Você está na página 1de 50

MITO E RELIGIÃO

NA GRÉCIA ANTIGA
Jean-Pierre Vernant

Tradução
JOANA ANGÉLICA D' AVILA MELO

Vemant, historiador, nasceu em Toulouse em


1914. Iniciou estudos em filosofia em 1937 e, em 1948, passou
a dedicar-se à antropologia da Grécia antiga. Foi diretor de es-
tudos na École des Hautes Études a partir de 1958, e criou em
1964 o Centre de Recherches Comparées sur les Sociétés An-
dennes. De 1975 a 1984, ocupou, no College de Franee, a cadeira
de estudos comparados de religiões antigas. É doutor honoris
causa das universidades de Chicago, Bristol, Brno, Nápoles e
Oxford e professor honorário no College de France. Entre suas
obras, destacam-se Les origines de la pensée grecque, Mythe et wmfmartinsfontes
pensée chez les Grecs, L'individu, la mort, ['amour e L'Univers, les
SÃO PAULO 2009
dieux, les hommes.
Esta obra foi pubJicadll origirwJmente em frllncês com o título
MYTHE ET REUGION EN GRECE ANCIENNE
por Éditions du SeuiJ, Paris.
Copyright © Éditions du Seui!, 1990,
Coleção "Lu l.ibrairie du XXI' sil'c/e", dirigida por Maurice Olcnder, sUMÁRIo
para a versiW franct:Sll e Il introdução.
Copyright © Macmillan Publ/shing Company, 1987. Na versão
inglesa, este texto foi publicado com o titulo "'Greek Religion"' no
6" volume de The Encyc/opedia of ReJigion, Mirem EJiade (Ed.),
Nova Yorke l.ondres, Macmillan, 1987, pp. 99-118.
Copyrighl © 2006, Editora WMF Mnrtins Fontes Lida.,
São Paulo, para a pn:sente edição.

edição 2006
tiragem 2009

Transliteração do grego
Juvenal Savian Filho
Acompanhamento editorial
Mnria Fernanda Alvares
Preparação do original
Mnria Fernanda Alvares
Revisões gráficas
Sandra Garcia Cortes
Solange Mnrtins
Dinarle ZorZilnelli da Silva Introdução ........................................................... . 1
Produção gráfica
Geraldo Alves
Paginação/Fotolltos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial Mito, ritual, imagem dos deuses .................. . 13
A voz dos poetas ........................................... . 15
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CP)
(Ornara Brasileira do Uvro, sp, Brasil) Uma visão monoteísta .................................. . 20
Vemant, Jean-Plerre, 1914- A decifração do mito 24
Mito c religião na Grécia antiga / Jean-Pierre Vemant; tra-
dução Joana Angélica D' Avila Melo. - São Paulo: WMF Mar-
tins Fontes, 2006. o mundo dos deuses ..................................... . 29
Título original: Mythe et religion en Greçe andenne.
Bibliografia.
Zeus, pai e rel. ............................................... . 30
ISBN 85-60156-04-6 Mortais e imortais ......................................... . 37
1. Ikuses gregos 2. Gréda - Religião 3. Mitologia grega
I. Titulo. A religião cívica 41
<J6.5806 COO·292.08 Sobre os deuses e os heróis ......................... . 44
índices para catálogo sistemático;
1. Grécia antiga: Mitologia e religião 292.08 Os semideuses .............................................. . 47
Todos os direitos desta edição reservados à Dos homens aos deuses: o sacrifício ........... . 53
Editora WMF Martins Fontes Ltda.
Rua Conselheiro Ral1Ullho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil
Repasto de festa .................................... . 57
Tel. (11) 3241.3677 Fax (11) 3101.1042 Os ardis de Prometeu ................................... . 61
e-mal1: injo®l1UIrtinsfontes.com.br http://www.martinsjontes.com.br
Entre animais e deuses ................................. . 66
o misticismo grego.......................................... 69 INTRODUÇÃO
Os mistérios de Elêusis ................................. 71
Dioniso, o estranho estrangeiro ................... 75
O orfismo. Em busca da unidade perdida... 81
Fugir do mundo ............................................. 85

Bibliografia 89

Tentar num breve ensaio fazer um quadro da re-


ligião grega não seria uma aposta perdida de ante-
mão? Assim que pegamos na pena para escrever,
surgem muitas dificuldades e muitas objeções nos
assaltam, mal a tinta secou. Teremos o direito, até
mesmo, de falar de religião, no sentido em que a
entendemos? No "retomo do religioso" com o qual
hoje todos se espantam, para comemorá -lo ou para
deplorá-lo, o politeísmo dos gregos não tem vez.
Porque se trata de uma religião morta, é claro, mas
também porque nada poderia oferecer à expectativa
daqueles que buscam realimentar-se numa comu-
nidade de crentes, num enquadramento religioso da
vida coletiva, numa fé íntima. Do paganismo ao mun-
do contemporâneo, modificaram -se o próprio esta-
tuto da religião, seu papel, suas funções, tanto quan-
to seu lugar dentro do indivíduo e do grupo. A. - J.
2 MITO E REUGlÃO NA GRÉCIA ANTIGA INTRODUÇÃO 3

Festugiere - teremos oportunidade de voltar mais religião cívica tendo por modelo o crente de hoje,
longamente a isso - excluía da religião helênica todo que assegura sua salvação pessoal, nesta vida e na
o campo da mitologia, sem o qual, contudo, teríamos outra, no seio de uma Igreja que é a única habilitada
grande dificuldade em conceber os deuses gregos. a conferir-lhe os sacramentos que fazem dele um fiel.
Segundo ele, somente o culto, nessa religião, per- Porém, assinalar a distância, e mesmo as oposições,
tence ao âmbito religioso. O culto, ou melhor, aqui- entre os politeísmos das cidades gregas e os mono-
lo que, como bom monoteísta, ele acredita poder teísmos das grandes religiões do Livro não deve
projetar de sua própria consciência cristã sobre os levar a desqualificar os primeiros, a suprimi -los do
ritos dos antigos. Outros estudiosos levam mais lon- plano religioso para relegá-los a outro domínio, vin-
ge essa exclusão. Da piedade antiga suprimem tudo culando-os, como fizeram os defensores da escola
o que lhes parece estranho a um espírito religioso antropológica inglesa na esteira de J. G. Frazer e J. E.
definido por referência ao nosso. Assim, ao falar do Harrison, a um fundo de "crenças primitivas" e de
orfismo, Comparetti afirmava em 1910 ser esta a úni- práticas" mágico-religiosas". As religiões antigas não
ca religião que, dentro do paganismo, merece tal são nem menos ricas espiritualmente nem menos
nome: "todo o resto, salvo os mistérios, não passa complexas e organizadas intelectualmente do que as
de mito e culto". Todo o resto? À exceção de uma de hoje. Elas são outras. Os fenômenos religiosos têm
corrente sectária inteiramente marginal em sua as- formas e orientações múltiplas. A tarefa do histo-
piração a fugir deste mundo para unir-se ao divino, riador é identificar o que a religiosidade dos gregos
a religiosidade dos gregos se reduziria a ser apenas pode ter de específico, em seus contrastes e suas ana-
mito, ou seja, do ponto de vista desse autor, fabula- 10gias com os outros grandes sistemas, politeístas e
ção poética e culto, isto é, ainda segundo ele, con- monoteístas, que regulamentam as relações dos ho-
junto de observâncias rituais sempre mais ou me- mens com o além.
nos aparentadas com as práticas mágicas das quais Se não houvesse analogias, não poderíamos
se originam. falar, a propósito dos gregos, de piedade e de im-
O historiador da religião grega, portanto, deve piedade, de pureza e de mácula, de temor e de res-
navegar entre dois escolhos. Precisa abster-se de peito diante dos deuses, de cerimônias e de festas em
"cristianizar" a religião que ele estuda, interpretan- homenagem a ehis, de sacrificio, de oferenda, de pre-
do o pensamento, as condutas, os sentimentos do ce, de ação de graças. Mas as diferenças saltam aos
grego exercendo sua piedade no ,,contexto de uma olhos; são tão fundamentais que até os atos cultuais
4 MITO E RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA INTRODUÇÃO 5

cuja constância parece ser a mais estabelecida e que, tir de Potências primordiais, como Vazio (Cháos) e
de uma religião para outra, são designados por um Terra (Gala), das quais saíram, ao mesmo tempo e
só e mesmo termo, como o sacrifício, apresentam em pelo mesmo movimento, o mundo, tal como os hu-
seus procedimentos, em suas finalidades, em seu al- manos que habitam uma parte dele podem contem-
cance teológico, divergências tão radicais que é pos- plá-lo, e os deuses, que a ele presidem invisíveis em
sível falar em relação a elas tanto de permanência sua morada celeste.
quanto de mutação e de ruptura. Há, portanto, algo de divino no mundo e algo de
Todo panteão, como o dos gregos, supõe deuses mundano nas divindades. Assim, o culto não pode
múltiplos; cada um tem suas funções próprias, seus visar a um ser radicalmente extramundano, cuja for-
domínios reservados, seus modos particulares de ma de existência não tenha relação com nada que
ação, seus tipos específicos de poder. Esses deuses
seja de ordem natural, no universo físico, na vida hu-
que, em suas relações mútuas, compõem uma so-
mana, na existência social. Ao contrário, o culto pode
ciedade do além hierarquizada, na qual as compe-
dirigir-se a certos astros como a Lua, à aurora, à luz
tências e os privilégios são alvo de uma repartição
do Sol, à noite, a uma fonte, um rio, uma árvore, ao
bastante estrita, limitam-se necessariamente uns aos
outros, ao mesmo tempo que se completam. Tal como cume de uma montanha e igualmente a um senti-
a unicidade, o divino, no politeísmo, não implica, mento, uma paixão (Aidós, Éros), uma noção moral
como para nós, a onipotência, a onisciência, a infi- ou social (Díke, Eynomía). Não que se trate sempre
nidade' o absoluto. de deuses propriamente ditos, mas todos, no regis-
Esses deuses múltiplos estão no mundo e dele tro que lhes é próprio, manifestam o divino do mes-
fazem parte. Não o criaram por um ato que, no caso mo modo que a imagem cultuaI, tomando presente
do deus único, marca a completa transcendência a divindade em seu templo, pode legitimamente ser
deste em relação a uma obra cuja existência deriva e objeto da devoção dos fiéis.
depende inteiramente dele. Os deuses nasceram Em sua presença num cosmos repleto de deuses,
do mundo. A geração daqueles aos quais os gregos o homem grego não separa, como se fossem dois
prestam um culto, os olimpianos, veio à luz ao mes- domínios opostos, o natural e o sobrenatural. Estes
mo tempo que o universo, diferenciando-se e orde- permanecem intrinsecamente ligados um ao outro.
nando-se, assumia sua forma definitiva de cosmos Diante de certos aspectos do mundo, experimenta o
organizado. Esse processo de gênese operou-se a par- mesmo sentimento de sagrado que no comércio com
6 MITO E RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA INTRODUÇÃO 7

os deuses, por ocasião das cerimônias que estabe- termediários, de mediadores. Para fazer-se conhecer
lecem o contato com eles. às suas criaturas, foi preciso que Deus decidisse re-
Não que se trate de uma religião da natureza e velar-se a algumas dentre elas. Numa religião mo-
que os deuses gregos sejam personificações de for- noteísta, a fé normalmente faz referência a alguma
ças ou de fenômenos naturais. Eles não são nada forma de revelação: de saída, a crença enraíza -se na
disso. O raio, a tempestade, os altos cumes não são esfera do sobrenatural. O politeísmo grego não re-
Zeus, mas de Zeus. Um Zeus muito além deles, visto pousa sobre uma revelação; não há nada que funda-
que os engloba no seio de uma Potência que se es- mente, a partir do divino e por ele, sua inescapável
tende a realidades, não mais físicas mas psicológicas, verdade; a adesão baseia -se no uso: os costumes hu-
éticas ou institucionais. O que faz de uma Potência manos ancestrais, os nómoi. Tanto quanto a língua, o
uma divindade é o fato de que, sob sua autoridade, modo de vida, as maneiras à mesa, a vestimenta, o
ela reúne uma pluralidade de "efeitos", para nós sustento, o estilo de comportamento nos âmbitos
completamente díspares, mas que o grego relaciona privado e público, o culto não precisa de outra jus-
entre si porque vê neles a expressão de um mesmo tificação além de sua própria existência: desde que
poder exercendo-se nos mais diversos domínios. Se passou a ser praticado, provou ser necessário. Ele ex-
o raio ou as alturas são de Zeus, é que o deus se ma- prime o modo pelo qual os gregos regulamentaram,
nifesta no conjunto do universo por tudo o que traz desde sempre, suas relações com o além. Afastar-se
a marca de uma eminente superioridade, de uma disso significaria já não ser completamente si mes-
supremacia. Zeus não é força natural; ele é rei, de- mo, como ocorreria a alguém que esquecesse de seu
tentor e senhor da soberania em todos os aspectos idioma.
que ela pode revestir. Entre o religioso e o social, o doméstico e o cívi-
Um deus único, perfeito, transcendente, inco- co, portanto, não há oposição nem corte nítido, as-
mensurável para o espírito limitado dos humanos, sim como entre sobrenatural e natural, divino e mun-
como alcançá-lo pelo pensamento? Nas malhas de dano. A religião grega não constitui um setor à par-
que rede o entendimento poderia abranger o infini- te, fechado em seus limites e superpondo-se à vida
to? Deus não é cognoscível; pode-se apenas reco- familiar, profissional, política ou de lazer, sem con-
nhecê-lo, saber que ele é, no absoluto de seu ser. fundir-se com ela. Se é cabível falar, quanto à Gré-
Para preencher a intransponível distância entre Deus cia arcaica e clássica, de "religião cívica", é porque
e o resto do mundo, é necessária a intervenção de in- ali o religioso está incluído no social e, reciproca-
8 MITO E RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA INTRODUÇÃO 9

mente, o social, em todos os seus níveis e na diver- psykhé, fantasma do vivo, sombra inconsistente re-
sidade dos seus aspectos, é penetrado de ponta a legada sob a terra.
ponta pelo religioso. O fiel, portanto, não estabelece com a divinda-
Daí uma dupla conseqüência. Nesse tipo de re- de uma relação de pessoa para pessoa. Um deus
ligião, o individuo não ocupa, como tal, um lugar transcendente, precisamente por estar fora do mun-
central. Não participa do culto por razões puramen- do, fora de alcance deste mundo, pode encontrar no
te pessoais, como criatura singular voltada para a sal- foro íntimo de cada devoto, em sua alma, se ela ti-
vação de sua alma. Exerce nele o papel que seu esta- ver sido preparada religiosamente para tal, o lugar
tuto social lhe atribui: magistrado, cidadão, membro privilegiado de um contato e de uma comunhão. Os
de uma fratria, de uma tribo ou de um demo, pai deuses gregos não são pessoas mas Potências. O
de família, matrona, jovem - rapaz ou moça - nos culto os honra em razão da extrema superioridade
diversos aspectos de sua entrada na vida adulta. do estatuto deles. Embora pertençam ao mesmo
Religião que consagra uma ordem coletiva e que mundo que os humanos e, de certa forma, tenham
integra nesta, no lugar que convém, suas diferen- a mesma origem, eles constituem uma raça que, ig-
tes componentes, mas que deixa fora de seu campo norando todas as deficiências que marcam as criatu-
as preocupações relativas acada individuo, à even- ras mortais com o selo da negatividade - fraqueza,
tual imortalidade deste, ao seu destino além da mor- fadiga, sofrimento, doença, morte -, encarna não o
te. Nem mesmo os mistérios, como os de Elêusis, nos absoluto ou o infinito mas a plenitude dos valores
quais os iniciados compartilham a promessa de uma que importam na existência nesta terra: beleza, força,
sorte melhor no Hades, têm a ver com a alma: ne- juventude constante, permanente irrupção da vida.
les não há nada que evoque uma reflexão sobre a Segunda conseqüência. Dizer que o político está
natureza dela ou a aplicação de técnicas espirituais impregnado de religioso é reconhecer, ao mesmo
para sua purificação. Como observa Louis Gernet" tempo, que o próprio religioso está ligado ao polí-
o pensamento dos mistérios permanece suficien- tico. Toda magistratura tem um caráter sagrado, mas
temente confinado para que nele se perpetue, sem todo sacerdócio tem algo de autoridade pública. Se
grande mudança, a concepção homérica de uma os deuses são da cidade, e se não existe cidade sem
divindades políades que velam, interna e externa-
1. "L'anthropologie de la religion grecque" (1955), em Anthropolo- mente, por sua salvação, é a assembléia do povo que
gie de Ia Crece antique, Paris, 1968, p. 12. comanda a economia das hierá, das coisas sagradas,
10 MITO E RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA INTRODUÇÃO 11

dos assuntos dos deuses, assim como os dos ho- mistérios cujas aspirações e atitudes lhe são parcial-
mens. Ela fixa os calendários religiosos, eclita leis sa- mente estranhas, e integrando a si mesma, para en-
gradas, decide sobre a organização das festas, sobre globá -la, uma experiência religiosa como o dionisis-
o regulamento dos santuários, sobre os sacrifícios a mo, cujo espírito é, sob tantos pontos de vista, con-
fazer, sobre os deuses novos a acolher e sobre as trário ao seu.
honras que lhes são devidas. Uma vez que não há Religião cívica, dionisismo, mistérios, orfismo:
cidade sem deuses, os deuses cívicos, em contrapar- sobre as relações entre eles durante o período de que
tida, precisam de cidades que os reconheçam, que os trata nosso estudo, sobre a influência, o alcance, a
adotem e os façam seus. De certo modo eles neces- significação de cada um, o debate não está encerra-
sitam, como escreve MareeI Detienne', tomar-se ci- do. Historiadores da religião grega que pertencem,
dadãos para serem plenamente deuses. como Walter Burkert, a outras escolas de pensamen-
Nesta introdução, quisemos prevenir o leitor to que não aquela à qual eu me vinculo defendem
contra a tentação bastante natural de assimilar o pontos de vista diferentes dos meus. E, entre os es-
mundo religioso dos antigos gregos àquele que hoje tudiosos mais próximos de mim, a concordância so-
nos é familiar. Mas, ao privilegiar os traços diferen- bre o essencial não deixa de apresentar, quanto a cer-
ciais' não podíamos evitar o risco de forçar um pou- tos pontos, algumas nuanças ou divergências.
co o quadro. Nenhuma religião é simples, homogê- A forma de ensaio que escolhi não me convida-
nea, unívoca. Mesmo nos séculos VI e V antes da va a evocar essas discussões entre especialistas nem
nossa era, quando o culto cívico, tal como o evoca- a me lançar numa controvérsia erudita. Minha am-
mos, dominava toda a vida religiosa das cidades, não bição limitava -se a propor, para compreender a reli-
deixavam de existir ao lado dele, em suas franjas, gião grega, uma chave de leitura. Meu mestre Louis
correntes mais ou menos marginais de orientação Gemet deu à grande obra, sempre atual, que consa-
diferente. É preciso ir mais longe. A própria reli- grou ao mesmo assunto o título de Le Génie grec dans
gião cívica, embora modele os comportamentos re- la religion 3 [O gênio grego na religião]. Neste peque-
ligiosos, só pode garantir plenamente seu domínio no volume, quis tomar sensível ao leitor aquilo a que
reservando um lugar, em seu seio, para os cultos de chamaria de bom grado o estilo religioso grego.

