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2021, A imagem estilhaçada – Breve ensaio sobre realismo,
nominalismo e filosofia
Gênero: Filosofia e Cristianismo
Copyright © Victor Bruno
Copyright © Editora ViV
Capa: Ana Júlia Silveira
ISBN 978-65-88972-02-1
1. Filosofia e Cristianismo.
I. Bruno, Victor. II Título
CDD 201
CDU 212
Editora ViV
21 96980-0918 | contato@editoraviv.com.br
AD MAIOREM
DEI GLORIAM
AO MEU PAI
E À MINHA MÃE
Teresina, PI
Outubro de 2020
INTRODUÇÃO
A UNIDADE DA FILOSOFIA
mitologia e a religião encadeiam-se numa espécie de continuidade essencial. É por isso que
em sua principal obra, Ordem e História, Voegelin toma como ponto-de-partida do primeiro
volume da série, o livro Israel e a Revelação (1956), o pensamento religioso e mítico dos
mesopotâmios, egípcios e israelenses. Pela mesma razão, o estudo do pensamento grego,
tema do volume 2 da obra, O Mundo da Pólis (1957), começa com Homero e Hesíodo”. Veja-se
também Glenn Hughes, Mystery and Myth in the Philosophy of Eric Voegelin, Columbia,
University of Missouri Press, 1994, e Julián Marías, Biografia da Filosofia e Idéia da Metafísica,
tr. Diva R. de Toledo Piza, S. Paulo, Duas Cidades, 1966.
5 Marías, op. cit., p. 65.
6 Northrop Frye, The Great Code: The Bible and Literature, San Diego, Harvest, 1982, p.
47.
O mito rememora de maneira não diferenciada a
experiência vivida, mas não consegue racionalizá-la no
sentido de traduzir seu conteúdo interior — luminoso e
misterioso a um só tempo — em termos explicativos.
Estranho, digo eu, seria se conseguisse: a linguagem
mitológica, ou mitopoética, não surgiu com esse sentido; ela
foi inventada para causar uma impressão —
preferencialmente uma impressão de verdade. Por outro
lado, a filosofia pode diferenciar os processos e discorrer
sobre a experiência simbolizada pelo mito em linguagem
dialética ou analítica (dependendo do estado de
desenvolvimento da questão), mas não tem o poder de
impressionar quem quer que seja. Isso porque ela está
subjugada pelo entendimento da expressão mitológica.7
7 Veja-se o resumo da discussão sobre mito e dogma no sétimo capítulo de Webb, Eric
Voegelin, op. cit.
permanecem os mesmos. Os limites do Real e da Unidade
não foram e, a bem da verdade, não podem ser
ultrapassados.8
8 Aqui o leitor pode notar claramente que a dinâmica filosófica acima descrita serve
tanto para a filosofia tradicional cristã como para filosofias tradicionais não cristãs, como a
grega antiga, a filosofia islâmica ou hebraica. Tal dinâmica também serve para outras
filosofias, como aquelas vindas do extremo oriente (Vedanta, confucionismo etc.).
Evidentemente, por filosofia “tradicional” quero dizer aquelas que filosofam numa mesma
esfera unânime de realidade. O ponto crucial aqui é que uma filosofia tradicional, via de regra,
filosofa numa mesma clave de realidade, meditando sobre o que Voegelin chamava de It-
reality, que nada mais é do que a realidade sobre a qual a linguagem humana cristaliza e
simboliza suas experiências. Portanto, numa filosofia tradicional, o ponto de partida da
experiência será sempre o mesmo, invariavelmente. Aliás, não só a filosofia, como a própria
poesia, também tem como ponto de partida essa mesma realidade, a It-reality, sendo
exatamente por isso que um haikai sobre amor nos é tão compreensível, em nível de
anamnese da experiência, nos fala de maneira tão actual (i.e., nos exerce tanta ação) quanto
um romance contemporâneo sobre o mesmo tema — o amor é universal porque a realidade
metafísica do amor é universal. Ora, se a poesia que versa sobre experiências universais é
facilmente traduzida em diferentes linguagens e em diferentes eras, é evidente que a
mitologia, — mesmo a mitologia religiosa — aceitando-se que a experiência simbolizada no
mito é igualmente universal, também é inteligível em diferentes culturas e filosofias.
Cf., sobre o tema, Ananda K. Coomaraswamy, “Paths That Lead to the Same Summit”, in
The Bugbear of Literacy, Londres, Dennis Dobson, 1949, pp. 42–63, com Eric Voegelin,
“Equivalences of Experience and Symbolization in History”, in Published Essays, 1966−1985, org.
Ellis Sandoz, Collected Works of Eric Voegelin (doravante, CWEV), vol. XII, Baton Rouge,
Louisiana State University Press, 1990, pp. 115−33.
9 Ananda K. Coomaraswamy, Christian & Oriental Philosophy of Art , Nova York, Dover,
1956, p. 31.
que a realidade é plenamente objetiva. Não que a
subjetividade seja impossível — mas a interpretação
individual do Real não pode ser confundida com o próprio
Real, que é precisamente o que acontece na realidade. A
primazia da subjetividade e do eu abarca e aniquila a
natureza objetiva, impessoal do mundo (que, em última
análise, desdobra-se do Logos). A “culpa” (as aspas são
cortesia da casa) é do nominalismo, que quebrou com a
intricada cadeia de significado que a filosofia tradicional,
tanto pré- como cristã, havia estruturado para tornar o Real
compreensível. Com a chegada de Descartes e do seu
“Cogito ergo sum”, — quer dizer, depois da emergência do
eu como o ponto focal da existência — o eixo filosófico passa
a se centrar no mundo. Como diz Coomaraswamy, “Nós não
inferimos a existência do self com base no comportamento,
mas algo que se conhece por causa da experiência do ‘eu’ . .
