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“FILOSOFIA

PRÉ-SOCRÂTICA'
INTRODUÇÃO À "FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA”
Coleção C Á T E D R A
coordenada por G ABR IELE CORNELLI

• Platão: A construção do conhecimento


José Gabriel Trindade Santos
• Introdução à “filosofia pré-socràtica”
André Laks
Introdução
à “filosofia pré-socrática

PAULUS
Título original: Introduction á la philosophic présocratique
© Presses Universitaires de France, 2006
ISBN 978 2130556633
Tradução: Miriam Campotina Diniz Peixoto
Revisão Técnico-dentífica: G abride C om dli
Direção editorial: Claudiano Avelino dos Santos
Assistente editorial: Jacqueline Mendes Fontes
Diagramação: Ana Lúcia Peifoncio
Revisão: IranÜdo Bezerra Lopes
Thiago Augusto Dias de Oliveira
Capa: M arcdo Cantpanhd
Impressão e acabamento: PAULUS

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Laks, André
Introdução à “filosofia pré-socrática” / André Laks; [tradução Miriam Campolina Diniz Peixoto].
- São Paulo, Paulus, 2013. - (Coleção cátedra / coordenada por Gabriele Comelli)

Bibliografia.
ISBN 978-85-349-3580-7
1. Filosofia - História 2. Filosofia antiga 3. Pré-socráticos I. Comelli, Gabriele. II. Título. ΠΙ. Série.

12-13212 CDD-182

Indices para catálogo sistemático:


1. Pré socráticos: Filosofia antiga 182

Coleção com apoio:

^ âr.cHai| Universidade de Brasília


Organização Cátedra Unesco Arcftai: sobre as origens do pensamento oddentaf - UnB
das NaçOas Unidas Estabelecida em 2011
para a Educação,
a Ciência a a Cultura

Programa UNiTWIWCátedras UNESCO

1* edição, 2013

©PAULUS-2 0 1 3
Rua Francisco Cruz, 229 · 04117-091 · São Paulo (Brasil)
Fax (11) 5579-3627 · Tel. (11) 5087-3700
www.paulus.com.br · editorial@paulus.com.br

ISBN 978-85-349-3580-7
SUMARIO

APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO........ 7

APRESENTAÇÃO.................................... 11

Pré-Socráticos: os antecedentes antigos © ν '


Pré-Socráticos: a constelação moderna. 39

Filosofia....................................................... 59

Racionalidade............................................. 83

Origens........................................................ 103

Questões ................................................... 117

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................... 141


ÍNDICE DAS PASSAGENS ANTIGAS.................................................. 153
ÍNDICE DE AUTORES, ESCOLAS
E PERSONAGENS ANTIGOS................................................................ 157
ÍNDICE DOS AUTORES MODERNOS............................................... 159
A Coleção Cátedra deriva seu nome da Cátedra UNESCO
Archai: as origens do pensamento ocidental, que quis em­
prestar a esta coleção sua filosofia de trabalho e sua sensibilidade
para os estudos das origens do pensamento ocidental.
A UNESCO, patrocinando o Grupo Archai com o sua Cá­
tedra, e tornando-a membro da rede UNITWIN da UNESCO
Chairs, reconheceu o impacto científico de suas diversas ativida­
des. De fato, Archai atua há mais de uma década com o centro
de consolidação de pesquisas, organização de cursos e seminá­
rios, e publicação de livros e revistas, com forte atuação em nível
nacional e internacional, procurando construir uma abordagem
interdisciplinar que permita fazer compreender a filosofia antiga
em seu contexto político, econômico, religioso, literário.
Em parceria com a Paulus, editora renomada e de grande
alcance no mercado editorial brasileiro, a coleção visa disponi­
bilizar, para um público brasileiro de especialistas e interessa­
dos, cada dia mais amplo e exigente, monografias, comentários,
traduções, compêndios e obras temáticas que explorem o vasto
campo do pensamento ocidental em suas origens greco-romanas.

Gabriele Cornelli
D i r e t o r d a C o le ç ã o C á te d ra
C o o rd e n a d o r d a C á te d r a U N E S C O A rch ai
w w w .a rch a i.u n b .b r
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sta introdução à "filosofia pré-socrática" não tem por ob­
jetivo apresentar os diferentes pensadores que nos acos­
tumamos a reunir sob a denominação de filósofos pré-socráticos
-p a ra não citar senão os mais conhecidos, Anaximandro, Parmê-
nides, Heráclito, Anaxágoras, Empédodes, Demócrito ou Protá-
goras. Não que eles não venham a ser mencionados. Como falar
dos Pré-Socráticos, ou mesmo dos “Pré-Socráticos”, sem falar de
Pré-Socráticos? Mas eles são aqui considerados coletivamente.
Esta abordagem me pareceu com o uma prévia da interpretação.
Ao longo de minhas pesquisas exegéticas concernentes aos auto­
res particulares, eu, com efeito, fui constantemente reconduzido
ao problema da unidade do pensamento pré-socrático e da clas­
sificação dos pensadores a esse relacionados. Aqueles que nós
nomeamos Pré-Socráticos não se concebiam com o tais, por uma
razão ainda mais radical segundo a qual os neoplatônicos não se
consideravam tampouco com o neoplatônicos: Sócrates não era
para eles uma referência, no máximo um irm ão caçula, ou mes­
mo um contemporâneo. E não foi, além disso, senão mais tarde,
ao final do período que abarcamos sob a denominação de “filo­
sofia pré-socrática”, que eles com eçaram a ser designados com o
"filósofos". Mas se os filósofos pré-socráticos não são filósofos
e pré-socráticos senão retroativamente, convém que nos inter­
roguemos sobre a maneira pela qual eles se tornaram tais. Para
pôr em evidência a construção, certam ente, mas também para
se interrogar sobre sua possível legitimidade (razão pela qual eu
recuso o term o “invenção”, além do mais hoje em dia galvaniza­
do). A importância da questão se deve evidentemente ao fato de
que, quando nós falamos dos filósofos pré-socráticos, é sobre as
origens da filosofia grega, e por conseguinte ocidental, que nós
falamos. O livro parte, pois, das questões tipológicas ligadas ao
emprego do sintagma "filosofia pré-socrática”, e do que se en­
contra em jogo sob essa denominação, para problematizar, em
seguida, a questão mesma das "origens” e da “racionalidade”.
Ele se conclui com a confrontação de dois modelos de historio­
grafia filosófica, provenientes, um deles, da tradição fenomeno-
lógica (Gadamer), e o outro, da tradição radonalista (Cassirer).
Se minha preferência se volta claramente para esse último, não
sugiro aqui nenhuma abordagem que seja imune às críticas que
se podem dirigir a cada um deles. Esta breve introdução, que
tem em vista preparar o terreno, e que permanece programáti-
ca, antecede uma outra, que trataria dos recursos e dos limites
da filologia nesta matéria, e desembocaria na análise de posições
individualizadas.1
As remissões aos fragmentos dos autores pré-socráticos são
aquelas da edição de referência (H. Diels e W. Kranz, D ie Frag­
mente der Vorsokratiker, 6a ed., Berlim, 1951), cuja numeração é
reproduzida em todas as traduções disponíveis. Para suavizar a
grafia, eu não indiquei o número que o autor recebe em Diels,1

1 O s diferentes capítulos deste ensaio se apoiam em grande parte em textos


anteriorm ente publicados, que foram todos refundidos em medidas variáveis. Trata-se
de: "Les origines de Jean-Pierre V em ant. À propos des O rigines d e ia p en sie grecque",
C ritiqu e, 612, m aio de 1998, p. 268-282; "C o m m en t s’écrit 1’histoire des débuts? À
propos des Présocratiques”, In tern ation ale Z eitschrift f ö r P hilosophie, 2001, p. 153-172;
'Philosophes présocratiques'. Rem arques sur la construction d’une catégorie de
rhistoriographie philosophique”, em G. W. M ost (org.), H istorizieru n g/H istoricization
(= A porem ata 5), G öttingen, Van der H oeck und Ruprecht, 2001, p. 293-311, assim
co m o em A. Laks e C. Louguet (orgs.), Ç u ’est-ce qu e la p hilosophic présocratique?, Lille,
Presses Universitaires du Septentrion, 2002; "G adam er et les Présocratiques", em J.-C .
G ens, P. K onto e P. Rodrigo (orgs.), G adam er et les G recs, Paris, Vrin, 2004, p. 13-29;
"Rem arks on the differendation o f early G reek philosophy", em R. Sharpies (org.),
P hilosophy an d the Sciences in A ntiquity, Aldershot, Ashgate, 2005, p. 8-22.
nem acrescentei a abreviação usual DK quando isso não se mos­
trou necessário. Assim, quando eu indico, em um contexto em
que se encontra em questão Demócrito, o testemunho A 25 ou o
fragmento B 1 1 , as indicações extensas seriam 68 A 25 DK ou 68
B 11 D K As referências completas das obras e estudos citados em
nota pelo simples nome do autor seguido da data da publicação
utilizada são apresentadas de modo completo na bibliografia. A
segunda data que figura por vezes entre parênteses remete à data
de publicação original. A tradução dos textos gregos citados é
minha, salvo indicação contrária.
Gérard Journée me ajudou a tornar mais preciso o manus­
crito. Ainda uma vez, este não teria tomado forma sem os en­
corajamentos de Thierry Marchaisse e sem sua leitura, aberta e
exigente, das primeiras versões. Que ele receba aqui a expressão
de minha profunda gratidão.
PRÉ-SOCRÁTICOS:
OS ANTECEDENTES ANTIGOS

/
I r'
é uma coação moderna. A pri-
meira ocorrência identificada até então figura em um
manual de história universal da filosofia publicado em 1788 por
J.-A. Eberhard (o destinatário de uma famosa carta de Kant), do
qual uma seção se intitul^ "Filosofia pré-socrática” (“Vorsokratis-
che Philosophie”).j/M as á ideia de que exista uma rupm tajnaior
entre Sócrates e o que lhe precedeu rem onta à Antiguidade. É
indispensável, para compreender os debates modernos que se
desenrolaram em tom o dos Pré-Socráticos, de rem ontar aos an­
tigos pré-socráticos, que eu proponho chamar, por convenção,
"pré-socráticos” (sem maiúscula e com um hífen), para distingui-
-los da categoria historiográfica que eles contribuíram a forjar,
mas na qual eles não se deixam inteiramente^ubsumir.jSe incon­
testáveis similitudes fazem dos antigos “pré-socráticos” os ances­
trais naturais dos nossos modernos Pré-Socráticos, as diferenças
entre uns e outros não são, com efeito, menos importantes, em
particular pela natureza das questões das quais eles foram res­
pectivamente objetp.
— A Antiguidade conheceu duas maneiras de conceber a linha
divisória entre o antes e o depois de Sócrates: ou Sócrates aban­
donou uma filosofia da natureza em proveito de uma filosofia do
homem (é a perspectiva que eu chamarei socrático-dceroniana,

Eberhard, 1796 (1788), 47. A referência é assinalada po r Paquet, em Paquet/La-


que inclui igualmente Xenofontel. ou bem ele passou de uma
filosofia das coisas a uma filosofia d o cdnceito (é a tradição platô-
nico-aristotélica). Embora uma ponte tenha sido providenciada
entra essas duas tradições, principalmente por Platão no Fédon
(um texto tão complexo quanto decisivo para a posteridade dos
Pré-Socráticos), elas divergem não somente no seu teor, mas
também, e mais ainda, nos seus efeitos: enquanto a primeira não
enfoca senão certa ruptura, da segunda, ao invés, deriva, para
além dela, o fio de uma continuidade mais profunda. Essa dissi-
metria, que pode ser objeto de diversas especificações, é essen­
cial para compreender o destino moderno dos Pré-Socráticos
Convém que lhe explicitemos os term os. "
4 Λ tradição socrático-dceroniana está fortem ente ligada, ene
sua origem, ao processo de Sócrates-<399), e à necessidade err
que esta se encontrou, para responder à acusação de impieda
de da qual ele era, entre outras, objeto($le m arcar sua diferença
com relação a um empreendimento conhecido, desde os anos
430 pelo menos, sob o nome de "investigação sobre[anatureza^
(p a i phuseôs história).
— O Fédon implica, sem dúvida, o fato de que, na data dramá­
tica em que se desenrola o diálogo (que se pretende que tenha .
se desenrolado no próprio dia da m orte de Sócrates), a fórmula
I "investigação sobre a natureza" era ainda percebida com o uma
( expressão técnica, e não se exclui que tal fosse ainda o caso na
data da redação do diálogo, uma quinzena de anos mais tarde,
aproximadamente. O Sócrates do Fédon fala, com efeito, do “de­
sejo de todo extraordinário" que ele tinha experimentado em sua
juventude, "do saber que era cham ado investigação sobre a natu­
reza" (grifo nosso), do qual ele esperava que lhe viesse o conhe­
cimento “das rflpsag dp r ada rnig3[ Ho porquê rada uma pasrf»,
do porquê ela perece, e do porquê ela éljj^2 A precisão “que era
evocada” implica, talvez, algo mesmo com o uma novidade.1

1Fédon, 96 a.
«a
Introdução à " filosofia pré -socrática”

De fato, nenhum dos textos que fazem referenda a tal “in­


vestigação sobre a natureza” se refere a tun período anterior ao
último terço do século~\^É também por volta dessa época, e isso
não se dá evidentemente por acaso, que o título "Sobre a nature­
za” se difunde e vem a ser aplicado, em alguns casos de maneira
anacrônica, a antigas obras que se enquadram (ou que tendem a
se enquadrar) nesse g p n erO jj/
No capítulo XX do tratado hipocrático Antiga M ediana (no
qual se encontra a primeira ocorrência conhedda do term o abs­
trato philosophia; retornarem os a este ponto), um médico parti­
dário dos métodos tradicionais tom a suas distâncias com relação
aos escritos “sobre a natureza”, considerados demasiado esge:
culativos, em razão das pressuposições (ou "hipótese?1) que eles
são levados a adotar, e lhes opõe a investigação médica com o úni­
ca fonte legítima para o conhecimento da natureza do homem :34

O discurso dessa gente vai na direção da filosofia, como Empédo-


cles ou outros autores sobre a natureza escreveram, remontando
à origem, sobre o que é o homem, como ele primeiramente nas­
ceu e a partir do que ele adquiriu consistênda. Mas eu estimo que
tudo o que foi escrito sobre a natureza por certo estudioso ou
certo médico se encontra menos em relação com a arte médica
que com a pintura,5 e eu estimo que para ter algum conhecimen­
to preciso sobre a natureza, não existe nenhuma outra fonte que
não seja a medicina... Eu digo que este estudo (tautêti tên histo-
riên) conhece com exatidão o que é o homem, as causas de sua
formação e todo o resto...

3 "Todos os escritos dos antigos se intittdam ‘Sobre a natureza’, aqueles de Melisso,


de Pairmênides, de Em péd od es, de A lcm éon e de G órgias, de Pródico e de todos os
outros”. G aleno, S obre os elem en tos segundo H ipócm tes, 1,9 (1 ,4 8 7 , Kühn). Sobre a histó­
ria do título, ver Schm alzriedt, 1970.
4 Para a datação do tratado, que foi ob jeto de discussão, ver as conclusões de Jou-
anna, 1990, 85. A referência a E m péd od es não apenas fornece um term inus p ost quem ,
m as ela sugere um a atualidade recente.
3 Sobre o sentido da estranha com paração entre filosofia e arte pictórica, ver cap.
3, p. 71-73.
A segunda passagem é um fragmento de Eurípedes que se
atribui de bom grado a uma tragédia perdida, Antíope, da qual
se sabe que continha um debate entre dois irmãos, Amphion e
Zethos, célebre na Antiguidade, sobre a utilidade e o valor da
música, e, por extensão, do estudo:

(o coro fala^/Bem-aventurado aquele que, tendo adquirido o co­


nhecimento que proporciona o estudo (tês histórias ... mathêsin),
não aspira nem à infelicidade dos cidadãos nem às ações injustas,
mas observa o ordenamento sem envelhecimento da natureza
imortal, como ela se formou, a partir de onde e como. De tais
pessoas, nuncTsèliproximac>pensamento de ações vis “ ”

A terceira passagem é tirada de uma argumentação dialética


anônima conhecida sob o título de Argumentos duplos:*7

Eu penso que cabe ao mesmo indivíduo e às mesmas artes o po­


der discutir em poucas palavras e o conhecer a verdade das coisas,
o saber julgar corretamente e o ser capaz de falar em público, o
conhecer as artes do discurso e o ensinar a respeito da natureza de
todas as coisas, como elas acontecem e como nasceram.

Seguindo esses três textos, que remetem à passagem do Fé-


don e se remetem uns aos outros, o “estudo sobre a natureza"
com porta duas características principais. De uma parte, ele visa
uma totalidade (ele se reporta a “todas as coisas" ou ao “todo").
De outra parte, ele adota uma perspectiva claramente genética
(ele explica o estado de coisas existentes retraçando a história de
seu devir desde as origens).

* Fr. 910, Snell. Platão fez alusão a esse debate n o Górgias, por ocasião do confronto
entre Sócrates e C álides (484 e, 485 e, 489 e). Sobre a proveniência do fragm ento, ver
Kambitsis, 1972, p. 130. A peça é geralm ente datada dos anos 410 (Kam bitsis, 1972,
X X X I e s.). Jo u an e Van Looy, 2002, p. 220s. D efendem , com base em considerações
m étricas, um a data um pouco mais alta, en tre 437 e 419.
7 D issoi L ogoi, § 8 ,1 . E u m e atenh o à datação tradicional desse texto. Bum yeat, 1998,
sugere que se trata de u m exercício pirrônico, logo da segunda m etade do século IV
I _ Introdução à " filosofia pré -socratica —

Distingue-se muito bem as etapas que, ao term o de um pro­
cesso de cristalização rápida, viriamja transformar os autores de
^ tra ta d o s sobre “a natureza de todas as coisas” em "naturalistas”
ou "físicos” (physikoi).yX enofonte, em uma passagem dos Memo-
ráveis que faz eco àquela do Fédon, recorre ainda a uma fórmula
circunstanciada quando, no contexto de uma defesa de Sócrates,
à qual voltaremos logo mais, sustenta que "Sócrates nunca se
nrypfiva m m n a mainr parte dos homens, dú. tMtureZã dã totali­
dade das coisas (pari tês tôn pantôn phuseôs), examinando o que é o
que os estudiosos denominavam 'mundo' (hopôs ho kaloumenos
hupo tôn sophistôn kosmos ékhei), e por quais jiqcessidades cada
um dos fenômenos celestes vem a ser”.9 No Listas de Platão, a
menção da^totãEdãdè^ figura (nomeada porjouiroutermo^feo-
lon, do qual o grego dispõe para designar cfconiunto das coisas^>
mas dissociada da "natureza”: os rfsábios”, que sustentam, com
Homero, “que é necessário que o semelhante seja o amigo do
semelhante”, são apresentados com o "falando e escrevendo so­
bre a natureza e-snhre. n tndo” (hoi peri phuseôs te kai tou holou
dialegomenoi kai graphem es).1? M^s depois do Fédon, a referência
à natureza tende a se tornar autônoma. Assim, Sócrates se inter­
roga no Filebo:

E se alguém cogita em conduzir investigações sobre a nature-


za (peri phuseôs... zêtein), você sabe que ele investiga por toda a
sua vida o que se reporta a este nosso mundo, como ele nasceu,
como ele é afetado e como ele age? (ta peri ton kosmon tonde, hopéi
te gegonen kai hopêi paskhei kai hopêi poiei).11

‘ Eu prefiro "naturalista" a "físiço", que decalca o grego. M as não é possível evitar


"físico”, em razão do dom ínio coberto.
9 M em oráveis, 1 ,1 ,1 1 . O "m undo” (kosm os) aparece tam bém co m o um a expressão
técnica, com o o indica a expressão ho kaloum enos kosm os, co m o o tipo de estudo que
o tom a por objeto.
10214 a-b.
11 F ilebo, 59 a. A expressão original se lê,'entretanto, no T im eu, 47 a (h i p eri tis tou
pan tos phuseôs z itêsis).
Q tí

Esse tornar-se autônomo conduz à soleira das substanti-


"vações de Aristóteles, que emprega com muita frequência, e de
maneira sinônima, "os autores (de tratados) sobre a natureza”
(hoi peri phuseos), "os naturalistas” (Tioi phusikoi), ou ainda "os fi-
siólogos” (hoi phusiologoi).^
De tato, existe, entremos pensadore^ pré-socráticos) uma
linhagem de obras que correspondem a essa descrição, cujo
esquema fundamental remonta muito provavelmente a Anaxi-
•mandro.13 Trata-se de uma história geral do universo e de suas
partes constitutivas, desde seus inícios até um term o que parece
ter sido, no mais das vezes, para além do estado atual do mundo,
o momento de sua destruição (seria, pois, mais exato falar de
"cosmo-gono-phthories”, que de simples cosm ogonias)/^. nar-
rativa^comportava certo número de elementos mais ou menos
o b rigatório s^ e Anaximandro a Filolau e Demócrito, passando
por Anaximenes, Parmênides (na segunda parte de seu poema),
Empédocles, Anaxágoras, Diogenes de Apolônia, e de outros de
. ainda menor importância, as grandes narrativas "sobre a nature­
za*' compreendem uma explicação da maneira com o o universo,
os astros e a terra se formaram, e. logo depois, o tratam ento de
problemas mais técnicos ou especializados com o a delimitação
das zonas celestes e terrestres, a inclinação dos polos, a distância
Ie a grandeza dos astros, a luminosidade da lua, os fenômenos
meteorológicos e terrestres, com o chuvas e granizos, sismos e
marés, a aparição dos seres vivos e sua reprodução, a diferencia­
ção sexual dos embriões, o mecanismo da vida fisiológica, sono
e m orte, sensação e pensamento, e, eventualmente, o desenvol­
vimento da vida em sociedade. £ m resumo, uma cosmogonia e
uma cosmologia, uma zoogonia e uma zoologia, uma antropo-

u As referências podem ser encontradas n o index da edição Bonitz (hot p eri phu seos,
838 b 26 e s.; phu siologoi, 835 b 40 e s.; h oi p h u siko i, 835 b 3 e s.).
13É o sentido do título de Kahn, 1994 (1960): A naxim ander an d th e O rigins o f G reek
Cosm ology. T em os todas as razões para pensar que o em preendim ento de Tales não
apresentava esse caráter sistem ático.
logia e uma fisiologia (ria acepção moderna do term o)] poden­
do eventualmente se prolongaFim uma histona da civilização
humana.14
Desse conjunto, certos textos antigos retêm essencialmente
o aspecto cosmológico, e falam de "m eteorologia” e de "meteo-
rólogos”: os meteora.' que antes que a distinção aristotélica entre
uma região supralunar e uma região infralunar não tendesse a
lhes confinar ao domínio único dos fenômenos "meteorológicos”
(e geológicos), designavam todo fenômeno que se produzia “nas
alturas”, representando por sinédoque o todo da enquete sobre a
n atu reza^ a cena inicial do Protagoras de Platão, o auditório di­
rige ao sofista Hípias “certas questões astronômicas a respeito da
natureza e das alturas”.15 E é unicamente em relação às “alturas”
que o autor do tratado hipocrático Das carnes (que sobre esse pon­
to se opõe ao autor da Antiga m edicina) tinha demarcado o campo
da medicina com relação àquele da investigação dos naturalistas:

Eu não preciso falar das alturas (peri ton meteonm) senão o sufi­
ciente para mostrar, a propósito do homem e dos outros viven-
tes, como eles nasceram e se formaram, o que é a alma, o que é a
saúde e a doença, o que é o mal e o bem no homem, e por quais
razões ele morre.16

Mas é claro que a série de questões que Sócrates enumera
no Féãon, que teriam suscitado a paixão de seus anos de juventu­
de, provém também das matérias abordadas pelos naturalistas,
no quadro de um program a totalizante:

É o caso de que os animais se formem quando o quente e o frio


sofrem uma forma de apodrecimento, como alguns o dizem? E

14 Naddaf, 1992, sustenta que a narrativa do desenvolvim ento da dvilização hum a­


na é um m om ento obrigatório do gênero (p. 45, cf. 64, a propósito de Anaximandro).
O tem a parece antes ter feito parte, e mais tardiam ente, de desenvolvimentos faculta­
tivos, que autorizavam naturalm ente o paradigma.
15 P rotagoras, 315 c 5 e s .
“ D as carn es, 1 ,2 (trad. R . Joly ).
é pelo sangue que nós pensamos ou pelo ar e pelo fogo? Ou por
nenhuma dessas coisas, mas é o cérebro que proporciona as sen­
sações da audição, da visão, do olfato, enquanto desses últimos
nascem a memória-e a opinião, e da memória e da opinião, quan­
do elas se estabelecem, o saber? Eu examinava, também, inversa­
mente, as destruições desses processos e o que acontece no céu
e na terra...17*

—“ De maneira significativa, as matérias conservadas por Só­


crates concernem à fisiologia do conhecimento, com o se Sócra­
tes tivesse antes mais se interessado por questões que possuíam,
pelo menos virtualmente, um alcance epistemológico, que por
aquelas referentes à estrutura do universo.
# O naturalismo, nascido na Jônia, e principalmente em Mi-
leto, no século VI, foi introduzido em Atenas por Anaxágoras,
chamado por Pérides em 456-455 para fazer parte do seu círculo
mais próximo.X È le se tornou logo objeto de suspeita. Um ou­
tro fragmento de Eurípedes, de procedênda incerta, mas que se
apresenta como o contraponto do elogio da vida de estudo pro­
nunciado por Anfionte na Antíope, dá o tom :

Quem é a tal ponto desdenhpso a respeito dos deuses e atingido


pelo destino para, diante desse espetáculo [aquele do céu], não
instruir sua alma na crença no deus, nem afastar para longe de si as
tortuosas ilusões dos quefalam das alturas, aqueles cuja língua teme­
rária não faz senão lançar conjecturas sobre as coisas escondidas,
sem compreensão alguma?19

O debate acerca do caráter inócuo ou das desfeitas da m eteo­


rologia não tinha nada de teórico. O decreto de Diopeites, que
permitia j>erseguir aqueles que se ocupavam das alturas sob a
acusação de impiedade, data de 438-437. Anaxágoras, através de

17 96 b 1 - c 1.
“ Eu adoto aqui a cronologia defendida por Mansfeld, 1979 e 1980 (cf. respectiva­
m ente, p. 55s. e 87s.).
quem se visava Péricles, foi sua primeira vítima no ano seguinte,
por ter sustentado que os astros não passavam de pedras ígne-
_as^ Diógenes de Apolônia parece ter sido, também, indesejável
em Atenas, onde sua doutrina parece ter gozado de um grande
sucesso, e não é impossível que ele tenha sido objeto de acusa­
ção, alguns anos depois de A naxágoras.^Ò ra, por mais curio­
so que isso possa parecer, pelo tanto que isso não se enquadra
na imagem que nós fazemos de Sócrates com base na Apologia
2 è Sócrates de Platão e nos memoráveis de Xenotonte,/Sócrates
era suspeito de compartilhar a curiosidade dos naturalistas so­
bre os .mecanismos do universo e, portanto, sua impiedade. O
documento-chave a esse respeito é constituído pelas Nuvens de
Aristófanes, representadas em 423 a.C ., que a Apologia de Sócra­
tes denuncia explicitamente com o o primeiro ataque via de re-
gra contra Sócrates, aproximadamente 25 anos antes do proces­
so de 399 .2
21
0
% De fato, as Nuvens, antecipando os dois term os da acusação
a que Sócrates tinha que responder - a corrupção da juventude
e a^introdução de deuses desconhecidos da cidade - , apresen­
tavam um Sócrates indissodavelmente "sofista”, mostrando-se
capaz de fazer do argumento “mais fraco” o argumento “mais
forte", e “naturalista", portando através de um cesto suspenso
fragmentos parodicamente arrancados à doutrina de Diógenes
de Apolônia, que afirmava que o ar das alturas era dotado de
uma inteligência tanto maior quanto mais seco ele era .22
A Apologia denuncia o amálgama com o o fruto de uma pura
calúnia: ninguém viu Sócrates se ocupar “do que está sob a terra
e no céu ”.23 Os Memoráveis de Xenofonte o repetem:

20 Nossa única fonte de inform ação é Diógenes L aérdo, IX , 57. O s fotos são discu­
tíveis (ver Laks, 1983, p. 76s.).
21 Platão, A pologia d e S ócrates, 18 a-b, 19 a-c.
22 N uvens, 225-236. R em onta a Diels, 1969 (1881), a identificação da linguagem do
Sócrates das N uvens co m aquela de D iógenes. Ver, tam bém , Vander W aerdt, 1 9 9 4 ,61s.
2319 c. Cf. Nuvens, 180-195.
Ninguém viu Sócrates agir ou o ouviu dizer qualquer coisa de
ímpio e de irreligioso. Pois ele nunca se ocupava, como a maio­
ria, da natureza de todas as coisas, examinando o que disso é o
que os sábios chamavam a "ordem do mundo" fkosmos), e por
quais necessidades cada um dos fenômenos celestes advêm.24

—- Longe de se envolver com as "coisas divinas”, com o o faziam


os naturalistas, o interesse de Sócrates é resolutamente voltado
para as “coisas humanas” (ta anthrôpina), o bem do homem e a
prática da virtude. Tanto em Xenofonte quanto na Apologia de
Platão. Sócrates ocupa o lugar de primeiro "humanistjt” - um hu­
manismo que se distingue por sua recusa resoluta de toda especu­
lação física. É o que diz, também, de maneira ao mesmo tempo
mais tradicional e menos transparente, a fórmula bem atestada
segundo a qual Sócrates se ocupava não de física, mas de ética.25
A oposição simples e retoricamente eficaz entre “naturalis-
m a” pré-socrático e "humanismo” socrático visava, em primei­
ro lugar, m arcar uma diferença tipológica entre duas formas de
orientação intelectuqK Mas ela oferecia também a via para uma
interpretação historiográfica. em virtude da qual uma orienta­
ção sucede à outra. O Fédon desenvolve, além do mais, uma ima­
gem mais complexa da relação entre Sócrates e a antiga física
que aquela que a_Apologia e os Memoráveis, por razões compreen­
síveis, evitaram mencionar, a sabeç^ u e Sócrates teria ele mesmo
conhecido, em seus primeiros tempos, uma fase naturalista. Nós
já encontramos a frase: /"Q uando eu era jovem, eu sentia um
desejo totalmente extraordinário por esse saber que denominam
estudo da natureza. Pois me parecia grandioso conhecer as cau­
sas de cada coisa, por que cada uma nasce, por que perece, e é~^?Tl
A tradição doxográfica oferece contornos mais precisos a essa
assertivq/é[uando ela faz de Sócrates o discípulo de Arquelau, ele
próprio um naturalista situado na vertente de Anaxágoras, mas
que teria também tratado de ética (esse último traço estando tal-

« 1, 1, 11 .
25D iógenes L aérdo, 1 ,18; II, 20-21. Cf. tam bém in fra, p. 30, n. 1.
vez destinado a facilitar a passagem).“ Platão era perfeitamente
capaz de construir uma ficção biográfica para as necessidades da
causa.^^or outro lado, talvez a ideia de um Sócrates físico não
seja desprovida de plausibilidade, não somente de um ponto de
vista intrínseco (não com eçamos todos nós de alguma parte an­
tes de nos separarmos dela?), mas também porque ela permite
compreender que Aristófanes podería ter atribuído a Sócrates a
doutrina de Diógenes, mesmo se em 423 Sócrates, então com
46 anos e já célebre pelo que ele era, não mais se interessava
. çertam ente por especular sobre a c a n s a d o s f p n A m ^ n ™ naturafr
O importante, do pqnto de vista da historicizacão dos pré-socrá-
ticos, é, em todo caso, que, se o Sócrates do Fédon não pratica
a especulação física, não é somente porque isso lhe é estranho,
mas também e sobretudo porque ele já se tinha dessa afastado.
r^=^As duas épocas da história do pensamento que distinguiram as
^'histórias da filosofia, antes de Sócrates e depois dele, são aptes de
mais nada duas épocas da vida de um só e mesmo Sócrates, que
foi naturalista antes de ser ele p ró p rio / 7__
O uso quase historiográfico dos Pré-Socráticos, dissociado
de considerações biográficas, é pela primeira vez plenamente
atestado no prólogo do 5 o livro das Tusculanas de Cícero, que,
em razão de sua grande difusão (e aparente simplicidade), foi
sem dúvida o texto historicamente mais influente para a consti­
tuição dq, conceito m oderno de Pré-Socráticós·"
=a^ Esse prólogo contém um vibrante elogio da filosofia, en­
quanto filosofia prática. Não somente a filosofia sustenta que
a virtude basta à felicidade (uma asserção da qual Cícero tinha
total razão para apreciar os méritos, na situação particularmen­
te difícil em que ele se encontrava no m om ento da redação da
obrá^m as ela está, também, na origem do conjunto dos bene­
fícios do qual usufrui a humanidade. É, com efeito, à filosofia

“ Diógenes L aérd o, II, 16. Vander W aerdt, 1994, p. 61s., baseando-se em Aristófa­
nes, adm ite que Sócrates foi “diogeniano".
17 U m exem plo célebre é o en con tro que ele prom ove entre um velho Parm enides
e um jov em Sócrates n o início do P arm enides, 126 c.
que se deve a formação das cidades, com todos os liames sociais,
culturais, legais e morais que a vida política supõe.28 Não há se­
não os incultos para ignorar que “aqueles que pela primeira vez
organizaram a vida dos homens eram filósofos".29 A história da
filosofia, em uma tal perspectiva, é coextensiva com a história da
civilização.
^ ' Cicêrõ distingue três etapas. Quando da fase primitiva do
1 desenvolvimento das sociedades, os filósofos existem, mas sob
outro nome, aquele de^Çsábios",) Esses são não somente os “Sete
sábios" ^àos quais existia uma lista tradicional, e mais ou menos
fixa, mas também figuras míticas ou quase míticas tais como
Ulisses, Nestor, Atlas, Prometeu, Cefeu ou, ainda, Licurgo. É a
‘Q^itágõrãs-que é atribuído a alcunha de ter sido o primeiro a intro-
duzir o term o “filosofia", por cuja via a sabedoria adquire outro
^ru m o /Como Pitágoras o explica ao tirano Leon, intrigado pelo
neologismo, enquanto os sábios se encontram engajados em sua
atividade civilizadora, os filósofos se aplicam à “teoria”, observan-
do por observar, sem ser guiados por nenhum motivo que não
seja a satisfação que essa observação lhes proporciona^Á. analo­
gia é célebre: do mesmo modo que uma prova esportiva reúne,
além dos atletas que lutam pela glória e dos mercadores e clien­
tes atraídos pelo comércio, os espectadores que vieram admirar
a competição, existe também, nesta vida, além dos ambiciosos e
dos negociantes, o pequeno grupo daqueles que, “tomando todo
o resto por nada, examinam cuidadosainente a natureza das coi­
sas": são eles os puros "teóricos" aos quais chamam “filósofos”.30
Na apresentação que deles nos faz Cícero, Pitágoras alia
ainda em si “sabedoria” ^"filosofia”: ele não forneceu antes a
Leon a explicação requerida que ele foi legislar na Grande Gré-

“ T usculanas, V, 5.
° T usculanas, V, 6 .
\^ ( í í c ero7~TusãdànãSy V, 3, cf. D iogenes L aérd o 1 , 12 ( = Heráclides Pôntico, fr. 87,
' W ehrli). C íce ro não se refere aqui à distinção platônica entre um a “sabedoria” que
seria o privilégio dos deuses e um a “aspiração à sabedoria” (ou filosofia), que seria
assunto unicam ente dos hom ens.
áa^Mas, por natureza, a atividade teórica tem vocação para a ex­
clusividade/Ò s filósofos posteriores a Pitágoras não são mais do
que homens ?áhir>g, rfegrU <»nfãn p«aranhA< à* qi»»<;trn»g práfu-ag-
É a Sócrates que caberá de os reintroduzir no campo da filosofia
que ele conduz, assim, segundo uma fórmula célebre, "do céu
para a terra” onde ela se encontrava enraizada em sua origem,
mas da qual ela tinha nesse ínterim se afastado.
------Embora Cícero não hesite em identificar o conjunto dos
filósofos p0 s^ajMejj(aais\ e pré-socráticos a meteorologistas, ou
mesmo a astrônomos, a periodização su geracerto alargamento
do conceito deJjiatureza”. Com efeito, por mais numerosos que
sejam, entre os pensS3?5res anteriores a Sócrates, aqueles que
correspondem às características da "investigação sobre a natu­
reza^, isso não é o caso de rodos Nem Parmenides ou (ainda
menos) seus discípulos Melisso e Zenão, nem Heráclito são na­
tural™^ « ηη s<»nriHr> acima: em graus diversos, e cada
um à sua maneira, seu propósito é muito mais de recolocar çm
questão a legitimidade de tal investigaçãq^ n tretan to . o concei­
to de ^natureza” é suficientemente complexo para que pensado­
res que não se dedicavam de modo algum, ou não essenrialmen-
te, am vestigação sobre a natureza" pudessem jser considerados
com o "naturãlíStas’\^Xenofonte já explicava que uma das razões
da hostilidade de Sócrates a respeito dos "naturalistas” se devia
.^às incertezas das quais seu pretenso saber estava carregado, e so­
bre as quais testemunhava sua divergência de posição quanto à
questão de saber qual é o número dos seres^JOra, de maneira à pri­
meira vista surpreendente^são aqui considerados com o "natura-
listas” não somente aqueles que praticam a investig^ãojob rea
L natureza, mas também aqueles que negam a existência de todo
movimento, e logo dos processos "naturais” da geração e da cor-31

31 Xenofònte, M em oráveis, I, 1, 14. A questão figura já n o S ofista de Platão, 242 c 5


(“Q uantos seres existem e em qual núm ero?”), cf. Isócrates, Sobre a troca, 268. Mans­
feld, 1986, set. 4 e 5, insistiu quanto à im portância destas listas pré-aristotélicas. Cf.
F ísica, 184 b 2, para a história da doxografia antiga.
—i P ré -Socráticos: os antecedentes antigos
Xrm
^X
ii e t?*
a

rupção (trata-se de Parmênide^e de seus discípulos eleatas). “En­


tre aqueles que se preocupam com a natureza de todas as coisas, uns
pensam que o que é é unicamente uno, outros que ele é infinito
' em número; e alguns que tudo se modifica sempre, outros que
nada podería alguma vez se m odificar, alguns que tudo nasce e pe­
rece* outros que nada podería alguma vez nascer e perecer.“32
1 Para que os eleatas possam se tornar "naturalistas", é preci­
so que o sentido do term o "natureza" não recubra exatamente
aquele do Fedor^ É fácil reconstruir a lógica do deslizamento que
faz passar de um sentido estreito a um sentido njais geral. "Na­
tureza” (physis) pode em grego rem eter não somente aos proces-
sos _de .gênese e de corrupção, isto é, a fase visível ou oficial da
investigação sobre a natureza, mas também à "natureza" que se
desenrola e subsiste através desses processos - o que Aristóteles
chamará "princípio" (arkhé) ou "substrato" (hupokeimenon) “do
qual são feitos todos os serés,"3oqual eles provêm inicialmente e
ao qual eles retom am finalmente” y ^ á sta desde então interpre­
tar ontologicamente .essa “natureza” originária, reconhecendo
nela “o que é verdadeiramente” (por oposição às coisas ou aos
compostos que a partir dela vieram a ser), para que o estudo
da natureza possa incluir até mesmo a tese dos que recusam ao
"que é”, isto é, à "natureza” em um sentido, todas as determi­
nações da “natureza” em um sentido mais restrito. É bem essa
concepção ontológica da natureza que Xenofonte, ou sua fonte,
põe com o base do debate entre naturalistas, uma vez que esse
não se volta para o céu e para os fenômenos naturais, mas para
• o número e a qualidade dos seres. É/assim que os pré-socráticos
são também os primeiros ontologistasí^
A Antiguidade nunca adotou oficialmente a classificação
apresentada aqui: os naturalistas permaneceram, em regra ge-
__tal, naturalistas stricto.sensu, mesmo se a tradição antiga reporta

521 ,1 ,14-15; o itálico é meu.


