e Homem (Lauretis, 1 994, p. 207). Outra definição
gica.
que nos permite uma melhor compreensão do conceito de
gênero é dada por Scott, ao identificá-lo como uma forma de Noutra perspectiva, tomaremos como referência a noção

expressão do poder: "O gênero é um elemento constitutivo de "classe social" elaborada por Thompson. Segundo o au­

de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas tor, a classe social não se restringe às relações de produção,
entre os sexos, e o gênero é um primeiro modo de dar signi­ mas a todo o conjunto das relações sociais, nas suas mais va­
ficado às relações de poder." (Scott, 1 990, p. 14). Tais con­ riadas práticas cotidianas: "a classe acontece quando alguns
cepções nos auxiliarão no entendimento das relações de homens, como resultado de experiências comuns (herdadas
gênero nas esferas do trabalho e da família entre os cami­ ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus in­
nhoneiros. teresses entre si, e contra outros homens cujos interesses
Uma abordagem que se faz necessária no estudo das re­ diferem (e geralmente se opõem) dos seus" (Thompson,
lações de gênero diz respeito à noção de mascul!nidade. Se­ 1997, p. 10).
gundo Nolasco ( 1 995b), valores, modelos e comportamentos Embora Thompson não se refira diretamente às relações
designados aos homens lhes são incutidos durante o proces- de gênero, sua definição de "classe social" possibilita-nos tal

288 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO


abertura, uma vez que o autor introduz elementos históricos
do-nos na literatura disponível e na pesquisa empírica basea­
e culturais na análise da constituição dos sujeitos enquanto
da em entrevistas com caminhoneiros e alguns de seus familia­
classe. Nesse caso, o termo "experiência", cunhado pelo au­
res (esposa e filhos). Utilizaremos, ainda, recortes das
tor, está vinculado à noção de "prática humana": "a experiên­
entrevistas. Outra experiência acerca do trabalho de campo
cia é um termo médio necessário entre o ser social e a
consistiu numa viagem entre os Estados de São Paulo e Bahia,
consciência social: é a experiência (muitas vezes a experiên­
na qual acompanhamos duas mulheres caminhoneiras, a fim
cia de classe) que dá cor à cultura, aos valores e ao pensa­
de obtermos uma melhor compreensão do cotidiano desses
mento: é por meio da experiência que o modo de produção
trabalhadores. Acreditamos, assim, que os dados registrados
exerce uma pressão determinante sobre outras atividades: e
na "pesquisa de observação" nos darão suporte para a discus­
é pela prática que a produção é mantida" (Thompson, 1 981,
são aqui proposta.
p. 1 1 2). Daí a relevância do universo cultural-histórico na
análise dos sujeitos enquanto classe. Ao considerarmos que EMPREGADOS E AUTÔNOMOS: ALGUMAS PARTICULARIDADES
as relações entre as classes não se esgotam nas relações eco­ A idade dos motoristas de caminhões varia entre 18 e 60
nómicas, as "experiências de gênero" revelam que os fatos anos ou mais. A principal característica que os diferencia re­
cotidianos ocorrem distintamente para homens e mulheres, fere-se à sua posição na organização do trabalho: emprega­
ainda que pertencentes a uma mesma classe social (Saffioti, dos ou autónomos. Considera-se "autónomo" o caminhoneiro
1992, p. 191). De acordo com Lauretis ( 1994), trata-se de proprietário de um único caminhão com o qual ele próprio
"sujeitos múltiplos", pois os mesmos atuam num campo so­ trabalha.
cial heterogêneo. Quanto às relações de trabalho, o empregado é assegura­
A partir das concepções acima tratadas, pretendemos dis­ do pelos direitos trabalhistas (férias, 13° salário, Fundo de
correr sobre o grupo composto pelos motoristas de caminhões Garantia etc.). Para viagens de longos percursos, o motorista
que permanecem longos períodos na estrada, destacando ou­ recebe salário em torno de 1 2% do valor total de fretes trans­
tras singularidades que os caracterizam. Cabe ressaltar que esta portados por ele durante o mês. Trata-se, pois, de salário por
tarefa nos impõe um grande desafio, já que se trata de um produtividade: mais fretes, maiores salários. As despesas com
tema ainda pouco estudado. A Sociologia, bem como as de­ o veículo, tais como combustível, manutenção e pedágios
mais áreas do conhecimento oferece-nos uma es�assa produ­ são pagas pela empresa de transporte, mas os gastos pessoais
ção de estudos voltados à organização do trabalho dos do motorista, como alimentação, são custeadas por ele mes­
caminhoneiros. Dessa forma, buscaremos retratá-los apoian- mo. Por sua vez, o motorista autónomo recebe o valor total

o AVESSO DO TRABALHO C O L EÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO


de cada frete, mas as despesas da viagem são custeadas pelo os mais variados tipos de cargas, enquanto a maioria dos
próprio caminhoneiro. caminhoneiros autônomos transporta as chamadas cargas
O valor do frete é calculado por quilometragem ou por secas.
tonelada. Além disso, a cotação do frete varia de acordo com A mobilidade social entre os caminhoneiros é muito pouco
O tipo de carga. Quando ocorrem atrasos na entrega da mer­ flexível, embora ocorram mudanças da posição de emprega­
cadoria, as empresas contratantes do serviço de transporte do para autônomo, ou do sentido inverso. No tocante à aqui­
praticam descontos sobre o valor do frete pago aos mororis­ sição de um caminhão, três estratégias foram apontadas pelos
tàs empregados e autônomos No caso do autônomo, é co­ informantes: a primeira é indicada pelo presidente do Sindi­
mum este receber parte do valor do frete no momento da cato dos Caminhoneiros Autônomos do Estado de São Paulo
contratação e a outra parte somente quando a carga for en­ (SINDICAM-SP). De acordo com O informante, um empre­
tregue no local de destino. gado pode se tornar autônomo quando a empresa paga-lhe
Há outras subdivisões conforme o tamanho do caminhão parte (ou valor total) de sua demissão com um caminhão usa­
e os tipos de cargas. A carreta é um veículo de grande por­ do. Geralmente, o veículo oferecido ao caminhoneiro já tem
te, com quatro eixos ou mais, podendo transportar cargas vários anos de vida útil. Não se trata, todavia, de uma prática
com peso superior a 40 toneladas; o truck é um caminhão de adotada por todas as empresas.
médio porte, com três eixos e suporta carga em torno de 15 . "É conveniente para os dois. Em vez de estarem brigando, recla­
toneladas; o toco é um pequeno caminhão com apenas o mando e voltando ao desemprego, aquele empregado passa a ser
eixo de tração. Os tipos de cargas são conhecidos como: carga patrão dele próprio, tendo um caminhãozinho. Está avançada a idade
horária: composta por produtos perecíveis, cujo transporte do caminhão? Está, mas ele passou a ser dono de um caminhão que
é feito em curto prazo de tempo para evitar sua deteriora­ é uma coisa dele e que todo mundo que trabalha quer adquirir,
ção, tais como frutas e verduras; carga perigosa: compõe-se quer ser dono de alguma coisa." (sindicalista, 42 anos)
de produtos químicos e inflamáveis, como por exemplo, A segunda forma de obter um caminhão ocorre a partir
combustíveis, solventes, tóxicos, explosivos e gases; carga da venda de um imóvel, sendo este, por vezes, o único
viva: refere-se ao transporte de animais, como aves e gado; patrimônio do futuro êaminhoneiro autÔnomo. Ou seja, co­
carga seca: abrange uma infinidade de mercadorias, como loca-se em risco a garantia de outros bens já adquiridos, uma
madeiras, papéis, pneus, móveis, roupas, cigarfQs, equipa­ vez que a compra de um caminhão requer grande investi­
mentos eletrônicos, remédios, brinquedos, artigos de higie­ mento. Três depoimentos atestam essa forma de aquisição
ne e limpeza etc. Os caminhoneiros empregados transportam do veículo:

o AVESSO DO TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO


"A gente tinha apenas uma casa. Nós vendemos ela pra iniciar al­ Do contrário, um grande prejuízo poderia forçá-lo a se
guma coisa. Então, compramos um caminhão pra começar a sobre­ transferir para Outro ramo de atividade, ou trabalhar como
viver." (caminhoneira autônoma, 49 anos) caminhoneiro empregado. Diante da isenção do ônus advindo
"Ele já tinha um caminhão que ele entregava leite. Aí ele vendeu do veículo e dos custos das viagens, alguns caminhoneiros
esse caminhão, vendeu um terreno que a gente tinha também, e preferem trabalhar como empregados:
ele comprou outro caminhão à vista, com o dinheiro do terreno que "A desvantagem de ter o caminhão é sobre os gastos que estão
vendeu." (esposa de caminhoneiro, 54 anos) aumentando demais e o frete é baixo. Então, vai chegando um cer­
"Meu tio tinha um predinho em São Paulo. Ele fez três aparta­ to ponto que ter um caminhãozinho não compensa porque a minha
mentos, vendeu um por 80 mil real e comprou uma carreta pra renda é pouca pra muito gasto. Dá mais é pra firma que é grande e
ele." (caminhoneiro autônomo, 24 anos) o frete é certo. E u mesmo estava com vontade de comprar um
Por fim, a terceira estratégia usada para iniciar o trabalho caranguinho de novo pra mim começar a trabalhar, mas já estou
como autônomo, entre os caminhoneiros mais jovens, con­ fazendo as contas e acho que não compensa." (caminhoneiro em­
siste no repasse do mesmo veículo de pai para filho, ou o pai pregado, 50 anos)
adquire, através de empréstimos, outro caminhão para o fi­ A partir da inserção no espaço familiar e de trabalho dos
lho trabalhar na mesma profissão. caminhoneiros abordaremos outros aspectos do seu univer­

"O meu pai tem uma carreta só dele e ele viaja com ela. É um so social que nos foram evidenciados.

Volvo 91, modelo 92. Ele acabou de pagar. Esse aqui é de 'a meio'
o CARREGAMENTO
do meu pai com o meu tio. Nieu tio também tem outrO que ele
viaja. Meu pai me deu esse caminhão pra mim trabalhar. " (cami­ OS postos ou agências de cargas funcionam como inter­
nhoneiro autônomo, 24 anos) mediários entre as empresas e os caminhoneiros. O motoris­
Nem sempre a posição de autônomo representa melho­ ta dirige-se ao pátio com seu respectivo veículo e, em seguida,
res condições materiais cm relação ao empregado. Para o pri­ inscreve-se na sala do agenciador - também conhecido por
meiro, as despesas referentes ao caminhão recaem sobre o "chapa" ou atravessadoro Este é o responsável pela negocia-
próprio trabalhador. Sendo assim, o pagamenro de seguro ção dos fretes, através de contato telefônico com as empre­
contra roubo e acidente é fundamental para o autônomo sas que solicitam o serviço de transporte de cargas. À medida
manter-se na profissão.91 que surgem as ofertas de fretes, os caminhoneiros são aten­
didos por ordem de chegada. Caso haja interesse na propos­
91 Segundo a declaração de um informante, um 1998, o valor pago pelo seguro
da sua carreta, ano 1990, foi de R$ 5.000,00. ta oferecida pelo agenciador, o caminhoneiro paga-lhe certa

29 4 o AVESSO D O TRABA L H O COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO 295


taxa pelo serviço prestado e se dirige à empresa para fazer o rodoviário de cargas, têm se voltado ao debate sobre o perfil
carregamento. adequado a ser adotado por empresas e motoristas para se
O tempo de permanência nos postos de cargas pode ter atingir uma boa negociação entre as partes. Nessas publi­
duração de algumas horas ou até de vários dias. Alguns pos­ cações enfatiza-se a necessidade de um maior cuidado com
tos dispõem de infra-estrutura para atender aos caminhonei­ a aparência do motorista e do próprio veículo. Muitos ade­
ros, enquanto outros não oferecem nenhuma segurança, sivos, fotografias de mulheres nuas, frases e penduricalhos
expondo-os a riscos de assaltos, principalmente durante à estampados no caminhão podem causar certo desprestígio
noite. O contato direto entre caminhoneiro e empresa ao motorista, perante a empresa contratante do serviço de
solicitante do serviço de transporte se dá quando há referên­ transporte:
cias pessoais de ambas as partes. "Cuidado com a aparência, cortesia, atenção com os clientes da
Os postos de cargas atendem não somente aos cami­ empresa, com o aspecto do veículo... São requisitos para os novos
nhoneiros autônomos, mas também aos caminhoneiros em­ tempos que estão aí. '_0 Durante a viagem, você pode e deve ficar
pregados. Estes requisitam os serviços dos postos para mais à vontade, mas nas pontas, na transportadora e no destinatá­
evitarem retornar à cidade de origem, com o caminhão rio, sua aparência deve ser a melhor possível."92
vazio, pois seus ganhos dependem da sua produtividade, "Se você carrega um produto para a Nestlé, você representa a em­
entendida como quantidade de viagens realizadas. Então, presa no cliente, daí a importância cada vez maior que as empresas
os motoristas dirigem-se a esses locais no intuito de nego­ transportadoras e embarcadoras de carga estão dando ao cuidado
ciarem o transporte de carga para qualquer cidade que que o motorista tem consigo próprio: andar barbeado. e de roupa
esteja inserida nos seus trajetos de volta. Para o motorista limpa pode fazer a diferença.""
autônomo, a procura por fretes não se restringe a determi­ A tradicional vestimenta do caminhoneiro composta por
nado itinerário. Desde que a oferta lhe seja conveniente, camiseta, bermuda, chinelos e boné tem influenciado na
o proprietário do caminhão segue para as mais diversas condução das relações sociais entre motoristas e certas em­
localidades. presas. Os próprios entrevistados denunciam as dificuldades
Certas empresas têm dado preferência a contratar ser­ que enfrentam durante o contato com os contratantes do ser­
viços de motoristas cujos caminhões sejam mais novos. viço de transporte:
Da mesma forma, tem-se discutido sobre a irpportância
da boa apresentação do trabalhador. As revistas Caminho­
92 Revista Caminhoneiro, ano XV, nO 152, setembro/1999, pp. 40-4l.
neiro e Carga Pesada, especializadas no setor de transporte 93 Revista Carga Pesada, ano XIII, junho/1999, p. 6.

o AV E S S O D O T R A B A L H O COlEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO 297


I

I
i

"Quando meu marido vai carregar, ele passa por transtornos gran­ submeterem às propostas menos vantajosas, cujos valores são
des dentro das firmas. Às vezes, está quente e ele tem de botar irrisórios, considerando-se os gastos do veículo e o custo de

calça, usar sapato. Nem tanto pelo risco que corre ou que pode cada viagem.
surgir dentro da firma, mas por ética mesmo. Tem de estar vestido A nova dinâmica de distribuição de mercadorias mostra­

I
daquele jeito." - Eles não gostam de caminhoneiro com chinelos e se como um reflexo do processo de globalização, marcado

bermuda? - "Não gostam. Então, por ética da firma tem de ir da­ pela internacionalização das relações económicas. O rigor do
I tempo industrial ecoa nos demais setores da economia e,

II'
quele jeito. Isso se torna difícil porque tem de tirar lona e botar
lona no caminhão. Tem de estar subindo e descendo da carreta e nesse caso, o serviço de transporte rodoviário de cargas é atin­
de calça fica muito difíciL E ainda com o calor que está e com o gido pelas exigências das empresas: as mercadorias devem

movimento faz suar muito, cansa. Com essa roupa fica pior. Antes chegar aos seus destinos no menor tempo possível, transpor­
de chegar na firma tem de se trocar." (caminhoneira, 29 anos, que tadas por trabalhadores qualificados e, de preferência, nos

acompanha o marido - caminhoneiro empregado - nas viagens e melhores veículos. Ainda que os caminhoneiros emprega­

também dirige o caminhão). dos e autónomos - encontrem-se dispersos no espaço de tra­

O novo modelo disciplinar cstabelecido pelas empresas, balho e, no caso dos primeiros, longe do olhar do patrão, o
além do vestuário do caminhoneiro, consiste na redução do autocontrole da disciplina desses trabalhadores mostra-se

tempo de duração das viagens. Daí a preferência pela bastante eficaz. Portanto, aqueles que não atenderem às de­

contratação de motoristas que disponham de caminhões mais terminações do contratante, apresentando-se como "corpos
novos e com melhor desempenho na estrada. disciplinados" (Foucault, 1998), perderão os seus lugares.

"Quando eu carregava mamão da Bahia para Porto Alegre eram


quatro dias pra vir e hoje eles (os patrões) estão dando só dois dias. TRABALHO E SAÚDE
Uns guris novos carregam num caminhão novo, caminhão bom e se Na estrada, o caminhoneiro convive com as mais varia­

mandam. Aí fazem em dois dias, né? Chega lá, o cara corta o horá­ das situações de risco, tais como acidentes, assaltos, intem­

rio. Em vez de dar aquele período que era de quatro dias, se o cara péries, problemas mecânicos no veículo, além das próprias

fez em dois dias, o patrão corta pra dois dias." (caminhoneiro em­ condições de saúde (fome, sono, cansaço, dores musculares

pregado, 38 anos) etc.). Diante de tantas adversidades, o exercício dessa pro­

Podemos, assim, notar uma tendência à seleção de cami­ fissão requer do motorista a incorporação dos tradicionais

nhoneiros e de veículos. Por sua vez, os motoristas "excluí­ atributos da masculinidade: autoconfiança, coragem, força

dos" das melhores ofertas de fretes acabam por se física, ausência de medo, espírito aventureito, controle das

COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO 299


o AVESSO DO TRABALHO
emoções, virilidade etc. Ainda que entendido como um tra­
balho masculino, esses elementos estão presentes também
Embora nem todos os caminhões disponham do tacógrafo ­
controlador de velocidade denominado entre os caminhoneiros
I
entre as mulheres caminhoneiras. como "olho do patrão" - esse equipamento vem a reforçar a
Somada- aos condicionantes apresentados acima, a exi­ autodisciplina do trabalhador (Vitorello, 1999, pp. 103-4).
gência da produtividade torna-se mais um desafio para a A carga horária é pouco apreciada entre os caminhoneiros
realização do trabalho. Conforme propõe Dejours ( 1 992), porque exige um tempo muito curto para seu transporte. Caso
a produtividade está diretamente relacionada à ansieda­ haja qualquer imprevisto durante a viagem, como problemas
de, ao medo e ao sofrimento do trabalho. Tal concepção mecânicos no caminhão ou bloqueios na estrada, em pouco
pode ser constatada entre os caminhoneiros. Para atingir tempo a qualidade da mercadoria estará comprometida. Por­
alta produtividade, o motorista submete-se a um ritmo tanto, o ritmo de trabalho é ainda mais acelerado. Ainda em
intenso de trabalho, cuja jornada chega a superar 18 horas 1961, Vilaça ( 1 987) constatou que a "carga de deterioráveis"
diárias: era desprezada pelos caminhoneiros. As queixas dos atuais
"A gente sente o cansaço porque a nossa rotina é numa faixa de 1 8 motoristas, a respeito das cargas de produtos perecíveis, evi­
horas por dia, quando não toca94 direto! O desgaste é físico e men­ denciam que, passados quase 40 anos, praticamente a situa­
tal." (caminhoneiro empregado, 50 anos) ção do transporte desse tipo de carga não apresentou melhorias.
O trabalhador torna-se responsável pela racionalização do No entanto, como as empresas estipulam o prazo para a entre­
tempo e da autodisciplina. Seu tempo destina-se ao traba­ ga da carga, outras mercadorias, além das que compreendem
lho. Em qualquer atividade vigora a economia do tempo: os produtos perecíveis, têm sido também consideradas "car­
dormir, comer, descansar: gas horárias." Assim, possíveis incidentes durante a viagem
"O tempo é o inimigo de todo o nosso sossego. No tempo está geram alto estado de ansiedade ao caminhoneiro. N a tentati­
vencendo prestação, é conta de pneu, é um cheque que você va de neutralizar o "sofrimento psíquico", o trabalhador utili­
deu lá no posto que você abasteceu. Quando você está parado, za-se de mecanismos que o colocam efetivamente em risco,
sem carregar, você está preocupado porque os dias estão passan­ como dirigir em alta velocidade, trabalhar por longos períodos
do, as despesas continuam e você está sem ganhar. A gente está sem descanso e fazer-- ultrapassagens em locais perigosos da
sempre correndo contra o tempo." (caminhoneiro autônomo, 39 estrada.
anos) As cargas perigosas e determinadas cargas bastante visa­
das para roubo provocam constantes tensões ao caminhonei­
94 Tocar: dirigir o caminhão. ro. No tocante às cargas de produtos inflamáveis, o medo

300 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO )01


volta-se principalmente aos riscos de acidentes, pois um va­
zamento da carga pode gerar uma explosão com conseqüên­
Uma vez que o aumento da produtividade está diretamente
relacionado ao baixo valor dos fretes, o caminhoneiro busca
{
cias graves ao motorista, à população e ao meio ambiente. estratégias para manter a resistência física ao se submeter às
Quanto às cargas visadas para roubo, a tensão caracteriza-se longas jornadas de trabalho. Uma prática bastante comum é o
pelo risco de o motorista sofrer violência em caso de assalto. consumo de remédios, cujos efeitos colaterais são a inibição
Dentre os produtos de maior interesse destacam-se pneus, do sono, da fome e do cansaço físico e mental, entre outros.
charque, café, cigarro, bebidas, leite em pó, roupas, medica­ Conhecidos pelos caminhoneiros como "rebites", na verda­
mentos e equipamentos eletrônicos. As cargas roubadas são de, tais medicamentos provocam efeitos devastadores, além
rapidamente destinadas aos receptadores. da dependência psicológica.
Seguindo a perspectiva abordada por Dejours ( 1 992) so­ De acordo com o Dr. Lambros Katsonis, especialista em
bre a relação entre trabalho e medo, o caminhoneiro vivencia Medicina de Tráfego, pós-graduado em Medicina do Tra­
tal sentimento individualmente, já que seu trabalho é solitá­ balho e Gastroenterologia, membro titular e diretor cultu­
rio. Além disso, o mesmo convive com riscos inerentes ao ral da Associação B rasileira de Acidentes e Medicina de
trabalho e exteriores à sua conduta. O caminhoneiro torna­ Tráfego, os efeitos decorrentes do uso de "rebites" são: "de­
se, então, um vigilante permanente do veículo. Os locais de pendência psicológica, diminuição da capacidade de dirigir
parada para as refeições e descanso são cuidadosamente ob­ e de operar máquinas, disfunção social, como excitação,
servados. A frase de pára-choque de caminhão - sou escravo agitação, insônia, angústia, nervosismo, tremores, ansieda­
da minha obrigação - retrata a mesma idéia elaborada por de, irritabilidade, agressividade, tonteira, dor de cabeça,
um informante: dores musculares, aumento da atividade da fala, diminui­
"Eu sou escravo do meu trabalho! Eu sou escravo do caminhão! ção da acuidade olfativa, confusão, depressão, delírio, alu­
Eu fico o tempo inteiro tomando conta e dando conta do cami­ cinações, estados de pânico, tendência ao suicídio e
nhão! A vida inteira, noite e dia, dircw. Sempre tem que estar olhan­ homicídio, convulsões e coma, diminuição da libido, impo­
do o caminhão, sempre tcm que estar apcrrando alguma coisa, tência, diminuição do apetite e da sudorese, levando à fe­
sempre tem que estar de olhol Se eu estou num restaurante almo­ bre, secura na boca, paladar desagradável, diminuição da
çando ou jantando, eu tenho que estar de olho ligado pra ver se não acuidade gustativa, diarréia, prisão de ventre, náuseas, vô­
tem ninguém mexendo. Sempre ponho de frente, pra ficar sempre mitos, desconforto abdominal, queda de cabelo, urticária,
de olho nele, pra não tcr problema depois." (caminhoneiro empre­ erupção da pele e eritema, depressão da medula óssea com
gado, 39 anos) diminuição dos glóbulos brancos do sangue, palpitação,

