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Um historiador fala de

TEORIA E METODOLOGIA
ENSAIOS

© EDUSC

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- Minha vida profissional esteve muito marcada por duas polêmicas
listoriográficas. A primeira foi aquela a favor do paradigma integrado
mio pelo marxismo quanto pela tendência (chamada erroneamente
e Kscola) dos Annates, contra uma concepção ainda muito forte na
unérica Latina, mesmo na década de 1970, centrada num enfoque da
1isto ria que unia - nem sempre com consciência de o fazer - positi-
ismo e historicismo (ou, como preferem alguns, historismo). A se-
unda foi o debate com as tendências pós-modernas, o neoconserva-
orismo e a Nova História Cultural. Os ensaios integrantes deste volu-
te prendem-se indubitavelmente, em sua maioria, a esta segunda po-
intica, em seus aspectos epistemológicos e metodológicos, j y

HISTÓRIA
Coordenação Editorial
Irmã lacinta Turolo Garcia

Coordenação Administrativa
Irmã Adelir.VVeber

Coordenação da Coleção História


Luiz Eugênio Véscio

Coordenação Executiva
Luzia Bianchi

Comitê Editorial Acadêmico


Irmã jacinta Turolo Garcia - 1’residêntc
JoséJobson de Andrade Arruda
Luiz Eugênio Véscio
Marcos Virmond
Glória Maria Palma
Maria Arminda do Nascimento Arruda

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fala de te o ria e
m e to d o lo g ia
Ensaios
Ciro Flamarion Cardoso

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EDUSC

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©EDUSC
Rua Irmã Arminda, 10-50
CEP 17011-160-Bauru -S P
Eone (M) 3235-7111 - Eax (14) 3235-7219
e-mail: cdusc@edusc.coni.br

C2686H Cardoso, Ciro Elamarion.


Um historiador fala de teoria c metodologia : ensaios / Ciro
Elamarion. — Bauru, SP : Edusc, 2005.
284 p .; 23cm. — (Coleção I listória)

ISBN 85-7460-287-6

1. Historiografia. 2. História - Teoria. 3. História - Metodologia.


4. História - Eilosotia. i. Título. II. Série.

CDD 907.2

Copyright© EDUSC, 2<X)5


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Sumário

7 I ntrodução

Parte 1
Dimensões: tempo e espaço

C apítulo 1
11 Tempo e história

C apítulo 2
37 Repensando a construção do espaço

Parte 2
Epistemologia em debate

C apítulo 3
55 Crítica de duas questões relativas ao anti-realismo epistetnológico
contemporâneo

C apitulo 4
73 Epistemologia pós-moderna e conhecimento: visão de um historiador

C apítulo 5
95 Começando o século 21

í
Parte 3
(
História: ontem c hoje

C apítulo 6
113 Panorama da Historiografia Ocidental (até aproximadamente 1930)

C apítulo 7
151 A História na virada de milênio: fim das certezas, crise dos paradigmas?
Que História convirá ao século 21?

Parte 4
Algumas questões setoriais de teoria e método

C apítulo 8
171 Etnia, nação e mundo pré-moderno: um debate

C apitulo 9
199 Etnografia e História da leitura

C apítulo l()
209 História das religiões
.y

C apítulo 11
231 Pensando sobre a arte figurativa, lendo a obra de arte

C apítulo 12
255 Sociedade e cultura: conceitos complementares ou rivais?

