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AVESSO DO
TRABALHO
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RICARDD ANTUNES E MARIA APARECIDA MORAES SILVA (ORGS.)
AVESSO DO
TRABALHO
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6:L-tCI,465;Y
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li!edição
EDITORA
EXPRESSÃO POPU LAR
-
São Paulo 2004
Copyright © 2004, by Expressão Popular
SUMÁRIO
Revisão:
Geraldo Martins de Azevedo Filho
Projeto gráfico, diagramação e capa: ZAP Desig-IZ
Impressão: Cromosete
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APRESENTAÇÃO
8 o AVESSO DO TRABALHO C O L E ÇÃ O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O
enorme contingente de homens e mulheres que trabalham. A O mesmo se pode dizer em relação ao conceito de "ex
taxa de desemprego não recua,mas se amplia explosivamen clusão". Vários autores têm demonstrado que a exclusão se
te. O sistema corta direitos e racionaliza (ideologicamente) o reporta aos grupos sociais que foram desalojados socialmen
corte em nome de empregos que não ocorrem. Daí a seme te: os chefes de família desempregados,as minorias étnicas,
lhança com o nazismo. os jovens sem possibilidades de entrar para o mercado de
Assiste-se hoje à dupla transformação do trabalho,tanto trabalho,as mulheres em ocupações precárias e com tempo
quanto ao conteúdo da atividade,tanto quanto às formas de parcial,os migrantes,os velhos desprovidos de seguridade
emprego,transformação aparentemente paradoxal,pois esse social etc. Esse seria o perfil dos novos pobres. São assim
duplo processo ocorre em sentidos opostos. De um lado,há chamados não em razão dos baixos rendimentos,aquém de
a exigência de estabilização,de implicação do sujeito no pro suas necessidades de sobrevivência,mas em razão de lhes
cesso de trabalho,por intermédio de atividades que reque serem vedadas as oportunidades de incorporação no tecido
rem autonomia,iniciativa,responsabilidade,comunicação ou social, gerando as bases para a exclusão dos seus direitos.
intercomprcensão. Por outro lado, verifica-se um processo Para esses excluídos,impõe-se a miséria do mundo,do sen
de instabilização,precarização dos laços empregatícios,au timento de seres desgarrados,à margem do meio social em
mento do desemprego prolongado e flexibilidade no uso da que vivem. São a ponta mais fragilizada daqueles que Marx
força de trabalho. Em duas palavras: perenidade e superflui caracterizou como "os que não têm mais nada a perder".
dade. E esse movimento é global e mundializado. Este livro situa-se no contexto destas reflexões. A partir
Portanto, é necessário não incorrer em erro quando se de pesquisas levadas a cabo durante vários anos com traba
analisa o processo de mundialização do capital e seus efeitos lhadores urbanos e rurais,operários de diferentes indústrias,
sobre o trabalho. Por trás de uma aparente hegemonia ou bancários,caminhoneiros e migrantes brasileiros para o Ja
universalidade de situações,há diferenças entre países ricos pão,homens e mulheres que vivem da venda de sua força de
e pobres,centrais e subordinados,e também no interior dos trabalho,no campo e nas cidades, foi possível compor o qua
mesmos,sem contar aquelas referentes aos vários setores da dro desta coletânea, cujo contorno reflete as marcas do tra
economia com inúmeras particularidades. Por outro lado,as balho,caracterizadas pela superexploração e também pelas
diferenças de gênero,entre homens e mulheres que traba incertezas em relação ao futuro.
lham,acrescidos da diversidade étnica,geracional e etária, Percorrer estradas na boléia de um caminhão conduzi
tornam-se também imprescindíveis à compreensão da situa do por duas mulheres,pisar a terra do eito de canaviais,o
ção de classe dos trabalhadores. chão de grande indústrias,as mesas dos trabalhadores e tra-
Unesp, de Araraquara; da USP, de Ribeirão Preto, da hoje ninguém sabe para que serviam aquelas pessoas, que utilidade
nado pelo Professor Ricardo Antunes. Editorial) e Adeus ao Trabalho? (Ed. CortezlEd. Unicamp). Coordena também
a "Coleção Mundo do Trabalho", pela Boitempo Editorial. Este texto é parte
do Projeto Intregrado de PesquIsa "Para Onde Vai o Mundo do Trabalho?",
Os organizadores que conta com apoio do CNPq.
12 o AVESSO DO TRABALHO
sociotecnica do universo produtivo, redesenho da divisão in-
-
guiares da reestruturação produtiva do capital, através da
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ternacional do trabalho, met'illlQrfoses no mundo do trabalho exemplificação de alguns ramos e setores. Nos diversos tex
Fn��sp-;;:;�d��rganização sindic�l, r;t���ri�lização da p;o· tos que compõem a coletânea, os leitores poderão encontrar
Quç�(),. dentre tantas outras conseqüências. um quadro bastante multifacetado e heterogêneo da
Esta contextuaiidade fez com que a configuração recente reestruturação, que certamente ajudarão para que possamos
do nosso capitalismo fosse bastante alterada, de modo que entender melhor as novas configurações no mundo do traba-
ainda não temos um desenho preciso do que vem se passan lho no BrasiL 1� �,C{;5';-l /;t" \�-7'
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do. Somente poderemos redesenhá-lo, entretanto, através do . �
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desenvolvimento e realização de densas pesquisas concretas " 'l()� O v n'l" ,\J
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e reflexões analíticas capazes de oferecer esse (novo) desenho O capitalism6 brasileiro, particularmente seu padrão de
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que, por cerro, comporta tanto elementos de descontinuidade acumulação industrial desenvolvido desde meaio�ja décacia
quanto de continuidade. _e especialmente � pós-Q:!, desenvolveu uma estru
I ;1' ...: ra p odutiva bi-fr'<::l1t� de um lado, voltava-se para a prod
É este o objetivo desta edição: buscar alguns elemen I (JIi � � t:
tos que nos auxiliem na concreção do capitalismo brasi i � ção de be.us de consumo dlJLá.Y..eJií , como automóveis,
leiro recente, bem como das mutações que vêm ocorrendo eletrodomésticos etc., para um mercado interno restrito e se
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no universo do trabalho, num período marcado pela
mundialização, transnacionalização e finanç"irizaçl\.o dos
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,5il. .P����.E.e:.l'. �m�nt.e:J o n.osso ..1l111"",rso
letivo; por outro lado, objetivava também desenvolver
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....P�utivos"), também soa estranho, num país como o Bra- de sua inserção subordinada, chegou a se alinhar entre as oito
sil, falar-se abstratamente em socieQaci".g.ó.§ u�.t!!.aJ :,
Para não falar em "fim do trabalho".
Nesse texto,. de apresentação do presente volume, que
grande; potênciasfidí'lStifais. E esse modelo econômico teve
enorme expansão ao longo das décadas de
Foi durante os anos de 1980,
a
ao final da ditadura mili
1950 1970.
remos tão-somente indicar alguns traços particulares e sin- tar, que esse padrão produtivo',' começou
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a sofrer as primei-
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organizacionais e tecnológicas no interior do processo pro necessidade de as empresas brasileiras buscarem sua inser-
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dutivo e de serviços, num ritmo inicialmente muito mais .- �
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ção'na'comretii:iVidãdei�;;;��-;;i-;;;:;-;;-Cb)';;;----- d;�'
.lento,do,9,!!e aqueles experimentados pelos.l?aíses <;'�ntrais� presâs t;'ãn�nã�i�naisque levaram à adoção,por parte cl���'ãs
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O Brasil,sob o fim da ditadura militar e no período Sarney, , subsidiárias no Brasil, de novos padrões organizacionais e
nos anos de 1980, ainda se encontrava relativamente dis tecnológicos,em alguma medida ifl:!:'!E<l�().� no "toyotismo"
tante do processo de reestruturação produtiva do capital e e nas formas flexíveis de acumulação; c) a necessidade de as �_.=.="."-,-
do projeto neoliberal,já em curso acentuado nos países ca em presas n a c io n a i s res p o,nd�sm_ �.() _§!."f!!lS�Ç!.�Q2.�()vo
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pitalistas centrais. Mas também já sofria os,l?Eim��� �ndicali.S.D10, que procurava estruturar-se mais fortemente
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xos da nova divisão internacional do trabalho,em mutação nos locais de trabalho e que teve forte traço de confrontação,
sig;ifi;;-;�i;�:'s��'�i;g�l�;id;d��'d�d�"p�;�;;;-p�f;de-za'pi-
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desde as históricas greves do ABC paulista, no pós-78
talismo hipertardio,passava, então,a ser afetada pelos no-
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(Antunes, 1997 e Alves,2000).
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Foi nessa década que ocorreram os primeiros impulsos I \ pío os setores automobliísttco eode autopés;as e,E.?sterioEl11.en!.e,
do processo de reestruturação produtiva em nosso país, le �!'�[l1 os têxtil_e ba::���i.::: dentre outros. De modo sintético
vando as empresas a adotarem,inicialmente de modo restri
to,(l0vos padr�es9_������is e��()12gi<:()st-. fl'?vas formas
i., . V pode-se dizer que a necessidade de elevação da 1?!:()d1J5.i':!9�
ocorreu através de reorganização da produção,redução do nú-
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dos empregado� s!![gímento dos CCQ's (Círculos de Controle
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o processo de difusão da microeletrônica. Deu-se o início, Durante a segunda metade de década de 1980,com a re
ainda também preliminar, dos .!)1étodos den..o minados à oSuperação parcial da economia brasileira,an::plia��:?=s� as._i��
t ões tecn()I�lfi�.�s: através da )ntr<;"<:!.�2!<:._�_�_�}.!toma.x!0
)(trfl part��ip��� ?,� mecanismos que procuram o envolvi;;:;���-d�;
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nt�trabalhadores nos planos das empresas. �\I'�Da 'ik-VIil9
i!1c111�tria����ase. �icroelsg§rli,ǪJ}_()s'yetores..illstal�mecâni-
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16 o AVESSO DO TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E E MANCIPAÇÃO 170
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co,automobilístico,!le:tfQÇll,tí!IÚ�(L",�sjçl",ryxgico, No setor au São Paulo para áreas do interior paulista (São Carlos),ou se
"tomobifístíc�,p�d��;e verificar a instalação de novas linhas, deslocaram para outras áreas do país,como o interior do Rio
destinadas à produção de novos veículos,que coexistiam com de Janeiro (Resende),ou ainda para o interior de Minas Ge
as antigas linhas de montagem,configurando um grau relati rais (Juiz de Fora),ou outros Estados como Paraná,Bahia,
vamente elevado de diferenciação e heterogeneidade Rio Grande do Sul etc. (Alves,2000). Ainda nessa mesma
tecnológica e produtiva no interior das empresas,�",::'?/?;� década, no contexto da desregulamentação do comércio
neidad��1,l5"�q��tYl!l.��IE,!!'(;a�çI�E<;:<;:sgmy,ª-Ç�.2_P1:2ç1��1".�Eo �mundial,a indústria automobilística brasileira foi submetida
-Brasil(Antunes,1 997, Alves,2000 e Previtalli,2002).
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a mudanças no regime de proteção alfandegária,sendo re
Foi nos anos de 1 990, entretanto, que a reestruturação
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duzidas as tarifas de importação de veículos (Previtalli,1 996).
,/) 5 produtiva do capital desenvolvell s�i���f\�a_IE_�f\ç<;:.e._IE.f\.osso Desde então,as montadoras vêm intensificando o pro
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Oifv�1, p.�1�",.através da implantação de vários receituários oriundos cesso de reestrmuráçao produtiva, atraves.:das-j;nQ�ções
tecnológicas,introduzindo robôs e sistema�AD!CANV en-
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18 o AVESSO DO TRABALHO C Ol E Ç Á O T R A B A L H O E E M AN C I P A Ç Ã O 19
kanban,
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bem como a introdução de ganhos salariais vincula- ---_._�-_.-_.�._-,�-
de buscar também a ;!l_��_��().çlgsbancári()s às estratégias de
dos à lucraüyic!ªº"e à Qrodutividade das em[lresas, sob a
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autovalorização do capital reproduzidas nás instituições ban
pragmática que se adequava fortemente aos desígnios cárias.
neoliberais,encontraram uma contextualidade propícia para Como conseqüência das. práticas flexív"i.s de contratação
o desmanche vigoroso da reestruturação produtiva, da da (orça de trabalho nos bancos (através da ampliação signi
Q�õ�lizaç:�oorg:âniiaciona!� do enxugamento. Portanto,se o ficati�a da terceirização,da contr�taçãO de tral:Jaihadores por
processo de reestruturação produtiva no Brasil, durante os râl"efasou em tempo parCiâÍ), �ê�·,;cõr���-d;�;� ;;âi;r
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anos de 1980, teve uma tendência limitada e seletiva, foi precarização dos empregos e dos salários,aumentando o pro-
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partir da década seguinte que ele se ampliou sobremaneira cesso de desregulamentação do trabalho e da redução dos
(Antunes, 1999 e Alves,2000). direitos sociais para os empregados em geral e para os
Outro,'?li:e;.�Et() importante podemos encontrar no seX.oç terceirizados em particular (Jinkings,2002 e Segnini,1998).
)in.�I1(;�iro. Aqui também se pode presenciar intenso impac Do ponto de vista do capital financeiro,essas formas de
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trabalhadores(as) bancário(as) foram fortemente atingidos
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lucratividade,ao mesmo tempo em que atingem f�;;�-;���e
pelas mudanças do seu trabalho,fundamentadas,principal a c�pacidad�d�;�sistê��;�a�s ba��áiTºif;�g;;;;-��t�;&;��s
mente,nas tecnologias de base microeletrônica e em muta- ."'----..,.-_.- --�---------- --" --- - -
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-·�··difi��lta�d� suaorgani��ção sindic�l. -À.�;;;�d;;; ��'d���;:
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ções organizacionais. Essas novas políticas gerenciais foram volvimento informacional, os programas de ajustes
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instituídas nos bancos,principalmente,através de seus pro organizacionais reduzem ao máximo a estrutura administra
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circulação nos ambientes de trabalho,bem como da amplia cários no país reduziu-se de aproximadamente 800 mil no
ção do trabalho em equipe,tudo isso acarrerou num signifi-
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final dos anos de 1 980 para cerca de 4 1 0 mil emiOOO
cativo aumento da produtividade do capital financeiro,além (Jinkings, 2002).
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20 o A V E S S O D O T RA B A L H O C O L E Ç Ã O T R A B A L H O E E M AN C I P A Ç Ã O 21
Em relação à divisão sexual do SElli:>a, lho, à medida que se ,--- -
Repetitivos (LER), que reduzem a força muscular e compro
desenvolviam os processos de automatização e flexibilização metem os movimentos daqueles que são portadores da doen
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de f���illi?:�ç"�O�g'1Si!�
t g()ri�"tJ não se ve
rificou uma jgualdade de condiçõesqy.al1w à carreira e salá-
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recriam estratégias de dominação do trabalho que procuram
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tensificados nos ambientes de trabalho - estabelecem rela bancos e das instituições financeiras, num ideário e numa prag
ções de dominação e de exploração mais duras sobre o mática que aviltam a condição laborativa (Jinkings, 2002)
trabalho feminino, que vão se traduzindo em desigualdades
e segmentações entre gêneros (Segnini, 1998 e Jinkings, II
2002). Esse processo de reestruturação produtiva (que exempli
As mudanças apontadas nas características pessoais e pro jicamos acima a�_:J._<iQ,§"�setores automobilístico e bancá-
fissionais dos bancários são expressões da reestrururação pro-
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rio), ma� que ati�giu a qua;��;t�Úd;d� d���am;� produti;os '-'-�-""-- - -.,' -"
._dlltiya�m"cgI�P e de seus movimentos de tecnificação e e/ou de serviços, acarretou também alterações significativas
racionalização do trabalho. Visando adequar sua força de tra-"" na estrutura de empregos no Brasil. Se durante a década de"
balho às modalidades atuais do processo produtivo, as insti 1970, segundo Pochmann (2000), no auge da expansão do
tuições financeiras exigem uma emprego industrial, o Brasil chegou a possuir cerca de 20% "
" nova qualificação "para- os
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,trabalhadores do set()� Cj�e parece t�rl11aislll11a. -.2ignijicação do total dos empregos na indústria de transformação, vinte
anos depois, f::�� s�!:-, d e._�r�;;;j.9rrn2'�}�?�?:i::, � menos de
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ide{JI�1S.ica do que tecno�flln ci()l1al. Conforme nos mostra _
Jinkings, num"contexto de crescente desempregá e de aumen 13% do total da ocupação nacional. Ainda como resultado do
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to de formas precárias de contratação, os assalariados bancários processo de reconversão econômica, registraram-se, ainda se-
são compelidos a desenvólver uma f�maç�.2"".�� � .•
gundo Pochmann, ao longo dos anos de 1990, novas tendên
polivalentc,
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na tentativa de manter
,' seu vínculos de trabalho' , , - ,- ,v.'_',_ -_·__.•._v· __�_�.,. _______
cias nas ocupações profissionais. Com ""a mudança da
dinâmica industrial voltada para o mercado interno", dada
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balho extenuantes. Agravaram-se os problemas de saúde des "a motivação dependente de maior inserção competitiva ex
ses trabalhadores nas últimas décadas e observou-se também terna:,
um aumento sem precedentes das Lesões por Esforços ra [vez] desde os anos de 1930, com �soluta e re1ª!jy�
22 o AVESSO DO TRABALHO CO L E Ç ÁO T R A B A L H O E E M A N CI P A Ç Ã O
de postoS de trabalho na indústria.cl� lllanl!f�Ell�a. Entre as sob a condução política em conformidade com o ideário e a
dé�ad;; d� i980;i990,';;�� � economi;trasileira - pragmátis:_�eEl1j1;)�fl2Ç2m�l1§gcl�jYi!.§!:ÜUglQfl,�.aglli.se�
perdeu próximo a 1,5 milhões de empregos no setor de ma guidas pelos governos.Ç.2IL2LiO: tI-IÇ, presenciamos várias
�__,- . __ ��__"_,_ 0"',,' '• .
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autor: "Na década de 1990, os serviços passaram a absorver gulamentação, terceirização, as novas formas de gestão da
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mais postos de trabalho,sem compensar,entretanto,a des força de trabalho etc. estão presentes em grande intensida
truição dos empregos verificada tanto no campo quanto na de,indicando que,se o "[ordismo" parece ainda dominante
indústria. Atualmente,o aumento do desemprego aberto re quando se olha o conjunto da estrutura produtiva industrial
flete justamente a incapacidade da economia brasileira para e de serviços no país,ele também se mescla com novos pro-
gerar expressivos postos de trabalho,não obstante o setor de .s;�§Mls_pLo.dmi.Y.Q.�,.,cpnseqüênc.ig da liofilização" º-�a-
--."._---�->-,��.� - "-_.�,._---�,.
- " _-"_._._""-�".��,-�---�""--,...,._"-��.",��
serviços continuar absorvendo uma parte dos trabalhadores cional,dos mecanismos da acumulação flexível e das práticas
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que anualmente ingressam no mercado de trabalho ou que __�_��_""'�'.'" .,�,'_�"_" ''''',�,'" ",
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"toyotistas" que foram (parcialmente) assimilada§.'12 setor '�'"'____ ' ", '
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Se,em 1 999, o Brasil estava em terceiro lugar em volume Se é verdade que a baixa remuneração da força de traba
de desemprego aberto,representandó 5,61 % do total do de lho - que se caracteriza como elemento de atração para o
semprego global (sendo que sua população economicamente fluxo de capital externo produtivo em nosso país - pode se
ativa representava 3,12% da PEA mundial),em 1986, esse constituir,em alguma medida,em alguns ramos produtivos,
índice encontrava-se em 13" lugar no desemprego global,re como elemento obstaculizador do avanço tecnológico em
presentando 2,75% da PEA global e 1,68% do desemprego nosso país, do mesmo modo a combinação o�t�d!_IJela
m�ndial (Pochmann,2000 e 2001). �ploraçª-º_Qi!.J�r2a.?S.trlll:li!.Ihº"ç()rrlp�drií�s pr(ld.Q;:i
Portanto,a partir dos anos de 1 990, com a intensificação vos mais avançados constitui-se eme1emel1t()5111��0.fltl,!lll_a
do processo de reestruturação produtiva do capital no Brasil, ' ��;�i��ia�;�ando o�apit�lismo em nosso país: Isso porque,
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para os capitais nacionais e transnacionais produtivos, inte- , .- " . "
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mente precarizadas.
�
também a mecanização dessa atividade, que ocupava grande rios em todo o país (US$ 6 milhões), mapeou cerca de 238 mil
quantidade de mão-de-obra. Atualmente, já está sendo utili trechos de genes, que, quando combinados adequadamente,
zado um equipamento que junta a palha deixada depois da co representam 43 mil genes, dos quais cerca de um terço tem
lheita. O referido equipame nto permite tratar o solo sem todas as suas letras identificadas.' A lista do processo de mo
necessidade de juntar a palha (Scopinho, 1995, p. 59). No que dernização não pára aí. No entanto, nos limites desse texto,
se refere ao trato da cultura, o processo de adubação é feito por objetiva-se à compreensão dos resultados desse processo vis
máquinas, cada vez mais apropriadas para não danificar o ter à-vis os trabalhadores. Assim, as seguintes questões poderiam
reno e as plantas. A adubação com produtos orgânicos, tal ser elencadas: o que ocorre além dos canaviais? O que acontece
como a vinhaça, é realizada por caminhões que tracionam tan aos descartados pelas máquinas? Estar-se-ia diante da profe
ques de plástico com reforço de fibra de vidro (os minhocões). cia do fim do trabalho? Os descartados são excluídos? A res
Para a aplicação de produtos químicos, empregam-se também posta a essas questões não pode deixar de considerar as
aviões, diminuindo, drasticamente, a utilização de mão-de inúmeras clivagens existentes entre estes trabalhadores: os
obra (Scopinho, 1995, p. 59-60). Ademais da modernização da migrantes, provenientes de várias partes do país, as mulheres,
produção de açúcar e álcool, há fortes investimentos na os mais velhos, além das divisões ocupacionais, resultantes de
tecnologia da transformação do bagaço de cana em energia, processos distintos de qualificação. Portanto, além dos critérios
sobretudo após a crise energética do ano de 2001, sem contar de classe, os de gênero, regionalidade e idade devem ser leva
que as usinas antes do período de racionamento já eram auto dos em conta na análise.
suficientes. Os dados de pesquisas levadas a cabo nos últimos anos
Os avanços da genética estão beneficiando várias usinas têm revelado o seguinte quadro:
dessa região. Graças a pesquisas desenvolvidas pela UFSCar, muitos dos excluídos desta modernização têm se transformado em
houve alteração genética da cana. Os efeitos foram o aumento verdadeiros itinerantes em busca de trabalho em várias regiões do
da produtividade e a melhora dos produtos derivados da cana país. Portanto, há uma ligação estreita entre o processo de moderni
- açúcar e álcool. Segundo esses estudos, O aumento da pro zação e a mobilidade espacial de milhares de pessoas. Um ponto que
dutividade foi em torno de 20% na produção por hectare. An vale a pena ressaltar é que, ao mesmo tempo que essa região conti
tes dos estudos, a média era em torno de 70 toneladas por nua atraindo grandes massas de migrantes, ela também expulsa ou-
hectare. Com a aplicação das pesquisas, esse número foi para
, (Folha de S. Paulo. Folha Ribeirão. 14 de julho de 2002, Cl)
85. Por outro lado, o Projero Genoma Cana, financiado pela
tros milhares. Nesse sentido, houve a redefinição da cartografia mi ses, apontada por vários autores (Standing, 2000; Antunes, 2000;
gratória. Até os finais da década de 1990, a maioria dos migrantes era Mattoso, 1996; Gollac, 1 996), onde o processo de reestruturação
proveniente do interior da Bahia e do Vale do ]equitinhonha, MG. produtiva foi acompanhado do aumento da intensificação da ex
Atualmente, o destino desses migrantes tem sido as usinas do Estado ploração da força de trabalho, além da insegurança laboral, da pre
de Mato Grosso do Sul, principalmente no município de Rio Bri cariedade, dentre outros males impingidos aos trabalhadores.
lhante, onde, em passado recente, houve muitas denúncias de traba A ausência de alternativas, além da omissão do Estado,
lho escravo. Por outro lado, muitos trabalhadores residentes neSsa tem criado as bases para um deslocamento espacial e tempo
região também se deslocaram para aquelas usinas, cuja mecanização ral incessante. Ao contrário da realidade de muitos países
do corte da cana é ainda muito insipiente. Este deslocamento de ricos, onde os direitos e a cidadania ainda preservam o status
trabalhadores - resultante da concorrência entre os capitais de com dos desempregados, a situação brasileira, especificamente
posição orgânica diferenciada - não pode ser entendido como uma desse contingente, é marcada pela despossessão e desenraiza
simples transferência de força de trabalho entre as usinas (o que po mento constantes. São vidas definidas por um vaivém pere
deria ser entendido como sendo a manutenção do mesmo nível de ne, por uma eterna migração forçada que lhes impinge a marca
emprego), porém, como uma estratégia para intensificar a explora de um destino social. Na luta pelo direito à sobrevivência,
ção e, pour cause, aumentar a captação geral do sobretrabalho. resistem à condição de párias, de mendigos. Os trajetos de
1\tluitos dos migrantes atuais são provenientes do 1\tlaranhão, Ceará, suas andanças refletem a busca de um ponto fixo na escala
Alagoas, Piauí, Estados que, no passado, tinham pouca participa social (Borges, 2002). Resistem ao processo descendente
ção nesse processo. A explicação que pode ser dada para a mudan imposto pela estrutura social e independente de suas vonta
ça da cartografia migratória reside no fato de que houve uma enorme des. As pessoas não migram porque querem. Defende-se,
intensificação do ritmo do trabalho, traduzida em termos da média de antemão, a idéia de uma migração forçada, imposta pela
de cana cortada, em torno de dez toneladas diárias. Esse fato está estrutura social, econômica e política atua!.8 A migração é re
diretamente relacionado à capacidade física, portanto, à idade, na sultado de um processo histórico e, ao mesmo tempo, causa
medida que, acima de trinta anos de idade, os trabalhadores à en de um outro. É justamente aí que residem as bases analíticas
contram mais dificuldades para serem empregados. Dessa sorte, a da ação dos sujeitos envolvidos. A exclusão não pode ser vista
vinda desses outros migrantes cumpre a função de repor, por meio
S "• • • !Uuiras pessoas que migram, migram porque decidiram migrar; migram
do fornecimento de maior força de trabalho, o con�sumo exigido
porque migrar era a melhor alternativa. Isso não quer dizer que seja a correta
pelos capitais cuja composição orgânica é maior. Essa realidade, alternativa, mas era a melhor alternativa no julgamento do migrante." Ver, a
num primeiro momento, não se diferencia daquela de outros paí- respeito, Martins (1998, pp. 19-34).
12 Fagocitose é ingestão e destruição de uma partícula sólida ou de um agrícolas, principalmente canavieiras, cujo grau de reenificação ainda
microorganismo por uma célula (Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa). é inferior àquele das usinas dessa região, cria-se a possibilidade de
sindicatos, em razão de que os trabalhadores, teoricamente, trabalhadores no Brasil, sete são profissionais reunidos em cooperativas. A
expansão das cooperativas no ramo do trabalho, deveu-se ao desemprego e á
tornam-se cooperados, sócios da empresa, porque detêm a cota
inclusão na CLT, em 1994, de um artigo que permite que o cooperado preste
parte do capital que as constituiu (Alves, Almeida, 2000). serviços a uma empresa sem vínculos empregatícios. A alteração foi feita por
Houve também o crescimento da rotatividade dos trabalha- meio da Lei n° 8.949, artigo 442 da CLT.