. coisa bastante distinta do Cogito ergo sum de Descartes,
argumento baseado no comportamento [humano] e que,
portanto, ainda está calcado num predicado ego-ísta [leaves
us still in an ego-centric predicament]”.10
10 Ananda K. Coomaraswamy, Time and Eternity, Ascona, Artibus Asiae, 1947, p. 23. O
que Coomaraswamy quer dizer é que não podemos totalizar a experiência do Eu enquanto
indivíduos porque estamos dentro da experiência do Eu. A existência do Eu deve ser predicada
de uma existência anterior, maior e total.
como se ele oprimisse a nossa realidade individual com um
sistema perfeitamente arbitrário feito por gente mais
poderosa que nós. Não seria necessária uma revolução
subjetiva? Enfim, temos realidades individuais, e elas
existem agora; falar sobre algo tão aparentemente abstrato
quanto uma “Realidade” parece algo imenso demais.
11 Julián Marías, História da Filosofia, tr. Claudia Berliner, S. Paulo, Martins Fontes,
2006, p. 139.
Meu segundo tema de interesse é, na verdade, um
objetivo, que é fazer um esboço da história da filosofia
escolástica após o advento do nominalismo. Apesar de
termos, hoje, um número relevante de obras sobre o
advento do nominalismo e seus efeitos na história da
intelectualidade (e da sociedade) humana, 12 a mim me
parece que um questionamento verdadeiramente filosófico
sobre o tópico permanece sendo um desideratum. É
perfeitamente claro que um único livro — ainda mais um
livrinho curto como este que o leitor tem agora em mãos —
não pode sanar um tópico tão complexo; portanto, não
tenho senão o modestíssimo desejo de fazer um primeiro
round de discussões sobre o tema. E sim, eu sei, minha
visão sobre o nominalismo é negativa, e eu creio de verdade
que esta heresia (a Igreja a condenou duas vezes) foi
bastante dolosa à humanidade. Por exemplo: na minha
visão, a mentalidade nominalista, afeita a dividir o Real em
particulares que não se referem a idéias primordiais e
anteriores, foi o que deu vezo à compartimentalização13 da
realidade, característica típica do mundo moderno. Quer
dizer, se tudo que há são particulares e esses particulares
não têm ousia para além das suas próprias existências
12 Vejam-se, inter alia, Michael Allen Gillespie, The Theological Roots of Modernity,
Chicago, University of Chicago Press, 2008; Amos Funkenstein, Theology and the Scientific
Imagination from the Middle Ages to the Seventeenth Century, Princeton, Princeton University
Press, 1986; D. M. Armstrong, Nominalism and Realism, 2 vols.,Cambridge, UK, Cambridge
University Press, 1977; Heinrich A. Rommen, The Natural Law: A Study in Legal and Social
History and Philosophy, tr. Thomas R. Hanley, OSB, Indianápolis, Liberty Fund, 1998; H. J. A. Sire,
Phoenix from the Ashes: The Making, Unmaking, and Restoration of Catholic Tradition ,
Kettering, Ohio, Angelico Press, 2015, esp. Caps. 2, 4–5.
13 Pego esta palavra de Bradley J. Birzer, Russell Kirk: American Conservative,
Lexington, University of Kentucky Press, 2015, p. 169.
individuais, então temos que considerar as coisas como
sendo totais enquanto elas mesmas; portanto, as inter-
relações entre um particular e outro são totalmente
acidentais. E aqui está o ponto problemático: se, por um
lado, a vida do filósofo fica mais “fácil”, já que o objeto
universal está bem ali e portanto sua meditação sobre a
ousia das coisas não lhe toma mais muito tempo (é como se
houvesse menos “etapas” para se chegar à causa primeira
das coisas),14 por outro, a dissonância criada por um mundo
feito inteiramente de realidades que não se relacionam
umas com as outras é insuportável demais. Por fim, com a
compartimentalização da realidade por força do
nominalismo, a intrincada — e rica — rede de simbolismos,
símbolos e mitos que preenchia e dava significado ao real
acabou por se partir.
14 E é por isso que certos místicos, especialmente de cariz protestante, não precisam
da atividade noética, podendo logo “pular” para a contemplação pneumática de Deus.
15 Quanto mais cedo acabarmos com o entendimento cerrado de polis como só e tão
somente cidade, melhor. A polis, na minha leitura, deve ser entendida como todo e qualquer
meio, grupo, setor ou dinâmica social minimamente organizada, com vínculos, tradições,
símbolos e credos comuns.
“inimigos”, vencendo quem conseguir mais amigos.16 Neste
livro, faremos uso dos dois conceitos, já que até o advento da
modernidade, no período posterior à queda de Roma,
podemos entender a política dentro da Cristandade como
uma atividade moral, referenciada a modos de ser morais
(sem pecados). 17 A inexistência do “Estado nacional”, com
seus símbolos políticos imanentes, impede que algo
parecido com a política schmittiana apareça pelo menos até
o fim do feudalismo e a emergência dos primeiros conflitos
nacionais. Isso não quer dizer que algo do tipo já não possa
ser antevisto com a influência perniciosa e imoral de
Maquiavel, que já no século XV faz os primeiros ensaios
naquilo que chamamos hoje de imperialismo totalitário. 18
Contudo, a meu ver, esse tipo de política só ganha
momentum com a chegada dos chamados “contratualistas”:
Hobbes, Locke e Rousseau, pensadores que seriam
estudados de maneira muito breve num apêndice a este
livro. Contudo, prometo fazer um ensaio maior, com esses
dois temas (Renascimento e Iluminismo), num futuro
próximo.
