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HEGEL

Como ,
o Senso Comum
Compreende
a Filosofia
SEGUIDO DE

A Contingência
EM HEGEL
DE

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\n-Marie Lardic
■ PAZ E TERRA
COMO O SENSO COMUM
COMPREENDE A FILOSOFIA
seguido de
A CONTINGÊNCIA EM HEGEL

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1
Coleção O GÊNIO DO FILÓSOFO
HEGEL /

Primeiro volume: COMO O SENSO COMUM


O CIÚME — Nicolas Grimaldi

Segundo volume:
í COMPREENDE A FILOSOFIA
O QUE É UMA OBRA? — Michel Guérin
I
Próximo volume: Apresentação de ; <
O EXÍLIO E A PUJANÇA DE ISRAEL —
Bernard Dov Hercenberg JEAN-MARIE LARDIC /
seguido de um ensaio sobre
ri A CONTINGÊNCIA EM HEGEL
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Tradução:
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Eloisa Araújo Ribeiro
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Títulos originais: Wie dergemeine Menschenverstand die'


Philasophie nehme — dargestellt an den
Werken des Herm Krug (Hegel)
La conlingence chez Hegel (Lardic)

©Actes Sud, 1989 !


Edição de textoilngrid Basüio
Revisão técnica: Márcio Sattin
Produção gráfica: Kátia Halbe
^5 Diagramaçãa: Solange A. Causin e Samuel J. Leal
Capa: Chico Nunes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Hegel, Georg Wilhelm Friedrich, 1770-1831
Como o senso comum compreende a filosofia / apresentação de
Jean-Marie Lardic seguido de um ensaio sobre a contingência em
Hegel; tradução Eloisa Araújo Ribeiro.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

1. Contingência (Filosofia) 2. Filosofia 3. Hegel, Georg Wilhelm


Friedrich, 1770-18311. Lardic, Jean-Marie, 1958 - II. Título.

94-3613 CDD-123

i
índices para catálogo sistemático
1. Contingência: Filosofia 123

EDITORA PAZ E TERRA S. A.


Rua do Triunfo, 177
01212 —São Paulo —SP Expressamos aqui nossos mais vivos agradecimen­ 4

Tcl.: (011) 223-6522 tos: ao Sr. Prof. Gerhardt Schmidt por seus precio­
Rua Dias Ferreira n.° 417 — Loja Parte sos conselhos; ao Philosophisches Seminar A da
22431-050 — Rio de Janeiro-RJ Universidade de Bonn, cuja hospitalidade facilitou
Tcl.: (021) 259-8946
nossas pesquisas e aos Srs. Hubert Nyssen e Michel
1995 / Guérin pela inteira liberdade que nos deram
rs
Impresso no Brasil / Printed in Brazil para a realização de nossa tarefa.

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Uxori meae,
omnium laudibus dignissimae.

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ÍNDICE

Prólogo 11

1
Apresentação 13

Como o senso comum compreende a filosofia —


A propósito das obras do Sr. Krug, de F. Hegel 43

A contingência em Hegel (de J.-M. Lardic) 69

H •

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PRÓLOGO
:■

O artigo de Hegel, cuja tradução propomos aqui, é


;•
tirado do Jornal Crítico de Filosofia, publicação que Hegel e
Schelling redigiram juntos de janeiro de 1802 a maio de
1803. Trata-se de um dos primeiros artigos do jornal, já
que faz parte do primeiro caderno do primeiro tomo pu­
blicado em janeiro de 1802.
Esse texto dos anos de Jena insere-se no âmbito
dos desenvolvimentos do pensamento pós-kantiano (no-
tadamente schellinguiano) e das polêmicas a ele ligadas.
Mas representa também um marco na obra hegeliana,
i mesmo se Hegel ainda está aqui ligado a Schelling. A
maioria dos esclarecimentos em nossa apresentação do
i! texto tem por objeto o primeiro ponto. As reflexões so­
bre a evolução do pensamento hegeliano em relação ao
problema da contingência e sobre o tratamento dialético
deste formaram, em compensação, o essencial do ensaio
i que vem após a tradução.
■ Por que esse tema, já que o artigo intitula-se "Como
o senso comum compreende a filosofia”? Porque a poste­
ridade reterá dele sobretudo um exemplo, célebre por sua
própria insignificância. Trata-se de uma pena de escrever, a
de um pedante, há muito esquecido, mas que pedia ao filó­
sofo, como uma prova crucial de sua capacidade especula­
tiva, “deduzi-la". A pena de escrever de Krug tornou-se o
símbolo da contingência extrema, de um certo desafio que
d l o vulgar lança ao filósofo. Como Hegel aceita esse desafio?

í i Só a dialética nos permitirá compreendê-lo.

11

i
APRESENTAÇÃO

O ser contingente em sua individualidade sempre


constituiu um desafio para a filosofia. E assim como Pla­
tão perguntou-se se devia chegar até a conceder à lama
proceder de uma idéia,1 também Hegel encontrou com
a pena de escrever de Krug o exemplo sobre o qual exer­
cer sua sagacidade especulativa. O Sr. Krug pede ao filó­
sofo transcendental para deduzir a pena com a qual ele
escreve, convencido da impossibilidade da tarefa. Hegel
aceita literalmente o desafio fazendo aparecer a inanida-
de do pedido. Mas o processo que aqui se instrui vai
mais longe que a anedota. Não é, portanto, o desejo de
apresentar ao público um Hegel cujo estilo acerbo e
zombador é, na verdade, bem diferente daquele ao qual
as grandes obras nos habituaram, que nos leva a fazer
este trabalho. Trata-se antes, partindo desse texto certa­
mente polêmico, de esclarecer um problema totalmente
essencial para o pensamento hegeliano, mas resolvido
rápido demais por muitos intérpretes, prontos mais a
aplicar um esquema sistemático cômodo sobre um pen­
samento que é justamente, em sua essência, rebelde a
isto, do que a considerar realmente toda a rica complexi­
dade da obra.
i O problema é o da contingência. A filosofia idea­
lista alemã encontra-se, mais que qualquer outra, con­
frontada com ele, na medida em que ela nos oferece o
modelo de um pensamento que pretende ser integral­
-
mente dedutivo e até mesmo construtivo, e para o qual,

13
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após a eliminação da coisa-em-si kantiana, nada mais há o pensamento de um "senso comum” ainda mais peri­
- goso porque reivindica as evidências e se expressa sub-
que deva subtrair-se ao domínio da razão. A inteligibili­
dade da qual o discurso filosófico é portador é, então, i repticiamente em uma forma teórica irrefletida graças à
bem diferente daquela que temos o hábito de encontrar qual ele quer se fazer passar por filosófico. É bem o caso.
nele. Importa a todo filósofo compreender o mundo desse Sr. Krug, cujas obras Hegel recenseia nesse texto.
real e elucidá-lo. Mas para o idealista pós-kantiano, elu­ ( E é por isso que, ao contrário dos outros artigos
cidar o real é não apenas compreendê-lo por sua razão, do Jornal Crítico, Hegel não dissocia sua causa (nem a de
mas compreendê-lo como Razão, Razão real ou realiza­ Schelling) da de Fichte, primeiro acusado do processo.
I da, e portanto encontrar essa gênese do real tomando-se Mas notemos que essa unidade é relativa ao tipo de pu­
por base a Razão unicamente pela própria razão. O idea­ blicação que é o Jornal, cuja vocação é a de ser crítico.
lismo é pois sinônimo de raçionalismo, e é obrigado a Trata-se, de fato, do último testemunho de uma frente
ser absoluto, pois a razão não pode deixar subsistir nada ainda comum dos três filósofos idealistas em resposta a
um ataque não-filosófico. Isso não implica a menor vol­
i
i
em sua independência. Por conseguinte, a tarefa será
tanto mais árdua quanto mais o real estiver afastado do
princípio, sem significação aparente, insignificante. E é por
ta atrás sobre uma crítica a Fichte, que será cada vez
mais viva, mas apenas o reconhecimento, uma vez esta­

i isso que se tropeça na simples pena de escrever de Krug. belecida a diferença sistemática com a Doutrina da Ciên­
O projeto idealista encontra, pois, imediatamente cia, de uma comunidade de destino perante os contem­
um adversário, aquele que se mantém justamente no ní­ porâneos. Ora, o que constitui a indubitável novidade da
vel das coisas e cujo ponto de apoio é sua consciência filosofia idealista pós-kantiana aos olhos desses, e para I
mais empírica. É este o ponto de vista não-filosófico que muitos seu caráter chocante, é a pretensão de deduzir
Hegel se dispõe aqui a combater e ridicularizar. Enquan­ tudo a partir de um princípio e de unificar em um siste­
i
to em "Fé e saber", que será publicado no segundo volu­ I ma todos os elementos da realidade que se costuma, ao
me do mesmo Jornal Crítico, Hegel fará o balanço da si­ contrário, considerar uns ao lado dos outros. Para
tuação filosófica de seu tempo e indicará como o projeto apreender a verdadeira natureza dessa dedução e desse
sistemático que compartilha com Schelling vai além "da princípio sem reduzi-los a um puro artifício de método
>
filosofia da reflexão e da subjetividade",2 no presente arti­ ou ver neles uma pretensão absurda, para edificar um
go, ele defende simplesmente a filosofia contra ataques in­ sistema e não se contentar com um agregado, é preciso
dignos de serem considerados como filosóficos. certamente ser um filósofo e se elevar a esta intuição

f Podemos, com efeito, fracassar em alcançar o Ab­


soluto no momento em que ele é entrevisto, e é quando
intelectual da qual igualmente Fichte, Schelling e Hegel
—ao menos nos escritos de Jena — concordam em fa­
zer o próprio órgão do verdadeiro pensamento. Se não
a
-
a razão limita-se à reflexão ou soçobra — na fé. Mas
podemos também, o que é ainda mais grave, nos recu­
sar a compreender o próprio sentido de uma racionali­
i
pudermos nos elevar até aí nada compreenderemos da
verdadeira filosofia, e os três autores repetem sem ces­
dade absoluta, passando a apreciar a ambição totalizado- sar que, não estando ninguém obrigado a filosofar, o j
ra indissociável da verdadeira filosofia por meio de uma melhor é abster-se de emitir um juízo qualquer sobre
consciência que permanece presa nas redes do relativo. I aqueles que realmente pensam. Muitos, porém, não ■

É a oposição da não-filosofia que se mostra então aqui, conseguem justamente deixar de fazê-lo e saturam o pú-

14 u
1
blico com livros ou artigos publicados em revistas ex­ espírito, apressaram-se: em subscrever a limitação de
pressamente dirigidas contra a filosofia nova (entenda­ nosso conhecimento e a proibição de estendê-lo para
I além da experiência. Não é de se surpreender, aliás, que
mos a dos três "grandes” idealistas). O ataque vem,
a análise de um conhecimento desde o início empírico
/ aliás, de diversos lados, o obtuso racionalismo berlinen-
4 se de Nicolaí que repisa as lições da Aufklãrung, wolffia- revele apenas faculdades que lhe são adequadas e o real :
nos atrasados, empiristas, céticos ou ainda defensores de que lhe corresponde. Tal modelo simplista reduz assim
uma fé que deveria substituir o saber, como Jacobi. Mas o pensamento da subjetividade transcendental, a grande \
há também aqueles que aproveitam aqui e ali os termos descoberta kantiana, unicamente à consciência empíri- /
filosóficos presentes no ar, aqueles conceitos elaborados ca, que nada explica e que indivíduos como Krug con-
por Kant, e que, sem compreender grande coisa, tentam tentam-se então em descrever reduzindo tudo a "fatos"
I todavia vestir com eles suas idéias pretensamente origi­ da consciência. Assim, o veredicto kantiano sobre a im­
nais, para camuflar, na verdade, sua própria pobreza es­ possibilidade de um exercício cognitivo da razão pura é i
í peculativa. Estes são talvez ainda mais perigosos, pois ainda melhor aceito quando não se tem, no mais das 1
! embaralham tudo em suas intenções falsamente sintéti­ vezes, a menor idéia do que podería, independentemente J
cas3 que se reduzem ao ecletismo mais inexpressivo. da experiência, constituir um pensamento.
Em todos esses adversários do idealismo encon- Aos olhos dos defensores de uma fé imediata,
tram-se a mesma orientação e um espírito comum a to­ como pseudo-eruditos
» i que se contentam em constatar a
das as suas críticas, a saber, uma exclusiva limitação à ------------------------
realidade e em mostrar como a constatam, a ambição de ’: I

imediatidade mais empírica, e a recusa de atribuir ao sa­ deduzir tudo de um princípio racional e de construir um \
ber um alcance absoluto. Já no início de "Fé e saber" sistema parece simplesmente exorbitante e até mesmo as­
Hegel observará que a Aufklãrung tinha, em seu triunfo sustadora. Os tacanhos procuram assim reduzir a seu nível
aparente sobre a religião, sujeitado-se de fato à lei do o pensamento que os desconcerta ou assumem, de saída,
! vencido, pois, na estreiteza de espírito que a caracteriza­ uma atitude de resistência que toma a forma do sarcasmo.
va, excluía não apenas a religião mas, ainda com isso, a Fichte foi o primeiro a ter de sofrer com isso e não
pretensão a atingir um absoluto. Por conseguinte, ela tardou a replicar vigorosamente àqueles que já o ataca­
reservava à fé um campo de aplicação ainda mais vasto vam sobre a dedução do mundo real ou da consciência
no próprio seio da filosofia. Ao querer limitar o exercí­ empírica a partir do Eu transcendental. Basta-nos citar a
cio da razão à finitude, ela apenas interiorizou o conflito esse respeito uma página na qual Fichte deplora o fato
que outrora a opunha à filosofia e abriu a brecha no de que não procuram compreendê-lo e evitam a verda­
próprio racionalismo. Parecia então só restar para alcan­ deira discussão ao querer ridicularizá-lo. Isto dará ao lei­
çar o Absoluto a via de uma fé, um salto perigoso cujo tor, aliás, uma idéia da liberdade de tom que os autores
melhor exemplo nos é dado por Jacobi. Do próprio pen­ podiam adotar nessas publicações feitas, no entanto, sob
samento kantiano não resultou outra coisa. Incapazes í a égide mais acadêmica.
de perceber o indubitável alcance filosófico da teoria
i kantiana, explicitada justamente pelo idealismo trans­ Eu lhes digo: “Deduzi aqui a pruri a necessidade de ad­
cendental, a maioria só reteve dela uma análise psicoló­ mitir ainda outros seres racionais semelhantes a nós."
gica de faculdades e, preferindo a letra do sistema ao Eles me respondem: “Então realmente o senhor dedu-

16 17
ziu a priori a necessidade de admitir outros seres racio­ Compreende-se, pois, que Hegel use uma palheta
nais semelhantes a nós! Imaginem só! Ha, ha, ha!" Eu estilística bem variada, que vai da ironia mordaz até a
lhes digo: "Deduzi aqui a priori o ar e a luz." Eles me refutação ponto a ponto, passando pelo jogo de palavras
respondem: "Ar e luz a priori; imaginem só! Ha, ha, ha! (é verdade que com adversários como Krug, que signifi­
— Ha, ha, ha! — Ha, ha, ha! Riam conosco! Ha, ha, ha! ca "jarro”, e von Salat ele sai ganhando).
— Ha, ha, ha! — Ha, ha, ha! — Ar e luz a priori’. cha­ É assim que, apesar do texto sobre a "Diferença dos
vão, Ha, ha, ha! Ar e luz a priori! Chavão, ha, ha, ha!..."
sistemas de Fichte e de Schelling", que o tornou conheci­
do, e antes do artigo do segundo volume do Jornal sobre Fé
E Fichte continua a retorquir: "Pensava estar en­
e Saber, que continua a explicação com a Doutrina da Ciên­
trando na república dos eruditos. Não estou, portanto,
cia para esclarecer suas posições então comuns com Schel­
numa casa de loucos?” O desenvolvimento filosófico
ling, Hegel reserva, nesse primeiro volume, todas as suas
que se segue precisa de maneira mais séria:
flechas para os adversários da filosofia transcendental em
sua mais ampla acepção, e ataca Krug, cujas críticas visa­
Será que há então o que quer que seja a priori que não
vam, por intermédio de Fichte, todo o sistema idealista.
deva justamente por isso ser a posteriori, e será que exis­
I Com efeito, como dizíamos acima, é sobre o problema es­
te então o que quer que seja a posteriüri, senão porque é
a priori! sencial que a contingência dos entes coloca ao sistema
idealista que recaem a maioria das críticas de Krug e dos
No mesmo artigo, ele precisava, aliás, que era o outros autores por nós mencionados. E isto está ligado à
"senso comum” que estava enganado "ao opor um ao cegueira global a respeito do próprio princípio da dedução
outro o ser e o saber."4 sistemática. Se não se compreende o que significa o Eu
Quando o próprio Hegel entra na arena, é justa­ transcendental, ele é fatalmente confundido com uma
mente para colaborar com Schelling nesse Jornal Crítico consciência empírica cuja unilateralidade é justamente ca­
de Filosofia que, conforme o projeto inicial, Fichte devia racterizada pelo fato de permanecer diante de objetos que
publicar com esse último. É com Hegel, e não com Fich­ lhe parecem radicalmente estranhos, ela própria vivendo
te, que Schelling se associa em definitivo, afastando-se no seio de intuições espaço-temporais cuja sucessão não
assim para sempre de Fichte. Nosso propósito não é o pode em caso algum lhe parecer regulada por si mesma.
Krug não passa aqui de um representante dessas
de relatar estas circunstâncias e nos contentaremos em
pessoas que recorrem a seu pretenso bom senso ou
lembrar que o objetivo do jornal é, segundo os termos
"senso comum", cujas regras, acham eles, a filosofia
de uma carta de Hegel, datada de 30 de dezembro de i
I transcendental transgride. Na verdade esse bom senso
1801, "pôr um limite às insanidades pseudo-filosóficas.”
I vulgar não visa senão se desobrigar de pensar, e só é
E Hegel acrescenta:
evocado por aqueles que são desprovidos do senso filo­
sófico. Será preciso, é claro, levar em conta a experiên­
As armas de que esse jornal se servirá são as mais varia­
das; nós as chamaremos porretes, chicotes e palmató­ cia comum e elucidá-la diante da consciência, mas não é
rias; tudo isso se faz pela boa causa e pela gloria Dei; permanecendo justamente em seu nível nem vestindo-a
provavelmente alguns vão se queixar aqui e ali; mas a com conceitos feitos sob medida que se chegará a ela. A
cauterização tomou-se efetivamente necessária.5 Populãr Philosophie, que tinha por tarefa fazer passar para o

18 19 ..

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1

grande público a lição de uma Aujklãrung esvaziada de


onde cada articulação corresponde à análise de uma des­
sua substância, teve um grande sucesso na Alemanha no
sas obras. Ora, os escritos de Krug 7 aqui considerados
final do século XVIII. Desse modo, todo pensamento que
consistem, em primeiro lugar, em duas obras críticas
exige um esforço de reflexão e apresenta um método sis­
apresentadas na forma de duas séries de cartas, as pri­
temático é decretado como absurdo se o entendimento
meiras concernem diretamente a Fichte e a sua "Doutri­
mais tacanho não puder apreender seu sentido imediata­
na da Ciência", enquanto as outras visam expressamen­
mente. Se se erige em juiz filosófico aquele que justamen­
te Schelling como representante do novo idealismo e
te não tem a menor noção da razão nem da filosofia, não é
continuador de Fichte; a elas se acrescentam, enfim, as
de se surpreender que esta seja exposta a tanta falta de
pesquisas pessoais de Krug sobre os princípios do conhe­
compreensão. A crítica hegeliana se empenhará pois, des­
cimento filosófico, apresentadas como um esboço que
de o Jornal Crítico, em fazer aparecer atrás das análises con­
I ’ ceituais, a posição natural do pensamento que aí se revela
preludia uma obra mais vasta. O artigo de Hegel com­
preende pois três etapas, cada uma correspondente a
e seu caráter no mais das vezes parcial ou deficiente. As­
uma obra: da página 46 a 50 trata-se das Cartas sobre a
sim, é preciso por exemplo determinar o valor do entendi­
Doutrina da Ciência, da página 50 a 56, das Cartas sobre o
mento em relação à razão para se ter a justa medida dos idealismo mais recente, e da página 56 a 65 do Esboço de um
conhecimentos adquiridos. E Hegel não negligencia o pa­ novo Organon.
pel desse senso comum quando este não quer se fazer pas­ Desde a primeira parte, consagrada à crítica das
sar por filósofo. Entretanto, como ele diz no texto sobre a
Cartas sobre a Doutrina da Ciência, Hegel ressalta a in­
"Diferença dos sistemas de Fichte e de Schelling", "a es­
compreensão manifestada por Krug no que diz respeito
peculação compreende o bom senso, mas o bom senso
à filosofia transcendental. Após algumas observações
não compreende a atividade da especulação".6 É esta incom­
irônicas no tocante ao estilo do autor, ele mostra, com
preensão que Hegel vai trazer à luz nos escritos de Krug.
efeito, que este, no momento em que parece endossar a
Entretanto, o pedido dirigido ao filósofo por Krug,
idéia fichtiana, não faz mais que reduzi-la para aquém
de deduzir sua pena de escrever, deixou mais traços do
de sua dimensão propriamente filosófica. O Eu trans­
que poderia parecer na própria obra hegeliana. O episó­ cendental é compreendido como a única subjetividade
dio é evocado até na Enciclopédia e podemos ver nele um consciente tirada de uma banal introspecção. Mas isso
I
símbolo. Após uma breve apresentação do próprio arti­ aparece ainda melhor na crítica dirigida por Krug à teo­
go e de sua tradução, proporemos então ao leitor um ria da limitação do Eu. Somente aquele que justamente
estudo sobre a posição geral de Hegel em relação à con­ não apreendeu o que está em jogo na Doutrina da Ciên­
tingência e a significação sistemática desse problema em cia pode dizer que é indiferente que a limitação do Eu
relação ao método hegeliano. seja o fato do próprio Eu ou da exterioridade! Se o Sr.
Krug fica paradoxalmente chocado com a limitação que
A recensão das obras de Krug Fichte atribui ao Eu (quando se esperaria que ele ficasse
chocado antes com o que Fichte atribui, de outro modo,
i
ao Eu absoluto), é porque ele ressente esta limitação um
Visto que o artigo de Hegel consiste numa recen­ pouco como uma frustração individual que não pode
?
são das obras de Krug, ele segue um plano bem simples admitir. De fato, o nível da consciência empírica, ao qual
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20 21

Y. í

1
%

ele reduz tudo, o impede de sentir que é esta própria lação aparece mais claramente. Situando-se expressa­
empiricidade, a finitude do Eu, que é uma limitação. Vi­ mente sob o ângulo da determinação empírica, da fini-
vendo nessa limitação, ele permanece cego e acredita tude e da limitação, ele quer mostrar o fracasso do idea­
então que se quer com isso limitá-lo nessa consciência lismo em formular seu próprio princípio sem
empírica na qual ele discerne, por seu lado, uma infini­ pressuposição, e lança o desafio destinado a fazer ver
dade de representações (cf. a terceira obra). que a tarefa prescrita é impossível de ser realizada, exi­
O que Krug não percebe é finalmente a própria gindo a dedução de futilidades. É o próprio sentido do
idéia de um fundamento racional, ou ainda a dimensão empreendimento conduzido por Schelling, aqui acusa­
propriamente transcendental, a saber, tudo o que con­ do, que é desconhecido. Quer se trate efetivamente do
cerne à condição de possibilidade da experiência. Assim problema do princípio, que Krug reduz àquilo que já é
ele pode declarar nada ver de específico na idéia fichteo- um “principiado" pedindo para ele uma prova e identifi­
kantiana do dever, já que, escapando-lhe a questão siste­ cando sua posição primeira a uma pressuposição, ou do
mática dessa, ele pensa poder reduzi-la à moralidade problema da dedução de coisas escolhidas justamente I

que toda doutrina pode também promover. É, pois, por sua futilidade, pois para Krug o projeto de uma de­
todo o sentido da noção de autonomia que lhe escapa dução da realidade não quer dizer nada, em ambos os
na filosofia prática, assim como no campo teórico o Eu casos está indicada a recusa obstinada de compreender o
transcendental é reduzido a um eu empírico. Encontra­ essencial: a saber, que o ponto de referência não é mais
remos, aliás, a mesma confusão nas outras obras. Quan­ uma consciência empírica que não tem, certamente, que
do Krug opõe a necessidade aparente das coisas ao dese­ deduzir, e sim perceber, mas um princípio absoluto de
jo e ao esforço do homem, para mostrar que este não onde se deduz o resto e até mesmo a limitação, e onde o
pode de modo algum revelar-se único mestre da realida­ sujeito e o objeto unem-se em vez de se enfrentar. O “sen­
de, ele identifica a lição fichtiana com um egoísmo espe­ so comum”, porém, é certamente incapaz de se elevar até aí.
culativo no qual o capricho do Eu deveria ser a lei das Podemos nos convencer disso, desde o início, ven­
coisas, o que, é claro, nada significa para quem com­ do a sorte reservada ao princípio fundamental. Krug
preendeu justamente o sentido da limitação em Fichte. acha, com efeito, contraditório que se admita previa­
Esta, com efeito, implica a relação do Eu com um não- mente à dedução o Absoluto com base no qual se pode­
Eu que se opõe para se refletir, mas que, por isso mes­ rá conduzi-la. Ver nisso uma pressuposição incompatível
! mo, representa a alteridade contingente em relação ao com a radicalidade da tarefa que a nova filosofia se pres­
li Eu, ou a necessidade exterior a ele de objetos reais. Por­ creveu é justamente reduzir o Absoluto ao nível do de­
j tanto, se Krug vê nessa limitação um mistério, e se ele
pergunta a Fichte por que o indivíduo se sente determi­
terminado. Não se trata, com efeito, de admiti-lo como
um fato pressuposto, más sim reapreender nele a gênese
nado por uma necessidade exterior a ele, é porque procura de todo o resto. Como já dizia Hegel, no texto sobre a
reduzir a Doutrina da Ciência a um ponto de vista empíri­ “Diferença dos sistemas de Fichte e de Schelling”:
co que esta tem por objetivo fundar ou explicar, o que
supõe, em primeiro lugar, não tomá-lo pela razão última. Nessa autoprodução da Razão, o Absoluto modela-se
É na segunda obra recenseada por Hegel que a in­ numa totalidade objetiva, que é um todo apoiado sobre
capacidade de Krug de penetrar no princípio da especu- si mesmo e realizado em si mesmo, desprovido de fun-