Por outro lado, intensificam-se as exigências quanto à "Em Iracemópolis e Itápolis, as prefeituras estão pressionando as
qualificação, principalmente no tocante aos níveis de esco usinas para que sejam contratados apenas os trabalhadores locais."
laridade. Vários depoimentos de trabalhadores atestam para (CÁ e LÁ, ano 12, n" 99, junho/julho/1999)
uma exigência insólita: quatro anos de escolaridade para o "Na entressafra, aumenta a precariedade do trabalho.. Muitos tra
trabalho no corte da cana e oito anos para aqueles que se balhadores se destinam às atividades da colheita de amendoim ,
destinam às tarefas da área industrial da usina. A fim de con cujo pagamento é em torno de R$ 0,01 (um centavo) por metro de
solidar essas afirmações, alguns exemplos, coligidos pela amendoim colhido. Outros colhem algodão pelo preço de R$ 1,00
Pastoral dos Migrantes em várias partes do país, são impor (um real ) por arroba." (CÁ e LÁ, ano 12, n" 91, fevereiro/março/
tantes para a ilustração do quadro. 1998)
"A turma, que trabalha com o gato Nenzão, está cortando sete ruas "Algumas prefeituras da região de Ribeirão Preto estão pagando
de cana." (Boletim CÁ e LÁ, ano 12, n" 99 A, agosto/setembro/1999) ônibus para levar os migrantes de volta para suas cidades. Uma
Isso representa um enorme retrocesso na luta dos trabalhadores delas é Santa Cruz das Palmeiras." (CÁ e LÁ, ano 12, n° 85, abril/
rurais dessa região. As greves em 1984 e 1 985 tiveram como princi 1997)
pal motivo a reivindicação da passagem de sete para cinco ruas. 14 "Em Santa Cruz das Palmeiras/SP, a contratação da mão-de-obra é
"Na zona rural do município de wlinas Novas, nas primeiras sema feita pelas usinas, que retira parte do salário dos trabalhadores para
nas do mês de maio, saíram em torno de trinta ônibus com traba pagar aos donos de pensão, uma vez que elas não possuem aloja
lhadores, que se destinavam às usinas de São Paulo e Mato Grosso. mentos. Não há contrato de trabalho. Foram registradas duas mor
Um trabalhador que não conseguiu emprego se jogou do ônibus e tes em razão de meningite e mais 14 casos notificados.
morreu, outro voltou doente cm estado de choque amarrado num "Na lavoura de laranja em Araraquara e Matão, nos salões de açú
banco do ônibus." (CÁ e LÁ, ano 12, n" 98, abril/maio/1999) car, nas -atividades de ensacamento e empilhamento, da usina
Bonfim (Guariba), os trabalhadores estão sendo contratados pelas
14 Essas greves são conhecidas como as greves de Guariba, pois foi nessa cidade Copergatos, sem registro formal de contrato de trabalho." (VAIVÉM,
de trabalhadores rurais que os mov�mentos de revolta começaram. O maior
fator responsável pelos conflitos foram as mudanças implantadas pelas usinas ano 15, n° 68, julho, agosto, setembro/1996).
no processo de trabalho. Até então, o corte da cana era feito levando-se em Informações recentes apontam para a diminuição dos sa
conta as cinco mas, ou seja, cada trabalhador cortava cinco fileiras de cana. A lários em vários locais. Na região de Araraquara/SP, a caixa
passagem para sete ruas implicava maior intensidade do trabalho, portanto, o
- de laranja está sendo paga a apenas R$ 0,50, enquanto no
aumento da mais-valia relativa, maior exploração, já que os salários
continuavam os mesmos. A maior vitória desses movimentos foi a fixação de ano passado (2001), o preço era correspondente a R$ 1,30.
cinco ruas (fileiras de cana). Na região de Ribeirão Preto, para compensar a fraca alimen-
Feiras Internacionais - Agrishow - realizadas anualmente na sofreu uma redução de 96% da área plantada nos últimos
cidade de Ribeirão Preto, que, neste ano de 2002, movimen dez anos. Nesse Estado, nos últimos dez anos, o número de
tou, com a venda de máquinas, cerca mais de um bilhão e desempregados do algodão foi de 19.097 trabalhadores, se
duzentos milhões de reais, a qual compareceram além de gundo dados da Secretaria da Agricultura. Somente na safra
políticos e empresários nacionais, representantes de empre de 2002, O número de desempregados será de 7.600. O algo
sas de vários países do mundo.t' dão, cuja colheita até alguns anos atrás era inteiramente ma
Essa situação de superexploração do trabalho é evidencia nual, atualmente está sendo colhido por máquinas que
da, não apenas pela forma de salário baseada no quantum de substituem até duzentos trabalhadores (Boletim do Migrante,
produção e pela elevação da média de produtividade, atual Londrina/PR, ano 8, n° 32, junho de 2002, p. 2).
mente fixada em dez toneladas de cana cortada por dia, mas A utilização de grandes máquinas está ocorrendo tam
também pela recente introdução de uma outra atividade re bém na colheita do café, muito embora essa atividade ainda
lacionada à colheita do amendoim. O amendoim é plantado continue sendo majoritariamente manual. Em virtude da
no canavial logo após o corte, para evitar os males causados à enorme safra esperada para este ano, essa cultura ainda for
terra pelas máquinas em virtude da compactação do solo. nece emprego para grandes contingentes de trabalhadores
Durante a fase da colheita do amendoim, são utilizadas duas dessa região e de outras áreas do país. Segundo depoimentos
máquinas, uma para arrancá-lo e outra para debulhá-lo. En de fazendeiros de café, há a necessidade de fornecimento de
tre as duas máquinas, trabalhando em geral de joelhos, fi glicose e leite de soja aos migrantes durante a jornada de
cam os trabalhadores, geralmente velhos e crianças, cuja trabalho em razão da "fraqueza" de seus corpos. Vale a pena
atividade consiste em sacudir as plantas a fim de lhes retirar lembrar que, até há alguns anos atrás, esses trabalhadores
o excesso de terra para não comprometer o funcionamento vinham em família, incluindo as crianças que ajudavam os
da segunda máquina. Esse exemplo revela que o processo pais na colheita do café. Amalmente, em razão da proibição
de precariedade do trabalho nessa cultura está ligado aos cri de trabalho infantil, as crianças são deixadas sob a guarda de
térios de idade, gênero e regionalidade, como foi dito acima. parentes ou conhecidos em seus lugares de origem. Esse fato,
Retomando as reflexões sobre o avanço tecnológico aci além de onerar os parcos orçamentos, contribui para aumen
ma expostas, pode-se citar um outro exemplo. A região de tar os problemas da sociabilidade familiar tendo em vista o
Londrina, maior produtora de algodão do Estado ..do Paraná, largo tempo de ausência dos pais. Muitas mães se referem à
saudade dos filhos, sobretudo quando há problemas de saú
IS
(Folha de S. Paulo, Folha Ribeirão, 6 de maio de 2002, C l ) de e quando os mesmos não são bem cuidados. A situação de
itinerância desses homens e mulheres, que, incessantemen 'Nligrantes), foram contactadas sindicaIis�as, representantes da
te, estão partindo em busca de trabalho, é pautada por rela Fetagri e dos usineiros. Foram feitos acordos com os mais de 400
ções de despossessão, cujos efeitos atingem o grupo familiar trabalhadores, maranhenses e baianos, pelos quais os mesmos re
como um todo. Sentem-se desterritorializados, fora do lugar. ceberam os salários atrasados, muito embora muito aquém dos pre
A expressão "aqui não é a terra, não é o lugar da gente" re ços estipulados pelos 'gatos'. Os trabalhadores receberam as
flete os significados simbólicos da ruptura com a terra, com o passagens de retorno." (Notícias - SPM, n° 51, setembro de 1998)
lugar de origem e com a sociabilidade pautada nas relações "Essa usina não atende às normas de segurança e saúde exigidas
de vizinhança, compadrio e parentesco existentes. por lei; as condições de saúde nos alojamentos são aviltantes e aten
tam contra a dignidade e a saúde dos trabalhadores; os banheiros
A VULNERABILIDADE DOS VULNERÁVEIS são imundos, restos de comida estão espalhados pelo pátio, onde
Em recente visita a um alojamento de trabalhadores homens e moscas convivem em situação deprimente; os trabalha
migrantes, ptovenientes do vale do Jequitinhonha/MG, cons dores em dia de folga só recebem o almoço às 15,30hs; eles não
tatou-se que um deles havia migrado em 1996 para as usinas dispõem de água para lavar suas roupas e para higiene pessoal; o
de São Paulo, em 1997 para as de Mato Grosso e, em 1 998, registro d'água só é aberto quando chegam da roça e não é suficien
migrou para o Estado de Amazonas também para cortar cana. te para todos; o transporte e feito em caminhões-gaiola, próprio
Relatou que fora levado de avião por um "gato", aí perma para o transporte de gado; em caso de acidentes no trabalho, eles
necendo por três meses apenas, pois não suportara o calor de são levados para os alojamentos sem nenhum socorro." (VAIVÉM,
mais de 45 graus. Os dados da Pastoral dos Migrantes confir ano 19, n° 77, julho, agosto, setembro/1999)
mam a situação de itinerância de milhares de trabalhadores Essa situação guarda fortes semelhanças com aquelas
de um lado para o outro do país. No mês de março deste ano, vivenciadas pela autora deste texto e pela professora Marilda
durante o trabalho de campo, foi encontrado um trabalha de Menezes, por ocasião de uma visita aos alojamentos de
dor, que padecia de pneumonia, que acabara de chegar da trabalhadores paraibanas nas usinas da Zona da Mata de
Guiana Francesa, onde trabalhava como clandestino. Pernambuco. Um pequeno excerto das anotações do caderno
"Inúmeros maranhenses que trabalhavam na usina de Aleopam de de campo revela a situação de miserabilidade vivenciada:
Poconé/MT saíram a pé e de carona ao longo dos 120 km que os HHavia poucos trabalhadores no local, recentemente chegados do
levaria até Cuiabá. Paralisaram o trabalho porque há três meses não trabalho. Havia apenas um trabalhador de Fagundes. Os demais
recebiam, a não ser pressões, humilhações e comida de péssima eram oriundos do próprio Estado de Pernambuco. Alguns já haviam
qualidade... Após denúncias ao CPM (Centro de Pastoral dos trocado de roupa, outros estavam preparando o almoço. Em virtu-
lhadores preparam suas refeições às pressas. Os caldeirões, "A presença daquelas casas, portanto, causou-me um espanto enorme,
enegrecidos pela fumaça, trazem em seu interior um pouco de fei enquanto pesquisadora, proveniente do Estado de São Paulo, porque
jão com carne de sol. Pela manhã, quando saem para o trabalho, nelas vi ou pressenti algum rastro de uma história passada e presente.
levam um pouco de fubá cozido, denominado "quarenta voltas", A informação, transmitida por Marilda (Marilda Meneses, professora
o AVESSO DO TRABALHO C O L E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O c 57
roo o trecheÍro geralmente não possui documentos; quando os têm gião, proveniente de várias partes do país, principalmente
estão em péssimas condições. Como pertences, carregam uma sa dos Estados de AL, PE, BA, MG, PB, GO e, em menor esca
cola plástica."(VAIVÉM, ano 19, n" 76, abtil, maio, junho/1999) la, SP. A metodologia empregada se baseou nas definições
"Submetidos ao trabalho escravo na fazenda Novo Horizonte, em de áreas de origem, entendidas como os locais de moradia
Serrânia/Minas Gerais, 37 dos 58 trabalhadores rurais baianos, in desses trabalhadores. No entanto, no que se refere às migra
clusive oito menores e quatro mulheres, aliciadas na cidade de ções temporárias, os lugares de destino são os mais diversos
Caetité/Bahia, agenciados POt um pastor da Igreja Assembléia de possíveis. A metodologia do estudo das trajetórias é um ins
Deus, recebiam apenas R$ 2,00 por dia, alimentavam-se apenas de trumento valioso para detectar a realidade dessa mobilida
arroz e passavam fome." A seqüência desse relato revela que os de. Em outros trabalhos (Silva, 1994; 1998), comprovaram-se
trabalhadores conseguiram fugir da fazenda e denunciar a situação casos de migração, para a mesma pessoa, para as mais dife
de trabalho escravo à qual estavam submetidos. (VAIVÉM, ano 15, rentes áreas do país, sem contar que o número de vezes que
n" 67, abril, maio, junho/1996) migrou está relacionado à idade. Esse fato é um indicador da
A diminuição constante da oferta de emprego, provocada existência de uma permanente migração temporária. Eles
pela supressão de milhares de postos de trabalho durante mesmos afirmam que "o canavieiro é rodado, sem família,
todos os anos, tem contribuído para o aumento do contin vai atrás de onde ganha mais" (Aguiar, p. 308).
gente dos excedentários, principalmente adultos com mais Outro dado importante constatado por essas pesquisas é
de trinta anos, jovens sem experiência de trabalho, mulhe que parte desses migrantes são pequenos proprietários em
res e migrantes. Esse fato, aliado às conseqüências da suas regiões de origem. Nesse caso, estariam os migrantes
reestruturação produtiva em outros setores da economia, é do interior da Paraíba, Sudoeste baiano, da Chapada
um dos responsáveis pelo aumento da violência na região, Diamantina, da região Nordeste de Minas Gerais (vale do
sobretudo aquela advinda do tráfico de drogas, atividade que Jequitinhonha). Dedicam-se em geral à agricultura de sub
está sendo desempenhada por muitos filhos de trabalhado sistência. São, portanto, camponeses pobres com terra, asso
res rurais e também por migrantes. lados pelas secas constantes. Durante mais de quatro décadas,
esses camponeses trabalharam nas usinas da região de Ri
Recente estudo (Aguiar, 1 998) sobre o perfil dos Os migrantes de Fagundes não encontram nas grandes cidades o
canavieiros da bacia do Alto Paraguai/MT mostrou que há que esperavam e muitos acabam voltando ou migrando para outros
um deslocamento constante de trabalhadores para essa re- Estados. A juventude não encontra trabalho e muitas crianças es-
denunciar usineiros. Dez pessoas do interior de São Paulo e do Mato Grosso pa do corpo. Essas pessoas foram acomodadas no salão da
do Sul - entre usineiros, comerciantes e funcionários da Funai - foram igreja, receberam donativos da comunidade e mantinham as
denunciados pela Procuradoria de Ribeirão Preto pelos crimes de fonnação
esperanças de serem aceitas para o trabalho do corte da cana.
de quadrilha, aliciamento de índios e não cumprimento de leis trabalhistas. O
grupo aliciava índios de Aquidauana e Miranda (MS) para o trabalho semi
Caso contrário, seriam colocadas num ônibus e levadas de
escravo em duas usinas de Ribeirão - Santa Lydia e Nova União. Tinha um volta para o local de origem, segundo as palavras de um agente
sofisticado esquema para dissimular os verdadeiros responsáveis pelo grupo. pastoral.
Esse esquema contava com a divisão das usinas em outras empresas - uma
Ser clandestino no próprio país, ser despachado como
delas com endereço no paraíso fiscal das Ilhas Virgens, (território do Reino
Unido no Caribe) - e a utilização de ao menos dois 'laranjas'." (Folha de S. mercadoria barata, constitui-se no contorno do quadro da mi
Paulo, Folha Ribeirão, 27 de janeiro de 2001, p. 1). séria do mundo desses trabalhadores. Partem, acossados pela
o AVESSO D O TRABA L H O C O L E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C ! PA Ç Ã O
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fome e pelo desespero, regressam mais miseráveis ainda. Quan Vale ainda acrescentar que em torno de 30% das famílias
do partem, nutrem a esperança de melhores dias, possuem de trabalhadores rurais são chefiadas por mulheres. Em ra
algum fulgor na alma. O regresso forçado imprime-lhes a mi zão da inflexibilidade do não-emprego, para muitas delas resta
séria da alma, amplia o estado de alienação em que vivem, a busca de outras alternativas, geralmente muito escassas,
estampando em suas faces uma única certeza, a de sobrantes. tais como o trabalho na colheita da laranja, ou, ainda, bicos,
como a venda de alguns produtos como bijuterias e cosméti
SEGUNDO QUADRO cos, ou, simplesmente, a vivência da situação de desespero,
Em relação às mulheres, elas estão alijadas do corte da provocada pelas tensões, insegurança laboral, sem contar o
cana, sob o pretexro de não lograrem os níveis de produtivi sentimento de frustração, enquanto mães, em razão da in
dade exigidos. Aquelas que conseguem trabalho, estão sen serção dos filhos no tráfico e consumo de drogas. No que
do relegadas às piores tarefas, como as de bituqueiras (que tange às colhedoras de laranja, a situação se caracteriza pela
consistem em recolher as bitucas, ou seja, os pedaços de cana perda dos direitos, em virtude da atuação das falsas coopera
que não são recolhidos pelas máquinas após o corte), ou en tivas, dos baixos salários, insuficientes para o sustento fami
tão como aplicadoras de veneno no controle das pragas da liar. As condições de trabalho na colheita da laranja definem
cana (atividades denominadas descarte), ou, ainda, nos vi o alto grau de exploração existente. Várias mulheres afirma
veiros onde se preparam as gemas para a plantação da cana, ram que a distribuição de veneno ocorre simultaneamente
que, igualmente, demandam o manuseio de agro tóxicos. A ao ato da colheita. Ademais do odor, há alergias, coceiras,
prática da exigência do atestado de esterilidade (ilegal) con inapetência, muita sede e sensação da "boca seca". O depoi
tinua existindo. Foram encontradas várias mulheres com do mento seguinte fornece alguns detalhes do cotidiano de tra
enças em razão da utilização de agrotóxicos: alergias, coceiras, balho na laranja.
queimaduras, câncer de pele, de garganta e muitas doenças P: O que é essa banca?
que afetam os aparelhos respiratório, circulatório e digesti R: Então a banca como eu falei, a roça nunca ela é plana ela é sem
vo. Duas delas morreram alguns meses depois de terem con pre meia torrinha por causa do negócio da água, aqui como é baixa
cedido os depoimentos em razão de câncer na garganta e nos da assim: para baixo, você cata duas ruas, para baixo três. Aqui, essa
pulmões. Por outro lado, as bituqueiras padecem com sérios rua do meio é a rua da banca. Só que você não pega a rua todinha
problemas de coluna, em razão da postura corpoTal curvada, para você catar. Porque você não consegue nem em um mês. Então
obrigatória durante todo o desempenho da tarefa (Silva, 1 999, vamos supor: eu pego,com meu marido doze pés... doze assim. Vinte
cap. "As meninas do descarte" ). e quatro, trinta e seis, quarenta e oito, sessenta pés para mim e para
o AVESSO DO TRABAL H O C O l E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O
meu marido... porque o caminhão só vai passar aqui. É aonde você P: Mesmo assim ela ia trabalhar?
tem que carregar a caixa, é colocar aqui. Tanto faz do lado de baixo R: Ia. Inclusive, seu Eurides, ele pegou um negócio numa perna,
ou do lado de cima, no meio... é a rua onde o caminhão passa carre eu não sei. Faz dias que eu não vejo ele, nem sei se ele sarou.
gando, por isso que chama banca... entendeu? É longe um pé do P : Mas pegou doença?
outro. Você tem que pegar lá da última e trazer aqui. É aí que cansa R: Eu acho que é do veneno.
-a gente. A sacola cheia. Por isso que eu falo que a gente tomava P: Vocês já estavam trabalhando quando o fiscal foi ao pomar?
muito prejuízo naquela sacola de náilon porque elas espicham, você R: Chegou o fiscal. Quando o empreiteiro viu, avisou. Os de meno
catava lá ela cheia) você vinha balançando até você chegar na ban res correram.
ca, aí você soltava, ela estava pela metade. Aí você tinha que voltar P: Ele avisou para dar tempo de fugir?
a catar a outra metade e completar. Entendeu? Te juro! Tinha dias R: Isso.
que eu nem jantava por causa daquele cheiro de veneno no nariz, P: Mesmo assim deu para ° fiscal pegar algum menor?
dava muita sede. Manteiga de cacau eu nem sei quanto. Os lábios R: Olha o que pegou... como não tinha nenhum documento... por
da gente chegavam a partir. Eu comprava muita manteiga de ca exemplo: eu que não era cadastrada, não tinha documento nenhum,
cau. E·u tomava muita água. Laranjal7 eu não suporto até hoje, eu ele veio perguntar para mim assim: a senhora vem da onde? Vem
compro para meu marido. Ele chupa. Mas eu não suporto. Outra de São Carlos, com quem? Com seu Jamil. A senhora é registrada?
coisa, esse pessoal do Antenor Garcia (bairro da periferia de São Não, porque eu não trouxe meus documentos ainda, eu comecei
Carlos), não sei como eles não morrem, porque lá ficam com as ontem. Mas fazia um mês já. Eu falei: eu não vou prejudicar o
mãos cheias de veneno, chegam a ficar melando, eles descascam a empreiteiro? Eu falei:_eu comecei ontem, meus documentos estão
laranja e comem. com ele, eu não sei quando vai registrar. Aí ele foi a todos os luga
P: Tem muita gente assim com alergia? res, procurando.
R: Tem. A maioria. P: Ele não viu os menores trabalhando?
P: Dá para ver assim? R: Não. No dia seguinte já não foi nenhum menor.
R: Dá. Tinha uma senhora lá- que as pernas dela assim tinham até
ferida. Sabe assim aqueles ferimentos? Ela coçou e ficaram as feri Uma das marcas ·dos capitais nessa agricultura é o salário
das. por produção. Tal como foi mostrado por Marx, essa é uma
forma específica de aumentar o nível de exploração, uma
66 o AVESSO 00 TRABALHO C O L E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA ÇÃ O
o salário é em função das toneladas cortadas. No entanto, o aceita e desmistificava a situação da mulher como frágil,
cortador não tem conhecimento no final da jornada de traba medrosa, passiva. No momento atual, esses valores do patriar
lho do resultado de seu trabalho em razão do sistema adota cado, que imputam à mulher a condição de incapaz para o
do: as canas cortadas são amontoadas em leiras e medidas; exercício de atividades pesadas, voltam à tona. Protegidas
depois de levadas para a usina, transformam-se em tonela por esses valores, as usinas, ao não empregarem as mulheres,
das, segundo o teor de sacarose. A passagem do sistema mé além de impingir-lhes o estatuto de sobrantes, apagam suas
trico para o peso não é conferida pelos cortadores, havendo, histórias enquanto trabalhadoras rurais e responsáveis em boa
segundo inúmeros depoimentos, fraudes em favor das usi parte pelos níveis de acumulação de seus capitais, uma vez
nas. Em relação à laranja, o fato da sacola de náilon "espi que sempre computaram mais de dezoito horas diárias de
char", implicando num maior volume, traz desvantagens aos trabalho, em razão da dupla jornada de trabalho. Contrarian
colhedores, pois recebem por caixa, que, teoricamente, tem do a ideologia do patriarcado, associada à do capitalismo, a
a mesma capacidade da sacola. No entanto a obrigatoriedade história dessas mulheres é pautada pelo trabalho desde a ida
de completar a sacola após o "espicho" para a obtenção do de de crianças, sem contar a importância da participação nas
mesmo volume de laranjas é revelador do roubo do exce greves e lutas por melhores salários. Nas greves de Guariba
dente de trabalho, traduzido na mercadoria laranja. ( 1 984 e 1 985), as mulheres realizaram piquetes e enfrenta
O fato da trabalhadora "mentir" para o fiscal do Trabalho ram corajosamente os policiais com seus aparatos bélicos, en
demonstra os níveis de precarização do trabalho nessa ativi viados pelo governo estadual para reprimir os movimentos
dade. Se revelasse a verdade - ausência de registro traba dos trabalhadores. Hoje, muitas delas, ademais do desem
lhista - seguramente seria despedida. Ao "mentir", manteve prego, abandonadas pelos companheiros, engrossam as esta
o emprego nas condições impostas, não criou problemas ao tísticas da feminização da pobreza neste país, porém não
empreiteiro e permitiu que a precarização do trabalho conti abandonam os filhos, lutam para a sobrevivência e mais: são
nuasse. A mentira e a fuga dos menores de idade são expres capazes de inventar a própria vida em meio aos desatinos;
sões de outra forma de exploração, a exploração moral, são capazes de trocar os podões pelas agulhas de crochê, pro
traduzida pelo medo e pela violência simbólica. duzindo toalhas, almofadas e barrados, com uma teimosia
Desde o surgimento das grandes usinas, as mulheres com enorme para se manterem vivas. As mulheres são aquelas
puseram o exército de trabalhadores para o desempenho das que mais foram afetadas, além dos mais velhos. Considera
atividades mais diversas. Enquanto havia necessidade de das frágeis, incapazes de garantirem os níveis de produtivi
grande quantidade de mão-de-obra, a presença feminina era dade no corte da cana - em torno de dez toneladas - elas
72 o AVESSO DO TRABALHO C O l E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O · 73
•
mesmo a escravidão, desprovidas dos mínimos direitos, in acampamentos e nas ocupações e assentamentos. Um total
clusive do direito de ir e vir, posto que muita cidades cons de mais de mil famílias acham-se assentadas em terras pú
troem barreiras para evitar sua entrada, a única esperança blicas da região nos seguintes municípios: Araraquara, Boa
que possuem é não se tornarem mendigos, seres desgarra Esperança, Bocaina, São Simão e Pradópolis. A terra tem
dos, condenados à uma verdadeira morte social. Mesmo dis aparecido como alternativa ao desemprego e ao processo de
tantes, prendem-se à utopia de rever a família, de voltar um exclusão, principalmente para os trabalhadores que residem
dia à terra de origem, de encontrar trabalho para remeter aos nas cidades dessa região. Mais recentemente, o MST (Mo
que ficaram. É esse sentimento de pertencimento à família, vimento dos Sem 'lerra) registrou a ocupação de terras per
a um determinado lugar, à condição de trabalhador, de pro tencentes a uma das grandes usinas no município de Matão.
vedor, que lhes identifica, que lhes define. Essa é sua iden Essas terras estavam sendo arrendadas pela Usina Bonfim.
tidade, ainda que em trânsito, transitória, provisória. Aqueles Em todos esses casos, tudo leva a crer que a maioria dos ocu
que chegaram à condição de mendigos, consideram-se como pantes seja constituída por trabalhadores locais e não por
excluídos, à margem, porém, assim mesmo, conservam a uto migrantes. Essa é uma das estratégias políticas dos sindica
pia de, através da memória de trabalhadores que foram num tos e dos prefeitos da região, cujo intuito é a diminuição das
tempo passado, ainda reaver, num futuro próximo, o tempo tensões e da violência urbana. Por outro lado, ainda que ti
e o espaço perdidos. midamente, iniciam-se as discussões em torno da aplicação
Ademais da diferenciação quanto à regional idade e ida do PAS em favor dos trabalhadores canavieiros, procurando
de, esse processo de exclusão-inclusão precária também tem envolver os governos locais e setores da sociedade civil.
a marca de gênero. As mulheres alijadas do trabalho, muitas Enquanto isso, uma mulher - que no passado foi cortadora
delas na condição de chefes de família, buscam as mais di de cana e hoje vive ° cotidiano do desemprego, da fome e da
versas alternativas para a sobrevivência, o que demonstra que miséria num gesto de desespero tal como os luddistas in
o homem como provedor é um mito, situação também en gleses do passado, proclama:
contrada em outros países pobres da América Latina (Safa, "se eu pudesse, eu quebraria todas as máquinas".
1995).
Atualmente, os sindicatos de trabalhadores rurais da re
gião e as federações, sobretudo a Feraesp (Fed.eração dos
Assalariados Rurais do Estado de São Paulo), estão concen
trando suas atividades na luta pela terra, na organização de
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INTRODUÇÃO
As transformações experimentadas pelo capitalismo nas
últimas décadas, em escala planetária, têm atingido profun
damente o mundo do trabalho e afetado não apenas a dinâ
mica das forças produtivas, mas também a dinâmica e a
composição da própria classe operária, que está se tornando
cada vez mais heterogênea, mais complexa e mais fragmen
tada. Para Antunes, essas modificações foram tão intensas
" ... que se pode mesmo afirmar que a c1asse-que-vive-do-trabalho
sofreu a mais aguda crise deste século, que atingiu não só a sua
80 o AVESSO 00 TRABALHO C O L E ÇÂ O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Â O 81
que ainda se apegam à segurança e à garantia dos 'velhos empregos'. vos, em boa parte das empresas no Brasil, vem sendo basea
Essa resistência às inevitáveis transformações tecnológicas e da em um conjunto de métodos e técnicas de organização da
organizacionais acabariam prejudicando a oferta de empregos, por produção e do trabalho conhecido como modelo japonês ou
que as empresas, diante da concorrência exacerbada, só poderiam "toyotismo", cujo ideário vem se proliferando, no Brasil,
responder ao desafio com o avanço da flexibilização, a eliminação da desde o início da década de 1 980.
legislação que pretende regular as relações trabalhistas e a adoção Segundo Benjamim Coriat, o "toyotismo" representa
generalizada da livre negociação. Este, aliás, é um velho truque " ... o coerente conjunto de técnicas sobre as quais se funde hoje
retórico dos liberais: a responsabilidade pelas desgraças causadas pela em dia a competitividade de maior parte dos grupos industriais do
economia de mercado é sempre das vítimas." (Belluzzo, 1996, p. 14) mundo [e1 ... constitui um conjunto de inovações organizacionais
No Brasil, as idéias que impulsionam o debate sobre a cuja importância é comparável ao que foram em suas épocas as ino
flexibilização do direito do trabalho, segundo Siqueira Neto, vações organizacionais trazidas pelo taylorismo e pelo fordismo."
são as mesmas que embalam o sonho das teses neoliberais (Coriat, 1 994, p. 13)
no estrangeIto. O modelo japonêszo de empresa e de organização social e
"De fato, a confusão sobre o assunto se instala quando os gerencial do trabalho vem sendo referenciado como uma for
propaladores dessa nova onda destinada a proporcionar a salvação ma de organização da produção e do trabalho cuja finalidade
nacional, afoitamente, universalizam diagnósticos sobre assuntos seria a de combinar as exigências de qualidade e quantida
que dependem de particularização nacional (inserção na concor de, contrapondo-se à especialização proposta pelo taylorismo,
rência internacional), vulgarizam o conceito de rigidez do direito e através da polivalência, da rotação de tarefas e do trabalho
do mercado de trabalho através de vaticínio superficial e banalizam em grupo. Outra importante característica desse modelo é a
a negociação coletiva do trabalho e o papel do Estado nas relações produção enxuta. Estão relacionados ao modelo japonês sis
de trabalho . ... A indigitada reestruturação capitalista não apenas temas de organização da produção como o just-in-time, o
rompeu com o paradigma produtivo tecnológico anterior, como tam kanban, os CCQs (Círculos de Controle de Qualidade) e as
bém com os mecanismos de ·gestão e regulação do trabalho então células de produção, por exemplo.
consolidados." (Siqueira Neto, 1 996, p. 332)
20
Para uma análise mais detalhada das características do modelo japonês e sua
As MUDANÇAS NOS PROCESSOS PRODUTIVOS: A DIFUSÃO
implantação no Brasil, confira coletânea organizada por HIRATA, H. Sobre o
DOS MÉTODOS E TÉCNICAS DO "MODELO JAPONÊS" modelo japonês: automatização, novas formas de organização e de relações
A implementação das mudanças nos processos produti- de trabalho. Editora da Universidade de São Paulo, 1993.
compreender as mudanças em curso na indústria de calça da pelo emprego intensivo de trabalho vivo, apresentando
dos dessa cidade, desde os anos de 1 980, e que se intensifi um baixo índice de concentração de capital e adotando um
cam e se ampliam a partir dos anos de 1990, e quais os processo de produção que, de forma geral, não se utiliza de
impactos dessas transformações sobre o conjunto da força de tecnologias sofisticadas. Esse ramo da indústria absorve uma
trabalho ali empregada. Partindo do pressuposto de que a quantidade significativa de força de trabalho barata e, em
reestruturação da produção estaria levando à uma degrada boa medida, especializada, detentora de conhecimentos ,
ção salarial, ao aumento do ritmo de trabalho, aumento do habilidades e destreza manuais ainda imprescindíveis à pro
desemprego, do trabalho temporário, do trabalho em domi dução do calçado de couro.
cílio, ao enfraquecimento do poder de organização dos tra No geral, as mudanças ocorridas nas indústrias que pro
balhadores, com sérias conseqüências para suas condições duzem calçados de couro têm se pautado mais pela adoção
de vida e trabalho, configurando também um quadro de agra de novas técnicas organizacionais e pelo recurso da
vamento das condições de saúde dos trabalhadores, o esrudo subcontratação do que pela renovação do aparato tecnológico
do processo e organização do trabalho revelou-se como eixo envolvido na produção dessa mercadoria, o que tem impli
a partir do qual a análise se desenvolveu. Cabe mencionar cado a intensificação do trabalho, o aviltamento salarial, a
que o processo de trabalho não está sendo entendido apenas eliminação de postos de trabalho e a crescente informalização
do ponto de vista técnico, como um mero arranjo de coisas, do emprego nesse setor, com a intensificação das práticas de
mas, sim, no sentido analisado por Marx, que o considera ao subcontratação, por meio de empresas especializadas em
mesmo tempo como um processo técnico, econômico e social, confeccionar determinadas partes do calçado, bem como atra
isto é, determinado por relações sociais de classe. vés do aumento da contratação do trabalho realizado em do
A cidade de Franca, localizada na região Nordeste do micílio.
Estado de São Paulo, é considerada o maior pólQ produtor Dada a grande diversidade de produtos e de processos
de calçados masculinos de couro do Brasil. Sua indústria produtivos que compõem o conjunto da produção calçadista,
calçadista consolidou-se na década de 1970, quando à de- optei por restringir a pesquisa à produção de calçados mas-
de calçados, especializadas em confeccionar determinadas Para apreender o conjunto de mudanças em curso, fez-se
partes do calçado - e parte em domicílio, envolvendo dife necessário reconstituir o processo de produção do calçado, o
rentes formas de relações de trabalho. que implicou acompanhar tanto as etapas da produção reali
O trabalho assalariado, em retração no setor, quanto ao zadas no interior das indústrias quanto aquelas desenvolvi
número de trabalhadores empregados, coexiste com o traba das nas bancas e em domicílio.
lho em domicílio, que possui, freqüentemente, fortes carac
terísticas de trabalho familiar e está, tendencialmente, em o PROCESSO DE PRODUÇÃO DE CALÇADOS NO CONTEXTO DA
expansão. A importância da coexistência de relações de tra REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA
balho em que o regime do salário convive com outras formas O processo de produção do calçado de couro envolve uma
de apropriação do trabalho excedente pelo capital ficou evi série de operações que são organizadas em torno de cinco
dente durante a realização da pesquisa de campo, que se operações principais: a modelagem, o corte, o pesponto, a
estendeu de meados de 1 993 a 1997. montagem e o acabamento. O número dessas operações pode
Independentemente das variações ascendentes e decres variar de acordo com o modelo de calçado em produção, o
centes do volume da produção ao longo da década de 1 986- tipo de organização adotada ou o porte da empresa.
1 996, a indústria calçadista francana extinguiu pelo menos A fim de facilitar a compreensão desse processo, optei
16.500 postos de trabalho nesse período, em sua enorme por analisar cada uma dessas fases, seguindo o processo de
maioria em decorrência, não da incorporação de maquinaria produção do calçado desde o seu início até a fase do
mais desenvolvida ao setor, e, sim, da adoção de estratégias empacotamento. É justamente nos meandros desse "labora
de gerenciainento da produção pelas indústrias. Ao mesmo tório secreto" que residem os efeitos perversos do modelo
tempo em que reduziram-se drasticamente os postos de tra- implantado (readaptado) sobre os(as) trabalhadores(as).
88 o AVESSO DO TRABALHO C O l E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O
A MODELAGEM: PAPEL ESTRATÉGICO NO CONJUNTO DAS tados, em papelão, a laser. Outro sistema CAM permite, ain
ATIVIDADES da, que o couro seja cortado com jatos d'água, com o corte
A modelagem dos calçados passou a ter um papel sendo acionado diretamente pelo computador. Embora a
crescentemente estratégico no conjunto das atividades do Samello disponha do equipamento que permite o corte do
setor calçadista a partir de meados da década de 1980. Essa couro com jato d'água, esse sistema não é utilizado na pro
posição deve-se principalmente às exigências de um merca dução, apenas na seção de modelagem. Em nenhuma em
do altamente competitivo, fundado na oferta crescente de presa calçadista francana a operação de corte do couro é
novos modelos de calçados e na obsolescência rápida dos efetuada através do sistema CAM, a jato d'água ou mesmo a
modelos já existentes. laser.