16 Carl Schmitt, The Concept of the Political, tr. George Schwab com notas de Leo
Strauss, Chicago, University of Chicago Press, 2007.
17 Veja-se James V. Schall, SJ, “On the Point of Medieval Political Philosophy”,
Perspectives on Political Science XXVIII, 1999, pp. 189−93.
18 Veja-se Olavo de Carvalho, Maquiavel; ou, A Confusão Demoníaca, Campinas, VIDE
Editorial, 2011.
ABERTURA
22 Anthony Gottlieb, The Dream of Reason: A History of Western Philosophy from the
Greeks to the Renaissance. Nova York, W. W. Norton & Co., 2000, p. 347. Foi Hegel quem
efetivou essa interpretação negativa da filosofia escolástica como canônica (“A filosofia
escolástica é essencialmente teologia e essa teologia é imediatamente filosofia”). Ainda de
acordo com ele, já no século XII, os “doctores theologiae docmaticae eram os guardiões da
educação pública: criticavam livros, taxavam-nos de heréticos e por aí em diante. Sob certa
maneira, esses homens eram uma espécie de consistório eclesiástico, exercendo um aspecto
‘paternal’ do sistema de doutrina do Cristianismo” (G. W. F. Hegel, Lectures on the History of
Philosophy, vol. 3: Medieval and Modern Philosophy, org. Robert F. Brown, tr. Robert F. Brown e
J. M. Stewart, Berkeley, University of California Press, 1990, pp. 49, 59). A opinião de Hegel — e
de Gottlieb, claro — não estaria errada se eles não pensassem que a ligação entre teologia e
filosofia na Escolástica não fosse uma de escravidão. É claro que com isso eu não ignoro que
certos escolásticos, como s. Pedro Damião — a quem se credita, volta e meia, a autoria da
frase “philosophiam esse ancillam theologiae” (no melhor dos casos, um crédito questionável;
veja-se Malcolm de Mowbray, “Philosophy as Handmaid of Theology” Traditio, LIX, 2004, p. 3) —
e Otlo de Sto. Emerão eram evidentemente avessos à “dialética”; mas essa refração só se
alevantava de forma a prevenir que a filosofia não se tornasse mais importante, aos olhos dos
homens, do que a suprema scientia de Deus (noutras palavras: que a razão natural, ou, ainda, o
ego, não tentasse ser maior que Deus).
23 Gottlieb, op. cit., p. 348. E também: “No início da era cristã, a filosofia adormeceu. Tal
lassidão produziu um sonho filosófico chamado Escolástica. . . . No século XVII, a filosofia foi
rudemente acordada desse sono com a chegada de Descartes e sua declaração ‘Cogito ergo
sum’ (Penso, logo existo). Uma era de iluminação se inciou: o conhecimento agora basear-se-
ia na razão” (Paul Strathern, Nietzsche, Londres, Harper Press, 1996). A fonte dessa opinião é,
de novo, Hegel: “Neste instante, pela primeira vez podemos falar propriamente da filosofia do
mundo moderno, começando por Descartes. Aqui, como o marinheiro grita após uma longa
viagem, exclamamos, ‘Terra à vista!’ . . . Esta era se baseia na razão, e a razão procede de si
mesma” (Lessons, p. 131).
mesmo dentro da Igreja — supondo que possamos achar por
um segundo que seja que um tipo como Has Urs Von
Balthasar, que chamou a Escolástica de “a desolação
[sconsolatezza] da teologia”, 24 seja um representante do
Catolicismo.
26 Se não fosse assim, são Bernardo não teria dado conta das heresias de Abelardo tão
rapidamente.
27 “Para nós, a verdadeira Idade Média vai do reinado de Carlos Magno até o início do
século XIV. . . . Essa é a data que marca o verdadeiro início da crise moderna: é o início da
decomposição da ‘Cristandade’, com a qual a civilização medieval do Ocidente se identificava de
maneira essencial; ao mesmo tempo, essa data também marca o fim do regime feudal, —
igualmente ligado à essa mesma ‘Cristandade’ — e a ascensão do ‘Estado nacional’
[‘nationalités’]” (René Guénon, La Crise du monde moderne, Paris, Gallimard, 1983, p. 29). Veja-
se também Gillespie, Theological, op. cit.
que este que vos fala, meus amigos, considera uma forma
verdadeira de filosofia — a filosofia cristã por excelência.
JÓ VIII,8-9
§1. DE PLOTINO A SANTO
ANSELMO: O PROBLEMA DA
FILOSOFIA CRISTÃ DA
DA ESCOLÁSTICA
30 Minha edição é Frederick Copleston, SJ, A History of Philosophy, vol. 1: Greece &
Rome, pt. 2, Garden City, Image Books, 1962.
Agostinho pôs em marcha a discussão entre Poder
Temporal e Autoridade Espiritual, algo de profunda
importância nos séculos posteriores do mundo ocidental.3131
31 “[Santo Agostinho] lançou seus olhos para além do vão e sanguinolento caos secular,
fixando-os no mundo das realidades donde o mundo dos sentidos extrai todo seu significado.
Sua mente não se preocupava com o destino da cidade de Roma ou da cidade de Hipona; não
se preocupava nem mesmo com as lutas de romanos e bárbaros. Ela, antes, pensava naquelas
[duas] cidades cujas fundações estão lançadas no céu e no inferno, bem como na luta entre as
‘potestades do mundo negro’ contra os príncipes da luz” (Christopher Dawson, Medieval
Essays, Washington, DC, Catholic University of America Press, 2002, p. 48).
