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PRÉ-SOCRÂTICA'
INTRODUÇÃO À "FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA”
Coleção C Á T E D R A
coordenada por G ABR IELE CORNELLI
PAULUS
Título original: Introduction á la philosophic présocratique
© Presses Universitaires de France, 2006
ISBN 978 2130556633
Tradução: Miriam Campotina Diniz Peixoto
Revisão Técnico-dentífica: G abride C om dli
Direção editorial: Claudiano Avelino dos Santos
Assistente editorial: Jacqueline Mendes Fontes
Diagramação: Ana Lúcia Peifoncio
Revisão: IranÜdo Bezerra Lopes
Thiago Augusto Dias de Oliveira
Capa: M arcdo Cantpanhd
Impressão e acabamento: PAULUS
Laks, André
Introdução à “filosofia pré-socrática” / André Laks; [tradução Miriam Campolina Diniz Peixoto].
- São Paulo, Paulus, 2013. - (Coleção cátedra / coordenada por Gabriele Comelli)
Bibliografia.
ISBN 978-85-349-3580-7
1. Filosofia - História 2. Filosofia antiga 3. Pré-socráticos I. Comelli, Gabriele. II. Título. ΠΙ. Série.
12-13212 CDD-182
1* edição, 2013
©PAULUS-2 0 1 3
Rua Francisco Cruz, 229 · 04117-091 · São Paulo (Brasil)
Fax (11) 5579-3627 · Tel. (11) 5087-3700
www.paulus.com.br · editorial@paulus.com.br
ISBN 978-85-349-3580-7
SUMARIO
APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO........ 7
APRESENTAÇÃO.................................... 11
Filosofia....................................................... 59
Racionalidade............................................. 83
Origens........................................................ 103
Gabriele Cornelli
D i r e t o r d a C o le ç ã o C á te d ra
C o o rd e n a d o r d a C á te d r a U N E S C O A rch ai
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sta introdução à "filosofia pré-socrática" não tem por ob
jetivo apresentar os diferentes pensadores que nos acos
tumamos a reunir sob a denominação de filósofos pré-socráticos
-p a ra não citar senão os mais conhecidos, Anaximandro, Parmê-
nides, Heráclito, Anaxágoras, Empédodes, Demócrito ou Protá-
goras. Não que eles não venham a ser mencionados. Como falar
dos Pré-Socráticos, ou mesmo dos “Pré-Socráticos”, sem falar de
Pré-Socráticos? Mas eles são aqui considerados coletivamente.
Esta abordagem me pareceu com o uma prévia da interpretação.
Ao longo de minhas pesquisas exegéticas concernentes aos auto
res particulares, eu, com efeito, fui constantemente reconduzido
ao problema da unidade do pensamento pré-socrático e da clas
sificação dos pensadores a esse relacionados. Aqueles que nós
nomeamos Pré-Socráticos não se concebiam com o tais, por uma
razão ainda mais radical segundo a qual os neoplatônicos não se
consideravam tampouco com o neoplatônicos: Sócrates não era
para eles uma referência, no máximo um irm ão caçula, ou mes
mo um contemporâneo. E não foi, além disso, senão mais tarde,
ao final do período que abarcamos sob a denominação de “filo
sofia pré-socrática”, que eles com eçaram a ser designados com o
"filósofos". Mas se os filósofos pré-socráticos não são filósofos
e pré-socráticos senão retroativamente, convém que nos inter
roguemos sobre a maneira pela qual eles se tornaram tais. Para
pôr em evidência a construção, certam ente, mas também para
se interrogar sobre sua possível legitimidade (razão pela qual eu
recuso o term o “invenção”, além do mais hoje em dia galvaniza
do). A importância da questão se deve evidentemente ao fato de
que, quando nós falamos dos filósofos pré-socráticos, é sobre as
origens da filosofia grega, e por conseguinte ocidental, que nós
falamos. O livro parte, pois, das questões tipológicas ligadas ao
emprego do sintagma "filosofia pré-socrática”, e do que se en
contra em jogo sob essa denominação, para problematizar, em
seguida, a questão mesma das "origens” e da “racionalidade”.
Ele se conclui com a confrontação de dois modelos de historio
grafia filosófica, provenientes, um deles, da tradição fenomeno-
lógica (Gadamer), e o outro, da tradição radonalista (Cassirer).
Se minha preferência se volta claramente para esse último, não
sugiro aqui nenhuma abordagem que seja imune às críticas que
se podem dirigir a cada um deles. Esta breve introdução, que
tem em vista preparar o terreno, e que permanece programáti-
ca, antecede uma outra, que trataria dos recursos e dos limites
da filologia nesta matéria, e desembocaria na análise de posições
individualizadas.1
As remissões aos fragmentos dos autores pré-socráticos são
aquelas da edição de referência (H. Diels e W. Kranz, D ie Frag
mente der Vorsokratiker, 6a ed., Berlim, 1951), cuja numeração é
reproduzida em todas as traduções disponíveis. Para suavizar a
grafia, eu não indiquei o número que o autor recebe em Diels,1
/
I r'
é uma coação moderna. A pri-
meira ocorrência identificada até então figura em um
manual de história universal da filosofia publicado em 1788 por
J.-A. Eberhard (o destinatário de uma famosa carta de Kant), do
qual uma seção se intitul^ "Filosofia pré-socrática” (“Vorsokratis-
che Philosophie”).j/M as á ideia de que exista uma rupm tajnaior
entre Sócrates e o que lhe precedeu rem onta à Antiguidade. É
indispensável, para compreender os debates modernos que se
desenrolaram em tom o dos Pré-Socráticos, de rem ontar aos an
tigos pré-socráticos, que eu proponho chamar, por convenção,
"pré-socráticos” (sem maiúscula e com um hífen), para distingui-
-los da categoria historiográfica que eles contribuíram a forjar,
mas na qual eles não se deixam inteiramente^ubsumir.jSe incon
testáveis similitudes fazem dos antigos “pré-socráticos” os ances
trais naturais dos nossos modernos Pré-Socráticos, as diferenças
entre uns e outros não são, com efeito, menos importantes, em
particular pela natureza das questões das quais eles foram res
pectivamente objetp.
— A Antiguidade conheceu duas maneiras de conceber a linha
divisória entre o antes e o depois de Sócrates: ou Sócrates aban
donou uma filosofia da natureza em proveito de uma filosofia do
homem (é a perspectiva que eu chamarei socrático-dceroniana,
1Fédon, 96 a.
«a
Introdução à " filosofia pré -socrática”
* Fr. 910, Snell. Platão fez alusão a esse debate n o Górgias, por ocasião do confronto
entre Sócrates e C álides (484 e, 485 e, 489 e). Sobre a proveniência do fragm ento, ver
Kambitsis, 1972, p. 130. A peça é geralm ente datada dos anos 410 (Kam bitsis, 1972,
X X X I e s.). Jo u an e Van Looy, 2002, p. 220s. D efendem , com base em considerações
m étricas, um a data um pouco mais alta, en tre 437 e 419.
7 D issoi L ogoi, § 8 ,1 . E u m e atenh o à datação tradicional desse texto. Bum yeat, 1998,
sugere que se trata de u m exercício pirrônico, logo da segunda m etade do século IV
I _ Introdução à " filosofia pré -socratica —
<»
Distingue-se muito bem as etapas que, ao term o de um pro
cesso de cristalização rápida, viriamja transformar os autores de
^ tra ta d o s sobre “a natureza de todas as coisas” em "naturalistas”
ou "físicos” (physikoi).yX enofonte, em uma passagem dos Memo-
ráveis que faz eco àquela do Fédon, recorre ainda a uma fórmula
circunstanciada quando, no contexto de uma defesa de Sócrates,
à qual voltaremos logo mais, sustenta que "Sócrates nunca se
nrypfiva m m n a mainr parte dos homens, dú. tMtureZã dã totali
dade das coisas (pari tês tôn pantôn phuseôs), examinando o que é o
que os estudiosos denominavam 'mundo' (hopôs ho kaloumenos
hupo tôn sophistôn kosmos ékhei), e por quais jiqcessidades cada
um dos fenômenos celestes vem a ser”.9 No Listas de Platão, a
menção da^totãEdãdè^ figura (nomeada porjouiroutermo^feo-
lon, do qual o grego dispõe para designar cfconiunto das coisas^>
mas dissociada da "natureza”: os rfsábios”, que sustentam, com
Homero, “que é necessário que o semelhante seja o amigo do
semelhante”, são apresentados com o "falando e escrevendo so
bre a natureza e-snhre. n tndo” (hoi peri phuseôs te kai tou holou
dialegomenoi kai graphem es).1? M^s depois do Fédon, a referência
à natureza tende a se tornar autônoma. Assim, Sócrates se inter
roga no Filebo:
u As referências podem ser encontradas n o index da edição Bonitz (hot p eri phu seos,
838 b 26 e s.; phu siologoi, 835 b 40 e s.; h oi p h u siko i, 835 b 3 e s.).
13É o sentido do título de Kahn, 1994 (1960): A naxim ander an d th e O rigins o f G reek
Cosm ology. T em os todas as razões para pensar que o em preendim ento de Tales não
apresentava esse caráter sistem ático.
logia e uma fisiologia (ria acepção moderna do term o)] poden
do eventualmente se prolongaFim uma histona da civilização
humana.14
Desse conjunto, certos textos antigos retêm essencialmente
o aspecto cosmológico, e falam de "m eteorologia” e de "meteo-
rólogos”: os meteora.' que antes que a distinção aristotélica entre
uma região supralunar e uma região infralunar não tendesse a
lhes confinar ao domínio único dos fenômenos "meteorológicos”
(e geológicos), designavam todo fenômeno que se produzia “nas
alturas”, representando por sinédoque o todo da enquete sobre a
n atu reza^ a cena inicial do Protagoras de Platão, o auditório di
rige ao sofista Hípias “certas questões astronômicas a respeito da
natureza e das alturas”.15 E é unicamente em relação às “alturas”
que o autor do tratado hipocrático Das carnes (que sobre esse pon
to se opõe ao autor da Antiga m edicina) tinha demarcado o campo
da medicina com relação àquele da investigação dos naturalistas:
Eu não preciso falar das alturas (peri ton meteonm) senão o sufi
ciente para mostrar, a propósito do homem e dos outros viven-
tes, como eles nasceram e se formaram, o que é a alma, o que é a
saúde e a doença, o que é o mal e o bem no homem, e por quais
razões ele morre.16
✓
Mas é claro que a série de questões que Sócrates enumera
no Féãon, que teriam suscitado a paixão de seus anos de juventu
de, provém também das matérias abordadas pelos naturalistas,
no quadro de um program a totalizante:
17 96 b 1 - c 1.