Na última década e meia, em nível internacional, a mo Poucas são as empresas calçadistas de Franca que dis
delagem de calçados conheceu, um grande avanço na utili põem de uma seção própria para a modelagem e, dentre
zação e desenvolvimento de sistemas CAD/CAM2l projetados estas, raras são as que contratam estilistas para o desenvol
especificamente para o uso na indústria calçadista. Somente vimento de seus modelos. A grande maioria dos calçados
no final dos anos de 1 980, o sistema CAD passou a ser utiliza produzidos em Franca reproduz, com pequenas alterações,
do na produção brasileira de calçados, introduzido pela Cal os modelos desenvolvidos na Europa, principalmente na
çados Samello S.A. ( Reis, 1 994). Na seção de modelagem Itália, onde se localizam os principais centros lançadores
dessa empresa, o sistema CAD é emp�egado no desenvolvi de moda.
mento do design do sapato e no desenho das peças do molde, "Os italianos fazem a moda [de calçados de couro masculinos], os
na modelagem do calçado. Os dados do design são enviados brasileiros copiam através de equipes de fabricantes que visitam os
para um sistema CAM que permite a produção dos moldes, principais centros de moda europeus, como a França, a Alemanha
em papelão, das diversas peças que compõem o modelo de e a Itália . ... O que é interessante é que antes que os exportadores
um sapato e sua respectiva escalação. Esses moldes são cor- brasileiros façam a "cópia", os modelistas italianos e franceses vêem
ao Brasil observar a riqueza das cores e da cultura para se inspirar e
21
levar as idéias aos seus países de origem." (Batista, 1 996, pp. 56-8)
o CAD - ComputerAided Design e o CAM - ComputerAided Manufacturing
são tecnologias de base microeletrônica utilizadas na produção calçadista. O Assim como os modelos desenvolvidos no exterior são
CAD é utilizado na elaboração do design dos modelos e na modelagem do
_ reproduzidos e ligeiramente modificados pelas indústrias
calçado. O CAM pennite o acionamento de um sistema computadorizado de
francanas, aqueles desenvolvidos pelas grandes empresas
corte da matéria-prima do calçado com jato d'água, a laser ou com facas
mecânicas. calçadistas locais também são utilizados como "fontes" para
- - -----� � - � -- -------- �-
o desenvolvimento de modelos pelas empresas calçadistas destinada ao mercado externo costumam fornecer o design e
de menor porte c mesmo pelas concorrentes. até mesmo os moldes e a matéria-prima que serão emprega
Em Franca, o trabalho do estilista é exercido com fre dos em sua produção.
qüência de maneira sobreposta, simultânea ao trabalho do " ... Quando a produção é destinada ao mercado externo, ... a indús
modelista. Raros são os profissionais contratados como tria brasileira de calçados apenas corta os modelos previamente
estilistas. Na grande maioria das empresas que possuem se determinados pelos importadores, ficando sem liberdade para 'criar'.
ção de modelagem, o profissional responsável pela criação Essa situação existe desde o início das exportações e justifica a ex
ou adaptação à produção local de modelos desenvolvidos no pressão muitas vezes utilizada tanto por empresários calçadistas
exterior, ou mesmo pelas empresas concorrentes, não é o quanto por representantes de classe: 'Nós não vendemos, somos
estilista, mas um prático, um modelista que realiza as modi comprados'." (Reis, 1994, p. 149)
ficações necessárias ao desenvolvimento de um novo modelo "Na produção para exportação, nós, da Samello, trabalhamos mais
diretamente sobre a forma sem, necessariamente, basear-se como mão-de-obra. A matéria-prima vem dos -E UA, o modelo tam
em um estudo estilístico prévio. bém. Nós somos mão-de-obra, vendemos mão-de-obra, produzi
" .. Quando nós falamos em estilista nós pensamos em criador de
o
mos o que eles pedem." (A.S., sapateiro da Calçados SameUo S.A.)
moda, naquele que cria a moda e a 'joga' no mercado. Aquele que
faz as criações: moda-inverno, moda-verão. No Brasil, [na produ o corte
ção de calçados masculinos de couro] você pode contar nos dedos, Na seção de corre, a reestruturação produtiva vem elimi
se existir, quem faça isso. Na realidade, o nosso estilista é aquele nando, desde o final dos anos de 1 980, as chamadas funções
que vai ao exterior e constata quais são as tendências ... Ele vai, auxiliares, as quais vêm sendo crescentemente atribuídas ao
assiste aos desfiles, 'clica' (fotografa) ou desenha os modelos, che cortador, sobrepondo-se às operações do corte propriamente
ga aqui e fala: 'vai ser isto!'." (EA.F, técnico do setor de calçados j dito. A partir de 1 993, como medida de redução de custos, o
SenaijFranca, doravante citado EA.E, SenaiIFranca) corte começou a ser enviado para as bancas e para ser execu
O aumento do mercado consumidor interno e a segmen tado nos domicílios dos trabalhadores, tanto em função de
tação que os calçados de couro passou a adquirir nesse mer incrementos da produção em algumas empresas quanto de
cado nos anos de 1980 exigiram a oferta de um número maior vido à extinção dessa seção em outras.
de modelos de calçados. A produção destinada ao mercado A operação de corte do couro ou vaqueta [tipo de couro],
externo teve pequena participação no mercado de trabalho está entre aquelas operações consideradas mais qualificadas
dos modelistas. Os intermediários que negociam a produção e melhor remuneradas no setor calçadista. O bom aproveita-
ração exige um grande dispêndio de força física, pelos acidentes) fazem do ruído um agente reconhecível, mas com re
balancins de acionamento hidráulico, mais rápidos, mais pre percussões pouco 'visíveis' para a maioria." (Azevedo, 1993, p. 401)
cisos, e de operação considerada mais segura. Apesar da predominância do corte mecanizado, a indús-
Atualmente, a quase totalidade do corte do couro meca tria .de calçados de couro de Franca não pode prescindir do
nizado é executado em balancins hidráulicos. A maior facili corte manual. O corte manual, nas empresas de maior porte,
dade de operação dos balancins hidráulicos, em relação aos é realizado tanto para a confecção das matrizes de cada novo
modelos mais antigos, permite sua operação por mulheres, modelo quanto para atender pedidos com poucos exempla
esses equipamentos continuam produzindo muito barulho "Não é possível eliminar por completo o trabalho dos cortadores
quando operados. A vibração provocada pelo impacto da ban manuais porque, quando há uma modelagem nova, o trabalho des
deira (parte móvel do balancim que, quando acionada, pres ses profissionais é necessário. Geralmente, os primeiros exempla
siona os moldes) sobre as facas de corte é sentida em todo o res d e um determinado modelo são cortados a mão." (R. F.,
campo desta pesquisa, pude constatar o quanto incomoda e As grandes empresas calçadistas francanas, nos últimos
pode vir a ser prejudicial à saúde dos trabalhadores o ruído anos, vêm exigindo que seus cortadores sejam habilitados
provocado pelo acionamento dos balancins. Ao sair de tais tanto no corte manual quanto no corte mecânico. Entretan
unidades industriais, perduram, por algum tempo, nos visi to, são poucas aquelas empresas que adotam programas de
tantes, os impactos e o barulho provocados pelos balancins. requalificação profissional de seus empregados, cabendo a
Em uma das empresas visitadas, todos os cortadores e os estes requalificarem-se por iniciativa própria.
demais trabalhadores da seção usavam protetores auriculares "Antes, nas empresas, havia cortadores manuais e cortadores para o
durante o trabalho e, mesmo assim, reclamavam do barulho balancim. Aí, com essas transformações que estão ocorrendo nas
produzido pelo equipamento. Inúmeros estudos empresas, eles estão exigindo que os cortadores manuais cortem
"... vêm evidenciando que os efeitos nocivos [do ruído] não se li também no balancim." (M.S., presidente do STICF)
mitam apenas às lesões do aparelho auditivo, mas comprometem Em muitas empresas, o corte só é realizado à mão en
diversos outros órgãos, aparelhos e funções do organismo ... A quanto em outras não há mais a seção de corte; essa operação
cronicidade dos efeitos (são necessários vários anos para manifesta é repassada para as bancas, onde o corte pode ser executado
tanto com O uso de balancins quanto manualmente.
ção de surdez) e a dificuldade de estabelecer correlações diretas
--- ---- - �� �- �-
o bom aproveitamento da matéria-prima e a redução do "De 1 993 para cá, as empresas estão terce�rizando o corte ... Isso
número de trabalhadores que desempenham as funções auxi está ocorrendo porque o çorte, depois do pesponto, é a operação
liares são as principais preocupações dos técnicos na seção de que ocupa o maior número de pessoas dentro da fábrica." (P.A.R.,
corte. As exigências relativas à diminuição do desperdício de sapateiro e sindicalista)
matérias-primas, em especial do couro, e a maior qualidade De início, julgava-se que as operações realizadas em se
do trabalho de corte tem sido cada vez mais intensas. Passa a ções que demandassem o emprego de máquinas caras e pe
ser atribuição do cortador conferir seu próprio trabalho, tarefa sadas, ou que oferecessem dificuldades para o controle da
qUe, em algumas empresas, era exercida por um outro traba matéria-prima que saía da fábrica, como era o caso do corte
lhador contratado unicamente para essa função - o "conferidor" do couro, dificilmente poderiam vir a ser realizadas em ban
ou a "conferideira". Esses trabalhadores tinham por função cas ou em domicílio. Até então, o corte era executado fora da
revisar as peças já cortadas, retirar aquelas que apresentavam fábrica em raras ocasiões, quando o volume da produção ul
defeitos e devolvê-las ao cortador, gerando, muitas vezes, o trapassava o limite da capacidade produtiva da empresa.
chamado "retrabalho". A partir do momento em que essas Nesse caso, o corte era realizado em domicílio, à mão e, na
empresas passaram a reorganizar sua produção, coube ao grande maioria das vezes, por operários assalariados da pró
cortador a função de revisar o próprio trabalho levando à pria empresa, considerados "de confiança".
extinção do trabalho da "conferideira" de corte. Com a saída do corte para ser realizado fora das indústrias,
"O cortador não se preocupava muito com a qualidade, porque a as empresas calçadistas adotaram estratégias para controlar o
"conferideira" avisava quando havia defeito. Hoje, as peças têm uso dessa matéria-prima, como a existência de funcionários
que sair bem cortadas, com qualidade, para que não sejam refei que passaram a atuar fora da empresa, fiscalizando o traba
tas." (P.A.R., sapateiro c sindicalista) lho nas bancas.
"O corte do couro era uma operação que ficava mais restrita ao
A terceirização do corte: trabalho nas bancas interior das empresas porque era difícil o controle da matéria-pri
e em domicílio ma. Hoje alguns gerentes de empresas não trabalham mais dentro
A principal mudança que ocorre com a operação do corte \ das fábricas. Ficam n.a rua, fazendo a fIscalização do trabalho que as
\
do couro é o repasse, que vem sendo feito pelas indústrias empresas tereeirizam." (R.E, ex-presidente do STICF)
de calçados, de parte ou mesmo de toda a operac;:ão de corte A seleção dos trabalhadores encarregados de realizar o
para terceiros. Esse processo ganha corpo a partir de 1993, corte em bancas ou em domicílio é rigorosa e é dada prefe
quando começam a proliferar em Franca as bancas de corte. rência a ex-funcionários, considerados de confiança pelas
terrompido apenas para o preparo do almoço e do jantar e, a de pressão [que é comprada]. Nós sempre trabalhamos com elas."
quando os filhos ainda são pequenos, para arrumá-los para a (N.D., trabalhadora em domicílio/"tresseteira")
escola. Às vezes, prolonga-se durante a noite e nos finais de Durante o corte das palas, nos balancins, são feitas as fen
semana. Parte do trabalho doméstico é executado durante das por onde serão passadas as tiras fininhas de couro, for
essas interrupções, mas é freqüente que os cuidados maio mando a trama. Há vários tipos de trama feitas em "tressê".
res da casa sejam realizados nas manhãs de segunda-feira, O trabalho é lento e cansativo: um par de palas demanda,
quando as cotas de "tressê" e de enfeites ainda não foram em média, de 30 minutos a uma hora, de acordo com a trama
distribuídas. e a habilidade da "tresseteira", e é executado com a traba
"Eu começo sempre às oito horas da manhã e trabalho até as dez e lhadora sentada.
meia, quando vou preparar o almoço, dar uma 'arrumadinha' na "Com esta trama, mais difícil, eu faço um pé em 20 minutos. Há
casa. Retorno lá pelo meio dia e meia e trabalho até as cinco horas pessoas que ficam horas e não fazem um pé. O que 'manda' é a
da tarde, quando paro para fazer o jantar. .. Continuo a fazer o 'tressê' prática mesmo. ... Mesmo parando, eu faço 1 2 pares por dia". .. "É
.
à noite, até acabar a novela. ... . Nas minhas horas de folga, vou cui muito cansativo. Nós ficamos sentadas o dia inteiro. ... Para mim, o
dar da casa. Na verdade, não temos folga porque, quando acaba que mais dói é a coluna. ... Não dá para trabalhar em pé, porque
mos de fazer o 'tressê', aproveitamos para lavar a roupa, passar, não há como firmar a mão." (N.D., trabalhadora em domicíliol
limpar a casa. ... Na segunda-feira pela manhã não há serviço para "tresseteira")
fazer, porque a entrega costuma ser feita na hora do almoço ou à O bom aproveitamento da matéria-prima utilizada na
noite. Dá para você dar uma organizada melhor na casa e mexer confecção do "tressê" é outra exigência da empresa que re-
eles fazem o cálculo de quanto couro será gasto por par [de palas].
do ciclo d e vida em que aumenta suas responsabilidades
domésticas e familiares, viam no trabalho em domicílio
A quantidade de tiras que eles mandam 'é a conta' de fazer a fi
uma forma de conciliar as responsabilidades de "mães!
cha." (N.D., trabalhadora em domicílio/"tresseteira")
esposas!donas-de-casa" com uma atividade remunerada.
Embora haja máquinas para fazer "tressê", sua produção
Delgado lembra que
manual ainda não está ameaçada, devido à diferença de qua
"O trabalho doméstico que vem junto ao compromisso de esposa e
lidade e à demanda dos importadores, que exigem que de
mãe, por ser tido social e ideologicamente como responsabilidade
terminadas operações da confecção do sapato de couro sejam
'natural' familiar e feminina - apesar de todas as mudanças econô
executadas manualmente.
micas e culturais - isenta o Estado (e o capital) de assumir a repro
"Eu já vi o 'tressê' feito à máquina, só que não se compara ao ma
dução social como sua tarefa. E não é considerado trabalho: o 'eu
nual. É feio. .. Mesmo uma pessoa que não entenda de sapato
0
Após a confecção do "tressê" ou dos enfeites, as peças delas se ,faz é também uma construção ideológica. A jornada de
retornam à empresa, onde são conferidas e encaminhadas à trabalho é extensiva, não tem fim nem feriado. Exaustiva, respon
seção de corte, para serem recortadas e em seguida levadas à sável por um alto índice de distúrbios nervosos nas mulheres pela
O trabalho das colocadeiras de "tressê", bem como o trabalho em domicílio a um outro trabalho que é determinado de
das costuradeiras manuais é um bom exemplo de como as fora, mas não conta com os limites conquistados para controlar a
mulheres estão submetidas a duplas ou a triplas- jornadas exploração do trabalho fabril; jornada de trabalho fixa, descanso
de trabalho. Essa jornada de trabalho j ustaposta aumenta semanal remunerado, férias, seguridade social." (Delgado, 1994, p.
o pesponto: trabalho realizado nas fábricas, bancas e em cabedal é precedida de algumas operações preparatórias, que
domicílio podem ou não estar organizadas em seções próprias, como a
O pesponto é a seção que envolve o maior número de chanfradura e os serviços de mesa, como a passagem de cola,
trabalhadores na indústria de calçados23 e é também a que a colagem de peças, furação de peças e pregar ilhoses.
há mais tempo incorpora o trabalho realizado em domicílio. 24
Mesmo nas empresas que mantém em funcionamento as A chanfradura e os serviços de mesa: predomínio
seções de pesponto é usual o envio de parte das operações do trabalho feminino
exigidas nessa etapa da produção para ser feito nas bancas e As mudanças nessa etapa da produção têm levado à orga
em domicílio. Predomina no pesponto o trabalho de mulhe nização do trabalho em grupos ou células de produção, em
res que, em sua maioria, se dedicam às operações considera bora ainda predomine, entre as indústrias de calçados de
das auxiliares. No pesponto, as peças que vão compor o Franca, o trabalho de preparação organizado em linha. Quan
cabedal são unidas através de costura mecânica. É a partir do o trabalho é organizado em linha, essas atividades podem
dessa operação que o calçado começa a tomar forma. ou não estar ligadas por uma esteira, ainda que operando
"Até o pesponto, quem olhar o produto e for leigo no assunto às apenas para o transporte do material em elaboração. A
vezes não consegue imaginar que aquilo ali vai ser um sapato, mas chanfradura é realizada por mulheres, em máquinas de
qualquer leigo que olhar para um sapato pespontado vai saber que chanfrar. Tal operação consiste em diminuir a espessura das
aquilo ali vai ser um sapato." (A.S.S., cronometrista de uma indús bordas das peças que serão sobrepostas para serem coladas e
tria de calçados) posteriormente costuradas. Esse trabalho, além de facilitar o
A costura mecanizada ocupa tanto mulheres quanto ho pesponto, dá uniformidade ao cabedal, proporcionando um
mens, e é considerada um trabalho qualificado. A costura do acabamento mais fino ao calçado. Cabe também ao operador
dessa máquina processar a limpeza dos resíduos de couro
23 " ••• no início de 1980, o IPT constatou que 36,7% dos operários da indústria que vão se acumulando na máquina de chanfrar durante a
calçadista [de Franca] estava trabalhando na seção de pesponto, sendo esta a
jornada de trabalho. É nesse momento que os riscos de aci
seção mais dependente de mão-de-obra". Cf. RINALDI, D. M. C. Ofaçonismo
em Franca. Franca, UNESP, 1987 (Dissertação de Mestrado), p. 3 l . dentes nessa fase da' produção aumentam. Feita a chanfra
24 "• •, o pesponto é a fase da industrialização mais facilmente deslocável dos dura, as peças são encaminhadas para as passadeiras de cola.
limites físicos da fábrica, por tratar-se de transferir, para as bancas, os cortes
Em muitas empresas, ainda é possível observar, na fase de
já preparados, uma matéria-prima leve e de fácil acomodação, transportável
em qualquer meio de locomoção (carro, moto, perua etc.)," Cf, idem ibidem,
preparação para o pesponto, uma grande divisão de trabalho.
p. 41. Algumas trabalhadoras se dedicam apenas a colar as peças,
"Hoje é necessário que todo funcionário que esteja dentro da pro As constantes mudanças de modelos dificultam o traba
dução seja polivalente, o que antigamente era chamado de curin lho do "pespontador", provocando quedas em seu rendimen
ga... Hoje, o trabalhador tem que ser curinga por natureza, todos to. Os novos modelos que entram na linha de produção se
tem que ser curingas." (C.R., Senai/Franca) diferenciam pelo tipo de costura, por um maior ou menor
A opção pelo trabalho em linha ou em células é uma ques número de peças a serem pespontadas. A adequação contí
tão de planejamento de cada empresa. A adoção de células nua do trabalhador às constantes mudanças de modelos, além
por uma determinada empresa não significa, necessariamen de se traduzir em maior dificuldade e maior intensificação
te, o abandono do sistema de linha por essa mesma empresa. de seu trabalho, corresponde à queda de produtividade e,
A célula não passa de uma estratégia de planejamento que conseqüentemente à diminuição do salário.
pode ser adotada ou não, dependendo do porte cfa empresa, "Por mais habilidoso que seja o 'pespontador', quando se troca o
do volume da produção e da variedade dos modelos a serem modelo, ele perde em produtividade até se adaptar àquele novo
o
118 AV E S S O D O T R A B A L H O COLEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO i19
o padrão tecnológico das máquinas de pesponto utiliza A partir de meados dos anos de 1980, a transferência do
das pela maioria das indústrias de calçados de Franca não pesponto para as bancas passou a ser utilizada como recurso
tem sofrido alterações significativas. Poucas empresas ado para reduzir os custos de produção, para "queimar gorduras",
taram a máquina computadorizada para bordar, realizar cos para tornar a produção mais flexível. Esse expediente foi adota
turas de enfeites e personalizar os calçados. A maior parte do do pela maioria das empresas calçadistas de Franca e, mesmo
.
pesponto é realizado nas antigas máquinas de coluna, que aquelas que ainda mantêm suas seções de pesponto em funcio
não dispensam a qualificação do trabalhador. namento, parte ou mesmo a totalidade do serviço de pesponto
Há máquinas de pesponto que estão há mais de 5 déca passou a ser executado fora de sua planta fabril. À medida que
das em operação nas indústrias francanas e ainda funcionam cresceu essa modalidade de subcontratação de trabalho, cres
satisfatoriamente, como é o caso das "máquinas de coluna". ceu também a informalidade do trabalho dos sapateiros, num
"O que predomin� nas seções de pesponto, em Franca, é a máqui quadro de agravamento das condições de trabalho e de maior
na de coluna, oS o trabalho manual mesmo." (F.A.F.. Senai/Franca) exploração da força de trabalho empregada na produção de cal
São nessas máquinas de coluna que os pespontares de çados. Nas bancas de pesponto, a grande utilização do trabalho
Franca exibem suas habilidades. de mulheres, jovens e crianças contribuiu para o barateamento
"Tem máquinas de pesponto que devem ter mais ou menos uns 60 da produção, num quadro mais precário das condições e das
anos; são essas máquinas de coluna que funcionam até hoje e são relações de trabalho. Nessas unidades produtivas, às crianças e
'pau para toda obra' dentro da empresa. É a máquina que aínda adolescentes são reservados os serviços de mesa, que incluem
hoje se faz um pesponto perfeito com a habilidade do trabalha as atividades de colar, dobrar e aparar, cortar linha, lixar peças
dor." (EA.E, Senai/Franca) de couro etc. Essas bancas, é bom lembrar, são montadas, em
Já estão disponíveis no mercado máquinas de pesponto sua maioria, em locais improvisados, pouco ventilados, contan
computadorizadas, que podem ser programadas pelo siste do com iluminação inadequada, oferecendo pouca proteção aos
ma CAD, mas, devido ao seu preço elevado, não são utiliza trabalhadores. O ruído emitido pelas máquinas quando em ope
das em Franca. ração superam os níveis de tolerância legalmente recomenda
"Essa é uma máquina que poucas empresas têm o privilégio de ter. dos. Sob essas condições, o trabalho nos serviços de mesa,
São máquinas caríssimas, programáveis por computador, você pode potencialmente prejudiciais à saúde, se agravam, dada a exi
programar num sistema CAD. Você utiliza um disquetcrgrava aquela gência do manuseio de produtos tóxicos, como colas e solventes.
costura que você quer fazer, dá o comando e ela vai contornar exa ", .. Prá mim, nos primeiros tempos, eu achava horrível. Não acostu
tamente no local indicado." (EA.E, Senai/Franca) mava com o cheiro de jeito nenhum, não só da cola, como também da
tinta. Não tinha nenhum meio de sucção do ar. O ar vinha tudo na Em alguns modelos de calçados de couro, a confecção do
cara, com fumaça, cheiro, pó e tudo." (L.C., sapateiro desempregado) cabedal é concluída com o pesponto; outros, porém, rece
São poucas e falhas as estatísticas oficiais a respeito do nú- bem a costura manual, que pode ser feita tanto com o cabedal
mero total de bancas de pesponto, de corte, de "blanqueação", na forma quanto fora da forma.
cação de enfeites e de "tressê" e o número de crianças envolvi A seção de costura manual foi a primeira a ser suprimida
das na produção de calçados no município. A facilidade de se do interior das plantas industriais. Atualmente, a costuta
encontrar pessoas trabalhando nessas condições no município e manual realizada com o cabedal fora da forma é executada,
o reconhecimento, por parte dos empresários locais, dos sindi em quase sua totalidade, pelas costuradeiras manuais em
calistas, dos trabalhadores e dos demais moradores da cidade, domicílio, à exceção daquelas ocasionalmente contratadas
da existência de um número elevado de pessoas envolvidas nessa pelas empresas, quando do desenvolvimento de novos mo
quando existem, não refletem a realidade. Na costuta manual feita em domicílio, a exemplo da ela
Apesar de não corresponderem ao número real de bancas boração de "tressê" , predomina o trabalho de mulheres e crian
existentes em Franca, os dados obtidos junto à prefeitura do ças. É principalmente, a partir dos anos de 1980, quando
município apontam para uma tendência de crescimento des aumenta a demanda por esse tipo de trabalho e quando prati
sas unidades produtivas a partir da década de 1990. camente toda a costura manual deixa de ser realizada no inte
rior das fábricas, que se registra um grande aumento da
Fonte: Banco de Dados da Prefeitura Municipal de Franca. rísticas familiares, ou seja, passa a envolver todos os membros
-
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organizar as linhas a serem utilizadas na costura manual na A existência de grande variedade de tipos de costura
forma era, até o início dos anos de 1 990, realizado por um manual, cuja execução apresenta diferentes graus de difi
auxiliar dessa seção. Na atualidade, cabe ao próprio costurador culdade, determina a divisão do trabalho no interior dessa
exercer essas tarefas. seção. Aos costuradores mais experientes, que em geral são
Os instrumentos de trabalho utilizados pelo costutador os mais antigos na profissão, são encaminhadas as costuras
manual são a sovela, para fazer as fendas no couro, agulhas e consideradas de maior dificuldade, cabendo aos menos ex
tesoura. A sovela é um instrumento de trabalho utilizado para perientes a execução daquelas consideradas mais simples.
furar o couro nos locais onde serão executados os pontos da Essa divisão do trabalho está relacionada à diferença no pa
costura manual. gamento pelo serviço realizado, cabendo àqueles trabalha
"Nós mesmos preparamos a sovela. Cortamos a corda de relógio ou dores que se ocupam das costuras mais d i fíceis uma
a mola de sofá em pedaços de 15, 20 cm, fixamos num pedaço de remuneração maior.
madeira para servir de cabo, vamos ao esmeril, acertamos, e faze ", .. a costura paralelo é a mais difícil. Então, às vezes, eles costu
mos uma sovela bem afiada. ... " (S.A., sapateiro, empregado da mam dividir esse serviço. ... Aqueles que têm mais capaci.dade pe
Calçados Samello S.A.l gam os sapatos difíceis." (S.A., sapateiro empregado da Calçados
As peças a serem costuradas não são previamente per Samello S.A.l
furadas para a passagem da agulha, diferentemente de al A constante mudança de modelos que entram na linha
guns modelos que são costurados à mão, fora da forma. Na de produção penaliza o trabalhador, tanto pelo fato de pro
costura manual na forma, as fendas são executadas pelo vocar quedas em seu rendimento, quanto pelo maior des
próprio costurado r com uma sovela ou com um tipo de agu gaste físico que proporciona e, conseqüentemente, pelos
lha cuja ponta é achatada e afiada, utilizada para efetuar a problemas de saúde daí decorrentes. São comuns os proble
fenda no couro e o ponto ao mesmo tempo. O número de mas de saúde, relacionados ao trabalho, que acometem os
pontos necessários para a costura da pala do sapato depen costuradores, principalmente aqueles provocados por esfor
de de vários fatores, como o tamanho e o tipo do ponto a ser ços físicos repetitivos, conforme podemos apreender nos
executado, o tamanho e o modelo do calçado que está sen depoimentos abaixo.
do produzido, e pode variar de um costurador para outro. " As mudanças de modelo acabam prejudicando a pessoa porque,
Esse é um trabalho demorado e exige do trabalhador uma se ela está fazendo um determinado tipo de serviço ... e muda o
grande atenção, pois um erro pode danificar, de maneira modelo, ela acaba não desenvolvendo seu serviço da mesma for
irremediável, o cabedal. ma, Além do prejuízo para a saúde, a pessoa ainda corre o risco de
-- ----- - - - - - -
"A parte que eu faço é a montagem de bico. Ivlontamos tudo ma
de Franca até os anos de 1970, quando o uso de máquinas
nual, com prego, no sistema antigo. A gente prende o couro, puxa o
para a montagem do bico difundiu-se no setor.
corte com a tenaz e vai montando o bico." (O.A., sapateiro, empre
" ... Até 1 970, o montador, mesmo nas grandes empresas, ainda
gado da Calçados Samello S.A.)
montava o sapato na 'tenária', montava manualmente. Na década
As empresas de maior porte reúnem o maior conjunto de
de 1 980 começou a ser mais difundido o uso das' máquinas de mon
máquinas destinadas à montagem de calçados: máquina de
tar bico." (RA.F., Senai-Franca)
modelagem, máquina de pregar palmilha, máquina de aviar
Essas máquinas, de origem italiana, que até a segunda
palmilha, máquina de moldar contraforte, máquina de mon
metade dos anos de 1970 só podiam ser adquiridas, dado o
tar bico, máquina de tachear base e máquina de montar la
seu custo, pelas maiores empresas calçadistas francanas, atra
dos. Raras são as empresas de porte médio que possuem todas
vés de importação, passaram a ser produzidas em Franca por
as máquinas disponíveis para o processo de montagem, o que
volta de 1977, sob licença, pela Poppi Máquinas e Equipa
exige a realização manual de operações já mecanizadas em
mentos Ltda., ampliando seu uso entre as empresas de maior
outras empresas. A maioria das pequenas empresas, assim
porte.
como aquelas de porte médio que não dispõem de capital
" ... Em 1977, 1 978, a Poppi, em convênio com a Molina Bianchi,
para a aquisição de máquinas e equipamentos realizam a
começou a produzir essa máquina em Franca. Foi aí que se disse
montagem manualmente, de maneira parcial ou na sua tota
minou o uso de máquinas na montagem do sapato e começou a
lidade, ou optam pela produção de modelos de calçado tipo
mudar o sistema de trabalho." (RA.R, Senai-Franca)
mocassim, cuja construção pode prescindir do uso da maio
Para as empresas menores, em que a produção não ultra
ria dessas máquinas.
passa os mil pares por dia, a montagem do bico continua a
"Apesar de existirem essas máquinas, não são todas as empresas
ser executada manualmente.
que as utilizam. Não é compensador comprar uma máquina que é
"Se você visitar vinte fábricas, você vai encontrar vinte processos
capaz de montar 1.200 pares por dia se a produção da fábrica é de
diferentes de como se produzir um calçado." (C.R., Senai- Franca)
200 pares por dia." (RA.F., Senai-Franea)
A introdução do uso da máquina de montar bico deter-
A mais significativa mudança no padrão tecnológico nes minou uma significativa redução no número de montadores
sa fase da produção, incorporada pelas indústrias de calçados contratados pelas indústrias calçadistas francanas, pois cada
de Franca, foi a difusão do uso da máquina de m0ntar bico, uma dessas máquinas, que demandam o trabalho de apenas
.
que substituiu o trabalho manual. A montagem manual do um operador, são capazes de substituir o trabalho de cerca
bico do calçado predominou entre as indústrias de calçados
de vinte montadores manuais.
o AVESSO DO TRABALHO C O L E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O
de trabalho e a alterações na forma de remuneração desse
além de agregar mais uma atividade às suas funções, contribui
trabalho.
para a redução de mais postos de trabalho, os dos revisores.