i
I ntrodução

Minha vida profissional esteve muito marcada por duas polêmicas his-
toriográficas. A primeira foi aquela a favor do paradigma' integrado tanto
pelo marxismo quanto pela tendência (chamada erroneamente dc\Escola) dos
Annales, contra uma concepção ainda muito forte na América Latina, mesmo
na década de 1970, centrada num enfoque da História que unia - nem sem­
pre com consciência de o fazer - positivismo c historicismo (ou, como prete­
rem alguns, historismo). A segunda foi o debate com as tendências pós-mo-
dernas, o neoconservadorismo e a Nova História Cultural. Os ensaios inte­
grantes deste volume prendem-se indubitavelmente, em sua maioria, a esta se­
gunda polêmica, em seus aspectos epistemológicos e metodológicos.
Dos doze textos de natureza diversa aqui reunidos, sete (os capítulos 1,
6,7,8,9, 10 e 11) são inéditos. Quanto aos demais, foram publicados, às vezes
em forma bastante distinta das que se apresentam neste livro, em revistas. Por
fim, três deles (os capítulos 2, 3 e 12) também apareceram, cm versões distin-'
tas em vários pontos das incluídas neste volume, numa coletânea de ensaios
que publiquei na Costa Rica em 2001.
Eis aqui as referências dos textos publicados previamente de alguma
forma:1

1 “Paradigma” entende-se aqui, seguindo o psicólogo social |can-Marie Seca, como


“uma corrente de pensamento c um espaço de estruturação dos saberes cm ciên­
cias sociais” (Cf. SECA, Jean-Marie. Lcs représaihilions sociulcs. Paris: Arniand Co-
lin, 2002. p. 35.).

7
Repensando a construção do espaço. Revista de História Regional,XJnl-
versidade Estadual de Ponta Grossa, 3,1, p.”7-23, 1998. Também publicado,
em espanhol, em: CARDOSO, Ciro Flamarion, Ensayós. San José: Editorial de
Ia Uuivcrsklad dé Costa Rica, 2001. p, 13-26,. .
* :# '.
Crítica de duas questões relativas ao anti-realismo epistemológico con-
lemporâneo. Diálogos, Universidade Estadual de Maringá, 2, 2, p. 47-64, 1998.
Incluído igualmente, em espanhol, em: CARDOSO, Ciro Plamarion. Ensayos.'
San Josc: Editorial de la Universidad de Costa Rica, 2001. p. 81 -92.
Epistemologia pós-moderna, texto e conhecimento: a visão de um his­
toriador. Diálogos, 3, 3, p. 1-28,1999. •'
No limiar do século XXI; Tempo, Universidade Federal Fluminense, 1,*
2, p .7.-30, 1996. ' ■' ...
Sociedade e cultura: comparação’ e confronto. Estudos Ibero-Americanos,
Pontifícia Universidade Católica <Ío Rio. Grande do Sul, 29,2, p. 23-49,2003.
' • - ■ . ■ •' ’ . . /

Os textos incluídos nesta antologia são todos da década de 1990 e da


atual. Três deles, na forma cm que aqui aparecem.(capítulos 6,-9 e 11) resulta­
rá in de notas de aulas, o que explica suas diferenças formais com os outros,
que foram conferências oü comunicações apresentadas em reuniões científi­
cas, às vezes publicadas depois, ou já nasceram cottio artigos, preparados para
revistas especializadas ou destinados a volumes coletivos. Como todos os en­
saios aqui reunidos geraram-se. independeu temente uns dos outros, compor5
lavam repetições de maior ou menor extensão. Eliminei-as em sua maior par­
le, mantendo, porém, pequenas reiterações cuja presença em determinado
texto me pareceu indispensável para não prejudicar o argumento quê desen­
volvia naquele ponto. .. ■ v
Parte 1

D imensões: tempo e espaço


■C a p í t u l o 1

: T empo e história

Y PROLEGÕMENOS !'
,. A noção de (empo é capital, tanto científica quanto existencialmente, e,
ao mesmo tempo, muito difícil de definir devido à sua ambígüidade, já que,
em diferentes contextos, significa coisas de fato bastante variáveis:

