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nl ra retull' esn •dos so b r e extos
. .
chtss1n>s ( . ..) l 1dos, debat idos c·
redigidos pelos autores, sob o
AUTORES
e n fo q u e c d u c ari v o , n um a v1 s a o
·

i n te r dis cip li n u q u e considera, a o


mesmo tempo, as dimensües histórica, Ana Regina Fc:rrei ra de Barcelos
sociológica, psico lógic a, política e
Carlos Eduardo Ornelas Berrid (Pref.)
filosó fica. ( ... ) O tema gira em torno do
eixo utopias e discopi as na modernid a de Eliana Claudia Navarro Koe1;scl
cvai desde a crítica social e as crc·nças no
Eliane Fioravante Garcez
futuro, as r e l açüt s entre ficção e·

rca I ic Ltd e , c iê.nc i a, tec n o I o g i a c· Evellyn Ledur da Silva


governabilidade, até as r elaçôes entre
Fernanda Nunes da Rosa .Mangini
educação e c ra balho , in d iv íd uo c·
coletivo, m·cessidade c: lihc:rdadc: . 'fi·ara­ Filomcna Lucia G. Rodrigues da Silva
se de tem;ítica de: mú lt iplo s interc:sses
Gilberto Valderniro Poncio
culturais e profissionais. No livro a
utop ia é dc:tinida corno "um loj)(JJ da lvanna Schenkel Fornari Grech i
atividade humana" voltada para o
Joice Eloi Guimarãc:s
fu t ur o , c om o uma " c on s c i ê n c i a
a mecipndo ra" Ela tem tudo a ver com o
.
Ju arcs da Silva Thiesen (Org.)
conceito de finirude, com o tempo e a
temporalidade, co m a manutenção da
Karina Bcrnardes de Oliveira e Silva

espécie humana. Por isso a utopia, e seus Laura Quiõonc:s Nc:ira


contrários, assume: uma d imensã o
exi s ten ci a l , m c: ra fisica, rc: l i g i osa , Lucídio Bianchc:tti (Org.)
articulada com a c:ducação e o trabalho,
�faria Lêda Costa Silvc:ira
as ne ces si d a des c: as contingências
so c iais . t\ obra coletiva desafia a �faria Salete
compre<:nsão da educação para além das
Marilândcs �lól Ribc:iro de i\ldlo
transformaçõc:s <: condiçõc:s de: c:xistência
dos humanos. (... ) Nesse· ;\mbiro. a t.larisa Harrwig
utopia é uma c:spécie de resposta aos
Pa ulo Va lério Mc:ndonça da Silva
desafios e de c:spc:rança d iante d a
distopia . Assim, a educação situa-se: no R afael Cunh a
co nrc:xto da utopia e da disropia, que:
Sérgi o Zanacca
funcionam como mediat;ões di a léticas
que sustentam a coexistência do s<:r Si lvana Rodriguc s de Souza Saco
·

humano. í: algo radical, isto é, que: está


Sulcica Fernanda Biesdorf Krc:tze r
nas r a í zc: s e quc a supt rfi ci alidade
·

cotidiana fende a i g no rar ou a p(u· de


lado.

Profcssor doutor Jayme: Pav ia ni

J>PG E/Universidadl· de: Caxias do Sul. RS


Lucídio Bianchetti
Juares da Silva Thiesen
(Organizadores)

UTOPIAS E DISTOPIAS
NA MODERNIDADE
Educadores em Diãlogo com T. Morus, F. Bacon, J. Bentham, A. Huxley e G. Orwell

Ijuí
2014
(c' I(I J 1, I cllllllol IlniJIIl

Huu du C u•uru1u, I H• I
\IH700 000 I Jul ltS Jll.m l
Jlun�: (() ��) HH 0217
J1ax: (0_55) 3B2 0216

E-mnil: cditora(fl unijui.cdu.hr

l-lnp://www.cdicoraunijui.com.br

Editor: Gilmar Anconio Bcclin


SUMÁRIO
Etlitor-lltljrmto: )oel Corso
Capa: Alexandre Sadi Dallepiane

fllltlgem dr1 Crrpr1: Les ucopies de la navigation aéricnnc au sieclc dcrnier PREFÁCI0 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ...................... .................. . . . . ............ 9
< hctp://cn.wikipcdia.org/wiki/Caregory:Early_flight_(feacurcd_piccurc_ser)>
Rli.rpon.rabilirlade Editorial e JJtlminiJtrativa: CAPÍTULO l-O L u gar das Utopias e Distopias no Debate Social
Editora Unijuf da Universidade Regional do Noroeste
do Esrado do Rio Grande do Sul (Unijuí; ljuí, RS, Brasil) e Pedagógico na Atualidade: À Guisa de Apresentação .. . . . . 21

1.1 O hoje atravessado pelo passado e aberto à (aoce)visão de futu ro ...... 22

1.2 Se. . . Mas. . . : do utópico, da ficção, da distopía


e da prospecção à realidade.............................................................. 3 3

1.3 Do contexto deste textO/obra coletiva ..


.... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. ......... .. . . . . . . 38

CAPÍTULO 2 - A Crítica Social c a Crença no Porvir:


A Utopia de Tomás Morus ...... . ... . .. ..................... . .......... . ... 43
Catalogação na Publicação:
Biblioteca Universitária Mario Osorio Marques- Unijuí Si n opse de A Utopia . . .. . .... . .. .. .. . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . .. . . . . . .. . . . .. . . . . . .. .. .. . . . . . . . . . . . . 44

U91 Utopias e distopias na modernidade: educadores em d iálo­ 2.1 Apresentação................................................................................... 48


go como T. Morus, F. 13acon, ). Bentham, A. Huxley e G. Orwe ll
I organizadores Lucídio Biancherti, Juares da Silva Thicscn.­ 2.2 Breve biografia de um homem de muitos atributos
Tjuí: Ed. Unijuí, 2014.-296 p.
que não abandonou seus princípios .................................................. 50
ISBN 978-85-419-0117-8
2.3 Cenário e contexto histórico da produção d'll Utopiet . ....... ........... . . . 52
1. Filosofia. 2. Utopia. L Bianchetti, Lucídio. IL Thicscn,
..

Juarcs da Silva. III. Título. IV. Título: Educadores em diálogo


2.4 Um projeto societário chamado utopia............................................. 56
como T. Morus, F 13acon,}. Bentham, A. Huxley e G. Orwell.
CDU: 167.5 2.5 A Utopia de .Morus e A Repríblica de Platão:
pontos de intersecção .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60
Editora Uni;ui nfili�1o;b:

2.6 O renascimento, a educação e a utopia . . .


. ... .... ......... ..... . . ........ ...
. . .... 64
AB$Cci:tç1.c Or<t.'iileir:t
das Edltoras Umvernt.i:ils 2.7 Considerações finais ..................................... .................................... 78
CAPÍTULO 3 - Ficção ou Utopia? A Nova Adâncida e a Crença 4.3.1 Contexto de referência .......................................................... 1 5 3
de Bacon n a Ciência e n a Tecnologia como Princípios 4.3.2 Crenças e convicções: o liberalismo e o iluminismo ...... .. .. .... . . 159
da Governabilidade .... . .. . . . ....... .... . . .. . . . . . . .
. . . . . . .. . . .. ........... .. . 8 1 .

4.3.3 Utilitarismo: uma escola de pensamento ............................... 1 6 2


Sinopse de Nova Atlâmida. . .. . . . . .... ..... . . ... . .. . . .
. . .. . . . . .. .......... . . . . . .. . . .
. . . .. . . . . . . . 82
4.4 Mais que uma proposta de prisão: trabalho, educação e disciplina .. 168
3 . 1 Introdução . ...
. . � . . . . .. . . .
....... . . .. . . . . . . ......... ... . . .... . . . .
. . . . . .. . ............ .... . . . 85
. . . .

4.4.1 Disciplinamenco pelo e para o trabalho . . . . . ... .. .. .. .. ........ . ... .. . 169. .

3.2 Bacon na Inglaterra do século 17:


4.4.2 Um projeto de disciplinamcnto, pela educação,
época das grandes navegações e invenções . . . .... .. . . . . . . . . . ............ ..
. ...... 88
para formar uma população útil . . . . . . . . ..................... . . . . . . . . . . . . 172
. ..

3.3 Na Nova Atlâutidtt, conhecimento e poder "encontram-se" ............... 98


4.5 Enfim, mas não o fim ... ................. ... . . .... . . . . . ...................... . .... . . .... . 179
3.4 Aclântidas: o encontro do novo com o velho .................................. 106

3. 5 Concepções baconianas de ciência e de tecnologia CAPÍTULO 5 - Educação, Trabalho e Tecnologias no AdmirátJe/


lvfrmdo Novo: entre a realidade e a ficção ...... . .............. . . 181
. ..
para compreender a Nova Atlântida . . . . . . . . . . . . ........... ..
. .... . . . . . . ........... l 09

3.5.1. Governo, ciência e tecnologia na Nova Atlântida:


Sinopse de Admit·ável Mundo Novo ........................................................ 182

a Casa de Salomão................................................................ 1 18 5 . 1 Apresentação ...... . . . . . . . . . . . . . . ............................. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ............ 186

3.5.2 As concepções baconianas e seus 5.2 A trajetória do visionário Aldous Leonard Huxley .... .. . .... ..... . . .... . ... 188
entrelaçamentos com a educação .... . . .. . . . . ... . . . . . ......... ..... . . .... . . 120
.
5.3 A distopia do admirável... estranho mundo novo . . . .... .. ... ........ .. ... 1 9 1
. .

3.6 Considerações finais . .. . . . . . .. . .... .. ... . . .... ..


. . . . . . ................ .. . . . .. . .
. . . . . . . ..... 124
5.3.1 Comunidade . . ... . . . . . . . . .......... . . . . . . . ..... . . .. . ... ..... . . . . . . . . 1 9 1
. . . . .. . ... . . . . . . .

CAPÍTULO 4 - O Panóptico de Jeremy Bencham como Estratégias de 5.3.2 Estabilidade . .. .. . . . . . . .............. . .. . . .. ,..................................... 196
. . . .

Controle na Doutrinação Utilitária: Utopia ou Disropia? ... 129 5.3.3 Identidade ... .. . ..
. . . .. . ...... ...
. . .... .. ...... .
. .. . . . . . ... ........... . . . . . . . . . . . .. 204 . . .

Sinopse de O Panóptico . ........... . .


.. .......... ..
. .v. . ... .. .. .. . .. . . . . .......... .. . .. . .... . ... l30 5 .4 Um contexto nada admirável... ...................................................... 206

4 . 1 A máquina benchamiana: origem, 5.5 Educação, trabalho e tecnologia: um projeto


descrição c tentativas de introdução ......... ...................................... 134 a serviço de uma sociedade totalitária ...... . .
............ ....... . . . . . . . . . . .. . .... 213

4 . J. L A máquina bcnthamiana .......... .. . ...... .. . ........... . ... . . . . . ........ . . . . . . . .... 139 5.5.1 Condicionamento hipnopédico . . ............... . ..... . ........ . . . . . ... . ..... 215

4.1.2 A descrição do projeco arquitetônico .... . .......... . . . . . . . . . . . . . . . ............. 142 5.5.2 Condicionamento opcrance ..... . ...... . . . . .
....... .... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 218
.

4.1.3 Sob a égide d a inspeção: as tentativas d e instituição .................... 146 5.6 A outra face: liberdade para ensinar e aprender .......... . .......... .. . ... . . 223
.

4.2 Jcremy Bentham: um pouco da sua história ................................... 149 5.7 Condicionar ou educar? ... .. .. .. . . ..
. .. . .. . . .. . . ....... ........... . .. ....
. .. . . . ...... . . . 225

4.3 Para entender a obra: o contexto, as crenças e as convicções . . . . ....... 15 3 5.8 Considerações finais . .. .......... . .... . ..
. . .... . ......... .... . . .... . .... . . . . . . . . . . 227
. .. . . . . . .
CAPÍTULO 6 - O Sitiamento Individual c Coletivo nos "

Mundos" da Necessidade e da liberdade:

Reflexões a partir de 1984, de George Orwell ........... .. .... 237

Sinopse de 1984 .
.... .......... ...................... ................. ....................... ..... 238

6.1 E ric Arrhur Blair: codinome George Orwell .. ................. . ... ......... 240
PREFÁCIO
..

6.2 Os conrexros real e ficcional: o mundo dentro e fora de 1984......... 247

6.3 1984: a obra. . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . .... . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . .. .. ..... . . . . . . 2 5 1


Carlos Eduardo Ornei as BerrleP
6.3.1 Occania, Eurásia e Lesrásia: a geopolítica em 1984 . . . ... . . ........ 255

6.3.2 Sitiamento c cerceamentO individual e col etivo ............. ......... 257 A utopia, que durante muito tempo permaneceu na "roda dos enjeitados"

6.4 O controle por meio da educaç ão, da linguagem c do trabalho ....... 260 do pensamento político, está de volta. Não reproduz nem confirma a crítica de

seus adversários, mas busca o lugar que sempre foi seu de direiro naquele campo
6.4.1 Novilíngua: redução do falar e do pensar
comum da ética e da ação política.
pela constrição vocabular ........ . . .. .. . . . . . . . . . . . . . . . .... . . . . . . ............. .. 266
Eis que do Sul nos chega agora este belo trabalho coletivo, organizado
6.4.2 Trabalho: uma necessidade ..........................'.......................... 270
por Lucídio Bianchetri e Juares da Silva Thiesen, ambos professores no Centro
6.5 Considerações finais .
..... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .................... . .
... . . . . . . . . . . ....... . . . 271 de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina, que à frente

de uma brigada de jovens pesquisadores, avaliaram a atualidade das questões


REFERÊNCIAS ........................................................................................ 277
utópicas. A partir de um Seminá rio Especial no Programa de Pós-Graduação em

Educação, oferecido no segundo semesrre de 201 1 , intitulado Trabalho, EdtiCação


REFERÊNCIAS AUDIOVISUAIS ........ ............................... ...... ............. . . 295
e Novas Temologias da Infomtação e da Comunicação, surgiu esta obra multifacetada

com estudos sobre os mais variados aspectos tocados pela dimensão utópica: é o

que o leitor rem em mãos agora.

A utopia é u ma forma de pensamento basicamente moderno, para onde

convergiram várias outras formas de pensamento social. Ela é também herdeira


de algumas formas de pensamento amigo, principalmente da literatura grega

1 Professor do Departamento de 1corin Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da


Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Desde 1998 dedi ca-se ao tema das utopias
literárias, tendo traduzido uma coletânea de obras italianas deste gênero e orientado vários
trabalhos de ?-.·festrado e Doucorado neste ca mpo 11 fundador e editor da Revista Morm Utopia e
.

Re11ascimmto. Coordena o Projeto Renascimento c Utopia c dirige o Centro de Escudos'Utópicos


da Unicamp (U-Topos).

9
Carlos Eduardo O r n e l a s Berríel Prefácio

- da Reptíblica de Platão e das viagens imaginárias de Luciano de Samósata em cidade, do Estado, do príncipe e do povo: esta ambição caracterizou a utopia. A
.
primeiro lugar- ambas ciradas diretamente por Morus. T 1mbém foi importante construção de uma utopia, que é um esforço intelectual sempre datado, parte
o messianismo judaico-cristão, que fazia esperar a regeneração do homem e a de um pomo de vista subjetivo que se alarga sobre o social. A uropia não parre
volta ao paraíso terrestre. de um pomo fora do sujeico histórico (de Deus, por exemplo), mas do próprio
sujeitO. Isco quer dizer que roda utopia, mesmo falando de um futuro fictício,
A ucopia nasce trazendo uma contraditoriedade congênita: sendo filha
está na verdade referindo-se aos problemas da época em que foi escrita. A ucopia
do desenvolvimento das forças produtivas próprias do Renascimento, funda vir­
possui a sua própria história, que de cerca maneira é a história do inconformismo
tualmente uma sociedade tão perfeita em seus fundamentos que termina por
intelectual diante das formas do mundo estabelecido.
impedir roda forma de desenvolvimento. Existe assim como uma construção
imaginária refém de sua própria perfeição. A utopia, em virtude do concexro no Lembremos também que as Ciências Naturais, como as conhecemos,
qual surge, corresponde aos desejos c às esperanças coletivas de seu tempo. Em foram construídas no âmbito do humanismo renascentista. A essência do método
outras palavras: as utopias, partindo de elementos reais, constroem virtualmen­ de Galileu, humanista coscano, escava em considerar o corpo humano como a
te todas as histórias possíveis, codos os cenários que a História não realizou. A fonte suprema do conhecimento do universo. Todos os instrumentos científicos
raiz desta ideia vem da Poética ele Aristóteles, na qual está dico ser a poesia mais inventados ou aperfeiçoados nesse período visavam a aumentar os sentidos corpo­
ampla que a História, pois realiza até o fim aquilo que a História apenas esboçou. rais humanos, para corná-los mais eficientes. O telescópio, por exemplo, rorna a
Hegel elaborou um conceito de realidade notavelmente rico, em que o existente visão mais aperfeiçoada. A questão central que Galileu enfrentou com a Inquisi­
conta com várias dimensões - rodas reais. Aquilo que aparece como uma ten­ ção é justamente essa: se os sentidos corporais, uma vez tendo percebido aspeccos
dência concreta, mesmo que não venha a se efetivar, também ganha estatuto desconhecidos da natureza, seriam suficientes para obrigar a Igreja a rever seu
de realidade. Para ele, a verdade do Ser está em seu processo, isto é, no faro de cânone. Galileu achava que sim, a Inquisição achava que não. Não poderia haver
a mais alta realidade ser constituída pelas tendências de desenvolvimento da esta concepção revolucionária sem a prévia aucoconfiança humanista.
História, bem mais do que pelosfatos, que revelam um aspecto da possibilidade
Com o tempo, ocorreu uma banalização da palavra "utopia". Acredico
dominante em um determinado momento. A ucopia está ai: é uma tendência
que isto se deva ao fato de que o conceito de utopia ficou "sem dono", isto é,
da realidade, operanre e efetiva, mas que não se efetiva enquanto Estado. Ela
nenhuma força decisiva da sociedade se identificou com ele. Com isto quero dizer
depende da dimensão érica e política.
que nem a esquerda nem a direita se sentiram formalizadas pelo pensamento
A uropia está ligada a rodos os campos do sabe� humano: ela não poderia utópico- embora em momentos esparsos pudessem se servir da palavra utopia.
ter surgido, enquanto gênero, sem os procedimentos intelectuais que a precede­ Apenas movimentos residuais da prática política, na sua maioria de expressão
ram. No campo teórico da política, juntamente com O Príncipe, ela constitui um pequeno-burguesa, mantiveram a ideia em uso - e isto fez mal à utopia. Há
ponto de chegada do humanismo do Renascimento, e expõe privilegiadamente muito tempo que ela cem sido alvo de críticas, o que significa que foi, neste
algumas de suas tópicas: a racionalização da vida individual e coletiva, e a ideia processo, objeto de avaliação e julgamento. Como resultado destas análises, as
de que ambas podem alcançar a perfeição por meio de uma idealidade ético­ utopias foram muitas vezes criticadas como promotoras de uma atitude cega para
-social platônica. A explicação mais geral do nascimento desce gênero literário, com as "realidades humanas", tais como as ambições, o desejo de poder, etc., pois
cão próximo da História, da Filosofia e da política, segue basicamente a ideia não é difícil imaginar uma sociedade ideal quando as realidades concretas não
de que a utopia foi gerada pelo processo burguês de racionalização da vida, são levadas em consideração. Também já foi dito que o espírito revolucionário
rão própria do Quattroce11to e do Cinquecento. A perfeição do viver associado, da utópico se dissolve por si mesmo, posto que numa sociedade perfeita não cabem

10 11
Carlos Eduardo Orn e l a s Ber r i el Prefácio

revoluções nem, portanto, mudanças e progresso. Segundo a pensadora Maria A volumosa série utópica já era constatável no final do século 16, e

.Moneti, o que ocorreu com a palavra uropia é similar ao que aconteceu com permanece em contínua produção até hoje, dependendo do critério que se use

a palavra Filosofia: chegamos a um uso semântico distendido destas palavras, para classificá-la. Esta variada e copiosa produção absorveu e criou elementos

de forma que não sabemos mais o que exprimimos quando dizemos tttojJia ou estilísticos, estruturais, temáticos, etc., e pode dar a impressão, para os que se

Filosofia. Estas palavras têm no vulgar, uso semelhante ao de grife de roupas. inclinam para a teoria dos modelos, de que seria possível falar de uma tipologia
da uropia. Uma tipologia opera no âmbito do empírico, retendo do objeto a sua
A utopia é criticada pela direita e pela esquerda desde o século 19: tor­
manifestação desprovida da processualidade intrínseca a ele; consequentemen­
nou-se até um termo pejorativo no século 19, na polêmica entre a burguesia e
te, este recurso capta a exterioridade sem trazer em anexo a sua substância. O
a escola política liberal, por um lado, e por outro na disputa entre as diferentes
nexo ontológico entre exterioridade - a forma - e a interioridade - o conteúdo
correntes do socialismo anterior a 1848. Até essa data o termo é aplicado às
substancial- fica truncado. Guardada esta reserva, porém, e para registro dos
diversas correntes do socialismo de forma claramente pejorativa. Depois das
estudos existentes sobre o fenômeno utópico, pode-se averiguar a existência de
revoluções daquele ano, o termo "utopia" torna-se uma injúria explícita aplicada
algumas características bastante recorrentes.
ao socialismo e ao comunismo. O termo é vítima das críticas do pensamen­
to burguês, mas seu descrédito deve ser atribuído igualmente a Engels, que Os histOriadores Raymond Trousson2 e Massimo Baldini3 estabeleceram

denunciou em Saint-Simon, Fourier e Owen um "socialismo utópico" e semi­ um significativo esquema geral para a morfologia das utOpias, indicando as

mentaLmente pequeno-burguês. Marx e Engels consideravam-se, correramence, características do gênero utópico com base em suas próprias deduções e em

tanto herdeiros quanto liquidadores da uropia. Engels pensava que o socialismo sugestões colhidas em obras relevantes de outros teóricos, como Ruyer, Ciora­

científico mandara definitivamente para a lata de IL"{O da História a utopia. Hoje nescu e Dubois, entre outros.

podemos assegurar que a História mandou para a lata de lixo o socialismo real, Nesta morfologia aparece como a característica exterior mais evidente e
que tanto se inspirou quanto traiu o pensamento de Marx e Engels. Desde então mais comum da utopia o insularismo, ou seja, a condição geográfica mesma. A
o marxismo tentou recuperar a uropia como testemunho da permanência da Iuca utOpia é sempre isolada da História ocidental, mesmo quando não seja uma ilha:
de classes. Karl Kautsky, por exemplo, considerava Thomas Morus o primeiro a Cidade do Sol de Campanella, por exemplo, fica "numa vasta planície situada
socialista moderno. O socialismo real compartilhou com a direita uma adesão ao sob 0 Equador". Este insularismo é mais do que uma ficção geográfica- é uma
pragmatismo, que em resumo é uma visão estreita da História, segundo a qual '
atitude mental da qual a ilha clássica é apenas a representação, e corresponde à
apenas os fenômenos hegemônicos são reais. Isto desqualifica a uropia, que é o exigência de preservar a comunidade da corrupção externa e de apresentar um
real não manifesto - e todas as alternativas sociais foram canceladas. Não por mundo fechado, um microcosmo no qual existam leis específicas que escapam
acaso o futurismo, corrente pragmática de vanguarda, teve suas consequências ao campo magnético do real. Para Ralf Dahrendorf, as sociedades utópicas são
mais efetivas tanto na Itália de .Mussolini quanto na União Soviética do mesmo construções monolíticas e homogêneas, soltas não apenas no tempo mas também
período. No século 20, com o socialismo real, a utopia foi removida para o no espaço, isoladas do mundo externo que poderia, a qualquer momento, tornar­
plano da irrelevância. Não casualmente volta a ser estudada com intensidade -se uma ameaça à valorizada imobilidade de seu sistema sociaL
depois dos acontecimentos chamados de "queda do muro de Berlim", e por
intelectuais interessados tanto em não repetir os erros do leninismo quanto em
não considerar o capitalismo financeiro e sua cultura, a pós-modernidade, como 2 Trousson, R. In: Viaggi in llCSUmlluogo. Ravcnna: Longo Editore, p. 19 ec seq.
o fim da História. ; Baldini, .Massimo. La Jtot'Írl del/e utopie. Roma: Armandoi Editore, 1996. p. 19.

12 13
Carlos Eduardo Ornelas Berriel Prefácio

A 11-cr01Úa, ou o desaparecimento do futuro e do passado: a utopia parece pior, um erro inconcebível. Eis, portanto, que o objetivo primário de todo mo­

ser um plano humano para interromper a História, para pular fora da História pisca será a eliminação dos eventuais críticos revisionistas, cão perigosos quanto

e alcançar uma perfeita estabilidade. Muitas vezes os utOpistas propõem uma inúteis.

espécie de tempo sem tempo, um eterno presente. Ralph Dahrendorf considera


Desaparecimento ou marginalização da família: a existência da família
que para a maior parte dos autores a utopia possui apenas um passado nebuloso,
constitui um consistente núcleo de irracionalidade, que pela ótica da uropia
e nenhum futuro: a História parou. Não existe nada a não ser um presente sem­
deverá ser suprimido ou submetido a regras gerais precisas quando não, expli­
fim. Há o temor de um desenvolvimento "natural", sujeito às ações perturba­ cicamence, a total controle por parte do Estado. Não apenas o cuidado e a edu­
doras da História e dos acontecimentos comuns da vida concreta. É sintomático cação da infância, mas até mesmo o nascimento e a concepção são subtraídos ao
que a uropia não tenha um passado, que não seja o resultado de uma evolução, arbítrio dos indivíduos e confiados a uma planificação racional, que pertence ao
ou principalmente que esta evolução pertença a um passado mítico evocado pela Estado e muitas vezes às instituições públicas.
forma. A utopia é, num presente imutável que não conhece passado nem futuro,
A tmiformidade social como principal resultado das leis: o utopista é um
uma vez que, sendo perfeita, jamais mudará. O visicador clássico da utopia a
incegrisca que ignora dissensos, oposições, dissidências, reivindicações; por isso na
visita apenas quando ela já está completamence realizada.
utopia não existem minorias ativas nem partidos políticos. O cidadão é concebido
A a11tarquia, ou independência econômica quase absoluta, é outra carac­ como parte do todo, de um conjunto do qual é apenas uma partícula. A sua
terística: o utopista professa o desprezo pelo ouro e pela prata. Teme o sistema vontade se confunde instintivamente com a do Estado, visca a priori como justa.
monetário que gera desigualdade e injustiça, preferindo uma economia fechada,
O dirigismo absoluto como negação necessária de rodo individualismo:
que permita excluir o dinheiro mediante o uso direto da terra. Possui uma ver­
o utopismo pressupõe o intervencionismo radical, sendo o indivíduo sempre
dadeira fobia pelo comércio, que considera um fenômeno parasitário, imoral,
subordinado às exigências de ordem e de equilíbrio cocal. O utopista cai no
antissocial, e seu sistema fundado exclusivamente sobre a agricultura.
dilema que lhe é próprio: sacrifica o indivíduo para proteger a inscicujção criada
A E.stmllll"tl geométrica, sinal evidente do controle perfeito e total: o fun­ originalmente para o homem, c resolve o problema supondo já obcida por todos
cionamento incemo do sistema utópico deve ser perfeito como o do relógio. A a coincidência enrre necessidade e liberdade. Também neste caso a discopia crans­

vida associativa não deve estar submetida à fantasia e à exceção e, como exemplo, formaria em pesadelo cais boas intenções.

Morus descreve 54 cidades perfeitamente idênticas. A paixão pela simetria é um


O coletivismo, justificado pela ausência de propriedade: é mais uma dimen­
reflexo do amor pela ordem levada a um ponto de misticismo.
são ética do que econômica (pois garante a igualdade, o que pressupõe a exal­

A defesa da legislação e das imtituições: o utopista considera que as leis justas tação do trabalho c o horror ao parasitismo social). Elimina-se, dessa forma,

tornam o povo bom, que as instituições formam os costumes; considera ainda a uma fonte de conflitos (inveja, ciúme, pobreza). Isso, porém, implica limites à

lei um decreto nascido da sabedoria e da razão, quase sempre obra de um perso­ liberdade, daí derivando o aspecto ascético da moral utópica.

nagem mítico, o legislador. As utopias são sociedades às quais falta a mudança.


A onipotência da Pedagogia como método fundamental de ação sobre o

Perjecci01úsmo e violência: a convicção de que é possível a construção de um material humano: seu projeto é erradicar do homem a sua natureza primitiva,

Escado perfeito abre as portas à violência e ao totalitarismo. Para o utopista, roda individualista e anárquica. A Pedagogia é confiada ao Estado, o único a deter a

mudança introduzida no seu esquema é, inequivocamente, uma mudança para lei: mais do qualquer outro saber, importa o saber constitutivo da ordem social.

14 15
Carlos Eduardo Ornelas Berriel Prefácio

A Pedagogia objetiva a introjeção da ordem e da regra (para suprimir a dissi­ tradicionais à transparência, à unidade, à racionalidade, projetadas em um céu
dência c a contestação), e busca fundamentalmente tornar a estrutura mental que é uma imagem da terra onde reina a perfeiçã o. No limite, a cidade ideal não
co n form e à estrutura social. Na Cidade do Sol de Campanella ( 1602), o saber precisa de uma rel igião: um espelho é suficiente para se ver e se adorar.
estabelecido está todo ele escrito nos muros da cidade, e as crianças aprendem
No Brasil, de um modo geral, a utilização do conceito ainda não superou
em passei os cívicos: a p róp riapoli.r é um livro. A prender é ler a cidade.
a indefinição entre utopia e 11topismo, isco é, entre o uso conceimalmente rigoroso

A qttestão religiosa parece ser a única característica a fugir do dirigismo. A da palavra e a tomada genérica do conceito. Enquanto a utOpia é o conceito em

religião é reduzida a uma profissão de fé mínima: a fé é voltada para um Deus seu rigor, o utopismo é a tomada de qualquer lugar ou sociedade imaginária

criador revelado pelo espetáculo da natureza. Há a crença na imortalidade da como utópica. Se for assim, como distinguir o Sitio do Pictt-ptm Amarelo, de

alma, mas sem aprofundamentos de ordem teológica: o culto é desinteressado, Monteiro LobatO, da Cidade do Sol, de Campanella, ou o Planeta Mongo, de Flash

e não há um a igreja institucionalizada. A t olerância é absoluca, desde que não Gordon, da República, de Platão? Afinal, rodos esses lugares são imaginários.

se criem desorden s. Este inesperado liberalismo cem motivações profundas : em Uma questão a ser respondida com urgência é: a utopia serve para quem,
ucopia roda religião que fosse além de um simples deísmo pressuporia uma hie­ ou para quê? Sempre que al guém se perguntar se a forma atual da socieda­
rarquia e uma organização próprias, c com isto seria uma pot ência autônoma, de é eter na, ou se haveria um outro modo pos sível, está opera ndo no t erreno
concorrente do Estado. Esta duplicidade de poderes dividiria o cidadão. A tole­ da utopia - está imaginando uma estrutura social virtual. Aí está a qualidade
rância religiosa (religião do Estado) nasce, portanto, de uma incolerância civil. humana essencial: a teleologia, ver antes o que ainda vai ac ontecer. A utopia

Por outro lado, a necessidade do irracional é admitida, desde que derivada para serve claramente para humanizar o homem, dotá-lo da noção de que o mundo
os cultos do Estado. No limite, a utopia não tem uma religião, é uma religião, social se constrói e se destrói pela exclusiva ação humana, sem interferências
uma auroadoração da cidade. Como polis/religião, há um culto social, sendo os sobrenaturais. A utopia é filha da descoberta de que a sociedade é obra exclusi­

cidadãos os ofi ciantes. A liberdade religiosa é apenas aparente: construção mera­ vamente da ação humana, sendo portanto passível de mudança de acordo com
mente terrena, não organiza o Além, não promete a Cidade de Deus, e oferece uma projeção anterior. A utopia serve para destruir o statw quo, c serve àqueles

a Cidade do Hom em. A religião da utopia - como de uma ma neira mais ou interessados neste trabalho. Aos reacionários a utopia causa horror. Lembremos

menos visível t oda re ligião - consiste em um aco de autOadoração da cidade por que a distopia, isto é, a ficção que cria os mundos mergulh ados no pesad�lo social

ela mesma, sob uma representação espiritual e simbólica. Ora, o que caracteriza (Admirável i\'lundo Novo, 1984, Jl Revol11ção dos Bichos, Blade Rmmer) são utopias de

a cidade imaginária é que ela não tem passado. Os espíritOs de seus habitantes, sinal trocado, chamadas de disropias- e sem essas obras estaríamos desarmados

desprovidos das subestruturas inconscientes acumuladas pela História, são muito para compreender o mundo acuai. Podemos afirmar que a dimensão libertadora

mais fáceis de satisfazer e não exigem da religião outra coisa a não ser o que se da utopia está no fato de que ela buscava adaptar não o indivíduo ao meio, mas

espera gera l mente de uma Filosofia. As estruturas sociológicas da utopia não o meio ao indivíduo.

são o produto de uma História criadora: as estruturas mentais dos habitantes Se nos perguntarmos qual seria a função da utopia para os dias de hoje,
da cidade são despr ovidas de d eterminações inconscientes. A sociedade utópica precisaríamos antes definir o que signifi ca "hoje", o que não é fácil. Um esquema
satisfaz a praticament e todas as necessidades, e portanto a religião da utOpia possível seria: 1) falência das alternativas concretas da esquerda; 2) até recente­
não pode ser senão uma emanação da própria cidade. Esta religião é um tipo mente, o capitalismo financeiro arrogava-se a forma derradeira e insup erável da
de projeção em segundo grau do mico da cidade ideal: estão nela as aspirações História; 3) do fim de 2008 para cá, a forma arrasadora deste capital revelou-se

16 17
Carlos Eduardo Ornelas Berriel Prefácio

falida. Estamos, porranto, numa encruzilhada que, imagino, será mais confor­ como o isolamento das elites em estruturas residenciais policiadas já escavam
tável estudar no fucuro do que viver agora, mas e a uropia com isso? Bem, a desenhadas nos vários galhos da árvore utópica, como a ficção científica. Basta
utopia é, antes de qualquer coisa, um modo de enxergar a realidade social. Para pôr-se a lembrar.
a disciplina do utopista, o mundo nunca é apenas aquilo que se nos apresenta, Este raciocínio não deve conduzir à ideia de que a utopia é contrária aos
mas é também aquilo que está oculto. Para o bem e para o mal. Então, diante avanços técnico-científicos-de modo algum. Voltaríamos à pré-História. O que
de qualquer forma social, a utopia capta as possibilidades dissimuladas, que seria de nós sem a penicilina, e no que me coca em particular, sem o cinemacó­
poderão no futuro crescer e assumir o poder. Assim sendo, em relação àquilo grafo? A questão é que somos contemporâneos de urna ciência que é, em muitos
que chamamos fase 2-apoteose do capitalismo financeiro-a disciplina utópica aspectos, desprovida de ética. Creio ser a primeira vez na História que isso acon­

podia observar que longe dos holofotes respiravam dois seres, um "do bem", tece. O desenvolvimento técnico-científico anda, ou melhor, voa, sem qualquer
governo quanto as suas finalidades humanas. Mary Shelley, fundando o romance
outro "do mal": a primeira, uma forma de vida associada generosa, um outro
de terror em 1818 com Frankmstein, já nos avisara sobre isso. A criatura grotesca,
mundo que seria construído sobre as ruínas do capital e do socialismo real; este,
produto da ciência, em determinado momento indaga ao seu criador: "Por que
infelizmente, não se deu a conhecer -não temos utopias de fato eficientes. A
você me criou?", e o cientista moderno não rem a resposta. É uma premonição
outra forma, esta "do mal", é um mundo de pesadelo-a distopia. Notemos
da bomba de Hiroshima. Há um divórcio entre padrão científico e padrão ético.
que a disciplina utópica fez a sua parte neste segundo caso: só para dar um Aí está o problema que interessa à utopia: o que acontece com a sociedade, ou
exemplo, os filmes Minority Report e illteligêllcia ArtificiaL, ambos de Spielberg e acontecerá, se as invenções científicas não passarem pelo vestíbulo do consenso
extraídos de obras literárias dos anos 60. Neles vemos no que o mundo poderia moral? A resposta me parece óbvia: a destruição do planeta, da vida, da culrura,
se transformar se transbordassem as águas da informática e de suas associadas, de tudo que vale a pena levar em consideração. E é o que estamos vendo-com
a robótica e a vigilância eletrônica. Aliás, estes temas já haviam sido abordados a advertência da biblioteca utópica. E de cerca forma, com o desgoverno da
por Orwell, Kubrick, Huxley, Phillip K. Dick e rodos os grandes distopistas. técnica, podemos estar voltando à pré-História, ou pior.

E ninguém que participa da cultura pode dizer que não sabia de nada. E a ver­ Existem, portanto, muitos aspectos positivos na utopia, mas os negati­
tigem informática, prestemos atenção, é uma das manifestações estruturais do vos também existem-eles estão em querer construir uma sociedade utópica,
capital financeiro. Será preciso lembrar que as mãos que governam a robórica e a ou seja, sair do terreno filosófico-Literário, essencial para a autonomia humana,
informática desempregaram centenas de milhões de trabalhadores e destruíram para a construção de uma sociedade real utópica. Isso é um grave perigo. Para

o movimento operário? Quem advertiu isso muito antes? Foram os utopistas em a antropóloga Margareth Mead o sonho de um é o pesadelo de outro. Segundo
Marx, compor um projeto para o futuro é um ato reacionário. Concordo com
Blade Rmmet; 1984, Admirável Mundo Novo, 2001 - Uma Odisséia no Espaço (em
os dois. Se a utopia é uma sociedade perfeita, isso significa que ela não pode
que um robô-computador assassino enlouquece de inveja dos homens). Certa­
ser aperfeiçoada e nem se degradar, porque ambas as coisas pressupõem a
mente os líderes trabalhistas, mergulhados nos assuntos cotidianos, que tanto
imperfeição. Na prática, esta utopia significaria uma estática social, um mundo
elucidam quando escondem os verdadeiros problemas, não entenderam que os
parado e eternizado em si mesmo. Isto é a tt-crorlia, ou ausência de tempo-uma
avanços tecnológicos, da forma como vieram e foram instituídos, nesta quadra impossibilidade. Podemos, no encanco, ir além: uma sociedade utópica real, para
em particular, acabaram por quebrar a espinha das reivindicações dos trabalha­ garantir sua existência estática, precisaria recorrer à eterna vigilância e a rodas
dores. A marginalização de grossos contingentes de técnicos e operários, assim as formas de violência. Quem projeta uma sociedade crê que os seres humanos

18 19
Carlos Eduardo Ornelas Berriel

estão inteiramente a sua disposição, num consenso incondicionado, aceitando Capitulo


imp liciram e oce que serão c ontrolados e dispostos conforme o desenho lógico I 1 I
do engenheiro social-aquele que crê que sua lógica pessoal deve ser universal.

Estamos falando daqueles senhores cão famosos na História, o Grande lnquisi­ O LUGAR DAS UTOPIAS E DISTOPIAS NO DEBATE
dor, o Grande Irmão, o Grande Timoneiro, o Guia Genial.
SOCIAL E PEDAGÓGICO NA ATUALIDADE
Todas essas questões foram abordadas pelos estudiosos do grupo cata­
A Guisa de Apresentação
rincnse do Lucídio e do J ua res. Percorrendo as obras de cinco grandes utOp is ­
tas ing leses, A Utopia de Thomas Morus, Nova Atlâmida de Francis Bacon, O
Panóptico de Jeremy Bcocham, Admirável Mtmdo Novo de Aldous Huxley e 1984 Lucldio Bianchetti1
de George Orwell, tiveram nas mãos o gênero utópico do início ao fim-ou ao Juares da Silva Thlesen2
momento presente. Está tudo al i.
P(trece q11e o 1t1tmdo modemo vem se tomando
Muito há para aprender com eles.
crescentemmte mfope nos últimos tempos,
como se o colapso das economias sociali
stas e
a.r vitórias do livre-mercado tivessem tornado
Campinas, SP, setembro de 2013. ilmórias as viJffes/tttttras de lougo prazo (. . .).
Na Idade Modema, qlfem alimmtrJ sonhos qtte vão
além do tempo de vida de noJJos netos?
No 1111111do da infonnaçãc {. . . ),
Cinco m1os é 11/ll longo tempo

(Freeman Dyson, 1998).

1 Pedagogo (UPF/RS); mestre em Educação (PUC-Rio); doutor em Educação: História e Filosofia


da Educação (PUC/SP); Estágio pós-doutoral (Universidade do Pono, PT). Professor aposentado
da Universidade Federal de Santa C:1tarina (UfoSC/SC). Ex-coordenador do PPGEIUFSC; ex-vice­
presidente da Anpcd. Livros c coletâneas de que é coaucor, coocganizador: I . Da chave de fenda
ao laprop (2. ed., EdUFSC, 2008); 2. t\ Trama do ConhecimentO (2. ed., Papirus, 2008); 3.
Dilemas da pós-graduação (Autores Associados, 2009); 4. In/exclusão no trabalho e na educação
(Papirus, 2011); 5. Inrerdiciplin:uidade (9. ed., Vozes, 201 I); 6. A bússola do escrever (3. cd.,
Cortez, 2012}. Pesquisador lC do CNPq. lucidio.bianchccri@pq.cnpq.br
2 Geógrafo (Unoesc/SC); mestre em Educação Superior (furb/SC}; doutor em Educação (ICCP/
Havana); doutor em Gestão do Conhecimento (UFSC/SC}. Professor do Cenrro de Ciências
da Educação da Universidade federal de Santa Catnrina (UFSC/SC). Atua no Programa de
Pós-Graduação em Educação (PPGE/UFSC) na Linha de Pesquisa "Ensino e Formação de
Educadores". Pesquisa temáticas do campo do currículo, gestão e prospecção de cenários em
educação. É autor dos livros: 1. Olhares sobre Educação: da realidade às perspectivas (Insular,
2008); 2. O futuro da Educação, conrribuiçõcs da Gestão do Conhecimenro (Papirus, 2011) e 3.
Política Curricular: discursos, (con}rextos e práticas (CRV, 2013). juares.thicscn@ufsc.br

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Lucídio Blanchettl - Juares da Silva Thiesen CAPITULO 1 - O Lugar das Utopias e Distopias no Debate Social e Pedagógico na Atualidade

1.1 O HOJE ATRAVESSADO PELO PASSADO E ABERTO A (AHTEJVISÃO DE FUTURO Atualmente enfrentamos a questão do tempo com dois desafios que, em

termos comparativos ao ocorrido com nossos ancepassados, apesar das supostas


Jlté bempottco tempo atrás jJoderíamos m11dar o mundo. vancagens de que dispomos em termos de ciência c tecnologia, em nada nos
Qmm ro11bo11 nossa coragem? poupa no que diz respeito a termos de ser criativos e engenhosos. A referência
(Renato Russo, 1989).
é a condição humana, em si, e a Iuca pela sobrevivência no/com o planeta Terra.

Lidar com a questão do tempo: eis um dos maiores desafios empírico­ A sobrevivência, condição primeira de nossa existência, traduz a mate­

-teóricos com os quais a humanidade defrontou-se em codos os tempos! foi riaüdadc da vida c a síntese que integra tempo e espaço, desejo e necessidade.

Talvez nada tenha sido espaço-temporalmente mais concreto na história humana


ontem, mantém-se hoje e por cerco o fucuro não nos poupará, como espécie, de
do que a Iuca pela sobrevivência, seja de grupos ou de indivíduos. Mais do que
necessariamence ter de encará-lo. Nossos antepassados lidaram com a questão
sonho e memória, a sobrevivência é o imperativo da vida que se produz cotidiana
das cemporalidades e encontraram estratégias, umas mais adequadas, engenho­
c eternamente.
sas, a ponto de garancir a manutenção e a concinuidade da espécie; outras com
Münscer (1993), fazendo referência ao filósofo marxista alemão Ernst
índices de sucesso que deixaram a desejar. Desse ponto de vista, apelar para o
Bloch (1885-1977), que na sua extensa obra O princípio esperanfa discute utopia
ideário "darwinisca,"3 aplicado a indivíduos e grupos, é a explicação pela conti­
como possibilidade, portanto como experiência material da história humana,
nuidade de uns e a extinção de oucros. afirma que a práxis possui o atributO instaurador-retificador da revolução social

sonhada, aspirada, requerida como condição fomencadora de uma sociedade


É no tempo, esse fenômeno incangivelmente complexo, que homens e
melhor em razão de uma esperança, com possibilidades de concretização.
mulheres cravam suas marcas, escrevem suas histórias, gravam seus registros,

perpetuam suas memórias. O que seria da História e de roda a práxis humana se O utópico no humano é a projeção futura e mobilizadora da práxis revo­

as cenas da vida, do trabalho, da criação e da morte não pudessem ser mpressas


i
lucionária factível, e desse modo, segundo Apolinário (2008, p. 46), a "utopia é,

em primeiro lugar, um topos da atividade humana orientada para um futuro, um


no "livro" do tempo? É de Platão (apud Klein, 2007) a afirmação de que o tempo
topos da consciência antccipadora c a força ativa dos sonhos diurnos."4
é a imagem móvel da eternidade imóvel. Certamente ele tinha a clara noção de
A incomplecude e a finirude humanas, na perspectiva metafísica, filo­
seu significado para a humanidade.
sófica - sem esquecer as variantes religiosas) - de um lado; e a luta diária pela

sobrevivência, de outro, são fatores que vieram se entrecruzando e ajudam a


l Referência às teorizações de Charles Darwin ( 1809-1882), decorrcmcs de suas meticulosas
observações e pesquisas, parciculannenre, da natureza e do mundo :mimai. Na sua obra Origt:m das
eJpécieJ (1994), defende idcias relacionadas à ..sobrevivência dos mais aptos.. e à ..seleção natural..,
4 Os chamados sonhos diurnos (T:1gtraurn) são entendidos por Ernst Bloch corno antecipações do
as quais foram posteriormente reforçadas c, até, redirecionadas para a análise da sociedade,
futuro, propulsoras da utopia, como aspirações pela concreção de uma realidade libertadora ainda
por Hcrbert Spenccr ( 1820-1903). A transmutação das suas descobertas c teorizações sobre a
não existente. Neles, mesmo cnvolcos por desvarios e toda sorte de imagens controvertidas, pode
natureza à sociedade é um exercício ..primoroso,. de utilização ideológica e prática justificadora
manifestar-se o lúcido desejo de um panorama utópico do porvir, e, por conseguinte, de um "para
dela decorrente, por parcc dos interessados na justificação e manutenção da ordem vigeme,
a freme", de um ..adiante" (Apolin:írio, 2008).
em especial nos dias atuais, à continuidade indefinida do modo de produção capiralista. Sobre
este aspecto \'er também a obra Como tmtdar o mundo: Marx t o marxismo, 1840 - 2011, de E. > Freeman Dyson ( 1998) destaca a necessidade de reconhecer a m
i portância da ciência e da religião
Hobsbawm (2012). se quisermos compreender a complexidade histórica d a práxis humana.

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Lucfdio Bianchetti - Juares da Silva T h l e s e n CAPITULO 1 - O Lugar das Utopias e Distopias no Debate Social e Pedagógico na Atualidade

compreender o porquê da centralidade da questão do tempo e a forma de os • lt•scuhar prognósticos e com os apararos da tecnologia acha-se em condições de

seres humanos relacionarem-se com ele no processo histórico de produção da p 1 ospcctar cenários.7 Não obstante, o esforço que homens e mulheres fizeram
sua existência. ,. ainda fazem para entender as temporalidades históricas, assegurar a materia­

Em períodos que se perdem no tempo, a mitologia6 e as formas elemen­ lidade de sua existência cotidiana, foi e continua sendo seu principal desafio.

tares de religião, passando pelos "acontecimentOs" narrados nos livros sagra­


Para continuar garantindo a sobrevivência, foram sendo desenvolvidas
dos, ajudaram a lidar com o hoje e o amanhã do ontem. Independentemente,
formas (conhecimentos, tecnologias rudimentares) que pouco a pouco dotaram
porém, da teoria (Criacionista ou Evolucionista) esposada, foi o acúmulo e o
unssos ancestrais das condições de interferir na natureza, de se apropriar dela, de
adensamento de estratégias de sobrevivência no hoje que contribuíram para a
mlocá-la a serviço dessa necessidade relacionada ao manter-se vivo - necessidade
manutenção e a continuidade da espécie lnunana. A perspectiva evolucionista,
que tinha de ser assegurada no hoje, no aqui e agora. Sem isso, o amanhã sequer
da necessidade de prover diuturnamente a existência, para si e para os coletivos,
s<.:ria uma possibilidade. Foi assim que os homens e as mulheres se coroaram
veio desafiando gradativamente nossos ancestrais a criarem maneiras, estratégias
t:nçadores, colerores, enfim, usufruidores daquilo que uma natureza incompre­
de (sobre)viverem e conviverem. De forma similar, foram utilizadas mediações

para agradar, apaziguar os deuses - a fim de que fossem propícios - seja de que <.:ndida e indomável proporcionava, na labuta pelo atendimento das necessidades

forma tenham sido concebidos. básicas (comida, moradia, vestimentas, etc.), cujo resultado foi a sobrevivência

no imediato.
Assim, passo a passo, entre tropeços e avanços, entre a metafísica, a Filo­

sofia, a religião, a ciência e muito trabalho, a humanidade foi construindo alter­ Assim, a História é tecida pela trama da sobrevivência na cotidianidade

nativas de sobrevivência e, ao mesmo tempo, lançando seu olhar para o futuro. como presente interminável na sua mais imbricada relação com passado e futuro.
Com os deuses da mitologia foi capaz de profetizar; com a observação metafísica Como bem destaca Marx (2007, p. 19): "Os homens fazem sua própria história,
atreveu-se a prever; chancelado pela ciência considerou que é possível projetar e mas não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se

defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado."

6 É interessante perceber que nos consrrutos mitológicos e religiosos primitivos, a questão do rempo No contexto de sua existência, pouco a pouco nossos ancestrais foram
era um dos aspectos cenrrais. As narrações frequentemente privilegiavam as dimensões temporais.
adquirindo condições de compreender e interferir nos ciclos da natureza, exem­
Na mitologia grega, por exemplo, com sua característica politeísta (um deus para cada situação
da vida, morre, manifestação da natureza, erc.), o rempo foi elevado à condição de divindade, e plarmente pela domesticação de animais � pela agricultura. Com isto passaram
diferentes caracterísricas do tempo correspondiam a deuses diversos. Por exemplo, o tempo que I
passa é Chronos; a intensidade do tempo é Kayrós e, conforme Dcleuze (apud Zarifian, 2002, a conquistar cerra autonomia e a lidar com a "ditadura" do tempo presente, da
p. 2), ainda há Aiôn que é "o passado-futuro em uma subdivisão infinita do momentO abstrato, sobrevivência, de uma forma menos permeada pela urgência.
que não cessa de decompor-se nos dois sentidos de uma só vez, esquivando para sempre rodo
p resente."· Para mais detalhes sobre o tempo na mitologia ver também Brandão (1991). No
tocante o
1 religião, toda a narrativa criacionisra é perpassada pela questão do tempo, desde a
especificidade da criação em sere di<tS, conforme descrito no Gênesis (1 ° Livro da Bíblia), até Para Magalhães (2005), a visão sobre a prospectiva não é meramente instrumental em relação aos
a questão central da origem (a criação, como um <ltO instantâneo do presente, da vida terrena processos de tomada de decisão "científica" e move-se no âmbito da rc/lexividade institucional,
concebida corno um paraíso se houver obediência/submissão, e "vale de lágrimas·· se o pecado isto é, no âmbito do uso do conhecimento acerca das estruturas c processos sociais, enquanto
original não for redimido), seguida da vida eterna após a morte, em cujo processo o futuro é parre constituinte e implicada na sua transformação. Não se trata, pois, de uma forma mecânica
determinado pela forma como é/foi vivido o presente e o passado. Nesta questão do tempo, na e de aparência neutra, a partir dos dados e tendências presentes, projetar imagens do futuro, que,
mitologia e na religião, ralvez nada seja mais significativo do que a expressão latina "per omnia dessa maneira, o reificam ou se transformam em prescrições normativas para o presente, mas sim,
saecula, saeculorum·· ("'por todos os séculos e séculos . . . "). de produzir conhecimento sobre futuros plausíveis acerca dos quais é preciso julgar e agir.

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Lucídio Blanchetti - Juares da Silva Thlesen CAPITULO 1 - O Lugar das Utopias e Dístopias no Debate Social c Pedagógico na Atualidade

Com o passar dos tempos, via transmissão oral de geração a geração e, A liberdade corna-se um imperativo da condição humana. Assim como
mais tarde, via registros que passaram a atribuir ao passado um novo stat11s,8 os .L sobrevivência garante a essencialidade da vida, a liberdade garante, ou pelo
nossos ancestrais foram acumulando conhecimentos resultantes das experiências, menos deve garantir, a condição da existência de homens e mulheres e ambas
que acabaram transformando-se nos pressupostos para a criação de novos conhe­ fundem-se na ideia de luta. Einstein (1981, p. 8), ao descrever sua visão de
cimentos (ciência - conhecimentO sistematizado) e que propiciou as condições mundo em 1934, afirmou: "recuso-me a crer na liberdade e neste conceiro filo­
para, em termos marxianos, organizar novos modos de produzir a existência, sófico. Eu não sou livre, e sim às vezes constrangido por pressões estranhas a

cada vez contando com mais conhecimentos, com tecnologias mais sofisticadas, m im, outras vezes por convicções íntimas." O potencial criador dos homens e

a ponto de, em determinado momenro da História, estarem dadas as condições das mulheres sempre foi o melhor exemplo de liberdade humana, ainda que ela

para os homens e as mulheres passarem do reino da necessidade (dependência da venha sendo reirerativamenre cerceada.

natureza, percencimento a "classes" obrigatórias, etc.) para o reino da liberdade


Assim como sobrevivência e liberdade, a convivência dos humanos entre
(Marx, l974a), uma utopia que estaria ao alcance de rodos com a derrocada da �i torna-se outro pressuposto da organização social e da relação menos predatória
"ditadura" das necessidades no âmbico biológico, da dependência da natureza e com a natureza. Nesta perspectiva, o histórico do tempo perpetua registros de
da superação dos modos de produção anteriores ao capitalismo. uma trajetória humana na qual pontuam mais elemenros de irracíonalidade do

Dessa forma, pelo trabalho humano, as condições da existência vão sendo que de respeiro à dignidade de homens e mulheres - individual e coletivamente,

modificadas a ponto de incluir sonhos como o que projetam Marx e Engels e de atentados contra a natureza. Mais uma vez apelando para a perspectiva mar­
xiana, os modos de produção asiático, escravista, feudal e capitalista evidenciam
(1979), quando explícita as fases de transição do capitalismo ao comunismo:
que, a despeito de rodas as conquistas, do ponto de vista das relações entre os
Na fase superior da sociedade comunista, quando houver desaparecido a seres humanos, conforme sinalizam Marx e Engels (1986, p. 19), "a história da
subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com
sociedade se confunde até hoje com a história das lutas de classe." E do ponto
ela, o contraste entre o trabalho intelectual e o trabalho manual; quando
o trabalho não for somente um meio de vida, mas a primeira necessidade de vista da relação com a natureza, os avanços científicos e tecnológicos, em

vital; quando, com o desenvolvimentO dos indivíduos em todos os seus especial do sistema vigente, evidenciam que ela está sendo mais agredicla do que
aspecros, crescerem também as forças produtivas e jorrarem em caudais preservada, apesar da consciência - evidentemente obnubilada pela ideologia
os mananciais da riqueza coletiva, só então será possível ultrapassar-se
capitalista - de que a sua destruição, no limite, significa a interrupção de um
totalmente o estreito horizonte do direito burguês e a sociedade poderá
processo que é (auro)proclamado como civilizatório.9
inscrever em suas bandeiras: De cada qual, segundo sua capacidade; a
I
cada qual, segundo suas necessidades. (p. 22).
A convivência, outro imperativo da vida coletiva, constituí fundamento
de nossa constituição ontológica e traduz-se na sociabilidade também como
uma necessidade. Carl Ratner (1995, p. 16) afirma que "a organização ativa,
• Pode-se falar de um tesouro dos dicos c feitos dos ancestrais (na teoria criacionista, a "tábua dos
10 mandamentos"; na evolucionista, o "Código de Ham11rabi" e as demais obras que compõem o portanto mediada do homem, constrói e reconstrói simbolicamente o mundo.
patrimônio cultural da humanidade), que uma vez registrados, podiam e podem servir de guia, Essa construção simbólica é pré-requisito da construção e reconstrução material
de indicação do que fazer, de como ser c do que não fazer/ser. E, nesta perspectiva, o passado
no presente, poderia e pode ser buscado como testemunho para ratificar e reforçar opções ou
pode ser remido e tudo fazer-se para que permaneça no passado. E cantas vezes isro foi e é feito
como esrrarégia para que o passado seja ignorado ou dcletado, deliberadamente, por chefes, � Konrad Lorenz ( 1903-1989), na clássica obra CiviliZtJfão e Pecado: os oiro erros rapirais do homem
governos autoritários, ditadores, muito interessados em ser o presente, o passado e o funuo dos modtnlQ (1974), há muiro tempo aterrava a respeito dos riscos advindos da forma predatória como
seus governados. a natureza vem sendo tratada.

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Lucldlo Bianchetti - Ju a re s da Silva Thiesen CAPITULO 1 - O Lugar das Utopias e Dlstopias no Debate Social e Pedagógico na Atualidade

de mundo." Esse pressuposto da abordagem histórico-social ajuda-nos a enten­ saltos. Somente obliterando essa contradição, como querem fazer os (neo)libe­

rais, é possível manter um sistema, c mesmo assim, para sobreviver, ele precisa
der o papel da mediação entre os homens e o mundo na produção da existência
metamorfosear-se conscancemence.
e as formas como historicamente nos apropriamos da natureza para preservar

ou destruir. Pelos diferentes modos de produção (experiências hiscoricamenre É com o discurso da não contradição que os (nco)liberais "vendem", mas
inducoras de modelos predatórios de apropriação e acumulação da riqueza) as não entregam, educação para rodos, direitos humanos e sociais, trabalho digno

sociedades foram constituindo-se material e simbolicamente. e demais direicos propalados pelos fabricantes da modernidade capitalista.

Neste foco, a cencralidade passa a ser assumida pelo trabalho, nas dife­ A questão a ser discutida nessas circunstâncias relaciona-se a como, a

elevação das possibilidades de dispor de condições de vida digna para rodos,


rentes formas como foi sendo concebido, definido, assumido e por quem foi c
de desenvolvimento omnilateral de rodos, de contar com meios de lidar mais
vem sendo executado. A condição de escravo, servo e operário, no essencial, em
harmonicamence com a natureza, enfim, de contar com precondições dadas
pouco se diferencia, uma vez que estamos cliante daquilo que Schwarcz (2005)
para a elevação quantitativa e qualitativa de todos os indicadores daquilo que
define como o "uso de si para si" e o ''uso de si pelo oucro". E no tempo histórico
garantiria a radicalização da humanidade de homens e mull1eres, enfim, como
que estamos vivendo, bem como nos anteriores, predomina a segunda condição.
apesar de todas as possibilidades, tantos/as são excluídos do "banquete" que foi
É indubitável que os estatutos da escravidão, da servidão e do modo de produ­
preparado c que deveria ser usufnúdo por codos/as. Este paradoxo somente pode
ção capitalista são diferentes, mas se no domínio desce último pode-se falar que
ser apreendido se for levada em conta a contradição em processo que é o modo
as condições da humanidade são muito melhores10 do que aqueles vigentes no
de produção capitalista.
domínio da escravidão c da servidão. Também remos as evidências de que para
E se assim o é, como um processo contraditório consegue manter-se e
o conjunto da humanidade, contraditOriamente, mesmo ao alcance da mão de
manter "harmônicas" as relações daqueles que vivem sob a égide do capital?
todos, nunca as condições de bem-estar e de vida digna estiveram cão drama­
Isto somente poderá ser compreendido se forem levados em conta o papel da
ticamente inalcançáveis para a maioria. Para Santos (1996), em nenhum outro
educação, dos meios de comunicação e demais aparatos que constituem a ver­
momento da História tantas possibilidades técnicas se chocaram com tanras
cebralidade estrutural e conjuntural desse sistema e que garantem sua manu­
impossibilidades políticas. tenção. A ideologia, entendida como o conjunto das ideias que emanam desses

A constatação de Santos ajuda-nos a entender que a experiência histórica aparatos, também desempenha o papel estruturador da forma de organização e

funcionamento da sociedade acuai.


desafia qualquer racionalidade. A contradição apontada revela que os tempos

não podem ser viscos apenas pela lógica da linearidade, pois eles inextricavcl­ Particularmente no âmbito da educação, Imbernón (2000) é taxativo ao

mente entrecruzam-se, e que o alcance de uma condição (a técnica) não garante afirmar que não há o que comemorar porque estamos no século 21 se ainda não

necessária e universalmente outro patamar - o político. É a eterna Iuca de forças resolvemos os problemas básicos do século 20. Análise semelhante faz Brunner

operando, sem cessar - imanência que impulsiona o movimento da realidade em (2000) quando argumenta que a educação, como fenômeno social complexo,
encontra-se numa verdadeira encruzilhada. Precisa responder efetivamente aos

vários problemas que estiveram na agenda durante quase codo o século 20 e na


1° Conforme Gianneni (2002, p. 29), "Em retrospecto, há pouca margem para dúvida de que os atualidade e, ao mesmo tempo, adaptar-se para enfrentar os desafios do futuro,
no campo da ciência da tecnologia e da produtividade trouxeram enormes beneficios
avanços ,

que são cada vez mais emergentes c objeto de forte pressão social.
· na vida pr:ítica em termos de saúde, conforto, renda e condições de trabalho."

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Lucfdio Bianchetti - Juares da Silva Thiesen CAPITULO I - O Lugar das Utopias e Dlstopias no Debate Social e Pedagógico na Atualidade

Prospectiviscas menos atrelados às correntes neoliberais desenham cená­ Em LUTI contexto amalgamado pela ideologia, nem todos pensam e fazem
rios pouco animadores para o Sul11 - em particular para a América Latina. O nn mesma direção, porém o que ou quem desroa não o faz com tanta força e
evidente trabalho dos neoconservadores12 para mundializar a ideia de educação Intensidade que coloque em risco a manutenção do sistema vigente. n E o que
como centralidade e, portanto, como imperativo do desenvolvimento, constitui mais surpreende é exatamente a capacidade do conjunto das instituições que
mais uma das estratégias ideológicas lançadas por eles como ferramenta políti­ compõem essa sociedade , funcionar de forma tal que as pessoas são, na prática,
ca. O otimismo dos organismos multilaterais em relação ao futuro da educação por adesão, coação ou convencimento, compungidas a se submeterem a um
contrasta com a profunda desconfiança manifestada pela sociedade. "presentismo" permanenre. E isto se processa em um contexto em que r eina
A força da ideologia reside exatamente na s u a condição de poderosa uma "'paz"', que é mais apareme do que efetiva. Quando os bens coletivos são
es tra tégia que garante que se proceda a LUna assepsia de qualquer resquício de apropriados e usufruídos por LUTia minoria e aqueles - homens e mulheres-que
ideia que possa ser contrária à ordem vigente ou colocá-la sob questionamento. são suprimidos desses bens acabam sendo levados a concordar ou concordam
Exemplarmente, a não confirmação da utopia de LUTia sociedade igualitária , após que o que está sendo feiro está certo, mesmo que desconfiem ou percebam que
a comada da Fazenda, por parte dos animais, na fábula de George Orwell - A algo não vai bem, abre-se uma f ra nja para se indispor c não compactuar com a
l�evolttção dos Bichos - faz com que os porcos-os novos dirigentes que compro­ ordem vigente.
metidamente seriam mais justOs e equânimes que os humanos no trato com seus
Talvez o meio mais adequado de conspirar contra a ordem vigente seja
semelhantes animais-, ao se contaminarem com a mesma ideologia dos homens,
o de não aceitar que a condição que a humanidade vive hoje não se explica,
reescrevam um dos mandamentOs que inicialmente havia sido acordado. Da
redação: "Todos os animais são iguais", passa-se para a nova versão, convergente nem se justifica e muitO menos se esgota no present e. 14 Depois de constatar

com a materialidade histórica do novo totalitarismo, patrocinado pelos porcos que o Iluminismo prometeu muito e não entregou ou entregou menos do que

e colaboradores (cães), com LUTI acréscimo dado por Orwell (2007b, p. 56, grifo prometeu, uma vez que o enfraquecimentO do teocenrrismo e a entronização do

do autor) que, na verdade, anula a premissa: "Todos os bichos são iguais, maJ antropocentrismo propiciou a criação de uma ambiência de euforia, de crença de

algtmJ são mais iguais do que os outros." que agora homens e mulheres escavam tomando tanto o seu, como o destino do
mundo em suas mãos, Giannetti (2002, p. 53) levanta um questionamento que
E, voltando ao reino dos humanos, quando passam a surgir indicações
como poucos coloca em xeque as promessas ela burguesia: "Por que o amanhã
ou ev idências de que os faros não convergem com a versão/ideologia veiculada,
azar dos fatos e das pessoas-grupos ou até países e blocos - que não comungam feliz de ontem não se tornou o nosso presente?"

com o ideário hegemô nico.


" As exceções ou pequenos atentados acabam sendo "fngocicados" c apresentados corno indicações
de que a democracia funciona, de que há liberdade, enfim, de que todos são iguais e rêm os
mesmos direitos, embora a sociedade seja de classes c . . . com base em Orwell (2007b, p. 45) uns
sejam "mais iguais do que os outros."
11 Sobre as perspectivas de futuro para a América Latina, ver Brunner (2000).
'·1 Para Ernst Bloch (2005), a existência humana é histórico-temporal, constituindo-se a partir de
12 A palavra "'ncoconservadores" é utilizada por Michacl Apple (2008) para designar a atual sua imanência e, simultaneamente, em constante abertura i\ transcendência, ao ultrapassamenco
configuração dos grupos que luraro pela hegemonia econômica e política. das conformações da presentidadc.

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Luddio B i a nchetti - J u a res da Silva Thiesen CAPITULO 1 - O Lugar das Utopias e Dlstoplas n o Debate Social e Pedagógico n a Atualidade

Esta é uma questão que não pode calar: afinal, se tanta era a crença, 1 7 SE . . MAS : do utópico. da ficção, da dlstopia e da prospecção à realidade
. . .

tantas foram as promessas de que tudo seria melhor, por que se mantém tanta
Cada época sonba com 11 seg11i111e - como aforma de sonho da/rllll­
desigualdade, por que grassa a injustiça, por que tantos são excluídos, por que o
ro, não como J/111 realid11de (Buck-.Morss, 2002, p. !52).
planeta Terra continua sendo impiedosamente depredado? E, no que diz respeito
mais diretamente a nossa temática: Por que o passado deveria ficar no passado? Em um romance policial, Winslow (2007, p. 3 5 1 -352, grifo do auror),
E 0 futuro. . . ? Bem, ainda não chegou e, porcanto, deveríamos viver exclusiva­ uunifesta-se sobre o diálogo entre dois dos seus personagens, nos seguintes
mente o/no presente? Afinal, é somente deste que dispomos! Seria cômico, se não ll'fiTIOS:
envolvesse canta tragicidade para muitos seres (sub)humanos e para a natureza.
- Ele começa com as palavras mágicas: E se. "As mais poderosas palavras
Quando questionamentos como estes não calam, apesar das tentativas, é l'll1 qualquer idioma ( . . ]. E se, e se, e se." Na sequência do diálogo, referente
.

porque é hora de não perdermos de vista as lições do passado. Afinal, ele é cons­ 11 uma proposta de fuga, diz o autor: "Ela pergunta quando. - Breve, diz. ­
titutivo do presente e o futuro está à espera do que se fizer com este amálgama Quero fugir com você, mas . . . Mas. O terrível contrapeso do e se. A intromissão
enrre passado, presente e devir. Sem um te/os, sem um desideratttm, sem uma da realidade."
utOpia, o caminho fica aberto para que vivamos "estrangeiros de nós mesmos",
Aqui pensamos situar-se um dos aspectos centrais de obras cujas tramas
conforme a etimologia grega da palavra alienação (alien).
desenrolam-se em um tempo que não é o presente, como é o caso dos clássicos
O futuro, objeto de ocupação histórica, razão maior da experiência de que se encaixam nas categorias que aparecem no subtítulo e que serão objetos de
hominização, tem sido a questão central que distingue utopia de distopia. É análise por parte do conjunto de autores desta obra coletiva, como veremos logo
um nó que permanece atado à existência e que insiste em mobilizar sonhos e/ou
adiante. A partícula se é uma indicação ou aposta em opções mil, tantO no que
arrefecer possibilidades. Ao longo dos tempos as sociedades vêm testemunhan­
diz respeito a aspectos positivos, construtivos, potencializadores das capacidades
do movimentos que vão da "reinvenção do futuro" (Santos, 1999a, p. 322),
humanas e do seu entorno, quanco de situações atentatórias. E se isco acontecer
da criação simbólica de um novo mundo/lugar (Morus, 1990, 1997, 20 1 1 ) ao
ou se não . . . abre um leque amplo de possibilidades. Quando de afirmações
proclamado "fim da história" (Fukuyama, 1992). De qualquer modo, o futuro
precedidas do se, porém, apor ou pospor o mas significa, conforme apontava o
está na cena cotidiana da vida, desafiando o presente c sustentando "sonhos
autor, dar-se coma dos limites, da necessidade de contrapor, de se defrontar com
diurnos" (Dloch, 2005).
a realidade em todas as suas dimensões de limites e possibilidades.
Em síntese, qualquer ação ou ideia que não seja conforme à ideologia
O futuro inscreve-se em intermináveis hipóteses - "e se"? Como
do grupo hegemônico ou é ignorada ou é desacreditada ou é suprimida, muitas
possibilidade(s), pode ser uma resposta ao passado e/ou uma pergunta ao pre­
vezes juntamente com a pessoa ou grupo que age/explícita algo alternativo
sente. Em ambas as situações ele apresenta-se como um "e se" porque como
ao imposto ideologicamente por aqueles, pessoas, grupos ou países que estão
uma condição "ainda não dada" é apenas uma possibilidade e por isso está inex­
interessados em manter, sem contestação de qualquer cariz, a ordem vigente.
i
tricavelmente mplicado nas circunstâncias histórico-concretas da experiência.
".Mtts"... , para além da possibilidade, o futuro é o elo que não se rompe, está na

matriz da constituição humana onro-filo-teleologicamente.

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Lucídlo Blanchetti - Juares da Silva Thiesen CAPITULO I -O Lugar das Utopias e Distopias no Debate Social e Pedagógico na Atualidade

Se o fururo é uma hipótese, a utopia é sua resposta provisória. Wilde Jtnlu ica e, portanto, crítica, permite aos homens e mulheres a constante vigi­
(apud Bauman, 2007a, p. lO L) é implacável ao afi rmar que "um mapa-múndi l,tnuu do presente. O futuro, no sencido de sua extensão enquanto possibilidade
que não inclua a ucopia não vale nem a pena olhar, pois deixa de fora o único país
ht�wrica, é o loctts da utopia, assim como o presente é seu epicentro.
em que a humanidade está sempre desembarcando." Assim como fizeram muitos

outros intelectuais dos séculos 18 c 19, declaradamence, Wilcle integra utopia A prospecção, se entendida como te/os que mobiliza os coletivos humanos

e futuro, tempo e espaço, ficção c realidade. Seja como lugar de desembarque, l '•"'a a transcendência na/da experiência humana, contém a força i n tegradora
como plano de viagem ou como ponto de chegada, o futuro, a ucopia e a ima­ oln, tcmporalidades. Não a entendemos como uma atividade técnica, lançada
ginação con stituem elemencos fundamencais da transcendência e da liberdade.
1 '' ratcgicamente como ferramenta de controle e domínio dos aparatos econô­
Negar a possibilidade do futuro é negar a condição da própria existência e da
IIIÍ<:Os e políticos que sustentam as atuais hegemonias. Pelo contrário, a atitude
memória no tempo revel ada.
prospectiva necessita fundar-se na compreensão sobre a dialética relação entre
Futuro e utopia como experiências humanas indissociáveis se nutrem n a
p�csence - passado - futuro, no entendimento das concradições do movimento
histórica crença, que homens e mulheres sempre tiveram e ainda têm, sobre a
histórico e no sonho como motor da mudança.
possibilidade de sonhar, de construir projetos societários para um mundo melhor.

Foi assim com os socialistas utópicos na primeira metade do século 19; foi assim A utopia1� (social, pedagógica, política, religiosa, econômica, etc.) e sua
com o ideário socialista de inspiração marxiana e continua sendo para rodos untítese, a distopia, bem como as prosp ecções ou estudos do futuro, estão rela­
aqueles que se negam a decretar a morte do futuro. Bauman (2007a) cem razão CIOnadas à ficção, a um "presence" paralelo ao presente real e ac ual 6 ou a um
1

quando afirma que as utopias originais extraíram seus poderes magnéticos da


passado ou futuro. Sieua-se no campo do se. Nenhuma dessas incursões, contudo,
promessa de que a f
ábu la teria fim, a utopia dos caçadores é o sonho de urna
v ia literatura, por mais ficcional que seja, deixa de ter relação, em maior ou
labuta interminável - como a caçada a uma falsa lebre, ferozmente perseguida,
menor intensidade, com partes da realidade, seja já acontecida, em processo ou
mas nunca alcançada. Essa é a labuta incerminávcl de nossa constituição his­
tórica.

O "e se" e o "mas" como expressões da liberdade e da possibilidade de " A origem da palavra "uropia" é atribuída a 1bmas Morus (1478-1535). Em termos etimológicos,
predomina a explicação da origem grega, sendo que o prefixo "u" significa negação e o substan­
transcendência sempre representaram vias de saída para os homens c mulheres tivo "topos", lugar, sendo, pois a denominaçiío de lugar nenhum ou "não lugar" . Uma observação
que acreditaram na mudança co mo proje to ou como ucopia. Seja apostando imeressancc c com outros elementos agregados, seja do pomo de visra etimológico, seja históricos,
é feira por Bauman (2007a, p. 100): "Sir Thomas sabia muiro bem que, canto quanto um projeto
na profecia dos deuses, na divindade medicva, na força da revolução, ou na
para o estabelecimento de uma vida boa, seu plano de um mundo limpo da insegurança e dos
capacidade da ciência c da tecnologia, a humanidade, de alguma forma, sempre medos sem fundamento era apenas um sonho: ele chamou sua concepção de "utopia", referindo-se
ao mesmo tempo a du:ts palavras gregas: tlllopia, ou seja, " lugar bom" c, 0/ltopia, que significa
prospectou cenários.
"em lugar nenhum." Seus numerosos seg uidores c imitadores, conrudo, foram mais resolutos ou
menos cautelosos. Viviam num mundo, j{, confiantes - corretamente ou erroneamente, para o
Longe do que propõem os experts da racionalidade organizacional que
bem ou para o mal- de que tinham a sagacidade necessária para projetar tun mundo prefedvcl,
nos querem fazer acreditar que o futuro - espaço da inccrrcza e do risco - pode r
livre do medo, e a perspicácin exigida para nlçar o imodeado "é", no nível do "deve", ditado peln
razão. Essa confiança lhes dava coragem c energia para experimentar os dois."
ser anteci pado pela construção de cenários normativos/desejados, adotando-se
'6 Inserimos aqui estas duas palavras, uma vez que Lévy (1996) chama a atenção para a diferença
estratégias geralmente sustentadas por princípios de mercado ou por driblagem
cmrc o real e o arual, ao fazer um contrapomo com o virtual. Do seu pomo de visra, o virtual
das crises do capital, defendemos que a prospecção, enquanco atitude histórico- tem como contrapomo o acuai.

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Lucfdio B i a n ch e tt i - Juares da Silva Thiesen
CAPITULO 1 -O Lugar das Utopias e Oistoplas no Debate Social e Pedagógico na Atualidade

imaginada. Como observa o físico Freeman Dyson (1998, p. 15 ): "A ciênci a é Diante de uma realidade distópica em processo, Orwell (1972), por meio
meu território, mas a ficção científica é a paisagem de meus sonhos." E o mais oln \CU personagem, desesperançado diante da impossibilidade esmagadora de
importante para o auror, a ficção situa-se mais no alertar do que no prever.
l"'cr qualque r coisa, capitula, sem antes, porém, deixar uma mensagem de

Quando H. G. Wells ( 1866-1946) escreveu a obra fictícia A máquina do dl rta :


·

tempo, em 1895, parecia rer profetizado que a sociedade pós-industrial criaria os


Ao futuro ou ao passado, a uma época em que o pensamenco seja livre,
seus E/ois e seus Mor/odes. 17 As terríveis desigualdades que foram e são impostas à
em que os homens sejam diferentes uns dos outros e que não vivam
população pelo sistema globalizado de economia (além de outras razões culturais, sós - a uma época em que a verdade existir e o que foi dito não puder
pol íticas , geográficas, etc.) fizeram nascer, pelo menos no Brasil, dois mundos ser dcsfeiro: Cumprimento da era da u niform idade, da era da exatidão,

que quase nunca se tocam.'8 da era do Grande Irmão, da era do duplipensar! (Orwell, 1972, p. 30).

E é exatamente entre o se e o mas que se distribuem os trabalhos que Deixando o mas interpor-se com todo o peso da realidade, percebemos
compõem esta obra construída a muitas mãos. Praticamente não há assunto
110 estÍmulo e alerta de Freire (1982) o quanto o trabalho co m educação
(organização social, política , econômica; ciência; tecnologia; educação; ética;
1·suí relacionado ao sonhar, ao ousar (uma das dimensões da ucopia), ao
moral; passado-presente-futuro; relação com a natureza, etc.) que escape ao
11:10 perder de vista um mundo melhor do que aquele com o qual estamos
escrutínio dos autores/obras focalizadas, indo do que é mais promissor, alvis­
1 rabalhando:
sareiro, ao que é mais degradante, preocupante, quando não escatológico. Ao

lançarem mão do recurso da ficção utópica ou discópica, os autores, por meio Eu agora diria a nós, como educadores c educadoras: ai daqueles e daque­

das obras analisadas, permitem-se vislumbrar e descrever o melhor dos cenários, las, en tr e nós, que pararem com a sua capacidade de sonhar, de investi­
gar, a sua coragem de denunciar e de anunciar. Ai daqueles e daquelas
dos mundos (im)possíveis ou alertar para os riscos daquilo que virá a acontecer,
que, em lugar de visitar de vez em quando o amanhã, o futuro, pelo pro­
caso a trajetória da ordem vigente seja mantida. De qualquer maneira sempre é
fundo engajamenco com o hoje, com o aqui e com o agora, ai daqueles
um chamado para caminhar em direção ao descrito ou um chamado de atenção e daquelas que em lug:tr desta viagem constante ao amanhã, se acrelem
para que se pare e se reencere a caminhada em outra direção, dados os atentados a um passado de exploração e de rotina (1982, p. 101).

daquele presente paralelo ou os riscos que se descortinam no horizonte.


Tanto na perspectiva do que buscamos afirmar no Seminário Especial,

tratado no tópico a segu ir, enquanto concepção de história, de sociedade e de


17 Em A wíqllillrl do tempo, por volta do ano 800.000, dois grupos sociais habitam a Terra: os P..lois
que vivem na superfície, são jovens, inteligentes porque acompanharam as mudanças, c os iVIol'­
tempo, quanto na demarcação política que imprimimos às discussões com os
lorks, que vivem no subterrâneo, na produção de manutenção de máquinas, perderam a noção estuda ntes, a ideia de futuro-passado-presente aparece fortemen te associada à
do rcmpo e se transform:tram em monstros. Os E/ois desfrutam da vida cn<Juanco os il'lorlocks
trnhalham c fornecem os alimentos. Em contrapartida, os Modocks regularmente sobem à super­ de ucopia como possibilidade de reinvenção do mundo e como alternativas para
fície c capturam alguns E/ois para devorá-los. É a metáfora da classe operária x nobreza inglesa
os desacertos do modelo vigente, movimentos que se dão, na radicalidade, pelo
do século 19 que pode ser aplicada às acuais sociedades do modelo capitalista (Wclls, 1991).
18 No livro O que é apnrltlfiio: o apartheid social no Brasil, de Criscóvarn Buarqu c ( 1994) faz uma questionamento e superação do "presentismo" no terreno da materialidade que
análise das diferençns entre riqueza c miséria corno mecanismos de separação.
constitui a experiência humana.