“ Eu adoto aqui a cronologia defendida por Mansfeld, 1979 e 1980 (cf. respectiva
m ente, p. 55s. e 87s.).
quem se visava Péricles, foi sua primeira vítima no ano seguinte,
por ter sustentado que os astros não passavam de pedras ígne-
_as^ Diógenes de Apolônia parece ter sido, também, indesejável
em Atenas, onde sua doutrina parece ter gozado de um grande
sucesso, e não é impossível que ele tenha sido objeto de acusa
ção, alguns anos depois de A naxágoras.^Ò ra, por mais curio
so que isso possa parecer, pelo tanto que isso não se enquadra
na imagem que nós fazemos de Sócrates com base na Apologia
2 è Sócrates de Platão e nos memoráveis de Xenotonte,/Sócrates
era suspeito de compartilhar a curiosidade dos naturalistas so
bre os .mecanismos do universo e, portanto, sua impiedade. O
documento-chave a esse respeito é constituído pelas Nuvens de
Aristófanes, representadas em 423 a.C ., que a Apologia de Sócra
tes denuncia explicitamente com o o primeiro ataque via de re-
gra contra Sócrates, aproximadamente 25 anos antes do proces
so de 399 .2
21
0
% De fato, as Nuvens, antecipando os dois term os da acusação
a que Sócrates tinha que responder - a corrupção da juventude
e a^introdução de deuses desconhecidos da cidade - , apresen
tavam um Sócrates indissodavelmente "sofista”, mostrando-se
capaz de fazer do argumento “mais fraco” o argumento “mais
forte", e “naturalista", portando através de um cesto suspenso
fragmentos parodicamente arrancados à doutrina de Diógenes
de Apolônia, que afirmava que o ar das alturas era dotado de
uma inteligência tanto maior quanto mais seco ele era .22
A Apologia denuncia o amálgama com o o fruto de uma pura
calúnia: ninguém viu Sócrates se ocupar “do que está sob a terra
e no céu ”.23 Os Memoráveis de Xenofonte o repetem:
20 Nossa única fonte de inform ação é Diógenes L aérdo, IX , 57. O s fotos são discu
tíveis (ver Laks, 1983, p. 76s.).
21 Platão, A pologia d e S ócrates, 18 a-b, 19 a-c.
22 N uvens, 225-236. R em onta a Diels, 1969 (1881), a identificação da linguagem do
Sócrates das N uvens co m aquela de D iógenes. Ver, tam bém , Vander W aerdt, 1 9 9 4 ,61s.
2319 c. Cf. Nuvens, 180-195.
Ninguém viu Sócrates agir ou o ouviu dizer qualquer coisa de
ímpio e de irreligioso. Pois ele nunca se ocupava, como a maio
ria, da natureza de todas as coisas, examinando o que disso é o
que os sábios chamavam a "ordem do mundo" fkosmos), e por
quais necessidades cada um dos fenômenos celestes advêm.24
« 1, 1, 11 .
25D iógenes L aérdo, 1 ,18; II, 20-21. Cf. tam bém in fra, p. 30, n. 1.
vez destinado a facilitar a passagem).“ Platão era perfeitamente
capaz de construir uma ficção biográfica para as necessidades da
causa.^^or outro lado, talvez a ideia de um Sócrates físico não
seja desprovida de plausibilidade, não somente de um ponto de
vista intrínseco (não com eçamos todos nós de alguma parte an
tes de nos separarmos dela?), mas também porque ela permite
compreender que Aristófanes podería ter atribuído a Sócrates a
doutrina de Diógenes, mesmo se em 423 Sócrates, então com
46 anos e já célebre pelo que ele era, não mais se interessava
. çertam ente por especular sobre a c a n s a d o s f p n A m ^ n ™ naturafr
O importante, do pqnto de vista da historicizacão dos pré-socrá-
ticos, é, em todo caso, que, se o Sócrates do Fédon não pratica
a especulação física, não é somente porque isso lhe é estranho,
mas também e sobretudo porque ele já se tinha dessa afastado.
r^=^As duas épocas da história do pensamento que distinguiram as
^'histórias da filosofia, antes de Sócrates e depois dele, são aptes de
mais nada duas épocas da vida de um só e mesmo Sócrates, que
foi naturalista antes de ser ele p ró p rio / 7__
O uso quase historiográfico dos Pré-Socráticos, dissociado
de considerações biográficas, é pela primeira vez plenamente
atestado no prólogo do 5 o livro das Tusculanas de Cícero, que,
em razão de sua grande difusão (e aparente simplicidade), foi
sem dúvida o texto historicamente mais influente para a consti
tuição dq, conceito m oderno de Pré-Socráticós·"
=a^ Esse prólogo contém um vibrante elogio da filosofia, en
quanto filosofia prática. Não somente a filosofia sustenta que
a virtude basta à felicidade (uma asserção da qual Cícero tinha
total razão para apreciar os méritos, na situação particularmen
te difícil em que ele se encontrava no m om ento da redação da
obrá^m as ela está, também, na origem do conjunto dos bene
fícios do qual usufrui a humanidade. É, com efeito, à filosofia
“ Diógenes L aérd o, II, 16. Vander W aerdt, 1994, p. 61s., baseando-se em Aristófa
nes, adm ite que Sócrates foi “diogeniano".
17 U m exem plo célebre é o en con tro que ele prom ove entre um velho Parm enides
e um jov em Sócrates n o início do P arm enides, 126 c.
que se deve a formação das cidades, com todos os liames sociais,
culturais, legais e morais que a vida política supõe.28 Não há se
não os incultos para ignorar que “aqueles que pela primeira vez
organizaram a vida dos homens eram filósofos".29 A história da
filosofia, em uma tal perspectiva, é coextensiva com a história da
civilização.
^ ' Cicêrõ distingue três etapas. Quando da fase primitiva do
1 desenvolvimento das sociedades, os filósofos existem, mas sob
outro nome, aquele de^Çsábios",) Esses são não somente os “Sete
sábios" ^àos quais existia uma lista tradicional, e mais ou menos
fixa, mas também figuras míticas ou quase míticas tais como
Ulisses, Nestor, Atlas, Prometeu, Cefeu ou, ainda, Licurgo. É a
‘Q^itágõrãs-que é atribuído a alcunha de ter sido o primeiro a intro-
duzir o term o “filosofia", por cuja via a sabedoria adquire outro
^ru m o /Como Pitágoras o explica ao tirano Leon, intrigado pelo
neologismo, enquanto os sábios se encontram engajados em sua
atividade civilizadora, os filósofos se aplicam à “teoria”, observan-
do por observar, sem ser guiados por nenhum motivo que não
seja a satisfação que essa observação lhes proporciona^Á. analo
gia é célebre: do mesmo modo que uma prova esportiva reúne,
além dos atletas que lutam pela glória e dos mercadores e clien
tes atraídos pelo comércio, os espectadores que vieram admirar
a competição, existe também, nesta vida, além dos ambiciosos e
dos negociantes, o pequeno grupo daqueles que, “tomando todo
o resto por nada, examinam cuidadosainente a natureza das coi
sas": são eles os puros "teóricos" aos quais chamam “filósofos”.30
Na apresentação que deles nos faz Cícero, Pitágoras alia
ainda em si “sabedoria” ^"filosofia”: ele não forneceu antes a
Leon a explicação requerida que ele foi legislar na Grande Gré-
“ T usculanas, V, 5.
° T usculanas, V, 6 .
\^ ( í í c ero7~TusãdànãSy V, 3, cf. D iogenes L aérd o 1 , 12 ( = Heráclides Pôntico, fr. 87,
' W ehrli). C íce ro não se refere aqui à distinção platônica entre um a “sabedoria” que
seria o privilégio dos deuses e um a “aspiração à sabedoria” (ou filosofia), que seria
assunto unicam ente dos hom ens.
áa^Mas, por natureza, a atividade teórica tem vocação para a ex
clusividade/Ò s filósofos posteriores a Pitágoras não são mais do
que homens ?áhir>g, rfegrU <»nfãn p«aranhA< à* qi»»<;trn»g práfu-ag-
É a Sócrates que caberá de os reintroduzir no campo da filosofia
que ele conduz, assim, segundo uma fórmula célebre, "do céu
para a terra” onde ela se encontrava enraizada em sua origem,
mas da qual ela tinha nesse ínterim se afastado.
------Embora Cícero não hesite em identificar o conjunto dos
filósofos p0 s^ajMejj(aais\ e pré-socráticos a meteorologistas, ou
mesmo a astrônomos, a periodização su geracerto alargamento
do conceito deJjiatureza”. Com efeito, por mais numerosos que
sejam, entre os pensS3?5res anteriores a Sócrates, aqueles que
correspondem às características da "investigação sobre a natu
reza^, isso não é o caso de rodos Nem Parmenides ou (ainda
menos) seus discípulos Melisso e Zenão, nem Heráclito são na
tural™^ « ηη s<»nriHr> acima: em graus diversos, e cada
um à sua maneira, seu propósito é muito mais de recolocar çm
questão a legitimidade de tal investigaçãq^ n tretan to . o concei
to de ^natureza” é suficientemente complexo para que pensado
res que não se dedicavam de modo algum, ou não essenrialmen-
te, am vestigação sobre a natureza" pudessem jser considerados
com o "naturãlíStas’\^Xenofonte já explicava que uma das razões
da hostilidade de Sócrates a respeito dos "naturalistas” se devia
.^às incertezas das quais seu pretenso saber estava carregado, e so
bre as quais testemunhava sua divergência de posição quanto à
questão de saber qual é o número dos seres^JOra, de maneira à pri
meira vista surpreendente^são aqui considerados com o "natura-
listas” não somente aqueles que praticam a investig^ãojob rea
L natureza, mas também aqueles que negam a existência de todo
movimento, e logo dos processos "naturais” da geração e da cor-31
“ Fédon, 9 9 c-d. S e não há vento, rem arem os (segundo a interpretação que disso
oferece M enandro, fr. 241, Knock). N a falta de fim , a form a.
fala do “que nasce e perece”37)» não é competente na matéria.
—Longe de explicitar a causa (aitioti) dos processos de geração e de
corrupção, ela não faz senão tratar das condições materiais que
são necessárias à sua efetiVàçao, o que Platão denomina tecnica-
_m rnt? ít “afinnnr nu "causas coadjuvantes” (sunaitia ).38
De fato, somente a causa que Aristóteles denominará “aquilo èm
vista do que” (a causa final) responde ao que Sócrates compreen
de aqui sob o nome de causa. Eis por que ele depositou por um
momento suas esperanças em ^ g axágoraS) o único naturalista
a se distinguir, no texto dd Fédon, da massa anônima dos outros
por ter sustentado queÇlf^ inteligência organizou o mundo e é
causa de todas as coisas”.39 O problema é que essa^ãfirmaçãoT
" e m Ãnaxágoras, não é, na leitura que dela faz Sócrates, seguida
de nenhum efeito, se é verdade que a formação do muhdo é aí
explicada por aquilo que Sócrates, servindo-se de um plural de
desdém, chama de “ares, éteres, águas, e outras numerosas enti
dades estranhas”.40
. A segunda navegação, voltada “para a investigação da
causa”,41 não leva, entretanto, diretamente à causa
toma a via de um procedimento hipotético que se apoia em uma
teoria da causa formal (as Formas como causa) y ó argumento
através do qual Sócrates estabelecerá, para finalmente responder
a Cebes, a incorruptibilidade da alma, consiste em dizer que nem
uma Forma ela mesma, com o a frieza, nem alguma entidade de
pendente da presença de tal Forma, como a neve, não poderíam
acolher nelas uma Forma contrária (nesse caso, o calor). De duas
coisas uma: elas deverão “seja perecer, seja se retirar”: perecer,
se a entidade em questão é perecível, como a neve; retirar-se, se
a entidade em questão é por essência ou definição subtraída da
37 F idon , 96 a.
33 Tim eu, 46 c-d.
39 F édon , 97 c.
90 F id on , 98 c.
41 F édon , 99 d.
m orte. Ora, essa última hipótese se aplica à vida, cujo conceito,
segundo Sócrates, implica analiticamente a “imortalidade”. A
alma, que é dela o princípio, será ela também imortal, e portan
to "incorruptíver.