2. La Vie quotidienne des dieux grecs (com G. Sissa), Paris, 1989, p. 172; 3. L. Gernet e A. Boulanger, Le Génie grec dans la religion, 1932. Ree-
cf. também pp. 218-30. ditado em 1970.
MITO, RITUAL, IMAGEM DOS DEUSES

A religião grega arcaica e clássica apresenta, en-


tre os séculos VIII e IV antes da era cristã, vários tra-
ços característicos que é necessário lembrar. Assim
como outros cultos politeístas, é estranha a toda for-
ma de revelação: não conheceu nem profeta nem
messias. Mergulha suas raízes numa tradição que
engloba a seu lado, intimamente mesclados a ela,
todos os outros elementos constitutivos da civiliza-
ção helênica, tudo aquilo que dá à Grécia das cida-
des- Estado sua fisionomia própria, desde a língua,
a gestualidade, as maneiras de viver, de sentir, de
pensar, até os sistemas de valores e as regras da vida
coletiva. Essa tradição religiosa não é uniforme nem
estritamente determinada; não tem nenhum caráter
dogmático. Sem casta sacerdotal, sem clero especia-
lizado, sem Igreja, a religião grega não conhece livro
sagrado no qual a verdade estivesse definitivamente
14 MITO E RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA MITO, RITUAL, IMAGEM DOS DEUSES 15
depositada num texto. Ela não implica nenhum cre- A voz dos poetas
do que imponha aos fiéis um conjunto coerente de
crenças relativas ao além. Como se conserva e se transmite, na Grécia, essa
Se de fato é assim, sobre o que repousam e como massa de "saberes" tradicionais, veiculados por cer-
se exprimem as convicções íntimas dos gregos em tas narrativas, sobre a sociedade do além, as famílias
matéria religiosa? Como não se situam num plano dos deuses, a genealogia de cada um, suas aventuras,
doutrinaI, suas certezas não acarretam para o devo- seus conflitos ou acordos, seus poderes respectivos,
to a obrigação, sob pena de impiedade, de aderir in- seu domínio e seu modo de ação, suas prerrogativas,
tegral e literalmente a um corpo de verdades defini- as honras que lhes são devidas? No que concerne
das; para quem cumpre os ritos, basta dar crédito a à linguagem, essencialmente de duas maneiras. Pri-
um vasto repertório de narrativas conhecidas desde meiro, mediante uma tradição puramente oral exer-
a infância, em versões suficientemente diversas e em cida boca a boca, em cada lar, sobretudo através das
variantes numerosas o bastante para deixar, a cada mulheres: contos de amas-de-leite, fábulas de ve-
um, uma ampla margem de interpretação. É dentro lhas avós, para falar como Platão, e cujo conteúdo
desse quadro e sob essa forma que ganham corpo as crianças assimilam desde o berço. Essas narrati-
as crenças em relação aos deuses e que se produz, vas, esses mythoi, tanto mais familiares quanto fo-
quanto à natureza, ao papel e às exigências deles, um ram escutados ao mesmo tempo que se aprendia a
consenso de opiniões suficientemente seguras. Re- falar, contribuem para moldar o quadro mental em
jeitar esse fundo de crenças comuns seria, da mes- que os gregos são muito naturalmente levados a ima-
ma maneira que deixar de falar grego e deixar de vi- ginar o divino, a situá-lo, a pensá-lo.
ver ao modo grego, deixar de ser si mesmo. Mas Em seguida, é pela voz dos poetas que o mundo
nem por isso ignoram que existem outras línguas, dos deuses, em sua distância e sua estranheza, é
outras religiões além da sua, e sempre podem, sem apresentado aos humanos, em narrativas que põem
cair na incredulidade, tomar em relação à sua pró- em cena as potências do além revestindo-as de uma
pria religião distância suficiente para elaborar a res- forma familiar, acessível à inteligência. Ouve-se o
peito dela uma livre reflexão crítica. Os gregos não canto dos poetas, apoiado pela música de um instru-
se privaram disso. mento' já não em particular, num quadro íntimo, mas
em público, durante os banquetes, as festas oficiais,
os grandes concursos e os jogos. A atividade literá-

=
16 MITO E RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA MITO, RITUAL, IMAGEM DOS DEUSES 17

ria, que prolonga e modifica, pelo recurso à escrita, em sua dependência em relação ao sagrado, defi-
uma tradição antiqüíssima de poesia oral, ocupa um nir-se ante os Imortais, compreender-se naquilo que
lugar central na vida social e espiritual da Grécia, assegura a uma comunidade de seres perecíveis sua
Não se trata, para os ouvintes, de um simples diver- coesão, sua duração, sua permanência através do flu-
timento pessoal, de um luxo reservado a uma elite xo das gerações sucessivas.
erudita, mas de uma verdadeira instituição que ser- Por conseguinte, um problema se apresenta ao
ve de memória social, de instrumento de conserva- historiador das religiões. Se a poesia se encarrega de
ção e comunicação do saber, cujo papel é decisivo. É tal forma do conjunto das afirmações que um grego
na poesia e pela poesia que se exprimem e se fixam, se crê fundamentado a sustentar sobre os seres divi-
revestindo uma forma verbal fácil de memorizar, os nos, sobre as relações deles com as criaturas mortais,
traços fundamentais que, acima dos particularismos se a cada poeta cabe expor, às vezes modificando-as
de cada cidade, fundamentam para o conjunto da um pouco, as lendas divinas e heróicas cuja soma
Hélade uma cultura comum - especialmente no que constitui a enciclopédia dos conhecimentos de que
concerne às representações religiosas, quer se trate o grego dispõe em relação ao além, conviria consi-
dos deuses propriamente ditos, quer dos demônios,
derar essas narrativas poéticas, esses relatos dra-
dos heróis ou dos mortos. Se não existissem todas as
matizados documentos de ordem religiosa, ou atri-
obras da poesia épica, lírica, dramática, poder-se-ia
apenas um valor puramente literário? Em
falar de cultos gregos no plural, mas não de uma re-
suma, os mitos e a mitologia, nas formas que a civi-
ligião grega. Sob esse aspecto, Homero e Hesíodo
lização grega lhes deu, devem ser vinculados ao do-
exerceram um papel privilegiado, Suas narrativas so-
bre os seres divinos adquiriram um valor quase ca- mínio da religião ou ao da literatura?
nônico; funcionaram como modelos de referência Para os eruditos do Renascimento, assim como
para os autores que vieram depois, assim como para ainda para a grande maioria dos estudiosos do sé-
o público que as ouviu ou leu. culo XIX, a resposta é evidente, Aos olhos deles, a re-
Sem dúvida os outros poetas não tiveram uma ligião grega é antes de tudo aquele tesouro, múltiplo
influência comparável. Mas, enquanto a cidade per- e abundante, de narrativas lendárias que os autores
maneceu viva, a atividade poética continuou a exercer gregos - seguidos pelos latinos - nos transmitiram,
esse papel de espelho que devolvia ao grupo huma- e nas quais o espírito do paganismo permaneceu su-
no sua própria imagem, permitindo-lhe apreender-se ficientemente vivo para oferecer ao leitor de hoje,
18 MITO E RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA MITO, RITUAL, IMAGEM DOS DEUSES 19

num mundo cristão, o meio de acesso mais seguro à de Diodoro, Metamorfoses de Antoninus Liberalis, co-
compreensão do que foi o politeísmo dos antigos. letânea dos Mitógrafos do Vaticano.
Aliás, ao adotarem esse ponto de vista, os mo- Em segundo lugar, e paralelamente a esse esfor-
dernos contentavam -se em seguir os passos dos an- ço que visa a apresentar, em forma de compêndio e
tigos' em tomar o caminho que estes haviam traçado. segundo uma ordem sistemática, o fundo comum das
Já no século VI a,c', Teágenes de Reggio e Hecateu lendas gregas, vemos manifestarem-se, sensíveis
inauguram a postura intelectual que se perpetua de- já entre os poetas, certas hesitações e inquietações
pois deles: os mitos tradicionais já não são apenas quanto ao crédito a atribuir, nessas narrativas, a epi-
retomados, desenvolvidos, modificados; eles consti- sódios escandalosos que parecem incompatíveis com
tuem o objeto de um exame racional; submetem-se a eminente dignidade do divino. Mas é com o desen-
as narrativas, particularmente as de Homero, a uma volvimento da história e da filosofia que a interroga-
reflexão crítica, ou então aplica-se a elas um método ção ganha toda a sua amplitude e que, por conse-
de exegese alegórica. No século V se inicia um traba- guinte, a crítica atinge o mito em geraL Confrontada
lho que desde então é sistematicamente continuado à investigação do historiador e ao raciocínio do fi-
e essencialmente toma duas direções, Primeiro, a co- 1ósofo' a fábula vê ser-lhe recusada, dada sua con-
leta e a recensão de todas as tradições lendárias orais, dição de fábula, qualquer competência para falar do
próprias de uma cidade ou de um santuário; tal é a divino de modo válido e autêntico, Assim, ao mesmo
tarefa dos cronistas que, à maneira dos atidógrafos tempo que se dedicam com o máximo cuidado a re-
no caso de Atenas, pretendem fixar por escrito a his- pertoriar e a fixar seu patrimônio lendário, os gregos
tória de uma aglomeração urbana e de um povo, são levados a questioná-lo, de maneira às vezes ra-
desde as origens mais longinquas, remontando aos dical, apresentando com clareza o problema da ver-
tempos fabulosos em que os deuses, misturados aos dade - ou da falsidade - do mito. Nesse plano, as
homens, intervinham diretamente nos assuntos des- soluções são diversas: desde a rejeição, a denegação
tes para fundar cidades e gerar as linhagens das pri- pura e simples, até as múltiplas formas de interpre-
meiras dinastias reinantes, Assim é possível, a partir tação que permitem" salvar" o mito substituindo a
da época helenística, a compilação realizada por eru- leitura banal por uma hermenêutica erudita que re-
ditos que resultará na redação de verdadeiros reper- vela, sob a trama da narração, um ensinamento se-
tórios mitológicos: Biblioteca do Pseudo-Apolodoro, creto análogo, por trás do disfarce da fábula, às verda-
Fábulas e astronômicas de Higino, livro IV das Histórias des fundamentais cujo conhecimento, privilégio do
20 MITO E RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA MITO, RITUAL, IMAGEM DOS DEUSES 21
sábio, abre a única via de acesso ao divino, Mas, quer volvido na concretude das cerimônias cultuais, na sé-
recolham preciosamente seus mitos, quer os inter- rie de atos cotidianos que, colocando-o diretamente
pretem, critiquem-nos ou rejeitem-nos em nome de em contato com o sagrado, fazem dele um homem
outro tipo de saber, mais verídico, os antigos conti- piedoso,
nuam a reconhecer neles o papel intelectual que lhes No capítulo "Grécia" da Histoire générale des re-
era comumente atribuído, na Grécia das cidades-Es- ligions [História geral das religiões], publicada em
tado, como instrumento de informação sobre o mun- 1944, A-J. Festugiere adverte o leitor nestes termos:
do do além, "Poetas e escultores, obedecendo às próprias exigên-
cias de sua arte, inclinam -se inegavelmente a repre-
Uma visão monoteísta sentar uma sociedade de deuses muito caracteri-
zados: forma, atributos, genealogia, história, tudo é
Contudo, entre os historiadores da primeira me- nitidamente definido; mas o culto e o sentimento
tade do século XX, desenha-se uma orientação nova: popular revelam outras tendências," Assim, vê-se cir-
muitos, em sua investigação sobre a religião grega, cunscrito' de saída, o campo do religioso: "Para com-
tomam distância em relação a tradições lendárias preender a verdadeira religião grega, esquecendo por-
que eles se recusam a considerar como um documen- tanto a mitologia dos poetas e da arte, dirijamo-nos
to de ordem propriamente religiosa, com valor de ao culto e aos cultos mais antigos."!
testemunho pertinente sobre o estado real das cren- A que respondem esse parti pris exclusivo em
ças e sobre os sentimentos dos fiéis. Para esses estu- favor do culto e essa prevalência atribuída, no culto,
diosos, é na organização do culto, no calendário das . ao mais arcaico? A dois tipos de razões, bem distin-
festas sagradas, nas liturgias celebradas para cada tas, As primeiras são de ordem geral e ligam -se à fi-
deus em seu santuário, que reside a religião. Diante 10sofia pessoal do estudioso, à idéia que ele faz da
dessas práticas rituais, que formam o autêntico terre- religião. As segundas respondem a exigências mais
no fértil onde se enraízam os comportamentos reli- técnicas: o progresso dos estudos clássicos, parti-
giosos' o mito aparece como excrescência literária, cularmente o desenvolvimento da arqueologia e da
I
como pura fabulação. Fantasia sempre mais ou me-
nos gratuita dos poetas, ele só pode ter relações 1. Histoire générale des religions, sob a direção de M. Corce e R.
Mortier, Paris, 1944. O estudo de A.-J. Festugiêre, intitulado "La Grêce.
longinquas com a convicção íntima do crente, en- La religion", faz parte do tomo 11: Grece-Rome, pp. 27-197.
22 MITO E REUGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA MITO, RITUAL, IMAGEM DOS DEUSES 23

epigrafia, abriu àqueles que pesquisam o mundo an- de, supõe-se que o rito aciona a mesma experiência
tigo, ao lado do campo mitológico, novos domínios do "divino" em gerai, como potência supra -humana
de investigação que levaram a questionar, às vezes (to kreítton). Esse divino indeterminado, em grego tà
para modificá-lo bem profundamente, o quadro que thefon ou tà daimónion, subjacente aos deuses espe-
apenas a tradição literária oferecia da religião grega. cíficos, diversifica-se em função dos desejos ou dos
Como se apresentam hoje esses dois pontos? temores aos quais o culto deve responder. Nesse te-
Em relação ao primeiro, várias observações podem cido comum do divino, os poetas, por sua vez, recor-
ser feitas. A rejeição da mitologia repousa sobre um tarão figuras singulares; e as animarão imaginando
preconceito antiintelectualista em matéria religio- uma série de aventuras dramáticas para cada uma,
sa. Por trás da diversidade das religiões, assim como ao sabor daquilo que A.-I. Festugiere não hesita em
para além da pluralidade dos deuses do politeísmo, denominar "romance divino". Em contraposição,
postula-se um elemento comum que formaria o nú- para todo ato cultuai, não há outro deus senão aque-
cleo primitivo e universal de toda experiência reli- le que é invocado; uma vez que a pessoa se dirige a
giosa. Ele não pode ser encontrado, é claro, nas cons- ele, "nele se concentra toda a força divina, só ele é
truções sempre múltiplas e variáveis que o espírito considerado. Em teoria, certamente não se trata de
elaborou para tentar imaginar o divino; então, é si- um deus único, já que existem outros e a pessoa
tuado fora da inteligência, no sentimento de terror sabe disso. Na prática, porém, no estado de alma
sagrado que o homem experimenta cada vez que lhe atual do fiel, o deus invocado suplanta os outros na-
é imposta, em sua irrecusável estranheza, a evidên- quele momento"'.
cia do sobrenatural. Os gregos têm uma palavra para A recusa a levar em conta o mito revela assim
designar essa reação afetiva, imediata e irracional, seu segredo: ela desemboca justamente naquilo que,
ante a presença do sagrado: thámbos, o temor reve- mais ou menos conscientemente, se pretendia pro-
rencial. Essa seria a base sobre a qual se apoiariam var no início; apagando as diferenças e as oposições
os cultos mais antigos, as formas assumidas que, num panteão, distinguem os deuses uns dos
pelo rito para corresponder, a partir da mesma ori- outros, suprime-se ao mesmo tempo toda verdadei-
gem, à pluralidade das circunstâncias e das neces- ra distância entre os politeísmos, do tipo grego, e o
sidades humanas. monoteísmo cristão, que, então, passa por modelo.
Analogamente, por trás da variedade dos nomes,
das imagens, das funções próprias de cada divinda- 2. Ibid., p. 50.
24 MITO E RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA MITO, RITUAL, IMAGEM DOS DEUSES 25

