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2021, A imagem estilhaçada – Breve ensaio sobre realismo,
nominalismo e filosofia
Gênero: Filosofia e Cristianismo
Copyright © Victor Bruno
Copyright © Editora ViV
Capa: Ana Júlia Silveira

Editor: Igor Barbosa


Revisão: Krízia Escórcio

B898a Bruno, Victor, 1995 -


A imagem estilhaçada / Victor Bruno. – 1a. Ed., EBOOK – Rio de Janeiro: Editora
ViV, 2021

ISBN 978-65-88972-02-1
1. Filosofia e Cristianismo.
I. Bruno, Victor. II Título

CDD 201
CDU 212

Todos os direitos reservados

Editora ViV

21 96980-0918 | contato@editoraviv.com.br
AD MAIOREM

DEI GLORIAM
AO MEU PAI

WIDSON PEREIRA BRUNO JR.

E À MINHA MÃE

IARA OSANA SOARES FARIAS


NOTA PRÉVIA

As magras páginas que o leitor ora segura são


resultado de mais de um ano de escrita. Não que eu queira
insinuar que trabalhei durante mais de um ano neste texto
— longe disso. Pelo contrário, várias vezes cheguei perto de
desistir desta obra. Por outro lado, considero que o estudo
que o leitor tem em mãos é essencial para que se
compreenda a natureza, a história e o sentido (ou falta dele)
do mundo no qual vivemos. Uma reflexão sobre este tema é
especialmente conveniente agora que vamos nos
caminhando para o que eu acredito que seja a hecatombe
do mundo moderno.

O objetivo deste livro é um só: argumento que o mundo


moderno é resultado de uma quebra na natureza do
pensamento no Ocidente. Essa quebra se dá na transição do
realismo metafísico para o nominalismo — matriz do tipo
de pensamento que temos hoje (em todo o sentido da
palavra “pensamento”, seja ele filosófico ou no pensamento
do senso comum). Por trás dessa argumentação, há uma
outra pressuposição: que o pensamento normal da
humanidade é o pensamento realista.

Como o leitor notará, o deslindamento do livro é


narrativo; estou contando uma história. Para mim, é a
melhor maneira de condensar e tornar explicável o que, de
outra maneira, seria um estudo impenetrável (e pouco
acessível) sobre filosofia. Felizmente (para você) e
infelizmente (para mim), sou pouco afeito à inacessibilidade
— uma obra deve ser feita com a intenção de ser
compreendida e consumida pelo público. A arte (e este livro
é uma obra de arte, no sentido que é um fazer com um certo
grau de técnica) de todas as épocas é algo feito para a
apreciação e condução do público; este livro não é diferente.
Se disse que infelizmente sou pouco afeito à
inacessibilidade, é porque há aqueles que pensam que
filosofia é mistificação — e normalmente são esses quem
detém o controle de quem é levado a sério como filósofo e
quem não é. Assim, o leitor corre o risco de estar a ler um
ensaio que seria reprovado numa universidade brasileira —
seja por não atender às expectativas do que seja uma obra
sobre filosofia no Brasil (a saber: uma mistura ajambrada
de má interpretação sobre a obra de um filósofo com
ativismo político), seja por simplesmente tratar de um
assunto gostosamente ignorado por grande parte dos
professores do país.

Sendo assim, só me resta agradecer a você por ler este


livro — o que me traz aos agradecimentos devidos ao meu
editor e amigo Igor Barbosa, por aceitar lançar uma obra
deste naipe, e a Lucas Valentim Binati, por transcrever uma
palestra feita ao Apostolado Nossa Senhora de Fátima, de
Teresina, que serviu de pauta para este livro. Também
agradeço a amigos que ouviram dolorosamente meus
argumentos e idéias que servem de essência para as
páginas que seguem — especialmente André Tavares, André
Merlin, os membros do Círculo das Letras e Krízia Escórcio.

Teresina, PI

Outubro de 2020
INTRODUÇÃO
A UNIDADE DA FILOSOFIA

Desde os tempos de Pitágoras, nós, os ocidentais,


escutamos que os filósofos são aqueles que “amam a
sabedoria”. Claro, igualmente, desde esses tempos
pitagóricos, muita gente já fez gato e sapato desse conceito.
O abuso da expressão acabou por torná-la insignificante,
em alguns casos. Todavia, uma coisa é certa — ao menos
para mim. Se há um culpado, se há algo que cause confusão
nessa senda, a culpa é da sophia. Nós, modernos, não
entendemos o que é, de fato, sophia (e isso porque temos
uma robusta tradição filosófica, milenar, aliás, que define de
maneira claríssima o que é a sabedoria filosófica). Aliás,
hoje em dia se pensa que sophia é algo a se obter, e não a se
procurar. Pois sim: a filosofia verdadeira é a filosofia da
aventura; com efeito, é uma aventura amorosa: amamos a
filosofia porque ela nos ama de volta. Há uma tradição
unânime a corroborar a última colocação.

Contudo, com o advento da filosofia moderna,


decidimos dar fim a essa tradição. Também demos cabo da
verdadeira definição de filosofia. Muito bem, amamos a
sophia, mas é a sophia algo singular mesmo? Porque não
muitas sophiai, cada uma para uma conveniência
particular? Pensemos, pois, fora da caixa. E fora da caixa
estamos — radicalmente, pois o que hoje pensamos como
sabedoria filosófica é, em relação às definições tradicionais
de filosofia, algo bem idiossincrático. O filósofo muçulmano
Seyyed Hossein Nasr certa vez assinalou amarga, mas
corretamente, que “grande parte da filosofia européia
profissional [se] rebelou” de maneira tão radical contra a
sabedoria filosófica que o que se fazia (e se faz) lá
“dificilmente pode ser chamado de philo-sophia; antes,
devemos chamar [o que se faz lá] de miso-sophia”.1

E como surgiu a misosofia? Como veremos neste


pequeno estudo, misosofia é um subproduto da emergência
da modernidade, período que começa efetivamente quando
a Idade Média vai se esgotando. O fim do realismo como
modo próprio de se filosofar, bem como o próprio fim da
Escolástica, estilhaçou aquela unidade que caracteriza a
verdadeira atividade filosófica. Aliás, o fim do realismo e da
Escolástica fez muito mais que isso: trouxe um mundo todo
ao fim. Afastando-se da unidade da sabedoria filosófica, o
mundo moderno corrompeu o próprio significado da
palavra “filosofia”, dando sinal verde para que os novos
intelectuais fizessem (como de fato fazem) o que bem
entendessem não apenas com seu significado, mas com a
própria realidade filosófica. “A filosofia é, bem entende-se, a
sabedoria do conhecimento, uma correction du savoir-
penser... Para além disso, a filosofia não é somente um
conhecimento sobre uma área específica do pensamento
humano, mas uma sabedoria sobre o pensar, uma análise
do que significa o ato de pensar; é uma investigação sobre a
natureza do referencial definitivo do pensar”.2

1 Seyyed Hossein Nasr, “Conditions for a Meaningful Comparative Philosophy”,


Philosophy East & West, XXII, 1972, p. 55.
2 Ananda K. Coomaraswamy, “On the Pertinence of Philosophy”, in S. Radhakrishnan e
J. H. Muirhead, orgs., Contemporary Indian Philosophy, Londres, Allen & Unwin, 1952, p. 160, cit.
by Nasr, “Conditions”, loc. cit.
ROMPENDO COM A FILOSOFIA
TRADICIONAL

Bem sei que o leitor, ao dizer que há uma filosofia


verdadeira e que essa filosofia verdadeira é uma filosofia
tradicional, pode pensar que sou muito taxativo — ou, como
dizem os anglófonos, judgemental. O leitor que tal pensou,
pensou corretamente. Mas não há como fazer filosofia sem
ser taxativo. Com efeito, para filosofar e para falar dos
frutos das nossas meditações teóricas, temos de crer, temos
de pôr fé (pois fé = conhecimento) no que dizemos. 3 Mas
digo: não sou eu quem julga. Creio antes que o filósofo
sempre é o réu; quem nos julga são nossos antepassados,
aqueles que filosofaram na tradição. Oras, aqueles que
ergueram a tradição, dispondo-se dos meios que tinham,
para esses devemos nossa honestidade. É nosso dever usar
com responsabilidade e sabedoria do majestoso legado que
herdamos.

E é justamente aqui o ponto onde a distinção entre


filosofia tradicional e moderna se torna evidente. Na
filosofia tradicional, nosso dever para com nossos
antepassados assume um caráter escatológico: “Não passes
além dos antigos limites [gr., horia] que puseram teus pais”
(Pv xxii,28). Como ensinaram Eric Voegelin, Glenn Hughes e
Julián Marías, 4 a filosofia está intimamente ligada com o

3 “A fé consiste-se puramente em conhecimento” (Santo Tomás de Aquino, Suma


Teológica II-II, 47, 13, ad. 2).
4 Eugene Webb, Eric Voegelin: Philosopher of History, Seattle, University of Washington
Press, 2014, p. 8: “[H]á, e sempre haverá, aspectos da nossa existência que requerem a
linguagem analógica da mitologia para poderem ser expressadas. Sob essa ótica, a filosofia, a
mythos, palavrinha que pode ser muito faceira.
Costumamos, hodiernamente, associá-la na tradução mais
superficial a termos como “conto-de-fada”; no entanto,
mythos significa verdadeiramente “narrativa”, ou,
simplesmente, “conto”. 5 Posto que estamos num contexto
cristão (ainda que pós-cristão), nosso mythos primordial é o
da Bíblia, a narrativa ou “história das ações de Deus no
mundo e do relacionamento do homem com tais ações”.6 O
dever, o fim, o telos, da filosofia tradicional — e de modo
ainda mais distinto na filosofia própria da religião cristã —
é descompactar e diferenciar o miolo mais concreto da
experiência simbolizada pelos mitos. Isso quer dizer que há,
efetivamente, uma espécie de avenida fronética que vai do
mito para a experiência noética da filosofia. Com efeito, é
claro que alguém pode argumentar que uma vez que
passamos do mito para a filosofia, — afastando-se daquela
como modo primordial de simbolização da experiência,
dando preferência a esta — estamos, assim, nos afastando
da própria verdade, já que há mais uma camada de
intelectualização entre a experiência real e a interpretação
intelectual. Tal objeção faz, sem dúvidas, sentido, e já havia
sido discutida pelo próprio Eric Voegelin.

mitologia e a religião encadeiam-se numa espécie de continuidade essencial. É por isso que
em sua principal obra, Ordem e História, Voegelin toma como ponto-de-partida do primeiro
volume da série, o livro Israel e a Revelação (1956), o pensamento religioso e mítico dos
mesopotâmios, egípcios e israelenses. Pela mesma razão, o estudo do pensamento grego,
tema do volume 2 da obra, O Mundo da Pólis (1957), começa com Homero e Hesíodo”. Veja-se
também Glenn Hughes, Mystery and Myth in the Philosophy of Eric Voegelin, Columbia,
University of Missouri Press, 1994, e Julián Marías, Biografia da Filosofia e Idéia da Metafísica,
tr. Diva R. de Toledo Piza, S. Paulo, Duas Cidades, 1966.
5 Marías, op. cit., p. 65.
6 Northrop Frye, The Great Code: The Bible and Literature, San Diego, Harvest, 1982, p.
47.
O mito rememora de maneira não diferenciada a
experiência vivida, mas não consegue racionalizá-la no
sentido de traduzir seu conteúdo interior — luminoso e
misterioso a um só tempo — em termos explicativos.
Estranho, digo eu, seria se conseguisse: a linguagem
mitológica, ou mitopoética, não surgiu com esse sentido; ela
foi inventada para causar uma impressão —
preferencialmente uma impressão de verdade. Por outro
lado, a filosofia pode diferenciar os processos e discorrer
sobre a experiência simbolizada pelo mito em linguagem
dialética ou analítica (dependendo do estado de
desenvolvimento da questão), mas não tem o poder de
impressionar quem quer que seja. Isso porque ela está
subjugada pelo entendimento da expressão mitológica.7

A passagem da mitologia para a filosofia não significa


de forma alguma uma “evolução” ou um “progresso” nas
capacidades de expressão ou de intelecção do homem;
antes, é um novo passo na sua habilidade de fazer a
diferenciação entre experiência e realidade. Sendo bem
honesto, não vejo como esse momento na história
intelectual humana poderia ser outra coisa, posto que nesse
novo capítulo dessa história o homem continua a viver e a
pensar sobre e na mesma esfera de realidade dos seus
antepassados; o mundo dos seus antecessores ainda é o seu
mundo; ele vive na mesma Realidade que seus pais, de
forma que a fonte das suas experiências emana da mesma
Unidade. Portanto, para citar de novo aquele versículo dos
Provérbios, os limites postos pelos seus antepassados

7 Veja-se o resumo da discussão sobre mito e dogma no sétimo capítulo de Webb, Eric
Voegelin, op. cit.
permanecem os mesmos. Os limites do Real e da Unidade
não foram e, a bem da verdade, não podem ser
ultrapassados.8

O mesmo não pode ser dito sobre a filosofia moderna


pós-medieval. A filosofia tradicional entende que um
homem verdadeiro é um homem metafísico (“O homem
integral é naturalmente um metafísico”), 9 e aqui vemos
claramente que o fluxo filosófico é um vaivém entre o Real e
o homem. A realidade é o espaço das experiências, e a fonte
da realidade é o Uno; em outras palavras, isso significa dizer

8 Aqui o leitor pode notar claramente que a dinâmica filosófica acima descrita serve
tanto para a filosofia tradicional cristã como para filosofias tradicionais não cristãs, como a
grega antiga, a filosofia islâmica ou hebraica. Tal dinâmica também serve para outras
filosofias, como aquelas vindas do extremo oriente (Vedanta, confucionismo etc.).
Evidentemente, por filosofia “tradicional” quero dizer aquelas que filosofam numa mesma
esfera unânime de realidade. O ponto crucial aqui é que uma filosofia tradicional, via de regra,
filosofa numa mesma clave de realidade, meditando sobre o que Voegelin chamava de It-
reality, que nada mais é do que a realidade sobre a qual a linguagem humana cristaliza e
simboliza suas experiências. Portanto, numa filosofia tradicional, o ponto de partida da
experiência será sempre o mesmo, invariavelmente. Aliás, não só a filosofia, como a própria
poesia, também tem como ponto de partida essa mesma realidade, a It-reality, sendo
exatamente por isso que um haikai sobre amor nos é tão compreensível, em nível de
anamnese da experiência, nos fala de maneira tão actual (i.e., nos exerce tanta ação) quanto
um romance contemporâneo sobre o mesmo tema — o amor é universal porque a realidade
metafísica do amor é universal. Ora, se a poesia que versa sobre experiências universais é
facilmente traduzida em diferentes linguagens e em diferentes eras, é evidente que a
mitologia, — mesmo a mitologia religiosa — aceitando-se que a experiência simbolizada no
mito é igualmente universal, também é inteligível em diferentes culturas e filosofias.
Cf., sobre o tema, Ananda K. Coomaraswamy, “Paths That Lead to the Same Summit”, in
The Bugbear of Literacy, Londres, Dennis Dobson, 1949, pp. 42–63, com Eric Voegelin,
“Equivalences of Experience and Symbolization in History”, in Published Essays, 1966−1985, org.
Ellis Sandoz, Collected Works of Eric Voegelin (doravante, CWEV), vol. XII, Baton Rouge,
Louisiana State University Press, 1990, pp. 115−33.
9 Ananda K. Coomaraswamy, Christian & Oriental Philosophy of Art , Nova York, Dover,
1956, p. 31.
que a realidade é plenamente objetiva. Não que a
subjetividade seja impossível — mas a interpretação
individual do Real não pode ser confundida com o próprio
Real, que é precisamente o que acontece na realidade. A
primazia da subjetividade e do eu abarca e aniquila a
natureza objetiva, impessoal do mundo (que, em última
análise, desdobra-se do Logos). A “culpa” (as aspas são
cortesia da casa) é do nominalismo, que quebrou com a
intricada cadeia de significado que a filosofia tradicional,
tanto pré- como cristã, havia estruturado para tornar o Real
compreensível. Com a chegada de Descartes e do seu
“Cogito ergo sum”, — quer dizer, depois da emergência do
eu como o ponto focal da existência — o eixo filosófico passa
a se centrar no mundo. Como diz Coomaraswamy, “Nós não
inferimos a existência do self com base no comportamento,
mas algo que se conhece por causa da experiência do ‘eu’ . .
. coisa bastante distinta do Cogito ergo sum de Descartes,
argumento baseado no comportamento [humano] e que,
portanto, ainda está calcado num predicado ego-ísta [leaves
us still in an ego-centric predicament]”.10

Bom, mas e porque fazer o que Descartes faz é


errado? pergunta a platéia. Boa pergunta. Aliás, como que eu
posso pensar diversamente às pessoas que disputam a idéia
por trás das linhas acima? Afinal, vivemos nas nossas
próprias cabeças, não? Todos temos ansiedades; todos nos
sentimos deslocados, de tempos em tempos, do mundo,

10 Ananda K. Coomaraswamy, Time and Eternity, Ascona, Artibus Asiae, 1947, p. 23. O
que Coomaraswamy quer dizer é que não podemos totalizar a experiência do Eu enquanto
indivíduos porque estamos dentro da experiência do Eu. A existência do Eu deve ser predicada
de uma existência anterior, maior e total.
como se ele oprimisse a nossa realidade individual com um
sistema perfeitamente arbitrário feito por gente mais
poderosa que nós. Não seria necessária uma revolução
subjetiva? Enfim, temos realidades individuais, e elas
existem agora; falar sobre algo tão aparentemente abstrato
quanto uma “Realidade” parece algo imenso demais.