32 Meu amigo Dan Sheffler, professor do Georgetown College, no Kentucky, lendo uma
versão mais primitiva deste texto, mencionou que autores como Jaroslav Pelikan, Étienne
Gilson e John M. Dillon fizeram e fazem um trabalho de historiografia da filosofia que leva os
períodos que digo serem ignorados em altíssima conta. Ele está montado na razão, sem dúvida
— e eu mesmo posso mencionar outros autores, como John Marenbon e o já mencionado Josef
Pieper. A questão é que, na minha visão, Pelikan, Gilson, Dillon, Marenbon e Pieper são
exceções — brilhantes exceções, aliás, mas exceções. A meu ver, a historiografia padrão,
desde o tempo de Hegel, tende a tratar o Neoplatonismo, a Patrística e a Escolástica com
animosidade, para dizer o mínimo. Além disso, os autores acima arrolados nunca tiveram —
assim penso eu — a oportunidade de se popularizar na consciência intelectual do Ocidente,
porque, por defenderem esses períodos “obscurantistas” da história da filosofia, eram vistos
eles mesmos como adversários da razão.
Minha resposta é que o cerne da questão da filosofia
cristã repousa sobre a realidade da Encarnação. A teologia
escolástica é um ponto de irmanação das proposições
dogmáticas do Catolicismo e as filosofia e teologia
especulativas de (grosso modo!) Platão e Aristóteles. Ora,
Aristóteles propunha que há uma theologia, e que essa
ciência, diz ele, é aquela que se interessa pelo divino — isto
é, pelo ser primordial. A theologia seria a ciência da causa
primeira de todas as outras ciências; enfim, é a filosofia
primeira, porque versa sobre o Primeiro Ser, a casa
primeira do mundo.33 Mas as teologias de Aristóteles e de
Platão são teologias especulativas (teóricas); com efeito,
convém lembrar que quando falamos da “religião grega”,
estamos incorrendo ou em anacronismo ou fazendo uso de
metonímia. É óbvio que os gregos eram piedosos (tinham
eusebēs) e prezavam a santidade (hosion),34 mas com certeza
não possuíam uma religião tradicional — não no sentido de
que o Cristianismo, ou o Budismo, ou o Hinduísmo, ou o
Judaísmo ou o Islam as são. Contudo, é possível argumentar
que, num certo sentido, a religião grega — no período
anterior à decadência que se inicia na naquela sociedade no
século V a.C. — tivesse alguma similaridade com a piedade
33 “Se há alguma coisa eterna, imóvel e distinta [da imanência], logo nos é evidente que
a ciência que lida com tal ser deve ser uma ciência teórica. Tal ciência não pode ser a física,
que lida com seres em movimento; nem pode ser a matemática. Essa ciência deve ser anterior
a essas duas. Com efeito, a física lida com realidades que são separadas, mas não imóveis; já
alguns ramos da matemática lidam com realidades imóveis, mas não distintas. . . . Portanto, os
ramos da filosofia teórica, por conseguinte, são três: matemática, física e teologia. Não é
necessário frisar que se o divino existe, então deve existir a teologia”. (Aristóteles, Metafísica,
E 1026a 11–24).
34 James Feibleman, Religious Platonism, Londres, Routledge, 2013, p. 24.
religiosa dos povos nativos dos Estados Unidos.35 Todavia, tal
similaridade são, a meu ver, expressões da piedade e da
santidade mencionadas acima (e observadas por são Paulo
em Atos xvii,22), 36 mas que não são suficientes, de forma
alguma, para que se transformem em religião.
35 Veja-se Joseph Epes Brown, The Spiritual Legacy of the American Indian, Nova York,
Crossroad, 1984.
36 “Varões atenienses, em tudo e por tudo vos vejo muitíssimo tementes dos vossos
deuses [deisidaimonesteron]”.
proposicional. Com efeito, o próprio Eric Voegelin usou esse
adjetivo, “ossificante”, para se referir aos escritos de santo
Tomás de Aquino.37
37 Eric Voegelin, Anamnesis, tr. M. J. Hanak, org. David Walsh, CWEV, vol. VI, Columbia,
University of Missouri Press, 2002, p. 392.
38 Por exemplo, creio que um pensador muçulmano possa pensar que apenas os
escritos exotéricos do islamismo (logo, de teologia dogmática muçulmana) sejam corretos,
enquanto aceite como especulativamente possíveis obras metafísicas de autores não-
muçulmanos.
posição dogmática quanto à teologia da Igreja também é
problemática (para alguns) porque com ela eu torno
instantaneamente a teologia de autores católicos
insignificante para quem não é católico. Isso nos levaria a
um problema com aqueles autores que eu estava discutindo
há pouco, os autores patrísticos. Mas, lembrem-se de que eu
sustento que (1) para mim, santo Ambrósio e Clemente de
Alexandria, por exemplo, são filósofos e católicos; portanto,
seus escritos têm um valor duplo (valem como teologia
dogmática e como teologia metafísica). Além disso, sustento
que (2) o campo metafísico pode compreender tanto a
teologia dogmática (pois a teologia só é asseverada como
dogmática após ser debatida) 39 como também pode
compreender a especulação não-dogmática.
40 O Isagoge traduzido e comentado por Boécio era ainda usado no tempo de Descartes
(Roger Ariew, Descartes among the Scholastics, Leiden, Brill, 2011, p. 15)
41 Josef Pieper, Scholasticism, Nova York, McGraw-Hill, 1964, p. 21.
a sabedoria de seus ancestrais. Tendo em vista como nós
tratamos a sabedoria dos nossos ancestrais, esse proceder é
muito interessante. E qual é a base epistemológica e
ontológica dessa diferença? A meu ver, acontece que o
homem da Alta Idade Média está inserido e procura se
inserir numa unidade cosmológica com seus antepassados.