23
22
damento exterior, mas que se serve de fundamento em só pode ser exato se o Absoluto é ele próprio identidade
seu começo, seu meio e seu fim.8 do conceito e do ser, do sujeito e do objeto.10
Longe, portanto, de ser uma hipótese, o princípio
Se não se compreende o Absoluto como esta Ra­ só pode ser uma tese, ou seja, uma posição que "não
i zão produtora de si mesma, único meio no qual a espe­ pode ter novamente o fundamento de seu conhecimen­
culação pode se desenvolver, mas como um puro princí­ to em algo mais elevado",11 porque ela é posição de si.
pio formal, ou ainda um conteúdo arbitrariamente O espírito que efetua ele mesmo essa posição é o que
escolhido que não passa de um aspecto da realidade,9 encontra a ação originária ou Tathanãlung (como a cha­
então se está projetando sobre a nova filosofia a imagem mava Fichte para opô-la ao fato, Tatsache) constitutiva
das teorias que ela justamente criticou. "O Absoluto do Absoluto. Tese que, aliás, seria melhor chamar de
A=A, como identidade e como diferença, com base no síntese, pois ela é a identidade do sujeito e do objeto no
qual toda limiução é construída", não é para Schelling juízo. Para ir além dessa separação que é o fato da intui­
ou Hegel de modo algum algo pressuposto. É antes, se ção empírica, precisamos, portanto, dessa intuição inte­
se pode dizer, o que todo real pressupõe e aquilo a partir lectual que deve estar unida à reflexão. Esta intuição,
do que a filosofia deve avançar para apreender o real. ainda chamada de transcendental no Differenzschrifi, é
Pôr o Absoluto não é admitir um objeto, um dado necessária para que o princípio da especulação não se
irredutível que só reduziría a filosofia a um ponto de entregue a uma pura identidade reflexiva.
jl
iI vista arbitrário. O Absoluto bem entendido é, com efei­
Na intuição transcendental [nos diz Hegel] toda oposi­
to, sujeito-objeto. É este o sentido da fórmula A=A. O ção é suprimida, e aniquilada toda diferença entre a
4
sujeito que filosofa e que o toma por princípio de sua construção do universo pela e para a inteligência, por
especulação mostra com isso que atingiu o lugar de um lado, e por outro, sua organização em manifestação
onde sai todo objeto, e não tem mais que se separar do independente, apreendida como ser objetivo. A produ­
objeto dessa consciência como ele o faz na consciência ção da consciência dessa identidade define a especula­
empírica. É nesse sentido que, para além de todo objeto, ção, e se ela é intuição, é porque nela idealidade e reali­
dade são um.12
pode-se encontrar a atividade que o produz e produz o
saber desse. Assim, a idéia do Absoluto não pode ser
Assim, se pomos o Absoluto como sujeito-objeto,
considerada no mesmo plano que os conceitos habituais
não poderiamos aplicar a ele as distinções que valem
que designam objetos da experiência. Neste último caso,
para aquilo que está separado. Ora, a pressuposição só
nosso saber, diferindo de seu objeto, só pode pôr seu tem sentido, ainda que negativo, nesse caso. Pode se tra­
conceito como hipótese, quando toda referência a um tar do sujeito que pressupõe o objeto quando ele não se
dado pressuposto foi abandonada. É então todo o dis­ elevou à consciência transcendental, ou do próprio con­ $
curso que é problemático e espera sua verificação. E é ceito que é pressuposição na medida em que o objeto
bem normal que o saber do relativo seja um saber relati­ não está lá — e nunca pode estar. É esta, aliás, a fonte
vo. Mas o saber absoluto deve, em compensação, ao eli­ dos erros. Mas no caso do Absoluto, a certeza provém
minar toda pressuposição relativa a um dado, ser saber justamente dessa identidade. E aí encontramos a argu­ í
do Absoluto. Assim o conceito que o filósofo tem dele mentação que Hegel desenvolverá mais Urde ao encon-

24 25
r
r

tro da crítica kantiana do argumento ontológico. O que bilidade de uma tarefa para a qual somente a consciência
vale para o finito não pode se aplicar ao pensamento do mais empírica é tomada por referência. Ter interesse
infinito. A separação do conceito e do ser que um Kant por essa malfadada pena de escrever a ponto de fazer
pode pôr em evidência em toda realidade desaparece dela um alvo de dedução é mostrar que não se com­
4 quando se trata do próprio todo. Por conseguinte, o preendeu a lição da filosofia nova, na qual a dedução é

í princípio não pode ser posto em dúvida sob o pretexto


que sua idéia não nos garantiría sua realidade. Se nos
um colocar-se em relação com o Absoluto de um finito
que perde aí todo interesse em si mesmo. Mas a limita­
elevamos à identidade do sujei to-objeto, o conceito per­ ção arbitrária da consciência mostra-se ainda melhor no
de a relatividade que o caracteriza e que pedia dele sua fato de se julgar a dedução transcendental como se ela
dedução. Essa relatividade não era, na verdade, senão a consistisse em reduzir todo objeto à idéia que uma cons­
relação ao Absoluto e, portanto, a dedução, a ligação a ciência finita pode fazer dele, ou a tirar dessa última a
este. Compreende-se que com o Absoluto uma prova realidade que é, evidentemente, independente dela. Daí
não vem ao caso no seio de um sistema que não se apoia a opinião que, sendo o arbitrário e a fantasia a regra das
mais em nada, ou antes, é em todo o sistema que o Ab­ coisas, a consciência comum pode exigir que se satisfaça
soluto se prova. seu capricho considerando a menor futilidade. Daí tam­
Ora, é justamente sobre o desenvolvimento do sis­ bém todos os exemplos mencionados por Krug, nos
tema que recai a segunda crítica dirigida por Krug a quais se trata de mostrar ao idealista as inconseqüências
Schelling e à forma mais recente do idealismo nessa de sua doutrina fazendo ressaltar a independência do ob­
mesma série de cartas. Do princípio devia se deduzir a jeto em relação à consciência que se pode ter dele.
totalidade das representações e Krug pede então que de- Como se se tratasse de dizer que as plantas são apenas,
duzam para ele até a pena com a qual escreve! O desco­ por exemplo, as idéias do naturalista, que não teria, por­
nhecimento do método filosófico revela-se aqui em rela­ tanto, que descobri-las! E, é claro, as objeções das doen­
ção às conseqüências, como se revelava, acima, em ças ou das monstruosidades são ainda mais adaptadas, já
relação ao princípio. Foi sobretudo esse trecho que foi que a inteligência, podendo tudo reduzir a seu desejo,
conservado na recensão, e quando os historiadores da não teria que tolerá-las! Não é de se surpreender, por­
filosofia evocam o artigo é sempre por causa da 'pena tanto, que Krug acredite ver nisso um fracasso do idea­
í
> de escrever de Krug". É verdade que o próprio Hegel lismo quando este se recusa justamente a satisfazer um
estende-se aqui com complacência sobre essa questão. capricho ou deve reconhecer a independência do objeto
Se ela lhe permite, por um lado, mostrar a ingenuidade em relação à consciência empírica. O idealismo, porém,
de Krug em sua leitura das obras de filosofia especulati­ quer mostrar que a consciência empírica não é a consciên­
va, por outro, lhe dá a oportunidade de expressar-se so­ cia transcendental, e é aquela que é preciso deduzir desta.
bre uma objeção verdadeiramente típica em seu simplis- Na diversidade de tons empregados para tratar
mo e que sempre volta. esse pedido de Krug, percebe-se a um só tempo o escár­
A confusão denunciada por Hegel entre o princí­ nio de Hegel dirigido a um pedante que compreende as
pio e algo de finito encontra-se aqui na orientação do coisas de maneira tão ingênua e o desejo de reafirmar
interesse pelas "contingências mais insignificantes", ao solenemente o Absoluto, ao qual a filosofia nova tem
mesmo tempo que na proclamação da evidente impossi- justamente por objetivo dar novamente o primeiro lu-
1
26 27
/
í
-
$ que a razão absoluta encontra-se no real, não se deve
gar. Quiseram, algumas vezes, ver nesse emprego de re­
contentar em mostrar a objetivação do sujeito transcen­
gistros argumentativos diferentes a marca de uma ambi-
güidade, e até mesmo de uma hesitação na posição ex­
dental (o que fez Fichte), mas deve-se mostrar também a
pressa aqui por Hegel em relação à dedução possível de subjetividade no objeto, tarefa própria da Filosofia da
Natureza. Isso pode permitir mostrar, como lembra He­
um objeto tão "contingente”.13 Hegel, certamente, não
diz que a tarefa é impossível, mas a declara, antes, sem gel no texto sobre a Diferença, remetendo-se a Espinosa,
significação. Poder-se-ia desejar que ele efetuasse a de­ que "a ordem e a conexão das idéias são idênticas à or­
dução ou que a declarasse impossível. No entanto, a res­
dem e à conexão das coisas." Compreende-se então por
posta de Hegel nos parece particular mente apropriada. que esses dois aspectos da filosofia (filosofia transcenden­
Mais tarde, quando Hegel fará ainda alusão à pena de tal e Filosofia da Natureza), desenvolvidos juntamente por
escrever de Krug14 — mostrando assim que não viu Schelling em suas obras que tratam de um ou de outro,
uma simples diversão nela — ele será capaz de dar no deverão necessariamente, aliás, convergir nessa Filosofia
âmbito de seu sistema enciclopédico uma solução mais da Identidade que se elabora justamente na época da re­
clara e mais radical, a saber: que a contingência é irredu­ dação do Jornal Critico. Krug, porém, por seu lado, igno­
tível. Ora, a resposta dada aqui por Hegel está não ape­ ra tudo isso e ainda não entendeu o que era a Filosofia
nas adaptada à atitude do adversário, como ainda é total­ da Natureza!
Krug engana-se em seguida ao acreditar que a de­
mente precisa, tendo em vista o âmbito da Filosofia da
dução de uma coisa singular teria um sentido, e ao esti­
Identidade para a qual, sem dúvida com sua própria im-
pulsão, o sistema de Schelling tinha evoluído. mar que se trataria de uma tarefa mais fácil por ser a
! coisa mais insignificante. Deduzir é ligar ao todo e mos- \
O primeiro desprezo de Krug diz respeito ao siste­
ma no qual deveria ter se operado a dedução requerida e trar que o próprio Absoluto é a fonte do ser limitado.
Não se pode, portanto, sem construir todo o sistema do <
Hegel mostra, a este propósito, que Krug certamente t

não pode encontrar o que procura na filosofia transcen­ mundo no qual inscreve-se a singularidade, tomar esta
dental, pois isso não é de seu domínio. O que não quer isoladamente como critério imediato do sucesso do em­
dizer, no entanto, que a filosofia nova não possa satisfa­ preendimento, o caráter inessencial da coisa tornando,
zer o pedido noutra parte, a saber, na Filosofia da Natu­ aliás, a dedução mais difícil no âmbito do próprio sistema. J
reza. É sabido, com efeito, que uma explica o sistema de Finalmente, e trata-se da questão quid juris, é. o
nossas representações a partir do Eu e de sua atividade sentido do pedido que se deve, para Hegel, questionar.
produtora ideal, enquanto a outra parte do objeto e A própria dedução indica a relação ao Absoluto e, por
mostra como se constrói aí a realidade empírica. A uma, conseguinte, o singular aparece como um nada. O Abso­
de certo modo, a dedução da forma de nossas repre­ luto que o funda suprime assim a autonomia de seu ser.
sentações, à outra a de seu conteúdo. E Hegel menciona É no próprio ato que o funda que ele se esfacela e está
o exemplo do "ferro” de que fala Krug, e que Schelling fadado a desaparecer. Se, portanto, o tomamos por obje­
"deduz” no âmbito do sistema da natureza. Essa Filoso­ to e centro de interesse, inverte-se completamente o
fia da Natureza, que levará Schelling a uma ruptura com sentido da dedução, que consiste em fazer triunfar o Ab­
! Fichte, não é menos necessária, segundo ele, e segundo soluto do finito. É toda a tarefa da filosofia situar-se nes­
Hegel no início, a um verdadeiro idealismo. Para provar se ponto de vista, único fundamento da própria diferen- I

29
23
/
■' 7/

ça. Hegel pode então lembrar que recolocar Deus no cambiável e de pouca importância, enquanto César, Ale­
ápice da filosofia é o que conta antes de tudo. Vemos xandre ou Jesus são verdadeiras individualidades cuja
que não se trata aí de uma declaração enfática que tem construção é então possível, nos diz Hegel. E o exemplo
-x uma função de esquiva, e sim que é uma questão da da história, com o qual ele termina o parágrafo, ganha
lógica do pensamento, tal como a ciência da lógica a de­ uma importância particular na medida em que Hegel
senvolverá mais tarde. Esta nos ajuda a compreender verá nela mais tarde a própria razão que se constrói em
que o pedido de Krug é pois um non sense, ou antes um todas as manifestações singulares. Do ápice da filosofia
í verdadeiro contra-senso em relação à própria filosofia. até o desenrolar da história é um pouco a gênese do
Dentre as singularidades existentes há muitas ou­ pensamento hegeliano do Absoluto como Razão que en­
tras cuja superioridade ontológica sobre a pena de escre­ contramos abreviada em um parágrafo.
ver de Krug as tornaria mais dignas de uma dedução. E Todas as dificuldades mencionadas concentram-se
já aqui se poderia pensar na teoria de um universal con­ finalmente em torno de um tema da limitação do Eu
creto que Hegel desenvolverá mais tarde. Os graus do que Krug decididamente não pode compreender. É so­
ser pelos quais Krug se interessa são justamente aqueles mente convertendo o idealismo transcendental em idea­
onde se mostra sua maior abstração, e, na relação ao lismo transcendente e dogmático que Krug pode evocar,
i
Absoluto, que é a um só tempo, como dizíamos, funda­ como se se tratasse de objeções, todos os acontecimen­
dor e destruidor, essas coisas contingentes, sem substân­ tos que parecem testemunhar um divórcio entre o espí­
cia racional só têm que desaparecer. E devemos deixá-las rito e a coisa ou, pelo menos, uma independência desta
de lado, já que estão destinadas por assim dizer a cair (zu em relação àquele.
' fallen). Se podemos, pois, ter mais interesse teórico por É preciso ser bem ingênuo e bem dogmático para
outras singularidades, é porque estas mostram conter acreditar que a teoria do Eu implica uma redução corre-
em si uma espécie de necessidade interna que pode, en­ lativa da natureza a si. É esta, no entanto, a eterna cen­
tão, permitir uma construção filosófica. Mas esse cará­ sura do senso comum ao idealismo, a saber, que se este
ter racional é ao mesmo tempo o signo de sua maior fosse verdadeiro e se o mundo não pudesse ser conside­
concretude; ou ainda, poder-se-ia dizer que se trata de rado como uma realidade independente da repre­
verdadeiras individualidades. A presença da racionalida­ sentação, seria incompreensível que a imagem pudesse
de no real acompanha a posição do próprio indivíduo, e ir de encontro ao que o sujeito quisesse ver, comportar
não é mais na forma de uma relação entre um pensa­ elementos irredutíveis a um saber a priori do real. Isso
mento e um real singular exterior a ele que se situa esta significa dizer que o mundo só deveria enviar ao idealis­ I
problemática. É o real que marca seu grau de racionali­ ta a imagem de seus próprios desejos. O eu de cada um
dade, e o mais racional é também o que, no ser, tem seria então um verdadeiro demiurgo, cujo pensamento
mais consistência. O concreto não é, pois, o que se po­ supostamente imporia sua lei às coisas. Ao que, é claro,
i
deria acreditar. Mas não é normal entender por concreto é fácil responder. Mas esse fantasma nada representa, e
o que vale por si mesmo e se compreende por si? Poder- já Kant refutava esse “idealismo problemático” mostran­ í
se-ia mesmo ver aqui um cheiro de aristotelismo. Afinal do que a experiência do mundo exterior era aquilo que
I de contas, e para terminar com esse tema, a pena de dava ao eu a garantia de si mesmo. Para o idealismo Í
escrever de Krug é apenas uma coisa entre outras, inter- transcendental, esse reconhecimento da situação da

30 31
í
Í í!
i .• intuir-se como o limitante no mesmo ato pelo qual ele
consciência no mundo é justamente essencial na medida se limita. O Eu só se intui como limitado. Ora, achar-se ' I
$ em que a limitação do sujeito que ela implica deve se : i
(finãen) limitado é para ele sentir (emp-finden). Assim, o
explicar para o próprio sujeito. Eu é seu próprio objeto de sensação, mas apenas o filó­
O que se passa pois com essa limitação? Trata-se,
sofo o sabe; o próprio Eu, ao sentir, coloca outra coisa
para Schelling como para Fichte, de elucidar o caráter que ele próprio. Em suma, se outra coisa aparece é por­
L’ determinado de nossas representações, ou seja, do senti­
que o Eu se mostra diferente do que é.
mento de constrangimento que as acompanha e que pa­ x Por isso não é de se surpreender que o limite seja
rece indicar para elas uma fonte independente de nós e considerado pelo Eu como contingente, ou melhor, como
de nossa liberdade. E isso deve ser feito mantendo-se fiel
a própria contingência. Que o limite apareça assim sem
ao princípio de explicação idealista. Somente este permi­
te compreender que haja um objeto e um sujeito repre­
fundamento não quer dizer que ele não tenha um, mas, ao
contrário, ele implica a posição de uma coisa em si na qual
i;
sentando-o, e o idealismo vulgar nunca indica como h
se hipostasia a atividade ideal do Eu que, deste modo, esca­
uma coisa em si podería se converter em um saber. Em pa a si mesmo e se esquece como fundamento. O Eu limi­
compensação, o idealismo pode explicá-lo ao mostrar tado e com isso, portanto, puramente subjetivo, acredita-se
no ideal e no real duas direções certamente diferentes de confrontado com uma coisa em si, enquanto o fundamen­
uma mesma atividade, a do Eu. Se, porém, o Eu é toda to do limite se torna indeterminável. Leiamos o trecho de
realidade, é enquanto ele se opõe um não-Eu, e é com Schelling ao qual Hegel (e Krug) faz alusão:
isso que a consciência de si é possível. De fato, pode
haver um objeto para um sujeito porque o Eu é sujeito- Já que o fundamento do limite não se encontra nem no
objeto na consciência que toma de si. Compreende-se Eu nem na coisa, ele não se encontra, portanto, em par­
então que o caráter limitado do Eu (evocado com insis­ te alguma, o limite é absolutamente porque ele é, e ele
tência por Krug a propósito das contingências da exis­ é assim porque é assim. Logo, ele aparecerá como abso­
tência), longe de ser uma objeção à essa doutrina, está lutamente contingente tanto em relação ao Eu quanto
em relação à coisa. É o limite, pois, que na intuição é
indissociavelmente ligado a ela.
absolutamente contingente para o Eu como também para
A limitação é, na verdade, o surgimento correlati-
ji • vo do sujeito e do objeto. O Eu absoluto, esse para-além
da consciência ao qual é preciso se referir para explicar a
a coisa; uma determinação ou análise mais rigorosa ainda
não é possível aqui e só poderá ser dada na seqüênda.15

própria consciência, define-se por uma pura atividade É esta seqüência que Krug esquece, além do fato
infinita, segundo Fichte e Schelling. Mas para se pôr de que se trata aqui de uma das etapas do desenvolvi­
como Eu, ele se reflete, e a tomada de consciência de si mento da consciência que, de modo algum, é a última
que isso implica, abrindo a dimensão da idealidade, limi­ palavra da explicação filosófica para Schelling.
ta ao mesmo tempo a primeira atividade. É o que se Compreende-se que não se trata absolutamente de
exprime também ao se falar de uma limitação pela ativi­ suprimir o fundamento da limitação originária do Eu,
dade ideal da atividade real do Eu. Trata-se, portanto, de como acredita Krug, e que, portanto, a acusação de dog-
uma autolimitação. Todo o problema é o de saber por matismo, que se fundaria sobre os próprios termos de
que esta aparece então como estranha ao Eu. Schelling é Schelling, cai. Este último quer, ao contrário, não ape-
particularmente claro sobre este ponto: o Eu não pode

32 33

-
l't
nas explicar esse limite posto no Eu pelo Eu, para reto­ quanto o idealismo transcendental nos deixa, em rela­
I. mar os termos fichtianos, mas também mostrar por que
ele aparece contingente ao Eu subjetivo que não o com­
ção a essa limitação, tão pouco livres quanto o realista
pode desejar. Ele afirma apenas que o Eu jamais sente a
preende por si. É pois o fundamento dessa falta aparente própria coisa (pois tal coisa ainda não existe nesse mo­
de fundamento que o idealismo transcendental põe em mento), nem tampouco algo que passaria da coisa para
evidência, levando em conta, longe de qualquer dogma- o Eu, mas [que ele só sente] imediatamente ele próprio,
tismo, o efeito de contingência provocado pela reflexão sua própria atividade suprimida. O idealismo não deixa
de explicar porque, apesar disso, é necessário que intua­
do próprio Eu. Leiamos ainda Schelling:
mos como algo de completamente estranho ao Eu esta

limitação que só é posta pela atividade ideal.16
Mas se a limitação originária é posta pelo próprio Eu,
como ele chega a senti-la, quer dizer, a considerá-la
como alguma coisa que lhe é oposta? Toda realidade do Pode-se agora ver claramente o quanto as observa­
r conhecimento provém da sensação e uma filosofia que ções ingênuas de um Krug erram o alvo. A contingência
r dos acontecimentos que ele evoca como argumento
não pode explicar a sensação já é, por essa razão, uma
filosofia abortada. Com efeito, a verdade de todo co­ contra o idealismo não é senão a marca dessa limitação
nhecimento repousa, sem dúvida, sobre o sentimento que Schelling, longe de negar, funda em razão. De fato,
de constrangimento que o acompanha. O ser (a objeti­ essa contingência das determinações (o fato de nascer a
vidade) só exprime uma limitação da atividade da intui­ tal momento, a presença do acidental, e até mesmo do
ção ou produtora. Dizer que há um cubo nessa parte do monstruoso, da doença etc. na natureza) parecería a
espaço não significa nada além disso: que nessa parte marca de uma necessidade que se imporia ao espírito,
do espaço, minha intuição não pode ser ativa senão na cuja liberdade seria então contradita. E no entanto, se
forma do cubo. O fundamento de toda realidade do co­
ela dá ao mesmo tempo a impressão de ser chocante é
nhecimento é, pois, o fundamento da limitação inde­
porque parece ir de encontro a uma necessidade da ra­
pendente da intuição. Um sistema que suprimisse esse
fundamento seria um idealismo dogmático, transcen­ zão. Que haja aí a marca de uma certa contingência na
dente. Combate-se o idealismo transcendental em parte realidade, da qual testemunha o fato de o espírito dever
com razões que só são convincentes contra esse idealis­ admitir necessariamente fatos que não parecem depen­
mo transcendente, do qual não vemos de maneira algu­ der de sua lei, nem Hegel, nem Schelling o contestarão,
ma como ele teria necessidade de uma refutação a par­ mas não podem ser objeções contra um idealismo ver­
tir do momento em que ele nem mesmo germinou I dadeiro, para o qual a razão implica a diferença. Ou ain­
num cérebro humano. Se é dogmático o idealismo que da, segundo os termos de Schelling:
afirma que a sensação é inexplicável pelas impressões
ú de fora, que não há nada na representação, nem mesmo Objeta-se comumente contra o idealismo que as repre­
o acidental, que pertença a uma coisa em si e que nem A sentações das coisas exteriores nos vêm de uma maneira
mesmo se pode pensar alguma coisa de racional numa inteiramente independente do livre arbítrio, que não po­
tal impressão [exercida] sobre o Eu, então nosso idealis­ demos fazer absolutamente nada e que, longe de pro­
I
mo é certamente dogmático. Mas somente suprimiría a duzi-las, devemos antes aceitá-las como nos são dadas.
realidade do saber um idealismo que fizesse produzir a Somente o próprio idealismo permite deduzir que as
limitação originária livremente c com consciência, en- V representações devem nos aparecer assim.17

34 ■i 35

i
4-

Logo, a empiria não pode ser oposta à razão, e é mam em matéria de dificuldades especulativas, ou seja,
aliás por isso que,‘ mesmo se Krug não o compreende, de autêntico pensamento.
um naturalista precisa descobrir no mundo o que sua A qualificação reivindicada pelo próprio Krug para
razão subjetiva não lhe daria a conhecer. A filosofia da seu sistema é a de "sintetismo transcendental". Krug
Natureza põe, é claro, tudo isso particularmente em evi­
31 dência, ao ver já na planta "um traço confuso da alma”.
fala, com efeito, tanto da consciência quanto da síntese
originária do real e do ideal, e da necessidade de unir
Se a natureza é realmente o produto da razão, e não a então realismo e idealismo em um sistema que exprima
própria produção, não é de se surpreender que se deva essa síntese. Compreende-se que a ressonância bem par­
procurar nela o conhecimento que ela contém em si se­ ticular desses termos para Hegel tenha podido tornar
gundo sua origem, e que a esse respeito o a priori e o sua crítica ainda mais acerba no tocante aos desenvolvi­
empírico possam ser considerados como uma única e mentos de Krug, onde eles aparecem evidentemente de­
mesma coisa. Em compensação, somente a filosofia in­ turpados. Pois essa síntese originária não vai correspon­
teressa-se pela própria produção e por isso não tem que der a grande coisa, só serve para nomear pomposamente
se apoiar sobre o produto. determinações totalmente empíricas.
Depois dessas explicações tornadas necessárias pe­ Krug só entende essa síntese como o conjunto, a
las alusões do texto de Hegel passemos à terceira parte "coleção" de todos os fatos da consciência mais empírica, e
das críticas, ou seja, à terceira obra de Krug.18 Esta nos a própria afirmação do Eu não é senão a de um suporte
revela as próprias convicções de Krug. Poderia parecer reificado de suas funções que contém em si, à maneira de
vão nos determos nela, porém as falhas desse "sistema" uma coisa, uma consciência.19 Vemos aqui o que pode ter
podem esclarecer indiretamente alguns problemas. de chocante a aproximação operada por Krug entre sua
Não se trata aqui de nos demorarmos no detalhe doutrina e a Doutrina da Ciência de Fichte, tão preocupa­
de uma doutrina cuja pouca importância Hegel nos do em salvaguardar a atividade do Eu de toda interpreta­
mostra, mas somente indicar os princípios da reflexão ção coisificante! O Eu não é mais, aliás, identificado com a
crítica hegeliana a esse respeito e de retomar algumas consciência nem com a razão, e não passa de um substrato
referências à literatura filosófica de sua época com as tanto mais susceptível de fundar esse "sintetismo” quanto
quais Hegel salpica seu texto. mais vago. Acrescentemos que, ao se referir de maneira
F !; Toda a questão dessa apresentação feita por Hegel tão ingênua unicamente à consciência empírica, Krug tor­
do "sistema" de Krug nos parece ser a de tornar total­ na-se, na verdade, culpado do pecado maior aos olhos de
mente evidente a todos o contraste entra a trivialidade Hegel, já que negligencia simplesmente o que a filosofia
grandiloqüente do senso comum que pretende filosofar idealista transcendental via como a tarefa essencial: a saber,
e a filosofia autêntica, cujas fórmulas este retoma sem alçar a consciência a esse princípio que a funda, por uma
compreendê-las ou esvaziando-as de todo seu sentido. atividade em que ela se supera. Isso, aliás, nos traz a primei­
Enquanto nas obras anteriormente citadas Krug critica­ ra menção bem clara na obra hegeliana da famosa Aufhe-
va certos pontos, chocantes a seus olhos, dos sistemas bung (cf. p. 55), a propósito da verdadeira reflexão filosófica.
idealistas recentes, ele nos apresenta em seu Novo Orga- A confusão da dimensão transcendental com o do­
non uma teoria que parece conciliável com as doutrinas i
mínio psicológico reduz a pretensa síntese da consciên­
incriminadas, pois ele lhes retira tudo o que elas afir- cia a uma mistura informe de tudo e de qualquer coisa.