------ Esse argumento, que podemos chamar "biológico” (como
se fala do argumento ontológico), invoca bem, em uma de suas
etapas, exemplo de comportamento prático, derivado da “ética”:
se Sócrates permanece na prisão não é por causa de seus ossos
e de seus músculos, que não são senão condições necessárias,
-mas porque ele pensa que isso é um bem ^JO emprego desses
_filosofemas distintivamente platônicos faz que a passagem dos
pré-socráticos a Sócrates coincida com aquela _de um Sócrates
puramente socrático a um Sócrates distintamente platônico .43
O argumento principal, ao qual esse exemplo está subordina
do, não diz respeito aos afazeres humanos. Ele esboça antes os
contornos de uma nova física, cuja marca distintiva seria de ser
teleologicamente estruturada.44No horizonte da “segunda nave
gação” do Fédon se situa o Timeu, que, restabelecendo o víncu
lo com o projeto cosmológico dos "naturalistas”, constitui um
momento decisivo da “naturalização” do Sócrates da Apologia.
O m ito escatológico final do Fédon, com a descrição geográfico-
-cosmológica do mundo em que as almas se repartem depois da
m orte, incluindo uma hidrologia à qual Aristóteles pode se refe
rir em suas M eteorológicas,4Ϊ é uma perfeita expressão da "natura
lização” platônica de Sócrates.
Aristóteles não seguiu Platão nesta via, que apaga indubi
tavelmente o que Sócrates tinha de distinto em proveito de uma
“ F édon , 98 e.
43 Sobre a platonização de Sócrates n o relato autobiográfico do Fédon, ver Ba-
but, 1978.
44A relação que a causa form al pode entreter com a causalidade final, cuja exigência
tinha sido form ulada na crítica a Anaxágoras, não é abordada. Isso não é naturalm ente
u m acaso: a questão é um a das cruzes do platonism o. Mas as duas causalidades, for
m al e final, estarão, co m o conceito de contrariedade, n o centro da Física aristotélica.
45M eteorológicas, 355 b 33 - 356 a 33.
^jrob lem ática que não é a sua.| Ele não retoma dele tampouco a
ideia de que os pré-socráticos e Sócrates estão engajados em uma
mesma pesquisa, cujo objeto é, não o que nasce e perece, mas,
mais geralmente, a i n v e s t i g a ç ã o d a s r a u s a s . E justamente o que
lhes vale o nome de/ "primeiros filósofos"/, ou mais exatamente
de^"primeiros a filosofar”, que Aristóteles lhes outorga no pri
meiro livro da M etafísica.44*46
Este livro, que se abre com uma caracterização do saber su
perior com o "sabedoria”, é, a partir do capítulo 3, consagrado
a identificar, entre os predecessores de Aristóteles ("os primei
ros filósofos", mas também Sócrates e Platão), a emergência das
quatro causas cuja Física tinha apresentado o quadro sistemático:
primeiramente a causa material, da qual Aristóteles se pergunta
se podemos ou não já atribuir a noção aos poetas e ao grupo dos
que ele designa com o "os teólogos” (os autores de teogonias,
com o Hesíodo ou os Órficos), depois, na ordem, a causa motriz,
que podemos "suspeitar” ter sido concebida por Hesíodo antes
mesmo que por Parmênides, a .causa fina], em Anaxágoras e Em
pedocles (cap. 3 e 4), e a causa formal nos Pitagóricos e Platão
(cap. 5 e 6). Em se tratando dos "primeiros filósofos”, trata-se
menos de descobertas que defántedpâcõés!) A causa final, em
Empédocles, chama-se ‘Amizade”; em Anaxágoras, ela está im
plicada pela função diretora do intelecto; a causa motriz, ainda
uma vez, chama-se 'Amor” em Hesíodo e em Parmênides. E os
l "corpos” mesmos que os físicos tomam com o princípios não são
senão a jprefiguracão do substrato e da potencialidade/E m uma
perspectiva, não existe,.de Tales até Platão, nenhuma solução
de continuidade.47 Mesmo mencionando que Sócrates “tratou
após um a dupla ram ificação n o nível de Sócrates, depois de Platão, a u m acadêm ico
(C litom aco), u m estoico (Crisipo) e um Peripatético (Teofrasto), enquanto a segunda
prossegue e m linha reta até Epicuro, é contestável. Mas é possível lhe conferir certa
legitim idade n o que concerne aos inícios, se, sem que se possa ser autorizado a fazê-
-lo p o r D iógenes L aérdo, restringindo-se a um a distribuição puram ente geográfica,
discem em -se através da oposição entre o Leste e o O este duas orientações intelectuais
distintas. Enquanto a reflexão dos milésios, na Jôn ia, tem co m o prim eiro quadro de re
ferência a explicação dos fenôm enos naturais, a grande G récia é, co m efeito, marcada
p o r discursos e práticas de tipo escatológico, inidático e m ístico.
54Diógenes L aérd o, 1,14.
” 1 ,18, que acrescenta: "e a partir de Z en ão de Eleia, a parte dialética". O prindpio
de cortespond ênd a entre divisão da filosofia e período de sua história não vale mais
nesse caso. A afirm ação se lê co m o um a correção im plídta: Sócrates não é o inventor
da dialética, m as, antes dele, Z enão.
MII, 16 e 2 0 e ss.
Eberhard, de uma "filosofia pré-socrática” confirma o fato, bem
atestado, aliás, de a historiografia moderna da filosofia antiga se
construir primeiraménte contra os esquemasjierdados de Dió;
jxenesjaérdo^considerando, certam ente, que o modelo_ricero-
nianõdesempenhou um papel decisivo nessa reconfiguração.
PRE-SOCRATICOS:
A CONSTELAÇÃO MODERNA
8 A prim eira edição é de 1903. A coletânea de Diels não podia senão se impor, con
tra aquela, m edíocre, de Mullach, publicada em 1860, cu jo título com pleto é de resto
revelador dos problem as que podia criar a flutuação pré-zelleriana da periodização:
Diels não são menos "inventores dos Pré-Socráticos” que Nietz
sche, a quem o título foi atribuído em razão do papel decisivo
que ele desempenhou na extraordinária prom oção filosófica e
intelectual da qual eles foram beneficiados no século XX.9
É verdade que Nietzsche, na tradição de Krug e de Kars
ten, preferiu por um tempo falar de "Pré-Platônicos”, ou mais
exatamente, conforme o título das Lições proferidas em Basiléia
ao longo do semestre do verão de 1872 (retomadas em 1873 e
em 1876), de "filósofos pré-platônicos”. A linha de demarcação
passa aqui entre dois tipos de filósofos, uns, até Sócrates inclu
sive, eram caracterizados, em virtude de um novo critério, pela
originalidade e pela “pureza” de sem esforço, imune à lógica do
compromisso, enquanto os outros, a partir de Platão, o são pelo
caráter “híbrido” e dialético, o que em Nietzsche também quer
dizer democrático, de sua filosofia.10 Foi preciso que a constru
ção que fazia de Sócrates o primeiro favorecedor da modernida
de otimista, em face de uma filosofia ainda posta sob a égide da
"tragédia”, prevalecesse nos anos 1875-1876 para que Sócrates
se tornasse novamente a verdadeira linha divisória, assegurando
pelo mesmo movimento aos Pré-Socráticos, desde então consi
derados com o os únicos "tiranos do espírito” autênticos, uma
vantagem que não devia mais ser desmentida.11
A interpretação de Nietzsche, quer se trate de Pré-Platô-
nicos, quer se trate de Pré-Socráticos, opera uma inversão com
16 Ver as duas lim inares a A F ilosofia n a época trágica dos G regos. E m A C ultura do
R enascim ento n a Itá lia (1860), J. Burckhardt consagra um a seção ao "Desenvolvim ento
do indivíduo". A G riechische K ulturgeschichte, professada a partir de 1880, confere um
papel central à categoria de "livre personalidade", m as sem m encionar inteiram ente
os Pré-Socráticos (cf. Laks, 2006).
17 R. W agner em B ayreuth, § 4. N ietzsche não diz "Parm ênides", mas "os eleatas”.
tragédia. Inversamente, a reforma filosoficamente iniciada por
Schopenhauer na esteira de Kant, e esteticamente perseguida
por Wagner, pretende pôr um term o à decadência cultural da
Alemanha wilhelmiana, restabelecendo a ligação com a concep
ção trágica à qual Sócrates, na ordem da filosofia, e Euiípedes,
na ordem do drama, puseram um term o. Compreende-se que
os Pré-Socráticos, à medida mesma que Sócrates deles se distan
ciou, estão desde então em posição de ser os modelos de uma
possível superação da modernidade que ele iniciou.
Essa primeira simetria supõe todavia uma outra, mais sutil.
Um aspecto essencial da análise nietzscheana é que a grandeza
da cidade grega, na própria época de seu m aior florescimento,
se desenrola em reação a uma tendência inerente à cultura gre
ga. É o que podemos nomear o motivo hölderliniano da análise
nietzscheana, mesmo se Nietzsche não pode conhecer a carta
a Böhlendorff (1801) em que Hölderlin renova as implicações
estéticas da rivalidade entre os Antigos e os Modernos fazendo
apelo à noção de "livre uso do próprio”. Em Hölderlin, os poetas
"hespéricos” não podem se igualar aos Gregos desenvolvendo o
que lhes é "propriamente nacional", mas, ao contrário, resistin
do, com o os próprios Gregos o fizeram: “Pois o mais difícil, diz
Hölderlin, é o livre uso do próprio”. Para Nietzsche, do mesmo
modo, os antigos filósofos “mostram a potência vital dessa cul
tura [a cultura grega], que engendra seus próprios corretivos".18
A noção de “corretivo”, que corresponde ao que Hölderlin cha
ma "resistência”, complica evidentemente a maneira pela qual
os pré-platônicos são chamados a servir de paradigma, pois o
que nós devemos corrigir não é evidentemente aquilo a que eles
tiveram que resistir.
A natureza do perigo tal que ele se apresentava aos gregos é
especificada em um dos fiagmentos de A Ciência e a sabedoria em
com bate (W issenschaft und W eisheit im Kampfe), que enumera a sé-
° Ver E cce H om o, 3 .
precedente de uma modernidade que se interroga sobre sua crise
e sobre suas falências. Nesse sentido, Nietzsche não terá somen
te sido "o inventor dos Pré-Socráticos”, mas a grande fonte de
inspiração dos autores heideggerianos.