Esse nivelamento dos universos religiosos, que se intelectual reconhecer-lhes, que estatuto eles assu-
tenta fundir no mesmo molde, não pode satisfazer mem na vida religiosa? Acabou-se o tempo em que
o historiador. A primeira preocupação deste não deve se podia falar do mito como se se tratasse da fanta-
ser, em vez disso, distinguir os traços específicos que sia individual de um poeta, de uma fabulação roma-
dão a cada grande religião sua fisionomia própria e nesca, livre e gratuita, Até mesmo nas variações às
que fazem dela, em sua unicidade, um sistema ple- quais se presta, um mito obedece a limitações co-
namente original? Além do temor reverencial e do letivas bastante estritas, Um autor como Calímaco,
sentimento difuso do divino, a religião grega apre- quando, na época helenística, retoma um tema len-
senta-se como uma vasta construção simbólica, com- dário para apresentar dele uma nova versão, não está
plexa e coerente, que abre para o pensamento como livre para modificar à vontade os elementos desse
tema e para recompor-lhe o roteiro a seu bel-prazer,
para o sentimento seu espaço em todos os níveis e
Ele se inscreve numa tradição; quer se amolde a ela
em todos os seus aspectos, inclusive o culto, O mito
com exatidão, quer se afaste em algum ponto, é sus-
faz sua parte nesse conjunto da mesma maneira que
tentado por ela, apóia-se nela e deve referir-se a ela,
as práticas rituais e os modos de figuração do divino:
pelo menos implicitamente, se quiser que sua nar-
mito, rito, representação figurada, tais são as três for-
rativa seja entendida pelo público. Louis Gernet já
mas de expressão - verbal, gestual, por imagem -
o assinalou: mesmo quando parece inventar tudo, o
através das quais a experiência religiosa dos gregos
narrador trabalha respeitando a linha de uma "ima-
se manifesta, cada uma constituindo uma linguagem
ginação lendária" que tem seu modo de funciona-
específica que, até em sua associação às outras duas,
mento' suas necessidades internas, sua coerência,
responde a necessidades particulares e assume uma Mesmo sem saber, o autor deve submeter-se às regras
função autônoma, desse jogo de associações, de oposições, de homolo-
gias que a série de versões anteriores desencadeou
A decifração do mito e que constituem o arcabouço conceitual comum às
narrativas desse tipo. Cada narrativa, para ganhar
De resto, os trabalhos de Georges Dumézil e sentido, deve ser ligada e confrontada às outras, por-
Claude Lévi-Strauss sobre o mito levaram a formu- que, juntas, compõem um mesmo espaço semântico
lar de modo totalmente diferente os problemas da cuja configuração particular é como que a marca ca-
mitologia grega: como ler esses textos, que alcance racterística da tradição lendária grega,
26 MITO E RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA MITO, RITUAL, IMAGEM DOS DEUSES 27

É esse espaço mental, estruturado e ordenado, e conceitos desvinculados de qualquer referência aos
que a análise de um mito na totalidade de suas ver- deuses da religião comum, O culto é menos desinte-
sões ou de um corpus de mitos diversos, centrados em ressado, mais envolvido com considerações de ordem
torno de um mesmo tema, deve permitir explorar, utilitária. Mas nem por isso é menos simbólico, Uma
A decifração do mito, portanto, opera seguindo cerimônia ritual desenrola -se segundo um roteiro
outros caminhos e responde a outras finalidades que cujos episódios -são tão estritamente ordenados, tão
não as do estudo literário. Visa a destrinçar, na pró- cheios de significação quanto as seqüências de uma
pria composição da fábula, a arquitetura conceitual narrativa, Cada detalhe dessa encenação, através da
envolvida nesta, os grandes quadros de classificação qual o fiel, em circunstâncias definidas, busca repre-
implicados, as escolhas operadas na decupagem e sentar sua relação com este ou aquele deus, com-
na codificação do real, a rede de relações que a nar- porta uma dimensão e um desígnio intelectuais: im-
rativa institui, por seus procedimentos narrativos, plica certa idéia do deus, das condições de sua abor-
entre os diversos elementos que ela faz intervir na dagem, dos efeitos que os diversos participantes, em
corrente do enredo. Em suma, o mitólogo procura re- função de seu papel e de seu estatuto, podem espe-
constituir o que Dumézil denomina uma "ideologia", rar dessa inter-relação simbólica com a divindade,
entendida como uma concepção e uma apreciação Assumem o mesmo caráter os modos de figura-
das grandes forças que, em suas relações mútuas, em ção, Conquanto tenham dado, na época clássica, um
seu justo equilíbrio, dominam o mundo - o natural lugar privilegiado à grande estátua antropomorfa do
e o sobrenatural-, os homens, a sociedade, fazen- deus, os gregos conheceram todas as formas de re-
do-os ser o que devem ser. presentação do divino: símbolos não-icônicos, fos-
Nesse sentido, o mito, sem se confundir com o sem eles objetos naturais, como uma árvore ou uma
ritual nem se subordinar a ele, tampouco se lhe opõe pedra bruta, fossem produtos confeccionados pela
tanto quanto já se disse, Em sua forma verbal, o mito mão humana: poste, pilar, cetro; figuras icônicas di-
é mais explícito que o rito, mais didático, mais apto versas: pequeno ídolo mal desbastado, no qual a for-
e inclinado a "teorizar", Dessa forma, traz em si o ma do corpo, dissimulada pelas roupas, nem sequer
germe daquele" saber" cuja herança a filosofia re- é visível; figuras monstruosas nas quais o bestial se
colherá para fazer dele seu objeto próprio, transpon- mescla ao humano; simples máscara em que o divi-
do-o para outro registro de língua e de pensamento: no é evocado por um rosto encovado, de olhos fas-
ela formulará seus enunciados utilizando vocabulário cinantes; estátua plenamente humana, Nem todas
MiTO E RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA
28

essas figuras são equivalentes nem convêm indiferen-


o MUNDO DOS DEUSES
temente a todos os deuses ou a todos os aspectos de
um mesmo deus. Cada uma tem sua própria manei-
ra de traduzir certos aspectos do divino, de "presen-
tificar" o além, de inscrever e de localizar o sagrado
no espaço deste mundo: um pilar ou um poste cra-
vados no solo não têm nem a mesma função nem o
mesmo valor simbólico de um ídolo ritualmente des-
locado de um lugar a outro, de uma imagem encer-
rada num depósito secreto, com as pernas acorren-
tadas para não poder fugir, de uma grande estátua
cultuaI instalada definitivamente num templo para Se mito, ritual e figuração constituem essa" rede"
mostrar a presença permanente do deus em sua casa. de que fala Dumézil, ainda é preciso, como ele o fez,
Cada forma de representação implica, para a divin- localizar nela as malhas e delimitar as configurações
dade figurada, um modo particular de manifestar-se desenhadas por seu entrelaçamento. Tal deve ser a
aos humanos e de exercer, através de suas imagens, tarefa do historiador.
o tipo de poder sobrenatural cujo controle ela possui. No caso grego, essa tarefa revela-se muito mais
Se, de acordo com modalidades diversas, mito, difícil do que no das outras religiões indo-européias,
figuração e ritual operam todos no mesmo registro nas quais o esquema das três funções - soberania,
de pensamento simbólico, compreende-se que eles guerra, fecundidade - se manteve no essencial. Ser-
possam associar-se para fazer de cada religião um
vindo de arcabouço e como que de elemento de sus-
conjunto ou, retomando as palavras de Georges Du-
tentação para todo o edifício, essa estrutura, nos ca-
mézil: "Conceitos, imagens e ações articulam-se e
sos em que está claramente atestada, confere ao con-
formam por suas ligações uma espécie de rede na
qual, de direito, toda a matéria da experiência huma- junto da construção uma unidade de que a religião
grega parece bem desprovida.
na deve se prender e se distribuir."3
De fato, ela apresenta uma complexidade de or-
ganização que exclui o recurso a um código de leitu-
ra único para todo o sistema. Sem dúvida, um deus
3. L'Héritage indo-européen à Rome, Paris, 1949, p. 64.

--
30 MITO E REUGLÃO NA GRÉCIA ANTIGA o MUNDO DOS DEUSES 31

grego define-se pelo conjunto de relações que o unem cia é tão marcada, que se impõe a constatação, até
e o opõem às outras divindades do panteão, mas as na comparação entre os deuses de cujo parentesco
estruturas teológicas assim evidenciadas são dema- se tem mais certeza, de um desaparecimento quase
siado múltiplas e sobretudo de ordem demasiado completo da tradição indo-européia no sistema re-
diversa para poderem integrar-se no mesmo esque- ligioso grego.
ma dominante. Segundo as cidades, os santuários, os Zeus não figura em nenhum grupamento trifun-
momentos, cada deus entra numa rede variada de cional análogo à tríade pré-capitolina Júpiter-Mar-
combinações com os outros. Esses reagrupamentos te-Quirino, na qual a soberania (Júpiter) se articula
de deuses não obedecem a um modelo único, que opondo-se à ação guerreira (Marte) e às funções de
tenha valor privilegiado; eles se ordenam numa plu- fecundidade e prosperidade (Quirino). Ele tampouco
ralidade de configurações que não se superpõem se associa, como faz Mitra com Varuna, a uma Potên-
exatamente, mas sim compõem um quadro de vá- cia que traduz, na soberania, ao lado dos aspectos
rias entradas, de eixos múltiplos, cuja leitura varia em regulares e jurídicos, os valores de violência e de ma-
função do ponto de partida considerado e da pers- gia. Ouranós, o escuro céu noturno, que às vezes al-
guns foram tentados a aproximar de Varuna, faz du-
pectiva adotada.
pla no mito com Gaza, a Terra, e não com Zeus.
Como soberano, Zeus encarna, diante da tota-
Zeus, pai e rei lidade dos outros deuses, a maior força, o poder su-
premo: Zeus de um lado, todos os olimpianos reu-
Tomemos o exemplo de Zeus, exemplo que, para nidos do outro, é ainda Zeus que prevalece. Diante
nós, é tanto mais instrutivo quanto o nome desse de Cronos e dos deuses Titãs em liga contra ele para
deus revela claramente sua origem: nele se lê a mes- disputar o trono, Zeus representa a justiça, a exata
ma raiz indo-européia, com o significado de "brilhar", repartição das honrarias e das funções, o respeito aos
que está no latim dies-deus e no védico dyeus. Como privilégios de que cada um pode se prevalecer, a
o Dyaus pita indiano ou como o Júpiter romano, Zeus preocupação com aquilo que é devido mesmo aos
pater, Zeus pai, prolonga diretamente o grande deus mais fracos. Nele e por ele, em sua realeza, a potên-
indo-europeu do céu. Contudo, entre o estatuto des- cia e a ordem, a violência e o direito, reconciliados,
se Zeus grego e o dos seus correspondentes na Índia conjugam-se. Todos os reis vêm de Zeus, dirá Hesío-
e em Roma, o afastamento é tão manifesto, a distân- do, no século VIla. c., não para opor o monarca ao
32 MITO E RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA O MUNDO DOS DEUSES 33

guerreiro e ao camponês, mas para afirmar que en- mulher, serve de fundamento a toda a organização
tre os homens não existe verdadeiro rei que não se social e cujo modelo exemplar é fornecido pelo casal
dê por tarefa fazer triunfar a justiça pacificamente. formado pelo rei e pela rainha. Associado a Métis,
De Zeus vêm os reis, ecoará Calímaco quatro séculos sua primeira esposa, que ele devora para assimilá-Ia
mais tarde; mas o estabelecimento desse parentesco inteira, Zeus rei identifica -se com a inteligência ar-
dos reis e da realeza com Zeus não se inscreve num dilosa' a astúcia tortuosa de que necessita para con-
quadro trifuncional; ele vem coroar uma série de quistar e conservar o poder, para assegurar a pereni-
enunciados similares, ligando a cada vez uma cate- dade de seu reinado e proteger seu trono das ciladas,
goria particular de homens à divindade que a patro- das surpresas, das armadilhas que o futuro ameaçaria
cina: os ferreiros a Hefesto, os soldados a Ares, os reservar-lhe se ele nem sempre estivesse preparado
caçadores a Ártemis, os cantores acompanhados da para adivinhar o imprevisto e desviar antecipada-
lira a Febo (Apolo), assim como os reis ao deus-rej!o mente os perigos deste. Ao casar-se em segundas
Quando Zeus entra na composição de uma tría- núpcias com Têmis, Zeus fixa para sempre a ordem
de, como faz com Posêidon e Hades, é para delimitar das estações na natureza, o equilíbrio dos grupos hu-
níveis ou domínios cósmicos, mediante partilha: o manos na cidade (Hórai) e o curso inelutável dos
céu cabe a Zeus, o mar a Posêidon, o mundo subter- Destinos individuais (Moírai). Ele se faz lei cósmica,
râneo a Hades; e a superfície do solo aos três, em co- harmonia social e Destino.
mum. Quando ele se associa em dupla a uma deusa, Pai dos deuses e dos homens, como já o designa
a díade assim formada traduz aspectos diferentes do a Ilíada - não porque tenha gerado ou criado todos
deus soberano, segundo a divindade feminina que o os seres, mas porque exerce sobre cada um deles
complementa. Conjugado a Gê, ou Gaia, a Terra-Mãe, uma autoridade tão absoluta quanto a do chefe de
Zeus figura o princípio celeste, masculino e gerador, família sobre sua gente -, Zeus divide com Apolo a
cuja chuva fecundante criará, nas profundezas do qualificação de Patrós, o antepassado; ao lado de Ate-
solo, os jovens rebentos da vegetação. Acoplado a na Apatúria, assegura como Frátrios a integração dos
Hera, ele patrocina, sob a forma do casamento regu- indivíduos nos diversos grupos que compõem a co-
lar, produtor de uma descendência legítima, a insti- munidade cívica; nas cidades da Jônia, faz de todos
tuição que, "civilizando" a união entre o homem e a os cidadãos autênticos irmãos, celebrando, no seio
de suas respectivas fratrias como numa mesma fa-
1. Calímaco, Hinos, I, "A Zeus", v. 76-9. mília' a festa das Apatúrias, isto é, daqueles que se re-
34 MITO E RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA O MUNDO DOS DEUSES 35

conhecem filhos de um mesmo pai. Em Atenas, reu- lhendo-os no altar doméstico sem com isso assimi-
nido a Atena Poliás, Zeus é Polieús, patrono da cida- lá-los inteiramente aos membros da família. Zeus
de. Senhor e fiador da vida política, ele faz dupla com Ctésio, Zeus da posse, vela como guardião das rique-
a deusa cuja função, como potência tutelar de Ate- zas sobre os bens do dono da casa. Como olimpiano
nas, é mais precisa e, poderíamos dizer, mais locali- e celeste, Zeus opunha-se a Hades; contudo, como
zada. Atena vela sobre sua aglomeração, como ci- Ctésio, é no fundo do celeiro que ele estabelece seu
dade específica, naquilo que a distingue dos outros altar, para tomar ali o aspecto de uma serpente, ani-
Estados gregos. A deusa "favorece" Atenas conce- mal ctoniano por excelência. Desse modo, o sobera-
dendo-lhe, de preferência a qualquer outra, o duplo no pode integrar a si a parte ctoniana do universo da
privilégio da concórdia interna e da vitória externa. qual normalmente as Potências subterrâneas se en-
Celeste, detentor judicioso do poder supremo, carregam, mas que ele mesmo pode vir a expressar
fundador da ordem, fiador da justiça, senhor do ca- por uma espécie de tensão, de polaridade interna, ou
samento' pai e antepassado, patrono da cidade, o mesmo de desdobramento. Ao Zeus celeste, sediado
quadro da realeza de Zeus comporta ainda outras di- no alto do éter brilhante, corresponde em contrapon-
mensões. Sua autoridade é tanto política quanto do- to um Zeus Chthónios, Katachthónios, Meilíchios, um
méstica. Em estreita conivência com Héstia, Zeus tem Zeus de baixo, escuro e subterrâneo, presente nas
o controle tanto sobre a lareira privada de cada casa profundezas da terra onde faz amadurecerem, per-
- no centro fixo que constitui como que o umbigo no to dos mortos, ora as riquezas, ora as vinganças pres-
qual se enraíza a morada familiar - quanto sobre a tes a vir à luz, se ele o consentir, sob a condução de
Lareira comum da cidade, no seio da aglomeração, Hermes ctoniano.
na Hestía Koiné onde velam os magistrados prítanes. O céu, a terra - de um à outra Zeus se faz traço-
Zeus Herkefos, Zeus da clausura, fecha o território do de-união por meio da chuva (Zeus Ómbrios, Hyétios,
domínio onde se exerce a justo título o poder do che- Ikmafos, chuvoso, úmido), dos ventos (Zeus Oúrios,
fe de família; Zeus Klários, loteador, delimita e fixa as Euánemos, ventoso, de bons ventos), do raio (Zeus
fronteiras desse domínio, deixando a Apolo Aigieús Astrapafos, Brontafos, Keraúnios, fulminante, trovejan-
e a Hermes o cuidado de proteger as portas e contro- te). Entre o alto e o baixo, ele assegura a comunicação
lar os acessos. Zeus Hikésios, Zeus Xénios, recebe o de outro modo ainda: pelos sinais e pelos oráculos
suplicante e o hóspede, dá-lhes acesso à casa que que transmitem aos mortais nesta terra as mensa-
lhes é estranha e assegura a salvaguarda deles aco- gens que os deuses celestes lhes enviam. O oráculo
36 MITO E RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA O MUNDO DOS DEUSES 37