o símbolo t dos físicos cfalaciosamente simples como representação “daquilo


. que entendemos como tempo”. É útil em expressões formais e seu significado não
precisa ser questionado. Entretanto, se perguntarmos de que modo se supõe que
• esteja relacionado com o que todos nós conhecemos no íntimo como nossa exis­
tência no tempo, seremos enviados á.Psicologia. Está, uma ciência que lida sobrer
tudo com processos mentais, quase nada tem a dizer sobre o símbolo t dos físicos,
Procurando algo comum ao tempo dos psicólogos e dos físicos, poderiamos inqui­
rir o que a Psicologià diz acerca de como posso sentimento de devir contínuo se re­
laciona com o devir contínuo dó mundo tísico, incluindo as questões cruciais do
início e do fitn do tempo. Para uma resposta, talvez nos enviem à religião. Mas a re­
ligião c a Teologia se referem sobretudo ao propósito e à história, não q sentimen­
tos e a símbolos físicos, Poderiamos avançar até a Filosofia c indagar sobre as rela­
ções, se é que existçm, entre o sentimento de duração, o propósito aparentemente
perceptível'na natureza e o témpo útil do físico, A Filosofia (...) tem muito a con­
tribuir no tocante ao esclarecimento do problema do tempo. Mas (...) esbarra em
certas antinomias que, segundo parece, não pódern ser solúveis senão com a ajuda
. do especialista,1 ■

I FRASER, J. 1'. Inlroduction. Ln:____. (Org.). The, voices of time: A cooperativo sur-
vey of niatPs vievvs of time as expressed by the sçiences and by fhe huinanities. New
York: GeorgeBrazillef, 1966. p.XVlH. ■ ,

11
Istõ significa que, em nossas indagações sobre o que o tempo é em si,
objcllvainente, como uma dimensão (um “receptáculo”, tal como o espaço, em
que os eventos sè desenvolvem), mas também sobre o que èie é para nós, súb-
jeliva ou existencialmente, seria bem provável .corrermos ó risco de que nos'
empurrassem em diferentes direções e nos la.riçassem aos braços das mais di-.
versas disciplinas.2 • V ; ■
É provável que a noção de espaço tenha sido. percebida pelos seres hu­
manos antes da de tempovAs línguas, mais antigas que nos deixaram docu­
mentos - o sumário, o egípcio, o acadiaiio e o eblaíta - tendiam a cspaciaüzar
o tempo. O egípcio tardou bastante até mesmo a desenvolver .um sistema ver­
bal baseado ria noção de tempo: de início, predominava em forma absoluta a
noção Ue aspecto verbal, que distinguia o perfeçtivo (ações completas), o ím-
pcrfectivo (ações em ato ou ações reiteradas) è oqrrospectivo (ações suscetí­
veis de ocorrer). Mesmo hoje em diá, qualificamos em português o tempo
como “curto” ou “longo” isto é, com um vocabulário espadai. Podemos até
mesmo dizer "um curto espaço de tempo”, que um evento “ficou para Irás'’ ou
“está a grande distância no tempo” por'exemplo. 1 . •
Um caso extremamente curioso, por prenunciar intuitivamen te a rela­
tividade, é o da língua quêchiia: Á palavra pacha, de acordo com a acepção'
.mais conhecida e usual; designa a terra como solo e como mundo, assim como
sua personificação religiosa mima entidade feminina (na mitologia andina, a .
terra é feminina, enquanto a água em movimento - seja a da chuva, seja a do
canal - que vem fecundar a primeira é masculina). Alternafivamênte, o termo
também pode significar tempo, período, circunstância. O mais interessante,
porém, é que em certos contextos pacha designa em expressão única, sintéti­
ca, as noções conjugadas de extensão cspacial e intervalo de tempo (um mo­
mento ou um perjodo). Assim, por exemplo, no manuscrito cie Huarochirí
(capítulo I, seção 7)1 a passagem coni raya vim cacha tuna camacpacha camac,
início de uma oração à entidade sobrenatural Coní Raya, identificada a outra,
Vira Cocha, significa ao pé da letra: “Coni Raya Vira Cocha, que animaste os