Como assinalado há pouco, o problema dessa forma


de pensar é a tal da primazia do subjetivismo. É bem certo
que vemos o mundo de maneira subjetiva — mas as
imagens que vemos estão sempre sob o jugo de realidades
objetivas (realismo). Sem o referencial da realidade do
arquétipo (a realidade objetiva), a imagem subjetiva tem de
virar, necessariamente, o próprio arquétipo — o nec plus
ultra da atividade teorética. No fim, isso significa que cada
experiência da vida individual ora ganha uma proporção
cósmica, cousa que ao fim e ao cabo nos leva a problemas
muito delicados — problemas, aliás, que no momento em se
transformam, por mágica (e estou sendo muito sério com o
uso da palavra “mágica”), em proposições filosóficas válidas
e reais, passam a definir o mundo no qual vivemos. É esse o
caso, por exemplo, de Thomas Hobbes, um dos três
patriarcas da ciência e da filosofia política moderna.
Hobbes, ao hiperdimensionar o cosmion inglês,
transformando-o na própria realidade política do mundo,
pariu um monstro político tremendo e catastrófico. Este
monstro veio a ser o que hoje definimos como “democracia
liberal”.
ESTE LIVRO

Ao escrever este livro, pretendo filosofar a respeito


de três temas. Primeiro: Qual é a realidade da Escolástica?
Pois desde o fim da Idade Média, retrata-se toscamente a
Escolástica como aquele período em que a filosofia dormiu
e, ... nos delírios desses sonhos, produziu um tipo de
lucubração mistificadora travestida de filosofia que tinha
por fim justificar, através de uma “conversão” post-mortem
de Aristóteles ao Catolicismo, a irracionalidade da fé.É
justamente esse tipo de visão agravante à Escolástica que faz
Julián Marías perguntar: “Em que consiste o conteúdo da
Escolástica? É filosofia? É teologia? São as duas coisas, ou
uma terceira?” E ele mesmo responde: “A Escolástica é por
certo teologia; sobre isso não cabe dúvida. . . . [A]mbas,
teologia e filosofia, coexistem [nesse período]”.11 Ao filosofar
sobre esse tema, espero conseguir penetrar na tradição
escolástica, de forma que eu consiga ver o mundo, as
figuras e os símbolos que os escolásticos viam. Essa
experiência, para mim, é análoga a uma submersão no
mundo escolástico. Em outras palavras, desejo filosofar
sobre a filosofia Escolástica, o que significa dizer, em última
análise, que desejo filosofar sobre a filosofia tradicional,
posto que argumento que a Escolástica é como se fosse um
“dialeto” daquela unidade que ata todas as filosofias
tradicionais.

11 Julián Marías, História da Filosofia, tr. Claudia Berliner, S. Paulo, Martins Fontes,
2006, p. 139.
Meu segundo tema de interesse é, na verdade, um
objetivo, que é fazer um esboço da história da filosofia
escolástica após o advento do nominalismo. Apesar de
termos, hoje, um número relevante de obras sobre o
advento do nominalismo e seus efeitos na história da
intelectualidade (e da sociedade) humana, 12 a mim me
parece que um questionamento verdadeiramente filosófico
sobre o tópico permanece sendo um desideratum. É
perfeitamente claro que um único livro — ainda mais um
livrinho curto como este que o leitor tem agora em mãos —
não pode sanar um tópico tão complexo; portanto, não
tenho senão o modestíssimo desejo de fazer um primeiro
round de discussões sobre o tema. E sim, eu sei, minha
visão sobre o nominalismo é negativa, e eu creio de verdade
que esta heresia (a Igreja a condenou duas vezes) foi
bastante dolosa à humanidade. Por exemplo: na minha
visão, a mentalidade nominalista, afeita a dividir o Real em
particulares que não se referem a idéias primordiais e
anteriores, foi o que deu vezo à compartimentalização13 da
realidade, característica típica do mundo moderno. Quer
dizer, se tudo que há são particulares e esses particulares
não têm ousia para além das suas próprias existências

12 Vejam-se, inter alia, Michael Allen Gillespie, The Theological Roots of Modernity,
Chicago, University of Chicago Press, 2008; Amos Funkenstein, Theology and the Scientific
Imagination from the Middle Ages to the Seventeenth Century, Princeton, Princeton University
Press, 1986; D. M. Armstrong, Nominalism and Realism, 2 vols.,Cambridge, UK, Cambridge
University Press, 1977; Heinrich A. Rommen, The Natural Law: A Study in Legal and Social
History and Philosophy, tr. Thomas R. Hanley, OSB, Indianápolis, Liberty Fund, 1998; H. J. A. Sire,
Phoenix from the Ashes: The Making, Unmaking, and Restoration of Catholic Tradition ,
Kettering, Ohio, Angelico Press, 2015, esp. Caps. 2, 4–5.
13 Pego esta palavra de Bradley J. Birzer, Russell Kirk: American Conservative,
Lexington, University of Kentucky Press, 2015, p. 169.
individuais, então temos que considerar as coisas como
sendo totais enquanto elas mesmas; portanto, as inter-
relações entre um particular e outro são totalmente
acidentais. E aqui está o ponto problemático: se, por um
lado, a vida do filósofo fica mais “fácil”, já que o objeto
universal está bem ali e portanto sua meditação sobre a
ousia das coisas não lhe toma mais muito tempo (é como se
houvesse menos “etapas” para se chegar à causa primeira
das coisas),14 por outro, a dissonância criada por um mundo
feito inteiramente de realidades que não se relacionam
umas com as outras é insuportável demais. Por fim, com a
compartimentalização da realidade por força do
nominalismo, a intrincada — e rica — rede de simbolismos,
símbolos e mitos que preenchia e dava significado ao real
acabou por se partir.

O terceiro e último tema deste livro, por razões


diversas, não pôde ser concluído. Minha intenção era dar
uma pincelada geral sobre a modernidade e sua arena
política. Aqui, temos de entender a palavra “política” de duas
maneiras, tanto (i) no sentido tradicional, proveniente da
Grécia Antiga, como o comportamento e a responsabilidade
do anthropos para com a polis (i.e., seu meio social),15 como
(ii) no sentido schmittiano da política como uma atividade
irracional na qual os agentes dividem-se entre “amigos” e

14 E é por isso que certos místicos, especialmente de cariz protestante, não precisam
da atividade noética, podendo logo “pular” para a contemplação pneumática de Deus.
15 Quanto mais cedo acabarmos com o entendimento cerrado de polis como só e tão
somente cidade, melhor. A polis, na minha leitura, deve ser entendida como todo e qualquer
meio, grupo, setor ou dinâmica social minimamente organizada, com vínculos, tradições,
símbolos e credos comuns.
“inimigos”, vencendo quem conseguir mais amigos.16 Neste
livro, faremos uso dos dois conceitos, já que até o advento da
modernidade, no período posterior à queda de Roma,
podemos entender a política dentro da Cristandade como
uma atividade moral, referenciada a modos de ser morais
(sem pecados). 17 A inexistência do “Estado nacional”, com
seus símbolos políticos imanentes, impede que algo
parecido com a política schmittiana apareça pelo menos até
o fim do feudalismo e a emergência dos primeiros conflitos
nacionais. Isso não quer dizer que algo do tipo já não possa
ser antevisto com a influência perniciosa e imoral de
Maquiavel, que já no século XV faz os primeiros ensaios
naquilo que chamamos hoje de imperialismo totalitário. 18
Contudo, a meu ver, esse tipo de política só ganha
momentum com a chegada dos chamados “contratualistas”:
Hobbes, Locke e Rousseau, pensadores que seriam
estudados de maneira muito breve num apêndice a este
livro. Contudo, prometo fazer um ensaio maior, com esses
dois temas (Renascimento e Iluminismo), num futuro
próximo.

Basta que fiquemos com a Idade Média, sua riqueza e


seus dramas por enquanto.

16 Carl Schmitt, The Concept of the Political, tr. George Schwab com notas de Leo
Strauss, Chicago, University of Chicago Press, 2007.
17 Veja-se James V. Schall, SJ, “On the Point of Medieval Political Philosophy”,
Perspectives on Political Science XXVIII, 1999, pp. 189−93.
18 Veja-se Olavo de Carvalho, Maquiavel; ou, A Confusão Demoníaca, Campinas, VIDE
Editorial, 2011.
ABERTURA

Antes de proceder com a nossa exposição sobre o que é


a Escolástica e o que o fim desta representou para o
Ocidente, é importante que eu diga que tipo de explicação
estou prestes a dar. De primeira, quero dizer que o que vou
fazer aqui não é uma exposição “didática”. Eu não vou, sinto
muito, fazer uma exposição do que, digamos, santo Tomás
de Aquino ensina na Suma Teológica ou quais são os
principais pontos da filosofia de Guilherme de Ockham.
Fazê-lo custaria muito tempo; quer dizer, considerando-se
que projeta-se que a nova edição dos Comentários às
Sentenças de Pedro Lombardo que estão lançando agora nos
Estados Unidos tenha dez volumes, não é difícil entender o
porquê. 19 A universalidade dos interesses e do intelecto
luminoso típicos da Escolástica é vasta demais para ser
abarcada neste breve livro. Além disso, mesmo que eu
tentasse fazer uma exposição de tipo didático, ainda assim
eu cairia no problema do cânone: de quem, além de santo
Tomás, falarei?

É que a Escolástica é misteriosa. Na minha opinião,


nós, modernos, simplesmente não fazemos idéia do que
falam os escolásticos. É difícil imaginar uma época da
história da filosofia mais controversa do que a Escolástica.
“No melhor dos casos — disse Eugene Fairweather — a
própria palavra ‘escolástica’ nos sugere algo pouco familiar;

19 Peter Kwasniewksi e Jeremy Holmes, orgs., Commentaries on the Sentences , de


santo Tomás de Aquino, ed. bilíngüe latim–inglês, 10 vols., Steubenville, Emmaus Academic,
2017– .
no pior dos casos, sugere o repugnante. A Escolástica nos
recorda um mundo aparentemente muito diferente do
nosso”.20 É é muito diferente, mesmo. A era da Escolástica é
uma era tradicional, o que significa dizer que é uma era
metafísica, posto que as questões mais agudas da Escolástica
são aquelas que caracterizam a própria essência das
sociedades tradicionais — sociedades que vivem em pleno
acordo com os princípios fundamentais da Criação
(princípios, aliás, metafísicos). 21 Logo, está claro que em
relação à sua postura para com o sagrado, com o político,
com o religioso, em sua organização social, em sua arte, a
era escolástica é bem distinta da nossa. Ora, vivemos no
mundo moderno, temos preocupações modernas e temos
interesses modernos. Nosso mundo surgiu dos estilhaços do
mundo tradicional, do qual a Idade Média foi seu período
final. Ademais, o mundo moderno vê o mundo antigo e
tradicional com os olhos cheios de animosidade. Na mente
de muitos, a Escolástica foi um tempo de ocultismo, de
filosofia feita pelos “construtores sociais”, pelos gatekeepers
da sociedade (o clero, é claro); a filosofia escolástica, na
cabeça desses senhores, é uma filosofia que se preocupa em
justificar os feitos e os dogmas da Igreja a fim de deixar o
povo na caliginosidade da ignorância. “[N]a Idade Média, a
filosofia foi antes de tudo a escrava da teologia cristã”, disse

20 Eugene R. Fairweather, “The Intellectual Achievements of Medieval Christendom”, in


Eugene R. Fairweather, org. e tr., A Scholastic Miscellany, Louisville, Ky., Westminster John
Knox Press, 2006, p. 17.
21 “O homem das sociedades arcaicas possui uma tendência de viver no sagrado ou na
intimidade dos objetos consagrados. Tal tendência é compreensível: para os “primitivos”, — e
para os povos de todas as sociedades pré-modernas — o sagrado é equivalente ao poder e, em
última análise, à realidade por excelência. O sagrado é algo saturado de existir” (Mircea Eliade,
Le sacré et le profane, Paris, Gallimard, 1965, p. 18).
certo autor moderno. 22 E continuam: essa era é uma de
filosofia inhenha e átona, escrita num latim de pouca
imaginação (e pedestre), feito de termos demasiadamente
técnicos. Para resumir, graças à sua galopante ignorância
sobre o período, o homem moderno pode escrever que
tendo “seu dedo mordido pela teologia cristã, a filosofia caiu
num sono profundo de quase mil anos, até ser despertada
pelo beijo de Descartes”. 23 Tal pensamento se acha até

22 Anthony Gottlieb, The Dream of Reason: A History of Western Philosophy from the
Greeks to the Renaissance. Nova York, W. W. Norton & Co., 2000, p. 347. Foi Hegel quem
efetivou essa interpretação negativa da filosofia escolástica como canônica (“A filosofia
escolástica é essencialmente teologia e essa teologia é imediatamente filosofia”). Ainda de
acordo com ele, já no século XII, os “doctores theologiae docmaticae eram os guardiões da
educação pública: criticavam livros, taxavam-nos de heréticos e por aí em diante. Sob certa
maneira, esses homens eram uma espécie de consistório eclesiástico, exercendo um aspecto
‘paternal’ do sistema de doutrina do Cristianismo” (G. W. F. Hegel, Lectures on the History of
Philosophy, vol. 3: Medieval and Modern Philosophy, org. Robert F. Brown, tr. Robert F. Brown e
J. M. Stewart, Berkeley, University of California Press, 1990, pp. 49, 59). A opinião de Hegel — e
de Gottlieb, claro — não estaria errada se eles não pensassem que a ligação entre teologia e
filosofia na Escolástica não fosse uma de escravidão. É claro que com isso eu não ignoro que
certos escolásticos, como s. Pedro Damião — a quem se credita, volta e meia, a autoria da
frase “philosophiam esse ancillam theologiae” (no melhor dos casos, um crédito questionável;
veja-se Malcolm de Mowbray, “Philosophy as Handmaid of Theology” Traditio, LIX, 2004, p. 3) —
e Otlo de Sto. Emerão eram evidentemente avessos à “dialética”; mas essa refração só se
alevantava de forma a prevenir que a filosofia não se tornasse mais importante, aos olhos dos
homens, do que a suprema scientia de Deus (noutras palavras: que a razão natural, ou, ainda, o
ego, não tentasse ser maior que Deus).
23 Gottlieb, op. cit., p. 348. E também: “No início da era cristã, a filosofia adormeceu. Tal
lassidão produziu um sonho filosófico chamado Escolástica. . . . No século XVII, a filosofia foi
rudemente acordada desse sono com a chegada de Descartes e sua declaração ‘Cogito ergo
sum’ (Penso, logo existo). Uma era de iluminação se inciou: o conhecimento agora basear-se-
ia na razão” (Paul Strathern, Nietzsche, Londres, Harper Press, 1996). A fonte dessa opinião é,
de novo, Hegel: “Neste instante, pela primeira vez podemos falar propriamente da filosofia do
mundo moderno, começando por Descartes. Aqui, como o marinheiro grita após uma longa
viagem, exclamamos, ‘Terra à vista!’ . . . Esta era se baseia na razão, e a razão procede de si
mesma” (Lessons, p. 131).
mesmo dentro da Igreja — supondo que possamos achar por
um segundo que seja que um tipo como Has Urs Von
Balthasar, que chamou a Escolástica de “a desolação
[sconsolatezza] da teologia”, 24 seja um representante do
Catolicismo.

Por causa desse mistério sobre o que é a Escolástica,


há, por extensão o mistério de quem nela está. É por isso
que não quero fazer uma exposição “didática” dessa era
filosófica. Aliás, não há nada didático numa parada de
autores pertencentes a um cânone se nós não sabemos o
que de fato é esse cânone. Além disso, não devíamos ter
tanta certeza a respeito da estabilidade do nome dos autores
pertencentes a esse cânone. Uma buscadinha rápida em
qualquer livro de história da filosofia, por mais básico que
seja, terá algumas biografias sobre santo Anselmo de
Canterbury, santo Tomás de Aquino, Guilherme de Ockham
e Duns Scotus. Mas por que é que deveríamos dar a Ockham
e a Scot — dois dos responsáveis pelo fim da Escolástica — o
mesmo peso que damos a Anselmo e Tomás?

Pois bem, em sentido contrário, podemos dizer que


Ockham e Duns Scot são, de certa maneira, a antítese de
santo Tomás, que é o próprio baricentro da Escolástica,
posição guardada pela Aeterni Patris do papa Leão XIII. Mas
isso seria verdade somente se a Escolástica fosse uma era
uníssona da história da filosofia, sem suas discussões e
batalhas teóricas internas. Sem dúvida, a Idade Média é

24 Balthasar também disse: “Essa representação [figura] da Palavra de Deus me era


insuportável” (apud “Hirpinus” [pseud.], “Hans Urs Von Balthasar, il padre dell’apostasia
ecumenica”, Sì sì no no, XIX, no. 4, 1993, p. 1). Creio que não me seja necessário comentar mais
nada sobre isso.
uníssona no sentido que a Weltanschauung dela é o
realismo — mas tal harmonia vem do fato que, como
veremos abaixo, a Escolástica é uma representante duma
corrente ininterrupta de sabedoria, corrente essa que une
todas as formas tradicionais e verdadeiras de filosofia. Só
que, ao pensarmos em Escolástica, ignoramos tudo isso;
para nós, na modernidade, além de tornar a filosofia
escrava da teologia católica, pensamos que tudo que
aconteceu na Idade Média não passou da querela dos
universais. De fato, está fora de questão de que o foco
central da Escolástica tardia (séculos XIII e XIV) foi, sim, a
luta entre nominalismo e realismo — mas a Escolástica
durou, grosso modo, quatrocentos anos. Com efeito, o abade
Armand Mignon questionava, num dos melhores livros a
respeito da história da Escolástica, livro este escrito mais de
cem anos atrás (e pode ser que este livro seja um dos
melhores sobre o assunto porque foi escrito mais de cem
anos atrás), o abade Mignon perguntava se “toda essa
sabedoria admirável, aqueles densos e longos tratados sobre
a metafísica de Aristóteles, sobre a física, — quer dizer, a
ciência da natureza — sobre a alma, com suas faculdades e
movimentos, isso tudo não vale nada?”25 Ademais, mesmo
que os fundamentos do nominalismo tenham sido
estabelecidos por Roscelino de Compiègne e que o infame
Pedro Abelardo — seu aluno, aliás — defendesse teses
nominalistas, o primado do nominalismo e a verdadeira
querela dos universais só começa quando Ockham e Scot

25 A. Mignon, Les Origines de la scolastique et Hugues de Saint-Victor, 2 vols., Paris,


1895, I, p. 55.
começam a publicar seus trabalhos. 26 E quando isso
aconteceu, esses dois franciscanos não trazem consigo só a
carga definitiva contra o realismo, mas o próprio anúncio
de que um modo de vida e pensar inteiro está chegando ao
fim da sua existência. Um século depois, quando o
nominalismo reina sozinho, quando o nominalismo é o
dono das universidades européias, a Idade Média, tal como o
mundo a conhecia, marcada pelo seu caráter
inequivocamente metafísico e pelo sistema feudal, essa
Idade Média está acabada. Nasce a modernidade.27

Disse isso tudo para justificar o fato de que não


podemos prosseguir com nossa investigação sem sermos
críticos. Meu desejo, minha esperança, é que uma
redescoberta completa da Escolástica fosse empreendida.
Isso, neste ensaio, não posso fazer. Porém o que eu posso
fazer é filosofar sobre a Escolástica — sobre seus temas, sua
teleologia e seu fim (e o que esse fim significa para nós,
modernos). Talvez eu devesse abrir mão do adjetivo
“didático” e dizer que o que é necessário é, na verdade, fazer
uma exposição pedagógica da filosofia da Idade Média. É o
que quero fazer aqui: filosofar e racionalizar sobre aquilo

26 Se não fosse assim, são Bernardo não teria dado conta das heresias de Abelardo tão
rapidamente.
27 “Para nós, a verdadeira Idade Média vai do reinado de Carlos Magno até o início do
século XIV. . . . Essa é a data que marca o verdadeiro início da crise moderna: é o início da
decomposição da ‘Cristandade’, com a qual a civilização medieval do Ocidente se identificava de
maneira essencial; ao mesmo tempo, essa data também marca o fim do regime feudal, —
igualmente ligado à essa mesma ‘Cristandade’ — e a ascensão do ‘Estado nacional’
[‘nationalités’]” (René Guénon, La Crise du monde moderne, Paris, Gallimard, 1983, p. 29). Veja-
se também Gillespie, Theological, op. cit.
que este que vos fala, meus amigos, considera uma forma
verdadeira de filosofia — a filosofia cristã por excelência.