302 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO 303


taquicardia, aumento da pressão arterial, arritmias cardía­ teiramente previsível, pois depende da dose consumida.
cas e angina de peito. Nas mulheres pode ocorrer irregula­ Sendo assim, o motorista tende a fazer uso do mesmo por
ridade menstrua!.95 várias vezes durante a viagem:
O consumo de tais remédios é, de certa forma, velado "Quanto tempo você já ficou acordada direto, sob efeito de 'rebi­
entre os caminhoneiros, pois, em geral, sua aquisição se dá tes' ? - E u já fiquei quatro dias e quatro noites. Eu carreguei melão
de forma ilegal, nos postos das estradas, sem orientação ou em Mossoró-RN. Foi numa viagem de Mossoró a São Paulo. Me­
receita médicas. Assim, no caso de uma apreensão pela Po­ lão é carga horária." (caminhoneira autônoma, 32 anos)
lícia Rodoviária, o motorista poderá sofrer penalidades e Outro risco referente ao consumo de "rebites" consiste
seu veículo poderá ser retido. Durante a viagem, o medica­ no momento em que o mesmo deixa de fazer efeito. Em
mento é mantido no caminhão em local que garanta a segu­ poucos instantes, o motorista pode vir a dormir no volante
rança do motorista, caso este submeta-se a uma vistoria pelas do caminhão, comprometendo a segurança de todos que tra­
autoridades rodoviárias. Entre os próprios caminhoneiros, fegam pela estrada. Assim como indica Vitorello (1999), o
a não-divulgação do consumo de "rebites" está ainda atre­ caminhoneiro desafia e se expõe aos perigos simultaneamen­
lada à preservação da imagem de virilidade, modelo tradi­ te. A resistência física revela, ao mesmo tempo, a deprecia­
cional da masculinidade. Os motoristas preferem cultivar a ção da força de trabalho:
imagem de trabalhadores fortes e produtivos, cuja resistên­ "A turma acha que eu tomo 'rebite' e eu não tomo! Já tomei, mas
cia física suporta muitas horas ou até dias sem sono e des­ hoje eu trabalho demais e isso aí me estraga. Enquanto os caras dão
canso. C o n forme obs erva Bourdieu, "a viri l i d a d e é uma viagem, eu dou duas. Enquanto eles estão indo, eu estou vol­
construída dentro de si mesmo, diante dos outros homens, tando." (caminhoneiro autônomo, 24 anos)
para os outros homens e contra a feminilidade" (Bourdieu, Uma equipe de especialistas do Instituto de Ortopedia
1999, p. 66-7). e Traumatologia do Hospital das Clínicas de São Paulo, jun­
O "rebite" denota os limites do trabalhador, entendidos tamente com representantes de entidades do setor de Trans­
como fraquezas. Porém, é preciso reforçar que o uso de "re­ porte Rodoviário de Cargas visam um estudo em comum
bites" e de outros tipos de drogas, inclusive o álcool, não são, voltado a elaborar um perfil das condições de saúde dos
absolutamente, representativos de toda a categoria dos refe­ caminhoneiros. O interesse em elaborar tal pesquisa deu­
ridos trabalhadores. O tempo de ação do remédiQ não é in- se a partir da constatação do número elevado de acidentes
de trânsito nos quais os caminhoneiros estão envolvidos. A
'
<)5 Revista Caminhoneiro, ano XIV, n" 138, junholl998, p. 66. avaliação principal dirigiu-se ao aparelho locomotor (colu-

30 4 o AVESSO DO TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO 305


diag­ to, o outro vem e toma o serviço. Aí o que vai acontecer? Eu fico
na e membros superiores e inferiores), nos quais foram
s) desempregado!" (caminhoneiro empregado, 39 anos)
nosticados casos de LER (Lesões por Esforços Repetitivo
pro­ Outro fator que os coloca em competitividade diz respei­
nas mãos e braços. Os demais exames diagnosticaram
diri­ to ao tipo de caminhão. Sem dúvida, os veículos mais novos,
blemas de visão (acentuada entre caminhoneiros que
de com tecnologia mais avançada, apresentarão melhor desem­
gem durante longos períodos noturnos); alta incidência
en­ penho na estrada. Cabe ressaltar que grande parte da frota
hipertensão (geralmente o caminhoneiro não faz tratam
é de caminhões que circula no país já tem vários anos de vida
to d e saúde mesm o tendo conh ecim ento d e que
ra­ útil. Há motoristas aurônomos, proprietários de caminhões
hipertenso); diabetes; alcoolismo e uso de drogas (mode
um trueks, que encontram dificuldades para negociarem o trans­
dores de apetite e psicotrópicos). A intenção em obter
ação porte de cargas com certas empresas. Estas têm preferido
quadro do "perfil" do mororista profissional é a elabor
n­ contratar motoristas de carretas, já que os veículos são maio­
urgente de um Programa de Quali dade de Vida e Preve
so­ res, mais modernos e mais velozes. Nessa perspectiva, o ta­
ção de Acidentes, uma vez que os riscos atingem não
que manho do caminhão garante o status do seu motorista,
ment e o camin honei ro, mas tamb ém a popu lação
independentemente da sua posição: empregado ou autôno­
transita nas estradas.
mo. Ou seja, o prestígio do caminhoneiro varia conforme o
Devido ao ritmo de trabalho imposto pelas empresas, os
porte de seu veículo. Tal situação reflete uma inversão de
caminhoneiros vivem sob constante concorrência. Por um
valores, cujo "prestígio social de cada individuo encontra-se
lado, o "rebite" mostra-se como um mecanismo voltado à
ligado à forma de um objeto" (Marx, 1972, p. 52). Nesse caso,
sujeição ao ritmo de trabalho. Por ourro lado, aqueles que
o "caráter fetichista" atribuído ao caminhão torna-se elemen­
não recorrem ao seu uso muitas vezes são prejudicados por­
to determinante nas relações sociais e prevalece a "forma
que não atingem a mesma produtividade daqueles que o
consomem: fantasmagórica de uma relação entre coisas." (Marx, 1985, p.

"Tem gente que toma 'rebite', anda direro 'rebitado', toma carga 7 1 ) Em suas práticas cotidianas, o caráter simbólico atribuÍ­
do outro e o outro fica chupando o dedo porque não faz como ele. " do ao objeto "caminhão" gera tensões perceptíveis entre
(caminhoneiro empregado, 32 anos) carreteiros e demais motoristas:
"Acontece muito acidente por causa disso: dirigir com sono! Mas "Por que você diz que o motorista de carreta é o inimigo das estra­

se a gente não quiser, tem trinta, quarenta que faz! Às -vezes, o cara das? - Porque eles pensam que a pista é só deles. O meu caminhão

chega, compra uma cartela de 'rebite', toma 'rebite' pra não dormir é o trock, caminhão de três eixos. Eles falam: 'Essa droga desse

e vem embora. Quer dizer que se eu não toco, mais ou menos jun- caminhão velho tem que sair da pista!' É droga mas é da gente! E

306 o AVESSO 0 0 TRABALHO C O L E ÇÃ O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O


você é o quê? Empregado! É caminhão da transportadora!' Eles dos acidentes nas rodovias da Grã-Bretanha, decorrentes
são metidos! A única raça unida mesmo é truck, é carreta que seja da intolerância dos motoristas e faz um apelo para as mu­
um pouco mais velha, não essas carretas novas porque esses caras danças de comportamento, no intuito de se realizar uma
são super metidos! Pra entrar nas carretas deles, eles tiram o sapato viagem mais segura.96
e deixam no canto! Entram descalços, o carpete é alto!" (caminho­ Quanto aos caminhoneiros, a concorrência opõe ainda
neira autônoma, 32 anos) motoristas mais velhos aos motoristas jovens. Os primeiros
Pode-se observar que a fragmentação entre carreteiros e alegam não alcançarem a mesma produtividade dos últi­
demais caminhoneiros torna-os concorrentes do mesmo es­ mos, justificando cansaço físico de muitos anos de trabalho
paço, sendo que os primeiros ocupam posições vantajosas na estrada:
em relação aos segundos, devido ao porte do caminhão. A "Os mais velhos não conseguem andar, os mais novos estão pra
intolerância entre caminhoneiros é denunciada também por baixo e pra cima. Daí vem a bronca do patrão para os mais velhos
um motorista de carreta, embora em sua fala o informante que demoraram na viagem: Fulano fez primeiro! Fulano saiu tal
expresse-se de forma genérica: dia e já voltou!" (caminhoneiro empregado, 50 anos)
"Eles acham que a carreta é a dona da estrada. Não é que ela seja Apropriando-se dos mecanismos utilizados pelos traba-
respeitada. É porque ela é maior. Então, muitos usam e abusam. lhadores para aumentarem a produtividade, as empresas fi­
Claro que um truck não vai competir com a carreta! De que jeito? xam o prazo de cada viagem, pautando-se no menor tempo
Eles jogam um por cima do outro. Aí quem pode mais chora me­ possível para realizá-la.
nos. É uma disputa!" (caminhoneiro empregado, 24 anos) O salário por frete pode ser considerado como o salário
Os conflitos pelo espaço na estrada não se limitam aos por produção ou por peça, baseado na intensidade de traba­
mororistas de caminhão. Cherobim (1984) e Vilaça ( 1987) lho. Nesse sentido, o produto do trabalho do caminhoneiro
apontam também problemas causados entre caminhonei­ não consiste na forma material de uma mercadoria, propria­
ros, motoristas de auromóveis e de ônibus. Segundo os au­ mente dita; todavia, apóia-se na produtividade, entendida
tores, estabelece-se uma relação hierárquica entre todos os aqui como "fretes." Do mesmo modo como ocorre na orga­
veículos que circulam pelas estradas, e o caminhão é repre­ nização do trabalho fabril, o desconto salarial por atraso nas
sentado como o mais temido pelos demais motoristas. Mas viagens é aplicado como uma "multa." Logo, a jornada de
a rivalidade entre motoristas não está presente somente nas trabalho é intensamente prolongada e passa a ser controlada
estradas brasileiras. O artigo denominado "A luta para aca­
bar com o ódio nas estradas" traz dados sobre a violência 96 Revista Caminhoneiro, ano XIII, nO 127, junho/1997, pp. 80-83,

308 o AVESSO DO TRABA L H O COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO


pelo próprio caminhoneiro. O trabalhador torna-se, então, o
marchas do caminhão. Acho que ele faz isso porque ele toma 'rebi­
explorador da própria força de trabalho (Marx, t. 2, 1985, p.
te' direto." (esposa de caminhoneiro, 45 anos)
141). O depoimento, a segl'lir, ilustra a intensidade da explo­
Essa questão é também tratada por Hirata e Doaré (1999:
ração da força de trabalho: 17/18), quando afirmam que:
"A hora que eu carrego esse caminhão lá (Belérn-PA), eu venho As desigualdades de salário - compreendidas em
trabalho igual _

diretinho pra casa, sem dormir, pra chegar em casa logo! - Mas são constatadas por toda parte do mundo, até em paíse
s que assina­
quantas horas o senhor dirige direto? - Direto, dircto, dirijo 24 ho­ ram as convenções da OIT, que as proíbem. (. .. ). No
setor industrial.
ras. Só paro pra comer. Dormir, às vezes, você pára, assim, debaixo dos países desenvolvidos, o salário médio das mulh
eres representa
de uma sombra, num posto, e dorme uns 40 minutos ou dorme 1 três quartos do salário masculino, devido, em parte,
a uma menor
hora. Levanta e vai embora de novo." (caminhoneiro empregado, qualificação do pOSto, mas também a uma repartição
desigual entre
39 anos) os ramos econômicos e os pOStos ocupados.
A noção de que "é preciso que o corpo seja produtivo" Dentre nossos entrevistados há o caso de
uma mulher
leva à negação da possibilidade de estar ou vir a ficar doente caminhoneira que viaja junto com o marido,
levando consi­
(Dejours, 1992). Em geral, o caminhoneiro somente recorre go o filho de 2 anos de idade. O marido traba
lha como moto­
a um tratamento de saúde quando a doença manifesta-se rista de caminhão de uma empresa de transporte
s. Os patrões
como crise. Dessa forma, a relação corpo-condições de traba­ têm conhecimento de que sua esposa dirige o
mesmo veícu­
lho repercute na saúde física, mental e psíquica do trabalha­ lo, mas jamais admitiram a possibilidade de virem a contratá­
dor, decorrente da depredação da força de trabalho. Dois la como motorista, uma vez que tal profissão é entendida
informantes manifestam a submissão do corpo ao trabalho como masculina:
com as seguintes afirmações:
"É só pelo motivo de eu ser mulher. O preconceito é grande de­
"Eu ando 18.000 quilômetros por mês! Às vezes, eu ando 600 km
mais, pelo menos aqui nesta região!" (caminhoneira, 29 anos)
com o caminhão, sem descer! A hora que eu boto o pé no chão,
A seguir, o depoimento da caminhoneira revela a sub­
assim, parece que o chão corre comigo. Eu tenho que segurar na missão do corpo às condições de trabalho, mesmo durante o
porta pra não cair! De tanto tempo que eu fiquei sentado e o cami­ período voltado ao descanso. Na prática, toda a viagem com­
nhão correndo. Parece que a Terra está virando." (caminhoneiro preende "tempo de trabalho":
empregado, 39 anos) "Pelo próprio perigo da estrada, a pessoa não consegue relaxar por
"Às vezes, quando meu marido está dormindo, ele movimenta os completo. Quando a gente está tocando direto, não tem horário certo
pés e a mão direita como se ainda estivesse dirigindo e trocando as pra dormir. Dorme de dia, de manhã ou à tarde, enquanto o outro

310 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO


está tocando. E, de repente, uma freada ou outra, ou diminuir a velo­ caminhão de forma que fique bastante visível. A identidade
cidade, a gente sempre quer saber o porquê daquilo. Então, a gente do motorista com o caminhão foi tratada ainda por Vilaça ao
está dormindo e está o tempo todo atenta. Pelo fato de eu saber afirmar que "é o espírito de síntese tão presente à comunica­
dirigir, eu quero saber porque ele está segurando o caminhão, por­ ção do motorista e é o espírito de intimidade dele com o seu
que ele está freando. Então, já acorda sempre preocupada com a veículo, entrelaçando-se assim ou se auto-identificando, ao
estrada. Isso não dá um descanso total, não relaxa por completo. A decorar o veículo com o seu próprio nome: 'Batista', 'Zé Lou­
gente dorme com um olho só." (caminhoneira, 29 anos) to', 'João Gago', Antônio Firmino da Silva', ou o nome segui­
Ao incorporar o "sofrimento do trabalho", Bouchard ob­ do da cidade natal: Sebastião Uberaba" (Vilaça, 1987, p. 32).
serva que os problemas de saúde são aceitos pelos caminho­ Voltando a Vitorello, os caminhoneiros revelam certa

neiros como "parte integrante da profissão." Acrescenta ainda ambivalência em se tratando da auto-estima. Por um lado, a
que, na concepção do motorista, "o verdadeiro caminhonei­ potência do caminhão confunde-se com a auto-imagem da
ro deve aprender a conviver com o cansaço e desaprender a virilidade, coragem, força física, valentia, características da re­
dormir." Por fim, completa: "o ritmo de trabalho desafia a presentação de um "herói". Por outro lado, os mesmos deno­
razão" (Bouchard, 1987, p. 1 18). A observação do autor pode tam uma auto-imagem negativa ao reconhecerem seus limites.
ser confirmada com a seguinte declaração: Nas palavras da autora: "Eles próprios denotam ter uma baixa
"Tem que dormir muito pouco: uma, duas horas por noite! Se dor­ auto-estima, pois sentem-se desprovidos de conhecimento
mir mais, não dá conta. Então, eu chego em Belém mortinho, arre­ (nível de escolaridade, cultura etc.) e de reconhecimento pro­
bentado, com os olhos na nuca, de canseira." (caminhoneiro fissional" (Vitorello, 1999, p. 99). Configura-se aqui a imagem

empregado, 39 anos) de um "anti-herói" .

Sob outro ponto de vista, o caminhão mostra-se como ex­ Ainda convém assinalarmos o prazer como a outra face

tensão do corpo do caminhoneiro (VitoreIlo, 1999), conforme da relação homem/trabalho. Muitos caminhoneiros justifi­
pudemos constatar em vários momentos de nossas entrevistas cam a escolha pela profissão devido à noção de liberdade
como, por exemplo, "eu estava quebrado", "eu estava sem que a mesma lhes proporciona. Alguns depoimentos são

combustível", "eu estava vazio", "eu estava carregado", "eu ilustrativos:

estava com o farol queimado" etc. A interação entre homem e "Eu estou o tempo todo observando a beleza da natureza. Isso me

máquina é apontada também por Bouchard (1 98'7) ao assina­ dá vida, me dá força." (caminhoneiro autõnomo, 39 anos)

lar que o caminhoneiro nomeia seu veículo com o nome de "Eu me sinto bem na estrada, eu encontro com Deus na estrada."

uma mulher e seu próprio sobrenome. O registro é gravado no (caminhoneira autõnoma, 49 anos)

312 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO 313


l!
,

A noção de liberdade está também atrelada às possíveis se numa praça da zona Leste, aos domingos, no período da
aventuras experimentadas ao longo da estrada. Em muitos manhã. Vão ao encontro dos caminhoneiros que partem da­
,,
postos e nas chamadas "casas d e campo ou �, maI ocas" en- quele ponto para regiões longínquas do Nordeste. Os moto­

l
contram-se, com facilidade, serviços de prostituição. Nessa ristas levam cartas e pequenas lembranças aos familiares
perspectiva, a liberdade do mundo na estrada contrasta com I desses migrantes a centenas ou milhares de quilômetros. As
as obrigações familiares que lhes são impostas, como, em encomendas serão entregues no mesmo local em que o ca­
muitos casos, as de provedores da família. minhoneiro descarregará sua mercadoria, sendo depois en­
Ourra justificativa apontada refere-se à possibilidade de caminhadas aos respectivos destinatários. Os remetentes
obterem melhores ganhos do que em outras ocupações que declararam depositar grande confiança nesses "mensageiros".
viessem a se dedicar. No entanto, é preciso considerar que Na estrada, o "trabalho solitário" dos caminhoneiros não
seus rendimentos estão diretamente relacionados à produti­ impede que se desenvolvam tanto relações de solidariedade
vidade, ou seja, à quantidade de viagens realizadas. Dessa e cooperação quanto de rivalidade e concorrência. A "união"
forma, há um confronto entre a "liberdade" propagada como por eles exaltada manifesta-se principalmente em situações
inerente ao trabalho do caminhoneiro e a submissão ao rit­ imediatas e locais, como, por exemplo, diante da ocorrência
mo de trabalho e às determinações das empresas em face da de um acidente de trânsito. Nessas ocasiões, as demonstra­
organização do trabalho. ções de virilidade em face do perigo estão sempre presentes
e fazem parte do cotidiano (Nolasco, 1 995a). Na rotina de
A ESTRADA E SEUS DESAFIOS um dia de trabalho, postos e restaurantes, às margens das
A obra de Vilaça ( 1 987) nos apresenta o caminhoneiro rodovias, são os principais pontos de encontro de caminho­
exercendo várias funções sociais, dentre elas a de mensagei­ neiros das mais diversas localidades do país. Durante as pa­
ro. O autor denomina-o como o "camelot de notícias", carac­ radas para refeição e descanso, os estradeiros - termo
terística ainda preservada nos dias atuais. Queiroz também o emprestado de Cherobim ( 1984) - substituem as comodida­
retratou no convívio com populações distantes: " ... o chofer des de casa pela infra-estrutura oferecida pelos postos. Ao
do caminhão é o jornal falado, pode ser comparado até com longo da estrada, a prestação de serviços varia muito de qua­
rádio - sendo que vai onde rádio nunca foi, porque não pre­ lidade.
cisa de eletricidade e, por onde vai passando, va� dizendo o Nas rodovias mais movimentadas há forte concorrência
que sabe" (Queiroz, 1958, p. 145). de redes de postos, cujas instalações acomodam dezenas ou
Na cidade de São Paulo, migrantes nordestinos reúnem- até centenas de caminhões. Os estabelecimentos funcionam

31lj o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO

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como uma segunda casa do caminhoneiro. Visando atender dízio", "por quilo" ou o popular "prato feito", grande parte
às necessidades básicas do motorista, os grandes postos dis­ dos caminhoneiros preparam a própria comida. Alguns justi­
põem de área reservada ao serviço de lavanderia, com tan­ ficam que o custo da viagem torna-se ainda mais elevado
ques e pias, nos quais os clientes podem lavar suas roupas e caso efetuem tal despesa nos restaurantes todos os dias, no
louças. Geralmente, no horário de almoço, a procura pela la­ almoço e no jantar. Outros alegam que não gostam da "comi­
vanderia é intensa. As roupas lavadas podem ser estendidas da da estrada" e preferem cozinhar durante a viagem.
em varais adaptados para esse fim. As instalações dos melho­ Os caminhões dispõem de uma grande caixa adaptada na
res postos contam ainda com amplos banheiros com chuvei­ lateral direita, sob a carroceria - denominada "cozinha" na
ros, telefones púb licos, farmácia, banca de revistas e qual são armazenados mantimentos, panelas, um pequeno
borracharia. Como atrativos para a satisfação dos clientes, os fogão portátil de duas bocas e o botijão de gás:
postos oferecem brindes e cafezinhos gratuitos, organizam "Eu cozinho direto, mesmo sozinhol Eu fiquei 34 dias trabalhando
eventos musicais e até convidam padrcs para celebrarem Já na Bahia. Era muito difícil eu entrar num restaurante pra comer.
missas: Sempre fazia no caminhão," (caminhoneiro empregado) 39 anos)
"Tem um altar no caminhão do padre. O baú abre a lateral e fica Aqueles que optam pela refeição do restaurante defen-
como um altar na igreja. O padre reza o terço para os caminhonei­ dem a "economia de tempo" na viagem:
ros. É um padre ambulante." (caminhoneiro autõnomo, 29 anos) "Meu marido fala que não compensa parar pra fazer a comida por
Não se trata, pois, de prática comum adotada pelos pos- causa do tcm'P0 que ele perde." (esposa de caminhoneiro, 54 anos)
tos de estrada, pois a maioria dos referidos estabelecimentos �'Na estrada, se eu for fazer almoço, vai demorar, no mínimo, uma
não dispõe de tamanha infra-estrutura. hora, uma hora e meia, duas horas. E m vez de tu descansar, tem
Há três tipos de postos, na estrada: alguns atendem so­ que fazer a comida, depois vai lavar a louça, tem que arrumar tudo.
mente passageiros de ônibus e de carros particulares; outros A comida do restaurante nunca é igual àquela que a gente faz. No
atendem somente caminhoneiros e, por fim, há postos para restaurante tem que comer ° que tiver. Às vezes, é sobra de comida
atendimento a qualquer tipo de freguês. Os caminhoneiros do outro dia. Minha sorte é que eu não sinto dor de estômago."
utilizam instalações (restaurantes e banheiros) diferenciadas (caminhoneiro autõnomo, 52 anos)
dos demais usuários. Geralmente, as refeições servidas nos Nas breves paradas para o banho, a refeição e o descanso
espaços reservados aos caminhoneiros têm preçQS inferiores e, em especial, durante um evento artístico ou religioso, os
às destinadas aos outros fregueses. Embora os postos tenham caminhoneiros tecem um rápido convívio social, rompendo
restaurantes servindo refeições nos sistemas seI{ service, "ro- o silêncio sob o qual permanecem em quase toda a longa

316 o AVESSO 0 0 TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO 317


jornada de trabalho. Nessas ocasiões é possível reencontrar "A Polícia acha que podemos usar o rádio para driblar a fiscaliza­

um colega de quem não se tinha notícias há muito tempo. ção, o policiamento, mas queremos utilizá-lo pela necessidade e

Para os caminhoneiros, O posto é O principal espaço de socia­ até pelo entretenimento."98


bilidade: Várias situações nos foram relatadas pelos informantes, a
"Nossa Senhora, eu conheço gente desse mundo inteirinho! Eu respeito da importância fundamental do radioamador nas si­
conheço gente da Paraíba, do Ceará, do Piauí, conheço gente do tuações de emergência. Os auxílios são pedidos pelo rádio,
Belém, do Paraná, da Bahia. De onde você pensar, nós conhece! A como na ocasião em que um informante estava com proble­
gente nunca está sozinho onde chega." (caminhoneiro empregado, mas mecânicos no caminhão, de madrugada, longe da cida­
39 anos) de mais próxima e, segundo o mesmo, com muita fome.
Outra forma de manter contato na estrada é através do ra­ Então, solicitou ajuda a um colega, através do PX, e algum
dioamador, também conhecido por px. Esse aparelho propor­ tempo depois, o mesmo colega chegou ao local em que o
ciona o acesso à comunicação entre os caminhoneiros. Porém, nosso informante se encontrava, levando-lhe alimento e ten­
nem rodos os caminhões dispõem desse recurso!' Caso o mo­ tando auxiliá-lo no conserto do veículo.
torista não tenha licença para uso do radioamador - o COE R No dia-a-dia, o radioamador é o meio pelo qual o cami­
(Certificado de Operação de Estação de Rádio) o aparelho nhoneiro ameniza a solidão na sua extensa jornada de traba­
pode ser apreendido pelas autoridades rodoviárias. lho. Aliás, os temas de conteúdo sentimental, como amor,
Sem dúvida, o radioamador consiste num acessório de paixão, saudade, solidão, traição etc., são estampados nas fra­
muita utilidade para facilitar o trabalho do caminhoneiro. Bas­ ses de pára-choque dos caminhões, como, por exemplo: "A
tante usado simplesmente para "bate-papos", através do PX estrada é meu lar"; "O forte sofre em silêncio"; "Não há me­
o motorista obtém também informações úteis, como, por dicina que cure a dor de uma saudade"; "Quando a noite che­
exemplo, a ocorrência de acidentes na estrada, intervenções ga, a solidão me abraça" (Lauand et a/ii, 1977). Nesse espaço
e desvios na pista. A presença de guardas rodoviários, em restrito, o caminhoneiro permite revelar suas afetividades en­
locais estratégicos da estrada, pode ser logo comunicada en­ cobertas pelas "exigências" da tradicional masculinidade.
tre os colegas. Um caminhoneiro assim defende as vanta­ Na comunicação por radioamador, os estradeiros adotam
gens do aparelho: apelidos para serem identificados e conversam com gírias

97 Folha de S. Paulo, Caderno Brasil, "Rádio foi fundamental para a greve", 1°1 98 Declaração de caminhoneiroautônomo, 44 anos, feito à Revista Caminhoneiro,
8/99, p. 10. ano XV, n' 151, agosto/1999, p. 44.