2 Ver ARIÓSTRGUI, Julio. La investigación histórica'. Teoria y método. Barcelona:


Crítica, 2l)01. p. 209-222: CARDOSO, Ciro Flamarioti. Introducción <ü tmbajo de Ja
investigación histórica. Barcelona: Crítica,.1981. p. 195-216. •
humanòs e animaste'a tena-tem po”, isto é, quanto ao último membro da fra­
se, algo como “que animaste o mundo cm seu ctcio atual”. Analogamente, em
outra passagem do mesmo manuscrito (capítulo 18, seção 221), o Homem da .
Montanha, ao prever durante o sacrifício de uma lhama a chegada dos' espa­
nhóis, afirma que a pacha “não é boa” por'prenunciar o abandono de Paria
Caca, a principal huaca da região; isto significa algo.como “o mundo neste
momento deixou de sê configurar favoravelmente a nossas crenças e valores”.5
, Na filosofia ocidental, desde Leibniz a noção de tempo tomou a dian-
teira sobre a' de espaço.1 Mesmo se a relatividade as toma inseparáveis em
princípio, posto que existem como espaçó-lempo índissoluvelmeiitç, isto não
impediu a primaria da temporalidade em muitas das elucubrações feitas a
partir das teorias relativista é quântica: ás de IIya Prigogihe, por exemplo.5 '
Num prólqgo <Yobra de Max janimer, escreveu Àlbert Eitistein que o !
tempo e o espaço absolutbs do sistema de Newton, mçsmo lendo sido critica­
dos com razão por Huygens e por Leibniz, na época eram a única solução pos­
sível e frutífera, já que, antes de desenvolver-se a noção de campo como con-
. ceito central da Física, sob a influência de Faraday e de Maxwell, não havia
como abandonar a visão newtoniana a respeito de um modo operacional.
. Como as leis dó campo são covariantes, isto é, independentes de uma escolha -
particular do sistema de coordenadas, tornam-se desnecessárias as hipóteses
de um tempo absoluto e de um espaço absoluto. O que constitui o caráter es­
pacial da realidade é, então,.simplesmente a tetradimensionaüdade do campo ,
(as três dimensões espaciais e a dimensão temporal): não há espaços vazios
qúe existam por si mesmos na ausência de um campo.6 ,
-------------------------_ • j
3 SALOMON, Frank. Tntroductory essay: the Huarocliirí rhamisçript'. In: SALO- .
MON, Frank; URIOSTE, George L. (Org,). The Huarochiri tnanuscrípti a testa-'
. menl of-ancient and colonial Aiulean religton. Austin: University of Texas Press,
1991, p. 1-38 (para o termo (taçlm, p;Í4-l5).
4 JAMMER, Max. Conccptos de. èspuejo. Trad. Daniel Cazes. México: Grijaliio, J97Ü.
p. 23. A edição original em ingíêsé de 1954. ...
5 PR1GOGINE, Ilya. Ô nascimento do (empo. Trad. João Gama. Lisboa: Edições 70,
1990 (a edição orígiilalem italiano é de 1988); Òrígins of complexity. In: F)\Í>1AN,
A, C. (Org.). Origiily. The Darwin Collegc lectures. Cambridge:Cambmige Univer-
sily Press,T 988. p. 69-88. , ' ; -
6 EINSTE1N, Albert. Prólogo. Itrr JAMMER., Max. Conceptos de espacio. Trad. Daniel
Cazes. jMéxico: Grijalbo, 1970. p. 11-17.

13
O que a ciência contemporânea ache a respeito do tempo será p erti­
nente para a sua construção nas ciências sociais e humanas? Minha opinião é
que sim, como já escreverá’antes; mas de modo indireto;e, ás vezes, com atra­
so considerável em relação às descobertas das Ciências naturais:

A revolução trazida ao pensamento cientifico por teorias como a relatividade é


a mecânica quánlicâ não se limita (...) a [seús] aspectos (...) específicos. Modifica
toda a visão de.mundo.e, pór conseguinte, provoca também transformações radi­
cais nas tendências da filosofia das.ciências,'fortalecendo ou, pelo contrário, enfra­
quecendo o u destruindo escolas dè pensamento apteriormente existentes, provo1
eando <>aparecimento de correntes novas (...). Tudo istocria um ambiente geral de
. pensamento - em’termos globais e também quanto a problemas específicos, como
o do tempo que nos ocupa agora - que não pode deixar de influir.sobre os histo­
riadores, os,quais forçosa mente participam da visão de mundo de sua sociedade e
de sua épocá, nas suas múltiplas variantes/

