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TEORIA E METODOLOGIA
ENSAIOS
© EDUSC
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- Minha vida profissional esteve muito marcada por duas polêmicas
listoriográficas. A primeira foi aquela a favor do paradigma integrado
mio pelo marxismo quanto pela tendência (chamada erroneamente
e Kscola) dos Annates, contra uma concepção ainda muito forte na
unérica Latina, mesmo na década de 1970, centrada num enfoque da
1isto ria que unia - nem sempre com consciência de o fazer - positi-
ismo e historicismo (ou, como preferem alguns, historismo). A se-
unda foi o debate com as tendências pós-modernas, o neoconserva-
orismo e a Nova História Cultural. Os ensaios integrantes deste volu-
te prendem-se indubitavelmente, em sua maioria, a esta segunda po-
intica, em seus aspectos epistemológicos e metodológicos, j y
HISTÓRIA
Coordenação Editorial
Irmã lacinta Turolo Garcia
Coordenação Administrativa
Irmã Adelir.VVeber
Coordenação Executiva
Luzia Bianchi
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Ensaios
Ciro Flamarion Cardoso
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EDUSC
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©EDUSC
Rua Irmã Arminda, 10-50
CEP 17011-160-Bauru -S P
Eone (M) 3235-7111 - Eax (14) 3235-7219
e-mail: cdusc@edusc.coni.br
ISBN 85-7460-287-6
CDD 907.2
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DATA '
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Sumário
7 I ntrodução
Parte 1
Dimensões: tempo e espaço
C apítulo 1
11 Tempo e história
C apítulo 2
37 Repensando a construção do espaço
Parte 2
Epistemologia em debate
C apítulo 3
55 Crítica de duas questões relativas ao anti-realismo epistetnológico
contemporâneo
C apitulo 4
73 Epistemologia pós-moderna e conhecimento: visão de um historiador
C apítulo 5
95 Começando o século 21
í
Parte 3
(
História: ontem c hoje
C apítulo 6
113 Panorama da Historiografia Ocidental (até aproximadamente 1930)
C apítulo 7
151 A História na virada de milênio: fim das certezas, crise dos paradigmas?
Que História convirá ao século 21?
Parte 4
Algumas questões setoriais de teoria e método
C apítulo 8
171 Etnia, nação e mundo pré-moderno: um debate
C apitulo 9
199 Etnografia e História da leitura
C apítulo l()
209 História das religiões
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C apítulo 11
231 Pensando sobre a arte figurativa, lendo a obra de arte
C apítulo 12
255 Sociedade e cultura: conceitos complementares ou rivais?
i
I ntrodução
Minha vida profissional esteve muito marcada por duas polêmicas his-
toriográficas. A primeira foi aquela a favor do paradigma' integrado tanto
pelo marxismo quanto pela tendência (chamada erroneamente dc\Escola) dos
Annales, contra uma concepção ainda muito forte na América Latina, mesmo
na década de 1970, centrada num enfoque da História que unia - nem sem
pre com consciência de o fazer - positivismo c historicismo (ou, como prete
rem alguns, historismo). A segunda foi o debate com as tendências pós-mo-
dernas, o neoconservadorismo e a Nova História Cultural. Os ensaios inte
grantes deste volume prendem-se indubitavelmente, em sua maioria, a esta se
gunda polêmica, em seus aspectos epistemológicos e metodológicos.
Dos doze textos de natureza diversa aqui reunidos, sete (os capítulos 1,
6,7,8,9, 10 e 11) são inéditos. Quanto aos demais, foram publicados, às vezes
em forma bastante distinta das que se apresentam neste livro, em revistas. Por
fim, três deles (os capítulos 2, 3 e 12) também apareceram, cm versões distin-'
tas em vários pontos das incluídas neste volume, numa coletânea de ensaios
que publiquei na Costa Rica em 2001.
Eis aqui as referências dos textos publicados previamente de alguma
forma:1
7
Repensando a construção do espaço. Revista de História Regional,XJnl-
versidade Estadual de Ponta Grossa, 3,1, p.”7-23, 1998. Também publicado,
em espanhol, em: CARDOSO, Ciro Flamarion, Ensayós. San José: Editorial de
Ia Uuivcrsklad dé Costa Rica, 2001. p, 13-26,. .
* :# '.
Crítica de duas questões relativas ao anti-realismo epistemológico con-
lemporâneo. Diálogos, Universidade Estadual de Maringá, 2, 2, p. 47-64, 1998.
Incluído igualmente, em espanhol, em: CARDOSO, Ciro Plamarion. Ensayos.'
San Josc: Editorial de la Universidad de Costa Rica, 2001. p. 81 -92.
Epistemologia pós-moderna, texto e conhecimento: a visão de um his
toriador. Diálogos, 3, 3, p. 1-28,1999. •'
No limiar do século XXI; Tempo, Universidade Federal Fluminense, 1,*
2, p .7.-30, 1996. ' ■' ...
Sociedade e cultura: comparação’ e confronto. Estudos Ibero-Americanos,
Pontifícia Universidade Católica <Ío Rio. Grande do Sul, 29,2, p. 23-49,2003.
' • - ■ . ■ •' ’ . . /
: T empo e história
Y PROLEGÕMENOS !'
,. A noção de (empo é capital, tanto científica quanto existencialmente, e,
ao mesmo tempo, muito difícil de definir devido à sua ambígüidade, já que,
em diferentes contextos, significa coisas de fato bastante variáveis:
I FRASER, J. 1'. Inlroduction. Ln:____. (Org.). The, voices of time: A cooperativo sur-
vey of niatPs vievvs of time as expressed by the sçiences and by fhe huinanities. New
York: GeorgeBrazillef, 1966. p.XVlH. ■ ,
11
Istõ significa que, em nossas indagações sobre o que o tempo é em si,
objcllvainente, como uma dimensão (um “receptáculo”, tal como o espaço, em
que os eventos sè desenvolvem), mas também sobre o que èie é para nós, súb-
jeliva ou existencialmente, seria bem provável .corrermos ó risco de que nos'
empurrassem em diferentes direções e nos la.riçassem aos braços das mais di-.
versas disciplinas.2 • V ; ■
É provável que a noção de espaço tenha sido. percebida pelos seres hu
manos antes da de tempovAs línguas, mais antigas que nos deixaram docu
mentos - o sumário, o egípcio, o acadiaiio e o eblaíta - tendiam a cspaciaüzar
o tempo. O egípcio tardou bastante até mesmo a desenvolver .um sistema ver
bal baseado ria noção de tempo: de início, predominava em forma absoluta a
noção Ue aspecto verbal, que distinguia o perfeçtivo (ações completas), o ím-
pcrfectivo (ações em ato ou ações reiteradas) è oqrrospectivo (ações suscetí
veis de ocorrer). Mesmo hoje em diá, qualificamos em português o tempo
como “curto” ou “longo” isto é, com um vocabulário espadai. Podemos até
mesmo dizer "um curto espaço de tempo”, que um evento “ficou para Irás'’ ou
“está a grande distância no tempo” por'exemplo. 1 . •
Um caso extremamente curioso, por prenunciar intuitivamen te a rela
tividade, é o da língua quêchiia: Á palavra pacha, de acordo com a acepção'
.mais conhecida e usual; designa a terra como solo e como mundo, assim como
sua personificação religiosa mima entidade feminina (na mitologia andina, a .
terra é feminina, enquanto a água em movimento - seja a da chuva, seja a do
canal - que vem fecundar a primeira é masculina). Alternafivamênte, o termo
também pode significar tempo, período, circunstância. O mais interessante,
porém, é que em certos contextos pacha designa em expressão única, sintéti
ca, as noções conjugadas de extensão cspacial e intervalo de tempo (um mo
mento ou um perjodo). Assim, por exemplo, no manuscrito cie Huarochirí
(capítulo I, seção 7)1 a passagem coni raya vim cacha tuna camacpacha camac,
início de uma oração à entidade sobrenatural Coní Raya, identificada a outra,
Vira Cocha, significa ao pé da letra: “Coni Raya Vira Cocha, que animaste os
13
O que a ciência contemporânea ache a respeito do tempo será p erti
nente para a sua construção nas ciências sociais e humanas? Minha opinião é
que sim, como já escreverá’antes; mas de modo indireto;e, ás vezes, com atra
so considerável em relação às descobertas das Ciências naturais:
VOLTA DO ACONTECIMENTO - •
(OU DA CURTA DURAÇÃO) . 1
E ACELERAÇÃO DA HISTÓRIA - •=•'..= '
Comecemos por examinar o que tem a dizer o antropólogo francês
Marc Augç sobre o tempo. Na segunda metade do século 20, tefia ocorrido
uma aceleração âà história. O passado se torna história, em nossa época, a um
ritmo alucinante: a história corre atrás dè nós, está'em nossos calcanhares. Por
história, Áiigé entende os eventos .ou séries de eventos queSiumerosas pessoas;7
•15
reduzir o nível temporal dos acontecimentos - ao que Braudel chamava de
“uma espuma” superficial, algo de menor importância do que as temporalída-
des niaís lentas-, achava Nora qüé o historiador que se ocupa com a História
imediata teria interesse cm investir, pelo contrário, no acontecimento, utilí-'
Zando-o como meio para, por seu intermédio, conscientemente, fazer surgir o
passado, o espessou histórico, as estruturas, em lugar de, como êfa habitual nó ‘
trabalho dos historiadores, fazer inconscientemente surgir o presente no pas
sado (ou seja, projetar o presente no passado). Em outras palavras, os áconte- ’
cimentos permitiríam evidenciar o sistema* a çuita duração revelaria a longa
duração estrutural.’ •
16
sindicato, religião, partido, nação,'entre outras - foram seriamente abaladas
no bojo das transformações d o século 20.,Em consequência, acha Augé que se
constata hoje em dia uma forte crise ligada à perda das identidades: o que se
busca nos “lugares da memória”, diz de, são signos Visíveis do que costuma va-
■mos ser, é tentar descobrir ó'que somos pela constatação do contraste com o
que já não somos; como se se almejasse um lampejo de revelação indicador de
uma identidade que hão achamos, para tornar manejável nossa,relação com
um mundo que, movendo-sé rapidamente demais, nos faz perder os pontos,
de referência. Neste ponto, de: novo Auge dialoga com Pierre Nora."
• A memória, a identidade e, do ponto de vista, metodológico, o recurso
crescente à História Oral em campos cada vez mais variados da pesquisa em
História Contemporânea—sendo que este ultimo elemento não deixa de sus
citar problemáticas e interrogantesdambém quanto a períodos para os'quais
não seja possível a busca de testemunhos orais - constituem, portanto, temas
vinculados entre si no ambiente intelectual em que se movem os historiado
res atuais. Não me c possível, porém, desenvolvê-los todos aqui: reslringir-
me-ei especificamente à questão da memória coletiva. ■
. Em .primeira aproximação, poder-se-ia definir a memória coletiva
como um conjunto de elementos estruturados qüe aparecem como recorda*
ções, socialmente partilhadas, de que disponha uma comunidade sobre sua
própria trajetória no tempo, construídas dé modo a incluir não só.aspectos se
lecionados, reinterpretados e até inventados dessa trajetória como, também,
uma apreciação moral ou juízo de valor sobre ela. Em ambos òs níveis, tais in
gredientes se modificam no tempo (.segundo mudem as solicitações que, em
diferentes situações histórico-sociats, façam ao passado as instâncias organi
zadoras da consciência social. ;
' Afirmei há um momento que uma determinada construção aparece
como recordação porque, na verdade, são indivíduos os que .podem lembrar-
se ou recordar. Não existe, $triclo{sensu> órgão ou mecanismo concreto algum
que permita experimentar lembranças coletiva ou interiivdividualmente. Uma
solução, para este problema foi proposto em 1980, após a realização de entre
vistas com operários metalúrgicos aposentados; por dois pesquisadores fran-*
■ '■ - • . \ ' . • 17
coses, Lequin c Mettral. Eles distinguiram três níveis: existe, em primeiro lu
gar, unui memória individual que opera no quotidiano; desta pode nascer, me
dia nle recortes e adições, uma mçtnória comum, que se manifesta na evocação
que um grupo faça de seu passado, de suas lulas; por fim, pode surgir ou não
a memória coletiva, pois esta exige, para estruturar-se, que funcione uma ação
consciente de reconstrução institucional da memória no interior do grupo,
coisa que não acontece sempre:1213Assim, num,sentido estrito, só existem me
mórias individuais. Mas as recordações são retomadas por instituições de vá
rios tipos, dc tal modo que a sociedade acaba por constituir uma espécie de
patrimônio comum da memória com que o indivíduo coexiste e interage des
de sua infância. |\s memórias, em-função do próprio transcurso do tempo,
não podem manter-se só como vivências individuais: seíetivamcnte, acabam
residindo em depósitos sociais (arquivos, monumentos, museus), naquilo que
Ibi chamado de “lugares da mcmória"líJ >'•
Memória individual, comum e coletiva coexistem necessariamente nas
sociedades em diferentes níveis, os quais podem entrar em contradição e con
dito, Na ex-Iugoslávia, por exemplo, simplesmente inexistia acordo coletivo
algum, quando da crise recente, não somente acerca dos elementos históricos
mesmos, como das lições e juízos a serem deles extraídos: diferentes constru
ções da memória individual, comum e coletiva se chocavam sem remédio e
ciam de vários modos manipuladas pelos poderes que se manifestavajn du
rante a guerra, impossibilitando tanto qualquer paz social quanto a estabilida
de dos regimes políticos. Ein muitos casos, porém, impõe-se institucional-
menle uma determinada versão - pública, dominante, oficial - da memória
coletiva, a qual pode, então, servir de base à hegemonia de determinado gru
po ira construção da nação ©do regime político. Assim, póc exemplo, á-recor
dação “oficial” que se impôs na Espanha, após a morte de Franco, acerca da
Guerra Civil, no momento de repensar as estruturas do país, foi marcada por
noções valorativas como “nuncá.mais algo assim” e “todos tivemos culpa”, o
que conduziu a uma seleção (por vezes mesmo a uma'invenção) dos elemcn-
12 LEQUIN,Yves; METTRAL, Jean, Aja recherche d’une mémoire colléctive: les mé-
falluvgistes retrailés dc Givors. Aniuiks, E.S.G. 35, p. 149-163,1980. ■;
13 NORA, Pierre (Org.),Les lietix de mémoire. Paris: Gallimard, 1.984.4 v. • •
18
tos considerados pertinentes naquilo a ser recordado, e permitiu transações e
renúncias parciais .de parte dos diversos grupos político-sociais envolvidos,
cujos membros, conforme as suas-idades, tinham ou não experiência direta da
Guerra Civil: mas os grupos sociais e políticos que.se afrontavam e eventual--
mente negociavam existiam com continuidade, em forma basicamente reco-
nliecível, desde a década de 1930,“
Talvez convenha dizer que a.preocupação com o tema. da memória co
letiva não nasceu com a tendência pós-moderna. Maurice Halbwachs (1877-
1945),sociólogo.francês, discípulo dissidente de Henri Bergson e aluno fiel de
Émiic Durkhcim, do quai-adotou o conceito de consciência coletiva, foi'talvez
o,primeiro pesquisador no âmbito .das ciências sociais a preocupar-se central -
mehfe com a dimensão coletiva da memória. Distinguiu dois tipos dc memó-;
ria: a “autobiográfica”, pessoal c vivida mas necessariamente influída pelo im
pacto do social, setnpre filtrada pelo presente; e a “memória histórica”, memó
ria emprestada pela coletividade ao indivíduo sobre coisas e processos do pas
sa cío que não vivenciou pessoalmentêS Tendo sido Halbwachs ura dos editores
(iosAnnalcsnú primeira fase da re vista, suas noções acerca da '‘memória his
tórica” tiveram um impacto considerável sobre Maio tííoch, como se pode no
tar em certos_escritos deste último, por exemplo 7,a sociétó féodale** Entretan
to, creio ser evidente ter ocorrido .uma concentração muito maior, nestas últi
mas décadas, de estudos que parlam dessa noção.
. As reflexões historiográficas e outras que trataram de. analisar o uso do
conceito çlc memória cm História, e em outras ciências sociais cstabclecçran)
que existem modalidades diversas desse uso, perceptíveis nos estudos resultan
tes. Há tendências parciais, às vezes um tanto laterais mas, em certos casos, per
tinentes, que se ocupam de coisas como a importância e os critérios do esque
/ 19
cimento na construção da memória coletiva, os processos de aprendizagem ou
aqueles ligados à cultura política, ou então as cerimônias e rituais de recordação
pública do passado. Mas distingüem-se, principàlmente, dois grandes grupos de.
aniilises da memória social, cujos autores foram chamados de “pre sen lis tas” e
'‘conservadores” por Georgc Schwartz,'6se bem qúe, como veremos, a diferença
entre eles talve2 seja só de grau. Os presentistas, cotino Trevof funimis, Eric
Hobsbavvm, John Nerone e Oávid LowenthaJj subliniiam a capacidade que tem
o presente para manipular o passado, impondo diferentes versões sucessivas
acerca do mesmo segundo mudem as circunstâncias do momento que se estiver
vivendo,161718 Já os. conservadores, como: Míchael Schudson, o próprio Barry
Schvvartz, Robert Jervis e Nancy Bermço, insistem nos limites que se impõem à
manipulação do passado, e também no peso desse passado sobre o processo de
tomada de decisão dós líderes políticos no presente. A tentativa de manipular a
•tecordação'exisle, n u s o passado-está dotado de firme consistência e'resiste às
manobras de distorsão e livre reconstrução.’8A origem da divergência entre pre-
seutistas e conservadores, bem como do fato de que suas diferenças sejam de
grau, è o cárátèr dialético da relação preserite/passado: o presente depende em
nuiilo do pa’ssado, mas a retenção e reconstrução do passado se dão no presen
te e nele estão ancoradas, pelo qual, entre outras consequências, existirão .sem
pre, simultaneamente,
• • V*
“memórias herdadas” e “memórias inventadas”. • -
20
v
EVOLUÇÃO SOCIAL, EVOLÜCIONÍSMO:
CONCEITOS FALIDOS? ' • ' V , V ' ; Ç\
Há enlre os historiadores pós-modernos - ou, 'por vezes, entre os que
fazem um balanço das tendências atualmente vigentes na disciplina histórica,
mesmo quando não sejam pós-modernos ou o sejam só m odeia damente -
uma forte convicção de que nossa percepção temporal tenha ínudado, defini-'
tivamente segundo alguns. Devido ao abandono da crença num tempo ó rie n -.
taci.o e na noção de progresso, o tempo leria deixado de Ser um princípio de
inteligibilidade, cònFisto dahdo-se a crise da História .com sentido, evolutiva.
Vejamos alguns ex.emplos.
*- François Dosse escreveu ter ocorrido “o abandono de toda dialética en
tre passado/presente e futuro. A história não é mais considerada como o lugar
de esclarccirhento da época contemporânea”.1'1 No. II Gpgresso Internacional
“História a Debate” reunido em julho de 1999 em Santiago' de Compostela,
ouvi-o mesmo.dizer que a Inexistência de uma orientação do tempo histórico
é um “truísmp” (curiosa expressão na boca de um “persjpeclivistà”!):
/ Gomentando as tendências recentes da História, àfirmou por sua voz
Georglggers: ' : i
É interessante notar que, pàra lggers, isto já havia acontecido como con
sequência do tipo de História praticado no auge dos Annalcs-, è certo, porém,
que ele não estabelece fases ao abordar tal escola ou tendência lústoriográfica.1920
19 DOSSE, François. A história cm.migaihàs: dos Annalcs à nova história. Trad. Dulce
A.SilVaRamoS.São Paulo: Ensaio, 1992.p .250. . >
20 IGGERS, Ccorge G. La ciência histórica eti clshJoXXt Las téndènciàs actualcs. Trad.
de Clemens Bieg. Barcelona; Labor, 1995. p. 54,
Como ullimo exemplo, ouçamos o que tem a dizer Gertrude Himmel-
(arl), desta vez sobre a noção de progresso, associada desde o lluminismo à de
evolução social: '
21 HIMMEI.FARB, Gertrudo. The New Histor)’ and the oldiCriticai éssnys and reap-
praisals. Cambridge, MA: Harvard Univérsity Press, 1987. p, 155.'
12 SHANKS, Michael; TILI.EY, Christopher. Rc-conslructing arc!íaeüh>gy: theory
and practice. 2lrf, ed. London: Routledge, 1992. p, 54; Archaeology as soçia-poli-
tical action in the presenl. ín: PINSKV, Valer Íe;WYLIF„ Alison (Org.). Criticai
tmditions in coitteniporary archaeology. AlbuqtierquerUniversity of New México
Press, 1993. p. 104-116. i,
t ■■• • • • . f '
. .. J
22 . v, * •
. X ' • . ’■ • : ’ ; '
Os .autores da passagem acima, curiosamente, não pareceín perceber,
que sua própria visão do tempo seja igualmèlile uma politizaçáo do mesmo,
embora com signo diferente,,. Seja como for, há uma importante diferença a
estabelecer entre qs debates a respeito em Arqueologia cem História: Shanks
e Tilley, bem como outros arqueólogos põs-modernos, hão estão, em textos,
como o que se citou, passando um atestado de óbito à idéia de evolução ou às
teorias evoluciómslas, como certos historiadores às vezes dão a impressão de
fazer rio que dizem ou escrevemrestão é engajados num combate ativo contra
o evolucionismo. Isto porque, nos estudos arqueológicos, pré-históricos, an
tropológicos e de certos setores da História Antiga, os congressos internacio
nais ,é as antologias, teóricas continuam contendo Seções acerca da evolução
cultural ou social,2'a qual'vem suscitando publicações muito numerosas nes
ta última década.21 Na verdade, seria mais exato dizer que tais publicações
nutica.se interromperam. O evolucionismo contemporâneo, nestas discipli
nas, manifesta a presença de algumas grandes correntes; sendo a mais recente
a que tenta'estabelecer uma ponte éntve o biológico e o social, de um niodo
completanientç diferente do dánvinismp social dó século 19.“ *•
23
Não é minha intenção, aqui, abordar cm detalhe uma Corrente especí
fica dos estudos de Pré-história, Arqueologia, Antropologia e História Antiga. >
Parece lógico, no entanto, qüe a temporalidade das sociedades humanas não
pode scr orientada nos casos abordados nesses estudos e, simultaneamente, ’
carecer de orientação nos outros casos! A conclusão é dara, então: parafra
seando Mark Iwain ao referir-sé a notícias jornalísticas de que tomara conhe
cimento acerca de seu próprio falecimento, podemos dizer que são muito exa
geradas as notíçias sobre a morte' do evolucionistno como teoria —e portanto,
sobre o abandono da noção de .um tempo social e :cultural direcionados.
Deve-se, então, perguntar: o quê pode explicar a discrepância entre disciplinas
nas quais.o evòluçionismo é corrente viva, embora competindo com outras, e
aqueles setores da História que o ignoram comp le lamente e até creem que de
sapareceu do mapa? , -■
Uma pista valiosa nos é fornecida por Peter Burke:
. P*1'* minha opinião; os nóvos histoi íadorés —de Edward Thompson a Rogcr
Ghai.tiei - tiveram bastante sucesso em.revelar os aspectos inadequados das expli- '
cações materialistas e deterministas tradicionais do comportamento individual c
coletivo na curta duração e env mostrar que, tanto no dia-a-dia jptanto em mo
mentos de crise, a cultura é que conta. No entanto, pouco fizeram no sentido de de
safiai a importância dos fatores materiais, do meio ambiente físico e de seus recur
sos na longa duração. Ainda parece útil achar que tais tãtores estabelecem o tema,
os problemas aos quais os indivíduos, os grupos e, falando metaforicamente, as cul
turas procuram,adaptar-se e reagirA
i ■ . ■.
26 BURKfi, Peter. Overture: the New History, its past and its fiiUire. In: BLTRKK, Peter. 1
(Úrg.). Nwperspectives cm historiail wriliii^ Cambridge: Politv; Oxford: Blackwdl,
1991,p. 18. ‘
I ■' . . ' ‘ ' ' - ;■ ' ■ . • ' j
n
(...) sc coucontrai smi nas contradições dos sistemas normativos c, por conseguinte,
na fragmenlaçilo, nas contradições e na pluralidade de pontos de vista que tomam
todos os sistemaS íluidos e abertos/7 .
26
MAIS UM “ITM DA HISTÓRIA”.. ;
Os conservadores de todos os matizes e épocas frequentemente procla-
niarãm, em períodos, que lhes fossem favoráveis, que o futuro não passaria de ,
uma continuação do presente. Isto desde os faraós, cujos decretos eiairi for
mulados e cujos templos e tumbas eram construídos para durar “para sempre,
pela eternidade” ou “por milhões de anos” No próprio século 20, houve outro
"fim da História” famoso proclamado, tios Estados Unidos, bem anterior m eo- ,.
te ao de Fukuyama. WalteiyW. Rostow, no bojo da expansão econômica poste
rior à Segunda Ç.uerra Mundial, proclamou a inelulabilidade'de que o mun
do todo desembocasse no capitalismo avançado dd tipo norte-americano, ao
mêsmo tempo que várias teorias econômicas de então afirmavam o fim das
crises cíclicas, num capitalismo que avançaria doravante sem solavancos. Am
bas as.profecias foram desmentidas dramaticamente pelos choques do petró
leo que, na década de 1970,'marcaram o término da tase expansiva do pós-
guerra e iiiaugurarain a fase depressiva de longa duração em que ainda per
manecemos. O pós-modernismo, mais próximo no tempo deste nosso.ponto
de passagefn entre séculos, também suscitou teorias do “fim da História ’ Dois
anos antes do notório artigo de.Francis Fukuyama >Noibert Lcchner, inteno-
gando a "cultura pós-moderna” num contexto específico, latino-americano e .
sobretudo chileno, interessado no que o pós-modernismo tivesse a conüibuit
ão processo de tentar construir uma democracia, constatou que sucessivas
mudanças ocorridas nas úllimas décadas nos países iatino-ámericanos. não
conseguiram consolidar projeto algum, em decorrência do qual, >- . .
Vivemos até hoje e de modo cada vez mais dramático o tempo como uma se -.
' qiíência- de acontecimentos, de conjunturas, que não conseguem cristalizai-se
numa “duração”, isto é, numa periodização estruturada de passado, presente, íulu-
' ■ ro. Vivemos um presente continuo. (...) Mesmo países dotados dc uma ordem social
relativamente estável enfrentam uma ausência de futuro. Há projeções mas nao há
projeto. Quanto ao presente, réstringe-se a uma repetição recorrente; o futuro, por
. . sua vez, restringe-se a um “além” (...). O sentimento dc onipotência que reinava nos •
anos'60 foi substituído por- um sentimento de impotência. (...) Que esta imagem
de iniprodutividade surja da.cultura pós-moderna não deixa de set um paradoxo,
justamente a eultuní.que desmonta ó determinismo e sê abre radiçalménte à expio- *
raçã<> do campo do possível desemboca numa visão do.axistenle como necessário.3?
28-
- portardes, Zbigtjicvv Brezinsky c Jane Kirkpatrick. Diversas revistas terviram
,s de fórum à difusão das teses neoconservadoras (entre outras: Commentary,
Encounter, National Review).w
Francis Fukuyama, um estadunidense descendente de japoneses, estu
dou em Yalc, na Sorbomie e em Harvard, onde se doutorou em Ciência Polí
tica. Pertenceu ao Departamento de Estado dos Estados Unidos desde 1981 até,
1990, sendo então especialista sucessivamente no Oriente Médio e na União
Soviética; também trabalhou na Rand Corporation, instituição que riiantém
• fortes laços com o establishment político norte-americano. É atualmente pro
fessor de Política Pública na Mason University (Fairfax, Virgínia). ■
Os argumentos do autor ora analisado ficam.mais compreensíveis se se
considerar em conjunto os diversos escritos em que os expôs, além daqueles
em que respondeu aos.seUs cnticpsd1Antes dc sintetizai suas idéias, entietan
' to, talvez convenha refletir $obre‘as razões de ter sido a popularidade.de Fului-
yama c de sua versão do “fim da História” (primeiro com, depois sem ponto
de interrogação), como na verdade foi, um fogo de palha. Os motivos princi
pais parecem,ser três. Em primeiro lugar, todo o ruído feito cm toino do pn-^
meiro artigo por ele publicado sobre o tema foi algo claramente montado pe
los meios de comunicação de massa, nos Estados Unidos e talvez mais ainda
■na Europa, sendo tal armação perceptível, em grau menor, mesmo cm países
como os da América Latina. Em segundo lugar,'a forma em que organizou
seus argumentos teve o dom de desagradar a gregos e troianos, à. esquerda e à
direita por igual. Por último, ciiquanto 0 artigo de 1989 e (já.bem menos) o
, livro de 1992 se beneficiaram còm o grande impulso e a euforia ganhos pelo
conservadorismo em geral, em suas diferentes tendêpcias, em função da con-;
juntura de 1989-1991 - queda do Muro de Berlim, desagregação da'União So-
“ viética mantendo-se ainda um clima bastante à direita até 1995 nos países
30
dirdlíi» Kojève, um filósofo decidido a salvar Hegél clc seus intérpretes marxis
tas. A expressão mesma, “fim da História”,y d e Kojève, não de Hegelr1''
Os argumentos centrais esgrimidos por Fuicuyama envtavor de sua tese
são dòis, que chamou em 1995 de “empírico” e “teórico' respeclivamente. O ar
gumento empírico - iniciaímente o chamara dc “interpretação econômica da
1listória” - teria a'ver com as tendências nascidas com a “ciência natural mo
derna”, encarada'corno mecanismo orientador da História; competência mili
tar, desenvolvimento econômico e-tecnologia passaram a mudar-lhe o rumo. O
• marxismo o havia afirmado, disto tirando, porém, conclusões errôneas segun-
do Flíkuyama: o capitalismo, não o,comunismo, afirma, é o tipo de organiza
ção social que permite-ã humanidade produzir e consumir a maior quantida-
■cie possível dé produtos e dc o fazer numa base mais igualitária, A “ciência na
tural moderna”, entretanto, não conduziu por si mesma à democracia liberal.
Daí a necessidade de um “argumento teórico” baseado em I legei-Kojève, no
sentido de que um segundo motor levaria inclutavehnente ao fim da História:
■a “luta pelo reconhecimento”, noção em cuja defesa também apelava para o
Platão de seu professor AUan Bloom. Neste ponto, o autor fez ainda uma revi
ravolta no temã hegeliano da luta do senhor e do escravo, tal como foiçrreto-
m adòpor Nietzsche. O que quer demonstrar é ò seguinte: as verdadeiras liber
dade e criatividade mediante as quais a “luta pelo reconliecimento” dos indiví-
. duos'possa obter realização sò são possíveis na democracia liberal, que por sua
vez depende, para funcionar adequadamente, das oportunidades dadas aos ci-
i.dadãôs para satisfazer sua aspiração ao máximo de reconhecimento (megathy-
v f/jifl). Ná democracia liberal, barrada somente a tirania política como ativida-,
de ònde alguém sobressaia, em todos os outros cam posatividade econômi-
.; ça, exercício da política, práticaUas artes c esportes etc. - dão-se as condições
■para que os indivíduos possam‘sobressair c, assim, obter reconhecimento; ra
zão pela qual só nesse regime se pode desenvolver um “Estado homogêneo uni-’
versai”. Paça isto, um papel importante cabería também às funções da socieda
de civil e aõ assoçiácionismo na sociedade contemporânea.'' ^ • , :
; 36 ' a n DÈRSON, Perry. Los fines cie la historia. Barcelona:. Anagrania, 1996. p. 21-22
. (eillção em inglês, 1992). - ' ‘ ■
37 ■A melhor síntèse que conheço é SANtVtÀRTÍN, Israel. Evolución de la teoria dei fin
: de la Historia” de Brands fukuy.ima, Memória y Çíviíizadón, I, p. 233-245,1998.
31
O imnlü em que Fúkuyama organizou sua argumentação desagradou à
direita norte-americana, que percebeu nela laivos de marxismo: uiii dos críti
cos do autor foi o neoconservador Irving Kristol; Leo Strauss já tomara posi
ção contra a noção do fim da História” rui versão anterior de Kojève. E, 'ob
viamente, as idéias de Fukuyama não poderíam atrair a esquerda. 1' -
Existiu um exemplar cspècifieamente francês e assuniidainçnté pós-
moderno (coisa que Fukuyama certamente não c) da tese do “fim da Histó-
i ia , num sentido no fundo bastante similar ao do autor norte-americano —
poi ti atar-se esscncíalmente da proclamação do fim dás ideologias associado *
á vitória da democracia liberal conhecida como “discurso dó consenso”
peiceptivel em três obras que tiveram grande influência e enquadraram o-
auge do pós-modernismo na França, provavelmente atingido nos anos Í984-
1994: falamos de Les lieuxdc mérnoire, coordenado por Pierre Nora ou, mais
exatamente, de algumas dás contribuições,a essa volumosa obra publicada em
19b4; de urri livro coletivo de 1988 sobre “o fim da éxcepcionalidade írancc-
sa ; c de um éscrito de Marc Augé acerca da “Antropologia dos mundos con
temporâneos , surgido em 1994. No ano seguinte, os movimentos de massa
franceses de novembro e dezembro de 1995 puxaram o tapete de sob os pés
dos proponentes deste fim dá Historia íí lã piirisienne, ‘silcnciando-ós quanto
a esta le$e.is ’ , ’ 1
Os mencionados pensadores franceses conservadores (ou mais éxata-
mente neocqnservadores, embora sem a conotação ideológica especificamente
nortç-americana do termo) acreditaram, naqueles anos, ter-se chegado nu
Fiança a um consenso no sentido de existir uma relação necessária entre eco
nomia de mercado e democracia representativa: clescíe então, por um lado a di
ferença entre direita e esquerda teria perdido o sentido, na era da morte.das
ideologias; e, por outro, os franceses, qué uhteriormente reivindicavam o cará-;,
ter universal da Revolução de 1789 e assim “universalizavam” sua própria His
tória nacional, teriám dado fim a tal excepcionalidade,-comportando-se dora-
38 NORA, pierre (Oi'g.). Les lieux cie inénwirc. Paris: Galli mard, 1984.4 v. (em espe
cial, as contribuições de: Pierre Nora,-Motia Ozouf e Marcei Gauchet); PURF.T,
François; JUL1.1ARD, Jacques; ROSANVA1.LON, Pierre. ia'Republique du ■centrei Ia
\ fin de 1’exceptiòn française. Paris: Çatmaiin-lévy, 1988; AUGÉ, Marc. Hacia una
antropologia de fos mundos contemporâneos. Trad. Alberto Lnis,B£xio. Barcelona:
Gradiva, 1996. p. 31-59 (a edição original eiri francês é de 1994).
32
vante como os cidadãos das outras democracias desenvolvidas. Esla tese do
consenso, dramaticamente dèsmcniida^nas ruas pelos acontecimentos do final
de 1995 e pelas eleições de 1996, tinha todos os ingredientes, de um “fim da His-
lória” à maneira dé Fukúyamá: algo'grande e importante terminará entre qs
humanos se ainda existiríam naturalmente eventos, trá far-se-ja em todo caso
"de .uma'história menor, não da Historia pautada pelos conflitos ideológicos.
* Como sempre, porém, a própria História enterrou seus pretensos coveiros...
CO N CLU SÃO
33 •
mudanças lias tendências deste período recente, mintas vezes pouco dizem explici
ta mente sobre o pós-módernismo, enquanto implicam, nas entrelinhas, volumes
■ inteiros sobre o seu impacto." ' ' * , -
;q ‘ . \ " . • . V: . 'V : ‘ •
derami-na, em outras palavras, como um pretexto para a desconstrução dos
grandes objetos e processos históricos e, não, còmo queria Nora, como um ar
tifício ou instrumento para evidenciar á rele.vânçia de certos fatores a longo-
prazd' mediante o acontecimento contemporâneo tomado como ponto de
partida em tal operação metodológica.11 v
As reflexões sòbre a memória coletiva podem ser muito interessantes,
como vimos. A meu ver são infundadas, entretanto, as tentativas de reduzir a ,
Histôria-cüsciplina, em suas diversas, modalidades, somente a uma dentre as
memórias construídas presentes numa sociedade. A História que fazem os
historiadores é qualitativamente diferente, pelo menos ein muitos casos, tan
to em seu conteúdo quanto em suas formas de construção, das memórias co
letivas dominantes, oficiais, que o poder constrói; na verdade, com frequência ■
se ocupa com a desmist.ificação destas últimas. Para Alichael Bentley, a co,isa
fíuia mais sentido invertendo-se a afirmação;
Em relação aos outros dois pontos tratados, minha atitude é bem me
nos condescendente. Os pós-moderhos têm todo o direito de combater ó con
ceito de evolução e quaisquer das correntes evolucionistas: mas, não, de fingir
que o evolucionismo,tenlia morrido. Como vimos, de está aliyc and kicking,
como se diz em inglês, fi cômodo ignorá-lo, mas.trata-se dè.uma comodida-
) de preguiçosa, baseada na-ignorância òu na má-fé. Por sua vèz, os fins da His-" »
tó.ria” proclamados sob o signo dos neoliberalismqs e neocoiiscrvadorismos
recentes não passaram de teorias-de intelectuais excessivamente ligados a re*..
gitnés socialmente perversos e politicamente reacionários. Suas teorias triun-
35 r
fiilislus tornararii-se já, felizmenteí impossíveis de sustentar, na ^atualidade,
como lratavam dc fazer nos anos que vão cie 1984 a 1994. Qüem ousaria diZef
lioje, a não ser defendendo posições francamente conservadoras, que a òra do
neo liberalismo e do neoconservadorismo instalou-se pelos séculos dos sécu
los, amém, enterrando as ideologias e a História?
36
■ • ' Capítulo 2
:■■ R epe
CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO •
, « '' *
GENERALIDADES :
■ ' t
É provável que a noção de espaço tenha sido percebida pelos seres hu
manos antes da de tempo, já o vimos no capítulo anterior deste livro. Sendo
assim, pode parecer assombroso quç, na filosofia ocidental, desde Leibnitz a
noção de tempo tenha tomado a dianteira sobre a de espaço.12Mesmo se a re
latividade as tórna inseparáveis em princípio, posto que existem como espa-
ço-tempò indissoluvelmente, isto não impediu a,primazia da temporalidade
em m uitàs das elucubrações feitas a partir das teorias relativista e quàntica; as
de Ilya Prigone, por exemplo.* .
Poder-se-ia perguntar se o,que á ciência contemporânea acha a respei
to do espaço'é pertinente para a sua construção nas ciências sociais e huma
nas. Minha opinião é que sim, como já disse, sobre o tempo (ver o primeiro
ensaio contido peste volume), mas de piodo indireto e, às vezes, com atraso
considerável em relação às descobertas das ciências naturais.
Em' 1976, o geógrafo francês Yves Lacoste criticou radicalmente o con
ceito de região tal como fora herdado de Vida! de La Blaché: teríamos, nele,
37
um “conceito-obstáculo”, pelo fato de privilegiar explicitamente uma das for
mas possíveis de recortar o espaço c, implicitamente, por dar a impressão cie
c(ue não há outras. A realidade social evocada no espaço - e isto seria ainda
mais verdadeiro rio.mundo contem porâneo- exigiría o reconhecimento de
espacialidades diferenciais, cujas dimensões e significados variam, cujos iimi-
. les se superpõem e sc recortam, de tal modo que, nutn ponto qualquer do pla
neta, não estaremos no interior de úm mas, sim, de diversos conjuntos espa
ciais definidos segundo variáveis também diversas. Regiõès unívocas, defini
das de uma vez para sempre, deveríam dcjxar-se de lado em favor de regiões
operacionais de diferentes tipos, com dimensões e-significados variáveis e
complementares,’ Em minha opinião, a crítica de Lacosté refletia, na geogra
fia luimana, décadas depois da descoberta de Einstein - cuja exposição da re
latividade, em duas etapas, fez-se em. 1905-1916 —, o fato de que a teoria rela-
livista terminara por implantar firmemente na culturaxlo século 20 ja noção
de que não há espaço absoluto: existem espaços que só se configuram e po
dem ser definidos em função de seus conteúdos, específicos.
Ao referir-me, anos atrás, à noção de tempo, mostrei que o marxismo
tinha coisas extremamente interessantes a dizer a respeito. Hoje em dia há, no
Brasil, uma forte tendência a arregalar os olhos quando alguém fala'nisso:
“Como, você ainda presta atenção a tais velharias?!”.Ma.is forte ainda é a no
ção de que, em especial, toda a reflexão feita na União Soviética em termos do
materialismo dialético e do.materialismo histórico tenha sido simples impo- ,
sição do sistema e, por tal razão, tendeu a desabar-como um castelo de cartas
uma vez desaparecido o poder soviético.34 É verdade que houve pór lá muita
coisa escrita de baixíssimo nível: mas não tudo, como aliás foi hem mostrado,
38
em livro de 1972, pelo pesquisador nòrte-americano Loren Graham, historia-
dorda Universidade de Columbia, em Nova York,5
No tocante à questão do espãço-tempo, mais pertinentes do que os es
critos soviéticos foram'as idéias do alemão oriental Robert Havemann, profes
sor em Leipzig, em conferência de 1963. Completando aobservação de Frie-
dridi Engels de que espaço e tempo não existem em si ntas, sim, unicamente
como “formas de existência da matéria” ~ <>qúe, diga-se de passagem, era mui
to mais compatível com a futura teoria da relatividade dò que a maioria db que
' sé escrevia a respeito num século19 ainda basicamente newtòniano (ekantia-
noj Havemann propõe considerar também espaço e_tempo como “formas da
percepção” presentes na nqtureza. Primeiro.surgiu a forma perceptiva espacial,
posto que a capacidade de oriéntar-se nas conexões espaciais precede o domí-
. niõ da memória sobre sucessões temporais. A orientação espacial desênvolveu-
se acompanhando o desenvolvimento do órgão que proporciona informações
sobre as relações espaciais, o olho: .mas a elaboração dessas informações supõe
uni modelo específico da realidade, que varia de espécie~a espécie. Com o de
senvolvimento, posterior na história da yida na Terra, das conexões temporais
e da possibilidadfc de elaborá-las nó cérebro, surgiram modelos èspaciotempo-
raís dá realidade, diferentes aliás de uma espécie a outra.
A finalidade.de Havemann é demonstrar que o modelo espaciotempo-
ral não, constitui mera criação ou construção arbitrária humana, nem uma
fonua a priorí de percepção própria dos humanos, à maneira de Kant: trata-
se de “um êxito pré-social da vida” variável em suas manifestações, entretan
to, conforme as espécies. O espaço “psicológico” dos humanos não coincide
com o euclidiano; ainda menos com o da física clássica ou da relatividade: ele
é„por exemplo, anisótropo, já que a consciência humana estima diférente-
. menlc as dimensõès horizontais e verticais'(aquelas bem abaixo destas). A ani-
sotropia dessa percepção —ligada, às espccificidádes da história evolutiva da
humanidade - desempenha um papel importante nas representações espa-
39
ciíiis: arte, arquitetura; e, embora não o mencione Havemann, também no re
corte analítico do espaço em regiões. Isto abriría interessantes disquisições
acerca das construções espaciais nas ciências sociais e hum anas/
Mais perto de nós em suas preocupações - mas ainda no interior do
marxismo um dos poucos pensadores latino-americanos a manifestar um
interesse especial na construção do espaço èm História foi o argentino Sérgio
Hagú. Sendo um historiador, sua tendência foi subordinar a visão espacial à.
temporal, ao contrário d o :quc fazem òs geógrafos. Para Bagú,' “o espaço é o
tempo organizado como raio.de operações” Os elementos que ágem nos ci-
cios sociais precisam dá distância fisicamente mensurável pára funcionar. O
espaço social é uma realidade relacionai que ocupa um espaço que é possível
medir e delimita concretamente a integração funcional da realidade social; o
espaço social, por sua vez, apóia-se num outro espaço mensurável, o espaço fí
sico. O espaço social seria \ r
(...) a superfície mensurável em que operam desde uma realidade réíaeiona] míni
ma (um encontro transitório entre duas pessoas) até outra, máxima (um niacros-
- ■- sistema social internacional, 'como pode ser o mercado contepiporâneo de u nr pro
duto que abarque gràndes zonas de todos os continentes).’ >•
6 HA\ BMANN, Robcrt. Dialccllcu sín dogvun Ciência, natural y concepciún dei
mundo. Trad. Manuel Sacristán. Barcelona: Ariel, 1967. p. 46-61. Bastante seme
lhante i visSo de Havemann é; LEAKF.Y, Richurd. The origtit of lutmcmkind. New.
York: Harper Collíns, 19?4. p. 101-157,
7 BAGÚ, Scrgio; Tiempo, rcalidcui sociql y úmodnüento, Buenos Aires: Siulo XXI,
1973. p. 114. .
za mento de ciclos - antigos du receri,tes> curtos ou longos - que atuam num
dado espaço fisicamente mensurável: ciclos que, em suas relações mútuas, for-,
mam o sistema.5 . ■
Partindo deste preâmbulo de caráter geral, vou doravante circunscrever
a discussão a dois temas, duas maneiras em que as reflexões contemporâneas
podem incidir sobre as formas de conceituar e delimitar o espaço em Histó- ■'
ria: alguns dos aportes antropológicos; e a incidência das.noções acerca dó que
se costuma chamar de “mundialização” ou “globalização”.
ANTROPOLOGIA DO ESPAÇO , f
'' ’ , *
Existe uma .interessantíssima Antropologia do Espaço que, há já bas
tante tempo, deveria ter sido acompanhada tão de perto pelos historiadores
quanto se interessaram por outras formas do pensamento antropológico (a
geertziana, por exemplo).. ’ -
Para André Leroi-Gourhan, o fato de ser humano tem mais a vèr com
■ a domesticação do tempo e do espaço do que com a; fabricação de instrumen
tos. Ele entendia tratar-se de uma domesticação simbólica: o tempo e o espa
ço vão sendo pfogressiva.mente -- e em modalidades diversas - inseridos no
“dispositivo simbólico de que a liqguagem é o instrumento principal ; ou seja,
dá-se uma apropriação dèles por meio dos símbolos, Domesticar toi empre
gado com uma intenção precisa: para designar a criação de um espaço e um
tempo controláveis, humanizados, “ha casa” (domus) e partindo da casa.*
Em texto que surgiu como unia reação a Jack. Goody, m aisdo que por
influência de Leroi-Gourhan, Peíer Wilson desenvolve a lese de ter ocorrido,
a partir do Neolítico, uma domesticação (num sentido, também neste caso,
ctimologicamente ligado a donuts) da espécie humana, O que ele quer dizer é
que a primeira verdadeira alteração da paisagem dó mundo, um ponto de in
flexão cultural marcante, foi “a adoção da arquitetura” a partir do Neolítico,
8 BAGÚ, Sérgio. Tienipp, rcaliçlad social y cutwdmiènlo. Buenos Àires: Siglo XXI,'
1973. p. 113-115.. ' • ■ / =.. •
9 LEROI-GOURHAN, André;Lesesie et la .parok: La mémoire et les rythmcs. Paris: ,
. Albin, Michel, 1975. p. 139-140. -
41
islo é, ;i construção planejada de abrigos permanentes, cm contraste com as
frágeis cabanas dos caçadores-coletorcs."’A partir daí é que se funda de verda-.
de a vida em contunidade e surgem as condições do político, da separação en-
Ire o público e o privado: pois a.casa é abrigo de pessoas, mas também, bar
reira entre pessoas, bem como entre estas e o;neio ambiente natural. Na casa
e mais em geral na arquitetura configura-se,.outrossim, um modo de comu
nicação e armazenagem de informação (aqui, sente-se passar uma aragent que<
evoca Clífiord Geertz), bem como uma ferramenta do pensamento.101112
Como se pode notar nestes escritos,' o seu resultado seria uma espécie
de “culluralização” da noção de espaço, por caminhos semiólicos, Como há
mais tempo e com mais frequência vera sendo feito-em relação à noção de
lenipo, as construções espadais apareceríam, neste modo de ver, como algo
qúe varia no tempo e rio espaço, acompanhando as variedades culturais, e se
insere nas formas mais gerais dc comunicação e pensamento/2 • '
Refleti ruio em forma geral- acerca do espaço e sua-categorização no
mundo de hoje, (críamos, segundo.o antr opologo francêsMarc Augé, úma si-
t nação paradoxal. A Terra é vista do espaço comò uma pequena bola colorida:
algo distante, insignificante. Ao mesmo tempo, porém, o nosso m undo'- tor
nado pequeno pelas comunicações instantâneas e pelos transportes rápidos —
é superabundante em espaço, posto que todo o espaço do planeta está virtual
mente aberto às pessoas. A Supermodernida.de torna difícil a apreensão do'es
paço, devido a tal superabundâncià. Nele, os pontos de referência culturais
não deixam de existir; mas o'espaço se complica e se relativiza. Surge a .estra
nheza, aparece a alteridade, mesmo.porque ainda não conhecemos bem a dia-
'12
lctícii globalidade/particularismos, liem a organização espacial específica da
Supermodernidade (domínio eni que, precisamente, Augé oferece suas hipó
teses principais).
Augé parte de três traços que, segundo acredita, marcam a vivência atual
- superabundância dos eventos no tetupo, superabundância do espaço.c indi- -
vidtjalização das referências - para construir o seu conceito de Superníodemi-
dade - uma noção complexa e contraditória, já que um de seus atributos çon--
siste em, mais do que destruir, acumular componentes uns ao lado’dos outros,
fi hoje habitual falar'das realidades deste fim de século em termos de Pós-mo- .
dernidade. Aug<* considera esta última expressão como o lado negativo da
moeda, uma tentativa de refèrír-se ao que o mundo já não é, Seu conceito de
Supermodernidade seria o lado positivo da moeda; isto é, tentar dizer ò que ele
é. O autor empreende tal tarefa a partir de uma Antropologia do espaço.
O lugar antropológico define-se como a construção ao .mesmo tempo
concreta e simbólica do espaço, servindo de referência para todos aqueles que
são destinados por ésse lugar a uma posição - não importa se central, inter
mediária ou periférica - no sistema dos valores, da hierarquia, do poder. As-
&rti definido, proporciona uma base de sentido para os que nele vivem; e toi-
na-se fundamento da inteligibilidade para a pessoa de outra cultura interessa
da em observar c entender aquela comunidade em que o lugar em questão foi
construído.-O lugar antropológico caracteriza-se por garantir simultanea
mente identidade, relações e história aos membros do grupo cuja cultura o
constituiu. • • • . , ' • .
Lugaré a idéia, parcialmente materializada (porque em parte inscrita
concretjimente no espaço), que os habitantes têm de suais:relações com seu
território, com suas famílias e çom os outros. Tal idèía é variável, em parte, se- ■
gundo aá posições que indivíduos e grupos ocupam tio sistema; e pode ser
transformada em mitologia. Provê e impõe, porém, referências que, quando
desaparecem, são de dificil substituição. !, .. .
. . ; A Modernidade não anulou os lugares assim definidos: concebeu a si
mesma como um presente que supera mas também reivindica e incorpora
um passado, reconcilia-se com ele, integra-o á si. Embora Augé não analise
tal coisa, achamos ser evidente que a própria Modernidade também é cria- ■
. dora de novos .lugares antropológicos, além de integrar a si aqueles que o
passado pré-moderno criara. • v
43
lím contraste com o que foi exposto antes, Auge define.uni não-lugar
como um espaço organizado que não/garanta identidade, relações e história..
As hipóteses centrais de nosso antropólogo acerca da Supermodernida-
dc são duas: ela produz não-lugares; e não integra a si os lugares antropológi
cos que o passado criou, os quais são especializados, delimita dos," transforma
dos em “lugares da memória” que funcionam como símbolos dá alteridáde do
passado em relação ao mundo de hojç, não de sua integração ou absorção ao
presente. ■* • ........ - ‘
A distinção entre lugares e não-lugares parte de uma oposição entre lu
gar e espaço, no sentidq em queAiigé usa tais noções.( diferentemente de como
o faz, por exemplo, Micíiel de Certeau tendo Meríeau-Ponty como base-filo-
sólica), O lugar é, para Auge, antropológico, no sentido de ser estabelecido
mas, também, simbolizado. Com efeito, ele inclui na noção de lugar antropo
lógico os discursos nele circulantes e a lingüagera que o caracteriza, bem como
os movimentos nele realizados. B o termo “espaço” foi por ele tomado 11a ma
neira funcional, estereotipada, que achamos em expressões como “conquista
do espaço”, “espaços de Jazer” etc., maneira que designa o espaço sem simbo
lizá-lo. Este último ponto é alta tu ente duvidoso; acho que seria necessário pre
cisar: sem simbolizá-lo de um modo que garanta identidade, relações e histó
ria,.pos Io que não pode deixar de ocorrer alguma simbolização. ParáÀugé, em -
suma, o espaço é uma noção mais abstrata do que o lugar. Esle último, para
poder ser designado, deve ligar-se a algum evento, mito ou história, bem como
a redes dc relações. ; . . ■ ,
Em forma prosaica, generalizada e sistemática, a Supermódernidade,
através da proliferação e da própria aparência dos não-lugares, submete o in
divíduo e sua consciência a experimentar agudainerüea solidão. Os não-luga-
ics são anônimos e vividos solitariamente. Augé crê que existirá em breve, ou
talvez já' exista agora, a necessidade de uma “Etnologia da solidão”. A Super-
moderuidade dissolve as soliciariçdades; e as tentativas no sentido de restabe
lecê-las, por. exemplo em nome dá lula pára salvar o meio ãmbiente ameaça
do de degradação, são de todo ineficazes é insuficiéntes como mecanismo mo~
bílizadorgeral.-,'-,. ' ■ A' 1 , :• ■„
Ao falar dos não-lugares, entenda-se que a expressão designq duas rea
lidades complementares mas diferentes: útn. espaço formado em relação com
'certos fins (por exemplo transporte, trânsito, comércio, lazer); e as relações
que indivíduos mantém com este espaço.'As duas realidades se superpõem em .
parto; mas mesmo se, ofidalmente, o indivíduo é que viaja, compra ou expe-
v ri menta o lazer, os não-lugares servem de suporte a numerosas relações con
sigo mesmo e com outros que sõ indiretamente estão ligadas às finalidades
precípuas ou '‘oficiais” dos não-lugares. - • ^ •
O lugar antropológico cria o que é organicamente social; o não-lugar cria
uma contratualidacíe solitária estabelecida pela mediação dc palavras, signos è
textos. Pois os não-lugárcs abundam em “instruções para uso” quê podem ser
• preseritivas (“vire à esquerda” numa rua ou estrada), proibitivas (' proibido fu
mar”) oit informativas (“A companhia aérea X anuncia a partida do Vôo...”).