Mas, como eu disse, uma redescoberta da Escolástica é


necessária. Isso também quer dizer que estou a questionar a
visão que pesquisadores, acadêmicos e pensadores têm a
respeito dessa era filosófica. Portanto, não posso aqui usar
de maneira leviana o “cânone” atual de autores que de
maneira metonímica representam o que seria a Escolástica.
Agora, é claro que aqueles entre vós que já leram trabalhos
mais avançados sobre o assunto têm algum nível de
familiaridade com certos nomes que citarei em instantes —
e por existirem trabalhos assim avançados sobre o tema, é
possível que alguém venha a imaginar que eu estou
contradizendo minha tese de que pouco se estuda ou se
conhece sobre Escolástica. Respondo dizendo que o
problema desses trabalhos é que eles abordam a Escolástica
como o legista aborda o cadáver no necrotério. Eu, todavia,
penso que a Escolástica é uma escola filosófica real e
venerável; é uma fonte perene de sabedoria da qual
devemos beber sempre que possível.
PERGUNTAPOIS ÀS GERAÇÕES
PASSADAS, E EXAMINA COM
CUIDADO AS MEMÓRIAS DE
NOSSOS PAIS:

PORQUE NÓS SOMOS DE


ONTEM.

JÓ VIII,8-9
§1. DE PLOTINO A SANTO
ANSELMO: O PROBLEMA DA

FILOSOFIA CRISTÃ DA

ANTIGÜIDADE TARDIA AO INÍCIO

DA ESCOLÁSTICA

Comecemos, pois, a investigar. Primeira questão: Como


a Escolástica veio a existir?

Para além da História da Filosofia de Julián Marías,


meu livro preferido sobre o assunto é o do padre Frederick
Copleston, SJ, que foi um grande filósofo, um grande
escritor e um grande católico, apesar de ser um jesuíta.
Copleston e Marías compartilham uma visão similar a
respeito do que aconteceu com a filosofia entre o final da
Grécia Antiga e o início da Idade Média. É claro que temos
que pôr a questão em perspectiva e usar do senso das
proporções: a História do padre Copleston é um trabalho
monumental, de vários volumes, enquanto que o texto de
Marías é bem mais modesto e bem menos exaustivo (o que
não quer dizer que seja pior, muito pelo contrário). Só que
ambos os dois chegam à mesma conclusão: entre Plotino e
santo Anselmo de Canterbury, na parte latina da Europa,
exceto por algumas escolas “menores” de pensamento, há
apenas um pensador digno do título de filósofo, e este é
santo Agostinho.

Mas o que Marías diz com palavras, Copleston mostra


com ação. Vejamos o primeiro: Marías passa por cima do
Neoplatonismo e da Patrística, tratando dessas duas fases da
filosofia como “menores”. O pensamento de Plotino é
resumido em duas páginas e meia; as filosofias de Porfírio e
Próculo resumem-se a um parágrafo para cada uma, e
enquanto o grande filósofo espanhol admita que Pseudo-
Dionísio (doravante, só Dionísio), o Areopagita, tenha tido
“imensa autoridade e influência na Idade Média”, Marías
não dá senão uma lista dum punhado de obras desse
pensador seminal. 28 Já à Patrística (ou à “especulação
patrística”, no dizer dele), Marías não dá mais que cinco
páginas e meia, resumindo de maneira brevíssima o
pensamento de são Justino Mártir, Orígenes e Clemente de
Alexandria. Sobre santo Ambrósio de Milão, por exemplo,
nada se diz. E acabou-se. Só santo Agostinho recebe um
tratamento mais completo. E depois dele, diz Marías, “há
uma grande lacuna de quatro séculos, do V ao IX, em que
não há propriamente filosofia”.29

E o que diz o padre Copleston? Como falei há pouco, o


trabalho desse eminente pensador jesuíta é bem mais
exaustivo que o de Marías; contudo, como eu também acabei
de dizer, ele mostra em ato o que Marías assinala em
palavras. Que cousa isso quer dizer? Assim como Marías,
entre o Neoplatonismo e a Escolástica, só o bispo de Hipona
recebe um tratamento mais delineado do seu pensamento,
mas, graças à natureza do trabalho de Copleston,
personagens ignoradas por Marías, como santo Ambrósio,
são Justino e Orígenes, recebem capítulos exclusivos para si.
Só que, vejamos, comparemos os tamanhos desses capítulos:

28 Marías, História da Filosofia, p. 112.


29 Ibid., p. 135 (grifo meu).
santo Agostinho ganha cem páginas só para si, enquanto
santo Isidoro de Sevilha tem meras trinta páginas. 30 Por
quê?

Eis uma pergunta que não posso responder de maneira


completa. Contudo, por capricho do destino, é necessário
que eu dê alguma resposta antes de continuar com o nosso
tema. Eis que não seria desprezível perguntarmo-nos por
que santo Agostinho é a figura mais eminente dessa era da
história da filosofia ocidental. Por que ele? Com efeito, não
podemos ignorar que ele é uma figura capital da Escolástica
— mas não acabamos de ver que Dioníso também não é?
Sim, então precisamos doutra justificativa. Poderia ser
porque santo Agostinho transcendeu em seu tempo as
preocupações que ocupavam o pensamento de Orígenes e
santo Atanásio, pensadores especialmente concentrados
com a organização da teologia cristã, combatedores de
heresias como o arianismo. E não poderia ser de outro jeito,
pois, afinal, vendo a destruição do Império Romano,
Agostinho teve a visão das duas cidades, a Cidade de Deus e
a civitas terrena, eternamente conflitantes. E que jeito mais
metafísico, mais filosófico, e mais histórico, que jeito mais
católico de se ver um evento! No teatro da mente do santo, a
queda de Roma tinha um significado verdadeiramente
metafísico, e foi tentando destrinchar que símbolo era esse
que Agostinho uniu o mundo já em decomposição da
Antigüidade enquanto plantava as sementes dessa nova era
da intelectualidade cristã — a Idade Média. De fato, criando
os símbolos da Cidade de Deus e da civitas terrena,

30 Minha edição é Frederick Copleston, SJ, A History of Philosophy, vol. 1: Greece &
Rome, pt. 2, Garden City, Image Books, 1962.
Agostinho pôs em marcha a discussão entre Poder
Temporal e Autoridade Espiritual, algo de profunda
importância nos séculos posteriores do mundo ocidental.3131

Talvez seja assim mesmo. Mas então de que se


ocupavam os Padres da Igreja? A resposta parece meio
óbvia: Eles se ocupavam de teologia. E aqui vai uma
observação: é certo que os historiadores da filosofia de hoje
em dia dão um tratamento muito diminuto em seus livros à
Escolástica — mas independente do quão diminuto seja esse
tratamento, ele é, em geral, maior que aquele dispensado à
Patrística. Mas porque é esse o expediente? Por que os
historiadores da filosofia voam baixo quando falam da
escola Neoplatônica, dos Padres da Igreja (tanto gregos
quanto latinos) e vão direto para santo Agostinho?32

31 “[Santo Agostinho] lançou seus olhos para além do vão e sanguinolento caos secular,
fixando-os no mundo das realidades donde o mundo dos sentidos extrai todo seu significado.
Sua mente não se preocupava com o destino da cidade de Roma ou da cidade de Hipona; não
se preocupava nem mesmo com as lutas de romanos e bárbaros. Ela, antes, pensava naquelas
[duas] cidades cujas fundações estão lançadas no céu e no inferno, bem como na luta entre as
‘potestades do mundo negro’ contra os príncipes da luz” (Christopher Dawson, Medieval
Essays, Washington, DC, Catholic University of America Press, 2002, p. 48).
32 Meu amigo Dan Sheffler, professor do Georgetown College, no Kentucky, lendo uma
versão mais primitiva deste texto, mencionou que autores como Jaroslav Pelikan, Étienne
Gilson e John M. Dillon fizeram e fazem um trabalho de historiografia da filosofia que leva os
períodos que digo serem ignorados em altíssima conta. Ele está montado na razão, sem dúvida
— e eu mesmo posso mencionar outros autores, como John Marenbon e o já mencionado Josef
Pieper. A questão é que, na minha visão, Pelikan, Gilson, Dillon, Marenbon e Pieper são
exceções — brilhantes exceções, aliás, mas exceções. A meu ver, a historiografia padrão,
desde o tempo de Hegel, tende a tratar o Neoplatonismo, a Patrística e a Escolástica com
animosidade, para dizer o mínimo. Além disso, os autores acima arrolados nunca tiveram —
assim penso eu — a oportunidade de se popularizar na consciência intelectual do Ocidente,
porque, por defenderem esses períodos “obscurantistas” da história da filosofia, eram vistos
eles mesmos como adversários da razão.
Minha resposta é que o cerne da questão da filosofia
cristã repousa sobre a realidade da Encarnação. A teologia
escolástica é um ponto de irmanação das proposições
dogmáticas do Catolicismo e as filosofia e teologia
especulativas de (grosso modo!) Platão e Aristóteles. Ora,
Aristóteles propunha que há uma theologia, e que essa
ciência, diz ele, é aquela que se interessa pelo divino — isto
é, pelo ser primordial. A theologia seria a ciência da causa
primeira de todas as outras ciências; enfim, é a filosofia
primeira, porque versa sobre o Primeiro Ser, a casa
primeira do mundo.33 Mas as teologias de Aristóteles e de
Platão são teologias especulativas (teóricas); com efeito,
convém lembrar que quando falamos da “religião grega”,
estamos incorrendo ou em anacronismo ou fazendo uso de
metonímia. É óbvio que os gregos eram piedosos (tinham
eusebēs) e prezavam a santidade (hosion),34 mas com certeza
não possuíam uma religião tradicional — não no sentido de
que o Cristianismo, ou o Budismo, ou o Hinduísmo, ou o
Judaísmo ou o Islam as são. Contudo, é possível argumentar
que, num certo sentido, a religião grega — no período
anterior à decadência que se inicia na naquela sociedade no
século V a.C. — tivesse alguma similaridade com a piedade

33 “Se há alguma coisa eterna, imóvel e distinta [da imanência], logo nos é evidente que
a ciência que lida com tal ser deve ser uma ciência teórica. Tal ciência não pode ser a física,
que lida com seres em movimento; nem pode ser a matemática. Essa ciência deve ser anterior
a essas duas. Com efeito, a física lida com realidades que são separadas, mas não imóveis; já
alguns ramos da matemática lidam com realidades imóveis, mas não distintas. . . . Portanto, os
ramos da filosofia teórica, por conseguinte, são três: matemática, física e teologia. Não é
necessário frisar que se o divino existe, então deve existir a teologia”. (Aristóteles, Metafísica,
E 1026a 11–24).
34 James Feibleman, Religious Platonism, Londres, Routledge, 2013, p. 24.
religiosa dos povos nativos dos Estados Unidos.35 Todavia, tal
similaridade são, a meu ver, expressões da piedade e da
santidade mencionadas acima (e observadas por são Paulo
em Atos xvii,22), 36 mas que não são suficientes, de forma
alguma, para que se transformem em religião.

Portanto, se não há uma religião tradicional, se há uma


ausência de normativas exotéricas, de dogmas, de cânones
estabelecidos e dum credo que ligue todas essas cousas
numa única forma religiosa, então são as teologias de Platão
e Aristóteles não mais que especulações, sem efeitos
operativos. Só que quis o destino que a realidade cristã, a
começar pelos realidades da Encarnação de Cristo e da
instituição da Sua Igreja, demandasse adivinhem o quê?
Normas, cânones e um credo comum. Portanto, a realidade
do advento do Cristianismo exigia que os homens de saber
praticassem teologia — e praticassem teologia sobre o fato
da existência de Cristo; sobre a existência operativa da
Encarnação do Logos. Com o nascimento de Cristo, a
teologia, enquanto uma ciência que teoriza o divino, deixou
de ser especulativa para ser operativa, pois seus acertos e
erros têm efeitos actuais na alma do crente. E vejam só: de
um lado, a existência de Cristo legitima a teologia como
uma ciência verdadeira; contudo, com o decorrer do tempo,
por causa da característica proposicional que a teologia
dogmática naturalmente possui, essa mesma teologia
correrá o risco de se ossificar e se tornar nada além de

35 Veja-se Joseph Epes Brown, The Spiritual Legacy of the American Indian, Nova York,
Crossroad, 1984.
36 “Varões atenienses, em tudo e por tudo vos vejo muitíssimo tementes dos vossos
deuses [deisidaimonesteron]”.
proposicional. Com efeito, o próprio Eric Voegelin usou esse
adjetivo, “ossificante”, para se referir aos escritos de santo
Tomás de Aquino.37

De qualquer modo, a Encarnação de Cristo e a


fundação da Sua Igreja produziram uma mudança no
conceito de teologia. Meu argumento é que, com Cristo, o
que Platão e Aristóteles entendiam como teologia deve se
chamar, na verdade, metafísica; com isso, devemos deixar de
lado aquele primeiro termo para a ciência que lida com os
dogmas e a realidade da camada escatológica do Real.
Evidentemente, como católico, é minha crença que apenas a
teologia tradicional da Igreja é a certa — mas creio que a
distinção entre o que é teologia e o que é metafísica seja
necessária, e talvez de proveito para filósofos afiliados a
religiões diversas à minha.38

Volto ao ponto. Sei perfeitamente que ao dizer que


apenas a teologia católica tradicional é a certa diminuo
amplamente as possibilidades da ciência teológica
especulativa, porque há pensamentos que a razão natural
pode conceber que enquanto de um lado “solucionam” um
problema filosófico, impugnam, de outro, este ou aquele
dogma da Igreja de Cristo. É por isso que a metafísica é
mais “convidativa”, digamos, para o intelecto humano, já
que a sua natureza “aberta” abarca “mais debate”. Minha

37 Eric Voegelin, Anamnesis, tr. M. J. Hanak, org. David Walsh, CWEV, vol. VI, Columbia,
University of Missouri Press, 2002, p. 392.
38 Por exemplo, creio que um pensador muçulmano possa pensar que apenas os
escritos exotéricos do islamismo (logo, de teologia dogmática muçulmana) sejam corretos,
enquanto aceite como especulativamente possíveis obras metafísicas de autores não-
muçulmanos.
posição dogmática quanto à teologia da Igreja também é
problemática (para alguns) porque com ela eu torno
instantaneamente a teologia de autores católicos
insignificante para quem não é católico. Isso nos levaria a
um problema com aqueles autores que eu estava discutindo
há pouco, os autores patrísticos. Mas, lembrem-se de que eu
sustento que (1) para mim, santo Ambrósio e Clemente de
Alexandria, por exemplo, são filósofos e católicos; portanto,
seus escritos têm um valor duplo (valem como teologia
dogmática e como teologia metafísica). Além disso, sustento
que (2) o campo metafísico pode compreender tanto a
teologia dogmática (pois a teologia só é asseverada como
dogmática após ser debatida) 39 como também pode
compreender a especulação não-dogmática.

Bom, então podemos ver os autores patrísticos dessa


maneira. Só que a misosofia contemporânea não concorda
com essa visão; para ela, a Patrística é uma filosofia menor
porque trabalha com um campo de labuta mais reduzido —
a teologia dogmática. E porque é assim? Porque a misosofia
ignora o princípio básico da filosofia verdadeira, que é a
unidade. Não há filosofia sem a consciência da unidade.
Ora, a filosofia universitária profissional do mundo
moderno é herdeira do nominalismo, e o nominalismo por
definição rejeita a unidade. Então teólogos como Clemente,
Orígenes e santo Atanásio não têm qualquer função para
preencher na intelectualidade hodierna; esses homens não
são mais que curiosidades, peças de museu, personagens de
priscas eras, de tempos obscurantistas, que achavam que

39 Veja-se Olavo de Carvalho, Aristóteles em Nova Perspectiva: Introdução à Teoria dos


Quatro Discursos, 2.ª ed, Campinas, VIDE Editorial, 2013.
um mito era coisa real. Perdendo aquela unidade que ligava
a Patrística a filosofias posteriores, o misósofo moderno
pode ignorá-los completamente. Se ele menciona esses
autores hoje em dia, é porque houve um tempo em que eles,
infelizmente, foram importantes. E acabou-se. Não há nada
mais a se falar sobre eles porque o idioma da filosofia de
hoje não é o mesmo idioma desses autores. Perdeu-se a
comunidade (communitas, indicando um estado de ser (tas)
comum) entre o velho e o novo. E aqui fica clara a mudança
na ousia da filosofia: a filosofia tradicional é uma busca por
uma unidade — uma unidade de entendimento e uma
unidade de significado. A filosofia moderna é, no entanto,
uma Torre de Babel.

Prossigamos com a nossa discussão. Após santo


Agostinho, a filosofia cai de novo em depressão. Para Marías
e Copleston, o próximo filósofo digno do nome é santo
Anselmo de Canterbury, que, ao surgir (e com ele, a
Escolástica), trará consigo uma nova face à Europa; trará
também consigo um novo estilo de filosofar, bastante
distinto do estilo de Agostinho.