318 o AV E S S O 0 0 TRABALHO C O L E ÇÃ O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O 31�


próprias. Através do vocabulário, eles se reconhecem nos por sindicatos regionais e por colegas de estrada que tro­
diferenciados subgrupos: cavam informações entre si. Muitos motoristas afirmaram
"Eu já ouvi essa turma conversar. É coisa importante, mas eles co­ desconhecer as lideranças do movimento, porém, nos dois
meçam a falar numa gíria! Só que aqui Sul de Santa Catarina - é casos, aderiram às greves para exigirem do governo
uma região que ninguém fala desse jeito." (caminhoneiro empre­ melhorias das condições de trabalho.
gado, 41 anos) A imprensa destacou a importância do radioamador na­
"A gíria vem mais é dos truqueiros (motoristas de caminhões trucks). quele movimento que afetou vários setores da economia bra­
Os truqueiros de mercado tem uma gíria no rádio." (caminhoneiro sileira:
empregado, 32 anos) "Rádio foi fundamental para a greve";99 "Panfletos e radioamador
"Eu não me sinto sozinho porque eu tenho meu toca-fitas e meu uniram grevistas";lOO "O PX, eu tive informações de que foi muito
PX pra conversar com meus amigos. Meu pai é o Kojak." (cami­ útil para a paralisação." 101
nhoneiro autõnomo, 24 anos) O radioamador é visto pelos caminhoneiros como um re­
"É a melhor coisa que tem quando você quebra o caminhão na curso que lhes proporciona maior segurança. Além das infor­
pista." (caminhoneíro empregado, 38 anos) mações sobre as condições da estrada e das conversas
As greves anteriormente citadas revelaram a difusão informais com colegas, em certos casos, a presença desse ins­
do radioamador entre os caminhoneiros. Ambos os movi­ trumento no caminhão pode dificultar a ação dos ladrões de
menros grevistas tiveram um caráter peculiar, pois, nas cargas. Logo que observa algo suspeito, o motorista faz con­
duas ocasiões, a organização deu-se, principalmente, atra­ tatos com outros, até que a Polícia Rodoviária seja também
vés da distribuição de panfletos, da comunicação por radio­ notificada:
amador e da informação "boca a boca", nos centros de " Além de ser equipamento para recados, avisos, ajuda muito na
distribuição de cargas, postos e restaurantes de estradas. segurança) para alertar sobre suspeita de assaltos ou problemas nas
Diferentemente das demais categorias de trabalhadores, rodovias." 102
que se reúnem em assembléias coordenadas por dirigen­
tes para traçarem as estratégias de paralisação, os motoris­
99 Folha de S. Paulo, Caderno Brasil, P/8/99, p. 10.
tas de caminhão espalhados nas mais diversas localidades !OO O Estado de S. Paulo, Caderno Economia, 4/8/99, p. B5.
lO! Declaração do porta-voz do movimento grevista dos caminhoneiros, Nélio
do país decidiram protestar contra as precária� condições
Botelho. (Revista Carga Pesada, ano XIII, n° 82, agosto/99)
de trabalho comuns a todos. Os caminhoneiros foram ori­ 1 02 Declaração do motorista autônomo, à Revista Caminhoneiro, ano XV, nO 151,
entados através da distribuição de panfletos organizada agosto/99, p. 42.

320 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO


Parte pouco expressiva de caminhoneiros tem recorrido Bandeirantes aos sábados, no horário das 12:00 horas às 12:30
a outros recursos tecnológicos, como o telefone celular. Al­ horas, e no programa "Siga Bem Caminhoneiro", apresenta­
gumas empresas transportadoras de grande porte adaptaram do no SBT (Sistema Brasileiro de Televisão) aos domingos,
o computador (laptop) aos caminhões para que os motoristas no horário das 8:30 horas às 9:00 horas da manhã.
entrem em contato com a matriz da empresa, durante a via- Os conflitos são apontados por nossos informantes como
situação freqüente no espaço de trabalho:
gemo
Noutra perspectiva, o guarda rodoviário representa uma "Na estrada, a briga é feia entre motorista de caminhão e guarda

figura bastante polêmica entre os caminhoneiros. As rela­ rodoviário!" (caminhoneiro empregado, 39 anos)

ções sociais entre ambas as partes são marcadas por fortes Mas há também declarações contrárias:

tensões. Pudemos verificar que, na opinião de parte consi­ "Eu não tenho nada contra os guardas porque eles me ajudam muito.

derável de motoristas de caminhão, nem todos os guardas Tem cara que não gosta dos guardas, mas eu não tenho nada con­

exercem sua função com honestidade e profissionalismo. As tra," (caminhoneiro autônomo, 24 anos)

principais queixas referem-se ao abuso de autoridade prati­ Apesar das opiniões divergentes, uma das pautas de rei­

cado pelos referidos guardas, bem como à coação para paga­ vindicação do movimento grevista consistiu em exigir, das

mento de propinas, no momento em que os mororistas são autoridades competentes, maior rigor nas punições contra a

abordados na estrada. As reclamações dos caminhoneiros são corrupção praticada por membros da Polícia Rodoviária. Por­
divulgadas tanro na imprensa escrita quanto na falada, na tanto, as várias visões do caminhoneiro sobre a figura do guar­
qual os mororistas protestam publicamente contra a situação da rodoviário carregam a ambigüidade do seu papel: ora como
à qual se julgam vítimas de policiais rodoviários corruptos: inimigo, pronto a atacá-lo, ora como aliado, preparado para
"Os guardas rodoviários são ignorantes. lratam o motorista como protegê-lo.
ladrão. Gostaria que tivéssemos policiais mais educados e compre­
ensivos. Eles multam por qualquer coisa. E há policiais tomando ROUBO DE CARGAS
dinheiro do coitado do motorista." 103 Desde os primeiros anos da década de 1990, os roubos de
As denúncias são feitas também nos programas de tele­ cargas transformaram-se num apêndice da grande indústria
visão "Clube Irmão Caminhoneiro Shell", exibido pela Rede do crime organizado. A região Sudeste é responsável por
85,43% das cargas roubadas, enquanto o Nordeste responde
por 6,50%, o Sul 4, 1 1 %, o Centro-Oeste 3,37% e a região
103 Declaração do motorista O.R.c.F., de Ouro Preto d'Oeste-RO, à Revista
Caminhoneiro, ano XV, n° 146, março/99, p. 12. Norte 0,59%. Do total da região Sudeste, 60,30% dos roubos

322 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO


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são praticados no Estado de São Paulo. Portanto, a cada 10 De acordo com dados do SETCESp'106 65% dos assaltos
assaltos, 6 ocorrem nesse Estado. As rodovias que lideram os ocorrem nas áreas urbanas, durante o dia, em semáfotos ou du­
casos de roubos de cargas e de caminhões são, em primeito rante a entrega ou coleta de mercadorias, contra 30% de ocor­
lugar, a Rodovia Anhangüera, seguida pela Rodovia Presi­ rências nas rodovias, preferencialmente à noite, em postos de
dente Dutra. Segundo estimativa da empresa Pamcary, mai­ combustíveis e restaurantes. A fim de trabalharem com um
or corretora de seguros do setor de transporte rodoviário de mínimo de tranqüilidade, alguns motoristas - em especial os
cargas e especialista na prevenção e investigação de roubo autônomos - têm preferido transportar cargas de baixo valor,
de cargas, os valores das cargas roubadas aumentaram de R$ como o açúcar. Já foi constatado, por exemplo, que em épocas
102 milhões em 1994, para R$ 380 milhões em 1999. O refe­ de plantio há aumento de roubo de cargas de insumos agrícolas.
rido setor sofre uma média de 13 assaltos ou furtos por dia, Trata-se, pois, de ações de quadrilhas que agem sob encomen­
no país. 1 04 da. Em outras palavras, os ladrões sabem de antemão qual a
Diante da falta de segurança nas estradas, algumas em­ carga devem roubar para logo repassá-Ia ao receptador. Se o ca­
presas seguradoras recusam-se a fornecer seguros para mer­ minhão é novo levam-no para ser vendido no Paraguai ou Bolí­
cadorias muito visadas para roubo, como carne, cigarros, via; caso contrário, o veículo é logo abandonado. O motorista
pneus, calçados, equipamentos eletrônicos e medicamentos, pode ser seqüestrado e libertado horas depois, ou até vir a ser
entre outras. De um total de 130 empresas seguradoras exis­ assassinado. Quando possível, os caminhoneiros viajam em du­
tentes no país, atualmente apenas seis fazem seguros de car­ plas ou em pequenos grupos, a fim de evitarem ou, ao menos,
gas.'05 Em geral, os contratos determinam uma série de dificultarem a ação dos bandidos.
exigências, como contratação de escoltas e a instalação de Os caminhoneiros criaram, então, uma Organização Não
equipamentos para rastreamento dos veículos por satélite. Governamental (ONG), chamada "Movimento contra o Rou­
Assim, o custo das transportadoras tem elevado em virtude bo de Cargas e a Matança de Caminhoneiros". Segundo a
dos gastos com segurança. Os fabricantes de auropeças tam­ entidade, há seis mil notificações de assaltos por mês e quin­
bém têm produzido equipamentos com os mais diferencia­ ze assassinatos de caminhoneiros no mesmo período, o que
dos recursos tecnológicos para proporcionarem maJOr representa uma morte de caminhoneiro, em decorrência de
segurança contra o roubo do veículo. assaltos, a cada dois dias.,o6 Há também um serviço gratuito

104 Folha
de S. Paulo, Caderno Brasil, 14/1/99, p. 13. 1 06 Sindicato das Empresas de Transporte de Carga de São Paulo.
lOS Tribuna impressa, Seção "Nacional", Araraquara, 25/9/99, p . 10. 107 Revista Veja, ano 32, n° 3 1 , 4/8/99, p. 42.

o AvESSO D O TRABALHO C O l E ÇÃ O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O
de telefone denominado "Disque Denúncia Roubo de Car­ da referida CP I, o motorista Jorge Meres A. de Almeida, de
gas", cujo número é 0800-172233. 39 anos. Envolvido no crime organizado, o ex-motorista de­
Todos os meses, a Revista Caminhoneiro publica notas so­ cidiu delatar à CPI como se dá o funcionamento dessa orga­
bre caminhões roubados e motoristas desaparecidos, em sua nização, em troca dos benefícios do Programa de Proteção a
seção "Recados." A seguir, duas mensagens publicadas no Testemunhas, criado em julho de 1999, pelo governo fede­
referido periódico: ral. Em entrevista concedida à imprensa, o motorista decla­
"Desaparecimento: Desapareceu, junto com o caminhão, Nelson rou:
. Fantin. Estava com um Mercedes, 1935 [sic], placa LZT 391 1, de
"De 1 994 a 1 997, eu levei 86 carretas roubadas para a Bolívia, onde
Joinville se, com lona azul. Ele carregou no último dia 1° ou 2 de
-
eram vendidas. Parte do dinheiro era usado para comprar drogas e
janeiro, em Itumbiara - GO. Se alguém souber o paradeiro, favor armas. ... A organização [aturava R$ 1,5 milhão só de cigarros e
" 108
ligar para ... medicamentos roubados em São Paulo." ! !O
"No dia 29 de junho, estava em viagem de Campinas a Curitiba, Em face da violência a que estão expostos, os caminho­
parei no Auto Posto Fazendeiro para descansar. Por volta de 0:40 neiros sentem-se forçados a mudarem hábitos antigos. Co­
horas, fui acordado por dois marginais armados que levaram o ca­ nhecedores das "armadilhas" dos ladrões, os caminhoneiros
minhão carregado de seis tambores de solventes para tintas evitam conceder caronas a transeuntes da estrada.
automotivas. Gostaria que me ajudassem a localizar o bruto. Eis os "Hoje, eu não dou carona pra ninguém, só se for pra minha mãe. Se
" 1 10
dados ...
. eu não conhecer ela de noite, ela fica também." (caminhoneiro
Através da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) do empregado, 39 anos)
Narcotráfico, a Assembléia Legislativa tem demonstrado que "A gente evita, ao máximo, dar carona. Tem o risco de assalto e,
o roubo e receptação de cargas e caminhões conta, direta ou outra, se acontece algum acidente com ó caminhão, e que envolva
indiretamente, com a participação de empresários, políticos, o caronista, tem que indenizar tudo. A Justiça não quer nem saber,
policiais, caminhoneiros e traficantes. A ligação entre o rou­ tem que indenizar." (caminhoneiro autônomo, 29 anos)
bo de cargas e de caminhões e o narcotráfico vem sendo des­ "Só se o cara for conhecido e o dono do posto apresentar pra mim,
vendada, a partir de depoimentos da principal testemunha senão, eu não dou. Eu não dou porque eu não sei se é ladrão. Mui­
tos amigos meus já foram assaltados." (caminhoneiro autônomo, 24
anos)
108 Revista Caminhoneiro, ano XV, n° 146, março/99, p. 57.
1 09 Bruto: Caminhão. Revista Caminhoneiro, ano XV, n° 151, agosto/99, p. 80. llO
Folha de S. Paulo, Caderno Brasil, 22/11/99, p. 6.

326 o AVESSO 0 0 TRABALHO C O L E ÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO 327


Entre os motoristas de caminhão, a solidariedade tam­ mica para café, copo (descartável ou de vidro), lençol, cobcr­
bém está comprometida. A respeito de caminhoneiros para­ tor, travesseiro, toalha de banho e de rosto, sabonete, xam­
dos às margens da estrada, com seus veículos supostamente pu, escova de dentes, creme dental, pente, roupas etc. Fotos
quebrados por problemas mecânicos, na dúvida, os estradeiros da família, imagens religiosas como a de São Cristóvão, cru­
não prestam ajuda com medo de serem vítimas de assaltos. cifixos de miçangas coloridas e cartazes de mulheres nuas
Outra solução para evitar a exposição a roubos consiste em revelam fragmentos do seu mundo cultural/simbólico:
jamais estacionar o caminhão no acostamento da pista para afetividade, fé, crença e paixão.
déscansar. Nem mesmo nos postos de estrada a segurança é Nesse sentido, a boléia do caminhão não distingue os es­
total. Poucos estabelecimentos dispõem de vigias contrata­ paços público e privado. Ambos interagem simultaneamente.
dos para oferecerem certa comodidade aos seus clientes. É o espaço do trabalho e da privacidade. Aquilo que, em prin­
Desse modo, os caminhoneiros enfrentam uma rotina en­ cípio, pode parecer contradição, para os caminhoneiros é visto
volta de surpresas. Além dos riscos inerentes à profissão, é como coerência. É o caso do apego, do cuidado e da valoriza­
preciso aprender a conviver com o inusitado. ção da família, por um lado, e, por outro, das aventuras amoro­
sas, dos prazeres efêmeros, dos encontros casuais que
A CABINE DO CAMINHÃO acontecem nesse pequeno espaço da boléia. Vitorello observa
A cabine do caminhão não é somente o seu local de tra­ que, para os caminhoneiros, os relacionamentos extraconjugais
balho. Nesse pequeno espaço, o estradeiro tem à sua dispo­ não interferem na vida familiar, pois são entendidos como prá­
sição uma infinidade de objetos para suprir suas necessidades. tica comum decorrente de um trabalho que os força a viver
Como o motorista passa a maior parte do tempo dentro do longe da família: "Nas paradas em postoS ou restaurantes, não
veículo - dirigindo ou dormindo - o caminhão transforma­ é incomum os caminhoneiros realizarem pequenas rodas de
se, temporariamente, em sua casa. Certos equipamentos são boemia, em que, além da música e bebida, a diversão tam­
adaptados para lhes proporcionarem maior bem-estar e con­ bém é a companhia de moças que por ali se encontram dispo­
forto. Os aparelhos mais comuns são o ventilador (ou ar con­ níveis, podendo ou não estender-se a programação para dentro
dicionado), o rádio AM/FM e o toca-fitas. Parte deles dispõe da boléia de caminhão. Mesmo existindo um vasto espaço para
de radioamador. O banco traseiro é usado como cama, en­ a família na vida desses trabalhadores, a infidelidade conjugal
quanto a televisão está presente em alguns camiohões. é praticada e pouco sentida como algo geradora de culpa, e é
Outros acessórios compõem o cenário: cortina fixada em compreendida pelos motoristas como parte integrante da sua
trilhos, em volta do pára-brisa, cantil para água, garrafa tér- profissão e cultura" (Vitorello, 1999, pp. 100-101).

o AVESSO 0 0 TRABALHO C O L E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O
Os caminhoneiros têm sido alvo de campanhas de tal não levam preservativos no caminhão . e 13% afirmaram
conscientização sobre a prostituição infantil, bem como de que nunca os usam." llI .
campanhas sobre doenças sexualmente transmissíveis Por último, a cabine do caminhão é resguardada como
(DSTs). O relato, a seguir, ilustra uma situação que não é espaço privado cuidadosamente zelado. Exemplo disso é a
exclusiva de determinadas localidades: demonstração de resistência de um informante, na ocasião
"Elas ficam no posto. Ela entra dentro de um caminhão, sai daque­ em que, ao ser abordado por um guarda rodoviário, este co­
le caminhão, como coisa que não aconteceu nada, aí entra na outra municou-lhe que faria uma inspeção no local. A intenção do
·
cabine. Ela bate, o cara abre, ela entra pra dentro, fecha as cortinas. guarda foi interpretada pelo motorista como uma "invasão
Daí a pouco, sai dali. É menina de doze anos pra cima. Mulher de de domicílio" e respondeu-lhe indignado:
trinta anos? Acabou! Sai fora, já é velha! É tudo menina nova! Lá,
no Pará, lVlaranhão e Piauí, elas não têm onde trabalhar! Este é o "Ah! mas só com uma ordem judicial pra você fazer uma revista no
serviço delas. Onde elas vão trabalhar? É só madeira, é só tora! Se meu caminhão! Isso aqui é minha casa, eu moro aqui dentro, eu
elas não fizer isso aí, elas não comem, não vivem. Elas vivem da vivo aqui dentro!" (caminhoneiro empregado, 39 anos)
própria carne. É uma tristeza, dá dó!" (caminhoneiro empregado,
39 anos) Finalmente, ao mesmo tempo que o caminhoneiro en­
Villela ( 1998) aponta as dificuldades em tratar das estra­ cerra-se na cabine pequeno "domicílio itinerante" - esta
tégias de prevenção da AIDS entre homens heterossexuais revela-se-Ihe como uma janela para o mundo.
que, por vários motivos relacionados à masculinidade, resis­
tem a mudanças de comportamento. As revistas destinadas As MULHERES CAMINHONEIRAS
aos caminhoneiros têm noticiado, com freqüência, reporta­ A construção das relações sociais entre homens e mulhe­
gens sobre as DSTs. Pautando-se em dados obtidos pelo res pode ser entendida a partir do reconhecimento da diferen­
GAPA (Grupo de Apoio e Prevenção à AIDS), a Revista Ca­ ça dentro da diferença: muitos "masculinos" e muitos
minhoneiro apresentou os seguintes índices da pesquisa rea­ "femininos" (Matos, 1997, p. 107). Em outras palavras, ho­
lizada pela referida entidade: "Duzentos caminhoneiros mens e mulheres, mesmo quando pertencentes à mesma classe
foram entrevistados no trecho entre Caçapava-SP e social, vivenciam de forma diferenciada os fatos do cotidiano
Guarulhos-SP. Desse total, 38% afirmaram manté;.r relações (Saffioti; 1992). Nesse sentido, as afirmações acima reportam-
sexuais com prostitutas e travestis, porém, apenas 18% de­
clararam usar preservativos sempre. Por sua vez, 72% do to- II!
Revista Caminhoneiro, ano XV, n" 141, setembro/98, p. 7.