Na seção de montagem, a extinção de postos de trabalho
Para Antunes, o que vem sendo chamado de trabalho
tem atingido especialmente os trabalhadores menos qualifi
polivalente, multi funcional,
cados - que exercem atividades de preparação ou que
"trata-se de um processo de organização do trabalho cuja finalida
complementam as operações principais - os auxiliares. Nes
de essencial, real, é a intensificação das condições de exploração da
sa seção, em que o número desses trabalhadores crescia à
força de trabalho, reduzindo ou eliminando tanto o trabalho impro
medida que a divisão do trabalho se acentuava, é que é mais
dutivo, que não cria valor, quanto suas formas assemelhadas, espe
perceptível a redução de postos de trabalho nas indústrias
cialmente nas atividades de manutenção, acompanhamento e
produtoras de calçados de couro em Franca. O corte no nú
inspeção de qualidade, funções que passaram a ser diretamente
meros de trabalhadores auxiliares implica um reordenamento
incorporadas ao trabalho produtivo. Se no apogeu do taylorismol
da produção, de maneira que as tarefas antes divididas entre
fordismo, a pujança de uma empresa mensurava-se pelo número
vários trabalhadores são reagrupadas e exercidas por um úni
de operários que nela exerciam sua atividade de trabalho, pode-se
co trabalhador. Ao ser atribuído um número maior de tarefas
dizer que, na era da acumulação flexível e da empresa enxuta me
a um mesmo trabalhador, este se torna polivalente,
recem destaque e são citadas como exemplos a serem seguidos
multi funcional, qualificado para se manter no posto.
aquelas empresas que dispõem de menor contingente de força de
"Com o trabalho polivalente, você aumenta a produtividade c dimi
trabalho e que apesar disso, têm maiores índices de produtivida
nui os custos. O trabalhador. [polivalente] vai ficar mais hábil, mais
de." (Antunes, 1 999, p. 53).
rápido, mais produtivo, mais empregável." (F.A.F., Senai-Franca)
Essa poli valência do trabalhador, condição que vem sen- A fase de acabamento: velhas máquinas e "novas"
do crescentemente requisitada dos sapateiros em Franca, formas de organização do trabalho
significa, na realidade, uma sobrecarga de trabalho. O traba Realizada a montagem o calçado segue para a seção de
lhador polivalente nada mais é do quc um trabalhador que acabamento, outra seção que reúne um número elevado de
vê acrescida à sua tarefa uma outra tarefa antes atribuída a máquinas bastante rudimentares. O número de máquinas
um colega de trabalho que perdeu o emprego. dessa seção varia de acordo com o tipo de calçado em produ
Desempenhando funções que eram atribuídas "os auxilia ção. Um calçado cujo solado é inteiramente composto por
res, além daquela que já realizava, esse trabalhador também couro demanda um número maior de operações realizadas
realiza a inspeção da qualidade de seu próprio trabalho, o que, no acabamento que aquele cujo solado é composro por ma-
o AVESSO 00 TRABALHO C O l E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O
teriais sintéticos, pois, de forma geral, o solado sintético che provoca, quer pelos riscos de acidentes, é ainda muito utilizada aqui
ga às fábricas de calçados com um certo grau de acabamento, em Franca." (E.G., economista e técnico do setor de calçados)
o que diminui a quantidade de operações a serem realizadas Após O rebaixamento, a base é lixada, "arrunhada" ou "ar-
nas unidades fabris. ranhada", para que sua superfície torne-se áspera, aumentan
A reestruturação produtiva na seção de acabam ento, a do a aderência da sola. O pó produzido nessa operação era
exemplo de outras seções da produção já mencionadas, tam retirado por um trabalhador, com o uso de uma escova. Atual
bém tem se caracterizado não pela adoção de novas tecnologias, mente, o mesmo trabalhador que "arrunha" se encarrega de
mas, sim, pela adoção de estratégias gerenciais que reduzem escovar a planta ou base do calçado que vai receber a cola.
os postos de trabalho e sobrepõem a cada trabalhador tarefas A preparação para a colagem é realizada por duas traba
anteriormente realizadas por vários operários. lhadoras, as "passadeiras de cola", uma aplicando a cola na
A aplicação do solado é feita na seção de acabamento, base do calçado e a outra, no solado. Se houver respingos de
onde se conclui o processo de construção do calçado de cou cola nas bordas do solado ou no cabedal, as "passadeiras de
ro. A primeira operação dessa seção, quando se trata de um cola" devem removê-los, tarefa essa que era, anteriormente,
calçado com solado de couro, é o rebaixamento da planta. realizada por um trabalhador auxiliar, o "tirador de cola", cuja
Essa operação, realizada à máquina, objetiva dar uniformi função foi extinta. Em algumas empresas a tarefa de passar
dade à planta do calçado para receber o solado. A máquina cola vem, na atualidade, sendo desempenhada por um único
utilizada para o rebaixamento, uma das mais antigas do se trabalhador.
tor, é considerada uma das mais perigosas para o trabalhador, "O passador de cola, muitas vezes tá fazendo o trabalho de passar a
quer pelo risco de acidentes, quer pelo ruído que provoca, o cola na base e também na sola, o que antes era fcito por dois traba
que é também bastante prejudicial. Apesar de haver uma lhadores, que, em geral, eram mulheres. Além disso, se sujar o
versão mais moderna dessa máquina, de acionamento hidrá cabedal ele mesmo terá que limpar. Antes tinha o 'tirador de cola'
ulico e quc provoca menos ruído, em muitas fábricas ainda só para fazer esse trabalho." (lvI.S., presidente do STICF)
" Apontar a sola, ou seja, pressioná-la à base do calçado,
se encontra em operação a antiga "máquina rex .
"A máquina rex, usada para rebaixar a base do sapato é uma máquina ajustando-a, prensar a sola, para aumentar sua aderência, e
pré-histórica. Muitas vezes ela incendeia porque, ao lixar as tachi retirar o calçado da forma eram operações realizadas por vá
nhas da base do sapato, ela provoca centelhas, fagulhas que fazem rios operários. Desde o início dos anos de 1 990, essas tarefas
pegar fogo. Apesar de já existir outra mais moderna, essa máquina vêm sendo desempenhadas por um único trabalhador - o
pré-histórica, que coloca o trabalhador cm risco, quer peIo ruído que prensador.
"Agora o mesmo trabalhador que aponta também leva o calçado organizado em células, quando um mesmo trabalhador pode
para a prensa, prensa, e depois já saca da forma. Então, o apontador operar as máquinas de "blanquear", de "pontear" e a de
de sola hoje faz o trabalho de três: do 'apontador', do prensador e fresar, seqüencialmente - é a chamada "rotação de tarefas".
do sacador de forma." (M.S., presidente do STICF) Do contrário, mantém-se o sistema de linha e as operações
Quando o modelo em produção possui solado de materi são realizadas ao longo da esteira.
al sintético, após ser levado à prensa (ou "sorveteira", como
também é denominada) e desenformado, já pode ser enca "PLANCHEAMENTO": o "SALÃO DE BELEZA" DO CALÇADO
minhado para o "plancheamento". Outros modelos, quando Após o acabamento, os calçados seguem para a seção de
necessário, além da colagem recebem também costuras no "plancheamento", onde se realizam as atividades de limpe
solado. Alguns são colados e "blanqueados", outros colados za, de correção de pequenos defeitos remanescentes do pro
e ponteados e outros ainda, além da colagem, podem rece cesso produtivo e os preparativos para o acondicionamenro
ber os dois tipos de costura. dos calçados nas caixas. Aqui também se pode observar o
Os calçados com solado de couro são fresados, têm a bor reagrupamento de tarefas e a extinção de postos de trabalho.
da acertada na máquina fresadeira. Essa é outra tarefa consi Ao chegar a essa seção, o calçado passa por uma limpeza,
derada qualificada na seção de acabamento. utilizando-se água, sabão e outros solventes, com o intuiro de
"Em alguns tipos de calçados como os sociais, que levam sola de se remover resquícios de cola, tintas e outros detritos. Essa
couro, o sapato tem que passar por urna máquina para ser fresado. atividade é predominantemente executada por mulheres.
Quem faz a fresa é o fresador. Esse não foi eliminado porque tem Após a limpeza, dependendo do modelo, o calçado é en
que ser alguém qualificado. A fresa é uma faca mecânica, redonda, caminhado aos "esfumaceadores" que, utilizando-se de
que gira acionada por um motor. O trabalhador passa a beirada da aerógrafos e "bonecas" de pano, aplicam tintas, vernizes, óle
sola nessa faca mecânica para lixar. É um serviço muito perigoso. A os, graxas e pastas no cabedal, e tintas e vernizes no solado,
fresa deixa a beirada da sola lisinha." (M.S., presidente do STICF) se esse for de couro. Nas indústrias que reorganizaram a pro
Há modelos com duas solas, sobrepostas, uma de borra- dução, as tarefas desses dois operários foram agrupadas.
cha e uma outra de couro que também necessitam ser Após a aplicação das tintas e vernizes, o brilho do calçado
fresadas. Os modelos com solado de couro tem a sola lixada, é obtido através de sucessivas escovações, em uma tarefa
preparada para o recebimento de tintas e/ou vernizes. denominada pelos operários "abrir o lustro", após o que se
Caso o volume da produção de um determinado modelo pode observar a existência de defeitos e/ou imperfeições no
for considerado pequeno, o trabalho dessa seção pode ser couro, por menores que sejam. Constatada a sua existência,
AVESSO DO TRABALHO C O L E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA ÇÃ O
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e a liberdade das nações. Nesta guerra econômica, o princi
vida, doença e trabalho no Brasil. São Paulo, Vozes, pp. 339-40, 1 993. pal objetivo é o desenvolvimento da competitividade. Em
nome dessa j usta causa as empresas utilizam métodos cruéis
contra aqueles que trabalham, a fim de excluir os não aptos a
152 o A V E 5 s o o_o T R A B A L H o
combater nessa guerra, ao passo que, dos que estão aptos à adversidade e à injustiça. Essa evolução se caracteriza
para o combate, exigem-se desempenhos sempre superiores pela atenuação das reações de indignação e de mobilização
coletiva, ao mesmo tempo em que se desenvolvem rea
em termos de produtividade e de sujeição. Essa guerra im
plica sacrifícios individuais e coletivos, sacrifícios consenti ções de indiferença à injustiça e ao sofrimento alheio. " ...
não se compreende como uma mutação política dessa
dos pelos próprios sujeitos, em nome da razão econômica.
amplitude p ô d e prod u z i r-se em tão p ouco tempo."
Como mostram as pesquisas sobre o sofrimento no traba
lho, desenvolvidas na área dos estudos de psicodinâmica do tra (Dejours, 2000, p. 24).
No universo do trabalho, esse período se traduziu pela
balho, as motivações subjetivas da dominação e d o
consentimento têm papel decisivo para o processo de aceitação adoção de novos métodos de gestão empresarial, que vêm
questionando paulatinamente os direitos do trabalho e as
da adversidade social, pois, diante da idéia de uma possível der
conquistas sociais válidas para o conjunto da população. Es
rocada econômica, até mesmo "... cientistas e pensadores ad
ses novos métodos geram muito sofrimento e se fazem acom
mitem que... é preciso... recorrer a meios drásticos, sob risco de
panhar de urna imensa brutalidade nas relações trabalhistas.
se fazer algumas vítimas." (Dejours 2000, p. 13). A adesão a
E embora essa brutalidade seja denunciada, a denúncia per
esse discurso economicista, segundo o ponto de vista da
manece sem conseqüência política, pois não há mobilização
psicodinâmica do trabalho, é uma manifestação de um proces
so de "banalização do mal"." Este processo nada tem de novo, coletiva concomitante. Ao contrário, essa denúncia parece
compatível com uma crescente tolerância à injustiça.
pois esteve presente em todas as vertentes totalitárias, incluin
Com base nessas considerações de Dejours (2000), acer
do o nazismo. A novidade reside somente na identificação do
ca da crescente tolerância social em face do sofrimento alheio
processo, que se tornou mais visível recentemente, em virtude
e da injustiça social, este estudo tem por fim a análise de um
das mudanças políticas verificadas nas últimas décadas.
caso específico e atual de aceitação da injustiça social: qual
Como muitos estudos apontam, desde 1980, toda a so
seja, o caso daqueles homens e mulheres que embarcam nos
ciedade se transformou qualitativamente, a ponto de não
aeroportos internacionais do Brasil, com destino ao Japão,
ter mais as mesmas reações que antes. Observa-se nesse
onde os postos de trabalho desqualificado já lhes foram re
processo uma evolução das reações sociais ao sofrimento,
servados com antecedência, não por uma causalidade do des
27 " ... a adesão à causa economicista ... funcionaria, ainda, como uma defesa tino e, sim, por forças econômicas exteriores ao sujeito, que
contra a consciência dolorosa da própria cumplicidade ... no agravamento da implicam responsabilidades humanas e por isso são capazes
adversidade social. ... um processo que é subjacente à eficácia do sistema
de serem contidas e alteradas.
liberal económico." (Dejours, 2000, p. 13).
Nos jornais publicados diariamente, destinados a infor conseguiu apreender a dimensão subjetiva desse processo migratório,
cOI�preendendo assim que " ... nas percepções coletívas [só] se aceita
o ••
mar a comunidade brasileira no Japão e seus fa..miliares no
abandonar o universo familiar ao qual se pertence ... com a condição de se
o ••
Brasil, é comum, nas páginas de classificados, a existência convencer de que isso não passa de uma provação, passageira por definição
de pequenos anúncios de pessoas que procuram familiares ..." (Sayad, 1998, p. 57).
esfera produtiva, cumprindo o papel, precarizado e não re- montadoras numa relação vertical de cooperação.
restam pela frente mais uma hora e meia de trabalho, um parcela masculina da mão-de-obra. Ao final de cada jornada
outro intervalo de cinco minutos ( 14:00 horas 14:05 horas), de trabalho, diurna ou noturna, o corpo esgotado tem de ca
seguido de mais uma hora e quarenta minutos de trabalho, minhar cerca de um quilómetro até o ónibus, que o conduzi
chegando, enfim, ao final de uma jornada de oito horas e dez rá ao alojamento. A esse respeito, uma frase ouvida de um
minutos de trabalho ( 15:45 horas), ou teidi. Ocorre então mais dos trabalhadores temporários ilustra a impressão que se tem,
um intervalo (15:45 horas - 15:50 horas). A mão-de-obra fe quando o adestramento produtivo ainda não foi consumado:
minina é dispensada, ficando assim, as trabalhadoras proibi "Esse mês eu trabalhei vinte e dois dias e vinte e duas vezes eu
das de realizarem horas-extras. Tem início a hora-extra, ou pensei que não fosse agüentar. .. "
zangyo ( 1 5:50 horas), de caráter compulsório. Quem se recu Ao chegar ao luxuoso alojamento, reservado aos traba
sar a cumprir uma hora e meia de hora-extra corre o risco de lhadores temporários (arubaito), o jantar servido, assim como
ficar marcado, não apenas pelos chefes, mas principalmente as condições de alojamento ( 1 8:00 horas - 20:00 horas), são
pelos companheiros de seção, que ficarão ainda mais sobre privilégios estratégicos, que os demais peões não possuem.
carregados, caso alguém se retire. Os pratos servidos são diferenciados de acordo com a nacio
Ao final de cada jornada de trabalho, foram montados mais nalidade, tratando-se também de uma estratégia de segrega
de quatrocentos automóveis. Enquanto metade dos traba ção. A qualidade inferior da comida servida aos brasileiros,
lhadores da fábrica trabalha, a outra metade repousa nos alo em muitos momentos, tornou-se motivo de descontentamen
jamentos. Alguns minutos antes de terminar a hora-extra, tos e protestos por parte de alguns estudantes brasileiros; e
começam a chegar os trabalhadores do turno oposto. Nesse de constrangimento e solidariedade por parte dos trabalha
momento, uma sensação de alívio invade todos aqueles que dores húngaros que, por serem "estagiários" contratados di
trabalham e os poucos minutos que restam demoram a pas retamente pela montadora, dispunham de uma alimentação
sar. Finalmente, soa o último sinal ( 1 7:20 horas). Cada posto de qualidade e quantidade superior.
O obcecado controle sobre a força de trabalho faz com ou retas. Cada uma das partes subdivide-se em seções. Em
que se utilize mais um outro mecanismo de dominação: os cada seção há um chefe imediato, ou hantyo, um líder, dois
esteira, onde estão as tarefas mais árduas de montagem ma mciro quer sempre dominar quem chega depois... . "
nual, são alocados trabalhadores brasileiros, peruanos e boli O fragmento do relato do entrevistado G confirma a im-
vianos. Na segunda e na terceira parte da esteira trabalham pressão do entrevistado A da seguinte forma:
japoneses, indianos, húngaros e chineses. O trabalho femi " ... os brasileiros que deveriam ser os nossos apoios ... em vez disso,
nino é utilizado, apenas durante a jornada diurna de traba eram os próprios caras que faziam pressão na gente ... ",
lho, nas subesteiras de montagem de painéis e motores, em A divisão do trabalho, a ausência de conteúdo significativo
que o trabalho realizado requer maior habilidade das mãos. da tarefa, o sistema hierárquico, as modalidades de comando"
A rigorosa hierarquia está presente em cada uma das se as relações de poder e as questões de responsabilidade são
ções, estimulando a competição e contaminando as relações elementos enumerados por Dejours ( 1 992); que definem com
no chão de fábrica. Entre os trabalhadores há uma norma maior clareza o significado do termo "organização do traba
implícita, traduzida pelo entrevistado A da seguinte forma: lho", É precisamente do contato forçado com essa organiza
"... quem tá lá há muito tempo quer pegar o serviço mais fácil, ção do trabalho que surge o sofrimento mentaL A perversidade
porque... se julga com mais vantagem do que quem não tá lá há da organização do trabalho consiste, não apenas na contami
muito tempo... " nação premeditada das relações sociais no chão de fábrica, mas
Após adquirir certa experiência, o trabalhador sabe quais também na instrumentalização dessas relações moldadas para
são os trabalhos mais leves. Em muitos casos, para conseguir a produção intensificada de mercadorias, As relações molda
um "serviço mais fácil", torna-se necessário ascender-se na das e premeditadamente contaminadas pela organização do
hierarquia, ao posto de help, ou, na melhor das hipóteses, ao trabalho criam relações sociais tensas, Como nas situações
posto de hantyo. O critério utilizado para a promoção dos peões vivenciadas pelo entrevistado C, as relações moldadas ocor
é a bajulação ao superior e a total obediência às imposições rem, no plano real, da seguinte maneira, Da primeira vez:
da organização do trabalho. Por essa razão, em muitos casos, " ... o cara queria colocar todo o serviço nas minhas costas... não
é comum no discurso desses trabalhadores o sentimento de agüentei o serviço, aí acabei ficando estressado com o cara... Quase
desconfiança e a idéia de que os compatriotas são menos dig briguei com o cara,.ah! num briguei assim de porrada, mas briguei...
nos de confiança que os próprios japoneses. Inserido no pro bate boca... assim ... .
"
cesso produtivo, a impressão do trabalhador A, ç;m relação Em razão da briga, o trabalhador foi transferido para a
aos compatriotas, parece estar de acordo com a lógica da or outra fábrica, No novo local de serviço um novo atrito ocor
ganização do trabalho: reu pelo seguinte motivo:
'�.......................................
... ..
dos trabalhadores. Em mUItos casos, para se ganhar mais
trabalho, constituindo uma fonte suplementar de sofrimen
momentos coletivos de descontração, muitos trabalhadores
to. Por esse motivo, segundo o relato do entrevistado A:
optam por reduzir as horas de sono, o que provoca um des
"... geralmente, quem fica muito tempo no Japão acaba ficando
gaste mais intenso do corpo e da mente. Aquele que recusa
meio esquisito, eu acho que influencia... todo mundo que tá há
o momento de descontração e se retira para o quarto, revela
muito tempo no Japão tá estranho já... eu diria sabe o que mais
se entregue ao sentimento de depressão. O depoimento da
você nota, frio! O cara fica frio ... sabe, você fica... começa a convi-
entrevistada F ilustra, com clareza, o sentimento de depres
o ver com esse cara, você convive um ano com ele, o dia que você
são pelo qual passam todos que se submetem à organização
fala que vou embora, o cara só te dá a mão e diz: 'chau' .. .,"
do trabalho:
Com o passar do tempo, todos aprendem que é necessá
"Todo mundo passou por isso... todo mundo que foi pro Japão,
rio conversar algum tempo antes de dormir, para que não
todo mundo que foi pro Japão tem um abalo emocionaL. todo
fique a impressão de que o dia passou sem momentos de
mundo, sabe, tem uns que é mais forte, comigo eu acho que não é
descontração. Mesmo com o corpo cansado, é importante que
muito forte, eu não fiquei muito, assim, sabe... num pirei, mas todo
haja um momento de descontração. Nesse sentido, o mo
mundo, todas as ... eu dividia o quarto c?m mais três meninas, nê, e
mento de descontração, antes de dormir, constitui mais uma
uma foi lá pra ficar um ano, outra pra ficar três meses e meio e era
forma de defesa elaborada coletivamente contra a solidão
legal porque a gente conversava bastante e dá pra perceber que,
imposta pela organização do trabalho. O relato do entrevis
sabe... não tem quem vá pra lá que não chore, que não fique assim
tado A confirma a eficácia desse mecanismo de defesa:
abalada... .
"
"A pior hora pra mim, lá no Japão... era a hora de dormir, porque eu
A vivência depressiva é um sentimento familiar àqueles
tinha que subir pro quarto e eu ficava sozinho, era a pior hora... fazê
que se submetem à organização do trabalho e deve ser com
o quê? Quando você deita na cama, você fica pensando e quando
batido a todo custo. Entregar-se ao sentimento de depressão
você fica pensando você perde o sono, mesmo cansado... então
significa, em última instância, desistir de viver. Nesse senti
quando tava todo mundo lá em baixo, ia pro centro, voltava, ficava
do, quando se luta para superar a depressão, luta-se pela pró
jogando bilhar e tal, você não pensava em nada, a hora que eu subia
pria vida, contra um.perigo real, imposto pela organização do
pro meu quarto, que eu ficava sozinho, aí começava... nossa! Eu tó
trabalho. A luta travada contra o isolamento imposto se tra
aqui no Japão... .
"
C O L E ÇÃ O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O
o AVESSO DO TRABALHO
--
I
pela organização do trabalho, como mostra o entrevistado B constitui parte integrante das condições objetivas de traba
ao afirmar: lho, atuando no sentido de dar legitimidade às formas sociais
"... você passa por dificuldades pra você aprender com isso, eu acho de exploração e de dominação. Por essa razão, a consciência,
isso positivo, agora, o que não pode é você sucumbir, nê." que emerge das condições reais de vida e de trabalho, tende
O perigo real criado pela organização do trabalho se ex a ocultar as reais condições em que são produzidas as rela
pressa pelo número, não divulgado, de trabalhadores que, ou ções sociais. Esse ocultamento da realidade social define o
foram vítimas de acidentes de trabalho, ou encontram-se pre conceito de ideologia.
sos, ou sucumbiram à doença mental, ou morreram repentina Permeados por essa ideologia, os discursos dos trabalha
mente por overdose de trabalho (karoshz), ou se suicidaram, dores tendem a legitimar as condições de exploração e domi
vencidos pela depressão, ou ainda pelo número indefinido de nação, vivenciadas nas malhas do processo produtivo. Tendo
famílias que vêm se desintegrando ao impacto da organização em vista que a ideologia emerge da consciência de atores en
do trabalho, como é o caso das famílias dos entrevistados B e volvidos no processo, compreende-se que não lhe cabe o pa
D. Sob tais condições de trabalho, é compreensível o alto ín pel de promover uma ruptura com as relações sociais de
dice de rotatividade da mão-de-obra, ou tum-over. produção; pelo contrário, deve atuar no sentido de promover a
As empreiteiras, na tentativa de conter o alto índice de inserção dos sujeitos nas relações moldadas e determinadas
tum-over, utilizam-se de práticas, como: o individamento dos pela lógica do sistema produtor de mercadorias.
trabalhadores, o parcelamento das despesas e a apreensão A idéia de busca das raízes, os salários percebidos pelos
dos passaportes. Beneficiadas pela ignorância dos trabalha trabalhadores como relativamente altos, a vivência da expe
dores em relação às leis, criam dívidas que aprisionam o in riência como uma situação transitória, a imagem de um Bra
divíduo ao trabalho. Por essa razão, em muitos casos, a luta sil violento e miserável, construída pelos veículos de
pela vida consiste em tentar mudar para um trabalho mais comunicação de massa, e o acesso ao universo fascinante do
leve, ou, como vêm acontecendo em muitos casos, arrumar consumo são alguns dos elementos que fazem parte da reali
as malas e fugir, deixando o passaporte nas mãos da dade social vivenciada pelos trabalhadores dekassegui e cons
empreiteira, impossibilitando, assim, o retorno ao Brasil. tituem argumentos sólidos contra a idéia de retornar ao país
de origem. Esses argumentos se fundem em um discurso
o FARDO DAS DUAS IDEOLOGIAS que legitima as condições reais de superexploração da força
As condições materiais de vida e de trabalho determi de trabalho, deixando no ar a impressão de que a intensa
nam a consciência dos atores envolvidos. Essa consciência produção de mais-valia ocorre harmoniosamente.
o AVESSO DO TRABALHO C O l E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O
tomas psicossomáticos provocados pela organização do tra
Mesmo que seja negado pelos atores envolvidos, o fato é
balho, como problemas gástricos generalizados, surgem no
que as condições de trabalho impõem ao conjunto de traba
discurso dos trabalhadores C, O e E como se tivessem sido
lhadores situações de risco e perigo constantes, que vão des
provocados por uma eventual má alimentação. Oa mesma
de acidentes com máquinas e materiais tóxicos, até acidentes
forma, os riscos criados pela organização do trabalho à saúde
provocados por fenômenos naturais, como terremotos. Por
física e psíquica devem ser negados sistematicamente, como
outro lado, há também o perigo criado pela organização do
se não existissem.
tr:;lbalho, que tende a condicionar o trabalhador à cadência
Quando falha a ideologia defensiva, deixando em evi
produtiva, por meio da neutralização do protetor natural do
dência os efeitos perversos inerentes ao trabalho, ela perde
corpo, o aparelho mental.
também a sua funcionalidade e o indivíduo se depara com
00 ponto de vista do estudo de psicopatologia do traba
todas as adversidades que deveriam ser ocultadas pelo me
lho, apresentado por Oejours ( 1 992), há uma forma específi
canismo de defesa. Foi o que aconteceu com o entrevistado
C:;l de ideologia que emerge das situações reais de risco e
E, que se viu desprovido de defesas ao ser isolado pela orga
perigo: a ideologia defensiva. A ideologia defensiva substi
nização do trabalho. A sua experiência dramática exemplifica
tui os mecanismos individuais de defesa contra um perigo
o que acontece com o trabalhador quando, diante de uma
real, por essa razão, deve contar com a participação obrigató
situação de risco e perigo reais, este não participa da ideolo
ria de todos os envolvidos. Uma ideologia defensiva tem o
gia defensiva.
objetivo de ocultar uma ansiedade particularmente grave e
No período em que trabalhou, o entrevistado E era me
se dirige contra perigos e riscos reais. Segundo o autor
nor de idade, migrou para o Japão motivado pelo sentimento
" ... é a partir dela que se pode compreender porque um indivíduo
de procura das raízes, razão pela qual não se incomodou com
isolado de seu grupo social se encontra... desprovido de defesas
o salário equivalente ao das trabalhadoras. Em razão de sua
face à realidade a que ele é confrontado." (Dejours, 1 992, p. 36).
pouca idade, foi restrito à jornada de trabalho diurna; tal
A atuação da ideologia defensiva é eficaz a ponto de ocul-
medida segregou-o de ambos os grupos de trabalhadores
tar completamente qualquer indício de medo na fala dos tra
masculinos, pois trabalhavam em turnos alternados. Não se
balhadores. Entretanto, ela falha quando ocorre um acidente
adaptou à rotina imposta e logo nos primeiros dias apresen
de trabalho, ou um trabalhador sucumbe à doença psicosso
tou sintomas fortes de vertigem, gastrite, dores de cabeça e
mática, ou é isolado devido ao tipo de tarefa designada. Nes
depressão. Acreditava estar intoxicado pela alimentação e por
ses casos, o fato tende a ser visto pela coletividade como um
várias vezes foi levado ao hospital, onde nada era constata-
fenômeno isolado. Encobertos pela ideologia defensiva, sin-
permite uma aproximação do real. Trata-se de um recurso E m seguida, a condução d a entrevista remeteu a memória
metodológico que tem por finalidade garantir a objetivi do depoente ao momento que precedeu o embarque para o
dade do conhecimento. Japão, ainda no aeroporto internacional de Guarulhos, onde
Segundo Weber (1 973), em uma empresa capitalista, cuja todos os trabalhadores assinaram um documento simbólico,
base do fu ncionamento técnico é a disciplina, as relações no qual se comprometiam a não reclamar das condições de
entre dominantes e dominados correspondem ao tipo de trabalho e de moradia. Esse momento representou o início da
dominação racional. O ato de dominar, no contexto de uma relação de dominação nos moldes do tipo de dominação racio
empresa capitalista, constitui uma ação racional com rela nal. No contexto do -modelo japonês, o contrato de trabalho
ção a fins e encontra apoio sobre uma base jurídica na qual assinado é simbólico, em razão da informalidade das formas
se fundamenta a sua legitimidade. Diante de ul)1a domina de contratação de mão-de-obra temporária. Apesar da valida
ção do tipo racional, obtêm-se a obediência dos dominados de do documento assinado ser legalmente nula, no plano sim
em virtude das regras estabelecidas por um estatuto. O es- bólico continua a cumprir a função de legitimar o poder.
mia e não reclamar de nada... mas você acha que esse termo tem cultura japonesa, formam um conglomerado de elemen
algum valor? Claro que não! ... Eu assinei, só que... pra você assinar tos racionalmente organizados tendo em vista um objeti
um documento que tenha validade lá ele tem que tá escrito em vo específico: a obtenção de uma obediência servil e
português e em japonês. E como só tava escrito em português não resignada, dentro e fora do espaço de trabalho. A obediên
tem validade lá no Japão." cia servil dos corpos adestrados é a condição necessária
A obediência ao comando implica que a autoridade do para se obter a máxima exploração do trabalho, com o con
dominante seja reconhecida pelo dominado como legítima. sentimento do dominado.
O documento simbólico, mesmo que não possua autentici A ampliação do controle sobre a força de trabalho é uma
dade, cumpre a função de tornar legítima a dominação racio característica central do modelo japonês e visa transformar
nal sobre os trabalhadores. A dominação pautada nessa sujeitos dotados de individualidade e de subjetividade em
racionalidade com relação a fins vem permitindo ao modelo autômatos polivalentes, constituídos de músculos e ossos. O
japonês produzir, tanto a mais-valia relativa, mediante a in domínio é eficaz a ponto de introjetar-Ihes o discurso do sis
tensificação do trabalho e a redução dos poros da jornada, tema produtor de mercadorias. Entretanto, o êxito da domi
quanto também volta a produzir a mais-valia absoluta, am nação não elimina a existência de formas de resistência ao
pliando a jornada de trabalho por meio da imposição de ho trabalho. Existem poros nas malhas da dominação, em que
ras extras compulsórias. se manifestam formas individuais e coletivas de resistência
A exigência de uma postura orientada segundo o espí ao trabalho.
rito gambarê, a l i a d a a e l e men tos obje tivos como: a A organização da produção flexível preserva quase que
subcontratação de mão-de-obra imigrante, o contrato sim intacta a clássica separação entre concepção e execução do
bólico, a rigidez das normas estatuídas unilateralmente,
34 o entrevistado C foi trabalhador temporário (arubaito) da Suzuki por dois
as modalidades de bônus de freqüência, a dependência anos consecutivos, de 1996 a 1997 e de 1997 a 1998. Segundo seu relato, da
de transporte e m o r a d i a , a vistoria nos q u artos, a segunda vez em que retomou ao Japão, haviam instalado câmeras de vídeo
pelos corredores do alojamento, alegando a necessidade de se solucionar
alternância de turnos, a execução mecânica de tarefas alie
prob�emas de furtos. A desconfiaça dos trabalhadores em relação aos furtos
nadas, a segmentação dos trabalhadores, a di'lisão sexual
recaiam sobre os próprios funcionários do alojamento, uma vez que mantinham
do trabalho, a polivalência da mão-de-obra, a hierarquia secretamente cópias das chaves dos cofres, onde os trabalhadores guardavam
......
w;:: ,u - -- _�m -�
cesso produtivo, mas limita m-se a amenizar as formas de empreiteira e encarregada pelas passagens do grupo de tra
.
exploração e o desgaste acent uado do corpo e da mente balhadores designou um funcionário para informar pessoal
Tod o comp ortam ento que visa rompe r com a homo mente que não seria possível antecipar a data de retorno, em
geneização impos ta pela organização do trabalho, ou de razão da indisponibilidade de vagas no vôo do dia 10 de mar-
algum modo se opor às formas de domin ação, consti tui 3S o protesto surgiu em razão da pouca quantidade e da má qualidade da
um ato de resistência. alimentação servida apenas aos estudantes brasileiros. Escrito a caneta em
No caso do pesquisador em campo, uma das manifesta folha de papel, o protesto dizia: "ln 1945 the United States ofAmerica dropped
tWQ atomic bombs over tWQ japaneses cities, killing many japaneses faroilies.
ções simbólicas adotada foi a decisão de quase nunca lavar
Now a day, all Japan loves the 'american way' and try to speak english. ln the
o uniforme da empresa, uma vez que para layar as roupas past Brazil received many japaneses families, but now the japaneses hate the
sujas de graxa era necessário pagar. Outra medida tomada brazilians. Is it intelligent?". No dia seguinte, a qualidade da comida foi
equiparada à dos japoneses.
individualmente, no dia 22 de janeiro de 1997, consistiu na
I
o AVESSO DO TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCI PAÇÃO � 95
19 4
..........................
... .............J
ço. Só seriam alteradas as datas daqueles que pretendessem to" de trabalho, 27 de fevereiro de 1997. O dia 28 de feverei
prolongar a estadia no Japão. ro serviu para um último passeio pelas ruas de Hamamatsu.