O fato é que se é assim, então estamos de volta ao


problema que acabamos de versar: O que fizeram os
pensadores dos séculos que separam Agostinho e o bispo de
Canterbury? Que fizeram Boécio e Cassiodoro, por exemplo?

Falemos de Boécio. Boécio viveu na era em que Marías


diz que não houve filosofia, ainda que seu trabalho tenha
sido fundamental para a Idade Média. Sua tradução e
comentários sobre o Isagoge de Porfírio foram o livro-texto
de lógica não apenas durante a era medieval: usavam-se até
mesmo em períodos bem tardios, como no século XVI. 40
Outro nome relevante do período é o de Cassiodoro, assim
como o de santo Isidoro de Sevilha, são Beda, Rábano
Mauro, Alcuíno, entre outros.

Como resolver esse problema? Parece-me que a opinião


de Josef Pieper num volume clássico sobre a Escolástica
indica uma solução: a sociedade que passou a comandar o
mundo deixado por Roma não esteve presente na dinâmica
que criou esse mesmo mundo; não foi uma sociedade que,
após séculos de luta, mas de relacionamento, tivesse uma
linguagem comum (como foram hebreus e egípcios,
digamos, ou mesmo romanos e gregos). “O fato — diz Pieper
— é que povos ‘bárbaros’ passaram a habitar uma casa que
não fora construída por eles”. 41 Isso significa dizer que o
homem medieval tinha de ter fé em Deus — ou seja, tinha de
realizar o ato pneumático da fé — enquanto que, ao mesmo
tempo, tinha de aprender granjear para si e para os seus a
base noética que leva ao entendimento desse fenômeno
pneumático. Portanto, a sociedade européia da Alta Idade
Média tinha de começar a entender intelectualmente a
realidade de Cristo. Tarefa pouca é bobagem.

Ora, então o homem europeu desse período que Julián


Marías classifica como afilosófico está preocupado com a
absorção, com o entendimento e com a explicação do que é

40 O Isagoge traduzido e comentado por Boécio era ainda usado no tempo de Descartes
(Roger Ariew, Descartes among the Scholastics, Leiden, Brill, 2011, p. 15)
41 Josef Pieper, Scholasticism, Nova York, McGraw-Hill, 1964, p. 21.
a sabedoria de seus ancestrais. Tendo em vista como nós
tratamos a sabedoria dos nossos ancestrais, esse proceder é
muito interessante. E qual é a base epistemológica e
ontológica dessa diferença? A meu ver, acontece que o
homem da Alta Idade Média está inserido e procura se
inserir numa unidade cosmológica com seus antepassados.
O homem dessa época é um homem integral, um homem
metafísico; portanto, ele entende sem maiores problemas
aquelas sábias palavras do rei Salomão, “Não passes além
dos antigos limites que puseram teus pais” (Pv xxii,28). E que
cousa são esses limites? Eles são o próprio limite do raio do
círculo metafísico que abarca a unidade do mundo — e que
abarcam também, num certo sentido, a unidade da
experiência filosófica (Gilson). 42 O homem da Alta Idade
Média sabia estar incluso no que Titus Burckhardt chama de
“círculo mágico da forma” 43 (entendendo-se “forma” aqui
como no grego eidos, e não no sentido de “formato”), no
qual o próprio limite da circunferência é o próprio limite
imposto pelos nossos pais, nossos predecessores, a quem
nos juntamos ao verdadeiramente filosofarmos.

Contudo, há um ponto curioso aqui. Os pré- ou proto-


escolásticos trabalharam na pesquisa e na compilação da
sabedoria do passado; isso significa que eles estavam num
esforço que buscava o entendimento correto dessa tradição
que havia caído em seus colos. Mas, como qualquer livro de
história da filosofia dirá a vocês, homens como santo

42 Étienne Gilson, The Unity of Philosophical Experience, Nova York, Charles Scribner’s
Sons, 1950.
43 Titus Burckhardt, The Foundations of Christian Art, Bloomington, World Wisdom,
2006, p. 92.
Isidoro ou Boécio não se ocuparam do que possamos
chamar à primeira vista de filosofia, ou de metafísica; eram,
antes, “gramáticos”, ou professores de Lógica.
Evidentemente, sabemos que Boécio escrevera antes de
morrer uma obra de nome A Consolação da Filosofia;
Pieper, porém, diz que antes de ser filósofo, Boécio foi,
acima de tudo, um resgatador da base comum daquela
tradição comum que “apenas por si torna possível uma
diversidade de perspectivas filosóficas distintas”.44 E, de fato,
foi assim: Boécio traduziu Platão e Aristóteles e foi o
principal comentarista do Isagoge — que é, grosso modo, um
trabalho de Lógica. Há também santo Isidoro, autor das
Etimologias, vastíssimo trabalho sobre os fundamentos do
conhecimento (viz., as sete artes liberais). Outro exemplo
que podemos arrolar aqui é Alcuíno, autor de trabalhos
didáticos sobre as artes liberais, dentre eles um dos mais
importantes livros sobre lógica medieval, a sua Dialectica.

Porém esses trabalhos não são, estritamente, obras


metafísicas; ou não são, ao menos, num ponto de vista
moderno. E, como observa o abade Mignon, até o século XII
não havia cátedra de metafísica nas escolas e universidades
medievais.45 Só que isso não significava que os pensadores

44 Pieper, op. cit., p. 29.


45 “Até o século XII, não havia a cátedra de metafísica nas escolas; havia-se somente a
antiga divisão entre moral e física” (Mignon, op. cit., I, p. 37). Gordon Leff (“The Trivium and the
Three Philosophies”, in A History of the Universities in Europe, vol. 1: Universities in the Middle
Ages, org. Hilde de Ridder-Symoens, Cambridge, UK, Cambridge University Press, 2003, p. 308)
escreve que “apesar da noção das artes ser em geral bastante restrita (como foi o caso em
Oxford), em meados do século XIII elas já não correspondiam às disciplinas ofertadas nos
cursos de artes [liberais], sendo posteriormente supridas ou mesmo suplantadas por outras
disciplinas. O caso mais notável foi a adição das três filosofias — a natural, a moral e a
metafísica — que não eram abarcadas pelas antigas divisões entre trivium e quadrivium”. A
estavam proibidos de terem insights metafísicos antes da
descoberta dos trabalhos de Aristóteles sobre filosofia
natural — afinal, a metafísica é aquele ato fronético, seja
noético ou pneumático, da rememoração e da luta por um
entendimento correto da nossa experiência com o Real em
busca do campo iluminado da existência. Portanto, pensar
para além da matéria, em busca do essencial, já é fazer
metafísica. Portanto, os autores com os quais estamos
lidando nesta parte deste ensaio já eram metafísicos (e,
portanto, filósofos), ainda que a filosofia do tempo deles
estivesse num estado de depressão. Por exemplo, podemos,
com toda certeza, dizer que a Gramática do trivium já é uma
disciplina metafísica porque seus princípios são aqueles
dum entendimento do real através da simbolização
gramatical. Isso pode ser claramente detectado se
considerarmos o que é, para a Gramática do trivium, um
substantivo.

Graças ao caráter nominalista do mundo moderno,


imaginamos, — especialmente aqui no Brasil, onde são
permitidas aberrações como os senhores Marcos Bagno e
Sírio Possenti — no mundo moderno imaginamos que a
gramática é uma disciplina arbitrária, na qual beletristas
prescrevem quaisquer regras que eles acham mais

adição “tardia” da metafísica (ou da “filosofia”, num sentido mais elástico do termo) nas
universidades medievais só apareceu quando os trabalhos sobre filosofia natural até então
“inéditos” de Aristóteles se tornaram disponíveis no Ocidente. “Quando, na primeira metade do
século XIII, o Aristóteles ‘inédito’ finalmente passou a ser aceito no currículo estudantil, foi
então que a ‘filosofia’ passou a integrar o currículo das artes liberais então existentes” (James
A. Weisheilpl, OP, “Classification of the Sciences in Medieval Thought”, Mediaeval Thought, XXVII,
1965, p. 68). De acordo com o padre Weisheilpl, até então, a metafísica era uma parte indistinta
da Doutrina Sagrada.
adequadas para a língua, sabendo só Deus o porquê, regras
essas desconectadas de qualquer ligação com o mundo real.
(Ou, para raciocinar em modo nominalista, a gramática tem
uma realidade que é só dela, moldável ao gosto do freguês.)
Porém, vamos pensar o que são os substantivos.46

A irmã Miriam Joseph, CSC, em seu clássico Trivium,


explica que “um substantivo simboliza tanto uma substância
concreta quanto uma abstração”. 47 Isso significa que
“cadeira” ou “ódio” são substantivos, pois descrevem duas
substâncias — aquela, concreta; esta, abstrata. Por exemplo,
na frase “A cadeira está quebrada”, a substância “cadeira”
sofre um acidente: está quebrada. Outro exemplo: “O ódio é
ruim”. A frase descreve uma qualidade do ódio: ser ruim.
Tais frases descrevem fenômenos da realidade,
simbolizados através da gramática, que é a ciência da
simbolização verbal de experiências do real. Ora, tal
simbolização só pode funcionar se considerarmos que as
substâncias descritas pelos substantivos são reais e que a
gramática simboliza os acidentes que dão o caráter
transitório da particularidade na imanência. Noutras
palavras, a gramática tradicional torna evidente a distinção
platônico-aristotélica entre a ousia e o acidente. “Cadeira” é

46 Aqui uso a palavra “substantivo” em seu sentido mais arcaico e mais abrangente, tal
como descrito por Prisciano, que abarca tanto o que hoje entendemos como substantivos tanto
quanto os adjetivos. Prisciano trabalhou na disciplina que hoje se chama “gramática
especulativa”.
47 Miriam Joseph, CSC, The Trivium, Filadélfia, Paul Dry Books, 2002, p. 49. A tradução
brasileira da obra é inaceitável.
a substância, a forma; “cadeira quebrada” é uma
possibilidade de acidente à essa forma.48

Mas eu dizia que o homem medieval trabalhava para se


inserir numa tradição. O homem da Alta Idade Média era o
novo proprietário duma venerável história sapiencial. É por
isso que podemos dizer, com quase toda certeza, que a
unidade da experiência filosófica permanece sólida desde
todo mundo antigo até o final da Escolástica. E não falo aqui
somente da unidade da metodologia ou da disciplina
filosófica: a base da filosofia é a mesma; antigos e medievais
filosofam na mesma Realidade (ou, na terminologia de
Voegelin, na it-reality).49 Quando santo Anselmo aparece na
história da filosofia, a fundação, o piso concreto da filosofia
escolástica já está bem definido. A especulação metafísica
escolástica pode começar de maneira efetiva.

Tendo versado sobre esses assuntos, posso começar a


falar da Escolástica sem mais delongas.

48 Observação similar é feita por Olavo de Carvalho em Astrologia e Religião, S. Paulo,


Nova Stella, 1986, p. 46.
49 Não é possível utilizar o termo “realidade-isto”, a tradução sugerida para o
português. Falta à nossa língua o misterioso “it” indicativo que é a própria causa da escolha de
palavras feita por Voegelin em seu texto original.
§ 2. O SENTIDO DA

ESCOLÁSTICA
Se o que acabei de descrever está correto, então
podemos ter certeza que não há nenhuma ruptura no
significado interno — quer dizer, na substância ou natureza
da filosofia. Portanto, neste sentido, a Escolástica não é
senão mais um dialeto da cadeia perene da verdadeira
filosofia, pois sua substância habita dentro das fronteiras da
filosofia tradicional. E, se pensarmos direito, não haveria
como ser diferente: não é a sociedade medieval uma
sociedade tradicional? Aliás, ela não é somente tradicional
enquanto espécie ou em seu modo de vida; sua emergência
também se deu de modo tradicional: seu ânimo espiritual
pode ser “novo” (no sentido em que o Cristianismo é novo
em relação ao paganismo antigo), mas a sua formação
social e a própria “cultura secular” da Idade Média
floresceram de maneira tradicional.

Aqueles que se ocupam de estudar a história das idéias


por vezes pensam que o ideário — seja o sagrado, seja o
profano — de tal ou qual sociedade flutua de uma maneira
meio alheia da dinâmica terrena desses povos. Por exemplo,
vez por outra acontece de alguém que besunta de “alta
cultura” ter que topar com a cultura popular (ou, mais
apropriadamente, com a cultura folk), nisso, sair correndo
num ataque de pânico. Contudo, lembremo-nos do que
disse Christopher Dawson: a “cultura é um todo vivo”: ela
“mete raízes no solo, formando-se na vida prosaica e
instintiva do pastor, do pescador, do artesão, até florescer
nas proezas maravilhosas do artista e do filósofo”. 50 Isso
quer dizer que a cultura, e os artefatos culturais (já veremos
o porque desta palavra, “artefato”), os artefatos culturais
fluem do mundo natural, físico (na acepção moderna de
física como “mundo material) para o campo do intelecto; as
experiências naturais são abertas e diferenciadas em
formas cada vez mais sutis e sofisticadas. Contudo, o ponto
de referência dessas criações é e deve ser, invariavelmente, o
local do filósofo, do artista ou do lavrador, que seja, na
Criação. Numa sociedade verdadeira, normal e saudável (i.e.,
uma sociedade bem, bem diferente da nossa, que faz esta
distinção decadente, estética 51 e aborrecidamente
materialista entre “alta” e “baixa” cultura), numa sociedade
verdadeira, dizia, o trabalho do filósofo e do poeta jamais se
distanciam do povo; o fazer (poiēsis) tem um uso. É por isso,
por exemplo, que uma obra como a Divina Comédia é em
primeiríssimo lugar um trabalho de catequese. “Mas
omitindo investigações mais minuciosas, diz o próprio
Dante, dizemos brevemente que tanto na parte como no
todo, o fim [desta obra] é demover aqueles que vivem num
estado de danação [misereæ] para um de beatitude
[felicitas]”.52 Porém há outros exemplos. Poderia me referir
às inúmeras moralidades desta mesma Idade Média que ora
analiso — gênero teatral que, aliás, são a própria fonte duma
porção generosa das peças do início da Renascença, em

50 Christopher Dawson, Progress & Religion, Washington, DC, Catholic University of


America Press, 2002, p. 45.
51 Isto é, aisthēsis, uma impressão superficial, material e instantânea.
52 Carta X, para Can Grande, 15.
particular aquelas de Shakespeare, artista de espírito
indiscutivelmente tradicional.53

Isto posto, podemos imaginar com certeza que a


filosofia da Idade Média não é e não está distante da vida da
Idade Média. Essa afirmação pode parecer óbvia, mas cabe
aqui considerarmos de que maneira a Escolástica se
relaciona com a vida medieval. Vimos acima que, depois de
Hegel, predomina o entendimento que a filosofia do
medievo existia unicamente para justificar e manter o poder
teocêntrico da Igreja e suas asseclas, quase como se o povo
medieval tivesse nascido para ser escravo, sujeitos a uma
conspiração diabólica da Igreja em conluio com os
príncipes deste mundo (visão que evidentemente ignora o
eterno conflito entre os anjos de Deus com os mandantes
deste mundo caído). Assim, a teologia, a liturgia e a filosofia
da Igreja, mantenedora do “capital simbólico” de então (para
usar o famoso termo de Pierre Bourdieu), existia para dar
sentido à disposição opressiva da sociedade medieval e
feudal; fica assim aberto o caminho para se dizer frases
desconcertantes como “as heresias medievais são uma

53 “Shakespeare, de certa maneira, parece regredir no tempo enquanto este avança.


Tanto que na virada do século torna-se, diferentemente de qualquer outro contemporâneo seu,
o continuador e o condensador do passado, o último espécime duma tradição em franca
extinção. Decerto, não dizemos aqui nada de extraordinário — trata-se de somar dois com dois.
Sobre Rei Lear, [A. C.] Bradley diz o seguinte: ‘[A obra] não mostra ter um tipo de imaginação
muito removido daquele — com o qual Shakespeare, lembremos, estava perfeitamente
familiarizado — visto nas moralidades e em The Faerie Queene [de Spenser]’” (Martin Lings,
Shakespeare in the Light of Sacred Art, Londres, George Allen & Unwin, 1966, pp. 17-8).
forma de luta de classes disfarçada” 54 — tornadas ainda
mais desconcertantes porque há quem nelas acredite.55

54 Pierre Bourdieu, “Genèse et structure du champ religieux”, Revue Française de


sociologie, XII, 1971, p. 311.
55 A opinião de Bourdieu é, na realidade, um ponto-de-vista clássico de historiadores
marxistas (de acordo com Norman Cohn, ela inicia-se com Engels e a sua elevação de Thomas
Muntzer a um estado mítico; veja-se Cohn, The Pursuit of the Millennium, ed. revisada e
aumentada, Nova York, Oxford University Press, 1970, p. 235 e segs.). Porém, tal visão não
resiste ao escrutínio. Thomas Fudge, em The Trials of Jan Hus (Oxford, Oxford University Press,
2013, p. 53), versando a respeito das heresias hussita e cátara, argumenta que “não é possível
argumentar que o catarismo e o hussitismo manifestassem, em si, a luta de classe. Em geral,
heresias não eram conflitos sociais. A adesão de várias camadas sociais às heresias afasta tal
conclusão” (grifo meu). De maneira similar, Alexey I. Alexeev, analisando a heresia strigol n
́ iki,
entende que pensar na heresia dentro do paradigma da luta de classes é algo impossível; tal
empresa, ao menos à luz do que as fontes nos revelam, “é somente um conceito ideológico e
nada mais” (“A Few Notes about the Strigol´niki Heresy”, Cahiers du monde russe, XLVI, nos. 1-
2, 2005, p. 287, grifo meu).
O principal problema de pensar a heresia como uma forma de luta de classes é que ela
implica uma imanentização do metafísico. A substância da heresia é uma tese de caráter
metafísico ou escatológico. Para enxergar nas heresias reivindicações do povo que são
proibidas ou perseguidas pela Igreja é preciso drenar delas a substância religiosa; só assim
uma causa espiritual vira uma demanda política. Agora entendam bem: não quero dizer, com
isso, que as heresias não podem adquirir uma influência política (como é o caso da própria
heresia cátara ou, num exemplo mais famoso, da heresia protestante); contudo, ver nelas uma
inspiração política antes da religiosa é cometer anacronismo, no mínimo.
Por outro lado, vivemos numa época de divinização da política; em nosso tempo, a
política tomou uma proporção metafísica. Isso significa que, aos olhos modernos, questões
metafísicas convertem-se facilmente em questões políticas, ainda que, assim procedendo,
contrariemos tacitamente as intenções dos heresiarcas ou de figuras que se posicionam
contrariamente à Igreja, como bruxas e feiticeiras. Com efeito, a vemos facilmente hoje em dia,
com a apropriação das figuras de bruxas como precursoras do feminismo e com o emprego da
magia como ferramenta na luta política contra o patriarcado (veja-se Kristen J. Sollée,
Witches, Sluts, Feminists: Conjuring the Sex Positive, Berkeley, ThreeL Media, 2017). Para um
estudo sobre as ligações políticas e históricas entre feminismo, Satanismo e o oculto, ver Per
Fexneld, Satanic Feminism: Lucifer as the Liberator of Woman in Nineteenth-Century Europe,
Oxford, Oxford University Press, 2017.
Mas ora, se a Escolástica não é um instrumento da
manutenção do poder draconiano da Igreja sobre o povo
medieval, então o que era ela? Para resumir minha visão
sobre este assunto de maneira breve, eu digo que a função
da Escolástica era — e, em certo sentido, ainda é, pois ela
vive até hoje — preservar e rememorar a estrutura básica da
realidade, que, por natureza, se submete à Vontade de Deus.