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Lucídio Bianchetti - Juares da Silva Thiesen <IIPfTULO 1 - O Lugar das Utopias e Distopias no Debate Social e Pedagógico na Atualidade

Foi deste contexto entre a percepção e o desafio que surgiu a proposta ll l'lllft•\ aos estudos e pesquisas sobre a qualificação para o trabalho e as atribui­
do trabalho com nossos alunos da Pós-Graduação (Mestrado e Doucorado em I n ; ''' instituições educativas nesse processo; vi) Diferenciar utopia, distopia,
Educação da Universidade Federal de Santa Catarina- PPGE/UFSC), esforço 1111 1111 e prospecção; vii) Analisar as contribuições da gestão do conhecimento
que resulta nesta obra coletiva, cuja origem e processo descreveremos sintetica­ 1111 u campo da educação.
mente a seguir, a fim de situar o leitor.
No decorrer do semestre cada um dos itens da Ementa foi sendo tratado,
• purtir de indicações de leituras, exposições e discussões em aula, na direção do

1.3 DO CONTEXTO DESTE TEXTO/OBRA COlfTIVA tlc unce dos objetivos. Paralelamente, tendo-se presente a afirmação de Bloom
I I 'J\.15, p. 23), segundo o qual: "Quem lê rem de escolher, pois não há, literal­
Se as coisas são inatingfveis. . . ora!
Não é motivo para não qmrê-las... "'''lltc, tempo suficiente para ler rudo, mesmo que não se faça mais nada além
Qm triJtes os caminhos, se d1sso", organizamos a turma em cinco grupos de estudantes. Cada grupo ficaria
nãofora a presença distcmte das estrelei!!
(Mário Quinrana, 1981, p. 134). ec•sponsável pela leitura de uma das obras listadas a seguir e, a partir da leitura,
t•lnhorariam um trabalho, a ser socializado nas cinco últimas aulas do semestre.
No segundo semestre de 201 1, oferecemosl9 o Seminário Especial: Traba­
As obras escolhidas foram: A Utopia, de T. Morus; Nova AtlâtJtida, de F.
lho, Edttcct�iío e Novas TeCIIologias da lufomzação e da Comunicação (4 créditos, 60 h/a),
llacon; O Panóptico, de J. Bcncham (Silva, 2000);20 Admirável Mttndo Novo, de A.
uma disciplina optativa na matriz curricular do Programa de Pós-Graduação em
I l uxley, e 1984, de G. Orwell.
Educação da UFSC, voltada preferencialmente aos pós-graduandos das Linhas
de Pesquisa "Trabalho e Educação" c "Educação e Comunicação". A Ementa Cada grupo foi encarregado da leitura e sistematização de uma destas
encaminhada aos participantes compunha-se das seguintes temáticas: Trabalho, obras, obedecendo a wn esquema previamente estabelecido, segundo o qual, na
educação e Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC) em perspectiva elaboração e socialização do trabalho, não poderiam faltar os seguioces pontos:
histórica. Utopia e ficção. Ucopias X Escudos de prospecção. Qualificação c .1) o autor; b) a obra; c) o contexco histórico de vida do autOr e do período de
modelo de competências. A nova divisão internacional do trabalho. Mundiali­ elaboração da obra; d) relações com a educação. Evidentemente, outros aspectos
zação, Globalização e Planerarização. Informação X Conhecimento. Educação e poderiam ser inseridos de modo complementar na construção do texto. Por outra
Gestão do Conhecimento. Os empresários e a cwtomização da Pedagogia. parte, categorias como: trabalho, educação, ciência e tecnologia, da forma como

Entre os objetivos previstos para o Seminário destacam-se: i) Analisar os autores as abordavam em suas obras, deveriam ganhar destaque nas elabora­

hiscoricamence os processos de criação c instituição de TIC e suas repercussões ções e discussões dos grupos encarregados de explorar cada obra.

nos processos de trabalho e educação; ii) Analisar as TlCs como suportes da A opção dos professores responsáveis pelo Seminário foi a de fazer um
mundialização, planerarização ou globalização do capital; iii) Diferenciar infor­ corte no tempo ou estabelecer uma linha divisória, isto é, as obras escolhidas
mação de conhecimento; iv) Investigar as apostas dos modernistas na ciência e
pontilhariam o período histórico a partir do Renascimento, com base em uma
na tecnologia c a concretização, ou não, destas apostas; v) Refletir sobre os novos

2" Tomaz Tadeu da Silva prestOu uma contribuição enorme e qualificada aos leicores brasileiros
19 Outras versões dcsre Semi nário Especial foram oferecidas em semestres anteriores, sob a coorde­ interessados na leitura da obra O Ptmóptico de Jcrcmy Bcntham. A tradução da obra original,
nação de Lucídio Bianchctti. Nesra de 201 1/2012, porém, contou com a presença do professor acrescida de cextos explicativos e intcrprccacivos da ficção bcntharuiana, publicada em 2000, foi
Juares da Silva Thiesen que, além de conrribuir qualificadameme no decorrer do semestre, inseriu de suma importância, uma vez que aré esta edição da Aurênti ca Editora, ou a leitura poderi a ser
a temática dos "Escudos de prospecção" - como veremos na Ementa-, uma das suas especiali­ feita no original em inglês, ou por outras vias, como as análises e informações advindas de Michel
dades c que enriqu eceu sobremaneira o Seminário. Foucaulc (1926-1984), como poderemos ver no decorrer desta obra coletiva.

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Lucídio Blanchetti - Juares da Silva Thiesen CAPITuLO 1 O Lugar das Utopias e Olstopias no Debate Social e Pedagógico na Atualidade
-

pergunta de Van Doren (2009): "Q11é nasció en e/ Rmascimiemo"? E, a parcir daí, .c força do argumento não solucionasse os impasses; a invasão da privacidade e
as obras cobririam o período histórico em que a burguesia passa de dominante c11Hros ramos atentados, transformando os princípios do liberalismo em letra
à hegemônica; em que o modo de produção capitalista emerge, é revolucionário 111orta, dentre outros aspectos, despontam nestas obras.
quando está no embace para superar os resquícios do feudalismo; passa a ser
Na medida em que as pesquisas iam avançando e que os trabalhos foram
conservador, contrarrcvolucionário, na sua condição de uma contradição em
�t·ndo socializados e discutidos, foi ficando clara a possibilidade de, ao serem
processo, mantendo-se acé os dias de hoje em função da sua capacidade "socio­
H'trabalhados, esses textos pudessem compor uma obra coletiva, com esses anún­
metabólica" (Mészàros, 2002), ou da sua surpreendente condição de fagocitar as
c 10s e denúncias necessitando de uma ágora/editora/livro para ecoar. Essa foi
crises, visando à manutenção. Conforme palavras de Ianni ( 1992):
uossa aposta ao desafiar os/as estudantes a retomar seus textos c coletivamente
Visto assim, em perspect iva histórica ampla, o capitalismo é wn modo de •ctrabalhá-los de tal forma que, ao se tOrnarem mais orgânicos, contínuos ­
produção marerial c espiritual, um processo civiJizatório revolucionando
c oncradiroriamentc à descontinuidade ou descumprimento das promessas do
conrinuamenre as condições de vida e trabalho, os modos de ser de indi­
víduos e coletividades, em rodos os cantos do mundo (p. 59). início da Modernidade - permitissem a percepção daquele fio condutor que
visualizamos ao preparar o Seminário.
O objetivo posto era transformar a leitura, a pesquisa, a elaboração e a
Com a perspectiva da publicação da obra gerada durante o Seminário,
socialização do trabalho sobre estas obras, autores e contexros, em uma espécie
de fio condutor para compreender a trajetória da humanidade do início do no primeiro semestre de 2012, organizamos novos encontros com os escudances
c estabelecemos as estratégias para garantir que os cexcos produzidos em 2011
Renascimento até os dias de hoje, sem perder de vista as pros/pcrspectivas. Cla­
ramente as duas primeiras obras (Morus, mais na organização política, e Bacon, fossem submetidos a revisões de conteúdo e forma, visando a qualificá-los a fim

na crença ilimitada no poder da ciência e da tecnologia) são utopias, com apostas, de que deixassem de ser uma somacória de artigos e passassem à condição de um

crenças, olhares otimistas e um te/os em relação ao futuro. Afinal, com o Renasci­ texto mais amplo em coautoria. Assim, sob nossa orientação, os grupos retoma­
mento, com o I luminismo, com a entronização do ancropocencrismo, tudo escava ram seus textos aprofundando as discussões e reescrevendo-os, agora na perspec­
pela frente, abrindo-se à criação e ao desfrute de homens c mulheres. A obra tiva de sua publicação como obra coletiva. Tanco o trabalho de qualificação dos
de Bcmham já é uma espécie de "balde de água fria" sobre essas crenças, uma textos quanto a inclusão de elementos visando a garantir unidade e organicidade
vez que direciona sua proposta e doutrinação à necessidade de levar a utilidade it obra foram desenvolvidos por meio de sucessivas leituras c revisões envolvendo
(utilitarismo) ao paroxismo e a encontrar estratégias de controle e dominação os estudantes e os professores - um verdadeiro processo de coaucoria.
daqueles que não se encaixassem na ordem estabelecida. A virada para a discopia
Este trabalho mostrou-se de uma importância bem além do que havíamos
dá-se com as obras de Huxley e OrweU. Gradativamente uma perspectiva niilis­
inicialmente previsto. Em primeiro lugar porque foi ficando claro também para
ta, escatológica, coma coma e perpassa o período entreguerras e após a Segunda
Guerra Mundial. A ciência e a tecnologia como um "conhecimento perigoso" os alunos a diferença entre produzir um artigo para ser apresentado em aula e

(Wilkie, 1993) passam a se sobrepor ao olhar otimista e a todas as apostas nos garantir a aprovação em uma disciplina e o (re)trabalho para transformar esse

benefícios que as criações humanas trariam ao conjunto da humanidade e ao mesmo cexro em um capículo/texro, conjuntamente, para compor uma obra

meio ambiente. A organjzação da sociedade em classes como se fossem cascas ou coletiva; em segundo lugar, pelo novo papel assumido por alguém que antes era

escamemos; uma geopolítica perpassada por tOtalitarismos de rodos os matizes, estudante, inseguro/a e agora passa à condição de autor/a que se expõe em outra

com explicações ideológicas justificadoras c com o uso da força bruta quando :ígora ou em outro processo de socialização do seu trabalho.

40 41
Lucldio Bianchetti - Juares da Silva Thiesen

Não foi um processo f


ácil, mas temos a segurança de afirmar que redi­ Caprtolo
mensionamos o que significa processo de avaliação ao carapultar um conjunto I 2 I
de textos da condição de tarefa a ser cumprida para fins de avaliação e desafiar
esse mesmo grupo a transformar os textos que tinham o seu alfa e ômega, tão
somente na avaliação em Seminário, em uma obra coletivamente construída -
A CRÍTICA SOCIAL E A CRENÇA NO PORVIR
um trabalho que fundiu o i ndividual ao coletivo.
4 Utopiade Tomás Morus
Devemos destacar ainda que a proposta do Seminário - c do que dele
decorreu, representou, nos termos de Teixeira (2002), cerca "rebeldia ao institu­
ído", na medida em que o grupo rompeu com a linearidade - no conteúdo e na Evellyn Ledur da Silva'
metodologia- na compreensão das temporalidades. Com cumplicidade envol­ Gilberto Valdemlra Pooclor
veu-se, inclusive, com o delírio de pensadores tidos como exóticos2 1 e assumiu Maria Salete2
o desafio de revisitar e dialogar com alguns dos clássicos que continuam sendo Paulo Valérlo Mendanu da Silva•
referência para a compreensão da trajetória de nossa materialidade histórica. E,
em termos metodológicos, a aceitação da nossa proposta por parte do grupo
representou uma ressignificação do processo de avaliação.

A leitura dessa obra e, particularmente, o desafio de ler as próprias obras


analisadas, pode até não revolucionar o mundo, mas estamos convencidos de que Ponte: < http:/.blogspor.com.br/20 11_12_Ol_
após "viajar", guiados por esses cinco autores, os leitores se posicionarão de uma archive.hrml> .

forma alternativa perante a manifestação de Ítalo Calvino (1993) a respeito da


Acesso em: 6 juJ. 2012.
importância da leitura dos clássicos. Ao invés de se pergunta "por q11e" (?) lê-los,
certamente terão acumulado e/ou reforçado argumentos para responder "porq11e"
(!) é necessário que ninguém deixe de lê-los. 1 Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Mesrranda do
Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE/UFSC). Bolsista do Conselho Nacional de
Por fim, uma questão que não deve passar despercebida, nas suas causas Desenvolvimento Cientifico c Tecnológico (CNPq). evellynls@yahoo.com.br

e consequências, diz respeito ao fato de os cinco autores/obras focalizados/as 1 Graduado em História pela Universidade Regional de Blumenau (Furb). Especialista em Educação
pelo Instituto Superior do litoral do Paraná (lnsulpar). Mestre em Educação pelo (PPGE-Furb).
serem ingleses . O império nunca se manifesta apenas pontualmente. Eis mais
Professor comeudísca na Educação a Distância da Universidade Leonardo Da Vinci (Uniasselvi).
uma demonstração do significado de hegemonia. Coordenador pedagógico na Rede Municipal de Educação de Blumeoau - SC. ponciogilbeno@
gm:úl.com

1 Graduada em Letras, Literantm, pel:1 Universidade de Caxias do Sul (UCS). Mestre em ünguiscica
Florianópolis, setembro de 2013 pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSQ. Profcssom dos cursos superiores do Instituto
Pedcral Catarinense- Campus Camboriú. marsal@ifc-crunboriu.edu.br

• Graduado em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSQ. Especialização Lato
21
A expressão "exóticos" é utilizada na obra de Aloísio Teixeira como alusão aos socialistas utópicos, Semu em Educação de Jovens c Adultos. Professor de História da Rede de Ensino da Prefeitura
dentre eles, Claude-Hcnri Saim Simon (1760-1825), Charles Fourier ( 1772-1837), Robcrt Owcn Municipal de Palhoça (PMP). Professor no Setor de Capacitação Profissional (PMP). Mestrando
( 177 1-1858), John Gray (1799-1883) c Pierrc-)oseph Proudhon (1809-1865). do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/UFSQ. paulovaleriol@yahoo.com.br

42 43
Evellyn Ledur da Silva - Gilberto Valdemiro Pondo - Maria Salete -Paulo Valério Mendonça 'da Silva CAPITULO 2- A Critica Social e a Crença no Porvir

SINOPSE DE A UTOPIA chamado Utopus. Logo que os indígenas foram dominados, receberam

uma educação capaz de tOrná-los um povo superior a qualquer outro.


Menor que o mett sonho, não poiiO ser
(Lindolf Bcll, 1938- 1998). Morus, portanto, inicia sua obra mostrando que a transformação só se

daria por meio da educação. Isso é descriro por Morus (2001, p. 68) logo
A origem dessa obra literáriaA Utopia remonca ao ano de 1 5 1 5 , por
no início do segundo livro: "Foi Utopos que elevou homens ignorantes
ocasião da visita de Tomás Morus) (1478-1535), a seu amigo Erasmo de
e rústicos a um grau de cultura e de civilização que nenhum outro povo
Rotterdrun (1466-15 36), que lhe havia dedicado a obra Elogio da LoiiCflrn.
parece ter alcançado atualmente."
Inspirando-se na leitura de A Repríblicr+ de Piarão, resolveu escrever o clás­

sico livro sobre wna sociedade perfeita - Utopa.


i Utopa
i transforma-se nwna república idealizada. Pela narrativa de

Rafael Hidodeu - d o grego significa contador de histórias - Morus não se


Ecímologicamenre, o significado inicial remonta ao grego: "sem
limita a citar os vários aspectos componentes da sociedade uropiana, mas
lugar", ou ainda um "não lugar". Atualmente, o sentido comum que lhe

é dado é o de projeto irrealizável. Já o socialismo utópico atribui à palavra defende cada um deles tomando como parâmetro sua própria conrempo­

utopia o significado de uma descrição concreta da organização de uma raneidade (transição entre o medievo e o moderno).

sociedade ideal.
A partir de Morus ( 1 990, p . 36), do ponto de vista da compo­

O livro de Morus cem como formato a alegorié de Platão. É um sição social, a Inglaterra estava "fracionada" entre nobres, "artífices da

diálogo enrre Morus, seu amigo Pierrc Gilles e um viajante chrunado Rafael corrupção"; clero, "os primeiros vagabundos deste mundo"; os soldados,

Hitlodeu. Este cita Uropia como uma sociedade ideal e por meio disso que viviam na "ociosidade", c os miseráveis, cujo destino era o de serem
realiza um contraponto em relação à Inglaterra, que vivenciava o advento "enforcados com todas as formas de processo."
da propriedade privada, origem, segundo aponta Morus - e posteriormente
Na dimensão política, havia a figura do príncipe absoluto, cujo
Marx - das mazelas vividas pela maioria da população inglesa.
axioma moral expressava o entendimento de que o soberano era "o proprie­
Na primeira parte da obra Morus tece críticas a três dimensões da
tário universal e absoluro dos bens e pessoas de todos os súditos", os quais
sociedade inglesa: a composição social, o aspectO político e a dimensão
dependiam "do bel-prazer do soberano" (Morus, 1990, p. 58).
econômica. Ainda nessa primeira parte, Morus descreve a ilha de Abraxá
Com base em Morus (1990, p. 65) a crítica dirigida à esfera eco­
que passa a ser chamada Utopia, após ser conquistada por um general
nômica era voltada ao "direitO de propriedade", à busca pelo "lucro ime­

diaro", à ''carestia dos víveres", ao "luxo e às loucas despesas que este oca­
) No texto, opmmos por utilizar o nome do amor de A Utopia na forma traduzida para a língua
siona." Assim, ainda, conforme Morus ( I 997, p. 71), "enq11anto o dú·eito de
portuguesa: Tomás Morus. Faz-se necessário explicirar que seu nome rem muitas varian tes
linguísricas. Neste rexro, dependendo da tradução, aparecerá: "Torn{LS", "Thomas", "More" e jJropriedacle for o fimdamento do edifício social, a dasse mais nm!zet·osa e mais
"Morus".
estimável não terá por qrriuhão senão miséria, tormentos e desesjJeros." Na sua
6 A alegoria é um recurso muito presente na literatura barroca. Normalmente indica uma men­
concepção, portantO, a propriedade privada seria a fonre de rodos os males
sagem com um ou mais scnridos. A palavra tem origem no grego e significa allos "outro" c
agoreucin "fnlar em público". Dorges (2011), na literatura, nos mosta r "[...} fricdrich Creuzer enfrentados pelos ingleses da sua época.
como referência te6rica, para o qual alegoria significa um conceito geral ou uma idéia."

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Evellyn Ledur da Silva -Gilberto Valdemlro Pondo - Maria Salete- Paulo Valérlo Mendonça da Silva CAPITULO 2 - A Critica Social e a Crença n o Porvir

Nessa linha de pensamento, Oliveira (2002, p. 44) lembra que: ponro de partida para a proposição de uma sociedade preocupada não

"Riquezas e avidez são viscas como fonte de injustiças e, portanto, afasta­ somente com a parce material, mas também com questões relacionadas ao
espíritO. Lembramos que Morus era um fervoroso católico.
das do ideal de wna vida simples e frugal. O ócio da nobreza e do clero

é extinto." Na segunda parte de A Utopia, Hiclodeu descreve diversos A Utopia é considerada um clássico do pensamento humanista,

aspectos sociais, como o trabalho realizado pelo povo, pelos magistrados, escrito por um homem que, por força de seu comportamentO, foi sen­

a existência de escravos - é necessário esclarecer que a incoerência de wna tenciado à morte por ter-se recusado a assistir à missa que coroava Ana

sociedade que ainda maocinha escravos era justificada pelo não cumpri­ Bolena (1500-1536) como rainha da Inglaterra. Com esse gesco, não era
a nova rainha ou o próprio soberano, Henrique VIII (1491-1 547), que ele
mento das regras por parte de alguns.
negava, mas a nova religião - anglicana-, e com ela o estremecimentO do
O auror, em A Utopia, ocupou-se em pensar cada detalhe da ilha.
poder até encão exercido pela Igreja Católica, pois a nova religião retirava
Sua preocupação foi descrever o modo como seria eleito o príncipe; como a supremacia do Papa e passava-a ao Rei. Por sua fidelidade, Morus foi
viveria a família agrícola, passando pelos Traníboros e Sifograntes.7Dedicou considerado um mártir da Igreja Católica (oficial), sendo beatificado pelo
também cocal atenção às nomenclaturas com as quais deu sentido a cada Vaticano em 1 886 c canonizado pelo Papa Pio XI em 1935.
personagem, visco que indicavam um porvir positivo na ilha. Com isso,
A porta para a imortalidade, porém, foi aberta pela esfera literá­
i do que wn simples exercício de imaginação. O autor
Morus pretendia mas
ria, cuja crítica aos valores sciscentiscas europeus inspirou muicos outros
preocupava-se em mostrar, por meio do diálogo enrre seus personagens, autores a ousar e a repensar o mundo em que viviam. Assim como Morus
a possibilidade de um mundo justo, no qual, sujeitos se preocupassem inspirou-se em Piarão, outros autores se inspiraram em Morus para des­
uns com os outros e não apenas com a mera acumulação de bens ou com creverem suas sociedades utópicas. A Cidade do Sol ( 1602), de Tommaso
posturas individualistas. Campanella (1568-1639) - uma espécie de utopia à maneira platônica
governada pela razão - c Nowt Atlârttida ( 1 627), de Francis Bacon ( 1 5 6 1-
A narrativa de A Utopia, que cem seu ponco de partida na cidade de
1626) - na qual o autor evidencia suas esperanças utópicas no futuro
Antuérpia (cidade/porco da Bélgica, ainda hoje considerada como o maior
progresso da ciência. A partir deste modelo literário surgiram alguns movi­
exportador de pedras preciosas do mundo), mostra-nos que o momento
mentos que difundiram os ideais lançados na ficção: o movimento político
hist6rico8 vivido pelo autor faz-se presente em roda a sua obra e serve de
socialista-utópico iniciado por Sainc-Simon (1760-1825), Owen (1771-
1858), Fourier (1772-1837) e Proudhon (1809-1865) são alguns exemplos.

1 Conforme More (1982, p. 40), n classe dos Magistrados de Utopia é composta da seguinte forma: Gütder ( 1994) lembra que até a primeira metade do século 19 o
''Trinta famílias fazem, todos os anos, a eleição de um magistrado, chamado sifogrante [...}. Dez
socialismo nascente configurava-se como um conjuntO de propostas sub­
sifograntes e suas trezentas famílias obedecem a um protofilarca, [...). Finalmenre os sifograntes,
em número de mil e duzentos, [. ..), escolhem por escrutínio secreto e proclamam príncipe um versivas em relação ao capitalismo liberal que se impunha na Europa. Em
dos quatro cidadãos propostos pelo povo; porque a cidade sendo dividida em quacro seções, cada
1880, quando Engels publicou Do socialismo Jttópü·o ao socialismo científico, o
quarteirão apresenta seu candidato no senado."
sentido original da expressão foi perdendo seu significado de crítica a wna
8 Assim como A Utopia de Tomas Morus, as obras Admirável mundo novo, de Aldous Leonard
Huxley, Nova Adântida de Frnncis Bacon e 1984, de George Orwell, embora tratem de uma realidade perversa e de apresentação de um Estado ideal, para uma expo­
sociedade projetada, inexistente, que se propõe a ser diferente da sociedade na qual viviam os
sição idealista de objetivos inatingíveis. Assim, segundo Teixeira (2002,
autores, é possível identificar nelas elementos do momenco histórico vivido por seus autOres.

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Evellyn Ledur da Silva - Gilberto Valdemlro Ponclo - Maria Salete- Paulo Valérlo Mendonça da Silva CAPITULO 2 - A Crftlca Social e a Crença no Porvir

A origem do vocábulo está relacionada com a posterior publicação do


p. 29), "os utópicos tinham não só uma consciência crítica dos males do
romance de Morus. Com o tempo outras significações surgiram, algumas posi­
presente, como apresentavam um projeto de futuro que implicava a supe­
l ivas, outras negativas. Uma dessas está relacionada à ideia de sonho, fantasia
ração da sociedade de seu tempo."
ou devaneio.
A Utopia é mais um exemplo mostrado pela História de que o
A obra de Morus reflete sua insatisfação com a sociedade de seu tempo. O
homem sempre viveu em busca da superação de sua realidade, seja pela
autor, por meio da ficção, deposita sua esperança em um Novo Mundo, opõe-se
literatura ou pelas revoluções que promoveu. Ler A Utopia é um chamado à propriedade privada, critica o acúmulo de dinheiro, defende a liberdade reli­
para exercitar a imaginação; um convite ao sonho de um mundo mais giosa e a educação para rodos, ideias consideradas revolucionárias para a época.
justo e humano.
A expressão "Novo Mundo" é utilizada de forma genérica e diz respei­
to às terras do além-mar descobertas no contexto das grandes navegações, e
da expansão ultramarina empreendida pelas grandes potências comerciais elos

2.1 APRESENTAÇÃO séculos 1 5 e 16. Está relacionada à concepção eurocênrrica de que o berço da
civilização ocorreu em terras curopeias, portanto consideradas como "Velho
A h como é bom assimpe11sa,.
Mundo" civilizador, catcquizador e explorador, legitimando assim a s�premacia
iHesmo qtte seja apenas por fllll segundo,
do "Vdho" sobre o "Novo", ou, da Europa sobre as Américas c outras regiões
Embriagarmo-nos de utopia,
fimdarmos 111ft novo numdo. . . do globo. Essa construção histórica c sua relação com a conremporaneidade é
(Ferreira, 2007). destacada por Eric 1-Iobsbawm, em seu livro ele ensaios intitulado Sobre história.
De acordo com o autor:
Apresentamos aqui uma análise acerca da obra .ll Utopia de Tomás Morus
A verdadeira distinção, dessa forma, não é de ordem geográfica; mas
(1478-1535), à luz das categorias trabalho, política, tecnologia e educação, con­
tampouco é necessariamente ideológica. Ela separa a superioridade
siderando o contexto histórico em que a obra foi produzida. A ênfase maior será senrida da inferioridade imputada, conforme definida por aqueles que
dada à categoria educação por considerarmos uma das esferas sociais gue possui se consideram "melhores", ou seja, perccncendo normalmente a uma
classe incclcccual, cultural ou mesmo biológica mais elevada que a de
duplo caráter: ao mesmo tempo em que contém em si os elementos de superação
seus vizinhos. A distinção não é necessariamente étnica. Na Europa,
da emancipação política em direção à emancipação humana, pode servir também como em ourros lugares a fronteira univers almente mais reconhecida
,

de instrumento para reforçar a ordem social do capital. Nessa obra, entretanto, enrre civilização e barbárie passa por enrrc os ricos c os pobres, em outras
palavras, por os que têm acesso aos luxos, à educação c ao mundo exte­
fica evidente que a educação é a chave para a transformação social.
rior, c os que não os possuem. Conseqüencemence, a divisão mais óbvia
O termo "ucopia", de origem grega, surgiu da derivação li-topos, ou seja,
desse tipo passa através de e não entre sociedades, isto é, basicamente
entre cidade e o campo. Os camponeses são indiscutivelmente europeus
"lugar nenhum". Segurido Ferreira (1977, p. 738), o vocábulo utopia aparece - quem era mais indígenas que eles? (1998, p. 237-238).
como "Projeto irrealizável; quimera". Já de acordo com Mora (1996, p. 694) o
termo utOpia "literalmente, 'utópico' significa 'o que não está em nenhum lugar' Em A Utopia, Morus imagina outra realidade, e desse modo, ao mesmo

(topos)." Ainda de acordo com Mora ( 1 996, p. 694), "dá-se o nome de 'uropia' tempo em que se opõe à ordem estabelecida, constrói ficticiamente a superação

a toda descrição de wna sociedade que se supõe perfeita em todos os sentidos." de uma realidade na qual a maioria dos homens e das mulheres vive numa condi-

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Evellyn Ledur da Silva - Gilberto Valdemlro Ponclo - Maria Salete - Paulo Valério Mendonça da Silva CAPITULO 2 - A Critica Social e a Crença no Porvir

ção de restrição, devido à acumulação de capital por uma minoria.9 Dianre dessa e dedicou-se à política até o fim de sua vida (More, 1979). Foi amigo de Erasmo
visão d istópica, a imaginação de uma saída, ainda que utópica - no senrido que de Rotterdam (1466-1536), 10 que influenciou sobremaneira sua formação huma­
Morus arribui à palavra- poderia representar a esperança de um futuro melhor, nista. 11
senrimenco narural em um momento de descobertas.
Conforme Neves (20 1 1 , p. 7), nosso autor viveu na fase inicial das

É por intermédio da leitura crítica e, portanto, ampliada da obra de grandes navegações, "foi contemporâneo do mundo moderno, ( ... } da ascen­
Morus, que se busca compreender o contexto hi st órico-político que marca a são dos Estados nacionai s c de conflitos religiosos." Como Lord ChatJceler do

transição enrre o medievo e a modernidade e, em especial, as relações que se Rei Henrique VIII ( 1 4 9 1 - 1 547), Morus, ainda segundo Neves (20 1 1 , p. 7),
estabelecem encre os aspecros do mundo utópico imaginado por Morus com "acompanhou o rei enquanto este defendeu a Igreja Católica contra a Reforma,
outras questões sociais do mundo real. Sua obra denunciava a necessidade de mas abandonou o cargo por discordar do divórcio do soberano," que aspirava

reformas políticas que colocassem o homem de fato como centro da vida social, um segundo casamento com Ana Bolena ( 1 5 0 1 - 1 5 36). Esse faro histórico foi

acendendo ao pensamento antropocêntrico vigente no Renascimento. roteirizado no filme A Mtm for ali Seasons (1966), no B rasil O homem q11e não
venclett stta alma.

O longa-metragem, dirigido por Zinnemann (1907-1997), apresenta


2.2 BREVE BIOGRAFIA DE UM HOMEM DE MUITOS
o século 1 6 e suas mudanças históricas, tanto em termos políticos quanto reli­
ATRIBUTOS QUE NÃO ABANDONOU SEUS PRINCÍPIOS
giosos ; enfatiza a relação estabelecida entre Morus, o Rei Henrique e a recusa
Há homens que lutam 11111 dia e são bo11s. do primeiro em prestar juramento à separação entre a Inglaterra e a Igreja
Hti outros que lutam muitos dias e são melhore.J. Católica. A quebra dessa união ocorreu porque o monarca almejava a permissão
Mas hti os q�te lutmn por toda (� vida.
da Igreja Católica para separar-se de sua esposa, uma vez que interessava a ele
Esses são os imprescindíveis
ter um filho homem e sua companheira gerava "apenas" meninas. Morus desde
(Berrolt Brechc, 1898-1956).
o princípio mostrou-se contrário a essa intenção. Tal posicionamento dava-se
Tomás Morus nasceu em Londres no ano de 1478. Formou-se em Direito em razão de ser um católico convictO e, como tal, atribuía ao matrimônio o
na U niversidade de Oxford c concomitantemente a sua formação dedicou-se ao status de "indissolúvel". Deste modo, após a recusa em prestar juramentO ao
escudo das línguas grega e latina e à eco logia. Casou-se duas vezes, primeiro chefe supremo da Igreja da Inglaterra - o Rei Henrique VIII - Morus é preso e
com Jane Cole, com quem ceve quatro filhos e, vindo esta a falecer, casou-se executado no ano seguinte. Por sua fidelidade à Igreja Católica, foi canonizado
com Alice Middleton. Desde o ano de 1504 tornou-se membro do Parlamento

10 Anos mais tarde, Erasmo dedicaria a Morus o livro Elogio drt Lo11CIIrtt1 escrito em 1509 c publicado
em 1 5 1 1 .
? Breve caracterização deste m&me>l/11111 de transição, descrico por Marx c Engels (20 1 1, p. 46) no
Manifmo do Partith Comtmi.rla, de 1848: "A descoberta da América e a circunavegação da África, 11
Sobre a studia bumauitatis, segundo Sevccnko (1994, p. 14): "Iniciou-se assim um movimen­
abriram um novo campo de ação à burguesia nascente. Os mercados das Índias Orientais e to, cujo objetivo era atualizar, dinamizar c revitali:zar os escudos tradicionais, baseado no pro­
da China, a colonização da América, o intercnmbio com as colônias, o aumento dos meios de grama dos studia hmnanilatis (estudos humanos), que incluíam a poesia, a filosofia, a história, a
troca e das mercadorias em geral deram ao comércio, à navegação, à indústria, um impulso matemática e a eloqüencia, disciplina esra resulcanre da fusão enrre a rcr6rica c a filosofia. Assim,
jamais conhecido ames e, em conseqüência, f.'lvoreceram o rápido desenvolvimento do clerncnro num scnrido esrriro, os humanistas eram, por definição, os homens empenhados nessa reforma
revolucionário na sociedade feudal em decomposição." educacional, baseada nos escudos humanísticos:·

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Evellyn Ledur da Silva - Gilberto Valdemiro Pondo- Maria Salete - Paulo Valério Mendonça da Silva CAPITULO 2 - A Critica Social e a Crença no Porvir

em 1935 c, segundo Neves (2011, p. 7), "cultuado pela Revolução Russa, que O contexto histórico, contemporâneo a Morus, era descrito por ele como

lhe dedkou uma estátua - localizada na cidade de Londres - em homenagem às de injustiças e miséria acometendo a grande maioria da população, heranças da
idéias socialisras12 de sua Utopia." sociedade feudal em crise. .Morus valeu-se de sua habilidade com as palavras para

criticar a avareza e outras atitudes atentatórias aos considerados bons coscumes

2.3 CENÁRIO E CONTEXTO HISTÓRICO DA PRODUÇfiO 0'4 UTOPIA do Rei Henrique VIII,13 bem como a condição da nobreza e do clero, castas esras

que possuíam a maior parte do solo e das riquezas públicas.


O livro A Utopia ceve s ua pri mei r a versão publicada e m Latim, na
Este cenário era r efor çado por ourras situações que representavam os
Bélgica. De acordo com Neves (20 1 1, p. 7), a primeira edição da obra ocorreu
problemas do povo à época, por exemplo, o faco de que grandes senhores, em
em 1 5 16. Escrita quando Morus já tinha 5 O anos, portanto já tendo contatO

com textos de clássicos da literatura universal produzidos até então, revela um geral, mantinham quantidade significativa de vassalos e a posse da maioria das

olhar crítico do autor sobre o contexto em que viviam os ingleses nos séculos 15 terras. A agricultura de subsistência era gradativamente substituída pela lucra­

e 16. A obra é também considerada tuna paródia da sociedade contemporânea. tiva indústria da lã, fazendo com que grandes extensões de cerra fossem cercadas

Com relação a sua or igem, Franco (2000) destaca que deve ser considerada a
poss ibilidade de ligação entre a ilha de Utopia e o arquipélago de Fernando de
u Para esclarecimento quanto i• questão da Reforma Anglicana c da iniciativa de criação da
Noronha, situado no Novo Mundo, próximo à linha do Equador, no nordeste
Igreja Anglicana, uma das vertentes do Prorestantismo de Henrique VIU, veja o que descreve
brasileiro. A suposta relação deve-se às similaridades entre a ilha imaginada por franco Junior (1972, p. 232-233): ''A Reforma Inglesa ocorreu da influência de lu teranos c
.Morus e as descrições de Américo Vespúcio (1454-1512) sobre suas viagens ao de humanistas cristãos que pretend iam p urificar a Igrej a, devido a necessidades econômicas
da Coroa, que seriam sanadas com o confisco dos bens eclesiásticos, a desejos nacionalistas de
continente americano.
desprender-se do papado e a problemas particulares de Henr ique VHI. Este era casado com

No pe ríodo em que 11 Utopia foi produzida, a Europa vivenciava o Catari na de Aragão, que não lhe dava o ambicionado herdeiro, quando resolveu casar-se com
Ana Bolena. Assim, razões de Estado e de coração levaram-no a pedir a anulação do casamenro
advento das grandes navegações e do mercantilismo, um tempo em que aven­
em 1527, alegando que Catarina fora esposa de seu irmão c que, portanto, apes ar de uma

tureiros e navegadores com objetivos diversos lançavam-se ao mar principal­ dispensa papal na oportunidade, seu enlace com ela era ilegal. O papa Clemente Vil ficou

mente para expandir a ordem cristã, ampliar as posses da nobre-la decadente e em delicada siruação, temendo desagradar a Henrique VIII caso não acendesse seu pedi do,
c a Carlos V. sobri nho de Catarina, caso anulasse o casamento. Demorou-se então a resol ver
trazer riquezas, do "Novo Mundo" ou das viagens às Índias. O empreendimento,
a questão, tentando ganhar tempo e contornar o problema , pois naquele momento a aliança
que se mostrava extremamente rentável, reconfigurou a geografia do planeta, de Carlos V era impor tante, já que na Alemanha os luteranos tentavam separar-se da Igreja
Católica Henrique VIII, desgostoso c irritado com n proteção papal, convocou uma assembleia
modificou as relações do homem com a natureza, alterou, de alguma forma, a
de clérigos ingl eses em 1531, sendo proclamado cnr5o chefe da Igreja da Inglaterra "dentro dos
produção da existência humana e fortaleceu ainda mais a hegemonia do "Velho
limites da lei de Cristo". A separação completou-se em 1534, quando o Parlamento aprovou
Mundo". M ais tarde, os historiadores convencionaram denominar este período o Aro de Supremacia, que con6.rmava o rei como chefe supremo da igreja naciona l inglesa,
logo após Henri que Vll1 ter diss olvido os most eiros c confiscado seus bens. Na realidade,
de "Humanista Renascentista" em cla ra alusão à reromada de alguns conceitos
dogmaticarnente, o país continuava ligndo ao carolicismo, tendo sido feitas poucas modificações,
advindos do período Antigo (A ntiguidade Clássica).
já que Henrique VIII era, sem dúvida, mais car61ico que protcsrnnte..." Nesse contexto, Morus,
manrendo-se católico romano c nomeado membro do conselho sccrero de Henrique VIH recusa­
se, em 1534, a prestar juramento ao rei como chefe supremo da Igreja da Ing laterra e a aceitar
" O conceito de idcitiJ sorialisttiJ não (: conrcmporfmeo de Morus. As ideias expostas em A Utopia seu divórcio. Diante disso, paga um preço :dcíssimo, sendo posteriormenre preso e executado
foram apreciadas em outros conrcxcos históricos e filosóficos. em 1535.

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Evellyn Ledur da Silva - Gilberto Valdemiro Poncio - Maria Salete- Paulo Valério Mendonça da Silva CAPITULO 2 -A Crítica Social e a Crença no Porvír

e transformadas em pastagens para carneiros.14 A consequência desse processo Na medida em que a jurisprudência não indicava possibilidades de res­

de tomada de terras foi a expropriação dos camponeses, que passaram a viver 'o<.ialização dos criminosos, que por suas péssimas condições de vida não encon­

na miséria, aumentando a mendicância, a violência, o roubo c, em consequên­ r mvam alternativas - e muito menos oportunidades -, a única saída para esse

cia, a pena de morte (enforcamento). O modelo pré-capitalista de produção da NC,LllllCnto da população seria a mendicância ou o roubo, atitudes que certamente

existência começava a predominar nas relações sociais e preparava terreno para resultariam em pena de morte. O sistema alimentava esse cruel conjunto de

i dustrialização que daria aos ingleses a condição de precursores.•�


o processo de n situações: miséria, marginalidade, crime e morte (pela fome e pela "justiça").

Por meio de seus textos, Tomás Morus manifesta insatisfação com a inefi­
Outro fator que incomodava Morus relacionava-se à política do Estado
ciência do Estado e com as diferentes formas de injustiça que reinavam na Ingla­
Inglês que previa punições, sem distinção de gravidade, para crimes diversos.
terra. Gerações sucediam-se sem expectativa de ascensão social, ou mesmo de
A pena de morte representava, na prática, mais um mecanismo reprodutOr da
111anucenção da própria existência. Paradoxalmente, reduzida parte da sociedade
desigualdade social que se desenhava nesse momento pré-capitalista.
t(ue lucrava com essa dura realidade, não propiciando ou permitindo condições

de vida digna ao povo, era a que o punia. Fechava-se, assim, um círculo vicioso

que impedia os menos favorecidos de mudar sua condição social e os empurrava

rnda vez mais para a pobreza. 16


14 Na primeira pane do livro, que configura um diálogo (parece mais uma descrição do que um
diálogo, pelo menos no fragmento à frente), é possível perceber e compreender a metáfora
empregada por Morus (20 1 1 , p. 32), quando dos carneiros devoram os homens: "normalmente
É nesse contexto que Morus empreende sua caminhada na literatura,
cão mansos [carneiros], tão fáceis de alimentar com pouca coisa, ei-los transformados, dizem-me, partindo em busca de uma ucopia em que fosse possível a existência de uma
em animais tão vorazes e ferozes que devoram até mesmo os homens, devastando c despovoando
os campos, as granjas, as aldeias. Com efeito [...] os oobres c os ricos [...] não deixam mais sociedade justa, na qual o bem e a riqueza material seriam extensivos a todos.
nenhum lugar para o cultivo, acabam com as granjas, destroem as aldeias, cercando toda a cerra Sem a pretensão de julgar os valores assumidos por Morus como ideais para essa
em pastagens fechadas, não deixando subsistirsenão a igreja, da qu:ll f.�rão um estábulo p:•ra seus
carneiros." Deste modo, ao transformar as lavouras em pastagens para os carneiros, suprimia-se a sociedade, propomos a apresentação e discussão de alguns pontos abordados
agricultura de subssi tência c os agricultores ou iam para a cidade empregar-se na indústria têxtil pelo autor em sua obra, tecendo relações com outros aspectos da vida social
ou cornav:un-se mendigos e, no final do processo, eram enforcados. Marx também retoma esra
passagem no texto A Chamada ammulaftÜIprimiriva. Marx (2011, p. 505-506) em 0 Capital: mtira contemporânea, especialmente com educação, trabalho c tecnologia. É nessa
da mmomi apolítira diz que: "Por outro lado, não é menos cerco que o florescimento da indústria
perspectiva que analisaremos a ilha de Utopa.
i Um lugar não lugar em que seria
de lã mecanz i ada, na Inglaterra, juntamente com a progressiva transformação das áreas rurais
em pastagens de ovelhas, levou ao êxodo forçado dos trabalhadores agrícolas que se tomaram possível reavaliar c superar todas as mazelas da sociedade contemporânea de
supérfluos. Na Irlanda, está atualmente em curso o processo de reduzir, ao nível corrt-spondente
Morus c, em perspectiva, das sociedades futuras.
às necessidades dos grandes proprietários de terras e dos fabricantes n
i gleses de lã, sua população,
que, nos últimos 20 anos, foi diminuída quase à metade:·

') Sobre a "gestação do capitalismo no ventre feudal", no Mmlifesro do Pt1r1ido Comunista, Marx e
Engels (1986, p. 50) explicitam: ··vimos, portanto, que os meios de produção e de troca à base
dos quais veio se constituindo a bu rguesia foram produzidos no interior da sociedade feudal.
Num cerco estágio de desenvolvimentO desses meios de produção e de troca, as condições nas
quais a sociedade feudal produzia c trocava, quer dizer, a organização feudal da agricultura e da
manufatura, numa palavra, as relações feudais de propriedade, deixaram de corresponder às forças '" Maiores esclarecimentos sobre o desenvolvimento e aprimoramento do sistema jurdico e prisional
í

produtivas já desenvolvidas. Entravavam a produção ao ni vés de impulsion:í-la. Transformaram-se inglês podem ser obtidos com a leitura do Capítulo 4: O Panópti(() de}trtllty Bmtham: estratégias
em outras tantas cadeias. Precisavam ser dl>spcdaçadas e foram despedaçadas." de cofllrole tut doutrinafiio utilirárit1 -uropia ou dirropia?

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Evellyn Ledur da Silva Gilberto Valdemiro Pondo - Maria Salete - Paulo Valério Mendonça da Silva
-
CAPITULO 2 - A Crftica Social e a Crença no Porvir

os
2.4 UM PROJETO SOCIETARIO CHAMADO UTOPIA luxos e bmesses eram compartilhados entre os nobres, o clero e a burguesia

l'mcrgente. É a essa exploração de poucos sobre muicos que Morus atribuía a


La 11topí
a está en e/horizo111e.
pobreza e a miséria que se abatia sobre a maioria.
Camino dos pasos, ella se aleja dospasosy
e/ horizrmte se c01-re diezpasos más aliá. Morus pondera que na ilha não haveria risco ou possibilidade de escassez
éF.monces pam q11e sit'Ve la lllopía?
de quaJquer espécie ou natureza, uma vez que, se rodos trabalhassem, produzi ­

Para eso, siroe para camittar


riam tudo o que era necessário para suprir as necessidades da sociedade ucopiana.
(Galeano, 20 l l ).

Na obra Morus faz uma rápida delimitação da distribuição diária do


Na descrição de Morus a ilha de Abraxá passa a ser chamada Utopia após
tempo de trabalho e lazer dos cidadãos da ilha.17 O tempo diário18 era dividido
a conquista de um general chamado Utopos. Logo que os nativos foram domina­
em quatro momentos: seis horas dedicadas ao trabalho (três horas de trabalho
dos, receberam uma educação capaz de torná-los um povo superior a qualquer
matutino e três de trabalho vespertino); duas horas para o almoço; oito horas
outro. Assim, Morus inicia sua obra indicando que a transformação só se daria
para dormir e oito horas para o lazer em atividades como cursos matinais, ou
por meio da educação. Mais tarde essa ilha seria considerada por seu criador uma
ainda, ao tempo dedicado à reflexão e para outras atividades voltadas à prepa ­

sociedade perfeitamente administrada o que de cerca forma estaria relacionada


,

ração espiritual. Sobre este aspecto propõe Morus:


à alusão de um modelo de cidade ideal para Londres e a Europa como um codo.
E esse conceito de lugar perfeito, imaginado e (ir)realizável constituiu o pano de Deixar a cada um o maior tempo possível para libertar-se da servidão do
fundo para que se cunhasse a palavra Utopa.
i corpo, cultivar livremente o espírito, desenvolvendo suas faculdades pelo
estudo das ciências c das lecras. É neste desenvolvimento completo que
Imaginada por Morus em um período de transição entre o feudalismo c
eles põem a verdadeira felicidade (More, 1979, p. 231).
o capitalismo, a ilha seria uma oportunidade de resolver pelo menos dois pontos

cruciais da sociedade londrina: o primeiro seria relativo ao problema da posse O trabalho, no contexto do sistema feudal, relacionava-se com o cultivo

da terra, até então tido como "direito narural" e, o segundo alvo da sua crítica,
, da terra, principal atividade de subsistência do povo naquele modo de produção.

era o faro de o bem individual prevalecer sobre o coletivo, característica vigente Morus, influenciado por esta conjuntura, define como obrigatoriedade para todos

no contexto londrino apontado pelo autor. os cidadãos da ilha o trabalho no campo, nas "famíüas agrícolas e nas escolas "

com uma formação direcionada à cultura da cerra.


A maior preocupação do aucor na obra é evidenciar os impactos da pro­

priedade privada na sociedade. Este aspecto relaciona-se com a concepção de

trabalho e exploração. As pessoas trabalham na ilha para o sustento de toda uma .


" lntcressance destacar o que escreve Paul Luf 1rgue, quase três séculos d epois de Morus, em O direito
comunidade e não para acumulação individual em benefício próprio. Quanto a à preguifa; sua uropia. Dissertando sobre o proletariado, Lafargue (2003, p. 43) ressaltava que é
"necessário que [o proletariado} regresse aos seus instintos naturais, que proclame os direitos à
isso, cabe destacar que, na perspectiva de Morus, nenhum cidadão teria sua força preguiça, milhares de vezes mais nobres e sagrados do que os císicos DireiloJ do Homem, elaborados
pelos advogados metafísicos da revolução burguesa; que se obrigue a trabalhar apenas três horas
de trabalho explorada por outro c que, devido ao faro de rodos trabalharem,
por dia, a enrolar c a divertir-se o resco do dia c du noite."
não haveria distinção entre os utopianos. Está aí uma crítica ao conrexco social
'" A Organização Mundial da Saúde (OMS) sugere -corno nos princípios de Morus - que o ideal
inglês, que se via envolto pela exploração da maioria da populaç ão, uma vez que para mamer a saúde é dividir as 24 horas do dia em 8 de trabalho, 8 de sono e 8 ao lazer.

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Evellyn Ledur da Silva - Gilberto Valdemlro Poncio - Maria Salete - Paulo Valério Mendonça da Silva CAPITULO 2 - A Crftica Social e a Crença no Porvir

Nessa sociedade continuava existindo escravos. Estes se encontravam Quanto ao processo de administração, na forma de um sistema similar ao
nessa situação por terem cometido algum crime ou por serem prisioneiros de republicano, a ilha teria seus governantes eleitos. A organização política acon­

leceria de modo que a população, dividida em famílias, escolheria por voto seus
guerra, uma vez que os utopianos evitavam a medida extrema da execução. Os
representantes, chamados Sifograntes.19 Esse processo estava assim previsto:
uropianos acreditavam que seria mais válido um escravo vivo, disponível para

o trabalho, do que morro. Os filhos dos escravos, no encanto, eram considera­ Trinta famílias fazem, todos os anos, a eleição de um magistrado,
chamado sifogranre na antiga linguagem do país e filarca na moderna.
dos utopianos com todos os direitos de que desfrutavam os habitantes da ilha.
Dez sifograntes e suas trezentas famílias obedecem a um protofilarca,
Também era possível deixar de ser escravo a parrir de algtunas condições. Con­ anrigamenre denominado traníbora. Finalmente os sifogranres, em
número de mil e duzentos, após o juramento de dar os seus voros ao
forme descreve Silva (2011),
cidadão mais virt uoso c mais capaz, escolhem por escrutínio secreto
e proclamam príncipe um elos quatro cidadãos propostos pelo povo;
o criminoso vcrdadciramcnce arrependido [...], assim como o soldado
porque a cidade sendo dividida em quatro seções, cada quarteirão apre­
estrangeiro que absorver a cultura c cosrumes da ilha. Aliás, embora senta seu candidato ao sen ado O principado é vitalício, a menos que
.

afirme que existiriam em grande número, quase nada parece sobrar para recaia sobre o príncipe a suspeita de aspirar à tirania. Os traníboras são

eles fazerem na dinâmica da sociedade utópica. Da mesma forma, o nomeados todos os anos, mas só por graves morivos são eles mudados.
Os outros magistrados são renovados anualmente (More, 1982, p. 40).
papel elos escravos na sociedade de More não é o mesmo da democra­
cia clássica grega. A economia interna desta era escravista. A força de
Nessa configuração política previa, como conselheiros, pessoas mais
trabalho fundamental de Utopia é a do homem livre, a do cidadão de
velhas que acuavam também como guardiães da cultura uropiana.20 Para evitar
Utopia. (grifo nosso).
a articulação de situações de foro individual por parte de algum magistrado,
utilizava-se a proibição, imposta pela lei, de que qualquer assunto de imeresse
Para isso, na ilha, fazia-se necessário o controle rigoroso da demografia.

Um cooringence populacional específico, entendido como ideal, foi propostO e


19 Morus dedica atenção especial às nomenclaturas. Desde o nome dos personagens, ao escolhido
qualquer variação seria logo corrigida pelos administradores de Utopia. Caso o para a ilha e sua capital. Esta preocupação aparece também com as nomenclaturas dos
magistrados que seriam responsáveis pela definição, execução e cumprimento das leis que regiam
número de cidadãos ultrapassasse o previsto, criar-se-ia wna colônia, gerando
a vida de rodos os uropianos, bem como das demais pessoas que, porventura, viessem a habitar
assim mais um a-tojJOJ; em uma eventual diminuição do número de indivíduos a ilha. Nesse caso, de acordo com Neves (201 1), Sifogrante, por sua etimologia, significa "sábio
de idade madura". Como em sua obra a preocupação (: propor a reflexão sobre os faros que
em UtojJia, os moradores da colônia eram recrutados. estão acontecendo na sociedade contemporânea, Morus sinaliza a divergência de denominação
entre tuna Üngua antiga falada na ilha e uma língua moderna, utilizada por ocasião da visita de
Essa organização social demandava uma classe de pessoas que fosse res­ Rafael Hirlodeu, personagem da obra, faro este que permite supor a atenção dada por Morus às
mudanças linguiscicas e culturais que surgiam com o conhecimento de novas cerras c novos povos.
ponsável por, além de mo stra r a importância do trabalho para a manutenção
20 Nore-se que a predileção de '!IIorus por ouvir os conselhos dos anciãos demonstra sua "crença" na
tradição em meio a um mundo em transformação. Sua opção assemelha-se a um relato bíblico que
dos utopian os; zelar pelo cumprimento das determinações e das diversas regras
se encontra em I Crônicas, capírulo 10, quando o Rei Roboão recusa o conselho dos anciãos - que
e protocolos existentes na ilha em prol da legitimação e da manutenção da orga­ já serviam seu pai Salomão - sobre a questão da redução dos impostos ao povo hebrcu, para dar
ouvido ao conselho dos jovens, que com ele h:tvinm crescido c o serviam. 'Ihl escolha causou a
nização proposta, priorizando-se o bem-estar co letiv o. cisão entre as doze tribos de Israel, até cncão formadoras de um s6 povo.

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Evellyn Ledur da Silva - Gilberto Valdemiro Poncio - Maria Salete -PauloValério Mendonça da Silva CAPITULO 2- A Crítica Social e a Crença no Porvir

do coletivo fosse tratado fora do senado. Outro cuidado relacionava-se ao fato As ideias apresentadas por Platão (2000) em Jl República - lugar em que
[Ul·domina uma vida harmônica, fraterna - servem de inspiração para codas as
de que nenhuma proposta feira tinha sua discussão e vocação no mesmo dia de
obras utópicas até os dias de hoje. Cabe destacar, no encanto, que para Platão,
sua apresentação, o que evitaria, assim, ações não pensadas e decisões passionais.
.m contrário de Morus, a família não assumia significativa importância, uma vez
No que se refere à tecnologia, a obra de More (1979, p. 2 16) faz referên­ que as crianças eram retiradas de seu grupo familiar para serem educadas, valor
cia à existência da prensa, da bússola21 e "de um processo extremamente enge­ t•,rc bem diferente do proposto para a ilha, na qual "a grande família" formada
nhoso para conseguir grande quantidade de pintos."22 Associadas aos conheci­ pelos uropianos seria uma das principais responsáveis pela inculcação dos hábitos
t' da cultura aos cidadãos em formação.2�
mentos de navegação e construção de barcos, essas inovações23 representariam ou
poderiam representar indícios do uso de tecnologias na manutenção do sistema Segundo Cambi (1999), a educação mopiana foi idealizada tendo como
capitalista, mas, dada a incipiência deste novo contexro, isso não constituiu pedra angular a Filosofia de Platão (século 4° a.C.). Ao idealizar uma sociedade
perfeitamente ordenada, na qual o conhecimento puro dos filósofos é o elemento
preocupação para Morus e por isso, talvez, não tenha sido alvo de observações e
regulador - tem-se um exemplo de idealização, de um constructo utópico. A
críticas na "construção" da ilha.
Paideia platônica, herdeira de Sócrates, permanecerá na cultura ocidental como
um modelo-máximo marcado por fortes implicações utópicas.
2.5 4 UTOPIA DE MORUS E 4 HEPÚBL/CA DE PLATÃO: pontos de intersecção O pensamento utópico iniciado por Platão, portanto, teve diversos segui­
dores em diferentes momentos históricos e em diferentes lugares, desde o início
A obra, escrita na época do Renascimento, retoma os valores e ideias da
do feudalismo até as primeiras crises do capitalismo. Dos inúmeros pensado­
cultura clássica greco-latina. Assim, Mon1s inspira-se em 11 República de Platão res que foram influenciados por Platão, podemos citar: Agostinho (354-4 30),
e faz uso de recurso similar ao empregado nas obras da Antiguidade clássica, ou Morus (1478-1535), Lutero (1483-1546), Bacon ( 1 5 6 1 - 1 626), Campanella
seja, o uso da alegoria, no qual o autor transmite suas mensagens por meio de ( 1 568-1 639), Comenius (1592-1 670), Rousseau ( 1 7 1 2 - 1 778), Saint-Simon

um diálogo entre as personagens. Platão, nessa obra, idealizou a cidade-modelo ( 1760-1825), Fourier (1772-1837), Owen ( 177 L - 1858), Gray (1799-1883),

Callipolis, um lugar inexistente. O filósofo propôs o estabelecimento de um Proudhon (1809-1865), Shaw (185 6-1950), dentre outros.

comunismo social, em que a família e a propriedade são eliminadas. Os filósofos gregos do Período Clássico deram importância singular à
educação. Os sofistas, por exemplo, eram educadores profissionais. Esta concep­
ção é marcada nos registros de Kohan (2003):
21
Em sua obra Bncon (2000), ao rrmar de recnologia, dá desraque a rrês grandes invenros da época:
a pólvora, a imprensa c a agulha clc marcar (a blJSsola). Ver Capíwlo 3: Ficçiíq Oll lllopia? A Nova Mesmo que declarasse não ter sido mestre de ninguém, Sócrates reconhe­
At!fl11tida c n t:rCIIÇtl de BflCOII na ciêncin e na /emologia como priudpios da govenwbilidade.
ce ter formado jovens que conrinuariam sua tarefa, e esse é justamente
22
Nesta passagem Morus ( 1979, p. 216) descreve que a tecnologia já está presente na ilha, uma um dos motivos de sua condenação à morte (Platão, !Ipologia de Sócrates,
vez que eles "não deixam às galinhas a carefa de chocar os ovos, mas o fazem por meio clc um 33a-c; 39c-d). O própr io Platão esteve preocupado, do princípio ao fim
calor artificial convcnicnccmcncc temperado."

lJ Cascilhos (20 l i , p. 225) no Dicionário de lt·r�btJiho e lecnologia apresenta o conceito de inovação


como "todos os processos que envolvem o uso, a aplicação e a rransformação dos conhecimentos
N Para entender a aproximação histórica entre as instituições f-.1mília e escola ver Poncio (2010, p.
técnico e científico em recursos relacionados à produção c à comercialização, tendo, no siscema
capica!isca, o lucro como perspectiva." 27-42).

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de seus diálogos com questões educacionais, talvez porque considerasse Para Morus, na Inglaterra de seu tempo, havia excesso para uns poucos
que a alma, quando vai para o Hades, não leva outra coisa senão sua c tniséria para a maioria. Assim, na sua obra é enf
ático:
educação c seu modo de vida (p. 13).
A causa principal da miséria pública é o número excessivo de nobres,
Kohan (2003, p. 14) destaca que Platão não estava preocupado com as ociosos zangões que vivem à custa do suor do rrabalho de outrem , e que
no cultivo das cerras exploram os rendeiros aré o osso, para aumentarem
características psicológicas da inf
ância, por compreender que "a infância é um
seus rendimenros (Morus, 1990, p. 34).
problema filosoficamente relevante na medida em que se tenha de educá-la de

maneira específica para possibilitar que apolis atual se aproxime o mais possível Assim, esse é mais um ponto comum entre as duas obras: para os dois
da idealizada." •tutores, as injustiças sociais são fruto do acúmulo de riqueza de uns e da explora­

Na mesma perspectiva, reforçando a importância do conhecimento �ao a que são submetidos os outros. O que revela que apesar das transformações

c icncíficas e tecnológicas, outras conquistas em ounos campos da vida humana


puro da filosofia, Rafael Hitlodeu, personagem da obra de Morus, apresenta a
precisam ser alcançadas para que a produção coletiva seja usufruída por todos.
educação na ilha direcionada à Filosofia, e explica que em Utopia os sistemas
Por meio da literatura, Morus mostra às pessoas de seu tempo, ainda que impli­
cosmológicos assemelham-se aos dos antigos gregos, enquantO que, no campo
riramente, que oucro mundo é possível . Nesse novo mundo, imaginado por
da Moral suas dúvidas coincidem com as dos ocidentais, em questões como a
Morus, sem guerras, sem propriedade privada, sem antagonismos entre a cidade
existência da alma e a busca pela felicidade. 25 Morus tenta demonstrar, com sua
c o campo, sem trabalho assalariado, sem gastos supérfluos e luxos excessivos,
filosofia, que o desejo de felicidade pode qualificar uma "comunidade de vida",
l(Uando metais preciosos nada valiam, os homens viveriam numa condição que
no prazer c na liberdade.
se aproximaria do modelo de socialismo idealizado mais tarde.
A análise comparativa entre a obra de Morus e a de Platão revela a
Como mais uma maneira de criticar a sociedade de seu tempo, Morus
indignação de ambos com suas realidades contemporâneas. Platão, indignado
utilizou termos e nomes que denotavam uma perspectiva pejorativa. Assim, o
com a condenação de Sócrares, denunciava a injustiça da poliJ. Afirmava ainda
personagem Hirlodeu, no seu relato sobre a ilha, refere-se a um indivíduo que
que a justiça é uma relação entre indivíduos e depende da organização social, na
diz coisas vãs; a capital da ilha chamava-se Amarouco, que significa evanescência,
qual cada um faz aquilo que lhe compete, de acordo com sua função. A justiça
miragem; o rio Anidro - é rio sem água, e o príncipe Adem11s (a-demm) é um prín­
seria simples se os homens fossem simples. Os homens viveriam e trabalhariam
cipe sem povo para governar. Da mesma forma, o nome da ilha significa lugar
produzindo de acordo com as suas necessidades, seriam vegetarianos e levariam
nenhum, e é habitada pelos Alaopolitas, "cidadãos sem cidade". Semanticamente
uma vida sem excessos, sem luxos. Dessa forma, todos poderiam levar uma vida
codos os prefixos têm sentido de negação, nada existe. Hipoteticamente poderia
mais digna.
se concluir que para compor uma nova realidade é preciso desconstruir a vigente.

Outra hipótese, acerca desse jogo de significados na relação entre "utopia"

c realidade, seria que "utopia" se relaciona com o novo, ou seja, com aquilo que é

"lugar nenhum", mas torna-se "algum lugar" - algo em construção que está no
2' Acerca deste tema, dn busca do prazer e da felicidade, remetemos novamente o leitor ao Capítulo
4. Bentham postula que toda ação humana é executada sob a égide da dor e do prazer. De acordo devir. Analogamente, a América recém-descoberta, até então também era "lugar
com este autor, dor c prazer indicam tudo o que se deve fazer, determinam o que realmente se
nenhum" e passou a ser um lugar no mundo. Retomando a imagem de paraíso
faz. O autor afirma que o edifício da felicidade só pode ser erguido por meio da razão e d:t lei
(Bentham, 1974). que era relacionada ao Novo Mundo, em contraposição à velha, fria e conflituosa

62 63
li
CAPITULO 2 -A Crítica Social e a Crença no Porvir
Evellyn Ledur da Silva - Gilberto Valdemiro Pondo - Maria Salete- Paulo Valério Mendonça da Silva

Europa, entende-se por que razão Morus edificou sua feliz ilha utópica no Novo wego, Astronomia, Matemática, Lógica e Medicina. Morus era um homem que

Mundo - como esse mundo novo até então desconhecido era concretO, A Utopia, entendia e acreditava no poder c na necessidade da instrução como elemento

estando lá situada, seria mais concreta no imaginário dos leitores. Nas palavras transformador da sociedade.

de Morus ( 1997, p. 94) "não existe em parte alguma república mais feliz" do Sua preocupação com a educação era cão evidente que não só se dedicava
que a ilha de A Utopia. Assim, a cão sonhada felicidade, difícil de ser alcançada ·' seus filhos, como também se preocupava com uma instrução que os prepa­
na realidade, parece ser o ponto comum nas obras utópicas em rodos os tempos. rasse para o futuro. É importante ressaltar, ainda, que a educação na obra de

Apesar de imaginar um lugar no qual o ideal de bem comum prevalece, Morus tinha a finalidade de preparação para o trabalho, já na escola os ucopianos

Platão, no final do livro IX de A Reptíb!ica, parece reconhecer o caráter utópico aprenderiam o ofício comum a rodos da ilha: a agricultura. Isto é devido ao fato

de seu projeto político. Morus, por sua vez, não termina seu livro.26 Seria essa de advir da agricultura - como uma espécie de educação de base comum - a

incompletude uma estratégia para que o leitor continuasse na mesma "atmosfera subsistência dos sujeitos de Ucopia, conforme destacado anceriormcnrc.

utópica" que sua obra inspira e, como consequência, repensasse a reaJjdade de Segundo Rafael Hitlodeu, os habitantes da ilha aprendiam a ciência em
seu tempo? sua própria língua e também conhecimentos nos campos da música aritmética ' '

geometria e dialética. Os ucopianos haviam feito descobertas científicas simila-

res aos europeus. Conheciam superficialmente a meteorologia e os fenômenos


2.6 O RENASCIMENTO, A EDUCAÇÃO E 4 UTOPIA
resultantes do movimento dos astros e sua cosmologia. No terreno específico da
Mi11ha presença 110 mrmdo nã<J é a de quem a ele se adapta, dialética, eram menos preparados que os filósofos modernos do Velho Cootinen­
mrJS a quem nele se imere. É a posição de quem l11ta para
le, uma vez que suas preocupações escavam mais direcionadas a resolver questões
uão set· apenas objeto, mas sujeito também da história.
mncreras relacionadas ao bem-estar e à felicidade de todos.
(Freire, 1996, p. 54).

Na ilha, a defesa dos direitos coletivos só poderia ser feita com a difusão
Na sociedade utópica de Morus, a educação é oferecida/garantida a codos,
do conhecimento a todos em igualdade de proporções. Devido à importância
inclusive às mulheres. Este aucor entendia que a igualdade não se sustentaria
dada ao conhecimento, em Utopia a leitura era muito valorizada. Provavelmente
com um agregado de ignorantes e alguns poucos cultos privilegiados. O faro
Morus relacionasse arte c agricultura ao alimento do espírito e do corpo, res­
de, na obra de Morus, a educação ser oferecida indistinramcnre, conrrascava
pectivamente.
com a realidade inglesa, e de toda a Europa, na qual a educação sempre foi

privilégio das classes abastadas. Aqui, remos uma convergência entre realidade Reconhecendo o quanco os homens de outras sociedades deixavam-se

e ficção: Morus, na esfera de sua vida privada, ofereceu aos seus quatro filhos seduzir pelos metais preciosos,27 as crianças de UtojJia eram ensinadas, desde a

educação avançada para a época. Seu filho e suas três filhas estudaram latim, rnais tenra idade, a desprezar ouro c prata. Como recurso de condicionamento

26
Assim como A Utopin de Tomás Morus, cambém Novn Atl/i11tida de Francis Bacon, eracada 1' Vale lembrar que a hiscória se passa em Ancuérpia, considerada mé hoje, o maior porro t>xporrador
cspecificamcncc no Capículo 3, é um cexro inacabado. de pedras preciosas do mundo.

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Evellyn Ledur da Silva -Gilberto Valdemiro Poncio - Maria Salete - Paulo Valério Mendonça da Silva CAPITULO 2- A Critica Social e a Crença no Porvir

para o desprezo desses metais raros, os uropianos utilizavam-nos na confecção MuitO embora a Igreja ainda config urasse como um e mpecilho ao projeto
de objetos indignos, como algemas, adereços dos escravos, vasos sanitários e até humanista de domínio do homem sobre a narureza pelo viés científico e experi­
mesmo b rinquedos. mental e pelo predomínio do antropocentrismo sobre o teocencrismo, grandes

Assim, quando os estrangeiros chegavam ostentando joias, eram ridicu­ \altos qualitativos foram conquistados no referido período. Da Vi nci (1452-

larizados por estarem enfeitados com brinquedos e acabavam sendo percebidos 15 19), Copérnico (1473-1543), GaliJeu ( L 564-1642), dentre ourros, cunharam

pelos habitantes da ilha como se fossem escravos.28 o modelo de homem humanista e colocaram a ciência experimental no centro

das atenções, o que lhes custou um alto preço.


Outro aspecto interessante é que na ilha existia uma pequena parcela de
cidadãos que era dispensada dos trabalhos manuais, pois se dedicavam exclusiva­ O projet o humanista que prevê uma relação de dominação entre o
mente à cul tura do espírito. Rafael Hitlodeu, em seu relaco sobre a ilha, explica homem e a natureza é implicitamente destacado na ilha da Utopia. Os utopia­
que esse pequeno grupo era formado por pessoas que desde a inf
ância demons­ nos aceitam o prazer, desde que dele não traga dor maior que a alegria propor­
travam vocação para at ividades do espíritO. Ele afirmava que, se demonstrar cionada.
vontade e habilidade, um trabalhador braçal pode ascender a um trabalho ince­
Na concepção de Morus não é qualquer prazer que traz a felicidade, mas
leccual. Aos que têm essa genialidade desde pequenos lhes é permitido abster-se
somente aqueles prazeres bons e honestos, uma clara alusão aos valores relig io­
das obrigações mundanas. Caso não correspondessem em suas funções voltadas
ao intelecto ou ao espírito, teriam de lidar, como os demais, com as obrigações sos seguidos por ele . Virt ude, para os moradores da ilha Utopia, seria viver em

da produção da existência. tonformidade com a natureza e com a sabedoria; seria buscar a felicidade sem

violar as leis, em consonância ao proposto por Platão e aos preceitos religiosos


No que diz respeito aos ofícios, todos da ilha tinham possibilidade de
de Morus.
escolher a profissão que desejassem, assim como de aprender qualquer atividade
básica. Dentre elas citamos: tecelagem da lã e do linho, destinada às mulheres; Assim, oo que diz respejto à religião, na ilha , codo o habitanre seria
ou o ofício de pedreiro, ferreiro ou carpinteiro, destinado aos homens. educado para trabalhar pelo bem geral, praticando ações justas, que se consti­

tuíssem em buscar a felicidade do outro, como forma de alcançar a sua própria


Como Morus não se desvincula dos valores de sua época, e também dos
seus próprios valores e concepções, levou para a sua Utopia a ideia de que nem felicidade. Sacrificando-se, privando-se de algum prazer em nome do outro,

todos estão aptos a ascender na educação. E, pelo faco de ser um homem extre­ mostrariam wn coração nobre, e o resultado seria uma ação de reciprocidade em

mamente fiel e devorado à Igreja Católica, portanto contra a Reforma, continuou termos de nobreza de vida e de relações na coletividade, num circulo "virtuoso".

na ficção a valorizar o clero na sua função formadora da fé e ed ucação. Para ele


Tomando Utopia como exemplo, percebe-se que o período do Renasci­
caberia aos sacerdotes a missão de ensinar às crianças, aos adolescentes e aos
mento ficou marcado pela presença de pensadores capazes de olhar para o seu
jovens as v irtudes, os bons princíp ios c costumes nessas fases cruciais da vida.
tempo numa perspectiva abrangente e cocalizadora.
Isso reflete no desenvolvimento de uma boa educação.
No Renascimento surgiram novas concepções de educação, de ensino, de

organização social, de propriedade, etc. Em termos específicos da educação, o


28
Essa forma de educar faz-nos refletir sobre o quanto somos responsáveis, como pais ou educadores,
aprofundamento do humanismo apontava para a necessidade de uma educação
em perpetuar o materialismo, uma vez que aprendemos falsos valores, vivemos numa sociedade
fúcil c repassamos isso i\s novas gerações, como se fosse verdade absoluca c imutável. desvinculada da Igreja.

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Evellyn Ledur da Silva - Gilberto Valdemiro Poncio - Maria Salete -Paulo Valério Mendonça da Silva CAPfTULO 2 - A Critica Social e a Crença no Porvir

Não obstante ao imag inado utopicamente por Morus, naquele momento O destaque escava assentado nos avanços dos métodos e da ren ovação da

histórico o que ocorria na realidade estava longe do ideal proposto em sua obra, Pedagogia. Cambi (1 999), referindo-se às tensões utópicas da Pedagog ia, afirma:

pois, na Europa, a educação renascentista não atingia a maioria da população,


Nas reflexões pedagógicas do século XVI, exisre uma linha de pensamen­
trazendo como decorrência a manutenção de enormes contingentes de pessoas to (nem sempre plenamente visível, porque às vezes também associada
com reflexões de ordem ético-política ou expressa em cexcos literários,
analfabetas. A educação, portanto, continuava voltada para a formação do
como em Rabelais) que atinge aucores bastante diversos entre si, che­
homem situado no copo da tradicional pirâmide social daquele período, ou seja:
gando a roçar o novo século e a influenciar, não superficialmente, alguns
o clero, a nobreza e a emergente burguesia. Neste sentido, destaca Palma Filho pedagogos dos anos Seiscentos. Trata-se da corrente da pedagogia utopis­
ta que, à luz de ideais reformadores, vem conjugar o modelo de homem
(20 12):
perfeito c harmônico, típico da pedagogia humanística, com projeção
de uma ideal sociedade justa. A pedagogia insere-se nessas construções,
O século XV inaugura uma nova fase na trajetória intelectual que o ser
fantásticas mas não evasivas, como uma componente teórica e prática
humano vem trilhando desde a Antiguidade Greco-Romana. O homem
indispensável. Nas "cidades ideais",a formação do homem-cidadão é
do Renascimento confia na razão e nas aquisições culturais da Antiguida­
de fato um momenco central do cquiJíbrio social e se realiza sobretudo
de. Essa mudança no modo de ver o mundo c o próprio homem ceve uma
através de uma educação coletiva administrada pelo Estado e disciplina­
estreita relação com os avanços da ciência da época e com as descobertas damente aceita (p. 273).
cccnológicas. Assim é que as grandes navegações, a invenção da bússola
c, principalmente, a invenção da tipografia por Gucenberg :mmcnmrnm No contexto em que se inscreve a obra de Morus, foram criadas escolas
a crença nas possibilidades do homem, favorecendo o individualismo, o
mais próximas do espíri tO humanista em que alguns leigos se destacaram e
pioneirismo e a aventura. [ . . . ). Desse modo, era inevitável que surgissem
influenciaram a Pedagogia moderna. Dentre eles ressaltamos :
novas concepções de educação e de ensino. (p. 3-4).
Juan Luis Vives (1492-1 540): humanista de origem judaica, contem­
Desse modo, diante das transformações que se operavam durante o porâneo e amigo do holandês Erasmo de Rorrerdam e Tomás Morus. Idealizou
Renascim ento, s urgia outro conceito de edúcação. Por meio dela buscavam­ uma teoria abrangente da educação, que pode ter diretamente influenciado os
-se alternativas para o estudo das línguas e da literatura clássica dos gregos e ensaios de Michel de Montaigne ( L 533- 1592). Em sua teoria Vives recomendou

romanos, escudo designado, durante esse período, pelo termo humanidades. o cuidado com o corpo, preocupou-se com o aspecto psicológico, valorizou os

métodos indutivos e experi mentais c reconheceu a importância da observação


As mudanças na área da educação constituíram estratégias da nova classe
dos fatos e da ação como meio de aprendizagem. Insistiu no ensino de líng ua
que passaria a assumir o proragonismo: a bu rgu esia - como observa m Marx e
materna em paralelo ao ensino do latim (Aranha, 2006).
Engels ( 1986). Nessa perspectiva:
Erasmo de Rorcerdam (1467-1536): holandês, defendia o fim do domínio
Enquanto os mais ricos ou da alta nobreza continuavam a ser educados religioso na educação e a importância da leitura dos clássicos. Segundo Aranha
por preceptores em seus próprios castelos, a pequena nobreza c a burgue­
(2006, p. 133), Erasmo, " cristão pertencente à ordem dos Agostinian os , criticou
sia também queriam educar seus filhos e os encaminhavam para a escola,
severamente a Igreja corrupta e auroritária, c apoiou algu ns pronunciamentos
na esperança de mdhur pn:pará-lus para a liderança e a administração
de Lutero sem, no encanto, aderir à Reforma." Embora profun damente cristão,
da política e dos negócios. Já o interesse pela educação de segmentos
populares, em geral, não eram levados em conta, restringindo-se à apren­ passou para a História por se opor ao domínio da Igrej a sobre a e ducação, a

dizagem de ofícios (Aranha, 2006, p.125-126). cultura e a ciência. Erasmo recuperou a noção de que um dos objetivos do ensino

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é levar às novas gerações o patrimônio da cultura humana contido nos livros. sim como caráter, centro unitário das mais variadas experiências hwnanas. Para

Amigo de Tomás Morus, a ele dedicou sua famosa obra Elogio da ÚJ!Icllra, na qual Monraigne, a educação de seu tempo era livresca, cheia de pedantismo, desli­

tece críticas à hipocrisia, à tolice, às formas de tirania e superstições humanas, gada da vida e propensa a punir as crianças com castigos corporais. O ideal de

mas também defende as paixões e a "loucura sábia", responsável pelo amor e educação, para ele, era preparar um espírito ágil e crítico, forjar o homem .para

pelo prazer (Aranha, 2006). o mundo (Aranha, 2006).

Rotcerdam criticava a educação severa da época, a qual, segundo ele, não O ponto comum entre os autores citados e Morus é a filosofia do prazer.30
respeitava o amadurecimento da criança. Recomendava o abandono dos castigos Para os humanistas era consenso uma educação mais prazerosa, sem punições,
corporais e defendia que melhor seria se as crianças aprendessem diverrindo-se.
respeitando as fases da criança. Para o autor de A Utopia, os conceitos de prazer

François Rabelais (1494-1553): destacou-se por satirizar as decadentes e felicidade são essenciais na construção da sociedade da ilha. Lá, todo cidadão

relações educativas que decorriam da dissolução da sociedade feudal. Rabclais busca o prazer, mas sem resultar em prejuízo, ou causar mal a outrem. Provavel­

não escreveu obras pedagógicas, mas dois romances satíricos: Gargâ11t11a e Pan­ mente inspirado na obra Elogio drJ Lo11mra, de seu amigo Rotterdam, a Filosofia
tagmel ( 1541), nos quais revela suas ideias pedagógicas. Nessas obras critica de A Utopia constrói toda uma lógica da busca pelo prazer, enumerando, hierar­
a educação calcada em velhos preceitos, viciosa, suja, doente e depravada, c quizando e classificando os prazeres físicos, intelectuais e espirituais.
ressalta a necessidade de "higienizá-la", sugerindo novos procedimentos. Para
As ideias humanistas desses autores, assim como as de Morus, rompiam
o escritor francês, um homem úti1,29 sábio e virtuoso, só nasce tendo por base
gradativamente com a Idade Média, uma vez que revelavam pouca preocupação
uma educação que, entre outras coisas, harmonize a educação corporal de forma
com a promessa de uma recompensa após a vida, mas sim com o mundo físico,
competente. A disciplina, a saúde, a temperança, a resistência, seriam a base de

outras características psicológicas c, consequentememe, de outro homem. tcmporal. Tomás Morus, em A Utopia, transportou o paraíso para o seu mundo

imaginário como uma nova chance de vida, de mudança da realidade do seu


Como Roccerclam, Rabelais revelou em seus romances discordância com
tempo traduzida na construção de uma nova sociedade.
os métodos de ensino vigentes e, como ressalca Aranha (2006):
Essas inovadoras propostas de educação burguesa foram fatores que, no
Ao contrário dos que o acusavam de imoralidade, defendia uma ética de
longo prazo, provocaram mudanças na maneira de pensar e de viver na Europa,
acordo com as exigências da natureza c da vida, por isso mesmo devia-se
aprender com alegria, porque "o riso é pr6prio do homem" (p. 133). despertando assim um novo espírito nos homens. Esse novo espírito humanista,

porém, trouxe consequências para a Igreja e para ourras instituições, que diver­
Michel de Monraigne ( 1 5 3 3-1592): francês perrencenre à burguesia,
giam do antropocentrismo que gradativamente se afirmava.
também não escreveu obras pedagógicas, mas é o autor dos famosos Essais: "Que
No Renascimento, as contestações às velhas teorias, o surgimento dos
sais-je'? (Ensaios: O que eu sei?), no qual dedicou alguns capículos à educação.

O seu interesse é voltado para o estudo do eu, não como substância espiritual, e métodos científicos, o desenvolvimento das comunicações após a invenção da

imprensa e a influência antropocêntrica provocaram em muicos pensadores obje­

ções acerca dos preceitos da Igreja Católica e ao modw vivendi da nobreza. Até
29 Para aprofundar questões acerca do utilitarismo como escola de pensamento c como projeto
societário ver Capítulo 4: O Prmóptico dejeremy Bemham: eJtraté gia.s de CO!IIrole 1111 do111rinaçlio
lltilitária - lltopia 011 di!lopia? e Capítulo 5: Educação, trabalho e temologia no Admirável mtmdo
No�-o: mtre '' rtalidade e aficrlio. )O Filosofia também propugnar.la por Jeremy Benrham.