MA ristóteles, M etafísica, 983 b 8-10. Essa "substância” (ou sia) é cham ada "principio”
e m b 11, "natureza” e m b 13. O term o "su bstrato" é utilizado e m b 16. Cf. 984 a 30-32.
que os escritos de Parmênides e mais ainda os de Melisso se in­
titulavam "Sobre a natureza”, com o aqueles dos "naturalistas”.34
^Aristóteles. mesmo dispondo de um conceito de ^aturezajiufi-
dentem ente diferendado para justificar a passagem de unrsentF"
do ao outro de pfeyrâ,JreSpeita em toda parte a distinção entre a
maioria dos antigos filósofos, constituída pelos “naturalistas”, e
os outros, que recüsam a natureza (os eleatas de maneira geral)
ou não aceitam o conceito sènão defendendo a si mesmos (Par-
mênide^ Ã ü ègigênda de afirmar, de seu próprio ponto dé vista,
l i m i t e s nítiHns para a física, distinguindo^a tanto da dialética e
das matemáticas quanto da filosofia primeira, o impelia a manter
a diferença, mesmo se ele não forjou denominação genérica para
o segundo grupo. Somente o cético Sexto Empírico, em uma
passagem que sé refere, à demarcação aristotéUca. dá aos Elea-
tas os nomes de "imobilistas” (stasiôtai) e de "não-naturalistas”
(aphusikoi).35
A tradição socrático-ciceroniana se caracteriza pelo fato
de que ela situa a ruptura entre Sócrates e seus predecessores
no nível de um c erto CeçnteúdOy)ou senão ligado a uma atitude
epistemológica definida: antes de Sócrates,' a natureza, o céu e,
de maneira mais geral, o ser, em uma perspectiva puramente
teórica; com Sócrates, o homem, sua ação e a m oralidade, na
perspectiva de uma filosofia essencialmente A tradição
platônico-aristgtélica, por contraste, situa a ruptura no nível dõ~J~
m étodo, isto é, Jo s instrumentos que permitem pensar os cori-j
teúdòs: dir-se-á que ela atribui a Sócrates um pensamento de
segunda ordem, por oposição ao pensamento de primeira or­
dem característico de seus predecessorey Esse deslocamento na
direção de questões epistemológicas, qúe é evidentemente tão
grosseiro de uma reinterpretação dos pré-socráticos quanto do
próprio Sócrates, é pela primeira vez posto em ação no Fédon
de Platão, que, do modo com o o esboça, com a teoria dos con-

34 Ver su pra, p. 16, n. 2.


“ C ontra os fís ic o s II (= A dversus m athem aticos, X ), 46.
tráríos e da causa formal, as categorias diretrizes da física aris-
totélica tais com o elas são desenvolvidas no primeiro livro da
Física, pavimenta também o caminho para a história essencial­
mente continuísta dos inícios da filosofia que Aristóteles contará
no primeiro livro da M etafisica, tudo se passando com o se, na
sequência de um p r o c e s s o já e n c e r r a d o e da m orte iminente de
Sócrates (com o eu o lembrei acima, o Fédon se desenrola no dia
mesmo da sua execução), Jornava-se possível desenvolver uma
visão f i l o s o f i c a m e n t e m a j s equilibrada que lhe autorizavam as
necessidades da defesa.
Na narrativa que ele faz de seu próprio desenvolvimento in­
telectual, e que constitui uma longa digressão no seio do último
de seus argumentos em favor da imortalidade da alma, Sócrates
evoca as circunstâncias que lhe conduziram a desenvolver uma
teoria da causa formal, uma vez constatados os impasses da física
pela qual ele tinha primeiramente se apaixonado e sua própria
incapacidade de identificar a causa final (é a metáfora da “segun­
da navegação”).36 Ora, por mais profunda que ela seja, a ruptura
com a antiga física não se efetua aqui senão no fundo de um
projeto filosófico compartilhado.
Cebes acaba de formular uma objeção contra o último argu­
mento de Sócrates: estabelecer que a alma preexiste ao nosso nas-
cimento, observa Cebes, não permite de modo algum concluir
acerca de sua imortalidade.)Pode acontecer que a alma, mesmo
tendo preexistido, seja no~5nal das contas corruptível, e que sua
entrada em um corpo marque o início de um processo de dete­
rioração que conduziría inelutavelmente à sua destruição, êlsso
mesmo se tivéssemos que admitir que ela perdura certo tempo.
— Responder à objeção, reconhece Sócrates, não é uma tarefa
pequena. Isso supõe, "de maneira geral, uma pesquisa aprofun­
dada sobre a causa da gênese e da corrupção”. Mas a “investi­
gação sobre a natureza”, da qual tal é oficialmente o objeto (ela

“ Fédon, 9 9 c-d. S e não há vento, rem arem os (segundo a interpretação que disso
oferece M enandro, fr. 241, Knock). N a falta de fim , a form a.
fala do “que nasce e perece”37)» não é competente na matéria.
—Longe de explicitar a causa (aitioti) dos processos de geração e de
corrupção, ela não faz senão tratar das condições materiais que
são necessárias à sua efetiVàçao, o que Platão denomina tecnica-
_m rnt? ít “afinnnr nu "causas coadjuvantes” (sunaitia ).38
De fato, somente a causa que Aristóteles denominará “aquilo èm
vista do que” (a causa final) responde ao que Sócrates compreen­
de aqui sob o nome de causa. Eis por que ele depositou por um
momento suas esperanças em ^ g axágoraS) o único naturalista
a se distinguir, no texto dd Fédon, da massa anônima dos outros
por ter sustentado queÇlf^ inteligência organizou o mundo e é
causa de todas as coisas”.39 O problema é que essa^ãfirmaçãoT
" e m Ãnaxágoras, não é, na leitura que dela faz Sócrates, seguida
de nenhum efeito, se é verdade que a formação do muhdo é aí
explicada por aquilo que Sócrates, servindo-se de um plural de
desdém, chama de “ares, éteres, águas, e outras numerosas enti­
dades estranhas”.40
. A segunda navegação, voltada “para a investigação da
causa”,41 não leva, entretanto, diretamente à causa
toma a via de um procedimento hipotético que se apoia em uma
teoria da causa formal (as Formas como causa) y ó argumento
através do qual Sócrates estabelecerá, para finalmente responder
a Cebes, a incorruptibilidade da alma, consiste em dizer que nem
uma Forma ela mesma, com o a frieza, nem alguma entidade de­
pendente da presença de tal Forma, como a neve, não poderíam
acolher nelas uma Forma contrária (nesse caso, o calor). De duas
coisas uma: elas deverão “seja perecer, seja se retirar”: perecer,
se a entidade em questão é perecível, como a neve; retirar-se, se
a entidade em questão é por essência ou definição subtraída da

37 F idon , 96 a.
33 Tim eu, 46 c-d.
39 F édon , 97 c.
90 F id on , 98 c.
41 F édon , 99 d.
m orte. Ora, essa última hipótese se aplica à vida, cujo conceito,
segundo Sócrates, implica analiticamente a “imortalidade”. A
alma, que é dela o princípio, será ela também imortal, e portan­
to "incorruptíver.
------ Esse argumento, que podemos chamar "biológico” (como
se fala do argumento ontológico), invoca bem, em uma de suas
etapas, exemplo de comportamento prático, derivado da “ética”:
se Sócrates permanece na prisão não é por causa de seus ossos
e de seus músculos, que não são senão condições necessárias,
-mas porque ele pensa que isso é um bem ^JO emprego desses
_filosofemas distintivamente platônicos faz que a passagem dos
pré-socráticos a Sócrates coincida com aquela _de um Sócrates
puramente socrático a um Sócrates distintamente platônico .43
O argumento principal, ao qual esse exemplo está subordina­
do, não diz respeito aos afazeres humanos. Ele esboça antes os
contornos de uma nova física, cuja marca distintiva seria de ser
teleologicamente estruturada.44No horizonte da “segunda nave­
gação” do Fédon se situa o Timeu, que, restabelecendo o víncu­
lo com o projeto cosmológico dos "naturalistas”, constitui um
momento decisivo da “naturalização” do Sócrates da Apologia.
O m ito escatológico final do Fédon, com a descrição geográfico-
-cosmológica do mundo em que as almas se repartem depois da
m orte, incluindo uma hidrologia à qual Aristóteles pode se refe­
rir em suas M eteorológicas,4Ϊ é uma perfeita expressão da "natura­
lização” platônica de Sócrates.
Aristóteles não seguiu Platão nesta via, que apaga indubi­
tavelmente o que Sócrates tinha de distinto em proveito de uma

“ F édon , 98 e.
43 Sobre a platonização de Sócrates n o relato autobiográfico do Fédon, ver Ba-
but, 1978.
44A relação que a causa form al pode entreter com a causalidade final, cuja exigência
tinha sido form ulada na crítica a Anaxágoras, não é abordada. Isso não é naturalm ente
u m acaso: a questão é um a das cruzes do platonism o. Mas as duas causalidades, for­
m al e final, estarão, co m o conceito de contrariedade, n o centro da Física aristotélica.
45M eteorológicas, 355 b 33 - 356 a 33.
^jrob lem ática que não é a sua.| Ele não retoma dele tampouco a
ideia de que os pré-socráticos e Sócrates estão engajados em uma
mesma pesquisa, cujo objeto é, não o que nasce e perece, mas,
mais geralmente, a i n v e s t i g a ç ã o d a s r a u s a s . E justamente o que
lhes vale o nome de/ "primeiros filósofos"/, ou mais exatamente
de^"primeiros a filosofar”, que Aristóteles lhes outorga no pri­
meiro livro da M etafísica.44*46
Este livro, que se abre com uma caracterização do saber su­
perior com o "sabedoria”, é, a partir do capítulo 3, consagrado
a identificar, entre os predecessores de Aristóteles ("os primei­
ros filósofos", mas também Sócrates e Platão), a emergência das
quatro causas cuja Física tinha apresentado o quadro sistemático:
primeiramente a causa material, da qual Aristóteles se pergunta
se podemos ou não já atribuir a noção aos poetas e ao grupo dos
que ele designa com o "os teólogos” (os autores de teogonias,
com o Hesíodo ou os Órficos), depois, na ordem, a causa motriz,
que podemos "suspeitar” ter sido concebida por Hesíodo antes
mesmo que por Parmênides, a .causa fina], em Anaxágoras e Em­
pedocles (cap. 3 e 4), e a causa formal nos Pitagóricos e Platão
(cap. 5 e 6). Em se tratando dos "primeiros filósofos”, trata-se
menos de descobertas que defántedpâcõés!) A causa final, em
Empédocles, chama-se ‘Amizade”; em Anaxágoras, ela está im­
plicada pela função diretora do intelecto; a causa motriz, ainda
uma vez, chama-se 'Amor” em Hesíodo e em Parmênides. E os
l "corpos” mesmos que os físicos tomam com o princípios não são
senão a jprefiguracão do substrato e da potencialidade/E m uma
perspectiva, não existe,.de Tales até Platão, nenhuma solução
de continuidade.47 Mesmo mencionando que Sócrates “tratou

44 A expressão, e m 983 b 6 e s., aplica-se à nova m aneira de filosofar in tro­


duzida po r T ales (cf. 983 b 20). E la se entende co m relação a P latão, de qu em
A ristóteles diz m ais adiante qu e o en sinam ento se situa “depois dos filósofos dos
quais nós falam os” (987 a 29). A prim eira ocorrên cia da expressão, em 982 b 11,
aplica-se a um a filosofia ainda anterior, contem p orân ea das prim eiras perplexidades
da hum anidade.
47 O fato de que o n o m e de "Sócrates” sirva a ilustrar o co n ceito de um a "natureza”
(pkysis) substancial, que “a m aioria dos prim eiros filosófos" entreveem quando eles
de questões éticas e em nada da natureza em seu conjunto”,4®
Aristóteles, longe de situar sua contribuição à história da filosofia
nessa escolha mesma, dela sugere a contingência. “Investigan­
do a seu propósito (a saber, a propósito das questões éticas) o
universal”, o que Sócrates foi o primeiro a fazer foi se interessar
pelas definicões.4?/Esta novidade é ela própria concebida com o a
premissa à teoria platônica das Formas, a última teoria dos prin- ^
cípios a ser exposta por Aristóteles antes da retomada do capítulo
7, a crítica dos capítulos 8 e 9 e a conclusão (cap. 10~). o que dá
a Sócrates um estatuto de intermediário, mais que de iniríadnr.
Essa interpretação de Sócrates, que se encontra na passa- j
gem paralela do livro Mi da M etafísica (embora Aristóteles deter­
mine a contribuição de Demócrito, em matéria de investigação j
em prol de definições, e, mais antigamente, dos Pitagóricos50), é
igualmente mobilizada no primeiro livro de Partes dos anim ais.51
A questão é aquela do método em biologia, e em particular do
•papel da definição. Destacando ironicamente, ainda que implici­
tamente, a distância que separa a pretensão dos "naturalistas" de
suas realizações, Aristóteles defende a ideia de que existem duas
espécies de causas das quais o naturalista deve dar conta sob pena
de faltar “a natureza”, a causa final (que no contexto recobre a
causa formal) e a necessidade (também chamada “matéria”).52
Aristóteles explica que a razão pela qual seus predecessores nun­
ca puderam considerar a causa final senão pelo efeito de um feliz
acaso (eles não fazem senão “deparar-se com” ela), é que toda
prática da definição da essência l h e s era ainda estranha: mesmo
Demócrito, a quem sucede de engajar-se em um trabalho de
definição, o faz porque ele foi conduzido a isso “arrastado pela

postulam , subsistindo além das gerações e das corrupções, um m esm o principio


m aterial (983 b 12-16), podería nesse caso ser lido co m o o sím bolo dessa continuidade.
499 8 7 b 1 e s .
49987 b 2-4.
50M etafisica, 1078 b 17-31. Sobre a divisão entre o que diz respeito a Sócrates e o
que diz respeito a D em ócrito na passagem , ver Narcy, 1997.
51642 a 24-31.
!2642 a 17.
própria coisa” (de maneira irrefletida), e não “porque isso fosse
necessário à física” (de maneira conscient^/ Sócrates, por sua
vez, fez progredir bem a teoria da definição, mas com o ele se­
guia a inclinação comum aos filósofos de sua época “pela virtude
e pela política”, a física não se beneficiou delaj Desse ponto de
"vista, a física aristotélica, que, graças a uma teoria da definição e
da essência explícita, dá lugar à causa final (e formal) juntamente
com a causa material, apresenta-se com o uma síntese da antiga
física pré-socrática e de um impulso socrático - de natureza es-
-seBcialmente epistem ological
A imagem que sobressai em Aristóteles é, pois, complexa.
De um lado, existe bem uma sequência física/ética (e política).
Mas a atenção dada à prática concorre menos para inaugurar
uma nova época da filosofia que para caracterizar o interesse e
o espírito de uma geração (a expressão “os filósofos”, hoiphiloso-
phountes, no plural, podería bem, no presente caso, não excluir
os Sofistas^/Ό próprio Sócrates bem podería compartilhar esse
interesse comum, a ética não é senão o domínio, ou a matéria,
em que se investe uma preocupação de uma outra ordem. Filó­
sofo da definição, Sócrates se inscreve na continuidade de uma
tradição que ele mais contribui para regenerar do que a pôr um
term o/fem tal perspectiva, a cesura socrática é ao mesmo tempo
mantida e relativizada. ^
Não há, sem dúvida, manifestação mais tangível dessa rela-
tivização da cesura socrática na historiografia filosófica antiga,
que o lugar que é atribuído a Sócrates nas Vidas e opiniões dos f i ­
lósofos ilustres de Diógenes Laérdo. O fato mesmo que Diógenes
Laérdo distribua o conjunto da filosofia grega em duas linhagens
- a linhagem “jônica”, que ele faz derivar de Anaximandro (e de
Tales), e a linhagem "itálica”, à qual preside Pitágoras (e Feréd-
des de Siros) - interditava toaa cesura de tipociceroniana, que
supõe um desenvolvimento unilinear da história da filosofia.53

” Diógenes L aérd o, I, 13-15. E m se tratando da história da filosofia pós-socráti-


ca, a pertinênda dessa bipartição, cu jo prim eiro ram o, em D iógenes L aérd o , chega,
Mas no próprio seio da linhagem jônica, Sócrates faz o papel de
um elo intermediário entre Arquelau, de um lado, e Platão e os
outros socráticos, de outro .54
Assim, uma descontinuidade maior na história da filosofia
tendería a ser absorvida pela introdução de um meio-term o:
com o vimos adtna, os testemunhos doxográficos sobre Arque­
lau sugerem que, se ele foi elevado à dignidade de mestre de Só­
crates, foi menos porque ele se escondia particularmente atrás
dos “naturalistas” anônimos do Fédon, que pelo fato de, embora
fosse ainda “naturalista”, ele já tivesse tratado de questões éti­
cas, desde antes de SócratçsflNão que Diógenes Laérdo ignore
mais que Platão, Aristóteles ou Cícero a ruptura socrádca. Vol­
tando à relação Arquelau-Sócrates, no momento de enumerar
as partes da filosofia (física, ética e dialética), Diógenes observa
que "até Arquelau existiu a espécie física: a partir de Sócrates,
existiu, com o se disse, a espéde ética”.55 O capítulo consagrado
a Arquelau o rep ête^ífisso não decorre menos que a tematiza-
ção ocasional da ruptura socrática apareça necessariamente, em
razão da construção global, com o um momento subordinado.
Não somente não existem Pré-Socráticos em Diógenes Laérdo,
mas os próprios pré-socráticos não gozam em sua obra senão de
uma existênda virtual. Desse ponto de vista, a emergência, em

após um a dupla ram ificação n o nível de Sócrates, depois de Platão, a u m acadêm ico
(C litom aco), u m estoico (Crisipo) e um Peripatético (Teofrasto), enquanto a segunda
prossegue e m linha reta até Epicuro, é contestável. Mas é possível lhe conferir certa
legitim idade n o que concerne aos inícios, se, sem que se possa ser autorizado a fazê-
-lo p o r D iógenes L aérdo, restringindo-se a um a distribuição puram ente geográfica,
discem em -se através da oposição entre o Leste e o O este duas orientações intelectuais
distintas. Enquanto a reflexão dos milésios, na Jôn ia, tem co m o prim eiro quadro de re­
ferência a explicação dos fenôm enos naturais, a grande G récia é, co m efeito, marcada
p o r discursos e práticas de tipo escatológico, inidático e m ístico.
54Diógenes L aérd o, 1,14.
” 1 ,18, que acrescenta: "e a partir de Z en ão de Eleia, a parte dialética". O prindpio
de cortespond ênd a entre divisão da filosofia e período de sua história não vale mais
nesse caso. A afirm ação se lê co m o um a correção im plídta: Sócrates não é o inventor
da dialética, m as, antes dele, Z enão.
MII, 16 e 2 0 e ss.
Eberhard, de uma "filosofia pré-socrática” confirma o fato, bem
atestado, aliás, de a historiografia moderna da filosofia antiga se
construir primeiraménte contra os esquemasjierdados de Dió;
jxenesjaérdo^considerando, certam ente, que o modelo_ricero-
nianõdesempenhou um papel decisivo nessa reconfiguração.
PRE-SOCRATICOS:
A CONSTELAÇÃO MODERNA

'urgido no final do século XVIII. o neologismo “pré-


Lsocrático" abriu um debate^ m a i s do que f o i adotado.
Foi preciso esperar pelos efeitos conjugados da reavaliação filo­
sófica dos Pré-Socráticos em Nietzsche e pelo empreendimento
editorial de H. Diels, o fundador dos estudos pré-socráticos mo­
dernos, que ofereceria em 1903 a primeira edição científica dos
fragmentos dos Pré-Socráticos sob o título de Die Fragmente der
Vorsokratiker, para que pudesse se considerar com o tendo sido
estabelecida.1 Mesmo assim, as dificuldades às quais a expressão
se expõe permanecem, o que explica que se tenha regularmente
proposto substituí-la por outras, julgadas menos carregadas ou
mais adequadas, no número das quais “os primeiros filósofos”
de Aristóteles figuram em boa posição. A história dos Pré-Socrá-
ticos está suficientemente associada àquela de sua denominação
para que aí fiquemos.
primeira dificuldade do term o “pré-socrático” se deve ao
^próprio uso que faz do nome de Sócrates^O manual de Eberhard
testemunha imediatamente essa dificuldade, uma vez que o pe­
ríodo dito “socrático” se abre de fato com uma série de parágra­
fos consagrados, não ao próprio Sócrates, mas aos sofistas. Isso
porque os sofistas, não menos que S ó c r a t e s , se interessam pelo
nõm êm T Razão pela quäl W. T. Krug, em uma história da filo1

1 E m sua versão revisada p o r W. Kranz (1951), essa coletânea perm anece em


nossos dias co m o edição de referência.
sofia antiga publicada em 1815, tinha preferido reservar a Platão
o privilégio de iniciar um segundo período da história da filosofia,
remetendo os sofistas e Sócrates ao final do período precedente.2
Como, então, pretender que Sócrates constitua uma virada? É
contra a desvalorização de Sócrates implicada nesse rearranjo que
Schleiermacher reage em uma comunicação apresentada ao lon­
go desse mesmo ano de 1815 diante da Academia de Berlim, sob
o título significativo de "Sobre o valor de Sócrates com o filósofo”.
Schleiermacher se interroga sobre a “contradição" entre a função
tradicionalmente atribuída a Sócrates, que é a de abrir uma nova
época filosófica, e a caracterização que é feita de sua doutrina.
Se ele não podia senão se fazer valer do fato de ter "conduzido
a filosofia do céu para a terra”, segundo a fórmula de Cícero, Só­
crates não seria senão o representante do “bom senso” rumo ao
qual a filosofia popular do século XVIII o tinha com efeito elei­
to, mas da qual Schleiermacher contesta que possa possuir o mí­
nimo caráter filosófico.3 Para que Sócrates possa subsistir como
"uma cesura maior na filosofia helênica” (e Schleiermacher pensa
que existem boas razões para que ele subsista), é preciso lhe atri­
buir “um pensamento mais filosófico que não é habitualmente o
caso”. Esse filosofema, Schleiermacher o situa não na introdução
de uma nnv*» Hic^iplina quç se trate da ética, a qual ele sublinha
gue preexistia a Sócrates (principalmente entre os pitagpricos),
ou da dialética (iá praticada pelos eleatas). mas na descoberta da
“ligação das três disciplinas" (dialética, ética e física) pelo viés da
“Ideia do saber em si” - nada menos que a ideia mesma da filoso­
fia de acordo com a ideia sistemática que Schleiermacher faz dela.4

2 S. Karsten, um dos m elhores conhecedores dos filósofos pré-socráticos da prim ei­


ra m etade do século XIX, pensava em intitular a coletânea que pretendia realizar: "O s
restos das obras dos antigos filósofos gregos, espedalm ente daqueles que floresceram
antes de Platão (P kilosophoru m graecoru m veterum praesertim qu i an te P laton em floru eru n t
operum reliqu iae)“. Som ente três partes vieram à luz, Xenófanes (1830), Parmênides
(1835) e Em pédocles (1838).
1 Sobre o uso da fórm ula de C ícero pela filosofia popular, ver E m esti, "D e la philo­
sophic populaire”, em Beck/Thouard, 1995,372.
4 Schleierm acher, 1835 (1815), 293 e 289, donde provêm as fórm ulas citadas.
Mais próximo da concepção (senão da terminologia) de
Eberhard é o recorte que adota Hegel em suas Lições sobre a histó­
ria da filosofia. Guiado pela dialética do objeto e do sujeito, Hegel
é com efeito conduzido a relativizar mais uma vez o papel de
Sócrates^ e o critério para fixar o term o de um primeiro período
da filosofia grega reside no abandono de uma filosofia objetiva
da n atu reza^ aos SofistãSa à medida que eles são os primeiros
representantes, na històna da filosofia, do princípio da subjeti­
vidade, que cabe o início do período seguinte.5 É contra esse re­
tom o forçado dos sofistas que£elfejr restitui a Sócrates seu papel
de pivô em sua H istória da filosofia grega em seu desenvolvimento
histórico, cuja primeira edição aparece entre 1844 e 1852.6 A ar­
gumentação, por mais que lembre aquela de Schleiermacher, é
mais próxima das fontes, principalmente aristotélicas, Se Sócra­
tes muda a face da filosofia é. com efeito, e primeiramente, para
Zeller, porque ele é o primeiro representante de uma filosofia do
conceito (eidos). Quanto aos sofistas, eles podem perfeitamente
ser contados no número dos Pré-Socráticos, pois aquilo sobre o
que testemunham é a dissolução de uma filosofia, mais que uma
filosofia verdadeiramente nova.78
^ "p eriodização de Zeller se impôs com o sendo ao mesmo
tempo a mais plausível e a mais fácil de manusear. É sobre ela
que repousa, em particular, a coletânea dos Fragmente der Vor-
sokratiker de Diels, que inclui, ao lado dos naturalistas (entendido
na extensão a mais vasta possível desse term o), o conjunto dos
representantes do movimento sofistica®!Nessa medida, Zeller e

5 Hegel, 1971-1975 (1883), t. 2.


‘ Zeller, 1919-1923 (1844-1852). Z eller se interessou m uito, de m aneira geral, pelo
problem a da periodização em história. Ver em particular a seção intitulada “D ie Haup­
tentw icklungen der griechischen Philosophie" ( O s principais desenvolvimentos da
filosofia g tega"), 1/1,210-227 (210-218 para o período que nos interessa).
7 Zeller, 1919-1923 (1844-1852), 1/1, 217 e S.

8 A prim eira edição é de 1903. A coletânea de Diels não podia senão se impor, con­
tra aquela, m edíocre, de Mullach, publicada em 1860, cu jo título com pleto é de resto
revelador dos problem as que podia criar a flutuação pré-zelleriana da periodização:
Diels não são menos "inventores dos Pré-Socráticos” que Nietz­
sche, a quem o título foi atribuído em razão do papel decisivo
que ele desempenhou na extraordinária prom oção filosófica e
intelectual da qual eles foram beneficiados no século XX.9
É verdade que Nietzsche, na tradição de Krug e de Kars­
ten, preferiu por um tempo falar de "Pré-Platônicos”, ou mais
exatamente, conforme o título das Lições proferidas em Basiléia
ao longo do semestre do verão de 1872 (retomadas em 1873 e
em 1876), de "filósofos pré-platônicos”. A linha de demarcação
passa aqui entre dois tipos de filósofos, uns, até Sócrates inclu­
sive, eram caracterizados, em virtude de um novo critério, pela
originalidade e pela “pureza” de sem esforço, imune à lógica do
compromisso, enquanto os outros, a partir de Platão, o são pelo
caráter “híbrido” e dialético, o que em Nietzsche também quer
dizer democrático, de sua filosofia.10 Foi preciso que a constru­
ção que fazia de Sócrates o primeiro favorecedor da modernida­
de otimista, em face de uma filosofia ainda posta sob a égide da
"tragédia”, prevalecesse nos anos 1875-1876 para que Sócrates
se tornasse novamente a verdadeira linha divisória, assegurando
pelo mesmo movimento aos Pré-Socráticos, desde então consi­
derados com o os únicos "tiranos do espírito” autênticos, uma
vantagem que não devia mais ser desmentida.11
A interpretação de Nietzsche, quer se trate de Pré-Platô-
nicos, quer se trate de Pré-Socráticos, opera uma inversão com

Fragm enta philosophoru m graecoru m , I: P oeseos phü osophicae caeteru m qu e an te Socratem


philosophoru m qu ae supersunt, II: P ythagoreos, S ophistas, C ynicos et C halcidü in Prim em
T im aei p laton ici partem com m en taries con tinen t, Paris, 1860-1867. N ão são som ente os
sofistas, m as tam bém os pitagóricos e os "cín icos" que são separados dos “Pré-Socrá-
ticos”. A nova edição dos Fragm ente d er V orsokratiker em preparação ju n to à editora
W alter de G ruyter não prevê incluir os sofistas, que Mansfeld, 1987, tinha tam bém
excluído de sua coletânea.
’ Ver Borsche, 1985 e M o st, 1995.
10Ver Nietzsche, 1994 (1872), 84, assim com o a F ilosofia na ép oca trágica d os gre­
gos, § 2.
11Ver o § 261 de H um ano, dem asiado hum ano. Podem os ler a evolução de Nietzsche
nos fragm entos de 1870-1875 (N ietzsche, 1980, vol. 7 e 8).
relação à versão ciceroniana dos pré-socráticos entendidos com o
“teóricos". Não que os primeiros filósofos não tenham desen­
volvido teorias, e principalmente teorias da natureza. Nietzsche
inclina-se tanto menos a negar isso, que, grande leitor da História
do m aterialismo de R Lange e dos trabalhos de Boscovich, vê, en­
tão, na maioria dos filósofos pré-platônicos, igualmente aliados
potenciais no combate empreendido pela ciência contemporâ­
nea contra os finalismos de todo gênero. Ampliando (e corrigin­
do por vezes de passagem) as observações de Schopenhauer, que
já lia Anaximenes, Empédocles ou Demócrito à luz da teoria de
Kant e de Laplace sobre a origem do universo (não tinham eles
também a condensação de uma matéria difusa e o turbilhão?)
e reconhecia na filosofia pitagórica dos números uma primeira
forma de “stoicheom etria química” (estudo dos parâmetros quan­
titativos em operação nas ligações químicas), sem mesmo falar
do entusiasmo que não podia senão suscitar no filósofo do pessi­
mismo o pensamento de Empédocles (“ele reconheceu perfeita-
mente a miséria de nossa existência"),12 Nietzsche insiste no fato
de que os filósofos gregos desenvolveram intuições nas quais a
ciência contemporânea pode se reconhecer. As lições sobre os fi­
lósofos pré-platônicos são regularmente interrompidas, cada vez
que a ocasião se apresenta, por meio de excursos científicos - é o
caso nos capítulos consagrados a Tales, H erádito, Empédocles,
Demócrito e aos Pitagóricos.13
A teoria de Kant-Laplace dos estados de matéria é ainda
uma vez convocada, para dar conta da “água”, da qual Tales fez
a origem de todas as coisas: “Os fatos astronômicos lhe dão ra­
zão. Um estado de agregação menos denso deve ter precedido as
condições atuais”. O “tudo flui” de H erádito é interpretado à luz
do conceito de “força” (Kraft) desenvolvido por Helmholtz em
seu escrito “Sobre a ação redproca das forças da natureza”: “Em
parte alguma há persistênda fixa, não seria senão porque se che­

