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lili Ili 1 1 111 1 1 1 1

ISBN 978-85-205-0521-2

9 788520 505212
Gilles Lipovetsky é um des­
bravador da hipermodernidade.
Jean Serroy sabe tudo de cinema.
Juntaram-se a fome e a vontade
de olhar filmes para explicar
o funcionamento da "!ela glo
bal", que é, ao mesmo tempo, o
título deste livro e um concei­
to para explicar esta época de
tantas telas (computador. te­
levisão, celular, cinema) e de
tantas imagens errantes e efê­ A tela global
meras. Tela global num tempo de
Mídias culturais e cinema
hiperesretiic:ularização do co­
na era hipermoderna
tidiano e de ultrapassagem de
todos os limites da intimidade
num Big Brother sem fronteiras.
A clareza é a marca tundarnen­
tal desta obra escrita d quatro
mãos para ser um guia de in
terpretação de uma teia social
habitada pe I a 111aio r i a e . com
frequência, estranha aos in
tel ectuai s. Ni nguérn escapa ao
poder e ao fascínio das telas.
A tela grande do cinema, ape
sar de todos os prognósticos
pessimistas. continua a atrair
cspcc:tadores com sua I uminosi
cJadl:> rnági ca.
Gilles Lipovetsky e Jean Serroy

Série Imagem-Tempo
CONSELHO EDITORIAL
A tela global
Mídias culturais e cinema
Coordenadora: CRISTIANE FREITAS GuTFREIND - PUCRS
ANDRÉ PARENTE - UFRJ
na era hipermoderna
ARLINDO MACHADO - PUCSP
CARLOS GERBASE - PUCRS
EDGARD DE Assis CARVALHO - PUCSP
ERICK FEUNTO - UERJ
IVANA BENTES - UFRJ Tradução
JUREMIR MACHADO DA SILVA - PUCRS
Lu1s GoMEs - Editora Sulina Paulo Neves
M1cHEL MARIE - Paris Ili Sorbonne Nouvelle
MIRIAM DE SOUZA ROSSINI - UFRGS

Eúilur" Sulina
© Editora Meridional, 2009 Sumário
© Editions du Seuil, 2007
Título original: L 'Écran Global. C11/t11re-111édias et cinema à /'âge
hypermodeme

Tradução: Paulo Neves


.,.
Capa: Le1ícia Lampert
Introdução ...................................................................................... 11
A nova era do cinema ................................................................................................ 11
Projeto gráfico e editoração: Daniel Ferreira da Silva As quatro idades do cinema ...................................................................................... 17
Cinema sem fronteiras .............................................................................................. 23
Revisão: Gabriela Koza Cinema global, abordagem global ............................................................................. 27

Editor: Luis Comes


PRIMEIRA PARTE

Lógicas do hipercinema
DADOS INTIRNACIONAIS IJE CATALOGAÇÃO NA PUlJLICAÇÃO ( c1r)
lilHLJ0TECÁRI,\ Rl'SP0NSÁYEL: O1'.NISE MARI DE ANDRADE SoUL\ CRI) 10/960

L764t Lipovetsky, Gilles CAPÍTULO 1


A tela global: mídias culturais e cinema na era hipennoderna / Rumo a um hipercinema ................................................................. 33
Gilles Lipovetsky e Jean Serroy; tradução de Paulo Neves. - Porto
Alegre: Sulina, 2 009. Uma arte ontologicamente moderna ........................................................................ 33
326 p. (Imagem-Tempo) Uma arte de consumo de massa ............................................................................... 36
A grande ilusão? ....................................................................................................... 44
Titulo original: L'Écran global. Culture-médias ct cinema à l'âgc Uma nova modernidade: o híper ............................................................................... 48
hypermoderne
Híper high-tech ......................................................................................................... 50
ISBN: 978-85-205-0521-2
O cinema por vir ....................................................................................................... 53
1. Cinema - História. 2. Mídia. 3. Sociologia. 4. Cultura. 1. Título. Espiral dos custos e triunfo do marketing .................................................................. 56
11. Serroy, Jean. O hiperconsumidor de cinema .................................................................................. 62
Uma arte hiperlativamente moderna ........................................................................ 66
CDU:316
791.43
CDD:791.43 CAPÍTULO li
A imagem-excesso .......................................................................... 71
Cinessensações ......................................................................................................... 72
Todos os direitos desta edição reservados à A imagem-velocidade ................................................................................................ 75
EDITORA MERIDIONAL L·, IJA. A imagem-profusão .................................................................................................. 78
Os novos monstros ................................................................................................... 81
Av. Osvaldo Aranha, 440 cj. 10 1 A ultraviolência ......................................................................................................... 84
Cep: 90035- 190 Porto Alegrc-RS X, como sexo ............................................................................................................. 87
Tel: (051) 331 1-4082
Fax: (05 1) 3264-4 194 CAPÍTULO Ili
www.editorasulina.corn.br
e-mail: sulina@editorasulina.corn.br
A imagem-multiplex ........................................................................ 91
Simplex .............................................................................................., ...................... 91
A hibridação globalizada ........................................................................................... 93
{Março/2009) A narrativa multiplex ................................................................................................ 97
Multiplicação das idades da vida ............................................................................. 104
Um homem, uma mulher ........................................................................................ 113
Minorias multisex .................................................................................................... 118

IMPRESSO NO BRASIL/PRINTED IN BRAZIL


CAPÍTULO IV TERCEIRA PARTE
A imagem-distância ....................................................................... 121 Todas as telas do mundo
O cinema do cinema ............................................................................................... 121
O cinema dentro do cinema .................................................................................... 126 VIII
CAPÍTULO
O segundo grau em primeiro plano ......................................................................... 131
Da telona à telinha ......................................................................... 209
O fabuloso destino da telinha .................................................................................. 209
SEGUNDA PARTE Gerações TV ............................................................................................................ 212
Neomitologias A série contra-ataca ................................................................................................ 217
Espírito cinema e reality show ................................................................................. 219
O tele-show esportivo ............................................................................................. 225
V
CAPÍTULO
O documentário ou a revanche dos Lumiere .................................. 139 CAPÍTULO IX

Uma marcha imperial .............................................................................................. 139


A tela publicidade .......................................................................... 228
Seguro total ............................................................................................................ 142 Cinema e império da logomarca .............................................................................. 232
Um bônus de satisfação reflexiva ............................................................................ 14S Publifilia .................................................................................................................. 236
O banal e o íntimo ................................................................................................... 147 Hiperpublicidade ..................................................................................................... 241
Os homens com a câmera ....................................................................................... 149 O excesso tranquilo ................................................................................................. 242
A (re)construção do real .......................................................................................... 150 Uma raspa de multiplexidade .................................................................................. 246
Olhar militante / olhar íntimo ................................................................................. 152 A distância, apaixonadamente ................................................................................. 250
Verdadeiro / falso ................................................................................................... 155
CAPÍTULO X
VI
CAPÍTULO
ln memoriam A tela-mundo ................................................................................. 255
Do filme histórico ao filme memorial ............................................. 158 Uma constelação chamada Tela ............................................................................... 255
A tela informacional ................................................................................................ 258
O filme histórico original: um passado passado ....................................................... 159 O estado de videovigilância ..................................................................................... 265
O filme memorial: um passado para o presente ...................................................... 165 A tela lúdica ............................................................................................................ 270
A identidade francesa em questão .......................................................................... 167 Videogomes e febre da Second Li/e ......................................................................... 270
Contra as mentiras do Estado: honrar as memórias perdidas ................................... 170 Videoclipes, ou o êxtase do /ook musical ................................................................. 275
Do sentido da história ao sentido da memória ........................................................ 173 A tela gigante .......................................................................................................... 279
Telas de ambiente: criar uma atmosfera .................................................................. 281
A tela expressiva ..................................................................................................... 282
CAPÍTULO Vil
A videoarte: do confidencial à expressão de massa ................................................. 283
Cinépolis ........................................................................................ 177 Arte digital: a tela experimental .............................................................................. 287
Ecologia e ficção científica: os novos territórios do medo ........................................ 178 Cinemania: a cada um, seu filme ............................................................................. 290
O mercado: dura lex, sed lex ................................................................................... 183 Do poder telânico ................................................................................................... 294
Violência das trocas ................................................................................................. 183
Classes não laboriosas, classes perigosas ................................................................. 186 CONCLUSÃO
A questão democrática. A democracia americana do interior .................................. 188 A cinevisão do mundo ................................................................... 299
O imperialismo americano do exterior .................................................................... 192
Direitos do homem e balcanização do mundo ......................................................... 194 Era uma vez a narrativa ........................................................................................... 299
Cine-Eu ................................................................................................................... 197 O mundo como cinevisão ........................................................................................ 304
O império dos sentidos ........................................................................................... 198
Mulheres e homens à beira da crise de si ................................................................ 201 Índice dos filmes citados ................................................................ 311
..

Os filmes são o diálogo do mundo de hoje.


EI ia Kazan, 1986.
Introdução
A nova era do cinema

Arte ou indústria do divertimento, o cinema se construiu desde


o início a partir de wn dispositivo de imagem radicalmente inédito
e moderno: a tela ou o ecrã. Não mais a cena teatral ou a tela do
quadro,mas o ecrã luminoso, a grande tela, a tela onde a vida se dá
a ver em seu movimento. Na tela do cinema brilharam as imagens
superlativas da beleza, as sublimes stars, as ficções que arrebata­
ram, como nenhum outro espetáculo, as multidões maravilhadas
das sociedades modernas. O ecrã foi não apenas wna invenção técni­
ca constitutiva da sétima arte', foi também aquele espaço mágico
onde se projetaram os desejos e os sonhos das massas. Na virada
dos anos 1900, o século que começa encontra ali a arte nova que o
exprime mais de perto e que vai acompanhá-lo passo a passo. Cem
anos mais tarde, em 1995, o balanço do centenário não dá margem
a dúvidas: a arte da grande tela foi a arte do século XX.
No entanto,durante a segunda metade do século,outras técni­
cas de difusão da imagem apareceram,vindo acrescentar outras telas
à tela branca das salas escuras. Em primeiro lugar,a televisão que,já
nos anos 1950, começa a penetrar nos lares; depois, nas décadas
seguintes, outras telas que se multiplicam de maneira exponencial: a
do computador,que logo se toma portátil e pessoal, a dos consoles de
videogames, a da Internet e da Web, a do telefone celular e outros
aparelhos pessoais, a das máquinas fotográficas digitais e a do GPS
[Sistema de Posicionamento Global]. Em menos de meio século pas­
samos da tela-espetáculo à tela-comunicação, de uma tela ao tudo­
tela. Por muito tempo a tela de cinema foi a única e a incomparável;

1 É a Riccioto Canudo que se deve, desde 191 O, a fórmula "s6tima arte". Crítico
italiano de língua francesa, propagandista entusiasta do cinema em seus começos,
ele é o artífice mais importante, com Louis Dclluc, do reconhecimento do cinema
como arte.

11
agora ela se funde numa galáxia cujas dimensões são infinitas: che­ Permanece o cinema uma referência cultural de primeiro plano
gamos à época da tela global. Tela em todo lugar e a todo momen­ quando os filmes são cada vez mais suplantados, nos índices de
to, nas lojas e nos aeroportos, nos restaurantes e bares, no metrô, audiência, pelos seriados e os telefilmes? Aliás, é ainda justifica­
nos carros e nos aviões; tela de todas as dimensões, tela plana, tela do traçar uma nítida fronteira entre filme de cinema e filme de
cheia e minitela portátil; tela sobre nós, tela que carregamos conos­ televisão quando muitos filmes de cinema são estruturados por
co; tela para ver e fazer tudo. Tela de vídeo, tela em miniatura, tela urna estética televisiva, e quando alguns telefilmes são realizados
gráfica, tela nômade, tela tátil: o século que começa é o da tela por diretores de cinema com atores e às vezes até orçamentos
onipresente e multiforme, planetária e multirnidiática. 2 equivalentes aos do cinema? Isso sem falar na concorrência de
Coloca-se desde então toda uma série de problemas: quais todas as outras imagens, de todas as outras telas: da publicidade,
são os efeitos dessa proliferação de telas em matéria de relação do videogame, do clipe, dos aparelhos digitais, da Web. Por outro
com o mundo e os outros, com o corpo e as sensações? Que lado, ao mesmo tempo que se torna wna tela entre outras, eis que
forma de vida cultural e democrática anuncia o triunfo das ima­ o cinema, numa configuração que pouco tem a ver com o que era
gens digitais? Que destino se abre ao pensamento e à expressão desde a origem, se apresenta agora numa minitela portátil, com a
artística? J\té onde a vida mesma do homem contemporâneo possibilidade de congelar a imagem, voltar atrás, escolher a lín­
está sendo reestruturada por essa pletora de telas? Pois não há gua de dublagem. Eis também que, abandonando a tradicional
como não observar: com a era da tela global, é uma imensa sessão em salas de cinema, passam a ser produzidos filmes espe­
mutação cultural que está cm curso, afetando cada vez mais não cíficos para consurnojàstfood em tela nômade, não ultrapassan­
só aspectos da criação, mas também da própria existência. do três minutos. Mais do que nunca se coloca a questão do gênero
Para desenhar os contornos dessa nova ecranosfera, para cinema, da identidade incerta do cinema.
compreender seu funcionamento e resgatar seu sentido, nada é Donde uma pergunta tão brutal quanto incontornável: es­
mais esclarecedor do que partir da análise das transformações taria a civilização da tela anunciando a morte do cinema, uma
profundas registradas, precisamente, na forma original e proto­ morte programada tal como a predizem os que, entre o crepús­
típica da tela/ecrã: o cinema. Como caracterizar o universo da culo das ideologias e o fim da História, fazem a contagem dos
sétima arte quando esta deixa de ser a tela suprema? O que acon­ desaparecimentos finisseculares? Na efervescência dos anos
tece, num mundo de telas múltiplas, com sua estética, sua re­ 1980, alguns observadores e cineastas pareciam já convencidos
cepção e mesmo sua economia? Que posição é a dela quando de que o cinema não tinha futuro. Com o avanço da televisão e
seu filmes são vistos, na maior parte, fora das salas escuras?3 a chegada do videocassete, viam-se então as salas se esvaziar e
fechar às centenas. Na Grã-Bretanha, na Alemanha, na T tália, a
2 O que os autores do Dicionário mundial das imagens chamam a "era do acúmulo"
produção de longas-metragens despenca. Os estúdio de Hollywood
(Laurent Gervereau [dir.], Diclio1111aire mondia/ eles images, Paris, Éditions du
Nouvcau Monde, 2006).
são comprados por investidores estrangeiros e multinacionai
3 Os franceses passam 1.200 horas por ano diante da tclinha. O tempo que dedicam a cujas principais fontes de lucro são exteriores ao cinema. A época
ver filmes de cinema nos canais de televisão abc11os era, em 2002, de 72 horas cm vê desaparecer as salas de arte, o cinema experimental, e triun­
média, enquanto o do cinema cm salas representava apenas cerca de 6 horas. Em 2006, far a lógica do box-office, dos blockbusters, das fórmulas cali­
a Motion Picture Association calculava que, com o download ilegal de filmes na Internet,
as salas deixavam de ganhar cerca de 2 bilhões de euros. Sobre o conjunto dessas bradas e sem riscos (filmes de ação, continuações, remalces).
questões, ver Laurcnt Creton, L 'Économie du ci11éma, Paris, A1mand Colin, 2005. Coloca-se a questão, aguda: poderá o cinema sobreviver à esca-

12 13
lada das indústrias de programas e das estratégias multimídias? tando-se dos caminhos batidos. A diva e os gângsteres [Jean-Jac­
O que resta da sétima arte quando os imperativos comerciais ques Beineix, 198 1], Bagdá Café [Percy Adlon, 1988], Ou tudo
sufocam as outras considerações? Símbolo de todas essas ame­ ou nada [Peter Cattaneo, 1997], Respiro [Emanuele Crialese,
aças: em 1985, Fellini lança Ginger e Fred, tendo como fundo a 2002], Sideways - Entre umas e outras [Alexander Payne, 2 004]:
televisão triunfante e a morte anunciada do cinema. com histórias simples, o cinema contemporâneo pode obter um
Digamos sem rodeios: é contra essa ideia melancólica de estrondoso sucesso popular demonstrando audácia, inventando
um "depois-do-cinema", ideia que continua a alimentar ampla­ situações atípicas ou novas atmosferas poéticas. Hoje, um gran­
mente o discurso crítico, que este livro é escrito. O "verdadei­ de estúdio como a MGM aposta precisamente nas produtoras
ro" cinema não se acha atrás de nós: ele não cessa de se reinventar. independentes com orçamentos de filmes mais modestos, por­
Mesmo confrontado a novos desafios de produção, de difusão e que "os grandes estúdios não sabem mais produzir". 4 Nos Esta­
de consumo, o cinema continua sendo uma arte de um poderoso dos Unidos, o cinema independente, que em vinte anos conse­
dinamismo, cuja criatividade não está de modo algum em declínio. guiu conquistar um verdadeiro lugar, lança agora filmes de bai­
O tudo-tela não é o túmulo do cinema: mais do que nunca este xo orçamento, às vezes distribuídos por grandes produtoras que
demonstra inventividade, diversidade, vitalidade. assumem riscos, filmes que chegam a representar um terço das
Prova disso, em primeiro lugar, é o número de lançamen­ receitas no box-office. 5
tos. Lembremos apenas que, em 2005, os estúdios hollywoodia­ M esmo as stars, símbolos por excelência do cinema,
nos e franceses produziram respectivamente 699 e 240 longas­ escapam da agonia anunciada. "Crepúsculo das stars", como
metragens, enquanto a Espanha produzia 142, a Inglaterra, 124, a sugeria Edgar Morin? A verdade é que seus cachês atingem
Alemanha, 103 e a Itália, 98. Não é a regressão que nos caracteri­ picos inigualados e a presença de seus nomes nos cartazes con­
za, mas a proliferação das novidades: em 1976, Hollywood reali­ tinua sendo uma das grandes chaves do sucesso de massa. De
zava "somente" 13 8 filmes e, no período 1988- 1999, o número modo nenhum acabamos com as figuras estelares típicas da
anual médio de longas-metragens se elevava a 385. Entre 1 996 e época de ouro do cinema. Com a única diferença de que gran­
2005, na França, o número de filmes distribuídos aumentou 38%, des sucessos mundiais são agora possíveis com filmes sem
o das cópias, 105%. E hoje os estúdios franceses lançam duas estrelas, como é o caso de A bruxa de B!air [D. Myrick e E.
vezes mais filmes que há dez anos. Sanchez, 1999], de Pequena Miss Sunshine, de A vida dos ou­
A explosão quantitativa esconde uma menor diversidade tros [F. Henckel von Donnersmarck, 2006].
filmica? Não é o que acontece: se os filmes de grandes orça­ Vão os filmes desaparecer em benefício de wna espécie
mentos (os famosos blockbusters) fazem estardalhaço, observa­ de telecinema generalizado e formatado? Não se deve descartar
se também um crescimento de filmes personalizados de menor a hipótese, mas ela vai no sentido oposto da forte tendência à
custo que causam entusiasmo. Sexo, mentiras e videotape [Ste­ diferenciação e à individualização dos produtos que caracteriza
ven Soderbergh, 1989], O declínio do império americano [Denys hoj e a economia. O que é verdade no mundo mercantil, por que
Arcand, 1986], Pulp Fiction [Quentin Tarantino, 1993], O fa­ não o seria no universo cinematográfico? A "lei" que nos gover-
buloso destino de Amélie Poulain [Jean-Pierre Jeunet, 200 1],
Pequena Miss Sunshine [J. Dayon e V. Paris, 2006]: é longa a 4
Entrevista com Harry Sloan, P. D.G da MGM, Le Figaro, 14 de outubro de 2006.
lista dos filmes que agora encontram um grande público afas- 5
Françoise Benhamou, L 'Éco11omie du star-system, Paris, Odilc Jacob, 2002, p. 277.

14 15
na conduz menos à uniformização do que à diversificação da realizados por mulheres; o gênero documentário conhece uma
oferta. Além do mais, o cinema não saberia viver e se desenvol­ segunda vida; os desenhos animados não se reduzem mais a seu
ver sem fi lmes inovadores que, alimentando a fome de novida­ público infantil, mas se dirigem aos adultos; alguns filmes des­
de do público, realimentam a oferta e o mercado. As redes de constroem os grandes mitos da nação, dos brancos, dos "peles­
televisão se tornaram as donas do jogo? Em realidade, o que se vermelhas", dos caubóis. O que se anuncia é um cinema global
anuncia, com a proliferação de telas, monitores, redes, celula­ fragmentado, pluri-identitário, multiculturalista. Afirmar que o
res, VoD [Vídeo sob demanda] é mais "o fim da televisão"6 do cinema caiu num conformismo padronizado é enunciar um cli­
que o desaparecimento "televisivo" do cinema. chê em que ele mesmo é conformista. De resto, em todas as
É preciso abandonar a ideia segundo a qual o cinema de épocas de sua história, não faltaram filmes convencionais e de
grande público não poderia gerar outra coisa senão obras indi­ péssima qualidade que sempre constituíram o fundo da produ­
gentes incapazes de tocar a sensibilidade autêntica dos espec­ ção corrente ao lado das autênticas, mas sempre menos nume­
tadores. A despeito das exigências de rentabilidade e da influ­ rosas, obras-primas. Assim, a produção atual de filmes medío­
ência crescente do marketing, o cinema tende a se enriquecer cres, hiperespetaculares, que põem em cena personagens uni­
criando obras cujos gêneros, personagens e roteiros são me­ formes, não é novidade e não deve ocultar o desenvolvimento
nos "011odoxos", mais heterogêneos,mais imprevisíveis. É evi­ de um cinema inovador, personalizado, menos previsível.
dente que os b!ockbusters são construídos a partir de histórias
simples recheadas de efeitos especiais, de ações "eficazes" e As quatro idades do cinema
de suspense. É verdade também que os grandes estúdios utili­
zam os métodos em vigor para atingir outros mercados: pes­ Então não há nada a conservar na ideia de "morte do ci­
quisa sistemática sobre o gosto dos espectadores, publicidade nema"? Embora ilusória, essa ideia revela, no entanto, algo de
intensiva, adaptação às modas e aos gostos dos "públicos-al­ verdadeiro, uma realidade nova, uma mudança inegável: o de­
vos", previews diante de uma amostra representativa de es­ saparecimento do cinema "clássico". O cinema não se tornou
pectadores para testar (e eventualmente modificar) o filme antes "coisa do passado": simplesmente, um outro cinema apareceu.
do lançamento. lsso não impede o surgimento de muitos fil­ De fato, tudo indica que, desde o final dos anos 1970 e sobretu­
mes de qualidade. do 1 980, o planeta-cinema conhece realmente uma ruptura, uma
Sob a pressão de uma sociedade mais fragmentada, o ci­ ruptura de conjunto.
nema leva em conta problemas e temas outrora descartados ou Não é a primeira vez, evidentemente, que o cinema é "re­
tratados segundo estereótipos perfeitamente convencionais. volucionado" em seus princípios. Pode-se mesmo dizer que sua
Agora as crianças, os adolescentes, os velhos, os casais divorcia­ história constantemente se escreveu através de uma érie de trans­
dos, os solteiros, os gays, as lésbicas, os negros, os deficientes, formações e de questionamentos. A invenção do cinema falado,
os desviantes, os estilos de vida mais heterogêneos são tratados a passagem do preto-e-branco para a cor, o advento da tela lar­
por eles mesmos. Ao mesmo tempo, há cada vez mais filmes ga, a ruptura estilística dos anos 1940 ( o neorrealismo) e 1 960
(as nouvelles vagues) redefiniram profundamente e reinventaram
6
Jean-Louis Missika, La Fin de la télévision, Paris, La République des idées/
o cinema. O mesmo acontece hoje. No entanto, mais ainda que
Seuil, 2006. em qualquer outro período de sua história, o cinema conhece

16 17
urna mutação de fundo na medida em que esta atinge todos os A segunda fase, que põe em cena uma modernidade..clássi­
domínios, tanto a produção como a difusão, tanto o consumo ca, estende-se do começo dos anos 1930 até os anos 1950: é a
como a estética dos filmes. As mudanças são tais que autorizam idade de ouro dos estúdios, a época em que o cinema é o principal
a formular a hipótese do advento de um novo regime histórico divertimento dos americanos, em que ele se torna no mundo in­
do cinema, de uma nova galáxia-cinema. Não "fim do cinema", teiro o lazer popular por excelência. Isso se deve, antes de mais
mas emergência de um hipercinema. nada, à revolução técnica do cinema falado que, desbancando ra­
À luz dessa metamorfose radical, é possível propor uma pidamente o cinema mudo, obriga os criadores, de início reticen­
periodização da história do cinema marcada por quatro grandes tes diante do que temem vir a ser um simples teatro filmado, a
momentos. Aqui não é o lugar de descrevê-los em detalhe: assi­ domesticar essa nova linguagem e a inventar para ela uma gra­
nalemos apenas seus traços principais em vista aérea, a fim de mática. As pesquisas técnicas vão enriquecer ainda mais essas
pôr em relevo o que se passa em nossos dias. novas possibilidades, desde a introdução da cor, a partir do final
A primeira fase corresponde à época do cinema mudo. dos anos 1930, até as telas panorâmicas e o Cinemascope, que
Ela traduz uma modernidade primitiva. É o momento em que o aparecem no começo dos anos 1950. Elas favorecem a evasão do
cinema busca para si um estatuto e uma definição artísticos. público graças a um tratamento da realidade que a idealiza: "tele­
Sem modelo, assimilado na origem a um espetáculo de feira, fones brancos" dos filmes mussolinianos, realismo poético do
ele toma inicialmente por referência o teatro para filmar peque­ cinema francês, amores dessexualizados, linguagem literária dos
nas comédias bufas, vaudevilles ligeiros, cenas dramáticas. De­ atores. No mesmo momento, Hollywood se torna a fábrica de
pois, à medida que se afirma, ele passa a ter outras ambições, sonhos que, através dos gêneros canônicos, traz a um público de
complexifica-se, não temendo voltar-se para a literatura roma­ massa sua dose cotidiana de imaginário. A star, invenção dos
nesca. Ele abre seu caminho: jogo fortemente expressionista de estúdios, cristaliza todas as fantasias: divina, intocável, como
atores que compensa, por uma mímica hipertrofiada, a ausência Garbo; viril, indestrutível, como John Wayne. Enquadrado por
de palavras; estilo facilmente melodramático; técnica que, em­ normas genéricas, temáticas, morais, estéticas, esse cinema é o
bora evoluindo, permanece ainda desigual. Através dos cenári­ do roteiro, dos grandes nomes, das produções de estúdios.
os e das maquiagcns exagerados, das imagens saltitantes e ace­ Nesse quadro, os filmes obedecem a um sistema narrati­
kra<las, con titui-se uma arte que, em suas obras-primas, faz vo claro, fluido, contínuo, movido pelo cuidado constante de
aparecer um modo de expressão radicalmente novo, capaz de uma verossimilhança que provoque a participação imediata do
dizer o mundo como nenhuma outra arte o dissera até então. espectador. A história deve parecer contada por si mesma, numa
Pois modernidade primitiva não significa de maneira alguma cronologia linear que liga as diversas ações a uma intriga prin­
modernidade primária. De ln tolerância [ 1 9 1 6] a Vento e areia cipal. O filme se organiza segundo um desenrolar lógico ou pro­
[ 1928], de A morte cansada [Der müde Tod, 1 92 1 ] a A urora gressivo que exclui a ambiguidade em benefício de uma narra­
[ 1927], de Griffith a Sjõstrõm, de Fritz Lang a Murnau e às ção transparente. Nada é mostrado por acaso, nada deve parecer
obras-primas do expressionismo, o cinema, arte moderna, faz supérfluo, incoerente ou confuso, tudo é organizado para con­
sua entrada na modernidade da arte. Nesse caminho, ele dá a duzir a história a seu desfecho final: o cinema clássico guia,
suas imagens o valor de ícones, criando a figura da star - Rodolfo dirige de um ponto de vista único e oniscicnte a compreensão
Valentino, Marlene Dietrich, Greta Garbo. do fi lme. O que ele conta é uma história essencialmente teleoló-

18 19
Essa modernidade liberacionista se desfaz do molde clás­ foram marcadas por inovações importantes mas que afetavam
sico primeiro por um cinema de pesquisa, polêmico, iconoclas­ cada vez apenas territórios delimitados, agora são todas as di­
ta; depois, com o passar dos anos, por um cinema de grande mensões do w,iverso cinematográfico (criação, produção, pro­
público que se apodera aos poucos de suas audácias e de suas moção, difusão, consumo) que se transformam simultaneamen­
novidades. É por aí que a nova geração que toma o poder em te e de cima a baixo. Nunca o cinema conheceu um abalo de tal
Hollywood nos anos 19707 se insere à sua maneira na l inha des­ amplitude. Os ciclos precedentes construíram a modernidade
sa desconstrução, trazendo uma liberdade estilística, narrativa e do cinema; o que agora testemunhamos o faz sair claramente de
temática que modifica o espirita dos estúdios. Com a diferença sua fase moderna. Uma nova era começa: nossa época vê se
de que o cinema dos Coppola, Spielberg, Lucas, De Palma, Frie­ abrirem os primeiros capítulos da história hipermoderna da sé­
dkin põe prioritariamente essa vontade de renovação a serviço tima arte. É quando a revolução não está mais na ordem do dia
do espetacular e do efeito pela solicitação de todas as tecnologi­ que o cinema registra a mutação mais radical da sua história.
as avançadas que ele busca desenvolver. Aqui se inicia verda­
deiramente uma nova fase da história do cinema. Spielberg ex­ Cinema sem fronteiras
prime simbolicamente a dívida da neo-Hollywood para com a
geração europeia que a precedeu, quando, em 1977, convida A mutação hipermodema se caracteriza por envolver, num
Tmffaut, como uma referência, para as filmagens de seus Con­ movimento sincrônico e global, as tecnologias e os meios de co­
tatos imediatos de terceiro grau. Mas o filme mesmo, com sua municação, a economia e a cultura, o consumo e a estética. O cine­
espetacularização exacerbada e sua imersão sensorial, já faz parte ma obedece à mesma dinâmica. É no momento em que se afinnam
de um cinema de outro tipo, no qual é Hollywood que traça o hipercapitalismo, a hipermídia e o hiperconsumo globalizados
basicamente o caminho. que o cinema inicia, precisamente, sua carreira de tela global.
Desde os anos 1980, de fato, quando a dinâmica da indi­ A expressão "tela ou ecrã global" deve ser entendida em
vidualização e da globalização subve1te a ordem do mundo, é vários sentidos, que aliás se sobrepõem em numerosos aspec­
uma quarta idade do cinema que surge e que chamamos aqui de tos. Em sua significação mais ampla, ela remete ao novo poder
hipermoderna, como um eco à nova modernidade que se cons­ planetário da ecranosfera, ao estado generalizado de tela possi­
trói. 8 Os capítulos que seguem procuram traçar sua fisionomia. 9 bilitado pelas novas tecnologias da informação e da comunica­
Essa quarta fase da história do cinema, convém sublinhar, ção. Estamos no tempo da tela-mundo, do tudo-tela, contempo­
não tem o mesmo estatuto que as três primeiras. Enquanto estas râneo da rede das redes, mas também das telas de vigilância,
das telas de informação, das telas lúdicas, das telas de ambien­
te. A arte (arte digital), a música (videoclipe), o jogo (videogame),
Ver, sobre a questão, a obra de referência de Peter Biskind, Le Nouve/ Hollywood,
a publicidade, a conversação, a fotografia, o saber, nada mais
7

Paris, Le cherche midi, 2002, e as análises de Jean-Baptiste Thoret, Le Cinéma


américain eles années 70, Paris, Les Cahiers du cinéma, 2006. escapa completamente às malhas digitais da nova ecranocracia.
8 Sobre a modernidade de segundo tipo, ver Gilles Lipovetsky, Les /emps Na vida inteira, todas as nossas relações com o mundo e com os
hypermoc/emes, Paris, Grasset, 2004 (Os /empos hipermodernos, Barcarolla, 2004). outros são cada vez mais mediatizadas por uma quantidade de
Para uma visão detalhada da nova era do cinema, centrada na análise dos filmes,
interfaces nas quais as telas não cessam de convergir, de se co­
9

ver Jean Serroy, Enlre deux siécles. Vingl ans de cinéma con/emporain, Paris, La
Martiniere, 2006. municar, de se interconectar.

22 23
Mas a tela ou o ecrã global designa igualmente o estado mes representa mais da metade dos rendimentos dos grandes
do cinema-mundo no momento da globalização econômica e da estúdios: "Global Hollywood" 1 3 , tela global.
internacionalização dos investimentos financeiros. Ainda que Tela global, ainda, porque o cinema planetarizado é feito
os movimentos de capitais estrangeiros na cena hollywoodiana de padrões "blockbusterizados" e transnacionais, mas também
não sejam novos, a época presente marca uma virada em razão de misturas, de elementos cada vez mais mestiços, multiculturais.
da forte intensificação do fenômeno. Em primeiro lugar, nas Esse cinema que acompanha a liberalização crescente das tro­
duas últimas décadas, um certo número de estúdios hollywoo­ cas não cessa, por seu lado, de pôr em cena novos "objetos", de
dianos passou para o controle de grnpos europeus, australianos propor novas temáticas. À desregulamentação dos mercados
e japoneses com vocação mundial. Em segundo, os filmes ame­ mundializados corresponde um cinema global que assimila sem­
ricanos são cada vez mais financiados por capitais estrangeiros: pre mais territórios de sentidos, ampliando continuamente suas
dos 30 primeiros filmes no box-office de 200 1, 32% eram sus­ antigas fronteiras, desregulando os modelos da narrativa e do
tentados por financiamentos internacionais. Os fundos alemães Eros, das idades e dos gêneros, do aceitável e do inaceitável.
representam de 15% a 20% dos 15 bilhões de dólares mobiliza­ Assim como a esfera mercantil penetra todos ou quase todos os
dos para o financiamento de todos os filmes dos grandes estúdi­ aspectos da existência, assim também o cinema não mais exclui
os em Hollywood. 1 0 São cada vez maiores os capitais provenien­ nenhum tipo de identidade e de experiência.
tes do Japão, da Alemanha, da Grã-Bretanha e da França que, Se convém, enfim, falar de tela global, é também em
através de contratos de co-produção, financiam Hollywood. Se razão do espantoso destino do cinema, que perdeu sua antiga
o cinema americano é exportado ao mundo inteiro, ele é produ­ posição hegemônica e que, confrontado à televisão e ao novo
zido de forma crescente por capitais intemacionais. 11 Ao mes­ império informático, parece um tipo de expressão ultrapassa­
mo tempo, os grandes estúdios americanos financiam muitos do pelas telas eletrônicas. No entanto, é no momento em que o
filmes europeus e asiáticos, e estão dispostos a investir ainda cinema não é mais a mídia predominante de outrora que triun­
mais na produção francesa, por exemplo, se as condições de fa, paradoxalmente, seu dispositivo próprio, não material, é
investimentos das empresas de produção com capitais extraeu­ claro, mas imaginário: o do grande espetáculo, o da transfor­
ropeus lhes derem liberdade para isso. 12 Nesse contexto de in­ mação em imagem, o do star-system. Na cultura hiperrnodema,
ternacionalização dos capitais financeiros, a exportação de fil- o que se deve realmente chamar de espírito cinema é o que
atravessa, irriga, alimenta as outras telas: o cinema tornou-se
um círculo cujo centro está em toda parte e a circunferência
10
Joel Augros, "H'W' D'", in Jean-P ierre Esqucnazi (dir.), Cinéma contemporain, em nenhuma. Quanto mais o cinema sofre a concorrência ou é
état des /ieux, Paris, L'Harmattan, 2004, p. 26.
11
A mesma internacionalização vale agora para os loca is de filmagem: as
suplantado pela Tela da TV, pelos videogames, pelos espetá­
deslocalizações são cada vez mais frequentes. A Romênia, a Bulgária, a Polônia culos esportivos, tanto mais sua estética fagocita, devora pe­
acolhem muitas produções europeias, assim como o Marrocos, que também se daços inteiros da cultura telânica. Nos espetáculos, no espor­
abre a filmagens americanas. E um número cada vez maior de filmes te, na televisão, um pouco em toda parte atua agora o espírito
hollywoodianos são rodados do outro lado da fronteira canadense, na Columbia
Britânica.
12 Nicole Vulser, "La nouvel le politique des majors. Les studios américains
investissent dans le cinéma français", Le Monde, 3 1 de janeiro de 2007. 1 3 Toby Miller et ai., Global Hollywood, Londres, British Film Institute, 2001.

24 25
cinema, o culto do visual e dos seres celebroides elevado ao vel, mas também do gosto cinevisual generalizado e das imagens
espetáculo. I nfinitamente mais poderoso e global que seu uni­ difundidas e baixadas na Internet. A época que começa é a que
verso nativo e específico, o cinema aparece como a forma consagra o cinema sem fronteiras, a cinemania democrática de
matricial do que se exprime fora dele. todos e por todos. Longe da morte proclamada do cinema, o nas­
Para além dos programas audiovisuais, o espírito cine­ cimento de um espírito cinema que anima o mundo.
ma se apoderou dos gostos e dos comportamentos cotidianos,
no momento em que as telas do celular e das câmeras digitais Cinema global, abordagem global
conseguem difundir o gesto cinema à escala do indivíduo qual­
quer. Filmar, enquadrar, visionar, registrar os movimentos da Para uma tela global, uma abordagem global: é esta que
vida e de minha vida: todos estamos em via de sermos realiza­ fundamenta e organiza as análises a seguir.
dores e atores de cinema, descontado o profissionalismo. O "Abordagem global" implica, primeiramente, não adotar
banal, o anedótico, os grandes momentos, os concertos, mes­ a atitude cinefílica pura que separa radicalmente cinema de eli­
mo as violências, são filmados pelos atores de sua própria vida. te ou de autor e cinema popular ou comercial. Essa oposição se
Se o público visita menos as salas escuras, maior é seu desejo mostra menos pe1tinente do que nunca para compreender o es­
de filmar, seu desejo de cine-narcisismo, mas também de es­ tado do cinema contemporâneo. Como muitas outras divisões,
pera do visual e da hipervisualidade do mundo e de si mesmo. esta não resistiu à dinâmica hipertrófica e desreguladora da hi­
Não se quer mais apenas ver "grandes" filmes, mas o filme pennodernidade. Analisar o neocinema é considerá-lo através
dos instantes da própria vida e do que se está vivendo. Não da totalidade de suas produções, reintroduzindo o menor, o co­
retração do cinema, mas expansão do espírito cinema no seio mum, o comercial, longe de toda hierarquização estética das
de uma cinevisão globalizada. O tudo-tela não faz o cinema obras. Como continuar restringindo-se às "grandes obras" quan­
regredir: muito pelo contrário, ajuda a disseminar o olhar-ci­ do o cinema não cessa de fazer "pequenas", filmes de todo gê­
nema, a duplicar a existência da imagem animada, a criar uma nero e com finalidades múltiplas? A exemplo da ordem familiar,
cinemania generalizada. o planeta cinema entrou numa era de desestabilização e de re­
Os dois primeiros ciclos da história do cinema viram nas­ composição amplas. Seriados, telefilmes, spots publicitários,
cer e se desenvolver o cine-idolatria das massas. O ciclo seguinte filmes de empresa, videoclipes, minifilmes, vídeos amadorísti­
perpetuou esse tipo de emocionalidade, mas coincidiu ao mesmo cos, é esse conjunto discordante com fronteiras misturadas que
tempo com a idade de ouro da cinefilia reflexiva e elitista. 1 4 Sem é preciso agora explicar.
abolir de modo algum essas duas formas de paixões cinefílicas, a "Abordagem global" significa também recusar estudar o
quarta fase vê emergir uma nova relação com o cinema, a cinema como puro sistema autocentrado de signos. Contra a
cinemania, que se impõe como matriz do imaginário midiático e redução semiológica ou estética, procuramos precisamente sair
cotidiano, culto do hipervisual, cinema atitude, tropismo dos gostos do campo fechado da gramática do cinema, ligando este ao que
do público hipennodemo. Cinemania feita de hiperconsumo mó- o engloba. Pensar o hipercinema não é examinar as estmturas
universais da linguagem fílmica ou fazer uma classificação pura
Antoine de Baccquc, La Cinéphilie. fnvention d 'w, regarei, histoire d 'une culture,
14 das imagens, é pôr em evidência o que o cinema diz sobre o
1944- 1 968, Paris, Fayard, 2003. mundo social-humano, como este o reorganiza, mas também

26 27
enfraquecimento de sua influência "cultural". Muito pelo
como o cinema age sobre as percepções dos homens e reconfi­
contrário. É quando o cinema perde sua preeminência que sua
gura suas expectativas. Nem sistema fechado, nem puro reflexo
influência global aumenta, impondo-se como cinematografi­
do social, o hipercinema deve ser interpretado de maneira glo­
zação do mundo, visão tetânica do mundo feita da combina­
bal, de dentro e de fora, como efeito e como modelo imaginário.
ção do grande espetáculo, das celebridades e do divertimento.
Se o cinema não deixa de ter relação com o pensamento filosó­
O indivíduo das sociedades hipermodemas passa a olhar o
fico, não percamos de vista que são as ligações que ele mantém
mundo como se fosse cinema, este constituindo as lentes in­
com a sociedade e a cultura que fornecem as melhores chaves
conscientes pelas quais ele vê a realidade onde vive. O cinema
de inteligibilidade do seu ser próprio e do seu devir específico.
tomou-se formador de um olhar global dirigido às esferas mais
Longe de uma visão do alto, mas também de um olhar parcela­
diversas da vida contemporânea.
do (cronologias por décadas, estudos microeconômicos) ou
Daí a necessidade de abandonar a análise do cinema como
mesmo miniaturizados ao extremo (estudos filmicos), trata-se
oficio, separando-o das leituras que ele suscitava quando domi­
de abordar o cinema da nova era em sua economia geral, nela
nava o mundo da tela. Pensar o cinema hoje é, cada vez mais,
reconhecendo uma força transformadora do imaginário cultural
pensar um mundo social que se tomou ao mesmo tempo telânico
global. Uma economia do cinema ao mesmo tempo cultural e
e hiperespetacular. Há muito se sabe que é impossível pensar o
socioestética, transpolítica e antropológica.
O que é o cinema no momento da tela global? Enquanto cinema sem considerar a aventura dos tempos modernos; eis
que agora são os tempos hipermodernos e sua profusão de telas
a era das redes avança, o cinema continua a ser lido de manei­
que não podem mais ser pensados sem o prisma do cinema.
ra muito compartimentada. Claro que as ciências humanas for­
necem informações preciosas e luzes indispensáveis, mas sua
preocupação metodológica, indissoluvelmente ligada à cons­
trução de um objeto circunscrito, as impede de colocar ques­
tões de fundo relativas ao sentido e ao novo lugar do cinema
na sociedade que se instala. São esses vazios que queremos
preencher, fixando dois objetivos. Primeiro, compreender o
regime inédito do cinema que acompanha a globalização, de­
pois, o lugar e a função do cinema numa cultura da tela a cada
dia mais onipresente.
Mas, se a abordagem deve ser global, por que pôr o acento
no cinema? Não estará essa focalização atrasada no momento
em que a sétima arte vê sua antiga primazia recuar cada vez
mais em benefício da televisão e da Internet? O fato é inegá­
vel: a época triunfal do cinema está muito atrás de nós. Vive­
mos o tempo da proliferação das telas, da tela-mundo na qual
o cinema não é mais que uma tela entre outras. Mas o fim de
sua centralidade "institucional" não significa de modo algum

29
28
PRIM EIRA PARTE

LÓGICAS DO HIPERCINEMA
Capítulo 1
Rumo a um hipercinema

Uma arte ontologicamente moderna

Nascido na época moderna, com uma técnica moderna e uma


ambição moderna (registrar o movimento pela imagem e fazê-lo
ver a um público), o cinema é uma arte congenitamente moderna.
Sob esse aspecto, excepcional é a sua "situação" na histó­
ria das artes. De um lado, ele é, com a fotografia, a única arte
nova aparecida depois de vinte e cinco séculos. De outro, ao
contrário das outras artes, enraizadas desde sempre num passa­
do milenar, o cinema surgiu de uma invenção técnica sem ante­
cedente, elaborada em alguns anos apenas. Béla Balasz obser­
va: "O cinema é a única arte da qual se conhece o dia de nasci­
mento. É um acontecimento único na história das civilizações". 1
Eis uma arte desde o início moderna, virgem tanto no plano
estético quanto no técnico: uma arte cujo nascimento é sui
generis, criada completamente a partir de quase nada e a uma
velocidade fulgurante.
Ele é ainda,como sugeriu Philippe Muray, a única arte que
não precisou se emancipar do religioso. As artes, todas as artes
tiveram que se separar do sagrado, ao longo dos séculos, a fim de
se tornarem artes e somente artes. "Só o cinema é imune a essa
prova, porque, último a aparecer na história das formas, não pre­
cisou se debater com a história das religiões, nem conquistar afi­
nal,em relação a elas e contra elas, sua autonomia." Nascido sem
bênção divina na época da retirada dos deuses, o cinema "chega

1 Béla Balasz, citado por Henri Colpi, Lef/res à un jeune monteur, Paris, Les
Bellcs lcttrcs/Archimbaud, 1996, p. 1 9.

33
após a batalha e quando o conflito,várias vezes milenar entre este fotografia, jovem de apenas algumas décadas, não constitui um
mundo e o além, está finalmente resolvido em favor deste mun­ referencial sólido, ainda mais que o movimento e a projeção na
do. O cinema não sabe, literalmente, que Deus existiu". 2 tela distinguem radicalmente da imagem fixa as imagens anima­
As outras artes, além disso, se inscrevem numa linhagem das, o espetáculo que estas últimas propõem se assemelhando
histórica, com escolas e estilos que se sucedem, rivalizam e se mais aos espetáculos de feira frequentados pela multidão: lanter­
afirmam, ao mesmo tempo em que se opõem. Todos os artistas na mágica, espelhos deformantes, panoramas. Patrice Flichy as­
reconhecem mestres nos quais se inspiram, dos quais se sepa­ sinala que "durante os dez primeiros anos de sua vida, o
ram e se diferenciam, tornando-se mestres por sua vez e engen­ cinematógrafo não é senão um dos espetáculos populares que pro-
drando discípulos ou oponentes. O cinema nascente escapa a 1 iferam nesse final de século. O sucesso do dispositivo de proje­
esse esquema. Ele inventa a si mesmo, sem antecendente, sem ção proposto por Lumiere e outros inventores se baseia em pa11e
referência, sem passado, sem genealogia, sem modelo, sem rup­ no fato de que, contrariamente ao cinetoscópio de Edison (apare­
tura nem oposição. É, naturalmente, ingenuamente moderno. E lho individual), ele se integra a uma tradição de espetáculos cole­
o é tanto mais na medida em que se originou de uma técnica tivos". Mas esse cinema de atração,que se vai ver nas barracas de
sem ambição artística particular. Os irmãos Lumiere, quando o feira ou em salas de café-concerto, logo cansa o público e "o
inventam, são industriais, não artistas, e o que eles primeiro verdadeiro sucesso do cinema só apareceu efetivamente quando
filmam traduz isso: uma saída de fábrica. É a técnica que inven­ ele começou a contar histórias, quando se tornou um meio de
ta a arte, não a arte que cria a técnica. É o que diz Panofsky, ao comunicação narrativo". 5 Tendo iniciado como espetáculo de fei­
observar que o cinema é a única arte que se desenvolveu "em ra, ele passa progressivamente à ficção e vai mesmo buscar na
condições contrárias às das artes precedentes (... ). Não foi uma literatura as histórias que se propõe contar. Assim o cinema se
necessidade artística que provocou a descoberta e o funciona­ inventa, aos poucos, uma linguagem e uma gramática que lhe
mento de uma técnica nova,foi uma invenção técnica que provo­ permitem ter grandes projetos, detenninar-se como arte, ao mes­
cou a descoberta e o funcionamento de uma nova arte". 3 Uma mo tempo em que sente a necessidade de se organizar como in­
nova arte a tal ponto ligada à máquina que muito rapidamente, dústria. 6 Esse duplo componente - arte e indústria - que ele ad­
entre os formalistas dos anos 1920, conferiu às outras artes quire muito depressa, já nos anos 1 9 1 O, lhe vale a crítica austera
artesanais e antigas "um matiz arcaico. Um audacioso recém-che­ e duradoura dos que lhe negam, por causa dessa dualidade, o es­
gado, que ameaçava transformar a arte em simples técnica, tatuto de arte. "Ele tinha maneiras do populacho que escandaliza­
irrompia em meio às artes abrigadas atrás das tradições". 4 vam as pessoas sérias"7, escreve Sartre em As palavras. O cinema
As condições mesmas nas quais ele aparece o fazem ime­ passará várias décadas tentando escapar dessa categorização ne­
diatamente suspeito. Não se sabe muito bem a que associá-lo. A gativa antes de se impor como sétima arte.

2 Phillipe Muray, Exorcismes spiritue/s Ili, Les Belles Lettres, 2002, p. 3 1 1-312. 5 Patrice Flichy, "Les images de la B elle Époque. Fin de siecle et nouveau mode
3 Erwin Panofsky, "Style el matériau <lu cinéma" (1934), Cinéma, théories, de communication", Alliages, nº 39, 1999, p. 84-85.
lectures, textos reunidos e apresentados por Dominiquc Noguez, Paris,
6
Patricc Flichy lembra esse ponto: "A força dos cineastas da narração, como
Klincksieck, 1978, p. 47. William Paul na Inglaterra ou Pathé na França, é se integrar numa economia in­
4 Boris Eikhenbaum, "Problemes de ciné-stylistique" (1927), in les Formalistes dustrial" (ibid., p. 85).
7 Jean-Paul Sartre, les Mots, Paris, Gallimard, "Folio", 1972, p. 11 O.
russes e/ /e cinéma, poétique dujilm, Paris, Nathan Université, 1991, p. 41, n. 1 1 .

34 35
Uma arte de consumo de massa apenas uma fraca modernidade? Questões legitimas, certamen­
te, às quai s gostaríamos de responder o seguinte: e se a reali­
Arte moderna, portanto. Mas qual arte? E moderna em dade fosse exatamente contrária a esse esquema? De fato, há
que sentido? Se fizermos um paralelo entre sua história e a das razão de pensar que o cinema conseguiu inventar uma disrupção
outras artes, não há como não observar que, no mesmo momen­ que, sem ser a da vanguarda, se revela ainda mais radical . Há
to, estas se lançam na revolução modernista das vanguardas, uma revolução modernista do cinema que nada tem a ver com
marcada pela vontade de ruptura completa com a tradição e a as vanguardas: a que produz um tipo de arte radicalmente nova,
herança. "Quero ser como um recém-nascido, não saber nada, absolutamente democrática e comerc ial - uma mie de consu­
absolutamente nada da Europa . . . ser quase um primitivo", de­ mo de massa. 1 0 A modernidade profunda do cinema está aí,
clara Paul Klee. E Metzinger, relembrando essa época, consta­ nessa arte de massa, dispositivo sem precedente que ele con­
ta: "Eu sabia que o ensino não tinha mais vez. A era da expres­ tribui amplamente a impor. Roger Pouivet coloca claramente
são pessoal por fim começava ( ... ). O tempo do mestre havia o problema: "Se a arte moderna e a arte contemporânea reno­
finalmente acabado" . 8 Já o cinema não precisou se voltar contra varam as formas da arte, pode-se dizer que elas modificaram
os valores da filiação: ele não os tinha. Aplicado em constituir­ com i sso o estatuto ontológico das obras de a1te? Não terá este
se como arte, em inventar suas formas e sua l inguagem, sem sido mod i ficado de forma mais radical na arte de massa?
modelo em relação ao qual marcar uma ruptura, seu combate Multiplicidade sistemática em vez do culto do original, ainda
não é o das vanguardas. Se alguns jovens realizadores, l i gados tão patente na arte contemporânea; tecnicização das obras em
aos meios artísticos, o levam a participar das lutas vanguardistas, vez do artesanato e da bricolagem da arte contemporânea; um
é apenas de maneira marginal, em sua franj a experimental : público p lanetário em vez do s imples deslocamento do ' mun­
Picabia e Satie acompanham o René Clair de Entreato [ 1 924] ; do da arte' da aristocracia esclarecida à burguesia intelectual,
Dziga Vertov, fervoroso adepto do futurismo, transpõe-lhe o das cortes e dos salões às universidades e aos centros cultu­
espírito em sua teoria da montagem; e a navalha sunealista de rai s" . 1 1 A mudança decisiva, em última instância, é mais signi­
Bufiuel e Dali em Um cão andaluz [ 1 928] corta agressivamente ficativa do lado do cinema que do lado das descontinuidades
o olho que olha. Portanto, sem desconhecer o fenômeno, é claro vanguardistas. Ironia da história: mesmo ignorando a corrente
que ele permanece minoritário; globalmente, não tendo nenhu­ das transgressões vanguardistas, o cinema se impõe no pri­
ma tábula rasa a real izar por causa de sua própria novidade ra­ meiro plano da edificação da maior modernidade artística.
dical, não é a radical i dade vanguardi sta que constitui a Godard acentua isso, logo no início de sua História (s) do cine­
modernidade do cinema. ma: "As massas amam o mito e o cinema se dirige às mas­
Mas então será que ele nunca foi absolutamente moder­ sas". 1 2 Mas não é apenas por sua maneira de reinventar os gran-
no9, no sentido de que somente as vanguardas teriam sido por­
tadoras de uma modernidade pura? Será que o cinema i lustra 10
A expressão "arte de massas" já está presente em Thcodor Adorno e Max
1-lorkheimer, La Dialectique de la raison ( 1944), Paris, Gallimard, ''Te!", p. 134.
11
Rogcr Pouivet, L 'Oeuvre d 'art à l 'âge desa mondialisation. Un essai d 'ontologie
8 Jean Metzinger, Le Cubisme était né, Paris, Éditions Présence, 1972, p. 60. de / 'ar/ de masse, Bruxelas, La Lettre volée, 2003, p. 9 e 11.
9 Sobre essa questão, ver também o texto de Jacques Aumont, "Le cinéma a-t-il été 12 Jean-Luc Godard, Histoire(s) du cinéma, Paris, Gallimard, 4 vol., 1998, vol. 1 ,
modeme?", in La Parenthése du moderne, Paris, Centre Pompidou, 2005, p. 83-98. p. 96-97.

36 37
des mitos ou de inventá-los que o cinema se constitui como novidade. Cada filme busca "uma síntese dificil do padrão e do
mass art. O conjunto de suas características, sua essência mes­ original", escreve Edgar Morin. 16 O cinema é de essência mo­
ma, o definem desde o início como tal . 1 3 derna na medida em que concretiza esse valor propriamente mo­
Arte de massa, em primeiro lugar, no seu modo de produ­ derno que é o Novo. Não o absolutamente novo das vanguardas,
ção. Esta é totalmente moderna pela técnica inédita que utiliza, mas o sempre um pouco novo. Com o cinema, uma criação mí­
permitindo ao filme ser visto ao mesmo tempo por um vasto nima é imperativa, o que faz dele uma arte das diferenças ou das
público (e os modos de difusão mais recentes ampliam ainda variações mais ou menos marginais. Para além de tudo que os
mais sua audiência e multiplicam o efeito de massa). Esse as­ opõe, vanguarda e cinema participam da mesma cultura moder­
pecto coletivo que marca a recepção do filme intervém igual­ na que coloca a inovação como novo imperativo categórico.
mente na sua elaboração, pois esta exige uma divisão do traba­ Ao princípio da novidade acrescenta-se o da diversida­
lho . 1 4 Um filme não é obra de um único realizador, mas de uma de. Nos Estados Unidos, Hol lywood rapidamente centraliza a
equipe de várias dezenas ou mesmo centenas de pessoas: o ci­ indústria do cinema americano: em 1920, 50 estúdios fazem
nema é, por definição, uma arte coletiva, ainda que a Nouvelfe trabalhar 25 mil artistas e produzem até 700 filmes por ano.
Vague tente impor mais tarde a ideia de política de autores para No mesmo momento, a França produz cerca de 100, a I tália,
conferir à obra uma unicidade de criação que tecnicamente ela mais de 200, a Dinamarca, cerca de 40, a Tchecoslováquia,
não pode possuir. 1 5 Nenhuma arte é tão tributária, por sua tecni­ cerca de 20. Com o advento do cinema falado, a produção con­
cização, de uma contribuição coletiva. serva a mesma diversidade: nos anos 1930, Hollywood produz
O que constitui igualmente a modernidade da arte de massa em média 500 filmes por ano e a guerra pouco diminui a pro­
é uma dupla exigência de suas produções: a novidade e a diver­ dução, que se estabiliza, nos anos 1940, numa média de 400
sidade. Mesmo construído segundo um gênero e uma fónnula fi lmes anuais. Enquanto indústria, o cinema está ligado com a
padrão, um filme deve ter um mínimo de individualidade e de série e a multiplicidade . Não basta produzir fi lmes que tenham
pequenas diferenças, é preciso que eles sejam lançados em
1 3 Walter Benjamin já havia observado que todo filme está por essência destinado grande quantidade no mercado e incessantemente renovados.
ao consumo recreativo de massa. Ver "L' oeuvrc d 'art à l ' époquc de sa Modernidade do cinema, modernidade industrial : Hol lywood
rcproductibilité tcchnique" ( 1936), L 'Homme, le langage, la culture, Paris, Denoel/ se constrói no momento em que se instala a produção em larga
Gonthier, 1971. escala de mercadorias padronizadas. Mas, ao mesmo tempo,
14 Élie Faure já comparava a produção de um filme à construção de uma catedral:
"Os meios de realização de um são análogos aos da outra [ ... ]. Quase todas as inaugura já um dispositivo típico da "economia da variedade"
corporações de oficias colaboram ou podem colaborar cm ambos", Fonction du que vai se impor bem mais tarde no hipercapitalismo pós-for­
cinéma, Paris, Gonthier Médiations, 1964, p. 70.
15 Alain Rcsnais, embora seja tido como um autor entre os autores, se recusa a
diano contemporâneo.
aparecer como tal e proíbe, por contrato, que ponham no crédito de seus filmes:
Arte de massa, também, no seu modo de difusão. Assim
"Um filme de Alain Rcsnais". "À política de autores prefiro, segundo a expressão que se estmtura como indústria, o cinema se dá como objetivo o
de Luc Moullet, a política dos atores e, acrescentaria, do roteirista, do operador de mercado mais vasto. A equação econômica da rentabilidade não
câmera, do engenheiro de som, do montador... " (entrevista com Jean Serroy). Ob­
servemos que, cm seu desejo de voltar à forma mais pura do cinema, os cineastas
16 Edgar Morin, l 'Esprit du temps, Paris, Grassei, 1962, p. 35. Ver, mais recente­
dinamarqueses do Dogma 95, Lars von Tricr e Thomas Vinterberg, adotam como
regra n.º 1O de seu "voto de castidade": "Não deve haver créditos ao realizador". mente, Lucicn Karpik, l 'Économie des singularités, Paris, Gallimard, 2007.

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tarda a desempenhar um papel determinante, como assinala ambição senão divertir, dar prazer, pennitir uma evasão fácil e
Patrice Flichy: "Se a Pathé, com sua produção industrial em acessível a todos, ao contrário das obras vanguardistas herméti­
massa de películas, sobrepuj a a Lumiere que realiza um cinema cas e incômodas destinadas a revolucionar o velho mundo, a
adaptado a uma única sala, é que a primeira oferece todas as fazer nascer o "homem novo". O que se busca oferecer são no­
vantagens de uma economia de escala ( ... ). De certo modo, a vidades sistematicamente produzidas, da maneira mais acessí­
Pathé escolhe uma solução econômica fordiana (produção de vel possível e para a distração da maioria. Essa é, precisamente,
massa, consumo regular e de massa), escolha que lhe pennite, a modernidade irredutível do cinema.
aliás, conquistar o mercado americano antes da guerra de 14". 1 7 Daí a gramática que ele cria e que funda urna estrutura
O cinema visa ao grande público, um público de massa conside­ filmica caracterizada antes de tudo por sua facilidade de acesso.
rado sem distinção de classe, de idade, de sexo, de religião e de Legibilidade de uma intriga, em primeiro lugar, organizada de
nação. Ele se dirige a um indivíduo médio ou universal 18 , evi­ fom1a clara em tomo de um começo, de uma ação e de um fim,
tando chocar espectadores formados por culturas diferentes. É e que dá ao roteiro o papel fundamental na elaboração do filme.
exatamente o contrário de uma arte elitista que exige urna for­ Legibilidade também do gênero (western, filme de guerra, poli­
mação e códigos específicos de leitura. Uma a1te de essência cial, comédia, drama, filme de avent11ras), que deve dar ao es­
democrática, cosmopolita, com vocação planetária: já nos anos pectador uma referência estável e conhecida de antemão. O con­
seguintes à sua invenção, os innãos Lumiere enviam operado­ junto do sistema hollywoodiano se baseia nessa distinção de
res a toda parte do mundo. E, nos anos 1 900- 1 9 1 O, Hollywood gêneros e na capacidade dos realizadores contratados pelos es­
cria sua fábrica de sonhos - "fábrica irreal", diz Godard 19 - para túdios de praticá-los todos com a mesma eficácia. Legibilidade
alimentar o imaginário de um público de massa, feito de átomos dos personagens, ainda. O cinema mudo, não podendo contar
individuais e anônimos. O cinema nascente foi desde o início com as palavras, impõe aos atores uma expressividade acentua­
ator principal dessa primeira globalização moderna. da, que esquematiza ao extremo a expressão dos sentimentos.
Arte de massa, enfim, no seu modo de consumo. De fato, Com o cinema falado, os tipos continuam sendo facilmente
o cinema se acompanha de uma retórica da simplicidade, solici­ identificáveis ( o vilão, o caubói solitário, a inocente, a mulher
tando o menor esforço possível da parte do seu destinatário. fatal). Última legibilidade, enfim, e que representa em si uma
Não é o elemento espiritual do homem que é o obj etivo, mas invenção radical: a sta,: Idealização, iconização, miti ficação:
um consumo sempre renovado de produtos que possibilite uma ela cristaliza todos os fantasmas, todos os sonhos, numa figura
satisfação imediata e não exija formação alguma, nenhuma re­ "estereotipada" construída para ser imediatamente reconhecí­
ferência cultural específica e emdita. A aite-cinema é, antes de vel, e que toma tanto mais acessível o filme na medida cm que
mais nada, uma arte de consumo de massa. Nenhuma outra é ela que se vai ver e que se reconhece, de aparição em aparição,
tal como em sua inacessibilidade a eternidade a modifica.
Uma legibilidade acompanhada de sonhos, de imaginário
17 Patrice Flichy, "Lcs i magcs de la Belle Époquc", op. cil., p. 87.
18 Edgar Morin, L 'Esprit du temps, op. cil. , p. 58.
e de encantamento. Assim o cinema funcionou como promessa
19 Ele vê nisso também uma forma de poder "coletivista", como indica este seu de festa, catedral do prazer das massas modernas, através de
comentário: "Fábricas, como no comunismo". Jean-Luc Godard, Histoire(1) du imagens e ficções feéricas. O que levou bons observadores a
cinéma, op. cil. , vol. 1, p. 36. aproximarem cinema e ópera, ambos utilizando grandes maqui-

40 41
narias, o artificio e a ênfase, o efeito-imagem e a força emotiva mos passageiros: adora-se um fi lme como uma moda, isto é,
tendo em vista um consumo onírico e fantasmagórico. 20 Essa num curto espaço de tempo. Sob esse aspecto, pode-se analisar
aproximação é inegavelmente justa. Contudo, existe uma outra, o fenômeno do box-office como a radiografia cifrada ou o regis­
menos evidente e que merece ser fortemente sublinhada: trata­ tro classificado das preferências do hiperpresente conduzidas
se das ligações entre o cinema e a moda. pela fonna-moda da inconstância e da versatilidade.
Variações perpétuas na p rodução fílmica, dimensão No núcleo do cinema se aloja o princípio do perecível, do
glamorosa das stars, imediatez e facilidade dos prazeres do es­ temporário, da obsolescência acelerada. Mas nele se encontra
petáculo recreativo: são alguns aspectos que ligam estrutural­ também um formidável poder de sedução que se apoia princi­
mente a modernidade do cinema à ordem frívola da moda. En­ palmente nas stars. Beleza inigualável das vedetes-estrelas,
contramos em Baudelaire os elementos-chave dessa problemá­ cosmetização dos rostos, estetização dos cenários, efeitos de luz
tica quando, ao definir a modernidade pelo "transitório, o fu­ trabalhados: o cinema, como a moda, busca a sedução, a
gaz, o contingente"21, ele é o primeiro a afirmar o parentesco artificialidade, a magia das aparências. Ele elevou a sedução a
profundo desta com a moda. E ssa ligação intrínseca da uma força superlativa e planetária sem igual.
modernidade com a moda é muito bem ilustrada pelo cinema: Arte-moda, também, no sentido de que o cinema aciona
enquanto arte de consumo de massa, ele funciona como uma comportamentos miméticos de massa da mesma maneira que a
arte-moda, ou seja, inseparável não apenas das diferenças mar­ moda das roupas. Ninguém ignora que as stars lançaram todo
ginais, mas também da lógica do efêmero e da sedução. 22 O um conjunto de modas: a boina de Garbo, a camiseta branca de
cinema se apresenta desde o início à maneira de uma arte que, Brando, o vestido xadrez vichy de Bardot. Mais do que isso, as
livre do domínio do passado, se apoia, a exemplo da moda, na stars e os filmes modificaram os gostos e as atitudes, os códigos
primazia do eixo temporal do presente. E isso, pelo menos, em de beleza, as maneiras de se maquiar, as maneiras de consumir,
três sentidos. Por um lado, enquanto indústria, o cinema busca de falar, de fumar, de flertar. O cinema lança tendências cultu­
o sucesso comercial mais imediato e maior possível. Por outro, rais, renova modos de ser e de fazer, produz reviravoltas nas
em razão do lançamento perpétuo de novos filmes, os que são orientações estéticas. Mesmo se alguns realizadores ambicio­
lançados "tiram de moda" rapidamente os precedentes. Por fim, nam a longa duração, o cinema é uma arte cujos efeitos são
ele é capaz de suscitar, mais ou menos regularmente, entusias- versáteis e fugazes como os da moda.
Assim se afirma de novo a modernidade do cinema. Este
20 Youssef lshaghpour, Historiei/é du cinéma, Tours, Fan-ago, 2004, p. 79-87. não pode ser reduzido ao simples espelho do seu tempo, uma
Podemos observar que a fusão das artes, cara à estética ban-oca, triunfa no século vez que contribui para remodelar os gostos e as sensibilidades.
XVI I com o gênero compósito que é a ópera. O cinema, igualmente compósito,
realiza de forma ainda mais completa, três séculos depois, essa fusão das artes em
Certamente isso não é exclusivo do cinema. A arte em seu con­
busca de uma "arte total". junto cumpre essa função. E a religião, desde o fundo dos tem­
21
Charles Baudelaire, le Peintre de la vie moderne, Curiosités es!hétiques, OEuvres pos, funcionou à maneira, não de um reflexo ideológico, mas de
comp/étes, ed. Y.-G. Le Dantec, Paris, Gallimard, "Bibliotheque de la Pléiade", um dispositivo primeiro que estrutura a ordem social. Mas en­
1 954, p. 892.
22 Gilles Lipovetsky, L 'Empire de / 'éphémére. La mode e/ son deslin dans les quanto, nas sociedades tradicionais, a ordem produzida funcio­
socié!és modernes, Paris, Gallimard, 1 986 (O império do efêmero. A moda e seu na no registro da permanência e da reprodução idêntica do pas­
destino nas sociedades modernas, Companhia das Letras, 1 989). sado, nas sociedades modernas são criados códigos, produtos e

42 43
predileções essencialmente transitórios. O cinema não só não se define pela ruptura do espaço cenográfico euclidiano e o de­
tem tradição ancestral,como também o que ele agencia não cessa saparecimento da estética da contemplação em favor de urna
de mudar e de produzir efeitos de breve duração - impermanência cultura centrada "na sensação, na simultaneidade, na irnediatez
do cinema que o vincula, no fundo, à lógica da moda. Assim, e no irnpacto". 24 Os escritores de vanguarda, os cubistas e os
deve-se recusar as teses que afirmam que a modernidade do ci­ futuristas, os expressionistas e os surrealistas quiseram reduzir
nema começa no momento em que este perde sua inocência, a distância estética entre a obra e o espectador, buscando mer­
torna-se reflexivo e crítico, interroga-se sobre sua essência e gulhar este num turbilhão de sensações subjetivas e de emoções
sua história. 23 Isso não define a modernidade do cinema mas diretas. O cinema, com certeza, pertence inteiramente a essa
apenas urna de suas figuras tardias,uma de suas potencialidades. revolução cultural, em particular por sua força de impacto. A
De maneira muito mais essencial, sua modernidade coincide imagem gigante, projetada na grande tela de uma sala escura,
com a produção em massa de produtos culturais não duráveis, atinge em cheio aquele a quem é destinada. O impacto é visual,
singulares, prontos a consumir,efêmeros e feitos para o olhar. É resultando literalmente de um fenômeno ótico, que o c inema
a moda e sua velocidade de renovação, o kitsch e a canção sen­ sempre fez acentuar por meios técnicos cada vez mais sofistica­
timental, a sedução imediata e os afetos "fáceis" que fazem a dos: imensidão das telas, montagem acelerada, efeitos especiais.
modernidade e a incomparável força do cinema. M a s o i m p a c to é também m e n t a l , graças ao poder d e
envolvimento d a própria intriga e à proj eção do espectador no
A grande ilusão? que lhe é projetado. O cinema, observa Béla Balasz, "aboliu a
distância fixa do espectador, essa distância que fazia parte da
Essa modernidade do cinema, que ninguém lhe contesta, essência das artes visuais. O espectador não está mais no exterior
esbaiTa num argumento que às vezes lhe opõe e que consiste em do mundo da arte fechada em si mesma ( ... ). Nada de semelhan­
fazer dele uma arte em trompe-l 'oeil, que faria parte da longa te jamais se produziu nas outras artes (.,.). Urna ideologia de
história das formas artísticas fundadas sobre a ilusão do real. O uma novidade radical aparece pela primeira vez nessa abolição
cinema seria o herdeiro, de certo modo, da prospettiva aberta da distância íntima do espectador". 25
pelos pintores do Quattrocento ou da ilusão cômica do teatro de Contudo, o efeito nada tem de comparável àquele busca­
Corneille. Assim, longe da "verdadeira" modernidade, o cine­ do pelas vanguardas. Para estas, o abalo visa a desconstruir e a
ma só exibiria, com sua técnica de lanterna mágica, uma forma denunciar a ilusão a fim de dissolvê-la. Nada disso acontece
de arcaísmo estético. com o cinema. Fiel a urna estética ilusionista, ele não desconstrói
No entanto, o cinema se inscreve simultaneamente, à sua nada, projeta a imagem sem derrubar o que é mostrado. Ele
maneira, naquilo que caracteriza propriamente a obra das van­ abole não a representação ilusionista do real, mas a distância de
guardas e que Daniel Bell chamou o "eclipse da distância". Este quem olha. E esse eclipse é total, perfeito, sem outro objetivo
senão ele mesmo e a natureza do espetáculo proposto.
23 Youssef Ishagh pour, Hisloricilé du cinéma, up. cil. , em particular p. 39. Ver
igualmente a obra de Dominiquc Pai'ni, Le Cinéma, un ar/ 111oderne, Paris, Lcs 24 Daniel Bel!, Les Con/radiclions cul/urelles du capitalisme, Paris, P U F, 1979, p.
Cahiers du cinéma, 1 997, na qual a modernidade do cinema é identificada aos 119.
abalos na narração linear, ao regime da descontinuidade, da quebra , do 25 Béla Balasz, Le Cinéma. Na/ure e/ évolulion d 'un ar/ nouveau, Paris, Payot,
inacabamento. 1979, p. 128.

44 45
Por outro lado, dessa força de ilusão que pertence à sua Zéraffa26 para designar o trabalho de questionamento do romance
essência mesma o cinema não faz apenas um ilusionismo, com­ balzaquiano pelos sucessores de Proust e de Joyce, encontram seu
parável a um passe de mágica, como acontecia nas primeiras equivalente cinematográfico nas mudanças estilísticas que aconte­
trucagens e nos primeiros efeitos, como acontece hoje ainda mais, cem então e que transformam em profundidade a natureza dos fil­
com os desenvolvimentos recentes trazidos pela alta tecnologia. mes. O novo cinema dá origem, pa ra usar a terminologia de U mbe1to
Sua estética evoluiu, procurando pôr em perspectiva e fazer di­ Eco, a obras abertas que se caracterizam pela ambiguidade, pela
alogar a ilusão criada e a realidade representada. Desde o cine­ indeterminação, pela polivalência - obras em movimento que con­
ma falado, o cinema começou a integrar timidamente a exigên­ vidam o público a uma intervenção ativa, a um "trabalho" de apro­
cia moderna do realismo. Os personagens foram aos poucos sen­ priação pelos mecanismos de associações pessoais27 : Hiroshima
do refinados, se tornaram mais próximos da vida. Mais tarde, a mon amour [Resnais, 1959], A a ventura [Antonioni, 1960], La Jetée
experiência terrível da guerra impôs a realidade como um dado [Chris Marker, 1963], O criado [Losey, 1963], 2001: uma odisseia
incontornável; os fatos sociais adquiriram uma nova importân­ no espaço [Kubrick, 1 968], Providence [Resnais, 1976] ... A intriga
cia. O realismo poetizado dos anos 1930 (falso realismo, verda­ se pulveriza nos quebra-cabeças narrativos de Godard. Dissolve-se
deira poesia) se encerrou, na França, com As portas da noite de na busca da lentidão e na vertigem do vazio explorados por
Marcel Carné [ 1 946]. E, no cinema italiano, o ilusionismo Antonioni. Perde-se nos labirintos mentais para onde a leva Resnais.
mussoliniano, que se comprazia em oferecer uma imagem Volatiliza-se ao longo das trilhas selvagens percorridas por aqueles
lenificante da sociedade e uma representação idealizada dos in­ que, como Jacques Rozier e outros franco-atiradores, fazem da va­
divíduos - nada de delinquência, de conflitos de classes, de di­ gabundagem o caminho da liberdade.
ficuldades econômicas, e todos os trens chegavam na hora -, dá Temáticas novas aparecem: a solidão, a incomunicabili­
lugar a filmes que descem de novo ao chão: com o neorrealismo, dade, o silêncio, o tempo, a liberdade, a memória, a violência, a
vemos camponeses, pescadores, desempregados, pequenos en­ errância. O tédio espreita - em Entre amigas [ 1 960], de Cha­
graxates - Roma, cidade aberta e Alemanha ano zero. Essa brol, mulheres olham lentamente passar as horas vazias de sua
problemática do realismo, à qual se viu confrontado e que atra­ vida; em O demônio das onze horas (Pierrot /e fou) [ 1965], de
vessa sua história, insere o cinema, por sua evolução mesma, na Godard, Anna Karina passa o tempo a repetir: "Não sei o que
modernidade pura das críticas da ilusão. fazer". O personagem perde seu caráter definido, estável, cir­
Modernidade reivindicada e ilustrada, após alguns desbrava­ cunscrito: torna-se flutuante, indeciso, descentrado, percebido
dores como Orson Welles, pelos grandes criadores que aparecem nos na incerteza de sua aparência. O mundo ao redor é impreciso,
anos do pós-guerra: Bergman, Visconti, Antonioni, Pasolini, Fellini, dificilmente explicável, reduzido a um presente sem espessura,
Bufiuel, Losey, Resnais, Godard, Truffaut, Bresson, Tati . .. Os univer­ percebido em sua imediatez, minuto por minuto, em Cléo das 5
sos deles são por certo muito diferentes, mas o que seus filmes expri­ às 7 [Agnes Varda, 1962], pequeno capítulo por pequeno capí­
mem responde a uma mesma exigência de explorar a representação tulo em Viver a vida [Godard, 1962]. A banalidade, o minúscu­
da realidade por vias novas. Essa modernidade se inscreve na lo, o insignificante, os tempos mortos encontram um lugar que
desestmturação das normas tradicionais da narrativa. O que o nouveau
roman fez em relação à narração tradicional e, de maneira mais am­ 26
M ichel Zéraffa, La Révolution romanesque, Paris, Klincksiek, I 969.
pla, o que realizou a "revolução romanesca" de que fala Michel 27 Umberto Eco, L 'OEuvre ouverte, Paris, Scuil, I 965.