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CAPITULO 2- A Crítica Social e a Crença no Porvir

aquele momento, como tudo o que acontecia escava predominantemente sob


Recorrendo novamente à Aranha (2006):
a supervisão da Igreja, pensar diferente dela significava romper os grilhões da

escravidão intelectual e dar liberdade aos indivíduos. A Companhia de Jesus foi acusada de decadente e ultrapassada. Afinal,
o ensino universalisra c muito formal distanciava os alunos do mundo,
Assim, no contexto da transição entre o medievo c a modernidade, a comando-o ineficaz para a vida prática. O ideal de homrête h0111me vin­
Reforma Protestante, iniciada pelo monge agostiniano Martinho Lutero (1483- culava-se a um humanismo desencarnado, voltado para as belas letras e
o "saber por saber" de letrados c eruditos. Esses aspectos deixavam de
1546), foi considerada um dos meios impulsionadores da revolução burguesa.
ter sentido num mundo no qual a revolução nas ciências e nas técnicas
Sua principal consequência foi a transferência da escola para as mãos do Estado requeria um indivíduo prático, cujo saber visava a transformar (p. 130).
nos países que aderiram ao protestantismo, no encanto não consistia ainda em

uma escola pública, laica, obrigatória, universal e gratuita, como é entendida No intuito de orientar a sua prática no campo educacional, os jesuítas

atualmente. Era uma escola pública religiosa defendida por Lutero e que não escreveram um manual - um plano detalhado de todos os afazeres diários, com

perde o seu caráter clitista, uma vez que segundo Gadotti (1996), Lutero enten­ destaque para o estudo e o trabalho, denominando-o de Ratio St11diormn.31 Nele,

dia que: segundo Manacorda (apud Bianchetti, 2008),

eram previstOs seis anos de st11ditt inferiora, divididos em cinco cursos (três
a educação pt!blica destinava-se em primeiro lugar às classes superiores
burguesas e secundariameme às classes populares, às quais deveriam ser de gramática, um de humanidades ou poesia, um de retórica); um triênio
ensinados apenas os elemencos imprescindíveis, entre eles, a doutrina de st11dia Jllperiora de filosofia (lógica, física, ética), um ano de metafísica,
matemática superior, psicologia c fisiologia. Após um a repetitio ge11era/is
cristã reformada (p. 64).
e um período de prática de magistério, passava-se ao estudo da teolog ia,
que durava quatro anos (p. 25).
A Igreja Católica, por seu lado, reagiu à Reforma Protestante por meio

do Concílio de Tremo, fazendo da criação da Companhia de Jesus a sua principal


No contexto brasileiro, a vinda da Companhia de Jesus proveu e dirigiu
"arma" contra a Reforma. Criada por Inácio de Loyola (1491-1556), inicialmente
a religião e a educação de meados do século 16 a meados do século 18. A preo­
com o intuito de formar um exército de guerreiros para lutar nas Cruzadas, a
cupação com a catequese foi, gradativamente, cedendo espaço para a educação
Companhia ceve seu objetivo desviado para a orientação da prática no campo
voltada para as elites, da aristOcracia rural e urbana. Por mais de dois séculos a
educacional. Ocorre que o problema para a Igreja Romana já não eram os árabes,
continuidade dos escudos para além da escola "de primeiras letras" só foi pos­
os sarracenos, os "infiéis do Oriente" - motivadores de tantas Cruzadas na Idade
sibilitada aos fill10s (não filhas) dos senhores de engenho e dos colonizadores,
Média -, mas sim os Reformadores, que causavam cantas deserções na própria que continuavam sua escolarização para o sacerdócio, o Direito, a Medicina e
Europa. a Engenharia, embora os estudos superiores, até a chegada da família real ao

A Companhia de Jesus espalhou-se pelo mundo acompanhando os colo­ Brasil, em 1808, fossem feitos exclusivamente na Europa.

nizadores por rodos os locais onde havia novas cerras e nativos, tratando de

catequizá-los. Os padres jesuítas enfrentavam todas as dificuldades territoriais,


" De acordo com Tolcdo, Ruckscadcer e Ruckscadcer (20 12) o &tio Studiorum era um ·'Conjunto de
culturais e linguíscicas no intuito de arrebatar novos cristãos, sempre procurando normas que foram criadas para rei,>ulamenrar o ensino nos colégios jesuítas. Sua primeira edição,
de l599, além de suscenrar a educação jesuítica, ganhou status de norma para roda a Companhia
chegar antes dos Reformadores. de Jesus. 1inha por finalidade ordenar as atividades, funções e os métodos nas escolas jesuíticas."

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Desta forma, o ensino jesuítico moldou-se perfeitamente a tUna socieda­ Assim, como no pensamento de Comcnius, no Renascimento o papel
de escravocrata e aos desejos de sua elite. Tanto que seu maior expoenre, padre político-ideológico da educação apontava para o cumprimento dos interesses
Antônio Vieira ( 1608-1697), em consonância com o discurso político e econô­ da burguesia em ascensão, que em pouco ou nada incorporou o desejado por
mico hegemônico da sua época, justificava a escravidão dos africanos, alegando Morus em sua Utojlia:
ser o calvário necessário a sua salvação (Salete, 1999).
Reforma e Contra-reforma são movimentos dos quais resuJcarão inicia­
Pelo lado prorcsranre, a obra de maior destaque surgiu somente no início
tivas duradouras no campo da educação, abrindo um leque de novas
do século 17. João Amós ComcniusJ1 ( 1592-1670) apresentava em sua Didática possibilidades, inimaginadas no decorrer do período medieval. Entre as
Magna a proposta de um "Método para ensinar as ciências em geral" ; um modo duas, no entanto, é possível encontrar semelhanças. Porém, mais do

fácil para penetrar a fundo nas partes m"ais intricadas das Ciências. A sua pro­ que estas, profundas diferenças aparecerão desde o início e renderão a se
aprofundar com o tempo, evidenciando compromissos em graus diver­
posta mais revolucionária, porém, está no subtítulo da obra: Da am universal de
sos com a burguesia, a nova classe que está por assumir a hegemonia
eminar tudo a todos. Ilssa obra, no entantO, previa a escola primária para todas as
(Bianchetti, 2008, p. 21).
crianças, a de latim para alguns c a academia para poucos.

Essa distribuição contradiz o título da obra de Comenius, pois o "todos" Segundo Cambi (apud Bianchctti 2008), a Reforma:

estava limitado aos que tivessem tempo e condições financeiras para o escudo
privilegia a instrução dos grupos burgueses e populares com o fim de
e, em uma sociedade em que muitos passavam fome, o conhecimento era des­
criar as condições mínimas para uma leitura pessoal dos textos sagrados
tinado para quem não precisava preocupar-se com o trabalho para sobreviver. (enquanto a Contrarreforma,) sobrerudo com a obra dos jesuítas, propõe
Ratificando essa ideia, Lopes (2008) afirma: um modelo culrural c formativo cradicional em estreita conexão com o
modelo político e social expresso pela classe dirigente (p. 25).
No escudo da relevância do pensamenro de Comenius para a educação
acuaJ é necessário pomuar alguns princípios fundamentais. Uma das
Considerando que tanco a educação jesuíta quanto a protestante preocu­
razões pelas quais o pensamento de Comenius é pouco conhecido no
param-se com a formação do homem burguês, ao povo sobrou apenas o ensino
Bmsil está no faro de que alguns inrerpreram suas propostas educacionais
fora de seu contexto histórico. (...} ao partir do princípio de que a educa­ dos princípios da religião cristã e, quando muito, uma formação elementar indis­
ção é um privilégio da burguesia, insere a célebre expressão de "ensinar pensável para a inserção no mundo do trabalho. Esse passa, gradativamente,
tudo a rodos", parecendo afirmar que o "cudo" se refere somente até
a exigir conhecimentos rudimentares para lidar com equipamentos também
cerro grau de educação, sendo que os graus mais elevados deveriam ser
para um grupo seleco, que seriam os doutores, educados para as decisões distantes da geração da maquinaria digital, para a qual aquela educação já não
políticas c a condução de outras pessoas (p. 53). será suficiente.

O surgimento dos colégios, no século 16 até o 18, é algo a ser destacado


l' 13emham também recorre aos ensinamentos de Comcnius para pensar sua proposta de educação, e relacionado com a emergência de uma nova imagem da infância e da família.
assim como aos elementos da disciplina presente na Ratio Strtdiomm. Ver Capítulo 4: O Ptmóptiro
i de ro11trole 1111 doutrintJfliO 11tilitária - utopia 011 diJtofiirt?
de}trtmy Bmtham: estratégni O sentimento que passa a existir entre os entes dos grupos familiares desponta

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nos séculos 16 e 17, junto com o reconhecimento da infância. Até então a criança Assim, a partir da consolidação desta nova ordem mencionada por Saviani
não era percebida como criança.33 A meta da escola nessa época não se restringia (J003), "a participação política das massas entra em contradição" com os interes­
à transmissão de conhecimentos, mas à formação moral. w' da burguesia. Neste movimento, em substituição à visão gualitária
i da "peda­
�-:ogia da essência" a burguesia vai propor a "pedagogia da existência", segundo
Com o fortalecimento do modelo individual, cada vez mais marcando
•• qual
a sociedade europeia via reforço do vínculo familiar e, consequentemcnte, da
propriedade privada, a preparação das crianças demandava cada vez mais profis­ os homens não são essencialmente iguais: os homens são essencialmente
diferentes, c nós remos que respeitar a diferença dos homens ( ... }, há
sionais. Esses, por sua vez, deveriam dar conta da diversidade de especialidades
aqueles que têm mais capacidade e aqueles que têm menos capacidade;
que passavam a compor o campo educacional, bem como as exigências do/no há aqueles que aprendem mais devagar; há aqueles que se interessam por
mundo do trabalho. A educação não era mais voltada para as boas maneiras, isso e os que se interessam por aquilo (Saviani, 2003, p. 41).

mas sim para a importância da escolha de uma escola e de um ofício. Nessa


Segundo este autor, esta visão das diferenças entre os homens acabou
perspectiva é evidente que, historicamente, a burguesia levantou a bandeira da
conferindo à "pedagogia da existência" um caráter reacionário, pois utilizava-se
educação para rodos a fim de transformar servos em cidadãos. A ideia central
da ideia do diferente com o fim de justificar e legitimar as desigualdades, a domi­
da burguesia, a "pedagogia da essência", estava centrada na necessidade de
nação, a sujeição e os privilégios. Nesse sentido, aponta Bianchetti (2008) que:
consolidação da nova ordem:
La promcsa o el compromiso de transformar ai sicrvo medieval en ciuda­
Escolarizar todos os homens era c ondição para converter os servos dano, por parte de la burgucsía se vino mostrando un emprendimienco
em cidadão, era condição para que esses cidadãos participassem do gigantesco y, Llegados ai siglo XXI, está inconcluso y evidenciando rodo
processo político, e, participando do processo pol ítico, eles consoli­ cl drama que encierra cuando condiciones históricas y materiales dadas
dariam a ordem democrática, democracia burguesa, é obvio, mas o se chocan con opcioncs políticas en la dirección opuesra (p. 52).
papel pol ítico da escola estava aí muito claro. A escola era proposta
como condição para a consolidação da ordem democrática (Saviani, De maneira geral, essas palavras podem ser ratificadas se analisadas as
2003, p. 40). ideias de pensadores que buscaram revolucionar a educação desde o Renasci­
mento até o conjunto de pollticas públicas acuais que vêm sendo instituídas em
âmbito mundial com o objetivo de oferecer uma educação de qualidade para
todos. Esse "rodos", no entanto, contraditoriamente, ainda não consegue atingir
o todo. Isco está muico distante do preconizado por Morus, em que pese o limite
da época quando criou uma sociedade fictícia.
n Segundo Poncio (20IO, p. 28), "Esse novo indivíduo que é a criança e que começou
a ser percebido
c reconhecido como tal, deve receber determinados Cllidados O Renascimento marcou o início efetivo do capitalismo, e mesmo passan­
e atenção e, como conscqiiência,
desenvolveram-se laço.ç afetivos mais estreitos entre pais, mães e ftU•os. Essa
aproximação, por sua
vez, dcspcrcou na.ç famnias a preocupação c cuidados cada vez maiores com as
do a adorar um pensamento anrropocêncrico, não colocou o homem no centro.
crianças, o que acabou
por gerar n necessidade de uma formação que contribuísse para seu desenvolvimento." E segundo É o trabalho como sinônimo de emprego que está no centro dos interesses dos
Ariés (apud Marchi, 2007, p. 34): "embora não se trate ainda da 'criança real',
da criança cotidiana, empregadores e daqueles que o buscam, porém este trabalho está longe da con­
mas de 'inffincias santas', o f:Lto a ser destacado é que a representação da
criança já não é mais a do
adulto em miniatura, como era até então." Para compreender o processo de
lnstituci!malização da cepção de trabalho de Morus c muito mais da perspectiva marxiana da omnila­
Infância e suas implicações na educação ver Ariés (1981), Sarmento (2004) c M
archi (2007). ceralidade, meio de realização de todas as dimensões da pessoa humana.

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2.7 CONSIDERAÇÕES FINAIS O pensamento medieval, encrecanto, não deixou de existir na Renascença.

Pelo contrário, o que houve foi uma convivência, uma imbricação entre o novo e
A 11topia é o princípio de todo o velho. Nessa perspectiva Morus, sendo um homem desse tempo de transição,
progresso e o desenho
desse cenário de continuidades c descontinuidades, carrega consigo muito do
de 11111[11111ro melhor
peso da cultura medieval, embora não fosse dado a conformismos.
(Anatole France, 1844-1 924).
Essa mesma bagagem de Morus rraduzida numa postura inabalável que
A noção de utopia nasceu com a obra de Morus e, a partir daí, transfor­
se alicerçava na fé cristã, refletia um homem fiel aos princípios da Igreja Católica,
mou-se num gênero literário que engloba elementos da educação, da política, da
c apesar da sua posição social privilegiada, preocupava-se com a dura realidade
economia e dos relatos de viagem sob as perspectivas sociológicas e filosóficas.
social em que escava inserido. Devido a sua fidelidade religiosa, em A Utopict
Criticando a sociedade que estava surgindo, resultante do advento das
manteve a educação sob a jurisdição do clero, enquanto os humanistas de seu
relações capitalistas, Morus revela sua preocupação com a predominância da
tempo pregavam a necessidade de urna educação laica.
propriedade privada que permitia e necessitava da exploração dos indivíduos.
Na esteira do contexto renascentista, as Igrejas Católica e Protestante
Ele também preocupava-se com as mazelas de uma sociedade estratificada, que
passaram a dedicar-se, entre outras coisas, ao processo de educação dos seus
tinha na l arga base piramidal a esmagadora maioria da popu lação pobre, anal­
seguidores. Apesar de os intelectuais humanistas defenderem a insti tuição de
fabeta, desprovida de direitos. Enfim, uma sociedade cuja produção da riqueza
uma educação laica e para rodos, essas igrejas continuaram dominando a educa­
relaciona-se com o aumento da pobreza.
ção voltada às classes privilegiadas, ainda que em graus diferentes.
O auror, em sua ficção, entendia que um dos caminhos para uma socie­
Na atualidade, a educação continua sendo seletiva. Somente os mais
dade mais justa e igualitária seria o da educação, ofertada a todos indistinta­
aptos, os mais preparados, que muitas vezes são aqueles que têm melhores con­
mente. Preconizava o processo educativo em estreita relação com o trabalho ao
c.liçõcs financeiras, chegam à universidade pública e de qualidade, o que limita
apontar a agricultura como a principal atividade laborativa do povo de Utopia.
a oportunidade dos menos favorecidos. Conrradiroriamente, os menos privile­
Desta forma, demonstrava sua discordância com a substiruição da agricultura
giados, que sempre estudaram em escolas públicas, se quiserem cursar o ensino
de subsistência pela criação de ovelhas e das consequências sociais perversas
superior terão de frequentar as universidades privadas.34 Dessa forma, o ideal
produzidas com a emergência da sociedade burguesa na Europa, em geral, e na

Inglaterra, em particular.

14 Algumas iniciativas dos dois últimos governos visaram/visam a minorar essa injustiça quase
Outros pensadores contemporâneos de Morus, sobretudo os humanistas,
milenar. Além da política de cotas para a universidade pública, no nível do ensino superior,
l ançaram ideias inovadoras que provocaram mudanças grac.lativas e seguiram o ProUni (Programa Universidade Para Todos) foi, segundo us declarações do Ministério da
Educação (MEC), o maior programa de bolsas de cswdo da história da educação brasileira.
influenciando a história do mundo ocidental e, em especial, a educação. O ponto
Conf(Jrme Brasil (2012) "O Prouni já acendeu, desde sua criação acé o processo seletivo do
central das m udanças no campo da educação tem origem no ainda utópico acesso seg undo semestre de 2012, mais de I milhão de estudantes, sendo 67% com bolsas integrais."
Essas mudanças (não revoluções) esrão sendo feitas no interior dos pnrâmecros da sociedade
de rodos à educação c no conhecimento preconizado por Comenius e propalado
vigente. Inclusive o ProUni constitui um reforço às universidades privadas que escavam perdendo
pelos liberais durante a modernidade. clientes, devido ao valor das mensalid�des, o <1uc estava provocando uma evasão sem precedentes.

78 79
Evellyn Ledur da Silva - Gilberto Valdemiro Ponclo - Maria Salete - PauloValério Mendonça da Silva

de uma educação para rodos ainda escá longe de acontecer, apesar dos esforços, Capitulo
supostamente, em contrário. A esse paradoxo Camões denominou de "descon­ I 3 I
certo do mundo" (Moisés, 2001, p. 12).

Enquanto o homem viver em uma realidade discópica caberá à uropia o


papel de provocar sonhos da superação, de despertar consciências para contestar
a realidade opressora, e de apontar caminhos de libertação para o futuro, tendo FICÇÃO OU UTOPIA?
finaJmenre o ser humano como centro desse projeco. Segundo Mannheim (1986,
A Nova41/ântidae a Crença de Bacon Na Ciência
p. 227), o homem precisa sonhar com mudanças para que "as utopias de hoje
venham a ser as realidades de amanhã: muitas vezes as utopias nada mais são
e na Tecnologia Como Princfpios da Governabilidade
. que verdades prematuras."

Laura Qulnones Neira1


Rafael Cunha2
Sérgio Zanatta3
Sulelca Fernanda Biesdorf Kretzer4

Fome: <http://2.bp.blogspoc.com/-Yh_
dBFwoq9U/fqqyl_OUIZI/AAAA­AA
U/EOFvphAGD4k/s1600/396px-Bacon_
Grcac_lnstauracion_froncispiece.jpg>.
Acesso em: 20 jul 2012.
.

1 Graduada em Psicologia. Mcscranda em Educaç-:io no PPGE da Universidade l'cdera.l de Santa Catarina.


Membro fundadora da ONG Corporação Social Ponto de Apoio, Ollômbia. lauqui97@yahoo.com

2 Graduado em Pedagogia. Mestre em Educação pela Universidade do Estado de Santa Catarina.


Doutorando em Educação no PPGE da Universidade Federal de Sanm Catarina. Professor c
Designer Tnstrucional da Univcrsida<.le <.lo Sul de Santa Cacarina. rafacl_dez@hotmail.com

; Graduado em Pedagogia. Mesrrando em Educação pela Universidade do Esca<.lo de Santa Catarina.


Pedagogo no Programa de Capacitação da Fundação Casan - Fucas. sergiozanata@gmail.com

4 Graduada em Pedagogia. Mescranda em Educação no PPGE da Universidade Federal de Santa


Catarina. Professora na Rede Municipal de Ensino de FlorianópOlis. suleicafemanda@yahoo.com.br

80 81
Laura Qulnones Nelra - Rafael Cunha - Sérgio Zanatta - Suleica Fernanda Biesdorr Kretzer CAPITULO 3 - Ficção ou Utopia?

SINOPSE DE NOVA ATI1Hl/DA


Por isso, Nova Atlântida representa não apenas a ficção acerca de uma

ilha desconhecida dos europeus de encão: representa, acima de cudo, a


O que é uma utopia? O que é uma ficção? O que é uma prospecção
uropia do conhecimento científico - obrido por meio de mérodos rígidos
de uma representação da realidade? Estas questões vêm à tona quando o
de observação e experimentação, o que significa uma ruptura na concepção
leitor se debruça sobre obras como Nova Atlâmida: uma uropia científico­
de ciência vigente - como princípio de governabilidade de uma sociedade
-tecnológica que se desenrola em um não lugar; uma invenção fabulosa e
descrita como perfeita. E traz, nas entrelinhas, uma crítica ao modo de
engenhosa para a época em que foi escrita; uma antecipação exrrapolativa
produção de conhecimento fundado pelos filósofos gregos e que se perpe­
da realidade histórica e social de seu autor- o filósofo inglês Francis Bacon
tuava acé o começo da Idade Moderna ( l4 5 3-1789).
(1561- 1626). Então, o que é a Nova Atlântidtt?
A Nova Atlântida é narrada em primeira pessoa. O nome do perso­
É provável que ao começar a escrever a obra, no início do século
nagem principal da história não é revelado. Ao mesmo tempo, a narração
17, Sir Francis Bacon não tivesse noção do seu alcance, canto em termos
em primeira pessoa sobre os fatos vivenciados na ilha onde se passa a his­
ele temporalielade quanto ele influência sobre o pensamento ocidental
tória confere à obra wn caráter de veracidade de tudo o que é descrito. No
moderno. Tal argumentO pode ser sustentado, principalmente, pelo faco
relato também não é explicitado em que momento histórico os aconteci­
de a obra ter permanecido inacabada e ser publicada somente mn ano após
mentos desenvolvem-se, mas é nítido que datam elo século 16/17, portanto
a morte do autor e, mesmo assim, a leitura do relaro permite vislumbrar
coetâneos ao período histórico vivido por Bacon.
uma mescla de utopia, ficção e antecipação de vários aspectos de uma

realidade concreta que ainda estava por vir. E, além disso, deixar entrever O relato da Nova At!ântida inicia-se como outros tantos relatos

uma crítica à realidade histórica que permeava a sua época - nos séculos de viagens pelo mar (reais ou não), comuns na época, sobretudo a partir

16/17 -, no que se refere às questões ligadas à produção do conhecimento, do século 1 5 , com as chamadas Grandes Navegações: um desvio de rota
marítima provocado pelas condições climáticas c por avarias na embarcação
às técnicas e à (falta de) experimentação.
causava medo e apreensão aos navegadores, por encontrarem-se em mares
A Noz1a 111/âlltida pode ser compreendida como um clássico literário
desconhecidos, sem ancoradouros por perto e com minguados suprimentos
que representa, em partes, o sentimento de utopia da época. Ao tomar a
para se manterem vivos. Além disso, pelo desconhecimento dos espaços por
obra como objeto de análise, procuramos contextualizar a vida de Francis
onde navegavam e, portanto, encregues à própria sorte, os marinheiros não
Bacon, o momento histórico em que ela foi escrita e as relações que se pode
tinham como prever por quanto cempo navegariam de modo incerto, pois
estabelecer da obra com a educação dos séculos seguintes, rendo por fio
dependiam das condições favoráveis de venros que levassem sua embarca­
conducor as concepções baconianas sobre ciência, conhecimento e tecno­ ção para rocas mais seguras.
logia e de que forma estes elementos se relacionam com a governabilidadc
E assim, contando com a própria sorte e apelando à intervenção
de um povo.
divina, por meio de orações e preces, a tripulação avistou no horizonte ­
O processo de análise ela obra conjuga-se em um movimento no como que por tun milagre - sinais de terra firme. De acordo com a narra­
tempo c no espaço, um deslocamento acé a Europa dos séculos 16 e 1 7 , de tiva, a tripulação viajava do Peru à China c ao Japão, pelos mares do Sul,
grandes transformações e de quebra de paradigma nas questões relacio­ dado que haviam sido desviados da rota originalmente prevista. Por isso, ao

nadas à obtenção/produção do conhecimento e às concepções de ciência. mesmo tempo em que a esperança e o alento de não perecer em alto-mar

j
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Laura Quiiiones Neira - Rafael Cunha - Sérgio Zanatta - Suleica Fernanda Biesdorf Kretzer CAPITULO 3 - Ficção ou Utopia?

tomava coma da tripulação, havia o desconhecimento sobre o lugarpor onde 3.1 1NlROOUÇÃO
navegavam naquele momento: o que se sabia era que aquela região era uma
Segue a mais importante das razõeJ
incógnita, podendo haver ilhas ou continentes inteiros ainda não descobertos.
que alicer§atlt a I!Jjleranfa. É a que
O relato do narrador da Novct Atlântida, a respeito da terra recém procede dos erros dos tempos pretéritos
avistada, revela a surpresa e a perplexidade da tripulação com o que encon­ e dos cami11hos çlfé agora tentados
craram: uma cidade aprazível c muito bem construída; um povo - ao
(Dacon, 2000, p. 75).
conrrário dos "selvagens" encontrados e descritos por outras expedições
da época a cerras desconhecidas - civilizado, instruído e que dominava Nova Atlântida é uma fábula escrita por Francis Bacon e publicada em
diversas línguas. 1627, após sua morte, por seu secretário particular, William Rawley.� Nesta

À medida que o relato vai avançando, outras descrições da Nova obra fictícia Bacon revela a existência da misteriosa e isolada ilha de Bensalém,6
Atlântida c do seu povo vão causando admiração e escranhamento aos onde dá forma a sua utopia: uma sociedade exemplar em leis e costumes, com
visitantes, pois a ilha apresenta uma organização social incomum à visão
ciência c tecnologia inovadoras c avançadas, elementOs "novos" para a época,
dos europeus dos séculos 16/17. A hospitalidade dos habitantes da ilha,
representados, em sua criação, pela Casa de Salomão7 - uma espécie de sociedade
seu requinte, valores, riquezas, segredos e, sobretudo, seu governo, são os
ingredientes encontrados pelos quase náufragos, concebidos por Bacon, que reunia os principais sábios da ilha, que por sua vez realizavam experiências

para descrever uma sociedade idealizada como perfeita. científicas e obtinham resultados inimagináveis para a época, com seus experi-

mencos e inventOs.
Se estes ingredientes, porém, servem para conferir à Nova Atlân­
tida aspeccos de uma utopia ou ficção, ao mesmo tempo eles denotam a
capacidade de descolamento da realidade vivenciada por francis Bacon:
ao idealizar e �escrever a Casa de Salomão - instituição que congrega os
sábios, que é o centro de governo da ilha e o que há de mais precioso na � William Rawley foi secretário e capelão pnrticular de Fmncis 13acon. Nas obras pesqus
i adas não
há maiores registros sobre sua biograJia. Consta apenas que após a morte de Bacon Rawley ficou
,

Nova Adântida- e suas realizações fabulosas, o filósofo inglês não apenas


com boa parre da sua obra, sendo editor das mesmas. Segundo nota da edição brasileira de NIX/a
deixava piscas sobre suas concepções de busca, preservação, construção e Arlâmida, a obro foi traduzida por Rawley para o latim e publicada no fim do volume do Sylva
Sylvamm (Floresta das Florestas), ou ll Nat11ral HiJtorit, um compêndio de históri:IS relacionadas
transmissão de conhecimentos, como também antecipava, em muico, o que
a fatos naturais observados e registrados por Bacon .

vicia a ser a concepção de um institutO de pesquisa, de uma universidade


6 SCJ,'llndo a versão brasileira da obra, vários comemadores atribuem como significado de Bensalém
nos séculos seguintes. "a filha da salvação". O termo, por sua vez, teria origem árabe (Bacon, 2000).
' Salomão, filho de David, é um personagem bíblico que teria se tornado o terceiro rei de Israel
São estas as questões centrais que procuraremos destacar nas
por cerca de 40 anos. Segundo relatos bíblicos, Salomão se notabilizou pela grande sabedoria.
páginas a seguir, visando a contribuir para a construção de uma historicida­ Seu reinado ficou marcado pela prosperidade, riquezas abundantes e por um longo período sem
guerras (a propósito, o nome Salomão deriva de Jbalom, que significa "paz", c rem o significado de
dc de destacadas ucopias de nossa cultura nos últimos séculos e para a per­
"pacífico"). Na tradição s
i lâmica, o Rei Salomão é citado como um grande profcra e legislador da
cepção sobre muicos dos elementos que eram considerados utópicos, mas parte de Alá. Apesar dl'SSa ligação com o islamismo, naNIX!il Atlântida, o nome Casa de Salomão

que passaram a fazer parte da cultura científica ocidental da modernidade. parece estar relacionado ao seu fundador, o rei Solamona, que como governante tem muitas
semelhanças (chegando a quase se confundir) com o rei Salomão descrito nos relatos bíblicos.

J
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Laura Quii\ones Nelra - Rafael Cunha - Sérgio Zanatta - Suleica Fernanda Biesdorf Kretzer CAPITULO 3 - Ficção ou Utopia?

Este é o more de um relaro inacabado,8 que atravessou os séculos e pre­ Nova Atlâ11tida seria uma sociedade imaginária em um não lugar e em tun não
senciou, em certa medida, a realização de muitos dos elementos que, à época tempo. E para além disco, Bacon contribuiu por intermédio de sua obra- ainda
de Bacon, eram inverossímeis e até mesmo impossíveis de serem concretamente que não tenha vivenciado isso - para a transformação da realidade concreta, ao
realizados pela invenção humana. É isso o que faz da NiWa Atlântida uma obra menos no que se refere às peculiaridades dos métodos científicos.
para além do seu tempo c lhe confere caráter de utopia, de ficção e em alguma
Além do sentido utópico, a Nova Jltlântida rem um caráter de ficção. De
medida de prospecção, ressalvadas as especificidades e a natureza deste último
acordo com o Dicionário Priberam da Língurt Portuguesa (20 12b), ficção significa
conceito.
uma invenção fabulosa e engenhosa, uma criação de caráter artístico baseada na
Ucopia, de acordo com o Dicionário Pribcram da Língua Portuguesa imaginação, mesmo que seja idealizada a partir de dados reais, ou simplesmente
(2012b), é uma palavra de origem grega, formada a partir das partículas 011 (não) "fábula". A propósito, é desce modo que o editor da obra, William Rawley, con­

e topos (lugar). A ideia de utopia, portantO, remete ao significado de um não lugar forme Bacon (2000, p. 221), a descreve em sua apresentação, em 1627: "Esta

e de tempo nenhum (Chauf, 2000). O destaque conferido à palavra "utopia" é fábula milorde concebeu-a com o propósito de ( . . .]."

atribuído a Thomas Morus (1478-1535), que deu este nome9 à sua principal Ora, a idealização de uma sociedade imaginária e a descrição de lugares,
obra, um romance filosófico (De Optimo Reípttblicae Staltt deque Nova Insula Utojlict, situações, objetos, bem como da historicidade da ilha e das pessoas que nela
1 5 16), no qual relatava as condições de vida numa ilha desconhecida (Ucopia). habitavam requeria, à época de Bacon, engenhosidade c �natividade, ainda que
parte destes elementos estivesse vinculada à realidade vivenciada ou conhecida
Nela teriam sido abolidas a propriedade privada c a intolerância religiosa.
Depois disso, esse termo passou a designar não só qualquer tentativa por Bacon.
análoga, ranro anterior quanto posterior (como a RepiÍblicn de Platão ou
Associado ao caráter de utopia c ficção, cogitamos que a Nova Atlântida
a Cidade do SoL de Campanella (de 1602}), mas também qualquer ideal
político, social ou religioso de realização difícil ou impossível (Abbag­
também tenha, em certa medida, algum sentido de prospecção10- ainda que
nano, 2007, p. 987). este termo/conceito, não existisse à época de Bacon. Tal argumento sustenta-se
no faro de a obra apresentar-se como um cenário exrrapolarivo que antecipou
Para Chauí (2000, p. 1 7 1), utopia é a "invenção de uma outra sociedade elementos de futuro na forma de um conjunto de "cenas", sobretudo quando são
que não existe em lugar nenhum e em tempo nenhum, a utopia nos ajuda a relatados os trabalhos e a organicidade da Casa de Salomão.
conhecer a realidade presente c buscar sua transformação." Nesta perspectiva
Seja qual for o caráter que se dê a esta obra de Bacon, ela o exrrapola
nas possibilidades de múltiplas leituras e interpretações. Aliás, Bacon não situa
8 Nas fontes consultadas para :a elaboração desce rexro, encontramos que Nova Allâ111idr� é uma obra a obra em um tempo definido, deixando que o cenário por ele criado permita a
inacabada. Essa informação aparece, inclusive, na nota deixada por \'V'illiam Rawley que cdirou a interpretação livre de cada leiror. Em outro sentido, Bacon materializa na Nova
obra e explicirn ··c apenas aré aí Sua Senhoria avançou, até o rérmino desra parte" (Bacon, 2000,
p. 221). Deve-se, porém, considerar a análise apresen rada por Ferreira, Azevedo c Coan (2007, Atlântida suas concepções sobre o método científico, que certamente não repre-
p. 1 1 ) de que "confronrando a obra com os demais escritos de Bacon c pensando a obra como
peça publicitária de um projcro de resrauração da razão, não se pode deixar de reflerir que calvez
a obm já tivesse alcançado a plenitude desejada por Bacon". A rítulo de curinsidade, a Utopia, de
w O campo dos estudos prospecrivos csrá rclncionado a u m conceiro de trabalho siruado entre
Thomas Morus, aprcscnrada no Capítulo 11: A crítica Jocial e a cretJ(a no poroir: /1 Utojlia de Tomás
récnica, ciência e :me, em que se busca identificar nos clcm<:ncos do prescme os faros porradores
1\for//J, também é considcmda uma obra urópica inacabada.
do fururo. Uma das merodologias mais utilizadas em prospecção é a construção de cenários. Sobre
9 Ver Capírulo 2. escudos prospecrivos ver Thiesen (20 1 1 ) c Bcrgcr (2004).

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Laura Quii\ones Nelra - Rafael Cunha - Sérgio Zanatta - Suleica Fernanda Biesdorf Kretzer CAPITULO 3 - Ficçlio o u Utopia?

sentavam uma realidade daquele presente: ao contrário, idealizavam uma pro­ Aos 12 anos, em 1573, Bacon ingressa no Trinity College, em Cambridge,
posta de método empírico, de organização e preservação de conhecimento que onde estudou por três anos. Avesso à Fil osofia de Aristóteles, ocupava-se a maior

ainda seriam desenvolvidas nos séculos seguintes. Assim, podemos afirmar que parte do tempo com livros que considerava mais úteis para beneficiar a vida do
Bacon assume, na Nova Atlântida, uma postura utópica-ficcional-prospectiva, homem. Em 1 576 ingressou em uma das Escolas de Coree de Justiça de Londres
sobretudo no que se refere às questões da sociedade, da ciência e do conheci- (as chamadas bm's ofCo11rt) par a aprender j urisprudência, formando-se em
menro. Direico no ano de 1582.

Dois anos mais tarde, aos 24 anos, Bacon coroou-se membro do Par­
3.2 BACOH NA INGLATERRA DO SÉCULO 17: lamentO. Em 1589 escreveu Letter ofAdvice to the Queen (Carta de Aconselha­
época das grandes navegações e invenções mento à Rainha), e An AdvertiJement Tottchiug the Controversies of the Chttrch of

O homem, mi11istro e illtbp,-ete England (Proclame a respeico das controvérsias sobre a Jgreja da I nglaterra).

dct nafttfeza, faz e entende lafllo qtumto Em 1 5 9 1 foi nomeado conselheiro da Rainha. Tornou-se amigo de Robert
fonstata, pela observaçãtJ dosfatos 011
Devereux (1566-1601), Conde de Essex, favorito da Rainha, que o via como
pelo trabct!ho da mente, sobfe a ot"dem da
um jovem promissor. Enquanto Bacon lhe oferecia conselhos, Essex tentava,
natureza; não sabe nem pode 111air
(Bacon, 2000, p. 33). em vão, convencê-la a nomear 13acon como Procurador Geral do Reino, além
de ajudá-lo, consideravelmente, a ocupar uma posição política privilegiada
Francis Bacon nasceu em 22 de janeiro de 1561 em Londres, na Ingla­
(Seymour-Smith, 2002a).
terra, durante o reinado de Elizabeth 1 ( 1 558-1603). Era o filho mais novo de
Sir Nicholas Bacon (15 10-1579) c sua segunda esposa, Anna (ou Anne) Cook O que, a princípio, seria uma conturbada amizade (sobretudo em termos
11
( 1 528-161 0). Nicholas Bacon ocupava o cargo de Lord Guardião do Selo Real, de desfecho) coroa-se um dos faros marcantes da biografia de Bacon e parece
geralmente ocupado por um homem muito culro, denotando ser uma impor­ demonstrar o que Alexander Popcr ( 1688-1744) descreveu a respeitO de Bacon:
tante e prestigiada função na sociedade. A mãe de Francis Bacon, por sua vez, o mais brilhante, sábio e mesquinho homem do mundo (Seymour-Smich, 2002a).
é considerada uma intelectual puritana, que segundo consta nas biografias, 1 2
Na concepção de Bacon, para alcançar o poder é fundamental conhecer-se a
vigiava Bacon em relação às suas amizades e o forçava a ler a Bíblia diariamente.
si mesmo e conhecer os outros. Por isso, os amigos são um meio de chegar ao
Ela é descrita por Bacon (2000, p. 7) como "uma mulher de incomum cultura,
poder. Para conhecer os outros, por sua vez, é preciso conhecer seu tempera-
tradutora de obras religiosas latinas, calvinista em teologia e puritana em moral",
mento e sua natureza.
e que teria deixado marcas inclusive no estilo literário de Bacon.
Em 1593 Bacon - por sua atuação destacada no Parlamento - foi convi­
dado a assumir a função de Conselheiro da Coroa. Nesse mesmo ano foi preterido
" O guardião era incumbido da redação dos escritos da Corre, e tinha sob sua custódia o selo ou
instrumento de imprimir o sinal do rei sobre o lacre de autenticação dos documentos reais. Seria ao cargo, por se opor à solicitação de recursos feita pela Coroa para sustentar
uma espécie de carimbo real.
a guerra contra a Espanha: a Rainha Elizabeth sentiu-se ofendida e contribuiu
12
ll l ou verdadeiras indicações acerca da interpntaçiio da
A esse respeito, ver o prefácio de Novo Orgflllfl
natureza: Nova AJ/ântidtl (Ihcon, 2000). para sua queda (Bacon, 2000).

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Laura Quitíones Nelra - Rafael Cunha - Sérg i o Zanatta - Suleica Fernanda Blesdorf Kretzer CAPITULO 3 - Ficção ou Utopia?

Em 1598 a situação de seu protetor (o Conde de Essex) diante da Rainha mesmo ano. Em 1604, seu nome foi confirmado como membro do Conselho de
complicou-se, por não ter obtido êxito em uma expedição para captura de S.tbios c ele passou a rer assemo no primeiro Parlamento do novo reinado. Com
galeões espanhóis carregados de resouros13 (Bacon, 2000). Apesar dos aparen­
�t ascensão ao trono deJaime I, Bacon corna-se seu conselheiro ordinário, recebe
tes esforços de Bacon para minimizar a desconfortável situação do amigo, em
o rítulo de Sir, exerce as funções de guarda do Grande Selo e ocupa djversos
meados de 1600, como membro do Conselho de Sábios da Rainha, Bacon tomou
t"nrgos importantes (Bacon, 2000).
parte no julgamento inform al de Essex, mas não o apoiou. Após o julgamento,
do qual foi absolvido, sem ressentimentos, o Conde continuou seu amigo. Até 1618, quando Bacon é nomeado Lorde Chanceler (devido, em parte,
Em 1601, porém, o Conde de Essex fez oposição à Rainha e promoveu .to seu brilhantismo e, em pane, por suas amizades com pessoas próximas ao
um levante para garantir que seus inimigos deixassem a Corre. A rebeüão, no Rei), diga-se o mais alto cargo do Reino, sua carreira como ensaísta revela toda
entanto, não teve êxito e seus líderes foram presos. Bacon foi incumbido, pela sua erudição e sabedoria. Homem de intensa atividade intelectual e políti ca,
Rainha, de preparar as provas legais, de modo a assegurar a condenação por
Bacon escreveu inúmeros livros - grande parte só publicada após sua morte,
traição no julgamento do Conde. Bacon - mesmo sendo seu amigo - redigiu
quando foram reunidos e editados por seu secretário William Rawley. Com
"Uma declaração das práticas e traições tentadas e cometidas por Roberc, ances
base em Bacon (2000, p. 9), "em geral, reata-se de opúsculos e esboços, com
Conde de Essex"14 ( 160 l), em que acusava o velho amigo por alta traição Robert .

foi condenado à morte e executado no mesmo ano.15 partes desigualmente desenvolvidas e cujos títulos pomposos , na maioria das

vezes, são enganadores." Entre suas obras de destaque, estão Da Proficiência e


A carreira de Bacon progrediu depois de 1603 quando - com a morte
de Elizaberh J, que apesar de conhecê-lo desde criança, parecia não confiar nem
do Pt·ogresso e do Saber Divitw e Httmtmo ( 1 605 ), '6 Pmsamentos e Condmões Acerca

gostar dele (Seymour-Smirh, 2002a) - o trono inglês passa a ser ocupado por da Interpretação da Natttreza ott sobre a Ciência Operativa (de 1607, mesmo ano
Jaime I (1566-1625). Com a influência de seu primo, Robert Cecil (Conde de em que se coroa Procurador Geral), De Sapientia Vetemm Liber (A Sabedoria
Salisbury e Ministro Chefe da Coroa) Bacon foi feito Cavaleiro pelo Rei naquele dos Amigos), de 1609 (na qual Bacon expõe o que considerava o significado
prático oculto incorporado nos micos amigos), e os Emaios (um conjunto de

•J O texto da obra não descreve nem fornece outras informações sobre o episódio mencionado. Na 155 trabalhos, que começou a ser publicado em 1597 e cuja versão final é de
biografia do Conde de Essex consta que era um herói militar c que foi designado pela Rainha às
atividades de piataria
r a serviço da Coroa Inglesa. Em outras versões de sua biografia consta que
1625) (Bacon, 2000).
o Conde - que tinha o hábito de, em suas campanhas militares, tomar decisões por conta própria,
por vez�s opondo-se às ordens da Rainha - optou por perseguir os navios espanhóis ao i1wés de
procurar derrotar a Armada Espanhola, durante a Guerra Anglo-Espanhola (1585-1604), que
havia sido de(iagrada por disputas econômicas, políticas e religiosas (Secara, 1999).

14 Tntduçflo livre para A Dcdamtion ofthe Ptwctices & Tretmns Attempted tmd Commilled b)' Robert, Late
Earle of&sex.
n Em 1604, Bncon redige Sir Fmnris Bacon His llpologie, in Certaine Lmputations Concerning the Lote '6 Esta obra é considerada a preparação para uma cnrcfa mais nmpla, que seria sua maior realização:
Earle of&sex (Esclnrccimcncos acerca de Imputações Relacionadas ao Recém-Falecido Conde de A Grattde lnstattração, seu ambicioso plano de trab;tlbo científico. Ao contário
r do usual na época,
Esscx), no qual tenta defender-se das acusações de deslealdade, afirmando que um homem leal !lcia foi escrito em inglês, e não em latim. Segundo consta em su� biografia, Bacon
Da Proficiê
prefere Deus ao seu rei; seu rei a seu amigo (Bacon, 2000). Sua argumemação era a de que csrava (2000, p. 9) "pretendia, assim, atingir um público mais amplo, objetivando ganhar apoio para a
apenas cumprindo seu dever. grandiosa empresa científica que projetava:·

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Laura Qulnones Nelra - Rafael Cunha - Sérgio Zanatta - Suleica Fernanda Biesdorf Kretzer CAPITULO 3 - Ficção ou Utopia?

A obra de Bacon que mais influenciou o mundo no início da modernidade o episódio de sua condenação e de ser banido da Corte, sua fortuna diminuiu
foi o tratado latino Novum Orgammz, preparado entre 1608 e 1620. Trata-se do 'onsideravelmente, pois Bacon recusava-se a levar uma vida mais humilde - o

segundo volume da lmtauratio Magna (A Grande Restauração), uma grandiosa que o fez contrair enormes dívidas.

obra de reforma ciencífica. 17 Ao mesmo rempo, Bacon passou a se dedicar ainda mais ao trabalho
Intelectual e ao método científico da experimentação, que vinha defendendo.
Em 1621 foram levantadas acusações de suborno contra Bacon diance da
Em 1626, andando na carruagem sobre a neve, nas proximidades de Londres,
Comissão de Justiça que ele próprio presidia. Ele admitiu ter recebido prcsenres,
Bacon decidiu fazer um experimento sobre o efeito do frio e a deterioração da
mas alegou que isto não influenciou seu trabalho (análise sobre processos ele
(arne: comprou uma galinha e a recheou de neve. Como decorrência da exposi­
autorizações para comércio, indústria e monopólios, dentre os quais os que não
ção ao frio, Bacon -já velho e enfraquecido - não resistiu ao rigor do inverno e
tiveram parecer favorável aos presenteadores de Bacon). Em vista das acusações,
adquiriu um resfriado, que evoluiu para uma provável pnemnonia que o levou
tentou desculpar-se com o Rei, que se recusou a recebê-lo. Então, Bacon renun­
à morte em 9 de abril, aos 65 anos.
ciou ao cargo na expectativa de que esse ato fosse suficiente para livrá-lo das

acusações, no entanto sua sentença foi de prisão na Torre de Londres c multa de Bacon terminou seus dias trabalhando da maneira como sempre reco­
mendou àqueles que quisessem saber algo de verdadeiro a respei to da
40 mil libras. Bacon chegou a ser encarcerado por quatro dias, mas a sentença
natureza: pesquisando experimentalmente. O que projetara ccoricamence
foi reduzida por intervenção do Rei e a multa não foi paga, todavia não pôde na Grande Instauração procurou realizar na prática. Não chegou a des­
mais exercer cargos públicos e foi banido da Corre. cobrir qualquer coisa nos domínios dos fenômenos naturais, mas dei..xou
indicado, naquele proje to formulado duas décadas antes de sua morte,
No âmbito da vida familiar, a experiência de Bacon também é curiosa. um novo caminho para o conhecimenro científico (Andrade, 2000, p. X).
Aos 45 anos, em 1605, casou-se com Alice Barnham, de 40 anos, filha de um

conselheiro municipal de Londres. Não tiveram filhos. Consta em sua biografia A obra póstuma Nova Atlântida, mesmo sendo um trabalho inacabado,
indica este novo caminho para o conhecimento científico. O texto é tratado por
(Bacon, 2000, p. 9) que Bacon levava uma vida bastante conforrável: possuía
Bacon na forma de uma fábula, uma engenhosa narrativa que descreve como a
dezenas de criados c várias propriedades; "residia, no verão, em suas proprie­
busca do conhecimento pode trazer bcm-esrar, harmonia e abundância para a
dades de Gorhambury e Verulam House; no inverno, em York House." Após
sociedade. Essa busca deveria ocorrer pelo método científico pautado em dados
empíricos, que Bacon defendia.
17 O N1n111m Orgtllllltll pode ser compreendido como uma espécie de dcsconsrrução do Órgnnon de
Aristóteles (do mesmo modo que a Nova Atlríntida é uma desconscrução da Adâncida descrita Para o entendimento das concepções de ciência e de conhecimento,
por Piarão na Repfiblicn), urna vez que Bacon, sendo um dos pais da Ciência Moderna e do expressas na Nova Atlântida, a contcxrualização histórico-política da época em
Experimcntalismo, se contrapunha à mecnfísica dos gregos. Por sinal, em um dos Aforismos
presentes no livro Nov11m Orgaullm, Bacon critica acidamencc os gregos. Em cerca passagem, que Bacon viveu também é imprescindível. Isto porque esse foi um período de
no texto, afirma que eles poderiam ser comparados a crianças. Conforme as pnlnvras de 13acon grandes descobertas e contestação sobre séculos de domínio teológico, o que
(2000, p. 57), no Novmn Ot-gttlllllll, Aforismo LXXJ: "Os gregos, com efeito, possuem o que é
próprio das crianças: cscão sempre prontos para tagarelar, mas são incapazes de gerar, pois, a sua certamente influenciou sua personalidade e sua forma de ver o mundo. Con­
sabedoria é farra em palavras, mas estéril de obras." Pela importância do Novum Orgamm1 para o forme Seymour-Smith (2002a, p. 288), "A estranha mistura que havia dentro
enrendimcnco do conjunto d:1 obra de Bacon e sua relação com a Nova Atlântida, retomaremos
estas questões posrcriormenre. dele, (Bacon} de medievalismo e modernidade", é a própria expressão daquele

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Laura Qulnones Neira - Rafael Cu nh a - Sérgio Zanatta - Suleica Fernanda Biesdorf Kretzer CAPfTULO 3 - Ficção ou Utopia?

momento histórico. Trata-se, portanto, de um período em que a influência reli­ Chauí (2000), ao se referir à Filosofia renascentista, entre os séculos 14 e
giosa do fim da Idade Média se mistura e se confunde com o advento da moder­ L6, assim descreve aquele momento histórico:
nidade e, com ela, integra um novo paradigma de ciência que estava nascendo.
A efervescência teórica e prática foi alimentada com as grandes desco­
As influências dessa transição e, sobretudo, das "grandes invenções" e bertas marítimas, que g aran ti am ao homem o conhecimento de novos
mares, novos céus, novas terras e novas gentes, permitindo-lhe ter uma
das "grandes navegações" também aparecem latentes no trabalho de Bacon,
visão crítica de sua própria sociedade. Essa efervescência cultural e polí­
revelando o fascínio que a ideia de diminuição do mundo exercia sobre ele. tica levou a críticas profundas à Igreja Romana, culminando na Reforma
Diminuição de mundo simbolicamente representada, pelo fato de novas terras Protestante, baseada na idéia de liberdade de crença e de pensamento.
À Reforma a Igreja respondeu com a Contra-reforma e com o recrudes­
antes desconhecidas serem desveladas e "catalogadas,"18 ampliando-se o domínio
cimento do poder da Inquisição (p. 55).
da natureza pelo homem.

Estes elementos serão centrais para o que costmnamos chamar de moder­


A Europa, recém-saída da chamada Idade Média, ainda mantinha muitos
nidade, para o modelo de ciência dominante nos séculos seguintes e para o emer­
vínculos com seu passado recente, seja nas concepções de mundo, seja nos modos
gente modo de produção capitalista. À época de Bacon, no nascer do século 17, a
de produção. O crescente distanciamento entre Estado e religião e as refor­
ampliação dos conhecimentOs necessários ao domínio da natureza, à expansão do
mulações políticas e econômicas dos estados europeus - os quais passaram a
Estado e ao bem estar social eram ideias próximas e correlatas. Tratava-se, por­
se submeter a uma nova lógica de produção, diferente do milenar feudalismo
tanto, de uma "pré" modernidade, período em que muitas especulações acerca
para um modelo (pré)capitalista mercantil - são apenas algumas das caracterís­
destes e de outros elementos da modernidade ainda podiam ser pensados como
ticas deste momento de transição. Às características deste período de transição
utopia - mesmo que imaginados "com um pé" na Europa da época e com uma
pode-se acrescentar uma crescente centralidade do sujeico (antropocentrismo)
memória da Europa feudal muito presente.
nas questões referentes ao conhecimento e as chamadas Grandes Invenções; e
Desde o final da Idade Média a propriedade da terra, como fator pri­
as Grandes Navegações e o Renascimento- movimentos que, num sentido his­
mordial do meio de produção na Europa, já vinha cedendo lugar a um modelo
tórico, representar�! uma ruptura com as concepções predominantes até encão,
de produção mercantil, pautado na troca comercial e acumulação de metais
subsumidas à perspectiva teocêntrica.
preciosos (a riqueza de um Estado estava atrelada à quantidade de ouro que este
possuía em suas reservas). As invenções técnicas e a expansão do mercantilismo
18 A percepção sobre a dimensão ou "tamanho.. do mundo, à época das grandes navegações, pode ser mantinham uma estreita relação, condição em que as necessidades deste modelo
compreendida sob diferentes perspectivas. Em um polo, a percepção de que o mundo aumentava,
de produção impulsionavam as inovações da época e vice-versa. Essa relação
dado que novas terras, antes desconhecidas, eram agora cocadas e catalogadas pelos navegadores
europeus a serviço de seus países. Em outro extremo, o sentimento de diminuição do mundo, pela dava-se, sobretudo, porque o comércio internacional e a expansão dos Estados
ótica de navegadores "aventureiros" que, baseados em antigas crenças e tradições marinheiras e europeus para continentes recém-descobertos - e sua consequente exploração
ignorando os limires dos mares, acreditavam que o mundo poderia ser maior do que realmente
era (Guerdon, 1978) e que, portanto, muitos segredos ainda estavam reservados nos confins da (colonialismo) - eram feitos por meio das navegações, para poncos cada vez ma.is
Terra. Com os espaços vazios cada vez mais preenchidos pelas descobertas de continentes inteiros, distantes do globo.
a delimitação do espaço era cada vez maior. A título de ilustração desre exemplo, no filme PirataJ
dtJ Cm·ibe: 110fim do 1111mdo (\
X'alt Disney Piccures, 2007), há um diálogo do capitão Jack Sparrow As técnicas e conhecimentos aplicados à navegação, por sua vez, deveriam
com seu imediatO, ao avistar uma frota inglesa em uma região desconhecida pelos europeus.
ser cada vez mais precisos. Navegar, na modernidade, gradativamente deixava
Neste diálogo se expressa o sentimento de que, no passado, o mundo era maior, pois era menos
conhecido e, portanto, menos delimitado. de ser apenas uma aventura, transformando-se em uma corrida comercial entre

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CAPITULO 3- Ficç�o ou Utopia?
Laura Q u i ii o nes Nelra - Rafael Cunha - Sérgio Zanatta - Su leica Fernanda Biesdorf Kretzer

romano) é outra característica marcante daquele omenro histórico. Desde


m
as principais potências da Europa Se em outros tempos técnicas primitivas de
.

0 Renascimento, o homem passa a ocupar um lugar central na produção do


orientação pelos astros c de mensuração de distâncias podiam trazer equívocos
1 onhecimento e da cultura, o que vai influenciar a revolução científica cujos
para as viagens, sem maiores prejuízos materiais, na modern idade a corrida
,

pelo ouro nas colônias e o desejo de "descobrir" novas colônias demandavam 1·xpoences mais destacados, além do próprio Bacon, são Leonardo da Vinci

técnicas mais precisas de orientação e navegação. Nesse novo tempo, portanto, { 1452-1519), Nicolau Copérnico (1473-1543) e Galileu Galilei (1564-1642).

a expressão Navegar é preciso"19 ganharia um duplo sentido: o de necessidade


"
Então, aquele momento histórico europeu presencia uma force ramificação das

econômica e o de precisão técnica (ainda que esta precisão estivesse limitada às Ciências, associada a uma cencralidade no homem (antropocentrismo) no que

possibilidades técnicas da época). se refere ao conhecimento e na busca de métodos eficazes que garantissem o
conhecimento e o domínio sobre a natureza - aqui entendi da como mundo
As grandes navegações comerciais, por sua vez, além de determinantes
natural e suas leis.
para o modelo de produção mercantil e colonialista, mantinham uma impor­
tante relação com o conhecimento e com a ciência: ideias que pareciam fascinar A separação da fé c da razão, no que se relere a essa nova racionalidade,
Bacon,20 tanto que na Nova Atlântidtt é a partir de uma navegação - de certa exigia do homem a necessidade de se estabelecer os critérios e as formas de alcan­
forma malsucedida - que Bensalém fora descoberta. De faro, a relação entre o çar 0 conhecimentO - uma vez que as respostas não poderiam mais ser encon­
avanço técnico decorrente das necessidades impostas pelas chamadas Grandes tradas simp lesmente na fé em Deus, na revelação. Desta necessidade surgem
Navegações (que por sua vez eram decorrentes das necessidades impostas pelo i mo- que tem
duas respostas possíveis no âmbito da cognoscibilidade: o empirs
novo modo de produção d a época) mantinham esses dois fatores impulsiona­ como principais representantes o próprio Bacon, além de John Locke (1632-
dores estreitamente relacionados. Não é por acaso que Bacon considerava que 1704) e David Hume ( 1 7 1 1- 1766) - e o racionalismo, cujo principal expoente
três grandes inventos recentes, em sua época, eram inigualáveis em comparação
é Rcné Descartes (1596-1650). Em certa medida, estes princípios irão balizar a
com qualquer outro elemento da História humana: a pólvora, a imprensa c a
construção do modelo de ciência, de Estado e de educaç ão vigentes nos séculos
agulha de marear (bússola) Segundo Bacon (apud Oliveira 2010), esses invencos
seguintes, sobretudo a partir do Iluminismo.
. ,

mecânicos mudariam para sempre a História da humanidade.21

A produção do conhecimento humano com base no nascente método


cienrífico (em oposição ao modelo contemplativo de busca pelo conhecimento,
predominante na Idade Média e at relado ao teocentrismo e ao período greco-

19 Frase consagrada por Fernando Pessoa no poema ''Navegar é preciso" ( 1914), em analogia à
"Nr�vigare 11ecesu; vivet·e 11011 est necesse" que ceria sido dita pelo general wmano Pompeu (106 a.C.
- 48 a.C.) aos soldados que, :unedrontados pelo desconhecido, recusavam-se a viajar pelo mar
durancc os pcdodos de guerra.

20 Segundo as análises de Oliveira (20 I O, p. 109), a arte de navegac foi a que teve maior importância
enquanto modelo de conhccimemo para Bacon, "pois ela era a prática na qual melhor se
combinavam os interesses cognitivos (avanço do conhecimento} e utilitários."

" Durance o reinado de Elizaheth I, de .155!! a 1603, a lnglacerra entrou em uma fase de grande
dcsenvolvimcnco marítimo, um século depois de Portugal e Espanha.

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Laura Qu l none s Nelra - Rafael Cunha - Sérgio Zanatta - Suleica Fernanda Blesdorf Kretzer CAPITULO 3 - Ficção ou Utopia?

3.3 NA NOVA ATLIHTIOA, CONHECIMENTO E PODER "ENCOHTRAM-SE"lz inicialmente, em razão das mudanças dos venros, fez com que a tripulação do
navio abordasse a Ilha de Bensalém, de maneira não intencional, como ocorreu
Ciência e podet· do homem coincidem,
ttma vez q11e,sendo a ca11sa ignorada, [mJ/ra-se na maioria das "descobertas" feiras por navegadores da época.
o efeito. Pois a nat11reza não se vence, se não q11a11do
se lhe obedece. E o q11e à contempla{ão apresema-se A parrir dessa ilustração, Bacon passa a narmr o encontro com os habi­
como cama, é regra na prátcia (Bacon, 2000, p. 33). tantes da ilha e os relatos que estes fizeram aos recém-chegados, desde a origem
daquela comunidade aré as proezas conseguidas com base nos conhecimenros
A questão das navegações e o interesse de Bacon pelo rema não se resume às
provenientes dos sábios da Casa de Salomão. A Casa é descrita por Bacon (2000,
aventuras c à busca do desconhecido: como um empreendimento de grande porte
p. 230, 245, 236) como a "menina dos olhos" do reino de Bensalém, "a jóia mais
(Oliveira, 2010), as grandes navegações marítimas dos séculos 15 e 16 reuniam
preciosa" da ilha, "a mais nobre fundação que jamais houve sobre a Terra , eé
uma série de inovações tecnológicas de diversos tipos e se constituíam como instru­
o farol desce reino." A narrativa inclui a descrição de costumes e tradições do
mencos que possibilitavam a ampliação do conhecimento. Além disso, a conjugação
povo, além de informações concernentes à própria Ilha de Bensalém, como partes
desces movimentos representava uma contestação aos antigos conhecimentos e
centrais de sua história ligada a elementos sobrenaturais, o papel dos governantes
crenças, vindos desde a ldade Média. A este respeiro, Oliveira (2010) explica:
e os princípios de govcrnabilidade da sociedade.

As navegaçõt>s aparecem na maiorparte dos escritos da época como o grande


É interessante destacar que Nova lltlâlltida é narrada por Bacon em primeira
argumento concrafaetual à tradicional representação do mundo. As viagens
de descoberta dão provas evidentes de que o conhecimenco dos amigos não pessoa. Neste sentido, ele se coloca como um dos membros da tripulação recém­

em infalível. Ptolomeu, e na sua esteira, Srrnbo e Plínio haviam, por exemplo, cheg ada à ilha. A descrição sobre esta sociedade fictícia e dos costumes dos seus
-

declarado que os trópicos eram inabitáveis, além de recusarem a existência habitantes, por sua vez, é feira ao narrador sempre por alguma personalidade de Ben­
dos ancípodas. No encanto, os navegadores portugueses mostraram que
salém, como o governador, um sacerdote ou um ftuKionário do Estado, por exemplo.
quando se navega "bem mais ao sul" se tinha acesso a um novo mundo
sobre o qual os europeus nw1ca tiveram notícias (p. 109). Uma questão central que revela o caráter utópico da Nova Atlântida é

justamente o papel representado pelo conhecimento científico oa sociedade da


Bacon mtifica seu interesse pelo tema das grandes navegações em Thoughts
ilha - algo que, se atualmente não denota nenhuma novidade, para a época de
and Conclusioll! (Pensamentos e Conclusões) quando afirma que por meio das
Bacon trata-se efetivamente de uma ideia absolutamente revolucionária. O rexco
longas viagens - marca daquele momento histórico - muitas coisas da natureza
da obra revela que, não apenas a Casa de Salomão é importante para Bensalém,
estavam sendo reveladas, e que estas poderiam lançar uma nova luz à Filosofia
como também o conhecimento científico produzido pelos sábios que nela atuam
natural (Oliveira, 2010). No mesmo sentido, na N()Va 11tlâmida, a temática das
cem significativa importância, constituindo o princípio da governabilidade da ilha.
navegações daquele período é o pontO de partida para o relato. É a partir de uma
viagem desde o Peru rumo à China e ao Japão, pelo mar do Sul , que o relato da O entrelaçamento entre conhecimento e poder no homem, como já fizemos

descoberta de tuna misteriosa ilha habitada se inicia. O desvio da roca prevista referência, pode ser percebido no texto da Nova lltlântidct, qu ando um dos sábios da

Casa de Salomão revela que são realizadas consultas para decidir quais invenções c
descobertas podem ser divulgadas ao público. Descreve Bacon (2000, p. 253): "Todos
21 Ap
esar de predominar nas traduções a afirmação atribuída a Dacon de que "conhccirncnro é nós (da Casa de Salomão} prestamos um juramento de guardar segredo de tudo o
poder", sua afirmação original é a de que knowledge andpower tJJett in it. No Aforismo 111, do livro
Nov11111 Orgm111111, Bacon (2000, p. 33) assim expressa esta ideia: "Ciência c poder do homem i as revelamos às vezes ao Estado, outras
que entendermos conveniente e algumas cos
coincidem, uma vez que, sendo a causa ignorada, frusrra-sc o efeitO." não." Sob outro aspecto, é imercssanrc perceber que o conhecimento científico (e o

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CAPITULO 3- Ficção ou Utopia?
Laura Quliiones Neira - Rafael Cunha - Sérgio Zanatta - Suleica Fernanda Biesdorf Kretzer

Apesar de Bacon não demonstrar a preocupação de descrever o modo de


aparente poder dele resultante para a concepção de modo de organização social de
Bensalém) aparece atrelado a questões religiosas: basta lembrar que os sábios da Casa organização social ou econômica da Nova Atlâ11tida, nem de explicitar hierarquias
de Salomão são também padres e sacerdotes cristãos -o que seria utópico até para entre diferentes grupos sociais, é possível perceber que a Casa de Salomão cem
a época de Bacon, particularmente na perspectiva da Contrarrcforma, embora não influência direta sobre o que ocorre na ilha. Além disso, em alguns momentos
fosse o caso da condição de Bacon, mais influenciado pelo movimento Reformista. do texto, fica evidente que os membros da Casa de Salomão têm certos privilé­
gios em relação aos demais habitantes de Bensalém, a partir do que é possível
Nesta perspectiva, ao mesmo tempo em que, de certa forma, Bensalém
supor que existe uma hierarquia nas relações de poder na sociedade baconiana,
rompe com um modelo de organização social e com o modo de produção hegemô­
estreitamente ligada com o conhecimento.
nico na Europa à época de Bacon, é perceptível em muitOs momentos do texco o não
descolamenco da realidade social que o envolvia. Estas questões ficam mais evidentes, Na narrativa da Nova Atlântida, os fundamentos da organização social da
sobretudo, no que se refere às questões religiosas (atreladas a uma moralidade cristã, Ilha de Bensalém (ressalte-se, as características desta organização aparentemente
que aparece - às vezes implicica- em diferentes partes do texco) e a uma espécie de garantem a felicidade c o bem-estar aos habitantes da ilha) podem ser compre­
patriarcalismo que pode ser encontrado em diferentes pontos da obra.23 endidos por meio de duas passagens relatadas no texto. A primeira delas é o
evento milagroso (Bacon, 2000) em que a partir da aparição de um pilar de luz
Quando estabelecemos relações entre a vida e a obra de Bacon c, em
do mar em direção aos céus, a ilha teria sido "abençoada" com elementos bíblicos
particular sua criação em Nova Atlâmitla, parece-nos claro que sua intenção não
para sua salvação. A segunda passagem pode ser encontrada no relato sobre o rei
é a de fazer uma descrição de seu método científico (explorado em outras obras);
Solamona, fundador da Casa de Salomão, cerca de 1.900 anos antes. Segundo
tampouco a de descrever detalhadamente o modo de organização social de Bcn­
Bacon (2000, p. 23 5), este rei aparece na Nova Atlâmida como o legislador de
salém. Para Bacon, em Nova Atlântida, o que importa é apresentar ao mundo de
Bensalém e possuidor de ''um grande coração;"25 "um inesgotável amor ao bem;
sua época uma ''outra" sociedade por de concebida em que a harmonia e bem­
e era totalmente dedicado a tornar seu reino e seu povo felizes."
-estar dos habitantes são conseguidos pela mediação do conhecimento do homem
sobre a natureza. A aplicação destes conhecimentos, por sua vez, "utilitariamen­ Esta passagem do texto é importante porque Bacon nos conta sobre a
te" gera produtos que suprem as necessidades humanas dos habitantes da ilha.24 criação da Casa de Salomão c sua finalidade. Além djsso, justifica o motivo de
Bensalém permanecer desconhecida dos outros povos e isolada no meio do oceano
c, mesmo assim, seus habitantes possuírem conhecimento sobre o patrimônio cul­
23 A passagem n wis marcante da obra que retrata a relevância do parriarcalismo é a descrição da
:l apresentada por Bacon (2000, p. 240}, quando o patriarca é homenageado com
Fe.sta dtt Fa111f m tural, técnico e científico de praticamente todos os povos. O relato explica:
pompas e honrarias. Além disso, um elos rituais ela festa consisre no canto de um hino "cujo rema
é sempre a glorificação de Adão, Noé c Abraão."
Q uando o rei proibiu a todo o povo a navegação a qualquer pane que
24 Da uropiaà realidade, a crença de Bacon no método científico e nos equipamentos e não estivesse sob o domínio desta coroa, fez no entanto este regulamento:
instrumentos auxiliares criados pela ciência é ranca que, no Novum Orgmumt chega a ser que cada doze anos seriam enviados para fora do reino dois navios, para
repetitivo nas argumentações, por meio de metáforas para facilitar a compreensão. Veja-se,
várias viagens; que em cada um deles fosse uma comissão de crês dos
por exemplo, sobre a questão do mérodo, somada à importância que Bacon (2000, p. 48}
membros ou irmãos da Casa de Salomão, cuja missão seria apenas a de
atribui aos instrumentos, no Aforismo LXI: "Um coxo (segundo se diz) no caminho cerro,
chega antes que um corredor extr:1viado, c o mais hábil e veloz, correndo fora do caminho,
nos dar a conhecer os assuntos e o estado, naqueles países para os quais
mais se afasrn de sua meta. O nosso método de descobrir a verdadeira ciência é de cal sorre
que muito pouco deixa à natureza c robuscez dos engenhos; mas, ao contrário, pode-se dizer
que estabelece equivalência entre engenhos e intelectos. Assim como para traçar uma linha
l) Aqui confirma-se a "semelhança", no que se refere à arte de governar, entre o rei Solamona c o
reta ou um círculo perfeito, perfazendo-os a mão, muito importam a firmeza e o desempenho,
rei Salomão, personagem bíblico tido como o mais sábio rei dos hebreus.
mas pouco ou nada importam usando a régua e o compasso."

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fossem enviados, especialmente das ciências, artes, manufaturas c inven­ Ainda sobre este mesmo aspecto, é curioso notar que em Nova Atlâ11tida,
ções de todo o mundo; e também trazer livros, insrrumenros de modelos
além de diferentes referências (c reverências) a Deus e aos princípios cristãos,
de toda espécie; que os barcos rerornassem uma vez desembarcados os
irmãos, que permaneceriam, por sua vez, no exterior, até a chegada de expressas pelos seus personagens, existem pelo menos 1 1 analogias a diferentes
uma nova missão (Bacon, 2000, p. 237). passagens da Bíblia, apresentadas em noras de rodapé pelo tradutOr da obra.27A

forre presença desce aspecto fundamental de inspiração divina da/na Nova Atlâ11-
É interessante observar que a "proibição" de contato com outros povos,
tida, permite que façamos conjecturas sobre o papel da religião para Bacon. Uma
expressa pelo rei, seria uma forma de manter os habitantes a salvo de influências
delas é que, apesar de defender 0 princípio científico e a supremacia da razão do
externas c perpetuar o estado de felicidade em que se encontravam. Por isso, aos
homem para dominar a natureza, Bacon parece encontrar-se em meio às limitações
csrrangeiros que chegavam à ilha era permitido nela permanecer, se fosse de sua
da transição de uma época permeada pelo domínio da f
é às realizações humanas
vontade - e a eles seriam garantidos todos os recursos e condições para viverem
para uma época de reconhecimento da supremacia da racionalidade sobre a nature­
à custa do Escado. E aos que desejassem retornar as suas nações, era ordenado
za. Supõe-se que 0 contextO histórico do surgimento de uma ciência preponderan­
que mantivessem segredo sobre aquela terra.26
temente humana _ sem intervenção de Deus - à época de Bacon, não permitiria
Sobre as concepções de mundo implicitamente assumidas por Bacon, é
encontrar respostas para rodos os fenômenos naturais - apesar dos esforços do
importante fazer algumas considerações e trazer à discussão alguns elementos da
pesquisador Bacon para entendê-los apenas com suporte no método científico.
Nova At!t'lutida. No que se refere às questões religiosas, é interessante observar
que, embora Bacon possa ser considerado "irceligioso" (Seymour-Smith, 2002a), Em vários outros fragmentos da obra fica evidente a relevância da reli­

a origem social de Bensalém tem como marco o encontro de seus habitantes com gião cristã para a sociedade de Bensalém. A chegada da tripulação do navio à

elementos cristãos, após a descrição de um "milagre", conforme está narrado illla e 0 primeiro contatO dela com os habitantes de Bensalém é emblemático,

na obra: sobretudo pelas vestes, pergaminhos c outros sinais cristãos que os habitantes

de Bensalém levavam consigo, e que foram rapidamente reconhecidos pela tri­


Cerca de vinre anos depois da ascensão do nosso Salvador, aconreceu
pulação recém-chegada, e também pela descrição feita pelo narrador da história
ser visto pelo povo de Renfusa {...} duranre a noite (a noite era nublada
c calma), a algumas milhas mar adenrro, um grande pilar de luz, não do sinal de reverência a Deus manifestada por um dos líderes da ilha que inter­
facecado, mas em forma de coluna ou cilindro, formando um grande pelou os recém-chegados antes de lhes dar permissão para acracar.28 E ainda, a
caminho, nascendo do mar em direção aos céus; e no alco resplande­
cia uma grande cruz, mais brilhame e fulguranre que o corpo do pilar
(Bacon, 2000, p. 230). 21
Na primeira página da edição brasileira de Nova lltlfilllidn, Bacon (2000, p. 223) faz-se alusões
a Sa1mos 106 24· e Gêncsis 1 ' 9: Encrecanco elevamos nossos corações c vozes a Deus, que
• ' " ,

·.
mostrou seus milagres nas profundezas, suplicando de Sua Merce• que, assim como no princípio
descobriu a face das profundezas c criou a terra seca, descobrisse-nos agora terra, q�e nao
_

26 Segundo o relato, ao longo da história teriam sido apenas 13, os que desejaram retornar as
suas cerras; c embora existisse a possibilidade de terem relatado sobre a existência da ilha, sua queríamos perecer". Já na página seguinte, ao relatar o encontro da tripulação co� os habocanres
descrição seria cão utópica, que provavelmente seria considerada ou confundida com urn sonho. da ilha, Bacon menciona um papel timbrado com as asas de mn querubtm, trazodo por tun dos
.,
O faro de os habirnnces da ilha manterem-se isolados do rescanre do mundo e, mesmo assim, nativos, em referência ao símbolo da bendição divina, que aparece no Exodo 37. 7 ·9.
serem possuidores de conhecimentos sobre as particularidades de outras nações é motivo de o; nrao
>• O encontro é assim narrado por Bacon (2000, p. 255).. ... I mem que antes descrevi levantou-
• o 10
.
curiosidade c perplexidade da tripulaçflo recém-chegada a Bensalém. O mistério, contudo, é se e com voz force perguncou em espanhol: "Sois cristãos?. Respondemos que som, s�m edo,� P:
resolvido quando, ao falar da Casa de Salomão, é feita uma descrição de como csce cipo de causa da cruz vista na mensagem. A esta resposra, o homem em questão ergueu a mao di etta pa
r
..
conhecimento é obrido. Esra questão será retomada posteriormente. 0 céu, levando-a suavemente à boca (este era o gesto por eles usado para agradecer a Deus).

1 02 103
Laura Qulõones Neira - Rafael Cunha - Sérgio Zanatta - Suleica Ferna nda Biesdorf Kretzer CAPITULO 3 - Ficção ou Utopia?

constatação de que a maior riqueza e mais importante instituição da ilha - a da corrupção e da torpeza" e "nada há entre os mortais de mais belo e admirável
Casa de Salomão - era dirigida por padres e sacerdotes, os quais eram venerados que a mente casca desce povo." Em Bensalém não há, por exemplo, "bordéis,
e respeitados no seio da sociedade.
casas dissolutas, nem cortesãs ou qualquer coisa do gênero."
Em estreita relação com os princípios cristãos, Bacon (2000, p. 238)
O que, para nós, permanece sem resposta é se a questão da moralidade é
descreve uma cerimônia realizada na ilha, conhecida como "Festa da Família",
uma crítica que Bacon faz à sociedade europeia da época ou apenas uma espécie
que consiste em um costume "natural, piedoso e venerável." O relato dessa festa
de propaganda moralista para evitar contraposições à sua utopia - dadas as
é a única descrição feita acerca do cotidiano da sociedade, uma vez que Bacon
não tem a preocupação em descrever com detaiJ1es a forma de organização social influências religiosas da Inglaterra anglicana dos séculos 16 e 17 - esta é uma

de Bensalém. Ainda assim, esse relatO é importante para conhecermos o que o resposta que não conseguimos levar a bom termo. O que se pode afirmar é que
autor cem a dizer sobre os costumes, a moral e a organização familiar. Na festa o desideraco central que Bacon queria transmitir com a Nova Atlâmid4 é a de
o Tirsan - como é chamado o patriarca de cada família - durante dois dias reúne uma sociedade governada pelos princípios do conhecimento científico (pautado
seus familiares e dedica-se à manutenção, nos termos de Bacon (2000, p. 238) no mécodo defendido por ele), o que por si só já era revolucionário para sua época
do "bom estado da família". e, assim, passível de críticas das mentes mais conservadoras da Europa.
A descrição deste evento aponta que, primeiro, a sociedade de Bensalém É possível, portanto, que Bacon não quisesse se "indispor" com críti­
é predominantemente patriarcal - o que fica ainda mais evidente com o relato
cos mais conservadores sobre outras questões "mal-resolvidas" de sua sociedade
acerca de outros momentos da festa, em que as mulheres ocupam lugar menos
(aliás, a trajetória de vida de Bacon revela sua predisposição em estabelecer laços
relevante e, aparentemente, de submissão. Também evidencia-se nesse relato, a
sociais que o ajudassem a se manter no poder). Esta é, contudo, uma leitura
influência das decisões familiares sobre os indivíduos e a autOridade do patriarca
dentre outras possíveis sobre os princípios de moralidade, religiosidade, obediência
para o decreto das regras a serem seguidas. Do mesmo modo, fica evidente a
e virtudes do povo, expressas na Nt)Va Atlâmida.
obediência "natural" das pessoas para seguirem tais regras, bem como a questão

da moralidade, posto que a família delibera e censura os "maus caminhos" que Ainda sobre posições políticas, Bacon (2000, p. 242)- utilizando meta­
porventura venham a ser seguidos por algum de seus integrantes. foricamente palavras expressas por sua personagem denominada Joabin - critica
A questão da moralidade do povo de Bensalém é retomada no texto de a sociedade europeia no que diz respeito ao matrimônio, classificando-o "como
Bacon (2000, p. 242-243) quando o narrador encontra o mercador judeu/9 um remédio para a concupiscência ilícita", pois quando os homens dispõem de
para quem "não há sob os céus nação tão casca como Bensalém, nem cão livre "um remédio mais agradável para sua vontade corrompida, o casamento é quase
rejeitado." Isto explicaria o grande número de homens europeus que prefeririam
uma vida "impura e libertina de solteiros", postergando o casamento. Além
29 A tÍtulo de curiosidade, é interessante observar o aparente estereótipo de judeu que Bacon retrata
quando se refere a este mercador e a outros judeus da ilha. Para Bacon (2000, p. 24 l ), enquanto disso, quando esses homens casam, observa Bacon (2000) que:
judeus de outras partes do mundo "odeiam o nome de Cristo, e guardam um secreto rancor
contra ll povo no meio do qual vivem" os judeus da ilha têm uma postura diferente, reconhecendo
o casamento não é para eles mais que um negócio, em que se busca uma
a grandiosidadc de Jesus Cristo c amando sinceramente a nação de Bens!t.lém. Possivelmente esta
ideia esteja relacionada a uma preocupação e/ou preconceito religioso com relação aos judeus aliança vantajosa, um doce, ou reputação, e apenas um vago desejo de
que viviam na Inglaterra daquela época, visto que esta temática aparece também em William procriar, c não mais uma autêntica união nupcial entre o homem e a
Shakespearc ( l564-1616), especialmente em O 11-!eret�dor de 1-tneza ( 1598). mulher, como foi originalmente instituído (p. 243).

1 04 105
Laura Quli\ones Ne l ra - Rafael Cunha - Sérgio Zanatta - Sulelca Fernanda Blesdorf Kretzer CAPITULO 3 - Flcçao ou Utopia?