Tanto faz que as instruções apareçam ejn palavras ou em signos icônicos, por
exemplo. O que dc fato importa é que os indivíduos interagem, não uns com os
outros, nesses não-espaços, mas sim, com textos propostos por instituições óu
pessoas morais (aeroportos, linhas aéreas, emptesas, polícia, poder municipal
etc.), embora quais sejam elas possa ser ou não explicitado.
q Vivemos num mundo èm que as pessoas nascem em clínicas, e morrem
em hospitais - não, em ambos os. casos, em casas - em que proliferam pontos
• de trânsito e residências, temporárias: estas últimas podem ser luxuosas (ca
deias de hotéis ou s[h is inlcrcambiávéis,.clubes de férias ou dc lazer) ou desu
manas (favelas, campos de refugiados). No mtindo de hoje existe,, também,
uma densa rede de meios de transporte que multiplica não-lugares: estradas de
alta velocidade que evitam e escondem as aglomerações humanas, aeroportos,
cabines de avião ou de trem, interiores de automóveis. Os freqtienladores'de
supermercados, bancos 24 horas e fnáquinas caça-níqueis comunicam-se por
gestos, sem-palavras ou com um mínimo de palavras, li, além dos não-lugares
físicos, há o que poderiamos chamar de não-lugares virtuais: as pessoas passam
muitas horas .diante de. tubos çalódicos de televisão ou de microcomputador.
Lugares e não-lugares são como polaridades opostas. Os primeiros
nunca são de todo apagados, os segundos não chegam a tudo i nvadir. Lugares
no sentido antropológico podem constituir-se pelo menos parcialmente nos
íião-íugares, humanizando-os e tornando-os menos assépticos, impessoais e
causadores de solidão. ”
Solitário, mas. na qualidade de Integrante de uma multidão, o usuário
de um não-lugar está em relaÇão a este último numa situação contratual (com
ele ou com os'poderes que o controlam). Quandq necessário, a existência do
45
contrato é tomada explícita: signos dele são, por exemplo, o bilhete de passa-
gem, o car tão de embarque, o cartão que aciona o banco 24 hòras, o carrinho
empurrado no supermercado. Certos rituais podem existir: por exemplo, nos
aeroportos, apresbntar a passagem nó balcão de embarque, o passaporte no
controle de migração, o cartão de embarque para tér acesso ao avíão.Tais ri-
luais explicitam o contrato entre um indivíduo (cuja identidade é verificada)
e as entidades que põem à sua disposição ps não-Iugares segundo certas re
gias. Kntre um rito e.oíltro, ò indivíduo retomasua anonimidade, sua sòlidãõ,
num saguão de aeroporto ou talvez num corredor cheio de lojas duty-free.
Augé não considera tal aspecto, mas' seria interessante verificar como
esses rituais, alternando com anonimidade, são às vezes projetados pela ficção-
c pelo cinema contemporâneos, anacronisticamente, sobre períodos e regiões
a que não se aplicam ou em que têm significados distintos,
Nos não-Iugares, a solidão acompanha-se dc uma perda de verdadeira
identidade. Cada indivíduo é simplesmente uni entre vários e anônimos pas
sageiros, clientes, pacientes, motoristas etc. A identidade reáfirmada nos pon
tos e momentos dc conUolejrerde-se.a seguir, quarido sé torna só um entre
muitos que absorvem as mesmas merisagfcns-instnjções,' obedeccm aos mes-'
mos códigos e estímulos. O espaço do não-lugaf não cria identidade singular,
nem relações: cria solidão ésimilitude. Também não há campo, nele, para a
história, a não ser que tenha sido transformada em espetáculo para consumo
Oulrossim, os folhetos turísticos vendem imagens de exofismo; mas, ao cotu
pi ar tal imagem e embarcar na viagem, o turista freqüentará em seu ponto dc
destino preteiisamênle exótico não-Iugares intercambiáveis cotai aqueles .-quê
conhece em seu próprio país: vér-se-á num presente perpétuo- e nutri perpé
tuo ieencontro> com sua própria sol itlão/As reflexões dc Augé, neste-ponto,
manifestam ecos de Claudc Lévi-Strauss. .. .• ,•
Vou escolher agora, para expô-la, unia das conclusões formuladas no li
vro de Augé;que resumi e comentei. Aeroportos, aviões, o metrô, estações de
ferrovias, grandes lojas de departamentos, eis aí alvos freqüentes de ataques c
bombas terroristas. Uma forma de maximizar o dano itiHigidp, sem dúvida.
Mas também, talvez., o fatò de que, dc modo mais ou menos confiiso, aqueles •
que desejam estabelecer novas identidades, nòvas relações, uma nova história
e lugares antropológicos,segundo suas aspirações (nacionalistas, pór exemplo)
percebem os não-lugarès unicamente como unia negação do seu ideal. Com
46
efeito, 6 não-lugar é o oposto da litopia: ele existe, mas não. estabelece uma'so
ciedade orgânica. 'l
> Minha própria conclusão sobre o livro de Augé é a seguinte: de um ân- ,
guio delimitado - o da Antropologia do espaço - s u a s idéias fornecem as ba
ses para uma interpretação,-"dentre.muitas possíveis, do mundo atual. Oferecei
portanto, ao historiador uma grade de leitura possível: a do espaço e das mo
dalidades de sua organização social e cultural que resultem ou hão, conforme ■
os casos, na gárantia de identidade, relações e história.
' Para mim, o problema central do livro' é que, como se tornou muito
freqíientc'recentemente, percehé o sujeito unicamente no nível individual. As
sim sendo, as forças que regem o que chama de Supermodernidade se tornam
esfumadas, difusas, difíceis de captar em detalhe. Talvez por esta razão, 11a ver-'
dade,-em minha opinião, o seu conceito de lugar antropológico seja mais in
teressante e funcional para o historiador do que a noçãõ dc.não-lugar, poi
mais que esta última permita descrever alguns aspectos relevantes do mundo
de nossos dias. Seria preciso perguntar também se sua Antropologia do con
temporâneo é relevante para os países do que antes era chamado de Terceiro
Mundo. Intui-se que, nestes últimos', as relações mantidas por pessoas e gru
pos com os elementos concretos que usa para definir sua Super modernidade
—aeroportos, supermercados, vias de alta velocidade., centros.comerciais etc. -
sejam nã verdade diferentes das que ocorrem na Europa, nos Estados Unidos
ç>u no Japão, embora tal constatação precisasse ser estudada em detalhe/’
"V - , x
47
que é chamado diversainente.de “globalização”, “revolução informacional”,
"paradoxo global” etc.H '■
A nnindíaíização, ideologicamente cliamada de “globalização” acentua a
helerogetieidade - mesmo nos países mais desenvolvidos - pelo fato de tender a
for mm bolsões prósperos de alta produtividade, alta tecnologia e intensa integra
ção íio resto do mundo, conlrastando.com outras áreas'menos dinâmicas. O con-
liasle é especialmente marcado tio interior dos países menos avançados econô
mica e tecnologiçamente. Os desníveis de desenvolvimento denlrô das fronteiras
dc um mesmo país não são, é claro, uma novidade: mas parece ser certo que, nas ’
novas condições, eles se'intensifiquem. Há quem. fale na,emergência de um “ar
quipélago de alta tecnologia, ou de £tecnopóíos”: o condado de O range, na Ca
lifórnia, Osaka, no Japãô, a região de Lyon,na França, a do Ruhr, na Alemanha,
as de Cantão.e Hong Kong, na,China, e.outras zonas similares, num mundo ém
que as decisões dc tiíveí mais alto já não dependerão dos governos estatais mas,
sím, de companhias transnacionais em aliança com os diversos sistemas locais de
poder presentes no “arquipélago” em questão, espalhados pelo mundo, que em
alguns casos teriam a possibilidade até de virem a configurar cidades-estado in
dependentes. Em suma, as redes formadas pelas empresas tránsnacíonais está-,
riam ignorando crescen temente o sistema dc nações-ês tado ç suas fronteiras. '
Ao longo do séçulo 20, o mímerò de países independentes triplicou. Esta
. é uma tendência qüe deverá continuar-no. futuro previsível. Acompanhada,
ct eetn alguns, da diminuição radical dos poderes efetivos dos governos centrais
• de tais países. Já hoje,a facilidade com que ós capitais se transferem de um lado
a outro, poi exemplo, mostra a existência de fatores que tais governos não con
trolam cabalmente, No entanto, não aCredito na tendência ao recuo, dos pode
res estatais como algo absoluto. Por uma simples razão: inexiste uma alternati
va efetiva ao sistema estatal para efetuar as negociações internacionais ifnpres-'
cinclíveis, estabelecer e implementar políticas de todo tipo, levar a cabo asmo-:
bilízações julgadas-necessárias. Parece também claro que numerosos governos 1
continuarão contestados em sua legitimidade por,movimentos dissidentes ou
separatistas poderosos - como hoje ocorre tia Argélia, no Egito e ma Bélgica, >'
por exemplo —e também quea capacidade dos Estados para implementar efe-
livameiite suas políticas continuará tão variável quanto semprefoi. v />14
14 Ver o capítulo 7 desta antologia. Uma das análises a respeito mais inteligentes e
mçnos levadas em.co.ftsidetáçao rios debates que conheço é: LpJKiNE, Jcaiwl re~ '
yoluçãoiiiformaciómil. Trad;-José Paulo Nelto. São Paulo: Cortez, L99ê.
48
Dito isto, é preciso reconhecer o surgimento cie uní fenômeno, novo: ,
diante da falia‘de interesse estatal em lidar com assuntos delicados (prá tícas de
tortura e genocídio por agentes governamentais'ou por ocasião de guerras .
como a qu e ensangüentou a antiga Iugoslávia, problemas, ecológicos, infância
abandonada etc.), também porque müitos\Íesses assuntos envolvem necessa- '
riamente uma cooperação internacional que os governos e a própria ON1J não
,tâm sabido realizar á contento, proliferam desde a segunda metade do século
20 as chamadas Organizações Não-Govèmaiiientais (ONGs). De caráter mui- •
dnacional, fazendo uso das possibilidades abertas pelas redes interativas e ou
tras formas atuais de comunicação instantânea, elas têm agido como forças de
pressão sobre ps Estados contra testes atômicos, sobre empresas'que agridem o
meio-ambiente, em programas assistenciais diversos e.em muitas outras áreas.
É frequente que tenham uma imagem positiva, que se deve a algumas das mais
conhecidas e sérias, como a.Greenpeácc e a Anistia Internacional. Mas não se
deve esquecer que formam um grupo muito heterogêneo: há, por exemplo,
uma multidão dessas organizações de tipo claramente corporativo (ligadas, por
exemplo, a determinadas profissões): ou, mesmo, aquelas vinculadas a idéias e
políticas de extrema direita. Pode-se prever a permanência destas organizações
como um dos elementos da política nas próximas décadas.15*
• Passando â questão da categorização e do recorte do espaço para análi
se, convém recordar que uma das maneiras mais correntes de abordar este
tema diante dos fenômenos vinculados à globalização é mediante a noção de
que tais fenômenos desarticulem o teritório ou até mesmo o neguem como
■algo importante: daí se falar de desterrUorialízaçno. Trata-se, com frequência,
de uma' visão pós-rnodérna a respeito, cujo resultado consiste em proplarnar o
fim:da possibilidade de pensar o espaço ou o território em si:.'ele agora apare
cería unicamente como um texto a interpretar.1*
15 Acerca da globalização, ycr: KENNEDY, PauJ. Pfeparatulo pani o scculo XXL Rio
de Janeiro: Campus, 1993; IANNI, Octávio. A sociedade global. Rio de Janeiro: Ci-
• vilmção Brasileira, 1992; W1TKOVVSKI, Nicolas (Org.). Ciência e tecnologia hoje.
.Trad. Roberto Leal Ferreira. São Pauiò: Ensaio, 1995; JAMESON, Frèdric. O pós-
inodernismo c a sociedade de consumo. In: IÇAPLAN, E. Ann (Org.). O itntl-estar
iw pós-rnoílernisino: leorias e práticas, Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge
Zaiiár, 1993. p. 25-44 (em especial, para os problemas da espacial idade, p. 34-39).
• 16' Por exemplo: CURRY, Michael R. Postmodernísm, jaiiguage, and thestrains of ro<>-
dernism. Artnals o f flteAssociation of American Geograpliers, 81,2, p. 210-228,1991.
49
Discordo de tal opinião. Seu melhor crítico, a meu ver, é o geógrafo
Miilou Santos. Na verdade, a globalização, em.sua dialética global/lucal, refor- ''
çu é a lieteiQgeneidade e a hierarquização do espaço, complicaiido sobrema-
ncira a sua cónfiguraçãò e levando a ter dè conceituá-lo de outro m õdo.O que .
aílrma Santos é a necessidade, nas novas condições, não de negar a terrilófia-,
lidiule ou a espacialidade, mas de perceber, nela, uma nova organização, que g
ele denomina "meio técnico-científico-informaciònal”:
17. SAN I OS, Milton; SILVEIRA, Maria Latira. De uma geografia da pôs-modernidadea"
uma geografia da globalização. Cullnm Vozes, 91,4, p. 14-30,1997: a citação é da p.26. '
18 Ver, deste autor: Técnica, espaço, tempo: globalização, e meto técnico-cicntífico-in-
formaçional. São Paulo: Hucitec, '1994. Cf. ainda: 1,AGOPOULOS, A, P. Pcistmoder-
nisni, gcographjç atidthe social sènfiotics of space. Environtiiciu and plaiwine, v. 11
p .255-278,19931 q '
\ ' 7“ .1■ ,
50
CONCLUSÃO ' - ’
Posições cúm oa de Marc Augé em Antropologia e a dos gcógratos que .
proclamam a “deslerHtoriaiízação^indepeiiáciitemente do interesse que apre-
sentem e de elementos úteis de análise que possam conter, são. carregadas de
ideologia. Ao despersonaiízarem os agentes que atuam nos não-lügares, ao de
sencorajarem o ehfoque em termos de èstados-nações ou de seus recortes re
gionais, vão no sentido qtie interessa a uma das tendências especificas que, do •
lado do poder, se referem à globalização e ao.que seriam as estratégias ncces-,
sárias diante de tal fenômeno no tocante ao desenvolvimento, à integração e à
forma de inserção internacional. i-
> Trata-se da postura conhecida conio “consenso dè Washington” ou
“ncol.iberalismo”: utna visão fundamçntalisla da globalização que supõe - de
forma doutrinária e irrealista - quê o livre jogo do mercado garanta, por si,
crescimento econômico e bem-estar social. Por tal razão, as políticas basea
das nesta tendência defendem a abertura ê desregula mentação dos .mercados,
as privatizações a todo custo, o equilíbrio fiscal e a estabilidade de preços, '
com eliminação dos objetivos nacionais de desenvolvimento orientados pelo
poder público. ; ' . ' •
Tal doutrina compele com outra, que encara o crescimento econômico
cbmo um processo endógeno à.economia mundial, acredita na necessidade de
articular a intervenção pública com as forças do riicrcado e içva, por exemplo,
à formação de blocos de mercados protegidos.(NAFTA ou ALCA, MERCO- •
SUL, Comunidade Européia) que manifestam a ambição de^transcender a
pura integração comercial, no sentido de aumentar a possibilidade de barga
nha e competição no nível mundial. Nesta perspectiva, governos tanto quan-
to Agentes econômicos deveríam ser átivos na fixação de políticas c estratégias,. .
acreditando-se*que as metas dê crescimento, desenvolvimento, proteção am
biental e outros objetivos desejáveis não podem ser alcançadas unicamente
através da livre ação das forças do mercado.1’19
51
As tensões e ambiguidades em torno de tais questões são evidentes, Ao
mesmo tempo que pressionam conslántemente outros países (incluindo o
ISrasil) em nome da abertura econômica desejável e do livre jogo do mercado,
os lis lados"Unidos, por exemplo, agem para fins internos segundo uma lógica
ainda bastante protecionista, mantendo mais de três mil limitações tarifarias
ás importações a seu próprio território (e, mesmo, manipulando a política de-
tarifas como força de pressão numa verdadeira guerra comercial), subsidian
do com dinheiro público setores de sua economia interna como a agricultura,
a indústria espacial e certas produções eletrônicas, bem como tralando de.ar
ticular um bloco econômico próprio incluindo de início o Canadá e o Méxi-.
co (NAPTÀ), mas já tratando, com métodos truculentos, de englobar, se pos
sível, o resto dò continente (ALCA). . ,
Estamos muito longe da visão sitoplificadora de uma dialética globali-
zação/“tribalização” (ou pulverização) do espaço e dos fluxos econômicos e
tecnológicos, vista ideologicamente ao mesino tempo como a “vitória do in
divíduo” ou “a vitória do consumidor” - no que' configura um retorno aos ve
lhos niítós burgueses do indivíduo totalmente livre, transparente a si mesmo
e informado. ' . \
No conjunto, descartada? as propostas pós-modernas mais delirantes,
equivalentes a mais uma “desconstruçãp” —desta vez-d o espaço ou do territó
rio notamos existir ainda a plena vigência do paradigma dos espaços regio
nais complexos segundo, recortes que obedeçam á lógicas e dimensões variá
veis, adaptadas às estratégias das diferenles*pesquisas, como ha proposta clc
I.acoste; a qual, por sua vez, já o vimos, reflete lorigínqüa e indiretamente a
convicção científica da inexistência de um espaço absoluto, aulocontido, evi
dente por si mesmo e capaz de existir na independência de quaisquer conteú
dos e processos. . . .
à 1. *
O que teve de mudar com o tempo, ajüstando-se á novas realidades, de
correu da necessidade de levar-se em conta as maiores complexidade, hetèro-
geneidade e, talvez,- volatilidade das construções espaciais e seus recortes pos
síveis atualmente, posto que noVos fatores, anteriormente menos visíveis
como elementos decisivos, passaram a incidir com muito mais força nestas úl
timas décadas. . ' ’ ‘
1 ■■ i ,
l ■ '■ - -
52
Parte 2
EPISTEMOLOGIA EM DEBATE
. Capítulo1 3
s. ' ‘
• ' • _/ ’’ . ^
* " T- •
C r ít ic a de duas questões
..55
estende, aliás, ao próprio sujeito cognoscente. Na verdade, mesmo se Hume
definia a si mesmo como um cético mitigado, é difícil imaginar, antes ou de
pois do filósofo em.questão, um ataque mais demolidor ãs bases mesmas do
racionalismo.12*' •
Mais perto dc nós, leiamos a passagem seguinte de um livro que Ca sai
rei' publicou originalmente em 1944:
0 homem mio pode escapar dc seu próprio sucesso, não lhe resta mais remédio
do que adotar as condições de sua própria vida: já não vive somente num universo
puramente físico mas, sim, hum universo, simbólico. A linguagem, ó mito, a arte e a
\ religião constituem partes deste universo, formam os diversos fios que tecem a rede
simbólica, a trama complicada da .experiência lnimana. Todo progresso ik>pensa-
inento e na experiência refina e reforça esta rede. O homem já não pode enfrentar a
realidade de modo Imediato; não pode vê-la, digamos, frente a frente. A realidade fí
sica parece retroceder na mesma proporção enrque avança sua atividade simbólica.
Bm lugar de tratar coni as próprias coisas, em certo sentido conversa constantemeíi-
te consigo mesmo. Envolveu-se em formas linguísticas, em imagens; artísticas, em
símbolos.míticos ou em ritos religiosos dè tal.forma que não pode ver ou conhecer
coisa alguma senão através da interposição deste meio artificial.5 •!
1 Para um bom resumo das questões envolvidas, cf. AUROUX, Sylvain; W.EIL, Yvon-
ne. Dictioimuire des autetirs et des tkèmes de la philosophie. Paris: Hachettê, 1975.
p: 115-117. '
2 CASS1RKR, Ernsl. Antropologia'ftlbsófica: íntroducción a una filosofia de 1a Cultu
ra. Trad. Eugênio ímaz. México: Fòndo de Cultura Económiça, 1975. p. 47-48.
56
les que preferem acreditar que a busca da verdade se sitiie além das possibili
dades dos seres humanos.’ i ;• . ’■ , . -
.57
/ -
lojfiu tei rcstre.- Nestas ultimas décadas, psicólogos e especialístas em prima-
• tologia constataram experimentalmente úm nível de “discurso1*impressio-
iiíinle em chimpanzés e gorilas no cativeiro, usando, por exemplo, algum c6-
digo de sinais gestuais —já que o aparelho dç fonãção dos mortos antropóí--
des atuais não lhes permite falar'no sentido humano do verbo trata-se de
algo impressionante pelo feto de antes se crer na impossibilidade de qual-
<ltur discurso da parte desses monos; no entanto, fica muito aquém mesmo,
tia capacidade de falar e expressar-se de uma criança pequena,
O desenvolvimento da garganlapos humanos attiais, caracterizado por
uma faringe lònga e uma laringc situada muito mais abaixo do que em qual
quer outro mamífero, incluindo íódos os outros primatas', impede - e é ó úni
co caso disto entre os mamíferos - que possamos engolir e respirar ao mesmo
tempo, o que parece üm problema grave/1Por esta razão, se tal desenvolvimen
to esteve ligado ao dá fala, çomo’é provável, è foi selecionado pela evolução,,
que vantagens evolutivas a fala apresenta para o animal humano? O que é o
mesmo que perguntar: como |>ôde emergir na evolução de nossa espécie? r
A resposta que primeiro vem à mente é que a linguagem humana cons
titui uni poderoso instrumento de comunicação, o mais sofisticado e diversifi
cado que existe neste planeta. Olhando para a evolução dos homínidas primiti
vos, no final do terciário e durante o Quaternário, um dós aspectos marcantes, '
nela, foi a emergencia de um modo de vida de coleta vegetal/ánimal e mais tar-,
de de Caça, mais complexo do que o de qualquer mono antropóide. com uni-'
cação eficiente permitiría um controle mais aperfeiçoado sobre tal modo de
vida e uma monitoração melhor do meio ambiente; propiciando, portanto, uma
vantagem evolutiva que superaria a desvantagem da possibilidade de morrer
engasgado ao tentar engolir e respirar ao mesmo tempo, fim outras palavras, a
linguagem humana sofisticada seria o resultado da economia cooperativa dé ço-
lelores/caçaçlores e suas complexidades: seria um elemento posto a serviço das
tecnologias de subsistência (entre elas a produção de instnimentos).567
58
Esta maneira de ver, que parecia convincente, começou a scr. desafiada
pioneiramente, a partir dos anos 1960, por Ralph l íollòway, da Universidade
de Columbia Holloway defendeu a noção de que o desenvolvimento do cére
bro ligòu-se ao da linguagem, e o da linguagem; mais às demandas derivadas
das interações e controles sociais do que às da tecnologia de subsistência. Em
' função da complexidade das relações sociais - perceptível também,'em grau
1muito apreciável, mesmo, nos monos antropóides atualmente existentes - , o
cresçimerito éti sofisticação do cérebro humano vinçu 1ar-se-iani à necessida-
' de de construir um modelo-especialmente.complexo da realidade, incluindo
nisto o mundo material mas talvez sobretudo os outros membros da mesma
e.spécie, para cntendè-los melhor e jogar eíicazmente o xadrez social; que in
clui alianças cambiantès ç. a tentativa de manipular alguns desses membros,
em lugar dé prender-se ein forma principal às injünções nascidas da comuni
cação com outrem e da elaboração da tecnologia de subsistência d
A função central do cérebro é construir um rnoMo dc realidade que per
mita ao animal existir neste mundo, nele funcionando e sendo bem-sucedido. ■
Quanto mais complexos sejam a vida de um animal e os tipos de interação
com o mundo e com outros animais nela implicados, niais complexa, tam
bém; tem dê sei: a estrutura do modelo dc realidade mentalmente construído.
. Assims se um dos sentidos for espeaãlmente importante para a maneira de vi
ver e aluar de um animal, a(s) área(s). do cérebro associada(s) a tal sentido de-
sen võlver-sç-á (ão) especial mente. Üni sapo vive num mundo sobretudo vi
sual, uma serpente num mundo principalmente olfativo. Um cão elabora corii
alguma complexidade visão (não:estereoscópica nem em cores), olfato e au
dição. Cada sentido oferece uma avenida de acesso ao mundo: quantos mais
sentidos forem importantes pára um aninial, mais complexas têm de ser as
ayenidas correspondentes ntas, também, os circuitos mentais que permitam
integrá-las num lodo,-num modelo complexo dó mundo. O modo de fazer
;isto, entre os animais, é por nievo do desenvolvimento do cérebro. Ora, a pas-
' sagem dè anfíbio para*'réptil, de réptil para mamífero - como formas surgidas8
6Ò
tància desse jogo nas relações sociais, ao estabelecer-se, leva à necessidade de
uma infância protraída - de que,os filhotes passem muito tempo aprendendo
o inodelo mental do mundo, no,tocante à subsistência mas também â intera
ção social sendo isto o indicador de uma retroalimentação entre diferentes
níveis dasxínterações sociais. Assentada esta “escola de vida” entre os primatas
como mecanismo de sucesso, biologicamente falando, ela introduziu meca
nismos de seleção próprios. Os primatologistas estão de'acordo em que não
são os espécimes .mais fortes c mais agressivos aqueles que, entre primatas,
conseguem mais acasalamentos: são os mais capazes de jogar com sucesso o
“xadrez social”. • '
, Em função do que se acaba, de afirmar, alguns especialistas chegam a
inverter o que se afirmava antes:'a necessidade de ganhar mais tempo para a
socialização é que teria forçado a melhoraras técnicas de subsistência entre os
primatas, ainda mais no caso dos humanos; por exemplo, quanto a estes últi
mos, introduzindo carne na dieta, o que aconteceu, no tocante à caça ativa de
animais dc tamanho considerável;, talvez 1,6 milhão de anos atrás, em função
do avanço tecnológico associado ao Howocrgaster. (surgido ha cerca dç 1,8
milhão de anos); nas fases precedentes do gênero Homo (havendo porém os
que, baseando-se em indícios indiretos, atribuem a certos australopitecos o
início da introdução dá carne na dieta), parece ter-se dado uma mescla de co
leta, uso de carniça de animais maiores ecaça atíva de pequenos animais.’*
A psique humana compreende três componentes básicos. A cognição
inclui aprendizagem, lógica, raciocínio, capacidade de resolver problemas. À
emoção envolve coisas como sofrimento, depressão, excitação, alegria. R a
consciência é aquilo que permite ao homem dar-se conta do que ele sabe, bem
como tentar prever o futuro, o que inclui o conhecimento dc sua mortalida
de: com a consciência, a vida percebe-se a si mesma no mundo, domeslican-
do simbplicamenic o tempo e o espaço. À.consciência provê o “olho interior
que possibilita a auto-análise e em seguida a aplicação do que nela sc apren
da, estendendo os seus resultados ao esforço de inteligência e previsão das mo-
' 10 LEWINj Roger. Jn the age-of uutnkitid. 'Washington: Smithsoniari Books, 1988.
p. 178-180; BERMÚDEZ DE CASTRO, José Maria et ãl. Hijos dç un tiémpo per-
- ' dido: I.a búsqueda de nuestros origenes. Barcelona: Ares y Mares, 2004.
61
tivações cie outrem - esforço este que informa os antagonismos, as alianças, as
defesas, as manipulações, no complexo jogo social humano."
A linguagem dos homens —sem paralelo em sua complexidade no
mundo animal deste planeta - é adiria dé tudo um ínstrumehto de constru-
çAo cio um modelo complexo do mundo físico e social’ mais ainda do que um
modo de comunicar e passar adiante instruções. O éstudo paleoantropológi-
co <lns origens e evolução da linguagem articulada humana é dificultado pelo
falo <le que o cérebro não se conserva nos fósseis - tem de ser estudado atra
vés de moldes do in terior cios crânios, o que é muito imperfeito, pois não bas
ta uma idéia de como é a superfície do cérebro para compreender como fun
ciona, onde nele se localizam as diferentes funções o mesmo se aplicando
ao apaielho fonador, que é cartilaginoso ou de carne e tem de ser inferido in
diretamente, por exemplo, analisando-se a fonnação“pro£ressiva de uma base
ciauial curva nós homínidas, cm contraste com uma base do crânio reta nos
ou Icos primatas. A origem da fala articulada, no entanto, não tem porque ocu-
par-nos aqúi.1112*, . • . ,
Omeurobiólogo Harry Jeríson estudou a trajetória da evolução cerebral
c, em função dela, da mente, desde o início da vida eni terra firme.1’ Basean-
do-se em seu estudo, eis aqui as conseqüêneias tiradas por Richard LeaJçey:
Qualquer dono de cachorro sabe que existe um mundo olfativo abertótao ser
• canino, mas não ao humano. As borboletas podem vér a luz ultravioleta: nós não
podemos. O mundo dentro da cabeça - no caso do dloino sapiens, do cão ou da
11 LKAKEY, Richard. The origin o f litimankind. New York: Basic Books (Harper Col-
linsj, 1994. p. 139-, 157.
12 Ver, entretanto, para algumas das variadas opiniões a respeito: BUNAK, Victor
Del grito .a la palabra. In: SCHOB1NCER, Juan (Org.). El origen M tomhre. Bar
celona: Promoeión Cultural; Paris:Unesco, 1973. p. 127- 134;.I.IEBERMAN, Philip.
On lhe origirís oflanguagar. An introductíon to the evolutíon ofhum an speech.'
New YorlcMacmilIan; London: Çollier Macrflillán, 1975; LYORS, John.Origins of-
laiiguage. In: PAB1AN, A. C. (Org.p Origins. Cambridge: Cambrige University
Press, 1988, p. VI1-166; TATTERSAIA, lan. Thefóssil trail. New York; .Oxford Uni
versity Press, 1995. p. 245; LEAKEY, Richard; The origin ofhummikind. New York:
Basic Books (Harper Collins), 1J194. p. 1 19-138, ■
|J JERÍSON, Harry, Brain size anã the evohnion of tnind. New York: American Mu-
seum of Natural HistOL-y, 1991,
62
borboleta - é, pois, formado pela. natureza qualitativa do fluxo de informação do
mundo exterior para o minutei interior,'e pela capacidade que tiver o mundo inte-
' x •• rior de processar, a informação. Há uma diferença entre o mundo real "lá fora” e •
aquele percebido na mente, “aqui dentro .u
■ -- ' . ' f ;
V • A •
. "E ainda:, ' .
64
re.couslruçõcs narrativas, tnmsfbrmar-nos-emos cm prisioneiros de um mvto.
A narrativa simplifica - elimina ruído, no sentido dado ao termo pela;teofia
da comunicação - e estrutura as coisas, m as‘isto nada tem a ver com o:real, .
não o representa adequadamente. Trata-se de uma característica do texto, de
um efeito textual: pertence unicamente.aos textos, não àVealidade. . .. n
\ Em outros termos: textos e realidadés se sitüam em pianos distintos, • f
que não há como aproximar. Ao se operar uma assimilação dos planos, cai-se .
na ilusão, -no escapismo, no desvio; ou mesnio, tal operação pode constituir
um instrumento de poder e manipulação. . ..
Os que pensam assim dívidem-sè èm,suas opiniões quanto.ao mundo .
real Alguns acreditam numa realidade contingente, aleatória, na qual agem,
quando muito, probabilidades estoajslicas. Outros crêçm numa realidade de-
.terminada e causai. Mas~ em qualquer hipótese, tratar-se-ia de uma. realidade
externa ao conhecimento humano óu, pelo mehos, estranha às tentativas de in
duzi-la a uma narrativa que de fato a representasse, reproduzisse ou imitasse.^
A estratégia, na crítica às posições derivadas da “virada lingfllsuça.,
pode Variar. Convém, então, esclarecer em que sentido vão as,contribuições de
Dãyid Carr de que aqui nos ocupamos. Trata-se. acima de tudo de uma respos
ta a teorias como as de Louis.O. Mink e lçlayden White, autores que, para Carr,
18 .CARR, David. Time, imrmtive. and history. Bloomihgtóii: Indiana Univeisity Press,
' 199.1» p. 89. ' ' ' -
19 ' Ver, por exemplo: WHTTE, Haydcn. Teoria.literária e' escrita da história. Estudos
Históricos 7, 18, p. 23-48, 1994; KELLNHR, Hhns. Umguayc and hhtorical repmen-
tatiora Getting the story crooked. Madison: University of Wisconsin Press, t?89.
65
I>ps humanos; e que, portanto, pode e deve ser contada. £ esta a estratégia de
Cai i. Seus argumentos contra a desoqptinuidade e a favor da continuidade en-
Ire n narrativa e o inundo social real se organizam em dois níveis; o dos indi
víduos c o das.coletividades. Tratemos de resumir, de início, o que tem a dizer
no tocante ao patamar individual. ’ ' •
Segundo Husserl, mesmo a experiência mais passiva inclui a retenção
lio passado imediato e a antecipação tácita do futuro, que chama d e “proten-
sao. Não é possível viver algó como presente. se não for em confronto com
aquilo a que tal m om ento‘sucede e cora o que antecipamos que sucederá ao
momento em.questão, Na vida ativa, com maior razão, consultamos experiên
cias passadas e prevemos o futuro: o presente é só um trânsito do passado ao
futuro. Se o que ocorre na experiência é um instrurtiento ou um obstáculo
|>ara nossos projetos, desejos e esperanças, a vida não se configura como uma
sequência desestvulurada{de eventos isolados. .
A estrutura da ação (passado/presente/futuro, começo/meio/fim) é co
mum ao texto e-à-vida, à narrativa e à realidade. Quem propõe a dcsconlioui-
dade, afirmando que 11a vida real não há começo, mèio e fim, esquece não só
0 nascimento e a morte como, lambem, inúmeras formas menos definitivas
dé estruturações dotadas de inícios e conclusões. Por que um início rião seria,
real, na vida, só pelo falo de que antes dele aconteceram outras coisas? Ou por
que não õ seria um fim, só porque depois Vieram outros eventos? ' ' ■
A estrutura'd os acontecimentos da vida é complexa quanto âs estrutu
rações temporais: configurações imbricam-se enV durações distintas, que se
entrelaçam e recebem definição e significado a partir da própria ação. O fato
de que haja diferenças entre os projetos humanos e o que deles cie fato resul-'
(a.traz süspcnse; mas não faz da àçâo ordinária um caos desconexo.
Outro modo de argumentar a favor da desconlinuidade consiste em di
zer que, na vida, não há um narrador {um his toriador), nem um-público, lei
tor. O relato não só organiza: escolhe, simplifica’, elimina as interferências e o
1 uídq. Unicamente uma minoria de fatos e ações se incorpora ao relato. Na ■
vida, nadá disso é verdadeiro: permanecem todas as interferências e incoerên
cias, todo o ruído. OuLrossimj a posição ex post do narrador que escreve um
texto permite correlações ,e deduções totalmente invisíveis (e impossíveis de
estabelecer) para os que viveram o processo que se pretende estar narrando ou
relatando. Por istò mesmo, retrospectivas e antecipações são possíveis no rela-
(í6
to, não na vida reál. Na verdade, três pontos de vista acerca da sequência de
que se estiver trqtando são os que.interferem: 1) do narrador; 2) do publico,
3) das personagens. No caso da história, as personagens não têin acesso ã or
ganização dos" eventos que, a posteríòri, c proposta pelo historiador: na vida
real, ninguém narra os eventos nem os transforma mim relato, posto que nar
rar supõe um conhecimento externo e superior. ' ;
Para criticar esta postura, Carr retoma Husserl: õ presente é um pontò
de vista que se abre para o passado e para o futuro. Ò futuro figura, na expe
riência, como uma potencialidade do que ainda vai acontecer. As açõés huma- t
nas são teteológicas, orientadas a um fim; isto é, orientadas para um futuro
quê se projeta. Chcentro da atenção, na vida ativa, longe de'residir no presen
te, está no futuro. Ná visão de Heidégger, citado por Çarivo importante não
seriam as ferramentas mas, sim, o trabalho a realizar. •
‘ • Isto acontece tanto quando estamos em plena ação quanto ao haver um
distanciamento reflexivo e deliberado, como por exemplo ao formularmos
pfojetos, iivaliarmos e revisarmos as circunstâncias que mudam, o já realiza
do e o que falta em dada seqüência de taretas. A deliberação é antecipação do
fuluro, é o que unifica à ação em passos, etapas, meios e fins. É óbvio que ela
não pode estar limitada ao presente. É claro, também, que na vida há incoe
rências e ruído ou estática que, ao deliberarmos acerca do que fazer, não te
mos como eliminar; simplesmente, nós .reconhecemos a sua existência e os
descartamos das análises.
. ; ! O futuro é, aqui, só imaginado oú planejado: não se trata, obviamen
te, da posição ex post do historiador, pois esta ultima é cabal, não apaiece.li
mitada por circunstâncias que, na vida real, podem furar toda e qualquer
previsão ou projeção do futuro. O qüe importa, porém, para o argumento.é
que mesmo Um futuro projetado ou previsto, cria, ná vida real, a possibilida
de de transformá-la ém relato coerente - para nós mesmos ou para outros
com que falemos —e em função do qual se possa agir. A atividade narrativa,
neste sentido, é parte inseparável do plano de ação, não é só algo incidental
, ou externo. A Vida não somente se vive, ela se relata, se conta o tempo todo:
vivemos o relato, relatamos a vida. Com freqüência mudamos ó relato, ,oü
seja, nossa visão acerca da vida,,f>ará levar em conta novos eventos inciden
tes;, mas também tentamos, na medida do possível, mudar ps eventos para
salvar o relato, isto é,' o plano, a versão, o fut uro projetado. Ê qbsplutamenlc
inisi) pretender que primeiro vivamos e só depois contemos o que fizemos -
faiseando-o ao narrá-lo Já que a narração retrospectiva .não c oposta à vi
são do agente, é apenas um refinamento c extensão de um ponto de susta que
está embutido na própria ação anteriormente efetuada. Em suma, a ação nar
rativa éprática antes cie ser cognitiva ou estética. Minha história de vida é con
tada - a,mim mesmo o n a outros - j á enquanto vou vivendo e, não, única-
mente depois;.ela é contada no decorrer do próprio processo de viver. /
Uma posição similar à de Carr foi exposta por Eric Hobsbawm: ‘
20 HOBSBAWM, Iíric. O/i hislory. Loiuion: Weidenfeld & Niçoíson.- liW. p. 33.
68 , . • ' :■ ■ ■ •
ciso, sem dúvida, que o-relato, cm questão seja aceito pelo grupo. Nem todos
08 grupos São um “nós" consciente: pode tratar-se de u m s o m e n t e esta- *
tístico,- unificado por residência,*sexo, etnia, posição numa estratifieação eco
nômica etc. Entretanto, as próprias características objetivas que configuram
um “eles” estatístico - alguma(s) dessa(s)' característica(s)- em certas' circuns
tâncias podem servir de base ao surgimento de uma comunidade, de um nós
consciente e disposto a uma ação concertada: nós os socialistas, nós os negros, .
nós-as mulheres, nós òs democratas etc.
■Para que aconteça algo assim, e preciso um relato articulado,' aceito e,
interiorizado que diga das origens e destinos dá comunidade de que se tratar
e interprete o presente em função do passado reconstituído e do futuro pioje-
t-ado. Sem isto, não há como conservar o grupo coeso contra ameaças externas. <•
e eventual fragmentação interna, nem como mantêrlo agindo como grupo. De
novo, a função narrativa é prática antes dé scr cognitiva, é parte e condição
sim qtta non das ações sociais organizadas. Não se trata, também aqui, de uma
reconstituição expost, mas de algo embutido na própria ação, Obviamente, as
comunidades em questão, os grupos de que se falava, podem ser efêmeros ou
duráveis, mais ou menos vastós e importantes: nações-estado, grupos linguís
ticos ou religiosos, uma igreja, uma faculdade, um partido ou facção etc. .
O “eu” e o “nós” de que se falou não configuram realidades tísicas: mas ,
têm existência real, não são meras ficções; e se baseiam sempre em. relatos ou
narrativas. Por isto, os textos históricos, narrativas eles também, não' são um
desvio ou deturpação da estrutura dos. fatos ou processos de que talam, que
narram: são uma extensão legitima de suas características intrínsecas.
- O processo narrativo prático de primeiro nível, constitutivo de uma
pessoa ou de uma comunidade, pode converter-se legitimamente em proces
so narrativo de segundo nível, cognitivo. Isto acarretará mudanças no conteú
do, Um.historiador pode contar a História de uma comunidade de um modo ■
muito diferente de como a comunidade nafrava-se a si mesma através de seus
- dirigentes, cronistas, jornalistas, clérigos etc. Mas a diferença não residira na
forma. As narrativas-de segundo nívei não refletem ou reproduzem, simples—
mente, as dé primeiro nível que tomam como tema: elas as mudam e melho- _
ram o relato, mesmo porque sem dúvida sé aproveitam da posição ex post do
historiador. Mas,não è verdade que a forma narrativa,' própria do -segundo ní
vel, inexista no primeiro, e que, por isto, narrativa e realidade vivida sejam ir-
reconciliáveis,.existam em planos distintos que não façam mtersecçãò.
69
Alt* aqui os argumentos ide Cai r. Recordarei que há outras formas -
preferidas por Paul Ricoèur num nível filosófico e retórico, ou por Roger
Cluirtier numa discussão intrínseca à “operação histórica” - de opor-se aos
eíeilos anli-realistas da “virada íingtiísüca”. Ricoeur, por exemplo, propõe re
formular o realismo espontâneo do objeto que, na sua maioria, praticam im
plícita ou explicitamente.os historiadores, mediante a ligação da Históría-dis-
ciplina com uma teoria da ação e.por unia consideração, à maneira de Michel
de Cerlcau, dos elementos que justificam a contiduidade entre a práxis dos
Iiisloriadores é a práxis humana em geral (desembocando num “realismo crí-..
tic»"),21 Rogcr Chartier, que também invoca de Certeau, defende o status da
história, como prática científica devido â existência, nela, de regras que permi
tem controlar operações através das quais se produzem determinados enun
ciados científicos,2' Por fim, há aqueles qUe escolhem,o caminho da ética, en
fatizando os efeitos socialmente deletérios decorrentes, sem escapatória, da
evacuação nos estudos liistóricos da noção de.verdade - evacuação resultante
da “desconstrução” e da “virada lingtiística’’.21 •
21 RICÒEÜR, Paul. Hístorg and rbetoric. Iii: BÉDAR1DA, François (Org.). The social ''
responsibility of lhe histònan. Provídence, TU: Berghahn Books, 1994. p. 7-24 (em
especial p. 21-24). . '
22 CHART11ÍR, Roger. A história hoje: dúvidas, desafios, propostas. Esfurfos Históricos,
7 , 13, p. 100-113,1994 (èm especial p. 111 j. Também: HODSBAWM, Eric.Orc his-
./oq'. Loiidon: Wei(ieiiteld & Nicolsori, 1997. p, 266-277.
23 V1DAL-NAQUET, Pierre. Les assassine de la méinoirèiVn Eíchmànn de papier et .
a utres études.sur Ie.révisionisme. Paris: 1ia Déeouverle, 1987; HiMMELFARB, Gen
trude..On lookihg intò the abyss: Untimely tlioughts on culture and society. New
YorkrVintage Books: Random Hoüse,1995. p. 122- 161. , •. , .
nlios. Lntelectualmente, caracteriza-as uma “cultura do discurso çríliço” - e,
eu acrescentaria, do “politicamente correto”. Estas novas elites também se dis
tinguem das do passado por se reconhecerem muito'iriàis como integrantes de
um sistema internacional que não aceita fronteiras do que como estando liga
das a um Estado-nação específico..- ■ ' s" '
Declarando-se tolerantes por princípio, os membros dessas novas elites,
24 LASCH, Çhristóphcr. The revoit o f the elites and lhe hetrayal of tlemocrucy. New
/' York: Norton, 1995, p. 28, , .
25 CALUNldOS, Alcx./lgmW posttnoderttim: Á Marxist critique. Cambridge: Poli ty
Press, 1991. p. 170-171. . - ' ’ ' '
• V ' . . . . . . • -
• . . ■ ’ • / ■ V■. . ‘ -
O PONTO DE PARTIDA: A
ENFOQUES DA INTEGRAÇÃO,
ENFOQUES DO CONFLITO SOCIAL'
■. \ . : ■
Até a década de 1960, as teoríás acerca das sociedades complexas esta
vam dominadas por duas posições polares: 1) teorias que enfatizavam a inte
gração social- num sentido.bem genérico, podemos cháma-Ias de funáçnalis-
lasi 2) teorias que enfatizavam o conflito social? : •
No primeiro casoi a sociedade é vista como uma soma de indivíduos.
Cada indivíduo, por sua vez, é um ser delimitado, unificado, integrado, livre e.
transparente a si mesmo: um sujeito de conhecimento e um centro dinâmico
de consciência,'emoção, ação e juízos. A complexidade, a estratiíicação social
' e o Estado teriam surgido das necessidades sociais. Os elementos básicos des
ta forma de pensar implicam que: 1) os interesses sociais são compartilhados,
mais do que opostos; 2) no sistema social, predominam as vantagens comuns,
1 Pota porção do texto baseia-se cm: CARDOSO, Ciro Flamarion. História do po
der, história política. Estudos íbero^Aiiieriamos, Porto Ategre: PUC-RS, v, 23, n. 1,
p. 123-141,1997 (especificamente p.-128-132).
, 2 Para uma síntese interessante das posições polares aludidas —embora tendendo,
confessadamente, a apoiar no fim das contas 0 postura “íuncíonalistn” ou “iotegra-
A cionista" ver: TAINTER.Ioseph. The collapse o f complex socktks. Canibridge:
Canibridge University Press, 1988. p. 33-37.
73
mnis cio que o domínio e a exploração de uma minoria sobre unia maioria; 3)
lal sistema se mantém mais pelo consenso do qúe pela repressão ou çoerçãó;
d) as sociedades sãò sistemas integrados que sé modificam lentamente. em lu-’
gac dc mudarem por meio de rupturas descontínuas (revoluções).
A integração social seria, pois, algo útil e legítimo. Sc os adriiinistfa-
dores e outras pessoas de s/af/;sjdto viyem melhor e ficam com uma parte
desproporcionalmente elevada da renda social, trata-se de um custo neces
sário para que sejam possíveis os benefícios da integração social, Em outras
palavras, a exploração social, se existe (c esta posição tenderá lEncgá-lo), ó:
tím custo normal da éstralifíçação social,' assim como a possibilidade de
maus governos é um custo normal para que haja governo. Era qualquer
caso, as disfunções sociais que surgireih deverão ser corrigidas, teformadas;
*i sociedade, tal como existe, deve ser preservada através de reformas pon-
Iliais, parciais, sendo um dado impossível de mudar tn totum num período
curto. O que existe é necessário epor isto existe. Entre os defensores desta po
sição geral houve grande variedade de posturas e téorias; o único dado co
mum é uma espécie de filosofia global do política c da sociedadé/Entre os
mais notáveis propónentes dc teorias temos Max Weber, Émilé Durkheim,
Talcott Parsons.
Exemplifiquemos com algumas passagens de'Max Weber:
;I -V '1 ‘
A sociologia (.„} c uma ciência que tenta um entendimento interpretativo da
ação social com a finalidade de, assim, cliegar a uma interpretação causai dé seu
curso e seus efeitos. Uma “ação” é qualquer comportamento humano quando e na
medida em que o hidivfdito agente vincule a ele um significado subjetivo, (...) A ação
é social na medida em que, em virtude do significado Subjetivo a ela vinculado pelo
. indivíduo (ou indivíduos) agente (ou agentes), leve em conta o comportamento de
, outros e seja, por conseguinte, orientada cm seii curso.’ . *
Poder é a probabilidade de qüe um alor no interior dc uma relação social este
ja numa posiçãoqúe lhe permita impor ti sua própria vontade a despeito de resis-
tenda, independentemente da base em que tai possibilidade repouse.J
74
Fica evidente que, para Weber, a análise parte do nível individual e o •
privilegia. Isto é assim, cocrcnlemente, em suas concepções acerca da política.
. Por exemplo, ao tratar do “conceito de partidos” (entenda-se: partidos políti
cos contemporâneos), as atividades deles são definidas, em certo ponto da
' análise, em termos dos “elementos” nelas envolvidos: 1) “líderes partidários” e
seus assessores: tais líderes desempenham “o papel predominante”; 2) “them-
bt qs ativos cio partido”, que na maioria dos casos têm a função de “aclamar”
os*líderes, embora em certas circunstâncias possam agir mais ativamente
(ações de controle, discussão, queixas, até mesmo “iniciar revoluções dentro
do partido”); 3) “massas inativas de eleitores ou votantes”: não passam de “ob
jetos cujos votos são procurados.na época das eleições”, importando as süas
salitudes somente para orientar as formas de engajá-los que os líderes usarão,
ou para atraí-los em detrlmcnlo.de outro partido, ao dar-se um conflito pelo
poder; 4) “financiadores do partido” que usualmente - não sempre, porém -
“permanecem ocultos” agindo nos bastidores.*5 Como se pode notar, a prióri-
' d ade nas iniciativas e o aspecto'ativo serão laníom ais importantes quanto'
menor for a instância inlerveniante; e. serão máximos no,caso dos “líderes”,
isto é, uns poucos indivíduos proeminentes. Outrosslm, cada instância coleti
va na verdade se resolve em agregados de indivíduos em qualquer análise mais
detalhada segundo o ponto de vista weberiano. O conflito aparece como coi
sa eventual, como circunstância fora do comum. „
No segundo caso - o das teorias que enfatizam o conflito, a luta de clas
ses o Estado teria surgido em função dó aparecimento de interesses dividi
dos na sociedade que se tornava complexa (trátàr-se-ia da sociedade pós-tri-
bal) e estaria baseado na dominação, na exploração, ria cóerção. Mais especi
ficamente, as instituições governamentais de tipo estatal, fundamentadas no
monopólio da força armada, na organização territorial, na cobrança de im- :
.postos, surgiram como mecanismos coercitivos c repressivos para resolver, em
favor da posição privilegiada da classe dominante, os conflitos intrassocietais
. que surgiam por caüsa da éstratifleação econômica (prõprietários/hãp-pro-
prietários dós meios de produção mais importantes) e social. A classe domi-
. t -
S WEBER, Max. llté lheory of social and. econonúc organimtion. Transia ted by A..M.
ITenderson and Talcott Parsons. New York: The Free Press: Collicr:, Macmillan,
1964. p, 408-409. ' =' .
75
itíinlc, para existir e manter-se çomo tal, explora é degrada as massas, a maio
ria tia população.
1 Neste caso, com frequência, o sujeito social é visto çomo sujeito tumsin-
<tivhlnal, coletivo: classes sociais, não indivíduos. Também aqui podem existir
consideráveis variações, apesai' de uma filosoíia geral similar. Entre os propo
nentes de peso estariam Karl Marx\FriedricIi Engels, Antonio Gratnsci, Gof-
don Cliíkle, Leslie White eM orton Eriedl*.. - •
Salienta-se, nesta-posíçãò, o caráter histórico, instável, transitório dás
sociedades; mais.do que o seu aspecto integrado, homeostático; e acredita-se
na possibilidade de sua transformação radical (revolucionária) nuin período
relativamente curto. Esta visão só teve condições históricas para desenvolver-,
se quando, a partir de 1789, sucessivos surtos revolucionários ocorridos em
diferentes sociedades demonstraram á relativa fragilidade dos sistemas e regi
mes político-sociais.; ■
Vamos tomar Antonio Gramsci conio exemplo. Para elej o partido polí
tico “não passa de unia nomenclatura de classe”, de modo que, em se (ratando
do partido revolucionário - aquele “que se propõe anular a divisão em classes”
—, sua perfeição e o cumprimento de sua finalidade consistem em ter deixado,
de existir .por já não existirem ciasses, nem, portanto, as "expressões destas”.
É verdade, entretanto, que Gramsci vê de"maneira bem mais nuançada
do que a maioria dos pensadores marxistas a dialética do coletivo e do indivi
dual. Não nega que o indivíduo seja, em primeira aproximação, criatura das
relações de classe; nelas-se insere; mas não as cria: Defende, entretanto, um en-.
foque radicalmcpte histórico de tal questão. No passado pcé-capitalista, os lí
deres carismáticos tinham maior amplitude de ação, já que õ “jiomem coleti
vo, só existia muito debilmente. No mundo moderno, entretanto, o “homem,
coletivo” tem bases concretas, materiais, criadas pelo próprio capitalismo. Este
“homem coletivo” pode representar, porém, coisas diferentes, ao resultar 'de
um “conformismo imposto” autoritariamente qu, pelo Contrário,de um “con-,
fõmiismo proposto” - em cujo caso já não sc trataria, na verdade, de confor
mismo,'mas de uma posição consensual a partir de uma consciência crítica
partilhada que rompe com o conformismo autoritário. Do mesmo modo, “a.
lula contra o individualismo o é contra um .individualismo determinado, que
tem um determinado conteúdo social” e, não, algo abstrato.
Gramsci é coerente com tais posições aò dizer que a pergunta mais cór-
reta, a ser formulada filosoficamente, não seria “o que é o homem?”; mas, sim,
“o qúe pode o homem chegar a ser?”, ou seja, quais os limites cm que pode
mos ser “forjadores de nós mesmos”? Uma tal questão, para o autor, levaria a-
Conceber o ser humano “como uma série de relações ativas (um processo)”.
Nisto, “a individualidade lem a máxima importância”, mas “a humanidade que
sc reflete em cada individualidade está composta de vários elementos: 1) o in- ■
dividuo; 2) os outros homens; 3).a natureza” A relação do indivíduo coín os
outros indivíduos e com a natureza é orgânica, não constituindo uma mera
justaposição; e passa necessariamente pelo tato de se pertencer, a entidades
Iransindividuais. <(Se a individualidade própria c o conjunto destas relações,
construir para si uma personalidadesignifica então adquirir consciência de
tais relações; e modificar a personalidade significa modificar o conjunto des
sas relações”.6
DA-TENTATIVA DE INCORPORAR
CERTAS NOVIDADES AO SURGIMENTO ' ,.
DE UMA “TERCEIRA POSIÇÃO”
A partir sobretudo.do segundo pós-guerra, ambas,as posições básicas
antes expostas - as quais existiam no interior do racionalismo ocidental —pas
saram a sofrer forte impacto de concepções originadas no final do século 19 e
desenvolvidas durante a primeira metade do século 20:1) a obra deFreud e a
psicanálise, em especial com a difusão da noção de inconsciente; 2) o estrutura-
• lismo de derivação lingüística, principalmente o de Claude Lévi-Strauss e Rò-
land Barthes, que chamou a atenção para a existência de múltiplos sistemas de
signos e, mais em geral, de sistemas de significação que, aparentemente, se im-
poriam de fora aos indivíduos ou mesmo às coletividades (como as classes, p o r .
exemplo), não parecendo que estes tivessem*controle sobre tais sistemas; 3) as
linhagens filosóficas: que iam de Niètzsche a Heidegger, passando por Husserl
■'(a fenomenologià e sua crítica), e de Kierkegaard a Sartre (o existencialisnio).