Porém esse é um resumo breve demais e serve para


qualquer filosofia tradicional. Descreve, por exemplo, as
escolas legais islâmicas, a filosofia hindu e as seções do seu
pensamento, e com certeza descreve de maneira perfeita o
pensamento dos sábios judaicos. E por que é assim? Ora,
porque a função de qualquer filosofia tradicional e
verdadeira é recordar, não oprimir; a filosofia verdadeira
recorda a ordem e a hierarquia da existência, do lugar do
homem na Criação e do significado da própria Criação em
si mesma; ela lembra das ligações do homem com o seu
espaço e quais são seus deveres para com o Criador. Esta
idéia não é exclusiva do Cristianismo; de fato, ela aparece
em qualquer sociedade tradicional — afinal, numa
sociedade tradicional, a única e verdadeira opressão é ser
privado da presença de Deus. Portanto, nesse sentido, o
modo correto de se pensar na Escolástica é como um
trabalho de amor — especialmente se levarmos em

Agora, se este neofeminismo que usa bruxaria e ocultismo na arena política crê de fato
na operacionalidade do oculto ou se isso é mero decalque kitsch na militância, eis algo que
carece de provas.
consideração que ela é o dialeto filosófico (portanto,
imanente) de uma Idéia ou Realidade sagrada.56

Mas a Escolástica não flutua sobre a sociedade


medieval como se fosse algo criado do nada; Erwin
Panofsky, num estudo pequenino muito famoso — e ainda

56 Para reforçar minha tese que a Escolástica é um trabalho de amor ao tempo em que
é um dialeto da filosofia verdadeira, retornemos à antiga idéia da filosofia como o “amor pela
sabedoria”. Num contexto pagão como o da Grécia Antiga, não há dúvidas que essa mesma
sabedoria é a Sabedoria do Criador, do Logos — noção que se transporta com folga para o
contexto cristão. Outro aspecto importante dessa tese é o fato de que em sociedades e
religiões tradicionais há uma unanimidade em dizer que a Criação é um trabalho de amor do
Criador pelas Suas criaturas: “Quando fixamos n’Ele esta procissão de amor, sustentamos que
Deus não produziu Suas criaturas por uma necessidade, nem que o fez por alguma causa
extrínseca, mas por amor à Sua bondade” (Suma Teológica I, xxxii, 1, ad. 3); ou ainda:

amanhecia, e no céu cristalino


o sol subia co’ essas mesmas estrelas
que o acompanharam quando o amor divino

primo moveu todas as coisas belas.


(Dante, Comédia, i,37-40).

Já que as coisas foram criadas por amor, e criadas por bondade (bonus), naturalmente
são boas: “E viu Deus todas as coisas que tinha feito, e eram muito boas” (Gên i,31). No
Hinduísmo, retratam os múltiplos renascimentos de Kṛiṣṇa como um ato de amor:

Para a proteção dos virtuosos


para a destruição da maldade
e para estabelecer a Lei
eu renasço era após era
(Bhagavad Gītā iv,8)

Na tradição judaica, o Talmude mostra que a caridade e a benevolência são atributos de


Deus. “Deve-se seguir os atributos do Santíssimo, Abençoado seja Ele…. O rabino Samlai
ensinou: Com relação à Torah, seu início é uma demonstração de benevolência [gemilut
ḥasadim] e seu fim é uma demonstração de benevolência” (Sotah 14a,4.6).
insuperável — explicava a correlação entre a Escolástica e a
arquitetura gótica: mais que paralelismo, a sincronia entre
esta e aquela é ensejada por uma essencialidade (ou, como
ele diz, por uma relação de causa e efeito). 57 Panofsky
mostra que os arquitetos profissionais daquele período
compartilhavam conhecimentos e trabalhavam em contato
estrito com os sábios escolásticos. O sentido disso é que as
catedrais góticas — especialmente aquelas produzidas na
Escolástica Nascente e na Alta Escolástica — mostravam por
maneira de semelhança, como se fossem pedacinhos
“congelados” de tempo, numa espécie de eclosão dum novo
tipo de saber, uma nova articulação da experiência católica.
Se por um lado pensadores como Guilherme de Champeaux
ou como o próprio santo Tomás de Aquino tentavam expor,
de diversas maneiras, as harmonias da fé e da razão, os
arquitetos góticos tentavam demonstrar de maneira física e
material o mesmo princípio; é precisamente isso o que
significa, por exemplo, a adição do transepto nas igrejas e
catedrais, convertendo-as numa cruz — a própria Cruz a
qual Jesus Cristo foi fixado. Mas esse não é o único
simbolismo possível; nave e transepto se cruzam num
encontro de horizontal com vertical, natureza e revelação, fé
e razão, espaço e tempo (perpetuando assim as
possibilidades quase hipnóticas de significados que são
naturais ao simbolismo da cruz). 58 Por certo, ao ponto
central do cruzeiro (espaço onde nave e transepto se
misturam) é dado um ornamento, como o pináculo. Esse
tipo de coisa, a essa dinâmica entre officia diferentes e

57 Erwin Panofsky, Gothic Art and Scholasticism, Nova York, New American Library,
1976, p. 20.
58 Ver René Guénon, Le Symbolisme de la croix, Paris, Éditions Vega, 1977.
distintos (quer dizer, diferentes aos nossos olhos modernos)
é algo normal em sociedades tradicionais. Por exemplo,
Panofsky assinala que

“é pouco provável que os construtores dos edifícios


góticos lessem Gilberto Porretano ou Tomás de
Aquino no original. Porém, esses construtores
tomaram conhecimento da perspectiva [intelectual]
escolástica de muitas outras maneiras — maneiras
muito distintas da associação que surge
automaticamente entre o pedreiro que constrói a
catedral e os homens que criavam os programas
litúrgicos e iconográficos da estrutura. Os
construtores freqüentavam as escolas das
catedrais, ouviam os sermões dos padres e as
disputationes de quolibet — que eram aliás abertas
ao público. Com efeito, tais disputationes podiam
versar sobre praticamente todas as questões
imagináveis em voga no momento, transformando-
se em eventos sociais não muito diferente das
nossas peças, dos concertos de músicas ou das
nossas palestras. Além disso, os construtores das
catedrais podiam travar contato com os
intelectuais medievais em muitas outras
ocasiões”.59

59 Ibid., p. 28.
Podemos travar correspondências em sentido similar com o estilo romanesco e a
sociedade medieval pré-escolástica, caracterizada de maneira íntima pelo mundo feudal
nascido na ressaca posterior à morte de Carlos Magno. Se o estilo gótico reflete a explosão do
espírito intelectual, o estilo romanesco sugere uma interiorização (ou uma coagulação, para
usar o simbolismo hermético). É precisamente por isso, por causa dessa interiorização, que o
O que Panofsky está tentando mostrar é que as officia
(ou seja, as artes, no sentido tradicional da palavra) são
conectadas; elas formam um todo, como Dawson falou.
Como expus anteriormente, essa dinâmica entre as
diferentes artes em sociedades saudáveis não é incomum;
Titus Burckhardt observa que na mesquita Al-Qarawin — no
passado um grande centro de conhecimentos tradicionais
em Fez, Marrocos — a aura de dignidade e sabedoria da
madrasa atraía os homens simples da cidade, que, “sentados
a uma distância respeitosa” dos alunos devidamente
matriculados no local, lá ouviam às aulas conferidas.60

Se a sabedoria, ou a ciência, das sociedades


tradicionais é de fato apenas uma, então todas elas falam
apenas uma única coisa, mas em diferentes “dialetos” que
se distinguem em temperamento e cor local. É essa a causa
precisa da minha insistência em dizer que os ensinamentos
escolásticos representam uma verdadeira filosofia — ou,

principal construtor do século X e XI será, precisamente, o monge — aquele que renuncia a o


temporal (i.e., o material) em nome do intelectual e do espiritual.
É por isso, aliás, que esses séculos são considerados, aos olhos dos modernos
decadentes, “o coração da Idade das Trevas”. Mas para quem sabe identificar que no coração
de toda era de renúncia material há o centro luminoso de Deus, o assunto aparece num matiz
diferente. Por isso, não será surpreendente perceber que se a principal personagem desse
período é o monge, ele apareça como o verdadeiro condutor da sociedade — o que significa
dizer que a sua atividade será educacional: sua preocupação é educar o homem medieval em
espírito e em intelecto. Por isso mesmo, a imponência e austeridade do edifício romanesco
refletirá exatamente esse caráter. Não deixa de ser curioso que esse período, em que a
Escolástica dá seus primeiros passos, seja caracterizado por um estilo arquitetônico herdado
não do poder temporal do imperador, mas dos monges que diligentemente pesquisaram e
compilaram a sabedoria filosófica dos metafísicos gregos no silêncio dos seus claustros e nos
scriptora dos mosteiros.
60 Titus Burckhardt, “The Traditional Sciences in Fez”, in Jane Casewit, org., Education in
Light of Tradition, Bloomington, World Wisdom, 2011, p. 19.
melhor ainda, representam a verdadeira filosofia. Como
indiquei mais acima, eu não quero insinuar, com isso, que a
filosofia é um tipo de universalismo, e nem repito as
heresias de Ananda Coomaraswamy, que dizia que Cristo —
ou o Eterno Avatara que tem por “Jesus Cristo” um dos seus
nomes — reencarna ao longo dos séculos em diferentes
povos para pregar seu evangelho.

“Longe de mim negar que Cristo é o “Herdeiro de


Todas as Coisas”. Para mim, a questão é: “Quem é
Cristo?” Não seria Sócrates um “Cristo”? Um amigo
católico romano certa vez falou de Ramakrishna
como um alter Christus, e ponho ao lado desta
fala as palavras do Lama Wangyal (a Marco
Pallis, que lhe falava a respeito de Cristo): “Vejo
que ele era um verdadeiro Buddha”. Não faço
distinções entre as diversas manifestações do
“Eterno Avatar”, pois penso n’Ele como o mesmo
em todas elas.”61

Também é interessante notar que, para


Coomaraswamy, a existência histórica de Cristo não era

61 Carta a dom Columba Carey-Elwes, OSB, 3 mar. 1947, em Selected Letters of Ananda
K. Coomaraswamy, orgs. Alvin Moore Jr. e Roma Poonambulam Coomaraswamy, Déli, Indira
Gandhi National Centre for the Arts, 1988, p. 83. “Em meu trabalho eu procuro nunca discutir
doutrinas particulares sem citar a autoridade do Cristianismo, do Islamismo, do Hinduísmo e
doutras fontes; também, procuro enfatizar que não há nada peculiar, por exemplo, ao
Hinduísmo e ao Budismo exceto pelo que chamo de ‘cor local’” (ibid, grifo meu). E também: “É
claro que, independente do nome com o qual estejamos acostumados a amar a Deus, estamos
todos inclinados a pensar no Eterno Avatar — o ‘Filho único de Deus’ — precisamente dessa
maneira, assim como Vaishnava pensa de Krishna. Enfim, o que importa de verdade é a Sua
presença em nós; é a nascença de Cristo — ou Agni — ou Krishna — em você” (a dom Carey-
Elwes, 8 mai. 1947, ibid., p. 85).
importante: “A mim pouco me importa se Gautama ou Jesus
‘viveram’ historicamente”. 62 É claro que a crença na
existência histórica de Cristo é desnecessária para o
universalismo de Coomaraswamy, posto que a “factualidade”
da crença religiosa perturba sua teoria. Ignorando tal
factualidade, Coomaraswamy pode se preocupar com a
validação da metafísica como crença religiosa — e a
confusão, como expliquei noutros escritos, a confusão entre
metafísica e religião é um pilar do perenialismo.

Como mencionado acima, há uma distinção entre


teologia dogmática e teologia especulativa (ou metafísica).
No que tange a razão natural, meu pensamento é que toda a
sabedoria, ou toda sabedoria verdadeira, vem da mesma
Realidade (que me atreveria a dizer que é a It-Reality de Eric
Voegelin). É por isso que um soneto feito no Ocidente, um
haikai japonês e um poema árabe sobre o amor descrevem
o mesmo sentimento usando palavras e expressões
equivalentes. O que isso quer dizer é que a realidade do
amor é a mesma em todos os lugares e em todas as
circunstâncias, sendo apreciadas da mesma maneira em
todas as culturas ao redor do globo; a única coisa que nos
permite distinguir entre a expressão japonesa, a árabe e a
ocidental é o temperamento e a cor local dessa expressão,
mas a realidade do amor permanece intacta.

Ora, se isso serve para o amor, deve servir para a mãe


do amor, que é a sabedoria. Ou seja, a sabedoria é una e
universal. Isso quer dizer que a Escolástica é o dialeto

62 Coomaraswamy, a H. G. Rawlinson, s/d, Selected Letters, p. 38. Para uma opinião


diversa à minha, ver a nota dos organizadores acerca dessa frase, na p. 38 e no Prefácio do
volume, p. xii.
católico e ocidental da filosofia universal e perene, algo
facilmente notado uma vez que prestemos atenção no
aspecto universal, metafísico, espiritual e intelectual dos
escritos de santo Anselmo de Canterbury ou de outros
realistas linha-dura como Guilherme de Champeaux — o
que me lembra, aliás, que é impossível discutir que o
realismo é a cinosura da Escolástica, assim como é, creio eu,
a cinosura de todas as filosofias verdadeiras, ou ao menos
de boa parte dela. Sim, boa parte, porque autores há como
Ashok Kumar Chatterjee, que argumenta que “a
subjetividade é a chave-mestra do Budismo. Desde o início, o
Budismo se caracteriza como subjetivista e crítico…
rejeitando categorias unificantes como ‘substancialidade’,
‘universalidade’, ‘integralidade’, entre outras”, disse um
autor, adicionando que a escola sautrantika “estabeleceu
um tipo de nominalismo” à religião.63 Mas fica a questão: É
o Budismo uma religião tradicional? Numa certa
perspectiva, não. Num episódio famoso do cancioneiro
tradicionalista, Guénon inicialmente considerava que a
relação que o Budismo mantinha para com o Hinduísmo
(religião da qual se desmembrou) é a mesma que o
Protestantismo tem com o Catolicismo: a de uma
degeneração. Em seu primeiro trabalho maiúsculo, a
famosa Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus
(1921), Guénon dedicava um capítulo inteiro para explicar o

63 Ashok Kumar Chatterjee, The Yogācāra Idealism, 2.ª ed., Déli, Motilal Banarsidass,
1975, pp. 1, 7. Chatterjee é seguido de perto por outros autores: para José Cabezón, por
exemplo, “[d]esde suas origens, o Budismo mostra-se mais pendente para o lado do
nominalismo” (Buddhism and Language, Albany, SUNY Press, p. 153). Além disso, identifica-se
com folga na literatura prajñāpāramitā uma forte mentalidade nominalista (vejam-se Pierre
Bédard, Le Bouddhisme d’ici et de maintenant, Québec, Louise Courteau, 2015, e Richard P.
Hayes, Dignaga on the Interpretation of Signs, Dordrecht, Kluwer, 1988).
porquê de entender que o Budismo é nada mais, nada
menos que heterodoxia. 64 É bem certo que após trocar
missivas com Ananda K. Coomaraswamy — autor de um dos
mais importantes estudos a respeito das relações entre
Hinduísmo e Budismo, 65 — o esoterista francês
aparentemente mudou de opinião, mas mesmo em escritos
posteriores — e bem mais conhecidos, — como sua obra-
prima A Crise do Mundo Moderno, mesmo ali Guénon
visivelmente trata o Budismo com gosto ruim, sutilmente
associando-a com uma intenção antitradicional.66

Não me cabe dizer se o Budismo é tradicional, se não é


tradicional ou se na verdade fomos todos enganados e na
verdade ele é antitradicional; menciono essa questão apenas
para evitar uma simplificação do que em realidade é um
assunto complexo. O que interessa é que, em geral, as
culturas tradicionais são metafisicamente realistas, e a
Escolástica não é exceção. Todas as culturas verdadeiras

64 O capítulo se chama “La Constitution de l'homme selon les Bouddhistes” e foi


suprimido a partir da primeira tradução inglesa, realizada em 1945 por Marco Pallis (ele
mesmo um monge budista). Pallis e Guénon também suprimiram um capítulo a respeito do
Jainismo chamado “La Délivrance selon les Jainas”. Alessandro Grossato recuperou ambos os
escritos em sua antologia guénoniana La tradizione et le tradizioni (Roma, Edizioni
Mediteranee, 2003, às pp. 96-110, sob os títulos “La constituzione dell’essere umano secondo i
Buddhisti” e “La Liberazione secondo i Jaina”).
65 Ananda K. Coomaraswamy, Hinduism and Buddhism, Westport, Conn., Greenwood
Press, 1971.
66 “Pouco tempo após seu surgimento, o Budismo na Índia passou a ser identificado
como uma das principais manifestações da revolta dos Kshatriyas contra a autoridade dos
Brâmanes. Como é fácil de perceber…, há, de um modo geral, uma ligação muito direta entre a
negação do princípio geral da imobilidade e a negação da autoridade espiritual; entre a redução
da realidade ao ‘devir’ e a afirmação da supremacia do poder temporal, cujo domínio próprio é
o mundo da ação [onde os guerreiros da casta dos Kshatriyas agem, evidentemente]” (La Crise
du monde moderne, Paris, Gallimard, 1946, p. 66, nota).
manifestam aquilo que Eric Voegelin chamava de “tensão
em direção ao além”, manifestam essa vontade interior de
voltar aos aspectos arquetipais da existência, donde tudo
vem e ao qual tudo se relaciona e se modela. Com efeito,
essa é uma característica fundamental tanto da cultura
judaica como da cristã, predicada do fato que o homem foi
criado à imagem de Deus67 — o que no fim quer dizer que a
Criação, e tudo nela contido, deve ser feita à imagem do
Criador para que as criaturas não percam as suas
essências.68

67 Gênesis i,26.
68 Veja-se também Gênesis vi, onde Deus dá a Noé as instruções de como a barca deve
ser construída, bem como Êxodo xxvi, onde Deus dita a Moisés as formas do Tabernáculo e da
Arca da Aliança. Convém lembrar, também, que no Antigo Testamento, Deus e Seus profetas
avisam ao povo, várias vezes, que Israel deve agir e fazer as coisas segundo os decretos, leis e
instruções divinas (III Rs ix,4; Dt vi,25, etc.) — ou seja, devem seguir as formas de ação
determinadas pelo Senhor. Esse procedimento se repete no Novo Testamento (I Cor ix,31; Col
iii,17, etc.).
Evidentemente, a imitação não deve reduzir-se ao fazer; ela deve se estender, também,
ao agir, como testemunha toda a tradição de literatura mística e ascética do Cristianismo, seja
romano ou oriental. De fato, como afirma santo Tomás, a prudência na ação e a arte no fazer
andam de mãos dadas (Suma Teológica I-II, art. 57, q. 5).
§ 3. O GRANDE DUELO : O
REALISMO E O NOMINALISMO

A.