de Dodona, o mais antigo que os gregos dizem ter Mortais e imortais


existido entre eles, era um oráculo de Zeus. Ele ha-
via estabelecido seu santuário no lugar onde brota- O mesmo não se dá com o Zeus cretense, o Kre-
ra um grande carvalho que lhe pertencia e que se tagénes, Diktafos ou Idafos, o deus-menino cujas In-
elevava em linha reta para o céu, como uma coluna fâncias eram associadas aos Curetes, às suas danças
erguida até o ponto mais alto. O sussurro das folhas e aos seus ritos orgiásticos, ao fragor do choque en-
que a ramagem dessa árvore sagrada fazia ouvir aci- tre suas armas. Desse Zeus, cujo nascimento era si-
ma da cabeça dos consulentes, no ar, fornecia-lhes tuado em Creta, contava-se também a morte e mos-
as respostas às perguntas que eles vinham fazer ao trava-se seu túmulo na ilha. Mas o Zeus grego, em-
soberano do céu. Aliás, quando pronuncia seus orá- bora apresente muitas facetas, não pode ter nada em
cuIas no santuário de Delfos, Apolo não fala tanto comum com um deus que morre. No Hino que con-
sagra ao deus "sempre grande, sempre rei", Calíma-
por si mesmo quanto em nome do seu pai, a quem
co rejeita firmemente, como estranha ao seu deus,
permanece associado e como que submetido em sua
a tradição dessas narrativas. O verdadeiro Zeus não
função oracular. Apolo é profeta, mas profeta de Zeus;
nasceu em Creta, como contam os cretenses, esses
faz apenas dar uma voz à vontade do olimpiano, aos
mentirosos. "Eles chegaram até a construir-te um
seus decretos, a fim de que, no umbigo do mundo, a
túmulo, oh Rei; mas não, tu não morreste jamais; tu
palavra do Rei e do Pai ressoe aos ouvidos de quem És pela eternidade."
a souber escutar. Os diferentes qualificativos de Zeus, Aos olhos dos gregos, a imortalidade, que traça
por mais amplo que seja seu leque, não são incom- entre homens e deuses uma fronteira rigorosa, é um
patíveis. Situam-se num mesmo campo cujas múl- traço demasiadamente fundamental do divino para
tiplas dimensões eles sublinham. Tomados em seu que o senhor do Olimpo possa ser assimilado de al-
conjunto, desenham os contornos da soberania di- gum modo a uma daquelas divindades orientais que
vina tal como os gregos a concebiam; balizam suas morrem e renascem. O arcabouço do sistema reli-
fronteiras, cercam seus domínios constitutivos; mar- gioso indo-europeu ao qual remete o nome de Zeus
cam os aspectos variados que a Potência do deus-rei pode até ter desabado, no decorrer do segundo mi-
pode revestir, as modalidades diversas do seu exercí- lênio, entre os homens que, falantes de um dialeto
cio, em ligação menos ou mais estreita, segundo os grego, vieram em ondas sucessivas instalar-se em ter-
casos, com outras divindades. ras da Hélade e cuja presença é atestada até em Cre-
38 MITO E REUGlÃO NA GRÉCIA ANTIGA o MUNDO DOS DEUSES 39

ta, em Cnossos, já no fim do século XV a.c. Os con- o ponto de partida, e que instalou grupos de emi-
tatos, as misturas, o intercâmbio foram numerosos grados no litoral da Ásia Menor para ali fundar cida-
e contínuos; empréstimos foram tomados ao fundo des gregas.
religioso egeu e minoano, assim como acontece, à Essa permanência, contudo, não deve iludir. As-
medida que progride a expansão grega no Mediter- sim como o mundo dos poemas homéricos não é o
râneo, em relação aos cultos orientais e tracofrígios. dos reis micenianos cujas proezas o aedo, com uma
Contudo, é inegável que, entre os séculos XIV e XII, defasagem de quatro séculos, pretende evocar, o uni-
os deuses reverenciados pelos aqueus - e cujos verso religioso de Homero não é dos tempos passa-
nomes figuram nas tabuinhas em escrita linear B de dos. De uns a outros, uma série de mudanças e de
Cnossos e de Pylos - são em sua maioria os mesmos inovações introduziu, por trás das aparentes conti-
que encontramos no panteão grego clássico e que os nuidades' uma verdadeira ruptura que o texto da
helenos, em seu conjunto, reconhecerão como seus: epopéia apaga mas cuja amplitude as pesquisas ar-
Zeus, Posêidon, Eniálio (Ares), Paiawon (Peã = Apo- queológicas, após a leitura das tabuinhas micenia-
lo), Dioniso, Hera, Atena, Ártemis, as Duas Rainhas nas, nos permitem medir.
(Wanasso), ou seja, Deméter e Corê. O mundo reli-
gioso dos invasores indo-europeus da Grécia pode
até ter se modificado e aberto a influências estran-
geiras; assimilando-as, ele manteve sua especificida-
de e, com seus deuses próprios, seus traços distinti-
vos. Dessa religião micênica à da época de Homero,
durante os séculos obscuros que se seguem à queda
ou ao declínio dos reinos aqueus após o século XII,
a continuidade não é marcada apenas pela manu-
tenção do nome dos deuses e dos locais de culto. A
comunidade de certas festas celebradas pelos jônios
numa e noutra margens do Mediterrâneo prova que
elas já deviam acontecer no século XI, quando se ini-
da a primeira onda de colonização de que Atenas,
único sítio miceniano a permanecer intacto, teria sido
A RELIGIÃO CÍVICA

Entre os séculos XI e VIII, no período em que se


implantam mudanças técnicas, econômicas e demo-
gráficas que conduzem à "revolução estrutural" de
que fala o arqueólogo inglês A. Snodgrass e da qual
se originou a cidade- Estado, o próprio sistema re-
ligioso é profundamente reorganizado em estreita
conexão com as formas novas de vida social repre-
sentadas pela cidade, a pólís. No quadro de uma re-
ligião que, doravante, é essencialmente cívica, cren-
ças e cultos, remodelados, satisfazem uma exigência
dupla e complementar. Primeiro, respondem ao par-
ticularismo de cada grupo humano que, como Cida-
de ligada a um território definido, se coloca sob o pa-
trocínio de deuses que lhe são próprios e que lhe
conferem sua fisionomia religiosa singular. De fato,
toda cidade tem sua ou suas divindades políades cuja
função é cimentar o corpo dos cidadãos para fazer
42 MITO E RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA A RELIGIÃO CMCA 43

dele uma comunidade autêntica, unir num todo úni- no centro urbano, acrópole ou ágora; às portas dos
co o conjunto do espaço cívico, com seu centro urba- muros que circundam a aglomeração ou em sua pe-
no e sua chôra, sua zona rural, velar, enfim, pela in- riferia próxima; na zona do agrós e das eschatíai, das
tegridade do Estado - homens e território - diante terras selvagens e dos confins, que separa cada cida-
das outras cidades. Mas, em segundo lugar, trata -se de grega dos seus vizinhos. A edificação de uma rede
também, pelo desenvolvimento de uma literatura de santuários urbanos, sub- e extra-urbanos, bali-
épica desligada de qualquer raiz local, pela edifica- zando o espaço com lugares sagrados, fixando, do
ção de grandes santuários comuns, pela instituição centro até a periferia, o percurso de procissões ri-
dos Jogos e das pane gírias pan-helênicas, de ins- tuais' mobilizando em data fixa, na ida e na volta,
taurar ou de fortalecer no plano religioso tradições toda a população ou parte dela, visa a modelar a su-
lendárias, ciclos de festas e um panteão igualmente perfície do solo segundo uma ordem religiosa. Pela
reconhecidos por toda a Hélade. mediação de seus deuses políades instalados nos
Conquanto não queiramos fazer o balanço das respectivos templos, a comunidade estabelece entre
inovações religiosas trazidas pela época arcaica, de- homens e território uma espécie de simbiose, como
vemos pelo menos assinalar as mais importantes. se os cidadãos fossem filhos de uma terra da qual
Primeiro, o aparecimento do templo como constru- teriam surgido originariamente sob a forma de au-
ção independente do habitat humano, palácio real tóctones e que, por essa ligação íntima com aqueles
ou casa particular. Com seu recinto a delimitar uma que a habitam, se vê ela mesma promovida ao nível
área sagrada (témenos), com seu altar exterior, o tem- de "terra de cidade". Assim se explica a aspereza dos
plo constitui desde então um edifício separado do conflitos que, entre os séculos VIII eVI, opuseram ci-
espaço profano. O deus vem residir permanente- dades vizinhas na disputa pela apropriação dos lo-
mente no lugar por intermédio de sua grande es- cais de culto fronteiriços, às vezes comuns aos dois
tátua cultuai antropomorfa ali instalada para ficar. Estados. A ocupação do santuário e sua vinculação
Contrariamente aos altares domésticos, aos santuá- cultual ao centro urbano têm valor de posse legítimo.
rios privados, essa" casa do deus" é coisa pública, Ao fundar seus templos, a pólis, para garantir uma
bem comum a todos os cidadãos. Consagrado à di- solidez inabalável à sua base territorial, implanta raí-
vindade, o templo pode pertencer somente à mesma zes até no mundo divino.
cidade que o erigiu em local preciso a fim de marcar
e confirmar sua posse legítima sobre um território:
44 MITO E RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA A RELIGIÃO CIvrCA 45

Sobre os deuses e os heróis ração da cidade, em plena ágora, eles corporificam


a lembrança do fundador mais ou menos lendário,
Outra novidade, cuja significação é em parte herói arcageta e, no caso de uma colônia, ecista, ou
análoga, marcará profundamente o sistema religio- patrocinam as diversas componentes do corpo cívi-
so. Durante o século VIII, desenvolve-se rapidamen- co: tribos, fratrias e demos. Disseminados por diver-
te o costume de reaproveitar construções micenianas, sos pontos do território, consagram as afinidades
funerárias em sua maioria, que estavam em desuso particulares unindo os membros de setores rurais e
havia séculos. Reformadas, elas servem de locais de de aldeias, de kômai. Em todos os casos, sua função
culto para homenagens fúnebres prestadas a perso- é reunir um grupo em torno de um culto cuja exclu-
nagens lendários, quase sempre sem relação com sividade ele detém e que aparece estritamente im-
esses edifícios, mas invocados por linhagens, gené plantado num ponto preciso do solo.
nobiliários ou grupos de fráteres. Esses ancestrais
A difusão do culto heróico não responde ape-
míticos, que, como os heróis da epopéia de que tra-
nas às novas necessidades sociais que surgem com
zem o nome, pertencem a um passado longínquo, a
a cidade. A adoração dos heróis tem uma significação
um tempo diferente do presente, vão constituir des-
propriamente religiosa. Por seu duplo distanciamen-
de então uma categoria de Potências sobrenaturais
to, de um lado em relação ao culto divino, obrigató-
distintas tanto dos theoí, dos deuses propriamente
ditos, quanto dos mortos comuns. Mais do que o rio para todos e de caráter permanente, e de outro
culto dos deuses, mesmo os políades, o culto dos he- em relação aos ritos funerários, reservados ao círculo
róis tem um valor ao mesmo tempo cívico e territo- estreito dos parentes e de duração limitada, a insti-
rial; está associado a um local preciso, um túmulo tuição heróica repercute no equilíbrio geral do siste-
com a presença subterrânea do defunto, cujos restos ma cultuaI. Entre os deuses, que são os beneficiários
foram às vezes buscados em regiões distantes para do culto, e os homens, que são seus servos, existe
serem reconduzidos ao seu lugar. Túmulos e cultos para os gregos uma oposição radical. Os primeiros
heróicos, através do prestígio do personagem ho- são estranhos ao falecimento, que define a condição
menageado, exercem para uma comunidade o pa- de existência dos segundos. Os deuses são os athá-
pel de símbolo glorioso e de talismã, cuja localização natoi, os Imortais; os homens, os brótoi, os perecí-
às vezes é mantida secreta porque de sua salvaguar- veis, fadados às doenças, à velhice e à morte. As-
da depende a salvação do Estado. Instalados no co- sim, as homenagens fúnebres prestadas aos falecidos
46 MiTO E RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA A RELIGIÃO C!vICA 47
situam -se num plano diferente daquele dos sacrifí- Os semideuses
cios e da devoção exigidos pelos deuses como sua
parte de honra, o privilégio que lhes é reservado. AB o caso dos heróis é totalmente diverso. É certo
fitas que ornam o túmulo, as oferendas de bolos aos que eles pertencem à espécie dos homens e, como
mortos, as libações de água, de leite, de melou de tais, conheceram os sofrimentos e a morte. Mas, por
vinho devem ser renovadas no terceiro, no nono e toda uma série de traços, distinguem -se, até na mor-
no trigésimo dia após o cerimonial das exéquias, e te, da multidão dos defuntos comuns. Viveram numa
mais tarde a cada ano, durante a festa dos genésia, época que constitui, para os gregos, o "antigo tem-
dos antepassados, no mês Boedromion (setembro); po" já acabado e no qual os homens eram diferentes
porém, mais do que um ato de veneração diante de daquilo que são hoje: maiores, mais fortes, mais be-
Potências superiores, elas aparecem como o prolon- los. Quando se parte em busca da ossada de um he-
gamento temporário do cerimonial dos funerais e rói, é possível reconhecê-la pelo seu tamanho gigan-
das práticas de luto: trata -se, ao abrir para o defun- tesco. Essa é a raça de homens, agora extinta, cujas
to as portas do Hades, de fazê-lo desaparecer para proezas são cantadas pela poesia épica. Celebrados
sempre deste mundo, onde ele já não tem seu lugar. pelos aedos, os nomes dos heróis, contrariamente
Contudo, graças aos diversos procedimentos de co- aos dos outros mortos, que se fundem sob a terra
memoração (desde a estela, com epitáfio e figura do na massa indistinta e esquecida dos nónymnoi, dos
morto, até os presentes depositados sobre a tumba), "sem-nome", permanecem vivos para sempre, ra-
esse vazio, esse não-ser do morto, pode revestir a diantes de glória, na memória de todos os gregos. A
forma de uma presença na memória dos sobrevi- raça dos heróis forma o passado lendário da Grécia
ventes. Sem dúvida, uma presença ambígua, para- das cidades, as raízes às quais se ligam as famílias, os
doxal, como pode ser a de um ausente, relegado ao grupos, as comunidades dos helenos. Mesmo sen-
reino das sombras, e cujo ser, doravante, se reduz to- do homens, sob vários pontos de vista esses ances-
talmente a esse estatuto social de morto que o ritual trais aparecem mais próximos dos deuses, menos se-
funerário o fez adquirir mas que também está fada- parados do divino do que a humanidade atual. N es-
do a desaparecer, tragado pelo esquecimento, à me- se tempo passado, os deuses ainda se misturavam de
dida que se renova o ciclo das gerações. bom grado aos mortais, convidavam -se para a casa
destes, comiam às suas mesas em refeições comuns,
insinuavam-se até mesmo às suas camas para unir-se
48 MITO E RELIGIÃO NA GRéCIA ANTIGA A RELIGIÃO CIvICA 49