No segundo pós-guerra existiu, na França, uma sólida esquerda marxis
ta ou marxizante que acreditou sucessivamente em Sartre, na China maoístà e
77
iu> Ihuocomunismo, desiludindo-se cadá vez mais. Do ponto de vista filosófi-
• co e propriamente intelectual, o marxismo, o existencialismo, a psicanálise e a
Icnomenologia alemã haviam sido com binados por ãitelectuais coíiio Sartre e
Mcrlenu-Ponty em receitas diversas nas quais variava a proporção relativa dos .
elementos heterogêneos nelas intervenientes. Nesta visão de inundo eclética,'
allamcntc influente por algum tempo, percebia-se o ser humano corno estap-
<lo alienado na sociedade contemporânea. Conforme predominasse algum dos
ingredientes da síntese, á alienação parecia resultar- seja do capitalismo, sejado
naturalismo científico dominante no pensamento ocidental, seja ainda de cos
tumes sociais repressivos, ou da vida social massifícada e burocra tizada; para
não menejonar, às vezes, a indicação da religião como demento alienanle,
nunra linlia de pensamento herdeira da terceira República francesa. Aliberta-
ção podia ser vista como reconstrução da vida social ou da cultura moral, ou
ainda corno um processo de abrir-se cada um âs suas experiências mais autên
ticas. Marxismo, exislencialismò, fenomenològía e psicanálise (ou sua mescla
em proporções variáveis) nunca, dominaram o establishment intelectual, na
frança ou alhures no Ocidente: mas constituíam núcleos de-uma oposição, teó-
rica de grande.pr estígio ao statvs quo social eacadêmicoÃ
A corrente derivada da Lírigüístiça e da Semiótica (que chamava a si
mesma de Sennologia) estruturalistas, baseadas primordialmcnte çm Ferdi-
nand de Saussurc, demonstrou ser muito mais difícil de assimilar em sínteses.
Manuel Rubio Carracedo criticou a tenta tiva de subs tituir ó eu por um isto, dis
solvendo o sújçitcNmraclerístico do radonalixmo ocidental. Mostrou que, dian
te dos achados da Semiótica, do que $è tratava era abandonar as ingenuidadçs .
rio cogito de Descartes, assimilando as consequências da descoberta do univer
so sígnico numa reconstrução do eu sobre novás bases, mediatizando o cogito
duplamente: pelo mundo dos signos e mediante a interpretação de tats signos.*8
78
• Utna posição assim não se impôs, no entanto, na maioria dos casos e das ten
dências posteriores.
Na década de 1960, com grande influência e aceitação princrpalmente .
a partir de 1968, reagindo às sínteses anteriormente valorizadas, sofrendo'os
efeitos do estruturalismó embora, ao mesmO tempo, rebelando-se contra suas
pretensões.cientificistas,"intelectuais como Gilles Deleuze, jacques Derrida,
Michel Fóucault é outros, filosoficamente influídos por.NietzSc.he e Heidcgger •
(mais do que por Husserl, preferido pelos estruturalistas), rejeitaram o status
de possíveis focos ao eu como o categorizara a icnomenologia ou a psicanáli
se, ou às concepções baseadas numa realização histórica da Razão. Voltando as
armas criticas dos estruturalistas contra as próprias ciências sociais e huma-
i nas, trataram de anunciar o “fim” cie várias possibilidades: de buscar a verda
de, de um eu unificado, da fundamentação de sentidos inequívocos, de legití-
inação da civilização ocidental,,de revolucionar em profundidade as estrutu
ras sociais. Tal movimento intelectual desembocou, previsivelmente, num es
tado de cóisas suspenso eíitre.o niilismo e ó pansentiolismo, numa negação da
explicação em favor da hermenêutica relativista.9 .
Paralelamente, no mundo anglo-saxão, embora por outros caminhos,
a crise do pragmatismo e do emp.irismo lógico, em especial na vertente neo-
positivista, levou a resultados filosóficos comparáveis e,em seguida, a uma
forte influência dos pós-estruturalistas franceses.
Tudo isto ocorria -enquanto, nos domínios da literatura e da arte,ten- ■
dências críticas também se opunham ás correntes antes.consideradas radicais,
num mundo que assistia aos últimos estçrtores do colonialismo europeu, ao.
desenvolvimento rápido dos meiós de comunicação de masSa e à confluência
de muitos fatores no sentido de tornar o planeta cada vez menor, mais unifi
cado e menos diverso. Em todos os níveis, as certezas do passado entravam em
crise: as do establishméní, sem dúvida, mas também as das òpòsiçõcs ao mes
mo como antes eram categorizadas.'
• 79
EXPLORANDO UM DOS CAMINHOS '
NA EMERGÊNCIA DA ATITUDE ..' <
CONHECIDA GOMO PÓS-M ODERNA / .
N«ss;i ênfase recairá, agora, no tipo dê crítica do humanismo metafísi
co ocidental que veio A desembocar na noção da “morte do Homem" entendi
do como sujeito —e ao mesmo tempo objeto —privilegiado nos processos dé
conhecimento. .. . , .*
Um dos pontos de partida foi a constatação, a partir de estudos antro-
pologicos como os de Çliflòrd Geertz, de que a concepção ocidental moderna
acerca do sujeito humano é peculiar, nada tendo de universal. Assim, por
exemplo, entre os javaneses, o conceito cje pessoa é entendido como resultan
te da ação de dois conjuntos de contrastes simbólicos de base sobretudo reli
giosa: interno/externo; e refinado/vulgar. Ambos subsumiriam o que nós cha
mamos dc indivíduo.Ò contraste intcrnò/éxtemo díferenÇia as relações da ex-
pei iúncia humana baseadas tia espiritualidade e"no comportamento físico
(corporal): ambos os pólos de tal contraste seriam idênticos em todas as pes
soas, análogamente ao que.ocorre no tocante ao contraste entre refinado c
\ utgai, O predomínio momentâneo de um dos pólos de Cada contraste é que
daria origem.a diferentes condutas:'* ‘ , '
Paralelamente ao impacto da Antropologia de Geertz e'apontando 11a
mesma direção, interessa-nos mencionar a felcitura de Freud feita por Jacques
l.acan. Este achou que a relação entre sujeito e sociedade podería'ser pensada-
a partir de dois modos interdependentes de apreensão da realidade: o simbó
lico c o imaginário. À. ordem simbólica é a .quê confere significado e relaciona
o sujeito com seu lugar na.ordem social de outros sujeitos. A ordem imaginá
ria é aquela etn que o sujeito.desenvolve unia consciência autocentrada. O
real é uma “presença ausente": trata-se cio referente do simbólico c do ima
ginário, mas nurfea intervém em si e por si. Esta concepção leva.a uma visão10
80
descentrada da consciência individual; o que, por sua vez, torna impossível
considerá-la como a origem do conhecimento, do significado e da ação. A rea
lidade do sujeilo, produzida ao falar, nos discursos seus e de outros, é uma rea- .
lida de transindividual: o âujeito não produz o seu próprio, significado, as es
truturas da significação lhe são sempre proporcionadas de fora como algo já
’ dado. A ilusão de uiu eu “pontual” (quando, na realidade, se trata de. uma
“rede de'sigpificantes” mais do que de um ponto fixo) vêm déquc, no.imagi- „
nário, o sujeilo constrói e organiza o mundo çentrando-o em si mesmo, ape
sar dc sua realidade existencial ser radicalmenle descentrada.11
Outro passo neste processo de mudança dé paradigma fòi dado por.
Michel Foucault, a partir d,estas e outras influências. Afirmou que o Í-Tomem
- como sujeito/objeto privilegiado do saber - não passa de uma invenção re
cente, que desaparecerá ao ser transcendida a estrutura do discurso contem
porâneo. Existe, segundo eLe, uma concepção radicalmente distinta do sujeito
no mundo ocidental a partir do final do século 18, quando comparada com a
c|üe se fazia presente anteriormente.-O aparecimento do Homem como sujei
to e objeto privilegiado ter-se-ia dado no e pcio discurso. É do discurso e no ,
discurso que ele surge dessà maneira, caracterizando-se na episteiifc moderna
conto: 1) um fato e"ntre outros, a ser estudado empíricamente, ilras, ao mesmo
tempo, proporcionando.uina base privilegiada a todo conhecimento; 2) algo
cercado pelo desconhecido, mas fonte potencial e universalmente lúcida do
conhecimento (o cogito de Descartes); 3) um produto da Historia, mas tartr-
' bé.m a fonte e o fundamento da mesma História. • •
O surgirrlento da humanidade.num campo de discurso cqrresponde a ■
uma nova maneira de existência social em qúe as pessoas são, concpmitanle-
•mente, transformadas em sujeitos e reificadas como objetos do cònhecinien-.
to; como" “corpos” situados num campo dc forças constituído por estratégias
de poder, que se constituem também em estratégias do conhecimento, tenden
tes a instituir uma integração do sujeito no campo mencionado. ,
O Século 19 assistiu ao desenvolvimento de novos métodos de classifi
cação, hierarquização, codificação, vigilância o tecnologia disciplinar focaliza-
11 Acerca dos vínculos destas noções lacaniánas com o pós-modernismo e para a crí-
tica delas, ver: FERRY, Luc; RENÁÜT, Alain, La petisée 68: Essai sur 1’anti-humanís-
m e contempo raia ..Par is: Gailimard, 1985, mais espedficâmente o capítulo 6.
• ' *i
81
<l;is sobre o corpo, produzindo novos tipos de coerção (disciplina, vigilância,
punição) a serviço de uma concepção inédita do sujeito e de sua subjugação.
lal disdplinarização ’ é uma manifestação do poder que desenvolve
práticas discursivas (e outras) tendentes a tornar efetivas a dominação e a rg-
pressão na família, na escola, no museu, na fábrica, no liospital, na prisão etc,;
desenvolve, portanto, um novo potencial de vigilância e subjugação através dá
produção e aplicação de certos conhecimentos que dão a si mesmos o status
de ciências e, portanto, se apresentam comoalgo ncutrô e objetivo. Estes co
nhecimentos põerrHse a serviço de práticas que dividem interna ou externa-
menle o sujeito, objetivando-o'através de oposiçoes', (criminoso/honesto,
sub/doente, louco/mentalinenlc sadio, sóbrio/alcdólatra ou drogado etc.).
A destruição destes mecanismos de alienação depende da destruição cia
própria, episteme do humanismo ocidental: apó,s a “morte de Deus”, trata-se de
proclamara “morte do IIomem”.u • / .
A morte do Homem’ —ou seja, sua eliminação como sujeito e objeto '
privilegiados - , se.assumida como algo realmente ocorrido, impossibilitaria a
existência de ciências sociais que fossem verdadeiras ciências, em lugar de apaT
recei em unicamente como saberes constituídos por certos discursos delimita
dos quanto às esferas de saber/poder de que provenham, mas que se arroga-
riam ilegitimamente um ,valor universal geral.como forma de conhecimento.
Em nossa opinião^ a História é tuna dessas ciências sociais: aquela que.se ocu
pa çentralmente com o devir das sociedades hum anas—privilegiando, portan
to, a dimensão temporal e enfocando o social em termos de mudanças e per- :
sistências, É sabido quê âs vezes as posições,pós-modernas ou pós-estrutura-
listas Vãoulém, tentando invalidar a ciência como tal; em si mesma —discus
são que não cabe abordar aqui. - - , .
Uma pergunta importante é: até que ponto as lehtatiyàs de descons-
Iruir uma História científica, explicativa e que cònstituísse total ida des sociais
como.objeto tiveraiu êxito, caso observássemos a situação tal,como aparecia
no, final do século 20? A resposta, á nosso ver, é que tiveram bastante êxito,
dada a conjuntura que .vivemos, marcada peias consequências da derrota dos12
82
movimentos e regimes,que falavam èm nome cio marxismo, no século 20 a • ,
mais mobilizadora das tentativas racionais cie dar conta do social como um
todo e de suapossível (e desejável) transformação. No.entanto, esse sucesso foi •
conjuntural, parcial e relatiyo, em- nossa opinião, como lambem ocorreu no
. tocante a .outras empresas de desconstrução, . '
, Nenhum dos grandes problemas suscitados pela Modernidade'e. pelo
capitalismo foi resolvido. Isto significa que, á médio prazo) sem sõrhbra de dú-
vida, surgirão novas teorias globais que funcionarão como ideologias mobili- \
zadoras dotadas de amplo consenso entre os que se orientem a mudar um es
tado de coisas que tende a multiplicar os desempregados, concentrar a renda,
eliminar conquistas anteriores eni diversos domínios (das relações traballus- ■
tas à seguridade social) em nome de coisas como “predomínio das atividades
super simbólicas’; “globalização”, "competição eficiente’! e assim por diante, nó
contexto de uma fase depressiva de longa duração dõ capitalismo em nível
mundial (um capitalismo desejoso, portanto, de cortar custos). E, se procla-
1mar a “morte do Homem” como sujeito''t objeto é ao mesmo tempo procla
mar - como.os neoconservadores já trataram de fazer - a “morte da História”,
múltiplos exemplos mostram que esta, como.certa vez afirmamos numa po-
■lêmica com as idéias de Francis Fukuyama, costuma enterrar os seus autopro-
clamados coveiros.-(Ver o primeiro capítulo desta antologia,)
•x i '*
13 Uma discussão espeçi ficam ente latino-americana da questão em: 1.EC.I INER, Nor-
befí. El presente continuo. Nexos, México, n. 118, p. 45-52, oct. 1987. ,
14 HOBSBAWM, EriCi On history. London: Weiclénfeid,& Nicolson, 1997. p. 277.
.85
Tomando o primeiro tenixa, “presença” refere-se <\ qualidade da expe
riência imediata e aos objetos que por meio dela se “apresentam” também
imediata mente. O que é direta ou imediatamente dado na experiência tem
sido contrastado em foijma tradicional, em filosofia do conhecimento,- com as
representações - .a esfera dos signos lingüísticos e dos conceitos - e com as.
construções; em outras palavras, com os produtos, da invenção humana (tudo
u que for mediado pelo fator humano). Assim, por exemplo, a percepção, a
sensação, os dados sensóriais foram considerados, em diversas épocas, condu
tos de lípo imediato para a realidade, mais confiáreis bu seguros do c[iie os
conteúdos mentais subsequentemente modificados, répresentados e alterados
pelo pensamento e pela linguagem, O pós-modernismo questiona e às vezes
lejeila esla distinção. Nega que qualquer coisa esteja “imcdiataniente presen-
le” e seja, assim, independente dos signos, da linguagem, da interpretação; das
diferenças de opinião etc. Em alguns casos,argumenta que a apresentação dê
G>1° pressupõe a representação. Assiiii, Dérrida nega taxati vam ente que exístii
algo que se possa chamar de “percepção”, ou seja, uma recepção do dado ime
diata e transparente. -. ’■ , ' ' •
A negação da presença leva oçasionalmetite os pós-modermstas a su bs-
lituira discussão da coisa pela.análise das representaçõesAa coisa. Reproduzin
do um exemplo exposto por Cahoone, num debate acerca’de se dever ou não
usar testes de inteligência num sistema escolar local, üm pós-moderaoTratá-
ria dé elaborar uma longa análjsc retórica acerca de como o termo “inteligên
cia” tem sido usado por aqueles que propõem o teste, implicando que o obje
to ou o referente do termo “inteligência” nunca está presente para nós, de tal
modo qne o que estaria cm jogo seria a História de dadas representações e do
seu uso .político.17A crítica da presença ás vezes é expressa pela frase: “Nãq há
nada fora do texto”. Isto não.precisa significar que o mundo real não exista;
mas, sim, que nós só encontramos referentes com que possamos lidar através
-de textos ou representações, ou seja, mediados, Nunça podemos dizer.o que
independe de qualquer dizer. .. - . <: .
Note-se que isto não é inovo de verdade, A descoberta da dimensão se
miótica há décadas havia já levado a um pansemiotísmo anti-realista (ou, se
se preferir, a uma transferência do realismo pára os signos oü símbolos).
17 Ibíd',14.
O segundo ponto tem a ver com a contestação do problema dá ori
gem. “Origem” é. a noção de existir um a-,fonte do objeto que. estiver sendo
considerado, Uma yolta à qual c muitas vezes vista corno o objetivo da bus-
ca racional. A procura das; origens é uma tentativa de enxergar, por trás ou
além dos'fenômenos, seu fundamento último.' Para as filosofias, modernas
do eu - existencialísmo, psicanálise, fenomenologia etc. - , a-tentativa de des
cobrir a origem do eu constitúiria o caminho da autenticidade. O pós-mo
dernismo negà tal possibilidade. Contesta ser factível voltar a, captar ou
mesmo rèpreseutar. a origem, fonte, ou qualquer realidade mais profunda
por trás dos fenômenos; lança dúvidas até mesmo sobre sua existência, ou
chega a negá-la taxativa tu en te. N um sentido, tal corrente’ó inienaottalmen-
te superficial,; não por negar que se deva,proceder a análises rigorosas, mas
por considerar a superfíéie das coisas - os fenômenos - “como algo que não
reqúer uma referência a qualquer coisa ma is profunda ou fundaínéntal. Esta
•é uma das diferenças centrais entre estruturalismo e pós-estruturalismo. As
sim, pôr exemplo, no exame de um texto, as intenções do autor não seriam
especialmente relevantes pata sua compreensão, estando etn igualdade de
condições com quaisquer outras considerações: elas não são á “origem” do
texto, portanto, não têm qualquer “privilégio” ou “autoridade” maiores do
que os que teriam outros tatores. , , •
Em terceiro lugar, temosVnegação da unidade e a afirmação da plura
lidade. Virtualmênte em qualquer tipo de empreendimento intelectual,, os
pós- m o de r n os tentam mostrar que o qúe outros viram como uma unidade ,
um conceito ou existência único ou integral, é, na verdade, plural. Isto deriva
até certo ponto do estruturalismo, que.entendia os elementos culturais —pa
lavras, significados; experiências, seres humanos individuais, sociedades -
couro estando constituídos por relações com outros elementos, mas remete,
igualmente aos próprios fundamentos da filosofia de Nietzsche. Posto, que as
relações são inevitavelmente plurais, o elemento, postulado hàbünalmeíite
como individual é, de fato, também plural. Tudo é constituído por relações
coin oütrás coisas:'nada, portanto, é simples, imediato ou totalmente presen-
‘ te; e nenhuma análise de algo pôde ser completa .ou final. Por exemplo, um
texto pode ser íidõ segundo uma mfinidade.de maneifas, nenhuma das quais
provê d seu significado “verdadeiro” pu completo. O eu humano não é urna
unidade simples, hierarquicamente composta, sólida, auto-coritrolada: çonsis-
S7
le numii multiplicidade de forças ou elementos. Qualquer pessoa estaria mais
próxima cia verdade se dissesse possuir “eus”; mas, não, “um eu".
.Enquanto os dois primeiros pontos discutidos decorrem de opções opos-
las que se vêm manifestando em-diferentes formas nos debates cpistemológicos
desde o século 17, neste terceiro princípio ou tema achamos um primeiro cril-
canbar de Aquiles importante do pòs-modemismo. Apesar do que parecería in
dicar se os pós-modernos fossem coerentes, ocorre de fato é o que foi chamado
ironicamente por alguns de "vingança póstuma do sujeito", cuja morte foi pro
clamada tão vociferantemente em linguagem metzscheana.wNa prática, o põs-
modemismo cai no subjetivismo e, ao contrário do poeta inglês do finai do sé
culo 16 e início do 17, John Dormc. que afirmava que no man is an ishmd, age
como se cada homem fosse, sem dúvida, uma ilha. Vivemos, atualmente, uma
inibição ou excesso do ego, da individualidade. Apesar das proclamações em
contrário, o individualismo burguês vê-se excluído do veto à unidade, a não ser,
em piano esIritamente teórico e abstrato, num debate em forno do cogito carte-
siano cuja finalidade é minar filosoficamente as bases do rácionali.smo,
O indivíduo, no final do séculò 20, queria ser um mundo em sí, inter
pretai' a informação a que tem acesso por si e para si mesmo. Esta, aliás, e a
base real deste terceiro princípio epistemológico qúe estamos examinando,
aqiicle que nega a unidade e proclama a pluralidade; do mesmo modo que é'
o Umdamenfo da História era.migalhas” de se querer opor “histórias”, no
plural, a qualquer História” holística, Isto tem por força, como premissa, a '
crença no valor absoluto do indivíduo', de seus direitos, desuas expectativas; e
desemboca na çonvicça~o (às vezes em nome do “politicamente correto” e do
imilticulturalismo) de existir uma necessária multlpliÇaçãõ,dos enfoques.
• Tal situação, entretanto, como afirma o antropólogo Marc Augé, expli- .
ca-sc, na verdade, por um desnorteamento dos indivíduos no mundo de hoje,. •
acelerado em suas- transformações: vêem-se afetados por elas, num momento
em que os elementos de identificação coletiva disponíveis para o indivíduo es
tão mais enfraquecidos do que nunca estiveram no passado (por exemplo: fa-
S8
Ittília; nação, ideologias), Sente-se a necessidade urgente dê uma produção in
dividual,de significações,” que, no entanto, como não podería deixar de ser,
ocorre sob a influência de um aparelho nniltifa cético de publicidade e de pro
paganda política qué se adapta bem ao individualismo extremado de boje: a ..
publicidade fala do corpo, dos sentidos, da vida sadia: os políticos proclamam
as liberdades individuais. E o imperialismo, ao sul do Equador, adota e.instru-
inentaliza, hoje em dia, uma-linguagem muiticultur alista. y
- O quarto, ponto da cpistemologia pós-modcrna tem a ver com a nega
ção da “transcendência das normas”. Normas como verdade, bondade, beleza,
racionalidade,.não são mais vistas corno sendo independentes dos processos
|,ara cujo governo ou juízo servem. Melzschedixfc.Por exemplo, onde muitos
filósofos usariam a idéia de justiça para seu juízo-sobre uma dada ordem so-
cial, o .pós-modernismo considera aquela idéia corno sendo, èla mesma, um
produto das relações sociais a cujo julgamento, seja aplicada. Isto é, a idéia foi
criada numa certa época e num certo lugar para servir a certoS interesses, é de
pendente de um certo contexto intelectual e social etc. Isto complica grande-
mente toda pretensão acerca da justiça de determinadas relações sociais. ^ .
• É falso dizer .que uma cat egoria de coisqs - as "normas - possa ser in-
dependente da semiose, ou da experiência, ou de interesses, sociais delimita
dos. O conceito “bom” e o ato de clmmar algo de “bom” nao são independeu-,
. tes dãs' coisas que queremos chamar dé “boas” Os pós-modernos.respondem
às pretensões normativas de outrem mediante a exposição dos processos de
pensamento, escrita, negociação e poder que produziram aquelas.pretensões
normativas, isto não significa, porém, que tais pós-modernos deixem de ter
suas próprias pretensões normativas; pelo contrário, cosnim^m sér óu ecolo
gistas e/ou contrários à energia nuclear, ou feministas, ou ligados ao movi
mento negro, ou ao movimento $«>’, ou, na Europa, aos diversos regionalis
mos éteM as temos aqui um segundo d grave calcanhar de Aquiles. Pois, o que
acontecerá se algum crítico'decÍdir tomar carona na forma de análise crítica
pos-moderna a respei to - que torna todas ** pretensões normativas problemá
ticas, sem excluir, portanto, aquelas Comuns entre os pós-modernos para
aplicá-la.ao próprio pós-modernisniõ è aos valores que ele sustenta?.
89
,>or f|m»ll!S° «firmativo: o quinto princípio. Trata-se de uma estratégia
metodológica centrada no emprego dq noção de “niteridade constitutiva” ao
analisar-se,qualquer entidade cultural. O que parecem ser unidades culturais
- seres humanos, palavras, significados, idéias, sistemas filosóficos, organiza
ções sociais - são mantidos em sua unidade aparente-únicajnente através de
um processo afivo dc exclusão, oposição e hierarquização. Outros fenômenos
ou unidades precisam ser representados como estranhos ou “outros” o que se
efetua mediante a representação cie um dualismo hierárquico.no qual uma
unidade é favorecida ou “privilegiada” e uma outra é desvalorizada de algum
modo. Por exemplo, digamos que se estejam examinando sistemas sociais ca
racterizados por uma divisão grupai ou étnica, em que existam grupos privi
legiados. Neste ponto, é bom notar, porém, que, ao referir-se a grupos privile
giados, os pós-modernos falam de qualquer tipo de privilégio: não estamos
diante de análises.em termos das classes sociais e da exploração social; embo-
m, incoércntemeiüe com suas premissas, análises assim também possam apa
recer em textos pós-modernos. Os grupos privilegiados precisam produzir é
manter ativa mente sua posição representando ou figurando a si mesmos - no
pensamento, na literatura, na arte, na lei - como estando isentos dás proprie
dades atribuídas aos grupos não-privllegiados; c precisam representar estes
últimos como desprovidos das propriedades dos grupos privilegiados. Km se
tratando da psique humana, o cu pode sentir-se compelido a representar a si
mesmo como isento de sentimentos sexuais ou agressivos, os quais, porém,
não podendo ser simplesmente eliminados, precisarão ser atribuídos a situa-
ções casüaís, a eventos idiossincráticos. Nunt sistema filosófico, o dualismo
entie realidade -e aparência’ envolve a construção de uma espécie de lata de
Iixo enj ,que os fenômenos que o sistema não quer sacramentar com o ierrito
privilegiado de “fenômenos reais” possam ser jogados, considerando-os como
metas aparências . Só assim pode a integridade do termo, idealizado óu pri
vilegiado ser preselvada. i. . '
Isto pode ser expressado,-metaforicamente, dizendo que m margênsé
que constituem o texto. As unidades aparentes são constituídas mediante a re-
p te ssão de siuuiependencia e d as stias relações com outras unidades. Por con-
seguinte, o pesquisador esclarecido tratará,.dé perceber aquilo que forexduí-
do ou marginalizado, os elementos descartados de qualquer sistema ou texto.
Implícita ou explicilamcnte presente- neste tipo de análise está, para os pós-
90
modernos, a noção de que o processo de exclusão Ou repressão - de "empur
rar para a margem” —é falso, instável e/ou imoral. Falso, porque mentiroso,
instável, porque a repressão acabará por precisar ser admitida, forçando a u m .
reconhecimento de que existem fatores excluídos ny representação da unida-^
de privilegiada; imoral, porque toma'a forma da opressão. Todo. texto é cons
truído a partir de algum tipcf de exclusão ou de repressão; portanto, ele nega
a si mesmo e, quando lido cuidadosamente, abala sua própria mensagem.
Achamos, mais uma vez, outro calcanhar de Aquiles de peso. 0 que nos.
•impediría de-aplicar eslé.método aos >róprios textos pós-modernos e suas
modas temáticas,.por exemploem História, tratando de verificar-o que em-
pUrram para a'margem”? Verificaríamos que são os grandes objetos, a concep
ção holístjca tia sociedade, sem a qual ela não tem comb.ser contestada in to-
tum, nem alternativas globais põderrí ser propostas ou formuladas; verificaría
mos também que isto significa üm consentimento, um apoio tieffícto ao esta-
blislt taen t ca pi t alista e burguês que, na fase çla famosa “globalização , concen^
tra a re nda e as oportunidades (geográfica tanto quanto socialmcnte) aitula
mais do que. ocorria nas fasesnnteriorestdo capitalismo. Hão poderiamos con
siderar isto imoral? E não estará,em jogo, neste fato de empurrar, a dimensão
holística para a margem, o apoio tácito dos pós-modernos a uma concepção
da"náturcza humana” condizente, na prática, com o individualismo tradicio
nal da fiíosofia ocidental, mesmo se, agora, afastando-se de alguns de seus as-,
pectos, como o cogito cartesianó?
. : i ' *
- . • . • v •
CONCLUSÃO • ' .. - •
. Em dezembro de 1995 ocorreu, na"França, a inais forte oiida grevista"
"que àquele país conhecia desde 1968, O povo francês, diante da implementa-
, ção das políticas nèolibèràis eini nomc das regras do mercado e de imperati
vos demográficos declarados incontornáveis pelo governo (aumento do nú
mero de idosos não acompanhado .pelo de contribuintes), formulou pergun
tas còmo a seguinte: por que seria errôneo dar cinqüenta bilhões de trancos
-do tesouro nacional pára aumentar os recursos da seguridade social e assim
gàranti-la, se o governo considerava correto dar cinqüenta bilhões de trancos
daquele tesouro para sanear um banco, o Çrédit Lyotwais, antes dè privatizá-
91
Io? Isk), mim país que contara com .seis milhões de marginalizados, marcado
por uma deterioração de serviços sociais antes altamente eficientes como re
sultado de medidas de “austeridade” decididas com total insensibilidade so-
ciai, pela diminuição progressiva dos benefícios da seguridade social, pelo.au-
. mento do número dos trabalhadores que ganhavam tpenos do que o salário
mínimo de que o governo fingia garantir a universalidade, bem como pelo in
cremento de formas temporárias e precárias de emprego, enquanto ò desem
prego lotai alcançava 12% dás pessoas em. idade de trabalhar, sem qualquer
perspectiva de diminuição.
, ^ gteve fez o governo francês recuar, mostrando com clareza não exis-
tir qualquer coisa inevitável no néoliberãlisrao* O que há são, simplesmente,
um sistema de poder e escolhas políticas e sociais acerca de quem sairá ga
nhando (uma pequena minoria) e quem sairá prejudicado (a imensa maioria-
da população, à qual-se impõem sempre novos sacrifícios, numa socialização
<las peidas más nunca dos ganhos). Tal greve sé articulou em torno da reivin-
<1icaça o de unia solidariedade soçial ameaçada: por que seria impossível ao Es
tado continuar proporcionando direitos estáveis aos trabalhadores, cm lugar
dc só garantir aos empresários o direito.de investir e lucrar, sem se sensibili
zai com sacrifícios sociais inaceitáveis? Nas éleições seguintes, o goder políti
co íoi retirado da direita e dado a uma esquerda moderada.
Imediatamente antes dos acontecimentos dc 1995, havia estado na
moda, na França, uma discussão tipicamente pós-moderna entre historiadó-
ics e especialistas de outrás ciências sociais conservadores (ainda quando não.
sc apresentem ou considerem assim) cm torno de noções como estas: termi
naram finalmente á Revolução Francesa e a oposição entre direita e esquerda;
o “fim dá história” à maneira de Francis Fukuyama; c so bretu do, um suposto
r consenso político que sc teria tornado possível ao impor-se a convicção dç,
. cxistir uni víncul° necessário entre a democracia representativa e o mercado,
lin.função do primeiro e do último pontos, sublinhava-se ainda que a França,-
2° -Um exemplo de país latino-americano onde, após oitó a«os de reformas liberais
feitas em associação com o FMI e outros organismos internacionais,com total in
sensibilidade social como sempre, nos mandatos dos Píesidentfes Morige e Árias '
■ (1982-1990), conseguiu-se reverter pelo menos em parte a tendência, é Cosia Riça i
ver PIsltEZ 1.5RIG.NOU, Héctor. Breve historia contemporânea dc Costa Rica. Méxi-
. co: Fondo de Cultura Econômica, 1997. cap. IV.
92
estava abandonando uma visão que universalizava sua própria história çomo
.historia da humanidade, para comportar-se e pensar, doravante, çomo as ou
tras democracias representativas desenvolvidas.-' Ora, ante a explosão de 1995
e as eleições seguinles, seria preciso perguntar: quem, exataideiite, Jjailicipava
d o “consensò” invocado nas'discussões intelectuais ainda ÍÕo recentes (sendo
evidente que o tema do consenso .foi tacitaiiiente abandonado após aqueles
acontecimentos)? d 'quem interessava ou aproveitava tal consenso? ^
Os franceses .têm vocação para olhar para o próprio umbigo, intelec-
;. tuai mente falando. Assim, as discussões aludidas dão a impressão de constituí
rem uma grande novidade; mas não é assim. Tomemos um exemplo alemão
'da década de 1980, mais honesto no sentido de que declara sem disfarces de
fender uma posição conservadora, mesmo tratando-se do que chama de “con-
. seryaclorismo moderno’':-Haas Buchlieim, professor de' ciência política na
Universidade de Mogúnciaçdizià por exêmplo o seguinte: 1
f ' m 4 ‘ • • •• • ' -
' (’...) mudou em nosso país a forma de pensar dominante em relaçàp aos anos se-
• tenta. Não "se trata de um giro do pêndulo da “esquerda” para a direita e, sim, dc
qlic a vida pfiblica, que durante mais de um decênio esteve altamente condiciona-
: x da pela ideologia, retorna (...) ã razão quotidiana. Dc certo modo, voltamos a ser
.... ' normais. Isto não significa, porém, que tudo o que durante quase duas décadas se
' • havia conseguido graças às iniciativas da “esquerda'-’seja agora deixado sem efeito *
(...). Isto pode apreciar-se de maneira'muito dara no pensamento e na forma de
vida daqueles que cresceram nestesdois.últimos decênios. Pode observar-se, neles,
de qtie maneira burguesa se pode ser "esquerdista”; è como se pode ter mna wdn
' -• normal de maneira “esquerdista”, tanto nosdvábrtos priyados quanto nas concep
ções sobre o EstadoA
. '2 1 - Ver, por exemplo: AUGE, Marc. Hacia mm antropologia iie tos mundos cotUcmpora-
ncos. Trad- Alberto Liiis Bixio. Barcelona: Gcdisa, 1996 (a edição original em fran
cês é de 1994); PURET, Prançois; JUU.1ÀRO, lacqties; ROSANVALLON, Picrre. L<f
' Republique itu centre: Ia finde 1’exception française. Paris; Calniann-Lévy, 1988.
22 BUCHHEÍM, Haas. Política y poder. Trad. Carlos de Santiago. Parcel ona: Alfa,
1985. p. 122. •'
93
guklo tlc jacto, mesmo sem eliminar cí capitalismo. Mas, após 1990, quando o :
modelo Tliatcher se generalizava na Europa, sem excluir a França, a discussão
francesa do “consenso" teve de ser muito mais abstrata, já que, depois da con'-
juntura de 1989-1991, a direita estava exatamente tratando de destruir o "-Rs-
lado do bem-estar” em nome da eficiência e da'necessidade de competir na
em da globalização.2-' Não é casual que se queira insistir na autonomia.da po
lítica: como certa vez notou Habermas, Hannah Arendt gostava- de refugiar-se
na Atenas antiga para não ter de discutir problemas éconômicó-sociais con
temporâneos incômodos: se era assim há algumas décadas, imagine-se na
atualidade! Ou seja: o debate pós-moderno francês açerça do "consenso”, an
terior a novembro e dezembro de 1995, era um debate de direita,24 conserva
dor. O abandono dos enfoques: holísticos e a politizarão pulverizada que o
íicompanha nada têm de casual ou de politicamente Inocente.25
23. É interessante notar que, já em 1961, o britânico tí. Strauss reconhecia seç o “Esta
do do bem-estar" simplesmente o resultado de circunstâncias nas quais “a$ classes
proprietárias devem pagar u n i‘resgate’ para-mantemseus privilégios”; já naquela
época, havia setores ullraconservadores - do mesmo tipo dos que tenderam a im- •
por-se ern muitos países (em espcciql após 1989-1991), urna vez que o thateheris- '
mo mostrou o çamínho - que o criticavam co mo se constituísse uma espécie de so
cialismo c em nome de teorias neoliheraisfver ò lúcido artigo de ZAWADSKi, S. La
génèse et Fessencc dela çonceplion de Welfare State. Lu Pologne etlcsAffaires Occi-
dcntaks, Poznán: lustytut Záchodni, 1 ,1 /i,p .5 -4 2 ,1965.
24 Ver, acerca da contínua pertinência (e uso habitual) das noções de direita e esquer-
, da. BOBBlO, Norberto. D ireita e esquerda: razões e significados de uma distinção
política. Trad. Marco Aurélio Nogueira, Sâo Paulo: Ed. da Unesp, 1993. inclusive.a '
resposta do autor a seus críticos, redigida em 1994 (p. 7-25). ■ :
25 A respeito da base social do pós-modemismo nos países em que sc originou, ver
CALLÍNICO.S, Alex. Àgainst postmodernism: A iVlarxist critique. Cambridgc: Políty
Press, 1991. p. 170-171; LASCH, Christophcr. The revoit ofthe elites and the Itélra-
yal vfdanocracy, New York: Norton,-1995.
94
' Capitulo 5
C omeçando o século
SOBREVIVERA O REGISTRO
ESCRITO E ERUDITO DA LINGUAGEM?
fl'ês processos, segundo creio1, ameaçam ná.atualidade c continuarão
ameaçando no futuro imediato a palavra escrita e o registro erudito dá língua.
Sua atuação, configura um fenômeno geral que, pessoalmente, pude ver cm
açao, nas últimas décadas, no Brasil, m> França, no México, na Costa Rica e
nos Estados Unidos.
-.0 primeiro processo concerne à copipelição com a leitura e a escrita de
novas tecnologias que garantem acesso à informação sem a necessidade de ler,
ou limitando muito a leituratmeios áudio-visuais; computador (em especial
a difusão da multimídia); tipò de escrita empobrecida c gramatiçalmentc bár-
b;ua usua' nos programas de software, e também nas redes interativas como a
Internet (nesta, é verdade, paralelanienle a redações de alto nível); tecnologias3
3 Instrumento, nao substância! Para uma excelente refutação das opiniões que equi
param a I listória a discursos ficcionais ou literários, ver: CARR, Davíd. Time, m r-
. rntíve, and hiitory. Bloomington: Indiana Univcrsity Press, 1991, bem como o capí-
lulo 3 desla antologia. .
96
previsíveis a curti) prazo e seus prováveis, efeitos: penso sobretudo no livro ci
bernético ç em processadores de texto capazes de reconhecer.a voz do dono e
receber ditado.. .i “• . ".
- O. segundo processo é a crise da escola tradicional.,Na.realidade, foi só
há dois séculos que, começando em certos paísés europeus, leve mícto a difu- ,
são generalizada do ensino básico universal, Agora, inteiramente defasada, a
escola não consegue responder aos desafios e competições do século 20 tardio
e deste início de um novo século de modo a preservar nos alunos os mvehs de
atenção e interesse que permitam treiná-los a que leiam, desenvolvam a lcitu- ,
ra como atividade habitual (sem a qual nunca poderão redigir adequadamen
te nos padrões da língua erudita). As teorias, correntes, há algum tempo, de
que não baveria'formas erradas de falar ou escrever, e sim, registros diferentes
de uso da língua, embora não sejam ém si de todo equivocadas, parecem-se a
uma confissão disfarçada de impotência ou derrota, Já que, entre os tais níveis
ou registros de uso, o que a escola'nãó preserva é, precisamenle, a linguagem
erudita, não mais conseguindo garantir que passe de uma geração à seguinte
sem constante-empobrecimento,
O terceiro processo.forma um dos contextos em que os anterionqentc
mencionados ocorrem. Ao dar-se a abertura progressiva da educação de eiist-
:■no médio e superior, no século 20, a cada vez maior proporção da população,
os grupos sociais que controlam o poder e as decisões não aceitaram garantir
os Custos per capita necessários, para manter a mesma qualidade anterior do
-ensino e da formação, nas novas condições históricas cm que semelhante de-
r sideratiun tornava-se de difícil obtenção.
Assistímos, áo longo.de cem anos, à invasão progressiva do áudio-vi-
sual: cinema, rádio, televisão; videocassetes, televisão a cabo etc. já hoje, em
certos países, muitos dos livros são lançados páralelamente cm cassete aqdio
ou em CD. No futuro próximo, como bits são bits c se misturam sem dificul
dade, òs livros em multimídia - som, escrila empobrecida e simplificada, ima-
. gens - deverão multiplicar-se. Já existem; e, neles, é fácil prever que diminui
rá ainda mais a parte escrita, como1em outros veículos que se desenvolveram
no século 20: fotonovela, história em quadrinhos. Mesnm porque, a Cada ge
ração as pessoas estão em. média menos preparadas a redigir com alguma so-
fisticáção e a ler textos de relativa complexidade e extenso vocabulário. Não
í compartilho, portanto, o otimismo daqueles que dizem: a difusão dos nucro-
97
computadores se fez a serviço da programação de textos/da escrita. Talvez seja'
ve idade.-Mas a maioria - e «tua maioria que tende a continuar aumentando
- dos texto» digitados-em computador é de muito'baixo nível quanto às exi
gências de linguagem. É verdade que digitai- na Internet constitui unia forma
de escrita. E daí? A pichação de paredes e muros também constitui, mas não
avança a preservação do registro erudito e sofisticado da língua que, até sur-
g"- uma alternativa, viável, parece ser necessária àquilo que nos'leva a discutir
i,(l" ‘ ° aSSUIltò; a escrita da História em modalidades aceitáveis no tocante à
construção lógica do pensamento e à preservação, através de vocabulário ade
quado, de idéias e conceitos com grau suficiente dc riqueza, nuance e precisão.
JJmberto Eco mantém aparentemente um otimismo limitado quanto
no lema ora em discussão, ao assinalar que a nossa não é, como se pretendeu, '
u epoca da civilização da imagem, em que a escrita entre em decadência. Se
na, sem dúvida, a época do computador e doriudio-visual, mas também da
escrita e, mesmo, de uma “nova alfabetização acelerada”. Em sua Opinião, a
maior parte, do-que será visto nos próximos anos nas telas da TV ç dos com
putadores “será,palavra escrita, mais do que imagem”. Outrossim, pará apren- '
liei- a trabalhar adequadamente com os computadores é preciso ler livros. Ou
seja (e este é só um exemplo entre outros), na idade da imagem aumenta o nú
mero de:livros,-de revistas c de leitores: aS:“forçasçcntrífugasem relação ao li
vro suo, afinal de contas, forças centrípeUis c produzém a necessidade de m ais;
pnpeJ.mpresso”. Mas ele não deixa.de acrescentar que, de momento, “estamos
alando de quantidade” e, não, “de qualidade”.J E é a qualidade que me interes
sa nesta discussão, • ' '
Mula mdica que tais tendências, que se vem acentuando há décadas,utàs-
lando as pessoas dos livros e mesmo dos jornais e revistas (cujo nível de língua-
gem escrita ja é hoje pífio no Rrasil) - outpace Ecó, de certos lipos de livros, jor-
mus e revistas- vão mudar no futuro previsível. Elas afetarão ainda mais, isto '
sim, a educação, os modos dè comunicat\ à informação e o entretenimento; '
Prevê-se para muito em breve o livro cibernético: um microcomputador
. finalidade restrita, do tamanho de um livro de bolso, cpm tela de alta roso-4
98
iução, contendo lexto/imagem/son* pois será multimídia em sua vocaçao,
sem dúvida alguma; O texto c eventualmente some-imagem serão gravatos
num chip, talvez poV telefone (db editor à livraria, ou mesmo à casa do leitor). , ■
Este tipo de. livro poderá também falar: ou seja, se o consumidor nao quisct
ler, o texto sèrá lido para ele pela máquina.56No tocante aos textos produzidos
para este tipo de livro, é previsível que o novo meio encoraje o uso, pelo au
tor, da linguagem coloquial. Mesmo porque deverá agir em tal sentido o com
putador capaz de ser treinado a reconhecer a voz do dono e ao qual se ditarão
textos* o desenvolvimento de computadores assim ocupa muitas equipes asia-
ticas, norte-americanas e a m Y p é ia s .'^ isto ampliará ainda mais a tendên
cia já existente a cortaf radicalmentc os custos da editoração de texto nas ed;-
loras. Agora mesmo, em muitos casós o texto passa do micro do autor direta- ..
mente aos terminais da editora e.é publicado sem revisão ou nuulança. T or-
nou-se assustadoramente comuni que, mesmo quando o contrato declare que
o devam fazer" os editores creiam poder furtar-se a enviar provasuo a utor para .
que as revise, previamente à publicação, É claro também que, dado o alto pre
ço do papel e do transporte dele de um lugar a outro, o livro cibernético, uma
vez introduzido, será muito mais barato e, portanto, irresistível, mesmo com
a dificuldade de controlar as infrações aos direitos autorais, çoisa-ja grave es-
de a introdução.da. cúpia xqrográfica. Existem, sem dúvida, opiniões contra
rias: o debate a respeito aparece, às vezes, mesmo na grande imprensa, que sc
' ocupa.também de assuntos correlatos, como as tentativas do grande capita e..
ganhar controle sobre a Internet para seus próprios fins.5
Note-se qüe pode acontecer que tais inovações não se generalizem logo,
como.se viu recentemente com o videofone (telefone acoplado à televisão);
cuja tecnologia existe mas foi preterido, na implementação papá o mercado,
em favor do telefone celular, por se' julgar mais urgente a mobilidade telefoni- ■
ca na independência de redes fixas. Mas, mesmo se não se generahzarem de-
99
pressa, isto nuo alclaiá a deterioração da língua erudita eserilu, a não ser tal
vez no ritmo, pois liá suficientes tecnologias já instaladas e em plena expansão
que, com os outros fatores apontados - crise da escola, recusa dos grupos do^
mimmtes a aceitar os custos de uma educação democratizada de qualidade
vão nessa direção, Nada indica que a tendência possa ser revertida facilmente;
c ela é mundial/ ' • ‘
Como foi dito, meu segundo ponto de partida foi a constatação de ha
ver atualmente quem afirme uma pretensa impossibilidade de que surjam no-
, vas ideologias mas também leorias globais, holístícas, que funcionem como
amplas visões do mundo e da sociedade, no que já foi chamado de “fim da
I Iis foria . Entenda-se: fim da história que os homens fazem, se se pretender
perceber nela algum sentido, evolução ou progresso;,e, concomitantemente,,
fim da História-disciplina entendida corno uma explicação global dp social
em seu movimento e enrsuas estruturações. Diz-se hoje que não'há História,
e sim, histórias no plural; histórias que são “de” e “para” grupos definidos, sem
possibilidade alguma de reivindicar uma autoridade universal.5A respeito, ver,
em especial, o sétimo capítulo desta antologia.
Nesta posição há, em primeiro lugar, algo de certa forma existencial, tí- •
pico de uma geração: a chamada geração dc 1968. Esta conteve, ha Europa,
uma sólida esquerda marxista ou marxizanté e, no*segundo pós-guerra, acre7
ditou sucessivamente em Sartre, na China maoísta. ho Eurocomuhismo, desi-78
Gu
medíável da crença nos valores de qualquer tipo e numa hierarquização deles
que seja válida universaímente. Disto resulta a recusa das'teorias —que scgun-
• do alguns continuará indefinidamente o niilismo intelectual contemporâ
neo, com seu fclativismo absoluto e suá convicção de que o conhecimento se
reduza a processos de semiose (produção do sentido) e interpretação (herme
nêutica), impossíveis de hierarquizar de algum modo consensual. Daí a inevi-
lãvel dispersão de posições, numa sociedade que, de qualquer maneira, diz-se,
letule a partir-sé em subcuituras pouco relacionadas entre si.11
Já alirmei que, infeliznienle, sou forçado a acreditar na deterioração da
esci iía e da linguagem erudita como as conhecemos, o que terá conseqüêncías
<lifíceis de prever para os historiadores do futuro. Acho, pelo contrário,;que a
afirmação de que nunca mais haverá teorias globais com alguma chance de
promover mobilizações importantes seja pura aSneira,
Como 'historiador, considero- me'vacinado contra os “fips da História”
de.qualquer tipo, pois em minha própria vida. já conhecí vários deles, À ex
pansão econômica do. segundo pós-guerra, antes dos choques do petróleo,
não levou acaso a que sê proclamasse, como fez Walter Rostow, a inelutabili- .
dade de que o mundo todo convergisse para o capitalismo avançado ociden
tal e nele permanecesse depois? E não fez aparecer várias teorias acerca de um
capitalismo doravante cm eterna expansão, sem crises conjunturais? Qra, tudo
istó hoje tornou-se risível. .
Inexistem soluções à vista para problemas còmo a miséria, o amplo^le- *
seinprego sein perspectivas previsíveis de absorção, a exploração social, a pun-
ção de recursos de certas partes do mundo em proveito de outras mediante
mecanismos velhos (a guerra do Goltb e o mais recente ataque ao Iraque, ino
vadores tecnológica e estrategicamente, velhíssimos em seus objetivos reais) ou
novos —serviço da divida externa do oütrora chamado Terceiro Mundo, polí-
lica de patentes. As próprias questões caras aos “pós-modernos”- devastação
da natureza, arma mentismo, perigos do emprego da energia nuclear, apèrfei- •
102’
çoiimenU) das técnicas de opressão db indivíduo ou de alguma modalidade es
pecífica de indivíduos (mulheres, negros, minorias diversas) - não podem, sem
frustração permanente, enfrentar-se sem visões ç estratégias globais do so'cial.u
A meu ver, o verdadeiro problema é a dificuldade de teorizar com suces- ~
so sobre uma sociedade em plemt e profunda, transformação em seus padrões
de organização, em suas formas de relacionamento pessoal, em seus sistemas
de produzir, armazenar e transmitir conhecimentos e informações, entre dlver-.
sos aspectos. Vivemos com um pé nq .mundo gerado pelas revoluções Indus- .
triais, outro, num mundo emergente, potéhcialmente muito distinto, mas cu
jas características e consequências não estão de todo instaladas, nem são sem
pre claras. Conseguir teorias .globais convincentes implicaria saber separar, nos
processos que hoje se cntrecruzam, os que serão mais duráveis e estruturántes.
Ainda assim, será' que, de fato, inexistem teorias globais do social corn
potencial mobilizador na atualidade? É incontestável que, à direita, certamente
existem e estão tendo bastantes sucesso, Ãesquerda, isto é, entre os que acham
que as sociedades humanas são mutáveis em prazos rçlativamenle curtos e in-
-teligíveis como totalidades e.não apenas setor a setor—“em migalhas’ - , *13o qua
dro é menos claro. O mesmo'teríamòs a dizer se, simplesmente, procurássemos
teorias e explicações genèralizanles respeitáveis do ponto de vista intelectual,
acadêmico: o que aquelas teorias ncoconsèrvadoras não são. Eu dizia que o qua
dro seria menos claro; nada desprezível,' porém, já o veremos,
»• ; -
T e o r ia s à d i r e i t a : ^ t e r c e ir a o n d a ”, .
“ PARADOXO global”
\ 12 Por exemplo: CALVERT, Petei'. The. çoncept of class: an histórica! introdiietion. Lon -
’ dons Hotchinson, 1982. 1 -
13 Nestes tempos em qtie há esforços quotidianos no sentido de confundir a questão,
é bom recordar os .critérios básicòs que distinguem as atitudes de direita e de es
querda diante do social, muito bem sintetizadas em: GONZÂLE2CÀSÀNO.VÀ, Pa-
blo. Las categorias ãel desanvlío econômico yla investigaciát) en ciências sociaics. Mé
xico: Üniversidad Nacional Autônoma de México; 1967, '• . j
cm pauta se apresentem como defensoras de uma nova civilização, que enca
ram como um progresso para Ioda a humanidade. O último livro dc Alvin é
Heidi Toftler foi prefaciado por Newton Gingricht, líder republicano ultra-
conservador do Congresso dos Estados Unidos.no passado recente.1'1E, em -seu
pi efácio, ele mencionou que os Toffler, de que é aniigo íntimo há mais de vin
te anos, foram, nos anos 1980, chamados a assessorar o Comando dç Treina
mento e Doutrina do Exército dós Estados Unidos (coisa que também fez o
próprio Gingricht); de um modo que, suponho, pode ter influído pas moda
lidades de guerra aplicadas em 1991 contra o Iraque. Por outro lado, rnreaso
de um atitor como John Naisbitt, é evidente o caráter de aberta apologia do
capitalismo na era do que eic chama_de paradoxo global - uma nnindializa-
ção econômica que, ao mesmo tempo, diz ele, se traduz na terceirização e des
centralização que favorecem empresas pequenas é médias eficientes, bem
cotno a autonomia dos indivíduos. Por exemplo, ein frases como estas da con
clusão de um livro qüe escreveu com Patrícia Aburdene:
14 TOFFLER, Alvin; TOVPLER, Heidi. Créating a new civilim m n The polifics.of the
Third Wavc. Atianta: Turncr- Publishing, 1995. As menções às idéias dos autores ba-
scar-se-5o neste iivro. Ç " ^
15 NAISbIT 1, John; ABURDENE, Patrícia. Megqtrends 200Ò-. The new directiuns for
the 1990 s. New York: AvonBooks, 1990. p. 336,338. Ver também outro livro do au
tor: NAISBITT, jobn. Globalpítradox New York; Avon Books, 1994.'
104
iização, cuja tônica é a “vitória do indivíduo”; e, ao mesmo tempo, num para
doxo apenas aparente, vivemos a era da “mundialização ou globalização.
Como somos a última geração de uni mundo em desaparecimento e a.pi imei-
ra de outro que surge, sofremos conflitos, incertezas, perplexidades, coletiva e
' individualmente. ■ > .
À percepção dessa nova civilização poderia remontar, nos Estados Uni- ~
dosl à década, de 1955 a 1965: pela primeirayez, então, Os,trabalhadores de ser
viços e de gestão tornaram-se mais numerosos que os operários.e os trabalha
dores primários (da agricultura, das minas). O computador se difundia na- ,
quela é£oçá, bem como o transporte comercial por aviões a jato, a pílula an
ticoncepcional etc. Nos anos 1970, o declínio da civilização ligada às revolu- „
■ ções industriais seria já visível. E, ncslcs últimos anos, os indicadores não po- >
deriarn ser mais claros. Em 1989 havia, nos Estados Unidos, uns quinze .mi- .
llioes de negócios operados em tempo integral de casa. Seis anos mais tarde,
cerca de trinta milhões de estadunidenses trabalhavam em casa-total ou pàr-
, cíalmente, graças ao computador, ao telefone ceiular, ao fax. Em 1995, a ex
portação de serviços e propriedade intelectual (patentes) foi igual, naquele
, país, àsoma das exportações de artigos eletrônicos e de carros. Três quartos da
força de trabalho situavam-se nos serviços e nas atividades “supérsimbólicas
(ou seja, vinculadas à informação, ao conhecimento). Desde os anos 1970, em
modalidades variáveis, as mesmas tendências percebiam-sqno resto do m un
do desenvolvido.. ’ '
' Os Toffler falam, a respeito, de úiha “terceira onda”. A “primeira onda”
foi a Revolução Agrícola, superando a caça-coleta: levou milhares dc anos para
firmar a “civilização da enxada” A.“segunda onda” foi a da civilização indus
trial ou da “linha de montagem”, que se impôs em menos de trezentos anos. E
a “terceira onda1’ é a da “civilização do computador”: dos que hoje vivem, mui
tos constatarão a sua vitória nas próximas décadas.