O homem dessa época é um homem integral, um homem
metafísico; portanto, ele entende sem maiores problemas
aquelas sábias palavras do rei Salomão, “Não passes além
dos antigos limites que puseram teus pais” (Pv xxii,28). E que
cousa são esses limites? Eles são o próprio limite do raio do
círculo metafísico que abarca a unidade do mundo — e que
abarcam também, num certo sentido, a unidade da
experiência filosófica (Gilson). 42 O homem da Alta Idade
Média sabia estar incluso no que Titus Burckhardt chama de
“círculo mágico da forma” 43 (entendendo-se “forma” aqui
como no grego eidos, e não no sentido de “formato”), no
qual o próprio limite da circunferência é o próprio limite
imposto pelos nossos pais, nossos predecessores, a quem
nos juntamos ao verdadeiramente filosofarmos.
42 Étienne Gilson, The Unity of Philosophical Experience, Nova York, Charles Scribner’s
Sons, 1950.
43 Titus Burckhardt, The Foundations of Christian Art, Bloomington, World Wisdom,
2006, p. 92.
Isidoro ou Boécio não se ocuparam do que possamos
chamar à primeira vista de filosofia, ou de metafísica; eram,
antes, “gramáticos”, ou professores de Lógica.
Evidentemente, sabemos que Boécio escrevera antes de
morrer uma obra de nome A Consolação da Filosofia;
Pieper, porém, diz que antes de ser filósofo, Boécio foi,
acima de tudo, um resgatador da base comum daquela
tradição comum que “apenas por si torna possível uma
diversidade de perspectivas filosóficas distintas”.44 E, de fato,
foi assim: Boécio traduziu Platão e Aristóteles e foi o
principal comentarista do Isagoge — que é, grosso modo, um
trabalho de Lógica. Há também santo Isidoro, autor das
Etimologias, vastíssimo trabalho sobre os fundamentos do
conhecimento (viz., as sete artes liberais). Outro exemplo
que podemos arrolar aqui é Alcuíno, autor de trabalhos
didáticos sobre as artes liberais, dentre eles um dos mais
importantes livros sobre lógica medieval, a sua Dialectica.
adição “tardia” da metafísica (ou da “filosofia”, num sentido mais elástico do termo) nas
universidades medievais só apareceu quando os trabalhos sobre filosofia natural até então
“inéditos” de Aristóteles se tornaram disponíveis no Ocidente. “Quando, na primeira metade do
século XIII, o Aristóteles ‘inédito’ finalmente passou a ser aceito no currículo estudantil, foi
então que a ‘filosofia’ passou a integrar o currículo das artes liberais então existentes” (James
A. Weisheilpl, OP, “Classification of the Sciences in Medieval Thought”, Mediaeval Thought, XXVII,
1965, p. 68). De acordo com o padre Weisheilpl, até então, a metafísica era uma parte indistinta
da Doutrina Sagrada.
adequadas para a língua, sabendo só Deus o porquê, regras
essas desconectadas de qualquer ligação com o mundo real.
(Ou, para raciocinar em modo nominalista, a gramática tem
uma realidade que é só dela, moldável ao gosto do freguês.)
Porém, vamos pensar o que são os substantivos.46
46 Aqui uso a palavra “substantivo” em seu sentido mais arcaico e mais abrangente, tal
como descrito por Prisciano, que abarca tanto o que hoje entendemos como substantivos tanto
quanto os adjetivos. Prisciano trabalhou na disciplina que hoje se chama “gramática
especulativa”.
47 Miriam Joseph, CSC, The Trivium, Filadélfia, Paul Dry Books, 2002, p. 49. A tradução
brasileira da obra é inaceitável.
a substância, a forma; “cadeira quebrada” é uma
possibilidade de acidente à essa forma.48
ESCOLÁSTICA
Se o que acabei de descrever está correto, então
podemos ter certeza que não há nenhuma ruptura no
significado interno — quer dizer, na substância ou natureza
da filosofia. Portanto, neste sentido, a Escolástica não é
senão mais um dialeto da cadeia perene da verdadeira
filosofia, pois sua substância habita dentro das fronteiras da
filosofia tradicional. E, se pensarmos direito, não haveria
como ser diferente: não é a sociedade medieval uma
sociedade tradicional? Aliás, ela não é somente tradicional
enquanto espécie ou em seu modo de vida; sua emergência
também se deu de modo tradicional: seu ânimo espiritual
pode ser “novo” (no sentido em que o Cristianismo é novo
em relação ao paganismo antigo), mas a sua formação
social e a própria “cultura secular” da Idade Média
floresceram de maneira tradicional.
Agora, se este neofeminismo que usa bruxaria e ocultismo na arena política crê de fato
na operacionalidade do oculto ou se isso é mero decalque kitsch na militância, eis algo que
carece de provas.
consideração que ela é o dialeto filosófico (portanto,
imanente) de uma Idéia ou Realidade sagrada.56
56 Para reforçar minha tese que a Escolástica é um trabalho de amor ao tempo em que
é um dialeto da filosofia verdadeira, retornemos à antiga idéia da filosofia como o “amor pela
sabedoria”. Num contexto pagão como o da Grécia Antiga, não há dúvidas que essa mesma
sabedoria é a Sabedoria do Criador, do Logos — noção que se transporta com folga para o
contexto cristão. Outro aspecto importante dessa tese é o fato de que em sociedades e
religiões tradicionais há uma unanimidade em dizer que a Criação é um trabalho de amor do
Criador pelas Suas criaturas: “Quando fixamos n’Ele esta procissão de amor, sustentamos que
Deus não produziu Suas criaturas por uma necessidade, nem que o fez por alguma causa
extrínseca, mas por amor à Sua bondade” (Suma Teológica I, xxxii, 1, ad. 3); ou ainda:
Já que as coisas foram criadas por amor, e criadas por bondade (bonus), naturalmente
são boas: “E viu Deus todas as coisas que tinha feito, e eram muito boas” (Gên i,31). No
Hinduísmo, retratam os múltiplos renascimentos de Kṛiṣṇa como um ato de amor:
57 Erwin Panofsky, Gothic Art and Scholasticism, Nova York, New American Library,
1976, p. 20.