36 37

1
O sintetismo mostra que não passa de um ecletis­ insuficiências da Doutrina da Ciência. Esse artigo de
V mo da pior qualidade, e Hegel não deixa de ironizá-lo ao Fichte, datado de 1795 e intitulado "Comparação do sis­
jogar com o nome de Krug, que em alemão significa tema estabelecido pelo Sr.- Prof. Schmid com a Doutrina
jarro. Nem esse ecletismo constitui uma verdadeira sínte­ da Ciência", emprega um tom particularmente vivo.
se, nem a coleção dos fatos da consciência traz unidade, à t Nele Fichte declara, entre outras coisas, que Schmid
exceção da única forma exterior de vínculo.
Rebaixar assim o pensamento transcendental a pu­ mostrou muito bem sua absoluta impotência de se se­
ros truísmos que não contêm, é claro, nenhuma dificul­ parar do dado; sua inteira incapacidade de pensar uma
dade porque não são elevados às questões filosóficas, eis verdadeira espontaneidade — idéia que é a condição ex­
o que parece ser uma atitude constante do senso co­ clusiva da inteligência da Doutrina da Ciência — é tão
mum. Ele se agarra como um parasita a um sistema do visível em seus escritos filosóficos que, sem dúvida al­
qual nada compreende para poder se apropriar dele e guma, podemos assegurar de antemão20 que ele jamais
compreenderá a Doutrina da Ciência.
pretender, a partir de então, julgar os filósofos cujas
perspectivas mais profundas escapam de fato a seu
Fichte predizia efetivamente que, apesar de sua
olhar. É nesse contexto que Hegel se refere a uma polê­
nulidade filosófica, ou mais precisamente por causa
mica precedente cuja questão lhe parecia idêntica e cu­
dela, a teoria de Schmid encontraria um certo eco. Rei­
jos atores foram Fichte e um certo Sr. Schmid. Essa lem­
vindicando para si o kantismo, ela na verdade o reduzia
brança histórica tira definitivamente de Krug toda
a uma série de lugares comuns, deixando o homem do
originalidade, pois seu pretenso sistema é, segundo He­
vulgo entregue às suas concepções habituais. Hegel
gel, totalmente idêntico ao que esse Sr. Schmid propuse­
ra seis anos antes. Este, com efeito, fundava-se igual­ constata assim a justeza dessa previsões e retoma nas
mente sobre fatos da consciência para além dos quais
i páginas 51 e 52 as próprias frases e até as mesmas pala­
era proibido se arriscar. Ora, estando a consciência redu­ vras do artigo de Fichte, que poderíam também se apli­
zida a um de seus próprios fatos, o empirismo ingênuo car a Krug. Podemos encontráJas nas páginas 438 e 439
podia se estender às próprias faculdades, entendimento do tomo II de suas obras completas, onde o artigo está
e vontade, postas em sua dualidade irredutível. O Eu reproduzido. O depauperamento operado por Schmid
não é sua consciência ou seu entendimento, mas ele os no que concerne a Kant encontra-se em Krug em rela­
ção a Fichte, cujo princípio do Eu é tornado por Krug
í
:;i
“tem", e a unidade da experiência exprime apenas o
vago vínculo de estados de consciência (que correspon­ admissível para o senso comum por ter sido esvaziado
de sua significação.21
dem aos objetos) a esse Eu. Em que consistem essa cor­
respondência e a atividade do entendimento? Sobre isso Como vemos, o sucesso de tal empreendimento
repousa menos sobre a solidez dos princípios do que so­ !
Schmid nada diz. Sobre esse ponto ele permanece em I i

um realismo comum e não apreende de modo algum a bre a superficialidade do propósito. Aliás, é preciso no­
novidade de Kant. São estes os pontos principais sobre tar que o problema do princípio fundamental, essencial
os quais Fichte dirigia sua crítica em um artigo surgido para o pós-kantismo à procura de um princípio formal-
I.
no Jornal Filosófico, o mesmo que alguns meses antes pu­ material que possa fornecer a razão de uma dedução, é
blicara o artigo de Schmid que pretendia completar as
0

aqui resolvido de maneira simplista: a multiplicidade


í
.i

38 39
ri-

dos princípios já não é problema para Krug, e tampouco Krug; este, aliás, reduz provavelmente o projeto schellingiano
o é o caráter puramente formal do Eu. àquele tão ambíguo de pessoas como Reinhold, que só par­
Quanto aos resultados, eles são todos fracos e bem tem de "fatos da consciência".

[L
h '
afastados dessa certeza apodíctica que a filosofia deveria
disputar com a ciência. Hegel insiste sobre a desproporção
11. Schelling, Sistema do idealismo transcendental, Louvain,
1978, trad. Dubois, p. 32.
12. Differenzschrift, edição citada, p. 28, trad., p. 102.
entre o imponente aparelho livresco e a pompa pseudo-
■ 13. Cf., por exemplo, D. Henrich em seu artigo: "A Teoria
conceitual de Krug e a modéstia prudente dos resultados hegeliana da contingência", in Hegel im Kontext, Surhkamp,
— reconhecidos pelo próprio autor como apenas prová­ Hamburgo, 1975.
veis. Somente aquele que permanece no empirismo mais 14. Na Enciclopédia, por exemplo, no início da Filosofia da Na­
vulgar pode contentar-se com esse não-saber em que acaba tureza.
uma obra na qual esqueceu-se simplesmente de filosofar.22 15. Sistema do idealismo transcendental, trad. Dubois, Louvain,
lí 1978, p. 82.
16. Ibid., p. 67-8.
Notas 17. Ibid., p. 135.
18. Não insistimos aqui sobre as observações que concernem às
1. Platão, Parménides, c-d, Belles Lettrcs, Paris, 1965, trad. críticas de Krug sobre as noções religiosas de Fichte, já que Hegel
Diès, p. 60: "E objetos como estes, Sócrates, que poderíam se contenta em evocar trechos que se desacreditam por si só.
parecer antes ridículos: cabelo, lama, imundíde, ou qualquer 19. Encontramos no artigo de Hegel, no Jornal Critico, sobre o
outro objeto sem importância e sem valor, você se pergunta ceticismo e a filosofia (t. I, 2.° caderno) a mesma crítica dessa
também se é ou não preciso colocar, para cada um, uma forma psicologia empírica que reduz, finalmente, o domínio espiri­
separada, ela própria distinta do objeto que nossas mãos tocam?" tual à contingência pura e simples, os fenômenos do espírito
2. Cf. o subtítulo do artigo de julho de 1802. surgindo sem razão pelo jogo de faculdades mecânicas. Cf.
3. O próprio termo "sintetismo" é reivindicado por Krug. G.W., t. IV p. 237. A relação do ceticismo com a filosofia, trad.
i 4. Fidites Werke, W. De Gruyter, Berlim, 1971, t. II, Anais do Fauquet, Vrin, 1972, p. 81.
tom filosófico, 1797, p. 472-75. 20. Fichte declara expressamente em seu artigo que considera
5. Correspondência, trad. Carrière, Paris, Gallimard, 1962, p. "o Sr. Schmid, enquanto filósofo, como não-existente", e fala
60. Carta do dia 30 de dezembro de 1801 a Hufnagel. de sua própria crítica a respeito deste como "de um ato de
1 6. Hegel, Gesammelte Werke (G.W.) Meiner Verlag, Hamburgo, aniquilamento ao qual este não pode escapar." Fichtes Werke, t.
,1
1968, t. IV p. 20. Orphys, trad. M. Méry, p. 94. II, p. 457.

7. Lembremos que apesar de sua mediocridade, Krug foi um 21. Além disso, a significação filosófica da teoria fichtiana se
autor prolixo. Sucessor de Kant na cadeira de KOnigsberg, ele exprimia no artigo contra Schmid em termos que podiam sus­
será mais tarde o editor de um dicionário filosófico que terá citar o interesse de Hegel; por exemplo, quando Fichte decla­ í
autoridade na Alemanha. ra que é preciso pôr "a identidade da idealidade e da realida­
8. Hegel, G.W, t. IV p. 90. Trad., p. 104. de". Ibid., p. 442.
; I 9. Lembremos que é essa unilateralidade que caracteriza, aos 22. No mesmo Jornal Crítico, t. I, 2.° caderno, Hegel dirá por
olhos de Hegel, o bom senso. Cf. Differenzschrift, edição cita­ ocasião de seu artigo sobre o ceticismo: “O ceticismo do Sr.
da, p. 20-2, trad., p. 94-6. Schulze se une com o dogmatismo mais grosseiro, e o dog-
• I:
10. Há, portanto, uma distância considerável entre essa for­ matismo de Krug comporta, ao mesmo tempo, esse ceticis­

?! mulação do Absoluto e uma pressuposição, como acredita mo." G.W, t. IV p- 214, trad. Fauquet, p. 48.
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40 41
4
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íIl COMO O SENSO COMUM


COMPREENDE A FILOSOFIA

A PROPÓSITO DAS OBRAS DO


SR. KRUG
DE G. W R HEGEL

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ADVERTÊNCIA DO TRADUTOR
(J. M. LARDIC)*

O artigo de Hegel foi publicado no Jornal Crítico de


Filosofia, que ele editou com Schelling em 1802 e 1803,
em Cotta, Tübingen. Fazia parte do primeiro caderno
do primeiro volume, que data de janeiro de 1802 e ocu­
pava as páginas 91 a 115.
1 Indicaremos entre parênteses em nossa tradução
as páginas do texto alemão da grande edição crítica das
obras completas (Gesammelte Werke) de Hegel, no prelo
na editora Meiner, em Hamburgo. Os artigos do Jornal
Crítico de Filosofia estão publicados no tomo IV dessa
edição (H. Buchner e O. Põggeler, 1968), e o artigo so­
bre Krug corresponde às páginas 174 à 187.
i
Hegel manifesta em todo o artigo uma ironia mor­
daz para com Krug e algumas de suas observações es-
carnecedoras de tipo lingüístico pediram algumas notas.
i Lembremos aqui que "Krug”, em alemão, significa "jarro".

0. M. L.)
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A traduçSo para o português foi feita com base na traduç3o
francesa cotejada com o testo original em alemSo. (N.B.)

I 45
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t um verdadeiro prazer ouvir a sobriedade, eqüidade e


honestidade do autor.
i

A Doutrina da Ciência [diz ele] se fez sem dúvida até i


aqui, passavelmente, de recatada, e respondeu a seus ad­
versários, em sua maioria, num tom um pouco rude; toda­
via, é também inegável que, em muitos casos, ela apenas se
serviu do direito à desforra, e se, nisso, ela ultrapassou,
aqui e ali, os (175) limites, isso pode, sem dúvida, ser impu­ I
tado mais ao vigor com que ela entra no campo de bata­
lha do que a uma disposição de espírito agressiva. O
I- Cartas sobre a Doutrina da Ciência, com um tratado autor, até o presente momento, não tomou partido nes­
sobre a tentativa de uma determinação da crença religiosa se conflito, pois considerava como um dever examinar pri­
pela Doutrina da Ciência. Roch e Comp., Leipzig, 1800. meiro mais precisamente por si mesmo um sistema antes
II- Cartas sobre o idealismo mais recente, continuação de fazer um exame público dele.
das Cartas sobre a Doutrina da Ciência. Livraria Heinr.
J É com a nobre e reconfortante consciência do de­
Müller, Leipzig, 1801
ver cumprido que ele trata agora
III- Esboço de um novo Organon da filosofia, ou en­
saio sobre os princípios do conhecimento filosófico. De a Doutrina da Ciência com a devida atenção, opondo-lhe
Will. Traugott Krug, adjunto na Faculdade de Filosofia não conclusões hostis, e sim argumentos, e não teme, a
de Wittenberg. Ti 7tpc5rov éoiiv Epyov tóu 0tXoao- menos que esteja completamente enganado sobre seus adver­
<f>o\)VTOa; cmopaXEiv oírjcuv. Arrian. K. F. W. Erbstein, sários, ser tratado de outro modo, pois tendo deles uma
Meissen e Lübben, 1801. opinião extremamente favorável, não pode esperar ser tra­
Os esforços filosóficos do Sr. Krug dividem-se por tado de outro modo etc. Se essa esperança fosse, no entan­
si só em dois aspectos, um polemicamente voltado con­ to, equivocada, então ele abandonaria juaí investigações.
tra o idealismo transcendental, e o outro referente ao que
o Sr. Krug chama de suas próprias convicções filosóficas. li A honesta e estimável razão dessa conduta é que
No que concerne ao procedimento polêmico do “raramente alguma coisa de sensata" sai de uma polêmica
Sr. Krug, a posição que ele parece adotar contra a Dou­ literária travada no calor da paixão e que, ao final, só se
trina da Ciência1 é a do ceticismo (cf. Prefácio, p. 5), dá ao espectador a imagem de um “escândalo" que “desa­
pois, como convém ao ceticismo, o Sr. Krug não argu­ credita publicamente tanto a ciência quanto os que dela se
menta partindo de suas convicções próprias (Por que ocupam" (dentre os quais se coloca o Sr. Krug também).
não? porque é nas Cartas sobre o idealismo transcendental e Na primeira carta, o Sr. Krug diz o que aprova no
sobretudo no Organon, onde o autor expõe suas próprias idealismo transcendental; ele explica (p. 14) que não
convicções, que isso será feito) e sim partindo da própria acha de modo algum o Eu tão ridículo nem tão impensável
Doutrina da Ciência, e o Sr. Krug é da opinião que uma
investigação científica possa ser iniciada por meio de A pontuação irônica nesta e em outras citações de Krug é de Hegel
suas Cartas. Quanto ao modo subjetivo de se expressar, (nota da edição alemã).

46 47
1

r
quanto muitos parecem achá-lo; o que havería pois, per­ ele nega a realidade do mundo exterior, e realismo, se
gunta ele, de absurdo e que pudesse provocar num ho­ ele concede a realidade e a afirma; uma divisão dessas,
mem sensato um riso ou até mesmo apenas um sorriso, se porém, deixa justamente de lado o idealismo transcen­
eu nomeio pura e simplesmente Eu aquilo que penso dental; este não se contenta, com efeito, em conceder a
por abstrasão (como ortografa o Sr. Krug)2 de tudo o realidade do mundo exterior — pois não se fala de con­
I ,
que não pertence a mim mesmo? Ele acha totalmente fun­ cessão em sistemas filosóficos — mas ele a afirma tanto
dada a seguinte exigência: "Observe a ti mesmo, desvie quanto sua idealidade, e a parte teórica da Doutrina da
teu olhar de tudo o que te cerca para voltá-lo para o que Ciência é consagrada a nada menos do que a uma dedução
está no teu interior.” Aliás, ele não tem nada contra isso da realidade do mundo exterior.
etc., enfim, ele não pode considerar o próprio idealismo i O exame detalhado da Doutrina da Ciência pro­
como teoria filosófica tão perigoso quanto parece ser con­ priamente dito (p. 24 a 52) recai apenas sobre um único
siderado por muitos. Sob esses aspectos ele nada tem a ponto, a saber, que o Sr. Krug não pode suportar a limi­
objetar ao idealism3 transcendental (é assim que o Sr. tação do Eu: o Eu deve, com efeito, limitar-se, mas não
?
Krug declina tais palavras: no dativo, dem Organisme, dem com liberdade e arbítrio (uma boa composição), e sim se­
Dogmatisme; no genitivo, des Idealismes, des Organismes, gundo uma lei imanente â sua própria essência; e, no entan­
’.l des Realismes etc.); quanto a saber se ele não tem, além to, o fundamento de autenticidade do idealismo trans­
I cendental residiría no interesse pela autonomia; e “eu
disso, defeitos, a continuação o mostrará.
Os pontos sobre os quais o Sr. Krug dá sua aprova­ também”, diz o Sr. Krug, “estou, juntamente com o
ção ao idealismo transcendental constituem o conteúdo da amigo ao qual se dirige essa carta e com o autor da Dou­
primeira carta; mas esse tom petulante e vaidoso de justiça trina da Ciência”, muito "interessado em minha autono­
e sobriedade e esse estilo enfadonho, perpassam toda a obra. mia.”4 Que Fichte tenha se associado ao Sr. Krug e a seu
amigo, compartilhando o interesse pela autonomia do
O que o Sr. Krug expõe, entretanto, contra a Dou­
Sr. Krug, como o Sr. Krug conta aqui, não era, aliás, de
trina da Ciência e que ele chama (p. 79) de um exame
conhecimento do público. No que concerne, porém, ao
detalhado, vai da página 24 à página 52 (176), pois na
interesse dessa autonomia, seria totalmente indiferente
terceira carta ele só se preocupa com os nomes de idea­
que o Eu agisse de maneira necessária, como ele age,
lismo, dogmatismo e realismo:
por meio de uma natureza exterior a ele ou por sua pró­
Os nomes, é claro, não têm nada a ver com o fundo da pria natureza interior. O Sr. Krug compara o Eu cuja
questão, mas se tudo o que se opõe a ela é tido como ação responde à necessidade de uma natureza interior e
dogmatismo, todos e cada um dos adversários da Dou­ o Eu que seria determinado por uma natureza exterior a
trina da Ciência se encontram de certo modo, já condena­ nós, este a uma simples flauta tocada por um artista,
mos de antemão, e é justamente por isso que o espírito de aquele a um carrilhão de flautas que produziría por si só
exame imparcial, exigido com tanta frequência e tão expres­ sonoridades harmoniosas.
samente, é de acesso senão vedado, ao menos dificultado. A partir disso também ficaria suficientemente claro
que a conformidade ao dever do pensamento idealista
Para afastar então esse perigo o Sr. Krug divide, do I não deveria ser tomada assim tão seriamente; poderia­
ponto de vista material, o dogmatismo em idealismo, se mos falar de uma boa vontade e de uma intenção mo-

i 48 49

L
ral em toda teoria filosófica. (Em contrapartida, o antro- ma de Schelling — não se pode realmente ver, aliás, por
pomorfismo da imaginação, o politeísmo, na página que o Sr. Krug se compraz em designá-lo com a expres­
112, é para ele uma abominação tão desagradável que o são "nosso idealista transcendental" — tudo isso tem de
considera absolutamente incompatível com a moralida­ ser também imputado à franqueza da exposição.
de) (177). Ora, embora o idealismo transcendental não Sobre a limitação originária, o Sr. Krug parece ter
dê muita importância ao interesse da autonomia, have­ recebido alguma luz acerca da construção de modos de
ría, todavia, um ganho considerável no que concerne ao ação do eu com base em atividades opostas ou a com
interesse especulativo da razão; aqui tudo seria luz e clari­ base na diferença originária. E sobre a necessidade abso­
dade, o Eu fazendo tudo surgir diante de seus olhos. No luta de colocar a razão como sujeito e objeto e impor
entanto, a principal tarefa não seria resolvida: ao ver com isso uma limitação, o Sr. Krug não se faz mais ou­
dois homens, nos diz o Sr. Krug, um europeu e um vir. Ele se agarra, porém, ainda mais à determinação, que
mouro, ele se sentiría obrigado a representar um com a deve ser reconhecida, segundo ele, como o inexplicável
pele branca e o outro com a pele preta; ou ainda, ele e o inconcebível da filosofia.
gostaria de salvar um homem correndo perigo de vida, (178) Em primeiro lugar, ele acha contraditório que
mas as águas estão bravas ou as chamas enfurecidas e não deva haver nenhuma pressuposição em filosofia e
por aí afora. A Doutrina da Ciência ficaria, pois, presa na pressupor, no entanto, o Absoluto A=A como identida­
inconcebilidade dos limites, como, ao que tudo indica, de absoluta e como diferença a partir do qual toda limi­
toda filosofia. tação é construída.
Quanto à última carta, na qual o Sr. Krug é da sá­ Essa contradição é justamente a que o senso co­
bia e prudente opinião que seria provavelmente melhor, mum sempre encontrará na filosofia; o senso comum A
por enquanto, abster-se totalmente sobre a coerência ou põe o Absoluto exatamente no mesmo nível que o finito ,
incoerência de julgar do sistema de Kant, ela acaba com e estende ao Absoluto as exigências formuladas para o
estas palavras: finito. Exige-se, portanto, que a filosofia não coloque
nada que não seja provado; o senso comum descobre (
"r
Ignavumjucos a praesibus arce.’ imediatamente a inconseqüência cometida, descobre i
que o Absoluto não foi provado; com a idéia do Absolu­ I
O que pode muito bem convir ainda a muitos ou­ to é posto imediatamente seu ser, mas o senso comum
tros nos quais o Sr. Krug não pensava ao anotar isso. sabe objetar que ele pode muito bem pensar alguma coi­
O conteúdo das páginas polêmicas das Cartas sobre sa, fazer uma idéia de alguma coisa, sem que por isso
o idealismo mais recente dirigidas contra o sistema da filo­ seja necessário que essa coisa pensada tenha ao mesmo
sofia transcendental de Schelling é idêntico. A única di­ tempo uma existência etc. Assim, o Sr. Krug censurará a
I ferença, nos diz o autor no prefácio, é que aqui ele teria geometria por não ser uma ciência completa em si,
dado um passo à frente na franca exposição de suas pró­ como ela afirma, pois ela não prova a existência de um
prias convicções. espaço infinito no qual ela traça suas linhas. Ou então o
Se o Sr. Krug apresenta aqui suas objeções de ma­ Sr. Krug considera Deus ou o Absoluto como uma espé­
neira mais atrevida e demonstra inconseqüências imper­ cie de hipótese, da qual a filosofia se torna culpada,
doáveis, contradições palpáveis, non sense etc. no siste- como uma física se permite fazer a hipótese de um espa-

SO 51
•1| y

L
ço vazio, de uma matéria magnética, elétrica etc., hipó­ deficiente quanto a ortografia) de uma das coisas que
teses que outra física pode substituir por outras? ele propõe, do ferro, por exemplo. Será que o Sr. Krug
A segunda inconseqüência que o Sr. Krug nota con­ ignora tanto um conceito de construção filosófica a
siste no fato de se prometer deduzir o sistema completo ponto de achar que se poderia compreender a lua sem o
de nossas representações; e mesmo se ele próprio já en­ conjunto do sistema solar, e será que ele tem uma repre­
controu um lugar no idealismo transcendental onde o sentação tão pobre do sistema solar a ponto de não dis­
sentido dessa promessa é expressamente explicado, ele não cernir que o conhecimento desse sistema é a tarefa mais
■ pode, no entanto, deixar outra vez de esquecer completa­ sublime e mais elevada da razão? Se o Sr. Krug tivesse a
t mente que se trata aqui de filosofia. O Sr. Krug não pode menor noção da grandeza dessa tarefa determinada ou
deixar de entender a coisa como a plebe mais comum e de daquilo que é em geral e no presente momento o inte­
exigir que se deduza cada cachorro, cada gato; e até mes­ resse primeiro da filosofia, a saber, de recolocar, enfim,
mo a pena com a qual o Sr. Krug escreve; como isso não Deus absolutamente no topo da filosofia como o único
acontece, ele acha que seus amigos terão a impressão fundamento de tudo, como o único principium essendi e
que a montanha dá a luz a um pequeno camundongo; cognoscendi, depois de tê-lo posto, por tempo demais, ao
ninguém deveria se mostrar como alguém que quisesse lado de outras finitudes, ou então no fim, como postula­
deduzir o sistema completo das representações. do partindo de uma finitude absoluta, se ele tivesse a
Apesar de tudo, é hilário ver como o Sr. Krug é tão menor suspeita disso, como poderia, pois, lhe passar
misericordioso ao não querer levar ao pé da letra o filó­ pela cabeça exigir do idealismo transcendental a dedu­
sofo que ousa se dar ares de um mestre em filosofia! No ção de sua pena de escrever? Um cachorro, um carvalho,
I
entanto, ele só pede pouca coisa, somente a dedução de um cavalo, um bambu são, é claro, como um Moisés,
uma representação determinada, a lua, por exemplo, um Alexandre, um Ciro, um Jesus etc. algo de superior,
com todas as suas características, ou então uma rosa, e essas duas ordens de organizações concernem mais à
um cavalo, um cachorro ou a madeira, o ferro, a argila, filosofia do que à pena de escrever do Sr. Krug e às
um carvalho, ou até mesmo apenas sua própria pena de obras filosóficas que ela serviu para redigir. A Filosofia
escrever. É como se o Sr. Krug tivesse querido, com tais da Natureza mostra-lhe como deve conceber a organiza­
i
exigências, facilitar as coisas para os idealistas, pedindo ção de um carvalho, de uma rosa, de um cachorro, de
somente a dedução de um ponto subalterno no sistema um gato, e se ele tiver vontade e ardor para reduzir sua
i solar, a lua, ou, (179) ainda mais fácil, a de sua pena de individualidade humana ao nível da vida de uma rosa ou
escrever. Mas será que o Sr. Krug não compreende que de um cachorro, a fim de conceber e apreender perfeita-
as determinidades que não se pode conceber no idealis­ mente seu ser orgânico, ele pode muito bem fazer a ten­
mo transcendental dizem respeito à Filosofia da Nature­ tativa, mas não exigir isso dos outros. Seria melhor se
za (cuja diferença com o idealismo transcendental ele tentasse estender sua essência à dimensão das individua­
parece não conhecer de modo algum), ao menos na me­ lidades superiores, a de um Ciro, de um Moisés, de um
dida em que se trata de coisas que — contrariamente à Alexandre, de um Jesus etc., ou, então, até mesmo a do
pena de escrever do Sr. Krúg — podem ser questão em grande orador Cícero. Desse modo ele não poderá dei­
filosofia? Nessa Filosofia da Natureza ele pode encon­ xar de compreender a necessidade deles e de considerar
trar uma dedusão6 (palavra cuja significação é nele tão que tais indivíduos, assim como a série das manifestações