a eles e, no cruzamento das duas raças, a perecível e limites. Portanto, afora as grandes figuras lendárias
a imortal, gerar belos filhos. Os personagens heróicos como Aquiles, Teseu, Orestes ou Héracles, a heroici-
cujos nomes sobreviveram e cujo culto era celebra- zação se restringirá aos primeiros fundadores de co-
do em seus túmulos apresentam-se muito freqüen- lônias ou a personagens que adquiriram, aos olhos
temente como o fruto desses encontros amorosos de uma cidade, um valor simbólico exemplar, como
entre divindades e humanos dos dois sexos. Como Lisandro em Samos ou Timoleonte em Siracusa. Os
diz Hesíodo, eles formam" a raça divina dos heróis casos de heroicização que conhecemos na época
que são denominados semideuses (hemitheoí) " . Se clássica são extremamente raros. Jamais concernem
o nascimento às vezes lhes atribui uma ascendên- a um personagem ainda vivo, mas a um morto que
cia semidivina, a morte também os coloca acima aparece, tardiamente, como portador de um númen,
da condição humana. Em vez de descerem às tre- de uma temível potência sacra, ou por suas parti-
vas do Hades, eles são, graças ao divino, "arreba- cularidades físicas extraordinárias - tamanho, força,
tados", transportados, alguns ainda vivos, a maioria beleza -, ou pelas próprias circunstâncias de sua
após a morte, para um lugar especial, afastado, para morte, se ele tiver sido fulminado por um raio ou de-
as ilhas dos Bem-Aventurados, onde continuam a saparecido sem deixar vestígios, ou ainda pelos ma-
gozar, em permanente felicidade, de uma vida com- 1efícios atribuídos ao seu fantasma, a quem se mos-
parável à dos deuses. tra então necessário apaziguar. Um único exemplo:
Sem preencher a intransponível distância que em pleno século V, o pugilista deomedes de Asti-
separa os humanos dos deuses, o estatuto heróico, paléia, dotado de uma força excepcional, mata seu
desse modo, parece abrir a perspectiva da promoção adversário durante o combate; privado do prêmio
de um mortal a um estatuto, se não divino, pelo me- por decisão dos juízes, volta para casa enlouquecido
nos próximo do divino. Mas, durante todo o período de furor. Numa escola, agarra -se ao pilar que sus-
clássico, essa possibilidade permanece rigorosamen- tenta o teto; este desaba sobre as crianças. Persegui-
te confinada num estreito setor. Ela é contrariada, do pela multidão, que quer apedrejá-lo, esconde-se
para não dizer repelida, pelo próprio sistema reli- no santuário de Atena, dentro de uma arca cuja tam-
gioso. De fato, a piedade, como a sabedoria, ordena pa ele fecha sobre si. Finalmente, conseguem arrom-
não pretender igualar-se a um deus. Os preceitos de bá-la. A arca está vazia. Nada de Cleomedes, nem
Delfos: "Sabe quem tu és", "Conhece-te a ti mesmo" vivo nem morto. Consultada, a Pítia recomenda ins-
não têm outro sentido. O homem deve aceitar seus tituir um culto heróico em homenagem a esse pugi-
50 MITO E RELIGIÃO NA GRtCIA ANTIGA A RELIGIÃO eMCA 51

lista, colocado acima do comum por sua força, sua Se a cidade pôde reunir numa mesma categoria
fúria, seus malefícios, sua morte: é preciso sacrifi- cultual as figuras bem individualizadas dos heróis de
car-se a ele" como já não sendo um mortal". Mas o antanho cuja biografia lendária a epopéia havia fixa-
oráculo assinala sua reserva ao proclamar ao mes- do, dos contemporâneos notáveis, dos defuntos anô-
mo tempo, como relata Pausânias, que Cleomedes nimos dos quais só restava o monumento funerário,
é "o último herói". das espécies de demônios funcionais, é que, dentro
Não nos enganemos. Não importa que os he- de seus túmulos, eles manifestavam os mesmos con-
róis constituam, através das honrarias que lhes são luios com as potências subterrâneas, compartilha-
prestadas, uma categoria de seres sobre-humanos: vam o mesmo caráter de localização territorial e po-
seu papel, seu poder, os domínios nos quais eles in- diam ser igualmente utilizados como símbolos polí-
tervêm não interferem com os dos deuses. Eles se si- ticos. Instituído pela cidade nascente, ligado ao terri-
tuam em outro plano e jamais exercem, da terra para tório desta, que ele protege, aos grupos de cidadãos,
o céu, um papel de intermediários. Os heróis não que ele patrocina, o culto dos heróis não desembo-
fazem as vezes de intercessores. São Potências" in- cará, na época helenística, na divinização de per-
dígenas" ligadas àquele ponto do solo onde têm sua sonagens humanos nem no estabelecimento de um
morada subterrânea; sua eficácia adere à tumba e à culto dos soberanos: esses fenômenos se ligam a
ossada de cada um. Existem heróis anônimos, desig- uma mentalidade religiosa diferente. Solidário à ci-
nados apenas pelo nome do lugar onde foi estabe- dade, o culto heróico declinará junto com ela.
lecido seu túmulo; é o caso do herói de Maratona. Seu advento, contudo, não terá sido sem conse-
Esse caráter local é paralelo a uma rigorosa especia- qüências. Por sua novidade, o culto heróico levou a
lização. Muitos heróis não têm outra realidade além um esforço de definição e de categorização mais es-
da estrita função à qual se destinam e que os define tritas das diversas potências sobrenaturais. Hesíodo,
inteiramente. Em Olímpia, na curva da pista, havia no século VII, foi o primeiro a distinguir de modo
uma tumba sobre a qual os concorrentes ofereciam claro e nítido, como notará Plutarco, as diferentes
sacrifícios: a do herói Taraxipo, o Espanta -Cavalos. classes de seres divinos repartidos entre quatro gru-
De igual modo, encontram-se heróis médicos, guar- pos: deuses, demônios, heróis, mortos. Retomada pe-
da-portões, cozinheiros, enxota-moscas, um herói da los pitagóricos e por Platão, essa nomenclatura das
refeição, da fava, do açafrão, um herói para misturar divindades às quais os homens devem veneração
a água e o vinho ou para moer o grão. aparece com bastante freqüência, no século IV, para
52 MITO E REUGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA

figurar nas perguntas que os consulentes dirigem ao DOS HOMENS AOS DEUSES: O SACRIFíCIO
oráculo de Dodona. Numa das inscrições ali encon-
tradas, certo Euandros e sua mulher interrogam o
oráculo para saber" a qual dos deuses, ou dos heróis,
ou dos demônios" eles devem sacrificar-se e dirigir
suas preces.

Para orientar-se em sua prática cultuai, portanto,


o fiel deve levar em conta a ordem hierárquica que
preside à sociedade do além. No topo, os theoí, os
deuses, grandes e pequenos, que formam a raça dos
Bem-Aventurados Imortais. Agrupados sob a auto-
ridade de Zeus, eles são os olimpianos. Portanto, di-
vindades celestes, em princípio, embora alguns de-
les, como Posêidon e Deméter, comportem aspectos
ctonianos. Existe, é claro, um deus do mundo subter-
râneo' Hades, mas ele é precisamente o único a não
ter nem templo nem culto. Os deuses são tornados
presentes neste mundo em espaços que lhes perten-
cem: primeiro, os templos onde residem, mas tam-
bém os locais e os objetos que lhes são consagrados
e que, especificados como hierá, sagrados, podem ser
alvo de interdições: bosque (á/50S), bosquete, fonte,
cimo de um monte, terreno delimitado por uma cer-
54 MITO E RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA DOS HOMENS AOS DEUSES, O SACRIFlcIO 55

ca OU por marcos (témenos), encruzilhada, árvore, pe- fogo que envia à divindade a parte que lhe cabe, es-
dra, obelisco. O templo, morada reservada ao deus tabelecendo assim o contato entre a Potência sagra-
como seu domicílio, não serve de local de culto onde da destinatária do sacrifício e os executantes do rito,
os fiéis se reuniriam para celebrar os ritos. É o altar aos quais essas carnes grelhadas estão reservadas.
exterior, o bomós, bloco de alvenaria quadrangular, O resto da carne, fervido em caldeirões e depois cor-
que preenche essa função: em torno dele e sobre ele tado em porções iguais, é às vezes consumido no lo-
cumpre-se o rito central da religião grega cuja aná- cal, às vezes levado para casa pelos participantes, e
lise se impõe em primeiro lugar, a saber, o sacrifí- outras distribuído fora, no âmbito de uma comuni-
cio, a thysia. Normalmente, trata-se de um sacrifício dade menos ou mais ampla. Certas partes de honra,
cruento de tipo alimentar: um animal doméstico, como a língua ou o couro, cabem ao sacerdote que
enfeitado, coroado, ornado de fitas, é levado em cor- presidiu à cerimônia, mesmo que sua presença não
tejo ao som das flautas até o altar, aspergido com seja indispensável. Em princípio, todo cidadão, se
água lustrai e com um punhado de grãos de cevada não tiver nenhuma mácula, está plenamente quali-
que também são lançados sobre o solo, o altar e os ficado para proceder ao sacrifício. Tal é o modelo cor-
participantes, também eles portadores de coroas. A rente, cujo alcance religioso será necessário definir,
cabeça davítima é então levantada; cortam-lhe a gar- distinguindo suas implicações teológicas. Mas al-
ganta com um golpe de máchaira, uma espada curta guns esclarecimentos sâo desde já indispensáveis
dissimulada sob os grãos no kaneoyn, o cesto ritual. para nuançar esse quadro.
O sangue que jorra sobre o altar é recolhido num re- Certas divindades e certos rituais, como o de
cipiente. O animal é aberto; extraem -se suas vísceras, Apolo Genetor em Delfos e o de Zeus Hypatos na
especialmente o fígado, que são examinadas para Ática, exigem, em vez do sacrifício cruento, oblações
que se saiba se os deuses aprovam o sacrifício. Nes- vegetais: frutos, ramos, sementes, mingau (pelanós),
se caso, a vítima é logo retalhada. Os ossos longos, bolos, aspergidos com água, leite, melou azeite, ex-
inteiramente descarnados, são postos sobre o altar. cluindo-se o sangue e mesmo o vinho. Há casos em
Envoltos em gordura, são consumidos pelas chamas que oferendas desse tipo, quase sempre consumidas
com aromatizantes e, sob a forma de fumaça per- no fogo, mas às vezes simplesmente depositadas so-
fumada, elevam -se para o céu, em direção aos deu- bre o altar sem serem queimadas (ápyra), assumem
ses. Alguns pedaços internos, os splágchna, enfiados um caráter de nítida oposição à prática corrente. Con-
em espetos, são grelhados sobre o altar, no mesmo siderados como sacrifícios "puros", contrariamente

l
56 MITO E RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA DOS HOMENS AOS DEUSES, O SACRIFlcIO 57

àqueles que implicam a execução de um ser vivo, ser- fiança recíproca, que de afastar forças sinistras, de
virão de modelo a correntes sectárias. Órficos e pi- pacificar uma Potência temível cuja abordagem, para
tagóricos os invocarão para pregar, em seu modo de não ser nefasta, exige defesa e precaução. Ritual de
vida, um comportamento ritual e uma atitude pe- aversão, poderíamos dizer, mais que de aproxima-
rante o divino que, rejeitando como ímpio o sacri- ção, de contato. É compreensível que seu uso seja
fício cruento, irão distinguir-se do culto oficial e pa- essencialmente reservado ao culto das divindades
recerão estranhos à religião cívica. ctonianas e infernais, aos ritos expiatórios, aos sa-
Por outro lado, o próprio sacrifício cruento com- crifícios oferecidos aos heróis e aos mortos, no fun-
porta duas formas diferentes, conforme se dirija a do de seus túmulos.
deuses celestes e olimpianos ou a deuses ctonianos
e infernais. A língua já os distingue; os gregos em-
pregam, para os primeiros, o termo thyefn e, para os Repasto de festa
segundos, enagizefn ou sphattefn.
A thysía, como vimos, tem por centro um altar . No sacrifício olimpiano, a orientação voltada para
elevado, o bomós. O sacrifício ctoniano não compor- as divindades celestes não é marcada somente pela
ta altar, a não ser um altar baixo, eschára, com um ori- luz do dia, pela presença do altar, pelo sangue que
fício para que o sangue escoe para dentro da terra. jorra para o alto por ocasião da degola. Um traço fun-
É celebrado normalmente à noite, sobre uma cova damental desse ritual é ser ele, indissociavelmente,
(bóthros) que abre o caminho para o mundo infernal. uma oferenda para os deuses e um repasto de fes-
O animal é imolado, já não com a cabeça puxada ta para os homens. O ponto culminante da ação é
para o alto, mas em direção à terra que o sem dúvida o instante, pontuado pelo grito ritual, o
sangue vai inundar. Uma vez degolada, a vítima já ololygmós, em que a vida abandona o animal e pas-
não é alvo de nenhuma manipulação ritual: ofere- sa para o além, para a companhia dos deuses; mas
cida em holocausto, é inteiramente queimada sem isso não impede que todas as partes dele, cuidado-
que os celebrantes sejam autorizados a tocá-la e so- samente recolhidas e tratadas, sejam destinadas aos
bretudo a comer dela. Nesse tipo de rito, em que a homens, que as consomem juntos. A própria imola-
oferenda é aniquilada para ser entregue em sua to- ção se produz numa atmosfera de cerimônia fausto-
talidade ao além, trata-se menos de estabelecer com sa e alegre. Toda a encenação ritual, desde a procis-
a divindade um intercâmbio regular, dentro da con- são em que o animal, em grande pompa, é conduzi-
58 MITO E RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA DOS HOMENS AOS DEUSES; O SACRlFiao 59

do livremente, sem amarras, até a dissimulação do família e no Estado, o sacrifício ilustra a estreita im-
cutelo dentro do cesto e o estremecimento pelo qual bricação entre o religioso e o social na Grécia das ci-
a vítima, aspergida, supostamente concorda com a dades. Sua função não é arrancar o sacrificante e os
imolação, tudo visa a apagar os vestígios da violên- participantes, pelo tempo que durar o rito, aos seus
cia e da execução para colocar em primeiro plano grupos familiares e cívicos, às suas atividades cor-
o aspecto de solenidade pacífica e de festa jubilosa. riqueiras, ao mundo humano que é o deles, mas, ao
Acrescentemos que, na economia da thysia, os pro- contrário, instalá-los nessas situações, no local e nas
cedimentos de retalhamento da vítima, de cozimen- formas exigidas, integrá-los à cidade e à existência
to dos pedaços, grelhados ou fervidos, de sua repar- deste mundo segundo a ordem do mundo à qual os
tição determinada em fatias iguais, de seu consumo deuses presidem. Religião "intramundana", no sen-
no local ou fora dele (apophorâ) não são menos im- tido de MaxWeber, religião "política", na acepção
portantes que as operações rituais de abate. Essa grega do termo. Nela, o sagrado e o profano não for-
função alimentar do rito exprime-se num vocabu- mam duas categorias radicalmente contrárias, exclu-
1ário em que sacrifício e açougue não se distinguem. dentes uma da outra. Entre o sagrado inteiramente
O termo hiereión, que designa um animal como ví- proibido e o sagrado plenamente utilizável, encon-
tima sacrificial, qualifica -o também como animal de tra-se uma multiplicidade de formas e de graus. Além
corte, pr9prio para o consumo. Como os gregos só das realidades que são dedicadas a um deus, reser-
comem carne por ocasião dos sacrifícios e conforme vadas ao seu uso, há algo de sagrado nos objetos,
as regras sacrificiais, a thysia é, simultaneamente, um nos seres vivos, nos fenômenos da natureza, assim
cerimonial religioso em que uma piedosa oferenda, como nos atos corriqueiros da vida privada - uma
com freqüência acompanhada de oração, é ende- refeição, uma partida em viagem, a acolhida a um
reçada aos deuses; uma cozinha ritualizada segun- hóspede - e naqueles, mais solenes, da vida pública.
do as normas alimentares que os deuses exigem dos Todo pai de família assume em sua residência fun-
humanos; e um ato de comunhão social que, pelo ções religiosas para as quais está qualificado sem
consumo das partes de uma mesma vítima, reforça preparação especial. Qualquer dono de casa é puro,
os vínculos que devem unir os cidadãos e torná -los se não tiver cometido um erro que o deixe maculado.
iguais entre si. Nesse sentido, a pureza não tem de ser adquirida ou
Peça central do culto e elemento cuja presença é obtida; ela constitui o estado normal do cidadão. Na
indispensável em todos os níveis da vida coletiva, na cidade, não existe separação entre sacerdócio e ma-
60 MITO E REUGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA DOS HOMENS AOS DEUSES: O SACRIFlc/O 61

gistratura. Há sacerdócios que são atribuídos por di- mem grego institui e mantém com a divindade um
reito e ocupados como magistraturas, e todo magis- contato sem o qual sua existência, abandonada a si
trado, em suas funções, reveste-se de um caráter mesma, desmoronaria, vazia de sentido. Esse conta-
sagrado. Todo poder político, para ser exercido, toda to não é uma comunhão: não se come o deus, mes-
decisão comum, para ser válida, exigem a prática de mo sob forma simbólica, para identificar-se com ele
um sacrifício. Na guerra ou na paz, antes de travar e participar de sua força. Consome-se uma vítima
batalha ou na abertura de uma assembléia, ou ainda animal, um bicho doméstico, e come-se dele uma
na posse dos magistrados, a execução de um sacrifí- parte diferente da que é oferecida aos deuses. O
cio não é menos necessária que durante as grandes vínculo que o sacrifício grego estabelece sublinha e
festas religiosas do calendário sacro. Como lembra confirma, na própria comunicação, a extrema distân-
com justeza Marcel Detienne em La Cuisine du sa- cia que separa mortais e imortais.
criftce en pays grec [A cozinha do sacrifício em ter-
ra grega]: "Até uma época tardia, uma cidade como
Atenas conserva em exercício um arconte rei do qual Os ardis de Prometeu
uma das maiores atribuições é a administração de
todos os sacrifícios instituídos pelos antepassados, Quanto a isso, os mitos de fundação do sacrifício
do c5mjunto dos gestos rituais que garantem o fun- são muito precisos. Esclarecem plenamente as sig-
cionamento harmonioso da sociedade."1 nificações teológicas do ritual. O Titã Prometeu, filho
Se a thysia se revela tão indispensável para as- de Jápeto, é quem teria instituído o primeiro sacrifí-
segurar às práticas sociais sua validade, é que o fogo cio, fixando assim para sempre o modelo ao qual os
sacrificial, ao fazer subir para o céu a fumaça dos per- humanos se adaptam para honrar os deuses. O epi-
fumes, da gordura e dos ossos, cozinhando ao mes- sódio se passa num tempo em que deuses e homens
mo tempo a parte dos homens, abre entre os deuses ainda não estavam separados: viviam juntos, feste-
e os participantes do rito uma via de comunicação. jando às mesmas mesas, compartilhando a mesma
Ao imolar uma vítima, ao queimar-lhe os ossos, ao felicidade, longe de todos os males. Os humanos
comer a carne dela segundo as regras rituais, o ho- desconheciam então a necessidade do trabalho, as
doenças, a velhice, as fadigas, a morte e a espécie
das mulheres. Tendo Zeus sido promovido a rei do
1. Volume coletivo, sob a direção de M. Detienne e J.-P. Vernant,
Paris, 1979,p. 10. céu e procedido, entre deuses, a uma justa repartição
62 MITO E REUGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA DOS HOMENS AOS DEUSES: O SACRIFiCIO 63