Os Pré-Socráticos se beneficiaram, pois, da sinergia resul
tante de uma estranha aliança entre a ciência histórica, repre
sentada pelo par formado de Zeller e de Diels, e a implacável
crítica do método histórico que foi Nietzsche. A despeito des
se duplo fundamento, os escrúpulos, diversamente motivados,
que provocam o uso do term o “pré-socrático” são recorrentes
nos historiadores da filosofia grega, e mais geralmente da Gré
cia arcaica.
Se o term o incomoda, isso não se deve somente aos pro
blemas que suscita a referência a Sócrates, mas, também, à am
biguidade e às aplicações conceituais do prefixo. A ambiguidade
é dupla. Primeiramente, uma form ação em "pré-” sugere es
pontaneamente uma anterioridade cronológica, no ponto em
que se visa também, e talvez antes de mais nada (em virtude
' 1 da dimensão dpológica de toda periodização), uma caracteri-
* J-' ‘ : zação morfológica: alguns Pré-Socráticos, e não dos menores,
são contemporâneos de Sócrates, e mesmo de Platão - uma si-
h ;» multaneidade que adquire ainda mais relevo pelo fato de que
o desenvolvimento da filosofia pré-socrática se efetua em um
período notavelmente breve - um pouco mais de um século e
meio. No prefácio à 5a edição dos Fragmente der Vorsokratiker, da
qual ele preparou a revisão, W. Kranz teve o cuidado de subli
nhar que:
j
É significativo que essas predsões não tenham podido apro
var todos os escrúpulos. Sublinhamos, por exemplo, de bom
grado, a propósito do pitagórico Filolau, que ele "se situa na
fronteira do que se pode chamar Pré-Socrático”.2S De fato, uma
interpretação morfológica do term o "pré-socrático” não invalida
toda perspectiva cronológica. Uma forma de pensamento obso
leta não se mantém geralmente por longo tempo em uso. Uma
periodização pode bem não ser tomada estritamente pela crono
logia, e conhecer margens - poderiamos mesmo sustentar que
essas margens lhe são essenciais26- , ela não conserva dela menos
implicações temporais. Razão pela qual quando os Fragmente der
Vorsokratiker incluem Pitagóricos da época imperial entre os Pré-
-Socráticos, a pretexto de que eles se ligam à escola-mãe, certo
mal-estar é inevitável: os neopitagóricos se distinguem dos anti
gos por traços tipicamente pós-socráticos, e nesse caso acadêmi
cos.27 Se o autor anônimo do comentário alegórico descoberto
em Derveni em 1962, que traduz nos term os de uma cosmolo-
gia inspirada em Heráclito, Anaxágoras e Diogenes de Apolônia
uma narrativa teogônica da tradição órfica, bem escreveu por
volta do IV século a.C ., com o se tem boas razões para o pensar,
constitui já um notável fenômeno de histerose, marcando um li
mite além do qual o emprego do term o "pré-socrático” cessa de
ser plausível, ou exige o emprego de aspas. Além do mais, é pro
vável, em se tratando desse documento, que a histeriose possa
ser remetida a certa excentricidade geográfica: Derveni, na Ma
cedonia, não é nem Atenas, e nem mesmo um centro secundário
de atividade filosófica.28
A segunda fonte de ambiguidade do prefixo "pré-” é filosofi
camente mais importante. Na ordem temporal ainda, mas mais
idealmente, o “pré-” de “pré-socrático” sugere a ideia de "pre
paração”, de "antecipação”, ou mesmo de "inferioridade". Ele
“ Sobre o conceito de “época arcaica”, ver Heuss, 1946 e M ost, 1989. E m se tra
tando da história da filosofia, o term o “arcaico" é, po r exem plo, em pregado po r Hoff
m ann, 1947. Ver já em Reinhardt, 1916, p. 52.
M Mansfeld, 1987, p. 9s.
“ Long, 1999, p. 5-10, cf. p. 2 1, n. 33.
M Cf. o título d o livro clássico de B u m et, 1892, E arly G reek P hilosophy (a tradução
francesa diz, inexatam ente, U Aurore d e la ph ilosop h ic grecque).
j
A oposição entre "os Pré-Socrátícos” e “os primeiros filó
sofos” permanece tendenciosa, aos moldes de um tipo ideal. Ela
não deve ser enrijecida. O uso das denominações é mais irregular
que se poderia esperar, e o term o "Pré-Socráticos” permanece
de bom grado utilizado independentemente das representações
que ele tende a veicular. Isso não é devido somente ao fato de
que essas representações, em parte inconciliáveis (os Pré-Socráti
cos são antes o não socrático de Sócrates, ou a antecipação pré-
-aristotélica de Aristóteles?), neutralizando-se mutuamente, mas
também em razão de seus méritos próprios.
“Pré-Socrático” tem primeiramente a seu favor o fato de ser
de uso linguisticamente cômodo, seja com o epíteto, seja como
substantivo. Remetendo a um mesmo regime o conjunto dos
pensadores que precederam o incontestável evento intelectual e
espiritual que foi a aparição de Sócrates, o term o "Pré-Socrático”
ratifica uma cesura significante não somente no seio da história
do pensamento filosófico, mas, mais largamente, na história da
humanidade: a época moderna não hesitou em traçar um para
lelo entre Sócrates e o Cristo.37 Mas, a essa razão intelectual, é
preciso acrescentar outra, de ordem material, que mantém com
a primeira uma relação certa, embora difícil de precisar, e sobre
a qual talvez não se reflita o bastante.
O sentimento de que os “Pré-Socráticos” constituem uma
entidade dotada de certa homogeneidade é com efeito favore
cido pelo fato de que nenhum de seus escritos não nos é mais
acessível em sua integridade. Eles se distinguem por isso tanto de
Sócrates, que deixa o cuidado a outros de escrever em seu lugar,
quanto de Platão e de Aristóteles, cujas obras nos foram con
servadas, seja integralmente (no caso de Platão), seja em parte
(Aristóteles). Dos Pré-Socráticos, nós não lemos senão fragmen
tos - a palavra fragmentos devendo aqui ser tomada, com o em
“ "E m seu Sobre a n atu reza, que é o ún ico de seus escritos que chegou até m im ..."
(C om entário à F ísica d e A ristóteles, p. 151, 28s., D ieb ). Discute-se para saber qual bi
blioteca utilizava Sim plído. I. H adot, 1987, sustentou que não se tratava daquela da
Academ ia de Atenas, m as da biblioteca de H aran, ao longo do exílio na Pérsia (ver
prindpalm ente p. 19).
J
empreendidas para encontrá-lo não tenham chegado a bom
term o.39
Nenhuma obra "pré-socrática" nos chegou por intermédio
da tradição medieval. Na quase totalidade dos casos, o que nós
conhecemos delas é o que outros autores nos transmitiram, ci
taram , ou mais geralmente disseram, em seus próprios escritos.
Existem, é bem verdade, exceções. A tradição papirológica (que
representa ao lado da tradição medieval uma segunda forma
de tradição “direta”) por vezes enriqueceu, e continua a fazê-lo
de tempo em tempo, um corpus, o qual nós temos toda a razão
em pensar que é de outra maneira fechado. A descoberta em
Oxyrhyncus, no Egito, em 1916, de um papiro trazendo restos
de um tratado do sofista Antifonte causou ajusto titulo sensação.
Eu já mencionei o papiro de Derveni.40 Igualmente espetacular é
a publicação recente de novos fragmentos papirológicos de Em-
pédocles que esperaram para ser lidos e reconstruídos no início
do século nas vitrines do museu de Egiptologia de Strasbourg.41
Mas esses acréscimos, por instrutivos (e emocionantes) que se
jam , não mudam nada no caráter fundamentalmente fragmentá
rio do corpus, mesmo se, nesse caso, a fragmentação resulta não
da prática da citação, mas da fragilidade do suporte da escritura.
Outros grandes corpus da Antiguidade desapareceram,
principalmente - para nos atermos à filosofia - aqueles das es
colas helenísticas: estoicos, céticos, acadêmicos, epicureus. Vis
to de certa distância, essa desaparição não é uma simples obra
do acaso. Todas essas filosofias são filosofias de vencidos, que,
após terem por vezes se imposto - é, em particular, o caso do
estoicismo, que foi por certo tempo a koinê filosófica do Impé
rio - , acabaram finalmente por sucumbir à aliança do platonis-
mo e do aristotelismo. Acontece de certa maneira o mesmo com
" Sobre a presença de Em pédocles na época bizantina, ver Primavesi, 2002, p. 197-
201. Sobre o m anuscrito de Aurispa, ver Mansféld, 1994.
40 Ver supra.
41 Martin/Primavesi, 1999.
os Pré-Socráticos, a despeito - mas talvez também por causa - do
renovado interesse que lhes atribuíram as escolas helenísticas,
após a superação socrático-platônica, e a absorção aristotélica.
Mas, porque os limites cronológicos são, no seu caso, tão ní
tidos, e fortemente simbólicos - não se trata nada menos que
do "nascimento” da filosofia, de uma parte, e de Sócrates, de
outra - , é ainda mais difícil resistir ao sentimento que, com a
desaparição de seus escritos, é uma época da história do espírito
que foi devorada. De todo modo, sua sobrevivência sob forma
de^fragmentos, por mais contingente que ela seja, aparece como
um dos critérios o menos contestável de uma identidade de resto
problemática.
FILOSOFIA
59
taram , em uma perspectiva com frequência influenciada pela
abordagem antropológica, uma desaristotelização da própriajôr-
ma filosófica,4*em proveito de rearranjos classificatórios dos quais
alguns podem ser justificados - quando se sugere, por exemplo,
que a denominação de “sábios" conviría mais a figuras com o
Pitágoras, Heráclito ou Xenófanes que aquela de "filósofos" - ,
enquanto outros são mais contestáveis, quando se situam figuras
com o Parmênides ou Empédocles, purificados da racionalização
filosófica da qual eles teiiam sido vítimas, no domínio sulfuroso
da magia e das práticas inidáticas.s
A questão é de fato aquela da diferenciação da filosofia como
disciplina autônom ^^u reteda aqui dois aspectos, aquele mais
geral, da diferenciação entre mito (mythos) e razão (logos), e aque
le, mais específico, da diferenciação entre racionalidade científica
e racionalidade filosófica. Descreveu-se frequentemente a emer
gência e o desenvolvimento da racionalidade na Grécia como
uma saída fora do mito. Isso não põe nenhum problema parti
cular, se entendemos por isso que as primeiras manifestações da
filosofia grega se desprendem de narrativas com o a Teogonia de
Hesíodo, que existem boas razões para atribuí-la ao “mito”, en
quanto genealogia do conjunto do mundo dos deuses e dos ho
mens, o que não significa que tal atribuição não seja de sua parte
simplificadora, e, em certa medida, ela própria mítica: não é sem
razão que se considera que a filosofia começa com Hesíodo.6 Mas
a fórmula de uma passagem “do mito à razão” é, no mais das ve
zes, tomada como implicando, mais geralmente, uma aparição da
razão que poria fim, senão de fato pelo menos de direito, a todas
as formas de discurso mítico, reputado desde então como ultra
passado. Nessa última acepção, a fórmula tomou-se efetivamente
--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 63
O conto, ntythos ou logos, é primitivamente neutro em rela- !