46 47
lhes era negado, começam a valer por si mesmos, ao mesmo A questão do novo estatuto da modernidade e do cinema,
tempo em que o acaso impõe seu cap1icho aos acontecimentos. que nos interessa mais particularmente aqui, se impôs com suces­
Passa-se então, para falar como Deleuze, da imagem-movimen­ so a partir dos anos 1980, através das problemáticas do "pós-mo­
to à imagem-tempo: "É um cinema de vidente, não mais de dernismo". Muitos teóricos diagnosticaram então o fim de uma
ação".28 A realidade aparece como múltipla, implicando,para ser modernidade caracterizada pelo esgotamento das grandes uto­
compreendida, tanto a multiplicidade dos pontos de vista quanto pias futuristas, dos projetos revolucionários e das vanguardas. A
o apelo a outras artes. O cinema da modernidade modernista faz questão, porém, é saber se o neologismo "pós-moderno" é real­
entrar as problemáticas propriamente artísticas no campo da ima­ mente capaz de apreender a época histórica contemporânea, as­
gem projetada. Godard, em filmes cuja (des)constmção tem algo sim como o cinema que nela se desenvolve. Não acreditamos que
a ver com a pop art, recheia suas imagens com palavras, livros, o seja. Ao contrário,tudo indica que, desde o final dos anos 1970, .J
músicas; Rivette constrói sua relação com o real aplicando-lhe é um novo patamar da modernidade que foi transposto. 30 Mas, em
uma leitura teatral; Visconti concebe suas mises-en-scenes como vez de uma superação qualquer da modernidade, esse patamar
quadros, seus cenários como óperas; Antonioni insere seus dra­ remete fundamentalmente a uma outra modernidade, uma espé-
mas em arquiteturas barrocas deterioradas pelo tempo ou na soli­ cie de modernidade ao quadrado ou superlativa.
dão urbana das metrópoles modernas; e Fellini, o grande mágico, Essa nova modernidade se lê através de uma tríplice meta­
fiel à arte do circo, faz do cotidiano um espetáculo. morfose que diz respeito à ordem democrática-individualista, à di­
Nesse momento, o cinema, questionando agora seu poder nâmica do mercado e à tecnociência. A sociedade hipermodema é
ilusionista,passa para wna nova modernidade, a da reflexividade aquela em que as forças de oposição à modernidade democrática,
e �� d�sconstrução, a que vê surgir um cinema de autor que individualista e mercantil não são mais estmturantes e, com isso, é
re1vmd1ca o estatuto de obra de arte em oposição aos produtos lançada a uma espiral hiperbólica, a uma escalada paroxística3 1 nas
descartáveis do cinema comercial. É então que ele engendra esferas mais diversas da tecnologia, da vida econômica, social e
sua própria religião: a cinefilia. 29 mesmo individual. Tecnologias genéticas,digitalização,ciberespaço,
fluxos financeiros, megalópoles, mas também pornografia, condu­
Uma nova modernidade: o híper tas de risco, esportes radicais,perfom1ances, h appenings, obesida­
de, dependência de drogas: tudo aumenta, tudo se extremiza e se
Mas, evidentemente, esse momento modernista se acha toma vertiginoso, "sem limite". É como uma imensa fuga para a
atrás de nós. É forçoso observar que o cinema, do mesmo modo frente, uma engrenagem sem fim, uma modernização exagerada,
que a sociedade global, entrou agora num novo ciclo de que se apresenta a segunda modernidade.
n'. odernidade, uma segunda modernidade que chama1�os aqui É justamente essa dinâmica de ultramodemização que se
h1permoderna, e que se exprime tanto nos sinais da cultura quanto observa no cinema contemporâneo. Ela se lê nas imagens e nas
na organização material do hipermundo.
30 Sobre esse ponto, ver Gilles Lipovetsky, Le Bonlreur paradoxal. Essai sur la
28
Gilles Delcuzc, Cinéma 2: L 'i111age-te111ps, Paris, Minuit, 1985, p. 9. société d 'hyperconsommation, Paris, Gallimard, 2006 (A felicidade paradoxal,
29
Ver Antoine de Baecque, La cinéphilie. lnvention d '1111 regarei, /ristoire d 'une Companhia das Letras), especialmente a primeira parte.
cu/fure, 1 944- 1968, op. cit. 31 Gilles Lipovctsky, Les Temps lrypermodernes, op. cit. , p. 72-8 1 .

48 49
narrativas, mas também nas tecnologias e na economia mesma ciar, para não perder a liderança, à Pixar, mestre das novas
do cinema. É como um todo que este é arrastado numa lógica de tecnologias, para produzir o primeiro longa-metragem inteiramen­
modernização exponencial. te realizado em computador, Toy Story. Desde então, a máquina
informática de produzir imagens animadas não cessou de progre­
Híper high-tech dir, chegando a técnicas como a motion capture, experimentada
em 2004 em O expresso polar de Robert Zemeckis, que registra
Se a ideia de um cinema hipermodemo se impõe, é primei­ através de captores a ação de verdadeiros atores para retranscrevê­
ro em razão de uma série de invenções tecnológicas que transfor­ la informaticamente sob forma animada, ao infinito. Utilizando
maram radicalmente o processo econômico e os modos de consu­ todo o potencial das técnicas digitais, o desenho animado japo­
mo. O cinema sempre foi uma arte que convocou os recursos nês, impulsionado pela voga dos mangás, torna-se referência
múltiplos da técnica, mas um novo patamar foi, sem dúvida ne­ mundial e não mais apenas para crianças. Graças às novas
nhuma, franqueado com o desenvolvimento das altas tecnologias: tecnologias que sabe utilizar, Miyazaki faz proliferar um imagi­
o vídeo, a partir dos anos 1 980, e principalmente as imagens nário assombroso32, e Rintaro propõe um Metrópolis com todos
digitalizadas desde os a nos 1 990. A técnica deu lugar à os recursos de um futuro inteiramente virtual.
hipertecnologia eletrônica e informática. A miniaturização das Na mesma lógica high-tech, o digital revolucionou total­
câmeras, o aparecimento da Luma e da Steadycam, a sofisticação mente a concepção dos cenários e dos efeitos técnicos, agora
progressiva das câmeras DV mudaram progressivamente a abor­ chamados "especiais". Ele dá à pós-produção, do tratamento do
dagem mesma do ato de filmar. Por ora, o cinema ainda está lon­ som à sincronização - ambos digitalizados -, uma importância
ge de ser totalmente digitalizado; mas uma imensa mutação, atra­ crescente, e a própria montagem se informatiza de tal modo que
vés da imagem híbrida analógico-digital, já vem oc01Tendo nas não lembra mais a montagem à antiga, no copião, que desde o
etapas de concepção, realização e montagem de filmes de grande cinema mudo constituía tradicionalmente o termo final da cria­
sucesso (Titanic, Jurassic Park, O senhor dos anéis). A tecnologia ção fílmica. Do mesmo modo, o equipamento sonoro das salas
digital pode não apenas reduzir ou suprimir as operações de estú­ - Dolby, THX, digital -, assim como a projeção digital que está
dio, retocar imagens, inserir atores em ambientes sintetizados, apenas começando, modificam profundamente as condições de
captar seus movimentos por computador para restituí-los de for­ projeção. Basta comparar os créditos dos filmes de hoje, com
ma animada, criar personagens puramente virtuais, mas também suas listas intennináveis de colaboradores, e os quase lacônicos
toma possível a visualização de cenas e de mundos inéditos ou­ de apenas trinta anos atrás, para perceber essa evolução. A mul­
trora impossíveis de "concretizar". Daí a espetacularização ex­ tiplicação das funções corresponde a uma sofisticação técnica
trema dos filmes de catástrofe e dos filmes de guerra, mas tam­ cada vez maior, a ponto de os próprios estúdios recorrerem hoje
bém a realização de mundos imaginários "nunca vistos" de efeito à subcontratação, dirigindo-se a laboratórios especializados para
hiper-realista (ficção científica, mundos arcaicos). produtos que exigem tecnologias de ponta. A criação em 1 975,
Daí também as mudanças que as imagens sintetizadas acar­
retam no domínio da animação. As técnicas 3D substituem cada
vez mais as 2D. Em 1 995, a Disney, que reinava sozinha no mun­
do da animação tradicional desde os anos 1 930, teve que se asso- 32 Jean Scrroy, Entre deux siecles, op. cit., p. 5 5 1 .

50 51
por George Lucas 33 , de sua empresa de efeitos especiais ILM do momento descontínuo de experimentar sensações diretas e ime­
(Industrial Light & Magic), lançou um tipo de empresas adja­ diatas. A obra se toma filme-instante feito de imagens-excesso ou de
centes à indústria da produção que desde então se tomou, e não imagens sensoriais em sintonia com mn individualismo hedonista e
mais apenas em Hollywood34 , um elemento essencial dela. descompartimentado, típico da Me Generation.
O cinema, que sempre foi uma técnica da ilusão, entrega-se
agora a uma orgia de espelhamento do virtual. A imensidão dos terri­ O cinema por vir
tórios do fantástico, do maravilhoso, do monstmoso, do feérico é
invadida por filmes que lançam cada vez mais longe o tempo e o Revolução tecnológica que transformou igualmente o siste­
espaço da ficção científica, o horror dos monstros antediluvianos ou ma de difusão dos filmes. O mercado do vídeo deslanchou nos
futuristas, a megaenormidade de um Hulk ou a microminiaturização anos 1980 e se prolongou com o advento do DVD que, na França,
dos Minimoys [Artur e os Minimoys, de Luc Besson). O jogo com as passou à frente dos videocassetes no começo dos anos 2000. Nos
tecnologias pennite aqui dar corpo aos sonhos mais loucos, aos fan­ Estados Unidos, já em 1 987, as salas de cinema e a televisão aberta
tasmas mais inacreditáveis, às invenções mais delirantes, os efeitos representavam menos da metade das receitas: o vídeo e a televisão
especiais funcionando como estímulos. Chegamos a um cinema que a cabo conquistaram o primeiro lugar. Em 1998, o box-office das
faz vibrar não tanto pelos acontecimentos narrados quanto pelo efei­ salas para os filmes americanos era de 6,88 bilhões de dólares, con­
to das cores, dos sons, das formas, dos ritmos, e que se dirige ao que tra 8, 1 bilhões para a locação e 6,85 para a compra de vídeos. 3 6 Na
foi chamado um "novo espectador''. 35 Busca dos extremos sensitivos França, o mercado do vídeo representava, em 2002, dois bilhões de
em todas as direções e vinculada ao presenteísmo contemporâneo, euros, soma superior às receitas em salas. E novas tecnologias já
marcado pelo desejo de vibrar na velocidade, de viver a intensidade começam a disputar essa liderança: a Internet se toma uma plata­
fonna de difusão do cinema: o download e, agora, o telefone celu­
33 O caso de Lucas e de sua saga Star Wars é particularmente revelador. A concep­
lar são, na China e em Hong Kong, os meios correntemente utiliza­
ção da primeira trilogia, entre 1 977 e 1 983, faz o cinema hol lywoodiano entrar dos para ver um filme. Ainda que o vídeo on demand (VoD) esteja
verdadeiramente na era da high-tech. A segunda trilogia, entre 1 999 e 2005, a apenas no começo, deve-se registrar seu rápido surgimento: 5%
vinte anos de distância, marca já uma outra fase da tecnologia de ponta, a da híper dos intemautas americanos já o utilizam regulannente.
high-tech: introdução de personagens digital izados cm A ameaçafan tasma e pro­ A sucessão precipitada dessas altas tecnologias criou, para­
jeção, a primeira para um filme dessa importância, com projetores eletrodigitais;
filmagem de O ataque dos clones cm formato digital HD, com câmeras registran­ lelamente, um novo universo de consumo do cinema, uma espécie
do 24 imagens por segundo como na película tradicional; criação de mais de 2 .200 de consumidor de terceiro tipo, um hiperconsumidor que busca
efeitos especiais visuais - um recorde - para A vingança dos Si1h. A isso se acres­ filmes cada vez mais sensacionalistas, uma estética h igh-tech, ima­
centa uma concepção dos cenários que mistura de forma sistemática infografia e
tomadas reais.
gens chocantes e sensoriais que se encadeiam em velocidade ace­
34 Por exemplo, na França, a Buf Compagnie é uma das empresas de efeitos espe­ lerada. Através dos filmes assistidos por computador, é de fato uma
ciais mais reputadas no mundo. Inventando permanentemente todos os seus "mutação do regime escópico"37 do cinema que se anuncia.
soflwares, ela representa o mais alto grau de sofisticação informática, e Hol lywood
a solicita para tudo o que se refere à inovação. Ela interveio, entre outros, cm
Clube da luta, Batman & Robin, Malrix. 36 Caroline Eades, "La place du cinéma aux États-Unis", in J ean-Pierre Esquenazi
35 Roger Odin, "Du spectatuer fictionnalisant au nouveau spectatcur, approche (dir.), Cinéma con/emporain, étal des /ieux, op. cil. , p. 60.
sémio-pragmatique", !ris, n º 8, 1 988, p. 1 2 1 - 1 39. 37 Noel Nel, "Enjeux de la numérisation dans le cinéma contemporain", ibid., p. 292.

52 53
Indicam essas mudanças a morte do cinema? Será a virtual4º, assim como o último, que insere a palavra "Fim" não
hipertecnologia, com o tipo de hiperconsumo que suscita, o diretamente na tela de cinema, mas, por uma inclusão no interior
túmulo da criação, como se ouve dizer com frequência? Com da própria imagem, na tela eletrônica de um aparelho de televi­
toda a certeza, não. 38 Basta observar que a história do cinema é são. Longe de desviar o cinema de sua função de arte - expres­
também a de suas tecnologias e que são muitos os grandes cria­ são de uma visão do mundo e olhar crítico sobre a realidade -, a
dores, de Abel Gance a Godard, que se interessaram pela inova­ hipertecnicidade da high-tech lhe permite asswni-la de maneira
ção técnica. Quanto à mutação radical que o cinema conhece nova. Sempre mais eletrônica significa mais possibilidades aber­
hoje nesse plano, alguns exemplos eloquentes merecem ser le­ tas ao cinema, sem que isso sej a, é importante dizer, uma condi­
vados em consideração. Assim, Bergman, de modo nenhwn sus­ ção suficiente para a criação. O cinema hipermodemo decerto
peito das complacências comerciais que atribuem à indústria de não encontrará sua alma na orgia eletrônico-digital, mas
Hollywood, exigiu que seu último - e derradeiro - filme, tampouco a perderá necessariamente.
Saraband, primeiro projetado na televisão em 2003, o fosse no Estamos somente no começo dessa mutação, pois chega
cinema unicamente em técnica digital. A eletrônica como meio o momento em que a técnica original (película de nitrato de
de projetar o íntimo na superficie agora sem falha da tela gigan­ prata, bobina) pela qual o cinema era projetado em salas vai ser
te e fazer disso um verdadeiro espetáculo: não é mais o infinita­ substituído pelo digital. É todo um ciclo - cem anos de cinema
mente grande e grosseiro dos blockbusters, mas o infinitamente - que vai se apagar com o surgimento desse novo suporte. Por
preciso e profundo da tragédia pessoal, da velhice e da morte enquanto, há no mundo mais de 160 mil salas, mas somente
que se vê magnificado pelas virtudes do digital. Posição refor­ menos de 1 % desse parque está equipado para projeção digital.
çada por esta confidência de Alain Resnais, também um autor M esmo assim, o desaparecimento do cinema em suporte
de referência, ao observar a chegada do virtual sem um olhar analógico é inevitável. O suporte digital só não se impôs ainda
antecipado de hostilidade: "Não sou dos que lamentam o desa­ porque as salas multiplex, construídas nos anos 1990, devem
parecimento da película em proveito do digital. É preciso sim­ amortizar seu equipamento. Mas ele vai se impor em breve. E
plesmente saber usar o virtual. Tudo depende do que se faz com depois de amanhã, certamente, as salas não receberão mais os
ele". 3 9 E, nessa obra-prima intimista e pessoal que é Coeurs filmes em forma de bobinas ou de discos, mas diretamente a
[2006], o primeiro plano, que implanta o cenário, é um plano partir de satélites que os transmitirão de forma digitalizada. Pode­
se assim imaginar uma cadeia de cinema integralmente HD, da

40 Trata-se de um zoom em plongée sobre um prédio do novo bairro do BNF, a


partir de um plano geral que se fecha atravessando todo o bairro sob a neve. Alain
38 Jean-Michel Frodon escreve: "Esses novos instrumentos, essas novas práticas, Resnais explica assim sua elaboração: "Devíamos fazer esse plano de forma tradi­
esses novos modos de criação, de difusão e de consumo transformam o cinema cional, com uma imagem filmada desde um helicóptero. Por razões técnicas, isso
em profundidade. Nada prova, hoje, que eles conduzam a seu aniquilamento". não foi possível. A fotografia, outra solução, não funcionava. Propuseram-me
Horizon cinéma. L 'ar/ du cinéma dans le monde conlemporain à / 'âge du então um plano em 30. Fiquei pasmo. Havia um lado artificial, de convenção,
numérique et de la mondialisalion, Paris, Les Cahiers du cin6ma, 2006, p. 42. que combinava perfeitamente com o filme. O virtual, nesse caso, era evidente­
39 Entrevista com Jean Serroy. mente a solução" (entrevista com J.S.).

54 55
filmagem à comercialização em salas, com todas as vantagens de investimento intervêm no conjunto da produção de um estú­
que isso representa (qualidade de imagem superior, redução de dio, que realiza em geral entre 10 e 15 filmes por ano, sabendo
custos, não-deterioração das cópias, variedade das cores, e mes­ que, como diz um especialista da produção hollywoodiana, "um
mo projeção possível em relevo com lentes polarizadas). Um estúdio perde dinheiro num terço de sua produção, ganha muito
futuro, aliás, que nada tem de virtual : já existem 250 salas 3 D num outro terço e mal consegue equilibrar o último". 4 1
nos Estados Unidos; estão previstas mais d e mil para 2009. A Obviamente os filmes europeus estão muito longe de al­
ideia de mutação hipermodema do cinema encontra aqui sua cançar essas cifras. Mesmo assim os orçamentos médios aumen­
plena concretização tecnocientífica. taram muito nas duas últimas décadas. Na França, as produções
de mais de 1 O milhões de euros passaram de 4 filmes em 1992
Espiral dos custos e triunfo do marketing para 20 em 2001. E desde os anos 2000 as produções de grande
orçamento se multiplicam: os investimentos nessa categoria de
Ao mesmo tempo, é todo o sistema econômico do cinema filmes passaram de 25% em 1999 para 43% em 200 1. Lembre­
que registra um processo de escalada aos extremos, típico da mos também os orçamentos colossais de Luc Besson, que rivali­
nova era. Prova disso, em primeiro lugar, é o forte aumento dos zam com os de Hollywood: O quinto elemento custou 75 milhões
custos de produção. Durante a segunda metade dos anos 1 970 de euros e Arthur e os Minimoys, 65 milhões. O hipercinema é
se inicia a época dos blockbusters monumentais, superprodu­ acompanhado de uma estratégia de fuga para a frente dos produ­
ções marcadas pela explosão dos custos, dos orçamentos de tores que, buscando reduzir a incerteza que pesa sobre esse mer­
publicidade e dos cachês de artistas famosos. A seguir, multipli­ cado de risco,produzem filmes cada vez mais caros, filmes-acon­
cam-se os orçamentos faraônicos: enquanto a média orçamen­ tecimentos que supostamente atraem o grande público.
tária total de um longa-metragem é de 60 milhões de dólares, Enquanto as superproduções veem seus orçamentos se tor­
Hollywood produz a cada ano uns quinze filmes cujo orçamen­ narem cada vez maiores, os recursos dos pequenos filmes se
to ultrapassa os 100 milhões de dólares. O de Titanic atinge, em reduzem sempre mais. Tende assim a aumentar a distância entre
1997, o pico de 24 7 milhões, ultrapassados em 2007, por exem­ os filmes "ricos" e os filmes "pobres'', e a categoria intermediária
plo, por Homem-aranha 3 e seus 300 milhões. dos filmes de orçamento médio é que perde mais com essa nova
Essa espiral dos orçamentos acelera por outro lado a distribuição. 42 De um lado, um número crescente de filmes de
financeirização do mundo do cinema, fenômeno constitutivo da
hipennodemidade econômica. Cerca de 1O bilhões de dólares fo­
ram investidos no cinema americano em três anos (2004-2007). 41
Paule Gonzales, "Hollywood fascine les fonds d 'investissement", Le Figaro,
Wal l Street assinou um acordo de financiamento de 300 milhões 1 O de maio de 2007.
42 Pascale Fen-an, no discurso que pronunciou por ocasião da entrega do César a
de dólares com a Paramount e de 600 milhões com a Fox, e tam­ Lady Chatter/ey, aponta mais particularmente os perigos, para o cinema francês,
bém assumiu o controle de alguns estúdios, como a MGM. O "do sistema de financiamento dos filmes que resulta, de um lado, em filmes cada
Deutsche Bank, por sua vez, sustenta com 600 milhões de dóla­ vez mais ricos e, de outro, em filmes extremamente pobres. Essa fratura é recente
res a metade da produção da Universal e da Sony Columbia, e o na história do cinema francês. Não faz muito tempo, os chamados filmes media­
nos - justamente por não serem nem muito ricos nem muito pobres - eram inclu­
banco Goldman Sachs põe na mesa um bilhão de dólares para sive uma marca de fábrica do que o cinema francês produzia de melhor" (Le
financiar a Weinstein Company. Para dividir os riscos, os fundos Monde, 27 de fevereiro de 2007).

56 57
grande orçamento: de outro, cada vez mais filmes de baixo cus­ indignação, é, no star-system, cada vez mais divulgada e exposta
to: em 2002, 14 filmes franceses custaram mais de 1 O milhões como espetáculo, socialmente aceita e admirada. Os ganhos fa­
de euros, enquanto 4 1, menos de 1 milhão. O tempo do bulosos contribuem agora para o sucesso e a celebridade da star:
hipercinema é contemporâneo de um processo de bipolarização as revistas especializadas em cinema publicam todo ano a lista
dos orçamentos de produção. dos atores mais bem pagos, tanto em Hollywood como na Fran­
Explosão dos orçamentos e infl ação dos cachês das stars ça, assim como a revista Fortune divulga anualmente a lista das
seguem juntos: Brad Pitt, Tom Cruise, Julia Roberts e N icole maiores fortunas mundiais. O montante dos cachês também faz
Kidman recebem entre 16 e 20 milhões de dólares por filme. sonhar. O que se passa na escala global se verifica no centro do
Tom Hanks embolsou 25 milhões de dólares por Código Da universo do cinema: o fenômeno da desigualdade se aprofunda
Vinci, e Reese W hitherspoon, cujo valor comercial disparou no seio de cada grupo profissional.45 Por toda parte aumentam as
com o Oscar, negocia 29 milhões para Ourfamily trouble, maior desigualdades intracategoriais,o enriquecimento dos mais célebres,
cachê jamais registrado para uma atriz. Claro que os cachês a distância entre os superganhadores e os perdedores. O hipercinema
astronômicos das superstars não datam de hoje. Mas o nível existe à imagem do hipercapitalismo globalizado, marcado pelas
de remuneração das vedetes, nos últimos vinte anos, transpôs desigualdades espetaculares e pelo triunfo do star-system que se
claramente uma etapa em razão da mudança de escala dos mer­ aplica a um número crescente de atividades.
cados, do quase desaparecimento dos contratos estáveis e da E a enormidade dos cachês e dos custos não é de modo
participação nas receitas dos filmes. Ao cachê de 20 milhões algum uma garantia de sucesso: a despeito dos investimentos pro­
de dólares pago a Bmce Willis por O sexto sentido acrescen­ mocionais, não são raros os fracassos. No entanto, alguns filmes
tou-se a soma de 100 milhões de dólares resultante da partici­ obtêm receitas e lucros fenomenais que permitem equilibrar as
pação. As stars não só recebem quantias colossais, mas estas contas das empresas do ramo. Jurassic Park arrecadou 9 1 7 mi­
são obtidas muito mais depressa que antes e, o que é mais, acresci­ lhões de dólares de receitas mundiais, a segunda parte de O se­
das pela participação nas campanhas publicitárias das grandes mar­ nhor dos anéis, 9 1O milhões. As receitas internacionais de Titanic
cas. Como dizem os americanos: "The winner-take-all-society" (a ultrapassam 1,8 bilhão de dólares. Se faz sentido falar de hiperci­
sociedade do vencedor que rapa tudo).43 nema, é por ele ser o da explosão de custos, mas também de re­
Não é surpreendente que nesse sistema as desigualdades cordes e lucros, inseparável de uma espécie de excrescência eco­
de rendimentos não cessem de se amplificar. Em 1994, na Fran­ nômica, ela mesma apregoada para fim promocional.
ça, a média dos ganhos dos atores foi de 13.300 euros, mas 120 Tal sucesso é acompanhado de uma mudança profunda
deles ganharam mais de 150 mil euros. Os 10% mais bem pagos nos métodos de distribuição e de comercialização dos filmes.
ficaram com 52% do volume de remuneração, e a metade dos Através da blanket strategy, ou estratégia de cobertura, o cine­
atores recebeu somente 11% do montante total dos cachês.44 De­ ma hipermoderno abriu o caminho para o crescimento do
sigualdade considerável de rendimentos que, longe de suscitar a marketing. Nos períodos anteriores, os filmes americanos eram

43 Françoise Benhamou, L 'Économie du star-syslem, op. cit. , p. 13 1-152.


45 Daniel Cohen, Richesse du monde, pauvrelés des nalions, Paris, Flammarion,
44
Pierrc-Michcl Menger, La Profession de comédien, Paris, La Documentation
française, 1997. "Champs", 1 997, p. 78-91.

58 59
lançados com apenas vinte ou trinta cópias nas salas nova­ sua carreira em salas durante dois ou três anos, nos anos 2000 ele
iorquinas, antes de sua difusão progressiva até as pequenas sa­ efetua 80% de suas receitas durante as quatro primeiras semanas.
las das cidadezinhas do interior. Raramente se contavam mais Numa época em que a concorrência entre os filmes se exacerba, é
de 300 cópias por filme em circulação. Essa estratégia mudou a preciso reduzir os prazos do sucesso, uma pequena bilheteria con­
partir de 1975, data de lançamento de Tubarão, com 500 cópias duzindo à retirada extremamente rápida do mercado - muitos lan­
em salas no mesmo dia. Atualmente, contam-se de 8 mil a 1 O çamentos não vão além da primeira semana de exploração co­
mil cópias por filme, 4 mil delas para o mercado americano e o mercial. Com raras exceções A diva e os gângsteres, por exem­
resto para o mercado internacional. Agora, alguns filmes são plo, ou filmes como A esquiva [Abdellatif Kechiche, 2003] ou
proj etados simultaneamente no mundo inteiro.46 Na França, o Lady Chatterley [Pascale Ferrand, 2006], relançados após con­
número de cópias por filme aumentou 3 7% entre 1994 e 1998. quistarem o César - o prêmio anual do cinema francês -, o suces­
E os grandes lançamentos monopolizam hoje 800, 900 e até mil so hipermoderno é "agora ou nunca".49
telas. 47 Fazer o público esperar onde quer que ele esteja, qual­ A isso se acrescenta uma estratégia de extensão da co­
quer que ele seja, tornou-se um risco grande demais numa épo­ mercialização através de objetos complementares. Logo após o
ca dominada pela superabundância da oferta e pela atitude lançamento de Guerra nas estrelas, videogames estavam dispo­
consumista do "aproveite já". níveis no mercado; pouco depois, os .fast-food e grandes redes
Ao mesmo tempo, assiste-se a uma fonnidável intensifica­ de lojas de brinquedos propunham outros produtos derivado .
ção das campanhas publicitárias, cujos orçamentos vão às altu­ Do mesmo modo, Jurassic Park rendeu um bilhão de dólares
ras. Nos anos 1940, mesmo os estúdios mais avançados não gas­ com mais de mil produtos derivados. O rei leão obteve 3 1 O mi­
tavam mais de 7% do custo de produção em publicidade. Nos lhões de dólares de receitas em salas e 700 milhões em produtos
dias de hoje,o custo de promoção dos filmes americanos se eleva derivados. O sucesso de um filme se mede não mais apenas pela
em média a mais de um terço e, nos casos extremos, a mais da bilheteria, mas também pela venda dos produtos que ele gera.
metade do custo de produção. O orçamento médio de marketing Proliferação dos filmes, hiperpromoção das grandes pro­
de um filme era de 6,5 milhões de dólares em 1985; ele atingiu 39 duções,"oferta maciça", redução do tempo de exploração comer­
milhões de dólares em 2003 .48 O imperativo é inundar o merca­ cial em salas: são processos que provocam uma concentração do
do,criar um megaevcnto através de uma estratégia de onipresença sucesso num número de filmes cada vez mais restrito. Em 1 998,
do filme tanto nas sala como na mídia. Em consequência disso, Titanic e O jantar dos malas [Francis Yeber, 1997] açambarca­
a maior parte das receitas em salas é obtida nas primeiras sema­ ram, sozinhos, 44% das receitas no mercado francês. Dos 506
nas de lançamento. Enquanto nos anos 1960 um filme efetuava longas-metragens projetados na França cm 200 1, 30 filmes obti­
veram mais de 50% da bilheteria e uma centena absorveu quatro
46 Vinzcnz Hcdigcr, "Lc cinéma hollywoodien ct la construction d'un public mondialisé", quintos dela. 50 Em dezembro de 2006, cinco filmes ocupavam
in Jean-Pierre Esquenazi (dir.), Cinéma contemporain, étal des /ieux, op. cil.
47 Em 2007, o preço de uma cópia, na França, varia de 700 a 1.200 euros, confor­
me o tamanho do filme e a qualidade do produto. 4" Contudo, na medida em que a economia do cinema depende cada vez mais da
41 "Le spectateur dans les filets du marketing", Le Monde, 20 de dezembro de 2006. exibição fora de salas, a amortização dos custos de produção necessita, em reali­
Na França, entre 2001 e 2004, os investimentos publicitários dos filmes dobraram dade, de mais tempo.
e, entre outubro de 2005 e outubro de 2006, esses gastos cresceram cm 15,4%. su Françoise I3enhamou, L 'Économie de la culture, Paris, La Découverte, 2001, p. 67.

60 61
70% das 5.300 telas existentes. Inversamente, em um ano, 40% vídeo nos lares, a frequência das salas segue mna curva declinante.
dos longas-metragens foram exibidos em apenas 4% das salas. O público vai cada vez menos ao cinema. 52 Os números são cla­
Quanto maior a oferta, tanto menor o número de filmes que con­ ros: em 2002, os americanos frequentavam o cinema 5,4 vezes
tribui para a bilheteria e o volume de negócios. por ano em média e os europeus, 2,4 vezes. Na França, as salas
Se é verdade que, em princípio, a distribuição digital ili­ acolhem hoje menos de 200 milhões de espectadores, contra 300
mitada pode permitir que filmes mais confidenciais ganhem ter­ a 400 milhões nos anos 1940- 1950. Em toda parte, a frequência
reno e tenham uma duração de vida mais longa - é a teoria da regular (ao menos uma vez por mês) decresce: em 1979, já não
"cauda longa [Long Tail]" posta em voga por Chris Anderson -, o era mais que de 17,8% e, em 1 992, de 1 5%. As variações dos
fato é que por ora é a cultura dos h its e a aceleração da resultados anuais se devem muito à presença de um ou dois fil­
obsolescência dos produtos culturais que se impõem cada dia mes de grande sucesso, como Titanic ou Os bronzeados 3 [Patrice
mais. Hoje, uma dezena de fi lmes novos são lançados em média Leconte, 2006], que pesam na contagem, mas que não afetam a
toda semana nas telas francesas, expulsando com isso filmes tendência de fundo. Os franceses, hoje, não vão mais ao cinema
em ca1taz que não tiveram, muitos deles, tempo para se instalar. senão 3 vezes ao ano, em média. Nesse novo contexto, é o públi­
O que poderá verdadeiramente frear a redução do tempo de vida co jovem que se mostra mais assíduo: a faixa de 15-24 anos vai
dos filmes, numa época dominada pela sede de novidades e pela em média um pouco mais de 7 vezes ao ano.
superabundância da oferta cinematográfica? Nada garante que Ao mesmo tempo, o consumo semicoletivo de outrora (em
a Internet consiga pôr em xeque essa lógica estrutural da salas ou em família) é substituído por um consumo de tipo
hipennodernidade consumista. Pois o que vai guiar a escolha hiperindividualista, desregulado, dessincronizado, no qual cada
dos consumidores? Em que o público vai se apoiar, senão na­ um vê o filme que quer, quando quer, onde quer. Pode-se ver um
quilo "de que falam", nos grandes sucessos do presente? O tem­ filme de cinema no quarto, pela Internet, em viagem, numa tela
po em que os "nichos" representarão um mercado tão importan­ portátil, e agora também no celular. Mesmo os voos de longo
te quanto os hits ainda está distante. curso que, mediante telas de formato razoável, transformavam
a cabine do avião em sala de cinema coletiva, propõem agora
O hiperconsumidor de cinema pequenas telas individuais ligadas a cada assento, oferecendo a
cada passageiro a possibilidade de escolher sua língua e seu fil­
No plano do consumo, as mudanças não são menores. Du­ me. Todas as antigas exigências de espaço (a sala escura), de
rante muito tempo, o cinema foi associado a um tradicional pas­ programação e de tempo (os horários) foram pelos ares. Pode­
satempo de família nas salas de projeção. Em 1930 e em 1944, se ver um filme em qualquer lugar, em qualquer momento do
quase todos os americanos iam uma vez por semana ao cinema. 51 dia e da noite. Com o DVD e as ofertas na Internet, cada um, ao
Estamos longe disso: desde a chegada da televisão e depois do menos em princípio, pode construir sua própria cinemateca em

51 Francis Bordat, "De la crise à l a gucrre: le spectacle cinématographique à l 'âge 52 Em troca, desde os anos 1970, o público consome cada vez mais nas salas: no
d'or des studios", in Francis Bordat, Michel Etcheverry (dir.), Cent ans d 'a/ler au final dos anos 1980, a banca de guloseimas contribuía com 60% dos ganhos dos
cinéma. Le spectacle cinématographique aux États- Unis, Renncs, Presses c inemas americanos. Ver John Dean, "Cinémas el shopping centers: les salles des
Univcrsitaires de Renncs, 1995, p. 69. années soixante-diz", ibid. , p. 143.

62 63
função de seus gostos. A prática "ritualizada" do cinema cedeu mente os filmes de Hollywood que fazem o hiperconsumidor se
o lugar a um consumo desinstitucionalizado, descoordenado, deslocar. À medida que os gostos se fragmentam, as escolhas se
tipo autoserviço. voltam em massa para as produções do star-system. 54 Como
Esse aumento de individualização de modo nenhum equi­ pensar essa aparente contradição entre a blockbustermania e a
vale à erradicação do sentido coletivo do cinema. Nove entre dez espiral individualista da nossa época?
franceses declaram que vão ao cinema com mais alguém (casal A explicação mais frequente subl inha o poder econômico
ou amigos), não mais que 7% dos espectadores têm o hábito de ir de Hollywood que, martelado sem parar pelo marketing, é ca­
sozinhos às salas escuras. 53 Numa época em que o cinema sofre a paz de orientar, para não dizer dirigir, os gostos. Essa análise
concorrência do vídeo e da Internet, "ir ao cinema" é vivido como tem uma parte inegável de verdade. Graças às grandes estrelas e
um momento de convivialidade e compartilhamento das emo­ aos maiores realizadores que somente Hollywood pode financiar,
ções. H iperindividualismo não quer dizer confinamento no espa­ graças a uma promoção-monstro e a orçamentos de produção
ço doméstico, mas sociabilidade seleta e autoconstrução do espa­ que servem eles próprios de argumentos publicitários, as super­
ço-tempo pessoal ligado ao cinema. produções podem ocupar o terreno e estimular a demanda com
Erosão da frequência das salas, visão do filme em situa­ o sucesso que conhecemos. No entanto, há l imites a esse tipo de
ção de nomadismo, proliferação das pequenas telas: mas nem explicação, muitos fi lmes de custos exorbitantes nem sempre se
tudo está decidido, nem tudo conduz a um inelutável decl ínio dão bem, como sabemos.
da magia "original" do cinema. Pois, paralelamente a essas ten­ É necessário então introduzir outros parâmetros, entre os
dências banalizadoras, a tecnologia toma possível, sobretudo quais figuram, em primeiro lugar, o estilo do cinema americano e
através do home cinema, uma nova experiência espetacular que as expectativas do hiperconsumidor. A observação não é nova: as
recria o encantamento mais tradicional do cinema. Desforra do superproduções hollywoodianas visam desde o início um merca­
cinema "eterno": o feitiço "aurático" poderá amanhã se alojar do mundial, apagando todos os aspectos que exigem chaves de
no conforto cotidiano e privatizado do hiperconsumo. Virá tal­ compreensão particulares ou que ilustram dimensões nacionais
vez o dia em que a excelência do cinema não mais se encarnará ou provinciais. Foi proposto com razão, a esse respeito, o concei­
na sala escura dos multiplex, mas no espetáculo de fi lmes to de "filme mundo"55, que resulta num modelo transnacional
digitalizados num lar high-tech. uniforme e edulcorado. Nesse plano, a dominação de Holl ywood
Falar de hiperindividualismo a respeito do consumo de se constrói de duas maneiras: de um lado, buscando o mínimo
cinema levanta uma objeção bem conhecida: 85% dos ingres­
sos de cinema vendidos no mundo são para filmes produzidos 54 Donde as dificuldades crescentes enfrentadas pelos fi lmes de autor. Em 2006,
em Holl ywood; os filmes americanos ocupam de dois terços a dos cinco fi lmes indicados ao prêmio Louis-Delluc, o "Goncourt do cinema", três
três quartos do mercado europeu; sete grandes estúdios de cine­ não conseguiram atrair 1 50 mil espectadores. Os rendimentos do Arte Cinéma,
um dos principais agentes do cinema francês de autor, caíram de 2 mi lhões para
ma americano dominam 80% do mercado mundial. Não há como 0,5 milhões de euros. Enquanto isso, os fi lmes "comerciais" continuam lotando
não observar que, no momento da tela planetária, são principal- as salas: cerca de 1 90 milhões de ingressos foram registrados na França em 2006
e vários fi lmes u ltrapassaram o milhão de espectadores. Ver: "2006, salc annéc
53 O número salta para 25,7% no caso da frequência das salas de arte: nesse caso, pour les auteurs", Le Monde, 7 e 8 de janeiro de 2007.
55 Charles-Albert M ichalet, Le Drôle de dra111e du cinéma 111011dial, Paris, La
o fato de ir ver um fi lme sozinho está ligado à cinefilia à moda antiga.
Découverte, I 987.

64 65
múltiplo comum entre os públicos do globo; de outro, visando urna modernidade "pós" ou sem fôlego, testemunha, ao contrário,
aos públicos jovens e adolescentes. Ou seja, os maiores conswni­ sua exacerbação. É realmente um cinema ultramoderno que vemos
dores de cinema detêm as chaves do sucesso. Daí toda uma série de agora nas telas. Este se caracteriza, estruturalmente, por três tipos
filmes que visam explicitamente esse alvo, a começar pelo gênero de imagens fundamentalmente inéditas, todas portadoras de uma
prolífico dos teen movies. Daí também um estilo "jovem","violen­ lógica "híper", de natureza específica.
to", marcado pelo grande espetáculo, pelos efeitos especiais, pela O primeiro processo coincide com a dinâmica da hiperboli­
cultura clipe, pela escalada da violência num ritmo alucinante,com zação. Cada vez mais, o neocinema se distingue por uma estética
mais ação que introspecção. Nenhuma contradição entre o tropismo do excesso, uma busca do sem-limite, uma espécie de proliferação
de massa para as superproduções e o hiperindividualismo vertiginosa e exponencial . Se cabe falar de hipercinema, é porque
consumista, mas a adaptação do cinema a um público formado ele é o do nunca bastante e do nunca demais, do sempre mais de
pelo ritmo da mídia que deseja sensações rápidas e fortes, sempre tudo: ritmo, sexo, violência, velocidade, busca de todos os extre­
novas, a fim de ser transportado aos universos extraordinários do mos, e também multiplicação dos planos, montagem-corte, pro­
não-cotidiano. O espectador de cinema queria sonhar; o longamento dos filmes, saturação da faixa sonora. Com certeza,
hiperconsumidor do mundo novo quer sentir,ser surpreendido, quer nem a "imagem-movimento" nem a "imagem-tempo" permitem
"adrenalina", experimentar novas emoções-choques sem parar. explicar uma das grandes tendências do cinema contemporâneo. À
taxonomia de Deleuze57 deve-se agora acrescentar wna categoria
Uma arte hiperlativamente moderna tanto crucial quanto necessária: a imagem-excesso.
O segundo processo consiste numa lógica de desregulação e
A hipennodernidade do cinema não se reduz às mudanças de complexificação formal do espaço-tempo filrnico. Estrutura,
que afetam os modos de produção e de difusão, de comercialização narração, gênero, personagens: a hora é de dessimplificação, de
e de consumo. São também o estilo, as imagens, a gramática dos desrotinização, de diversificação tendencial do cinema, as referên­
filmes que possuem agora o traço da nova modernidade. cias uniformes e claras coabitando cada_ vez mais com o atípico.
Já nos anos 1980, os melhores analistas observaram o apare­ Sem ser onipresente, essa dinâmica assinala, porém,um novo espí­
cimento de uma categoria de filmes de um novo gênero, centrados rito do cinema. Nunca os filmes foram tão tecnicamente elabora­
nas imagens-sensações, nas citações, no empréstimo fonnal. Asso­ dos, nunca os modos de narrativa foram tão diversificados, nunca
ciado ao esgotamento das figuras clássicas da narrativa, esse cine­ as misturas de tom, os cruzamentos de linhas, as ambiguidades de
ma foi rotulado como "pós-moderno". 56 O diagnóstico é justo, a sentido foram buscadas de maneira tão sistemática. Mesmo sendo
denominação, não. A nova retórica do cinema, longe de exprimir inegável que, com os blockbusters, Hollywood pennanece fiel à
estética da grande forma narrativa clássica, o cinema hipermoderno
56 Citemos, cm particular, Kenneth Von Grundcn, Postmodem A uthors, Coppola, é o do multiforme, da hibridação, do plural. A fase precedente foi
Lucas. De Palma, Spielberg, Scorcese, Londres, MeFarland & Co., 1 991; Fredric também construída sobre a desestruturação, mas de forma polêmi­
Jameson, Postmodernism. or the Cultural Logic o/late Capitalism, Durham, Duke ca, com a vontade de romper os tabus. Isso não acontece mais no
University Press, 1991; Mareia Landy e Luey Fisher, "Dead Again or A-Livc
Again, Postmodem or Postmortem?", CinemaJournal, vol. 26, nº 4, 1994; Laurent
Jullier, L 'écran post-moderne. Un cinéma de / 'a/lusion e/ dufeu d 'artifice, Paris, 57 Gillcs Deleuze, Cinéma 1, L 'image-mouvement, Paris, Minuit, 1983 e Cinéma
L' Harmattan, 1997. 2. L 'imagem-temps, op. cit.

66 67
cinema contemporâneo: a desregulação se dá agora por si, está in­ espectador está tanto dentro como fora dos filmes: esse é um dos
tegrada, é perceptível e admissível por todos, empregada sem von­ paradoxos do hipercinema.
tade de ruptura ou de provocação. A liberação em relação aos códi­ Os três conceitos fundamentais que propomos aqui - a
gos tradicionais passava,com Godard, Antonioni,Pasolini,por obras imagem-excesso, a imagem-multiplex, a imagem-distância - de­
com mensagem, anti-stablishment e de acesso dificil. Banalizada signam os três processos constitutivos do cinema hipennoderno.
agora e estendida ao conjunto do cinema de grande público, a Eles têm um denominador comum: constroem um cinema livre
desregulação e a complexificação fazem parte do jogo. O cinema das normas passadas, dos freios e obstáculos, das convenções
da hipennodemidade é aquele que ilustra assim uma categoria estéticas e morais de outrora, às vezes muito estritas (o código
conceituai, ela também inédita: a imagem-multiplex. Hays, de 1930, em vigor nos Estados Unidos até o final dos
O terceiro processo é o da autorreferencialidade. O cinema anos 1960, o índex editado pela 1greja, o bom gosto, a exclusão
muito cedo se viu ele próprio no cinema, na imagem de Louise do sexo... ). Que exigências, que códigos imperativos existem
Brooks morrendo na sala de projeção ao ver sua imagem de estrela ainda? Tudo ou quase tudo foi varrido. O cinema em sua forn1a
projetada na tela, na última sequência de Miss Europa [Augusto contemporânea registra um processo idêntico ao que conduz dos
Genina, 1930]. Essa referencialidade reflexiva adquiriu o valor de meios de comunicação de massa às hipermídias, do capitalis­
reivindicação crítica com a modernidade dos anos 1960, para afir­ mo, ao hipercapitalismo, do consumo ao hiperconsumo. Assim
mar, frente ao cinema clássico, suas escolhas e sua autonomia: as como as regulamentações do Estado e as culturas de classe per­
citações que Godard espalha ao longo de seus filmes são como um dem sua força na fuga para diante do hipercapitalismo financei­
programa a decodificar. Com a era hipermodema,o fenômeno muda ro e consumista, assim também cedem os ferrolhos estéticos, os
de natureza: ele se banaliza, se diversifica, toma-se a linguagem antigos tabus morais, os quadros espaciotemporais do antigo
mesma de um cinema em que a referência, a releitura, o segundo cinema. Junto com as desregulações generalizadas e as espirais
grau, a paródia, a homenagem, a citação, a reinterpretação, a reci­ hiperbólicas, o cinema dos tempos hipennodernos se constitui:
clagem, o humor são práticas COJTentes. Cinema dentro do cinema, um hipercinema no qual é lícito ver a forma superlativa, ou
cinema sobre o cinema, autocinema, pericinema, metacinema: o melhor, hiperlativa da nova modernidade.
cinema não é apenas aquela "arte sem cultura" evocada por Roger À diferença das reivindicações-proclamações e dos ma­
Pouivet58, mas uma arte que cria sua própria cultura e se alimenta nifestos da fase precedente e do seu cinema contestatário, o
dela. A ideia de uma arte sem cultura é tanto mais discutível na hipercinema se afim1a sem grande modelo antagônico, sem pólo
medida em que o processo de complexificação filmica forma e adversário. Mais que isso: os pares de oposições de outrora se
enriquece a sensibiliadde estética dos espectadores, mesmo sem a dissolvem. A clivagem entre arte e indústria, entre cinema de
visada humanista tradicional. O conceito que pode traduzir essa autor e cinema comercial, perdeu sua radicalidade.
hipermodernidade autorreferencial não é senão a imagem-distân­ Um tríplice fenômeno se produz. Por um lado, a penna­
cia. Ao imergir sensorialmente o espectador no filme, abolindo, nência e mesmo o desenvolvimento de um cinema de pesquisa se
como vimos, a distância em relação à imagem, o cinema hipermo­ verifica no número sempre crescente de filmes novos e no papel
derno cria uma distância de outra ordem, que tem a ver com o de laboratório desempenhado pelas produções independentes: o
espirituoso, com um mecanismo intelectual e humorístico. Agora o festival de Sundance tornou-se ao longo dos anos uma reserva
onde os grandes estúdios vão buscar novos talentos capazes de
51
Rogcr Pouivct, L 'OEuvre d 'arl à I 'âge de sa 111ondialisalion, op. cit. , p . 94. alimentar com suas próprias pesquisas a produção hollywoodiana.
Por outro lado, assiste-se, na outra ponta da corrente,a uma proli-

68 69
fcração de produtos sem ambição e a uma inflação de grandes or­
çamentos, ostensivamente destinados ao público mais amplo e ao Ca pítulo l i
mercado mais rentável, fazendo um cinema de massa extremamente
formatado. Mas, por outro lado ainda, constata-se também o im­ A imagem-excesso
pacto do cinema de autor sobre filmes de grande público mais refi­
nados e sofisticados: de Delicatessen a Ofabuloso destino de Amé/ie
Poulain, de Amnésia a Batman Begins,as trajetórias de Pierre Jeunet
e de Chistopher Nolan, passando de filmes de pesquisa para pou­ Da era do vazio, passamos à era da saturação, do excessi­
cos a superproduções de grande sucesso popular, são bons exem­ vo, do superlativo em todas as coisas. Assim como a sociedade
plos. Nascem assim filmes de um terceiro tipo, cujo perfil não é hipennodema se distingue por uma proliferação de fenômenos
mais tão definido. Como caracterizar Menina de ouro [Clint hiperbólicos (bolsistas e digitais, urbanos e artísticos, biotecno­
Eastwood, 2005], O piano [Jane Campion, 1992], De salto alto lógicos e consumistas), assim também o hipercinema se carac­
[Pedro Almodóvar, 1992], Vida cigana [Emir Kusturica, 1989], teriza por uma fuga para a frente supermultiplicada, uma esca­
Maria Antonieta [Sofia Coppola, 2006], A dália negra [Brian De lada de todos os e lementos que compõem seu universo. 1
Palma, 2006]? E Forrest Gump [Robert Zemeckis, 1 993] e A vida I sso se traduz, em primeiro lugar, no nível mais concreto,
é bela [Roberto Benigni, 1998] ou A imensidão azul [Luc Besson, pela extensão mesma do filme. Durante muito tempo, este este­
1988]? Os próprios distribuidores se perdem, às vezes não sabendo ve ligado ao número de rolos, que impunha uma duração média
mais se devem explorar um filme em v.o. [versão original de áudio], de uma hora e meia. Somente ultrapassavam essa norma filmes
no circuito de arte e experimentos, ou em v.d. [versão dublada], no excepcionais e com uma dimensão de saga e de grande espetá­
circuito do grande público; eles inventaram mesmo urna categoria culo: é o caso das 3 horas e 42 minutos de E o vento levou
híbrida, o "filme de autor com forte capacidade comercial". [Victor Fleming, 1939] . Ora, a tendência agora é de filmes sem­
O fosso entre cinema de arte e cinema comercial é menos
pre mais longos, sem que em geral isso se justifique por razões
marcado: Resnais obtém hoje verdadeiros sucessos públicos, e
dramáticas. A duração média dos filmes passou progressivamente
os blockbusters não se proíbem mais algumas audácias formais.
para 1 hora e 40, depois para 1 hora e 50, beirando atualmente
A confusão crescente ligada à aliança dos contrários é uma das
tendências da nova era do cinema. De repente, a cultura de mas­ duas horas. E, naturalmente, do lado das superproduções, não
sa não é mais o que se distingue ostensivamente, no modo nega­ há mais grande espetáculo com menos de três horas: o Titanic
tivo, da cultura de elite; esses dois territórios se intercambiam, afunda em 3 horas e 1 O, King Kong, sempre mais imenso, tem
se imbricam, se interpenetram de mil maneiras, criando um ci­ sua duração aumentada a cada versão: 1 hora e 40 em 1933, na
nema tendencialmente misto. Não há arte de massa eterna: ela de Marian Cooper e Emest Schocdsack, 2 horas e 14 em 197 6,
também tem uma história, construída na oposição entre criação na de John Guillermin, 3 horas em 2005, na de Peter .Jackson.
e clichê, qualidade e mediocridade, high art e low art. Essa con­
figuração certamente persiste, mas perdeu seu gume. O que era
absolutamente incompatível nem sempre o é mais, a arte de 1
Sobre as ligações da hipermodernidadc e do excesso, ver Paul Virilio, Vi/esse et
massa tendo conseguido absorver uma parte das experimenta­ Politique, Paris, Galiléc, 1977; Jean Baudril lard, Les Stralégies fatales, Paris,
Grassct, 1 983; Marc Augé, Non-/ieux, Paris, Seuil, 1 992; Pierre-André Taguieff,
ções da arte modernista. E não por baixo, como se podia espe­ L 'Ejfacement de l 'avenir, Paris, Galilée, 2000; Gil les Lipovetsky, Les temps
rar. É realmente uma hipercultura que nasce sob os nossos olhos. hypermodemes, op. cit.

70 71
Essa fuga para a frente encontra sua plena realização nos sempre mais assombrosos -, intensificam consideravelmente sua
filmes de grande espetáculo, recheados de ação, de suspense, de força de impacto, sua "ação fulminante". A transcrição de imagi­
imagens "violentas". Geralmente destinadas a um público mais nários cuja visualização era até então limitada por técnicas de
adolescente que adulto, as megaproduções hollywoodianas se menor desempenho torna-se possível. Peter Jackson pode agora
baseiam nos códigos dos gêneros clássicos (horror, guerra, ca­ transpor o universo fantástico de Tolkien na trilogia de O senhor
tástrofe, ficção científica) que elas renovam por estímulos sen­ dos anéis e, em A revanche dos Sith [ Guerra nas estrelas, 3], há
soriais - efeitos especiais, ritmo desenfreado, explosões sono­ mesmo a visão de oito planetas totalmente fictícios, cada wn com
ras, violência em cascata. Não estamos mais na estética moder­ sua especificidade, sua paisagem, seu design. Do mesmo modo,
nista da ruptura, mas na estética hipennoderna da saturação, Neo, o Salvador de Matrix reloaded [Larry e Andy Wachovski,
tendo por objetivo a vertigem, a sideração do espectador. Arras­ 2003 ] , pode combater contra um adversário multiplicado por cem
tado pela produção das imagens, pela velocidade das sequências, graças às virtudes da clonagem infonnática.
pelo exagero dos sons, o neocinema aparece como um cinema A realidade virtual, ponta extrema da invenção high-tech, é
hipertélico (*). a concretização da imagem-excesso enquanto tal. 2 O efeito é pro­
Mas o que funda ainda mais a ideia de hipercinema, para priamente extraordinário nas salas que dispõem de equipamentos
além dessa força de impacto, é também o lugar que este reserva especiais em que a utilização pelo espectador de lentes 3D cria
a todas as formas de excrescência, de busca dos extremos, de uma viagem virtual intensa, uma imersão total na imagem, uma
exacerbações corporais, sexuais e patológicas: serial ki!lers,obe­ mobilização alucinatória dos sentidos. Estimulação em tempo real,
sidade e drogadição,junlcies, esportes radicais, pornografia, per­ banho de sensações corporais num "novo mundo", modificação e
sonagens extraterrestres, fenômenos paranormais, super-heróis, desestabilização das percepções, sensação extrema de realidade:
corpos programados e reprogramados. É através de uma lógica é a vertigem hipermoderna, uma espécie de trip sensorial que se
do exces o que se estrutura e se narra o cinema contemporâneo. desenvolve na ilusão perfeita produzida pela realidade virtual.
É verdade que a high-tech não está em toda parte e que ainda
Cinessensações há espaço para filmes tradicionais que se proíbem qualquer recurso
às imagens feitas por computador. Mas é tal a evolução que prati­
A imagem-excesso aparece primeiramente como o efeito camente nenhum filme, hoje, é feito sem que a informática e o
direto das novas tecnologias. O digital, em particular, com as imen­ digital intervenham, não se podendo mais conceber um cinema de
sas possibilidades que abre, favorece os gêneros mais consumi­ espetáculo, de evasão, de ação, sem eles. De Asterix e Obelix: Mis­
dores de efeitos especiais e suscita blockbusters que servem de são Cleópatra [ Alain Chabat, 2002] a Vi.docq - 0 mito [PitoC 200 1 ],
vitrine a esses efeitos, numa disputa de imagens-choque cada vez de A múmia [Stephen Smmners, 1 999] a Arquivo-X- Oji/111e [Rob
mais atordoantes. Os filmes de ação, de ficção científica, de aven­ Bowrnan, 1998] ou a Eu, Robô [Alcx Proyas, 2004], os efeitos
turas, de horror, mesmo os filmes para crianças - como Harry
Potter e a pedra filosofal e suas sequências violentas de efeitos
2 O virtual consegue criar mundos e personagens inteiramente sintéticos, capaz
hoje de reproduzir tudo, inclusive, como em Final fantasy, o que era então o
(*) Té/ico é um termo da linguística que denota uma ação que visa a atingir uma elemento humano mais difícil de realizar: o movimento da cabeleira, o infinita­
finalidade e que cessa quando essa finalidade é atingida. (N.T.) mente fino do fio de cabelo.

72 73
especiais estão em toda parte, numa tal inflação que um filme deve que A imensidão azul tomou-se o filme cult de um geração que
sempre oferecer mais que o seu precedente. A promoção das conti­ encontra na vertigem das profundezas ao mesmo tempo um va­
nuações, aliás, se apoia amplamente nessa escalada de imagens lor de absoluto e uma descarga de adrenalina. Multiplicam-se
pirotécnicas: o espectador, mobilizado pelo lançamento comercial os filmes que querem produzir o frisson da velocidade extrema:
do filme, vai ver a segunda parte de Piratas do Caribe, com sua bólidos ultrarrápidos (Taxi 1, 2, 3, 4); surfe nas ondas de Malibu
tripulação de esqueletos-zumbis e seu monstro marinho de infini­ ( Caçadores de emoção, justamente traduzido em francês por
tos tentáculos,como uma aposta tecnológica para levar ainda mais Extrême Limite); skateboard praticado no asfalto das ruas (Os
longe o virtuosismo em relação ao primeiro episódio. À espera de reis de Dogtown); corrida acrobática escalando paredes e fa­
um terceiro ainda mais excessivo... chadas ( Yamakasi); snowboard descendo pelas pistas de neve
A high-tech invadiu primeiro o som, com o Dolby-estéreo mais perigosas (Snowboarder); escalada aos mais altos cumes
e depois o famoso TXH de George Lucas, o que justifica perfei­ (Limite vertical); volteio aéreo, com câmeras instaladas nos
tamente a denominação de "filmes-concertos" proposta por Mirage 2000 e que fazem o espectador viver as acelerações e os
Laurent Jullier para traduzir o estado de imersão sonora no qual loopings como se estivesse ali (Os cavaleiros do ar). Mesmo à
o cinema mergulha o público. Nesses filmes em que a banda margem desse cinema de ação e de espetáculo são feitos filmes
sonora se impõe sobre a imagem, o espectador é lançado num - documentários, curtas-metragens, spots, clipes - destinados a
universo cujos sons graves, de intensidade extrema, atingem um público de aficionados, que lhe oferecem, em festivais de
diretamente o corpo e seu sistema sensorial. 3 Banho sonoro, filmes de montanhismo e esquiação, como que um prolonga­
alto-falantes hi-fl, sons vertiginosos, impactos hiper-realistas: mento na tela das sensações exacerbadas que ele vai buscar nas
o audiovisual prevalece aqui sobre as palavras, o amplificador pistas ou nos alturas. O gozo sensitivo e vertiginoso é a última
sobre a história, a sensação pura sobre a compreensão. De dez palavra desse cinema do corpo extremo em que as imagens se
anos para cá, acompanhando essa escalada sonora, os efeitos tornam mais reais que a natureza.
high-tech dinamizam também cada vez mais a imagem, permi­
tindo verdadeiros fogos de artificio que funcionam como estí­ A imagem-velocidade
mulos óticos - o que volta a dar todo o sentido à denominação
utilizada por Serge Daney para designar esses filmes, quando se Desde Spielberg e a geração neo-hollywoodiana do fim
apresentavam no começo dos anos 1980: filmes de "som e luz". dos anos 1970, um outro parâmetro adquiriu uma impmtância
Esse cine-sensações, com uma orgia de efeitos visuais e sono­ maior: a velocidade, o ultramovimento, o ritmo infernal. Até
ros, tornou-se nos anos 1990-2000 a tradução mais manifesta então, a velocidade,que marcou o cinema americano das screw­
do cinema contemporâneo de grande espetáculo. ball comedies [ comédias excêntricas] aos filmes de aventuras,
Assim não há por que se espantar em ver na tela as faça­ era induzida pela história contada e obedecia a razões dramáti­
nhas do corpo extremo, fonte de sensações extremas. Foi assim cas ou psicológicas. A novidade reside numa narrativa da velo­
cidade pela velocidade, esta se tornando seu próprio fim. Tal
dimensão, apresentada como atrativo em si, aparece em títulos
3 Laurent Jullier, L 'Écran post-111oderne, op. cit. O autor escolheu analisar, como
que a anunciam como o conteúdo mesmo dos filmes ( Velocida­
exemplo típico desse cinema, Guerra nas estrelas, A imensidcio awl, Sangue mim,
Nikita e Dança com lobos. de máxima, Velozes e jitriosos)... Rachas noturnos em carros

74 75
nus ruas de Los Angeles ou ônibus louco precipitado numa cor­ tas vêm do clipe, da publicidade, da televisão, do videogame -
rida infernal, a velocidade dos veículos mostrada na tela não é formas de expressão nas quais a lentidão é banida.
senão a ilustração do princípio extremo: ir sempre mais rápido. Se o fenômeno traduz sobretudo a estética dominante da
�ma estética de um novo gênero se impõe, animada pela lógica produção hollywoodiana, ele se manifesta também numa acele­
hipermodema do movimento autotélico. ração generalizada da narrativa e da montagem que se aplica ao
Com isso, a utilização de planos muito curtos vira regra. conjunto dos filmes contemporâneos. A velocidade agora se
Como assinalam Vincent Amiel e Pascal Couté, que analisam infiltra em todos os gêneros e em todos os filmes, a ponto de
em detalhe essa explosão da velocidade por si mesma, "a dura­ datar irremediavelmente os filmes clássicos aos olhos daqueles,
ção média dos planos [nos filmes de Michael Bay, tomados como jovens espectadores principalmente, habituados apenas ao ci�
ilustração do cinema americano contemporâneo] é de dois se­ nema do movimento pelo movimento. A dialética entre tempo
gundos, enquanto, no cinema clássico e moderno, a duração mé­ vivo e tempo morto, que estabelecia um contraponto entre am­
dia é de quatro a seis segundos, ou mesmo mais. "4 O plano é bos e fazia sobressair o rápido por diferença com o lento, como
quase um flash , a brevidade criando um impacto ainda mais a elaboração progressiva de uma aceleração com valor dramáti­
brutal e sua repetição acelerada produzindo o efeito de bombar­ co que se constrói num efeito de crescendo, não tem mais vez:
deio visual . Esse ritmo, que tem a ver com a estética dos agora é o tempo do speed e do non-stop.
videogames e do clipe, pode chegar a ser quase frenético, acen­ Nessas condições, a l inha de resistência principal a esse
tuado por uma série de outros meios: nervosismo da montagem, movimentismo acelerado passa por uma proposta do seu con­
brevidade do diálogo, multiplicação das cenas de perseguição, trário: a l entidão. Mas, ao contrário dos filmes clássicos em
pontuação sonora. A influência do cinema de Hong Kong, em que a dilatação do tempo tinha valor dramático (como se per­
que a velocidade dos planos pode ser comparada a um crepitar cebe muito bem nos grandes mestres da lentidão, Dreyer, Ozu,
contínuo, se manifesta plenamente: Hollywood, sempre à esprei­ Bresson), sua valorização participa agora do sistema: a lenti­
ta, vai buscar John Woo, que logo exibe na tela holl ywoodiana dão torna-se uma antivel ocidade, apresentada de forma
esse frenesi do qual ele é um especialista incontestado. ostentatória como tal, e que não teme recorrer à técnica da
Na lógica comercial que é a do blockbuster, algumas for­ câmera lenta, que não é senão a forma invertida, mas igual­
mas se definem praticamente por essa busca permanente da ace­ mente hiperbólica, do acelerado. Processo do qual John Woo
leração: filmes de ação, de artes marciais, de ficção científica. se fez um especialista: em A outra face, por exemplo, ele uti­
Mas a velocidade também se torna uma estética de conjunto, liza a câmera lenta no cerne mesmo da velocidade mais acele­
que Hol lywood exporta ao mundo inteiro, suscitando às vezes rada, dilatando, no meio de uma fuzilaria em ritmo infernal, o
filmes-clones, como os Taxi 1, 2, 3, 4 ou Yamasaki, produzidos momento em que a bala que sai da arma vai atingir seu alvo,
por Luc Besson, outras vezes pesquisas mais originais que fa­ como uma espécie de magnificação dessa velocidade. Somen­
zem da velocidade o princípio mesmo do filme, como Corra, te em alguns cineastas rebeldes, que constroem sua obra fora
Lola, corra!, do alemão Tom Tykwer. Aliás, muitos novos cineas- do sistema dominante - Jarmush, Angelopoulos, Béla Tarr,
Sharunas Bartas - e espicham com frequência seus planos­
1
Vincent Amicl e Pascal Couté, Formes e/ obsessio11s du ci11é111a américain sequências até o l imite extremo, é que a mise-en-scene da len­
contemporain, Paris, Klincksiek, 2003, p. 68.
tidão traduz um universo que se recusa a jogar o jogo.

76 77
Nas últimas três décadas em que a sociedade se hiper­ na! ' com a mesma fartura dos seios de suas figuras femininas
modernizou, o cinema fez a mesma coisa, criando no espec­ prediletas. Ele traduz a essência de sua visão do mundo e, far-
tador o apetite de um sempre novo e de um sempre mais " for­ tando-se com a imagem dos personagens, com as cores e os
te" l evado ao clímax. Os spots publ icitários, o clipe musical, ruídos, faz da profusão um espetáculo. O cinema contemporâ­
a tel evisão e o rap trabalharam nesse mesmo sentido. Ten­ neo, por sua vez, faz do espetáculo uma profusão.
dencialmente, o espectador se tornou um hiperconsurnidor Excrescência pura,profusão pela profusão: o hipercinema
que não suporta mais nem os tempos mortos, nem os tempos dá a ver sempre mais, numa inflação do cheio que não é senão
de espera: ele precisa de mais emoções, mais sensações, mais um transbordamento hipertrófico,urna pletora extrema que vale
espetáculos, mais coisas a ver para não bocejar e para sentir por si mesma. Os filmes de ação, de aventura, de horror, em
ininterruptamente - um neoespectador que tem necessidade particular, buscam oferecer sempre mais dessa pletora, "encher
de "adrenalina", de alucinar nas imagens, de experimentar a os olhos", literalmente: os efeitos especiais viram fogos de arti­
"embriaguez" dionisíaca de arrancar-se de si próprio e da ficio; as perseguições, as explosões, as cenas de perigo, os con­
banal idade dos dias. Daí a hipertrofia do espetacular, marca­ frontos não apenas se multiplicam, mas são cada vez mais rápi­
do por um ritmo de fuga para a frente. O hipercinema traduz dos, mais audaciosos, mais violentos. Quando um herói não é
urna demanda geral de sensorialidade e de emocionalidade mais suficiente, acrescentam-se vários, o acúmulo e a repetição
perpetuamente renovadas, demanda que se deve ao triunfo reforçando a profusão: no Van Helsing de Stephen Sommers,
da cultura hedonista e à necessidade de fugir de um cotidia­ em 2004, o personagem não enfrenta mais um único adversário:
no cada vez mais gerador de mal-estar e de ansiedades subje­ como caçador de monstros, ele luta no mesmo filme contra
tivas. A imagem-velocidade funciona como uma vertigem, Drácula, Frankenstein e o Lobisomen.
urna droga ao mesmo tempo hipnótica e exaltante. Agora, no O fenômeno novo é que essa profusão,afinal esperada na
cinema, rápido significa bom e belo. lógica do quem-dá-mais do cinema de gêneros, vai muito além
dela' alimentando o universo estilístico e imaginário dos reali-
A imagem-profusão
zadores mais importantes e representativos do cinema contem-
porâneo. De resto, essa profusão, que sempre foi um dos gran­
O "nunca é bastante" da velocidade tem seu corolário no des critérios do barroco, se vê hoje traduzida num mundo que
"nunca é demais" da profusão. Sempre mais cores, sempre mais também se tomou desenfreado, protuberante, hipertrófico. Não
sons e mais imagens: o cinema hipermodemo não cessa de au­ se trata mais de bom ou de mau gosto - velha disputa movida
mentá-los,como o mostram, em sua oferta competitiva, os gran­ pelo clássico contra seu inimigo natural -, mas de virtude reco­
des espetáculos oferecidos pelos blockbusters hollywoodianos. nhecida por ela mesma em todas as expressões do excesso: o
Não que a profusão não tivesse se exprimido antes. A estilística exagerado, o hiperbólico, o múltiplo, o superabundante, o trans­
barroca da hipérbole, da superabundância, do exagero, sempre bordante. As obras que exploram de forma privilegiada essa pro­
esteve presente na obra de grandes realizadores: Eisenstein, fusão parecem corresponder ao espírito de uma época desregu­
Gance, Welles traçam a linha de cima de uma tendência que lada, pletórica, saturada. Não é por acaso que a opacidade sem­
encontra em Fellini seu acabamento sublime. Neste último, o pre mais labiríntica de um David Lynch, que a violência cada
excesso é o de um imaginário genuinamente pessoal, excepcio- vez mais complexa de um David Cronemberg, que o paroxismo

78 79
dada a essa expressão do muito e do excesso, a natureza do ci­
sempre mais destrutivo de um Abel Ferrara, que a mixórdia sem­ nema hipermoderno tem horror do pouco.
pre mais proliferante de um Emir Kusturica, que a exuberância
cada vez mais desenfreada de um Pedro Almodóvar apareçam
Os novos monstros
como as formas mais expressivas da representação cinemato­
gráfica contemporânea. Elas mostram o estilhaçamento de to­ Do mesmo modo, esse cinema tem horror do médio, do
dos os referenciais, a anomia hipertélica, a abundância caótica temperado, do j usto meio-termo. Não que o cinema, desde sem­
do cosmo hipermoderno, como se nossa época sem ponto de pre, não tenha explorado figuras do extremo, sobretudo através
fuga no horizonte não tivesse outra resposta a seus desafios se­ das paixões devastadoras, dos vícios, dos comportamentos vio­
não acrescentar cacofonia à cacofonia, excrescência à excres­ lentos e sádicos. O jogador, o Don Juan, o criminoso, o alcoóla­
cência, descentramento ao descentramento. tra, a mulher fatal: tipos que, representados sob as formas mais
A lista é longa, portanto, dos cineastas e dos filmes ator­ variadas, alimentaram um grande número de filmes. Mas o ex­
doados e atordoantes, desde as vibrações líricas e ciganas de tremo, neles, era principalmente considerado sob um ângulo
Tony Gatlif até o frenesi e a luxúria febril com que Baz Luhrman moral, como tendo parte com o diabo: o professor de O anjo
revisita o famoso Moulin Rouge. O cinema hiperrnoderno gosta azul [Josef von Stemberg, 1930], arrastado no abismo da deca­
do cheio. 5 Ele se exprime pe1feitamente nos exageros eslavos dência por sua paixão devoradora por uma vampe de cabaré, é a
de Kustmica, que enche a tela com cantos orfeônicos, árias líri­ imagem arquetípica. Não estamos mais aí: à problemática do
cas, armas pipocando, gansos grasnando, profusão de bebidas vício eterno sucedeu a do desfuncionamento dos modos de vida
traseiros, leitos que voam. Ou ainda na explosão de cores n� e das personalidades. A expressão do extremo tende a se separar
frenesi vital, na busca do prazer, no patchwork variegado 'dos do j ulgamento moral em favor da crítica social de um tempo ele
tons, na excitação permanente de A lei do desejo ou de Mulhe­ mesmo patológico e extremo. A imagem-excesso não se cons­
res à beira de um ataque de nervos, que ilustram o universo trói mais sobre um fundo metafísico ou como figura humana
hispânico, barroco e flamejante dos filmes de Almodóvar nas­ imemorial: ela quer ilustrar a situação de uma sociedade em
cido da liberação de uma sociedade pós-franquista que se lança que os indivíduos são vítimas ou escravos de um universo de­
de corpo e alma em La Movida (*). 6 Qualquer que seja a fom1a sestruturado, feito de liberdades e de estímulos múltiplos. O
s C? c �cio de cheio, mas também o cheio de vazio. Poderíamos associar ao mesmo excesso arquetípico, dionisíaco ou satânico, cedeu o lugar ao
pr'.nc1p10 de profusão a lógica inversa da redução cm excesso, do ascetismo sistc­ excesso de uma época histórica patogênica, a da hipermoderni­
rnat1co, do u ltrarninirnalismo formal, corno no vazio nórdico do cinema de
_ dade individualista. É nesse contexto que proli feram os temas e
Kaunsmakt ou no despoJarnento absoluto das quase três horas de O grande silên­
cio (Philip Grõning, 2006].
imagens das anomalias paroxísticas.
(*)Movimento cultural pop madrilenho do final dos anos 1 970. (N.T.) Durante muito tempo, as formas do corpo-excesso repre­
6 Essa profusão, que é a da mistura variegada, do palchwork, do muito cheio, nada sentaram figuras do cômico, da sensualidade e do poder. To­
mais tem a ver com essa outra estética do excesso que foi o expressionismo dos mando, por exemplo, o tipo tradicional do "gordo", este era uti­
anos 1 920- 1 930. Com seus cenários distorcidos, seus jogos de sombra e luz, seus
enquadramentos deformantes, seu preto-e-branco intensamente contrastado este lizado, por contraste com o magro, para formar duplas cômicas
se constrói atrav� s da dramatização e da tensão de um espaço atonncntado ;ue é baseadas no modelo de Laurel e Hardy. Ele podia também ser
_
o da grande �agcd1a moderna. O expressionismo de ontem traduz a experiência associado, do lado masculino, à boa mesa e à figura do bon
do abismo, a 1rnagcm-cxcesso hiperrnoderna a do caos.

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vivant, ou então, do lado feminino, à exaltação sensual da carne
(e o universo de Fellini é um reservatório inesgotável de exem­ que encarnam. Se Renée Zellweger não precisa se esforçar mui­
plos). Podia ainda ser visto como símbolo de um potentado, de lo para encarnar uma Bridget Jones bastante gordinha, Robert
uma onipotência de ogro, da qual Orson Welles, ao ficar enor­ De Niro não hesita em engordar trinta quilos, em O touro indo­
me, oferece a (des)medida. Isso mudou. mável [Martin Scorcese, 1980], a fim de interpretar o papel do
O "gordo", agora, dá lugar ao obeso, ao fat man. Não é boxeador Jake La Motta às voltas com a decadência fisica. E a
mais a gordura, emprego dramático, mas a obesidade, fenô­ alta, magra e longilínea Charlize Theron, conhecida top model,
meno patológico e hipertélico da sociedade de hiperconsumo engorda quinze para se tornar a assassina serial de Monster -
(ver Super Size me - A dieta do palhaço [Morgan Spulock, Desejo assasino [Patty Jenkins, 2003]. As vedetes não repre­
2006]), que é mostrada. Contrariamente à imagem do gordo sentam mais: elas assumem em sua própria pessoa, por assim
simpático, da mulher de carnes fartas ou do potentado, a obe­ dizer, em sua própria carne, os desafios do extremo.
sidade tornou-se uma nova figura do desregramento, do obs­ Segundo essa mesma lógica, as condutas excessivas mais
ceno, do desapossamento de si. Obscenidade pós-moral ista diversas conseguem se exprimir em filmes que as encenam atra­
sobre um fundo de higienismo e vontade de autocontrole indi­ vés dos personagens, mas também através de atores que levam a
vidual. Em Twelve and Holding [Michael Cuesta, 2006], um identificação até os últimos limites. É o caso da girl culture que
rapazinho de corpo adiposo, educado numa família de obesos Catherine Hardwicke mostra em Aos treze [2003], chamando,
na qual comer muito representa a conduta al imentar normal e como co-roteirista e intérprete, uma garota desconhecida, Nikki
constitui uma verdadeira cultura, tenta escapar do esquema Reed, que encarna seu próprio personagem de adolescente "ex­
familiar e social e, radicalizando sua tomada de consciência, trema". A droga, o álcool, o roubo, o sexo, as escarificações, o
encerra sua mãe no p orão, p rivando-a de a l imento. Em piercing, as tatuagens, as roupas sexy: tudo ali é quase ao vivo.
Palindromes [2004], Todd Sol ondz, fazendo seu personagem Quanto à Aids, a suas devastações físicas e à morte que
principal ser representado por vários atores de idade e sexo estas anunciam, não poderíamos esquecer que o primeiro fil­
diferentes, lhe dá, entre várias aparências, a dupla figura opos­ me que verdadeiramente as expôs no c inema, em 1992, Noi­
ta de uma enorme negra obesa e de uma jovem branca fi liforme tes felinas [Cyril Col lard], é obra de um realizador ele mes­
e anoréx ica. Pois a anorexia, extremo oposto da obesidade, é o mo então seropositivo, que morre alguns meses após o lan­
termo do regime de emagrecimento. As amigas de Elephant çamento do filme. O lado destrutivo das condutas de risco dá
[Gus van Sant, 2003], assim que acabaram de comer, se preci­ origem a fil mes em que os adictos - à droga, à violência -
pitam ao banheiro para vomitar. O cuidado com a magreza se são o objeto de uma representação formal que ubl inha e acusa
torna uma p reocupação obsessiva: Bridget Jonet escreve o seu lado excessivo. Seja o caso do jovem junkie de Réquiem
Diário [Sharon Magui re, 200 I ] de seus esforços de privação de um sonho [Darren Aronofsky, 2000], pego na espiral da
cotidianos, e a heroína de J 'aifàim [Florence Quentin, 200 1] dependência, ou o dos ricos yuppies que, cm Clube da luta
decide submeter-se a um regime de emagrecimento draconiano [ David Fincher, 1999], mergulham, para escapar à rotina, nos
para ter de volta o seu homem. subsolos sórdidos onde se praticam combates clandestinos
O cinema não apenas ilustra o fenômeno social, como os de pugilato, as descidas aos infernos dão ensejo a fi l mes de
próprio atores moldam sua aparência física na dos personagens choque e de brutal idade, de acordo com urna estética tam­
bém agressiva e chocante.