Ao contactar diretamente a JAL (Japan Air Lines), no dia Na madrugada do dia Io de março, um ônibus a serviço da
4 de fevereiro, descobriu-se a falsidade da informação trans empreiteira conduziu o pesquisador, juntamente com um
mitida pela agência de turismo. Segundo a empresa aérea, grupo de trabalhadores temporários, rumo ao Aeroporto de
haviam muitas vagas disponíveis no vôo do dia I o de março. Narita, onde um vôo doméstico levaria o grupo para o aero
A alteração da data de embarque foi efetuada sem o consen porto internacional de Nagóia. Ainda no Aeroporto de Narita,
timento da empreiteira, diretamente com a empresa aérea. em meio ao tumulto da fila de embarque, uma voz desco
No dia 7 de fevereiro, a empreite ira descobriu a alteração da nhecida vinda de um casal brincou com o pesquisador, di
data de embarque, designando um dos chefes (catyo) para zendo em português: "quase que você fica, hemr'. Sem ter
repreender a atitude do investigador. conhecimento, o grupo de trabalhadores estava sendo vigia
Durante o trabalho, o pesquisador foi chamado para se do por esse casal desconhecido, provavelmente contratados
apresentar à seção dos chefes, quanto ameaças foram feitas pela empreiteira, ou pela agência de turismo.
por um dos chefes catyo, no intuito de fazer com que se vol Antecipar a data de retorno para o Brasil assumiu a dimen
tasse atrás na decisão de antecipar a partida. As ameaças fo são de uma verdadeira luta individual e coletiva contra a orga
ram três: 1 ') O pesquisador não receberia o "Certificate of nização do trabalho. O êxito na antecipação da data de
Practice and Training'; 2') O ônibus da empresa não conduzi embarque foi vivenciado pelo pesquisador e seus companhei
ria o pesquisador até o Aeroporto de Narita, o que represen ros como uma vitória contra o autoritarismo da organização do
taria uma certa dificuldade de locomoção, uma vez que o trabalho. Por essa razão, da perspectiva simultânea de sujeito
pesquisador desconhece o idioma japonês; e 3') o encerra investigador e objeto de investigação, o próprio ato de pesquisar
mento da folha de pagamento seria efetuado no dia 27 de adquire o caráter de uma prática de resistência contra a opres
fevereiro, fazendo com que o pesquisador perdesse uma são do trabalho. Trazer à tona as formas de dominação e as
quantia, ínfima, de cinco mil ienes, referente a uma parcela práticas de resistência por meio da fala dos próprios sujeitos
do bônus de freqüência ao trabalho. consiste numa tentativa de desideologização das consciências,
O pesquisador permaneceu irredutível diante das amea que permita um reposicionamento dos trabalhadores e traba
ças. Das três ameaças realizadas, apenas a terceiraJoi levada lhadoras diante da realidade opressora em que se encontram.
adiante. No "Certificate of Practice and Training' concedido Durante a experiência de campo e por meio dos relatos
pela empreiteira consta a data de encerramento do "contra- obtidos, pode ser constatada a existência de uma grande va-
o AVESSO 0 0 TRABALH O C O l E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I P AÇ Ã O
trabalha e o produro de seu trabalho. A partir dessa relação A despersonalização do indivíduo em favor de um ades
de estranhamento, instituída pela alienação do trabalho, tem tramento produtivo, a depredação da força de trabalho, o efi
início um duplo processo, de fetichização da mercadoria e ciente controle que recai sobre os trabalhadores dentro e fora
de reificação do trabalhador. da fábrica e a interiorização de uma dominação envolvente,
O fetiche da mercadoria é inerente à produção capita manipulatória e autoritária, manifesta no relato dos entrevis
lista e diz respeito ao fenômeno através do qual o produto tados, traduzem o grau de coisificação ao qual são submeti
do trabalho sofre um processo de subjetivação, adquirindo dos esses trabalhadores, no interior do processo produtivo. A
a aparência de objeto de encanto e desejo, aos olhos do informalidade das formas de contratação de mão-de-obra
trabalhador, que também é um consumidor. "Esse caráter imigrante e a intensa depredação da saúde física e psíquica
fetichista do mundo das mercadorias provém... do caráter também atribuem à mercadoria "força de trabalho" o caráter
social peculiar do trabalho que produz mercadorias." (Marx, de uma "coisa descartável", seguindo dessa forma a lógica
1985, p. 7 1 ) contemporânea do sistema que produz mercadorias.
Como decorrência dessa fetichização d o produto do tra É contra esse processo de depredação e de objetivação
balho, ocorre, inversamente, a coisificação das relações sociais; do sujeito que se levantam, de modo consciente ou não, o
em outras palavras, a alienação do trabalho objetiva o sujeito conjunto das práticas de resistência operária. A análise da
que trabalha, reduzindo-o ao estatuto de mercadoria, ou seja, dimensão subjetiva do ser comum, imerso na vida cotidia
" força de trabalho" " , paga pelo seu valor d e troca e na, ensina que o mundo do trabalho instaurado pelas rela
consumida até a exaustão, enquanto valor de uso, como tra ções capitalistas de produção não é apenas um mundo de
balho objetivado. carências materiais. Trata-se, antes de mais nada, de um
mundo carente de sentido. E é por isso que o indivíduo, no
36 "Por força de trabalho ou capacidade de trabalho entendemos o conjunto das trabalho, resiste e se debate. Porque, imerso na vida cotidia
faculdades físicas e espirituais que existem na corporalidade, na personalidade na, sua identidade deixa de lhe pertencer. Por isso ele se
viva de um homem e que ele põe e� movimento toda vez que produz valores de
debate, exatamente para dar sentido àquilo cujo sentido
uso de qualquer espécie." Segundo Marx, para que se encontre à disposição no
mercado a força de trabalho como mercadoria, diversas condições precisam ser
lhe escapa. E lhe escapa porque lhe foi retirada a capacida
preenchidas. "0.0 a força de trabalho como mercadoria só pode aparecer no mercado de de compreender o seu estranhamento e de lidar com
o •• vendida como mercadoria por seu próprio possuidor o •• livre proprietário de sua
ele, pois a fábrica é fundamentalmente "o lugar original de
capacidade de trabalho " 0 [Essa} relação exige que o proprietário da força de
trabalho só a venda por determinado tempo, pois ... se a vende ... de uma vez
produção da alienação, do conformismo e do medo".
transformawse ... em um escravo..." (Marx, 1985, p. 139). (Martins, 2000, p. 165)
---------
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de crise",38 um amplo processo de reestrururação do capital
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tem se desencadeado, buscando recriar em novas bases as
VOLKOFF, S. "O Tempo, a Saúde, a Seleção: 'Três Questões Relativas
aos 'Modelos Japoneses'. ln: HIRATA, H. (org.). Sobre o "Modelo " condições da expansão capitalista.39
Japonês: Automatização, Novas Formas de Organização e de Relações de
Trabalho. São Paulo, Edusp - Aliança Cultural Brasil - Japão, 1 993,
J7 Professora no Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade
pp. 267-72.
Federal de Santa Catarina com bolsa de Recém-Doutor pelo CNPq, autora de
WEBER, M. Conceitos básicos de sociologia. São Paulo, Moraes, 1987, 1 13 p.
O mister defazerdinheiro: automatização e subjetividade no trabalho bancário
WEBER, M. Metodologia das Ciências Sociais. São Paulo, Cortez, 1973, 2 v.
(Boitempo) e Trabalho e resistência na "fonte misteriosa": os bancários no
WOORTMANN, E. F. "Japoneses no Brasil ! brasileiros no Japão: mundo da eletrônica e do dinheiro (Editora da Unicamp).
tradição e modernidade". Revista de Antropologia, v. 38, n" 2, 1 995, 38 HOBSBAWN, E. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991), tradução
pp. 7-34. M. Santarrita; revisão técnica M. C. Paoli. 2a ed., São Paulo, Companhia das
Letras, 1997.
39 Esse movimento contemporâneo de reorganização do capital é interpretado
por diversos pensadores como expressão de uma crise capitalista profunda,
de dimensão estrutural, e dos mecanismos engendrados na tentativa de sua
balho, assim como as políticas de liberalização do comércio, de mobilidade geográfica e de rápidas mudanças nas práticas de
de privatização do Estado e de ataque aos direitos do traba consumo garantem ou não o título de um novo regime de acumula
lho e à organização sindical são expressões da reestruturação ção ( ...). Há sempre o perigo de confundir as mudanças transitórias
e da mundialização contemporâneas do capital. e efêmeras com as transformações de natureza mais fundamental
A natureza da atual crise capitalista e o significado das da vida poIítico-econômica. Mas os contrastes entre as práticas po
transformações econômicas, sociais, culturais, políticas e ideo lítíco-econômicas d a atualidade e as do período de expansão do
lógicas que afetam a dinâmica do capitalismo contemporâ pós-guerra são suficientemente significativos para tornar a hipóte
neo têm sido objeto de muitas controvérsias entre os cientistas se de uma passagem do fordismo para o que poderia ser chamado
regime de acumulação "flexível" uma reveladora maneira de ca
superação. Ver MÉSZÁROS, I. Beyond capital. London: Medin Press, 1995 racterizar a história recente.40
(edição brasileira: Para Além do Capital, Ed. da Unicamp/Boitempo, 2002); No âmbito produtivo, a acumulação "flexível" combina for
CHESNAIS, F. A mundialização do capital, tradução de S. Foá, São Paulo,
mas sofisticadas de apropriação de mais-valia - apoiadas na
Xamã, 1996; TEIXEIRA, E "Modernidade e crise: reestruturação capitalista
ou fim do capitalismo?", in: F. Teixeira e M. Oliveira (orgs.). Neoliberalismo
teleinformática e em práticas de controle e gestão do trabalho
e reestruturação produtiva: as novas determinações do mundo do trabalho. que mistificam e obscurecem os mecanismos de dominação do
São Paulo, Cortez; Fortaleza, Universidade Estadual do Ceará, 1996;
capital - com formas mais antigas, baseadas no prolongamento
BRENNER, R. "A Crise emergente do capitalismo mundial: do neoliberalismo
à depressão?", Outubro - Revista do Instituto de Estudos Soêialistas, n° 3,
São Paulo, Xamã, 1999; ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre 40 HARVEY, D. Condição pós-moderna, tradução de A. Sobral e S. Gonçalves,
a afirmação e a negação do trabalho. 3" edição, São Paulo, Boitempo, 2000. 2' ed., São Paulo, Loyola, 1993. p. 119.
44 OIT _ Organização Internacional do Trabalho. Los bancos multinacionales y 45 DRESSEN, M. et ROUX-ROSSI, D. Restructuration des banques et devenir
sus prácticas sociales y laborales. Madrid, Ministerio de Trabajo y Seguridad des salariés, Paris, La Documentation Française, 1996, Collection Cahier
Social, 1992, Coleccion Infonnes OIT, nO 31, pp. 90·116. Travail ct Emploi, pp. 3 1-44.
Pontifícia Universidade Católica. São Paulo, pue, 1996� JINKINGS, N. subcontratação e intensificação do trabalho", Relatório final, Programa de Pesquisa
"Trabalhadores bancários: entre o fetichismo do dinheiro e o culto da em Ciência e Tecnologia, Qualificação e Produção, Departamento de Ciências
excelência", ln B. Aued (erg.) Educação para o (Des)Emprego. Petrópolis Sociais Aplicadas à Educação, Faculdade de Educação, Centro de Estudos de
(RJ), Vozes, 1999. Educação e Sociedade, Unicamp, Campinas, 1998, mimeo, pp. 476�81.
I
lhadores ao projeto contemporâneo de reptodução capitalista. por meio dessas políticas de gestão, chamadas de "parti
cipa
Mascarando seus instrumentos coercitivos, os mecanismos tivas", que se apresentam como instrumentos de demo
crati
do poder organizacional nos bancos instituem artifícios diver zação dos ambi entes laborais. De fato, as novas
práticas
sos para disciplinar e intensificar o trabalho, por meio de pro gerenciais buscam construir uma aparente identidade
de in
gramas de "qualidade total" e de "remuneração variável". O I teresses entre capital e trabalho e perseguem a adesã
o abso
estabelecimento de metas e a premiação salarial por produtivi luta d o traba lhado r às estra tégia s merc adoló gicas
das
dade, a criação de equipes "de qualidade" nos locais de traba empresas. O discurso patronal, cotidianamente difundido
nos
lho para, supostamente, estimular a participação dos bancários órgãos de comunicação interna das empresas ou nos progra
em decisões relativas ao processo de trabalho, as campanhas de mas de treinamento, ressalta os desafios da concorrênci
ae
vendas de "produtos", além do desenvolvimento de um siste chama a colaboração e a mobilização de seus assalariados
em
ma intenso e sofisticado de comunicação banco-trabalhador são face dos projetos empresariais.
estratégias concebidas para aperfeiçoar as condições do contro Por meio da constituição de equipes de trabalhadores vin
le e da dominação do trabalho na atualidade. culadas aos programas de "qualidade total" - cuja principal
incumbência seria conceber formas produtivas mais racionais
As ATUAIS PRÁTICAS DO PODER ORGANIZACIONAL - do treinamento de trabalhadores instrutores da "qualidade"
O modo contemporâneo de gestão e controle do trabalho 58 O movimento consubstanciado na Escola de Relações Humanas, que se
rccria padrões de dominação de classe que substituem a rígi desenvolveu como reação às idéias tayloristas de gerência, teve em Elton
da hierarquia e o despotismo aberto do regime de acumulação MAYO (Human Problems of an Industrial Civilization, 1933) seu principal
idealizador. Para uma análise crítica desse movimento, ver TRAGTENBERG,
de capital fundado no taylorismo e no fordismo, teI)-tando cons
M., Administração, poder e ideologia, 23 ed., São Paulo, Cortez, 1989.
truir um tipo de trabalhador integrado ideologicamente ao S9 AUBERT, N. e GAULEJAC, V. Le cout de l'excellence. Paris, Éditions du
capital. Como assinalam Nicole Aubert e Vincent de Gaulejac, Seuil. 1991, p. 84.
total e educação, 4a ed., Petrópolis, Vozes, 1996. São Paulo, Oboré Editorial, 1987, pp. 14·25.
nar o trabalho exerce, igualmente, a distribuição espacial das po máximo desejado - a indicação intermitente no monitor
centrais. O ambiente físico é segmentado em reduzidos com de computador da "fila" de clientes aguardando atendimen
partimentos, com um terminal de computador e um headphone to, assim como a gravação das ligações - como "medida de
(fone de ouvido), onde o operador, separado dos compa segurança" e " s u bsídio a treinamentos", no discurso
nheiros de trabalho por divisórias laterais e sob intensa gerencial - constituem efetivos instrumentos da domina
concentração, realiza sua atividade. A denominação de ção do capital nos ambientes laborais de te!emarketing.72
"baias"'o conferida a esses compartimentos é extremamente Para os trabalhadores que exercem a função de caixa nas
expressiva do seu significado controlador e "adestrador", na agências bancárias e têm na fila de clientes - como presença
medida em que determina o espaço de cada trabalhador, iso visível - um objeto cotidiano de pressão, a produtividade é
la-o e limita seus estímulos visuais e auditivos.'l mensurada pela quantidade de autenticações73 efetuadas,
Venco ressalta as contradições do discurso e das exigên registradas na fita do terminal de computa dor. A intensa
cias empresariais relativas ao trabalho dos operadores, que, automatização do atendimento bancário não implicou me
de um lado, enfatiza a importância da qualidade do atendi nos trabalho para os caixas, que passaram a acumular diver
mento e, de outro, pressiona pelo contato ágil e objetivo, sas funções antes realizadas na "retaguarda" das agências,
em busca de maior produtividade. Os operadores são ins desde a difusão do sistema on-line, na década de 1 980. Nos
truídos a realizar o atendimento em um tempo mínimo de anos de 1990, no contexto de intensificação dos movimentos
30 segundos e máximo de dois minutos, de modo objetivo, de reestruturação dos bancos, com a redução drástica de as
conforme normas de conduta estabelecidas e transmitidas salariados no setor e a sobrecarga de trabalho nos ambientes
nos programas de treinamento do banco. Mecanismos de laborais, os bancários-caixas sofrem, como antes, a dupla pres
controle como o timer- que sinaliza "tempo excedido" sem são derivada da fila de clientes, de um lado, e dos mecanis
pre que o atendimento ultrapassar os dois minutos deter mos patronais de controle do trabalho, de outro. Um
minados - o software - que permite ao coordenador da comportamento cortês e servil ao cliente é exigido desse tra
unidade acesso simultâneo a todas as ligações recebidas e balhador, que, todavia, deve seguir normas (muitas vezes
sua interferência quando o atendimento extrapolar o tem-
70 o termo é utilizado para denominar o compartimento ao qual os animais são 73 o termo "autenticação" refere-se a cada uma das operações efetuadas pelo
recolhidos nas cavalariças ou estábulos. bancário-caixa no processo de atendimento, ou seja, depósitos, pagamentos,
" VENCO, S., op. cit., pp. 54-57. entrega de talonários, saldos etc.
A qualidade do atendimento alardeada nos documentos nuam imensas. E tcm muita pressão por parte da chefia, da gerência.
institucionais do sistema financeiro nacional não atinge a Você vai conseguir trabalhar legal com alguém ali atrás te pressio
p
porção am lamente majoritária de clientes e usuários dos nando! [ . . ] Uma moça teve uma diferença de 1 .200 reais e um rapaz
.
bancos, nem significa mudança qualitativa nas condições do também, no mesmo dia, de mil reais. Na semana seguinte eles tive
trabalho bancário. A implementação de políticas que seg ram que pagar. [ ... ] Ou paga ou vai embora."74
mentam a clientela bancária elitiza o atendimento e restrin A fração feminina da força de trabalho nos bancos, que
ge o uso das sofisticadas inovações propiciadas pela representa mais de 40% do total de bancários no país, vive
teleinformática às frações da população que detêm maior relações de dominação e de exploração mais duras, quando
poder econômico, clientes preferenciais. Aos segmentos com comparadas às condições do trabalho masculino. Apesar de
pequena capacidade de consumo dos "produtos" dos ban seu alto nível de escolaridade e de se verificar um aumento
cos estão destinados os serviços simplificados de auto-aten gradual da presença feminina em postos de gerência e de su
dimento e o caixa tradicional, onde se mantêm grandes filas pervisão, as mulheres seguem ocupando, sobretudo, cargos
de clientes e usuários. hierarquicamente pouco relevantes na estrutura ocupacional
A jornada diária dos bancários-caixas segue marcada pela dos bancos, relacionados a atividades simplificadas e
sobrecarga de trabalho e pela tensão permanente expressa repetitivas. Como assinala Liliana Segnini,'4 a inserção das
no medo de "diferenças de caixa", assim como pela forte
pressão de supervisores e gerências quanto ao cumprimento 74 �ntrevista com bancária-caixa do Bradesco, realizada pela autora em dezembro
de 1998.
de metas relativas à quantidade de autenticações e à venda
75 SEGNINI, L. Mulheres no trabalho bancário: difusão tecnológica,
de "produtos". O depoimento a seguir relata as condições qualificação e relações de gênero. São Paulo, FAPESPIEDUSP, 1998. Sobre
de trabalho em uma agência bancária: os processos de segregação ocupacional que marcam a divisão sexual do
trabalho ver também: OLIVEIRA, O. e ARIZA, M. "División sexual dei trabajo
"Quando eu entrei no banco, em 1 989, era uma loucura. Naquela
y exclusión social". Revista Latinoamericana de Estudios deI Trabajo,
época, o banco vivia cheio, todos os dias. Depois amenizou um pou publicação semestral da Associação Latino-americana de Sociologia do
co isso, com a automação. Agora, eu acho que a gente está Trabalho (ALAST), n" 5, São Paulo, ano 3, 1997; HIRATA, H. "Rapports
sociaux de sexe et division du travail", in J. Bidet e J. Texier, La crise du
sobrecarregada. Porque tcm toda essa evolução do sist.Çma, mas tam
travai!, actuei Marx confrontation, Paris, Presses Universitaires de France,
bém saiu muita gente do banco. Se a gente parar para pensar, quan 1995; HIRATA, H. Nova divisão sexual do trabalho? Um olhar voltado para
do eu entrei no banco, trabalhava numa agência menor, e éramos a empresa a sociedade. São Paulo, Boitempo, 2002.
23 6 o A V E S S O DO T RA B A L H O C O l E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O 2 37
mulheres no trabalho bancário reafirma tendências observa
entre bancários,'6 perdem importância no cenário da atual
das em diversos outros países, nos quais uma série de meca
desmontagem do sistema bancário estatal e dos programas
nismos sociais de discriminação - que marcam historicamente
de reestruturação, que imprimem traços característicos de
as relações de gênero e se reproduzem nos ambientes laborais
empresa privada aos bancos que permanecem públicos. Com
- constituem assimetrias importantes nas possibilidades pro
suas possibilidades de resistência reduzidas, os bancários vin
fissionais e salariais de homens e mulheres.
culados a esse sistema assistem à perda de direitos, conquis
As profundas transformações nos padrões de trabalho,
tados nas lutas sindicais desde o início do século passado. O
que degradam condições laborais e de emprego, afetam
crescente índice de suicídios de assalariados de bancos esta
duramente também uma outra fração da força de trabalho
tais, nos anos de 1 990,77 é revelador dos custos sociais do
nos bancos: os bancários vinculados ao sistema financeiro
atual processo de reorganização do capital e de suas formas
estatal. A política econômica brasileira dos anos de 1 990,
de destruição da subjetividade do trabalho.
que desenvolveu intensivamente programas de libera
No contexto de precarização social e desregulamentação
lização monetária, desregulamentação salarial e priva
da economia, o cotidiano laboral de grandes contingentes de
tização, como assinalamos, atinge de modo drástico as
bancários é marcado pela insegurança, pela ansiedade e pelo
relações de trabalho nas instituições estatais, tradicional
medo. O sofrimento psíquico de muitos desses trabalhado
mente marcadas por diferenças importantes em relação às
res, derivado do controle, da pressão, da intensidade do tra
estabelecidas nos bancos privados, caracterizadas pela ar
balho, do medo de erro e da demissão, das relações tensas e
bitrariedade e diversidade nas condições de contratação,
competitivas nos ambientes laborais, desgasta a saúde men
carreira e demissão. O sistema de concurso público como
tal, "contaminando" o tempo livre de trabalho. As Lesões
meio de ingresso e a constituição de quadros de carreira
por Esforços Repetitivos (LERs) - essa síndrome do mundo
orientando as decisões sobre promoção e remuneração,
produtivo na era da eletrônica - atingem grande número de
constituíram critérios regulamentados de ascensão profis
sional e uma condição (implícita) de estabilidade do em
76 Um tratamento mais detalhado destas distintas experiências é oferecido em
prego nas instituições estatais.
JINKINGS, N. Trabalho-e resistência na ''fonte misteriosa": os bancários no
As desigualdades na situação de trabalho entre os assala mundo do dinheiro e da eletrónica. Campinas, Editora da Unicamp; São Paulo,
riados de bancos privados e aqueles de estatais, ail.quais cons Imprensa Oficial do Estado. 2002.
77 A esse respeito, consultar XAVIER, E. Um Minuto de Silêncio: Réquiem aos
tituíram distintos perfis profissionais e prod uziram
Bancários Mortos no Trabalho. Porto Alegre, Sindicato dos Bancários de Porto
experiências de organização e ação sindical diferenciadas Alegre, 1998.
23 8 o AVESSO 0 0 TRABALHO
COlEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO 239
bancários, degradando suas condições físicas e repercutindo anos de 1980, que mobilizou grande quantidade de bancá
sobre a vida psíquica e sociaL rios em assembléias, passeatas e greves, em todas as regiões
Para a ampla maioria dos bancários brasileiros e grandes do país, dá lugar a atividades e manifestações com partici
parcelas da classe trabalhadora em todo o mundo, a pação mais restrita d e uma base sindical tolhida pelo medo
reestrururação capitalista contemporânea destina formas mo do desemprego ou integrada ideologicamente às estratégias
dernas de exploração - apoiadas na tecnologia microeletrônica patronais.
e na teleinformática - que convivem com formas mais antigas Essas são determinações que mudam em profundidade
e limitadas, baseadas no prolongamento da jornada laboral. As as condições do trabalho bancário e revelam o que acontece
estratégias contemporâneas de acumulação de capital elevam no conjunto da vida social, submetida aos movimentos de
os níveis do desemprego estrutural, ampliam a precarização valorização do capital.
do trabalho e racionalizam violentamente os ambientes pro
dutivos, criando sofisticadas táticas para intensificar e contro
lar o trabalho. Nos ambientes laborais dos bancos, uma forte
ofensiva ideológica persegue o envolvimento e a adesão dos
trabalhadores ao ideário patronal e aos projetos mercadológicos
das empresas, de tal modo que eles se representem como o
próprio capital personificado.
A resistência do trabalho contra a exploração capitalista
enfrenta maiores obstáculos, nesse cenário político e eco
nômico hostil às lutas da classe trabalhadora, que coloca
seus movimentos de rebeldia em face de novos impasses e
desafios. O sindicalismo bancário, desde a década de 1990,
expressa os limites e dificuldades do movimento sindical
nos dias de hoje e experimenta um momento de refluxo,
atuando defensivamente diante da reestruturação produti
va do capital. A ação sindical nos ambientes laborais não
tem sido capaz de impedir seus efeitos lesivos para as con
dições de vida e trabalho dos bancários. A luta coletiva dos
higiene dos homens e crianças. Marx e Engels, em 11 ldeofo repartindo o valor da força de trabalho do homem adulto pela a
gia Alemã, já indicavam, entretanto, que a escravidão na fa família inteira. ( 1971 : 449/450)
mília, e m bora a i n d a tosca e latente, era a primeira Portanto, a inserção da mulher na grande indústria, ou
manifestação da propriedade. Em suas palavras: seja, a divisão do valor da força de trabalho por toda a famí
A primeira divisão do trabalho é a que se fez entre o homem e a lia, rebaixa o valor do trabalho masculino. O capitalismo usa
mulher para a procriação dos filhos, ao que Engels acrescentou, na va, então, essa divisão sexual do trabalho para incentivar a
Origem da Família da Propriedade Privada e do Estado, que o pri competição entre os trabalhadores, rebaixando os salários em
meiro antagonismo de classes que apareceu na História coincide decorrência do ingresso da força de trabalho feminina, incor
com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mu porada à classe trabalhadora e percebendo salários ainda mais
lher na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opres reduzidos. Desse modo, a classe trabalhadora, composta por
são do sexo feminino pelo masculino. ( 1 977: 70/71 ) mulheres, jovens, crianças e pelos próprios homens, foi re
Com o advento da Revolução Industrial, a presença fe duzida à condição de simples força de trabalho vivo, ou seja,
minina ampliou-se intensamente, suprindo as lacunas que matéria de exploração do capital, visando à ampliação de seu
eram conseqüências das transformações no mundo produti ciclo reprodutivo e sua valorização.
vo. Ainda segundo Marx: Vale destacar que, apesar dessa dimensão da exploração
Tornando-se supérflua a força muscular, a maquinaria permite o da força de trabalho, Engels expressou uma visão positiva da
emprego de trabalhadores sem força muscular ou com desenvolvi- inserção da mulher no mundo do trabalho, no que se refere a
lado, permitiu que o capitalismo ampliasse a exploração da sigual, tanto entre setores quanto entre regiões geográficas, crian
força de trabalho, intensificando essa exploração através do do, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado
universo do trabalho feminino. Esses são exemplos claros de "setor de serviços (. . . ) ". (op. cit. : 140)
como a dimensão de classe se articula com a dimensão de É importante salientarmos que a chamada crise do tayloris
gênero, quando se pensa na questão da exploração do traba mo/fordismo traz, em seu significado mais profundo, uma crise
lho pelo capital, particularmente no período recente, que é o estrutural do capital, em que a tendência decrescente da taxa de
objetivo deste nosso texto. lucro se evidenciava. (Antunes, 1999: 3 1 ) Afirma ainda o autor
que a resposta do capital à sua própria crise levou à reorganização
o capitalismo, no decorrer da História, metamorfoseou exemplo mais evidente dessa resposta é o advento do neolibe
se de inúmeras maneiras. Mas, a partir de 1 973, esse modo ralismo, que tem como características básicas as privatizações do
...
...... _ .....----------------�
Estado, a desregulamentação dos direitos trabalhistas e "a nos processos de trabalho é a flexibilização acompanhada por
desmontagem do setor produtivo estatal, da qual a era Thatcher/ ênfases na modernização, eficiência e técnicas associadas de
Reagan foi a expressão mais forte". (op. cit. : 3 1 ) gestão, por exemplo, o 'toyotismo' ." 81
Foi nesse contexto que, ao longo dos anos d e 1980 e 1 990, A lógica da flexibilização na atual reestruturação produti
ocorreu a expansão da hegemonia económica, política e ide va do capitalismo juntamente com o neoliberalismo, estabe
ológica do neoliberalismo, inicialmente na Inglaterra, Esta lece relações com o crescimento do emprego das mulheres.
dos Unidos e Alemanha e, posteriormente, atingindo vários Por exemplo: o trabalho terceirizado freqüentemente possi
países em diferentes continentes, quando passou a intensi bilita a realização de tarefas no domicílio, concretizando o
ficar-se a crítica ao Estado do bem-estar social (welfare state) trabalho produtivo no espaço doméstico. Beneficiando, des
e em particular aos direitos sociais. 80 Houve também um cla sa forma, os empresários que não têm a necessidade de pa
ro processo de desmonte dos direitos dos(as) trabalhado gar os benefícios sociais e os direitos vinculados ao trabalho
res(as), os quais, desde então, vêm sofrendo uma progressiva de homens ou de mulheres. Direitos esses que mesmo os
"flexibilização" do trabalho, um crescimento da informaliza trabalhadores formais (com carteira assinada) têm ameaça
ção (sem registro em carteira) e uma conseqüente perda das dos, como bem demonstra a discussão política a respeito da
conquistas trabalhistas. flexibilização da CLT (Consolidação das Leis de Trabalho)
Mary Castro (200 1 : 275) analisa esse momento indican nos últimos anos no BrasiL
do que "o neoliberalismo tem de ser discutido não só como Cabe lembrar que, quando o trabalho produtivo é reali
uma forma de organização da economia política, mas tam zado no espaço doméstico, o capital, ao explorar a mulher
bém como um tipo de cultura pelo qual se amplia a sujeição enquanto força de trabalho, apropria-se com maior intensi
dos e das trabalhadoras, inclusive minando vontades, auto dade dos seus "atributos" desenvolvidos nas suas atividades
estima e dignidade. Outra característica do ethos neoliberal reprodutivas, vinculados às tarefas oriundas de seu trabalho
reprodutivo. Dessa forma, além de o capital intensificar a
80
No Brasil, as políticas neolibera�s são observadas pontualmente desde o final
desigualdade de gênero na relação de trabalho, ele acentua a
dos anos d.e 1980. A partir dos anos de 1990, com os governos de Fernando
Collor de Mello e de Fernando Henrique Cardoso, o neoliberalismo avançou, dimensão dúplice da sua exploração, ou seja, explora o tra-
através de políticas monetárias, de privatizações das empresas públicas e do
afastamento do Estado do setor produtivo, das flexibilizações e desregula
-
mentações, dentre outras medidas. Estas mudanças afetaram, mais uma vez, o 81 Sobre as conseqüências destas mudanças no universo da subjetividade da classe
mundo do trabalho, trazendo conseqüências significativas não só para o trabalhadora, ver as indicações de Sennett, (1998). Sobre a questão gênero/
trabalhador, mas principalmente para a mulher trabalhadora. classe, ver o clássico estudo de Mitchel (1977).