Na conversa do narrador de a NfWa Atlârttida com o judeu, encontram-se que a "nova" Adântida faça uma alusão à célebre At!ântida, descrita por Platão
algumas afirmações que, se não revelam a verdadeira opinião de Bacon sobre os (20 1 1 ) em Timeu e Crítias. Mais do que isso, como no Novum Orgamm1 Bacon
princípios morais e religiosos, certamente contribuíram para que a Nova Jltlânti­ (2000, p. 17) faz crítica ao Órgan011 de Aristóteles, a designação da Nova Atlân­
da não fosse questionada por críticas advindas do seu círculo social conservador. tida tem um "significado simbólico, contrapondo-se à Adâncida mencionada na
A tículo de ilustração destacamos crês descas afirmações, que segundo Bacon República de Platão", evidenciando-se a aversão de Bacon à Filosofia de ambos
(2000, p. 242-243) são: i) " O desejo, com efeito, é semelhante aos incêndios, os gregos.
que se extinguem se as chamas são rapidamente afogadas, mas se são sopradas
Por meio do relato de um sacerdote de Sais, no delta do Nilo, ao legis­
ardem com mais violência."; ii) "Aquele que não é casco não se respeita a si
lador ateniense Sólon (século 6° a.C.), Platão revela a existência de um imenso
mesmo"; e iii) "O respeico de si mesmo é, juntamente com a religião, o mais
continente para além das Colunas de Hércules (estreitO de Gibraltar), onde cerca
poderoso freio ao vício."
de 9 mil anos antes os reis haviam construído um império imenso e maravilhoso.
A descrição daAtfântida é bastante precisa e revela a existência de um continente
3.4 4TLANTID4S: O ENCONTRO DO NOVO COM O VELHO desconhecido para os gregos à época de Platão. Como se sabe, a curiosidade pela
üha de At!âtttida atravessou os séculos e ainda hoje gera especulações das mais
Em primeiro luga1; pedimos
variadas.
aos homem que 11ão prestlmam se1·
11osso prop6sito, à mtmeim dos antigos Na descrição da lltfântida c de seu povo, Platão fornece detalhes31 sobre
gregos, ott de ctfgtttJS modernos (...} uma civilização avançada, que dominava muitas técnicas de diferentes naturezas
fundar alguma nowt seita de
e, com elas, ajudaram a criar um requintado império. Hábeis navegadores c cons­
filosofia (Bacon, 2000, p. 87).
trutores incomparáveis, os atlantes consideravam-se descendentes de Poseidon.
Os clássicos30 em geral possuem como característica fundamental ultra­ A ilha, por sua vez, era extremamente rica em vegetais e minerais - dentre os
passarem ou extrapolarem seus tempos, concextos e momentos históricos - quais ouro, prata, bronze e oricalco- um metal muito valioso, do qual só se sabe
muiro embora as visões de mundo dos autores possam estar impregnadas de o nome, permanecendo sua composição como um segredo dos adanres.
elementos de sua cultura e de seu contexto histórico. A Nova Atlâmida, assim
Na versão de Bacon, embora os habitantes da "nova" Atlântida não
como outros clássicos, mantém esta característica.
fossem descendentes diretos de nenhuma divindade, as origens desta sociedade,
A descrição de uma civilização localizada no meio do nada, ao mesmo que pode ser considerada avançada, estão intimamente ligadas ao sobrenatural.
tempo desconhecida da civilização europeia e mais avançada que esta - científi­ Suas origens estão fundamentadas no evento que relata uma aparição milagrosa
ca e tecnologicamente - não era ineditismo à época de Bacon. Não é por acaso de um pilar de luz no meio do mar em direção aos céus c o reconhecimento
que este evento era uma obra de Deus. A partir deste reconhecimento divino,
os habitantes da ilha puderam recolher um baú com elementos divinos, como
3° Calvino ( 1993, p. 9) apresenta 14 definições sobre clássicos. i\ primeira é a de que "os clássicos
são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: '"Estou relendo .. ." e nunca 'Estou lendo'."
Outrns definições interessantes trazidas pelo amor dizem respeito à ideia de que os clássicos são
uma releitura do que j:l passou c uma antecipação do que ainda vai chegar. Em outms p:tlavras, J1 A revisão de literatura aponta que, nem cronologicarncncc, nem em cermos de localização c
os clássicos crazcrn sempre novidades, todavia deixam algo a ser dito. Ver as demais definições espaço geográfico, a AJit111titla poderia cer cxiscido cal corno descreve Platão - o que confere à
em Por q11e ler os dássirru, de Ítalo Calvino (1994). obra caráter utópico.

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Laura Quli\ones Neira - Rafael Cunha - Sérgio Zanatta - S u leica Fernanda Blesdorf Kretzer CAP[TULO 3 Ficção ou Utopia?
-

o Antigo e o Novo Testamentos, além de uma carta de São Bartolomeu. Esta !idade, contudo, não é uma exclusividade de Nova Atlântida: ramo em obras
carca assegurava ao povo que recebesse aquele cofre como sua salvação, paz e utópicas quanto em obras de ficção pode-se perceber elementos da realidade, ou
bem aventurança, por ordem de Deus. seja, aspectos das experiências que permeiam a vida de seus autores. 32

Curioso observar que se a Atlâmidct de Platão era descrita como uma Obviamente, esta dificuldade de descolamcnco da realidade não pode ser
sociedade erguida pelo poder divino de Poseidon, a Nova !ltlântitla de Bacon não atribuída apenas a uma limitação dos autores. De cerco modo, há uma explicação

difere muito neste aspecto, particularmente no que diz respeito às origens sobre­ plausível: é que tanto em obras de ficção científica quanto em obras utópicas, o
descolamenro da realidade não pode ser cão radical a ponto de não ser compre­
naturais para a aparente perfeição das duas sociedades. A diferença maior talvez
ensível do ponto de vista das pessoas que vivem em mundos concretos. Mesmo
resida no faro de que a Atlântida de Platão - em termos de desenvolvimento - é
nas obras cujo enredo é ambientado em um futuro - às vezes mais distante
uma "permissão" dos deuses; já na Nova Atlântida de Bacon, o desenvolvimento
-, elementos da realidade presente são mantidos para que sejam preservadas
científico e tecnológico é fruto do conhecimento adquirido pelos homens, por
algumas conexões necessárias a sua compreensão.
meio da experimentação e da busca do domínio da natureza.
Em Nova Atlâmida não há um descolamenco elo tempo, ou seja, os faros
Além deste, outros clemencos aproximam os cenários imaginados para as
ocorridos na Ilha de Bcnsalém estão no mesmo tempo histórico dos eventos ocor­
duas ilhas: ambas são autossustenráveis, são requintadas e possuem uma ciência
ridos na Europa- recém saída da Idade Média e vivenciando uma modernidade
e uma tecnologia avançada para a época em que foram ficticiamente criadas.
nascente. E, por este motivo, compreender as concepções de Bacon sobre ciência
Além disso, são descritos espécimes únicos de animais e plantas, qualidades de c produção do conhecimento torna-se um fator importante para entender a obra.
minerais e cores que não se encontram em outras partes do mundo, o que con­
tinua constituindo um "segredo" dos habitantes de ambas as ilhas.
3.5 CONCEPÇÕES BACOHIANAS DE CIÊNCIA E DE TECNOLOGIA
A utopia que Bacon construiu com a Nova Atlântida é a de uma sociedade
PARA COMPREENDER A NOVA ATLÂNTIDA
governada pelos princípios do conhecimento científico; uma sociedade perfeita,
harmoniosa e tecnic;unente superior. O avanço técnico da llha de Bensalém, por Seria algo insensato, em si mesmo
contraditório, estimarpoder ser t·ealizado
sua vez, garantiria um estado de bem-estar social aos seus habitantes, à medida
o que até aqui uão se corrseguitt fazer,
que as descobertas (possíveis por meio destas técnicas) teriam uma aplicação salvo se sefizer 1/JO eleprocedimentos
prática à população, seja para suprir suas necessidades básicas - curar doenças, ainda não tentados (Bacon, 2000, p. 34).
por exemplo- seja para prolongar a vida e evitar (ou se preparar para enfrentar)
Nas primeiras páginas da edição brasileira de Nova Atfântida, Bacon
eventos adversos.
(2000, p. 5) é descri co como "primeiro dos modernos e ú Icimo dos antigos",
A Nova Atlântida, como já ressaltamos, é uma utopia que ultrapassa seu "fundador da ciência moderna e do empirismo" e "inventor do mécodo experi­
tempo histórico. E, embora atemporal (não está explícito em qual tempo a obra mental." O que isso significa concexcualmente?
é localizada) é importante ressalvar que Bacon é influenciado pelo momento
histórico em que vive, quando descreve a Ilha de Bensalém. Assim, ainda que
n No Capítulo 5: f!.ducaçtio, trabalho e temologú1 no Admirável Mundo Nol){): mtre a realidt�dt e aficrão,
se trace de uma utopia, são resguardados muitos dos elementos que balizavam
é possível constatar que Aldous Huxley faz alusão a escritores c protagonistas políticos de sua
o conrexco social no qual Bacon escava inserido. Este não descolamenco da rea- época por meio do nome de seus personagens.

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Laura Qulr'iones Nelra - Rafael Cunha - Sérgio Zanatta - Suleica Fernanda Biesdorf Kretzer CAPITULO 3 - Flcçao ou Utopia1

Como vimos, a Europa dos séculos 1 6 e 1 7 passava por uma série de Chauí (2000) explica as crês grandes linhas que fundamentaram as

transformações, em muitos aspectos, os quais tinham influência direta sobre as concepções filosóficas deste movimento essencialmente europeu, denominado

concepções de ciência c conhecimento vigentes à época. Chaui (2000), ao recons­ Renascença:

truir a historicidade da Filosofia ocidental, deixa pistas para que compreendamos


1. a originária em Platão e no neoplaronismo, em que a natureza
o que se entendia por ciência c conhecimento à época de Bacon. era vista como um grande ser vivo e que o homem, como inte­
grante da natureza, podia agir sobre ela por meio da alquimia,
Para Chauí (2000), é possível identificar, em dois períodos distintos, con­
da magia natural c da astrologia, pois sendo o mundo consti­
cepções diferentes nesse campo. Foram esses contextos nos quais Bacon ceve tuído por ligações e vínculos secreros entre as coisas, o homem
presença ou recebeu influência. Um primeiro período conhecido por Escolástica podia conhecer estas ligações e criar ourras;

- a Filosofia ocidental da Idade Média, entre os séculos 8° e 1 4 - ainda bastante 2. a ideia de valorização da vida ativa (política), pautada em pen­
presente; c um segundo período marcado pelo resgate de uma Filosofia greco­ sadores Aorentinos, que dcCcndiam ideais republicanos contra o
poder dos papas c dos imperadores, com o resgate de amores da
-romana no período renascentista (séculos 14 e 16).
Antiguidade e o renascimento da liberdade política e
No primeiro período a marca característica da Filosofia medieval era a 3. o ideal de homem como artífice de seu próprio destino, seja por
busca racional de provas da existência de Deus e da alma. Na Europa medieval meio dos conhecimentos (astrologia, alquimia, magia), da polí­
tica (ideal republicano), seja das técnicas (Medicina, navegação,
a Igreja Católica Romana exercia um poder absoluto sobre todas as coisas, inclu­
Arquitetura) ou das Artes.
sive sobre a produção das verdades a partir de uma "releicura", principaLnence,
de Platão c de Aristóteles. Obviamente que estas concepções do começo da Idade Moderna causa­
ram uma grande efervescência de ideias na Europa c oa cultura ocidental como
A racionalidade do homem, assim, escava condicionada e submissa ao
um todo, e se estenderam até a época de Bacon, período que ficou conhecido
divino, ao sobrenatural. As explicações para os fenômenos naturais não podiam
como Grande Racionalismo Clássico e que, segundo Chaui (2000), foi marcado
ser elaboradas por meio, unicamente, da razão humana: o "roque" de Deus pre­
por três grandes mudanças intelectuais: i) o surgimento do "sujeito do conhe­
cisaria estar presente.33 Ainda que no século 17 o poder da Igreja Católica tenha
cimento", da consciência de si reflexiva (ou seja, "a consciência que conhece sua
diminuído na Europa, seu longo domínio na cultura ocidenral deixou marcas
capacidade de conhecer"); ii) a mudança do objeto de conhecimento (as coisas
difíceis de serem esquecidas cão rapidamente.
externas, a natureza, a vida social e política), que só pode ser conhecido se for
Em um segundo momentO, entre os séculos 14 e 16, a descoberta de considerado como uma representação, expressão de ideias ou conceitos formu­
obras de Platão, desconhecidas na Idade Média, de novas obras de Aristóteles lados pelo sujeito do conhecimento e iii) a concepção de realidade como um

e a recuperação de grandes obras de artistas e de autores gregos e romanos, faz sistema racional de mecanismos físicos e matemáticos, a partir dos quais rodos

emergir outro tipo de filosofia - e consequentemente, de concepção sobre ciência os fatos da realidade são descritos, interpretados e explicados.

e conhecimento - teoricamente conhecida como Filosofia da Renascença. Chauí (2000) acrescenta que neste período:

A realidade é um sistema de causalidades racionais rigorosas que podem


11 O be.rt se/ler O Nome da RPstt (/1 nome de/la 1vsa, 1980), de Urnberto Eco, que deu origem ao filme ser conhecidas e transformadas pelo homem. Nasce a idéia de experimen­
homônimo, lançado em 1986, é emblemático neste sentido. tação c de tecnologia (conhecimento teórico que orienta as intervenções

11o 111
Laura Quilioncs Nelra - Rafael C unha - Sérgio Zanatta - Suleica Fernanda Blesdorf Kretzer CAPITULO 3 - Ficção ou Utopia?

práticas) e o ideal de que o homem poderá dominar tecnicamente a que o domínio da natureza pelo homem dependia do conhecimento adquirido
Natureza e a sociedade. Predomina, assim, nesse período, a idéia de
por meio da experiência c do método empírico indutivo, o único que poderia
conquista científica c técnica de roda a realidade, a parrir da explicação
njudá-lo a alcançar esse domínio.3�
mecânica e matemática do Universo e da invenção das máquinas, graças
às experiências físicas e químicas (p. 57). No Nw11m Orgamm1 Bacon faz uma contraposição à obra Orgamm de Aristó­

teles, a quem Bacon teria chamado de detestável sofista (Seymour-Smith, 2002a).


É nescc contexco que Bacon se insere. Como um dos represcncanres do Ames do pensamento de Bacon prevaleciam as concepções e métodos teológicos. Os
Racionalismo Clássico faz críticas à Filosofia anterior a sua época, no conjunto teólogos partiam de dogmas religiosos c pressupostos metafísicos e com base nestes

de suas obras, marca uma ruptura com o pensamento científico originado deduziam conclusões. Bacon concescou a afirmação medieval de que a verdade

com os gregos. Bacoo (2000, p. 10) pretendia promover "um verdadeiro poderia ser elucidada via pouca observação e muito raciocínio, ou seja, de que a

e extraordinário progresso do saber" e "clamava por uma reforma total do busca do conhecimento poderia ser contemplativa, ao invés de experimemal.36

conhecimento humano" que fosse úcil e tivesse resultados práticos para a vida O pensamento vigente à época de Bacon escava pautado em Aristóteles

do homem.34 e baseava-se no método dedutivo. Nesse método, o fato particular deriva do

universal, ou seja: trata-se de tun raciocínio que vai do universal ao particular,


Esta crítica de Bacon tem endereço certo: os filósofos gregos e esco­
estabelecendo princípios e determinando novos axiomas. Por exemplo: se alguém
lásticos e os platônicos de rodos os tempos, que ele compara com aranhas:
deduz algo, faz isso a partir de um dado qualquer, que poderá ser uma premissa,
tecem ceias maravilhosas, mas permanecem alheios à realidade. Bacon critica
alguns pressupostos, ll!n dogma ou verdades irrecorquíveis. Logo, se a premissa
também Ariscóceles c a busca pelo conhecimento por meio do método con­ não for verdadeira, a dedução também não poderá ser verdadeira.
ccmplacivo, argumentando que apenas Deus e os anjos podem ser especta­
O método dedutivo de Aristóteles, pautado nos seus silogismos/7 é defi­
dores. Para Bacon, o conhecimento puramence teórico ou contemplativo é
nido por Abbagnano (2007, p. 896) como "um discurso em que, postas algumas
inócuo, por isso dedica-se à criação de um método eficaz para o saber, mais
coisas, outras se seguem necessariamente." Por definição, o silogismo ariscocélico
especificamente o saber para conquistar o poder sobre a natureza (pois o no raciocínio dedutivo implica que a relação entre duas determinações de um
saber não cem valor apenas em si mesmo), c que permitisse o progresso da objetO de conhecimento (uma "coisa") só pode ser escabelecida a partir daquilo

ciência.

Outro ponto importante na concepção baconiana de ciência e conhe­ l) Dacon acreditava no poder·· do conhecimenro, e frequentemente esta ideia aparece relacionada
"

ao ··saber'". A Filosofia de Bacon, porém, não pretendia entregar o saber ao homem como
cimento é a busca da verdade c do conhecimento pela experiência. Bacon não
instrumento de dominação de oucros homens: Bacon desejou que a ciência servisse a roda
apenas defendia c escrevia acerca desta ideia; ele a praticava - afinal, foi utilizan­ humanidade, em sua lut:1 permanente com a natureza.

J6 A este respei tO conforme Seymour-Smith (2002n, p. 288) Dacon teria ditO: ··os homens, até
,
do este método que adquiriu um resfriado que o levou à morte. Bacon acreditava
agora, pouco e muitO superficialmente se rêm dedicado à experiência mas rêm consagrado um
,

tempo i nfinito a medicações e divaga�<ics engenhosas.""

l7 A palavra silogismo, em sua origem , designava c:ílculo. Foi empregada por Platão para designar
!' N a imagi n:íria Nova lltl!intidt�, Dacon reforça esra ideia de ciência c conhecimento científico como o raciocínio em geral e, posteriormente, conforme Abbagnano (2007, p. 896), adorada por
"

tendo uma finalidade útil e prática ao homem, conforme veremos adi ame. Aristóteles para indicar o tipo perfeito do raciocínio dedutivo."

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Laura Qulnones Nelra - Rafael Cunha - Sé rgio Zanatta - Suleica Fernanda Biesdorf Kretzer CAPITULO 3 - Ficção ou Utopia?

que a "coisa" necessariamente é, ou seja, sua substância - entendida como um ídolos, que eram, segundo o filósofo, obstáculos à ciência: l 0) os ídolos da raça;
conceito metafísico. Um exemplo clássico de silogismo do pensamento deduti­ 2") os ídolos da caverna; 3°) os ídolos da vida pública; 4°) os ídolos da auroridade.
vo pode ser expresso no seguinte raciocínio: i) rodos os homens são mortais; ii) A Teoria dos Ídolos, como é chamada, é fundamental para o entendimento das
Sócrates é um homem; iii) logo, Sócrates é mortal. concepções de ciência em Bacon.

Bacon defendia a ideia de que a busca da verdade só pode ser feira pelo Chauí (2000) assim sintetiza a Teoria dos Ídolos baconiana:
método indutivo, cuja construção dos axiomas parce dos sentidos e do particular,
L ídolos da caverna: as opiniões que se formam em nós por erros
ascendendo contínua c gradualmente a fim de alcançar, por fim, os axiomas mais
e defeitos de nossos órgãos dos sentidos. São os mais fáceis de
gerais. Com este mérodo descobrem-se os particulares por meio da observação e
corrigir por nosso intelecto;
não por autoridade ou por premissas determinadas. Assim, resolve-se o problema
2. ídolos do f
órum: são as opiniões que se formam em nós como
e determinam-se os princípios pela indução.
conseqüência da linguagem e de nossas relações com os outros.
Para Bacon, a ciência tem o objetivo de estabelecer leis. Em razão deste São difíceis de vencer, mas o inrelecto cem poder sobre eles;

objetivo, deve-se realizar uma enumeração exaustiva das manifestações de um 3. ídolos do teatro: são as opiniões formadas em nós em decorrên­
fenômeno qualquer, ao mesmo tempo em que se efetua o registro das suas cia dos poderes das autoridades que nos impõem seus pontos
variações. Os resultados que daí emergirem serão depois testados por meio de de vista e os transformam em decretos c leis inquestionáveis.
Só podem ser refeitos se houver uma mudança social e política;
experiências. Será pela via do estudo e da observação dos casos particulares que
se chegará às verdades mais gerais e, nesse processo, a experimentação se faz 4. ídolos da tribo: são as opiniões que se formam em nós em decor­
rência de nossa natureza humana; esses ídolos são próprios da
imprescindível. Conforme Galvão (2007), Bacon foi chamado de "profeta da
espécie humana e só podem ser vencidos se houver uma reforma
técnica". Ele fez da experimentação38 a base de seu método sem, entretanto,
da própria natureza humana (p. 144).
prescindir da razão e, por esse motivo, pode ser considerado o pai do método
empírico experimental, alicerce da ciência moderna.
Apesar de a Teoria dos Ídolos ter sido considerada um dos aspectos mais
A contribuição de Bacon para a ciência moderna é justamente o faro de fascinantes e de permanente interesse da Filosofia de Bacon, ela ocupa apenas
ele antecipar, tanco no N(}l)tf11l Orgamtm quanto na sua teoria dos ídolos, o germe uma posição inicial39 dentro da "Grande Instauração" (Bacon, 2000). Em síntese,
da ciência da modernidade. Embora Bacon não tenha obtido nenhum grande podemos afirmar que a Filosofia de Bacon centra-se em alguns pontos fun­
progresso nas Ciências Naturais - afinal, morreu remando fazer um e>rperimenro damentais como: oposição ao modelo aristotélico de busca do conhecimento
cie�tífico, segundo consta em sua biografia -, ele foi o auror do primeiro esboço contemplativo, sem fins práticos; formulação de um método de investigação
racional de uma metodologia científica. que seja capaz de permitir o correto conhecimento dos fenômenos da natureza,
partindo-se de faros concretos (experiência) e alcançando-se as formas gerais que
No Novmn Orgamtm, preocupou-se inicialmente com a análise dos fatores
constituem suas leis e causas - método indutivo.
que ele considera responsáveis pelos erros cometidos no domínio da ciência.
Bacon, então, classificou estes erros em quatro grupos e deu a eles o nome de

39 Bacon teria chamado a Teoria dos Ídolos de "parte destrutiva" da obra, enquanto que a "parte
construtiva" inicia-se com a formulação de um novo mérodo de investigação da natureza: o
l3 Para Dacon, só con hece quem cxperimenra (Oliveira, 20 lO). mécodo indutivo.

114 115
Laura Qulnones Nelra - Rafael Cunha - S érgio Zanatta - Sulelca Fernanda Blesdorf Kretzer CAPfTULO 3 - Flcçao ou Utopia?

Acerca das concepções sobre natureza, Bacon a define em três formas, A ciência, para Bacon, justifica-se por seu caráter prático (utilitarista)

ou estágios: livre, errática e artificiaLnente transformada. A natureza é livre ou c o saber por ela gerado deve servir para o progresso da própria ciência e em

espontânea quando segue seu curso natural (como o movimento das estrelas ou benefício do homem para incrementar seu poder de controlar a natureza - e não

a reprodução dos animais). É errática quando, perversamente ou por violência, o poder dos homens para controlar oucros homens. A função fundamental do

abandona seu curso normal (Oliveira, 2010). Esse seria o caso das anomalias ou conhecimentO científico - domínio sobre a natureza - leva o homem a desenvol­

deformidades, que Bacon acredita serem importantes fontes de escudo e com­ ver técnicas para atingir seus objetivos. Por este motivo a técnica e a tecnologia

preensão da natureza e suas possibilidades. E, no terceiro estágio, a natureza exercem papel fundamental no pensamento baconiano.

apresenta-se moldada e transformada: não é mais uma arte de Deus (o artífice Bacon manifesta uma crítica à estagnação das ciências de sua época,
original), mas uma nova natureza moldada pela mão do homem. A função do quando as compara com o progresso constante das técnicas, que se desenvolviam,

modelo de ciência proposto por Bacon é, neste sentido, a de submeter a matéria segundo ele, pela experiência:

e seus corpos a rodos os tipos de experimentação quantOs forem possíveis, a fim


Assim, diferentemente dos sistemas filosóficos, que são "adorados como
de obrigar a natureza a revelar seus limites.
estátuas prontas c acabadas", nas artes mecânicas que se enriquecem

A esre respeito Oliveira (2010) explica:


das luzes da experiência acontece o contrário. Estas "continuamente se
acrescentam c se desenvolvem, de início grosseiras, depois cômodas e
A ciência que Bacon quer instituir visa ao poder de conquist:tr a natureza aperfeiçoadas, c em contínuo progresso·· (Oliveira, 2010, p. 101).

e subjugá-la, isto é, mexer em suas fundações. A possibilidade de mexer


em suas fundações não significa que não haja leis a serem respeitadas: A técnica, produto do conhecimento científico utilitarista40 para o bem­

para controlar a natureza, adverre Bacon, rem-se anres que obedecê-la. -estar do homem e seu domínio sobre a natureza, é outro elemento essencial
Mas essa obediência não se refere às suas manifestações externalizadas, na obra filosófica de Bacon e que aparece na Nova Atlântida. Segundo Chauí
mas a seus segredos mais íntimos (p. 136).
(2000, p. 144), ele acreditava que "o avanço dos conhecimentos e das técnicas,
as mudanças sociais e políticas e o desenvolvimento das ciências e da Filosofia
A revelação dos segredos da natureza, propostO por Bacon, não corres­
propiciariam uma grande reforma do conhecimento humano, que seria também
pende à descoberta de suas essências, como no modelo aristotélico; ou às expli­
uma grande reforma na vida humana." Todos estes elementos das concepções
cações últimas da natureza. Ao contrário, esta revelação é a própria fórmula de
de ciência, técnica e método de busca do conhecimento estão presentes nos
recriação da natureza. Neste sentido, conhecer as respostas dos corpos naturais
relatos da Nova lltlântida, que ajudam a perpetuar seu pensamento ao longo
em função das ações mecânicas e mesmo violentas a que são submetidos nas
da História.
práticas experimentais é, segundo Bacon, a fonte de operação prática. É a subju­
gação da natureza conseguida por meio da ciência experimental, entretanto, que

libera o homem de sua sujeição à natureza livre, ou seja, em seu curso natural

(Oliveira, 20 I 0). Daf decorre o sentido de ciência baconiana como tecnologia e ·i<> O princípio utilitarista baconiano, como método, nos séculos seguintes, é potencializado e
extrapolado em diferentes áreas c com finalidades diversas. Um exemplo clássico é o princípio
seu caráter pragmático e utilitário - no sentido de conhecer o funcionamento da
utilitarista da concepção panóprica de Jercrny Bencham (1768-1832), empregada para fins de
natureza livre a fim de que, transformada, ela possa servir ao homem. vigilância c controle. Ver o Capítulo 4.

116 117
Laura Qulnones Nelra - Rafael Cunha - Sérgio Zanatta - Suleica Fernanda Blesdorf Kretzer CAPITULO 3 - Ficção ou Utopia?

3.5.1. Governo, Ciencla e Tecnologia na Nova 41/ântida. a Casa de Salomão decisões de Bensalém. Assim, poder e conhecimento se entrecruzam na Casa de
Salomão, tanto para o governo da ilha quanco para o povo da Nova At!ântida ­
Não é, com efeito, empresafácil
uma alusão de Bacon à fusão destas duas categorias humanas.
tralljmitir e explicar o que pretmdemos,
p(}rque as C{}ÍJas novas são sempre O texto também deixa claro que a finalidade da Casa de Salomão e de
compreendidas por analogia com as
suas realizações seria servir ao povo, logo, o governo também estaria voltado à
antigas (Bacon, 2000, p. 39).
felicidade do povo. Levando-se em consideração o objetivo42 da Casa de Salomão,
Na descrição que Bacon faz à Casa de Salomão, na Nova lltlântida, fica conforme já descrito, as decisões políticas de BensaJém estão atreladas - e até
muito evidente sua concepção de mécodo científico. Embora não seja descrito mesmo mantêm relação de dependência - às questões que envolvem o domínio
decalhadamente, o método utilizado para os inventos e experimentos (além da
da natureza pelo homem, por meio da experiência e do conhecimento científico.
observação) refere-se sempre ao uso de instrumentos para aplicação de conheci­
mentOs, experimentos com diferentes tipos de objetos e procedimentos experi­ Neste sentido, I3acon deixa claro o sentido de sua utopia, que necessaria­

mentais, como reproduzir eventos naturais, etc. mente representa mna ruptura ao modelo de governo europeu do século 17: a
de que o poder emana do conhecimentO proveniente da experiência humana, c
Se, enquanto cientista, Bacon propunha uma ruptura no que se refere à
não de fundamentos teológicos que marcaram as monarquias europeias da Idade
busca pelo conhecimenco,41 a descrição que faz da Nova Atlântida propõe uma
Média até a modernidade.
nova ruptura, desta vez com o modelo de sociedade europeu do século L 7 :
especialmence, por intermédio da ideia d e que o Estado poderia ser governado Dadas as características c finalidades do presente textO, não se pretende
pela ciência e que seus produtos resultariam em bem-estar à sociedade. É neste fazer uma apresentação detalhada das realizações da Casa de Salomão. Ressalta­
contexto que Bacon apresenta a Casa de Salomão e descreve algumas de suas
mos, tão somente, que nas páginas em que Bacon descreve o aparato tecnológico
realizações - que por si sós, para sua época, poderiam ser consideradas revolu­
e científico da Casa de Salomão e suas realizações, aparece com ênfase que as
cionárias.
experiências envolvem objetos de diferentes naturezas. Dentre elas, experimentos
Em diferences momencos da narrativa a Casa de Salomão aparece como com plantas e ervas; com animais (anatomia, intervenções cirúrgicas, conservação
o principal cencro de produção de conhecimento da Ilha de Bensalém, mas não de corpos, tratamento de doenças, longevidade, etc.); minerais (reprodução c
apenas isso: efetivamente, ela também aparece como centro de poder da Nova
manejo); fenômenos naturais e meteorológicos; produção de energia, de medi­
Atlâ11tida.
camentos, venenos, bebidas e alimentos; cultivo de plantas e animais; experi­
Pelo que se observa na narrativa, os mais ilustres habitantes de Bensalém mentos e invenções mecânicas e termodinâmicas; manipulação de sementes e
pertencem à Casa de Salomão, incluindo sacerdotes, sábios e o governador da solos para geração de espécies novas; instrumentos bélicos; equipamentos para
ilha. Não há descrição sobre a organização política, nem menção a soberanos
voar; matemática; astronomia; geometria, dentre outros.
e reis. De toda forma, a Casa de Salomão parece ser o importante centro de

42 De acordo com Bacon (2000, p. 245), "conhccimcnco elas causas e dos segredos dos moviJncncos
41 Bacon defendia que o domínio da natureza pelo homem passava pelo conhecimento adquirido das coisas e a ampliação dos Jimiccs do império humano para a realização de todas as coisas que
pela experiCncia c pelo método, diferenre das concepções dominanres na época. forem possíveis."

118 119
Laura Quliiones Nelra - Rafael Cunha - Sérgio Zanatta - Suleica Fernanda Blesdorf Kretzer CAPITULO 3 - Flcçao ou Utopia?

Com efeiro, as propriedades dos experimentos e realizações da Casa de Os escritos de Bacon não enfatizaram a educação propriamente dita,

Salomão - mesmo os de reprodução de movimentos do mundo natural - são todavia não se pode negar a sua contribuição para a formação da consciência

únicos e surpreendentemente avançados para a época, em termos de idealização crítica do homem c o seu papel diante do conhecimentO. O alicerce da ciência
e, principalmenre, de realização - o que também reforça a ideia de ucopismo moderna nasce, por exemplo, com a desmistificação da realidade, naquilo que
da narrativa. A ruptura de Bacon com o modelo de conhecimento (ou busca da constituiu o período medieval e trouxe a proposta de uma sociedade capaz de
verdade) conremplativo socialmente vigente é apresentada por um modelo em
dominar a natureza e o mundo ao seu redor. A sua defesa intransigente da
que a ciência é experimental, em constante contato com a natureza. Sua proposta
verdade construida, descoberta ao invés da verdade revelada, foi fundamental
revela, também, uma tentativa de segmentação do conhecimento em diferentes
para o enfraquecimento do teocentrismo e o reforço do antropocentrismo.
campos de saber, em razão dos diferentes objetos de pesquisa do mundo natural

- base para a noção de clisciplinaridade, característica da ciência moderna. Neste Na Nowt Atlântida, Bacon faz uma extensa descrição de uma instituição

sentido, a busca pelo conhecimento é empírica; nasce a partir da experimentação educativa ideal; um colégio ou centro de pesquisas denominado Ccua de Salomão

de elementos da realidade natural e volta a ela como uma aplicação prática, para 011 Colégio dos Trabafho.r dos Seis Dias. A finalidade da Casa ele Salomão é o conhe­

a melhoria das condições de vida das pessoas, em diferentes áreas. cimento elas causas e dos segredos dos movimentos das coisas e a ampliação dos

limites do império humano na construção de novas possibilidades, por meio da

técnica e da experimentação científica. Em certo sentido, a Nova Atlântida ante­


3.5.2 As Concepções Baconianas e Seus Entrelaçamentos com a Educação
cipou muito do que as universidades acuais e seus pesquisadores vêm fazendo c
O imelecto hu111a11o, por sua própria muito do que se encontra ainda como aspiração no campo científico. Mais do
natureza, tende ao abstrato, e aquilo q11e
que isso, foi a partir da criação fictícia da Casa de Salomão que foram fundadas
flui, permaneme lhe parece. Mas é melbor
várias instituições de pesquisa na Europa a pareir do século 17.
dividir em partes a 11at11reza q11e traduzi-la
em abstrações (Bacon, 2000, p. 44). Ainda sobre a Casa de Salomão, Bacon faz uma descrição da organização

Bacon, junramente com Descartes (1596-1650) e Newton (1643-1727), dos sábios desta instituição, os quais são divididos conforme suas atividades.

são considerados os precursores do Iluminismo. Os filósofos do .Iluminismo bus­ Esta divisão também pode ser correlacionada com as diferentes instâncias de

caram enxergar de maneira racional as sociedades, destacando os problemas das atividades que comumente são encontradas atualmente nos estabelecimentos de

nações imersas no chamado Antigo Regime. Dentre os aspectos interpretados ensino, respeitadas as diferenças de denominações. A divisão e a organização das

pelos iluministas destaca-se a crítica à sociedade de privilégios ele nascimento atividades intelectuais ela Casa de Salomão são assim descritas por Bacon (2000):

e a autOcracia monárquica exercida sob o pretextO da intervenção divina. Com •


12 mercadores da luz: navegam por outros países sob bandeiras
o Iluminismo c o advento da modernidade, o mundo passou por profundas
"falsas" e trazem à ilha livros, s(unulas e modelos de experimentOs
mudanças, tanto no que se refere aos modos de organização social c modos de
de rodas as partes elo mundo;
produção, como também no que se refere à forma de conceber os mécodos de

produção do conhecimento e a educação - processos que atendessem às neces­ 3 depredadores: recolhem os experimentOs que se encontram em
sidades deste novo modelo societário. todos os livros;

120 121
Laura Qu l l\ ones Nelra - Rafael Cunha - Sérgio Zanatta - Suleica Fernanda Biesdorf Kretzer CAPITULO 3 -Ficção ou Utopia?


3 homens do mistério: reúnem todos os experimentos de todas as mécodos e teorias); preservação e transmissão deste conhecimento (por meio
artes mecânicas, das ciências liberais e das práticas que não chegaram da teoria e da prática, ou do tripé ensino-pesquisa-extensão) às novas gerações.
ainda às artes; Assim, não é exagero afirmar que, ao imaginar a Casa de Salomão, Bacon estava


idealizando um modelo de universidade consolidado nos séculos seguintes.
3 pioneiros ou mineiros: temam novos experimentOs considerados
úteis; Bacon insiste na ideia de descrever a Casa de Salomão como uma joia


preciosa da Nova Atlântida, chegando a ser repetitivo neste ponto. Enquanto
3 compiladores: recolhem os experimentos dos quatro grupos ante­
uma obra inacabada, o relato da Nova Atlâmida é encerrado abruptamente, jus­
riores, organizando em títulos, para levar luz à dedução das obser­
tamente na descrição da grande obra realizada pela instituição: é como se Bacon
vações deles extraídos;
tivesse guardado sua melhor surpresa para o fim. Mesmo assim, a descrição das

3 doadores ou benfeitOres: examinam os experimentOs dos seus realizações da Casa de Salomão é prodigiosa e extrapola seu momento histórico,
colegas e buscam encontrar uma forma de extrair coisas de utilidade além de envolver trabalhos desenvolvidos em diferentes e múltiplos campos do
para a vida humana e para a ciência ; saber, com os mais variados tipos de experimentos.

3 luminares: depois de consultas e reuniões entre todos os membros
De grande interesse (: a insistência de Bacon em descrever o imenso
da casa de Salomão para avaliar os trabalhos e experimentos, estes aparato exigido pelo trabalho de pesquisa cienrífica. Aparelhos de rodo
crês luminares encarregam-se de orientar novos experimentos a o tipo, edifícios elevados c túneis estão à disposição dos pesquisadores
partir dos anteriores. São descritos como dotados do mais alto grau da Casa de Salomão e abrangem rodas as variedades de aspectos da
realidade natural, sob as mais diversas condições (Andrade in Bacon,
de luzes para penetrar mais a fundo na natureza;
2000, p. XVIll).

3 inoculadores: executam os experimentos orientados e mantêm os
orientadores informados sobre eles; Esta ênfase de Bacon na grandiosidadc do trabalho da Casa de Salomão
expressa sua concepção acerca da ciência experimental, tarefa árdua que requer

3 intérpretes da natureza: sintetizam as descobertas anteriores, feiras
muita dedicação e empenho c não apenas palavreados e abstrações, como no modelo
por experimentos, em observações, axiomas e aforismos de maior
de ciência que criticava. Além disso, a concepção da Casa de Salomão (enquanto
generalidade;
instituição científica) estava vinculada diretamente a rodas as demais instituições

aprendizes e noviços - para que não se interrompa a continuidade da Ilha de Bensalém, desde o hospital, à usina energética e ao cencro agrícola. A
dos homens precedentes. instituição, segundo Bacon (2000, p. L8), é "o exemplo claro de ciência operativa,
exposta no Novmn Orgamtm" e "a ciência não é apresentada como exercício de gabi­
A descrição desta organicidade da Casa de Salomão remete, imediata­
nete ou atividade contemplativa, mas luta árdua e diária com a natureza."
mente, à ideia de organização das universidades, em termos de pesquisa e produ­
ção de conhecimento. Desde a modernidade até os dias atuais, as universidades Bacon defendia que os escudos deveriam ser dirigidos para os fenômenos
preservam uma estrutura semelhante àquela idealizada por Bacon na Nova Atlân­ da natureza, como único meio de obter o eqttilíbrio entre a prática e o conheci­
tida: a aquisição de um patrimônio cultural universal; a seleção e organização do mento, pois mais importante do que governar os homens era dominar a natureza
conhecimento historicamente acumulado; a interpretação deste conhecimento e, (2000). Então, a partir destas ideias coube aos seus sucessores tornar essa nova
a partir destas interpretações, a formulação de novas proposições; o escudo sobre e produtiva concepção metodológica o substrato para a educação escolar que se
as novas proposições elaboradas (incluindo-se aí experimentOs, instrumentos, desenvolveu nos séculos seguintes.

122 123
Laura Qulílones Nelra - Rafael Cunha - Sérgi o Zanatta - Suleica Fernanda Biesdorf Kretzer
CAPITULO 3 - Ficç5o ou Utopia?

O desejo de Bacon em promover uma reorganização do saber h umano ­


experiência humana e não de fundamentos teológicos que marcaram as monar­
baseando-se não no antigo conhecimento escolástico, mas no novo conhecimento
quias europeias da Idade Média até a modernidade. Ainda segundo as concepções
científico - foi, de várias formas, assumido e panilhado por educadores, filósofos 43
baconianas, expressas na Nova Atlântida, a fclicidade geral dos homens e o
e estadistas de seu tempo. As ideias de Bacon influenciaram nomes historica­
bem-estar da sociedade não são atingidos por outro meio que não seja o domínio
mente reconhecidos, como Come nius (1592-1670) e Rousseau (1712- 1778).
sobre a natureza.
Por exemplo, Comenius forneceu em sua Didática Mag11a alguns pressupostos
que ajudaram a fundar a concepção de escola moderna, paurada no lluminismo.
Na obra Bacon não demonstra a preocupação em descrever o modo de
Rousseau (1712- 1778), por sua vez, defendia uma educação para as crianças a organização social de um Estado - e relacionando este aspecto com sua história

part ir da experiência adquirida pelo faz-de-conta das brincadeiras. Para este de vida, sempre ligado à política e aos principais centros de poder da Inglaterra

pensador moderno, por meio dessas atividades as crianças estariam comparando, de sua época, é até compreensível que as questões de estrutura social não sejam

pesando, contando, descobrindo, mantendo concaro com as atividades relacio­ uma preocupação sua. Bacon, porém, deixa clara a importância de atribuir ao
nadas com a vida. conhecimento científico a poss ibilidade de comando e domínio sobre a vida
humana e a natureza.
A partir das ideias de Bacon sobre a busca e a organização do conhe­
cimentO cient ífico, a educação escolar passaria a ter a função de assegurar a Da mesma forma, Bacon não se preocupa em descrever, nesta obra uni­
disseminação deste novo conhecimento que, devidamente unificado, estaria ao versalmente conhecida, os princípios do mécodo científico ou de concepção de

alcance de rodas as crianças. ciência que defende: Bacon se preocupou com estes aspectos em outras obras,
como o Novmn Orgamtm e a Tnstattrntio Magna. O principal objetivo da Nova
O antigo caráter religioso ou metafísico da educação dos indivíduos
Atlântida parece ser o de propagar suas ideias sobre como a ciência e o conheci­
passou a ser substituído por um caráter concretO, até então desconhecido. A
mento experimental da narureza podem gerar um estado de harmonia e bem­
educação ancorada na ciência representava, agora, um meio em busca de um
-estar à humanidade.
fim, que era o domínio do homem sobre a nat ureza.
A este respeito convém lembrar que, no Estado imaginário concebido
por Bacon, reinam a harmonia e a felicid ade graças às característi cas de sua
3.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS organização que, diferente de outras obras utópicas, não consiste na organização
econômica e social como a dererminance do estado de bem-estar da população.
A verdadeira Ca/IJa e raiz de
todas os males que afetmn as ciências Para Bacon (2000, p. 17), o "segredo do êxito do Estado imaginário de
é 11ma rínicn: mq11a111o admirttmos e
Nova Atlântida é a existência de uma instituição que, pelo trabalho desenvolvido
exaltamos de modo /t�lso os poderes dct
e resultados propiciados (...] permite uma organização justa das estruturas eco­
mente h111na11a, néio lhe bmcamos
auxílios t�dequctdos (Bacon, 2000, p. 34). nômicas c sociais. " Esta instituição é a Casa de Salomão, onde vivem e trabalham
todos os sábios da ilha.
A utopia da Nova l1tlâ11tida necessariamente apresenta uma ruptura com
o modelo de governo, bem como de outras concepções curopeias hegemônicas
do século 17. Dentre os elementos de ruptura trazidos por B acon, talvez o mais 4� A busca da felicidade é preocupação também presente na obra de Jeremy Bentham, como pode
ser verificado no capítulo 4 desra obra. Par:� 13entham, o fim último da educação é afelicirkule,
cen tral tenha sido o de que o poder emana do conhecimento proveniente da
qu e seria regulada por meio da disciplina.

124
125
Laura Quiliones Neira - Rafael Cunha - Sérgio Zanatta - Suleica Fernanda Blesdorf Kretzer CAPITULO 3 Ficção ou Utopial
-

A grande "inovação" da utopia de Bacon é apresentar ao mundo - e material para os n


i rérpretes; a ciência é investigação empírica, nascida do

por isso a importância de se levar em consideração o concexco e o momento contato com o real e não oriunda de teorias afirmadas a priori; a ciência
cem sentido eminentemente prático, aumentando a duração da vida,
histórico em que a obra foi escrita - um Estado em que a harmonia e bem-estar
curando as doenças, fabricando máquinas de todos os tipos, inclusive
dos homens residem no controle científico sobre a natureza. As preocupações engenhos para voar e percorrer águas submarinas (Andrade in Bacon,
da Casa de Salomão aparecem voltadas muito mais ao domínio sobre as técnicas 2000, p. XVI1l).
e sobre a ciência do que para solucionar problemas econômicos e sociais, pois
o conhecimento e domínio sobre a natureza levam à facilitação das condições Por estes motivos a Novrt Atlântida - enquantO uma espécie de propagan­

gerais de vida da população. da das concepções de conhecimento científico capaz de governar a humanidade
- situa-se entre a utopia e a ficção. Ao mesmo tempo, porém, revela uma atitude
Esta constatação reforça a ideia de Bacon de que é mais importante
prospectiva de Bacon, capaz de lançar no tempo futuro "concreto" um modelo
dominar a natureza do que governar os homens. Por s
i so, o conhecimento cientí­
de sociedade que, para superar suas Limitações em busca do progresso, depende
fico deveria estar a serviço do progresso e da felicidade geral dos homens - ideias
dos esforços e do avanço do conhecimento cientifico.
que se estenderão no tempo como baluartes da modernidade, até o Positivismo'14
do século 18 - e não no domínio de um homem sobre outro (Bacon, 2000). Podemos afirmar que, em tempos atuais, a utopia científica de Bacon

O fato de, na Nova Atlântida, uma instituição científica - Casa de cedeu lugar a uma disropia, em partes As ideias de domínio sobre a natureza,
.

Salomão - estar vinculada diretamente a rodas as demais instituições da ilha, levadas ao extremo nos séculos seguintes, fazem com que a natureza livre cada

que dela dependem, realça, por sua vez, a finalidade pragmática e utilitarista da vez mais se coroe em natureza transformada. A vinculação do progresso do
ciência, na concepção de Bacon. conhecimento científico com as necessidades do modo de produção capitalista
resultou em uma condição de subjugação da natureza bem diferente daquela
O princípio de governo de Bensalém é pragmático e utilitário, no sentido
concebida por Bacon na N&va Atlâmida. No mesmo sentido, apesar da constata­
de que a Casa de Salomão é, ao mesmo tempo, o centro de governabilidade da
ção de que os recursos naturais não são inesgotáveis, o modo de vida consoüdado
ilha e a instituição que congrega os sábios do Estado. É na Casa de Salomão que,
nas sociedades contemporâneas parece evidenciar uma falta de consciência no
com base na ciência, decide-se quais experimentos devem ser realizados para uma
aplicação prática e quais descobertas devem ser levadas ao conhecimento de seus que se refere à manutenção do equilíbrio natural entre água, terra e ar - con­

habitantes. A descrição da organização da Casa de Salomão, por sua vez, antecipa dições primordiais que garantem a vida das espécies do planeta (Brahic et ai.,
em muitos aspectos o que seriam as instituições educativas dos séculos seguintes. 2002).

No campo epistemológico, a racionalidade científica - na qual Bacon


Os traços proféticos de pensamento de Bacon ficam evidcmcs nas poucas
páginas da Nova Atlâmida: a ciência não é obra individual mas coletiva,
, tanto confiava para superação das adversidades naturais e como condição para
exigindo um verdadeiro exército de pesquisadores que devem recolher o desenvolvimento de um modelo social harmônico e próspero - também se
tornou distópica no decorrer dos séculos: não apenas os princípios científicos
foram reconfigurados como instrumentOs de dominação de grupos ou povos,
44 O método de observação e experimentação de Bacon exerce particular influência sobre o
Positivismo. Não por acaso o "pai" do Positivismo, Auguste Comte ( 1798-LSS 7) expressa um como também desencadearam guerras e riscos de destruição da humanidade
dos fundamentos do movimento posirivista. Afirma Comte (l978, p. 5) que: "Todos os bons
(Santos, 1999b). A razão humana já não é uma utopia, como na época de Bacon.
espíritos rcperem, desde Bacon, que somente são reais os conhecimencos que repousam sobre
faros observados." Ao contrário, no campo epistemológico discute-se atualmente a crise da razão e

1 26 127
Laura Quli\ones Neira - Rafael Cunha - Sérgio Zanatta - Suleica Fernanda Biesdorf Kretzer

a perda da confiança nos fundamentos da ciência moderna (Bauman, 2008), em Capitulo


grande parte ancorada nos pressupostos de modelo e mérodo de conhecimento I 4 I
que Bacon defendia.

Ainda que possa ser considerada uma uropia ficcional (Habermas, 1987)
- ou uma ficção utópica - e que tenha trazido ao público realizações científi­
cas inverossímeis e improváveis para a época, a NQVa Atlântida descorcina um OPANÓPTICO DE JEREMY BENTHAM COMO ESTRATÉGIA
cenário com muitos traços daquilo que marcaria a ciência moderna e que, ainda
hoje, influencia o modo de produção de conhecimento em muitos campos do
DE CONTROLE NA DOUTRINAÇÃO UTILITÁRIA:
saber. Por isso a obra, na condição de utopia do campo científico, perpetua o Utopia ou Distopia7
pensamento de Bacon para a História e auxilia na disseminação do pensamento
científico moderno.
Ana Regina Ferreira de Barcelos•
Eliana Claudia Navarro KoepseF
Filome na Lucia Gossler Rodrigues da Silva3
Marllândes Mói Ribeiro de Melo4

Em nome de um suposto "sentir-se protegido", cada vez mais os dispo­


sitivos de segurança se ampliam, a ponto de nos aprisionar.

1 Licenciada em Pedagogia pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Mestre em


Educação pela Universidade Federal de Santa C1rarina (UFSC). Doutoranda do Programa de Pós­
-Graduação em Educação da Univcrsid:ulc Federal de Santa Catarina PPGE/UFSC). Supcrvisora
escolar da Rede Municipal de Ensino de Florianópolis. analbarcelos@yahoo.com.br

2 Licenciada em Pedagogia pela Paçuldadcs Metropolitanas Unidas (Fl\.fU), São Paulo. Mestre em
Educação pela Universidade Estadu:d de Maringú (UiiM). Doutoranda do Programa de Pós­
Graduação em Educação da mesma instituição. Bolsista do Programa Institucional de Bolsas
de Doutorado Sanduíche no Extcrior/PDSii - Capes na Universidade de Lisboa. Professora na
Universidade Estadual de Maring:í. rkocpscl@uol.com.br

3 Licenciada em Pedagogia pela Universidade do Oeste de Sanca Catarina (Unoesc). Mestre em


Educação (Unoesc). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal de Santa Catarina (PPGll/UFSC} Professora Titular do Institmo Federal Catarinense.
filomenarodrigucsdasilva@yahoo.com.br c lilomenn.silva@ifc-vidcira.edu.br

·1 Licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em


Educação (UFSC). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal de Sanca Catarina (PPGE/UFSC). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior (Capes). marilandesmcl@bol.com.br

128 129
Ana R. F. de Barcelos - Eliana C. N. Koepse l - Filomena L. G. R.da Silva - Marilandes M. R. de Melo CAPITULO 4- O Panóptlco de Jeremy Bentham como Estratégias de Controle na Doutrinação Utilit�ria

A obra "O Panóptico" revelou mais sobre o futuro do que sobre o tempo
circuitos cinematográficos durante o ano de 2 0 1 1 e exibida no circuitO
em que ela foi pensada, pois colocou em questão o otimismo sobre o devir que
nacional com o título O pre§O do fl111a1lbã,' fica bem claro que "o tempo
o Iluminismo ensejava: a convicção no progresso do conhecimento humano, na
tornou-se a moeda definitiva." Tudo acontece como se dispuséssemos de
racionalidade, na riqueza, na crença ilimitada do poder da ciência c da tecno­
tempo para gastar em função do outro, jamais de nós mesmos em atos
logia.
de fruição. Nessa produção do cinema, quem pode comprar tempo ganha
décadas de vida e torna-se praticamente imortal, "enquanto os oucros
mendigam, pegam emprestado ou roubam horas para viver cada dia."
Quem despenderia de seu precioso tempo atualmente para comunicar-se
por cartas? Para que "gastar tempo" se as redes sociais estão por aí, propor­
cionando-nos um ambiente virtual no qual nos "vemos" em tempo real?
Como, porém, interpretar uma situação na qual escrever cartas extrapola
o viés da mera comunicação, para se erguer como exposição de um projeto
de vida pessoal, que externa wn projeto de sociedade?

A facilidade de comunicação da qual usufruímos hoje nem sempre


existiu, mas não pensamos nisso, pois nos parece perene e extrapoladora
de passados, constituidora do presente c formadora de futuros. A prática
de escrever cartas data de tempos imemoriais. Citamos como exemplo as
epístolas neotestamentárias escritas por Paulo, apóstolo de Jesus Cristo,
aos cristãos de diversas cidades para tecer seus elogios e fazer exortações
(Bíblia Sagt-ada), e também os administradores romanos do mesmo período
que, ao enviar prisioneiros para serem julgados, mandavam com eles uma
carta relatando a condição do preso, como o fez Cláudio Lísias, ao gover­
nador Félix (Bíblia Sag,·tlda, Atos 23: 26-30). Até um período expressivo
Fonte: As auroras (2012).
do século 20, contudo, um tempo Í11 117eliiOI'Íam, tal prática prevalece, para
tornar-se obsoleta com o advento da Internet. As cartas foram por um
SINOPSE DE O PANdPTICO
significativo período o meio por excelência de falar e de se fazer ouvir.

Redigir uma carta na atualidade é um aro obsolero e nem sempre Jeremy Bcntham (1748-1832), filósofo c jurista inglês, lançou mão
compreendido. A carta já não é um modo de comunicação eficiente: é desse recurso. Bencham (2008, p. 17) dedicou-se a escrever e reescrever
morosa para chegar às mãos do destinatário c demanda tempo e disposi­ por mais de 27 anos, O Pauóptico, um projeto de vida pessoal e de socie­
ção daquele que escreve e daquele que lê; e tempo é um produto de alta dade, que emergiu "por uma simples idéia de arquitetura." O Panóptico é
cotação em nossa sociedade, portanto não pode ser desperdiçado. No filme um tratado composto por 2 1 cartas e dois pós-escritos. Foi escrito em um
In Time, produção americana dirigida por Andrew Niccol, projetada nos ambiente gelado, em Crccheff, na Rússia Branca, a partir de 1787, enquan-

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Ana R. F. de Barcelos - Eliana C. N. Koepsel - Filomena L. G. R.da Silva - Marilandes M. R. de Melo CAPITULO 4- O Panóptico de Jeremy Bentham como Estratégias de Controle na Doutrinação Utilitária

to ele visitava seu irmão, Samuel Bentham (1757-1831 ), que trabalhava possui a vantagem de poder ser utilizada com vários propósitos, conjuntos

para o Príncipe Potemkin ( 17 39-1791), no reinado da Imperatriz Catarina de punição, de reforma e de economia pecuniária está na "Carta VIII ­
11 0729-1796). Como um observador vivaz, Bentham (2008, p. 19) per­ Usos - casas penitenciárias - reforma." A "Carta IX - Casas penitenciárias
cebeu, no projeto arquitetônico idealizado por seu irmão, muito mais que - economia - contrato - plano", por sua vez, discorre sobre a atenção à
uma estrutura pensada para conter funcionários e guardas rebeldes, mas administração dos edifícios. A '"Carta X - A escola dos ofícios deveria ser
como um projeto "capaz de aplicações da mais ampla natureza" nos quais livre', apresenta a classificação dos trabalhadores em categorias de ofício" e
a vigilância e o controle resultariam do faro de pensar-se, todo o tempo,
sugere quatro divisões de trabalhadores, distribuídos entre: bons, capazes,
na condição de inspecionado. Conforme Bentham (2008, p. L 7), era um
promissores e inúteis. A composição da "Carta XI - A multiplicação dos
modo de "garantir o poder da mente sobre a mente." Para não retirar do
ofícios não é necessária" sugere que as atividades não sejam diversificadas,
leitor o desejo de lê-las na íntegra, traremos aqui muito sinteticamente o
mas divididas no maior número possível, ao passo que na "Carta XII ­
que Bentham propõe em cada uma delas. Alertamos que vale a pena abrir
Controles sobre os poderes do contratador", apresenta que este deve ter
essas correspondências porque nelas estão contidas ideias de futuro, c por
rodos os poderes. O prisioneiro seria explorado em sua força de trabalho
que não dizer tttopias, que para o autor ainda não haviam chegado, mas que
sua mente perspicaz prospectou e que nós, após mais de 130 anos, vemos e também pelo comércio de produtos na prisão: eis o conteúdo da "Carta

instituídas como uma di.rtopia para a humanidade. XIII - Meios de extrair o trabalho." A afirmação de que o trabalhador
que esteve em reclusão teria mais dificuldades de conseguir um emprego,
Vejamos: na "Carta I - A ideia do princípio da inspeção" contém a
justifica os escritOs da "Carta XIV - Disposição para presos libertados". A
apresentação do projeto arquitetônico do edifício, que é pensado como uma
Casa de Jnspeção aplicável a todos e quaisquer estabelecimenros destinados ênfase da economia de recurso em relação à deportação dos presidiários,

a inspecionar certo número de pessoas, independentemente dos propósitos. uma vez que na casa de inspeção eles traball1ariam e/ou seriam preparados

A "Carta 11 - Plano para a casa de inspeção" expõe detalhes arquitetônicos para o trabalho, pode ser lida na "Carta XV- A perspectiva de economi­
do plano para a casa de inspeção e a "Cana III - Extensão para um único zar com este plano." Já a "Carta XVI - Casas de Correção" explica que
edifício" caracteriza a extensão das celas. Ao abrirmos a "Carta o edifício poderia ser adaptado para se transformar em casas de correção,

IV- O princípio estendido a áreas descobertas" deparamo-nos com inclusive com espaços de convivência coletiva.

a evidência de que o princípio da inspeção pode ser conduzido em áreas A "Carta XVII - Prisões meramente para custódia segura" apre­
descobertas da mesma forma que em áreas cobertas. O destaque da "Carta
senta os detalhes da adaptação do edifício. O problema da reestruturação
V - poncos essenciais do plano" é a centralidade da situação do inspetor,
do prédio conforme o tipo de manufatura a ser desenvolvido é assunto da
combinada com dispositivos para ver sem ser visto. A aparente onipresença
"Carta XVIII - Manufaturas." A "Carta XlX - Hospícios" é escrita para
do inspetor combinada com a extrema facilidade de sua real presença é a
demonstrar a eficiência do edifício para os hospícios. A "Carta XX- Hos­
grande vantagem do plano descrita na "Carta VI - Vantagens do plano",
pitais" enfatiza que os profissionais conseguiriam monii:orar os pacientes,
enquanto a "Carta VII - Casa penitenciária - custódia segura" assinala que
a casa penitenciária deverá ser um local de trabalho e, evidentemente, de ministrar medicamentos, acompanhar o progresso da doença e a influência

custódia segura. A afirmação de que o projeto arquitetônico do panÓjJtico dos remédios com extrema eficácia.

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Ana R. F. de Barcelos - Eliana C. N. Koepsel - Fílomena L. G. R.da Silva - Marílândes M. R. de Melo CAPITULO 4- O Panópticode Jeremy Bentham como Estratégias de Controle na Doutrínação Utilitáría

mudanças. O objetivo era acender minimamente algumas das reivindicações


A "Carta XXI - Escolas" é a última que Benrham escreve nessa
da população para conter as ideias revolucionárias que se insinuavam cada vez
série de missivas que compõem O Panóptico. Nela o autor propõe que a uti­
mais visivelmente.6
lização do edifício para este fim poderia ser concretizada em dois graus de

extensão: o confinamento para horas de escudo e para o preenchimento de Catarina 11, a Grande ( 1729-1796),7 imperatriz déspota da Rússia entre
1762 e 1796, como tirana esclarecida, aderiu e governou segundo alguns prin­
todo o ciclo diário. As mentes estudantis seriam fruto da mente do mestre
cípios iluministas. Correspondia-se com filósofos franceses e ingleses, particu­
c a relação seria de sujeição e poder respectivamente. O edifício poderia
larmente com os enciclopedistas Diderot ( 1 7 1 3-1784) e Voltaire (1694-1778).
funcionar também como internato para jovens mulheres, iocus onde os
Ela fundou escolas e a Universidade de Moscou; desenvolveu as comunicações;
cavalheiros interessados poderiam escolher boas esposas.
desapropriou terras do clero, que na época possuía um terço do coral de pro­

Assim, fazemos o convite: leiam as cartas escritas por Bentham. priedades e dos servos do império russo; tolerava as crenças religiosas e coibiu

Percepções outras abrir-se-ão, e pros/perspectivas, que não essas que nos a tortura e a pena de morte em seus domínios. Foi nesse contexto de renova­
ção das mentalidades que Samucl Bcntham, em 1784, passou a trabalhar com
surpreendem, cercamence emergirão. Boa leitura!
o príncipe Grigori Alexandrovich Potemkin ( 1 739-1791). Esse príncipe, no
esforço de semear o progresso no território sob seu domínio, contratou Samuel
4.1 A MAQUINA BENTHAMIANA: origem. descrição e tentativas de introdução Bentham para administrar suas manufaturas e construir barcos de transporte
(Werrett, 2008). Foi nessa época, quando visitava seu irmão na Rússia, que
Q11antfJ mais eu sonho, mais esteprojeto pm·ece daq11eles mja pri­
Jeremy Bentham escreveu O Panóptico, uma tentativa de ajudar o irmão a resol­
meira execução deveria estar nas mãos do inventor
ver o problema disciplinar dos capatazes ingleses, sempre importunando com
(Bentham, 1987, p. 200).
sublevação, furros, bebedeiras e preguiça.

O texto original de O Panóptico) foi escrito enquanto Jeremy Bentham


escava na Rússia, hospedado por seu irmão Samuel Benrham (1757-1831). 6 Posteriormente, conrudo, em 1917, ocorre a Revolução Socialista, cujo grande líder foi Vladimir
Assim, a compreensão dessa obra exige que nos detenhamos, mesmo que sucin­ Ilitch Lenin (1870-1924), inspirado nas ideias de Karl Heinrich Marx (1818-1883) e Friedrich
Engels ( 1820-1895). Nessa época, Leon Trotski ( 1789-1940) era o líder do exérciro e aliado
tamente, sobre o contexto específico da Rússia do século 18, que era considerada incondicional para instalar o socialismo na Rússia e, em seguida, expandi-lo ao mundo.

um grande império em termos de território. Sua economia estava assentada em Catarina IJ, nascida Sofia Augusta Frcdcrica de Anhalt-Zerbst - Princesa de Holstein -, era filha
do príncipe Cristiano Augusto de 1\nhnlt-Zcrbst, pertencente à família de Anhalr e despontava
base agrária. O Absolutismo, para manter-se como centro de poder, transforma­ como promissora candidata à Coroa. Aos 14 anos foi destinada para o casamento com o grão­
duque Pedro de Holstcin-Gottorp ( 1728-1 762), herdeiro do trono russo, com quem se casou aos
-se no que se chamou de "Despotismo Esclarecido": com ideais iluministas,
16 anos. Em 1762, com a morre da Imperatriz Elisabeth, o marido de Catarina li ascendeu ao
alguns monarcas tentaram promover reformas para mascarar as necessárias trono como Pedro UI. Ela era apoiada pela Corte c pelo povo, enquanto seu marido, violento c
alcoólatra, ear odiado por seus súditos. Poucos meses após a posse de Pedro 111; ocorreu um golpe

de Estado que o obrigou a abdicar, c urna semana de pois, ele foi assassinado. Ainda que sob a
desconfiança de eramar a morre do rnnrido, Catarina foi coroada imperatriz da Rússia. Reinou
) Quando a palavra "Panóptico" estiver grafada em itálico com inicial em maiúsculo referimo-nos por 34 anos e sob a sua orientação o império russo foi rcviculizado e expandiu-se, com a conquista
i1 obra de jcrcmy Bcntham. No caso da escrita com inicial minúscula referimo-nos à estrutura de parte da Polõnia em 1764; elos territórios da Turquia em L 774 c com a anexação do oeste da
física concebida por este autor. Ucrânia em 1792.

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CAPITULO 4- O Panóptico de Jeremy Bentham como Estratégias de Controle na Doutrinação Utilitária
Ana R. F. de Barcelos- Eliana C. N. Koepsel - Filomena L. G. R.da Silva _ Marllândes M. R. de Melo

No período, havia na Rússia dois parridos em busca de hegemonia: 0


tultivo do conhecimento, "um feliz estado campestre", um jardim da ciência ao

dos Irmãos Oslov e o de Nikita Panin. Este último, em 1780, supera Oslov. 0
qual se misturou "o esplendor imperial e o avanço econômico" e no qual o real
príncipe Pocemkim estava nesta disputa, buscando a consolidação do seu poder fruco seria a produção do lucro.
c, em 1774, foi encarregado do desenvolvimento dos territórios meridionais É importante ainda, para compreender o contexto ele escrita de O Par�óp­
tomados da Polônia c da Turquia. Recebeu subsídios financeiros significativos tiro, considerar os seguintes aspectos: a teatralidade, a Igreja Ortodoxa e o lugar
para pôr em prática seus projetos, o que causou indignação dos partidários de
do poder na Rússia. No que se refere à rcacralidade importa destacar que a
Nikita Panin, que o acusaram de investir os recursos em obras destinadas apenas
exibição e o espetáculo teatral eram características da cultura russa no século
a impressionar a Imperatriz.
18. Não havia um fio divisor entre a arte e o procedimento cotidiano. A vida
Enquanto Poccmkim desenvolvia atividades no Sul, em São Pecersburgo era incessantemente invadida pelo teatro (Werrerc, 2008). Essa era igualmente
tramavam-se intrigas a seu respeito. Ele retornou em 1784 a São Petersburgo e a conduta cotidiana comum na sociedade europeia do século 1 8. A diferença
convidou Catarina II para visitar as províncias que escavam sob sua responsabi­ reside no fato de que na Europa ocorria a anulação da divisão entre o teatro e
lidade, como estratégia para afastá-la da influência de seus inimigos políticos e
a realidade, e na Rússia essa conduta era marcada pela substituição dada pela
para impressioná-la. Potemkim obteve autorização ela Imperatriz para preparar
distinção entre o que era russo e o que era estrangeiro. Pedro, o Grande (1672-
a visita e sua intenção era criar, nas províncias que governava, uma idealiza­
1 7 2 5 ) introduzira os estilos e os costumes ocidentais que coroaram o compor­
ção daquilo que a Rússia poderia tornar-se ao abrigo da esclarecida Imperatriz,
ramento aprendido com o europeu código de convivência social. Comportar-se
caracrerizada naquele período como "plantadora" c "jardineira", uma analogia
. corretamente era portar-se corno estraogeiro.9 A fazenda era o lugar-chave, 10 era
à tmagem de Deus como criador, em razão de suas políticas ex:pansionistas,
o palco por excelência para se dedicar com sucesso a desempenhar o papel de
colonizadoras e civilizadoras. A criação desta Rússia ideal estava sob os cuidados
de Sarnuel Benrham. ocidental, para incorporar a identidade estrangeira.

No entanto, em relação a esse "jardim", \X'errett (2008, p. 179) declara Os aspectos que envolvem a Igreja Ortodoxa e o lugar do poder na
que "esse não era, entretanto, o Éden do Gênesis", entregue pronto para usu­ Rússia dizem respeitO a sua função tradicional de controlar os camponeses. No
fruto do homem passivo e não conhecedor. Todos eram convidados a participar século 18, segundo Werrett (2008, p. 185), "os camponeses russos aprendiam
da construção desse 'Jardim do Esclarecimento". A "árvore do conhecimento"
escava disponível a todos os que dela quisessem participar e a recompensa seria
9 Na Rússia desse período, conforme relatam Lotman e Uspenskii (apud Werretc, 2008, p. 181),
um estado de "progresso perpétuo" na Rússia. O mesmo autor declara também " agir de uma forma artificial, de acordo com as normas de u m est ilo de vida estranho era agir
que o Éden projetado por Potemkirn8 figurava como metáfora do lugar do politicamente", visco que "esse jogo de troca de papéis exercia uma função política. t\ teatralidade
podia reforçar a reputação do nobre diante do monarca, na medida em que era um atributo do
poder. Ao imira os europeus, os nobres exibiam sua posição, mas, ao mesmo tempo, continuavam
r
russos [...) o ocidental esclarecido que fornecia o papel modelar para a nobrez:t - um papel que
8 �ot�mkim crisiu tudo em cenários paradisíacos: cidades idealizadas baseadas no planejamento
, se expressava em um consumo cada vez mais ávido de livros franceses, a lem ães c ita lianos sobre
r.tcJonal de capmtl. Em l787 , seo,undo X'errctc
\ (2008, p 179) "AIycslun
· , · t.ot cone
. · 1ufda na a conduta e a wlwra esclarecida."
marg�m esq�erda do rio Dnepr, no lado oposro ao do novo porto de Kherson e Ekaterinoslay 10
errerr (2008, p. 182), "a visira imperial planejada por Potemkim
Desse modo, de acordo com \'V'
�ue s•gmfica
. ,
a gloria de Catarina' [...) foi fundada no final de 1786. Foi então, entre janeiro c
pertencia precisamente a ess:t tradição de reatralidade da cultura russa. [No cenário montado
J •lho de I ?87, que C�ra6na realizou sua inspeção de todos esses esclarecidos esplendores." 0

s rande Ob)en;o do Pnnc•pe era estabelecer uma frota no Mar Negro que pudesse "varrer" 05
por Potemkirn a] imperatriz e seu séquico de nobres pod iam desempen har seus papéis fanc:lsticos
como cstranseiros esclarecidos."
turcos de Euxrne.

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Ana R. F. de Barcelos - Eliana C. N. Koepsel - Filomena L. G. R.da Silva - Marilandes M. R. de Melo CAPITULO 4- O Panóptico de Jeremy Bentham como Estrat�glas de Controle na Doutrinação Utilitária

qual era seu lugar no mundo por meio de sua relação com Deus." Não
se craca, 4.1.1 A Máquina Benthamiana
portanto, de uma relação metafórica e simbólica. A Igreja emerge, segundo o
mesmo autor, como Q11e o olbo veja, sem ser visto (...}Ao se eJCOilder na sombra, o
Olbo intei/Jifica todos os se11s podem (...} (Miller, 2008, p. 91).
corpo de Crisro (...] uma continuação e extensão de seu poder, onde
se
experimenta e se contempla sua presença. A arquitetura da igreja serve O panóptico é uma proposta que naquele período histórico respondia à necessi­
para reforçar essa experiência. Sua estrutura e seu conjunro de imagens dade de elevar a utilidade (utilitarismo) ao ápice e definir meios de concrole e dominação
amam para demonstrar a onipotência e a onisciência de Cristo para os daqueles que não se encaixavam na ordem social estabelecida.'' O termo "panóptico"
presenres (Wcrrecr, 2008, p. 185).
advém do latim: pcm = tudo; optikt/.J = visão. Assim, significa visão de cudo ou visão
do todo. Vejamos como a máquina bcnchamiana é descrita por seu aucor e interpretada
Na Igreja Orrodoxa deve-se experimentar o poder de Deus, que está
por Miller (2008), Perror (2008), Foucaulc (1991) e Werrett (2008).
presente, mas desconhecer o modo como Ele opera. Conforme Werrerc (2008,
O projeto benthamiano é um mecanismo d<.: maximização da utilidade.
p. 187), "ver o poder de Deus em funcionamento ( . ..] não era permitido aos
Miller (2008) o descreve como um modelo do mundo utilitarista. Nele tudo é
camponeses - passivos." Nem todos podiam penetrar nos divinos mistérios
artifício, nada é natural, nada é indiferente. Tudo possui um fim em si mesmo.
invisíveis e inaudíveis. O trânsito livre ao "Santo dos Santos" é um privilégio
O alvo primordial ao dispositivo de controle são os pobres e os doentes. Nas
dos sacerdotes - ativos, que entram e saem do santuário por meio de portais
palavras de Miller (2008, p. 93) "O Panóptico acolhe aqueles que são constrangi­
sagrados. No rico do metaboilo eles permanecem no interior do santuário com
dos a renunciar a roda iniciativa, e daí, de ponta a ponta instrumentalizáveis."
as portas fechadas, veladas por cortinas e, como destaca Werrett (2008, p.
Este autor define a proposta de Bentham como uma máquina universal
187), os "leigos ficam de pé, contemplando a cortina de ícones e a Igreja que
que possibilita múltiplos usos, que faculta o olho público, que a tudo serve,
está ao seu redor." Desse modo, a Igreja constituía-se no eixo que estruturava
o templo da razão, a personificação dos princípios utilitaristas, enfim ... , uma
a hierarquia social russa. Nela, segundo Werrett (2008, p. 188), o campesi­
imitação de Deus. É uma máquina universal, porque não é apenas uma prisão.
nato aprendia "seu lugar no mundo: u m papel passivo de obediência a Deus
Para Miller (2008, p. 89), "é um princípio geral de construção, o dispositivo poli­
c àqueles privilegiados com o conhecimento do poder divino, um papel que valente da vigilância, a máquina óptica universal das concentrações humanas."
estava de acordo com sua posição inferior na hierarquia social." Esse concex­ Ela serve tanto para presídios, escolas, usinas, asilos, hospitais quanto para casas
ro inspirou a escrira de O Pan6ptico. Jeremy Benrham viu como a hierarquia d e traball10. Não rendo uma única destinação, é o lugar daqueles que em suma

predominante nas relações sociais na Rússia prevalecia em rodas as instâncias são involuntários, inexpressivos e coagidos.

e as posições demarcavam as relações de mando, de obediência, de controle e


Michelle Perrot (2008) compreende que o Panóptico é mais que um
disciplina, dentre outras. exemplo de uma sociedade racional. Ele é uma utopia que propunha uma regu­
lação da sociedade que sofria com a escassez dos meios de subsistência, mas que

" A utilidade dos corpos humanos pensada pelos "admiráveis'' do mundo novo, criado por Aldous
Huxlcy (2009), reflere-se até no uso d:ts cinzas queimadas após suas morres. Alguns recursos
de dominação c con trole rambém ficam cvidenres nes ta mesma obra de ficção. Ver Capírulo 5:
Ed11cação, trabalho e temologia 110 Admirtíllf!l M1mdo Novo: mtre a realidade e aficção.

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Ana R. F. de Barcelos- Eliana C. N. Koepsel- Filomena L. G. R.da Silva - Maril�ndes M. R. de Melo CAPITULO 4 - OPanóptico de Jeremy Bentham como Estratc!glas d� Conlroll• 1111 Ooutlllli1Ç�u 1JIIIIt•llln

também potencializava o processo de induscrialização. O desperdício constitui-se de 200.000 homens." Isso fazia com que os mecanismos de pod�:r Sl' torlllt��t·IJt

em uma das preocupações e a punição12 é definida como a arte da encenação, rea­ dispendiosos. Assim, carecia de meios universais para individualizar os �:xduldo\

lizada para produzir o temor, um procedimento fundamental a ser adotado por (contar, classificar, corrigir, isolar, remediar, punir), seja nos asilos psiquinlrito�,

quem deseja governar. Perror (2008), ainda referindo-se ao projeto de Bencham, penitenciárias, casas de correção ou em estabeleci.mcncos de ensino.

afirma que ele é um


A demarcação da diferença entre os dispositivos de encarceramento
anteriores e o projetado por Bencham, nas considerações de Foucaulc (1991,
formidável plano de transformação social pelo comrole. O Panóptico cem
cons de ficção científica. Como rodas as utopias, ele nos diz algo sobre p. 177), escava na possibilidade da visibilidade. O princípio da masmorra fora
o futuro. Esse estranho o rganograma não deixou de nos fazer sonhar invertido. Antes havia crês funções para o encarceramento: "trancar, privar de
(p. 164).
luz e esconder". No projete benchamiano prevalece apenas a função de trancar,
pois a luz e a visibilidade constituem-se em elementOs importantes de controle
Em sua conhecida obra Vigiare pmút; Michel Foucault (1926-1984)
e, portanto, de poder. A visibilidade garante o funcionamentO automático do
dedica um capítulo ao Panóptico de Bencham. Foucaulc (1991) concexcualiza as
poder (Foucault, 1991). Jsso porque o dispositivo confere um poder visível e
novas necessidades da disciplina e explica que ela respondia a uma conjuntura
inverificável. Nesse processo, a presença física da corre e a impossibilidade de
histórica, à resolução de questões práticas do século 18 e à explosão demográfica
saber-se vigiado, segundo Foucault (1991, p. 178), "automaciza e individualiza
que se configurava pelo aumento da população flutuante, pela multiplicação
o poder". Foucault (1991, p. 1.82) entende o Pcm6ptico como um "intensificador
do número de indivíduos em idade escolar, da população hospitalizada, como
para qualquer aparelho de poder." Considera-o ainda como uma solução inédita
também ao aumento do aparelho de produção. Explícita Foucault ( 1991, p.
de extrair poder c que "é uma espécie de 'ovo de Colombo' na ordem política."
192), que "o exército em tempo de paz contava no fim do século XVIII com mais
Para este autor, Bentham crigia, na sua construção arquitetônica, outra forma
de sociedade disciplinar e que se contrapunha à velha sociedade do século 18.

12 Nesse emprecndimemo a punição é um elemento importa.nte, conforme podemos ler nas cartas: Werrett (2008) discorda do entendimento de Foucault de representar o
na "C�rca IV- O princípio estendido às áreas descobenas" - evidencia que o princípio da in.sp<.'Ção
pode ser executado em área descoberta da mesma forma que em áreas coberras. Bemham sugere Pallóptico como uma nova forma de poder, em descontinuidade ao antigo regime.
uma combinação de casas de inspeção onde as diferenciações necessárias sejam observadas para Werrett (2008, p. 193) argumenta que "o exame do contextO histórico para a
que não haja diminuição daquela vigilância que diz respeito a uma custódia segura (Dcmham,
2008, p. 27-28). Na "Carm VIl - Casa penitenciária - custódia segura", assinala que a casa
criação do Panóptico revela que ele escava imerso em uma cultura do absolu­
penitcnci:\ria deverá ser um local de trabalho c de custódia seguro. Em síntese, a casa penitenciária tismo." Este autor explica que a cultura absolutista, mais especificamente a
seria contra fugas: impossibilidade da união enrre os presos c de qualquer movimento sem que
Igreja Orcodoxa, exercia um papel importante na estruturação da hierarquia
fossem observados pelo inspetor. Os que fizessem ruídos seriam punidos com amordaçamento
(Benrham, 2008, p. 33-35). Na "Carca Vlll - Usos -casas penitenciárias- reforma" - explica que social na Rússia, c que essa velha forma de poder foi inspiração para as formas
o projeco arquiccrílnico do Rmópu'co possui a vantagem de poder ser utiliz:\do com vários propósitos
de controle e vigilância do Pa116ptico. Tendo como suporte a análise histórica da
conjuntos de punição, de reforma c de economia pecuniária. A solidão vivenciada no aloj:unenco
seria conveniente no propósito de reforma e acréscimo à quantidade de sofrimento (Bcmham, 2008, criação do Pan6ptico, Werrert afirma, ainda, que a estrutura disciplinar projetada
p. 35-36). Na "Carta XVJI - Prisões meramente para custódia segura" - Bentham explica que por Benrham foi pensada no interior da sociedade russa czarista. Desse modo,
o edifício pode ser adaptado para prisões de custódia segura, ou seja, não exigiria isolamento do
os elementos da velha estrutura foram utilizados para a criação dessa forma de
prisioneiro a não ser nos casos em que a cuscódia renha cfeiro de punição. Seria possível permitir
a comunicação com amigos e assistentes legais para a preparação das defesas. O trnbalho forçado controle e para o exercício do poder, que foi generalizado a outros contextos.
não seria permitido, wna vez que este é visco como punição. Bencham propõe a possibilidade de
Segundo Werrett (2008, p. 1 94), o mérito de Bencham foi "clescontexcualizar
combinar casa de correção com casa de custódia segura. Todos os presidiários ou reclusos pagariam
suas despesas corn o seu trabalho (Dentham, 2008, p. 65-68). uma velha forma" e torná-la empregável e universal.