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A ultraviolência faz parte não tanto da realidade quanto da essência do próprio
filme, donde a importância do seu tratamento formal : descobrir
Nessa dinâmica hipertrófica, o espetáculo da violência a cada vez uma nova maneira de mostrá-la num primeiro plano
ocupa uma parte considerável . Não que o cinema não o tenha que aumente seu impacto visual e emocional. A sinfonia barro­
descoberto muito cedo. 7 Mas as Sementes da violência [Richard ca que ensanguenta a tela em Scarface, a cabeça do gângster
Brooks] dos anos 1 950 pouco têm a ver com a exacerbação de que desenha, ao arrebentar, como que o mapa de um país imagi­
hoje. De fato, por muito tempo a violência foi tratada como um nário ( Os intocáveis [Brian de Palma]), o sangue que esguicha
tema que se integrava num conjunto mais significativo: adoles­ aos socos explosivos de Jake La Motta em Raging Buli ( O touro
centes em revolta, gângsteres e máfia, conflitos sociais, selva indomável, de Scorcese): a violência se dá a ver com arte e se
das cidades. As coisas começaram a mudar quando a violência faz admirar. Com os riscos que isso pode causar, dizem, naque­
foi filmada por ela mesma, quando Sam Peckinpah mostrou o les que, confundindo o objeto e sua representação, se tomariam
impacto das balas dilacerando a carne em câmera lenta em Meu como os A ssassinos por natureza mostrados por Oliver Stone.
ódio será tua herança, em 1 969, ou quando centrou todo um Tema privilegiado para debates na televisão: do efeito da vio­
filme numa cabeça cortada, em Tragam-me a cabeça de A!ji-edo lência dos filmes sobre o comportamento dos jovens.
Garcia, em 1 974. Um pouco mais tarde,Coppola, em Apocalypse Não é certo que essa denúncia moral responda ao proble­
Now ( 1 979), faz da guerra do Vietnã uma espécie de ópera, um ma colocado. A violência no cinema certamente funciona mais
hiperespetáculo coreográfico ao som das Valquírias wagnerianas. como elemento catártico do que como modelo a seguir. Em
Uma estética e uma cultura da violência pura se instala: Laran­ contrapartida, ela afeta a relação do espectador com o que lhe é
ja mecânica [Stanley Kubrick] anuncia e lança, em 1 97 1 , esse mostrado. Vincent Amiel e Pascal Couté assinalam com razão
tempo da violência em si. Sca,jàce [Brian De Palma], em 1 983, que "a maior violência dos fi lmes contemporâneos (e também a
fornece o modelo e o modo de usar. mais interessante, talvez) é a violência feita ao olhar, a suas
No cinema de hoje, a violência não é tanto um tema, é exigências de parâmetros e à necessidade.que ele tem de se apoiar". 8
mais uma espécie de estilo e de "estética" pura do filme. Ela Ao se imporem fora de toda norma esperada, de todo ponto fixo
funciona cada vez mais como um espetáculo que existe por si normativo, de todo limite racional, as imagens são carregadas
mesmo e que, sob a infl uência do cinema asiático, se torna uma de uma agressividade feita para criar um efeito-choque. A esté­
verdadeira coreografia, sem nenhmna ligação com uma realida­ tica da agressão e da porrada faz o espectador entrar no univer­
de qualquer: a heroína de Kill Bill [Quentin Tarantino] enfrenta so imaginário do filme, o faz tremer diante de um dinossauro
durante vinte minutos um exército de ninjas que querem sua antediluviano, diante de uma guerra dos mundos por vir, assim
cabeça, num combate em que a violência, inusitada, é regida como diante da miséria dos pobres de Calcutá: mesma monta­
como um balé fantástico, fora das leis da gravidade e da veros­ gem brusca, descontínua, mesmo envolvimento sonoro, mes­
similhança. A violência vale por si mesma, uma violência que mos efeitos especiais. Mesma violência.

7 Ver O li vier Mongin, La Vio/ence des i111ages, 011 co111111ent s 'en déharrasser?,
Paris, Seuil, 1 997. Ver especialmente o capítulo: "Les dcux âgcs de la violence", � Vinccnt Amiel e Pascal Couté, Formes e/ obsessions du ci11éma américain
p. 9-28. contemporain, op. cit., p. 76.

84 85
Multiplicada pelas novas possibilidades técnicas, a violên­ Se o mundo contemporâneo é violento9, o cinema o é ain­
cia alimenta os gêneros mais diversos, submete-os à sua exigên­ da mais, integrando-o por excesso em sua própria linguagem.
cia formal. Nos filmes de ação, os corpos se metamorfoseiam, os Num espectador que foi moldado, socializado, alfabetizado, de
super-heróis do bodybuilding se tomam mecanismos capazes de certo modo, pela imagem, o espetáculo da violência foi primei­
destruir tudo: Schwarzenegger, o Músculo, transforma-se em O ramente sentido como um elemento extraordinário, que provo­
extenninador dofitturo, o Cyborg. No universo do thr;/ler, a vio­ cava um impacto tanto mais forte quanto era excepcional. A
lência seca, quase documental, retira dos gângsters a parte de ro­ essa lógica primeira da raridade substituiu-se uma outra, hiper­
mantismo que antes possuíam e faz deles bmtos absolutos, como moderna: a proliferação. Invadindo progressivamente a tela, nela
em Por trás do crime [Schoendoerffer, 2007]. Um novo tipo de se repetindo sem parar, banalizando-se nessa repetição mesma,
criminoso aparece, levando a violência ainda mais longe: o serial buscando sempre a originalidade espetacular, a violência é o
killer. Em O silêncio dos inocentes [Jonathan Demme, 1990], ar­ objeto de uma aposta exponencial de fim sensacional ista. Não é
quétipo do gênero, temos direito mesmo a dois assassinos, as lou­ tanto a violência que caracteriza o cinema hipermodemo, mas
curas mortíferas de um respondendo ao canibalismo do outro. A sua excrescência hiperbólica.
multiplicação atua naturalmente no sentido do "mais". Conduz
ao desenrolar implacável dos sete assassinatos, cada vez mais X, como sexo
horríveis, que apresentam os sete pecados capitais em Seven [Da­
vid Fincher, 1995] . Nos territórios do horror, do sanguinolento Violência e sexo, no cinema, obedecem ao mesmo destino
puro e duro, dos aliens carnívoros e dos mortos-vivos canibais, a extremo. Assim como aquela se desdobra de forma hiperbólica,
violência se desencadeia em todos os sentidos, lacerando, esquar­ este se apresenta numa espiral de excesso orgiástico. Já estamos
tejando, cmcificando, eviscerando, empalando, devorando, sem longe da liberação sexual dos anos pós- 1968, longe da sensualida­
que se veja seu fim nem seu limite. Mel Gibson, após cmcificar o de sofi e chique de Emmanuelle, longe do pornô com pretensão
Cristo da maneira mais sangrenta, leva o sanguinário mais longe chocante de Exhibition [Jean-François Davy, 1975]. Agora é o tempo
com os costumes bárbaros que atribui aos maias de Apocalypto da democratização, da legitimação, da proliferação do hard. Não
(2006]. De Jogos mortais e seu assassino sádico, passa-se a Jo­ mais o filme "de bandalheira" à antiga, envergonhado, escondido e
gos mortais 2 e seu assassino sadicíssimo, depois a Jogos mortais destinado a um pequeno número, mas um gênero novo, com atores
3 e seu assassino hipersadicíssimo, à espera de Jogos mortais 4 e profissionais do sexo hard, conhecidos e reconhecidos, tendo cm
5, já escritos, necessariamente ultrassadicíssimos, e talvez Jogos vista um público de massa: a indústria do pomô americana produz
mortais 6, 7, certamente hipemltrassadicíssimos... E isso aconte­ cerca de 1O mil filmes por ano que rendem mais que a produção
ce até nos gêneros aparentemente mais distantes desse desenca­ hollywoodiana. E não mais apenas X, mas XXX hiper-realista,
deamento: a crônica familiar vira acerto de contas na crueldade hipertrófico, com as práticas mais extremas das gangbangs e ou­
de Festa defamilia [Thomas Vinterberg, 1998]; a comédia se faz tras multipenetrações em primeiro plano. Depois da "parte maldi­
sangrenta como em A comunidade [Alex de la lglesia, 2000] e ta" cara a Bataille (*), a parte do zoom libidinal. Não mais a trans-
Cova rasa [Danny Boyle, 1994] . O próprio conto de fadas se trans­
"As figuras da violência são extremas, quando se quer acreditar que esta é natu­
forma em pesadelo macabro quando Alice entra no país dos hor­
9

ral", Olivier-Mongin, la /liolence des images, op. cit. , p. 28.


rores, em Tideland de Terry Gilliam [2006]. (*) Gcorges Bataille ( 1 897- 1 962), escritor e fi lósofo francês. (N.T.)

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grcssão, mas a exacerbação pura e ilimitada dos órgãos e das com­ De resto, o excesso hipermodemo ultrapassa a simples
binações eróticas. Exclusão radical do sentido, do afetivo, do representação visual dos corpos e dos sexos: ele conquista a
relacional : resta apenas o híper. Sob esse aspecto, o pomô aparece própria linguagem. Não apenas tudo é mostrado, mas tudo é
como urna ilustração particularmente emblemática do tempo do dito. Tanto na precisão quase científica quanto na vulgaridade
hipercinema entregue ao desencadeamento maximalista, ao tudo­ ema e na obscenidade das palavras. E essa linguagem é a de
ver-tudo-mostrar, segundo a escalada pós-moralista do performático todos: homens e mulheres.
e do sexo sem limite. Pois nessa nova paisagem se constata que, tanto quanto
Mas o notável é que o sexo, agora, vai muito além da clas­ os homens, ou mesmo mais, são as mulheres que tomam, se
sificação X. Na época em que entramos, ele se mostra até nos ouso dizer, o sexo nas mãos. Pascale Ferran, após ter falado da
mais puros produtos hol lywoodianos, há muito regidos pelas leis morte em filmes reputados "intelectuais", aborda com toda a
rigorosas e puritanas que mediam a profundidade do decote e naturalidade o sexo. Sinal dos tempos: num filme que se proíbe
proibiam toda imagem de pelos íntimos. Eis que agora Sharon a complacência e no qual ela mostra o prazer no feminino, o
Stone abre as pernas e Instinto selvagem [Paul Verhoeven, 1994J célebre O amante de Lady Chatterley (*) muda significativa­
inflama o planeta. A luxúria vence em toda parte: agora, todo mente de título e, feminizando-se,passa a ser simplesmente Lady
filme grande público que se preza tem sua cena de sexo e de or­ Chatterley [Ferrand, 2006) . O que aparece aqui é a apropriação
gasmo em primeiro plano. Progressivamente, o que era reservado pelas mulheres da temática sexual outrora monopolizada pelos
ao domínio do X toma-se moeda corrente. Trocas de casais, homens, um olhar e uma linguagem propriamente femininos
sodomias, copulações, masturbações, felações, até mesmo sobre Eros e o gozo feminino.
autofelações, praticam-se ao vivo. Virginie Despentes e Coralie Fim do sugerido ou mesmo do sugestivo: tudo se mostra,
Trinh Thi anunciam o programa: Baise-moi [ 1 999) . Catherine às vezes no exibicionismo puro. O sexo, em realidade, tornou­
Breillat, ligando feminidade e conquista do prazer,contrata Rocco se uma linguagem integrada com o cinema contemporâneo. Ele
Siffredi em Romance X [ 1998) para contentar devidamente sua testemunha não só a liberdade com que a sociedade, pelo me­
heroína. Larry Clark e Ed Lachman filmam,em Ken Park [2003], nos ocidental 1 0, o pratica, mas desempenha o papel de um sig­
adolescentes fazendo amor a dois, a três, e ejaculando em plena no: sua presença, banalizada, é a de um elemento que se impõe
tela. Na sombra das noites de um clube nova-iorquino onde o como "natural", evidente, indispensável . Em 2007, produtores
sexo traduz o desejo desenfreado de viver após o 11 de setembro, sensíveis ao ar dos tempos, lançam um fi lme, intitulado
heterossexuais, gays, bissexuais - atores voluntários recrntados Destricted, no qual pretendem dinamitar as fronteiras entre o
por John Carneron Mitchell - se entregam ao amor de todas as cinema e a pornografia, e no qual sete a11ista , pe,jàrmers e
maneiras, em todas as posições (Shortbus,2006). A época em que realizadores propõem um curta-metragem mostrando que mes-
os atores simulavam deu lugar a um novo cinema em que eles
não se contentam mais em representar, mas têm verdadeiras rela­ (*) Romance de D.1-1 . Lawrence, publ icado cm 1 928. (N.T. )
ções sexuais diante da câmera. Hipersexo, hipercinema: na era 10 O fenômeno se estende e até os chineses aderem: ver as carícias fi lmadas em
do "hiper", a comédia de Eros não é mais exatamente comédia. todas as posições de Une je11eusse chinoise [Lou Ye, 2006], primeiro filme a
As antigas fronteiras que separavam a representação e o real se mostrar o sexo com total liberdade num país onde a censura permanece intransi­
gente. Aliás, o filme foi proibido na China e seu diretor, assim como a produtora,
apagaram em benefício de uma hiper-realidade videolibidinal. impedidos de trabalhar no país durante cinco anos.

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mo a arte mais intransigente procura dizer o sexo por si mesmo
e sem rodeios. Amor, sempre; mas sexo, sempre mais, emblema Capítulo I l i
do prazer extremo, metáfora da saída extática de si, sonho de A imagem-multiplex
ultrapassar as coerções da vida ordinária. Crash, diz o título
emblemático do filme de Cronenberg, no qual se juntam a velo­
cidade, a violência e o prazer.
Esse avanço do sexo hiperbólico não se explica pela sim­ Simplex
ples lógica comercial. A realidade é mais complexa. Ela tem
suas raízes na revolução cultural dos anos 1 960, na transfonna­ o cinema contemporâneo, em sua forma hol lywoodiana
ção dos costumes, na suspensão dos tabus, na desmoralização mais conhecida, costuma ser apresentado como o reinado da
do referencial sexual. Mas com uma diferença radical: lá onde a formatação integral, do standard uniformizado e molda�o. In­
modernidade se apoiava na reivindicação emancipadora, a diana Jones, Rambo, Batman, Matrix: mesmo tipo de cmema
hipennodemidade se funda na padronização consumidora. Em experiente na arte e na maneira de adaptar rec? itas comprova­
1 973, os dois aventureiros de Corações loucos [Bertrand Blier] das. No entanto, sob muitos aspectos, são esses J ulgamentos que
pregavam a boa palavra da liberdade de viver, semeando aos parecem perfeitamente convencionais, por ocultarem o que se
_
quatro ventos sementes de violência, de anarquia e de sexo; seu produziu desde o final dos anos 1 970 e que m ?� ificou muito
percurso tinha algo de cmzada, trazendo o prazer à frígida, o significativamente o mundo hollywoodiano. Se e J usto destacar
frisson do proibido à mulher casada, o desvirginamento à vir- a simplicidade estrutural de um cinema que se pode chamar
gem. Marginais, eles reivindicavam um mundo diferente: o fil­ simplex, basta comparar os fi lmes dos anos 200 0 co �n _ seus pr: ­
_
me escandalizava. Trinta anos depois, essa mistura de violência decessores anteriores a 1 980 para ver que essa s1mphc1dade nao
e sexo, de velocidade e profusão, tornou-se a nonna corrente e é mais tão simples.
legítima. O excesso não é mais realmente sentido como exces­ H istoricamente, a tradição hollywoodiana é, de fato, a de
sivo. É assimilado e normalizado ao mesmo tempo que arrasta­ um cinema em que gêneros, intrigas, personagens sempre fo­
do numa fuga para a frente: à liberação dos corpos sucedeu a ram definidos pelo estereótipo, quando não por suas formas
das imagens e das palavras que dizem o erotismo, a lubricidade, degradadas, o kitsch e o clichê. O que, alé1� da vantagem co!ner­
_
Sodoma e Gomorra. A dissolução do "não" transgressivo abriu cial de fil mes concebidos para serem facilmente acess1ve1s ao
o caminho aos exageros do híper. grande público, tinha também a característic� de corresponder a
uma sociedade ela também feita de confonmsmos, de modelos
socia is rígidos, de códigos estritos que definiam o que se deve e
não se deve fazer. A emergência da sociedade de consumo de
massa não fez senão prolongar essa dinâmica simplex ao fav� ­
_
recer O surgimento de um cinema de produto, consum1_sta, cah �
_
brado para não exigir outra recepção a não ser d1gest1va - da 1
_
seu acompanhamento de pipoca - e para fazer o tempo passai.
Reduzindo a expressão cinematográfica à sua fonna elementar,
os produtos do marke t i n g hol lywoodi ano se tornaram

90 91
t:omo garantia financeira, a difusão desses produtos pelo mun­
assimiláv�is a outras fonnas de espetáculo visual igualmente
do são alguns dos elementos que asseguram o famoso imperia­
de_senvolv1do pelo mercado, como os video games, nas quais
lismo de Hollywood, tão frequentemente denunciado, no plane­
�ema uma_ hiperl egibilidade que dispensa qualquer esforço ta Cinema. No entanto, limitar o cinema contemporâneo somente
mterpretat1vo.
a esses aspectos de marketing é reduzi-lo à parte emersa do
Esse império do simples é radicalizado pelo sistema do
iceberg. É não ver que o movimento de simplificação extrema
blockbuster, que nasce nos anos 1 980 com os grandes filmes da
se inscreve num conjunto mais amplo no qual uma parte é, na
geração neo-holywoodiana, especialmente os de Spielberg, que
verdade, antinômica, na medida em que funciona para a
oferece, com Indiana Jones e os caçadores da arca perdida
despadronização-complexificação dos modelos. Sob esse aspec­
( 198 1), o arquétipo do gênero. Nessa esteira, os estúdios apos­
to, o que constitui o hipercinema é exatamente a multiplexidade.
tam todo ano em alguns grandes filmes, superproduções de or­
çamentos enonnes que devem desempenhar o papel de locomo­
A hibridação globalizada
tiva financeira e publicitária. Segundo a lógica do que se quer
dar �o espectador em troca do seu dinheiro, o espetáculo visual Se os bfockbusters ocupam, de fato, um lugar preponde­
destmado a encher os olhos vai de par com a extrema simplici­ rante na economia do cinema, nem por isso eles são tudo. Em
dade do que é contado. Expurgado de toda espessura ' esse cine- 2005, para uma produção americana global de 699 filmes, ape­
ma e o da superficie e da planidade 1 dos personagens: ele se
,
nas 11 ultrapassam o orçamento de 100 milhões de dólares, e
constrói estruturando estes a partir de uma psicologia elementar oito, em 2006, para um conjunto equivalente. Ora, diante deles,
e de alguns traços de comportamento simples, imediatamente o outro ramo da alternativa não é mais, hoje, o filme de autor,
decifráveis: a fleuma de I ndiana Jones, a coragem e a força de mas sim todo o resto: tudo o que não é blockbuster. Ou seja, em
Rambo. Isso se acentua ainda mais, nos anos 1990, com os termos quantitativos, 98% da produção, que podem ser mais ou
super-herói � originários das histórias em quadrinhos, que reto­ menos formatados à maneira hollywoodiana, mais ou menos
mam o serviço na tela grande graças à exploração dos efeitos dependentes do sistema, mas que podem não sê-lo de modo al­
especiais. Super-Homem, Batman, Homem-Aranha, Elektra, do­ gum, pois o processo de desregulação general izada que domina
tados de �uperpoderes, evoluem num mundo maniqueísta no qual a hipennodernidade não poupou a noção mesma de norma uni­
fazem triunfar o bem diante de vilões claramente designados. forme. Nesse quadro, o próprio esquema simplex não é senão
Com eles se realiza a combinação da imagem simplex e da ima­ uma das peças da complexificação estrutural típica da nova era
gem-excesso, a extrema simplicidade do seu " funcionamento" planetária do cinema.
dando amplitude a efeitos especiais cada vez mais assombrosos I sso se exprime, em pri meiro lugar, através de uma
e encarregados de traduzir o caráter propriamente extraordiná­ globalização acelerada. Numa época em que o número de paí­
rio de suas façanhas. ses independentes, tais como registrados na ONU, cresceu con­
Sabe-se a importância desse sistema. As receitas obtidas sideravelmente de trinta anos para cá, as cinematografias nacio­
todo ano pelos b!ockbusters, os astros principais funcionando
nais também se tornam cada vez mais numerosas. E a margem
de desenvolvimento futuro é enorme: cerca de 50% dos países
1 (Em fra cês, planéité). A expressão é de Vincent Amiel e Pascal Couté, Formes
� ainda não têm produção cinematográfica, e alguns continentes
et obsess1011s. . . , op. cit., p. 33.

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92
possuem estruturas insuficientes - como a África - ou ainda são dos e para as nações emergentes. A distribuição no Ocidente
amplamente submetidos - como a América do Sul - ao domínio d fi lmes iranianos, iraquianos, sírios, casaquis, tadjiques, ban­
americano. Mas ao lado dessas zonas que, em função do desen­ gladeshianos, paquistaneses, turcos, palestinos, israelenses,
volvimento futuro de cada país, constituem reservas a explorar c: ubanos, albaneses, islandeses, lituanos, letões, ango lanos,
e que certamente o serão, o mundo do século XXI é mais cine­ malgaxes, indica claramente essa abertura. Em 2005, 534 fil­
matográfico do que nunca. mes distribuídos na França provinham de 6 1 países diferentes
Além dos centros tradicionais de forte produção como a e o número de co-produções se elevava a 66 fi lmes, oferecen­
, do todas as configurações possíveis: franco-português-ango­
India (cerca de 800 filmes por ano) ou o Japão (cerca de 280)
prosseguirem no caminho de uma prolixidade que, antes re­ lano, ítalo-franco-americano, hispano-cubano, russo-japonês,
servada ao mercado interno, tende agora a penetrar mercados germano-americano, germano-turco, hispano-franco-canaden­
distantes, e especialmente da presença de comunidades emi­ sc, americano-germano-norueguês . . .
gradas instaladas um pouco por todo o mundo, outros lugares A isso junta-se um outro efeito importante da globaliza­
fortes apareceram, em particular na Ásia. Hong Kong, depois ção: a multiplicação das trocas, a mistura étnica criada por flu­
Taiwan, Coreia do Sul, Tailândia e hoje a a China (já com 300 xos migratórios e viagens, a abertura às outras culturas (signifi­
fi lmes por ano) desenvolvem uma tal atividade de produção cativamente ilustrada, num outro plano, pela world music) e a
que Hollywood não tardou a perceber, atraindo os cineastas interpenetração cada vez maior dos povos e das consciências,
mais talentosos para sua órbita e comprando os direitos de fi l­ gerada e desenvolvida pelos meios de comunicação e di fusão
mes para remakes americanos. Por outro lado, apesar de situa­ da informação globalizados. Costuma-se associar a globaliza­
ções contrastadas - vitalidade do cinema inglês, crise do cine­ ção a um poder de homogeneização dos produtos e das culturas,
ma italiano, estabilidade do cinema francês2 , boa sustentação à uniformização das práticas, à ocidentalização ou à americani­
dos cinemas espanhol e belga, reconstmção em curso dos ci­ zação do mundo. É não ver que ela se acompanha, ao mesmo
nemas do leste europeu -, a Europa continua sendo uma zona tempo, não só de uma economia da variedade, mas também de
de produção forte, como o são, em outros continentes, o Cana­ um patchwork de referenciais, de fonnas culturais cada vez mais
dá, o Egito ou a Austrália. Mas sobretudo, num mundo em que fluidas e imprevisíveis, mestiçadas e transnacionais, "caóticas"
o menor país se vê confrontado à globalização, o cinema se e fractais. 3 Na hora da globalização hipermoderna, as identida­
des se misturam, tornam-se voláteis, descompaitimentadas e
torna um vetor de afirmação cultural para os pequenos Esta-
caleidoscópicas. Mesmo se a época testemunha a revitalização
2 A situação do cinema francês não poderia ser considerada sem referência à "ex­ dos fundamentalismos religiosos e das identidades étnico-nacio­
ceção cultural" que a beneficia de um dispositivo original de apoio criado em nais, o fato é que os modelos de estabilidade e de homogeneida­
vàrias etapas desde o pós-guerra. Os incontestáveis êxitos do sistema.não devem de cedem o passo a fluxos discordantes, a processos de cruza­
ocultar que este vem perdendo fôlego e exige mudanças, especialmente critérios
mais seletivos que evitariam "uma política [de aj uda] salpicada, dispendiosa e
mento das identidades tradicionais. Mais que qualquer outro, o
frustrante" (Françoise Benhamou, Les Dérêglemenls de l 'exceplion culturel/e mundo do cinema participa diretamente dessa dinâmica: um
Paris, Seuil, 2006, p. 206). Isso vai no sentido preconizado pelo próprio Centr�
nacional de cinematografia que, segundo sua diretora Véronique Cayla, deseja 3 Arjun Appadurai, Aprês !e co/onia/isme. Les conséquences de la globa/isation,
"revalorizar as ajudas seletivas para aj udar o risco artístico, a inovação e a inde­ Paris, Payot, 2001, p. 61-87.
pendência" (le Monde, 29 de março de 2007).

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número crescente de realizadores se alimenta de uma multipli­
cidade de referências, identificando-se a grupos diversos, rei­ do afluxo de cineastas europeus, muitos dos quais fugiam do
vindicando fi liações plurais que se recobrem apenas parcialmen­ nazismo nos anos 1 930, e da aura de terra prometida que fez do
te, construindo assim um sincretismo cultural na verdade muito país uma terra de imigração, como Kazan ilustrou de forma
individualizado. exemplar em Terra de um sonho distante [ 1 963]. Mas é preciso
Isso é verdade na França, onde a relação com as antigas observar que o chamado a vir trabalhar no regaço hol lywoodia­
colônias e a imigração negra e magrebina [norte da Á frica] dão no se manifesta numa nova escala, com uma intensidade e uma
origem a um cinema que assinala muitas vezes a dupla filiação. amplitude sem precedentes. Se encontra ainda um eco entre os
É verdade também na Itália ou na Alemanha com os cineastas europeus (Paul Verhoeven é holandês, Lasse Hal lstrõm, sueco,
oriundos da imigração turca, é verdade na Inglaterra com reali­ Rol ando Emmerich, alemão, Gabriele Muccino, italiano, An­
zadores vindos da Índia ou do Paquistão, é verdade nos Estados thony Minghella e Christopher Nolan, ingleses), ele age agora
Unidos, onde a diversidade de origem e de cultura dos cineastas sobre cineastas vindos de todos os países do mundo. John Woo
ilustra por si mesma a variedade das comunidades que fomiam é chinês, Lee Tamahori, neozelandês-maori, Phillip Noyce, aus­
o povo americano. Essa dinâmica favorece menos um cinema traliano, M. Night Shyamalan, indiano, Tony Bui, vietnamita,
comunitário e reivindicativo, como chegou a ser a blaxpoitation Guillermo dei Toro, mexicano, Walter Salles, brasileiro ... Junto
[o cinema negro norte-americano] dos anos 1 970, do que um com esses realizadores que se instalam no sistema hollywoodiano,
cinema desterritorializado ou transcultural, feito de diálogos he­ muitos cineastas, como os franceses Jean-Pierre Jcunet em Alien:
terogêneos, de percursos cruzados, de interações fluidas e irre­ a ressurreição [ 1 997] ou Pitof em Mulher gato [2004], simples­
gulares. Radu Mihaileanu, romeno de nascimento, ao saber tar­ mente vão lá rodar um filme que os estúdios lhes propõem, ou
diamente que é judeu e que seu pai, emigrado da Romênia, mesmo o remake de seus próprios filmes, como o japonês Hi­
mudou de nome, emigra por sua vez para o Ocidente, é por um deo Nakata ao realizar, com O chamado 2 [2005], a versão ame­
tempo apátrida, adota a nacionalidade francesa por comodidade ricana do seu filme japonês.
e dirige um filme, Um herói do nosso tempo [2005], que conta a Nessas condições, se a América permanece o centro do
história de uma criança da Etiópia, que a mãe faz passar por um planeta Cinema, a paisagem hollywoodiana se mostra agora mais
fltlasha e que acaba emigrando para Israel, numa família de ju­ cosmopolita e variegada do que nunca. A globalização está ape­
deus sefardim que falam francês... É Babel, título, aliás, de um nas começando: é um cinema cada vez mais desterritorializado,
filme revelador, realizado em Hollywood por um cineasta me­ transnacional e pluralizado que se anuncia.
xicano, González Ifíarritu, que, após ter rodado seu primeiro
fil me (Amores brutos) no México, é imediatamente atraído a A narrativa mu/tiplex
Hollywood, onde realiza seus fi lmes seguintes com astros
hollywoodianos, Sean Penn (21 gramas) e Brad Pitt (Babel). Essa diversificação etnocul tural dos cineastas é reforçada
Pois Hollywood continua sendo, nessa nebulosa expan­ por uma dinâmica de desregulação estética que se exerce sobre
são do cinema globalizado, o centro geométrico, com uma for­ os vários componentes dos filmes.
ça centrípeta que absorve os talentos vindos de todas as cinema­ A começar pela narração. Se a legibilidade imediata con­
tografias. Isso foi sempre o que aconteceu, sobretudo em razão tinua sendo o princípio básico do roteiro hollywoodiano, o es­
quema simplex de uma história única com começo, meio e fim

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não é mais aceito. A unidade de ação, herdada da velha regra
clássica que distinguia ação principal e ações acessórias, partiu-se Warhol e muito em voga nos anos 1 960- 1 970, conta as conver­
em pedaços. Agora, na estruturação mesma da narrativa, o aces­ sas de uma mulher em Nosso amor do passado [2006] cortando
sório é tão importante quanto o principal. Isso se verifica nos a tela em dois e projetando dois filmes em um, Mike Figgis
tipos de narrativa que privilegiam o disperso e o caótico, o chega a cortá-la em quatro, em Time cod [200 1 ], e a projetar
descontínuo e o fragmentário, o anedótico e o não-unificado. É quatro filmes ao mesmo tempo.
o caso do road movie, nova versão do romance picaresco, que Essa maneira menos comum de contar habitua o especta­
fez fortuna, na época de Easy rider [Sem destino, 1 969], com o dor às na1Tativas mais complicadas. De resto, a simplicidade nar­
tema da estrada caro à beat generation. Esse road movie será rativa se afigura simplista: não só ninguém mais se surpreende
retomado, vinte ou trinta anos mais tarde, não tanto para expri­ com ela, mas acha-se quase natural que um filme como Irreversível
mir uma vida centrada na liberdade, mas para marcar percursos [Gaspar Noé, 2002] possa contar as coisas no sentido contrário.
caóticos, movidos pelo acaso, erráticos. Da evasão entre mu­ Ou que um outro, como Spider, desafie sua mente [David
lheres de Teima e Louise [Ridley Scott, 1 990] ao passeio entre Cronenberg, 2002], possa misturar, sem que nada permita distin­
amigos de Sideways - Entre umas e outras [Alexander Paine, guir pela imagem, a realidade objetiva e a mesma realidade vista
2004], passando pela viagem em família de Pequena Miss pelo cérebro doente de um homem que sai de um asilo psiquiátri­
Sunshine [J. Dayton e V. Paris, 2006], a estrada é cada vez mais co. No limite, o fato de a complexidade na1Tativa provocar um tal
um lugar de vagabundagem, com peripécias extravagantes e imbróglio do sentido que desemboca na incompreensão não é
personagens muito mais diversificados e atípicos. mais visto como uma desvantagem: a confusão faz parte do jogo.
Isso se verifica e se acentua com a voga do filme-coral, Michael Haneke brinca ostensivamente de gato e rato com o es­
do qual Short cuts - Cenas da vida [ 1 993] de Robert Altman pectador ao indicar-lhe, já no título do filme, Caché [Escondido],
oferece o modelo perfeito: conta-se agora não mais uma histó­ que ele deve procurar mais longe o que não aparece de saída.
ria, mas duas, três, dez, vinte, através de enredos que entrecrnzam Particulannente afinado com esse mundo flutuante, incerto, múl­
personagens tendo entre si ligações distantes ou mesmo nenhu­ tiplo, no qual real e imaginário se confundem, Cidade dos so­
ma ligação. Histórias que constituem, segundo o sistema do nhos, muito representativo do universo complicado de David
mosaico, um vasto quadro que oferece a visão coletiva de um Lynch, não cessa de explorar suas circunvoluções estruturais como
grupo social (Assassinato em Gosford Park, Altman, 200 1 ), de outras tantas vias polissêmicas. Em Império dos sonhos [2006],
um acontecimento (o assassinato de Robert Kennedy em Bobby acentuando ainda mais o imbróglio, ele mergulha o espectador,
[Emí lio Estevez, 2006]), de uma ma (como a que tem o nome através de uma experiência de cinema com valor quase hipnóti­
de Magnólia [Paul Anderson, 1 999]), de uma cidade (a Los co, num labirinto de uma complexidade absoluta, onde e te só
Angeles de Crash - No limite [Paul Haggis, 2005]) ou mesmo pode evidentemente se perder. 4
do planeta (Babel). São filmes que traduzem a fragmentação e
as novas segmentações do mundo através da heterogeneização 4
los/ high way [Estrada perdida], Mulholland drive [Cidade dos sonhos], Inland
estmtural e narrativa. Como se essa complexidade fo rm al não empire [Império dos sonhos]; os títulos dos filmes de David Lyneh, que remetem
bastasse, outros cineastas vão mais longe ainda: enquanto Hans à topografia de Los Angeles, traçam um caminho que conduz a esse "império do
Canosa, retomando a técnica da split screen iniciada por Andy meio" que é Hollywood. Em Lynch, o fio de Ariadne é o cinema. Ver Jean Scrroy,
Entre deu.x siecles, op. cit. , p. 505-507.

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Manifesta-se aqui um aspecto muito característico do ci­
outro mestre do labirinto, David Lynch, ele recusa sempre qual­
nema contemporâneo, já abordado a propósito da imagem-ex­
quer explicação: nele, é o mistério que faz sentido, não é o sen­
cesso, mas que se exprime por uma outra fo rma expressiva. Em
t ido que faz mistério.
muitos fil mes, tudo se passa como se a compreensão cla ra e
Nova relação com as imagens que exprime, no domínio
distinta da hi stória tivesse deixado de ser uma exigência. Como
cultural, a passagem de um individualismo disciplinar a um in­
são as ressonâncias íntimas imediatas que prevalecem, a ausên­
dividualismo de tipo expressivo. 5 Um dos grandes traços da se­
cia de explicação ou de compreensão não é mais vista como
gunda modernidade é o apagamento da dominância dos meca­
uma deficiência. Assim como o cinema de ação não se dirige
ni smos de socialização e de individualização que Foucault de­
mais ao intelecto do espectador mas busca fazê-lo vib rar por
signava pelo nome de "disciplina". Esse grande d ispositivo
uma enxurrada de imagens-sensações, assim também algumas
multissecular não é mais o esquema estmturador da hipermo­
narrações se baseiam numa motivação idêntica, dissolvendo a
dernidade. As injunções e regulamentos uniformes destinados a
significação t ransparente destas. A despeito da importância da
criar a obediência regular dos corpos foram sucedidos pelas
"história", esse cinema se aproxima da música que também faz
desregulações do hiperconsumo, pela polifonia das solici tações,
vibrar o espectador para além do sentido do que é narrado. Não
pela nebulosa caleidoscópica das imagens. Agora, o controle
a compreensão plena e completa pa ra se emocionar, mas a emo­
pan-óptico e o esquadrinhamento analítico são suplantados pela
ção-surpresa sempre relançada como finalidade em si. Pouco
cultu ra mosaica das telas e pelos estímulos audiovisuais disper­
i mporta, assim, que os filmes policiais sejam cada vez menos
sos. A nova relação com o cinema é o eco dessa transformação.
realmente inteligíveis. Quando o espectador dos anos 1 930- 1950
O surgimento de uma cultura de diversão permanente provocou
ou dos anos 1 960 ia ver um filme de Hitchcock, ele esperava
uma explicação que esclarecesse o sentido do filme. O especta­ a ruína da disciplina do sentido em favor da indetetminação
reivindicada e do feeling emocional. Não mais a direção linear
dor da hipermodemidade emocional vai ver A dália negra de
da narrativa, mas uma rede complexa e multidirecional na qual
Brian de Palma e sai sem ter compreendido muita coisa, o que
as pessoas se perdem numa trama feita dcflashs descontínuo e
não impede, pelo contrário, seu prazer: a imagem-emoção pre­
impressões sucessivas.
valece obre a imagem-intelecção. E se for ver Hollywoodland
Essa ince1teza se impõe tanto mais ao espírito quando ve­
bastidores da fama, de Allen Coulter, cujo tema é bastante
próximo, será ainda menos capaz de fazer uma ideia da solução mos a sacrossanta distinção dos gêneros, sempre aplicada por
Hollywood, ser ela própria erodida por misturas, contamina­
da intriga - assassinato ou suicídio? -, já que o filme lhe apre­
ções, mestiçagens. Os gêneros canônicos evoluem para gêneros
senta as duas possibilidades como igualmente aceitáveis. A re­
solução não é mais necessária ao funcionamento do filme: a híbridos : o filme policial vira thriller, o de ação vira horror; o
imagem-eficácia importa mais que a função de sentido domi­ filme hi stórico não hesita em ílertar com o fantástico, com a
nante. Assim, o realizador que melhor teoriza e concretiza, atra­ comédia paródica, com o filme de artes marciais; o desenho
vés de sua obra, a virtude mesma da polissemia, Michael Haneke,
sempre deixa pai ra r voluntariamente o que ele considera, tendo
em vista a ambiguidade íntima dos comportamentos humanos,
como necessário ao espectador: a sombra da dúvida. Quanto ao 5 Sobre essaimensa metamorfose cultural, Gilles Lipovetsky, l 'ere du vide, Paris,
Gallimard, 1983 (Era do vazio, Manole, 2005).

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animado põe-se a falar de temas graves aos adultos6 ; e uma co­ que atravessa a tela num duplo looping, um piano depositado à
média, A vida é bela, conta o Holocausto . . . Não sabemos muito beira da calçada ou um vago depósito onde se amontoam caixas
bem onde estamos, principalmente quando, como em Bagdá de pudim, parece tão bizarro e desconcertante quanto seu ima­
Café, estamos em pleno deserto, em toda parte e em nenhwna, ginativo herói lunar.
num desses filmes fora de gênero, fora de norma, que fala de Tocamos aí um outro aspecto essencial da multiplexidade:
tudo e de quase nada. Ou então quando, como em Barton Fink: a singularização do personagem. O cinema da hipermodernidade
delírios de Hollywood, aterrissamos num hotel improvável onde não é mais o da psicologização, submetido à onipotência das
um dramaturgo,numa crise de inspiração, se vê diante da verti­ grades freudianas de interpretação. O subjetivo integral, hoje,
gem da página em branco. O filme inteiro é ocupado então por não precisa mais de explicação, de decifração mais ou menos
essa vacuidade; e da solidão e da estranheza latente surge insi­ detalhada. Nesse contexto, as condutas mais "anormais" não
diosamente a angústia, diante de um conedor sem fim, ameaça­ são vistas como extraordinárias. Os indivíduos são considera­
dor, que leva não se sabe aonde. dos simplesmente pelo que são: do velho que permaneceu crian­
Tudo se disjunta, se heterogeneíza e se lança por vias dis­ ça de Um homem com duas vidas [Jaco Van Dormael, 199 1] ao
persas. 7 O estilhaçamento afeta mesmo em grande parte o tema tipo debiloide de Forrest Gump, o contador de histórias [R.
das narrativas. Ao lado de temas graves e pesados, agora há Zemeckis, 1993], da surda de Sobre meus lábios [Jacques
lugar também para o insignificante, o pequeno, o três vezes nada. Audiard, 200 1] ao autista de Rain Man [Barry Levinson, 1988]
Uma estética do pontilhismo desenvolve cenas que valem mais ou ao mongoloide de O oitavo dia [Dormael, 1996], há lugar
por si mesmas que por relação a um tema central. Multiplicam­ para todos. Pois todos são ao mesmo tempo complexos e singu­
se os filmes que mostram o prazer do minúsculo, do primeiro lares, sua singularidade traduzindo-se através de comportamen­
gole de vinho de Sideways - Entre umas e outras ao último tos que, num mundo em que a diferença individual se tornou
aroma exalado das Flores partidas [Jim Jarmush, 2005], filmes um valor primeiro, não precisam de justificação alguma nem de
que, de tanto falarem de tudo e de nada, do grande e do peque­ qualquer explicação erudita. É a singu laridade mesma que se
no, do simples e do complicado, nos deixam perplexos sobre impõe como fato evidente e modelo. O cinema hipermoderno
qual é seu verdadeiro tema. Assim, o extravagante Embriagado mostra os seres tais como aparecem em sua maneira única de se
de amor [Paul Thomas Anderson, 2002] que, entre um carro comportar; está aí sua verdade, por mais extravagante, estranha
e inexplicável que seja, numa superficie que não é de modo
algum superficialidade. Ponta extrema do imaginário igualitá­
6
Assim, Marjane Satrapi utiliza em 2007, em Persépolis, o desenho animado para
evocar, através dos sobressaltos do Irã moderno, sua própria história e a das mu­ rio democrático: é a singularidade do outro que o aproxima de
lheres submetidas à lei islâmica. O filme de animação torna-se ao mesmo tempo mim. M eu dessemelhante, meu innão C) . . . 8
quadro histórico e autobiografia: uma estreia do gênero.
7
Mesmo o tempo da ficção científica se complexifica. Assim, num prodigioso (*) Alusão à famosa expressão de Baudelaire na introdução de As flores do mal:
salto para trás, pode-se chegar De volta para o futuro [Robert Zemeckis, 1985]. "Leitor hipócrita - meu semelhante, meu irmão". (N.T.)
E, saindo à procura do velho mito da fonte de juventude, Darrcn Aronofsky vai 8 Isso se exprime de forma divertida num diálogo de Mic/10u d 'Auber (Thomas
buscar a Fonte da vida [2006] ao mesmo tempo cm três séculos que misturam Gilou, 2007] entre um garoto africano do Norte e seu pai de acolhida da província
presente, passado e futuro - o XVI, o XXI e o XXVI - através de três homens - de Berry, na França: "Somos todos iguais", diz o garoto; "Somos todos diferentes,
um guerreiro, um cientista, um explorador - cujos nomes - Tomas, Tommy, Tom é a mesma coisa", responde o pai adotivo.
- dizem suficientemente que se trata do mesmo e do outro.

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Multiplicação das idades da vida rios dos que, nos anos 1960- 1970, vão afirmar de maneira mais
radical o espírito de revolta e de contestação. Quer seja na liber­
Durante muito tempo, o cinema, em sua forma clássica, dade de viver a própria vida e a própria morte (Acossado [Go­
contou histórias centradas em personagens de média idade, nem dard, 1959], O demônio das onze horas [Godard, 1965]), na
muito j ovens, nem muito velhos. Algumas exceções olhavam às errância existencial (Easy rider - Sem destino, 1969), nas re­
vezes para o lado da inf?111cia - os colegiais de Zero de conduta voltas estudantis contra a autoridade (lf- Se [Lindasy Ander­
[Jean Vigo, 1933 ] ou O mistério do colégio [Christian-Jacque, son, 1969]), na marginalidade hedonista e anarquizante ( Cora­
193 8], os cabelos encaracolados de Shirley Temple ou o nariz ções loucos [Bertrand Blier, 1973]) ou na via libertária do un­
arrebitado de Mickey Rooney. Mais raramente para o lado da derground (Flesh [Paul Morrissey e Andy Wahrol, 1968], Trash
velhice - os atores aposentados de Lafin dujour [Julien Duvivier, [Morrissey, 1970], Heat [Morrissey, 1972]), o cinema dos anos
1939] ou os três velhos de A velha guarda [Gilles Grangier, da contestação e da contracultura é um cinema jovem, que se
1960]. Quando Truffaut mostra em 1959 uma infância "mais posiciona como tal. Quando Romain Goupil retorna, quinze anos
verdadeira", em Os incompreendidos, o choque é grande, de mais tarde, a 1968, seu filme tem um título de valor ao mesmo
uma natureza bem diferente da imagem convencional oferecida tempo romântico e simbólico, que remete a uma juventude eri­
sete anos antes por Brinquedo proibido [René Clement]. A no­ gida corno referência central: Morrer aos trinta anos [ l 982] .
vidade que ele introduz - mostrar um garoto de 12- 13 anos não Esse movimento desencadeado pela modernidade eman­
como os adultos o veem, mas tal como sua idade o revela - cipadora dos anos 1950- 1960 se acentuou fortemente no perío­
tornou-se, desde então, moeda corrente. do hipennoderno. Chegamos ao momento em que o cinema
Essa dinâmica se inscreve na linha de um fenômeno ini­ aborda todos os ciclos, todas as etapas da existência. Não mais
ciado nos anos 1950 e do qual o rock, com a emergência fulgu­ exclusão: daqui por diante, todas as gerações têm direito de ci­
rante de Elvis Presley, foi o motor. De fato, a partir desse mo­ dadania, são auscultadas e encenadas. Às "cenas da vida conju­
mento assiste-se à promoção de uma categoria de idade até en­ gal" sucede a cena dos tempos multiplicados da vida. Não é
tão tratada marginalmente: a juventude. Uma imagem j uvenili­ mais pelo homem e pela mulher "médios" que nos interessa­
zada do astro aparece nas telas: Marlon Brando em Um bonde mos, mas pelo ser singular, cuja primeira singularidade é a de
chamado desejo [Elia Kazan, 1952], James Dean em Vidas amar­ sua idade, em todas as idades.
gas [Kazan, 1955], Anthony Perkins em Sublime tentação [Wi­ É que a duração da vida aumenta e as normas em vigor no
lliam Wyler, 1956], Elisabeth Taylor e Paul Newman em Gata mundo da tradição não se aplicam mais. Emancipado dos anti­
em teto de zinco quente oferecem seus corpos e seu desejo de gos controles comunitários e do domínio dos modelo t radicio­
viver intensamente a toda uma juventude ávida de novos íco­ nalistas ou religiosos, o indivíduo vem agora em primeiro lugar
nes. Seus filmes expõem toda uma série de problemas até então e ' com isso ' cada idade de sua vida merece ser considerada por
amplamente ocultados: a ansiedade, a violência, os conflitos si mesma, como um absoluto. As etapas da existênci a não são
entre gerações, o sexo, a música. É a época de Sementes da mais aqueles dispositivos tradicionais que transcendiam o indi­
violência [Richard Brooks, 1955], de O selvagem [Laszlo Be­ víduo e lhe fixavam papéis predefinidos, os quais, segundo
nedek, 1954], de Juventude transviada [Nicholas Ray, 1955], Philippe Aries, pertenciam "a um sistema de descrição e de ex­
de Ao balanço das horas [Fred Sears, 1956], filmes premonitó- plicação física que remonta às filosofias jônias do século VI

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antes de Cristo". 9 Sob o impulso do aumento da duração de vida precisa: Eu, César, 1 0 anos ½, lm 39 [Richard Berry, 2003 ] .
e da dinâmica da individualização, impôs-se um novo olhar so­ oloca-se a questão: a que s e deve o aparecimento desse novo
bre as idades da vida. Estas não designam mais posições e pa­ "objeto" na tela? A resposta não dá margem a muita dúvida:
péis determinados por limiares e princípios fixos; agora são si­ trata-se do processo de individualização da representação da
tuações incertas e confusas ritmadas por crises subj etivas, dúvi­ criança, da nova atenção dirigida à sua individualidade concre­
das e interrogações que se formulam no quadro do problema da ta. Diferentemente das épocas antigas, em que o curso da infân­
identidade pessoal. 'º No seio da cultura hipermoderna, mesmo cia parecia dominado mais por um processo natural ou anônimo
as fases da vida entraram num processo de destradicionalização, do que por uma dinâmica em primeira pessoa, compreendemos
de desregulação, de redefinição social e subjetiva. Não é difícil a marcha da existência como uma história estritamente pessoal,
reconhecer aí uma das figuras do presenteísmo individualista uma história cujo caráter individual está presente já nos primei­
contemporâneo e seu desejo de viver plenamente cada momen­ ros anos de vida. É porque a criança é reconhecida como uma
to: a criança não espera mais, como antigamente, ser adulto, e o pessoa integral, uma plena individualidade, que o cinema a co­
velho quer viver sua terceira idade e mesmo a quarta. O novo loca em cena, dando-lhe o lugar de personagem central com
imperativo é "seja você mesmo de uma idade a outra". 1 1 traços e percursos singulares.
Um novo zoom incide sobre a primeiríssima infância: Depois das crianças, são os pré-adolescentes, os adoles­
Gilles de Maistre fi lma Le premier cri [O primei ro grito, 2007] centes, os jovens adultos que invadem a tela: Jacques Doillon se
e Alain Chabat prepara, como produtor, um filme sobre o nasci­ interessa pelos 1 1 anos de A menina que queria ser amada [ 1 979],
mento e os 18 primeiros meses de cinco bebês através do mun­ pelos 1 3 de Ojovem Werther [ 1992], pelos 1 5 de La filie de quin ­
do, que deverá simbolicamente intitular-se Life. Jacques Doillon ze ans [ 1989] ou de O jovem assassino [ 1990]. Claude Miller
mostra, em Ponette [ 1996], uma menina de quatro anos subme­ filma a jovem Ladra e sedutora [ 1988] a partir de um roteiro de
tida ao choque frontal que é a morte da mãe. Esse interesse pros­ François Truffaut, como uma irmã mais velha do Antoine Doinel
segue, focalizando a primeira infância: o personagem de Um de Os incompreendidos. André Téchiné capta as vibrações das
homem com duas vidas tem oito anos 1 2 , a garota de A culpa é do Rosas selvagens [ 1 994] no ano de conclusão do colégio; Bertrand
Fidel [Julie Gravas, 2006] tem nove, o garoto de Estamos bem Tavemier evoca os adolescentes criminosos em A isca [ 1 994].
mesmo sem você [Kim Rossi Stuart, 2006], dez, e um outro che­ Quanto aos ginasianos de Idade perigosa [Cedric Klapisch, 1994],
ga a declarar sua idade e suas medidas de maneira mais que eles se tomam os estudantes de O albergue espanhol [200 1] e
depois se veem lançados na vida em A s bonecas russa [2005].
9 Phi lippe Aries, l 'Enfatnt et la viefamiliale solts l 'A ncien Régime, Paris, Plon, Esse olhar não é apenas o do cinema francê , mas de todos os
1 960, p. 6. cinemas, inclusive, naturalmente, o cinema americano, que faz
10_ Éric Dcschavanne e Pierre-Henri Tavoil lot, Philosophie eles âges de la vie.
dele o objeto de um gênero específico: seja qual for a cinemato­
Pollrquoi grane/ir? Pollrqlloi vieillir?, Paris, Grasset, 2007. Ver também M arcel
Gauchet, "La redéfinition des âges de la vie", le Débat, n.º 1 32, nov-dez. 2004. grafia, os jovens agora ocupam uma boa parte dela. Mas aqui não
1 1 Ver François de Singly (dir.), Ê1re soi-même d 'un âge à I 'autre, Paris, encontramos mais o espírito rebelde da contracultura: o olhar di­
L'Harmattan, 200 1 .
12 O filme é por si só uma colocação cm perspectiva das idades da vida: Toto é
rigido aos "jovens" também se tornou plural. Como as etapas da
visto sucessivamente como bebê, como criança de 8 anos, como adulto de 30,
existência não são mais socialmente predefinidas, os filmes se abrem
como velho de 80. à individualização dos percursos, às histórias e às trajetórias pa1ti-

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cularizadas: infüncias difíceis, vidas de colégio e de ginásio, aban­ alização de uma adolescência completamente desestabilizada,
donados das periferias, estudantes ansiosos com seu futuro e re­ reduzida a um estado de anomia total. Uma imagem recorrente
moendo seus inúmeros problemas existenciais. Por toda parte, a do fi lme diz isso: um céu vazio onde se acumulam as nuvens e
infüncia e a adolescência são observadas mais de perto e o acento os cataclismos por vir.
é posto numa comum dificuldade de viver essa idade: na Teerã de Mas, quando esses jovens viram adultos, nem por isso o céu
A maçã [ 1998], onde Sarnira Makhmalbaf mostra duas meninas desanuvia. Multiplicam-se os filmes que traduzem essa crise, entre
mantidas reclusas por urna educação retrógrada; na Escócia atin­ dificuldade de abandonar a juventude e entrar na idade adulta - o
gida pela crise industrial, em Sweet Sixteen, de Ken Loach [2002]; que não é senão a síndrome de Tanguy [Étienne Chatiliez, 200 1 ]. O
nos Estados Unidos atormentados com suas armas de fogo, à ima­ mal de viver dos trinta anos impõe-se como um tema da atualidade,
gem dos estudantes assassinos de Columbine que Gus Van Sant que alimenta, aliás, grande parte da produção francesa atual: o fil­
acompanha passo a passo nos travellings cruzados de Elefante me de Marie-Anne Chazel, que conta as aventuras existenciais de
[2003] . um grupo de amigos acometidos de todos os sintomas de época -
Sem bússola, não tendo onde se fixar, a juventude, tal como ansiedade, homossexualidade, bulimia, câncer -, exprime bem isso
aparece nas suas representações mais extremas que o cinema já no próprio título: Au secour! J'ai frente ans [Socorro ! Estou com
oferece, está às voltas com uma desestruturação-desintegração trinta anos, 2004]. Esse mal-estar é logo seguido, entre os quaren­
radical, tanto em relação a si quanto em relação ao mundo social. tões e os cinquentões, pela famosa crise da meia-idade. O cinema
O que Elefante mostra de um modo forte, recusando-se a toda hipennodemo põe em cena a crise de uma idade madura cada vez
explicação falsamente tranquilizadora, é um horizonte vazio de mais problemática, como o testemunham, nos filmes, os divórcios,
sentido, no qual todas as antigas referências - familiares, edu­ a relação com os filhos, os casais recompostos, a depressão, o té­
cativas, morais, religiosas - não funcionam mais. Enquanto os dio, os sonhos de juventude insatisfeitos, os personagens imaturos.
filmes de revolta dos anos 1950- 1 960 mostravam um conflito Pecados íntimos [Todd Field, 2006], abordando o adultério e a pe­
de gerações que punha frente a frente pais e filhos, os adoles­ dofilia num subúrbio americano, pinta o quadro das frustrações,
centes assassinos de Columbine disparam contra tudo o que se dos desejos, das transgressões entre os trintões. Casos e casamen­
mexe, tanto professores como alunos, semeando a morte sem tos [Valérie Guignabodet, 2004], abordando vários casais de ida­
objetivo nem sentido. Estamos mais além da crise da adoles­ des diversas, diverte-se na descrição das decepções matrimoniais.
cência, mais além do confronto entre gerações, mais além de Alguns atores fazem mesmo disso uma especialidade: é o caso de
toda lógica de reivindicação. Muito longe, até, do ato gratuito à Jean-Pierre Bacri, como esposo e funcionário bem estabelecido que
Gide (*), que conservava o valor positivo de afirmação de si; a põe em questão seu casamento, sua profissão e sua vida cm Kenne­
matança está ligada aqui a um universo feito, indiscriminada­ dy e eu [Sam Karmann, 1999], ou como empresário que descobre
mente, de videogames, imaginário nazista, ausência de pais, um novo horizonte para sua vida em O gosto dos outros [Agnes
prazerfun, alergia a qualquer fo1ma de autoridade, imitação de Jaoui, 1999], ou ainda como marido em plena deprê que recupera o
Rambo, fragilidade psicológica. Um magma heteróclito, dele­ gosto pela vida graças aos encantos de uma empregada em Une
tério e patogênico, incapaz de enfrentar os imperativos de soei- femme de ménage [Claude Berri, 2002]. E, enquanto os trintões
não saem de cena, os quarentões e cinquentões estão mais do que
(*) André Gidc ( 1 869- 1 95 1 ), romancista francês. (N.T. ) nunca presentes, passando o tempo juntos, como em Mes meilleurs

1 08 1 09
copains [Jean-Marie Poiré, 1988] e O coração dos homens [Marc çnvelhecida e da carcaça tolhida de reumatismos, continuar sen­
Esposito, 2003] . do atraente. Assim também, com 80 anos, após enterrar a mulher
Chegam os sessenta e os setenta anos. Mas o s aposenta­ que foi o amor de sua vida, o herói de Suzanne [Viviane Candas,
dos têm recursos e, mesmo se ultrapassaram o limite de idade, 2007] vive um último amor com uma mulher mais jovem que ele,
os quatro pilotos de Caubóis do espaço [Clint Eastwood, 2000] num filme que vê a velhice como se vê tradicionalmente a juven­
são os únicos competentes para realizar uma missão no espaço. tude: cheia de vida,de diversidade, de recursos e vontade de amar.
Pois os velhos, mesmo os muito velhos , não são mais os velho­ Claro que essa abordagem um tanto eufórica da velhice
tes de antigamente: os pensionistas da casa geriátrica de Cocoon está longe de exprimir uma realidade frequentemente vivida de
[Ron Howard, 1985], que descobrem a primavera dos 80-90 anos, maneira bem mais trágica. Em primeiro lugar, buscar o reju­
regenerados pela fonte de juventude de uma fábula simbólica, venescimento, combater os estigmas do tempo através de curas
se revelam parceiros animados, dançarinos, pândegos e apaixo­ diversas, vitaminas, DHEA [hormônio antienvelhecimento] ou
nados frenéticos. Que significa isso, senão que a terceira idade cirurgia plástica, tem geralmente um custo alto e o empreendi­
não escapa à força dinâmica de individualização? Nas socieda­ mento, um dia ou outro, acaba por mostrar seus limites. Além
des antigas, o ideal associado a esse momento da vida era a disso, apesar do Viagra, a deficiência sexual é vivida como uma
preparação para a morte. Não é mais assim. Agora o "velho" é angústia: um dos raros filmes que ousou mostrar esse fato é La
um indivíduo que se recusa a suportar passivamente o peso da débandade [Claude Berri, 1999]. Os tormentos adquirem uma
idade. Se não é mais objetivamente jovem, ele incorpora os va­ dimensão ainda maior para os mais idosos: solidão extrema,
lores juvenis de atividade, de dinamismo, de forma. Outrora, a desamparo físico e moral, sentimento de abandono experimen­
velhice era o momento, pelo menos idealmente, da aceitação tado nos asilos,nas longas internações em hospitais, antecâmaras
das coisas e do destino. Hoje, a terceira idade recusa que o futu­ da morte. É forçoso observar que o cinema ainda hesita em olhar
ro lhe seja barrado, que as coisas estejam decididas. Mesmo em de perto a face negra da velhice prolongada. Alguns poucos fil­
idade avançada, o indivíduo quer continuar podendo construir, mes se arriscam a evocar esse ou aquele aspecto, mas de manei­
inventar ou mesmo refazer sua vida. ra voluntariamente camuflada (como a doença de Alzheimer,
Por isso as expetiências da aventura, do amor e do sexo muito romanescamente tratada em Longe dela [Sarah Polley,
podem, cada vez mais, assumir as rugas na grande tela: Jack 2007]) ou fragmentária (em La Consultation [Hélene de Crecy,
Nichol�on e Diane Keaton já estão em plena andropausa e meno­ 2007], entre os quinze pacientes que desfilam diante de um clínico
pausa quando descobrem do que são capazes, num encontro que geral, figuram dois ou três velhos às voltas com doenças da terceira
é tanto de amor como de sexo, em Alguém tem que ceder [Nancy idade - mas ainda se trata de um documentário ... ). A verdade é que
Meyers, 2004]. Clint Eastwood e Meryl Streep tampouco estão a decrepih1de não é muito comercial. Tocamos aí o derradeiro tabu
na primeira juventude quando seus personagens de grande repór­ do hipercinema: tudo é dito e mostrado, exceto, precisamente, a
ter fotográfico e de boa esposa e mãe de família vivem uma gran­ decadência que acompanha o fim da vida. Deve-se ver aí uma peça
de aventura sentimental em As pon tes de Madison [Clint com defeito a substituir? Se o esquema da dinâmica multiplex que
Eastwood, 1995]. Mais idosa ainda, a personagem de La vieille propomos aqui é justo, esse último ferrolho cederá inevitavelmen­
qui marchait dans la mer [Laurent Heynemann, 199 1], apaixona­ te, assim como já desapareceram outras interdições ou colocações
da por um rapaz que encontra na praia, quer, apesar da pele entre parênteses: o processo de cinematografização das idades da

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vida chegará a seu termo. Sendo cada vez maior a duração de vida 1 1 1 ·nlc seu lote de desenhos animados, filmes d e aventuras, Harry
dos atores e das atrizes, assim de como todo o mundo, papéis con­ l 'oller e O senhor dos anéis.
cedidos à sua velhice os esperam. 1 3 A maneira como o cinema mostra cada idade enquanto tal
O fato evidente é que o imaginário da igualdade democrá­ dessa juventude amplamente solicitada a todas as outras etapas
tica completou sua obra: de acordo com esse padrão, cada idade da existência - traduz o processo de individualização que leva
merece respeito, atenção, igual reconhecimento. E isso na medi­ cada indivíduo a viver de forma pessoal os tempos de sua vida.
da em que vivemos numa sociedade em que tanto os mais jovens
quanto os mais velhos representam categorias de consumidores Um homem, uma mulher
importantes. Não mais hierarquia, mas dignificação igual das
épocas da vida. Com uma valorização muito particular, porém, A variedade complexa dos personagens contemporâneos
da juventude, em função da derrocada das culturas tradicionalis­ se estende naturalmente até os papéis e as identidades sexuais,
tas voltadas para o passado e também do surgimento de novas profundamente redefinidos pela cultura hiperindividualista. Sem­
categorias de consumidores: desde os anos 1 9(i0 os jovens têm pre existiram, no cinema clássico, papéis atípicos, mas que em
dinheiro no bolso para gastar, e desde os anos 1980-1990 eles se nada alterava a diferença estrutural de ambos os sexos: o gigolô,
tornaram a categoria mais diretamente consumidora de cinema. o homem fraco, o devasso, de um lado, a megera, a prostituta, a
A ida ao cinema, hoje, não é mais o programa de família que foi alcoviteira, de outro. Desde os anos 1970, assistimos a um am­
durante muito tempo, mas um programa entre jovens, favorecido plo processo de desestabilização da dicotomia tradicional dos
por pol íticas tarifárias, festas do cinema e, principalmente, por papéis sexuais. O cinema atual mostra toda a dimensão
filmes destinados a esse público-alvo. O cinema, que desde James irreversível desse processo. 1 4 Assim, ao registrarem e acelera­
Dean participou, junto com a música, da constmção de uma cul­ rem ao mesmo tempo a evolução pela força de modelo que ge­
tura adolescente, serve hoje para a exploração comercial sistemá­ ram, os filmes dão cada vez mais espaço a personagens femini­
tica dessa cultura, por uma diversificação e multiplicação dos nas em esferas de atividade que tradicionalmente lhes eram
produtos que oferece. O filme de colégio, o teen movie, em sua barradas. É longa a lista das executive women ( Uma secretária
versão sexo -Americon Pie -A primeira vez é inesquecível [Paul do futuro [Mike Nichols, 1988]), das mulheres poderosas ( O
Weitz, 1999] -, músic a - Escola de rock [Richard Linklater, 2004]
-, horror - Pânico [Wes Craven, 1997] -, tornou-se um gênero, e 1 � Esse fenômeno não pode ser dissociado de uma dimensão radicalmente nova
tanto as festas como as férias escolares trazem de volta infalivel- constitutiva do hipercinema e de sua paisagem profissional : a chegada em mass�
de mulheres à direção de filmes, domínio até então quase reservado aos homens.
Praticamente ausentes desse cargo até os anos 1980, elas o assumem desde então
cm grande número e em todas as cinematografias. Os dados são eloquentes: entre
13 Assim, Daniellc Darricux interpreta em 2006, aos 89 anos de idade, o papel de 1900 e 1980, no mundo inteiro, contam-se apenas umas vinte mulheres diretoras
cuja obra é conhecida: somente no ano de 2004, na França, entre os filmes distri­
uma atriz octogenária a quem é oferecida uma Nouve//e chance [Nova chance]. O
buídos, 68 são de mulheres. E elas realizam não apenas "filmes de mulheres", mas
mesmo se passa com os realizadores: o português Manoel de Oliveira, nascido em
exploram todos os gêneros (por exemplo, nos filmes de ação, Kathryn Bigelow
1908, realiza em 2007, aos 99 anos de idade, Bel/e toujours, no qual retoma,
em Hollywood, ou, na comédia musical, Roberta Torre, que se diverte com a
quarenta anos depois, o Bel/e dejour de Buiiuel , numa espécie de continuaação
máfia siciliana em Tano da morire [ 1997]). Ver Jean Scrroy, Entre deux siecles,
que põe em cena os mesmos personagens envelhecidos, e o mesmo Michcl Piccoli,
op, cit. , "Le cinéma au féminin", p. 41-45.
agora com 82 anos.

112 113
diabo veste Prada [David Frankel, 2006]), das que exercem nbaixo a velha tradição que dava aos homens todo o direito de
"profissões de homens" - policial em O pequeno tenente [Xavier zombar das mulheres, desde os fabliaux, contos picarescos da
Beauvois, 2005], piloto de testes em Os cavaleiros do ar [Gérard Idade Média que fustigavam os defeitos delas, até os gracejos
Pires, 2005] - ou que se l ançam em esportes ou atividades repu­ rc crvados às preciosas ridículas e às megeras supostamente do­
tadas viris - a l utadora de boxe de Boa de briga [Karyn Kusama, madas. Tanto na tela como nas cenas de music-hall, as mulheres
2000] ou de Menina de ouro [Clint Eastwood, 2005], as mulhe­ e apropriam do código humorístico, inclusive no registro sexual
res-soldados de Uma juventude como nenhuma outra [Dai ia mais acentuado: Josiane Balasko chega a roubar de Alain Chabat
Hager e Vidi Bilu, 2006] -, ou ainda que se dão o luxo de ser a própria esposa em Uma cama para três [Josiane Balasko, 1995],
super-heroínas - Mulher Gato, Elektra [Rob Bowman, 2005] - e Valérie Lemercier não teme, num filme em que ela mesma in­
em nada ficando atrás dos super-heróis. terpreta um personagem cujo pai se revela homossexual e tem
As mulheres vivem também a disjunção tradicionalmen­ um caso com um proctologista, escolher um título explícito - Le
te masculina entre amor e sexo, utilizando este último como derriere [O traseiro, 1999]. Agora as mulheres riem de si mesmas
uma libertação e como um prazer. Em Uma mulher coreana [Im - Bridget Jones é a primeira a se fustigar no seu diário [ O diário
Sang-soo, 2003], a heroína põe abaixo o edifício de submissão de Bridget Jones, Sharon Maguire, 200 1] - assim como riem dos
conjugal, no entanto bastante sólido num país de fortes tradi­ homens, dispensando-os de fazer isso por elas.
ções, ao abandonar o marido por um jovem amante adolescente Inversamente, e numa lógica idêntica de inversão de pa­
que ela utiliza como puro objeto sexual, e tendo com este o filho péis, a beleza, que tradicionalmente sempre coube à mulher, não
que ela deseja e que decide educar sozinha. O sexo, como a é mais um imperativo categórico das estrelas femininas. Ela che­
carreira ou o dinheiro, são agora assunto tanto de mulheres quan­ ga a ser explicitamente transformada em seu contrário, em filmes
to de homens: as companheiras de Amigas com dinheiro [Nicole nos quais a atriz principal, conhecida por sua beleza, enfeia de
Holofcener, 2006] conversam tanto sobre suas aventuras sexu­ todas as maneiras. Sandrine Bonnaire, impedida de se enfeitar
ais quanto sobre seus problemas de dinheiro. Assim não é raro, pela diretora Agnes Varda durante a filmagem de Sem teto nem
nos filmes ainda mais diretamente do que na vida, que sejam lei [ 1985], a fim de encarnar melhor uma mochileira, foi desde
agora as mulheres a tomar as iniciativas sexuais. Desde que então amplamente superada. Assim, a modelo e ícone publicitá­
Lauren Bacal l se aproximou de Bogart, em Á beira do abismo rio Charlize Theron submete-se a um regime de engorda, como já
[Howard Hawks, 1945], para convidá-lo a acender seu cigarro, foi dito, põe no rosto próteses disgraciosas, unta os cabelos,
o cinema vem contribuindo para legitimar a iniciativa feminina, amarelece os dentes e se veste com roupas disfonnes para encarnar
e nisso ele se mostra menos como um reflexo do real do que uma mulher feia em busca de um caminhoneiro, em Monster -
como produtor de novos modelos de comportamento. Em 1987, Desejo assassino. O que lhe vale um Oscar. E a bela Monica
é Glenn Close que assedia um advogado, casado e pai de famí­ Bellucci é selvagemente violentada, batida e mostrada cheia de
lia, fazendo-o viver uma Atração fatal [Adryan Line, 1 987]. tumefações num filme, Irreversível [Gaspar Noé, 2002], construído
Hoje, são as garotas de 1 6 anos que paqueram os rapazes tími­ sobre a inversão da sublimação que transforma a imagem da be­
dos de Hellphone [James Huth, 2007]. leza em espetáculo repugnante. O que toca não é mais apenas a
Até mesmo o humor, por muito tempo considerado como beleza do ícone, é a personalidade singular. Isso abre para as atri­
um monopólio dos homens, está se feminizando. O cinema põe zes um leque de papéis muito menos padronizados.

1 14 1 1S
Ao mesmo tempo, no que pode parecer ser somente urna l i mpa de um elegante condomínio residencial, todos os de­
inversão dos papéis tradicionais, o strip-tease se masculiniza em s jo inconfessados e as violências recalcadas do homem
Ou tudo ou nada [Peter Cattaneo, 1 997], e Billy Elliot [Stephen americano às voltas com o mal-estar da identi dade. Os don
Daldry, 2000], o rapaz das cidades de mineração, sonha em cal­ J uan foram atingidos e m seu ego viril: agora eles sentem
çar sapatilhas e virar dançarino. Enquanto as mulheres trabalham, um "grande cansaço".
os homens assumem sua condição de novos pais desde Três ho­ São aspectos que participam de uma recomposição dos
mens e um bebê, de 1 985 (primeiro filme realizado por uma mu­ territórios relativos aos gêneros sexuais. Sobre o fundo de
lher, Coline Serreau, a obter um enorme sucesso no box-o.ffice). mal-estar, e certamente como uma resposta a este, a época
De resto, a recomposição da paisagem identitária sexual é tão também registra uma remasculinização dos homens assim
forte que se coloca a questão mesmo para aqueles a quem ela não como uma refeminização das mulheres. Ao mesmo tempo em
representava antes um grande problema: o que é ser homem numa que Woody Allen passeia sua figura de magricela de óculos,
sociedade em que a igualdade conquista todos os domínios? Já a sistimos à promoção dos corpos atléticos: não estamos mais
em 1 975, um filme premonitório e prototípico, realizado pelo no viril, mas no hiperviril. Não há fi lme de ação que não faça
agitador iconoclasta que foi Marco Ferreri, dizia isso de forma admirar os peitorais e a musculatura do herói, realçados por
incisiva: ao privar-se do sexo em L 'ultima donna, Gérard camisetas colantes e por um toque de negligência, como a
Depardieu mostrava o mal-estar dos homens, como que barba nascente cuidadosamente descuidada de Bruce Willis
emasculados de sua identidade viril. De forma menos extrema em Lágrimas do sol (Antoine Fuqua, 2003 ]. O hipercinema
porém mais generalizada, os homens de hoje revelam uma fragi­ acentua o virilíssimo, de Rambo a Gladiador, assim como o
lidade íntima: sob os torsos musculosos e as barbas viris se es­ feminíssimo, de Julia Roberts a Nicole Kidman. Os machões
condem seres comuns, sem qualidades particulares,frágeis como retornam, mas também as mulheres hiperfeminina , vidradas
os personagens de Nicole Garcia,retratados em sua solidão e suas em beleza, moda, cirurgia plástica, como as que freqüentam
vacilações em Selon Charlie [2006]. É o que exprime o título de o Instituto de beleza Vên us [Tonie Marshall, 1 998] e que di­
um filme de Jacques Audiard: O declínio dos homens [ 1 994] . zem umas às outras, entre duas sessões : Como você está bo­
Na linha dessa perda de poder viril, o cinema con­ nita! (título também de um filme de Lisa Azuelos, 2006] . É a
temporâeno diz e mostra a miséria sexual, a masturbação revanche da Legalmente loira [Robert Luketic, 200 1 ], que
diante das mulheres que se recusam, e também os estupros, pinta a vida de rosa - roupas de vinil, celular, agenda em
a pedofilia, a impotência, o turismo sexual. 1 5 A Lolita que, forma de coração, fita no pescoço do seu cachorrinho - e
em Beleza americana (Sam M endes, 1 999], vem semear a prova, ela, a Barbie californiana, que merece um diplomado
discórdia numa família americana comum, na qual o pai, de Harvard !
logo no começo do fi lme, traduz sua frustração por uma A tela hipermoderna combina o atípico e o estereótipo, a
atividade masturbatória reveladora, põe a nu, sob a fachada revolução dos gêneros e sua permanência social-histórica; tudo
se vê, tudo se mistura e se opõe no caminho da individualização
extrema e da força multiplicada dos modelos. O cinema, que
s O fenômeno não atinge somente os homens: os parceiros, homens e mulheres,
1
fornecia com o astro uma espécie de cânone sublimado, agora
de Sexo, menliras e videolape são emblemáticos desse Eros neurótico.
se abre aos defeituosos, aos mal barbeados, aos feios, às gor-

1 16
1 17
das 1 6 e, simultaneamente, à beleza mais padronizada. Tirania da ·tdina em Não dou beijos [André Techiné, 199 1], a paixão que
beleza e emancipação das mulheres progridem juntas. 1 7 Espiral at inge o mito mesmo da virilidade que é o caubói em O segredo
das personalidades singulares, exacerbação dos modelos (mús­ de Brokeback Mountain [Ang Lee, 2005]: a homossexualidade,
culos, magreza, juventude, sexo): seja como for, a hipertrofia cm sua diversidade, se impõe como algo natural.
dos contrários compõe ao mesmo tempo a imagem-multiplex e Se a homossexualidade feminina parece menos presente
a imagem-excesso do novo cinema. que a masculina nas produções importantes, é certamente por­
que o lesbianismo pertenceu por muito tempo, através do cine­
Minorias m ultisex ma pomô que faz grande uso dele, a uma fantasia masculina.
Mesmo assim os amores entre mulheres conquistaram definiti­
Essa redefinição dos papéis não poupa as identidades re­ vamente dignidade e direito nas telas. Hollywood concede um
lativas às inclinações sexuais. Isso se observa particularmente Oscar a Charlize Theron por sua interpretação de uma persona­
na maneira como a homossexualidade se apresenta agora nas gem lésbica em Monster, e muitos filmes independentes, de
telas. Durante muito tempo, o homossexual foi objeto de riso: Beijando Jessica Stein [C. Herman-Wurmfeld, 2002] a Puccini
os dois parceiros de A gaiola das loucas [Edouard Molinam] for Beginners [Maria Maggenti, 2006], dão à homossexualida­
deram a essa tradição,em 1978, sua imagem mais acabada. Vinte de feminina o lugar que ela merece. 18 O mesmo acontece com a
ou trinta anos depois, um filme desses praticamente não seria transexualidade: o travesti de Chouchou [Merzak Allouache,
mais possível; aliás, seu remake americano tardio, The birdcage 2002], a meio caminho entre Tootsie [Sidney Pollack, 1982] e
[Mike Nichols, 1996], foi um fracasso total. Progressivamente, Uma linda mulher [Gary Marshall, 1990], sente uma paixão
o fenômeno gay se impôs, encontrando sua legitimação nas te­ súbita, mais tocante que cômica, por seu parceiro casual . E o
las em filmes que o mostram num contexto muito diferente do herói de Hedwig, rock, amor e traição [John Cameron Mitchell,
da condenação moral ou da simples derrisão. Os amores de es­ 200 1], rapaz transfonnado em garota por uma operação que lhe
tudantes na Cambridge muito britânica de Mourice [James Ivory, deixou alguns centímetros de apêndice indesejável, traz uma
1 987], os mais populares do jovem paquistanês da periferia lon­ cicatriz que o confirma na condição ambígua de homem-mu­
drina em Minha adorável lavadeira [Stephen Friars, 1985], a lher, de um terceiro sexo perturbador.
aprendizagem amorosa e a descoberta da sexualidade homo em Distante já do começo dos movimentos pelos direitos ho­
Rosas selvagens [André Téchiné, 1 994], a sombra da Aids es­ mossexuais dos anos 1960,o novo cinema gay que nasce nos anos
tendendo-se em Noites felinas [Cyrill Collard, 1992], o direito 1990 impõe, através do "cinema queer" 1 9 , a evidência reconhecida
de viver dignamente a homossexualidade e sua doença em Fila­ de uma cultura gay que, não se encerrando na reivindicação mili­
délfia [Jonathan Demme, 1993], a paquera e a prostituição mas- tante, remodela amplamente, para além dos filmes propriamente

16 A gordura pode, aliás, sob o olhar de alguns cineastas, ter sua própria graça. O 18 Por exemplo: Está na água de Kelli Hcrd ( 1 988), A viagem ao Kajiristão de
corpo planturoso de Marianne Sagebrecht, cm Bagdá Café, torna-se um modelo Fosco e Donatello Dubini (200 1 ), The Po/itics ofFur de Laura N ix (2002), 7ipping
para o p intor que descobre seus encantos. Outra forma do cinema multiplex. the velvet de Gcoffrcy Sax (2002).
17 Sobre esse duplo processo, G ille Lipovetsky, La Troisiéme Femme, Paris, 19 Um documentário de Lisa Ades e Lcslie Klainberg reconstitui essa história:
Gallimard, 1 996 (A terceira mulher, Companhia das Letras, 2000). Fabu/ous! The sto,y of Queer Cinema (Estados Unidos, 2006).