3 30 o AVESSO DO TRABALHO C O L E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C ! PA Ç ÃO 3 31
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nos à concepção de "experiência" abordada por Thompson


I
I
"Em primeiro lugar, é um mundo masculino porque é um serviço
(1981). As histórias individuais/pessoais - impregnadas por pesado. Você liga numa transportadora: 'olha, tem uma carga assim,
subjetividades, trajetórias e representações dos sujeitos - cons­ assim, assim. . . é para o seu marido?' Eles nunca acham que é pra
troem-se e imbricam-se à história social/coletiva. você! Aqui em Rio Preto tinha uma carga pra Brasília. Eles esta­
Uma perspectiva que nos aponta para a construção social vam louquinhos, desesperados procurando um caminhão. Eu fui lá
de gênero refere-se à presença feminina em ocupações pra pegar a carga e o cara não me deu! - O que ele argumentou? ­
marcadamente masculinas, como é o caso das mulheres ca­ Ah! ele disse meio por fora, mas você sabe que foi discriminação,
mi nhoneiras. Souza-Lobo ( 1 99 1 ) observa que, ao alcançar não confiou." (caminhoneira autõnoma, 49 anos)
uma posição distinta daquelas ocupadas pela mão-de-obra O trabalho das mulheres caminhoneiras pode ser tomado
feminina, a mulher não é reconhecida como trabalhadora como um exemplo de que a incorporação dos atributos da
qualificada tanto quanto o homem, mas é vista como "mu­ masculinidade não se restringem ao sexo masculino. O exer­
lher excepcional". Ou seja, incorpora-se a noção de que uma cício dessa profissão sugere que as mulheres adotem padrões
mulher "comum" não realizaria tal trabalho. Sua qualifica­ de comportamento considerados masculinos. A declaração
ção só é reconhecida se comparada ao desempenho masculi­ de um informante, a respeito das mulheres caminhoneiras,
no. Nesta "guerra de gêneros" (Rolnik, 1998), a dominação revela a visão masculina sobre essa questão:
masculina estabelece, então, uma hierarquia da qual o nível 'lA mulher tem que ter instinto de homem porque ela só vai viver
máximo atingido pelo gênero feminino é o de igualdade ao no meio de homem. A mulher tem que trocar um pneu, se preci­
masculino, mas não superior. Situação análoga é tratada por sar." (caminhoneiro autônomo, 29 anos)
Bourdieu sobre a resistência dos homens à entrada de mu­ Entretanto, é preciso ressaltarmos que a diversidade pre­
lheres, como digitadoras, nas profissões gráficas, até então sente entre as mulheres caminhoneiras não nos permite
masculinas. As mulheres não são vistas como exercendo a universalizar a "masculinização" dos comportamentos fe­
mesma profissão, mas realizando o mesmo trabalho. Aqui, a m i n i n o s como u m a regra. O u , a i n d a, traços da
"profissão" traz a conotação de atividade qualificada, enquan­ masculinização podem ser incorporados pelas referidas
to "trabalho" pode ser entendido como tarefa não qualifica­ mulheres sem, no entanto, deixarem de lado o papel social
da (Bourdieu, 1999, p. 76). do gênero feminino.
Entre as mulheres caminhoneiras, a discriminação de Exemplo disso verifica-se entre aquelas mulheres que
gênero é bastante visível, conforme demonstra o depoimen­ viajam com seus maridos em alguns casos, levando in­
to de uma informante: clusive os filhos - e revezam a direção do veículo com o

332 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO 333


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caminhoneiro, durante a viagem. Há ainda casos de mu­ menta, a avó caminhoneira interromp,:, u ,o trabalho - troca
lheres caminhoneiras que viajam sozinhas ou acompanha­ do pneu - para cuidar da criança, preparando-lhe o leite.
das somente dois) filho(s), alternando o trabalho do Os desafios da estrada, as condições precárias de traba­
transporte de cargas com o cuidado à(s) criança(s). É o lho, os cuidados com o caminhão etc., somam-se à responsa­
caso de uma caminhoneira que nos concedeu uma entre­ bilidade sobre a criança. Estabelece-se, assim, uma hierarquia
vista. Ela assumiu a maternagem 'em relação ao seu neto de prioridades, em que a criança não ocupa o lugar principal.
sem, contudo, abandonar o trabalho. Portanto, ao mesmo Suas necessidades ficam submetidas às condições impostas
tempo, ela desempenha os papéis dos gêneros masculino, pelo trabalho da mulher caminhoneira. Os horários de refei­
decorrente da profissão, e do feminino, através das rela­ ção e de sono dependem da jornada de trabalho da motoris­
ções de maternagem. E m relação àquelas que têm filhos, ta. O processo de socialização da criança eferiva-se num
a vida na estrada e a manutenção da família definem-lhes mundo formado por pessoas estranhas e passageiras, ao mes­
papéis sociais distintos. Em alguns casos, o auxílio de ter­ mo tempo em que o caminhão se torna sua casa e seu brin­
ceiros torna-se um meio para conciliar trabalho e família. quedo.
Os filhos são deixados com familiares, enquanto a mulher Nessa profissão, a sociabilidade entre homens e mulhe­
dedica-se ao trabalho. res é restrita. As mulheres não são vistas como "intrusas" ,
Entretanto, conforme foi constatado no trabalho de mas se estabelece certo "estranhamento" com a presença
campo desta pesquisa, há situações das quais a dedicação feminina. Em certos casos, as mulheres enfrentam a resis­
ao trabalho e à família interagem-se simultaneamente. Um tência masculina, devido à não-aceitação dos homens em
exemplo que ilustra tal situação ocorreu no momento em serem comandados por chefes do sexo feminino. A "estra­
que um pneu do caminhão estourou durante a viagem en­ nha convivência" ultrapassa os limites da estrada. O depoi­
tre os Estados de São Paulo e Bahia, da qual pudemos mento d e uma empresária revela os problemas por ela
acompanhar a rotina do trabalho de duas mulheres cami­ enfrentados, em meados dos anos 1960, ao assumir a direção
nhoneiras, que levavam consigo o neto de uma delas, de 5 da sua empresa, no ramo dos transportes rodoviários de car­
anos de idade. Não havia outra solução senão dar início, gas, em virtude da morte do marido:
no mesmo instante, à manutenção do veículo. A criança, "Quando eu entrei, sem preparo nenhum, havia funcionários que
então, submeteu-se a tais condições tanto quanto as duas não aceitavam ordens de mulher. Alguns foram embora. E como os
mulheres, ao sentir fome, sede e calor, até que o proble­ recém-contratados, quando descobriam que o patrão era mulher,
ma do caminhão fosse resolvido. Num determinado mo- pediam demissão, passei a adotar o seguinte procedimento: 'Quer

334 o AVESSO 0 0 TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO 335


trabalhar? Olha que aqui é mulher quem manda, tudo bem?' E fui balho dirigindo o mesmo veículo com o qual seu marido tra­
12
se1ecionando. " ! balha. O casal viaja levando consigo o filho de 2 anos de ida­
A resistência à chefia feminina pode ser constatada in­ de. A caminhoneira alega que o patrão do seu marido tem
clusive por mulheres e atinge outros ramos de atividade eco­ conhecimento de tal situação, mas, por um lado, oculta-se
nómica. Seguindo a análise de Souza-Lobo ( 1 99 1 ), entre as das responsabilidades do trabalho formal realizado por ela e,
trabalhadoras operárias estudadas pela aurora - há prefe­ por Outro lado, tira proveito da situação, uma vez que obtém
rência por chefias masculinas. Suas entrevistadas alegam ser a produtividade de dois motoristas, pagando pelos encargos
as relações sociais femininas competitivas e pouco sinceras, sociais de apenas um. Enquanto um empregado realiza duas
embora o trabalho feminino seja reconhecido e valorizado viagens, o casal realiza três. Nesse caso, o patrão toma como
positivamente, tanto pelas mulheres quanto pelos homens. referência de produtividade aquela realizada pelo casal, como
Conforme foi dito anteriormente, a não-contratação de se fosse exercida apenas por seu funcionário e "ignora" a
nossa informante pela empresa de transporte rodoviário de participação da esposa. Então, passa a exigir dos demais
cargas, na qual seu marido é funcionário, reforça a noção de empregados que esses atinjam a mesma produção (viagens)
que a "sexualização das ocupações" (Bruschini, 1979) ainda no mesmo espaço de tempo dedicado pelo casal:
prevalece em alguns setores da economia, como o dos trans­ "Nós tocamos difeto e o patrão não quer reconhecer que eu dirijo,
portes. A sexualização das ocupações se dá em atividades mas, sim, que os outros estão fazendo poucas viagens." (caminho­
profissionais das quais a maior parte dos trabalhadores que a neira, 29 anos)
elas se dedicam é composta de apenas um sexo. Segundo "Eles trabalham em dois e o patrão quer que a gente se iguale com
Bruschini, "o processo de sexualização das ocupações, ape­ eles dois. É uma injustiça!" (caminhoneiro emptegado, 38 anos)
sar de também afetar os homens em carreiras femininas, ocor­ Por seu lado, a caminhoneira submete-se a trabalhar em
re com maior intensidade entre as mulheres." (Bruschini, tais condições alegando que, tal como essa empresa, nenhu­
1 979, p. 18) ma outra situada na região - Sul de Santa Catarina demons­
Mesmo não sendo reconhecida profissionalmente como tra interesse em contratar uma mulher como motorista de
caminhoneira, a motorista dedica uma longa jornada de tra- caminhão. Também não exige seus direitos à referida em­
presa por temer que o marido venha a ser demitido. Por fim,
a motorista assume sua "clandestinidade" no trabalho, em
ll2
Mercedes Pierfelice, administradora de empresa. (Revista BR - Editada pela
CNT: Associação Nacional das empresas de Transportes Rodoviários de Cargas
troca de preservar o emprego do marido. Nessas circunstân­
- n' 222, maio/1985, p. 29. cias, a informante emprega sua força de trabalho em favor do

o AVESSO DO TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO 337


aumento d o salário d o marido, j á q u e o pagamento cuidados dos pais. Devido ao convívio bastante limitado ao
corresponde ao número de fretes. pai e à mãe, além do contato breve com os "estranhos" da
Na ocasião em que realizamos a entrevista, a informante estrada e longe de outras crianças, o caminhão torna-se o palco
encontrava-se afastava da estrada, em virtude de problemas das brincadeiras do garoto. Para a informante, apesar das di­
de saúde decorrentes do trabalho: ficuldades, o trabalho na estrada proporciona-lhe um senti­
'"'A labirintite atacou porque eu toquei muito e eu não dormia. Mi­
mento de prazer:
nha ansiedade era demais. Eu não conseguia dormir enquanto ele "Eu criei um amor pela estrada." (caminhoneira, 29 anos)
.
estava tocando. Daí, eu ficava o tempo todo acordada. Por fim, eu Nem todas as tarefas relacionadas à profissão são execu­
cansei, esgotou. Comecei a ter tontura, uma coisa e outra. Eu vim tadas pela caminhoneira que acompanha o marido. Proble­
pra casa e fui ao médico. O esgotamento mental é grande." (cami­ mas mecânicos e conta tos com as empresas para carga e
nhoneira, 29 anos) descarga de mercadorias ficam por conta do caminhoneiro.
Durante a viagem, o casal reveza tanto a direção do cami­ Na estrada, o convívio entre ela e Outros caminhoneiros tam­
nhão, quanto os cuidados com a criança. Cabe destacar que a bém é intermediado pelo marido. Durante as paradas nos
motorista conduziu o veículo até o sexto mês de gravidez e postos, as conversas com os colegas de estrada ocorrem inicial­
rerornou à estrada, com o bebê, quando este tinha apenas mente pelo marido da informante que, em seguida, apresen­
dois meses de idade: ta-a aos amigos ou recém-conhecidos:
"Eu só parei de dirigir depois dos seis meses porque eu soube que "Até no fato de cumprimentar, de conversar, nem sempre quando
o parto seria cesariana. Depois, eu voltei pra estrada com ele bem a gente faz uma amizade, eles chegam conversando diretamente
novinho. Ele só mamava e, hoje em dia, com fralda descartávcl, como se tu fosse do meio. Eles te respeitam como se tu fosse a
tudo fica muito mais prático. Como lá pra cima (região Nordeste) é mulher do motorista e, de repente, não pudesse conversar certos
mais quente, o nenê ficava bem melhor. Mesmo com o embalo do assuntos. E ntão, a gente vai ocupando o espaço devagarinho e,
caminhão, ele só dormia no caminhão. Eu amamentei ele até um pouco a pouco, eles sentem que a conversa é de motorista pra mo­
ano e sete meses." (caminhoneira, 29 anos) torista, de igual pra igual. :rvleu marido vai me colocando no meio
No caminhão, o espaço de trabalho é também de descan­ -
do pessoal e não me deixa separada porque ele sabe que pra mim é
so. Enquanto um está ao volante, o outro procura descansar difícil. O espaço é masculino, então, é difícil a gente chegar e se
no banco traseiro da cabine. Mas nem sempre QS horários entrosar." (caminhoneira, 29 anos)
destinados ao repouso são efetivamente aproveitados, pois a A auto-exclusão feminina do espaço público, entendido
criança representa mais um "trabalho", ao solicitar atenção e como masculino, é denominada por Bourdieu como uma

o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO 339


éspecie de "agorafobia socialmente imposta" às mulheres 1982, p. 27). Apesar da difícil conciliação entre a estrada e a
(Bourdieu, 1999, p. 52). casa, as mulheres caminhoneiras demonstram muito prazer
Situação distinta é verificada entre as caminhoneiras que pelo trabalho, j ulgam-se mais valorizadas que outras mulhe­
viajam sozinhas. Para estas, a vida na estrada representa um res, pois, entendem sua profissão como um grande desafio,
desafio ainda maior do que para os homens. Além de elas te­ já que os preconceitos são também grandes:
rem de provar competência às empresas contratantes do ser­ "Eu tenho um prazer próprio por isso. Eu gosto demais mesmo.
viço e aos colegas da estrada, sobrecaem-lhe as respon­ Minha admiração é grande porque é difícil pra uma mulher
sabilidades familiares agravadas por sua ausência do lar. Nem profissionalizar neste tipo de trabalho. O preconceito é grande de­
sempre é possível levar os filhos nas viagens, principalmente mais, pelo menos aqui nesta região! No Rio Grande do Sul, a mu­
entre aqueles que se encontram em idade escolar ou no caso lher já não é considerada tão incapaz." (caminhoneira, 29 anos)
em que a mãe trabalha como funcionária de uma empresa. "Uma pessoa vê uma mulher na direção como eu: 'Ah! aquilo lá 'é
Em entrevista à Revista Caminhoneiro, uma mororista de uma saparão! ' A pessoa que fala isso é porque não tem coragem de pe­
empresa de transporte rodoviário de cargas, na cidade de São gar no pesado, de lutar. É aquela pessoa que depende do dinheiro
Paulo, declarou que deixou de fazer viagens de longos percur­ do marido, ou depende de dinheiro fácil! Não tem capacidade e
sos porque permanecia por muito tempo longe de seus cinco vontade de trabalhar!" (caminhoneira aurônoma, 32 anos)
filhos. Numa ocasião em que viajou durante 23 dias, ao retornar Quando a mulher alcança uma aurenticidade distinta da-
em casa, sua filha caçula, na época, ainda bebê, não a reconhe­ quela pela qual foi socializada - a lógiê a do sentimento _

ceu como mãe. Então, decidiu abandonar as estradas e traba­ corre-se o risco de não mais ser vista como mulher, mas rotu­
ll3
lhar somente em viagens de curtas distâncias. lada como homem. A construção social de gênero é, então,
Desse modo, forma-se uma rede de ajuda que, na maio­ naturalizada. Tal concepção é comum nas profissões ditas
ria das vezes, as crianças passam a ser cuidadas por outras masculinas que exigem, inclusive, determinada conduta do
mulheres da família (mãe, tia, irmã etc.). Essa "cultura femi­ corpo físico e psicológico (Bourdieu, 1999). Portanto, as con­
nina" criada a partir da identidade de gênero é tratada por dições de trabalho do caminhoneiro apresentam-se da mes­
Gilligan ( 1 982). Segundo a autora, por meio das relações ma forma para ambos os sexos.
transgeracionais femininas são transmitidos os sentidos da
cooperação, da responsabilidade e do "cuidar': (Gilligan, A FAMíLIA
O modelo de família nuclear - pai/mãe/filhos - é bastan­
113, Revista Caminhoneiro, ano XV, fi" 146, março/1999. te recorrente entre os caminhoneiros. Entre os casados, ge-

34 0 o AVESSO DO TRABALHO C O l E Ç Ã O T R A B A L H O E E MA N C I PA Ç Ã O 3 4J.


ralmente esses profissionais são os principais responsáveis sentido, em grande parte das "famílias caminhoneiras", o fi­
pela renda familiar. lho cresce com a eXl?ectativa de logo atingir a idade permiti­
Nas chamadas "famílias caminhoneiras", vários membros d a por lei para se tornar um motorista profissional,
de um mesmo grupo familiar exercem o referido trabalho. A identificando-se ao pai. Assim, o trabalho revela uma outra
escolha pela mesma atividade profissional é vista como "he­ face relacionada ao prazer e satisfação no exercício da profis­
rança paterna." Além disso, a trajetória familiar não se limita são, decorrente da experiência vivida no grupo familiar:
à relação pai-filho, mas abrange relações de parentesco mais "A gente acaba gostando, também, porque o pai da gente fez isso a
extensas, tais como irmãos, tios, primos, cunhados etc. vida inteira." (caminhoneiro autônomo, 29 anos)
Em alguns grupos familiares, em especial nos Estados da "Quando a gente vê, o filho já está na mesma profissão do pail"
região Sul do país, esposas e filhas de caminhoneiros tor­ (esposa de caminhoneiro, 40 anos)
nam-se também mulheres caminhoneiras. A trajetória fami­ Em oposição à tendência de seguir a profissão de cami­
liar passada de geração a geração pode ser entendida como a nhoneiro, os pais almejam melhores condições de vida aos
experiência gerada nas relações sociais, em que os sujeitos filhos. Nesse caso, a ascensão social é planejada através do
reconhecem-se em suas necessidades, interesses, conflitos e estudo, a fim de deslocar a reprodução social da força de tra­
antagonismos (Thompson, 1981, p. 182): balho para carreiras profissionais que venham a proporcionar
"É difícil o pai entrar pra uma profissão que o filho não siga tam­ maior prestígio social. Mas nem sempre a realização profissio­
bém! O pai incentiva!" (esposa de caminhoneiro, 48 anos) nal almejada para os filhos é concretizada, embora, entre as
"Com 4 anos de idade, o meu filho já viajava com o pai. Com 8 últimas gerações, os filhos tendam a atingir maior formação
anos, ele já sabia tudo!" (esposa de caminhoneiro, 36 anos) escolar em comparação aos pais. Os motivos alegados para
"A gente escolhe esta profissão porque é meio hereditário. Meu não desejarem a mesma profissão aos filhos remetem às pre­
pai sempre teve este negócio de caminhão. Eu aprendi a dirigir cárias condições de trabalho, violência, baixa remuneração e
caminhão com 8 anos de idade. A gente já tinha sangue de cami­ grande desgaste da força de trabalho.
nhoneiro." (caminhoneiro autônomo, 29 anos) Sob outro ponto de vista, há um desejo, por parte das
"Eu estou sempre com o meu marido e acompanho as dificuldades esposas/mães, de que suas filhas não se casem com homens
dele na estrada. Ele sempre me incentivou. Eu não dirigia carro, caminhoneiros. Os casamentos entre membros de "famílias
eu já peguei direro no caminhão." (caminhoneira, 29 anos) caminhoneiras" são comuns, especialmente nas pequenas
A identificação entre homem e trabalho é dada, inicial­ cidades onde há forte presença de motoristas de caminhão.
mente, com o processo socializador gerado na família. Nesse A intenção se justifica em virtude do constante estado de

34 2 o AVESSO 00 TRABALHO C O L E ÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO )4)


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ansiedade que essas mulheres vivenciam, enquanto seus res­ aos maridos que, além de estarem trabalhando noite e dia,
pectivos maridos estão na estrada: sob sol e chuva, possam, porventura, estar enfrentando pro­
"Eu não tenho vontade que minha filha se case com um caminho­ blemas na estrada. Por fim, o sentimento de culpa restringe­
neiro. Ela vai passar pelo mesmo sofrimento que a gente passa." as do convívio social na ausência deles:
(esposa de caminhoneiro, 38 anos) "Quando meu marido não está, eu não vou a casamento, eu não
Em casa, a preocupação com as adversidades do trabalho vou em jantar dançante, eu não vou em nada!" (esposa de cami­
do caminhoneiro gera na família - principalmente entre as nhoneiro, 34 anos)
esposas e mães dos motoristas - problemas de origem emocio­ "Não tem graça sem ele. Eu me sinto culpada. Eu penso: e o que
nal, como tensão nervosa, estresse, depressão e ansiedade: ele deve estar passando na estrada? E eu me divertindo? Eu não
"O pensamento ruim está sempre na cabeça da gente. Meu pai, me sinto bem. Se acontecer uma cOÍsa com ele, eu vou me sentir
meu irmão e meu marido são caminhoneiros. No primeiro ano de culpada, sabe? E se ele sofre um acidente e eu estou aqui me di­
casada, eu tomava remédio de faixa preta para os nervos. Eu tinha vertindo? Então, eu não vou. A festa não me faz falta. Eu não pre­
medo de atender o telefone. Eu pensava que já vinham trazer a ciso ir." (esposa de caminhoneiro, 45 anos)
notícia. Iv1inha mãe não tem unha, ela rói tudo-! Ela vive na janela A ausência do marido tende ainda a sobrecarregar o tra­
roendo unha! Então, eu penso assim: o que ela está vivendo é a balho feminino, independentemente de a mulher exercer
mesma situação que eu estou vivendo!" (esposa de caminhoneiro, ou não uma ati vida de remunerada. No âmbito familiar, a
26 anos) mulher assume os papéis sociais de ambos os gêneros
"Se a gente sofre porque o marido está na estrada, pelo filho, a (Cherobim, 1 984, p. 1 2 1). É interessante notar as manifesta­
gente sofre o triplo." (esposa de caminhoneiro, 40 anos) ções das mulheres no tocante ao desempenho de funções: ao
As declarações evidenciam que os efeitos da relação ho­ mesmo tempo em que elas se julgam mais emancipadas,
mem-trabalho repercutem diretamente nos familiares dos decididas e determinadas que aquelas, cujos maridos estão
motoristas. Em outros termos, os reflexos do trabalho alcan­ sempre presentes no lar, elas também reivindicam mais con­
çam, inclusive, aqueles que não estão diretamente compro­ vivência e participação dos caminhoneiros no que se refere à
metidos com sua execução. O envolvimento da família com administração familiar. ·
o trabalho do caminhoneiro manifesta-se, também, através De acordo com a análise de Sarti, a autoridade feminina
da privação de entretenimento a qual algumas mulheres limita-se à esfera do lar. Acima dela repousa a autoridade
impõem a si mesmas, enquanto os motoristas encontram-se masculina, com a família sob seu controle: "Existe uma divi­
longe de casa. A abnegação é justificada como solidariedade são complementar de autoridades entre o homem e a mu-