12 Schopenhauer, 1986 (1850), § 2, 50-52. A citação: p. 50.


12 Esses excursos foram estudados po r Anders em Schlechta /Anders, 1962.
ga sempre finalmente a forças cuja ação encerra nela a perda da
força”. A interpretação dá lugar a uma longa aproximação com o
relativismo biológico de K. von Baer, que Nietzsche compartilha:
“Sua concepção da natureza viva é a boa”. Empédocles antecipa
o evolucionismo biológico de Darwin: a ordem do mundo, longe
de ser o fruto de uma intenção (com o em Anaxágoras), resulta
do jogo cego de duas pulsões (Trieb) opostas.14 “É em meio às
inumeráveis formas abortadas e às impossibilidades de vida que
aparecem algumas das formas possíveis e adaptadas à vida” - um
pensamento que Nietzsche qualifica com o "grandioso”. Mas o
herói da série é incontestavelmente Demócrito, o filósofo ma­
terialista e antiteleológico. "Deem-me uma matéria, e dela eu
construirei um mundo."15
A leitura schopenhauero-nietzscheana pode parecer tão tra­
dicional quanto ingênua, uma vez que os filósofos pré-platônicos
figuram, como em Aristóteles, com o precursores em matéria de
verdade. E, no entanto, ela inova - de uma inovação que não
somente justifica a ingenuidade, mas de certa maneira a evoca.
Nietzsche, como já Schopenhauer, não mobiliza somente a ciên­
cia dos primeiros filósofos contra a teleologia contemporânea;
ele recusa também a escritura teleológica da história que faz de
cada filósofo pré-platônico uma etapa no caminho da verdade,
com o Aristóteles o tinha feito no primeiro livro da M etafísica.
Pondo diretamente em relação Tales ou Demócrito e Kant-Lapla-
ce, Heráclito e Helmholtz, Empédocles e Darwin, Nietzsche faz
explodir a continuidade de um progresso em que cada um dos
protagonistas não encontra seu sentido senão em sua própria su­
peração. Os filósofos pré-platônicos talvez tenham antecipado,
mas em nenhum caso preparado. Eles não devem, pois, seu valor

14 Pela m ediação de W. Capelle, que tinha publicado em 1935 um a coletânea con­


sagrada aos P ié-Socráticos, o uso do term o T rieb para se referir ao A m or e ao Ó dio de
Em pédocles é retom ada por Freud, que vê sua teoria dualista das "pulsões originárias
de E ros e de destruição", cu jo eco tinha sido fraco, confortada po r “um dos grandes
pensadores da época arcaica grega” (Freud, 1995 (1937), 90-93); cf. Bollack, 1997 (1985).
15 N ietzsche, 1994 (1872); as citações estão nas páginas 1 4 7 ,2 1 0 e 222.
senão a eles próprios. Esses são, no plano teórico, "grandes ho­
mens", cujas doutrinas somente são interessantes à medida que
revelam uma “personalidade”.16
A linha de interpretação antiaristotélica (antiteleológica) de
Nietzsche recebe, entretanto, seu sentido da perspectiva antici-
ceroniana, que a engloba. Se ciência existe, aquela não é, con­
trariamente ao que sugere a construção de Cícero, um fim em
si. Ela possui, ao contrário, uma função "corretiva”, no seio de
uma cultura que, na ideia que dela faz Nietzsche, é uma cultura
fundamentalmente "trágica”.
A natureza do interesse que Nietzsche tem pelos filósofos
pré-platônicos, na perspectiva de uma filosofia da cultura, decor­
re perfeitamente do paralelo que a quarta das Considerações in­
tempestivas (R. Wagner em Bayreuth), que data de 1876, tece entre
três representantes da cultura trágica (dois filósofos e um drama­
turgo) e três modernos. Esquilo, Parmênides e Empédodes de
um lado, Wagner, Kant e Schopenhauer de outro.17 O pessimis­
mo schopenhaueriano se tinha, com o vimos, reconhecido em
Empédocles. Esquilo está evidentemente presente para o drama
total wagneriano. Quanto ao par Parmênides/K ant, mais sur­
preendente à primeira vista, ele repousa sobre a ideia de que a
negação da realidade do tempo, em Parmênides, é com o uma
antecipação da tese de sua idealidade, tal com o ela figura na Es­
tética transcendental.
O sentido da homologia é manifesto. Nietzsche quer de­
preender a lógica de duas mutações culturais simétricas. Em se
tratando da cidade grega, à decadência progressiva do século V,
que Sócrates acelera, mas da qual é o term o de chegada, sucede
um período de florescimento, que Nietzsche põe sob a égide da

16 Ver as duas lim inares a A F ilosofia n a época trágica dos G regos. E m A C ultura do
R enascim ento n a Itá lia (1860), J. Burckhardt consagra um a seção ao "Desenvolvim ento
do indivíduo". A G riechische K ulturgeschichte, professada a partir de 1880, confere um
papel central à categoria de "livre personalidade", m as sem m encionar inteiram ente
os Pré-Socráticos (cf. Laks, 2006).
17 R. W agner em B ayreuth, § 4. N ietzsche não diz "Parm ênides", mas "os eleatas”.
tragédia. Inversamente, a reforma filosoficamente iniciada por
Schopenhauer na esteira de Kant, e esteticamente perseguida
por Wagner, pretende pôr um term o à decadência cultural da
Alemanha wilhelmiana, restabelecendo a ligação com a concep­
ção trágica à qual Sócrates, na ordem da filosofia, e Euiípedes,
na ordem do drama, puseram um term o. Compreende-se que
os Pré-Socráticos, à medida mesma que Sócrates deles se distan­
ciou, estão desde então em posição de ser os modelos de uma
possível superação da modernidade que ele iniciou.
Essa primeira simetria supõe todavia uma outra, mais sutil.
Um aspecto essencial da análise nietzscheana é que a grandeza
da cidade grega, na própria época de seu m aior florescimento,
se desenrola em reação a uma tendência inerente à cultura gre­
ga. É o que podemos nomear o motivo hölderliniano da análise
nietzscheana, mesmo se Nietzsche não pode conhecer a carta
a Böhlendorff (1801) em que Hölderlin renova as implicações
estéticas da rivalidade entre os Antigos e os Modernos fazendo
apelo à noção de "livre uso do próprio”. Em Hölderlin, os poetas
"hespéricos” não podem se igualar aos Gregos desenvolvendo o
que lhes é "propriamente nacional", mas, ao contrário, resistin­
do, com o os próprios Gregos o fizeram: “Pois o mais difícil, diz
Hölderlin, é o livre uso do próprio”. Para Nietzsche, do mesmo
modo, os antigos filósofos “mostram a potência vital dessa cul­
tura [a cultura grega], que engendra seus próprios corretivos".18
A noção de “corretivo”, que corresponde ao que Hölderlin cha­
ma "resistência”, complica evidentemente a maneira pela qual
os pré-platônicos são chamados a servir de paradigma, pois o
que nós devemos corrigir não é evidentemente aquilo a que eles
tiveram que resistir.
A natureza do perigo tal que ele se apresentava aos gregos é
especificada em um dos fiagmentos de A Ciência e a sabedoria em
com bate (W issenschaft und W eisheit im Kampfe), que enumera a sé-

18 N ietzsche, 1980, vol. 8 , 6 [13].


rie de perigos para os quais se esperava que os diferentes filósofos
tivessem dado uma resposta:19

O mito como leito de preguiça do pensamento - contra isso, a


abstração fria e a ciência rigorosa. Demócrito.
A moleza de uma vida de bem-estar - contra isso, a rigorosa con­
cepção ascética em Pitágoras, Empédodes, Anaximandro.
A crueldade no combate e na luta - contra isso, Empédodes com
sua reforma do sacrifício.
A mentira e o engano - contra isso, o entusiasmo pelo verdadeiro
com todas as suas consequências.
O conformismo, uma sodabilidade excessiva - contra isso, o or­
gulho e a solidão de Heráclito.

A estratégia das lições de Basiléia é, pois, ambivalente. De


um lado, Nietzsche defende, com os Pré-Platônicos, uma visão
“científica” do mundo. Ao mesmo tempo, a dênda é a resposta
dada a uma situação cultural definida, e com o uma manifestação
de civismo. O engajamento pessoal dos diferentes Pré-Platôni­
cos, a propósito do qual Nietzsche, arqueado sobre as Vidas e
opiniões dos filósofos ilustres de Diógenes Laérdo, multiplica os tes­
temunhos (ele não deixa nunca de sublinhar que muitos foram
legisladores), não é ele próprio senão um sinal dessa dimensão
"prática” da ciência.
É em razão dessa dimensão cultural que a filosofia na época
da tragédia grega é paradigmática, mais ainda que pela forma
particular de sua realização. É verdade que os perigos que pe­
sam sobre a cultura alemã são em parte idênticos àqueles com os
quais, segundo Nietzsche, teve que se afrontar a cultura grega, e,
por conseguinte, da mesma natureza que os corretivos que esta,
em sua vitalidade, soube lhes proporcionar: o conformismo so­
cial e o primado da coletividade não pesam menos aqui do que
pesavam lá. Mas em se tratando de outros traços, o que Nietz-

" Nietzsche, 1980, vol. 8 , 6 [12].


sehe põe com o ativo dos pensadores pré-socráticos deveria antes
ser posto com o passivo da cultura alemã. É o caso, prindpalmen-
te, da fé posta na ciência para com bater o mito - que Nietzsche
não cessou de denunciar. É preciso dar-se ao mesmo tempo conta
dos paralelismos entre a Grécia e a Alemanha e da estrutura hõl-
derliniana em virtude da qual o que foi a realização grega contra
uma natureza original tornou-se para nós a tendência mesma
contra a qual é preciso reagir para compreender com o Nietzsche
pode, a cada vez, erigir os Pré-Socráticos com o modelo, e subli­
nhar os seus limites.
De fato, se os Pré-Socráticos, para Nietzsche, de certo em­
preenderam um movimento de reforma cultural, esse movi­
mento foi ele próprio inacabado. Sócrates o interrompeu antes
que ele tivesse chegado a seu term o: ele quebrou uma simples
esperança. Assim, Nietzsche poderia escrever, em “Os tiranos
do espírito”: "Os séculos VI e V parecem sempre prom eter mais
do que eles produziram; eles permaneceram na promessa e no
anúncio”.20 Ciência e sabedoria em com bate dizia, um pouco mais
generosamente: "Existem ainda muitas possibilidades, que não
foram ainda descobertas: isso porque os Gregos não as desco­
briram. Existem outras dessas que os Gregos descobriram , e mais
tarde novamente recobriram”.21
A retomada nietzscheana do tema socrático-dceroniano da
filosofia pré-socrática com o teoria é, pois, imediatamente atra­
vessada por um movimento crítico que equivale de fato à sua
inversão. Compreende-se melhor assim por que o que as Lições
tom am por antecipações geniais dos filósofos pré-platônicos pos­
sa ser apresentado, nas páginas iniciais de A Filosofia na época trá­
gica dos Gregos, ao mesmo tempo com o "erros”.22 Isso não é de
modo algum incompatível com sua verdade de resto altamente

20 H um ano, dem asiado hu m an o, § 261.


21 N ietzsche, 1980, col. 8 , 6 [11]. É possível reconh ecer aqui a estru tu ra m esm a do
que H eidegger cham ará physis ou aléth eia.
22 Ver Nietzsche, 1980, vol. 1, p. 801.
proclamada nas Lições. O que faz de suas verdades ao mesmo
tempo erros é justamente que elas são verdades ultrapassadas.
Qual importância tem Heráclito, em relação a Helmholtz, ou
Empédocles, em relação a Darwin? O essencial do que os Pré-
-Socráticos têm a nos dizer não diz respeito às suas doutrinas,
mas à relação entre suas doutrinas e a cultura no seio da qual elas
foram proclamadas.
O ponto de partida de uma crítica mais radical dos Pré-
-Socráticos encontrava-se em estado germinal na concepção dos
filósofos com o homens de ciência que as Lições promoviam: é
que o valor da ciência pode ser posto em questão - e até mesmo
invertido. O pathos da verdade, em que Nietzsche tinha primei­
ramente visto um elemento da grandeza Pré-Socrática, tornar-
-se-á em pouco tempo nele o nome de um problema, e uma
expressão privilegiada do ideal ascético que tem , ele também,
seus representantes antigos. A valorização da fröhliche Wissens­
chaß conduz necessariamente a atenuar a importância de um
Demócrito. Mas Empédocles mesmo não apresenta mais, para
o Nietzsche da maturidade, a atração dos inícios - ele é ainda
muito científico, e, o que não facilita as coisas, muito democrá­
tico, sem mesmo falar do pessimismo, que o alinha a Schope­
nhauer. O único Pré-Socrático a ser finalmente salvo será Herá­
clito - e ainda assim.23
Se a problemática de Nietzsche evoluiu, a intuição funda­
mental que tinha sido o seu vetor devia ser preservada, para além
dele, no seio da tradição fenomenológica, e prindpalmente em
Heidegger. Representantes da época “trágica”, os primeiros fi­
lósofos tinham em Nietzsche se tom ado a vinheta de uma pós-
-modemidade esperada, desde que essa modernidade tinha sido
aberta pela vitória do otimismo teórico e pelo primado da moral
(trata-se da inversão do esquema dceroniano). Depois de Nietz­
sche, os Pré-Socráticos continuaram a figurar, com outros parâ­
metros, é bem verdade - no presente caso, reontologizados - , o

° Ver E cce H om o, 3 .
precedente de uma modernidade que se interroga sobre sua crise
e sobre suas falências. Nesse sentido, Nietzsche não terá somen­
te sido "o inventor dos Pré-Socráticos”, mas a grande fonte de
inspiração dos autores heideggerianos.
Os Pré-Socráticos se beneficiaram, pois, da sinergia resul­
tante de uma estranha aliança entre a ciência histórica, repre­
sentada pelo par formado de Zeller e de Diels, e a implacável
crítica do método histórico que foi Nietzsche. A despeito des­
se duplo fundamento, os escrúpulos, diversamente motivados,
que provocam o uso do term o “pré-socrático” são recorrentes
nos historiadores da filosofia grega, e mais geralmente da Gré­
cia arcaica.
Se o term o incomoda, isso não se deve somente aos pro­
blemas que suscita a referência a Sócrates, mas, também, à am­
biguidade e às aplicações conceituais do prefixo. A ambiguidade
é dupla. Primeiramente, uma form ação em "pré-” sugere es­
pontaneamente uma anterioridade cronológica, no ponto em
que se visa também, e talvez antes de mais nada (em virtude
' 1 da dimensão dpológica de toda periodização), uma caracteri-
* J-' ‘ : zação morfológica: alguns Pré-Socráticos, e não dos menores,
são contemporâneos de Sócrates, e mesmo de Platão - uma si-
h ;» multaneidade que adquire ainda mais relevo pelo fato de que
o desenvolvimento da filosofia pré-socrática se efetua em um
período notavelmente breve - um pouco mais de um século e
meio. No prefácio à 5a edição dos Fragmente der Vorsokratiker, da
qual ele preparou a revisão, W. Kranz teve o cuidado de subli­
nhar que:

muitos dos contemporâneos de Sócrates, e alguns que viveram


depois, aparecem nesta obra. E, no entanto, o livro constitui uma
unidade. Essa consiste no fato de que a filosofia que se exprime
aqui não passou pela escola de pensamento de Sócrates (e de Pla­
tão): não se trata, pois, tanto da filosofia pré-socrática, quanto da
antiga filosofia não-socrática.24

24Kranz em Diels, 1934, VIU.

j
É significativo que essas predsões não tenham podido apro­
var todos os escrúpulos. Sublinhamos, por exemplo, de bom
grado, a propósito do pitagórico Filolau, que ele "se situa na
fronteira do que se pode chamar Pré-Socrático”.2S De fato, uma
interpretação morfológica do term o "pré-socrático” não invalida
toda perspectiva cronológica. Uma forma de pensamento obso­
leta não se mantém geralmente por longo tempo em uso. Uma
periodização pode bem não ser tomada estritamente pela crono­
logia, e conhecer margens - poderiamos mesmo sustentar que
essas margens lhe são essenciais26- , ela não conserva dela menos
implicações temporais. Razão pela qual quando os Fragmente der
Vorsokratiker incluem Pitagóricos da época imperial entre os Pré-
-Socráticos, a pretexto de que eles se ligam à escola-mãe, certo
mal-estar é inevitável: os neopitagóricos se distinguem dos anti­
gos por traços tipicamente pós-socráticos, e nesse caso acadêmi­
cos.27 Se o autor anônimo do comentário alegórico descoberto
em Derveni em 1962, que traduz nos term os de uma cosmolo-
gia inspirada em Heráclito, Anaxágoras e Diogenes de Apolônia
uma narrativa teogônica da tradição órfica, bem escreveu por
volta do IV século a.C ., com o se tem boas razões para o pensar,
constitui já um notável fenômeno de histerose, marcando um li­
mite além do qual o emprego do term o "pré-socrático” cessa de
ser plausível, ou exige o emprego de aspas. Além do mais, é pro­
vável, em se tratando desse documento, que a histeriose possa
ser remetida a certa excentricidade geográfica: Derveni, na Ma­
cedonia, não é nem Atenas, e nem mesmo um centro secundário
de atividade filosófica.28
A segunda fonte de ambiguidade do prefixo "pré-” é filosofi­
camente mais importante. Na ordem temporal ainda, mas mais
idealmente, o “pré-” de “pré-socrático” sugere a ideia de "pre­
paração”, de "antecipação”, ou mesmo de "inferioridade". Ele

25 Schm alzriedt, 1970, 83, n. 1.


“ Ver in fra, p. 110s.
27 A distinção está n o fundam ento do estudo de Burkert, 1972 (1962).
22 Sobre o papiro de D erveni, ver Betegh, 2004.
desempenha assim o papel de perfeito fixador da teleologia e do
primitivismo do qual os inícios da filosofia são em todo estado
de causa marcados.
É verdade que a referência a Sócrates, no segundo term o
do composto, contrai de modo imediato a propensão natural a
fazer um uso teleológico do prefixo. Como nós vimos, Sócrates,
na tradição socrático-ciceroniana (e nietzscheana) que o toma
em conta, está primeiramente ali por uma revolução da qual,
quaisquer que sejam os parâmetros (prática contra teoria, moral
humana contra conhecimento da natureza, otimismo do conhe­
cimento contra visão trágica), os Pré-Socráticos, longe de tê-lo
preparado, são as primeiras vítimas. Logo, é um fato que a refe­
rência específica a Sócrates seja com frequência marginalizada
no uso que se faz do term o "pré-socrático”. Em um sentido am­
plo, a anterioridade dos Pré-Socráticos se entende não somente
em relação a Sócrates, nem mesmo em relação a Platão, o que se
pode compreender diante da unidade do pensamento socrático-
-platônico, mas sobretudo, e de maneira mais significativa, em
relação ao próprio Aristóteles: é que aqueles que nós chamamos
Pré-Socráticos são incontestavelmente os principais atores (em­
bora eles não sejam os únicos atores) da primeira narrativa te-
leológica da história da filosofia, consignada no primeiro livro
da M etafísica: é o sentido profundo da denominação "primeiros
filósofos”.29 Esclarece-se, assim, a saída antiaristotélica de Nietz­
sche em "Os tiranos do espírito”: 'Aristóteles, sobretudo, pare­
ce não ter olhos para ver, quando ele se encontra em presença
desses homens... parece que esses maravilhosos filósofos tenham
vivido em vão, ou que eles não tenham feito senão preparar os
batalhões disputadores e tagarelas das escolas socráticas”. Relati-
vizando a referência às "escolas socráticas” (que são e não são o
"próprio” Sócrates), Nietzsche chega a fazer coincidir as duas de­
terminações de "pré-socrático” e de “pré-aristotélico”, revelan-

29 Ver su pra, p. 32.


do assim a lógica subjacente de outro uso, por assim dizer não
socrático, do term o “Pré-Socrático”. Tudo se passa de fato com
frequência com o se no composto a potência do prefixo ("pré-”)
prevalecesse sobre a limitação imposta pelo radical (“Sócrates”).
Explica-se porque Heidegger, o mais importante apologista dos
"Pré-Socráticos” depois de Nietzsche, evitou o term o - ainda
mais voluntariamente porque Sócrates não desempenha entre
seus gregos nenhum papel. Os Pré-Socráticos de Heidegger são
os "pensadores iniciais” (die anßnglichen Denker). É verdade que
a expressão não está menos exposta que outras a representações
falaciosas. O próprio Heidegger sublinha que "o inicial passa fa­
cilmente pelo imperfeito, pelo inacabado, pelo grosseiro. É tam­
bém chamado o ‘primitivo’. Assim nasce a opinião segundo a
qual os pensadores que precedem Platão e Aristóteles são ‘pen­
sadores primitivos’”.30
Compreende-se, pois, que a historiografia dos Pré-Socrá-
ticos tenha conhecido, depois de Zeller, certo número de ten­
dências reformadoras em matéria de terminologia. Em lugar de
“pré-socrático”, falou-se, por exemplo, de "filosofia (ou período)
pré-ático” - uma tentativa de neutralização geográfica indire­
tamente inspirada na distinção, em Diogenes Laérdo, entre as
duas origens, oriental (“jônia”) e ocidental ("itálica”) da filosofia
grega, e que repousa sobre a ideia de que não é senão com Ana-
xágoras que a filosofia é levada a Atenas, e que com Arquelau
(o mestre presumido de Sócrates) ela aí se fixa.31 Encontramos
também "filosofia (ou período) pré-sofístico”, que pressupõe o
recorte hegeliano.32 Essas duas proposições permaneceram sem
eco, o que, em vista do atrativo potencial da segunda delas pelo

30 Heidegger, 1982 (= G A 54), p. 2.


31 Cassirer, 1925 (era já u m dos critérios m encionados por Eberhard, 1796). W in­
delband, 1891, distingue u m período cosm ológico (kom olog isch e P eriode) de um perío­
do antropológico (an thropologische P eriode).
32 O pperm ann, 1929, prindpalm ente p. 30 e seguintes. N esde tinha já empregado
o term o em seus acréscim os a Zeller, 1919-1923 (1844-1852), I, p. 225, nota: "a filosofia
pré-socrática ou mais exatam ente pré-sofistica”.
menos, merece ser sublinhado. "Filosofia arcaica” teve mais su­
cesso, o que se explica à medida que a categoria do arcaico, pii-
meiramente tematizada pelos arqueólogos e pelos historiadores
da arte nos mesmos anos em que Nietzsche construía a época da
tragédia com o aquela da grandeza grega, tom ou rapidamente a
seu cargo, de maneira transversal, todos os fenômenos, literários
e filosóficos, que a ideologia da idealidade e do classidsmo ti­
nham obnubilado.33 Mas nenhum desses reajustes pode se impor
contra "pré-socrático”. Como observa J. Mansfeld, a denomina­
ção "é a tal ponto ancorada no uso que não vale a pena lhe pro­
curar uma outra”.34
É ainda mais significativo que o editor de um volume de
introdução aos inícios da filosofia grega intitulado Companion
l»'1' to Early Greek Philosophy tenha, por sua parte, sistematicamente
afastado o term o “pré-socrático” em proveito dos "primeiros fi­
lósofos da Grécia”, segundo a fórmula inspirada em Aristóteles.35
Colocando o acento na essencial continuidade mais que na cesu-
»:■»■I
ra, que, a despeito da possível interpretação teleológica, constitui
a tendência dominante da expressão "Pré-Socráticos”, herdeira
liwii1
dos "pré-socráticos” socrático-platônicos, a fórmula aristotélica
■ liW ·'
apresentava um atrativo certo, desde que se pretenda apartar os
■ 'M 1 Pré-Socráticos da função que Nietzsche lhes tinha feito interpre­
tar. E compreensível, nessa perspectiva, que, por oposição à inter­
pretação “continental” dos Pré-Socráticos, "os primeiros filósofos
da Grécia” derivem mais da tradição da historiografia anglo-sa-
xônica.36 Sem contudo excluir as "reviravoltas” e as descontinui-
dades no seio da história da filosofia, ela insiste na instauração
da filosofia enquanto tal, e em sua essencial homogeneidade.

“ Sobre o conceito de “época arcaica”, ver Heuss, 1946 e M ost, 1989. E m se tra­
tando da história da filosofia, o term o “arcaico" é, po r exem plo, em pregado po r Hoff­
m ann, 1947. Ver já em Reinhardt, 1916, p. 52.
M Mansfeld, 1987, p. 9s.
“ Long, 1999, p. 5-10, cf. p. 2 1, n. 33.
M Cf. o título d o livro clássico de B u m et, 1892, E arly G reek P hilosophy (a tradução
francesa diz, inexatam ente, U Aurore d e la ph ilosop h ic grecque).

j
A oposição entre "os Pré-Socrátícos” e “os primeiros filó­
sofos” permanece tendenciosa, aos moldes de um tipo ideal. Ela
não deve ser enrijecida. O uso das denominações é mais irregular
que se poderia esperar, e o term o "Pré-Socráticos” permanece
de bom grado utilizado independentemente das representações
que ele tende a veicular. Isso não é devido somente ao fato de
que essas representações, em parte inconciliáveis (os Pré-Socráti­
cos são antes o não socrático de Sócrates, ou a antecipação pré-
-aristotélica de Aristóteles?), neutralizando-se mutuamente, mas
também em razão de seus méritos próprios.
“Pré-Socrático” tem primeiramente a seu favor o fato de ser
de uso linguisticamente cômodo, seja com o epíteto, seja como
substantivo. Remetendo a um mesmo regime o conjunto dos
pensadores que precederam o incontestável evento intelectual e
espiritual que foi a aparição de Sócrates, o term o "Pré-Socrático”
ratifica uma cesura significante não somente no seio da história
do pensamento filosófico, mas, mais largamente, na história da
humanidade: a época moderna não hesitou em traçar um para­
lelo entre Sócrates e o Cristo.37 Mas, a essa razão intelectual, é
preciso acrescentar outra, de ordem material, que mantém com
a primeira uma relação certa, embora difícil de precisar, e sobre
a qual talvez não se reflita o bastante.
O sentimento de que os “Pré-Socráticos” constituem uma
entidade dotada de certa homogeneidade é com efeito favore­
cido pelo fato de que nenhum de seus escritos não nos é mais
acessível em sua integridade. Eles se distinguem por isso tanto de
Sócrates, que deixa o cuidado a outros de escrever em seu lugar,
quanto de Platão e de Aristóteles, cujas obras nos foram con­
servadas, seja integralmente (no caso de Platão), seja em parte
(Aristóteles). Dos Pré-Socráticos, nós não lemos senão fragmen­
tos - a palavra fragmentos devendo aqui ser tomada, com o em

37 Baur, 1876; cf. Fascher, 1959. E m N ietzsche (E cceH om o), co m o já em Kierkegaard


(M igalhas filo só fica s), Sócrates é u m dos term os da escolha crucial.
Os Fragmentos dos Pré-Socráticos, em um sentido amplo, incluin­
do, ao lado das citações literais, resumos doutrinais (ou “doxo-
grafias”), paráfrases, comentários, alusões, indicações biográfi­
cas - em resumo, o conjunto das informações, frequentemente
trechos, suscetíveis de ajudar a tuna indispensável reconstrução.
O estado do corpus se explica pela história da transmissão.
No final do século VI da nossa era, logo uma dezena de séculos,
aproximadamente depois de sua data de composição, o neopla-
tônico Simplído tinha ainda acesso a certo número de escritos
dos “antigos”. Ele nos diz explicitamente ter consultado o se­
gundo livro do tratado de Diogenes de Apolônia,38 e concorda­
mos em pensar que as citações extensas que faz de Parmênides,
de Empédocles, ou de Anaxágoras, principalmente em seu co­
mentário do primeiro livro da Física, repousam em uma leitura
das obras originais. Mas Simplído tinha ele próprio consdência
de salvaguardar uma herança. Vários dos autores dtados por
Aristóteles, e que a esse título lhe interessavam diretamente,
não eram recopiados há muito tempo, quer se trate dos mais
antigos dentre eles, com o Anaximandro ou Anaximenes, ou dos
mais recentes com o Dem ócrito, sem falar de outros autores de
m enor importância. Se, no século XII, Teodoro Pródrom o e
João Tzetzes podiam ainda ler Empédocles em Constantinopla,
eles são as últimas testemunhas absolutamente certas de um
conhecimento direto de textos pré-socráticos. É verdade que a
m enção, em uma carta de Giovanni Aurispa datada de 1424,
de um manuscrito das Punficações de Empédocles que ele teria,
entre outros livros, levado a Veneza de sua viagem ao Orien­
te, sugere que um manuscrito de Empédocles teria sobrevivido
à destruição de Constantinopla em 1204, em bora as pesquisas

“ "E m seu Sobre a n atu reza, que é o ún ico de seus escritos que chegou até m im ..."
(C om entário à F ísica d e A ristóteles, p. 151, 28s., D ieb ). Discute-se para saber qual bi­
blioteca utilizava Sim plído. I. H adot, 1987, sustentou que não se tratava daquela da
Academ ia de Atenas, m as da biblioteca de H aran, ao longo do exílio na Pérsia (ver
prindpalm ente p. 19).

J
empreendidas para encontrá-lo não tenham chegado a bom
term o.39
Nenhuma obra "pré-socrática" nos chegou por intermédio
da tradição medieval. Na quase totalidade dos casos, o que nós
conhecemos delas é o que outros autores nos transmitiram, ci­
taram , ou mais geralmente disseram, em seus próprios escritos.
Existem, é bem verdade, exceções. A tradição papirológica (que
representa ao lado da tradição medieval uma segunda forma
de tradição “direta”) por vezes enriqueceu, e continua a fazê-lo
de tempo em tempo, um corpus, o qual nós temos toda a razão
em pensar que é de outra maneira fechado. A descoberta em
Oxyrhyncus, no Egito, em 1916, de um papiro trazendo restos
de um tratado do sofista Antifonte causou ajusto titulo sensação.
Eu já mencionei o papiro de Derveni.40 Igualmente espetacular é
a publicação recente de novos fragmentos papirológicos de Em-
pédocles que esperaram para ser lidos e reconstruídos no início
do século nas vitrines do museu de Egiptologia de Strasbourg.41
Mas esses acréscimos, por instrutivos (e emocionantes) que se­
jam , não mudam nada no caráter fundamentalmente fragmentá­
rio do corpus, mesmo se, nesse caso, a fragmentação resulta não
da prática da citação, mas da fragilidade do suporte da escritura.
Outros grandes corpus da Antiguidade desapareceram,
principalmente - para nos atermos à filosofia - aqueles das es­
colas helenísticas: estoicos, céticos, acadêmicos, epicureus. Vis­
to de certa distância, essa desaparição não é uma simples obra
do acaso. Todas essas filosofias são filosofias de vencidos, que,
após terem por vezes se imposto - é, em particular, o caso do
estoicismo, que foi por certo tempo a koinê filosófica do Impé­
rio - , acabaram finalmente por sucumbir à aliança do platonis-
mo e do aristotelismo. Acontece de certa maneira o mesmo com

" Sobre a presença de Em pédocles na época bizantina, ver Primavesi, 2002, p. 197-
201. Sobre o m anuscrito de Aurispa, ver Mansféld, 1994.
40 Ver supra.
41 Martin/Primavesi, 1999.
os Pré-Socráticos, a despeito - mas talvez também por causa - do
renovado interesse que lhes atribuíram as escolas helenísticas,
após a superação socrático-platônica, e a absorção aristotélica.
Mas, porque os limites cronológicos são, no seu caso, tão ní­
tidos, e fortemente simbólicos - não se trata nada menos que
do "nascimento” da filosofia, de uma parte, e de Sócrates, de
outra - , é ainda mais difícil resistir ao sentimento que, com a
desaparição de seus escritos, é uma época da história do espírito
que foi devorada. De todo modo, sua sobrevivência sob forma
de^fragmentos, por mais contingente que ela seja, aparece como
um dos critérios o menos contestável de uma identidade de resto
problemática.
FILOSOFIA

m qual medida os filósofos pré-socráticos, dos quais


E vimos em que sentido podem ser pré-socráticos, são
filósofos? Embora Platão tenha tratado, principalmente no Sofis­
ta, certas figuras da época arcaica com o filósofos, isto é, como
autores que compartilham, efetivamente ou implicitamente,
certo tipo de interesse ou de questões em que ele se reconhece
(trata-se, nesse caso, da questão do ser),1 é Aristóteles que atri­
bui oficialmente aos pensadores que nós chamamos pré-socrá­
ticos o estatuto de "primeiros filósofos”.2 A legitimidade dessa
denominação foi recentemente objeto de um debate do qual os
xresultados têm importantes repercussões na historiografia do
pensamento grego/ Porque nosso conhecimento dos pensadores
pré-socráticos é largamente informadoTdiretamente ou indire­
tamente,jJorJH atão e, sobretudo, por Aristóteles, que orientam
de maneira decisiva a leitura que nós fazemos das origens da fi­
losofia, uma tendência forte da pesquisa histórica em matéria de
pensamento arcaico, desde o final do século XIX, fiai de subtrair
os Pré-Socráticos do filtro aristotélico, em conformidade com o
programa de Nietzsche.3 A esta desaristotelização dos conteúdos
do pensamento pré-socrático, pesquisas mais recentes acrescen-

1S ofista, 242 c (cf. su pra, p. 19, n.1).


2Ver su pra, p. 32.
3 E m gêneros m uito diferentes, Reinhardt, 1916, e C hem iss, 1935, são aqui repre­
sentativos. Para a posição d e N ietzsche, cf. su pra, p. 40s.