ção à questão da verdade: ele poderá ser precisado, e a precisão ;
não parecerá redundante, se um mythos ou um logos é verdadei- j
ro ou falso, e isso até nos textos que pós-datam sensivelmente à j
especialização de mythos do lado da ficção, e de logos do lado da ]
realidade. Essa tendência é acompanhada de outra, paralela, em j
virtude da argumentação (da razão argumentada), por oposição j
a mythos, que acaba por assumir sozinha a herança da narração.15 *
Houve, pois, no interior do domínio grego, percurso e es- j
pecialização dos term os mythos e logos, isto é, passagem de um j
estado indiferendado a um estado diferendado.16 Não se trata ]
de obsolescênda e de "substituição" (ainda que seja uma das í
possibilidades abertas pela diferendação ela mesma), mas da for- 1
mação de um "campo” semântico cujos elementos pertinentes
são daram ente identificáveis mediante três oposições essendais,
aquela da narratividade e da argumentação, aquela da ficção e
da verdade, aquela do passado distante e do presente próximo.
A relação m ito/razão subsiste, enquanto o conteúdo dos term os
(em suas determinações formais com o em suas especificações) e
sua linha divisória se deslocam.
É nesse sentido que a distinção entre mito e razão não é
uma distinção substantial, mas funcional.17Nada se opõe, em tal
perspectiva, a que o mito possa ser ele próprio o produto de uma
atividade rational, e que, inversamente, a razão possa se tom ar
mítica. Temos bons exemplos dessas inversões desde a Antigui
dade. Quando Platão, no Sofista, considera que todos os que an
tes dele falaram do ser, pluralistas ou monistas, são contadores
de m ito, não é porque eles o tenham feito no quadro de uma
narração teológica (mesmo se é efetivamente o caso para alguns
23 A ves, 992-1020.
24 Lloyd, 2002, p. 48s.
25 Ib id ., p. 44s.
26 Ib id ., p. 53.
27 N ightingale, 1995, p. 14; c £ 2004, p. 30.
Ora, se não viesse em mente a ninguém negar que Platão
ou Sócrates imprimiram profundamente sua marca na definição
e na prática da filosofia (se podería mesmo dizer nesse sentido
derivado que eles foram seus inventores), usar do vocabulário da
artificialidade por oposição a um modelo de crescimento natu
ral e orgânico passa ao lado do essencial, em se tratando de um
processo cultural com o aquele da emergência da filosofia - inde
pendentemente mesmo do fato de que a tese de uma invenção
platônica da disciplina filosófica repousa, com o nós o veremos
logo mais, sobre uma base factualmente contestável. Mesmo ad
mitindo que nenhum ram o do saber já fosse verdadeiramente
especializado na época pré-socrática, pode-se dificilmente negar
que certo processo de especialização se deixe perceber. Aqui está
o fenômeno interessante.
Não se podería tentar compreender a natureza desse pro
cesso opondo à categoria estática de especialização a fluidez ou
a complexidade, que é uma categoria tanto quanto estática. A
dinâmica da especialização se apresenta com o um processo ne
cessariamente heterogêneo, cada disciplina tendo sua própria
pré-história, suas próprias condições e ritmos de desenvolvimen
to, e sua própria maneira de interagir com os outros ram os do
saber. Em se tratando da filosofia, acresce-se o fato de que ela
está sem dúvida mais exposta que outras disciplinas a constantes
reconfigurações, em razão mesmo da indeterminação relativa de
seu “objeto”. Existem médicos em Hom ero, com o em outros;
figuravam aí astrônomos e matemáticos babilônios. A despeito
das mudanças radicais que existem entre os médicos hom érico e
hipocrático, entre a astronomia babilônica e a astronomia grega,
parece difícil negar que uma e outra concernem , em certo nível,
a um objeto identificável (as feridas e a doença, os fenômenos
astronômicos). O mesmo acontece com a filosofia, pois em seu
caso, um objeto ou, talvez, mais um conjunto de problemas to
talmente novos devia ser concebido, e não somente uma nova
abordagem concernente a uma matéria já relativamente bem cir
cunscrita. A relação entre sophos e phüosophos não é sem dúvida
a mesma que entre os protoastrônomos e os astrônomos, e é
por isso que a questão da origem da filosofia, e da passagem da
sabedoria à filosofia, se põe de maneira tão insistente, seja entre
os Antigos, seja para nós.2*
Por mais lacunar que seja nossa informação sobre os ter
mos "filósofo”, “filosofar” e “filosofia”, nós sabemos o bastan
te acerca deles para dizer que com eçam a ser utilizados em um
sentido quase técnico no último terço do século V, no momento
em que a “investigação sobre a natureza” passa a ser denomi
nada com o tal.*29 Mas isso não significa que, em um caso com o
em outro, não se possa ou não se deva ir além. Contrariamen
te a uma pressuposição muito difundida, o critério da existên
cia de uma atividade, ou de uma representação, não é fornecido
pela existência da palavra correspondente. A língua, que pode
ser inventiva, possui com efeito também uma inércia que lhe é
própria. Se os neologismos são sempre possíveis, pode também
se passar certo tempo antes que a língua reflita uma mudança
de prática, em virtude de um princípio de histerose linguística. É
importante que se possa continuar a descrever com o "filosófica”
uma démarche intelectual que precedeu a aparição do conceito,
com o da própria palavra.
Os Antigos viam de bom grado a coisa surgir com a pala
vra.30 Compreende-se, desde então, que a invenção do term o "fi
losofia” tenha podido ser atribuído a Pitágoras, em relação com
uma concepção da filosofia entendida com o atividade teórica (é
a explicação dada ao tirano Leon, já mencionada no primeiro ca
pítulo31). Sustentou-se que a palavra, da qual encontramos uma
ocorrência (embora contestada) em um fragmento de H erádito
(na virada do século VI para ο V), remontava efetivamente a Pi
tágoras, o que nos remetería ao final do século VI. Mas parece
41 Ver W iese, 1963, p. 258s. Cf. tam bém Burkert, 1960, p. 171. O s intérpretes que
atribuem a Pitágoras a invenção da palavra “filosofia” inferem de sua presença em
H eráclito, que d ta o nom e de Pitágoras (em m au lugar) n o frag. B 129.
nhecimento preciso sobre a natureza, não existe outra fonte que
não seja a medicina.
distinção que poderia naturalm ente ser contestada. A deusa de Parm ênides recorre
explicitam ente à term inologia atlética para dizer que nenhum m ortal ultrapassará
nunca seu discípulo em m atéria de cosm ologia (B 8 ,6 0 ).
49 Sobre a significação do term o, ver Kerferd, 1999 (1981), cap. 3.
50 Frag. 3, Laks.
51 E utidem o, 305 c 6.
to. Ao contrário, a filosofia se refere, em um primeiro caso, ao
estudo da natureza (Da m edicina antiga) e, em um segundo, ao
debate dialético (Górgias), e, em um terceiro, à atividade teórica
(Pródico), e se sabe que o próprio Sócrates via nela o único ins
trumento adequado a proporcionar a felicidade ao homem. Que
fazer dessa diversidade de caracterizações? Uma consideração
que não deveria sem dúvida ser subestimada a despeito de sua
aparente trivialidade é que a filosofia é por natureza uma discipli
na cujas fronteiras são mais abertas que outras, de tal sorte que
existe uma dificuldade específica em definir seu objeto próprio.
Um indicio forte de que a diversidade, por mais abundante que
a possamos pensar, não prejudica em nada a homogeneidade do
démarche "filosófico", é que essa não é menor depois que o era
antes que a filosofia viesse a adquirir um estatuto disciplinar. A 1
heterogeneidade entre os diferentes Pré-Socráticos equivale bem
àquela que separa Sócrates de Platão, Platão de Aristóteles, Hegel
de Kierkegaard, Frege de Heidegger. Se existe alguma coisa com o
estilos e formas de pensamento, disso se segue que a diversidade
morfológica, não menos que a diversidade professional, é um cri
tério muito fraco para separar o que é e o que não é “filosofia”.52
Isso permanece verdade mesmo acerca dos inícios, o que não sig
nifica que a fraca diferenciação das atividades intelectuais não
tenha podido também ter contribuído, em uma medida que é di
fícil de definir, para a heterogeneidade das produções filosóficas.
Importa, em todo caso, distinguir entre duas espécies de
diferenciação, a diferenciação externa (Ausdifferenzierung em
alemão) e a diferenciação interna (Binnendifferenzierung). O fato
que um grupo social se diferencie de um outro não implica de
modo algum que ele próprio seja homogêneo, muito antes pelo
contrário (o mesmo acontece com um órgão). A autoasserção
10 Burkert, 2004, 73s. (2001, 64s.), co m base em Livingstone, 1986. Eu devo dizer
que a consulta ao livro de Livingstone n ão m e convenceu de qu e o “trabalho explica
tivo" refletido nos docum entos que ele edita seja veidadeiram ente com parável à pers
pectiva cosm ológica dos m ilesianos, m esm o se Livingstone, com entando "u m tipo
de especulação consistindo em identificar partes ou aspectos estreitam ente ligados do
m undo natural co m grupos de divindades", escreve que "o s antigos filósofos [babilô-
nicos] se esibrçavam em estabelecer o acordo da teologia existente m ais precisam ente
co m os fetos do m undo natural” (p. 71).
" Burkert, 2004, p. 12. Sobre o aparecim ento relativam ente tardio do term o "filo
sofia", ver su pra, p. 26s.
12 Burkert, 2004, p. 75 (ele vê aí, não obstante, um a influência iraniana; compa-
rar-se-á 2001, p. 65); cf. Burkert, 1992, p. 308-310. Burkert cita a esse propósito, eviden
tem ente para o uso do term o logos, um fragm ento de Eudem o (um discípulo de Aris
tóteles), falando a propósito de A naxim andro do “logos das grandezas e das distâncias"
(frag. 146, W ehrli).
12 Burkert, 2004, p. 21 (cf. p. 76s.; 2001, p. 66s.).
se traduz somente no nível dos conteúdos, mas também, e sem
dúvida ainda mais, no nível da forma de sua produção: o fato de
que as novas cosmologias milesianas se sucedam umas às outras
em intervalos relativamente aproximados, ao longo do século
VI, testemunha, com efeito, uma prática sistemática de distan
ciamento com relação a posições ou teses anteriormente formu
ladas, e uma notável aceleração da reflexão, que faz incontesta-
velmente parte do desenvolvimento de uma nova racionalidade.