52 53
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do Espírito do mundo (que chamamos de história), se sou talvez, [diz ele] por isso mesmo absoluta mente in­
prestam melhor a uma construção. Ele deverá, em con­ capaz de filosofar, mas não posso fazer nada, é assim, e
prefiro assumir essa incapacidade do que fingir uma
trapartida, deixar de exigir a dedução de sua pena de
convicção que não tenho.
escrever e, por causa da ignorância sobre essas coisas,
deixar de se preocupar com o idealismo. I Mas justamente não existe tal alternativa, ou fin­
O Sr. Krug acredita ter feito um achado maravilho­
gir ou difundir o senso comum sobre a filosofia. Além
so, ao exigir a dedução de alguma coisa tão determina­
dessas contradições por atacado que o Sr. Krug desco­
da. Considera-se com isso completamente ao abrigo do bre, que no idealismo transcendental tudo deve ser de­
idealismo e pensa que o recentíssimo sistema (180) idea­ duzido e que os cachorros e os cavalos, no entanto, não
lista poderia, se resolvesse o problema, ficar fora do al­ o são, ele ainda encontra outras, ao aproximar trechos
cance de todas as objeções ulteriores. Ele ao menos não isolados do sistema nos quais se trata de perspectivas
hesitaria em assinar imediatamente, com sua pena de es­ completamente diferentes, apregoando, então, com
crever, embaixo do sistema inteiro que a tivesse deduzi­ grande alarido a contradição, como na página 90:
do; mas está de antemão convencido que nenhum idea­
lista no mundo fará ao menos a tentativa disso. Que necessidade temos ainda de um testemunho de
i
Para compreendermos bem sua objeção, ele exibe que nosso sistema seja um idealismo transcendente dog­
comodamente seu bom senso, por exemplo» a partir da mático? Foi de sua própria boca que ouvimos isso.
página 34, numa forma simplória, como convém, uma
série de problemas ingênuos que o idealismo transcen­ Em um dos trechos ressaltados pelo Sr. Krug, tra­
dental deveria, segundo ele, ter dificuldades em resolver. ta-se, na verdade, da limitação originária ou da oposição
Dentre esses problemas há o fato de sermos obrigados a pela qual o Eu se coloca como sujeito e como objeto, e é
i
nos representar que nascemos em um determinado mo­ dito que um sistema que suprimisse esse fundamento
mento, que morremos em um determinado momento, seria um idealismo transcendente dogmático. O outro
ou ainda de que diariamente os jornais nos informam trecho diz respeito à época do desenvolvimento da auto-
do que se passa em lugares do mundo onde não estamos consciência onde o subjetivo e o objetivo se separam
etc. Aliás, se a organização é um produto da inteligên­ para o próprio Eu; nesse ponto de separação o limite
cia, não é incompreensível que o erudito possa chegar não se encontra nem no Eu, agora determinado como
em regiões onde ele descobriría novas plantas, ou que algo subjetivo, nem na coisa, ele não está, segundo a
tenha de percorrer toda a Terra etc.? E além disso, como fórmula utilizada, em parte alguma, ele é, pura e sim­
a inteligência poderia produzir um cego de nascença, a plesmente, porque é; ele aparecerá pura e simplesmente
doença, a morte? — em suma, não se considerar um como contingente, tanto em relação ao Eu quanto em re­
il
impostor e, no entanto, falar no tom do senso comum lação á coisa. O Sr. Krug explica isso da seguinte maneira:
mais trivial é indício de uma total inabilidade. O Sr. não há absolutamente nenhum fundamento da limitação.
Krug explica que nenhum falso pudor o impede de ex­ (181) Essas lamentações nos permitem ver que o
por suas objeções e que ele procura sinceramente a ver­ Sr. Krug não tem o menor conhecimento, mesmo su­
dade; por não ser possível conceber uma ação ou ato perficial, do sistema que ele se declara no dever de sub­
sem um ser, meter a um exame aprofundado antes de ousar julgá-lo

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54 55
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II

publicamente. Aliás, se ele tivesse realmente compreen­ Organon que o Sr. Krug aparece, urceus exit7 (mas a ampho-
dido que era preciso construir a consciência, já sabería ra propriamente dita deve consistir em uma obra com
de antemão (sem sair à procura de trecho particular) oito volumes sobre toda a filosofia, ou seja, sete volu­
que tem de haver uma ação da inteligência na qual o mes para o conteúdo e um oitavo para o índice remissivo,
limite parece contingente, sem fundamento, tanto para I
obra na qual o Sr. Krug pendura o esboço do Organon
o Eu como para a coisa. como uma coroa8). Para nos situarmos no próprio cerne
Depois de mostrar como o Sr. Krug se comporta dessas convicções que constituem seu sistema, vejamos
I em seu exame, é preciso mencionar ainda que no final o que o Sr. Krug considera como o essencial delas, a saber,
r das Canas sobre a Doutrina da Ciência, da página 61 em que há em nossa consciência (cf. Organon, p. 75) uma sín­
1 diante, ele acrescenta como apêndice um tratado sobre tese transcendental originária entre o real e o ideal, e
a fé religiosa e a este um outro apêndice seguido ainda esse sistema que reconhece tal síntese transcendental e a
de um suplemento. O conjunto concerne aos escritos de afirma sem querer explicá-la, porque para explicá-la se
Fichte sobre a religião. Já que o Sr. Krug confessa expli­ deveria (182) partir de um ou de outro e com isso supri­
citamente querer deixar completamente de lado nessa mir a própria síntese, ele o chama de sintetismo trans­
investigação o ponto de vista transcendental — o que cendental, que é, portanto, a união indissolúvel de um
I realismo transcendental e de um idealismo transcenden­
ele sempre faz, mesmo sem uma confissão explícita —
que só pode, segundo ele, pertencer ao filósofo, e cujo tal. São palavras que não soam mal. Mas resta saber
exame detalhado ele estima já ter feito (por nosso lado, como o Sr. Krug compreende exatamente esta síntese
achamos que o Sr. Krug não falou absolutamente nada do real e do ideal, pois a palavra síntese não acaba com a
sobre isso), não temos, portanto, absolutamente nada a questão. Ora, a síntese originária é, segundo a página 25
acrescentar a propósito dessas efusões de sentimento e do Organon, a consciência; a consciência, entretanto, não
de senso comum. Particularmente pungentes são seus é o Eu, mas está no Eu.
rompantes de fervor contra os pagãos e sua superstição Se continuarmos a escutar o Sr. Krug a propósito
grosseira, imediata e diametralmente oposta à religião do Eu, descobriremos que ele é em todos os pontos um
da boa conduta da vida. O que provoca tais ímpetos é caloroso defensor do Eu contra os adversários da Dou­
uma afirmação tirada de um artigo do Jornal Filosófico trina da Ciência; ele não tem nada contra o Eu como
que testemunharia, segundo o Sr. Krug, um certo atrevi­ ponto de partida da filosofia; ele considera qualquer
mento indigno do objeto de que se trata: a religião pode zombaria sobre esse tema algo mesquinho e absurdo
conviver igualmente bem com o politeísmo ou o antro- etc., faz igualmente do Eu o princípio real do conhecer;
pomorfismo ou com qualquer outra coisa. A que extra­ narra que o idealismo transcendental funda-se sobre a
vagâncias, exclama o Sr. Krug, a febre de brilhar com autonomia do Eu ou da razão, e que ele próprio se inte­
paradoxos pode levar até mesmo um bom espírito! ressa por essa autonomia. No Sr. Krug, o Eu separa-se,

h No que concerne às convicções próprias do Sr. Krug,


ele insta para que façamos "um exame particular destas,
já que ele se ocupa justamente com uma nova filosofia
entretanto, da razão; é apenas nessa narração que uma
aparece como explicação da outra, e em nenhum outro
lugar nas três obras que temos diante de nós, na medida
em que elas têm uma relação com a filosofia, a própria
I júndamental e tal exame poderia sem dúvida vir a calhar."
É somente nas Canas sobre o idealismo transcendental e no palavra razão é utilizada pelo Sr. Krug; só nas Canas so-

56 51
I

í
bre a Doutrina da Ciência a encontramos algumas vezes I Tudo se confunde 9
no genitivo ou, então, na página 45, num sentido seme­ como cocô de rato e coentro.
lhante (o que assinalamos também para o Sr. Krug, para
que não corra o risco, nos sete volumes das Ciências Surge então uma razão no genitivo que traz (cf. p. 76
,! Í filosóficas, de deixar a razão passar em branco ou de só e ss.) uma unidade formal, põe fim à desordem e confe­
mencioná-la no genitivo, de tal modo que ela não possa re uma ligação subordinando tudo a um certo princípio
aparecer no índice remissivo do oitavo volume). O Sr. que é como o ponto de unificação; não como se pudés­
Krug suprimiu essa equivalência do Eu ou da razão, pois semos e devéssemos deduzir dele todos os conhecimen­
tos singulares segundo seu conteúdo, mas esses conheci­
não se podia fazer da razão uma coisa; ora, que o Eu
mentos singulares devem apenas, em sua diversidade, se
seja uma coisa é um dos princípios fundamentais do sin­
relacionar com ele como com uma certa unidade, assim
tetismo, e ele o prova abundantemente e com ardor; as­
como numa abóbada tudo se relaciona com a chave de
sim (cf. p. 80 sobre o idealismo transcendental), quando
arco como supremo e último ponto de junção, embora
percebemos uma ação, temos também de admitir um
esse ponto não possa ao mesmo tempo conter em si a
agente, quer dizer, pôr um sujeito dotado de uma certa
base da abóbada; a opinião do Sr. Krug é de que talvez a
realidade do qual a ação como que procede; ou então,
Doutrina da Ciência tivesse isso mesmo em mente ao
como ele exprime no Organon: há um Eu que é sujeito da colocar o princípio Eu = Eu no cume de suas investiga­
atividade, pois uma atividade efetiva é impensável sem ções e esse A = A seria uma exposição simbólica daquela
I um sujeito da atividade; a consciência de um homem harmonia, princípio formal supremo da filosofia, princí­
ensinará isso a ele, garante o Sr. Krug, tão logo ele queira pio que, no entanto, já pressupõe, além disso, princípios
tentar pensar uma tal coisa. Que o principium essendi do materiais, fatos da consciência apreendidos em concei­
conhecer, ou o princípio real do conhecimento, seja um tos e expostos em proposições. — Aquele “talvez” honra
sujeito que conhece, dá o Sr. Krug uma espécie de prova o cuidado do Sr. Krug; ele não queria se arriscar a afir­
disso ao dizer que, com efeito, se um tal sujeito não exis­ mar isso tão claramente.
tisse aí, também não existiría conhecimento. Agora vemos também que, ao se voltar contra o
Nessa coisa, portanto, reside a consciência, e esta idealismo transcendental por causa da limitação originá­
consciência é uma coleção infinita de assuntos. O Sr. ria, o que importava ao Sr. Krug não era nos liberar des­
Krug conta entre estes um princípio de contradição, um sa limitação, mas antes encontrar aí um salvo conduto
certo princípio prático, ou seja, a lei dos costumes e, para o número infinito de limitações do conhecimento
além disso, um Alexandre, que foi um grande herói, um empírico e mostrar que esse sistema não era em nada
Cícero, que foi um grande orador e assuntos semelhan­ melhor que o seu sintetismo, o qual põe um número
tes em número infinito (cf. p. 14), assuntos que não es­ infinito de limitações da consciência. O Sr. Krug (cf. as
tão contidos na proposição Eu = Eu ou A = A e que se Cartas sobre o idealismo transcendental) considera que o
chamam os diversos fatos da consciência. Todos esses
fatos diversos da consciência em número infinito se encon­ sam qualquer sabedoria humana não desonra de modo
tram no Eu, onde chegam de maneira inconcebível e cer­ algum o filósofo — querer sair de sua consciência e ul­
tamente como um caos sem qualquer unidade ou ordem: trapassá-la lhe parece ser exatamente a mesma coisa que
>1

58 59
flii

I
querer suprimir sua consciência e conservá-la no pró­ e franco que ele se apresente, pois esse sistema, como

i prio ato pelo qual é suprimida. Será que o Sr. Krug (184) um verdadeiro sistema tem de fazê-lo, compreende em
pensa a reflexão filosófica de outro modo que não como si, igualmente, todos os outros: porque ser e pensar es­
a supressão10 da consciência e a conservação desta num tão unidos numa consciência empírica de uma maneira
único e mesmo ato? inconcebível, de modo que uma filosofia verdadeira, só­
O Sr. Krug acredita assim estar plenamente autori­ bria e modesta não deva ir além dela, o Sr. Krug acha
zado a fazer da consciência empírica o princípio de sua
especulação, e a tal ponto que o que encontrasse em sua
consciência empírica e tivesse de pensar nesta seria total­
que seu sistema está em acordo com o de Jacobi; não lhe
faltam os conceitos a priori kantianos, e, como vimos,
ele também é um caloroso defensor do Eu do idealismo.
1
mente verdadeiro; já que ele tem de pensar o Eu como Aliás, se consideramos sob o ângulo histórico a es­
um coisa, resulta daí, portanto, que o Eu é uma coisa. pecificidade desse sistema, ele não deixa de lembrar
i Pomos como efetivo o que temos de pensar como ne­ (como o nota igualmente o autor da resenha do Organon
cessário; assim procedem, desde tempos imemoriais, os no Jornal Literário de Jena) o sistema mais antigo e total­
i; físicos e os matemáticos em suas ciências (p. 82), e nin­ mente idêntico do Sr. Schmid (Jornal Filosófico, 1795, 10.°
guém até nossos dias os atacou por causa desse procedi­ caderno), um sistema do qual ninguém podia imaginar
mento; até mesmo o próprio idealismo transcendental que, depois de o próprio autor ter abandonado sua ela­
procede assim em centenas de lugares! Por que isso não boração (185), algum outro pudesse ainda ressuscitá-lo.
seria permitido a seus adversários? Ego homuncio non fece- Aconteceu exatamente o que Fichte já previra naquela
i rinün — O Sr. Krug esquece somente que matemática, época (Jornal Filosófico, 1795, 12.° caderno), que essa
física e idealismo, ao perguntarem o que se tem de pen­ descoberta seria sem dúvida utilizada. Seria, contudo, de
sar, não se voltam para essa consciência empírica fre- se desejar que os que a utilizam deixem àquele que é o
.1 qüentada pelos cachorros e pelos gatos, pela pena de es­
! verdadeiro inventor a honra da invenção e, segundo a
crever do Sr. Krug, pelo grande orador Cícero etc. — expressão que ele prefere, da descoberta, e se compor­
Segundo o que acaba de ser dito, o sintetismo do Sr.
tem para com ele melhor do que para com um outro
Krug tem de ser pensado da seguinte maneira: imagi­ escritor filósofo célebre, cujos escritos são a verdadeira
nem um jarro no qual a água reinholdiana, a cerveja fonte do kantismo dessas pessoas e ao qual bem poucos
choca kantiana, o xarope clarificador12 — chamado ber-
mostram o reconhecimento que deveríam. — O Sr.
linismo — e outros ingredientes da mesma espécie en­
Krug não é realmente culpado dessa ingratidão para
contram-se, por algum acaso, contidos como fatos; o
com Reinhold, mas está longe de lhe fazer plenamente
jarro é a síntese desses elementos = Eu; mas agora apa­
justiça. O Sr. Krug diz na página 33 do Organon que, ao
rece alguém que traz uma unidade a essa mistura, sepa­
apresentar a consciência o fundamento do conhecimen­
rando os ingredientes, cheirando-os e provando um de­
pois do outro, ou como é de praxe, aprendendo sobretudo to filosófico, a Teoria13 não estava de modo algum tão afas-
dos outros o que entrou lá dentro e fazendo disso um
—*.—& J.
"Vergleschung desj von Hm. Prof. Schmid aufgestellen Systems
relato; eis a unidade formal ou consciência filosófica. mit der wissenschaftslehre” [Comparação do sistema estabelecido

É esta a essência do sintetismo kruguiano e ela pelo Sr. Prof. Schmid com a Doutrina da Ciência]. In: Fichte, J. G.,
não se evidencia assim tão facilmente, por mais sincero Sàmmdiche Werke, Tomo II, p. 421 e ss. [Nota da ediçSo alemS].

60 61
<
7

«1 toda da verdade quantos muitos críticos afirmaram; mas (186) A pedra que serve de base a esta filosofia ■(

ela teria apenas cometido o erro (o Sr. Krug acertou em fundamental de suas convicções é colocada pelo Sr.
cheio) de pressupor que o conhecimento filosófico intei­ Krug expressamente no § 3, onde ele prova que seria pre­
ro teria de se construir sobre üm único fato da consciên­ ciso admitir um único princípio real, o Eu, mas vários
cia ou se deduzir dele. Mas o Sr. Krug é injusto com a princípios ideais; ele lembra a seguir, nas páginas 19 e (
Teoria, pois junto com a materialidade das representações, 77, ter esclarecido aqui a pluralidade dos princípios; no
V
contida também nesse prindpio único da consciência, entanto, o início da observação conclusiva a esse pará­
tem de surgir sem dúvida o grande número de fatos da grafo (p. 15), diz o seguinte:
consciência tão infinitamente variados quanto o Sr.
Krug os possa desejar. Duvido muito, por conseguinte, que se saia algum dia do
Além disso, o próprio Fichte dizia desse mesmo círculo mágico no qual nos introduz a investigação so­
sistema do sintetismo que ele correspondia perfeitamen- bre os princípios da filosofia, graças à admissão de um
te à necessidade mais premente da época; a filosofia princípio absoluto supremo que expressaria todo o con­
kantiana tinha feito um grande barulho e muitos procu­ teúdo e toda a forma da filosofia etc. (cf. Schelling: So­
bre a possibilidade de uma forma da filosofia em geral).
ravam atrás dela alguma coisa de particular. Com esse
sistema todas as dificuldades são afastadas de uma só
Se o Sr. Krug quer fundar sobre essas bases uma
vez; o mundo está aí, acabado, e não requer a menor
forte obra de ciência filosófica em oito volumes, como
intervenção da razão; o idealismo crítico recebe uma
sua modéstia e sobriedade podem levá-lo a declarar, de­
significação tão fácil de ser apreendida; ele não afirma
pois de ter demonstrado o princípio de suas convicções,
nada além do poder de dar a nossos conhecimentos a forma
de um sistema. Só nos resta ficarmos surpresos, depois de que ele apenas duvida do princípio oposto?
termos recebido tais explicações, com o fato que se te­ O Sr. Krug não vai muito longe no que diz respeito a
í nha podido fazer tanto barulho por nada, e que Kant um dos principais fatos da consciência, a saber, o mundo
tenha preparado armas tão poderosas para esclarecer a exterior. Eis o resultado apresentado por ele na página 40:
proposição simplória de que podemos raciocinar sobre
Se a admissão da realidade do mundo exterior não pode
as coisas do mundo. O que aconteceu outrora em rela­
ser provada diretamente, pode-se ao menos indireta­
ção a Kant, o Sr. Krug o fez para o sistema fichtiano, ao
mente (isto é, por reflexão) dizer muito acerca da afirma­
mostrar que Eu=Eu significaria o princípio da identida­ ção contrária a fim de se justificar aquela crença. Tal
de originária do Eu sobre qual apenas a consciência de crença e tal pressuposição seriam, com efeito, tão ne­
nós mesmos poderia nos instruir, essa consciência que cessárias e naturais para cada homem que até mesmo o
acompanha todas as minhas atividades e pela qual eu as idealista mais decidido não poderia se liberar dela, pois
reconheço como minhas atividades; em suma, que colo­ ele crê a partir do momento que não especula. Resulta justa­ I
car a identidade é o mesmo que afirmar a existência de
J todos os fatos da consciência em mim e não em alguém
estranho a mim. O Sr. Krug contenta-se em apresentar
mente daí, página 47, que a crença no mundo objetivo seria
bem mais racional que a afirmação do contrário.

essa explicação do Eu=Eu combinada com um "talvez", Essas representações simples e populares da filoso­
pois talvez Eu=Eu pudesse expressar uma outra coisa. fia como sintetismo são aprisionadas pelo Sr. Krug nos

62 63
i
- \

grilhões dos princípios reais e dos princípios ideais for­ um grande guerreiro chamado Alexandre" etc.; por ou­
mais e também dos princípios ideais materiais; ele cita tro, se sete volumes não bastam para esses fatos, que
com aplicação os escritos de Fichte, Schelling, o Jornal espaço restará para o filosofar sobre esses fundamentos,
* / Filosófico,1* suas próprias obras, tudo bem dividido em já que o oitavo volume será consagrado, como ele indica
i l parágrafos e observações numeradas 1, 2, 3 etc., em
suma, por meio de todas essas medidas ele retirou nova­
na página 112, à bibliografia da filosofia e a um índice
das matérias filosóficas dos sete volumes?
mente do senso comum uma parte da popularidade e da
inteligibilidade que ele possui em si e por si e que cons­
Notas
tituem um mérito seu a tal ponto essencial que, se esse
senso comum partido em parágrafos fosse realmente fi­
1. Trata-se, é claro, da filosofia de Fichte.
losofia, seria preciso lamentar nossa época e nossos cos­
2. Krug escreve Abstrakzúm em vez de Abstraktion.
I
ti 7c tumes que não permitem, como Sócrates o fez, que se
dirija diretamente tanto ao nobre quanto ao homem do
povo. O Sr. Krug deveria conseguir tornar rapidamente
3. Krug escreve Idealism, Organism, e não Idealismus, Organis-
mus etc. Quando grafados corretamente tais substantivos per­
manecem inalterados nas dedinações por caso (nominativo,
ii

! o público totalmente inculto em um público filosófico. acusativo, dativo e genitivo). Com a grafia de Krug recebem
Essa filosofia convém perfeitamente aos céticos, como o diferentes desinêndas de acordo com o caso: e no dativo (Or-
próprio Sr. Krug reconhece: ganisme), es no genitivo (Dogmatismes) etc.
4. O caráter um pouco confuso da expressão de Hegel nesse
Se eu [diz ele] tiver pelo menos interpretado correta­ trecho quer transcrever a deselegânda do estilo de Krug reto­
mente meus fatos da consciência e os tiver exposto de mando, quase que palavra por palavra, uma frase de sua carta.
maneira compreensível, nenhum filósofo do mundo Acrescentamos, por nosso lado, aspas onde o texto de Krug
foi retomado.
I poderá negar os princípios que estabelecí; o próprio cé­
tico terá de admiti-los. 5. Virgílio, Geórgicas, IV 168 (modificado: arte em vez de arcent):
"Afaste das colmeias os zangãos, raça preguiçosa!"
(187) O Sr. Krug anuncia no final do Organon 6. Krug escreve Dedukzion em vez de Deduktion.
í (onde aprendemos também que esse Organon não é, na 7. Currente rota cur urceus exit ? Horácio, Da arte poética, 21.
verdade, o organon propriamente) que não lhe desagra­ "A roda do oleiro rodando, por que sai um jarro?" Lembre­
daria, se seus princípios tivessem a sorte de obter a apro­ mos que "Krug" em alemão significa "jarro".
8. Trata-se dessas espécies de guirlandas era forma de coroa,
vação dos conhecedores, elaborar um sistema de filoso­
que antigamente eram suspensas diante de uma casa para
fia em oito volumes, como ele já participou em
anunciar que o vinho acabava de ser tirado e podia, portanto,
particular a seus amigos. Gostaríamos de fazer-lhe ape­ ser degustado ou comprado. Cf. o canto popular: Wo des l
nas duas observações sobre isso: por um lado, se é certa­ Kranz hangt, ist der Weinschank.
mente possível apresentar em sete volumes um belo nú­ 9. Goethe, Ein Fastnaditspiel von Pater Brey.
mero de fatos da consciência, não vemos como ele 10. Hegel utiliza os termos aujheben/Aujhebung, cujo sucesso
podería colocar aí a infinita diversidade dos fatos da em suas obras ulteriores nos é conhecido. É uma das primei­
consciência filosófica, dentre os quais ele conta também ras vezes que a reflexão filosófica é definida nele como uma
"a existência de um grande orador chamado Cícero, de Aujhebung. Notemos, entretanto, que encontramos aí apenas

64 65

i
li
o sentido de suprimir, já que nem a noção de conservação mais que Krug o imperativo filosófico de unidade, já que é o
designada por um outro termo (behalten), nem a noção de ele­ princípio de representação que compreende em si essa diversi­
vação estão contidas nela. Nas obras de maturidade, essa úni­ dade na qualidade de elemento). Em todo caso, não se pode
ca palavra designará, em compensação, a um só tempo, o fato dizer que a diversidade não tem direito ante a unidade na Teo­
de conservar, suprimir e elevar. ria da representação! (A repeito de todas estas questões, cf. M.
11. Terêncio, O Eunuco, verso 595 (citação aproximativa): "E Guéroult: L’Evolution et la structure de la doctrine de la Science
eu, pobre homenzinho, por que eu não o faria?" chez Fichte, t.1, Belles Lettres, Paris, 1930.)
■ p 12. Trata-se de um jogo de palavras com a Aujklarung ou mo­ 14. Não se deve confundir o Jornal Filosófico, onde Fichte es­
vimento das luzes, assimilado aqui, em sua variante berlinen- creveu na ocasião, e o Jornal Critico de Filosofia, publicado por
h se, a um xarope que clareia o conteúdo do jarro.
13. Trata-se da teoria da representação de Reinhold. Este, em
Schelling e Hegel e que lhe é posterior.