É justamente esse ímpeto pelo transcendente, esse


desejo de encontrar Aquele ser único donde saiu a
multiplicidade das coisas, é exatamente isso no que se
constitui o que ora se chama de realismo “exagerado” — a
pedra-de-toque tanto da Escolástica Primitiva como da Alta
Escolástica. Porém, é interessante perceber que o realismo
— e especialmente o realismo exagerado — é tratado hoje
quase como uma espécie de doença; olha-se para ele como
um tipo de pensamento primitivo, incipiente (senão primal,
mesmo), que tentava resolver na marra o problema dos
universais. Se refletirmos a respeito dum dos maiores
nomes do realismo exagerado, Guilherme de Champeaux,
veremos que a tese já era apreciada com dificuldade dentro
do próprio corpo escolástico — e aí as críticas de Pedro
Abelardo a Guilherme (e observe-se que Abelardo era um
ex-aluno seu) são uma espécie de sinédoque não somente
da querela dos universais, mas também do espírito vazio,
insubstancial e antimetafísico que é a própria essência da
modernidade. Na minha opinião, se a pseudo-racionalidade
(ou por outra, o racionalismo) de Pedro Abelardo nos soa
tão moderna, ou se a sua luta contra os realistas parece tão
corajosa e, novamente, moderna, é porque ele é
verdadeiramente um moderno — e isso não é um elogio.

Quando falei acima que o cânone escolástico precisa


ser reavaliado, falava de tipos como Guilherme de
Champeaux. Infelizmente, em seu tempo, Guilherme não foi
capaz de se defender das críticas ferozes de Abelardo, ainda
que ele baseie suas críticas mais em sátira (cousa que
também faz com toda a vetus logica, que considerava um
“absurdo risível”69) e em jogos lingüísticos racionalistas do
que num entendimento verdadeiro. Como se isso não
bastasse, há pouquíssimo material sobrevivente da lavra de
Guilherme; logo, quem quer entender o pensamento desse
grande filósofo precisa trabalhar com fragmentos e
interpretações que se salvaram porque foram registrados
nos textos, sobretudo, de ninguém mais, ninguém menos
que do próprio Pedro Abelardo.

Mas ainda que pouca coisa se salve dos escritos de


Guilherme, podemos ter certeza que ele e outros realistas
“exagerados” como Bernardo, Fulbert e Teodorico de
Chartres, além de Guilherme de Conches (todos membros
da Escola de Chartres), são responsáveis por alguns dos
grandes momentos da filosofia escolástica; filosofando às
vezes no limite da razão natural, chegando até a beirar a
contradição aparente, os realistas exagerados conseguiram
antecipar e prever algumas questões que hoje nos são de
grave importância em algumas áreas. Um exemplo seria o
da semiótica: algumas questões frementes deste campo do
conhecimento foram formuladas pelos escolásticos e
apreciadas novamente (sendo resolvidas, aliás) por João de
S. Tomás, OP, no século XVI. 70 Por exemplo, sabemos que
Guilherme produziu duas variações do seu pensamento

69 John Marenbon, Medieval Philosophy, Londres, Routledge, 2007, p. 133.


70 Veja-se seu Tractatus de Signis (1632) e também John Deely, Basics of Semiotics,
Bloomington, University of Indiana Press, 1990 (o Tractatus está contido nesse livro).
sobre os universais. 71 Prometi acima que não iria fazer
explanações didáticas sobre os pensamentos individuais dos
filósofos Escolásticos — e não farei. Nem mesmo sobre o
pensamento de Guilherme, até porque pouco do que ele
ensinou sobrevive. Mas, como vocês logo verão, eu vou
discorrer um pouco sobre o que ele filosofou, e neste meu
arrazoado vocês verão que não estou fazendo uma
exposição didática: o que farei, na realidade, é filosofar
sobre a sua filosofia, usando-a como um símbolo dum tipo
de perspectiva correta sobre a verdade.

Muito bem, a primeira variação da filosofia de


Guilherme de Champeaux é a que hoje se chama de “teoria
da identidade”, ou da “essência material”. Para Guilherme,
que se inspira em Boécio 72 (e este, em Platão), 73 os entes
individuais são formados pelas suas essências adicionadas
de seus acidentes. Por exemplo, eu sou homem e mais a
minha altura, a cor de meus cabelos e pele, minha miopia
etc. Além disso, “as essências se fazem inteiramente
presentes nos particulares… a essência material animal está
presente nas espécies homem e burro, já a essência material
homem está presente em Sócrates e Platão”. 74 Portanto, o
homem individual é formado por si mesmo e seus

71 Veja-se o livro insuperável de G. Lefèvre, Les Variations de Guillaume de Champeaux


et la question des universaux (Lille, 1898), que é seguido pelas Sententiae vel quaestiones
XLVII, um dos poucos trabalhos que podem ser autenticamente atribuídos a Guilherme de
Champeaux. Como o que se segue é um arrazoado das posições de Guilherme, me servirei
duma fonte de segunda mão: Peter King, “Metaphysics”, em Jeffrey E. Brower and Kevin Guilfoy,
orgs., The Cambridge Companion to Abelard, Cambridge, UK, Cambridge University Press, 2004.
72 Veja-se, por exemplo, os comentários de Guilherme de Champeaux sobre os
comentários de Boécio aos Tópicos de Cícero (Biblioteca Municipal de Orleans, MS 266).
7373 Veja-se John Marenbon, Boethius, Oxford, Oxford University Press, 2003, pp. 28 ss.
74 Peter King, “Metaphysics”, op. cit., pp. 66-7, grifos de King.
acidentes; isto é, sua verdadeira essência não é seu
particular propriamente dito, mas a essência humana que
habita dentro de si, de forma que ela irradia duma única
fonte, duma essência inquestionável, dum eidos total, mas
que, dentro do campo da imanência, se torna
particularizada, distinta. Porém, essa distinção não é em
absoluto parte da sua constituição primeira: os acidentes
não são nada além de circunstanciais. A resposta de Pedro
Abelardo à essa tese é, de fato, devastadora: para ele, como
novamente descreve o professor King, se considerarmos a
essência animal que se faz presente em Sócrates e no burro,
podemos dizer que Sócrates é a um só tempo homem e
burro, racional e irracional. O homem é uma espécie que se
declina da essência “animal” — essência que se faz presente
no burro, que é dotado de irracionalidade, e em Sócrates,
que é racional.

Incapaz de responder às objeções de Abelardo (que,


como o próprio revela, foram feitas em sala de aula, diante
dos alunos do mestre e de seus próprios colegas de
turma), 75 Guilherme revisou sua posição e passou a
defender o que se conhece como “não-diferença”; nesta
nova teoria, o filósofo “concede que só o que existe são os

75 Pedro Abelardo, Historia calamitatum, ii. Abelardo fez uso das famosas disputas de
sala de aula, situações que poderiam se transformar em negócios verdadeiramente amargos.
Como nos informa o insigne professor John Marenbon: “As disputas, assim se parece,
aconteciam entre professores e pupilos; dependendo dos resultados, o professor podia se ver
forçado a cair em contradição na defesa de uma de suas teses (que foi o que Abelardo
conseguiu fazer a Guilherme de Champeaux). Mesmo estranhos podiam interromper uma aula
e se engajar em disputa com os professores…. Situações assim eram momentos acérrimos,
nos quais o disputante procurava humilhar uma figura conhecida” (“Life, Milieu, and Intellectual
Contexts”, Brower e Guilfoy, op. cit., p. 23).
indivíduos”, mas eles são “indiferentes” quando comparados
uns com os outros, ou com outros tipos de entes. Existem
duas maneiras de chegar à “não-diferença” que emparelha
um ente com outro — uma negativa e outra positiva.
Guilherme adotou a primeira: quando destituídos das suas
diferenças (que de certa forma são os “acidentes” da teoria
da identidade), Sócrates e Platão de fato pertencem à
espécie “homem”.76 Pode-se argumentar que a nova teoria
de Guilherme é exatamente a mesma da antiga — e, como eu
falei, as “diferenças” que os indivíduos possuem são, em
certos aspectos, os acidentes da teoria da essência material;
porém, se o leitor prestar atenção, verá que o momento em
que o indivíduo tem a sua essência conhecida mudou, o eixo
se inverteu: antes a essência “homem” era atribuída ao
indivíduo desde “cima”, na transcendência; ele, na
imanência, é que encarnava junto com seus acidentes esse
eidos. Agora, na nova teoria, a essência é chegada aqui
embaixo, no campo da imanência (é por isso que o
professor King frisa que Guilherme passa a admitir que só
os individuais existem). No meu entendimento, essa nova
posição já pode ser considerada uma forma de
nominalismo, posto que o atributo essencial pertence à
esfera da imanência — ele é “encontrado” num processo
puramente dedutivo e racional, dentro da esfera da
percepção natural humana (quer dizer, imanente). Contudo,

76 King, op. cit., p. 71. A via positiva é aquela de Walter da Mauritânia: “[C]oisas distintas
são indiferentemente a mesma quando atingem um certo estado de concordância entre si”
(ibid.).
King afirma que essa teoria é realista porque “afirma que há
uma realidade que é um universal — viz., o indivíduo”.77

Abelardo responde dizendo que se em entendermos


Sócrates com a própria espécie “homem”, então Sócrates é
um universal — ou seja, se só o que existe é o indivíduo, não
faz sentido dizermos que existe uma comparação entre
Sócrates e Platão para entendermos o que os dois têm da
forma “homem”: os dois são universais ao mesmo tempo e,
portanto, são a própria espécie.

Para a historiografia oficial, Guilherme de Champeaux


estava acabado quando Abelardo o refutou pela segunda vez.
Em sua Historia calamitatum, ele nos diz que as aulas de
Guilherme “se degeneraram a um estado de negligência que
já não mais podiam ser sobre a ciência da dialética. Era
como se toda a sua sabedoria estivesse atada à sua opinião
sobre a natureza dos universais”.78 Mas, como nos avisava
Manoel de Oliveira, não devemos acreditar em tudo que o
pescador diz: G. Lefèvre põe em cheque a narrativa triunfal
do ex-marido de Heloísa. “Podemos imaginar para além de
qualquer duvida razoável que Abelardo exagerou [na
Historia] o tamanho do seu triunfo”, diz ele79; para o antigo
historiador da filosofia, Guilherme adotou uma última
posição: a semelhança ou similaridade, posição que expõe
nas Sententiae vel quaestiones XLVII: “[Quanto à humanidade

77 Ibid. Mas, como observa Lefèvre, Guilherme “sacrificou a realidade própria dos
universais” (Les Variations, p. 15).
78 Abelardo, Historia calamitatum, ii.
79 Lefèvre, Les Variations, p. 13.
de Pedro e Paulo] a humanidade que eles têm não é una,
mas similar, posto que são dois homens”.80

Essa posição, na realidade, nada mais é que


nominalismo puro e simples: as essências estão dentro de
cada indivíduo — não de maneira plena, mas apenas em
semelhança; novamente, a dedução natural é o método de
discernimento que encontra aquela humanidade que une
Sócrates e Platão; contudo, uma essência pura e simples não
existe nas coisas criadas e portanto não podemos vê-la e
demonstrá-la no mundo natural. Isso tem — como é o caso
com a maioria das proposições lógicas e metafísicas da
Idade Média — implicações diretas a respeito do
entendimento filosófico acerca da Santíssima Trindade: se
três pessoas não têm a mesma essência, mas apenas
essências parecidas, então as três pessoas da Trindade não
compartilham a mesma essência? Para se salvar dessa
heresia, Guilherme, destruído e desmoralizado, vai logo
dizendo: “O que dizemos não se refere à natureza da
divindade, porque essa colocação é contrária à fé”. Contudo,
ele mesmo entrega os pontos: “Como não podemos
descrever um tipo de geração que não seja a de semelhança,
defendemos [a Trindade] somente pela fé”.81

80 Guilherme de Champeaux, Sententiae vel quaestiones, i.


81 Ibid., grifo meu.
B.

Ainda que Guilherme de Champeaux não tenha


renunciado à realidade dos universais, como Pedro
Abelardo queria insinuar e que M. Lefèvre nega que tenha
acontecido, o fato é que quando o autor das Sententiae chega
à última variação, a da similaridade, já não estamos falando
mais daquele realismo puro, “exagerado”, visceralmente
tradicional, que a tradição platônica e neoplatônica legou à
Europa medieval. Estamos falando agora dum universalismo
bastante dúbio, bastante questionável, que rasga o forrado
transcendente que habita dentro da filosofia tradicional
escolástica. É curioso notar que a partir da segunda
variação, os universais sejam percebidos a posteriori, à
moda de Aristóteles, que diz nas categorias que tudo “ou é
afirmado das substâncias primeiras [i.e., dos particulares],82
tomadas como sujeitos, ou é inerente a esses mesmos
sujeitos; se tais substâncias primeiras não existissem,
nenhuma coisa poderia existir”83. Traduzindo para termos
cristãos, é como se Deus tivesse criado Adão, usando-o
depois para criar Eva e o resto da humanidade. (Eu não
posso deixar de notar que aí temos uma espécie de dilema
do ovo e da galinha de proporções metafísicas.) Não é por
acaso que outros autores tenham apontado que, ao fim e ao
cabo, Aristóteles tenha sido uma influência, pelo menos até

82 “A substância primeira de cada indivíduo é própria de cada um e não pertence a


outros; o universal, ao contrário, é comum: de fato, diz-se universal aquilo que, por natureza,
pertence a uma multiplicidade de coisas. De que, portanto, o universal será substância? De
todas ou de nenhuma. Mas não é possível que seja de todas” (Aristóteles, Metafísica, Ζ, 1038b9-
12).
83 Aristóteles, Das Categorias, 2b5.
certo grau, maléfica 84 — avaliação sobre o Estagirita que,
aliás, também adotei para mim. Por certo, não é
coincidência que a Escolástica degringola depois do
ingresso de Aristóteles nos currículos das universidades
medievais.

Mas qual é, enfim, o grande problema? o que implica a


derrota imposta a Guilherme de Champeaux e a emergência
triunfante da Escolástica através de Abelardo, levada às
últimas conseqüências por Guilherme de Ockham e João
Duns Scotus? Por que esse episódio marca, pelo menos na
minha perspectiva, o início da morte da tradição, causando
efeitos devastadores à intelectualidade, à espiritualidade e,
por último, à sociedade do Ocidente? Que coisa tão ruim, tão
indesejável, um debate teológico pode carregar?

Falei acima que as obras dos filósofos são o ponto


áureo do desenvolvimento de uma cultura e de uma
civilização; porém, as más obras dos filósofos, as más idéias,
também representam um ponto áureo — negativamente
áureo, diríamos — dum desenvolvimento. Esse seria uma
espécie de desenvolvimento paralelo, marginal; uma espécie
de progresso da anticultura. É o caruncho, o que carcome a
casa por debaixo do assoalho, arrebentando vigas e
desmembrando as treliças. A vitória do nominalismo é a
aparição, a expressão decisiva da declaração de guerra à
tradição; não que não tenha havido idéias nominalistas

84 Eric Voegelin argumenta que a “coisificação” do estudo da substância dos entes é o


início do “descarrilamento” da metafísica. Para ele, Aristóteles inicia o processo de doxificação
do estudo filosófico ao volver seus olhos para o estudo do ser enquanto ser dentro do campo
imanente, sacrificando o aspecto mítico (não-dóxico) da filosofia. Veja-se Order & History, II,
CWEV, vol. XVI, pp. 329-33.
antes, ou pelo menos namoricos, como os de Aristóteles,
com uma proposta imanentista de filosofia, com a qual
“termina sendo um nominalista… mas um tipo peculiar de
nominalista” 85 ; contudo, esse desenvolvimento era apenas
circunstancial, marginal não se apresentava como um
sistema propriamente dito. O caso de Abelardo, Ockham e
Scotus (e de Roscelino, certamente) é totalmente inovador:
seus sistemas se apresentam de maneira deliberadamente
nominalista, que nada mais é, como diz santo Anselmo, que
um logicismo naturalista (um racionalismo, diríamos)
rasteiro.86 E é justamente esse o perigo do nominalismo: sua
aparição à margem da filosofia tradicional é uma inovação
de caráter humanista, porque retira do Escaton a origem de
todas as coisas e a põe no plano da racionalidade, que nada
mais é do que o plano da percepção humana, uma definição
por natureza superficial. O eixo do entendimento, e também
o eixo da sabedoria, não se reporta mais àqueles arquétipos
transcendentes dos quais falei anteriormente; agora a
última estação da contemplação se encontra no mundo da
dinâmica, no mundo das tensões, mudanças e da
temporalidade. O caráter “estático” que os universais têm já
não o é mais de maneira ontológica, mas simplesmente
epistemológica — é uma idéia meramente transitória que se
obtém por convenção, de maneira que voltamos ao que
Protágoras insistia no diálogo platônico que leva seu nome:
o universo particular de cada um é basicamente

85 Allan Bäck, Aristotle’s Theory of Abstraction, Cham, Suíça, Springer, 2014, p. 281.
86 “Com efeito, o poder da razão nas almas [dos hereges logicistas], razão que deveria
governar e julgar sobre todas as cousas nos homens, esse poder está tão imbricado em
fantasias materiais que não se consegue escapar dessas mesmas fantasias” (Santo Anselmo,
Epistola de incarnatione Verbi, i).
incomunicável e nós nos guiamos na sociedade através de
meras convenções normativas (nomos) às quais chegamos
para ter um mínimo de paz possível. Esse é aquele princípio
que a linguagem popular descreve muito bem como “cada
cabeça, uma sentença”.