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homossexuais, o cinema de hoje. A multiplicação dos filmes que
encenam personagens homossexuais traduz, em realidade, homos­
sexualidades plurais, que não são senão representações múltiplas Capítulo IV
da figura mesma do dispositivo de singularização. Aqui, a perspec­ A imagem-distância
tiva não é mais a liberação sexual, mas a busca e a afirmação mais
ou menos ansiosa de si que, na verdade, diz respeito a todas as
categoriais sociais, sejam elas sexuais, de idade ou de cultura.
Hibridações culturais, desregulação dos papéis sexuais, par­ Paradoxal cinema hipermodemo: ao mesmo tempo em
ticularização do perfil dos indivíduos: o atual cinema se oferece que a lógica do excesso o mergulha, o engloba num espetáculo
como o olhar expressivo e antecipador desse "magma inorganizado" que atua de maneira sensorial e sensitiva, uma outra lógica se
que o estado social individualista hipermodemo constitui. desenvolve, em sentido contrário, que implica uma atitude, se
não especulativa, pelo menos cognitiva. Piscadelas de olho, ci­
tações, alusões, referências: não se contam mais os filmes que
exacerbam a distância, o recuo do filme em relação a si mesmo,
induzindo um semelhante distanciamento, em relação ao filme,
por parte do espectador. Com isso uma outra forma de
multiplexidade se introduz no núcleo mesmo do dispositivo
íllmico contemporâneo: ela define a terceira figura característi­
ca do hipercinema e que chamamos aqui a imagem-distância.
Essa combinação de dispositivos contrários - simplicidade /
multiplexidade, sensação imediata / distanciamento crítico - é
uma das grandes figuras marcantes do cinema por vir.

O cinema do cinema

O primeiro a fazer seu cinema, a se olhar como tal, é o


próprio cinema. Ele faz isso, e cada vez mais, segundo uma ló­
gica comercial que busca explorar ao máximo o filão de um
filme de sucesso (como O silêncio dos inocentes), pela produ­
ção imediata de "sequências" que oferecem a continuação do
original (Hannibal [Ridley Scott, 2000]) ou de "pré-sequências"
que o prolongam por um retorno ao que precedeu (Dragão ver­
melho [Brett Ratner, 2002]), ou mesmo de pré-sequências que
oferecem um relato anterior ao original, a suas sequências e pré­
sequências (Hannibal, a origem do mal [Peter Webber, 2007]).

1 20 121
Esse sistema tem a ver essencialmente com a repetição e a sé­ 00 7 Cassino Royale [Martin Campbell, 2006] se apresenta como
rie: assim, Rocky 5, concebido à maneira de uma estratégia de um distanciamento quase crítico da série, pela escolha de um
marketing de declinação de produto, na verdade amplifica pura int6rprete fisicamente diferente, de uma violência seca e de uma
e simplesmente, em 1 990, o original de 1976, após três outros melancolia desencantada no tom. Esse tipo de recuo se traduz
episódios sucessivos lançados a intervalos regulares, em 1 979, de forma ostensiva no modo de revisitar os grandes heróis e sua
1982 e 1985. mitologia com um ponto de vista que não teme ser irônico.
Mas o que é novo, nessa máquina bem lubrificada, é a Sherlock Holmes, reduzido à condição de puro ectoplasma em
distância temporal que separa, de sua continuação tardia, uma Sherlock e eu [Tom Eberhardt, 1989] , onde não passa de um
série que parecia definitivamente interrompida. Aos 60 anos, ator de teatro bêbado contratado pelo Dr. Watson para represen­
em 2006, dezesseis anos após ter pendurado as luvas, Rocky tar uma criatura que este inventou: ao descascar um persona­
Balboa [Sylvester Stallone] sobe de novo ao ringue e, com a gem que é um verdadeiro monumento nacional, o fil me beira o
idade e o recuo do julgamento sobre si, é sua própria vida de delito de lesa-majestade. Agora são raros os heróis cuja lenda
boxeador que ele volta a pôr em jogo, ou mesmo, mais profun­ não é passada pelo crivo da revisão iconoclasta: Joana d' Are,
damente, a vida do próprio Sylvester Stallone - a história dos Robin Hood, Romeu e Julieta e até mesmo Branca de Neve . . .
golpes que levou no ringue hollywoodiano e sua vontade, não O mesmo acontece com o s remakes. No seu grau zero, o
obstante, de levar até o fim seu cinema por esse filme quase procedimento não passa de uma reprodução pura e simples, corno
testamentário, que traduz não apenas a distância do tempo mas as que Hollywood costuma propor ao público americano com a
a distância do cineasta em relação à sua criação. A mesma am­ versão made in USA de filmes estrangeiros que supostamente
bição aut01Teferencial nem sempre preside esse tipo de empre­ não lhe podem ser oferecidos diretamente. O procedimento,
endimento, mas essas continuações longínquas se caracterizam antigo, agora é sistemático: Três homens e um bebê se tornam
todas, necessariamente, pela distância do olhar: 18 ans apres literalmente Três solteirões e um bebê [Leonard Limoy, 1 987],
[Dezoito anos depois, 2003 ], Coline Serreau observa os já en­ Les Fugitifs [Francis Veber, 1986] passam a ser Os três fi1giti­
velhecidos pais de Três homens e um bebê se debaterem, no vos [do mesmo Francis Veber, 1989] ao cruzarem o Atlântico . . .
interior de famílias recompostas, com seu bebê agora adoles­ Essa vontade de clonagem com propósito essencialmente co­
cente, assim como se debatem com uma sociedade que mudou. mercial se verifica nas retomadas de filmes antigos retirados do
Do mesmo modo, Patrice Leconte, em Os bronzeados 3 [2006], baú para serem oferecidos ao novo público, especialmente os
observa, com a distância do humor, as marcas do tempo sobre jovens. Se a aposta nem sempre dá certo, às vezes ela ganha na
seus personagens, 28 anos após suas primeiras aventuras. loteria, a exemplo de A voz do coração [Christophe Barratier,
O processo é o mesmo para os filmes que dão origem a 2004], que faz esquecer o sucesso de Juventude delinquente [Jean
séries regulares. Seguramente, é a lógica comercial que regula Dréville, 1944] . Aqui não há, propriamente falando, distância ­
o processo de produção. Mas isso não impede rupturas no me­ pois são retomados fielmente os mesmos personagens e a mes­
canismo de reprodução do idêntico, que estabelecem uma certa ma história -, a não ser a dos anos, que requer um retoque de
distância entre a série e o que aparece como uma espécie de superficie para corresponder à mudança de época.
questi onamento . Rompendo com a profusão de gadgets O procedimento é diferente quando se trata de remakes
tecnológicos e de efeitos especiais dos James Bond canônicos, que mergulham na história do cinema para reinterpretar as obras,

1 22 1 23
relendo-as à luz de hoje, ou mesmo, nos casos mais pcnelra11les, tido da narrativa, da reinterpretação à luz do presente, tão forte
lançando sobre a obra original uma luz que a revela de maneira que o próprio original não pode mais ser visto com o mesmo
inédita. O fenômeno de retomada sempre existiu: o romance de olhar inocente.
James M. Cain, adaptado quatro vezes, de Paixão criminosa Ponto último dessa reinterpretação, o remake pode ser con­
[Pierre Chenal, 1939] a Obsessão [Luchino Visconti, 1942] e cebido na perspectiva radical de uma criação cuja originalidade
aos dois O destino bate à porta [Jay Garnett, 1946, e Bob está precisamente em aparecer, à primeira vsita, como a repeti­
Rafelson, 198 1 ], mostra que um mesmo roteiro é reutilizável à ção clonada do modelo. Assim, quando Gus Van Sant refilma
vontade e um remake sempre pode engendrar outro. O que é plano por plano Psicose [ 1998], conservando o mesmo título
novo, além da multiplicação desse tipo de filmes, é a releitura original (Psycho), ele joga com o idêntico; o seu projeto, nos
que põe à distância o filme original: a Lady Chatterley de Pascale confins da arte contemporânea, reside nas microvariações, mal
Ferran, baseada numa segunda versão do romance de D . H . perceptíveis, impostas ao filme de Hitchcock e cujo caráter ínfi­
Lawrence, remete a história d e amor romântica e o filme eróti­ mo recria urna obra original.
co das duas adaptações precedentes (de Marc Allégret e de Just Diverso, múltiplo, esse fenômeno de retomada de um fil­
Jaeckin) à prateleira das banalidades, centrando agora o olhar me por outro obedece na maioria das vezes, é verdade, a uma
na heroína e na densidade das relações carnais vividas pelos pura lógica comercial. Num contexto de concorrência industrial
dois personagens. � de produção pictórica, a busca de receitas funciona sem parar.
A distância da reinterpretação pode chegar a estabelecer E o que acontece quando Luc Besson faz realizar, por um de
uma espécie de diálogo complexo com a obra original. Assim, seus principais operadores, um filme cujo roteiro ele assina, B l 3
em Longe do paraíso [2002], Todd Haynes oferece uma repro­ - 1 3 ° distrito [Pierre Morei, 2004 ], retomando-o diretamente de
dução hiper-realista do grande melodrama de Douglas Sirk, Tudo Fuga de Nova York de John Carpenter [ 198 1] e transpondo-o da
o que o céu permite [ 1955]. A ilusão - cores, cenários, vestuá­ periferia nova-iorquina para a peri feria parisien. e. O investi­
rio, diálogos, iluminação - é total: o filme é corno um duplo mento em continuações e retornadas não representa aqui senão
perfeito, mais verdadeiro que o original. No entanto, por trás da urna maneira de minimizar os riscos, de administrar a incerteza
semelhança da cópia surgem elementos inéditos, que aparecem que domina o mercado do cinema. Çomo a boa velha fórmula
como o recalcado do fílme primitivo, de tudo o que ele implica­ mágica - grandes estrelas, meios promocionais - não funciona
va e não dizia : a solidão afetiva da heroína não se deve mais à mais como antes, busca-se noutra parte. O cinema, com seus
sua viuvez, mas ao fato de ela ter descoberto o marido nos bra­ estoques de filmes passíveis de serem reutilizados, constitui um
ços de um outro homem; e o jardineiro que vem trazer a essa fundo de garantia sólido. Um fundo de comércio.
solidão o reconforto amoroso não é mais o macho branco e viril A lógica econômica, porém, não explica tudo. Vivemos
encarnado por Rock Hudson, mas um negro, o que causará es­ um momento em que o cinema tornou-se um "continente" clássi­
cândalo numa cidadezinha onde ódio racial e puritanismo vão co, com sua história legendária, seus modelos, suas referências,
de mãos dadas. Melodrama relido à l uz crua do racismo e da suas obras fundadoras, que podem ser i ncansave l mente
homossexualidade, com o dado suplementar de que Rock revisitadas, a exemplo do que foi feito durante séculos nos ou­
Hudson, como se soube depois, era ele mesmo homossexual e tros campos artísticos. Nesse aspecto, o cinema alcança as ou­
morreu de Aids: aqui a distância é a do questionamento do sen- tras artes: com uma história reconhecida, ele é agora plenarnen-

125
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te sétima arte. Longe de significar um vazio criativo, a reciclagem
1 cns em A doce vida [ 1959], a reflexão - aqui sobre o tempo
do passado coloca o cinema numa posição que lhe permite que passa - é a do cineasta sobre sua própria obra. A reutiliza­
reinventar-se constantemente: nem repetição nem volta atrás, ção das imagens originais, num filme que separa delas a distân­
mas lógica neomodema buscando seus recursos no antigo para cia dos anos, leva a reler no presente o fi lme original e também
criar o novo. 1 Contrariamente ao que se diz com frequência, a a ler, em relação ao passado, o filme presente - Pierre Schoen­
proliferação de remakes nada tem de "pós-moderno": ela é de doerffer, citando quase todos os seus fi lmes no último deles, Lá­
essência hipermodema tanto pela pletora de suas manifestações haut. Un roi au-dessus des nuages [2004], revisita sua obra atra­
quanto pela liberdade de reinterpretação que se exprime sem vés do olhar nostálgico dirigido ao passado de seus persona­
freios: tudo é possível, inclusive a releitura infiel, iconoclasta, gens, mas igualmente à França colonial, à descolonização, ao
desrespeitosa, de acordo com uma l ógica individu a l ista seu próprio cinema.
ultramodema. E a acusação que lhe fazem é velha como a Mas a citação ultrapassa amplamente a simples autorre­
modernidade. A querela dos Antigos e dos Modernos, no século ferência: ela se toma cada vez mais um meio de exprimir o que
XVII, já colocava a questão: o que impede os modernos de te­ o filme tem a dizer, ou mesmo de desenvolver seu próprio mo­
rem sua palavra a dizer? vimento narrativo através de um outro filme. Filme verdadeiro,
em muitos casos: Os doze macacos [Terry Gil lian, l 995] mos­
O cinema dentro do cinema tra um trecho de Um corpo que cai [ 1 958] que integra o fi lme
de Hitchcock a seu próprio contexto dramático, remetendo, por
A imagem-distância vai muito além dos remakes e das um jogo de espelhamento, a A plataforma [Chris Marker, 1963],
continuações. Mais diretamente, ela se manifesta hoj e numa do qual o filme de Gillian é um remake. Em Guerra de culturas
distância do cinema em relação a si mesmo. Isso se observa, em [Alain Corneau, 2003], a longa citação de Furyo, em nome da
primeiro lugar, pela frequência, no interior dos filmes, de ou­ honra [Nagisa Oshima, 1982] compara a condição da heroína,
tros filmes cujos trechos são inseridos até na trama narrativa. O submetida a um verdadeiro supl ício por seu trabalho numa em­
procedimento não é novo, mas sua mul tiplicação é evidente, presa nipônica de hoje, às torturas infligidas pelo carcereiro ja­
assim como o valor que lhe é atribuído. Não se trata tanto de ponês ao oficial inglês no campo de prisioneiros em 1942.
citar para homenagear e sim de provocar uma reflexão sobre o Os filmes citados são também, com frequência, falsos fil­
próprio filme. Não mais a simples ilustração, mas uma mise-en­ mes, realizados pelo próprio cineasta como um meio de dizer
abyme [uma representação dentro da outra], segundo uma rede de outro modo o que ele quer dizer. Os realizadores da Nouvelle
de significações que circula entre o filme e outros filmes no Vague, a começar por Godard em Viver a vida [ 1962] , por exem­
interior do filme. Em alguns casos, seguindo o modelo ofereci­ plo, já haviam percebido as potencialidades criativas disso. A
do por Fel lini em Entrevista [ 1986], onde um Marcello Mas­ novidade agora é a utilização crescente e particularmente in­
troianni envelhecido e urna Anita Ekberg com mais trinta anos ventiva desse cinema dentro do cinema: jogo paródico, corno o
e trinta quilos veem desfilar numa tela branca suas próprias ima- falso filme de horror cujos trechos vemos em Um susto na cida­
de [Alain Berbérian, 1993] ; inclusão para fazer acreditar a fic­
1 Sobre esse aspecto, ver Félix Torres, Déjà vu. Post et néo-modernisme: /e retour ção, corno em Pânico 2 [Wes Craven, 1998], onde trechos de um
du passé, Ramsay, 1 986. filme imaginário remetem ao processo de assassinato iniciado no

1 26 1 27
Pânico [ 1 997] original; desdobramento correspondendo à
Aqui o cinema alimenta o cinema, a criação se torna ao
tematização central do filme, como em Fale com ela [Pedro
mesmo tempo o tema e o motor dramático do filme. O que expli­
Almodóvar, 2002], onde um falso filme citado, O amante que
ca a inflação de filmes que tomam o cinema como objeto, a partir
encolheu, faz menção a um verdadeiro, O homem que encolheu
de múltiplas perspectivas diferentes. Filmes cobre a criação cine­
[Jack Arnold, 1 957]. O procedimento se multiplica ainda com
matográfica, como Ed Wood [ 1 994] de Tim Burton, evocando o
os falsos filmes de amador, os falsos documentários, os falsos
cineasta campeão das séries B através da filmagem de uma delas,
videos integrados no filme, elementos cujos exemplos fundado­
Plan 9 from Outer Space [Ed Wodd, 1 959]; filmes sobre as difi­
res se encontram, todos eles, no Welles de Cidadão Kane [ 1 94 1 ]
culdades da escrita de um roteiro, como Adaptação [2003 ], de
ou no Resnais de Muriel [ 1 963] , mas que adquirem, graças às
Spike Jonze, em que dois co-roteiristas se põem eles mesmos em
evoluções técnicas, um relevo inédito.
cena na história de criação de um roteiro que resolve fazer uma
De fato, a diferença de suporte permite, com a granulação
ficção de suas próprias vidas; filmes que escolhem narrar relacionan­
particular da imagem de vídeo e da imagem digital em rela� ão
do a narrativa com o próprio cinema, como Depois da meia-noite
à película, toda uma gama de variações que colocam um tlp�
[2005] de Davide Ferraria, em que a aventura sentimental do he­
de imagem em concorrência com outro. Isso se observa part1-
rói, guarda noturno do museu de cinema de Turim, se inscreve na
culannente, desde os anos 1 990, na utilização do vídeo2 e, mais
forma mesma do cinema mudo que constitui seu horizonte; fil­
ainda, nos anos 2000, do digital para criar um filme dentro do
mes que imaginam o cinema por vir, como Simone [200 l ] de
filme. 3 Nas mãos de um grande cineasta, o procedimento se
Andrew N iccol, criando urna estrela virtual, uma criatura
torna a matriz mesma do fil me. Em Império dos sonhos [David
digitalizada tão perfeita, no filme hollywoodiano no qual é a ve­
Lynch, 2006], não apenas o filme conta a filmagem de um fil­
dete, que acaba virando, sem ninguém suspeitar que se trata de
me, mas as cenas de filmagem se i ntegram num labirinto cria­
uma pura virtualidade, uma estrela mundial4 . . .
tivo que leva o imaginário de Lynch a encaixar uma coisa na
Essa especularidade atinge seu ponto extremo nos filmes
outra num desdobramento sem fim, corno no p lano em que a
que encenam a filmagem de um filme. Truffaut j á havia feito
heroína, ao entrar numa peça, se insere num plano ele mesmo
isso em A noite americana [ 1 973 ] , mas distinguindo claramente
inserido na tela de um televi sor, no qual se insere o de quem
o filme primeiro do filme segundo cuja filmagem ele narrava, e
olha o televisor, em cuja tela se insere, por sua vez, o de quem
no qual o efeito de ilusão se devia principalmente ao fato de ele
olha, e assim ao infinito . . . Tudo é filmado em câmera digital e
próprio interpretar o papel de diretor desse filme dentro do fil­
mistura o relato principal - o filme sendo feito com câmera de
me. A mistura é total quando a confusão se instala no interior
cinema - a outros níveis relacionados à lembrança, à fantasia,
mesmo do filme: os figurantes que, em Salve o cinema [ 1 994] ,
ao sonho, à hipnose mesma.
são entrevistados para participar de u m filme, não sabem que o
filme já começou, filmado por Mohsen Makhmalbaf, que os fi l­
2
Marie-Thérese Jounot, "Journal filmé et caméra de survcillancc: les cmplois
paradoxaux de la vidéo dans le cinéma des annés 1 990", in Odi k Bachler, Claude
ma e que se filma ao filmá-los. A complexi ficação e a distância
M urei a, Francis Vanoye (dir.), Cinéma et audiovidue/. Nouvelles 1111ages, approches intervêm então de maneira bem mais radical e sistemática, jo­
nouvelles, Paris, L' Harmattan, 2000. gando com a mistura de ficção e realidade. Kiarostami, em Onde
J Jean-François Aubé, "Une tcndancc du court-métrage numérique: le fi lm dans lc
film", Hors champ, janeiro de 2004. 4
Jean Scrroy, Entre deux siécles, op. cit. , p. 575.

1 28
1 29
é a casa do meu amigo ? [ 1987], E a vida continua [ 1992] e sobre o que há por trás da tela e das imagens. Os filmes que se
Através das oliveiras [ 1994], leva ao extremo a margem estreita lançam por esse caminho são assim diálogos do cinema consigo
entre a fimagem de um filme que narra uma filmagem e a reali­ mesmo, uma interrogação da sétima arte sobre suas ligações
dade que interfere nessa filmagem e provoca um outro filme. om o real e as imagens pletóricas da época, sobre suas relações
Ou ainda, misturando filmagem real e filmagem sonhada, Vi­ com a História e com sua história específica, seu lugar num
vendo no abandono [Tom DiCillo, 1994], pequeno filme inde­ mundo que se virtualiza. Outro tempo, outro cinema: agora é a
pendente sem dinheiro que tem por tema a filmagem de um distância interna, o olhar do cineasta sobre seu filme e sobre o
pequeno filme independente sem dinheiro, fala dos arcanos da cinema que se impõem como uma evidência. Deve-se ver aí
criação espremida entre vida e ficção, realidade e imaginário. não a vaidade oca de uma repetição, como é dito às vezes, mas
Essa distância tomada em relação ao ato de fazer um fil­ o sinal de uma maturidade cinematográfica que, longe da can­
me, ao mesmo tempo em que é uma reflexão sobre a essência dura da narrativa simplex, se coloca continuamente a questão
do cinema e sobre o que é sua própria criação, se afirma como iniciada por André Bazin: "O que é o cinema?".
eco da hipermodernidade, enquanto metarnodemidade ou mo­ Interrogação tanto mais presente na medida em que inter­
dernidade reflexiva e autocrítica. A modernização, a ciência, as vém num tempo marcado pela multiplicação dos dissensos -
técnicas, os meios de comunicação, o consumo, a religião, os aborto, drogas, fecundação in vitro, casamento gay, homopa­
papéis sexuais: é toda a nossa sociedade que se volta sobre si rentalidade, laicidade, porte de véu islâmico, eutanásia - e a
mesma, se interroga sobre seus referenciais e seu funcionamen­ dissolução das normas sociais que enquadravam a primeira
to, tendo em vista urna autoconstrução refletida cada vez mais modernidade. Com a individualização galopante que põe abai­
generalizada. No cinema acontece a mesma coisa. Não se trata xo o antigo poder organizador das instituições coletivas, a hi­
mais de pesquisas experimentais ou de rupturas ostensivas como permodemidade aparece como uma época de pluralização dos
as de Welles nos anos 1940 ou de Godard nos anos 1960. O modelos, de busca identitária e de autorreflexividade generali­
fenômeno se banaliza e se apodera da criação. Os criadores da zada. É esse processo que o cinema refrata, anunciando a morte
sétima arte se interrogam sobre a identidade de sua arte, assim da inocência de primeiro grau e abrindo o caminho a aborda­
como a hipermodernidade romanesca ou pictórica se exprime gens mais distanciadas.
na interrogação sobre a identidade da literatura e da pintura.
O cinema clássico filmava sem urna verdadeira dúvida O segundo grau em primeiro plano
sobre si mesmo. Quando filmava o cinema, era de maneira ro­
manesca e direta, para tomar mais dinâmica uma comédia mu­ No hipercinema, a distância, in talando- e no núcleo do
sical - Cantando na chuva [Stanley Donen e Gene Kelly, 1952] filme e agindo segundo o procedimento da ironia, dá a entender
- ou mais dramático um melodrama - Crepúsculo dos deuses e a ver algo mais que o que se diz e se mostra. A paródia e o
[Billy Wilder, 1950]. Seus heróis pertenciam ao tempo da "ino­ pasticho, sob a forma de palimpsestos, constituem o aspecto
cência" do cinema; eles eram evidentes, impunham naturalmente mais visível dessa distância introduzida na obra em relação a
sua figura triunfal. Já em 1984, Woody Allen, rebaixando as uma outra obra referencial. Os meios são variados: caricatura
criaturas de sonho da tela em A rosa púrpura do Cairo, atraves­ sistemática (Robin Hood: Men in tights [Mel Brooks, 1993] );
sa o espelho: seu amor pelo cinema é também uma interrogação paródia da paródia ( Todo mundo em pânico [Keenen I. Wayans,

130 131
2000], paródia de Pânico); reconstituição meticulosa praticada tiva e o distanciamento do olhar, coexistem numa mistura para­
com humor sonso (Agente 11 7, uma aventura no Cairo [M ichel doxal e perfeitamente sincrética.
Hazanavicius, 2006]); tratamento formal e temático que remete A alusão, a piscadela de olho, a citação, tudo o que per­
a originais latentes (como O segredo de Berlim [Steven tence à metalinguagem e à metarrepresentação,impõem-se como
Soderbergh, 2006] faz com Casablanca [Michael Curtiz, 1942] uma tendência dominante do hipercinema. 6 Ao colocar em cena
e O terceiro homem [Carol Reed, 1949]); reconstituição discre­ um Indiana Jones ao mesmo tempo plenamente em ação nas
tamente defasada do gênero e do perfume de época ( Um pres­ aventuras mais espetaculares e conservando diante do que lhe
sentimento funesto [Pascal Thomas, 2005] ou O mistério do acontece o sorriso frio da ironia, Steven Spielberg tomou anti­
quarto amarelo [Bruno Podalydes, 2003], repintado com as co­ quados todos os aventureiros do grande cinema hollywoodiano
res sépia do imaginário). de gênero, marcado por uma dupla inocência: a do herói envol­
O espírito paródico pode inclusive chegar a se autoparo­ vido inteiramente na ação e a do espectador que acreditava em
diar: Wes Craven, especialista do filme de horror, constrói Pâ­ suas façanhas. Diante de um adversário que, no momento de
nico como uma paródia do seu próprio universo, referindo-se enfrentá-lo em duelo, perde tempo fazendo girar a espada se­
explicitamente, no filme, a seus filmes anteriores. Nesse jogo gundo as melhores regras dos filmes de artes marciais, o herói
com o segundo grau praticado de fonna cada vez mais comple­ saca o revólver e o derruba com um tiro e um sorriso no canto
xa, tocamos o que se pode chamar um "terceiro grau", no qual dos lábios. Assim se toma mais difícil mostrar sem recuo heróis
coexistem a adesão à narrativa e às sensações que ela provoca puros e duros.
juntamente com o distanciamento irônico do tratamento paró­ O cinema pressupõe agora um espectador "cultivado" pela
dico. 5 Em suas realizações mais refinadas, esse distanciamento mídia, que não é bobo, com quem ele instaura um efeito de cum­
pode nada mais ter de humorístico. Com Angel [2007], François plicidade fundado sobre uma cultura de imagens e arquétipos
Ozon leva o processo ao extremo: apropriando-se de um gêne­ compartilhados. Os filmes de Tarantino ou dos irmãos Cocn '
ro, o melodrama, ele faz um filme que joga com sentimentos, saturados de referências ao cinema7 , mas também ao romance
situações, personagens, cenários e trajes tais como pertencem à policial, ao mangá, aos quadrinhos, às séries, fornecem o mode­
mais pura tradição do melodrama romanesco. Mas faz isso man­ lo desse cinema que funciona com dupla descarga. Um filme
tendo constantemente uma pequeníssima defasagem, de modo como Pulp Fiction - Tempo de violência [Quentin Tarantino,
que o espectador é ao mesmo tempo tomado pela emoção e con­ 1 993] torna-se cult por concentrar tudo o que constitui, em sua
serva, diante dela, uma espécie de distanciamento. Filme emi­ diversidade patchwork, o lado ao mesmo tempo variegado e
nentemente paradoxal, que solicita tanto o afeto quanto o julga­ constantemente referencial de um conteúdo e uma forma que
mento exterior, que faz mergulhar dentro da obra ao mesmo invocam sempre a ironia distanciada. Tanto a aparência como
tempo em que faz vê-la de fora. Estamos aí no núcleo da hiper­
modemidade do cinema, na qual os contrários, a imersão emo- '' Laurent Jullier propõe uma taxonomia sumária do que ele chama o "cinema da
alusão", ibid., p. 24-27.
7 Assim, em Pulp Fiction [ ! 993). vemos um John Travolta com uns quilos a mais
Ele dá como exemplo o Frankenstein de Kcnneth
5 A expressão é de Laurent Jullier. se lançar, com Uma Thurman sob o efeito da cocaína, numa dança em que aparece
Branagh, que "mistura as camadas de representação associadas ao tema sem re­ cm filigrana a que ele, jovem e magro, praticava com agil idade em Os embalas de
nunciar a causar medo" (L 'Écran post-moderne, op. cir. , p. 19). sábado à noite [1977].

132 133
os diálogos dos assassinos são sistematicamente mostrados em Deve-se sublinhar, porém, que essa inflação de alusões é
fundo falso com as figuras clássicas do filme noir: um pistoleiro menos o reflexo da bancarrota do sentido que o sinal de um
de aluguel tomado de fervor místico, wn boxeador que brande o novo patamar de individualização que, libertando-se das anti­
sabre como um samurai, dois mal feitores que conversam gas formas de enquadramento coletivo, reivindica o direito ao
doutamente sobre hambúrgueres, uma discussão tranquila numa "delírio" juvenil e ao jogo.free style com as convenções. O hu­
cafeteria que acaba bruscamente num tiroteio: todo o filme funci­ mor citacional ou a reciclagem irônica não é senão a versão
ona à base de deslocamentos anonnais,de brincadeiras jubilatórias lúdica dessa dinâmica de soberania individual, uma maneira de
e irrealistas com os gêneros e clichês do cinema. O público da era emancipar-se das imposições codificadas dos gêneros fílmicos.
hipermodema entra assim nos filmes por várias portas que, mes­ O gênero, de fato, não comanda mais imperativamente a tonali­
mo se dão para domínios que ele não conhece - quem é capaz de dade do filme: vemo-lo desviado e distanciado, metamorfoseado
contar e compreender todas as referências hitchcockianas dos fil­ numa espécie de metafilme pelo recurso aos empréstimos livres
mes de De Palma? -, lhe dão a sensação lúdica do jogo duplo e o e outros pastichos. Ao princípio de prazer exaltado pela socie­
prazer de "alucinar" no delírio dos signos. O hilariante não pro­ dade de hiperconsumo corresponde o júbilo do segundo grau,
cede mais da inadaptação burlesca dos personagens nem do efei­ das reminiscências desviadas, da mistura irônica dos diferentes
to de "mecanização da vida", conforme a explicação do filósofo elementos da mídia cultural. Com a hipermodernidade indivi­
Henri Bergson: ele vem do desvio coo/ dos signos culturais­ dualista triunfa a liberdade da mixagem completa e da distância
midiáticos, da confusão maluca de séries heterogêneas de senti­ descontraída que "vê tudo entre aspas" (Susan Sontag).
do. O humor funciona aqui como um meio de não ser bobo, de É um grave engano diagnosticar um cinema que, tendo se
desativar a seriedade dos filmes tradicionais sem se privar do pra­ tomado indiferente a si mesmo, não teria mais outra finalidade
zer que eles proporcionam. O homem que não estava lá [Joel senão parodiar-se, "vingar-se" num tempo de "ressentimento
Coen, 200 1] é um verdadeiro filme noir, ao mesmo tempo que é para com a própria cultura". 9 O contrário é que é verdade: a
um verdadeiro-falso noir: o prazer é duplo. referência é, de certo modo, reverência. 'º Nenhum desencanta­
Nesse jogo de citações e de piscadelas,alguns viram a expres­ mento, nenhum "trabalho de luto", mas sim imcr ão jubilatória
são de um espírito superficial,desiludido,niilista,resultante do desa­ no universo dos signos contemporâneos, jogo com o cinema e
parecimento dos grandes horizontes de sentido. Os mais pessimistas as mídias erigidos em referencial hegemônico, em cultura que
veem nele uma figura do esgotamento ou da obsolescência do espí­ irriga o imaginário dos novos cineastas. Impondo-se como refe­
rito da modernidade: quando não se crê mais em nada, desencadeia­ rência dominante numa época ultraindividualista, a mídia cul­
se o jogo puro dos signos girando sobre si mesmos numa circularidade tural autoriza a cumplicidade da piscadela, o sorriso da alusão,
e nwna especularidade sem fim. Com o deserto do sentido contem­ a familiaridade da defasagem, o recuo da distância irônica. Se
porâneo viria a estética lúdica, dessusbstancializada, desencantada isso é entertainment para o novo espectador que desfruta o pra-
das "imagens-que-se-sabem-imagens". 8
� Jean Baudrillard, "lllusion, désillusion esthétiques", Le Complot de l 'ar/, Paris,
cns & Tonka, 1996, p. 3 6.
111 Sobre essa questão, que a voga do burlesco no século XVII já colocava, ver a
8 Alain Renaud-Alain, "L'image sans gravité'', Revue d 'esthétique, nº 25, 1994. Ver
introdução a Scarron [poeta francês, 16 I O-1660], Le Virgile travesti, ed. Jean
também Vincent Amiel e Pascal Couté, Formes et obsessions... , op. cit.p. 47-60. Scrroy, Paris, Gamicr, 1988.

134 135
zer do reconhecimento das piscadelas, para os realizadores é o
prazer de praticar citações, associações humorísticas e defasa­
das de segundo grau. O cinema faz seu cinema, brinca com o
cinema, para uma segunda glória do cinema.

SEGUNDA PARTE

N EOMITOLOGIAS

1 36
Ca pítulo V
O documentário ou a revanche dos Lumiere

Desde que, em 1895, o trem entrou na gare de La Ciotat, o


cinema se ligou de fonna duradoura com a realidade e, portanto,
com o documentário. A história da sétima arte foi escrita tanto na
esteira dos irmãos Lumiere quanto na de Méliés, e, de Vertov a
Flaherty, de Joris lvens a Chris Marker, o cinema-verdade nunca
cessou de pôr o olhar da objetiva diretamente sobre o real.
No entanto, é realmente um planeta-documentário em
grande parte inédito que vemos emergir e se desenvolver, do­
tado de novas fronteiras, de uma nova importância, de novos
horizontes. O que hoje se impõe nada mais tem a ver com o
que se passou até os anos 1 990. A multiplicação súbita e
exponencial dos documentários na grande tela, assim como o
fascínio do público que por muito tempo os considerou como
pertencendo apenas ao domínio da televisão, mudaram singu­
larmente a situação. Se o gênero documentário não é novo, o
fenômeno que o acompanha o é em grande parte. Com o sécu­
lo que começa soa a hora da revanche dos irmãos Lumiere.

Uma marcha imperial

Os fatos testemunham isso: em 2005, dos 534 fi lmes dis­


tribuídos na França,58 eram documentários, ou seja, pouco mais
de um filme em cada dez, quando, no ano 2000, ainda eram
apenas 27 num total de 532. E o número de filmes documentários
cresce proporcionalmente à sua bilheteria. No mesmo ano de
2005, três documentários obtiveram resultados, na França, de
fazer empalidecer muitos filmes de ficção: 150 mil ingressos
para Rize [David La Chapell], 320 mil para O pesadelo de Darwin

1 39
[ H ubert Sauper] e, sucesso absoluto, 1 ,9 milhão para A marcha mas a um documentário, A Very British Gangster, dedicado à
dos pinguins [Luc Jacquet]. Exportado ao mundo inteiro, esse história de um malfeitor autêntico. Vai longe o tempo em que o
filme obteve resultados consideráveis, especialmente nos Esta­ documentário servia apenas de aperitivo no começo de sessão
dos Unidos, onde, com uma receita de 77 milhões de dólares, nos velhos cinemas de bairro, para depois, desaparecendo da
ultrapassa O quinto elemento [Luc Besson, 1 997] (que havia grande tela, tornar-se a novidade da televisão, substituindo os
rendido 63 milhões), tornando-se assim o maior sucesso francês programas da noite. Em poucos anos, sua situação mudou radi­
jamais alcançado nas telas americanas. Aliás, estas tampouco calmente. Reconhecido e honrado, conquistou o estatuto de fil­
são indiferentes aos documentários propriamente americanos, me a ser visto por ele mesmo e que, a exemplo do filme de
como o provam os 1 20 milhões de dólares obtidos por Fahrenheit ficção, prolonga sua duração de vida no DVD. Em 2005, A mar­
9/11 [Michael Moore, 2004] ou ainda o êxito de AI Gore em cha dos pinguins - ainda ele - obtém o melhor resultado de
Uma verdade inconveniente [Davis Guggenheim, 2005], que vendas de DVD, com mais de 300 mil exemplares vendidos. O
segue de perto o filme de Michael Moore e é a terceira melhor documentário não se encontra mais naquela situação marginal e
bilheteria já obtida por um documentário. minoritária que sempre foi sua: agora é parte integrante do grande
Essa revitalização do gênero 1 é também ilustrada por prê­ mercado do cinema.
mios e festivais que lhe dão uma consagração oficial: criação Junto com essa consagração pelos números se observa
em 2003, no 29.º festival do cinema americano de Deauville, de uma diversificação extrema dos temas tratados. Para dar um
uma seção intitulada "Os documentários do tio Sam" e, em 2007, simples exemplo, em 2005, em Deauville, a seção documenário
35 anos após sua primeira edição na França, de um César de propunha, entre outros assuntos, o retrato psiquiátrico de um
melhor documentário. Os prêmios se espalham e se multipli­ músico maníaco-depressivo, uma reportagem sobre as crian­
cam: Oscar de melhor documentário e César de melhor filme ças de um bairro de Calcutá, um inquérito sobre a falência da
estrangeiro para Tiros em Columbine [Michael Moore], em 2003; Enron, um making-of da filmagem de O portal do paraíso
f

Palma de ouro para Fahrenheit 9/1 1 em 2005 em Cannes (que [Michael Cimino] em 1 979, uma experiência de vida cm mei
não coroava documentários desde O mundo do silêncio de aos ursos-pardos do Alasca, uma evocação de Hubert Sclby
Jacques Cousteau, em 1 95 6 ) ; Oscar 2006 de m elhor Jr. , a crônica de uma filmagem em Nova York, uma viagem
documentário para A marcha dos pinguins. O festival do filme que acompanha os rastos do rumor em tomo dos Protocolos
policial de Cognac, na França, concede em 2007 o grande prê­ dos sábios de Sião, uma investigação sobre um roubo de qua­
mio, pela primeira vez em 25 anos, não a um filme de ficção, dros num museu de Boston, sobre a vida de um basquetebolista
chinês que joga no NBA, etc. Agora tudo parece capaz de sus­
citar o olhar da câmera: sendo os recursos imensos, o inventá­
O forte retorno do documentári o (produzem-se atualmente na França cerca de
rio se toma ilimitado. Mudança importante : passamos de um
1

2.300 por ano) se verifica também numa tendência detectada por um estudo
feito no começo de 2007 sobre a televisão dos nove principais mercados mundi­ mundo "fechado" a um universo "infinito".
ais: a novela e os programas de divertimento aparecem, pela primeira vez desde Ao mesmo tempo, o documentário perdeu seu antigo es­
2004, cm baixa entre as novidades, enquanto documentários e revistas de bate­
tilo professoral , ostensivamente pedagógico. Praticamente não
papo representam a grande parte dos novos programas. Outro sinal desse inte­
resse: desde 2005, vodeo.tv, site da VoD, é inteiramente dedicado ao forneci­ há mais a tradicional voz off que marcava uma autoridade, nem
mento on-line de documentários os mais diversos. estruturas narrativas e retóricas codificadas (como a que articu-

140 141
lava toda reportagem sobre uma cidade, região ou país em torno dos tanto para a difusão na TV quanto para a exploração comer­
da noção, sistematicamente solicitada, de "terra de contrastes" ! ). cial em salas, alguns utilizando mesmo esse terceiro medium que
Com isso se recupera e se prolonga o caminho dos grandes cri­ 6 o DVD para se mostrarem por extenso: o sucesso que Mondovino
adores do cinema do real que, interrogando a realidade por to­ I Jonathan Nossiter, 2004] obtém na grande tela permite assim o
dos os meios - imagem, som, montagem -, nunca confundiam lançamento da versão integral, com cerca de 1 O horas, em DVD.
representação do mundo e aula de geografia. A diversificação Nessas condições, não se poderia vincular a consagração atual
abrange também a forma: na multiplicidade de suas abordagens do documentário somente à relação com a televisão. Na verdade,
e em pesquisas que têm a ver tanto com a narração quanto com três séries de transformações sociais e culturais subjazem profun­
a mise-en-scene, o documentário passa do que era a aprendiza­ damente ao fenômeno. Em primeiro lugar, o crescimento do
gem quase doutoral de um mundo conhecido, que ele se encarre­ documentário é uma resposta ao desaparecimento dos grandes
gava de fazer descobrir por um relato simples, à investigação pro­ referenciais coletivos do bem e do mal, do justo e do injusto, da
blemática de um mundo fragmentado e sem fronteiras, que ele direita e da esquerda, assim como ao apagamento das grandes vi­
interroga em todas as direções através de meios mais complexos. sões do porvir histórico. Sem o lastro de leituras macroideológicas
a indicar o sentido da história, são as "pequenas" histórias, são
Seguro total todas as realidades micro e macro do mundo humano-social que
ganham uma nova dignidade. Mas, órfãs das ideologias heroicas,
Como interpretar essa formidável onda do documentário? nossas democracias se tornaram, ao mesmo tempo, democracias
Que sentido lhe dar? Deve-se ver aí uma desconfiança crescente de desorientação, de insegurança e de decepção. Nesse contexto de
em relação à televisão, na qual se tende cada vez menos a acredi­ desestabilização dos referenciais e de vazio ideológico, os fatos
tar por julgá-la submetida às imposições dos interesses financei­ apresentados pelo documentário substituem os sistemas de inter­
ros? O fato é que os próprios documentaristas, afastando-se cada pretação global, agora enfraquecidos, por "realidades'' imediatas
vez mais de uma televisão que lhes impõe produtos calibrados e fortes, enraizadas, com uma certa dimensão de evidência. El s fc­
que recusa sistematicamente alguns assuntos julgados espinho­ recem pequenas ilhas de terra firme e sólida que fazem tanta falta
sos, escolhem filmar diretamente para o cinema, certos de encon­ aos nossos contemporâneos.
trar um público que desconfia da telinha. Assim, para ter acesso à Os filmes do real, tais como proliferam nas telas, têm uma
verdade, uma nova confiança estaria sendo dada ao cinema base comum que os torna facilmente ecumênicos. O que os fun­
documentário, mais livre, menos suspeito de conformismo. damenta é a ideologia dos direitos do homem, ampliada aos di­
A explicação deve ser retida, mas também matizada. No reitos da terra - proteção das espécies, preservação dos recursos
que se refere às relações entre cinema e televisão, muitos exem­ nahirais. Cinema de proteção com o qual todo o mundo só pode
plos mostram que o documentário se difundiu tanto de um lado estar de acordo, ele responde à sagração dos direitos do homem
quanto do outro. Michael Moore, por exemplo, escolhe mostrar e a uma insegurança social e ecológica crescente. As percas do
nos Estados Unidos Farenheit 9/11, verdadeiro panfleto anti-Bush, Nilo e a exploração comercial que a criação desse peixe produz
primeiro na televisão e não nos circuitos de cinema, para tocar na África, em O pesadelo de Darwin, as sombras capitalistas
diretamente um público mais amplo na perspectiva de eleições projetadas pela indústria do tabaco contra a saúde coletiva, em
próximas. Do mesmo modo, muitos documenátios são concebi- Tabac, la conspiration [Nadia Collot, 2006], o aquecimento do

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planeta e a cegueira das grandes potências contra as quais AI O neodocumentário exprime o fim dos grandes sonhos
Gore parte em cruzada em Uma verdade inconveniente, são te­ coletivos e das profecias da modernidade triunfante. Quando
mas e visões diferentes, mas todos com o mesmo efeito: ao não há mais grandes mitos mobilizadores, resta conhecer o pre­
mesmo tempo em que alertam as consciências e as despertam sente para retificar seus desvios e seus excessos; quando não se
para perigos insuspeitados, eles tranquilizam e fazem entrever crê mais nas utopias sociais, resta o refúgio num passado imagi­
soluções para apaziguar a ansiedade coletiva. Satisfazem as ne­ nário e idealizado; quando não se espera mais revolucionar o
cessidades de apoio e segurança, ao enaltecer a evidência de mundo atual, este é mostrado e auscultado de perto, como a
verdades humanistas e ecológicas . única coisa que nos resta para amar, detestar ou corrigir.
Aprofundando essa dimensão tranquilizadora, eles pro­
põem mesmo, diante da angústia do futuro, o retomo ao doce Um bônus de satisfação reflexiva
casulo do passado, por exemplo na saudade dos tempos em que
se aprendia, como no documentário de Nicolas Philibert, a con­ Um segundo fenômeno deve ser sublinhado. O que carac­
jugar Ser e ter [2002], com um professor que exala a lembrança teriza o neodocumentário é que ele oferece a seu público uma
da escola leiga e obrigatória. Mesmo casulo tranquilizador so­ satisfação particular: a desmistificação, a denúncia das mentiras,
bre a fel icidade em Najac, pequena aldeia do Aveyron, imagem o prazer de sair da caverna das ilusões. Ele responde à necessida­
da França eterna e rural que resiste às sereias da urbanização e de que tem o indivíduo contemporâneo de sentir-se um sujeito
da globalização, filmada por Jean-Henri Meunier em La vie livre, pensante e crítico, num sistema que o impele a consumir
comme elle va [2003] e em sua continuação, lei Najac, à vous sem parar. Um pouco em toda parte vemos crescer o desejo de
da Terre [2006]. um consumo mais reflexivo e ativo, distanciado e cidadão. O con­
Cinema consensual, na medida em que é antes de tudo sumo é o que hoje deve nos tomar mais inteligentes, ainda que
humanista, ele denuncia o mal sem propor outros modelos. sem esforço, na felicidade das imagens. A esse consumidor avisa­
Estamos a mil léguas de uma contracultura. O que se oferece é do, que não se deixa lograr, é oferecido uma espécie de bônus de
uma espécie de chave passe-partout, que abre indiferentemente satisfação reflexiva. O fenômeno se observa numa série de mo­
qualquer fechadura, da saúde à geopolítica, da sobrevivência d o s de consumo : busca de "bons s ites" na I n ternet '
das espécies ameaçadas às zonas de sombra da história. Cine­ compartilhamento de informações em blogs e fóruns, viagem
ma hipermodemo, que dá a sensação de compreender a com­ cultural, alimentação saudável, compras "verdes". Consumir, mas
plexidade do mundo e de possuir um certo poder sobre a mar­ sem "querer ter" e sendo "responsável"; ver espetáculos não ape­
cha das coisas 2 : ao mesmo tempo em que denuncia os danos nas para o divertimento ou a evasão, mas para sentir-se mais es­
do l iberalismo, ele é intrinsecamente liberal e moral . clarecido, mais maduro, menos logrado.
A relação mais ou menos cínica com o universo político
está presente: basta colocar-se, como faz Karl Zéro, Dans la
2 Registrando, paralelamente ao abandono do político, o esgotamento da arte com peau de Jacques Chirac [Na pele de Jacques Chirac, 2006]
vocação política e social, Dominiquc Baqué vê no filme documentário "uma das para observar os bastidores do poder e para ter a impressão de
substituições possíveis de uma arte política hoje extenuada". Pour un nouvel art compreender seus mecanismos. A mesma coisa em relação ao
politique. De l 'art contemporain au documentaire, Paris, Flammarion, 2004,
"Champs", 2006, p. 2 19. fastfood, com seus perigos para a saúde, as pressões publici-

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tá rias que ela exerce, seu poder financeiro esmagador. A expe­ los hiperbólicos e seu "consumismo" recreativo. Apesar da di­
riência in situ feita por Morgan Spurlock em Super size me - A ferença de registro e de cenografia, o público se sente "em casa",
dieta do palhaço [2006], colocando-se voluntariamente no satisfeito em seu apetite de "histórias" eletrizantes.
papel de cobaia e filmando em seu próprio corpo os efeitos do
Big Mac e da Coca-Cola com fritas, pretende mostrar "pro­ O banal e o íntimo
vas", na tela, dessa dieta perniciosa.
Trata-se, cada vez mais, de abrir os olhos, penetrar a su­ Enfim, em terceiro lugar, o sucesso atual do documentário
perfície das aparências, revelar a verdade contra a mídia comer­ não pode ser dissociado das metamorfoses da cultura do indivíduo
cial, para o maior proveito do cidadão consumidor. A África nas democracias hipermodemas. O novo planeta consumista e psi­
entregue aos males da globalização, como mostra Hubert Sauper cológico ocasionou uma segunda revolução individualista,marca­
em O pesadelo de Darwin, destrinchando o mecanismo com­ da pela emancipação dos sujeitos diante das antigas imposições
plexo que vincula a introdução, num lago da Tanzânia, de um coletivistas e pela exigência de governarem a si mesmos. Essa fe­
peixe predador que esgota seus recursos naturais, a um comér­ bre de autonomia individual não se limitou às relações com a famí­
cio que explora as populações locais em beneficio do mercado lia, a religião ou a política: sua expressão se encontra até na relação
europeu e a um vasto tráfico de armas internacional, permite com o cinema e, mais precisamente, os documentários. Em muitos
penetrar seus arcanos e fazer de cada espectador um quase-es­ destes, o sentido está aberto, bem mais aberto, em todo caso, que
pecialista da questão. num filme dramático. Nenhuma visão do alto comandando tudo,
O risco, naturalmente, é que essa desmistificação seja ela mas inúmeros pequenos gestos, sequências descosidas e descontí­
mesma uma mistificação. No caso do filme de Sauper, parece nuas, linhas pontilhadas e mistérios que cada um, entregue a si,
ser esse realmente o caso, como mostrou uma investigação feita pode pegar ou largar, tricotando à sua maneira microuniversos de
no local por jornalistas, revelando que a criação da perca do sentido. Com isso, o neodocumentário atende ao desejo individua­
Nilo, ao contrário do que afirma o documentário, favorece a lista de ser mais participativo e autônomo, menos responsável,
vida e o desenvolvimento dos africanos da região. Isso mostra, menos orientado pelo fio da trama narrativa cujo começo e o fim
mesmo sem julgar a boa ou a má-fé do realizador, que o docu­ estão fixados de antemão. Uma parte do gozo do espectador reside
mentário, por seu desejo de atingir um grande público, não es­ então nessa liberdade da imaginação subjetiva que recompõe, para
capa aos mecanismos de simplificação e de espetacularização. uso íntimo, um relato mais pessoal, mais secreto, através do real
Ainda que se apresente como um "outro" cinema, detentor da representado, seja ele qual for: nas 130 horas de histórias e de indi­
verdade diante da mídia, da ficção e das superproduções de víduos filmados, que resultaram nos 175 minutos de filme em No
Hollywood, o neodocumentário não deixa de utilizar, aqui e ali, quarto de Vanda [2001], Pedro Costa mostra uma jovem vagando
os recursos destas: sensacionalismo, efeito-choque, maniqueís­ sem domicílio fixo, mas, como assinala Denis Bellemare, "ele não
mo e até mesmo, em casos extremos, manipulação pura e sim­ emite um ponto de vista sobre esse mundo''.3 Os pequenos fatos
ples. Nesse ponto, Michael Moore, com sua câmera agressiva, que ele relata, as pessoas que a personagem encontra no seu cami-
sabe jogar com o exagero. Se o público se reconhece nesses
filmes, é também porque estes confortam ao mesmo tempo suas 3
Denis Bellcmare, " Projections portugaises", in Jean-Pierre Esquenazi (dir.),
certezas ou suas aspirações profundas, seu gosto por espetácu- Cinéma contemporain, état des lieux, op. cit., p. 2 18 .

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\v I r l"'- e '

nho, a diversidade de um real transfigurado pela "imaterialidade do dade dos indivíduos com quem podemos nos identificar que nos
cinema", deixam a porta aberta ao sentido e oferecem a cada es­ seduz e nos toca. Mesmo Eu e meus familiares "merecemos"
pectador, por mais distante que esteja desse mundo, as "lições de ser filmados tais como somos em nossa vida "real" ordinária. A
vida" que quiser encontrar. Em Jesus Camp [2006], Heidi Ewing e sagração do documentário deve ser vista como uma das figuras
Rachel Grady filmam os evangélicos, ramo radical e fundamenta­ do avanço do imaginário democrático, buscando reduzir as mar­
lista do protestantismo americano, mostrando a direita religiosa cas hierárquicas da diferença entre os homens.
em ação de forma voluntariamente neutra, sem comentário: um Assim pode-se ver aí uma espécie de ready-made, prati­
neoconservador encontrará ali a confirmação de suas escolhas, as­ camente tudo e qualquer coisa instalando o banal ou o irrisó­
sim como um democrata as razões de sua desconfiança. rio da realidade no centro da obra, afirmando que tudo é arte,
Todo um conjunto de princípios ( culto hedonista e psi, que tudo é "bom" de filmar. Mas se o ready-m ade, em
culto do corpo e da saúde, culto da autonomia subjetiva) preci­ Ducharnp, era inseparável de uma denúncia da arte, de uma
pitou o advento de um neoindividualismo que se apresenta como vontade de subverter o trabalho artístico e o próprio museu,
obsessão narcísica, interrogação e cuidado de si, exigência de aqui isso não acontece. Ao contrário, o insignificante de cada
autenticidade e de comunicação intimista, psicologização da dia é supersignificante e o documentário não ambiciona de
existência. Nesse contexto, a cotidianidade da vida e os mean­ modo algum transgredir o espaço artístico. Ele se apresenta
dos do Eu existencial é que são buscados e valorizados. A sin­ como aquilo que entende ser: de modo nenhum uma não-arte
gularidade de cada um, o miúdo da vida como ela é, tomam-se ou uma antiarte, mas uma arte "bruta", uma arte do real.
matéria a filmar, a refletir, a amar. O parto de Naomi Kawase em
Shara [2003], os cinco bebês filmados de zero a 18 meses no Os homens com a câmera
documentário que Alain Chabat prepara, o amor adolescente da
menina de Claire Simon em 800 kilometres de dif.férence, o fast Uma arte "bruta", no entanto inevitavelmente "montada",
food que Morgan Spurloch come no MacDonald's, ou o vinho, isto é, construída. Donde um problema, velho como o cinema,
bom ou ruim, dos vinhateiros de Mondovino, destinado a chegar que não cessa de agitar a reflexão crítica: qual é, nessas condi­
um dia ou outro à minha mesa: a sociedade do indivíduo extremo ções, a relação do filme documentário com a realidade e,
criou o desejo de nos reconhecermos nos espetáculos filmados, correlativamente, com a verdade?
de vermos de uma outra maneira o que somos e o que vivemos. Não nos enganemos aqui : se sempre houve na ficção ele­
Assim, sob a influência da cultura individualista e psi, mentos de real, igualmente sempre houve no documentário ele­
toda pessoa e toda realidade psicológica se mostram dignas de mentos de ficção. Claro que não existem dois cinemas hetero­
interesse cinematográfico, acabando com as hierarquias de ou­ gêneos, substancialmente diferentes, ,pois a única verdadeira
trora que distinguiam assuntos nobres e assuntos inferiores. Mini­ categoria operatória, aqui, é a da Narrativa. Nenhum filme pode
heroização do banal que coincide, em certos aspectos, com o escapar da dimensão primeira, irredutível, da escrita. Mas o do­
fenômeno do reality show. Agora a estrela está perto de mim, cumentário tem a especificidade de contar a realidade. E os no­
não é mais o outro intocável e dessemelhante como eram os vos desenvolvimentos do documentário, apoiados na história
astros quase divinizados de Hollywood: Jean-Pascal, não mais de um gênero que, desde Dziga Vertov, se preocupou precisa­
Rodolfo Valentino; Loana, não mais Greta Garbo. É a singulari- mente com o que é, para Um homem com uma câmera [Vertov,

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1 929], a representação do real, convidam mais do que nunca a colheu, uma visão do mundo, que aparece na maneira pela qual
ultrapassar a sacrossanta dicotomia real-ficção, verdadeiro-fal­ compõe, constrói, elabora seu filme, isto é, na maneira pela qual
so. É aí que se observa, na extrema diversidade trazida hoje à trabalha a realidade como um material para o cinema, nele intro­
questão, toda a complexidade formal de um gênero cuja súbita duzindo a narrativa. Documentário bruto sobre uma sessão da
proliferação ilustra tanto a complexificação da realidade social 1 O.ª vara correcional de Paris, seus Instantes de audiência [2004],
- a da era hipermodema - quanto o refinamento do procedi­ pela maneira como ele os "encena", se tornam, no sentido
mento artístico que quer mostrá-la. Por muito tempo o docu­ balzaquiano, cenas da justiça ordinária que compõem um capítu­
mentário, tal como figurava na abertura das sessões do cinema, lo de uma comédia humana, de um romance dos homens de hoje.
com uma reportagem sobre a pesca da sardinha ou sobre as dan­ Cai a barreira entre ficção e realidade, os personagens que ele
ças folclóricas do Tirol, e tal como ainda se apresenta em filmes convoca à câmera, como o juiz que os convoca a depor, são atores
projetados na televisão (sobre a vida dos animais, por exem­ de sua própria vida que, em planos aproximados, revelam sua
plo), se limitou ao que poderíamos chamar o seu grau zero: o da intimidade diante do tribunal, este sendo filmado, por sua vez,
reportagem, o da descoberta neutra, anônima (o realizador é um em planos gerais, com todo o aparato imponente do cerimonial
desconhecido), ingênua, sem subjetividade, não reivindicando judiciário. Pensamos em Flaubert, que queria "dar à prosa o rit­
ponto de vista algum, a não ser o de quem sabe e que mostra a mo do verso e escrever a história ordinária como se escreve a
quem não sabe. A essa fonna primitiva do gênero, o que os gran­ história ou a epopeia". Esse programa estético se mantém: trata­
des documentaristas tTouxeram, ao longo de toda a sua história, se sempre de "escrever bem o medíocre", de transfigurar o mais
foi a noção do olhar. Assim um documentário se toma um olho comum, de "tirar o eterno do transitório" (Baudelaire).
acrescentado à câmera, uma escolha de ângulo e de enquadra­ Essa força narrativa do documentário assim praticado
mento, uma ciência do corte e da montagem que representa o explica que se possa considerar esses realizadores como verda­
mundo interrogando-o, mostrando o que está por baixo, às ve­ deiros criadores cinematográficos, cujos fi lmes vamos ver como
zes demasiado visível e que um olho comum não percebe. Sua vamos ver uma obra de ficção. De resto, cineasta como Dcpar­
visada, então, é propriamente attística. E é bem possível que don ou Agnes Varda transcendem as fronteiras e misturam de
através da reafirmação atual do documentário se busque uma bo1n grado os referenciais. Seja como for, o hábito que seus
nova síntese do objetivo e do subjetivo, é possível que inúmeras filmes instauram junto ao público é a abolição da classificação
sínteses inéditas procurem juntar, de uma certa maneira, Lu­ genérica: o documentário não é mais relegado à margem, ele se
miere e Mélies. toma, como a comédia ou o thriller, um gênero capaz de lotar as
salas e de satisfazer um público que, ao vê-lo, terá o sentimento
A (re)construção do real de que lhe contam uma história.
Com isso, o que há alguns anos teria pertencido à simples
A obra de Raymond Depardon é uma perfeita ilustração reportagem, se vê promovido, pelo faro de produtores que sa­
disso: incansável observador do mundo e da sociedade dos anos bem sentir o vento e de realizadores que não temem querer se­
1 970-2000, ele passa da África a um hospital psiquiátrico, de uma duzir o público mais amplo possível, à condição de filme no
delegacia a uma sala de tribunal, das silhuetas de Paris a perfis sentido completo, que propõe ao público o que ele espera: uma
camponeses. Mas faz isso propondo, pela visada mesma que es- verdadeira história, mais ainda do que uma história verdadeira.

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A cenarização da realidade se toma assim prática corrente, des­ Uma obra como a de Claude Lanzmann é uma ilustração
de a voz offque acompanha os insetos de Microcosmos -A fan­ tanto teórica quanto prática dessa questão. Querendo dedicar um
tástica aventura da natureza [Claude Nuridsany e Marie filme ao genocídio dos judeus da Europa durante a Segunda Guerra
Perrenou, 1996] em seu mundo do infinitamente pequeno, ou a mundial, ele afirma em 1985, com Shoah, através das imagens
Migração alada [Jacques Perrin, 200 1] em seus voos de longo que propõe, uma posição teórica sobre o problema mesmo levan­
curso, até o antropomorfismo que A marcha dos pinguins ins­ tado pela representação de um acontecimento que desafia, funda­
taura como procedimento narrativo, dando a palavra a um casal mentalmente, a representação. Documento, mais do que
de pinguins e a seu rebento. Processo que chega ao ponto de documentário, seu filme recusa tanto as imagens de arquivo quanto
apresentar uma termiteira na África inteiramente cenarizada, a ficção: ele diz o indizível por outros meios, interroga as teste­
criando um verdadeiro filme de guerra sobre o confronto do munhas, percorre os lugares onde nada mais se vê do que foi o
povo das térmitas com o exército das formigas que o atacam, horror, ergue um túmulo memorial para os milhões de corpos
em A fortaleza sitiada [Philippe Calderon, 2006] . transformados em fumaça. Obra fundadora, Shoah é seguramen­
te um filme militante: para nos convencermos disso, basta ver a
Olhar militante / olhar íntimo maneira feroz como os negacionistas procuram negá-lo. Mas não
o é do mesmo modo que o documentário (Tsahal) dedicado, em
O neodocumentário tem a característica de que ele assume 1994, ao exército israelense pelo mesmo realizador: os desdobra­
narrar o real. Ora, uma narrativa nunca é neutra. E toda mna cate­ mentos, nos anos seguintes, do conflito israelo-palestino acusam
goria importante de documentários narra com o objetivo de con­ de maneira nítida o modo como o seu militantismo encobre, aqui,
vencer. Trata-se aí de filmes que podemos chamar militantes, no um engajamento pessoal bem mais subjetivo.
sentido de que resultam de um engajamento com uma vontade de O mesmo acontece com a evolução da obra de Michael
fazê-lo compartilhar. Assim, a questão que eles colocam é menos a Moore, sempre engajado, porém cada vez mais provocador. De­
da realidade que a da objetividade. Nos casos extremos, o pois de Roger e eu ( 1 989) e o testemunho sobre as dispensas de
militantismo se faz propaganda, manipulação: isso sempre existiu, trabalho feitas pela General Motors, ele abre fogo pesado con­
gerando ao mesmo tempo obras fo rtes - Olympia, de Leni tra o lobby favorável à venda de armas em Tiros em Columbine
Riefenstahl, por exemplo, que é menos reportagem sobre os Jogos (2002). Essa dinâmica o leva a atacar diretamente, em 2004,
Olímpicos de 193 6 do que um hino ao poderio nazista - e com Fahrenheit 9/11, o "governo Bush", no que constitui um
subproduções detestáveis - como os famosos documenteurs panfleto puro e simples, tanto mais eficaz quanto é tocante, cô­
[documentirosos] produzidos pela propaganda de Vichy na França mico, ácido, constantemente talentoso. A ampliação, o exagero,
ocupada e que Jean-Pierre Bertin-Maghit analisou. 4 Hoje, com a a simplificação, o maniqueísmo: o documentário militante, sem
produção crescente, a questão é mais do que nunca sensível: onde que o diga e sem mesmo proibir-se às vezes a má-fé, sabe tomar
começa, onde tennina a imparcialidade? em relação à realidade a distância da forma retórica. AI Gore,
fazendo-se filmar em Uma verdade inconveniente, apresentan­
do a estudantes uma conferência sobre o aquecimento do plane­
Jean-Pierre Bertin-Maghit, Des Documenteurs des années noires, Paris, Nouveau
4 ta, pronuncia, no sentido próprio, um discurso, com todas as
Monde Éditions, 2004. formas retóricas e espetaculares apropriadas. Essa força de con-

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vieção colocada a serviço da causa que ele defende é reforçada vivendo, como um objeto de observação: torna-se mínima a fron­
por uma estratégia de lançamento que acompanha em toda par­ teira entre a verdade e a subj etividade, a realidade e sua repre­
te o filme, tanto junto a públicos populares como junto às auto­ sentação. Nesse intervalo incerto, a cineasta desenvolve uma
ridades (na França, os deputados têm direito a uma projeção obra que, do pátio de uma escola maternal (Récréations, 1 992)
especial). Nisso se percebe que o documentário simplifica o a uma pequena empresa de alimentação ( Coúte que coúte, 1995)
mundo ao desenvolver a complexidade dos meios que utiliza. ou ao retrato de uma mulher que conta sua vida (Mimi, 2003),
Mesmo os militantes do real não ignoram mais os cordões ma­ interroga não apenas a realidade, mas também o cinema.
nipulados por Hollywood.
Essa complexidade, que permite abordar a realidade ex­ Verdadeiro / falso
terior de todas as maneiras, o documentário a utiliza também ao
dirigir sua câmera em sentido inverso, para o interior, para o Esse trabalho e essa reflexão fonnais dão origem, num mes­
íntimo. Uma outra forma de documentário, que poderíamos cha­ tre como Kiarostami, a uma obra total e simultaneamente enraizada
mar intimista, toma por tema o indívíduo. A infinidade do eu, a na ficção e na real idade. Ver E a vida con tinua é ver um
infinidade dos eus, oferece um campo ilimitado. Retratos de documentário sobre as devastações do terremoto que atinge o norte
personalidades, de artistas, de pessoas comuns ou de celebrida­ do Irã em 1990 e, ao mesmo tempo, a segunda parte de uma fic­
des: o documentário é então investigação, análise ou mesmo ção iniciada com Onde é a casa do meu amigo?, que prosseguirá
psicanálise, voltada, pelo efeito-espelho que oferece, tanto para com A través das oliveiras, e que conta a história de um cineasta ­
o indivíduo filmado quanto para o realizador que o filma. duplo de Kiarostami - que faz um filme que se constrói sempre a
Em Esboços para Frank Gehry [2006], Sidney Pollack partir da realidade que ele filma. Pois o cineasta filma os cenários,
mostra certamente o arquiteto diante da sua arte, mas a visão do as pessoas, as situações da realidade com que se depara o olho da
artista, os problemas que ele se coloca sobre a criação do seu sua câmera, tudo numa narrativa concebida previamente sobre
trabalho remetem ao próprio realizador que faz seu documentário um filme sendo feito e que os próprios acontecimentos reais se
e que também se questiona sobre a maneira de realizá-lo e sobre encarregam de conduzir e de modificar. Impressionante jogo de
sua arte de cineasta. Do mesmo modo, quando Agnes Varda, em espelhos que é exatamente o contrário de um exercício formal, na
Os catadores e eu [ 1999), faz o levantamento de todas as suca­ medida em que, para o cineasta, a real idade é a vida, sua vida, sua
tas, detritos e restos que a sociedade de consumo deixa atrás de visão da vida. Ao chegarem a esse ponto de mistura, realidade e
si para os catadores de l ixo, o seu próprio filme se constrói a ficção se interpenetram de tal maneira que sua clivagem teórica,
partir das imagens que ela vai biscateando, catando de um lado tão frequentemente afirmada, deixa de existir, mas também a dis­
e de outro com sua pequena câmera digital, inclusive sua pró­ tinção tradicional dos gêneros é abolida. Os filmes de Kiarostami
pria pessoa no momento de filmar uma velha catadora que ob­ não são nem documentário nem ficção, são as duas coisas ao mes­
serva suas mãos enrngadas, seu rosto um pouco murcho, os bu­ mo tempo.
racos na sua cabeleira. Um autodocumentário, assim como uma Nessas zonas indecisas em que as tipologias não mais exis­
autoficção. Claire Simon apaga ainda mais as fronteiras quan­ tem, a criatividade amplia o campo do documentário até dissol­
do, em 800 kilometres de différence, constrói um filme sobre ver seus traços genéricos. Isso aparece claramente num tipo de
um primeiro amor, tomando sua filha, que justamente o está filme que reintroduz a ficção no real e cinematografiza a repor-

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tagem: o docuficção, em que um acontecimento real (por exem­ novação da criação artística. Pois, ao multiplicar o campo de in­
plo, um acidente de montanha em Tocando o vazio [ Kevin vestigação do real, o documentário de hoje inventa cada vez mais
M acdonald, 2003]) é contado através de um roteiro que mistura combinações inéditas de "real-ficção": ele relança e revitaliza a
documentos de arquivos e entrevistas de especialistas ou de tes­ problemática da ficção pela da própria realidade. Reciprocamen­
temunhas a uma ficção que reconstitui os fatos e que atores in­ te, o apelo a formas mais sofisticadas e inventivas de ficção tende
terpretam. Nessa nova configuração, o documentário é tanto a produzir também documentários mais complexos, mais ambi­
matriz quanto matéria da ficção. ciosos, com um valor artístico sempre mais claramente afim1ado.
O mesmo acontece, mas de modo diferente, no inquérito Assistimos, na maneira como o docunentário de hoje é praticado,
social que a jovem Sarnira M akhmalbaffaz sobre duas meninas a um fenômeno cultural e artístico impmtante: a convergência
retidas e encerradas por mais de dez anos em casa pelos pais, das duas tendências tradicionalmente apresentadas como distin­
num bairro pobre de Teerã. Esse inquérito dá origem a um fil­ tas ou mesmo antagônicas desde o nascimento do cinema - a
me, A maçã ( 1 998], rodado quatro dias depois que a notícia foi realidade para Lumiere, a ficção para Mélies. O neodocumentá­
revelada pela imprensa, no próprio local, com as próprias prota­ rio, na variedade mesma das combinatórias que explora, traz ao
gonistas, a quem ela faz re-viver a situação. O filme (documen­ cinema um neo-neorrealismo: ele consegue a proeza de reconci liar
to? ficção?) é ao mesmo tempo realidade e relato ficcionalizado, os dois "irmãos inimigos" da sétima arte.
roteirizado e montado após a filmagem .
De maneira mais lúdica, a porta se abre ao p�azer e à arte
do malabarismo com o real e a ficção, o verdadeiro e o falso.
Cédric Klapisch, que dá à realidade um lugar essencial em suas
ficções, começa por um curta-metragem, Ce Qui me meut [ 1 989],
que é um verdadeiro/falso documentário sobre um personagem
verdadeiro - Étienne Jules Marey - de quem ele propõe um
falso retrato de época, em preto-e-branco saltitante, que desem­
boca na invenção do cinema como técnica - Marey tendo sido
um dos seus iniciadores - e como arte, num plano final que
evoca O A ta/ante ( 1934] e Jean Vigo. Naomi Kawase, por sua
vez, mistura a tal ponto o cinema à sua própria vida que, filman­
do-se continuamente em seus Carnets intimes [ 1988], ela se tor­
na, num de seus filmes de ficção, Shara [2003], uma mãe pres­
tes a dar à luz, numa cena filmada que a mostra nas dores do
trabalho de parto.
Onde a realidade, onde a ficção? Eterno problema metafi­
sico, mas que não está mais no centro do que acontece com esse
cinema "super-realista". O problema aqui não é mais a expressão
e a adequação à realidade, mas uma dinâmica de produção e re-

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t idades coletivas espalharam uma cultura e uma ética memoriais
sobre o conjunto do campo social-histórico. Passamos da histó­
Capítulo VI ria-una à memória-plural I e,no cinema, de um gênero bem iden­
tificado - o filme histórico - a uma temática difusa capaz de
ln memoriam
impregnar todos os gêneros, da comédia ao drama. O novo cine­
Do filme histórico ao filme memorial ma é movido agora por uma vontade política ou transpolítica de
reapropriação de "blocos" históricos ocultados e de celebração
das diferentes identidades coletivas.

A sociedade hipermodema é a que é dominada pela catego­ O filme histórico original: um passado passado
ria temporal do presente. Consumo, publicidade, informação, mo­
das, lazeres: sobre o fundo do esgotamento das grandes doutrinas Desde o início, o cinema se desenvolveu no registro tanto
futuristas,é toda a cotidianidade que é agora remodelada pelas nor­ futurista quanto memorial: já em 1902, Mélies envia os homens
mas do aqui-agora e da instantaneidade. Nos antípodas da trans­ numa Viagem à lua e, em 1 903, faz esgrimir Les Mousquetiers
missão das tradições seculares, vemos desenvolver-se uma cultura de la reine [Os mosqueteiros da rainha], antes que, em 1 908, Le
de tipo presenteísta que se escora no tempo curto dos ganhos finan­ Bargy e Calmettes lancem de fato a moda histórica, contando O
ceiros,na imediatez das redes digitais e dos gozos privados. assassinato do duque de Guise. Se o futuro oferece à imagina­
Mas o paradoxo é que, ao mesmo tempo, nossa época teste­ ção espaços infinitos, a H istória também se oferece corno um
munha um amplo movimento de revivescência do passado, um vasto território a encenar. Reservatório inesgotável de aconteci­
verdadeiro frenesi pratimonial e comemorativo (floração dos mu­ mentos e personagens, ela é sobretudo um reservatório de histó­
seus, culto da paisagem e dos monumentos, proliferação dos ani­ rias já muito explorado pela literatura romanesca, que enrique­
versários de todo tipo, moda vintage, retrô etc.), acompanhados de ce os fatos com todos os recursos da imaginação. O romance­
um forte crescimento das identidades culturais, étnicas e religiosas folhetim de Alexandre Dumas gera o filme de episódios de Maria
que fazem referência a uma memória coletiva. Os modernos que­ Caserini sobre Les trais Mousquetaires ( 1909),primeira das inú­
riam romper todos os laços que os prendiam ao passado: nós o meras adaptações (mais de uma centena) que vão multiplicar o
celebramos, o redignificamos, nem que seja na animação e na pro­ famoso trio nas telas de todo o mundo.
moção ultracontemporâneas. Chegamos ao tempo da memória ge­ Nasceu um gênero, o filme histórico, mistura de realidade
neralizada, da excrescência memorial, outra figura do excesso hi­ e de romanesco, cujas características são bem identificadas. O
permodemo. O cinema não escapa a isso: o hipercinema é insepa­ elemento principal é a reconstituição de tuna época, e para isso é
rável da hipertrofia memorial que invade a tela. importante o vestuário: hábito de lã grosseira para o monge me­
Nesse novo dispositivo, são todos os passados de todas as dieval, peruca para o marquês do século XVII, chapéu de duas
comunidades particulares que emergem de novo, rompendo o pontas para a época de Napoleão. O estúdio encontra sua razão
modelo tradicional unitário da "grande História". O surgimento
do famoso "dever de memória", ligado inicialmente ao 1 Pierre Nora, "L'ére de la commémoration", in les lieux de mémoire, Paris,
Holocausto, e a exigência de reconhecimento das diferentes iden- Gallimard, Quarto, 1997, p. 4688-4699.

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de ser na construção de cenários que rivalizam em ênfases sonagens. Mas são sempre grandes homens, ou, quando não,
estilísticas e decorativas, a fim de impor-se a imagem de uma que assim se tornam, transfigurados pela grandeza do aconteci­
realidade histórica capaz de iludir, os espectadores podendo en­ mento que os heroíza: os pobres da floresta de Sherwood adqui­
contrar nela todos os prazeres do grande espetáculo de outras ter­ rem figura legendária já no filme de Allan Dwann ( 1922), pre­
ras. De Intolerância [ 19 1 6] de Griffith a Ben Hur [ 1926] de Fred lúdio de inúneros remakes, em tomo de seu líder, Robin Wood,
Niblo, H ollywood investe desde o início na história para justiceiro ainda mais heroico que o fogoso Ricardo Coração de
transformá-la num universo hollywoodiano. O tratamento roma­ Leão. Em Les Croix de bois ( 193 1), Raymond Bernard se baseia
nesco da história suscita gêneros dentro do gênero: o filme de no romance de Roland Dorgeles para mostrar pobres soldados
Antiguidade, o filme de capa e espada, o filme de piratas, a bio­ enfrentando a lama, os piolhos e a morte nas trincheiras, e cujo
grafia, o filme de guerra e mesmo o western, igualmente carrega­ sacrificio faz deles heróis anônimos destinados à celebração co­
do de valor histórico num país jovem em busca de um passado. letiva, a exemplo do soldado desconhecido. Eles participam as­
Ainda que se trate de um lugar como Versalhes, por exem­ sim de uma longa cadeia que, de Joana d' Are a Du Guesclin, de
plo, o que é proposto ao espectador tem a ver com um projeto Luís XI ao Rei Sol [Luís XIV],de Madame de Pompadour a Maria
fundamentalmente romanesco e uma vontade de idealização. A Antonieta, tece uma história à glória nacional.
história mesma só poderia ser uma H istória dos grandes aconteci­ As primeiras críticas capazes de abalar essa vi ão glorio­
mentos e dos grandes homens, capaz de suscitar a admiração ou o sa e de perturbar a boa consciência não encontram - fato revela­
fascínio das massas. Erigido em ícone, o personagem histórico dor - um eco suficiente para rachar o edificio monolítico, tanto
encarna uma história essencialmente nacional, uma história a ser­ histórico quanto cinematográfico. Em Glória feita de sangue
viço da ideia nacional; porém, mais ainda, a serviço do espetácu­ ( 1957), o visionário Stanley Kubrick convida a abandonar a via
lo onírico do cinema. régia da heroização em troca dos caminhos lamacentos de uma
Poderoso construtor de mitos e de lendas, o cinema re­ realidade menos gloriosa, mas o filme, que lança um olhar es­
produziu o esquema adotado pela literatura, cuja origem milenar, clarecedor sobre os motins de 19 16, tem sua exibição comercial
como sabemos, é a epopeia. Na tela acontece a mesma coisa. O proibida na França. E quando, em Noite e neblina, em 1 956, um
modelo épico estrutura as obras fundadoras: Griffith, Gance, plano mostra à margem do enquadramento um quepe facilmen­
Eisenstein heroízam sem parar. Para um, através da guerra da te reconhecível que atesta a implicação da polícia francesa na
Secessão, é o Nascimento de uma nação [ 19 15] ; para o outro, deportação de judeus, o filme de Resnais se vê amputado dessa
na passagem do cinema mudo ao falado, é um Napoleão [ 1 925- imagem duvidosa, propriamente censurada: ainda não havia
1927 e 1932] nascido dos ideais da Revolução francesa; para o chegado a hora dos questionamentos. 2
terceiro, de Outubro [ 1927] e Alexandre Nevski [ 1938] a Ivan, o É só aos poucos, na esteira de uma reflexão gerada pelos
terrível [ 1944- 1 945], é o alicerce da velha Rússia eterna sob o grandes traumas históricos do século - o Holocausto, o Gulag, a
impacto da revolução comunista. Depois, nascendo da epopeia, bomba atômica, as guerras mundiais e depois coloniais -, que o
vem o tempo do romance - epopeia em prosa, como era defini­ cinema registra e acelera a ascensão do memorial, dirigindo um
da no século XVII -, que humaniza os heróis. O cinema moder­
2 Fato sintomático, em 2007 o filme de Resnais suscita ele próprio uma leitura não
no seguiu essa evolução: o filme histórico, sem nunca renegar
mais enquanto filme de cinema, mas enquanto lugar de memória: ver Sylvie
sua dimensão épica e espetacular, humaniza também seus per- Lindeperg, "Nuit et brouillard ". Unji.Lm dans / 'histoire, Paris, Odile Jacob, 2007.