■ - seu Ensaio sobre uma nova teoria da faculdade humana de repre­


sentação (1789), mostrava que era preciso interpretar o kantis- I
mo conforme um primeiro princípio que seria o único a lhe
dar a forma de uma ciência. Para Reinhold, não se trata de
outra coisa que da representação fundadora de todo conheci­
mento. Esse fato originário implica a distinção dos dois ele­
mentos que constituem a forma e a matéria da representação;
aquela indica a relação com o sujeito, esta com o objeto. Essa
tentativa reinholdiana foi determinante para o pós-kantismo
que queria fundar a filosofia e acusava Kant de ter deixado
pelo menos um fato pressuposto, a existência da ciência, em
vez de deduzir tudo de um princípio. Com Reinhold, o fato
1 toma-se mais originário, mas Reinhold se atém ainda a uma
distinção absoluta forma-matéria cuja origem não se com­
preende. Por isso a matéria é aí sempre exterior ao pensamen­
to, e apenas dada. Em contrapartida, Fichte tentará, em com­
pensação, com seu conceito de Tathandlung partir de um
lugar mais elevado: a problemática do Eu. Krug, ao contrário,
não se incomodará tanto com a dualidade irredutível, mas
sim com a unidade deficiente, para a qual Reinhold parecia se
orientar. Krug se inquieta, com efeito, com a redução da di­
versidade à unidade de um fato da consciência. No entanto,
na matéria da representação, Reinhold admite justamente o
dado da receptividade em toda sua diversidade, enquanto a
unidade só é dada pela forma da representação, único produto
da espontaneidade. O que se pode censurar a Reinhold é, para
Hegel, (cf. fim do Dijferenzschrift), antes o inverso do que
I Krug lhe censura. Como esse último, com efeito, Reinhold
integra a diversidade sem deduzi-la (mesmo se ele respeita

66 67
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A CONTINGÊNCIA EM HEGEL
i': DE
JEAN-MARIE LARDIC
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r hi

É o preconceito segundo o qual o idealismo hege-


liano deduziría toda a realidade fazendo pouco caso de
sua especificidade que convém questionar aqui. A con­
tingência, ou seja, a existência de alguma coisa que po- /
I deria também não ser, longe de constituir um tabu, é
um de seus objetos de interrogação privilegiados. Se a
afirmação, sempre citada como testemunho do raciona- r
lismo impenitente, segundo a qual "o que é racional é .
■I
real c o que é real é racional’*1 tem sentido, é, em pri- \
I meiro lugar, porque tanto a racionalidade como a "reali­
dade** aqui evocadas recebem em Hegel um sentido i’
novo, um sentido dialético. Isto quer dizer que, se pode- '
mos reduzi-las uma à outra, é porque ambas devem in­
tegrar "a potência do negativo** ou ainda a mediação/A i

f; verdade é, portanto, essa compreensão mesma do real


como ele é, e não uma hipotética adequação a ser obtida
entre dois termos extrínsecos. Á unidade do racional e >
do real é tal que ela nos elucida seu outro. Pois a nega­
ção está nessa unidade como o critério do que é mais ou
menos compreensível e do que é mais ou menos. O que
> traduzimos freqüentemente por "real**, na fórmula aci­ )■

f
ma citada, seria, de fato, melhor traduzido por "efetivo",
para corresponder ao termo alemão wirWidt. Trata-se, I
pois, de algo bem diferente da realidade tal como é habi­
tualmente entendida. Em wirklirít há wirken, o agir, e a
verdade ao mesmo tempo; e tanto a ação quanto a ver­
dade comportam graus. De fato, é porque o saber do ser

71
i;
r ©
I
1 é o saber de si do Absoluto que a potência da alteridade, ci4, em 1794. É, se quisermos, uma conseqüência da re­
do acidental, do contingente não será a prova do fracas­ volução kantiana, segundo a qual é sobre o sujeito, e
so do saber, e sim a marca da negação presente no pró­ não sobre o objeto, que se poderá fundar a validade do
prio Absoluto. Daí a oposição de Hegel à construção tal próprio conhecimento do real. Por conseguinte, a exte-
como Schelling pode entendê-la. Para ele, trata-se antes de rioridade factual do objeto, que parecia ou consagrar o
uma "destruição". Daí também uma admissão da contin­ conhecimento ao empirismo e a uma acepção passiva
gência, e talvez a única tão radical na história da filosofia. incapaz de constituir um autêntico saber (cf. Hume), ou /
fazer da própria percepção um mistério que requer um
perpétuo milagre (cf. Malebranche), essa exterioridade
Construção e dialética tinha desaparecido e então podia se abrir para a filosofia
uma nova via. Se o objeto conhecido é constituído pelo /
No artigo sobre Krug, Hegel compartilhava ainda, sujeito transcendental, então a compreensão do real tor­
no essencial, das concepções schellingianas no tocante à na-se possível, pois este não é mais um dado irredutível
problemática da dedução do real. Se o pedido de Krug e estranho mas é feito, ou melhor, ele resulta de um
•i lhe parece dever ser rechaçado, é por causa de sua indig­ "agir" do sujeito que o filósofo pode apreender (contra­
nidade, mas Hegel não declara realmente que o que ele riamente a uma produção divina) porque lhe é interior,
pede seja irrealizável. Por causa disso certos comentado­ e uma reflexão sobre a lei de sua inteligência pode lhe
! res, dentre eles D. Henrich em seu artigo sobre "a teoria dar a chave dele.
■ de Hegel sobre a contingência",2 não hesitam em dizer A via de uma autêntica dedução abre-se, portanto,
que a tomada de consciência do problema específico co­ à filosofia, na medida em que a atividade lógica do espí­
f
locado pela contingência só intervém mais tarde, nos rito se vê dotada de um alcance real. Não é certamente
anos de maturidade. Parece-nos, ao contrário, como in­ i o próprio Kant que irá até lá, pois o campo de exercício
!
dicamos no comentário do texto, que a maneira pela dessa atividade continua a ser, para ele, a ciência físico- ■
qual Hegel afasta o pedido já indica — mas, é verdade, matemática, onde apenas um pensamento sintético terá
só indica — a dimensão ulterior de seu pensamento. sentido, enquanto a filosofia estará fadada ao julgamen­
[
i
Gostaríamos de lembrar aqui algumas de suas etapas, to analítico, que não dá nada de novo, mas nos certifica /
pois elas nos parecem ser igualmente susceptíveis de ex­ somente daquilo que se demonstra verdadeiro alhures.
plicar, por sua recorrência, a divergência com Schelling Mas é que Kant não foi até o fim de sua descoberta e iI
que se manifestaria pouco tempo depois da época em deixa subsistir a irredutibilidade do real ao espírito ao i.
que Hegel redigiu o artigo sobre Krug, divergência que, fazer da dualidade do conceito e da intuição sensível al­
segundo a maioria dos comentadores, tanto hegelianos guma coisa de impensável e ao colocar atrás dos fenõ^
i ■ quanto schellingianos, já é percebida aqui e ali na orien­ menos uma coisa em si inacessível.

z tação dos diferentes artigos do Jornal.


,A identificação da tarefa filosófica com a dedução
do real a partir de um princípio é característica do pós-
kantismo desde que teve seu programa traçado por
Sob a influência de outro pensador, os pós-kantia-
nos varrerão essas restrições. Trata-se de Espinosa. Para­
doxalmente, o idealismo alemão vai nascer da conjun­
ção do kantismo e do espinosismo.3 O ideal dedutivo do
espinosismo vai, com efeito, seduzir ainda mais Fichte e
Fichte em seu texto sobre O Conceito da Teoria da Ciên-

72 73
.1
sz
1 f
) i

Schelling, já que o kantismo lhes dava os meios de reali­ nossa consciência pode efetuar quando torna-se pura
zá-lo. O que continua sendo insatisfatório em Espinosa é consciência ou consciência de si. Essa tomada de cons­
a exterioridade que permanece entre o Absoluto com ciência que a filosofia nunca cessou de reinvindicar é,
base no qual são deduzidos os atributos e os modos, e o pois, a própria intuição intelectual. Está então assegura­
espírito que efetua a "dedução". O objeto — fosse ele da a unidade entre o princípio produtor do real e o espí­
* absoluto — continua a ser aqui estranho ao sujeito que rito do filósofo, a própria intuição sensível só sendo pos­
filosofa. Em contrapartida, ao fazer do Eu transcenden­ sível graças a essa intuição produtora, sem a qual, diz
tal o princípio absoluto, os pós-kantianos certificam-se Fichte, "eu não posso levantar nem o braço nem o pé."
da identidade do sujeito e do objeto, fundada sobre a do A filosofia apreende diretamente o originário e só ela
1
sujeito que filosofa e a do sujeito absoluto. Daí a possibi­ pode nos oferecer o verdadeiro conhecimento do real,
lidade de uma autêntica dedução do real, já que o ato do porque ela se associa ao ato que o produz, certificando-
espírito não está mais fechado em sua solitária lógica se assim do critério espinosista da adequação.
interior, mas é a própria fonte genética do real. E é a Compreende-se então que o conhecimento filosó­
filosofia que poderá efetuar essa dedução, já que ela fico é realmente sintético, e longe de dever se contentar
deve nos permitir encontrar, para além de nosso eu em­ em analisar, ele é o único a ser genético, ou mais preci­
pírico, o Eu transcendental de onde procede o real. A samente, construtor. E é assim que a intuição intelectual
única diferença entre o eu que filosofa e o Eu transcen­ ganha todo seu sentido metódico, pois suspender a proi­
dental será, pois, uma defasagem entre séries de atos, bição kantiana no tocante a nosso entendimento, como
para falar como Fichte, ou entre um ato efetuado in­ vimos acima, implica também romper as limitações de
1 conscientemente de maneira originária e o ato da cons­ nosso conhecimento filosófico. A intuição intelectual é
ciência, derivado, para falar como Schelling. o instrumento forjado para isso, e ao se fazer plenamen­
O que permite reduzir essa diferença e chegar à 1 te dedutiva, a filosofia transcendental pós-kantiana con­
unidade é a intuição intelectual. Essa noção é sem dúvi­ sidera então a dedução como uma construção.
da constitutiva do pós-kantismo e veremos que ela dá, Ver na construção do real a tarefa da filosofia é, na
aliás, à dedução utilizada por este, toda sua especificida­ verdade, em oposição direta a Kant mas falando sua lin­
de. Lembremos, porém, primeiramente, que admitir guagem, atribuir a esta a possibilidade de enunciar juí­

I
uma intuição intelectual é ir além do próprio limite que
Kant estabelecia para nosso poder de conhecer e des­
zos sintéticos a priori. Na Crítica da razão pura, Kant dis­
tingue os juízos analíticos, como aqueles nos quais o
predicado afirmado do sujeito já estava contido nele e
I
truir todo fundamento dessa limitação. Esse intdlcctus
archetypus, cuja intuição seria produtiva e não apenas re­ que não consistem, portanto, senão em uma análise de
ceptiva, e do qual Kant falava na Crítica do juízo para conceitos, e os juízos sintéticos, que atribuem a um su­
diferenciá-lo do nosso, é justamente aquele que os pós- jeito uma determinação conceituai nova, não estando o
kantianos reivindicam para o Eu transcendental. E se predicado contido logicamente no conceito do sujeito.
essa atividade produtora pode ser apreendida por nós, Enquanto os primeiros só requerem uma análise a priori
ao contrário da de um Deus exterior a nós, é porque ela do que já estava no conceito, os segundos necessitam,
é puro agir (Tathandlung, diz Fichte, para opô-la a um i em compensação, de um apoio na intuição para passar
Tatsache), não um ser, mas um ato, esse mesmo ato que de uma determinação a outra e fazer aparecer o vínculo i

74 15

í que as une. Somente a experiência parecería, pois, dever


aqui intervir. No entanto, a forma pura da intuição per­
mite aos olhos de Kant encontrar o a priori, na medida
dissociará rapidamente dela e alguns; anos depois dos ar­
tigos
* do —Jornal se tornará o crítico mais ferrenho da
"construção" intempestiva da realidade pela filosofia.
em que a matemática "constrói” aí seus juízos segundo Com efeito, esse procedimento, que responde ao
uma ordem ideal que, entretanto, se apoia sobre uma projeto inicial justificado de mostrar na realidade a pre­
intuição não-empírica e também não-intelectual, forma sença de um princípio racional ativo por um lado, e de
da sensibilidade e quadro de nossa experiência. Somente permitir sua expressão pela filosofia, de outro, sobrecar­
a matemática procede assim, por "construção" de con­ rega de exterioridade a relação do pensamento com o
ceitos graças à intuição pura que é a forma de nossa real e transforma a filosofia em um formalismo monó­
sensibilidade, enquanto a filosofia só procede por concei­ tono. Se pensarmos, por exemplo, no problema do crité­
tos e está, portanto, condenada à análise unicamente. rio da verdade nessa "construção**, seremos imediata­
Mas se dispomos de uma intuição intelectual, tudo mente atirados para o mais claro empirismo. O que nos
muda, e a filosofia pode enunciar juízos sintéticos a prio­ certifica da justeza da construção operada pela filosofia?
ri e construir seus conceitos. A coincidência dessa com a própria realidade da expe­
Essa idéia desenvolvida por Schelling e comparti­ riência. Schelling o afirma várias vezes:
lhada por Hegel, em Jena, encontra toda sua expressão
É um imperativo absoluto para nossa ciência associar às
nos artigos do Jornal Crítico, já que Schelling lhe consa­
grará até mesmo um artigo inteiro.4 Trata-se, para este
último, de encontrar a produtividade originária a fim de
apreender o fundamento do real. Nos anos de 1800,
suas construções a priori as intuições exteriores que lhes
correspondem, pois de outro modo essas construções
não teriam para nós mais sentido do que a teoria das
í
cores para o cego de nascença.6
onde se elabora a Filosofia da Identidade, é, a um só
tempo, no domínio da natureza e no da filosofia trans­ Ou ainda, em sua resposta a Eschenmayer sobre o
cendental que Schelling tenta mostrar de que maneira, verdadeiro conceito de Filosofia da Natureza:7
tanto do lado do sujeito-objeto objetivo (a natureza),
como do sujeito-objeto subjetivo (o Eu), a intuição inte­ A coincidência do produto que se encontra na experiên­ !
I lectual deve despertar a atividade adormecida no produ­ cia com aquele que foi construído não deveria portanto
to para encontrar aí a lei de gênese, e com isso com­ ser a prova mais certa da justeza da construção?
preendê-lo. Assim, por exemplo, do mesmo modo que
se pode compreender o surgimento da sensação como o Nessas condições a construção filosófica aparece
fruto de duas atividades opostas do Eu (real e ideal), como não sendo, de fato, senão uma reconstrução, e
uma centrífuga e a outra centrípeta, deve-se também ver apesar das declarações sobre a intuição intelectual, o fi­
na matéria a síntese das forças de repulsão e atração lósofo não se orienta tanto sobre a atividade originária
como gravidade5 ou no processo químico a síntese do do princípio quanto sobre o que é o dado. Pode-se sus­
magnetismo e da eletricidade. Ao que parece, essa con­ peitar que o filósofo teve o olhar voltado, desde o início,
cepção da construção filosófica está indissociavelmente para o resultado, como o mau matemático que, segundo
ligada à cientificidade da própria filosofia, e notadamen- a observação de Fichte, modifica seus cálculos para fazê-
1
te da parte mais metafísica desta. No entanto, Hegel se los coincidir com o que ele quer encontrar de antemão. -

76 77
.1
Há, pois, uma contradição entre o que se diz e o que se Somente na medida em que o próprio objeto é um su-
faz, e o dado finito ganha mais importância do que nun­ jeito-objeto que Eu=Eu é o Absoluto; é apenas quando
ca no momento em que se pretendesse mostrá-lo como o objetivo é o próprio Eu, sujeito=objeto, que Eu=Eu
não se transforma em: o Eu deve ser igual ao Eu.8
dependente da razão. h
A dualidade que o idealismo transcendental tinha
Hegel prega, com Schelling, uma intuição intelec­
por objetivo reduzir mostra-se, portanto, insuperável, e
! tual desubjetivada, susceptível de nos fazer apreender a
a experiência que finaliza a construção já estava de fato
gênese da natureza como a da consciência, órgão de
reintroduzida nos próprios fundamentos do sistema, en­
apreensão do Absoluto que se manifesta paralelamente í-
quanto não-Eu, em Fichte. Assim, a unidade a ser en­
contrada não podia aparecer senão como um dever-ser, na ordem das idéias e na das coisas.
I um ideal, uma tarefa a ser realizada, mas que nunca Todavia, a construção schellingiana, tal como a i;
pode se realizar sem negar a experiência que justifica mencionamos acima, mostra-se bem deficiente. Se a alu­
são à experiência, na qual víamos a indicação de uma
sub-repticiamente toda a construção. O dado empírico
exterioridade do espírito ao real, se funda sobre a idéia
F
contingente qüe parece ser apenas a ocasião para o Eu
de se afirmar em seu dever é então investido contradito- de uma natureza que se constrói e cujo produto não é
riamente de uma importância bem particular. Sua de­ um dado, mas alguma coisa de "fato", a coincidência
pendência do Eu transcendental se inverte: é o eu que se está longe de bastar para dotar a construção da validade
vê depender dele para exercer sua própria legislação. à qual ela pretende. A assimilação feita por Schelling do
Schelling quis, certamente, ir mais longe do que a priori e do a posterwri não muda nada no caso, pois ela
Fichte e a construção se exerce em dois domínios de seu nos parece antes indicar uma redução daquele a este e
sistema: ao da filosofia transcendental acrescenta-se o da confirma nossa primeira objeção.
Filosofia da Natureza. Segundo Schelling, não se pode Mais geralmente ainda, se, como sustenta Schel­
acabar com o sollen fichtiano e restaurar a unidade do ling, "toda construção consiste em uma apresentação
das coisas no Absoluto",9 se o singular está aí presente i
princípio, ou seja, mostrar a unidade do sujeito e do ob­ I
jeto, senão exibindo neste a subjetividade que está pre­ segundo o Absoluto porque a construção "em geral é a
apresentação do singular em uma forma absoluta",10
sente nele, exatamente como Fichte quis estabelecer a
objetividade presente naquele. É porque o objeto (a Na­ como então diferenciar o finito do Absoluto? Se essa cons­
tureza) é testemunha da mesma determinação que o su­ trução é autêntica, ela deve corresponder a uma constru­
jeito (o Eu) é que o real pode realmente ser considerado ção originária do próprio Absoluto, mas o que é construí­
como resultado de uma gênese racional. Essa gênese só do aqui? Será o finito ou o infinito? Falar da construção do
será completa se o próprio objeto se elevar ao sujeito, finito parece difícil, pois proceder a uma construção a
ou se converter ele próprio em subjetividade para alcan­ seu respeito é justamente considerá-lo como infinito.
çar esse ponto de indiferença em que o sujeito havia, Não vemos então o que os diferencia, e essa identidade
primeiramente, manifestado seu caráter de objetividade. se parece bastante com a "noite onde todas as vacas são
Na época de seu texto sobre a Diferença dos sistemas pretas", segundo os termos da crítica hegeliana. Ou en­
de Fichte e de Schelling, Hegel definia assim o projeto tão o finito continua a ser irredutivelmente contingente,
schellingiano com o qual ele ainda estava de acordo: de tal forma que se trate indubitavelmente dele em sua

78 79
j

i
I. I

f
diferença com o infinito, e então a construção pára no Absoluto tudo é igual, ou então oferecer seu Absoluto I
que o caracteriza e ele não é portanto construído; é en­ como a noite na qual todas as vacas são pretas, isso é a
tão o empirismo dessa posição que se pode criticar, além ingenuidade do vazio no conhecimento.11 i
da contradição com seu projeto inicial. O apelo à “coin­
cidência” com a experiência evocado há pouco o mostra O que falta então é, propriamente falando, a pro­
bem. Se se quer dizer, em contrapartida, que é o infinito va, a demonstração. Contentamo-nos, na verdade, em
que é construído, como a impossibilidade de ir até o fim afirmar de maneira monótona, em fazer grandes decla­
na dedução do singular parecia mostrar, então abando­ rações, começando no Absoluto como por “um tiro”,
na-se como sem importância o finito insistindo unica­ dirá ainda Hegel na Fenomenologia do espírito, mas não
mente sobre a necessidade do Absoluto e não se com­ teremos seguido o movimento do infinito, que é o úni­
preende a razão pela qual o finito procede do infinito co a poder constituir uma demonstração.
diferenciando-se dele na forma empobrecida de espino- Se as coisas se passam assim, se essa indiferença
sismo. Paradoxalmente, aliás, esse “necessitarismo” schellingiana não tem vida, é porque, finalmente, o
princípio da construção está carregado de imediatidade.
pode fazer surgir o empirismo mais radical, já que o
Em vez de apreender o processo de sua gênese e de >
contingente deixado de lado não é integrado e pode

11
mostrar a manifestação do infinito no finito, parte-se de
sempre continuar a jogar, ao lado da essência, seu pró­

O !
prio jogo, totalmente autônomo, reduzindo assim o Ab­
soluto a ser apenas parcial, mau infinito, como dirá He­
um “ponto” de indiferença, para empregar o vocabulá­
rio de Schelling, e tenta-se mostrar como essa indiferen­

ça se constrói no real. Mas a negação que diferencia o "H ;
gel. Ou então afirma-se que por meio do finito é “J
finito do infinito é absorvida nessa reconstrução de uma r
unicamente o infinito que se expressa e a razão pela
qual o finito existe em sua diferença continua sem expli­
indiferença que deixa de lado a própria vida do Absolu­ oI
to. A marca dessa imediatidade principiai que afeta todo ZC 1
2° cação. Se se compreende então sua produção, não se vê o desenvolvimento construtivo é a intuição intelectual e I
em que ele pode ter de desaparecer, de se apagar diante C J
Lzd do Absoluto, e ele deveria então ser ele próprio o Abso­
luto; cada determinação ou cada ser deveria valer como
reconhece-se ainda aí um dos pontos fundamentais da
nova crítica hegeliana de Schelling. Essa intuição que dá
CD
~0
lugar a um entusiasmo que como um “tiro” começa
um todo, tudo estar em tudo, e a indiferença resultante imediatamente no Absoluto. Negligencia-se então a de­
dessa construção do infinito que devia fazer surgir dele terminação desse Absoluto e a forma que ele se dá, para
o finito. Em 1807, indicando então sua divergência com absorver-se nele como em uma essência inefável:
Schelling, Hegel caracteriza da seguinte maneira essa
atitude schellingiana: Há justamente um engano ao se pensar que o conheci­
mento pode contentar-se com o em-si ou com a essên­ i
Considerar um certo ser-aí como estando no Absoluto cia, mas pode poupar a forma, pensando que o princí­
significa declarar que se fala dele agora como de um pio absoluto ou a intuição absoluta tomam supérfluos a
algo, mas que no Absoluto, no A=A, não há certamen­ atualização progressiva da essência ou o desenvolvi­ 1
te esse algo, porque tudo aí é uno. Opor ao conheci­ mento da forma. É justamente porque a forma é tão
mento distinto e realizado [ou que procura e exige sua essencial à essência quanto esta o é a si mesma que a
própria realização] esse saber uno segundo o qual no essência não é concebível ou exprimível apenas como

80 81

I-
I
j .

essência, ou seja, como substância imediata ou como pura essa gloriosa maneira de proceder. O truque de tal sabe­
intuição-de-si do divino, mas também como forma, e em doria é tão rapidamente aprendido quanto é fácil de se
toda riqueza da forma desenvolvida; é apenas assim que praticar. Mas sua repetição, quando é bem conhecido, é
ela é concebida e expressa como realidade efetiva.12 tão insuportável quanto a repetição de um passe de má­
I I
gica já descoberto. O instrumento desse formalismo
De fato, a marca do fracasso da construção é que monótono não é mais difícil de manejar do que a paleta
i esta se reduz, no tocante a seu conteúdo especulativo, à de um pintor sobre a qual houvesse apenas duas cores,
intuição intelectual imediata que a torna supérflua e a por exemplo, o vermelho e o verde, uma empregada
transforma em um puro formalismo, um procedimento
mecânico que se repete de maneira monótona, atestando
I para a cena histórica, a outra para as paisagens, de acor­
do com os pedidos.13

definitivamente a exterioridade do espírito e do real. O es­ i


O caráter superficial da construção indica então que
pírito aplica esquemas sobre o real para reduzi-lo à necessi­
i não se trata de um verdadeiro método de conhecimento.
i dade do conhecimento, quando, na verdade, o contato está
rompido com a finitude que atua em seu campo enquanto Trata-se antes de um formalismo monocromático que
i
nos refugiamos na noite do Absoluto. É esta a objeção
I principal de Hegel ao procedimento da construção:
atinge apenas a distinção do conteúdo, somente porque
este conteúdo já foi preparado e já é bem conheddo.

Em vez da vida interior e do automovimento de seu Ou então se esquece da própria existência da sin­
ser-aí, essa simples determinabilidade da intuição, ou gularidade:
seja, aqui, do saber sensível, é expressa conforme uma
analogia superficial, e essa aplicação exterior e vazia da Em vez de penetrar no conteúdo imanente da coisa,
fórmula é chamada de construção [...] O formalismo da esse entendimento sobrepuja sempre o todo e fixa-se
Filosofia da Natureza pode ensinar que o entendimento y- acima do ser singular do qual fala, ou seja, na verdade
é a eletricidade, ou que o animal é o nitrogênio, ou que . M 15
ele nao o ve.
é igual no sul e no norte etc., ou representar isso tão
cruamente como acabamos de exprimir, ou temperá-lo
Ou, para integrá-lo no pensamento, ele é tomado
com mais terminologia ainda; a incompetência poderá
cair num estupor de admiração diante de uma força se­ tal como é:
melhante capaz de reunir elementos em aparência tão
Se se devesse falar ainda de um conteúdo, por um lado
afastados, diante da violência que o sensível em repou­
seria para precipitá-lo no abismo vazio do Absoluto, por
so sofre com esse vínculo e que lhe confere a aparência
outro, ele seria apanhado de uma maneira exterior a
de um conceito, enquanto a tarefa essencial que é de
partir da percepção sensível. O saber parecería ter atin­
exprimir o próprio conceito ou a significação da repre­
l gido as coisas diferentemente dele mesmo e diferente­
sentação sensível é poupada; a incompetência poderá
?• mente das coisas múltiplas, sem que se concebesse
inclinar-se diante de uma tão profunda genialidade, se
como e de onde isso provém.
alegrar com a ingenuidade feliz de tais determinações
porque elas substituem o conceito abstrato por alguma
coisa intuitiva tomando-o assim mais agradável; ela po­ O puro formalismo dessa construção é, pois, exa­
derá felicitar-se por sentir uma afinidade instintiva por tamente o inverso de uma apreensão da forma de deter-

82 83
i:il y
]
minação do Absoluto que se fundaria sobre a compreen­ grave da natureza dessa última. Pois ao contrário de
são da autoformação do Absoluto. Esta constituiría uma Kant, Hegel sustenta que se a matemática procede por
mediação, e a forma que o Absoluto se desse seria ao construção, é porque nela não há conceitos, mas apenas de­
mesmo tempo seu conteúdo preciso. Em vez disso, a terminações abstratamente tiradas da intuição sensível.