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Ana R. F. de Barcelos- Eliana C. N. Koepsel - Filomena L. G. R.da Silva - Marilândes M. R. de Melo CAPITULO 4 - O Panóptico de Jeremy Bentham como Estratégias de Controle na Doutrinação Utilitária

4.1.2 A Descrição do Projeto Arquitetônico Na "Carta li - Plano para a casa de inspeção", estão expostOs os deta­

lhes arquitetônicos da casa de inspeção, bem como as finalidades da máquina


O co1lj1111to dme edifício é como 11111a colmeia onde cada cela é
benrhamiana. Pode-se assim sistematizar as ideias de Bentham: edifício circular;
visível de 111/l po11to cellfral. O impetor, elepróp1-io invisível, reina
como 11111 espírito; mas este espíritopode, se necessário, dar a prova na distribuição dos apartamentos as celas dos prisioneiros ocupam toda a cir­
imediata de Jlla presmça real (Benrham, 1987, p. 202). cunferência e são separadas entre si; os prisioneiros são impedidos de qualquer

comunicação entre eles; o apartamento do inspetor ocupa o centro; há urna


A inspiração de Bencham para escrever as carcas13 foi Crecheff, cidade
russa onde residia seu irmão. O pa11óptico transformou-se em um mecanismo área ou espaço vazio em roda a volta entre o apartamento do inspetor e as celas

de controle por meio da suposta onipresença, onisciência e onipotência de um dos prisioneiros; existe uma janela no alco de cada apartamento para garantir

inspetor; a personificação da existência de um olho que tudo vê. Pode-se afirmar luminosidade e ventilação em rodo o edifício; a circunferência do apartamento
que Bencham, ao projetar o pauóptico, revela a luta da burguesia para reformar é formada por uma grade de ferro fina o suficiente para permitir a visão do
a sociedade (t imagem e semelhança dessa classe. Nesse empreendimento, o inspetor; a porca na grade permite apenas a entrada do prisioneiro, do inspetor
trabalho e a educação constituem-se elementos fundamentais da sua proposta
ou seu assistente; há repartições prolongadas para impedir que os prisioneiros
de inspeção c controle, ambos de fundamento utilitarista. Bencham descreve na
vejam uns aos ourros; existência de um pequeno tubo de metal que vai da cela
"Carta 1 - A idéia do princípio da inspeção", uma espécie de apresentação do
ao alojamento do inspecor com o objetivo de poupar esforço de voz; um sino
projeto arquitetônico da construção. Nela afirma que o edifício1� era concebido
com o propósito de alarme e a existência de cubos por roda a circunferência para
como uma Casa de Inspeção e que sua aplicabilidade destinava-se a todos c
promover o aquecimento das celas.
quaisquer estabelecimentos em que se pretendia manrer cerro número de pessoas
sob inspeção independentemente dos propósicos: Miller (2008) escreve que a questão essencial dessa construção panópcica

coloca-se na divisão entre o visível e o não visível. A posição central de vi�ilância


Punir o incorrigível, encerrar o insano, reformar o viciado, confinar o
suspeiro, empregar o desocupado, manter o desassistido, curar o doente, torna-a invisível aos observados. Na "Carta V - pomos essenciais do plano" ­
instruir o empregado da iodúsuia, ueinar a raça em ascensão no caminho
Bentbam escreve que a possibilidade de visibilidade/inspeção é a questão central.
da educação (Bentham, 2008, p. 19).
Nas suas palavras:

A estrurura seria adequada para se transformar em prisões, casas de


Quanto maior for a p robabilidade de que uma determinada pessoa, em
correção, de trabalho, manufaturas, hospícios, hospitais e escolas. Destaca-se
um determinado momento, esteja realmente sob inspeção, mais force será
que a arquitetura planejada serviria para gue a vigilância fosse uma constante. a persuasão, mais intenso, se assim posso dizer, o sentimento que ele tem
A pessoa reclusa deveria pensar que estava sendo vigiada o tempo rodo. de estar sendo inspecionado (Bentham, 2008, p. 29).

Não por acaso, nessa "Carta V" o destaque é para a centralidade da


H Conforme já referido na sinopse, O Panóplico é um tratado composw por 2 1 carcns c dois pós­
situação do inspetor, combinada com dispositivos para ver sem ser visto, sendo
escritos.
para isso a forma mais apropriada, a circular, que permite a visão mais perfeita
''' i\ "Carra I l i - Extensão para um único edifício" - apresenra a caracterização da extensão das celas
como mais ou menos espaçosas de acordo com o uso que se planeja fazer delas. O edifício como de um número indefinido de apartamentos das mesmas dimensões, o que gera
um todo seria suficicmemenrc grande paro ser rodeado de celas e dispor de uma :írea imcrmcdi(tria
a garantia de persuasão sobre os inspecionados e o senrimenro de estarem sendo
enrrc O inspetor e os prisioneiros. Na área cenrml havia um reto solar que permitia a ventilação.
Bentham :dirma ser csrc local ide:1l para a capela, desde que fechado duranre o serviço divino. vigiados constantemente. Trata-se, conforme observa Miller (2008), da possibi-

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Ana R. F. de Barcelos - Eliana C. N. Koepsel - Filomena L. G. R.da Silva - Marllandes M. R. de Melo CAPITULO 4 - O Panóptico de Jeremy Bentham como Estratégias de Controle na Doutrinação Utilitária

!idade de onipresença do inspetor. Sobre essa suposta onipresença há registros ane teatral do dispositivo utilitarista, roda função tem um papel. Escreve Millcr

na "Carta VI - Vantagens do plano". Nela é destacada a aparente onipresença (2008, p. l lO) que "o Panóptico não é um tema encre outros na obra de Bentham:
o utilitarista é fundamenralmence panopticisca."
do inspetor combinada com a extrema facilidade de sua real presença.

Em sua obra é visível que Bencham considera o homem governável, sub­


Saber-se estar sendo vigiado com a possibilidade dessa presença real de
misso, desnacurável. A sensibilidade, no entender de Miller (2008),
vigilância cria, nas palavras de Miller (2008, p. 91), "instância onividente, oni­

presente, onisciente, fechando os reclusos numa dependência de que não se basta para conduzi-lo a segurar as alavancas que ativam suas molas;
aproxima a nenhuma prisão ordinária, uma instância em que é mesmo preciso procurando o prazer, fugindo da dor, ele é uma máquina elementar,
cncregue pela natureza ao poder dos distribuidores da felicidade (p. 1 16).
conhecer um Deus artificiai."tl É a forma de produzir uma imitação de Deus.

Na mesma "Carta VI" ainda descreve Bentham que o edifício deve conter um
Os dois senhores do Pa11óptico são a dor e o prazer. Por essa máquina
alojamcnco para o guarda-mor e sua família. Ele recomenda que o grupo familiar
estas sensações seriam perfeita e utilmente controladas, e na visão de Bencham,
do guarda-mor seja numeroso, vistO que isso aumenta o número de inspetores
colocadas a serviço da humanidade. O indivíduo como o foco da organização
c não onera os cofres públicos. A inspeção rigorosa deve punir os transgressores
social move-se na direção de evitar a dor e buscar o prazer. As duas sensações
das regras, ainda que levemente. constituem-se nos elementos de condução do ser e da ordenação social. Veremos

Outra temática que preocupa Bentham é: quem guarda o guarda? mais adiante como as filosofias helenísticas tinham como pressuposto a busca do

Segundo Millcr (2008), a vigilância dos guardiães cabe ao olho público. É nesse prazer como um dos elementos organizadores de uma sociedade que se encon­

aspecto que o espaço projetado por Bentham se terna panóptico. Aumentar o trava em crise.

número dos que vigiam. Trata-se, ainda conforme a mesma aurora, de reinscrever
Figura: Pan-ópcico, desenho de Jeremy Bentham, 1791
a prisão, lugar de exclusão, no espaço social como um teatro do casrigo. Por isso

o edifício foi pensado para ser construido próximo da cidade. No panóptico não

deve haver crueldade, porque ela não é produriva.16 Conforme Bcntham, mais

vale reformar o indivíduo c moralizá-lo, de forma que isso não sirva apenas para

ele, mas para toda a humanidade (Miller, 2008). A ideia é criar uma forma de

maximizar a aparência e minimizar a realidade, visco que de acordo com Millcr

(2008, p. LOO) "a realidade só vale pela aparência que ela produz." Assim, na

1 1 Miller (2008, p. 92) comenta que Bcntham foi detalhista e que o pnnóptico foi transformando­
se no "espaço do rtmtro/e totnfittírio", em que tudo é pensado, planejado, avaliado. Nada escapa
do conerole, tudo é matéria para raciocinar. O motivo para pensar, medir, avaliar cada detalhe é
que, segundo a concepção utilitarista de mundo, ainda, segundo Miller (2008, p. 93) "tudo tem
efeito [. ..) wda coisa serve (ou dcsserve) a uma outra."
16
No processo de economia de sofrimento Bentham pensou numa máquina de chicotear. Nela
calcula-se lucros e perdas segundo as utilidades (1\.filler, 2008, p. 99). Fome: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Pan-%C3%B3ptico>. Acesso em: 15 nov. 2011.

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4.1.3 Sob a Égide da Inspeção: as tentativas de instituição Essa receptividade, na concepção de Picoli (2006, p. 39), "despertou

o interesse de Benrham em revisar a versão preliminar, visto que se mostra­


Qttalllo aoprojeto de que se trata, a convicção mais íntima, SlfJ­
va viável. Foi quando percebeu as várias inovações que poderia introduzir no
tellfada pela opillião tmâ11ime daqlfeles qlfe tivet·am conhecimemo
projeto." Para vê-lo posto em prática na Inglaterra tomou algumas iniciativas,
dela, fez-me decidir nada negligenciarpara ejetlfar a introdlffÕO
(Benrham, 1987, p. 199). dentre as quais citamos: encaminhou sua proposta ao primeiro-ministro William

Pite (185 5-1918); sugeriu ser um contratante-administrador da penitenciária


Benrham empenha-se em convencer os parlamentares da economia nacional em Londres; aplicou parte expressiva da herança recebida de seu pai
inglesa sobre o que representa o seu projeto para os cofres públicos e destaca o perseguindo a oportunidade de construir o panóptico; ampliou a divulgação do
princípio político da inspeção central. Ele investe no trabalho, como força pro­ projeto para outros membros do Parlamento; reformulou o projeto original;
dutiva c controle do corpo, que, em seu projeto, é regulado por um ambiente acendeu à solicitação feita pelo Tesouro inglês de uma proposta mais curta e
que condiciona a ação,17 conforme podemos ler nas suas cartas. adequada. A longa negociação e a demora na aprovação do projeco o levaram a

Na Inglaterra, a sorte e a desgraça da obra O PanÓjJtico foi cercada de reagir exigindo que fossem divulgados os documentos por de elaborados encre

especulações. O formato episcolar18 apresentava um tema árido, que iniciaLnence abril e junho de 1800.

não agradou aos editores como escritO a ser publicado. Originalmente, de acordo O primeiro-ministro aceicou a oferta c a proposta de contrato para cons­
com as ideias de Bentham, O Panóptico não era destinado à publicação e este foi truir penitenciárias menores; elaborou um texto relatando minuciosamente o
um primeiro equívoco: um escrito prático, que descrevia detalhadamente uma projeto e suas negociações com o Tesouro no processo de adquirir o terreno;
casa de custódia, não poderia ser entendido como uma obra a ser publicada. A efetuou uma análise indicando os problemas do sistema de deportação e as van­
compreensão da proposta de Bentham manifesta-se a partir de 1820, quando a tagens da penitenciária e finalmente fez circular textos - cartas enviadas a Lord
arquitetura dos projetos de prisão começa a receber marcas descritas por ele no Pelhan, Secretário do Interior - no Parlamento, argumentando, segundo Picoli
Panóplico, seguindo como marca na arquitetura dos projetos de prisão disciplinar, (2006, p. 44, grifo do autor), que o "governo não tinha poderes constitucionais
embora no sentido estrico, o Pallóptico, segundo Perrot (2008, p. 146), não tenha para fundar e admi.nisrrar colônias penais e que suas ações violavam a Constitui­

consolidado com a proposição de "um só lugar, um só homem, um só olhar, um ção; a Magna Carta, a Petition ofRight, a lei do Habeas Corp/IJ e a Bill ofRights."

só poder, uma só voz." O panoptismo como princípio da vigilância, no encanto,


Na França, no contexto da Revolução Francesa e diante das convulsões
ainda que com alterações no projeco inicial, foi disseminado.
políticas e sociais que lá ocorriam, Bentham alimentou a esperança de ver sua

obra ganhar materialização em solo daquele país. Em 1791 a questão da peni­

tenciária foi abordada na Assembleia Nacional Constituinte francesa, discussão


17 O condicionamento humano na obra Admirável Mundo Novo, tema tratado no capitulo 5,
em realizado a partir da concepção dos fetos, em laboratório, por intermédio do "processo encampada por higienistas e penalistas que propunham reformas para resta­
bobnovsky". J3uscando a estabilidade social, para os seres humanos que não vivessem Jenrro dos
belecer a ordem e manter condutas consideradas adequadas. Dumont (1759-
condicionamentos apreendidos - o que era raro acontecer -, existiam maneiras de recondicioná­
los. 1829), secretário particular de Bencham, apresentou, na Assembleia, os escritos

'A A palavra "epístola" derivada do grego significa ordem, mensagem. Já na origem latina remcrc do Panóptico em versão mais sintética que a inglesa, enfatizando seus aspectos
a pensar a carta como mensagem escrita e assinada, que serve como meio de corresponJência políticos. O mesmo texto foi enviado por Benrham a Condorcct (1743-1794) e a
entre pessoas. Pode expressar interesses particulares e/ou públicos. Este significado se aplica ao
caso das "Carms" escritas por Benrham. Brissoc (1754-1793), que eram integrantes do Comitê de Medicina. As relações

que Bentham estabelecia com a Revolução Francesa eram ambíguas. Embora o

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jurista estivesse seduzido pelas possibilidades de pôr em prática seu projeto em se lançou na empreitada de estabelecê-lo, articulando questões práticas para
meio às discussões em voga e colaborasse com escritos que auxiliavam o reor­ sua efetivação, negociando condições administrativas, políticas e financeiras,
denamcnto legal do país, ele alimentava discordâncias quanto aos princípios de especialmente com o governo inglês.
liberdade e igualdade Discordava também da defesa do "contrato social" e dos
.

"direitos nacurais". Apesar de roda a expectativa criada em terras francesas, o


Panóptico enfrentou um "xeque-mate" com a queda da Constituição e da Monar­ 4.2 JEREMY HENTHAM: Um Pouco da sua História
quia na França nos idos de 1792.

Por volta de 1812 estava em evidência o conceito higienista que pleiteava Todos os insta11tes de minha vidajot·am contados

prisões saudáveis, higiênicas e confortáveis. É nesse contexto que em 1825 se (Oenrham apud Perrot, 2008, p. 131).
efetiva a primeira experiência de instalação do panóptico, a Petit Roquete, prisão
O triunfo da rttzão organizadora é, felizmellle, sempre difícil
que posteriormente foi transformada em orfanato. A proposta benthamiana,
(Perrot, 2008, p. 139).
porém, suscitou críticas, embora houvesse uma oposição às prisões em masmor­
ras e calabouços do Antigo Regime. A ideia inglesa, mecânica e centralizadora
de um único motor, o olho, desagradou em especial ao renomado arquiteto da Nascido no dia 15 de fevereiro de L 748 e falecido aos 6 de junho de 1832,
geração ncoclássica Louis Pierre Baltard ( 1764-1846), visco que, conforme regis­ na cidade de Londres, Inglaterra, Jeremy Bentham era o mais velho dos dois
tra Perrot (2008, p. 1 5 1), "os espiricualisras não podem admitir esse poder do filhos do advogado Jeremiah Bentham 19 com Alícia Whicehorn Grove (1759).
ambiente sobre o psíquico que é um dos componentes do panoptismo." Dadas as Jeremiah Bentham, de acordo com as análises de Perroc (2008, p. 126), era um
dificuldades manifestadas em território europeu, os ingleses, franceses e alemães
"homem hábil e duro nos negócios, pai solícito c tirânico" que ambicionava
buscaram no Novo Mundo (Estados Unidos), a inspiração para uma proposta
"para seus filhos [. . ] êxito social mais do que o inceleccual." O irmão mais novo
.

de conjunto de prisões, que acabavam por reafirmar, com algumas alterações ,

de Jeremy Bentham chamava-se Samuel Bencham (1734-1831) e era arquitetO


os elementos presentes no projeto de Bentham.
naval e também diplomata. Jeremiah Bentham ampliou extraordinariamente
A arquitetura panóptica, pensada por Bentham, que apostava no conceito
seus ganhos financeiros por meio de transações imobiliárias. Após a morre de
funcional do espaço, marca a transição do Medievo - período no qual a escuridão
Alícia, primeira esposa, Jercmiah Bcnrham casou-se com a Sra. John Abbot
e o enclausuramenco predominavam -, para o período moderno, quando se abre
( 1 8 2 1 -1893). Esta era viúva e mãe de dois filhos do primeiro casamento. Um
um novo espaço para a luz, a razão, a transparência e a produção. Nesse processo
de transição histórica, conceitualmente os prédios públicos e as cidades deveriam
ser abertas para circulação. Os projetos de arquitecura circular são evocadores da 19 Jeremiah Benrham (17 12-1792} csrimulnvn a concorrência cnrre seus dois filhos com sua primeira
esposa Alícia - Jcrcmy c Samuel - com Charlcs Abbor, renomado advogado parlamentar, que
harmonia de uma pofis ideal, na qual o trabaU1o comum, por consequência, seria
era filho unicamente de sua segunda esposa. A relação de Jcrcmy com o pai era conrurbada.
coesivo, revelando consonância entre as funções utilitárias e as funções simbóli­ Jeremiah Benrham mostrava-se incomodado com o modo como o filho mais velho conduzia sua
vida e seus projeros, avaliados por ele como inscnsaros c sem resultados. Após a morre do pai,
cas. Foi na circulação de idcias de visibilidade, higiene, disciplina, controle e na contudo, em 1792, por meio da herança recebida Denrham conseguiu os recursos c procurou
,

tentativa de comprovar que a proposta do panópcico era viável, que Dentham viabilizar o projero do panóprico (Perror 2008}.
,

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dos filhos, Charles Abboc, tornou-se o primeiro Barão de Colchester e alcançou Juntou-se ao grupo de Shelburne24 em 1781, após conhecê-lo no Lincoln's

o sucesso político desejado por Jeremiah Bentham20 para seu filho Jeremy21 1!111, no inicio do mesmo ano, quando foi convidado por Shelburne a ir a Bowood,

(Picoli, 2006). na sua residência em Wiltshire. Lá conviveu uns poucos meses com figuras25

que marcariam sua carreira. Em 1784 Bencham viajou à Rússia. De acordo com
Jeremy estudou na Westminste1- School entre os anos de 175 5 e 1760. Em
Picoli (2006, p. 27), foi até "Nice, na França, seguiu para Ismirna, depois para
outubro de 1763, bacharelou-se no Queen's College, em Oxford, instituição famosa
Istambul (Constantinopla), de lá para Bucareste; chegou a Krichev26 no início
por enfatizar a formação em lógica. Bencham a frequentou de 1760 a 1763.
de 1786."
Ainda em novembro do mesmo ano (1763) foi conduzido ao Lincoln's Inn, 22 "um
Em 1788 já estava em Londres e entre os anos de 1807 e 1808 conheceu
dos alojamentos da Corte Judicial britânica" (Picoli, 2006, p. 16). Bencham
c aproximou-se daquele que seria o seu grande colaborador e aliado na luta
retornou para Oxford em dezembro de 1763, onde assistiu às aulas do Dr.
pelas reformas do sistema jurídico inglês, ]ames Stuart MillY Bentham c Mill
William Blackstone (1723-1780). Os jovens aspirantes à advocacia faziam suas
desenvolveram uma grande amizade. Jeremy Bentham faleceu em Quem's Square
leituras, participavam de jantares na Corte e, conforme Picoli (2006, p. 17),
aos 6 de junho de 1832, aos 84 anos de idade, junco ao convívio de amigos e
"aprendiam sobre a prática do Direico assistindo às sessões e aos julgamentos."
discípulos que prosseguiram no desenvolvimento do utilitarismo.
Bemham exerceu a profissão de advogado em 1769, porém muito brevemence.23

24 Shclburne era um magnata inglês, líder da facção llí'hig a partir de 1778, e que apoiou as críticas
que Wilkes elaborou contra o primeiro-ministro e o Rei George III. Shelburne era considerado
pouco confiável por suas relações com os pares, duplicidadc nas ações c por ser muito ambicioso.
20 Para atingir tal objetivo o pai de Jeremy desde muito cedo o encaminhou para uma formação Apelidado pelo próprio \Vilkes de "Malagrida" e chamado pelo próprio Rei de jesuíta da
que atendesse aos requisitos jurídicos e políricos. Supervisionado pelo pai, ainda em sua casa, Berkeley Sq11are. Foi primeico-minisrro entre 1782 e 1783, sob o reinado de George Ill. Ficara
ceve acesso aos estudos de lacim, grego, música, desenho e dança para posteriormente, sob a impressionado com A Fragme11t on Govemmmt, apesar de nutrir admiração por Blackstone. O
tutoria de La Comte, produzir, conforme Picoli (2006, p. 15), "seus primeiros manuscritos em motivo da visita a Shelburne foi obter uma carra de aprcscncac;ão para Samucl, seu irmão, que
francês." Também sob a orientação de La Comte, Bcncham, segundo Picoli (2006, p. 15), acessou viajaria para a Rússia em 1779. Anceriormenre, por volta de 1778, Benrham obteve informações
"livros mais interessantes do que a coleção de obras didáticas e devocionais da biblioteca de seu sobre esse pais por meio de John Foster, que lá estava, e vislumbrou a oportunidade de ver seu
pai." Fundamentado na obra de :Mary P. Mack (1962), afirma que ler Telêmaco de FénelotJ marcou "código de lei implantado num país" (Picoli, 2006, p. 27).
definitivamente o caráter de Jcremy Bencham.
25 Encre eles, citamos: Lord Mansfield, Charles Pratt (Lord Camdcn), Alcxandcr Wcddcrburne
21 Jeremy Bentham não se casou, embora duranre 20 anos aproximadamente, tenha feito a corre a (Lord Loughborough), Benjamin Franklin, Tayllerand e Mirabeau, Isaac Barré, John Dunning
uma nobre herdeira, amiga de Lorde Shelburne, também seu amigo e protetor. (Lord i\sburron). Além desses contatos Bencham tinha seu próprio Jta!fformado por inceleccuais
22
e especialistas, como Richard Price, Joseph Priesclcy c Samucl Romily.
Esses alojamentos, anteriormente ao século 18, eram escolas de Direito. Afirma Picoli (2006,
p. 16) que no Lit1coi'J lnn encontrava-se "a melhor biblioteca e entre seus membros estavam 26 Optamos por preservar a grafia do autor.
personalidades iluscccs corno Thomas More, Bolingbroke e Mansfield." 27 )ames Scuarc Mill era 25 anos mais novo que Benrham, Era, segundo Picoli (2006, p. 49-50),

23 Contrariando seu pai, Bentham abandonou a carreira da prática jurídica, mas escava convencido "escocês de origem htunildc que, por volta de 1800, havia abandonado as carreiras de pastor da
da necessidade da reforma do Direito e via nesse caminho a oportunidade de atingir a reputação Igreja da Escócia e de mror para remar a sorte em Londres corno escritor e jornalista. Por volta
esperada. No início da década de 1770, ele já havia inicütdo o esforço de cencar encontrar uma de 1806 ele já escava esrabelecido como jornalista, tinha sido colaborador no Atlli:}acobin Review
maneira de aplicar os princípios científicos à organização do sistema legal. Já em ourubro de e editor do Saint}ames Chronide, quando iniciou o ambicioso projeto de escrever uma História da
1772 Bentham escreveu ao pai afirmando que no caminho em que trilhava, seguia entusiasmado Índia Britânica." Ele posstÚa um círculo de amizades no qual figuravam nomes imporcances no
c esperançoso, ao passo que se rivesse que seguir qualquer outro, ele rastejaria em desânimo e período, tais como Henry Brougham, David Ricardo, Francis Place, Albany fonblanque, William
relutância (Picoli, 2006, p. 19). Allen e John Black (Picoli, 2006).

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Ana R. F. de Barcelos - Eliana C. N. Koepsel - Filomena L. G. R.da Silva - MariiAndes M. R. de Mt•lo o '*'i'I IIILO 4- O Panóptico de Jeremy Bentham como Estratégias de Controle na Doutrinação Utilitária

A produção inceleccuaF8 de Bencham foi muito extensa. A profusão do� 1 ,v,,, mas que ainda não se consolidara. Muitas de suas ideias circularam nesse
mas não se encerraram
escritos benchamianos e seus manuscritOs estão depositados no 81-itish MIISct1111
idação da sociedade burguesa,
1,, tiC�t/o de afirmação e como/
e na Univenity College, em Londres. Esse arquivo é frequentemente consulcadu, 111 t.l\garam as fronteiras e circulam também nos dias atllais.
pois condcnsa uma das fontes que orientam e permitem uma leitura e análise da
Algllm modos possíveis de consolidação desse tempo, como ficções distópi­
modernidade e, ao mesmo tempo, demonstram que um clássico sempre cem con
• '"• poderão ser observados no capítulo 5: Educa�cio, trabrdho
e temologia 110 Admi­
ceicos/conteúdos que rompem as fronteiras do tempo. Além das obras já citada'
t.tt•t•l Mundo Notio: mtre a realidade e a ficção construído a partir da obra de Aldous
neste texto, como o Prmóptico e A Fragmem on Govemmmt, destacamos ainda:
l l·unard Huxley. Segundo este autor, a discopia se revela como uma ordem social

.11 Defense o/ Usmy, escrita entre o início de janeiro e fins de abril de ' "' qual as pessoas são alienadas, tiranizadas c submetidas à ausência da arte,
1787, na qual Bentham indica a ineficácia da lei da usura em seu
du educação, do convívio em família c em comunidade. Para Huxley (2009), é
país.
deveras tênue o limítrofe que separa o que é real do que é ficcional, podendo
• O sitiamento
Au lntrod!tction to the Pl'incjJ/es
i ofiHoraiJ and Legislation, publicado em l'm alguns aspectos até se fundir. Do mesmo modo o capítulo 6:
1789, na qual o autOr apresenta sua doutrina filosófica do utilita­ individ11af e roletivo rw.r "tmmclos" da uemsidctde e da Liberdade: nflexões a partit· de
rismo c sustenta que a utilidade das ações possibilita fazer da moral 1 984 de George Ot"UJell, traz outro cenário distópico construído a partir das percep­
uma ciência exata. ções de Orwell sobre os anos 1930/1940 do século 20. Um mundo oscilante por

lvlan11al of Political Econom)', redigido entre os anos de 1793 e 1795 . constantes crises e divergências no qual o que prevalecia era a égide da miséria

Nele, segundo Picoli (2006, p. 46), Bentham expôs, sistematica­ c da desigualdade.

mente c de modo abrangente, "a sua doutrina utilitarista de eco­


nomia política", mostrando a analogia com a obra de Adam Smith
4.3 PARA ENTENDER A OBRA: o Contexto, as Crenças e as Convicções
- mas demarcando que a diferença enrre os escritos escava no modo
de apresentação do conl1ccimenco. Conforme Picoli (2006, p. 46), O que se s11põe ser pennanentt na estmtura 011 inteligência de uma
"enquanto A Riq11eza das Nações apresenta uma descrição da reali­ pessot,t onde, nesta o" naq"e!d ocasiãfJ, elafoi injlllencia�la por este
dade , o Matutai pretendia oferecer um guia de ação para os gover­ o" por aq"ele motivo a pm:icar 11111 ato que se apresemava ct ela
nances"; e com esta oN ttqNela tmdência (Benrham, 1974, p. 56).


Teoria das penas e das recompensas ( 1 8 1 1), publicada primciramence
em francês.
4.3.1 Contexto de Referência
Como um criador obstinado Jeremy Bencham não hesitou em investir
cada instante de sua existência na produção não unicamente do Pcmóptico, mas de O Parróptico de Jeremy Bencham foi escrito no final do século 18, precisa­

uma vasta obra, afirmando suas convicções acerca de um tempo que se manifcs- mente em 1786, na Rússia. A comp reensão do! significados mais amplos desta
obra permite que recuperemos alguns acontecimentos dos séculos 16 ao 18, nos
quais ocorreram grandes mudanças econômicas, políticas, sociais e culturais no
28 É possível aprofundar-se na trajetória c na obra do autor com a Ieirura da tese de Rogério Antonio mundo de maneira geral c na Europa em par1icular. Dentre essas mudanças
Picoli, inritulnda Sobre o gwemo dejere111y Bemham: o risco daJ parteJ e o trnçrl(/o do todo, defendida
pode-se destacar especialmente a Revolução Científica, o Iluminismo, a Revo­
na Universidade de São Paulo em 2006, que oferece uma vasta an<ilise da produção intelectual
de 13entlurn. lução Industrial e a Revolução Francesa.

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Ana R. F. de Barcelos - Eliana C. N. Koepsel - Filomena L. G. R.da Silva - Marilândes M. R. de Melo CAPITULO 4 - O Panóptlco de Jeremy Bentham como Estratégias de Controle na Doutrinação Utilitária

A Revolução Científica iniciada no século 16 ganha impulso no século to de pedras nas estradas); nas máquinas (teares gigantes); na comunicação
17. Esta revolução, concudo, foi precedida por acontecimentos que marcaram o (telégrafo) e na energia (primeiras iniciativas no campo da eletricidade com a
desenvolvimento histórico e social quando o feudalismo começa a entrar em crise,
descoberta da lei da corrente elétrica - Ohm/1827 - e do eletromagnetismo
as atividades comerciais fortalecem-se e as navegações expandem-se. As trans­
- Faraday/1831).
formações na forma de conceber a ciência, atribuídas a diversos intelectuais,29 a
partir do século 16, caracterizam-na como um conhecimento mais estruturado, O trabalho no século 18 encontrava-se consolidado na prática da manu­
prárico e desvinculado gradativamente da religião e da Filosofia. fatura, que propiciou o aumento da produção e avanços técnicos importantes.
A Revolução Industrial, iniciada no século 1 8 e que rcve a Inglaterra A forma organizativa manufatureira tinha corno característica a reunião de ope­
como precursora, imprimiu um novo rirmo canro para a ciência quanto para rários sob o comando dos capitalistas emergentes. Tecnicamente o trabalho foi
os processos produtivos. O pioneirismo inglês, nesse contexto de mudanças, dividido em partes entre os trabalhadores classificados em hábeis e inábeis. A
explica-se por diversos fatores: a supremacia naval; as grandes reservas de carvão
divisão social do trabalho promoveu a separação do trabalhador dos seus meios
mineral como fonte energética para movimentar as máquinas a vapor; as jazidas
de produção e a conversão desces meios em capital, uma das condições primor­
de minério de ferro como fonte de matéria-prima; mão de obra em abundância a
partir especialmente da Lei de Cercamento dos Campos;30 capital da burguesia diais da sociedade capitalista.

para financiar as fábricas c o próprio mercado consumidor inglês. As condições de trabalho�• nessa época eram bastante precárias. Os
O século 1 8 e início de século 19 foram divisores de água no que se ambientes fabris eram insalubres, com péssima iluminação, abafados e sujos.
refere ao desenvolvimento tecnológico. Nesse período observam-se grandes Além dos baixos salários, da utilização da mão de obra feminina e infantil,
inovações nos transportes (locomotivas, trens, barcos a vapor, revestimen- das jornadas de trabalho de até 18 horas diárias, os trabalhadores não conta­
vam com férias, descanso semanal remunerado, auxílio-doença, enrre ourros.
19 Destacamos Francis Bacon (1561-1626), René Descartes (1596-1659) c lsnac Newton (1643- Tais aspectos refletem diretamente no modo de organização social, tanto em
1727). Bacon desejava a reforma completa do conhecimento, especialmente o científico, que
segundo ele deveria servir ao homem e dar-lhe poder sobre a narureza. Seu projeto de sociedade relação à alteração da rotina das famílias, particularmente no que se refere à
foi construído sob a égide do império do Homem. O Capítulo 3: Fic;ão 011 11topia.' 11 Nova
lltliifllitla t a crm;a dt Baton na riênd
a t na ttmologia comoprinrípioJ tia J:twtmabilidade aborda o restrição do convívio familiar e na própria divisão entre os que pensam e os
pensamcnro deste :outor. Descartes, considerado o pai do racionalismo, uefcndia a tese de que
a dúvida é o primeiro p;15so para se chegar ao conhecimento. Já Newton projetou descobertas que executam.
que revolucionaram o pensamento científico por meio do Teorema Binomial, o Cálculo, a Lei da
Grnvimção Universal e a Natureza das Cores.
}O Durante o feudalismo a maior parre da população inglesa vivia no campo, em comunidades
locais nas quais praticava :• agricultura de subsistência. As rerras possuíam caráter hereditário
c eram cultivadas em campos abertos, havenuo áreas comuns enrre famílias disrincns,
destinadas à pastagem de gado, à caça ou obtenção de madeira. A partir do século 15, ocorre o
desenvolvimento da indústria têxtil de produção doméstica em alucias c a instituição gradual
de um mcrcauo inglês que culmina com a Revolução Industrial no século 18. Diante desse
novo contexto, entre os séculos 16 e 19, os proprietários, a partir de uma lei aprovada pelo
Parlamento Inglês, iniciam o cercamento dos seus campos abertos, expulsando camponeses c
pequenos proprietários de seus lorcs, provocando o êxodo rural e consequcncemcncc o inchaço li Destaca Hobsbawm (2002, p. 285) que "entre 1815 c 18tl8, nenhum observador consciente
das cidades, a oferta de mão de obra barata para a indústria em expansão na Inglaterra c a criação podia negar que a situação dos trabalhadores pobres era assustadora. E já em 1840 esses
de urna nova classe social, o proletariado. observadores eram muitos e advcrriarn que cal situação piorava cada vez mais."

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Ana R. F. de Barcelos - Eliana C. N. Koepsel - Filomena L. G. R.da Silva - Marilândes M. R. de Melo
CAPITULO 4- O Panópticode Jcremy Bentham como Estratégias de Controle na Doutrinação Utilitária

Diante desse contextO de exploração da classe trabalhadora surgiram do Parlamento. A burguesia, como classe revolucionária34 por excelência, no
reações em diferentes regiões da Europa. Os empregados fabris formaram sindi­ contexto, passa a ser a principal responsável pelas transf�rmações. Arricula a
catos (trade unions) visando a lutar por melhores condições de trabalho. Alguns consolidação de seus poderes econômicos, políticos c educacionais.
desses movimentos foram violentos, como o LudismoH e outros mais amenos,
Na França havia uma crise econômica agravada pela permanência da
corno o Cartismo.H
Monarquia no poder. Para sustentar o Estado Absolutista extorquia-se da popu­
Assiste-se, assim, à hegemonia do pensamentO liberal na economia, na lação altOs impostos. Isto provocou a emergência de uma crise social, tendo
política c nas questões relacionadas à educação do homem moderno. As tensões em vista os alcos índices de miséria, fome e desemprego e uma crise política,
entre o novo/moderno e o velho/antigo atingem seu auge. A organização política advinda da insatisfação popular diante das decisões soberanas vividas no sistema
inglesa, nesse período, é constituída por uma Monarquia parlamentar, instalada monárquico do país. É importante enfatizar que a organização política e social
na Revolução Gloriosa de 1688, na qual o Rei é forçado a respeitar as decisões francesa, da segunda metade do século 18, era dividida em crês grupos (Estados):

o 1° Estado, constituído pelo clero; o 2° Estado, pela nobreza e o Y' Estado,

que correspondia aproximadamente a 98% da população, que abrigava desde

burgueses, camponeses desterrados, e acé .rans-mfottes, definido por Hobsbawm

(2000, p. 28) como "um movimento disforme, sobretudo urbano, de trabalha­

dores pobres, pequenos artesãos lojistas, artífices, pequenos empresários [ . ] .


.

11 O Ludismo foi um movimento de destruição das máquinas pelos operários com o argumento organizados principalmente nas 'seções' de Paris e da revolução."
de que os equipamentos eram responsáveis pelo desemprego c miséria. Marx (18 18-1883), no
capítulo sobre a maquinaria c a grande indústria de O Capital: críti
ca da ecrmomiapolltirll, trata das
manifestações de insurreição do trabalhador para com a máquina. Marx (2004, p. 488) esclarece
que toda a Europa presenciou revoltas dos trabalhadores coocra as máquinas. O trabalhador,
diante da possibilidade de ser lançado na miséria com a perda do uabalho e com a introdução da
máquina no processo de trabalho, combate esse instrumemo, "configuração material do capital... l-t No Manifesto ComrmiJtt1 de 1848, Marx e Engels (2010) destacam o caráter revolucionário da
O autor cita vários casos registrados de revolta dos trabalhadores c da ação das autoridades no
burguesia na História. Segundo esses autores onde quer que a burguesia tenha conquistado o
sentido de proibir ou limitar o uso de determinadas m;íquinas nos séculos 17 e 18, mas que se poder, destruiu as relações feudais, patriarcais c idílicas; revolucionou não só os insrrumcntos de
estende até o século 19. Parece que não é compreendido pelos homens da época o significado produção e as relações de produção c com isso todas as relações sociais; desenvolveu o intercâmbio
histórico da maquinaria, ou seja, que a maquinaria representa a possibilidade de acabar com universal e especialmente a interdependência da produção material c intelectual emre as nações;

as limitações de uma organização técnica da produção na qual o trabalho manual apresenta-se submeteu o campo à cidade; suprimiu a dispersão dos meios de produção, da propriedade c da
como a base de tudo. J.,.larx (2004) é comundente ao afirmar que é preciso separar o instrumento população; aglomerou populações, cemralizou meios de produção; concentrou a propriedade em
(m:íquina) da aplicação de exploração que dela se faz na formação social capitalista. Nas palavras poucas mãos e consequentcmcntc provocou a centralização política (ideia de uma só nação, uma
de Marx (2004, p. 488): "era mister tempo c experiência para o trabalhador aprender a distinguir só lei, um só interesse nacional de classe). Contudo, diante da epidemia da superprodução - crise

a maquinaria de sua aplicação capitalista e atacar não os meios materiais de produção, mas a dos excessos, da estreiteza do sistema burgu�s para comer as riquezas criadas, a burguesia vê-se
forma social em que são explorados. .. diante da inevicável ncccssidadc de conll'olm· osporlet·es hifémns
i que invoc011, ou seja, para continuar
hegcmônica a burguesia precisou criar estratégias para frear a produção c estimular o consumo
ll O Cartismo íoi um movimento que consistiu na publicização de uma carta escrita por William
(por um lado a redução de investimentos, o desemprego, exigência da intervenção do Estado na
Lovctt (1800-877), em maio de 1838, que continha seis exigências: o voto universal, a igualdade criação de normas regulacórins do capital - barreiras tarifárias; por outro lado, a competitividadc,
entre os distritos eleitorais, o voto pela cédula, a eleição anual, o pagamento dos membros do subsídios para a produção, o estímulo ao consumo, n destinação de renda para o desempregado
Parlamento e a abolição da qualificação segundo as posses para a participação no Parlamento. manter-se consumidor).

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Ana R. F. de Barcelos -Eliana C. N. Koepsel - Filomena L G. R.da Silva - Marillindes M. R. de Melo CAP[TULO 4- O Panóptlco de Jeremy Bentham como Estratégias de Controle na Doutrinação Utilitária

Um quadro que culmina, no final do século 18 ( 1789), com a Revolução 4.3.2 Crenças e Convicções: o Uberalismo e o Iluminismo
Francesa. n Revolução essa que precipitOu a derrubada da estrutura anterior e
a conquista do poder político pela burguesia. Os ideais de liberdade, igualdade O Liberalismo é um conjunto de princípios e teorias políticas, que expri­
e fraternidade, que motivavam a população a querer e participar da revolu­ mem a defesa do direito natural à liberdade, sendo entendido como inaliená-
ção, foram posteriormente subsumidos ao serviço do capital e dos negócios. A vei, assim como o direito à propriedade privada (Cunha, 1991). O pensamento
população pobre da França, que inicialmente exerceu, ao lado da burguesia, um
liberal, segundo Cunha (p. 28), foi elaborado "por pensadores ingleses e franceses
papel importante no processo revolucionário, foi posteriormente destituída de
no contexto das lutas de classe da burguesia contra a aristocracia." Enquanto
espaço para reivindicações e de possibilidades de participar das "conquistas" que
sistema de crenças e convicções, Cunha ( 1991) o concebe como uma ideologia.
contribuíra para sua concretização. O seu descontentamento e, mais ainda, a
consciência de classe diante das condições de existência empobrecida ao lado da Os axiomas máximos da doutrina liberal são: o individualismo, a propriedade,

riqueza proporcionada pelo desenvolvimentO das forças produtivas, motivaram a liberdade e a igualdade.

outras revoluções no século seguinte.36


Alguns teóricos do liberalismo incluem também a democracia (direito
de participar do governo por meio de representantes de sua escolha). Rousseau
(1712-1778), por exemplo, defendeu a instauração do governo da maioria. Já
o francês Voltaire (1694-1778)37 defendeu restrições à participação popular.
Bencham e Mill advogavam que o Estado deveria garantir o sistema de mercado
livre c proteger os cidadãos da opressão e da tirania do governo, que, por ser
}) Hobsbawm (2002, p. 83-84) assevera que a França forneceu o vocabulário c os remas da política
liberal e democrática para a maior parte do mundo: "Se a economia do mundo do século XJX
eleito democraticamente, deveria cumprir suas obrigações políticas sem contra-
foi formada principalmenre sob a influência da revolução induscrial britânica, sua política e
ideologia foram formadas fundamentalmente pela Revolução Francesa. A Grã-Bretanha forneceu rar os interesses do eleitorado. Os filósofos John Locke38 (1632-1704), Romsea11 e
i
o modelo para as ferrovias e fábricas, o explosivo econômico que rompçu com as estruturas
sociocconômicas tradicionais do mundo não europeu; mas foi a França que fez suas revoluções e
a elas deu suas idéias, a ponto de bandeiras tricolores de um tipo ou de outro terem-se tornado
o emblema de praticamente todas as nações emergentes, c a política européia (ou mesmo '' Para Voltaire (1978, p. 217 -218), a sujeição humana não escava pautada na desigualdade, mas na
mundial) entre 1789 e 1917 foi em grande parte a Jura a favor e contra os princfpios de 1789, dependência natural entre os homens: "Todos os homens seriam, portanto, necessariamente iguais
ou os ainda mais incendiários de 1793. A França forneceu o vocabulário e os remas da política se nada precisassem. A miséria, condição ngrcgndn à nossa �spckie, subordina um homem a ou rro
liberal c radical - democrática para a maior parce do mundo; deu o primeiro grande exemplo, o homem; não é a desigualdade que é um mal real, mas a dependência. [...}. O gênero humano, cal
conceito c o vocabulário do nacionalismo e forneceu os códigos legais, o modelo ele organização como na realidade é, não pode subsistir a menos que não haja uma infinidade de homens úteis
técnica c científica e o sistema métrico de medidas para a maioria dos países. A ideologia do que nada possuam; porque, é mais do que cerro, um homem que possua o suficiente e viva ao
mundo moderno mingiu as antigas civilizações que rinham até então resistido as idéias européias seu bel-prazer não vai abandonar a sua terra para vir cultivar a vossa; e se tiverdes precisão de
inicialmente através da influência francesa. Esta foi a obra da Revolução l'ranccsu." um par de sapatos, não será, com ccrrcza, um rcfcrendário que vô-lo r.�rá. Por isso, a igualdade
i
16 Revolução de 1830 c de 1848 e especialmente a Comuna de Pal'is em 1871, quando é instaurado é, simultaneamente, a cosa mais nnrural c mais qu imérica que existe."

um governo popular por apenas 72 dias na França. As iniciativas, no entanto, for:un suficientes '" John locke dedicou-se a estudos filosóficos, morais e políticos. Ministrou aula sobre Filosofia
para garnntir ao governo da "Comuna" um lugar de destaque na história do movimento operário moral, escreveu ensaios sobre o papel do governo na sociedade e desempenhou, como secretário,
mundial. diversas funções públicas.

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o também filósofo e economista escocês Adam Smith39 (1723-1790) lançaram as A liberdade é projetada como condição essencial da efetivação dos talen­
bases daquilo que conhecemos como Liberalismo. Nos escritos desses pensadores tos individuais, sendo necessário que os homens sejam socialmente desiguais.
a razão sobrepõe-se à fé40 (Cunha, 1991). Nas considerações críticas de Cunha (p. 31), a doutrina liberal tem como pres­
supostO que a igualdade social é nociva, pois "provoca uma padronização, urna
Locke, ao fazer a defesa da propriedade e do trabalho, o faz considerando
uniformização entre os indivíduos, o que é um desrespeito à individualidade
o homem como indivíduo, possuidor da capacidade de trabalho, de aptidões e
de cada mn." Ainda segundo Cunha (1991, p. 31), a igualdade apregoada no
de talentos próprios. O Estado, pensado pelo filósofo político para uma socieda­
pensamento liberal é a igualdade perante a lei; "igualdade de direicos entre os
de composta por indivíduos dotados de direitos naturais, teria a função, como
homens, igualdade civil."
informa Cunha (1991, p. 28), de "permitir a cada indivíduo o desenvolvimento
de seus talentos, em competição com os demais, ao máximo da sua capacidade." No plano filosófico o século 1 8 é permeado pelo Iluminismo, uma dou­

Segundo essa premissa de talentos diversificados, cada indivíduo poderá atingir trina filosófica que buscava estender a crítica e a razão como guia para todos

uma posição social diferenciada. Cunha esclarece que para esse pensamento, os campos da vida humana. A razão e os resultados dela seriam condição para
obter o melhoramento do indivíduo e, portanto, da sociedade, caracterizado pela
se a aucoridade não limita nem tolhe os indivíduos, mas ao conrrário,
permite a todos o desenvolvimento de suas potencialidades, o único res­ convicção no progresso do conhecimento humano, na racionalidade, n a
ponsável pelo sucesso ou fracasso social de cada um é o próprio indivíduo riqueza e no controle da natureza- derivou sua força primordialmente do
e não a organização social (Cunha, 1991, p. 29). evidente progresso da produção, do comércio e da racionalidade econô­
mica c científica que se acreditava esrar associada a ambos (Hobsbawm,
2002, p. 41).
39 Adam Smith foi sistematizador da economia poütica no contexto de manufatura do século 18,
defendendo a impocrância do trabalho - c sua divisão - na produção dos avanços técnicos. Foi
A discussão básica do Iluminismo41 volta-se a compreender e estimular
poeta-voz da defesa da liberdade de mercado e da comunicação entre os homens.

"<> Nos limites deste texto, como exemplificação, citamos John Lockc, o qual contribuiu para a a autonomia do sujeito. O "Eu" supera os laços da tradição por meio de um ato
compreensão do que é o Iiberalismo ao proclamar o direitO de liberdade (cond ição da ação, das
libertador e é restituído do seu direito original (Hobsbawm, 2002). Essa con­
aptidões, e das potencialidades individuais), de trabalho e de propriedade. Conforme suas próprias
palavras, Locke (1998, p. 382, grifo nosso) entende que "devemos considerar o estado em que cepção filosófica pressupõe a razão como guia em todos os campos da existência
todos os homens naturalmen te estão, o qual é um estado de perfeita libcrdttde para regular suas
humana. O conhecimento é compreendido como um instrumento de ação, mn
ações e dispor de suas posses e pessoas do modo como julgarem acertado, dentro dos limites da lei
da natureza, sem pedir licença ou depender da vontade de qualquer outro homem. Locke (p. 407- meio para agir sobre ele e melhorá-lo.
409), di7. que "embora a Terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens,
cada homem tem uma propriedade em sua pessoa. A esta ninguém tem direito algum além dele
mesmo. O trt�balbo de seu corpo e a obm de suas mãos, pode-se dizer, são propriamente dele"
(Itálico no original c destaque nosso em negrito). E Locke (1998, p. 416-417, grifo do autor) 41 Jncontri ( 1.997) aponta como características do Iluminismo: Empirismo (observação e experiência
finalmente conclui: "Contudo, seja como for isso, a que não quero dar maior importância, uma como fonte de conhecimento) e, assim, valorização da ciência. ldeias políticas para transformação
coisa ouso afirmar: que a mesma •·egra depropriedtule segundo a qual cada homem deve ter canto da sociedade. A pressuposição iluminista de que cada indivíduo é dotado de razão, liberdade e
quanto possa usar estaria ainda em vg i or no mundo, sem prejuízo para ninguém, conquanto há valor foi fonte de muitas teorias e práticas revolucionárias ou reformistas. Deísmo (aceitação
terra bastante no mundo para o dobro de habitances, se a irJtJen{ão do dinheiro c o acordo tácito racional da exisrência de um Deus, que estaria separado do mundo e seria apenas causa inteligente
dos homens no sentido de lhe acordar um valor não houvesse introduzido (por consenso) posses e não amor c providência). Sensualismo pedagógico (a fonte de todo desenvolvimento da criança
maiores e um direito a estas." é o conhecimento adquirido pelos sentidos).

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Nesse item procuramos afirmar que o pensamento benthamiano pode ser tenciono dizer que isto vale não somente para qualquer ação de um
mais bem compreendido no connixro das revoluções polít ica e econômica e no indivíduo particular, mas rambém de qualquer ato ou medida do governo
(Bentham, 1984, p. 4).
campo de luta dos liberais na defesa da liberdade, da propriedade e do trabalho,
no espectro do modo de produção capitalista.
Para ele, as ações do indivíduo ou do governo contribuiriam ou não para

a felicidade da sociedade. Para não deixar dúvida, esclarece ainda que o termo

4.3.3 Utilitarismo: uma escola de pensamento utilidade

designa aquela propriedade existente em qualquer coisa, propriedade


Aquele prillCÍjJÜJ que aprova ott desaprova qualquer ação, segundo
em virtude da qual o objeto tende a produzir ou proporcionar benefício,
a te11dência que tem a aumellfar ou ct diminuir afelicidade da
vantagem, prazer, bem ou felicidade (tudo isto, no presente, se reduz à
pessoa mjo imeresse está emjogo, ou a comjnwneter a referida
mesma coisa), ou (o que novamente equivale a mesma coisa) a impedir
felicidade (Bentham, 1974, p.lO).
que aconteça o dano, a dor, o mal, ou a infelicidade para· a parte cujo
interesse está em pauta; se esta parte for a comunidade em geral, tratar­
Primeiramente analisaremos o conceito de utilidade em Bentham e, na
-se-á da felicidade da comunidade, ao passo que, em se tratando de um
seguência, assinalaremos as posições filosóficas helenísticas do Epicurismo e do indiv íduo particular, estará em jogo a felicidade do mencionado indivíduo
Estoicismo que se aproximam daquelas defendidas por este auror, mais especifi­ (Bencham, 1984, p. 4).
camente no que se refere à busca do prazer e à evitação da dor como mecanismos
para proporcionar maior felicidade. Assim, seu estudo revela a preocupação em focalizar a aplicação das bases
da utilidade como fundamento da conduta individual e social.
Ao Princípio da Utilidade, descrito por Bentham (1984, p. 3) na Intro­
dução aos jwincíjJios da moral e da legislação, conforme consta na nota de rodapé Perrot (2008, p. 129) afirma que foi na lmrodução aosprincípios da moral e

número l da citada obra, foi acrescentada em 1822 outra expressão substitutiva da legslação
i que Bentham definiu "a utilidade como submissão científica e cal­

da primeira: "a maior felicidade ou princípio de m aior felicidade." Bentham culada, os dois grandes princípios que governam roda a conduta dos indivíduos

(1984, p. 3) justificou que fez isso por desejar ser conciso e porque a "palavra e das sociedades: a evitação da dor e a busca do prazer." O utilitarismo proposto

'utilidade' não ressalta as ideias de prazer e de dor com tanta clareza como o pelo autor, nas palavras de Perrot (2008, p. 130), é a "técnica do represamento

termo 'felicidade' (hajJpiness, feliciiJi)." Com esse princípio Bentham tinha a inten­ e da canalização aplicada à psicologia humana: o utilitarismo é wna hidráulica

ção de fundar um modelo ético e moral para a condu ta humana que, segundo dos prazeres." Foram seus seguidores J ames Mill (1743-1836) e John Stuart
ele, estava voltada para o bem-estar (felicidade, prazer) das pessoas (hedo n is mo). Mill (1806-1873).

Benr ham, por considerar o princípio da utilidade o fundamentO de sua A obra de Bentham, Um fragmento sobre o govemo42 (1776), é considerada
o princípio da escola utili tari sta inglesa. O ponto de partida do ut ilitari smo ·
obra, a inicia definindo a sua significaÇão.
foram os estudos sobre a ciência do Direito. Bentham foi crítico das instituições
Por princípio de utilidade emende-se aquele princípio que aprova ou
desaprova qualquer ação, st:gundo a tendência que cem a aumentar ou
a diminuir a felicidade da pessoa cujo inreresse está em jogo, ou, o que 42 O primeiro cexto escrito e publicado por Bencham foi /1 F,-agment 011 Govtrnment, em parceria
é a mesma coisa em outros termos, segundo a tendência a promover ou com John Lind, e que é apenas um fragmento da crítica que John Lind pretendia tecer ao livro
a compromete r a referida felicidade. Digo qualquer ação, com o que Comm�JIIdl"ieJ on Er1gliJh Law, de Blacksrone.

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tradicionais, da legislação de seu país e dos revolucionários franceses. Defendeu movidos por interesses conAicances, era preciso certo tipo de proteção, visco que,
que o princípio da maior felicidade possível para o maior número possível de seguindo a natureza, rodo governo tenderia a ser rapace, assim como os homens
pessoas é o objeco último de coda legislação. o são (em estado de natureza).

Macphcrson ( l978), ao escrever sobre as origens e as evoluções da demo­ Macpherson (1978, p. 39) observa que Bend1am sistematizou u.ma forma de
organização que oferecesse proteção, a qual, segundo ele, seria viabilizada mediante
cracia liberal, esclarece que os primeiros expoentes sisremacizadores desta foram
algumas franquias, dentre as quais destacava: "voto secreto, eleições periódicas e
]. Bencham e ]ames Mill, com o primeiro sendo o organizador da teoria que
freqüentes, liberdade de imprensa, o que coroaria livre o voco e expressão eficaz dos
veio a ser conhecida como utilitarismo. Segundo Macpherson ( 1 978, p. 39),
desejos do vacante." A democracia pensada para a sociedade de mercado pressupu­
Bentham considerava que "cada parcela de riqueza cem sua correspondente
nha uma espécie de governo representativo, com franquias. Macpherson esclarece
parcela de felicidade." Assim, pondera o arauto do utilitarismo, que cada indi­ que Benthan1 chegou a argumentar em favor da franquia universal, contudo
víduo procura maximizar sua própria riqueza indefinidamente. Um dos modos
sustentava que a época não estava madura para isso: defender o voto das
de conseguir isso seria conquistar c exercer poder sobre os oucros.H Trata-se de
mulheres agora seria pôr em risco as possibilidades de qualquer reforma
um entendimento sobre a regulação da natureza humana e da sociedade. Nessa parl amentar. [ ...] ele s6 se passou ao pri ncípio da fr anquia democrática
percepção de homem e de sociedade é que Bentham pensa na estrutura legal quando se convenceu de que os pobres não utilizariam seus votos para
nivelar ou destruir a propriedade (1978, p. 42).
mais adequada à coletividade. Um conjunto de leis e a distribuição dos direitos e
deveres teriam a finalidade de produzir a maior felicidade para o maior número Bencham afirma que diante da dúvida entre a segurança e a igualdade,
de pessoas. Macpherson (p. 32) explica que ''esse fim mais geral das leis, podia, a primeira deve ser preservada. Para ele, igualdade é sinônimo de anarquia e
segundo afirmava Bentha.m, ser dividido em quatro fins subordinados: garantir infelicidade.
a subsistência; ensejar abundância; favorecer a igualdade; manter a segurança." Tendo refletido neste subirem até aqui acerca do utilitarismo como uma
Bentham define exacamence o significado da legislação ao afirmar: escola de pensamento, nossa atenção volta-se daqui em diante para as filosofias
helenísticas na cenrariva de rraçar uma correspondência com o sentido hedonista
A arte da legislação - a qual pode ser considerada como um seror da
(busca de prazer) do utilitarismo de Bentham com essas filosofias. O fundamento
ciência da jurisprudência - ensina como uma coletividade de pessoas,
que integram uma comunidade, pode dispor-se a empreender o caminho
explicativo do utilitarismo é a busca da felicidade. Nas filosofias helenísticas,
que, no seu conjunto, conduz com maior eficácia à felicidade da comuni­ num contexto bem diferente, a busca do prazer é o fundamento da felicidade
dade inteira, e isto através de motivos a serem aplicados pelo legislador do indivíduo e, por consequência, da sociedade.
(1979, p. 68).
O período helenístico correspondc desde a morte de Alexandre Magno

Macpherson (1978) esclarece que Benrham, ao explicar a sociedade c o (356-323 a. C), o criador do maior império territorial, até a conquista romana44

homem, projetou, segundo essa compreensão, um determinado tipo de Estado (Joyau, 1985). Alexandre, no seu projeto de Monarquia, destruiu a po.lis-o

necessário à perpetuação da sociedade capitalista.Julgou que sendo os indivíduos

44 No livro Povos e impét·ios: 11ma ronq11i.rttt das migm(Ves e conq11istttJ da GréâtJ., Anrhony Pagden (2002)
in forma que no ano 168 a.C. os Macedônios que dominavam a Grécia são subjugados pelos
41 'Macphcrson ( 1978, p. 32) explica que nesse sentido "a sociedade é um conjunto de indivíduos romanos. Os livros de História registram que o domínio complcco da Grécia pelos romanos acontece
que incessantemente procuram poder sobre os ourros e em detrimento de outros." sobre a Macedônia e de Roma sobre os gregos. Alguns autores apenas informam o século 2° a.C.

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valor fundamental da Grécia clássica. Joyau (1985, p. 8), na introdução da Aubenque (1981) ao escrever sobre as filosofias helenísticas (Estoicismo,4�
Antologia de textos de Epicuro, explana como é descrito o estado da Grécia no Epicurismo46 e Ceticismo)�7 explica que nesse período, a despeito da dureza dos

período helenístico e cita o que escreveu o historiador Curtius (1814- 1896): a tempos, prevalecia a preocupação com as questões práticas e com a possibilida­

interdição da ideia de Estado e a decadência da vida municipal levaram à perda de de colocar a felicidade ao alcance de todos. Havia uma simplificação e uma

de todas as virtudes herdadas do passado: "o bem-estar material, o conforto da radicalização das posições:

vida de pequena cidade, eis o que a multidão se pôs a procurar. Todos os nobres
enquanto que para os estóicos a fe licidade
reside na vircude e nela
instintos se foram enfraquecendo de dia para dia." Joyau (1985) menciona ainda somente, ela deve ser buscada , ndo E picuro (341 a.C. - 271 a.C.),
segu

o historiador Droysen (1838-1908), e traça um estado mais sombrio da Grécia unicamente no prazer (hedoné, donde o nome de hedonismo48 dado a

no começo do século 4°: essa doutrina) (Aubenque, 1981, p. 188).

As massas empobrecidas, imorais; uma juventude asselvajada pelo mister Em Epicuro (1985) o prazer, enquanto fundamento da felicidade, éo

de mercenários, estragada pelas cortesãs, desequilibrada pelas filosofias da moda, fim que a moral procura realizar. A razão tinha um papel importante na sábia
uma dissolução universal, uma ruidosa agitação, uma febril exaltação a que . administração do prazer. Epicuro define o que s ignifica prazer:
sucedem a distensão e uma estúpida inércia, tal é o q uadro da vida dep lorável
da vida grega nessa altura Qoyau, 1985, p. 8).
l> O estoicismo tinha o individualismo como caraccerística principal. A Filosofia estoica, nas palavras
de Aunbenquc (1981, p. 171), se distingue pela simplicidade propositada de seus princípios
O homem grego ao ser destituído da participação na vida política, a
em reação contra as longas elaborações placônico-aristocélicas, mas nem por isso é menos
qual o identificava como homem, passa a abandoná-la como tema de reflexão e caracterizada por incuições originais, cujo valor não é rccot1hecido pela Filosofia moderna. O
esroicismo considerava o homem como parte de uma totalidade, c que ele deveria ter como
concentrar sua preocupação em questões da vida privada: preocupação ensinar que a rolerância c a generosidade são práticas comuns c universais e que o
seu instin to de preservação pessoal deveria ser extensivo aos semelhantes. Pregava a solidariedade;
A Filosofia no período helenístico volta-se para o interior do homem - de que o homem deveria ser útil à sociedade. O estoicismo recebeu esse nome devido ao Pórtico
(Stoa), que define Aunbenquc (1981, p. 169) como "lugar de Atenas onde se reuniram seus
qualquer homem -, pois a sua realização na vida exterior, como animal político,
adeptos" e não está ligado a um único fundador.
está interditada. O que importa agora é a intimidade, a vida privada, regras de 46 Epicurismo: Filosofia que se fundamenta nas noções de prazer, de serenidade e de alegria, segundo
a qual, comforme Borclin e Pereira Melo (2009, p. 2-4), "se vale por sua finalidade prática, isto
conduta pelas quais as pessoas possam viver bem, em qualquer ccmpo c circuns­
é, buscar a felicidade" e afirma que "o scncido da vida é o prazer."
tância (Abrão, 1999, p. 70). 47 O cecici.smoconsiste na suspensão do juízo. Segundo Abrão ( 1999, p. 71), "a palavra ceticismo
deriva de um verbo grego que significa 'olhar cuidadosamente', mas, no caso, ser cuidadoso
equivale a duvidar do conhecimento." A formulação dessa doutrina é atribuída a Pirro de Élida
(360-270 a.C.), concemporânco de Ariscórclcs (384-322 a.C.). Para Pirro (apud Aubenque, 1981,
p. 193), "a verdade é inacessível c que a verdadeira nacureza das coisas é não-manifesta (ádelon):
prova de que para Pirro, a verdade está situada além da aparência fenomenal, que jamais se
manifesta inteirarnence."
'" O clicionário de Filosofia Vocr�btdaire terhiniq11e e1 critiqNe de La pbi/osopbie,
de André Lalande, define
o hedonismo como qualquer doutrina que leva a um único princípio moral: buscar o prazer e
evitar a dor considerando, nesse fato, a intensidade de sua nacureza emocional e não as clifcrenças
de qualidade que possam existir entre eles.

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Ana R. F. de Barcelos- Eliana C. N. Koepsel - Fílomena L. G. R.da Silva - Marilândes M. R. de Melo CAPITULO 4- O Panóptico de Jeremy Bentham como Estratégias de Controle na Doutrinação Utilitária

Quando dizemos, enrão, que o prazer é fim, não queremos referir-nos aos instâncias�0 é descrita por seu idealizador como solução para todas as instituições
prazeres dos inrcmpcranrcs ou aos produzidos pela sensualidade, como
e arquiteturas de vigilância, de forma que o princípio da inspeção central pode
crêem cercos ignorantes, que se encontram em desacordo conosco ou não
ser adotado para a ação coletiva do trabalho.
nos compreendem, mas ;to prazer de nos acharmos livres de sofrimentos
do corpo c de perturbações da alma (1985, p. 17).

4.4.1 Disciplinamento Pelo e Para o Trabalho


A premissa era a busca do prazer e evitar a dor. Epicuro (1985) assim

escreveu sobre o significado de uma vida feliz: Diante das agitações ocorridas na Grã-Bretanha que questionavam a

inoperância das tWrkhomeJ/'1 Bcntham, segundo Perrot (2008, p. 157), posiciona­


Chamamos ao p razer princípio e fim da vida feliz. Com efeito, sabemos
-se contrário à proposta do Primeiro-Ministro William Pite (1759-1806), que
que é o primeiro bem, o bem inaco, c que dele derivamos roda a escolha
mediante a crise instaurada, pauta-se na lei dos pobres para combinar um duplo
ou recusa c chegamos a ele valorizando wdo bem com critério do efeito
que nos produz (p. 17). sistema de auxílio: "a domicílio e nas casas de trabalho, colocando assim toda a

questão do direito à subsistência e do direito ao trabalho." A posição de Bencham

Após conhecer, ainda que reswnidamente, as ideias que inspiraram o pen- . em relação às ideias de Pite foi de hostilidade no que diz respeito aos auxílios ou

sarnento de Bentham percebemos que ele, ao se dedicar com afinco à sistemati­ a qualquer forma de assistência, visto que desestimulava os trabalhadores, o que

zação da ordenação ideal da sociedade de mercado, cuja base está assentada no poderia gerar queda na sua capacidade produtiva. Assim, como afirma Perrot
(2008), sua máxima é: "nada de auxílios sem trabalho."
tripé liberdade, propriedade c trabalho, o fazia sustentando na premissa natural

de busca pelo prazer e evitação da dor. Bentham pensa a estrutura hospitalar, carcerária e manufatureira de

forma artiC11lada ao trabalho. Apresenta a faceta administrativa e utilitária em


um período no qual a racionalidade científica afirmava-se e a estatística ocupava
um lugar de destaque. O censo apresentava-se como princípio de rodo controle.
4.4 MAIS QUE UMA PROPOSTA DE PRISÃO: Trabalho. Educação e Disciplina Para ele uma administração qualificada pressupõe um inventário de homens e
de coisas. Etapas do método científico evidenciam-se: é necessário recensear e
Devo confessar não conhecer nmhm11 o11tro teste de reforma tão
Jimples 011 tão Jegm·o q11anto a maior q11allfidade e o 111aior valor
de {.. .} trabalho (Bentham , 2008, p. 43). 50 Equiparando-se com o pensamento bcorhamiano c sua invenção - a máquina panóptica - o
Admirável Mundo Novo concebido por Huxlcy (2009) mmbém vislumbra um condicionamemo
Percebemos no pensamento benthamiano a concepção de uma educa­ das gerações com o propósico de estabilizar o mundo social. Além disso, a sociedade "admirável",
rambém, era dividida em diferenres casras composms por indivíduos condicionados a trabalhar
ção voltada à conformação e ao trabalho.49 A máquina panóptica, essa "fábrica pelo "bem de todos."

fabricadora" de trabalhadores úteis e de wna sociedade hierárquica em rodas as 51 O Dicionát·io político: marxim intemel ttrchive registra que as tuot·khouses Casas de Trabalho
''

(Workhouses) foram estabelecidas em Inglaterra no século 17. Segundo a Lei dos Pobres
adoprada, em 1834, só era admitida uma forma de ajuda aos pobres: o seu alojamemo em
casas de trabalho com um �egime prisional; os operários realizavam aí trabalhos improdutivos,
49 Indicamos a leitura das Cartas X, XI, XIJJ, XIV e XV, oas quais Bcncham (2008) detalha a monótonos e extenuanres; estas casas de trabalho foram designadas pelo povo de 'bastilhas para
questão da organização do tr:tbnlho e seus desdobramentos. os pobres'."

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Ana R. F. de Barcelos - Eliana C. N. Koepsel - Filomena L. G. R.da Silva - Marilândes M. R. d e Melo CAPITULO 4 -O Panóptico de Jeremy Benthilm como Estratégias de Controle na Doutrinação Utilitária

depois classificar. O pensador estabelece categorias como: produtivo c impro­ O trabalho é concebido como fator de regeneração. Bentham defende
dutivo; propõem um equilíbrio entre consumo e produção que revela a equação a recompensa aos homens que perseguirem os vagabundos e os mendigos, que
valor-trabalho. seriam encerrados e alimentados proporcionalmente ao seu trabalho, pois eles

A necessidade de aumentar a produção mobiliza Bentham a pensar precisavam sentir o cusco das despesas que provocavam. A presença de braços

formas de empregar todos indistintamente. Ele primava pelo princípio da mora­ ociosos era vista por ele como desperdício de energia e produção. Jeremy

lidade, pautado na preocupação de afastar o vício e as desordens também na eco­ propõe o disciplinamenco como estímulo ao trabalho. Assim, do seu ponco

nomia. Inscreve a divisão do trabalho como a solução para incluir rodos em uma de vista, Perroc (2008, p.l62) apresenta as suas considerações de que rodo
atividade produtiva. Para um homem regido pela lógica do "tempo é dinheiro", disciplinamento deve ser "pelo trabalho e para o trabalho, pela produção e
o emprego do cempo rorna-se uma questão fulcral. Perror (2008) afirma que para produção."
por questão de moralidade e produção não deveria haver entretenimento vão.
O "inspetor Benrham" era um homem metódico, que ordenou seus
Assim, Bentham (apud Perrot, 2008, p. 161) opõe-se a roda forma de desperdí­
dias com o propósito de executar o maior volume de trabalho com o menor
cio e ociosidade. O descanso deve ser limitado ao mínimo e a ausência cocal de
desgaste de saúde. O trabalho e a frugalidade eram normas de vida. .O valor­
atividades deve existir apenas na medida reparadora, para a garantia da saúde
do indivíduo. Chega a recomendar que se vigie "as enfermidades fingidas c as -trabalho é incorporado ao seu modo de vida. Ele argumenta que "o trabalho

convalescenças prolongadas de propósiro." Sobre este mesmo aspecco, Miller faz o homem, o corpo faz o trabalho." Aciona o olhar da inspeção como princí­

(2008, p. 94) destaca: "Bentham coloca que um trabalho distrai de outro tra­ pio e afirma que, de acordo com Perrot (2008, p. 132), "estar incessantemente

balho, e que o repouso ideal é apenas a variedade." Deve-se restringir o sono ao sob o olhar de um inspetor é perder de fato o poder de fazer o mal e quase a
necessário para refazer o organismo. Quanto a isto Perrot (2008, p. 160) registra idéia de desejá-lo." Bentham propõe que o Pan6ptico seja fundado no princípio
que o "sono é a interrupção da vida." Quanto à higiene, deve ser pensada em da inspeção como uma alternativa para o combate ao desperdício de energia,
função da conformação de "corpos produtivos." trabalho e produção.

A pedra angular é trabalhar e produzir. Bentham parece um enmsiasta


Perrot (2008) retoma o princípio generalizador e universalizanre do
do lema "o trabalho dignifica o homem", afastando-se e opondo-se àqueles que
Panóptíco, no qual a prisão e a fábrica se aproximam. São espaços nos quais está
consideravam o trabalho um castigo. A perspectiva de trabalho como castigo é
presente a lógica de um homem que vigia mujtos. O Pan6ptico objetivava um
invertida. Nas defesas benchamianas quanto ao trato com os presidiários, o que
mínimo de investimento e um máximo de acumulação. Revelava uma liberdade
pode ser estendido a todos os trabalhadores, ele afirma:
irrestrita do capital e um disciplinamento total do trabalho, expressando as
É uma imprudência muito funesta tornar o trabalho odioso, um espan­ estratégias de uma sociedade industrial, capitalista, burocrática, controlado­
talho para os criminosos e imprimir-lhes uma espécie de ignomínia. O
ra, manifesta em tabelas, relatórios e na divisão do trabalho como eficiente na
terror de uma prisão não deve jamais estar na idéia de t rabalho, mas na
severidade da disciplina [... ]. A ocupação, ao invés de ser o flagelo do difusão dos conhecimentos úteis, promotores da cura de males como a vadiagem,
prisioneiro, deve conceder-lhe a consolação e o prazer. Ela é doce por si o ócio e a imoralidade.
mesma em comparação ao ócio forçado e seu produto lhe dará um duplo
sabor... O t rabalho, pai das riquezas, o trabalho o maior dos bens, Por
que pintá-lo como wn a m aldição? (Benrham, 1987, p. 216-217).

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t ia

4.4.2 Um ProJeto de Disciplinamento, Pela Educação, Para Formar uma População Otil de sujeição c poder entre aluno e mestre. Na proposta, aponta para a possibili­
dade de o edifício funcionar como um internatO para jovens mulheres, em que
Será que seria aconselhável aplicar uma pressão tão comtallfe e
incansável a mentes tão tenras e conceder umaforça tão herCiílea e os cavalheiros interessados poderiam escolher boas esposas.
inelutáz�el ao braço do pode,·? (Bentham, 2008, p. 76).
Ao pensar no método de educação, Bcncham associa diferentes concep­
O projeto de Bentham não se limita apenas ao contexto escolar, mas à ções. Serve-se das contribuições de Comcnius ( 1592-1670) em sua obra Ddá
i tica
educação num senrido amplo. Nele evidencia-se a importância da subordinação e
Magna, com o princípio de que é possível ensinar tudo a todos e que o contexto
a emergência de uma sociedade hier.írquica que favoreça a emulação.)2 A máquina
influenciava o pensamento e a prática educacional. Bencham destaca o papel
benthamiana teria uma função moralizancc, pois ao agir sobre os alunos, os loucos,
da disciplina presente na escola militar em consonância com a sociedade indus­
os operários, os asilados e os prisioneiros, influenciaria também aqueles que esta­
belecessem vínculos com os reclusos. O Panóptico é a expressão de um dispositivo trial que explorava as condecorações, os privilégios, a distribuição de prêmios

de poder. H Essa ideia manifesta-se na carta número XXI, a última da obra. Nesta e a merirocracia. El e propõe a construção de uma escola crcscomática,H cujos
carta Bencham trata especificamente da escola, enumerando e justificando as van­ estudos far-se-iam por meio de uma seleta coletânea didática de trechos escolhi­
tagens que sua arquitetura possibilitaria para um projeto educacional. dos de autores clássicos, antologias, florilégios c com orientação de um preceptOr

No diálogo estabelecido com um suposto inrerlocucor, Bentham revela elitista. Essa idcia de escola era inspirada nas experiências educacionais de sua
indícios sobre a sua concepção de criança, de escola e de educação. Descreve ância c
inf na relação com seus av6s, práticas que se diferenciavam das experiên­
a utilização do edifício que poderia ocorrer em dois graus de extensão: para o cias dos tempos de internaco em Westmiwtel: S)
confinamentO às horas de estudo c para o preenchimento de todo o ciclo diário,
Os escritos do jurista evidenciam que a escola ocupa um espaço impor ­
incluindo repouso/sono, descanso/intervalo entre as atividades c lazer. A adap­
tante na tarefa do disciplinamenro. No período, a Inglaterra realizava um esforço
tação da estrutura generalizance do prédio poderia passar de prisão à escola com
pequenos ajustes, como a eliminação das grades. de escolarização c de moralização das classes populares exercida nos moldes

da escola dominical merodisra,s6 e também por meio do Método de E nsino


Tecendo argumentos sobre a qualidade do funcionamentO de sua escola,

Bencham explicica que a cola nunca vicejaria na estrutura escolar proposta, pois
haveria eficácia na punição e no controle, que seriam gerados por uma relação H A escola crestomática de Bentham tinha uma organização destinada a formar cidadãos úteis.
Jones (2001, p. 63) afirma que "em La visión cresrom:ítica de Benrham la tecnica del examen )'
la vigilância inculcaba el principio de utilidad )' formaba una población útil. "

52 A emulação é aqui compreendida como um senrimenro que impulsiona os indivíduos a se �) Picoli (2006, p. 16) defende que o interesse de Benrham pela reforma educacional, foi esúmulado
igualarem ou a super:trcm os ourros movidos pela competição e pela rivalidade. É escrita na R.ntio por sua "infeliz experiência, na WmmimterSrbool, entre os anos 175) c 1760, descrita pelo próprio
St11diomm como :t pr:ítica de desafios propostas pelo professor por meio de perguntas aos êmulos Jeremy como um 'miserável lugar de instrução', um ambiente de um 'horrendo despotismo'."
c por estes corrigidos, ou organizados entre os próprios êmulos. A competição e a rivalidade
% A Escola Dominical, fundada por Roberr Raikes (1735-181 1), j<>rnalisra inglês, angl icano,
serviam corno estÍmulo aos estudos (franca, 1952).
constatOu que as crianças tmbalhav:un na fiíbrica de segunda a sábado por longas horas c aos
H Dispositivo definido por Poucault ( 1993, p. 244) na obra llfiC>'O/ísica do poder como "um conjunm domingos vagavam pelas ruas. Elas eram maltrapilhas, brincavam, brigavam c ficavam expostas
decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitctOnicas, a roda espécie de vícios. Raikes criou inicialmente a escola gratuita aos domingos para os meninos
decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições de rua. Assim, a Escola Dominical nasceu corno um instituto bíblico infantil, operando de forma
filosóficas morais, fil:tntrópicas [...} o dico c o não-diro são elementos do dispositivo. O dispnsirivo
, independente das igrejas, alfabetizando c ensinando a Bíblia à crianças carentes. Disponível em:
é a rede que se pode csmbdccer entre esses elementos." <http://pt.wikipedia.org/wiki/Escola_Dominical>. Acesso crn: 8 nov. 2011.

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Ana R. F. de Barcelos - Eliana C. N. Koepsel - Filomena L. G. R.da Silva - Marilândes M. R. de Melo CAPITUL04- OPonópticode Jeremy Bentham como Estratégias de Controle na Doutrinação Utilítária

Mútuo,n ou método mútuo do anglicano Andrew Bell (1753-1832). O método Num cxrremo, a disciplina-bloco, a instituição fechada, estabelecida à
margem, e toda voltada para funções negativas: fazer parar o mal, romper
do qlfaker)8 inglês Joseph lancaster (1778-1838), baseado em elementos do as comunicações, suspender o tempo. No outro extremo, com o panop­
ensino jesuítico sistematizado na Ratio Studiomm, adotava uma escala graduada rismo, remos a disciplina-mecanismo: um dispositivo funcional que deve
de penas e recompensas, pautada numa rígida disciplina de tempos, espaços c melhorar o exercício do poder tornando-o mais rápido, mais leve, mais
eficaz, um desenho das coerções sutis para uma sociedade que está por vir.
posrura. O capítulo 2: A critica social e a crmça 110porvir: A Utopia de 1õmás MoriiJ, O movimento que vai de um projeco a outro, de um esquema de discipli­
aprofunda um pouco mais a sistematização da Rato
i Studiomm. Sobre essa escola na de exceção ao de uma vigilância generalizada (Foucault, 1991, p. 184).

múcua, Foucault (1991) observa que


A imponência da estrutura física oferece materialidade à instituição
a escola mútua também foi disposta como um aparelho para intensificar escolar que se constituí peça-chave para uma sociedade que está se reestrutu­
a utilização do tempo; sua organização permitia desviar o caráter linear
rando e objetiva tornar-se mais produtiva. A incorporação dos princípios do libe­
e sucessivo do ensino do mestre; regulava o contrapomo de operações
ralismo e do utilitarismo oferece as bases e dá o com das mudanças necessárias.
feitas, ao mesmo tempo, por diversos grupos de alunos sob a direção
dos monitores e dos adjuntos, de maneira que cada instante que passava No final do século 18 e na primeira metade do século 19, no "velho
era povoado de atividades múltiplas, mas ordenadas; c por outro lado
mundo" intensifica-se o movimento de expansão do ensino e acelera-se o proces­
o ritmo imposto por sinais, apicos, comandos impunha a rodos normas
so de industrialização, que necessitava de força produtiva minimamente instnúda
temporais que deviam ao mesmo tempo acelerar o processo de aprendi­
zagem e ensinar a rapidez como uma virrudc (p. 140). e disciplinada para atender às demandas econômicas e sociais. O período das
luzes instaura novos modos de perceber as relações sociais. A ideia de Estado
O método mútuo apresentava-se como uma iniciativa pouco onerosa fortalece-se e este paulatinamente assume a responsabilidade pela educação, que
para a expansão do ensino c corroborava com os ideais utilicaristas de Bencham. durante um longo período havia ficado sob a responsabilidade quase exclusiva da
A vigilância central racionalizava o tempo e pocencializava a força produtiva. A Igreja. Nesse contexto, a escola passa a exercer um papel importante no processo
organização espacial fortalecia relações de poder e hierarquia cncre professores, de desenvolvimento da sociedade. Foucault ( 1991) destaca que
monitores e alunos. Na perspectiva de Michel Foucault, a escola incorpora o
no começo da Revolução, a finalidade prescrita ao ensino primário será, cmre
panoprísmo para além da arquitetura, engendrando também um simbolismo oueras coisas, "forrificar", "desenvolver o corpo", dispor a criança "paraqual­
manifesto nas diferentes formas de discíplinamenco que se encerram nessa estru­ quer rrabalho mecânico no futuro", dar-lhe "uma capacidade de visão rápida
c global, uma mão firme, hábitos rápidos". As disciplinas funcionam cada vez
tura material. Explícita o autor:
mais como técnicas que fabricam indivíduos úteis (Foucault, 1991, p. 1 85).

Na busca obstinada pela produtividade, na qual disciplina e economia


n O Método Mútuo também é conhecido como Método Monitoria!, Método Inglês de Ensino,
Método Lnncasccriano de Ensino c também como Sistema de .Madras. Segundo Mercado (1990), estão intimamente vinculadas, Perrot (2008, p. 159) afirma que "a incapacidade
embora Lancaster c Bel morassem na I nglaterra no mesmo período c adorassem um mérodo real é apenas relativa." Assim, era necessário empregar todos os braços: cegos,
muito semelhante, com diferenças nos aspectos administrativos, não há indícios de que eles se
conhecessem. surdos-mudos e acamados, todos poderiam exercer alguma tarefa. Isso se aplica
18 Segundo o Dicionrírio Ho1111iJs, (Houaiss; Villar; Franco, 2001, p. 2.342), quake•· refere-se ao também à escola, uma vez que a imbecilidade c a idiotia incuráveis e inimputá­
"membro de seita religiosa protestante inglesa (a Sociedade dos Amigos) fundada no século XVII veis não seriam castigadas, mas identificadas, pois mesmo esses poderiam exercer
(prega a existência da luz interior, rejeita os sacramentos c os representantes eclesiásticos, niio
presta nenhum juramento e opõe-se à gu erra) " .
tarefas mediante uma proposta de divisão de traball10.