■Não é este, no entanto, o ângulo qúe me interessa explorar nèsta oca­


sião. Meu foco recairá nas novas visões acerca da temporalidade, ou da rela­
ção entre tempo e História, surgidas: no bojo do movimento de idéias que se
pode, simplificando um pouco, chamar de pós-modernismo; e tio contexto de
outro, mais delimitado, que.é o neoconservadorismo iniciado nos Hsuídos
Unidos na décadâ de 1970. Tratarei do assunto segundo certo número de ei­
xos, tentando, a seguir, tuna avaliação de conjunto. '■
: * '* t

VOLTA DO ACONTECIMENTO - •
(OU DA CURTA DURAÇÃO) . 1
E ACELERAÇÃO DA HISTÓRIA - •=•'..= '
Comecemos por examinar o que tem a dizer o antropólogo francês
Marc Augç sobre o tempo. Na segunda metade do século 20, tefia ocorrido
uma aceleração âà história. O passado se torna história, em nossa época, a um
ritmo alucinante: a história corre atrás dè nós, está'em nossos calcanhares. Por
história, Áiigé entende os eventos .ou séries de eventos queSiumerosas pessoas;7

7 CARDOSO, Ciro Flamarion. Ensaios nteionalistas. Rio dç Janeiro: Campus,


1988,.p. 37. '/■ .
reconhecem Como Uil: os Beatles, 1968, a Argélia, o Vietnã, o'inut o de ?erlim,-
a guerra do Golfo, a desintegração da União Soviética e depois a da Iugoslá­
via, a guerra do Iraque... Há uma superabundâticia dé eventos considerados
relevantes, de que somos informados simultaneamente a seu acontecimento,
acumulandò-se em ritmo rápido demais para sua assimilação ou sua conside­
ração em perspectiva.
Constata-se que, habiluahnenté, tais acontecimentos que, parecetn ca­
pitais não foram, previstos por economistas, historiadores ou sociólogos. A
enorme quan tidade de eventos como esses que se .faz presente vem não so­
mente de uma informação superábundante, mas também da crescente inter­
dependência presente nd interior do que já se configura como um “sistema
mundial”. O resultado cio conseqüente desnorleamento é a forte necessidade
senlída pelas pessoas de encontrar sentido para um presente que parece im­
previsível, estranho, inexplicável: “outro”, portanto. Daí um excesso de inves­
timento no sentido; ou, mais exatamente, na busca do sentido.
j A superabundáncía do tempo dóm undo e também dos indivíduos (no
mundo desenvolvido não mais três, é.siro, quatro gerações coexistem), é uma
das características daquilo que Augé chama de Supenuodernidade.8
O ponto de partida do antropólogo francês em suas ruminações sobre
o tempo no mundo de nossos diás parece ser uip famoso artigo de Pierre
Nora) incluído na coletânea Faire de Fhistoire, no volume 1 sobre Novos proble­
mas - artigo intitulado “Â volta do acontecimento” Também Nora, no artigo
cm questão, se restringia â análise das perspectivas da História do presente:
um presente em que os meios de comunicação 4C massa “democratizam” o
acontecimento - isto. é, tornam-no imediatamente acessível á milhões de pes­
soas mas, ao mesmo tempo, o produzenr, metamorfoseiam e vulgarizam,
drainatizando-o ein analogia com os “casos” do dia-a-dia e da crônica policial
noticiados nos jornais .(em francês, fáits divers), gerando uín “paradoxo do
evento” O* próprio deslocamento da mensagem narrativa em direção a .suas
viftUalidades imaginárias, espetaculares, parasitárias, que dá -a impressão de
desvalorizar ou vulgarizar os: acontecimentos, permite ao historiador do estri­
tamente contemporâneo inseri-los numa série. Em lugar, porém, de procurar

8 AUGÉ, Marc. Non-ptacesi Intfoduclion to an anthropology of Snpermodertiity.


Translated by John Hovve, London: Verso, 1995. p*. 7-41. ' .