í
construção continua a ser exterior à apreensão intuitiva Assim, onde se tratar de conceitos não deverá haver tal
do Absoluto, e dessa noite sem diferença informe, não construção. Ao contrário de todos os pós-kantianos,
se pode fazer sair o conteúdo. Por uma dialética que fa­ para os quais o erro de Kant tinha sido limitar a constru­
cilmente se compreende, a esta artificialidade da forma ção à matemática quando era preciso estendê-la â filoso­

corresponde uma vacuidade do conteúdo, e é por isso, fia, Hegel censura a este mesmo Kant de ter concedido
mais uma vez, que é o conteúdo o mais empírico que demais à construção matemática. Em vez de estender
seria projetado na forma que supostamente o engendra. esse método, convém então opor-lhe em filosofia um
Daí o jogo de analogias da Filosofia da Natureza que verdadeiro pensamento conceituai. É até mesmo por
tenta ver as correspondências entre a natureza e o espíri­ contraste à matemática que Hegel nos apresentará seu
to e que se perde em jogos estéreis.
próprio método, a dialética. Podemos, aliás, resumir os
A diferenciação formal é a tal ponto estranha â
defeitos essenciais da matemática. Primeira mente, o I
esta construção (que parece querer, aliás, ter por objeti­
movimento de construção operado por nosso conheci­
vo reduzir as diferenças sem ter, a princípio, mostrado
mento é exterior ao resultado, que permanece fixo para
como elas surgem e por que elas devem então desapare­
além dessas determinações:
cer, na falta de uma teoria da negatividade) que Hegel
vê aí a razão da passagem de Schelling da Filosofia da a essencialidade da demonstração ainda não tem no co­
Natureza à da Identidade: \
nhecimento matemático a significação e a natureza que
fariam dela um momento do próprio resultado; mas
Já foi notado que essa maneira de conhecer termina em nesse resultado um tal momento é superado e desapa­
uma pintura absolutamente monocromática, quando, rece. Como resultado, o teorema é reconhecido como um
escandalizada com as diferenças do esquema, ela as sub­ teorema verdadeiro ; mas essa circunstância que foi acres­ /
merge, como se pertencessem à reflexão, na vacuidade centada não concerne ao seu conteúdo, apenas à sua
do Absoluto, de modo que a pura identidade, o branco relação com o sujeito que conhece; o movimento da
sem forma seja restabelecido. Essa monocromia do es­ demonstração matemática não pertence ao conteúdo
quema e de suas determinações sem vida, essa absoluta do objeto, mas é uma ação exterior â coisa. Por exem­
identidade, assim como a passagem de uma coisa para plo, a natureza do triângulo retângulo não se dispõe ela
outra, tudo isso é como entendimento morto e conhe­ própria da maneira exposta na construção necessária
i cimento exterior.17
para demonstrar a proposição que exprime a relação do
próprio triângulo; todo o processo de onde vem o resul­
A artificialidade de um conhecimento exterior a tado é somente um processo do conhecimento, um
seu objeto, o caráter estático, morto, do entendimento meio do conhecimento.1*
que aí atua, são estes os vícios do conhecimento mate­
mático para Hegel. E a aplicação do método desta à filo­ Por conseguinte, a construção não corresponde à
«
sofia testemunha, segundo ele, um desconhecimento seu objeto:

84 85
I
as determinações sem vida só se oferecem na forma da

i
No conhecimento matemático, o discernir é uma ação
exterior à coisa; segue-se daí que a verdadeira coisa é grandeza e o tempo matematizado reduzido à unidade re­
alterada. Sem dúvida o meio, ou seja, a construção e a petitiva do cálculo não podem conter em si, com efeito, o
demonstração, contém proposições verdadeiras, mas menor princípio interno de determinação, esta é a po­
deve-se dizer também que o conteúdo é falso. O triân­ breza desse campo, que cria sua aparente evidência.
gulo, no exemplo precedente, é desmembrado, suas A filosofia visa mais alto, e é por isso que aplicar-
O? partes são convertidas em elementos de outras figuras lhe esse esquema redutor é tão condenável. Hegel cons- r
que a construção faz surgir nele. É somente no final tata que isso não é mais conveniente. Schelling tentou J
que o triângulo é restabelecido, o triângulo com o qual certamente fazer reviver essa forma da filosofia espino

| !
c lidávamos e que tinha sido perdido de vista no curso da
demonstração, sendo reduzido a peças que pertenciam
a outras totalidades.19

Pode-se acrescentar que o procedimento não res­


sista, mas é preciso conceber de outra maneira a tarefa
filosófica.
Essas poucas observações ajudarão, esperamos, a
compreender a razão pela qual Hegel, na Fenomenologia

n
do espírito de 1807, critica tão claramente o construtivis-
ponde a qualquer necessidade interna:
mo schellingiano que parecera adotar durante certo
tempo. Todas as alternativas assinaladas acima sobre a
Aliás, a falha própria desse conhecimento concerne tan­
doutrina schellingiana são exploradas por Schelling para
to ao próprio conhecimento quanto à sua matéria em
resolver seu problema sem que ele possa escapar â ambi-
geral. No que tange ao conhecimento, não nos damos
conta, a princípio, da necessidade da construção. Ela güidade delas. Hegel indicou judiciosamente o perigo
não resulta do conceito do teorema, mas é imposta, e presente na atitude schellingiana, que podemos resumir
devemos obedecer às cegas a prescrição de traçar justa­ com os três pontos principais de acusação evocados pre­
mente estas linhas quando poderiamos traçar uma infi­ cedentemente: 1. indiferença de onde nada provém; 2.
nidade de outras, tudo isso com uma ignorância igual imediatidade do princípio da intuição intelectual; 3. for­
i apenas à crença que isso estará conforme à produção da malismo do procedimento que visa reduzir o contingen­
demonstração. Tal conformidade com o objetivo mani­ te (separado então do necessário) a si próprio. Diante
festa-se mais tarde, mas ela é apenas exterior, já que na disto Hegel propõe uma resposta: seu conceito de uma
demonstração ela só se mostra posteriormente. Assim a negação dialética, que desembocará em uma autêntica
demonstração segue uma via que começa em um pon­ consideração da contingência.
to qualquer sem que se saiba ainda a relação desse co­ Ao contrário do formalismo e da exterioridade
meço com o resultado que dele deve provir. O curso da que ele denuncia no esquema monótono da construção
demonstração comporta estas determinações e estas re­ schellingiana, Hegel nos propõe o método para o qual
lações, e deixa outras de lado, sem que se possa ver i "a verdade é seu próprio movimento em si mesma'',21 [
imediatamente a necessidade disso; uma finalidade ex- ou seja, a dialética. Como se sabe, a particularidade des- \
tenor rege tal movimento. I
I Essa exterioridade do conhecimento não deve nos
ta reside na importância concedida à negatividade. É em
" • seu interior que o princípio deve conter em si sua pró-
pria negação. Quer dizer que já não se trata de falar de
I
\
)
surpreender, pois ela é própria do campo da matemática: a r>-
uma alteridade exterior ao princípio que deveria fundá-
exterioridade espaço-temporal. O espaço no seio do qual

86 87
íl
11 í
r
3

' la. E não se deve acreditar que a negação seria apenas o permitir atingir a verdade sobre ele. Tomado como ter­
fato de um espírito que se expressa de maneira exterior mo da dedução, ele pode ser considerado como um ime­
<4'
sobre alguma coisa estranha. A verdade filosófica deve diato não afetado pelo processo que conduziu até ele.
se caracterizar como a manifestação da própria realidade Chega-se, portanto, ao resultado inverso do que era pro­
que o discurso tem por objeto. Esta verdade é, então, curado, já que ao deduzi-lo se queria relativizá-lo, e no
bem diferente de uma correspondência entre a razão e o entanto ele é tomado ao mesmo tempo, por um absolu­
I

I
I real, ela deve ser a própria verdade deste, a manifestação to irredutível. Se esse procedimento é condenável, não é
que ele próprio é. E se a razão pode apreendê-lo é por­ tanto por causa de uma desvalorização do real singular
j que as determinações racionais são as da realidade. A que é supostamente reduzido a uma pura construção
negação que toda determinação inclui só pode, portan­ ideal, e sim por causa da separação que ele deixa subsis­
u. to, ser o fato do processo real. Foi dito algumas vezes tir entre o domínio dos conceitos e o das coisas. Se um
que teria sido Hegel quem orientara Schelling para sua deve juntar-se ao outro para além de uma contingência
Filosofia da Identidade e quem o teria feito tomar cons­ aparente, ou deve tirar o outro de si como um ser de um
ciência da unidade necessária do sujeito-objeto subjetivo conceito, é porque a exterioridade é primeira e não pode
e do sujeito-objeto objetivo, levando-o assim à ruptura ser compensada. Daí uma incerteza quando queremos
com Fichte. Mas, é certo que essa identidade da indife­ nos certificar da justeza do resultado e a impossibilidade
rença preconizada por Schelling é, aos olhos de Hegel, de terminar a tarefa. É verdade, o real contingente pade­
puramente abstrata. É preciso que a negação seja a do ce com isso, e mesmo que seja, finalmente, tomado
infinito por si mesmo, para que este último não seja re­ como meta do processo — na medida que se quer de­
duzido a um outro que não ele, é preciso que a identida­ monstrar que ele existe, por exemplo, ou por que ele
de seja a da identidade e da diferença. A racionalidade existe — ele é, no mais das vezes, esvaziado de sua subs­
do real não pode ser obtida a partir de uma razão que tância para ser mais facilmente "deduzido". Desse modo
tendería para o real que ela pressupõe de início em sua nenhum dos requisitos da filosofia é satisfeito. Temos
alteridade. Acabar com essa alteridade será, então, sem­ aqui, portanto, a um só tempo uma alteridade irredutí­
pre artificial, pois não se compreenderá seu sentido vel entre o saber e o ser e uma identidade absoluta do
quando se acabar com ela, e se virmos um sentido nela, lado desse ser (sabido), cujas diferenças não podemos
será preciso então deixá-la subsistir de maneira irredutí­ apreender ou são apenas consideradas para serem redu­
vel. Portanto só nos resta admitir a necessidade da passa­ zidas pelo saber a uma identidade indiferenciada. Ao
gem do princípio para sua própria negação, da qual ele contrário, a dialética colocará uma identidade total entre
é, por sua vez, a negação reduplicada. Pois trata-se na o saber e o ser, e uma diferença do lado do ser (sabido),
i verdade de uma dupla negação, e teremos a oportunida­ ou seja, essa forma interna de alteridade que é a nega­
de de insistir sobre isso. ção. A verdade só é, aliás, possível com a condição de
Mas retornemos por um instante à diferença entre que o discurso seja sempre já o do saber e do ser, e não
o discurso filosófico que nos é proposto e o do pós-kan- de um saber que tem que juntar-se ao ser não se sabe
I bem como.
tismo. Querer deduzir um real, ou seja, construir o con­
ceito dele (considerando este como o fruto de uma sín­ r
Assim não se trata na dialética de deduzir o real,
tese de dois conceitos contrários), não pode nos mas unicamente de deduzir conceitos, pois o ser é o

88
L 89
$

próprio ser do Conceito, ou ainda, ele é conceito. O mo­ Identidade, em suma, as diversas filosofias pós-kantianas
vimento do saber será o do conteúdo, como Hegel não que têm todas em comum ao menos o método da cons­
se cansa de repetir em todos os textos metodológicos. trução para deduzir o real. Para uma filosofia da cons­
A esse respeito, da mesma maneira que só há pensamen- trução ou dedutiva, o caráter contingente do real deverá
•5 to autêntico se houver produção de pensamentos, não ser considerado como uma falta e reduzido à identidade
há absoluto que não se manifeste 3ésenvolvendo-se, ou por um saber exterior, de tal modo que ao fundá-lo só se
seja, dando a si próprio o seu conteúdo. Compreende-se explicará sua identidade com o infinito, mas não sua di­
por que a resposta hegeliana implica, ao mesmo tempo ferença que consiste em sua própria negação, sua defi­
que uma recusa do formalismo, a substituição da intui­ ciência. Esta só é interpretada com relação à identidade
ção intelectual pelo conceito. Por um lado, a intuição plena que se quer restaurar, e o saber é o que a faz desa­
implica sempre, o alcance do objeto que ela visa, uma parecer. Mas nunca se compreende o que isso traz para
exterioridade do espírito e do real: trata-se, antes de o Absoluto, que permanece inalterado, indiferente dian­
tudo, de um ato do espírito; quando o conceito de uma te do processo como um ponto fixo. O real é então 'X
coisa pode ser, ao mesmo tempo, o conceito que nós construído, ou seja, reduzido no movimento que parece
temos dela e o conceito que, interno à coisa, expressa lhe conferir sua subsistência, pois ele é submetido, na
sua verdade interna, a própria realidade. O conceito su­ verdade, a uma lei estranha. Sua subsistência é testemu­
.1 porta sozinho ser sujeito. Por outro lado, o conceito traz nha do fato de ele ser reduzido a outra coisa, já que ela
em si a possibilidade do movimento por sua relação não expressa o movimento do finito que consiste em
com os outros conceitos que ele inclui em si, enquanto conter em si o motivo de sua perda que não se deve
a intuição é sempre mais ou menos imutável, residência suavizar ou apagar. Essa perda, essa negação, esse desa- /'
em seu objeto. parecimento, essa morte do finito, é o que, certamente, /
Dizer que a dedução é a dos conceitos uns dos ou­ o Absoluto parece não poder tolerar e o que o conheci- /
tros não implica deixar de lado o real, e sim o contrário, mento exterior tem por meta reabsorver em uma cons­
apreendê-lo enfim por ele mesmo em todas as dimensõ­ trução ou em uma dedução que reduz a contingência a
es ontológicas tais como somente a dialética pode per­ uma aparência para o espírito.
mitir apreendê-las. Ainda aí a comparação com Schelling É justamente essa negação que a dialética reintro-
é interessante. Neste último, com efeito, a necessidade da duz na vida do Absoluto, de tal modo que compreender
construção é o que se impõe ao real: considerar este fi­ o finito a partir do infinito seja também compreender a
I losoficamente é fazê-lo sob o ângulo da necessidade e o razão de sua perda. A contradição que jaz no cerne do
í
contingente desaparece absorvido pelo necessário. real explica que aí não se trata de uma aparência para o
Compreender por que há contingente é fazê-lo desapare­ espírito que absorvesse apenas essa negação, mas de
cer como contingente e não apreendê-lo em sua especifici­ uma real contingência cujo caráter negativo é muito im­ >1
dade ou declarar que ele não tem especificidade. Seria pre­ portante. Na dialética a contingência será recuperada na
ciso, ao contrário, compreender por que essa explicação o economia global do infinito que só pode se restaurar
! faz desaparecer, o que se passa com seu desaparecimento. por meio desse desaparecimento do finito, pois ele está
É o que não quer fazer nem o idealismo transcen­ desde o início encarnado neste. A insuficiência do finito
4 dental, nem a Filosofia da Natureza, nem a Filosofia da se manifesta, portanto, em relação a ele mesmo.
.1
90 91
7 $

I
Por isso é melhor falar de uma destruição do que de
juízo "de reflexão". Como tais, elas são revelador as da
exterioridade que há entre nosso saber e seu objeto:
uma construção. A dialética real dos conceitos é destruição
do finito, porque esse finito é destruição de si, mas, ao para Kant, nosso entendimento deve, para conhecer,
proceder do universal conceituai à intuição empírica
contrário de qualquer teoria da construção, a dialética con­
siderará esse momento da destruição como essencial:22 particular, mas o particular não pode ser derivado do
geral, devendo, ao mesmo tempo, estar de acordo com
I A substância manifesta-se, pela efetividade, com seu ele; assim, esse acordo só pode ser a cada vez contingen­
conteúdo, [efetividade] na qual ela transpõe o possível, te. Aos olhos de Kant, a distinção da possibilidade e da
como [potência] criadora, [e] pela possibilidade na qual realidade se deve, pois, unicamente a nosso entendimen­
ela reconduz o efetivo, como potência destruidora. Mas to, e a própria necessidade permanece, a esse respeito,
ambos são idênticos; o criar, destruidor, a destruição, puramente formal.
criadora; pois o negativo c [o] positivo, a possibilidade e Os pós-kantianos tentarão reduzir essa exteriorida­
I [a] efetividade estão absolutamente unidos na necessi­ de vendo na modalidade da dedução operada pela filoso­
dade substancial.23 fia a determinação modal do próprio real. Assim, por
exemplo, para Schelling, a necessidade que atua na cons­
I A razão do aparecimento é também a do desapare­
cimento.
trução filosófica da realidade é a necessidade originária
da construção do real pelo Absoluto. A exigência de uni­
São esses os esclarecimentos que nos pareceram dade entre o espírito e o real, da qual é testemunha essa
indispensáveis para apreender a dialética da contingên­ nova concepção da modalidade, é acompanhada por
cia a qual agora nos ateremos. uma redução das modalidades à uma única categoria de
necessidade. Trata-se, na verdade, de uma espécie de
projeção da necessidade epistêmica sobre o plano onto-
Dialética da contingência
lógico. E, ainda aí, encontramos a falha da dedução
construtiva. Essa redução de todas as modalidades àque­
É o problema das categorias modais que precisa­
la do processo necessário do conhecimento testemunha
mos agora evocar. Hegel vê na dialética um método que
o fato de a unidade do espírito e do real só ser afirmada,
atesta a unidade do espírito e do real e que deve, portan­
e não mostrada, aparecendo antes como uma confusão
to, nos permitir superar a oposição entre o juízo de ne­ na qual as determinações já não encontram lugar. Te­
cessidade, dos quais apenas as ciências dedutivas mate­ mos, por conseguinte, um procedimento unilateral com
máticas se prevaleceríam, e o juízo sobre a experiência, base em um conhecimento que empresta ao real suas
que ater-se-ia à constatação de um real, de tal modo que determinações. Isso é abstrato e, na verdade, o espírito
a relação do espírito e do real só poderia expressar-se no não se mostra aqui unido a um real, já que necessita, no
modo
« do
• «.possível.
- - É sabido que para Kant as categorias final da construção pretensamente necessária, verificar a
da modalidade dizem respeito justamente à relação de
coincidência com o real da experiência que se quis mos­
nosso espírito e do real, mas não são em nada determi­ trar como necessária. Um puro desejo de encerrar o real
nantes para esse último, como as outras categorias pelas sob a lei de uma necessidade que não provém, na verda­
quais o espírito contribui para a constituição do objeto I de, do espírito, porque se quis afirmá-la imediatamente,
da experiência. Elas só podem, portanto, dar lugar a um
93
92
é a isso que se reduz o empreendimento schellingiano. de reduzi-la ou de fazer dela uma aparência para o espí­
A marca de seu fracasso é seu embaraço diante de uma rito. Se essa realidade é a da própria caducidade, é, por­
contingência que ele, então, deixa de lado, ou cuja pre­ tanto, à contingência da contingência, que a reflexão so­
sença ele só justifica, como também o faz Fichte, fazen­ bre a contingência vai nos conduzir, na medida em que
do dela uma aparência para o espírito que ainda não se será preciso seguir o devir do próprio ser contingente. >
apreendeu. Aliás, é apenas essa aparência de contingên­ O contingente (zuJSHig) é o que está fadado a cair
J------------- i--------- 1----------- ---------- 1 ■
cia que a construção elucida, mas, que essa contingência (zu fallen), não cansa de nos lembrar Hegel. tt
Essa existên­
seja esta ou aquela, isso fica para sempre sem explicação. cia carregada de negatividade constitui, portanto, uma I
Somente a dialética poderá dotar as modalidades das ocasiões privilegiadas para o exercício da dialética. O
com um alcance real ao nos mostrar a unidade do espíri­ que sucumbe (zugrunde gehen) indica, mais que qualquer
to e do real sem procurar "construir" esse último. A outra coisa, a relação negativa ao outro, ao próprio fun­
mesma razão que leva, portanto, Hegel a recusar a cons­ damento do real (zu Grunde gehen). O contingente deve
trução lhe permite compreender o que em Fichte e exibir sua razão de ser, já que ele não é sempre e que a
Schelling sempre era misterioso. Querer construir ou alteridade está, pois, presente nele. E como sua razão de
deduzir o real a partir de conceitos significa, na verdade, ser não é ele próprio, poderia parecer que ele não tem
pressupô-lo já como uma meta e inverter o idealismo uma. Ou seria preciso compreender que essa razão de
em um empirismo para o qual o essencial será essa reali­ ser é, ao mesmo tempo, a razão de seu não-ser, em
dade prévia. Em compensação, o esquema conceituai suma, compreender realmente a contingência do con­
proposto será tanto mais abstrato quanto mais parecer a tingente. Mas, inversamente, essa negação presente nele
priori não dever ter nada em comum com esse real em­ será também a explicação de sua posição, pois se ele se
pírico. dialética, ao contrário, que pretende ser a do nega é porque ele é negação, esta constitui seu ser, na
discurso e do ser ao mesmo tempo, é autenticamente medida em que esse ser representa na verdade a própria
I
criadora, e é na criação dos pensamentos, na própria alteridade daquilo que a constitui. E encontramos aqui a
produção das verdades que o real é indicado tal como é dialética do infinito acima evocada, aliás, o próprio He­
criado. Sem referência a um dado pressuposto, o discur­
gel precisa que
so é então o da doação ontológica. Esse processo de
criação dos pensamentos será a Ciência da lógica. É, por­ a categoria da relação da contingência e da necessidade
tanto, para ela que nossas análises nos conduzirão. Ora, é aquela na qual se resumem e se invertem todas as
a lição hegeliana das modalidades que aí encontramos relações da finitude e da infinidade. A determinação i
i
caracteriza-se, justamente, pelo fato de Hegel conceder, mais concreta da finitude do ser é a contingência e a infini-
ao contrário dos pós-kantianos, um lugar para outras tude do ser é também, considerada em sua determinação
modalidades que não a necessidade. Pode-se dizer que mais concreta, a necessidade. 24
I.
se abre, então, realmente, o campo da contingência, si­
.i nal não de uma análise que tropeçaria constantemente O que é, com efeito, a negação constitutiva do fi­
■ ' - (

ao apreender o real, como para Fichte e Schelling, e sim, nito, senão a do infinito que se nega nele? O infinito não
antes, de um êxito do empreendimento dialético que pode se manter diante do finito como se estivesse diante
’• nos faz compreender a realidade da contingência em vez de um outro que não fosse ele mesmo, já que isso o j

94 95
&

I reduziria a algo finito, a um infinito abstrato. O infinito essa duplicação da modalidade: uma necessidade da con­
deve, portanto, se fazer outro, esse outro que é o finito, tingência, e é importante compreender bem o alcance
sendo ao mesmo tempo com isso a negação própria a disso. Assim, é preciso evitar considerar que o ser con­
este. A queda do ser contingente constitui, pois, uma tingente seja então necessário ao necessário. Este último I
dupla negação, negação voltando-se sobre si mesma, já designaria então o Absoluto e, no entanto, só seria um
que o finito já era a autonegação do infinitoÁÉ esta a ( necessário relativo, aquele que só é graças aos outros,
originalidade da negação dialética que permite com- pelo outro, o que correspondería, aliás, a uma definição
' preender autenticamente a contingência. É esta negação
/ da negação que é, na verdade, o motor do processo. Se a
í da contingência! Mas se, ao contrário, se reservasse a
esse necessário a independência em relação ao contin­
negação primeira é a determinação que o infinito se dá, gente, único dependente, seria este que, enquanto impli­
< cado pelo outro, seria necessário (é também necessário
o finito está, desde o início, fadado à negação que con­
siste em ser outro que não ele mesmo, já que ele é o o que é chamado à existência por aquilo que é outro que
outro do si que é o infinito. Ele está, portanto, minado não de, por exemplo, as condições), enquanto o neces­ I
l
em seu próprio fundamento, e é porque o infinito passa sário em sua ipseidade seria justamente sem razão de ser
para o finito que este trespassa. É essa a expressão de e, portanto, contingente!
um autêntico pensamento da contingência. Com efeito, Como vemos, essa dialética interna dos conceitos,
compreender a própria contingência do ser contingente que reduz cada um ddes a seu oposto, só pode levar a
: (e não apenas um ser contingente) só é possível se se um resultado se, como sempre em regime dialético, se
expuser ao mesmo tempo a razão produtora desse ser e conserva e se supera a um só tempo. A necessidade de
a que o destrói. É o fato de ele cair que faz do contin­ uma contingência para a própria necessidade implica
gente o outro do Absoluto e ao mesmo tempo o identi­ que o ser contingente seja bem conservado como con­
fica com este: seu não-ser é o ser do Absoluto. A nega­ tingente em rdação ao necessário; o que quer dizer,
ção contida pela contingência é, pois, um aspecto como aquilo que sucumbe, que se nega enquanto finito
e portanto se supera, mostrando-se assim como o não-
I ontológico essencial e não a expressão de uma deficiên­
j cia do saber. Por isso ela é finalmente a própria expres- necessário passando nde. Ao contrário, o necessário só
são de uma autêntica unidade do real e do espírito con- é necessário se ele se subtrai igualmente à abstração,
siderado em seu movimento dialético. que o fixaria em sua independência radical sem conteú­
Há para o pensamento hegeliano uma verdadeira '■
do, e à relatividade a um outro, que o identificaria a um
necessidade da contingência, o que é bem diferente da puro efeito contingente (afirmação de um determinismo
afirmação da necessidade do ser contingente a que se universal para o qual os efeitos, sem outra importância,
reduzem a maioria das explicações filosóficas em outros são os únicos necessários). É, portanto, aí também que,
sistemas. Hegel reconhece a necessidade da contingên­ superando-se na contingência (correndo o risco de poder
cia para a própria necessidade, enquanto, habitualmen­
1 fazer crer em uma contingência do necessário), o necessá­
rio sé pode afirmar como tal na negação de sua finitude.
te, quando se toma a contingência como objeto da análi­
se filosófica, é para mostrar que ela se reduz ao Compreende-se então que essa afirmação dialética
da contingência e da necessidade vai bem além da banal
1
necessário, e que o ser contingente é, na verdade, neces­
i constatação de que só se poderia definir conceitualmen-
sário em si. A filosofia hegeliana é a única que afirma