Se, pois, a racionalidade não nasceu na Grécia, o problema
das origens da filosofia grega é indissociável da questão da emer
gência da racionalidade grega. A essa última questão, J.-P. Ver-
nant deu, por volta de cinquenta anos atrás, uma resposta me
morável e influente em Origens do pensamento grego, associando
o desenvolvimento da dita racionalidade à formação da cidade
(pólis).14 Podemos nos perguntar em que medida essa resposta,
cujo sentido e as implicações estão longe de ser evidentes, contri
bui à compreensão da racionalidade especificamente filosófica.
É ainda mais necessário pôr a questão em que Vemant se apoia
fortemente, sobre o caso particular da filosofia em sua análise da
emergência da racionalidade.15
O programa de Vernant é em grande parte motivado pela
preocupação de pôr fim à ideia de um “milagre grego”. A fórmu
la foi forjada por Ernest Renan, mas o uso que dela fez Vemant
não se reduz àquele de seu prom otor. Em Renan, o milagre gre
go é uma categoria ao mesmo tempo estética e axiológica, que
significa, na tradição de um humanismo e universalismo clássico,
a perenidade do belo. É a propósito dos templos de Selinunte que
Renan escrevia, em 1875: “Cada ensaio, cada tateam ento é visí
vel, e mais extraordinário que o resto! Quando os criadores dessa
arte maravilhosa tinham realizado o perfeito, eles não mudaram
24 G ernet, 1968 (1945) e (1956); 1983 (1951). Sobre a obra de L. G ern et e sua evo
lução, ver Humphreys, 1978 (1971), p. 84s., assim com o R. D i D onato em seu posfádo
a G ernet, 1983.
25 Sobre a bipartição da história da filosofia em Diógenes L aérd o, ver supra,
p. 35s.
narrativa das origens não é mais, com o era outrora o m ito, um
momento de justificação da ordem social - uma ordem social
primitivamente definida, na época micênica, pela figura de um
rei-sacerdote que reinava sobre um mundo indivisível. O que a
narrativa positiva testemunha não é, pois, somente um proces
so de "secularização”, mas - para empregar um vocabulário que
não é aquele de Vernant - da autonomização e da diferenciação
das duas esferas da natureza e do político.26 Quanto às condições
formais de exercício da filosofia, elas se devem ao fato do debate
filosófico (com o outros) se inscrever no espaço público - uma
inscrição é tanto mais visível porque os conteúdos portam , por
sua vez, e com frequência, com o é o caso em particular na Mag
na Grécia, o traço de antecedentes xamânicos ou místicos.27
Vernant confere uma importância particular ao fato de que,
i em suas dimensões, positividade e publicidade, a filosofia grega
*P encontra contrapartidas fora, em todos os setores da organiza
α
.μ : ção social, de acordo com um paralelismo que G em et já tinha
!&>, sublinhado. Que se trate de instituições políticas, econômicas ou
:s»
te. jurídicas, é um mesmo processo de abstração e de democratiza
jr
iU ção que se desenrola através da reforma de Clístenes, do nasci
mento da moeda e de novas formas do direito.28 A considerar o
«*
conjunto dos setores constitutivos da atividade humana, somos
tocados pela solidariedade transversal das mutações, que podem
desde então ser consideradas com o um mesmo número de ma
I nifestações de uma mesma racionalidade.
Solidariedade é aqui o termo-chave, aquele que justifica o
vai-e-vem entre a categoria geral do "pensamento racional” e
suas diversas especificações (dentre as quais a filosofia). Não se
trata de reflexo. Vernant, ao mesmo tempo que se apropria do
29 A tese foi retom ada - contra o m odelo político de Vernant - p o r Seaford, 2004,
p. 188s.
50 Vernant, 1965 (1957), p. 313. Ver a noção de "encam inham ento autônom o” em
M eyerson, 1987 (1948).
51 A im agem do “núcleo” foi introduzida p o r O w en, 1986, p. 184, para dar conta
da relação entre um a série de term os sem anticam ente irredutíveis u m ao outro, m as
que todos rem etem a u m term o único (pros hen): todos os sentidos do term o “ser", por
exem plo, rem etem ao prim eiro entre eles (a substância).
J2 A questão é posta p o r M. Caveing em Vernant, 1996 (1975), p. 113.
cidade não coexiste confortavelmente nem com a problemática
da "mutação mental” nem com a tese da emergência da racio
nalidade grega como filha da cidade. C. Meier pôs o dedo em
uma das dificuldades maiores do démarche de Vernant sublinhan
do que o "nascimento do político", em circunstâncias marcadas
por uma extrema contingência, não pode ser explicado sem fa
zer apelo ao papel m otor da τφ εχάο (principalmente da reflexão
"política") - isto é, de um pensamento que não deve nada ainda
ao político do que ele devia, ao contrário, primeiramente tornar
possível.33 Mais geralmente, a relação entre a cidade e sua filha
não é mais límpida que aquela do espírito do protestantismo
com o capitalismo, tal com o Max Weber a tinha considerado:
trata-se de causalidade, de condições de possibilidade, de fator
favorecedor, de afinidades eletivas, de simples analogia?
Busca-se sem dúvida em vão uma resposta a essa questão
em Vernant, que não parece nunca ter prestado atenção à proble
mática de Weber, a despeito do fato de que esta anuncia também
uma tese sobre a originalidade da racionalidade - nesse caso, da
racionalidade moderna.34Ao invés, é possível se interrogar sobre
as razões que levaram Vernant a formular sua tese em term os que
conferem uma irrefutável prioridade ao político em detrimento
do racional. Podemos, parece-me, identificar duas dessas razões.
A primeira razão está em relação com o fato de que, mesmo
sendo guiada principalmente pela problemática epistemológica
do milagre grego, que encadeia o retrocesso rum o às origens
micênicas (em virtude do princípio nihil ex nihilo), a análise de
Vernant permanece simultaneamente realizada (em uma relação
nunca foi experimental, parece difícil negar que ela se fez sufi-
cientemente cedo "teórica”, em um sentido que não pode ser
coberto pela determinação "política”.
É possível, entretanto, entender "político” de outro modo,
para se referir não a uma determinação intrínseca da razão, mas
ao quadro formal de seu exercício. A razão grega seria filha da
cidade no sentido de que é no espaço público da cidade que a
racionalidade encontra espaço para desenvolver suas estrutu
ras argumentativas. A bem dizer, tal que Vemant a apresenta, a
ideia não deixa de levantar também algumas questões. Primei
ram ente, porque se podería facilmente sustentar que o espaço
em que o pensamento racional se desenrola foi, tanto quanto
político, antipolitico e transpolitico. Antipolitico, porque a di-
37 Existe certa tensão entre essa interpretação e a ideia de que a secularização não
diz m enos respeito ao social que ao teológico.
38 Ver in fra, p. 95s.
í
ferenciação da disciplina filosófica, e logo sua especialização,
conduz à formação de uma classe de experts que, longe de se
reconhecer no espaço público, tende a se separar dele de ma
neira ostensiva.39 Heráclito seria sem dúvida o melhor símbolo
dessa “separação”,40 mas essa é onipresente. Quando Empédo-
cles cantará suas Purificações em Olímpia, a operação não adqui
rirá seu sentido senão por oposição ao esoterismo principal da
doutrina do poema físico, que se quer dirigir a um único discí
pulo. Quanto à dimensão transpolítica do desenvolvimento da
racionalidade, ela está ligada ao fenômeno do pan-helenismo,
do qual Olímpia é justam ente o símbolo, isto é, uma tendência
à universalização que transcende o quadro da cidade a partir
do momento em que ela se constitui.41 Em um plano mais teó
rico, que nos conduz à problemática weberiana da causalidade
em história, precisaria, também, perguntar-se em qual medida a
cidade, considerada com o quadro formal, pode ser um fator de
terminante, com o o sugere a fórmula da filiação (“o pensamento
racional, filho da cidade”). Pois, se parece pouco contestável que
a prática do debate judiciário e político, no quadro das institui
ções da cidade dem ocrática, favoreceu a consciência das alterna
tivas e a cultura da discussão e da réplica, poderia se sustentar a
ideia, seguindo os passos de J. Burckhardt, que é o agôn, ou en-
frentamento, que se encontra no princípio do desenvolvimen
to da filosofia com o de outras manifestações da cultura grega,
o que remetería novamente a um aquém da cidade. De resto,
não é seguro que o debate contraditório tenha pesado mais, na
42 Para o prim eiro argum ento, of. Hum phreys, 1996, p. 6. Para a questão da relaçã
I .— ----------------
entre escrita e em ergência da filosofia, ver Laks, 2001.
sível de transposição,43 que pelo conceito de racionalidade que
põe em obra.
O projeto de Weber é de compreender por que e como a
racionalidade tomou a forma distintiva que é a sua no seio da ci
vilização ocidental moderna, enquanto até mesmo processos de
racionalização estão igualmente em obra em outras civilizações
- razão pela qual os estudos sobre as grandes religiões (Confudo-
nismo, Budismo, Hinduísmo, Judaísmo, Islã) são o complemen
to indispensável da Ética protestante e o espírito do capitalismo.44 A
Introdução aos Ensaios sobre a sociologia da religião traça a lista do
que Weber considera ser as principais expressões do radonalis-
mo oddental. (No resumo que segue, eu preciso, entre colchetes,
quando a indicação pode ser tirada do texto de Weber, o traço que
justifica a qualificação de “radonal”.) Segundo Weber, somente
o Ocidente desenvolveu: uma dênda radonal [isto é, matemati-
zada]; uma geometria radonal [fundada na prova]; dências natu
rais radonais [experimentais]; uma química radonal; uma história
radonal [pretendendo uma validade supratemporal]; uma políti
ca radonal [de natureza sistemática]; um direito radonal [siste
maticamente codificado]; uma técnica artística radonal [com,
na música, uma harmonia e uma técnica de composição mate-
matizada e sistematizada, na arquitetura, um uso não decorati
vo, mas funrional da ogiva gótica, e, na pintura, uma utilização
radonal da perspectiva linear e atmosférica]; um uso radonal da
gráfica [dando lugar ao desenvolvimento de uma imprensa]; uma
organização radonal da transmissão dos conhecimentos [com o
desenvolvimento da espeaalização]; a constituição de uma admi
nistração radonal [espedalizada] de funaonários do Estado; tun
Estado radonal [repousando sobre uma constituição]; e, natural
mente, uma economia radonal [sob as espédes de capitalismo].45
potência que pesa o mais penosam ente sobre o destino de nossa vida m oderna”
(P- 493).
44 W eber, 2003 (1920), 106s. Podería tam bém traduzir-se E ntzauberung p o r “desma-
gicização” ("Z auberer” é o m ágico), m as “m ágico", na m esm a frase, traduz m agisch.