59
taram , em uma perspectiva com frequência influenciada pela
abordagem antropológica, uma desaristotelização da própriajôr-
ma filosófica,4*em proveito de rearranjos classificatórios dos quais
alguns podem ser justificados - quando se sugere, por exemplo,
que a denominação de “sábios" conviría mais a figuras com o
Pitágoras, Heráclito ou Xenófanes que aquela de "filósofos" - ,
enquanto outros são mais contestáveis, quando se situam figuras
com o Parmênides ou Empédocles, purificados da racionalização
filosófica da qual eles teiiam sido vítimas, no domínio sulfuroso
da magia e das práticas inidáticas.s
A questão é de fato aquela da diferenciação da filosofia como
disciplina autônom ^^u reteda aqui dois aspectos, aquele mais
geral, da diferenciação entre mito (mythos) e razão (logos), e aque­
le, mais específico, da diferenciação entre racionalidade científica
e racionalidade filosófica. Descreveu-se frequentemente a emer­
gência e o desenvolvimento da racionalidade na Grécia como
uma saída fora do mito. Isso não põe nenhum problema parti­
cular, se entendemos por isso que as primeiras manifestações da
filosofia grega se desprendem de narrativas com o a Teogonia de
Hesíodo, que existem boas razões para atribuí-la ao “mito”, en­
quanto genealogia do conjunto do mundo dos deuses e dos ho­
mens, o que não significa que tal atribuição não seja de sua parte
simplificadora, e, em certa medida, ela própria mítica: não é sem
razão que se considera que a filosofia começa com Hesíodo.6 Mas
a fórmula de uma passagem “do mito à razão” é, no mais das ve­
zes, tomada como implicando, mais geralmente, uma aparição da
razão que poria fim, senão de fato pelo menos de direito, a todas
as formas de discurso mítico, reputado desde então como ultra­
passado. Nessa última acepção, a fórmula tomou-se efetivamente

4 Ver, nesse sentido, po r exem plo, Havelock, 1996.


’ Para um a tom ada de posição recente em favor dos sábios (um a ideia que tende
desde então a servir co m o vulgata), ver Nightingale, 2004, p. 29s. Para o m odelo xamâ-
nico, ver Kingsley, 1 9 95,1999-2001,2003.
6 A ideia é prindpalm ente defendida po r Gigon, 1945.
problemática, por razões tanto filosóficas, ligadas a uma crítica
das Luzes comum a numerosas orientações do pensamento con­
temporâneo, quanto científicas, ligadas à claiificação das cate­
gorias interpretativas. A reavaliação do “mito” que procederam
os românticos alemães, a crítica da razão em Nietzsche, sua des­
truição no quadro da fenomenologia heideggeriana, a denúncia
de seu caráter totalitário por Horkheimer e Adorno, recolocam
todas elas em questão, a um título ou a um outro, a ideia de
que a razão sucedería simplesmente ao mito, que o mito seria
tomado com o o futuro da razão mais que com o seu passado,
que a razão não podería reivindicar nenhuma superioridade com
relação ao mito, ou simplesmente que não se podería reconhecer
aí nenhum tipo de fim.7 De sua parte, a antropologia, as ciências
religiosas, e o comparatista também contribuíram fortemente
para o descrédito da fórmula, não somente oferecendo do mito
definições mais complexas e mais adequadas que aquelas que
dele ofereciam as Luzes, mas rebaixando as pretensões da razão,
seja mostrando que a racionalidade se encontra em obra no pró­
prio mito, ou que existem outras racionalidades que não a racio­
nalidade ocidental. Explica-se assim porque a fórmula “do mito
à razão” foi desde então de bom grado seguida de um ponto de
interrogação.8
As reservas se devem à dificuldade em definir de maneira
satisfatória os term os “mito” e “razão”, e, logo, em pensar uma

7 Lem brarem os, de passagem , em se tratando de sua aplicação à em ergência da ra­


cionalidade na G récia, que a fórm ula “do m ito à razão" foi corrom pida por W Nestle,
autor de um a obra clássica intitulada D o m ito a o lagos (Vom M ythos zu L ogos), na Intro­
dução da qual se pode le r qu e "percorrer a via que vai do m ito à razão, elevar-se da
imaturidade à maturidade do espírito, esse privilégio parece te r perm anecido reserva­
do aos povos arianos, enquan to raça m ais dotada. E entre esses últim os, o desenvolvi­
m en to não se deixa em nenhum a parte claram ente seguir senão nos Gregos” (p. 6). O
livro foi publicado em Stu ttgart em 1940. Trata-se de um com prom etim ento pessoal,
qu e n ão afeta realm ente o conteúd o do livro, em bora alguns possam ser tentados a ver
nessa declaração um a expressão caricatural da colusão entre “razão” e "totalitarism o".
* “From M yth to Reason?” é o título de um a série de estudos reunidos por Buxton,
l999.
"passagem” qualquer de um ao outro (independentemente dos
problemas, inegáveis, com os quais se confronta a explicação da
maneira com o essa passagem pode historicamente se efetuar9).
De outra parte, existem boas razões para se conservar a fórmula,
que focaliza a atenção em uma descontinuidade entre antigas e
novas formas de pensamento das quais é difícil recusar a existên­
cia, e das quais é evidentemente importante dar-se conta.10 Ora,
as duas dificuldades mencionadas são perfeitamente superáveis.
Nada obriga, com efeito, a conceber a passagem do mito à razão
com o "uma mudança heróica e progressiva no seio do pensa­
mento grego”,11 com o se tratasse de subsumir globalmente, e
de maneira exaustiva, o conjunto dos dados disponíveis em um
modelo único. O propósito seria mais de identificar um momen­
to que, para ser significativo, não conhece menos, aos moldes de
um tipo ideal weberiano, exceções, variações e recuos (como a
esse respeito insistiu Cassirer no Mito do Estado, nada é mais pe­
rigoso que acreditar que o mito não possa voltar12). Quanto aos
próprios term os "m ito” e "razão”, convém fazer deles um uso
funcionalista, que libera da obrigação de lhes atribuir uma acep­
ção muito estritamente fixada. É aqui que o conceito de diferen­
ciação pode ser de certa ajuda.
H. Spencer é o primeiro a ter feito do conceito de diferen­
ciação a peça central de uma teoria geral da evolução, que ele
define com o “a mudança de uma homogeneidade incoerente em
uma heterogeneidade coerente”.13 Essa definição é útil na medi­
da em que sugere, se a aplicamos ao caso da diferenciação entre

’ Ver in fra, p. 84-94, a análise da tese de V em ant sobre a ascendência da racionalidade


grega, "filha da cidade".
10É significativo, desse p onto de vista, que J.-P. V em ant, que p o r prim eiro criticou
de m aneira sistem ática a no ção de “m ilagre grego" (v er in fra, p. 85s.), tenh a intitulado
'D o m ito à razão” a últim a seção da coletânea Mito c pen sam en to en tre os G regos (Ver
nant, 1965).
11A fórm ula é de Buxton, em B uxton, 1999, p. 4.
u Ver Cassirer, 1946.
15Spencer, 1908 (1862), p. 291 (§125).
mito e razão, que não houve prim eiram ente o mito e nada mais
que o mito, depois a razão e nada senão ela, mas, antes, que a di­
ferenciação da razão com relação ao mito, desenhando um novo
campo de força e dele liberando novas possibilidades, induz uma
redistribuição das posições discursivas. Certamente, poderia se
objetar que, assim concebida, a noção de diferenciação corre o
risco de minar, mais que de confortar, a ideia de uma passagem
do mito à razão. Não exclui ela, com efeito, que o term o inicial
possa ser nomeado “m ito”, à medida que se pensa ser o mito
não a origem indiferenciada, mas o produto da diferenciação? O
homogêneo não é justamente um estado das coisas por definição
anterior à distinção entre mito e razão?
A objeção é real, e ela seria decisiva se não se levasse em
conta o caráter funcional da distinção entre "m ito” e "razão”. O
que se deve entender por isso advêm da própria história da re­
lação entre os term os gregos mythos e logos, cujo par moderno
m ito/razão é proveniente deles, mesmo que ele não os recubra
inteiramente.
Os dois term os são, com efeito, ligados à evolução do cam­
po semântico da "palavra”.14Mythos se refere primeiramente ao
“conteúdo” de uma narrativa, por oposição tendencial a epos,
que rem ete mais ao aspecto "m aterial”, o "receptáculo" em que
a palavra se articula: eis por que mythos designa, em geral, em
seus primeiros empregos, a opinião, a intenção, com , frequen­
tem ente, um aspecto performativo, que lhe faz tom ar o senti­
do de decisão, ordem, prescrição. Mas o term o pode também
visar o caráter narrativo do “conto”, uso em que ele entra em
concorrência com logos, que, ainda muito raro em Hom ero,
tende de seu lado a ocupar o lugar deixado livre pela especia­
lização de epea no sentido de versos (épicos), e a designar, por
conseguinte, todo tipo de discurso, e principalmente o discurso
em prosa.

14A presentação concisa e sugestiva dos dados em Calam e, 1991.

--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 63
O conto, ntythos ou logos, é primitivamente neutro em rela- !
ção à questão da verdade: ele poderá ser precisado, e a precisão ;
não parecerá redundante, se um mythos ou um logos é verdadei- j
ro ou falso, e isso até nos textos que pós-datam sensivelmente à j
especialização de mythos do lado da ficção, e de logos do lado da ]
realidade. Essa tendência é acompanhada de outra, paralela, em j
virtude da argumentação (da razão argumentada), por oposição j
a mythos, que acaba por assumir sozinha a herança da narração.15 *
Houve, pois, no interior do domínio grego, percurso e es- j
pecialização dos term os mythos e logos, isto é, passagem de um j
estado indiferendado a um estado diferendado.16 Não se trata ]
de obsolescênda e de "substituição" (ainda que seja uma das í
possibilidades abertas pela diferendação ela mesma), mas da for- 1
mação de um "campo” semântico cujos elementos pertinentes
são daram ente identificáveis mediante três oposições essendais,
aquela da narratividade e da argumentação, aquela da ficção e
da verdade, aquela do passado distante e do presente próximo.
A relação m ito/razão subsiste, enquanto o conteúdo dos term os
(em suas determinações formais com o em suas especificações) e
sua linha divisória se deslocam.
É nesse sentido que a distinção entre mito e razão não é
uma distinção substantial, mas funcional.17Nada se opõe, em tal
perspectiva, a que o mito possa ser ele próprio o produto de uma
atividade rational, e que, inversamente, a razão possa se tom ar
mítica. Temos bons exemplos dessas inversões desde a Antigui­
dade. Quando Platão, no Sofista, considera que todos os que an­
tes dele falaram do ser, pluralistas ou monistas, são contadores
de m ito, não é porque eles o tenham feito no quadro de uma
narração teológica (mesmo se é efetivamente o caso para alguns

“ B urkcrt, 1979, p. 32, distingue a “sequência" m ítica da “consequência” racional.


“ Calam e, 1991, p. 187.
17 Cf. Calam e, 1991, p. 204: “Na G récia antiga, tanto quanto na antropologia m o­
derna, não existe definição senão op eratóiia dessas m anifestações sim bólicas que se
tornaram a nossos olhos m itos e ritos”.
deles), mas porque todos respondem à questão do número dos
seres sem se terem posto a questão de saber o que significa o
term o "é”: sua mitologia consiste em não terem se interroga­
do com o seria conveniente fazer.18 Aristóteles, em M etafísica A,
distingue os primeiros filósofos dos teólogos, que são também
mitólogos, com base em outro critério, que é intrínseco: os pri­
meiros são "naturalistas”, os outros, não. Mas Epicuro, de modo
notavelmente “moderno”, inverte essa determinação aplicando
o term o "m ito” a certo tipo de naturalismo dogmático, que, para
dar conta dos fenômenos, seleciona arbitrariamente uma expli­
cação, quando várias concordam com os dados dos sentidos.19 O
mito, aqui, é simplesmente o preço a pagar quando não se respei­
tam os princípios de uma epistemologia definida.
A funcionalidade da relação entre m ito e razão não signifi­
ca evidentemente que a razão não seja tendencialmente carac­
terizada por certo número de traços ideais típicos pelos quais ela
se opõe, não menos tendencialmente, ao m ito. Em se tratando
da racionalidade filosófica, pode se sustentar que suas primeiras
expressões visam abraçar um conteúdo definido (certa totali­
dade, cujo universo natural é a especificação mais manifesta,
mesmo se ela não é a única possível) pelo viés de um tipo de
argumentação específica (“racional”), ou talvez mais exatamen­
te no horizonte de tal argumentação, se é verdade que muitas
argumentações pré-socráticas são implícitas.20 No mais, no seio
desse par, os dois term os não são simétricos, a história do de­
senvolvimento da filosofia sendo sempre também uma história
da relação entre conteúdo e form a do pensamento, e, a esse ter­
mo, da passagem de um pensamento de primeira ordem a um
pensamento de segunda ordem - passagem essa que o Fédon
de Platão credita a Sócrates. Não há nenhuma razão para não
descrever esse movimento, levando em consideração as preri-

“ S ofista, 242 c 8. 244 a 3 - b 4.


19 C arta a P ítod es, § 1 0 4 ,1 1 5 , 116.
20 Esse traço m erecería um a análise aprofundada.
sões apresentadas acima, com o uma passagem do mythos ao
logos.
Quanto à diferenciação entre ciências e filosofia, ela foi
objeto de duas análises contrastantes. Foi possível, com efeito,
sustentar que a especialização da ciência e da filosofia sobreveio
muito cedo, desde o fim do século VI e início do V, em que se en­
contraria já, ao lado de “puros” filósofos com o Heráclito, figuras
de “puros” sábios com o Cleóstrato de Tenedos ou Hecateu de
Mileto. O século V não teria feito senão aprofundar essa espe­
cialização, principalmente no domínio da ciência, com matemá­
ticos de primeiro plano com o Hipocrates de Quios, Teodoro de
Cirene e Teeteto, que não deixaram nenhum traço de estudos fi­
losóficos, astrônomos com o Enópides de Quios, Méton e Euctê-
mon de Atenas, e médicos dos quais muitos tratados são consa­
grados a questões puramente profissionais.21 Mas se pode tam­
bém sustentar que as classificações disciplinares e as distinções
às quais nós recorrem os espontaneamente, com frequência se­
guindo os Antigos (com o filosofia, sabedoria, sofistica, história,
natureza, medicina, matemáticas), são enganosas, na medida em
que as atividades subsumidas sob esses term os não provêm de
um campo intelectual e científico já diferenciado.22 Para tom ar o
caso mais favorável, que é aquele das matemáticas, é verdade que
tuna figura com o aquela de Hipocrates de Quios sugere certa
especialização, na medida em que ele se consagra inteiramente
à resolução de problemas matemáticos. Mas é possível inferir a
existência de uma categoria de “matemáticos” antigos, dos quais
Hipocrates, Euctém on e Méton seriam os representantes? Duas
séries de razões podem levar a duvidar disso: a primeira, nega­
tiva, é que nós não sabemos, na verdade, praticamente nada de

21 É a posição de Zhm ud, 1994. C leóstrato é u m astrônom o, m ais jov em que


Anaximandro, e autor de u m p oem a provavelmente intitulado A strologia (testem unhos
em 6 D K ). H ecateu de M ileto, autor de tuna obra intitulada G en ealogias, é considerado
co m o o ancestral da investigação histórica.
22 Esses argum entos foram p o r diversas vezes desenvolvidos p o r G. E. R . Lloyd, e
em particular em Lloyd, 2002.
Euctêm on, e que, seguindo o perfil que dele traça Aristófanes,
Míton faz antes pensar em um espírito enciclopedista, na tra­
dição de Tales, que em um especialista.23 A segunda, mais im­
portante, é que existem não-matemáticos que trabalham "pro­
fissionalmente” no domínio das matemáticas, com o Antifonte,
Brison ou Demócrito.24 Quanto à medicina, percebe-se que o cor­
pus hipocrático reflete na verdade interesses muito variados, que
não se deixam facilmente reduzir a uma concepção especializada
da medicina, uma vez que neles se trata tanto de questões cos-
mológicas, linguísticas ou etnológicas quanto de questões mais
estritamente médicas.25 Essas considerações levaram G. Lloyd a
concluir acerca da "complexidade da cartografia das atividades
intelectuais nos séculos VI e V” e da "dificuldade que existe em
encaixar um ou outro indivíduo em categorias nitidamente de­
finidas, quer essas categorias sejam as deles ou as nossas”. “Isso
vale”, continua ele, "para os filósofos não menos que para os ma­
temáticos e os médicos. As fronteiras disciplinares permanecem,
antes de Platão, ao mesmo tempo contestáveis e fluidas.”26
Donde negar que exista alguma coisa do tipo de uma filo­
sofia pré-platônica, que não há senão um passo, que alguns não
hesitaram em dar. Assim pode alguém sustentar que “a discipli­
na (= a filosofia)... não nasceu com o um organismo natural. Foi
bem mais uma construção artificial que devia ser inventada e le­
gitimada com o uma nova prática cultural, única em seu gênero.
Isso sucede em Atenas no século IV a.C ., quando Platão se apro­
pria do term o ‘filosofia’ para uma nova disciplina especializada
- uma disciplina que foi construída em oposição às numerosas
variedades de Sophia ou ‘sabedoria’ que eram reconhecidas pelos
predecessores de Platão e seus contemporâneos”.27

23 A ves, 992-1020.
24 Lloyd, 2002, p. 48s.
25 Ib id ., p. 44s.
26 Ib id ., p. 53.
27 N ightingale, 1995, p. 14; c £ 2004, p. 30.
Ora, se não viesse em mente a ninguém negar que Platão
ou Sócrates imprimiram profundamente sua marca na definição
e na prática da filosofia (se podería mesmo dizer nesse sentido
derivado que eles foram seus inventores), usar do vocabulário da
artificialidade por oposição a um modelo de crescimento natu­
ral e orgânico passa ao lado do essencial, em se tratando de um
processo cultural com o aquele da emergência da filosofia - inde­
pendentemente mesmo do fato de que a tese de uma invenção
platônica da disciplina filosófica repousa, com o nós o veremos
logo mais, sobre uma base factualmente contestável. Mesmo ad­
mitindo que nenhum ram o do saber já fosse verdadeiramente
especializado na época pré-socrática, pode-se dificilmente negar
que certo processo de especialização se deixe perceber. Aqui está
o fenômeno interessante.
Não se podería tentar compreender a natureza desse pro­
cesso opondo à categoria estática de especialização a fluidez ou
a complexidade, que é uma categoria tanto quanto estática. A
dinâmica da especialização se apresenta com o um processo ne­
cessariamente heterogêneo, cada disciplina tendo sua própria
pré-história, suas próprias condições e ritmos de desenvolvimen­
to, e sua própria maneira de interagir com os outros ram os do
saber. Em se tratando da filosofia, acresce-se o fato de que ela
está sem dúvida mais exposta que outras disciplinas a constantes
reconfigurações, em razão mesmo da indeterminação relativa de
seu “objeto”. Existem médicos em Hom ero, com o em outros;
figuravam aí astrônomos e matemáticos babilônios. A despeito
das mudanças radicais que existem entre os médicos hom érico e
hipocrático, entre a astronomia babilônica e a astronomia grega,
parece difícil negar que uma e outra concernem , em certo nível,
a um objeto identificável (as feridas e a doença, os fenômenos
astronômicos). O mesmo acontece com a filosofia, pois em seu
caso, um objeto ou, talvez, mais um conjunto de problemas to­
talmente novos devia ser concebido, e não somente uma nova
abordagem concernente a uma matéria já relativamente bem cir­
cunscrita. A relação entre sophos e phüosophos não é sem dúvida
a mesma que entre os protoastrônomos e os astrônomos, e é
por isso que a questão da origem da filosofia, e da passagem da
sabedoria à filosofia, se põe de maneira tão insistente, seja entre
os Antigos, seja para nós.2*
Por mais lacunar que seja nossa informação sobre os ter­
mos "filósofo”, “filosofar” e “filosofia”, nós sabemos o bastan­
te acerca deles para dizer que com eçam a ser utilizados em um
sentido quase técnico no último terço do século V, no momento
em que a “investigação sobre a natureza” passa a ser denomi­
nada com o tal.*29 Mas isso não significa que, em um caso com o
em outro, não se possa ou não se deva ir além. Contrariamen­
te a uma pressuposição muito difundida, o critério da existên­
cia de uma atividade, ou de uma representação, não é fornecido
pela existência da palavra correspondente. A língua, que pode
ser inventiva, possui com efeito também uma inércia que lhe é
própria. Se os neologismos são sempre possíveis, pode também
se passar certo tempo antes que a língua reflita uma mudança
de prática, em virtude de um princípio de histerose linguística. É
importante que se possa continuar a descrever com o "filosófica”
uma démarche intelectual que precedeu a aparição do conceito,
com o da própria palavra.
Os Antigos viam de bom grado a coisa surgir com a pala­
vra.30 Compreende-se, desde então, que a invenção do term o "fi­
losofia” tenha podido ser atribuído a Pitágoras, em relação com
uma concepção da filosofia entendida com o atividade teórica (é
a explicação dada ao tirano Leon, já mencionada no primeiro ca­
pítulo31). Sustentou-se que a palavra, da qual encontramos uma
ocorrência (embora contestada) em um fragmento de H erádito
(na virada do século VI para ο V), remontava efetivamente a Pi­
tágoras, o que nos remetería ao final do século VI. Mas parece

u Para a plasticidade da filosofia, ver Cassirer, 1979 (1935).


29 Ver su pra, p. 16s.
30 Cf. Burkert, 1970.
51 Ver su pra, p. 26.
mais razoável pensar, com a maioria dos intérpretes, que nós nos
encontramos às voltas aqui com uma projeção retrospectiva,
sem dúvida proveniente, nesse caso, do movimento pitagórico
no interior da Academia platônica.32
Em todo estado de causa, a palavra philosophos, que não fi­
gura nem em Homero, nem em Hesíodo, é uma criação relativa­
mente recente, e os primeiros empregos seguros que se fez dela,
por volta da metade do século V, estão longe de apontar para a
ideia de uma disciplina filosófica: a tal ponto que os "filósofos",
apropriando-se dela, sentiram a necessidade de distinguirem-se
fortemente do que o term o designava. O caso mais célebre, “que
talvez tenha sido precedido por outros” (Heráclito, segundo uma
das interpretações possíveis do fragmento B 3533), é aquele de
Platão que, no livro V da República, opõe os verdadeiros pkiloso-
phoi, etimologicamente analisados, em uma perspectiva socráti-
co-platônica, com o "aqueles que amam a sabedoria”, aos simples
curiosos que lhe usurpam o nome, e aos quais Platão sugere que
precisaria antes chamar de philotheam ones ("aqueles que amam
olhar”).34
"Filosofar" significa, com efeito, primeiramente, conforme
os contextos, “dar prova de curiosidade”, “cultivar seu espírito”,
“amar a discussão” .3S Quando Pérides, em Tuddides, atribui
uma das causas da supremacia dos Atenienses ao fato de “que
eles se entregam à filosofia sem se enveredar pelas facilidades”, o
que ele visa é uma cultura do debate e do juízo estético.36 Uma
geração antes, é a abertura intelectual e a experiênda do mundo

32 Para um a tentativa recente de conferir crédito ao testem unho de C ícero, ver


Riedweg, 2002, p. 120-128. A discussão clássica se en contra em Burkert, 1960. Ver,
tam bém , G ottschalk, p. 29-33.
33 Ver abaixo, p. 69s„ o problem a que põe esse fragm ento.
34 R epú blica, 475 d.
33 U m sentido que o term o n ão devia de resto nunca perder, e que foi mobilizado,
desde Isócrates, pelos partidários da cultura geral contra a filosofia da qual Platão aca­
bara de fixar firm em ente os novos contornos.
36 Tuddides, II, 40, co m o co m en tário de Frede, 2004, p. 21s.
que tinham feito com que dissessem a Cresos, rei da Lídia, que
Sólon de Atenas, em visita à sua corte, "praticava a filosofia”:

Enquanto ele (Sólon) olhava e examinava toda coisa, Cresos lhe


disse: “Estrangeiro de Atenas, grande é a reputação de que gozas
entre nós em razão de teu saber e de tuas tribulações, porque,
como filósofo (= ávido de saber), tu percorrestes, para observar,
uma vasta terra”.57

A ideia de que os “filósofos” são grandes amantes do sa­


ber, curiosos das coisas do mundo, e, por conseguinte, dados às
viagens, está sem dúvida igualmente presente no fragmento de
Heráclito ao qual se aludiu acima e que, se aceitamos o texto
admitido pela maioria dos editores, liga a "filosofia” à curiosida­
de ocular: “é preciso que filósofos tenham visto muitas coisas”.3738
Duas leituras se oferecem, entre as quais convém escolher. Uma
é a de que Heráclito se refere ao que ele rejeita em outro lugar,
em termos violentos, sob o nome de "polimatia”.39 Nesse caso,
"filosofar”, à maneira de Sólon, é predsamente o que é preciso
evitar. Outra é a de que ele afirma, com um gesto que antecipa­
ria a crítica platônica do livro V da República, que para filosofar
verdadeiramente é preciso sem dúvida ter visto muitas coisas -
mas que isso não basta. Conforme o caso, esse fragmento de He­
ráclito refletirá um momento decisivo da apropriação, por uma
empresa em via de diferenciação, de um term o disponível, ou
testemunhará somente sobre a maneira pela qual a "filosofia”,
no sentido técnico do term o, construiu-se de maneira ainda anô­
nima, contra o que ela era até então (uma curiosidade pelo mun­
do, destinada a se tornar simples curiosidade).40 Uma e outra des-

37 H eródoto, I, 30. A conjunção, nessa frase, dos term os p hilosophein e th eòria, am ­


bos tom ados em um sentido pré-filosófico (theâria n o sentido de observação dos hábi­
tos e dos costum es), é evidentem ente digna de ser notada.
M B 35.
39 B 40.
40 Eu tendo, de m inha parte, à segunda interpretação, que m e parece a mais inte­
ressante, e tam bém a mais verossímil (ver Bollack e W ism ann, 1972, p. 143s.).
sas interpretações supõem, evidentemente, que Heráclito tenha
empregado bem o term o “filosofia”. É revelador dos problemas
que faz emergir a ocorrência do term o em data avançada que se
tenha pensado que este não era senão uma glosa do citador, que ■
convinha extirpar do texto original.41
De fato, os dados, relativamente pouco numerosos, mas
significativos, indicam mais uma vez o último terço do século V
com o o período em que as palavras “filósofo” e “filosofia” vie­
ram a se referir a uma atividade de um gênero específico - o que
não significa que elas tenham visado um tipo de estudo “especia­
lizado”. Por mais que se possa julgar pelos diálogos de Platão e
por Xenofonte, Sócrates já fazia na época um uso distintivo do
term o, ligando de modo protético a filosofia à busca da felici­
dade. Mas Sócrates posto à parte, temos pelo menos três teste­
munhos de uma incontestável especialização do term o por volta
dessa mesma data.
A primeira passagem, no capítulo XX do tratado Da
M edicina Antiga, que já foi citado no primeiro capítulo a pro­
pósito da “investigação sobre a natureza”. Ele se reveste de
um interesse todo particular no presente contexto, porque ele
com porta a primeira ocorrência literária do substantivo abstra­
to philosophia:

Entretanto, alguns, médicos assim como sábios, declaram que


não é possível conhecer a medicina se não se conhece o que é o
homem... E o discurso desses homens vai na direção da filosofia,
como Empédocles ou outros autores que sobre a natureza escre­
veram remontando à origem acerca do que é o homem, como
primeiramente ele nasceu e a partir do que adquiriu consistência.
Mas eu estimo que tudo o que foi escrito sobre a natureza por um
ou outro sábio ou médico tem menos relação com a arte médica
que com a pintura (graphike), e estimo que, para ter algum co-

41 Ver W iese, 1963, p. 258s. Cf. tam bém Burkert, 1960, p. 171. O s intérpretes que
atribuem a Pitágoras a invenção da palavra “filosofia” inferem de sua presença em
H eráclito, que d ta o nom e de Pitágoras (em m au lugar) n o frag. B 129.
nhecimento preciso sobre a natureza, não existe outra fonte que
não seja a medicina.

Um dos problemas postos por essa frase é aquele de saber se


é preciso entender por graphike - a arte com a qual o médico tra­
dicionalista compara desvantajosamente a filosofia - a “pintura”,
ou antes a “escritura” (ver a “literatura”). O verbo graphein pode,
com efeito, significar, também, tanto “pintar” quanto “escrever”.
Em favor da tradução aqui escolhida, pode-se fazer valer que o
substantivo graphike, que não é atestado no século IV senão no
sentido de pintura, tinha já sua acepção fixada no fim do século
V.42 De resto, a aproximação entre filosofia e pintura, por mais
surpreendente que seja à primeira vista, parece mais apropriada,
no contexto, que aquela entre filosofia e escritura. Não porque
seja chamada, com o foi sugerido, pela m enção de Empédocles,
que, em seu poema físico, tinha comparado Afrodite, um dos no­
mes da potência mais comumente chamada Amor, e que engen­
dra a infinita variedade das formas naturais a partir das quatro
"raízes” elementares, a esses artistas que obtêm a variedade das
formas pictóricas a partir das cores fundamentais.43 Tal alusão
não teria sentido senão se a Afrodite empedocleana praticasse ela
própria a filosofia, o que não é o caso, sem mesmo falar do fato
de que a medicina visa menos Empédocles que a abordagem ge­
nética que ele representa (consistindo em rem ontar às origens), e
que a analogia da paleta não ilustra. Parece antes que, no quadro
de um tratado dirigido contra uma medicina de tipo especulati­
va, acusada de operar com base em pressuposições ilegítimas,44
a pintura seja considerada com o o exemplo mesmo de uma arte
representativa, e nessa medida puramente "teórica”, em relação

42 Jouanna, 1990, p. 208, n . 8; Vegetti, 1998. Schiefsky, 2005, p. 309s., opta, ao co n­


trário, por “arte da escritura”. O au to r atacaria o s autores de com posições literárias,
que são apenas isso.
42 B 23 (= 6 4 Bollack).
44 D a m edicin a an tiga, 1 ,1-3; ΧΙΠ; X V e s.
à arte do médico, cuja finalidade é curar ou aliviar.45 A censura,
que visa a abordagem filosófica enquanto tal, seria tanto mais
cruel a respeito de Empédocles porque ele tinha assinalado, e de
maneira enfática, a eficácia do saber, ilustrada pelo poder da tau-
maturgia de "trazer do Hades a força de um homem m orto ”.46
O que quer que se diga quanto a esse ponto, a passagem de
Da m edicina antiga não ilustra somente um duplo conflito "disci­
plinar”, interno e externo (no seio da medicina, e entre medicina
e filosofia), mas aponta, também, um emprego da "filosofia” em
virtude do qual o term o se refere àqueles que estudam a “natu­
reza”, ainda que de maneira ilegítima.
O segundo texto pertinente nesse contexto é o § 13 do Elo­
gio de Helena de Górgias, que, falando do poder da persuasão,
distingue três domínios de atividade discursiva: os propósitos (lo­
goi) daqueles que ele chama "meteorologista”; os combates (ago­
nes) das partes engajadas em um processo; e, enfim, os debates
(ham illai) filosóficos. A m eteorologia representando com toda evi­
dência aqui, segundo a sinédoque frequente, a investigação sobre
a natureza;47 aqueles que Górgias chama aqui "meteorologistas”
recobrem em grande parte ou mesmo coincidem com os natu­
ralistas que o autor do D a m edicina antiga acusa de se entregarem
à filosofia. O próprio Górgias emprega o term o “filosofar” para
outra coisa, a saber, para uma forma específica de competição
argumentativa. O que Górgias tem aqui em vista é claramente a
controvérsia dialética tal que nós a conhecemos através dos diá­
logos platônicos e dos Tópicos de Aristóteles, na qual o que se en­
contra em jogo não é um domínio particular da realidade (como
o mundo), mas todo assunto podendo se prestar ao debate.48

45 Cf. Pohlenz, 1918, que pensa que a pintura pertence, co m o a filosofia, a um a


categoria de arte que passava po r secundária, e não necessária (cf. a posição reportada
po r Platão, L eis, X , 889 d 3).
“ B i l l D K = 1 2 Bollack. Sobre Em pédocles taum aturgo, ver Vegetti, 1996 e Laks,
2003 a.
47 Ver su pra, p . 16.
48 E, pois, lógico que os m eteorologistas não sejam apresentados co m o se
afrontando entre eles, m as co m o fazendo e desfazendo a opinião de seu público,
A esses dois testemunhos diretos, vem se juntar aquele que
nos fornece o Eutidemo de Platão a propósito da definição que
o "sofista” Pródico, conhecido por ter sistematicamente distin-
guido o sentido dos sinônimos, tinha dado do term o sophistês.
O vocábulo, antes da redução que lhe faz sofrer a polarização
platônica entre sofistica e filosofia, tinha designado, de maneira
geral, o “expert” - uma figura mais técnica e mais moderna dos
antigos “sábios”:49assim, na passagem do Da antiga m edicina cita­
da acima (onde ele é traduzido por “sapiente”), ou em Diogenes
de Apolônia, que chamava ainda sophistai àqueles que, em sua
época, deviam já ser conhecidos pelo nome de “naturalistas”.50
Ora, Pródico, a julgar pelo testemunho do Eutidemo, dizia que o
sofista ocupava um lugar “limítrofe entre afilosofia e a política”.51
Situando a prática sofistica no ponto de articulação das duas
grandes orientações da atividade humana - o estudo (eminen­
temente representado pela filosofia) e a ação (eminentemente
representada pela política) - , a definição supõe também uma
visão da filosofia com o démarche essencialmente teórico, com o
acontece no Da m edicina antiga. Isso não é interessante somente
porque Pródico, que nós classificamos com o sofista, descrevia o
sofista de uma maneira inédita, e que de toda evidência antecipa
aquela de Platão, mas também porque a metáfora da “fronteira”
(methoria) testemunha acerca da consciência por assim dizer au­
tóctone de um processo de especialização em curso, e do debate
tipológico conexo.
Com base nesses testemunhos, é possível concluir que, por
volta do último terço do século V, a filosofia tinha se tom ado
uma atividade identificável com o tal. O que não significa que o
objeto da atividade filosófica tenha sido precisamente circunscri-

distinção que poderia naturalm ente ser contestada. A deusa de Parm ênides recorre
explicitam ente à term inologia atlética para dizer que nenhum m ortal ultrapassará
nunca seu discípulo em m atéria de cosm ologia (B 8 ,6 0 ).
49 Sobre a significação do term o, ver Kerferd, 1999 (1981), cap. 3.
50 Frag. 3, Laks.
51 E utidem o, 305 c 6.
to. Ao contrário, a filosofia se refere, em um primeiro caso, ao
estudo da natureza (Da m edicina antiga) e, em um segundo, ao
debate dialético (Górgias), e, em um terceiro, à atividade teórica
(Pródico), e se sabe que o próprio Sócrates via nela o único ins­
trumento adequado a proporcionar a felicidade ao homem. Que
fazer dessa diversidade de caracterizações? Uma consideração
que não deveria sem dúvida ser subestimada a despeito de sua
aparente trivialidade é que a filosofia é por natureza uma discipli­
na cujas fronteiras são mais abertas que outras, de tal sorte que
existe uma dificuldade específica em definir seu objeto próprio.
Um indicio forte de que a diversidade, por mais abundante que
a possamos pensar, não prejudica em nada a homogeneidade do
démarche "filosófico", é que essa não é menor depois que o era
antes que a filosofia viesse a adquirir um estatuto disciplinar. A 1
heterogeneidade entre os diferentes Pré-Socráticos equivale bem
àquela que separa Sócrates de Platão, Platão de Aristóteles, Hegel
de Kierkegaard, Frege de Heidegger. Se existe alguma coisa com o
estilos e formas de pensamento, disso se segue que a diversidade
morfológica, não menos que a diversidade professional, é um cri­
tério muito fraco para separar o que é e o que não é “filosofia”.52
Isso permanece verdade mesmo acerca dos inícios, o que não sig­
nifica que a fraca diferenciação das atividades intelectuais não
tenha podido também ter contribuído, em uma medida que é di­
fícil de definir, para a heterogeneidade das produções filosóficas.
Importa, em todo caso, distinguir entre duas espécies de
diferenciação, a diferenciação externa (Ausdifferenzierung em
alemão) e a diferenciação interna (Binnendifferenzierung). O fato
que um grupo social se diferencie de um outro não implica de
modo algum que ele próprio seja homogêneo, muito antes pelo
contrário (o mesmo acontece com um órgão). A autoasserção

52 Ver Cassirer, 1979 (1935). O grande rival de Platão, H ipocrates, apresenta um


caso interessante, um a vez que a concepção que ele se fazia da filosofia co m o saber
prático, indissociável da retórica, não se im pôs finalm ente co m o filosoficam ente
legítim a, m esm o se ela o foi durante um a grande parte da Antiguidade.
em face do meio é regularmente, ou mesmo necessariamente,
acompanhada por divisões e afrontamentos (“o ceramista odeia
o ceramista”, dizia Hesíodo” ) e, logo, também por distinções in­
ternas - o que significa que a transgressão das fronteiras existen­
tes pertence, paradoxalmente, ao processo de sua delimitação.
Isso é sem dúvida eminentemente verdadeiro da filosofia, em
razão da plasticidade particular que é a sua.
Uma das razões dessa plasticidade se deve ao interesse dis­
tintivo da filosofia pelas totalidades e pelas generalidades, cujos
contornos podem ser a todo instante redefinidos (isso poderia
até mesmo ser considerado com o um princípio maior da dinâmi­
ca do pensamento filosófico). Como testemunha, por exemplo,
sua vocação a abraçar, em certo nível, as disciplinas especializa­
das. O capítulo Lam bda 8 da M etafísica, que é ainda mais interes­
sante pelo fato de que Aristóteles nele reconhece explidtamente
que o filósofo pode não ter a última palavra em matéria de as­
tronomia (embora não o exclua tampouco), fornece uma boa
ilustração das tensões que resultam dessa configuração.* 545Mas
Aristóteles trabalha em um ambiente em que as disciplinas estão
já amplamente diferenciadas. Os dados pré-socráticos são muito
mais difíceis de se apreciar, porque não encontramos entre eles
nenhuma discussão ou tomada de posição explícita sobre a rela­
ção entre a filosofia e as outras disciplinas.
Um caso interessante é aquele da descrição detalhada que
Diógenes de Apolônia dá do sistema venoso (e arterial) no corpo
humano, em um longo fragmento citado por Aristóteles em sua
H istória dos a n i m a i s Condui-se daram ente, a partir das indi­
cações de Simplído, que, sem dtar a passagem, faz daram ente
alusão a ela quando evoca “sua descrição anatômica detalhada

” H esíodo, Os T rabalhos e os d ias, 25.