96 97
T9
i
/ te, por uma reflexão exterior, as duas modalidades uma pendência de uma coisa; o que é necessário deve ser. Sua
em relação à outra, um dos pontos de vista esclarecen­ necessidade de ser exprime sua independência pelo fato de
do, por contraste, o outro. Muito pelo contrário, é por­ que o necessário é porque é. É este o segundo ponto. J
que essas determinações parecem desaparecer uma na
outra, e ainda mais quando se tenta isolá-las e opô-las, Essas duas determinações opostas, requeridas —
que é preciso compreendê-las pela mediação dialética parece — pela necessidade, já nos mostram em que a
que testemunha a própria reflexão essencial delas uma dialética é aqui essencial. Ambas,
na outra. É o que Hegel nos propõe ao resumir clara­
a independência — de modo que o necessário não seja
mente o problema que evocamos acima a propósito de
mediacizado por um outro —, e também a mediação
uma necessidade que parece tornar contingente ao mes­ deste em sua relação com o outro24
mo tempo o vínculo com um outro e a auto-subsistên-
cia bem como de uma contingência que pelas mesmas devem estar reunidas em nós como estão na própria ne­
razões seria identificada ao necessário. A solução hege- cessidade. Por conseguinte:
liana reside na afirmação de uma relação a si como a seu
outro, ou a si por intermédio do outro, que é a mediação. Nessa unidade, a mediação com o outro deve, pois, re- ’ 'T
Citemos brevemente os próprios termos de Hegel cair sobre a própria independência, e esta deve, enquan­
a propósito dessa dialética da necessidade e da contin­ to relação a si, possuir a mediação com o outro em seu
gência. Esta se encontra exposta, talvez com maior clareza próprio interior. Ambas só podem, no entanto, estar
unidas nessa determinação se a mediação com o outro
em suas Lições sobre as provas da existência de Deus, de 1829:
for, ao mesmo tempo, mediação consigo, quer dizer, so- „
r Uma coisa, uma lei etc. são contingentes por causa de
mente se a mediação com o outro se supera e se toma j
mediação consigo.27 27
seu isolamento; que essa coisa seja ou não, não causa
nenhuma perturbação ou mudança nas outras coisas.
Que ela seja igualmente pouco atingida por elas ou que E Hegel acrescenta:
o apoio que ela tem seja totalmente insuficiente, isso
lhes dá essa aparência ela mesma insuficiente de inde­ Na mediação com o outro, ela (a necessidade) se refere
a si-mesma; quer dizer que ela própria é o outro pelo
pendência que constitui justamente sua contingência. A
necessidade de uma existência exige, cm compensação, qual ela se mediatiza; ele é, portanto, negado como ou­
tro; ela própria é o outro, mas apenas de maneira mo­
que esta seja ligada às outras existências, de modo que
mentânea... Esse ser-outro é essencialmente alguma
uma tal existência seja completamente determinada de
coisa suprassumida.2*
todos os lados pelas outras existências como condições
e causas... Conforme essa determinação nós colocamos a
O que nos assegura aqui da dimensão dialética é j
contingência de uma coisa em seu isolamento e na falha
da ligação total com as outras. É este o primeiro ponto. que a mediação é produtora e a negatividade criadora.
Ao contrário, quando uma existência se encontra nessa O resultado ou a unidade desses termos contraditórios
perfeita ligação, ela é, em uma relatividade e uma de­ será a efetividade que dá seu título ao capítulo da Ciência (
pendência universais, perfeitamente dependente. É uni­ da lógica consagrado às modalidades. Se, com efeito, He-
camente na necessidade que encontramos antes a inde- . r gel exprime essa necessidade mediatizada como necessi-
L
98 99

í
J
!
da de absoluta, é para mostrar que a necessidade tomada
to, ser compreendidas como determinações que a efeti­
em seu sentido total, absolutamente falando, é a efetivida­
vidade se dá, e submetidas a ela. É na Ciência da lógica
de (Wirklichkeit) realizada e se reduz a ela, pois esta é mais
(Doutrina da essência, terceira seção), que se encontra
que o simples ser-aí designado na maior parte do tempo
expresso em toda sua amplitude o pensamento hegelia-
pelo termo “realidade". Aliás, Hegel precisa, ainda nas Li­
no sobre isso. Ora, para apreendermos bem o que está
ções sobre as provas da existência de Deus, que esse caráter
em jogo, é preciso nos remetermos, como diz o profes­
absoluto da necessidade evocado aqui não designa ne­
sor Gerhardt Schmidt em seu notável artigo sobre "O
nhum “necessitarismo" ou nenhuma posição unilateral:
jogo das modalidades e a potência da necessidade",30 a
um só tempo à doutrina espinosista da necessidade ab­
Na conferência anterior expusemos o conceito da ne­
soluta e à doutrina kantiana das modalidades, ambas
cessidade absoluta — absoluta. Freqüentemente abso­
luto não significa nada mais que abstrato, e acreditamos conjugadas e ultrapassadas por Hegel.
também com freqüênda que, por esse motivo, com a Em primeiro lugar, o que caracteriza a necessidade
palavra Absoluto tudo estaria dito e que não poderia­ de um ponto de vista metafísico é que ela não é o con­
mos nem deveriamos indicar então outra determina­ ceito relacionai interno ao mundo de um determinismo
ção. Na verdade, só temos que nos ocupar com essa dos efeitos, e sim, antes, a indicação da auto-suficiência
determinação. A necessidade absoluta só é também abs­ de uma causa de si. A esse respeito, o necessário em si
trata, o puro abstrato, na medida em que é o repouso seria o próprio Absoluto que nada deixa fora dele, à ima­
em si-mesma, e que ela não subsiste em um outro ou a gem da substância espinosistaj Ora, é preciso notar que
partir dele ou por seu intermédio... O que falta nessa Hegel subverte essa lição do Absoluto espinosista fazen-
determinação se completou, como vimos, pela deter­
do da necessidade absoluta aquela que, ao contrário, só
minação que lhe é oposta. A necessidade não é abstrata,
volta a si por intermédio de seu outro, o que então a
mas realmente absoluta, somente porque ela contém a
relação com o outro em si-mesma, porque é diferencia­ converte em efetividade. Melhor ainda, é todo o desen­
ção em si, mas como um suprassumido, um ideal. Ela volvimento sobre a efetividade, no qual Hegel se entre­
contém, com isso, o que pertence à necessidade em ge­ ga à análise do que tradicionalmente se chama de moda­
ral. Mas ela se diferencia desta por sua exterioridade, lidades, que participa dessa subversão. Conforme a
sua finitude... A necessidade absoluta transforma uma observação de G. Schmidt, o Absoluto espinosista, que
tal relação ao outro em uma relação a si mesma e pro­ era para Hegel apenas pura forma, “forma absoluta", só
duz assim o acordo interior consigo. 29 recebe na “efetividade" (segundo capítulo dessa terceira
seção) seu conteúdo, e com isso sua realização verdadei­
Trata-se, pois, da realização da necessidade e da ra. A efetividade é então dotada com o estatuto total­
contingência nesse Absoluto enfim concreto, ao qual mente excepcional de constituir a mediação para essa rea­
Hegel dará o nome de efetividade. Se somente essa efe­ lização do Absoluto e de ser, ao mesmo tempo, essa
tividade pode nos garantir a concretude do Absoluto e totalidade com a qual esse último se identifica quando o
absorver a necessidade, é porque ela tornou-se o pró­ pensamos realmente. É bem interessante, com efeito,
prio sujeito do qual necessidade e contingência podem ver Hegel utilizar duas vezes o termo efetividade: a pri­
ser o predicado. Em regime dialético, só pode se tratar meira vez para designar a terceira seção inteira, no inte­
de uma auto-atribuição, e todas as duas deverão, portan- rior da qual o Absoluto é estudado no primeiro capítulo,

100 101
n
I J

a segunda vez, para designar o próprio segundo capítu­ questão imediatamente: o que justifica a integração das
lo, motor do movimento em boa dialética, já que o ter­ modalidades à efetividade é que esta a princípio inte­
ceiro capítulo da seção só utilizará o Absoluto como riorizou o pensamento. A afirmação idealista da unidade
predicado: "A relação absoluta."31 A efetividade terá, do ser e do conhecer da qual testemunha a efetividade
portanto, absorvido todo o teor ontológico do Absoluto hegeliana é o que funda o realismo das modalidades.
ao mostrar que se trata, de fato, de relacionar uma à Para se compreender bem isso, é importante agora
outra a necessidade e a contingência como movimento retornarmos à segunda fonte da doutrina lógica hegelia­
da efetividade. Longe, pois, de ser reduzida, a contin­ na acima indicada (cf. 89): a teoria kantiana das modali­
li gência se vê investida aqui com uma carga capital, pois dades. É sabido que em Kant estas eram consideradas
poder-se-ia dizer que é ela que suporta todo o peso da como categorias da reflexão, referidas a um uso reflexio-
mediação. Ela testemunha a dialetização do Absoluto — nante (e não determinante) do entendimento, designan­
i e do necessário. Por isso, aliás, ainda no mesmo artigo, do o modo da relação deste com o real. Ora, do mesmo
G. Schmidt estima que "teria sido melhor dar claramen­ modo que Hegel procedeu a uma subversão do Absolu­
te o título de "A contingência" ao segundo capítulo, já to espinosista reduzindo-o à efetividade, única a lhe dar
que é a ela que cabe o papel decisivo."32 O que é certo é um conteúdo "modalizando-o", Hegel opera aqui uma
que as categorias de necessidade e de contingência mos­ integração subvertedora da teoria kantiana.jAs modali­
tram-se indissociáveis uma da outra, e ambas predicati- dades designam também para ele a reflexão, mas porque
! vas unicamente da efetividade. A determinação de contin­ essa reflexão é a do próprio Absoluto. Poder-se-ia então
gência ou de necessidade deverá ser, portanto, relacionada dizer que se a efetividade é a própria realização do Abso­
com a própria efetividade e não mais, de modo algum, luto, é um movimento de reflexão deste nele mesmo. A
com uma reflexão exterior. transformação do estatuto gnoseológico da reflexão em
É preciso insistir sobre essa interioridade específica uma determinação ontológica — isto é, do saber e do
do pensamento hegeliano acerca desse tema, pois, como ser correi ativamente — é o ensinamento capital do se­
veremos, trata-se de uma interioridade dupla. Em pri­ gundo livro da Ciência da lógica: a doutrina da essência.
meiro lugar, a integração à efetividade (a realidade con­ A reflexão, "constatativa" em Kant, torna-se "constituti­
creta, poderiamos dizer) da modalidade resolve todos os va" para Hegel, pôde dizer um comentador, e assim, as
problemas tradicionalmente ligados a seu fundamento modalidades que em um eram o testemunho de uma
I exterioridade cognitiva, tornam-se no outro determi­
exterior. Quer se trate de uma necessidade matemática
exterior ao real e só regendo um mundo de "possíveis", nantes. A oposição do juízo reflexionante e do juízo de­
ou de uma necessidade ex hypothesis ligada à escolha de terminante desaparece, e a determinação não é mais
um Deus combinador, era sempre fora do mundo real que a reflexão que se opera pela própria efetividade.
que em Leibniz se encontrava o fundamento do juízo Toda característica do Absoluto, todo conteúdo deste
em razão. Para Hegel, em compensação, o juízo é ele será, portanto, sua exposição por si, e o conhecimento
próprio ontológico, as própria coisas se julgam, poderia­ que temos dele será seu próprio conhecimento produtor
mos dizer.33 É que a interioridade, dizíamos, é dupla, e é de si. Daí a importância, diante da identidade schellin-
i preciso ver agora a questão correlativa dessa redução do giana, da determinação hegeliana que implica a nega­
fundamento de predicação à efetividade. Indiquemos a ção. É também esse regime reflexionante que constitui

102 103

1.
Ti
P
o movimento próprio a esse momento da Ciência da lógi­ gação. Mas essa contingência existe, exatamente como
ca. Enquanto na lógica do ser uma categoria passa para a existe o negativo; é esta a dialética, e ela tem sua impor­
outra e na do conceito ela se desenvolve nele, Hegel ca­ tância. É em função dessa apreciação de uma “densidade
racteriza as articulações conceituais da essência pela re­ ontológica", se nos emprestam essa fórmula, que a ex­
flexão de uma categoria na outra. A reflexão é a indica­ pressão hegeliana de “efetividade", bem mais exata que
ção de um parecer de si na alteridade. A modalidade não o termo único “realidade", ganha todo seu sentido. Di­
é mais, então, uma reflexão exterior a quem o real pare­ zíamos acima, no efetivo (wirklich) podemos encontrar o
ce contingente ou necessário, como se a realidade per­ agir (wirken) do princípio ideal-real verdadeiro. Esse ter­
manecesse presa, quanto a ela, em seu teor imediato, mo tem portanto o mérito de fazer desaparecer a confu­
estranha a suas qualificações. Trata-se, ao contrário, de são presente no termo de realidade, que pode significar
um parecer essencial de uma determinação na outra no o ser-aí mais empírico, como também o real por oposi­
seio de uma efetividade onde elas se negam e se unifi­ ção ao aparente ou ao superficial. O efetivo, em com­
cam ao mesmo tempo. Daí o caráter indissociável da ne­ pensação, contém em si a noção de uma verdade no seio
cessidade e da contingência que se refletem uma na outra. da qual poderíam se indicar momentos, de tal forma
A unidade do espírito e do real na efetividade dota que a plenitude do conhecimento correspondería tam­
esta de uma determinação das modalidades segundo um bém a uma plenitude de realidade, bem como a insufi­
critério interno à própria efetividade, e ela funda, ao ciência daquela testemunharia também a insuficiência
mesmo tempo, a possibilidade do discurso dialético sus­ desta. De que dependería portanto essa “efetividade"
ceptível de expressá-la, pois com isso o próprio Absoluto maior ou menor, a não ser da presença mais ou menos
se expressa. Ora, essa atribuição de um critério interno à clara no ser daquilo que age aí ou daquilo que a agita, e
efetividade para designar um ser em sua contingência que é o único capaz de suportar a potência do negativo,
ou sua necessidade, como a possibilidade de expressá-lo a saber, o Espírito?
A - - «• 1 #.• _____

dialeticamente, nos conduz ao reconhecimento do po- Por isso, como dizíamos, o discurso dialético po­
der do Espírito. derá, unido ao movimento da efetividade, exprimir toda
Se a princípio, a contingência e a necessidade de­ sua verdade sem que o reconhecimento de uma contin­
vem ser estimadas em função unicamente da efetivida­ gência crie aqui a menor dificuldade. Trata-se apenas de
de, isso quer dizer que a tarefa será a de reconhecer no compreender bem a negação. Assim, por exemplo, é
ser em questão uma efetividade maior ou menor. Se se preciso atenção para não cometer o erro encontrado na
trata aqui, com efeito, do parecer da própria essência, e formulação habitual da prova cosmológica da existência
não de uma única aparência para o espírito, é a densida­ de Deus. Esta testemunha, segundo Hegel, uma incom­
de ontológica do real, e mais precisamente deste ou da­ preensão das determinações que ela põe em jogo, pois
quele ente, que será a medida de sua contingência e de consiste, ao fazer da existência do finito contingente o
sua necessidade. A contingência não será, portanto, a fundamento da afirmação da existência do infinito ne­
aparência de um ente, que pode desvanecer quando se cessário, em uma inversão do princípio que ela queria
compreende sua necessidade real, mas aquilo que é pró­ demonstrar, ou seja, o fundamento do finito no infinito,
I.
I u.
prio de uma realidade que desvanecer-se-ia somente de­
pois de ter sido, ou cujo ser todo está carregado de ne-
do contingente no necessário. O pensamento dialético
do problema nos ensinará, muito pelo contrário, que é o

104 10S
jI L
!

íl
I }| não-ser desse finito que constitui o ser do infinito (por- a negação prima e onde a efetividade se perde. O espíri­
que é nesse finito que o infinito se deu primeiro uma to, porém, poderá se encontrar noutra parte, para além
determinação ao se negar). Conduzir o pensamento do do desaparecimento do que, finalmente, se mostra abs­
finito ao infinito corresponderá, portanto, ao próprio trato, já que é abstraído justamente do ser. Encontra­
movimento pelo qual um sucumbe no outro, e é por mos aqui, aliás, uma dialética idêntica àquela da certeza
isso que não é a determinação ontológica da existência sensível tal como a Fenomenologia do espírito a apresenta.
que o discurso tem que assumir aqui, e sim a de sua Essa certeza de uma imediatidade singular se inverte aí na
negação. Compreender o contingente é compreendê-lo afirmação de uma universalidade que se indica tanto no
como fadado a “cair", repitamos, e não tentar reduzi-lo, discurso como no ser (o que há de mais universal que o
existente, a uma necessidade de ser que o confunde com “isto" e de mais pobre em determinação singular?) Aliás,
o necessário sem que se compreenda mais a diferença não visa Hegel ainda aí Krug, quando escreve:
nem a razão de diferença entre os dois. Não confundir
contingente e necessário, mas mostrar que um sucumbe Quando se exige da ciência como prova crucial, prova
nos conduzindo para o outro, eis a tarefa da dialética. que ela não podería sustentar, deduzir, construir, en­
i
Ora, é o Espírito como princípio que torna isso possível. contrar a priorí (ou como se queira) um "essa coisa-
O que é, com efeito, que está no ponto mais alto, e até aqui" ou um "esse homem-aqui" assim denominados, é
mesmo no termo ou como resultado, senão esse Espíri­ justo então que o pedido diga que coisa-aqui, ou que
eu-aqui ela visa, mas dizê-lo é impossível.34
to cujas determinações podemos deduzir? O que, em
compensação, não pode ser deduzido por causa de sua
facticidade exterior? O que menos o deixa parecer e por­ Essa impossibilidade pode, todavia, se fundar em
razão e vimos como a dialética da contingência a expli­
tanto, o que também não pode se expressar, de tal modo
que o discurso que o tem por objeto se desmorona ou cava sem reduzi-la. Não é a fraqueza do filósofo que
se anula: a saber, a exterioridade da natureza ou da coisa será preciso acusar, mas, ao contrário, a da natureza —
Ohnmacht derNatur— diz Hegel sobre isso! Pois precisa­
I individual mais abstrata em seu ser anônimo. Isso certa­
mos agora evocar mais precisamente essa gradação na
mente não se deixa dizer, já que mal é. É preciso, po­
efetividade de que falávamos acima e compreender
rém, pensar esse “mal", essa carência (Not) ontológica
do finito que o volta (wenden) para a necessidade (Not- como o discurso é, em boa dialética, não apenas propor­
Wendigkeit') que o nega sem identificá-lo com ela, já que, cionado a seu objeto, mas até mesmo proporcional em
si. Avaliando a necessidade e a contingência pela efetivi­
ao mesmo tempo, ela o muda ou o faz desaparecer. Ora,
para pensar a contingência em sua efetividade, o discur­ dade (e não, como se fazia antes dele, julgando a realida­
so dialético tem que assumir sua negação, e portanto, de de segundo os critérios das modalidades), porque esta já
certo modo, ser um não-discurso que deixa essa alterida- é unidade do ser e do espírito, Hegel nos faz sair do
de ser, testemunhando, assim, seu não-ser. Respeita-se, puro formalismo lógico tradicional e nos dá um conteú­
do ontológico, ou uma lógica do conteúdo efetivo. É
então, plenamente, a especificidade do contingente sem
que o discurso filosófico tenha que sofrer com uma irre- toda a diversidade do ser que se indica, então, segundo
I dutibilidade qualquer. Pois calar-se é aqui respeitar a uma hierarquia de formas que não deixa de lembrar a
modalidade da união do saber e do ser, nesse caso onde metafísica aristotélica. A interiorização e a relativização

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1
I

r
das modalidades à efetividade implicam igualmente uma ■
aquele que está no ponto concreto mais alto na medida
I interiorização da lei e da razão de ser à própria indivi­ em que traz para si toda alteridade ou se mostra por
dualidade, e é esta última que é garantia da integração intermédio das condições às quais ele dá sentido. É toda
autêntica da razão no ser. O idealismo absoluto toma, a escala dos seres que aí encontramos, desde os mais
portanto, necessariamente, a forma de uma teoria da in­ insignificantes cuja individualidade caduca mal exprime
dividualidade: ele é até mesmo a única doutrina filosófi­ o ser, até aqueles cuja autonomia individual é a mais
i:
ca que lhe reserva um tal lugar, já que o indivíduo terá importante. A gradação para a individualidade será, na
i. em si somente a lei de sua realidade — ou de sua não- verdade, o sinal de uma maior necessidade, de uma ne­
realidade, o critério de sua efetividade. A compreensão cessidade mais interior, quer dizer, de uma maior pre­
do indivíduo a partir apenas dele (e mesmo do que nele sença daquilo que constitui o efetivo na efetividade, ou
parecería incompreensível, porque isso é simplesmente seja, o espírito. E é por isso que essa progressão em dire­
não-ser) e, portanto, a superação do dualismo entre a ção à individualidade é também uma progressão em di­
razão e o ser tornaram-se, na verdade, possíveis pela re­ reção à universalidade. O mais efetivo é o que se cria de
lação interna ao indivíduo entre o si e o outro de si mes­ toda maneira, quaisquer que sejam as condições, aquele
mo. A negatividade e o pensamento da diferença são, no que as suscita, e que, portanto, não as tem realmente.
cerne do indivíduo, o que explica seu ser e o que bane toda Ele está em si no seu outro, e só se faz outro para voltar
dualidade estática. Pois a própria razão compreende o ser a si. É este o último resultado da dialética que desembo­
como seu outro e nega sua imediatidade na efetividade. ca, como vemos, na liberdade daquilo que é realmente
efetivo no seio de sua necessidade! Já não se pode aqui,
í Por conseguinte, essa teoria hegeliana da indivi­
dualidade deve ser inteiramente compreendida em vir­ aliás, se contentar em se expressar na linguagem da es­
tude de sua recusa da abstração, e dessa relação do si sência, pois não se deve sequer deixar a menor possibili­
com o outro da qual o pensamento abstrato quer fazer a dade de erro e confundir a necessidade do Conceito com
economia. A relação com a alteridade é a garantia da a de uma causalidade exterior. Nós a reconhecemos,
autonomia do ente e de seu caráter concreto, pois isso essa figura de uma individualidade para a qual tendem
nos faz apreender o surgimento ou o desaparecimento suas próprias condições e que aponta para a categoria
desse ente conforme sua próprias condições. Ora, con­ clássica de finalidade. É este o movimento lógico, já que
forme o tipo de ente de que se trata, a modalidade da essa categoria, que implica o conceito voltando sobre si
relação com o outro poderia ser bem diferente, e a parte mesmo, nos indica a passagem necessária para essa ou­
do si igualmente; pois um indivíduo pode ser mais ou tra esfera que, na Ciência da lógica, começa logo após a
menos si, um si, quer dizer, finalmente, mais ou menos efetividade. A “efetividade" não pode ser compreendida
indivíduo. Assim se poderá desvendar na dialética das senão como transição para o Conceito, pois este é o que
condições o tipo de existência mais individual naquele explica todo seu alcance especulativo.
que invoca suas próprias condições. O fundado pode ser Mas retornemos a essa escala da individualização
o fundamento de seu próprio fundamento, nos diz He­ que não passa da famosa teoria do universal concreto.
gel na Ciência da lógica, e as condições podem tornar Em vez de construir um palácio de idéias e de esquecer
possível apenas aquilo que as faz ser elas mesmas. Pois o o indivíduo existente, como o censurará Kierkegaard,
indivíduo que se mostra como plenamente efetivo é Hegel tenta, ao contrário, reapreender a idealidade na

108 109
TI

própria individualidade, e o critério interno de efetivida­ ao discurso, o de não ter que ser expresso nele. E é seu
de, de que falavamos acima, elimina toda dominação de estatuto ontológico que torna essa tarefa impossível —
I um mundo de idéias exterior ao real. O que é, é certa­ ou, no sentido próprio do termo, insignificante. Como
■r
mente idêntico ao pensamento, mas segundo o regime no artigo, portanto, mas de maneira bem mais firme,
da negação; a diferença entre os seres, como entre os encontraremos noutra parte essa hierarquia que já esta­
pensamentos, é então respeitada. Pois a individualidade va ali mencionada, desde a pena de escrever de Krug até
contagia também, e por isso tudo parece tender (no real o grande homem histórico e até o próprio Absoluto.
i! como no pensamento) para esse Indivíduo que Hegel
chama, às vezes, de o “Espírito do Mundo". Eis porque,
Mas a dialética da relação entre a lógica e a natureza,
como a da razão histórica e enfim a da infinidade da
\
ao contrário do platonismo, Hegel nos restitui o sentido Idéia e da subjetividade da substância permitem apreen­
I
pleno de um aristotelismo, ampliado por ter enfim uni­ der toda sua significação.
ficado o universal e o singular. Não é, portanto, porque É preciso, pois, seguindo Hegel, distinguir vários
a pena de escrever de Krug é individual demais que ela graus de efetividade conforme a relevância do Conceito
não pode ser deduzida, e sim porque ela não é bastante, e, ao mesmo tempo, a autonomia verdadeira do ente
enquanto individualidade; essa impossibilidade está exa­ cuja importância ontológica determina seu próprio ape­
tamente proporcionada ao estatuto ontológico desta. lo à existência. As coisas da natureza ou os objetos indi­

I Depois da elaboração dialética da Ciência da lógica, He­


gel possui o instrumento que lhe permite responder de
viduais que se enfrentam em sua alteridade são assim
caracterizados por sua exterioridade, pela alteridade que
maneira totalmente satisfatória ao pedido de Krug; ele os constitui em seu ser e, ao mesmo tempo, os destitui
pode afastá-lo, não tanto por causa de sua futilidade, dela. Porque eles têm sua razão de ser fora deles, pode­
mas por causa do erro que contém. A posição hegeliana riamos também dizer que eles não têm razão de ser, diz .
pode, desde então, ser formulada de maneira mais radi­ Hegel. Daí um máximo de contingência que torna in­
cal do que na época do artigo sobre Krug (1802). A dife­ sensata toda dedução. Esta, com efeito, que é sempre
rença entre os objetos de uma dedução possível que He­ movimento do ser e do conhecer em boa dialética, res­

gel indicava ali está, doravante, fundada sobre a peita o procedimento racional ao se recusar deduzir,
modalidade efetiva da presença neles da própria subjeti­ pois deduzir aqui significa dar ao que é a alteridade do
vidade racional. Não é, portanto, apenas o maior ou me­ conceito o próprio conceito. A unidade do ser e do espí­
nor interesse que apresenta este ou aquele objeto, que rito só se expressa aqui modo negationis.
explica que se faça ou não a dedução. Ou antes, esse A posição hegeliana é, a esse respeito, bem clara, é
interesse é exatamente aquele que o próprio objeto tem preciso reconhecer seu direito à contingência:
em relação ao Absoluto na medida em que este entrou
nele, ou está em relação com ele, ou entre ele e um Ora, embora a contingência, de acordo com o que foi
outro, ou seja, está interessado nele. Vemos, portanto, debatido até o momento, seja apenas um momento
que Hegel prosseguiu na via dessa diferenciação inte­ unilateral da efetividade e por essa razão não pode ser
riorizando essa razão da diferença, ou integrando a ra­ confundida com essa própria, cabe-lhe, no entanto, na
í zão na diferença, de tal modo que o que difere da razão medida em que é uma forma da Idéia em geral, um
direito próprio também no mundo dos objetos. Isso
se vê assim dotado de um estatuto próprio em relação