Portanto, a crise estrutural do capitalismo" e, em parti sexual do trabalho, tanto no espaço produtivo quanto no
ista e reprodutivo. (Hirata, 2001/02: 143)
cular, o esgotamento do padrão de acumulação taylor
leo Ainda segundo Hirata, nos anos de 1 990, a mundialização
fordista, bem como a reestruturação produtiva do capita
icati do capital emitiu efeitos complexos, além de contraditórios,
advenro do neoliberalismo, trouxeram mudanças signif
acional afetando desigualmente o emprego feminino e o masculino.
vas para o mundo do trabalho, tanto no plano intern
quanto no nacional. É sempre importante ressaltar
que tais Em relação ao emprego masculino, a autora afirma que hou
o e da ve uma regressão e/ou estagnação. Já o emprego e o trabalho
mudanças levaram ao cresc imen to da precarizaçã
.83
informalidade do trabalho, como lembram Hirata e Doaré feminino remunerado cresceram. Paradoxalmente, apesar de
( ... ) assiste-se a uma dupla transformação paradoxal do trabalho, por ocorrer um aumento da inserção da mulher trabalhadora, tanto
que ela parece ir em sentido oposto: de um lado, a implicação do sujei no espaço formal quanto no informal do mercado de traba
to no processo de trabalho e, de outrO, a precarização do emprego, com lho, ele se traduz, majoritariamente, nas áreas em que pre
o desenvolvimento de formas flexíveis do trabalho e o crescimento do dominam os empregos precários e vulneráveis, "como tem
desemprego. Este último movimento é grande e globalizado, e parece sido o caso na Ásia, Europa e América Latina". (op. cit.: 143)
dizer respeito às mulheres, em primeiro lugar, enquanto a implicação O quadro apresentado possibilita uma reflexão sobre o
requerida pelos novos modelos de organização do trabalho parece di papel feminino no mundo do trabalho, marcado por uma
zer respeiw tendencialmente aos assalariados do sexo masculino das flexibilização mais acentuada, como, por exemplo, o traba
grandes empresas industriais dos países do Norte. (1999: 10) lho em tempo parcial realizado majoritariamente por mulhe
Com o neoliberalismo, as políticas do governo impulsio res. A intensificação da precarização no trabalho é também
nam a mundialização, principalmente com "a liberação das uma dimensão relevante, visto que as trabalhadoras "são
trocas comerciais, com a desregulamentação, a abertura dos menos protegidas tanto pela legislação do trabalho quanto
mercados e novas lógicas de desenvolvimento das firmas pelas organizações sindicais"84. Mas há ainda um outro papel
multinacionais, tendo como corolários as privatizações, o reservado à mulher trabalhadora: o papel a que Helena Hirata
desenvolvimento da subcontratação e da externalização da
84 Muitas autoras têm oferecido vários estudos que nos auxiliam para uma melhor
82 Ver Mészáros·, 2002; Bihr, 1998; Antunes, 1999. compreensão da questão feminina no espaço sindical. Ver por exemplo, Castro
83 Hélene Lê Doaré é pesquisadora juntamente com a socióloga Helena Rirata (1993) e Araújo e Ferreira (2000). Sobre a questão feminina e a legislação
o contin
Europa dos Quinze 42.3 42.5
para o conjunto da classe trabalhadora, incluindo Alemanha** 39,1 39.5 40,9 42,6 42.5 42,7 42,9 43,1
2002)
gente masculino. (op. cit.: 144. Ver também Hirata, Áustria 42,9 43,4
, ana
Para darmos uma base de concretude ao nosso artigo
Bélgica 36,9 38,5 ljo,Q 40,6 41,2 41,2 41,4 41,5
tes do tra
Dinamarca 45.5 46,0 46,6 46,8 46,9 46,2 45,5 45,7
lisaremos no item seguinte as tendências mais recen Espanha 32,9 35,3 36,1 36,6 37.5 38,2 38,5
ndo
balho feminino, na Europa, América Latina e Brasil, utiliza Finlândia 47,9 47,8
sobre a
subst ancia lmen te pesq uisas e dado s empí ricos
França 4',9 43.3 44,3 44,6 45,0 45,2 45,5 45,5
CEPAL, Grécia 34,1 35,8 35,8 36,8 37,0 37,3 37,9 38,7
femi nizaç ão do traba lho realiz ados pela OIT, Irlanda 31,1 32,8 34,1 36,6 37,3 37,6 38,4
os sala
35,4
DIEE SE, SEADE, IBGE etc., contemplando os desvi Itália 34,1 35,6 37,1 36,8 36,7 37,0 37,3 37,8
ral ou par
riais, a jomada de trabalho (trabalho em tempo integ Luxemburgo 33,5 35,2 35,6 37,2 36,4 37,2 36,0 37,0
cial), o emprego temporário, o subemprego e o desem
prego. Países Baixos 33,8 37,6 39,5 40,4 40,6 41.1 41,3 4',8
Portugal 41,8 43,8 44,4 44,7 45,0 45,0 45,2
Reino Unido 40.3 42,4 43,3 43,7 43,7 43,8 43,8 44,0
- - -
III Suécia - -
- 47.7 47.7
A análise dos dados na Europa mostra que se evidencia
� _ '
*Na Eur pa dos ooze estao excluídos os dados da Suécia, Finlândia e Austria
** �
A partlr de 1991 e em todos os quadros trata-se de dados a respeito da Iemanha
. .
um significativo crescimento da população trabalhadora femi reumflCada (40,9% em 1990)
Fonte: Eurostat, Enquêtes sur les forces de travai! (Apud Maruani, 2000: 7)
nina em relação à população ativa durante as décadas de 1980
e 1990. Particularmente nos Países Baixos, na Irlanda, Espanha,
Em plena crise do emprego, que se intensificou ao longo
Reino Unido, Portugal, Grécia, França, Bélgica, Alemanha e
dos anos de 1980 na União Européia, segundo Maruani (2000)
Itália, a tendência de crescimento é bastante evidente, ten
"a atividade feminina não parou de crescer". Esse período
dência que só é contrastada pela Dinamarca, cujos percentuais
caracterizou-se pela feminização do contingente assalariado,
permaneceram estáveis, ainda que contemplando níveis sig
em particular no setor terciário (serviços). Desde a década de
nificativos de feminização da força de trabalho.85
1 960, do norte ao sul da Europa, assistimos a um crescimento
espetacular da atividade feminina enquanto o emprego mas
85 Utilizamos neste item referente à Europa, os dados apresentados por Maruani culino é marcado ou pelo imobilismo ou pelo declínio, Pela
(2000 e 2002)
primeira vez na História do mundo assalariado, as mulheres ca e Portugal. Os últimos dados relativos.à Europa mostram
ingressaram intensamente no mercado de trabalho em um que os desníveis de salários se escalonam entre 10% e 32%.
período de desemprego e de carência de emprego. (2000: 5) (op. cit.: 5 1 )
Durante os anos de 1 960, as mulheres representavam 30%
da população ativa européia; em 1 996, essa cifra se elevou QUADRO II
para 42,5%. ( ... ) Entre 1983 e 1 996, a parcela feminina da DIFERENÇA DE SALARIOS* ENTRE HOMENS E MULHERES _
ma parte. Em toda a Europa, as mulheres têm salários signi larial nos países de capitalismo avançado da União Européia,
ficativamente menores que os homens. Mais ain.da: durante a configuração atual da divisão sexual do trabalho carrega
o decênio 1980/1990, essas desigualdades foram acrescidas consigo a persistência da segmentação e da remuneração di
em um conjunto de países, como é o caso da Itália, Dinamar- ferenciada entre homens e mulheres.
o AVESSO DO TRABALHO C O L EÇ Ã O T R A B A L H O E E M A N CI PA Ç Ã O
..........________ J
E u ropéia, os 1 6 ,4% dos empregos em tempo parcial
Tal desigualdade é bastante acentuada quando se com
correspondiam a 3 1 ,6% de mulheres e somente 5,5% por ho
para o número de homens e mulheres em relação às suas
mens. Os Países Baixos são os únicos onde a proporção de
inserções nos empregos de baixos salários existentes na União
homens, a tempo parcial de trabalho, aumentou significativa
Européia, conforme mostra o próximo quadro:
mente, quase triplicando, pois em 1983 totalizavam 6,9% de
homens em tempo parcial, chegando em 1996 a 1 7%. Mas, se
QUADRO III
VARIAÇÃO DO EMPREGO ASSALARIADO compararmos a quantidade de mulheres em tempo parcial (que
ENTRE E
1983 1998 (Em milhares) se encontra na faixa de 68,5% em 1 996), mantém-se a "regra"
Homens Mulheres Juntos da feminização do trabalho em tempo parciaL (op. cit.: 80)
+ +
539 + 2.119 2.658
Emprego total + +
241 + 1..115 1·356
Emprego de baixos salários QUADRO IV
Dos quais: + 931 + 1.198 o EMPREGO EM TEMPO PARCIAL _
........--------------�
&2
r no
com o acentuado cresc iment o da inserç ão da mulhe
Argentina 1990 1.814.789 68.7 63.1 1.060.831 70.9 36.9
1997 2.015.939 72.5 61.3 1.271.448 74,2 38.7
mund o do trabalho, ainda ocorre uma predo minân cia mas Colômbia 1990 713.999 68.5 58.6 503.632 73.7 41.4
culina . Na Colôm bia, por exemplo, de 1 990 a 1 997, houve 1997 895·887 61,9 51.9 829.478 72.3 48.1
uma diminu ição da força de trabalh o mascul ina de 58,6% Brasil*** 1.990 17·821.800 72,8 60,l. 1.817.000 73.7 39.9
para 5 1 ,9%, enquanto que a femini na cresceu, no mesmo
1996 18.490.021 68.1 55,9 4·582·457 75.9 44.1
Venezue!aJ-990 2.313.903 67.9 62.5 1·387·361 76.7 37,5
período , de 41,4% para 48,1 %. Podemo s citar também o '997 3.025.901 63.3 61,3 1.911.368 65,8 38,7
caso do Uruguai, onde, em 1986, os trabalhadores mascu
Fonte: CE�AL,. bas�a o em pesqUisa nos aomlCl lOS os palses respectivos {Adaptado
por Claudia Nogueira I.
*Segundo a justific:ativa apr�sentad� por leon, os países de Tipo I são aqueles onde "as
linos compun ham 60% da força de trabalho e, em 1997, ref?rmas estruturaIs foram mtroduzldas a partir do final da década de �980 e de modo
maiS compl�to". (2002: 12)
esse percentual diminui u para 55%, e o contingente das **Os países de Tipo II são aqueles onde "as reformas foram introduzidas mais tardia
mente, de forma parcial". ( op. cit.; �2)
trabalhadoras aumentou de 40% para 45%, nesse mesmo *** A discussão referente aos dados do Brasil será feita, de modo detalhado, no próxi
mo .Item: ��mtlvemos
. �s dados a�resentados nas tabelas originais, para que se possa
período. ter uma Ideia comparatIVa do Bras!! com outros países da América latina.
o AVESSO DO TRABALH O
C O L E Ç A o T R A B A L H O. E E M A N C ! P A Ç A o
QUADRO VI QUADRO VII
AMÉRICA LATINA (9 PAfSES): PESSOAS OCUPADAS (ASSALARIADAS) AMÉRICA LATINA: PAfsES SElECIONADOS
SEGUNDO O SEXO E JORNADA INTEGRAL E PARCIAL TAXA DE DESEMPREGO DE HOMENS E MULHERES POR NfvEIS DE
jornada SALARIOS '990 - 1998 (Em % )
-
da em relação aos trabalhos de baixo salário, aumentaram. porcentagem de homens nessa situação, e também está au
Para os homens, ele saltou para 13% e, em relação às mulhe mentado nos anos de 1990." (ibidem: 3)
res, ele foi para 19,2%, indicando que o desemprego atinge Podemos concluir que, comparando os dados sobre o tra
toda a classe trabalhadora, mas de forma muito mais intensa balho feminino referentes aos países latino-americanos com
quando se trata da força de trabalho feminina. Cabe lembrar os dados dos países europeus, apesar de ter ocorrido uma
que essa tendência apontada se mantém também nos em precarização do trabalho nos países de capitalismo avança
pregos de médios e altos salários. do, foi na América Latina, particularmente após a reestrutu
Portanto, esses elementos nos levam a afirmar que a ração produtiva e a presença neoliberal, que esse processo
desigualdade de gênero no espaço produtivo da América mais se acentuou. Isso não significa que a precarização tenha
Latina acentua-se na maioria dos itens que analisamos. ocorrido somente em relação à força de trabalho feminina,
Em contrapartida, as tendências mais favoráveis às mu pois, quando analisamos os dados referentes ao trabalho
lheres podem ser assim sintetizadas: a) diminui a diferen masculino (que não é o nosso objeto de estudo), verificamos
ça da participação entre homens e mulheres; b) diminui que as alterações ocorridas no mundo do trabalho também
moderadamente a diferença dos salários, que permanece atingiram os homens trabalhadores, ainda que de forma me
alta; c) diminui também moderadamente a diferença do nos intensa. O que reafirma a tese de que a divisão social e
trabalho informal, ou seja, de cada 1 00 novos empregos sexual do trabalho, na configuração assumida pelo capitalis
femininos 54 foram gerados no seror informal, sendo que mo contemporâneo, intensifica fortemente a exploração do
para os homens essa cifra alcançou a casa dos 70. (Abramo, trabalho, fazendo-o, entretanto, de modo ainda mais acentua
2000: 3) do em relação ao mundo do trabalho feminino.
Por outro lado, persistem as tendências desfavoráveis às Nas próximas páginas deste artigo indicaremos algumas
mulheres: a) (... ) aumenta significativamente a taxa de de especificidades do trabalho feminino no Brasil, tomando
semprego das mulheres, em especial das mais pobres, assim como base as décadas de 1 980/1990, que se caracterizaram
como a diferença do desemprego entre homens e mulheres; fortemente pela presença da reestruturação produtiva e pe
b) a porcentagem de mulheres ocupadas no setor informal las mutações do mundo do trabalho.
sobre o total da força de trabalho femenina é superior à por
centagem de homens na mesma situação e está aumentado v
durante os anos de 1990; c) a porcentagem de mulheres que A tendência da feminização do trabalho (e sua acentuada
não conta com nenhum tipo de proteção social é superior a precarização) também se mantém no Brasil. No período de
ro
�
valores salariais vão se elevando. A única exceção é em rela
ção ao setor agrícola, no qual, por exemplo, encontramos a
cifra de 16% de mulheres e de 55% de homens que ganham
até dois salários mínimos. No entanto, essa discrepância é
amplamente elucidada quando observamos a coluna que se
refere aos trabalhadores(as) agrícolas sem nenhum rendimen
to, indicando que 81,9% das mulheres encontram-se nessa si
tuação, contra 27,9% dos homens, uma verdadeira radiografia
do espaço agrário brasileiro.
Essa questão é também tratada por Hirata e Doaré ( 1999:
17/18), quando afirmam que:
As desigualdades de salário - compreendidas em trabalho igual -
são constatadas por toda parte do mundo, até em países que assina
ram as convenções da OI1� que as proíbem. C . . ). No setar industrial ro
v
<1J 'ª
dos países desenvolvidos, o salário médio das mulheres representa " 'o
c
� o
o v
três quartos do salário masculino, devido, em parte, -a. uma menor E ..
12 "
..
.. ro
qualificação do posto, mas também a uma repartição desigual entre
os ramos econômicos e os pOStos ocupados. �
�] ro
lhos de até 14 horas semanais os dados mostram que são flexibilização d o mundo do trabalho, da reestruturação pro
3.414.902 de mulheres, contra 1.001. 156 de homens; de 15 a dutiva e das políticas neoliberais, o aumento da inserção das
39 horas, temos 9.620. 1 1 6 milhões de mulheres e 6.546.326 mulheres continua ocorrendo. Portanto, a questão que se
27 2 o A V E S S O D O T RA B A L H O C O l E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O 273
reservada mais para a m ulher trabalhadora. E isso ocorre por
responsabilidade exclusiva d o sexo feminino". (Hirata,
que o capital, além de reduzir ao limite o salário feminino,
1999: 8)
ele também necessita do tempo de trabalho das mulheres na
Além disso, existe a conotação de que o trabalho e o salá
esfera reprodutiva, o que é imprescindível para o seu pro
rio feminino são complementares, no que tange às necessi
cesso de valorização, uma vez que seria impossível para o
dades de subsistência familiar. Embora saibamos que hoje,
capital realizar seu ciclo produtivo sem o trabalho feminino
para algumas famílias, essa premissa não é mais verdadeira,
realizado na esfera reprodutiva.
pois o valor "complementar" d o salário feminino é
Portanto, se a participação masculina no mundo do tra
freqüentemente imprescindível para o equilíbrio do orçamen
balho pouco cresceu no período pós-1970, a intensificação
to familiar, especialmente no universo das classes trabalha
da inserção feminina foi o traço marcante nas duas últimas
doras. (op. cit.: 8). Por isso, ao mesmo tempo em que se deu
décadas. Entretanto, essa presença feminina se· dá mais no
um enorme avanço da presença feminina no mundo do tra
espaço dos empregos precários, em que a exploração, em
balho, esse avanço foi marcado por uma enorme precarização,
grande medida, se encontra mais acentuada, como pudemos
que vamos indicar no último item do nosso texto.
ver nas pesquisas realizadas na Europa, América Latina e no
Brasil. Essa situação é um dos paradoxos, entre tantos ou VI
tros, da mundialização do capital no mundo do trabalho. O Para concluirmos nosso trabalho, retomaremos a
idéia bá
impacro das políticas de flexibilização do trabalho, nos ter sica que dá título ao nosso artigo - "A Feminização
no Mundo
mos da reestruturação produtiva, tem se mostrado como um do Trabalho: entre a Emancipação e a Precarizaçã
o" - tentan
grande risco para toda a classe trabalhadora, em especial para do entender se a crescente inserção da mulher no
mundo do
a mulher trabalhadora. trabalho no capitalismo contemporâneo vem trazen
do alguns
Pelo que vimos, podemos entender que a precarização elementos que favorecem e fortalecem o complexo
processo
também tem sexo. Prova disso é que, na Europa, na Améri de emancipação feminina, ou se esses mesmos elementos
vêm
ca Latina e, particularmente no Brasil, a flexibilidade da (também) acarretando uma precarização diferenciada da força
jornada de trabalho feminina só "é possível porque há uma de trabalho, afetando de maneira mais intensa a mulher traba
legitimação social para o emprego das mulheres por dura lhadora. A feminização do mundo trabalho é por certo positi
ções mais curtas de trabalho: é em nome da conciliação en va, uma vez que permite avançar o difícil processo de
tre a vida familiar e a vida profissional que tais empregos emancipação feminina e, desse modo minimizar as formas de
são oferecidos, e se pressupõe que essa conciliação é de dominação patriarcal no espaço doméstico. Mas é também
marcada por forte negatividade, pois ela vem agravando signi de classe social a que pert�ncem; diferenciação interna fortem
ente
ficativamente a precarização da mulher trabalhadora. marcada por práticas sociais e políticas das mulheres, notada
mente
Esse lado negativo, por sua vez, é conseqüência da forma distintas das dos homens; 2) a ocupação, que reflete o tipo de
inser
pela qual o capital incorpora o trabalho feminino, cujas ca ção das mulheres na estrutura de classes.
racterísticas, como a polivalência e a multiatividade, são de Essa síntese nos possibilita afirmar que, na ação que bus
correntes das suas atividades no espaço reprodutivo, o que ca a emancipação do gênero humano, há uma inter-relaçã
o
as torna mais apropriadas às novas formas de exploração pelo entre as trabalhadoras e os trabalhadores. Esse proce
sso tem
capital produtivo. Trata-se, portanto, de um movimento con no capital e em seu sistema de metabolismo social a fonte
da
traditório, uma vez que a emancipação parcial, uma conse subordinação e alienação. E a luta contra esse sistem
a de
qüência do ingresso do trabalho feminino no universo metabolismo social é, ao mesmo tempo, uma ação da
classe
produtivo (tão fortemente destacada por Engels), é alterada trabalhadora contra o capital e sua dominação (ação esta
que
de modo significativo, por uma feminização do trabalho que pertence ao conjunto da classe trabalhadora), mas é també
m
implica simultaneamente uma precarização social e um maior uma luta feminina contra as mais diferenciadas forma
s de
grau de exploração do trabalho. opressão masculina. (Antunes,1 999: 1 10)
Do mesmo modo, a nossa análise também recusa a falsa Como vimos, o capitalismo, ao mesmo tempo em que
dicotomia que freqüentemente tem sido estabelecida entre cria condições para a emancipação feminina, acentua a sua
gênero e classe. Ao contrário, essas categorias somente po exploração ao estabe lecer uma relaçã o aparen temen te
dem ser realmente compreendidas, quando analisadas de "harmónica" entre precarização e mulher, criando formas
modo inter-relacionado. A análise de Saffioti ( 1 997: 63/64) diferenciadas de extração do trabalho excedente. Quando se
corrobora nossa afirmação ao acrescentar que, na sociedade toma o trabalho em seu sentido ontológico, pode-se ver que
capitalista, ocorre ele possibilita um salto efetivo no longo processo da emanci
(. .. ) a eXIstência de três identidades sociais básicas: a de gênero, a pação feminina. E, à medida que a mulher se torna assalaria
de raça/etnia e a de classe sóciaL Não se trata, porém, de três iden da, ela tem também a possibilidade de lutar pela conquista
tidades autônomas, em virtude, justamente, de estarem arados os da sua emancipação, pois se torna parte integrante do con
antagonismos que lhes dão origem. Cabe mencionar, a propósito, junto da classe trabalhadora. Isso porque, como nos mostrou
que operárias costumam identificar-se como "mulheres trabalha Marx:
doras", explicitando duas dimensões importantes de sua identida Para que coincidam a revolução de um povo e a emancipação de
de: 1) o gênero, definidor da heterogeneidade da classe ou fração uma classe particular da sociedade civil, para que uma classe valha
,
tanto, não há nenhuma outra forma de se alcançar a eman dutivo, mas que está presente também nas especificidades
cipação da mulher, "que veio à tona há muito tempo, mas das suas funções reprodutivas. E, ainda segundo o autor:.
adquiriu urgência num período da história que coincidiu A verdadeira igualdade dentro da família só seria viável se pudesse
com a crise estrutural do capital", sem que ocorra ·uma me
tamorfose "substantiva nas relações estabelecidas de desi i reverberar por todo o 'macrocosmo' social - o que, evidentemente,
não é possível. Essa é a razão fundamental pela qual o tipo de famí
gualdade social."
E complementa o autor, afirmando que devemos:
I lia dominante deve estar estruturado de maneira apropriadamente
autoritária e hierárquica. Deixando de se adaptar aos imperativos
(... ) enfrentar não apenas a exigência de emancipação feminina, estruturais gerais do modo de controle estabelecido - conseguindo
mas também suas associações inerentes relativas à necessária eman afirmar-se nos ubíquos 'microcosmos' da sociedade, na validade e
cipação dos seres humanos em geral - tanto em termos estritos de no poder de auto-realização dos intercâmbios humanos baseados
classes nos países de capitalismo avançado, quanto nas perversas na verdadeira igualdade-- a família estaria em direta contradição ao
relações destes com as massas ultra-exploradas do chamado 'Ter- ethos e às exigências humanas e materiais necessárias para assegu-
o 0 0
282 AVESSO TRABALHO COlEÇÃO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO
MENICUCCI, E. A Mulher, A Sexualidade e o Trabalho. Ed. Hucitec, " M O RO N O M U N D O E PAS S E I O EM
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SENNETT, R. A COfTosdo do Cará/er. Editora Record, Rio de Janeiro, porte aéreo de cargas representa 0,3% do tota!.a9
1998.
As reivindicações feitas pelos caminhoneiros denuncia
ram à sociedade uma série de problemas que os mesmos vêm
enfrentando nas rodovias brasileiras, no seu dia-a-dia de tra-
o AVESSO DO TRABALHO
r balho, tais como: preços abusivos dos pedágios, baixos pre portando rodos os tipos de cargas: alimentos, matérias-pri
ços dos fretes, longas jornadas de trabalho, roubos de cargas, mas, produtos industrializados, químicos e explosivos. É co
fiscais rodoviários corrupros e rodovias mal conservadas. mum esses trabalhadores permanecerem nas estradas dez,
Sem dúvida, os caminhoneiros constituem-se numa ex vinte dias, ou até mais de um mês, realizando viagens de
pressiva categoria de trabalhadores, cuja participação no trans longas distâncias e longe de suas famílias. Seu convívio social
porte rodoviário de cargas é efetivamente essencial à diário restringe-se aos encontros com colegas de trabalho nos
economia brasileira. Dentre 1,2 milhão de caminhoneiros, postos e restaurantes de estrada e aos acenos aos conhecidos
350 mil são autónomos, ou seja, proprietários dos veículos. O durante a extensa caminhada.
seror conta ainda com 50 mil transportadores de cargas pró Analogamente às "mãos" da estrada, os caminhoneiros
prias e 12 mil empresas transportadoras rodoviárias de car vivem entre a ordem e a desordem, a liberdade e a constrição,
ga.90 Desse modo, a importância dos caminhoneiros na vida o excesso de trabalho e o desemprego, a coragem e o medo,
económica do país pode ser traduzida por eles mesmos, atra o rigor da lei e o poder do crime organizado, aos quais estão
vés de um simples adesivo estampado nos pesados veículos, expostos, ora como vítimas, ora como vilões. Ao contrário
com a frase "sem caminhão este país não anda". dos trabalhadores que ocupam um mesmo espaço físico e
Podemos afirmar que a categoria dos motoristas rodoviá fixo ao longo da jornada de trabalho, os caminhoneiros que
rios de cargas está organizada de forma bastante heterogê realizam percursos de longas distâncias permanecem, durante
nea. Enquanto uma parte realiza seu trabalho apenas em áreas seus trajetos, afastados das aglomerações da vida urbana. No
urbanas, sem percorrer rodovias estaduais e/ou federais, ou entanto, as cidades são seu ponto de partida e de chegada,
tra parte dedica-se a pequenos itinerários, nas estradas permanecendo, contudo, estranhos a elas. Na maioria das
vicinais. Nos dois casos, o caminhoneiro pode retornar à sua vezes, o contato limita-se ao local de destino da carga. Por
casa ao final da jornada de trabalho. Sua presença em face da tanto, independentemente da sua posição na organização do
família é praticamente diária. Há ainda um terceiro grupo de trabalho - empregado ou autónomo - ambos estabelecem
caminhoneiros que realiza viagens de longos percursos, tan relações sociais com empresas de vários portes, cujo objetivo
to nas principais rotas nacionais e internacionais de abasteci é a distribuição das mercadorias.
mento, demarcadas por rodovias muito movimentadas, Um outro aspecto singular dessa profissão consiste no seu
quanto em localidades pitorescas de regiões longín g uas, trans- caráter de "trabalho masculino". Todavia, apesar da presen
ça majoritária de homens ao volante dos caminhões, as mu
90 lbidem. lheres vêm diluindo as fronteiras às quais demarcam os limites
expressão do poder: "O gênero é um elemento constitutivo de "classe social" elaborada por Thompson. Segundo o au
de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas tor, a classe social não se restringe às relações de produção,
entre os sexos, e o gênero é um primeiro modo de dar signi mas a todo o conjunto das relações sociais, nas suas mais va
ficado às relações de poder." (Scott, 1 990, p. 14). Tais con riadas práticas cotidianas: "a classe acontece quando alguns
cepções nos auxiliarão no entendimento das relações de homens, como resultado de experiências comuns (herdadas
gênero nas esferas do trabalho e da família entre os cami ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus in
nhoneiros. teresses entre si, e contra outros homens cujos interesses
Uma abordagem que se faz necessária no estudo das re diferem (e geralmente se opõem) dos seus" (Thompson,
lações de gênero diz respeito à noção de mascul!nidade. Se 1997, p. 10).
gundo Nolasco ( 1 995b), valores, modelos e comportamentos Embora Thompson não se refira diretamente às relações
designados aos homens lhes são incutidos durante o proces- de gênero, sua definição de "classe social" possibilita-nos tal
"O meu pai tem uma carreta só dele e ele viaja com ela. É um so social que nos foram evidenciados.
Volvo 91, modelo 92. Ele acabou de pagar. Esse aqui é de 'a meio'
o CARREGAMENTO
do meu pai com o meu tio. Nieu tio também tem outrO que ele
viaja. Meu pai me deu esse caminhão pra mim trabalhar. " (cami OS postos ou agências de cargas funcionam como inter
nhoneiro autônomo, 24 anos) mediários entre as empresas e os caminhoneiros. O motoris
Nem sempre a posição de autônomo representa melho ta dirige-se ao pátio com seu respectivo veículo e, em seguida,
res condições materiais cm relação ao empregado. Para o pri inscreve-se na sala do agenciador - também conhecido por
meiro, as despesas referentes ao caminhão recaem sobre o "chapa" ou atravessadoro Este é o responsável pela negocia-
próprio trabalhador. Sendo assim, o pagamenro de seguro ção dos fretes, através de contato telefônico com as empre
contra roubo e acidente é fundamental para o autônomo sas que solicitam o serviço de transporte de cargas. À medida
manter-se na profissão.91 que surgem as ofertas de fretes, os caminhoneiros são aten
didos por ordem de chegada. Caso haja interesse na propos
91 Segundo a declaração de um informante, um 1998, o valor pago pelo seguro
da sua carreta, ano 1990, foi de R$ 5.000,00. ta oferecida pelo agenciador, o caminhoneiro paga-lhe certa
I
i
"Quando meu marido vai carregar, ele passa por transtornos gran submeterem às propostas menos vantajosas, cujos valores são
des dentro das firmas. Às vezes, está quente e ele tem de botar irrisórios, considerando-se os gastos do veículo e o custo de
calça, usar sapato. Nem tanto pelo risco que corre ou que pode cada viagem.
surgir dentro da firma, mas por ética mesmo. Tem de estar vestido A nova dinâmica de distribuição de mercadorias mostra
I
daquele jeito." - Eles não gostam de caminhoneiro com chinelos e se como um reflexo do processo de globalização, marcado
bermuda? - "Não gostam. Então, por ética da firma tem de ir da pela internacionalização das relações económicas. O rigor do
I tempo industrial ecoa nos demais setores da economia e,
II'
quele jeito. Isso se torna difícil porque tem de tirar lona e botar
lona no caminhão. Tem de estar subindo e descendo da carreta e nesse caso, o serviço de transporte rodoviário de cargas é atin
de calça fica muito difíciL E ainda com o calor que está e com o gido pelas exigências das empresas: as mercadorias devem
movimento faz suar muito, cansa. Com essa roupa fica pior. Antes chegar aos seus destinos no menor tempo possível, transpor
de chegar na firma tem de se trocar." (caminhoneira, 29 anos, que tadas por trabalhadores qualificados e, de preferência, nos
acompanha o marido - caminhoneiro empregado - nas viagens e melhores veículos. Ainda que os caminhoneiros emprega
O novo modelo disciplinar cstabelecido pelas empresas, balho e, no caso dos primeiros, longe do olhar do patrão, o
além do vestuário do caminhoneiro, consiste na redução do autocontrole da disciplina desses trabalhadores mostra-se
tempo de duração das viagens. Daí a preferência pela bastante eficaz. Portanto, aqueles que não atenderem às de
contratação de motoristas que disponham de caminhões mais terminações do contratante, apresentando-se como "corpos
novos e com melhor desempenho na estrada. disciplinados" (Foucault, 1998), perderão os seus lugares.
mandam. Aí fazem em dois dias, né? Chega lá, o cara corta o horá das situações de risco, tais como acidentes, assaltos, intem
rio. Em vez de dar aquele período que era de quatro dias, se o cara péries, problemas mecânicos no veículo, além das próprias
fez em dois dias, o patrão corta pra dois dias." (caminhoneiro em condições de saúde (fome, sono, cansaço, dores musculares
Podemos, assim, notar uma tendência à seleção de cami fissão requer do motorista a incorporação dos tradicionais
nhoneiros e de veículos. Por sua vez, os motoristas "excluí atributos da masculinidade: autoconfiança, coragem, força
dos" das melhores ofertas de fretes acabam por se física, ausência de medo, espírito aventureito, controle das
"Tem gente que toma 'rebite', anda direro 'rebitado', toma carga 7 1 ) Em suas práticas cotidianas, o caráter simbólico atribuÍ
do outro e o outro fica chupando o dedo porque não faz como ele. " do ao objeto "caminhão" gera tensões perceptíveis entre
(caminhoneiro empregado, 32 anos) carreteiros e demais motoristas:
"Acontece muito acidente por causa disso: dirigir com sono! Mas "Por que você diz que o motorista de carreta é o inimigo das estra
se a gente não quiser, tem trinta, quarenta que faz! Às -vezes, o cara das? - Porque eles pensam que a pista é só deles. O meu caminhão
chega, compra uma cartela de 'rebite', toma 'rebite' pra não dormir é o trock, caminhão de três eixos. Eles falam: 'Essa droga desse
e vem embora. Quer dizer que se eu não toco, mais ou menos jun- caminhão velho tem que sair da pista!' É droga mas é da gente! E
diretinho pra casa, sem dormir, pra chegar em casa logo! - Mas são constatadas por toda parte do mundo, até em paíse
s que assina
quantas horas o senhor dirige direto? - Direto, dircto, dirijo 24 ho ram as convenções da OIT, que as proíbem. (. .. ). No
setor industrial.
ras. Só paro pra comer. Dormir, às vezes, você pára, assim, debaixo dos países desenvolvidos, o salário médio das mulh
eres representa
de uma sombra, num posto, e dorme uns 40 minutos ou dorme 1 três quartos do salário masculino, devido, em parte,
a uma menor
hora. Levanta e vai embora de novo." (caminhoneiro empregado, qualificação do pOSto, mas também a uma repartição
desigual entre
39 anos) os ramos econômicos e os pOStos ocupados.