54 "Se se m anifesta algum a diferença entre nossas opiniões e aquelas que professam
a esse respeito os hom ens com petentes, nós nos darem os certam ente conta de um as
e de outras, m as n ão seguirem os sen ão as m ais exatas", 1073 b 14-17 (trad. Tricot).
55 511 b 31 - 5 1 3 b 11. D iógenes, que não faz a distinção en tre veias e artérias, fala
de p h leb ís, aqui traduzido po r "co n d u tos" (ver Laks, 1983, p. 60).
dos condutos”,56 que o texto vem do primeiro livro do tratado
de Diogenes. É significativo que alguns intérpretes tenham não
obstante atribuído a passagem ou ao segundo livro do mesmo
tratado, em que a fisiologia teria sido desenvolvida, ou a um ou­
tro livro de Diógenes, que teria tido por título “Sobre a nature­
za do homem” (P m phuseôs antkrôpou).57 A discussão trai certa
hesitação quanto ao estatuto, "filosófico” ou "fisiológico”, do
fragmento. O fato de que ele seja transmitido por Aristóteles em
uma obra de zoologia, em um capítulo consagrado ao sangue e
aos condutos sanguíneos, é também eloquente, porque alguém
podería se perguntar em que medida o próprio tratado de Aris­
tóteles, que é o quadro da situação, é ou não é de natureza fi­
losófica (por mais que a questão faça sentido). Aristóteles cita
a descrição de Diógenes entre aquela, breve, de certo Siennese,
o qual Aristóteles explica ser “o médico de Chipre", e aquela de
Políbio, o genro bem conhecido de Hipocrates. De modo mani­
festo, Aristóteles cita Diógenes no mesmo plano que os médicos
profissionais. Não é certo que ele o tenha sido. Mas mesmo se tal
tivesse sido o caso, é bastante daro que existe uma razão “filosó­
fica" para o cuidado que leva Diógenes a descrever os condutos
que atravessam os corpos dos viventes. A tese fundamental de
Diógenes é, com efeito, que o prindpio, a saber, o ar, é “inteli­
gente”, e a maneira pda qual a inteligência é favoredda ou ini­
bida constitui uma parte importante da demonstração que ele
tinha desenvolvido em favor dessa tese. É a razão pela qual a
existência de uma rede graças à qual o ar e o sangue são distri­
buídos "através de todo o conjunto do corpo ”58 (uma vez que os
condutos de Diógenes não transportam somente o sangue, mas
o ar igualmente, e a bem dizer ainda mais este do que aquele) é
tão importante: a sensação e o pensamento (a “inteligênda” no

“ Sim plído, C om entário d a fís ic a d e A ristóteles, p. 1 5 3 ,15s., Diels.


” Cf. Laks, 1983, ad frag. 10 (= 6 D K ), 61. Sobre a questão do n ú m ero dos livros de
D iógenes, ver ib id ., p. 247-249.
“ Cf. Teofrasto, S obre a s sen sações, § 4 3 ,4 4 ,4 5 .
sentido global em que Diógenes usa o term o) dependem des­
sa distribuição, que explica também certas funções fisiológicas
com o a digestão, a reprodução e o sono.59 Podería ser dito que,
no caso de Diógenes, fazer filosofia implica fazer medicina, no
mesmo sentido que, no caso de Aristóteles, fazer filosofia impli­
ca fazer astronomia, pelo menos até certo ponto.
Uma história do modo com o a filosofia se diferenciou deve
operar com certa ideia do que é suposto se diferenciar, e pres­
supõe, logp, algum critério de demarcação entre a ciência e a
filosofia. Tal critério pode ser mais ou menos forte. Uma posição
extrema consiste em distinguir os problemas científicos dos pro­
blemas filosóficos, pelo fato de que os primeiros são suscetíveis
de receber uma solução, o que não seria o caso dos segundos.60
Entre os critérios mais fracos que foram mobilizados ou pode­
ríam ser, figuram o recurso à demonstração ou ao experimento,
o uso dos dados empíricos, aquele da argumentação racional,
ou, ainda, simplesmente, o caráter singular do procedimento
adotado. Esses critérios não podem evidentemente pretender a
um valor absoluto, e é fácil jogá-los uns contra os outros. Contra
Popper, que tinha erigido os Pré-Socráticos com o paradigma
do debate científico, concebido como espaço de discussão críti­
ca procedendo por falsificação de teoria, sublinhou-se o pouco
espaço que a empiria tem entre os filósofos pré-socráticos, en­
quanto outros lembram que, em se tratando da ciência grega, a
medicina tinha mais a nos ensinar que a especulação dos natura­
listas.61 De fato, a distinção entre ciência e filosofia demanda um
tratam ento análogo àquele da distinção entre mito e razão: uma
abordagem funcional não é menos útil aqui do que foi ali. Com
efeito, é vão querer atribuir a investigação sobre a natureza à ciên-*

” Para a sensação, cf. T 41 Laks (= A 29 DK); a reprodução, T 15 (= A 24); a diges­


tão, cf. T eofrasto, S obre a sen sação, § 44 e Laks, 1983, p. 151.
* Zhm ud, 1994, p. 4. M as alguns dos problem as, pelo m enos os que põe a ciência,
não são solúveis, e m uitos problem as solúveis não são problem as científicos.
41 Ver o debate em Lloyd, 1991 (1972).
cia (certo tipo de ciência) ou à filosofia exclusivamente: sendo
abundante o seu uso tanto em uma com o em outra, ela não é
nem uma nem outra, e pode se encaixar em uma ou em outra
descrição, segundo o ângulo a partir do qual a consideramos.
Por vezes se perguntou se não valería mais a pena, a des­
peito de Aristóteles, fazer com eçar a filosofia com Parmênides,
mais que com Tales, que representaria, com o os seus dois suces­
sores milesianos (Anaximandro e Anaximenes), o início do pen­
samento científico.6263O argumento é que nós não temos, da rela­
ção entre filosofia e ciência, a mesma concepção de Aristóteles,
que inaugura uma tradição da qual Descartes, Pascal, Leibniz
são ainda representativos, em virtude da qual a ciência natural
é parte integrante da filosofia (isso permanece verdadeiro até o
século XVIII, pelo menos). Não há, pois, nenhum mal em con­
siderar os Pré-Socráticos como filósofos, uma vez que eles são
homens de ciência. Tal não seria mais o caso para nós, que ope­
ramos uma distinção muito mais nítida entre os dois domínios.
Essa proposição ilustra perfeitamente o ponto, que sendo
trivial não é menos verdadeiro, de que nós não podemos identifi­
SC' car um demarche com o filosófico senão se ele corresponde àquilo
1^3
C i! que em um ou outro momento é reconhecido com o filosófico.
SS*.:! É preciso, entretanto, sublinhar que ela não se encaixa com a
argumentação que Aristóteles desenvolve explicitamente. Pois
se Aristóteles apresenta Tales com o o fundador de uma nova
maneira de filosofar, não é que ele cultive um ram o da filosofia,
identificável com o filosofia (ou ciência) natural. Seria mais justo
dizer quase o contrário, que, se Tales é para Aristóteles um re­
presentante da filosofia natural, é porque ele elabora pela primei­
ra vez uma teoria do substrato (ou mesmo da substância), à qual
Aristóteles dá o nome de "natureza”.43

42 Assim Mansfeld, 1985, p. 56.


63 A ristóteles, M etaßsica, 983 b 14. O fato de que se trate de um a interpretação
de A ristóteles, m ais que de u m a tese sustentada p o r Tales (ver Laks, 2004 a), não é
pertinente aqui.
Existe, pois, traços comuns à atividade filosófica, menos es­
pecíficos que aqueles que considera Aristóteles na passagem da
M etafísica evocada há pouco, podendo explicar que venha a ser
percebida com o uma disciplina independente? Além do fato de
que, do ponto de vista de certo senso comum ou prático, philoso­
phic se liga desde a origem à curiosidade ocular, presta-se bem a
designar todo tipo de investigação teórica, e em um sentido pu­
ramente descritivo (com o o sugere, talvez, a comparação entre a
filosofia e a pintura no tratado Da m edicina antiga), existem dois
parâmetros que, tomados conjuntamente, permitem dar conta
da sinergia complexa que devia dar lugar à diferenciação de um
novo tipo de atividade intelectual, e, nesse sentido, a uma verda­
deira especialização, antes mesmo que o term o filosofia viesse a
dar início ao nascimento de uma nova disciplina. No parâmetro
da totalização que se pode considerar, na sequência das descri­
ções antigas, como uma característica da investigação sobre a
natureza,64mesmo se ela não é distintiva (a ambição da Teogonia
de Hesíodo não é menos totalizante), convém acrescentar cer­
to tipo de racionalização, no qual o aspecto substancial da natu­
ralização, que desempenha indubitavelmente um papel motor,
senão exclusivo, cruza com aquele mais geral e mais formal da
argumentação.

64 Ver su pra, p. 15.


RACIONALIDADE

lguns gregos tinham consciência de ter herdado mui­


A tos de seus conhecimentos, ou mesmo de suas postu­
ras, de outros que não falavam grego e que os gregos chamavam,
por essa razão, "bárbaros”.1 A tese da origem bárbara da íilosoíia
tem suas origens na Academia platônica e em Aristóteles, e os
antecedentes no catálogo de paralelos que o sofista Hípias de Élis
tinha erigido entre as asserções de gregos e aquelas de bárbaros.12
É a essa tese que se atém violentamente Diogenes Laércio no
prólogo de suas Vidas e opiniões dos filósofos ilustres.3 Mas de um
ponto de vista histórico, a influência oriental, que a configura­
ção geográfica e histórica explica facilmente, e não somente se
situamos o início da filosofia grega em Mileto,4 não é duvidosa,
mesmo se ela foi por muito tempo ocultada, em parte por falta

1 Sobre o tem a em geral, ver M om igliano, 1980 (1975).


2 H ipias, B 6; cf. Platão (ou pseudo-Platão), E pínom is, 987 d; Aristóteles, S obre a
filo so fia , frag. 6, Ross (= D iógenes L aérd o , 1 ,6). É necessário precisar que a concepção
cíclica da história, em virtude da qual a civilização é periodicam ente destruída po r ca­
taclism os (Aristóteles, M etafísica, 1074 b 1-14, cf. D o céu , 270 b 14-20; M eteorológicas, 3 )9
b 27-30; P olítica, 1329 b 25-29; e Sobre a filo so fia , frag. 8, Ross), m uda o sentido da tese;
os gregos, que conduzem à perfeição o que não existe senão potencialm ente entre os
bárbaros, os precedem tam bém ; na m esm a medida em que o ato precede a potência.
O uso é outro na tradição da "antiga filosofia” (prisca p h ilosop h ia), reivindicada pelo
sincretism o neoplatônico e por Marsüio Ficino (cf. infira, p. 105, n. 14).
3 Cf. Laks, 2004 a. D e fato, a posição de Diógenes Laércio talvez seja mais com plexa
que o sugere o tom adotado.
4 As cidades da Itália do Sul (a Magna Grécia) onde se desenvolvem a filosofia
pitagórica e depois a eleata são colônias. Sobre a história de M ileto, ver G orm an, 2001.
de documentação (descobertas intervieram progressivamente), j
em parte por razões ideológicas, devidas ao estatuto da Grécia ;
na autorrepresentação da cultura ocidental. Encontramo-nos
hoje em dia em condições de melhor apreciá-la.5 Em se tratando ;
de cosmologias milesianas, que são de um tipo até então inédi- !
to no mundo grego, elas são incontestavelmente marcadas em
alguns de seus traços por modelos orientais. Entre os esquemas J
mais gerais, podemos, por exemplo, citar as grandes separações j
originárias, que fazem surgir o distinto do indistinto,6 e, em um
nível mais concreto, algumas representações cosmogônicas ou *
cosmográficas. A água originária de Tales, sobre a qual a terra
flutua como um navio, tem sua contrapartida em uma cosmo-
logia Acadiana e no Gênesis.7 Os três círculos (ou "céus”) que di­
videm o universo de Anaximandro lembram um texto acadiano,
datável de meados do séculos VII, em que as estrelas ocupam o
céu inferior, enquanto a distribuição impressionante dos astros
do cosmo de Anaximandro (as estrelas mais próximas de nós,
depois a lua, e por último o sol) lembra um texto iraniano.® A
comparação das estrelas a “imagens” (zôgraphêm ata) fixadas so­
bre a abóbada cristalina, em Anaximenes, lembra fortemente
uma passagem do Enuma elish, em que Marduk desenha sobre
um céu de jaspe "as estrelas dos deuses”, assim com o um texto
astronômico intitulado Enuma Anu Enlil.9 As aproximações desse
tipo podem ser, se não multiplicadas (a documentação perma­
nece limitada), pelo menos aumentadas. Chegou-se mesmo a
sugerir que seria possível identificar, em uma série de textos da

’ Burkert, 2004, forn ece um a síntese d a ra e equilibrada da m atéria. U m a versão


francesa desse livro, originalm ente publicado em italiano, apareceu em 2001, m as o
texto alem ão revisto difere su fid entem ente para que a preferência lhe seja atribuída.
Eu indico, não obstante entre parênteses, as eventuais correspondêndas à paginação
da tradução francesa.
‘ Burkert, 2 0 0 4 ,6 8 e s. (2001, p. 59s.)
7 Burkert, 2 0 0 4 ,6 9 (2001, p. 59). A problem ática foi desenvolvida em particular por
H ölscher 1968, cap. 1.
! Burkert, 2004, 73 (2001, p. 63); cf. Burkert, 1994-1995, p. 194.
* Burkert, 2004, 75 (2001, p. 65s.); Kingsley, 1992.
Mesopotamia de tipo "explicativo", formas de racionalização, ou
mesmo de naturalização, pelo que se distingue de bom grado
as primeiras cosmologias gregas.10*Subsiste, em todo estado de
causa, que as primeiras cosmologias gregas estão na origem de
desenvolvimentos intelectuais, os quais ninguém nega que eles
não tenham mais sua contrapartida no Oriente Médio. O fato
de que o “milagre grego" deva ser substituído, no contexto do
que Burkert chamou o "período orientalizante” da cultura gre­
ga, não exclui o reconhecimento de sua radical novidade, o que
o uso anacrônico que se fez a seu propósito do term o "filosofia”
sugere a seu modo .11 Burkert, que tanto militou pelo desencava-
mento das origens do pensamento grego, dá um belo exemplo
do modo pelo qual a nova sorte do antigo, do qual além do mais
ele depende, observando que, quando Anaximandro combina os
três céus acadianos com as três categorias dos corpos (estrelas,
lua, sol), ele introduz de fato a questão inédita "das distâncias
cósmicas em astronomia”, que pode legitimamente ser qualifi­
cada com o “racional”.12 Temos aqui um uso de representações
herdadas, e um aporte irredutível. Como diz o próprio Burkert
em conclusão à sua análise: “não há por que colocar em questão
o sucesso grego ”.13 Importa sublinhar que o aporte grego não

10 Burkert, 2004, 73s. (2001, 64s.), co m base em Livingstone, 1986. Eu devo dizer
que a consulta ao livro de Livingstone n ão m e convenceu de qu e o “trabalho explica­
tivo" refletido nos docum entos que ele edita seja veidadeiram ente com parável à pers­
pectiva cosm ológica dos m ilesianos, m esm o se Livingstone, com entando "u m tipo
de especulação consistindo em identificar partes ou aspectos estreitam ente ligados do
m undo natural co m grupos de divindades", escreve que "o s antigos filósofos [babilô-
nicos] se esibrçavam em estabelecer o acordo da teologia existente m ais precisam ente
co m os fetos do m undo natural” (p. 71).
" Burkert, 2004, p. 12. Sobre o aparecim ento relativam ente tardio do term o "filo­
sofia", ver su pra, p. 26s.
12 Burkert, 2004, p. 75 (ele vê aí, não obstante, um a influência iraniana; compa-
rar-se-á 2001, p. 65); cf. Burkert, 1992, p. 308-310. Burkert cita a esse propósito, eviden­
tem ente para o uso do term o logos, um fragm ento de Eudem o (um discípulo de Aris­
tóteles), falando a propósito de A naxim andro do “logos das grandezas e das distâncias"
(frag. 146, W ehrli).
12 Burkert, 2004, p. 21 (cf. p. 76s.; 2001, p. 66s.).
se traduz somente no nível dos conteúdos, mas também, e sem
dúvida ainda mais, no nível da forma de sua produção: o fato de
que as novas cosmologias milesianas se sucedam umas às outras
em intervalos relativamente aproximados, ao longo do século
VI, testemunha, com efeito, uma prática sistemática de distan­
ciamento com relação a posições ou teses anteriormente formu­
ladas, e uma notável aceleração da reflexão, que faz incontesta-
velmente parte do desenvolvimento de uma nova racionalidade.
Se, pois, a racionalidade não nasceu na Grécia, o problema
das origens da filosofia grega é indissociável da questão da emer­
gência da racionalidade grega. A essa última questão, J.-P. Ver-
nant deu, por volta de cinquenta anos atrás, uma resposta me­
morável e influente em Origens do pensamento grego, associando
o desenvolvimento da dita racionalidade à formação da cidade
(pólis).14 Podemos nos perguntar em que medida essa resposta,
cujo sentido e as implicações estão longe de ser evidentes, contri­
bui à compreensão da racionalidade especificamente filosófica.
É ainda mais necessário pôr a questão em que Vemant se apoia
fortemente, sobre o caso particular da filosofia em sua análise da
emergência da racionalidade.15
O programa de Vernant é em grande parte motivado pela
preocupação de pôr fim à ideia de um “milagre grego”. A fórmu­
la foi forjada por Ernest Renan, mas o uso que dela fez Vemant
não se reduz àquele de seu prom otor. Em Renan, o milagre gre­
go é uma categoria ao mesmo tempo estética e axiológica, que
significa, na tradição de um humanismo e universalismo clássico,
a perenidade do belo. É a propósito dos templos de Selinunte que
Renan escrevia, em 1875: “Cada ensaio, cada tateam ento é visí­
vel, e mais extraordinário que o resto! Quando os criadores dessa
arte maravilhosa tinham realizado o perfeito, eles não mudaram

14 Vernant, 1962. V em ant voltou-se resolutam ente em seguida para o estudo do


m ito. Sobre esse percurso, ver V em ant, 1996, p. 125 (c£ Laks, 1998).
15 Razão pela qual Popper, 1965 (1958-1959), pode identificar, n o s Pré-Socráticos, o
princípio m esm o de um racionalism o crítico, ao qual ele conclam ava a retom ar.
mais nada nele. Eis o milagre que somente os gregos souberam
fazer: encontrar o ideal, e, uma vez que o encontraram, ater-se
a ele”.16 De maneira ainda mais nítida, a página que introduz
a famosa O ração que eu fiz sobre a Acrópole quando conse­
gui compreender a perfeita beleza” evoca o "milagre grego”, ao
lado do “milagre judeu”, com o "uma coisa que não existiu senão
uma vez, que nunca se tinha visto, que não se verá mais, mas
da qual o efeito durará etem am ente, eu quero dizer um tipo de
beleza eterna, sem marca local ou nacional”.17 Tal milagre não é
de modo algum incompatível com um processo de maturação e
de desenvolvimento, que Renan menciona mesmo explicitamen­
te na primeira das duas passagens citadas. O milagre ao qual se
liga Vernant supõe, ao contrário, que a razão grega, ignorando
justamente toda "tentativa" e "tateamento”, tenha surgido re­
pentinamente, sem nenhuma preparação nem origem, “com o
as escamas caem dos olhos do cego ”.18 Poderiamos dizer, uma
vez que se trata de estabelecer uma ascendência, com o a concep­
ção virginal. O milagre que recusa Vernant é, se quisermos, mais
cristão que humanista.
O problema, que Vernant herda de I. Meyerson, o funda­
dor da “psicologia histórica” que ele sempre reivindicou, é de
ordem epistemológica. Trata-se de dar-se conta, na perspectiva
de uma história concebida com o essendalmente “ruptura”,19 da
descontinuidade em história - uma descontinuidade da qual exis­
te muitos outros exemplos, mas cujas perturbações políticas e
intelectuais da Grécia dos séculos VI e V, com o aparecimento de

“ E . Renan, “Vingt jo u rs en S id le ", em CEuvres com pletes, Ed. H . Psichari, vol. 2


(Paris, 1948), pi 397.
17 Souvenirs d ’en fan ce et d e jetm esse, cap. 2.
“ Ver Vernant, 1965 (1957), p. 285.
19 Ver M eyerson, 1987 (1948), p. 54s., em que são a ta d o s a título de ilustração as
descontinuidades na história do pensam ento e das disciplinas, aquelas dos "quadros
form ais” (“as noções, de causa, de tem po, de espaço" - reconhece-se aqui u m dos in­
teresses m aiores de G e m e t, e em seguida de Vernant), as descontinuidades linguísticas
(ilustradas pelos trabalhos d e A. M eillet), as descontinuidades estéticas (sob a égide de
citações de M . Schw öb e de A. M alraux).
novas formas de organização política, de novas matemáticas, do
pensamento filosófico, e naturalmente das maravilhas da arte,
oferecem ao historiador um paradigma não menos envolvente
que aquele, por exemplo, da Revolução Francesa. O historiador
C. Meier soube depois cunhar a fórmula, a propósito da inven­
ção da democracia: "os gregos ignoravam tudo da possibilidade
de uma democracia, antes de a realizarem eles próprios. Pois, an­
tes deles, não existiam gregos”.20 A insistência sobre a desconti-
nuidade explica por que que as críticas de Vemant não sejam so­
mente dirigidas contra a versão cristã do milagre grego, que tem
pelo menos o mérito de reconhecer a existência de uma ruptura,
mas também contra a posição dos antropólogos de Cambridge
conhecidos sob o nome de “ritualistas”, e em particular contra
Cornford, que desfazia, por sua vez, as idealizações vitorianas
da Grécia exibindo, de maneira unilateral, as continuidades exis­
tentes entre o pensamento mítico e o pensamento racional, e,
logo, a dependência desse último com relação ao primeiro.21 É
contra a dupla ilusão do nascimento ex tiihilo e da sobrevivência
do idêntico que Vemant recorre à categoria de “revolução", ou,
seguindo a terminologia de Meyerson, de “m utação ”.22 O term o
indica a mudança, considerável (contra os ritualistas); mas não
se trata de milagre, porque isso diz respeito, poderiamos dizer,
tanto à mutação quanto à consciência: ela é sempre mutação de
alguma coisa.
O pensamento racional tem, pois, uma ascendência, ou,
com o o diz Vemant desde 1957, no artigo intitulado “A forma­
ção do pensamento positivo na Grécia arcaica”, uma certidão de
nascimento, o que supõe data e local de nascimento: o fim do
“milagre grego” é a afirmação de que o pensamento racional é
“filho da cidade”.23

20 M eier, 1980, p. 51.


21 Cornford, 1912 e 1952.
22 Vem ant, 1965 (1957), p 293.
23 Conclusão retom ada tal e qual em Vem ant, 1962, p. 129.
A análise de Vemant se apoia no domínio representativo
mais setorial das origens da dênda e da filosofia. Ele segue nisso
L. Gernet, seu segundo m estre, que, já ele aberto à problemática
meyersoniana, tinha em seus últimos trabalhos atraído a atenção
para o interesse do corpus filosófico no quadro das pesquisas con­
cernentes às origens da ddade grega .24
Vemant resume a novidade das cosmologias pré-socráticas
em dois termos, positividade e publicidade, dos quais o primeiro
visa os conteúdos, o segundo a forma dessas novas produções.
Retomando o fio da meada de um artigo de Gernet intitulado
‘As origens da filosofia grega”, a demonstração de Vemant se
apoia essendalmente, no que concerne ao primeiro aspecto, nos
pensadores Jônios, e, no que concerne ao segundo, nos filósofos
da Magna Grécia. Essa distribuição, que explora a seu modo a
bipartição em função da qual Diógenes Laércio estrutura suas
Vidas e opiniões dos filósofos ilustres, não procede sem algum ar­
tificio, uma vez que a questão de saber por que o Leste é mais
interessante pelos conteúdos, e o Oeste pelas formas (se tal devia
ser o caso), não se põe .25 Mas o exame de cada uma das duas de­
terminações, consideradas em si mesmas, e com o virtualmente
aplicáveis ao conjunto dos protofilósofos, independentemente
de sua origem geográfica, leva a pôr o problema de sua relação
em outros term os, talvez mais pertinentes.
“Positividade” - o conceito é uma herança de Auguste Com­
te - visa um processo de “naturalização” do qual Vemant subli­
nha muito justamente que ele se efetua não somente em relação
ao mundo divino, mas também em relação ao mundo social. Se
os físicos pré-socráticos, manifestando uma tendência à abstra­
ção, são com efeito desembaraçados dos deuses tradicionais, a

24 G ernet, 1968 (1945) e (1956); 1983 (1951). Sobre a obra de L. G ern et e sua evo­
lução, ver Humphreys, 1978 (1971), p. 84s., assim com o R. D i D onato em seu posfádo
a G ernet, 1983.
25 Sobre a bipartição da história da filosofia em Diógenes L aérd o, ver supra,
p. 35s.
narrativa das origens não é mais, com o era outrora o m ito, um
momento de justificação da ordem social - uma ordem social
primitivamente definida, na época micênica, pela figura de um
rei-sacerdote que reinava sobre um mundo indivisível. O que a
narrativa positiva testemunha não é, pois, somente um proces­
so de "secularização”, mas - para empregar um vocabulário que
não é aquele de Vernant - da autonomização e da diferenciação
das duas esferas da natureza e do político.26 Quanto às condições
formais de exercício da filosofia, elas se devem ao fato do debate
filosófico (com o outros) se inscrever no espaço público - uma
inscrição é tanto mais visível porque os conteúdos portam , por
sua vez, e com frequência, com o é o caso em particular na Mag­
na Grécia, o traço de antecedentes xamânicos ou místicos.27
Vernant confere uma importância particular ao fato de que,
i em suas dimensões, positividade e publicidade, a filosofia grega
*P encontra contrapartidas fora, em todos os setores da organiza­
α
.μ : ção social, de acordo com um paralelismo que G em et já tinha
!&>, sublinhado. Que se trate de instituições políticas, econômicas ou
:s»
te. jurídicas, é um mesmo processo de abstração e de democratiza­
jr
iU ção que se desenrola através da reforma de Clístenes, do nasci­
mento da moeda e de novas formas do direito.28 A considerar o
«*
conjunto dos setores constitutivos da atividade humana, somos
tocados pela solidariedade transversal das mutações, que podem
desde então ser consideradas com o um mesmo número de ma­
I nifestações de uma mesma racionalidade.
Solidariedade é aqui o termo-chave, aquele que justifica o
vai-e-vem entre a categoria geral do "pensamento racional” e
suas diversas especificações (dentre as quais a filosofia). Não se
trata de reflexo. Vernant, ao mesmo tempo que se apropria do

26 Essa separação não im plica, segundo Vernant, que os pensadores jô n io s sejam


retirados do sodal; ela é, ao contrário, a condição de possibilidade para que eles se
vejam atribuir a função de legisladores (cf. Vernant, 1965 [1957], p. 304).
27 Vernant, 1965 (1957), p. 303. O proêm io do poem a de Parm enides desem penha
aqui u m papel im portante. Ver Laks, 2003 a.
28 Vernant, 1965 (1957), p. 305, 307s., 313.
que pode de Marx, recusa a simplificação que faria, por exemplo,
da identidade do ser uma transposição direta da noção de valor
monetário ,29 e, apoiando-se mais uma vez em Meyerson (cuja
atenção não estava menos voltada para as especificidades que
para as descontinuidades), insiste na especificidade das elaborações
em cada um dos campos considerados.30 Não é por menos que
o conjunto dessas elaborações pode ser remetido a um funda­
mento comum, que podería ser qualificado, na linguagem dos
intérpretes de Aristóteles, com o “fo ca r :31 com o todos os senti­
dos do ser, declinados nas categorias, referem-se ao núcleo que
representa o primeiro entre eles, a saber, a substância, do mesmo
modo todas as manifestações da nova racionalidade grega en­
contram seu sentido e seu fundamento primeiro nessa forma de
organização inédita que é a cidade.
Pôs-se a questão de saber se o milagre, evacuado pela porta,
não corria o risco de ser reintroduzido pela janela, simplesmente
deslocado das origens do pensamento racional para a origem da
cidade.32 Vernant não é, sem dúvida, atingido por essa objeção,
uma vez que a cidade não é ela própria senão o resultado de um
longo processo, do qual é possível retraçar, pelo menos em suas
grandes linhas, as etapas, o que supõe remontar até a derrocada
da sociedade micênica. É mesmo por isso que o livro intitulado
As Origens do pensamento grego não é um livro sobre os filósofos
pré-socráticos ou seus antecedentes imediatos, com o o título po­
dería sugerir, mas sobre as condições que presidiram ao nasci­
mento da cidade. Ao invés, é certo que esse reenvio às origens da

29 A tese foi retom ada - contra o m odelo político de Vernant - p o r Seaford, 2004,
p. 188s.
50 Vernant, 1965 (1957), p. 313. Ver a noção de "encam inham ento autônom o” em
M eyerson, 1987 (1948).
51 A im agem do “núcleo” foi introduzida p o r O w en, 1986, p. 184, para dar conta
da relação entre um a série de term os sem anticam ente irredutíveis u m ao outro, m as
que todos rem etem a u m term o único (pros hen): todos os sentidos do term o “ser", por
exem plo, rem etem ao prim eiro entre eles (a substância).
J2 A questão é posta p o r M. Caveing em Vernant, 1996 (1975), p. 113.
cidade não coexiste confortavelmente nem com a problemática
da "mutação mental” nem com a tese da emergência da racio­
nalidade grega como filha da cidade. C. Meier pôs o dedo em
uma das dificuldades maiores do démarche de Vernant sublinhan­
do que o "nascimento do político", em circunstâncias marcadas
por uma extrema contingência, não pode ser explicado sem fa­
zer apelo ao papel m otor da τφ εχάο (principalmente da reflexão
"política") - isto é, de um pensamento que não deve nada ainda
ao político do que ele devia, ao contrário, primeiramente tornar
possível.33 Mais geralmente, a relação entre a cidade e sua filha
não é mais límpida que aquela do espírito do protestantismo
com o capitalismo, tal com o Max Weber a tinha considerado:
trata-se de causalidade, de condições de possibilidade, de fator
favorecedor, de afinidades eletivas, de simples analogia?
Busca-se sem dúvida em vão uma resposta a essa questão
em Vernant, que não parece nunca ter prestado atenção à proble­
mática de Weber, a despeito do fato de que esta anuncia também
uma tese sobre a originalidade da racionalidade - nesse caso, da
racionalidade moderna.34Ao invés, é possível se interrogar sobre
as razões que levaram Vernant a formular sua tese em term os que
conferem uma irrefutável prioridade ao político em detrimento
do racional. Podemos, parece-me, identificar duas dessas razões.
A primeira razão está em relação com o fato de que, mesmo
sendo guiada principalmente pela problemática epistemológica
do milagre grego, que encadeia o retrocesso rum o às origens
micênicas (em virtude do princípio nihil ex nihilo), a análise de
Vernant permanece simultaneamente realizada (em uma relação

33 M eier, 1986, p. 69.


34 V ernant d ta o nom e de W eber um a vez, m as de m aneira não significativa, por
ocasião de um a recensão (1956) da tradução dos E lem entos p a ra um a sociolog ia ã a ação,
de T. Parsons (em Vernant, 1995, vol. 2, p. 627). O index de G e m e t, 1983, com porta
apenas um a referência ao nom e de M . W eber, m as p o r um a frase d o ed itor R. di D o ­
nato, falando, a propósito de um a recensão crítica de G e m e t (“C o m o caracterizar a
econom ia da G récia antiga”, 1933), de um “reen con tro inconsciente, m as significativo,
entre a escola de M ax W eber e a sociologia francesa" (posfád o a G e m e t, 1983, p. 410).
que nunca foi verdadeiramente explicitada) por sua versão axio-
lógica. A questão não é aqui aquela de saber com o pensar, vol­
tando às origens, a descontinuidade do pensamento (e da cidade)
grego em relação àquilo que lhes poderia ter precedido e do que
eles teriam saído, mas de prevenir, indo adiante, que não se ins­
taurem entre eles e nós uma continuidade e proximidade fictí­
cias, que seja sob a forma de um classicismo paradigmático, de
uma nostalgia ingênua, de uma consciência sentimental, ou de
toda outra figura que autoriza a lógica complexa da querela dos
Antigos e dos Modernos. Recusar o milagre, em tal perspectiva,
é se desfazer da ideia de que deles até nós tenha havido uma con­
tinuidade substancial (o que não significa, evidentemente, que
não tenha tido continuidade histórica), e evitar toda tentativa do
que um leitor de Vernant poderia chamar uma “digestão”.35 Os
gregos são um povo com o outro qualquer, sem privilégio parti­
cular. E porque os gregos são com o todo mundo, eles são tam­
bém outros, outros de outros, certam ente, mas também e sobre­
tudo outros em relação a nós. É em tal perspectiva que Vernant
sempre insistiu no fato de que a razão dos gregos não é nossa
razão, uma razão que ele caracteriza, de maneira tradicional,
como sendo uma razão científica, experimental e voltada para a
matematização e a gestão da natureza. A razão grega, quanto a
ela, seria “política”, por não se ter “tanto formado no comércio
humano com as coisas quanto nas relações dos homens entre
eles”.36 Compreende-se que o modelo genealógico tenha podido
ser aqui operatório, a cidade-mãe imprimindo por assim dizer
diretamente sua marca à sua razão de filha, e por conseguinte
aos rebentos que dela saíram: é o sentido da interpretação “polí­
tica” de Anaximandro, no último capítulo de As origens do pensa­
mento grego, em que o cosmo de Anaximandro, organizado circu-

” Cam biano, 1994, p. 15.


MVernant, 1962, p. 129. N ão é certam ente um acaso qu e V ernant se tenha interes­
sado, e m seguida, co m M . D etienne, p o r essa recusa da racionalidade objetivante que
constitui a “inteligência astuciosa” (D etienne /Vernant, 1974).
larmente ao redor do centro que é a terra, situada equidistante
dos confins e se mantendo em seu lugar em razão mesma dessa
equidistância, responde à geometria política da cidade, onde as
decisões se tomam "no centro ”.37
Essa caracterização da razão grega com o razão política é
quanto a ela plausível? É permitido duvidar disso, pois, desde
suas primeiras manifestações, a racionalidade grega apresenta
traços, como, por exemplo, uma tendência à sistematização e à
racionalização (no sentido em que Max Weber, que viu nisso o
traço distintivo da racionalidade ocidental, tom a esse term o38),
·«' que não tem nada de intrinsecamente político (o que não signi­
ft fica, evidentemente, que ela não possa concernir, direta ou in­
tv*
diretamente, à esfera da política). A sistematização teológica de
Hesíodo, para tom ar um exemplo que chama particularmente
atenção, não se deixa de modo algum conceber, enquanto sistema­
tização, sob a categoria do político (isso não excluindo de modo
algum que o seu tem a seja “político”, com o é efetivamente o
Íü í;!: caso). Mesmo quando se concederá a Vemant que a razão grega
»II? "

nunca foi experimental, parece difícil negar que ela se fez sufi-
cientemente cedo "teórica”, em um sentido que não pode ser
coberto pela determinação "política”.
É possível, entretanto, entender "político” de outro modo,
para se referir não a uma determinação intrínseca da razão, mas
ao quadro formal de seu exercício. A razão grega seria filha da
cidade no sentido de que é no espaço público da cidade que a
racionalidade encontra espaço para desenvolver suas estrutu­
ras argumentativas. A bem dizer, tal que Vemant a apresenta, a
ideia não deixa de levantar também algumas questões. Primei­
ram ente, porque se podería facilmente sustentar que o espaço
em que o pensamento racional se desenrola foi, tanto quanto
político, antipolitico e transpolitico. Antipolitico, porque a di-

37 Existe certa tensão entre essa interpretação e a ideia de que a secularização não
diz m enos respeito ao social que ao teológico.
38 Ver in fra, p. 95s.