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olhar crítico e polêmico a "um passado que não passa". Na Fran­ que era passado. A linguagem, nesse ponto, era um poderoso vetor:
ça, A dor e a piedade [Marcel Ophuls, 1969] e Lacombe Lucien uma linguagem recriada, artificial, em que locuções rebuscadas e
[Louis Malle, 1974] trazem à luz crua da tela as sombras do torneios sintáticos supostamente deviam "parecer antigos", como
colaboracionismo francês durante a Ocupação; O franco atira­ uma pátina que servia de caução histórica. Mudança de cenário
dor [Michael Cimino, 1978] e Apocalipse Now [Coppola, 1979] no cinema hipermoderno: os heróis históricos falam a linguagem
despejam o napalm do Vietnã sobre a má consciência america­ de hoje. O contemporâneo invade o passado, atualiza-o, torna-o
na. Shoah, em 1985, testemunha não apenas a realidade da imediatamente perceptível aos olhos e aos ouvidos de um públi­
barbárie genocida, mas elabora uma espécie de código ético e co, sobretudo jovem, não necessariamente dotado de uma grande
formal para abordar sua representação: não se trata mais de contar cultura histórica. O cinema hipermoderno é aquele que presentifica
em primeiro grau, mas de interrogar-se sobre a legitimidade e intencionalmente, abertamente, o espetáculo do passado.
os meios do relato histórico na tela, sublinhando que toda ence­ Ao mesmo tempo em que a história é reescrita no presen­
nação do passado envolve questões presentes e por vir. O filme te, as ambições e os referenciais são contemporâneos, para não
que fala de ontem fala para hoje: ele recoloca em questão o dizer da moda: o William Wallace de Mel Gibson, em Coração
passado e faz um julgamento sobre si. O modo como o cinema valente [ 1995], é realmente o chefe da rebelião escocesa contra
aborda desde então a representação histórica traduz a grande o invasor inglês em 1280, mas, com seus cabelos longos e ujo ,
(' mudança da sociedade hipermoderna frente ao passado: a histó­
seus bíceps sobressaindo sob túnicas de estilo punk, sua manei­
ria, o passado contado no passado, torna-se memória, ou seja, ra de "esmagar" o adversário, de fazer correr sangue e de empalar
um passado problematizado no presente. Vemos ilustrada aqui, friamente, tem mais a ver com uma estética à Mad Max [George
de uma outra maneira, a célebre fórmula de Croce: "Toda histó­ Miller, 1979] do que com uma vontade de realismo histórico. E
ria é história contemporânea". a Maria Antonieta [2006] muito adolescente de Sofia Coppola,
O filme histórico neo-hollywoodiano: um presente no pas­ com seus petrechos cor-de-rosa, encontra sua verdadeira per -
sado, e por isso o componente histórico perde seu lado espetacular. pectiva menos na suposta conformidade com seu modelo do que
Ele oferece mesmo, aos olhos de um cinema neo-hollywoodiano no próprio cinema da jovem realizadora, buscando de fílrnc a
que sabe farejar as novas sensibilidades coletivas, matéria para ge­ filme expressar as aflições da juventude.
rar um neo-heroísmo, explorando toda a panóplia dos efeitos espe­ Em suas tendências extremas, esse passado trazido ao
ciais, do digital e do virtual. Através da prodigiosa evolução técni­ hiperatual se desobriga de toda credibilidade. Pretexto mais do
ca que transforma a concepção e a realização dos filmes, esse que tema, ele vira então matéria em segundo grau da ironia. Na
neocinema realiza o que o cinema dos cenários constmídos jamais linha traçada pelos iconoclastas Monty Python, cujo Santo Graal
teria podido sequer imaginar. não tem mais nada de sagrado, a história se reescreve segundo o
Mas a diferença vai bem mais além. O filme tradicional, modo burlesco ou fantasista. Em Coração de cavaleiro [200 1 ] ,
em suas mais puras realizações e em seus maiores êxitos Brian Helgeland mostra torneios de cavalaria num ritmo infer­
hollywoodianos, de Os dez mandamentos de Ceei! B. DeMille nal, cabelos louros flutuando ao vento ao som de música rock.
[ 1956] a Cleópatra de Joseph Mankiewicz, da Joana d 'A rc [ 1948] Seu personagem, aliás, é interessante; na verdade se trata de um
de Victor Fleming a lvanhoé, o vingador do rei [ 1952] de Richard jovem escudeiro plebeu que, tomando as armas do mestre, usur­
Thorpe, espetacularizava o passado buscando dar a sensação de pa sua identidade: o herói é primeiramente homem, desembara-

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çado da sua pesada couraça histórica. E, se ele veste essa coura­ O filme memorial: um passado para o presente
ça, é de maneira independente e rebelde: cavaleiro, afinal, pois
reconhecido como tal por sua coragem e lealdade, mas roqueiro A maneira como os filmes históricos contemporâneos des­
na alma! fazem as figuras até então aceitas evoca o que se passou com os
Essa curiosa combinação de atual e de passado, testemu­ grande valores que as tragédias de Comeille exprimiam, valores
nhada por muitos filmes com pretexto histórico,embaralha tan­ que o humanismo clássico pôs abaixo a seguir, como mostrou
to a história quanto os gêneros. A hibridação torna-se a norma, Paul Bénichou em seu livro Morales du Grand Siecle. O cinema
misturando passado e presente, História e ficção, cuidado de hipermodemo prolonga esse processo cultural moderno de demoli­
reconstituição e busca do espetacular. O filme histórico se dis­ ção do herói. "Ao denunciar o vazio da gló1ia, atingiu-se a grandeza
solve em outras formas que sobrecarregam a tela de efeitos­ humana em seus princípios mesmos",escrevia Bénichou.3 A suspeição
sensação. O pacto dos lobos [200 1], de Christophe Gans, é ao que a barbárie genocida lança sobre a figura do ser hwnano, assim
mesmo tempo filme fantástico, filme gore, filme de artes marciais, como a ascensão do individualismo como valor primeiro, levam a
filme de horror, filme de capa e espada, western (não falta nem redefinir o Homo simplex. Não mais o herói semideus, mas os sim­
mesmo um índio ! ): utilizando sem parar e feitos digitais, ples mmtais,você e eu. Não mais a epopeia legendária nem a grande
morphing, imagens virtuais,e atulhado de re ferências cinefilicas, pintura de história, mas a história das pessoas.
ele toma da estética do cinema hollywoodiano mais contempo­ Os grandes homens, os grandes acontecimentos, os gran­
rânea - a dos blockbusters e filmes de ação - um virtuosismo e des séculos são vistos de outro modo: o Rei Sol não é mais
uma eficácia formais para exprimir, de fonna paradoxal, uma contemplado como maj estade, mas na fragilidade de Louis,
identidade nacional. De fato, o quadro histórico e geográfico é enfant roi [Roger Planchon, 1992] . Napoleão não triunfa mais
o da França da região de Lozere, num século XVIII pré-revolu­ em A usterlitz [Abel Gance, 1 960] : vemo-lo, exilado na ilha de
cionário, às voltas com superstições vindas do fundo dos tem­ Elba, em Napoleão e eu [Paolo Virzi, 2006], através do olhar de
pos e com as injustiças de um poder monárquico e nobiliário seu secretário (e sabemos que não há grande homem para o seu
corrupto. A maneira hiperespetacular e supcrsaturada como é criado) ou, em Monsier N. [Antoine de Caunes, 2003], findando
contado o caso da famosa Besta do Gévaudan se destina a um penosamente sua existência nas brumas de Santa Helena. O pri­
público familiarizado com as produções hollywoodianas e que vado, o íntimo, o cotidiano trazem de volta os que não mais
se reconhece mais na Joana d 'Arc [ 1999] de Luc Besson, to­ idealizamos à sua dimensão de indivíduo. Eles se igualam à
mando a fé como uma droga pesada num redemoinho de som e multidão, transformada agora cm matéria da história das men­
fúria,do que na mística e interiorizada heroína de Robert Bresson talidades. Ampliando o campo de seus personagens hi tóricos,
[O processo de Joana d 'Arc, 1962]. o cinema começa a se interessar por um homem que surge numa
Um cinema violento se desenvolve rompendo as ima­ aldeia do século XVI, dez anos após ter desaparecido, e que
gens, demolindo os mitos, remetendo o homem contemporâ­ talvez seja só um usurpador (O retorno de Martin Guerre, 1982),
neo ao centro de uma história em que ele pode facilmente se ou então por um vendedor ambulante que percorre a Saboia, em
projetar. Quanto mais se distancia de si, mais ele se reconhece 1 859, um ano antes dessa região ser incorporada à França (La
em casa: na hipennodernidade, mesmo o passado distante está Trace, 1 983). Há roteiros que põem em cena um obscuro músi-
em contato com o presente.
1 Paul Bénichou, Mora/es du Grand Siecle, Gallimard, 1948, p. J 09.

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co do final do século XVI I , virtuose da viola de gamba ( Todas nal : o relato da descoberta de O mundo novo [2005] toma-se,
as manhãs do mundo, 199 1), ou então um mercenário que retorna no fi lme de Terrence Malick, uma visão ecológica e lírica da
à sua propriedade rural, no século XIII, para retomar trabalhos natureza primeira, manchada pelos conquistadores que vêm
de herborista (A volta do guerreiro, 200 1). inexoravelmente poluí-Ia. A mesma Pocahontas, princesa ín­
Nessa releitura de um passado não mais heroizado, mas dia sentimentalmente idealizada por esse outro grande prove­
humanizado, o cinema revisita as grandes narrativas fundado­ dor de mitos americanos que são os estúdios Disney, é vista
ras e os mitos originais. Ele reescreve a História abandonando pela câmera de Malick como a infeliz nativa contaminada pelo
a lenda cara a um John Ford. O western, em seus avatares mais homem branco que lhe faz perder a pureza: a lenda é inverti­
recentes, mostra isso de forma evidente. Portador, com toda a da. Resta o mea culpa da má consciência.
sua carga heroica, da memória identitária de uma nação que se Esse sentimento que leva a América de hoje a debruçar­
forjou através de uma conquista do Oeste erigida em façanha se sobre seu passado numa atitude memorial, a Europa o vive
épica e legendária, ele se vê de repente confrontado, em Dan­ de forma igualmente aguda a partir desse buraco negro que é,
ça com lobos [Kevin Costner, 1990), ao que já haviam sugeri­ para um continente marcado pela forte consciência de sua civi­
do de maneira difusa, por exemplo, Flechas de fogo [Delmer lização, o extermínio dos judeus. É um filme, Shoah, que confe­
Daves, 1950) e Pequeno grande homem [Arthur Penn, 1970), re a isso uma espécie de realidade memorial, ao dar um nome
filmes menos consensuais: a realidade histórica de uma nação ao indizível . O genocídio se instala como lugar geocêntrico da
indígena e a erradicação étnica que essa conquista provocou. história, impondo tanto uma investigação propriamente históri­
Os heróis do Oeste eram homens sem escrúpulos? Assim a ca para estabelecer os fatos, quanto um dever moral para res­
figura do caubói é brutalmente desmisti ficada. Com sua visão ponder ao problema da responsabilidade coletiva e individual.
crepuscular, C l int Eastwood registra, em Os imperdoáveis O cinema encontra aí um novo território e, ao explorá-lo, dá
[ 1992), o fim desse mundo. Stephen Frears, de maneira mais uma contribuição essencial ao processo da memória.
nostálgica, o confronta à mutação dos tempos e às novas real i­
dades em Terra de paixões [ 1998), para chegar à mesma A identidade francesa em questão
constatação.
Derrubado da sela, o caubói fordiano, encarnado majes­ O caso francês é particularmente revelador. Agora nenhu­
tosamente por John Wayne, perde sua aura legendária para se ma das grandes zonas de sombra da má consciência nacional
ver na posição de acusado. Ao decidir juntar-se ao povo dos escapa à luz filmes cada vez mais numerosos que projetam so­
Sioux, mudando de nome para ser um deles, o tenente Dunbar bre e las. Ao se interessar pelos desaparecidos da Primeira Guer­
de Dança com lobos faz o ato de contrição do homem branco ra Mundial em A vida e nada mais [ 1989), Bertrand Tavcrnier
norte-americano que reconhece ao mesmo tempo o crime de introduz a dimensão do luto na consciência memorial. Ao tra­
etnocídio, mas também a grandeza da civilização indígena, ani­ çar, em Capitão Conan [ 1 996), o retrato de um combatente trans­
quilada pela conquista: um paraíso - o das origens, da nature­ formado em assassino, ele também oferece, dos atores da guer­
za, dos grandes espaços, da terra virgem - irremediavelmente ra, uma imagem de brutalidade muito afastada da visão heroica.
perdido. O western revisitado denuncia a "paz branca", a O que levou Stéphane Audoin-Rouzeau a colocar a questão de
barbárie da civilização ocidental genocida. E o pecado é origi- saber se Tavemier não seria, "contra a sua vontade, um cineasta

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da 'identidade nacional ' ". 4 Em todo caso, é evidente que essa boração e a deportação de judeus franceses. Assim é feita uma
visão não lenificante, des-heroizada, sensível aos sofrimentos e releitura da França de Pétain, repintando o quadro com pincela­
às fraquezas humanas, faz parte agora da história memorial. das de arrependimento. O sr. Batignole de Herói por acaso (Gérard
Enquanto Lionel Jospin reabilita em nome do Estado os motins Jugnot, 2001 ), com sua cara redonda de francês médio, aparece
de 19 17 e seu livro Paroles de Poilus - que dá a palavra, mais como a culminação redentora e consensual dessa memória de ar­
de oitenta anos depois, aos simples soldados - vende mais de rependimento. De fato, o oportunista de guerra, que se instalou
um milhão de exemplares5 , Jean-Pierre Jeunet - que vem tra­ num apartamento roubado dos judeus, acaba por se interrogar
çando à sua maneira, de Amélie Poulain a Eterno amor, o qua­ sobre a ignomínia e por salvar crianças judias do genocídio, sub­
dro de uma identidade francesa edificada à base de nostalgia - traindo-as do ocupante alemão. Mesmo sendo oportunamente in­
faz sua Marianne, vivida por Audrey Tautou, passar de um tegrada num processo de tomada de consciência que equivale à
Montmartre de cartão-postal às terríveis trincheiras de Verdun. contrição, hoje a colaboração faz parte da memória nacional.
O que ela busca nesse inferno é precisamente o noivo desapare­ Bertrand Tavernier, ainda, a vê em ação no próprio cinema: seu
cido, não querendo acreditar que ele tenha sido fuzilado "como Passaporte para a vida [200 1 ], sobre a situação dos cineastas
exemplo". Assim, a história é lida à luz dos direitos humanos, franceses que continuaram a fazer cinema sob a égide do ocupan­
que fazem soar novas trombetas. O heroísmo não está mais na te e na empresa de produção que este instalou, a Continental,
guerra, mas em sua recusa: é o indivíduo que importa e não traduz tanto o ponto de vista do historiador do cinema que ele é,
mais os grandes ideais nacionalistas. Os bravos soldados fran­ quanto o do cidadão que se interroga hoje sobre seu pa sado.
ceses e alemães que, abandonando as trincheiras, colocam sua A exigência de reconhecimento do genocídio leva igual­
fraternidade de homens antes de seu dever de combatentes, em mente o cinema, longe da radicalidade formal e ética pregada por
Feliz Natal de Christian Carion [2005], surfam nessa boa cons­ Claude Lanzmann em Shoah, a íiccionalizá-lo e transformá-lo
ciência reencontrada. Aliás, eles foram escolhidos para repre­ em tema de filmes espetaculares que buscam suscitar a emoção
sentar a França no Oscar. pelos procedimentos clássicos do drama (A lista de Schind/er,
Trata-se agora de trazer de novo à superficie o que foi ocul­ Steven Spielberg, 1993), do thriller (A espiã, Paul Verhoeven,
tado. A verdade não está mais no heroísmo coletivo de um Le 2006) ou mesmo da comédia (A vida é bela, Roberto Benigni,
Pére tranqüille [René Clement, 1946], erigido, segundo o proj eto 1 998). Para além da questão teórica e moral colocada por
de reconciliação nacional desejado por De Gaulle, como imagem Lanzmann, o que esses filmes impõem, por seu sucesso popular,
simbólica de uma França resistente sob a aparência da passivida­ é uma consciência coletiva que reconhece o dever da memória.
de, mas sim na ambiguidade vivida, já em 1 974, pelo jovem O processo conquista aos poucos todas as zonas históricas
Lacombe Lucien [Louis Malle], colaboracionista por não ter po­ duvidosas. A reticência do cinema francês em falar do fato colo­
dido ser resistente. Desde então, são cada vez mais numerosos os nial, após a descolonização, é da mesma natureza que o longo si­
filmes que se voltam para esse lado negro representado pela cola- lêncio que ele observou anteriormente em relação ao
4 Stéphane Audouin-Rouzcau, "Bertrand Tavcrnier, la Grande guerra ct l ' identité
colaboracionismo. Por muito tempo a guerra da Argélia permanece
françaisc", Le Débat, n.º 1 3 6, set-out. 2005, p. 149.
la guerre sans nom [ A guerra sem nome] que Bertrand Tavemier,
5
Paroles de poilus. Lellres e/ carnets du fro11/ (1 914- 1 918), ed. Jean Guéno e mais uma vez, busca nomear através de entrevistas com os que
Yvcs Laplume, Paris, Librio, 1998. paiticiparam do conflito entre 1954 e 1962. Mas ainda é um tema

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melindroso, por ser disputado por várias memórias identitárias: a Numa sociedade cada vez mais fragmentada e caótica, a
memória a construir não é a mesma para os franceses da Argélia demanda identitária atua plenamente: ela passa pela afirmação
dos filmes de Alexandre Arcady, para os militares dos filmes de do direito à diferença e pela busca das raízes. O cinema, através
Pierre Schoendoerffer ou para os argelinos, os quais, de resto, num das imagens, toma visíveis as coisas e dá à memória perdida as
cinema errático, ainda não encontraram o filme capaz de, retoman­ lembranças que fazem falta. Um modelo arquetípico é Terra do
do a reconstituição do passado da Argélia até 1954 feita por Lakhdar sonho distante [ 1963), de Kazan. Mas o fenômeno se acelera:
Hamina em Crônica dos anos defogo (Palma de Ouro em Cannes, assim, a emigração italiana, que foi sempre um terna de inspira­
em 1975), encarnar cinernatograficamente essa memória. ção favorito do cinema transalpino, se mostra muito presente
nessa construção memorial, corno o prova o recente e lírico
Contra as mentiras do Estado: honrar as memórias perdidas Mundo novo [2006] de Emanuele Crialese, fazendo de Ellis
Island, porta de entrada dos emigrantes na América, o lugar de
É sintomático, sob esse aspecto, que a construção da memó­ memória por excelência. Mas começam também a se manifes­
ria coletiva, tanto para os africanos do Norte quanto para os cineas­ tar todas as outras emigrações - magrebina, turca, paquistanesa,
tas do conjunto do continente negro, passe amplamente pela etíope, curda -, que são o tema de Bye-bye [Karim Dridi, 1 995),
intermediação da ex-potência colonial, através de co-produções com de Banho turco [Ferzan Ozpetek, 1997), de Contra a parede
a França, mas também pela implicação de jovens franceses oriun­ [Fatih Akin, 2004), de Apenas um beijo [Ken Loach, 2004), de
dos da imigração e com diversas referências identitárias, diferentes Um herói do nosso tempo [Radu Mihaileanu, 2005], de Irmãos
fidelidades. O caso de Dias de glória [Rachid Bouchareb, 2006) é de exílio [Yilmaz Arslan, 2006).
urna ilustração exemplar disso. O filme lembra não apenas o que Com a circulação dos povos e sua dificil integração em
foi amplamente esquecido ou mesmo ocultado - a participação das países de adoção que os utilizam ou os exploram, reaparece na
tropas coloniais na libertação da França -, como também mostra a memória coletiva o trauma primeiro: o tráfico dos negros, a
injustiça da sorte reservada a esses homens, não só no próprio exérci­ deportação e � massa, a escravidão. Em Little Senegal [2000],
to no momento dos fatos, mas também a seguir, enquanto um negro da Africa parte em busca de seus antepassados ne­
ex-combatentes privados de pensões. O discurso é então discur­ gros da América, refazendo a rota dos escravagistas a partir da
so de reapropriação, pelos filhos, da dignidade dos pais, de ilha de Goreia, de onde partiam os navios do tráfico, para lhe
redignificação dos que foram negados em seu sacrifício mesmo. 6 dar um valor memorial. O filme, realizado por um argelino,
Com Dias de glória, o fenômeno novo é urna força de rei­ Rachid Bouchareb (igualmente diretor de Dias de glória), fala
vindicação que não é apenas moral, pois seu efeito direto foi o em nome de uma memória coletiva africana. Mas quando Ste­
desbloqueio, pelo chefe de Estado francês, das famosas aposenta­ ven Spielberg, em A mistad [ 1997), evoca uma revolta de es­
dorias "cristalizadas". Notemos, porém, que essa afirmação iden­ cravos num navio negreiro, é um americano, branco e judeu
titária não prega nem a separação nem a heterogeneidade das co­ ainda por cima, que sublinha na memória nacional a mancha
munidades: a memória particular dos combatentes africanos é aqui da escravidão. Assim também é um inglês, John Boorman, no
fundida numa memória coletiva, nacional e francesa. filme Em minha terra [2004], que assume, em nome de uma
consciência europeia ligada à colonização, o apartheid sul­
6 É o que Clint Eastwood traduz no seu filme A conquista da honra. africano. E é um grego, Costa-Gravas, que levanta o sinistro

1 70 171
6-.,

capuz da Ku Klux Klan para mostrar a nu o racismo em Atrai­ do todo alemão oriental a uma vigilância inquisitorial, numa
çoados [ 1988), filme de alcance tanto mais amplo por ter sido época que foi, em sentido próprio, a da suspeita.
realizado em Hollywood e segundo as normas espetaculares O filme memorial devolve ao presente um passado do qual
do cinema hollywoodiano. ele se sente devedor, a ponto de fazê-lo assumir a culpa: dever
Com a escravidão e o racismo acontece o mesmo que com de memória ou tirania do arrependimento? Seja como for, tudo
todas as grandes revisões memoriais. Cada povo tem suas feri­ é reexaminado em detalhe.
das, e os genocídios tendem a se multiplicar. O minucioso le­
vantamento feito, em relação ao Camboja, por Rithy Panh, com Do sentido da história ao sentido da memória
S 21, a máquina de morte do Khmer [2002) , ou o filme realiza­
do por Serguei Bulovski, Spell your name [2006] , a partir dos Na inflação memorial que confronta o cinema à história
arquivos da fundação criada por Steven Spielberg e que busca de maneira radicalmente nova, muitos são os elementos que
fazer conhecer, no interior do Holocausto, o massacre particu­ desempenham um papel importante. No seio de sociedades onde
lar e mal conhecido dos judeus da Ucrânia, escolhem a via do os grandes sistemas futuristas não têm mais credibilidade, uma
documentário como o Shoah de Lanzmann. Outros preferem a nova prioridade é dada aos polos de identificação particularista,
ficção para abordar outros genocídios: o armênio, evocado por às raízes, aos laços comunitários que permitem compensar a
Verneuil em seu filme autobiográfico Mayrig [ 1 990] e, mais dispersão, a confusão moral, o isolamento dos indivíduos. Ao
recentemente, pelos irmãos Taviani, que fazem dele o tema de A mesmo tempo, é a cultura presenteísta da felicidade individua­
casa das cotovias [2007) ; o ruandês, mostrado de forma roma­ lista que, ao dar uma nova importância à necessidade de estima
nesca mas documentada por Terry George em Hotel Ruanda de si e de outrem, torna intoleráveis todas as antigas recusas de
[2005). De maneira análoga, a queda do muro de Berlim abre o reconhecimento das minorias coletivas. Os desastres do século,
caminho à reconstrução da memória do Gulag e à busca o desabamento dos grandes mitos nacionais e a espiral da indi­
identitária de cada povo submetido à ditadura soviética: Não se vidualização inauguraram assim um processo de afinnação e de
mexa, morra, ressuscite [ 1990), feito por um cineasta russo, Vitali reivindicação das identidades particulares : eles tornaram possí­
Kanevski, que sofreu ele mesmo a prisão política e a proibição veis novas políticas de reconhecimento, inseparáveis da con­
de filmar, mostra sintomaticamente a vitalidade da juventude quista das memórias identitárias. O cinema participa integral ­
confrontada às piores realidades da Sibéria soviética. Shizo, da mente desse movimento.
casáqui Guga Omarova, mostra o Casaquistão entregue ao caos O cinema histórico era visto corno um gênero formata ­
da independência e tentando achar seu caminho. E Adeus Lênin !, do, que não oferecia mais que uma distração sem conseq uên ­
do alemão Wolfgang Becker, homologa - ainda que o faça sem cia, frívola. Mas ei-lo que ressurge, portador de novas ques­
acalentar ilusões - o fim de uma Alemanha separada em duas, tões, denso, engajado, conflituoso . Ele veicula os valores da
trazendo ao país (onde obteve um sucesso considerável) o filme época, morais, sociais, políticos, mesmo religiosos, e não sem •
de valor simbólico que faz a reunificação entrar de fato na me­ polêmica. O próprio Deus é objeto dela. De A última tenta­
mória coletiva. Pode-se agora olhar o passado de frente, como ção de Cristo [ 1 988), em que Scorsese interpreta mais de
em A vida dos outros [Florian von Donnersmarck, 2006), filme perto a Encarnação, a A paixão de Cristo [2004], em que Mel
que mostra em detalhe o dispositivo policial da Stasi submeten- Gibson se compraz à maneira hollywoodiana em enfiar pre-

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gos na carne do crncificado, Jesus é agora um deus verdadeira­ Mitterrand é erigido, a exemplo dos reis jacentes que ele vai visi­
mente feito homem. A maneira corno cada um o vê - humanizado tar na catedral de Saint-Denis, corno estátua quase realenga na
em sua carne e seus desejos pelo progressista Scorsese, vítima do homenagem que lhe presta Robert Guédiguian em O último
povo judeu deicida retornado do baú dos velhos anátemas pelo Mitterand [2004], filme que, por outro lado, o mostra em seu
muito conservador Mel Gibson - atiça as discussões. Cada um cotidiano, tal como ele é, de maneira nenhuma heroizado. E não
busca fundar a memória coletiva a partir de sua própria visão e de é necessário sequer que Elisabete II ou Nelson Mandela tenham
sua própria crença. Os escândalos que esses filmes suscitam, as­ morrido para que filmes reconstituam, no caso da primeira, a cri­
sim como as reações violentas que provocam, reacendem o fogo se quase monárquisa que sacode a Inglaterra no momento da morte
das guerras de religião através do que é hoje como que a forma de Diana (A rainha, Stephen Frears, 2006), no caso do segundo,
exacerbada disso: a guerra das memórias. sua luta contra o apartheid e sua longa temporada na prisão (A
No momento da sagração do presente, as imagens que reme­ cor da liberdade, Billi August, 2007), contribuindo para edificar
tem ao passado voltam a ser, paradoxalmente, questões importan­ a história em processo de ser feita como objeto de memória.
tes, suscitam debates e discussões, pesam sobre a vida do mundo, O memorial faz pesar sobre o cinema uma gravidade até
aguçam as paixões. Representar Maomé sob a forma de caricatura então desconhecida. O cinema não é mais apenas urna indústria
ou exprimir sobre o Islã o ponto de vista de cineasta inflama o do sonho: através dele se manifesta algo que vai além, que diz
planeta e provoca reações radicais: é Mozart que assassinam, como respeito ao indivíduo profundo, sua raízes, sua identidade étnica
aconteceu com o cineasta holandês Theo Van Gogh, que um extre­ ou religiosa. Tudo leva a crer que esse processo pro 'S guirú: rcs•
mista matou por causa de um filme julgado um crime contra o Islã. tam a visitar muitas zonas de sombra da história, e muitas são as
Por aí se percebe que o cinema, em sua relação com a memória memórias desaparecidas ou feridas. Num mundo global izado, múl
cultural, provoca e coloca sob tensão as sociedades liberais. Passa­ tiplas são as identidades que se buscam. T o já . e obs rva nn
mos da memória unânime à memória polêmica. A Argélia, como produção fragmentada de hoje, oferecendo a cada um mal rü1 l
dissemos, suscitou e continua a suscitar conflitos memoriais. Mes­ para se exprimir. Múltiplos são o s caminhos qu levam o s ciga­
mo a imagem de uma identidade francesa associada a Amélie nos da Índia até a Espanha em Latcho-Drom [Tony Gat l i f, 1 993],
Poulain gera uma batalha crítica que julga o filme segundo referen­ que levam o marselhês Guédi gu ian a empreender urna viagem à
tes simbólicos inconcil iáveis: de um lado, emblema de uma França Armênia [2006], centrada na busca do pai, ou que levam a
unida e reconciliada, de outro, imagem de uma França "expurgada paquistanesa Sabiha Sumar a analisar a fundo, em Khamosh Pani
de sua polissem.ia étnica, social e sexual". O que para uns é visto [2004], o fenômeno de islamização que transforma seu país e faz
como a ilustração ideal de uma identidade francesa eterna, mila­ desaparecer a tolerância que constituía seu espírito. Num futuro
grosamente reencontrada, para outros é nostalgia duvidosa de uma próximo, inevitavelmente veremos filmes sobre outros povos,
França acovardada, lepenista e petainista. 7 outras comunidades: tibetanos, chechênios, curdos8 - todas as
Nada agora escapa ao cinema memorial . A própria História vítimas da História a quem o cinema, desempenhando seu papel
imediata se vê memorializada : logo após sua morte, François simbólico, quererá restituir sua memória.
7 Raphaelle Moine lembra os detalhes dessa batalha crítica em "Yieux genres? x Filmes já chamam a atenção para os sofrimentos históricos vividos por esses três
Nouveaux gcnres?", in Jean-Pierre Esquenazi (dir.), Cinéma contemporain, état povos: Sete anos no Tibet, de Jean-Jacques Annaud ( 1997); Três lugares de me­
des lieux, op. cit. , p. 1 5 7-158. lancolia, de Pirjo Horrkasalo (2004); Irmãos de exílio, de Yilmaz Arsian (2006).

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Através do prisma do memorial, o cinema hipermoderno
conquista um novo território aberto pelo campo dos particula­
rismos e das reivindicações comunitárias. Ele oferece, numa Capítu lo V I I
época marcada pela reabilitação e a reconstrnção das identida­ Cinépolis
des, elementos simbólicos pelos quais cada comunidade se rea­
propria de sua história, de sua identidade, de seu orgulho.

O cinema não está e nunca esteve fora de seu tempo. Arte


essencialmente moderna, ele nunca deixou de tomar como ob­
jeto os maiores acontecimentos e desafios da modernidade. Du­
rante o século passado, ele pôs em cena as duas guerras mundi­
ais, a revolução comunista, a Grande Depressão, a frente popu­
lar francesa, o nazismo, a guerra da Espanha. Mas também
✓ H iroshima, o plano Marshall, a Guerra Fria, a descolonização, a
Guerra da Argél ia, o Vietnã. São questões que alimentaram am­
n plamente o pensamento do cinema ao longo das três primeiras
fases da sua história, e isso através dos gêneros, das estéticas e
dos engajamentos os mais diversos.
.., O mesmo acontece hoje. Numa escala completamente
diferente, convém acrescentar. Como poderia ser de outro
modo, numa época dominada pela dissol ução das antigas cer­
tezas, pela aceleração e a planetarização das mudanças? Mais
do que nunca, o cinema observa e exprime, segundo sua per
pectiva própria, o curso do mundo. Nunca, certamente, tantas
/ questões políticas e sociais foram levadas à tela. Não se trata
em absoluto de uma revitalização do cinema social ou mili­
tante à moda antiga, mas antes de um regime de cinema para o
qual o mundo "político" é menos uma questão ideológica do
que um domínio capaz de trazer à expressão cinematográfica
uma profundidade de sentidos, multipl icando ao mesmo tem­
po os olhares sobre os percursos particulares e as existências
singulares. É nesse sentido que a Cinépol is hipermoderna não
cessa de cruzar e de reativar o Cine-Eu: o macroscópico tor­
nou-se trampolim para exprimir a riqueza de um universo mi-
'
croscópico das individualidades.

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176
Diversidade, portanto, dos problemas que serão tratados aqui Nesse contexto, o que se observa não é mais a velha figu­
a partir dos quatro grandes princípios organizadores da era hipermo­ ra do cientista louco que quer dominar o mundo, mas a de uma
dema: a tecnociência, o mercado, a democracia, o indivíduo. São as ciência desviada de suas finalidades humanistas em beneficio
lógicas sociais-globais que, estruturando o destino das sociedades de um modelo de desenvolvimento suicida que destrói os gran­
abertas, suscitam um questionamento infinito acerca do mistério "eter­ des equilíbrios do ecossistema. Multiplicam-se os filmes que
no" da existência humana. É pela maneira como o cinema se refere a alertam a opinião pública para os riscos ligados ao "delírio"
esse quádruplo referencial e como o traduz através de seu próprio tecnoindustrial da época. Em Silkwood - O retrato de uma co­
imaginário que se lê e se diz sua hipermodemidade. ragem [Mike Nichols, 1983], urna mulher j ovem, sozinha con­
tra o enorme poder da máquina industrial, denuncia a contami­
Ecologia e ficção científica: os novos territórios do medo nação nuclear provocada pelos acidentes ocorridos numa usina.
A sombra da morte atômica paira já, em 1983, sobre um mundo
Desde a metade dos anos 1970, os processos movidos que acaba de conhecer o acidente ( quatro anos antes) em Three
contra a civilização tecnocientífica não cessaram de se desen­ Miles Island e que não tardará a saber (três anos depois) o de
volver. Ela devia supostamente trazer segurança, liberdade e Chemobyl . Desde então aumentaram os ri cos químicos, as gran­
bem-estar: ei-la assimilada por seus detratores ao inimigo nú­ des poluições marítimas, o aquecimento climático, o desapare­
mero um, que ameaça ser um obstáculo ao futuro durável de cimento de espécies naturais, o esgotamento dos recursos
nossos fi lhos. "A casa pega fogo": a tecnociência é vista como a hídricos: são desafios que mobilizam um público cada vez mais
máquina diabólica que, indiferente às consequências a longo informado, especialme n t e , como vimos, através d e
prazo, nos precipita diretamente no abismo. Geradora de con­ documentários (Uma verdade inconveniente, O pesadelo de
forto imediato, ela é também cada vez mais produtora de medos Darwin, We feed the world [Erwin Wagenhofer, 2007]), que
ligados à degradação da ecosfera, a riscos irremediáveis que explicitam, não sem repercussão, em que medida esses riscos
pesam sobre a humanidade e o planeta. No momento em que o nos expõem ao pior. Essa é a novidade: em alguns anos o cine­
mercado e o hiperconsumo parecem instalar o indivíduo numa ma se tomou um amplificador da tomada de consciência coleti­
referência exclusiva ao presente, as inquietações relativas ao va dos fenômenos planetários.
futuro planetário nunca foram tão f01tes. Depois da euforia do Não podemos ficar surpresos, assim, de constatar uma
progresso, "os danos do progresso"; depois do êxtase da liberta­ proliferação de filmes catástrofes que tomam por objeto os fe­
ção, o medo do futuro. A afirmação e a difusão dos valores eco­ nômenos naturais - os tomados de Twister [Jan de Bont, 1 996],
logistas são a tradução disso. O medo ancestral gira agora em as erupções vulcânicas de O inferno de Dante [Roger Donald­
tomo de "uma nova geração de riscos" - ameaças industriais, son, 1996], os ímpetos do oceano em Mar em fúria [Wolfgang
tecnológicas, sanitárias, naturais, ecológicas. 1 Petersen, 2000] - e que conduzem naturalmente às piores previ­
sões catastróficas. O dia depois de amanhã [Roland Emmerich,
2004] põe em cena o Apocalipse por vir numa explosão de efei­
1
Robert Castel , L 'fnsécurité sacia/e. Qu 'est-ce qu 'être protégé?. Paris, La tos especiais que mostra em toda a sua extensão, ainda inimagi­
République des ldées/Seuil, 2003, p . 58. Sobre esse ponto, ver a obra fundamen­ nável, os desequilíbrios climáticos, mostrando Tóquio sob uma
tal de Ulrich Beck, la Société du risque, Paris, Aubier, 200 1 . imensa chuva de granizo, o Havaí sob um furacão devastador,

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Nova Delhi sob uma tempestade de neve e Nova York sob uma tência. Os filmes de antecipação, com sua promessa de máqui­
onda gigantesca que deixa o archote da estátua da Liberdade nas e robôs, imaginam as formas mais extraordinárias dessa
como o anúncio de uma nova era glacial. E - último gracejo - existência. Mas a crescente tecnicização, ao mesmo tempo em
fazendo se volatilizar, sob o sopro da tempestade, as letras céle­ que oferece aos homens uma vida potencialmente mais rica e
bres de Hollywood, arrastadas sobre sua colina de Los Angeles mais intensa, não deixa de levantar dúvidas e interrogações so­
pelo vento mau de um mundo que perdeu o rumo. O fato de esse bre esses novos poderes. A reflexão é de ordem moral quando,
desequilíbrio climático ser mostrado, num blockbuster que se em Minority Report - A nova lei [2002], Spielberg imagina que
vale de toda a superlogística hollywoodiana, no momento em a p o l í cia poderá, em 2054 , graças a seus computadores
que os Estados Unidos se recusam a assinar o protocolo de Kyoto, ultrapoderosos, prever os crimes antes mesmos que tenham sido
deixa ver c laramente de onde vem o mal e onde se situam as cometidos. Ela diz respeito à identidade individual quando con­
responsabilidades. sidera as possibilidades abertas pelas manipulações cirúrgicas,
Diante do ímpeto da tecnociência e seus efeitos destrui­ como em A outra face [John Woo, 1997], em que uma transfe­
dores, muitos filmes se fazem os cantores de um retomo à natu­ rência de rosto funciona como transferência de identidade entre
reza, que vai ser buscado em tempos ou em terras distantes vis­ doador e receptor. Ela intenoga mesmo, através das manipula­
tos como o refúgio de uma pureza primeira, através de paisa­ ções genéticas que fazem nascer clones, modi ficam genes do
gens ainda virgens e de povos que conservaram uma sabedoria organismo e engendram nascimentos de forma artificial, o limi­
ancestral . O Mundo Novo [Terrence Malick, 2005] mostra a te último, aquele que separa o humano do inumano. Assim o
descoberta da América e a chegada dos padres fundadores como homem é como que remetido a uma imagem incerta dele me
uma ruptura com a natureza original e a civilização indígena, que mo. A relação com o espaço não é mais a dos tempos heroico e
Dança com lobos procura reencontrar2 ; Le dern ier trappeur exaltantes da conquista e dos foguetes, mas o do investimento
[Nicolas Vanier, 2004] descreve a vida do grande Norte canaden­ imaginário de um espaço intergaláctico problemático. e o ve­
se; Himalaia [Éric Valli, 1999] vai em busca do ar puro nas terras lho choque de mundos distantes, de Guerra nas estrelas l George
altas do Nepal, e Kiriku e afeiticeira [Michel Ocelot, 1998], num Lucas, 1977] a Guerra dos mundos [Spiel berg, 2005], remeti;;
desenho animado de forte valor pedagógico, mostra uma África sempre aos surdos temores de um Apocalipse, agora não é mais
portadora dos valores primitivos. Um cinema nostálgico dos tem­ o tempo dos invasores vindos de outras galáxias, figuras simbó­
pos pré-industriais se manifesta, reafirmando os valores de uni­ licas da época abolida da Guerra Fria. Alien, o oitavo passagei­
dade e harmonia com a natureza em oposição ao prometeísmo ro [Ridley Scott], o monstro a bordo da nave espacial no filme
"tanatocrático" dos modernos. original de 19793 , vai nascer do ventre mesmo do cosmonauta,
Muito diferente, claro, é a relação com a tecnociência que dezoito anos depois, em Alien, a Ressurreição [Jean-Pierre
o cinema de ficção científica exprime. Pois a ciência high-tech J eunet, 1997]. O mal não vem mais de fora, mas do interior.
abre, aos olhos dos tecnófilos, possibilidades múltiplas de exis- Enquanto os filmes dos anos 1950 aprofundavam a distân­
cia entre os extraterrestres e o homem, muitos filmes procuram
2 Sobre a relação americana com a natureza, ver Olivicr Delbard, Pro�périté contre
écologie? L 'environnement dans l 'Amérique de G. W.Bush, Paris, Lignes de repcres, ' A relação com a época da Guc1Ta Fria é, no caso de Alien, evidente: o filme é um
2006. remake de Terrorfrom Beyond Space, de 1958.

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agora mostrar o processo de humanização de seres não humanos filme aos sinais crísticos e, num sincretismo muito new age, às
(Biade Runner, o caçador de androides [Ridley Scott, 198 1 ] , filosofias orientais, traduz ao mesmo tempo uma busca de sen­
Robocop, o policial do futuro [Paul Verhoeven, 1987], O exter­ tido e a ideia-força de que cabe ao homem dominar a técnica e
minador do futuro [James Cameron, 1984]), o devir humano de não se deixar dominar por ela. O que o cinema hipermoderno
máquinas ou de quase humanos capazes de compreender os sen­ revela, inclusive nos blockbusters ultratecnicizados que consa­
timentos, de adquirir a consciência da humanidade e dispotos a se gram visualmente a onipresença e a onipotência da tecnociência,
sacrificar por ela. O E. T. de Spielberg, o extraterrestre do começo é, paradoxalmente, a busca de uma sabedoria. Em sua imagina­
dos anos 1980 que vem mostrar aos pequenos humanos que é tão ção desenfreada, a ficção científica exprime ainda as novas ex­
humano quanto eles, dá lugar, vinte anos depois, na aurora do pectativas pós-materialistas do indivíduo hipermoderno.
século XXI, a A.I., Inteligência artificial [200 1]. Aqui o outro, o
inumano, não vem mais do silêncio eterno dos espaços infinitos, O mercado: dura lex, sed lex
mas é engendrado pelo próprio cérebro humano, que inventa para
si um clone perfeito dotado de espírito e coração e voltado para a Essa sabedoria se mostra mais necessária na medida em
humanidade: um robô, o mais frágil do universo, mas um robô que a época faz nascer um novo mundo, assimilado às vezes a
pensante. Depois da ficção científica dogmática, desenvolve-se um novo monstro: o mercado tentacular, orquestrando uma "ti­
assim uma ficção científica mais incerta, mais critica, que se in­ rania" globalizada. O cinema não ficou insensível a es a força
terroga sobre a divisão entre humano e não-humano, sobre as fron­ do econômico, bem como às desestruturações sociais que ela
teiras que separam o homem do seu outro.4 Mesmo a ficção cien­ engendra. É pelo olhar crítico dirigido a essa evolução crucial
tífica não escapa mais inteiramenete à erosão das antigas que ele se impõe, do mesmo modo, como cinema hipermodcrno.
dicotomias absolutas, à confusão hipennoderna dos grandes
referenciais da verdade. Violência das trocas
Daí a necessidade, diante dessa incerteza, de buscar res­
postas do lado da espiritualidade. É o que ilustra Matrix [Larry Abolindo os antigos protecionismos e as regulamentações
e Andy Wachowski, 1 999], filme cult dos novos tempos. Num administrativas, o ultraliberalismo estende seu império finan­
mundo reduzido a um gigantesco engodo digital regido por uma ceiro sobre o planeta. O sucesso, para os jovens Rastignac (*)
Matriz tecnicizada, o que resta da humanidade espera a vinda de hoje, passa agora, como já mostrava em 1987 o filme de
de um guia, de um novo Salvador. Este, muito simbolicamente, Oliver Stone Wall Street - Poder e cobiça, por Wall Street e por
se revela ser um infonauta; seu advento, com efeitos especiais e seu mundo de corsários. O homem de finanças, o businessman,
coreografias visuais, é hollywoodiano. A importância dada pelo tornou-se o herói emblemático de um tempo em que "o poder e
a glória" se medem pela capacidade de "ganhar dinheiro". Pois
é a economia, mais que nunca, que governa o mundo e regula a
vida dos homens: jogar na Bolsa ou ocupar-se de negócios imo­
4 Esse ponto é bem analisado por Vinccnt Amiel e Pascal Couté, Formes et obses­
biliários, como o tira vivido por Harrison Ford em Divisão de
sions. . . , op. cit., p. 129-133. Exterminador do futuro foi também interpretado
como o fantasma da autossuficiência consubstancial à sociedade hiperindividua­ homicídios [Ron Shelton, 2003], que pensa menos em terminar
lista. Ver Olivier Rey, Unefolie solitude. Lefantasme de / 'ho111111e auto-construi!,
Paris, Scuil, 2006, cap. 2, "Ce que Terminator termine", p. 139. (*) Referência a um personagem da Comédia humana de Balzac. (N.T.)

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seu inquérito do que em acompanhar permanentemente pelo tamentos financeiros estmturais, na dependência da dívida. E os
celular as flutuações do mercado. A competitividade e a concor­ africanos não são os únicos a mostrar os mecanismos da injusti­
rência passaram a ser valores dominantes e normas implacá­ ça: superproduções hol lyw oodianas como O senhor das armas
veis, que não deixam de transformar radicalmente o mundo do [Andrew Niccol, 2005] ou Diamante de sangue [Edward Zwick,
trabalho e da empresa. 2007] lançam seus astros, Leonardo di Caprio e Nicolas Cage
Nessa paisagem em que a empresa aparece frequentemen­ respectivamente, para denunciar os aspectos mais negros do mer­
te em sua forma anônima de sociedade internaciona l , a cado internacional - como a venda de armas e o tráfico de dia­
globalização tece sua teia - imensa estratégia da aranha em que mantes que serve para financiar e manter as guenas africanas.
tudo se imbrica. Syriana, a indústria do petróleo (Steven Outro pilar do capitalismo globalizado, a indústria farmacêutica,
Soderbergh, 2005] oferece uma imagem complexa e totalizante é acusada de utilizar a África como um laboratório humano, como
dessa imbricação de transferências de capitais, grandes obras, in­ vemos em O jardineiro fiel [2005], dirigido por um brasileiro,
teresses políticos, escritórios de advocacia internacionais, mão­ Fernando Meirelles, que vai filmar no Quênia.
de-obra emigrada, tudo reunido pela mesma questão central , ner­ A desestruturação social introduzida pela lei de ferro do
vo energético da sociedade mundializada: o petróleo. Muitos fil­ mercado não atinge apenas os países pobres, mas também os
mes mostram as novas condições dessa globalização econômico­ mais avançados. Os deslocamentos de empresas, que provocam
financeira: abertura ao mercado de países emergentes (a China o fechamento de fábricas e dispensa de pessoal, são a norma
em A estrela que não é [Gianni Amelio, 2006]); abalo ou mesmo num sistema globalizado que permite reduzir, desse modo, os
destmição das culturas nativas e dos modos antigos de socialidade custos do trabalho e da produção. Mesmo aqueles encarregados
(a Índia de Swades [Ashutosh Gowariker, 2004]); emergência de de fazer funcionar o sistema se veem confrontados à sua dureza,
novas oligarquias na selva de um capitalismo selvagem (a Rússia àquela Missão demissüo [Jean-Marc Moutout, 2003] que leva
de Oligarkh [Pavel Lungin, 2003]). o jovem consultor ainda cheio de ilusões a se chocar contra a
As oposições à nova ordem mundial são fortes, mesmo se realidade: por trás da auditoria sobre a otimização da produção,
não se moldam mais na grande dialética da luta de classes. Os da qual ele é o encarregado, há o proj eto de venda da empresa a
amigos dos trilhos, em Loco 33 [Diego Arsuada, 2002], não ad­ um gmpo e, no final da operação, uma centena de demissões
mitem que um jovem sem experiência, adepto do business is previstas. O personagem se vê diante do mesmo dilema que o
business, venda a um estúdio holl ywoodiano a velha locomotiva do jovem herói de Recursos humanos [Laurent Cantet, 1 999],
que faz a glória das estradas de ferro uruguaias e se apoderam recém-saído de uma grande escola de comércio e contratado na
dela para se lançar numa fantástica aventura ferroviária. "Rail fábrica onde seu pai é um operário à antiga, como no tempo da
movie" simbólico, em que os habitantes do interior do país vêm luta de classes, e onde ele deve aplicar um plano de reestmturação
aplaudir e encorajar, ao longo do caminho, a marcha pela liberda­ do qual seu pai será precisamente a vítima.
de nacional. Essa maneira de não ceder às sereias do mercado O liberalismo globalizado é visto aqui sob sua fonna desu­
pode mesmo tomar a fonna de uma acusação muito clara a seus mana que destrói os sistemas de proteção social e as antigas iden­
promotores, como o faz, em nome da África, a parábola de Bamako tidades profissionais. O indivíduo é sacrificado no altar dos inte­
[Abderramane Sissako, 2006] : os países pobres acusam ali expli­ resses da Bolsa e do lucro, à imagem da contadora italiana de Mi
citamente os países ricos de mantê-los, por uma política de ajus- piacce lavorare [Francesca Comencini, 2004] que, tendo sua em-

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presa sido comprada por uma multinacional, é descartada de for­ da droga e do crime. A grande veia social de um cineasta que
ma humilhante, colocada na engrenagem do mobbing, um assé­ em seus começos, nos anos 1 960, já foi um dos jovens rebeldes
dio psicológico e moral destinado a fazê-la ceder para que pos­ do cinema inglês, encontra um eco em muitos outros países afe­
sam desembaraçar-se dela mais facilmente. A invalidação social tados pelos mesmos sintomas: a Bélgica, com Je pense à vous
de largas faixas da população aumenta, a condição salarial se de­ [ 1992], Rosetta [ 1999] , ambos de Jean-Pierre e Luc Dardenne,
grada, as antigas solidariedades do trabalho se apagam: pego na ou La raison du plusfaible [Lucas Belvaux, 2005], a França do
selva do capitalismo total, o indivíduo é entregue à incerteza do Norte, com A vida de Jesus [Bnmo Dumont, 1997] , a Itália do
amanhã, a um processo de atomização que o deixa sozinho frente Sul, com Vento di terra [Vicenzo Marra, 2004], e mesmo a Fin­
a si mesmo e a uma existência sem proteção, sem cultura de clas­ lândia de Drifting clouds [Aki Kaurismaki, 1996], traduzem o
se, sem enquadramento coletivo, sem projeto político de trans­ mal-estar social de uma Europa confrontada ao desemprego e
formação do mundo . Desclassifi cação, desqu a l i fi cação e ao endurecimento do modelo econômico, que fazem da juven­
desfiliação fonnam o novo horizonte do mundo, induzindo dra­ tude sua primeira vítima.
mas pessoais e fraturas sociais. Estamos no tempo em que o de­ O "filme-periferia", com seus bairros deteriorados, sua
semprego e a precarização do emprego são agora doenças desorganização, sua incapacidade de integração e de mobilida­
endêmicas. O italiano de Pão e chocolate [Franco Brusati] tinha ain­ de social, e também seus expedientes - gangues e tráfico de
da, em 1972, numa comédia à italiana, o recurso de emigrar para a drogas -, está intimamente l igado a essa evolução do capitalismo
Suíça onde encontraria trabalho. Vinte anos depois, o funcionário que arrasta muitos jovens dos guetos na espiral da delinquência e
francês médio, numa comédia à francesa, se vê despedido de um dia da violência. Excluídos, desenraizados, os jovens "selvagens" tra­
para o outro, perdendo ao mesmo tempo o emprego, o carro e a zem de volta a temática das classes perigosas, a das vilas da peri­
mulher, e tomando-se mendigo naquilo que o diretor-intérprete cha­ feria que um documentário de Bertrand Tavernier situa precisa­
ma, não sem uma ironia cruel, Une époqueformidable [Gérard Jugnot, mente De l 'autre côté du périph [ 1997]. Ali se desenvolve uma
1991]. O tempo dos vagabundos existenciais de Sem teto nem lei subcultura mais ou menos delinqüente, sustentada pelo desem­
[Agnes Varda, 1985] ou dos desocupados desencantados de Um prego, a desagregação das famílias, a perda da autoridade dos
mundo sem piedade [Éric Rochant, 1989] dá lugar ao dos homeless, pais, a ausência de enquadramentos políticos e comunitários.
dos sem-domicílio fixo, sem emprego, sem documentos, escória mi­ Enquanto Antoine Doinel, o personagem de François Truffaut em
serável do capitalismo da exclusão. Os incompreendidos, se via abandonado em 1 959 numa Paris que
lhe pettencia, Ojovem assassino de Jacques Doilon, menino igual­
Classes não laboriosas, classes perigosas mente mal-amado em busca de si me mo, vive em 1 990 numa
cidade-dormitório perifé1ica sem que se saiba exatamente onde
A delinquência é como um caminho traçado para os que se passa a ação. O cinema dos anos 1 990 mostra que a inexorável
não têm outros meios de sair dela. Os filmes de Ken Loach, que tendência à delinquência se torna cada vez mais pesada e trágica,
mostram os danos sociais da política ultraliberal de Margaret à medida que problemas étnicos e racistas se somam aos dramas
Thatcher, passam da desregulação social de Rfff Raf [ 1990] à sociais. Da Marselha ainda colorida de Un, deux, trais... solei/
f

miséria de Chuva de pedras [ 1992], e depois, em Sweet sixteen [Bertrand Blier, 1993] passamos ao preto-e-branco dramatizado
[2002] , a suas consequências sobre uma juventude atingida em de O ódio [Mathieu Kassovitz, 1995]: os três heróis de três cores
cheio pela economia de mercado e que responde a ela através emblemáticas - branco, negro, mulato - são vítimas de um mun-
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do que os marginaliza e, através de um erro da polícia, faz deles se muitos filmes denunciam os males e desvios de uma democracia
vítimas. A explosão não tarda: antes da sua concretização na rea­ que não sabe evitar nem a exclusão, nem a injustiça, nem o racis­
lidade dos acontecimentos, Ma 6-T va crack-er [Jean-François mo, já o liberalismo cultural, que acompanha desde os anos 1970 o
Richet] a descreve de forma premonitória em 1997, mostrando triunfo do liberalismo econômico, coloca alguns problemas.
como a periferia se torna o lugar do desespero, da revolta violenta De fato, a partir de 1980, a contracultura, os movimentos
sem horizonte político. feministas e a emancipação sexual são tidos como responsáveis
Mesmo o cinema americano não ignora essa violência do pela imoralidade reinante, pelo declínio da América, pela crise
mundo do trabalho e da exclusão: Roger e eu, de Michael Moore, dos valores, das autoridades e das instituições. Em resposta à
denuncia, por exemplo, os danos causados pelas demissões na explosão liberacionista, vários filmes exaltam os grandes valo­
General Motors. Mas a confiança na livre empresa e nos recur­ res fundadores: a bandeira, a família, a religião, a coragem. A
sos individuais continua a dominar. Otimismo que se deve me­ abnegação, a vontade de vencer - valores reivindicados por
nos à situação presente da sociedade americana do que à persis­ Reagan e durante muito tempo encarnados por John Wayne. 7
tência do "sonho americano", segundo o qual cada um tem Todo um cinema dos eighties dará origem a heróis populistas e
chances iguais de ser rico e bem-sucedido5 : o executivo de Em hiperviris (Rambo, Rocky, Conan, o Exterminador, o inspetor
boa companhia [Paul Weitz, 2005], dispensado em consequência Harry), relançando o mito do sonho americano apoiado nos va­
de uma reestruturação, consegue se fazer reintegrar no cargo lores do passado. Traídos pelas instituições e pelas elites cor­
graças às suas qualidades individuais. Mesmo reduzido à misé­ ruptas, esses heróis aparecem como símbolos da força reencon­
ria e à sopa popular, o herói negro de Á procura da felicidade trada, capazes de remoralizar e de regenerar os Estados Unidos.
[Gabriele Muccino, 2006] 6 continua acreditando em sua opor­ Nesse contexto, muitos filmes fazem o liberalismo sexual ser
tunidade, que se concretiza quando ele é contratado por uma visto como sinônimo de desvios e perversões (Instinto selva­
sociedade financeira. gem [Paul Verhoeven, 1992], Nove e meia semanas de amor
[Adryan Line, 1986], Corpos ardentes [Lawrence Kasdan, 198 1 ],
A questão democrática de violência e de morte, de degradação moral que põe em peri­
A democracia americana do interior go a instituição familiar (A tração fàtal). Assim, a moral purita­
na, de modo nenhum caduca, é brandida corno baluarte contra
Liberais em matéria econômica, os americanos do Norte pa­ as depravações e os desvios de uma sexualidade liberada. 8
recem claramente conservadores em matéria de valores culturais. Alguns veem nisso a ascensão de um cinema americano con­
Se Hollywood manifesta em geral uma sensibilidade democrata e servador não apenas nostálgico, mas reacionário. A l lollywood de
Spielberg e de Lucas, ao propor heróis fortes, conquistadores, re pci­
5 A realidade é menos eufórica. De duas décadas para cá, as desigualdades não tosos de uma ordem moral e social própria de uma América
cessaram de aumentar; mais de um quinto da população e 12,6% desta se encontra
numa situação de pobreza absoluta. Setenta por cento dos filhos homens estavam,
em 1998, na mesma posição que seu pai em 1979 ou numa posição inferior. 1 O programa de escudo espacial lançado pelo governo Reagan vai buscar inclusi­
6 Como se sabe, a "busca da felicidade" está inscrita na declaração de independên­
cia de Thomas Jefferson, que a faz constar entre os "direitos inalienáveis" do ve seu nome na saga de George Lucas: Guerra nas es/relas.
homem ("/ife, liberf)1, anel the pursuil of happiness"). Á procura da felicidade ' Sobre todos esses pontos, ver Frédéric Gimello-Mesplomb (dir.), Le Cinéma des
[2006] é precisamente o título de um filme de Gabriele Muccino. années Reagan, Paris, Nouveau Monde Éditions, 2007.

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reaganiana, parece ter aberto llln caminho que a nova direita dos liberalismo cultural desenfreado. No entanto, posições políti­
anos Bush retoma com vigor. E o modelo patriarcal, de fato,funcio­ cas e culturais muito diferentes se afirmam segundo os cineas­
na plenamente em muitos filmes produzidos por Hollywood. Desde tas e as obras. Embora as feministas possam denunciar, em
mais de vinte anos,um ator como Harrison Ford o encarna de manei­ filmes como A tração fatal, Presente de grego [Charles Shyer,
ra bastante emblemática. Em Jogospatrióticos [Philip Noyce, 1992], 1987] ou Uma secretária do futuro [Mike Nichols, 1988], uma
ontem, ou em Fireweel - Segurança em risco [Richard Loncraine, reação machista ' 2, na realidade é a imagem da mulher livre e
2005],hoje,bem como em vários seriados, ele aparece como o gran­ independente que hoje domina o hipercinema. Quanto ao sexo,
de sustentáculo da ordem política e moral,salvando a pátria e a famí­ o humor rasteiro de Quem vaificar com Mary? [Bobby e Peter
lia num mesmo gesto, e trazendo de volta a ordem contra qualquer Farrelly, 1998] e a farra masturbatória de American Pie dão a
tentativa de corrupção. Esse modelo patriótico e familiar pode mes­ medida de um cinema que, virando as costas ao puritanismo
mo ser acompanhado de wna reafirmação dos valores religiosos: sob mesmo em suas comédias familiares,é amplamente desinibido.
esse aspecto,a maneira como Mel Gibson aborda A paixão de Cristo Em realidade, não há uma ideologia monolítica que co­
não está distante do neofundamentalismo mais rigorista. mande o cinema americano. Já era assim nos anos Reagan e
Como entender esse reproche feito ao cinema america­ hoje é muito mais. Se os ideais ultraconservadores encontram
no que muitas vezes põe no mesmo saco conservador, através filmes e heróis para ilustrá-los, há por outro lado o mesmo nú­
da exaltação da força e da autoridade, cineastas tão diferentes mero de filmes e heróis que defendem uma visão completamen­
quanto um Clint Eastwood ou um Joel Schumacher? Deve-se te diferente do mundo. Quando, em Um dia de fúria [ 1992],
reconhecer aí uma tomada de posição política uniforme ou Joel Schumacher mostra um executivo médio que, de repente
mesmo a manifestação de um cinema "pós-moderno" estig­ desempregado, enlouquece e se põe a atirar contra tudo o que se
matizado como antimoderno9 em razão da nostalgia da autori­ mexe, especialmente contra coreanos, latinos e chicanas, a vio­
dade, dos "verdadeiros" valores perdidos, da ordem religiosa, lência parece exprimir aqui a visão reacionária de uma América
familista e patriarcal que esses filmes veiculam? Essa tendên­ que se sente ameaçada. Do mesmo modo, quando Michael Bay
cia existe: segundo Susan Aronstein 'º, a trilogia de Indiana revisita Pearl Harbor [200 1] e acrescenta ao ataque dos japo­
Jones coincide com o desejo de restauração do herói branco e neses um episódio puramente ficcional em que o herói, impo­
macho, bem como dos valores tradicionalistas. Para outros, tente diante do ataque, logo se torna o herói triunfante de uma
Contatos imediatos do 3 ° grau poderia ilustrar os valores da missão que vinga a honra apesar da derrota sofrida, percebe-se
América puritana. O que subjaz a um certo número de filmes, que o filme de guerra reescreve a História para apagar uma lem­
de fato, parece ser a ideologia da Law and Order 1 1 , junto com brança dolorosa, exaltar o orgulho nacional e fazer brilhar de
a ideia de que a democracia está em perigo por causa de um novo as estrelas opacas da bandeira. Muito diferente é a atitude
de Clint Eastwood: este, em A conquista da honra [2006], ob­
9
Sobre o "pós-moderno" como slogan neoconservador, ver Jürgen Habermas, "La servando a batalha de lwo Jima do lado americano, fustiga a
modemité: un projet inachevé", Critique, nº 413, outubro de 1981. maneira como a bandeira estrelada, erguida na ilha pelos solda­
10
Susan Aronstein, "Not Exactly a Knight: Arturian NatTative and recuperative dos, se torna a seguir um pretexto para angariar fundos para as
Politics in the Indiana Jones Trilogy", Cinema Journal, nº 34, 1995.
11
Law and Order: é o título de um western de Nathan Juran (1953), em que o papel
1 2 Susan Faludi, Backlash, Paris, Des femmes, 1993, p. 143- 1 70.
principal do xerife defensor da lei e da ordem é desempenhado por Ronald Reagan.

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Forças Armadas. O heroísmo e o sentimento patriótico se per­ cineastas plenamente afinados com as preocupações novas de
dem nesse carnaval: assim, é em nome do ideal democrático e seus respectivos países.
em memória dos soldados mortos corajosamente que o filme O que diz esse cinema? Ele registra, evidentemente, a du­
acusa a falsidade. Para provar que essa exaltação da bandeira reza econômica, principal fator de uma decomposição social da
nada tem de um nacionalismo belicoso e reacionário, uma con­ qual as favelas de Cidade de Deus [2002], do brasileiro Fernando
tinuação, Cartas de Iwo Jima [2006], vai mostrar a batalha do Meirelles, dão uma visão violenta. A miséria engendra o crime, a
lado japonês, fazendo-nos ver que o heroísmo não é exclusivi­ prostituição, a droga, tais como aparecem na Medellín dominada
dade de um lado e que a guerra se faz com homens, sangue e pelos cartéis, como mostram Barbet Schroeder e seu roteirista
lágrimas. O bem ou o mal não se acham num só campo. A aci­ colombiano, o romancista Fernando Vallejo, em Nossa Senhora
dez, o humor negro e o cinismo com que David Russell mostra, dos assassinos [2000]. Esse desnudamento da pobreza, porém, é
em Três reis [ 1 999], os soldados combatendo no Iraque durante acompanhado de uma vontade de compreender e investigar suas
a Guerra do Golfo, lançam sobre o heroísmo e sobre a própria causas. A crise econômica que atinge a Argentina em 2001 é mi­
intervenção americana um olhar mais do que suspeitoso. nuciosamente analisada pelo argentino Fernando Solanas que, em
Memória do saqueio [2004], aponta os responsáveis: uma classe
O imperialismo americano do exterior dirigente cormpta, mas também as grandes holdings americanas
e os organismos financeiros internacionais.
Muito diferente, claro, é a visão da democracia america­ Uma deliquescência, originada na com1pção de uma bur­
na do exterior, sobretudo dos países que, há muito submetidos a guesia decadente, traduz a podridão de um sistema social, fa­
seu imperialismo, rejeitam explicitamente o modelo. O caso da miliar e cultural, mostrada pela argentina Lucrecia Marte!
América Latina é, nesse ponto, revelador. Democracias ainda em O pântano [200 1] . O modelo do mercado, fornecido pelo
frágeis, com uma experiência das liberdades ainda incipiente, todo-poderoso vizinho norte-americano, apenas reforça a ru­
os países que se estendem do México ao Chile reconstroem s �u ína dos países pobres e as f r aturas sociais. A nova cidade, tal
cinema ao mesmo tempo em que constroem sua democracia. como a apresenta o mexicano Alejandro González I fíárritu
Alguns, de velha tradição cinematográfica como o México, a em A mores brutos [ 1 999], faz conviver lado a lado - e e
Argentina ou o Brasil, conheceram, após as inovações dos anos chocar simbolicamente através de um acidente de carro - os
1 960, uma forte redução da atividade de seu cinema, devido deserdados dos bairros pobres e os ricos dos bairros chiques,
tanto à concorrência da televisão, que passou a ser a principal que ostentam seu luxo e seus falsos brilhos.
provedora dos divertimentos populares, quanto à presença de A riqueza, evidentemente, fascina. Mas, para milhares
ditaduras militares e regimes autoritários que, apoiados pelos de emigrantes atraídos pela miragem americana, a fronteira
Estados Unidos, amordaçaram progressivamente a vida inte­ é com frequência uma armadilha, como mostra bem o mes­
lectual e artística. O desaparecimento desses regimes autoritá­ mo González Ifiárritu em seu primeiro filme hollywoodiano,
rios, a implantação da democracia, a onda progressista que Babel, ao lançar dois desses migrantes mexicanos numa en­
tem levado ao poder líderes oriundos das lutas sociais ou re­ grenagem infernal que os leva à perdição. Os Estados Uni­
volucionárias são elementos que reanimam hoje a criação ar­ dos são o horizonte do continente latino, mas um horizonte
tística e favorecem o aparecimento de uma nova geração de que os cineastas denunciam como um logro.

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E isso tanto mais quanto os cineastas da nova geração, cuja pio organizador da consciência e dos combates hipennodemos, a
infãncia conheceu as ditaduras militares, revisitam o passado de nonna reguladora da ação do Estado. É em nome do indivíduo, e
seu país e veem regimes que, sustentados em segredo pela CIA, não mais do proletariado ou da marcha triunfal da História, que
praticaram a violência, raptos e tortura. A lembrança dessas déca­ são lançadas as flechas contra o "horror econômico".
das dolorosas é geralmente vista por olhos de crianças, símbolo de O cinema registra e traduz frontalmente esse remanejamento
uma inocência oprimida, como os do pequeno herói de Kamchatka ideológico profundo em filmes que denunciam a tortura (O violino
[2002], do argentino Marcelo Pineyro, que seus pais arrastam na [2006] do mexicano Francisco Vargas), a submissão das mulheres
fuga quando o golpe de Estado de 1 976 leva os militares ao poder. (Tempo de espera [2000] da tunisiana Moufída Tlatli), os traumatismos
Fuga inútil, aliás, pois eles serão esmagados sob um cerco inexorável. infligidos às crianças (A maçã [ 1998] da iraniana Sarnira
Não é por acaso que o chileno Andrés Wood evoca a queda de Makhmalbaf), o tráfico infamante e selvagem de mulheres (Terra
Allende em 1 973 e a chegada de Pinochet através do olhar de uma prometida [2004] do israelense Amos Gitai), a miséria das crianças
criança, num filme, Machuca [2004], que retoma ostensivamente a de rua entregues à violência e à prostituição (Salaam Bombay [ 1987]
história do filme de Louis Malle, Adeus, meninos [ 1987], assimi­ da indiana Mira Nair, A/i Zaoua [2000] do marroquino Nabil Ayuch).
lando de maneira implícita o regime de Pinochet à ocupação nazis­ As múltiplas violações do respeito ao indivíduo fornecem ao cinema
ta. Uma nostalgia revolucionária se faz sentir quando o brasileiro contemporâneo uma temática inesgotável.
Walter Salles conta, em Diários de motocicleta [2004], a odisseia Eis por que a justiça, nesse contexto, se impõe como um
do jovem Ernesto Guevara em 1 952, quando ainda não era o Che, novo ator central da vida pública. Numa época marcada pelo
descobrindo seu caminho ao atravessar o continente sul-america­ apagamento das ideologias heroicas, a justiça é vista como a
no, do pampa argentino às alturas nevadas dos Andes e às margens instância por excelência capaz de garantir, frente ao político en­
do Amazonas: diante da brutalidade de um sistema polítJco e eco­ fraquecido e à força do dinheiro, o bem comum, o primado da
nômico que mantém o povo na miséria em proveito dos latifundiá­ lei, os princípios gerais da vida em sociedade. Paralelamente à
rios e das grandes empresas, o jovem revolucionário decide aban­ dinâmica de individualização, afirma-se uma demanda de soci­
donar tudo para devolver aos pobres o que lhes é devido. edade, uma exigência de reafirmação dos fundamentos da vida
em comum que a justiça pode encamar. 1 3 A mul tipl icação dos
Direitos do homem e balcanização do mundo filmes de tribunal, thrillers judiciários como Tempo de matar
[Joel Schumacher, 1 996], o interesse pelas grandes causa a
Se o contexto histórico do filme de Walter Salles é o dos defender - o negro injustamente acusado por um sistema racista
anos 1950 e da fé na luta de classes, o interesse pela gente do (Em nome da honra [Philip Noyce, 2007] ), a jovem mulher ata­
povo remete agora a um outro sistema de legitimação, que subs­ cando uma poderosa empresa que distribui água contaminada
tituiu as megaideologias escatológicas e se apresenta como o (Erin Brockovich, uma mulher de talento [Steven Soderbergh,
evangelho dos tempos hipermodemos: os direitos humanos. De 2000]) - e mesmo pelas pequenas causas privadas - o pai desti­
fato, a nova situação político-ideológica de nossa época não é tuído da guarda dos filhos (Evelyn [Bruce Beresford, 2003]) ou
senão o novo estatuto dos direitos do homem em sociedades mesmo os locatários notificados a abandonar o imóvel (Le Granel
recentemente reconciliadas com seus princípios fundadores.
Assim, vivemos num momento em que os direitos humanos apa­ 13 Lucien Karpik, "L'avancéc politiquc de la justice", Le Déhat, nº 97, 1997.
recem como o referencial ou o foco de sentido supremo, o princí-
1 94 195
Appartement [Pascal Thomas, 2006]) -, são inúmeros os filmes Mundo agitado e barroco, de amores e ódios misturados, paixões
que falam dessa necessidade crescente de justiça. e pulsões confundidas num bordel a céu abe1to, captado por Emir
Sagração dos direitos do homem que não impede, como Kusturica em Underground- Mentiras de guerra [ 1995], no qual,
vimos, uma reativação das "raízes", bem como das afirmações como diz o título de seu outro filme, A vida é um milagre [2004].
etnorreligiosas geradoras de novas formas de racismo e xenofo­ E mundo acompanhado da ascensão do fundamentalismo religio­
bia, de separatismos identitários, de múltiplas fragmentações so: o jovem bangladeshiano de The C!ay Bird [O pássaro de argi­
conflituosas. Como na Los Angeles de Crash -No limite - título la, Tarek Masud, 200 1] ama a vida, o riso, os jogos e a beleza;
explícito - onde se encontram e se chocam chineses, latinos, ne­ depois, submetido ao ensinamento de um Islã integrista, no qual
gros, brancos, serralheiro mexicano e quitandeiro iraniano. São a intolerância é erigida como princípio e ajihad como perspecti­
oposições irredutíveis, alimentadas pelo racismo e as diferenças va única, toma-se um guardião da ordem religiosa disposto a sa­
entre comunidades: negros do Brooklyn contra italianos em Faça crificar tudo pela fé. Inclusive a vida, como os dois camicases de
a coisa certa [Spike Lee, 1989], indianos contra sikhs em Khamosh Paradise now [2005], candidatos a um atentado suicida cujas mo­
Pani, paquistaneses emigrados contra escoceses nativos em Ape­ tivações, bem como o mecanismo que os leva ao terrorismo e
nas um beijo, israelenses judeus contra palestinos muçulmanos, e ao sacrifício, o cineasta Hany Abu-Assad, de origem palestina e
isso desde o nascimento do Estado de Israel, como mostra Kedma de nacionalidade isralense, tenta compreender.
[Amos Gita·i, 2002]. As democracias reconciliadas com seus prin­ É nesse contexto caótico que se organizou desde 2003, em
cípios fundadores não se tomaram milagrosamente sociedades Genebra, o Festival internacional do filme sobre os direitos huma­
pacificadas, estando expostas a novas divisões, dilaceradas por nos. O fenômeno ilustra a consagração do prisma dos direitos do
novos conflitos etnoidentitários em maior ou menor escala. Com homem aplicados a questões muito diversas. Em 2007, elas iam
a despolitização hipermodema se desenvolvem democracias frag­ desde a violência contra prostitutas no Camboja (Le papier ne peut
mentadas às voltas com conflitos de identidade. pas envelopper la braise, de Tithy Panh) até a liberdade ameaçada
Na escala internacional, é num nível bem diferente que se na Chechênia (Jtcheri Kenti: osfilhos da Chechênia) e a fragilida­
desencadeiam os confrontos étnicos ou etnonacionalistas. O tri­ de da democracia americana (When the Levees Broke, de Spike
unfo da globalização neoliberal, o recuo do Estado e o desapare­ Lee, sobre a New Orleans destruída). Organizado paralelamente à
cimento do império comunista ocasionaram a multiplicação de reunião do Conselho da ONU encarregado dessas questões, o festi­
divisões nacionais, o surgimento de fanatismos identitários, reli­ val se apresenta como urna espécie de réplica militante frente ao
giosos e terroristas, novos genocídios e novas guerras civis, organismo oficial, considerado muito tímido, e insitucionaliza um
tribalismos totaliários que violam em massa os princípios dos di­ procedimento em que se juntam humanismo, política e cinema.
reitos humanos. A retração às identidades etnorreligiosas abriu o
caminho à balcanização dos conflitos, a uma série de fragmenta­ Cine-Eu
ções convulsivas. Às promessas de democracias felizes, após o
fim da URSS, seguiram-se a anarquia sangrenta das identidades Como se percebe, o cinema contemporâneo é aquele que
nacionais, as guerras de redefinição de fronteiras, as "limpezas assume amplamente as questões surgidas da hipermodernidade
étnicas", um conflito confuso e mortífero no qual, sobre as ruínas globalizada, que se define pelo desenvolvimento tecnocientífico,
da antiga Iugoslávia, sérvios, bósnios e croatas se matam entre si. pela dominação do mercado, pela sagração democrática dos di-

196 197
reitos humanos. Contudo, essa radiografia não está completa. repercussão no Ocidente coincidiu com o apetite de prazer nas­
Na verdade, nenhum referencial suscita tantos filmes quanto o cido dos anos pós-68, era premonitório de um hedonismo que
próprio indivíduo, o indivíduo em suas relações consigo mesmo desde então se desenvolveu não apenas sob a forma mais ou
e com os outros. Certamente isso não é novo. Mas a época menos hard do sexo liberado - ligado de forma muito sensual,
hipermoderna, movida pelo choque da "segunda revolução in­ em Perfume, a história de um assassino [Tom Tykwer, 2006], a
dividualista", colocou mais do que nunca o indivíduo em cena. uma exaltação do universo olfativo -, mas também sob o signo
De fato, o individualismo entrou numa nova fase de sua de um sensualismo mais comedido, aplicado aos pequenos pra­
aventura histórica, seu momento hipennodemo, caracterizado por zeres da vida. O jovem diretor canadense J eremy Podeswa, numa
alguns traços fundamentais: o culto do corpo, o culto psi ou nota de apresentação de seu filme Os cinco sentidos [2000],
relacional, o culto hedonista-consumista, o culto da autonomia explica a nova importância dada à vida dos sentidos: os homens,
subjetiva que sucede ao desaparecimento da fé nas grandes ideo­ diz ele, "são forçados a redescobrir sua humanidade ao aceita­
logias historicistas (Nação, Revolução, Progresso). Essa imensa rem a verdade dos sentidos."
metamorfose é acompanhada de todo um conjunto de paradoxos. Depois da Comilança [ 1973) simbolicamente mortífera
O neoindividualismo significa liberação da vida privada, mas tam­ que, no filme de Marco Ferreri, estigmatizava uma sociedade
bém fragilização do Eu (ansiedade, depressão, suicídios .. . ). Ele que cava o próprio túmulo com seus dentes de consumo, suce­
coincide com a soberania triunfal do sujeito, mas também com a deram-se prazeres menos frenéticos e mais facilmente apreciá­
desestruturação anômica dos laços sociais e familiares. E le é si­ veis: a cozinha natural de Enganar é viver [Étienne Chatiliez,
nônimo de massificação, mas também de personalização dos com­ 1995], os refinamentos gastronômicos de Questão de gosto
portamentos, das aparências, da relação com o tempo ( escolha do [Bernard Rapp, 1999), os prazeres muito sensuais de Crustacés
modo de vida). Ele rompe a família tradicional em nome da livre et coquillages [Olivier Ducastel e Jacques Martineau, 2005), os
disposição de si, mas o amor continua sendo mais que nunca o bons vinhos de Sideways - Entre umas e outras - como respos­
fundamento do casal. E quanto mais a felicidade se impõe como tas à burlesca Dieta do palhaço (Super size me). I ronia do
um ideal sempre exaltado, mais ela parece nos escapar. Quanto hipercinema: a época da imagem-excesso não exalta mais o
mais nos preocupamos com o futuro do planeta, mais crescem as excesso dos prazeres. 1 4 Não estamos mais no êxtase da trans­
paixões consumistas. Quanto mais psicólogos, menos as pessoas gressão: o que prevalece é a estetização do consumo individual
se compreendem. Quanto maiores as aspirações hedonistas, mais e dos pequenos prazeres do cotidiano. E mesmo quando, em A
se afirmam as ansiedades sanitárias, estéticas e existenciais. São festa de Babette [Gabriel Axel, 1986], o prazer da comidas
temáticas e tensões paradoxais que o hipercinema, incansavel­ apetitosas e dos bons vinhos tem a virtude de harmonizar a car­
mente e à sua maneira, explora. ne e o espírito e os indivíduos entre ·i, não é um hcdoni mo
dionisíaco que se exprime, mas um hino aos prazeres de quali­
O império dos sentidos dade, saboreados na paz e na degustação do frágil instante de
reconciliação consigo mesmo.
De meio século para cá, a questão do prazer e da satisfa­
ção dos sentidos não cessou de se exprimir nas telas do cinema.
O filme de Nagisa Oshima, Império dos sentidos [ 1976], cuja " Gilles Lipovetsky, Le 8011heur paradoxal, op. cit., p. 1 88-236.