Por enquanto, as três civilizações coexistem no planeta. As sociedades da
primeira onda proyêem produtos primários: matérias-primas agi ítolas e minc-
' . rais. As da segunda onda proporcionam trabalho barato e produção massifica-
da, As da terceira onda possuem novos modos de criar e .explorar o conheci-
mento e a Informação - isto é, algo intangível em comparação com bs fatores de
produção que os economistas costumam considerar: capital, matérias-primas,
terta, trabalho etc. Na verdade, informação e conhecimento substituem ciescen-
105
temente o capital e os demais recursos (uma noção falsa,'como veremos no sé
timo capítulo), cortando custos. Assim, por.exemplo, quanto a u.ni programa de
computador dirigindo uma maquina-robô que corta aço: conseguem-se mais
, peças com a mesma quantidade de matéria-prima do que se fossem cortadas
por operadores humanos. A manipulação genética e molecular cria novos ma
teriais,, menos volumosos e mais leves, para o que a miniaturização também
contribui - q que.se traduz em menores custos de produção, armazenagem e
transporte; ainda mais porque, paralelamente, estabelece-se uma informação
rápida (até minuto a ,minuto, se for preciso) da relação estoque/íluxo de mate-
. riais ou produtos prontos, graças á informática. Ào mesmo tempo que o conhe
cimento se torna o recurso principal e mais remunerado, o tempo.revela-se um
recurso econômico também central em função da aceleração do ritmo da ino
vação, dos investimentos, das transações'. A competição é intensa e há redes
computadorizadas-que movem capitais instantaneamente -. capitais, que mi-
gram sem dificuldade entre setores e países, Se p dinheiro se move à velocidade
da luz, a informação, ideal mente, teria de andar ainda mais depressa! '
Em tais condições, torna-se economicamente viável a desmassificação
da produção. O comprador de um carro Volvo, nos Estados Unidos, pode es
colher entre 20 mil possibilidades para criar, deste modo, o seu *veículo ideal”.
H o triunfo dò consumidor, num mercado que não é mais global, nem mesmo
. segmentado, mas, sim, atomizado: são indivíduos oti famílias comprando por
mala direta, pela TV, pela Internet. . , .
Tudo isto exige uma infra-estrutura crescente de meios de comunicar
ção avançados: computadores ligados em redes, estas em redes maiores; tele
fonia celular; fax. E, na gestão, obriga a terceirização - triunfo das empresas^
pequenas e médias eficientes e inovadoras - , à descentralização,.à reengenha-
ria empresarial, à iniciativa dos empregados em equipes pequenas; também
conduz á remuneração altamente diferenciada do trabalho, em lugar de todos"
ganharem o mesmo, como eia o ideaído sindicato tradicional.
No limite, pòdcr-se-ía imaginar a humanidade toda - tuas uma huma
nidade feita de indivíduos autônomos - ligada entre si muridialmente pela In
ternet e por outros meios. Serja já possível, no mundo desenvolvido, iniciar a
eliminação das grandes cidades, descentralizando residências, produções, ges
tão, sem qualquer'perda decòntalo ou informação. ' ' ... , ;
, O que acaba de ser resumido configura, claro) uma visão altamente
idealizada ou ideológica, através de insistentes imagens que enfatizam.o in-
divíduo livre, criativo, lolalmente informado e que não sofre, ao que parece,
a interferência de fato/'es mais amplos - ideologia de classe, publicidade, pro
paganda política,-socialização no.in.lcrior.de certos valores; desde a infância
etc. Uma das imagens preferidas é a da autojjrogramação individual da cultu
ra; da Instrução e do lazer pelo uso da televisão a cabo interativa,, d o video
cassete, da multimídia, da obtenção de dados por fax. Insiste-se em que indi
víduos, mais cio que grupos ou instituições, é que são ligados pelos novos
meios de comunicação.
. , Ao contrário do utopismo aberto de Naisbitt, os Toffler—mais próximos
de fa to do círculo de poder vinculado aos novos interesses e, pela mesma razão,
mais realistas - percebem sombras no quadro, mas são, a respeito, adeptos da
Realpolitih. o pa’rto de uma nora civilização nunca é indoloq.mas o custo social
vale a pena. Cm todos esses autores, a brutal e acelerada concentração da renda
está ausente das análises, como estão os hoindess; o desemprego maciço.é visto
como problema passageiro’que só será resolvido por políticas àfinadas com os
novos tempos, nunca pelas do Welfare slate —um dinossauro da segunda onda.
Os Tofllcr acham qnejierá impossível uma coexistência pacífica da se
gunda e da terceira ondas no âmbito mundial: são duás civilizações com ne
cessidades radicalmente contrastantes c ideologias também opostas, a enfren
tar-se. O “uítranacionalismo”, creem, é próprio dos países que ainda não com-
' pletaram á segunda ónda e dificilmente poderíam atingir a terceira na sua ple
nitude'; a ele se oporia uma "consciência planetária", uma ideologia de “cida-
, dão do mundo”, posta pela terceira onda a trabalhar pela “globalização” a
c qualquer preço dos serviços, finanças, negócios e patentes. Derramamentos de
sangue são, pois, previsíveis no futuro próximo. Mesmo porque a poluição do
mundo, as doenças e a imigração ameaçam a riquèia e o bem-estar minoritá-
' rios do mundo desenvolvido a partir dos países semi ou subdesenvolvidos: as
tensões crescerão e ã “nova civilização da terceira onda” provavelmente guer
reará para estabelecer sua hegemonia política.*16 v ‘ •.
_' - /
16 Consulte-se: TOFFLER, Alvin; TOFFLER. Heidi. War and anti-war: Making sense
qftodayE global chãos. New York: Warner Books,.1995.
107
T e n t a t iv a s m a is in t e r e s s a n t e s : ■
' “ e s t r u t u r is m o ” “ c o m p l e x id a d e ” 1718
17 Na versão deste texto publicada na revista" Tempo, inseria-se também, neste ponto,
uma análise das idéiasde Marc.Àugé sobre os nião-Iugares: como tais idéias apare
ceram no capítulo 2 deste livro, lião voltei a tratá-las aqui.
18 LLOYD, Christophêr. As estruturáriia História. Trád. Maria Julia Goldwasser. Rio
de janeiro: Jorge Zahar, 1995 (a edição original em inglês é de 1993). p. 2 i 5. •
108
dura do inundo social. Neste ponto, o pensamento de Lloyd ç o de Jõrn Rü-
sen se encontram.” *
Lloyd propõe “um arcabouço construído, numa perspectiva histórico-es-
truturista” (expressão qüe usa para evitar confusão com qualquer estruturalismo)
que seja um caminho para solucionar os problemas metodológicos e filosóficos
existentes nqs estudos sociais —em. especial, para transcender velhas dicotomias.
ciência versus hermcnêuliat, explicação versus compreensão, ação versus estrutu-
1ra, mudança versus continuidade, História (entendida como o estudo do unico c
irrepetível) versus Sociologia (tomada confo estudo das regularicladcs do social).
Ao apresentar o tal arcabouço, oferece uma lista de oito pontos nos
quais se nota o desejo de unir elementos do que eu tenho chamado de para
digmas ilumirrista e pós-tnoderno da História. Não me parece, porém, que nos
dê o mapa da mina, ou seja, o modo efetivo e detalhado de vincular esses ele
mentos num todo coerente teórica e metodologicaniente. Mesmo assim, seu
livro avança em .tàl sentido, quando mais não seja por'denunciar e dissolver
falsos becos sem saída e esclarecer pontos que uma discussão até agora bastan
te anárquica obscurecera —pnesmo porque os pós-modernos são dados a afir-
. mações apódícticas, mais do que a refutações rigorosas e detalhadas; etendem
* a ver contradiçõçs insolúveis nas posições alheias, mas nãó nas suas.
Numa atitude contraditória que talvez lhe tosse muito difícil funda
m entarem detalhe, apesar do que prega cm matéria de teoria do social, cm
. política Lloyd é, no essencial, um “pós-moderno”. Digo isto porque.recusa
“planos hòlísticos e utópicos em relação à boa ou perfeita sociedade futura
como base das práticas políticas e prega a adoção de “modestos objetivos po
líticos de curto prazo dentro de uma'perspectiva de igualitarismo e democra-
: cia a longo prazo”.*20Isto. torna duvidoso o que antes proclamou acerca da ím-
109
poi tôncia <la unia visão “estou tu lista”, pelomenos no terreno da estratégia po
lítica em migalhas” que parece ser aquela em que acredita “no curto prazo”
(seria o caso de perguntar: de onde virá o.longo prazo marcado por “uma con
cepção radical mente igualitária e democrática do processo político”, de que
também fala? .... ' - V .. ..
Referir-me-ei agora a uma super teoria em construção, fundada nos
conceitos de complexidade e limite âo caos.2'
• Nas décajlas de 1980 e 1990, a partir dá generalização e de aplicações
numerosas da teoria matemática é física do cao s-q u e tendeu a ser vista còmo
caso especial no conjunto,dos estudos de sistemas cofopiexos comèçòu.a to
mai corpo uma süperteoria que, embora sobre bases muito distintas .(por
exemplo, apesar de evolúcionista, recusa a noção dé progresso), recorda o Ma-
lerialismo Dialético marxista em sua tentativa de unificar numa única visão
integra! de mundo o humano e o natural, mediante a busca de princípios co
muns em pesquisas da complexidade em informática, Matemática, física,
Biologia, Arqueologia, História etc. . . • . .•
O ponto de encontro multidisciplinar é o Santa Fe Institúte, fundado
nos hstados Unidos em 1984, O.uso maciço cie computadores impõe-se, afi,'
pelo fato dc serem os sistemas complexosaltaménte não-lineares e,‘portanto, *
de difícil estudo matemático, • - 'l- -' , '
Durante trezentos anos, a ciência natural concentrou-se cm estudar os
i llSPcctos mecânicos, precisos, repetitivos e previsíveis do universo, usando a Ma-
lemática de Newton e Leibniz. Isto significou, na prática, deixar de lado, em sua
maior parte, os processos que ocorrem no mundo, pois são não-lineares ç difi-
ciimente previsíveis majoritariamente: clima, ecossistemas, entidades sociais,-
embriões em desenvolvimento, o cérebro - todas estas são totaÜdades de dina-
mica complexa enão-linear. Em sistemas assim, estímulos pequenos podem, em
delei minados momentos do processo, levar a conseqüências enormes: ou seja,
difeiençás mínimas nas,condições, iniciais de sistemas não-linearés produzem
resultados não só grandes como variáéeis, razão dc sua imprevisibiiidade.( ■
É lógico que üma Física, Matemática e Cibernética voltadas para siste
mas complexos não-iineares são pofendálriiente capazes de fornecer idéias e
21 Basear-me-ei cm: LEW1N, Rogdr. Complexidade: a" vida no limite do caos. Trad.
Maria Rodolfo Schmidn Rio dc Janeiro: Rocco, 1994. '
-v ' • .
modelos à História e outras ciências sociais. Isto está acontecendo, mas num
1 processo ainda incipiente em que há coisas loucas é um tanto místicas (como ^
a noção de Gaia, o planeta Terra visto como entidade holíslica viva), outras
bem mais sérias. ..
Os:sistemàs dinâmicos complexos ou não-lineares podem ser p ro d ü zi-.
• dos por um conjunto relativaniente simples de subprocessos: isto porque, no
processo de complexificação (que pode ser.bem Curto), a teóríu’prevê e estu
da o surgimento de uni número limitado dc utvatofcs, isto é, configurações a
que tenderão os elementos êm processo de alteração. •
Segundo as teorias e Simulações dos estudiosos dos sistemas complexos,
propriedades globais podem emergii.de interações menores ou locais e, tuna
vez formadas, interagir com os elementos de base. A auto-organização seria
uma propriedade inerente aos sistemas complexos. Os proponentes de uma vi- - -
são como esta não gostam 'dos fatores exógenos, cuja.incídçncia tendem a mi-
nimízar: é o caso da seleção natural em Biologia (sem unanimidade, no entan- '
to), ou das hipóteses migracíònistas.ou invasionistás em^Arqueologia. Também
se opõem aos reductonísmos caros aos pós-moclernos: por exemplo, a tendên-
cia a esquecer as propriedades morfclógicas globais dos indivíduos desde os
achados da Biologia molecular'de Jacqucs Mónod e François Jacob; ou a Hh"
1 tória em migalhas”, o cultu ralismo'relativista antropológico e arqueológico etc.
Os matemáticos, iio tocante a sistemas dinâmicos, haviam teorizado •
. três classes de compórtamento: ponto lixo, ponto periódico, ponto caótico. Os
estudos do caos identificaram um quarto tipo dc ponto, intermediário eíitie
ó caótico, de um lado, e o fixo ou o periódico, de outro, batizando-o “limite
do caos”.' Este último é usado pára conceituar as modalidades rápidas, seja de
aumento da complexidade (emergência de níveis ou patamares mais comple
xos de organização num sistema), seja, pelo contrário, de desmoronamento
.. _ também rápido de uma condição de equilíbrio qüase estável em direção à um
ponto caótico, com diminuição de complexidade. Note-se que, em lais estu
dos, prefere-se trabalhar com um subtipo específico cios sistemas complexos.
• os sistemas adaptativos complexos, os. quais feriam, ao mesmo tempo, a má
xima capacidade dc transformação e á máxima possibilidade de simulação dq
. seus processos em computador,
' Exemplos da aplicação de tais princípios (ou segundo bases por eles in-
: fluídas) às ciências h u m an as- cm estudos que usam métodos e argumentos
111
históricos e arqueológicos —são as análises do colapso de sociedades comple
xas por autores còmo Joseph Tainíèr e.Norraan Yoífee.M
112
. • . Parte 3
H is t ó r ia : o n t e m e h o je
1 ' Capítulo 6
\ -4 ’: s
Fwokama i >.\
H istoriografia O cidental
(atíé aproximadamente 1930)
INTRODUÇÃO
A Historiografia é: I) uma-filosofia ou metodologia aplicada da Histó
ria: modos .de fazer, concepções sobrc"o fazer, exemplificados; 2) o conjunto
das obras históricas produzidas numa época ou num país; 3) o estudo siste
mático de um historiador, escola de historiadores ou época-(ou local) da-pro-
dução histórica, buscando estabelecer padrões de explicação ou compreensão.
Este panorama da historiografia ocidental basear-se-á, necessariamen
te, em escolhas.'Por exemplo: no tocante à Antigüidade, a atenção será focali
zada na Grécia, não em Poma; e a ênfase expositiva recairá mais nos períodos
mais antigos do que no presente, já que é bem mais fácil obter uma visão su
mária.da historiografia pós-1930 do que da anterior.
ANTIGÜIDADE
115
No antigo Oriente Próximo, nenhuma cias civilizações locais tinha al
gum termo em seu vocabulário que correspondesse a ‘'História1', seja no sen
tido da história que os homens taxem coletívamènte, seja no de uma área de
•escritos e estudos separada de outras que tome a primeira (a história feita pe
los homens) como objeto. _> /
No antigo Egito, por exemplo, o mais próximo que existe à idéia cie
uma História-disciplina ou raais exatamente de um texto histórico é guenuf,
termo plural que sé traduz normalmente como “anais’’ Parece corresponder a
relatos sobre fatos passados encarados como objetos, em sua materialidade. O'
registro do passado tomava a forma de; 1) listas de reis (Pedra de Palermo:
anais primitivos); 2) genealogias privadas, por exemplo aquela, tardia, de sa
cerdotes menfitas, estendendo-se da dinastia XI à XXII, ou-seja, por mais de
1350 anos, correta nos pontos em que é possível verificá-la por outros docu
mentos; 3) relatos e imagens de campanhas militares, da paleta de Nanner
(fim do quarto milênio a.C.) em diante; 4) escaravelhos “históricos1’ (só na
XVIII dinastia tardia,século 14 a.C.j. O sentido do tempo; ò início, quando os
deuses viviam entre os homens, é valorizado; valorização do que é antigo, có
pia constante de documentos antigos, arcaísmo da Época Tardia. Por iòngo
(empo, predominou a visão cícíica de um tempo;voltado para as origens: pi ex.
o rei massacrando os agentes do caos. Percebiam-se, porém, duas temporali-
daclcs,.neheh (tempo cíclico) e djet (tempo linear). No Reino Novo, surgiu, a
noção de que os.deuses criant o tempo mas também seus conteúdos,os even-
los; isto trouxe a possibilidade de certa historicidade (os relevos e textos inili-
tares mostram agora guerras é inimigos “históricos”: hititas, líbios, povos dó
mar); também multiplicou o recurso ao$;oráculos. Mas isto não desembocou
cm algo parecido a unia História” como gênero. i
No antigo Israel, a coisa é distinta, por tratar-se dc uma civilização que
conhecemos somente, à parle a Arqueologia, por uma literatura sagrada, sa
cerdotal, de uma religião revelada. Ora, tal tipo de religião depende de poder
demonstrar ás pessoas, ou pelo menos cOnvcncê-las; que o ato fundador da re
velação - as Tábuas da Lei dadas a Moisés pela divindade no monte H oreb^
è aulêntico c, portanto, também o são às leis ednstituições vigentes; e, a seguir,
a mesma necessidade de demonstração e convencimento se estende a outros
elementos; as intervenções de lahweh a favor do povo eleito, ou, pelo contra-,'
i io, para garantir o^seu castigo através dê desgraças naturais e ataques vitori.o-
sos cie inimigos, tomam a forma, por exemplo, de “oráculos” que preveem a
destruição destes inimigos (naturalmente, feitos a postcriori para sei em entro-
duzidos em alguns dos livros bíblicos). O reconhecimento não só de um pon-
' to inicial, a criação do mundo, como também acontecia nò Egito ou na MesoT
polâmia, mas também de outros “pomos fortes” na trajetória de Israel, pót
exemplo: a aliança de lahweh primeiro coirn Abraão, a. seguir com 0 povo elei-
to mediante as Tábuas da Lei, depois com a casa de Davi por meio do orácu
lo de. Natã, o Primeiro Templo de Salomão, 0 cativeiro de Babilônia e a volta
e reconstrução do Templo, mais. tardiamente a idéia apocalíptica e o messia-
x nismo - noções que situavam também no futuro coisas, que deverão ineluta-^
velniente acontecer - criaram uma lemporalidade linear muito mais clara cio
que a que pudesse ser percebida por qualquer outra das-civilizações orientais..
Não era a única forma de rei ato do passad o qu é achamos na Bíblia (que con
tém também, por exemplo, mitos de origem òu etiológicos, reintcrpretãdos a
luz da intervenção divina, por exemplo a história de Juclá e Tamar para expli
car e apoiar ideologicamente o costume do levirato, ou contos folclóricos he-
. róicos como a história de Sansãój, nem o único interesse era sacerdotal: por
•' exemplo, o modo de narrar a história de Saul é favorável a Davi, a narrativa
do fim do reino unificado é favorável à casa'de Davi e a )ndá e contraria ao rei
no de Israel e a cada um cie seus reis etc. Muitos dos livros bíblicos se parecem
a crônicas, pois" a narrativa da relação do Deus.de Israel com seu povo esco
lhido impunha tal forma de expor, que permitisse demonstrar as etapas de
uma relação que passava da escolha à salvação e à ajuda, à recompensa, ao cas
tigo quando o povo eleito (ou os reis de Israel) se afastava de suas obrigações
para com a divindade etc. Na realidade, o que vemos como noção central é a
obra cie uma inteligência e vontade divinas agindo pelo bem do povo que es
colheu a partir de um plano.moral, mas.em luta constante com as vontades li
mitadas, tolas e teimosas dos homens. A divindade prpmete, adverte, julga,'
condena, pune, deslrói; mas também abençoa, salva e recompensa: A história
assim narrada, embora nela se perceba uma linha principal, também admite
rejeições, fracassos, fins, reinídos etc. É preciso sempre lembrar que, na Bíblia,
não temos relatos' contemporâneos ou 'quase contemporâneos dos eventos
contados (ao contrário, por cxemplovdas inscrições militares egípdàs, meso-
polâmicas, hititas ou persas) mas, sim, o resultado de longo processo de trans
missão oral de tradições variadas oú mesmo divergentes, em seguida de edi-
117
Vilo reiiUerpretadom e homogeneizadòra efetuada por sacerdotes, a seguir de
copias manuscritas sucessivas que também introduziram modificações e va
riantes. .Não dispomos de inscrições regias: a única, relativa <Vconstrução do
túnel de Siloã, nem -mesmo nomeia o rei construtor, Se houve tais inscrições
—e umas poucas passagens do Antigo Testamento parecem indicar que sim —,
elas não se conservaram. ' . ' .,. i ’
A História como a entendemos,é uma criação grega. Se Cícero dizia de
Herodotü ser ele o pai da História”, também os intelectuais do Renascimen
to em diante o diziam é dizem, lal ponto de partida reconhecido para a His
tó ria ocidental como -disciplina ruio é algo natural; decorre de uma escolha
Conscientemente feitã pelos renascentistas. Assim,.a disciplina histórica mo
derna e contemporânea é, entre outras coisas, uma retomada e reelaboração *
de uma visão do trabalho do historiador mais esboçada, do que de fato desen
volvida pelos gregos e pelos romanos que á adotaram e em parle modificaram;
também muitos pontos e debates de detalhe foram retomados e reelabórados:
a discussão do utilitaristno histórico de Tucídides e Políbio versus a memória
cios feitos do passado de-Heródoto; a.inclusão ou não na História de gêneros
próximos, como n biografia (os gregos as separavam, o. que foi explicitado por
1'lutarco) eos trabalhosdeantiquáriosetc, D ' '
Os antigos distinguiam daramente a História —que-viam,' conv razão,
como algo ligado aos Inicio de textos longos cm prosa (o primeiro que se pre
servou foi exatamente o de Heródoto), criando um gênero novo - da poesia
épica; Homero podia ser usado às vezes, coibo lonte por historiadores gregos;
e romanos, más a História, escrita em prosa, pretendia separar os fatos das coi
sas imaginadas sobte.o passado antigo ou recente. Heródoto, o primeiro his
toriador cüjo texto temos, reconhecia antecessores; etn especial, Hecatéu de
Milelo, que foi ativojia revolta da Jônia contra.os persas por volta de 500 a.Ç.>
aln-mando que fora o primeiro a pòr ordem e.racionalidade nas genalogias'
míticas e ti adições locais dos gregos. Dioniso de Halicarnasso afirmou, emsèti
texto sobre Tucídides, que a escrita grega da História derivou de descrições lo- :
cais de cidades ou regiões, de ênfase tanto sagrada quanto profana; Também
sabemos que, anteriormente, houve compiladores de listas cronológicas e es-,
crilos biográficos ou autobiográficos. Mais próximos de Heródoto na forma '
devem ter sido Dioniso de Mileto e Xanto,que, já no século 5Üa.C., deram aos
gregos informações sobre os assuntos persas e o reino da Lídia: mas suas obras
se perderam. Tucídides, por sua vez, criticava, além de Heródoto, Helânico de
I.esbos, autor de históricas locais, mitografias e textos de “geografia’ (p. ex,
uma crônica da Ática), mas não dispomos das obras desté último.
Que diferenças devem ter existido'entre Heródoto e seus predecessorés?
' 1) Ele parece ter sido pioneiro na produção de uma descrição analítica dè con
flitos, ao óçupar-se das. Guerras Médicas; 2) e parece ter sido o primeiro a as
sociar dàdos etnográficos {características e costumes dc povõs diversos) e
constitucionais {diferentes formas de organização político) na explicação de
uma O I • va o termo historia
guerra e de seus resultados;.Usa f ' para designar•um in-
quérito ou pesquisa, em especial de tipo etnográfico; mas já no século 4o a.C.
.o termo História, exalamente ao falar em Heródoto e em homenagem ã.ele,
tomou a acepção dè uma pesquisa sobre eventos passados. A combinação Iri-
partite feita por Heródoto —guerras, constifiiições e etnogváfias —não pernia-
Tieceu necessariamente unida em outros escritores antigos dc Historia. Tucí-
dídes, ppr exemplo, privilegiou a relação da análise integrada das guerras e da
história constitucional,-mas deixou ‘quase de todo de lado a etnografia (a não
sçr no relato das origens gregas). Também existiram pesquisas de história
constitucional; ou descrições de constituições como algó feito érn separado. A
equipe de Aristóteles que investigou historicamente numerosas constituições
foi uma exceção, por trabalhar como grupo c não individualmente (caso úni
co na Antigüidade), más houve estudos constitucionais não-históricos, corho-
por exemplo a Constituição de Atenas do “velho oligarca , no passado atribuí
da a Xcnòfonte. No entanto, a noção de haver relevância mútua de costumes,
instituições e guerras permaneceu viva durante toda a Antigüidade, atribuLn-
- do-sc poder explicativo às vincnlações desses campos, todos eles ou dois, à
dois: uma constituição melhor garante a vitória na guerra, mudanças nos cos
tumes e instituições podem levara derrotas etc. Á explicação histórica era, en
tão, uma busca das causas das guerras e das mudanças de regime polí tico, iu-
cídides parece ter sido õ primeiro a separar as causas remotas e imediatas, bem
com o. as causas dós pretextos: No conjunto, os historiadores antigos, foram
mais profundos nas análises das lutas e transformações políticas do que na
quelas das guerras: mesmo Tucídides e Políbio não constituíram exceções. Isto
talvez se ligue a acharem as guerras inevitáveis e naturais (portanto, de expli
cação mais fácil), enquanto não viam assim òs conflitos políticos internos
■ (cujo- entendimento, portanto, lhes exigia mais raciocínios e. explicações).
119
I
121 '
/
lorui UiJ como vista pela sociedade grega: era mais lacil, talvez, conseguir mais
m formação e manter-se mais imparcial ao ser um pesquisador exilado. Os his
toriadores, dependendo do que escrcyessem e das mudanças de regime e cli
ma político, podiam ser recompensados ou, pelo contrário, punidos. Heródo-
k> recebeu um prêmio da pôlis atenfense; Alexandre, o Grande escolheu um
historiador para acompanhá-lo .em suas campanhas, Galístenes.e terminou
por matá-lo. Reis helenísticos e imperadores romanos honraram ou persegui
ram historiadores.Jistes últimos não pertenciam a qualquer comunidade re
conhecida'; não tinham instituições que lhes dessem apqio e chancela.
No Período Helemstko (338/330 a.C -30 a.C.), novidades de peso são
perceptíveis. Num sentido, ascoisas permaneceram conio antes, No século'
2" d.C., um in telectual de língua e cultura grega.do Império Romano, Luçia-
‘ n° t,e Samósata, em seu texto Como escrever História, dizia que um livro de
História deve ser verdadeiro c útil. O historiador deve possuir entendimen
to político e um estilo (retórico) apropriado de prosa. Deve ser de preferên
cia uma testemunha.ocular do que descreve e ser dotado de experiência, por
exemplo militar, para desempenhar bem sua tarefa. Deve começar com um
prdácio, arranjar os eventos narrados numa ordem cronológica apropriada,
compor falas para os personagens históricos.e ser moderado.em seus juízos
morais. Tudo isto seria aceitável para Tucídides, por exemplo, No entanto,
desde as campanhas de Alexandre, novidades haviam-se acumulado. Uma
delas loi a fertilização m útua da História de origem grega e da maneira ju
daica de encarar, o devir dos homens. Flávio Josefo e ós autores de I e IIMa-.'
ail/etis escreveram histórias num modelo grego. Manethon, sacerdote egíp
cio do século 3“ a.C., compilou uma lista das dinastias egípcias e comparou-
n com a cronologia dos hebreus e de outros povos orientais. Os judeus de
Alexandria refinaram e expandiram seu? cálculos cronológicos. B historia
dores como o pseudo-Eumplpo (por.volta de 200 a.C.) trataram de identifi
car a geração de Nfté com contemporâneos babilóiiicos edielênicos. No sé-
cuio 2*’ a.C., sempre em Alexandria, havia polêmicas entre gregos é judeus
em matéria de cronologia e precedência histórica. As .mesclas apareciam
tiimbém nos conteúdos: Eupolemp, uni. residente da Palestina, escrevendo
em 158 a.C., afirmou que MòiséS tiuha dado o conhecimento do alfabeto" âos
íenícios, que por sua vez o.passaram aos gregos. Daí por diante, muitas.fo-
iam as tentativas de buscar uma sincronia de longa duração entre.a história.
122 .
bíblica, helênica, egípcia ç babjlôriica.As enormes bibliotecas do período he- ■
leníslico - em Alexandria, em Pérgamo etc. - facilitavam as pesquisas, coi-
rclações e'compiláçõcs\ Crescentemente,:.havia uma unificação, um a.con
fluência das histórias antes paralelas nuínU espécie de História Universal.
Embora as crônicas e os anais baseados ém cronologias globais (estes textos
são conhecidos como cronògrafias), elaborados no Período, I lélehíslico, hão
nos tenham-chegado - por exemplo, Eratóstenes, no século 3° a.C., e Apolo-
doro, no século seguinte, escreveram livros assim pelo prelácto do livro de.
Àpolódbro, preservado em obra posterior, sabemos que tais escritos trata-
: vam de fundações e destruiçôes de cidades, migrações de povos, jogos, aliam ^
ças, tratados, ações dos reis, vidas de homens famosos etc. Q assim chama
do Mármore de Paros cobre acontecimentos transcorridos do semi-iendárío
Kékrops (1581 a.C.) até 264 a.C.( datando os anais contidos no monumen
to por reis e por arcontes: aparecem compilados.no texto batalhas e vitórias,
eventos políticos, estabelecimento de jogos c festivais, literatos (Homero,
Hesíodo, Safo, Esquilo), além de cometas', eclipses e terremotos. A çpnsCiên-
cia de uma espécie de unidade do mundo antigo tomava.forma. Com o ini
cio d,o Cristianismo, a tradição, agora jiidaico-cristã, mantinha o sentido li
near da Histórjífherdada dá Antigüidade judaica, renovando-o e conlinu.a n-
do»o com o passado recente da "Encarnação, um a história de salvação e uma
noção da Párúsia (segunda vinda de Cristo) como fim dos tempos. A linha
helenísdca e a hebraico-cristã juntaram-se por fim numa obra paradigmáti
ca: a Crônica-escrita por Eusébío de Ccsaréia no final do século 3o d.C.
g, A putra linha - ocidental - resultante dessas cónfluências foi.a deriva
da da Cidade de Deus, um.escrito'do bispo de Cartagó, Agostinho de Hipona,
.do início do século .5» d.C. Para Agostinho, a História é ancilarda interpreta
ção das Escrituras (como, no1final do mundo pagão, havia sido considerada
aneflar para a compreensão, da literatura): . .
-; Tudo, então! que aprendémos da Historia sob re a cronologia dos tempos pas-
• sados ássiste-nòs muito no entendimento das Escrituras, mesmo quando o apren
demos fora dos limites da igreja como assunto de instrução das crianças. Pois fre
quentemente procuramos informar-nos sobre um a variedade de matérias usando
■- as Olimpíadas e os nomes dos cônsules. E;a ignorância do consulado sob o qual-
; nasceu. Nosso Senhor, e daquele sob o qual sofreu, levou alguns ao erro de supor
que tivesse 46 anos de idade qitando padeceu.
'1 2 3
IDADE MÉDIA
Existem sete espécies de pessoas cujas ações sào aquelas mais frçqílentemente
lembradas nos livros de História, a saber, o príiiçipc em seu reino, o cavaleiro na
guerra, t>juiz no tribunal, o. bispo entre os clérigos, o político na sociedade, o pro
prietário cm sua.casa, o monge no seu mosteiro. A tais espécies correspondem sete
espécies de ações, a saber, ã" construção de cidades, a. vitória sobre os inimigos, a
aplicação dos direitos, a correção dos crimes; a organização da coisa púbiica.a gesh
tão das coisas domésticas, a conquista da salvação. . .
125
" h;l aornil' l'nente P«u«s obras de historiadores do passado que pudessem
oncntar método logicamente (bacano, Salústio, Eusébio, Orósio); os livros,
antes da imprensa, circularam pouco è lentamente. A imprensa, então, foi
Uma.novidade de peso, na segunda metade do século 15: ao baixar o precq dos
hviosj numa época em que as bibliotecas também estavam se reorganizando,
tornou possível um uso maciço de livros antigos e modernos, além de-garan-
tir umaéirculação multo mais rápida das novas obras. O panorama,intelec
tual e lustoriográfico sem dúvida sofreu uma guinada a partir de meados do"
século 15. . .
, Htienne GiIson sublinhava ter o cristianismo introduzido uma visão
uova dó devir humano, prolongando aquela, já linear, do judaísmo, e rompen
do com a visão cíclica ou orientada para o passado que apareciam historio-
grada da Antiguidade Clássica. Para os cristãos, a história humana começa
com a criação, tem no centro a encarnação do filho de Deus e se orienta a par
tir de então para á segunda volta de Cristo, a Parusia, seguida pelo juízo final.
A História "aparece, então, como um itinerário marcado por tempos fortes, *
uma marcha em.direção à.Jerusalém celeste'de que falava o bispo de Cartago’
Agostinho de Hipoua, desde o século 5« "Entretanto, em se tratando da Alta’
Idade Média e mesmo do período que se estende até o século 11, é preciso re
conhecer que tal visão, embora possa aparecer nos melhores exemplares de es- .
entos que possamos chamar de históricos num sentido geral, compete edm 1
outra, cíclica: nem todos viam o intervalo entre momentos fortes dá História
como um devir, uma progressão, más sim, como uma repetição de ciçlos de
tipo milenansta. Cada mil anós, o Mal se,desencadeia. O monge cluniacense
Kaoul G laber, uni dos representantes das idéias do Ano Mil, acreditava scr a
História ordenada segundo cadências regulares e repetitivás, pelo qual os fa- '
tos. passados podem alimentar a meditação dos monges c dos fiéis. Na verda
de, é factível distinguir diversas variedades de gêneros históricos e algumas in
flexões importantes, situadas sobretudo.no século 12, sob a influência da ex- -
pansão agrícola e demográfica e da multiplicação de cidades, e nos séculos 14 '
e subi eludo 15, sob o impacto dos Estados nacionais nascentes.
No período que vai do fim do Império Romano do Ocidente (fim do
século 5") até o século Í2, há, visivelmente, uma proliferação de hagiografias:
vidas de sanlps, feitos de bispos, narrativas de milagres e em tornp das relí
quias e suas peregrinações de um santuário ou convento a outro (por.exem- ‘
pl<), quando dos ataques dos vildngs). É óbvio que as funções de tais escritos .
vilão são todas espirituais. As vidas de santos podem, em certos casos, ter fun
ção legitimadora: assini, por exemplo, a Vida de São Sansão de Dol, antes atri
buída ao fim do século 7, ppsteriormeníc (é com bons argumentos) ao sécu
lo 9, serviu de argumento à pretensão do bispo dc Dol a ser reconhecido «m m
titular da Sé.metropolitana da Bretanha, em lugar do bispo de Tours. A vida
em questão, de caráter heróico, foi calcada no texto p eyita Beati MarUtn, uma
vida de MartinhodeToursescrita porSulptcioSevero por yo.ua de 410. .
. . Outro gênero: ps anais oü crônicasOs tinais são redigidos com freqüên-
' da „ós mosteiros e trazem, ano a ano, fatos resumidos secamente, incluindo
.guerras, coroações ou mortes de reis, alénvde prodígios, milagres etc. A crôni
ca, pelo contrário, pode ter amplas pretensões, como a dc Beda, o Venerável,
(séculos 7ü-8°), Chronica dc scxaetatibus nutudi, imitada da de Eusébm de Ce-
saréia, que relata seletivamente o acontecido da criação cio mundo ate 324.
Existem, também, Histórias, à imitação do romano Tácito, por exemplo
' a História dos lombardos, de Paulo Diácono e sobretudo a História dos francos,
do bispo Gregório de Tours, cuja narrativa engloba da criação ato o ano 591,
três anos antes de sua morte, copiando na forma Eusébio e Orosio, exemplos
da Baixa Antigüidade romana. O trabalho tem características mistas. Abunda
em milgres e prodígios, mas também còntéro páginas mais interessantes, por
cxemplo ao descrever a' peste de Marselha em 588, quando discute a prove-
niència do contágio, suas fiises, o auge da epidemia etc. Mas tudo isso para
mostrar o rei e ò bispo que sobrevivem ç, no centro das coisas, servem dç.me
diadores entre os homens e o mundo-divino.. A História explicita uma dialéti
ca do castigo e da intercessão. Quanto ao método, ha lampejos de crítica das
fontes: confronto de documentos diferentes em torno da origem da dinastia
•franca, afastando-se o autor da fesponsãbilidade pessoal por certas afirmações •
pclõ uso da'expressão "muitos contam qúe . ->
Por último,'temos-as biografias e autobiografias, também inspiradas em
. - exemplos antigos (por exemplo, as Confissões dc Agostinho de Hiponativeram
■ «clara influência sobre a Historia cálamitalum, de Pedro Abelardo, no século
12; e, bem antes, ás Vidas dos doze Césares, de Suetônio, serviram de modelo à
Vida de Carlos Magrío, de Eginhafdo, escrita no início do século 9). Eginhar-
. do atribuiu a Carlos Magno traços copiados de Suetônio, relativos a alguns
dos'Césares rémanos, mas o conjunto reflete o ambiente i ntelectual cristão da
eSpoca cnrcilíngiu. Como os outros gêneros, este mostra conhecimento de mo
delos latinos e quase total ignorância dos textos antigos escritos em grego, in
cluindo os cristãos (quando não traduzidos nâ Antiguidade para o latim).
Uf .csPcciaHsta norte-americano, W. J. Brandi, acha que os homens da
Idade MediaUnham mentalidade radicalmente anti-histórica, já que tendiam
aperceber a realidade como descontínua: cada coisa era única e dotada cie es
sência própria, já que derivava de uma idéia divina. Daí não se interessarem
.por relações dc causalidade, nem no mundo físico, nem na História, vendo os
acontecimentos como isolados uns dos outros, produzidos todos por uma
vontade divina arbitrária. Isto levava, mais do que a uma idéia causai - a não
ser que a vontade divina seja considerada uma causa geral a associações de
eventos que passassem sempre por tal vontade (assim, um acontecimento his-
lói ico e um fenômeno climático poderíam ser associados no texto). Disto re-
suliana um encadeamento de1fotos não organizados.segundo-a-causalidade,
mas sim, todos decorrentes da vontade de Deus. Outros especialistas nossos
contemporâneos defendem idéias'simüares, falando de uma identidade essen
cial entre Kagtognfa e História: em todos òs casos, fatos notáveis devem ser
salvos do esquecimento e sua verdade deve em princípio ser garantida, mas
tudo isto para Ilustrar o poder discricionário da Divindade. Havería então,
para Bnmdt, razões estruturais de tipo teológico para a modalidade de Histó-
ny, no sentido geral do termo, possível na Idade Média inicial. Bernard Gue- .
nee, por sua vez, acredita sobretudo em .fatores contingenciais: mediocridade
intelectual de muitos autores; ausência dc formação sistemática dos mesmos,
já que a História não era uma das matérias ensinadas nas escolas, sendo vista
somente como^auxiliar dá exegese dos livros sagrados.
No século 12, nota-se uma transformação, ligada centralmente a uma
"<>ra percepção temporal Sc o homem, nos escritos dos séculos anteriores, pa
recia passivo diante dos acontecimentos determinados pela vontade divina, no
mundo mais dinâmico da Baixa Idade Média os teólogos (Gilbcrt de la Por-
ree, Hugues de Saiut-Victor) o vêetn como um ser ativo quê impõe sua ars à
tuiturm transformando-a - sob a égide da Providência, ?em dúvida. Clérigos»
pertencentes à corte de governantes (por exemplo Oto de Freisingen a serviço
dos imperadores germânicos, Orderico Vital e João de Salisburp a serviço da
corte anglo-normanda) salientam a obra e as áções^ios prinqípes. Agora de
lato se percebe a História como.uma progressão, um progresso. A idéia dc
a,tajs ou cônicas é sucedida pela d ti.se/uss m mtionis, uma sucessão organiza
da e contínua. A percepção diferente da temporalidade condiiz a esforços de
periodização’que tomam várias formas: analogia com os dias dá semana, em
ligação com a criação do mundo, havendo seis dias em que Deus p criou e seis
idades do mundo; Pu então, uma tripariição, ante legem, sub lege e sub gralta, .
isuré, antes da lei de Moisés, sob a lei e sob a graça (ou seja, após a Encarna-
ção de Cristo);ou outro tipo de tripartiçãp,a Era do Pai.-a Erado Filho eaE ra
do Espirito Santo. Unia solução menos teológica era aquela marcada pcfe
transkitio imperüi.isto é, pola transferência da dignidade imperial ao longo dos
séculos, dos reis do Antigo Testamento ao Império Romano e depois ao Bizan- _
tino, passando a seguir por Carlos Magno para chegar aos Otórndas alemaes,
por exemplo. Ou ainda uma transiatio studii, uma transferência dos centros de
saber do Oriente para-o Ocidente: Atenas, Roma, Ak-la-ChapeUe, escolas ca
tedrais francesas da região entre. Reno e Loire. Eimtodas estas versões, a nar
rativa dos acontecimentos torna-se mais coerente c existe uma preocupação
maior com a causalidade. . . , .• ■• t . •
Os cronistas das cruzadas, como Guiberto de Nogent, Cuilhermc de
Tiro ou ornais femoSo deles, Joinville (1224-1317), têm vjsível preocupação '
com ã buscadas razões humanas dasXoisas acontecerem, do sucesso ou insu:
cesso militar, embora por trás do mutável esteja, sempre, o imutável, o plano
divino de salvação: afinal, a visão providencialísta.da História humana persis- ,
tirá até o DÍsburso sobre a História Universal dc Bossuet - clérigo da tendencia
galicana liei à monarquia francesa e crítico do protestantismo, do jansemsmo
e do quielismo, como-teólogo oficial que era obra.escrita.em. lodl e amplia
da e mudada eni 1700. Joinville, senescal da Champanha e companheiro de
São Luís (Luís IX da França) eni sua-campanha do Egito (1248), no fim da
vida escreveu.memórias centradas n o “rei santo” concluídas em 1309. As lem-
' brariças pessoais associam-se á considerável compilação, baseando-se, por
exemplo, cm uma vida anterior de Sâô Luís escrita por Guilherme de Nangis,
o qual, por sua vez, se apoiara no testemunho do confessor dó rei. Hagiógra-
. fo e cronista ao mesmo tempo, Joinville acreditava em constantes intervenções
1divinas nos negócios humanos e n a guerra de Cruzada. Entretanto, relatava
' minuciosamente os fatos diplomáticos, as; negociações após a tomada dé Da- ^
mieta pelos cruzados, a forma de repartição do butim é a insatisfaçao,das tro
pas por ter o rei ficado com uma parte maior do que era costumeiro nas cru-
129
Z;,dils ;mlerioros' düSa'tívíi>em detalhe os costumes dos beduínos, sem mesmo
deixai de proporcionar detalhes de tipo econômico-social, •
Omro lempo de mutações èsleve constituído pelos séculos 14e sobretii-
do 15, como se nota nos cronistas vinculados às monarquias nacionais que se
(urinavam então. Vamos abordar as novas tendências referindo-nos a dois cro-
nislas régios, )ean Froissart (1337-1410) e Philippe de Commynes (1447-1511).
)ean Froissart exemplifica <> que na França se chama historien enirete-
iiik ia de corte em corte, primeiro a serviço dos ingleses, depois ,de 1370, dos
franceses; também serviu ao conde de Fóix, Gaston Phébus, em cuja corte co- •
lelou numa informação. Mesclava a compilação de escritos (por exemplo; se-
s " w llü Pcrto Je-m Le Rd) e informação oral recolhida de testemunhas òcüla-
lcs ° ni « fre n te s lugares do conflito angio-francês (daí viajar muito). Apesar
de conter, de todos modos, erros grave?, às vezes apresenta uma análise refina
da; por,exemplo, ao descrever as divergências surgidas na cidade de.Rennes
quando estava sendo sitiada por Charles de Blois em 1342; os burgueses e o .
povoqueriain entregar-se, mas o representante da condessa de Montfort que- '
na resistir, de modo que só encarcerando .tal representante foi possível n nc- '
gociaçao com o comandante inimigo, que concordou em não executar nin
guém na cidade. Muitas vezes, o texto reproduz yerbatim algum testemunho .
oral. Os aspectos militares são sempre muito ressaltados. Um dos exemplos de
deformação grosseira é o relato da jaequerie ou revolta camponesa de 1358; a
posição do autor reproduz os preconceitos aristocráticos e deforma volunta
riamente as causas do evento e o desenrolar do procésso, tratando de minimi
zá-lo è também, não relatando em detalhe a tremenda matança que marcou a
repressão sofrida pelos campôníos uma vez derrotada a jaequerie/
Plulippe de Commynes nasceu numa família ,de funcionários dos du
ques de Borgonha, sendo afilhado de uni deles, Filipe, o Bom. Entrou em 1764
a serviço de um conde que depois se tornaria o duque Carlos, o Temerário da
Borgonha. Abandonando tal serviço, passou em 1472 ao do rei Luís XI da
França, que o cobriu de honrarias até 1477, deixando-o depois numa semi- ’
desgraça (coisa que o cronista, aliás, mascara em suas Memórias). Morto o ret,
Commynes, p o r ler apoiado qs Estados Gerais contra a regente Anne de Beau-
jeu, foi preso por alguns meses.1Sob Carlos VIII e Luís XII, voltou a gozar do
lavor real. Em várias ocasiões, foi embaixador na Inglaterra, no ducado .da"
Bretanha, na Espanha e por fim em.Veneza. Suas Memórias foram redigidas
entre 1489 e 1492 (livros 1a VI, sobre Luís XI) e entre 1495 e 1498 (sobre a ex-
pedição de Luís VlU na Itália), publicadas em 1525. Em princípio, foram çs- .
çritas para servir de materiais preparatórios de uma obra em latim a ser redi
gida pelo'arcebispo de Vienne, M geloC ato, Historiador de cortefCoinmyiies
elogiava’as ações e o caráter dòs.reis a que servia. Separa-se de outros cronis
tas pòr um interesse menor nos feitos de armas e uma visão um taftto cética
do cerimonial de corte, enquanto o cronista do duque de Borgonha, Otwjer de
La Marche, por exemplo, ocupa a m étadode sua narrativa do governo do Te-^
merário cóm a. descrição de seu casamento com Margarida de York, e sessen
ta páginas com ute banquete de 1454! Commynes menciona as comemora
ções muito brevemente e deixa perceber, por trás delas, príncipes tratando de
déstruir-sé. niutuàmente. O cerimonial e os desfiles mascaram' sórdidas m a
quinações, os casamentos reais não passam dc acordos interessares? alem do
mais, as festividades são ruinosas para as finanças. Em lugar da guerra,que lhe
interessa mais do ponto de vista da evolqção das relações de força entre os Es-
tados e cujos sofrimentos (a. fome, por exemplo) são ressaltados, o centro das
atenções de Commynes - diversas vezes embaixador - é a diplomacia. Esta
mos longe dos cronistas do passado que tentaram decifrar as mensagens divi
nas aos homens por meio dos acontecimentos, mais perto.de Maquia vel (por
certo, contemporâneo do cronista), nessa época marcada pela emergência dos . >
Estados iiacionais. G sentimento nacional é extremamenlc forte em outros
cronistas do século' 15, como Alain Bouchart (cronista do dpeado da Breta
nha) e Robcrt Gaguin, anglófobo e marcado por um nacionalismo francês
exacerbado.
135
modelo e, às fonlcs literárias habituais da História Romana, juntou as ins-
cuçócs em moda no século 18. Em sua escrita podcm_perceber-se dois ui
ves diferentes: o primeiro é o nível público das intenções declaradas dos
agentes; mas aparece em filigrana um segundo nível, em que o leitor, torna-
<o cúmplice do historiador, é obrigado a-tirar p o rsl mesmo inferências de-
sagraç ave.s e cínicas sobre os mencionados'agentes. Apesar de considerável
esforço de documentação, a criatividade de GibboauTtrapassava em muito
suas fontes è seus processos de crítica delas. Seu pensamento era geral e no-
moteüco. A explicação-dos acontecimentos dependia do enunciado das leis '
(|ue os governam; por exemplo: a falta de guerras leva os homens a sé (orna-
iem efeminados;, os impérios se enfraquecem quando Se expandem além de
certos limites; os eleitos econômicos da exploração de outros povos podem
ser imprevisíveis e funestos,' A mais importante e onipresente dessas leis •
umsisle, para G.bbon, em ser a liberdade a única garantidora da saúde cívi
ca, sendo sua negação*causa de esclerose social. Entretanto, este membro dos
grupos privilegiados da sociedade não entendia liberdade e democracia
•como o mesmo: para ele, a fase ideal do Império Romano foi a dos Antoni-
nos, sob os quais “as províncias obedientes estavam unidas por leis e ador
nadas pelas artes” quando “o princípio geral do governo enfsábio, simples e r /
H-nehco . Seu livro celebrava implicitamente a Revolução Gloriosa inglesa
de 168;; os romanos eram criticados por terem obtido e depois perdido algo
semelhante. . ■
■ O pensamento da segundam,etade do século 18 por um lado rompeu
de vez com qualquer autoridade metafísica, por outro, eliminou de tal modo
’’ pie0CUpaÇa° com ° esPedfico e o particular que, reduzindo a História a leis
«u processos gerais, truncou as possibilidades da pesquisa histórica. Aquele '
pensamento tornou-se obsoleto apenas expressado: a Revolução Francesa se
guida pelo Império Napolcônico, sacudiu às certezas do século 18, No mundo "
cio século seguinte, aparece uma preocupação com as diferenças entre as His-
lónas das nações, em lugar de sublinhar de preferência o que houvesse de co- .
mum em suas trajetórias. Cinismo, a mão oculta da razão humana ascenden
te e amp as generalizações passaram a não ser ingredientes suficientes para
uma visao da História que parecesse plausível aos homens do Século 19.
PRINCIPAIS TENDÊNCIAS DO
INÍCIO DO SÉCULO 19 ATÉ
APROXIMÁDAMENTE 1930 ' - \ • .
A primeira parte do sccnlo -1 9 - até aproximadamente 1 8 7 0 - esteve _
marcada por tóndêndas contraditórias,, a primeira das quais pode ser chama
da “Contra-lluminismo”) cujos inícioscíevem ser buscadosna Alemanha. Com
efeito foi-aii que se inauguraram os passos seguintes na constituição de uma
História metódica - a criação da Monumento G ç r n m w n h tm ca pelo arqut-
yistã Augusl Friedrich Pertz, eni 1821 (iniciativa imitada na França em 18?6. ,
Callectum âo dociunmls inêâits sur Vhj.stoirrdeFrance), consistindo na reqnlao
de manuscritos dispersos mas também na compilação do foiclore^e da liteia-
tura da Alemanha. Ò termo Contra-Iluminismo parece adequado devido à
forte reação nacionalista -incluindo a insistência no sentido de uma presen
ça crescente da História alemã nas.escolas- que seseguiu à ocupação napo- .
leônica; c a seu núcleo, logo percebido e assumido no assim chamado Bspii-■
ío de 1813”:Xreforma da monarquia prussiana foi saudada poi to a uma í
nha de historiadores do século 19,de Droysen a Meinccke, como a inaugura
rão de uma era de “liberdade” que, no entanto, em contraste com o atomis-
"m0” qUe se percebia nas idéias da Revolução Francesa, preservava a mtegraçao
dos indivíduos numa totalidade social. O núcléo do impulso h.stormgrafico
esteve nas universidades de Gottingen (de durável impacto na H.stóna do Di
reito) e na nova Universidade de Berlim, fundada em 1810, á qual foram atraí
dos intelectuais do porte do jurista Savary e d o. dinamarquês Larthold Ceorg
Niebuhr, que dominaria a História Romana por décadas, famoso por suas exi
gências, de rigor. ■ ' _
No caso da Alemanha, o impacto da Filosofia sobre as cooccpçocs acer
ca da História foi maior do que em qualquer outro'país ocidental. Destacam-
se as noções derivadas de Kant, He.der e Hegel. Immanuel Kant, na Critica cia -
razão pura, de 1781, separava radicalmentc o observador (sujeito do cm ieci-
mento) de ?eu objeto (a coisa a ser coiihecida), de maneira muito mais taxati-
va do que na epistemologiá moderna^anterior. O conhecimento do observador
’ depende totalmente de sua informação sensorial: não podendo sair de si mes- :
' mo para atingir a Ding-an-skhícoisz em si), o conhecimento se passa inteira- .
137
incute no inlerior do sujeito, tem u ver com suas noções, nascidas da elabora-
çao da informação scnsorial: o mundo exterior existe e nos estimula; mas os es
tímulos dentro de nós e elaborados por nós, e não aquele mundo, è que são a
matéria-prima única do conhecimento. Tais idéias nao tiveram suas possíveis
consequências para a História derivadas pelo próprio Kant: seu únicó texto, so
bre a Filosofia da História está redigido na linha de Voltáire. Mas os alemães da
primeira metade do século 19 tiraram sem dúvida tais conclusões: é impossí
vel a tarefa, proclamada por tantos historiadores, de “reconstituir” o passado, já
(jue, ao contrário çlo mundo exterior, o passado já nem mesmo existe; o que.se
pode fazer é "construir5; no píeseiite do historiador, uma imagem‘do. passado,
uma espécie.de modelo dele que se considere coerente com os dados dós arqui
vos, sem poder garantir qualquer identida de simples, um a um, entre a imagem
assim feita e o passado em si. Das idéias deduzidas de Kant se alimentaram Dil-
tluy,Croce, Collingwood emuitos outros, bem como opós-modernismo pós-
197(). No caso* de I. G. voii Herder, a tendência principal foi contrária à.do ilu-
minismo; este tendia a generalizar para a humanidade; Herder, pelo contrário,
fm fundador da idéia de que cada povo tem seu próprio devir e suas próprias
potencialidades, vistas sempre em fluxo, em movimento perpétuo. Acusava os
historiadores de anacronismo: em lugar de projetar sua época em outras, deve
ria m perceber o que é próprio dc cada época. Esta visão, retomada na segunda
metade do século por Friedrich Meinecke (1862-1954),'foi chamada por este
de Histonsmus, isto é, a substituição de uma visão generalizadora sobre as for
ças humanas na História por uma visãq.ihdividualizadora, negando' qualquer
“natureza hum ana’ dadá de uma vez por todas, imutável, e qualquer “lei da
História” ou "lei social” do'tipo daquelas buscadas por Cibbpn oq pelos filóso
fos iluministas. Por fim, C, W. F. Regei foi uma espécie de anti-Kant, já que não
concebia uma separação.entre o sèr humano c o mundo. Este último não pas
sa de uma projeção do Espírito:,a mente c o nuindo se unem numa relação dia-
léfica que se completa quando se percebe que ambos formam um todo que só
é diferenciado (enganosamente) pelas.abstrações do entendimento humano..