Que Guilherme de Champeaux não tenha conseguido


rebater as críticas de Abelardo é altamente significativo. É
interessante perceber que Guilherme não tenha notado que
os argumentos refletem exatamente aqueles que Roscelino
propugnava a respeito da Santíssima Trindade, devidamente
rebatidos por santo Anselmo. Roscelino, conta-nos Anselmo,
acreditava que “se em Deus três pessoas são uma única
coisa, e não três coisas separadas, assim como são três
anjos ou três almas, e se essas coisas em tudo são idênticas
em potência em vontade, então o Pai e o Espírito Santo com
o Filho encarnaram”. 87 Para Roscelino, ou era assim, ou
então Pai, Filho e Espírito Santo são três deuses separados,
sem compartilhar qualquer substância senão a de uma
divindade (que evidentemente deve ser conhecida ex post
facto. 88 Abelardo ecoa Roscelino (de quem aliás também
fora aluno) no sentido que entes que admitimos ser
semelhantes em algum aspecto são e estão objetivamente
separados e se reconhecem apenas pela sua individualidade
(o que, no fim, significa que reconhecemos os indivíduos
pela subjetividade deles). Portanto, os dois filósofos não
conseguem conceber um mundo que emana da Unidade e
que é objetivamente ou intencionalmente unido: e como o
abençoado bispo de Canterbury disse, “Como alguém que

87 Ep. inc. Verbi, i.


88 Ep. inc. Verbi, iv.
não consegue entender de qual modo um número sw
homens materialmente separados [in species] podem na
verdade ser um único homem, como alguém assim
conseguirá entender que, de uma maneira secreta e
sublime, cada pessoa da Trindade, sendo elas perfeitamente
Deus, pode, enfim, ser um só Deus?”89

Talvez quase um milênio de atraso não seja muito


tempo e eu ainda possa entrar na discussão e dizer com
Anselmo o mesmo sobre Pedro Abelardo: Como alguém que
não consegue entender que duas coisas distintas e
separadas podem ser, duma maneira secreta e sublime, a
mesma coisa? — ou melhor ainda, ter a mesma fonte?

Retomo o simbolismo do “todo vivo”, o “living whole”,


usado por Christopher Dawson. O princípio da unidade
ontológica do mundo é algo expresso naturalmente pelas
religiões tradicionais. Talvez nos recordemos com maior
intensidade, agora, do Advaita Vedanta, que também advoga
a unidade ontológica do mundo (e, de fato, já se tentou fazer
correspondências entre o Cristianismo tradicional e o
vedantismo) 90 ; porém, o Vedanta afirma que o mundo
criado é o próprio Brahman (“Deus”, numa aproximação
muito grosseira; não vou entrar em minúcias hindus).91 Esse
princípio panteísta não é de forma alguma muito cristão;

89 Ep. inc. Verbi, i.


90 A Monk of the West, Christianity and the Doctrine of Non-Dualism, tr. Alvin Moore Jr.
e Marie M. Hansen, Hillsdale, NY, Sophia Perennis, 2004, e também Bernard Kelly, “A Thomistic
Approach to the Vedanta”, Blackfriars, XXXVII, 1956, pp. 4-9.
91 Mas recomendo ao leitor Swami Dayananda, Introduction to Devanta, Nova Déli,
Vision Books, 1989; Hans Torwestern, Vedanta: Heart of Hinduism, org. Loly Rosset, tr. John
Phillips, Nova York, Grove Press, 1991, inter alia.
porém, nós não devemos perder de vista o sentido
comparativo que essa proposição tem para nós: o mundo é
algo próximo a uma teofania, mas não é uma verdadeira
teofania (como João, o Eriúgena, defendia). 92 Deus, com
efeito, está expresso no mundo, mas não como se as coisas
criadas fossem Ele mesmo, mas uma expressão daquilo que
está contido na Sua Inteligência; quando Deus criou Adão e
Eva, Ele os criou de maneira perfeita em relação à idéia de
homem que Ele tinha em sua mente, mas Adão e Eva não são
um avatar de Deus no qual Ele se faz presente de maneira
plena, porque dependemos de Deus para existir; de igual
forma, é certo que somos uma declinação da Sua
Inteligência, mas não do Seu próprio existir, já que Deus não
depende de nós de maneira alguma para que Sua existência
seja perfeita. Ao contrário das coisas criadas, que têm um
telos; o telos de Deus é ele mesmo, porque Ele é todo ato.
Dessa maneira, o que temos em nós, como entes criados, é
uma expressão da inteligência de Deus, de alguma maneira
escamoteada, por virtude da condição caída do homem, sob
vários acidentes que são característicos da vida na
imanência. Santo Anselmo é quem diz: “Deus é a sabedoria
suprema e a razão suprema na qual todas as coisas criadas
existem. Qualquer obra feita de acordo com os princípios de
uma arte já tem existência como [algo contido] na própria
arte — não apenas quando é criada, mas mesmo antes da
sua criação e depois da sua destruição. Portanto, quando a
inteligência [de Deus] se expressa, ela expressa todas as
coisas criadas”.93 É por isso que o mundo tem um aspecto
sagrado, digno de respeito, mas não é em si mesmo uma

92 Periphyseon (Da Divisão da Natureza), I, 446D.


93 Monologion, xxxiv.
teofania — até porque se fosse, episódios como o da sarça
ardente seriam a coisa mais corriqueira do planeta.

Portanto, não falo aqui de unidade ontológica, mas de


unidade epistemológica; isto é, os artifícios (no sentido
etimológico de coisa feita por arte: arti+facere) das
diferentes culturas não têm mesma base ontológica, não
partem do mesmo topos. Se há apenas uma religião
verdadeira — a religião de Cristo, a Igreja Católica, — somos
forçados a desconsiderar a noção de que há uma unidade
transcendente das religiões e que as expressões culturais
das sociedades animadas por suas religiões estão
expressando um desdobramento do Absoluto — Deus. Mas é
possível que as coisas tenham uma mesma unidade
epistemológica: o mundo pode ser representado como idéia
pelas diferentes culturas; a roda do nosso nascimento, para
usarmos um simbolismo de são Tiago, 94 pode comprimir,
através do intelecto de santos e sábios de diferentes
civilizações, toda a criação material. Com efeito, essa
abstração do mundo (que é feita por vias naturais, e não
místicas, posto que a mística verdadeira só está disponível
para os membros da religião verdadeira), essa unificação
dos sinais materiais num único campo intelectual e
espiritual foi uma das primeiras coisas que as sociedades
tradicionais fizeram, de forma que — como diz o padre
Wilhelm Schmidt, SVD — o monoteísmo antecede o
politeísmo. 95 Mesmo numa sociedade francamente

94 S. Tiago iii,6.
95 Wilhelm Schmidt, SVD, L’Origine de l’idée de Dieu, 2 vols., Paris, 1919. Curiosamente, o
Antigo Testamento corrobora essa tese: Adão e Eva eram monoteístas (ou seja, o mundo
inteiro era monoteísta); depois, as sociedades se partiram e viraram politeístas. Em termos
simbólicos, do Uno nos degeneramos para o múltiplo.
politeísta, como é o caso da sociedade hindu, ainda assim há
um princípio “unitário”, que seria justamente Brahman: o
princípio ativo, aquele que se expande ao longo do Cosmos,
a um só tempo a causa material e a própria ausência de
materialidade, a bonança e a graça pura, pessoal e
impessoal.

Poderíamos também citar outra sociedade pagã: a da


antiga Grécia. Sócrates e Platão são dois exemplos bem
conhecidos de filósofos que procuraram integrar a
multiplicidade do mundo numa cosmologia reduzida a um
único princípio não-relativo (lembro-me que no clímax do
Fédon, Sócrates afirma que não existe isso de ser “mais alto”
ou “mais baixo” que alguém), 96 cousa também feita pelos
platonistas; mas mesmo no período pré-socrático nós
encontraremos empreitada de cunho similar, como é o caso
do próprio Pitágoras, que atribuía ao número 1 o
simbolismo do Princípio — aquele número que está
pressuposto em todos os outros números, em todos os
múltiplos; todos os números “dependem” da existência do 1
para poderem ser outra coisa, de modo que o 1, para
Pitágoras e os pitagóricos como um todo, é ímpar e par ao
mesmo tempo. 97 Se nos voltarmos à própria astrologia —
não só à astrologia ocidental, mas à maioria de todas as
sociedades tradicionais — veremos o Sol, a fonte da luz,
simbolizar a unidade.

Mas qual o caso, aqui? Não falei, acima, que a prova


oferecida por Pedro Abelardo não era arrasadora? Então,

96 Platão, Fédon, 102a-107a.


97 Aristóteles, Metafísica, 986a.
portanto, Guilherme de Champeaux não estava certo em
aquiescer às objeções de seu aluno? Não seria mais errado
se Guilherme insistisse em afirmar a superioridade do
realismo ante ao nominalismo, ou pelo menos do
verbalismo, abelardiano?

Não me cabe dizer que tipo de situação Abelardo e


Guilherme viveram em sala de aula, mas parece que há algo
na velocidade e na fulminância da destruição do venerável e
antigo realismo sustentado pelo mestre Guilherme que não
casa muito bem com o tradicionalismo medieval; há
qualquer coisa de anômala aí: é como se na intrincada teia
intelectual e espiritual da Idade Média houvesse um andaço
que infectasse tudo sem que ninguém percebesse o que
estava se passando. Quando se pensou em combatê-lo, já
era grande demais. Claro que Abelardo não foi o
nominalista que iria sepultar a Escolástica (e é claro que
suas heresias não passaram despercebidas, tendo em vista
que ele teve de tacar no fogo sua pretensa obra-prima, a
Theologia summi boni, por condenação do Concílio de
Soissons, em 1121).98 Essa triste honra vai para Ockham e
João Duns Scotus. Como já enfatizado, é a rapidez da
destruição de Guilherme de Champeaux, bem como a
inabilidade deste de se defender de Pedro Abelardo, que
conta para mim.

A impressão que se tem é que naquele meado do século


XII, a Europa já estava mais ou menos inclinada, ou pelo

98 Contudo, ainda naquela década, Abelardo comporia a Theologia Christiana, cujo título
não é nada menos que uma troça feita aos homens que lhe mandaram queimar a Theologia
summi boni, já que a nova obra não retirava nenhum dos argumentos que levaram à
condenação do seu trabalho anterior.
menos o ponteiro da espiritualidade começava a girar, para
aceitar o materialismo como um elemento factual de
explicação. Se o leitor prestou bem atenção às objeções
apresentadas por Abelardo ao realismo “exagerado” —
realismo que não é nada menos que a explicação tradicional
da constituição objetiva e intelectual do mundo — ficará
claro que a tese do autor de Sic et Non é “racionalista” e
“lógica”. Abelardo é como seu outro ex-professor, Roscelino:
não consegue entender como duas coisas não podem ser
uma coisa ao mesmo tempo. Isso não “entra” na sua mente
moderna: como podem Sócrates e o burro compartilhar a
mesma essência, já que Sócrates e o burro são duas coisas
radicalmente diferentes? Sócrates é brilhante e racional — é
indigno que entretamos, mesmo que por um segundo, o
pensamento de que ele possa compartilhar qualquer coisa
que seja com um asno.

Mas será que Sócrates é, dum ponto de vista metafísico,


radicalmente diferente que o burro? O que, aliás, diz essa
palavra, “radicalmente”? Ela tem a ver com raiz; em latim,
radix. Sua origem se dá na botânica: é a raiz literal da
árvore. Simbolicamente (e creio que posso falar livremente
em simbolismo porque se trata duma figura de pensamento
trazida da botânica para a linguagem da sabedoria),
simbolicamente, a árvore referida é a Árvore da Vida, a
Árvore da Existência, aquela árvore que nasceu da semente
plantada por Deus aqui na terra. Claro está que a criação do
homem, feito do barro da terra, é distinta da criação dos
animais — entre eles, o burro; o burro não nasceu da terra,
sua constituição não é o barro sagrado. Contudo, homem e
animal foram criados pelo mesmo Criador, têm a mesma
semente: a inspiração de Deus; têm, também, a mesma
causa, a ação do Verbo Divino. Isso significa que a
verdadeira raiz da criação de homem e burro é comum: o
mundo se desenvolve da ação divina, que a tudo criou. Se
caminharmos na rota contrária, veremos que, malgrado
todos os acidentes, nossa origem é a mesma: o Verbo. Esse
Verbo contém todas as coisas; tem em Si a forma do mundo.
Nele, além disso, encontramos inclusive a forma ser, que
contém todos aqueles seres que existem. Ou uma pedra, o
burro, e Sócrates não são criaturas que existem? Eles não
compartilham essa mesma constituição? E essa condição
não é, enfim, uma constituição ontológica? A forma do ser,
na mente de Deus, tem potência para ser qualquer coisa,
mas só se realiza em ato de uma única maneira, pertence a
um único gênero (que pode se declinar em diferentes
espécies).

Portanto, dizer que Sócrates e o burro compartilham,


ainda que em potência, uma semelhança, é dizer que eles
vêm do mesmo lugar, ou que eles pertencem à mesma
Unidade; tal coisa sempre foi percebida por todas as
civilizações tradicionais, ou que ao menos operam numa
clave tradicional — seja essa clave social, espiritual ou
integral. O falhanço de Guilherme consiste em não perceber
que o argumento de Pedro Abelardo só faz sentido desde
um ponto de vista “lógico” puramente natural e individual. É
até engraçado, de certa maneira, que Josef Pieper considere
que um realista como santo Anselmo seja uma espécie de
racionalista que desconsidera o poder da mística. 99 Isso
poria Anselmo e Abelardo no mesmo pacote — e Pieper sabe
que ambos os pensadores são o oposto, tanto que ele se

99 Pieper, Scholasticism, pp. 55-6, 61.


lembra que o racionalismo de Abelardo já havia sido
identificado na própria Idade Média, por ninguém menos
que são Bernardo de Claraval.100 Se as obras filosóficas de
Anselmo incitaram polêmica em seu tempo, e aqui lembro-
me especialmente do “paradoxo da ilha” à base do
“argumento ontológico”, essas polêmicas se erguem
justamente do escopo universal metafísico que elas
possuem, e não por causa da restrição imaginativa delas.
Anselmo é um pensador estritamente tradicional; seu
pensamento, assim como o de Guilherme de Champeaux no
período anterior às disputas com Pedro Abelardo, não
apresenta nada de “original”. De fato, se nós pensarmos na
coragem duma frase há pouco citada, a respeito da falta de
competência de Roscelino em entender como dois homens
podem ser um homem de uma só vez, veremos que não há
nada de racionalista aí: apenas um santo, um homem
perfeitamente incluído no espírito tradicional e cristão,
pode conceber essa idéia sem problemas, pois essa idéia — a
da unidade da existência — é uma idéia capital da fé católica
e do mundo tradicional.