111
110

d
0:jh
■h • vale, em primeiro lugar, para a natureza, em cuja super­ conceituais só abstratamente e expor a realização do
! fície, por assim dizer, a contingência tem seu livre cur­ particular a uma determinabilidade exterior.37
so, que se deve então também reconhecer como tal,
sem ter a pretensão (às vezes atribuída de maneira errô­ O próprio Hegel comenta:
nea à filosofia) de querer encontrar aqui um poder-ser
apenas assim e não de outro modo [...] É totalmente Essa impotência da natureza impõe limites à filosofia, e
exato que a tarefa da ciência, e mais precisamente da o mais indicado é exigir do conceito que ele conceba
filosofia em geral, consiste em conhecer a necessidade tais contingências, e, como se disse, que ele as construa,
oculta sob a aparência da contingência; o que não se as deduza; parece até que a tarefa se toma mais fácil quan­
pode, todavia, entender como se o contingente perten­ to mais insignificante e mais singularizada é a forma.38
cesse simplesmente à nossa representação subjetiva e,
i por essa razão, devesse ser afastado absolutamente para É preciso notar que, de maneira bem significativa,
- que se chegue à verdade. Esforços científicos que se de­
Hegel evoca aqui ainda, em nota, o caso de Krug, uns
senvolvem unilateralmente nessa direção não escaparão
trinta anos depois de seu artigo:
à censura justificada de ser um pequeno jogo vazio e
um pedantismo afetado.35
Nesse sentido e além disso em um sentido totalmente
ingênuo, o Sr. Krug exigiu, um belo dia, que a Filosofia
Se o filósofo não tem aqui que deduzir é porque o
da Natureza realizasse a proeza de deduzir sua simples
Conceito aparece aí sob a forma de uma exterioridade
pena de escrever. Poderiamos ter-lhe dado a esperança
das determinações umas em relação às outras, como em
de um êxito nesse empreendimento e, ao mesmo tem­
relação a si mesma. É esta a lição da Filosofia da Nature­ po, na glorificação de sua pena de escrever, se somente
za, que constitui a segunda parte da Enciclopédia: o progresso da ciência devesse permitir um belo dia,
depois de ter tirado a limpo todas as questões mais im­
A natureza revelou-se como Idéia na forma da alterida- portantes no céu e na terra, no presente e no passado,
39
de. Visto que, portanto, a Idéia é como seu próprio ne­ não ter então nada mais importante para conceber.
gativo ou ainda é exterior a si mesma, a natureza não é
exterior apenas relativamente a esta Idéia (e em relação Hegel retoma aqui a ironia de seu artigo, c fala
à existência subjetiva desta, o espírito), mas a exteriori­ novamente da futilidade do pedido, mas a recusa que ele
dade constitui a determinação na qual ele se encontra poderia agora lhe opor estaria, na verdade, ancorada na
1 como natureza.
36

Hegel repete, aliás, que então


teoria da exterioridade da natureza e da negatividade do
finito individual.
Quando nos elevamos no entanto, na escala do
ser, essa exterioridade se transforma em inferioridade e
a contingência e a determinabilidade a partir do exte­

r rior têm seu direito na esfera da natureza, pois essa con­


tingência maior se encontra no campo das formas con­
cretas individuais, que são, entretanto, enquanto coisas
a efetividade testemunha a presença do espírito. Assim,
por exemplo, um indivíduo histórico, um grande ho­
mem — dirá Hegel nas Lições sobre a filosofia da história
naturais, só imediatamente concretas. O que constitui a —, pode ser compreendido segundo uma necessidade
I> impotência da natureza é ela conter as determinações que torna dedutível sua existência, pois o conteúdo está

112 113
I
n portanto, de certa maneira, por meio de suas próprias
ií aqui à altura. Em seu artigo sobre Krug, Hegel já men­
pressuposições. O § 149, da Enciclopédia, já acima evoca­
,»i ciona o exemplo de Alexandre, de Moisés, e até mesmo
:> • de Jesus. A inteligibilidade está ligada à plenitude onto- do, o exprime bem:
lógica da qual esse indivíduo é testemunha em sua rela­
O fundamento e a condição contingente são transpos­
ção ao que o Espírito do mundo exige. Assim, poder-se-
tos em imediatidade, pela qual esse ser-posto se supera
ia seguir desde os planetas, por exemplo, já mais
■ em direção da efetividade, e pela qual a Coisa veio se
dedutíveis que um objeto qualquer, mas ainda objeto fundir consigo mesma. Nesse retomo a si, o necessário é
exterior a um outro, passando pelo ser vivo, que já inte­ absolutamente, enquanto efetividade incondidonada.
gra o outro, até o Espírito, que faz realmente de todo
’il‘ outro si, toda a progressão de uma necessidade que pro­ Em compensação, na medida em que os momen­
vém de uma substancialização sempre mais importante. tos desse processo indicam uma alteridade irredutível,
Pois, é esta, não esqueçamos, a etapa em que a quando o ente não tem essa mediação no interior de si,
dialética das modalidades encontra todo seu desenvolvi­ mas sofre com uma exterioridade radical, ele estará fa­
mento conforme a lógica. Se, com efeito, o conteúdo dado à contingência, ou, como Hegel diz de maneira bem
daquilo que é não é senão a manifestação dessa substân­ interessante, ao que se pode chamar de uma necessidade
cia, que é a um só tempo forma absoluta e conteúdo,
apenas exterior.
atividade de se refletir revelando-se ao mesmo tempo a
negação desse outro onde se opera essa reflexão, pode- Na medida em que os três momentos [a saber, as condi­
se dizer que então trata-se realmente de uma coisa que, ções, a coisa, a atividade que é o movimento pelo qual
por suas próprias condições "se funde", na verdade, as condições se transpõem na coisa] têm entre si a figu­
d "consigo mesma", como diz Hegel no § 149 da Enciclopé­
dia. A coisa que se produz é a única a se beneficiar dessa
ra de uma existência subsistente por si, esse processo é
como a necessidade exterior. Essa necessidade tem um
necessidade interior que a une ao que parecería outro. . conteúdo limitado à sua coisa. Pois a coisa é esse todo
Lembremos que Hegel queria mostrar que a substância em uma determinidade simples; mas como ele é em
era dotada de uma reflexão interna, contrariamente ao sua forma exterior a si mesmo, é também assim exte­
rior a si em si mesmo e em seu conteúdo, e essa exte-
Absoluto espinosista; somente assim se pode, aliás, com­
rioridade à coisa é o limite de seu conteúdo.
preender as modalidades como modos verdadeiros da

substância, e aqueles como as modalidades desta. Ora, a A contingência de um objeto individual provém do
•j ■ autêntica compreensão da substância vai, como vere­ fato de ele ter em seu exterior suas condições, sem que ele

’ «G 1
i mos, nos conduzir igualmente para fora dela.
A substância é com certeza garantia de uma certa
necessidade interior, dessa necessidade interior que pa­
seja, por seu conteúdo, susceptível de integrá-las, quer di­
zer, sem que elas lhe sejam próprias. A necessidade é exte­
rior a ele porque ela não é a de um conteúdo susceptível
j »• rece testemunhar da autonomia particular, a densidade de interioridade, bastante densa para fazer em torno de si a
ontológica, isto é, a efetividade de um ente. A esse res­ unidade dos momentos e subordiná-los ou suprassumi-los.
peito, o que a caracteriza é que os momentos do proces­ Hegel o precisa com freqüência, por exemplo na introdu­
so que a explica estão todos inteiramente nela mesma
i ção às Lições sobre afilosofia da história:
(finalizados para ela, gostaríamos de dizer); ela se causa,
115
114
1
I -
í !> :
A contingência é a mesma coisa que a necessidade exte­
rior: uma necessidade que se funde com as causas que A substância é um grau essencial no processo do desen­
são elas próprias apenas circunstâncias exteriores.42 volvimento da Idéia, não todavia esta própria, não a
Idéia absoluta, mas a Idéia na forma ainda limitada da
A necessidade tem, portanto, graus que a condu­ necessidade. Deus é, na verdade, seguramente a neces­
zem para a efetividade verdadeira quando ela é interior. sidade ou, como também se pode dizer, a Coisa absoluta,
Mas quando essa interioridade pode justamente ser en­ mas também, ao mesmo tempo, a pessoa absoluta, e é
! este o ponto ao qual Espinosa não chegou e a respeito
contrada? Que conteúdo e que forma suficientemente
adequados um ao outro e densos podem nos garantir a do qual é preciso conceder que a filosofia espinosista
substância susceptível de tomar no interior de si suas ficou atrás do verdadeiro conceito de Deus, que forma
o conteúdo da consciência religiosa cristã.43
próprias condições de realização? É um aprofundamen­
to da noção de interioridade que nos dá aqui a resposta. Ou mais à frente: "O que lhe falta é o princípio
A necessidade é interior quando seu próprio conteúdo é ocidental da individualidade/’44
a interioridade por excelência, a substância é a efetividade O termo "individualidade” deve ser entendido
porque ela é sujeito. A primeira significação da inte­ aqui como essa subjetividade, essa personalidade que dá
rioridade como integração (e suprassunção na autono­ ao indivíduo sua mais alta efetividade, como salientamos
mia de um ser) se funda, portanto, na segunda: a inte­ acima, ao falarmos de escala ou de hierarquia no ser.
. !i!l rioridade como subjetividade. Ora, é essa nova determinação da subjetividade
' I Por conseguinte, a gradação da necessidade, o pro­
gresso para a necessidade interior é, ao mesmo tempo, o
que vai agora nos fornecer a chave daquilo que aparecia
antes como uma dialética interna à necessidade. A cen­
que nos faz sair dela para nos conduzir para a liberdade sura feita por Hegel à substância espinosista, sua falta de
do que possui em si o princípio de sua ação autônoma. de subjetividade, desemboca na constatação que essa
A interiorização da necessidade concedida à efetividade substância absorve então toda finitude, nega-a de manei­
■ I implica, para Hegel, um acréscimo de liberdade dos se­ ra abstrata e simplesmente não a deixa aparecer: "O
I res cuja necessidade interior é tanto maior quanto a par­ princípio da diferença ou da finidade não alcança o seu
i! i
te mecânica diminui. Eis o que significa a famosa ex­ direito.”45 Esse "acosmismo” espinosista tem também
pressão hegeliana segundo a qual a substância é o como efeito tirar toda determinação do Absoluto que
11 sujeito, e encontramos também aí a explicação do movi­ não se reflete em seu outro, mas é refletido do exterior.
q mento lógico complexo que, na Ciência da lógica, faz Esta seria a tristeza de uma necessidade abstrata imediata
desse capítulo "modal” a transição ao conceito. Longe que nos parece cega. Mas, realmente compreendida, essa
de constituir uma apologia da necessidade, a lição hege­ necessidade torna-se liberdade ao fazer justiça ao outro:
liana sobre esse ponto visa superar esta na liberdade. As
É esta a transfiguração da necessidade em liberdade, e
indicações da "pequena” lógica ou lógica da Enciclopédia essa liberdade não é apenas a liberdade da negação abstra­
h são a esse respeito sem dúvida as mais claras. Quando ta, mas antes uma liberdade concreta e positiva.
ele analisa essa noção de substância, Hegel insiste, sobre
I
o principal defeito da substância espinosista: Somente uma liberdade pode deixar a liberdade a
um outro. A necessidade só tolera a contingência por-
116
117
í
■il
■ il que ela própria é liberdade de um princípio que não é então, sempre como o outro do que se esperava; se con­
i II substância, mas sujeito. Se, portanto, o contingente cai, sideramos, ao contrário, a atividade conforme a uma
ao menos é dele mesmo, e ele existe também nessa con­ meta, “temos aqui nessa meta um conteúdo que já é sabi­
tingência. A definição hegeliana da liberdade: Bei sich do de antemão, e por isso essa atividade é clarividente."47
selbst sein bei dem anderen (estar em si no outro) encontra
d aqui toda sua ilustração. Essa subjetividade livre é a úni­
ca que pode ser um todo diferenciado e ao mesmo tem­
É esta a presença do Conceito:

Este é a verdade da necessidade e a contém em si como


po unido, e essa síntese final do ser e do conceito é a de superada, do mesmo modo que, inversamente, a neces­
Deus, essa infinita "subjetividade" ou “personalidade ab­ sidade é em si o conceito/8
solutamente efetiva", como Hegel a chama no acrésci­
mo ao § 147. A utilização dos meios pela meta responde exata­
Atingimos aqui o verdadeiro ápice da dialética, já mente a essa intuição do contingente e do necessário,
que o que está mais alto na hierarquia ontológica da in­ com a condição de se compreender bem que este tem
dividualidade (a subjetividade absoluta) é também o por conteúdo a liberdade. Só há, em Hegel, necessidade
princípio estrutura dor de todo o resto, ou do Todo que da liberdade. Essa liberdade é o que rege a hierarquia
ele é ao se diferenciar. A presença, com efeito, de sua dos seres. É ela que confere a um indivíduo tanto mais
ação de principiar se indica como liberdade concreta que alcance ontológico quanto mais ele for o verdadeiro fim
é em si no outro, conferindo a este mais ou menos dessa para os meios, como o ser vivo que integra o não-ser-
liberdade. Esta ação de liberdade toma, portanto, — e vivo, ou o ser espiritual para o qual todos os outros exis­
encontramos ainda aqui a idéia aristotélica — a forma tem, pois ele é, a princípio, para si. As condições são
da finalidade que oculta a insuficiência do esquema me- então finalizadas com o alcance da meta que as causa de
canicista ou “necessitário". Ou antes, compreende-se fato. E se a coisa se encontra consigo mesma, é porque
que o necessário absoluto — no sentido de cego — tor­ ela é aqui sujeito. O que implica, é claro, que o discurso
na-se o necessário a. Esse necessário a, típico do projeto dialético, bem como a dialética das coisas só exprime o
final, só tem sentido em relação a esse conteúdo neces­ verdadeiro no fim (Ende)t no termo, quando o fim
sário que deve absolutamente se produzir, chamar-se ao (Zweck) se realizou (yerwirklicht'). Se o conteúdo já é sabi­
ser, norma da efetividade, e que é a liberdade. É todo o do antes, é na forma de um em-si que, sob as condições
sistema hegeliano que encontramos aqui, desde o víncu­ da realização, a saber, os meios, passa para o para-si. O
lo da lógica com a natureza até a filosofia da história. A que se realizou, portanto, é ao mesmo tempo o que é pre­
í lógica da Enciclopédia já nos mostra, em seu nível, que o ciso saber, pois é testemunha da verdade dos próprios

r Conceito substitui a Essência e que o objetivo nos dá


uma compreensão mais profunda, única a corresponder
meios e da do conteúdo. A finalidade não tem, portanto,
nada a ver aqui com uma nova forma qualquer de exterio-
à profundidade do princípio de personalidade divina. ridade e é puramente interna, como Hegel não se cansa de
Em se tratando de finalidade, deve-se compreen­ lembrar. Daí, aliás, a conciliação desse ponto de vista com
der da seguinte maneira: já que a alteridade domina, o de uma necessidade interna, como vimos acima.
quando as condições exteriores conduzem ao ser uma O paradoxo da posição hegeliana, que atribui as
>
coisa que parece diferente dela, a necessidade aparece, modalidades aos diferentes campos do ser conforme

118 119
-

uma lei radicalmente inversa daquela com a qual o pen­ que predizer, mas sim mostrar no que passou o que o

1 samento moderno está acostumado, encontra aqui sua


solução. É sabido, com efeito, que para Hegel a contin­
gência reina no campo da natureza, onde se está acostu­
mado a admitir a presença de um determinismo rigoro­
tornou efetivo. A palavra no passado é aqui o sinal au­
têntico de uma compreensão dialética da unidade do es­
pírito e do real. Na história ocorre alguma coisa, e é por
isso que o discurso sobre o passado é o único realmente
í ’ so, e a necessidade está, em compensação, segundo ele,
4

filosófico — se ao menos se quiser respeitar a especifici­


■I em casa, na história dos homens, lá onde, ao contrário, dade desse campo da efetividade da liberdade. Tudo isso
se é sempre levado a revelar contingência e o capricho
testemunha o fato de que essa própria necessidade inte­
das liberdades individuais!
grou a contingência histórica j(representada pelo fator
A contingência não é, na verdade, na natureza, se­ do tempo que intervém aqui de maneira essencial), e os
p:
não o sinal da exterioridade constitutiva desta. Por con­ discursos todos visam mostrar como ela cai. Nem por
4•
seguinte, sua inteligibilidade só pode ser formal e os vín­ isso ela é deixada de lado, mas tenta-se compreender
culos que se estabelecem entre os entes permanecem como é que, em sua superação, indica-se a necessidade
exteriores a eles. A necessidade que se está acostumado própria da história. Esses indivíduos que caem depois de
a ver nesse campo é apenas um encadeamento ao infini­ terem desempenhado seu papel são, entretanto, aqueles
to de condições exteriores e mecânicas que jamais con­ que ao mesmo tempo formam a própria trama do dis­
têm sua própria justificação. Necessidade cega, se se quer, curso histórico. Hegel, aliás, sabe bem o sentido da dife­
e que se inverte em seu contrário, pois ela não pode nos
i dizer por que as coisas são assim. Ater-se a isso seria deixar
rença para esquecer que o próprio campo do espírito
contém uma certa contingência. Pois nele também há
o próprio princípio de inteligibilidade exterior ao real.
graus de realização da liberdade:
Ao contrário, é porque esse princípio é interior
que a história dos homens nos apresenta uma necessida­ O contingente se faz valer também no mundo do espírito,
de interior, e a palavra essencial é aqui o adjetivo. O con­ como já foi observado precedentemente no que concerne
teúdo contém em si, então, sua justificação, pois ele é à vontade, que contém em si o contingente na figura do
essencial. Mas essa necessidade interior não é senão a da livre arbítrio, mas apenas como momento superado. Rela­
própria liberdade; pois esta é o conteúdo da história, ela tivamente também ao espírito e à sua manifestação ativa,
se revela e se cria nela. Esse efetivo que se faz ser e se deve-se ter cuidado para não se deixar perder pelo zelo —
conhece por si tal como era em si só pode, portanto, se que parte de um bom sentimento — de um conhecimen­

Iit
•li
compreender conforme a finalidade. Ao falar, aliás, da
conciliação a ser operada entre o ponto de vista da ne­
cessidade e o da providência divina, Hegel se apoia so­
bre a idéia da liberdade do Espírito. Por isso também, ao
contrário de todo determinismo no qual a necessidade
to racional, em querer mostrar como necessános ou,
como se costuma dizer, construir a priün, as apanções às
quais pertence o caráter da contingência. Assim, por
exemplo, na linguagem, embora esta seja de certo modo o
corpo do pensamento, o acaso também desempenha deci­
didamente um papel bem definitivo, e o^mesmo acontece
exterior se diz, de maneira intemporal, de antemão, a com as formações do direito, da arte etc.
necessidade da história só se diz posteriormente. Tam­
bém em Hegel é preciso saber esperar, e "o pássaro de Entretanto, todas as produções do espírito teste­
,1
Minerva só voa ao cair da tarde". O filósofo não tem munham justamente uma transfiguração dessa contin-

120 121
4. "Über die Konstruktion in der Philosophie", publicado no
gência na necessidade interior da criação. Diante da im­ mesmo Jornal Critico de Filosofia, t. I, 3.° caderno, p. 26-62, da
potência da natureza,50 o poder do espírito faz de cada edição de 1802 e republicado nas p. 277-94 das G.W de Hegel,
obra um monumento único, insubstituível e necessário,
vol. 4, Meiner Verlag.
da necessidade da liberdade. Enquanto a natureza se 5. É sabido que o próprio Kant, nos Princípios metafísicos da
desperdiça em múltiplas espécies de "papagaios" ou de natureza, tentou uma construção do conceito de matéria a
"verônicas" que a ilustram de maneira indiferente, a in­ partir das forças opostas de atração e repulsão. Trata-se, no
entanto, de algo derivado que se situa entre a reflexão sobre
dividualidade da obra espiritual cintila para sempre com
os princípios do entendimento puro e a física empírica. Essa
o brilho que lhe confere o espírito que nela aparece. construção do conceito de matéria não é de modo algum assi­
No que concerne, portanto, a esses dois campos milável à construção em matemática, como se o próprio Kant
do espírito e da natureza, e das modalidades que aí rei­ ultrapassasse suas próprias proibições. Não se trata, com efei­
nam, trata-se, na verdade, para Hegel, de uma lei única to, de um método de prova, mas apenas de um meio para
que confere aqui necessidade e ali contingência. É a lei tomar os conceitos mais acessíveis à intuição. Nem por isso os
da liberdade. Essa liberdade que se cria na história, onde pós-kantianos deixaram de ver nisso alguma coisa de muito
o espírito se retoma e se encontra, é também a que dei­ interessante e que, mais uma vez, leva a ver para além da car­
ta, no espírito do kantismo, o convite a superá-lo. As aprecia­
xa passar livremente o outro fora dela e deixa que a con­
fI ções de Schelling e de Hegel tendem, aliás, a fazer ressaltar o
tingência da natureza seja. Mas, enquanto esse outro,
caráter insuficiente dessa construção derivada e o empirismo
deixado a si mesmo, sucumbe na falta de ser em si e pode dessas determinações. Sobre isso, ler o excelente artigo de A.
até mesmo escapar à dedução, o sujeito se deduz, pois ele Stanguennec, in Archives de Phhilosophie, julho-setembro, 1985. _
se cria no outro e se encontra em si. Transparente ao espí­ "Genèse et structure d’une remarque critique de Hegel.
rito que o pensa, pois ele se pensa nele, o Espírito do mun­ 6. Schellings Werke, Primeiro esboço de um sistema de Filosofia da
do é então verdadeiramente livre, livre porque ele se faz e 1927, Ed.
Natureza, Beck e Oldenburg Verlag, Munique,

!
i se pensa nisso. O Espírito é o único a poder, com efeito,
fazer-se o que é, ou seja, Pensamento. Mas ao se pensar,
ele pensa também o mundo, ato puro de si e de todo o
Schrõter, t. II, p.spekulative
7. Zeitschriftfur 20. Physik, t. II, l.° caderno, p. 134.
8. Hegel, Differenzschrift, G.W, vol. 4, p. 65, trad. Méry, p. 141.
9. Schellings Werke, Parte geral da filosofia da arte, t. III, p. 406.
resto. Assim a dialética, como escreve B. Bourgeois,51 é "o
outro nome da liberdade." É esta que precisamos saber 11. Ibid.,
10. p. 460.
Fenomenologia do espirito, Aubier-Montaigne, Paris, trad.
reconhecer, e a dedução também se faz então criação.

Hyppolite, 1.1, p. 16.
12. Ibid., p. 18.
NotOS
li’
13. Ibid. págs. 43-44.
14 Ibid. p. 15.
1. Prefácio aos Princípios da filosofia do direito, Vrin, Paris, 15 Ibid. p. 47.
li 1975, trad. Derethé, p. 55. 16. Ibid., t. II, p. 308.
2. In Hegel im Kontext, Surhkamp Verlag, 1975, p. 157-86. Tra­ 17. Ibid., t. I, p. 45.
dução no prelo da editora Vrin, pelo mesmo tradutor. 18. Ibid., p. 36.
3. Que se lembre aqui do que disse Schelling a Hegel: "Eu me 19. Ibid., p. 37.
tomei espinosista!" 20. Ibid., p. 37-8.

123
122
I •!
•:

21. Ibid., p. 41. 47. Ibid., p. 581.
48. Idem.
i 22. Schelling, em compensação, não se preocupa com essa
destruição real e insiste cada vez mais sobre um mundo de
idéias intemporais.
49. Ibid., p. 579.
50. Sobre isso Henrich lembra, em seu já citado artigo, a se­
guinte anedota: como um belo dia um estudante lhe fazia ob­
23. Ciência da lógica, A doutrina da essência, Aubier-Montaigne, servar que na América do Sul havia uma planta que não cor­
1
trad. Labarrière, p. 272.
respondia a seu conceito de planta, Hegel se contenta em
24. Provas da existência de Deus, Sãmtliche Werke, Fromman responder que isso era uma grande pena para a natureza! (He­
Verlag, Stuttgart, 1968, éd. Glockner, t. XVI, Filosofia da reli­ gel im Kontext, p. 167-8.) Hegel queria simplesmente indicar
::
gião 2, p. 434.
com isso a insuficiência ontológica da natureza.
25. Ibid., t. XVI, p. 468. 51. "Dialectique et strueture dans la philosophie de Hegel", in
i 26. Ibid., p. 469.
,i Revue Internationale de Philosophie, n.° 139-140, p. 182.
27. Idem.
28. Ibid., p. 470. Adotamos aqui, conforme o modelo de P. J.
Labarrière, o neologismo de sursumer para traduzir aufheben.
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29. Ibid., p. 471. SBC/ '- C ’!USP
30. G. Schmidt: Das Spiel der Modalitãten und die Macht der Not- seçsoi '7
wendigkeit, in Zeitschríft Jur Philosophische Forschung, 1963, vol. AQUISIÇAO c/c^se<f/
17, caderno 3, p. 364-84. — •L0R I
I 31. Para tudo isso cf. Ciência da lógica, trad. Labarrièrre, t. II, p.
227 ss.
32. Artigo citado p. 373. — ..... í TOMBO [féGJSO;
33. É conhecida, a esse propósito, a observação de Hegel so­
bre a cisão originária da qual testemunha o juízo (Urteil), ou
ainda a famosa fórmula segundo a qual a história do mundo
(Weltgeschichte) é seu juízo final (Weltgericht).
34. Fenomenologia, trad. citada, 1.1, p. 86.
35. Enciclopédia das ciências filosóficas, I, Lógica, trad. Bour-
| geois, p. 579.
36. Sistema da filosofia (Enciclopédia), Filosofia da Natureza, S.
W, éd. Glockner, vol. 9, § 247, p. 49.
37. Ibid., § 250, p. 62-3.
38. Idem.
39. Idem'
40. Enciclopédia das ciênciasfilosóficas, trad. Bourgeois, p. 398-9.
41. ibid., § 148, p. 398.
' t 42. A razão na história, trad. Papaianou, p. 48.
43. Enciclopédia das ciênciasfilosóficas, trad. Bourgeois, p. 584.
II 44. Idem.
45. Ibid., p. 585-6.
46. Ibid., p. 589.
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O Filósofo surpreende o homem comum ao que- E
rer compreender o mundo no qual este se conten- $
ta em viver. Porém, quando ele diz, além disso, que '
é preciso compreender tudo ou compreender o I
Todo, o entendimento limitado fica escandalizado 1
e não pode suportar tal pretensão. O debate tem !
por objeto a contingência, o que é, mas que pode- 'j
ria também não ser, e logo não será mais. Onde 'I
,está a razãó de ser do que não é senão razão? Os I
exemplos podem ser facilmente evocados para se |
zombar do filósofo, e o senso comum fica nisso. I
Um de seus porta-vozes, chamado Krug, lançou jj
í assim um desafio à filosofia idealista: que deduza,
pois, a pena com a qual escreve! Hegel aceita o t
}
desafio e mostra a inanidade dos pedidos de um
certo “senso comum”, que não passa, na verdade,
de vulgar. Mas para além da anedota, anuncia-se
um pensamento, provavelmente o único, que pode
compreender a contingência em toda sua
radicalidade, ao dar lugar em si ao Outro de si-
mesmo. Assim é a dialética , a da contingência.
I
J.M.L

Jean-Marie Lardic nasceu em 1958 e é profes­


sor “agregé” de filosofia. Dedica-se há vários anos
ao estudo do idealismo alemão , notadamente da
lógica hegeliana. Ensina atualmente em Bonn.

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PAZ E TERRA

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ISBN 85-219-0058-9

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