•15
reduzir o nível temporal dos acontecimentos - ao que Braudel chamava de
“uma espuma” superficial, algo de menor importância do que as temporalída-
des niaís lentas-, achava Nora qüé o historiador que se ocupa com a História
imediata teria interesse cm investir, pelo contrário, no acontecimento, utilí-'
Zando-o como meio para, por seu intermédio, conscientemente, fazer surgir o
passado, o espessou histórico, as estruturas, em lugar de, como êfa habitual nó ‘
trabalho dos historiadores, fazer inconscientemente surgir o presente no pas­
sado (ou seja, projetar o presente no passado). Em outras palavras, os áconte- ’
cimentos permitiríam evidenciar o sistema* a çuita duração revelaria a longa
duração estrutural.’ •

MEMÓRIA : .- . , ’ ' . , •'


Utn dos efeitos da superabundància dos acontecimentos e, mais em ge­
ral, do excesso de informação que nos ameaça em nosso presente pode ser o
desnorteamento. Para este contribui, também, a noção, insistentemente afir­
mada nessas últimas décadas, de que o mundo em,que vivemos é a tal ponto
distinto de (udo que o precedeu, além de transformar-se a um ritmo tãò alu­
cinante, que a Hístóna se teria tornado irrelevante. Isto traz ó risco de uma es- ■
pécie de amnésia coletiva, voluntária, o que não poderá deixar de assustar os
historiadores. Paolo Rossi declarou, referindo-se ao surgimento da memória, *
entre muitos profissionais da História, como modismo ou como obsessão:'
“Bein sei que o interesse atual pela méínória.se deve ao medo que sentimos, da
amnésia, dc nossa incapacidade de conectar de alguma maneira o passado e o
presente.”910Além disso (e em parte como resultado disso); as referências habi­
tuais de que dispõem os indivíduos para a construção idenlitária - família,

9 NORA, Pierre.Leietourde Pévênemcnt. In: LF. GO.HR, Jacques;NORA, Píerre (Org.).


. PairedcJl'hhtoirk Paris: Galliniard, 1974.1: Notiveauxproblèmes,p. 210-230. ..
Iü ROSSI, Paolo. Le arti delia memória: rinascitc e transfigurazione (1992) apud
OLÁBARRi, Ignacio. l.a iesurrección de Mnemósínc: historia, memória, identidad.
in: OLÁBARRI, Ignacio; CASPISTEÇÚl, Rçandsco javier (Org.). l.a “mwva"hi$ta:
ria culluml; La infhiénda dei postestrueturalismo y d auge de la interdisciplinarie-:
dad. Màdrid: Complutensc, 1996. p. 145-173 (a dtação da passagem de Rossi está
na p. 145). . . ■ ■

16
sindicato, religião, partido, nação,'entre outras - foram seriamente abaladas
no bojo das transformações d o século 20.,Em consequência, acha Augé que se
constata hoje em dia uma forte crise ligada à perda das identidades: o que se
busca nos “lugares da memória”, diz de, são signos Visíveis do que costuma va-
■mos ser, é tentar descobrir ó'que somos pela constatação do contraste com o
que já não somos; como se se almejasse um lampejo de revelação indicador de
uma identidade que hão achamos, para tornar manejável nossa,relação com
um mundo que, movendo-sé rapidamente demais, nos faz perder os pontos,
de referência. Neste ponto, de: novo Auge dialoga com Pierre Nora."
• A memória, a identidade e, do ponto de vista, metodológico, o recurso
crescente à História Oral em campos cada vez mais variados da pesquisa em
História Contemporânea—sendo que este ultimo elemento não deixa de sus­
citar problemáticas e interrogantesdambém quanto a períodos para os'quais
não seja possível a busca de testemunhos orais - constituem, portanto, temas
vinculados entre si no ambiente intelectual em que se movem os historiado­
res atuais. Não me c possível, porém, desenvolvê-los todos aqui: reslringir-
me-ei especificamente à questão da memória coletiva. ■
. Em .primeira aproximação, poder-se-ia definir a memória coletiva
como um conjunto de elementos estruturados qüe aparecem como recorda*
ções, socialmente partilhadas, de que disponha uma comunidade sobre sua
própria trajetória no tempo, construídas dé modo a incluir não só.aspectos se­
lecionados, reinterpretados e até inventados dessa trajetória como, também,
uma apreciação moral ou juízo de valor sobre ela. Em ambos òs níveis, tais in­
gredientes se modificam no tempo (.segundo mudem as solicitações que, em
diferentes situações histórico-sociats, façam ao passado as instâncias organi­
zadoras da consciência social. ;
' Afirmei há um momento que uma determinada construção aparece
como recordação porque, na verdade, são indivíduos os que .podem lembrar-
se ou recordar. Não existe, $triclo{sensu> órgão ou mecanismo concreto algum
que permita experimentar lembranças coletiva ou interiivdividualmente. Uma
solução, para este problema foi proposto em 1980, após a realização de entre­
vistas com operários metalúrgicos aposentados; por dois pesquisadores fran-*