198 199
Mas quando um desses prazeres é apanhado e condenado Felicidade de viajar e de desfrutar sensações novas, mas
por outras exigências erigidas em valores, como o da saúde, o também prazer de ser visto e de se mostrar. Corpo flexível, pele
caso é suficientemente importante para que o cinema logo se ocupe bronzeada, beleza das formas, febre do look: nunca o cinema in­
dele. O colesterol, o sedentarismo, a obesidade, o fumo e as dro­ vestiu tanto na sensualidade, cultivou tanto o erotismo, sublinhou
gas se tornam temas de filmes: tanto O diário de Bridget Jones tanto a importância crescente da imagem do corpo. No debate
quanto Obrigado porfumar [Jason Reitman, 2006] falam das no­ entre o que é bom para a fotma e o que é bom para a saúde, a linha
vas proibições e dos conflitos que nascem não mais entre moral e divisória passa pela atenção dada ao corpo, pela preocupação
sensualismo, mas entre princípio de saúde e princípio de prazer, obsessiva com a aparência, pelos cuidados estéticos buscados no
exigências estéticas e expectativas sensitivas no cotidiano. Instituto de beleza Vênus, garantias de forma fisica,/ook e beleza.
A mesma tensão a propósito das viagens e do turismo como O esporte, erigido em religião, engendra os que passam a vida
emblemas da felicidade. O cartaz luminoso que enaltece o exotismo correndo até perder o fôlego, como em Maratona da morte [John
edênico de uma ilha chamada Paraíso e que, no último plano do Schlesinger, 1 976], ou os que se divertem surfando nas ondas,
filme, é a última visão de AI Pacino, o herói fulminado de Opaga­ como Erice, um surfista muito louco [Mel Gibson, 1995] . A moda
mento final [Brian de Palma, 1993], brilha agora nas viagens para e o luxo são agora um horizonte aberto a todos, depois que Prêt­
todos. Clubes de férias em que os resorts de luxo de Os bronzea­ à-porter [Robert Altman, 1994] ou Place Vendôme [Nicole Garcia,
dos-3 substituem os bangalôs do Club Med dos anos 1970; trekking 1998] mostraram seus bastidores sofisticados. E não apenas do
e aventura entre amigos de Les Randonneurs [Philippe Harel, 1 996]; lado feminino: também o corpo dos homens aparece cada vez
viagens de grupo nas quais,como em Restons groupés [Jean-Paul mais na ordem da estetização de si: torso musculoso, tatuagens
Salomé, 1 998],se atravessa o Oeste americano numa Van; exotismo viris, piercings e cabeleiras selvagens à Mad Max ou a Piratas do
das ilhas distantes onde se vai buscar a beleza, como em Toute la Caribe. Com certeza, através do culto da aparência são expressos
beauté du monde [Marc Esposito, 2006] - é longa a lista das os prazeres narcísicos do embelezamento de i, mas também, e
destinações de embarque, hoje, para Citera; mas, ao mesmo tem­ cada vez mais, a força crescente das imposições e da servidão em
po, novo turismo implica novos riscos: ninguém está protegido, relação a marcas onipresentes: O diabo veste Pracla. .. M e mo o
em seu local de férias, da explosão de wna guerra inesperada, como prazeres da moda se exibem de maneira menos leviana, menos
em Casque b/eu [Gérad Jugnot, 1994], ou do surgimento de uma lúdica, mais reflexiva.
outra realidade social, por exemplo, a da emigração -, como o
barco carregado de refugiados do Quarto mundo que crnza, no Me­ Mulheres e homens à beira da crise de si
diterrâneo, a rota de um iate de luxo a passeio, em O preço da vida
[Marco Tulio Giordana, 2004]. É a temática da insegurança imis­ Se a cultura hipennodema estimula sem descanso os pra­
cuindo-se na dos prazeres, como se fosse impossível gozá-los na zeres diversos e renovados do consumo, ela coloca ainda num
paz serena do carpe diem 1 5, sempre prometido, mas sempre amea­ pedestal os valores da felicidade privada e da harmonia íntima.
çado pela ordem caótica do mundo. É nesse campo que os problemas não cessam de se multiplicar.
Ao mesmo tempo em que investe na felicidade, no amor, na
15 Sobre o recuo do carpe diem, ver Gillcs Lipovctsky, Le 8011/ieur paradoxal, op. relação com o outro, o homem de hoj e está sempre às voltas
cit., p. 2 1 6-220. com dramas sentimentais, desuniões, separações de todo tipo.

200 201
As famílias, antes de se recomporem, se decompõem: disputas, que dá vontade de retirar-se do mundo, de largar tudo, como o
rupturas, divórcios, prática corrente de uma vida de casaJ que herói de Le Pressentiment [Jean-Pierre Darroussin, 2006] que
não resiste mais aos desgastes do tempo, e que o vive mal. As­ abandona o seu meio social de rico burguês para ir viver anoni­
sim se expõem as dificuldades da separação e a de fundar,sobre mamente num bairro popular onde busca a tranquilidade. É como
uma outra ligação, uma nova família, como acontece com os se as pessoas, dispondo de tantos bens a consumir e possibilida­
dois parceiros divorciados que levam consigo, para o segundo des de se inventar, se desiludissem,se entediassem e buscassem
casamento, os filhos do primeiro, em Les enfants [Christian algo mais autêntico. 16 O tema do fracasso - o que fiz de minha
Vincent, 2004). Naturalmente intimista, o cinema francês faz vida? - ressurge como um leitmotiv na crise da meia-idade de
dessas questões sentimentais de novo estilo sua fonte de lucro. Kennedy e eu, assim como no sentimento de incerteza de uma
Mas os problemas estão em toda parte: mulheres batidas das juventude pouco à vontade consigo mesma, aquela evocada em
sociedades machistas,como em Te doy mis ajas [Iciar Bollain,2003], filmes de títulos cruelmente irônicos: A vida sonhada dos anjos
isolamento de solteirões que não encontram mulher e vão buscá-las [Erick Zonca, 1998], Nossas vidas felizes [Jacques Maillot,
nos países da E uropa oriental, como em Você é tão bonito [Isabelle 1999). Isso sem falar dos novos males da época: o infarto que
Mergault, 2006], e, é claro, engrenagem depressiva, propensão ao fulminava os apressados dos anos 1970, os Vicente, Francisco,
suicídio,como vemos de maneira leve, sobre o fundo ameaçador da Paulo e os outros [Claude Sautet, 1974], continua a espreitar os
Aids,nos personagens confrontados à solidão, ao sofrimento afetivo pais estressados das famílias recompostas, como em II a sujji
e às angústias da época em Detesto o amor [Laurence Ferreira-Bar­ que Maman s 'en aille [René Féret, 2007]; o câncer, cuja amea­
bosa, 1997]. Daí a tentação de procurar as seitas ou de entregar-se a ça já pesava em Cléo das 5 às 7 [Agnes Varda, 1962], continua
um guru,como fazem os personagens de Fallaitpas!... [Gérard Jugnot, mais do que nunca presente, mudando mesmo a perspectiva das
1996] ou de Mister G [Stephen Herelc, 1998]. Cada vez mais, é o coisas e levando a heroína de Lado a lado [Chris Columbus,
indivíduo sem bússola,inseguro,fragilizado,que se vê no hipercinema. 1 998] a se ocupar dos filhos da ex-mulher do seu companheiro,
Fim das certezas interiorizadas: isso faz recuar os grandes fanatis­ condenada pela doença. A velhice vê desenhar-se a sombra do
mos coletivos, mas pode provocar comportamentos individuais ex­ sinistro Alzheimer,que pode mesmo atingir pessoas jovens,como
tremos; pode contribuir para o uso individual da razão, mas é pouco a heroína de Se souvenir eles belles choses [Zabou Breitman,
propício a uma concordância feliz consigo mesmo. 2002]. E a Aids de Noitesfelinas [ 1992] se instalou, atingindo o
Crise de si e retorno sobre um eu problemático, a tal apaixonado de Jeanne e o rapaz bacana [Ducastel e Martineau,
ponto banalizado que se torna motivo de riso. Pondo em cena 1997] e o jovem homossexual de As testemunhas [2007], filme
os referenciais e os dispositivos psi, Woody Allen ilustrou no qual André Téchiné retorna, vinte anos depois, como para
exemplarmente essa tendência, fazendo do eu introspectivo e um trabalho de luto, ao surgimento da doença no começo dos
problematizado um novo objeto humorístico. Não se trata mais anos 1980. A morte, a morte sempre recomeçada, cuja onipre­
do cômico burlesco nem do cômico de situação, mas de um sença é tanto mais forte quanto parece escandalosa numa sacie-
riso neurótico que põe em dúvida uma personalidade frágil,
narcísica, perpetuamente psicanalisada.
Tudo isso sobre o fundo de uma vida estressada, roída 11' Sobre o tema, Gilles Lipovetsky, La Sociéré de déception, Paris, Textuel, 2006
pelo "aburguesamento", pelo tempo que não se vê passar, vida (A sociedade de decepção, Manole, 2007).

202 203
dade supermedicalizada, que não dispõe mais de sistema de sen­ ta de dúvidas, desvios, eventualidades, nunca foi tão encenada:
tido para aceitar e enfrentar o último desaparecimento. Detesto o amor, Je t 'aime quand même [Eu te amo assim mes­
Dois grandes paradoxos acompanham assim o c inema mo, Nina Campaneez, 1993], Je n 'en ferai pas un drame [Não
hipermoderno. Quanto mais se exacerbam as solicitações farei disso um drama, Dodine I- I erry, 1996], J 'ai faim! [Estou
hedonísticas, tanto menos os filmes exprimem a alegria de vi­ com fome ! , Florence Quentin, 200 1 ], Je vais craquer [Vou pirar,
ver despreocupada e otimista, aquela animada outrora, na Fran­ François Leterier, 1980), Je veux tout [Eu quero tudo, Guila
ça, pelos ritmos de Ray Ventura e Charles Trenet, em Naus irons Braoudé, 1999), Je déteste les enfànts des aittres [Eu detesto os
à Paris [Jean Boyer, 1949] e La route enchantée [Pierre Caron, filhos dos outros, Anne Fassio, 2007] : os títulos mesmos não
193 8]. A imagem-excesso não é a da explosão da felicidade, a cessam de desfiar a litania problemática do eu. Nas fases prece­
qual é antes buscada no mundo tranquilizador do retrô, no retor­ dentes, era um questionamento político ou mesmo fi losófico
no aos valores da terra e ao confit d 'oie (*), ou na simplicidade que conduzia à realização de filmes sociais. O que vemos agora
da inocência de O fabuloso destino de Amélie Poulain. Com a é um modelo inverso: é por estar cada vez mais atento ao pre­
individualização extrema do mundo se acentuam a distância em sente social que o cinema levanta as questões mais fundamen­
relação a si mesmo e a busca de uma felicidade que teme não tais da existência. De um certo "sociologismo espontâneo" nas­
alcançar seus fins. Certamente os happy ends tranquilizadores ceu um cinema tendencialmente fi losófi co, ainda que se possa,
ainda existem, mas quando eles intervêm claramente, como uma não sem motivo, recusar essa denominação. O que é viver e
exigência do gênero, são vistos como clichês pouco dignos de envelhecer? O que é ser jovem? Podemos nos comunicar? O
crédito. Eis por que se multiplicam os finais abertos, as ausências que é que eu desejo? Por que não sou feliz? Com isso, Cine-Eu
de desfecho, as reticências, as incertezas de destino. J 'attends e Cinépolis se combinam. Arte do divertimento, o hipercinema
quelqu 'un [Espero alguém], diz em 2007 o título de um belo é também portador de urna reflexividade crescente sobre si mes­
filme [ de Jerôme Bonell] sobre a vida simples de pessoas sim­ mo, sobre o mundo, sobre o indivíduo.
ples, que esperam a lguma coisa em suas vidas um tanto
tristonhas, e as histórias crnzadas que o filme conta deixam essa
espera em suspenso . . . De resto, a tradicional menção que diz
que o filme acabou e as luzes vão se acender - "Fim", "The
End" - praticamente desapareceu.
O segundo paradoxo a sublinhar não é menos signi ficati­
vo. Vimos que esse cinema registra mais do que nunca o que
constitui o presente social com suas tendências e suas modas,
suas ambivalências e seus conflitos. Por isso os personagens
filmados são cada vez mais marcados sociologicamente. Ao
mesmo tempo, a existência individual , com tudo o que compor-

(*) Carne de ganso conservada na própria gordura, iguaria tradicional da culinária


francesa. (N.T.)

204 205
TERCEIRA PARTE

TODAS AS TELAS DO MUNDO


Ca pítulo V I I I
Da telona à telinha

O fabuloso destino da telinha

Durante a segunda metade do século XX, abriu-se um novo


capítulo da história das imagens, da tela e, portanto, do cinema.
A televisão é o primeiro grande vetor dessa transformação.
A técnica da televisão foi elaborada entre 1925 e 1930,
mas é só depois dos anos 1950 que ela se impõe como um bem
doméstico e um fenômeno social de massa. Sua progressão é
fulminante: a venda de aparelhos na França passa de 24 mil em
1 953 para 3,5 milhões em 1 963 e 14 milhões em 1 974. Desde
1978, mais de nove em cada dez lares possuem um aparelho,
rapidamente considerado como um equipamento básico do con­
forto moderno. Essa democratização prosseguiu com novos equi­
pamentos de imagens que ampliam o universo das telas: televi­
sores tradicionais, novas telas planas, computadores pessoais,
telefones celulares e mesmo consoles de videogames. O tempo
do velho televisor familiar está acabando : com o digital e a
ADSL, a televisão vai invadir cada vez mais todas as telas, pe­
quenas e grandes.
Ao mesmo tempo, a generalização da tela de TV foi acom­
panhada de um aumento de duração de audiência: em 1984, um
telespectador via televisão, em média, 2h20 por dia; vinte anos
mais tarde, essa duração se eleva para 3h24. 1 É a televisão que
ocupa atualmente, e de longe, a maior parte do tempo de lazer.
Um lazer cada vez mais concentrado no consumo de espetáculos
na tela catódica: a ficção é o gênero preferido dos telespectadores
franceses, com 239 horas de audiência em 2004, devendo-se so-

1
Assim os franceses veem cerca de 100 mil horas de programas audiovisuais
durante sua existência, ou seja, o equivalente a onze anos diante da telinha.

209
mar a isso mais de 80 horas dedicadas a ver os filmes de cinema. para defini-la: diante da tela de cinema, o espectador levanta os
Tela de televisão que opera uma ruptura profunda com o olhos; diante da televisão, ele os abaixa ...
cinema, na medida em que a recepção das imagens se faz a domi­ Por outro lado, enquanto o mundo reproduzido pelo cine­
cílio. Enquanto o cinema se construiu a partir de um lugar coleti­ ma não é ao vivo, as imagens da TV funcionam em tempo real.
vo e público (a sala escura), a televisão oferece um espetáculo de Em junho de 1954 é realizada a primeira transmissão em
imagens em casa. É como um "cinema a domicílio". O lazer que Eurovision e, em 1962, o satélite Telstar transmite suas imagens
a tela oferece tomou-se em grande parte privado. Inicialmente ao mundo todo. Sete anos mais tarde, 600 milhões de pessoas
familiar, a audiência de TV tomou cada vez mais o caminho da assistem ao v ivo aos primeiros passos na Lua da tripulação da
individualização, possibilitada pela multiplicação de aparelhos, Apolo XI. Com a transmissão elétrica das imagens à distância, o
por suportes como o videocassete ou o DVD e, hoje, pelo VoD. mundo exterior e longínquo é visto imediatamente e ao mesmo
Essa pri vatização da tela é acompanhada de uma expe­ tempo por milhões de pessoas. Imediatez, ubiquidade, simulta­
riência mui to particular da relação com as imagens. Também neidade: a telinha pôs os homens e as mulheres em contato com
aqui a diferença com o cinema é imensa. Pela projeção numa o grande mundo agora sem fronteiras, transformado, segundo a
sala escura, a tela de cinema tem o poder de arrancar o especta­ expressão famosa de McLuhan, numa "aldeia global".
dor da banalidade dos dias: monopolizando a atenção do públi­ A televisão não apenas desmontou o dispositivo espacial
co, ela opera um corte nítido entre o espetáculo e o real. O mes­ público do cinema, ela é também a mídia que se emancipou das
mo não acontece com a telinha, que é vista em casa, na luz e na imposições temporais do espetáculo "clássico". A duração de
familiaridade do cenário cotidiano. 2 Enquanto o c inema convi­ uma sessão de cinema é limitada; já os programas de TV despe­
da ao silêncio, a televisão dá ensejo a comentários, a conversas, jam um fluxo crescente e quase pennanente de imagens - uma
a toda uma série de observações e de trocas. Sem contraste com "torneira de imagens". Essa dinâmica não cessou de se amplifi­
o que a cerca, a televisão não permite que o Homo telespectator car. A multiplicação de canais e o aumento do tempo de trans­
se "desligue", seja transportado a um outro mundo. A atenção missão de cada um elevou em muito a oferta de programas gra­
do telespectador é geralmente flutuante, distraída, mais ou me­ vados e ao v ivo. Em 1 974, a televisão oficial francesa o ferecia
nos indiferente. Em vez do feitiço exercido pela imagem-cine­ 7.400 horas de programas, que passaram a 1 1 mil em 1983 e a
ma, há o zapping e o "semi-despaisamento" 3 característico da 35 mil em 1993 . Desde 1995, o volume horário de di fusão se
experiência televisiva. Radicalizando essa oposição e carregan­ multiplicou por quatro. Em algumas décadas, com o desenvol­
do-a de um julgamento ao mesmo tempo moral e estético, Jean­ vimento de uma lógica de mercado, passou-se de uma televisão
Luc Godard, numa intervenção célebre - televisada - da ceri­ de raridade a uma televisão de profusão4, e de uma televisão de
mônia de premiação do César, encontrou uma imagem-choque oferta a uma televisão de demanda.

2
A televisão se integrou a tal ponto na vida cotidiana que um em cada dois franceses 4
Laurent Creton, "Fi licrc cinématographique, secteur télévisucl ct industries de
liga o aparelho ao chegar em casa sem conhecer o programa. Ver Olivicr Donnat, Les la communicantion: Ies enjeux de la convergcnce", in Laurent Creton (dir.), Le
pratiques culture/les des Français, Paris, La Documcntation française, 1998, p. 1 21. Cinéma à l 'épreuve c/11 systeme télévisuel, Paris, CN RS Éditions, 2002, p. I O. Ver
3 Jean Cazeneuvc, L 'Homme télespectateur, Paris, Denoel, "Médiations", I 974,
igualmente Jean-Louis Missika, La Fin de la télévision, op. cit. , p. 1 1.
p. 105.

2 10 211
A fim de preencher esses horários, a ficção é amplamente Já nos anos 1950, os grandes estúdios investiram n a produ­
mobilizada. Ela passou de 18, 7% do tempo de transmissão em 1983 ção de programas televisados: em 1955, a Wamer Bros. produz
a 28,4% em 1993. A difusão de filmes na TV registra igualmente uma série "tele-western" que tem por título Cheyenne. Na Euro­
uma progressão significativa. Quando a televisão francesa tinha pa, a nova mídia atrai cineastas importantes: Rossellini, Bergman,
apenas um canal, este difundia cerca de uma centena de filmes por Fassbinder adaptam obras literárias para a TV Mais tarde, nos
ano. Com a chegada do segundo canal, esse número passa para Estados Unidos, Sydney Polack, John Frankenheimer, Atthur Penn
350. Entre 1965 e 1995, o número de filmes exibidos na TV foi filmam séries televisionadas, e Spielberg realiza Encurralado
multiplicado por dez, e por 1 5 se acrescentarmos a programação [ 197 1] para a telinha, antes de o filme, projetado na telona, lançar
do Canal +. Desde a metade dos anos 1990, esses canais difundem sua carreira. Ao longo dos anos, a televisão se toma mesmo o
cerca de 1.500 filmes por ano, aos quais se somam os fornecidos refugio de cineastas que não encontram mais os recursos finan­
por TV a cabo e antena parabólica. 5 Ao todo, chegam a 5 mil os ceiros para rodar os filmes que ambicionam: é o caso de Yves
filmes que os telespectadores podem ver todo ano. A época Boisset, que praticamente abandona o cinema para prosseguir sua
hipermodema é contemporânea da explosão do número de filmes carreira através de grandes filmes de televisão sobre o caso Dreyfus
propostos ao público não apenas em salas, mas também na telinha. 6 ou o caso Seznec.
Ao mesmo tempo, a televisão contribui para desenvolver
Gerações TV uma nova retórica das imagens. A estética da Nouvelle Vague já se
alimenta disso e os jovens cineastas de então, mesmo se denun­
Quando a telinha se impôs nos lares domésticos, ela logo foi ciam seu uso, são marcados pela linguagem da televisão que lhes
vista como um perigo para a frequentação do cinema. Hollywood ensina a filmagem direta, a justaposição de imagens, o estilo
não permaneceu inerte. Para trazer de volta o público às salas, os entrecortado, a colagem visual praticada por um Jean-Christophe
grandes estúdios lhe propuseram o que a televisão não pôde ofere­ Averty. Atualmente, muitos realizadores só chegam ao cinema após
cer: telas cada vez maiores, filmes cada vez mais coloridos e espeta­ terem começado na televisão. Essa é mesmo a via quase institucional
culares. Mas não é essa a incidência mais importante da televisão para que eles provem sua capacidade, antes de contarem com re­
sobre o cinema. De maneira mais fundamental, a televisão formou cursos maiores para o cinema: Gabrielc Muccino realiza 25 epi ó­
novas gerações de cineastas, favoreceu o desenvolvimento de uma dios de uma série televisada para a RAI antes de filmar EccoJàtto
nova estética e, mais recentemente, pôs em crise a identidade genéri­ [ 1997), seu primeiro longa-metragem; Michael Mann, um dos mais
ca e simbólica da sétima arte.7 brilhantes cineastas atuais de Hollywood, começou na televisão
onde criou, produziu e filmou várias séries de sucesso, antes de
5 Laurcnt Creton "Filiére cinématographique . . . ", op. cit., p. 1 1 . realizar um primeiro telefilme, The Jericho Mi/e, e de passar final­
'
6
Na metade dos anos 1 990, as televisões abe11as alemãs e espanholas difundiam mente, em 198 1, a seu primeiro filme de cinema, Profissão ladrão.
respectivamente 1 2 mil e 1 1 mil filmes por ano (Joel Augros, "Cinéma e'. t�lévision: O fenômeno não cessa de se ampliar; a experiência da série ou do
_ -
une perspective internationale", in Laurent Creton (dtr.), Le Cinema a I eprewve
du systéme télévisuel, op. cit., p. 90. telefilme sendo cada vez mais acompanhada da de videoclipes e
_ _ _
1 Sobre as interações estilísticas e econômicas entre cmema e telcv1sao, ver a spots publicitários realizados para a TV, como acontece com os
antologia de textos publicados nos Cahiers du cinéma de 1 95 1 a 2007 : Thtcrry jovens realizadores dos anos 2000, Michel Gondry, Spike Jonze,
Joussc (dir.), Le Goút de la télévision, rN A/Les Cahiers du cinéma, 2007 .
Jan Kounen, Alejandro González Ifíárritu.

212 213
Claro que as diferenças de orçamento, de casting e de Roseau de André Téchiné, inicialmente filmado em versão de
tempo de filmagem separam nitidamente o filme de cinema das 57 minutos para um ciclo de televisão sobre Arte, transforma-se
ficções televisionadas. 8 Contudo, vemos hoje se confundirem em Rosas selvagens [ 1 994] em versão de 1 10 minutos para o ci­
as antigas definições de território: filmes produzidos para a nema; Jacques Rivette produziu uma versão longa de A bela in­
telinha são distribuídos em salas e, inversamente, filmes roda­ trigante [ 1991] para o cinema e uma versão curta para a televi­
dos para o cinema são vistos primeiro na televisão - em 2006, são. E telefilmes de Chantal Akerman, de Cédric Klapisch e de
Steven Soderbergh filma Bubble, uma nova experiência em Laurent Cantet prosseguiram sua carreira nas telas de cinema.9
vídeo, em 18 dias, com um orçamento reduzido de 1,6 milhão Além disso, alguns telefílmes de prestígio são realizados
de dólares, e decide lançar o filme simultaneamente em salas, com orçamentos e cenários equivalentes aos dos longas-metragens:
em DVD e em VoD. Em 2007, pela primeira vez na França, 40 milhões de euros foram investidos na produção de Napoléon.
Ra'up McGee escolhe para o seu filme A utomne não o lança­ Filmado simultaneamente em francês e em inglês, recorrendo a
mento em salas, mas o download, gratuito para os vinte primei­ efeitos digitais, esse telefilme põe em cena 150 personagens e 20
ros minutos e pago para o resto do fi lme. É um fenômeno mil figurantes. Os grandes astros desempenham agora papéis em
minoritário, mesmo assim acontece. Alguns filmes são difundi­ obras realizadas para a telinha: Alain Delon em Fabio Monta/e,
dos primeiro na televisão e a seguir no cinema (L 'Âge des Gérard Depardieu e Omella Muti em Le Com te de Monte-Cristo.
possibles [ 1996] de Pascale Ferrand); outros são desde o início Nos Estados Unidos, a HBO se especializa na produção de filmes
reclassificados como obras cinematográficas (Marius et que recorrem a diretores e a vedetes do cinema, mas não destina­
Jeannette [1996] de Robert Guédiguian). Outros ainda são rea­ dos à exploração comercial em salas, reservados unicamente à
lizados em versões diferentes: As melhores intenções - Palma TV paga e à difusão por DVD. São aspectos que desestabilizam a
de Ouro em Cannes em 1992 -, do dinamarquês Bille August, é antiga divisão entre filme e telefilme. Por muito tempo, as rela­
a versão em cinema de uma série de televisão; Le Chêne et le ções entre as duas telas foram pensadas segundo um esquema
hierárquico que opõe legitimidade e ilegitimidade, alta e baixa
cultura. O cinema ocupava o topo e a televisão a base, cabendo a
M A duração habitual de filmagem na televisão é de 2 1 dias para uma ficção de 90 um a criação de arte, à outra a banalidade do comercial. Em vista
minutos (contra 8 a I O semanas para um filme equivalente de cinema) e de 1 1 dias
para uma ficção de 26 minutos. Um seriado de 90 minutos difundido às 20h50 no
das cooperações e dos cmzamentos que acontecem, essa hierar­
TF I pode custar 2,3 milhões de euros por episódio, enquanto custará 1,6 milhão quia vai aos poucos se apagando.
de euros no France 3. Ver Benoit Danard, Rémy Le Champion, Les Programmes Ao mesmo tempo em que muitos filmes se assemelham a
audiovisuels, Paris, La Découverte, 2005 , p. 68. Em 2005, o custo médio horário telefilmes, Hollywood se inspira cada vez mais em séries de TV,
de uma fi cção era de 740 mil euros (fonte: CNC, citado por Nadine Toussaint­
Desmoulins, L 'Économie des médias, Paris, PUF, 2006, p. 63). Atualmente, al­
como Missão impossível, Arquivo X, Miami Vice [Michael Mann,
guns filmes de autor têm orçamentos inferiores ao dos telefilmes: Mudança de 2006]; e o cinema francês não fica atrás - Ofantasma do Louvre
endereço de Emmanuel Mouret [2006), que registrou 150 mil ingressos em salas, [Jean-Paul Salomé, 2000], Os cavaleiros do ar [Gérard Pirés,
foi rodado com 600 m i l euros. O custo médio de um longa-metragem se elevava, 2005], Brigadas do Tigre [Jérôme Comuau, 2006], Jacquou le
em 2002, a 4,4 milhões de euros na França, 2 milhões na Itália, 9 milhões na Grã­
Bretanha. Se, nesse mesmo ano, 14 filmes franceses custaram mais de I O milhões
de euros, 41 filmes custaram menos de I milhão (Observatoire européen de 9 Kristian Feigelson, "Lc cinéma cathodique", in Laurent Creton (dir.), Le Cinéma
! 'audiovisual, 2002). à / 'épreive du systeme audiovisuel, op. cit., p. 139-140.

2 14 215
croquant [Laurent Boutonnat, 2006]. Aliás, o interesse por essas A série contra-ataca
séries é crescente, igualando ou mesmo ultrapassando o suscita­
do pelos filmes, e fazendo aumentar cada vez mais, assim como Se a aura do cinema não está de modo nenhum ameaçada,
para estes, as vendas em DVD. No tempo da tela em toda parte, é preciso observar, porém, que ele vem sendo destronado, nas
as séries cultas, sucessoras dos antigos folhetins, desenvolvem programações de TV, pelas teleficções. É uma situação nova.
sua série de episódios e se multiplicam com seus fãs e seu público Até os anos 1980, os filmes de cinema, por serem raros na telinha,
mundial; sites lhes são dedicados na Internet, com as classifica­ despertavam a maior expectativa do público. Isso mudou: ago­
ções dos maiores hits. E os filmes baseados nelas também podem ra, o filme de cinema não é mais necessariamente vetor de
- como Missão impossível - engendrar sua própria série de episó­ audiências máximas, ele deixou de ser a joia absoluta da pro­
dios, desta vez na telona. gramação. Assim, observa-se um recuo na audiência média de
É certo que as antigas fronteiras rígidas erigidas pela cine­ filmes nos canais de televisão. Até o começo dos anos 1990, dez
filia clássica se tornaram porosas. Onde começa o cinema, onde filmes se achavam sistematicamente entre as vinte maiores au­
termina? Como continuar a separar radicalmente televisão e ci­ diências. Já em 200 1, entre as 15 maiores audiências de cada
nema quando este não pode mais existir sem difusão e, no caso canal na França, havia apenas dois fi lmes de cinema, no TF l , e
francês, sem financiamento televisivos? Quando os astros do ci­ quatro, no France 2. Em 2003, somente 1 7 filmes figuravam
nema desempenham os papéis principais nos telefilmes, quando entre as 100 maiores audiências do ano. E na lista das 20 maio­
os próprios realizadores passam de um gênero a outro, quando res audiências de 2005 não apareciam mais que três filmes.
obras feitas para a televisão suscitam paixões videófagas, é ne­ Chegamos num momento em que o filme de cinema é
cessário relativizar a grande divisão entre cinema nobre e televi­ suplantado por outros programas, especialmente por telefilmes
são vulgar. A verdade é que nos orientamos para um cinema plu­ e seriados. Estes correspondiam a 5 1 das 1 00 maiores audiên­
ral, de geometria variável, que se declina em diferentes formatos cias em 2004. Em 2005, na lista das 50 maiores audiências do
e seja qual for o vetor mobilizado. O festival de Cannes homolo­ ano, havia 8 filmes, mas 30 ficções feitas para a TV. Em 2006,
ga essa ideia ao não falar mais de "telefilmes", mas de "filmes de um episódio de Prison Break obteve a maior audiência do M6
televisão" 1 º, a fim de requalificá-los no alto. Mesmo nas relações em dois anos e a quarta maior audiência desse canal francês
entre cinema e televisão se processa o que chamamos a desregu­ desde sua criação em 1987. Na era hipermoderna, o filme de
lação multiplex. Esta não se refere apenas à nova composição dos cinema não é mais o espetáculo preferido dos telespectadores.
filmes, mas designa a relação inédita do público com as ficções Por isso, a oferta de filmes em horário nobre tende a diminuir:
apresentadas na televisão, a confusão nas hierarquias da legitimi­ em setembro de 2006, o TFl decidiu suspender provisoriamen­
dade cultural, a hibridação da telona e da telinha. te a sacrossanta exibição do filme de domingo à noite. Catástro­
fe na paisagem audiovisual francesa? Talvez: só que metade dos
franceses não desaprovou essa mudança realizada em proveito
da série americana Crime Scene Investigation [lançada na Fran­
ça com o título Les Experts] .
10 No momento de sua criação, Les Cahiers du cinéma já integram a questão da Dois grandes fenômenos estão no princípio dessa inver­
televisão: eles se intitulam, em 1951, Rev11e du cinéma e/ du 1é/éci11éma. são de tendência. O primeiro não é senão a multiplicação da

2 16 217
oforta de filmes graças aos diversos canais de TV, ao DVD, à ambientes específicos. O que mantém o público fiel é uma es­
TV a cabo, ao VoD. Profusão que banaliza a difusão de filmes e pécie de encontro marcado regular. À medida que são vistos,
dispersa o público. A isso se juntam, em segundo lugar, as inú­ esses heróis se tomam "familiares", as pessoas se afeiçoam a
meras reprises dos mesmos fi lmes. Apenas um terço dos filmes eles, sentem prazer em reencontrá-los, exatamente como quan­
difundidos todo ano nos canais abertos são inéditos e mais de do se vai ao cinema para ver os astros apreciados. Através das
10% já foram exibidos pelo menos seis vezes num canal. 1 1 Mes­ séries, a televisão cria novas vedetes, as telestars, ontem associ­
mo os grandes "clássicos" multirreprisados obtêm menos suces­ adas aos nomes de Columbo, Derrick, Julie Lescaut, Navarro,
so, perdendo terreno para os inéditos, como se pode esperar numa hoje aos do grupo de Friends ou Desperate Housewives. E há
época de hiperconsumo sedenta de novidades permanentes. Não séries, de Dallas a Plantão médico, de Dinasty a Sex and the
é muito surpreendente, nessas condições, que a audiência dos fil­ city, que se tornaram cult, como os filmes. De modo que a razão
mes na televisão estej a caindo. Uma queda que, na França, atinge do sucesso das séries é, afinal, a mesma que a do cinema: o
mais os filmes franceses que os americanos: dos dez filmes mais processo de dramatização e de criação de stars.
vistos na televisão, sete eram franceses em 1990, mas eles passa­ Não nos enganemos: não é à decadência do cinema que
ram a ser apenas três de 1996 a 200 1. A tendência é de queda dos assistimos, mas à extensão, fora do seu campo original, da lógi­
filmes franceses na televisão, enquanto em alguns canais a au­ ca que o criou - o star-system. "Construímos a indústria do ci­
diência dos fi lmes americanos aumenta. 1 2 nema sobre o star-system", dizia Adolph Zukor 1 5 : a telinha não
Por importantes que sejam, esses fatores não explicam faz senão levar adiante esse sistema, acelerando o lançamento
tudo. Notemos que, no domínio da ficção, as séries e as novelas de telecelebridades, multiplicando equivalentes de estrelas, ain­
se impõem como o modelo dominante. 13 O volume de telefilmes da que infinitamente menos míticas ou brilhantes que as da gran­
unitários tende a se reduzir progressivamente, ao passo que as de tela dos tempos gloriosos. A época do hipercinema não signi­
séries representam desde 1998 dois terços da oferta de ficções fica apenas uma nova estética; ela coincide com o momento em
francesas inéditas nos primeiros horários da noite. 1 4 Uma das que o sistema de vedetismo midiático invade outros territórios,
razões desse triunfo é que ele se apoia em personagens recor­ outras mídias, outras imagens: é o momento da dilatação do prin­
rentes, encarnados pelos mesmos atores populares, presentes em cípio cinema, da contaminação da telinha pelo espírito cinema.
cada novo episódio. Os telespectadores ficam curiosos de saber
quais serão os desdobramentos da história, gostam de rever os Espírito cinema e reality show
"heróis" aos quais estão acostumados, com seus traços e seus
O filme de cinema não sofre apena a concorrência das
ficções televisivas, mas também de algun programas de grande
11 Claude Forcst, "La fréquentation des filmes en salles ct leur audience à la
télévision", in Laurent Crcton (dir.), Le Ciné111a à / 'épreuve du systeme audiovisuel,
audiência e, mais recentemente, dos chamados rea!izy shows. Na
op. cit. , p. 182 e 190. França, Loft Story conheceu um enorme sucesso e episódios de
1 2 lbid., p. 1 88-189.
13 Menos onerosas que os 90 minutos e permitindo mais cortes publicitários, as
ficções de 52 minutos se tornaram o formato preferido pelos canais de televisão.
15
J ean-Loup Bourget, "Naissancc, évolution et décadence du star-system
14 Beno1t Danard, Rémy Le Champion, Les Programmes audiovisuels, op. cit., p. américain", in Gian Luca Farinclli e Jcan-Loup Passek, Stars auféminin. Naissance,
66-67. apogée e/ décadence du star-system, Paris, Centre Pompidou, 2000, p. 1 97-208.

218 219
cionados : os participantes devem ser desinibidos frente à
la Ferme célébrité, de Star Ac ou de Koh Lanta atingiram picos
câmera e são escolhidos para "representar" um tipo psicoló­
de audiência.
gico, social ou cul tural determinado de antemão, como num
À primeira vista, tudo opõe esses programas aos fi lmes de
filme. E isso a fim de ganhar a guerra da audiências.
cinema. Os participantes são anônimos, não são atores profissio­
É nesse quadro que cada um se torna, por assim dizer, o
nais. Os reality shows se caracterizam pela autenticidade, pela
intérprete de si mesmo. A ficção não substitui mais o real, é a
intimidade e pela transmissão ao vivo, em vez do "grande espe­
própria realidade que se ficcionaliza através de um dispositivo
táculo" e da ficção cinematográfica. Não mais uma " ficcionali­
cênico que não é "nem verdadeiro nem falso" 1 7, que leva mais
zação", mas "pessoas de verdade vivendo histórias verdadei­
longe a ficção ao integrar nela o "real" dos personagens, que
ras". O cotidiano em vez do glamour dos grandes astros, o ime­
cria uma espécie de incerteza quanto à realidade, duplicada
diato em vez do roteirizado, a competição entre os candidatos
pela hiper-realidade midiática. Não mais a ficção da ficção,
em vez da composição de papel. O reality show é minimalista e
mas uma realidade que se sobrerrepresenta, com tudo o que
"realista", enquanto o cinema é arte do espetáculo. Através dos
isso pode comportar de ambiguidade, de proj eção e de imagi­
reality shows e seus desdobramentos, a televisão parece cada
nário. 1 8 O essencial ou o desafio não é mostrar o real, é.fazê-lo
vez mais se libertar do espírito do cinema.
parecer um fllme, um filme com seus dramas e seu suspense,
É necessário observar, porém, que também aqui o cinema
suas lágrimas e seu happy end. E que não deixa de usar monta­
st
� _ á longe de ter dito sua última palavra. É verdade que os par­
gem,jlash-back, primeiros planos - as técnicas mesmas do
ticipantes desses novos jogos não são atores profissionais. 16 No
cinema. Aproximar o real do cinema, aproximar a televisão da
entanto, eles de modo algum são escolhidos ao acaso. No caso
imagem emocional do cinema, fazer da televisão uma espécie
de Loft Stmy, sete psicólogos fizeram uma seleção entre 45 mil
de hipercinema: tal é a operação do reality show. Se é verdade
candidatos: não há reality show sem uma pré-roteirização do
que este prolonga a neotelevisão do cotidiano, é verdade tam­
conjunto e sem uma rígida fonnação de elenco. Se é verdade
bém que persegue a ambição cinematográfica de o ferecer um
que saímos do gênero ficcional, os protagonistas continuam
espetáculo superlativo que mantenha o público sempre ligado.
sendo colocados cm situações roteirizadas e, na realidade, ex­
Filho da televisão, o reality show é também um dos grandes
tremamente artificiais: ficar encerrado num loft e ser filmado
herdeiros do espírito cinema.
noite e dia durante doze semanas; viver numa ilha com os re­
E isso tanto mais quanto o star-system se vê aqui restabe­
cursos locais (Koh Lanta); eleger uma entre as mulheres do
lecido. Pois o que visam os realizadores desses jogos senão a
"harém" constituído pela produção (Greg /e Millionnaire). Os
emplacar o programa levando seus protagonistas ao estrelato?
can�idatos à "telenotoriedade" não desempenham um papel
escn to de antemão, mas mesmo assim desempenham um pa­
pel, aquele prescrito pelas regras do j ogo, pelo contexto 17 Daniel Boorstin, L '/mage, Paris, UGE, 1 97 1 , p. 3 1 3-3 1 5 .
midiático, pela personalidade em função da qual foram sele- 18 Convidando a observar o reality show do ponto de vista de sua relação com a
arte contemporânea, Érie Troney assinala que "a arte e o reality show compai1i­
.
16 E mbora esse 1 1· 1te lham algo fundamental, um espaço de verdade, que não é nem o da realidade nem
· a se apagar: em Mon i11croyable.fiancée, 0
� tenda lambem o da ficção, mas um espaço intermediário". "Man i feste du réalitisme" ' Le Monde'
personagem do no1vo cm questão era vivido, sem que sua parceira soubesse, por 1 3 de outubro de 2005 .
um ator profissional ainda desconhecido.

22 1
220
O que buscam os participantes senão adquirir uma celebridade cinema; por outro, ela recompõe seu sonho e seus mitos através de
na mídia, ser a vedete do momento, chegar aos famosos "quinze um desfile permanente de fi guras "conhecidas".
minutos de celebridade" anunciados por Andy Wahrol? A Star Mas o sonho é igualmente reativado por novos programas.
Academy diz a verdade do que está em jogo: produzir astros, ou François Jost sublinhou com razão que é problemático rotular de
como passar do anonimato à celebridade na mídia. O cinema reality shows programas em que os participantes devem buscar
era o lugar por excelência onde se fabricavam astros: agora é a ser sinceros e se corrigem várias vezes para melhor desempenhar
TV que, democratizando o processo, consagra celebridades de o papel: nesse aspecto, falar de "televisão de jogos de papéis" é
um novo tipo: os astros people,os astros que se parecem conosco seguramente mais adequado. 2 1 No entanto, agora há programas
e não são outra coisa senão vedetes amadoras e efêmeras. A de um novo tipo que escapam a essa fórmula. Uma série de pro­
imprensa não tarda a reconhecê-los, eles aparecem nas capas gramas não se contenta mais em apresentar "ficções reais
das revistas, fala-se deles nas conversas: o star-system joga e interativas", mas busca decididamente transformar o real, a vida,
vence mais uma vez. Sob os signos enfáticos do real e da auten­ o ambiente doméstico, os corpos. Cirurgiões refazem o rosto dos
ticidade, a televisão não rompe com o espírito cinema e sim candidatos (Extreme Make Over); em outros programas, especia­
trabalha com sucesso para sua irresistível expansão. listas dão conselhos para emagrecer (Big Diet), comer melhor
Cada vez mais a televisão aparece como uma pista de lança­ (Besser essen) e se embelezar (SOS Beauté, The Swann); outros
mento, um vetor primordial para a criação de astros e a extensão do ainda ajudam a corrigir a educação dos filhos (Super Nanny), a
domínio VIP. A televisão tomou-se máquina de projetar ou de acen­ fazer da mulher uma verdadeira dona do lar (Make me a Perfect
tuar todo um conjunto de ídolos. Do esporte à canção, da cozinha à Life), a melhorar a vida sexual ( The Sex Inspectors), a refonnar a
filosofia, da informação à literatura, da arquitetura aos modelos, da casa, a livrar-se das drogas. Assistimos à chegada de uma TV de
moda à política, mais nenhuma esfera escapa à fabricação de as­ orientação e treinamento, uma TV transformadora e reparadora.
tros. Através da televisão, o star-system inaugurado por Hollywood É o fim, então, do maravilhoso do cinema? De maneira nenhuma.
se generaliza, não cessando de reinventar seres celebroides como Por muito tempo o cinema pôde ser associado ao efeito Pigmalião
se fossem novos bens de consumo de massa, reativando assim o (*) por seu poder de fabricação e transfiguração estética dos as­
encantamento mágico do universo do cinema. "Não é também um tros. É precisamente essa lógica de refabricação do real que a
sonho o cinema?", dizia Valéry. A despeito de suas imagens que televisão busca aplicar, estendendo-a aos indivíduos comuns. Nos
imitam o real, a televisão não rompeu de modo algum com o Estados Unidos, o mais recente avatar desses programas, I Want
onirismo e o maravilhoso da alma cinematográfica 1 9 , e isso princi­ a Famous Face, propõe aos concorrentes refazer o rosto à seme­
palmente em razão da presença dos seus astros de todo tipo. Daí o lhança de um astro do cinema. Os dois primeiros concorrentes,
duplo processo de desencantamento e de reencantamento que ha­ gêmeos, escolheram se transformar em Brad Pitt!
bita a telinha.20 Por um lado, a tela da TV acaba com a magia do Assim como Hollywood ensinou os astros a falar, a an­
dar, a se maquiar, a se vestir, assim também a televisão

19 Sobre esse ponto, Edgar Morin, Le Cinéma ou / '/1omme imaginaire, Paris, Minuit, 1958. 21 François Jost, La Télévision du quotidien, Bruxelas, De Boeck, 2003, p. 2 12-216.
20 Jean-Louis Missika, Dominique Wolton, La Foi/e du !agis. La télévision dans les (*) Referência ao escultor lendário que se apaixona pela estátua que ele mesmo
sociétés c/émocraliques, Paris, Gallimard, 1983, p. 166- 1 68. faz. (N.T. )

222 223
hipermoderna procura remodelar tanto a aparência quanto a vida O tele-show esportivo
dos indivíduos ordinários. Não é mais apenas a máquina dos
estúdios que fabrica personalidades e belezas, mas a própria te­ Mas é provavelmente pelo esporte que a tela de TV en­
levisão, agora engajada na corrente do "pigmalionismo indus­ contra sua mais completa consagração. Não é mais o cinema
trial" 22 próprio ao star-system. Certamente sem objetivo de que apresenta o maior espetáculo do mundo, e sim a televisão
divinização e personalização ideal, mas tendo em vista um mes­ por ocasião das grandes retransmissões esportivas, que provo­
mo sucesso de audiência - aqui medido pelo Ibope. Com a úni­ cam um entusiasmo e uma febre coletiva sem iguais. Mais de
ca diferença de que, ao contrário de Hollywood, a televisão não 300 canais em 220 países permitiram que 3,9 bilhões de pesso­
esconde suas operações intervencionistas, e sim as exibe, as co­ as acompanhassem os Jogos Olímpicos de 2004. A final da Copa
menta , como outros tantos instrumentos de captação do públi- do mundo de futebol de 2002 foi vista por 1,1 bilhão de pessoas. 23
co. É que os tempos mudaram: não mais a magia dos astros Fervor das massas que a paixão hipermoderna pelo esporte e
sublimes, mas os sonhos metamórficos de todos e os desejos de pela competição traduz, mas que não se pode dissociar, ao mes­
viver melhor interiorizados por todos. Na tela da televisão, mo tempo, de um processo global de hipermidiatização. Nesse
Pigmalião traduz a obsessão pela felicidade e suas panes nas plano, a televisão se acha em primeirí simo lugar: no Mundial
democracias hiperconsumistas. de futebol, as telas estão em toda parte, invadem as calçadas e
No momento do cinema mudo, a Paramount tinha por os bares: todos ficam grudados na telinha que, de resto, aumen­
slogan: "Um espetáculo sem rival". Essa época está ultrapassa­ ta de tamanho para tornar-se tela coletiva em ginásios, praças e
da, o reality show rivalizando hoje com o cinema na ordem mesmo em salas d e cinema onde o acontecimento é
mesma do hiperbolismo. Extreme Make Over, sempre mais re­ retransmitido. O público comunga e vibra diante da tela corno
novação de aparências, sempre mais intimidade e voyeurismo, outrora nas salas de cinema de bairro. Presença televisiva que
sempre mais sensacionalismo, sempre mais performance e am­ se impõe inclusive nos estádios, onde as competições são mos­
bição transformadora: acontece o mesmo na televisão como no tradas num telão enquanto se desenrolam no gramado ou na
cinema; em toda parte, é a dissolução dos antigos limites, a bus­ pista - desdobramento que não deixa de modificar a percepção
ca dos extremos, os desafios superlativos que reorientam o con­ do acontecimento espmtivo, transformado em hiperespetáculo.
teúdo das telas. À pornografia do sexo junta-se a da alma; à As novas tecnologias e a cultura do divertimento produ­
escalada dos efeitos especiais junta-se a que busca "mudar a ziram uma mutação do espetáculo espo1iivo na televisão. Cada
vida" das pessoas. Paralelamente ao hipercinema afirma-se a vez mais se afirma uma estética da retransmissão baseada nas
hiper-TV, que vai sempre mais longe na fuga para a frente, no lógicas do espetáculo, do drama e da criação de astro , a fi m
excesso das imagens catódicas. de suscitar a emoção e tocar o mais vasto público. A televisão

23 Um filme mostra isso de forma divertida, mas edificante: A grande.final (Gerardo


Olivares, 2006) narra como um acampamento de caçadores nas estepes geladas da
Mongólia, uma aldeia de índios na Floresta Amazônica e uma caravana de tuaregues
no Saara conseguem captar o acontecimento em seus aparelhos engenhosamente
22 Edgar Morin, Les Stars, Paris, Seuil, "Points", 1 972, p. 5 1 . adaptados, deixando sua vida tradicional e seus costumes ancestrais entre parênte­
ses durante o tempo de ver o Brasil vencer a Alemanha na final da Copa de 2002.

224
225
cria assim imagens específicas do esporte, reescreve o espa­ tica-choque e emocional, o espírito de criação de astros24 e de
ço-tempo das competições de alto nível . Espetacularização que cenarização total. Se a televisão provocou uma transformação das
se apoia tanto na transmissão ao vivo quanto na reconstrução imagens do cinema, este não deixou de ser o modelo do sonho
midiática do tempo mesmo da competição : supressão dos tem­ representado e da encenação espetacular. Nem tudo deve ser atri­
pos mortos, inserção de sequências pré-gravadas, entrevi stas buído aos avanços da estética da televisão; o cinema foi a matriz do
ao vivo, focalização sobre os atletas vedetes, replay das ima­ esporte-show ao fornecer-lhe os instmmentos e o imaginário de
gens decisivas, tomadas múltiplas e diferenciadas em vários sua estetização generalizada.
planos, inscrustações e vinhetas durante o desenrolar da com­ Seja como for, estamos no tempo do esporte como mercado
e como cinema. E esse processo é sempre mais dominante, quase
petição. Agora se trata de construir o espetáculo e a narrativa
onipresente. Quanto menos o espectador frequenta as salas, tanto
(comentários em várias vozes, quadro de estatísticas), de dra­
mais o espírito cinema se imiscui na mídia televisão. É toda a infor­
matizar (primeiros planos e indicadores de velocidade), de per­ mação que se constrói agora tendo em vista o divertimento e a
sonalizar o acontecimento. Até mesmo o que é ao vivo é obje­ mobilização dos afetos do público. Jornais televisados, atualida­
to de uma montagem. No cinema, esta vem depois da filma­ des, reportagens: cada vez mais a mídia TV organiza seus progra­
gem; na televisão, ela se efetua simultaneamente com as to­ mas como umfilme generalizado que tem por centro o "humano"
madas e o desenrolar da competição. O acontecimento espor­ e o íntimo, a emoção e a compaixão. Se a videofilia destronou a
t i v o é c o n t í n u o , m a s sua retra n s m i s são é c o n t í nua e cinefilia, foi em benefício da busca da emoção-cinema em todas as
descontínua, l inear e fragmentada; ela conjuga tempo real e outras telas. O indivíduo hipermodemo é aquele que espera e busca
tempo passado, tempo da velocidade e tempo em câmera len­ cinema mesmo onde não há cinema. O cinema não está em via de
ta. Com isso o esporte televisionado se constrói como uma regressão: a verdade é que ele fagocitou mais ou menos todas as
superprodução e é visto como um megashow. imagens, ele remodela os gostos e as práticas em direção a sempre
Graças à multiplicação das localizações das câmeras, o mais efeitos-choque e grande espetáculo. Através da televisão e
das outras telas, nasceu urna cinemania que inaugura um novo es­
telespectador vê o acontecimento esportivo sob todos os ângulos,
tilo e um novo olhar: a cinevisão. O sonho não é mais apenas espe­
de perto e de longe, do alto ou segundo planos laterais, à distância
rado na ficção cinema, mas num real audivisual, fi lmado e roteiri­
e em primeiro plano. E o que é mais, os replays e as diferentes zado.25 Depois do sonho de outros mundos, queremos o sonho e as
velocidades conferem uma força estética e sensitiva, ao mesmo sensações em todas as telas do mundo.
tempo que hiper-real, à imagem esportiva. Acabaram-se as
retransmissões uniformes: a cobertura deve agora ser polimorfa e
o estilo "ritmado". A exemplo do cinema contemporâneo, trata­ 24
Zidane, Beckham, Ronaldo: o mundo hipermoderno consagra os deuses do
se não apenas de mostrar imagens, mas de fazer o espectador estádio como suas novas stars. Esse processo é elevado ao quadrado quando o
vibrar, de atingir mais diretamente seu sistema sensorial. É assim cinema, num filme dedicado a Zidane (Zidane, w1 portrait du XXI siecle), focali­
que, com a TV hipermodema, o real esportivo se metamorfoseia za durante toda uma partida suas câmeras unicamente nele, transformando o fute­
bol numa espécie de balé c a partida num filme-ópera. Aqui não é mais o esporte
em show superlativo, em filme espetacular, globalizado. que conta, mas a estética filmica e o jogador, o astro visto como tal por um públi­
A televisão, a magia ao vivo, o esporte: tudo isso faz, ine­ co formado pelo olhar do cinema.
gavelmente, o cinema perder sua exclusividade e sua posição pre­ 25
Se é verdade que os tclcspectatorcs agora querem mais "real", expressão pessoal
e participação, ainda assim a expectativa da maioria é a que diz respeito à
eminente. Mas essa perda é também seu coroamento, na medida
espetacularização das imagens como meio de evasão e descanso.
em que o show esportivo tomou-lhe as técnicas de câmera, a esté-
226 227
E, se a publicidade explorou o cinema e suas técnicas, a
recíproca não é menos verdadeira. As revistas de cinema, com
Cap ítulo IX seus mexericos e suas fotos, funcionaram como instrumentos
A tela publicidade de promoção dos astros e dos fi lmes. De maneira mais ampla,
deve-se ver o próprio star-system como uma verdadeira técnica
publicitária a serviço da comercialização dos filmes. Sob esse
aspecto, tudo leva a considerar a superstar como a mais des­
A tela do cinema não está apenas cada vez mais associada l umbrante imagem publicitária, o mais mágico produto de
à televisão, mas também a uma outra mídia de massa: a publici­ marketing já realizado, tanto que sua sedução "dirige" o públi­
dade. Essa l igação nada tem de periférica, a sétima arte sendo a co e dita os comportamentos, sejam quais forem o fil me ou o
primeira arte cuja existência e o desenvolvimento dependem artigo propostos aos desejos dos consumidores. Jacques Séguéla
intimamente da comunicação publicitária. A publicidade deve assinala com precisão: "A star é a única mercadoria absoluta. A
ser concebida não como uma peça exterior, mas como uma das única multivendável . Seu jeito, sua imagem, sua voz e até mes­
condições da indústria cinematográfica. mo sua memória são dinheiro vivo. E essa gigantesca máquina
O casamento do cinema e da publicidade não é novo. Em de dinheiro é inesgotável . . . A star é a maior invenção de
realidade, a publicidade animada aparece com a invenção do pró­ marketing da história." 1 Publicidade universal, a star é a marca
prio cinema. Já em 1897, os itmãos Lumiere realizam os primei­ que faz vender o produto cinema ao mesmo tempo que outras
ros spots publicitários para o sabonete Sunlight e os estabeleci­ marcas. "As marcas e as stars se tomaram uma única e mesma
mentos Moet & Chandon, e Mélies roda diversos filmes, espe­ coisa", diz Michael J. Wolf.2 É verdade, mas o fenômeno nada
cialmente para a mostarda Bomibus, o aperitivo Picon e os cho­ tem de novo. É consubstancialmente que a star é uma marca
colates Poulain & Menier. A publicidade não tardou a compreen­ mercadológica hiperpersonalizada. Antes mesmo dos criativos
der todo o beneficio que podia tirar da imagem em movimento do da Madison Avenue, Hollywood inventou, através de suas divas,
cinema, sob diferentes fonnas: os primeiros filmes publicitários a marca afetuosa ou emocional , a comunicação encantada e sen­
na forma de desenhos animados aparecem no começo dos anos timental: o que hoje se chama a "marca lave" (Kevin Roberts).
1920 e, já em 193 1, mais de 50% das salas de cinema americanas Tudo indica, porém, tendo em vista a fonnidável expansão
difundem mensagens publicitárias. Aliás, a publicidade não ape­ da lógica de marketing, que a imbricação do cinema e da publici­
nas utilizou as técnicas do cinema, mas também suas figuras mais dade entrou numa nova etapa: o marketing pegou embalo, adqui­
emblemáticas, mais míticas: as estrelas. A partir dos anos 1930, o rindo dimensões e uma importância sem precedente na economia
sabonete Lux centrou sua comunicação nelas: "Nove entre dez do cinema. Prova disso é a escalada dos custos de promoção. A
estrelas usam Lux". E muitas stars começaram sua carreira parti­ multiplicação dos filmes propostos semanalmente, bem como a
cipando de filmes publicitários. A partir dos anos 1950, são cada redução de seu tempo de exploração comercial em salas - em
vez mais numerosas as que aparecem nos cartazes enaltecendo a média três semanas -, fizeram disparar os investimentos publici-
sedução das marcas: Brigitte Bardot para a Max Factor, Françoise
Amou! para a Aronde Simca, Liz Taylor para a Dior. 1
Jacques Séguéla, Hollywood lave plus blanc, Paris, Flammarion, 1982.
2
Citado por Naomi Klein, No Logo, Arles, Actes Sud, 2001, p. 77.

228 229
tários. Estes, na França, cresceram 187,2% entre 2000 e 2005. 3 E 10% dos custos já lhes são dedicados, número médio que
essa dinâmica além do normal está longe de ter chegado a seu pode ser amplamente ultrapassado ou mesmo dobrado, como
limite, pois esses investimentos, na França, são em média duas aconteceu com Borat [Larry Charles, 2006]. Ao mesmo tem­
vezes inferiores aos de um filme americano. Observemos igual­ po, as revistas gratuitas nas salas, os folhetos nas universida­
mente que o investimento publicitário médio para um filme de des, o marketing de rua, com distribuição dejlyers e objetos
animação se elevava em 2005 a 1 , 1 milhão de euros, ou seja, promocionais nos lugares frequentados pelos jovens, se de­
mais que o dobro do orçamento médio dos outros filmes. senvolvem. Novas técnicas publicitárias tiram de moda as
Nesse ponto, o cinema paiticipa em igualdade de condi­ antigas fotos que, pregadas na entrada das salas de outrora,
ções da nova economia pós-industrial, aquela em que os gastos faziam sonhar o jovem Antoine Doinel, a ponto de ele os
de promoção dos produtos são às vezes tão elevados quanto os de roubar em Os incompreendidos [Truffaut, 1959] . Agora a foto
sua fabricação, como acontece com a Nike. O cinema antecipou e o título do filme no cartaz não são mais suficientes: acres­
essa dinâmica: mais cedo que outros ramos, ele foi uma indústria centa-se uma frase-gancho, a catchline, que serve de slogan
engajada em altos investimentos promocionais e de comunica­ publicitário. O filme mobiliza o poder e os jogos da retórica,
ção. Longe de ser um setor "arcaico", o cinema representa assim anuncia-se como mensagem decididamente publicitária, breve
um posto avançado, um dos grandes modelos da nova economia e efi caz. Publicidade dentro da publicidade, o cinema adere
dominada não mais pela produção, mas pelo marketing, pelo ao slogan de marca, ao reforço das campanhas. As mais bem­
branding(*), pela comunicação. Que outro setor de atividade eco­ sucedidas dessas catchlines viram espécies de fórmulas cul­
nômica, responsável por uma pequena fatia do PIB (0,3% nos tas: a frase "Que a força esteja com você" é tão célebre quan­
Estados Unidos), pode se vangloriar de assegurar sua promoção to Star wars, e Um puta.filme! o é ainda mais que Meu mari­
de maneira tão eficaz e de oferecer uma imagem de marca tão do de batom [Bertrand Blier, 1986] , do qual é o gancho. 4
forte no mundo inteiro? Em termos de difusão de imagem, o pri­ Naturalmente, todos esses meios são concentrados para
meiro publicitário mundial, o campeão absoluto da autopromoção otimizar o lançamento do filme. O lançamento de A rthur e os
e do marketing, é sem dúvida o cinema. Minimoys, em 2006, foi acompanhado de 600 produto derivados
Esses gastos se concentram basicamente em cartazes, e de um dilúvio de cartazes; as vitrine das agências BNP foram
que representavam em 2002 cerca de 60% dos gastos. Os vestidas com as cores do filme; a Orange propôs "sessões no ce-
custos de divulgação na imprensa e no rádio chegavam a 15% 1ular" de 2 1 trechos do filme, de dois minutos cada um .
do total. Mas recentemente surgiram mudanças nas maneiras Megamarketing que na verdade começou quatro anos antes, com
de promover o cinema. Os anúncios de filmes em salas - o lançamento em livrarias do primeiro tomo das aventuras do
outrora gratuitos - correspondem a 8% dos gastos. E a Inter­ herói. Graças à Internet e aos anúncios acessíveis em alguns sites,
net e o celular se tornam vetores cada vez mais importantes: alguns filmes são agora "lançados" muito antes que seu lança-

4J ean-François Camillcri, que propõe uma antologia dessas catchlines, observa


3 CNC, "La promotion des films", março de 2006. Os orçamentos publicitários que essa técnica publicitária é agora util izada uma vez a cada dois filmes france­
atingiam 223,5 milhões de euros em 2004. ses e europeus, e duas vezes a cada três filmes americanos (Putain defilm !, Paris,
(*) Construção e gerenciamento de uma marca. (N.T.) Balland, 2006, p. 1 O).

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mento em salas. E, para alimentar o desejo de ver seu próximo ou de "colocação de marcas" nos filmes. O merchandising, isto é,
filme, os estúdios produzem às vezes vários anúncios para um a inserção publicitária no mundo do espetáculo, a integração de
mesmo filme. Como outras indústrias, o cinema põe em prática a um produto ou de uma marca num filme, numa série de televisão,
estratégia da "cronoconcorrência", anunciando antecipadamente numa canção, num romance, num videogame, está em plena ex­
a comercialização dos novos produtos. 5 pansão: nos Estados Unidos, os investimentos em merchandising
Não são mais apenas as stars que servem para promover o passaram de 190 milhões de dólares em 197 4 a 5 12 milhões em
cinema, mas os making-ojf, os produtos derivados, os videogames 1984 e a 3,4 bilhões em 2004: mais de 90% desses gastos desti­
e mesmo as infonnações de custos dos filmes. É assim que custos nam-se à televisão e ao cinema.7 O que era raro, até então, tende
fabulosos se tornam argumentos comerciais tão bons como os a se banalizar: agora os produtos mais diversos, tanto as marcas
resultados do box-office ou os recordes de bilheteria no primeiro de consumo de massa quanto as marcas de luxo, aparecem num
dia ou na primeira semana. No caso de filmes de grande orça­ número crescente de filmes. A série dos James Bond ficou famo­
mento, tudo é mobilizado para que as mídias falem simultanea­ sa por essa técnica, mas Minority Repor! [Spielberg, 2002] a le­
mente do filme, a fim de obter o maior sucesso no prazo mais vou ainda mais longe, 17 marcas estando presentes no filme.
curto. 6 Não se trata mais de informar o público sobre o lançamen­ Embora a prática seja menos desenvolvida na França do que nos
to de um filme, mas de elevá-lo à condição de acontecimento, de Estados Unidos, mais de 70% dos longas-metragens franceses
espetáculo imperdível do qual todo mundo fala e que "é preciso seriam objeto hoje, segundo alguns estudos, de merchandising
ver". Agora se faz cinema antes, depois, ao lado e junto do cine­ com cinco ou seis marcas por filme.
ma: a comunicação do cinema é, antes de mais nada, cinema da Além disso, o merchandising não cessa de ocupar novos
comunicação. Não cinema dentro do cinema, mas cinema acon­ espaços. Não apenas o filme, mas também os créditos do início
tecimento, cinema global. (Moet & Chandon em Jornada nas estrelas - Generations [Da­
vid Carson, 1994]; Audemars Pi guet em Exterminador do Jútu­
Cinema e império da /ogomarca ro-3) e os créditos do fim (Nokia em Celular [David R. Ellis,
2004]) são o objeto de investimentos. Há ainda os anúncios aces­
Se o cinema faz cada vez mais publicidade para seus fil­ síveis na Internet que podem também servir de vi trine promoci­
mes, esta, simetricamente, utiliza de forma crescente o cinema onal às marcas. Estas invadem tanto as telas quanto os cartazes
como veículo de comunicação. Ao mesmo tempo em que cres­ destinados a lançar os filmes (Adidas para Gol, um sonho im­
cem os custos de marketing nas campanhas de lançamento dos possível [Denny Cannon, 2005]; BMW para Carga explosiva
filmes, aumentam também os gastos de "colocação de produtos" [Louis Leterrier, 2002]). Contratos permitem igualmente a um
anunciante fazer referência, em suas publicidades, ao filme no
5 Delphine Manceau, "L'annoncc préalable de nouveaux produits: préparer le qual sua marca é eventualmente colocada: "Bollinger: a cham­
marché ou gêner les concurrents", in Alain Bloch e Delphine Manceau (dir.), De panhe de James Bond''. Donde operações de promoção cruza­
I "idée au 111arché, Paris, Vuilbert, 2000. das, por exemplo entre a Ch1ysler e Firewall, segurança em
6 Assim, na França, um esforço particular é empreendido junto à imprensa do
interior, a fim de informar o país inteiro e não apenas o público parisiense, o que 7 Jean-Marc Lehu, La publicilé esl dans /e Jilm, Paris, Éditions d'organisation,
é feito também um pouco em toda parte com pré-estreias acompanhadas da pre­
2006, p. 45. M uitos dados que aparecem aqui são tirados desse livro.
sença do diretor ou dos astros do filme nas semanas que precedem o lançamento.

232 233
risco, J?r. Pepper e Homem Aranha 2. Estamos nos antípodas da É uma ameaça real ou um medo fingido? Onde vai levar
publicidade subliminar: agora o marketing é ostensivo e a pu­ essa conivência entre cinema e branding? Pelo menos em rela­
blicidade está presente mesmo nos produtos culturais. Na era ção a um futuro previsível, os perigos apontados parecem muito
hipermodema, o cinema se impõe cada vez mais como tela-vi­ exagerados. Pois, para ser eficaz, a colocação de marca deve ser
trine que põe em cena as marcas. "justificada", tolerada e aceita pelo público, o que implica que
O que é visado pelos anunciantes não é nada misterioso. o filme não deve aparecer como uma publicidade escandalosa ­
Trata-se basicamente de aumentar a notoriedade da marca, de caso contrário o beneficio específico do procedimento é anula­
melhorar e valorizar sua imagem, às vezes de redinamizar a mar­ do. Desvios e excessos são previsíveis, mas inevitavelmente eles
ca. 8 Do ponto de vista desses objetivos, essa técnica publicitária serão contidos. Como a presença das marcas nos fi lmes não
conta com algumas vantagens. O público manifesta pouca reação poderá ultrapassar um certo limiar, ela não os matará, assim
contrária à publicidade, pouca hostilidade em relação ao apareci­ como não destrói a imprensa livre.
mento de marcas nos filmes, contanto que este se justifique pela De resto, nada impede de pensar que o branded entertain­
trama ou pelo conteúdo da história: 80% dos norte-americanos ment poderia favorecer a realização de uma nova família de cine­
declaram apreciar essa forma de publicidade. Ao contrário do spot, ma publicitário, e de boa qualidade. Em 200 1, a BMW encomen­
que interrompe o prazer do telespectador, o merchandising se in­ dou oito minifilmes de oito minutos cada um, dedicados à marca
tegra ao filme, dá mais crédito à história, produz uma impressão e realizados por grandes diretores hollyw oodianos: Tony Scott,
de realidade suplementar. Foi, em particular, o que levou Spielberg Ang lee, John Frankenheimer, Wong Kar-wai, John Woo, Alejan­
a inserir uma série de marcas em Minority Report. dro González lfiarritu, Guy Ritchie, Joe Camahan. Embora esses
A colocação de marcas é violentamente estigmatizada, pe­ filmes estivessem todos centrados num dos modelos da marca,
los que odeiam a publicidade, como ilustração do expansionismo não se tratava em absoluto de um clipe publicitário, mas de um
da logomarca, figura onipotente do branding que invade todos roteiro original contando uma história. Difundidos num site da
os espaços e todos os suportes, colonizando até mesmo a cultu­ Internet, esses minifilmes obtiveram um grande sucesso: 50 mi­
ra e o espaço mental. Transformado em "extensão de marca" e lhões de downloads, antes que um DVD reunisse a série comple­
em "mídia de marca", o cinema tenderia a virar uma agência ta. A American Express, por sua vez, pôs em cena o Superman:
publicitária das marcas. Num contexto em que as fronteiras se nos dez primeiros dias, seu site foi visitado um milhão de vezes.
confundem, seria grande o risco de ver a existência psíquica E os pedidos de cartão de crédito registraram um aumento de
completamente absorvida pelo imaginário mercantil e a criação 25%. Ford, Chevrolet, Jeep, Unilever, Pirelli, Starbucks, Pepsi­
totalmente submetida aos imperativos comerciais das marcas. 9 Co, Trajan, Reebok se lançaram no mesmo caminho produzindo
webisodes (curtas-metragens passados na Internet) com recursos
incomparavelmente maiores que os de um clipe publicitário. Pode­
8 A eficácia dessa prática promocional é às vezes imediata. Nas pegadas de E. T,
se imaginar no futuro o desenvolvimento desse tipo de filmes sob
os bombons Reese's Pieces aumentaram suas vendas em 65%; a Omega registrou
os auspícios das grandes marcas, como meio de diversificação da
um salto em suas vendas de 40% após 007 contra Goldeneye ( 1 995]; as dos vi­
nhos Pinot Noir aumentaram, nos Estados Unidos, 22% nos meses seguintes ao publicidade e alternativa aos fom1atos atuais.
lançamento de Sideways - Entre umas e outras (2004 ]. A publicidade moderna inventou o cartaz, depois o spot e
9 Essa problemática é muito bem apresentada por Naomi K lein, em No logo, op. cit.
agora os curtas-metragens de criação difundidos na Tela. Nada

234 235
autoriza pensar que o inflacionismo do branding signifique o M as essas profundas diferenças não devem ocultar as
fim da qualidade, da impertinência e da liberdade de criação. transformações que levaram a uma nova relação social com a
Será preciso lembrar que, num contexto histórico muito dife­ publicidade e, mais precisamente,a uma dinâmica de legitimação
rente, as encomendas dos príncipes do Quattrocento, tendo em cultural desta. O movimento está em marcha desde os anos 1970-
vista sua fama, de modo nenhum impediram os pintores de rea­ 1980. O museu da publicidade foi inaugurado na França em
lizar obras-primas? E que Moliere, ao fazer da encomenda que 1978. A "noite dos publívoros" alcança um amplo sucesso em
recebeu de Luís XIV o próprio tema da sua comédia, escreveu muitos países. Há programas de TV dedicados à publicidade.
um divertido Improviso de Versalhes [ 1663 ]? A existência de Museus organizam retrospectivas de filmes publicitários. Jean­
um contrato e de um patrocinador "interessado" não equivale Paul Goude é consagrado e exposto no museu.
ao desaparecimento da criação artística. Aqui, o paradigma é Não há apenas uma dinâmica de enobrecimento cultural
antes o da escrita sob pressão, que sempre foi mais um estimu­ da publicidade. Vemos igualmente um número cada vez maior de
lante do que um túmulo da criação. Não asfixia do cinema pelo realizadores prestigiosos de cinema assinar filmes publicitários:
marketing tentacular, e sim prosseguimento, por outros cami­ ontem Robert Altman, John Schlesinger, Roman Polanski, Claude
nhos, de sua multiplexificação, a fim de escapar aos padrões da Chabrol e mesmo Jean-Luc Godard (que dirigiu em 1992 um spot
publicidade televisada e dos conteúdos comerciais, numa época de 30 segundos para a Nike); hoje Patrice Leconte, Luc Besson,
em que algumas categorias de consumidores passam mais tem­ David Lynch, Baz Luhrmann, John Woo, Tony Scott, Alejandro
po na Internet do que na frente da televisão. González Ifíarritu, Guy Ritchie. Claro que no passado alguns di­
retores fizeram publicidade (Tati, Lautner, Molinam), mas é numa
Publifilia escala bem diferente que o fenômeno hoje se manifesta, a tal pon­
to que se generalizou. O que era a exceção tomou-se a regra, por
Nada mais banal do que opor cinema e publicidade. Um é assim dizer, e o que se passava em silêncio virou motivo de orgu­
a sétima arte, a outra, uma comunicação mercadológica a servi­ lho, de reconhecimento, de interesse estético e fílmico. Nenhum
ço da notoriedade e da comercialização das marcas. Suas diretor de cinema, nenhuma star agora se envergonham de filmar
temporalidades e seu modo de produção são profundamente di­ para marcas comerciais: o filme publicitário conquistou seus títu­
ferentes: 30 segundos para um spot, contra uma hora e meia a los de nobreza no interior mesmo do mundo do cinema. Os tem­
três horas para um longa-metragem. Em geral, a filmagem de pos mudaram: raros são os realizadores que recusam fazer um
um spot dura de um a três dias, enquanto a de um filme requer de filme publicitário. A nova geração não tem mais as reticências ou
oito a dez semanas ou até mais. Ao ritmo extremamente rápido dos a vergonha de seus antepassados; a publicidade é algo natural,
planos da publicidade se opõe o dos filmes, bem mais diversifica­ impõe-se como uma evidência.
do. Além disso, o nome dos realizadores de filmes publicitários Em nossa galáxia hipermidiática, não é mais apenas oca­
raramente é conhecido. Por fim, o cinema suscita a admiração e a sionalmente que as estrelas emprestam seu rosto para os produ­
paixão do público, enquanto a publicidade provoca o zapping e às tos de beleza: elas assinam, secundadas por advogados, contra­
vezes a exasperação dos telespectadores. As duas telas se enfren­ tos válidos por vários anos e que especificam o número de dias
tam, a da publicidade aparecendo, por seus cortes,como uma agres­ de representação, detalhes da produção e, naturalmente, o mon­
são contra os filmes e o público. tante do cachê - 3,6 milhões de dólares a Nicolc Kidman pelos

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cinco dias de filmagem do spot Chanel. O outro fenômeno novo trata-se de uma nova relação com a tela de TV e publicitária. Ao
é que as grandes vedetes podem aparecer em spots para os pro­ antigo desprezo sucede um interesse por tudo o que diz respeito
dutos mais diversos: massas (Gérard D epardieu), bancos à imagem na tela ou no ecrã, que adquiriu uma espécie de valor
(Catherine Deneuve), máquinas de café (George Clooney), tem­ em si, merecedor de interesse, trabalho e criatividade. A publi­
peros (Jean Reno). Longe de degradar a imagem dos grandes cidade filmada é vista agora como uma forma de expressão na
ídolos, a publicidade tende agora a realçá-la. Se as stars associ­ qual se pode exercer o jogo, o humor, a imaginação livremente;
am mais facilmente que outrora sua imagem às marcas, estas, é uma das manifestações da ecranofilia hipermodema, uma tra­
por sua vez, recorrem cada vez mais às stars para aumentar a dução forte e sensível da expansão do modelo cinema: "A pu­
notoriedade e o glamour de seus produtos. Edgar Morin evocou blicidade é o domínio mais criativo, mais ousado. Ligue o apa­
recentemente a decadência do star-system : "O star-system,como relho. Em três segundos, você sabe onde está. Já num filme se
sistema autorregulador não apenas econômico mas mitológico, percebe que há alguma coisa antes ou depois. Um telefilme?
não existe mais". 1 º Sob muitos aspectos, é o contrário que acon­ Um inferno, com luzes em demasia e um som horroroso. Can­
tece. Ao mesmo tempo em que o star-system coloniza cada vez sativo. A publicidade? O reinado da elipse, da interpenetração
mais domínios, a ligação entre stars e luxo, star-system e negó­ de imagens. A pesquisa em estado puro". 1 3 O importante é me­
cios, musas e publicidade, nunca foi tão ostentatória, tão triun­ nos o conteúdo do que o fato de encontrar soluções a um proble­
fante. 1 1 Agora parece que o passado glorioso das marcas de luxo ma telânico enquanto tal.
não é mais suficiente: a imagem delas passa, em parte, pela das E assim se chega à célebre fórmula: "O meio é a mensa­
stars do cinema. gem". Claro que ela tem um outro ponto de aplicação numa
É dificil separar a atitude positiva dos novos realizadores cultura telânica atravessada pelo espírito cinema: fabricar a ima­
em relação à publicidade das condições financeiras vantajosas gem na tela, jogar com as imagens, enfrentar o desafio de todas
que ela lhes oferece. Mas essa motivação não explica tudo. Em as telas - eis o que atrai os realizadores, sejam quais forem o
realidade, a realização de filmes publicitários é também vista conteúdo veiculado e a intenção comercial dos spots.
como um meio de experimentação, um instrumento de pesquisa Se um movimento leva cineastas reconhecidos a filmar para
e de aprendizagem: como diz George Lautner, "graças à publi­ a indústria publicitária, um outro movimento vê jovens futuros ci­
cidade, testei novos materiais, aprendi algumas trucagens . . . A neastas começarem em suas carreiras no mundo da publicidade. O
publicidade é para mim ao mesmo tempo um tubo de ensaio, que não deixa de ter efeito sobre a estética do cinema. É o caso de
uma aprendizagem e um viveiro extraordinário para os meus Jean-Jacques Annaud, de Jean-Jacques Beineix, de Bob Swain ou
longas-metragens." 1 2 Um outro ponto é igualmente primordial: de Étienne Chatiliez. Sob a influência da publicidade, a imagem­
cinema transpôs uma etapa suplementar no caminho do visual triun­
10
Edgar Morin, les Stars, op. cit., p. 162. fante, do efeito, da brevidade dos planos, do ritmo, das rupturas de
11
Em realidade, a lógica do star-system se propagou consideravelmente, tomando-se rnontagen, da inserção de planos inesperados: seguidamente foi
o modelo dominante do funcionamento de um número crescente de atividades e de
setores econômicos: advogados, arquitetos, top moe/els, museus, artistas, escritores,
músicos, esportistas. Sobre esses pontos, Françoise Benhamou, l 'Économie du star­
system, op. cit.
13
Étiennc Chatilicz, "Lcs dcssous de la pub à la TV", le No11vel Observateur, 1 5
12 Citado por Jacques Guyot, L 'Écran pub/icitarire, Paris, L'Harmattan, 1992, p. 94. d e julho de 1983.