das honrarias e das funções, chegou o momento de nava que, destinando-a aos humanos, reservava-lhes
fazer o mesmo entre homens e deuses e de delimi- a melhor parte. Porém, por mais esperto que fosse,
tar exatamente o tipo de vida próprio a cada uma das não desconfiava de que estava dando a eles um pre-
duas raças. Prometeu é encarregado da operação. sente envenenado. Ao comerem a carne, os huma-
Diante de deuses e homens reunidos, ele traz, abate nos assinam sua sentença de morte. Dominados pela
e retalha um enorme boi. De todos os pedaços cor- lei do ventre, doravante irão comportar-se como to-
tados, faz duas partes. A fronteira que deve separar dos os animais que povoam a terra, as ondas ou o ar.
deuses e homens segue, portanto, a linha de partilha Se eles se comprazem em devorar a carne de um bi-
entre aquilo que, no animal imolado, cabe a uns e cho a quem a vida abandonou, se têm uma imperio-
a outros. O sacrifício aparece assim como o ato que sa necessidade de alimento, é que sua fome jamais
consagrou, efetuando-a pela primeira vez, a segre- mitigada, sempre renascente, é a marca de uma cria-
gação dos estatutos divino e humano. Mas Prome- tura cujas forças pouco a pouco se desgastam e se
teu, em rebelião contra o rei dos deuses, quer enga- esgotam, uma criatura condenada à fadiga, ao enve-
ná-lo em proveito dos homens. Cada uma das duas lhecimento e à morte. Contentando-se com a fuma-
partes preparadas pelo Titã é um ardil, uma armadi- ça dos ossos, vivendo de odores e de perfumes, os
lha. A primeira, sob a camuflagem de um pouco de deuses demonstram pertencer a uma raça cuja natu-
gordura apetitosa, só contém os ossos descamados; reza é inteiramente diferente da dos homens. Eles
a segunda esconde, sob o couro e o estômago, de as- são os Imortais, sempre vivos, eternamente jovens,
pecto repulsivo, tudo o que há de comestível no ani- cujo ser não comporta nada de perecível, e que não
mal. O seu ao seu dono: cabe a Zeus, em nome dos têm nenhum contato com o domínio do corruptível.
deuses, escolher primeiro. Ele, porém, compreende Mas Zeus, em sua cólera, não limita sua vingan-
a armadilha e finge cair nela para melhor requintar ça a isso. Antes mesmo de se produzir, de terra e
sua vingança. Então, escolhe a porção externamen- água, a primeira mulher, Pandora, que introduzirá no
te tentadora, a que dissimula, sob uma fina camada meio dos homens todas as misérias que eles não co-
de gordura, os ossos incomíveis. Essa é a razão pela nheciam antes - o nascimento por procriação, as
qual, nos altares odoríferos do sacrifício, os homens fadigas, o trabalho árduo, as doenças, a velhice e a
queimam para os deuses os ossos brancos da vitima morte -, ele decide, para fazer com que o Titã pague
cujas carnes vão partilhar. Guardam para si a porção sua parcialidade em favor dos humanos, não mais
que Zeus não reteve: a da vianda. Prometeu imagi- conceder-lhes o gozo do fogo celeste, do qual eles

b
64 MITO E REUGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA DOS HOMENS AOS DEUSES, O SACRIFlc/O 65

dispunham até então. Privados do fogo, os homens ção também equívoca dos homens com os animais.
deverão devorar a carne crua, como fazem os ani- Para viver, uns e outros precisam comer, quer seu ali-
mais? Prometeu furta então, na umbela de uma fé- menta se componha de vegetais ou de carne. Assim,
rula, uma centelha, uma semente de fogo que ele traz são todos igualmente perecíveis. Mas os homens são
para a terra. Na falta do corisco do raio, os homens os únicos que comem carne cozida, segundo certas
passam a dispor de um fogo técnico, mais frágil e regras e depois de oferecerem aos deuses, para hon-
mortal, que é preciso conservar, preservar e nutrir ali- rá-los' a vida do animal que lhes é dedicada com os
mentando-o incessantemente para que não se apa- ossos. Se os grãos de cevada, espalhados sobre a ca-
gue. Ao cozinhar o alimento, esse fogo secundário, beça da vítima e sobre o altar, são associados ao sa-
derivado, artificial em relação ao fogo celeste, distin- crifício cruento, é porque os cereais, alimento espe-
gue os homens dos bichos e os instala na vida civili- cificamente humano, que implica o trabalho agrico-
zada. Os humanos tornam-se então os únicos, entre la, representam aos olhos dos gregos o modelo das
todos os animais, a compartilhar com os deuses a plantas cultivadas que simbolizam, em contraste com
posse do fogo. Assim, é ele que os une ao divino ele- uma existência selvagem, a vida civilizada. Tripla-
vando-se dos altares onde está aceso em direção ao mente cozidos (por uma cocção interna que a lavra
céu. Mas esse fogo, celeste por sua origem e por sua favorece, pela ação do sol e pela mão do homem,
destinação, é também, por seu ardor devorante, pe- que com eles faz pão), os cereais são análogos às
recível como as outras criaturas vivas submetidas à vítimas sacrificiais, animais domésticos cujas carnes
necessidade de comer. A fronteira entre deuses e devem ser ritualmente assadas ou fervidas antes de
homens é simultaneamente atravessada pelo fogo serem comidas.
sacrificial que os une uns aos outros e sublinhada No mito prometéico, o sacrifício aparece como
pelo contraste entre o fogo celeste, nas mãos de Zeus, o resultado da rebelião do Titã contra Zeus no mo-
/
e aquele que o furto de Prometeu pôs à disposição mento em que homens e deuses devem separar-se
dos homens. Por outro lado, a função do fogo sacri- e fixar sua respectiva sorte. A moral dessa narrativa
ficial consiste em distinguir, na vítima, a parte dos é que não se pode esperar ludibriar o espírito do so-
deuses, totalmente consumida, e a dos humanos, ape- berano dos deuses. Prometeu tentou isso; e o preço
nas cozida o suficiente para não ser devorada crua. do seu fracasso deve ser pago pelos homens. Portan-
Essa relação ambígua entre os homens e os deuses to sacrificar, comemorando a aventura do Titã, fun-
no sacrifício alimentar é acompanhada de uma rela- dador do rito, é aceitar sua lição. É reconhecer que,
66 MITO E RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA DOS HOMENS AOS DEUSES: O SACRIFlc/O 67

através da realização do sacrifício e de tudo o que ele repartição exata, une estreitamente o sacrifício, no
acarretou para o homem - o fogo prometéico, a ne- ritual e no mito, à agricultura cerealífera e ao casa-
cessidade do trabalho, a mulher e o casamento para mento, ambos definidores, em comum com o sacri-
ter filhos, os sofrimentos, a velhice e a morte -, Zeus fício, da posição específica do homem civilizado. As-
situou os homens no lugar onde eles devem man- sim como, para sobreviver, precisa consumir a carne
ter-se: entre os animais e os deuses. Sacrificando, o cozida de um animal doméstico sacrificado segun-
homem se submete à vontade de Zeus, que fez dos do as regras, ele também necessita alimentar-se do
mortais e dos Imortais duas raças distintas e separa- sitos, da farinha cozida de plantas domésticas regu-
das. A comunicação com o divino se institui durante 1armente cultivadas, e, para sobreviver a si mesmo,
um cerimonial de festa, de uma refeição destinada a gerar um filho pela união com uma mulher que o ca-
lembrar que a antiga comensalidade acabou: deu- samento arrancou do estado selvagem para domes-
ses e homens já não vivem juntos, já não comem às ticá-la, fixando-a ao lar conjugal. No sacrifício gre-
mesmas mesas. Não é possível sacrificar conforme o go, em razão dessa mesma exigência de equilíbrio,
modelo que Prometeu estabeleceu e ao mesmo tem- o sacrificante, a vítima e o deus, embora associados
po pretender, seja de que maneira for, igualar-se aos no rito, nunca são normalmente confundidos, mas
deuses. No próprio rito que visa a reunir os deuses mantidos a uma boa distância, nem perto demais
e os homens, o sacrifício consagra a distância intrans- nem longe demais. O fato de essa poderosa teologia,
ponível que doravante os separa. solidária a um sistema social em sua maneira de es-
tabelecer barreiras entre o homem e aquilo que não
é ele, de definir as relações dele com o aquém e o
Entre animais e deuses além do humano, estar inscrita no nível dos proce-
dimentos alimentares explica que as extravagâncias
Pela observância de regras alimentares, o rito es- de dieta, entre os órficos e os pitagóricos de um lado
tabelece o homem no estatuto que lhe é próprio: a e certas práticas dionisíacas de outro, tenham uma
uma justa distância da selvageria dos animais, que Significação propriamente teológica e traduzam pro-
devoram uns aos outros inteiramente crus, e da imu- fundas divergências na orientação religiosa. O vege-
tável felicidade dos deuses, que ignoram a fome, a tarianismo, a abstenção de carne, é a recusa ao sa-
fadiga e a morte, porque alimentados de perfume e crifício cruento, assimilado ao homicídio contra um
de ambrosia. Esse cuidado de delimitação precisa, de próximo. No pólo oposto, a omofagia, o diasparágmos
68 MITO E RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA

das Bacantes, isto é, a devoração crua de um animal o MISTICISMO GREGO


acuado e despedaçado vivo, é a inversão dos valores
normais do sacrifício. Mas, quer a pessoa contorne
o sacrifício pelo alto, alimentando-se, como os deu-
ses' de iguarias inteiramente puras e no limite de
odores, quer o subverta por baixo, eliminando, pela
diluição das fronteiras entre homens e animais, to-
das as distinções que o sacrifício estabelece, de modo
que realize um estado de completa comunhão do
qual é possível dizer tanto que ele é um retomo à
doce familiaridade de todas as criaturas na idade de
ouro como a queda na confusão caótica da selvage- O sacrificio cruento e o culto público não ocupam
ria, trata-se, nos dois casos, de instaurar, seja pela todo o campo da piedade grega. Ao lado deles exis-
ascese individual, seja pelo frenesi coletivo, um tipo tem correntes e grupos, menos ou mais desviantes e
de relação com o divino que a religião oficial, atra-
marginais, menos ou mais fechados e secretos, que
vés dos procedimentos do sacrifício, exclui e proíbe.
traduzem aspirações religiosas diferentes. Alguns fo-
Também nos dois casos, por meios inversos e com
ram inteira ou parcialmente integrados ao culto cívi-
implicações contrárias, a distância normal entre o sa-
co; outros permaneceram estranhos a ele. Todos con-
crificante, a vítima e a divindade se embaralha, esfu-
ma-se e desaparece. A análise da cozinha sacrificial tribuíram, de maneiras diversas, para abrir caminho
leva assim a distribuir, como num quadro, as posi- a um "misticismo" grego marcado pela tentativa de
ções menos ou mais excêntricas, menos ou mais in- um contato mais direto, mais íntimo, mais pessoal
tegradas ou marginais, ocupadas por diversos tipos com os deuses, às vezes associado à busca de uma
de seitas, de correntes religiosas ou de atitudes filo- imortalidade bem -aventurada, ora outorgada após a
sóficas, em ruptura não só com as formas regulares morte por favor especial de uma divindade, ora ob-
do culto mas também com o quadro institucional da tida pela observância de uma regra de vida pura, re-
cidade e com tudo o que ele implica em relação ao servada somente aos iniciados e que lhes dava o pri-
estatuto do homem, quando ele está, social e religio- vilégio de liberar, já na existência terrena, a parcela
samente, em ordem. de divino que permanecera presente em cada um.
70 MITO E REUGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA O MISTIOSMO GREGO 71

No que concerne ao período clássico, convém peça, uma experiência do sobrenatural estranha e até,
distinguir nitidamente, nesse plano, três tipos de fe- sob vários aspectos, oposta ao espírito do culto oficial.
nômenos religiosos. A despeito de alguns pontos de Por fim, aquilo que é chamado orfismo. Nesse
contato, difíceis de delimitar com precisão mas que caso, já não se trata de cultos específicos, nem de
são atestados pelo emprego comum de certos termos devoção a uma divindade singular, nem mesmo de
relativos ao assunto - teleté, orgías, mystai, bákchoi _, uma comunidade de crentes organizados em seita
não se pode assimilá-los de modo algum. Eles não à maneira dos pitagóricos, quaisquer que possam ter
são realidades religiosas da mesma ordem; não têm sido as interferências entre as duas correntes. O or-
nem o mesmo estatuto nem a mesma finalidade. fismo é uma nebulosa na qual encontramos, de um
Em primeiro lugar, os mistérios. Os de Elêusis, lado, uma tradição de livros sagrados, atribuídos a
exemplares por seu prestígio e seu brilho, constituem Orfeu e Museu, que comportam teogonias, cosmo-
na Ática um conjunto cultuaI bem delimitado. Ofi- gonias, antropogonias "heterodoxas"; e, de outro,
cialmente reconhecidos pela cidade, são organiza- personagens de sacerdotes itinerantes, que pregam
dos sob o controle e a tutela desta. Contudo, ficam à um estilo de existência contrário à norma, um regi-
margem do Estado por seu caráter iniciático e secre- me vegetariano, e que dispõem de técnicas de cura,
to, assim como por seu modo de recrutamento aber- de receitas de purificação para esta vida e de salvação
to a todos os gregos e baseado não no estatuto social para a outra. O destino da alma depois da morte é ob-
mas na opção pessoal dos indivíduos. jeto, nesses ambientes, de preocupações e de disser-
Em seguida, o dionisismo. Os cultos dionisíacos tações às quais os gregos não estavam acostumados.
fazem parte integrante da religião cívíca, e as festas Como se situa, em relação a um sistema cultuaI
em homenagem a Dioniso são celebradas da mesma baseado no respeito aos nómoi, às regras socialmente
maneira que qualquer outra dentro do calendário sa- reconhecidas pela cidade, cada um desses três gran-
grado. Mas, como deus da manía, da loucura divina, des fenômenos religiosos?
por sua maneira de apossar-se dos fiéis entregues a
ele através do transe coletivo ritualmente pratica-
Os mistérios de Elêusis
do em seus tíasos, por sua repentina intrusão neste
mundo sob a forma de revelação epifânica, Dioniso Os mistérios não contradizem a religião cívica,
introduz, no seio da religião da qual constitui uma nem quanto às crenças nem quanto às práticas. Eles