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As iniciativas de Bentham sobre educação parecem aproximar-se, em Ainda sobre o aspecro educacional, Bentham afirma que
certa medida, da proposta de Louis-Michel Lepellecier ( 1 760-1793), que apre­
a educação ( ...] não t senão o resultado de todas as circunstâncias às quais
sentou um Plano Nacional de Educação para a França, aprovado em assembleia
uma criança está exposta. Cuidar da educação de um homem é cuidar de
após sua morre, em 1793, que expressa os ideais liberais em voga no período
todas as suas ações: é colocar numa posição onde se possa influenciá-lo
que apontavam como objetivo da educação nacional: como se deseja, pela escolha das coisas que o rodeiam e das idéias que
nele se quer germinar ( 1987, p. 200).
Fortificar o corpo e desenvolvê-lo por meio de exercícios de ginásti­
ca; acostumar as crianças ao trabalho das mãos; endurecê-las contra
roda espécie ele dor e cansaço; dobrá-las ao jugo ele uma disciplina
A capacidade de moldar o humano assenta-se na contribuição da Psico­
salutar; formar-lhes o coração e o espírico por meio de instruções logia, que no período começava a se desenvolver como campo da ciência. Para
úteis; e dar conhecimentos necessários a coclo cidadão, seja qual for Perrot (2008, p. 155), isso vinculava-se ao "controle do corpo que se insinua nos
sua profissão (princípio de orÍencação concreta e prática) (Cunha,
movimentos de uma Psicologia que não cem como escapar à influência de um
L991, p. 43).
ambiente completamente condicionado." Constatação observável no pensamen­
Michelle Perrot (2008) revela a faceta utilitária de Bencham quando ele to de Bentham, que afirmava que em uma casa para crianças órfãs poderiam
se refere ao destino das crianças órfãs. Conforme a aurora, nosso pensador propõe realizar-se inúmeros experimencos, que possibilitariam fazer delas o que fosse
que durante o tempo em que elas consomem sem produzir, deveriam ficar em desejável. Foucaulc (1991), por sua vez, considera que
um lugar no qual os cuscos com a manutenção fossem os mais módicos. Ao
a organização de um espaço serial foi uma das grandes modificações téc­
atingirem a idade apropriada para o trabaU10, as crianças seriam instaladas em
nicas do ensino elementar. Permitiu ultrapassar o ensino tradicional [...}.
locais com maior demanda de trabalho, compondo assim uma reserva de mão
Determinando lugares individuais, tornou possível o controle de cada
de obra infantil, a fim de ser utilizada conforme as necessidades dos industriais. um e o trabalho simultâneo de rodos. Organiz.ou uma nova economia
Em seu discurso, Bentham manifesta um repúdio aos privilégios decorrentes do do tempo de aprendizagem (p. 134).

nascimento e da herança. Pauta-se no trabalho como instrumento legítimo de


ascensão social e de obtenção de riqueza, pois sugere que, mesmo um indivíduo Ao destacar a dupla imagem assumida pela disciplina incorporada na
pobre e desvalido, poderia adquirir propriedades e riquezas por meio de seu arquitetura e na disciplina-mecanismo, além das práticas adotadas pelos métodos
trabalho e talento. de ensino, os dispositivos de vigilância c disciplinamento tornaram-se cada vez
mais presences nos prédios escolares. Como afirma Foucault (1991, p. 178): é
De acordo com Benrham, seria possível realizar inúmeros experimentos,
preciso "fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo se
com os quais moldar-se-iam as crianças, conforme o desejável. O propósito de
é descontínua em sua ação."
transformar todos em força produtiva inspirava nele a busca pelos talentos que
seriam cuidadosamente identificados. Nesse sentido Bencham (2008) defende Os dispositivos de controle multiplicam-se na escola, na sociedade, no
que sonho de padronização presente nas propostas c nas obras de Bentham. O uso
do uniforme objetivava igualar a codos: o soldado, o prisioneiro, o trabalhador
os diferentes graus c tipos de ralemo, tornados por esse meio, talvez
pela pri mei ra vez, discerníveis, indicarão os diferenres graus de atenção e o aluno. O un iforme figurava como expressão da ordem, da limpeza e da pos­
e modos de cultura mais apropriados para cada inclinação (p. 74). sibilidade de fácil identificação.

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A escola idealizada por Benrham reconhece que os pais concordam com 4.5 ENFIM, MAS NÃO O FIM...
um controle mais ostensivo dos mestres sobre seus filhos. E l e adverte que em
A obra O Panóptico sintetiza o esboço d o engenho de Samucl B entham,
uma instituição escolar que estabelece a inspeção como princípio, a cautela
mas, sobretudo da percepção universalizanre do penalista e filósofo ing lês Jeremy
quanto à seleção dos mestres torna-se imprescindível, pois os alunos serão fruto Benrham, o qual buscava soluções práticas para uma sociedade que precisava

de suas mentes. Nela, também os mestres estariam submetidos ao princípio de racionalizar o tempo e controlar os indivíduos para produzir mais. A doutrina

inspeção, uma vez que, conforme as palavras de Benrham (2008, p. 29), "cada utilitarista, que guia as pr oposi ções do auror, assume materialidade nas 21 cartas
que compõem o escritO. O deralhamenro das construções que é descrito em forma
homem deve realmente estar sob inspeção. É importante, em rodos os casos,
epistolar, associado aos argumentos tecidos por Benrham, empresta à estrut u­
que o inspetor possa ter a satisfaç ão d e saber que a disciplina realmente tenha o
ra material um valor simbólico, compondo assim um dispositivo de contro l e
cfeico para o qual foi planejada." apto a disciplinar, ordenar, intimidar, corrigir, curar, educar, regenerar, ou seja,
adaptar o sujeico e fazê- l o produtivo para viver em uma sociedade marcada pela s
A perspectiva benthamiana considera que o fim último da educação é a
consequências da Revolução Francesa c da Revolução Industrial, ocorridas n o
felicidade, e que esta seria regulada por meio da d isciplina. Já nas análises fou­
final d o sécu l o 1 8 . Era necessário ampliar o controle para melhorar a eficácia d o
caultianas, a perspect iva do poder é explicitada ao tratar do panoptismo como
trabalhador, e assim empreender ajustes n a sociedade que buscava o progresso.
um dispositivo disciplinador, que segundo Foucault (1991)
Naquele período a vigilância sobre o indivíduo ainda não era algo que se exerci­
cava da forma como conhecemos. As mudanças que a sociedade c apitalista impunha às
não pode se identificar com uma i nst itu ição nem com um aparelho; [...)
é um cipo de poder, uma modalidade para exercê-lo, que comporra rodo cidades demandavam novas formas de controle. Assim, entendemos que a arquitetura

um conjunto de insrrumcnros, de técnicas, de procedimentos, de níveis benthamiana foi uma proposta sustentad a na factibilidade técnica e política da época

de aplicação, de alvos; {...} é uma "física" ou uma "anatomia" do poder, em quefoi pensada. O projeto arquitetônico não se separou do projeto político e tinha
uma tecnologia (p. 189). a intenção de fundar um modelo ético e moral para a conduta humana.

Jeremy Bentham fazia incursões aos países vizinhos e recolhia experiências para
Na atualidade é possível observar, na arquitetura escolar, inúmeros traços
a construção deste modelo de conduta humana. Com o seu olhar estrangeiro perce­
do panóprico: o vidro na porta que permite observar o interior da sala de aula; bia a conjuntura c encontrava brechas para dar materialidade a seu projeto utópico.
as salas com suas porras convergindo para um pátio central; a sala da direção Os ideais gestados em terras inglesas, que por vezes enfrentavam obstácu los para se

c srrac egicamence situada em um lugar de onde seja possível controlar o fluxo concretizar, eclodem na sua estada em terras estrangeiras. Foi em Crecheff (Rússia)
em contato com a cultura russa e em consonância com os propósitos do príncipe Pote­
de a l unos, de profes sores, de funcionários e familiares; a disposiç ão das carteiras
mkin c inspirado nas iniciativas de Catarina II, que Bentham encontrou as condições
em forma circular, que permite ao professor ter rodos os alunos sob seu olhar e
adequadas para sistematizar, a partir d e L 787, o Panóptico. É na esteira dos efeiros da
as câmeras de vigilância instaladas nos corredores das escolas. Tudo isso constitu i
Revolução Francesa e no rastro de efervescência por ela deixado que o projero ben­
as m arca s da arquit etura escolar na contemp oraneidade e revela a manifesta­ thamiano conquisrou importante repercussão em terras francesas. Essa s experiência s
ção da vig ilância centralizada, controladora e modelar, constiruidora de uma além-fronteiras inglesa s foram flmdan1cntais para dar visibilidade à proposta.

disciplina, defend ida por Bentham, que vislumbrava n a educação e na ciência


O Panóptico ocupou cerca d e 27 anos da existência de Bentham e compõe
ferramentas importantes para consolidar a industrialização e o progresso das uma síntese do pensamento do auror que se funde com seu projeto de vida. As
nações no século 18. cartas que constituem a obra, para um leitor desavisado, podem inicialmente

1 78 179
Ana R. F. de Barcelos - Eliana C. N. Koepsel - Filomena L. G. R.da Silva - Marilândes M. R. de Melo

parecer uma simples descrição de um projeto arquitetônico, no entanto conser­ Capítulo


vam em seus argumentos teses desenvolvidas em outras obras do autor, como: I 5 I
(1787), A intmdução aosprincípios dct moral e da legislação (1 789),
A defesa da tiSttra

Teoáa das j1enas e das recompensas (181 1), e expressam a magnitude do conjunto
da obra de Bentham, que o coloca entre os clássicos que nos auxiliam a compre­
ender o pensamentO do homem moderno.
EDUCACÃO, TRABALHO E TECNOLOGIAS
Ancorado no conceito de utopia, definido por Thomas Morus, o projeto
NÓ IJOMJHiVEL MUNDONOVO:
Panoj1tico configurava-se para muitas das pessoas que conviviam com Bentham
como uma utoP.ia. Guardando o devido distanciamento temporal, contudo, na Entre a Realidade e a Ficção
atualidade o percebemos como uma distopia manifesta nos discursos sobre a
melhora da eficácia do trabalho, da correção moral e do controle descritos ainda
Fernanda Nunes da Rosa Manginil
como promessa de felicidade e bem commn, o que revela uma contradição entre
Silvana Rodrigues de Souza SaJo2
a maximização da riqueza privada e o desenvolvimentO absoluto das forças pro­
Ivan na Schenkel Fornari GrechP
dutivas. A polêmica, no entanto, persiste: utopia ou distopia? No plano do
Maria Lêda Costa Silveira4
pensamentO, o Panóptico se configurava como uma utOpia de regulação de uma
sociedade que sofria da escassez dos meios de subsistência. No plano prático, ele
Nessa sociedade hipQtética, QS seres humanos são fabricados em
potencializava o processo de industrialização. "Centros de Inmba�"áo e Condicionamento", propiciando a reprodu­
çãQ em lat-ga escala de ojJeráriQs pm·a asfábricas, (Gamas, Deltas
A força da inspeção projetada na obra de Bentham está presente na arqui­
e psi!OIJs),
Í ttfim de manter o.r intemses gerais e a 01·dem claq11ele
tetura atual de muitos prédios, de forma ainda mais potencializada pela possibi­ EstadQ.
lidade que o desenvolvimento da tecnologia da inspeção cibernética concede. Ela
se manifesta no controle das ações humanas, nas ruas, nas empresas, nos edifí­
cios, no ambiente de trabalho, nos parques e espaços de lazer e está naturalizada 1 Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Possui
Mestrado em Educação (PPGE) e Mestrado em Serviço Social (PGSS)pela mesma Universidade.
na disciplina escolar. Pouco observamos, devido a sua naturalização, o quanto a
Douroranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de
inspeção está presente na sociedade e não pensamos acerca das intenções políticas Sanca Catarina (PGSS/UFSC). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (Capes). fcrnandapesquisadora@gmail.com
de projetOs arquitetônicos. E assim, em nome da segurança, cada vez mais os
dispositivos de vigilância se ampliam, a ponto de aprisionar. Graduada em Ped:tgogia pela Universid<tde do Estado de Santa Catarina (Udcsc). Possui Mestrado
em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa
Consideramos que a obra O Pam5ptico revelou mais sobre o futuro que Catarina (PPGE/UFSC). sil.sato@uol.com.br

� Graduada em Turismo e Horelaria pela Universidade do Vale do Icajaí (Univali). Mesrrado em


sobre o tempo em que ela foi pensada, pois pôs em questão o otimismo sobre
Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGA/UFRN). Professora
o devir que o Iluminismo ensejava: convicção no progresso do conhecimento do Insciruto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Cararincnsc (lFC), Campus Camboriú.
humano, na racionalidade, na riqueza, na crença ilimitada no poder da ciência e ivanna@ifc.edu.br

da tecnologia. Tudo isso postO em xeque ao emergir a necessidade de encontrar 4 Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Mescranda do
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGE/
estratégias de controle da sociedade, por meio da doutrinação utilitária daqueles
UFSC). Orientadora Educacional no Instituto Federal de Educação, Ciência c Tecnologia de Santa
que não se adaptassem ao mundo burguês. Catarina (lFC). leda@ifsc.edu.br

1 80 181
Fernanda N. da R. Manglnl - Sllvana R. de S. Sato - lvanna S. F. Grechi - Maria L. C. Silveira CAPITULO 5 - Educaçao, Trabalho e Tecnologias no Admirável Mundo Novo

No Centro começava o processo de formação e padronização dos


seres humanos de acordo com o siscema de castas. Esse processo dava-se
por meio do condicionamento biológico (clonagem, (re)produção in vitro)
e psicológico (ensino durance o sono ou hipnopedia).

O personagem Bernard Marx, psicólogo do Centro de lnc11bação e


Condicionamento, tinha acicudes antifordianas, pois conspirava contra a

sociedade na qual vivia. Tinha um aspecto físico um pouco diferente dos/


as outros/as componentes da sua casta, o que fazia com que não tivesse
uma boa reputação e, ao mesmo tempo, se sentisse diferente, solitário
c excluído.

Lenina Crowne, outra personagem da obra, também trabalha­


va no Centro de Incubação e Comliâonamento, como enfermeira. Um dia,
Bernard Marx convida-a para visitar uma das Reset-vas de Selvagens,
chamada de Mcdpafs, que se localizava no deserto. Essa jovem, muito
popular entre os rapazes, seguia o condicionamento daquela sociedade
para evitar relacionamentos longos e, de outra parte, manter relações
Fonte: lD 20260215 © Victor Habbick\dreamstimc.com
com muitos homens, afinal, apegar-se a um companheiro/namorado era
considerado um problema de condicionamento.
O verdadeiro problema não é a tecnologi
a 011 o progre.s;o em si, mas
a s11a apropriação e o JeJI direcionammtopara a hegm1otta
i MalpaÍ1 era uma região de povos não civilizados e animais selva­
de 11111a determinada classe.
gens, isolados por meio de cercas elérricas. A pobreza imperava em todas
as dimensões da região, dada a escassez de recursos naturais, bem como a
SINOPSE DE 40MIRAVEL MUNDONOVO
predominância de condições climáticas e geológicas desfavoráveis. Dife­
rencemente dos "civilizados" do Admirável Mundo Novo, os selvagens pre­

O Admirável Mtmdo Novo, de AJdous Huxley, ceve sua primeira servavam seus hábitos e costumes, suas superstições e línguas. Também
edição publicada em 1932, na Inglaterra. No Bra.�il, a publicação chegou casavam-se e formavam famílias. Os "selvagens" de Ma/país aceitavam
mais tarde, aproximadamente no ano de 1941. passivamente a invasão dos estrangeiros, pois temiam as ameaças dos
"civilizados" com suas bombas de gás.
A trama é ambientada em um suposto ano de 632 d.F - uma
cronologia que demarca o tempo "antes (a.) de Ford e depois (d.) de Ford" Durante essa visita à região, Lcnina ficou chocada ao saber que as
- q uando um grupo de estudantes visita o Centro de Inmbação e Condicio­ crianças nasciam do incercurso entre um pai c uma mãe e ao ver doenças,
namento de Londres Central, uma espécie de fábrica de seres humanos. pessoas velhas, gordas e sujas - algo estranho e oposto ao mundo assépti-

182 183
CAPITULO S - Educação, Trabalho e Tecnologias no Admirdve/Mundo Novo
Fernanda N. da R. Manglni - Silvana R. de S. Sato- lvanna S. F. Grechi - Maria L. C. Silveira

co onde vivia. Para suportar a frustração, Lenina fa:.da uso recorrente do instante, aspira libertá-los, falando-lhes para atirar fora os frascos de

Soma, uma espécie de droga ou pílula da felicidade, distribuída a rodos Soma, os quais considerava um veneno. Os policiais, com seus gases e

os "admiráveis", de acordo com a posição e a função na hierarquia social. máscaras chegam para comer o tumulto provocado pelo selvagem John,
espalhando vapores de Soma e fazendo soar a Caixa de MIÍsica Sintética
Na Reserva, Lenina e Marx conhecem o "selvagem" John, filho
(Voz da razão e da Benevolência). Os amigos Bernard Marx e Helmholtz
de Linda.
Watson, envolvidos com a situação de John, são conduzidos para o gabi­
A mãe deJohn fora abandonada pelo companheiro (que no decor­ nete do Administrttc/()rlYittndial Mustafá Mond, que resolve deportar Marx
rer da crama é revelado como o diretor do Centro de lnmbação e Condiciona­ e Wacson para uma ilha afastada, e manter o selvagem John, transfor­
mento) após sofrer um acidente em uma visita a i\1cdptds. Grávida, ela não
mando-o em objeto de experiência científica.
cem como aborcar e evitar o filho. Conservando parcc de seu condicio­
Nosso selvagem John chega à conclusão de que está contaminado
namento adquirido no modelo de sociedade "civilizado", Linda rejeitava
muitas vezes o filho. Ela passou por um grande sofrimento em i!l-1alpaís: com a "civilização" do Admirável M1111do Novo. Para ele é preferível o sofri­

além da falta de recursos, foi duramente reprimida por sua promiscui­ mento, as doenças, a velhice, a feiúra, a fome, a sujeira, o perigo, enfim...

dade. Linda ainda sentira muita falta do Soma, que a ajudava a suportar a condição humana, a gozar daquela falsa felicidade baseada na luxúria,
o sofrimento da rejeição, bem como de outros males. Fora do Admirável na corrupção c na escravidão, às quais, segundo ele, os/as "civilizados/as"
Mtmdo Novo, porém, o mescal era uma das poucas drogas a que tinha escavam submetidos. A pareir disso, decide refugiar-se em um lugar dis­
acesso e que a consolava, porém essa outra substância não era eficiente e cancc e isolado, onde possa ser Üvre. O sossego, porém, dura muito pouco.
nem estava üvre de efeicos colaterais como o Soma - usado exclusivamente É redescoberto pelos "civilizados", que passam a observá-lo, fotografá-lo
no mundo "civilizado". c filmá-lo a distância, como um animal exótico em w11 zoológico.

No desenrolar da trama, o "selvagem" John fica amigo de Bernard O desfecho da trama é inesperado e. . . leiam esse inquietante e
Marx e aceita ser levado para o Admirável M�tndo Novo. Lenina e John imperdível clássico, um alerta para (as) pessoas e (para) um mundo que
apaixonam-se, porém a diferença entre os mundos dos dois faria com que, se consideram "civilizados".
mais tarde, ele a rejeitasse. John entendia que era preciso fazer sacrifícios
para merecer seu amor e casarem-se, ao invés de se entregarem à lu.xúria e
ao imediatismo de relações prazerosas e desregradas, como queria Lenina.

Linda, por sua vez, ao ser levada para a "civiüzação" reencontra-se


com o Soma e morre de overdose.

O "selvagem" John, por sua maneira e comportamentos peculiares


ao Admirável Mttndo Novo, torna-se areação em Londres, no entanto ele
não se sente atraído pelas invenções dessa "civilização", como o Soma.
Adquire consciência da escravidão que os "civilizados" viviam e, por um

1 84 185
Fernanda N. da R. Manglnl - Silvana R. de S. Sato - lvanna S. F. Grechl - Maria L. C. Silveira CAPITULO 5 - Educação, Trabalho e Tecnologias no Admirável Mundo Novo

5.1 APRESENTAÇÃO impensável sem liberdade, o aucor vai direcionar essa reflexão para o campo da
educação no seu livro Regresso ao Admirável Mtmdo Novo. InterlocutOr de teorias
V�& q11efazemparte dessa massa, q11epassa nos projetos do[111111'0.
E d11ro tal/to ter que caminhar, e dar muito mais do q11e recebe1: E psicológicas e educacionais, a exemplo daquelas de Sigmund Freud (1856-1939)
ter q11e demonstrar !fia coragem, à margem do q11e possa parecer, e
e de Ivan Pavlov (1849-1936), que são transportadas para dentro da sua ficção,
ver q11e toda ma engrenagem, já sel/le a[err11gem lhe com e r
(Zé Ramalho, 1997). apontou inúmeras icüossincrasias de seu tempo, sem deixar de profetizar o futuro.

O livro Admirável Mundo Novo, publicado em 1932 e escrito por Aldous No Regresso, escrito 25 anos depois do Admirável, em 1957, o cenário fic­

Huxley ( 1894-1963) é, segundo Patrick (2009, p. 331), "uma das principais tício é confroncado com a realidade, a pomo de se confundir com ela em muitos

obras antiutópicas do século XX." Nesse livro o auror descreve uma sociedade aspeccos. Segundo Huxley ( 1958), o que parecia distante das suas "profecias"

totalitária, governada por uma minoria que concentrava em suas mãos o poder feitas em 1932, começava a realizar-se muito mais rápido e mais intensamente

c o conhecimento. Tal sociedade hipotética era composta por cascas, que tinham ábula" futurista do Admirável
do que o previsto. Na sua ácida crítica social, a "f

posições e funções diferenciadas na hierarquia social. Mesmo com um notável estaria supostamente baseada num projeto de "modernização" que a elite pla­

desenvolvimento científico-tecnológico, havia a necessidade de os governantes nejava pôr em prática em rodas as áreas da vida humana, inclusive na educação.
- personificados na figura dos Administradores Mundiais - disporem de pessoas Assim, entre a realidade c a ficção, pretendemos analisar a obra Admirável Mundo
para operarem as máquinas e fazerem a engrenagem funcionar. Novo, tendo como horizonte as teorias e práticas educacionais.

Com a instalação de uma espécie de ditadura científico-tecnológica a domi­ O conjunto da obra de Huxley é referência para o debate sobre educação
nação e a exploração foram levadas ao excremo na ficção, por meio do condiciona­ liberrária e sociedade democrática, remas com os quais o autor mais se preocu­
mento biológico e psicológico das cascas. O primeiro começava com a reprodução pou. O livro Admirável M11ndo Novo é um clássico, que como cal desempenha
artificial, pelo método in vittv e pela clonagem. Traduzia-se, basicamente, no desen­ papel fundamental na leitura crítica e na antecipação analítica da realidade, seja
volvimento da rolerância, aceitação e predileção para determinadas ocupações, ela do presente seja do futuro. Para estudá-lo, o caminho metodológico empre­
temperaturas, ambientes, etc. O segundo, tratado como metodologia educativa encüdo foi pautado na pesquisa de cunho bibliográfico-docurnencal, que consiste
de excelência, realizava-se por meio das técnicas comportamentais do estímulo­ em um escudo teórico que se elabora a partir da reflexão pessoal e da análise das
-resposta e da hipnopedia, aspectos que serão aprofundados posteriormente.
fontes escolhidas. Esse tipo de pesquisa apresenta a vantagem de se constituir

Uma forma peculiar de educação nascia dessa sociedade hipotética, criada em fonte perene e estável de dados (Salvador, 1986).
por um intclecrual eruditO, nascido na Inglaterra, que foi forremence marcado
Este capítulo esrrucura-se em sere tópicos. Inicialmente são apresencados
pelo concexro histórico-social e científico-cultural de sua época. Proveniente
os aspectos centrais da biografia do autor. No segundo tópico são abordados os
de uma família de personalidades influentes no campo científico, artístico e
principais aspectos da obra- aqueles elementos que contribuem para a sua com­
político, Huxley viveu em um período descrito por Hobsbawm (1995) como
preensão -, organizados de acordo com os lemas que regem o Estado Mundial
"era da catástrofe", cuja referência é a ascensão de regimes políticos rocalitários,
na ficção de Huxley (2009): Commúdade, Estabilidrule e Identidade. No terceiro
acompanhados de grandes guerras, destruição e morres.
tópico contempla-se o contexto histórico que perpassa a obra e a vida do autor.
Com oiJ1ar aremo para o avanço científico-tecnológico, o pensador Aldous No quarto tópico aproxima-se do cenário supostamente educacional proposto
Huxley expressa force preocupação com o princípio que é constituinte da huma­ pelo autor, do debate das teorias psicológicas e das práticas educacionais. Essa
nidade - a liberdade. Partindo do pressupostO de que roda vida criativa seria etapa é subdividida em uma parte que crara a hipnopedia c, em outra, com base

1 86 187
Fernanda N. da R. Manginl - Sllvana R. de S. Sato - lva nn a S. F. Grechi - Maria L. C. Silveira CAPinJLO 5 - Educação, Trabalho e Tecnologias no AdmirávelMundo Novo

em Skinner (1974), que aborda o condicionamento operante. No quinto e no naquele ano publicou seu primeiro livro, wna coletânea de poemas intitulada A
sexto tópicos aborda-se uma proposta teórica alternativa, com base em Rogers Roda Ardeme. Casou-se com Maria Nys (1899-1955) em 1919, com quem ceve
(1978), relacionando a distopia do Admirável Mundo Novo (1932) e a crítica de
um filho chamado Machew Huxley (1920-2005). Esse filho, por sua vez, seguiu
Huxley (1958) no Regresso. Ao fim, são apresentadas algumas considerações que
a carreira de antropólogo e epidemiologista de destaque. Em 1920, lançou mais
reforçam a atualidade e a pertinência de nosso amor.
duas obras. Acuou como crítico literário e teatral e escreveu artigos para várias
revistas. No ano seguinte consolidou sua reputação literária com a obra Crome
5.2 A TRAJETÓRIA DO VISIONÁRIO ALDOUS LEOHARD HUXLEY Yello'UJ.

Aldous Leonard Huxley nasceu em Godalming, Condado de Surrcy, Em 1930 Aldous mudou-se para a França c no ano seguinte, em apenas
Inglaterra, no ano de 1894, c morreu em Los Angeles, no Estado da Califórnia, quatro meses escreveu Admirável Mmrdo Novo,6 publicado somente em 1932.7
Estados Unidos, em 1963, com 69 anos de idade. Era descendente de uma
Em 1937 mudou-se para a Calif
órnia, nos Estados Unidos. Nessa época aban­
família de intelectuais da classe média londrina, dentre eles escritOres, roman­
donou a ficção e passou a escrever ensaios e rotei ros para cinema. Alcançou
cistas, biólogos e estudiosos de várias áreas do conhecimento. Seu avô, Thomas
Henry Huxley (1825- 1895), biólogo, foi defensor da teoria evolucionista de Hollywood como um dos mais bem pagos roteiristas. Nesse período escreveu
Charles Darwin ( 1 809-1882). Um de seus irmãos, Andrew Huxley (1917), os romances Tcnnbém o csne
i morre (1.939), O Tempo pode parcw (1 944), O macctco e a

recebeu o prêmio Nobel de Medicina e outro, ]ulian Sorell Huxley (1887-1975), essência (1948). Principalmente na segunda metade do século 20 publicou ensaios
tornou-se o primeiro Direcor Geral da Organização das Nações Unidas para a sobre assuntos religiosos e culturais, iníluenciando grupos de contracultura e
Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), além de ser o criador da \Yiodd \Vide movimentos de contestação formados por jovens californianos.
Fttndfor Nat1tre (WWF).
Em 1953 Huxley ofereceu-se como cobaia para uma experiência com
Aos L 6 anos de idade Aldous Huxley foi obrigado a deixar o colégio
uma raiz usada em rituais indígenas do México. Em 1954 publicou o livro
onde estudava por coma de uma doença na retina que quase o cegou. Aos 2 l
anos, em 1915, participou do círculo de Lady Ottolme More/i ( 1 873-1938) em Portas da Percepção, que narra essa experiência, obra que influenciaria a cultura
Garsington Manordo. Faziam parre desse círculo arriscas plásticos, políticos, hippie e que originou o nome da banda The Doors. Após a morte de sua esposa
economistas e intelectuais, como Virgínia Woolf( 1 882-1941), Bertrand Arthur em 1955, casa-se pela segunda vez, no começo de 1956, com Laura Archera
William Russell (1872-1970), David Herbert Lawrence (1885- 1930), Thomas ( 19 1 1 -2007), antiga amiga dos 1-Iuxley. Ainda no mesmo ano publica a obra Céu
Stearns Eliot ( 1888-1965), os quais tinham posições contrárias às tradições polí­
ticas, literárias e sociais da Era Vitoriana.5
6 No original: B•·ave new world. A influência seria advinda da peça 7'he TempeJt, de William
Huxley recuperou parte da sua visão, retornando aos estudos no Eton Shakespcarc ( 1564-1616), na qual urn elos personagens chamado Miranda refere-se ao brave worM
College e no Ballioi College, em Oxford, onde em 1916 formou-se em Literatura , conforme Shakespeure (2000, p. 204): "0, 1/JI/1/der! How 1/ltiii)' goodly crealnres are there here! Hmu
beaitteout mtmkind is! O bmve 11e111 world, 'l'ba1 has such people ili't!." Em porruguês, esse trecho da
I nglesa, tendo conquistado o primeiro lugar na classificação da sua turma. Já peça A 1empesta<le pode ser assim traduzido: Oh, maravilha! Quantas criaturas formosas c:otistcm
aqui ! Como a humanidade é bela! Oh admirável mundo novo, Que rem essas pessoas assim!

7 Segundo Parrick (2009), esse livro foi parcialmente inspirado em uma viagem do escritor aos
1 Período do reinado da Rainha Virória, no Reino Unido, de 1837 a 1901. Estados Unidos.

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Fernanda N. da R. Manglnl - Silva na R. de S. Sato - lvanna S. F. Grechi - Maria L. C. Silveira CAPÍTULO 5 - Educação. Trabalho e Tecnologias no AdmirávelMundo Novo

e inferno. Acompanhado de Laura, Aldous Huxley viajou pela América Central 5.3 A DISTOPIA DO ADMIRÁVEL ESTRANHO MUNDO NOVO
e, em 1958, visitou o Brasil,8 tendo conhecido os índios no Xingu e a favela do
i perto
ll tllopia parece estar muito mas
Salgueiro, no Rio de]aneiro. de 11ÓJ do que qflalquerpessoa
{ ..} .

(Huxley, 2009, p. 24).


Conforme Pacrick (2009, p. 331), correntes críticas salientam que Huxley
foi um "escritor de imenso intelecto, [que} combinou humor e sátira mordaz a No mundo ficcional de Huxley, depois de uma grande guerra que
uma exploração visionária dos impactos da ciência e da tecnologia para se cornar ameaçou a vida da espécie humana no planeta, a administração mundial9 foi
um dos mais destacados escricores do século XX." A obra literária de Aldous imposta como a única alternativa para escapar da ameaça de destruição. Estava
Huxley é formada por 47 livros. O escricor, que de forma ousada e surpreen­ em formação um Estado Mundial, uma superorganização comandada por uma

dente tomou LSD no seu leito de morte, morreu em Los Angcles no dia 22 minoria que concentrava em suas mãos o poder c o conhecimento em nome de
uma ditadura de paz, conforto e felicidade. Conforme o próprio Huxley (2009,
de novembro de 1963. Seu enterro foi marcado pela simplicidade e discrição,
p. 27), o gerenciamento do Estado Mundial seria feito pelos administradores
como foi sua vida. Somente após a cerimônia é que a família comunicou o óbito
mundiais sob o lema "comunidade, estabilidade e identidade."
à imprensa. Suas cinzas foram enterradas no jazigo da família no cemitério de
Watts, casa de Watts Mortuary ChajJel em Compcon, uma vila perco de Guildford,
Surrey, Inglaterra. 5.3.1 Comunidade

Esse primeiro lema não significava igualdade. A sociedade era composta por
cascas,w chamadas de Af/rt, Beta, Gama, Delta e Ípsilon. Esses grupos sociais tinham
posições e funções diferenciadas na hierarquia social: os 11/fa.s eram superiores e
assumiam as funções de direção; os BetciS ocupavam posições medianas e exerciam
funções técnicas; os Gaf!laJ, Deltm e Ípsilons, por sua vez, eram considerados infe-

9 Por administração mundial, Huxley (1958) compreende a concentração do poder econômico


e político nas mãos do A!co Negócio (grnndes empresários, empresas uansnacion:ús e seus oli­
gopólios) e no Alto Governo (grandes polfricos c militares). Esrima-se que a referência para a
noção de administração mundia.l de HuxJey (2009) venha da Ligadas Naçôes, criada em 1919,
na cidade de Versalhcs, com a missão de promover a paz entre os países. Vale lembrar que o irmão
de Aldous Huxlcy, o biólogo Julian Huxley ( 1887-1975), defendeu o inrernacionalismo e foi o
primeiro diretor geral da Unesco - organismo inrcrnacional articulado ao Sistema da Organização
das Nações Unidas (ONU) que foi sucessora da Liga das Nações em 1946.

8 No Brasil, Huxley conheceu o Parque Nacional do Xingu na companhia dos irmãos Villas-Boas. 10 É uma forma tle estratificação social baseada no nascimento c que determina o tipo de relação
Na época, Huxlcy escava ansioso por conhecer a cultura não material dos índios, bem corno seu que pode ou não ocorrer entre os membros de difcrenres strtttiS sociais, isto é, que gozam de honra
mundo mágico c mítico. Ele c Claudio Villas-Boas conversaram muito sobre a visão de futuro e prestígio diferenciados (Giddens, 2005). No caso da obra, o stallts de nascimenco era condicio­
dos índios, que vivenciarn imensamente o presente. De acordo com o relato de Villas-Boas (apud nance do papel soda! de cada grupo. A desigualdade entre as cascas era marcada pela diferença
Pacheco 1990), Huxley era um homem incrovercido, concencrado em si mesmo, que falava muito de funções, prestígio, poder decisório e acesso a determinados recursos, como o Soma. No copo
baixo. No Rio de Janeiro, Hu.xley visitou a favela do morro do Salgueiro e conheceu as práticas da pirâmide hierárquica, os 11/fas, por exemplo, tinham o concrole da distribuição dessa droga,
mediúnicas e os rituais praticados ali ((saia, 2012). pois concentravam as funções organizaciva e diretiva da sociedade.

1 90 191
Fernanda N. da R. Mangini - Silvana R. de S. Sato - lvanna S. F. G rech i - Maria L. C. Silveira CAPITULO 5 - Educação,Trabalho e Tecnologias no Admíráve/ Mundo Novo

riorcs e acuavam como meros executores de tarefas. Embora houvesse um notável castas na hierarquia social, desde o nascimento até a morte. O condicionamento
desenvolvimento cientÍfico-tecnológico, evidenciava-se a necessidade de pessoas biológico começava com a reprodução artificial, um dos principais mecanismos
para operarem as máquinas e fazerem a engrenagem funcionar, daí a justificava de controle e estabilidade social. Por essa razão, a fecundidade era concebida
da existência de um sistema de cascas. 11 O lema da comunidade era expresso pelo como incômodo e precisava ser reduzida ao máximo, via esterilização dos embriões
co12 de Huxley (2009, p.
ensinamenrohipnopédi 125): "cada um trabalha para rodos." femininos, como era o caso das mulheres ne11tras14• Métodos anticoncepcionais
e exercícios malthmianos1' eram utilizados para os casos excepcionais de mulheres
A cisão enrre uabalho manual e inrelecmal ou enrre trabalhadores e diri­
que o Estado pretendia conservar férteis.
gentes permanecia inalterada. As castas inferiores ficavam com os trabalhos mais
sujos, degradantes e perigosos, e as altas com os ofícios mais limpos, reconhecidos, A reprodução arcificial16, pelo método iu vitro e pela clonagem, auxiliava

seguros, baseados no uabalho intelectual. A ordem era amar o que faziam e para o Estado Mundial - instituição responsável pela reprodução humana, represen­
tada por seus técnicos e dirigentes - na seleção, diferenciação e padronização
isto havia todo um trabalho de doucrinamenro para naturalização da condição
dos indivíduos. Assim, as cascas elevadas tinham suas características preservadas
de trabalhador-servo, cordato e obediente. Por isso, o grande segredo do sucesso
e aprimoradas, diferentemente das inferiores que sofriam clonagens e retarda-
do Estado totalitário do Admirável Mundo Novo é fazer com que os indivíduos13
aceitem passivamente e até amem o seu statttS social. Em outras palavras, significa
14
aderir irreflexivamence à condição de submissão e de servidão, pa rticularmente Trata-se das mulheres que tinham seus órgãos reprodutores esterilizados aores mesmo de
tornarem-se adultas.
aquela dos subalternos, cujos ofícios eram baseados no trabalho manual.
I) Os exercícios tinham o propósito de evitar a ocorrência de gravidez. A expressão exe.-ddoJ
maltbtJJÍanos é uma referência às ideias do economista Thomas Malthus (1766-1834) sobre o
O rewrso empregado para fazer com que os indivíduos amassem a sua controle populacional. Malthus postulou que o crescimento populacion al desordenado levaria à
condição, mesmo sendo ela degradante, era o do condicionamento biol6gico escassez de recursos e fomes de subsistência. Ern s ua visão, segundo Giddcns (2005, p. 479), a
s:úda para "o crescimento populacion:u exce-ssivo estaria em uma limitação rigorosa da frequência
e psicol6gico. Ambos eram realizados de acordo com a função e a posição das das relações sexuais."

16 A reprodução natural ou vivíparn era concebida como moralmente vergonhosa, nojenta e


deplorável. Considerava-se a figuro de pai c mãe dcsagrodávcl, grosseira, assim como dos irmãos,
11 O tipo de escr:uificação presente no sistema de cascas difere das classes sociais, pois, em linhas dos rios e da família em geral. Outro exemplo de sociedade futurista - não tão distante de nossos
gerais, a condição de membro na classe não se baseia em uma posição herdada pelo nascimento, tempos - que coloca a reprodução i11 virro acima da reprodução vivípara pode ser encontrado no
mas sim por critérios econômicos. Nas classes sociais, as fronteiras são mais tênues, se comparadas filme Galtara: a experiência genérica, lançado no :1no de 1997. Na crama, a busca da perfeição
ao sistema de castas, pois possibilitam a mobilidade social (passar de uma classe para a outra), o genética conta com o método iu vit•·o: os indivíduos que tiveram seus genes manipulados são
que não ocorre no sistema de castas (Giddens, 200)). con siderados "válidos"', isto é, são superiores canto do pomo de vista das capacidades rtSicas como
intelectuais. Já os indivíduos nascidos pcl:l reprodução vivípara são considerados "inválidos",
12 Neologismo criado por Huxley (2009, p. )8) para designar o "princípio do e nsino durame o
isto é, humanos menos perfeitos, com mais propensões a doenças e deficiências, mesmo que
sono." Na mitologia grega bipuoJ era o Deus do sono. Por outra parte, a palavra grega pcdin
mínimas. Essa cisão entre aqueles que tiveram seus genes selecionados em laboratórios c aqueles
a" significa estudo ou educação. Sobre este princípio trataremos mais adiante.
"paidei
que nasceram c.le forma espontânea e natural acaba criando preconceitos e uma espécie divisão
1� Por vezes , a palavra indivíduo é empregada neste trabalho apenas para fazer referência social em cascas: Aos "válidos'' {apros) são reservados os melhores empregos - aqueles que
aos habiranres d aq uela sociedade, posto que suas identidades eram defi nidas, quase que exigem capacidades físicas e inrclcccuais acima da média, c aos "inválidos" são reservados os
exclusivamente, em função do grupo, como será visto oa sessão sobre o terna da ic.lenridude. Do trabalhos braçais, considerados sujos e indignos. Assim, o currículo gen érico determina um rótulo
ponto de visra etimológico, a palavra indivíduo significa indiviso, isto é, aquele que é indivisível. a ser carregatlo pelo resto da vida. No romance, a cisão entre aptos e i n aptos é questionada. O
Em outras palavras, significa que todo ser humano é único. Pode-se afirmar, então, que não personagem principal é um "inválido", que como tal tem desde cedo a liberdade de escolha
existiam indivíduos ou sujeitos no Admirável Mundo, já que não se distinguiam como indivíduos, limitada. Ele é considerado incapaz para rcnlizar seu sonho de se tornar um astronauta, mas luta
apenas como membros de grupo. Huxley ( 1 958) chama esse processo de desindividualização. com todas as forças mostrando que não h:í limites para a nlma human a.

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Fernanda N. da R. Manglnl - Silva na R. de S. Sato - Ivan na S. F. Grechi - Maria L. C. Silveira CAPITULO 5 - Educaç�o, Trabalho e Tecnologias no AdmiróvelMundo Novo

mencos, com vistas a .sua padronização e controle. 17 A técnica chamada Proce.s;o neopavloviano. 19 O primeiro fundamentava-se em incentivar ou reprimir deter­

Bokarrov;ky consistia num dos principais instrumentos de produção de indivíduos minados comporcamencos, por meio da técnica escímulo-rcsposta.20 Tinha a
em massa. Por meio dela, era possível obter grupos numerosos de gêmeos das desvantagem de ser genérico; ineficiente para o aprendizado de sutilezas e o
cascas inferiores, que comporiam o grupo que atuaria no chão de fábrica de uma desenvolvimento de comportamentos mais complexos. Já o segundo possibilitava
usina, por exemplo. alcançar esses resultados, pois ajudava a inculcar na mente das crianças determi­

Em síntese, esse tipo de reprodução tinha a vantagem de produzir ope­ nados julgamentos, desejos e decisões. A hipnopedia -princípio do ensino durante

rários idênticos em grande escala para trabalhar nas indústrias. O condiciona­ o sono- consrinúa-se de repetições sucessivas de frases no estado de repouso, de

mento biológico traduzia-se, basicamente, no desenvolvimento da tolerância, modo que as ideias sugeridas fossem absorvidas pela mente.

aceitação e predileção para determinadas ocupações, temperaturas, ambientes, Nessa sociedade futurista de produção e mercado em massa, a hip11opedia
máquinas, etc. No caso de uma ocupação envolvendo a manipulação do cloro, cumpriria um papel fundamental para adaptar a demanda de consumo à oferta
por exemplo, os técnicos de laboratório expunham desde cedo o embrião a esse da produção induscriat.2 1 O ensinamento hipnopédico, segundo Huxley (2009, p.
componente químico, de modo a fazê-lo sentir dependência c: necessidade do 91) - "mais vale dar fim que conservar" -, supõe a ética e a filosofia do super­
cloro. consumo. O mesmo ocorria com os meios privilegiados de comunicação, nesse

O condicionamento psicológico subdividia-se nas modalidades operance


e hipnopédico. Ele também era realizado de acordo com a função que cada um l9 Referência ao fisiólogo Ivan Pavlov (1849-1936) por sua teoria dos rcAexos condicionados. Essa
teoria foi desenvolvida a partir de um:l experiência com um cachorro. Foi introduzido um cubo na
exerceria na sociedadc.18 Ocorria nos berçários ou salas de condicionamento
boca do animal que permida ao pesquisador verificar n quancidnde de salivação. Com o tempo,
o animal associava os passos do pesquisador, bem como umn sineta ou alarme ao alimento e
começava a salivar. Esse processo recebeu o nome de "reAexo condicionado". Pavlov concluiu
que a aprendizagem ocorre por associação e someme se houver reforço. Esse processo acontece
também com os seres humanos, principalmente bebês. Aspectos dessa teoria serão aprofundados
mais adiante.
17 Os embriões das castas maisaltas recebiam doses mais elevadas de oxigênio, ao contrário das mai.s 20 Por exemplo: num primeiro momento os bebês eram estimulados a se aproximarem de Rores e
,

baixas que recebiam pouco, uma vez. que a função que deviam ocupar na hierarquia social não livros. Num segundo momento, quando escavam entretidos com cores, texruras e aromas eram
exigia qualidades sofisticadas, como a inteligência. Como a reprodução era artificial c controlada, submetidos a diversas descargas elétricas para aprenderem a detestar essas coisas.
ficava fácil dosar a quantidade de oxigênio para cada embrião de acordo com a casca. 21 Ao descrever uma sociedade cuja produção em massa exige mercados em grande escala, Hu.xley
18
Na obra, Huxlcy trata o condicionamento psicológico como metodologia educativa. A idcia faz alusão às ideias do empresário, fundador da Ford i\1otor Comprmy, Henry Ford (1863-1947).
do condicionamento psicológico também está presente no filme Lam11ja Mecâ11ica, baseado no O nome de Ford aparece na trama, e figura como uma espécie de Deus, cujo exemplo deve ser
livro de Anthony Durgess (1917- 1993), e dirigido por Stanley Kubrick (1928-1999). Lançado seguido por todos, embora não haja conotação religiosa, c sim político-administrativa (ideal de
no ano de 1971, o filme mostra um jovem criminoso que após ser preso aceita se submeter no homem e sociedade). No con textO da obra, a realidade é misturada com a ficção, a exemplo da
método ou tratamento Ludovico, uma espécie de condicionamento desenvol,,ido pelos cientistas figura do empresário citado, que projetou c fabricou o aummóvel Modelo T (um dos primeiros
e adotado pelo governo com o objetivo de controlar a criminalidadc c, ao mesmo tempo, de veículos da linha da Ford Motor Comj)((ll)'), referenciado na trama e simbolizado pela !erra/símbolo
melhorar sua imagem perante a opinião pública. O tratamen to Ludovico tinha n vantagem de T. Inclusive, For<l aparece na própria cronologia <In obra cujos tempos eram comabilizados em
,

"curar" os criminosos, prescindindo das escolhas éticas e morais desses sujeitos. No fundo, o que antes de Ford (a.F) c depois de Ford (d.f), em urna pouco disfarçada alegoria à cronologia cristã­
está em questão é o controle do Estado e o livre-arbítrio das pessoas, problcmárica similar à que católica (a.C. e d.C.). O empresário/personagem rnmbém era condecorado em rituais, como o
se colocou Aldous Huxley. O aspecto educacional do condicionamento será aprofundado mais dia de Ford. Enfim, o pioneirismo desse homem crn o exemplo a ser seguido em um mundo
adiante, ainda neste capítulo. governado pelos empresários.

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Fernanda N. da R. Manginl - Silvana R. de S. Sato - Ivan na S. F. Grech i - Maria L. C. Silveira CAPfTULO 5 - Educação, Trabalho e Tecnologias no AdmirávelMundo Novo

caso, o rádio e a televisão, amplamente disseminados e utilizados por rodos Nessa direção, os habitantes desse mundo eram condicionados para não
frequentemente. Existia todo um complexo industrial em corno desses meios, alimentarem ou canalizarem as suas emoções e sentimenros, pois a atitude de
principalmente a propaganda, por se tratar de uma sociedade de superconsumo. reprimi-los poderia ocasionar o fortalecimento dos impulsos, o desenvolvimento
da afetividade e a paixão, que era considerada uma das principais fontes de ins­
tabilidade social. Todos deveriam ter tudo o que precisassem à disposição a fim
5.3.2 Estabilidade
de dispersarem as tensões psíquicas relacionadas às carências. Sendo assim, era
necessário evitar o simples faro de desejar para não correr o risco de manifestarem
A condição Ji11e qlfa 11011 da existência da sociedade desse Admirável Mtmdo
o sentimento de insatisfação. Por essa razão, havia um curto intervalo de tempo
era a estabilidade. Os métodos de governo eram pautados no pressuposto de
entre a consciência de um desejo (dentro do que estava programado para ser
que, como afirma Huxley (2009, p. 92), "governar é deliberar, c não aracar."22 A
desejado) e a sua satisfação.
violência era considerada ineficaz, ao contrário dos métodos do condicionamento
que eram considerados muito mais seguros e efetivos. Por essa razão é que o Eram necessários, contudo, homens sãos, obedientes e sarisfeicos com a
elemcnro-chave elo Admirável Mttndo Novo consiste no controle das emoções, em sua condição, visando a fazer funcionar a engrenagem ela máquina-sociedade.
outras palavras, da subjetividade.23 Para conseguir tamanha engenhosidade, os Admini.rtradonr Mttndiais acabam
com a família, sacrificam a grande arte e a religião/4 e restringem o acesso ao
Nessa obra de Huxley instituições de controle, como a prisão, por
saber e ao conhecimento, principalmente para as castas da base e do meio da
exemplo, foram substituídas pelo condicionamento, considerado muiro mais
pirâmide social. Como o conhecimentO era execrado, mesmo nas castas superio­
eficaz. O poder, a fonte da dominação, não se apresentava mais sob um aspecto
res os livros eram considerados desnecessários2� - um tipo de diversão solitária e
físico e externo. Numa metáfora, o controle na prisão, exercido com auxílio de
perigosa. Aqui, o totalitarismo expressava-se, principalmente, na interferência
grades e muros, foi internalizado, transferido para a mente das pessoas. Por meio
na vida particular dos personagens que eram controlados por meio das técnicas
do condicionamento tornava-se a dominação mais force e, ao mesmo tempo mais
de condicionamento biológico e psicológico.
sutil, minando as possibilidades de o sujeito adquirir consciência da sua condição,
principalmente daquela de submissão. Pelo contrário, os sujeitos acreditavam-se
livres, pois o controle da sociedade agora escava situado dencro de cada um, 24 Na trama aparecem alguns riros similares aos religiosos, como a ctritnô11a
i da Jolidariedade, que
traduzindo-se assim em um aurocontrole. consistia numa reunião para incegraçiio das pessoas acompanhada da suposra diluição das suas
idemidades em um "ser maior" (liuxlcy, 2009, p. 133). Com o cerimonial, os participantes
acredicavam chegar a um estágio elevado a ponto de sentir a presença de Ford. O ritual não
parece remeter à f é religiosa, mas a uma experiência su bjetiva. Trata-se de uma sensação de
u Os mérodos de governo estavam pautados na ciência e na tecnologia. A ideia dos ilrlminiJimdorrJ eternidade, de ligação do ego com o mundo, como Frcud (1997) descreveu por "sentirnemo
era governar com inccligência, sem violência, nobreza ou heroísmo, os quais eram concebidos oceânico". Também faz parte desse culto a ingestão de Soma, os coros, os cânticos e a música
como sinromns de incapacidade política, instabilidade e guerras. Para eles, somente em sociedades sintética. Convém acrescentar, ainda com relação à religião, que o Cristianismo e a moral eram
inferiores, que permitiam a existência de paixões, guerras e fidelidades polfricas, faria sentido viscos corno os principais alvos a serem combatidos e suprimidos.
governar com os comportamentos descritos anceriorrnenre.
lembrar o livro c o filme Pnhrenheil 451, adaptação cinematográfica do romance
2) Essa ideia faz
2j Havia colégios de engenharia emocional, responsáveis pela educação emocional, já que o comrol� homônimo de Ray 13radbury, que apresenta uma sociedade onde os livros eram banidos,
c o equilíbrio eram considerndos fundamencais. Em outras palavras, os membros dessa sociedade queimados e os leitores castigados. Fttb•·enheil 451 é um romance distópico de ficção científica,
hipotética evitavam o despertar das emoções, como a cólera e o medo. Como, porém, sabiam publicado em 1953, que aborda a proibição do pensamento crítico. Para atingir esse objetivo
da sua importância para a saúde, eram estimulados, de tempos em rempos, com trammentos os bombeiros (queimadores de livros) queimam os livros na temperatura 4 5 1 (em Fahrmheil,
sucedâneos das paixões, constituídos de injeções de adrenalina, por exemplo. temperatu ra em que o papel incendeia).

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A família foi substituída pelos recursos da reprodução artificial. Em seu Nosso Ford - ou nosso Freud,28 como por alguma razão inescrutável, pre­
feria ser chamado sempre que tratava de assun tos psicológicos -, nosso
lugar, ganhou espaço a liberação da sexualidade e os condicionamentos . A cons­
Ford foi o primeiro a desvendar os perigos espantosos da vida familiar.
tituição de família, a monogamia e o romantismo, indesejados pelo sistema, O mundo estava cheio de pais -e, em conseqüência, cheio de aflição;
favoreciam a concentração dos inceresses e a canalização dos impulsos e da ener­ cheio de mães - e, portamo, cheio de toda espécie de perversões, desde
o sadismo até a castidade; cheio de irmãos c irmãs, de tios e tias - cheio
gia.26 As dores, os remorsos, as tentações e as proibições, dentre outros fatores,
de loucura e suicídio (Huxley, 2009, p. 78).
aumentam a imensidade das sensações, ameaçando a manutenção do Sistema
(Lei da Estabilidade), pois pelos princípios do Adrni,.ável M11ndo Novo não hã A grande arte e a religião deixavam de ser inreres san ccs, pois também
estabilidade social sem estabilidade individual. A liberação da sexualidade27 era despertavam as emoções e comprometiam a estabilidade social. Deus e o senti­

uma forma de dispersar as energias, repelir ou reprimir os impulsos e as paixões, mento religioso eram considerados supérfluos, pois rodos eram jovens e saudá­
veis, não havendo sofrimentos c perdas a serem compensados, portamo ninguém
visando ao controle e à estabilidade social.
necessitava de consolo, e se ainda assim alguém precisasse, havia recursos que
A hipnopedia era o recurso utilizado para que, desde cedo, os bebês e as perm itiam a fuga da rea lidade .
crianças fossem ensinados que todos pert encem a todos. A família era uma ins­
Os "admit'áveis" viviam como meros autômatos, que tinham fé numa falsa
tit uição estranha aos habitantes do mundo ficcional criado por Huxlcy. Ter um
felicidade, baseada numa vida de confortos. Era melhor livrar-se de cudo que
lar, viver no seio de um grupo familiar, possuir uma mãe vivípat·a eram coisas
lhes parecia desagradável do que aprender a suportar o sofrimento. Os Admillis­
horríveis e deploráveis, como pode ser constatado no excerto a seguir: tt·adores chegaram inclusive a acreditar que a independência não foi feira para o

28
Referência à Sigmund Freud (1856-1939), médico fundador da Psicanálise que é ei rado no
lugar de Henry ford por contribuir no dcsvelamento de aspeccos subjetivos c psicológicos,
especialmenre com relação à sexualidade. Freud ( 1996) defendeu que as pulsõcs sexuais podem
ser observáveis desde a infância. Também defendeu a importância d a atividade sexual para a
felicidade humana, mostrando que a civilização impõe sacriflcios à sexualidade- em nome da
convivência social, do trabalho c do desenvolvimento científico-recnológico - que estão na raiz
da sua infelicidade. Essa tese aparece indirctamence na trama de Huxley, na qual a sexualidade
é Libcmda, pois emende-se que quanto mais energia é liberada para a sexualidade menor é a
26 probabilidade de haver contraposição à civilização. A questão da sexualidade infantil, apontada
Para que rodos fossem de codos não deveria haver compromissos encre casais. A Comunidade
por Freud ( 1996), aparece exaltada entre as crianças na trama, pois a sexualidade é reconhecida,
como urn rodo exercia um controle no semido de estimular a troca consranre de parceiros
afirmada e a acividade sexual estimulada (como no exemplo dos brinquedos eróticos). Outro
sexuais c a promiscuidade, acirudes que eram consideradas moralmente boas. Chama a atenção
aspecto que merece destaque é a menção das relações sociais (familiares, etc.) como causa de
a intervenção dos Administradores e Diretores no controle desse aspecto da vida dos personagens.
sofrimenco por freud (1997). Essas relações sociais são, por sua vez, abolidas e suprimi das no
Quatro meses, por exemplo, era um tempo muito longo para manter relações sexuais apenas
concexro em que vivem os personagens. A afirmação anterior que sugere a imagem da família na
com uma única pessoa. Chicletes de hormônio sexual também eram consumidos por homens
sociedade fictícia em questão, parece cnconrrnr respaldo nos problemas c patologias mostrados
c mulheres para estimular a atividade sexual, embora a reprodução esrivessc fora do leque de
por Freud (1996), corno é o caso do Complexo de Édipo (caracterizado, fundamentalmente, pelo
possibilidades n satisf:tzcr via i ntercursos sexuais.
desejo de ter relações sexuais com o progenitor do sexo oposto). Esse estudioso da psique humana
27
As crianças cr:un inc�ncivadas a utilizarem brinquedos eróticos c desenvolverem jogos sexuais, também é referenciado pela ligaçiio cnrrc os seus escudos sobre a hipnose e o condicionamento
diferentemente dos tempos a. F, em que essas práticas eram consideradas anormais c imorais, humano em Huxlcy, que no seu Admirável Mundo No�'O uniu o legado de Ford para a organização
sendo duramcnre reprimidas. da sociedade com o de Frcud para a formação do indivíduo.

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Fernanda N. da R. Mangini - Silvana R. de S. S ato - lvanna S. F. Grechl - Maria L. C. Silveira CAPITULO 5 - Educação,Trabalho e Tecnologias no Admirável Mundo Novo

homem, pois comprometia a segurança e a estabilidade. Por essa razão, chega-se A arte fora substituída por uma série de sensações do cinema sensível,
à conclusão de que esses personagens não sabiam o que vinha a ser felicidade, da música sintética e dos órgãos de cores e perfumes.30 O cinema sensível estava
nem sofrimento, muito menos liberdade. ligado aos terminais sensoriais, ou seja, incluía o tato e o olfato e, não apenas
a visão e a audição. O objetivo era fazer com que o espectador se projetasse na
Ao eliminarem a rodo o custO o sofrimentO, as dificuldades, as emoções
cena do filme, sentisse cheiros, sabores, roques c texturas. A música sintética
intensas em nome do prazer pelo prazer,29 os "aclmit·áveis" parecem deixar de
era bastante similar, composta de órgãos de perfumes e cores. Assim como a
viver, passando apenas a existir, a estar no mundo produzindo e consumindo
arte, o conhecimento devia ser sacrificado, por ser potencialmente subversivo.
para o funcionamento da engrenagem social. No Admirável M11nclo Novo não havia espaço para a ciência pura, prevalecendo a
Nessa análise encontra-se respaldo no pensamento de Orcega y Gasset ciência ucilitária e as tecnologias em sentido estreito, como é possível observar
( 1965, p. 52), para o qual viver é ter de lidar com o conjunto de facilidades na seguinte passagem da obra:

e dificuldades impostas pelas circunstâncias. Só existe vida quando existem Nossa ciência é simplesmente um livro de cozinha, com uma teori a orto­
resistências e a possibilidade de vencê-las para viver bem. Um viver bem que doxa de arte culinária que ni nguém rem o direico de contestar c w11a lista
de receitas às quais não se deve acrescentar nada, salvo com aurorização
cem sempre de ser realimenrado. Nessa condição, os personagens do Ad1rÚ1'ável
do cozinheiro-chefe (Huxley, 2009, p. 344).
M11ndo Novo apenas existem, como coisas que têm seu ser determinado e fixo.
Na medida em que não conhecem o sofrimento, mal sabem o que é a felicidade Desse modo, é possível constatar que o único resquício dos campos cientí­
e o bem-estar. fico e tecnológico foi reduzido a uma condição operacional, ficando desvinculado
da ciência básica c dominado pelos admioiscradores. Esse quadro aponta para a
falta de ética, autonomia e liberdade, verificadas no mundo científico-tecnológico
da ficção. Na trama, os pesquisadores preocupavam-se com os problemas prá­

19 A busca pelo prazer remete à doutrina filosófica do hedonismo que o interpreta corno o
ticos e imediatos, e não com a busca da verdade, como é o caso da ciência pura.
princípio e a finalidade da vi da feliz. Na trama de Huxley também é possfvel encontrar Enfim, contava a reso.luciviclade da ciência utilitária c da tecnologia unidas, as
indfcios do utilitarismo do século 18, que se opõe ao hedonismo por entender que o prazer
quais deveriam contribuir para o funcionamento da engrenagem social.
deve ser prioritariamente coletivo, c não individual (Abbagnano, 2007). Na obra, isso poderá
ser observado no dever de ser socialmente útil, mesmo após a morte do individuo. Embora o
De um modo geral, os meios de informação e comunicação eram pro­
utilitarismo remonte ao pensamento de Epicuro (34 1 a.C.-27 1 ou 270 a.C.), é somente no século
XYill c XIX que a palavra aparece, cscando ligada ao pensamenro de Scu:m Mill (1806-1873) duzidos de acordo com a casta. Os jornais das cascas inferiores, por exemplo,
c Jcremy Benrham (1748-1832). O Uci li mrismo é uma corrente de pensamento econômico, eram monossilábicos, pois os administradores tinham o entendimento de que os
político e érico, que supõe trnnsformar a ética em ciência positiva e substituir a noção do fim
pelos móveis que levam o homem a agir. Trata-se de reconhecer o caráter intersubjetivo do membros deste grupo social não precisavam saber muito mais do que o necessá­
prazer como móvel, isto é, cada um deseja a felicidade alheia porque dela depende a sua própria rio para operar uma máquina. Os Administmdores Mundiais eram os únicos que
felicidade. Enfim, parte-se do pressuposto da coincidência da utilidade individual com a utilidade
pública (Abbagnano, 2007). É importante destacar, contudo, que essas doutrinas filosóficas estão
tinham acesso à totalidade do conhecimento. Exerciam a função de guardiães do
articul:\das ao liberalismo, que corno foi mencionado anteriormente, é criticado no concexto da acervo bibliográfico, pois mantinham o controle do que devia ser pub.licado, bem
trama. Nesse sentido, as idcias dessas doutrinas filosóficas parecem influenciar parcialmente a
como do que devia ser mantido em segredo, como livros sagrados e de poesia.
ficção de HuxJey, que estava mais preocupado em evidenciar os perigos éticos c políticos; de
submetermos os meios aos fins. Desdobramentos desses conteúdos podem ser conferidos no
co de}tremy Btlllham: tJfrtlfl
capículo 4: O Pat�ópti gias de COJllrole na doutrilltlflio mi/irárin - utopitl orr
distopin? lO Aparelhos que liberavam aromas e faziam pinturas de imagens no ar.

200 201
Fernanda N. da R. Manglni - Sllvana R. de S. Sato - lvanna S. F. Grech l - Maria L. C. Silveira CAPITULO 5 - Educação, Trabalho e Tecnologias no Admirável Mundo Novo

Os livros históricos eram proibidos, assim como também era proibido muitos relógios em nome da pontualidade e da boa administração do tempo.

ter acesso ou preservar tudo o que era amigo. As pessoas deviam ser atraídas Seja com trabalho, seja com lazer, ele devia ser ocupado e preenchido. O ócio

somente pelas coisas novas, porém o novo permanecia sempre como a reitera­ era abominável, pois o tempo devia ser administrado em nome da eficiência.

ção do presente, da mesma organização social. O Admirável Mmulo Novo é uma


Como não se devia perder tempo pensando ou refletindo, existia todo
sociedade hipotética que eterniza o presente, esquece o passado c nega o futuro.
um trabalho de condicionamento para evitar a solidão, uma forma de "compen­
Isso pode ser expresso no ensinamento hipnopédico de Huxley (2009, p. 153): sação". Ainda assim, se por acaso ocorresse de alguém pensar sobre a vida, de
"nunca deixe para amanhã o prazer que puder gozar hoje." Assim, com exceção refletir sobre o mundo, as coisas e as pessoas, ou de se sentir deprimido, havia o
dos esperados desenvolvimentos científico-tecnológicos, as mudanças não eram recurso do Soma - uma espécie de composto químico anesrésico, desenvolvido
bem-vindas, porque interferiam na ordem social. como válvula de escape para os pensamentos. Considerada a droga perfeita, pois

Longe da ucopia de um mundo do porvir, portanto, da crença no futuro, não produzia efeitos colaterais, o Soma era consumido por todos do Admirável
Mundo e auxiliava em casos de mau condicionamento ou revoltasY
conforme pensa Ortega y Gasset (1965), para quem vale a advertência de que

o homem só é homem em relação ao futuro - a um projeto de tornar-se, e de Para Huxley (2009, p. 97), a droga de caráter "eufórico, narcótico e agra­
buscar um objetivo - no mundo distópico projetado por Huxley essa premissa davelmente alucinatório (reunia} todas as vantagens do Cristianismo e do álcool,
inexiste. Segundo Ortega y Gasset (1965), na medida em que perde a capacida­ (mas) nenhum de seus inconvenientes." Nesse sentido, essa droga possibilitava
de de projetar (o futuro), de programar a sua existência para viver, viver bem e uma fuga da realidade sem efeicos colaterais. As fugas sem controle, contudo,

melhor, o homem deixa de ser homem. Em suas palavras: representariam um estado permanente, por isso eram reguladas para aqueles que
tinham trabalho sério a fazer. As castas subalternas recebiam uma ração diária
He aquí la tremenda y sin par condición del ser humano, lo que bace
de Soma,, embora sempre ingerida após o trabalho e sob supervisão. O Estado
de él algo único en el universo . Adviértase lo extrniío y desazonador del
caso. Un ente cuyo ser consiste, no en lo que ya es, sino en lo que aún Mundial era o grande responsável pela fabricação e distribuição do Soma.

no es, �n ser que consiste en aún no ser. Todo lo demás del universo
Nas palavras do próprio Huxley (1958)
consiste el lo que ya es. El astro es lo que ya es, ni más ni menos. A todo

aquello cuyo modo de ser consiste en ser lo que ya es y en el cual, por No lldmirável M11ndo Novo o hábito de tomar Soma não era um vício
tanto, coincide, desde luego, su potencialidade con su realidad - lo que privado; era uma insriruição política, era a verdadeira essência da Vida,
pode ser con lo que, en efecto, es ya -, llamamos cosa. La cosa riene su da Liberdade e da Busca da Felicidade garantidas pela Declaração de
ser dado ya y logrado. En este sentido, el hombre no es una cosa, sino Direitos. Mas csrc privilégio suprcmamenre precioso e inalienável dos
una pretensión de ser csro o lo ocro. Cada época, cada pueblo, cada indi­ súditos era, da mesma forma, um dos mais poderosos insuumenros de
viduo modula de diverso modo la pretensión general humana (Orrega domínio do arsenal do ditador. A dopagem sistemática dos indivíduos
y Gasset, 1965, p. 42). para benefício do Estado (c circunstancialmente, talvez, para o próprio
prazer deles) era um elemento primordial da política dos Dominadores
Contrariamente a isso, no Adrnil·ável Mundo novo existem células de wn do Mundo (p. 70).

organismo social, trabalhadores, administradores, seres autômatos, menos seres

humanos. Tal mecanicismo refletia-se na própria administração do tempo, que


H Por exemplo, com o vapor de Soma a polícia conseguia conter toda uma agitação coletiva, sem
nessa obra ficcional era bastante ordenado e controlado. As salas possuíam violência física de confronto direto corporal.

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Fernanda N. da R. Mangini - S i i vana R. de S. Sato - i vanna S. F. Grechi - Ma ria L. C. Silveira CAPITULO 5- Educação Trabalho e Tecnologias no Admirável Mundo Novo
,

Enfim, o condicionamento e o Soma associados formavam um conjunto ou a paixão. Por essa razão, eram imaturos no que diz respeito aos sentimentos

implacável, ao qual se atribui os principais mecanismos de controle e dominação e aos desejos, uma vez que estas manifestações eram rigidamente reprimidas e
dessa sociedade. anuladas. A maturidade como manifestação da capacidade de relacionamento

incerpessoal, da inteligência e da experiência de vida fora reservada apenas para

as horas de trabalho.
5.3.3 Identidade
Os "admiráveis" não precisavam de leis e normas explícitas, pois as regras
No contexto da sociedade ficcional de Huxley, a identidade era sempre
elaboradas pelos Admi11i
st,·r.u/01'eS já eram incorporadas pelos subalternos por meio
referida ao grupo ou à comunidade. De um modo geral, é possível afirmar que
de condicionamentos reiteradamente repetidos. Os componentes das castas infe­
não existia o indivíduo como pessoa, como ser para si, mas somente como ser
riores eram produzidos nwna f
ábrica de seres humanos, rotulados e despachados
para os outros.32 Os preconceitos hijmojlédicos atuavam no sentido de garantir a
para produzir e consumir, visto que suas vidas não tinham sentido fora disso.
fragmentação entre as castas, sem prejudicar a referência à comunidade.33 Os
A contemplação e o amor à natureza, assim como conversas e caminhadas, por
ganhos do Liberalismo, como a liberdade e a democracia eram interpretados,
exemplo, não eram desejáveis, pois não estimulavam atividades produtivas e con­
pelos Aclministt·adom, como posicionamentos de um passado ineficiente e infCliz.
sumistas. O contato com a natureza era desejável somente para a promoção do
Os seres que habitavam o !ldmirável íHmtdo Novo mais pareciam robôs,H
consumo em massa, como no caso dos esportes ao ar livre, nos quais se usufruía
pois tinham negada a sua própria condição humana a rodo instante. Cultiva­
do transporte e de aparelhos complicados.
vam a aparência, a beleza, a limpeza, mas abandonavam as preocupações com
questões essenciais da sociedade, ou até mesmo do espírito. Não chegavam a O progresso tecnológico fazia com que as doenças fossem suprimidas

adquirir maturidade emocional, porque não cresciam/amadureciam no que diz do Admirável M11nclo Novo, a ponto de restarem apenas umas poucas mazelas.
respeito aos sentimentos. Por essa razão, mal sabiam o que vinha a ser o amor A expectativa de vida girava em torno de 60 anos. Em caso de falecimento,
existia rodo um preparo e condicionamento para encarar a morte como um

acontecimento desejável e agradável, sem provocar forres reações ou emoções.))


32 Com relação ao uso de si para si, restava somente uma pequena liberdade, uma mínima margem
de escolha, pois o condicionamento, aqui compreendido como o uso de si para o outro, acuava Os hospitais mais pareciam hotéis ou casas de espetáculo, com órgãos de per­
no scncido de inibir questionamentos, revolras, paixões c predileções. Esta questão do ''indivíduo
fumes e músicas sintéticas, além de crianças brincando. Os restos mortais eram
para si e para o ourro" rem merecido muita atenção por parre de estudiosos como Schwartz
(2000), uma vez que aponra para a despersonalização ou desindividualização, em favor do sistema reaproveitados como adubo,)6 pois o lema era manter os "admiráveis", descritos
vigente, de um Indo e a subsunção ou anulação da individualidade de oucro, corno explicitamente
por Huxley (2009, p. 125), como "socialmente úteis mesmo depois de mortos."
é evidenciado na obra de Huxley.
ll As crianças Beta, por exemplo, aprendiam a respeitar os membros Alfa das castas mais elevadas
e a dereswrem os membros Delta ou Gama das castas mais baixas.
J) As crianças, por exemplo, eram treinadas no hospital. A notícia de falecimento de alguém era
34 "Robot" é um termo de origem rchcca c significa "servo". Os "admiráveis.. também podem ser
acompanhada do recebimenco dos melhores brinquedos c doces, a fim de associar a morre com
comparados aos zumbis (morros-vivos). Beck (apud Bauman, 2001, p. 12) fala de "categorias
algo agradável.
zumbis" e "instituições zumbis" para conotar o atual estágio da modernidade que está voltado
"

l6
sobre si mesmo" . O rema dos zumbis, em alta na produção cultural e cincmarogrtlficu, vem Huxley (2009, p. 124-125) descreve que: "Em outros tempos, quando se fazia uma cremação
ganhando cada vez mais espaço nas universidades. Pesquisadores renomados cêm trotado o tema o P,O) era completamente desperdiçado. Hoje recuperam-se mais de novenca e oiro por cenco.
,

com o propósito ele discutir questões como a fome, a violência e a falta de rwno para a vida. Sobre Mais de um <Juilo c meio por corpo de aclulro. Isso represen ta, s6 para a Inglaterra, quase
sto
i ver maréria publicada por Cordeiro (2012) na Revista Galile11. quatrocentas rondadas de fósforo por ano...

204 205
Fernanda N. da R. Manglni - Silvana R. de S. Sato - lvanna S. F. Grechi - Maria L. C. Silveira CAPITULO S - Educação, Trabalho e Tecnologias no Admirável Mundo Novo

As caracccríscicas físicas e meneais próprias da velhice passaram a inexistir do totalitarismo e a eugenia, pois a obra de Aldous Huxley pode ser interpretada

com o suporte dos avanços tecnológicos, pois eram consideradas repugnantes. H como um farol apontando na direção desses fenômenos sociais que faziam parte
As faces não chegavam envelhecer, somenre o coração e o cérebro. Do ponto de das preocupações e idiossincrasias de seu tempo.
vista esrérico, imperava o ideal do corpo perfeito, de juventude, rosto liso, corpo
O autor propõe em seu livro ficção, uma sociedade totalitária que ultra­
magro e rijo. Além de incentivar o consumo e a beleza, primava-se pela higiene,38
passava fronteiras geográficas e políticas, uma vez que era governada por uma
que tinha um papel fundamental no ideal de esterilização, expresso por Hwdey
Administração Mundial. O totalitarismo expressava-se, sobretudo, na interfe­
(2009, p. 176) na seguinte fórmula: "civilização é esterilização." Na ditadura
rência na vida privada41 das pessoas, que eram controladas por meio de técnicas
da beleza imperante no Admirável M11ndo Novo havia a necessidade de cultivar
de condicionamenro mental e estímulos lascivos e alucinógenos. Já a prática
hábitos de embelezamento com cremes, ralcos e perfumes, principalmente encre
da eugenia fazia parte da definição das classes sociais a partir do nascimento,
as cascas mais elevadas, pois a aparência era um fator indicativo da posição na

hierarquia social.39 sempre in vitt·o.

As temáticas do totalitarismo c do eugenismo não estão presentes apenas

5.4 UM CONTEXTO H404 ADMIRÁVEL40 na obra de 1932, mas também em sua revisão, escrita por Huxley quase 30 anos

depois da publicação do referido livro, quando torna pública sua obra Regresso
Projeções para o futuro, como as imaginadas disropicamenre por Aldous ao Admirável Mundo Novo (1958). Nesse livro o autor retoma as suas ideias e faz
Huxley, são estratégias e fontes recorrentes no estudo dos tempos históricos. O cruzamentos, inclusive com o livro 1984, de George Orwell. Huxley reafirma o
historiador Reinharc Koselleck (2006), por exemplo, expõe em seu livro Futuro inexorável fim da democracia e a ascensão - num futuro próximo - de regimes
paJsado: contribllição à semâmica dos tempos históricos, que é justamente a conceirua­ totalitários.
ção de passado e futuro que definem o conceitO de História num determinado
Para ele, os avanços da Medicina e do sanirarismo fazem as taxas de
período.
mortalidade caírem consideravelmente, sem que- em contrapartida- medidas
Com o propósito de caracterizar o contexto histórico-político em que é
contraceptivas sejam adoradas. Dessa forma, a população cresce a passos largos,
escrito Admirável i'rf11ndo Novo, analisam-se, neste texto, dentre outros aspectos,
exigindo uma demanda sempre maior de recursos naturais. Nesse quadro de
a crise do Liberalismo Clássico - especialmente no inicio do século 20, a ascensão

J' A exemplo das ruga.�. do sobrepeso c doenças características dessa fase da v ida.
JH A mesma lógica de higienização aplicava-se à cidade do Admidvel Mundo. Os bairros eram 4 1 Segundo Castoriadis (2010), a sociedade possui três dimensões: a primeira é a da casa, da família,
separados por muros c cercas elétricas, além de organizados de acordo com o sistema de castns. da vida privada; a segun da é a do espaço público-privado, em que as pessoas se encontram,
discurem, formando associações ou empresas - em outros termos - a chamada sociedade civil;
�9 Os perfumes eram tantos c tão importantes que saíam de torneiras.
a terceira é a do público no qual se exerce o poder polític o. Um regime verdadeiramente
,

40 Agradecemos ao colega, graduado em História e mestrando em Eucação, Tiago Krum, pela democrático estabelecerá uma articulação concreta entre essas crês esferas, preservando ao
contribuição na construção inicial deste rexro apresentado na disciplin a EduMfliO, 'J'mbalho e tJJ máximo a liberdade privada assim como as atividades públicas comuns aos indivíduos tra:r.endo
, ,

TcCIIologiaJ de Informarão e Comrmirarão, do PPGE/UFSC, no semestre 201 1/2. todos a parricipar do poder público.

206 207
I """""'• N •lu 11 M•lflulnl \llv"'"' 11 dt• � Sti!O lvann� S. F. Grechl - Maria L C. Silveira CAPITULO 5 - Educação, Trabalho eTecnologias noMmirclvelMundoNovo

�IIJll'lpopul.u,.lo, lhcgaríamos a um momento em que uma crise de abasteci­ (1760-1825 ), Charles Fourier (1772-183 7) e Roberr Owcn ( 1 7 7 1 - 1 858), e o
mcmo seria incvitável,"2 c somente a mão forte do Estado daria conta de suprir socialismo científico de Karl Marx (1818-1 883)43 c Friedrich Engels ( 1820-
as demandas sociais: 1895).44

Não resolvido, este problema tornará insolúveis wdos os outros nossos Assim, no final do século 19, parecia muito clara a vocação imperialis­
problemas. Pior ainda, acarretará condições tais que a liberdade indivi­ ta do capitalismo, como posteriormenre foi exposto por Vladimir llitch Lenin
dual e as vantagens sociais do sistema democrático de vida tornar-se-ão
(1870-1924)4� em lmjH!rialúmo: fase mpe,·iot· do cctpitalismo ( 1982). A busca inces­
impossíveis, quase imagin:i rias . [. ..} Há muitos caminhos que vão dar
sante por novos mercados e lucros galopantes, por meio da expansão desenfre­
ao Admirável Mtmdo Novo; mas, o mais curto e mais largo de todos eles
talvez seja o caminho que seguimos agora, o caminho que atravessa por ada, traduzida na práxis da burguesia, levou os emergentes Esrados Nacionais
entre números imaginários de seres humanos c o seu aumento acelerado a um inevitável confronto militar. De acordo com Gonçalves (2012, p. 12), "a
(Huxlcy, 1958, p. 13). Primeira Guerra Mundial, sozinha, foi responsável por cerca de 1 0 milhões de
homens mortos, a maioria com menos de 40 anos de idade; 10 milhões de refu­
Fica claro que o autor nutre poucas esperanças no regime vigente (capita­
giados; 5 milhões de viúvas c 9 milhões de órfãos."
lismo), calcado nas democracias republicanas de orientação liberal. Nesse esforço
de contextualização da obra do autor, é importance buscar explicar as causas da A Europa ficou arrasada, com sua população desnutrida e assolada por

sua descrença em relação ao sistema que vigora a sua época. doenças como a cólera e a febre tifoide. O historiador Eric Hobsbawm, grande
referência no escudo desse período, faz menção ao intervalo entre o início da
O descontentamento com o Liberalismo remonta ao advento do Estado
Primeira Guerra Mundial c o final da Segunda como a "Era da Catástrofe". É um
Liberal, pois desde a Revolução Francesa pulularam exemplos de descrença nos
momento de grande inquietação política, que leva à eclosão de golpes de Estado
ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidctde. Não é por acaso que vemos roda
e convulsões sociais de dimensões diversas e em muitos lugares.
uma série de expoentes do campo filosófico e político (alguns posteriormente
rotulados como românticos) surgirem no século 1 9 com uma crítica ferrenha
às relações sociais vigentes. Trata-se de figuras que propõem novas formas de 4� Estima-se que, na trama, seja feita referência a esse pensador na figurn do personagem Dernard
Marx, que apresenmva um comporramento intempestivo.
organização política c econômica, tais como: o socialismo utópico de Saint-Simon
44 O socialismo defendido por esrcs aurores foi denominado de socialismo utópico por seus
oposirores marxistas (os quais, por oposição, se aurodcnomioavam sodalisras "científicos"), e vem
do faro de seus teóricos exporem os princípios de uma sociedade ideal sem indicar os meios para
" Novamente aqui é inevitável ter-se presente as previsões catastróficas de Thomas R. Malthus, que alcançá-la. Podemos citar a obra de Engels (2005) inrirulada Du Sucinlismo Utópico no Suânlis1110
muito influenciaram Huxley, bem como roda a campanha vol tada à necessidade de intervenção Cientfjicu, publicada em 1880, a qual aborda a distinção do "Socialismo Ciemífico" e o "Socialismo

e planejamento familiar, visando ao controle populacional, que predominou na maior parte do Utópico".
século 20. 1\lém disso, Julian Huxley, irmito de 1\kl ous Huxley, foi membro da Brilish Euge11iCJ 4> Onome da personagem Lenina Crownc é muito parecido com o de Lenin ou Leninc, como
Suâety (Sociedade Dritànica de Eugenia). Segundo Julian Huxlcy ( 1960), as políticas vigentes no rambém era conhecido o procagonista da Revolução Russa de L 9 L 7. Lenin liderou o Partido
campo da Medicina c da assistência social ele sun época contribuíam para a lenra degenerescência Comunista e deixou uma vasta obra literária. Para Hobsbawm ( L995), Lenin foi um dos líderes
ela reserva biológica humana devido ao acúmulo de mutações prejudiciais. A eugenia racional era políticos mais influentes do século 20. Também se cogita que o nome da personagem refere-se a
concebida por ele como o mais nobre objetivo a longo prazo de nossa espécie. uma escritora, embora a maioria dos leitOres aposte na alusão de lluxley ao líder político.