238 239
sublinhado o que a estética de A diva e os gângsteres [ Jean-Jacques Hiperpublicidade
Beinex, 198 1] deve à do clipe publicitário. Essa tendência começa
nos anos 1980: Ridley Scott ou Adrian Lyne introduzem em seus Desde os anos 1980, a relação entre criação publicitária e
longas-metragens a estética do clipe, com seu ritmo entrecortado, criação cinematográfica entrou também no tempo da segunda
seus ângulos e até mesmo, em relação a Lyne, o erotismo chique modernidade. Até então, a publicidade tinha por finalidade va­
em voga nas revistas de luxo e nos cartazes. Essa estética se prolon­ lorizar os méritos objetivos e psicológicos dos produtos, a tela
gou em autores como David Fincher ou Michael Bay. publicitária estando a serviço da memorização mecanicista ou
Mas a cinemania aplicada à publicidade exerce agora seus "dirigida" da marca. Foi contra essa primazia do objeto (a copy
efeitos bem mais além dos círculos profissionais. Com a Internet strategy) que se desenvolveu a star strategy cara a Séguéla e, de
se abriu o caminho a publicidades realizadas também por amado­ maneira mais ampla, à publicidade denominada criativa. Aos
res. Na Current TV, os autores recebem um cachê se sua criação é olhos desta, agora não se trata tanto de martelar uma mensagem
aceita, e este atinge 50 mil dólares se ela for difündida na Web. que enaltece os beneficias do produto, e sim de distrair, estabe­
Empresas como Sony, L'Oréal, Converse, American Express e lecer uma relação de conivência, encontrar uma "ideia" de ven­
Chevrolet já jogam com essa carta. O p1imeiro filme publicitá­ da ou de marca, valorizar um modo de vida ou um imaginário,
rio feito por um amador, para a PlayStation Sony, foi difundido rejuvenescer a imagem. Inovar, surpreender, divertir, fazer so­
na Current TV. Entramos na dimensão interativa e participativa, nhar, comover, criar um mito, transformar a marca em star: o
no do it yoursel advertising, nos conteúdos e visuais gerados que isso quer dizer senão que a publicidade tomou Hollywood
pelos usuários. Não nos enganemos: nem tudo se explica pela como mode l o , distanciando-se do bom ve l ho rec l a m e
democratização e pela digitalização das técnicas. Esse fenôme­ behaviorista? Eis aí a publicidade reorientada e remodelada em
no também ilustra a formidável expansão social do desejo de parte pelo próprio espírito cinema.
cinema que investe toda tela, toda expressão fílmica, para mui­ Isso significa, estruturalmente, a reconfiguração da pu­
to a lém dos limites de sua antiga fonna canônica. blicidade pelas três grandes lógicas que definem o hipercinema.
De maneira mais geral, um número crescente de marcas As fronteiras e as divisões permanecem, mas agora, em sua ponta
busca de diversas maneiras associar os consumidores aos dis­ avançada, a publicidade obedece aos mesmos princípios que
positivos de sua comunicação publicitária. Um sal tador de regem o hipercinema. Pode-se assim definir a hiperpublicidade
balões nas ruas de San Francisco devia servir de roteiro para pela importação das lógicas do cinema hipermodemo para a
um spot da Sony: sabendo antecipadamente do momento das ordem da comunicação comercial. 14
filmagens, moradores do bairro se apressaram a filmar o acon­
tecimento e a divulgá-lo em seguida na Internet, antes de o 14 U m exemplo emblemático é o filme, assinado por Ridley Scott, que a Macintosh
spot ser lançado na televisão. Publicidade virai ' buzz marketing , lança em 1984 e eleito o melhor tilmc publici tário do século pela imprensa ame­
criação conjunta com os consumidores, certamente; mas tam- ricana. Ali vemos homens reduzidos ao estado de robôs, como em Metrópolis
bém cinemania de um público cada vez mais ávido de filmar e [Fritz Lang, 1 926), escutando numa tela gigante o discurso totalitário de um B ig
Brother; de repente, aparece uma mulher que, lançando um projétil na tela, a faz
compartilhar seus vídeos, de produzir e ver imagens na tela. É voar em pedaços; o packsliot apresenta então o nome da marca e mostra o compu­
o espírito cinema que se expande, ainda que através das for­ tador individual como o libertador que permite aos escravos se tornarem homens.
mas não elaboradas, imediatas, do vídeo amador.

240 241
O excesso tranquilo minutos 1 6 : ainda em 1975, a Renault fez realizar, p e l a R l 6 um
filme de 1 minuto e 56 segundos. Desde os anos 1980 , porém, os
A primeira lógica que a publicidade conseguiu incorporar spots encurtam ao mesmo tempo em que seu ritmo s e acelera. 11
é a da imagem-excesso, adaptação tanto mais significativa na me­ E les funcionam cada vez mais na ordem do h ip e rcurto (de
dida em que a publicidade mantém de longa data ligações muito 30 segundos a 8, chegando recentemente a 1 seg undo) e do
estreitas com a categoria de excesso. O próprio slogan tem tudo a hiper-rápido (planos sucessivos de 1 segundo cada um). "Cada
ver com isso, buscando valorizar o produto por promessas extre­ instante é imediatamente substituído por um instan t e totalmente
mas (beleza, sabor, saúde, juventude, vitalidade, prazer) e por uma novo. O tempo do filme publicitário seria assim o de um nasci­
retórica do exagero superlativo. A tendência organizadora aqui é mento perpetuamente alimentado." 1 8 A tendência é de retração
a hipérbole, tanto mais forte quanto deve se exprimir num tempo extrema da imagem no tempo e de uma enxurrada de im agens em
muito curto e de forma concentrada. "Persil lava mais branco": o disputa na estética clipe. Rapidez extrema dos planos chegando qua­
hiperbólico do mais, realçado pela lítotes da formulação. A no­ se aoflash, busca constante do ritmo e montagem de cortes sucessi­
vidade é que esse excesso primeiro passa do exagero ao extre­ vos: tudo é utilizado para impressionar com força e velocidade.
mo: o sabão em pó acaba lavando mais branco que o branco. 1 5 A Ávida de efeitos-choque, a publicidade nec e s sariamente
necessidade de inovar e de se distinguir, o imperativo de im­ utiliza todas as técnicas novas que lhe oferecem os artifícios e
pressionar os espíritos e, nos países em que ela é autorizada, a os efeitos especiais. Já no começo dos anos 1980 , a imagem
introdução de publicidades comparativas levam à afirmação en­ feita por computador abriu a possibilidade de um j ogo com as
fática do "sempre mais, sempre melhor". "Vodca absoluta": mais imagens até então impossível: o Citroen que deco la do porta­
vodca que vodca... aviões Clemenceau é o universo de Star Wars chega ndo ao mun­
Lógica do excesso que ultrapassa em muito os simples con­ do publicitário. Com o desenvolvimento das tecn ologias, em
teúdos: ela se exprime agora no ritmo e até na sintaxe dos spots. quinze anos se passou dos balbucias aos efeitos h igh-tech: a
Os primeiros filmes publicitários podiam às vezes durar 1 ou 2 Citrõen, em The Dancer, transforma digitalmente os elementos
do carro num impressionante robô de rrietal, o qua l , adquirindo
forma como num universo fantástico, vive, dança, se introduz
Ao relembrar esse filme, Jean-Marie Dru diz que ele "parecia um longa-metragem...
num mundo agora virtual. 1 9 Todos os procedimentos s ão utiliza­
um longa-metragem de sessenta segundos". Ao apagar-se a fronteira entre publi­ dos: deformações de imagens, anamorfoses sintétic as , inserção
cidade comercial e divertimento, inaugura-se a era criativa, qualitativa, emocio­ de imagens digitalizadas, criação de personagen, v irtuai . o
nal do filme publicitário (Jean-Marie Dru, La Publicité autremenr, Paris, Gallimard, avanço tecnológico acarreta uma profusão de e feitos, uma esca-
2007, p. 3 1 ).
15 O caso é bem conhecido e traduz a lógica do sempre mais, perceptível, na
França, desde o início da época do consumo de massa: o primeiro slogan "Ah ! 16 O formato dominante dos anos 1950 era de 60 segundos.
Essa brancura Persil " data d e 195 1 ; dois anos mais tarde, o grau superior inter­ 17 Jacques Guyot, L 'Écran publicitaire, op. cit., p. 1 29- 1 3 1 e 135-
1 36.
vém - "Persil lava mais branco" -; seis anos depois, em 1959, é a vez de Super 18 Florcnce de Meredieu, Le Film publicitaire, Paris, Veyrier, 198
5, p. 96.
Persil, que lava "ainda mais branco" que Persil. Em 1 979, a Coluche leva mais 19 A publicidade precede aqui o cinema. Em 2007, Transformers,
de M ichael Bay,
longe a escalada: "O novo Orno lava ainda mais branco que o branco". Gilles desenvolve a mesma ideia. "Exceto algumas diferenças (milhões de dólares e duas
Lugrin, "Quand Coluche lave plus blanc, !e packaging contre-attaque", Com. in, horas e vinte a mais), Transformers nada acrescenta a essa publicidade". Le Mon­
fevereiro de 2003 . de, 25 de julho de 2007.

242 243
lada de imagens e, portanto, uma explosão dos orçamentos que, a tela publicitária toma de Hollywood seu estilo, ela fascina e é
diante dos custos de digitalização e das filmagens de tipo fascinada pela imagem envolvente do cinema, pela cena da
hollywoodiano, disparam. Do espetáculo ao hiperespetáculo: o feminidade em excesso. Com a publicidade-espetáculo se efe­
spot parece um filme, ele conta uma história, desenvolve uma tua a aliança da qualidade artística e da superoferta, da norma e
estética do choque ou da magia visual. Não é mais o palhaço da beleza-choque, da perfeição e da hipertrofia dos meios, da
anunciante mas o homem do cinema-espetáculo, Mélies, que graça e da desmedida da mídia. Uma beleza tipo blockbuster a
triunfa agora na tela publicitária. 20 serviço da marca e da estrela.
A dinâmica do excesso se verifica mesmo no domínio es­ Essa sublimação passa por uma estetização das formas, por
tético, traduzindo-se por uma sofisticação hiper-real, por um um formalismo sofisticado e minucioso, o que não surpreende quan­
aspecto de requinte extremo, sobretudo nas publicidades que do se sabe que muitas dessas publicidades são feitas por estetas
magnificam o universo do luxo, da beleza, da moda. O vindos da fotografia, do clipe, do cinema. O virtuosismo dos
maneirismo expõe toda a sua sedução artificial: na tela publici­ enquadramentos, o sentido do grafismo, os efeitos de luz, o jogo
tária, Carole Bouquet, Nicole Kidman ou Charlize Theron são com as cores, a busca de uma expressão estilística que imponha
mais estrelas do que nunca, mais glamorosas do que nunca, ain­ sua evidência em alguns planos, em alguns segundos: o spot é qua­
da mais belas do que na tela de cinema. Aqui tudo é luxo, tenta­ se obra de arte. Sobretudo se é visto na tela de cinema que, mos­
ção e feminidade absoluta, "mulher de ouro" (Dior), perfeição trando a imagem em toda a sua amplitude, traduz plenamente suas
da perfeição. Se no cinema as estrelas são mais "humanas", nas intenções formais. Mais do que na tela de TV, é no cinema que a
publicidades elas aparecem com uma irrealidade e uma sensua­ publicidade exprime sua dimensão estética. Jean-Jacques Beineix,
lidade subl ime cada vez maiores. O que se vê não é senão um homem de publicidade e de cinema ao mesmo tempo, já havia
hino hiperból ico à beleza feminina, uma mise-en-scene renova­ mostrado o caminho. A lua na sarjeta [ 1983], sem dúvida o ponto
da da mulher olímpica e das deusas soberanas, inacessíveis, da alto de suas pesquisas visuais,2 1 termina de maneira sintomática
grande época do star-system. As estrelas ideais não são mais as num plano deslumbrante: o de um cartaz publicitário mostrando
modelos de outrora, mas elas se tomaram modelos para os cria­ uma garrafa de bebida alcoólica que traz, como uma referência a
dores e diretores artísticos das grandes casas de luxo. Quanto Rossellini, a marca Stromboli. Garrafa ao mar, numa luz azul fria,
menos a vampe hollywoodiana aparece na tela de cinema, tanto plano assombroso que atrai os olhos na noite e desdobra um slogan
mais seu estilo inspira a tela publicitária. Longe de desaparecer, em forma de filosofia da existência: "Tty another ivorlcf'. Publici­
a beleza hiperespetacular inventada pelo star-system não cessa dade, filme, publicidade dentro de um filme, e tudo com a mesma
de ser reanimada pela publicidade, como um remake em honra exigência e o mesmo êxito formais.
do cinema. Sempre mais artificialidade, show estético e extático: No entanto, essa espiral do excesso publicitário não vai até o
extremo dela mesma. Isso porque ela é submetida ao imperativo de
20 A publicidade-espetáculo é o objeto de numerosas críticas em razão da gratuidade
seduzir para vender, devendo assim proscrever tudo o que possa
de seus filmes, de urna tendência a dizer "qualquer coisa", sem ligação coerente
com o produto. Mas, se essa tendência inegavelmente existe, não é de modo al­
gum algo que lhe seja consubstancial, a hiperpublicidade tendo já realizado pe­ 21
Trabalho visual que se percebe, por exemplo, na sua busca do vermelho ideal
quenas obras-primas de sutileza, audácia e imaginação que, longe de desservir o para traduzir e harmonizar na tela o vermelho da Ferrari e o vermelho do vestido
produto e a identidade de marca, são vetores inigualáveis de sua promoção. usado por Nastassja Kinski .

244 245
su citar rejeição, repulsa, horror, aversão. Ao contrário do cinema, No entanto, também a publicidade entrou, à sua maneira,
nem tudo é permitido na publicidade filmada: nenhum traço de na era da multiplexidade. Sem nada perder de sua inevitável
feiura, de violência, de sangue, de sexo explícito; fica-se na suges­ lógica simplex, a comunicação comercial, paradoxalmente, se
tão e na erotização sofl. O que o cinema propõe, nos filmes mas complexifica ou, mais exatamente, se "culturaliza", se torna mais
também na publicidade que faz deles -através de cartazes e trailers diversificada e heterogênea na maneira de "falar" do produto e
-, está interditado à publicidade, que deve fazer concessões, fican­ da marca. Até um tempo atrás, os spots tinham uma única ins­
do assim muito aquém das audácias do cinema. Contrariamente ao tância: valorizar o produto, mostrando seus beneficios objeti­
que às vezes se afirma22 , a publicidade não é o protótipo da expres­ vos através de roteiros elementares e lineares. Isso tende a mu­
são cinematográfica contemporânea, o cinema continua sendo o dar: a relação com o produto nem sempre salta aos olhos, a
motor. Só ele se pennite, até em suas próprias publicidades - ver o l inearidade se rompe, os enredos viram quebra-cabeças, jogam
cartaz de O povo contra Larry Flint [Mitos Forman, 1996], com com associações de ideias, com referências, piscadelas de olho,
um homem vestido só de cueca com a estampa da bandeira ameri­ emoções, surpresas variadas. 24 Mais: há alguns que propõem
cana, crucificado em posição crística sobre o sexo de uma mulher inclusive sentidos e valores - Think different (Apple), Jmpossible
nua -, todas as audácias excessivas. As raras incursões da publici­ is nothing (Adidas), Be yourse( (Calvin Klein). Com frequên­
f

dade nessas zonas de interdição - o caso Benetton é o exemplo cia a história contada nada diz do produto e às vezes se destaca
mais conhecido - tiveram que retroceder. A publicidade vive na pela pura ausência deste. Grandes espaços à americana, uma
lógica da sedução, do sonho, do desejo. Mesmo assim ela pratica, música de road movie, paisagens, a estrada ao infinito e nada
no interior de seus próprios limites, a imagem-excesso cujo mode­ mais: somente a mensagem final, no momento do packshot, in­
lo o cinema hipermoderno lhe fornece. dica que se trata de uma propaganda do Golf da Volkswagen,
sem que o carro tenha sido visto uma única vez. O que se vende
Uma raspa de multiplexidade aqui é um espírito, uma atmosfera, um desejo.
Para acompanhar e traduzir essa diversificação do modo
Uma regra de ouro comanda a publicidade: o imperativo narrativo, a publicidade filmada se apoia na complexificação
de simplicidade e univocidade. Exprimir uma ideia e uma só. dos procedimentos técnicos. Split screen que separa a tela e conta,
Simplificar, simplificar sempre mais, fazer tudo convergir para em imagens paralelas, duas histórias ao mesmo tempo; defor­
a comunicação de uma só ideia expressa sem nenhuma mações de imagens; utilização do preto-e-branco ou manchas
ambiguidade. O que se comunica bem se enuncia com clareza e de cor; jogos de filtros e de luz; imagens de computador que
simplicidade. Uma só ideia por spot e dita de um modo simples: fazem voar os viajantes do TGV ou que constroem uma pirâmi­
less is more. 23 Unidade, simplicidade, limpidez: o inimigo nú­ de humana para formar os arcos de um viaduto a fim de ilustrar
mero um da publicidade é a complexidade. a mensagem final: "Os verdadeiros sucessos são aqueles que
compartilhamos" (grupo Vinci). É por ter sido formado pelo
22 "A publicidade tomou-se o núcleo da cultura popular e mesmo seu verdadeiro
cinema, que o habituou à lógica multiplex, que o olho do espec-
protótipo", escreve, por exemplo, Armand Mattelart, L 'Jnternationale publicitaire,
Paris, La Découvcrte, 1989, p. 34. 2<1 Claude Degoutte, "Lcs films publicitaires ont la vie dure", in Art & Pub, Paris,

23 Jean-Marie Dru, Le Saut créatif, Paris, JC Lattes, 1984, p. 1 67- 1 80. Centre Pompidou, 1990, p. 535.

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tador recebe sem problema esse tipo de imagens. Também aí a entrega ao pecado de Onã (quando se trata apenas de um produ­
publicidade adotou o espírito cinema. to que ele está agitando). Gays e lésbicas fazem parte agora da
Assim ninguém mais se surpreende de ver aparecer na paisagem. Jogando com a transgressão e a transexualidade, a
tela publicitária outras formas de diversificação, relativas aos Levi ' s filma uma magnífica negra que, num táxi, retoca a
personagens, por exemplo. Sabemos como o famoso macaco maquiagem às pressas antes de sacar um barbeador elétrico que
Orno introduziu os animais nos spots de sabão em pó. Pequenos lança sobre seu sexo uma imagem totalmente outra. Do mesmo
monstros meio bonachões, meio inquietantes, saídos dos filmes modo, impelidos pelo multiculturalismo e pelo marketing
fantásticos e dos desenhos animados, encarnam agora a sujeira identitário, negros25 , magrebinos e demais comunidades apare­
que tal produto desodorizante ou tal produto desentupidor eli­ cem em campanhas publicitárias que enaltecem a diferença.
minam com uma simples pressão do frasco. Nesse universo Vemos assim que a lógica multiplex, que é a linguagem mesma
antropomorfizado,a imagem mesma do homem se despadroniza. do cinema hipermoderno, penetra, ainda que de fonna limitada,
Os papéis se invertem: é o homem que lava a louça, é o garoto no espaço-tempo da hiperpublicidade.
de dez anos que ensina à mãe que o uso abusivo de antibióticos E não é tudo. O sistema mesmo da comunicação das mar­
é uma heresia terapêutica e ao pai que o leite tem um valor cas se multiplexifica. Uma prova é que as empresas dão cada
nutricional. As idades da vida, do mesmo modo que no cinema, vez mais sua preferência às "mídias exteriores", diversificando
vêm diversificar a imagem por muito tempo exclusiva de seus modos de comunicação em marketing direto, feiras e sa­
pessoas jovens e belas ou de donas de casa de menos de cinquenta lões, relações públicas, publicidade nos locais de venda,
anos. Os bebês não aparecem mais apenas em anúncios de fral­ lobbying, mecenato, patrocínio, marketing de acontecimento e
das ou produtos que lhes dizem respeito, mas são digitalmente virai . Além disso, a própria publicidade está sendo reciclada
transformados, para mostrar os poderes de uma água mineral, pelas lógicas de diversificação e de renovação acelerada, típi­
em bebês nadadores e dançarinos, numa referência às coreogra­ cas da sociedade-moda de hiperconsumo. Num momento em
fias náuticas, criadas por Busby Berkeley, de Esther Williams que os mercados são cada vez mais segmentados, em que os
cercada de garotas-náiades em A rainha do mar (Mervyn LeRoy, consumidores estão "fartos", supersaturados de mensagens, a
1952). Como todas as idades têm agora sua vez, o filme seguin­ publicidade tende a dividir suas campanhas, fragmentando-se
te celebra o mesmo produto a partir de uma outra coreografia em múltiplas execuções e em estilos variados: chegam a 500 os
náutica, pondo em cena, desta vez, velhos que se regeneram anúncios da Absolut Vodka que combinam unidade e diferen­
nessa fonte de juventude: é Cocoon (Ron Howard, 1985). A ter­ ças. Uma lógica que não poupa a tela publicitária: atualmente
ceira idade, como a primeira, não está mais impedida de partici­ os filmes publicitários devem ser renovados a cada seis ou oito
par: uma soberba Jane Fonda vem dizer, para provar a eficácia meses. A Coca-Cola fez rodar 17 fil mes em 1997, contra apena ,
da L'Oréal, que tem 69 anos. E que se sente muito bem. um em 1986. Desde 1995, a Levi 's lança de dois a três filmes
O mesmo vale para todas as categorias por muito tempo
excluídas por uma publicidade que se recusava a infringir os
25 Primeira atriz negra a obter o Osear de melhor atriz num papel principal, em 200 I ,
tabus sexuais. A mulher entra de surpresa na cozinha e vê o
Halle Berry, que promove a imagem da Revlon, explica seu engajamento na marca
marido inclinado sobre a pia, ocupado num movimento de vai­ dizendo que, quando passou a trabalhar com ela no começo dos anos 1990, nenhu­
vém manual que a faz pensar, horrorizada, que seu homem se ma negra figurava nos anúncios de produtos de beleza ( entrevista com Jean Serroy).

248 249
por ano. Num certo momento, a Miller Lite chegou a lançar um esp01te, dos people, da própria publicidade. A Nike se inspira
novo filme a cada três dias. 26 A variedade e a diversidade se nesse novo imaginário para criar uma partida virtual em que um
tomaram os novos imperativos de comunicação das hipermarcas. menino pobre das favelas conduz uma equipe na qual figuram
os astros do futebol mundial. Sonho louco mas ao alcance de
A distância, apaixonadamente todos - Just do it - e não desprovido de ironia: é o garoto que
mostra descontentamento com um passe de bola de um dos seus
Mas é mais ainda pela imagem-distância que a publicidade prestigiosos companheiros, que ele j ulga pouco esforçado. A
se encontra particularmente em sintonia com o estilo do Ferrero, do mesmo modo, põe em cena os ricos e os poderosos,
hipercinema. Ela rompe assim radicalmente com seu funcionamento mas apresentando-os de forma tão kitsch que as recepções do
inaugural, moderno, mecanicista. Se o riso tinha então seu lugar, embaixador, onde são servidos seus chocolates, fazem mais sorrir
era um riso bonachão, quase infantil, à imagem dos jogos de pala­ do que salivar. Todos compreendem, ninguém é bobo: estamos
vras ingênuos, refrões e reiterações sobre os quais eram construídas na publicidade, isso é apenas publicidade, mas ela enriquece,
as mensagens, dos primeiros reclames até os dos anos 1950: por sua vez, essa nova cultura referencial da qual é um dos cons­
"Melhorai é melhor e nãofaz mar', "Lactopurga é pá-pum", "Quem tituintes essenciais.
bebe Grapette repete"... A publicidade era repetitiva e persuasiva, É o que explica o vaivém das citações entre cinema e pu­
a fim de inculcar o consumo moderno num público que descobria blicidade. Na maioria das vezes, é a publicidade que se inspira
sua novidade, não sem wn maravilhamento infantil. Esses tempos no cinema para parodiar seus gêneros, os filmes clássicos ou de
estão distantes, agora a publicidade se dirige a um público nascido sucesso. King Kong, O carteiro e o poeta [Michael Radford,
e formado no seio do consumismo. Daí a introdução e a difusão 1995], Intriga internacional [Hitchcock, 1959] servem de ins­
dessa lógica tão característica da época hipermodema: a distância piração, respectivamente, para La Samaritaine, o queij o Sainte
irônica, o piscar de olho, o humor indireto. Moret e a Pioneer. Os seguros UAP pirateiam uma cena famosa
É que não importa tanto fazer memorizar, e sim divertir, de O trouxa [Gérard Oury, 1964]. Jean-Jacques Annaud faz, para
surpreender e seduzir um consumidor empanturrado, tomando-o a Hertz, uma alusão a Os pássaros [ 1963] de Hitchcock. Conta­
cúmplice das mensagens propostas. Busca-se urna relação de tos imediatos de 3 ° grau e A imensidão azul servem de
conivência que dê ao público o sentimento de que ele não se referenciais aos spots da Skip e da Calberson. 27 A Pepsi-Cola
ilude com o que a publicidade lhe apresenta, assim como esta aproveita uma cena de Sociedade dos poetas mortos [Peter Weir,
não se ilude na maneira de apresentar. O registro então é o do 1989]. After Eight parodia The Full Monty - Ou tudo ou nada
humor e do distanciamento que autoriza o segundo grau. Vasto [Peter Cattaneo, 1 997] . Twix se toma um gadget a James Bond.
território que a hiperpublicidade, a exemplo do hipercinema, não O rapaz da Levi 's abate o concorrente gesticulando com a fleu­
cessa de explorar. Isso vai das referências a uma cultura-imagem ma de Indiana Jones. O mundo de Orangina Rouge [ uma bebida
eclética, constituída a partir do cinema, de seus astros e seus mi­ energética] é explicitamente o de um filme de horror. Carte noir
tos, até o mundo dos quadrinhos, da música, das séries de TV, do patrocina filmes na TV com um spot intitulado "Um café cha-

26
N icolas Riou, Pub Fiction. Société postmoderne et nouve/les tenclances
publicitaires, Paris, Éditions d'organisation, 1999. 27
Jacques Guyot, L 'Écran publicitaire, op. cit., p. 147-149.

250 251
mado desejo". E pode-se suspeitar que o publicitário que criou publicitários discutindo a maneira de fazer o spot que é precisa­
o tomado devastador da Crunch, que varre uma tribuna oficial, mente o que está sendo exibido na tela. 29
deve ter visto uma das sequências finais de Zero de conduta Essa autoirrisão às vezes chega a incidir sobre a própria
[Jean Vigo, 193 3], em que o vento da subversão põe de pernas marca. A Diesel se impôs no mercado do jeans graças a um
para o ar todos os notáveis alinhados num estrado. célebre spot30 : uma paródia de Era uma vez no Oeste [Sergio
Mas o cinema também explora a publicidade para fazer-lhe Leone, 1969] em que dois caubóis travam um duelo na poeira.
a paródia: O ladrão de sabonetes [Maurizio Nichetti, 1988], cujo Um, bonito, heroico, vestindo um jeans com a marca Diesel,
título, substituindo a bicicleta original, diz claramente que se frente ao outro, feio, sujo e malvestido, o perfeito vilão. E, con­
refere de fonna humorística ao filme mítico de Vittorio De Sica tra toda a expectativa, é este último que mata o herói, com este
(Ladrões de bicicletas, 1948), põe em cena um cineasta cujo epitáfio à guisa de oração fünebre: "Diesel,for successfid living."
filme passa na televisão. A projeção é constantemente interrom­ Um modo de dirigir-se ao consumidor não fazendo a apologia
pida por spots que fazem parte do filme e que, realizados pelo do produto, mas criando uma relação de cumpl icidade, ao com­
próprio Nichetti, são falsas publicidades que parodiam as ver­ partilhar referências comuns - aqui, o western spaghetti -, com
dadeiras. 28 Especialistas do desvio, como Alain Chabat - cria­ o espírito de irrisão e o humor do discurso da marca.
dor do famoso Toniglandyl [dentifrício de um programa humo­ Nada de estranho no surgimento dessa publicidade-dis­
rístico da TV], que acabou sendo mais famoso que seu referente tância, que testemunha a expansão dos valores hedonistas e
Tonigencyl -, não hesitam sequer em jogar com o anacronismo, lúdicos que acompanham a sociedade de consumo. Também não
fazendo intervir a publicidade já na Antiguidade (Missão surpreende a importância do cinema e das mídias nesse disposi­
Cleópatra) e mesmo na pré-história (RRRrrrr! ! !). tivo, pois a citação dá ao público social izado pela cul tura
Esse universo é o do pasticho, da citação, da referência midiática o prazer do reconhecimento do conhecido, do jogo
desviada, que atinge seu grau superlativo quando a publicidade com o déjà-vu. O humor publicitário responde às expectativas
zomba dela mesma, autoparodiando-se. A Daim lança sem bom­ de distração, de novidade, de original idade do hiperconsumidor
bom pastichando um spot da Ferrcro, Mon chéri; os macacos Orno emocional que aprecia o efeito-surpresa, o achado fun, o jogo
tiram um sano das publicidades de sabão cm pó; uma agência referencial com sua própria cultura midiática assim reafirmada,
inglesa retoma o célebre anúncio concebido por Jean-Paul Goude relegitimada. Hiperconsumidor que aprecia também que se di­
para o CX2 da Citrõen, sempre com Grace Jones ( ela mesma rijam a ele como a um indivíduo "inteligente", capaz de com­
saída diretamente do James Bond de 007 - Na mira dos assassi­ preender uma alusão em segundo grau. Pelo prazer que oferece,
nos [John Glen, 1985]); mas dessa vez o cano de tipo francês que a paródia capta o interesse ao conferir uma espécie de confir-
sai da sua boca está totalmente deformado e não anda, enquanto
por trás é ejetado um outro de tipo inglês, raçudo e nervoso... 29 Observemos, aliás, que num desses spots a referência da publicidade ao cinema
Através desse jogo consigo mesma, a publicidade se põe dentro é explicitamente sublinhada, o patrão censurando seu diretor de criação de lhe
propor um anúncio que "não faz bastante cinema", no qual não há ação, espetácu­
da publicidade, à maneira dos spots da Neuf que põem em cena lo suficientes. Ao que o outro responde, para provar o contrário, brandindo um
raio laser tomado dos melhores efeitos especiais hollywoodianos, que miniaturiza
imediatamente seu interlocutor.
30 Nicolas Riou, Pub Fiction, op. cit., p. 1-2.
28 Jean Serroy, Entre deux siec/es. op. ci1. , p. 5 76.

252 253
mação, de diploma em mídia cultural, agora dominante. A ima­
gem-distância em publicidade não se baseia apenas na relação
com o cinema, com a cultura midiática em gera l : ela permite Capítulo X
fazer a l igação com as outras, pois as pessoas falam dela, co­ A tela-mundo
mentam, fazem observações, riem juntas, transformam o plano
ou o slogan em imagem ou frase culta que circula entre iniciados.
A piscadela de olho ao cinema produz a satisfação de fazer parte
de um mundo que se conhece e no qual há referências comuns Uma constelação chamada Tela
partilhadas. Assim, o fenômeno ilustra a persistência do referencial
cinema, seu prestígio, sua força de modelo sempre reativada. A época hipermodema é contemporânea de uma verda­
deira inflação de telas. Nunca o homem dispôs de tantas telas
não apenas para ver o mundo, mas para viver sua própria vida.
E tudo indica que o fenômeno, sustentado pelas proezas das
tecnologias high-tech, vai se estender e se acelerar ainda mais.
O que escapa ou escapará a essa excrescência telânica? Pois
assistimos a uma proliferação de telas, prodigioso universo em
expansão que leva sempre mais longe seus limites. Telas que já
estão aí, telas que se interconectam, telas que acabam de chegar,
telas por vir. Todas as telas do mundo vêm multiplicar a original,
a tela branca do cinema. Ler o jornal numa tela portátil e tátil que
oferece acesso direto à Web não é mais uma utopia: a tinta eletrô­
nica já chegou a uma tela maleável cuja espessura mal ultrapassa
a de uma folha de papel. O empreendimento de digitalizar mi­
lhões de livros a consultar na tela está em marcha, e o Iivro eletrô­
nico enquanto tal, o Sony Reader, foi lançado no Japão, em 2004,
e depois nos Estados Unidos, em 2006. A própria televisão se
encaminha para isso: telas de bolso de aparelhos portáteis, telas
planas e cada vez maiores do home cinema, telas gigantescas das
transmissões públicas. Expansão multiplicada, por sua vez, pelo
domínio também em expansão dessa nebulosa que é o vídeo: do
videocassete ao DVD, do DVD ao DVD-HD, da TV por assina­
tura ao VoD. Conectados ou não à própria televisão, há ainda os
novos domínios que são a videoconferência, a videovigilância, o
videoclipe, os videogames, e aqueles criados por outros instm­
mentos de registro de imagens como a webcam, a câmera DV, a

254 255
máquina fotográfica digital. Os quais se interconectam a essa hidra
ecrã, transformando o homem hipermodemo em Homo ecranis e
enorme, tentacular, que é, através da tela do computador, a rede
instaurando uma ecranocracia cujos poderes alguns já temem.
imensa e infinita da Tela 1 , caminho aberto ao download de ima­
Uma tela-mundo que, evidentemente, não é mais a do cinema,
gens, ao mundo virtual da "second life",aos programas evolutiv� s
mas que, como veremos, em muitos aspectos pode ser vista como
da "open source". Tudo isso se miniaturizando cada vez mais
um cine-mundo.
para fazer do telefone celular - o processo está em andamento - e
É tamanha a explosão de telas que em dez anos - a idade
mesmo do mostrador do relógio de pulso a tela receptora de todas
da I nternet - houve uma verdadeira revolução copemicana, que
as possibilidades: Internet, fotos, televisão, cinema. Assim já se
modifica a maneira mesma de estar no mundo. Com isso, a ideia
anunciam o "Surface", o computador tátil de Bill Gates, e as telas
desenvolvida a partir dos anos 1960, quando a televisão esten­
de diodo (Oled) que transformarão qualquer vidro em tela.
dia seu domínio, e segundo a qual a tela seria uma barreira entre
O homem de hoje e de amanhã, permanentemente ligado
o homem e ele mesmo - tela de separação, de ilusão, de menti­
por seu celular e seu computador ao conjunto das telas, está no
ra, de propaganda: tela de fumaça -, é cada vez mais questioná­
centro de uma rede cuja extensão marca os atos de sua vida coti­
vel. Pode-se ainda falar de desapossamento subjetivo quando a
diana. Telas domóticas que controlam o funcionamento de uma
tela se impõe como uma interface generalizada aberta ao mun­
casa cada vez mais informatizada; imagens médicas computado­
do, fornecendo continuamente informações, dando a oportuni­
rizadas, ecografias, câmeras em miniatura que mostram na tela o
dade de se exprimir e dialogar, jogar e trabalhar, comprar e ven­
interior do corpo em suas zonas mais secretas; telas de plasma
der, acrescentar interatividade às imagens, aos sons e aos tex­
acompanhando assentos para bebê nos automóveis; painéis ele­
tos?2 A rede telânica transformou nossos modos de vida, nossa
trônicos· GPS indicando na tela de bordo do carro o caminho a
relação com a informação, o espaço-tempo, as viagens e o con­
seguir; telas diversas que permitem retirar dinheiro, pagar, esco-
sumo3 : tomou-se um instrumento de comunicação e de infor­
lher, reservar, consultar; sem falar dos capacetes-telas que dão a
mação, um intermediário quase inevitável em nossa relação com
possibilidade, nos parques de diversão, por exemplo, de evoluir
o mundo e os outros. Existir é, de maneirn crescente, estar I iga­
num mundo virtual. Simultaneamente a essa miniaturização que
do à tela e intercontectado nas redes.
multiplica as telas individuais, a enormidade, a imensidão das
Daí a necessidade de nos interrogarmos sobre o que, ao
telas gigantes: as que são postas nos estádios, nas reuniões políti­
mesmo tempo em que participa mais e mais do espaço vital dos
cas, nos concertos e mesmo nas igrejas, para pennitir ao público
homens de hoje, não deixa, porém, de suscitar debates e interro­
de massa acompanhar o que se passa no campo, na tribuna, no
gações, de semear a dúvida ou mesmo o medo. Depois da des­
palco e no altar. Mundo desdobrado em que o acontecimento vira
confiança que a televisão inicialmente despertou, os videogames,
espetáculo. E no qual o cinema, ele mesmo arrastado nessa lógica
a navegação na Web e a utilização crescente do celular são sen-
telânica, mostra o caminho com as imensas telas desenvolvidas
pelos processos Imax e Omnimax. Ou seja, da tela mínima à tela
gigante, um fluxo de imagens está em permanente circulação no 2 Um blog é criado a cada segundo no mundo e, na França, contam-se 6 milhões
de sites visitados diariamente por 8 mi lhões de intcmautas, ou seja, mais do que a
1
Em j unho de 2006, contavam-se 694 milhões de internautas no _mw1do, com soma dos leitores dos 50 principais órgãos de imprensa do país.
uma progressão de mais de 40% ao ano nos países ocidentais e na As1a.
3
Em março de 2007, os compradores on-line aumentaram, na França, em mais de
30% num ano: agora, mais de 6 em cada 1 O internautas são ciberconsumidores.

256
257
tidos como problemáticos, perigosos para o espírito, capazes de caso individual, individualizando-o até o feto. O GPS indica o
criar, sobretudo entre os jovens que são seus consumidores de­ caminho a seguir ao indivíduo que fixa o ponto de partida e o
senfreados, verdadeiras drogadições. Já em 1992, Michael ponto de chegada; o computador desempenha o papel de agen­
Haneke foi um dos primeiros a mostrar, em O vídeo de Benny, da, livro de bordo, correspondência pessoal; no Google, a infor­
as derivas possíveis, através de um adolescente que, cercado de mação consiste em buscar numa massa de conteúdos fornecidos
telas e empanturrado de imagens, passava do mundo virtual à segundo uma arborescência que se estende quase ao infinito, e
realidade do ato matando uma menina de sua idade. Na outra em clicar para traçar o caminho da sua própria inform ação. Ten­
ponta da interrogação, a midiatização crescente da vida políti­ de-se a sair das mídias de massa em que uma mesma mensagem
ca, assim como o novo papel da Internet, levam a questionar o é difundida simultaneamente a vários milhões de espectadores
poder das telas nas novas democracias eletrônicas. Segundo os considerados como um público homogêneo. Agora o acesso aos
teóricos, e segundo o crédito que cada um lhes dá, elas se con­ conteúdos info rmacionais na tela mobiliza um usuário ativo que
verteram em e-governo, ciberdemocraci a , telecracia, navega nos sites, conserva isso e elimina aquilo, vai em busca
videopolítica, Estado espetáculo, Estado sedutor4 ... de info rm ações, comenta os dados institucionais, compara os
preços, transforma-se em fotógrafo e repórter amador. Instituin­
A tela informacional do uma "comunicação essencialmente unilateral" a serviço da
mercadoria, o espetáculo é "o sol que nunca se põe no império
A primeira onda de invasão das telas alimentou, junto com da passividade moderna", escrevia Débord. 5 Com a prolifera­
o crescimento do consumo de massa, a ideia de "sociedade do ção da o ferta midiática e o crescimento da comunicação
espetáculo" cara a Guy Debord. Mas o que isso significa no informatizada, isso mudou: um número cada vez maior de indi­
momento do tudo-tela? O que acontece quando toda uma série víduos tem acesso às mídias de maneira hiperindividualista,
de telas tem a ver, precisamente, com a categoria do não-espe­ segundo seus gostos, seus humores e suas temporalidades pró­
táculo e da interatividade, com a inform ação escolhida e perso­ prias: "Prime time is my time". Claro que a lógica do espetáculo
nalizada? As imagens da medicina dão informação sobre um prossegue e mesmo se amplifica, mas ela não tem mais a signi­
ficação que Débord lhe dava. A época dos mass media fundados
4 Régis Debray, l 'État séducteur, Paris, Gallimard, 1 993. Sobre a questão, pode­ na comunicação piramidal com sentido único, que alimentou a
mos destacar, em meio a uma abundante literatura, Roger-Gérard Schwarzembcrg, teoria do espetáculo, dá lugar cada vez mais a um sujeito
l 'État spectacle, Paris, Flammariom, 1977 ; François-Henri de Virieu, la interativo, a uma comunicação individualizada, autoproduzida
Médiacratie, Paris, Flammarion, 1990; Régis Debray, Vie et mor/ de l 'image, Une
histoire du regard en Occident, Paris, Gallimard, 1992; Karl Popper, la Télévision: e fora do espaço comercial. A tela global se impõe como um
un danger pour la démocratie, Paris, Anatolia, 1994; Paul Virilio, Cybermonde, instrumento adaptado às necessidades particulares de cada um:
/a politique du pire, Paris, Textuel, 1996; Cass Sunstein, Republic. com, Princeton, depois do modo de comunicação do um para todos, o do todos
Princeton Univcrsity Press, 2001; Bernard Stiegler, la Télécratie contre la
para todos; depois das mídias de massa, o advento da se!f-midia.
Démocratie, Paris, Flammarion, 2006. Sobre a democracia eletrônica, ver o nú­
mero especial da revista Hermes, nº 26-27, 2000, e, de maneira mais geral, os
trabalhos de Dominique Wolton, em particular Internet, et apres? Une théorie
critique des nouveaux médias, P aris, Flammarion, 2000, e Sa u ver la
communication, Paris, Flammarion, 2005. 5 Guy Debord, la Société c/u spectacle, Paris, Champ Libre, 1971, p. 1 3 .

258 259
Individualização não é reclusão. A Tela é o que permite razão, a maneira como a Internet possibilita um julgamento per­
estar conectado a outras telas e em relação imediata com to­ manente sobre os governantes, a denúncia e o controle de suas
dos os indivíduos que têm acesso a essa mídia. A hora é a da ações, sem a mediação dos representantes. 7 Transparência, par­
comunicação aberta e flexível, a da troca interpessoal através ticipação da maioria, acesso igual de todos a todo o saber: a
de fóruns e chats, a da criação de informações em blogs indi­ Web parece servir a liberdade, a igualdade, a democracia em
viduais. E mesmo a do compartilhar de conhecimentos ou a da via de transfonnação profunda.
contribuição coletiva de informações, como acontece na W i­ A essa visão se opõem as dúvidas, as inquitações e às
kipédia. O modelo vertical da comunicação midiática evolui vezes o pavor que o universo do virtual pode suscitar. Muitos
para um modelo horizontal não centralizado, no qual um gran­ observadores sublinham, também não sem razão, que informa­
de número de informações se produz e se difunde fora do con­ ção abundante não é sinônimo de saber, este exigindo uma cul­
trole dos profissionais da tela, do mercado e da política. Os tura prévia, uma formação intelectual, conceitos organizados
avanços tecnológicos e as aspirações individualistas à expres­ que permitam fazer a triagem, colocar corretamente as ques­
são fizeram surgir um novo tipo de comunicação descentrali­ tões, interpretar os conteúdos disponíveis em grande quantida­
zada, centrada na interoperatividade e na utilização em rede. de. Sem formação inicial e competências intelectuais, a abun­
Não mais o desapossamento de si pela telaespetáculo, mas uma dância infonnacional apenas cria a confüsão, o zapping do tu­
vontade de reapropriação, pelos sujeitos, das telas e dos ins­ rismo intelectual. Não são reais as ameaças ao espírito crítico
trumentos de comunicação. quando os usuários, graças às novas tecnologias da informação
Diante do avanço das telas, duas atitudes se enfrentam, (tecnologia push), poderão não mais receber senão os conteú­
sustentadas por visões diametralmente opostas do cibennundo. dos personalizados que respondem a suas necessidades especí­
A primeira se exprime no entusiasmo dos zeladores da ficas? E devemos realmente nos alegrar de ver, com a Web 2.0,
imediatez, da velocidade, da interatividade tornadas possíveis se desenvolver de maneira crescente "mídias sem jornalistas" e,
pela comunicação hipertecnológica. Permitindo a todos dispor de maneira mais ampla, sem intermediários nem mecanismos
de informação ao infinito, retroagir e tomar a palavra, o de controle e de filtragem? Que espaço público de discussão e
ciberespaço é apresentado como um instrumento que ajuda a de deliberação se prepara quando uma forte tendência leva os
renovar e a aprofundar o espaço democrático, a restituir o poder internautas a preferir trocar informações com os que pensam
à sociedade civil, a tornar os cidadãos mais abertos, mais críti­ como eles em vez de participar de debates contraditórios?8 São
cos, mais livres. Dessa intervenção mais direta dos cidadãos, aspectos que mostram, com evidência, que o progresso no uso
alguns concluem o advento de uma "teledemocracia" que reali­
za o ideal rousseauísta de democracia direta fundada na partici­ 7 Pierre Rosanvallon fala assim de "contrapolítica", de uma democracia de vigi­
pação imediata do povo nas decisões públicas. 6 Embora se mos­ lância, de intervenção e de expressão, que se afirmaria sobre a erosão da democra­
trem mais prudentes, muitos observadores sublinham, não sem cia de eleição: la Con/re-démocratie. La politique à / 'áge de la déjiance, Paris.
Scuil, 2006. No mesmo espírito, Jacques Julliard observa que "a democracia go­
vernada se abre a formas novas de democracaia governante", Le Débat, n." 143,
"Nous, !e peuple. Crise de la représentation", jan-fev. 2007, p. 15.
6
Benjamin R. Barber, Strong Democracy: Participatory Politics for a New Age, 8 Azi Lev-On e Bernard Manin, "Internet: la main invisible de la dt.:l i b6r:it1011",
Berkeley, University of California Press, 1 984. Esprit, maio de 2006.

260 261
da razão individual não se fará automaticamente pelos "mila­ uma droga - têm cada vez mais o gosto de sair de casa, de visi­
gres" da Rede. Por mais formidável que seja sua contribuição, a tar os amigos, de ir ao restaurante e ao cinema juntos; multipli­
comunicação eletrônica não será suficiente, por si só, para eman­ cam as saídas de fim de tarde, participam de corais, de festivais,
cipar o espírito humano. A tela hipermoderna só realizará todas de festas em busca de "ambiente" e relações. Às vezes a própria
as suas potencialidades se for acompanhada pela insubstituível tela eletrônica passa a ser um vetor de sociabilidade, como o
ação de mestres e bússolas de sentido, representadas pela cultu­ prova o sucesso do caraoquê, no qual se misturam o prazer de
ra do livro e das humanidades clássicas. A telepresença das te­ cantar, de ser escutado, de se reunir, de escutar os outros. Muitos
las exige o enquadramento e a presença muito real de pais e utilizam os chats para conhecer outras pessoas, para se encon­
professores. É preciso promover não apenas a tela de informa­ trar, aumentar seu círculo de relações, achar um parceiro: ao
ção e convívio, mas também a tela assistida. fazer isso, combinam dois modos de vida relacional, na rede e
Por outro lado, alguns autores afirmam que o culto da fora da rede. Se as antigas práticas de convívio se dissolvem, é
Internet representa uma ameaça para o vínculo social, na medida em benefício de ligações escolhidas e temporárias próprias de
em que, com o ciberespaço, os indivíduos se comunicam perma­ uma cultura de indivíduos que se reconhecem como livres. Se
nentemente mas não se encontram mais. Na sociedade das redes as telas nos "separam" dos outros, ao mesmo tempo elas abrem
informatizadas, os indivíduos passam seu tempo diante das telas o caminho a uma maior proximidade humana, a uma empatia
em vez de se encontrar e de viver experiências juntos. Comunica­ de massa em relação aos que sofrem, concretizada em impulsos
ções por mensagens digitalizadas substituem a fala direta com os de solidariedade e generosidade sem precedentes ( doações re­
outros. Com o cibersexo, as pessoas não fazem mais amor, mas cordes por ocasião do tsunami e outros cataclismos), ainda que
se entregam a uma espécie de organização virtual da sexualidade. eles sejam, é verdade, muito ocasionais. É inexato assimilar o
Em suma, o que se denuncia é o avanço de uma existência abstra­ individualismo ao enclausuramento, à retração em si. Quanto
ta, digital izada, sem ligação humana e tátil. Quando o corpo dei­ mais há instrumentos de comunicação virtual, high-tech e telas
xa de ser o enraizamento real da vida, o horizonte que se projeta eletrônicas, tanto mais os indivíduos são sensíveis às misérias
seria o de um universo espectral, um universo descorporificado e humanas teleapresentadas, buscando se encontrar, ver as pessoas,
dessensualizado. O universo hipermoderno da tela ou o mundo estabelecer contatos com os outros, se sentir úteis através da
sensível em via de desrealização avançada. beneficência ou da vida associativa. 9
Dirigimo-nos realmente a um tal mundo dessocializado e Em segundo lugar, a busca do bem-estar, tal como ocorre
dominado pela desencarnação dos prazeres? Mito ou realida­ na sociedade hipermoderna, invalida frontalmente essas visões
de? Filme de terror ou tendência grave de nosso tempo? apocalípticas. Em realidade, o virtual não é nem uma máquina
Em primeiro lugar, muitos fatos contradizem a tese do de guerra contra o vínculo social, nem contra a experiência sen-
"confinamento interativo generalizado" tal como o exprime, por
exemplo, Paul Virilio. À medida que triunfam a telepresença e 9 O que de maneira nenhuma impede - é necessário dizer? - o crescimento do
individualismo autocentrado, o recuo de algumas formas de ajuda mútua entre as
o cibermundo, novas formas de sociabilidade aparecem. Ao pessoas, a febre do dinheiro-rei e do "cada um por si". Sobre os caminhos antagô­
mesmo tempo em que se desenvolvem os passatempos diante nicos do individualismo em relação aos valores éticos, ver Gil les L ipovetsky, le
do vídeo e as comunicações virtuais, os indivíduos - com exce­ Crépuscule du devoir. L 'éthique indo/ore des nouveau.x /emps démocraliques,
ção dos fanáticos, especialmente jovens, para quem a tela virou Paris, Gallimard, 1992.

262 263
sível. O conforto da fase anterior da sociedade de consumo era recimento dos referenciais hedonistas, estéticos e sensualistas.
quantitativo e funcional. Hoje ele é sensitivo, sensível, emocio­ A época do hiperconsumo é paradoxal. Paradoxal porque com­
nal, embora o universo do virtual se expanda. Os dois fenôme­ bina sensorialidade e higienismo, hedonismo e ansiedade, des­
nos não se excluem, mas coexistem. Na nova cultura do bem­ materialização e sensualismo, tela e tatilidade. 1 0
estar, os indivíduos não buscam mais apenas o mínimo confor­ Ironia da nossa época: quanto mais o mundo se torna
tável; querem um espaço de bem-estar sentido, personalizado e imaterial e virtual, tanto mais se vê ascender uma cultura que
estetizado. Nossa época registra uma verdadeira paixão pela valoriza a sensualização, a erotização, a hedonização da exis­
decoração da casa; as pessoas dedicam cada vez mais tempo, tência. A era hipermoderna registra a expansão social das pai­
dinheiro e amor ao embelezamento de sua moradia, para viver xões do luxo, o gosto pelas viagens, o amor à música, o sucesso
num ambiente caloroso e harmonioso; a casa se toma um espa­ dos bons restaurantes, dos livros de culinária e dos grandes vi­
ço de expressão individual e de criação familiar carregado de nhos. O movimento slowfood está em moda. E eis que a relação
expectativas estéticas e sensitivas. Ao mesmo tempo se afirma com a própria tela está agora associada ao prazer dos sentidos, a
um design contemporâneo de fonnas redondas e fluidas, mater­ Tela se abrindo aos aficionados da cozinha: contam-se já cerca
nais e protetoras, nos antípodas do design frio, agressivo, de 500 blogs culinários francófonos dedicados aos prazeres da
unidimensional dos anos 1 950: um design expressivo e global mesa e às receitas. A cultura telânica se afinna junto com a trans­
que, investindo as relações sensíveis (soft touch) e a felicidade formação em arte dos estilos de vida e a hedonização do consu­
sensível, é o contrário de um "adeus ao corpo" de uma cultura mo. Se uma parte importante da vida se passa diante do ecrã
desencamada e abstrata. digital, uma outra, não menos importante, investe a dimensão
Todo um conjunto de práticas, como os esportes de desli­ contrária, com sua expectativa de prazeres sensoriais. O Homo
zamento, as massagens e banhos californianos, a ioga e as téc­ ecranis não é o coveiro do Homo aestheticus.
nicas de meditação, o amor à natureza e às paisagens, a jardina­
gem, a paixão pelo patrimônio e pelos objetos belos, as práticas O estado de videovigilância
artísticas (pintura em seda, cerâmica, dança), o gosto pelo risco
e por atividades físicas, vão no mesmo sentido. A busca hedo­ Mas, se os gostos de sociabilidade e os desejos sensuais
nística-sensitiva é tudo menos um veio esgotado: assistimos à não estão verdadeiramente ameaçados, pode-se dizer o mes­
psicologização e à sensualização do bem-estar, que aparece como mo das liberdades privadas e públicas, no momento em que as
um anteparo ou um contrapeso a uma cultura desmaterializada câmeras de videovigilância se espalham em toda parte, nas
e descorporificada. Anunciam-se novas formas de sensorialida­ ruas, nos transportes coletivos, nos centros comerciais, nos
de, de sensualidade e de tatilidade. A dessensualização ou a de­ bancos, nos museus, nas residências privadas, nos apartamen­
sencarnação do mundo é um mito: a verdade é que o bem-estar tos? Um relatório publicado em 2006 na Grã-Bretanha dispara
se toma cada vez mais sensitivo e polissensorial, ao mesmo tem­ o alarme ao falar do advento de uma "sociedade sob vigilân-
po em que depende cada vez mais dos circuitos eletrônicos e
infonnáticos. A nova era do bem-estar coincide com uma de­
manda qualitativa e emocional de paisagem, patrimônio, meio 'º Sobre todos esses pontos, G i l les Lipovetsky, Le Bonheur paradoxal, op. cit. , p
ambiente harmonioso, natureza e cultura : tudo menos o desapa- 1 97-2 1 2 e 257-26 1 .

264 265
eia". A rede nacional era calculada em cerca de 1,5 milhão de so é um terrorismo planetário crônico e indivíduos fragilizado
câmeras em 200 1; hoje se eleva a 4,2 milhões. A Grã-Bretanha, desinstitucionalizados, sem rumo, em busca de segurança e de
que possui 10% das câmeras de vigilância instaladas no mun­ apego a comunidaes etnoidentitárias. Isso abre as portas a urna
do, é o país mais televigiado do planeta: um londrino pode ser criminalidade crescente e também às seitas, aos integrismos, aos
filmado até 3 00 vezes por dia e, em relação ao conjunto do movimentos terroristas violentos. Tudo leva a pensar que esses
país, conta-se uma câmera para 15 habitantes. Mais: para re­ fenômenos, que criam o pânico coletivo e o terror no cotidiano,
primir as pequenas incivilidades públicas, um sistema de vão provocar um reforço das medidas de segurança, semelhantes
câmeras falantes vai ser instalado numas quinze cidades a fim àquelas atualmente aplicadas nos aeroportos. O que se anuncia é
de chamar à ordem o infrator que atira um papel no chão ! De uma vigilância cada vez mais obsessiva, telas onipresentes em
agora em diante, carros de polícia descobrem os automobilis­ nome da segurança erigida em valor primeiro. Quem será capaz
tas sem documentação em dia graças a câmeras fixadas sob o de deter esse movimento? Os movimentos de defesa dos direitos
retrovisor e l igadas a um computador. Nos Estados Unidos, as humanos poderão denunciar um Big Brother eletrônico e as co­
barreiras, os guardas de segurança e as câmeras de vigilância missões encarregadas da proteção das liberdades poderão exigir
constituem o novo equipamento das gated communities. Pre­ controles, a destruição dos registros num prazo muito curto, o
vê-se em breve a instalação de aparel hos fotográficos minús­ direito de acesso aos dados para as pessoas filmadas: isso não
culos para o reconhecimento facial, incorporados nos postes deterá a proliferação das câmeras numa sociedade em que a exi­
de luz; drones [aparelhos aéreos não pi lotados] voarão no céu gência de prevenção e de segurança se tomou irresistível.
para vigiar as manifestações; as novas câmeras não deixarão Não há dúvida de que o tempo das democracias liberaci­
nenhum ângulo morto e poderão acompanhar uma pessoa em onistas se encontra atrás de nós. O que vemos se afirmar um
particular mediante um controle informatizado. Serão mesmo pouco mais a cada dia são democracias securitárias: menos re­
capazes de detectar e de filmar os movimentos "suspeitos" . gulamentações econômicas, porém mais controles dos movi ­
Até onde irá esse processo? Tudo leva a crer que ele está mentos privados nos espaços públicos. Será que estamos tão
apenas começando 1 1 , na medida em que o universo hipermodemo longe do Big Brother, de um programa de reality show sob o
coincide com um estado de instabilidade e de caos produtor de olhar permanente da câmera e do "você está sendo vigiado" de
turbulências e de insegurança crescentes. O desaparecimento da urna sociedade policial? É o que pensam algumas correntes que
grande cl ivagem Leste-Oeste, assim como a dinâmica de denunciam a escalada de um universo orwelliano no qual se
individualização extrema de nossas sociedades, pulverizaram os pode espionar nas telas os menores movimentos e gestos dos
antigos referenciais e enquadramentos coletivos. O resultado dis- cidadãos. E isso na medida em que novos programas permitem
não só revelar comportamentos "suspeitos", mas, para além do
aspecto de segurança, interpretar para fins de marketing as hesi­
11 J á começa a ser instalado, nas maternidades, um sistema de vigilância dos bebês tações dos consumidores diante de uma prateleira, determinando
cm seus berços mediante um bracelete eletrônico. Uma empresa americana pôs a a partir daí elementos suplementares de informação capazes de
venda em 2007 um par de tênis contendo, na parte traseira, um sistema GPS que
permite acompanhar na tela o percurso de quem o usa: a tela como uma nova
gerar o ato de compra. Derivas liberticidas? Atentados à vida pri­
coleira. . . Um sistema GPS destinado a localizar os deslocamentos de crianças na vada? Sem enquadramento legislativo e sem limitações precisas
cidade também está sendo comercializado. não há dúvida de que esses riscos são reais. Mas essas medidas

266 267
não podem ser sistematicamente condenadas numa democracia cas da menor declaração filmada e gravada. Aqui o risco é a tela
que deve garantir a segurança pública, buscando sempre um difi­ tornar-se o instrumento de um politicamente correto generaliza­
cil arranjo entre liberdade e segurança. Alguns desses dispositi­ do, cada vez mais pronunciado. O xingamento feito pelo deputa­
vos de tecnossegurança já demonstraram sua eficácia. Imagens do francês Devedjian a uma colega, gravado em segredo e divul­
fornecidas pelas câmeras de videovigilância pennitiram à polícia gado na TV em junho de 2007, não tem mais vez.
britânica identificar muito rapidamente os autores dos atentados O cinema contemporâneo põe em cena, à sua maneira,
cometidos nos transportes coletivos de Londres. Em funciona­ essa era da televigilância. 12
mento desde 1996 nos Estados Unidos e desde 2003 no Canadá, M ichael Haneke, cujo cinema é inteiramente atravessado
o plano "Alerta de sequestro" foi utilizado pela primeira vez na por essas questões, instila a perturbação já no primeiro plano de
França em 2007, e seu êxito, nesse primeiro caso, se deve à con­ Caché [2004], fazendo sentir que uma casa, no final de uma rua,
junção de duas telas: a da televisão, primeiro, onde são divulga­ está sendo vigiada, espiada, filmada. Por quem? Os videocassetes
das uma mensagem de alerta e uma foto da suposta sequestrado­ que seu morador vai receber farão ressurgir do seu passado uma
ra, e a seguir a da videovigilância de um ônibus, onde a pessoa é culpa enterrada; mas permanece o mistério sobre quem está fil­
identificada e sinais são enviados à polícia. mando,como se o ato de vigiar,emanação do sistema,fosse cole­
A mesma ambiguidade se manifesta nas imagens obtidas tivo e anônimo. São apontados aqui os desvios possíveis - aque­
por meio de camescopes e, cada vez mais, de celulares. Aspecto les, inquisitoriais e obsessivos, da vigilância permanente e da vi­
positivo, quando um videasta amador consegue filmar uma bm­ olação de privacidade. Tema que o cinema aborda agora em mui­
talidade policial, como em Los Angeles, quando um negro foi tos filmes. 1 3 O personagem de Inside Job [Nicolas Refn, 2004],
espancado por agentes das forças da ordem: a vigilância é aqui que trabalha numa central de vigi lância, examina desesperada­
um meio de controle da democracia e uma testemunha de seus mente, dia e noite, vídeos gravados pelas câmeras do centro co­
desvios. Em contrapartida, como avaliar o caso de declarações mercial onde sua mulher foi assassinada, convencido de que en­
feitas em situação privada ou não oficial, quando são gravadas contrará a imagem do assassino, sua obsessão fazendo-o suspei­
sem que o interessado o saiba e depois lançadas na Internet ou na tar de cada passante apenas entrevisto.
televisão? É compreensível que Alain Duhamel, assim "pego", A infonnação, por neutra e não espetacular que possa pa­
por ocasião de uma conferência na universidade, sobre suas in­ recer aqui - pessoas que passam, ruas, a banalidade do cotidia­
tenções de voto na eleição presidencial de 2007, possa falar de no -, não escapa totalmente ao espetáculo. Na tela se conta uma
uma "neo-Stasi" [referindo-se à polícia secreta da ex-Alemanha história na qual se deixam prender os obsessivos, que esperam,
oriental] em que "há sempre alguém no sótão registrando o que
você faz". Um Big Brother transistorizado, digitalizado, indivi­ 12 A videoarte, desde os anos 1 970, também faz isso, algumas instalações, como as
dualizado, ameaça promover a guerra de todos contra todos, cada Bruce Nauman ou de Dieter Froese, estando relacionadas precisamente com a
um sendo o espião do outro. Não mais o poder supremo pan­ chamada "arte-vigilância". Ver Michael Rush, Les Nouveaw; Médias dans / 'ar!,
óptico, mas as cabeças múltiplas e microindividuais da hidra das Paris, Thames & Hudson, 2005, p. 1 25- 1 35 .
1 3 Ver exemplos cm Marie-Thércse Journot, "Journal f i lmé et caméra de
redes. Assim a sociedade da neovigilância pode conduzir,de fato, surveillance: les emplois paradoxaux de la vidéo dans le cinéma des années 90"
a uma sociedade da autovigilância, na qual cada um passaria a in Odile Bachler, Claude Murcia, Francis Yanoye (dir.), Cinéma et audiovi.1·ue/
"se vigiar", levando em conta as repercussões telânicas e midiáti- Nouvelles images. approches nouvelles, op. cit., p. 75-80.

268 269
sem nunca tirar os olhos da tela, que alguma coisa aconteça. A na França, de 0, 2 milhões de francos em 1980 a 2 ,5 milhões cm
ausência de espetáculo vira espetáculo: a tela de vídeo mostra 1 996. Em 2005, o volume de negócios atingiu 1. 787 milhões de
imagens que quem as vê interpreta como um filme, o qual às euros. Isso significa algo em tomo de 3 2 , 7 milhões de softwares. 1 4
vezes não conta nada, mas que às vezes se põe a contar, quando Em evolução contínua nos países do ex-bloco do leste europeu e
o espetáculo se anima ou quando o espectador, a partir do que mesmo nos países emergentes, os videogames são agora usados
vê, faz seu próprio cinema. Podendo mesmo tornar-se como que por um em cada dois ocidentais e conc01Tem fortemente - sobre­
o diretor: em Invasão de privacidade [Philip Noyce, 1 993), um tudo para o principal alvo do mercado, garotos com menos de 15
maníaco instala clandestinamente câmeras em apartamentos do anos - com outras mídias, em particular a televisão, em recuo
prédio onde mora, cujas imagens ele observa em cerca de nessa faixa de idade. Embora haja evidentemente diferenças en­
cinquenta telas de vídeo reunidas numa sala de controle, com as tre as três grandes categorias de jogos que se costuma distinguir ­
quais ele constrói seu próprio filme, zapeando de uma tela a de reflexão, de ação, de simulação -, um mesmo princípio se
outra e escolhendo, como numa operação de montagem, suas aplica a cada um deles: o da projeção num mundo virtual, que
próprias imagens. O desvio voyeurista é aqui o objeto de um aparece como a forma high-tech daquilo que as imagens do cine­
thriller. Mas, para além do gênero escolhido, o que é apontado ma sempre propuseram, ou seja, a imersão num mundo fictício
vai além da simples vigilância: esta se apaga em proveito de que dá a ilusão de realidade.
outra coisa, que tem a ver com o regime lúdico. No videogame, essa projeção pode ser tal que resulte numa
espécie de desdobramento de si. É o que já se percebia nos jo­
A tela lúdica gos de papéis e de aventuras, como A !ter Ego, de nome sinto­
mático, que em 1986 convidava o jogador a refazer sua própria
Tocamos aqui toda uma categoria de telas cuja finalidade vida "mais e mais, cada vez com uma personalidade diferen­
declarada é o divertimento, o jogo, o espetáculo, e cuja relação te". 1 5 Isso se transforma em verdadeira criação, em mise-en-scene
com o cinema se coloca, portanto, de maneira bem mais sensível. de um outro eu através de um avatar virtual, no universo do
jogo on-line de Second Life. Sucesso considerável, esse jogo já
Videogames e febre da Second Li/e envolvia, no começo de 2007, mais de 3 milhões de intemautas,
3 00 mil deles na França, os quais fazem viver seu personagem
Esse é particulam1ente o caso do universo representado pe­ virtual num universo ele próprio virtual que reproduz e mesmo
los videogames, uma vasta nebulosa em contínua evolução. Sur­ antecipa, agora, a vida real. Nesse jogo é possível fazer amiza­
gidos comercialmente no começo dos anos 1 970, eles conhece­ des, viver experiências sexuais inéditas, comprar roupas, imó­
ram uma verdadeira explosão a partir de meados dos anos 1980, veis, piscinas, e enriquecer vendendo esses bens virtuais a exem­
primeiro com o aparecimento do console Nintendo e da guerra plo de Anshe Chung, a primeira milionária real de um negócio
comercial com seu concorrente Sega, e depois, sobretudo a partir
da metade dos anos 1990, com a evolução técnica considerável 1 4 Em 2005 , nos Estados Unidos, os negócios com videogames atingiram a soma
dos três componentes do setor: o fliperama ou arcade, o console e de 1 0, 5 bilhões de dólares, resultado comparável ao do cinema (1 0,3 bilhões).
o microcomputador. Ainda que o mercado seja muito flutuante, o 15 Citado por Alain e Frédéric Lc Diberder, L 'Univers des jeux vidéo, Paris, La
setor apresenta um forte crescimento: calcula-se que ele passou, Découvert� 1998, p. 53.

270 271
sibilidade de viver por procuração. Pelos papéis que adotam
totalmente fictício. Há lugar também para a vida política: em pel�s fantasias que roteirizam ou pelas criações que realizam:
2007, a Suécia abre a primeira embaixada virtual do mundo e, os Jogadores de Second Life projetam uma imagem de si mes­
na França, os candidatos à presidência se dirigem diretamente a mos , segundo um modelo fictício e virtual aparentado ao mode­
esses avatares clonados como se fossem eleitores potenciais, .
lo-cmema. Eles "se representam" ao se fazerem os roteiristas
enviando seu próprio clone para fazer uma campanha virtual. os realizadores e os atores de sua própria vida. Alguns procu�
Investindo também no jogo, o setor econômico lhe dá uma tal ram s�r as s_tars desse mundo segundo, graças a suas realizações
consistência que o mundo virtual se acha agora diretamente liga­ ou amma � oes. Isso tem a ver com a cinematografização cres­
do pelo mercado à realidade. Em 2006, a American Apparel ins­ cente de s1 e da relação com o mundo que leva os intemautas a
tala a primeira loja virtual de roupas, loja criada por seus próprios se filmar e a colocar on-line sua intimidade, os videastas ama­
arquitetos. Em 2007, o grupo hoteleiro W Hotel, após várias se­ dores a fazer seus filmes, os autores de atos violentos a se filmar
manas de obras virtuais, inaugura um hotel de luxo, o Aloft, onde através do � elu ! ar. Por um lado, o sonho do cinema, do qual a
logo podem ser feitas reservas virtuais para passar noites verda­ star oferecia a imagem fantasmática, é como que banalizado e
deiramente de sonho, enquanto na real será preciso esperar até 2008 democratizado pelo virtual; por outro, este dá uma nova chance
para que ele exista materialmente. Há um reencontro no extremo: ao sonho eterno dos homens - viver uma outra vida. Não haven­
agora é o real que penetra o virtual. Com o "virtual-real", o jogo do mais a utopia política que prometia "mudar a vida" resta­
on-line hipermodemo inventou a tela-oxímoro que, unindo os con­ nos, em regime hipermodemo, o jogo, o jogo virtual d� viver
trários, o falso e o verdadeiro, o fictício e o autêntico, dá origem a "uma dupla vida".
uma forma de experiência inédita. Claro que o universo videolúdico não é similar ao do cine­
Quanto às marcas, o investimento em Second Life repre­ ma. No primeiro, o prazer decorre das decisões, do controle da
senta para elas um meio inédito de aumentar sua notoriedade, ação "eficaz", enquanto no segundo prevalecem o olhar e a a;en­
rejuvencescer sua imagem, visar a uma clientela mais jovem. Tra­ ção do espectador dian�e de uma história que em nada se pode
ta-se também, no momento em que os indivíduos se afastam das .
mud�r. �esmo assun, diferentes criadores de jogo evocam agora
mídias tradicionais e buscam seu próprio espaço de liberdade, de sequencias de filmes conhecidos, introduzem cenas ditas "cine­
criar um contato particular, uma ligação afetiva com os consumi­ m�ticas" e não passíveis de serem jogadas, buscam efeitos pro­
dores, a relação com a marca se estabelecendo aqui a partir das pnamente estéticos e poéticos, utilizam enquadramentos toma­
fantasias pessoais, da experiência do jogo e de uma cumplicidade dos do cinema, procuram contar histórias a fim de fazer viver de
eletiva fundada num universo comum compartilhado. 1 6 certo modo, uma experiência total. Inversamente, muitos fi h�es
Mas, convém sublinhar, essas estratégias só são eficazes de ação e blockbusters com efeitos especiais precipitam seus he­
na medida em que esse mundo paralelo leva a um grau hiperbó­ róis em corridas, perseguições, que são tratadas fonnalmente como
lico o que o cinema trouxe desde o início ao espectador: a pos- o desenrolar dos percursos com obstáculos oferecidos pelos video­
games. Um exemplo é a série dos James Bond que evolui ao
16 Os videogames se abrem cada vez mais à interatividade e ao compartilhamento longo dos episódio�, mmo a uma "escalada pirotécnica", atin�in­
da experiência lúdica. Combinando vidcogame, DVD e telefone celular, do seu ponto culmmante em Um novo dia para morrer [Lee Ta­
.
Vitatemporis, um jogo criado em 2005, inclui, num jogo de pista conduzido por mahon, 2002], em que "a fuga de 007 como um bólido sobre um
vários, o envio de SMS e a entrada do enigma resolvido em DVD.