Poi trás de um tal projeto filosófico se percebe um projeto nacional; em 1793,
Hegel escrevera que nao acreditava que os alemães tivessem menos sentimen-
to do que outras nações pelos méritos dos antepassados; e augurava Uma era
em que isso se tornasse central no pensamento alemão. Hegel se'identificou
fortemente com a reforma do Estado prussiano em 1813.
Ihiminismo e Conlra-Iluminismo, cm seu contraste; marcaram o.sécu-
k> 19 Inteiro e mesmo o século 20, De um lado, a razão, as leis da História, o
evolucionismo, a humanidade (embora, posteriormente, hicrarquizada pelo
colonialismo): Comle, 'lâine, Fustel de Coulanges,-Gabriel Monod, Henry
Thomas Buclde; do outro, a diferença entre MatúrWissenschaft (ciência natiri
ral) e Geistes- o u ■Kuüunvissenschaft (ciência do espírito ou ciência,cultural):
autonomia da História (edas dências sociais) em seu método diante das cién-
ciaà da natureza, indivldualização de povos, personagens históricos e épocas,
ausência de leis. Esta última tendência também foi caracerística de historiado
res fora da Alemanha, comò Carlyle, Macaulay ou Miçhelet.
. Entre os historiadores situados na linha do Contra-Iluminismo na pro-
pria Alemanha, Leopold von Ranke (1795-1886) merece menção especial. No
século do Màch$taat, ó centro das atenções foi com frequência o Estado prus
siano visto como uma .realidade não.somente política mas ética (um Estado
garantidor das liberdades) - um valor em si meámo. A ética é algo centrai para
ús historiadores alemães: uma ética que supostamente não é imposta de fora
. aó.s fatos, mas sim, percebida nos próprios fatos. Isto implicava um forte sen
tido de que o que acontece é exatamente o que deve.acontecer: o que existe e
necqssário. Vimos que uma das linhas de força da historiografia alemã cia õ
“historismp”, que implicava um programa de trabalho cm que ò conhccimén-
to histórico deveria evitar esquemas conceituais aplicados ao passado e, em lu
gar disso, analisar instâncias individuais e eventos concretos. Nesse programa
geral pode-se dividir o século passado em dois grandes cortes: 1820-1870, isto
é, até a unificação alemã; e 1870-1914. No primeiro período, apesar de Seu for
te nacionalismo, os historiadores alemães tinham afinidades com intelectuais
estrangeiros,'sobretudo ingleses; no segundo, fecharam-se no próprio mundo
alemão, desenvolvendo uma ideologia fortemente chauvinista. Em reação, por
exemplo, até a década de 1960, Ranke não voltou a ser publicado na Inglater
ra oú na França. Em sua própria épòca, entretanto, sua influência foi enorme,
dentro e fora 'da Alemanha. Leopold von Ranke é característico das tendências
maiores do século 19 pela dicotomía nele presente: um método de. conheci
mento particularistá; c uma substância desse conhecimento marcada, pelo
contrário - implicitamente e de forina não necessariamente consciente para o
autor pela buscaide verdades universais, em princípio impossíveis cm tei-
mos da teoria que aceitava - presentes, porém, na prática, operacionalmente.
.139
Unui de suas expressões mais citadas,.a injunção de que o passada deveria ser
recaaslruído ivlc cs.cigenllkh gcwesm, habitualmeole traduzida literalmente,
como realmente aconteceu”, leva a vê*lo, erroneamente, corno um positivista
obcecado pelos eventos verdadeiros. Na verdade, porérir, no contexto de é p o -'
ca, o sentido parece ser mais “como aconteceu em essência” O termo “essên
cia’ era, aliás, muito usado por Ranke, que escreveu a seu irmão èm 1838 sçr
seu projeto baseara visão do passado no conhecimento do que aconteceu e na
intuição da essencia daquilo que aconteceu. É verdade que também escreveu,
em 1825, que este desiâcrãtuin de atingir a essência permanece incompleto e .
deixa o historiador permanentemente insatisfeito. Gomo sempre acontece, há
algo dc ai bilrário na escolha de um guru ou símbolo dc uma tendência pelos
especialistas em historiografia posteriores: um discípulo de Ranke, Theodor
Mommsen (1817-1903),,com'suas 1500 publicações, professor-em Leipzig,
I5i eslau e Berlim, poderia ter sido tal símbolo no caso d a assim chamada “es
cola metódica alemã” tanto quanto o próprio Ranke; e talvez tenha até forma
do mais pessoas e influído sobre mais historiadores, por encontrar-se no apo
geu na época muito mais profissionalizada posterior a 1870.
Outra influência marcante na primeira parte do século 19 foi o Ro
mantismo, Com a queda de Napôleão e a Restauração dc 1815, o impacto do
Uimiinismo recuou durante algumas décadas em toda a Europa ocidental, in-
cluindo a França. Abriram-se as décadas do que pode ser chamado*de “histo-,
riografiü romântica”, cujo traço mais importante.é uma revolta contia a frie
za de uma visão estritamente racional; mesmo assim, muitos dós românticos
ei am exigentes quanto à documentação e participavam do rigor crescente, ini
ciado como vimos já no século 17 e fortemente impulsionado - primeiro pe
los alemães - no século 19, aplicado à busca, ordenamento e crítica das fontes
e da mlormação por elas proporcionada. Os românticos muitas vezes critica
vam os Üuministas por sua visão generalizante pouco apoiadaeiri fontes e fa
tos: um dos críticos-mais ferozes foi Thomas Babíngton Macaulay (180ü-;
1859), em sua apreciação sobre Humè como historiador da Inglaterra. Os ro
mânticos admiravam a literatura de Goethe e Schiller e também foram m ar
cados pelos modeios do jurista Sayigny e.do romanistá Niebuhr, atnbOs de
Berlim, acerca de como proceder rigofosamente na pesquisa. Mas, acima de
tudo, investiam num estilo què tornasse a História viva. e interessante: sua His
tória era altamente literária e retórica. Na sua maioria, ós liistoriadores rq-
140
mânücos educaram-se uas décadas de 1810 e 1820 c estiveram em'seu auge
produtivo nas décadas dc 1830 a 1860. Seu credo foi expressado por Thomas
Carlyle (1795-1881) ao dizer que a única verdadeira poesia é a História quan-
do contada com “verdade”; ou seja, ps românticos queriana escrever estilisti-
camente com brilho, mas acreditavam no rigor e na verdade de suas reconsti
tuições. Macaulay ou jüles Michelet: (1798-1874) - um admirador de Vico —
subscreveríam sem dificuldade o sentimento de Carlylè, embora talvez não a
letra de sua afirmação. Michelet, por exemplo, tinha verdadeira.obsessão com
o “sangue”, ou seja, com a reconstituição da vida . Verdade poética c técnica
narrativa estavam no centro para eles, bem como uma tendcncia eventual a
dissolver a História na atenção biográfica a heróis e heroínas, mesmo se não
negavam a existência dè um mundo social a ser tratado o mais globalmcnte
possível (Michelet foi mais longe do que qualquer oUtro romântico nessa via,
pelo qual os Annalcs o proclamaram seu antepassado), liste foi um período em
que os livros de História rivalizavam com os romances conto best-selkrs (nos
padrões de vendas de livros do século 19). Nos Estados Unidos, a sumidade,
nesta íinha. foi George Bancrofl (1800-1891), impressionado pelos ingleses;
formado na Alemanha (em Gõttingen) e tendo conhecido Michelet; foi em
baixador na Alemanha. 1
Ranke. era um luterano convicto, Bahcrpft um congregacionalista, mui
tos historiadores românticos ingleses eram anglicanos militantes: mas esse pe
ríodo anterior a 1870 marca, na verdade, os últimos estertores'significativos da
noção providéncialista da História, mesmo assint, mais em lapsos ocasicínais
de autores como estes do que no núcleo do que acreditavam e escreviam conto
historiadores. Gpnformc avança o século 19, e com ele a~ciência contcmpórâ-
' néa e a Revolução Industrial, o ciçnlificismo e a laicízàção ou secularizàção da
cultura em geral c da História em particular avançam por Sua vez. Q vocabu-
■lârio cristão para falar do mundo e das coisas não e nècessamente enfrentado,
é crésceníemente ignorado. Unia Historia Econômica surge na esteiia da Re
volução Industrial: W. J. Asbley, Wiljiam Cuhningham; na Alemanha, ITilde-
brand, Rosçher, Knie, Schmoller e depois Max Weber. Houve, sobretudo na
França, uiti anüclcricalismo explícito de muitos historiadores, sobretudo sob
a III República, mas esta não foi pm toda parte a pauta da sçcülarização. Sim
plesmente, a consciência coletiva assumiu novas visões de mundo e um novo
vocabulário, confinando a religião doravante a ser uma atividade sepai a da,
141
delimitada, que nada tem a ver com o dia-a-dia profissional de um hislorta-
dor católico ou protestante, mesmo quando seja praticante. No campo das
ciências naturais, caso se deseje citar uma influência mais importante do que
as outras sobre a visão do social, provavelmente,convenha escolher o evolucio-
nismo, sobretudo na versão darwínistá, publicada em 1859 pela primeira vez
e cujo impacto maior nesse sentido já começou a ficar muito visívei nas déca
das de 1870 c 1880. Isto foi visto, retrospectivamente,-como uma retomada das
tendências iluministas. Marx, p o r exemplo,, mencionava Danvin com fre-
qflôncia, bm todos os países europeus, ernborá mais tardiamente na Inglater- *
rn, esta tendência foi acompanhada por aquelas da profissionalização (cáte-.
dtus, te vistas especializadas, bibliotecas e arquivos públicos organizados, niu-
seus, grandes coleções de documentos históricos nacionais.etc.) e da presença
ampliada do ensino da História no primário e rio secundário. A preoçupação
com o ensinó fica patente em.uni detalhe que podemos tomar como exemplo:
a Rmic Historique havia sido fundada por M onod em 1876; quando o funda- ’
dor foz uma retrospectiva do que nela fora publicado até 1907, ou seja, em
suas primeiras três décadas, descobriu que,.37 dos artigos tinham a vercom o
ensino da História. O auge do nacionalismo facilitou uma grande presença da *
I tistórid nos currículos de todos os países,- como parte da formação de u m a .
consciência nacional. 1 • ■ • . .
A Alemanha foi uma referência, muito citada pór historiadores de to
rtos os países, para um enfoque “científico” aplicado ás fontes. A França, po-
i em, pretendeu.trazer tal enfoque para a própria concepção dos conteúdos, re
tomando a tradição do Ilumínismo mas, agora, a sso cian do -aaum ^t r ata m en - '
to muito mais metódico da documentação. Nesta linha situam-se Guizot,
1hiets c, já mais característica mente de um cientificisnro assumido em todas
as 1tentes, Gabriel Monod (1844-1912) e Léon.Denis Fustel de Còulanges
(1830-1889). Se a visão explicativa de Mafx foi minoritária entre os historia-
dotes no século 19, Fustel de Goulanges não oferece uma versão menos nomo-
Iética e explicativa, embora em. seu caso bas.eada na religião e nas instituições
como elementos explicativos centrais (como o era a Razão para Cqmte), .
Monod foi um pioneiro da historiografia como ramo dè pesquisa, ao
publicar em 1894. o livro Lcs ipaitres de Vhistoue. O representante maior da ten-
dênciá científica é ao mesmo tempo fnetódica na Inglaterra - onde ela perma
neceu m inoritária-foi Henry Thomas Buckley, com sua Historyofchnlization
• . 'J
in Fm^ ívkI (1857-1861), deixada incompleta, marcada por um determinismo
estrito. A crítica desse livro de Ruckley por Lord Àcton, previsivelmente, foi
marcada pela afirmação de que a verdadeira^História tem necessariamente o
indivíduo em seu centro; o lórde ficou chocado com a tentativa de ati ibuit nina
espécie de personalidade própria a multidões, exércitos, ou quaisquer coletivi
dades. Uma veia cicntifidsta de maior influência foi a de Henry.Maine, com
seu Ancient Iciw (1861), obra que continha a idéia de uma transição, de uma so-
ciedade.báseada no status, para oulra, baseada no contrato.
Na Europa de língua alemã, um desenvolvimento peculiar foi o da
História Cultural nas modalidades'dó século 19, em vinculação com a neces
sidade de elaborar uma consciência nacional no processo de unificação e, a
seguir, para ò.Império Alemão, numa visão já deformada pela noção pseudo-
ciéntíficá de “raça”. Por um lado, temos historiadores como Karl Larnprecht
(especialista de História comparada das culturas vistas como entidades indi- ■
vidualízadas), identificado de perto com 6 Estado prussiano como núcleo da
cultura alemã e de seu conteúdo “etico e, portanto, çotn um nacionalismo
alemão cada vez mais exacerbado. Por outro lado, uma modalidade distinta
de'História Cultural, relativamente pouco admirada em vida do autor, “des
coberto” só depois, levou a que surgisse A cultura do Renascimento na Itália,
do suíço Jacob Burckhardt (1818-1897), primeira tentativa de escrever um li
vro de História onde narrativa e cronologia passavam para o. segundo plano,
no qual fontes não-escritas, pov exemplo as artes plásticas, e fontes literárias
(em especial a poesia) se tornavam quase tão importantes quanto os docu
mentos dos arquiyos. O principal.seguidor de Burckardl e seu método foi o
holandês Johán Huizinga..
A História científica à francesa, herdeira do fiumintsmõ, e o marxismo, -
de mesma estirpe, de um lado, do outro o'idealismo alemão em suas diversas
modalidades (tendo comó núcleo mais consistente o hístorismo), entraram fi
nalmente em choque frontal, na Alemanha - epicentro da “História metódi
ca” (ponto pqcífíco) mas também do idealismo historistá —no assim chama'-
,do Methodenslrcit da década de'1890, num momento em que 0 historismo foi
codificado metodólogicamenté. pelos neokantianos Dilthey, Windelband (ó
inauguvador da divisão em “ciências nomòtéticas” ou das regularidades e
“ciências' idi o gráficas” ou do pàrticular), Riclrert eMeinecke. Estes últimos
criticaram a possibilidade ou mesmo que fosse desejável uma História çientí- -
143
Ik‘l> lK*° contrário, defendiam Laiuprecht e os.marxistas. A posição liis-
u>risla conseguiu um grau de convencimento maior do que no passado ao
criar uma alternativa durável ao m arasm o do ponto de vista epistemológíco
e metodológico, com Max Webcr (1864-1 920), çújos raciocínios de tipo teóri-
co-metodológico foram interisificados depois de 1904-1906. Retomou a no
ção - exposta por Dilthey - da Verslehen ou “compreensão” corno alternativa,
nas ciênçias sociais, à “explicação" das ciências naturais, mas criticando o seu
iuüiicionismo esteticista, iambém apreciava a crítica mordaz de Ricfcert às
pielensões científicas em História, mas não o tipo* de descrição,delalíiista de
tspccificidades que praticava. Sua solução consistiu em insistir na importân
cia dos conceitos para as ciências.sociais e a, História, Em sua maioria, os his
toriadores aceitavam que devessem buscar características comuns aos fenô
menos que estudavam c tratar de classificá-los; mas fugiam de quaisquer con
ceitos generalizantes. Weber propôs o conceito-chave de tipo'ateai, que unia
em sí a concepcção kantiana acerca das idéias, que ria nelas uma imposição
snnplificadora da mento sobre a complicação irredutível do mundo externo,’ a
um outro sentido do que fosse “ideal’’: como.indivíduos, grupos, instituições
.ou formações sociais agiríam num mundo-ideal que fosse totalmente racional
e consistente. Na verdade, os dois sentidos do'termo “ideal” não são de todo
compatíveis, de modo que intermináveis discussões se sucederam'ao . longo
das décadas, depois do fim da Primeira Guerra Mundial, acerca de como en-
lender, afinal de contas, o conceito dè “tipo ideal”. Seja como for, Weber mos
trou com um exemplo famoso a construção de um modelo em que o pro
testantismo e o capitalismo implicavam um ao outro - a possibilidade de um
método não-marxista que permitisse dar conta, da complexidade das coisas
sociais. ' .
A partir sobretudo de. 1900, a França vi yen umá modalidade própria de
debate do método . As transformações que se faziam/presentes estiveram vin
culadas a uma ligação estreita de alguns historiadores com a Geografia Huma
na de Paul .Vidai de ía Bíache desde as últimas décadas do século 19, dando .
origem a uma vigorosa História Regional - setor dc estudos em que.um dos
futuros fundadores dos Ammles, LucienFcbvre, preparou seu doutorado, de
fendido érii 1911, sobre Filipe II e o Franco-Condado (região francesa situada
a sudeste do país). Febvre chegou a escreverem 1953,'exagerando se.m dúvi
da, tei sido.a Geografia^ dè Vidai de la Blachc a iniciadora de um enfoque que •
144 '■i
desembocaria, mais tarde, naquele dos Âtmalcs. Henri Berr (1863-1954), Um
filósofo da História mais db que um historiador, veemente crítico da “Histó
ria tradicional” (principalmente política, militar e diplomática), propugnadov
■dé uma unificação da História e da Sociologia, que via como dois pólos de
uma mesma coisa, recusado quando pretendeu ingressar no Collège de France
em 1912, foi o fundador da Kcnie de SynthèseHistorique. e o coordenador.da
coleção “Uévolution de Fhúmanité”: tanto tuçieii Febvre quanto Marc Bloch
f colaboraram na revista e na ,coleção;e ambos, colegas na Universidade de Es
trasburgo depois da Primeira Guerra Mundial, já mostravam em seus escritos
- sendo Bloch de longe o mais talentoso dos dois (seu'assassinato pelos nazis-
• tas em 1944 garantiu, porém, que a liderança de Febvre fosse niais duradou-
•í " ■; ra) - claros indícios, do que vi ri a a ‘sero conjunto de pontos de vista dosAn- •
.nales. Mesmo antes da fundação da revista, eles se interessaram pela Sociolo
gia de Maurice Halbwachs e Émiie Dqrkheim, pela-Antropologia de Marcei
Mauss, pela Psicologia de Henri Blondel, pela História Econômica em desen
volvimento na França (a Rcyue d‘Históire Êcotiomiijue foi fundada em. 1908).
Os livros de Bloch sobre os reis taumaturgos (1922) e de Febvre sobre. Rábe-
lais (1942) - este já posterior à fundação dos Annalés em 1929 - preparavam
a futura História francesa das Mentalidades. _ ,
Como se disse ao começar, a ênfase desta Introdução à Historiografia
Ocidental seria mais nos períodos mais antigos do que neste. Vou, então, sim
plificar bastante as tendências posteriores á 1930, a começar pela que.'teve ng
revista francesa Antudcs. EcotwrnleSy.soctétcs, dvilisations, iniciada cm 1929, o
seu epicentro. Falo de tal revista êm sua fase de 1929 até 1969, isto e, o que se
• conhece como^ primeira (de Blòche Febvre) e a segunda (de Fernatid Bmu
dei)1gerações dos Annales, posto que, em minha opinião, após retirar-se Btau-
•. dei, o periódico em questão deu mm a guinada radical em outras direções,
muito distintas quanto concepção da História. Note-se que a escolha de pò r
no centro a França - devido à sua longa influência predominante sobre os paí-
: ses la tinos - significa deixar de lado, por exemplo,'as fortes especificidadcs das
trajetórias historiográficas e epistcmológicas da Alemanha, da Inglaterra e dos
Estados Unidos. .
' As características mais marcantes da tendência histonográfica que gra
vitava em (orno da revista Annales entre 1929 e 1969 foram, a meu vci, ás se-
• guintes; 1) a crença no caráter científico da.História, mas como.ciência cm
145,
constmçao: n História antes baseada na narrativa deveria, paia construir-se
como ciência, tornar-se uma “História-probleriia” ou seja, passar à formula-
çao cie hipóteses de.trabalho explícitas; 2) uma abertura crítica às ciências so
ciais, sem reconhecer fronteiras estritas entre elas.vmenos estruturada do que •
tais ciências, a História deveria delas importar problemáticas, métodos etéc-
nicas (entre estas, as da quantificação sistemática e o uso de modelos forma
lizados); 3) o desejo de formular uma, síntese histórica holística ou global
acerca das sociedades humanas no .tempo (sendo que as preferências dos his
toriadores dos Annalcs tendíarp. a ’concentrar-se na ldade-Médiã e no início
dos Tempos Modernos), mediante a articulação dos enfoques voltados, para as"
técnicas, a economia, o poder (este com freqüència pouco considerado na prá
tica) e as menlalidades coletivas, também tratando de perceber os contrastes e
arnlmias entre tais setores vistos historicamente; 4) a descrença em uma His- -
lória baseada em fitos e personagens Isolados e a preferência pórsujéitos
trausindividuais, coletivos, dècorrendo disto uma ênfase na economia, na de- ' •
mografía, nas mentalidade», socialmente consideradas; 5) o desejo de associar ■
outros tipos de documentos (paisagens agrárias, testemunhos orais, cultura
material, iconografia etc.) às fontes escritas, tradicional mente as mais usadas
pelos historiadores; 6) uma preocupação - sobretudo a partir dos escritos de ;
Fcrtiand B raudel- com o caráter múltiplo das temporalidades; tempo quase
imóvel dá Geografia, tempo longo dás estruturas, tempo intermediário das
conjunturas, tempó rápido e superficial dos eventos; também arritmias entre "
as diferentes estruturas do social (a técnica evolui mais lenta mente do que a
economia, esta do que as mentalidades, por exeulplo); 7) a preocupação com
o espaço, herdada da Geografia Humana de Vidal de la Blache, levando à mui- '
tiplicação dos estudos históricos de mares e oceanos, ou seja, dos espaços que
estes unem e separam ao mesmo tempo (o Mediterrâneo de Braudel, o AUân- .
tico dc hréderic Mauro, o Atlântico e o Pacifico de Pierre e Huguette Chaunu);
_B) a convicção de ser a História “ciência do passado” e “do presente” inàissó-
luvelmente: a História-probiema é uma. iluminação consciente do presente c
petmitiiia entender m elhoras lutas ,de hoje, enquanto o conhecimento do
passado só é. possível partindo daquele do presente do historiador. •
Rstas concepções dos Annalcs mostravam tòr fe confluência com outra'
das grandes tendências que se faziam sentir- nessas década?: o marxismo,' cuja
presença entre ós historiadores foi muito mais um fato do século 20jdo que do
19. Os principais pontos dc coincidência (máxima, claro está, no caso de his-
1
' toriàdores como Pierre Vilar e Albêrt Soboul, ao mesmo tempo próximos dos
1 Annales e marxistas).eram os seguintes:.1). o reconhecimento da necessidade
de uma síntese global que explicasse tanto as articulações entre os níveis q u e ,
•fazem da sociedade uma totalidade estruturada quanto das especificidades tio
desenvolvimento de cada nível (entretanto, uma dife ren ça importante, quan- _
’ to a isto, vinha da pouca inclinação teórica nias não metodológica - dos un- • '
nalktes e do fato de não disporem estende uma teoria acerca da mudança so
cial); 2) a convicção de que a consciência que os homens de determinada épo-
ca têm da sociedade cm que vivem não coincide com a. realidade social da cpo-
' ca em questão (isto é, cumpre efetuar um desvelaméntoras estruturas funda
mentais não se dão na superficicda descrição, dos fatos); 3) o respeito pela es-
' pecificidadç histórica de cada período, dê cada sociedade: por exemplo, as leis
econômicas descobertas pelo estudo do capitalismo conteniporâneo não são
automaticamente aplicáveis ao mundo pré-capítalista; 4) a inexistência de
• fronteiras estritas entre as.ciências sociais, sendo a História uma delas; 5)-a
• vinculaçgo da pesquisa histórica com as preocupações e interesses do.presem ■.
te; 6) alguns dós’ atinalistes - minoritário^, no entanto —aproxima raln -se da
"noção marxista de uma determinação em última instância do conjunto.social
. pelo nível econômico. . '
. . Este paradigmai derivado do Iluminismo, passou a estar sob forte crí-
., tica a partir de 1968, más não me ocuparei disto neste capítulo: eSta antologia
contém numerosas outras análises das tendências mqis recentes.
147
\
im,s tísli,r central mente vinculada no desenvolvimenlo da História-discipli-
"íO, ela poderá conservar-se no interior dás estruturas profissionais íortemen-
le institucionalizadas - cuja manutenção depende de um financiamento que
muitos governos já não se dispõem a garantir - herdadas do século 19. Volta-
tá então a História a ser uma atividade de diletantes, cuja presença nos currí
culos se torne bem menor do que ocorre atualmente? No Brasil, um primeiro
ensaio tio reduzir a importância cia História-disciplina no ensino foi o dós
“listmloS Sociais” é das “licenciaturas curtas*, deletérias iniciativas.do regime
militar inaugurado em 1964.,Mais recenteménte, unia Comissão de Especia
listas dç Isnsino da áreà cie História escutou em Brasília, sem qualquer ambi- -
gílidiide, ser dcsiâeratum do governo (ná época o de Fernando Henrique Car
doso) a regulamentação das normas curriculares para adequá-las à nova lei de,
Oitcli izes.e Bases da Educação (o também famigerado substitutivo Dárcy Ri
beiro), não em História em separado, mas em algo que sè chamava'dè “Ciên
cias Humanas . Resistiu-se, de ínomeiito com sucesso. Por quanto tempo se
poderá resistir? -
' * .) .'
Chama-nosa atençãq, outrossim, o ciado seguinte: a profissionalização
da História vinculou-se.estreitamente, como vimos, ao nacionalismo em seu
auge dos séculos 19 e 20. Poder-se-ia então perguntar: sobreviverá âs tendên
cias contrárias da mundialização atual? Continuarão c>s governeis, na maioria
dos países, a garantir as'grandes despesas necessárias à infra-estrutura que
permite o trabalho dos historiadores: profissionais, bem como aó íuncioha1-
mutilo das instituições em que atuam os próprios historiadores? Em'certas
parles cio mundo isto parece bastante duvidoso;
O estudo panorâmico da historiografia ocidental,, a nosso ver, mostra
um forte impacto das mudanças e dosvcpaflitos sociais (no sentido genérico
deste termo) sobre as concepções e a configuração da disciplina histórica.
Uma historiografia atenta ao “cultural” mas não ao social seria, portanto, um
(i;emendo contrasenso. ■
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VILAR, Pierre. lnidadôn al vocabulário dei ahálisis histórico. Trad. M. Dolors
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' Capítulo 7
A H i s t ó r i a n a v ir a d a d ê m i l ê n i o :
FIM d a s c e r t e z a s ,, c r i s e .d o s
151
tomológica pós-moderna e o rclaiivismo ciillurnl foram, naquela ocasião, fús-
(igados pelos dois filósofos, cpie se fizeram defensores de um enfoque da dis
ciplina histórica baseado no realismo epist etnológico, enquanto o historiador
defendeu a tese contrária. Talvez, em parle, en; função cie tal episódio, BenUey
comenta que, a partir da constatação de um já' evidente recuo filosófico do ce
ticismo epístemológico pós-moderno, “dentro de .uns'trinta anos” talvez os
historiadores voltem * acreditar na possibilidade de aceder à Verdade históri
ca.12Sou menos pessimista do que ele quanto* áos prazos, nesta época de infor
mação instantânea oú rapidamente difundida, mesmo porque há já alguns
liistoi iadores, dotados de vivo interesse pélá epistemologia e pelos métodos de
siilí .ircm de estudos, berri conscientes, e isso'há vários: anos, do esgotamento
das posturas pós-toodernas e culturalistas à outrance, òs quais, por tál razão,
m os liam-se atentos - como também estarei nesta palestra - ás repercussões
possíveis do declínio do pós-modérnistno sobre o futuro imediato da Histó-
ria-disciplinad '
Meu tema tem á ver, então, com o que acredito ter mais p to habilidades-
de acontecer nas primeiras décadas do século 2f que ora se inicia, no tocante
a como os historiadores encaram o seu ofício. Tentarei avaliar,' entre as tendên
cias mais gerais detectáveis atualmente nos estudos históricos, quais deverão
continuai importantes e quais, pelo contrário, poderão vir a perder fôlego.
Dada minha tendência a discutir tais questões num nível que não é o habitual
nas discussões de Historiografia, ou seja, num contexto .mais abstrato e gene-
lalizante -- em suma, mais metateórico - do que é comum nesses debates, tal
vez convenha começai* pela exposição .do que parece ser um dilema que se tenr
evidenciado com insistência, no mundo dos historiadores, ao longo das déca
das e mesmo por mais de um século até agora, desde que a sua profissionali
zação, começada Tio século 19, trouxe esporadicamente à baila —émbora não
153
çsi mcliciil entre as disciplinas liumanas c itquçlns dn nídureza; nesta peispecti
va, os enfoques liolísticos do social surgem dificilnumlcr
Os objetos a que se aplicam os dois Ângulos mencionados são íntima e
até mesmo mextricavélmenlé ligados. ílm lese, poucos negariam tal vínculo.
Mas não há dúvida, dc que a alternativa indicada exista e que possam achar-
se, majoritariamente, estudos que enfatizem bastante unilateral mente, seja
um ângulo, seja o outro. É, mesmo, muito difícil associá-los numa síntese rcal-
mente satisfatória..Acho que alguns historiadores - em,especial, em minha
opinião, os melhores historiadores jnarxistás, por exemplo Pierre Vilar e al
guns dos britânicos-, conseguiram aproximar-se dela em seus trabalhos, além
de defcudê-la como desideratum em escritos teórico-mctodológicos.5Trata-se,
porém, de exceções que confirmanía regra, não da regra mesma. '
Seria difícil negar o caráter, inseparável dó material e do mental. Ne
nhuma ação individual ou coletiva poderiâ exercer-se sem estar referida ao
' •«■' ' b • _i
mesmo tempo a um projeto, ou a uma ideologia, ou a um mito etc., que tenha
curso na sociedade de que se trate. Uma instituição qualquer (igreja, escola,
justiça, por exemplo) se.caracteriza tanto pelos gestos è práticas materiais ri-
lualizadas que exige quanto pelas representações que supõe. O,sociólogo
Claude Javeau escreveu que uma sociedade, enquanto ç. “agida” por aqueles
que a integram (e, reciprocamente, age sobre eles), é ,simultaneamente pensa
da e imaginada pelos seus membros.6 Se há algo impossível de continuar dc-
r e í t , , » . , ^ , em seu centro, a W ;
: raz5o ^ q ^ t ó r i a C ú l t ^ r poder
SériePapers,47, lt. , •■
155'
1958,10 com que trataram de eliminar da Antropologia todos os aspectos que
não fossem simbólicos ou mentais..TVata-se,de um enfoque baseado numa di-
vis;lo estrita do trabalho e do campo de atuação entre: a Sociologia, disciplina
que se ocuparia da "sociedade” e suas interações; e a Antropologia, clisãplmà
cujo objelo seria a cultura, amputada de mu.itos' elementos, nò entanto bem
presentes em numerosos trabalhos antropológicos elaborados anteriormente;
Note-se <|ue a opção pelo recorte culturalista (oirperspectivista) da Antropo
logia costuma levar consigo, entre os historiadores - se bem que isto não seja
obrigatório uma preferência pelo enfoque micro e pelo trabalho com gru
pos pequenos de pessoas, com comujnidãdes reduzidas.. .
N;i atual trpdição francesa da História Cullufai, que tomo como exem
plo, o historiador cultural pôdb ser definido da maneira seguinte:
10 KROEBKR, Altfed L.; PARSONS, Tálcott. The concept of ctilture ánd of social sys-
lem.Ammojii Sociologiail Revicw, 23,'p. 583, Í958.
11 PROST, Ahtoine..Social y cultural, indisodableinente. In: RlOUXçJean-Pierre; SI-
RINELLI, Jean-François. Pará um:historia.cultural México: 'Ihúrus; 1999. p, 146. ’
Trad. do francês sem indicação do tradutor.,
12 WILSON, Peter J. T h e do m e stica tio n o f th e l m m a n specics. New Haven: Vúle Univer- ’
sity Press,' 1988. p .U 7 - ISO. ...
A atitude dos historiadores culturais diante das concepções holísticas
do social é, no entanto, variável. Sc existem aqueles que pretendem dimensio
nar a História Cultural como alternativa à História Social com pretensões glo-
balizadoras, como é o caso de Antoine Prost,1314*6para outros de seus cultores ela
st; situaria ao lado ou até mesmo, em última análise, á serviço de uma Histó
ria atenta à totalidade do social, a seus “sistemas”.1'1 •-
Também a forma da relação, metodologica do historiador cultural com
as lições da Antropologia pode variar, pia é assim definida por Robert Darn-
ton, discípulo de Clifford Geertz;
Esta indicação de método tem a ver com a noção de alter idade , cara à
Antropologia atual em muitas de suas vertentes..No entanto, se um historia
dor, em lugar de em Geertz, buscar apoiar-se metodologicamente na Antro
pologia de Marc Augé, igualmeilte pós-moderiia, igualmente voltada paia a
noção dc alteridade, mas achando-a também no.contexto de úiha etnologia
do que c “próximo”, Isto é, por exemplo, da própria Europa Ocidental, encon
trará pistas metodológicas bastante diferentes.1''
.1 5 7
Nüo é meu objetivo, entretanto,explorar criticamcnle a epislemologia
ou a metodologia que, grosso modo} pode-caracterizar-se como pós-moderna
“ cojsa que já fiz mais de uma vez neste antologia. Interessa-me, aqui, fazer in-
leri'ogações/ acerca. de sua superação. Tenderá ela a ser superada num futuro
próximo ou previsível? Natural mente, os cultores da (Nova) História Cultural
acham que a tendência em .que se inserem será duradoura. Amorne Prost, por
exemplo, afirma coisas como ás seguintes: r) •
158
tecimentos. lisse recolhimento tem sido criticado por ser socialmente irresponsável
‘ (c, era última instância, muito reacionário).'* . - .
. ' IS BLACKBURN, Simon, D icio n á rio O x fo r d ife Filosofia. Tiad. Desidério Murcho et al.
.Rio de íaticiroT |orge Zahar, 1997, p,. 306-307 (verbete “pós-modernismo”). A res
peito dos possíveis efeitos dá atitude pós-nioderná sobre a firá xis polílico-social, cf.
BÉDARirpA, François (Org.). T h e social resp o n sih ilily o f lhe h islo ria n . Providence,
RI: Berghan Books, 199.-1. ' ’
19 PROST, Anloine, Social y cultural, indisociabletnentc. In: RIOUX, Jcan-Pierré; Sl-
RINELL1, Jban-François. Pára u tia h isto ria cu ltu ra l. M6dco:Taurus, 1999. p. 154:
; 20; Ibid.- . ; ‘ ' - " - 1 ,
159
. disciplina, cie modo que, finalniciitc, fica conlnuliiória e alé incoerente ;
solução proposta.
Bm Umção, pelo menos em parle, dessas e oulras tlcbilidádes filosófi-
eas de base,’1a Nova História Cultural, em qunlquur de suas'variantes - que
"o *ilant°, apresentam diferenças consideráveis entre si -,.e.itra com .fie-
qiiência em-contradiçãó consigo.mesma na sua própria prática historiògráfi-
Cn>. ,,cgund0 únpíicitamènte, no que de fato faz, alguns de seus supostos. Se
guindo Ceo cg lggers, vamos apresentar dois exemplos/
Um. d °s esforços mais ingentes da mencionada História Cultural em
suas variadas posturas e especialidades tem sido a desconstrução sistemática'
, da unidade da cultura ocidental, de qualquer coerência que se pudesse per
ceber em sua História, de sua visão de mundo. Tenta-sc acabar com os gran
des objetos da História dessa cultura como eram antes percebidos (muito es-,
pecialmente, as grandes revoluções sociais, a começar pela de 1789). Uma"
historiadora feminista Como Joan W. Scpu julga a metodologia científica e a
episletnologia ocidentais irremediavelmente contaminadas pela dominação
masculina e opta por pregar militantemente para a História de.Cónero uma
posltira política radicalmente desconstrucionistac* Mas, como afirma lggers
com razão: . '
23 IGGERS, Georg G. L a d e lic ia histórica eti d si$lo XX: Las tcmlenc ias aclviates. Trnd.
‘ 'C lcm em Bicg. Barcelòna: Labor, 19 9 5 . p . 8 6 , A citação contida no final da passagem -
- . ré produzida e de Jlirgen Kocka.
2 4 I b i d ., p . 9 1 -9 2 . • >■ ■ • ' ( . -
25 B U R K E , P eter. O v e itu r e : ih é N e w .H is to ry .U s p a st a n d its f u tu r e . In tB U R K E , P e ter
(O rg .)! Newpcrspectim on hislorkal writing. C a m b rid g e : P olity; O x fo rd : Jilackw ell,
1-991. P. 18.
Kl c o m o lexlo de lxiscc|iic susdlasse (im tlchalc acerca da História da Vida Pri
vada cm iumva um Uum, brincalhona'-Jd que efetuei uma espécie deparo-
dm da noçao de “sociedade de corte” lão invudida hoje em dia (a meu ver, ex-
c e s s , m m e n t e invocada) num contexto específico de História Moderna da Eu-
i<>|>a a partir de Norberf Elias, aplicando-a a contexto totalmente diverso da
Alia Idade Média - creio ter conseguido mostrar que a análise de determina
do aspecto da História do sul da Escandinávia daquela época, no plano do pri
vado e do quotidiano, estaria falsificando a realidade se não mostrasse que, em
ultima análise, as condições de possibilidade do objeto estudado passaram n e
c e s s a r i a m e n t e por respostas econômicas a tuna crise agrária, técdica, ecológi
ca c demográfica ocorrida (numa escala temporal variável segundo as regiões
do sul escandinavo) entre os anos 200 e 500 de nossa era; respostas' que, ex
pulsando duravelmente os filhos mais novos das famílias aristocráticas da
possibilidade de acesso aos recursos rurais, criaram, as condições para que
existissem as cortes dos grandes senhores e dos reis com ás suas características
cuiitirais específicas.2672
Para voltarmos a Iggcrs uma vez mais, não parece possível, segundo ele
uma explicação plausível da derrocada da Alemanha Oriental e da União So
viética em 1989-91 que deixe de lado os procèssos políticos e cconômico-so-
cats - Por mais que, sem dúvida, também preocupações e enfoques em torno .
da cultura, das vivências etc. tenham indubitavelmente contribuições a dar. O
que recomenda o autor é o seguinte, com o que mcú acordo é total:
Nenhuma das três grandes correntes de pesquisa dc que tratamos (...) -isto é
a Historia Política, narrativa, que-se orienta para pessoas e acontecimentos; a His-
ona Social, orientada para as estruturas c os processos; e a Antropologia Históri-
’ “ exPcriências vitais - acha-se em condições de dar uma expli
cação satisfatória. Juntas, porém, podem Contribuir àcompreensão destas transfor
mações revolucionárias.2’
162
matar por razõ.es-klcológicas (c nlé estéticas, como mostra o interessante doem -
mentar■lo-Arquitetura da destruição) justifica eliminar das discussõesucerca do ,
“espaço vital” {Lebeusrmnu), tal como levado ã prática na expansão alema con-
ereta,-historicamente verificada, quaisquer elementos relativos ao acesso a re
cursos naturais, mercados e mão-de-obra, independentemente do conteúdo
específico de tal noção no próprio ideário nazista? Mesmo se se admitir a pos- ,
■sibüidade de um enfoque do nazismo e dos demais fesçismos em termos de ob
jetivos como “salvar o coletivo, a comunidade, da aniquilação ante o outro, o
estranho/estrangeiro” se o nazismo, ao instalar-se no poder político comoue-
: gime, mediante “pactos e alianças cpnVoutrasiorças conservadoras, foi obn-:
gado “a abrir mão de parte de seu ideário inicial”, é,óbvio que isto leve efeúos
muito concretos, importantes para o historiador, sobre o que veio a ocorrer na-
, quelas décadas de 1930 e ;Í940. E, ao se falar, numa abordagem do fascismo
como fenômeno geral, de “um grupo dé pessoas incapazes (...) para o amor”,
acho dé importância primordial saber muito precisamente, em cada momento
e contexto, de quenu precisamente, se está falando, pois dc outra modo.se cor- ,
■ rerio o risco de caicem considerações genéricas e nãode todo históncâs sobre
alguma natureza humana ou alguma “característica‘intrínseca’; por exemplo,
de alemães ou de italianos - noções, a meu ver, estéreis c rmesmo, perigosas
quando ahislóricas ou só yagamente historicizadasd". p
■O, Acho que as diatribes de muitos pós-modernoS contra o llummismo, a
ciência e a razão, a partir de diversos aspectos da história do século 20, tainbém
. trazem implícita uma concepção negativa detomiináda - ingênua, genenca e
âhistórica - acerca do que seja a “natureza hum ana”;** as simplificações e con- ‘289
28 As citações entre aspas são cie SILVA, Francisco Carlos lix e ira da. O? fiiscknws In;
REIS'FILHO, Daniel Aarão et ai. (Org.). O s ê c u lo X X . ;R.o dc jane.ro: Cmtizaçao Bra
sileira 7000, v. 2:0 tempo das crises: revoluções, íase.smos e guei ras. p. 1<«.1" » " “
Note-se que, mésmo tendo tomado este texto como entrada ao exemplo, nao acho .
qúe o ü a autor lenha incorrido nós riscos-por mim mencionados. ■^
29 ta l visão tbicxplicitadaXima vez,em vérsão claromenle reacionária: falamos da teo-
t tia do ser humano como “primata assassino'' dotado de agressividade e teu ítona -
dade^leííoutãw fê tm n s w ifh fo s , portanto inatas e inevitáveis.lalconcepção, elalo-
” rada primeiro na África do Sul por Raympnd A. Dart sem ter grande impado de nn-
do; foi depois amplamcnlé difundida no que, cm minha opinião era um esforço para
demonstrar ü caráter “inevitável"*) envolvimento dos Estados Unidos no \ elnã. cf.
ARDREY, Robert. Á fric a n genesis: A personál invesíigation mto the anunal ongms
' and nature o í maivNew York Athenenm Puhlishers, 196l.E.interessante notar como
. •' as edições desta obra se multiplicaram a partir de 1967 em foram de Im o de bolso.
163
fusões a que procedem, por epuuplo contundindo a ciência como tal e seus
usos sociais concretos, confusão esta vinculada a outra, entre ciência e tecno-
loj;m, seriam bem mais difíceis de sustentar-se os autores que nelas incorrem
perguntassem de. quem (de quelagentes ou sujeitos sociais), exatamente, se tala.
Assim ao ler um livro interessante do antropólogo Marc Augé, um problema
central parecia-mc evidente; o autor percebia o sujeito unicamente no nível in-
uvidual, pelo qual as forças sociais e econômicas que regem o que chama de
oUperniodcrnidade se tomavam, em seu texto, esfumadas, difusas, difíceis de
captar em detalhe.» Isto se tornaria impossível se examinasse, ao lado das çons-
lalaçfles sobre as vivências culturais no mundo contemporâneo, fatores políii-
cos e econômicos sem d ávida, atuantes nele, já que, ao fazê-lo, seria levado a dar
nomes aos bois. '
■ . . As carílcterísticas da História em sua fase pós-moderna ,ou da Nova
l lislona Cultural que, em minha opinião, tenderão a declinar no que têm de
unilateral,.podem- ser em parte explicadas jntrinsecamente, mediante aspectos
inerentes a própria história da História. Assim, por exemplo, Tubo Halpêrín
Donghi ahrma que a mudança de rumo ocorrida na disciplina'histórica des
de o início da década de 1970 reflete “as novas exigências geradas por seu pró-
pno desenvolvimento interno” - mas, também, as modificações profundas,
que o mundo verii sofrendo.51 -
O que quero dizer e, então, claro: pensò ser-necéssário vincular, com to- '
das as mediações que se quiser, o que acontece com a História-disiipíim âqui-
o <jue esta acontecendo com as sociedades humanas cm cada período da hiV
Un ia que os homens em sociedade fazem. Neste sentido, estou dé acordo com
a observação de Be.uJey no sentido de,serem os anos da dócáda de 1960 (em'
especial :os movimentos sociais de diversos tipos ocorridos ém vários países, in-
clmndo o Brasil, em 19Ô8), não um ponto'dc partida mas, sim, um final* Foi
a pariu da década-seguinte que tomou forma mais visivelmente, por Um lado30*2
164
uma resposta afirmativa, ncoconscrvadora e neoUbqral,” por outro, uma res
posta “chorosa”, negativa - que é o próprio pós-motlernismo, não por acaso .
chamado por alguns de “orfandade de tuna geração” e cujas repercussões no
m undo dos historiadores é, neste capítulo, um dos assuntos centrais- * ã cons
tatação 'de que mudanças muito profundas estavam alterando as sociedades ;
humanas. Parece-me evidente que muitos dos elemcntos’de ambas as reações
existiam dèsde antes e também creio que o “final” ocorrido em 1968, especie de
ajuste de contas pruito confuso com uma visão de mundo que ja não parecia •_
refletir as còisas como eram, foi preparado por uma consciência que emergiu,
pouco a pouCÒ, entre 1955 v 1265, de que as circunstâncias já não eram as mes- .
mas, estavam-se alterando em direções que pareciam, a muitos, assustadoras,
imprevisíveis e desestabilizadorás," ■ >
Às versões ufanistas (neoconservadoras e neoliberais), bem conto as pos-
mddernas, sobre o que vem acontecendo nb mundo désdc meados do século 20,
prefiro a análise de Jean Lojldne, de que tratarei dç resumir alguns aspectos.’63*6
33 Penso, aqui, nas diversas teorias ufanistas c altamente ideológicas a respeito da eta
pa atuai do capitalismo, no geral ou quanto a algum de seus aspectos; mas também _
em teorias aparentemente V a i a i s ’que partiam, por exemplq. de enganadoras no
ções a respeito dc um mundo “pós-industriaP ou algo semelhante. Vei poi exetn-^ ,
p]0. HALBERSTAM, David. O p ró x im o século. Trad. Wpltensir Dutra. Ru> «te.Jqnci-
' ro* Campus, 1992; TOFF1.ER, Alvin; TOFFLER, Heidi. Ç m U in g a n m a v ih z d tm r .
The politics ofthe Thlrd Wave. Atlanta; Turner, 1995 (reedição de maleruus pvevia-
mente publicados); NÁISBITT, John. G lobal parado.*. New York: Avon, 1993, NE.
^ CROPONTÉ, Nicholas.it v id a d ig ita i Trad. Sérgio Tellaroli, Sao Paulo: Companhia
. das Letras, 1995, Num sentido critico: l.ASCH, Christopher. T h e rcvolt o f l h e e lm s
a n d th c betrayal o f d en w cn icy. New York: Norton, 1995. .
34' Parà uma visão “cíb dentro”, pós-móderna, da Histódmdisciplina ver: JENK1NS,
' S l - t h i n k m iástory. London: Rourtedgc. 1991; MUNSI.OW,- Aiun. Dcctms-
history. lindom R outledge, 1997; m r n X ^ W r ü n t g A n c w U ^
- tory. Uhaca, NY: Cornell University Press, 1999. Para uma crittca inteligente. Illi
' MELFARB, Cerlrude. OH lo o kin g in to th e abyss : Untimely thoughts on culture and
society. New York: Vintage Books (Randorn Mouse), 1994. .
33 CARDOSO, Ciro Plamarion, No limiar do século XXI. Im REIS F1 ^ 0 , Daniel Aa-
, 3o et al. (Org.). O século X X . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 3 , 0
: tempo das duvidas: ilo declínio das utopias às globalizações. Rio dc Janeiro: Civili
zação Brasileira, 2000. p. 249-275. '( ' '
36 LOJKINE, Jean. À ivvohtçcío m fo n n a c io m t. Trad. José Paulo Neto, S3o Paulo: Cor-
• tez, 1995. . * •. i
165
I.
167'
MaS, na -medida mesma em que continuou existente e atuante a dimensão so
cial, coletiva no sentido forte, do humano, demandas urgentes decorreram de
transformações agora muito mais claras em seus contornos do que apareciam
em 1970 (de seus aspectos perversos uvas lambém de suas virtualidades coibi
das). Outrossim, os critérios de eficiência e relevância praticados pelo capita
lismo em sua nova fase começam já a afetar em forma direta o pequeno inun
do institucional.dos especialistas da História, nascido, em última análise, dos
processos e convicções que deslancharam as reformas universitárias do início
do séculp 19 e, mais adiante, a profissionalização dos historiadores. Disto tra
tamos no capítulo precedente desta antològiá. A situação de que resultou, no
passado, uma História profissional mostra-se, hoje em dia, abalada em pro-
jundidade, o que, em muito menos do que os trinta anos previstos por Ben-
‘tley, obrigará o avestruz, diretamente ameaçado em seus próprios interesses e
em suas fontes dè renda, a tirar a cabeça da areia.
I.
« Parle 4
A l g u m a s q u e s t õ e s se t o r ia is
DE TEORIA E MÉTODO
I
, ' ' C a p ítu lo S
• ■ r ‘•
■ • • '• * . ■ v
■ ■ ■' " •• (
Esta definição era acompaqhada dc duas delimitações destinadas a cir
cunscrever sua área cronológica-e as ^circunstâncias sociais concretas de' Sua
aplicação. Eis aqui a primeira:
V ' \ r
A segunda reza: " •. < ‘
171
ça° clllc servcm cle lwse ÍIS «iiiÇões. A segunda veta n aplicação do conceito de
nação a toda a lo n g u íssim a W pfé-capitaiista, ou pré-moderna, transfor
mando o conceito em algo aplicável unicamente a certas configurações típicas '
do último meio milênio, inidado.no século 15. R a terceira define-os fatores
conjunturais que explicariam, era cada momento que fosse considerado, a ;
mmobilidade dos elementos sociáis envolvidos na “questão nacional” e pór-
t.iuto suas grandes variações, na medida em que classes e interesses diferentes
entte si levam a que se defenda, ataque, utilize,.mobilize, organize etc. ascole-
lividades que constituem ou podem vir a constituir nações.12 ’■ ....
11curioso que, numa época como a atual/em que há muitò Stalin dei
xou <le ser referência feérica no seio do marxismo, com maior razão para não-
mar.vistas, a proibição que formulou de uma aplicação do conceito de nação
ao mundo pré-modemo —proibição cujo sucesso derivou em boa parle da.
gi.mde voga que, em certa época, teve séu artigo - cqntinue em vigor, aceita
rpiase consensualmente, até mesmo pòr pessoas que não guardam á menor re- f
cordação da origem desse veto. .
fsta atitude não cóstüma causar estranheza, como deveria: talvez, por
estar muito longe de configurar um fenômeno isolado. Numerosas temáticas
sao afetadas por uma forte tendência de correntes importantes das ciências
sociais a cavar um abismo entre, de um i:ído, tudo o que.aconteceu antes do
scculo 16, do outro, os processos iniciados com a expansão gradual do capita- ■
lismo, Assim, ao se falar em “público” e “privado” no mundo pré-modemo,
não faltará quem intervenha para afirmar que Norbert Elias éu algum outro
autor “demonstrou” que só com a Modernidade surgiram as condições de se-
paração do público e do privado. Isto não impediu, é claro, a elaboração de. -
trabalhos de grande valor, por exemplo, sobre-o público e o privado na
Anligtiidade Clássica, ou quê utilizassem de algum modo tal oposição.* Algo
análogo acontecerá com a economia, em especial no que disser, respeito ao
i72^ . '•.■ • -
mercado, se algum pulnnyiurto ou webcmno ortodoxo estiver presente.345
Quando cu çra estudante de graduação de História, portanto entre 1962 e
1965, qualquer tentativa de usar o termo “imperialismo sem ser para desig
nar uma fase do capitalismo contemporâneo, à maneira do conhecido texto de
bêriin, provocava imediata correção feita com certo ar de superioridade dian
te de tanta ignorância e impropríedade.1E, já.o dissemos, síndrome similai
acometia e continua acometendo, as discussões em tom o das nações.
• Com uma atitude assim deseja-se, provavelmente, evitar o anacronis
mo ou o etnocenlrismo. Unia coisa, porém, é reconhecei à expansão capitalis
ta ó status de uni corte tão importante na História humana quarto, pim exem
plo, o que se pode atribuir ao surgimento de uma agricultura estável ou das
primeiras redes urbanas. Coisa muito diíerènte é reservar, n priori, liminar-:
mente, aos últimos séculos certas temáticas e trocas de idéias, sem qualquer
discussão prévia —comio se fosse.uqi truísmo. ■
;. Pste capítulo pretende'refevir-sp ao debate em torno das construções
identitárias coletivas, procurando, salientar os aspectos for temente ideológicos.
que interferem negativamente nas discussões.
Poder-se-ia indagar se tal temática ainda constitui tema dc debate —no
sentido forte desta palavra - entre historiadores. Que.no início do século 20,
por exemplo, no contexto do marxismo, a questãq nacional tenha sido foco de
importante controvérsia, em especial nos anos que vão de .I9tb a 1913, na qual
"intervieranvRosa Luxemburgo, Lènín, Otto Bauer e, como já se mencionou,
Stalin, é algo bom conhecido. Mais amplamente, muitos outros socialistas, en
tre çíes Jean Jaurès, se interessaram pelo assunto nas décadas que precederam _
o início da Primeira Guerra Mundial: um período marcado na França pelo
. caso Dreytus, na Europa em geral pelo auge do nacionalismo na tase de forte
173
expansão colonial, por uma escola pública que difundia ideais patrióticos ex-
Iremos, pela discussão do internacionalismq do movimento operário'etc.56
Também não parece duvidoso que a questão nacional ainda possa ser elemen
to dotado dc intensa capacidade de mobilização e trágicas repercussões no
mundo de hoje, como se viu recentemente, por exemplo, nò banho de sangue
ocorrido na Iugoslávia. -
No pequeno mundo dos historiadores, entretanto, é duvidoso que ain
da existam na atualidade, partí utilizar a oposição de termos que faz Gérard
Noiriel, grandes controvérsias, embora abundem polêmicas, por vezes violeli-
tas. Parao autor, uma controvérsia científica é um enfrentamento entre indi
víduos que falem, no essencial, a mesma'linguagem e partilhem o mesmo sis
tema .de normas. Umápolêmica científica opõe indivíduos cujos critérios para
elaborar juízos expressem universos intelectuais mu tuamente incompatíveis.1’
Assim, a discussão acerca de ter sido a. sociedade européia dos séculos. 16 a 18
eslameiital ou de classes, ou seja, o debate cujos líderes em.posições opostas
foram Roland Mousnier e Erncst Labrousse, bem como aqutle, marxista, ca
pitaneado nas posições êxlrenias por Maurice Dobb e Paul Sweezy, sobre o ca
ráter do feudalisíno e a transição ao capitalismo, configürafam controvérsias.