344 o AV E S S O D O T R A B A L H O C O L E ÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO 345


lher na família que corresponde à diferenciação entre casa e atenção dedicada pelo motorista, a chegada do esposo/pai à
família. A casa é identificada com a mulher e a família com o casa é interpretada como uma festa, reforçando os laços de
homem. Casa e família, como homem e mulher, constituem afetividade. Para o caminhoneiro, a casa é seu porto seguro:
um par complementar, mas hierárquico" (Sarti, 1996, p. 42). "A solidão faz voltar. A gente tem loucura pra chegar logo em casa."
Quando o caminhoneiro rerorna à casa, o seu lugar de autori­ (caminhoneiro empregado, 39 anos)
dade na família é cobrado pela mulher. Nessa ocasião, discu­ Pouco tempo depois, já estão de volta à estrada.
tem-se assuntos pendentes, como contas a pagar, problemas
de saúde, educação dos filhos, escola, enfim, os fatos vividos o CLUBE
pela família durante a ausência do motorista. Com o intuito de estabelecer uma maior integração
en­
A presença do caminhoneiro no lar altera a rotina da fa­ tre as famílias caminhoneiras, em 1995, foi criado
o "Clube
mília. Em casa, o motorista comporta-se como um "hóspe­ das Mulheres de Caminhoneiros", numa pequena cidad
e do
de" e divide a curta "estadia" entre a família, os colegas e o Sul de Santa Catarina. Trata-se de uma associação
sem fins
caminhão: lucrativos, cujo objetivo principal visa a solidarieda
de mú­
"A mulher que fica em casa, na verdade, ela faz a parte do homem tua entre as mulheres de motoristas de caminhão. Em
prin­
e a parte da mulher. O marido chega em casa e é uma visita." (es­ cípio, a idéia de fundar o clube partiu de uma espos
a de
posa de caminhoneiro, 35 anos) caminhoneiro, ao perceber que tanto ela quanto as
demais
"A casa é estranha pra eles." (caminhoneira, 29 anos) viviam situações semelhantes, porém isoladas em suas
res­
Apesar do curro período que permanece em casa, o cami­ pectivas casas: "As mulheres de caminhoneiros sofrem de
nhoneiro - em especial o proprietário do veículo - dedica depressão, de ansiedade nervosa. Com os encontros, isso se
boa parte dos momentos de descanso a "cuidar do caminhão." torna muito gostoso. É agradável porque tu conversa, tu brin­
Na borracharia, espaço tipicamente masculino, os encontros ca, tu ri" (esposa de caminhoneiro, fundadora do Clube, 34
com amigos tiram-no da companhia da esposa e dos filhos: anos). Logo, o clube tomou um caráter de entidade recreati­
"Minha filha fala: Pai só fica cuidando desse caminhão!" (esposa va e de assistência social.
de caminhoneiro, 35 anos) Entre as várias formas de associativismo civil, Scherer­
"Eu digo para o meu marido: Se tu desse pra mim metade da aten­ Warren define as "Associações Civis" como "formas organiza­
ção que tu dá para o caminhão, já era um proveito!" (esposa de das d e ações coletivas, empiricamente localizáveis e
caminhoneiro, 36 anos) delimitadas, criadas pelos sujeitos sociais em torno de identi­
Em contrapartida às queixas da família a respeito da pouca ficações e propostas comuns, como para a melhoria da quali-

o AVESSO DO TRABALHO C O l E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O 347


dade de vida, defesa de direitos de cidadania, reconstrução junto com a prefeitura local. As integrantes. são convidadas a
comunitária etc. Inclui-se nessas as associações de moradores, divulgar campanhas de saúde e, posteriormente, são treina­
ONGs, grupos de mútua-ajuda, grupos de jovens, mulheres, das para executar a tarefa. O clube já participou de trabalhos
étnicos, ecologistas e outros" (Scherer-Warren, 1 999, p. 15). voluntários como nas campanhas informativas sobre o cân­
O Clube das Mulheres de Caminhoneiros conta com pou­ cer de mama e o combate ao vibrião do cólera. Em troca da
co mais de vinte e cinco participantes, embora a comunida­ prestação de serviços, as integrantes do clube se beneficiam
de local abrigue um número superior a cento e trinta do atendimento médico municipal:
caminhoneiros. No entanto, as famílias caminhoneiras estão "Aqui não tem nem INSS. A gente estando na Secretaria da Saú­
sempre presentes nos eventos organizados pelo clube. Cada de, a gente consegue um exame com mais facilidade, como uma
integrante contribui mensalmente com uma pequena taxa requisição para um exame, uma consulta sem ter que ir de madru­
simbólica para a manutenção da entidade. Na tentativa de gada pra pegar a ficha. Então, nós se doamos pra eles e eles ajudam
preservar a identidade do grupo, o clube permite somente a nós." (esposa de caminhoneiro, 34 anos)
adesão de mulheres cujos maridos sejam motoristas de ca­ Os caminhoneiros da região não dispõem de um sindica­
minhão. Caso o caminhoneiro tenha um ou mais caminhões, to, o que dificulta as ações coletivas. Nesse caso, o clube
porém contrata outros motoristas para dirigir os veículos, as tenta suprir algumas carências e resolver certos problemas
integrantes do clube não aceitam a esposa do referido cami­ que envolvem as respectivas famílias. Em determinada oca­
nhoneiro como membro da entidade: sião, a entidade fez a doação de cestas básicas e efetuou o
"Se começar a abrir exceções, não é Clube das Mulheres de Caminho­ pagamento de consulta médica para um motorista autónomo
neiros. Perde a identidade. Tem muitas aí que os maridos têm cami­ de caminhão, que sofrera um acidente.
nhão, têm motorista no caminhão e elas querem entrar. Só que eu Apesar das propostas até então apresentadas e realizadas
acho que não tem graça. Elas não sabem dos sofrimentos, das angústias, pelo clube, a não-participação das demais mulheres, esposas
da solidão que a gente passa." (esposa de caminhoneiro, 34 anos) de caminhoneiros, deve-se, em parte, à proibição de seus
Atualmente, as reuniões semanais ocorrem numa sala de respectivos maridos. Outras não aderiram ao clube por deci­
encontros anexa ao salão paroquial: são própria, embora o convite à adesão tenha sido estendido
"Teve época de nós se sentar no banco do jardim, ou no piso de um a todas as mulheres de motoristas de caminhão daquela ci­
degrau do colégio." (esposa de caminhoneiro, 34 anGs) dade. Os caminhoneiros contrários à participação de suas
Além de promover festas e encontros periódicos, o clube esposas exercem um controle sobre as mesmas, inclusive
realiza também trabalhos de cunho assistencialista em con- quando estão viajando:

o AVESSO DO TRABA L H O COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO 349


" Nós marcamos uma reunião e uma mulher disse que ia. Ele (o 1976, p. 1 1 7), neste ensaio procuramos discutir algumas ques­
marido) disse assim: 'se tu ir, eu vou descobrir.' No tal dia, ele de tões que envolvem a vida e o trabalho dos caminhoneiros
vez em quando ligava pra casa pra ver se ela tinha ido." (esposa de que realizam viagens de longos percursos. Sem nos esque­
caminhoneiro, 34 anos) cermos da pluralidade da realidade que os cerca, pudemos
Segundo algumas informantes, esses motoristas recusam­ perceber vários pontos comuns, principalmente no que se
se a entender os objetivos das reuniões promovidas pelo clu­ refere às condições de trabalho, ao ritmo intenso da jornada
be e julgam os tais encontros como pretextos para boatos de trabalho e aos papéis sociais masculinos e femininos.
sobre o comportamento deles na estrada. Nesse sentido, a O cotidiano do caminhoneiro compõe-se de situações
dominação masculina, direta ou à distância, expressa as rela­ inusitadas, belas paisagens, cidades grandes e pequenas ao
ções de poder entre os gêneros, que não se limitam à esfera longo do seu caminho. Visto do lado de fora do caminhão,
doméstica, mas permeia todo o tecido social (Scott, 1990). ele é um "nômade" sobre rodas, estranho ou pouco conheci­
O desafio em manter o referido clube prevaleceu sobre o do nos locais por onde anda. Sua passagem é sempre breve,
desejo de alguns em inibir sua atuação: inclusive em sua própria casa. Nunca se distancia do veícu­
"Acho que este era o pensamento deles: ela (a fundadora do clube) lo. Mas no interior de sua cabine, o motorista de caminhão é
está levando todas as mulheres a se perder! Eles só viam maldade "sedentário", não há espaço para muitos movimentos. En­
no clube. Tem homem que pensa que mulher é só pra pilotar fogão quanto ouve o rádio, seu constante companheiro, ele obser­
e tanque." (esposa de caminhoneiro, 45 anos) va os povoados que brotam às margens das rodovias, com
Podemos verificar que a visão dicotômica dos espaços seus vendedores ambulantes de doces e frutas. Não descui­
"público/masculino" e "privado/feminino" ainda não está da dos ornamentos que enfeitam sua cabine e o remetem às
superada em alguns setores da sociedade. No entanto, além lembranças da família, j á que o trabalho afasta-o do convívio
das atividades de caráter social, o convívio entre as integran­ social.
tes do clube ameniza a solidão do cotidiano dessas mulheres Para o caminhoneiro, o trabalho lhe confere dois senti­
e, conforme elas mesmas afirmam, sua fundação representa dos: um - de sofrimento - que o leva a criar "estratégias de­
uma "homenagem aos heróis da estrada." fensivas" para enfrentar os riscos da profissão; outro - de
prazer que ele encontra na mesma estrada, através de um
CONSIDERAÇÕES FINAIS sentimento de aventura e liberdade. Assim, numa rotina em
Conforme o sentido da frase de pára-choque de cami­ que os dias quase não se diferenciam, homens e mulheres
nhão: "Moro no mundo e passeio em casa" (Lauand et aI/i, trafegam por uma estrada que parece não ter fim.

35° o AV E S S O D O T R A B A L H O C O L E Ç Ã O T R A B A L H O E E MA N C I PA Ç Ã O
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.

3 52 o AVESSO DO TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO 353


QUALIDADE TOTAL E INFORMÁTICA:
A CONSTITUiÇÃO DO NOVO
" HO MEM-MÁQUINA"

SIMONE WOLF'"

INTRODUÇÃO"5
Quando o processo de adaptação se completou, verifica-se en­
tão que o cérebro do operário, em vez de mumificar-se, alcan­
çou u m estado de liberdade completa. Só o gesto físico
mecanizou-se inteiramente; a memória do ofício, reduzido a
gestos simples repetidos em ritmo intenso, "aninhou-se" nos
feixes musculares e nervosos e deixou o cérebro livre para ou-

114
Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas _

Unicamp. Docente do Departamento de Ciências Sociais da Universidade


Estadual de Londrina - UEL
115
Este artigo constitui uma versão sintética de uma pesquisa anteriormente
desenvolvida e apresentada como dissertação de Mestrado pela Universidade
Estadual de Campinas, em junho de 1998, sob o título: Informatização do
trabalho e reificação: uma· análise à luz dos Programas de Qualidade Total.
Com exceção da sua conclusão, onde algumas considerações foram repensadas
desde a atualização de alguns referenciais teóricos, muitas questões e análises
aqui apresentadas encontram-se melhor desenvolvidas e aprofundadas na
referida dissertação. Da mesma fonna, ali poderão ser obtidos mais elementos
e bibliografias sobre o tema.
tras ocupações. (... ) caminha-se automaticamente e, ao mesmo cidad e exclusiva do trabalho vivo: a expropria
ção e conse­
tempo, pode-se pensar em tudo aquilo que se deseja. Os indus­ q ü e n t e a p ropr iação , p e l o c a p i tal, d a s u
a d i men são
triais norte-americanos compreenderam muito bem esta dialética cognitiva.
inerente aos novos métodos industriais. Compreenderam que o No reverso dessa apro priaç ão reside o fenô
men o da
operário continua "infelizmente" homem e, inclusive, que ele, reificação do trabalhador já que sua realização opera
-se des­
durante o trabalho, pensa demais ou, pelo menos, tem muito de uma alien ação da sua ativi dade criativa para
fins de
mais possibilidade de pensar, principalmente depois de ter su­ quantificação de suas qualidades. Ou seja, a partir
da trans­
perado a crise de adaptação. Ele não só pensa, mas o fato de que formação de uma dimensão eminentemente quali
tativa do
o trabalho não lhe dá satisfações imediatas, quando compreen­ trabalho humano em algo passível de ser quan
tificado, me­
de que se pretende transformá-lo num "gorila domesticado", dido, calculado. É assim que o trabalhador conv
erte-se em
pode levá-lo a um curso de pensamentos pouco conformistas. A uma coisa, em mais um objeto que entra no proce
sso produ­
existência desta preocu pação é comprovada por toda uma série tivo, e que pode ser manipulado/gerido como qualq
uer ou­
de cautelas e iniciativas "educativas", que se encontram nos lí- tro recurso/insumo de produção. Ora, o trabalho inform
atizado
vros de Ford (Gramsci, 1976). - expressão última das forças produtivas atuais -
ao operar
O presente artigo pretende evidenciar como as materia­ uma apropriação de novo tipo, acirra o fenômeno da
reificação
lizações da evolução técnica, sob as relações capitalistas na medida em que possibilita tornar mercadoria/coisa,
não
de produção, resultam em instrumentos de dominação do só o esforço físico e manual do trabalho vivo - como
vinha
capital sobre o trabalho. Uma dominação para fins de ex­ sistematicamente ocorrendo desde a chamada prime
ira re­
tração de mais-valia, lógica inerente a essa relação social, volução industrial - mas o pensamento, as idéias, as infor­
e que, como tal, implica na exploração da força de traba­ mações produzidas e acumuladas a partir das experiências
lho. Uma exploração que, por sua vez, demanda um cons­ advindas do seu cotidiano na produção. Uma capacidade que
tante controle sobre os trabalhadores, tarefa por excelência só a mercadoria força de trabalho pode realizar, posto que a
das políticas de gestão do trabalho. Mais especificamen­ única dotada de criatividade.
te, o artigo objetiva demonstrar como a materialização da Os Programas de Qualidade Total (PQTs), nova técni­
tecnologia informática aplicada ao processo produtivo se­ ca de organização do trabalho, serviu-nos de objeto para
gue esses mesmos preceitos, garantindo, em Qutras bases, investigar esse novo nível de reificação humana colocado
essa exploração. Em outras bases porque atua em um ní­ pela informatização do trabalho. Uma vez que esses pro­
vel qualitativamente acrescido sobre a criatividade, capa- gramas são uma técnica organizacional que vingou sob o

o AVESSO 0 0 TRABALHO C O L E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O 357


-

advento das novas tecnologias da informação, efetuamos 1. Os PROGRAMAS DE QUALIDADE TOTAL E O NOVO
uma análise que buscou enfocar, em seus meandros, o HOMEM-MÁQUINA.
entendimento da informação como um novo commodity nas A aplicação das novas tecnologias da informação na pro­
empresas e, por conseguinte, dos homens como uma má­ dução em conjunto com as mudanças na organização e ges­
quina/coisa produtora e otimizadora dessa nova mercado­ tão do trabalho faz parte de uma estratégia empresarial
ria. B u scamos evidenciar que esse entendimento é que objetivou responder à profunda crise que atingiu o
resultado da conseqüente prevalência do trabalho morto, capitalismo no início da década de 1 970. Tal crise trouxe
materializado nas máquinas, sobre o trabalho vivo - ten­ profundas mudanças no mercado de consumo determinan­
dência intrínseca à produção capitalista e, particularmen­ do uma mundialização!!6 do capital que, por sua vez, exi­
te, ao fenômeno da reificação. Sendo assim, o trabalho vivo giu das empresas uma reestruturação produtiva que
passa a ser visto em termos de máquina, tendo que agir persiste até os dias de hoje. Dada a versatilidade e rapi­
enquanto tal, de modo a abastecer e otimizar as funçôes dez possibilitada por seus softwares, as novas tecnologias
computacionais - leia-se, o trabalho morto em detrimento da informação são capazes de atender rapidamente as va­
da sua atividade criativa e, desse modo, a produtividade riações de consumo colocadas pela mundialização, consti­
empresarial. tuindo-se, por isso, uma ferramenta fundamental dessa
À luz de certos princípios que integram os PQTs, é reestru turação.
possível perceber a tentativa de adequação dos trabalha­
!J6
dores às operações próprias das novas máquinas informá­ Em contraposição ao termo "globalização", preferimos adotar o de
"mundialização", invocada por Chesnais ( 1 996), para nos referirmos às
ticas e, pois, o tratamento destes ao mesmo tempo como
mutações do capitalismo , ora em curso. Para este autor, a designação
insumo e instrumento de potenciação das mesmas. É as­ "globalização", cunhada no início dos anos de 1980 "nas grande escolas
sim que uma análise crítica do conjunto das técnicas que americanas de administração de empresas" (CHESNAIS. 1996, p. 23), é
integram o modelo de gestão do trabalho dos PQTs nos demasiadamente ideológica, pois encobre a principal faceta político�econômica
desse processo: a de que as rédeas desse processo estão nas mãos das grandes
permite explicitar os indícios de um novo processo de
empresas transnacionais e conglomerados. Longe de representar uma mudança
reificação engendrado pela informatização do trabalho. no sentido de uma expansão do mercado mundial através da livre concorrência,
Com isso, O artigo contemplará, simultaneamente, dois dos como sugere a noção de «globalização", o que se vê é justamente o contrário.
Ou seja, as grandes corporações, livres das rígidas regulamentações impostas
principais pilares da atual reestruturação produtiva como
sob o Well-Fare State, estão invadindo o mundo e ditando, ao seu bel prazer,
uma nova roupagem para um fenômeno inerente à produ­ as regras e os critérios de seletividade para a exploração, tanto do mercado de
ção capitalista. consumo como o de trabalho.

35 8 o AVESSO D O TRABALHO C O L E ÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO 359


Além disso, a intensa interligação e diversificação de
mercados que distingue esse quadro pôs em relevo um novo
modelo de empresa: a empresa integrada e flexível. Desse

\
1
I
mercado de consumo, assim como a capacitação sistemáti­
ca dos seus operários para o manejo do novo maquinário
informatizado:

!
modo, um outro aspecto de tal reestruturação é a promoção A integração se baseia nos mesmos princípios tayloristas-e fordistas
de um novo estilo empresarial, a chamada administração de eliminação dos tempos mortos, otimizando a relação entre tem­
participativa, que visa, entre outras coisas, conformar um novo po de circulação e tempo de operação e uma otimização da lógica
perfil de trabalhador que responda às demandas exigidas pela da informação no fluxo produtivo e dos meios circulantes, abaste­
mundialização e sua expressão melhor acabada no interior cendo assim, com a máxima eficiência e rapidez, as linhas e os pos­
das empresas: informatização da produção. Esse objetivo é tos segundo suas necessidades (Neves, 1994: 28).
atendido, mais especificamente, pelos Programas de Quali­ Ao impor um novo perfil de trabalhador que atenda às
dade Total, os quais se destacam como uma das inovações exigências colocadas pela mundialização do capital e sua
tecno-organizacionais mais representativas e eficazes no que principal ferramenta, a informática, a reestruturação em­
se refere à otimização desse novo processo de modernização presarial em curso conforma um novo tipo de reificação do
empresarial. trabalhador.
Em um cenário de tão grandes transformações, é de se Foi no "ohnismo" l17, também comumente chamado
esperar o agravamenro daquilo que foi apontado por Harvey "toyotismo", que tal reestruturação encontrou as bases
( 1 992: 1 18-1 19) como uma dificuldade estrutural da produ­
ção capitalista, isro é, a "conversão da capacidade de homens !17 «Ohnismo" é um outro termo utilizado para identificar o "toyotismo", isto é,

e mulheres de realizarem um trabalho ativo num processo um conjunto de novas técnicas de gerenciamento da produção e do trabalho,
originárias do }apão do pós II Guerra Mundial, tendo como objetivo reaquecer
produtivo cujos fruros possam ser apropriados pelos capita­
a produção de suas empresas e alavancar a então debilitada economia japonesa.
listas". Portanto, o que se recomenda ao empresariado é a Ainda que a crise atual se caracterize por um mercado ampliado e atuante em
busca de novas políticas de gestão empresarial e da força de escala planetária, o grau de competitividade e desemprego imposto pelas

trabalho que dêem conta de formar de uma mentalidade re­ políticas neoliberais próprias da globalização, deixa-o bastante limitado em
nível de unidade empresarial.
ceptiva à necessária reestruturação produtiva pela qual suas
O "toyotismo" oferece uma solução simples mas eficiente para superar este
empresas têm de passar para se manterem competitivas. quadro: produção enxuta, diversificada e em conformidade com a demanda
Nessa nova empresa, o liame entre equipamentos, tra­ efetiva.- Ou seja, em confronto direto com o modelo fordista de produção, o
"toyotismo" conseguiu levantar a economia japonesa, assim como, mais tarde,
balhadores e informações passa a ser essencial. Igualmen­
veio a se revelar extremamente oportuno às circunstâncias colocadas pela
te, a rápida adaptação desses às recorrentes variações do mundialização. Seu sucesso foi tão grande que, no início dos anos de 1980,

o AVESSO 0 0 TRABALHO COLEÇÂO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO


organizacionais mais adequadas para garantir esse novo pa­ Nesse sentido, permite às empresas constituírem uma es­
tamar de racionalização e conseqüente reificação da força de trutura propícia às demandas desse novo contexto capitalista
trabalho. De acordo com Lojkine ( 1 992: 27), o "ohnismo" antes mesmo da implementação da nova maquinaria, ou seja,
representa um "mito mobilizador" que "permite legitimar estimulando nos trabalhadores as habilidades necessárias no
os comportamentos dos dirigentes a seus próprios olhos e, ao manejo dessa nova ferramenta de trabalho. Dentro desse
mesmo tempo, aos olhos de seus subordinados, fornecendo "novo" universo empresarial e, portanto, dessa nova forma de
os princípios de ação para o exercício do poder e a adminis­ reificação, a técnica organizacional que melhor responde a esse
tração da empresa". A abordagem sistêmica, própria desse "desafio" são os Programas de Qualidade Total.
modelo, subsidia as empresas a adotarem um "sistema de Desse modo, a nova abordagem de gestão da produção
qualificação permanente, integrado ao trabalho, como forma encerrada nos PQTs está para a mundialização do capital
de ajudar a vivenciar as rupturas das mudanças, facilitando a assim como o taylorismo-fordismo estava para a produção
introdução de novas tecnologias com garantia de eficácia na padronizada e massificada típica do fordismo-keyne­
sua utilização" (Soares, 1992: 15). sianismo, isto é, como uma organização para a subsunção
real do trabalho ao capital. Contudo, essa subsunção agora
se dá, para além da expropriação do saber operário, pela
quando uma crise de lucratividade se alastrava por todo o globo. um expropriação e objetivação das suas capacidades cognitivas,
considerável número de empresas do mundo inteiro começou a adotá-Io
de criação, de iniciativa, enfim, pela apropriação da dimen­
progressivamente.
A partir dos anos de 1990, o "toyotÍsmo" destacou-se como um fatorintegrante são intelectual da sua atividade criativa. Requisitos que
fundamental da presente reestruturação produtiva, vÍndo a se caracterizar como demandam um controle mais sutil da força de trabalho já
uma verdadeira reforma administrativa no interior das empresas. A
que, sob a lógica da informatização, longe do capital se
universalização do toyotismo deve-se, também, às suas políticas de gestão de
pessoal, que contemplam todo um preparo da subjetividade dos trabalhadores independentizar do trabalho vivo, mais do que nunca a nova
para as mudanças estruturaís previstas no seu modelo de empresa. maquinaria necessita de todo o potencial criativo do traba­
Pode-se dizer que são um aspecto contingente do "toyotismo". Foi, o modelo
lhador para funcionar. Por isso que, na nova empresa flexí­
toyota de produção que inspirou as técnicas de gestão do trabalho presentes
nos PQTs, isto é, aquelas que respondem pela adequação da força de trabalho vel, integrada e informatizada, o envolvimento e participação
às novas demandas de qualificação requeridas pela presente reestruturação dos trabalhadores colocam-se como um fator imprescindí­
empresarial: flexibilidade, poli valência, envolvimento e participação.
vel para a produtividade.
Qualidades que, como será demonstrada, garantem, ao me;mo tempo, o
engajamento e o desenvolvimento das habilidades dos trabalhadores que
É isto que leva Antunes ( 1 995: 34) a apontar para o
otimizam a nova maquinaria informatizada. surgimento de um "estranhamento pós-fordista", cuja ca-

3 62 o AVESSO DO TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO


racterística maior se dá pelo "envolvimento cooptado, que do trabalhador, o desafi o maIOr dessas técnicas
. . .

possibilita ao capital apropriar-se do saber e do fazer do tra­ orgamzaclOnals:


balho". De acordo com este autor, a "subsunção do ideário é o de incitar o coletivo dos trabalhadores, não apenas a se engajar
do trabalhador" na empresa flexível é "mais consensual, voluntariamente no ajustamento permanente e na manutenção dos
mais envolvente, mais participativa, em verdade, mais equipamentos, mas de fazê-lo de tal modo que as melhorias daí
manipulatória" (Antunes, 1995: 34). Isso porque o trabalha­ advindas possam ser sistematicamente incorporadas no hardware e
dor, agora, além de agir, tem de pensar para o capital. no software. O savoirfaire adquirido através da aprendizagem dire­
Antunes chama a atenção para a sutileza dessa nova forma ta, na manutenção diária do processo produtivo, deve se tornar pas­
de dominação, que fica encoberta sob uma aparente auto­ sível de formalização e de assimilação pelos setores de OeM e de
nomia e reintegração entre o trabalho de concepção e o de engenharia. De fato, o problema é o de reunificar o que o taylorismo
execução. Sob tal aparência, o unidirecionamento das ativi­ separou: os aspectos manuais e intelectuais do trabalho.
dades produtivas/criativas em prol do capital, não só conti­ No bojo dessa nova racionalidade capitalista, observa-se
nuam como se encontram ainda mais exacerbadas, posto a conformação de um "novo tipo humano" de acordo com o
que realizado na forma de uma dominação qualitativamente "novo tipo de trabalho e produção" que Gramsci ( 1976) vis­
acrescida em relação ao fordismo, qual seja, a objetivação lumbrou tão bem no fordismo. E, caberia acrescentar, com o
das capacidades cognitivas próprias da criatividade humana: novo tipo de ferramenta escolhida para impulsionar e otimizar
O resultado do processo de trabalho corporificado no produto per­ esse novo contexto - a informática - inferindo, também, o
manece alheio e estranho ao produtor, preservando, sob todos os exacerbamento do homem-máquina que Braverman (1981)
aspectos, o fetichismo da mercadoria. A existência de uma ativída­ já apontara sob o taylorismo-fordismo1 l8• Para nós, é essa a
de autodeterminada, em todas as fases do processo produtivo, é
l!8
Para Braverrnan (1981), o taylorismofoi a consolidação, no interior das organizações
uma absoluta impossibilidade sob o "toyotismo", porque seu co­ empresariais, daquilo que a primeira revolução industrial encetou relativamente à
mando permanece movido pela lógica do sistema produtor de mer­ divisão do trabalho: a separação entre o saber e o fazer. Conforme este autor (1981,

cadorias. Por isso pensamos que se possa dizer que, no universo da p. 150), com a gerência científica: a unidade de pensamento e ação, concepção e
execução, mão e mente, que o capitalismo ameaçou desde os seus inícios . O fator
..