í
ferenciação da disciplina filosófica, e logo sua especialização,
conduz à formação de uma classe de experts que, longe de se
reconhecer no espaço público, tende a se separar dele de ma­
neira ostensiva.39 Heráclito seria sem dúvida o melhor símbolo
dessa “separação”,40 mas essa é onipresente. Quando Empédo-
cles cantará suas Purificações em Olímpia, a operação não adqui­
rirá seu sentido senão por oposição ao esoterismo principal da
doutrina do poema físico, que se quer dirigir a um único discí­
pulo. Quanto à dimensão transpolítica do desenvolvimento da
racionalidade, ela está ligada ao fenômeno do pan-helenismo,
do qual Olímpia é justam ente o símbolo, isto é, uma tendência
à universalização que transcende o quadro da cidade a partir
do momento em que ela se constitui.41 Em um plano mais teó­
rico, que nos conduz à problemática weberiana da causalidade
em história, precisaria, também, perguntar-se em qual medida a
cidade, considerada com o quadro formal, pode ser um fator de­
terminante, com o o sugere a fórmula da filiação (“o pensamento
racional, filho da cidade”). Pois, se parece pouco contestável que
a prática do debate judiciário e político, no quadro das institui­
ções da cidade dem ocrática, favoreceu a consciência das alterna­
tivas e a cultura da discussão e da réplica, poderia se sustentar a
ideia, seguindo os passos de J. Burckhardt, que é o agôn, ou en-
frentamento, que se encontra no princípio do desenvolvimen­
to da filosofia com o de outras manifestações da cultura grega,
o que remetería novamente a um aquém da cidade. De resto,
não é seguro que o debate contraditório tenha pesado mais, na

39 Ver a crítica pertinente de Seaford, 2 0 0 4 ,175s.


40 Cf. Bollack e W ism ann, 1972.
410 critério do pan-helenism o lança um a luz interessante sobre a questão da em er­
gência da racionalidade, porque já se en con tra em obra, de toda evidência, n o trata­
m en to dos m itos tradicionais, em H o m ero e depois dele (ver Nagy, 1994 [1979], p. 30s.;
cf. 150s., 175s.). As condições do exercid o concreto dessa radonalidade pan-helênica,
em se tratando da filosofia grega, puseram de resto, por vezes, problem as: a cadênda
co m a qual a filosofia se desenvolve n o território da G té tia supõe um a circulação rápi­
da da inform ação intelectual, da qual se tem algum a dificuldade em se representar as
redes. É preciso, portanto, pressupô-las.
emergência do discurso filosófico, que a pretensão homérica à
verdade, ou mesmo que a difusão da escrita.42
Para além das objeções que podem ser feitas a cada uma
das duas justificativas para o primado do político e das emendas
ou nuances que conviría, eventualmente, rem eter a elas, o princi­
pal problema que elas apresentam é de não coabitar facilmente.
A concepção processual, ou formal, da relação entre "cidade” e
"racionalidade” evoca com efeito a superação de uma perspecti­
va que visa identificar - em virtude do princípio da analogia uni­
versal - os traços deixados pelas representações políticas no seio
dos sistemas filosóficos. Ela é perfeitamente compatível com a
ideia de que a razão grega tenha podido ser teórica, ou mesmo
experimental, se ela devesse ter sido. Podemos sem dúvida sus­
tentar que é à medida que ela era guiada por uma problemática
da alteridade “política” da razão grega que Vernant podia ser le­
vado a subestimar o principal efeito da solidariedade entre a des­
coberta do espaço político e a emergência da racionalidade para
ß
$Α’λ a qual ele próprio tinha chamado a atenção.
Basta, com efeito, considerar as implicações da perspectiva
τ ι: processual (ou agonística), e, em particular, as formas de radi­
" W il
calização intelectual que ela torna possível, para dar-se conta de
que nem a categoria da positividade (naturalização ou seculari-
zação), nem aquela da publicidade, permitem que se dê conta do
desenvolvimento específico do pensamento "filosófico”. Ora, é
dessa especificidade, necessariamente ligada a conteúdos deter­
minados, que se tem que dar conta, ainda que seja somente para
não sacrificar as "elaborações específicas” à generalidade de uma
fórmula que não põe term o ao milagre grego senão à custa de
uma subdeterminação maior.
O recurso ao modelo weberiano se m ostra útil aqui, menos
por sua teoria da gênese da racionalidade capitalista a partir da
ética calvinista, cujo mecanismo é muito particular por ser pas-

42 Para o prim eiro argum ento, of. Hum phreys, 1996, p. 6. Para a questão da relaçã

I .— ----------------
entre escrita e em ergência da filosofia, ver Laks, 2001.
sível de transposição,43 que pelo conceito de racionalidade que
põe em obra.
O projeto de Weber é de compreender por que e como a
racionalidade tomou a forma distintiva que é a sua no seio da ci­
vilização ocidental moderna, enquanto até mesmo processos de
racionalização estão igualmente em obra em outras civilizações
- razão pela qual os estudos sobre as grandes religiões (Confudo-
nismo, Budismo, Hinduísmo, Judaísmo, Islã) são o complemen­
to indispensável da Ética protestante e o espírito do capitalismo.44 A
Introdução aos Ensaios sobre a sociologia da religião traça a lista do
que Weber considera ser as principais expressões do radonalis-
mo oddental. (No resumo que segue, eu preciso, entre colchetes,
quando a indicação pode ser tirada do texto de Weber, o traço que
justifica a qualificação de “radonal”.) Segundo Weber, somente
o Ocidente desenvolveu: uma dênda radonal [isto é, matemati-
zada]; uma geometria radonal [fundada na prova]; dências natu­
rais radonais [experimentais]; uma química radonal; uma história
radonal [pretendendo uma validade supratemporal]; uma políti­
ca radonal [de natureza sistemática]; um direito radonal [siste­
maticamente codificado]; uma técnica artística radonal [com,
na música, uma harmonia e uma técnica de composição mate-
matizada e sistematizada, na arquitetura, um uso não decorati­
vo, mas funrional da ogiva gótica, e, na pintura, uma utilização
radonal da perspectiva linear e atmosférica]; um uso radonal da
gráfica [dando lugar ao desenvolvimento de uma imprensa]; uma
organização radonal da transmissão dos conhecimentos [com o
desenvolvimento da espeaalização]; a constituição de uma admi­
nistração radonal [espedalizada] de funaonários do Estado; tun
Estado radonal [repousando sobre uma constituição]; e, natural­
mente, uma economia radonal [sob as espédes de capitalismo].45

43 Sobre esse m ecanism o, ver Disselkamp, 1994, principalm ente a 3* parte.


44 Esse ponto foi sublinhado por Schluchter, 1988.
45 W eber, 1996 (1920), p. 489-493. O capitalismo não é som ente o últim o term o
da série, ele é tam bém a sua razão, à medida que constitui, aos olhos de Weber, "a
Como m ostra essa enum eração, o racionalismo ocidental
grego desempenha um papel não negligendável na constituição
do racionalismo ocidental em geral. Weber rem ete, a propósi­
to das m atem áticas, ao “racionalismo helênico”, a propósito da
história, a Tucídides, e a propósito da teoria política, a Aristó­
teles. Homenagens fundadas lhe são prestadas em outros tex­
tos, e, principalmente, na célebre passagem da Ética protestante,
que menciona o racionalismo grego, ao lado do racionalismo
judaico, com o uma das fontes diretas do racionalismo calvinis-
ta: "O grande processo, no plano da história das religiões, de
desencantamento do mundo, que com eçou com a profecia do ju­
daísmo antigo e, em associação com o pensamento científico
grego, rejeitou todos os meios mágicos de busca da salvação
com o proveniente da superstição e do sacrilégio, encontrou
aqui [a saber: na rejeição calvinista da salvação sacramental]
sua conclusão ”.46 O estudo sobre o Confucionismo e o sobre o
Taoísmo faz por vezes referência aos fenômenos helênicos com
a finalidade de com paração .47 Mas essas passagens não fazem
senão tornar mais tangível o fato de que Weber nunca tratou do
racionalismo grego em si mesmo - o que é ainda mais estranho,
uma vez que Weber se encontra explicitamente engajado em
um projeto com paratista. A referência à Grécia, por mais pre­
sente que ela esteja, é sempre subordinada, e não adquire nunca
um valor sistem ático.
A ausência se deve sem dúvida à relação privilegiada que
Weber estabelece entre "racionalização" e "grandes religiões”.
A Ética econôm ica das religiões mundiais não considera senão “os
cinco sistemas de regulamentação de vida religiosos ou condi­
cionados pela religião, que souberam reunir ao seu redor massas
particularmente importantes de fiéis: a ética religiosa confucia-

potência que pesa o mais penosam ente sobre o destino de nossa vida m oderna”
(P- 493).
44 W eber, 2003 (1920), 106s. Podería tam bém traduzir-se E ntzauberung p o r “desma-
gicização” ("Z auberer” é o m ágico), m as “m ágico", na m esm a frase, traduz m agisch.
47 Ver, por exem plo, W eber, 1989 (1920), index, s.v. Grécia.
na, hinduísta, budista, cristã, islâmica”.48O judaísmo é acrescido
a esta lista, em razão do papel decisivo que ele teve tanto para
a formação da Cristandade e do Islã quanto para o desenvolvi­
mento do capitalismo ocidental. Se o politeísmo grego não faz
parte do grupo dos seis, isso se deve, primeiramente, ao fato
de que não satisfaz ao critério da m assa, que Weber julga pri­
mordial - um critério que parece ainda menos poder se aplicar
à civilização grega, uma vez que esta está m orta (esse não é o
caso de nenhuma das outras civilizações dotadas de uma “reli­
gião mundial”); o fato de que o politeísmo grego não com porta
dimensão soteriológica senão marginalmente deve também ter
desempenhado um papel (Weber fala sempre de religião em ter­
mos de doutrina da salvação, H eilslehre). As duas razões se com ­
binam e se reforçam: para Weber, o fator determinante, em se
tratando do desenvolvimento diferenciado dos racionalismos,
reside no peso social de uma ética econôm ica (W irtschaftethik)
e, mais geralmente, de uma conduta de vida (Lebensfiihrung)
determinadas - um peso que somente um sistema de crenças
religiosas, e mais precisamente escatológicas, se encontra em
condições de garantir. Se os grupos restritos de virtuoses ou de
experts desempenham um papel capital na análise de Weber, isso
se dá na medida em que eles são os “portadores” de modelos
eficazes. Ora, o racionalismo grego, se é que ele foi um assunto
de experts e foi também solidário a um modo de vida (ou pelo
menos da questão do modo de vida), foi não somente pelo es­
sencial caráter extrarreligioso (o que não exclui naturalmente
que ele tenha tido efeitos intrarreligiosos), mas também por ser
sociologicamente fragmentado. Essa dispersão pode ser con­
siderada com o a contrapartida da extraordinária “aceleração”
que caracteriza o desenvolvimento da filosofia grega entre os
séculos VI e V - uma aceleração indissociável de um processo
de individualização marcado, para nos aterm os à filosofia, tanto
pela sucessão vigorosa de novas “visões de mundo”, reivindica-

48 W eber, 1996 (1920), p. 333.


das por uma série de “eus” que se afirmam com o tais,49 quanto
por um processo de diferenciação, ao mesmo tempo externo e in­
terno, que define novos domínios ou "esferas" de competência
- um processo que devia rapidamente se pagar com a impotên­
cia política dos filósofos.
Se a Grécia desempenha, na análise de Weber, um papel
mais discreto que se desejaria, em vista da importância que ele
lhe reconhecia na formação do racionalismo moderno, o instru­
mental que ele mobiliza na análise dos processos de racionali­
zação, ocidentais ou não, permite refletir sobre o caso da emer­
gência da racionalidade na Grécia em term os diferentes daqueles
que Vernant mobilizou. Isso porque ele repousa sobre um con­
ceito de racionalidade mais complexo, mesmo se ele se expõe
de seu lado à censura de ser estropiado, na medida em que os
valores últimos não podem ser objeto de uma discussão racional.
É notoriamente difícil traçar uma tipologia sistemática das
formas de racionalidade em Weber, o qual se refere por vezes
a uma racionalidade ‘lógica” ou “teorético-intelectual” cujo
m otor é a “coerência” e o princípio de “não-contradição”, e
que ele distingue de uma racionalidade “teleológica” ou “ético-
-prática”.50 A distinção permite agrupar em certa medida as di­
ferentes manifestações típicas da racionalidade ocidental enume­
radas acima: direito, política, capitalismo seriam essencialmente
função de uma racionalidade teleológica; as ciências matemáti­
cas, a música e a pintura remetem antes a uma racionalidade de
tipo lógica. Em certos casos, poder-se-ia hesitar, por exemplo,
quanto à Arquitetura (em que os dois aspectos se encontram
presentes em parte igual), ou ainda quanto à gráfica. Foi, assim,
possível apontar três significações fundamentais da racionalida­
de em Weber: um sentido científico-técnico, traduzindo-se pela
elaboração de dispositivos destinados a controlar o mundo por

49 Sobre o “egocentrism o" m areando os in íd os da filosofia grega, ver, além de


Burekhardt, Lloyd, 1997.
50 W eber, 1996 (1915-1920), p. 412.
meio do cálculo; um sentido metafísico-ético, traduzindo-se na
sistematização de "modelos de significação” (meaning patterns)
correspondendo ao que Weber chama "imagens do mundo”;
um sentido prático, traduzindo-se pela adoção de um modo de
vida metodicamente regulado.51 O racionalismo grego é eviden­
temente concernido por esses três aspectos, e isso, sob reservas
de nuances necessárias, desde seus inícios pré-socráticos. Mesmo
se a ciência grega nunca tenha se engajado verdadeiramente no
sentido da técnica nem da experimentação, ela não contribuiu
menos, de maneira decisiva, para a formação do racionalismo
científico (o que, com o nós vimos, é também reconhecido por
Weber); o racionalismo helênico apresenta um dos casos mais
claros - e também dos mais conhecidos - de racionalização das
imagens do mundo, e a fórmula da qual Weber se serve para ca­
racterizar o racionalismo religioso, em relação com o problema
do sofrimento e da injustiça (“a integração em uma pragmática
de salvação universal, cósmica”),52 encontra ecos até no raciona­
lismo filosófico pré-socrático, mesmo se o acento principal não
seja aí geralmente posto na escatologia.53 O "modo de vida”, en­
fim, é indubitavelmente uma categoria central da filosofia grega.
Weber lança uma ponte entre essas diferentes dimensões da
racionalidade, uma vez que se trata para ele de fazer aparecer o
papel, para a emergência do capitalism o (a organização calculada
do lucro), de certo modo de vida (aspecto prático) e da difusão
de um espírito proveniente de uma ética religiosa, isto é, de uma
imagem do mundo determinada (o calvinismo). É no quadro
dessa problemática complexa que se explica o lugar reservado
ao que Weber chama "Idéias”. Pois, como observa uma famosa
passagem da Introdução à Ética econômica das religiões mundiais:
"São os interesses (materiais e ideais) e não as idéias que gover-

51 Ver Schluchter, 1979, assim co m o H aberm as, 1987 (1981), I, cap. 2 (‘A teoria da
racionalização em M ax W eber”), prindpalm ente p. 187s.
51 W eber, 1996 (1920), p. 347.
” Em pédocles ocupa aqui um a posição original, n o veio da tradição pitagótico-
-órfica (cf. su pra, p. 28, n. 33).
nam diretamente a ação dos homens. Todavia, as ‘imagens do
mundo’, que foram criadas por meio de ‘idéias’, desempenha­
ram com muita frequência o papel de direcionadoras, determi­
nando as vias no interior das quais a dinâmica dos interesses foi o
m otor da ação ”.54O reconhecimento do caráter decisivo, no pro­
cesso de racionalização, das Idéias e das “Imagens do mundo",
ao lado de e em conjunção com as noções mais formais com o
aquelas de “consequência” e de “consistência”, é indispensável
para compreender a lógica dos inícios da filosofia grega, porque
a diferenciação intelectual que o acompanha é marcada por um
altíssimo grau de heterogeneidade - cuja ideia vernantiana de
uma razão política, pelo menos entendida substancialmente,
não permite dar conta. Pois aquilo com o que nos confrontam os
filósofos pré-socráticos é uma diversidade conflitual de imagens
do mundo, diante das quais o leitor é convidado a se situar, e que
excedem por todos os lados as categorias da cidade.
Seria contrário ao objetivo desta introdução, que não consi­
dera os Pré-Socráticos senão coletivamente, explorar mais adian­
te essas imagens do mundo, ou analisar a natureza dos conflitos
que elas engendram. É preciso, ao invés, reconsiderar a natureza
da relação que nós mantemos com elas, enquanto elas se situam
na origem da filosofia ocidental.

,4 W eber, 1996 (1920), p. 349s. C om "interesse ideal”, W eber parece se referir a


valores, com o, por exem plo, a honra ou ainda, a saúde. A extensão das Idéias é eviden­
tem ente m ais ampla.
ORIGENS

eferindo-se à série de perturbações políticas e culturais


R sem precedentes que conheceu a Grécia antiga a partir
do século VII e que J.-P. Vernant viria a qualificar em 1962 como
"mutação” em Origens do pensamento grego, K. Jaspers tinha, em
Origem efim da história (publicado em 1949), utilizado o term o
"salto”.1 A escolha das palavras não é indiferente. Enquanto
"mutação”, mesmo respondendo a uma problemática definida,
pretende-se puramente descritiva, “salto”, axiologicamente co-
notada, indica (em conformidade com o título do livro) certa di­
reção, algo com o um progresso ou uma aquisição que foi deter­
minante para uma história dada, e de uma maneira ou de outra
perdura até nós.
Jaspers tinha sublinhado - era seu propósito - que outros
“saltos” que não o salto grego, em condições radicalmente dife­
rentes e com efeitos bem diferentes, tiveram lugar mais ou menos
ao mesmo tempo em outros lugares, na índia, na China, na Pa­
lestina. Em escala da longa duração histórica, o sincronismo po­
dia ser considerado com o absoluto: razão pela qual ele falava do
primeiro milênio antes da era cristã com o de um período “axial”
(um epíteto pouco legível com o qual E. Weil propôs substituir
aquele de “bifurcatório”: é nesse ponto que a história da huma-

1 D urchbruch; inglês breakthrou gh. O term o é retom ado e discutido por W eil, 1982
(1975). Para o uso que dele fazem os historiadores, ver Schw artz, 1975, e Humphreys,
2004 (1986).
nidade bifurcaria2). A ideia foi contestada, primeiramente por­
que a construção não concede o lugar que cabe à escritura nas
grandes civilizações (as civilizações sumério-acadiana e egípcia,
que remontam ao III milênio),3 mas também, e sobretudo, em
razão de suas implicações teleológicas, inscritas no título mesmo
do livro de Jaspers e assumidas por E. Weil.4 É a mesma posição
que J. Burckhardt, escrevendo contra o uso da teleologia em his­
tória nos filósofos da história (Hegel sendo visado em primeira
linha), tinha recusado em suas Considerações sobre a história uni­
versal: "Eles [os filósofos da história] são dados a especular sobre
os começos, e deveríam, pois, a bem dizer, igualmente falar do
futuro; nós podemos prescindir dessas doutrinas sobre os come­
ços, e não é possível que se exija de nós uma doutrina do fim”.5
A questão de saber se um ponto de vista teleológico é evi-
tável, ou mesmo indesejável em história, é muito vasta para ser
discutida aqui (podería, ao contrário, ser necessário, sob a forma
de uma teleologia não objetiva, mas reflexiva).67Mas, em se tra­
tando dos gregos, é evidente que a relação que "nós" entretemos
com “eles” tem um peso considerável sobre o que nós somos
levados a dizer sobre eles. Isso porque nós estamos ligados a eles
(não menos mas de modo diferente do que o estamos à tradição
judaica) por uma relação originária
Nenhuma problemática decorre dessa constatação, nem
com ainda mais forte razão a menor obrigação. Diversas opções
se apresentam, com efeito, para o tratam ento de tal relação "ori-

2 Jaspers, 1949, p. 2 0; W eil, 1982 (1975), p. 194. "Axial" sugere que a história da
humanidade “g ira em to m o " d o m encionado período.
3 Para as considerações cronológicas, ver Burkert, 1994-1995, p. 184s. Para a crítica
de fundo, ver A. Assmann, 1989, p. 187-205.
4 N ão existe salto senão para nós, diz W eil, 1982 (1975), p. 196s.
* Burckhardt, 1971 (1905), p. 36.
* A questão será de novo evocada nas páginas 111-113 a propósito de Cassirer.
7 D evem os distinguir, quando dizem os “n ó s", entre o "n ó s" am plo da hum anida­
de, e aquele m ais específico de um a dada civilização. O salto grego e o salto ju d aico se
distinguem d o salto chinês pelas m odalidades da relação histórica que nos u n e a ela.
ginária”. Isso se deve à polissemia da noção de origem, que pode
colocar em jogo representações muito diferentes. Uma origem
pode não ser senão um ponto de partida, mas pode ser, também,
princípio ou fundam ento. Esses dois polos, por sua vez, se desdo­
bram: o princípio ou fundamento de um fenômeno dado poden­
do não ser mais que uma simples causa, ou tom ar a forma parti­
cular de uma norma, enquanto, de um ponto de vista genético, o
ponto de partida pode residir seja nas fontes das quais provém o
fenômeno ou das quais ele se alimenta, mas que lhe são exterio­
res, seja nos próprios inícios de sua manifestação, que lhe são fun­
damentalmente homogêneos. Essas diferentes distinções, vê-se
facilmente, estão em função da maior ou menor temporalização
da qual se investe o term o, em uma escala compreendida entre
os polos da "gênese", considerada com o um processo imerso no
tempo, e do “princípio”, que tende aí a se subtrair. O que se pode
esquematizar da seguinte maneira:
Origem
+ Temporalização -
(1) Gênese (2) Princípio
(1 a) Fontes (lb) Inícios (2 a) Causa (2 í») Norma

Acontece que essas entradas, que concernem ao discurso


que o historiador faz sobre as origens, quaisquer que sejam as
origens de que ele fala (talvez aquelas do pensamento grego, mas
também do Cristianismo ou da Cabala), concernem também às
categorias reitoras do pensamento pré-socrático, que constitui,
enquanto origem da filosofia grega, o objeto do propósito. O
ponto de partida dos cosmólogos de Mileto, Anaximandro e
Anaximenes, em que se concorda geralmente em reconhecer as
primeiras manifestações da "filosofia” nascente, com o de resto
aquele dos grandes relatos teogônicos dos quais são herdeiros
diretos (a Teogonia de Hesíodo), não é com efeito somente ca­
racterizado por um movimento de reenvio às origens (a origem
dos deuses em Hesíodo, aquela do universo nos Milésios), mas
também pelo fato de que esse reenvio é marcado por certa ten-
são entre dois sentidos possíveis, cronológico e ontológico, da
origem .8Em Hesíodo, Zeus, que pertence à terceira geração dos
deuses (depois daquela de Urano e de Cronos), adquire uma an-
terioridade pelo menos relativa (e por essa via uma legitimação)
a ser o primeiro dos deuses regurgitado por seu pai Cronos, isso
feito sob a forma simbólica de uma pedra.9 Ferécides de Siro, j
que, sem dúvida um pouco antes de Anaximandro, tinha redigi­
do uma teogonia em prosa que Aristóteles situava a meio cami­
nho da mitologia e da filosofia natural, tinha aberto seu escrito
afirmando que Zeus (chamado Zás, forma próxima do term o
que significa a “vida”) tinha sempre sido, a mesmo título que
Cronos (o tempo) e Ctonia (a terra ).101A mesma configuração,
em um nível de abstração mais elevado, encontra-se em Anaxi­
mandro, segundo uma interpretação possível de um testemunho
que, embora discutível, foi o primeiro a empregar o term o arkhê
(“início”) no sentido de "princípio”: pois esse princípio (nesse
caso, o “infinito”) acontece também de estar “no com eço ”.11
A polissemia do term o “origens” e o caráter carregado de
suas implicações sendo notórias, alguns críticos e historiadores
preferem falar de “com eços” ou "inícios”. Em um livro progra-
maticamente intitulado Beginnings, E. Sai'd observava, por exem­
plo: "Entre a palavra começo e a palavra origem existe um sistema
de significações em constante modificação, do qual a maioria
atribui a maior prioridade, importância, ou poder explicativo
ora ao primeiro term o, ora ao outro”. “O mais frequentemen-

8 Vernant, 1962, cap. 7. Cf. já Aristóteles, M etafísica, 1091 a 33 - b 7.


9 T eogon ia, 454-500, co m o com en tário de W est, 1978 ad 454 e 497. Ver, igualm en­
te , o verso 48, considerado espúrio p o r W est porque se diz nele que as Musas cantam
Z eu s “em prim eiro e em últim o lugar", enquanto elas tinham acabado de afirm ar que
o cantavam "e m segundo lugar”, depois da descendência de G aia e de U rano (sobre
esse ponto, ver agora Betegh, 2004, p. 173, cf. p. 219s.).
10 Ferécides, B 1; cf. Aristóteles, M etafisica, 1091 b 8-10.
11 Ver Sim plício, C om entário à F ísica d e A ristóteles, p. 24, 15s. D iels (= Teofrasto,
O pin iões d o sfisic o s, fr. 2, Diels). E u adm ito que Sim plício tom a aqui "principio" em um
sentido quase aristotélico. Cassirer fez derivar a distinção entre "orig em " e "co m eço "
a propósito dos Pré-Socráticos (ver in fra, p. 126).
te possível, continua ele, eu uso ‘com eço' com o o term o que
possui uma significação mais ativa, e ‘origem’ com o aquele cuja
significação é mais passiva: assim ‘X é a origem de Y\ enquanto
‘o com eço de A conduz a B’... As idéias relativas às origens, em
virtude de sua passividade, são postas a serviço de usos que deve­
ríam ser evitados."12 Said pensa evidentemente aqui no uso ideo­
lógico das origens, cujos exemplos não faltam, de maneira geral,
mas também no quadro da pesquisa histórica. Em se tratando da
Grécia, podemos mencionar as teses de M. Bernal sobre a ori­
gem egípcia (reputada "negra”) do salto grego, que suscitaram
um vivo debate do outro lado do Adântico.13Já Diógenes Laércio
se sentia obrigado, no prólogo de suas Vidas e opiniões dos filósofos
ilustres, a defender a origem grega da filosofia contra os partidá­
rios de sua origem bárbara, que tinham retomado, em uma épo­
ca em que o mundo tinha sido considerado alargado e em que a
herança grega era mais diretamente confrontada a outras, temas
que já remontavam a Platão e a Aristóteles.14
No âmbito de uma crítica das teses de G. Scholem relativas
às origens da Cabala, M. Idel reformulou a distinção entre iní­
cios e origens nestes term os: “Não é somente porque o primei­
ro term o representa um conceito mais ativo vs outro que seria
mais passivo. A meu ver, o conceito de início reflete uma maior
consciência dos momentos históricos em que uma ideia, um
term o ou um sistema qualquer apareceram novamente, e dos
processos que estão implicados nessa inovação. O rigens’, ao in­
vés, marca certa resistência a se concentrar muito fortemente na
investigação de certo fenômeno espiritual. Esse term o leva em
consideração mais as fontes de certo fenômeno que o momento
de sua emergência”.15 Identificar as "fontes” da Cabala, que são,

12 Sai'd, 1975, p. 5s.


13 B em al, 1987-1991.
14 Sobre o sucesso, em particular, dos M agos e de Z oroastro na época imperial,
ver M omigliano, 1980 (1975), p. 162s. Sobre o prólogo de Diógenes Laércio, ver Laks,
2004 a.
15 Idel, 2001, p. 320.
nesse caso, segundo Scholem, o gnosticismo e o neoplatonis-
m o, não basta ao historiador, na medida em que a tarefa desse
último seria dar conta do processo complexo de uma emergên­
cia obedecendo a uma cronologia historicamente identificável.
Mas há mais que isso, e mais grave. Relegar ao segundo plano
os processos de emergência favorece a adoção de perspectivas
normativas. As origens não são somente um objeto insuficiente­
mente histórico, porque insufidentemente temporalizadas, elas
são também, e sobretudo, intrinsecamente suspeitas. É assim
que, a atribuindo a origem da Cabala - segundo uma aplicação
diferente do term o "origem ” - a “uma revolta, talvez em parte
de origem judaica, contra o judaísmo antim ítico", Scholem teria
construído uma homologia, ela própria m ítica, entre o movi­
m ento cabalístico e o movimento sionista, encontrando-se os
dois em uma reação comum a uma versão dada do radonalism o
judaico .16 Scholem m erecería assim a denominação de “gnóstí-
co" que A. Bloom lhe dedicou, em virtude de uma concepção
que define o gnosticismo pela recusa de separar as origens do
objetivo ou do fim .17 É, no final das contas, a própria história,
em nome da qual a Cabala tinha sido primeiramente mobiliza­
da contra sua eliminação na tradição "esdarecida" da história
judaica, que seria traída. j
Nada diz, no entanto, que se ganhe mais em falar de “iní- ]
cios" que de "origens". Primeiramente, as análises semânticas vi- j
sando distinguir "origens” e "inícios" são facilmente reversíveis, j
Se é com efeito verdadeiro que a historicidade dos inícios pode, I
em certos casos, ser lançada contra a normatividade das origens, j
o term o "origem" está, quanto a ele, longe de ser necessariamen­
te carregado de conotações escatológicas indesejáveis. E. Renan,
por exemplo, para quem "uma história das Origens do cristianismo
deveria abarcar todo o período obscuro e [...] subterrâneo que
se estende desde os primeiros começos dessa religião até o mo-

16 Idel, 2001, p. 329. A citação figura em Scholem , 1969, p. 98.


17 B loom , 1987, p. 69 (citado po r Idel, 1987,2001, p. 315).
mento em que sua existência se torna um fato público, notório,
evidente aos olhos de todos",18 tom a evidentemente "origens”
em um sentido próximo ao que M. Idel chama "inícios". E as
Origens do pensamento grego de J.-P. Vernant, para voltar à Grécia,
referem as "origens” não às "fontes”, mas a um conjunto de fa­
tores históricos, culturais e estruturais, cujo concurso finalmente
tornou possível, ao term o de um processo complexo, os inícios
da filosofia grega. É mesmo por isso, para possível surpresa do
leitor, que o livro de Vernant se conclui com um capítulo consa­
grado a Anaximandro, do qual se faz com frequência um ponto
de partida, para, ao invés, reconstruir - ab origine - o processo
da emergência da cidade (ela própria mãe da nova racionalidade
grega, segundo a tese defendida) a partir da queda da realeza
micênica, no século XII a.C. É difícil conceber mais forte histori-
cização e maior temporalização das origens.
Inversamente, os inícios não estão menos expostos que as
origens à empresa de uma normatividade que incomoda. Talvez
o sejam eles próprios mais, de certa maneira. Com efeito, dife­
rentemente da relação existente entre a “origem” e o “origina­
do” proveniente dela, que não somente é compatível com a he-
terogeneidade de uma e de outra, mas a supõe no mais das vezes
(nem o gnosticismo nem o neoplatonismo o são já na Cabala),
um início tende a ser homogêneo com aquilo do que é início. Aqui­
lo do que há início já existe, enquanto tal. Nessa medida, a noção
de "início” conduz tanto quanto aquela de "origem” a investir o
originário de conceitos ou de problemáticas reportadas, quando
não se acaba por aumentá-las ideologicamente. Os "pensadores
iniciais" (anföngliche Denker) de Heidegger, oficialmente em nú­
mero de três (Anaximandro, Parmênides e Heráclito), fornece­
ram dele uma bela ilustração, eles que são todos encarregados de
dizer uma mesma eclosão-recuo do ser (“o mesmo” através de
alguns grandes term os privilegiados da língua grega (physis, logos1

11 Renan, 1995 (1863.1883), vol. I, Introdução, p. 22.


ou aletheia).19 Mas mais diretamente útil ao nosso propósito é a
figura mítica do "primeiro inventor” (prôtos heuretês), recorrente
nos relatos gregos de origem .20 Se o debate é tão rude a seu pro­
pósito, isso se deve ao fato de que o primeiro inventor determina
a forma mesma da invenção. Isso vale para a filosofia com o para
outras artes. Aristóteles, no relato que faz dos inícios da filosofia
no livro A da M etafísica, atribuía àqueles que ele é o primeiro a
nomear os "primeiros filósofos”, e em particular a Tales, o fato
de terem pela primeira vez tido a ideia de um princípio material
que seria o “substrato” de todas as coisas, e não em que consis­
tiría sua "natureza”. Mas se sabe (através de Diogenes Laércio
em particular) que alguns pretendiam rem ontar esse conceito
a Museu, o discípulo de Orfeu, no quadro, manifestamente, de
uma contestação do modelo aristotélico e de uma rivalidade em
matéria e prioridade filosófica.21 Teoffasto, o discípulo e sucessor
de Aristóteles, sustentava, por sua vez, com base em uma inter­
pretação menos metafísica que astronômica do esforço de Tales,
que em matéria de "investigação sobre a natureza”, este "tinha
sido precedido por muitos outros” que ele não teria eclipsado
senão por sua incontestável "superioridade”.22 Outros mobili­
zam um tipo diferente de critério, invocando, com o inventor da
filosofia, Pitágoras: é ele que teria introduzido o próprio term o
"filosofia”, definindo-a menos por um conteúdo teórico, com o o
é o "substrato”, que por sua form a - nesse caso, a adoção de uma
atitude "teórica”, que persegue o conhecimento por si mesmo (o
que explica que o céu seja o seu objeto privilegiado).23 É possível,
evidentemente, multiplicar os pontos de partida, de acordo com
a maneira pela qual se define a filosofia. Isso não vale menos

19 Sobre H eidegger e as “palavras originárias”, consultar-se-ão os trabalhos de Za-


rader, 1986, e C ourtine, 1999. Sobre os G regos de H eidegger m ais geralm ente, ver
M ost, 2004.
20 O dossiê foi reunido p o r Kleinguünther, 1933; ver, tam bém , T hraed e, 1962.
21 Ver Laks, 2004 a.
22 Sim plído, C om entário à Física d e A ristóteles, p. 23, 29-32; D iels = T eofrasto, O pi­
n iões d os fís ic o s , fr. 1, Diels.
23 Ver su pra, p. 26s.
para o historiador moderno que para os antigos. A despeito da
influência imensa exercida pelo relato aristotélico, que teve por
efeito elevar Tales à classificação de "primeiro filósofo” (o que
não é inteiramente a intenção de Aristóteles), Anaximandro e
Parmênides, com o antecessores de Tales ou, ainda, Ferécides,
ou mesmo Hesíodo, com o sucessores, são também candidatos
potenciais à "invenção”, ainda que seja ela incipiente, de uma
disciplina em gestação .24
Tocamos aqui na questão historiográfica de saber o que
“faz época”, isto é, o que interrompe uma continuidade, se­
gundo o sentido etimológico do term o (a épochè é antes de
mais nada "suspensão”), em proveito de outra. O uso históri­
co dessa categoria, a partir do século XVIII, para caracterizar
o conjunto de um período aberto por um acontecimento de
referência (ou, no caso dos Pré-Socráticos, encerrada por ou­
tro) dá facilmente lugar a dois paralogismos, que se podería
nomear com o o paralogismo extensional da subsunção exaus­
tiva, que faz de uma caracterização tendendal ou ideal-típica
uma determinação intrínseca do período considerado (em se
tratando da filosofia pré-socrática, a noção de "filosofia natu­
ral” desempenhou com frequência esse papel25); e com o o pa­
ralogismo epistemológico da causa, que tende a negligenciar a
função simbólica que reveste o acontecimento reputado inicial
(ou terminal, no fim do período considerado) para lhe conferir
a eficácia de uma determinação real (para o período que nós
consideramos, estão essencialmente em jogo Tales e Sócrates).
H. Blumenberg colocou bem em evidência a dinâmica des­
se segundo paralogismo, mostrando como a ciência histórica,