Já escaramuças entre “holís ticos” e “pós-modernos”, em torno das noções
opostas de História que defendem caracterizam o que Noiriel chama de polê
micas científicas. A pulverização e despolilização (no sentido da escassez de
militâncias que por sua vez não sejam pulverizadas) da História, bastante pro-.
fundas,-não favorecem hoje em dia o surgimento dc controvérisas como as
mencionadas. •: '
No Brasil, logo antes do golpe militar de 1964, uma controvérsia de
peso sacudiu as ciências humanas e sociais em torno da noção de reformas dc
' base, acompanhando-se de outra, referida ao caráter da sociedade brasileira e
de sua possível transformação. Na atualidade, num-Bfasil què, pela primeira
vez què èu saiba, carece de projeto e é empurrado com a barriga por succssi-
175
bem, pretensa mente, rociais e culturais. Quando um especialista da História da
nnlign Ásia Ocidental mencionava, por exemplo, os acadianos da:Baixa Mesó-
polâmia no terceiro milênio a.Ç:, cuja língua (o acadiaiio) pertencia sem som
bra cie dúvida ao grupo semita, não estava pensando unicamenteem tal fato '
linguístico, mas também em certos traços físicos heredítariamente transmiti
dos, em características culturais e aíé mesmo numa predisposição à proprieda
de privada que distingúiria os acadianos semitas dos sumerios nâp-semitas! "
Partindo dè concepções dessa ordem; “descobriram-se” .'no antigo
Oi ienle Próximo asiático - para-continuar exemplificando com aquela parte
do mundo na Antigüidadc:- três povos (ou quatro, conforme os autores)
entenda-se raças/grupós lingüísticos/culturas: os asiânicos, os semitas e os;
mdo-euiopcus. A situação complicava-se ainda mais pelo fato de que, se as
línguas Semitas c as indo-européias formam sem dúvida grupos lingüísticos
consistentes, pelo, contrário os “asiânicos” e/ò.u “mediterrâneos” não passavam
de lantasmas, isto é, decatcgoria(s) hipotétiça(s) e abstrata(s) em que se,jun-v
lavam artificialmente línguas, disparatadas, sem "qualquer parentesco efetivo
em muitos casos. Mas, uma vez construído (ou seja, inventado), uni novo gru
po tornava-sc de imediato um instrumento de explicação totalizadora da His
tória, utilizado por sábios aparentemente sérios sem qualquer hesitação.
Tomemos como exemplo o que Contenau tinha, a dizer dos “asiânicos”.
Começava por definidos como “povos que não são nem semitas nem (...)
indo-eiiropeus” - uma categoria, portanto, confessa dam ente residual - e por
afirmar que o nome a eles atribuído não constitui qualquer juízo acerca de sua
origem (desconhecida). Isto não o impedia, a seguir, de lhes atribuir uma for
ma específica dè linguagem (aglutinante), uma religião definida e um tipo fí
sico próprio!’ .
Ninguém conseguiu chegara uriia definição coerente e convincente do
que seriam as ' raças humanas”. Para clizê-lo de outro modo, trata-se de um
conceito cientificamentç falido.910Por esta razão, certos autores preferiram usar ■
>
conceitos diferentes, cujo recorte se fazia de outras maneiras c cujas intenções
17Ó
eram bem menos ambiciosas:, falou-se de “estoques" ou “modificações persis
tentes” de “grupos étnicos” (sempre mesclados), cúnharam-se termos como
“grupo genético" e "estoque genético" etc.'1 ' ( ' , ; ;
Um segundo problema teórico é que a.equação povo (mesmo quando
não seja definido racial mente)/língua/cultura é falsá. Sumérios e acadianos,
na Baixa Mesopotâmia do terceiro milênio a.Ç,, falavam duas línguas difeien
tes mas compartilhavam a mesma cultura (vi da urbana de um tipo determi
nado, estruturas econômico-sociais, religião etc.). A Síria, por volta do século
18 a.C,,'aparece aos arqueólogos dotada de notável unidade cultural; mas
sabe-sc que era, então, um mosaico complexo de povos e línguas. O aramaico,
nó primeiro milênio a.C„ tornou-se uma língua difundida em todo o Orien
te Próximo, sendo falado, portanto, por pessoas de diversos povos, pei tencen-
' tes a culturas variadíssiinas. .. ! . 1
Por razões como as qüe apontamos, houve historiadores qüe,' pruden-
tementé, resolveram ignorar de todo a referência a raças e mesmo a conceitos
substitutivos delas (estoques genéticos, grupos étnicos etc.), pisando um ter
reno menos minado e também menos fugidio, por exemplo nos casos em qüe
decidissem classificar os povos antigos que estudavam atendo-se unicamente
à sua distribuição segundo grupos lingüísticos.11Nq_entanto, isto deixava sem
solução questões importantes.relativas ao que faz ã identidade.de um grupo.
Uma alternativa, à antiga equação povo (ou raça)/15ngua/cultura foi o
conceito de etnia. Eis aqui unia boa definição do que seria uma etnia, tomada
de T. DragadzC: \ •. v. ' .
11 Por exemplo: DESAITAYES, Jean» L es çivilisa tio its d e V O rien t a n cien , Paris: Ar-
. thaud, 1969.p. 53-66; ROUX, Geovgcs; A n c ie n l Jraq. Harniúnclsworth: Penguiii,
' - 1983.p.«S-89. ’ ' \ ' •
12 DRAG/VDZE, T. The place ofUellmos” theory in Soviet anthropology. In: GEI.L-
NEK, F.. (Org.). Sovie.l a n d W estern anthropology. Lòndon:Duck.worth,:i980. p. 162.
177
Um conceito como este ou algum outro similar passou n aplicar-se cor-
renlemenle a diferentes períodos e povos. No entanto, em anos recentes, ten
deu a encarar-se com atenção unilateral ou excessiva às questões simbólicas
ou, mais em geral, “mentais” o que costuma caracterizar as definições de et
nia hoje praticadas. Por exemplo esta, de Andiony D. Sriiith:
178
'■ legenda cm liebieu com inglês que afirma '-Permaneceremos homens livres,, . g
Masada não cairá de novo’1, o historiador Pierre Vidal-Naquet - que, natural- ,
mente, não pode ser suspeito de anti-semitismob —escreveu um artigo cnfico
e desmistificador desse mito político contemporâneo; e .0 fez. em nome da vei -
dade.histórica.10 \
«_ Abordando há pouco menos de duas décadas o conjunto das visões do
século 20 sobre o conceito de nação, Anthooy Smith propôs classificá-las nas . •
modalidades seguintes: a) modernistas: a1tração seria um fcpòmeno estiila-
mente moderno e contingente, nascido das próprias condições da Moderni
dade, não sendo legítimo atribuir-lhe algum caráter natural ou necessário ém
termos sociais ou históricos (nesta posição estariam autores como Benedict ,
Anderson c Ernest Geilner); b) primopdialislas: esta posição, que antecedeu a
dos modernista^, afirma pelo contrário que os sentimentos e laços pacionais -
são.um atributo onipresente, natural é universal da humanidade, nascido-da
comunidade de linguagem, religião, raça, elnicidade è território (Edwaid
• Shils), e pode subdividir-se' nas posturas primordialista propriamente dita
(mais radical) e pereníalista (menos radical).; c) instr.umentalistas, até ceito
ponto uma variante dos modernistas; neste caso, insisle-se no caráter instru
mental tanto da etnicidade quanto das nações, que estariam ao serviço de uma
combinação de interesses econômicos epolíticos (apesar de seus propagandis-
tas falarem sobretudo dc finalidades culturais ou espirituais), proporcionan
do a tais interesses um modo de mobilização e coordenação em apoio de po
líticas sociais òu da busca do poder bem. superior àquele baseado nas classes,
sociais (Smith situa aqui Predrik Barth, mas talvez seja Izvetan Todorov um
.exémpIo-melhor, por sua insistência na exploração política da nação). O.pió-
' prio Smith assume uma posição intermediária entre modernistas e prihiòr-
dialistas: para ele, existe uni fdndamento histórico étnico para a foririãção dás
nações modernas, prefiguradas no período pré-moderno por algo ao mesmo,
-tempo'semelhante ç diferente, que convém õharoar de etnia, Assim, havería
uma cpntimiidade histórica entre, as etnias pré-modcfnas e as nações moder-
r • .
15 'cf. VIDAL-NAQÜET, Piefrê. Les assassins de Ia mémoirc. Un Eichmann de papier
ctautres études.surle révisionisihe. ParLs: La Dícouverte, 1987.
16 VIDAL-NAQUF.T, Pierre. Le tcxle, Parchéòloguc et l'histoire. In: SCHNAPP, Alam
" . (Org.). U a rch éo lo g k a u jo u r ifliu i. Paris: Hachette, 198(E p. 173-184. . . .
i
’ 179
nns c contemporâneas hem maior do que a que aceitam os modernistas; não
ses ia possível, porem, minimizar o impacto da Modernidade eseus efeitos so-
. bre as formas das leaidades e identidades colctiyas. O modo de trabalhar ado
tado por Smilh consiste èm tratar de iluminar, mediante tim eiftfoque históri
ca ^ compuiativo, tanto as semelhanças quanto as diferenças entre os senti
mentos e unidades nacionais modernos é aqueles mais antigos, aos quais dô-
veria aplicar-se o termo etnia}7
.17 SMI fH, AiKhony í). The ethnicorigins of nalions. Oxford: Blackwoll, 198.6. p. 6-18.
180
laçõescom outros grupos do mesmo tipo. Em outras palavras, liga-se à distin
ção entre “nós” e “eles”, baseada na percepção de diferenças.|:>Isto nos.intei es
sa aqui por vincular-se habitualmeiitc' nos debates atuais, quanto ao mundo
contemporâneo, às nações e, no tocante ao mundo pre-moderno, às etnias.
De um modo geral, existem duas modalidades extremas na maneira de
considerar a identidade cultural em vineufação com fenômenos nacionais ou
étnicos: 1) as concepções objetivistas ou substancialístas da identidade; 2) as
concepções subjetivistas. Ambas conduzem a impasses.
Ainda persiste nestas últimas décadas, sendo felizmente muito minori-
tária, a visão do,assufilo em termos raciais. É o caso, por exemplo, de Van den
Berglte. Falamos de.um enfoque que racializa os indivíduos e os grupos e con
sidera estar a identidade étnica e cultural inscrita tios genes, iia hereditarieda
de biológica. Isto significaria a impossibilidade absoluta, para grupos tanto
quanto para indivíduos, dé escapar à determinação da identidade social de
origem, posto que esta foi naturalizada.1* . ^
Uma abordagem culturalista pode também, entretanto, chegar a algo se
melhante, quando afirma que o indivíduo interioriza modelos culturais que lhe
são impòstos de fora, desde o nascimento, por uma entidade cultural do tipo
nação ou etnia, definindo-se tal identidade como transcendente e preexistente
aos indivíduos e suas interações. Neste caso igiudmente. o modó de lidar com o
assunto iras pesquisas será o estabelecimento de uma lista de elementos míni
mos qüc, reunidos, definir ão um dadõ agrupamento nacional ou étnico. •
Por ciirioso que isto possa parecer em se tratando de um antropólogo
pós-modernò (perspectivista) típicb, a concepção de Clífford. Geertz accica
dos grupos étnicos é primprdialista também: considera &er a identidade étni-
co-cultural primordial porque o fato de pertencer ao grupo étnico define a in
tegração primeira, aquela na qual os laços determinantes são estabelecidos.
No grupo étnico residem as emoções e solidariedades mais profundas e mais
estruturantes. Assim definida, a identidade cultural aparece com o‘proprieda
de essencial, íneren,te aq grupo étnico, transmitida no e pelo grupo, sem icfe-
.18 CUCHE, Deoys. La notion d e culturc dans ies Sciences soçiaks. Paris: La Décòuvertc,
.1996. p, 83-96. :; • ; ;
19 VAN DfiN BERGI í È, Pierre, T tie e tlm ic p h e n o m e n o n . New York: Elsevier, 1981.
,181
ríncm aos outros grupos: a identificação c algo evidente, inescapávcl, decidi
da ddsde o princípio.*'
Do ol,lro lado»exíslem versões subjetivistas da identidade social e étni
ca. 1’arn estas, a identidade em questão não é atríbutiva - definida pela presen-
Va ou ausência de traços objetivos integrantes de «má lista-, nem é dada de
uma vez por todas como fenômeno congelado e estático. Uma das versões do
Stlbjctivismo consiste cm ver ha identidade étnico-cultural meramente um
Kcnliincitlo <le pertencer, ou de identificação com uma dada comunidade, :a .
qual, vista em si mesma, 6 mais ou menos imaginária. Em casos extremos,a co-
ilUtnhlwle em questão aparece como uma espécie de fabricação de um sinistro
complô de poderes que operam em favòr de interesses excusos: se quiséssemos’
ser caricatos, assim, por exemplo, poderiamos peíccbê-la nas teorias brasileiras
sobre a identidade nacional e a cidadania excludentes, forjadas.pelas.elites em
sucessivas etapas e modalidades, com seu acompanhamento de estudos à base
de ['oucaull acerca d a '‘construção" concomitante dos tipos criminosos, des- ;
vianles ou classificáveis segundo alguma patologia cultural ou social...
Alguns entenderam a visão subjetivista como iqna oportunidade de
ikwmtruçifo dos objetos estudados pela Ciência Política ou pela Histeria Po-’
ifticit (um bom exemplo foi a tenlativa.de Theodore Zeldin de mostrar a “n a-,
çáo francesa" como construção insubstancial).2' ' ’ ,■
Se as concepções subjetivistas conduzem a impasses e becos sçm saída
tanto quanto as objetivistas, que fazer, então?
A iesposta de muitos especialistas tem sido prestar atenção especial ao
a m im o relacionai dos processos idénlitários, A identidade social é da ordem ;
tia construção, mesmo quando baseada em dados objetivos; não é, noentan--
Io, ilusória, não é algum fantasma dependente da pura subjetividade dos agen-
les e de suas escolhas. Ela produz efeitos sociais reais; é eficaz. Não há, porém,
identidade social ou étnico-cultural em-si, nem unicamente para si. A identi
dade envolve sempre uma relação-com outros: identidade e alteridade estão201
20 GEHRTZ, Ciifford; The integra tive revolution. Primordial sentiméntsand civil po-
bt.es m the netvStates.In: GBERTZ, Cliftord..(Org.).OW so c k ties, n c w s u ite s . New :
Yi>rk; The Free Press, 1963,
183
•v-
Se a identidade étmco-cukiu-al é construída no social, forçosamenté
participa da complexidade - historicamente variável r- das estruturas sociais.
Assim, na frança-, houve estudos que demonstraram o desenvolvimento, em
jovens nascidos de imigrantes, de uma identidade étnico-eultural mista. Pes
quisas deste tipo tiveram, no entanto, de lutar Contra forte resistência. De iní
cio, diversos cientistas sociais quiseram,ver naquele fenômeno outra coisa: a
presença, nos jovens fillios.de imigrantes, de uma dupla identidade, situação
necessariamente instável e patológica do ponto de vista psicológico. Tal ten
dência dos estudiosos decorria d eurh forte condicionamento - que lhes vi
nha do listado-naçíío francês a que pertenciam - a ver a identidade nacional
como unien, não podendo, portanto, misturar-se com uma outra identidade
étnico-cultural, A base destes e outros estudos existe, na atualidade, todo um
campo d e.m ves ligação voltado para as estratégias identitárias; a identidade se
presta a reformulações em esm o a manipulações. Indivíduos egrupos, sobre- -
tudo nas sociedades muito complexas de hoje em dia, podem exercer uma
ação estratégica jogando com as variadas classificações sociais e culturais,
inslrumentaiiza.iido-as dentro de determinados limites (nem tudo.é possível
mim jogo destes)." . . . -
Num estudo das recomposições de identidade dos haitianos migrados ■
,M'n' Novn Yorlí» 1’rançoise Morín mostrou que, na primeira grande onda mi
gratória que os levou àquela cidade,- na década de 1960, quando migraram so
bretudo mulatos da elite do Haiti, a estratégia dos haitianos consistiu,em réi--'
vmdicar uma assimilação à nação estadunidense, separando-se radical mente
dos negros norte-americanos para evitar o estigma social, fazendo valer sua
pele clara e uma distinção trazida por sua boa educação. A segunda onda de
migrantes, na década de 1970, estava integrada por negros da classe,média
haitiana: rechaçados nas tentativas de integração, sua estratégia passou a'ser a '
de afirmar sua identidade haitiana, por exemplo no fato de falar francês ou
crévlc mesmo cm público, evitando de tal modo o risco de serem confundidos
com os negros dos Estados Unidos.(Já os filhos desses migrantes, uma segun- .
da geração nascida nos Estados Unidos, respondendo aos estereótipos negali-'
vos que atingiram a identidade haitiana desde os episódios do s boatpeople na "
25 CUCHK, Denys. La. n o tio n d e m l t u r e d a m les $cumccs sQcüiIfís, Paris; Í.3 Oócouverte.
1996. p. 91-95. : • . i ' • •’
década de 1980 c a identificação dos haitianos como grupo de alto risco lela-
livanienle à AIDS, escolheram reivindicar uma identidade canbenlia, aprovei-,
tando o 'foto de ser Nova York hoje, após décadas de imigrações diversas, a d - .
dade dó mundo que contém mais gente oriunda do Caribe (muito mais do
que qualquer cidade do próprio. Caribe).■
A lição principal que se pode retirar das discussões aluais acerca da
identidade élnico-culiural é, provavelmente, a seguinte: não é da alçada do
historiador, do antropólogo ou de'outro cientista social qualquer proporcio
nar uma definição correta e irrefutável desta ou daquela identidade nacional
ou étnica, Nem lhe cabe dizer quais são os critérios que um determinado gru
po devería rcuriir para ser cGnsiderado uma etnia, ou unia nação. Mesmo em
sc partindo das melhores definições disponíveis entre as que proporcionem
critérios, à primeira vista de lodo razoáveis,logo se esbarraria, por exemplo,
nos casos das diásporaS, em função das quais um ou mais.dos critérios usuais
fo.rçosamente deixain de cumprir-se devido a circunstâncias históricas. Vi
mos, por outro lado, que enxergar pura e simplesmente uma ilusão fabricada
nas adscrições étnico-culturais também não leva a grandes resultados: òs limi
tes de tal atitude são aqueles de qualquer desconstrução, sempre uma atitude
’ m uitom ais crítica'do que utilizável para novas construções. ■
Uma .véz conscientès de ser preferível, teórica e nietodologicamenle,
uma,visão processual e interativa das identidades étnico-culturais, ao busca
rem uma alternativa concreta, muitos estudiosos a enxergaram no conceito de
fronteira étnica,- elaborado pelo antropólogo alemão-dinamarqués Eredrík
Barth em .1969, cuja revalorização nestes últimos anos parece vmeular-se àên- 26
fase nos processos é estratégias identitários.. , ■
Barth priorizou, nos processos de identificação, a vontade dç niiuear os
, limites entre “nós” e “eles”, o que 1eva a definir e manter a “fronteira étnica” Esta
pode ou não coincidir com fronteiras geográficas, ter ou não correspondências
territoriais: isto não é essencial. ÒütrosSiin, aquilo que deline as inclusões e ex-
çlusões que estabelecem tal fronteira pode perfeitamente variar no tempo, em
função de mudanças nas interações sociais internas e externas..Barlli percebeu
Tv.
2/ ««w fronteiras. In: POUT1CNAT, Pbilíppe;
M REIH-FENART, Jocelyne. T eorias d a e tn k i d a d e seguido d e g r u p o s étnicos e suas
fr o n te tr a s d e .F re d rik B a r th. Trad. Elcio Fernandes. São Paulo: Fd; da Unesp, 1998
p. 1.85-227. 1 ■■. ’ . •
oradores atenienses Demóstenes e Esquines diante da crescente pressão de Fi
lipe da Macedôriia sobre a Grécia, em meados do século 4ü a.C,, ambos, no en- •
tanto, achando quedefendiam os interesses coletivos dos helenos.
' . ' ' " ’ *^ . .
187
’A
• • \
olmi resultovn de uma iniciativa de Fuad I, rei do Egito, cuja espada de mem
bro da Academia Francesa aparecia reproduzida, assim como uma moeda co
memorativa da visita do soberano à França cm 1927, no final da introdução
geral do primeiro volume e da coleção, ficava claro tratar-se de obra gerada
por um desejo de legitimação do regime egípcio'da época e, ao mesnio tem-
po, de exaltação de suas relações com à França.2*
Fierre Vilar, comentando o fato.de Camilíe Juilían caracterizar a Gália
roninnu como uma “nação” acha com razãd tratar-se dé “uma projeção das
realidades políticas modernas sobre nossas representações históricas”” É inte
ressante apontar que, não só em relação à Gália dessa época mas tafnbém aos
povos.de língua celta em geral, já se afirmou exatamente o contrário, isto é,
não haver dadò algum a sugerir que alguém, no período pré-histórico oupro-
Io-histórico, “pensasse em si mesmo ou mesma como celta”: as designações
generalizantes como celta, gaulês o u gael foram todas cunhadas por çstrangei- '
ros e os assim designados careciam de qualquer identidade cnglobante que ul
trapassasse meras unidades tribais, E no entanto, pouco depois, contraditoria-
mente, fala-se nó mesmo texto de terem existido unidades políticas conside
ráveis, arqueologiçamehte comprovadas, o que faz' duvidar do critério - um
.11gumento pelo silencio das fontes - que baseara a primeira afirmação.™
Má, sem dúvida, estudos mais interessantes. Um deles é o de Lolte.He-
deager, arqueóloga dinamarquesa, a respeitó da cultura material - que ela-as-
socia às fontes escritas disponíveis - çomo possível base de estudo da etnici-;*2930
188
dade presente, em alguas dòs reinos europeus da Àiitigüidade Tardia, Tratan
do dos francos, suevos, alamanos, vândalos, godos, anglos, saxôes, hérulos, ju- ^
tos e burgtindios, mostra que, de um lado, nesses povos por tanto tempo ei - ■
-rahtes, nota-sè unia beterogeneidade indubitável de elementos formadores. O
. feinò (ou-confederação tribal)-ostrogodp do final do 4°?éculo,'por exemplo,
i incluía - além de godos - finlandeses, eslavos, hérulos, alanos, hunos, antae e
' sármatãs, enquanto no exército ostrogodo do rei Teodoriço, nájtaha do sécu
lo 6o, havia os fiogodos, romanos, rdgios','vândalos, alanos, hérulos, asçani,
' turcilíngios,.suevos, sármatas, taífali, gépidos e alamanos - não como solda
dos mercenários, mas sini, como membros plenamente reconhecidos do povo
godo. Todos se viam, portanto, como integrantes de uma só comunidade e sua
beterogeneidade não era empecilho para aceitarem mitos de formarem «m ,
mesmo grupo hereditário, havendo também uma noção de identidade básica
' entre povo e exército. A autora não hesita em aplicar a este conjunto o termo
nação, afirmando que, etimolpgicamentc, natio, tal como gens, gentis ou genos,
‘ contém um. elemento, de-suposta relação genética (grupo de descendência).
Em outras palavras, segundo os mitos fundadores aceitos, ò povo, governado
por seu rei guerreiro, reconhecia pertencer a uma espécie de família cuja ori-
' gem era derivada de sua ligação com uma.casa real de origem divina (no caso
dos ostrogodos, a família real dos Afnali, a qüe pertencia Teodoriço, descende
ría de Gaut, deus escandinavo da guerra). O parentesco mítico dos guerreiros
com ó rei era confirmado por laços dé lealdade e juramentos. O título do rei
erâ “nacional, não territorial, e as origens do reino deveríam ser vistas como a-
• forigem do povo”. Uma cultura material germânica se desenvolveu, com estilos
próprios'baseados em motivos animais, associada à aristocracia guerreira e ao
' rei, tendente a simbolizar a autonomia simbólica dessas nações diante da cul
tura mediterrânea.’1 _
No texto de Hcdeager, como em outros que já citamos, ocorre uma os-
•cilação entre termos como “etnia”, “etnicidade” e “nação”. Talvez porque todos31
! -189
sc v' nci,ie™ a um campo semântico basicamente semelhante, a. uma mesma
ordem de idéias, hoje vista como relacionada, centralmente, a uma modalida
de específica de processos identitúrios coletivos. É possível, também, que a
preferência recente por um vocabulário dom inada por expressões como
Ponteira étnica tenda á pôr rio centro, conceitualmente, a etnia como fenô
meno mais gerai, tornando-se a nação, no conjunto dos processos identitáriqs
coletivos desse tipo, somente uma espécie de caso particular, caracterizado
pelo que seria a maior novidade contemporânea: a ideologia nacionalista do
taria de meios de reprodução, propaganda e difusão social, apoiadas por
exemplo na generalização do ensino básico, impensáveis para as sociedades •
mais antigas, c podendo desembocar eventualmente na constituição de Esta-
<los nacionais. Esta percepção da ideologia nacionalista como algo central le- •
vou mesmo, em certos casos, a afirmar algo pouco convincente hoje cm dia à
luz rios debates, que já foram expostos resumidamente,' acerca dos processos
'dei."tários: a etnia seria unia realidade sobre cuja base a nação podería vir a
se constituir como mera ideologia manipuladora. Existe, também, a jioção de
que u investimento político dos regimes contemporâneos no conceito.de na
ção, (ratando de estabelecer, para seus próprios fins, a equação entre povo, na-f
çâo e bslarlo, e tornando,a idéia de nação incomodaraente ligada às de guerra
e fronleira, por exemplo, tornaria mais aceitável, nos estudos científicos e
mesmo politicamente, o uso preferencial rio conceito mais “neutro” de etnia,
(|tie lemetcria, acha Eric.Hobsbawm, a um “protonacionalísmo popular” - ó
<l“e tCC‘>rcla a posição, presente em alguns dos parlicípantes no dêbátcUnar-
xista sobre a questão'nacional,-no início do sccüío 20, de que de certo modo
seria necessário resgatar ó sentimento nacional de sua manipulação pela bur
guesia, favorecendo sua construção em termos mais coletivos.32Seja qual fór a
opção adotada, parece que as preferências atuais tendem a convergir rio aban-
190
dono, recomendado por quase todas as vertentes, dahiação como conceito.
Çaso isto se aceitasse; a discussão acerca'dc Haver oti não nações no mi.ndo
pré-moderno se transformaria num falso problema.
Ela me parece justificar-se, no entanto, ná forma seguinte: até.qnepon-
to, no concernente às construções étnicas antigas - já que não nos cabe o cu -,
par-nos, aqui, da Idade Média” houve ocasiões em que se chegou a cons
truir algo parecido, mulatis mutanàis, a uma ideologia nacionalista oficial ma
nipulada pelo Estado e pelos grupos soçialmènte dominantes, como a con
temporânea? Eis aí uma pergunta difícil de responder, dado o estado atual, das
"pesquisas. Intui-se que a Ideologia, dos letrados da época de Augusto tenha
chegado perto de algo assim. Com efeito, se desde a República certas discus
sões etn toího do grau desejável dehelenização para ps membros da elite ro
mana'chegavam perto de algo semelhante a uma ideologia nacionalista, etn
Tito I.ívio (45,18, 1), ao lermos a narrativa do episódio absoluta mente fícti-
do em que 0 Senado convoca os cônsules fie 167 a.Ç. a que mostrem a todos
os povos que a vitória inelutável de Rom.a trar-lhes-á, não a escravidão mas a
liberdade, ou, na Enchia de Virgílio, u canto 6, com a descida de Enéias aos in
fernos e a. revelação do futuro romano como missão de governo do mundo,
ãlém de uma ideologia imperial, vislumbramos pelo menos um esboço de na
cionalismo ou patriotismo romano que parece mais “moderno” do que quai
squer outra coisa que a Antiguidade nos ofereça. Mas até que ponto a ideolo-'
gia cm questão, numa época de acesso limitado (se bem que mais amplo ,do
.que antes se pensava) à possibilidade de ler, de cenáculos literários e livros co-
piados à mão e lidos em público só em circunstâncias limitadas, uma ideolo-
■ gia assim podería alcançar grande, difiisão sociàl? A preservação dos textos
mencionados e de alguns*outros, que não constituem o resultado de uma se
leção ao acaso, pode criar uma impressão ilusória a respeito da importância
social reaf desses textos, na ausência de pesquisas que os integrem num exame
.sistemático, ao longo do tempo, de vários tipos de documentos, mesmo se te:
mos alguns estudos parciais.31 . . ' / .3
33 ' Ver, porém, á respeito: ARMSTRONG, ]. A* N a tio n s bejòre n u iio n a íim , Chapei Hill:
The Uniyersily of North Carolina Press, 1982. .
34' Cf. CARDOSO, Ciro hlamavion. Tinham os antigos uma literatura? P M n fc 5,
p. 99-121, 1999. Como exemplo de' esludo feito pqr .autora brasileira, ver MEND ,
' - Nurma Musco. Fcríae Roímim Discurso imperial romanoJ h o m x . 6, p. 282-294,ZUW.
Ver ainda: EAMTHAM, Elaine. Ronum tüerury m ltu rm From Ciceio to Apiueius, i arn-
more: T fiè Johns Hopíáns University Press, 1996. p. 34-4 lfLiterature and naüonalism.
191
, ,urnuna'K,() esta sc?ao 1,0 lc-yto, vou indicar, tomando como exemplo
minha própria área de estudo mais específica, a Egiptologia, os setores de pes-
(juisa e as respectivas documentações que precisariam ser cobertos em detalhe
para uma discussão bem fundamentada acerca das construções identitárías
coletivas num dos períodos mais bem documentados cia história faraônica do
ES'U,«° Reino Novo .0552-1069 a.C. segundo a cronologia curta).
1) A abundante documentação funerária privada —que inclui os textos
c decorações das próprias tumbas mais complexas, cujo estabelecimento era
possível unicamente para os soçialmente.privilegiados, mas também numero
síssimas esteias funerárias depositadas como ex-votos em templos, algumas
tias quais encomendadas por estratos bem mais populares da população
comprova que o primeiro nívei(que era também o mais difundido socialmen-
le) para a inserção de cada indivíduo numa identidade coletiva passava pela
ciclíule (///»/),terrno que,em egípcio, também designa uma região ou distrito;
passava, mais exaLamente, po r ura vínculo estreito com o deus local35 A im-
portânda da cidade e, em cada,uma, do principal de seus templos como refe
rencias identitárías básicas de tipó.local parece ter sitio um dos fatores que le
varam à multiplicação deliberada de cidades centradas em templos quando da-
colonização sistemática de uma parte da Nubla nilótica pelos egípcios no Rei
no Novo.36Esta superioridade da cidade bom seu deus sobre outras formas de
identificação local (como por exemplo a u(a)hj**, aldeia oü povoado cóm co
notação também de parentesco num sentido lato) é digna de nota num Esta
do territorial como o egípcio, que não jiasceu da .congregação de cidades-esta-
do prcviamente existenjes é onde a urbanização se completou já sob á égide
(Ia monarquia unificada.” •
2) Num setor bem menos extenso da documentação funerária privada
- em especial inscrições funerárias de membros do.exército permanente egíp
• 3 5 Cl. t.OHLET, Ogdcn. “tow n” and “country” in ancient Egypt, in: HUDSON,' Mi-
• '■ w-ílCli LEV1NEi Barucfl A-dOrg.). U rlm n iza tiu n a n c lla n d o w ilersh ip in th e iin c ie n t
N a i r h a s t , Cambridge.MA: Feqbody Museúm o f Arcliaeology and Etnology, Har-
vard Universitp, 1999. p, 65-1 14. . . :
3(í EEMP, Bany J. Imperialísm and empite in New Kingdom Egvpi. In: GARNSEY P ■
P . A.; VVHITTAtÇÉR, C. R. (Org.j. l m p e r h ü m i m th e ã n c ie n t w orld. Cambridgc'
Cambfidge Univcrsity Press, 1978. p. 7-57. , '
37 Verp.eXiWARBURTIN, David. Sgypíand the Near Eu$t: Potitics in the Bronze Age.
Neúchâtel, Paris: Rechérches et Publica liorts; -2001. p. 114-119/ ■ ,
cio (uma criação-cio Segundo Período Intermediário, quando da guerra para
expulsão dos hiesos no século 16 a.C.) -'m as prinçipalmeiite na documenta- .
ção oficial (inscrições régias) e na literatura originada no setor dós escnbas
profissionais, a construção iderttitária como “egípcio” - de tato, existiam de
signações para o próprio país, mas os egípcios chamavam a si mesmos reniet- t
jcf; “seres humanos'5, embora a transformação semântica desse termo ao lon
go do período mostre que a idéia de serem eles-a única humanidade cabal es
tava se enfraquecendo - passava por úma noção que podemos duvidar se es- -
tendesse a fração da população muito significativa numericamente. No con
texto do mito do rei divino, descendente em linha direta do demiurgo criador
e portanto proprietário do, cosmo, intermediário‘entre a humanidade e o s
deuses, e responsável pela boa ordem do mundo, existia a idéia de ser o Egito,
agrícola, a “terra negra5' do Vale e do Delta, o núcleo do cosmo organizado, .
cujo ordenamento fora entregue ao faraó quando o deus solar se afastou da
humanidade e passou a navegar no céu em sua barca. Em texto cuja data é in
certa1mas se refere a acontecimentos do século 11 a.C., atribui-se áo príncipe
da cidade fenícia altamente egipciamzadade Biblos a afirmação seguinte:
' Sem dúvida, Atnon fundpu todas as terras; mas cuidou dejas depois de ter fun
dado á terra do Egito, de onde vens; Na verdade, dela saíram á eficiência e p epsi- ^ ■
namento, para atingitem o lugar onde cslon. (Relatório de Umunon, 2,19- , . )
i Vê-se que, no. final do, período aqui considerado, podia-se encarar o
Egito não mais como o único núcleo organizado do mundo, cercado pelas for-
ças caóticas do deserto e dos países estrangeiros mas, sim, como o centro pu-
mordialmente estruturado pelos deuses do qual o saber e a organizaçao po
diam aos poucos estender-se aos estrangeiros que estivessem sob sua órbita de
influência. De qualquer modo, era ó.próprio Egito a sede da monarquia faraó- |
nica e, já por tal razão, considerava-se superior às outras regiões, mesmo as
que não lhe fossem rebeldes. . ‘ ^
Num conto da primeira metade do segundo milênio a.C., um encônno
'do rei inserido na narrativa afirma que a alegria causada nas pessoas pelo mo
narca egipeío supera aquela provocada pelo deus local (Conto dè Sanehet, B, 66-
67), o que, aliás, confirma o Caráter, primordial, ná criação da identidade cole-
■. '193
(iv;i, reconhecido à ügação com cada deus local. O rei, no Reino Novo, tratou de
superpor o seu culto cm vida ao. culto divino habitual, multiplicando suas está
tuas cultuais, associando seu próprio culto, em,certos contextos, ao dos deuses
dinásticos,'buscando assim inserir-se no sistema primordial que provia identi
dade coletiva aos egípcios, como se viu ácirtía. isto funcionou bem melhor, em
cerios reinados prestigiosos (Ameiihotep III, Rámsés IT), do que a tentativa
muito mais radical de Akhenaton, Outra novidade dó Reino Novo foi um gêne
ro literário desconhecido anteriormente,'o elogio da cidade real (“a Residência”
pata os egípcios), apresentando-a como microcosmo e como elemento ordena-
tl(H do mundo por meio de uma sacráiizaçãò. <ío espaço, na cidade e a partir da
cidade. Nesses textos, a tentativa de criar uma identidade coletiva claramente
enfaliza uma elite urbana sobre a qual o rçi acumula favores ç da qual aterideas
petições; mas também se afirma que, nas condições ideais da cidade real ou Re
sidência, o pequeno é como o grande, isto é, também,ele é favorecido.5’
3) No que diz respeito à relação com os estrangejros como fator de çons-
Imção de uma identidade coletiva egípcia mediante a alteridade, a situação é
complexa, Como em todas as fases precedentes da história faraônica, no Reino
Novo o faraó é representado iconograficamènte, às vezes também em textos,
massacrando os seus inimigos, Isto, que anteriormente assumia um caráter ge-
nci ico, no período.etn exame passou a referir-se a cenas de combate com con-
trincantes históricos específicos (hilitas, líbiõs, povos do mar). Aó mesfno tem-
p<), em relação ao país africano de Púiit, que por razões logísticas e devido à
gi iinde distancia não podéria ser incidido pelos egípcios, nem ameaçar o pró
prio Agito, bem como quanto à cidade asiática de Biblos, muito egipeianizada,
as apresentações egípcias eram alta mente favoráveis: tratava-se de vergéis per
tencentes a Amou e'associados à deusa Háthor, tios quais o deus derTebas, na
época a divindade suprema dos egípcios, fazia crescer/espectivamenfe o incen
so para o culto e a madeira para sua barca fluvial sagrada. A idéia .geral era, po
rém, a seguinte; o estrangeiro rebelde identificava-se como um agente do caos,
194
que o rei do Egito deve reprimir, o estrangeiro que se submetia e pagava tribu
to, entretanto,'podería contar com o beneplácito do faraó e dos deuses egípcios
(que garantiam suas formas específicas de vida e abastecimento tanto quanto
as dos naturais do Égito). No Reino Novó, em função do Império núbio c asiá
tico constituído pelo Egito, o contato dos egípcios com os povos da Síria-Palés-
tina e de.Kusb (Núbia) aumentou consideravelmente. Nos textos oficiais, fictí
cia mente, aparecepn estrangeiros—incluindo-o rei hitita, monarca impoitante
de uma parte do Oriente Próximo que nunca esteve sob domínio egípcio-que,
em suas falas, reconhecem que seus países dependem do faraó. Surge,também „
a noção d em ma vida após a morte à maneira egípcia estendida aos estrangei- _
rbs assimilados; entenda-se: aos estrangeiros pacíficos residentes em seus pró
prios países, nas áreas de influência egípcia, já que àqueles integrados à própria
sociedade egípcia o acesse? à religião funerária, caso tivessem os recursos neces
sários, era tão natural quanio para os.egípcios natos.
, Assim, a oposição egípcio/estrangeiro passa ela também nos escritos.©
imagens oficiais (que são praticamente os únicos disponíveis para este tema)
■pêlo mito da realeza divina do faraó egípcio, teoricamente estendida a. todo o
universo: o “bom ” estrangeiro é o.que se submete, ou o que se integra à socie
dade egípcia, na qual é tratado como se egípcio fosse. 1 . ,
- Não estão ausentes, porém, assertivas que parecem remeter mais dire
tamente a unia construção da identidade egípcia por alteridade. Assim, poi
'exemplo, em texto cio faraó TCamés em Karnalc (meados.do século 16 a.C.), em
função da guerra empreendida pára a expulsão dos biesos, lemos a passagem
seguinte, numa fala fictícia cio rei egípcio ao seu opositor asiático, Apepí, em
que anuncía ações contra os estrangeiros mas também contra os egípcios qued
os apoiavam: • *. ' •
Ó asiático despojado, teus desejos falharam! 0 asiático vil, que v.ivias dizendo:
• . “Eu sou uni senhor sem par até Khèmenu [I lennópolis], até Per-Hathor e também
; até Hutuaret [Avaris], junto aos dois tios [dois braços dn Nilo] 1 fu deixarei estes
lugares desolados, vazios de gente, .depois de arrasar as suas cidades, queimai as ■
suas residências, transformadas em ruínas ardentes para sempre devido ao dano
que fizeram nesta parte do Egito os que se puseram a servir aòs asiáticos que agiam ...
' v conlra o Egito, seu setihpf. (Segunda esteia de Kamés em Kornak, linhas 16-19) .40
, 195
\
196 . ,
cioitil COI11 seus “Irmãos” (sempre bilateralmente, dois a dois), chefes por $«a
ve?, de suas respectivas famílias (isto é, de seus reinos e impérios) “
.. - Caso o critério para discutir a etnicidade egípcia.seja o mais.corrente
hoje cm dia, isto é, mediante uma atenção especial aos processos ídcntitáiios
coletivos, consta tar-se-ia' uma situação muito distante do que hoje cm dia se
entende por nação. O rçsuitado põderia ser outro se se privilegiasse uma de
finição adscritíva atenta aos aspectos mais materiais da questão. . -
S ' " • •• . ' 1 . ■
CONCLUSÃO
v»
:' ' __
•; .‘
. ■'• . •
'N - No movimento até certo ponto pendulir das preferências, estamos aos
poucos saindo de uma fasé em que existiu uma clara opção por privilegiar o
ângulo mental e simbólico, em detrimento do material. Isto sc refletiu tam-
bém’ como vímos ao repassar algumas das posturas das últimas décadas, nos
estudos da etnicidade e da nação. Ao estudar recèntemente um -aspecto da el~-
nicidade ná Grécia clássica, manifestei-mé com alguih detalhe sobre o que, em
tal preferência um tanto estreita pelo simbólico, pode causar lacunas e insufi-
ciências na análise dos temas abordados.nesta palestra.41 •; .' *43
42 .T/je Ainarna .letters. Edited and translated by "Williani L. Moran. Baltimore: The
Joliiis Hopkins Univeisity Press, 1992. ,
43. CARDOSO, Ciro Klamarion. La etnicidad griega: una visión desde Jenofonte. In;
i.. GALLEGO Julián (Org.). Práctiças religiosas, re g h m n e s discursivos y e l p o c le rp o lític o m
ci m w id o jyc co rro m a n o . Buenos AÚes: Univcrsidad de Buenos Aires, 2001. p. 127-150.
Capítulo 9
1 BARROS,. Carlos, La historia que viene. In: BARROS, Carlos (Org.). [lista ria a d e
bate. Santiago de Compostela: Historia a Debate, 1995.1: Pasado y futuro, p. 95-117; ■
: . . 199
A Etnografia da escrita, surgida no fim,da década de 1960 cm forma
clara em estudos como os de Jack Goody, precedeu a da leitura, queV perce-
bc como um verdadeiro campo -específico e concorrido de estudos só na dé
cada de 1980. As razões para isto são variadas e conhecem paralelos alhures.
Por exemplo: nas análises estruturalislas da narratologia e da Semiótica íex-
lutil, desenvolverani-se muito mais os enfoques voltados para o texto, muito
menos aqueles que se ocuparam, da leitura'como tal (é, não, de conceitos abs
tratos como q de enunciatário ou o de leitorimplícito, inscritos, afinal de con-'
tas, no próprio texto), A principal razão talvez seja a dificuldade muito maior
que iuibitualmeritese encontra para documentar a dispersão das leituras, em
contraste com o texto escrito, que é um dado do qual se parte e com o qual se
contu. Como dizUmberío Eco* - ‘ .
\ V ! • . .
,s .
Entre a historia misteriosa de uma produção textual e o curso ineontrqlávcl de
suas interpretações futuras, o texto enquanto tal representa uma presença cont.br-
tav€l> o ponto ao qual nos agarramos**2 ■ »
2{)0
vro foi publicado'em 1626 visando'» um público sofisticado, socialmente eli-,
tista, o túesmo ocorrendo com a tradução francesa de 1633. fim meados do sé
culo 17, porém, uma cas-a editorial da cidade de Troyes- Otídot e G arnier- co
meçou a publicar uma série de edições baratas de episódios soltos do roman
ce, tornando-o Uma presença permanente, por dois séculos, na literatura po- -
pular francesa conhecida como bibllothèqtie bkuc/O s editores mexeram no
texto; não só cortando o romance em episódios :de,que denvaram numerosos
livros pequenos, como também tornando as frases mais curtas, subdividindo-,
os parágrafos, multiplicando o número dos capítulos. O público-alvo eia for-. ^
mado por pessoas dé poucas posses e que dispunham de pouco tempo para a
leitura: cada pequena brochura tirada do Buscón funcionava como uma unida
de autônoma que podia ser assimilada por si mesma, correspondendo à dura,
-ção de um sarau familiar (veillce). O livro foi assim transformado numa cole
ção de fragmentos passíveis de leitura em qualquer ordem, deixando de ser
uma história contínua:-cada leitor podia construir, para o conjunto, o,sentido
que preferisse. Desie modo, Chartier demonstra como certas'escolhas tipográ
ficas transformaram o leitor implícito' do autor'num leitor implícito do editor,
diferente do primeiro não só socialmente.como, também, em súa apropriação
cio texto -ag o ra transformado em textos numerosos e autônom os-, arrastan--
do o romance de Quevedo para baixo na es,cala social do Antigo Regime, até
aquilo que no século 19 viría a ser chamado, na França, de kgrqná publique.
Mas o mais interessante permaneceu fora da análise: Chartier não estudou
como, em que sentido, se deu, quanto aos'conteúdos, a.tal apropriação dó tex
to por um público diferente daquele que o autor tinha em.'mente ao escrever, ,
já que se concentrou exclusivamente no iivró como objeto tísico.1
Por que não o fez? Provavelmente por não. lerem os leitores franceses
populares dc Quevedo deixado escritos acerca de suas experiências com tal lei
tura. Pelo contrário, Roberl D arntonpôde contar com as cartas arquivadas
!pelo editor de Rousseau para conhecer reações do público leitor aos romances
do ãútor; e Ginzbiug, com papéis da Inquisição para penetrar nas concepções
■<le um móleiro. . ' -
202
O dos textos escritos, cujo monopólio cumpria funções similares as da regula
mentação da escrita em sociedades onde a oralidade permanecesse aluda for
te - caso este último, em especial, da Antiguidade Clássica.
204
cepção sobj c os quais o autor (e o próprio texto) carecem de qualquer contro
le: um texto só. o é de fato num a.relação com algo que lhe c externo, o leitor,
o qi!e implica um jogo complexo entre o nível da literalídadc textual .passível
de leitura (uma virtualidade) e aqtiele da abordagem çonslituídapela(s) leítu-
ra(s) (uiiià realidade).7 . • .. . .
Quais os sentidos ou intenções metodológicas inscritos nesta opção
por postulados retirados de Michel de Certeau? Km primeiro lugar, afastar-se
das concepções da Linguística c da Semiótica discursivas ou textuais: afirmar,
portanto, que a leitura não depende difelamente do texto, não está msenta
- nele em forma simples.euiiívoca. . .• ., ■ , .
■. Note:se que houve outras tentativas de solucionar esta questão, no m-
teriòic da própria Semiótica, tomarei como exemplo a noção de narratividade,
como é exposta pelo semiotista norte-americano Roberl Scholes.. Este propoe
úm uso do termo narratividade num sentido muito distinto daquele que lhe
atribuem os teórícoSÍranceses. Para estés últimos, a narratividade é úma pro
priedade dos próprios textos (semióticamente considerados: tanto pode se
-tratar de romances quanto de filmes, por exemplo). Para Scholes, narrativida-,
• de é “q processo pelo qual aquele que os perççbe constrói aUvamentc uma his
tória a partir dos dados ficcionais providos por qualquer meio narrativo”*Isto
é: um texto narrativo é uina narração; mas só se constrói lima histó ria- um
•relato - na medida em que, à forma cm que tal texto nos guie (como leitores,
comò espectadores); venha somar-se nossa própria narratividade, que tratara .
•de completar o processo coiidücentè a uma história.
Scholes aceita o caráter,culturalmente determinado da narratividade,,
^ mas também acha que, no mündò ocidental contemporâneo, a cultura da rnr-
'ratividade é suficientemente homogênea para que as generalizações sejam possíveis.
: Estabelece uma contraposição da narratividade envolvida ao tratar-se
de leitores de romances e de .espectadores dc cine. Em ambos os casos, existe
uma tradução passiva ou automática de convenções semióticas em elemento^
inteligíveis e, paralelamcníè, um rearránjo ativo ou interpretativo dos Signos
.■. 7 CERTEAU, Michel de. U ittv a itio n . <iu q u o tld ie n i Arts.de faire. Pans: Gallimard,
198Ü. v, I,p. 251,247., \
/ .§ SCHOLES, Robcrt. Seiniolics riúd iuterprefatiofU New Haven: Yale University Press,
1982. p. 60. ■ - ■■
205
textuais em estruturas significativas (sendo este o aspecto quede fato interes-
sn a Scholes). O modo em que isto d teilo difere, porém, devido às próprias na
turezas intrínsecas do texto ficcional escrito (romance) e do filme encarado
como texto. No caso do romance, uma boa parte do texto envolve descrição e
lellexno: por tal razão, a parle ativa da narratividade tem de voltar-se para as
tareias da visualização. Em forma simetricamente oposta, no caso do filme a
visualização não formula problemas a quem o está assistindo: a parte ativa da
iinrrniivkb.de do espectador deverá ocupar-se do calegorial e do abstrato, pois
estes são necessariamente pobres (mesniò nos filmes mais intelectuaüzados
que utilizam, por exemplo» narrações em ojfpara tratar de transmitir concei
tos) -m u ito mais pobres do que é possível conseguir na ficção escrita - pela
própria natureza do cinema. , .
Voltando à perspectiva da História Cultural da leitura que reconhece
derivar de certas idéias de Michel de Ccrteau, trata-se de uma linha de pesqui
sa que porá a ênfase lias formas, circunstâncias é modalidades em que os tex
tos são recebidos-e, no vocabulário cie Charticr, apropriados por seus leitores;
ou por seus ouvintes, levando em conta a já mencionada inter-relação entre o ‘
oral e o escrito. Parte-se sempre de uma insistência no caráter ativo dos lei to-
res/ouvintes nos processos que envolve oii supõe aquela recepção/apròpriação.
* ^ ste aspecto cia questão permite um deslizamento sutil do objeto de es-
ludo. Este, pela lógica global da opção metodológica que!expomos, deveria
ceutrai-se nã questão da apropriação vista em setts conteúdos,.isto é, nos diver
sos sentidos que diferentes formas de ler atribuem ao que é lido. Mas isto é ex-
1rema mente difícil de estudar: até mesmo na atualidade, ainda mais no tocan
te a períodos recuados. Por tal razão, é frequente que se.substitua tal ênfase pqr
outra, que se dirige às formas, circunstâncias c modalidades em que os textos
circulam e são lidos. Para a Antiguidade Clássica, por exemplo, á ultima possi- - ■
bilulade e mui to mais fiícil de documentar, pos k> que há tnalerial arqueológi
co e iconográfico s uficicnte para, assoriandó-o a um material escrito bem mais
parco acerca de tais aspectos, estudar as formas que o livro manuscrito e a ma
neira de nele escrever tomaram ao longo do tempo, bem como as posturas, ges
tos e contextosque a leitura envolve (individuais, coletivos; uso do corpo ao ler;
leitores só masculinos ou também mulheres, representadas lendo; leituraC-m .
voz alta por uma pessoa em presença de outras ou leitura por uma pessoa iso
lada etc.). Vimos, entretanto, que, mesmo no relativo aos Tempos Modernos,
206
nota-se às vezes o mesmo tipo <le deslizamento .entre a proposta melodologica
e a realização, coisa que loi exemplificada com Roger Chartieiy muito mais, na
pratica, uni autor voltado para a história do livro como objeto do.que para os
conteúdos tfiesmos da apropriação daquilo que é lido, apesar de suas declara
ções de método que levariam a esperar outra coisa.
' : A História da leitura, vista rí a perspectiva de uma História Cultural do
tipo da nouvèile histoirc, pós-moderiia pelo menos quanto a algumas escolhas
básicas, leva a uma crítica.,das perspectivas de uma História Social da leitura
que partisse, por exemplo, de conceitos como o de classe social. Isto, aliás, não
é novidade: para a História Cultural, a. realidade é “construída culturalmente
é “as representações do mundo social” é que são “constitutivas da realidade so
cial” Em suma; abandona-se uma His tória Social da cultura, considerada redu-
cionista, em favor de uma História Cultural dó sôciàl.’ GmcreUanente, isto.sig- ...
■nifiçará uma Inversão nas opções de recorte do objeto em História da leitura: _
'‘CONCLUSÃO '
Com grandes variações de qualidade em suá realização em pesquisas,
também com variantes perceptíveis, os enfoques de diverso? tipos que podem
ii
Ü! i ' 1Sa° ln,el'cssante accrc:1 de cüm° encarar o «popular” e o «formal», como ela
pretere dizer,acha-se emiJOLLY.Karen Louise. P o p u la r re U y o n in tale4riglo-S< m > i
- tn $iand- Chapell Hill: The ünivcrsily ofNorth Carolina Press, 1996.càp. t.
208
Capítulo 10
(...) muitas e variadas formas em que'0 ser humano manifesta estar consciente cia
, existência de uma dimensão diferente da temporal e “material”.23
k J
2 lü
' Os alemães chamam de Religípitswisscnscluíft a disciplina que seria,
como o nome indica; uma “ciência da religião . Na verdade, trata-se de um con
junto de disciplinas; 1) História das religiões; 2) Religião comparada; 3) Feno- t
menologia da religião. História dás religiões é a trajetória, no tempo, dos siste-
, •, mas religiosos; ou o estudo de tal trajetória. “Religião comparada” é nome um
tanto enganoso e impróprio de uma disciplina que se ocupa em descrever c
classificar muitas religiões, observando as semelhanças ê diíerenças entre elas.
Quanto à Fenomenologia da religião, é o estudo ordenado dos faíômenos.
(aquilo que aparece) religiosos, feito deixando-se de lado todas as suposições a ... ■
" respeito da verdade ou lalsidáde das crenças específicas e da realidade dos ob
jetos da experiência.religiosa. Trata-se de üm método de desenção e entendí-
, ' mento - não de explicação com suspensão de juízos, pretendendo deixar qüe
os fenômenos falem por si mesmos, Um dos setls especialistas principais é Mir-
. cea EÍiáde. A fenomenologia da religião, típica fia Escóla de Marburgo e de seu
prolongamento na Escola de Chicago, baseia-se numa antropologia (no senti-
dó filosófico do termo) cujo substrato seria.o hotrn rçligiasm: a perspectiva é .
morfoiôgica, buscando uma tipologia genérica e descritiva das formas.e práti
cas religiosas.'1 . ' ,s . 'v ' •
' '■ 1 ' : As ciências das religiões são tentativas de aplicação de algumas dasciôn- ,
cias sociais —Psicologia, Sociologia, Antropologia aos aspectoá' religiosos das
sociedades humanas ou dós indivíduos. A.Sociologia da Religião teve inicio, no
séculol9 c início do século 20, com forte- viés funcionalista. Émile Durkheim
(1858-1917) foi um de seus grandes expoentes, encarando as religiões sobre-, .
■ tudo enquanto fator de autopercepcSo e estabilidade das sociedades humanas,
centrando-se na noção do “sagrado”, na dependência de uma teoria dá socie-:
•cíade como fato moral. Max Weber (1864-1920) introdnziu um método m ais.
comparativo1para o entendimento dás religiões, que’aborda va em especial a -
partir do ângulo da ética e da ação decorrente de uma orientação não-num- ,
dana, na dependência de sua visão da Sociologia como um estudo centrado no ■ ..
significado e na ação. Depois da Segunda Guerra Mundial, a Sociologia da Re
ligião esteve especialmente interessada.em çoisas como o. estudo (as-vezes4
4 GOMES, Fràncisco José Silva. À religião como'objeto cia História. In; LIMA, Laná
_ • Lage da Gama et al. (Org.). H istó ria > religião; Rio de Janeiro: FAPERJ/AN-
PUH/Mauad, 20(12. p. 13-24.