empresa da era da produção japonesa, vivencia-se um processo de


subjetivo do processo de trabalho é transferido para um lugar entre seus fatores
estranhamento do ser social que trabalha, que tendencialmente se objetivos inanimados. Aos materiais e instrumentos da produção acrescenta-se um
aproxima do limite (Antunes, 1995: 34). ''força de trabalho", outro "fatorda produção", e o processo é daí por diante executado
pela gerência como exclusivo elemento subjetivo.
Conforme Lipietz ( 1 988: 18), considerando a lógica da
No espaço da produção, esta nOva divisão do trabalho se concretiza pela
nova expropriação, a expropriação da dimensão cognitiva instituição do departamento de organização e métodos (O&M), responsável,

o AVESSO 0 0 TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO


questão que está por trás das declarações de política de ges­ Juran, controle da qualidade; e Deming (1990): Qualidade: a
tão da produção dos PQTs, a qual é encoberta pelo cunho revolução da Administração. Esses dois autores são reputados
fetichista de seu discurso. Sob o véu da reificação, esconde­ como os "pais" da Qualidade Total, e seus livros considera­
se o fato de que a reunificação entre trabalho de execução e I dos como as "bíblias" d o modelo d e administração
trabalho de concepção nada mais constitui que um tipo novo participativa. As versões aqui analisadas são as últimas revis­
de expropriação e o conseqüente agravamento do homem­ tas e ampliadas pelos próprios autores, ambas realizadas no
máquina. início da década de 1990 (as primeiras datam da década de
1950).
2. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES CRíTICAS ACERCA DO Tomaremos como referência maior o livro de J uran (1993),
,

DISCURSO DOS PROGRAMAS DE QUALIDADE TOTAL i


1
visto que esse autor é o mais atualizado em termos de inova­

1
Antes de entrarmos em nossa problemática propriamen­ ção dos PQTs segundo os ditames político-económicos en­
te dita, é importante fazermos algumas considerações sobre gendrados pela crise que começou a atingir o capital por
o conteúdo discursivo dos PQTs de maneira a destacar seu I ocasião de seus primeiros escritos. Da mesma forma, é o au­
caráter fetichista. Neste estudo, as citações relativas aos di­ jI tor que mais avançou relativamente à adequação dessa téc­
tos Manuais da Qualidade Total concernem às suas duas fon­ 1 nica organizacional às transformações que a mundialização
(
II
tes primárias e inspiradoras de todos as demais publicações provocou no interior do processo produtivo. Isso fica muito
que lidam com essa temática. São estas o livro de Juran ( 1993): claro na última versão de seu manual da QT publicada em
, 1990 (a primeira data de 195 1 ), o que nos permite observar
entre outras coisas, pelo ajustamento - mediante análise sistemática - dos como esses programas permanecem bastante atuais. Logo
movimentos humanos aos das máquinas e pejo aprimoramento da própria
na introdução, J uran (1993: IX) coloca que a nova edição foi
maquinaria, o que é permitido, em grande medida, por tal ajustamento. É nesse
mesmo sentido que Gramsci (1976, p. 403) definiu o taylorismo como um revista e ampliada para "acompanhar as grandes mudanças
"processo de adaptação à mecanização". Para ele, tal adaptação incide que vêm acontecendo". Porém, as causas e características
diretamente sobre o perfil dos trabalhadores instaurando uma perversa
político-económicas dessas mudanças nunca ficam muito
qualificação que "é medida a partir de seu desinteresse intelectual, da sua
'mecanização'. "
bem esclarecidas, antes são dados a priori e inexoráveis, isto
Constitui-se, assim, o homem-máquina (ef. Braverman, 1981), ou seja, aquele é, fatos inquestionáveis que apareceram a partir da "última
cujas atividades produtivas são baseadas, exclusivamente, er:t cálculos de metade do século 20" com o surgimento de certas "forças
eficiência e lucro, aquele que, em virtude da lógica imperativa das relações
emergentes" e que "exigiriam, então, que fosse dada priori­
capitalistas de produção, tem que se adequar a todo custo ao espectro de uma
maquinaria específica para a otimização dessa mesma relação. dade à qualidade" (Juran, 1993: 137).

o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO


Juran dá especial destaque para três componentes que vra e não os conceitos", ou seja, "uma maior valorização da
integram as tais "forças emergentes" e que suscitaram a re­ ação com relação ao pensamento e à reflexão, não se vis­
levância da qualidade tanto nos produtos quanto nos proces­ lumbrando qualquer preocupação em articulá-los" . Assen­
sos. O primeiro seria um importante aumento de produtos tindo com essa autora, entendemos que tal discurso omite
de consumo, que deu origem a u m a demanda mais problemas estruturais da produção capitalista e, como tal,
diversificada e consumidores mais exigentes. O segundo deveriam, no mínimo, ser tratados com um nível maior de
componente seria o "surgimento de aparatos muito comple­ complexidade.
xos - ... fábricas automatizadas ... e computadores" os quais, Segundo Lima ( 1994: 68), esse tom narrativo não é ca­
conjugados com o primeiro componente, engendraram "um sual. Antes faz parte de uma estratégia habitual quando o
nível novo e intenso de competição internacional pela quan­ que se pretende é "obter, rapidamente, a adesão de al­
tidade, resultando em mudanças em larga escala de mercado guém". Parte-se da premissa de que há uma compreensão
e balança comercial". Essas mudanças constituem o terceiro geral e homogênea das formulações apresentadas, tornan­
componente, apontado por Juran, como responsável pelo do irrelevantes maiores explicações sobre as mesmas bem
estabelecimento das "forças emergentes" que, mais particu­ como qualquer noção que a elas se contraponha. De acor­
larmente a partir dos anos de 1980, demandariam das em­ do com a autora, tal prática obsta, em grande medida, o
presas "que fosse dada prioridade à qualidade" (Juran, 1993: pensamento crítico, além [disso] evita "qualquer referên­
137-138). cia às teorias e práticas que poderiam comprometer as
É interessante notar que em nenhum momento Juran evidências apresentadas nas teses por eles defendidas"
alude ao caráter depredatório e mesmo predatório que esse (Lima, 1994: 68).
contexto gera para as pequenas e médias empresas de âmbi­ Com efeito, é aSSIm que percebemos a técnica do
to nacional, e m u i to menos é mencionada a i n tensa Brainstormingl19 como a ferramenta da QT que mais caracte­
precarização e exclusão que este traz para o mundo do traba­ riza e contribui não só para essa redução do pensamento crí­
lho. Simplesmente, é uma questão de adaptação nua e crua, tico e conseqüente simplificação dos modos de pensar, mas
e acrítica. Esse sentido também foi percebido por Maria também como um procedimento para se operar o novo tipo
Elizabeth Antunes Lima ( 1994: 68), que alerta para o caráter de reificação da força de trabalho possibilitado pelas novas
eminentemente "mistificador e reducionista" do discurso tecnologias da informação: a coisificação de suas faculdades
presente nos PQTs. Nesse discurso, é evidente um cunho
narrativo em que se privilegia "a ação pela ação, ( ... ) a pala- 119 Tempestade cerebral ou de idéias.

o AVESSO DO TRABALHO C O L E ÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO


cognitivas. Segundo os manuais da QT1 20, essa é "uma das seleção de idéias, as potencialmente boas devem ser aper­
principais ferramentas da Qualidade Total" e tem como "re­ feiçoadas" .
gra de ouro", a qual "todos devem seguir", o lema "é proibi­ O Brainstorming deve ser aplicado a todos os funcionários
do criticar". Partindo-se do pressuposro da existência de "dois em reuniõ es regular es, sendo depois selecio nado um
tipos de pensamento, o criativo e o crítico", e tendo como subgrupo de pessoas que terá a tarefa de "aperfeiçoar as
fato dado que, via de regra, há um predomínio do último melhores idéias" para repassá-las de forma um pouco mais
sobre o primeiro, a prescrição é, então, a "suspensão do jul­ elaborada para a gerência. Para nós, fica igualmente clara a
gamento". Isso porque, no entender de seus mentores, o similaridade com o taylorismo no que se refere à observação,
pensamento crítico inibe o desabrochar de idéias que po­ sistematização e seleção de certas habilidades do trabalho
dem se revelar importantes para o aperfeiçoamento do pro­ humano e posterior apropriação e direcionamento para a
cesso produtivo e do produto final. Desse princípio decorre melhoria do processo capitalista de produção. Processo esse
um outro também fundamental ao Brainstorming, qual seja, que está bem longe de coincidir com o real desenvolvimen­
"quantidade origina qualidade". Quer dizer, "quanto mais to da criatividade. Só que nesse caso, em vez dos gestos, como
idéias, maior a chance de encontrar a solução do problema". ocorria com o taylorismo, o que está se expropriando é o pró­
A partir desses dois fundamentos - "suspensão do julga­ prio pensamento. Mais adiante vamos ver como tal expro­
mento" e "quantidade gera qualidade" - estabelecem-se as priação converte-se em um meio de aprimor amento do
quatro regras básicas do Brainstorming: 1 ) "Eliminar qual­ processo produtivo através, entre outras coisas, da cristaliza­
quer crítica, no primeiro momento do processo, para que não ção dessas idéias nas máquinas automatizadas. É assim que,
haja inibição nem bloqueios e ocorra o maior número de idéi­ através de um processo de sugamento de suas idéias por uma
as"; 2) "Apresentar idéias tal qual elas surgem na cabeça, técnica de gestão do trabalho integrante dos PQTs, viabiliza­
sem rodeios ou elaborações" já que "as idéias (... ) sem senti­ se sua transformação em trabalho morto e, por conseguinte,
do ( ... ) costumam oferecer conexões para outras idéias criati­ o fenômeno da reificação do trabalho vivo.
vas e até representar soluções"; 3) "No Brainstorming, Retornando ao discurso da QT, seu aspecto reificador e,
quantidade gera qualidade. Quanto mais idéias, cresce a pois, fetichista, está presente na mitificação que este faz da
chance de conseguir (... ) idéias realmente boas"; 4) "Feita a realidade, ao entendê-la como fruto de uma evolução natu­
ral e eximida de qualquer empecilho que se desvie desse
120 ideal. Desse modo, "todo o conflito e toda a resistência estão
Fonte: MANUAL da Qualidade Total. Folha de São Paulo. Edição dominical,
São Paulo, mar./abr., 1994. (Encarte especial) ausentes e a falta de adesão ao projeto é impensável, uma

37 0 o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO 371


aberração. É o sucesso que dá sentido à ação e não se interro­ Ora, com a mundialização, essa tendência acirra
-se ainda
ga sobre o sentido desse sucesso" (Lima, 1994: 68). mais. As mutações que esta trouxe para ao merc
ado de con­
Nesse mesmo sentido, Larangeira ( 1997: 184) detecta, sumo - agora hipertrofiado e altamente diver
sificado - im­
nesses programas, põe às empresas a necessidade de produzir merc
adorias cujas
a presença de [um] forte conteúdo ideológico, [expressos nas] idéias diferenças primam pelo requinte mas não pela
durabilidade.
que apelam à legitimidade, cooperação, harmonia, comprometimen­ Sendo assim, apesar de pensada à luz do conte
xto de produ­
to, confiança, alinhamento e convergência de ações e que deveriam ção em massa próprio do período fordista, a
definição de
representar uma efetiva mudança cultural em favor de completa Gramsci sobre o conceito de qualidade sob a
produção capi­
identificação com a empresa. talista permanece atual. Para ele, no capitalism
o, "a palavra
Esse fetiche pode ser percebido logo no próprio nome 'qualidade' significa apenas a vontade de empr
egar muito
de tais programas. A idéia de "Qualidade" nos sugere a fa­ trabalho em pouca matéria, aperfeiçoando o prod
uto ao ex­
bricação de produtos isentos de defeitos e, portanto, de alta tremo, isto é, a vontade de especializar-se para
um mercado
durabilidade. De fato, era essa a proposta desses progra­ de luxo" (Gramsci, 1976: 402). E, poder-se-ia
acrescentar,
mas nos seus primórdios, isto é, fazer as empresas destaca­ sob o contexto atual, aperfeiçoando ao máximo as
paraferná­
rem-se através de mercadorias que garantissem satisfação e lias high-tech das mercadorias em detrimento de sua
duração
uso prolongados (Cf. Deming, 1990). Acontece que tal pro­ e conservação (Cf. Harvey, 1992). Portanto, enquanto vigo­
posta fere centralmente os preceitos da produção capitalis­ rar a lógica da mais-valia e a constante e extrema exploração
ta, a qual prima pela prevalência do valor-de-troca em e racionalização material e subjetiva que tal lógica implica, a
detrimento do valor-de-uso, único valor que permite ser primazia da qualidade sobre a quantidade é inviável.
consumido por outrem e, assim, gerar lucro para o capitalis­ Aliás, a racionalidade produtiva pode ser colocada como
ta. Isso implica em estar constantemente criando necessi­ u m outro fetiche que se encontra no discurso dos planos de
dades de consumo, bem como "manipulando até mesmo a Qualidade Total. Esta se contrapõe radicalmente à idéia e
aquisição dos chamados 'bens de consumo duráveis', de tal carro-chefe desses planos, a saber, a de "enriquecimento do
sorte que esses necessariamente tenham de ser lançados trabalho", "maior autonomia dos trabalhadores", "harmonia",
no lixo" (Mészáros, 1996: 3 1). Por isso, a economia capita­ "cooperação" etc. (Heloani, 1994; Larangeira, 1997). Sabe­
lista cria uma "obsolescência planejada", cuja t€ndência é mos muito bem o que significa racionalidade no contexto
a configuração de uma "produção destrutiva" corno forma capitalista, isto é, a quantificação e padronização, o máximo
de garantir sua reprodução. possível, de toda a qualidade e subjetividade que se inserem

37 2 o AVESSO DO TRABALHO C O L E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O 373


I
I

nessa forma de produzir. Uma padronização que homogeneiza Nos discursos dos PQTs, harmonia e cooperação entre
toda a ação e pensamento em prol do capital, fragmentando­ capital e trabalho é uma propagação constante. Ora, como
os não só objetiva mas também subjetivamente. Como já falar, dentro do quadro acima apresentado, em autonomia,
afirmara Lukács (1978: 100) em sua análise sobre o taylorismo: criatividade, liberdade de expressão, ou, mesmo cooperação
essa mecanização racional penetra até à 'alma' do trabalhador: até e harmonia entre capital e trabalho? Será que haveria neces­
suas propriedades psicológicas são separadas do conjunto da sua sidade de tamanha ênfase nesses princípios se esses fossem
personalidade e objetivadas em relação a esta para poderem ser uma condição natural e inerente à estrutura e relações sociais
.
integradas em sistemas racionais especiais e reduzidas ao conceito estabelecidas sob a produção capitalista? Sabemos que tal
calculador. estrutura se conforma de maneira diametralmente oposta à
Ao que tudo indica, os PQTs fazem parte de mais um idéia de equilíbrio e harmonia, ou seja, em uma estrutura de
"sistema racional especial" da produção capitalista com vis­ classes antagõnicas, em que a pobreza - material e espiritual
tas a criar novos critérios otimizadores da exploração da mais­ - de muitos é a condição para a riqueza de poucos. Nesse
valia, em um novo contexto em que a informação tornou-se contexto, conquistar a adesão dos trabalhadores a programas
não só matéria-prima mas também a própria mercadoria. que objetivam o aumento de produtividade é uma tarefa nada
Portanto, a expropriação de idéias revela-se uma tuptura para fácil.
a continuidade dos princípios da OCT, posto que a expres­ Por isso que, para amenizar os copflitos inerentes a esse
são "penetra até a alma do trabalhador" não é mais uma quadro, "o discurso administrativo propõe a chamada gestão
metáfora para se referir à fetichização do pensamento ou, participativa, voltada para obter o 'envolvimento' do traba­
nas palavras de Lukács, das "propriedades psicológicas". lhador na manutenção e repasse das informações para o de­
Antes é uma realidade viabilizada pelas novas tecnologias da senho e operação de novos equipamentos" (He\oani, 1994:
informação, que tornam possível objetivar e concretizar até 105). Informações-mercadoria, posto que sugadas e "codifi­
a personalidade dos trabalhadores que, agora, pode ser com­ cadas, memorizadas, por meio de linguagens e sinais que
putada e materializada nas· máquinas. Isso fica claro em enun­ maquinizam e automatizam partes crescentes do saber e do
ciados presentes nos manuais de Q1: tais como o seguinte: saber-fazer humanos" (Pena Castro, op.cit.: 41). Informações
Para que se consiga obter a qualidade desejada, ou seja, a satisfação reificadas que, uma vez cristalizadas nos novos equipamen­
total dos clientes, é necessário enraizar no pensamento, nas pala­ tos, se transformam em trabalho morto, passando a controlar
vras e obras os mandamentos da Qualidade Total (Folha de S. Pau- o processo de trabalho e as atividades produtivas. Por fim,
lo, 20/3/94). determinando um novo tipo de reificação que requer novas

374 o AVESSO 0 0 TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO 375


qualificações operárias que se adaptem aos novos preceitos ou hardwares, garantindo, assim, um maior controle do capi­
económicos e tecnológicos. Estimular essa adaptação/ tal sobre o trabalho. Além disso, a nova maquinaria, enquan­

reificação, eis o papel que cabe à gerência neste momento e to a mais nova ferramenta do capital, exige uma nova
cujos PQTs tão bem expressam e apóiam. qualificação a qual, longe de representar o desenvolvimento
e enriquecimento de mais uma qualidade humana, tem a

3. QUALIDADE TOTAL E REIFICAÇÃO ver com a constituição de um novo homem-máquina, cujas

Vimos, portanto, como os PQTs contribuem para o de­ habilidades estejam devidamente direcionadas em confor­

senvolvimento e consolidação do atual panorama económi­ midade com esta e, junto com ela, com as novas demandas

co mediante a propagação de um discurso fetichizado. Esse do capital relativamente ao mercado de consumo e trabalho.

fetiche opera no sentido de racionalizar as diversas subjeti­ É nesse sentido que observamos, também, como alguns

vidades presentes no processo produtivo - da gerência ao preceitos contidos nesses programas funcionam como um

chão da fábrica de maneira a garantir um comportamento estímulo à formação de um novo perfil de trabalhador que

padrão e homogêneo que facilite a introdução das inovações venha a atender às exigências da informática, novo instru­

organizacionais e tecnológicas necessárias à manutenção da mento de trabalho eleito para potencializar o atual panorama

competitividade das empresas no quadro do capitalismo con­ político-económico. Esse adestramento é crucial à medida

temporâneo. Mas, mais que isso, a análise do PQT - em sua que, como vimos, "a rentabilidade das operações automatiza­

fonte mais fundamental e revista, qual seja, o manual da das está ligada tanto à capacidade de operação dos novos

qualidade de Juran - nos permite perceber, passo a passo, equipamentos, quanto à qualidade da organização da produ­

todo o processo sob o qual se desenvolve o fenómeno da ção e do trabalho. ( ... ) A capacitação tecnológica começa pela
abordagem organizacional" (Soares, 1992: 17).
reificação, agora qualitativamente acrescido em virtude do
Por isso, a análise de tais programas nos permitiu detec­
advento das novas tecnologias da informação que tornaram
tar a nova reificação humana em toda a sua dimensão, isto é,
possível a expropriação intelectual do trabalho vivo.
tanto objetiva quanto subjetivamente. Através desta análi­
A receita para as empresas de como efetivar esse novo
se, conseguimos perceber uma clara tentativa, por parte des­
tipo de reificação está toda lá, desde a sucção das qualidades
ses métodos de gestão, de organizar novos meios de controle
do trabalho vivo mais necessárias à atual fase do capital -
aquelas fornecidas pela sua dimensão intelectual; idéias, in­ sobre a força de trabalho, mais condizentes com os potenciais

formações, criatividade etc. - até sua passagem em lingua­ da nova ferramenta de trabalho. Ou seja, de operar a confor­

gem de máquina de maneira a cristalizá-la nos computadores mação do novo tipo de homem-máquina, exigido pelas

COlEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO 377


o AVESSO 0 0 TRABALHO
tecnologias informacionais. A análise dos PQTs nos permi­ trabalho parcelado, mecanizado e "alienado" próprio do
tiu, também, notar que, nesses mérodos, nem tudo compor­ taylorismo.
ta a originalidade que seus mentores insistem em propagar Os resultados de nossa análise, entretanto, evidenciam
quando comparado ao sistema Taylor de organização do tra­ que as prerrogativas mais fundamentais dos PQTs contradi­
balho. Antes, estende de uma forma qualitativa o controle e zem tais argumentos. Apesar da construção textual fragmen­
apropriação de uma dimensão da criatividade do trabalho tária desses manuais, onde encontramos uma profusão de
deixada em segundo plano no taylorismo mais tradicional, capítulos, tópicos e subtópicos a mínima preocupação em
qual seja, suas capacidades cognitivas. conectá-los, foi possível garimpar alguns conceiros que, quan­
Com efeito, o discurso que encontramos nos PQTs se auto­ do interrelacionados, nos revela uma realidade bastante di­
proclama novo no sentido de que contempla um trabalho mais ferente daquela que nos é apresentada em seus discursos.l2!
"enriquecido", pois "polivalente" e "criativo". Assim sendo, Esses conceiros e técnicas são inovadores relativamente ao
no entender de seus teóricos, esses novos métodos de gestão taylorismo, mas apenas' para permitir que se dê continuida­
romperiam com a estrutura rígida, despótica e limitadora da de, em novas bases, à conformação do trabalho vivo ao traba­
atividade criativa, tal como se dava sob o trabalho "taylorizado". lho morto. Desse modo, o que aparece como novidade nas
Para os PQTs, então, a ruptura com o taylorismo se daria, so­ políticas de gestão do trabalho que integram os PQTs nada
bretudo, pela diluição das barreiras entre o trabalho de con­ mais é que uma nova roupagem com a qual está se revestin­
cepção e o de execução. A nova organização do trabalho do o mesmo velho e intrínseco fenômeno da reificação pró­
permitiria uma maior participação dos operários nas decisões prio da produção capitalista. E com rodas as conseqüências
sobre a gestão do processo produtivo, resultando em uma ad­ nefastas que esse quadro implica para a classe trabalhadora
ministração mais democrática. Esta se manifestaria em técni­ tais como a expropriação e conseqüente mecanização das
cas tais como os "trabalhos em equipe", "círculos de controle
da qualidade" (CCQs), Brainstorming etc., que estimulariam a 121 Saliente-se que a dificuldade de se apreender um sentido de totalidade nestes
manuais é um dado importante, uma vez que o caráter casual, contingente e
criatividade operária por tornar o trabalho mais "intelec­
não linear de seu texto oferece um certo obstáculo à uma reflexão analítica
tualizado" e dotado de maior "autonomia". Logo, para os par­ sobre os mesmos. Esta dificuldade, portanto, não deixa de ser um fator a mais
tidários dos PQTs, a administração participativa, aliada às novas no escamoteamento do processo de reificação que subjaz a estes programas,
bem como do traço fetichista de seus discursos. Ao nosso entender, esse é um
tecnologias que, por serem mais flexíveis e .complexas
fator a mais a ser levado em conta quando se pensa a questão da possibilidàde
viabilizam um trabalho multifuncional e reflexivo, levaria a ou não de formação de um senso crítico por parte daqueles que envolvidos
uma "humanização" do trabalho vivo que romperia, com o nesse processo.

o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO ?r79


capacidades intelectuais da atividade criativa e, ainda, a in­ damendo desses conhecimentos se fazem fundamentais na
tensificação e simplificação de suas tarefas. manutenção da competitividade empresarial, pois "as fontes

Conforme vimos, o novo homem-máquina se caracteriza de inovação multiplicam-se quando as organizações conseguem

por ser fonte de informações para as máquinas informáticas. estabelecer pontes para transformar conhecimentos tácitos em

Essas informações, quando não são imediatamente incorpo­ explícitos, explícitos em tácitos, tácitos em tácitos e explícitos

radas nessas máquinas para a melhoria da produção das em­ em explícitos" . Nesse contexto, a "comunicação on-line e a

presas, podem ser registradas num banco de dados e capacidade de armazenamento computadorizado tornaram-se

armazenadas, em computadores, para posterior utilização. ferramentas poderosas no desenvolvimento da complexidade