58 Ver René Guénon, Le Symbolisme de la croix, Paris, Éditions Vega, 1977.
distintos (quer dizer, diferentes aos nossos olhos modernos)
é algo normal em sociedades tradicionais. Por exemplo,
Panofsky assinala que
59 Ibid., p. 28.
Podemos travar correspondências em sentido similar com o estilo romanesco e a
sociedade medieval pré-escolástica, caracterizada de maneira íntima pelo mundo feudal
nascido na ressaca posterior à morte de Carlos Magno. Se o estilo gótico reflete a explosão do
espírito intelectual, o estilo romanesco sugere uma interiorização (ou uma coagulação, para
usar o simbolismo hermético). É precisamente por isso, por causa dessa interiorização, que o
O que Panofsky está tentando mostrar é que as officia
(ou seja, as artes, no sentido tradicional da palavra) são
conectadas; elas formam um todo, como Dawson falou.
Como expus anteriormente, essa dinâmica entre as
diferentes artes em sociedades saudáveis não é incomum;
Titus Burckhardt observa que na mesquita Al-Qarawin — no
passado um grande centro de conhecimentos tradicionais
em Fez, Marrocos — a aura de dignidade e sabedoria da
madrasa atraía os homens simples da cidade, que, “sentados
a uma distância respeitosa” dos alunos devidamente
matriculados no local, lá ouviam às aulas conferidas.60
61 Carta a dom Columba Carey-Elwes, OSB, 3 mar. 1947, em Selected Letters of Ananda
K. Coomaraswamy, orgs. Alvin Moore Jr. e Roma Poonambulam Coomaraswamy, Déli, Indira
Gandhi National Centre for the Arts, 1988, p. 83. “Em meu trabalho eu procuro nunca discutir
doutrinas particulares sem citar a autoridade do Cristianismo, do Islamismo, do Hinduísmo e
doutras fontes; também, procuro enfatizar que não há nada peculiar, por exemplo, ao
Hinduísmo e ao Budismo exceto pelo que chamo de ‘cor local’” (ibid, grifo meu). E também: “É
claro que, independente do nome com o qual estejamos acostumados a amar a Deus, estamos
todos inclinados a pensar no Eterno Avatar — o ‘Filho único de Deus’ — precisamente dessa
maneira, assim como Vaishnava pensa de Krishna. Enfim, o que importa de verdade é a Sua
presença em nós; é a nascença de Cristo — ou Agni — ou Krishna — em você” (a dom Carey-
Elwes, 8 mai. 1947, ibid., p. 85).
importante: “A mim pouco me importa se Gautama ou Jesus
‘viveram’ historicamente”. 62 É claro que a crença na
existência histórica de Cristo é desnecessária para o
universalismo de Coomaraswamy, posto que a “factualidade”
da crença religiosa perturba sua teoria. Ignorando tal
factualidade, Coomaraswamy pode se preocupar com a
validação da metafísica como crença religiosa — e a
confusão, como expliquei noutros escritos, a confusão entre
metafísica e religião é um pilar do perenialismo.
63 Ashok Kumar Chatterjee, The Yogācāra Idealism, 2.ª ed., Déli, Motilal Banarsidass,
1975, pp. 1, 7. Chatterjee é seguido de perto por outros autores: para José Cabezón, por
exemplo, “[d]esde suas origens, o Budismo mostra-se mais pendente para o lado do
nominalismo” (Buddhism and Language, Albany, SUNY Press, p. 153). Além disso, identifica-se
com folga na literatura prajñāpāramitā uma forte mentalidade nominalista (vejam-se Pierre
Bédard, Le Bouddhisme d’ici et de maintenant, Québec, Louise Courteau, 2015, e Richard P.
Hayes, Dignaga on the Interpretation of Signs, Dordrecht, Kluwer, 1988).
porquê de entender que o Budismo é nada mais, nada
menos que heterodoxia. 64 É bem certo que após trocar
missivas com Ananda K. Coomaraswamy — autor de um dos
mais importantes estudos a respeito das relações entre
Hinduísmo e Budismo, 65 — o esoterista francês
aparentemente mudou de opinião, mas mesmo em escritos
posteriores — e bem mais conhecidos, — como sua obra-
prima A Crise do Mundo Moderno, mesmo ali Guénon
visivelmente trata o Budismo com gosto ruim, sutilmente
associando-a com uma intenção antitradicional.66
67 Gênesis i,26.
68 Veja-se também Gênesis vi, onde Deus dá a Noé as instruções de como a barca deve
ser construída, bem como Êxodo xxvi, onde Deus dita a Moisés as formas do Tabernáculo e da
Arca da Aliança. Convém lembrar, também, que no Antigo Testamento, Deus e Seus profetas
avisam ao povo, várias vezes, que Israel deve agir e fazer as coisas segundo os decretos, leis e
instruções divinas (III Rs ix,4; Dt vi,25, etc.) — ou seja, devem seguir as formas de ação
determinadas pelo Senhor. Esse procedimento se repete no Novo Testamento (I Cor ix,31; Col
iii,17, etc.).
Evidentemente, a imitação não deve reduzir-se ao fazer; ela deve se estender, também,
ao agir, como testemunha toda a tradição de literatura mística e ascética do Cristianismo, seja
romano ou oriental. De fato, como afirma santo Tomás, a prudência na ação e a arte no fazer
andam de mãos dadas (Suma Teológica I-II, art. 57, q. 5).