24 Precisaria, tam bém , levar em conta as questões específicas que estão ligadas, na
perspectiva neoplatônica e naquela do sincretism o renascente, à questão da origem
"bárbara”, isto é, extragrega, e prm cipalmente egípcia, da filosofia. É com essa repre­
sentação que a historiografia das Luzes (representada principalm ente por J. Brucker)
rom pe, im pondo Tales (cf. Blackw ell, 1997), lançando, por assim dizer, o Aristóteles da
M etafísica contra aquele de Sobre a filo so fia (cf. su pra, p. 81, n. 2).
25 Ver p. 129.
que se apoiou fortemente, num primeiro momento, em sua fase
romântica, em um conceito de época (que se apresentava com o
um paradigma da individualidade histórica), foi também cons­
tantemente conduzida a lhe alterar os limites em nome mesmo
da história, relativizando progressivamente a importância das
cesuras de época pela multiplicação de etapas intermediárias.26
Ao longo desses recuos, a época perdeu sua vocação de determi­
nação intrínseca, ou substancial, para se tornar, nos term os de
Blumenberg, um "meio classificatório metódico de uma credibi­
lidade duvidosa”.27
O que é mítico, nesse caso, é o traçado de uma linha de
demarcação, e a postulação de um ponto de partida absoluto,
do qual é significativo que tenda a tom ar uma forma de calen­
dário, quando não astrológica. Valmy (1791) entre os Modernos,
Salamina (480) entre os Antigos, fornecem disso dois exemplos
eminentes.28 No domínio da história da filosofia, o sincronismo
do ano 1642, que foi ao mesmo tempo aquele da m orte de Ga-
lileu e do nascimento de Newton, marca também o limite entre
duas épocas.29 É contra esse tipo de ilusão pontual que Blumen­
berg mobilizou, sob o nome de limes - em sentido próprio, a
zona tam pão separando o Império romano do que não era ele - ,
os recursos das margens temporais. As coisas historicamente se
eclipsaram, sem que nunca se possa dizer quando foi exatamente
que isso aconteceu .80 O limes blumenbeigiano é com o o nome
de todas as complexidades históricas cujo efeito pode ser medi­
do, sem que o seu traçado possa ser atribuído. Razão pela qual

“ Esse é o sentido do grande debate sobre o núm ero e as datas de nascim ento das
diversas "Renascenças” (cf. Panofsky, 1976, cap. 1).
27 Blum enberg, 1996 (1985), p. 537.
22 Salam ina tinha dado lugar a u m sincronism o fam oso, duplicado p o r um com po­
nente espacial: em 480, Ésquilo com batia os medas, Só fod es dançava para celebrar a
vitória e Euripides nascia na ilha.
29 Blum enberg, 1996 (1985), p. 555s.
30 Musil, no capítulo 16 de O H om em sem qu alidades, descreve de m aneira surpreen­
dente um a situação desse tipo.
a um ponto de partida singular e reputado fictício, Blumenberg
substitui com a consideração de duas referências que, de uma
parte e de outra de uma transformação atribuível, testemunham
a realidade das mudanças que intervieram: esse é o sentido que
tom a nele a análise comparativa dos pensamentos de Nicolau de
Cusa, para o antes, e de Giordano Bruno, para o depois.
A pertinência dessa problemática para a análise dos “inícios
da filosofia” é patente: Tales (ou outro) é o equivalente funcional
de Valmy ou do ano 1642. A questão é de saber se não deve­
mos, a exemplo de Blumenberg, substituir, na análise das origens
do pensamento grego, a fixação transparente, mas mítica, dos
pontos de partida, pelo modelo mais prudente de "referências”
dispostas de um lado e de outro de uma fronteira larga, e de
contornos leves.
Há certam ente numerosas vantagens, e muita verdade, em
tal abordagem. No entanto, não é essa prudência com a qual
se julga conveniente ser prudente. Em seu ensaio "A forma do
conceito no pensamento m ítico", E. Cassirer notava que a pos­
sibilidade de delinear "quase exatamente o m om ento que cons­
titui o ponto de partida de uma revolução na maneira de pensar
era um fenômeno raro na história do espírito e das idéias” .Jl
“Quase" significa “quase”, mas "raro” implica “possível”. É ver­
dade que, em Cassirer, o ponto de partida em questão apresenta
já certa complexidade, uma vez que não se trata nem de um
acontecimento único, nem de um nom e, mas de certa “conver­
gência”: o nascimento do pensamento científico moderno pode
ser situado, segundo ele, no encontro de dois acontecimentos,
a publicação das Regras para a direção do espírito de Descartes
(redigidas por volta de 1628), que formulam pela primeira vez a
ideia de uma m athesis universalis com o ciência principal da me­
dida, da ordem e do número, e a recusa tardia, mas irrevogável,
por Kepler, em sua H arm onia do mundo de 1619, do modo de
pensamento astrológico no qual se tinha por muito tempo reco-31

31 Cassirer, 1969 (1992), p. 54.


nhecido.32 A observação, vinda de um intérprete consciente do
caráter excepcional dessa constelação, incita a voltar duas vezes
os olhos a este ponto: o nascimento da filosofia na Grécia não
tem menos a natureza de um acontecim ento de época que o
nascimento da ciência moderna, e a razão histórica não se nutre
menos de descontinuidades que de continuidades.
No caso da Antiguidade, o problema é complicado pelo fato
de que, pelo menos em certos casos, as informações que nós te­
mos sobre certas figuras fundadoras resultam de toda evidência
(ou quase) de projeções retroativas - assim, no que concerne a
atribuição a Tales de uma doutrina do substrato, ou a Pitágoras
do neologismo “filosofia”. Complicado, não simplificado, pois
não se pode simplesmente afastar essas construções de um rever­
so de mão. Como nós vimos em um capítulo anterior, a questão
se põe de saber em qual medida não existe certa verdade histó­
rica em uma ou outra filiação, com o aquela que liga Sócrates a
Arquelau, com relação à qual se tem , de resto, boas razões para
se considerar com o uma construção .33
Além dos problemas circunstanciais, de ordem essencial­
mente técnica ou metodológica, que provêm do estado e da na­
tureza de nossas fontes e que é preciso possuir certa habilidade
para avaliar e utilizar, põe-se o problema mais geral da referência
aos indivíduos, na construção das épocas históricas. Essa refe­
rência aparecerá ainda mais legítima na época histórica da di­
ferenciação do indivíduo com o autor ou criador (o que é um
dos aspectos da “mutação” dos séculos VII-VI gregos),34 em que
se trabalhará com um conceito desmitificado de “inícios” ou de
“origçns”, com o é perfeitamente possível se fazer. E. Sai'd nota
de maneira pertinente que os inícios se caracterizam menos pelo
fato de ser o que eles são que pelo que eles tom am possível ou,
ainda, “autorizam ”.33 O term o é útil. Ele delineia os contornos

12 Cassirer, 1969 (1922), p. 55 e s.


33 Ver su pra, p. 35s.
34 Ver o s trabalhos de G . E . R . Lloyd, principalm ente Lloyd, 1997.
35 Said, 1975, p. 34.
de um conceito de inído menos heroico, e mais modesto, que
aquele de “primeiro inventor”, ao mesmo tempo que arranja um
lugar para os acontecimentos cruciais da história do pensamen­
to. Tal conceito de início podería, nesse caso, ele próprio "se per­
mitir" um célebre dístico de Xenófanes, afirmando que “não é o
caso que desde o início (ap’arkhês) os deuses tenham tudo mos­
trado aos mortais; mas, buscando, eles encontram melhor com
o passar do tempo”,36 ou ainda de Aristóteles que, constatando
no último capítulo das Refiitações sofisticas que ele é o primeiro a
ter balizado o campo da análise lógica (o que não se podería ra­
zoavelmente negar), sublinha a necessária dificuldade dos come-
ços.37 É verdade que essa precariedade mesma implica - trata-se
de um aspecto que Aristóteles não põe e não podia sem dúvida
pôr em relevo, em razão de seus pressupostos metafísicos últi­
mos - certa heterogeneidade entre os "inícios” e aquilo do que
eles são início (como ocorreu há pouco com a "origem”). O que
se instala pouco a pouco não é a identidade de uma substância
passando progressivamente da potência ao ato para revelar uma
natureza de imediato presente, com o Aristóteles se representa­
ria, de modo igual ao movimento natural, o movimento históri­
co em geral e aquele da disciplina filosófica em particular,38mas
a emergência de projetos que podem "se perm itir", e se permi­
tindo com efeito de tal outra que o precedeu, para o desenvolver,
o dobrar-se ou o contestar em uma direção inédita, imprevisível.
Desse ponto de vista, é sob o signo de Xenófanes, mais ainda
que sob aquele de Aristóteles, que pode ser situado o estudo das
origens ou dos inícios, com o se preferir, da filosofia na Grécia.

“ B 18. O dístico insiste m ais n o aspecto tem poral do desenvolvim ento que na
oposição deus/hom em , que é co m o que escam oteada n o anonim ato do “eles" (ver
Babut, 1977, depois Frankel. 1962, p. 380).
” R efu tações so fistica s, 183 b 25 e s .
M Ver su pra, p. 81, n. 2.
QUESTÕES

s Pré-Socráticos, considerados com o certo conjunto


O de pensadores (mais que com o os pensadores singu­
lares que eles são também), ilustram de maneira paradigmática
duas maneiras possíveis de se reportar às origens, e, nesse caso,
às origens da racionalidade grega, conforme elas se situam sob a
insígnia do outro ou do mesmo, da descontinuidade ou da conti­
nuidade. As duas tradições antigas que eu distingui no primeiro
capítulo sob o nome de socrático-ciceroniana e de platônico-aris-
totélica se distinguem predsamente sobre esse ponto .1 Elas têm
suas contrapartidas modernas em uma tradição antirracionalis-
ta que, prolongando a reavaliação nietzscheana, contesta toda
historiografia continuista de tipo aristotélica em nome de certa
alteridade, e uma corrente racionalista que não cessa de reco­
nhecer, nos Pré-Socráticos, a postulação dos problemas dos quais
a posteridade filosófica não cessará de se nutrir. A maneira pela
qual essas duas opções se especificam pode variar e dar lugar a
modelos mais ou menos pertinentes. Mas não é sem dúvida pos­
sível deixar para trás o dilema que se encontra no fundamento
dessas interpretações particulares senão pelo viés de considera­
ções metodológicas. O que eu queria sugerir nesse último capí­
tulo, depois de ter analisado, a título de exemplo (outros seriam
possíveis), a maneira pela qual duas historiografias filosóficas de
subordinações opostas, tão inegavelmente influentes quanto são

1 Ver su pra, p. 15s.


elas próprias de valor desigual (a influência estando em propor­
ção inversa de seus méritos), trataram dos Pré-Socráticos. Tratar-
-se-á das abordagens de H.-G. Gadamer, para o movimento feno-
menológico, e de E. Cassirer, cuja contribuição na matéria não é
de modo algum conhecida.
Em se tratando da tradição fenomenológica, o primeiro
nome que vem ao espírito é evidentemente aquele de Heideg­
ger, no qual o "passo atrás” da metafísica reconduz diretamen­
te, na vertente de Nietzsche, aos "pensadores iniciais”.2 A sim­
plicidade recomenda, entretanto, caracterizar o ponto de vista
fenomenológico através das lições introdutórias que Gadamer
consagrou ao Inicio da filosofia, e que reúne o essencial dos arti­
gos consagrados ao tem a desde o ano de 1930.3 Certam ente, o
principal centro de interesse de Gadamer em matéria de filoso­
fia grega não é constituído pelos Pré-Socráticos, mas por Platão.
Isso representa, no que concerne a Heidegger, certa recentrali-
zação, ainda mais compreensível porque entre a hermenêutica
e Platão existem Harnes tradicionalmente fortes, herdados de
Schleiermacher.4 Não é senão mais impressionante que a con­
cepção que Gadamer se faz dos Pré-Socráticos permaneça - a
despeito de incontestáveis arranjos, dentre os quais convém in­
cluir a urbanização do propósito - profundamente heideggeria-
na. Poder-se-ia até mesmo chegar ao ponto de sustentar que é à
luz dos Pré-Socráticos (aqueles de Heidegger) que Gadamer lê
Platão. Revelador é, a esse respeito, o final de um estudo sobre
H erádito que, distandando-se a esse ponto de Heidegger, busca
restituir Platão a um "aquém da metafísica” do qual H erádito,
com o os outros Pré-Socráticos, continuam sendo os emblemas:
"Heidegger não teria ele também razão quando, questionando

2 Ver su pra, p. 51, n. 30.


3 Tradução francesa, Gadam er, 2001. Essas lições postas à parte, a m aioria dos
textos que G adam er consagrou aos Pré-Socráticos se en contram nos três volum es dos
G esam m elte W erke (G W ) que reú nem seus escritos sobre a filosofia grega (Gadam er,
1985-1990).
4 Sobre a relação entre Schleierm acher e Platão, ver Neschke, 1990.
desse lado da metafísica, descobre Heráclito, em quem tudo se
imbrica ainda? Não teria podido ele descobrir também a dialé­
tica de Platão, em que o jogo desse pensamento se persegue?”.5
Duas convicções guiam a abordagem de Gadamer. A pri­
meira o conduz a sustentar que em matéria de filosofia pré-
-socrática, somente Parmênides conta verdadeiramente - uma
tese que tem seu tom de nobreza, depois que o Sofista de Platão
promoveu Parmênides ao estatuto de “pai”.6Os outros filósofos,
Heráclito inclusive, não são legíveis senão por relação a ele. A
segunda convicção, de ordem metodológica, atém-se às carac­
terísticas que distinguem os Pré-Socráticos. Primeiramente, eles
se situam em um com eço - nesse caso, o com eço da filosofia
grega (o subtítulo das Lições é menos restritivo: é da filosofia em
geral que se trata). Em seguida, suas obras não são transmitidas
senão indiretamente por meio de resumos e citações, e, logo, na
melhor das hipóteses, de modo fragmentário. Esses dois traços
permitem a Gadamer situar sua abordagem com relação a duas
teorias da história aparentemente opostas, mas das quais ele de­
nuncia a profunda cumplicidade, aquela de Hegel (tomado com o
representante da teleologia histórica) e aquela do historidsmo
científico (representada principalmente por H. Diels). Essas duas
determinações formais - com eço e fragmentação - reconduzem
a Parmênides com o figura central da filosofia pré-socrática, se
é verdade que, inaugurando de modo propriamente dito a filo­
sofia, Parmênides é também o único a poder ser lido em certa
medida "por si mesmo”, em um texto que se podería qualificar,
pedindo desculpas pelo oximoro, com o parcialmente integral.7

5 Gadamer, 1990 (GW, vol. 7), p. 82.


‘ 241 d.
7 O oxim oro é m eu. N ós exam inam os a totalidade do prólogo do poem a de Par­
m ênides e a m aior parte da prim eira parte (a verdade do ser), co m a transição à segun­
da parte (as opiniões cosm ológicas). O que sobrou dessa últim a é pouco num eroso,
m as as inform ações doxográficas perm item que se faça um a ideia bastante precisa (ver
Bollack, 1990). O todo não devia exceder a extensão de um cu rto can to hom érico, 300
versos n o m áxim o.
N o fron t da teleologia, Gadamer desenvolve uma argumen­
tação simples e à qual é difícil não subscrever, consistindo em
subtrair o conceito de com eço da influência do evoludonismo.
A ideia é que a noção de desenvolvimento implica uma série de
etapas obrigatórias, todas de imediato incluídas na origem, e isso
até um term o fixado, da maneira com o o telos já se encontra em
potência no germ e. À metáfora da potencialidade e do desenvol­
vimento germinal, Gadamer prefere aquela de u m a juventude da
filosofia, juventude sendo entendida com o a época, senão de to­
dos os possíveis, pelo menos de uma multiplicidade de possíveis.8
A metáfora, com a ideia de abertura que ela implica, é per-
feitamente aceitável. Mas no uso que Gadamer faz dela, é tam­
bém problemática. Primeiramente, é questão de saber se Gada­
m er escapa verdadeiramente da dialética do par com eço/fim , ou
mesmo se ele pode querer escapar dela, em vista dos princípios
mesmos de sua hermenêutica que repousa sobre a ideia de que
a compreensão de um texto repousa sobre a fusão dos horizon­
tes do autor e do seu intérprete. Ele próprio nota que "o co­
meço inclui também o pensamento do fim”,9 e quando ele fala
da pré-história (Vorgeschichte) da metafísica, ou dá a uma seção
de sua obra o título ‘Ά caminho rumo a Platão” (Auf dem Wege
zu Platon),10 tem-se mais de uma vez a impressão de que Platão
conclui o que Parmênides iniciou. Em seguida, e sobretudo, é
questão de saber em qual medida as análises propostas chegam a
oferecer uma imagem plausível dessa “juventude”.
A abordagem de Gadamer é fortemente marcada pela von­
tade de minimizar, ou mesmo de negar, o papel da discussão,
da crítica e da polêmica no seio do pensamento pré-socrático, o
que não somente não combina com a ideia que se pode legiti­
mamente se fazer da juventude, mas é também eminentemente
contestável. A tese é retomada praticamente tal qual aquela de

* Gadam er, 2001, p. 23.


9 G adam er, 2001, p. 20.
10 Trata-se da prim eira seção do volum e 7 das Gesammelte W erke.
Heidegger;11 ela se autoriza, nesse caso, pela revisão da relação
entre o par tradicionalmente formado por Parmênides e Herácli-
to: um não responde ao outro, com o o supõe o esquema funda­
mental da dialética hegeliana, qualquer que seja aquele que res­
ponde ao outro, Heráclito a Parmênides (quando o pensamento
do devir, em Hegel, sucede àquele do ser), ou Parmênides a He­
ráclito (segundo uma opinião amplamente compartilhada desse
J. Bernays). Os dois pensamentos são bem mais independentes
um do outro. Gadamer insiste muito, e com frequência, na li­
beração que representou, desse ponto de vista com o de outros,
o livro de K. Reinhardt, Parmenides und die Geschichte der Philoso­
phie, publicado em 1916. Atribui-se com efeito a Reinhardt ter
dito que o fragmento 6 de Parmênides, com seu ataque contra
os mortais "bicéfalos” que vivem na dupla perspectiva do não-
-ser tanto quanto na do ser, não é dirigida contra Heráclito, mas
antes contra os homens, em geral.1112 O argumento que recusa
identificar os mortais a Heráclito (mas isso valería para todo ou­
tro filósofo) não é verdadeiramente prova suficiente, uma vez
que não se vê por que as “opiniões dos mortais” não designariam
as opiniões dos filósofos, que, do ponto de vista de Parmênides
e de sua deusa, não fazem senão articular a posição im plícita dos
mortais (a questão, interessante de um ponto de vista hermenêu­
tico, merece que nela nos detenhamos). Mas mesmo que se dê
razão a Reinhardt quanto a esse ponto, o que permanece mais
plausível é a generalização à qual Gadamer procede a partir do
caso particular, ou mais exatamente o fato de que ele considere
esse caso particular com o a ilustração de um princípio geral: se
Parmênides não ataca Heráclito, é porque os Pré-Socráticos não
se respondem uns aos outros. Gadamer se opõe assim ao que

11 Ver Heidegger, 1979 (= GA 55), p. 41s.


12 Reinhardt, 1916, 64s. O fragm ento B 6, 5 e s., diz: "... cam in ho (apócrifo) sobre
o qual os m ortais que não sabem nada / erram , bicéfalos. Pois é a im potência que em
seus / peitos guia seu errante pensam ento. G eles são levados, m udos tanto quanto
cegos, estúpidos, raça sem discernim ento, / para quem ser e não ser é reputado o
m esm o / e o não-m esm o”.
ele chama a interpretatio hegeliana, uma fórmula que cobre não
somente o hegelianismo oficial da filosofia da história de Hegel,
mas também o hegelianismo obsequioso que Gadamer vê em
obra no comum e no menos hegeliano dos historiadores da filo­
sofia antiga (sem mesmo falar de Zeller, em quem a influência de
Hegel é não somente patente, mas reivindicada13):

Nós devemos não apenas recusar crer na interpretatio aristotélica,


que é a base de Teofrastp e dos doxógrafos, mas também no con­
junto do pensamento histórico e filológico da Modernidade, e
que eu chamarei de bom grado interpretatio hegeliana - a despeito
do anti-hegelianismo da escola histórica. (...) Seu pressuposto, as­
sumido como natural, não é certamente, como em Hegel, a com-
preensibilidade total da história a partir de sua "lógica” interior,
mas ele nutre também a firme convicção de que os pensadores
particulares e suas doutrinas fazem referência uns aos outros, se
"superam”, se criticam, se combatem, de modo que uma articula­
ção logicamente compreensível preside ao diálogo da tradição.14*

Nós, estamos, portanto, às voltas com uma concepção da


filosofia pré-socrática que bem pode ser qualificada não somen­
te com o antidialética, mas até mesmo antirreladonal. Essa con­
cepção pode, à primeira vista, parecer curiosa, na perspectiva
do dialogismo que reivindica, de resto, Gadamer. De fato, ele
reflete melhor a existência, no próprio Gadamer, de uma tensão
inerente aos dois modelos filosóficos, aquele da historialidade
(os Pré-Socráticos com o fase da história do ser), e aquele do diá­
logo (representado de certa maneira pelo momento platônico),
mas traduz, sem dúvida, em verdade uma concepção do diálogo
desprovida de toda dialogicidade efetiva - o que explica justa­
mente que Gadamer possa ler Platão à luz dos Pré-Socráticos.ls

13 Sobre a relação de Z eller co m H egel, ver su pra, p. 39, n. 6, e Laks, 1 9 9 9 ,468s.


14 Gadam er, 1985 (GW, vol. 6), p. 59.
13 A m esm a tensão é reencontrada na interpretação que G adam er faz da relação
entre A ristóteles e Platão, que disputam co m Sequência, m esm o se eles dizem final­
m ente a m esm a coisa.
A contrapartida positiva dessa interpretação antirreladonal não
é, com o na concepção nietzscheana, uma teoria das grandes in­
dividualidades, desses "tiranos do espírito” dos quais cada um
“possuía uma crença firme em si mesmo e em sua ‘verdade’, e
revirava com ela todos os seus vizinhos e seus predecessores”,16
mas uma abordagem fundamentalmente homogeneizante, em
virtude da qual os primeiros pensadores da Grécia falam em
uníssono. Existe uma diferença entre os Jônios e Parmênides.
Os primeiros são pensadores da physis, o segundo, o pensador
da apreensão imediata do que é (conforme uma interpretação
pouco tradicional, mas distintiva da tradição fenomenológica).17
Mas, dos primeiros ao segundo, não existe verdadeiramente so­
lução de continuidade. Parmênides é com o a verdade dos Jônios:

Assim o conjunto da filosofia pré-socrática do primeiro período


apresenta uma impressionante uniformidade quanto ao seu tema
fundamental. Os Milésios, Parmênides e Heráclito exprimem a
mesma visão fundamental da unidade do diferente. Eu não vejo
nesse resultado nada de estranho. Ao contrário: nós devemos
aprender a nos livrar não somente da representação aristotélica,
mas também da representação hegeliana e moderna de uma con-
y catenação articulada desses pensadores. Eles não filosofam um
contra o outro, mas, como filósofos, sempre contra a nlo-filoso-
fia dos mortais.18

A superação do historicismo, em se tratando dos Pré-Socrá-


ticos, remete a Platão, que se apresenta para traçar os contor­
nos da unidade do pensamento jônico, ou mesmo do conjunto

16 N ietzsche, H um ano, d em asiado hum ano, § 261 ("O s tiranos do espírito").


17 Essa interpretação fenom enológica, que vai de par co m a reavaliação da relação
entre as duas partes do poem a de Parm ênides, apoia-se am plam ente na sem ântica do
term o n oein , n o m ais das vezes traduzido po r “pensar”, m as que designa de fato um a
apreensão direta, o "co n tato” aristotélico (cf. Gadamer, 2001, p. 137). Eu apresentei al­
gum as referências mais precisas em vista de um a história da recepção fenom enológica
de Parm ênides na segunda parte de Laks, 2004 b.
u Gadam er, 1985 (G W , vol. 6). Podem os m ultiplicar as citações; ver, po r exem plo,
ib id ., 59s.
do pensamento pré-socrático. Gadamer sugere, com efeito, não
sem artifício, que a oposição entre os Eleatas e os outros pensa­
dores pré-socráticos, que Platão reúne no Teeteto sob o nome de
Heraditianos,19 resulta do interesse particular que ele podia en­
contrar na doutrina eleática do ser. Ela não afeta a unidade mais
profunda que os congrega.

Mais do que nunca, a maneira como Platão vê seus "predeces-


sores” facilita essa tarefa. Pois ele viu todos - salvo os Eleatas -
como uma unidade, e os batizou com um nome apenas, chaman­
do-os "heraditianos”. Que essa maneira de apreender a tradição
seja uma construção antitética, que seu verdadeiro motivo seja a
recepção positiva do pensamento do ser eleático pela teoria das
Idéias, é patente. Assim, a história dos efeitos do pensamento ele­
ático oferecerá sempre um acesso essendal à doutrina eleática, e
Platão constitui um cume dessa história.20

Em sua atenção a Platão, tomado com o “incomparável tes­


temunha do que foram os inícios da filosofia”,21 Gadamer alcan­
ça m utatis mutandis o gesto de Hegel, quando esse último defen­
de Aristóteles com o uma fonte perfeitamente suficiente para o
conhecimento dos inícios da filosofia.22 Ele é, também, levado a
minimizar os dados fornecidos por Aristóteles no primeiro livro
da M etafísica, no qual discussão, polêmica, argumento, progres­
so estão no centro de um a exposição fortem ente marcada por
uma concepção teleológica da história - tudo o que Gadamer
chama de interpretatio hegeliana, mas que vemos não ser exclu­
sivamente moderna23 - em proveito da Física, cuja abordagem
é percebida com o sendo mais unicista, e, nessa medida, mais
justa. O fato de que a história dos efeitos (W irkungsgeschichte),

19 Platão, T eeteto, 179 e.


20 Gadamer, 1985 (GW, vol. 6), p. 60.
21 Ibid .
22 Hegel, 1971-1975 (1833), t. 1, p. 37s.
23 N os "H eraklit-Studien”, H egel é qualificado de "grande aristotélico dos Tem pos
m odernos” (Gadam er, 1990 = G W , vol. 7 ,p . 82).
que aqui se encontra em obra, pareça, finalmente, se acomodar
muito bem da perda das obras originais, das quais não se tem a
impressão de que dirão mais que Platão disse a seu propósito,
não deixa de inquietar. Trata-se aí de uma nova tensão, no seio
da posição de Gadamer, entre esse próprio princípio e a afir­
m ação segundo a qual o acesso direto, não intermediado por
Platão e Aristóteles, às obras completas, é essencial à sua com ­
preensão .24
Embora Gadamer não cite Cassirer nesse contexto ,25 a ma­
neira com o esse último trata dos Pré-Socráticos fornece um per­
feito exemplo do tipo de história que Gadamer condena. Vale a
pena se deter um pouco sobre a perspectiva cassireriana, que não
é muito conhecida, porque, a despeito das objeções de princípio
às quais ela sem dúvida se expõe (do tipo daquelas que Gadamer
articula contra uma história de confecção hegeliana), ela desem­
boca em uma exposição cuja qualidade informativa e a pertinên­
cia filosófica são em muito superiores àquelas que se extraem da
leitura de Gadamer. A despeito do caráter inegavelmente datado
das interpretações sobre a qual ela repousa, é até possível pensar
que se trate de uma das melhores exposições introdutórias à filo­
sofia pré-socrática existente.
Todos os escritos de Cassirer, mesmo os mais sistemáti­
cos, possuem uma dimensão fortemente histórica, articulando,
em graus de generalidade e em escalas temporais diversas, um
bom número de sequências provenientes da história da filoso­
fia, das ciências, e mais geralmente do pensamento, sendo que
Cassirer não separa a história da filosofia da história intelec­
tual. A Antiguidade sempre desempenhou um papel importante
nessas sequências, seja antes ou depois da publicação, em 1910,
de Substância efu n ção, que marca um inflexão importante na in­
terpretação cassireriana da relação global entre a Antiguidade e

24 Gadamer, 2001, p. 29s.


25 D e m aneira geral, as referências de G adam er a Cassirer são raras e pouco sig­
nificativas.
a Modernidade. No capítulo consagrado ao pensamento antigo
que serve de introdução ao primeiro volume de Problema do co­
nhecimento publicado em 1906,26 Cassirer pressupunha com efei­
to ainda a existência de uma continuidade fundamental entre o
pensamento antigo e o pensamento moderno, à medida que o
"progresso interior" do pensamento moderno, que o conduziu
a pôr no coração de suas preocupações o problema do conhe­
cimento, mais que subordinar este a outras questões sistemáti­
cas, é considerado com o remontando aos princípios do pensa­
mento grego, nesse caso identificado à teoria platônica do co­
nhecimento científico, na versão neokantiana de H. Cohen e P.
Natorp .27 É essa continuidade que é recolocada em questão pela
distinção entre substância e função, que será desde então um
instrumento compartilhado entre Antiguidade e Modernidade:
enquanto o pensamento antigo é essencialmente substancial (o
que recoloca em questão a interpretação dessubstancializante
que os neokantianos tinham proposto da teoria platônica das
Idéias), o pensamento m oderno é essendalmente funcional (re­
lacionai). Explica-se, assim, por que o capítulo de 1906 não teria
sido retomado na segunda edição do Problema do conhecimento28
(1922).
Cassirer não apenas voltou à interpretação neokantiana de
Platão, ele se interessou muito, também, pelos inícios da filosofia
grega. Rumo ao fim de sua vida, a emergência do pensamento
grego, entendido em sentido amplo, é objeto do artigo “Kosmos,
D ikê, Logos”, que aparece na Suécia em 1941. Nesse mesmo ano,
Cassirer professa em Yale um curso sobre a história da filosofia
antiga que contém uma série de capítulos sobre os primeiros filó­

“ Cassirer, 1906, p. 20-50.


27 Sobre a interpretação neokantiana da teoria das Idéias platônicas, ver Laks,
2003 b. N atorp tam bém tinha se interessado pelos Pré-Socráticos, principalm ente em
suas Forschungen zu r E rkenntnisproblem in d er A n tike (1884), cu jo titulo evoca aquele da
grande obra de Cassirer. A relação m erecería ser estudada.
“ Sobre o sentido dessa supressão, ver Krois, 1996.
sofos.29 Mas o texto mais concentrado e o mais sistemático sobre
o assunto é constituído pela seção inicial, intitulada ‘Ά filosofia
dos Gregos dos inícios até Platão”, que abre o primeiro volume,
consagrado à história da filosofia, do M anual de filosofia (Lehrbuch
der Philosophie) editado por Max Dessoir em 1925.30
Seguindo a divisão instaurada por Aristóteles, no primeiro
livro da M etafísica, entre ele próprio e o conjunto de seus pre-
decessores, Cassirer trata dos inícios da filosofia grega até Pla­
tão inclusive, com o J. Bum et o tinha feito por sua vez em uma
história clássica das filosofias ‘‘Tales até Platão” publicada em
1914.31 Em Cassirer, esta escolha traduz sem dúvida a distância
tomada em relação à popularidade de que gozam os Pré-Socrá-
ticos na Alemanha dos anos 1920, da qual Heidegger não é se­
não um representante entre outros.32 No interior do conjunto
pré-aristotélico, Cassirer adota uma divisão puramente geográ­
fica, e, logo, conceitualmente neutra, entre “filosofia pré-ática”
(Vorattische philosophic) e “filosofia ática” (Attische philosophic).33
Cassirer não retoma menos por sua própria conta a distinção
entre uma orientação primitiva da filosofia rum o à “natureza”
e uma sequência, que, tomando a medida do homem e da sub­
jetividade, desemboca, em Sócrates e Platão, em uma filosofia
de inspiração sem ântica. A passagem dos Pré-Socráticos a Platão
é, com efeito, concebida, em virtude de uma interpretação ori­
ginal que rompe com a abordagem puramente epistemológica

29 E u tive a oportunidade, graças a J. Krois, que edita os escritos póstum os de


Cassirer, de percorrer o m anuscrito desse curso, destinado a debutantes, e que não
apresenta m aior interesse.
30 “Die Philosophie der G riechen von den Anfängen bis P laton". O capítulo consa­
grado à história da filosofia antiga de Aristóteles até o fim da Antiguidade é redigido
por Ernst H offm ann ("D ie antike Philosophie von Aristóteles bis zum Ausgang des
A ltertum s"). Independentem ente do fato de que ele não tenha sido até a presente data
traduzido em francês, o texto de Cassirer é sem dúvida m enos lido que outros, em
razão de seu caráter escolar.
31 B u m et, 1914.
32 Sobre essa popularidade, ver M ost, 1995.
33 Ver su pra, p. 51, n. 31.
dos neokantianos para a integrar na história dos antecedentes
da filosofia das formas simbólicas (cuja elaboração é contem ­
porânea da redação do capítulo), com o aquela do “cosmos das
coisas no espaço ou acontecimentos temporais no cosmos das
significações”.34
O conjunto da história é posto sob o signo de um desen­
volvimento (Entwicklung) caracterizado com o a "história da
autodescoberta do logos” (Geschichte des sich selbstfinden des Logos)
- uma descoberta que compreende três etapas, conhecimento
da natureza, conhecimento moral, conhecimento do conheci­
m ento .35 O esquema lembra muito o princípio da construção da
história da filosofia de Hegel para que possamos evitar nos inter­
rogarmos sobre a relação entre Hegel e Cassirer.
No seio da "filosofia pré-ática”, a única que nos interessa
aqui, Cassirer distingue quatro etapas sistematicamente enca­
deadas, que correspondem de fato a três grandes momentos (as
duas primeiras etapas não representam senão os dois aspectos
complementares de uma mesma posição):
1) A filosofia jônia (= Anaximandro e Anaximenes), que
responde à questão “de onde?” (woher?), e considera as
coisas em seu com eço (Anfang), fala ainda a linguagem mí­
tica da origem (Ursprung); mas em verdade ela descobre,
por meio da própria forma de seu questionamento, senão
de maneira conceitualmente articulada, a identidade da
physis, e, logo, virtualmente a categoria da substância ou
ousia.36 Existe, entretanto, uma "tensão dialética” entre
as duas exigências contraditórias da universalidade (que
Anaximandro está encarregado de representar) e da ima-
nência (é o papel de Anaximenes).37 Para pensar, contra

34 Cassirer, 1925, p. 85. Sobre a ligação que se tece assim entre Platão e um a filo­
sofia das form as sim bólicas, cf. p. 89s. Sobre o Platão de Cassirer, ver Rudolph, 2003.
55 Cassirer, 1925, ρ. 11. As três etapas correspondem à física (representada p o r seu
term o, D em ócrito), à ética (Sócrates) e à lógica (a dialética platônica).
34 Cassirer, 1925, p. 37.
37 Cassirer, 1925, p. 18s.
o mito, a universalidade do princípio, Anaximandro teve,
com efeito, de pagar o preço de sua transcendência: seu
princípio, o ilimitado (apeíron), situa-se além de todas as
determinações internas do mundo. Ele conserva, assim,
paradoxalmente, a m arca do mito que ele contribui para
superar. Inversamente, Anaximenes, restituindo o princí­
pio à imanênda (é o que significa a escolha do ar, após o
ilimitado de Anaximandro), sacrifica também a universa­
lidade que garantiría a abstração do princípio anaximan-
driano. A tarefa comum de H erádito e de Pitágoras será,
desde então, de pensar conjuntamente a universalidade
do princípio e de sua imanênda.
2) Eis a função atribuída à primeira tematização do logos,
sob a forma da medida (em Pitágoras) e da harmonia (em
H erádito). A desgenetização é também uma dessubs-
tancialização (a passagem da substânda à função se ini-
da, logo, desde as origens). A noção diretora não é mais
aquela de "proveniência” (Entstehung), mas de "estado”
(Bestand); a atenção não se volta mais para a matéria
(Stoff), mas para a estrutura (determinada no caso de
H erádito com o "tensão entre os contrários”, Spannung
der Gegensätzen),38 a regra do processo e a forma (Cassirer
fala, ela própria, a propósito do logos de "conceito relacio­
nai”, Verhältnisbegriff9). A dualidade Heráclito-Pitágoras
dá lugar a uma dialética análoga, em outro nível, àquela
do par Anaxim andro/Anaximenes. H erádito pensa bem
a forma, mas de maneira geral, intuitiva, imaginada; o
número pitagórico é específico, dentífico, abstrato. Ele
abre a possibilidade de um conhecimento experimental
que H erádito, a despeito da imposição da forma, não au­
toriza. Pitágoras, o homem da dênda, é o homem da teo­

3* Cassirer, 1925, p. 12.