Transformadas em software, as idéias advindas das experiên­ dos elos organizacionais entre conhecimentos tácitos e explí­

cias vividas e formuladas pelos operários no dia-a-dia da pro­ citos" .

dução podem ficar cristalizadas num supercomputador da Ora, ainda que tenham precedido à disseminação das

empresa. Por conseguinte, a subjetividade dos trabalhado­ tecnologias da informação, essa é uma preocupação constan­

res, bem como seu saber-fazer, tornam-se passíveis de se te que encontramos nos PQTs, sobretudo nos capítulos refe­

transformarem em trabalbo morro. Sendo essa a recomenda­ rentes às novas políticas de gestão. No capítulo dedicado à

ção, tanto faz se esse supercomputador seja real ou fictício, o "Administração do desempenho humano" da obra de Juran,

importante é que os trabalhadores estejam agindo nesse sen­ ele alerta:


À medida que a tecnologia muda os serviços no chão da fábrica,
tido e, pois, pensando e produzindo idéias para o capital (Cf.
Antunes, 1995: 34). para um trabalho predominantemente de conhecimento, de

Esses preceitos se adequam [ao] novo modelo de empre­ processamento de informações e de discernimento, o arbítrio e a

sa chamado de "empresa criadora de conhecimentos", a qual capacidade que o empregado tem de contribuir para o controle e

"baseia-se na interação organizacional entre os 'conhecimen­ aperfeiçoamento da qualidade aumentam. ( ... ) o aperfeiçoamento
tos explícitos' e os 'conhecimentos tácitos' na fonte de ino­ do indivíduo permitirá o aperfeiçoamento da companhia. Os ope­
vação" (Castells, 1999: 180). Os "conhecimentos tácitos" são rários são, portanto, mais que uma mercadoria - eles são um recur­
aqueles provenientes da experiência acumulada de cada tra­ so a ser desenvolvido. (Juran, 1993: 81-66, respectivamente).

balhador no processo produtivo e cuja excessiva formalização Mais adiante, Juran ( 1993:217) também chama atenção
na organização do trabalho acaba dificultando sua .percepção para o fato de que a "informação se encontra na memória do
pela gerência, impedindo sua incorporação na administração pessoal experiente" e que "esse arranjo faz com que a em­
da empresa. Conforme Castells ( 1 999: 1 8 1 ), o desven- presa se torne vulnerável à perda de informações essenciais

o 0 0
AV E S S O TRABALH O C O L E ÇÃ O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O
no caso de demissão do empregado". Para tal perigo, porém, empresas: "Os membros da equipe utilizam sua experiência
o remédio oferecido é o que ele denomina de "transferência e sua especialização para dar contribuições . ... Dados para
de conhecimento". Essa diz respeito ao estabelecimento de auxiliar a encontrar o ideal. ... Tais dados são valores óbvios
um "fluxo inverso de informação", em que "os planejadores para o desempenho geral da otimização" (Juran, 1993: 193).
aprendem com o retorno das informações". A transferência Para ficar ainda mais claro o entendimento do "trabalho
igualmente deve "incluir um banco de dados" que tem "va­ em equipe" e "CCQ" como expropriação intelectual e con­
lor para treinamento do pessoal operacional e para referên­ seqüente reificação d e novo tipo proporcionada pelas
ciá" (Juran, 1993: 201). Daí a necessidade de se providenciar tecnologias da informação, observe-se esta outra passagem:
a "transmissão de dados históricos ... para um computador Uma equipe é um sistema de processamento produzindo saídas
central" com certa regularidade (Juran: 139). Tal estratégia (soluções de problemas, decisões, planos estratégicos, políticas, de­
também é interessante para garantir a qualidade "pós-pro­ senhos de engenharia, equipamento consertado etc.) para o usuá­
dução". Nessa fase, o que se aconselha é a instituição de um rio. Os resultados de alta qualidade (soluções inovadoras) são
"Centro de Dados de confiabilidade ... criado e operado a prováveis porque a idéia geradora e os processos de avaliação usa­
fim de coletar, analisar, medir e relatar dados pertinentes à dos pelos grupos podem produzir resultados que geralmente não
história operacional do sistema", porque a "decisão tomada são possíveis com a simples combinação de idéias e esforços de
pelo sistema [e que servirá como indicador da confiabilidade pessoas trabalhando sozinhas. (Juran, 1993: 129)
do produto] conterá uma base de j ulgamento conhecida, con­ É assim que as máquinas passam a comportar, cada vez
trariamente do que ocorre com um inspetor humano" (Juran: mais, as habilidades humanas, revelando a pretensão con­
150-15 1). creta e viável, por parte da administração, da busca do au­
Os CCQs (Círculos de Controle da Qualidade) são colo­ mento da produtividade e do conttole da força de trabalho
cados como uma das técnicas mais fundamentais no forneci­ pela sua substituição e/ou desespecialização no interior do
mento de dados a serem utilizados nas "reestruturações para ptocesso produtivo. Ou seja, "como meio de dominar, de
absorver mudanças na tecnologia" (Juran, 1993: 65). Para além padronizar o trabalho de manutenção e de reduzir o efetivo
de uma mercadoria, de uma coisa que tem preço e pode ser da população operária profissional que, por enquanto, é ain­
vendida por um preço inferior daquilo que produz, o ser que da a memória técnica das empresas" (Freyssenet, 1990: 109).
trabalha transformou-se, também, em um cl.ado a ser Vejamos como o próprio PQT contempla tal possibilidade:
decodificado e recodificado em linguagem de máquina, au­ Os computadores têm a capacidade para substituir todos os formu­
mentando ainda mais sua capacidade de gerar lucro para as lários gerados manualmente e de reportar os dados de decisão à

o AVESSO DO TRABALHO C O L E ÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO


unidade de qualidade para o controle da administração. (... ) a inte­ zadas pela administração que as selecionará e utilizará em
ligência do computador é refreada somente pelos limites da inteli­ seu proveito, tal como a OCT faz em relação aos melhores
gência humana. Os processos elementares subjacentes ao tempos e ritmos dos operários. Complementando e eviden­
pensamento humano são essencialmente os mesmos dos processos ciando ainda mais essa nova alienação, encontramos os con­
elementares de informações do computador. (... ) Os computadores ceitos de "comunicação franca e aberta", "lições aprendidas"
podem fornecer não somente informações sobre as quais se formu­ e "transferência de conhecimentos" como um meio de cons­
lam decisões, mas também as decisões em si mesmas. (... ) Seus truir uma ponte entre o departamento de planejamento e o
programas são estratégias que, , retém o controle sobre o processo
o•• espaço da produção propriamente dito. Tal ponte estabelece
em andamento. (Juran, 1 993: 170-181). a viabilidade de um fluxo constante de informações, ou da­
Desvenda-se, portanto, a "administração participativa" dos, que vai do "mundo" da produção para o "mundo" do
como um método de gestão extremamente adequado para planejamento, permitind o a esse último incorporá-las na
potencializar a lógica informática no interior do espaço da tecnologia e, assim, aprimorar o processo produtivo de mais­
produção. Suas inovações organizacionais, expressas nos valor.
"CCQs", "trabalho em equipe" e no Brainstorming - este Dos conceitos acima derivam duas recomendações no­
último visto mais detalhadamente no item anterior - reve­ vas relativamente ao processo de expropriação efetuado pelo
lam-se técnicas que, ao estimular a criação e repasse de idéi­ taylorismo: a utilização de "análise histórica" e o emprego
as dos trabalhadores para a gerência, poderão se reverter na de "historiadores", como meio de melhor obter o aperfeiçoa­
otimização da nova maquinaria. Essas práticas, uma vez mento do processo produtivo (Juran, 1993: 220 e ss.). A "aná­
selecionadas, sistematizadas e padronizadas pela gerência, lise histórica" possibilita que, a partir de uma prévia coleta
tornam-se, portanto, um meio de aperfeiçoar a produtivida­ de inúmeras e variadas informações no interior da empresa,
de da empresa em detrimento do trabalho vivo. sejam selecionados apenas os dados mais pertinentes para o
A similitude com as técnicas do sistema Taylor de padro­ departamento de planejamento. Dados que poderão servir
nização dos tempos e movimentos operários é patente, só como um rico subsídio para que a empresa aprimore sua pro­
que, agora, no plano cognitivo, do pensamento. Longe do dução mediante, entre outras coisas, o "reprojeto de equipa­
fim do trabalho "taylorizado", portanto, o que verificamos é mento". Essas informações poderão ser transformadas em
uma "taylorização" das capacidades cognitivas. 9s operários "unidades de medição" e, assim, armazenadas em um banco
são coagidos a apresentar idéias completamente desconexas de dados da empresa. O emprego de "historiadores", por sua
e desprovidas de críticas que serão, posteriormente, organi- vez, é útil para a realização de uma adequada e orientada

o AVESSO DO TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO


I
análise desses dados, facilitando sua necessária padroniza­
I nha-se acrescentado tarefas que remetem à faculdade de
ção e formalização nos moldes da empresa. concepção de idéias, estas são lateralizadas e restritas exclu­
Em outras palavras, os "historiadores" e a "análise histó­ sivamente aos limites do "mundo da produção". O planeja­
rica" facilitam o processo de abstração das qualidades huma­ mento e, portanto, o controle do modus operandi do trabalho
nas no interior do processo produtivo - mais notadamente, a continua, pois, nas mãos da gerência e de seus tecnólogos.
qualidade de produzir conhecimento, de acumular e apren­ Nesse sentido, a velha divisão entre projetistas e executores
der com as experiências produtivas. Essas, assim quanti­ persiste, como é possível perceber em várias passagens do
ficadas, se convertem em trabalho morto que, apropriado pela PQT, tal como a que se segue:
empresa, retorna como agente motor de tal processo, como Os tecnólogos devem ser suficientemente competentes para inter­
um produto da atividade criativa que, a despeito disso, a pretar o que aconteceu no laboratório. Porém, eles não devem ser
domina. necessariamente capazes de extrapolar - predizer o que irá aconte­
Desse modo, tendo em vista que na produção informa­ cer no mundo das operações a menos que tenham conhecimento
tizada não são mais tanto os melhores tempos e movimentos adequado sobre como é a vida naquele mundo. Na falta desse co­
operários que precisam ser quantificados e padronizados para nhecimento, eles devem adquiri-lo com os habitantes do mundo
a melhoria do processo, mas sim as melhores informações, das operações e por meio de esforços de equipe ... (J uran, 1993:
pode-se inferir que os tais "historiadores", recomendados 201).
pelos PQTs, se aproximam muito dos antigos cronometristas Nesse sentido, a "reunificação" do saber e do saber-fazer
dos primórdios do taylorismo. Só que em vez de seleciona­ está bem longe de representar uma real competência e resti­
rem tempos e ritmos, [aqueles] selecionam informações, ou tuição das qualidades humanas. E o trabalho "enriquecido"
dados, que posteriormente se cristalizarão nas máquinas, as e "intelectualizado" é assim descoberto como ainda mais alie­
quais, assim, aumentarão a produtividade empresarial. O ter­ nado, expropriado. Além disso, é intensificado, visto que,
mo "Qualidade Total" poderia, assim, ficar muito melhor mais do que agir, o trabalhador agora tem que pensar para o
definido como "Quantificação (leia-se coisificação) Total". capital. A intensificação do trabalho é percebida por sua
Esses conceitos também nos revelam a fraude do discur­ ampliação, proporcionada pela materialização das tarefas de
so da diluição das barreiras entre o trabalho de concepção e o controle nas máquinas informacionais. Dado que as tarefas
de execução. O departamento de planejamentQ está, mais de controle, sob a produção informatizada, tendem a ser
do que nunca, presente na organização do trabalho contem­ transferidas para os softwares, o operário tem suas funções
plada pelos PQTs. Ainda que ao trabalho de execução te- deslocadas para tarefas que até então não eram de sua alça-

3 86 o AVESSO DO TRABALHO C O l E ÇÃ O T R A B A L H O E E M A N C I PA ÇÃ O
da, tais como supervisão, manutenção e prevenção de panes. como agir e ajudar no caso de o "erro técnico" ter sido provo­
Essas tarefas, antes executadas por técnicos especializados cado por outro operário. Consciente de suas "responsabili­
e/ou engenheiros de produção, cabem agora, em grande dades", do que devem fazer e de como devem fazer, os
medida, aos operários, já que os hardwares permitem que boa operários podem exercer suas funções sem que seja necessá­
parte dessas atividades sejam neles incorporados por esses ria a figura do capataz. Igualmente, podem agregar às suas
mesmos profissionais. atividades produtivas outras tantas que gravitam em torno
Tudo isso exige "responsabilidade", "iniciativa", capaci­ dos processos automatizados. Tais fatores representam uma
dade de "prevenção", "flexibilidade" e um permanente "es­ grande vantagem às empresas à medida que permitem uma
tado de autocontrole", outro conceito-chave encontrado nos significativa redução no seu quadro de pessoal, sem precisar
PQTs. Essas demandas são requeridas visto que, no caso de conceder um proporcional aumento salarial àqueles que nela
ocorrência de panes, não há tempo a perder esperando por permanecem.
técnicos ou engenheiros. Na produção informatizada, devi­ Assim, um operário em "estado de autocontrole" se tor­
do à grande integração viabilizada ao processo produtivo, esse na amplamente versátil, polivalente e subjetivamente con­
tempo perdido implica em grandes prejuízos para a empre­ trolado para agir e pensar segundo os ditames da produção
sa. Assim, é necessário que os próprios operários tenham de­ capitalista, em sua configuração tecnologicamente mais avan­
senvolvido habilidades que se remetem à dimensão cognitiva, çada. Conforme Juran ( 1 993: 121-122):
de prévia-ideação da atividade criativa, de maneira que eles Os sistemas de produção estão se tornando mais automatizados com
próprios sejam capazes de achar uma solução aos eventuais o uso de robôs e da ligação de máquinas individuais a complexos
problemas ocorridos nas máquinas e/ou na produção. Para sistemas integrados, controlados por computador, onde falhas em
tanto, é preciso que eles já tenham muito bem introjetada a qualquer parte do sistema podem ter conseqüências sérias para todo
nova lógica de produtividade. o sistema. Dentro desse cenário, o trabalhador não tem mais tare­
A noção de "autocontrole" tem justamente essa função, fas simples e repetitivas. O serviço é monitorar, diagnosticar e cor­
pois prescreve a necessidade de o operário estar devidamen­ rigir as causas de instabilidade. O processo de diagnóstico e correção
te a par de suas "responsabilidades" no interior do processo é complexo, em virtude da multiplicidade dos modos de falhas
produtivo e dos prejuízos que qualquer "erro técnico" pode potenciais. Não é suficiente treinar os funcionários antecipadamente
causar para a empresa. Além disso, deve ter con_hecimento para lidarem com um número limitado de causas potenciais e de­
do processo como um todo e não apenas de suas funções terminadas de instabilidade. Os funcionários precisam de um am­
específicas, como ocorria sob o taylorismo - para que saiba plo conjunto de técnicas e de conhecimento para lidar com os modos

388 o AVESSO DO TRABALHO C O L E ÇÃ O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O


de falhas que são de difícil antecipação. Além disso, eles precisam
dida como uma contradição própria de um modo de produ­
ter flexibilidade e autocontrole para responder com rapidez e deci­
ção que tem, como elemento estrutural, o domínio de uma
dir onde, se e quando interferir sem perder tempo pedindo per­
classe (proprietária dos meios de produção).sobre outra (ex­
missão para a supervisão ou a engenharia.
propriada dos mesmos). Ou seja, não é entendida enquanto
Nota-se, assim, um acirramento qualitativo do domínio
um antagonismo inerente a uma relação de classes sociais
do capital sobre o trabalho relativamente ao taylorismo­
que se expressa, em termos de unidade empresarial, na rela­
fordismo, pois, se se descarta, por um lado, a figura do capa­
ção gerência/administração X assalariados. O PQT prefere
taz ou "inspetor" , por outrO, a reintroduz n a própria
abordá-la enquanto uma "resistência cultural em aceitar o
subjetividade do trabalhador (Cf. Codo, 1993). Desse modo,
treinamento", isto é, "aquilo que a sociedade e a organiza­
permite que este aja em conformidade com os preceitos da
ção esperam que [o funcionário] faça" (Juran, 1993: 165) 1 23.
empresa mesmo que este esteja longe de seu "olhar" (Cf.
A palavra "cultural" ali é usada de forma bastante insidio­
Teixeira, 1996) 1 22. Nas palavras do próprio Juran (1 993: 102),
sa, pois joga com um conceito abstrato que permite ora natu­
o '''autocontrole' ajuda os operários a regularem seu com­
ralizar as desigualdades advindas da divisão de classes (para
portamento em bases contínuas para manter o objetivo en­
o PQT hierarquias), e ora escondê-las sob a pressuposição
quanto criam saída". Obviamente, o objetivo é o aumento
de que nossa "cultura" se caracteriza por uma relação social
da produtividade da empresa, para criar saída de valor para a
harmônica e consensual. Por mais ambíguo que isso possa
empresa.
parecer - tanto mais por colocar, praticamente, os conceitos
Contudo, apesar desses novos mecanismos desenvolvi­
de sociedade e de organização empresarial como sinônimos
dos para cooptar/reificar a força de trabalho, o PQT reconhe­
- é assim mesmo que Juran define aquilo que ele chama de
ce que eles ainda não são totalmente suficientes para aplacar
"controles culturais e sociais". Contudo, o caráter despótico
a resistência operária. Claro que resistência ali não é enten-
do PQT, longe de ser dúbio, fica bem explicitado na passa­
gem que se segue :
122 A padronização da subjetividade implícita nesse processo é tanto mais Os funcionários fazem aquilo que a sociedade e a organização es­
interessante ao capital, quando constatamos a atuaI tendência à terceirização peram que eles façam. Para fazer O que o superior aprovaria, deve­
e subcontratação pelas grandes companhias e a impossibilidade dessas
se determinar o que ele está pensando. Não fazer isso violaria a
controlarem diretamente seus contratados. Essa nova forma de controle,
portanto, é um fator importante para ajudar a evitar eventurus sabotagens e estrutura hierárquica da autoridade. O processo de tomada de de-
serviços mal feitos que venham causar danos materiais e morais às empresas­
mãe.
!23 Capítulo 1 1 : "Treinamento para a qualidade".

39° o AVESSO DO TRABALHO


C O L E Ç A o T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O ·39 1
cisão por consenso reflete uma cultura comercial e soeietária que cujo postulado afirma "que toda maquinaria que desloca
valoriza a conformidade do ponto de vista de cada um com os supe­ trabalhadores libera, simultânea e necessariamente, capi­
riores, evitando conflitos. Os relacionamentos devem ser harmoni­ tal adequado para empregar esses mesmos trabalhadores".
osos. O processo de consenso permite que se saiba o que os outros Para Marx ( 1 983: 56), esta concepção ignora as contradi­
pensam e sentem sobre um assunto para não agir de modo a violar ções que o uso capitalista da maquinaria engendra - au­
as expectativas dos superiores e as normas da organização (Juran, mento e/ou intensificação da jornada de trabalho, aumento
1993: 70).'24 do desemprego e precarização da força de trabalho etc. _

Caberia perguntar onde fica a propalada participação e ou, quando não, tenta demonstrar "que essas contradições
democratização da produção em quadro marcado por uma palpáveis são mera aparência da realidade comum, mas que
"estrutura hierárquica da autoridade", que determina a "con­ nem sequer existem em si, e, portanto, também não exis­
formidade do ponto de vista com seus superiores". tem na teoria". Assim, conforme Marx ( 1 983: 57), para o
No capítulo dedicado ao planejamento da produçãol 25, "economista burguês":
Juran ( 1 993: 241 ) nos esclarece [e] precisa melhor de onde ( . ) é impossível outra utilização da maquinaria que não seja a capi­
..

vem essa "resistência cultural". Essa é uma "conseqüência talista. A exploração do trabalhador pela máquina é, por conseguinte,
social [que] consiste no impacto da mudança tecnológica para ele, idêntica à exploração da máquina pelo trabalhador. Quem,
sobre o 'padrão cultural' dos seres humanos envolvidos, ou portanto, revela o que realmente ocorre com a utilização capitalista
seja, suas crenças, hábitos, tradições, práticas, símbolos de da maquinaria simplesmente não quer sua utilização, é um adver­
status etc". Para o POT, então, essa conseqüência social é a sário do progresso social!
"raiz da resistência às mudanças". Para Marx, essas são reações e idéias típicas de um modo
Tal pressuposição nos é percebida como uma perspecti­ de produção cujo trabalho e suas concretizações estão basica­
va "triunfalista" (Cf. Uchida, 1 996) a respeito das inova­ mente voltados para o valor de troca - único capaz de gerar
ções tecnológicas. O "triunfalismo" é um tipo de fetiche já mais-valor - e não para atender anseios próprios, valor-de-uso.
percebido por Marx ( 1983: 54) desde os primórdios da ma­ Essa prevalência, aliada com a transformação da força de tra­

quinaria. Isso, particularmente, quando de sua análise so­ balho em mercadoria, implica em um não reconhecimento,

bre a teoria econômica burguesa da compensação - aquela em um estranhamento, do ser que trabalha relativamente
àquilo que produz (Cf. Antunes, 1 995). Tal fenômeno faz com
que os homens que vivem sob essa relação social fundamen­
1 24 Capítulo 10: "Administração do desempenho humano".
1 25 Capítulo 22: "Planejamento para a qualidade". talmente mercantilizada, ou seja, que só se relacionam através

o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO .393


39 2
da troca de mercadorias, confiram a essas mercadorias - ou
tão, defendem o avanço tecnológico como o único caminho
coisas - propriedades humanas ou mesmo sobrenaturais, ao
capaz de agir positivamente sobre a sociedade e resolver os
mesmo tempo em que se vendem, isto é, que coisificam (Cf.
problemas que se lhe apresentam. Ou seja, como o único
Marx, 1983: 45-78). O fetiche, portanto, é uma decorrência
portador do "progresso social". Em tal pressuposto tam­
das relações sociais reificadas, tal como se estabelecem sob o
bém está implícita a idéia de neutralidade tecnológica, vis­
capitalismo, sendo que ambos têm sua gênese na alienação do
to que ao desenvolvimento tecnológico é conferido um
trabalho para fins de mais-valia.
movimento progressivo cujos traços independem da ativi­
. Daí a tendência em se colocar nas coisas - neste caso, a
dade criativa. Desaparece dessa concepção o trabalho indi­
tecnologia e suas materializações as causas dos "malefícios"
vidual e coletivo e, assim, a relação social a partir da qual a
ou "benefícios" sociais e/ou individuais e não na relação so­
tecnologia se desenvolve. Igualmente, desaparece a forma
cial de exploração do trabalho, característica da produção
como ela é direcionada para atender os interesses dos que
capitalista. Uma ilusão de ótica que se revela demasiado in­
dela se apropriam. Desse modo, de acordo com Uchida
teressante para a manutenção do próprio capital, uma vez
(1996: 92), a informática, enquanto expressão última desse
que a dominação e exploração ficam escondidas sob o véu da
desenvolvimento, é, para os "triunfalistas", "uma necessi­
reificação e do fetiche, escapando da consciência social (Cf.
dade determinante" e, portanto, "a realidade mais rica e
Lukács, 1974). Sendo assim, sobretudo do ponto de vista
ampla deve-se submeter aos limites estritos dessa discipli­
das revoltas e conflitos subjetivos entre capital e trabalho,
na" .
tal fetiche é um fenômeno eficaz para o perpetuamento des­
É assim que os adeptos do triunfalismo "imaginam pos­
se modo de produção.
suir, não só a linguagem high-tech da informática, mas tam­
Os promotores do fetiche de tipo "triunfalista" 126, en-
bém o modo correto de pensar, [e1 necessariamente acabam