211- / •• ■
'i , , >
\
quantificado) cia pratica religiosa e o avanço da secularização nas sociedades
contemporâneas, A Psicologia da Religião, iniciada por volta de 1890, preocü-
pa-se com a experiência religiosa dos .indivíduos, em temas comb conversão,
oiaçao, misticismo c estados anormais da mente. O desenvolvimento da psi
canálise trouxe várias linhas, como a freudiana, com ênfase no caráter ilusório
da religião, ou a junguiana, que concede grande importância aos sonhos, fan
tasias, mitos e símbolos. A Psicologia Social cia Religião, menos praticada, ini-’'
bi ica-se na Sociologia, A Antropologia da Religião de início aplicou-se a temas
como a religião pré-histórica e as religiões ditas “primitivas1. No entanto, a
Antropologia, em religião como em outros aspectos, debruça-se crescente-;
meule sobre as sociedades ocidentais, incluindo as mais avançadas. O esforço
outrora despendido, íiuma perspectiva evolucionista, para achar.a “origem da
icligiao já não ocupa o centro das atenções antropológicas:-os especialistas ■
voltani-sc mais para o estudo, em culturas específicas, da natureza e-da fun
ção dos símbolos,..do mjto e do ritual. Mesmo antes do.advento cio pós-mo-
dei nisino, a Antropologia Social já manifestava forte propensão á substituir a
ênfase nas estruturas por uma insistência nas ações ou práticas. \
Os estudos religiosos com bastante freqüêncía estabelecem tipologias
como modo de operar. O pioneiro nisso foi Heinrich Frick (1893-1952); Al-
gmnas das tipologias mais comuns.são as que opõem as religiões reveladas às
não-reveladas, as religiões fblk às universais,.-havendo também tipologias ter-
nárias (religião tribal/nacional/mundial. por exemplo). As tipologias podem
ser estruturais.ou históricas. Valem o que valerem a teoria eas hipóteses (mes
mo implícitas) de; que derivam: sempre. .
Existe, também, uma Filosofia da Religião, -quando os métodos filosófi
cos são aplicados à reflexão crítica a respeito de pronunciamentos religiósps.e
pretensões ao conhecimento de base religiosa, bem como ao considerar-se o
pensamento religioso cm relação a outros inodos de pensar. A Filosofia da Re- ■
ligião não tem a ver com a expressão e,defesa de convicções religiosas —tare- '
Ias tia Teologia e da fdosofia religiosa que lhe serve de'instrumento - mas, siní,
consiste numa forma de pensar a respeito de tais convicções:-O filósofo da rc- -
ligião aplica técnicas lógicas ou analíticas ao estudo da natureza e do sentido
da linguagem reiigiosa,bem’ como do status das crenças religiosas. No Ociden
te tal disciplina se ocupava, no passado, exclusivamente com o Cristianismo;
boje em dia seus interesses costumam ser bem mais gerais e universais. '.
212
Por fim, a Teologia, discurso religioso acerca de Deus, define a si mesma
como a ciência que trata do divino, O pensamento ocidental a respeito costu
ma distinguir duas espécies de Teologia: a natural, acessível à razão humana,
e a revelada-, decorrente da revelação divina. Assim, a.Teologia ocidental de
base cristã tem afirmado que b entendimento da natureza e da existência de •
Deus, por um lado, do dever, da liberdade e da imortalidade do homem, por
outro, pode scr obtido, seja por intermédio de uma reflexão racional sobre o
mundo, seja mediante uma revelação divina. Um dos elaboradores deste
modo de ver - contestado por oulrqS - foi Toniás de AquÍno (c 1225,-1274),
o qual admitia que algumas conclusões válidas podem ser alcançadas pela ra- *
zão, mesmo se a revelação é que provê as normas do entendimento correto. (
Chama-se apologêtica o emprego dos argumentos da Teologia Natural para
defender a racionalidade das crenças religiosas.5
' pjas universidades européias e norte-americanas, por títuilo tempo Re-
' ligião Comparada significou, como discipLina, o estudo das inter-relações en- .
Ire os principais sistemas do pensamento religioso e o estudo da forma em que
se difundiram os temas e idéias religiosos, já que, em religião, existem múlti
plos vínculos entre as grandés tradições. Assim, o judaísmo viu-se afetado
pelo zoroastrismo; e ambos contribuíram para o islamismo. Ò Islã, em sua ex-
pansáo em direção ao Oriente, acelerou a extinção do budismo na índia e, por
sua vez, sentiu a influência do hinduísmo. Ao atingir a índia partindo da Eu
ropa, o, cristianismo teve efeitos sobre o hinduísmo do século 19 e sobre os
movimentos renovadores islâmicos; ém Sri Lanka, agiu como um anticoipo,
. esti mulando o budismo a quê recuperasse suas próprias idéias intrínsecas. Nas
décadas recentes, o pensamento religioso asiático marcou á teologia ocidental.
Nos últimos tempos, tratou-se de ultrapassar em Religião Comparada
uma- siniples análise comparativa das idéias religiosas e suas difusões e in
fluências rècíprocas. Isto, ocorreu pela imposição de uma peispecliva mundial
como padrão e pela influência de disciplinas com óa Antropologia, a Sociolo-,
gia e a Filosofia da Religião —as quais, no entanto, em si mesmas raramente
têm um.escopo tão vasto assim no Ocidente: com frequência se ocupam mais
213
do cristianismo. Um dos especialistas contemporâneos, TreVor Ung, defende,
em |>l imeira aproximação, um modo de trabalhar que sc podería chamar de
Filosofia c Sociologia comparadas das religiões numa perspectiva mundial. .
hm seguida, porém, o autor precisa que, em sua opinião, não basta. Pa-
roce-lbc que, para ser frutífera, a comparação não pode tratar as tradições re
ligiosas como blocos monolíticos'imutáveis. Assim, propõe somar às compa
rações uma aproximação histórica. Por exemplo, se se quiser comparar o Islã
com qualquer outra coisa, é preciso levar em conta temas#como os seguintes; *
não se pode compreender adequadamente a religião dê um imigrante paquis-
lanês na Inglaterra pensando unicamente no que,significou o. aparecimento
do islamismo em Mecafe Medina no século 7, posto que Çal religião, no Pa- ’
quistão atual, é herdeira também de séculos de desenvolvimento islâmico no
subcontinente indiano, os quais lhe imprimiram características próprias edis-
tinlivas, sem por isto ela deixar de ser reconheeívelmente uma forma do isía-.
i"isim>. Em suma, a História é necessária até mesmo para abordar um tema"
tão contemporâneo quanto o que foi indicado.6
Exemplificando com'o budismo, objeto de seu estudo, Trevor Líng
apresenta argumentos a favor da aplicação'a tal sistema religioso, de uma
perspectiva histórica. Ele a opõe ao que chama de “enfoque literalista”, oú
seja, a maneira de ver em que os discursos atribuídos ao Buda sejam enca- .
fados como proposições a enlendér-se Íiteralmeiíte.em si mesmas, cm sua
lógica intrínseca, sem qualquer referência necessária ao contexto era qüe •'
foram enunciados. A maneira contrária de agir meto do logicamente seria o
enfoque “histórico-crítico”: os discursos em questão São relacionados à si
tuação histórica em'que foram articíilados*, na medida em que for possível
reconstituir tal situação, já que se trata de um período pobremente docü- •
mentado da História da índia, A atenção não é dirigida somente ao signifi
cado Intrínseco dos enunciados, mas ao fato de que se destinavam a ouvin- 1
les determinados, num contexto dado e concreto. Para avaliar o peso a con
ceder a pontos específicos do que foi afirmado (segundo se crê) por Buda, '
é útil recordar que aquilo não foi dito num vazio e, sim, a uirqj audiência
específica. A natureza desta, seu nível de compreensão, seus preconceitos e
214
idéias assentadas, adUiralntente determinados, devem ajudar a separar o
mais durável do mais efêmero, aquilo que explica que o budismo pudesse
ao longo dos sécUlos continuar falando a Sucessivas gerações muito diferen
tes daquela da época do fundador, ntas também que algumas partes do con
teúdo de seus textos canônicos em outros períodos.pudessem parecer, niti
damente ultrapassadas (sua misoginià, por exemplo, alguns aspectos de
seus preceitos morais etc.).7.. .
■ Aqueles olhos [os de Ramsés II - C.F.C.] haviam permitido que um tíõs maio
res soberanos dá Antigüidade vissem uma das maiores figuras da história relígio-
' sa - Moisés. Moisés foi uma das poucas pessoas que receberam diretjimcntc de
Deus rima comunicação contendo ordens para Ioda a humanidade, um ensina
mento que sc acha'nas doutrinas sagradas tanto dos judeus quanto dos cristãos e
dos muçulmanos. Tendo olhado para aqúelás pálpebras fechadas, tive a certeza,
sem sombra de dúvida, dc que Ramsés II cophecera Moisés pessoalmènte.*
216
este último - e só ele - como autoridade para formular a possibilidade de ter
Merneptah morrido perseguindo os hebreus quando do Êxodo, se bem que se
distancie até certo ponto desta'opinião quando diz :qúc isto seria assim 1para
algitns”.10 Ou ao vermos que Chtistiane Desroches Noblecoqrl, egiptóioga de .
grande prestígio (aliás, a principal bêtc nóire do Dr. Bucaiíle ehi função de epi
sódios vinculados aos trabalhos de preservação da múmia de Ramsés II em Pa
ris), dedica, cm seu livro sobrè Ramscs II, váiias páginas ao Êxodo, mesmo ha '
ausência total de fontes a respeito que não sejam as do relato bíblico, que elá
glosa, tratando até mesmo de racionalizar as “pragas do Egito”, cuja existência
aparentemente aceita com pequena precaução retórica, pois, em dado ponto,
afirma (minha ênfase): “Moisés..., tornando-se ameaçador, cobre, parece, o .Egi
to de pragas diante das qúais o soberano é obrigado, afinai de contas, a incli-
nai-se”.11 Reconhecendo ele também; a total ausência de fontes independentes,
Kennelh A. Kitchen não deixa por tal razão devreferir-sc ao Êxodo ppr sua vez,
mediante uma simples glosa do texto bíblico; e o faz, afinal de contas, reconhe
cendo-o como se fosse um dado histórico concreto.1213Talvez seja bom recordar
que a primeira menção histórica indubitável de Israel, numa esteia do ano 5 de
Merneptah, é como um dos povos vcncidos#pelcffaraó na Palestina, por volta
' de 1208 á.C. Nada, absolutamente, há antes disso.1’
Face aos dados de feto disponíveis e a escritos como os mencionados, a
atitude metodologicamente correta, a meu ver, é a que assume Donald Red-
ford quando afirma: . .
217
Níi verdade, òs escritores bíblicos mostram-se total e alegremente ignorantes da
discrepância colossal que soas “História” e “cronologia” geraram.
A Corça que tem um engajamento confessional para sustentar um juízo prévio,
.eulretardo, não permite que a maioria dos judeus conservadores ou exegetas cris
tãos descartem a totalidade do arranjo cronológico, e trabalhos recentes mostraram'
que bs intelectuais muçulmanos sâo prisioneiros dele dé modo semelhante. Ó pa
drão básico da Idade dos Patriarcas, da Descida para o Egito c da permanência nes
te, do Êxodo, da Conquista e dos Juizes (e m d e estar essencialmcnte correta;.Náo é
de inerentemente razoável? Alguém clíspõe dequtío melhor? Consequentemente,
numerosas soluções engenhosas s3o ârmadas.'
Ia is manipulações dos dados lembfarii a prçstidigitaçâoe a numerologia; e, no
entanto, elas produziram os alicerces bambos sobre osquais “Histónas”.lamenta-
velmente numerosas de Israel foram construídas. (...) Quem foi o faraó da Opres
são? I? o do Êxodo? Pode-sfe identificar a princesa que tirou Moisés do rio? Qual foi
o lugar da saída dos israelitas do Egito: passando pelo Wadi Tumilat, ou mais ao
norte? Pode-sc apreciar ri quanto estas perguntas carecem de sentido scse formu-.
larem interrogantes similares quanto às histórias do rei Artur sèm, previamente,
submeter o texto a uma avaliação crítica. Quem eram os cônsules em Roma quan
do Arlur tirou a espada da pedra? Onde nasceu Merlim? Onde ficava Avãlon? Pode-
se seriamente imaginar um historiador clássico cogitando se foi larbas ou Enéias o-
responsável pelo su icídio de Qido, onde exata mente Remo pulou por sobre o
muro, ó que de fato aconteceu a Róniulo durante a tempestade etc.? (...) E sc o ma
terial bíblico do Pentateuco, de Josué e de Juizes for transformado em uma coleção
de retalhos igual mente válidos de informação que os. autores aceitarã.o ou rejeita
rão ii vontade, teremos tantas reconspuçÕesdà“Históm”pré-;monárquica de Israel
quantos tórem os ãiitores que quiserem tentar escrevê-las.1' ,
Em sum a, òs livros bíblicos, na. m aio ria dos casos, peio m enos n o c o n - ,
lexlo da civilização ocidental (c até m esm o naquele do Islã), ru m são tratados
do m esm o m odo que as o u tras fontes antigas disponíveis. E se isso é assim no
tocante às tentativas do reconstituir as origens de Israel, os estragos possíveis
à seriedade dos debates serão ain d a m aiores q u an d o se tratar de assuntos p ro - •
priam ente religiosos, sem qualq u er dúvida,-com o é atestado pelo h o rro r que
sentem m uito s orientadores de m onografias o u de dissertações - entre os
quais m e incluo - q u an d o aparece algum cristão m arcadam entè religioso que,
sendo aluno de H istória, decida escolher (com o co stu m a acontecer, in feliz-
m ente) assuntos bíblicos p ara seu trabalho de fim de ctirso ou sua dissertação
218
tio mestrado, li não se traia somente de atitude devida ao entusiasmo militan-
le de jovens estudantes. Um egiptólogo experiente ç de alto nível como Ján
Assmann escreveu a passagem seguinte, a meu ver absolutamente Incrível, que
traz embutido o freqüente desejo de muitos intelectuais alemães de perceber
sempre que possível, no an tigo Egito, elementos ou vislumbres do que viría a
ser bem mais tarde a tradição religiosa judaico-cristã; o que parece transfor
m ar a Egiptologia num meio para um fim situado fora dela: -
(...) se o Egito tivesse desaparecido rio século XI a.C., poucos traços da civilização
faraônica teriain sido incorporados à JBtblia. (...) Estas não são somèntc especula
ções vazias. Elas tomam claro que nossa preocupação com o antigo Egito não nas
ceu mera mente de um interesse de antiquários mas, sim, representa uma busca de
nosso proprio passado mais remoto, um passado ao qual estamos ligados, através
dos séculos, por laços numerosos, diversoç <efreqüente mente camuflados. (,i.)ls
Com Ô. qiie eu disse até aqui, não estou qiiérendo negar os progressos
impoftantes da Ciência da Religião (Rcligionswissenschaft) em todos os seus
aspectos e divisões, desde que começou, no final do século 19, a destacar-se da
Teologia. Também é verdade que estou falando de uma diferença de grau em
comparação com outros setores da pesquisa em História e çiôncias humanas,
não de natureza. Afinal, ainda me lembro de meu espanto, ém 1967, quando
de uma viagem ao Brasil de Jacques Godechot, eminente professor de Toulou-
se, quançlo lhe perguntei, num jantar, que caminhos o haviam,conduzido a
elaborar a teoria das “revoluções a tlânticas” do final do século 18 é da primei
ra parte do 19, ao receber a resposta seguinte: ele e o historiador estaduniden
se Palmer, com tal noção, haviam desejado proporcionar um contexto histó
rico à O.T.A.N. quando esta eslava sendo organizada após a Segunda Guerra
Mundial! Mas continuo,achando'que há um je ne sais quoi de diferente'quan-
do o assunto tem a ver com alguma das religiões ainda vivas, num contexto
i em que os autores c outras pessoas se importem com ela, mçsmo em compa- ■'
ração com'assuntos atinentes a paixões político-ideológicas candentes, por
exemplo. ;;
15 ASSMANN, Jan. T h e m in â o f Egyplx History and meaning íri lhe time of the 'pha-
raohs. Trarislated by Andi ew Jenkins. New York: Metropolitan Books (Henry Nolt),
2002. p. 283, ■ ' ' ■ ' '
219
, lim História das Religiões como em Religião Comparada, de fato, o ân
gulo dc abordagem de religiões que já desapareceram costuma ser bastante di-.
íercnlc do que se aplica às religiões cuja vigência contínua no presente. Isto em.
p.utü tem a ver com a diferença básica da posição da religião no âmbito social,
no mundo pré-modemo e posteriormente, Mas também se vincula às repercus--’
sÕes das militâncias e vivências, religiosas' presentes hoje em dia. Para dar um
exemplo, se retomarmos o livro já citado de Christiane Desfoches Noblecoúrt,
seu lrala mento da afirmação de Ramsés II de ter rogado e obtido a ajuda do
deus Amon quando, na batalha de Kadesh contra os hititas e seus aliados, atra
vessara um momento extremamente perigoso,’6 é compJetumente diferente das
já ciladas considerações da au tora sobre o Êxodo em que segue - exclusjvamen-
le, pois não há outra coisa - o texto bíblicõ: mais exatamente, àquele, é tim tra
tamento do tipo que se espera de uma egiptóloga dotada" ao mesmo tempo de
senso ci ítico e de sensibilidade para com as crenças dos antigos egípcios; carac-
terfslicas que as suas páginas sobre o Èxódo não apresentam na mesma medida,
lun 1965 a editora dá Universidade de Chicago1publicou um volume or
ganizado por Mircea Eliadee Joseph M. Kitagawa chamado The history ofreli-
üioiis: Esstiys m mcthoiioloyy, traduzido para espanhol cerca dê trinta anos- mais
tarde. O volume reflete claramente, duas décadas após o fim da Segunda Guer
ra Mundial, as adaptações ocorridas na visão-religiosa de .alguns dos cristãos
ocidentais em função,do auge da descolonização, já que outros continuaram
melodulogicamente fundamentalistas e persistiram na intenção missionária. O
objetivo missionário, em tempos neocolomais, foi revisto nó sentido de pro- •
por-se um diálogo aparentemente igualitário entre as religiões do mundo, des
locando-se a militância,-das missões visando à conversão ao cristianismo, para
uma defesa conjunta das religiões contra o avanço da laictzação.e da seculari-
'/.ação do pensamento e dás.vivências no inundo contemporâneo. No capítulo
dedicado à Religião Comparada, notam-se coisas bastante curiosas,-que, aliás,
pfefiguram as posições futuras de uma.ciência humana pós-moderna, multi-
culturalista e politiçahiente correta: falo em prefigurar porque o livro precede
dc pelo menos uma década a vigência mais ou menos considerável dessas pos
turas uos estudos humanisticos1. Ó texto, de Wilfred Cantwell Smitli, desválo-16
220
ri/a a posição dos estudiosos do século 19 que buscavam a objetividade, decla-
•ra scr necessário enfatizar as religiões ainda'existentes no mundo de hoje em
detrimento das religiões desaparecidas e faz afirmações como esta:
(...) a tarefa da religião comparada è elaborar explicações acerca da religião que sc- <
jam simultaneamente inteligíveis para pelo menos duas tradições. (...) No caso de
um encontro entre dois grüpos religiosos - digamos, por exemplo, o cristianismo
e o islamisniò -, o estudioso deve chegar a um tàl ponto que seu trabalho seja st- ,
multancamente convincente para as três tradições: a acadêmica, a cristã e a niuçui-
• mana. Isto não é fácil, mas estou convencido dé que pode ser feito tanto em prin
cípio quanto na prática.'7 ■' .
r ..
. Assim, uma disciplina universitária —a Relígião C om parada —tra n sfo r
m a-se n u m encontro e diálogo entre tradições religiosas, pois, paia o autot,
,. ■ ..
(...) é impossível estudar as religiões de forb, é preciso tazè-lo junto dèlas, òu nelas,
conro membro de algum credo. (...) 'Ibnninar-sc-á por reconhecei, assim, que na
religião comparada o homem estuda a si mesmo. (...) A religião comparada pode
cõnvertcr-se iia autoconscíência disciplinada da vidçr religiosa do liomeni, nuança-
da e em desenvolvimento.1*
17 SJvlITH, Wilfced Caníwell. I,a rcligión comparada: adóndey por qué? In: EU ADE,
Mircea; KITAGAWA, Joseph At. (Org.). M etodologia d e la h isto ria d e las reUgiones.
Trad, Saad Chedid e Eduardo Mgsullo! Barcelona:. Paidós, .1996. p. 53-85 (a citação
encontra-se nas p. 78-79).
18 lb id .,p .8 l-8 2 .'’ '. ’ É .
19 lt}íd., p. 82. Ao propugnar a forma de tais encontros entre pessoas de diferentes co
munidades religiosas, Smith escreve que a pergunta que quia uma deveria fazer à
òútra seria esta, que me parece.cspeciahnente bizarra no contexto de uma discipli
na universitária dc Religião Comparada, que afinal é do que está falando (p. 7'1):
“Isto é o que vimos da verdade, isto é o qüe Deus fez por nós; digam-nos o que yi-
• .ram, o queDeusfcz por vocês, e discutamb-lo juntos”. • ,
221
ISm tempos pós-modemos, da História Cultural, a crença em não haver
verdades, só versões (perspectivísmo hermenêutico), ao mesmo tempo desvalo
riza as mililancias —os pós-modernos deparam-se “coín o antigo problema dos
céticos acerca de como pensar e agirá luz de sua própria doutrina”-*'1e, em nome
<lo suposto caráter subjetivo <jo trabalho do historiador, leva a reivindicar a pos
sível validade de uma História Religiosa Feita por crentes. Esta apresentaria tanto
vantagens quanto' desvantagens e, no caso.do historiador crente, exigiría maior
: vigilância no sentido de garantif pelo iigenos um relativo distanciamento aeadê-
mico dc/objelo para, assim, evitar juízos de valor, liienirqujzações indevidas do
ortodoxo c do heterodoxo, bem como outras dístorsões. Entretanto, afírma-sc,
■ • ' 1 • • •• ■■■■■
■Na<> é a “empatia participante” que é a garantia cie compreensão do objeto; ín-
versamente, pão é ò historiador não crente que é a garantia de maior objetividade
e neutralidade com relação a um objeto jyligíoso de estudo.11 ■
2!) BLÀCKBURN, Siiíion, Dicionário Oxford cie Filosofia. Traí). Desidério Murcho et al.
Rio çte Janeiro: Jorge Zahár, 1997, p. t>03-306 (verbete "pós-modernismo”). A t-e$-,
peito dos possíveis efeitos .da atitude pós-moderna sobre a práxis político-social, cf.
BÉDAR1DÁ, François (Org.).'27;e social responsibilhy of the historiem.Providence,
Ri:Berghau Books, 1994. " .. ■■ ■
21 GOMES, Francisco José Silva. Á..religião como objeto da História. Im LIMA, Lana
Lage dá Gama. et al. ,(Org.). H istória & religião. Rio de Janeiro: FAJPERJ/AN-
PÜH/Mauad, 2002, p. 21. ; ■■■ ■ .... . .
I
22 Cf. Julian Pht-Rivers, T.á gracía en antropologia e José Domíngue?, I.éon, Bases
. metodológicas para cl estúdio de ia religiosidad popular andaluza, ambos são ca
pítulos incluídos na.obia coletiva: ÁLVAREZ SANTALÓt C. et al. (Org.). L a reli -
g io sid a d p o p u la r. Barcelona: Antbrõpos, 1989.1: Antropologia e historia, respécti-
vamenle, p. 117-212 e 143-163. Para discussões metodológicas de grande interes
se, ver: JOÍXY, Karen Louise. P o pular r e ü p o n in L a te S a x o n E hglam í: Elf chartns in
.. context. Chapei Hill, North Carolina: The Univetsity of North Cárolinu Press,
1996. p. 18-34; FRANCO JÚNIOR; Hilário. Meu, teu, nosso: reflexões sobre o còn-
. ceito de cultura intermediária. In: FRANCO JÚNIÔR, Hilário. A Bya barbada: en-
saiôs de mitologia medieval: São Paiilo: Edusp, 1996. p. 31-44. ;
23 Cf. CARDOSO, Ciro Fiamarion. O purgatório no.mundo dc Beda, S i g ttu m ,$ $ o
Paulo, 5, p. 47-71, 2003 para o trabalho conjunto, na abordagem de um lema dà
Alta Idade Média, com Instrumentos de análise filológtcos, históricos e derivados
da Etnografia da Leitura. , i ■
■223
p:ir;i o estudo das religiões, na maioria dos casos, considerá-las como o que ele
chamou de “ideologias historicamente orgânicas”:
224
Uma posição metodológica acerca da ideologia coibo a de Gramsci per- •
' mitiria refinar, por exemplo,"a análise de.Trevor Ling a respeito de terem sido
as religiões, no passado, núcleos de civilizações. Para mostrá-lo, Ling çòmpára
o contexto de surgimento e expansão de diferentes religiões - budismo, hin-
duísmo, islamísmo, cristianismo - com,a situação destas últimas na realidade
muito'mais laicizada do presente. Sua-idéia central é que as grandes religiões
atualmente existentes são resíduos dc civilizações completas construídas em tor- -
no das mesmas, mas que desapareceram como tais. Em suas origens, cada' uni da
queles sistemas.religiosos era uma visão de mundo global, especificando a po
sição do homem no universo, e também continha prescrições para ordenar os
negócios humapos em dimensões que, na atualidade, aparecem separadas en
tre si e institucionalizadas individualmente: filosofia, política, economia, ética,
direito etc. Pelo contrário, na situação’da Antigüidade e da Idade Média, o que
nós separamos aparecia integrado num todo indivisível para os homens de en
tão (embora nós o possamos dividir, drtificialmente, para fins analíticos).
No caso do hinduísrno, termo que na verdade cobre toda uma família
dè sistemas culturais e seitas teístas, Ling mostra que deriva de um tronco co-
num), o bramanismo. E o bramanismo foi, originariamente, metafísica, culto,
cerimonial, estrutura social, ética, prescrições econômicas e políticas. A crise
qüe originou o bramanismo foi o encontro, na índia setentrional, dos indo-
europeus recém-chegados com culturas antferiormenfc existentes tio subcon
tinente indiano. Tal encontro e a Síntese dele resultante representam um lon
go processo, ao cabo do qual surgiu uma civilização integrada que a vania
bràmane elaborara como urii sistema completo. Ò sânscrito tem três termos
qüe ordenam em ordem decrescente de importância as principais preocupa-
ções com a organização da vida humana: dharmq, neste contexto, modo reto
de ação ou dever; artha, economia e governo; e kania, prazer e estética. Só a
Harmonia dos três níveis é satisfatória: assim, fazia parte do bramanismo a re
gulamentação da vida pública (direito, governo, economia), como fica claro
pela redação degíandes tratados como o Arthasliastra, ou tratado sobre 0 go
verno, e das Leis de Mamr, c mesmo dos prazeres, como é demonstrado pelo
Kaina Sutra. ) ■
O Islã provê outro exemplo. Na época dc Maomé, até mais do que uma
religião, parecia uma tentativa de formar um povo árabe unificado, com pro-
225
visflcs pura isto cm muitos níveis além do religioso, e depois, a empresa de dar
soul ido a uma civilização islâmica mulfiétnica. Não somente o Alcorão con
tém múltiplas indicações políticas e jurídicas, como existia outro documento
mais especificamente político, a Constituição de Medina. O Isiâ era visto.corao
necessariamente englobando o que para nós são religião, política, direito, eco
nomia e ética. •' j ,
No caso do cristianismo a'coisa é menos clara de início. As tentativas dé,
vincular Jesus com os zelotas e outras correntes reformistas ou anti-romanas
tia Palestina antiga não são convincentes, Ào começar a ganhar aderentes no
mundo helenístico-romano fora da Palestina,'o cristianismo' se apresentava
como movimento estranho à política. Em suma, nisto se assemelhava à uma
"religião” no sentido contemporâneo e especializado do termo,'não"estando
vinculado como niicleO a uma. civilização específica. Isto mudou, entretanto,
ao integrar-se ao Estado imperial romano no início do séctilo 4U. A partir de
entílo, reuniu à sua volta elementos (incluindo os do próprio sistema romano)
que, durante todo o período medieval,.justificam que se fale de uma civiliza
ção cristã no sentido forte da palavra. Isto só começou a enfraqúecer-se em
forma decisiva com a erojão progressiva do princípio teísta de basedessacu
vilização |)elo racíonalismo, sobretudo no niundo/fbrtemente urbanizadó.
posterior à Revolução Industrial. O protestantismo foi uma tentativa de criar
um cristianismo mais adaptado às características do mundo Urbáno-raciòna-
lista nòseu estágio inicial. Com o tempo, no entanto, o cristianismo veio a ser
simplesmente uma religião no sentido especializado, deixando,de;ser o centro
de uma civilização especifica. - .
Em suma, cada unia das grandes religiões examinadas ó-hojé em dia um '
resíduo teológico, ritual e ético de algo muito maior: a civilização de que cada
uma constituía, o núcleo, (no vocabulário de Gram sei, a “ideologia historica
mente orgânica” que vertebrava aquela forma específica de estruturação so-
ciocultural), No Caso do Islã, o enfraquecimento do aspecto socialmente tota
liza dor foi menor; pelo qual é mais fácil o ressurgimento dd um movimento
islâmico contempdrâheo que pretenda restaurar a religião muçulmana como
núcleo de uma civilização.27 . ■ :• ;
2 2 (i
À opção por Gramsci não resolve todos os problemas para um empre
go adequado do conceito de ideologia no estudo das religiões. Isto porque tal
autor continuava afirmando a dicotomia material/ideàl devido a apegar-se
ainda à oposição base/superestrutura, uma postura a tneu ver impossível de
sustentar-se após as discussões da segunda metade do século 20.'* Com efeito,
ein Gramsci como em Lênin, temos uma '‘formulação sociológica ortodoxa
ém que por um lado está “o. social” por outro “a .ideologia, ambos os níveis
mantendo entre si relações variáveis, se bem que Gramsci atenua o caráter de
variável dependen te atribuído às ideologias, até então tendência muito forte
entre os marxistas.2’ .
Uma tentação do pós-modernismo —que aparece em -Louis Dumont
antes de ser assumida em uma fase de seus escritos por Roger Chartier - foi a
de manter a dicotomia ideologia/sociedade, mas transformando a primeira
em variável mais' independente e a sociedade em variável mais dependente.
Dumont afirma, ao fazê-lo, estar assumindo um ponto de vista somente m e
todológico, não ontoiógico.(aspecto que deixa em aberto), mas na verdade, ao
proclamar o caráter decisivo da Ideologia {que postula ser idêntica à consciên
cia), no seu estudo das castas da índia, como aquilo qué ordena e hierarquiza
uma matéria-prima não-ideológica,- afinal de contas transforma o resto do so-
' ciai (o não-consciente) ém - mero resíduo, razão pêla qual desqualifica qual
quer caráter primário à política ou à economia, por exemplo, diante da ideo-
logia/consciência.5’ Uma posição tão radical, entretanto, não foi considerada
convincente nem mesmo pelos historiadores pós-modernos cm sua maioria.28*30
22« .
suas relações, ele produzirem e reproduzirem o seu ser material e, portanto, o da
quelas relações.3* ' •.
ciais etc.). - v .• ,- -
< _______■
■ ■’ . -_ . -
32 1'KUCHTWANG, Stephán. Invésügating religion. In; BLOCH, Maiirice (Org.*).
Marxht analyses and social anlhropology.- London: Malaby Press, 1975. p. 61-82 (a
citação é da p. 68). • ,; '
- 33 PEUCHTWANG, Stephán: Invcstigating religion. In: BLOCH, Maunce (Org.).
Marxisí amfyses andsodal àtuhropahgy. London: Malaby Press, 1975. p. 7..
■ 229
Capítulo 11
*231
* “prá liais teorizadas” . .
- a c rític a do a rte '
- os escritos d c artistas' acerca d a a rtô : . . '
- a iloxti (ç o n jü n to de o p in iõ es v ig en tes e m d a d a ép o ca) a tin e n te à
arle. .
235
rudo como uma obra de arte?'Ou seja, o que foz com que uma obra de arte
seja nronDcciíiti como tal, quais são as características que nos podem condu
zir a tal afirmação? A ênfase é> então, cpistcmológica.
I lá obra de arte quando certas condições são satisfeitas, entre elas os
, ,l ilV*0S ^'Stinlivos que permitem separar o objeto considerado artístico dos ou
tros objetos que não são assim considerados. Não são, porém, traços sensíveis
percebidos: é de fatores abstratos que a análise se deve ocupar, de qualidades
defini ciou a is como consistência, saturação, simboliza ção, exemplaridade etc.
A arle é percebida como arte mediante um trabalho cognitivo: mas trata-sc
mais de reconhecer do que de conhecer, de nomear mais do que cie perceber.
Isto ocorre por um caminho que, partindo de uma incitado serisorial, qrien-
Ia-se a seguir, atravessando vários níveis de pensamento; era direção ao reco
nhecimento efetivo deste ou daquele objeto específico como sendo “artístico”
Lm muitas destas análises, acha-se necessário levar em êonUí, no mencionado
processo de .reconhecimento, um contexto sócio-cultural e político (no senti
do pós-moderno do termo), para entender como se dá o reconhecimento dó
objeto como artístico, sua transformação em símbolo, que deve muito ao lu-
g.u por de ocupado num sistema de trocas econômicas, culturais, simbólicas.
Lm suma, a filosofia analítica,- quanto: à arfe, busca os pressupostos lógicos
constitutivos de sua identidade como objeto singular entre os demais objetos.
Menos concreta do que a semiótica com suas grades de leitura, fica, na práti
ca, mais longe das coisas. . ' , ‘ 1 ■
236
tuídii por um som (mais exulíimontu, pela marca psíquica de um som), sem .sig
nificado em si mesmo, mas permitindo que o significado surja ao opor-se a ou- ■
Iros sons, distinguindo-se deles, não se pôde adiar algo parecido, por exemplo,
na linguagem pictórica: em pintura, a forma, nas tnenores unidades que se pos-
sam advir, tem significação, o mesmo ocorrendo com a;cor, qiie se liga a deter
minado simbolismo em vigor numa dada sociedade (ou seja, formas e cores,.em
qualquer corte doobjeto, são imedíatamente interpretadas). As unidades, ou-
trossim, parecetn ser ilimitadas envnúmero, contrastando com o núniero limita
do de fonemas de uma determinada língua. Ao mesmo tempo, tal constatação foi
uma das bases da passagem de uma “Semiótica da,Comunicação paia uma Se
miótica da Significação”, cuja ênfase já não reside necessariamente no signo mas,
sim, nas semioses ou processos çm qúe a significação e gerada. ^
Uma das muitas tipologias dos signos propostas por Charles Sanders Pcir- .
ce tem a ver com a relação dos signos (na visão derivada de Saussurc, seriam na
verdade significanfes) com seus objetos (referentes): distinguem-se, então, íco
nes, índices e símbolos. •
•Os ícones são signos cujo significantc (sendo o sigmficante chamado de
■signo no sistema peirceano) mantém coiii seu objeto tinia relação de analogia,
sendo exemplos o desenho figurativo ou a fotografia. Funcionam segundo um
prmcípio de semelhança, similaridade, analogia próxima: ,■
■ Os 'índices são signos cujo"signlficanle mantem cóm seu objeto ufoa rela
ção causai de configüidade físiav natural. Exemplos: a palidez do rosto indican
do cansaço, a inarca de um pneu no barro.
' Os símbolos sãó signos cujo significante mantém com seu objeto uma re
lação que depende da convenção. São exemplos a bandeira ou o hmo nacional
em reiação aó país, a pomba cm relação à paz, as palavras, em relação às coisas
■f por elas-designadas.. ‘
Para Peircc, esta classificação mostraria relações predominantes signo/ob-
"jeto mas, hão, exclusivas. Assim, por exemplo, a marca dc um pneu no barro é in
diciai mas também apresenta semelhança com elementos do próprio pneu quan
to à aparência: portanto, inclui aspectos icônicos. A representação pictórica, cm
cada época ou escola, làz-se segundo convenções ou regras representativas, o que
remete a aspectos convencionais ou simbólicos. Érilrc os símbolos que são aS pa
lavras da linguá, alguns têm uma fotençíiq imitativa e por conseguinte,icônica:
são as onomatopéias. ,- • • , / . ■ ' .
, 1 t .. ’‘ ‘ _
238
. : - Existem duns modalidades básicas de imagens: 1) as imagens fabricadas,
como uma pintura ou uma escultura; 2) as imagens registradas ou gravadas nà-
turalmente. As imagens fabricadas tratam de imitar mais ou menos exata ou
corretamente, rqais ou merios,detalhadamente, aquilo a'que se referem. Ás ima- ■
geos gra vadas haturalmente—fotografia, imagens cinematográficas (que podem
ser fotográficas ou, como na televisão, no vídeo e no DVD, eletrônicas) —fot-
mam-se a partir da luz refletida pelo próprio objeto: são o traço dó objeto em
algum piaterial sensível. Em'outras palavras, o poder deste tipo de imagem vêm
do fato de ser ao mesmo tempo ícone e índice•. Tende-se a esquecer com alguma
facilidade (acima de tudo no caso do cinema, da televisão, do vídeo e do DVD, _
devido à aparência de movimento) ó seü caráter de representação: o ícone sc
oculta por trás do índice, a ilusão de realidade atinge vim ponto máximo.Mes- ■
mo assim, é importante não esquecer que, como qualquer signo, mesmo a ima
gem gravada segundo processos tísicos ou naturais é construída segundo íegias
determinadas que implicam convenções sociais: ela circula de fato nos três ní
veis, sendo simultaneamente ícone, índice e símbolo convencional. .
239
ID
Umbcií» rico maneja a noção de “lexlo estético” —e, em semiótica, içxlo
pode enlemler-se também ao se tratar de objetos não-verbais - caracterizando-o»
com apoio em Roman Jakobson» por se notar, na mensagem dotada de “íynção
poética (ou, mais em geral, função estética” poderiamos agregar), algo ambíguo
e aulo-rellexivo por sua própria natureza. Ter-se-ia uma ambigüidade estéfica
quando a um desvio nó plano da expressão corresponder uma alteração qual-
í|ticr no plano do conteúdo” Após uma série de operações que davam de início a
impressão de poder conduzira critérios objetivos, oMulor, no fim das contas, aca
bou por definir o texto estético como “o modelo estrutural dé um processo de in
teração comunicativa”: o que implica, no mínimo, boa doáe de subjetividade, pos
to que o destinatário do discurso literário é chamado a exercer "uma colaboração
responsável, em sua(s) ieilurá(s) de um texto assim, tratando "de preencher os va
zios semânticos,.de reduzir a multiplicidade dos sentidos, de escolher seus "pró
prios percursos de leitura”, isto caracterizaria o texto estético como "fonte de uni
alo comunicativo' imprevisível” - , ■ J
A solução de Robert Schples é relátivamentc similar: embora critique Ja
kobson, no qual Eco escolhera apoiar-se, por "regressar à estética exatamente
citiando deveria prosseguir'com a semiótica”, parlillia com este a mítica noção
de "lileiariedade” - algo que todas as obras literárias teriam em comum se
bom que destaeando-a aparentemente da estética (para Scholes, uma obra não
inécisa ler “valor” para ser literária). No entanto, enfatiza a ambigüidade como
laior central da filerariedade, numa exposição a partir da teoria da comunicá-
çao. a ambigüidade, em se tratando de um texto (conceito que pode lomar-sè.
no sentido geral que dá ao termo a Semiótica), estaria presente em todos os ní
veis da comunicação (emissor, receptor, mensagem, contexto, cana! e código);
mas, como mostra outro conceito que maneja, o de “narratividade” como atri
buto do decodificado- (ver, sobre este assunto, o nono capítulo desta antologia),
no fundo Scholes não fica tão longe de uma solução do tipo dd de Eco: privile
giai o destinatário ou receptor, com o qual não se vê nruito bem como seria pos
sível desprender-se de Kant,
talvez por tal razão, Tzvetan Todorov, embora permanecendo fiei a Ja
kobson e à noção irremediavelmente mítica e inefável de literariedade, decide -
abandonar, provisoriamente pelo menos,, a questão do juízo estético etli sua/
Poética: uma atitude que também apareceu em trabalhos de intenção semiótica
que enfocavam as artes plásticas.
***
-241
<l;t expressão, para atingir conotações definidas no plano do conleiklo. O estilo
surgiría da produção dé determinadas figuras discursivas (no sentido tanto sin-
líilico quanto semântico da expressão, ou seja: na maneira como os elementos
(pie as io. mam se organizam uns em relação aos outros no discurso artístico; e
'quanto â significação que veiculam), capazes de ser reconhecidas, por alguém
que não s.cja o artista ou um conjunto de artistas* (se se estiver considerando
uma escola ou tuna época globalmente), como Uma espécie de “assinatura”, de
marca de especificidade. Em outras palavras, é possível, em princípio, coüside-
iai o estilo como certas marcas de reçpnhedmento - enunciados estilísticos -
presentes no texto (semioticamenle falando) constituído por uma obra oü um
conjunjo de obras (um corpus). Estando vinculadas à questão do reconhecí-
mento, as marcas estilísticas remetem a um aspecto definido da estética: o recò-
nhecimeuto do “valor” estético da obra de arte,
Omar Calabrese tenta estabelecer uma semiótica do estilo partindo de
um conceito que toma de Louis Hjelmsley: o de formante. Os formantes são
elos dispostos no plano da expressão, correspondendo a unidades do plano do
contendo, mas não identificávei$'como unidades básicas ou mínimas no pla
no da expressão. A percepção dos formantes parte do uso, não da.estrutura:
seria ma is exato?por isto, sempre falar de "formante de? algo preciso.e dellmi-,
tado e, não, simples ou genericamente, de “formante”. Ampliando o conceito
pata aplicá-lo à semiótica do estilo, Calabrese considera certos elementos, os
cstíhiniis, comq formantes de” um estilo, segundo o raciocínio seguinte: 1) ò
estilo é formado.por variações no píaiio da expressão a que correspondem
eleitos de conteúdo; 2) estes efeitos poderíam chamar-se estilemas, isto é,
configurações discursivas relevantes, tanto na dimensão semântica quanto na
’ sintática”; 3) os estUenias funcionam como marcas de autoria (seja que se
considere o autor Individual, seja que se examine globalmente a escola ou a
é|>oca), conformando o enunciado que o? contém como enunciado que con-
duz o observador ao reconhecimento cognitivo de um estilo a'que sc atribui
(social ou historicamente) um valor estético; 4) por conseguinte, o estilo iqte-
gia a dimensão cognitiva da estética. A análise baseada neste raciocínio parte
de uma característica qualquer, por exemplo, o tempo, para verificar que um
uso repetitivo, reiterado, de determinada forma de representar o tempo pode
conduzir o observador informado ao (ou pode ser parcialmente responsável
pelo) reconhecimento de um estilo pictórico dado a que se atribui valor esté-L
tico, A cxcmpli(icaçãi> que busca'o próprio Calabrese é o estudo da represen
tação do tempo num tema pictórico especial, o das naturezas mortas. - '
A Semiótica textual considera ser o texto, pop um lado, um efeito glo
bal que é a soma dos efeitos de significações parciais que contém (o que quer M
dizer que se põstula a possibilidade de passar dá micro à-macrossemânfica); ^
por outro lado, estuda-o'como uma coristrução que regula suas cstratuiás In
ternas num nível profundo: as estruturas internas do texto têm a ver com a or
ganização nele perceptível mas, iguahnénte, com o íãto de encará-lo como re
sultado de um processo, no qual se considera a relação cdtre a modalidade de
produção do texto e o próprio texto (entre emmciáção e enunciado), também .
a relação entre o "texto e o leito rí Quanto ao último ponto, não há unanimida
de; certos autores se referem a um “leitor implícito , ou imanente, cujas mar
cas podem ser percebidas tío próprio texto (leitura gerativa); outros tendem a
considerar que o leitor considerado abstratamente coincide com uma espécie
de média dos leitores empíricos (leitura, interpretai iva). Em outras-palavras,
um texto contém em seu interior indicações acerca-do processo enunciativo
que o gerou e acerca de, sua leitura/interpretação. ,
' - .Embora o que'se acaba de apresentar seja válido, do ponto de vista da
Semiótica, para textos de quaisquer tipos, uma transposição simples das teorias
textuais pensadas para textos escritos ou orais (verbais) aos textos pictóricos fi
gurativos não daria resultados satisfatórios. Isto porqüe, ria pintura, a relação
entre o processo de construção do texto e o próprio texto é mais cómpléxai do :
que nos enunciados verbais. A.s razões são sobretudo, duas: l) o iconismo, isto
é, um contrato comunicativo que pressupõe a possibilidade de iden tificar a.s re
presentações pictóricas com as coisas presentes rio mundo; 2) concomitante
mente, o icomsmó,que tem a ver cóm a dimensão da objetividade (ou ilusão
de objetividade) obtida-pela pinturafjó se realiza na dependência de .técnicas
específicas. O efeito de vérossiniilhariça passa por artifícios, por uma prática
técnica que.deve ser aprendida. Mas, na pintura figurativa, as. técnicas específi
cas de representação (variáveis segundo períodos, escolas, artistas) devem estai
dé algum modo ocultas rio próprio texto, implícitas mas não explícitas: sua exi
bição, a explicitação do espaço técnico da atividade pictórica, inlcríèriria nega-
..tivamente com o espaço miriiético pressuposto no contrato içônico. O anterior
pode sèí objeto de diversos tipos de análise. No caso da Semiótica, trata-se de.
''-estudá-lo tomando ps objetos artísticos figurativos como objetos dotados dc
nieios metalingüísticos próprios, específicos. .■ ' '
243
Um cios caminhos mais imporlantes para realizar um tal programa,de
esiudo reside nu utilização da noção de intertextualidade, tratando-se dc veri-
licar: !) a existência cie modalidades de manifestação da inlertextiialidade que
sejam próprias dos objetos pictóricos representativos; 2) o fato de não se po
der reduzira intertextualidade em questão a uma rede de fontes evocadas pelo ■
lexto em forma mais ou menos explícita', devendo-se'verificar que aquela
constitui um princípio da organização mesma do-texto representativo, de sua
arquitetura’’ ou estrutura intrínseca., . - ''
O intertexto de uma, obra éoconjunto de referências a tex to s-o u gru-
pos de lextos - anteriores, que se trata de identificar para ajudar a com preen-:
são da obra individual e de seus efeitos estéticos parciais õu globais. Segundo
Gérard Genette, tratando cie textos escritos, intertextualidade (que ele chama
d° "I 1-ms textual idade”) é termo que, no fundo, cobre coisas bastante diferen-
les entre si. Distingue cinco possibilidades: 1) o intertexto propriamente dito
(citação, alusão e plágio ou decalque); 2) o pamtexto, um aparelho que cerca
o texto (notas, títulos, subtítulos, bibliografia, índice etc.); 3) o mhtatcxto, isto
e, o conjunto das indicações metalingüístfcas*que concernem ãos textos cita
dos e ao texto em exame; 4) o arquitexto, conjunto de propriedades de gênero
pi-escnies no texto, ou por cie instituídas; 5) o hipertexto, que são mecanismos
lipoiogicos.de transferência (por exemplo, entre a Odisséia, a Eneida c o Ulis- '
ses de James Joycc). No entanto, além de que cm certos casos a extensão desta
tipologia a obras de arte figutativas seria problemática, a tipologia em questão
nao aborda, alguns dos assuntos de maior importância: assim,'por exemplo,
11,10 Pemi<tc estudar o plano de coerêncías semânticas (ou de outros tipos)
que funcionam no nível do intertexto, por um lado; e, por outro, a presença
no intertexto do resultado de transçodificações, de relações.entre diferentes
sistemas semióticos. Trata-se, neste último ponto, de conteúdos diversos que
passam dc ura material signÍficante'a outro: assim, por exemplo,1a descrição
do jardim dc Ermenonville por Gérard de Nervaí em Syhne remete, necessá- .
namente, a qüadros de Walteau cuja citação na narrativa é explícita
Ao sc tratar da análise da intertextualidade em obras pictóricas figura- .
Iras, embora algumas questões possam ser abordadas por outras disciplinas,
s.o a Semiótica permite obter uma visão sistemática do intertexto, fim lugáf, '
por exemplo, de buscar "influências”, como fazem âs vezes os historiadores.da
at-le, do que^e trata é.investigar.ò papel do intertexto na mecânica dos discur
244
sos artísticos. Isto pode ser percebido a partir do fato de que o intertexto pre*
sente num texto sempre evidencia transformação'dos elementos de outros
textos aludidos, copiados, citadoiou plagiados,; A natureza e funcionalidade
das modificações ocorridas e exlremaníente pertinente ã análise semiótica,
por exemplo ao abordar-se mediante a leitura.isotópica atenta ao intertexto.
Outrossim, nas artes'figurativas; ojeconhccimento dos motivos não depende
de uma estruturação arbitrária do plano da expressão, como acontece pás.lín
guas naturais (verbais) mas, sim,'de um contrato comunicativo que implica
uma relação de verossimilhança-entre as representações c os objetos do m un
do natural - um iconismo semiotizado e difundido socialmente. Em outras
palavras, o sistema da expressão e o sistema do conteúdo, mais do que um ver
dádeiro sistema simbólico, não constituem senão um sistema scioisimbólico
(expressão de ]. M. Flbch). Pela mesma razão, as representações da pintura e,
mais em geral, das artes figurativas süò menos estáveis, mais frágeis.do que as
da linguagem verbal, tornando mais necessário; para o. reconhecimento de
uma forma complexa, o recurso ao intertexto (citação, alusão, decalque dc ele
mentos aparecidos anterior mente em outros textos artísticos).
INDICAÇÕES PRATICAS E ;
LEITURA, ISOTÓPICA \
■Daremos agora algumas indicações práticas acerca de como procedei
para 0 uso de métodos semiótícos de leitura ou decodificação - estóremos
pensando especifica mente na leitura isotópica - em pesquisas históricas nas
quaisNs obras artísticas figurativas nao passem cie lontes para uma historia
que não seja a da arte ou da cultura. Damos como exemplo nossa ,atual pes
quisa pessoal, que utiliza a leitura isotópica dè um corpusconstituído pelos 36
qelevos de uma capela situada hum templo “funerário" egípcio d o in ía o d o sé
culo XIII a.Ç. para, em conjunto com textos escritos - aqueles presentes na
mesma capela, bem como outros - e' outras imagens -. estudar alguns aspec
tos do culto diário aos deuses e, mais em geral, da religião nessa época; e paia
tratar de explicar algumas especificídades das imagens, que, á primeira vista,
podem parecer de difícil compreensão. —
Utna pesquisa histórica que usa uma grade semiótica de leitura no pro
cesso de dçcodificação de fontes figurativas, no sentido que se acaba de indi
car, terá, necessariamente, de realizar escolhas relativas a teoria, hipóteses e
métodos em dois níveis: 1) aquele da pesquisa.histórica como tal; 2) aquele
que-se refere à$ operações seraióticas a realizar. '
Deixando de lado o primeiro nível, que não‘precisa ocupar-nos
.H|ui, os passos a dar na investigação de tipo semiótico seriam basicamente
os seguintes: ,
246 ♦
0 figurativo pode sei- /cônico ou abslnilo. O figurativo icônico se carac
teriza por uma ilusão referencial, isto é, pdr dar a impressão de remeter ao
mundo real (quando, no texto, o que temos de tato são somente palavra?, nãd ■
o m undo real).,O figurativo abstraio retém unicamente um número mínimo
de traços que pareçam ter como referência a "realidade11. Se quisermos uma
analogia no campo das representações visuais, a foto de um político é do do-
, niínio do icônico; sua caricatura, do domínio do abstrato, A oposição figura
tivo icônico/figuratKm abstraio é' gradual, e não, categoria!: admite posições
intermediárias. Tenho notado, nas pesquisas concretas, que em muitos casos o
historiador pode trabalhar cqm a oposição figurativo/temático deixando t o - ,
talmenle de lado a oposição figurativo icònico/figurativo abstrato.
• . ' Falta enfocar o nível semântico axiológico, que tem a ver com algum
sistema dê valores - éticos, estéticos, religiosos, òu-outros quaisquer que os
conteúdos dos textos manifestem. Em relatos populares, por exemplo, tráta-se
amiúde de valores éticos em oposição: bcm/nial, bom/malvãdo. Euforiza-sc,
então, a dupla bom.comportamento/bom tratamento, disforizando-sc,máu
comjwrtamento/mau tratamento: e assim que, nos çontoí de fadas, os bons
são finalmente recompensados ,e Os matts, castigados. Num sistema axiológi
co religioso como o cristão, euforizar-se-ía á "santidade” e sc disforlzaria ó ■:
.. “pecado”. Num sistema estético, o "belo” é que' seria euforizado, o "feio”, disfo-
rizado - e assim'por diante.
\ Passando à questão da isotopia, começarei por reproduzir a definição •
desta, categoria semiótica por Algirdas Greimas: •‘
I GREIMAS, Algirdas Julien. Du seus: Essais sémiotiques. Paris: Seuil, 1970. p. 188. -
247
tiais isolójwas.aqueles elementos de significação recorrentes, redundantes, repe-
lllims: os quais, por tais características, são subjacentes à coerência textual.
O lnélodo de leitura isotópica, para conseguir aquela transição da mi-
ci o para n macro-semântica, consta de três etapas: .