§ 3. O GRANDE DUELO : O
REALISMO E O NOMINALISMO
A.
75 Pedro Abelardo, Historia calamitatum, ii. Abelardo fez uso das famosas disputas de
sala de aula, situações que poderiam se transformar em negócios verdadeiramente amargos.
Como nos informa o insigne professor John Marenbon: “As disputas, assim se parece,
aconteciam entre professores e pupilos; dependendo dos resultados, o professor podia se ver
forçado a cair em contradição na defesa de uma de suas teses (que foi o que Abelardo
conseguiu fazer a Guilherme de Champeaux). Mesmo estranhos podiam interromper uma aula
e se engajar em disputa com os professores…. Situações assim eram momentos acérrimos,
nos quais o disputante procurava humilhar uma figura conhecida” (“Life, Milieu, and Intellectual
Contexts”, Brower e Guilfoy, op. cit., p. 23).
indivíduos”, mas eles são “indiferentes” quando comparados
uns com os outros, ou com outros tipos de entes. Existem
duas maneiras de chegar à “não-diferença” que emparelha
um ente com outro — uma negativa e outra positiva.
Guilherme adotou a primeira: quando destituídos das suas
diferenças (que de certa forma são os “acidentes” da teoria
da identidade), Sócrates e Platão de fato pertencem à
espécie “homem”.76 Pode-se argumentar que a nova teoria
de Guilherme é exatamente a mesma da antiga — e, como eu
falei, as “diferenças” que os indivíduos possuem são, em
certos aspectos, os acidentes da teoria da essência material;
porém, se o leitor prestar atenção, verá que o momento em
que o indivíduo tem a sua essência conhecida mudou, o eixo
se inverteu: antes a essência “homem” era atribuída ao
indivíduo desde “cima”, na transcendência; ele, na
imanência, é que encarnava junto com seus acidentes esse
eidos. Agora, na nova teoria, a essência é chegada aqui
embaixo, no campo da imanência (é por isso que o
professor King frisa que Guilherme passa a admitir que só
os individuais existem). No meu entendimento, essa nova
posição já pode ser considerada uma forma de
nominalismo, posto que o atributo essencial pertence à
esfera da imanência — ele é “encontrado” num processo
puramente dedutivo e racional, dentro da esfera da
percepção natural humana (quer dizer, imanente). Contudo,
76 King, op. cit., p. 71. A via positiva é aquela de Walter da Mauritânia: “[C]oisas distintas
são indiferentemente a mesma quando atingem um certo estado de concordância entre si”
(ibid.).
King afirma que essa teoria é realista porque “afirma que há
uma realidade que é um universal — viz., o indivíduo”.77
77 Ibid. Mas, como observa Lefèvre, Guilherme “sacrificou a realidade própria dos
universais” (Les Variations, p. 15).
78 Abelardo, Historia calamitatum, ii.
79 Lefèvre, Les Variations, p. 13.
de Pedro e Paulo] a humanidade que eles têm não é una,
mas similar, posto que são dois homens”.80
85 Allan Bäck, Aristotle’s Theory of Abstraction, Cham, Suíça, Springer, 2014, p. 281.
86 “Com efeito, o poder da razão nas almas [dos hereges logicistas], razão que deveria
governar e julgar sobre todas as cousas nos homens, esse poder está tão imbricado em
fantasias materiais que não se consegue escapar dessas mesmas fantasias” (Santo Anselmo,
Epistola de incarnatione Verbi, i).
incomunicável e nós nos guiamos na sociedade através de
meras convenções normativas (nomos) às quais chegamos
para ter um mínimo de paz possível. Esse é aquele princípio
que a linguagem popular descreve muito bem como “cada
cabeça, uma sentença”.
94 S. Tiago iii,6.
95 Wilhelm Schmidt, SVD, L’Origine de l’idée de Dieu, 2 vols., Paris, 1919. Curiosamente, o
Antigo Testamento corrobora essa tese: Adão e Eva eram monoteístas (ou seja, o mundo
inteiro era monoteísta); depois, as sociedades se partiram e viraram politeístas. Em termos
simbólicos, do Uno nos degeneramos para o múltiplo.
politeísta, como é o caso da sociedade hindu, ainda assim há
um princípio “unitário”, que seria justamente Brahman: o
princípio ativo, aquele que se expande ao longo do Cosmos,
a um só tempo a causa material e a própria ausência de
materialidade, a bonança e a graça pura, pessoal e
impessoal.
98 Contudo, ainda naquela década, Abelardo comporia a Theologia Christiana, cujo título
não é nada menos que uma troça feita aos homens que lhe mandaram queimar a Theologia
summi boni, já que a nova obra não retirava nenhum dos argumentos que levaram à
condenação do seu trabalho anterior.
menos o ponteiro da espiritualidade começava a girar, para
aceitar o materialismo como um elemento factual de
explicação. Se o leitor prestou bem atenção às objeções
apresentadas por Abelardo ao realismo “exagerado” —
realismo que não é nada menos que a explicação tradicional
da constituição objetiva e intelectual do mundo — ficará
claro que a tese do autor de Sic et Non é “racionalista” e
“lógica”. Abelardo é como seu outro ex-professor, Roscelino:
não consegue entender como duas coisas não podem ser
uma coisa ao mesmo tempo. Isso não “entra” na sua mente
moderna: como podem Sócrates e o burro compartilhar a
mesma essência, já que Sócrates e o burro são duas coisas
radicalmente diferentes? Sócrates é brilhante e racional — é
indigno que entretamos, mesmo que por um segundo, o
pensamento de que ele possa compartilhar qualquer coisa
que seja com um asno.