2 73
272
mar gelado que se derrete à grande velocidade sob o efeito de um por procedimentos virtuais e trucagens digitalizadas. 19 A fron­
laser remete mais à estética do videogame do que aos efeitos teira se torna, aqui, vaporos a : filmes concebidos como
cinematográficos."17 Apesar de tudo o que separa esses dois mun­ videogames, videogames concebidos como filmes.
dos, os desenvolvimentos mais recentes não cessam de favorecer O fenômeno pennanece limitado, mas certamente traduz o
a hibridação18 dos videogames e do cinema. prolongamento de uma ambição dificil de realizar, no entanto ine­
Mesmo se não podem rivalizar, no plano formal da ima­ rente ao cinema, o qual "sempre sentiu um formigamento nesse
gem, com a magnificência e a sofisticação do espetáculo cine­ membro amputado que é a dimensão interativa da história". 2º O
ma, os jogos de fliperama, console ou on-line fazem parte, como que se esboça em filmes como Smoking /No smoking [Alain Resnais,
este, das indústrias de divertimento com forte impacto emocio­ 1993] - duas histórias diferentes, conforme o personagem acende
nal. Os cruzamentos entre os dois setores são assim numerosos ou não acende um cigarro - ou De caso com o acaso [Peter Howitt,
e frequentes. Os videogames retiram muitas vezes suas temáticas, 1998] - o destino de uma mulher que terá caminhos divergentes
seus personagens e seus efeitos do cinema, como nos jogos de conforme toma ou não o metrô diante de uma porta que se fecha -, o
ação, de combates, de aventuras interestelares. Não há videogame realiza e sistematiza. E o velho tema muito americano
blockbuster hollywoodiano que não suscite imediatamente, como da segunda chance,desenvolvido através de tantos filmes, se torna
produto derivado, o videogame que o prolonga: James Bond, um jogo on-line que lhe dá um nome: Second Life.
Indiana Jones, Rambo e Batman passaram rapidamente da telona
aos consoles. Inversamente, o cinema vai buscar temas, heróis e Videoclipes, ou o êxtase do look musical
roteiros nos videogames, desde os célebres Maria, Dragon Bali
Z ou tartarugas Ninja que engendram toda uma série de filmes, Desde o tempo em que era mudo, o cinema se interessou
até o desenvolvimento, sobretudo no cinema asiático, de filmes pelo som e, muito antes do aparecimento da sonorização e sua
que reproduzem o universo virtual dos videogames. Em 200 1, comercialização pelos irmãos Warner, diversas tentativas foram
Hironobu Sakaguchi, criador e produtor de mais de 40 milhões feitas para acrescentar o som à imagem. A partir do momento
de programas de videogames, leva ao cinema seu jogo mais em que se tornou "sonoro, cantado e falado", o cinema natural­
vendido no mundo (mais de 33 milhões de unidades), Final mente passou a explorar essas possibilidades. O primeiro filme
Fantasy. Num filme também inspirado em videogames, Avalon que se põe a "falar", aliás com uma canção, diz isso em seu
[200 1], que propõe uma imagem duplamente reflexiva - de re­ tema e em seu título mesmo: O cantor de jazz [ Alan Crosland],
flexo e de reflexão - sobre estes, Mamoru Oshii decifra a lógica de 1927. Os musicais da Broadway vão alimentar inúmeras co­
social desses jogos através de imagens realizadas, elas mesmas, médias musicais, desde os chorais de Busby Berkeley até
Dreamgirls - Em busca de um sonho de Bill Condin, que reali­
za em 2006 a síntese entre duas cantoras cult dos anos 1970
17 "Essa orgia de efeitos especiais soube satisfazer uma geração de jovens especta­ (Diana Ross, de quem o filme conta a história) e dos anos 2000
dores alimentada pelo PlayStation" (Guillaume Fraissard, "Halle Berry, James (Beyoncé Knowles,que a interpreta). Inversamente, e muito cedo
Bond et la crise de la quarantaine", Le Monde, 6 de abril de 2007).
1 8 Sobre a tecnologia digital e a arte das hibridações, ver Edmond Couchot e
Norbert Hillaire, L 'Art numérique. Comment la technologie vient au monde de
19
Jean Serroy, Entre deux siecles, op. cit., p. 689 e 590.
/ 'ar/ (2003), Paris, Flammarion, "Champs", 2005, p. 1 08-1 1 5 .
20
Alain e Frédéric Le Diberder, L 'Univers desjeux vidéo, op. cit., p. 1 70.

274 275
também, o showbiz se interessou do mesmo modo pelo c inema. tos, assim também a publicidade musical requer um estilo criativo
Em 1 940, uma empresa de Chicago inventa, para animar as can­ "tendência". Com isso, o clipe não é senão uma criação estruturada
ções, os Soundies, curtas-metragens musicais em preto-e-br� n­ pela moda. Ponta extrema do filme-moda, ele é o caminho obriga­
co de dois a três minutos, visíveis numa máquina de madeira. tório do lançamento de um álbum, o instrumento privilegiado para
Nos anos 1 960 começa a época do Scopitone, pequeno filme a promoção da música do momento. É tal a sua importância na
também de dois a três minutos, a cores, que se pode ver esco­ economia do disco que se coloca hoje a questão de saber se a mú­
lhendo-o, entre outros, numa espécie de juke-box, e do qual sica pode sobreviver sem ser filmada.2 1 Seja como for, a sociedade
Claude Lelouch se tomou então um especialista. de hiperconsumo é contemporânea do surgimento de uma minitela
Uma grande virada ocorre nos anos 1 980 com a explosão global que associa estilo e marketing, imagem e som, palavra e
do clipe, novo casamento da música e da imagem que utili� a as moda, música e cinema.
trucagens sofisticadas do vídeo e até mesmo, para os mais ncos, Como os videogames, os clipes também têm ligações com o
do cinema. O canal MTV é o primeiro a apostar, em 1 98 1 , no cinema. Muito rapidamente, já nos anos 1 980, o clipe traz ao cine­
clipe contínuo, 24 horas por dia. Em 1 983, Thriller de Michael ma um novo olhar, uma nova maneira mais entrecortada de mos­
Jackson ( dirigido por um cineasta, John Landis) traz ao gênero trar e de contar. A forma rítmica como são coreogrados os comba­
uma caução artística e cinéfila, ao se inspirar ostensivamente tes na série dos Rocky, para atingir o paroxismo em Rocky 4
em A noite dos mortos-vivos [ 1 968] e outros fi lmes de terror de [Sylvester Stallone, 1 985], contrasta ostensivamente com a forma
George Romero. A seguir, Beat it, outro c l ipe de M ichael realista como o filme de boxe tradicional era filmado até então: o
Jackson, se inspira diretamente em West side story - Amor, su­ ringue como um clipe. Por outro lado, vemos progressivamente,
blime amor [Robert Wise, 1 96 1 ]. Madonna é a primeira a lançar como na publicidade, muitos recém-chegados se formarem no cli­
(em 1 989) uma canção diretamente em vídeo, Justify my !ove. pe antes de passarem ao cinema. Toda uma geração de jovens
Segue-se a multiplicação de canais musicais, alimentados pelo cineastas americanos - Spike Jonze, Dominic Senna, Patty Jenkins
mercado em pleno crescimento do clipe, até que os anos 2000, -, mas também europeus - Guy Ritchie, Olivier Dahan -, vem do
com os novos avanços técnicos, venham trazer mais uma mu­ clipe, como é o caso de Michel Gondry, francês que trabalha nos
dança. Agora é a vez do MP3 e do iPod, do download em celu­ Estados Unidos e na França, diretor titular dos clipes de Bjork, e
lar, dos sites de som e imagem na Web. que transpõe seu universo onírico e estilístico num filme ao mesmo
O triunfo do videoclipe aparece como uma das ilustrações tempo hollywoodiano e totalmente atípico, Brilho eterno de uma
do crescente domínio da lógica de marketing na indústria do disco, mente sem lembranças [2004]. Esses cineastas retomam de bom
na hora do hiperconsumo. Difundir música e canção filmada não é grado a estética do clipe, a "estética MTV" (brevidade dos planos,
mais suficiente: agora a música deve se combinar com um visual efeitos de zapping, imagens num ritmo compulsivo), para aplicá-la
que funciona como moda e cinema, marca e estil� . Não � ais a ao cinema, da mesma maneira que são influenciados por outros
simples imagem do cantor, mas uma criação visual feita de cineastas que lhes abriram o caminho (Scorsese, por exemplo, que
"desconstruções" em série, destinadas a criar um posicionamento dirigiu um clipe para Michael Jackson).
distintivo, uma "imagem de marca" para um público jovem ávido
de sensações, look e originalidade. Assim como a publicidade new 21
Questão colocada pro Yéronique Mortaigne e Odilc de Pias, "L'image en renrrn 1
look não se contenta mais em apresentar simplesmente seus produ- de la musique", Le Monde, 20 de janeiro de 2007.

276 277
Mas esse não é o ponto mais significativo. Inicialmen­ "clima" é obrigatória. Isso não acontece no clipe, onde o trata­
te o videoclipe era uma simples colocação em imagem de mento da imagem parece frequentemente sem relação com o
uma canção. Agora não é mais assim: o clipe tornou-se como espírito da peça musical. Estamos aqui na heterogeneidade de­
que uma expressão curta mas exemplar da lógica híper. De senfreada, no jogo absolutamente livre, na rejeição dos estilos
fato, nele se encontram as três grandes lógicas carac terísti­ clássicos e ordenados. O estilo clipe inventa assim uma nova
cas do hipercinema. Imagem-excesso, em primeiro lugar, com relação entre som e imagem dominada pela defasagem, pela
os efeitos especiais, a velocidade de sucessão das imagens22 , discordância, pela disjunção. A imagem na tela não serve mais
a montagem picotada destinada a provocar permanentemen­ apenas para valorizar a música, ela deve exprimir um valor de
te surpresa e sensações, por meio de uma espécie de imersão. originalidade por ela mesma.
Imagem-multiplex, a seguir, testemunhada por inúmeras in­ No entanto o clipe conta uma história, por mais confusa e
crustações, fragmentações de imagens, multiplicação e dis­ fragmentada que seja, cuja trama tem a ver com a canção: é onde
persão simultâneas das figuras: a estética de Jean-Christo­ se mantém a ligação com o cinema enquanto narrativa-em-ima­
phe Averty poderia ser vista, num certo sentido, como o pro­ gens. Estamos a anos-luz dos primeiros clipes que se contenta­
tótipo do clipe enquanto arte da montagem e da colagem. vam em registrar frontalmente um cantor cantando sua canção.
Imagem-distância, enfim, os clipes cultivando em profusão a Um clipe é um filme, que se apresenta como tal e que se alimenta
estética doida, "pirada", irônica, que os jovens tanto apreci­ da visão e do estilo que o cinema lhe oferece. Luc Besson trans­
am. Assim, é a mesma lógica híper que domina o cinema, a põe a estética de imersão visual e sonora que criou com Subway
publicidade e o clipe. Com a diferença de que este último [ 1984] - antes mesmo de filmar as profundezas cerúleas de A
escapa à necessidade linear do discurso-exposição, ao impe­ imensidão azul [ 1 988] - para o azul da piscina onde filma um
rativo de coerência no encadeamento dos planos. Sem exi­ videoclipe cantado por lsabelle Adjani; e o preto-e-branco, os
gências narrativas, o clipe se oferece como puro bombardeio enquadramentos, o ritmo, o estilo nervoso de O ódio [Mathieu
sonoro e visual, desconstrução levada ao extremo, sucessão Kassovitz], em 1995, engendram uma série de rebentos nos cli­
de imagens-flash, como relâmpagos visuais que, nos clipes pes com grupos de rap da periferia. Pelo clipe, o ouvinte se torna
tecno, chegam a fazer desaparecer propriamente a imagem espectador de um cinema musical de uso intensivo e de finalida­
mimética. Ironia hipermoderna: o mais comercial faz agora de imersiva. Ainda que atomizado em fragmentos díspares e ge­
o que fazia, um tempo atrás, o cinema mais experimental. ralmente delirantes, o cinema está presente aí mais do que nunca.
Esse paralelismo não deve, porém, ocultar as diferenças
que separam filme de cinema e clipe, sobretudo no que se refere A tela gigante
à ligação entre imagem e música. No cinema, a música é senti­
da pelo espectador como acompanhando "fielmente" a história O frenesi lúdico e espetacular se exprime igualmente atra­
para reforçar sua significação: a concordância e a unidade de vés de um outro tipo de tela, caracterizada por suas dimensões:
a tela gigante. Nesse ponto o cinema, na linha dos que, como
Abel Gance, sempre buscaram desenvolver a magia da proje­
22 Um clipe de três minutos de duração tem, geralmente, pelo menos 50 planos, ou ção por meios técnicos e, sobretudo, pelo tamanho da tela, abriu
seja, 3 a 4 segundos por plano. o caminho e continua sendo a referência. Não apenas as telas

278 279
das salas crescem constantemente em dimensões - os cines O efeito cinema atua aqui plenamente: o primeiro plano
multiplex de hoje oferecem telas que chegam a ter mais de 20 que mostra a cabeça de Zidane golpeando e derrubando Materazzi,
metros de base -, como também outras formas de exploração na final da Copa do mundo de 2006, logo se torna, em
cinematográfica vão mais longe, aumentando o tamanho das primeiríssimo plano, imagem focalizada que dá a volta ao estádio
telas para além do que permitem as salas clássicas. Os parques antes de dar a volta ao mundo, amplificada pela transmissão na
de diversão Disney, em particular, criaram imensas telas cir­ tela e pelos procedimentos cinematográficos que a acompanham
culares gigantes onde são projetados filmes que buscam acen­ -flashback, slow motion, zoom . . . A realidade do fato, ele próprio
tuar a vertigem sentida pelo espectador. Destinados sobretudo já espetáculo - competição esportiva, reunião política, show mu­
a valorizar o equipamento, esses filmes fazem isso ainda me­ sical -, é transfonnada em hiperespetáculo que o desdobra e o
lhor quando dirigidos por verdadeiros cineastas. Em 1996,Jean­ hiperboliza. Não é mais uma partida ou um concerto que vemos,
-Jacques Annaud realiza sobre o aviador Guillaumet um filme mas um real filmado, efeitos-imagens, uma dramaturgia espetá­
impressionante, Les A iles du courage, unicamente reservado a culo, ações e encadeamentos sistematicamente encenados. A tal
esse tipo de projeção e às sensações que ela suscita. Atual­ ponto que, quando assistimos a uma partida das arquibancadas,
mente, o processo Omnimax (e o Imax para as telas planas) num estádio que não dispõe desses procedimentos de
pennite projetar filmes em hiperformato, dez vezes maior que retransmissão, há uma certa fmstração diante do que se vê ao
o 35 mm, com uma imagem em 1 80 graus na horizontal e 120 vivo: gostaríamos de rever o gol em câmera lenta, de isolar o
graus na vertical, ou seja, mais que o campo mesmo da visão gesto, de passar o filme do que se acabou de ver. Com a tela
humana. Das 120 salas no mundo equipadas com esse proces­ gigante que mostra o acontecimento de outro modo, não estamos
so, a França conta com três, entre elas a da Géode, que rece­ no cinema,mas é o cinema que está aí, o hipercinema da hipertela.
beu mais de 17 milhões de visitantes desde sua instalação em
1985 e que, em 2005, com 530 mil espectadores, era a sala Telas de ambiente: criar uma atmosfera
mais frequentada da Europa.
O fenômeno se generalizou com o vídeo, as telas de cris­ Diferentes desse tipo de telas ult:ravisíveis, e no entanto tam­
tais líquidos e as retransmissões televisadas: assiste-se às grandes bém ligadas ao cinema, são as telas, cada vez mais numerosas e ba­
partidas de futebol ou de rugby, no mesmo estádio, simultanea­ nalizadas, que podemos chamar de ambiente. As telas planas, que
mente no gramado e numa tela gigante com as imagens ao vivo; podem ficar penduradas nas paredes como quadros,concretizam um
um show de Johnny Hallyday no Champ-de-Mars, em Paris,pode tipo de equipamento, agora comum em hal!s de empresas, bares e
ser visto por centenas de milhares de fãs, mesmo distantes do restaurantes, salas de jogos, lojas da moda e butiques de luxo23 , nas
palco, graças a telas gigantes que transmitem o espetáculo; os próprias salas de cinema, onde formam o que poderíamos chamar
fiéis e os amigos presentes no funeral do padre Pierre, mesmo
não podendo entrar na Notre-Dame, dispõem de uma tela gigante 23 Não são apenas os lugares da moda que se povoam de telas, é a própria moda
no adro da catedral para acompanhar a cerimônia. Assim o acon­ que procura investir nas telas digitais de uso pessoal . Fabricantes e grandes mar­
cas ( Prada, Do Ice & Gabbana, Levi 's) desenvolvem celulares que combinam alta
tecimento é duplamente midiatizado - porque transmitido e visto
tecnologia e design "conectado". Assim a tela se instala no registro do acessóri
sob forma de imagens, e porque essas imagens, imensas, são in­ da moda: um tecnoluxo que é tela-moda, variante individual e distintiva da tela <lc
comensuráveis com a visão pessoal direta. ambiente.

280 281
um fundo visual, como se fala do fundo sonoro do piano-bar ou da define ao mesmo tempo a natureza e a finalidade de muitas des­
música de elevador. Essas telas,feitas de certo modo para não serem sas novas telas: sua relação com a expressão artística. Em substi­
vistas, assim como o fundo sonoro é feito para não ser escutado, tuição à tela branca do cinema, elas se tomaram o suporte de
criam um ambiente visual que inscreve a realidade numa tela. A tela obras com ambição expressamente estilística e são o vetor privi­
está aí, como prova da dimensão midiatizada da realidade. Ela tra­ legiado de toda uma nova geração de criadores, que nelas encon­
duz inclusive,de forma fragmentada e diversificada como num que­ tram um meio novo para exprimir sua sensibilidade artística.
bra-cabeças, a multiplexidade dessa realidade quando, numa parede
onde se alinham dez, vinte telas seguidas, a materialidade bruta da A videoarte: do confidencial à expressão de massa
parede é substituída por uma superfície de imagens caleidoscópicas,
labirínticas, como no interior do palácio dos espelhos onde Rita Embora muito crítico em relação à televisão comercial,
Hayworth, sacrificada por Orson Welles (A dama de Xangai, 1946), túmulo do cinema,Jean-Luc Godard se fez muito cedo o apóstolo
repetia em seus reflexos múltiplos: "J don i want to die"... do vídeo,que ele vai pregar,depois de 1968,"como São Bernardo
Se o p lasma permite hoje pendurar a tela na parede, o pregava a cruzada".24 Inclusive, afastando-se por um tempo do
desenvolvimento previsível das nanotecnologias permitirá ir cinema em favor do vídeo, na efervescência dos anos esquerdis­
muito mais longe ainda. Já se trabalha na combinação do plas­ tas, ele não abandonará este último quando voltar ao cinema nos
ma e dos cristais líquidos com nanomateriais que reforçariam a anos 1980. Desde então,retirado na Suíça,Godard prossegue suas
cor e o contraste da imagem: com o tempo, pode-se imaginar pesquisas nessa forma de expressão que ele vê como uma nova
uma tela que, em vez de ser pendurada, acabaria por se fundir juventude da arte: "O vídeo é uma arte que nasceu adolescente e
com a parede. Assim, o material de que é feita a casa seria ele que nunca será adulta". 25 Nesse fascínio por uma técnica de fácil
mesmo tela: a tela-mundo. utilização e baixo custo,favorável a experimentações que o cine­
Sem pressagiar ainda com precisão as formas que pode­ ma, econômica e tecnicamente bem mais oneroso, dificilmente
rão tomar no futuro, a presença/ausência dessas telas, tão co­ permite, esboça-se uma primeira afinidade entre o vídeo como
muns que nem chegam mais a ser notadas, reveste a nossa exis­ meio de expressão artística e o cinema.
tência, sem que nos demos conta, de uma atmosfera de cinema. Ligados a técnicas, ambos sempre tiveram um lado expe­
E tal imagem captada de passagem,que identificamos como um rimental que seduziu muitos artistas de vanguarda. Quando Andy
trecho de filme ou um momento de espetáculo que reconhece­ Wahorol, no cinema underground dos anos 1960, filma durante
mos, funciona como um ponto de referência a uma cultura seis horas o sono de um homem (Sleep), a abordagem radical do
telânica compartilhada. Solúvel no ambiente, o cinema se tor­ filme tem o mesmo procedimento vanguardista e provocador
na, através dessas telas de atmosfera, o pano de fundo, o
background do cotidiano hipennoderno. 24 Jean-Paul Fargier, "Histoirc de la vidéo française. Structures et forces vives", in
La Vidéo entre art et communication, Paris, É cole nationale supérieur des beaux­
A tela expressiva arts, 1999, p. 50. De maneira mais precisa, sobre a videoartc, consultar: Françoise
Parfait, Vidéo, un art contemporain, Paris, É ditions du regard, 200 I ; Florence de
A dimensão decorativa, não ausente nas telas de plasma Meredieu, Art et nouvelles technologies. Art vidéo, art numérique, Paris, Larousse,
2003; Michael Rush, L 'Art vidéo, Paris, Thames & Hudson, 2007.
penduradas na parede,conduz a um outro aspecto, essencial, que 25 Verão de 1995, in La Vidéo entre art et communication, op. cit., p. 7.

282 283
Luper, em 2003 , o mesmo Grcenaway organiza seu filme como
que a de um Nam June Park ou a de Godard ao adaptar em vídeo
uma produção interativa que envolve vídeo, DVD, livro e um
Edgar Poe, em La Puissance de la parole, atendendo a uma
site na I nternet: a obra se apresenta como uma construção
encomenda do ministério francês dos Correios e das Telecomu­
multimídia, multiforme e combinatória.
nicações. A videoarte, nascida no final dos anos 1960 com o
Os progressos consideráveis efetuados pela alta defini­
aparecimento da Portapak, a primeira câmera portátil, desde
ção difundem o uso da câmera DV junto aos cineastas, e não
então vem utilizando experimentalmente todos os recursos da
apenas por reduzir o orçamento dos filmes. Claude Miller,
tela, através de instalações e perfonnances situadas nos antípodas
levado por razões financeiras a rodar L a Ch am bre des
da sedução do cinema. Livre do domínio da televisão e explo­
magiciens [ 1999) em vídeo digital, descobre uma tal liberda­
rando suas próprias potencialidades, ela conquistou um lugar
de que, quando volta a filmar em 35 mm no seu filme seguin­
cada vez maior no seio das artes visuais em busca de caminhos
te, Betty Fisher e outras histórias [200 1], decide conservar
alternativos: nos anos 1990, cerca de metade das obras apresen­
dois princípios que o vídeo lhe permitiu experimentar: ter
tadas na bienal de Veneza fazia intervir o vídeo.
vários pontos de vista sobre a cena ao filmar permanente­
Essa importância adquirida pela videoarte, ainda que pa­
mente com duas câmeras, e recusar toda maquinaria instala­
reça hoje diminuir um pouco, pôde ser vista como uma forma
da ao filmar com a câmera no ombro. David Lynch, cujo Im­
para os criadores, de inventar um meio de expressão que se afas�
pério dos sonhos tem as cenas de Veneza rodadas em Beta­
taria do cinema. Mas esse suposto afastamento é discutível. Pri­
digital, antes de serem transferidas para a película, encontra
meiro porque muitos cineastas, e Godard em primeiro lugar,
na filmagem em vídeo recursos insuspeitados e que lhe são
praticam conj untamente o cinema e o vídeo. Cineastas de pri­
vantajosos. Além de poder fazer tomadas que duram 40 mi­
meiro plano, como David Lynch e Peter Greenaway, integram o
nutos sem precisar recarregar a câmera, a flexibilidade da
cinema e o vídeo num procedimento artístico mais amplo, que
filmagem proporciona urna liberdade absoluta: "Com a
inclui a foto, a colagem, a instalação. Um dos mais inovadores
câmera digital, você fica leve, móvel; você se mexe para cá e
diretores do jovem cinema asiático, o tailandês Apichatpong
para lá, quase pode ver no escuro. Para mim, é como um
Weerascthakul, é também um dos artistas plásticos e videoa1tistas
sonho que virou realidade" . 26 Praticado por verdadeiros ci­
principais da nova cena artística. Além disso, muitas técnicas
neastas, o vídeo não é sentido como algo diferente do cine­
utilizadas pelos videastas vêm do cinema: é o caso das famosas
ma, mas como uma extensão de suas possibilidades.
multitelas e multi-imagens praticadas por Isaac Julien, René
De resto, toda uma geração de iniciantes, que sem o vídeo
Huyghe, Goug Aitken, que levam à sua apoteose os procedi­
não teria acesso ao mundo do cinema, pode chegar a este por
mentos experimentados por Abel Gance já nos anos 1920- 1930.
meio de uma técnica mais econômica e de manejo mais sim­
Por outro lado, ainda, a digitalização progressiva faz que as duas
ples. Assim ele desempenha um papel eficaz de laboratório, como
técnicas se integrem cada vez mais. Um filme como A última
se constata nos festivais de curtas-metragens, em que o número
tempestade já apresentava, em 199 1, imagens elaboradas ao
de filmes rodados em vídeo é crescente.
mesmo tempo na película e em vídeo, a partir de desenhos, pin­
turas e animações, tudo combinado num sistema de vídeo H D
antes de ser escaneado a laser n o negativo d e filme d e 35 mm. 26 Entrevista com Jean Serroy.
Dez anos depois, ao construir seu tríptico As malas de Tulse

28 5
284
No entanto, o fato de muitos artistas de vídeo terem os­ radicalmente o quadro.28 Passamos de uma arte de vanguarda,
tensivamente tomado uma direção oposta ao cinema, desvian­ assunto de especialistas, para uma arte de todos e para todos.
do a imagem de vídeo para outra coisa, contribuiu para esta­ Ao tornar-se parte integrante do universo digital, o vídeo se abre
belecer uma c livagem entre as duas formas de expressão. É à aventura da difusão em massa e ao mesmo tempo à Tela planetá­
verdade que uma videoarte se desenvolveu e tem sua própria ria. E assim uma arte reputada "chata" e "difícil" se vê substituída
história, a qual, voltada expressamente contra a televisão, tam­ por criações-lazer, algumas das quais continuam certamente se­
bém se definiu por um distanciamento do cinema e um guindo o caminho vanguardista, mas a maioria se apresentando
desenvolivemto bastante autônomo em relação a este, o que sob um aspecto menos ambicioso, mais espontâneo e mais lúdico,
não é o caso da publicidade ou do clipe. Em realidade, uma mais próximo do cinema que da estética das instalações.
configuração mais complexa se criou e que se deve mais a
cruzamentos pontuais. Alguns videastas integraram em sua A rte digital: a tela experimental
criação as pesquisas do cinema experimental ou de obras como
a de Godard. Do mesmo modo, se as instalações de vídeo não Assim como a videoarte, a arte digital tem sido praticada
são cinema, mesmo assim elas narram alguma coisa segundo por criadores interessados em utilizar as possibilidades de uma
procedimentos de ruptura, elipses, diversidade, complexida­ tecnologia nova que, no final dos anos 1960, abriu perspectivas
de, que n ão são alheias à estética de a lguns mestres do radicalmente inéditas29 para a liberdade de criação.
hipercinema. Os fãs de Greenaway, de Egoyan, de Haneke, de De início, a utilização dos dispositivos de tratamento auto­
Lynch estão acostumados com imagens compl exas nas quais mático da informação só atraiu especialistas como Michael Noll
não veem ruptura com as mais inovadoras imagens do vídeo. ou Manfred Mohr, capazes de dominar não apenas essa técnica
Trata-se de uma cultura da imagem móvel, o que John Wyver mas também as combinatórias de tipo matemático e lógico que
chama "uma cultura da imagem discordante e nova"27 na qual ela permitia. As obras que eles realizam, inspiradas mais na abs­
as interações são constantes. tração geométrica do que na figuração, jogam com os elementos
Mas eis que um verdadeiro sismo sacode o planeta vídeo. gráficos, as séries e a algoritrnização da cor. Foi somente com o
Por muito tempo as instalações, performances e montagens de aparecimento da micro-informática, em meados dos anos 1970, e
vídeo estiveram confinadas aos centros de criação contemporâ­ sobretudo da imagem animada e da 3D, no começo dos anos 1980,
nea, a manifestações frequentadas por pequenos círculos de ini­
ciados, à obscuridade de algumas exposições ou festivais mais zK A progressão desses sites é espantosa: YouTube, líder do vídeo americano, que
ou menos restritos. Mas um novo e formidável vetor de difusão tinha 325 mil visitantes cm janeiro de 2006, recebe 3,5 milhões cm janeiro de
vem mudar a situação, subtraindo a videoarte desse mundo fe­ 2007, ou seja, um aumento de 1 . 000%. E Dailymotion, quase desconhecido em
janeiro de 2006, com apenas 1 69 mil visitas, registra mais de 3 milhões em de­
chado: a Web. O aparecimento de sites de difusão e comparti­ zembro, ou seja, 1 . 715% de progressão em um ano!
lhamento de vídeos MySpace, YouTube (criado em 2005, com­ 29 Edmond Couchot e Nortbert Hillaire reconstituem a história dessa arte digital e
prado em 2006 pelo Google) ou o francês DailyMotion alteram propõem um amplo panorama dela em L 'Art numérique, op. cit. Nas páginas a
seguir, tomamos alguns exemplos desse livro. Ver igualmente: Jean-Pierre Balp
(d1r,), L 'Art et /e Numérique, Les Cahiers du Numérique nº 4 Paris Hermes
27
"Pour en tinir avec 'l'art vidéo"', in La Vidéo entre art et com111unicatio11, op. 2000; Christiane Paul, L 'Art numérique, Paris, Thames & Huds�n, 2004; RacheÍ
cil. , p. 162. Green, L 'Art Internet, Paris, Thames & Hudson, 2005 .

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que a arrte digital se abre a usuários menos estritamente fom1a­ em função de seu ritmo de respiração. O procedimento é aqui o
dos nas c iências. da imersão do espectador na própria obra, da qual ele é tam­
Vemos então artistas vindos de outras formas de expressão, bém, de certo modo, o princípio ativo, pois ela se reconfigura
especialmente da animação e do cinema, escolher o computador em função das escolhas que ele faz.
como suporte de sua criação. É o caso de Marc Caro, futuro par­ Outras formas de expressão digital se multiplicam: dis­
ceiro de Jean-Pierre Jeunet em Delicatessen [ 1 990] e Ladrão de positivos abertos, de formas muito diversas, propõem imagens
sonhos [ 1 995], que procura retomar, através da informátic�, as virtuais que interagem com o espectador, como o famoso olho
descobertas de Mélies. Outros, como William Lathan, realizam de B i l l Spinhoven que, numa tela de vídeo, pisca e, quando
esculturas visuais tridimensionais. A maioria se interessa princi­ passa um visitante, se põe a acompanhá-lo com precsião e in­
palmente pela animação, que constitui naquele momento o pr� n­ sistência. Na maioria das vezes, essas instalações util izam
cipal campo de investigação da criação digital, numa p� sqmsa meios multimídia que combinam texto, imagem e som. Pode
_
que, ao contrário do realismo do cinema de animação tra? 1c10nal ser num CD-Rom, como faz Chris Marker, sempre na van­
:
se aventura nos caminhos do fantástico, do inólito e do vutual - e guarda, que oferece, em Immemory, uma navegação no interior
o caso das realizações de Yoichiro Kawaguchi, que imagina cria­ de sua própria memória, a partir de fotos, imagens de arquivos
turas vivas não figurativas num universo ele próprio imaginário e texto s . Podem ser também dispositivos i nterativos que
sem relação com o universo sensível. Pintores, realizadores de c ri am seres virtuai s relativamente autônomos com os quais é
clipes e videastas também passam a utilizar as tecnologias digi­ possível se relacionar. Em Danse avec moi ( Michel Bret e
tais, aplicando a suas obras o tratamento de imagens, as Marie-Hélene Tramus), uma dançarina virtual, dotada de ca­
incrustações, o controle digital da câmera. Mas é um trabalho que pacidade de aprendizagem, executa passos de dança improvi­
permanece restrito. sados em resposta aos gestos de uma dançarina real . Pode ser
São os anos 1 990 que dão o pontapé inicial da explosão ainda - e é o que acontece cada vez mais - um trabalho on-line,
da arte digital, graças ao desenvolvimento da realidade virtual, pois a Web é agora um instrumento uti lizado também para fins
da multimídia, das redes de comunicação digital . Essas inova­ de arte. Uma arte que, na fronteira da não arte, por enquanto não
ções tecnológicas permitiram explorar de uma nova maneira os produziu formas visuais muito ricas e se limita a um microcosmo
recursos da interatividade digital, de modo que o público não de especialistas.
fosse mais apenas testemunha, mas "coautor" da obra. Apare­ Sej a como for, formas artísticas vêm se construindo e se
cem instalações em que o espectador é mergulhado em ambien­ transformando em função das tecnologias digitais. O computa­
tes simulados que oferecem uma forte impressão de realidade. dor e sua tela são cada vez mais mobil izados nos domínios mais
É O caso do cubo de Jeffrey Shaw, no qual o espectador se vê diversos da criação, da comunicação e da informação. Capaz de
diante de superfícies animadas com imagens em 3D comanda­ simular a pintura, a fotografia, o cinema, o vídeo, a arquitetura,
das por um manequim que ele próprio manipula, o que o mer­ a voz, a música, a dança, e aplicando-se à quase totalidade das
gulha numa série de universos virtuais diferentes conforme � s atividades humanas, o digital é realmente a técnica universal do
comandos que lhe dá. Ou ainda da viagem virtual que Chatr tempo da tela global. É nesse contexto que a ciberarte busca
Davies propõe a um espectador atado e equipado de um capace­ caminhos novos para criar um novo diálogo entre o computador
te de visualização, que lhe permite navegar em paisagens oníricas e o públ ico, refinando os dispositivos interativos e implicando o

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corpo mesmo do espectador. Esses novos projetos "experienciais"30, abrangem todas as formas artísticas: música, fotografia, grafismo,
porém, não devem ocultar que a arte digital continua dominada quadrinhos, vídeo e, naturalmente, cinema. Alimentada por uma
por instalações que criam infinitamente mais distância e frieza cultura da imagem em que o cinema ocupa um lugar central,
do que participação sensível e imaginária. Sejam quais forem as essa geração se volta em massa para a Web, abandonando o curta­
intenções artísticas proclamadas, a tela digital que se vê nos metragem clássico - cinema ou vídeo - até então considerado como
centros de arte contemporânea é mais um procedimento experi­ o meio de acesso privilegiado à produção de longas-metragens, em
mental do que urna experiência sensível, mais um regime de favor da rede informática, cujo custo é infinitamente mais mo­
imaterialidade abstrata do que uma relação tátil e imaginária. desto e cuja difusão nem de longe se compara com a exibição
Nela encontramos muita inventividade técnica, mas pouca ca­ em salas ou em festivais: 1 00 milhões de vídeos são vistos todo
pacidade de transporte emocional. Os meios técnicos mobiliza­ dia no YouTube e 65 mil novos vídeos se acrescentam diaria­
dos podem ser sutis e engenhosos, mas o resultado final, muitas mente. Nunca se produziram e se difundiram tantas sequências
vezes decepcionante, deixa perplexo. Para que serve, qual a fi­ filmadas32, nunca se registraram tantas expressões de "arte e
nalidade da imaginação técnica? Se essa apreciação vale para ensaio" em vídeo, nunca o seu público foi tão imediatamente
muitas obras de arte contemporânea, ela não se aplica como tal mundial.
ao cinema. Aqui a criatividade técnica não funciona para si mes­ Paralelamente a essa cinemania criativa, é a uma cinema­
ma: ela está a serviço de uma história e das emoções do especta­ nia narcísica e obsessiva que assistimos, corno o comprova o
dor. Longe de gerar urna experiência abstrata, o digital no cinema uso extremo da webcam filmando e divulgando ao vivo, 24 ho­
(através dos efeitos especiais) contribuiu para enriquecer a expe­ ras por dia, a intimidade de alguns indivíduos. Superexposição
riência perceptiva e emocional do público. da vida em seus menores detalhes, "sublimação" do cotidiano
como cena extraordinária: a tela on-line permite que as paixões
Cinemania: a cada um, seu filme exibicionistas e hipemarcísicas se manifestem numa escala des­
conhecida até então. Mas é sobretudo uma espécie de cinema­
O fato é que a questão da criatividade pessoal por meio nia-reflexa que registra uma impressionante expansão. Iloje, os
da tela adquiriu uma dimensão inédita, cuja importância não indivíduos fotografam e filmam sem parar seu ambiente: tudo,
escapa aos atores do mundo da arte, da cultura, da informação, do mais dramático ao mais anódino, dos aviõe do 1 1 de setem­
da publicidade3 1 , diante da emergência de criadores que agora bro se chocando contra as torres gêmeas ao enforcamento de
dispõem não só de meios novos para criar, mas também para se Saddam Hussein, dos incêndios de carros na periferia de Paris
fazer conhecer. Adepta da informática e da câmera, a geração ao cachorrinho que brinca na relva, é matéria de cinema digita-
de 15 a 30 anos de idade encontra aí meios de expressão que

32 A própria televisão divulga hoje esses vídeos. Na França, um programa do Ca­


30 Edmond Couchot e Norbert Hillaire, L 'A rt numérique, op. cit., p. 206-207. nal + intitula-se Les Filmsfaits à la maison [Os filmes feitos cm casa]; na Ingla­
3 1 Em fevereiro de 2007, o primeiro festival dedicado à criação na I nternet, orga­ terra, Channel Four tem um programa, Home Made, inteiramente composto de
nizado em Romans, conta com o patrocínio do Ministério de Cultura e Comunica­ vídeos fornecidos por vineastas amadores, e a !TV mostra a atualidade através de
ção da França, TF I , M 6, Reporters sans frontieres, TVS Monde, 20 minutes, Art cenas filmadas pelos próprios espectadores, num programa chamado I was there.
& You, Psycho/ogies, AOL, Microsoft Expression, MySpacc. . . The People s Review.

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lizado. A própria esfera política não escapa ao fenômeno: agora imediatamente visível e, como a imagem assim captada não é a
vemos os "trackers" seguindo as pegadas dos l íderes políticos, cópia do real, essa imagem sempre acrescenta alguma coisa ao
espreitando o menor passo em falso, provocando às vezes inten­ que se dá a ver. Aí está a motivação subjetiva do fenômeno: o
cionalmente incidentes para d ifundir de imediato num blog a prazer de descobrir de uma outra maneira o que se está vendo, a
cena fi lmada. Nas ruas e nos transportes, nas festas e nas expo­ surpresa divertida, imprevisível, de minha própria imagem e do
sições, as pessoas se filmam e filmam tudo o que acontece, como espetáculo ao redor. Surpresa, surpresa: a cinemania diletante
se a imagem realizada importasse mais que a experiência ime­ de massa se alimenta de expectativas fim, do desejo de conhe­
diata vivida. cer pequenas sensações sempre renovadas, de sair fugazmente
A que se deve esse frenesi de imagens? Como compreen­ do repetitivo graças a imagens bizarras ou i rrisórias. Assim a
der uma tal cinemania que substitui a experiência direta? Pode-se cinemania não deixa de ter relação com o hiperconsumidor per­
reconhecer aí, certamente, uma democratização dos desejos de petuamente à espera de novas experiências de distração, desti­
expressão individual, um desejo de atividade pessoal que se veri­ nadas a compensar os tempos mortos da vida.
fica em outras práticas - escrita, blog, dança, caraoquê, artes plás­ Mas, se existe uma cinemania frívola ou gadget, há outras
ticas - e que traduz a necessidade de escapar à simples condição de natureza di ferente: o pomô amador, por exemplo, agora mais
de Homo consommator. O individualismo hipermoderno não é frequente e facil itado pela webcam ou pelo celular. Cinemania hard
apenas consumista: ele busca reconquistar espaços de autonomia e, de uns tempos para cá, acompanhada de um aspecto bem mais
pessoal, construir-se apropriando-se do que está fora, colocar em inquietante. É o caso do jogo em moda, o happy slapping, inventa­
imagem e em cena o mundo, um pouco à maneira de um repórter, do por colegiais ingleses, que consiste em esbofetear um passante
de um fotógrafo, de um cineasta. 3 3 Filmo, logo existo: agora exis­ na rua e filmar a ação num celular, ou, levando a violência ainda
te em cada homem, em seu tempo livre, o desejo de ser "artista", mais longe, em deitar com uma garota ou mesmo violentá-la e re­
"cineasta", a relação com o mundo sendo cada vez mais estéti­ gistrar do mesmo modo a cena, posta imediatamente em circula­
ca. 3 4 Uma nova fronteira se desenha : e l a não é s enão a ção.3 5 Embora pareça aqui ausente, a cineatitude é por certo o que
expressividade de si erigida em ideal de massa. fornece uma de suas chaves. Não basta fazer: é preciso autentificar
Ao mesmo tempo, essa cinemania aparece como uma ma­ o ato pela câmera; é por ser cinematogrado que ele existe e cria
nifestação do crescimento dos desejos hedonistas e lúdicos, bem reconhecimento. Numa época em que cada um pode ser o realiza­
como dos desejos de animação permanente de si característicos dor-distribuidor da imagem de si e também o ator do próprio filme,
da sociedade de hiperconsumo. O processo, engendrado pela o desejo manifesto é o de eleger-se como vedete, ser uma espécie
primeira geração da Polaróide, se generalizou, agora com a "fe­ de herói icônico. Um ego-star em circuito fechado, uma vedete de
licidade" da imagem em movimento. O resultado do registro é grupo, que reduz ao extremo o que o cinema havia criado como um
sonho inacessível, intocável. Percebe-se bem isso num desses sites
33 Essa nova paixão individualista é estimulada por diferentes sites que convidam
pessoais, Stella Strawberry, que tem como programa: como tomar­
os intemautas a colocar on-line suas fotos e vídeos. Cada um se toma cinenepórter
amador em potência.
se uma star? Longe de suas bases originais e do nitrato de celulose
34 É o que revela o festival Pockct Films, organizado em Paris pela terceira vez em
2007, apresentando numa grande tela 200 produções de "filmes de bolso" realiza­ 35 Para impedir essa prática, a lei francesa proíbe atualmente os intemautas de
dos por e para telefone celular. difundir fotos e vídeos que mostrem violências contra pessoas.

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de suas películas inflamáveis, o cinema está sempre aí e continua, diversos relatórios sublinham a regressão da leitura entre os jo­
para o melhor e para o pior, a inflamar os indivíduos, a dar forma vens, os adolescentes, os estudantes e os funcionários de empre­
aos desejos mais loucos. sas, bem como a diminuição dos chamados "grandes leitores",
desafeição acompanhada de uma perda de prestígio do livro e de
Do poder tetânico uma redução das tiragens médias num certo número de áreas. As
perspectivas que se podem razoavelmente traçar, no entanto, não
Essa tela transformada em tela-mundo será o coveiro das são tão graves como deixam supor os julgamentos apocalípticos.
outras formas de expressão? No império do tudo-tela, deve-se Para se defender, o livro possui trunfos que a tela não saberia lhe
ver, como pensam alguns, um processo destruidor, a invasão disputar: o conforto da leitura, o manuseio que lhe é próprio, o
bárbara de um Átila cultural, o fim da milenar escrita-papel? A prazer tátil e visual que oferece, tudo o que faz dele uma das
questão j á se coloca no setor da informação: as principais em­ invenções seguramente mais perfeitas que o engenho humano já
presas da imprensa internacional, nacional e regional criaram, criou. Independentemente de todo fetichismo ou de toda nostal­
em sua maior parte, sites e puseram seus jornais on-line, pre­ gia, pode-se razoavelmente pensar que a hora da morte anuncia­
vendo esse tipo de desenvolvimento na hipótese de uma regres­ da do livro não está marcada.
são ou mesmo do desaparecimento do suporte papel. O mesmo Certamente suas condições de difusão, com a venda on-line
pode acontecer com as revistas, em particular as científicas e e a digitalização, poderão modificar em profundidade sua econo­
universitárias, algumas das quais já se propõem unicamente na mia comercial. Se distinguirmos, para esquematizar, três eixos
Tela, e também com todo o tipo de publicações curtas, cujos constitutivos do domínio do livro (livros de prazer, livros de sa­
custos de fabricação e difusão dificilmente resistirão à econo­ ber, livros práticos), o setor prático (enciclopédias, repertórios,
mia considerável possibilitada pela forma on-line. É muito pro­ manuais práticos) será o mais fortemente afetado pelo digital,
vável que, com o tempo, o que depende da simples informação com o risco de desaparecer em proveito de um futuro totalmente
seja produzido e difundido prioritariamente na Web, repetindo­ na tela, o que desequilibraria o mercado global da edição. 36 Mas,
se o destino da correspondência que vê praticamente desapare­ no que se refere aos outros dois setores, e naquilo que o livro
cer a carta ancestral em proveito do e-mail ou do torpedo, o que, veicula de pensamento, de cultura, de prazer, de conhecimentos,
aliás, ocasionou paradoxalmente um retomo à escrita, ainda que ele conservará por muito tempo ainda seu lugar insubstituível.
de uma forma evidentemente menos sofisticada que aquela pra­ De resto, é possível que ele próprio se beneficie com o desenvol­
ticada pela marquesa de Sévigné. vimento das telas. Já se percebe que a explosão da Web não fez de
Resta o livro. A questão, aqui, é séria: tocar nele significa modo algum baixar o volume de negócios do setor editorial: as
tocar num dos pilares da nossa civilização. Daí o caráter de mal­ facilidades do tratamento de texto desenvolveram mesmo um tipo
dição contido nas previsões das Cassandras que veem projetar­ de edição leve, que permite a pequenas editoras produzir e difun­
se, no poder crescente da tela, o túmulo de um mundo. De fato, é dir livros originais ou reedições que não viriam à luz sem o com­
indubitável que a tela exerce, especialmente entre os jovens, um putador ou sem as vendas pela Internet. O objeto livro, que se
poder de atração que parece afastá-los do livro, e que a maioria
dos colégios já sugere consultar a Wikipédia em vez da Enciclo­ 36 Ver o que diz a respeito Bcno1t Yvert, "L'avenir du livre" ' Le Débat' nº 1 45
'
pédia Universalis. As ameaças são, evidentemente, muito reais: maio-agosto de 2007.

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guarda na própria biblioteca, que se leva consigo, que se folheia à continua a exercer esse poder que nos faz ligá-la diariamente de
vontade, que se abre ou se fecha, em cujas páginas se sublinha forma quase mecânica. Com essa tela pennanentemente acesa, vi­
ou se faz marcas, que se empresta ou se conserva ciosamente, vemos algo que é da ordem da compulsão ou mesmo da drogadição.
esse objeto conserva toda a sua especificidade, que não é a de Pouco importa o que se vê, contanto que a luz da tela brilhe.
um livro na tela, cuja natureza será sempre muito diferente. É lícito pensar que entramos agora, com a disseminação do
E, afinal, a verdadeira força da tela está noutra parte. O computador, nwn terceiro momento. A imediatez, a interatividade,
século que deixamos e o que começa nos ensinaram, de fato, a disposição infinita de tudo ao alcance de um simples clicar são
que há um poder da tela enquanto tal. Esse poder é de origem: o aspectos que geram uma nova sedução, um novo poder da tela
pano da tela de cinema (é o primeiro momento), tal como os erigida em interface generalizada: trabalhar e jogar na tela, comu­
irmãos Lumiere o estenderam no subsolo do Grand Café, no nicar-se e informar-se pela tela. Eis agora a tela como polo-reflexo,
boulevard des Capucines, num dia de dezembro de 1895, exer­ como referencial primeiro capaz de dar acesso ao mundo, às infor­
ceu de imediato uma forma de captação extrema, atraindo e sub­ mações, às imagens. Tela indispensável para quase tudo, tela
jugando irresistivelmente os espectadores. Céline falou do po­ incontornável. Um dia, talvez, o que não estiver disponível na tela
der incandescente dessa tela, quando, em Viagem aofim da noi­ não terá mais interesse nem existência para todo um conjunto de
te ' o narrador entra na obscuridade de uma sala de cinema indivíduos: quase tudo se buscará na tela e remeterá a ela. Ser ou
nova-iorquina onde o ambiente é "bom, suave e cálido": "En- não ser: existir na tela ou não existir.
tão os sonhos sobem na noite para se inflamar na miragem da E o poder telânico já se estende bem mais além dessas
luz que se mexe" . Poder mágico, quase hipnótico da câmara esferas. Pois é basicamente uma nova relação com o espaço-tem­
escura, que não se deve tanto ao que é mostrado quanto ao pró­ po que se instala, uma espécie de hiper-espaço-tempo no qual
prio dispositivo, a essa "miragem da luz que se mexe" . E poder tudo se efetua de imediato, em fluxo contínuo, na instantaneidade
tão forte que o cinema, arte popular por excelência, não tardou do tempo real. E isso afeta todos os domínios da atividade huma­
a empolgar um público que ia mais "ao cinema" do que ia ver na, da vida econômica à vida cotidiana: em toda parte a tela tra­
um filme. A frequentação quase mecânica da sala, nos anos 1 930, balha para fazer romper os limites do tempo e do espaço. Ao
tal como Fellini conserva sua lembrança calorosa em Amarcord, comprimir o tempo ao extremo e ao abolir as coerções do espa­
estava ligada a esse poder mágico original que ela nunca per­ ço, a tela em rede instaura urna temporalidade imediata, geran­
deu. Há sempre, no fato de "ir ao cinema", e não importando muito do a intolerância com a lentidão e a exigência do ganho de tem­
que filme se vai ver, um gozo intrínseco que faz nascer, quando po. Se possibilita uma maior autonomia pessoal na organização
entramos na sala, quando nos instalamos, quando as luzes se apa­ do tempo, ela também amplifica a sensação de urgência e de
gam e somente brilha a tela, uma sensação muito particular que viver sob hipertensão temporal. Por um lado, aumenta o poder
não é cinefilia, mas antes ecranofilia, amor à tela vivido tanto pelo de construir modos de usar o tempo mais personalizados; por
cinéfilo puro e duro que vem ver seu filme de arte, quanto pelo outro, desenvolve-se uma forma de escravização ao tempo da
comedor de pipocas em busca da sua ração de blockbuster. hipervelocidade. Sob o efeito da comunicação informatizada,
A televisão (segundo momento) captou, por sua vez, essa um novo regime do tempo se formou, marcado pelo reinado da
magia da tela. O atrativo que ela suscitou no começo, quando a instantaneidade e da imediatez, mistura i ndividualizada das
curiosidade se somava ao fascínio, certamente diminuiu, mas ela temporalidades e das referências. McLuhan afirmou, numa fór-

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mula que marcou época: "O meio é a mensagem". Sob esse
aspecto, a tela produtora de um novo modo de temporalidade,
que favorece percursos "em mosaico", próprios a cada um, me­ Conclusão
nos lineares, lhe dá razão. O devir da era hipermoderna não pode
ser separado da grande aventura tetânica. Do século XX ao sé­
A cinevisão do mundo
culo XXI, a odisseia da tela. . .

Era uma vez a narrativa

É uma bela história a que conta o longo filme da história


da sétima arte. Uma história que tudo separa, em muitos pon­
tos, da história da arte moderna, marcada pela ruptura, pela
dissonância, pela transgressão de seus limites, de seus obje­
tos, de sua definição mesma. De fato, o que caracteriza a arte
do século XX é um processo de subversão radical e permanen­
te de suas próprias formas. O trabalho revolucionário das van­
guardas e suas rupturas em série construíram a história moder­
na e contemporânea da pintura, da escultura, da arquitetura,
da música, da dança, da literatura. Cada uma dessas artes pas­
sou, ao longo do século, por uma denúncia sistemática das
formas clássicas de expressão, rompendo com as escolas e os
estilos precedentes, chegando a pôr em causa sua própria no­
vidade e - último grau - a contestar a arte mesma. Rupturas
acompanhadas da afinnação veemente da autonomia de uma
arte sem outro objetivo proclamado senão obedecer a suas pró­
prias leis, emancipando-se de toda relação significativa com o
mundo e a experiência vivida. Em contraste, a história do ci­
nema se mostra surpreendentemente pouco confl ituosa e
cindida, sem choque brutal, sem negação de si mesma. Sem
rejeição, sem incompreensão, sem divórcio com a opinião de
massa. E nquanto as artes de vanguarda não cessaram de
desconstruir o espaço da representação e da harmonia, a ponto
de se tornarem pouco compreensíveis, o cinema se manteve
constantemente no espaço da sedução narrativa e estética, atra-

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vés de histórias que, mesmo extraordinárias, sempre foram itne­ sofrimento, a esperança e o desespero. O que lhe permitiu ocupar
diatamente "eloquentes" para o grande público. Coloca-se assim uma posição dominante foi menos seu poder de difusão material
a questão de saber a que se devem esses destinos heterogêneos. do que o fato de conseguir oferecer, aos olhos e ao coração dos
No princípio dessa trajetória "tranquila" do cinema se acha, homens de todos os países e de todas as culturas, os grandes ar­
evidentemente, a forte pressão das exigências comerciais. Mas estas quétipos da narrativa "eterna", contados de maneira tal que cada
não esgotam a questão. Outros fatores merecem ser sublinhados. um pode neles se reconhecer e se reencontrar imediatamente.
Arrastada por sua vontade de desconstrução e de reflexivi­ É desse modo que o cinema exerce uma de suas grandes
dade metadiscursiva e metafigurativa, a aventura modernista teve funções sociais. Alimentando com suas histórias a necessidade
por efeito, em particular, lançar na desgraça um dos elementos de um outro lugar dos homens, ele cria ligação entre eles, assu­
mais constitutivos, mais universais da vida cultural e social: a me sua especificidade original,que era reunir numa mesma sala
narrativa. Desde o fundo dos tempos, as cosmogonias, os mitos e pessoas diversas que dirigiam o olhar para a mesma tela. Se as
as religiões estruturaram as culturas humanas ao contarem uma condições de recepção mudaram, se a televisão, o DVD e o
história sagrada, o tempo fabuloso dos começos, a origem e a download constituem maneiras novas de ver um filme mesmo
criação do mundo, a maneira como este foi modificado, enrique­ fora da sala, ainda assim ele continua, através de todos esses
cido ou empobrecido. Primeiro a oralidade, depois vieram a epo­ modos de consumo, a reunir os espectadores em tomo de um
peia, o teatro, o romance, a música, a pintura: ao narrarem ou ao espetáculo. Motivo de reuniões entre amigos, discussões sobre
ilustrarem histórias, contos e lendas, eles ofereceram ao homem um filme que se viu, no dia seguinte, com um colega de traba­
o relato de seus sonhos e de suas angústias. Assim a narrativa lho, publicidade em tomo do lançamento de filmes em salas ou
aparece como uma dimensão primeira, e impossível de eliminar, em DVD: são alguns elementos que fazem do cinema urna es­
da vida humana-social, na medida em que o homem é o ser cuja pécie de objeto comum, compartilhado, de lugar cultural onde
existência mesma é "história" feita de passado, presente e futuro, as pessoas vão comungar num mesmo espírito de adesão e de
a qual se diz nos mitos, nas lendas, nas narrativas. É dessa dimen­ convicção. Catedral do século, ritual, como já foi dito; em todo
são antropológica e original, ainda hoje tão apreciada pelas crian­ caso, caixa mágica com a função de vínculo social.
ças e tão maltratada pelo modernismo artístico, que o cinema se E, nesse ponto, não há dúvida de que o cinema é mais
encarregou. E isso de maneira simples, quase ingênua: ele substi­ bem-sucedido que as outras artes. Nenhuma outra arte, tradi ­
tuiu as formas expressivas que cumpriam outrora essa função cional ou nova, cumpre tão completamente es a função de con­
"primitiva". Ver um filme é saber que vão nos contar uma história tar aos homens histórias e de susc itar-l hes emoções e d iscus­
e esperá-la, de certo modo, com um "prazer infantil". sões. Nenhuma outra arte possu i uma força de pcnct raçção com­
Aliás, é o que explica, para além das razões econômicas e parável: de todas as máquinas d onhar inventadas pelo gên io
comerciais, a força e o sucesso contínuos, desde Griffith até Spiel­ humano, o cinema é não apenas a mais engenhosa, mas prova­
berg, do cinema americano. Simples, assumindo sem complexo velmente a de maior performance. Graças a ele, os homens do
as normas genéricas da narrativa, ele diz o que faz a condição e a século XX passaram a viver os territórios do imaginário de uma
existência humanas: o amor e o ódio, a vida e a m01te, a felicida­ forma totalmente i nédita, através de um dispositivo que dá a
de e a infelicidade, a paz e a guerra, o bem e o mal, o riso e as ilusão da vida em seu movimento mesmo. Seus sonhos foram
lágrimas, o belo e o feio, a juventude e a velhice, o prazer e o projetados, visualizados,como por magia,na tela. Todo um mun-

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do de irrealidade se abriu a seus olhos deslumbrados, no mistério uma espécie de padrão universal . Sob esse aspecto, pode-se
da sala escura. Força de imaginário excepcional: o cinema se considerar o cinema como uma das grandes forças de aculturação
caracteriza por ser uma arte global que opera a fusão do espaço e que forjaram a modernidade do século XX.
do tempo, do olho e do verbo, do movimento e da música. "É Certamente os tempos mudaram, mas, num mundo que se
uma música que nos atinge por intennédio do olho", dizia Élie tornou hipermidiático, o papel da sétima arte, contrariamente ao
Faure. 1 Sua natureza de arte compósita, com imagem, narração, que se afirma às vezes, de modo nenhum está em declínio. Agora
música, e que realiza de certo modo a fusão das artes já buscada nos dirigimos ao cinema para despertar as consciências e avaliar
pelos a1tistas barrocos, lhe deu uma força incomparável . David as grandes instituições. Assim ele vem em auxílio das próprias
Lynch reconhece esse poder: "O cinema é um meio de dizer o que organizações internacionais, como acontece com o festival inter­
ninguém pode dizer com palavras, a não ser talvez pela poesia. nacional do filme sobre os direitos humanos, explicitamente or­
Ele é em si uma linguagem que combina várias artes, uma lingua­ ganizado como uma resposta à ineficácia do Conselho da ONU
gem infinitamente bela e infinitamente profunda que pode contar nessa questão. 3 De maneira mais ampla, essa influência se obser­
todas as histórias."2 Globalidade sedutora que certamente o pro­ va na tomada de consciência coletiva que ele cristaliza - ver o
tegeu dos empreendimentos de desestruturação modernista. Nes­ sucesso mundial obtido por AI Gore alertando sobre o aqueci­
se sentido, tudo faz pensar que há no próprio cinema,no seu "ser", mento do planeta em Uma verdade incon veniente - ou nos efei­
características que o levaram a se afirmar como uma arte de sedu­ tos "políticos" que produz: Dias de glória [Rachid Bouchareb,
ção imediata dirigida a todos. 2006],por seus efeitos imediatos sobre as pensões dos ex-comba­
Essa força de imaginário vai além do simples prazer da tentes, conseguiu o que meio século de ação (ou de inação) polí­
evasão. Historicamente, o cinema foi um elemento essencial da tica não havia conseguido. Outra manifestação desse poder
formação da consciência moderna e particularmente americana. societal: a Palma de Ouro que Cristian Mungiu obteve em Cannes
No seio de um país de imigrantes, cada um tendo suas próprias em 2007 pelo filme 4 meses, 3 semanas, 2 dias, devolveu à
origens e suas próprias tradições, ele foi o molde unificador no Romênia um orgulho perdido e uma confiança a que o país aspi­
qual, pela força de imagens compartilhadas, se operou, como diz rava desde a queda de Ceausescu, criando uma verdadeira eufo­
o fi lme fundador de Griffith, o Nascimento de uma nação. Desde ria até no interior do país, funcionando como um forte elemento
então ele não deixou mais de ser o vetor do que se tornou a Amé­ de identidade nacional reencontrada. Se o cinema foi e continua
rica, tanto no lado do imaginário coletivo de liberdade individua­ sendo uma indústria de onho, que cativou e fascinou homens
lista - o "American dream" - quanto no de uma realidade social ávidos de viver através dele outrn coisa que não a rca lidad , el • . e
que exibe, sob todas as suas formas modernas, o mito da abun­ tornou também um vetor de debates colet ivos atrav6. d fi lm s­
dância e do consumo: o conforto doméstico,o carro, a relva dian­ acontecimentos que, sensibilizando o públi o, fazem mudar as
te da casa individual. Esse American way of life, Hollywood o coisas, e isso no momento cm que ·e en fraquece o poder dos
concretizou em imagens não apenas para os próprios americanos, políticos e dos intelectuai . Na sociedade de hipcrconsumo, o ci-
mas, de maneira mais ampla, para o mundo inteiro,fazendo disso

1
Êlie Faure, Fonc/ion du ci11é111a, op. cit. , p. 74. 3 "À Geneve, le festival du film sur les droits humains nargue l 'ONU", Le Monde,
2 Entrevista com Jean Se1Toy. l O de março de 2007.

302 303
nema desperta mais amplamente as consciências do que as toma­ paisagem, sua análise propõe um conceito-chave utilizado por
das de posição dos "mestres de pensamento". Charles Lalo, que, por sua vez, o tirou de Montaigne: a artifica­
ção da natureza. 6 Essa problemática teórica é fundamental e de
O mundo como cinevisão uma riqueza excepcional para a compreensão da função trans­
cultural e civilizacional da sétima arte: aplicando-se perfeita­
Se o cinema cumpre uma função narrativa-expressi­ mente ao cinema, a ideia de artificação vale ainda mais para ele
va-onírica m aior, essa dimensão, porém, não é única. H á que para qualquer outra fonna de arte. Por muito tempo visto
u m a outra função, insufi cientemente destacada e no entan­ como o lugar do irreal - a ponto de suscitar expressões como
to crucial, que se abre a uma perspectiva muito diferente: o "isso é cinema" - e como uma força mágica de ilusão que lança
cinema é o que constrói uma percepção do mundo. Não apenas seu público nos sonhos mais irrealistas, eis que o cinema forjou
segundo o papel clássico que se atribui à arte, cuja função esté­ o olhar, as expectativas, as visões do homem moderno e, mais
tica é fazer ver, através da obra, o que a princípio não se vê da ainda, ao amplificá-las e multiplicá-las, as do homem hipermo­
realidade. Mas, de maneira mais radical, produzindo realidade. derno. Ele se tornou um dos instrumentos principais da artifica­
O que o cinema mostra não é somente um outro mundo, o do ção do universo hipermoderno.
sonho e do irreal, mas nosso mundo mesmo transfonnado num O processo está em marcha desde que as stars passaram a
misto de real e imagem-cinema, um real fora-do-cinema sub­ iluminar a tela com sua beleza. Estrelas, vampes, divas, toda
metido ao molde do imaginário-cinema. Ele produz sonho e re­ essa constelação que se põe a transfigurar o universo cinema
alidade, uma realidade remodelada pelo espírito cinema, mas nos anos 1920, produzem e alimentam não somente sonhos, mas
de maneira nenhuma irreal. Se pennite a evasão, ele também também comportamentos muito reais, relativos à moda, ao ves­
convida a refazer os contornos do mundo. Oferece uma visão tuário, ao penteado, à maquiagem, às maneiras de ser. Embora
do mundo: o que chamamos a cinevisão. longínqua, inacessível, estelar, a star dos tempos modernos trans­
Assim o cinema ilustra o que Oscar Wilde dizia, de ma­ formou os comportamentos, fez evoluir os costumes, engendrou
neira provocante, em 1889, baseando-se nas artes então domi­ atitudes. Em Acossado de Godard, Belmondo, novo astro dos
nantes, a literatura e a pintura: "A vida imita a arte muito mais anos 1960, passa o polegar sobre os lábios, como viu Bogart
do que a arte imita a natureza". 4 Ao fazer essa inversão, Wilde fazer esse gesto seguidamente em seus filmes. E hoje o look
assinala que "essa teoria nunca foi emitida, mas é extremamen­ cinema, essa maneira de se comportar e de se mostrar aos ou­
te fecunda e lança uma luz inteiramente nova sobre a história da tros, se impôs e se difundiu socialmente através de uma nova
Arte", uma arte interpretada desde Platão à luz do prisma da estética de si: o glamour, a sedução ostensiva e espetacular,
mímesis. Alain Roger fala a esse respeito, com razão, de uma mostrando-se sem reserva, sem falso pudor, como por excesso.
"revolução copernicana da estética"5 ; tendo por tema a arte da Se o cigarro desapareceu sob os ditames higienistas, os óculos
escuros, o casaco comprido, o blusão de aviador, as grandes
echarpes, camiseta sem mangas, chapéu e roupas de aventura,
4 Oscar Wilde, A decadência da mentira (1889) (cf. h·ad. fr., Le Déclin du me11songe,
6 Ibid. , p. 16- 1 7. Alain Roger fala de uma "dupla artificação": "A primeira é dire­
Paris, Ali ia, 1 997, p. 7 1 .)
5 Alain Roger, Court Trai/é du paysage, Paris, Gallimard, 1 997, p. 13. ta, in situ: a segunda, indireta, in visu, pela mediação do olhar".

305
304
todo um concentrado de romance policial, de Indiana Jones, de B. DeMille e Spielberg, tigres de Bengala e Harley-Davidson,
Matrix, de Homens de preto, é portador de uma sedução ao qua­ Piratas do Caribe e jogadores de Cassino [Scorcese, 1 995]. Ci­
drado que se exibe enfaticamente, radiante, espetacular. A pró­ dades inteiras são como que encenadas: Solvang, na Califórnia,
pria erotização, que conservava algo de maus costumes com a conta a imigração dinamarquesa, com casas típicas, moinhos de
vampe e a pin-up, virou maneira natural de ser, como que vento, vinhedos, padarias e confeitarias escandinavas; o centro
aclimatada, empetecada pelo cinema. O mundo das aparências de Praga, restaurado, é repintado com as cores de um cenário de
se banha agora num glamour legítimo quase em qualquer ida­ ópera prestes a receber seu A madeus [Milos Formanm, 1 984).
de: o cinema ditou-lhe a lei. As pessoas querem se ver e ser Um pouco em toda parte, os centros urbanos são cada vez mais
vistas como os ídolos que resplandecem por inteiro na tela. tratados à maneira de cenários, iluminados por projetores, dese­
Essa cinematização se infiltrou um pouco em toda parte, nhados por urbanistas-cenógrafos e designers-decoradores, en­
muitas esferas da vida social imitando agora o universo-cine­ cenados segundo uma dramah1rgia de ambição turística que, en­
ma. O próprio fenômeno da star, nascido da telona, invade os quadrando o olhar, impõe uma cinevisão. Esses centros são visi­
meios dos criadores, da política, do esporte, dos people, cuja tados como se olha um filme. Os músicos de ma, convocados
imagem as revistas especializadas se encarregam de divulgar às para animar os lugares, criam um banho sonoro pennanente que
multidões. Mas o processo ultrapassa em muito o círculo das faz o turista sentir-se mergulhado dentro de um filme. A realidade
celebridades. No domínio da moda e do luxo, para além dos coincide com um sonho filmado, melodizado e ritmado ao som
produtos de maquiagem, roupas, joias e das estrelas que se fa­ de violinos e acordeões. As luzes e os sons se correspondem num
zem embaixadoras das marcas, é cada vez mais o espírito cine­ verdadeiro-falso real,num verdadeiro-falso filme: o turismo como
ma que oficia as grandes missas do setor: não há mais um desfi­
.
umverso-cmema.
.

le que não seja roteirizado, transformado em imagem e espetá­ Os Estados Unidos, em particular, são imediatamente sen­
culo como num filme. Ainda recentemente os vestidos eram apre­ tidos, pelos que chegam lá, como cinema, com seus dois gran­
sentados na discrição das grandes casas de costura: hoje se ofe­ des cenários privilegiados: a imensidão de seus espaços, como
rece um hiperespetáculo, um show com tema, cenários, instala­ que saídos de um western ou de um road movie, e a verticalidade
ções, refletores, música hi-fi. As arquiteturas comerciais fazem de suas cidades, onde os arranha-céus, as mas, os mídos, as
a mesma coisa: os malls, os bares, os restaurantes, os lugares de sirenes dos carros de polícia, a placas de sinalização, as luzes
convivência se organizam como cenários de filmes. Os Tex Mex na noite, dão a impre são de fazer parte de uma coméd ia ro­
e os Buffalo Grill saem diretamente dos westerns. Planet mântica ou de um thriller de ação. O país que mais fabricou o
Hollywood mostra claramente de onde vem. Os espetáculos de cinema é como que fabricado por clc. 7
som e luz, os parques de diversões, a Disneylândia, Le Puy du
Fou apresentam roteiros, atrações temáticas, cenários de estú­
dio, atores e figurantes.
Essa dinâmica não termina aí. Las Vegas,criação totalmente 7 A ponto de mesmo os acontecimentos mais trágicos não escaparem ao referencial
irrealista surgida em pleno deserto, exibe, em meio a cascatas, cinema: no 11 de setembro de 2001 , os aviões que se chocam contra as torres
gêmeas parecem sair de um filme catástrofe americano, ao qual são imediatamen­
chafarizes, cenários de papelão, salas de jogos, luzes e brilhos te associados, com o sentimento de que a realidade escreve um roteiro ainda mais
falsos,um Strip que reúne todo o imaginário hollywoodiano: Ceei) rico que a ficção.

306 307
Nem mesmo as obras de arte escapam à roterização e à não menos rica, mas diferente, "cinematizada", reconfigurada
espetacularização extremas, princípios lançados e magnificados pela espetacularização vinda da tela. No momento em que se
pelo cinema. A telona, que habituou o olhar ao primeiríssimo fala de second life virtual, a própria vida já é em grande parte
plano e à vista panorâmica em cinemascope, certamente não é uma cine-life. Pode-se dizer que o cinema se introduziu na exis­
alheia ao surgimento, na arte contemporânea dos pós-guerra, de tência concreta dos homens, nos genes da nossa cotidianidade.
obras de formato muito grande. O expressionismo abstrato, a Truffaut dizia que o cinema é superior à vida. Oscar Wilde, de
land art, os environments e as instalações rompem o pequeno certo modo, lhe dá razão: nos tempos hipermodemos, a vida
fonnato e oferecem, a quem olha, a desmedida gigantesca do passou a imitar o cinema.
espetacular. Os artistas pop dão ao primeiro plano toda a sua Essa generalização do processo de cinematização deu en­
força de impacto em telas de grande dimensão, focalizando um sejo a uma avalanche de críticas que denunciam o controle dos
objeto único a cores ou em preto-e-branco, e o hiper-realismo comportamentos, o empobrecimento das existências, a derroca­
utiliza o plano geral, "cinemascópico", como uma nova manei­ da da razão, a desrealização do mundo, a formatação da cultura.
ra de enquadrar a realidade. Também há arquiteturas-espetácu­ São interrogações filosófico-sociais de fundo, levantadas por
lo (Gehry, Mayne, Poster, Sanaa, Libeskind, Herzog & de pensadores críticos da modernidade que testemunham, desse
Meuron) que aparecem ao público como imagens gigantescas e modo, que o cinema não se reduz a um simples divertimento de
fascinantes tiradas de um filme. Nos museus, as visitas são con­ massa: ele se tomou mundo e estilo de vida, tela global e
cebidas como itinerários dramatizados, e as exposições pare­ cinevida. Nesse aspecto, não se poderia pensar a cinevisão
cem contar uma história mostrada em painéis, fotos, vídeos. A hipermoderna sem uma reflexão de tipo transpolítico, transocial
iluminação, o espaçamento e mesmo a colocação do quadro na e transmidiático que envolva o devir da individualidade em sua
parede são elementos de uma verdadeira cenografia, que às ve­ relação com a existência.
zes não recua sequer diante de efeitos especiais. A tal ponto que, Que somos testemunhas de uma escalada da superficiali­
quando Poussin é exposto à luz natural do Grand Palais em Pa­ zação das imagens, de uma invasão das mídias pelos people, de
ris, sem efeitos, sem mise-en-scene, sem iluminação, o público uma tendência à formatação dos produtos culturais, tudo isso é
tem a impressão de nada ver e se queixa da falta de espetáculo! pouco contestável e justifica as inúmeras denúncias e advertên­
O mesmo acontece nas encenações de teatro ou de ópera: os cias relativas à espetacularização do mundo. Mas será legítimo,
cenários, as luzes e o vestuário aproveitam os recursos do cine­ a partir daí, estigmatizar a padronização dos espíritos e dos modos
ma, e nos grandes espetáculos internacionais que fazem agora de vida, assim como a pauperização do mundo estético e imagi­
desfilar a tradução, em legendas, do que está sendo cantado, nário? Pode-se duvidar disso. A verdade é que a difusão generali­
não é raro que no fundo do palco surja uma grande tela, para zada do estilo-cinema se acompanha antes de uma tendência à
mostrar como que um eco da imagem. elevação das exigências estéticas da maioria. O momento é me­
O estilo-cinema invadiu o mundo : agora o vemos sem vê­ nos de proletarização do consumidor e destruição das exigências
lo, modelados que somos por ele, banhados nas imagens que, a singulares do que de artificação generalizada dos gostos e dos
partir dele, inervaram as telas que nos cercam. Alguns dizem modos de existência. Cine-life, cinemania, cinevisão não signifi­
que o espetáculo nos despoja da "verdadeira" vida. É possível. ca imersão total no mundo das imagens. Se o domínio destas se
Na época do tudo-tela, porém, recebemos de volta uma vida amplifica, o mesmo acontece com a capacidade de reflexividade

308 309
c distanciamento dos indivíduos em relação ao mundo tal como é Índice dos filmes citados
e à cultura tal como se apresenta. O que o universo telânico trou­
xe ao homem hipermodemo é menos, como se afirma com fre­ - 007 Cassino Royale - Alemanha, 0110 zero
quência, o reinado da alienação do que uma nova capacidade de (Martin Campbell, 2006), p. 1 23 (Roberto Rosselini, 1 948), p. 46
- 007 contra Goldeneye - Alexandre Nevski
recuo crítico, de distanciamento irônico, de julgamento e de de­ (Martin Campbell, 1 995), p. 234 (Serguei M.Eisenstein, 1 938), p. 1 60
sejos estéticos. Ele beneficiou mais a singularização do que o - 007 na mira dos assassinos - Alguém tem q11e ceder
gregarismo de ovelhas. (John Glen, 1 985), p. 252 (Nancy Meyers, 2004), p. l i O
E esse é um mérito do cinema: quando a vida busca se - 18 ans apres
(Coline Scrreau, 2003), p. 1 22
- Ali Zaoua
(Nabil Ayouch, 2000), p. 1 95
assemelhar ao cinema, desenvolvem-se as ambições estéticas e - 200 1 : Uma odisseia ao espaço - Alien, o oitavo passageiro
a afirmação crescente das singularidades. Mas ao mesmo tem­ (Stanley Kubrick, 1 968), p. 47 (Ridley Scott, 1 979), p. 1 8 1
po, nesse par infernal em que a febre individualista da satisfa­ - 21 gramas - Alien: a ressurreição

ção vai junto com a decepção, também crescem os sonhos com


(Alejandro Gonzáles liiárritu, 2003), p. 96 (Jean-Pierre Jeunet, 1 997), p. 97, 1 8 1
- 4 meses, 3 semanas e 2 dias - Amadeus
seu cortejo de desilusões e frustrações. A luz telânica tem sua (Cristian Mungiu, 2007), p. 303 (Mi los Forman, 1 984), p. 307
parte de sombra: quando a tela vira refúgio, a vida se apaga no - 800 kilometres de difference - A mante de Lady Challerley (O)
logro da procuração e na banalidade medíocre do formatado. (Claire Simon, 2002), p. 1 48, 1 54 (Just Jaeckin, 1 98 1 ), p. 89
- A aventura - Amarcord
Nenhuma derrocada da cultura da singularidade no reinado da (Michelangelo Antonioni, 1 960), p. 47 (Federico Fellini, 1 974), p. 296
barbárie estética, mas também nenhum h·iunfo daquilo que Valéry - A bela intrigante - American Pie: A primeira vez é inesque­
chamava o "valor espírito". Nenhum filme catástrofe, mas tam­ (Jacques Rivette, 1 9 9 1 ), p. 2 1 5 cível

bém nenhum happy end. - A procura da felicidade


(Gabriele Muccino, 2006), p. 1 88
( Paul Weitz, 1 999), p. 1 1 2, 1 9 1
- Amigas com dinheiro
- A very british gangster (Nicole 1-lolofcener, 2006), p. 1 1 4
(Donald Maclntyre, 2007), p. 1 4 1 - Amistad
- A J inteligência Art/ficial (Steven Spielberg, 1 997), p. 1 7 1
(Steven Spielberg, 2001 ), p. 1 82 - Amnésia
- Acossado (Christopher Nolan, 2000), p. 70
(Jean-Luc Godard, 1 959), p. 1 05, 305 - Amo,; sublime, amor
- A daptação (Robert Wise e Jerome Robbins, 1 96 1 ), p. 276
(Spike Jonze, 2003), p. 1 29 - Amores brutos
- Adeus, Lênin! (Alejandro Gonzáles l fiárritu, 1 999), p. 96, 1 93
(Wolfgang Becker, 2002), p. 1 94 - Angel
- A deus, meninos (François Ozon, 2007), p. 1 32
(Louis Malle, 1 987), p. 1 94 - Anjo azul (O)
- Âge des possibles (L ') (Josef von Sternbcrg, 1 930). p, 8 1
(Pascale Ferran, 1 996), p. 2 1 4 - A o balanço das homs
- Agente 1 1 7, uma aventura no Cairo (Fred F.Scars, 1 956), p. 1 04
(Michcl llazanavicius, 2006), p. 1 3 2 - Aos treze
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310 311
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312 3 13
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- Corações loucos - Débandade (lo) - Doze macacos (Os) - Entrevista
(Bertrand B lier, 1 973), p. 90, 1 05 (Claude Berri, 1 999), p. 1 1 1 (Terry Gilliam, 1 995), p. 1 2 7 (Federico Fellini, 1 986), p. 1 26
- Cor da liberdade (A) - Declínio do império americano (O) - Dragão vermelho - Era uma vez no Oeste
(Bille August, 2 007), p. 1 75 (Denys Arcand, 1 986), p. 14 ( Breu Ratner, 2 002), p. 1 2 1 (Sergio Leone, 1 96 9), p. 25 3
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f r e s c: a 11 L c s .
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Este livro foi confeccionado especialmente para a Editora Meridional,


em Times New Roman 1 1 / 1 3 sobre papel Off-set 75 g
Cl s e cl i t r1 1 , , ·,
e impresso na GRÁFICA METRÓPOLE.

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