126
julgando os outros ' analfabetos', primitivos e dotados de
De acordo com Uehida ( 1996), além do "triunfalismo", existe também o fetiche
de tipo "luddista". O "luddismo" foi um movimento proletário, surgido na
uma lógica anacrõnica de pensar" (Uchida, 1996: 91). Para
Inglaterra do final do século 18, Üderado pelo operário Nedd Ludd, contra a nós, esse tipo de fetiche é o que mais contribui para enco­
introdução das máquinas de vapor e tear nas indústrias inglesas. Esse brir o quadro de exploração e dominação próprio da produ­
movimento acabou se alastrando por boa parte da Europa, caracterizando�se,
ção capitalista. Isso porque, ao reverenciar a tecnologia como
principalmente, pela destruição e sabotagem das maquinas. Os "luddistas"
responsabilizavam-nas pelo seu desemprego e conseqüentê miséria. Iam, se fosse uma deusa vinda de fora para salvar a humanidade
portanto, no efeito e não na causa de seus infortúnios, isto é, o uso capitalista de seus percalços, ameniza não só os conflitos estruturais e
das materializações tecnológicas.
inerentes a esse sistema, como qualquer outro tipo de re-

394 o AVESSO DO TRABALHO C O L E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O 395


sistência 1 Z7. Para Freyssenet ( 1 990: 106), este quadro se agra­ capital. Daí, inclusive, se explicam as referências de Juran
va ainda mais dada a proposta, claramente interventora, de ( 1 993: 230) diga-se de passagem, extremamente dotadas
-

conversão e adestramento de todos às exigências tecno­ de juízos de valor - relativamente àqueles que não conse­
lógicas "pela ptofunda convicção de que a solução técnica guem ou não querem se adequar às mudanças tecnológicas
é sempre a mais definitiva e a mais eficaz para todos os como "rebeldes", "vingativos" e "anti-sociais" 128 ou , ainda,
problemas produtivos, organizacionais e sociais". Voltando como "pessoas que têm um histórico d e mau desempe­
a Uchida ( 1 996: 9 1 -92), é nesse sentido que os "triunfalistas, nho" 1 29. Desse modo, facilita a entrada da nova tecnologia
como missionários de hoje, lançam-se numa 'catequese' nas empresas mediante aquilo que o PQT coloca como a
incansável dos atuais 'pagãos', procutando varrer toda a "definição e criação de uma cultura corporativa receptiva"
antiga experiência cultural destes, na medida em que é que propicie um ambiente adequado para que tal mudança
entendida como obstáculo para a nova forma de apreensão ocorra. Isso, tanto mais, quando se refere aos "clientes inter­
e intervenção na realidade". nos do sistema de administração", isto é, à força de trabalho
Ao nosso entender, o que o PQT faz é justamente isso, (Juran, 1993: 80-81) 1 30. Busca-se, assim, estabelecer uma cul­
mais precisamente no âmbito da organização empresarial, tura empresarial que seja capaz não só de neutralizar as re­
preparando o terreno para a nova racionalização do trabalho sistências operárias, mas também de obter a adesão de seus
viabilizada pela tecnologia informática. Ou seja, preparando empregados aos objetivos da empresa, desde o gerente até
o terreno para a organização da subsunção real do trabalho ao os operários.
A esses últimos, sobretudo, conforme aponta Freyssenet
127
Conforme Dehida ( 1996, p. 91), esse não é o caso dos "luddistas" os quais
(1990: 1 1 1 ), coloca-se como condição fundamental para o uso
têm uma intenção auto-preservativa «em seu desejo de, não só, não aceitarem,
eficiente da tecnologia informática a necessidade de que "­
mas desejarem, ao mesmó tempo, 'destruir' as máquinas para protegerem suas
vidas e a de seus familiares" contra a fome. Desse modo, suas atitudes ao seja por aceitação, seja por imposição - compartilhem os
menos revelam um traço de rebelião relativamente ao modo como a tecnologia objetivos produtivos da empresa e que as contrapartidas re­
e suas materializações atuam na .produção capitalista. Ainda que seja uma
cebidas pela mobilização de sua inteligência sejam julgadas
revolta estranhada, na medida em que alude às máquinas (coisas) e não à
dialética própria da relação entre capital e trabalho, o "luddismo" comporta, por eles como normais e aceitáveis" . O próprio Juran nos
de certa forma, um elemento potencial de oposição a este estado de coisas. O
mesmo não ocorre com o "triunfalismo" o qual, em vez de g�rar revolta em
23
relação ao meio de dominação, o idolatra e mitifica, Nesse sentido, inferimos 1 Capítulo 22: "Planejamento para a qualidade".
que o fetiche dos "triunfalistas" é mais traiçoeiro e escamoteador da realidade 129 Capítulo 1 1 : "Treinamento para a qualidade".
que o fetiche dos "luddistas", posto que encanta ao mesmo tempo que explora. 130 Capítulo 10: "Administração do desempenho humano".

o AVESSO D O TRABALHO C O L E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O - 397


confirma isso quando discorre sobre a "administração do "são consIstent es com os valores e com as normas da
desempenho h u mano" em sua relação com as novas sociedade e o modo de vida japoneses". Assim, há que se

tecnologias informacionais: tomar o cuidado de obter uma justa adequação entre essas
A natureza do trabalho e a força de trabalho estão mudando de tal práticas e a "cultura" sob a qual essas serão inseridas. Ou
forma que a administração precisa avaliar explicitamente como seja, saber adaptá-la s em conformid ade com o "padrão
seus sistemas e práticas afctam a lealdade, a dedicação e o com­ cultural" de cada país de um modo que, sem comprometer
prometimento dos empregados (em todos os níveis) para com a seus fundamentos, possa antes potenciá-lo através de seus
companhia, e se estes promovem ou inibem a contribuição plena próprios valores, desde a lógica capitalista.
de habilidades, do conhecimento e da criatividade do emprega­ Podemos inferir, portanto, que o que interessa ao PQT
do. (... ) As companhias irão competir com maior sucesso se cria­ é, antes de mais nada, e por mais paradoxal que pareça, uma
rem um sistema de valores, crenças e comportamentos (individuais revolução para a manutenção do status quo. Em outras pala­
e de equipe) - uma cultura - necessário para tal sucesso (Juran, vras, a preservação, ainda que em outro nível, da dominação
1993: 81-82)Y' e exploração do capital sobre o trabalho, com todas as impli­
Para completar, Juran ( 1 993: 80) coloca os japoneses como cações subjetivas que isso implica para o trabalhador: aliena­
modelo d e sucesso "desses controles ambientais na ção/expropriação, reificação e fetiche.
sustentação das práticas de administração relacionadas aos
empregados".t'2 Para ele, as "falhas do Ocidente em colher CONSIDERAÇÕES FINAIS : A SUBJETIVIDADE DO TRABALHO
completamente os benefícios dessas práticas acontecem EM QUESTÃO.
quando os pré-requisitos para o sucesso não existem ou O que foi exposro até aqui, permitiu-nos perceber que

quando as organizações não criam sistemas de pessoal e o a apropriação intelectual e as novas qualificações operárias

clima de trabalho para encorajar, capacitar e premiar os exigidas no mundo do trabalho contemporâneo são duas
funcionários por terem contribuído com energia e idéias" facetas componentes de um novo patamar de reificação do
(Juran, 1993: 79). Porém, Juran ( 1 993: 63) atenta para o fato trabalho. Das reflexões que este estudo nos propiciou, con­
de que, se as práticas japonesas funcionam tão bem, é porque tudo, surge antes uma questão do que propriamente uma
conclusão: como se colocam hoje, para os trabalhadores in­
seridos na atual reestruturação produtiva, as possibilidades
13! Capítulo 10: "Administração para o desempenho humano",
de resistir e se opor a esse novo tipo de exploração!
132 Reitera-se aqui a profunda inspiração que o PQT tem relativamente ao chamado
"modelo japonês" de organização do trabalho. reificação?

o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO �99


Vincent ( 1 99 5 : 2 ) , aponta para o surgimento, na Contudo, para que tal fetiche ocorra, .é preciso, para além
contemporaneidade, de uma "dinâmica sistêmica", a qual da mera reformulação técnica das condições objetivas do pro­
tende a abarcar e ajustar, através da mediação do dinheiro e cesso produtivo, remodelar também suas condições subjeti­
dos "automatismos da circulação de capital", todos os ele­ vas, d e onde advém, como vimos, a preponderância do
mentos "socialmente objetivos" presentes nessa nova fase paradigma da participação presente no modelo Toyota de
do capitalismo: os investimentos financeiros, a circulação, produção, e expresso nos PQTs. É desse modo que o capital
produção e estoque de informações. Dentro dessa lógica, procura eliminar qualquer resistência advinda do estranha­
todos os dados são quantificados e sistematizados em pro­ mento provocado pela alienação e conseqüente mercan­
veito da "valorização do capital (o valor que se autovaloriza, tilização da atividade criativa e dos produtos de seu trabalho,
de Marx)". Não obstante com a supremacia absoluta do ca­ isto é, da própria tecnologia e suas materializações.
pitalismo contemporâneo, esses dados "assumem, em algu­ Entretanto, e de acordo com Antunes ( 1 999: 132), não
ma medida, a consistência de 'natural', como se eles podemos perder d e vista que tal "alienação, entendida
fornecessem informações 'objetivas' e incontestáveis e como como expressão contraditória no capitalismo, como pro­
se eles resultassem de movimentos e de ajustes necessários". cesso, é também expressão de luta e resistência". Assim,
Desse modo, impõe-se uma "racionalidade instrumental" as estratégias empresariais são, antes de mais nada, meios
que escamoteia a realidade da exploração, ao mesmo tempo de aprimorar o exercício de seu controle sobre a força de
que a legitima. trabalho. Ou seja, é a própria luta de classes em marcha. É
De acordo com Vincent ( 1 995: 10), esse "sistemismo" é nesse mesmo sentido que Lazzarato ( 1993: 23) chama aten­
um "prolongamento do fetichismo da mercadoria", à medi­ ção para o fato d e que "o problema da subjetividade e o
da que: de sua forma coletiva, de sua constituição e desenvolvi­
Impõe, unilateralmente, um significado social sob o abrigo de ope­ m e n t o , tornou-se i m e di a t a m e n te u m p r o b l e m a d e
rações aparentemente neutras sobre o plano axiológico (o cálculo e afrontamento entre classes sociais n o interior d a organiza­
a racionalidade econômicas, 'a alocação ótima dos recursos pelo ção do trabalho". Para ele, a ênfase na subjetividade ope­
mercado etc.). O qüiproquó que leva a que se tome a racionalidade rária demandada pela grande empresa contemporânea abre
capitalista por uma racionalidade instrumental, universal e um paradoxo para a produção capitalista, uma vez que o
atemporal, interdita, bem entendido, de questionarmos a respeito "capital não pode mais ou não tem mais força de se repre­
do 'te/os' do valor e sobre o que isso significa para as atividades sentar como a origem e a fonte da criatividade na produ­
humanas. ção" (Lazzarato, 1993: 25).

4 00 o AVESSO DO TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO 4 01


Ao promover a mecanização do cérebro - ou mesmo sua capital age como seu "capador" em virtude da "subsunção
"taylorização" já que a "prescrição de tarefas transformou-se generalizante sob as leis da valorização" (Vincent, 1 995: 7).
em prescrição da subjetividade . ... [sic] O 'tom' é exatamen­ Uma inteligência cuja lógica é aberta, dialógica e de con­
te igual àquele que comandava a execução "taylorista" do fronto com a lógica monológica da acumulação capitalista.
trabalho, mudando apenas seu 'conteúdo"'. Em outras pala­ Por isso, sua capacidade de se opor às "funções automatizadas
vras: o capital determina a aparição do sujeito trabalhador no que bloqueiam, em si próprias, toda interatividade autênti­
interior do processo produtivo, algo até então cuidadosa e ca" (Vincent, 1995: 9), tal como se dá hoje sob o capitalismo
objetivamente camuflado pelo taylorismo-fordismo. Toda­ mundializado e informatizado.
via, apesar desse sujeito trabalhador se encontrar limitado e Atualmente, porém, tais potencialidades presentes no ge­
unilateralizado em seu trabalho, "o processo de subjetivação neral intellect se encontram obstaculizadas. Ainda conforme
comandado pelo capitalista não inclui as camadas profundas Vincent ( 1995: 1 1 ), hoje, o "poder vindo do alto (os adminis­
da personalidade e do ser social" (Lazzarato, 1993: 3 1 ). Logo, tradores, as cúpulas de Estado) objetiva-se, faz-se automa­
"ao invés de apagar o antagonismo entre hierarquia e coope­ tismo social, abrigando-se nos sistemas informacionais que
ração, entre autonomia e comandos, o repõe num nível mais transmitem as imposições econômicas ou burocráticas, em si
elevado, pois ele mobiliza e afronta-se à personalidade indi­ mesmas, coisificadas" . Esta reificação acaba por converter
vidual própria do operário" (Lazzarato, 1993: 35). É assim em impotência todas as possibilidades abertas pelo novo ge­
que se abre um "novo campo de lutas" para os trabalhadores neral intellect, por operar uma quase naturalização dessas re­
inseridos na reestruturação produtiva em curso, e onde "a lações d e poder. Entretanto, embora consiga mantê-las
questão da subjetividade encontra-se no seu centro". apenas em estado latente, e, ainda, tendo em vista o cunho
Vincent ( 1995), por outro lado, considerando que a socie­ informacional da nova ferramenta de trabalho, a nova de­
dade não se reduz à esfera da produção empresarial, mas re­
manda do capital contemporâneo pelo "trabalho intelectual
produz, em alguma medida, suas tendências, aponta para a
concreto" não pode prescindir totalmente daquela parte re­
emergência cle um novo tipo de general intellect como uma
lativa à capacidade de reflexão e questionamento que inte­
resposta em potencial "a tal tipo de funcionamento
gra o general intellect; É isso que leva Vincent ( 1995: 12) a
descere brado da sociedade". O general intellect é um conceito
apontar para a necessidade, e efetiva possibilidade, de "fa­
que Marx utilizou nos Grundrisse para designar ª existência
zer com que o general intellect se contraponha aos automa­
de "uma inteligência plural, multiforme, em mutação per­
tismos sociais que o limitam, ... como formas de coisificação
manente sem a qual ela será arruinada", e sobre a qual o
a serem reveladas à luz do dia".

lj02 o AVESSO DO TRABALHO


COLEÇAo TRABALHO E EMANCI PAÇÃO lj03
...

É assim que as novas formas de exploração e controle da BIBLIOGRAFIA


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romper e transformar o status quo. Para tanto, e de acordo BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista: a degradação do
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reificação do trabalho no interior da grande empresa, a qual
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lho". ln: SOARES, Rosa Maria S. de Melo. (org.). Gestão da empresa:
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o AVESSO DO TRABALHO COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO


4 06
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Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual
de Campinas, 1998.

4 08 o AVESSO DO TRAB A L H O
3. VIDA E OBRA

CATÁLOGO EXPRESSÃO POPULAR Rosa Luxemburgo - Vida e obra - Isabel Maria Loureiro ............... .............................. R$ 7,00
Paulo Freire - Vida e obra - Ana Inês Souza (org.) ........................................................ R$ 13,00
O pensamento de Che Guevara - Michael Lowy ............................ ....................... .... R$ 1 0,00
Anton Makarenko - Vida e obra - a pedagogia na revolução
1. REALIDADE BRASILEIRA
Cecília da Silveira Luedemann .. ........... .................. ........................... ........................ R$ 15,00
História das idéias socialistas no Brasi! - Leandro Konder . . . . . . R$ 1 5,00
Florestan Fernandes - Vida e obra - Laurez Cerqueira ......... .............................. ......... R$ 1 0,00
Belo Monte - uma história da guerra de Canudos - José Rivair Macedo
e Mário Maestri . . R$ 1 0,00 Ruy Mauro Marini - Vida e obra - Roberta Traspadini e João Pedro Stedile (orgs.) . ...... R$ 13,00
Mariátegui - Vida e obra - Leila Escorsim .........._............... _. . . ............ ................. .....
. . . . R$ 15,00
Mato, palhoça e pilão - o qullombo, da escravidão às comunidades
remanescentes (1 532-2004) - Adelmir Fiabani . . ............ " ......... R$ 1 8,00 Lenin e a revolução russa .......................... .................................................................. R$ 13,00
t preciso coragem para mudar o Brasi! - Entrevistas do Brasil de Fato - José Arbex Jr.
e Nilton Viana (org5.) <" o•• • • • • • ••••• R$ 1 3,00 4. VIVA O POVO BRASILEIRO
A linguagem escravizada - língua, história, poder e luta de classes Gregório Bezerra - um lutador do povo - Alder Jú!!o Ferreira Calado ........... ............... R$ 3,00
Florence Carboní e Mário Maestri . . ................. R$ 1 0,00
Abreu e Lima - general das massas - Angelo Diogo Mazin e Miguel Enrique Stedi!e . ... R$ 3,00
Tiradentes, um presídio da ditadura - memórias de presos políticos
Lima Barreto - o rebelde rmprescindfvel - Luiz Ricardo Leitão ....................................... RS 3,00
Alípio Freire, Izaias Almada, J. A. de Granvi!le Pance (or95.) . . R$ 10,00
Luiz Gama - o libertador de escravos e sua mãe libertária, Lufza Mahin
Morte e vida Zeferino - Henfil e humor na revista Fradim - Rozeny Seixas . . . ....... " . . R$ 8,00
Mouzar Benedito .......................................................... . . . . . . . . . . . . ................................. R$ 3,00
Dossiê Tim Lopes - Fantástico Ibope - Mário Augusto Jakobskind . . .... "............ R$ 1 0,00
João Amazonas - um comunista brasileiro - Augusto Buonicore .................... ............. R$ 3,00
Luiz Carlos Prestes - patriota, revolucionário, comunista - Anita Leocádia Prestes ........ R$ 3,00
2. CLÁSSICOS Marçal Guarani - a voz que não pode ser esquecida - Benedito Prezia ......................... R$ 3,90
Clássicos sobre a revolução brasileira - Caio Prado Júnior e Florestan Fernandes ........... R$ 1 0,00 Roberto Morena - o militante - Lincoln de Abreu Penna ........ ..... ............ ................... R$ 3,00
Reforma ou revolução? - Rosa Luxemburgo .. . ..... ... R$ 8,00
Sobre a prática e sobre a contradição - Mao Tse-tung . . . . . R$ 7,00 5. IMPERIALISMO

Fundamentos da escola do trabalho - M. M. Pistrak . . .. .......... R$ 1 0,00 Imperialismo & resistência -Tariq Ali e David Barsamian ............................................... R$ 12,00

O pape! do indivíduo na História - G. V. Plekhanov . . .. R$ 10,00


A nova mulher e a moral sexual - Alexandra Kolontai . . .. ... ................. R$ 10,00 6. AMÉRICA LATINA

Lenin - coração e mente - Tarso F. Genro e Adelmo Genro Filho . " ...... R$ 10,00 Políticas agrárias na Bolívia (1952-1 979) - reforma ou revolução?
Canrobert Costa Neto ....... ..................................................... ....................... ........... R$ 10,00
A hora obscura - testemunhos da repressão política - Julíus Fucik, Henri AUeg
e Victor Serge .. . . ........ ........ R$ 13,00 Rebelde - testemunho de um combatente - Fernado Vecino Alegret ........................... R$ 6,00
EZLN M Passos de uma rebeldia ................ ............................ .. ............... .................... R$ 10,00
Estratégia e tática - Marta Harnecker . . R$ 1 0,00.
Marx e o socialismo - César Benjamin (org.) . . .. R$ 1 0,00
Florestan Fernandes - sociologia critica e militante - Octavio lanni (org.) ...................... R$ 18,00 7. lITERATURA

Che Guevara - política - Eder Sader (org.) . . . R$ 1 3,00 A mãe - Máximo Gorki . . .................. R$ 1 5,00

Gramsci - poder, política e partido - Emir Sader (org.) .. . ............. ........................ R$ 1 0,00 Contos - Jack London ... ............ ............................ .. ................... . . ................... ... ... R$ 10,00

Trabalho assalariado e capital & Salário, preço e lucro - Karl Marx ...... R$ 10,00 Assim foi temperado o aço - Nikolai Ostrovski .................................. .......................... R$ 18,00

Teoria da organização politica I - escritos de Engels, Marx, Lenin, Os mortos permanecem jovens - Anna Seghers ............................... ..... .. .................. R$ 20,00

Rosa e Mao - Ademar Bago (org.) . . . .................................... R$ 15,00 Week-end na Guatemala - Miguel Angel Astúrias ........ .. . ......................................... R$ 13,00

Martí e as duas Américas - Pedro Pablo Rodríguez ................ ...................................... R$ 13,00


Aqui as areias são mais limpas - Luis Adrián Betancourt .. . . . R$ 13,00 13. AGROECOLOGIA
Poesia insubmissa afrobrasileira - Roberto Pontes ..... .................................................. R$ 10,00 Plantas doentes pelo uso de agrotóxicos - Francis Chaboussou .................................... R$ 13,00

8, ESTUDOS AGRÁRIOS 14. ASSIM LUTAM OS POVOS


A história da luta peja terra e o MST - Mitsue Morissawa . ....... . ................................ R$ 20,00 História do socialismo e das lutas sociais - Max Beer ....................... ............... ............. R$ 22,00
Pedagogia do Movimento Sem Terra - Roseli Salete Caldart .... . . . .. .. R$ 15,00 Imagens da revolução - documentos políticos das organizações clandestinas de
MST ESCOLA - Documentos e estudos 1990-2001 - Setor de Educação do MST .. .. R$ 1 5,00 esquerda dos anos 1961-1971 - Daniel Aarão Reis Filho e Jair Ferreira de Sá .......... .... R$ 20,00
A QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL - João Pedro Stedile (org.)
- Volume I - O debate tradicional: 1 500-1960 .. · RI 1 3,00 15. CADERNOS DE EXPRESSÃO POPULAR

- Volume II - O debate na esquerda: 1 960-1980 .. .. .... .... .......................................... R$ 1 3,00 As tarefas revolucionárias da juventude - Lenin, Fidel e Frei Betto ................................ R$ 6,00
- Volume 111 - Programas de reforma agrária: 1946-2003 .. . . . R$ 13,00 As três fontes - Vladimir Lenin ................................................................................... R$ 6,00
A História me absolverá - Fidel Castro Ruz .................................................................. R$ 6,00
10, DEBATES & PERSPECTIVAS Sobre a evolução do conceito de campesinato - Eduardo Sevilla Guzmán
Tecnologia atómica - a nova frente das multinacionais - ETC Group .. . .... ... .. . R$ 8,00 e Manuel González de Molina ............................................................... .................... . R$ 6,00

1 1 , TRABALHO E EMANCIPAÇÃO
O ano vermelho - a Revolução Russa e seus reflexos no Brasil
Luiz Alberto Moniz Bandeira . · RI 18,00
O avesso do trabalho - Ricardo Antunes e Maria A. Moraes Sílva (orgs.) .. .. ...... R$ 15,00
A dialética do trabalho - escritos de Marx e Engels - Ricardo Antunes (org.) ................ R$ 1 0,00
Toyotismo no Brasil - desencantamento da fábrica, envolvimento e resistência
Eurenice de Oliveira .. · R$ 13,00
Marx e a técnica - um estudo dos Manuscritos de 1861-1863 - Daniel Romero . ... R$ 13,00
A liberdade desfigurada - a trajetória do sindicalismo no setor público brasileiro
Arnaldo José França Mazzei Nogueira .......................................................................... R$ 13,00
O trabalho atípico e a precariedade - Luciano VasapoJlo . . ..................... R$ 8,00
Trabalho e trabalhadores do calçado - Vera Lucia Navarro .. . ...................................... R$ 13,00
O olho da barbárie - Marildo Menegat . . R$ 1 5,00
O trabalho duplicado - a divisão sexual no trabalho e na reprodução: um estudo
das trabalhadoras do telemarketing - Claudia Mazzei Nogueira .............. . .. ............... R$ 13,00
O debate sobre a centralidade do trabalho -José Henrique CaNalho Organista ........... R$ 13,00

12. REVOLTAS MILITARES

A esquerda militar no Brasil - João Quartim de Moraes .............. "".""" ... .. . " ............ RS 13,00
A rebelião dos marinheiros - Avelino Bioen Capitani . . . ... " ...................... "." .. R$ 1 3,00 PEDIDOS
WWW. EXPRESSAOPOPULAR.COM.BR

(11) 3105-9500 OU (11) 3112-°941


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