A noção de que "é preciso que o corpo seja produtivo" Dentre nossos entrevistados há o caso de
uma mulher
leva à negação da possibilidade de estar ou vir a ficar doente caminhoneira que viaja junto com o marido,
levando consi
(Dejours, 1992). Em geral, o caminhoneiro somente recorre go o filho de 2 anos de idade. O marido traba
lha como moto
a um tratamento de saúde quando a doença manifesta-se rista de caminhão de uma empresa de transporte
s. Os patrões
como crise. Dessa forma, a relação corpo-condições de traba têm conhecimento de que sua esposa dirige o
mesmo veícu
lho repercute na saúde física, mental e psíquica do trabalha lo, mas jamais admitiram a possibilidade de virem a contratá
dor, decorrente da depredação da força de trabalho. Dois la como motorista, uma vez que tal profissão é entendida
informantes manifestam a submissão do corpo ao trabalho como masculina:
com as seguintes afirmações:
"É só pelo motivo de eu ser mulher. O preconceito é grande de
"Eu ando 18.000 quilômetros por mês! Às vezes, eu ando 600 km
mais, pelo menos aqui nesta região!" (caminhoneira, 29 anos)
com o caminhão, sem descer! A hora que eu boto o pé no chão,
A seguir, o depoimento da caminhoneira revela a sub
assim, parece que o chão corre comigo. Eu tenho que segurar na missão do corpo às condições de trabalho, mesmo durante o
porta pra não cair! De tanto tempo que eu fiquei sentado e o cami período voltado ao descanso. Na prática, toda a viagem com
nhão correndo. Parece que a Terra está virando." (caminhoneiro preende "tempo de trabalho":
empregado, 39 anos) "Pelo próprio perigo da estrada, a pessoa não consegue relaxar por
"Às vezes, quando meu marido está dormindo, ele movimenta os completo. Quando a gente está tocando direto, não tem horário certo
pés e a mão direita como se ainda estivesse dirigindo e trocando as pra dormir. Dorme de dia, de manhã ou à tarde, enquanto o outro
neiros como "parte integrante da profissão." Acrescenta ainda ambivalência em se tratando da auto-estima. Por um lado, a
que, na concepção do motorista, "o verdadeiro caminhonei potência do caminhão confunde-se com a auto-imagem da
ro deve aprender a conviver com o cansaço e desaprender a virilidade, coragem, força física, valentia, características da re
dormir." Por fim, completa: "o ritmo de trabalho desafia a presentação de um "herói". Por outro lado, os mesmos deno
razão" (Bouchard, 1987, p. 1 18). A observação do autor pode tam uma auto-imagem negativa ao reconhecerem seus limites.
ser confirmada com a seguinte declaração: Nas palavras da autora: "Eles próprios denotam ter uma baixa
"Tem que dormir muito pouco: uma, duas horas por noite! Se dor auto-estima, pois sentem-se desprovidos de conhecimento
mir mais, não dá conta. Então, eu chego em Belém mortinho, arre (nível de escolaridade, cultura etc.) e de reconhecimento pro
bentado, com os olhos na nuca, de canseira." (caminhoneiro fissional" (Vitorello, 1999, p. 99). Configura-se aqui a imagem
Sob outro ponto de vista, o caminhão mostra-se como ex Ainda convém assinalarmos o prazer como a outra face
tensão do corpo do caminhoneiro (VitoreIlo, 1999), conforme da relação homem/trabalho. Muitos caminhoneiros justifi
pudemos constatar em vários momentos de nossas entrevistas cam a escolha pela profissão devido à noção de liberdade
como, por exemplo, "eu estava quebrado", "eu estava sem que a mesma lhes proporciona. Alguns depoimentos são
estava com o farol queimado" etc. A interação entre homem e "Eu estou o tempo todo observando a beleza da natureza. Isso me
máquina é apontada também por Bouchard (1 98'7) ao assina dá vida, me dá força." (caminhoneiro autõnomo, 39 anos)
lar que o caminhoneiro nomeia seu veículo com o nome de "Eu me sinto bem na estrada, eu encontro com Deus na estrada."
uma mulher e seu próprio sobrenome. O registro é gravado no (caminhoneira autõnoma, 49 anos)
A noção de liberdade está também atrelada às possíveis se numa praça da zona Leste, aos domingos, no período da
aventuras experimentadas ao longo da estrada. Em muitos manhã. Vão ao encontro dos caminhoneiros que partem da
,,
postos e nas chamadas "casas d e campo ou �, maI ocas" en- quele ponto para regiões longínquas do Nordeste. Os moto
l
contram-se, com facilidade, serviços de prostituição. Nessa ristas levam cartas e pequenas lembranças aos familiares
perspectiva, a liberdade do mundo na estrada contrasta com I desses migrantes a centenas ou milhares de quilômetros. As
as obrigações familiares que lhes são impostas, como, em encomendas serão entregues no mesmo local em que o ca
muitos casos, as de provedores da família. minhoneiro descarregará sua mercadoria, sendo depois en
Ourra justificativa apontada refere-se à possibilidade de caminhadas aos respectivos destinatários. Os remetentes
obterem melhores ganhos do que em outras ocupações que declararam depositar grande confiança nesses "mensageiros".
viessem a se dedicar. No entanto, é preciso considerar que Na estrada, o "trabalho solitário" dos caminhoneiros não
seus rendimentos estão diretamente relacionados à produti impede que se desenvolvam tanto relações de solidariedade
vidade, ou seja, à quantidade de viagens realizadas. Dessa e cooperação quanto de rivalidade e concorrência. A "união"
forma, há um confronto entre a "liberdade" propagada como por eles exaltada manifesta-se principalmente em situações
inerente ao trabalho do caminhoneiro e a submissão ao rit imediatas e locais, como, por exemplo, diante da ocorrência
mo de trabalho e às determinações das empresas em face da de um acidente de trânsito. Nessas ocasiões, as demonstra
organização do trabalho. ções de virilidade em face do perigo estão sempre presentes
e fazem parte do cotidiano (Nolasco, 1 995a). Na rotina de
A ESTRADA E SEUS DESAFIOS um dia de trabalho, postos e restaurantes, às margens das
A obra de Vilaça ( 1 987) nos apresenta o caminhoneiro rodovias, são os principais pontos de encontro de caminho
exercendo várias funções sociais, dentre elas a de mensagei neiros das mais diversas localidades do país. Durante as pa
ro. O autor denomina-o como o "camelot de notícias", carac radas para refeição e descanso, os estradeiros - termo
terística ainda preservada nos dias atuais. Queiroz também o emprestado de Cherobim ( 1984) - substituem as comodida
retratou no convívio com populações distantes: " ... o chofer des de casa pela infra-estrutura oferecida pelos postos. Ao
do caminhão é o jornal falado, pode ser comparado até com longo da estrada, a prestação de serviços varia muito de qua
rádio - sendo que vai onde rádio nunca foi, porque não pre lidade.
cisa de eletricidade e, por onde vai passando, va� dizendo o Nas rodovias mais movimentadas há forte concorrência
que sabe" (Queiroz, 1958, p. 145). de redes de postos, cujas instalações acomodam dezenas ou
Na cidade de São Paulo, migrantes nordestinos reúnem- até centenas de caminhões. Os estabelecimentos funcionam
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como uma segunda casa do caminhoneiro. Visando atender dízio", "por quilo" ou o popular "prato feito", grande parte
às necessidades básicas do motorista, os grandes postos dis dos caminhoneiros preparam a própria comida. Alguns justi
põem de área reservada ao serviço de lavanderia, com tan ficam que o custo da viagem torna-se ainda mais elevado
ques e pias, nos quais os clientes podem lavar suas roupas e caso efetuem tal despesa nos restaurantes todos os dias, no
louças. Geralmente, no horário de almoço, a procura pela la almoço e no jantar. Outros alegam que não gostam da "comi
vanderia é intensa. As roupas lavadas podem ser estendidas da da estrada" e preferem cozinhar durante a viagem.
em varais adaptados para esse fim. As instalações dos melho Os caminhões dispõem de uma grande caixa adaptada na
res postos contam ainda com amplos banheiros com chuvei lateral direita, sob a carroceria - denominada "cozinha" na
ros, telefones púb licos, farmácia, banca de revistas e qual são armazenados mantimentos, panelas, um pequeno
borracharia. Como atrativos para a satisfação dos clientes, os fogão portátil de duas bocas e o botijão de gás:
postos oferecem brindes e cafezinhos gratuitos, organizam "Eu cozinho direto, mesmo sozinhol Eu fiquei 34 dias trabalhando
eventos musicais e até convidam padrcs para celebrarem Já na Bahia. Era muito difícil eu entrar num restaurante pra comer.
missas: Sempre fazia no caminhão," (caminhoneiro empregado) 39 anos)
"Tem um altar no caminhão do padre. O baú abre a lateral e fica Aqueles que optam pela refeição do restaurante defen-
como um altar na igreja. O padre reza o terço para os caminhonei dem a "economia de tempo" na viagem:
ros. É um padre ambulante." (caminhoneiro autõnomo, 29 anos) "Meu marido fala que não compensa parar pra fazer a comida por
Não se trata, pois, de prática comum adotada pelos pos- causa do tcm'P0 que ele perde." (esposa de caminhoneiro, 54 anos)
tos de estrada, pois a maioria dos referidos estabelecimentos �'Na estrada, se eu for fazer almoço, vai demorar, no mínimo, uma
não dispõe de tamanha infra-estrutura. hora, uma hora e meia, duas horas. E m vez de tu descansar, tem
Há três tipos de postos, na estrada: alguns atendem so que fazer a comida, depois vai lavar a louça, tem que arrumar tudo.
mente passageiros de ônibus e de carros particulares; outros A comida do restaurante nunca é igual àquela que a gente faz. No
atendem somente caminhoneiros e, por fim, há postos para restaurante tem que comer ° que tiver. Às vezes, é sobra de comida
atendimento a qualquer tipo de freguês. Os caminhoneiros do outro dia. Minha sorte é que eu não sinto dor de estômago."
utilizam instalações (restaurantes e banheiros) diferenciadas (caminhoneiro autõnomo, 52 anos)
dos demais usuários. Geralmente, as refeições servidas nos Nas breves paradas para o banho, a refeição e o descanso
espaços reservados aos caminhoneiros têm preçQS inferiores e, em especial, durante um evento artístico ou religioso, os
às destinadas aos outros fregueses. Embora os postos tenham caminhoneiros tecem um rápido convívio social, rompendo
restaurantes servindo refeições nos sistemas seI{ service, "ro- o silêncio sob o qual permanecem em quase toda a longa
um colega de quem não se tinha notícias há muito tempo. ção, o policiamento, mas queremos utilizá-lo pela necessidade e
97 Folha de S. Paulo, Caderno Brasil, "Rádio foi fundamental para a greve", 1°1 98 Declaração de caminhoneiroautônomo, 44 anos, feito à Revista Caminhoneiro,
8/99, p. 10. ano XV, n' 151, agosto/1999, p. 44.
figura bastante polêmica entre os caminhoneiros. As rela rodoviário!" (caminhoneiro empregado, 39 anos)
ções sociais entre ambas as partes são marcadas por fortes Mas há também declarações contrárias:
tensões. Pudemos verificar que, na opinião de parte consi "Eu não tenho nada contra os guardas porque eles me ajudam muito.
derável de motoristas de caminhão, nem todos os guardas Tem cara que não gosta dos guardas, mas eu não tenho nada con
exercem sua função com honestidade e profissionalismo. As tra," (caminhoneiro autônomo, 24 anos)
principais queixas referem-se ao abuso de autoridade prati Apesar das opiniões divergentes, uma das pautas de rei
cado pelos referidos guardas, bem como à coação para paga vindicação do movimento grevista consistiu em exigir, das
mento de propinas, no momento em que os mororistas são autoridades competentes, maior rigor nas punições contra a
abordados na estrada. As reclamações dos caminhoneiros são corrupção praticada por membros da Polícia Rodoviária. Por
divulgadas tanro na imprensa escrita quanto na falada, na tanto, as várias visões do caminhoneiro sobre a figura do guar
qual os mororistas protestam publicamente contra a situação da rodoviário carregam a ambigüidade do seu papel: ora como
à qual se julgam vítimas de policiais rodoviários corruptos: inimigo, pronto a atacá-lo, ora como aliado, preparado para
"Os guardas rodoviários são ignorantes. lratam o motorista como protegê-lo.
ladrão. Gostaria que tivéssemos policiais mais educados e compre
ensivos. Eles multam por qualquer coisa. E há policiais tomando ROUBO DE CARGAS
dinheiro do coitado do motorista." 103 Desde os primeiros anos da década de 1990, os roubos de
As denúncias são feitas também nos programas de tele cargas transformaram-se num apêndice da grande indústria
visão "Clube Irmão Caminhoneiro Shell", exibido pela Rede do crime organizado. A região Sudeste é responsável por
85,43% das cargas roubadas, enquanto o Nordeste responde
por 6,50%, o Sul 4, 1 1 %, o Centro-Oeste 3,37% e a região
103 Declaração do motorista O.R.c.F., de Ouro Preto d'Oeste-RO, à Revista
Caminhoneiro, ano XV, n° 146, março/99, p. 12. Norte 0,59%. Do total da região Sudeste, 60,30% dos roubos
são praticados no Estado de São Paulo. Portanto, a cada 10 De acordo com dados do SETCESp'106 65% dos assaltos
assaltos, 6 ocorrem nesse Estado. As rodovias que lideram os ocorrem nas áreas urbanas, durante o dia, em semáfotos ou du
casos de roubos de cargas e de caminhões são, em primeito rante a entrega ou coleta de mercadorias, contra 30% de ocor
lugar, a Rodovia Anhangüera, seguida pela Rodovia Presi rências nas rodovias, preferencialmente à noite, em postos de
dente Dutra. Segundo estimativa da empresa Pamcary, mai combustíveis e restaurantes. A fim de trabalharem com um
or corretora de seguros do setor de transporte rodoviário de mínimo de tranqüilidade, alguns motoristas - em especial os
cargas e especialista na prevenção e investigação de roubo autônomos - têm preferido transportar cargas de baixo valor,
de cargas, os valores das cargas roubadas aumentaram de R$ como o açúcar. Já foi constatado, por exemplo, que em épocas
102 milhões em 1994, para R$ 380 milhões em 1999. O refe de plantio há aumento de roubo de cargas de insumos agrícolas.
rido setor sofre uma média de 13 assaltos ou furtos por dia, Trata-se, pois, de ações de quadrilhas que agem sob encomen
no país. 1 04 da. Em outras palavras, os ladrões sabem de antemão qual a
Diante da falta de segurança nas estradas, algumas em carga devem roubar para logo repassá-Ia ao receptador. Se o ca
presas seguradoras recusam-se a fornecer seguros para mer minhão é novo levam-no para ser vendido no Paraguai ou Bolí
cadorias muito visadas para roubo, como carne, cigarros, via; caso contrário, o veículo é logo abandonado. O motorista
pneus, calçados, equipamentos eletrônicos e medicamentos, pode ser seqüestrado e libertado horas depois, ou até vir a ser
entre outras. De um total de 130 empresas seguradoras exis assassinado. Quando possível, os caminhoneiros viajam em du
tentes no país, atualmente apenas seis fazem seguros de car plas ou em pequenos grupos, a fim de evitarem ou, ao menos,
gas.'05 Em geral, os contratos determinam uma série de dificultarem a ação dos bandidos.
exigências, como contratação de escoltas e a instalação de Os caminhoneiros criaram, então, uma Organização Não
equipamentos para rastreamento dos veículos por satélite. Governamental (ONG), chamada "Movimento contra o Rou
Assim, o custo das transportadoras tem elevado em virtude bo de Cargas e a Matança de Caminhoneiros". Segundo a
dos gastos com segurança. Os fabricantes de auropeças tam entidade, há seis mil notificações de assaltos por mês e quin
bém têm produzido equipamentos com os mais diferencia ze assassinatos de caminhoneiros no mesmo período, o que
dos recursos tecnológicos para proporcionarem maJOr representa uma morte de caminhoneiro, em decorrência de
segurança contra o roubo do veículo. assaltos, a cada dois dias.,o6 Há também um serviço gratuito
104 Folha
de S. Paulo, Caderno Brasil, 14/1/99, p. 13. 1 06 Sindicato das Empresas de Transporte de Carga de São Paulo.
lOS Tribuna impressa, Seção "Nacional", Araraquara, 25/9/99, p . 10. 107 Revista Veja, ano 32, n° 3 1 , 4/8/99, p. 42.
o AvESSO D O TRABALHO C O l E ÇÃ O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O
de telefone denominado "Disque Denúncia Roubo de Car da referida CP I, o motorista Jorge Meres A. de Almeida, de
gas", cujo número é 0800-172233. 39 anos. Envolvido no crime organizado, o ex-motorista de
Todos os meses, a Revista Caminhoneiro publica notas so cidiu delatar à CPI como se dá o funcionamento dessa orga
bre caminhões roubados e motoristas desaparecidos, em sua nização, em troca dos benefícios do Programa de Proteção a
seção "Recados." A seguir, duas mensagens publicadas no Testemunhas, criado em julho de 1999, pelo governo fede
referido periódico: ral. Em entrevista concedida à imprensa, o motorista decla
"Desaparecimento: Desapareceu, junto com o caminhão, Nelson rou:
. Fantin. Estava com um Mercedes, 1935 [sic], placa LZT 391 1, de
"De 1 994 a 1 997, eu levei 86 carretas roubadas para a Bolívia, onde
Joinville se, com lona azul. Ele carregou no último dia 1° ou 2 de
-
eram vendidas. Parte do dinheiro era usado para comprar drogas e
janeiro, em Itumbiara - GO. Se alguém souber o paradeiro, favor armas. ... A organização [aturava R$ 1,5 milhão só de cigarros e
" 108
ligar para ... medicamentos roubados em São Paulo." ! !O
"No dia 29 de junho, estava em viagem de Campinas a Curitiba, Em face da violência a que estão expostos, os caminho
parei no Auto Posto Fazendeiro para descansar. Por volta de 0:40 neiros sentem-se forçados a mudarem hábitos antigos. Co
horas, fui acordado por dois marginais armados que levaram o ca nhecedores das "armadilhas" dos ladrões, os caminhoneiros
minhão carregado de seis tambores de solventes para tintas evitam conceder caronas a transeuntes da estrada.
automotivas. Gostaria que me ajudassem a localizar o bruto. Eis os "Hoje, eu não dou carona pra ninguém, só se for pra minha mãe. Se
" 1 10
dados ...
. eu não conhecer ela de noite, ela fica também." (caminhoneiro
Através da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) do empregado, 39 anos)
Narcotráfico, a Assembléia Legislativa tem demonstrado que "A gente evita, ao máximo, dar carona. Tem o risco de assalto e,
o roubo e receptação de cargas e caminhões conta, direta ou outra, se acontece algum acidente com ó caminhão, e que envolva
indiretamente, com a participação de empresários, políticos, o caronista, tem que indenizar tudo. A Justiça não quer nem saber,
policiais, caminhoneiros e traficantes. A ligação entre o rou tem que indenizar." (caminhoneiro autônomo, 29 anos)
bo de cargas e de caminhões e o narcotráfico vem sendo des "Só se o cara for conhecido e o dono do posto apresentar pra mim,
vendada, a partir de depoimentos da principal testemunha senão, eu não dou. Eu não dou porque eu não sei se é ladrão. Mui
tos amigos meus já foram assaltados." (caminhoneiro autônomo, 24
anos)
108 Revista Caminhoneiro, ano XV, n° 146, março/99, p. 57.
1 09 Bruto: Caminhão. Revista Caminhoneiro, ano XV, n° 151, agosto/99, p. 80. llO
Folha de S. Paulo, Caderno Brasil, 22/11/99, p. 6.
o AVESSO 0 0 TRABALHO C O L E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O
Os caminhoneiros têm sido alvo de campanhas de tal não levam preservativos no caminhão . e 13% afirmaram
conscientização sobre a prostituição infantil, bem como de que nunca os usam." llI .
campanhas sobre doenças sexualmente transmissíveis Por último, a cabine do caminhão é resguardada como
(DSTs). O relato, a seguir, ilustra uma situação que não é espaço privado cuidadosamente zelado. Exemplo disso é a
exclusiva de determinadas localidades: demonstração de resistência de um informante, na ocasião
"Elas ficam no posto. Ela entra dentro de um caminhão, sai daque em que, ao ser abordado por um guarda rodoviário, este co
le caminhão, como coisa que não aconteceu nada, aí entra na outra municou-lhe que faria uma inspeção no local. A intenção do
·
cabine. Ela bate, o cara abre, ela entra pra dentro, fecha as cortinas. guarda foi interpretada pelo motorista como uma "invasão
Daí a pouco, sai dali. É menina de doze anos pra cima. Mulher de de domicílio" e respondeu-lhe indignado:
trinta anos? Acabou! Sai fora, já é velha! É tudo menina nova! Lá,
no Pará, lVlaranhão e Piauí, elas não têm onde trabalhar! Este é o "Ah! mas só com uma ordem judicial pra você fazer uma revista no
serviço delas. Onde elas vão trabalhar? É só madeira, é só tora! Se meu caminhão! Isso aqui é minha casa, eu moro aqui dentro, eu
elas não fizer isso aí, elas não comem, não vivem. Elas vivem da vivo aqui dentro!" (caminhoneiro empregado, 39 anos)
própria carne. É uma tristeza, dá dó!" (caminhoneiro empregado,
39 anos) Finalmente, ao mesmo tempo que o caminhoneiro en
Villela ( 1998) aponta as dificuldades em tratar das estra cerra-se na cabine pequeno "domicílio itinerante" - esta
tégias de prevenção da AIDS entre homens heterossexuais revela-se-Ihe como uma janela para o mundo.
que, por vários motivos relacionados à masculinidade, resis
tem a mudanças de comportamento. As revistas destinadas As MULHERES CAMINHONEIRAS
aos caminhoneiros têm noticiado, com freqüência, reporta A construção das relações sociais entre homens e mulhe
gens sobre as DSTs. Pautando-se em dados obtidos pelo res pode ser entendida a partir do reconhecimento da diferen
GAPA (Grupo de Apoio e Prevenção à AIDS), a Revista Ca ça dentro da diferença: muitos "masculinos" e muitos
minhoneiro apresentou os seguintes índices da pesquisa rea "femininos" (Matos, 1997, p. 107). Em outras palavras, ho
lizada pela referida entidade: "Duzentos caminhoneiros mens e mulheres, mesmo quando pertencentes à mesma classe
foram entrevistados no trecho entre Caçapava-SP e social, vivenciam de forma diferenciada os fatos do cotidiano
Guarulhos-SP. Desse total, 38% afirmaram manté;.r relações (Saffioti; 1992). Nesse sentido, as afirmações acima reportam-
sexuais com prostitutas e travestis, porém, apenas 18% de
clararam usar preservativos sempre. Por sua vez, 72% do to- II!
Revista Caminhoneiro, ano XV, n" 141, setembro/98, p. 7.
3 30 o AVESSO DO TRABALHO C O L E Ç Ã O T R A B A L H O E E M A N C ! PA Ç ÃO 3 31
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caminhoneiro, durante a viagem. Há ainda casos de mu menta, a avó caminhoneira interromp,:, u ,o trabalho - troca
lheres caminhoneiras que viajam sozinhas ou acompanha do pneu - para cuidar da criança, preparando-lhe o leite.
das somente dois) filho(s), alternando o trabalho do Os desafios da estrada, as condições precárias de traba
transporte de cargas com o cuidado à(s) criança(s). É o lho, os cuidados com o caminhão etc., somam-se à responsa
caso de uma caminhoneira que nos concedeu uma entre bilidade sobre a criança. Estabelece-se, assim, uma hierarquia
vista. Ela assumiu a maternagem 'em relação ao seu neto de prioridades, em que a criança não ocupa o lugar principal.
sem, contudo, abandonar o trabalho. Portanto, ao mesmo Suas necessidades ficam submetidas às condições impostas
tempo, ela desempenha os papéis dos gêneros masculino, pelo trabalho da mulher caminhoneira. Os horários de refei
decorrente da profissão, e do feminino, através das rela ção e de sono dependem da jornada de trabalho da motoris
ções de maternagem. E m relação àquelas que têm filhos, ta. O processo de socialização da criança eferiva-se num
a vida na estrada e a manutenção da família definem-lhes mundo formado por pessoas estranhas e passageiras, ao mes
papéis sociais distintos. Em alguns casos, o auxílio de ter mo tempo em que o caminhão se torna sua casa e seu brin
ceiros torna-se um meio para conciliar trabalho e família. quedo.
Os filhos são deixados com familiares, enquanto a mulher Nessa profissão, a sociabilidade entre homens e mulhe
dedica-se ao trabalho. res é restrita. As mulheres não são vistas como "intrusas" ,
Entretanto, conforme foi constatado no trabalho de mas se estabelece certo "estranhamento" com a presença
campo desta pesquisa, há situações das quais a dedicação feminina. Em certos casos, as mulheres enfrentam a resis
ao trabalho e à família interagem-se simultaneamente. Um tência masculina, devido à não-aceitação dos homens em
exemplo que ilustra tal situação ocorreu no momento em serem comandados por chefes do sexo feminino. A "estra
que um pneu do caminhão estourou durante a viagem en nha convivência" ultrapassa os limites da estrada. O depoi
tre os Estados de São Paulo e Bahia, da qual pudemos mento d e uma empresária revela os problemas por ela
acompanhar a rotina do trabalho de duas mulheres cami enfrentados, em meados dos anos 1960, ao assumir a direção
nhoneiras, que levavam consigo o neto de uma delas, de 5 da sua empresa, no ramo dos transportes rodoviários de car
anos de idade. Não havia outra solução senão dar início, gas, em virtude da morte do marido:
no mesmo instante, à manutenção do veículo. A criança, "Quando eu entrei, sem preparo nenhum, havia funcionários que
então, submeteu-se a tais condições tanto quanto as duas não aceitavam ordens de mulher. Alguns foram embora. E como os
mulheres, ao sentir fome, sede e calor, até que o proble recém-contratados, quando descobriam que o patrão era mulher,
ma do caminhão fosse resolvido. Num determinado mo- pediam demissão, passei a adotar o seguinte procedimento: 'Quer
ceu como mãe. Então, decidiu abandonar as estradas e traba corre-se o risco de não mais ser vista como mulher, mas rotu
ll3
lhar somente em viagens de curtas distâncias. lada como homem. A construção social de gênero é, então,
Desse modo, forma-se uma rede de ajuda que, na maio naturalizada. Tal concepção é comum nas profissões ditas
ria das vezes, as crianças passam a ser cuidadas por outras masculinas que exigem, inclusive, determinada conduta do
mulheres da família (mãe, tia, irmã etc.). Essa "cultura femi corpo físico e psicológico (Bourdieu, 1999). Portanto, as con
nina" criada a partir da identidade de gênero é tratada por dições de trabalho do caminhoneiro apresentam-se da mes
Gilligan ( 1 982). Segundo a autora, por meio das relações ma forma para ambos os sexos.
transgeracionais femininas são transmitidos os sentidos da
cooperação, da responsabilidade e do "cuidar': (Gilligan, A FAMíLIA
O modelo de família nuclear - pai/mãe/filhos - é bastan
113, Revista Caminhoneiro, ano XV, fi" 146, março/1999. te recorrente entre os caminhoneiros. Entre os casados, ge-
ansiedade que essas mulheres vivenciam, enquanto seus res aos maridos que, além de estarem trabalhando noite e dia,
pectivos maridos estão na estrada: sob sol e chuva, possam, porventura, estar enfrentando pro
"Eu não tenho vontade que minha filha se case com um caminho blemas na estrada. Por fim, o sentimento de culpa restringe
neiro. Ela vai passar pelo mesmo sofrimento que a gente passa." as do convívio social na ausência deles:
(esposa de caminhoneiro, 38 anos) "Quando meu marido não está, eu não vou a casamento, eu não
Em casa, a preocupação com as adversidades do trabalho vou em jantar dançante, eu não vou em nada!" (esposa de cami
do caminhoneiro gera na família - principalmente entre as nhoneiro, 34 anos)
esposas e mães dos motoristas - problemas de origem emocio "Não tem graça sem ele. Eu me sinto culpada. Eu penso: e o que
nal, como tensão nervosa, estresse, depressão e ansiedade: ele deve estar passando na estrada? E eu me divertindo? Eu não
"O pensamento ruim está sempre na cabeça da gente. Meu pai, me sinto bem. Se acontecer uma cOÍsa com ele, eu vou me sentir
meu irmão e meu marido são caminhoneiros. No primeiro ano de culpada, sabe? E se ele sofre um acidente e eu estou aqui me di
casada, eu tomava remédio de faixa preta para os nervos. Eu tinha vertindo? Então, eu não vou. A festa não me faz falta. Eu não pre
medo de atender o telefone. Eu pensava que já vinham trazer a ciso ir." (esposa de caminhoneiro, 45 anos)
notícia. Iv1inha mãe não tem unha, ela rói tudo-! Ela vive na janela A ausência do marido tende ainda a sobrecarregar o tra
roendo unha! Então, eu penso assim: o que ela está vivendo é a balho feminino, independentemente de a mulher exercer
mesma situação que eu estou vivendo!" (esposa de caminhoneiro, ou não uma ati vida de remunerada. No âmbito familiar, a
26 anos) mulher assume os papéis sociais de ambos os gêneros
"Se a gente sofre porque o marido está na estrada, pelo filho, a (Cherobim, 1 984, p. 1 2 1). É interessante notar as manifesta
gente sofre o triplo." (esposa de caminhoneiro, 40 anos) ções das mulheres no tocante ao desempenho de funções: ao
As declarações evidenciam que os efeitos da relação ho mesmo tempo em que elas se julgam mais emancipadas,
mem-trabalho repercutem diretamente nos familiares dos decididas e determinadas que aquelas, cujos maridos estão
motoristas. Em outros termos, os reflexos do trabalho alcan sempre presentes no lar, elas também reivindicam mais con
çam, inclusive, aqueles que não estão diretamente compro vivência e participação dos caminhoneiros no que se refere à
metidos com sua execução. O envolvimento da família com administração familiar. ·
o trabalho do caminhoneiro manifesta-se, também, através De acordo com a análise de Sarti, a autoridade feminina
da privação de entretenimento a qual algumas mulheres limita-se à esfera do lar. Acima dela repousa a autoridade
impõem a si mesmas, enquanto os motoristas encontram-se masculina, com a família sob seu controle: "Existe uma divi
longe de casa. A abnegação é justificada como solidariedade são complementar de autoridades entre o homem e a mu-
35° o AV E S S O D O T R A B A L H O C O L E Ç Ã O T R A B A L H O E E MA N C I PA Ç Ã O
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.