. 11 AUGÉ, .Marc. Norhplace?: Tntroduction to an anlhtopology of Stípcrmoderníly.


Trànslaled by John Howc. London; Verso, 1995. p. 25-25.
:• • : ' ’. ■. ..;' • •

■ '■ - • . \ ' . • 17
coses, Lequin c Mettral. Eles distinguiram três níveis: existe, em primeiro lu­
gar, unui memória individual que opera no quotidiano; desta pode nascer, me­
dia nle recortes e adições, uma mçtnória comum, que se manifesta na evocação
que um grupo faça de seu passado, de suas lulas; por fim, pode surgir ou não
a memória coletiva, pois esta exige, para estruturar-se, que funcione uma ação
consciente de reconstrução institucional da memória no interior do grupo,
coisa que não acontece sempre:1213Assim, num,sentido estrito, só existem me­
mórias individuais. Mas as recordações são retomadas por instituições de vá­
rios tipos, dc tal modo que a sociedade acaba por constituir uma espécie de
patrimônio comum da memória com que o indivíduo coexiste e interage des­
de sua infância. |\s memórias, em-função do próprio transcurso do tempo,
não podem manter-se só como vivências individuais: seíetivamcnte, acabam
residindo em depósitos sociais (arquivos, monumentos, museus), naquilo que
Ibi chamado de “lugares da mcmória"líJ >'•
Memória individual, comum e coletiva coexistem necessariamente nas
sociedades em diferentes níveis, os quais podem entrar em contradição e con­
dito, Na ex-Iugoslávia, por exemplo, simplesmente inexistia acordo coletivo
algum, quando da crise recente, não somente acerca dos elementos históricos
mesmos, como das lições e juízos a serem deles extraídos: diferentes constru­
ções da memória individual, comum e coletiva se chocavam sem remédio e
ciam de vários modos manipuladas pelos poderes que se manifestavajn du­
rante a guerra, impossibilitando tanto qualquer paz social quanto a estabilida­
de dos regimes políticos. Ein muitos casos, porém, impõe-se institucional-
menle uma determinada versão - pública, dominante, oficial - da memória
coletiva, a qual pode, então, servir de base à hegemonia de determinado gru­
po ira construção da nação ©do regime político. Assim, póc exemplo, á-recor­
dação “oficial” que se impôs na Espanha, após a morte de Franco, acerca da
Guerra Civil, no momento de repensar as estruturas do país, foi marcada por
noções valorativas como “nuncá.mais algo assim” e “todos tivemos culpa”, o
que conduziu a uma seleção (por vezes mesmo a uma'invenção) dos elemcn-

12 LEQUIN,Yves; METTRAL, Jean, Aja recherche d’une mémoire colléctive: les mé-
falluvgistes retrailés dc Givors. Aniuiks, E.S.G. 35, p. 149-163,1980. ■;
13 NORA, Pierre (Org.),Les lietix de mémoire. Paris: Gallimard, 1.984.4 v. • •