...I...
·72 MITO E REUGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA o MISTICISMO GREGO 73

a completam acrescentando-lhe uma nova dimen- impunha o segredo, do qual nada devia transpirar
são, apropriada a satisfazer necessidades às quais ela para o lado de fora. A proibição era suficientemente
não respondia. Deméter e Corê-Perséfone, as duas poderosa para ter sido respeitada ao longo dos sécu-
deusas que patrocinam, com alguns acólitos, o ciclo los. Mas, embora os mistérios tenham mantido seu
eleusino, são grandes figuras do panteão, e a narra- segredo, hoje podemos tomar como certos alguns
tiva do rapto de Corê por Hades, com todas as suas pontos. Não havia em Elêusis nenhum ensinamento,
conseqüências até a fundação das órgia, dos ritos se- nada que se assemelhasse a uma doutrina esotérica.
cretos de Elêusis, faz parte do fundo comum das len- Sobre isso, o testemunho de Aristóteles é decisivo:
das gregas. Na série de etapas que o candidato devia "Os que são iniciados não devem aprender algo, mas
percorrer para atingir o termo derradeiro da iniciação experimentar emoções e ser levados a certas disposi-
- desde o estágio preliminar nos Pequenos Mistérios ções." Plutarco, por sua vez, evoca o estado de espí-
de Agra até a participação renovada nos Grandes rito dos iniciados, que passa da angústia ao arreba-
Mistérios, em Elêusis, devendo o m ystis aguardar o tamento. Essa subversão interior, de ordem afetiva,
ano seguinte para alcançar o grau de epóptes -, todo era obtida por drômena, coisas encenadas e imitadas,
o cerimonial na própria Atenas, em Falero para o ba- por legómena, fórmulas rituais pronunciadas, e por
nho ritual no mar, e na estrada pela qual seguia de deiknymena, coisas mostradas e exibidas. Pode-se su-
Atenas a Elêusis a imensa procissão que reunia, atrás por que elas se relacionavam com a paixão de Demé-
dos objetos sagrados, o clero eleusino, os magistra- ter, a descida de Corê ao mundo infernal e o destino
dos de Atenas, os mistes, as delegações estrangeiras dos mortos no Hades. O certo é que, terminada a ini-
e a multidão dos espectadores, desenvolvia-se à luz ciação, depois da iluminação final, o fiel tinha o sen-
do dia, aos olhos de todos. O arconte rei, em nome do timento de ter sido transformado por dentro. Dora-
Estado, era o encarregado da celebração pública dos vante ligado às deusas por uma relação pessoal mais
Grandes Mistérios, e mesmo as famílias tradicionais estreita, em íntima conivência e familiaridade com
dos Eymolpidas e dos Kérykes, especialmente ligadas elas, tornara -se um eleito, assegurado de ter, nes-
às duas deusas, eram responsáveis perante a cidade, ta vida e na outra, uma sorte diferente da comum.
que tinha o poder de regulamentar por decreto o de- "Bem-aventurado", afirma o Hino a Deméter, "quem
talhamento das festividades. teve plenamente a visão desses mistérios. O não-ini-
Somente quando os mistes, chegados ao local, já ciado, o profano, não conhece semelhante destino
tinham penetrado no recinto do santuário é que se depois da morte, na morada das Trevas." Sem apre-
74 MITO E RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA O MISTICISMO GREGO 75

sentar uma nova concepção da alma, sem romper Dioniso, o estranho estrangeiro
com a imagem tradicional do Hades, ainda assim os
mistérios abriam a perspectiva de continuar sob a À primeira vista, o estatuto do dionisismo pode
terra uma existência mais feliz. E esse privilégio re- parecer análogo ao dos mistérios. O culto também
comporta teletaí e órgia, iniciações e ritos secretos,
pousava sobre a livre opção de indivíduos que deci-
que não podem ser conhecidos por aqueles que não
diam submeter-se à iniciação e seguir um percurso
foram entronizados como bákchoi. Mas em Atenas
ritual em que cada etapa assinalava um novo pro-
as festas invemais de Dioniso, Oscofórias, Dionísias
gresso em direção a um estado de pureza religiosa.
rurais, Leneanas, Antestérias e Dionísias urbanas
Mas, de volta à sua casa, às suas atividades familia-
não formam como em Elêusis um conjunto segui-
res, profissionais, cívicas, o iniciado em nada se dis- do e encerrado em si mesmo, um ciclo fechado, mas
tinguia daquilo que era antes e tampouco dos que uma série descontínua, distribuída pelo calendário
não haviam conhecido a iniciação. Nenhum sinal ao lado das festas dos outros deuses e sujeita às mes-
exterior, nenhuma marca de reconhecimento, nem mas normas de celebração. Todas são cerimônias ofi-
sequer a mínima modificação do tipo de vida. O inic ciais de caráter plenamente cívico. Algumas compor-
ciado retoma à cidade e ali se reinstala para fazer o tam um elemento de segredo e requerem um grupo
que sempre fez, sem que nada tenha mudado nele, religioso especializado, como por ocasião do casa-
exceto sua convicção de ter adquirido, através dessa mento anual da rainha, esposa do arconte rei, com
experiência religiosa, a vantagem de incluir-se, de- Dioniso, a quem ela se une, durante as Antestérias,
pois da morte, no número dos eleitos: para ele, nas no Bucólion. Um colégio de catorze mulheres, as Ge-
Trevas ainda haverá luz, alegria, danças e cantos. Sem raraí, assistem-na nesse ofício e cumprem ritos se-
dúvida, essas esperanças relativas ao além poderão cretos no santuário de Dioniso, no Pântano. Mas o
ser retomadas, alimentadas, desenvolvidas em am- fazem" em nome da cidade" e "segundo suas tradi-
bientes de seitas que também utilizarão o simbolis- ções". Foi o próprio povo, conforme nos é esclareci-
mo dos mistérios, seu caráter secreto, sua hierarquia do, que editou essas prescrições e mandou guardá-las
de graus. Mas, para a cidade que os patrocina, para em lugar seguro, gravadas numa estela. Portanto o
os cidadãos, iniciados ou não, nada nos mistérios se casamento secreto da rainha tem valor de reconhe-
opõe àquilo que a religião oficial lhes exige como cimento oficial, por parte da cidade, da divindade de
uma parte dela mesma. Dioniso. Ele consagra a união da comunidade cívica
76 MITO E RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA O MISTICISMO GREGO 77

com o deus, sua integração à ordem religiosa cole- dade, contradizendo-a e ultrapassando-a. Instala no
tiva. As Tíades, que, a cada três anos, dirigem-se ao centro da vida pública comportamentos religiosos,
Parnaso para, em plena montanha, fazer-se Bacan- que, sob forma alusiva, simbólica ou de maneira aber-
tes junto com as de Delfos, também agem em nome ta, apresentam aspectos de excentricidade.
da cidade. Elas não formam um grupo segregado de Ê que, até no mundo dos deuses olimpianos ao
iniciados, uma confraria marginal de eleitos, uma qual foi admitido, Dioniso encarna, segundo a bela
seita de desviantes. São um colégio feminino oficial, frase de Louis Gernet, a figura do Outro. Seu papel
ao qual a cidade confia o encargo de representar Ate- não é confirmar e reforçar, sacralizando-a, a ordem
nas entre os délficos no âmbito do culto prestado a humana e social. Dioniso questiona essa ordem; ele
Dioniso no santuário de Apolo. a faz despedaçar-se ao revelar, por sua presença, ou-
Não parecem ter existido no século V, na Ática tro aspecto do sagrado, já não regular, estável e de-
ou mesmo, ao que parece, na Grécia continental, finido, mas estranho, inapreensível e desconcertan-
associações dionisíacas privadas, que recrutassem te. Único deus grego dotado de um poder de maya,
adeptos para celebrar, na intimidade de um grupo de magia, ele está além de todas as formas, escapa
fechado, um culto específico ou uma forma de con- a todas as definições, reveste todos os aspectos sem
vívio colocada sob o patrocínio do deus, como será se deixar encerrar em nenhum. À maneira de um
o caso, alguns séculos mais tarde, com os Ióbakchoi. ilusionista, joga com as aparências, embaralha as
Quando, por volta do século V, quer organizar um fronteiras entre o fantástico e o real. Ubiqüitário,
culto a Dioniso, a cidade de Magnésia do Meandro nunca está ali onde está, sempre presente ao mes-
funda três tíasos, depois de consultar Delfos: são três mo tempo aqui, alhures e em lugar algum. Assim que
colégios femininos oficiais postos sob a direção de ele aparece, as categorias distintas, as oposições ní-
sacerdotisas qualificadas, vindas especialmente de tidas, que dão coerência e racionalidade ao mundo,
Tebas para tal fim. esfumam-se, fundem-se e passam de umas para ou-
O que, então, faz a originalidade de Dioniso e de tras: o masculino e o feminino, aos quais ele se apa-
seu culto, em relação aos outros deuses? Contraria- renta simultaneamente; o céu e a terra, que ele une
mente aos mistérios, o dionisismo não se situa ao inserindo, quando surge, o sobrenatural em plena
lado da religião cívica para prolongá-la. Ele expri- natureza, bem no meio dos homens; nele e por ele,
me o reconhecimento oficial, por parte da cidade, de o jovem e o velho, o selvagem e o civilizado, o distan-
uma religião que, sob muitos aspectos, escapa à ci- te e o próximo, o além e este mundo se encontram.
78 MITO E RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA O MISTICISMO GREGO 79

E mais: ele elimina a distância que separa os deuses o menadismo, que é assunto de mulheres, com-
dos homens, e estes dos animais. Quando as Mêna- porta em seu paroxismo dois aspectos opostos. Para
des de seu tíaso se entregam, enlouquecidas, ao fre- os fiéis, em comunhão feliz com o deus, traz a ale-
nesi do transe, o deus se apossa delas, instala -se ne- gria sobrenatural de uma evasão momentânea para
las para submetê-las e conduzi-las a seu gosto. No um mundo de idade de ouro no qual todas as cria-
delírio e no entusiasmo, a criatura humana desem- turas vivas se vêem fraternalmente misturadas. Mas,
penha o papel de deus e este, dentro do fiel, o de ho- para as mulheres e as cidades que rejeitam o deus e
mem. De um a outro, as fronteiras embaralham-se que ele deve castigar a fim de coagi-las, a manía re-
bruscamente ou desaparecem, numa proximidade sulta no horror e na loucura das mais atrozes máculas:
em que o homem se vê como que desterrado de sua um retorno ao caos num mundo sem regra, no qual
mulheres enfurecidas devoram a carne dos seus pró-
existência cotidiana, de sua vida corriqueira, despren-
prios filhos, cujo corpo elas dilaceram com suas mãos
dido de si mesmo, transportado para um longínquo
como se se tratasse de animais selvagens. Deus dú-
alhures. Essa contigüidade que o transe estabelece
plice, que une duas faces em sua pessoa, como ele
com o divino faz-se acompanhar de uma familiari-
mesmo proclama emAs bacantes de Eurípides, Dioni-
dade nova com a selvageria animal. Sobre as Mêna-
so é ao mesmo tempo" o mais terrível e o mais doce".
des, acredita-se que, longe de seu ambiente domés- Para que se revele benéfica em sua doçura essa
tico, das cidades, das terras cultivadas, elas brincam Potência de estranheza, cuja irrepreensível exube-
com as serpentes, amamentam os filhotes dos ani- rância, cujo dinamismo invasor parecem ameaçar o
mais, como se fossem seus, e também os perseguem, equilibrio da religião cívica, é necessário que a cidad'e
atacam-nos e os dilaceram vivos (diasparagmós), de- acolha Dioniso, reconheça-o como seu, garanta-lhe
voram-nos inteiramente crus (omophagía), assimi- ao lado dos outros deuses um lugar no culto público ..
lando-se assim, em sua conduta alimentar, àqueles Celebrar solenemente, para toda a comunidade, as
bichos selvagens que, contrariamente aos homens, festas de Dioniso; organizar, para as mulheres, no
comedores de pão e da carne cozida de animais do- âmbito de tíasos oficializados e promovidos a insti-
mésticos ritualmente sacrificados aos deuses, se en- tuição pública, uma forma de transe controlado, do-
tredevoram e lambem o sangue uns dos outros, sem minado, ritualizado; desenvolver para os homens, no
regra nem lei, sem nada conhecer além da fome que júbilo do kômos, pelo vinho e pela embriaguez, o jogo
os impele. e a festa, a mascarada e o disfarce, a experiência de
80 MITO E RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA O MISTICISMO GREGO 81

um desterro em relação ao curso normal das coisas; deus poder ter sido associado, às vezes muito estrei-
enfim, fundar o teatro, em que, no palco, a ilusão ga- tamente' aos mistérios das duas deusas eleusinas. A
nha corpo e se anima, e o fictício se mostra como se esposa do arconte rei, quando parte para celebrar seu
fosse realidade: em todos os casos, trata-se, pela in- casamento com Dioniso, é assistida pelo arauto sa-
tegração de Dioniso à cidade e à religião desta, de grado de Elêusis; e nas Leneanas, talvez a mais an-
instalar o Outro, com todas as honras, no centro do tiga das festas áticas de Dioniso, é o porta -archote
dispositivo social. de Elêusis que comanda a invocação, retomada pelo
Plenitude do êxtase, do en tusiasmo, da posses- público: "Iaco, filho de Sêmele." O deus está presen-
são, é certo, mas também felicidade do vinho, da fes- te em Elêusis desde o século V. Presença discreta e
ta, do teatro, prazeres de amor, exaltação da vida no papel menor no próprio lugar, onde não tem nem
que ela comporta de impetuoso e de imprevisto, ale- templo nem sacerdote. Ele intervém sob a figura de
gria das máscaras e do travestismo, felicidade do co- Iaco, a quem é assimilado, e cuja função é presidir
tidiano: Dioniso pode trazer tudo isso, se homens à procissão de Atenas para Elêusis, por ocasião dos
e cidade aceitarem reconhecê-lo. Mas em nenhum Grandes Mistérios. Iaco é a personificação do jubilo-
caso vem anunciar uma sorte melhor no além. Ele so grito ritual, lançado pelo cortejo dos mistes, num
não preconiza a fuga para fora do mundo, não pre- ambiente de esperança e de festa. E, nas representa-
ga a renúncia nem pretende proporcionar às almas, ções de um além com o qual os fiéis do deus da ma-
por um tipo de vida ascético, o acesso à imortalida- nía não parecem preocupar-se muito, nessa época (à
de. Ele atua para fazer surgirem, desde esta vida e exceção, talvez, do sul da Itália), foi possível imagi-
neste mundo, em torno de nós e em nós, as múlti-
nar laco conduzindo sob a terra o coro bem-aven-
plas figuras do Outro. Ele nos abre, nesta terra e no
turado dos iniciados, assim como Dioniso conduz
próprio âmbito da cidade, o caminho de uma evasão
neste mundo o tíaso de suas bacantes.
para uma desconcertante estranheza. Dioniso nos
ensina ou nos obriga a tornar-nos o contrário daqui-
lo que somos comumente. o orfismo. Em busca da unidade perdida
É sem dúvida essa necessidade de evasão, essa
nostalgia de uma união completa com o divino, que, Os problemas do orfismo são de outra ordem.
mais que a descida de Dioniso ao mundo infernal Essa corrente religiosa, na diversidade de suas for-
para ali buscar sua mãe Sêmele, explica o fato de o mas, pertence essencialmente ao helenismo tardio,

.......
82 MITO E REUGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA o MISTICISMO GREGO 83

durante o qual ganhará mais amplitude. Várias des- gração das partes na unidade do Todo. Será, na sex-
cobertas recentes, porém, vieram confirmar a opinião ta geração, o advento do Dioniso órfico, cujo reinado
dos historiadores convencidos de que cumpria reser- representa o retomo ao Um, a reconquista da Ple-
var-lhe um lugar na religião da época clássica. Co- nitude perdida. Mas Dioniso não se limita a fazer
mecemos pelo primeiro aspecto do orfismo: uma tra- sua parte numa teogonia que substitui a emergên-
dição de textos escritos, de livros sagrados. O papiro cia progressiva de uma ordem diferenciada por uma
de Derveni, encontrado em 1962 num túmulo per- queda na divisão continuada e como que resgatada
to de Salônica, prova que, no século V e sem dúvida por uma reintegração no Todo. Na narrativa de seu
já no século VI, circulavam teogonias que os filóso- desmembramento pelos Titãs que o devoram, de sua
fos pré-socráticos podem ter conhecido e nas quais reconstituição a partir do coração, preservado intac-
Empédocles parece ter se inspirado parcialmente. to, dos Titãs fulminados por Zeus, do nascimento, a
Assim, um primeiro traço do orfismo aparece desde partir das cinzas deles, da raça humana - narrativa
a origem: uma forma "doutrinária" que o opõe tan- que nos é atestada na época helenística mas à qual
to aos mistérios e ao dionisismo quanto ao culto ofi- já parecem aludir Píndaro, Heródoto e Platão -, o
cial, para aproximá -lo da filosofia. Essas teogonias próprio Dioniso assume em sua pessoa de deus o
nos são conhecidas sob versões múltiplas mas de duplo ciclo de dispersão e de reunificação, ao longo
mesma orientação fundamental: elas se opõem dia- de uma "paixão" que envolve diretamente a vida
metralmente à tradição hesiódica. Em Hesíodo, o dos homens, visto que fundamenta miticamente a
universo divino organiza -se segundo um progresso desgraça da condição humana ao mesmo tempo
linear que conduz da desordem à ordem, de um es- que abre, para os mortais, a perspectiva da salvação.
tado original de confusão indistinta a um mundo Oriunda das cinzas dos Titãs fulminados, a raça dos
diferenciado e hierarquizado sob a autoridade imu- homens carrega como herança a culpa de ter des-
tável de Zeus. Entre os órficos, dá -se o inverso: na membrado o corpo do deus. Mas, purificando-se da
origem, o Princípio, Ovo primordial ou Noite, expri- falta ancestral pelos ritos e pelo tipo de vida órficos,
me a unidade perfeita, a plenitude de uma totalida- abstendo-se de toda carne para evitar a impureza
de fechada. Mas o Ser degrada-se à medida que a desse sacrifício cruento que a cidade santifica mas
unidade se divide e se desmancha para fazer apare- que lembra, para os órficos, o monstruosO festim dos
cerem formas distintas, indivíduos separados. A esse Titãs, cada homem, tendo guardado em si uma par-
ciclo de dispersão deve suceder um ciclo de reinte- cela de Dioniso, pode, também, retomar à unidade
84 MITO E REUGLÃO NA GRÉCIA ANTIGA O MISTICISMO GREGO 85