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Fernanda N. da R. Manginl - Silva na R. de S. Sato - lvanna S. F. Grechi - Maria L. C. Silveira CAPITULO 5 - Educação, Trabalho e Tecnologias no Admirável Mundo Novo

Na Rússia, por exemplo, os soldados dão as costas aofront e abandonam a Com isso, não somente os judeus foram visados, mas também os negros,
Primeira Guerra, numa tentativa desesperada de salvar o movimento desencadeado homossexuais, doentes mentais, que eram condenados à morte por serem conside­
pelos bolcheviques.46 Toda essa saga é narrada no livro Os Dez Dias que Abalaram o rados uma raça inferior. A esterilização e a eutanásia eram práticas muito utilizadas
Mtmdo (2002), do jornalista americano John Reed (1887-1920), que fez a cober­ pelos nazistas. Hidcr conseguiu dominar o país, que era visto como o berço da inte­
tura jornalística da Revolução e logo em seguida aderiu ao movimento socialista.
leccualidade, contando com a contribuição de incclecruais e o imenso uso da mídia.
Apesar da premissa salvadora, os comunistas instauram um regime totalitário,
com partido único e cerceamenro de direicos individuais. Os ideais da revolução se É difícil determinar exatamente as razões que levam o autor de Admirá­
espalham, e novas células e diretórios do Partido Comunista surgiram pelo mundo. vel Mundo Novo a ver no totalitarismo a saída mais provável para os homens do
futuro, mas certamente sua experiência de vida marcada por esse conturbado
lsso logo desencadearia uma reação da direita, com os movimentos anti­
período fornece todas as condições materiais necessárias para justificar sua produ­
comunistas de matiz conservadora ou "revolucionária". Entre os movimentos que
ção literária, bem como seu próprio estilo de vida. É preciso também considerar
se autodenominavam revolucionários destacam-se os fascistas na Itália, liderados
que à época em que Regresso ao Admirável M11nclo Nwo foi escrito (1958), o mundo
por Benito Mussolini ( 1883- 1945), e que rapidamente chegam ao poder. Suas
vivia a bipolaridade Estados Unidos da América versl/.s União Soviética, e uma
propostas pró-classes trabalhadoras e antiliberais arregimentam muitos adeptos,
e mais mn governo de orientação totalitária instala-se.47 nova guerra mundial apontava no horizonte. O liberalismo possuía um adversário
à altura, e estava longe da sua vitória definitiva, que ficaria marcada pela queda
O mesmo ocorre com o movimento nazista na Alemanha, que se autopro­
do Muro de Berlim em 1989 c pela sua (re)criação no (neo)liberalismo.48 Naquele
clamava revolucionário e acabou tomando o poder. Kershaw (1993) afirma que
antes de 1933 o principal objetivo do movimento nazista era conquistar o poder.
Após conquistá-lo, priorizou metas bem maiores, que foi o controle social, tendo •• Uma das principais consequências do neolibcralismo foi o desmonte do Estado de bem-estar social
a propaganda c a doutrinação responsáveis pela condução do povo aos objetivos (\X'elfare St:lte). Produto do connito capitnl x trabalho, o Welfare contribuiu para a manutenção
das relações sociais que até então se apresentavam sob a faceta de um capitalismo democrático
associados à visão de Hitler. ou humanitário. O neoliberalismo compreende um conjunto de princípios filosóficos, econômicos
e políricos que atribuem primatia ao mercado. A expressão mais porence do discurso neoliberal
A meta de criar uma "comunidade nacional" homogênea se baseava na é a naturalização das relações sociais. Um conjunto de enunciados que supõe ocorrer de maneira
exclusão de diversos grupos social ou racialmente "maculados". A rigor, espontânea c natural o desenvolvimento histórico da sociedade, reforçando a ótica da necessidade
apenas arravés da definição negativa dos grupos excluídos é que a nebu­ de adaptação dos n i utáveis. A sociedade liberal cons­
i divíduos e do mundo social a essas relações m
losa "comunidade nacional" podia adquirir identidade prárica (Kershaw, titui, assim, a única ordem social desejável c possível, combinando com as reses capitalistas do fim
1993, p. 106). das ideologias e das utopias, do modelo civilizatório único, globalizado e universal. O momenco
histórico de afirmação do oeolibcralismo foi o Consenso de Washington em 1989. Formado por
economistas de instituições 6.oanceiras como o Fundo r-..fonerário Internacional (FMI), o Banco
Mundial (BM) e o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, fundamencou-se em um texto
46 No começo do século 20 a Rússia foi tomada por uma onda de greves que conrribuiU para a do economista John Williamson, do lnternational lnstirute for Economy. Em 1990 tornou-se
queda do Czar Nicolau 11. O Partido Comunista era formado por dois grupos: os bolcheviqucs política oficial do FMI para os países com dificuldades financeiras do Terceiro Mundo e países
(maioria) e os mencheviques (minoria). Os bolcheviques constituíam um grupo político russo,
emergentes. O Consenso refere-se a um conjunto de medidas composco por dez regras: 1) disci­
formado por integrantes do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSOR), que defendiam
uma revolução armada de caráter socialista. Por outro lado, os mencheviques, liderados por plina fiscal; 2) redução dos gasros públicos; 3) reforma tributária; 4) juros de mercado; 5) càmbio
Martov, defendiam primeiro a instalação da democracia e só depois o socialismo. Com a queda de mercado; 6) liberalização do comércio; 7) lim das restrições aos investimentos estrangeiros; 8)
de Nicolau 1[, os comunistas mais radicais, liderados pelo Partido Bolcheviquc, conquistawm privatização das empresas estacais; 9) desregulamenração das atividades econômicas e trabalhistas
o poder, adorando o regime socialista na Rússia. Um ano após a Revolução Russa de 1917, os e 10) garantia dos direicos de propriedade. As conclusões do Consenso de Washington acabaram
bolcheviques mudaram o nome desse partido para Partido Comunista da União Soviética. A coroando-se receituário imposto por agências internacionais para a concessão de créditos. Por
Revolução Bolchcvique preservou a maior parte da unidade territorial multinacional do velho
Estado cz:�rista por nproximadamence 74 anos (Hobsbawm, 1995; Gonçalves, 2012). exemplo, se um país possui interesse em empréstimos do FMI deverá adequar suas economias
a essas regras. Assim, o Consenso de Washington faz. parce do conjunto de reformas neoliberais
47 Aldous Huxley experimentou a instalação desse sistema, uma vez que viveu na Itália duramc os centrado doutrinariamente na desregulamcntaç5o dos mercados, abertura comercial e financeira,
anos 20 do século 20. redução do tamanho c papel do Estado (Bandeira, 2002; Lander, 2005; Negrão, 1998).

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Fernanda N. da R. Mangini - Silva na R. de S. Sato - Ivanna S. F. Grechl - Maria L. C. Silveira CAPITULO 5- Educação, Trabalho e Tecnologias no AdmirávelMundo Novo

período o l iberalismo já havia se metamorfoseado para se manter atrativo, mas i o compreender que a oposição generalizada da socie­
Dessa forma, é precs
não era a única alternativa em pauta, bem como estava longe de ser uma una­ dade ao eugenismo é marcada pela experiência semita e pelos abusos realizados
nimidade.
em nome da evolução genética. A imagem do judeu, antítese simbólica das
Outro fenômeno social já mencionado no presente texto trata-se da virtudes alemãs incorporadas na "comunidade do povo" , e o antissemitismo
eugenia. Essa questão também ganha destaque nas duas obras de Huxley a que forneceram a possibilidade de realização de vários atos em que o princípio ideoló­
se fez referência. Em Regresso ao Admirável Mundo Novo o autor coloca-se num gico pode ser compatvel com as formas materiais de motivação social. Iniciou-se
í

dilema moral, entre a ajuda aos desafortunados e a p rática da eugenia como uma série de violências antissemitas, não havendo como reverter a espiral da
forma de garantir a "qualidade" do estoque genético da humanidade. Essa ambi­
discriminação (Kcrshaw, 1993).
guidade fica expressa em suas palavras:
i te nos dias
O medo quanto às fraquezas e imperfeições do homem perss
Ajudar os desafortunados é Jogicamenre bom. Porém, a transmissão em
atuais. Não foi somente um dos maiores genocidas da História que propôs tais
massa, aos nossos descendentes, dos resultados de muraçõcs desfavorá­
veis, e o contágio progressivo da reserva genética o qual os membros da ideologias. Sempre encontramo-nos em busca da perfeição utilizando do mesmo
nossa espécie terão de beber, não é menos logicamcncc mau. Estamos pretexto, ou seja, de uma melhora da qualidade de vida da humanidade. Apesar
nas extremidades de um dilema ético, e para acharmos o caminho incer­
de polêmico, contudo, o debate ainda se faz p resente. ) 1
mediário serão necessárias toda a nossa inteligt!ncia c roda a nossa boa
v ontade (Huxlcy, 1958, p. 19).

Huxley não chega a falar sobre discriminação, temática comum no dis­ 5.5 EDUCAÇÃO, TRABALHO E TECNOLOGIA:
curso eugenista, mas apoia a necessidade de um maior controle sobre pessoas Um Projeto a Serviço de uma Sociedade Totalitária
com enfermidades congênitas. A questão é polêmica, dado os absurdos já come­
Os livros e o bamlho Íl1temo, as flores e os choques elétricos - na
tidos em nome de uma pureza étnica. O maior exemplo disso, certamente, é o
mente infantil essas parelhttsjr
t estat1am ligadas de fomta com­
dos judeus morros nos campos de concentração alem ães, genocídio que marca
prometedora; e, ctO crtbo de duzelltas repetifões clct mesma lifão, 011
profundamente a Segunda Guerra Mundial. Milhões foram assassinados em
de outt·a parecida, estat'ittm cctsadcts indissolttvelmeme. O que o
nome da pureza da raça ariana, embora os alemães não tenham sido os únicos a homem tmitt, a natttreza é i11capaz de separm:52 - Elas crescercsm
segregá-los. Até a guerra em questão, boa parte dos países europeus fechava-se com o q11e os psicólogos chamam de 11111 ódio "htstirrtivo" aos livros e
a esse povo, que ainda não contava com uma pátria.49 Na Rússia czarista, por risflores (Huxley, 2009, p. 54).
exemplo, eles não tinham nem mesmo direito à cidadania, viviam em gueros e
eram extremamente discriminados.5°
H Ver ComofazerJtlperlxbês, de Costa c Garartoni (2012). A reportagem mostra que a seleção genérica
para evitar algumas doenças j[í vem sendo realizada em laborarórios, c rarnbérn craz a polêmica
da seleção de algumas caraceríscicas genéricas que podem ser feiras pelos pais, - como a cor dos
49 É somente em 1948 que o Escado de Israel é criado e reconhecido, p;tsstmdo a fazer parre da olhos - num futuro que rende a produzir bebês em laboratórios. No rexro de Cosra e Gararroni
ONU como um país independcnrc. (p. 43) nos chama tt nrcnç1io a frase "um admirável (e lindinho) fururo dos bebês'' e do moncance
'0 Essa quesrão da discriminação não se resume aos judeus. Ourras formas de segregação ainda de lucros que esse novo ramo agrega para as empresas.
persistem em pases europeus, a exemplo do povo cigano. Para mais deralhes ver os livros Guerra
í
H A frase pode ser associada, em forma de trocadilho, a uma manifestação religiosa, repetida,
dOJ Bá/ciíJ, de John Reed (2002b), c Em riOJ tXIrttl:lOJ o breve Jéculo XX: 1914-1991, de Hobsbawm em especial, nas cerimônias de casamento, quando o oficiante adverte que o que "Deus uniu o
( 1995). homem não pode scpar.tr."

212 213
Fernanda N. da R. Mangini - Silvana R. de S. Sa to - Ivan na S. F. Grechi - Maria L. C. Silveira CAP[TULO S - Educação, Trabalho e Tecnologias no AdmiróvelMundo Novo

O Admirável Mundo Novo apresenta um cenário prospectivo, no qual os Os sentimentOs considerados ruins, como tristeza, saudade, solidão,
homens são transformados em ref
éns de programas de condicionamento e sub­ medo, quando apareciam deviam ser interrompidos imediatamente com o auxílio
metidos aos equipamentos resultantes dos avanços tecnológicos e a constan­ de doses de Soma - pílula milagrosa que garantiria a felicidade e o bem-estar.
tes lavagens cerebrais, visando à obtenção de comportamentos adequados para
A morte era encarada com naturalidade e alegria, pois nesse lv1ttndo Admit·ável,
garantir a ordem vigente.53 As tecnologias são fundamentalmente inclinadas ou,
os valores eram diferentes, não existindo o indivíduo e sim o coletivo. Com isto
melhor explicando, apropriadas e direcionadas para os propósitos dos Adminis­
não haveria a necessidade de ensinamentos, exemplos de vida e demonstrações
tmdores Mundiais. Com o apoio da tecnologia concentrada em poucas mãos, esses
de carinho, pois o que era essencial seria satisfeito com o condicionamento ou
stt-adom desfrutam de autonomia operacional para comar suas decisões.
Admini
com a ingestão de Soma.
Nessa sociedade hipotética, os seres humanos são fabricados em "Centros
de Incubação e Condicionamento", propiciando a reprodução em larga escala
de operários para as fábricas (Gamas, Deltas e Ípsilons), a fim de manter os
5.5.1 Condicionamento Hipnopédico
interesses gerais e a ordem daquele Estado. Sobre isto assim descreve Huxley
(2009, p. 32): "Homens e mulheres padronizados, em grupos uniformes. Todo
Em Admirável i\Jitmdo Novo, o autor descreve claramente um sistema edu­
o pessoal de uma pequena usina constinúdo pelos producos de um único ovo
cacional no qual as crianças, desde pequenas, eram condicionadas para aprender
bokanovskizado."
a lidar coerentemente com temas como família, religião, trabalho, educação,
Era como se o indivíduo somente pudesse ser/existir enquanto parte de
sociedade e morte. Não existia o sistema de ensino da forma que conhecemos
um conjunto de "iguais". De todas as castas, novas criaturas eram geradas nos
hoje e nem a aprendizagem ao longo da vida. A educação dava-se pelo método
laboratórios, nos quais se faziam escolhas genéticas consideradas adequadas à
de condicionamento humano, principalmente por meio de sessões de hipnopedia, 54
estabilidade daquela sociedade e eram produzidos clones gêmeos aos milhares.
Um mundo em que as palavras pai e mãe causavam um desconforto enorme que era considerada um instrumento eficaz para fins ele educação moral. A

por ser considerado um modo selvagem, antiquado, superado, ele perpetuação hijmopedia não possibilitava a educação intelectual, pois no estado de sono não

da espécie. Enfim, para conceber-se a vida, diante de um ava1ço tecnológico



daquelas proporções, não eram necessárias as figuras de pai e mãe.
H Como mencionamos anccrionnente, a "hipnopedia" é um método de transferência de informação
para um indivíduo ou grupo no estado de sono, por meio de programas avançados de informática.
No Regrem ao Admirável Mtmdo N1wo, Huxley (1958) discuce uma série de expedências similares
H No Admirável l\.fundo Novo, os pwblemas sociais e políticos passam a ser solucionados cada vez à hipnopedia. Uma delas foi desenvolvida com presos voluntários, em 195 7, na Califórnia. Por
mais pelo aspecto tecnológico, supondo uma ordem tecnológica ou sistema de procedimentos meio de pequenos alto-falantes, instalados embaixo do travesseiro dos presos, uma voz repetia
e técnicas alheio c independente da vontade da maioria dos homens. Para Ellul (1983), diante princípios da vida moral durante a noire. O autor também cita outros experimentos com o ensino
do desenvolvimento tecnológico, o homem moderno passou da condição de sujeito a objeto durante o sono, que despertaram interesse publicitário e comercial. Hux.ley (1958) compara
de procedimenros e técnicas, como a propaganda. Em oucras palavras, o aucor defende um a h ipnose com a hipnopedia, pois muitas das coisas que se podem fazer com uma pessoa em
dcccrrninismo tecnológico, pautado no aumento de poder impessoal c hostil que é transferido esrado hipnótico podem ser feitas com ela em estado levemente adormecido. Também aborda
do homem para as tecnologias. A tese de Ellul (l983) parece ter sustentação nessa sociedade a autossugestão, com auxílio de alto-falantes de cabeceira, entre OLmos recursos como os dsi cos
fictícia, cujos grupos subalternos participam passivamente do progresso tecnológico, desde o seu elaborados para ter harmonia sexual, enriquecer c emagrecer. Com essa discussão, o autor chama
planejamento, configurando-se numa espc é ie de alienação. Em que pese, contudo, a complexidade a atenção para o direcionamento desse tipo de instrumento, pois não há certeza de que, em
c a autonomia alcançadas pela tecnologia, sua manipulação está em conformidade com o sistema outras situações, cenha um iundamenro voluntário, ou que seja empregado com garantia de boas
de dominação dos Adminis1radores. intenções.

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Fernanda N. da R. Manglnl - Sllvana R. de S. Sato - lvanna S. F. Grechi - Maria L. C. Silveira CAPITULO 5 - Educação, Trabalho e Tecnologias no Admirável Mundo Novo

havia a possibilidade de reflexão ou racionalização, mas somente a possibilidade Interessante também destacar como o controle seletivo sob re determi­
nados produtos culturais c objetos com os quais aqueles habitantes entrariam
de escutar c salvar na memória aquelas frases55 e reproduzir os comportame ntos
em contato foi outra forma encontrada pelo Estado para garantir a referida
sugeridos por elas.56
estabilidade. Na obra, esse ccma é dcscrico no momento em que o Administra­
Assim, a educação reproduzia as relações sociais dadas, de forma bastante dor Mundial, Mustafá Mond, escreveu sobre a página de rosro de um livro que
organizada, com o objetivo de privar as pessoas da liberdade de escolha e de pen­ analisara para verificar se poderia ser publicado:H

samento. Os habitantes dessa "civilização" eram condicionados ao entendimento


[. ..] A maneira pela qual o auror trata matematicamente a concepção de
de que esse modelo era o melhor que podiam desejar. Os ensinamentos deveriam finalidade é nova e extremamente engenhosa, mas herética e, no que diz
respeito à ordem social presente, perigosa e porencialmentc su bversiva.
ser seg uidos ortodoxamente, sem concescação, pois a falta deles ameaçaria a
Não p11blicar [...] (Huxlcy, 2009, p. 272-273, grifo do autor).
sociedade. Os adultos que não correspondessem ao condicionamento poderiam
ser encaminhados a um recondicionamento. E quando cudo isso falhava, Huxley Esse parecer do Administrac..lor Mundial reba tia as ideias contrárias às

(2009, p. 233), argumentava que era "preferível o sacrifício de um à corrupção impostas por condicionamento, e que poderiam facilmente descondicionar os
espíritos menos estáveis das cascas superiores (dotados de maior inteligência).
de muicos."
Assim, em relação à particular Ped agogia do Admirável Mtmdo Novo, nada é
Assim, todos conformavam-se e contentavam-se com o destino defini­ mais explícito do que o uso elo condicionamento pela hiprropedút e também pelo
do desde sua reprodução in vitt·o. Conforme Huxlcy, no contexto do Admú-ável i pedimento ao acesso e à leitura de livros,5H como em Fahrenheit 451, de Ray
m
Mundo não existia a pergunta "O que você quer ser quando crescer?", ou ainda, Bradbury, conforme referimos anteriormente. De acordo com Huxley (2009,

a questão de "oferecer excelentes escudos para um bom futuro." Todos os Alfas p. 55), "não se podia permitir que pessoas de casta inferior desper diçassem o

exerciam funções de diretoria. Membros de cascas mais baixas, como Gamas,

Deltas e Ípsilons, teriam de desempenhar, necessariamente, funções operacionais " No Admirá�y:/ Mundo Now, os M111illiJtmtlortJ tlltmdi
aiJ do Eitatlo Mmttli
al analisavam todos os
livros para avaliar quais poderiam ser publicados c quais deveriam ser proibidos. Não permitam
i
como trabalhadores nas fábricas. Por intermédio do uso dessa teoria c conse­
a publicação de nenhum livro que apresentasse ideias c conteúdos que fizessem os habirantes
quentemente dessa metodologia, cumpria-se o objetivo de manter a ordem c realizar algum tipo de esforço do pensamento, da consciência ou que propiciasse aumento do
saber, pois isso pode ri a facilmenre descondicionar aqueles habiranres das cascas superiores ,
a estabilidade da sociedade, alcançando-se nas profissões o papel previamente resultando na perda Ja fé na felicidade como supremo bem. Obras deste tipo eram proibidas
e o autor sujei to a uma vg
i ilancia especial. Em casos de ideias muito significantes, o auror era
previsto para cada indivíduo.
transferido para ou tra Estn(iio. Essa siLUaç5o faz lembrar a In quisição e o exame de cúpula da
Igreja Católica para permitir ou proibir a publicação de um livro. O procedimentO de liberação
para publicação é conhecido por nibilobstai, ou seja, nada impede.
:: Cabe também cirnr a Teoria da Felicidade de Sanro Agostinho (354-430), apresentada no livro l• Da mesma forma era proibido aos habitantes acessarem produções anteriores à Era Ford. Para
De M(lgistro ( 1980), no qual o autor :tpresema Cristo como aquele que é o bem supremo e a isso, foi realizada uma campanha conrrn o pnssndo resultando na destruição dos monumentos
ponte que liga n ciJade dos homens 11 ciJade de Deus. Nesca relação, SantO Agos tinho apresenta históricos, fechamemo dos museus c ainda dos livros publicados antes do ano 150 d.F. Essa clara
a chamada Teoria da Iluminação - relembrar o conhecimento acerca da realidade por meio faz alusão à invenção da linha de montagem realizada por Ford em 1909. No nnsso calendário,
da il uminação divina. Assim, segundo esta teoria, Deus ilumina a nossa mente c desta forma 150 d.F equivaleri a ao ano 2059. Na campan ha cocma o passado, tudo que fosse anterior ao ano
obtemos o conhecimento pleno do objeto. 2059 deveri a ser destruído, não restando mais nenhum tipo de registro culrurnl e histórico, pois a
'6 Os assuntos abordados pelos chamados cursos de hipnopedia iam desde o sexo elementar até a partir deste ano os registros dos habitantes do lldmiráve/ Mmulo Novo passaram a ser gerenciados

consciência de classe. Cabe salientar que a expressão "classe social" também é empregada na obra. pelos Ad111inistradores Mtmditlis do Estado M11ntlial.

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Fernanda N. da R. Mangini - Silvana R. de S. Sato - Ivan na S. F. Grechl - Maria L. C. Silveira CAPITULO 5- Educação, Trabalho e Tecnologias no Admirdve/Mundo Novo

tempo da Comunidade com livros." Além disso, ainda segundo Huxley (2009, dever-se-ia instituir um planejamento social c cultural. A cultura é aqui pensada
p. 55), "havia sempre o perigo de lerem coisas que provocassem o indesejável como os valores e costumes dominantes. Os comportamentOs sociais esperados
descondicionamento de algum dos seus reflexos." deveriam ser reforçados na medida em que servissem ao poder econômico e
político62 (Skinner, 1974).

A sustentação teórica dessa abordagem está na Psicologia behaviorista,63


5.5.2 Condicionamento Operante
perspectiva na qual o conhecimento é o resultado direto da experiência e a apren­
Genericamente pode-se afirmar que os exercícios de condicionamento dizagem ocorre pelo reforço e por suas contingências (estímulos reforçadores
aplicados aos personagens da obra Admirável Mmtdo Novo antecipam o tecni­ sempre que for emitida uma resposta igual ou próxima à desejada). Conforme

cismo na área da educação. As técnicas do "condicionamento operantc", que Skinner 0974), existem três formas para organizar e combinar o reforço e as

influenciaram a ficção de Huxley, passam a ser estudadas c experimentadas mais contingências: encadeamentO - condições de reforço para que uma cadeia de
respostas seja apreendida; modelagem - hábitos mocores iniciais que apriori se
intensamente no campo da Psicologia, a partir do ano de 1928, com os trabalhos
aproximam de uma cópia, mas com o passar do tempo são executados similar­
de B urrhus Frederic Skinncr (1904-1990),59 considerado na literatura como o
mente ao modelo apresentado; enfraquecimento - ocorre quando uma resposta
"pai do comportamentaüsmo".
controlada por um estímulo passa a ser emitida mesmo quando o estímulo
Skinner ( 1 974) concebe o homem como produto do meio, cuja indivi­ original apresenta-se enfraquecido.
dualidade é manipulada nas relações sociais, notadamente por intermédio do
Ainda de acordo com Skinner (1974), para cada comportamento encon­
controle científico organizacional.60 Quanto mais eficaz for o processo contro­
tra-se um tipo de aprendizagem ou condicionamento: comporramento respon­
lador na escola, maiores serão as possibilidades de controle e de diretivismo do
dcnce gera condicionamento respondence, comportamentO operantc gera condi­
comportamento humano. Nesse sentido, a instituição escolar acua como um dos
cionamento operante. O comportamento respondcntc é reflexivo e involuntário,
importantes aparelhos do Estado,6 1 pois para a obtenção de uma sociedade ideal controlado por um estímulo precedente, diferentemente do comportamento
operantc, que é voluntário e controlado pelas conscquências dos estímulos que

19 Este uuror é contemporâneo de outro norrc-runericano, Carl Rogers ( 1902-1987), que vai notabi­ se seguem a uma resposta.
lizar-se por suas pesquisas e experimentos na direção oposta a Skinner, isto é, no desenvolvimento
de um trabalho que acredita na autonomia, na liberdade e na criatividade do ser humano. Passou
a ser conhecido como o "pai do não dirctivismo", rendo influenciado gerações. Demrc suas obras
62 Essa questão do comrole científico faz lembrar o filme o Ovo da serpmre, de 1977, dirigido por
destacamos Liherdadepara aprt1Uitr ( 1978).
lngmar Bergman, cujo personagem principal estava servindo de cobaia- assim com seu irmão e
60 Jeremy Bemham (2008) também corroborava a ideia de moldar as crianças, ao afirmar que em outras pessoas - para cxpcri&ncias cientÍficas, nas quais recebiam estímulos sem ter conhecimento
uma casa para crianças órfãs poderiam realizar-se inúmeros experimentos, que possibilitariam de que estavam sendo testados. O objetivo era conhecer as reações dos pesquisados aos estímulos,
fazer das crianças o que fosse desejável. Um pouco das concepções deste autOr podem ser que eram forjados pelos cientistas com a finalidade de estudar e controlar o comportamento
conferidas no Capítulo 4: O Panóptico de}erem)' Bmuham: estraté
gias de rOIItrole na doutri11ação humano.
rnililá,·ia - utopia or1 dntopia?
M O Behaviorismo ceve sua origem com a publicação do artigo A psicologia como um behaviorista a
6' A obra Aparelhos Ideo/6gicos de E11atlo ( 1985) de Louis Althusscr, trata de difcrenres aparelhos vê, de John Broadus Warson (1878-1958). Neste artigo, Wacson critica o uso da introspecção
que fazem parte do Estado e da maneira como estes impõem sua ideologiu c suas maneiros de corno rnérodo investigativo da Psicologia por não o considerar confi:ível devido à influência
reprodução. Destacamos a importância dada por este aucor ao aparelho escolar na conjunrura do pesquisador. Wacson estabeleceu as bases de uma nova visão de Psicologia como ramo das
social. Ciências Naturais (Carrara, 1998).

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Fernanda N. da R. Mangini - Silvana R. de S. Sato - Ivanna S. F. Grechi - Maria L. C. Silveira CAPITULO S - Educação, Trabalho eTecnologias no AdmirdvelMundo Novo

Controladores positivos, negativos e punições/recompensas, de inspiração Darwin (1809-1882), assim como a própria tradição associacionista.64 A teoria
skinneriana, são amplamente utilizados na escola até hoje. Por vezes, o reforço da transferência, proposta por Thorndike, levou as escolas a desenvolverem cur­
pode ser um controle positivo ou negativo. Suas propriedades reforçadoras não rículos específicos e práticos. Já para o fisiologista russo Ivan P Pavlov, o processo
residem no estímulo, mas em seu efeito sobre o comportamento. Assim, os de aprendizagem consistia na formação de uma associação entre um estímulo c
reforços são relativos de indivíduos para indivíduos e de situações para situações. mna resposta aprendida por intermédio de proximidade no tempo e no sentido.

No Admirável Ivftmdo Novo os comportamentos eram forremcnrc condicionados O sistema de Skinner (1974) representa uma completa declaração da
e o contínuo exercício de reforços levava à force resistência de determinados posição ambieotalista, associacionista, behaviorista e determinista na Psicolo­
comporcamenros e à extinção de omros menos desejáveis para a harmonia do gia. Preocupava-se com controles científicos e, para realizá-los criou a "caixa de
Estado Mundial. Skinner", desenvolvendo experimentos, principalmente, com animais. O êxito
nas pesquisas com os animais fez com que ele acreditasse que as leis de apren­
A operacionalização dos objetivos na perspectiva da teoria comporta­
dizagem são aplicadas a rodos os organismos. Em escolas, o comportamento
mentalista influenciou propostas pedagógicas como: instrução programada, de alunos pode ser modelado pela apresentação de materiais cuidadosamente
escudo dirigido, tele-ensino, múltiplos recursos audiovisuais, testes de múlti­ sequenciados e pela oferta de recompensas ou reforços apropriados. Com essa
plas escolhas, microensioo, máquinas de ensinar c, de alguma forma, o uso de concepção, propôs a aprendizagem programada e a máquina ele ensinar como
computadores. meios mais apropriados para realizar a aprendizagem escolar.

Ressalca-se ainda que Skinner não limicou seus trabalhos à Psicologia Segundo Milhollan e Forisha (1978):
Científica: ele escreveu um relato fictício de uma sociedade utópica baseada no
Skinner acredita que os métodos de ciência devem ser aplicados no
controle científico do comportamentO humano, intitulado \'(/a/de/1 Two ( 1 948). campo dos negócios hwnanos. Todos nós somos controlados pelo mundo,

Seu último livro, Beyond Freedom a11d Digrlity (1971), mna versão não fictícia do parte do qual é construído por homens. Este controle ocorre por acidente,
por tiranos ou por nós próprios? Uma sociedade científica rejeitaria mani­
Walden Ttuo, preconiza que não podemos nos dar ao luxo de ensinar e conceder
pulação acidental. Skinner a firma que é necesst{ rio um plano cienrífico
liberdade. Para o aui:or, um dos mais elevados princípios da humanidade, a para promover plenamente o desenvolvimento do homem e da sociedade.
Não porlemo.r tomar deci.rões sábias se tWtlilllltll'lfiOS tt Jwetmde1· que não somos
liberdade, deve ser substituído pelo controle sobre o homem, sua conduta e sua
colltroltldos (p. 66-67, grifo nosso).
cultura.
Ainda de acordo com Milhollan e Forisha (1978), a mais reconhecida apli­
Outros escudos feitos por pesquisadores no campo da Filosofia, da Biolo­
cação do trabalho de Skinner na área educacional foi a "máquina de ensinar".
gia e da História, como os já mencionados, antecederam as pesquisas de Skinner
Existiam várias máquinas de ensinar, e quase sempre elas possuíam uma abertura,
(1974). Dentre eles destacam-se os de Edward L. Thorndike (l874- 1949), que
na qual aparecia uma pergunta. Havia uma segunda fenda em que o estudante
segundo Milhollan e Forisha (1978, p. 49), investigou pela primeira vez a afirma­
escrevia sua resposta, geralmente em uma fita separada. Na sequência existia um
ção: "ações seguidas por recompensas são fortalecidas c as seguidas por punições
são enfraquecidas ou extintas (lei de efeito).'' O conceito de que a aprendizagem
64 O modelo associacionistaé uma das mais tradicionais formas de conceber aprendizagem. Teve
acontece por consequências recompensadoras foi desenvolvido por este pesqui­
origem nas investigações de psicólogos associacionistas britânicos, que mais tarde, em meados
sador, que influenciou a teoria evolucionista pensada e sistematizada ames por do século 19 acabou mmbém influenciando as n i vestigações da Psicologia norte-americana.

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Fernanda N. da R. Mangini - Silva na R. de S. Sato - Ivanna S. F. Grech l - Maria L. C. Silveira CAPITULO S - Educaçao,Trabalho e Tecnologias no AdmirdvelMundo Novo

arranjo em que o estudante poderia mover uma tampa corrediça para descobrir a 5.6 A OUTRA FACE: Liberdade Para Ensinar e Aprender
resposta correta da questão. Alguns mecanismos destes eram automáticos: quando
o estudante avançava o papel para o quadro seguinte, o mesmo movimento cobria Ao concrário do comportamentalismo de Skinner ( 1974), desenvolve-se a

sua própria resposta com uma tampa de vidro. Dessa maneira ele poderia compa­ proposta fenomenológica do norte-americano Carl Ransom Rogers (1902-1987),

rar sua resposta com a correta, mas não poderia alterar o que escreveu. A máquina para quem a realidade é composta de fenômenos subjetivos e cada ser humano,

foi planejada e montada de tal maneira que uma pergunta precisava ser completa­ por intermédio da sua auropercepção, reconstrói em si o mundo exterior. Os

da ames que pudesse ser vista a pergunta seguinte. Com isso, Skinner apresentou seres humanos somente conseguem fazer a reconstrução do mundo quando os

sua proposta de ensino-aprendizagem mediada pela tecnologia, como um meio de estímulos que recebem são transformados em experiências significativas. Nesse

instrução programada para o desenvolvimento da aprendizagem. Hoje, pode-se exercício, a consciência autônoma é a liberdade, daí a importância da tarefa de

relacionar a "máquina de ensinar" com as tecnologias da informação e comunica­ educar, que deveria estar centrada na conservação, defesa e ampliação dessa

ção, por meio da utilização da Internet e softwares educativos, por exemplo. liberdade (Rogers, 1978).

Essa influência tccnicista chegou ao Brasil, após os anos 60, quando as Desde a introdução do seu livro Liberdade para aprender, Rogers (1978)

propostas dos escolanovistas enfrcntan1 problemas de interpretação e resistências descreve que confia na potencialidade e na sabedoria humanas. No final da

de ordem política. Assim sendo, vê-se a entrada dessa nova proposta educacional década de 1960 ele constata que o sistema educacional passa por um momentO

adotada, entre outros motivos, por sua suposta neutralidade científica, eficiência de crise e que por isso era necessário refletir sobre suas questões com urgência.
e racionalidade técnica.6) Segundo Saviani (1.985, p. 16), por meio do processo Expõe que seus temas básicos se referem mais à orientação individual do que a

tecnicista buscou-se "planejar a educação de modo a dotá-la de uma organização questões estritamente educacionais. De qualquer maneira, seus escudos para a
racional capaz de minimizar as interferências subjetivas que pudessem pôr em área da educação foram de grande contribuição, pois esse estudioso acreditava
risco sua eficiência." Os responsáveis pelo sistema de ensino padronizaram plane­ em uma aprendizagem real e não artificial.
jamenros ajusrados a diferentes modalidades com inrenção racional de organizar
Rogers (1978) trabalhou com pessoas em situações clinicas e não com
os meios pelos quais os alunos aprendiam. Além disso, novos profissionais foram
animais em laboratório. Ao contrário de Skinner (1974), Rogers ( 1978) não acre­
introduzidos nas escolas, destacando-se técnicos e especialistas, configurando mais
ditava que métodos utilizados pelas Ciências Naturais fossem adequados para as
a escola como uma "organização complexa", conforme Tragtenberg ( 1978).66
pesquisas da área da Psicologia e das teorias da aprendizagem. Os autores que
eram contrários à Psicologia concebida como ciência natural fazem parte de um
61 Esse processo intensificou-se com a tomada do poder pelos militares em 1964 por meio do golpe grupo denominado Terceira Força, os quais defendiam uma ciência humanística
civil-militar - que teve apoio dos empresários e de países impedalistas, particularmente os EUA
inspirada na tradição nativista de Descartes ( 1 596-1650), Leibniz (1646-17 16)
-, um espaço-tempo onde n5o havia liberdade ou era restrita. O papel do indivíduo c do coletivo
foi limitado ou até mesmo suprimido. Nessa ordem de forças, rornava se necessário um tipo de
- e, posteriormente, Kant ( 1 724-l804).
educação que (con)formasse pessoas adequadas a essa ambiência.
�6 O sociólogo c professor Maurício Tragtenberg 0929-1998) defnia-se como um socialista Rogers (1978) foi um dos forces representantes dos contestadores do
i
liberd.rio c defendia a Pedagogia da liberdade. Escreveu sobre inúmeros remas, dentre eles sobre
tratamento destinado à Psicologia pelos positivistas inspirados no método das
as relações burocráticas dencro da organização escolar, que contribuem para a complexidade da
instituição de ensino. Ver Tragrenberg (1981). Ciências Naturais. Para ele, tratar a Psicologia com métodos das ciências da

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,

natureza empobrece o trato com o humano.67 Essa desumanização do homem contrário, em seus escritos preconizava um meio social em constante processo

não evidencia as questões complexas e únicas que norteiam as pessoas. Os de mudança. Propunha aprendizagens significativas"69 que deveriam ser cons­
"

fenômenos humanos relevantes como as experiências, sentimentos, significa­ truídas pelo indivíduo e não em propostas massificantes.

ções ou o próprio humor, são relegados ao esquecimento e á não cientificidade. Nosso sistema de educ ação não é projetado para confiar no humano,

Cabe aos cientistas estudarem esses fatos observáveis por mérodos que não são poucas são as atividades voltadas para o ensino da liberdade e a busca da unici­

encontrados nas Ciências Naturais, mesmo que para isso se perca um pouco dade individual. Segundo Rogers (1978), o ponto final do sistema escolar deveria

de precisão nos resultados. Segundo Milhollan e Forisha (1978), Sarrre (1905- ser o desenvolvimento de pessoas atuantes na sociedade que soubessem lidar com
o equilíbrio delicado entre as constantes mudanças. O cenário educacional seria
1980) corrobora com Rogers nas suas abordagens sobre Psicanálise existencial,
um ambiente facilitador de aprendizagens significativas, permeado por relações
quando enfatiza que o indivíduo só é influenciado pelo meio na medida em
incerpessoais entre o professor- facilitador da aprendizagem- e seus aprendizes .

que transforma esta influência em uma situação concreta que tenha valor e
Para conviver e se relacionar desta maneira, o auror desenvolveu estudos sobre
significado para ele.
alguns pressupostos que os indivíduos deveriam desenvolver, a saber: o professor

Nesse sen tido , o ambiente e a educação são de suma relevância para deveria tornar-se uma pessoa real diante de seus alunos, ou seja, seus sentimentos
precisam ser aceiros e não escondidos dos discentes; os estudantes também são
potencializar a consciência e crescimento humanos. Segundo Rogers (1978),
livres; confiança e aceitação do outro c comunicação entre as partes.
a consciência é a simbolização de algumas de nossas expe riên c ias e estas

deveriam ser simbolizadas para o crescimento do se(t6ij do nosso eu interior. Como vimos, Skinner (1974) pensa uma educação para o controle social,

Já as deformações feitas sobre as experiências são denominadas de "racio- contrariamente a Rogers (1978), que visualiza um homem livre, mas muitas
vezes encerrado na sua própria liberdade. As indagações entre as possíveis arti­
nalizações".
culações entre o ser hwnano e o mundo continuam instigando os homens.
Os estudos de Rogers (1978) trouxeram à tona instrumentOs utilizados

pela escola que buscam a uniformização dos alunos, como: provas idênticas
5.7 CONDICIONAR OU EDUCAR?
para rodos os alunos; currículos preestabelecidos e tarefas de casa iguais para

um mesmo grupo de estudantes. Diferentemente ela prop osta s ubjacente a esses No Admirável Mundo Novo a manipulação genética e depois o condicio­
instrumentos, o autor visava a uma sociedade menos rígida e tradicional. Pelo namentO humano por intermédio da hipnopedia, assegurariam a u niformização
da raça humana. Somos, porém, uma espécie altamente sociável, nossos filhos

não nascem uniformes e consequentemente não são resultado de atividades edu-

67 O estudioso
Franz Brencano ( 1838-1917) defendia que a Psicologia pode ser uma ciência humana
empírica, sem seguir as determinações das Ciências Naturais.
69 Essa é também urna expressão-chave da teorização de David Ausubel (1918-2008), psicólogo
68 O francês:Maine de Biran (1766-1824) fez pane da iniciativa contra os excessos da Psicologia norte-americano. Sua teoria da aprendizagem significativa foi proposta para provocar o interesse e
empirista. Ele procurou desenvolver uma Psicologia dinâmica em seus estudos sobre a origem o desejo de aprender no aluno. A metodologia consiste em partir dos conhecimentos previamente
da auwconsciência na criança. Pane das construções estruturais é realizada pelo sei/ (eu) adquiridos pelo estudante para relacionar o conteúdo que ele deve aprender na escola. O objetivo
c ouera desempenhada pelo organismo. Nesra abordagem, o sei/ era visto como um ''agente é facilitar a aprendizagem na interação entre os conhecimentos do professor e os do aluno de
experimentador" e não apenas como um registrador CMilhollan; Forisha, 1978). modo a fazer algum sencido para o último.

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Fernanda N. da R. Mangi ni - Silvana R. de S. Sato - lvanna S. F. Grechi - Maria L. C. Silveira CAPITULO 5 - Educação, Trabalho e Tecnologias no AdmirávelMundo Novo

cativas condicionadas no ambiente coletivo. Apesar disso, no mundo moderno -se referência não somente para a constituição individual, mas prin cipalmente
algumas forças desejam que a sociedade e o poder sejam centralizados. Para na defesa da descentralização do poder econômico c na busca pela distribuição
alcançar e ter sucesso diante desse objetivo maior, a padronização dos indivíduos mais ampla da riqueza.
é um fator indispensável. Ao fazer aproximações entre a ficção do Admirável Mundo Novo e o concex­
ro educacional, destacamos o processo conrrolador que muitas vezes se encontra
Para evitar a concentração do poder em poucas mãos e a uniformidade
emre os muros escolares e, é claro, em outros espaços sociais. Isso fica evidente na
das ações dos seres humanos, Huxley propõe uma educação para a liberdade e
proposta metodológica de Skinner (1974), quando este estudioso propõe subs­
autogoveroo. Neste sentido, principalmente na obra Regresso ao Admirável Mundo
tituir a liberdade pelo controle da humanidade em benefício do social. Segundo
Novo (1958), Huxley (p. 106) defende que "uma educação para a liberdade (e
ele, a independência não foi feita para o homem, pois comprometia a segurança
para o amor e para a inteligência que são, ao mesmo tempo, as condições e as
e estabilidade da sociedade. Em contrapartida, para Huxley (1958), abdicar da
consequências da liberdade), deve ser, entre outras coisas, uma educação do liberdade e da capacidade de projetar significa perder a humanidade.
emprego correto da linguagem. " A linguagem é am plamente evidenciada por
Huxley, pois é dotada de uma grande importância para a construção desse ser
mais livre e com maior autonomia para realizar suas ações. 5.8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O amor defende um "meio-termo" entre o que é sugestionado ao ser Que estamos sendo imp111Jionados em dire�'ão do Admirável L'rlttndo
Novo é evidente. Porém não é menos lógico ofato de que ns ó pode­
humano, por exemplo, pelos ensinamentOs hipnojJédicos e o que é informado para
mos, se assim o quisermos, remsar a cooperar com asforças obsmms
as pessoas. que nos imp11!sionam (Huxley, 1958, p. 26).

Os indivíduos devem ser suficienremente sugestionáveis para querer e A ficção do Admi,-ável Mundo Novo pauta vários temas que hoje são cen­
poder assegurar o funcionamemo da sua sociedade, mas não em demasia,
trais na sociedade. Alguns deles, como trabalho, educação e tecnologias ganha­
para evirar que caiam, desamparados, sob o império dos manipuladores
ram maior destaque c densidade teórica neste tcxro. Eis que na sociedade hipoté­
de cérebro profissionais. Da mesma forma devem ser suficiememente
informados da análise da propaganda para que se livrem de crer a esmo tica de Huxley, o trabalho e as tecnologias, ao invés de servirem de instrumentos
no puro sem sentido, mas não demasiado, para que não recusem em de libertação do homem, funcionaram como fatores radicalizadores do aprisio­
massa as efusões nem sempre racionais dos guardiões bem intencionados namento. O conhecimento foi substituído por manuais e receitas operacionais;
da tradição (Huxley, 1958, p. 107-108). a sabedoria, perseguida c extinta. Assim, o clássico Admirável Mundo Novo é a
distopia de uma ordem social alienada c escravizada, sem arte e educação, bem
Assim sendo, Huxley apontava para a importância de um pouco de suges­
como sem família e comunidade. Parece que não estamos muico distante dessa
tionabilidade e informação para o convívio e funcionamento social. É importante sociedade distópica. As piscas estão lançadas, a começar pela fragilidade dos laços
para os indivíduos receber e seguir algumas sugestões, mas sempre com um humanos, estratégia denunciada por intelectuais como Bauman (2004), e que
olhar vigi lante para não cair nas mãos de alguns que procuram manipular a passa a ganhar força em nossos tempos. Em suas palavras:
força de trabalho e a criatividade humanas. Concomitantemente, a informação
também se faz relevante no processo de formação e divulgação da cultura e das Nossos contemporâneos, desesperados por terem sido abandonados aos
seus próprios sentidos e sentimentos facilmente descartáveis, ansiando
tradições, mas o indivíduo precisa estar acento para não acreditar em tudo o que pela segurança do convívio e pela mão amiga com que possam contar
lhe foi informado. Nesse processo a educação para a liberdade e criação torna- num momento de aflição, desesperados por "relacionar-se". E, no entanto

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Fernanda N. da R. Manglnl - Silvana R. de S. Sato - lvanna S. F. Grech i - Maria L. C. Silveira CAPITULO 5 - Educação, Trabalho e Tecnologias no AdmirávelMundo Novo

desconfiados da condição de "estar ligado", em particular de estar "ligado as drogas (sejam ilegais - maconha, cocaína, crack - sejam legais - nesse caso,
permanentemente", para não dizer "eternamente", pois remem que tal
ármacos ansiolíticos, a saber: Rivotril®, Prosac®, Lexotan® dentre
os famosos f
condição possa trazer encargos e tensões que eles não se consideram aptos
e nem dispostos a suportar (Baumao, 2004, p. 8). outros), os encontros para sexo casual e troca de casais, os livros de autoajuda, os

jogos de futebol, as novelas c as vitrines de shopping cellters. Nessa linha, os con­

É assim que, na sociabilidade do capital, o sistema se retroalimenta da flitos sociais passam a ser cada vez mais individualizados, enfraquecendo a Iuca

sua capacidade destrutiva por meio da superprodução e do superconsumo de coletiva pela democracia e a participação em espaços públicos por um povo que

mercadorias, e os rebatimentos dessa condição expressam-se na própria ambi­ parece contentar-se com pão c circo, ou em termos acuais, hambúrg11er e televiJão.

guidade das relações humanas. Essa sociedade do capital que figura como única
Pinotci (2001) faz uma alusão à utilização de uma espécie de "Soma" na
e imutável, muito pouco difere do Admirável Mundo cujos habitantes deviam ser
comemoração do Dia do Trabalho na capital paulista, citando o uso de festivi­
atraídos pelas coisas (e pessoas) novas, passíveis de serem descartadas.7° Como
dades e brindes pelas empresas c bancos na intenção de aliciar os operários. Ao
era proibido ter acesso ou preservar tudo o que era antigo, o novo permanecia
contrário de outros colegas trabalhadores de países europeus e norte-americanos,
sempre como a reiteração do presente, da mesma organização social. Com base
dentre outros, que aproveitam estas oportunidades para reivindicarem seus direi­
nos escudos de Harvey (2007), pode-se assegurar que compartilhamos com o
tOS e exporem as contradições do sistema capitalista, o autor enfatiza que estes
Mundo Novo uma sociedade que cterniza o presente, esquece o passado e nega
últimos
o futuro, assim como o ensinamento hipnopédico de nunca adiar o prazer que

pudermos gozar imediatamente. são policizados, foram educados, lêem e interprecam, discutem políti­
ca no seu dia-a-dia, têm acesso à saúde e à educação, salários dignos,
Em nossa sociedade isto pode ser visualizado nos relacionamentos casuais, seguro-desemprego c, por isso tudo, têm força para reagir e é mais difícil

do tipo "fast sex", e no aumento do número de divórcios e uniões instáveis. enganá-los (Pinotti, 200 I, p. 371-372).

A família também é abalada com esses processos de individualização/1 c ao


As palavras do professor resgatam o valor e o peso da cultura e da educa­
mesmo tempo, de desindividualização, como refere Cosra (2000) ao desracar
ção para um povo, remetendo à preocupação originária de Huxley (1958) com
que a família contemporânea consiste no número de pessoas que compartilham
a subsunção cultural e intelectual humana, possibilitada pela padronização do
somente a chave da mesma casa. Com isso, aumenta o número de pessoas soli­
comportamento dos seres humanos:
tárias e depressivas, reforçando o mal-estar na modernidade, corrobora Bauman

(2004). Os sentimentos de angústia c infelicidade são canalizados e compensados Sob a palmatória de um ditador científico, a educação produzirá real­
nos muitos dispositivos similares ao Soma que existem nessa sociedade, como mente os efeitos desejados e daí resultar que a maioria dos homens c

das mulheres chegarão a adorar a sua servidão sem nunca pensar em


revolução. Parece que não ht\motivo válido para que uma ditadura per­
feitamente científica seja algum dia derrubada. Entretanto, sobra ainda
70 De acordo com Oauman (2004, p. 13), esse carácer descarcável pode ser visualizado nos chamados
"relacionamencos virtuais", cujos laços aferivos podem ser desatados a qualquer momenco, alguma liberdade no mundo. Íl verdade que muJtos jovens parecem não
baseando apenas "npercar a tecla dclece" . apreciá-la. Porém, um relativo número de pessoas crê ainda que sem
ela os seres humanos não podem coroar-se verdadeiramente humanos
71 Ao longo desce trnbalho vários autores referenciados parecem convergir para essa qucsciio, mesmo
usando denominações c argumentações diferenciadas. Caswriadis (20 I 0) rambém afirma que o e que a liberdade é, por isso, um valor supremo. Talvez as forças que

individuo csc:í privatizado, fechado no seu pequeno reduro pessoal -um homem convertido em agora ameaçam o mundo sejam demasiado poderosas para que se lhes
um cínico com respeito às relações pol!cicas - distante de wna sociedade dcmocnícica, de uma possa resistir durante muito tempo. É ainda nosso dever fazer tudo o que
sociedade que Iuca por mais liberdade. pudermos para resistir-lhes (Huxley, 1958, p. 1 19).

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Fernanda N. da R. Mangini - Silvana R. de S. Sato - lvanna S. F. Grechi - Maria L. C. Silveira CAPITULO 5 - Educação, Trabalho e Tecnologias no AdmirávelMundo Novo

Nesse sentido, reafirma-se a importância do debate sobre o direciona­ resposta, deixando de propiciar aos discentes que extrapolem as possibilidades

mento dos avanços científico-tecnológicos, especialmente no campo do compor­ educativas de modo a desenvolver seus olhares e suas ações para a criatividade e

tamento humano. Vale reportar a crítica de Huxley (1958) às teorias compor­ a originalidade, características necessárias para o exercício da cidadania.

tamenralisras, notadamente a Skinner (1974) que, desconsidera a diversidade Assim, no Admirável M1111do Novo o que se faz, na radicalidade, não é

individual e não trata a educação na perspectiva do desenvolvimentO de poten­ educação, mas condicionamento. Era como se os experimentos e práticas de Ivan

cialidades humanas, como a criatividade. Pelo contrário, supõe um sujeito que é Pavlov (1849- 1936), bem como dos psicólogos Edward Thorndike (1874-1949)
e Burrhus Skinner (1904-1990) fossem postos em ação, concentradamenre nesse
produto de uma uniformidade educacional e cultural. Ao comparar a realidade
loms, levando ao aprisionamento das mentes humanas. Essa suposta forma de
em que vivemos com o mundo da sua obra de ficção, Huxlcy ( 1958) evidencia
educação respondia à necessidade daquele sistema social, pautado no controle da
a problemática da ameaça à liberdade e à individualidade humanas, principal-
subjetividade. Já nas sociedades modernas do mundo real, a educação também
1
mente na sua "fábula" do condicionamento. Para o autor, essa tirania poderá
tem servido ao sistema social vigente. A escola é uma expressão dessa sociedade
ser evitada somente por meio do autogoverno e da educação para a libcrdade.72 na qual o trabalho c a educação são mercadorias. Embora Mészáros (2008, p.

Skinner ( 1974) defendia atividades condicionantes nos meios escolares, 45) afirme que "a educação formal não é a força ideologicamente primária que
consolida o sistema do capital", ela cem o papel de conformar e de consensuar
com a intenção de controlar cientificamente os resultados c Pavlov (1979) apos­
dentro dos seus limites insticucionalizados.
tava na estratégia do estímulo/resposta. Ambos justificam seus estudos para

melhor aproveitamento educacional e, consequentemente, melhores resultados Como na ficção de Huxley, a educação na sociedade atual é dualista,
educa uns para a execução de trabalhos manuais e outros para os inccleccuais. E
para as relações e necessidades do mundo social. Apesar de hoje em dia termos
quanto maior a complexidade n as relações de trabalho, mais obscurecido fica o
tantos outros recursos educativos e meios para difundi-los, continuamos obser­
papel da educação nesse processo de reprodução do pensamentO dominante. A
vando a sugestão de atividades que visam a alguma reação esperada e que deve
educação como prática mediadora nos processos políticos, ideológicos e culturais
ser reforçada,7J a exemplo da indicação de que, como menciona Kraus (apud
cem servido, na atualidade, para formar um trabalhador "cidadão produtivo",
Costa; Garacroni, 2012, p. 50), "a prática de um instrumento musical pode ser a adaptado, adestrado, treinado, mesmo que sob uma ótica poüvalence, conforme
melhor maneira de estimular a função executiva das crianças." Os jogos, brinca­ argumenta Frigotto (2005, p. 73). Nessa mesma direção Apple (2002) adverte:
deiras e tarefas pedagógicas tornam-se limitados se baseados apenas no estímulo/
Como um aparelho do Estado as escolas exercem papéis imporra ntes
na criação das condições h'Ccessárias para acumulação do capital (elas
ordenam, selecionam c certificam um corpo discente hierarquicamente
72 Nesse ponto, o conceito ele autonomia é central, pois a liberdade e a autonomia residem na
organizado) c para legitimação (elas mantêm uma ideolog ia meritocrática
participação efetiva - não rner:uncntc no papel, apenas formal - da discussão, dclibcrnção e
formalização das leis, cujo poder Legislativo permanece na coletividade, no povo. A autonomia imprecisa e, portanto legitimam as formas ideológicas necessárias para
significa a capacidade de se dar a si mesmo com a sua lei, de refletir, deliberar c atuar. Com recr iação da desigualdade) (p. 31).
respeito à política � à explicitação na consciência e na prática de que criamos nossas leis c que
também podemos mudá-las (Cascoriadis, 2010).
Essa tendência está expressa na lógica do capital, cujos países são divi­
73 Ver matéria de Costa c Garattoni (2012), os quais apresentam os designers babies, como são
didos e cada um assume um lugar na divisão internacional do trabalho (Fer­
denominndos os bebês projet:•dos para apresentarem melhorias quanto às car acterísticas c
habilidades lisicas, inclusive para rer facilidade na aprendizagem. nandes apud Neves; Pronko, 2008, p.lO). Numa metáfora, os administradores

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Fernanda N. da R. Manglni - Sllvana R. de S. Sato - lvanna S. F. Grechi - Maria L. C. Silveira CAPITULO 5 - Educação, Trabalho e Tecnologias no Admirável Mundo Novo

do mundo real tratam os países de acordo com sua participação/contribuição domú1io do corpo c da força física do trabalhador. É preciso, sobretudo, capturar
nessa divisão mundial do trabalho. Assim, uns são Ípsilo7lS (que são criados com a sua subjetividade (seus gostos, suas preferências, emoções, sua inteligência,
pouca capacidade intelectual c que só sabem o necessário para a execução de criatividade) na direção do movimento do capital. Huxley (1958), que conviveu
suas tarefas), outros são Alfa mais (são os mais inteligentes e têm postos eleva­ com regimes ditatoriais, percebeu que a rigidez de sistemas político-empresariais
dos na divisão social do trabalho), que detêm as armas de destruição em massa, estava condenada ao fracasso. Em sua obra de 1932, criou um poder situado de
o conhecimento sobre as pesquisas mais avançadas, bem como a hegemonia maneira flexível que se tornou muito mais poderoso e bem-sucedido. Interessan­
político-ideológica e econômica. te notar que na atualidade a flexibilidade é o grande princípio administrativo­
As desigualdades entre as classes sociais passam a ser aceitas e natura­ -gerencial. As organizações passam a desprezar as hierarquias, em nome de um
lizadas, também com o auxílio de uma espécie de condicionamento midiáti­ relacionamento verticalizado com seus funcionários c clientes. Em contraparti­
co. A divisão em classes sociais, à semelhança da sociedade de Huxley (2009), da, os resultados do trabalho nessas empresas não são repartidos e distribuídos
atinge um entrosamento c estabilidade comparáveis aos animais, como formigas, igualmente entre todos.
abelhas e cupins.74 Com o recuo dos movimentos sociais em todas as partes do
Huxley (1958) alerta para os perigos da concentração do poder e da
mundo, nos últimos anos da década de 90 a luta de classes nunca foi tão pacífica
tecnologia em poucas mãos. Em sua clássica obra de 1932, a ditadura científico­
na História.n O poder expresso de uma forma cada vez mais disfarçada c oculta
-tecnológica é levada até as últimas conseguências. Em nossa sociedade, há anos,
volta-se para o controle das emoções e da subjetividade alcançando muito mais
o que parecia apenas uma ficção utópica de obra literária, hoje se concretiza nos
eficácia. Na ficção, isso se traduz por meio do condicionamento e do Soma. Na
realidade, isto aparece no discurso corrente da mídia e dos empresários que, ao resultados das pesquisas e dos experimentos desenvolvidos no campo da nano­

defenderem uma democratização nesse espaço, nada mais fazem do que buscar o tecnologia. Por exemplo, o pesquisador Anthony Acaia (apud Pontes, 2011)

consentimento dos trabalhadores, tornando a dominação mais forte e, ao mesmo apresentou recentemente na Califórnia um rim impresso no dia anterior da sua
tempo, mais sutil (Bueno Júnior, 2011). explanação. A reprodução foi feira em uma impressora 3D que não utiliza mais
tinta para efetuar essa tarefa, mas sim células humanas. Segundo Pontes (20 1 1),
Nas empresas, a figura do colaborador é o exemplo de que os adminis­
o estudioso, além de demonstrar suas criações realizadas em laboratórios, afirmou
tradores buscam uma ligação mais estreita com os trabalhadores para fagocitar
em publicação recente que já implantou os órgãos artificiais em cinco mexicanos
sua criatividade, seus sentimentos e sua inteligência com a finalidade de lucro.
e após acompanhamento de seis meses, os resultados foram positivos.
Para Antunes (2005), nesse momento singular do capital, busca-se não apenas o ,.

Esse fato evidencia como estamos caminhando a passos largos para


criações artificiais em todas as áreas, principalmente no campo tecnológico da
14 Além disso, a separação encre os selvagens, de tUn lado, c os "admiráveis'', de outro, faz lembrar
a lógica que preside a propaganda dos atuais condomínios residenciais no âmbito do mercado saúde, que vem recebendo grandes aportes financeiros por parte de empresas
imobiliário. Trurn-se de condomínios fechados, em sua maioria de alro padrão aquisitivo, que
privadas. Stix (2002, p. 42) já apontava para os riscos que a humanidade escava
oferecem toda infraestrutura de equipamentos c serviços com conforto e segurança - justificada
pela conscnnte ameaça dos "�/vagem" da vida real. O Admirável M1111do Novo é como um desses correndo com a utilização desenfreada das tecnologias nano: "a nanomia ali­
condomínios residenciais, cujos padrões variam de acordo com as castas sociais, lembrando
menta um bizarro conjunto de cenários futuristas, que acenam com vidas de
que os civilizados estão protegidos dos selvagens pelas cercas elétricas e pelos dispositivos de
condicionamento. duração bíblica, riqueza ilimitada ou wn holocausto provocado por incontrolá­
7) A respeico do refluxo dos movimentos sociais ver Vida! (20 lO). veis legiões de nanorrobôs auto-replicantes." Esse exemplo remete às preocupa-

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Fernanda N. da R. Mang l nl - Silva na R. de S. Sato - Ivanna S. F. Grechi - Maria L. C. Silveira CAPITULO 5 - Educação,Trabalho e Tecnologias no AdmirávelMundo Novo

ções de Huxley com uma ditatura científico-tecnológica, cuja concentração do há opções de ordem política que determinam a direção, a intensidade e
a abrangencia da implementação das inovações. A calibragem entre pos­
poder poderia ser direcionada para a dominação e à acumulação de capital em políticas, que contemplem o conjunro da
sibilidades técnicas e decisões
nossa sociedade. população, continua colocada no rol das conquistas ainda não alcançadas
e que configuram uma cidadania mais plena (p. 26).
O fato é que as biotecnologias cada vez mais vêm sendo empregadas,
relegando a um segundo plano questões poüticas e sociais, não obstante o peso Entre a realidade c a ficção, a fronteira que separa o mundo imaginário
e a importância desse conjunto de conhecimencos, invenções, técnicas e artefatos criado por Huxley do mundo da vida real e cotidiana está coroando-se cada
para a sociedade. As exigências sociais e técnicas na sociabilidade do capital são vez mais tênue, demandando atenção para novos processos e padrões sociais.77
condensadas em uma racionalidade tecnológica, que traz a construção e inter­ Como destaca Bueno Júnior (20 l L , p. 6), se hoje Aldous Huxley estivesse vivo
pretação de sistemas técnicos em conformidade com os requisitos de um sistema e fosse fazer uma análise da própria obra, possivelmente mudaria o título de
de dominação. Esse fenômeno Feenberg (2002) denomina de código social da seu livro para "Admit·ável Mtt11do Não Tão Novo." O que estamos vendo, vivendo
tecnologia, ou, mais sucintamente, código técnico do capitalismo. O rumo auto­ e perspectivando encaixa-se prcocupanternentc em nosso loms temporal. Não
ritário da tecnologia pode ser contestado porque é um fenômeno ambivalente, há mais como e nem por que ignorar. Assim, os aspectos abordados pelo autor
que pode ser instrumentalizado em razão de diferentes projetos políticos. convidam-nos a ler c a intervir criticamente no mundo, observando as mazelas
da alma humana, a prática social e educacional, dentre outras tantas questões.
O verdadeiro problema não é a tecnologia ou o progresso em si,76 mas a
sua apropriação c o seu direcionamento para a hegemonia de uma determinada
classe. A eficácia de uma hegemonia depende de ela não necessitar ser imposta
pelos dominadores, mas ser reproduzida, irrefletidamente, pelas crenças e práti­
cas normalizadas dos subalternos. Isto explica porque os imperativos sociais do
capitalismo são experimentados como constrangimentos técnicos c não como
coerção política. Nas sociedades industriais as estratégias de dominação consis­
tem principalmente na inserção dessas constâncias em procedimentos técnicos,
normas e artefatos, a fim de estabelecer um quadro em que o dia a dia da ativi­
dade técnica sirva aos interesses do capital (Feenberg, 2002).

Em resumo, a tecnologia como objeto de luta c disputa social demanda


a sua democratização. Para Bianchetti (2005),

'6 Embora esteja baseada numa pretensão de conhecimento neutro, a tecnologia não é nclltrn,
porque não é alheia aos vulores e aos interesses presentes na sociedade. O c:m\ccr polftico da
tecnologia csr:í essencialmente no uso que se f.'lz dela (desde a sua concepção). Fecn berg (2002)
excmplifica: as engrenagens e alavancas da linha de montagem capitalista, assim como os tijolos " A exemplo do Pt·ojeto Genoma l/mllrtiiO do ano de 2000. Segundo Tiraboschi (2009), em nrcigo
e a argamassa do Ponóptiro, não possuem implicações intrínsecas de valor. O caráter político da publicado na Revifta Gali/eu, as previsões contida.� no livroAdmirável ll·fm1do Novo são consideradas
tecnologia não está na lógica do seu funcionamento incerno, mas na relação dessa lógica com o altamente factíveis. A fertilização in vilro, a engen haria genérica para produção de bebês e as
contexro social. drogas psicotrópicas que figuravam na obm de 1932 já são realidade.

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C a pitulo
I & I

O SITIAMENTO INDIVIDUAL E COLETIVO NOS


"MUNDOS" DA NECESSIDADE E DA UBERDADE:
Reflexões a Partir de 1881, de George Orwell

Eliane Fioravante Garcez'


Joice Elol Golmaraes2
Karloa Bernardes de Oliveira e Sllva1
Marlsa Hartwlo1

a é que aspessoas tenham


'i1 tendênci
cada vez mmos liberdade de ir e vir sem
serem vigiadas"
(Toffler apud Zacabi, 2003, p. 14).

fome: <http://www.freefoto.com/
Iew/99ll-03-4955/CCTV-came­
ra>. Acesso em: 25 jun. 2012.

1 Bacharel em Biblioreconomia pela Universidade Federal de Sanra Catarina (UFSQ. Mestre em


Ciência da Informação pelo PGCIN/UFSC. cfgarcez@ig.com.br

2 Licenciada em Letras (Porruguês) pela Unjvcrsidade Federal de Santa Catarina (UFSQ. Mestranda

em Educação no PPGE/UFSC. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível


Superior (Capes). joicecg@hormail.com

} Licenciada em Letras pela Universidade Federal de Sanra Catarina (UFSC). Mestrand a


em Educação no PPGE da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Bolsista da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). bernardcska@gmail.com

� Bacharel em ServiçoSocial pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel), RS. Mestre em Educação
pelo PPGEIUFSC. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade
federal de Sanca Camrina (PGSS/UFSC). Bolsista Reuni. marisaharrwig@hotmail.com

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Eliane F. G a rcez - Joice E. Guimarães - Ka ri n a B. de Ol i v e i ra e Silva - Marisa H a r twlg CAPITULO 6 - O Sitiamento I ndlvldual e Coletivo nos ·Mundos• da Necessidade e da Liberdade

"Parece q11e q11ase não temos escolha senão b11scar !1111 indício de
Ódio (momemo dedicado diariamente à revolta coletiva contra o inimigo
como se aprofundar cada vez mais no "interior" de nós mesmos, aparentemente
o nicho mais privado e protegido ll/1111 1111111do de experiências do Estado - Emmamtel Go/dstein), pela Sema11a do Ódio (uma semana por
parecidq com 11111 bazar lotado e bamlhento" mês era realizado o enforcamento público de inimigos capturados em
(Bauman, 2007b, p. 27). Guerra), pelo d11plipensar, pela Novilí11g11a, pela teletela (espécie de televisão
invertida ligada ininterruptamente). O processo de vigília e captura de
SINOPSE DE 1984
possíveis suspeitos era tarefa da Po!fcia do Pensmnmto.

Paralelamente a este contexto, é apresentada a história do per­

Escrita em 1948 c publicada em 1949, a obra 1984 revela a visão sonagem principal, \Vimton Smith, 39 anos, separado, encontrava-se

discópica de George Orwell (1903-1950) sobre um mundo futuro que na Cidade Princij)(J/ dct Pistc1 11° 1 (Londres/Inglaterra), antes de 1960,

cem centralidade no poder (núcleo da ficção). O título é a inversão do uma das mais populosas províncias da Oceania. Trabalhando no i'rfiniver

ano da conclusão de sua escritura c o panorama do enredo reflete sobre­ (Departamento de Registro do Ministério da Verdade), via-se obrigado a

maneira o período de sua produção. manter a filosofia IngSoc ao ser sua função tornar presente os fatos passa­
dos publicados no Times (jornal do governo). Dessa forma, todo passado
A trama desenrola-se na imaginária Oceania, superestado que se
que não coincidisse com o presente era atualizado de acordo com as ações
mantém em contínua guerra com os dois outros superestados conside­
do Partido Intemo.
rados inimigos: Eurásia c Lestásia. O poder do Estado é sustentado pela
doutrina filosófica do lngSoc (socialismo inglês), tendo como princípios o \fliwton era uma pessoa marcada por conflitos internos: não con­

d11plipemar (capacidade de o indivíduo desenvolver, e incorporar em sua cordava com a doutrina l11gSoc, não se conformava com sua "condição de

mente, pensamentos polarizados), a mutabilidade do passado, a negação prisioneiro" -em sua casa buscava refúgio em um canto onde conseguia

da realidade objetiva e o uso da Novilb1grta (idioma criado e imposto fugir da constante vigília da te/etela. Sabia ter em sua mente pensamentos

pelo Parrido com o intuito de reduzir o número de palavras existcnres, considerados criminosos (preferia Goldstei11 ao Gra11de Irmão) e iniciou

principalmente aquelas que divergissem do ideáno do IngSoc, com vistas um diário para registrá-los na esperança de que em um fururo diferente

a restringir c controlar o pensamento). alguém pudesse ler o relaco de suas angústias. Envolveu-se senrimental­
mente (aro proibido) com]IÍlia, pessoa astuta que burlava as regras do
Configurando-se como típico regime rocalicarista, a estrutura
Partido Intemo, mas sem deixar transparecer seu não contentamento com
social hierarquizada cem no copo o Grande Irmão e abaixo dele, nessa
a filosofia imposca. Além dela, Winst011 enconcra em O'Brien outra pessoa
scquência, o Partido lmerno, o Pm·tido Externo e a Pt·oles. O P
artido Tntemo,
com quem pode conversar, acreditando que este seja membro de uma
cérebro desce superestado cocalitário (Classe Alta), reúne 2% da popula­
conspiração contra o lngSoc, no encanto O'Brim é integrante do Partido
ção. O Partido Externo, as mãos do Estado (Classe Média), 13%, e a Proles,
Intemo e vigiava Win.rton durante anos.
a massa muda (Classe Baixa) reúne 85% dos oceânicos. O Grande Irmão é
uma figura criada pelo Pm'lido Interno que trata de manter os inregranres Com isto, Winsto11 é capturado c condicionado a praticar o tlrtp!i­
do Partido Extemo ocupados e vigiados 24 horas por dia. O comrole do pemamento em sessões comandadas pessoalmente por O'Brien. Mesmo
Estado é exercido pelas extensas horas de trabalho, pelos Dois Mi1mtos de torturado, Winst011 ainda sentia-se livre e, enquanto dormia, se aucode-

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Eliane F. Garcez - Joice E. Guimarães - Karina B. d e Oliveira e Silva - Marlsa Hartwlg CAPITULO 6 -O Sitiamento Individual e Coletivo nos "Mundos• da Necessidade e da Liberdade

rio público. Esta mudança de pátria repercutiu sobremaneira no esrilo de vida


nuncia ao pronunciar o nome de]rília. É levado à Sala 101, local onde
de Orwell, posro que na Colônia sua família usufruía de uma condição de elite
praticantes de crimideia (pensamento contra a filosofia lngSoc) eram sub­
advinda da cidadania europeia. Além disso, pelo fato de a mão de obra indiana
metidos a castigos personalizados. O Pat"tido lnten1o sabia qual era o pior
ser mais barata e compatÍvel com o nível econômico da família, havia fartura
temor de cada indivíduo e empregava este conhecimento para extinguir
de serviços e empregados. Na Inglaterra, a manutenção desta forma de viver
os últimos vestígios de resistência aos princípios do lngSoc. \Vimton tinha
rornou-se dispendiosa e os Blair gastavam suas posses na ânsia de sustentar a
aversão a ratos.
imagem inerente a sua classe.
O final desce clássico acarreta, inevitavelmente, a reflexão sobre
O investimento na formação dos filhos, por parre da família de Orwell,
o mundo e as relações sociais que foram, estão sendo, e serão (re)cons­
sempre ocupou espaço estratégico, como um dos principais dispositivos para a
cruídas sempre. Faz (re)pensar, sobretudo, a questão do indivíduo num
contexto de imposições, apagamento da identidade, falta de privacidade, demarcação de posições na escala social. Esta razão levou Eric, aos 9 anos, à St.
Cyprian - escola preparatória, privada, em regime de internatO. O prestígio da
controle e manipulação. Fica o convite à leitura de 1984, uma metáfora
da História da humanidade! instituição refletia-se nos custos para mantê-lo nela - que foram rornando-se
exíguos - e a condição de aluno não pagante o levou a sofrer inúmeras humi­
lhações.6 Dos professores recebeu constantes castigos físicos, aplicados com a
intenção de que ele correspondesse com sua parte naquele contexro, qual fosse,
6.1 ERIC ARTHUR BLAIR: Codinome George Orwell5 contribuir para (e)lcvar ou manter o nome da escola no copo do ranking das
insrituições nos exames e concursos.
Desde a mais tmra idade, talvez desde os cinro ou seis anos, e11

sabia q11e, q11ando crescesse, seria 11111 escrilor. E1111·e os dezessete e Dos colegas, a discriminação partia da relativa incompatibilidade exis­
OI vime e q11atro anoJ, tentei abandonar esta ideia, masfiz com a tente entre os interesses e comportamentos desses e os de Eric. A família, sem
conJciência de q11e eJtava atacartdQ a minha verdadeira nat11reza dispor de grandes bens materiais que pudesse ostentar, fez com que Eric fosse
e q11e, mais cedo Oll tnais tarde, teria que me acomodar e escrever
estigmatizado pelos pares como aquele que nunca corresponderia às expectativas
livros (Onue/1, 2003).
de sua classe, o que cerramcnrc contribuiu para a interiorização de uma espécie
George Orwell, de batismo Eric Arthur Blair, nasceu em 25 de junho de "germe do pessimismo" em relação ao futuro. Eric, dos 14 aos 2 1 anos,
de 1903, no Estado indiano de Bihar. Descendente da tradicional aristocracia estudou em Eton, escola pública inglesa muito visada pela arisrocracia da época.
britânica, sua família migrou para as colônias indianas a fim de manter o stat11s Segundo Seymour-Smith (2002b, p. 628), até hoje essa escola é conhecida pelo
herdado, por meio da prestação de serviços à Coroa inglesa na Índia. Seu avô emprego de castigos corporais c "lá, além de ser açoitado, [Eric} comportou-se
serviu no exército indiano, enquanto seu pai sempre trabalhou como funcioná- sempre como mn jovem arredio e avesso a turmas."

1 O colega Gilson Cruz.Júnior, licenciado em Educação Física, mescrando em Educação no PPGI'l/ 6 Essas humilhações, caso ocorressem hoje, caracterizariam assédio moral c um a série de
UFSC, teve participação neste capítulo quando da construção inicial do arrigo entregue na possibilidades de processos contra a escola. A época, porém, era lUUa con dição ante a qual os
conclusão da disciplina Edurnçtio, Trnbalbo e a.r Temologins d� In/om1ação e Comunicarão, do PPGE/ estudantes eram obrigados a encontrar formas individuais de opor-se ou evadir-se da escola, o
Ul'SC, semcs rre 201 1/2. que acabou ocorrendo com Eric/Gcorge.

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Eliane F. Garcez - Joice E. Guimarães - Karina B. de Oliveira e S i l va - Ma r l s a Ha rt w lg CAPITULO 6 - O Sitlamento Individual e Coletivo nos "Mundos· da Necessidade e da Liberdade

Nesse período testemunhou o fim da Primeira Guerra Mundial, assim Lhando como lavador de pracos, sentiu na pele o quanto a classe trabalhadora
como o êxito dos bolchet�iq11es na Revolução Russa. Tais episódios espalharam-se e o povo das colônias eram alvos de exploração. Isto reforçou sua crença na
pela Europa sob a forma de uma forre onda revolucionária, que afetou ideologi­ impossibilidade de existir relações sociais decentes e igualitárias naquele sistema.

camente a juventude de muitos países, entre estes a própria Inglaterra. Embora Sobre isso, Bonalume Neto ( 1984) comenca:
se mostrasse simpático à ca usa e aos princípios do socialismo, Eric não conse­
É difícil ter altos c nobres padrões de conduta quando isso pode sig­
guiu desvencilhar-se inteiramente de seu habitus de classe, rendo dificuldade de
nificar ter fome. Ele logo percebeu que na compctitividade t ípica do
se identificar com as características e comportamentos típicos do proletariado. capitalismo esr:í implícito aquilo que ele sentia em seus anos de escola:
Isso, contudo, não o impediu de levar à frente suas crenças numa sociedade mais o que importa é vencer. E na posição em que se encontrou a pressão era
maior, pois a mtio-de-obm 11iio q11alijicadrJ é tt mts
ú j(ícil de ser Jllbstittdda (p.
justa e igualitária, condição que poderia ser alcançada por meio do socialismo.
36, grifo nosso).
Em 1922, aos 19 anos, Eric ingressa na Polícia Imperial lndiana. Segundo
o próprio Orwell (2003), sua opção materializou-se numa "profissão inadequa­ Em 1932 Orwell lecionou em Londres, numa escola particular para
da", acabando por fixar-se no Distrito da Birmânia. Lá, viu de perto os precon­ garocos, e mesmo acreditando no valor da educação formal, passou a criticar

ceitOs de classe c de raça que cindiam a sociedade da Índia Colonial e que coroava duramente as instituições privadas de ensino. Argumentava que elas seriam um

ainda mais tensa a convivência encre os britânicos e a população local - uma dos principais dispositivos responsáveis por reafirmar os preconceitos de classe,

face cruel da exploração coloniaL Durante esse período continuou alimentando com os quais havia sofrido. Opunha-se à lógica mercantil na educação por acredi­
tar ser difícil desenvolver ações formativas consistentes neste tipo de conjuntura.
o impttlso de subverter a ordem instituída, porém sentia-se isolado tanto dos
ingleses quanto dos indianos. Aqueles não o apoiariam em ações contrárias a sua Das dificuldades enfrentadas em Londres, das experiências na Birmânia e
hegemonia e estes fariam o mesmo por hostilizarem um indivíduo investido das da vivência como professor escreveu, respectivamente, Na Pior em LondreJ e Pm·is
prerrogativas concedidas pelo Império. Outro agravante recaía sobre a natureza (1933), Dias na Birmâ11ia (1934) e A filha do Reverendo ( 1 936), além de várias
do seu papel institucional: vigilância e repressão.l outras obras em contextos distintos de sua vida, algumas das quais faremos
referência no texto.
Sentindo-se opressor, c oprimido pela própria opressão, Eric desenvolveu
uma espécie de aversão a toda forma de autoridade. Abandonou o posto na Em maior ou menor grau, seus romances parecem escorar-se nos episó­
Polícia da Birmânia e em 1927 retoma à Inglaterra. Na Europa, decidido a viver dios mais marcantes de sua vida. Não é raro haver nos protagonistas peculiari­
como escritor, passa por dificuldades. Da pobreza passa à mendicância, transi­ dades típicas de seu comportamento, de sua visão de mundo c dos dilemas que
tando corre os guetos e periferias de Londres e Paris. Conhece o árduo cotidiano enfrentou. Este é o caso de Gordon, o anti-herói de Mcmtenha o Sstema
i (1936),

dos moradores de rua, chegando a dormir em albergues. Foi nesse período que um poeta frustrado que tenta dar fim àquela que seria sua "obra-prima", mas

abandonou o verdadeiro nome e adorou o pseudônimo George Orwell. Traba- que sempre sucumbe a sucessivos fracassos. A obra é uma crítica às aspirações
e projetos que permeiam o imaginário da classe média, mais precisamente na
sua busca paranoica pela ascensão social, que termina pela percepção da função
7 Na Polícia Imperial Indiana Orwell representava os interesses do império inglês, ou seja, vigiar do dinheiro, ou pela falta dele. Trata-se de um retorno às experiências da vida
e reprimir seu próprio povo. Tal sicuação fazia-o sentir-se dividido - seu país (a Í ndia) sendo
colonizado c ele sendo instrumcnco dessa colonização. familiar c, como membro inconfesso, de wn segmentO não popular.