248
tinção ejilie arte pública (monumental) e aíte privada (destinada a coleções)
como elemento definidor do mercado e dás encomendas ou aquisições queo
configuram. Em função disto, pôde formar-se, ao longo de muitas décadas,
toda uma sólida tradição que poderiamos chamar de “Belas Artes, teorizado-,
; ra da hierarquia entre artes maiores e artes menores (incluindo estas.as artes
aplicadas"), a^quál mantinha laços indubitaveis com o poder dos Estados bur
gueses contemporâneos e suas políticas relativas às artes; uma tradição cujo
stütus hegemônico era ainda muito forte em meados do século 20,
Ao longo da segunda metade do século 20, entretanto, vemos essé sta-
tus perder força aos poucos, sob p embate de fatorès variados, alguns já bem
atuantes desde o século anterior, como é o caso do impacto da reprodução in
dustrial das obras artísticas, do comércio de estampas è de miniaturas de es*
; culturas, até desembocar, em meados do século 20, em coisas como o desafio
■de Andy. Warhol ao caráter “único” da obra de arte na era da reprodução fácil
é de alto nível - que, de Warhol até hoje, algumas décadas mais tarde, aperíei-
* çoou-se ainda muitíssimo mais: a nossa é à época das imagens transmitidas
por fax ou pela Internet e impressas facilmente em domicílio (caso se dispo-'
nha dos aparelhos e programas adequados, coni alta resolução). -
Não podemos desenvolver aqui tudo o que contribuiu para a crise do
paradigma que teve tanto sucesso anteriormente na classificação das artes ^
plásticas. Pará dar alguns exemplos:'Umà mutação da concepção governamen
tal acerca dos espaços públicos, desvinculando-os de certas formas de piodu-
"•çjo monumental comemorativa e abrindo-os às artes vivas do espetáculo, oú
à “arte da rua"; o sucesso crescente das instalações e de formas de iconografia
diferentes das tradicionais (publicidade, desenho Industrial, história em qua
drinhos, cartazes, painéis, murais etc.), cujos canais de produção, teorízação e
. consumo, e cujos critérios dc in.clusão/cxclusão estética, ou não se percebem
• clafámente, ou são incipientes e extremamente debatidos, não contando com
qualquer consenso, além de, em certos casos, se tratar de objetos maicados.
por um caráter inlrinsecamente efêmero e descartável, típicó da chamada
“arte de massa"; 9 surgimento da “arte de empresa ’ em diversos domínios,
competindo com o artista individual tradicional no Ocidente ou integrando- .
o eni suas coletividades eéquipes.
Entre os resultados; da crise-perceptível por mais.que ás instituições,
tradicionais tentem' adáptàr-se às novas tendências (os museus, por exemplo,
249
itbrom-se a Ibrmas artísticas que seriam impensáveis neles há algumas .déca
das) - temos este, segundo Anne Cauquclin:
1 * t i
(...) existe um lugar (...) onde a descrição da,crítica, mesmo quando quer sc exer
cer, fracassa ruidosamehtc: este lugar é o.da arte tecnológica contemporânea. (...)
os objetos artísticos produzidos pelas novas tecnologias são impenetráveis crítica-
na medida em que obedecem a regras de produção que até agora não tinham cur-'
so 11a esfera da arte.1. , . ’. \ (
Torna-sc difícil, hoje em dia, senão impossível, portanto, até mesmo falar
acerca de certas formas de arte com algum rigor e precisão: as grades de “ leitura”
disponíveis ~ Semiótica artística, iconología, hermenêutica de Obras de arte etc;
- foram todas pensadas para a arte figurativa e oão têm como aplicar-se a outras
modalidades dc imagens. Se é assim, como, então, continuar decidindo acerca da
inclusáo/exclusão de objetósnas esferas do que é ou não “artístico”? v
, liste estado dc coisas explica certos fenômenos como, por exemplo, o
"escândalo çle Aries” em julho de 1995. A seleção dos fotógrafos quê se dirigi
ram àquela cidade francesa para.um encontro sobre fotografia, diante do que
imtilos viram como um nível baixíssimo das obras acolhidas, provocou um'
protesto violento dos críticos e desembocou num debate inconclusivo acerca
do sUittis artístico da fotografia e de a quetn deve caber pronunciar-se sobre as
fotos: aos críticos de arte (que julgam à partir dc critérios retirados da “foto
plástica” ou artística já consagrada, aquela dos profissionais bem estabelecí- ■
dos) 011 aos fotógrafos numerosos que pretendem protagonizar pesquisas que
não aceitam os limites daquela “foto plástica” e reivindicam, contra os artistas
já hem reconhecidos do setor, o direito de também ter acesso ao status de ar
tista, ao mercado da fotografia e às exposições? Alguns notaram a semelhança
com 0 salão qué organizaram, em 1863, os artistas não selecionados para p a r-.
liei par do Salão de Paris. » V
. Situações como está facilitara, no relativo às artes plásticas - nas quais
há 0 artista e há 0 público mas, não, o intérprete - , uma reivindicação “demo
cratiza nlc” radical no sentido de que, onde não houver critérios ,cOm um grau
suficiente de consenso sobre a inclusáo/exclusão de objetos entre aqueles que
252
PEIRCE, Charles Sanders, Semiótica efilosofia. Trad. e seleção de O. Silveira da
Mota e L..Hegeiiberg. São Paulo: Cultrix: Edusp, 1975. •. :
R1COEUR, Paul. La métapliore vive. Paris: Seuil, 1975. . -
RIOUX, Jcan-Pierre; SIRINELLI, Jèan-François (Orgs.). Para una historia cul
tural. México: Taníus, 1999. Trad. do francês sem indicação do tradutor.
SCHOEES, Robert. Scmlotics anâ interpretation. Nesv Havcn: Yale University
Press, 1982. •j \ ' .
TODOROV, T/.vetan. Estrutiiralismp e poética. Trad. )osé Paulo Paes e Frederi-
coP. de Barros. São Paulo: Cultrix, 1976. C
I
/ - „ Capítulo 12
* • • • ' ' * ,• ■*
\ ‘ , • ’ . - 1
O PROBLEMA E SEUS
PRINCIPAIS COMPLICADÒRES
Começarei desculpando-me com o leitor pelas muitas citações, às vezes
longas. 0 tema é controverso e quero evitar deformar as posições que comba
terei ou apoiarei neste texto. Gostaria também de precisar que se detalhará
mais, np artigo, a noção de cultura do que a de. sociedade, posto que acho
aquela muito mais problemática e causadora de confusões do que eista.
O emprego das noções (que nem em todos os contextos de uso se cons
tituem em verdadeiros conceitos) de sociedade e cultura, em especial no tocan
te às formas de ambas se relacionarem, pode Ou não sei- problemático, polê
mico ou contraditório.
Existem modos de empregá-las érn que aparecem como complementa-
v. ,
resjDo ponto de vista marxista, por exemplo, já se afirmou que a cultura é um
meio ambiente artificial ou, em outras palavras, que o âmbito.cultural reúne
•“todos os elcmentos da existência humaná que não são biológicos nem podem
explicar-se pela referência exclusiva ao mecanismo fisiológico dos seres hum a-'
nós”. Assim, a cul tura associar-se-iá “à reflexão sobre a' origem social e aõ con
dicionamento social da existência humana” Como se pode notar, “cultura” e
. ■■ n *
“sociedade”, neste modo de ver, relacionam-se èstrcitamente. Entretanto, não
designam a mesma coisa: a sociedade óu, mais exatamente, o sistema social -
definido “principalmente [como] um conjunto de indivíduos humanos entre
255
os quais existem relações” - , quando encarado relativamente à cultura, mos
tra ser a condição histórica prévia do aparecimento das formações culturais,
Com efeito, a rede das ralações sociais, no tocante a cada indivíduo que se in
tegra à sociedade (pelo nascimento ou pela imigração), surge como unia rea
lidade previamente existente, uma “necessidade externa” .tão material quanto
“a terra que pisa,'a casa em que vive, as árvores queó cercam”:
Sugerimos sér útil definir o conceito de athum '(...) restringindo seu referente
a conteúdos e padrões transmitidos e ,criados de valores, idéias e outros sistemas
signifícantes doponto de vista simbólico, encarados como fatorcs'que conformam
o comportamento humano e os artefatos qué tal comportaménlo produz. Outros-
sim, sugerímos qüe o termo sociedade. - ou, mais geraimente, sistema social—seja,
usado paia designar o sistenía especificamente relacionai de interação entre indiví
duos c co(etividades/ |V > •, , •
3 PARSONS, Talco tf. The social system. NewYork: Free Press, 1951. p. 4. Para este epi •
■ ' sódio da história das ciências sociais.nos Estados Unidos, ver KUPER, Adam. Cul
tura The anthropologísts’ pccdunt Cambddge, MA: Harvard Univcrsity Press,
1999. p. 47-72. *; . •
4 Ver, a respeito, CÀSANOVA, Julián, La historia social y tos historíac/ores.Bcircelanu:
Crítica, 1997. p, 35-109; IGGERS, Georg C. La ciência histórica w d sigb XX: Los
. tendendas actualcs. Tvacl. Clemens Bieg. Barcelona: Labor, 1995. p. 33-.5S.. .
257
mas <le sociedade e cultura. 0 primeiro é formado por estes dois trechos de
escritos de Rogcr Charlien . -
■ - 1 i ' "
A relação assim estabelecida não <5de dependência das estruturas mentais para
com suas determinações sociais. As plóprias representações do mundo social é-que
são os elementos constitutivos da realidade social,1
Da história social da cultura a uma história cultural do social. (...)... devemos •
encarar as representações coletivas como matrizes que dão forma ãs práticas com *
as quais o próprio mundo social é construído.1’
(...) a história cultural, atualmente, não quer ser uma história entre outras (,..). Pre
tende chegar a ser uma explicação mais global, Na realidade, aspira a substituir a
história total dc ontem. (...) A história cultural não pode pretender destronar a his
tória econômica e social de ontem, a não ser que proponha a si mesma um objeti
vo similarmente ambicioso. Deve piretender ser válida para um conjunto amplo,
um grupo social, uma socieda de inteira. Para o conseguir, co nverte-se numa histó
ria das representações, coletivas.*567 > . .
t -
5 CHARTIER, Rogei-, Texts, symbols, and Freiíchness. Jo u rn a l o f M o d e m H isto ryi 57, i
p. 682-695,.1985.
6 Il»id,, The world as representation. In: REVEL, jaeques; IIUNT, Lynii (Org.). H lsto -
ries:Frcnch constructions of the past. New York: The' New Preís',' 1995, p. 544-558
(a passagem citada está nás p. 549-552), 7 ..
7 PRQST, Anfoihe. Social y cultural, indisociablemenle, ln: RIOUX, jean-Píerre; Sl-
R1NELLI, Jean-Fiímçois (Órg.). Para una historia cultural. México: Taurus, 1999.
p. 139-156 (as citações estao nas p. 141-142) Trad. do francês sem indicação do
tradutor. Ver também: FALCON, Francisco, História, cultural: uma nova visão sej-
bre a sociedade e a cultura. Rio ‘de Janeiro: Campus, 2ÕÓ2. p. 88-102. ■
258
\
H’pretensão cie transformá-la num? noção auto-explicativa que, além disto,
provessè os dados centrais para uma compreensão dos assunfos humanos,
dentro da versão de lima '‘natureza humana” não historicizada hoje conheci
da como o Hotno symboHais.Á posição que defendo já foi exposta eloqüenle-
mente por Adam Kuper, que cito copl total aprovação: ' •
(...) quanto mais sé considere ò que há de melhor no trabalho moderno feito pelos
antropólogos sobre .a cultura, ipais aconselhável déve parecer evitar completamen-
te tal tei mo'hipeir-referencial e falar, mais precisamcntc, de conhecimento, crença,
arte, tecnologia, tradição ou mesmo ideologia (embora problemas similares sejam
postulados por este conceito poliyalentc). (...) As dificuldades tornam-se agudas ao
máximo quando (...) a cultura desliza de algo a ser descrito, interpretado, até mes
mo .talvez explicado, para Ser tratada, em vez disso, como unia fonte de explicação
•• ciii si mesma. Não afirmo isso para negar que alguma forma de explicação cultural
possa ser bastante útil, se mantida ém seu devido lugar; mas o apelo à cultura pode
oferecer unicamente uma- explicação parcial da m ã o das pessoas pensarem e se
comportarem como o fazem, è. daquilo que faz com que alterem seus modós de
pensar c agir. Forças políticas e econômicas, instituições sociais e processos bioló
gicos não podem ser ignorados óu assimilados a sistemas de conhecimento e cren
ça. R isto, eu sugerirei, é o principal obstáculo no caminho da teoria cultural/ain
da mais «msiderando-se.suas pretensões aluais.®
. - . ,i
8 IÍUPER, Adam. C uhure: The anthropologísts’ acçount. Cambridge, MA: Harvard
University Press, 1999. p,“X-Xl. . ,
259
ciilio tipos do Icorias acerca das sociedades humanas complexas, tendente a
distribuí-las em dois grandes grupos: o das teorias que enfatizam a integração
social (as quais habitualmente se vinculam à definição da sociedade como
soma do indivíduos), em contraste com .o das que sublinham o conflito social
(que quase sempre insistem na natureza coletiva doS sujeitos sociais).9 ' .
Bis aqui um exemplo interessante de exagçio absoluto da tendência a só
eitxeigár o nível individual, no que se refere aos efeitos dela sobre as noções
cio social e do cultural, chegando a còiisíderaf tais dimensões como meros epi-
fenòmeuos:
(...) d cultura, o sistema social e iodos òs conceitos supra-individuais desse tipo, taiíí-
como representação coletiva, espírito de grupo e organismo social, [são] abstrações
conceituais ilusórias inferidas dá observação dos “fenômenos reais” que são ós in
divíduos interagindo uns com bs outros e com o.seu meio ambiente natural. As cir
cunstâncias da sua interação’ levam quase sempre a similaridades no comporta-'
mento dc indivíduos diferentes, que tendemos a reitlcur sob q nome dc cultura, e
, fazem com que os indivíduos se relacionem uiis com outros de maneiras repetiti
vas, que tendemos a rei ficar como estruturas ou sistemas. Na realidade, cultura e
sistema social são meros epifenômenos - produtos derivados cia interação social dc
pluraüdades de indivíduos."’ .• f-
.f 1 . •• -
Uma segünda polarização resulta de cjuc ós estudos do social sempre en-
cotHrai ani. diante de si um problema crucial. De modo didático, o dilema en
volvido pode ser definido como unja alternativa entre: 1) abbrdár o social pri
vilegiando o ângulo material e as ações quê os homens efélivamente realizam;
2) ou fazê-lo dando maior importância ao ângulo mental. Obviamentê, os dois
** / .. V
coloques menciona dos's«ãò íntima e até mesmo ínextricavelmente ligados, mas
jiiío há dúvida de qlie a alternativa indicada existe e podem achar-sé estudos (a
maioria deles, na verdade) qué enfatizem seja um ângulo, seja .o outro.
No primeiro caso, süblinha-se aquilo que todó sujeito individual ou co-
Icjivo já acha diante de si n;\ sociedade em que vem a existir (os objetos, a lín
gua, a divisüó dó trabalho etc.; em resumo, aquilo que determina o enquadra- *10
260
J
Unia:sociedade (...), ap mesmo témpo que é "agida” por seus membros - e, re-
cíprocamente, ao mesmP tempo que age sobre eles - , é, em forma simultânea, .
“pensada” c "imaginada” por eles," - '
• ' \ '' 1 ' .
A tentação de privilegiar o mental (as idéias) sobre o material sempre
tbi mais forte no tocante à noção antropológica de cultura do que nas defini
ções dó que seja a sociedade. CitareiVum exemplo taxativo:
' ' ■ ■■ -■ ‘ " ■■■' ■ ” ' ' ' ■/ ■■■
Á distinção entre cultura çomó ordem fenomenológica e cultura como ordem
ideacionalf a primeira característica.de uma comunidade e a segunda'característica
de seus membros [individualmente considerados - C.F.C.], é algo de que os antro
pólogos vêm trata ndo a partir tíe diferentes pontos de vista há já algum tempo (...}. .
Alguns antropólogos, incluindo este que escreve, preferem utilizar o termo "cultu
ra” para referir-se unicamente â ordem içieaciohal.‘:
11, JAVRAU, Claude. Leçons tk sociologíe apud ROÍ5ERT, André D.; BOUÍLLAGUET,
Annick. Ctuwfyse.de contému Paris:-Presses Univcrsitátres de Fratke, 1997. p. 44.'
12 GOODENOUGH, Ward. H. Introducción. In: LLOBERA, José R. (Org.). La antro
pologia como ciência. Trad. Antonio Desmonts et al. Barcelona: Anagrama, 1975.
p. 25-45 (a citação é da p. 37, texto e nota 19):
A. i ' 2õl
CULTURA'
A NOÇÃO'DB CULTURA ANTES DE EXISTIR A ÁNTROPOLOGIA
CO M O DISCIPLINA ACADÊMICA CONSTITUÍDA ■\
262
sim definida. À própria cultura era entendida mun sentido normativo, genérico
. e mesmo um tanto vago, carregado de juízos de valor, com frequência limitado à ;
\ áita cultura intelectual européia ou ocidental; podendo constar dela, como uma .
espécie de anexo, os elementos de altas culturas não-ocidentâis de que o Ociden
te se apropriasse. O país onde este modo de ver a cultura leve maior sucesso eti?
ire intelectuais de alto dívcl foi o Reino Unido. Com efeito, seria difíçil que se
■adotasse afi a visão holística da cultura na variante alemã, nacionalista, em se tra
tando de,um país integrado pór diversas nações (inglesa, escocesa, galesa, írlan-
' desa); do meSmo modo, não era forte, entre os intelectuais britânicos, a tendên
cia a aceitar a vertente francesa que celebrava uma cultura universal (neste caso
quase sempre chamada dè civilização), versão ligada às Luzes e à própria Revo
lução Francesa. Em meados do século 19, vemos Matlliew Arnold defender a alta
' cultura - que ele, como outros escritores, por exemplo Coleridge, Carlyle ou o
cardeal Newman (embora cada autor destes pudesse ler, a respeito, perspectivas
bem divergentes), viam como uní conjunto de valores intelectuais, artísticos, re
ligiosos e morais ameaçado-pelo “hídustrialismo” materialista. No-séçulo 20, a
. massificação e o conformismo, de que os subúrbios são símbolos em países,como
o Reino Unido ou ós Estados Uniclós, foram com frequência percebidos como os
grandes Inimigos da alta cultura. Nos países anglo-saxões a tendência conserva
dora a defender a cultura, identificada como alta cultura intelectual dq Ociden- -
‘- j le, contra “barbáries” ameaçadoras de diversas espécies continua existente e
atuante: nos Estados-Unidos, por exemplo, um dos nomes atuais mais famosos
■ no interior desta postura é o neoçonseivador Allan Bloom: . ,
•(...) cultura refere-se a arte, música, literatura, televisão educativa, certos; filmes -
cm resumo, a tudo que é elevado c edífieantei em contraposição a comércio. {...).
, Umã cultura é uma obra de arte, de que as belas artes representam a expressão su
blime. (...) ' ’ -y. . ,
A cultura como arte é a expressão da criatividade do homem, da sua cápacida-
■de de libertação dos estritos limites da natureza e, portanto, da degradante inter-
pretação-que lhe atribuem as modernas ciências naturais e poiíticas. (...) A cultiu-a
'. restaura ") unidade da arte e da vida” da antiga polis.13'
i . >. v•
263
N;t !;nmçn, por muito tempo, a palavra “civilização” foi preferida à “cul
tura”; ocasional mente, também podiam aparecer como sinônimos.
Civilização é, igualmente, um termo do século 18, usado em forma pio
neira, num sentido próximo ao atual, na década de 1760, para referir-se ao
processo que fez a humanidade sair da barbárie; e, já na década seguinte, para
significar o próprio estado civilizado, A palavra foi aceita na edição de 1798 do
Dicionário da Academia Francesa. Quando o termo cultura se tornou, por sua
vez, mais usual em francês, o sentido que lhe foi atribuído era muito seme-'
lhante, marcado pela noção - derivada do Jluminismo - dá unidade do gene-
r' _■ f. x.
ro humano. Pòr mais que, em 1819, a palavra civilização surgisse pela primei
ra vez iiu forma plural,‘‘civilizações” indicando a consciência de existirem di
ferentes maneiras‘de ser civilizado, de um modo geral a tendência francesa foi,
durável mente, no sentido de uma ênfase bçm m aior na universalidade cultu
ral da humanidade do que nas particularidades ou na multiplicidade das cul
turas humanas: as diferenças culturais entre sociedades eram percebidas mas,
luibjliial mente, minimizadas.
Os evolucioriismos deunaior prestíglo no século 19 - o de I/airtarck, de
pois o de Darwiri - contribuíram para' assentar a noção de existir uma unjda-’
de do gênero humano, explicando-se as diferenças maiores constatáveís ao sò-
rem comparadas as culturas mediante a evocação de etapas sucessivas e pro
gressivas: selvajaria/barbárie/civilização, por exemplo. O marxismo, outro filho
do liuminismoj iria na mesma'direção ('áob a influência de Lewís Henry Mor
gan) com sua idéia de urn processo pelo qual a humanidade se destacava pro-
giessivamenté dó natural para passar ao histórico —o que significa, entre ou
tras coisas, que a cultura substitui crescentemente a biologia como ponto de re
ferência para os humanos—, bem domo com a pluralidade dos modos de pro
dução, cuja sucessão indica níveis crescentes de complexidade e possibilidades.
Na Alemanha iria predominar, porém) e mesmo fortalecer-se duran-.
te o período'que vai da derfòta aiemã õm íena diante de Napoleão, emd806,
até a unidade alemã consagrada em 1870, uma versão particularista, c não
universalista, da cultura, associada a uma oposição entre as noções de cul
tura e civilização. ■ '•• • ; '
Os intelectuais alemães de origem burguesa, apartados do poder e das
honrarias reservadas à nobreza) se opuseram, á partir das universidades, à aris
tocracia das cortes anteriores à unificação do país: nestas cortes, predominava a
26-1
i
língua francesa e, em geral, eram muito cosmopolitas e voltadas para o Qciden-
, ttí. Tais intelectuais tenderam a considerar a situação nestes termos: a nobreza de
corte era civilizada, mas, voltada para o universalismo uniformizador-dérivadb
do Iíuminismo francês, não paiticipava da veidacleira. cultura nacional alemã,
que consistia naqueles aspectos intelectuais, artísticos e morais autênticos, vin
culados à alma ou gênio do povò. No século 19, pôde-se entender também a ci
vilização, no contexto da rebelião romântica, como o progresso material, o de-
senvolvimento econômico e, técnico, contínuando-sé a lhe opor uma visão da.
cultura baseada numa concepção étnico-racial da nação. Esta linha de interpre
tação tendia, portanto, ao pensar çomparativarrien tc, a acreditar na pluralidade
das culturas, posto que cada povo teria a sua própria cultura.
• Seria um erro, entretanto, pensar que, na Alemanha, o tema cultural só
se desenvolvesse numa Unha reacionária, vinculada à noção de raça^e à crença
na superioridade dos alemães e de sua cultura. Esta foi, sem dúvida, uma das
posturas, no início do século 20 defendida pór Gustav Kosinna e, mais tarde, en
tusiasticamente adotada pelos nazistas. Mas também surgiu naquele país, no sé
culo passado, ém função dos estudos culturais (KuUurwissenschafle.n)’ e das
“ciências do espírito” (Geistesyvissenschaften) —estas últitnas mais conservado
ras, de forte tendência idealista, relativista e hermenêutica, recusando explica
ções de .tipo científico - , uma linha dc interpretação devida a intelectuais poli
ticamente liberais que, mesmo acreditando na pluralidade das culturas, recusa
vam o determinismo racial dos aspectos culturais: raça, cultura, língua e nacio
nalidade não tinham porque coincidir, argumentava por exemplo o mentor da
Sociedade de Antropologia de Berlim,' Rudolf Virchow, Também seu discípulo
Adolf Basüan, o primeiro diretor do Museu de Etnologia dé Berlim, acreditava
que âs diferenças culturais fossem causadas por desafios diferenciais proporcio
nados por meios ambientes diversos, bem como pelos contatos e empréstimos
entre grupos. As mudanças culturais dependeríam de processos locais'específi- .
cós, não redutívexs a leis -r pressões ambientais, migrações, comércio pelo qual
inexisliriam leis gerais da História. Deste ambiente intelectual saiu Franz Boas,
o qual, migrando para os Estados Unidos, para lá levou esta visão cultuiãlista"
que, no entanto, estava muito distante da linha nacionalista e racista, aieniã. ■
A A n t r o p o l o g ia c o m o .d is c ip l in a a u t ô n o m a -
2b7
ISste autor distingue três períodos no colonialismo moderno: expansão
colonial (até a Primeira Guerra Mundial); consolidação colonial (até a Segun
da Guerra Mundial); e desintegração colonial ou descolonização, (depois da
Segunda Guerra Mundial). Acha ser possível correlacionar, em linhas gerais,
as teorias antropológicas vigentes com cada etapa, Na primeira, constata-se
um tipo de evolucioriismo que, agora, cavava um abismo entre os ocidentais
e ns “raças inferiores”; e, na noçãp de “áreas culturais” de Franz Boas, uma vi
são teórica destinada, entre outras finalidades, a enfrentar o matedalismo his-
lói ico. Na segunda, de estabilidade relativa do sistema colonial consolidado, o
desejo de não enfatizar conflitos ou disfunçoes teria levado qo predomínio do
funcionalismo (Malinowski, Raddiffe-Brown), cm cujo contexto o colonialis
mo se reduzia a um “contato cultural”, não se considerando (ou minimizan
do-se) a natureza exógenã das mudanças que provocava, a violência nele pre
sente, a exploração e a dominação, Depois da. Segunda Guerra Mundial, em
tempos dc descolonização, ocorreu uma crise nos próprios fundamentos da
Anlro|>ologia: respostas à criseforam ó estruturalismo é, a seguir, o pós-mó-
dernismo, com sua ênfase “multiçulturalista” que parece ilusoriamente inver
ter a postura política num sentido progressista. Outra consequência da crise .
foi o lalo.de imüloskmtropólogos se voltarem, agora, para o estudo das pró
prias sociedades ocidentais “desenvolvidas”17
Será, porém, assim tão progressista a Antropologia pós-moderna?
Mencionarei, como exemplo dela, a análise do reino de Negara (na ilha de
Bali) no século 19 por Clitford Geertz, com sua teoria da teatralizáção do Es--
la<lo (1980). Sendo o rei de Negara o centro sagrado da sociedade, por tal ra
zão não tendo lugar em sua corte a política secular, o autor afirma ser tal cor
te “um centro sagrado, um templo ou um teatro, montando espetáculos ri
tuais” que funcionavam como uma celebração, não da ordem política ou do
poder, mas sim, da hierarquia como tal. A política, a guerra, a taxação,- a dis-'
(ribuição das terras e os sistemas de irrigação seriam elementos tratados num .
17 Ibid. Uobera, escrevendo em 1972, chega cm sua análise ao estruturalismo mas, ob-
viamente, não ao pôs-modernismo em Antropologia. Como exemplo da analise
antropológica das sociedades ocidentais do que antes se chamava de Primeiro
Mutido, çf. AUGÊ, Marc. H a d ti iina antro p o lo g ia d e ios m u n d o s co n tem porâneos.
Trad. Alberto L. Bixio. Barcelona:*Gedisa, 1996.
268 .. \
nível inslíiucionaJ dé status datamenterinferior. Os Conteúdos mesmos do es
tudo de Geertz foram posteriomieiilc desmentidos por- múltiplas pesquisas,
que salientaram, entre outros pontos, a evacuação sistemática, nele, da violên
cia e do conflito, no entanto bem presentes nas sociedades de Báli. Além dis
to, o esquema geertziano não enfatiza o fato seguinte, decisivo, no. entanto: a
ilha estava, tia época, submetida ao colonialismo holandês. Isto evodia irreme- ‘
diavelmènte ás atribuições.políticoradministrativas.efetivas'do reino de Nega
ra, forçarido a sua corte a concéntrar-sé crescentemente em rituais vazios e -
formalistas (na verdade, á aristocracia que cercava 0 rei eslava, assim, efetuan- é '
do o único protesto anti-colonialista possível nas condições vigentes). O pós-
modemismo perspec Avista pode, então, elogiar a- descolonização Co mglti-
culturalismo; mas,,com frequência, oculta ele também as lutas sociais c a ação
imperialista, tanto qüanto o faziam as correntes'antropológicas dominantes
ent fases precedentes da História ocidental.18 . ■1
«Qs conceitos de cultura e de sociedade sempre pareceram, até certo
ponto, alternativos ou concorrentes. No entanto, numerosos antropólogos -
por exemplo os da Antropologia Social inglesa, em que sobressaiu, em mea
dos do século.20, E. E. Evans Pritohard - incluíam sem dificitldade, em suas
análises culturajs, a .consideração (quase sempre exclusivamente em socieda
des tribais, porém) de elementos como as estruturas sociais, a subsistência, a
economia, a tecnologia, mais enrgeral os elementos materiais da cultura, Esta
última era vista, desde Tyloq como totalidade' holísticá estruturada, embora
na prática o cnltúralismo pudesse adotar acepções e estratégias bastante varia
das. Eitn meados do século 20, em diversos autores, a cultura aparecia - por in
fluência sobretudo.de Vere Gordon Childe - como uma espécie de meio am
biente artificial, material tanto.quantò mental, cuja função é mediar a relação v
da sociedade humana com o meio ambiente natural:
\ • ■ " • • • ■s ■
A cultura (...) compreende todas as coisas é.meios-inclusive os não-matêriais,
1 como mitos, crenças e relatos que os seres humanos criáni para ampliar, proteger
e expressar a si mesmos, No curso da evolução, á cultura tornou-se'a .propriedade
•- peculiar (embora não a única), dos seres humanos; e a especialização humana na
18 Ver) para uma crítica detalhada e bem documentada, KUPBR, Adam; Cu/jUre:
.. The anthropologisls!'accoui\t. Cambridge, MA: Hárvard University Press, 1999.
p .75-121. \ .\
culiura (íom o a especialização dos tigres eni grandes dentes afiados e das girafas
em pescoços longos) foi o meio pelo‘qual o homem sobreviveu e engrandeceu-se
no planeta, fc, pela cultura que ele deve (ç vai), seja sobreviver, seja perecer.1’
19 LiOHANNAN, Paul. Beyond civiiízatiun: On the past, present, and future of rnaii..
In: HIJNTER, David E.; W HffTEN, Phillip (Org.). A tith ro p o lo g y; Contemporary
perspectives. Boston: Littlc, Brown and Company, 1979,p. 326-343 (Esíê artigo foi .
publicado pela primeira vez em 1971.) • .
270
são de Marshall Sahlins, com sua ênfase numa natureza humana que se costu
ma designar como J-Iotno symboliçns: - .
20 SAHLINS, Marshall. C u ltu ra e razão prática. Trací, Sérgio Ta deu Lama rã o. Rio de
• Janeiro: Zahar, 1979. p. 10. . . .. "■ -
, 21 HOBSBAWM, Erlc. O n history. London: Weidenfeld & Nicolson, 1997. p. 192-200:
Pos(\nodernis.nvio theforcst. '■
271
Nilo há - lelizmenle apesar da voga e do .prestígio da visão pós-mo-
dei na ria Antropologia e de suas opiniões acerca.da cultura,'consenso em tor
no de posturas como as propostas por Kroebcr e Parsons. Há estudos que.cn-
veredam por caminhos muito diferentes, Existe, por exemplo, toda uma gama
de pesquisas que se interessam pela dominação cultural, pelas culturas de clas
se (burguesa,proletária), pela cultura popular, pela “cultura dem assa”, ou tra
balham com o conCeito de habitus à manèira de Pierre Bourdieu, E há muitos
autores voltados para a questão das subeulturas e contraculturás, às vezes em
vinculação com o conceito de socialização. Em numerosos casos, tais pesqui
sas dependem de noções do que seja a cultura si tu adas‘a léguas de distância
das'versões pos-modernaS, pós-cstruíuralistasA E, como mencionamos no
caso do estudo de Negara por Gcertz, já existem críticas demolidoras que de
monstram as numerosas falhas e inconsistências perceptíveis na.Antropologia
em seu novo recorte. ■
22 Ver, por exemplo, paraptn bom panorama: CUCH.B, Denys: L« Hotion de cultitre
d u n s les Sciences S iw ia h iÇ P a m : Là Découverte, .1996,
272
lória escrita numa linha marxista, bem como pelas controvérsias'.e debates. É
verdade que a qualidade dos meiiibrps do Grupo, no conjunto muito alta, po
dia variar. Em especial, A. L. N orton estava num nível ciaram ente inferior à
média. E. P.; Thompson, Eric Hobsbawm, Chrislopher Hiil, Rodnev Hilton,
George Rudé, Dorothy Thompson, Rpyden Harrison, John Saville, Victòr
Kiernan, George Thomson, Raphael. Samuel e, entre os mais velhos, Maurice
Dobb e Dona Torr, formavam um time com altos e'baixos mas sem rival no
mundo. Analogamente, a revista Ptisl and Pvcscnt foi á mais influente de todas,-
mesmo considerando-se Im Pcnsée, entre os intelectuais de esquerda da segun
da metade do século 20 “
Se‘Antonio Gram sei, percebido por diversos membros do Grupo como.,
um antepassado intelectual de.máxima importância, é indisputavelmente de
'altíssimo nível, um dado a meu ver um tanto embaraçoso é o resgate e mes
mo a reivindicação de William Morris, èm especial por Thompson (1924- ,
1993), o mais jovem dos membros mais importantes do Grupo. É bom des
confiar, como possívej antepassado intelectual, de um pensador c poeta que,
no Parlamento, foi retrospectivamente transformado cm-pai fundador tanto
por Ciement 'Atlee, líder do Partido. Trabalhista, quanto porW illiani Galla-
cher, deputado comunista. Thompson, por suavez, em mais de uma ocasião
escreveu que Morris, se vivo fosse, seria membro do Partido Comunista. Mais
cm geral, a reivindicação de movimentos1muito heterogêneos, considerados _
■*radicais” por Thompson, recorda a dèvuirclte que, cm outro contexto, levbu,
no tocante à História dos Estados Unidos, à que.se achassem centenas dc mo
vimentos de revolta negra - istò porque se definia “revolta” de um modo irre
mediavelmente vago, niinifnalista e inclusivo.21 . ; ; "
' Não vou, entretanto, tomar como exemplo o uso de cultura na obra de
Thompson, que conheço pouco, mas sim cm um texto de Eric Hobsbawm,-o23*
23 Uma contexto ação interessante do Grupo em: MOL1NA J1MÉNEZ, Tvdn. Imagen
■dc ío imginario. Introducción a la historia de Ias jnentalidades colectivas. liu
.'. FONSECA, Etirabeth (Org.). H isto ria : Teoria ,y métodos. San José, Costa Rica:
. Editorial' Universitária Cenlroamérkana» 1989. p. 179-224; uma síntese bétn me
nos simpática aos'historiadores marxistas britânicos é: H1MMEIFARB, G ertru-
' de. T l U N e w H p t o r y a n d t h e o l d . Càmbridge,MÀ:. Harvard University Press, 1987.
p. .70-93, 192-195. ..
' 24 Cf. para uma visão critica a respeito, RAWfCK, George..j.e radiei storiche delia-U-
berazfoné ncra. Quaderw Piaçcntinh p. 77-84, mar. 1969;
27.1
ítrligo “As classes operárias inglesas e a cultura' desde o início da Revolução in
dustrial”," além de levar em conta a coletânea On history. No caso do artigo,
cicio poder dizer que iodos as passagens em que se menciona a “cultura” fica
riam melhores se se substituísse tal termo por outros, mesmo porque em ne
nhum momento a noção é explicitada ou exposta (coisa que também caracte
riza a meia dúzia de vezes cm que “cultura” aparece em On history, no entanto -
um livro feórico-metodòlógico no essencial). Tem-se à impressão de tratar-se
de um termo evidente por si mesmo, quando na verdade é altamente polissê-
mico e controverso, como já vimos. No artigo de Hobsbawm —comunicação
apresentada a um simpósio em 1966—/ ‘cultura popular” é virtualmente um si-
nAnimo de, e alterna com, numerosos outros vocábulos e noções: “njentalida-
dus populares” (p. 197);“ ‘cullura’ operária nó sentido antropológico do termo”
[<]unl dos sentidos, seria o caso de indagar?!], imediatamente chamada a seguir
de “tradições operárias” num sentido que recorda a noção posteriormente
mu i lo popular de memória (p. 198); “as mentalidades e à cultura pòpular” sem
maiores especificações.(p, 199); “numa sociedade de classes há normalmente
separação de classe entre as culturas, embora amiúde trp quadro de uma cultu
ra comum: cristianismo,.instituições comuns, sistemas de ensino, cujas formas
estão cm sua maioria fixadas pelas camadas e pelas instituições dominantes da
sociedade” (pv200): será quê, nos dois casos, “cultura” significa exatamente o
mesmo?; “hegemonia cultural” e “simbiose” de culturas (p. 200), em.ambos os
casos como se-fossem conceitos não necessitados de explicação; “sistemas de
valores” opostos (p. 201); separação institucional num sentido dassista como
demento que aéentua a “separação cultural” (p. 201); a “cultura operária”
como resultado de uma “tradição cultural mais vasta, a.das classes subalternas
. pré-industriais” (p. 201): neste ponto, Hobsbàwm apela dirctamenté para a }
obra de Thompson sobre o radicalismo vinculado ao pensamento “plebeu”, em
bora avalie diferentemente tal radicalismo, vendei-o como a "ala esquerda do li
beralismo burguês”, mesmo se, depois, introduz nuances a respeito, (p. 203); a
cultui a das classes hegemônicas” (p. 203) aparece agora em sentido totalmen-25
25 HOBSBAWM, Eric. Las dáses obreras inglesas / !a cultura desde los cümienzos de •
la Revolución Industrial. ln> BÉRGERON, LouisfOig,), N ive les d e c u ll u r a y g n ip o s
sociales. 'IVad. César Guifiazú?México: Sigla XXI, 1977. p, J97-208. A edição'origi-
. nal em francês é de 1967; trata-se de um colóquio da Escola Prática de Altos Estu
dos (Paris) reunido em I%6.
274
te diverso, o de haitte ailtureh exemplo é nesse ponto o feilé russo); as pági
nas 204-206 opõem “cultura operária” ^"culturas operárias” ao talar de sua
. evolução desde antes de 1840, mostrando que acompanha as etapas' do capita
lismo: industrial: entretanto, a ênfoseeslá no “estilo de vida proletário”, a seguir
na “ideologia” e na “consciência dc classe”; “cultura operária” volta a ser basi
camente “estilo de vida do proletariado” na p. 206; na p, 207 fala-se de uma
“cqltura operária mais separatista” na segunda metade do'século 19, nras dc
fato se está falando deníveis e estilos de vida; na conclusão do'artigo (p. 208),
' sintomaticamente, o autor menciona “estilo de vida” e “consciência de classe
proletária”, não “cultura”, menos ainda este último conceito cm alguma de suas
. acepções antropológicas disponíveis na década de 1960,
■ , Em surtia, aòdongo do artigo, os elementos que de tato se discutiram
efetívnmcnte com base na análise de fontes foram: mentaüdades populares,
tradições operárias, sistemas de valores especificamente proletários, cpnsciên-
‘cia dc classe, níveis e estilos de vida diferenciais. O único ponto do texto em
que pareceu auunciar-sc um debate em torno dc cultura de classe, hegemonia
. cultural é simbiose de culturas acabou por ceder o lugar imediatamente, na
análise, aos elementos previa mente citados - de feto os quê interessavam ao
autor. Note-se que, no manejo do termo “cultura” por Gramsci, tal noção é,
igualmente, bastante vaga e também parece, às vezes, um sinòniniò.de concei
tos mais típicos do marxismo e do vocabulário dos debates socialistas. En.tre-
. tanto, Isto era menos grave nas primeiras décadas do século 20, a mcu ver, do
que cm sua segunda metade, quando “cultura” caminhava a passos largos, nos.
escritos antropológicos, para tornar-se uma alternativa mal definida e reacio
nária ao conceito dc “sociedade"-além de vir a ser noção excessivamente po-
* lissêmiea para se poder utilizar.sem especificações.
Se bem que Raymond Williams não fosse historiador neni membro do
Grupo,.não há dúvida de que suas posições sobre'cultura e estudos culturais
(que partiam de uma perspectiva marxista em suas linhas-gerais), bem assen
tadas já nos Estudos Culturais universitários do Reino. Unido na década dc
1960, influenciaram alguns dos historiadores marxistas britânicos menciona
dos. Ora, tais posturas apresentam alguns problemas e anibigüidades. Em es
pecial, cpmo Williams, reconhece muito bonestamen te, “a explicação materia
lista habitualmente fica reservada às outras atividades, ‘primárias’, deixando a
‘cultura’ para uma versão do ‘espírito formador’, agora, naturalmente, em ba-
st* diferentes, c niSo primária, mas secundária” Ou seja, Lambém aqui, "cultu
ra’' parece uni termo que se auto-explica. E, p o r‘outro lado, Williams - e tal
vez. também outros marxistas britânicos - cede às vezes à tendência, explicita
da darámente na declaração dc princípios conjunta de Parsons c Kroeber,
como foi visto, a enfatizar, na cultura, um “sistema de significações”, na práti
ca amputando fatalmente uma noção antes holística,3'’ ‘
Na Grã-Bretanha, Jde início, a partir da década de 1960, apesar das res
trições feitas acima, os Estudos Culturais universitários, sob influência de es
tudiosos como Raymond Williams e Stuart Hall, como constatou John Storey,
partiam de premissas marxistas.’7 Entretanto, primeiro.nos Estados Unidos,
embora também ganhando-a seguir as universidades britânicas, com a onda
,pós-moderna dominada pelo mulliculturalismo "politicamente correio”, a
partir sobretudo da década de 1980, tais Estudos Culturais - que se posicio
naram, sem dúvida, abertamente contia a, História duCivilização Ocidental
-«I lamente reacionária dominada por concepções de campeões desta civiliza
ção contra o que vêem como barbárie; do tipo dc Samuel Huntington ou Al-
lan Bloom passaram a organizar-se em torno de uma agenda baseada no par
i(len(idade/alteridade, isto é,em estudos feministas,degênéro,raciais (no sen
tido peculiar dado a çstes pelo movimento negro estadunidense), do movi
mento do Orientalismo à maneira de Edward Said etc. Neste processo,
embora estudiosos como Clifford Geertz, David Schneicier e Marshall Sahíins
(o Sahlins posterior a 1976) tivessem seu conceito de cultura, derivado da pos- •
lura rcdúcionisla Parsons-Kroeber, adotado pelos Estudos Culturais, aqueles
antropólogos, hãõ ativos politicamente, passaram a sofrer-uma espécie de chá
de cadeira: antropólogos mais jovem (como-George E. Marcus è Michael M.
J. Eischer) que propugnaiU os Estudos Sociais, bem como muitos intelectuais
que são ativos nesses últimos Uras não são antropólogos, parecem pouco dis
postos a convocá-los ao debate, achando que lhes faltam credenciais de mili
tância (como à entendem os pós-modernos politicamente corretos).26278 /■
26 WILLIAMS, Raymond. Cw/fí/rá. íra d . Lólio L. de Oliveira. 2. ed. Sâo Paúlo: Paz e
■ Terra, 2000. p, 11-13.
27 STOREY, John. Cultural studies. In: KUPER, Adam; KUPER, Jessica (Org.). T h e S o
cia l Science Eneyclopedla. Lon.don: Routlcdge, 1996. p. 160.
28 Cf, MARCUS, George E,; FISÇHER, Michael M. J. Atuhropohgy as cultural critique,
An experimental mórnem in the human Sciences. Chicago; The Uoiversity of Chi
cago Press, 1986. . . . •
27 6
Convêm assinalar que, apesar desses militantes politicamente corretos
se apresentarem com frequência como opostos ao sistema ocidental e capita-.
lista, este, ao contrário do que ocorria com as análises marxistas, não tem
grande dificuldade em aceitar e às vezes assumir muitas de suas posturas. Nas
palavras, do historiador argentino Túlio Halpèrtn Oonghi; o Estado norte-
americano e suas instituições. . : U . ' ■, -
29 .HALPERÍN DONCH1, Tulio. 'E tm y o s d e histo tio g ra fla , Buenos Aires: Edicibnes El
Ciclo por Asalto-linagô,Mundi, 1996.p. 161-189 (em especial p. 177, ISO),
277
rontw sociedades ou conjuntos de sociedades (a tradição francesa costuma
utilizar o termo "civilização” para referir-se a conjuntos tornados relativamon-
te homogêneos segundo certas caracleristricas culturais básicas comuns o.que
englobem ditei entes sociedades num dado recorte de longa duração, por
exemplo, civilização islâmica ).“ O problema surge é quando se pretende sn-
jilnntíir, com o emprego dc aígtima noção de cultura (hoje em dia, quase sem
pre aquela de Clifford Geertz, ou alguma outra própria do perspeclivismo
hermenêutico), ad e sociedade, formação social Ou estrutura social.
Existem diversas dimensões do social’que o conceito de cultura - em
qualquer de suas modalidades - não cobre, mesmo porque não foi êriado pata
isso. f; verdade, sem dúvida, que alguns dos. recortes das noções de “sociedade”
e 'social", praticados por certas Sociologias, não deixariam saudades se desapa-
i ecessem. Penso, por exemplo, na visão dás comunidades humanas, não como
entidades dotadas, cm cada momento do tenipò que for examinado, de redes
relalivamente estáveis e hierarqyizadas de relações institucionalizadas, mas
sim, como uma coleção de-múltiplos recortes arfiitrariamente construídos pela •
análise mediante' seleções de variáveis: cada grupo assim determinado, (por
exemplo mediante perguntas feitas por amostragem) será uma coleção de in
divíduos que têm cm comum certas características (renda, idade, sexo, nível de
instrução-ou quaisquer outras que se quiser escolher), numa atitude metodo
lógica contrária a qualquer interpretação de conjunto, holística.51 .
Cada sociedade humana é tjm conjunto real, um produto histórico que
se.distringue de urna outra por apresentar coníigürações específicas cm sua_
rede relutivamente fechada de relações sociais. As relações sociais instituciona
lizadas articulam os membros da sociedade numa totalidade configurada
como lede dê relações (a estrutura da sociedade). Ao se tratar de formações so-
278 ‘
■4
ciais rela li va mente complexas, há diferentes tipos de relações a considerar, três,
em especial: 1) o comportamento de certos indivíduos influencia (de certo
modo e até çerto ponto) u satisfação das necessidades dc algum tipo-pessoais,
materiais, intelectuais etc. —de outros indivíduos, embora, na .maioria dos ca
sos, eles ignorem nnituamente a existência uns dos outros como indivíduos e
a presença dqsuas mútuas-dependências: formam-se desse modo as redes .mais
importantes de'relações sociais (na verdade,-trata-se dás relações sociais stricto
sensu)',-2) cada indivíduo, de seu lado, tende a encarar a sociedade completa, sc
é que alguma vez a encara, como uma abstração, mas se relaciona pcssoalmen-
te com alguns dè seus membros, seja dirclamente (família, amigos, colegas da
escola.-ou do trabalho etc.), seja indirclamente, ruas num nível em que os
dprècnde como indivíduos (por exemplo a relação de alguém, a distância, com
um político, uma cantora ou uma atriz de Hollywood - na maioria dos casos,
uma relação com meras imagens ou representações deles): em todos os casos,
porém, existe a consciência de outros seres como indivíduos concretos, mani
festa-se algum tipo de interesse é significação c pode ocorrer, eventualmente, a
satisfação de uma necessidade individual, mesmo se a relação ficar só no nível
de representações; dá-se, oiitrossim, uma atitude de valoração (positiva, nega
tiva, de suspensão de juízo étc.), nascida das mencionadas representações, mas
que pode provir também, em parte pelo menos, dq .sentimento ou juízo da co
munidade; 3)- laços sociais desse tipo (em que a consciência clqs iiidjvíduos
concernidos tem um papel decisivo; o que não ocorre nas relações sociais pro
priamente ditas, nascidas em priineira instância da divisão social do trabalho)
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também podem ocorrei- sem contatos diretos ou indiretos, com valorização e
investimento emocional mediados por sistemas simbólicos institucionalizados
que substituem de certo modo o contato em questão,' por exemplo ao sc tratar
<ln adesão (ou, pélo contrário, cia repulsa) de indivíduos a um partido ou a um,a
corporação (igreja, nação, forças armadas, por exemplo)í Enquanto as relações
sociais do primeiro tipo são.mais homogêneas e gcheralizáveis, os laços-sociais
de que se falou no segundo e terceiro pontos são, pelo contrário; além de frag-
mentários (parciais, seletivos), muito heterogêneos entre si (a relação entre pai
e fillio c djferente daquela entre marido e mulher; a de um empregado com um
patrão específico dotado de certas características é bem mais seletiva - isto é,
leva em conta conhecimentos e interesses que sõ mobilizam um conjunto res-
Irilo de variáveis sobre o indivíduo-patrão^- do que a que o primeiro possa ter
com um amigo etej.”
As considerações acima são altamente resumidas e incompletas, além
de, nesses exemplos, eu ter escolhido o nível tia descrição estrutural, mais do
que o,da dinâmica das relações. Mesmo assim, em todos-òs pontos do que ali
expus, se por um lado sempre séria possível apontar aspectos culturais rele
vantes-em qualquer dos muitos sentidos que se possa dar ao termo cultura-,
também é certo que eles nunca seriam capazes de esgotar a análise de algum
daqueles pontos (ou de outros que se escolhessem). Na época do auge da His
tória Social com pretensões sintéticas,-a Sociologia atravessava uma fase espe-
•' cialmeute anti-histórica em suas características e correirtes básicas, o que d i f i
cultou e deformoíi os contatos entre ambas as disciplinas.” ,Tal constatação
não justifica, entretanto, o empobrecimento evidente do enfoque que çònsis-
l iria em ignorar) por exemplo, os aspectos materiais de elementos sociológicos
como os que foram apontados, Existem representações envolvidas nas rela-
ções sexuais, mas um marido, por exemplo, faz amor com uma esposa de çar-
- ue e osso, não com uma representação. Üm indivíduo pode se alistar e partir
para a guerra invocando uma noção que tenha (oii que a propaganda nado-
. . - ■
32 BAUMAN, Zygmunt, Essai dfone théorie marxiste de la société.. VUommeet Ia
Sociélé, Paris, Ànlhropos, 15, p. 3-26, japv./mars 1970. Ver também MELOTTI, Um-
bertp (Org.). Ip tro flu z lo n e alia sociologia. MHano: Centro Stiuli Tcrzo Mondo, 1980,.
33 CASANOVA, Julián. i a h is to r ia s o c ia l y los liisk)rí<iclõi:es. Barcelona: Crítica, 1997. '
p. 1-12-113. 1, / > ' -■ ,
nalistíi Ihè inculquc) sobre a pátria, mas, na guerra, tratar-sé-á, entre outras
coisas, de matar e/ou morrer, e náo.unicamente de representações. Podem-se
estudar asjmlsôcs envolvidas nas ações represssivas, mas quando alguém apa-
nba da polícia ou é preso, trata-se de uma pessoa de verdade que é de fato es
pancada ou trancafiada. Um antropólogo pós-moderno como Peter Wilson
pode avisar aos leitores que, entre as “realidades” e as “surrealidades” do po
der, interessar-se'-á só por,estas últimas - más, naturalmente, não terá como
negara existência das primeiras.31 Sendo-assim, no entanto, de onde virá tal
interesse exclvisivo pelas “surrealidades”?
Num sentido mais geral, o Homo sytnbolicus só podería funcionar den
tro da teoria teológica dc uma criação especial ou separada da huúianidade
por Deus, único modo de efetuar uma-separação taxativa entre cultura e na-
tuveza. Mas todos os estudos recentes disponíveis, em muitas áreas de estudos,
comprovam, pelo contrário, que o comportamento cultural .existe líiiiitada- ;
mente nas sociedades dos primatas rião-humanos atuais, que sem dúvida pos
suem uma vontade subjetiva. Embora tal fosse feito no século 19, já não Ká
como separar os animais,, puramente “instintivos", de uma humanidade sem
herança hereditária, cujo comportamento fosse exclusivamente cultural devi-'
do a seu acesso, exclusivo à abstração e á simbolizarão: /'
2HI
1
lim suma, os seres humanos são animais, produtos da seleção natural,
dotados de um passadonão-humano -que, entre outras coisas, não pode ser
desvinculado do fato de terem emergido as sociedades humanas como entida
des coletivas que, como vimos ao começar, servem de substrato material à cul-
tura social. Mas os humanos São animais que leváram tão ionge a possibilida
de de viver mediante comportamentos culturalizados (cuja possibilidade, en
tretanto, tem fundamentos genéticos), qúe “o desenvolvimento cultural e a
mudança social levam--.se a cabo poVmeio de forças que se originam no inte
rior da sociedade e nãó podem explicar-se por um mecanismo evolucionârto”.
Um síntese: ,
282
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M a n to s cto Edição d o m to Beatriz Rudrjgucs de Lima
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CrítTçiioúu Capa ( Carlosfendei
C alíilogtçàov '
. R efirêm iíB ib lio g n íflim KliawdeJesus Charret '
D higm m açio ' Daniel CastiUioRarafoi*
Impressão e Acabamento
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<3 N . d f m * . n o
«nífica Bandoiraõt^
Ciro Flamarion Cardoso
nasceu cm Goiânia cm 1942. Formou-se cm História pola
Universidade l;cdcral do Rio de Janeiro (1965), tendo então
lecionado ali durante dois anos, como assistente da ente-
drática Maria Yedda Linhares, e na Universidade Católica de
Pelrópolis, Cursou seu doutorado cm História na Universile
de Paris X (Nanterre), sob a orientação de Frédéric Mauro,
concluindo-o em 1971 com uma tese sobre a Guiana
Francesa no século 18 que, publicada em forma completa só
em 1999, ganhou em 2000 o Prêmio Delavignelle, atribuído
ao melhor livro sobre o Ultramar francês.
Após doutorar-se, pesquisou e ensinou na Costa Rica
(1971-1976) e no México (1976-1978), regressando ao
Brasil em 1979 para trabalhar na Universidade Federal
Fluminense, cm Niterói, onde é, desde 1993, Professor
Titular de História Antiga e Medieval e, desde 1998,
Coordenador do Centro de Estudos Intcrdisciplinares da
Antiguidade. Entre 1979 e 1984 lecionou também na
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Foi pro
fessor visitante em numerosas universidades do país e do
exterior (Oxford, Amsterdã, Toulouse-I.c Mirail, New York
Universíty, Madison WI, cnlre outras). É pesquisador do
CNPq, com bolsa dc Produtividade em Pesquisa.
É ainda autor e organizador de mais de trinta livros,
publicados no Brasil e em outros países, tendo também pro
duzido inúmeros artigos destinados a revistas científicas
nacionais e estrangeiras. Entre seus livros, destacam-se; Os
métodos da História, em colaboração com iléctor Perra
Brignoli (publicado na Espanha em 1976 c no Brasil cm
1979); Rio de Janeiro, em colaboração com Paulo 1lenriqne
Araújo (Madri, 1992); Sele olhares sobre a Antiguidade
(1994); Domínios da História, organizado cm colaboração
com Ronaldo Vainfas (1997); La Guyatwfmçaisc 1715-1817
(Guadcloupe, 1999); B/jíiyos (San José, 2001) e/l ficçilo cien•
tífica, imaginário do mundo cmiícjiijwrdmii (2003).