” Cassirer, 1925, p. 23, com a oposição entre "as cristas e vales da onda”
(W ellenberge/-id ler) e a “form a da onda” (d ie Form e der W elle).
ria, conformemente à tradição antiga.40 É com ele que se
situa a emergência da categoria da "verdade", mesmo se
isso não acontece senão a título de "conceito intermediá­
rio entre o ser das coisas e o número".41 A ancoragem da
verdade no logos, e por via de consequência a descoberta j
do logos propriamente dito, é reservada ao eleatismo. j
3) O eleatismo (Xenófanes e Parmênides). Xenófanes cons-
titui algo com o uma transição entre o conjunto dos pen- !
sadores precedentes e Parmênides, uma vez que sua pro­
blemática, que “não concerne diretamente à natureza",
mas ao ser, diz respeito, entretanto, não ao ser em geral,
mas ao ser do divino.42 Ele não conduz menos ao "panlo- j

gismo” de Parmênides. Este procede, com efeito, na pri- i


meira parte de seu poema, à destruição das categorias que
servem de base mais ou menos clara para a física, com a
afirmação do princípio de identidade do ser a si mesmo, .
que constitui a data de nascimento da lógica da identidade I
(A = A). A segunda parte do poema não pretende mais j
que a primeira desenvolver uma “física”. Ela não se vol- ]
ta para o objeto, mesmo se este é nesse caso “natural”, I
mas para as condições de possibilidade do erro que esta
física mesma constitui, em perfeito acordo com os prin­
cípios desenvolvidos na primeira parte: não se deve ver aí
“uma doutrina da pkysis, mas uma doutrina da física”.43
Se o conceito diretor permanece aquele da verdade, essa
não é objeto de uma resposta quantitativa e objetiva (mes­
mo se puramente formal), com o em Pitágoras: a questão
não é de saber “quanto”, mas “se (é o caso)”.44 O proble­
ma é aquele da possibilidade da pesquisa, e da via (hodos)

* Cassirer, 1925, p. 26. Cf. su pra, p. 26s.


41 Cassirer, 1925, p. 28.
42 Cassirer, 1925, p. 37.
43 Cassirer, 1925, p. 45. T al é a solução proposta para o que Cassirer ju lg a ser “um a
das questões mais difíceis de toda a história da filosofia".
44 “N icht wieviel, sondern ob ”, Cassirer, 1925, p. 39.
que ela deve seguir. Parmênides é assim definido como
o primeiro dos “metodologistas” (der erste M ethodiker). A
recusa da física em proveito de uma ontologia que é pri­
meiramente lógica tem uma primeira contrapartida posi­
tiva, reivindicada com o tal por Parmênides. É a correlação
entre o pensamento e o ser, sob a insígnia da qual Cassirer
põe não somente o próprio Parmênides, mas toda a fase
inicial da filosofia grega: é, com efeito, uma característica
geral da filosofia pré-ática (isto é, pré-semântica) o fato de
descobrir simultaneamente, e de um mesmo movimento,
o mundo e o pensamento que o apreende.45 É esse m o­
mento de correspondência, implícita na démarche de seus
predecessores com o de seus sucessores, que Parmênides
enuncia explicitamente afirmando a solidariedade essen­
cial (senão a identidade) entre o pensamento e o ser.4* Esse
acordo profundo, se bem que à primeira vista paradoxal,
entre os físicos pré- e pós-parmenidianos e sua crítica mais
radical, se manifesta ainda mais claramente porque é le­
gítimo descrever com o uma “astúcia da razão" histórica.
Destruindo a antiga física, Parmênides prepara com efei­
to objetivamente o terreno da nova filosofia natural - a
terceira depois dos “substandalistas” (Jônios) e dos “es-
truturalistas” (H erádito/Pitágoras ):47 será a renovação
da filosofia da natureza nos pós-parmenidianos (die Jün­
gere Naturphüosophie), que é também a primeira filosofia
da natureza propriamente dita a m erecer esse nome na
perspectiva de Cassirer, porque ela repousa na categoria
de “fundamento” (Grund) ou principio de razão.

450 tem a é com u m a Cassirer e a Gadamer, exceto pelo fato de que um distingue
e articula, onde o ou tro assimila.
44 B 3.
47 'Ά m ais im portante realização do pensam ento eleata, o único que é propria­
m ente decisivo, é, portanto, não som ente de aniquilar os co nceitos fundam entais da
ciência, m as, por m eio m esm o dessa aniquilação, de criar a condição prévia de um a
nova d eterm inação lógica desses co n ceitos..." (Cassirer, 1925, p. 50).
4) A última etapa da autodescoberta do logos, em sua fase
pré-ática, consiste na tematização do “fundamento” sob a
forma do princípio de razão, entendido com o reconcilia­
ção entre as duas primeiras fases (objetivas e centradas na
realidade), e a terceira (lógica e centrada na verdade), que
precederam (razão pela qual a quadripartição recobre de
fato uma tripartição). Trata-se, após a destruição parme-
nidiana da física, de reencontrar uma “fisiologia", enten­
dida, em sentido estrito, com o “o pensamento de uma
harmonia entre logos e physis”.48 Essa construção repousa
sobre uma extensão a Anaxágoras e a Empédocles da in­
terpretação que Aristóteles oferece de Leucipo com o ten­
do procurado reconciliar a ontologia parmenidiana com
a realidade sensível.49 Em todo caso, trata-se da “salvação
do mundo das aparências”.50 Cassirer situa primeiramen­
te a análise no nível epistemológico: nos três pensadores,
existe colaboração entre a razão e os sentidos.51 Essa pers­
pectiva se explica certam ente, em parte, pela preocupa­
ção de conferir a Anaxágoras e a Empédocles um nível de
reflexão igual àquele de Parmênides.52 É possível também
ver nisso, mais profundamente, uma consequência da vi­
rada semântica dada à interpretação de Platão, a filosofia

44 Trata-se de saber se é possível qualificar, co m o o faz Cassirer, essa fisiologia


co m o "tradicional” - a ideia de um a harm onia entre o logos e a physis, sendo ela pró­
pria o resultado da situação criada por Parmênides. É a questão da distância entre o
explícito e o implícito.
49 G eração t corru pção, 324 b 35.
” Cassirer, 1925, p. 59.
n Cassirer, 1925, p. 56.
” A com paração co m H egel é aqui instrutiva. Para esse últim o, Anaxágoras re­
presenta, co m efeito, n o seio da filosofia grega, um avanço efetivo, p o r m ais fraco que
ele seja, porque " o en tendim ento é reconhecido co m o prindpio” (H egel, 1971-1975
(1883), t. 1, p. 197). Em pédocles é, ao invés, considerado co m o desinteressante ("não
há grande coisa a retirar de sua filosofia”, Hegel, 1971-1975 (1833), 1. 1, p. 178). A tra­
dição fenom enológica será herdeira dessa depreciação de Em pédocles. Ela não tem
tam pouco m uito a dizer de Anaxágoras.
pré-ática tomando já assim como tarefa a reconciliação
entre verdade e lógica que os neokantianos tinham con­
siderado com o a ambição distintiva do pensamento pla­
tônico.

Cassirer distingue três subetapas na articulação da categoria


de fundamento, representadas, nessa ordem, pelos três nomes
de Empédocles, de Anaxágoras e de Leucipo. Ao term o desse
movimento, a lógica analítica dos Eleatas, que não conhece se­
não a unidade do idêntico, vê-se substituída pela “aitiologia” dos
atomistas, lógica sintética que postula a unidade do diferente. A
separação entre o fundamento e o fundado (Grund/Gegründete)
é cunhada, contra Parmênides, por meio de uma série de inova­
ções que vão todas no sentido de uma teoria do conhecimento
superior: um novo conceito de fenômeno (Erscheinung) permite
pôr fim à oscilação ‘‘jônia’’ entre suas interpretações do princípio
(como fundamento, Grund, e com o início, Anfang), a distinção
entre dois níveis da reflexão oferece uma resposta à questão da
imanência ou da não-imanênda do prindpio, a substituição, pela
"intuição da natureza" (Anschauung der Natur), da exigênda da
análise (Forderung der Analyse) desemboca na redução aos ele­
mentos, que tomam em Leudpo a forma clássica dos elementos
atômicos (stoicheia), em Anaxágoras aquela das “sementes" (sper-
m ata), e em Empédodes aquela das “raízes" (rhizôm ata).
A utilização do princípio de razão se apresenta, em cada um
dos três casos, sob formas particulares, que se trate da natureza
dos elementos ou da relação que deve existir entre eles. De Em ­
pédodes a Leudpo, a adequação cresce entre a determinação es­
pecífica do que é o elemento e a função que é a sua, na perspec­
tiva do prindpio de razão. Os elementos de Empédodes não são
senão uma simples hipóstase dos dados sensíveis. A doutrina de
Anaxágoras marca um progresso com relação a isso, se é verdade
que nele o que ocupa o lugar de elemento representa um grau de
abstração mais devado que em Empédodes: o que Anaxágoras
hipostasia são qualidades sensíveis (Qualität) mais que um simples
material (Stoffe), com o acontece em Empedocles. Leucipo re­
presenta então, muito naturalmente, o terceiro m om ento dessa
fundonalização do elemento que equivale a um aumento em
term os de abstração,53 uma vez que o átom o se caracteriza preci­
samente pela ausência de qualidade. O elemento se “tom ou igual”
ao princípio (Grund),54tendo com o consequência epistemológica
a distinção entre dois modos de conhecimento, racional (que De-
m ócrito denominará “autêntico”) e sensível (“bastardo”).55
A Exposição de Cassirer é marcada por um recurso frequen­
te a fórmulas teleológicas, no mais das vezes inscritas no jogo
dos "não ainda” (noch nicht), dos “já” (schon) e dos "somente”
(nur), mas, também, por vezes, explicitamente reivindicadas,
com o por exemplo a propósito da contribuição dos Jônios para a
emergência do conceito de substância: “Não se deve negligenciar
o fato de que a categoria da substância não se encontra ainda aqui
estabelecida com a determinação conceituai e a fixação termi­
nológica que ela recebe em Aristóteles, mas que ela é somente
procurada - que ela não constitui tanto o ponto de partida da
filosofia da natureza jônica quanto seu objetivo”.56 O esquema,
antes de ser hegeliano, é nitidamente aristotélico, o telos do pen­
samento iniciado pelos primeiros filósofos sendo nesse caso não
a teoria das quatro causas, mas as categorias constitutivas do
princípio de razão, tendo, por horizonte, a física moderna tal que
ela se encontra encarnada pelos nomes de Kepler, Gassendi ou
Helmholtz.57 Compreende-se nessa perspectiva que as viradas
decisivas que estruturam o relato cassireriano sejam Pitágoras,
os Atomistas e Platão (os grandes filósofos antigos do conheci­
mento científico), e que Cassirer tenha de imediato insistido no
fato de que os métodos do conhecimento empírico e a ciência

53 Cassirer, 1925, p. 63.


SiIbid.
55 D em ócrito, B 11.
36 Cassirer, 1925, p. 17.
57 Cassirer, 1925, p. 8-10.
experimental aparecem ao mesmo tempo que a tematização dos
conceitos diretores do conhecimento .58
Uma segunda característica do relato de Cassirer é o uso que
ele faz de um “esquema reflexivo”, que associa o encadeamento
das posições filosóficas a uma mudança de ponto de vista, em
virtude do qual se passa do implícito ao explícito ou da imagem
ao conceito. É a essa mudança de nível que rem ete a distinção
recorrente entre "respostas” e “forma das questões” ou, ainda,
entre "conteúdo da doutrina” (Inhalt der Lehre) e “forma funda­
mental da abordagem” (Grundform der Betrachtung).” Ela permi­
te, para cada posição considerada, localizar um desequilíbrio que
demanda reparação, e constitui uma espécie de m otor da história.
A combinação das duas determinações - a dedução históri­
ca das categorias do pensamento científico e o esquema reflexi­
vo - aproxima indubitavelmente o relato de Cassirer daquele de
Hegel. Isso tem algo de paradoxal. Certam ente, Cassirer sempre
defendeu o projeto historiográfico de Hegel das críticas dos his­
toriadores positivistas, e, em particular, em se tratando de filo­
sofia antiga, de seu discípulo E. Zeller. Assim, na Introdução ao
Problema do conhecimento (e isso desde 1906), Cassirer sublinha
que a história aos moldes de Hegel deve ser creditada, para além
de todos os "desvarios metafísicos” aos quais ela dá lugar em seu
pensamento, de um profundo "motivo idealista” (sublinhado por
Cassirer) que permanece mais que nunca pertinente.60 O histo­
riador não pode se referir aos fatos, com o Zeller o desejava, mas
a uma hipótese de conhecimento .61 Mas, predsamente por isso,

s* Cassirer, 1925, p. 8. Ver sobre esse ponto Cassirer, 1932. A convicção segundo a
qual a história da filosofia é inseparável da história das ciências faz parte de sua herança
kantiana.
” Cassirer, 1925, p. 16, 20 e 10, respectivamente.
“ Cassirer, 1906, p. 18. A crítica retorna em 1925, p. 12, em que, contra Zeller e
Joel, Cassirer defende a ideia de um a história filosófica da filosofia, que põe sistem ati­
cam ente entre parênteses os dados biográficos e contexm ais, quaisquer que sejam o
encanto e o interesse que se possa reconh ecer neles.
61 Cassirer, 1906, p. 19.
Hegel não se expõe menos à censura de ter se "perdido" no idea­
lismo que Zeller, por ter cedido aos demônios do historicismo.
O ponto decisivo é que Hegel pôs, com o fundamento e como
term o da história, um sujeito absoluto, o espírito. A despeito do
fato de que Cassirer substitui a ideia de uma autodescoberta do
espírito por aquela da autodescoberta do logos, a crítica diz me­
nos respeito à referência ao espírito, que Cassirer poderia bem
tom ar por sua conta, que à ideia do caráter absoluto de algo.
Aquilo pelo que se pode criticar Hegel não é por ter postulado
um “sujeito” com o fundamento de seu relato, pois "toda série
em um desenvolvimento histórico necessita de um sujeito":42
isso faz parte neste caso da hipótese de conhecimento. Todavia,
este sujeito não é um sujeito absoluto. A autodescoberta do logos
não é nada mais que a subtração do pensamento das determina­
ções que lhe são exteriores, a história de uma liberação, que teria
seu lugar no seio de uma filosofia das formas simbólicas, e mais
geralmente da cultura, na medida em que a cultura é concebida
com o "o processo da autoliberação progressiva do homem”, que
não é guiado por outra coisa senão por ele próprio e por suas
capacidades para a idealização.43
Desse ponto de vista, o momento do nascimento da filo­
sofia é privilegiado. Mais que em épocas posteriores, em que a
reflexão filosófica, já constituída, acolhe problemas que lhes são
impostos a partir do exterior, o pensamento antigo cria, com
efeito, seus próprios conteúdos, em razão mesma da indistinção
primitiva entre uma "natura” objetiva e um mundo do espírito
ou metafísico. É o momento da autodeterminação da filosofia
(Selbstbestimmung der Philosophie),*64 que encarna a correlação en­
tre o pensamento e o ser (D enken/Sein) em Parmênides, tradu­
zindo a imbricação da descoberta do mundo e da descoberta do

a Cassirer, 1906, p. 18.


a Cassirer, 1944, p. 228.
64 Cassirer, 1925, p. 38.
pensamento (Cassirer fala de Doppelverhältnis).65*O caráter con­
creto dos primeiros filósofos se explica assim.“
Cassirer é assim tão distinto de Hegel quanto ele o sugere?67
Depois de tudo, o que ele quer é m ostrar com o o aparelho con­
ceituai do conhecimento científico emergiu ao longo de um de­
senvolvimento intelectual marcado por progressos, a ordem de
aparição dos sistemas correspondendo pelo menos tendencial-
mente à sucessão das determinações intelectuais. O desenrolar
da história coincide com a gênese das categorias. Existe, pois,
em Cassirer não menos que em Hegel, um isomorfismo entre
a história e a lógica. Não é porque a natureza e a sucessão das
determinações intelectuais são diferentes daquelas propostas por
Hegel que Cassirer escapa ao hegelianismo. Pois, com o ele pró­
prio nos ensinou, é preciso, em história da filosofia com o em
filosofia de modo geral, distinguir a forma das questões das res­
postas dadas, e mais geralmente a forma dos conteúdos.
Subsiste o fato que a distinção entre forma e conteúdo, e o
esquema reflexivo que a ele se encontra ligado, é da maior uti­
lidade para compreender a natureza das filosofias pié-socráticas
e a dinâmica de sua sucessão. Dizer que o logos se descobre ele
próprio é admitir que ele já esteja aí. Mas ele não se encontra
aí enquanto tal, sob forma separada. O que o distingue é, ao
contrário, certa imanência, que faz ao mesmo tempo sua for­
ça e seu encanto. Reconstruindo, em seu artigo de 1941 "Logos,
Dikê, Kosmos’’, a “unidade sistemática insolúvel" que os antigos
Gregos criaram entre os três conceitos de Razão, de Justiça e de
Universo, Cassirer notava “o fascínio particular, sempre renova­
do" que representa para o historiador da filosofia a exploração
de seus inícios, quando lhe é necessário, na ausência “do concei­
to de filosofia, bem com o de suas determinações mais precisas
(...) penetrar seu devir interior", ou ainda, “capturá-los in statu

a Cassirer, 1925, p. 40.


“ Cassirer, 1925, p. 8s.
67 Sobre o problem a da relação entre Cassirer e Hegel, ver Ferrari, 1 9 9 0 ,168s.
nascendi".68 O capítulo de 1925 precisava o estatuto desta gesta­
ção mobilizando, justam ente, a distinção entre forma e conteú­
do: "O valor indestrutível e o fascínio incomparável da filosofia
grega está fundado em grande parte no fato que aqui, a form a
do pensamento capta o conteúdo não com o lhe sendo somente
exterior, mas que, o formando, ela o descobre também por meio
desta própria formação ”.69 Que se trate aqui da filosofia grega
em geral, e não especificamente de seios inícios, sugere somente
que existe, no seio de uma história globalmente marcada pela
inerênda da forma ao conteúdo, das diferenças de grau. Desse
ponto de vista, a história dos inídos é a mais interessante, porque
a indiferença entre a forma e o conteúdo, destinada a se tom ar
relativa, aí se encontra em seu máximo. “Os primeiros séculos da
filosofia grega, escreve Cassirer desde o inído de sua exposição,
se deixam em certa medida caracterizar com o a primeira mani­
festação do próprio ato de pensar: com o um pensamento que,
no seio mesmo de seu puro movimento, oferece a si mesmo seu
conteúdo e sua configuração firme.”70
De maneira geral, os grandes relatos históricos cassiretia-
nos (sem falar daquele que desenvolve, em um nível superior, a
teoria das formas simbólicas, com a tríade ordenada do mito, da
linguagem e do conhecimento) repousam em um desequilíbrio
primeiro entre dois momentos, aquele da imagem e aquele do
conceito, que não chegam nunca a coinddir, embora eles ten­
dam sempre a se encontrar71. Habermas ofereceu desse desequi­

68 Cassirer, 1941, p. 4.
69 Cassirer, 1925, p. 7.
70 Cassirer, 1925, p. 8. “P u ro " não significa que o m ovim ento n ão seja histórico; mas
que se considera as d eterm inações de pensam ento em si m esm as, independentem ente,
71 É possível encontrar um a bela ilustração desta dialética entre im agem e concei­
to, e m se tratando de um a sequência m oderna, na análise da relação Kepler/Leibniz
em F reiheit und Form (Cassirer, 1917), cuja am bição é de m ostrar em que a história
da filosofia europeia, e m ais espedalm ente a alemã, tem valor universal, na medida
m esm a em que ela dá testem unho, através de suas sucessivas form as, do progresso
da liberdade. Recki, 1997, p. 62, insiste na dim ensão política desse livro, escrito no
coração da Prim eira G uerra Mundial: Cassirer nele se opõe à "polarização ideológi-
líbrio uma interpretação estática, falando da “tensão” existente,
em Cassirer, entre a tese da "paridade de mundos simbólicos
igualmente originários” e o delineamento de “uma tendência
à liberação inscrita no desenvolvimento da cultura”, ou ainda,
mais abstratamente, entre "expressão” (Ausdruck) e "significa­
ção” (Bedeutung).72 Uma tensão, enquanto tal, demanda uma re­
solução, ou uma superação, da qual Habermas vê a condição em
uma relocalização sistemática da função linguística: em lugar de
lhe atribuir, com Cassirer, uma função subordinada (entre mito e
conhecimento), teria sido necessário lhe reconhecer a posição di­
retora que lhe cabe de fato, e para com eçar no próprio Cassirer.
No entanto o desequilíbrio é frutífero na perspectiva de uma his­
toriografia filosófica, e mais predsamente dos inídos da filosofia.
O ponto fundamental é que a dinâmica proveniente de uma aná­
lise que, rejeitando a separação do conceito e da imagem, une
dialeticamente seu destino, é em prindpio não linear, se progres­
so existe, não é nunca somente por puro conceito, não somente
porque o momento da imagem, do qual o conceito saiu e ao
qual ele retorna, é inevitável, e com ele o momento da interpre­
tação, mas também porque o próprio conceito, na exaustividade
virtual de suas determinações, não é, uma vez mais, senão uma
nova imagem, ela própria convocada a ser superada: dois níveis
os quais me parece que circunscrevem o domínio de uma herme­
nêutica dos textos propriamente filosóficos, e que, em conjunção
com uma consideração das "idéias” e “imagens do mundo” we-
berianas, podem desembocar em uma história dos inícios da filo­
sofia grega mais ampla que aquela que propõe Cassirer, mesmo
se apoiando em sua demarche. Mas essa é outra história.

ca entre a profundidade da cu ltura alem ã e a superficialidade da civilização europeia


[...] colocando em evidência a continuidade do pensam ento alem ão, italiano e francês
desde a Renascença”.
72 H aberm as, 1997, p. 94s.
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I
y

λ
Aristófanes Meteorológicas
Nuvens 339 b 27-30 (p. 83)
180-195 (p. 23) 355 b 33 - 356 a 33 (p. 32)
225-236 (p. 23) Parte dos animais
Pássaros 642 a 17 (p. 34)
992-1020 (p. 67) 642 a 24-31 (p. 34)
Física
Aristóteles
184 b 2 (p. 27)
Céu Política
270 b 14-20 (p. 83) 1329 b 25-29 (p. 83)
Geração e corrupção Refutações sofisticas
324 b 35 (p. 132)
183 b 25 es. (p. 115)
História dos animais
Sobre a filosofia
511 b 31 - 513 b 11 (p. 77)
fr. 6 e 8 Ross (p. 83)
Metafísica
982 b 11 (p. 33) Cícero
983 b 6 e s. (p. 33)
Tusculanas
983 b 8-10 (p. 28)
983 í» 14 (p. 80) V, 3 (p. 26)
983 b 11 e 12-16 (p. 34) V, 5 e 5, 6 (p. 26)
983 b 20 (p. 33) Corpus hipocrático
984 a 30-32 (p. 28)
987 a 29 (p. 33) Medicina Antiga
987 b 1 (p. 34) 1,1-3; XIII; XV-XVI (p. 73)
987 b 2-4 (p. 34) XX 7 e s. (p. 73)
1073 b 14-17 (p. 77) Das carnes
1074 b 1-14 (p. 83) I, 2 (p. 21)
1078 b 17-31 (p. 34)
Demócrito (68 Diels-Kranz)
1091 α 33 —b 7 (p. 106)
1091 b 8-10 (p. 106) B 11 (p. 13)
Diogenes de Apolônia (64 Diels- Herádito (22 Diels-Kranz)
-Kranz) B 35 (p. 70-71)
A 24 (= T 15 Laks) (p. 79) B 40 (p. 71)
A 29 (= T 41 Laks) (p. 79) B 129 (p. 72)
fr. 3 Laks (p. 75)
Heródoto
Diogenes Laércio
I, 30 (p. 71)
I, 6 (p. 83)
I, 12 (p. 26) Hesíodo
I, 13-15 (p. 35)
Teogonia
I, 14 (p. 36)
454-500 (p. 106)
I, 18 (p. 34, 36)
II, 16 (p. 25, 36) Trabalhos e dias
II, 20-21 (p. 24) 25 (p. 77)
IX, 57 (p. 23) Hipias de Elis (86 Diels-Kranz)
Dissoi Logoi (90 Diels-Kranz)
B 6 (p. 83)
8,1 (p. 18)
Empédodes (31 Diels-Kranz) Hipocrates ver Corpus hipocrático
B 23 (= 64 Bollack) (p. 64) Isocrates
B 111 (= 12 Bollack) (p. 74) Sobre a troca
Epicuro 268 (p. 27)
Carta a Pitocles
Menandro
104, 115, 116 (p. 65)
fr. 241 Knock (p. 30)
Eudemo
fr. 146 Wehrli (p. 86) Parmênides (28 Diels-Kranz)
Eurípedes B 3 (p. 131)
B 6, 5 e s. (p. 121)
fr. 910 Snell (p. 18)
fr. 913 Snell (p. 22) B 8, 60 (p. 75)

Feréddes (7 Diels-Kranz) Platão


B 1 (p. 106) Apologia
Galeno 18 a-b, I9 a-c(p. 23)
Elementos segundo Hipocrates Epinomis
I, 9 (p. 17) 987 d (p. 83)
Eutidemo
Górgias (82 Diels-Kranz) 305 c (p. 75)
Elogio de Helena Górgias
13 (p. 74) 484 e, 485 e, 489 e (p. 18)
Herádides Pontico Leis
fr. 87 Wehrli (p. 26) 889 d (p. 74)
Lists Sexto Empírico
214 a-b (p. 19) Contra osfísicos
Parmenides II, 46 (p. 29)
126 c (p. 25)
Fédon Simplício
96a 6 es. (p. 16,31) Comentárioda “Física”de Aristóteles
96 b-c (p. 12) 23,29-32 Diels (p. 110)
97 c (p. 31) 24, 15 e s. (p. 106)
98 c (p. 31) 151, 28 es. (p. 56)
98 e (p. 32) 153, 15 e s. (p. 78)
99 c-d (p. 30)
99 d (p. 31) Teofrasto
Filebo Opiniões dos físicos
59 a (p. 19) fr. 1 Díeis (p. 110)
Protagoras fr. 2 (p. 106)
315c5es. (p. 21) Sobre as sensações
Republica 43, 44, 45 (p. 78)
475 d (p. 70) Tucídides
Sofista
II, 40 (p. 70)
241 d (p. 119)
242 C(p. 27, 59, 65) Xenófanes (21 Diels-Kranz)
244 a-b (p. 65) B 18 (p. 115)
Teeteto
179 e(p. 124) Xenofonte
Timeu Memoráveis
46 c-d (p. 31) I, 1, 11 (p. 24)
47 a (p. 19) I, 1, 14-15 (p. 27-28)
ir
ín d ic e d e a u t o r e s ,
ESCOLAS E PERSONAGENS ANTIGOS

Academia platônica, 83. Demócrito, 11, 34, 43-44,49.


Anfionte, 22. Diógenes de Apolonias, 20, 51,
Anaxágoras, 11, 20, 24, 31, 33, 51, 56, 77-78.
53, 56, 132-133. Diógenes Laércio, 35-37, 47, 53,
Anaximandro, 11, 56, 66, 80, 84- 83,107.
85, 93, 105-106, 109, 128-129. Diopeites, 22.
Anaximenes, 43, 56, 105,129.
Antifonte, 57, 67. Eleatas, 28-29,40,45,133.
Afrodite, 73. Empédodes, 11,17,20,33,43-45,
Arquelau, 24, 36,53,114. 47, 49, 56, 60, 72-74, 101, 132-
Aristófanes, 23,25,67. 133.
Aristóteles, 20, 28-36, 39, 44, 52- Enopides de Quios, 66.
56, 65, 74, 76-81, 83, 85, 91, Epicuro, 36,65.
98, 106-107, 110-111,115, 122, Ésquilo, 45,112.
124-125,127,132,134. Estóicos, 57.
Adas, 26. Euctêmon, 66-67.
Atomistas, 133. Eudemo, 85.
Euripides, 112.
Brison, 67.
Feréddes, 35,106,111.
Cebes, 30-31. Filolau, 20, 51.
Cefeu, 26.
Céticos, 57. Galeno, 17.
Cícero, 25-27,36,40,45,70. Góigias, 18, 76.
Clístenes, 90.
Clitômaco, 36. Hecateu de Mileto, 66.
Cresos, 71. Heráclides Pôntico, 26.
Crisipo, 36. Heráclito, 26.
Hesíodo, 33, 60, 70, 77, 81, 94, Platonismo, 32,57.
105-106,111. Políbio, 78.
Hípias, 21, 83. Pródico, 17, 75-76.
Hipócrates, 76, 78. Prometeu, 26.
Hipócrates de Quios, 66. Pitágoras, 26-27, 35, 47, 60, 69,
Homero, 19,63, 68, 70,95. 72, 110, 114, 129-131, 134.
Pitagóricos, 33-34,40,42-43, 51.
Isócrates, 27, 70.
Sexto Empírico, 21.
Leon, 26,69. Simplírio, 56, 77-78,106,110.
Licurgo, 26. Sócrates, 11, 15-16, 18-19, 21-25,
27, 29-36, 39-42, 45-46, 48, 50,
Marduk, 84. 52-53, 55, 58, 72, 76, 111, 114,
Melisso, 17,27,29. 127-128.
Menandro, 30. Socráticos, 36.
Méton, 66. Sólon, 71.
Milésios, 36,105,123. Sofistas, 35,39-42.
Museu, 57,110.
Tales, 20, 33,35, 43-44, 67, 80, 84,
Neo-Pitagóricos, 51. 110-111,113-114,127.
Neoplatonismo, 108-109. Teodora de Cirene, 66.
Nestor, 26. Teodora Pródromo, 56.
Teofrasto, 36, 78-79, 106, 110,
Orfeu e Órficos, 33, 51, 101. 122.
Tucídides, 70, 98.
TPãrmênides, 11, Y f77ß^ 25^ J-29^ Tzetzésjoão, 56.
[ 33, 40, 45, 56, 60, 75, 80, 90, !
( 109, 111, 119-121, 123, 130- ' Ulisses, 26.
' . . I33j_36:_y ......... ......
Péricles, 22-23, 70. Xenofonte, 16, 19, 23-24, 27-28,
Platão, 16, 18-19, 21, 23-25, 27, 29, 72.
31-33, 36, 40, 42, 50, 52-53, 55,
59,64-65,67-68,70,72,74-76,83, Zenão de Eléia, 27, 36.
107, 118-120, 122-128, 133-134. Zoroastro, 107.
ín d ic e d o s a u t o r e s m o d e r n o s

Adorno, 61. Heidegger, 48-49, 53, 76,109-110,


118, 121, 127.
Baer K. von, 44. Helmholtz, 43-44, 49,134.
Boscovich, 43. Hölderlin, 46.
Brucker, 111. Horkheimer, 61.
Burckhardt, 45, 95,100,104.
Burnet, 54, 127. Kant, 15,43-46.
Karsten, 40,42.
Cassirer, 12, 53, 62, 69, 76, 104,
Kepler, 113,134,138.
106, 113-114, 118,125-139.
Kierkegaard, 55,76.
Comte, 89.
Kranz, 12,39,50.
Comford, 88.
Krug, 39,42.
Darwin, 44,49.
Descartes, 80,113. Lange, 43.
Diels, 12,23,39,41-42,50,56,78, Laplace, 43-44.
106,110,119. Leibniz, 80,138.
Lloyd, 66-67, 79,100,114.
Eberhard, 37,41.
Malraux, 87.
Fidno, 83. Marx, 91.
Frege, 76. Meillet, 87.
Freud, 44. Meyerson, 87-88,91.
Mullach, 41.
Gassendi, 134. Musil, 112.
Gernet, 87, 89,90,92.
Nesde, 53,61.
Habermas, 101,138-139.
Hegel, 41, 76, 104, 119, 124, 128, Nietzsche, 39, 42-50, 52-55, 59,
132, 135-137. 61, 118.
Pascal, 80. Schwöb, 87.
Popper, 79, 86. Spencer, 62.

Renan, 86-87,108-109. Vernant, 12, 62, 86-94, 96, 100,


103, 106, 109.
Said E„ 106-107,114. Wagner, 45-46.
Schleiermacher, 40-41,118. Weber, 92, 94, 97-102,139.
Scholem G., 107-108.
Schopenhauer, 43,45-46, 49. Zeller, 41, 50, 53, 122, 135-136.
professor de
A ndré Laks,
Grego e, posteriormente,
de Filosofia na Universidade
Charles de Gaulle-Lille
3 (França), lecionou em
Princeton (EUA), sendo
atualmente membro do
Instituto universitário
da França. Publicou, em
2004, Le Vide et la Haine.
Elements pour une histoire
archa'fque de la négativité
(O vazio e o ódio. Elementos
para uma história arcaica da
negatividade].
s filósofos pré-socráticos não se consideravam
O com o tal. Para eles, Sócrates não figurava com o
uma referência, ou m elhor, um herdeiro, ou m esm o
um co ntem porân eo. E foi apenas tard iam en te, com a
últim a geração deles, que passaram a ser designados
com o "filósofos". Porém , se os filósofos pré-socráticos
só são filósofos e pré-socráticos de um ponto de vista
retroativo, convém interrogar-se sobre o processo pele
qual se torn aram tais, pondo em evidência não só a
construção, mas tam b ém a possível legitim idade desse
títu lo , pois não se trata, ao contrário do que sugere urr
te rm o hoje corrom pido, de uma simples "invenção".
A im portância desse questio nam ento ce rtam en te diz
respeito ao fato de que, ao investigarm os acerca dos
filósofos pré-socráticos, estam os rem ete n d o às origem
da filosofia grega e, por conseguinte, ocidental.

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