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Eliane F. Garcez - Joice E. Guimarães - Karlna 8. de Oliveira e Silva - Marisa Hartwig CAPITULO 6-O Sitiamento Individual e Coletivo nos·Mundos· da Necessidade eda Uberdade

Ainda em 1936 casou-se com Eileen O 'Shaughnessy. Dedicava-se à Em L942 torna-se ediror literário do '[he Tribrme, no qual pôde usufruir a
futura obra A Caminho de Wigan (1937) quando eclode a Guerra Civil Espa­ desejada liberdade de imprensa para, por exemplo, emitir opiniões politicamente
nhola. Decidido a alistar-se, vai à Catalunha (Espanha) e ingressa na milícia do contrárias à ideologia do jornal. Para Orwell, interessava apenas tecer suas críti­
Partido Obrero de Unificación Marxista (Poum). Mesmo despreparadas, as tropas cas ao fascismo, assim como à União Soviética, que embora momentaneamente
conseguem, por um bom tempo, manter o controle da região. Ao perceber a iso­ aliada à Inglaterra, mantinha um "comunismo" tirano e falacioso, com o qual
nomia de tratamento encre os soldados da Força Aliada, fortalece-se em Orwell não pretendia compactuar. Segundo Bonalume Neto (1984, p. 72), "um dos
a esperança numa sociedade mais justa, por meio da consolidação do socialismo. objetivos políticos de Orwell era fazer com que o Ocidente se livrasse do que
O movimento, porém, não alcançou sucesso definitivo, dissolvendo-se em 1937, chamou de 'miro soviético', a crença de que a URSS9 é um Estado socialista."
rendo ele sofrido sério ferimentO na garganta. De volta para casa e perseguido
Tais funções, entretanto, consumiam muiro do tempo que ele gostaria
pelos grupos da situação, decide fugir com sua mulher para a França.
de dedicar à escrita e, em razão disso, decidiu abandoná-las em 1943, mas antes
No fim de 1938 publica o livro poütico HomentJgem à Cataltmha, no qual disso publica os ensaios: Dmt,·o da Baleia (1940) e O Leão e o Unicómio (1941).
relata sua experiência como guerrilheiro no território hispânico. Orwell (2003,
Movido pelo desejo de escancarar as verdades ocultas do comunismo,
p. 5) justifica as razões de o teor jornalístico suplantar o liren\rio nesta obra: "O
OrweH inicia então, em 1943, aquela que se tornaria uma das fábulas mais
que aconteceu é que eu sabia o que muito poucas pessoas na Inglaterra sabiam:
populares da literatura contemporânea: A Revo!rtfão dos Bichos (1945).10 Essa
homens inocentes estavam sendo falsamente acusados. Se eu não estivesse com
narrativa rem como pano de fundo uma pequena fazenda, na qual os animais,
tanta raiva desse faro, eu não teria escrito o livro." Nesse mesmo ano Orwell
na tentativa de pôr fim à intensa exploração humana sobre eles, resolvem se
filia-se ao Partido Trabalhista Independente - ILP (lndef;endent Labo11r Pcwty),
amotinar. A rrama gira em torno da contradição ilustrada "pensar/agir" dos
desfiliando-se em 1939.
porcos. Ao romar o poder, a espécie que inicialmente havia despontado como
Acometido por tuberculose, o ExércitO Inglês declara-o fisicamente porra-voz dos grupos oprimidos, deixa-se corromper, de modo a reproduzir os
incapaz para exercer as funções de tenente. Vai ao Marrocos, onde se inspira e mesmos comportamentos que outrora condenava nos homens. O enredo con-
escreve Um Po11co de Ar, Pm· P
cwor! (1939). Nessa ficção Orwell apresenta a vida
do personagem George Bowling, que busca alento ao retornar ao lugar onde
havia passado roda sua infância. Assim como Orwell, esse personagem também 9 União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Estado consriruído oficialmcnce em 1922, composm
por Rússia, Ucrânia, Bielorússia, Transcaucásia, Belarus, Estônia, Lituânia, Letônia, Mold:ívia,
tinha uma perspectiva pouco animadora a respeito do futuro. Gcórgi:o, Armênia, Azerbaijão, Cazaquistão, Uzbcquistão, Turcomcnistão, Quirguiziío c
Tadjiquisrão. Representou o bloco comunista, combatendo o capitalismo até 1991, quando foi
Na iminência da Segunda Guerra Mundial, George Orwell não continha dissolvido. Anrcs disso o líder Mikhail Gorbachev ( 1931- ), tcnrou reformar o Estado. Em
sua vontade em combater, nas trincheiras, as forças nazifascisras. Como, porém, 1986 propõe a perntroika (reestruturação) na economia e a glaJIIOJI (abertura e transparência) na
politica. Prcsidence eleiro em 1989, assina um tratado de paz com os Estados Unidos, pondo fim
o frágil estado de saúde o impediu de realizar tal desejo, resolve, então, servir à guerra fria. Em 1991 sofre tentativa de golpe de Estado e nesse mesmo ano renuncia ao cargo
na Home Guard - espécie de milícia local voluntária c, como jornalista, assume de presidente. Disponível em: <hrcp://www.infocscola.com/historia/uniao-sovierica/> c <htrp://
www.algosobrc.eom.br/biograliilS/mikhail-gorbatchov-mikhail-gorbachcv.hrml>. Acesso em: 24
um posto na rádio BBC.8 mar. 2012.
10
Com o mesmo título, em 1999, a obra foi ro1eirizada para o cinema sob a direção do britânico
John Stephenson. Disponivel em: <hrrp://cincmaemeioambienrenaescola.blogspot.com/2009/06/
8 BritiJh BroadCaJting Cu•poration, emissora inglesa de rádio e TV fundada em 1922. revolucao-aconrece-na-granja-do solar.html>. Acesso em: 23 fev. 2012.

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Eliane F. Ga rcez - Joice E. Guimarães - Karina B. d e Oliveira e Silva - Marisa Hartwig CAPITuLO6 -O Sitiamento Individual e Coletivo nos"Mundos"da Necessidade e da liberdade

siste em uma parábola utilizada para satirizar a Revolução Russa na postura de 6.2 OS CONTEXTOS REAL E FICCIOHAL: O Mundo Dentro e Fora de 1084
Stalin, que na obra estava encarnado na personagem do Porco Napoleão. Sobre
A Revoill{ão dos Bichos Orwell (2003, p. 5) comenta: "foi o primeiro (livro) em que Se eu tivesse de resnmir o século XX, diria qm
despertou as maiores espera11çasjá concebidas
tentei, com total consciência do que estava fazendo, fundir o propósito político pela humanidade e destmin todas as ilmões e ideai s
e o propósitO artístico." (Menuhin apud Hobsbawm, 1995, p. 12).

Neste mesmo ano, 1945, inesperadamente, sua esposa morre, deixando O cenário distópico revelado no livro 1984 de George Orwell represen­
com ele um bebê recém-adotado. Apesar desse quadro , ainda mais agravado ta, por meio do olhar de seu autor, o reflexo do que ocorria no mundo antes
pela saúde debilitada, Orwell produz artigos, ensaios e matérias para jornais c, da época em que foi escritO - décadas de 30 e 40 do século 20. Tal contexto,
em 1946, publica o livro Emaios críticos. constituído por guerras, crises, movimentOs nacionalistas de independência e
divergências corre sistemas políticos e econômicos, foi gerador de miséria e desi­
A partir de 1947, mesmo com o avanço dos problemas respiratórios,
gualdades absurdas.
Orwell concentra-se naquela que se tornaria, junto com A Revolução dos Bichos,
sua obra capital: 7 984 ( 1949), 1 1 foco principal desce capítulo. Meses após esta O mundo real de Orwcll é de certa maneira transportado para o mundo
publicação, e encontrando-se hospitalizado, Orwell casa-se pela segunda vez. ficcional de 1 984. Afinal, ele viveu na Inglaterra num cenário fortemente
Porém, devido à tuberculose, morre em 2 1 de j aneiro de 1950 deixando várias influenciado e abalado por momentos decisivos da história mundial como a
obras cuja repercussão não testemunhou. Revolução Russa, a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, a crise do sistema
capitalista- representada pela quebra da Bolsa de Wa/1 Street em 192912 e o sur­
Em 1947, antes, porém, de publicar 1984, Orwcll (2003, p. 6) comenta:
gimenro dos regimes totalitários - o fascismo, de Benito Mussolini (1883-194 5)
"Escrever um livro é uma luta horrível e cansativa, e o processo se parece com na Itália c o nazismo, de AdolfHitler (1889-1945), na Alemanha.
uma batalha contra uma doença longa e dolorosa. Ninguém embarcaria em cal
A Revolução Russa é um marco imporranre, pois foi quando, pela pri­
jornada se não fosse impulsionado por algum demônio que ele não pode resistir
meira vez, tencou-se estabelecer um tipo de governo no qual os trabalhadores
nem cncender."
teriam participação. Ames ainda, no século 19, Karl Marx (1818-1883), em O
Capital (1 867) anunciava que as desigualdades sociais e o avanço das forças pro­
dutivas levariam os trabalhadores ao poder. A proposição desse novo sistema, que
fertilizou os ideários socialistas, definia-se pela propriedade coletiva dos bens de
produção, pela abolição das classes, entre outras vantagens para os trabalhadores.

12
Com a Primeira Guerra as exporcaçõcs de muitos países diminuíram. Nos Estados Unidos seus
reflexos foram devastadores. Em 1929, com n desvalorização das ações na Bolsa de Valores ele
Nova Yílrk, muitas empresas apressaram-se em vendê-las, o que provocou, em poums dias, uma
violenra desvalorização. JI,Iuiras dessas empresas quebraram e o desemprego atingiu 30% dos
11 É imporcantc ressaltar que este ano corrcspondc ao da publicação, pois a obra foi escrita em
trabalhadores daquele país. Em função das relações de comércio que os EUA mantinham com
1948. Como se vcr:l adiante, o livro foi publiado em 1949, porém o rírulo deve-se a uma opção, outros países, a crise de 1929 atingiu rodos os continentes, ficando conhecida como a Grande
carregada de prospecção, no senrido de que o autor quis alertar, invcrccndo os dois úlrimos Depressão. Disponível em: <www.suapesquisa.com/pesquisa/crisc_1929.htm>. Acesso em: 22
números do ano de término da redação, como seria o mundo em 1984. nov. 201 1.

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Eliane F. Garcez - Joice E. Guimarães - Karlna B. de Oliveira e Silva - Marisa Hartwlg CAPITULO 6 - O Sítlamento Individual e Coletivo nos•Mundos"da Necessidade e da Uberdade

Quanto à Primeira Guerra Mundial ( 1914-19 18), apesar de ter, na A expressão da Iuca ideológica desses regimes é observada na obra 1984.
Europa, Inglaterra e França como vencedoras, seus resquícios foram responsáveis Nela, a visão da realidade expressa pelo autor, de cerca forma, converge com a da
por desencadear, nessas nações, uma sequência de crises que tiveram como conse­ filósofa política Hannah Arendt ( 1906-1975). Em seu livro Origerrs do totalitarismo
quência a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Países derrotados e humilha­ Arendt (1989), que também vivenciou esses momentos, analisa os movimentos
dos, a exemplo da Alemanha, reuniram forças para recuperar o que consideravam que estimularam e sustentaram os regimes totalitários. Dada a proximidade de
haver perdido, criando as bases para o avanço do nacional-socialismo e a canse­ concepções, é possível estabelecer relações entre o que apresenta Acende e as des­
quente ascensão de Hitler ao poder, o que culminou na Segunda Grande Guerra. crições ficcionais de Orwell. Para a filósofa, os regimes tocalicariscas têm na pro­
paganda sua ferramenta mais eficaz de instauração em contextos não totalitários.
Apesar da vitória nos campos de batalha, no plano econômico e social,
Agregado à propaganda, concentram no terror o insrrumenro para a sustentação
como saldo da guerra a Inglaterra passou de credora à devedora (Pedro, 1985).
Além da crise econômica, esse país passou a vivenciar, nesse período, outros de cal regime, constiminclo-o como essência da sua forma de governo. Propaganda

problemas internos, como os movimentos de reivindkação das massas inspirados e terror, utiJjzados com finalidades distintas, materializam a ideologia cocalitarisca.

na Revolução Socialista da Rússia, e externos, como aqueles provindos de suas Ainda, de acordo com Arendt ( L989, p. 393), "o verdadeiro drama é que
Colônias que se rebelavam, objetivando a independência, como ocorreu com a ele [o terror) é aplicado contra uma população já completamente subjugada."
Índia em 1947, por exemplo. Tal constatação encontra-se igualmente presente na disropia de Orwell, em que

A respeito das múltiplas repercussões da guerra, Hobsbawm 0995) a propaganda, aliada ao terror, (: utilizada para manutenção do regime.

afirma: Outro aspecco destacado pela autora e que se aproxima daquilo que está
posto na descrição do regime totalitário exercido pelo b1gSoc, 14 é a caracterização
Temos como certO que a guerra moderna envolve rodos os cidadãos e
mobiliza a maioria; é travada com armamentos que exigem um desvio de seu líder - o Grande Irmão (Big Brother). Sobre líderes de regimes totalitários
de roda economia para a sua produção, c são usados em quantidades Arendt (1989) é enfática ao expressar que:
inimagináveis; produz indizível destruição e domina c transforma abso­
lucamcnce a vida dos países nela envolvidos (p. 5 I). A principal qualificação de um lider de massas é a sua infinita infali­
bilidade; jamais pode admitir que errou. Além disso, cal pressuposição
Também na Inglaterra os efeicos da crise do capitalismo pós-1929 foram de infalibilidade baseia-se não ramo na inteligência superior quanto na
correra interpretação de forças históricas ou naturais essencialmente
catastróficos. Esse período, denominado de a "Grande Depressão", condenou o
seguras, forças que nem a derrota nem a ruína podem invalidar porque,
velho liberalismo13 e propiciou um quadro em que três opções competiam pela a longo prazo, rendem a prevalecer. Uma vez no poder, os líderes da
hegemonia ideológica e política: a) o comunismo de inspiração mamsta; b) o massa cuidam de algo que está acima de quaisquer considerações utili­
capitalismo privado sustentado na crença da otimização do livre mercado c c) o tárias: fazer com que as suas predições se tornem verdadeiras (p. 398).

fascismo, que a depressão uansformou num movimento mundial, e, mais obje­


Na sociedade fictícia de Orwell, a base da infalibilidade do Grande Irmão
tivamente, num perigo mundial. (Hobsbawm, 1995).
estava na mutabilidade do passado:

o p
'3 Para c m lem emação da lcirura, consulce o Capímlo 4: O Pa11óptro
i de}tm!IJ Bmtham: estratlgias de
romrok 11a dolltrillaftio 11tilitária -lltqpi a? Subtítulo 4.3.2 CmlftiJ e (()llt·itrfjts: o lihtraliJmo
a 011 diJtqpi 14 Sigla de "Socialismo Inglês". Partido tocalit:írio do governo da Oceania cujo lema é: Guerra é
eo IlllmÍIIÍJmo. Paz; Liberdade é Escravidão e Ignorância é Força (Orwell, 1972).

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Eliane F. Garcez - J o i ce E. Guimarães - Karina B. de O l iveira e Silva - Marlsa Hartwig CAPITULO 6 - O Sitiamento Individual e Coletivo nos ·Mundos• da Necessidade e da Liberdade

a sociedade oceânica repousa na crença de que o Grande Irmão é onipo­ A Segunda Guerra Mundial, assim como a Primeira, foi geradora de con­
tente e o PaC[ido infalível. Mas como n a realidade nem o Grande Irmão
sequências por todo o mundo, principalmente no que diz respeito a sua divisão em
é onipotente, nem o Parrido infalível, é preciso haver uma incansável
flexibilidade, de momento a momento, na interpretação dos fatos. (... } a blocos orientados pela política econômica. No pós-guerra, dois blocos disputam
razão mais importante para o reajuste do passado é a necessidade de sal­ a hegemonia: o bloco socialista, liderado pela União das Repúblicas Socialistas
vaguardar a infalibilidade do Pauido. [...} Mudar de idéia, ou de política,
Soviéticas (URSS) e o bloco capitalista, cuja liderança era estadunidense, ambos
é confessar fraqueza. (...) Assim se reescreve continuamente a história.
Essa falsificação cotidiana do passado [...} é tão necessária à estabilidade
pleiteando formas de controle em âmbiro mundial. Em meio a essa, "guerra fria"
do regime como o trabalho de repressão c espionagem (...) (Orwell, na tentativa de instaurar uma pretensa politica de paz duradoura, países aliados1)
1972, p. 198-199). criaram a Organização das Nações Unidas (ONU) - em substituição à Liga das
Nações -, organismo responsável por coordenar as diretrizes para a manutenção da
Em 1984, a superioridade do Grande Irmão (GI) é preservada por meio
paz. Nesse período o mundo vivenciou um grande processo de descolonização, ini­
da manipulação de seus discursos, de modo a rorná-los, sempre, acuais. Com a
ciado na Primeira Guerra Mundial. Como cidadão da metrópole europeia, Orwell
mediação da propaganda, cultiva-se a imagem do líder como infalível e inques­
assiste, em 1947, à independência do seu país de origem, a Índia.
tionáve l.

Com base no que argumenta Arendt (1989) é possível estabelecer uma


analogia entre a manutenção do líder em um regime totalitarista e a própria 6.3 1084: A Obra
manutenção do regime. Em ambos os casos utiliza-se do terror e da propa­
Segundo Scymour-Smich (2002b), inicialmente estava previsto que 1984
ganda para essa manutenção. A propaganda, construída a partir de um con­
receberia o título O último homem da Europa. A relação desta primeira intenção de
teúdo inabalável e incontestável, é responsável pela superioridade do líder dos
tÍtulo é encontrada em um fragmento da obra de Orwell (1972, p. 250, grifo
regimes totalitários e do próprio regime. A impossibilidade de questionamentos
do autor), quando ele dá ao personagem O'Brien, um representante do lngSoc,
c a aceitação passiva proporcionada pelo constante estado de cerror possibilitam a
a seguinte fala: "Se és homem, Winston, és o último homem. Tua raça está
sobrevivência do regime totalitário, bem como a posição inabalável de seu líder.
extinta. Nós somos herdeiros. Entendes que estás Jozinho? Estás fora da história,
Organizando a vida e as relações segundo uma ideologia que se torna intocável e
cu és não-existente."
que pareça tão real quanto as regras da aritmética, esse regime é capaz de mani­
pular até mesmo a estabilidade destas regras, como fica demonstrado em 7984.

George Orwell vivenciou as duas Grandes Guerras da história do Oci­ 11 Durante a Segunda Guerra Mundial vários países aliaram-se formando uma força de coalizazão
para enfrentar os países que formavam o Eixo desse conflito (Alemanha, Itália e Japão). No
dente. As impressões que teve desses acontecimentOs aparecem em seu livro, primeiro escalão das forças aliada.� estavam Estados Unidos, Reino Unido c União Soviética, no
mas nele o estado de guerra não tem trégua; é contínuo. segundo China, Polônia e parte da França, no terceiro: Austrália, Nova Zelândia, Ncpal, Africa
do Sul, Canadá, Noruega, Bélgica, Luxemburgo, Países Baixos, Grécia, Iugoslávia, Panamá, Costa
Das percepções que Orwell revela, em 1984, registramos: Rica, República Dominicana, El Salvador, Haiti, Hondu ras, Nicarágua, Guatemala, Cuba, Coreia,
Checoslováquia, México, Etiópia, lraque, Bolívia, lrii, Colômbia, Libéria, Romênia, Bulgária,
O mundo de hoje é um planem nu, faminto e dilapidado, em compara­
San Marino, Albânia, Hungria, Equador, Paraguai, Peru, Uruguai, Venezuela, Turquia, Líbano,
Arábia Saudita, Argentina, Chile, Dinnmnrcn c Brasil. Com os conflitos aconrecendo em todos
ção com o que existia ances de 1914, c ainda mais se comparado com o
os continentes a cstrat<igia da alinnç;t entre os países que estavam sendo invadidos foi u ma
futuro imaginário aguardado pelos seus habitantes daquela era. ( ... } No alternativa para "cercar" a Alemanha, a Itália c o Japão. A guerra ceve fim com a vitória dos
seu conjunto, o mundo é hoje mais primitivo do que era cinquenta anos aliados. Disponível em: < http://www.infocscola.com/scgunda-guerra/aliados/>. Acesso em: 28
arrás ( 1972, p. 177). mar. 2012.

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CAPITULO 6 -O Sitiamento Individual e Coletivo nos "Mundos• da Necessidade e da liberdade
Eliane F. Garcez - Joice E. Gu ima rã es - Karina B. de Oliveira e Silva - Marlsa Hartwlg

Escrito em 1948 e publicado em 1949, 1984 revela a descrença de Orwell patrulhamento da Polícia do Pensamento, 21 a destruição de tudo que lembra o
sobre um mundo fucuro e a concentração de poder por wna minoria. Para exercê-lo essa passado e a manutenção de uma guerra interminável, ora contra a Eurásia,
minoria trata de manter o superestado, a Oceania, em contínua guerra, alternando-se ora contra a lescásia.
entre dois supcrcstados inimigos- Eurásia e Lestásia. O poder do Estado é sustentado
pela doutrina filosófica do lngSoc, rendo como princípios o dtplipemar, a mutabilidade A intenção de manter o indivíduo cativo não só na materialidade do
do passado, a negação da realidade objetiva e o uso de palavras em Novilíflgl.la corpo, mas, em especial, "mentalmente", é assim descrita por Orwell (1972, p.
29): "nada pertencia ao indivíduo, com exceção de alguns centímetros cúbicos
A estrutura social hierarquizada tem no copo o Graflde Irmiifl (GI) e abaixo
dele, nessa sequência, o Partido llllerno (PI), o PartidQ Extemo (PE) e os Proles. dentro do crânio." E era esse espaço que o lngSoc se esmerava em ocupar.22
Oceania é uma sociedade altamente estratificada, com difícil troca de nível hie­
Por não representar perigo, a Classe Proletária está liberta dessa vigília
rárquico, a não ser entre PI c PE, em que havia a possibilidade de intercâmbio
constante. Seus integrantes, por serem comparados a animais, são "livres". Em
para atender ao propósito de permitir a exclusão dos fracos do PI e neutralizar
os mais ambiciosos do PE. Entre os Proles os "perigosos" são identificados pela casa poucos contam com teletelas. Assim, diferentemente dos membros do PE, os
Polícia do Pensmmnto c simplesmente eliminados (Orwell, 1972). Proles reúnem-se com mais facilidade. Representando 85% da população, parece

O Gl é uma figura criada pelos integrantes do Pl, a cúpula do Estado, que dos Pt·oles poderia brocar uma revolução.
que trata de manter os integrantes do PE ocupados e vigiados 24 horas por Por causa dessa liberdade, mesmo ilusória, e pela espontaneidade dos
dia. O controle do Estado é exercido pelas extensas horas de trabalho impos­
Proles, Winston Smith, um membro do PE, personagem central da ficção de
tas aos integrantes do PE, por meio de dispositivos como os Dois Mirmtos
Orwell, admirava essa categoria da sociedade da Occania. Trabalhando no
de Ódio, 16 a Semana do Ódio, 17 o dttplipemar, 18 a Novilíngua, 19, a teletela, 20 o
Departamento de Registro do Ministério ela Verdade (iVfinivet") Winston ajudava
a manter a filosofia do lngSoc, alterando os fatos publicados no Times, jornal do
16
Todos os dins, duronte dois minutos, ns pessons param suas atividades para se reunirem em frente
governo, eliminando informações que pudessem retratar ou lembrar o passado
a uma enorme uftltffl onde é exi bida a imagem de Emmanuel Goldstein - o inimigo do Povo.
Proposi tadamente Goldstein aparece insultando o Grande Irmão, pedindo o final da guerra, e fazendo tornar-se "verdadeiras" as ações de interesse do partido.
a liberdade de expressão, da imprensa, de reunião, de pensamento. Sem suspeitarem que esse
inimigo é criado pelo próprio l11gSoc, o ódio extravasado comra ele ajuda a dar sustcnração ao
Parrido. Por não existir, jamais é caprurado ou eliminado (Orwell, 1972). O faro de se achar dividido entre amor e ódio, ora pelo GI, ora por
17 Uma vez por mês a festividade ocorre em praça pública, quando os i nimigos capturados em Goldstein, torna-se perigoso ranro para si - devido à constante vigüia da Polícia
guerra são enforcados, o que levava a multidão ao delíri o (Orwell, 1972).
18
do Pmsamento - quanto para o Sistema, pois o transforma em ameaça à incon­
Este termo significa a capacidade do indivíduo de armazenar, na memória, pensamentos polari7.ados,
utilizando-se devidamente deles de acordo com os mandamenros (transitórios) do l11gSoc. testável doutrina do Partido. Seus olhos, por exemplo, poderiam traí-lo se, por
19 Língua criada e imposrn gradualmente pelo l11gSoc. Tem como objetivo reduzir ao máJdmo o
número de palavras existentes no vocabulário daAnliclfllg/1(� - o inglês, principalmente aquelas
que divergs
i sem dos ideários do lugSoc, vs
i ando, dessa forma, a restringir e controlar o pen.�amemo.
li A pa rti r do nascimento as pessoas passam a ser observadas pela Polícia do Pemamenlo,
20
Placa metálica, embutida na parede, por meio da qual os indiv íduos são controlados dia e noite.
Por ela, imagens c sons são captados, como se fosse uma espécie de televisão invertida. Ligada i ndependentemente de estarem, ou não, acordadas. Tudo é observado e registCado, dns palavras
ininterruptamente, o m:iximo que se pode fazer é baixar o volume. Por esta placa, o governo às exp ressões faci ais (Orwell, 1972).
mantém o povo "informado" com notícias que mais servem para aliená-lo daqwlo que de faro 22
Esta "necessidade" de aprisionamento além corpo pode ser conferida no Capítulo 4: O Rmóptico de
ocorre. Dados sobre a guerra, os inimigos, as confissões públicas dos traidores <.lo Partido, o
Jeremy Bemham: eslralégias de ronlroft lld do1111"inaçiío miliMria- 1110pia 011 di
slopi
a? Bentham defendia
crescimento econômico, a produção de alimento, enfim... são manipulados. Todo esse processo
constitui uma dns tarcfi1s da Polícia do Pmsamento (Orwell, 1972). que o sentir-se em estado de constante vig ilância é i ndispensável para o disciplinamenro.

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Eliane F. Garcez - Joice E. G ulma rae s - Karlna B. de Oliveira e Silva - Marisa Hartwlg
CAPITULO 6 - O Sitiamento Individual e Coletivo nos 'Mundos' d a Necessidade e da liberdade

descuido, cruzassem com os de outro camarada, 23 quer do PI, quer do PE. Na assim o deseíasse dois mais dois seria igffal a cinco. Mesmo tOrturado, internamente,
manhã de 4 de abril de 1984, seus olhos encontram os de O'Brien - um inte­
Winston ainda admitia odiar o GJ e constantemente lembrava-se de Júlia. Em
grante do Partido Interno, e naquele instame Smith revela sua angústia c sonhos
sonho, contudo, ao pronunciar o nome dela, ele autO denunciou-se, demonstran­
contidos, como descreve Orwell (1972, p. 21), na "solidão amuralhada em que
do que ainda a amava, o que era proibido pelo Partido. O'Brien, percebendo que
se era obrigado a viver." Na verdade ele cometerafacecrime, expressão facial com
Winston precisava ser "curado" , decide levá- lo à Sala 101.
a qual revela-se contrário aos princípios do lngSoc. Sobre isso, Orwell (1972, p.
63) escreve: "Nosso pior inimigo (...) é o sistema nervoso. A qualquer momento A Sala 101 era lugar e representação da pior tortura a que o indivíduo
a tensão que há dentro da gente pode traduzir num sintoma facial." O'Brien podia ser submetido. Nela o praticante de crimideia recebia castigo personalizado.
desencadeou em Smith certa admiração, por ter, conforme Orwell, (1972, p. L5), Após anos de controle, o Partido sabia qual o pior temor e a pi or neurose de
"aspecto de ser pessoa com quem se podia conversar, se fosse possível fraudar cada pessoa e em pregava este conhecimento para debelar o último reduto de sua
a te!ete!a e falar-lhe a sós." Foi também naquela manhã que \Vinston vira Júlia, resistência às determinações do Partido. No caso de Winscon, seu maior medo e
também do PE, pela primeira vez. ância.
aversão eram os ratos, por remeter-lhe lembranças horripilantes da inf Na
Mesmo sem terem trocado uma úni ca palavra, o cont ato visual de Sala 101, durante a tortura, ao ver duas enormes ratazanas prestes a devorar-lhe
Winston com ]l .tia c O' Brien inquietara-o. Resolveu escrever/registrar, o que o rosto, \Vinsron não resiste ao temor e implora para que coloquem Júlia em seu

via e sentia, sobre o quanto se sentia cerceado, mas principalmente fazer com lugar e apliquem nela o castigo. Ao trair J úlia e demonstrando "livrar-se" do que
que no futuro aquela experiência do presente fosse conhecida e com isso (re) sentia por ela, Winston é considerado "curado". Agora ele amava apenas o GI e
construiria o passado das novas gerações. Sabia que se arriscava caminhando para sob controle do lngSoc conquistara a "liberdade". Nele fora eliminada qualquer
a morre, afi nal, crimideia (pensamentO criminoso), como registrou Orwcll (1972, forma de resistênci a ao Partido.
p. 31), "é a morte". Mesmo assim, Smith fazia anotações em seu diário. Com o
tempo, envolveu-se com Júlia. Acreditando que O'Brien fosse um conspirador,
o procurou, confessando suas inquietações e "crimes". Estar relacionando-se às 6.3.1 Oceania, Eurásia e Lestásia: a geopolltica em 1U84
escondidas com Júlia era um deles. Mal sabia, no encanto, que O'Bricn o vinha
controlando desde 1977, ou seía, há sete anos.
Resultado de uma série de guerras ocorridas a partir de 1920, no futuro
distópico de Orwell há apenas três superestados. A Eurásia (co rrespondendo à
Winston Smith foi capturado , torturado e submetido por condiciona­
antiga Rússia), a Oceania (antigo Estados Unidos) e a Lestásia (China c países
mento a praticar o duplipensamento, por meio de ações comandadas pessoalmente
do Sul da China, as Ilhas do Japão c uma área da Mandchúria, da Mongólia e
por O'Bricn. Em seu interior, porém, Winston ainda sentia-se livre, conforme
Tibete).
descreve Orwcll 0972, p. 79), "a liberdade é a liberdade de dizer que dois c
dois são quatro. Admitindo-se isto, tudo o mais decorre." Por ter registrado esta Após 1940, o IugSoc e duas outras correntes filosóficas emerg iram como
frase em seu diário Winston foi torturado até ser convencido de que, se o Partido teorias políticas completas, portanto consideradas totais. O lngSoc (na Oceani a),

o Neobolchevismo (na Eurásia) e a Ado ração da Morte ou Obliteração do Ego

(na Lestásia). Essas eram as únicas doutrinas existentes no mundo, cuío propósito
23 Designação urilizadu cncrc os membros do Parcido Incemo e do Parrido Exrcrno. Caracterizando
mais um artificio do regime socialisra/rocalic:írio que buscava retirar das pessoas qualquer indfcio consistia em perpetuar, conscientemente, a de.rliberdade e a desigualdade (Orwcll,
de singularidndc/individualidnde. 1972).

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Eliane F. Garcez - Joice E. Guimarães - Karlna B. de Oliveira e Silva - Marlsa Hartwig CAPITULO 6 - O Sitiamento Individual e Coletivo nos"Mundos•da Necessidade e da Liberdade

O mapa24 a seguir (Figura 1), cenário criado por Orwell (1972, p. 174- Na Oceania, local onde a trama ficcional de Orwell acontece, o supe­
176), ilustra a localização, a dimensão das áreas desses três superestados e o restado estruturava-se em quatro Ministérios: da Verdade (Miniver), do Amor
quadrilátero - área objeto de constante disputa entre os três. (Miniamo), da Fartura (Minifarto) e da Paz (iHinipaz). Seus nomes são exercícios

de Novilíng11a e suas funções exercícios de Dttplipensar, haja vista o hiato existente


Figura 1 : A divisão político-geográfica do mundo em 1984, segundo OrweU
naquilo que explicitavam serem suas funções e a que na verdade se dedica­
vam, respectivamente: negar o passado (mentir); incentivar o desamor; racionar
comida e tudo o mais que possa causar prazer e manter a guerra. É com essa
estrutura organizacional que indivíduo e coletivo são sitiados.

6.3.2 Sitiamento e Cerceamento Individual e Coletivo

-�-:�·�)
·�
No século 20, período de guerras e de neocolonizações, a sociedade tec­
nocrata passa a controlar o indivíduo buscando uma padronização de compor­
tamento. Leis, exércitos, polícia, burocracia, mercado, propaganda, TV, regras e
Fonte: < http://www.arcperceptions.com/20 l l/ 10/escritores-005-george-orwell-1984. padrões sociais, instrumentos e instituições - passam a fazer com que o homem
hem I>. Acesso em: 28 nov. 2011. se sinta acuado em casa e em seu próprio território. A alienação é, portanto, a
temática que Orwell transporta para o universo e 1984. No final da década de
Esses superestados vivem em guerra contínua, com objetivos bem defi­
40 do século 20, quando a obra é publicada, era difícil crer, por exemplo, que a
nidos: a guerra não é de cunho político, mas econômico. Ela é travada pela tecnologia da tefetela, utilizada na Oceania para controlar a população, fosse pos­
conquista de mão de obra barata, que falta na sociedade da Oceania, e é farta sível de ser produzida no futuro e de existir no mundo real. Hoje, passados mais
na área disputada - demarcada no quadrilátero. Além disso, há alternância de de 50 anos, vive-se cercado por câmeras mantidas tanto pelo governo (segurança
vitória entre os três superestados - resultado de um acordo - o que lhes garantia e controle) quanto por instituições privadas (comércio). Assim sendo, a ideia do
equilíbrio permanente e poder interno. O local da disputa pela mão de obra moniroramento25 - e porque não dizer de controle da sociedade, foi estabelecida
escrava (5% da população mundial) situava-se entre quatro áreas que faziam com base num discurso de segurança do indivíduo e do coletivo.
fronteira com esses superestados, formando um quadrilátero a partir de Tanger,
Brazzaville, Darwin e Hong Kong (Orwell, 1972).
l5 É interessante observar que hoje, nas enquetes ou nas outras formas de man ifestação de opinião,
as pessoas concordam que é preferível abrir mão da privacidade em favor da segurança. Os
atentados são tantos que algo que, por muito tempo, foi considerado um direiro sagrado do
"" 1984, de George Orwell, Admirávelmu11do 110vo, de Aldous Huxley, e Nova Atlâ111idrJ, de Francis indivíduo, a privacidade, passa a ser sacrificada ou as pessoas abrem mão de "livre·· vontade,
Bacon, são obras que projetam uma sociedade futura que se propõe a ser diferente da sociedade desde que possam - na verdade ou ilusoriamente - sentir-se mais seguras, protegidas. . . quando
na qual viveram os autores, no encanto elementos da sociedade real do período se mantêm na na verdade são controladas. Para aprofundar esta questão, ver a obra Inevitável mundo IIWO: ofim
erama. da privrJcidade, de Alexandre Freire (2006).

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Eliane F. Garce z - Joice E. Gu i marã e s - Karina B. de Oli veira e Sil va - Marlsa Hartwlg CAPITULO 6- O Sitlamento Individual e Coletivo nos "Mundos• da Necessidade e da Liberdade

Alvin TofAer,26 em entrevista a Zacabi (2003, p. 14), dizia que ''em wn por outros meios controlados pelo Partido para garantir a obediência de todos
futuro próximo homens e mulheres precisarão se preocupar não apenas com o e a estabilidade do Estado. O falescrevre, o dt�ptipemal·, a novilíngua, a polícia do
governo observando todos os passos, mas também com (...) as grandes corpora­ pemamento,29 os dois mÍ11t1tos de ódio, a semana do ódio, são "armas" para submeter
ções." Para esse autor as empresas capturarão imagens e conversas da população corpos e mentes.
para fins de marketing e comercializarão tais informações entre elas.
Em geral as sociedades são constituídas por relações, ao mesmo tempo
Toffler, ainda segundo Zacabi (2003, p. 14), afirmava que o cenário que objetivas c subjetivas, construíd as a partir da interação faci litada pela comuni­
se descortina propicia a visualização de que "as pessoas tenham cad� vez menos cação e linguagem, que os sujeitos estabelecem num processo dialético em que
liberdade de ir e vir sem ser vigiadas." A este respeito, Bauman (2007b) discorre exteriorizam, objetivam e interiorizam conhecimento (Berger; Luckmann, 2003).
sobre o indivíduo siriado a partir da relação paradoxal quanto à afirmação da Quando nesse processo ocorre o cerceamento das mentes há, consequencemente,
individualidade num contexto social. Afirma ele: o aprisionamento de suas reais potencialidades . Isso é flagrantemente observado
em obras que tratam sobre comportamento individual e social, como é o caso
Parece que quase não temos escolha senão buscar um indício de como se
de O Panóptico de Jeremy Bentham, Jldmirável Mundo Novo de Aldous Huxley e
aprofundar cada vez mais no 'interi or ' de nós mesmos, aparentemente
o nicho mais priv ado e protegido num mundo de experiências parecido
1984 de George Orwell. Nelas a sociedade do futuro imaginado por esses autores
com um bazar locado e barulhento (p. 27). resume-se no excessivo controle individual e coletivo.

Segundo Bauman (2001), as distopias de Huxlcy c Orwell aproximam-se


Na Oceani a o objetivo do uso da teletela e de outras ferramentas era o
pelo
da fragmentação, do controle e da padronização do pensamento. Não havia
espaço para a manifestação da subjetividade, as condições eram dadas para que pressentimento de um mundo estritamente controlado; da liberdade
as pessoas não precisassem se preocupar com o que comer, onde morar, sequer individual não apenas reduzida a nada ou quase nada, mas agudamen­
te rejeitada por pessoas treinadas a obedecer a ordens e segui r rotinas
escolher o que vestirY
estabelecidas; de uma pequena elite que maneja todos os cordões - de
cal modo que o resto da humanidade poderia passar roda a sua vida
Para atingir o propósito do sitiamento e do cerceamenro em rodas as
movendo-se como marionetes; de um mundo dividido entre administra­
dimensões, fazia-se uso de vários instrumentos a serviço do poder do lngSoc. A dores c administrados, projetistas e seguidores de projetos - os primeiros
educação, o trabalho, a tecnologia, a ciência, a propaganda, dentre outros meios, guardando os projetos grudados ao peito e os outros nem querendo nem
sendo capazes de espiar os desenhos para caprar seu sentido; de um
eram colocados em prática diuturnamente, via teletela (Arauto da Matraca)28 ou
mundo que fazia de qua lquer alternativa algo inimaginável (p. 64-65).

A mente-consciência "nasce" pela ação do cérebro sobre o meio externo


26 Especialista em estudos do futuro, antcvendo e projetando realidades a médio e longo prazos.
Autor de beJI-Jellm, dentre os quais destacam-se O choque dojr1111ro ( 1970) e A Jemim onda ( 1980). e pela ação desse meio sobre o meio incerno do indivíduo (o cérebro), ou seja,
27 Neste aspecto entende-se por que na Oceania se utilizava uniformes padronizados. pela contínua e simultânea interação entre o meio privado (indivíduo) e o meio
28 Uma maneira bastante cficn para fazer as notícias chegarem ao povo e até mesmo de manipulá­
lo, conforme sugere-nos Machado de Assis ( 1996) no seu conto O Alimisla. Atualmente h:í. vários
"arautos da matraca"; os políticos, por exemplo, servem-se da ideia machadiana ao utilizarem
os meios de comunicação de massa para "f.ucr a cabeça" ou confundir as pessoas/povo. A Rede 29 A vigília constante é tema de Vigiar e P11nir, de Michel Foucault. No capítulo 4: O Panóptico
Globo e seu gigantesco sistema de comunicação é a mais poderosa "matraca" que ternos no Brasil. dejmmy Bmtham: eJiraJlgiaJ de controle na dolltrina(ÍÍQ 111ilitária - 111opia 011 diJJopia? a temática
Por ela, verdades podem rornar-se mentiras e vice e versa. Por quê? Corno bem f.'llou Machado é abordada de modo mais aprofundado dada a estreita relação das obras foucaultiana c
de Assis (1996, p. 27), devido "à absoluta confiança no sistema." benthamiana.

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Eliane F. Garcez - Joice E. Guimarães - K ari na B. de ei ra
O liv e Silva - Marlsa Hartwlg CAPfTULO 6 - O Sitiamento Individual e Coletivo nos •Mundos· da Necessidade e da Liberdade

público (coletivo). As mudanças no meio social interferem na construção da conhecimento, mas sim uma educação como forma de impor, sem encraves, uma
mente-consciência, gerando nela problemas de adaptação durante o processo verdade única que atenda às demandas e aos preceitos do Partido. Uma fábrica
de construção desse indivíduo e do social. Os problemas decorridos de adapta­ de camamdas cordatos, para usar um termo orwelliano.
ção ou de ajustamento da mente ao meio impõem - à mente-consciência - um Dessa forma, para a sobrevivência do lngSoc, a educação, no seu signifi­
necessário ajustamento (Del Nero, 1997). É, pois, um processo de ajustamentO cado mais amplo, represemava um perigo a ser evitado. Os P-roles, por exemplo,
da mente-consciência o que ocorre no cenário de 1984. somente poderiam ser considerados perigosos se tivessem acesso à educação, pois
dotados da habilidade de leitura e de articulação do raciocínio poderiam colocar
Dadas as possibilidades de criação e liberdade, que filogenericamentc
em xeque os 2% da minoria privilegiada que derinha o poder ao cogitar a possi­
são facultadas aos indivíduos, imagina-se o tamanho do esforço exercido pelos
bilidade de, a eles, contrapor-se. Segundo Orwell, (1972, p. 178), "de maneira
sujeicos inseridos nos contextos dos crês superestados, construídos por Orwell,
permanente, uma sociedade hierarquizada só é possível na base da pobreza e da
para se ajustarem (sem reação) ao que lhes é ideologicamente incutido. Afinal,
ignorância", o que representa, aliás, um aforismo.
como expandir-se nesses "ambientes-prisão"? Além disso, como bem adverte
Del Nero (1997), a mente aprisionada pode adoecer. E como ela somente pode Neste ambiente, a educação volca-se exclusivamente para disciplinar o

situar-se em um corpo, é o indivíduo que adoece. Fazendo parte de um coletivo, pensamento, preparando o indivíduo para aceitar, sem questionamentos, um
trabalho alienante. Todo conhecimentO ensinado baseava-se em obediência e
quando as condições para se desenvolver harmoniosamente são sonegadas, o
servidão à Filosofia l11gSoc. O constante presentismo das informações e a Novi­
adoecimenco é geral. A questão que fica é: 1984 é uma sociedade doente?
lí11g11a, manipulados pelo Partido em favor da Filosofia btgSoc, eram estratégias
adotadas no coletivo visando à padronização e ao estreitamentO do pensamento.
6.4 O CONTROLE POR MEIO DA EDUCAÇÃO, DA LINGUAGEM E DO TRABALHO Veiculadas incansavelmente pelas teletelas, pelo jornal Times e pelos poucos livros
disponíveis,30 tais estratégias, de acordo com Orwell (2007a, p. 200), anulariam
(...} 11m trabalhoso treino mental, a q11e se Jflbmeteu na infância,
qualquer possibilidade de "formação de um novo grupo de geme capaz", isto é,
e q11e gira em tomo daspalavras novilingiiísticas crimetleter, negro­
com consciência de sua força e auconomia. Por cerco, a área educacional estava
branco e d11plipensar, faz com q11e ele {o membrodo Partido} não
envolvida nestas questões, uma vez que, ainda conforme Orwell (2007a, p.
tettha nem disposição 11em capacidade para pmsar aj11ndo em coisa
alg11ma (Orwell, 2007a, p. 203, grifo do aucor). 200), "é um problema de moldar concinuamenre}1 a consciência tanto do grupo
dirigente como do grupo executivo."
Em 1984, Orwell não descreve um panorama educacional propriamente
dito- pelo menos não no sentido de disciplinas e relações pedagógicas. Isso, no
30 É inceressantc observar que este aspecto remete a uma aproximação entre as obras 1984 e
encanto, não exclui a importância da análise da obra a partir desta perspectiva, /ldmit-ável A!tmdo N�tvo, uma vez que em ambas a educ;lçào cumpre a função de "transferir
uma vez que nela são percebidos vários elementos do contexto educacional. No conhecimento específico'·, o que é efetivado com base na repetição exaustiva, veiculada pela
tecnologia e que visa à anulação da subjetividade. Desce modo, pode-se afirmar que a educação
enredo da clássica distopia, a educação desempenha o papel fundamental de em 7 984 apresenra contornos hipnopMicos. Este aspecto é abordado no Capítulo 5: Ed11cação,
inculcar a aceitação acrítica do controle estabelecido pelo Partido b1terno (PI) em lrabalho e 1emologia 110 Admirável mmulo 110vo: ti/Ire a realidade e ajicçrio.

favor da manutenção da Filosofia btgSoc. Desse modo, não há espaço na Oceania �� Em Admirável Mmulo Novo, ele Aldous Huxley, abordad a no Capítulo 5, quando um indivíduo
ou um grupo de indivíduos não agiam da forma esperada eram novamente submetidos a sessões
para uma educação pautada em princípios transformadores ou de construção de de recondicionamenco.

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Eliane F. Garcez - Joice E. Guima rães - Karina B. de Oliveira e Silva - Marisa Hartwig CAPITULO 6 - O Sitiamento Individual e Coletivo nos "Mundos" da Necessidade e d a liberdade

Vê-se, a partir da epígrafe apresentada para iniciar este subtítulo, que Na verdade, naquele contexro, poucos conseguiam pensar e escrever de maneira
Orwell (2007a, p. 203), ao utilizar a expressão "treino mental'', parece recorrer autônoma, pois eram frutos de anos de "adestramento" mental, o que minimi­
aos princípios do comportamentalismo enquanto teoria de aprendizagem, uma zava ferozmente vestÍgios de expressão subjetiva. Assim, educação e livros não
vez que Skinner (2003)32 relaciona comportamento e ambiente. Em resumo, se o eram destinados aos Proles. Por lá, segundo Orwell, (2007a, p. 44), circulavam
Partido não consegue anular qualquer indício de organização por parte dos Proles, apenas materiais inferiores, com notícias de pouca ou nenhuma importância para
é porque seu "sistema educativo" não foi competente. Esta constatação decorre aquele tipo de sociedade, tais como: "astrologia, sensacionais noveletas de cinco
do fato de que para os P1-o1es era desnecessário qualquer tipo de orientação edu­ centavos, filmes transbordando de sexo, e cançonetas sentimentais."
cacional, dado que eram considerados desprovidos de intelecto, característica
Ainda que a sociedade, caracterizada na obra, não estivesse alicerçada
que os mantinha na condição de eterna subserviência.
em bases educacionais comuns à história da educação, contava-se com uma
Não havia lazer na Oceania. O estresse era liberado durante os Dois "formação" via instituição pública, sendo possível inferir "níveis escolares", por
minutos de ódio e na Semana do Ódio, modos de "lazer" direcionado, controlado.33 assim dizer, correspondentes à faixa etária das crianças. Aos 7 anos a criança
A escola, nesse modelo de sociedade, distancia-se ou nega a forma como, em tese, era matriculada no grupo de Espiões;35 aos 9 podia chegar a chefe da tropa; aos
deveria ser: um local onde se educa para o pensar, para a produção e veiculação l l , era iniciada em denúncias à Polícict do Penscnnento; aos 17 ingressava na Liga
do conhecimento e para a liberdade. Na sociedade descrita por Orwell, a educa­ juvenil Anti-Sexo.36 Aos 16 anos, no entanto, podia-se concorrer, por exame de
ção acontecia em rodo o social e voltava-se ao cerceamento e sitiamento indivi­ admissão, a qualquer esfera do Partido, uma vez que este não se constituía por
dual e coletivo. As pessoas não eram vistas como sujeitos, mas como autômatos hereditariedade (Orwell, 2007 a).
sobre os quais se exercia o poder. Em nenhum momento, por exemplo, Orwell, A escrita não era uma competência incentivada. Em 1984, Orwell
faz menção a professores. Havia, sim, adestradores e vigilantes do pensamento, (2007a) compara a letra de Winston à de uma criança, modelo em que não há
a serviço da Polícia do Pmsamento. preocupação com caligrafia, assim como regras gramaticais de pausa, aproxi­
O Estado - Partido lnterno34 - produzia, controlava c divulgava as infor­ mando-se à produção escrita da fala coloquial. Isso se explica pelo faro de que,
mações que julgava necessárias à população. Seus principais meios de difusão ainda que alfabetizado, o personagem não se utilizava rotineiramente da escrita
eram a teletela, o jornal Times e os livros. Estes últimos nunca eram de autoria manual, a não ser para recados curtos, usando o falaescreve para textOs mais
individual, mas coletiva, e na primeira página traziam a imagem impactante do longos. Esta prática restrita da escrita parece justificar-se por vários motivos: a)
Grande b·mão. Sua reescrita jamais seria admitida pelos leitores, dada a necessida­
de e velocidade do apagamento do passado diante das conquistas do Partido. E
ll Nessa organização as crianças eram "educadas" para que nelas não se produzisse qualquer
mais: qualquer pedaço de papel ia para o BttraoYJ da Memória, onde era incinerado. tendência a se rebelar concra o Partido e tudo quamo tinha ligação com ele. Pelo contrário,
desde cedo era inculcado em suas mentes uma devoção e vigília ao Partido que ignorava laços
familiares. Nas palavras de Orwell (2009b, p. 36): "Chegava a ser natural que as pessoas de mais
de trinta anos temessem os próprios filhos. E com razão, pois era raro que uma semana se passasse
32 A proposta de Skinner é discurida no Capítulo 5.
sem que o Times trouxesse um parágrafo descrevendo como um pequeno bisbilhoteiro - "herói
H Na obra de Jeremy Bentham o descanso não está associado ao lazer, mas à variabilidade do infancil" era a expressão usada com mais frequência - ouvira às escondidas os pais fazerem algum
trabalho. Ver Capículo 4. comentário comprometedor e os denunciaa r à Polícia das Jdeias."
�·I Os integrantes do Partido Interno da sociedade distópica de Orwell assemelha-se aos l6 Organização, dentro do Partido, responsável por reprimir e f.'lzer campanhas contra o aro sexual
Administradores .Mundiais do Admirável Mu11do Novo, os quais também selecionavam o que os como fonte de prazer. Tinham como identificação uma faixa vermelha amarrada .na cintura
"adminíveis", por exemplo, poderiam ler. (Orwell, 2009b).

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Eliane F. Ga rcez - Joice E. Guimarães - Karina B. de Oliveira e Silva - Marlsa Hartwlg CAPITULO 6-O Sitiamento Individual e Coletivo nos "Mundos• da Necessidade e da Liberdade

a escrita representaria lentidão ao constante processo de atualização de notícias; 16 anos para ingresso no Partido, com uma base comum de formação (Espiões e
b) ao escrever ativa-se o pensamento e este era o foco do controle exercido pelo Liga-}11venil). A partir disso, os habilitados iniciariam uma formação científica
IngSoc; c) deixar algo escritO significava disponibilizar provas contra si mesmo; d) específica e aprofundada. A segunda advém do fato de que, rendo o PI acesso
a escrita é essencialmente um processo individual, ao pa..c;so que o lngSoc defendia a quase cudo o que as pessoas pensam ou manifestam, conseguiria identificar
a coletividade, e por fim, e) a falca de uma identidade linguística em função da aquelas crianças que se destacavam, dando início à formação do futuro cientista.
coexistência da Amiclfng11a e da Novilíng11a.
Outra aproximação com o campo educacional dá-se a partir da iden­
Cabe ressaltar que, se no Partido a produção. escrita era escassa, encre tificação dos "níveis escolares" por meio de uniformesY Toda identificação de
os Proles ela inexistia, pois o proletariado era considerado um estrato inferior pertencimento a determinado estrato social na Oceania, no entanto - e, por­
formado por uma maioria ignorante, que conforme Orwell (2007a, p. 72), cantO, não só os "escolares" -, à exceção do proletariado, baseava-se no uso de
"deviam ficar em sujeição, como animais." uniformes diferenciados. Desta forma, Espiões vestiam calças curtas azuis, camisa

Qu anto às áreas do conhecimentO na sociedade da Oceania, Educação cinza e lenço vermelho; integrantes da Liga}11venil Anti-Sexo usavam uma faixa
Física, Biologia, Psicologia, Física e Química ganhavam destaque . A primeira vermelha amarrada à cintura; macacões precos identificavam os membros do
fazia parre do cotidiano matinal dos membros do Partido Extemo, que eram obri­ Partido Interno c os azuis o Partido Extemo (Orwell, 2007a).
gados a fazer uma série de exercícios corporais, ministrada por meio da tcletela
Observa-se, por fim, que a educação na Oceania está totalmente imbri­
disponível em cada aposento. A atividade física era concebida como tun meio de
cada às questões sociopolíticas, responsável que era por disciplinar e/ou aprisio­
ocupar a mente desde as primeiras horas da manhã e de preparar o corpo para
nar o pensamento desde a infância, de acordo com a Filosofia lngSoc. Assim, a
o trabalho c para a guerra.
educação, neste contexto orwell iano, passa a ser sinônimo de controle, rendo a
As quatro últimas disciplinas in reressavam à Filosofia lngSoc precipua­ função social de cerceamento c siciamento individual e coletivo. Como j á fizemos
mente na medida em que se relacionavam ao conhecimento científico no que se referência, em 1984 as pessoas não eram viscas como sujeitos. Toda "formação"
refere à detecção de delitos contra o Parrido e ao apagamento de personalidades que lhes era dada voltava-se a prepará-las para a subserviência, fazendo-as abrir
impróprias. Além disso, cerco grau de compreensão da psique humana também mão de uma possível auronomia. Referindo-se ao campo da formação e parti­
era requerido. Assim, nessa sociedade-prisão o cientista era i
cularmente da educação, Jméncz Jiméncz (20 L 1), ao escrever sobre Wa/den 11:
11111a sociedade do jllturo, obra de Burrhus Fredcric Skin ner ( 1 977), aponta para
uma mistura de psicólogo e inquiJidor, estudando com cxcraordinária
minúcia o significado das expressões faciais , dos gesros c tons de voz, algumas características desta discopia que poderiam ser facilmente entendidas
c verificando os efeitos reveladorcs das drogas-da-verdade, terapia de como p eculiares em 1984:
choque, hipnose e tortura ffsica; ou é qttímico,fíiico 011 biólogo só interessado
pelos ramos da sua profissão ligados à supressão da vida (Orwcll, 1972, Su [de Skinner) única novela, Waldcn Dos (1948), ha sido cacalogada por
p. 182, g rifo nosso). muchos de sus críticos como la "ucopía de la virrud condicionada", en la
que se relegtt ttf hombre al 11ive/ de 1111 JCI' bmto e irreflexivo. Occas críticas con-
Nesse contexto, como se configurava, então, a formação científica? Não
são encontradas respostas diretas na obra, mas é possível fazer-se inferências a
l7 Jererny
Benrham também aborda a questão dos uniformes na obra O Panóptico. Ele defende de
partir de indícios fornecidos nas entreli nhas do texto . Assim, cogitam-se duas
forma generalizada seu uso, para os alunos, os presidiários, os soldados, os trabalhadores, pois
hipóteses ou possibilidades. Uma delas seria decorrência do exame prestado aos inspiram uma ideia de ordem, promovem a fácil identificação dos sujeitos e sugerem limpeza.

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Eliane F. Garcez - Joice E. Guimarães - Karina B. de Oliveira e Silva - Marlsa Hartwlg CAPITULO 6 - O Sitlamento Individual e Coletivo nos"Mundos•da Necessidade e da Liberdade

sideran que eu Sfl novela se niega11 los atributos centt·ales de/ hombre - libenad, a linguagem escrita, uma das estratégias utilizadas pelo I11gSoc para o controle do
a11tonomía, resprmsabilid�td, mcionalidad -, co11 /.o qm vacía a la vida moral de
pensamento era a inserção gradual de uma nova língua, a Novilíngua ou Nova­
todo significado. Así, según cl pumo de vista, puede decirse que, en el mejor
de los casos, los habitmues de Walden Dos son comprendidos como nir ios fala. Por meio dela o IngSoc objetivava reduzir ao máximo o número de palavras
inocentes; en el peor, seles ve como zombiJ [tal como termina Winsron]. En existentes em inglês (Antidí11g11a), sobretudo aquelas que remetessem a conceitos
esc sentido la mayoría de los críticos han seiialado e! proyecro skinncriano

como un proceso de desh11m�mizaciótl en e/ que los hombres olvitlan la dignidady que divergissem da dourrina do Partido.
la posibilidadde ser tratarl.os comopersonas. En contra, rales críricos conside­
Segundo Orwell,
rao que freme a un numdo de merpos bim collfrolados q11e só/o emiten mp11esfFIJ
jÍ!icas t1 refmrzos secretos, quizás el mayor conrrascc o c1 mayor extraiia­
miemo sea la sorprcndcnre fuerza de resistencia q11e mantienen los valores a Nova/ttla foi concebida não para ampliar, e sim para restl'ingir os limites
que se q11iet·e11 destmir. Después de todo, en fales condiciones malquier hombre
,
do pensamento, c essa redução a um mínimo do estoque de palavras
edllctldo eu /(1 viejFI tradición h11manista preferirá morir allles q11e ser coml11cido disponíveis era uma maneira indireta de atingir esse propósitO (Orwell,
como gan(l(/{) (Jiménez Jiménez, 20ll, p. 5, grifo nosso). 2009b, p. 349, grifo do aucor).

Parece evidente que a diretriz de uma sociedade fortemente impreg­ Tal processo desenvolvia-se por meio da construção, cada vez mais com­
nada pelo cerceamento e controle, seja ela gerida por regimes totalitários ou plexa, de dicionários em Novilbtg11a. Sua inserção completa na Oceania c a exclu­
não, é a de incutir nas pessoas aquilo que seus líderes querem que elas façam,
são da Anticlfngua escavam previstas para o ano de 2050 do século 2 1 .
interiorizando nelas não desejo, não ação, ou seja, nada para além do "previsto"
ou do permitido pelo regime. Neste sentido, é pertinente mencionar Berger e As palavras em Novilbzgua dividiam-se e m três categorias: vocabulário A
Luckmann (2003, p. 224), para quem "todos os homens, uma vez socializa­ (palavras utilizadas no dia a dia); vocabNiário B (palavras criadas com propósicos
dos, são potenciais traidores de si mesmos", porque o interesse maior volca-se à políticos) e vocab11lário C (termos técnicos e científicos). As estratégias utilizadas
sobrevivência do social. para a construção das palavras em Novilínglfa consistiam na inserção de prefi­
xos39 ou sufixos em palavras já existentes, tornando desnecessária a utilização
de adjetivos, verbos, advérbios e alguns substantivos. Com o intuito de legi­
6.4.1 1/ovilíngua: redução do falar e do pensar pela constrição vocabular
timar conceitos da dourrina do Partido, eram criadas palavras que remetiam
ti caneta pode ser mais poderosa do que a espada no e.rtabelecimemo diretamente aos interesses do lngSoc. Entre elas destaca-se o duplipemamento,
de comunidades políticas, especialmente se a caneta for usada por
palavra que significava o complexo método de autoconcrolc do pensamento.
lllll !laciona!istafanático (Sceinberg, 1996, p. 242).
Tal exercício era possível por meio da capacidade de o indivíduo armazenar
Na Oceania era remota a possibilidade de haver livro publicado antes pensamentOs polarizados, utilizando-os corretamente, de acordo com a situ­
de 1960. Raras vezes e pouquíssimas pessoas escreviam cartas. A destruição de
ação. Nesse sentido:
livros38 também alcançava os bairros dos Proles. Afora o controle exercido sobre

l9 Chama a atenção o exemplo dado por Orwcll (2007a) sobre o prefixo "plus", o qual pode rer
ll< Como já exposto em nota no Capítulo 5: l!.duraçiio, trabalho e temologia no AdmirrÍt'el ll1tmdo Novo: seu sencido intensificado pela forma "dupliplus". Diz Orwell (2007a, p. 290, grifo do autor)
entt·e a realidade e a ficcíio, a prática de destruição de livros como formu <.!c apagar registros do que "piiiJ/I'iO e dupliplm/rio significam 'muito frio' e 'frio na forma superlativa', respectivamente".
passa<.lo c eliminar a possibilidade de o indiví<.luo cultivar opiniões próprias é observada também Ocorrência análoga é percebida na língua espanhola com os prefixos "re" e "requere": "rebueno"
em Pahrenhtit 451, livro <.!e Ray Bradbury publica<.lo, em 19)3. significa "muitO bom", enquanto "rcquetcbucno" se traduz como "ótimo, boníssimo".

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Eliane F. Garcez - Joice E. Guimarães - Ka ri na B. de O l i ve i ra e Silva - M a risa H a rt wl g CAPITULO 6 - O Sitiamento Individual e Coletivo nos "Mundos"da Necessidade e da Liberdade

Mesmo ao usar a pal avra d"plipmsamemo é necessário pratica r o d"pli­ A imposição de uma língua, como meio de dominação e controle, con­
pm.rammro. Porque ao utilizar a pal avra admitimos que estamos mani­
figura-se como uma prática que remonta aos primórdios da História. Nos con­
pulando a realidade ; com um novo aro d e d11plipensame111o, apagamos
textos de guerra, os exércitOs vitoriosos invadiam os territórios conquistados
esse conhecimento; c assim por diame indefinidamence, com a mencira
sempre um passo adianre da verdade (OrwelJ, 2009b, p. 252, grifo do impondo sua língua como meio de dominação, reforçando assim o poder de uma
auror). nação sobre outra. A forte relação existente entre língua e nacionalidade pode
ser vista inclusive na História do Brasil. Duas políticas linguísticas instituídas
Um exercício ele d11plipensamento é o que faziam os funcionários do Minis­
aqui definiram os rumos do país, neste aspecto. A primeira, ocorrida em 1759,
tério da Verdade (J'rfiniver), como Winscon, por exemplo, que modificava ou
a partir do decreto de Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal
suprimia registros públicos. Mesmo tendo consciência do que havia feito, e essa (1699-1782), impôs o uso exclusivo da Língua Portuguesa falada em Portugal,
consciência era necessária para o corretO d11plipensar, ele devia, automaticamente, proibindo assim a utilização da língua que era empregada como meio de comuni­
acreditar na nova versão que havia criado como uma verdade absoluta. cação entre porcugueses e indígenas.�1 Como segunda experiência brasileira nesse

Em 1984 percebe-se que o conrrole do pensamento inicia-se pela lingua­ âmbico, na Era Vargas,42 período da História brasileira que mais se aproxima dos

gem que é exteriorizada. Esta, podendo ser cerceada pela vigilância, constitui-se regimes totalitários, paralelamente à "revolução" de 1964, houve a proibição do

como ferramenta para o controle daquilo que é ou deveria ser mais íntimo e uso de línguas ditas "estrangeiras" por comunidades de imigrantes, visando a

autônomo no indivíduo: seu pensamento. Apesar de inserida em uma ficção, expurgar do território nacional aquelas línguas que ameaçariam. a unidade do
Estado.
supõe-se que cal política linguística seria passível de obter sucesso em sociedades
reais, sobretudo se levássemos em conta a intrínseca relação entre pensamento Estes exemplos demonstram a utilização da língua como instrumento de
e linguagem,40 relação esta que não é inata. submissão de um povo à cultura de oucro, portanto instrumento de dominação
e controle. No caso da Novilíng11a, a exclusão elo inglês antigo, ou A11ticlingua,
Pela imposição d a Novilí11gua, o IngSoc exclui as referências que não con­
significava, sobretudo, o desaparecimento de uma cultura e a impossibilidade
dizem com os seus interesses, ao mesmo tempo em que injeta, pela criação de
do renascimento de uma alternativa que divergisse da doutrina imposta pelo
palavras, ideologias que sustentam o seu regime totalitário.

Para YagueUo (apud Bakhtin, 2006, p. 17), "se a língua é determinada


4t Magda Soares, ao delinear um panorama da trajetória da disciplina de Língua Portuguesa,
pela ideologia, a consciência, portanto o pensamento, a 'atividade meneai', que demonstra que, no Brasil Colonial, havia o convívio de três línguas: a portuguesa trazida pelo
são condicionados pela linguagem, são modelados pela ideologia." Nesse sentido colot�izador, a lfng11a geral, que rccobria as línguas indígenas faladas nu território brasileiro e o
latim, língua em que se baseava o ensino dos jesuítas. ]àl miscelânea reve fim com o decreto do
a Novilfngtl(t cumpria dupla função: restringir o pensamento individual e, no Marquês de Pombal em 1759 (Soares, 2002).
coletivo, devido ao reduzido número de palavras, empobrecer as interlocuções. 42 Denominação do período em que Getúlio Vargas governou o 13msil. Enquanto permaneceu no
poder, Vargas foi chefe de um governo provisório ( 1930-1934), presidente eleito pelo voto indire­
to (1934-1937) c ditador ( 1937- 1945). O governo, nn Era Vargas, adorou medidas controlador:IS,
ditatoriais c paternalistas, mas também contou com aspectos modernos na industrialização do
<o Nas obras Pmsrnnemo el inguagem de Lev Semenovich Vygotsky ( 1991 ), e A!arxismo ejiloJojitt país e na inovação das políticas trabalhistas com a criação da Consolidação das Leis do Trabalho
dn linguaf!.em de Mikhaíl Bakhtin (2006), é possível obter maiores esclarecimentos Ja relação (CLT). Disponível em: <http://www.brasilescola.com/historiab/era-vargas.htm>. Acesso em:
pensamento/linguagem. 23 fev. 2012.

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Eliane F. Garcez - Joice E. Guimarães - Ka ri na B. de Oliveira e Silva - M a risa Hartwig CAPITULO 6 - O Sitiamento Individual e Coletivo nos "Mundos• da Necessidade e da Liberdade

Partido. Isto porque o lngSoc compreendeu o controle que poderia operar via A quantidade de cempo exigida para dedicação ao trabalho, bem como
manipulação da língua em seu favor. Recriando seu sistema de referência seria o enrendimenco sobre seu significado em 1984, remete-nos ao que defende
capaz de tornar irreversível a hegemonia do Partido, anulando de vez o passado. Manacorda (1996) baseado no "reino da necessidade" c no "reino de Liberdade"
de Karl Marx Durante o processo civilizador, e independen ccmence dos modos
.

de produção com os quais o homem vem interagindo, ele acaba comportando-se


6.4.2 Trabalho: uma necessidade
como um selvagem que Jura contra a sua natureza interna, c a natureza externa

Na obra 1984, o trabalho é compreendido como tarefa do escravo ou - o meio no qual interfere, mantendo com essa última um intercâmbio contínuo,

próximo a esta condição. Mão de obra aprisionada (PE e Proles) e mão de obra por tun reino de necessidade (Marx apud Manacorda, 1996). Marx concebia que
caçada- 5% da população mundial naquele contexto ficcional - compunham o
o reino da liberdade apenas começa onde cessa o trabalho determinado
contingente daqueles que produziam a existência para o conjuntO dos habitanrcs pela necessidade ou pela finalidade externa; encontra-se, portanto, por
da Occania. sua natureza, para além da esfera da verdadeira e própria produção mate­
rial (Marx apud Manacorda, 1996, p. 57).
Na obra O Pa11óptico de ]. Bentham, com o objetivo de reformar o indi­
víduo para a produtividade, eram usadas máquinas de punição para corrigir os Desse modo, a excessiva jornada de trabalho no cenário futuro imagi­
homens. Para]. Bentham, tudo cem um cusco, todos precisam ser úteis, quem nado por George Orwcll em 1984, aprisionando a possibilidade de tempo livre
não trabalha não tem direi to a se alimentar. Em 1984, Orwell descreve uma
daquele que trabalha, atende exclusivamente à Filosofia do lngSoc. Tempo livre
situação de controle absoluto sobre o homem. QuantO maior a punição aplicada
que conforme Manacorda ( 1996, p. 62) pode ser "tanto o tempo de ócio quanto
ao indivíduo mais puro tornava-se aos olhos do Grande lt7JJão e do I11gSoc.
o tempo para uma atividade mais elevada e que, portanto, a poupança de tempo
No século 19, Karl Marx (1818-1883) apontava, em seus escritOs, que de trabalho é igual ao aumento do tempo livre, isto é, do tempo para o pleno
os pensamentos, os conceitos c as representações são considerados produtos da desenvolvimento do indivíduo."
consciência. Assim, a consciência também é produzida, gerada pelas contradições
da sociedade capitalista de produção e serve como mecanismo de dominação
(Marx, l974b). 6.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
De acordo Orwell (1972, p. 44), "o trabalho era o maior prazer na vida Aofuwro 011 ao ptwrtdo, a uma época tm q11e o pmsamento seja
de Winston.'' Ele, contudo, não deixava de vislumbrar um mundo no qual todos livre, tm que os bomens sejttlll diferentes IITIS dos outros e q11e não
vivam ss 6 - a llllltt época em q11e tt ·verdade existir e o quefoi dito
trabalhassem pouco, tivessem suas casas e o que comer. Enfim, um mundo sem
não p11t!er ser desfeito: Cmnprimeuto da ertt da rmifomúdade, dtt
desigualdades sociais, com a distribuição equânime das riquezas produzidas. Na
era t!tt exatidão, dtl era do Grande lm1iío, ela era do dt�plipensat·!
Oceania, os membros do PE trabalhavam 72 horas semanais. Com a ideologia (Orwell, 1 97 2, p. 30, grifo do autor).
da guerra, os Proles eram mantidos ocupados por mais tempo na construção de
centenas de navios cargueiros, que concluídos cornavam-se obsolecos. Nessa A partir do pensar e do agir do personagem Winston Smith e da postura

sociedade o acesso aos bens materiais atingia de forma singular os diferentes dos demais personagens do Partido percebe-se, em meio ao contexto distópico
estratos sociais - muito precário na base (Proles) , precário no centro (PE) e irres­ de 1984, evidências de esperança no futuro. A interpretação atenta da obra
trito no topo da pirâmide (Pl) (Orwell, 1972). permite que consideremos haver traços utópicos, ainda que tênues, na socie-

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Elia ne F. Garcez- Joice E. Guimarães - Karina B. de Oliveira e Si l va - Marisa Hartwig CAPfTULO 6 - O Sitiamento Individual e Coletivo nos "Mundos• da Necessidade e da Liberdade

dade projetada por Orwell.43 Essa sutil evidência reforça a crença que temos direitas humanos que incluem a segurança social, o direito ao trabalho,
na capacidade humana, que mesmo diante de uma realidade alienadora e sem à educação, a proteção contra o desemprego enfim, o direitO de criar
organizações autônomas e amo-gestionárias)
perspectivas, como a vivenciada por Winston, é capaz de persistir na busca da

construção de dias melhores.


Para Seymour-Sm ith (2002b, p. 628), 1 984 reAete o pensamento de
Se na Oceania o referido personagem não conseguiu plantar a semente Orwell diante de tudo que era contrário, "mas pretendia ser um alerta, e não a
de um mundo futuro, pelo menos tornou-se uma espécie de porta-voz da men­ afirmação, de tun estado do futuro." O fato é que Orwell planeou, com sua obra
sagem do cidadão George Orwell, na medida em que alertou seus leitores sobre 1984, aquilo que o personagem Winscon pretendia: deixar às futuras gerações
os perigos do totalitarismo. Dessa forma, criador e criatura, em seus respectivos um alerta do que um governo totalitário pode causar à humanidade.
contextos, alcançaram seus objetivos. Este texto é uma espécie de alongamento
A obra de Orwell vem sendo relida por pessoas das mais variadas áreas,
da mensagem que ambos pretendiam enviar ao "futuro ou ao passado", como
mantendo vivos os ideais de outro projeto societário para a humanidade. A con­
cão bem explicitado na epígrafe anterior.
tribuição de Orwell permanece, ainda hoje, rraduzida em diferentes formas de
Ao retratar um cenário em que o estado de guerra é constante, Orwell manifestação, seja na música, em filmes ou em programas de entretenimento.
aproximou-se, sobremaneira, da realidade em que vivia. E mais do que isso,
Na música temos 1984 - Uma leitttra musical, de Jucilene Buosi e Wolf
antecipou uma questão fortemente presente na realidade de hoje. Vive-se uma
Borges, lançado em 2007, com letras cujos títulos são: Dois Minutos de Ódio,
guerra constante estimulada pela competição do modo de produção capitalis­
O t'i.rco do amor, 1984, Foi apenas mnafantasia i11esjlemda, O Grande Irmão,]úlia,
ta, que em menor ou maior grau provoca disputas individuais e coletivas, que
Diário, Qucwto, Ptt!sat·, Novifíngtta, Vitória, Bm-aco da Memória e Quem é dono do
possibilitam o uso de instrumentos variados para garantir a hegemonia de uma
amor (Buosi; Borges, 2007). Além dessas, há outras canções inspiradas na obra:
minoria, para fazer prevalecer o poder centralizado, controlador de poucos em
1984 (David Bowie), United States ofEttrasia (Muse), \l)é are the dead (idem, David
prejuízo da autonomia do coletivo.
Bo\vie), 1984 (Spirit), Talk Show on Mute (lncubus), Sexcrime (1984) (Eurythmics),
Dada sua legitimidade histórica como obra clássica, 1984 continuará
Anirnal In Mat1 (Dead Prez), /lnimal Farm (Hazel O'Connor) (Música... , 2010).
inquietando pessoas e instituições em diferentes contextOs e países. A antevisão
vem da necessidade de se pensar criticamente o cotidiano de todos, a fim de que Roteirizada, a obra 1984 foi transformada em filme de título homônimo

a distopia não invada e tome conta da realidade. Afinal, conforme questiona com direção de Michael Radford (UK).44 Seguindo a mesma vertente dessa ficção

Ratrner (2009): distópica de Orwell, encontramos Fahrenheit 451 (1966), dirigido por François

Truffaut (lnglaterra),4> baseado na obra de Ray Bradbury, Equilibrium (2002), de


Após duzentos anos de história de Iucas, revoluções e reações violen­
Kurt Wimmer (EUA),46 e V de Vingança (2006), de ]ames McTeigue.47
tas, persiste a interrogação : a dystopia - o sistema caótico e injusto
do mercado capitalista, poderá ser transformado no mundo de homens
livres, solidários e cooperando para o bem esrar de rodos, com base nos
44 1984. Direção de Michael Radford. 1984, 1 DVD (ll3min).
4) Fahrenheit 451. Direção de FrançoisTruffaut. 1966, l DVD (112min).

46 Equilibrium.Direção de Kurt Wimmer. 2002, 1 DVD (l07min).


4' Referimo-nos aqui à utopia na perspectiva que lhe atribui Thomás Morus, de acordo com o
apresentado e discutido no Capítulo 2: A crítica social e tt crrmça 110pot'Vir: .tl Utopia de Tomás MmtJ. 47 v de Vingança. Direção de )ames McTeigue. 2006, 1 DVD (132min).

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Eliane F. Garcez - Joice E. Guimarães - Karina B. de O l iveira e Silva - Marisa Hartwlg CAPITULO 6 - O Sitiamento Individual e Coletivo nos •Mundos• da Necessidade e da Liberdade

Nesses enredos todas as manifestações de arte (livros, músicas, pinturas, Com as novas Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs), as

erc.) por instigarem sensações de prazer: beleza, emoção, amor, paixão, etc., são pessoas estão sendo convencidas a se expor a qualquer preço. Os meios de comu­

visadas e exterminadas, tanto quanto seus defensores. Por isso, e preocupado nicação de massa utilizam-se desce nicho para vender horas de exposição de um
que na sociedade do futuro o pensamento seja livre e que nela haja espaço para cotidiano construído por um poderoso intermediário que são as grandes empresas
diferentes homens/ideias, o apelo de George Orwell continua vivo. de comunicação. É óbvio o lucro obtido por este poderoso intermediário. No

A adaptação da teletela, ou a ideia da sua inversão, adotada nos programas Brasil, o Sistema de Telecomunicações da Rede Globo passou a investir nesse

de encrccenimento que se utilizam da expressão "Grande Irmão", cunhada em papel de mercador, com o Rea!ity Sh01u Big Brother, vendendo pessoas e produtos.

1984, igualmente remete-nos a George Orwell, ainda que consideremos o des­ O índice de audiência50 atinge picos de aproximadamente 50 pontos no lbope.51

virtuamento de sua preocupação inicial. O Big Brother, por exemplo, programa Segundo a versão digital do Jornal Polha de S. Paulo (TV. . . , 2006), "cada ponco

que consiste em "espiar" a viela de seus participantes, teve início na Holanda de Ibope representa cerca de 54,4 mil residências ou 176 mil telespectadores na

em 1999 c em 2009 o reality show escava presente em mais de 40 países.48 No Grande São Paulo."

Brasil, além da versão oficial veiculada pela Rede Globo de Televisão a partir
Enquanto no tOtalitarismo narrado em 1984 o aprisionamento das
de 2002, outras produções seguem o mesmo modelo: "Casa dos Artistas", do
pessoas acontece por meio de um consumo restritivo, controlado, enxutO - de
Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), e "A Fazenda", da Rede Record. No caso
objetos às sensações geradoras de prazer - na atualidade dos contextos capi­
da Rede Globo, os participantes vêm a todo o custo procurando formas para que
talistas/democráticos o controle das pessoas efetiva-se pelo convencimento de
a privacidade seja invadida, exposta, escancarada.49
quem, a princípio "têm liberdade de escolha", sabendo-se que no fundo tal
O faro é que o controle dos indivíduos, com base no sitiar e no cercear escolha é heterônoma, induzida. Com force cerceamento pela via do marketi11g
enfatizado por Orwell numa sociedade de regime coralitário, metamorfoseou-se

alcançando as chamadas sociedades capitalistas/democráticas. Nessas socieda­


10 Um pomo de audiência corresponde a 1% do universo de pessoas ou domicílios simonizados em
des, a teletela continua ativa, e o seu uso invertido nos reality shmus, com maior um canal ou a determinado programa. Neste semido, há diferença enrre audiência individual
c domiciliar. Na primeira 1 ponto é igual a 1% dos tclespeccadores que estavam assistindo
destaque para o Big Brot}m; é utilizado sob a égide do entretenimento, para a
a determinado programa. Na segunda, a domiciliar, L ponto corresponde a 1 % das casas
manutenção do ideário capitalista: o consumo. que escavam assistindo a determinado programa. Neste sentido, há variação no universo da
pesquisa, pois 1 pomo de audiência em determinado lugar não equivale ao mesmo número
de tclespectadores reprcscnraclos por um ponto de audiência em outro. Disponível em:
< http://www. ibope.com.br/calanclra\V/cb/servler/CalnndraRedircct?temp =6&proj = PorrallB
48 Disponível em: < fmp://exclusivo.cerra.com.br/bbb9/imerna/O,,OJ3675 549-E112482,00-Ha+ OPE&pub T&db=caldb&comp =duvidas_frequcntes_leitura&nivel D%C3%BAvidas%20
= =

dez+anos+Big + Brochcr+faz+sucesso+em+mais+dc+paises.html>. Acesso em: 23 fev. freq%C3%BCenres%5CTV%20Abcrw&docid=E65 lDCBF758BBEA183256EB60069Cl81 >.


2012 Acesso em: 24 fcv. 2012.

49 Quando na 12" edição do programa o comportamento de um dos participantes pareceu lt O Instituto Brasileiro de Opinião Pública c Esmtística (lbope) é uma multinacional brasileira,
ultrapassar todos os limites dos já ultrapassados, a Revista Vtja, com a matéria de capa Pmso11 criada em 1942, que realiza pesquisa de mercado no Brasil e em países da América Latina
d�J limites?, ainda tentou plantar a ideia de dúvida sobre o que ocorreu. Afinal, até que pomo a (Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Guatemala, México, Panamá, Paraguai, Peru,
reportagem "A casa caiu" (Medina; Marrhe, 2012), publicada na edição dessa revista, contribuiu, Porto Rico, Uruguai e Venezuela), além de Jv{iami (USA). Disponível em: <http://www.ibope.
ainda mais, para clcnr o Ibope desse programa? com.br/>. Acesso em: 24 fev. 2012.

274 275
Eliane F. Garcez- Joice E. Guimarães - Karlna B. de Oliveira e Silva - Marisa Hartwig

e da propaganda os indivíduos continuam sendo aprisionados, dentro e fora


da tela. O "Gt·cm Hermano es como tm espejo... de tm lado de! vidt·io haJ' inactivi­
dad, falta de inqttietttdes, de pensamiento... )' de! otro lado d e! vidrio: más o menos lo
mismo... " s2

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