Encaminho-me agora para o final da exposição. Creio


ter deixado claro o porquê de pensar que o nominalismo é o
corruptor da filosofia cristã e do mundo tradicional: ele
“baixa” os limites humanos à esfera da imanência, destrói
aquele quê de irracionalidade que, na realidade, é a

100 Ibid., p. 82.


manifestação metafísica das potencialidades e
possibilidades da existência. Na verdade, eu me lembro
duma frase do notável cosmólogo Wolfgang Smith na qual
ele afirma que “aqueles que não conseguem imaginar todos
os eventos ocorrendo ao mesmo tempo estão barrados do
mais ínfimo entendimento acerca dos domínios da
metafísica”.101 Se isso é verdade, não vejo como não pode se
aplicar com as personagens principais do nominalismo:
Roscelino, Pedro Abelardo, João Duns Scotus e Guilherme de
Ockham. Esses são homens que pensam puramente na clave
do racional, do imanentemente possível, e não no
metafísico. Roscelino e Abelardo afundam as possibilidades
metafísicas para que elas se assemelhem às possibilidades
do raciocínio puramente humano; já João e Guilherme de
Ockham “limitam” as possibilidades da ação divina para
que, paradoxalmente, elas não fiquem “refreadas” ou
“reféns” dos ditames da filosofia platônico-aristotélica da
Alta Idade Média, destruindo assim aquela lógica e
ordenação admiráveis que a filosofia cristã havia alcançado,
em nível simbólico, acerca dos mistérios da divindade. João
e Guilherme destruíram, assim, aquela “pessoalidade” com a
qual Deus se manifestava de maneira misteriosa para os
medievais tradicionais; tornaram, então, Deus impessoal,
afastado. Como diz Michael Allen Gillespie:

[O] Deus revelado pelo nominalismo já não era aquele


Deus benevolente e razoavelmente previsível da Escolástica.
O hiato entre Deus e o homem fora generosamente
aumentado. Deus já não podia ser entendido ou

101 “The Status of Geocentrism”, in The Wisdom of Ancient Cosmology, Oakton,


Foundation of Traditional Studies, 2004, p. 163, nota 12.
influenciado pelos seres humanos; ele, agora, agia de
maneira puramente livre, tornando-se indiferente às
conseqüências dos seus atos. É verdade que no princípio
Deus havia determinado as normas de conduta que o
homem devia seguir, mas agora sabia-se que ele podia
mudá-las a qualquer instante. Na nova perspectiva, alguns
homens podiam se salvar, outros estavam condenados, mas
a relação entre salvação e santidade e danação e pecado é
agora apenas acidental. Não está nem mesmo claro se esse
novo Deus ama os homens, já que o mundo que essa
divindade criou é um emaranhado diverso de coisas no qual
o homem não encontra um mísero ponto de certeza ou
segurança. Como pode alguém amar um Deus tão
mistificador?102

A noção de um Deus tão dolorosamente afastado da


humanidade, tão impessoal, traz o Criador a um status
perigosamente parecido com a noção puramente impessoal
da divindade no islamismo. O mais notável é que essa visão
aterradora de Deus tal como proposta no nominalismo é
absolutamente incompatível, irreconciliável com a noção de
Trindade clássica do Catolicismo: ela só pode ser defendida
se formos pensá-la à maneira de Guilherme de Champeaux
em sua fase nominalista — “por fé”.103 A aceitação geral da
tese nominalista conseguiu mudar radicalmente a percepção
do mundo acerca da sua constituição metafísica, o que
representa um grave precedente para o Ocidente: se se

102 Gillespie, Theological, pp. 24-25.


103 Curiosamente, quando Pedro Abelardo faz sua argumentação sobre a Santíssima
Trindade, seu argumento é totalmente realista. Veja-se Jeffrey E. Brewer, “Trinity”, in Brewer e
Guilfoy, op. cit., pp. 229-31.
consegue mudar a percepção tradicional de Deus, se a
especulação acerca dos mistérios da natureza — seja da
natureza metafísica, seja da natureza imanente e material,
— pode ser mudada, por que não se poderia pôr em questão
todo o resto? Além disso, há algo mais grave, mais terrível
que deve ser considerado: o mundo tradicional, do qual a
Idade Média evidentemente faz parte, é um mundo
impessoal; isto é, um mundo ao qual o eu não é ativo, mas
passivo; ele não coordena, mas subordina-se à ordem da
existência. É perfeitamente natural que as coisas sejam
assim, porque a Criação é uma obra vertical (algo muito
bem exprimido pela arquitetura medieval, seja ela gótica ou
romanesca, inclusive) 104 A impessoalidade do mundo
tradicional, é, portanto, um entendimento intelectual da
determinação que a soberania das leis divinas exerce sobre
a nossa condição; é uma aquiescência à punição que
recebemos pelo Pecado Original — que não foi outra coisa
senão uma fuga do homem à sua função na Criação.105

Isso não quer dizer que a impessoalidade do mundo


tradicional seja de mera passividade. Nós só somos passivos
em relação à ação que Deus manifesta, através da sua

104 “À noite, chegamos a Alcobaça. Será que pensei que a veria de novo? Entro na
catedral. De algum modo, ela parece ainda mais bonita. Possui uma sobriedade simples,
ascética. Nunca antes senti de uma maneira tão completa os arrepios de transcendência que a
verticalidade pode oferecer. O simples fato de que o homem é esmagado por um espaço
arquitetônico como este define nossa posição precária [no Cosmos]” (Mircea Eliade, 23 mar.
1945, in The Portugal Journal, tr., prefácio e notas de Mac Lincott Ricketts, Albany, SUNY Press,
2010, pp. 196-7).
105 Hesito em dizer que o pecado de Adão e Eva foi uma “manifestação da
pessoalidade” já que a idéia de comer o fruto proibido foi não foi inspirada por Eva, mas pela
Serpente. De qualquer modo, há uma presença do “eu”, ali, porque Eva optou por dizer Sim a
um desejo que não era o de Deus, mas o do mal.
Criação, do poder dos anjos, da hierarquia celeste, da
organização dos astros no céu, no mundo da matéria criada.
Mas, como senhores do mundo, como as obras-primas da
Criação que somos, nossa função é exercer um papel ativo
dentro do quadro de determinações que Deus nos legou.
Retomo a idéia do “círculo mágico” expressa anteriormente:
não nos cabe passar para além desse círculo de
possibilidades naturais no qual vivemos; qualquer coisa
para além disso perturbaria a ordem da Criação. O que
podemos fazer é subordinar a nossa subjetividade, a nossa
pessoalidade, ao Objetivo, de maneira que ela se integre de
maneira harmônica com os ditames do mundo ao nosso
redor. 106 Nós somos homens, nós temos uma constituição
definida. Dentro da esfera do ser, nós formamos uma
espécie distinta das demais. Isso significa que há uma série
de essencialidades à nossa natureza que nos permite
vislumbrar o que é esperado de nós, que tipo de ação a
inteligência divina reservou para nós, quais são as nossas
responsabilidades e deveres para com o mundo e para com
nós mesmos. Porém, dentro da imanência, é impossível que
nós sejamos estáticos e que tenhamos algum tipo de
constituição absoluta: o absoluto só existe no extremo limite
do cosmos; ao descermos “progressivamente do plano
universal para os mais particulares e sensíveis”, as coisas
ficam “mais e mais complexas”. 107 Em outras palavras,
apenas Deus é estático, nós somos dinâmicos; Deus é
perfeito, nós somos imperfeitos; Deus é puro, nós somos

106 Sobre a subordinação da ação ante à “imobilidade” do objetivo, veja-se René


Guénon, La Crise, pp. 59-60
107 Olavo de Carvalho, “A dialética simbólica”, in A Dialética Simbólica: Estudos
Reunidos, 2.ª ed., Campinas, VIDE Editorial, 2015, p. 19.
maculados; Deus é, nós estamos; Deus determina, é imóvel,
enquanto nós assentimos, agimos. A vida na história é uma
vida de ação e, portanto, de passado, presente e futuro, o
que significa dizer que é uma vida de transitoriedade e de
fenecimento; a única redenção possível é, de fato, uma
integração total aos desígnios da inteligência divina e da
estruturação arquitetada por ela no Princípio dos tempos.108
Essa integração se dá de maneira simbólica nos ritos e
preceitos da religião, dentro dos templos e na proximidade
dos objetos sagrados e de maneira ativa na vida cotidiana,
através da sacralização dos ofícios.

O advento do nominalismo traz uma manifestação


feroz do eu, porque passa a ser o indivíduo quem dá as
coordenadas do que é a constituição do mundo, quais são as
suas verdadeiras propriedades. Isso significa que todo o
mundo extramental é, na verdade, um mundo feito por
contrato ou associação; não existe, no fim das contas, uma
lei natural que independe da constituição da racionalidade
humana 109 . At the end of the day, todas as coisas são
determinadas pela sua própria racionalidade, de maneira
que a percepção pessoal que o sujeito tem de si mesmo seja

108 O advento histórico de Jesus Cristo serviu, aliás, para afirmar essa espécie de
dupla estrutura do tempo: o tempo de Deus — o eterno agora, da existência afirmativa, que
perenemente é e nunca deixa de ser (algo expresso na gramática pela natureza permanente
do verbo), — e a transitoriedade temporal do homem, que vive no aperto entre passado,
presente e futuro. Inclusive, penso que a verdadeira prova da onipotência divina é essa
possibilidade Dele encarnar nesses dois fluxos temporais; se Ele não pudesse fazer isso, Sua
existência seria uma especulação transcendental tão verdadeira quanto qualquer deidade
pagã.
109 Se enfatizo o elemento humano, é porque o homem é o único animal racional e, no
fim das contas, somente ele tem o critério de terminar o que são as coisas, ainda que o
nominalismo insista que os objetos são determinados por si mesmos.
mais importante do que a sua constituição objetiva. A
relação de entendimento na sociedade, o que os homens
acreditam ser verdade, passa a ser uma coisa meramente
determinada pelas leis, ou pela “tradição” meramente
humana — que é aquela tradição criticada por Jesus Cristo
em são Mateus, xv,3-9 — uma tradição de caráter
meramente moralizante, normativo e social porque ignora o
princípio divino que se expressa através dos caracteres
tradicionais. A vitória do nominalismo, num primeiro
momento, significa o retorno da primazia do nomos sobre a
physei, depois da destruição daquela pelas mãos de
Sócrates, Platão e Aristóteles. Que Abelardo tenha ganhado
de Guilherme de Champeaux na base da retórica é
altamente significativo: voltamos para os debates do Górgias,
que questionam se a retórica deve ser usada para a
maldade, para o bem pessoal e individual ou não.

Com a obra dos franciscanos ingleses João Duns Scotus


e Guilherme de Ockham, sucessores de Pedro Abelardo na
marcha do nominalismo, passamos da parte meramente
retórica para os primeiros resultados práticos da
emergência do eu: o término da Escolástica como a filosofia
modular da Europa católica. Claro que a Escolástica
sobreviveria como modo principal de filosofar em certos
quartéis do continente — especialmente na Península
Ibérica, donde aliás vêm o já citado João de S. Tomás e
Francisco Suárez, OP. Mas aquela Europa regida por uma
filosofia relativamente impessoal e racional, alimentada
pelo fogo do espírito, do intelecto e da experiência mística
que é viver numa sociedade totalmente iluminada pela luz
da fé já não existia mais.110 Esse tipo de mundo não pode se
sustentar se todas as universidades se entregaram ao
charme da irracionalidade — que é a entronização do eu.
Não é à toa que tanto a Escolástica quanto o sistema feudal
e, por fim, a própria Idade Média morram nos séculos
subseqüentes para a emergência do mundo positivado,
racional e inteiramente deprimido que é o mundo moderno.
Pois o mundo tradicional parece superficialmente
anárquico e confuso. Isso é assim porque o mundo da
tradição é o mundo da simbologia vivencial: a superfície da
existência, ou talvez os aspectos estéticos da existência, é
caracterizada por uma certa descontinuidade entre as
partes. A astronomia antiga, por exemplo, não coincide com
o mundo da matéria criada, mas serve — e é isso o que é
verdadeiramente importante — para guiar o homem em sua
jornada espiritual. O homem é e está no centro da Criação,
porém numa posição intermediária, entre a matéria e a
imensidão das alturas espirituais. Que importa que o
cosmos material, que o universo descoberto por Galileu
Galilei e Isaac Newton não seja assim “de verdade”? Que
importa que haja uma descontinuidade entre a idéia
medieval de universo e o cosmos que existe e é visto pelos
astronautas e calculado pelos astrofísicos? A matemática
puramente quantitativa, mas desprovida de espiritualidade,

110 E decerto existiram outras tentativas de fazer um retorno da Escolástica se engatar,


especialmente no século XIX e até os meados do século XX, no embalo da Æterni Patris
leonina. Mas não é possível fazer um revival dum tipo de filosofia, qualquer que seja, por
decreto. A título de exemplo, digo que agora mesmo, neste século XXI, estamos vendo um
verdadeiro retorno dessa filosofia — ou seria melhor dizer, do tomismo, vindo dos Estados
Unidos e de certas partes da Europa. Penso principalmente nas obras de Edward Feser e de
Peter Kreeft, além de outros autores de maior ou menor qualidade e de maior ou menor
fidelidade à ortodoxia.
conta mais do que a saúde do espírito simplesmente porque
ela é “mais verificável”?

O mundo tradicional é superficialmente desorganizado,


mas profundamente interconectado. De certa maneira,
podemos chamá-lo de “holístico”, porque todas as partes são
integradas. É por isso que a natureza do eu, dentro da Idade
Média, por exemplo, é pouco importante, ou pelo menos
subordina-se a uma função outra que não seja a vivência
puramente pessoal. Os olhos do indivíduo são como uma
espécie de periscópio que serve para verificar se essa
integração dinâmica entre o eu e o Todo está ativa ou não. É
por isso que Julián Marías pode escrever que na “Idade
Média, o homem é uma criatura feita à imagem e
semelhança de Deus; isso faz com que Deus fique envolvido
no problema do homem” 111 — ou seja, a mistura do ser
humano com Deus durante o período medieval provoca
uma elevação na natureza do tipo de problema que cerca o
homem, de forma que eles já não são meramente
mundanos, sociais, políticos (em sentido moderno), mas
verdadeiramente teológicos. Assim, digo, sem nenhum teor
de malícia ou provocação, que a velha crítica que diz que a
Escolástica não produziu senão teologia está certa — pelo
menos no sentido de que o tônus da preocupação dos
filósofos escolásticos era divino, ou de integração espiritual.
Em resumo, digo que a característica maior do mundo
medieval é a integração com a Totalidade Objetiva; o mundo
medieval é um mundo inteiramente preocupado com a
Salvação. É por isso que, aos olhos modernos, ele passa a
ser um mundo relativamente “desorganizado” — é que as

111 Marías, História da Filosofia, p. 340.


partes superficiais da existência se integram no todo de
maneiras ativas, mas misteriosas; dessa maneira, o próprio
ser e o próprio existir se integram de maneira mística no
grande mysterium fidei que é a história da salvação. No
mundo tradicional, nada está fora do lugar e nada é
sobressalente, ainda que as coisas pareçam ser inadequadas
ou, ao menos, inadequadamente dispostas. Porém, para
apreciar isso, é preciso saber ver; mas o homem moderno
não sabe como fazê-lo porque está intoxicado de
modernidade, que nada mais é do que uma intoxicação de si
mesmo, fenômeno que podemos simbolizar como um
afundamento humano dentro de si mesmo — situação que
tisna um obscurecimento geral do arredor do campo do ser.
Mas entre abrir mão daquela tristeza gostosa que é
lamentar a própria má-sorte e se resfolegar no veludo da
depressão e da neurastenia moderna, entre isso ou mudar
de vida, o moderno prefere a primeira opção e chamar a
dificuldade substancial que é uma vida tão triste de
“opressão”. Por isso, quando olha um mundo
verdadeiramente luminoso como o mundo medieval, ele diz
que aquilo é uma “idade das trevas”. Claro que diz — a
clareza medieval lhe faz fechar os olhos. Na verdade, a
verdadeira “idade das trevas” é a nossa.

Já o nominalismo diverge e redireciona, como num


arremate dum jogo de pinball, em que a bolinha sai confusa,
topando com todos os obstáculos, à mercê dos impactos e
da gravidade, o tipo de caminho feito pela humanidade na
Europa da Baixa Idade Média. O desmembramento dos
particulares, a conferência indevida aos indivíduos a um
status de possibilidade de totalização em si mesmos
descambará numa fissura existencial objetiva e material. O
primeiro estágio dessa fissura será o fim do regime feudal e
a elaboração tentativa da emergência dos Estados nacionais.
Já na filosofia, não preciso dizer que o maior representante
desse novo jeito de pensar será René Descartes e o seu
apego desabalado ao eu. Evidentemente, Descartes está num
momento histórico degenerado, mas não tão degenerado
que ele não possa abrir mão por completo de Deus — e é
exatamente por isso que ele apela para a Divindade para
que lhe salve da dúvida absoluta; ou seja, mesmo Descartes
percebe que apenas a reintegração na Totalidade Objetiva é
a salvação da humanidade. Mas, em seu tempo, o sistema
filosófico que permitiu-lhe vislumbrar essa última verdade
já havia se degenerado num mero traço de normatização
social, privado de existência ativa e pulsante. No século XV,
o século cartesiano — cujo pensamento matemático e
racionalista me permitem dizer que ele é uma espécie de
Mondrian filosófico — o que havia de pulsante e ativo, em
matéria filosófica, é o que existe ainda hoje: o nominalismo,
o pai da misosofia, cujos efeitos sentimos mesmo agora
num estado de profunda acentuação.

A idéia de particularizar os entes — sejam eles abstratos


ou concretos — é uma das mais nocivas jamais criadas. No
que diz respeito ao funcionamento da sociedade, o
nominalismo desembocará em Kant, que transforma Deus
num juízo crítico universal dentro da mente do indivíduo
(uma paródia de mau gosto da forma que está dada em cada
ente, como propunham Aristóteles e santo Tomás de
Aquino).112 De fato, o juízo crítico kantiano nada mais é do

112 O problema de Kant (à moda de Descartes) jogar o universo inteiro para dentro da
cabeça do homem é tocado sob uma perspectiva diferente pelo professor Olavo de Carvalho na
que uma espécie de “bom senso” secularizado e imanente,
sustentado pela boa prática social. 113 Mas se é o homem
quem faz a sociedade, basta que alteremos o senso comum
e o bom senso, introduzindo idéias que até antes eram
inaceitáveis. De fato, isso é precisamente o que Antonio
Gramsci, a Escola de Frankfurt e os pós-modernos tentam
fazer nos nossos dias. E não há como não ser assim: se a
imanência é o reino da transitoriedade, isso significa que
mesmo o bom senso pode ser alterado; novas formas de ver o
mundo podem surgir de maneira que as mais antigas e
mais verdadeiras podem ser alteradas até um ponto que já
não lembremos mais delas e que novas idéias nos pareçam
perfeitamente razoáveis e até mesmo dignas de legislação
para as suas imposições, como é o caso da ideologia de
gênero (talvez a expressão suprema do nominalismo em
nosso tempo). Em termos “científicos”, isso é explicado tanto
pela “curva de normalidade” descrita pelo falecido senador
americano Daniel Moynihan em “Defining Deviancy
Down”114 quanto pela (ora) insuportável janela de Overton;
nos dois casos a idéia é a mesma: sempre é possível chegar
a um ponto em que um comportamento seja esdrúxulo ou

apostila “Kant e o primado do problema crítico”: http://old.olavodecarvalho.org/


apostilas/kant.htm
113 Eu espero que o fim da efervescência que caracterizou o culto a Roger Scruton (que,
apesar disso, é um homem a quem se deve muito) tenha acontecido por causa do espanto da
percepção de que o conservadorismo propugnado por ele é distintamente kantiano (o que não
deveria ser surpreendente, já que ele é autor dum livrinho apologético ao anão de Königsberg).
De fato, se avaliarmos bem o que ele diz sobre a beleza — ou até mesmo sobre a importância
de se preservar as tradições — veremos que Sir Roger parte de uma perspectiva inteiramente
subjetivista, por mais que Kant, dentro do mundo fundado pelo nominalismo, soe
“universalista”.
114 The American Scholar, LXII, 1993, pp. 17-30.
seja reprovável se torna comum e corriqueiro. Basta que
haja engenharia social suficiente para efetuar a mudança.

Paremos, entretanto, por aqui; mais do que temos em


mão é tema para um escrito futuro.

— FINIS —
Trata-se de volume
E DI TADO
&
PUBLICADO

para honra e glória de

N OSSO S ENHOR J ESUS C RISTO


e louvor de sua Santíssima Mãe,

na casa editorial

VIDETE VOCATIONEM VESTRAM

Composto em ebook para a Editora ViV, em


Outubro de 2021, a partir do formato 14 x 21 cm,.
As fontes tipográficas usadas foram Arapey,
Bellefair, Deutsche uncialis, Garamond Bold e
Bahnshrift.

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