perdida, reencontrar o deus e recuperar no além uma lã, atribui essa prescrição" aos cultos que são deno-
vida de época áurea. As teogonias órficas desembo- minados órficos e báquicos". Mas essas aproxima-
cam, portanto, numa antropogonia e numa soterio- ções não são decisivas, visto que o termo "báquico"
logia que lhes dão seu verdadeiro sentido. Na lite- não era reservado exclusivamente aos rituais dioni-
ratura sacra dos órficos, o aspecto doutrinaI não é síacos. A única atestação de uma interferência dire-
separável de uma busca da salvação; a adoção de um ta entre Dioniso e os órficos, simultaneamente à de
tipo de vida puro, o descarte de toda mácula, a esco- uma dimensão escatológica de Dioniso, situa-se à
lha de um regime vegetariano traduzem a ambição margem da Grécia, à beira do mar Negro, na Ólbia
de escapar à sorte comum, à finitude e à morte, de do século V. Ali foram descobertos, em placas de
unir-se inteiramente ao divino. A rejeição do sacri- osso, grafitos nos quais se podem ler, inscritas lado
fício cruento não constitui apenas um afastamento, a lado, as palavras Diónysos 6rphikoi e a continua-
um desvio em relação à prática corrente. O vegeta- ção: bíos thánatos bíos ("vida morte vida"). Mas, como
rianismo contradiz justamente aquilo que o sacri- já observou alguém, esse quebra-cabeça permanece
fício implicava: a existência entre homens e deuses, mais enigmático que esclarecedor e, no estado atual
até no ritual que os faz comunicar-se, de um fosso da documentação, antes depõe, por seu caráter sin-
intransponível. A busca individual de salvação si- guIar, sobre o particularismo da vida religiosa na co-
tua-se fora da religião cívica. Como corrente espi- lônia de Ólbia com sua circunvizinhança cita.
ritual, o orfismo mostra-se exterior e estranho à ci-
dade, a suas regras e seus valores.
É inegável, contudo, que sua influência se exer- Fugir do mundo
ceu em várias direções. A partir do século V, certos
escritos órficos parecem ter sido concernentes a Na realidade, o impacto do orfismo sobre a men-
Elêusis, e, quaisquer que tenham sido as diferenças, talidade religiosa dos gregos na época clássica refe-
ou antes, as oposições, entre o Dioniso do culto ofi- riu-se essencialmente a dois domínios. No nível da
cial e o dos escritos órficos, bem cedo puderam pro- piedade popular, alimentou as inquietações e as prá-
duzir-se assimilações. Eurípides, em seu Hipólito, evo- ticas dos" supersticiosos" obsedados pelo temor das
ca pela boca de Teseu o jovem" que se faz Bacante máculas e das doenças. Teofrasto, em seu retrato do
sob a direção de Orfeu", e Heródoto, ao lembrar a "Supersticioso", mostra-o indo a cada para re-
proibição de amortalhar uma pessoa com roupas de novar sua iniciação, em companhia da esposa e dos

I 1
86 MITO E RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA o MISTICISMO GREGO 87

filhos, ao encontro dos orfeotelestes, que Platão, por ris, Aristéia e Hermotirno, é que eles se colocam, com
sua vez, descreve como sacerdotes mendicantes, adi- sua disciplina, seus exercícios espirituais de controle
vinhos ambulantes que ganhavam dinheiro com sua e de concentração do sopro respiratório, suas técni-
suposta competência em matéria de purificações e cas de ascese e de rememoração de suas vidas an-
de iniciações (kathannoí, teletaí) para os vivos e para teriores' sob o patrocínio não de Dioniso mas de
os mortos. Esses personagens de sacerdotes mar- Apolo, um Apolo Hiperbóreo, mestre da inspiração
ginais que, caminhando de cidade em cidade, ba- extática e das purificações.
seiam sua ciência dos ritos secretos e das encanta- No transe coletivo do tíaso dionisíaco, é o deus
ções na autoridade dos livros de Museu e de Orfeu que vem a este mundo para apossar-se do grupo de
são de bom grado assimilados a uma trupe de mági- seus fiéis, cavalgá -los, fazê-los dançar e saltar a seu
cos e charlatães que exploram a credulidade pública. gosto. Os possuídos não deixam este mundo; neste
Contudo, em outro nível, mais intelectual, os es- mundo, eles são tomados outros pela potência que
critos órficos inseriram-se, ao lado de outros, na cor- os habita. Em contraposição, entre os "homens di-
rente que, modificando os contextos da experiência vinos", por mais diversos que sejam, é o indivíduo
religiosa, inflectiu a orientação da vida espiritual dos humano que toma a iniciativa, conduz o jogo e pas-
gregos. Sob esse aspecto, a tradição órfica inscre- sa para o outro lado. Graças aos poderes excepcio-
ve-se, como o pitagorismo, na linha dos personagens nais que soube adquirir, ele pode deixar seu corpo
fora de série, excepcionais por seu prestígio e seus abandonado como que em estado de sono catalép-
poderes, "homens divinos" cuja competência foi uti- tico, viajar livremente pelo outro mundo e retomar
lizada, desde o século VII, para purificar as cidades e a esta terra conservando a lembrança de tudo o que
que às vezes foram definidos como os representan- viu no além.
tes de um "xamanismo grego". Em pleno século V, Esse tipo de homem, o modo de vida que esco-
Empédocles comprova a vitalidade desse modelo de lhia, suas técnicas de êxtase implicavam a presença,
mago, capaz de comandar os ventos, de trazer do nele, de um elemento sobrenatural, estranho à vida
Hades um defunto, e que se apresenta ele mesmo terrestre, de um ser vindo de alhures e em exílio, de
não mais como um mortal mas como um deus. Um uma alma, psykhé, que já não seria, como em Home-
traço marcante dessas figuras singulares, que, ao ro, uma sombra sem força, um reflexo inconsisten-
lado de Epimênides e Empédocles, incluem missio- te, mas um daímon, uma potência aparentada com o
nários inspirados, mais ou menos míticos, como Ába- divino e impaciente por reencontrá-lo. Possuir o con-

i-
88 MITO E RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA

BIBLIOGRAFIA
trole e O domínio dessa psykhé, isolá-la do corpo, con-
centrá-la em si mesma, purificá-la, libertá-la, alcan-
çar através dela o lugar celeste do qual se conserva a
nostalgia, tais poderiam ter sido, nessa linha, o obje-
to e o fim da experiência religiosa. Contudo, por todo
o tempo em que a cidade permaneceu viva, nenhu-
ma seita, nenhuma prática cultuaI, nenhum grupo
organizado expressou com pleno rigor e com todas
as conseqüências essa exigência de saída do corpo,
de fuga para fora do mundo, de união íntima e pes-
soal com a divindade. A religião grega não conheceu
o personagem do "renunciante". Foi a filosofia que, Obras gerais
ao transpor para seu próprio registro os temas da
BIANCHI, Ugo, La religione greca, Turim, 1975.
ascese, da purificação da alma, da imortalidade des- BRUIT-ZAIDMAN, Louise, e SCHMm-PANTEL, Pauline, La Re-
ta, assumiu essa tarefa. ligion grecque, Paris, 1989.
Para o oráculo de Delfos, "Conhece-te a ti mes- BURKERT, Walter, Criechische Religion der archaischen und klassischen
. mo" significava: fica ciente de que não és deus e não Epoche, Stuttgart, 1977. Tradução inglesa: Creek Religion, Oxford,
cometas o erro de pretender tomar-te um. Para o Só- 1985.
CHlRASSI COLOMBO, Ileana, La religione in Crecia, Roma-Bari,
crates de Platão, que retoma a frase a seu modo, ela 1983.
quer dizer: conhece o deus que, em ti, és tu mesmo. FESTUGIERE, A. -J., "La Gréce", em Histoire générale des religions, sob
Esforça-te por te tomares, tanto quanto possível, se- a direção de M. Gorce e R. Morlier, tomo Il, Paris, 1944, pp. 27-147.
melhante ao deus. GERNET, Louis, e BOULANGER, André, Le Cénie grec dans la re-
ligion, Paris, 1932. Reimpresso em 1970 com uma bibliografia
complementar.
HARRISON, Jane Ellen, Themis. A Study of the Social Origins of Creek
Religion, Cambridge, 1927.
KERÉNYI, Karl, Die antike Religion. Eine Crudlegung, Amsterdam,
1940. Tradução francesa: La Religion antique. Ses ligues fondamen-
tales, Genebra, 1971.
NILSSON, Martin r, Ceschichte der griechischen Religion, 2 vaIs., Mu-
nique (Handbuch der Altertumswissenschajtm, 5, 2). Tomo I: Die Re-
90 MITO E RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA BIBLIOGRAFIA 91

ligion Criechenlands bis auf die griechische Weltherrschaft (1941), KIRK, G. S., Myth. Its Meaning and Functions in Andent and other
ed. revisada, 1967. Tomo II: Die hellenistische und romische Zeit Cultures, Cambridge-Berkeley-Los Angeles, 1970.
(1957), ed. revista, 1974. Do mesmo autor, pode-se consultar NILSSON, Martin, P., Griechísche Feste von religioser Bedeutung.
também o livro A History of Creek Religion, traduzido do sueco Mit Ausschluss der Attischen, Berlim, 1906. Reimpressão Stutt-
por E j. Fielden, Oxford, 1925, 2' ed., 1949. gart, 1957.
VIAN, Francis, "La religion grecque à l' époque archai'que et c1assi- PARKE, H. w., Festivais of the Athenians, Londres, 1977.
que", em Histoire des religions (Encyc1opédie de la Pléiade), tomo RUDHARDT, Jean, Notions fondamentales de la pensée religieuse et
I, publicado sob a direção de Henri-Charles Puech, Paris, 1970, actes constituti!s du culte dans la Grece classique, Genebra, 1958.
pp. 489-577. VERNANT, jean-Pierre, Mythe et pensée chez les Crecs, Paris, 1965.
Duas novas edições, ampliadas a cada vez com vários estudos, sai-
Deuses e heróis ram em 1975 e 1985. Mythe et société en Créce ancienne, Paris, 1974.

BRELICH, Angelo, Cli eroi greci. Un problema storico-religioso, Roma, Divinação, oráculos
1958.
FARNELL, Lewis R, Creek Hero Cults and Ideas oflmmortality, Ox- BOUCHÉ-LECLERCQ A., Histoire de la divination dans /'Antiquité,
ford,1921. 4 vols., Paris, 1879-82. Reimpressão, Bruxelas, 1963.
GUTHRIE, W. K. c., The Creeks and their Cods, Londres, 1950. Tra- DELCOURT, Marie, COraele de Delphes, Paris, 1955. Nova edição,
dução francesa: Les Crecs et leurs dieux, Paris, 1956. 1981.
KERÉNYI, Karl, The Heroes of the Creeks, Londres, 1959. PARKE, H. W., e WORMELL, D. E. w., The Delphic Oraele, 2 vols.,
OITO, Walter E, Die Cotter Criechenlands. Das Bild des Cottlichen im Oxford, 1956.
Spiegel des griechischen Ceistes, Bonn, 1929. Tradução inglesa por
Moses Hadas, The Humeric Cods. The Spiritual Significance of Creek Sacrifício
Religion (1954). Reimpressão, Boston, 1964. Tradução francesa por
C.-N. Grimbert e A. Morgant, Les Dieux de la Créce. La figure du Le Sacrifice dans l'Antiquité, oito exposições seguidas de discus-
divin au mirair de l'esprit grec, prefácio de M. Detienne, Paris, 1981. sões, preparadas e presididas por Olivier Reverdin e Jean Rud-
SÉCHAN, Louis, e LÉVilQUE, Pierre, Les Crandes Divinités de la hart,25 a 30 de agosto de 1980, Entretiens sur /'Antiquité elassi-
Créce, Paris, 1966. que, vaI. XXVII, Fondation Hardt, Genebra, 1981.
BURKERT, Walter, Humo Necans. Interpretationen altgriechischer Opfer-
Mito e ritual riten und Mythen, Berlim, 1972.
CASABONA, Jean, Recherches sur le vocabulaire des sacrifices en grec,
BURKERT, Walter, Structure and History in Creek Mythology and Ri- des origines à la fin de l'époque classique, Aix-en-Provence, 1966.
tual, Berkeley-Los Angeles-Londres, 1979. DETIENNE, MareeI, e VERNANT, jean-Pierre (orgs.), com as co-
DETIENNE, MareeI, L'Invention de la mythologie, Paris, 1981. laborações de Jean-Louis Durand, SteIla Georgoudi, François
DEUBNER, Ludwig,Attische Feste, Berlim, 1932. Reimpressão, Hil- Hartog e jesper Svenbro, La Cuisine du sacrifice en pays grec, Pa-
descheim, 1966. ris, 1979.
FARNELL, Lesis R, The Cults of the Creek States, 5 vaIs., Oxford, DURAND, ]ean-Louis, Sacrifice et labour en Crixe ancienne, Paris-
1896-1909. Roma, 1986.
92 MITO E RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA BIBLIOGRAFIA 93

MEULI, Kar!, "Griechische Opferbrauche", em PhyIlobolia für Pe- Mythe etTragédie en Greceancienne (com PierreVidal-Naquet), Mas-
ter von der MühIl, Basiléia, 1946, pp. 185-288. pero, cal. "Textes à l'appui", 1972; ed., 1989.
Mythe et Société en Crece ancienne, Maspero, cal. "Textes à l' appui",
Mistérios, dionisismo, orfismo 1974; 5" ed., col. "Fondations", 1988.
Les Ruses de l'intelligence. La métis des Grecs (com Mareel Detienne),
L'Association dionysiaque dans les sociétés anciennes, Registro da me- Flammarion, cal. "Nouvelle Bibliotheque Scientifique", 1974;
sa-redonda organizada pela École Française de Rome (24 a 25 ed., caL "Champs", 1978.
de maio de 1984), Roma, 1986. RPligion grecque, religions antiques, Maspero, col. "Textes à l'appui",
BURKERT, Walter, Ancient Mystery Cults, Cambridge-Londres, 1987. 1976.
DARAKI, Maria, Dionysos, Paris, 1985. Religions, histoires, raisons, "Petite collection Maspero", 1979.
DETIENNE, MareeI, Dionysos mis à mort, Paris, 1977; 2; ed., 1980. La Cuisine du sacrifice en pays grec (sob a direção de MareeI Detien-
Dionysos à deI ouvert, Paris, 1986. r:Écriture d'Orphée, Paris, 1989. ne e jean-PierreVemant), Gallimard, col. "Bibliothéque des his-
GUTHRlE, W. K. c., Orpheus and Greek Religion. A Study of the Or- toires", 1979; ed., 1983.
phic Movement, ed., Londres, 1952. Tradução francesa: Orphée La Mort dans les yeux. Figures de l'autre en Crece ancienne, Hachet-
et la religion grecque. Étude sur la pensée orphique, Paris, 1956. te, col. "Textes du XX' siécle", 1985; 2; ed., 1986.
)EANMAIRE, Henri, Dionysos. Nistoire du culte de Bacchus, Paris, 1951. Mythe et Tragédie II (com PierreVidal-Naquet), La Découverte, col.
KERÉNYI, Karl, Dionysos. ArchetypaI Image of Indestructible Life, "Textes à l'appui", 1986.
Londres, 1976. Traduzido do manuscrito original do autor por L'Individu, la mort, l'amour. Soi-même et l'autre en Crece ancienne,
Ralph Manheim. Gallimard, col. "Bibliothéque des histoires", 1989.
LINFORTH, Ivan M., The Arts of Orpheus, Berkeley-Los Angeles, Mythes grecs au figuré de l'antiquité, au baroque (sob a direção de
1941. Reimpressão, Nova York, 1973. Stella Georgoudi e Jean-Pierre Vemant), Gallimard, col. "Le
MYLONAS, George E., Eleusis and the Eleusinian Mysteries, Prin- Temps des images", 1996.
ceton, 1961. Entre mythe et politique, Seuil, "La Librairie du XX' siécle", 1996.
OITO, Walter F., Dionysos, Mythos und Kultus, Frankfurt, 1933. Tra- Dans ['cei! du miroir (com Françoise Frontisii-Ducroux), Odile Jacob,
dução francesa por Patrick Lévy, Dionysos. Le mythe et Ie culte, 1997.
Paris, 1969. L'Univers, les dieux, les hommes, récits grecs des origines, Seuil, "La
SABBATUCCI, Dario, Saggio sul misticismo greco, Roma, 1965. Tra- Librairie du XXc 1999.
dução francesa por J.-F. Darmon, Essai sur le mysticisme grec,
Paris, 1982. Alguns textos de Mythe et Pensée chez Ies Grecs, Mythe et Tra-
gédie en Crece ancienne e Mythe et Tragédie 11 foram retomados em
Principais obras do autor J. -P. Vemant e P. Vidal- N aquet, La Crece ancienne, Seuil, col. "Points
Essais": vol.I, Du mythe à la raison, 1990, vol. 11, r:Espace et IeTemps,
Les Origines de la pensée grecque, PUF, col. "Mythes et religions", 1991, e vol. I1I, Rites de passage et Transgressions, 1992.
1962; 7; ed., col. "Quadrige", 1990.
Mythe et Pensée chez Ies Grecs. Études de psychologie historique, Mas-
pem, col. "Textes à l'appui", 1965; nova edição, ampliada, La
Découverte, 1985.

Você também pode gostar