104 “À noite, chegamos a Alcobaça. Será que pensei que a veria de novo? Entro na
catedral. De algum modo, ela parece ainda mais bonita. Possui uma sobriedade simples,
ascética. Nunca antes senti de uma maneira tão completa os arrepios de transcendência que a
verticalidade pode oferecer. O simples fato de que o homem é esmagado por um espaço
arquitetônico como este define nossa posição precária [no Cosmos]” (Mircea Eliade, 23 mar.
1945, in The Portugal Journal, tr., prefácio e notas de Mac Lincott Ricketts, Albany, SUNY Press,
2010, pp. 196-7).
105 Hesito em dizer que o pecado de Adão e Eva foi uma “manifestação da
pessoalidade” já que a idéia de comer o fruto proibido foi não foi inspirada por Eva, mas pela
Serpente. De qualquer modo, há uma presença do “eu”, ali, porque Eva optou por dizer Sim a
um desejo que não era o de Deus, mas o do mal.
Criação, do poder dos anjos, da hierarquia celeste, da
organização dos astros no céu, no mundo da matéria criada.
Mas, como senhores do mundo, como as obras-primas da
Criação que somos, nossa função é exercer um papel ativo
dentro do quadro de determinações que Deus nos legou.
Retomo a idéia do “círculo mágico” expressa anteriormente:
não nos cabe passar para além desse círculo de
possibilidades naturais no qual vivemos; qualquer coisa
para além disso perturbaria a ordem da Criação. O que
podemos fazer é subordinar a nossa subjetividade, a nossa
pessoalidade, ao Objetivo, de maneira que ela se integre de
maneira harmônica com os ditames do mundo ao nosso
redor. 106 Nós somos homens, nós temos uma constituição
definida. Dentro da esfera do ser, nós formamos uma
espécie distinta das demais. Isso significa que há uma série
de essencialidades à nossa natureza que nos permite
vislumbrar o que é esperado de nós, que tipo de ação a
inteligência divina reservou para nós, quais são as nossas
responsabilidades e deveres para com o mundo e para com
nós mesmos. Porém, dentro da imanência, é impossível que
nós sejamos estáticos e que tenhamos algum tipo de
constituição absoluta: o absoluto só existe no extremo limite
do cosmos; ao descermos “progressivamente do plano
universal para os mais particulares e sensíveis”, as coisas
ficam “mais e mais complexas”. 107 Em outras palavras,
apenas Deus é estático, nós somos dinâmicos; Deus é
perfeito, nós somos imperfeitos; Deus é puro, nós somos
108 O advento histórico de Jesus Cristo serviu, aliás, para afirmar essa espécie de
dupla estrutura do tempo: o tempo de Deus — o eterno agora, da existência afirmativa, que
perenemente é e nunca deixa de ser (algo expresso na gramática pela natureza permanente
do verbo), — e a transitoriedade temporal do homem, que vive no aperto entre passado,
presente e futuro. Inclusive, penso que a verdadeira prova da onipotência divina é essa
possibilidade Dele encarnar nesses dois fluxos temporais; se Ele não pudesse fazer isso, Sua
existência seria uma especulação transcendental tão verdadeira quanto qualquer deidade
pagã.
109 Se enfatizo o elemento humano, é porque o homem é o único animal racional e, no
fim das contas, somente ele tem o critério de terminar o que são as coisas, ainda que o
nominalismo insista que os objetos são determinados por si mesmos.
mais importante do que a sua constituição objetiva. A
relação de entendimento na sociedade, o que os homens
acreditam ser verdade, passa a ser uma coisa meramente
determinada pelas leis, ou pela “tradição” meramente
humana — que é aquela tradição criticada por Jesus Cristo
em são Mateus, xv,3-9 — uma tradição de caráter
meramente moralizante, normativo e social porque ignora o
princípio divino que se expressa através dos caracteres
tradicionais. A vitória do nominalismo, num primeiro
momento, significa o retorno da primazia do nomos sobre a
physei, depois da destruição daquela pelas mãos de
Sócrates, Platão e Aristóteles. Que Abelardo tenha ganhado
de Guilherme de Champeaux na base da retórica é
altamente significativo: voltamos para os debates do Górgias,
que questionam se a retórica deve ser usada para a
maldade, para o bem pessoal e individual ou não.
112 O problema de Kant (à moda de Descartes) jogar o universo inteiro para dentro da
cabeça do homem é tocado sob uma perspectiva diferente pelo professor Olavo de Carvalho na
que uma espécie de “bom senso” secularizado e imanente,
sustentado pela boa prática social. 113 Mas se é o homem
quem faz a sociedade, basta que alteremos o senso comum
e o bom senso, introduzindo idéias que até antes eram
inaceitáveis. De fato, isso é precisamente o que Antonio
Gramsci, a Escola de Frankfurt e os pós-modernos tentam
fazer nos nossos dias. E não há como não ser assim: se a
imanência é o reino da transitoriedade, isso significa que
mesmo o bom senso pode ser alterado; novas formas de ver o
mundo podem surgir de maneira que as mais antigas e
mais verdadeiras podem ser alteradas até um ponto que já
não lembremos mais delas e que novas idéias nos pareçam
perfeitamente razoáveis e até mesmo dignas de legislação
para as suas imposições, como é o caso da ideologia de
gênero (talvez a expressão suprema do nominalismo em
nosso tempo). Em termos “científicos”, isso é explicado tanto
pela “curva de normalidade” descrita pelo falecido senador
americano Daniel Moynihan em “Defining Deviancy
Down”114 quanto pela (ora) insuportável janela de Overton;
nos dois casos a idéia é a mesma: sempre é possível chegar
a um ponto em que um comportamento seja esdrúxulo ou
— FINIS —
Trata-se de volume
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