47 Ver, por exem plo, W eber, 1989 (1920), index, s.v. Grécia.
na, hinduísta, budista, cristã, islâmica”.48O judaísmo é acrescido
a esta lista, em razão do papel decisivo que ele teve tanto para
a formação da Cristandade e do Islã quanto para o desenvolvi
mento do capitalismo ocidental. Se o politeísmo grego não faz
parte do grupo dos seis, isso se deve, primeiramente, ao fato
de que não satisfaz ao critério da m assa, que Weber julga pri
mordial - um critério que parece ainda menos poder se aplicar
à civilização grega, uma vez que esta está m orta (esse não é o
caso de nenhuma das outras civilizações dotadas de uma “reli
gião mundial”); o fato de que o politeísmo grego não com porta
dimensão soteriológica senão marginalmente deve também ter
desempenhado um papel (Weber fala sempre de religião em ter
mos de doutrina da salvação, H eilslehre). As duas razões se com
binam e se reforçam: para Weber, o fator determinante, em se
tratando do desenvolvimento diferenciado dos racionalismos,
reside no peso social de uma ética econôm ica (W irtschaftethik)
e, mais geralmente, de uma conduta de vida (Lebensfiihrung)
determinadas - um peso que somente um sistema de crenças
religiosas, e mais precisamente escatológicas, se encontra em
condições de garantir. Se os grupos restritos de virtuoses ou de
experts desempenham um papel capital na análise de Weber, isso
se dá na medida em que eles são os “portadores” de modelos
eficazes. Ora, o racionalismo grego, se é que ele foi um assunto
de experts e foi também solidário a um modo de vida (ou pelo
menos da questão do modo de vida), foi não somente pelo es
sencial caráter extrarreligioso (o que não exclui naturalmente
que ele tenha tido efeitos intrarreligiosos), mas também por ser
sociologicamente fragmentado. Essa dispersão pode ser con
siderada com o a contrapartida da extraordinária “aceleração”
que caracteriza o desenvolvimento da filosofia grega entre os
séculos VI e V - uma aceleração indissociável de um processo
de individualização marcado, para nos aterm os à filosofia, tanto
pela sucessão vigorosa de novas “visões de mundo”, reivindica-
51 Ver Schluchter, 1979, assim co m o H aberm as, 1987 (1981), I, cap. 2 (‘A teoria da
racionalização em M ax W eber”), prindpalm ente p. 187s.
51 W eber, 1996 (1920), p. 347.
” Em pédocles ocupa aqui um a posição original, n o veio da tradição pitagótico-
-órfica (cf. su pra, p. 28, n. 33).
nam diretamente a ação dos homens. Todavia, as ‘imagens do
mundo’, que foram criadas por meio de ‘idéias’, desempenha
ram com muita frequência o papel de direcionadoras, determi
nando as vias no interior das quais a dinâmica dos interesses foi o
m otor da ação ”.54O reconhecimento do caráter decisivo, no pro
cesso de racionalização, das Idéias e das “Imagens do mundo",
ao lado de e em conjunção com as noções mais formais com o
aquelas de “consequência” e de “consistência”, é indispensável
para compreender a lógica dos inícios da filosofia grega, porque
a diferenciação intelectual que o acompanha é marcada por um
altíssimo grau de heterogeneidade - cuja ideia vernantiana de
uma razão política, pelo menos entendida substancialmente,
não permite dar conta. Pois aquilo com o que nos confrontam os
filósofos pré-socráticos é uma diversidade conflitual de imagens
do mundo, diante das quais o leitor é convidado a se situar, e que
excedem por todos os lados as categorias da cidade.
Seria contrário ao objetivo desta introdução, que não consi
dera os Pré-Socráticos senão coletivamente, explorar mais adian
te essas imagens do mundo, ou analisar a natureza dos conflitos
que elas engendram. É preciso, ao invés, reconsiderar a natureza
da relação que nós mantemos com elas, enquanto elas se situam
na origem da filosofia ocidental.
1 D urchbruch; inglês breakthrou gh. O term o é retom ado e discutido por W eil, 1982
(1975). Para o uso que dele fazem os historiadores, ver Schw artz, 1975, e Humphreys,
2004 (1986).
nidade bifurcaria2). A ideia foi contestada, primeiramente por
que a construção não concede o lugar que cabe à escritura nas
grandes civilizações (as civilizações sumério-acadiana e egípcia,
que remontam ao III milênio),3 mas também, e sobretudo, em
razão de suas implicações teleológicas, inscritas no título mesmo
do livro de Jaspers e assumidas por E. Weil.4 É a mesma posição
que J. Burckhardt, escrevendo contra o uso da teleologia em his
tória nos filósofos da história (Hegel sendo visado em primeira
linha), tinha recusado em suas Considerações sobre a história uni
versal: "Eles [os filósofos da história] são dados a especular sobre
os começos, e deveríam, pois, a bem dizer, igualmente falar do
futuro; nós podemos prescindir dessas doutrinas sobre os come
ços, e não é possível que se exija de nós uma doutrina do fim”.5
A questão de saber se um ponto de vista teleológico é evi-
tável, ou mesmo indesejável em história, é muito vasta para ser
discutida aqui (podería, ao contrário, ser necessário, sob a forma
de uma teleologia não objetiva, mas reflexiva).67Mas, em se tra
tando dos gregos, é evidente que a relação que "nós" entretemos
com “eles” tem um peso considerável sobre o que nós somos
levados a dizer sobre eles. Isso porque nós estamos ligados a eles
(não menos mas de modo diferente do que o estamos à tradição
judaica) por uma relação originária
Nenhuma problemática decorre dessa constatação, nem
com ainda mais forte razão a menor obrigação. Diversas opções
se apresentam, com efeito, para o tratam ento de tal relação "ori-
2 Jaspers, 1949, p. 2 0; W eil, 1982 (1975), p. 194. "Axial" sugere que a história da
humanidade “g ira em to m o " d o m encionado período.
3 Para as considerações cronológicas, ver Burkert, 1994-1995, p. 184s. Para a crítica
de fundo, ver A. Assmann, 1989, p. 187-205.
4 N ão existe salto senão para nós, diz W eil, 1982 (1975), p. 196s.
* Burckhardt, 1971 (1905), p. 36.
* A questão será de novo evocada nas páginas 111-113 a propósito de Cassirer.
7 D evem os distinguir, quando dizem os “n ó s", entre o "n ó s" am plo da hum anida
de, e aquele m ais específico de um a dada civilização. O salto grego e o salto ju d aico se
distinguem d o salto chinês pelas m odalidades da relação histórica que nos u n e a ela.
ginária”. Isso se deve à polissemia da noção de origem, que pode
colocar em jogo representações muito diferentes. Uma origem
pode não ser senão um ponto de partida, mas pode ser, também,
princípio ou fundam ento. Esses dois polos, por sua vez, se desdo
bram: o princípio ou fundamento de um fenômeno dado poden
do não ser mais que uma simples causa, ou tom ar a forma parti
cular de uma norma, enquanto, de um ponto de vista genético, o
ponto de partida pode residir seja nas fontes das quais provém o
fenômeno ou das quais ele se alimenta, mas que lhe são exterio
res, seja nos próprios inícios de sua manifestação, que lhe são fun
damentalmente homogêneos. Essas diferentes distinções, vê-se
facilmente, estão em função da maior ou menor temporalização
da qual se investe o term o, em uma escala compreendida entre
os polos da "gênese", considerada com o um processo imerso no
tempo, e do “princípio”, que tende aí a se subtrair. O que se pode
esquematizar da seguinte maneira:
Origem
+ Temporalização -
(1) Gênese (2) Princípio
(1 a) Fontes (lb) Inícios (2 a) Causa (2 í») Norma
24 Precisaria, tam bém , levar em conta as questões específicas que estão ligadas, na
perspectiva neoplatônica e naquela do sincretism o renascente, à questão da origem
"bárbara”, isto é, extragrega, e prm cipalmente egípcia, da filosofia. É com essa repre
sentação que a historiografia das Luzes (representada principalm ente por J. Brucker)
rom pe, im pondo Tales (cf. Blackw ell, 1997), lançando, por assim dizer, o Aristóteles da
M etafísica contra aquele de Sobre a filo so fia (cf. su pra, p. 81, n. 2).
25 Ver p. 129.
que se apoiou fortemente, num primeiro momento, em sua fase
romântica, em um conceito de época (que se apresentava com o
um paradigma da individualidade histórica), foi também cons
tantemente conduzida a lhe alterar os limites em nome mesmo
da história, relativizando progressivamente a importância das
cesuras de época pela multiplicação de etapas intermediárias.26
Ao longo desses recuos, a época perdeu sua vocação de determi
nação intrínseca, ou substancial, para se tornar, nos term os de
Blumenberg, um "meio classificatório metódico de uma credibi
lidade duvidosa”.27
O que é mítico, nesse caso, é o traçado de uma linha de
demarcação, e a postulação de um ponto de partida absoluto,
do qual é significativo que tenda a tom ar uma forma de calen
dário, quando não astrológica. Valmy (1791) entre os Modernos,
Salamina (480) entre os Antigos, fornecem disso dois exemplos
eminentes.28 No domínio da história da filosofia, o sincronismo
do ano 1642, que foi ao mesmo tempo aquele da m orte de Ga-
lileu e do nascimento de Newton, marca também o limite entre
duas épocas.29 É contra esse tipo de ilusão pontual que Blumen
berg mobilizou, sob o nome de limes - em sentido próprio, a
zona tam pão separando o Império romano do que não era ele - ,
os recursos das margens temporais. As coisas historicamente se
eclipsaram, sem que nunca se possa dizer quando foi exatamente
que isso aconteceu .80 O limes blumenbeigiano é com o o nome
de todas as complexidades históricas cujo efeito pode ser medi
do, sem que o seu traçado possa ser atribuído. Razão pela qual
“ Esse é o sentido do grande debate sobre o núm ero e as datas de nascim ento das
diversas "Renascenças” (cf. Panofsky, 1976, cap. 1).
27 Blum enberg, 1996 (1985), p. 537.
22 Salam ina tinha dado lugar a u m sincronism o fam oso, duplicado p o r um com po
nente espacial: em 480, Ésquilo com batia os medas, Só fod es dançava para celebrar a
vitória e Euripides nascia na ilha.
29 Blum enberg, 1996 (1985), p. 555s.
30 Musil, no capítulo 16 de O H om em sem qu alidades, descreve de m aneira surpreen
dente um a situação desse tipo.
a um ponto de partida singular e reputado fictício, Blumenberg
substitui com a consideração de duas referências que, de uma
parte e de outra de uma transformação atribuível, testemunham
a realidade das mudanças que intervieram: esse é o sentido que
tom a nele a análise comparativa dos pensamentos de Nicolau de
Cusa, para o antes, e de Giordano Bruno, para o depois.
A pertinência dessa problemática para a análise dos “inícios
da filosofia” é patente: Tales (ou outro) é o equivalente funcional
de Valmy ou do ano 1642. A questão é de saber se não deve
mos, a exemplo de Blumenberg, substituir, na análise das origens
do pensamento grego, a fixação transparente, mas mítica, dos
pontos de partida, pelo modelo mais prudente de "referências”
dispostas de um lado e de outro de uma fronteira larga, e de
contornos leves.