SIMONE WOLF'"
INTRODUÇÃO"5
Quando o processo de adaptação se completou, verifica-se en
tão que o cérebro do operário, em vez de mumificar-se, alcan
çou u m estado de liberdade completa. Só o gesto físico
mecanizou-se inteiramente; a memória do ofício, reduzido a
gestos simples repetidos em ritmo intenso, "aninhou-se" nos
feixes musculares e nervosos e deixou o cérebro livre para ou-
114
Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas _
advento das novas tecnologias da informação, efetuamos 1. Os PROGRAMAS DE QUALIDADE TOTAL E O NOVO
uma análise que buscou enfocar, em seus meandros, o HOMEM-MÁQUINA.
entendimento da informação como um novo commodity nas A aplicação das novas tecnologias da informação na pro
empresas e, por conseguinte, dos homens como uma má dução em conjunto com as mudanças na organização e ges
quina/coisa produtora e otimizadora dessa nova mercado tão do trabalho faz parte de uma estratégia empresarial
ria. B u scamos evidenciar que esse entendimento é que objetivou responder à profunda crise que atingiu o
resultado da conseqüente prevalência do trabalho morto, capitalismo no início da década de 1 970. Tal crise trouxe
materializado nas máquinas, sobre o trabalho vivo - ten profundas mudanças no mercado de consumo determinan
dência intrínseca à produção capitalista e, particularmen do uma mundialização!!6 do capital que, por sua vez, exi
te, ao fenômeno da reificação. Sendo assim, o trabalho vivo giu das empresas uma reestruturação produtiva que
passa a ser visto em termos de máquina, tendo que agir persiste até os dias de hoje. Dada a versatilidade e rapi
enquanto tal, de modo a abastecer e otimizar as funçôes dez possibilitada por seus softwares, as novas tecnologias
computacionais - leia-se, o trabalho morto em detrimento da informação são capazes de atender rapidamente as va
da sua atividade criativa e, desse modo, a produtividade riações de consumo colocadas pela mundialização, consti
empresarial. tuindo-se, por isso, uma ferramenta fundamental dessa
À luz de certos princípios que integram os PQTs, é reestru turação.
possível perceber a tentativa de adequação dos trabalha
!J6
dores às operações próprias das novas máquinas informá Em contraposição ao termo "globalização", preferimos adotar o de
"mundialização", invocada por Chesnais ( 1 996), para nos referirmos às
ticas e, pois, o tratamento destes ao mesmo tempo como
mutações do capitalismo , ora em curso. Para este autor, a designação
insumo e instrumento de potenciação das mesmas. É as "globalização", cunhada no início dos anos de 1980 "nas grande escolas
sim que uma análise crítica do conjunto das técnicas que americanas de administração de empresas" (CHESNAIS. 1996, p. 23), é
integram o modelo de gestão do trabalho dos PQTs nos demasiadamente ideológica, pois encobre a principal faceta político�econômica
desse processo: a de que as rédeas desse processo estão nas mãos das grandes
permite explicitar os indícios de um novo processo de
empresas transnacionais e conglomerados. Longe de representar uma mudança
reificação engendrado pela informatização do trabalho. no sentido de uma expansão do mercado mundial através da livre concorrência,
Com isso, O artigo contemplará, simultaneamente, dois dos como sugere a noção de «globalização", o que se vê é justamente o contrário.
Ou seja, as grandes corporações, livres das rígidas regulamentações impostas
principais pilares da atual reestruturação produtiva como
sob o Well-Fare State, estão invadindo o mundo e ditando, ao seu bel prazer,
uma nova roupagem para um fenômeno inerente à produ as regras e os critérios de seletividade para a exploração, tanto do mercado de
ção capitalista. consumo como o de trabalho.
!
modo, um outro aspecto de tal reestruturação é a promoção A integração se baseia nos mesmos princípios tayloristas-e fordistas
de um novo estilo empresarial, a chamada administração de eliminação dos tempos mortos, otimizando a relação entre tem
participativa, que visa, entre outras coisas, conformar um novo po de circulação e tempo de operação e uma otimização da lógica
perfil de trabalhador que responda às demandas exigidas pela da informação no fluxo produtivo e dos meios circulantes, abaste
mundialização e sua expressão melhor acabada no interior cendo assim, com a máxima eficiência e rapidez, as linhas e os pos
das empresas: informatização da produção. Esse objetivo é tos segundo suas necessidades (Neves, 1994: 28).
atendido, mais especificamente, pelos Programas de Quali Ao impor um novo perfil de trabalhador que atenda às
dade Total, os quais se destacam como uma das inovações exigências colocadas pela mundialização do capital e sua
tecno-organizacionais mais representativas e eficazes no que principal ferramenta, a informática, a reestruturação em
se refere à otimização desse novo processo de modernização presarial em curso conforma um novo tipo de reificação do
empresarial. trabalhador.
Em um cenário de tão grandes transformações, é de se Foi no "ohnismo" l17, também comumente chamado
esperar o agravamenro daquilo que foi apontado por Harvey "toyotismo", que tal reestruturação encontrou as bases
( 1 992: 1 18-1 19) como uma dificuldade estrutural da produ
ção capitalista, isro é, a "conversão da capacidade de homens !17 «Ohnismo" é um outro termo utilizado para identificar o "toyotismo", isto é,
e mulheres de realizarem um trabalho ativo num processo um conjunto de novas técnicas de gerenciamento da produção e do trabalho,
originárias do }apão do pós II Guerra Mundial, tendo como objetivo reaquecer
produtivo cujos fruros possam ser apropriados pelos capita
a produção de suas empresas e alavancar a então debilitada economia japonesa.
listas". Portanto, o que se recomenda ao empresariado é a Ainda que a crise atual se caracterize por um mercado ampliado e atuante em
busca de novas políticas de gestão empresarial e da força de escala planetária, o grau de competitividade e desemprego imposto pelas
trabalho que dêem conta de formar de uma mentalidade re políticas neoliberais próprias da globalização, deixa-o bastante limitado em
nível de unidade empresarial.
ceptiva à necessária reestruturação produtiva pela qual suas
O "toyotismo" oferece uma solução simples mas eficiente para superar este
empresas têm de passar para se manterem competitivas. quadro: produção enxuta, diversificada e em conformidade com a demanda
Nessa nova empresa, o liame entre equipamentos, tra efetiva.- Ou seja, em confronto direto com o modelo fordista de produção, o
"toyotismo" conseguiu levantar a economia japonesa, assim como, mais tarde,
balhadores e informações passa a ser essencial. Igualmen
veio a se revelar extremamente oportuno às circunstâncias colocadas pela
te, a rápida adaptação desses às recorrentes variações do mundialização. Seu sucesso foi tão grande que, no início dos anos de 1980,
cadorias. Por isso pensamos que se possa dizer que, no universo da p. 150), com a gerência científica: a unidade de pensamento e ação, concepção e
execução, mão e mente, que o capitalismo ameaçou desde os seus inícios . O fator
..
1
Antes de entrarmos em nossa problemática propriamen ção dos PQTs segundo os ditames político-económicos en
te dita, é importante fazermos algumas considerações sobre gendrados pela crise que começou a atingir o capital por
o conteúdo discursivo dos PQTs de maneira a destacar seu I ocasião de seus primeiros escritos. Da mesma forma, é o au
caráter fetichista. Neste estudo, as citações relativas aos di jI tor que mais avançou relativamente à adequação dessa téc
tos Manuais da Qualidade Total concernem às suas duas fon 1 nica organizacional às transformações que a mundialização
(
II
tes primárias e inspiradoras de todos as demais publicações provocou no interior do processo produtivo. Isso fica muito
que lidam com essa temática. São estas o livro de Juran ( 1993): claro na última versão de seu manual da QT publicada em
, 1990 (a primeira data de 195 1 ), o que nos permite observar
entre outras coisas, pelo ajustamento - mediante análise sistemática - dos como esses programas permanecem bastante atuais. Logo
movimentos humanos aos das máquinas e pejo aprimoramento da própria
na introdução, J uran (1993: IX) coloca que a nova edição foi
maquinaria, o que é permitido, em grande medida, por tal ajustamento. É nesse
mesmo sentido que Gramsci (1976, p. 403) definiu o taylorismo como um revista e ampliada para "acompanhar as grandes mudanças
"processo de adaptação à mecanização". Para ele, tal adaptação incide que vêm acontecendo". Porém, as causas e características
diretamente sobre o perfil dos trabalhadores instaurando uma perversa
político-económicas dessas mudanças nunca ficam muito
qualificação que "é medida a partir de seu desinteresse intelectual, da sua
'mecanização'. "
bem esclarecidas, antes são dados a priori e inexoráveis, isto
Constitui-se, assim, o homem-máquina (ef. Braverman, 1981), ou seja, aquele é, fatos inquestionáveis que apareceram a partir da "última
cujas atividades produtivas são baseadas, exclusivamente, er:t cálculos de metade do século 20" com o surgimento de certas "forças
eficiência e lucro, aquele que, em virtude da lógica imperativa das relações
emergentes" e que "exigiriam, então, que fosse dada priori
capitalistas de produção, tem que se adequar a todo custo ao espectro de uma
maquinaria específica para a otimização dessa mesma relação. dade à qualidade" (Juran, 1993: 137).
nessa forma de produzir. Uma padronização que homogeneiza Nos discursos dos PQTs, harmonia e cooperação entre
toda a ação e pensamento em prol do capital, fragmentando capital e trabalho é uma propagação constante. Ora, como
os não só objetiva mas também subjetivamente. Como já falar, dentro do quadro acima apresentado, em autonomia,
afirmara Lukács (1978: 100) em sua análise sobre o taylorismo: criatividade, liberdade de expressão, ou, mesmo cooperação
essa mecanização racional penetra até à 'alma' do trabalhador: até e harmonia entre capital e trabalho? Será que haveria neces
suas propriedades psicológicas são separadas do conjunto da sua sidade de tamanha ênfase nesses princípios se esses fossem
personalidade e objetivadas em relação a esta para poderem ser uma condição natural e inerente à estrutura e relações sociais
.
integradas em sistemas racionais especiais e reduzidas ao conceito estabelecidas sob a produção capitalista? Sabemos que tal
calculador. estrutura se conforma de maneira diametralmente oposta à
Ao que tudo indica, os PQTs fazem parte de mais um idéia de equilíbrio e harmonia, ou seja, em uma estrutura de
"sistema racional especial" da produção capitalista com vis classes antagõnicas, em que a pobreza - material e espiritual
tas a criar novos critérios otimizadores da exploração da mais - de muitos é a condição para a riqueza de poucos. Nesse
valia, em um novo contexto em que a informação tornou-se contexto, conquistar a adesão dos trabalhadores a programas
não só matéria-prima mas também a própria mercadoria. que objetivam o aumento de produtividade é uma tarefa nada
Portanto, a expropriação de idéias revela-se uma tuptura para fácil.
a continuidade dos princípios da OCT, posto que a expres Por isso que, para amenizar os copflitos inerentes a esse
são "penetra até a alma do trabalhador" não é mais uma quadro, "o discurso administrativo propõe a chamada gestão
metáfora para se referir à fetichização do pensamento ou, participativa, voltada para obter o 'envolvimento' do traba
nas palavras de Lukács, das "propriedades psicológicas". lhador na manutenção e repasse das informações para o de
Antes é uma realidade viabilizada pelas novas tecnologias da senho e operação de novos equipamentos" (He\oani, 1994:
informação, que tornam possível objetivar e concretizar até 105). Informações-mercadoria, posto que sugadas e "codifi
a personalidade dos trabalhadores que, agora, pode ser com cadas, memorizadas, por meio de linguagens e sinais que
putada e materializada nas· máquinas. Isso fica claro em enun maquinizam e automatizam partes crescentes do saber e do
ciados presentes nos manuais de Q1: tais como o seguinte: saber-fazer humanos" (Pena Castro, op.cit.: 41). Informações
Para que se consiga obter a qualidade desejada, ou seja, a satisfação reificadas que, uma vez cristalizadas nos novos equipamen
total dos clientes, é necessário enraizar no pensamento, nas pala tos, se transformam em trabalho morto, passando a controlar
vras e obras os mandamentos da Qualidade Total (Folha de S. Pau- o processo de trabalho e as atividades produtivas. Por fim,
lo, 20/3/94). determinando um novo tipo de reificação que requer novas
reificação, eis o papel que cabe à gerência neste momento e to a mais nova ferramenta do capital, exige uma nova
cujos PQTs tão bem expressam e apóiam. qualificação a qual, longe de representar o desenvolvimento
e enriquecimento de mais uma qualidade humana, tem a
Vimos, portanto, como os PQTs contribuem para o de habilidades estejam devidamente direcionadas em confor
senvolvimento e consolidação do atual panorama económi midade com esta e, junto com ela, com as novas demandas
co mediante a propagação de um discurso fetichizado. Esse do capital relativamente ao mercado de consumo e trabalho.
fetiche opera no sentido de racionalizar as diversas subjeti É nesse sentido que observamos, também, como alguns
vidades presentes no processo produtivo - da gerência ao preceitos contidos nesses programas funcionam como um
chão da fábrica de maneira a garantir um comportamento estímulo à formação de um novo perfil de trabalhador que
padrão e homogêneo que facilite a introdução das inovações venha a atender às exigências da informática, novo instru
organizacionais e tecnológicas necessárias à manutenção da mento de trabalho eleito para potencializar o atual panorama
competitividade das empresas no quadro do capitalismo con político-económico. Esse adestramento é crucial à medida
temporâneo. Mas, mais que isso, a análise do PQT - em sua que, como vimos, "a rentabilidade das operações automatiza
fonte mais fundamental e revista, qual seja, o manual da das está ligada tanto à capacidade de operação dos novos
qualidade de Juran - nos permite perceber, passo a passo, equipamentos, quanto à qualidade da organização da produ
todo o processo sob o qual se desenvolve o fenómeno da ção e do trabalho. ( ... ) A capacitação tecnológica começa pela
abordagem organizacional" (Soares, 1992: 17).
reificação, agora qualitativamente acrescido em virtude do
Por isso, a análise de tais programas nos permitiu detec
advento das novas tecnologias da informação que tornaram
tar a nova reificação humana em toda a sua dimensão, isto é,
possível a expropriação intelectual do trabalho vivo.
tanto objetiva quanto subjetivamente. Através desta análi
A receita para as empresas de como efetivar esse novo
se, conseguimos perceber uma clara tentativa, por parte des
tipo de reificação está toda lá, desde a sucção das qualidades
ses métodos de gestão, de organizar novos meios de controle
do trabalho vivo mais necessárias à atual fase do capital -
aquelas fornecidas pela sua dimensão intelectual; idéias, in sobre a força de trabalho, mais condizentes com os potenciais
formações, criatividade etc. - até sua passagem em lingua da nova ferramenta de trabalho. Ou seja, de operar a confor
gem de máquina de maneira a cristalizá-la nos computadores mação do novo tipo de homem-máquina, exigido pelas
Conforme vimos, o novo homem-máquina se caracteriza de inovação multiplicam-se quando as organizações conseguem
por ser fonte de informações para as máquinas informáticas. estabelecer pontes para transformar conhecimentos tácitos em
Essas informações, quando não são imediatamente incorpo explícitos, explícitos em tácitos, tácitos em tácitos e explícitos
radas nessas máquinas para a melhoria da produção das em em explícitos" . Nesse contexto, a "comunicação on-line e a
presas, podem ser registradas num banco de dados e capacidade de armazenamento computadorizado tornaram-se
Transformadas em software, as idéias advindas das experiên dos elos organizacionais entre conhecimentos tácitos e explí
dução podem ficar cristalizadas num supercomputador da Ora, ainda que tenham precedido à disseminação das
empresa. Por conseguinte, a subjetividade dos trabalhado tecnologias da informação, essa é uma preocupação constan
res, bem como seu saber-fazer, tornam-se passíveis de se te que encontramos nos PQTs, sobretudo nos capítulos refe
transformarem em trabalbo morro. Sendo essa a recomenda rentes às novas políticas de gestão. No capítulo dedicado à
ção, tanto faz se esse supercomputador seja real ou fictício, o "Administração do desempenho humano" da obra de Juran,
Esses preceitos se adequam [ao] novo modelo de empre processamento de informações e de discernimento, o arbítrio e a
sa chamado de "empresa criadora de conhecimentos", a qual capacidade que o empregado tem de contribuir para o controle e
"baseia-se na interação organizacional entre os 'conhecimen aperfeiçoamento da qualidade aumentam. ( ... ) o aperfeiçoamento
tos explícitos' e os 'conhecimentos tácitos' na fonte de ino do indivíduo permitirá o aperfeiçoamento da companhia. Os ope
vação" (Castells, 1999: 180). Os "conhecimentos tácitos" são rários são, portanto, mais que uma mercadoria - eles são um recur
aqueles provenientes da experiência acumulada de cada tra so a ser desenvolvido. (Juran, 1993: 81-66, respectivamente).
balhador no processo produtivo e cuja excessiva formalização Mais adiante, Juran ( 1993:217) também chama atenção
na organização do trabalho acaba dificultando sua .percepção para o fato de que a "informação se encontra na memória do
pela gerência, impedindo sua incorporação na administração pessoal experiente" e que "esse arranjo faz com que a em
da empresa. Conforme Castells ( 1 999: 1 8 1 ), o desven- presa se torne vulnerável à perda de informações essenciais
o 0 0
AV E S S O TRABALH O C O L E ÇÃ O T R A B A L H O E E M A N C I PA Ç Ã O
no caso de demissão do empregado". Para tal perigo, porém, empresas: "Os membros da equipe utilizam sua experiência
o remédio oferecido é o que ele denomina de "transferência e sua especialização para dar contribuições . ... Dados para
de conhecimento". Essa diz respeito ao estabelecimento de auxiliar a encontrar o ideal. ... Tais dados são valores óbvios
um "fluxo inverso de informação", em que "os planejadores para o desempenho geral da otimização" (Juran, 1993: 193).
aprendem com o retorno das informações". A transferência Para ficar ainda mais claro o entendimento do "trabalho
igualmente deve "incluir um banco de dados" que tem "va em equipe" e "CCQ" como expropriação intelectual e con
lor para treinamento do pessoal operacional e para referên seqüente reificação d e novo tipo proporcionada pelas
ciá" (Juran, 1993: 201). Daí a necessidade de se providenciar tecnologias da informação, observe-se esta outra passagem:
a "transmissão de dados históricos ... para um computador Uma equipe é um sistema de processamento produzindo saídas
central" com certa regularidade (Juran: 139). Tal estratégia (soluções de problemas, decisões, planos estratégicos, políticas, de
também é interessante para garantir a qualidade "pós-pro senhos de engenharia, equipamento consertado etc.) para o usuá
dução". Nessa fase, o que se aconselha é a instituição de um rio. Os resultados de alta qualidade (soluções inovadoras) são
"Centro de Dados de confiabilidade ... criado e operado a prováveis porque a idéia geradora e os processos de avaliação usa
fim de coletar, analisar, medir e relatar dados pertinentes à dos pelos grupos podem produzir resultados que geralmente não
história operacional do sistema", porque a "decisão tomada são possíveis com a simples combinação de idéias e esforços de
pelo sistema [e que servirá como indicador da confiabilidade pessoas trabalhando sozinhas. (Juran, 1993: 129)
do produto] conterá uma base de j ulgamento conhecida, con É assim que as máquinas passam a comportar, cada vez
trariamente do que ocorre com um inspetor humano" (Juran: mais, as habilidades humanas, revelando a pretensão con
150-15 1). creta e viável, por parte da administração, da busca do au
Os CCQs (Círculos de Controle da Qualidade) são colo mento da produtividade e do conttole da força de trabalho
cados como uma das técnicas mais fundamentais no forneci pela sua substituição e/ou desespecialização no interior do
mento de dados a serem utilizados nas "reestruturações para ptocesso produtivo. Ou seja, "como meio de dominar, de
absorver mudanças na tecnologia" (Juran, 1993: 65). Para além padronizar o trabalho de manutenção e de reduzir o efetivo
de uma mercadoria, de uma coisa que tem preço e pode ser da população operária profissional que, por enquanto, é ain
vendida por um preço inferior daquilo que produz, o ser que da a memória técnica das empresas" (Freyssenet, 1990: 109).
trabalha transformou-se, também, em um cl.ado a ser Vejamos como o próprio PQT contempla tal possibilidade:
decodificado e recodificado em linguagem de máquina, au Os computadores têm a capacidade para substituir todos os formu
mentando ainda mais sua capacidade de gerar lucro para as lários gerados manualmente e de reportar os dados de decisão à
3 86 o AVESSO DO TRABALHO C O l E ÇÃ O T R A B A L H O E E M A N C I PA ÇÃ O
da, tais como supervisão, manutenção e prevenção de panes. como agir e ajudar no caso de o "erro técnico" ter sido provo
Essas tarefas, antes executadas por técnicos especializados cado por outro operário. Consciente de suas "responsabili
e/ou engenheiros de produção, cabem agora, em grande dades", do que devem fazer e de como devem fazer, os
medida, aos operários, já que os hardwares permitem que boa operários podem exercer suas funções sem que seja necessá
parte dessas atividades sejam neles incorporados por esses ria a figura do capataz. Igualmente, podem agregar às suas
mesmos profissionais. atividades produtivas outras tantas que gravitam em torno
Tudo isso exige "responsabilidade", "iniciativa", capaci dos processos automatizados. Tais fatores representam uma
dade de "prevenção", "flexibilidade" e um permanente "es grande vantagem às empresas à medida que permitem uma
tado de autocontrole", outro conceito-chave encontrado nos significativa redução no seu quadro de pessoal, sem precisar
PQTs. Essas demandas são requeridas visto que, no caso de conceder um proporcional aumento salarial àqueles que nela
ocorrência de panes, não há tempo a perder esperando por permanecem.
técnicos ou engenheiros. Na produção informatizada, devi Assim, um operário em "estado de autocontrole" se tor
do à grande integração viabilizada ao processo produtivo, esse na amplamente versátil, polivalente e subjetivamente con
tempo perdido implica em grandes prejuízos para a empre trolado para agir e pensar segundo os ditames da produção
sa. Assim, é necessário que os próprios operários tenham de capitalista, em sua configuração tecnologicamente mais avan
senvolvido habilidades que se remetem à dimensão cognitiva, çada. Conforme Juran ( 1 993: 121-122):
de prévia-ideação da atividade criativa, de maneira que eles Os sistemas de produção estão se tornando mais automatizados com
próprios sejam capazes de achar uma solução aos eventuais o uso de robôs e da ligação de máquinas individuais a complexos
problemas ocorridos nas máquinas e/ou na produção. Para sistemas integrados, controlados por computador, onde falhas em
tanto, é preciso que eles já tenham muito bem introjetada a qualquer parte do sistema podem ter conseqüências sérias para todo
nova lógica de produtividade. o sistema. Dentro desse cenário, o trabalhador não tem mais tare
A noção de "autocontrole" tem justamente essa função, fas simples e repetitivas. O serviço é monitorar, diagnosticar e cor
pois prescreve a necessidade de o operário estar devidamen rigir as causas de instabilidade. O processo de diagnóstico e correção
te a par de suas "responsabilidades" no interior do processo é complexo, em virtude da multiplicidade dos modos de falhas
produtivo e dos prejuízos que qualquer "erro técnico" pode potenciais. Não é suficiente treinar os funcionários antecipadamente
causar para a empresa. Além disso, deve ter con_hecimento para lidarem com um número limitado de causas potenciais e de
do processo como um todo e não apenas de suas funções terminadas de instabilidade. Os funcionários precisam de um am
específicas, como ocorria sob o taylorismo - para que saiba plo conjunto de técnicas e de conhecimento para lidar com os modos
Caberia perguntar onde fica a propalada participação e ou, quando não, tenta demonstrar "que essas contradições
democratização da produção em quadro marcado por uma palpáveis são mera aparência da realidade comum, mas que
"estrutura hierárquica da autoridade", que determina a "con nem sequer existem em si, e, portanto, também não exis
formidade do ponto de vista com seus superiores". tem na teoria". Assim, conforme Marx ( 1 983: 57), para o
No capítulo dedicado ao planejamento da produçãol 25, "economista burguês":
Juran ( 1 993: 241 ) nos esclarece [e] precisa melhor de onde ( . ) é impossível outra utilização da maquinaria que não seja a capi
..
vem essa "resistência cultural". Essa é uma "conseqüência talista. A exploração do trabalhador pela máquina é, por conseguinte,
social [que] consiste no impacto da mudança tecnológica para ele, idêntica à exploração da máquina pelo trabalhador. Quem,
sobre o 'padrão cultural' dos seres humanos envolvidos, ou portanto, revela o que realmente ocorre com a utilização capitalista
seja, suas crenças, hábitos, tradições, práticas, símbolos de da maquinaria simplesmente não quer sua utilização, é um adver
status etc". Para o POT, então, essa conseqüência social é a sário do progresso social!
"raiz da resistência às mudanças". Para Marx, essas são reações e idéias típicas de um modo
Tal pressuposição nos é percebida como uma perspecti de produção cujo trabalho e suas concretizações estão basica
va "triunfalista" (Cf. Uchida, 1 996) a respeito das inova mente voltados para o valor de troca - único capaz de gerar
ções tecnológicas. O "triunfalismo" é um tipo de fetiche já mais-valor - e não para atender anseios próprios, valor-de-uso.
percebido por Marx ( 1983: 54) desde os primórdios da ma Essa prevalência, aliada com a transformação da força de tra
quinaria. Isso, particularmente, quando de sua análise so balho em mercadoria, implica em um não reconhecimento,
bre a teoria econômica burguesa da compensação - aquela em um estranhamento, do ser que trabalha relativamente
àquilo que produz (Cf. Antunes, 1 995). Tal fenômeno faz com
que os homens que vivem sob essa relação social fundamen
1 24 Capítulo 10: "Administração do desempenho humano".
1 25 Capítulo 22: "Planejamento para a qualidade". talmente mercantilizada, ou seja, que só se relacionam através
126
julgando os outros ' analfabetos', primitivos e dotados de
De acordo com Uehida ( 1996), além do "triunfalismo", existe também o fetiche
de tipo "luddista". O "luddismo" foi um movimento proletário, surgido na
uma lógica anacrõnica de pensar" (Uchida, 1996: 91). Para
Inglaterra do final do século 18, Üderado pelo operário Nedd Ludd, contra a nós, esse tipo de fetiche é o que mais contribui para enco
introdução das máquinas de vapor e tear nas indústrias inglesas. Esse brir o quadro de exploração e dominação próprio da produ
movimento acabou se alastrando por boa parte da Europa, caracterizando�se,
ção capitalista. Isso porque, ao reverenciar a tecnologia como
principalmente, pela destruição e sabotagem das maquinas. Os "luddistas"
responsabilizavam-nas pelo seu desemprego e conseqüentê miséria. Iam, se fosse uma deusa vinda de fora para salvar a humanidade
portanto, no efeito e não na causa de seus infortúnios, isto é, o uso capitalista de seus percalços, ameniza não só os conflitos estruturais e
das materializações tecnológicas.
inerentes a esse sistema, como qualquer outro tipo de re-
conversão e adestramento de todos às exigências tecno de juízos de valor - relativamente àqueles que não conse
lógicas "pela ptofunda convicção de que a solução técnica guem ou não querem se adequar às mudanças tecnológicas
é sempre a mais definitiva e a mais eficaz para todos os como "rebeldes", "vingativos" e "anti-sociais" 128 ou , ainda,
problemas produtivos, organizacionais e sociais". Voltando como "pessoas que têm um histórico d e mau desempe
a Uchida ( 1 996: 9 1 -92), é nesse sentido que os "triunfalistas, nho" 1 29. Desse modo, facilita a entrada da nova tecnologia
como missionários de hoje, lançam-se numa 'catequese' nas empresas mediante aquilo que o PQT coloca como a
incansável dos atuais 'pagãos', procutando varrer toda a "definição e criação de uma cultura corporativa receptiva"
antiga experiência cultural destes, na medida em que é que propicie um ambiente adequado para que tal mudança
entendida como obstáculo para a nova forma de apreensão ocorra. Isso, tanto mais, quando se refere aos "clientes inter
e intervenção na realidade". nos do sistema de administração", isto é, à força de trabalho
Ao nosso entender, o que o PQT faz é justamente isso, (Juran, 1993: 80-81) 1 30. Busca-se, assim, estabelecer uma cul
mais precisamente no âmbito da organização empresarial, tura empresarial que seja capaz não só de neutralizar as re
preparando o terreno para a nova racionalização do trabalho sistências operárias, mas também de obter a adesão de seus
viabilizada pela tecnologia informática. Ou seja, preparando empregados aos objetivos da empresa, desde o gerente até
o terreno para a organização da subsunção real do trabalho ao os operários.
A esses últimos, sobretudo, conforme aponta Freyssenet
127
Conforme Dehida ( 1996, p. 91), esse não é o caso dos "luddistas" os quais
(1990: 1 1 1 ), coloca-se como condição fundamental para o uso
têm uma intenção auto-preservativa «em seu desejo de, não só, não aceitarem,
eficiente da tecnologia informática a necessidade de que "
mas desejarem, ao mesmó tempo, 'destruir' as máquinas para protegerem suas
vidas e a de seus familiares" contra a fome. Desse modo, suas atitudes ao seja por aceitação, seja por imposição - compartilhem os
menos revelam um traço de rebelião relativamente ao modo como a tecnologia objetivos produtivos da empresa e que as contrapartidas re
e suas materializações atuam na .produção capitalista. Ainda que seja uma
cebidas pela mobilização de sua inteligência sejam julgadas
revolta estranhada, na medida em que alude às máquinas (coisas) e não à
dialética própria da relação entre capital e trabalho, o "luddismo" comporta, por eles como normais e aceitáveis" . O próprio Juran nos
de certa forma, um elemento potencial de oposição a este estado de coisas. O
mesmo não ocorre com o "triunfalismo" o qual, em vez de g�rar revolta em
23
relação ao meio de dominação, o idolatra e mitifica, Nesse sentido, inferimos 1 Capítulo 22: "Planejamento para a qualidade".
que o fetiche dos "triunfalistas" é mais traiçoeiro e escamoteador da realidade 129 Capítulo 1 1 : "Treinamento para a qualidade".
que o fetiche dos "luddistas", posto que encanta ao mesmo tempo que explora. 130 Capítulo 10: "Administração do desempenho humano".
tecnologias informacionais: tomar o cuidado de obter uma justa adequação entre essas
A natureza do trabalho e a força de trabalho estão mudando de tal práticas e a "cultura" sob a qual essas serão inseridas. Ou
forma que a administração precisa avaliar explicitamente como seja, saber adaptá-la s em conformid ade com o "padrão
seus sistemas e práticas afctam a lealdade, a dedicação e o com cultural" de cada país de um modo que, sem comprometer
prometimento dos empregados (em todos os níveis) para com a seus fundamentos, possa antes potenciá-lo através de seus
companhia, e se estes promovem ou inibem a contribuição plena próprios valores, desde a lógica capitalista.
de habilidades, do conhecimento e da criatividade do emprega Podemos inferir, portanto, que o que interessa ao PQT
do. (... ) As companhias irão competir com maior sucesso se cria é, antes de mais nada, e por mais paradoxal que pareça, uma
rem um sistema de valores, crenças e comportamentos (individuais revolução para a manutenção do status quo. Em outras pala
e de equipe) - uma cultura - necessário para tal sucesso (Juran, vras, a preservação, ainda que em outro nível, da dominação
1993: 81-82)Y' e exploração do capital sobre o trabalho, com todas as impli
Para completar, Juran ( 1 993: 80) coloca os japoneses como cações subjetivas que isso implica para o trabalhador: aliena
modelo d e sucesso "desses controles ambientais na ção/expropriação, reificação e fetiche.
sustentação das práticas de administração relacionadas aos
empregados".t'2 Para ele, as "falhas do Ocidente em colher CONSIDERAÇÕES FINAIS : A SUBJETIVIDADE DO TRABALHO
completamente os benefícios dessas práticas acontecem EM QUESTÃO.
quando os pré-requisitos para o sucesso não existem ou O que foi exposro até aqui, permitiu-nos perceber que
quando as organizações não criam sistemas de pessoal e o a apropriação intelectual e as novas qualificações operárias
clima de trabalho para encorajar, capacitar e premiar os exigidas no mundo do trabalho contemporâneo são duas
funcionários por terem contribuído com energia e idéias" facetas componentes de um novo patamar de reificação do
(Juran, 1993: 79). Porém, Juran ( 1 993: 63) atenta para o fato trabalho. Das reflexões que este estudo nos propiciou, con
de que, se as práticas japonesas funcionam tão bem, é porque tudo, surge antes uma questão do que propriamente uma
conclusão: como se colocam hoje, para os trabalhadores in
seridos na atual reestruturação produtiva, as possibilidades
13! Capítulo 10: "Administração para o desempenho humano",
de resistir e se opor a esse novo tipo de exploração!
132 Reitera-se aqui a profunda inspiração que o PQT tem relativamente ao chamado
"modelo japonês" de organização do trabalho. reificação?
dia a questão da produção de uma subjetividade adequada a CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo, Xamã,
1996.
estas mutações. ... de colocar no centro do debate novas ca
CODO, Wanderley; SAMPAIO, José Jackson Coelho; HITOMI,
tegorias: comunicação, nova cotidianidade, novas experiên Alberto Haruyoshi. Indivíduo, trabalho e sofrimento: uma abordagem
cias de exploração e de antagonismo". interdisciplinar. Petrópolis, Vozes, 1993.
Dentre essas mutações, destaca-se também a nova DEMING, W. Edwards. (1990). Qualidade: a revolução na administra
ção. Rio de Janeiro, Marques-Saraiva, 1990.
reificação do trabalho no interior da grande empresa, a qual
FREYSSENET, Michel. "Automação e qualificação da força de traba
o presente estudo buscou, em alguma medida, revelar,
lho". ln: SOARES, Rosa Maria S. de Melo. (org.). Gestão da empresa:
problematizar e analisar; de modo a poder contribuir para se automação e competitividade; novos padrões de organização e de relações
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das soluções tecnológicas para os problemas sociais, 1996.
4 08 o AVESSO DO TRAB A L H O
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