Há certam ente numerosas vantagens, e muita verdade, em
tal abordagem. No entanto, não é essa prudência com a qual
se julga conveniente ser prudente. Em seu ensaio "A forma do
conceito no pensamento m ítico", E. Cassirer notava que a pos
sibilidade de delinear "quase exatamente o m om ento que cons
titui o ponto de partida de uma revolução na maneira de pensar
era um fenômeno raro na história do espírito e das idéias” .Jl
“Quase" significa “quase”, mas "raro” implica “possível”. É ver
dade que, em Cassirer, o ponto de partida em questão apresenta
já certa complexidade, uma vez que não se trata nem de um
acontecimento único, nem de um nom e, mas de certa “conver
gência”: o nascimento do pensamento científico moderno pode
ser situado, segundo ele, no encontro de dois acontecimentos,
a publicação das Regras para a direção do espírito de Descartes
(redigidas por volta de 1628), que formulam pela primeira vez a
ideia de uma m athesis universalis com o ciência principal da me
dida, da ordem e do número, e a recusa tardia, mas irrevogável,
por Kepler, em sua H arm onia do mundo de 1619, do modo de
pensamento astrológico no qual se tinha por muito tempo reco-31
“ B 18. O dístico insiste m ais n o aspecto tem poral do desenvolvim ento que na
oposição deus/hom em , que é co m o que escam oteada n o anonim ato do “eles" (ver
Babut, 1977, depois Frankel. 1962, p. 380).
” R efu tações so fistica s, 183 b 25 e s .
M Ver su pra, p. 81, n. 2.
QUESTÕES
34 Cassirer, 1925, p. 85. Sobre a ligação que se tece assim entre Platão e um a filo
sofia das form as sim bólicas, cf. p. 89s. Sobre o Platão de Cassirer, ver Rudolph, 2003.
55 Cassirer, 1925, ρ. 11. As três etapas correspondem à física (representada p o r seu
term o, D em ócrito), à ética (Sócrates) e à lógica (a dialética platônica).
34 Cassirer, 1925, p. 37.
37 Cassirer, 1925, p. 18s.
o mito, a universalidade do princípio, Anaximandro teve,
com efeito, de pagar o preço de sua transcendência: seu
princípio, o ilimitado (apeíron), situa-se além de todas as
determinações internas do mundo. Ele conserva, assim,
paradoxalmente, a m arca do mito que ele contribui para
superar. Inversamente, Anaximenes, restituindo o princí
pio à imanênda (é o que significa a escolha do ar, após o
ilimitado de Anaximandro), sacrifica também a universa
lidade que garantiría a abstração do princípio anaximan-
driano. A tarefa comum de H erádito e de Pitágoras será,
desde então, de pensar conjuntamente a universalidade
do princípio e de sua imanênda.
2) Eis a função atribuída à primeira tematização do logos,
sob a forma da medida (em Pitágoras) e da harmonia (em
H erádito). A desgenetização é também uma dessubs-
tancialização (a passagem da substânda à função se ini-
da, logo, desde as origens). A noção diretora não é mais
aquela de "proveniência” (Entstehung), mas de "estado”
(Bestand); a atenção não se volta mais para a matéria
(Stoff), mas para a estrutura (determinada no caso de
H erádito com o "tensão entre os contrários”, Spannung
der Gegensätzen),38 a regra do processo e a forma (Cassirer
fala, ela própria, a propósito do logos de "conceito relacio
nai”, Verhältnisbegriff9). A dualidade Heráclito-Pitágoras
dá lugar a uma dialética análoga, em outro nível, àquela
do par Anaxim andro/Anaximenes. H erádito pensa bem
a forma, mas de maneira geral, intuitiva, imaginada; o
número pitagórico é específico, dentífico, abstrato. Ele
abre a possibilidade de um conhecimento experimental
que H erádito, a despeito da imposição da forma, não au
toriza. Pitágoras, o homem da dênda, é o homem da teo
450 tem a é com u m a Cassirer e a Gadamer, exceto pelo fato de que um distingue
e articula, onde o ou tro assimila.
44 B 3.
47 'Ά m ais im portante realização do pensam ento eleata, o único que é propria
m ente decisivo, é, portanto, não som ente de aniquilar os co nceitos fundam entais da
ciência, m as, por m eio m esm o dessa aniquilação, de criar a condição prévia de um a
nova d eterm inação lógica desses co n ceitos..." (Cassirer, 1925, p. 50).
4) A última etapa da autodescoberta do logos, em sua fase
pré-ática, consiste na tematização do “fundamento” sob a
forma do princípio de razão, entendido com o reconcilia
ção entre as duas primeiras fases (objetivas e centradas na
realidade), e a terceira (lógica e centrada na verdade), que
precederam (razão pela qual a quadripartição recobre de
fato uma tripartição). Trata-se, após a destruição parme-
nidiana da física, de reencontrar uma “fisiologia", enten
dida, em sentido estrito, com o “o pensamento de uma
harmonia entre logos e physis”.48 Essa construção repousa
sobre uma extensão a Anaxágoras e a Empédocles da in
terpretação que Aristóteles oferece de Leucipo com o ten
do procurado reconciliar a ontologia parmenidiana com
a realidade sensível.49 Em todo caso, trata-se da “salvação
do mundo das aparências”.50 Cassirer situa primeiramen
te a análise no nível epistemológico: nos três pensadores,
existe colaboração entre a razão e os sentidos.51 Essa pers
pectiva se explica certam ente, em parte, pela preocupa
ção de conferir a Anaxágoras e a Empédocles um nível de
reflexão igual àquele de Parmênides.52 É possível também
ver nisso, mais profundamente, uma consequência da vi
rada semântica dada à interpretação de Platão, a filosofia
s* Cassirer, 1925, p. 8. Ver sobre esse ponto Cassirer, 1932. A convicção segundo a
qual a história da filosofia é inseparável da história das ciências faz parte de sua herança
kantiana.
” Cassirer, 1925, p. 16, 20 e 10, respectivamente.
“ Cassirer, 1906, p. 18. A crítica retorna em 1925, p. 12, em que, contra Zeller e
Joel, Cassirer defende a ideia de um a história filosófica da filosofia, que põe sistem ati
cam ente entre parênteses os dados biográficos e contexm ais, quaisquer que sejam o
encanto e o interesse que se possa reconh ecer neles.
61 Cassirer, 1906, p. 19.
Hegel não se expõe menos à censura de ter se "perdido" no idea
lismo que Zeller, por ter cedido aos demônios do historicismo.
O ponto decisivo é que Hegel pôs, com o fundamento e como
term o da história, um sujeito absoluto, o espírito. A despeito do
fato de que Cassirer substitui a ideia de uma autodescoberta do
espírito por aquela da autodescoberta do logos, a crítica diz me
nos respeito à referência ao espírito, que Cassirer poderia bem
tom ar por sua conta, que à ideia do caráter absoluto de algo.
Aquilo pelo que se pode criticar Hegel não é por ter postulado
um “sujeito” com o fundamento de seu relato, pois "toda série
em um desenvolvimento histórico necessita de um sujeito":42
isso faz parte neste caso da hipótese de conhecimento. Todavia,
este sujeito não é um sujeito absoluto. A autodescoberta do logos
não é nada mais que a subtração do pensamento das determina
ções que lhe são exteriores, a história de uma liberação, que teria
seu lugar no seio de uma filosofia das formas simbólicas, e mais
geralmente da cultura, na medida em que a cultura é concebida
com o "o processo da autoliberação progressiva do homem”, que
não é guiado por outra coisa senão por ele próprio e por suas
capacidades para a idealização.43
Desse ponto de vista, o momento do nascimento da filo
sofia é privilegiado. Mais que em épocas posteriores, em que a
reflexão filosófica, já constituída, acolhe problemas que lhes são
impostos a partir do exterior, o pensamento antigo cria, com
efeito, seus próprios conteúdos, em razão mesma da indistinção
primitiva entre uma "natura” objetiva e um mundo do espírito
ou metafísico. É o momento da autodeterminação da filosofia
(Selbstbestimmung der Philosophie),*64 que encarna a correlação en
tre o pensamento e o ser (D enken/Sein) em Parmênides, tradu
zindo a imbricação da descoberta do mundo e da descoberta do
68 Cassirer, 1941, p. 4.
69 Cassirer, 1925, p. 7.
70 Cassirer, 1925, p. 8. “P u ro " não significa que o m ovim ento n ão seja histórico; mas
que se considera as d eterm inações de pensam ento em si m esm as, independentem ente,
71 É possível encontrar um a bela ilustração desta dialética entre im agem e concei
to, e m se tratando de um a sequência m oderna, na análise da relação Kepler/Leibniz
em F reiheit und Form (Cassirer, 1917), cuja am bição é de m ostrar em que a história
da filosofia europeia, e m ais espedalm ente a alemã, tem valor universal, na medida
m esm a em que ela dá testem unho, através de suas sucessivas form as, do progresso
da liberdade. Recki, 1997, p. 62, insiste na dim ensão política desse livro, escrito no
coração da Prim eira G uerra Mundial: Cassirer nele se opõe à "polarização ideológi-
líbrio uma interpretação estática, falando da “tensão” existente,
em Cassirer, entre a tese da "paridade de mundos simbólicos
igualmente originários” e o delineamento de “uma tendência
à liberação inscrita no desenvolvimento da cultura”, ou ainda,
mais abstratamente, entre "expressão” (Ausdruck) e "significa
ção” (Bedeutung).72 Uma tensão, enquanto tal, demanda uma re
solução, ou uma superação, da qual Habermas vê a condição em
uma relocalização sistemática da função linguística: em lugar de
lhe atribuir, com Cassirer, uma função subordinada (entre mito e
conhecimento), teria sido necessário lhe reconhecer a posição di
retora que lhe cabe de fato, e para com eçar no próprio Cassirer.
No entanto o desequilíbrio é frutífero na perspectiva de uma his
toriografia filosófica, e mais predsamente dos inídos da filosofia.
O ponto fundamental é que a dinâmica proveniente de uma aná
lise que, rejeitando a separação do conceito e da imagem, une
dialeticamente seu destino, é em prindpio não linear, se progres
so existe, não é nunca somente por puro conceito, não somente
porque o momento da imagem, do qual o conceito saiu e ao
qual ele retorna, é inevitável, e com ele o momento da interpre
tação, mas também porque o próprio conceito, na exaustividade
virtual de suas determinações, não é, uma vez mais, senão uma
nova imagem, ela própria convocada a ser superada: dois níveis
os quais me parece que circunscrevem o domínio de uma herme
nêutica dos textos propriamente filosóficos, e que, em conjunção
com uma consideração das "idéias” e “imagens do mundo” we-
berianas, podem desembocar em uma história dos inícios da filo
sofia grega mais ampla que aquela que propõe Cassirer, mesmo
se apoiando em sua demarche. Mas essa é outra história.
λ
Aristófanes Meteorológicas
Nuvens 339 b 27-30 (p. 83)
180-195 (p. 23) 355 b 33 - 356 a 33 (p. 32)
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Pássaros 642 a 17 (p. 34)
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984 a 30-32 (p. 28)
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987 b 1 (p. 34) 1,1-3; XIII; XV-XVI (p. 73)
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