18
tos considerados pertinentes naquilo a ser recordado, e permitiu transações e
renúncias parciais .de parte dos diversos grupos político-sociais envolvidos,
cujos membros, conforme as suas-idades, tinham ou não experiência direta da
Guerra Civil: mas os grupos sociais e políticos que.se afrontavam e eventual--
mente negociavam existiam com continuidade, em forma basicamente reco-
nliecível, desde a década de 1930,“
Talvez convenha dizer que a.preocupação com o tema. da memória co­
letiva não nasceu com a tendência pós-moderna. Maurice Halbwachs (1877-
1945),sociólogo.francês, discípulo dissidente de Henri Bergson e aluno fiel de
Émiic Durkhcim, do quai-adotou o conceito de consciência coletiva, foi'talvez
o,primeiro pesquisador no âmbito .das ciências sociais a preocupar-se central -
mehfe com a dimensão coletiva da memória. Distinguiu dois tipos dc memó-;
ria: a “autobiográfica”, pessoal c vivida mas necessariamente influída pelo im­
pacto do social, setnpre filtrada pelo presente; e a “memória histórica”, memó­
ria emprestada pela coletividade ao indivíduo sobre coisas e processos do pas­
sa cío que não vivenciou pessoalmentêS Tendo sido Halbwachs ura dos editores
(iosAnnalcsnú primeira fase da re vista, suas noções acerca da '‘memória his­
tórica” tiveram um impacto considerável sobre Maio tííoch, como se pode no­
tar em certos_escritos deste último, por exemplo 7,a sociétó féodale** Entretan­
to, creio ser evidente ter ocorrido .uma concentração muito maior, nestas últi­
mas décadas, de estudos que parlam dessa noção.
. As reflexões historiográficas e outras que trataram de. analisar o uso do
conceito çlc memória cm História, e em outras ciências sociais cstabclecçran)
que existem modalidades diversas desse uso, perceptíveis nos estudos resultan­
tes. Há tendências parciais, às vezes um tanto laterais mas, em certos casos, per­
tinentes, que se ocupam de coisas como a importância e os critérios do esque­

.14. AGUlbAR PERNÁNDBZ, Paloma. Aproximaciones teóricas v analíticas al concep-


' to de memória histórica: breves reflexiones sobre Ia memória histórica de la Guer-
s- .ra Civil Espaftola (1936-1939). In: BARRO,S, Carlos'(Org.). Hijforifl a delitlle. San­
tiago de Compostela: Historia a Debate, 1993. p. 129-142.‘1Í: Retorno dei sujeto.
•15 As preocupações.de Blocii co.ni o conceito de memória coletiva foram analisadas
- - peitjnent emente por: KIASTROGRECORÍ, Massimo. Històdographie et traditioii
histotique des sóuvenirs: histoirc “sderitifique” des étudçs historiques et histoire
. “globaie” du rapport ãvec le passé. In: BARROS, Carlos (Org.). Historia a debate.'
Santiago de Compostela: Historia a Debate, 1995. p. 269-278.1: Rasado y fuluro.

/ 19
cimento na construção da memória coletiva, os processos de aprendizagem ou
aqueles ligados à cultura política, ou então as cerimônias e rituais de recordação
pública do passado. Mas distingüem-se, principàlmente, dois grandes grupos de.
aniilises da memória social, cujos autores foram chamados de “pre sen lis tas” e
'‘conservadores” por Georgc Schwartz,'6se bem qúe, como veremos, a diferença
entre eles talve2 seja só de grau. Os presentistas, cotino Trevof funimis, Eric
Hobsbavvm, John Nerone e Oávid LowenthaJj subliniiam a capacidade que tem
o presente para manipular o passado, impondo diferentes versões sucessivas
acerca do mesmo segundo mudem as circunstâncias do momento que se estiver
vivendo,161718 Já os. conservadores, como: Míchael Schudson, o próprio Barry
Schvvartz, Robert Jervis e Nancy Bermço, insistem nos limites que se impõem à
manipulação do passado, e também no peso desse passado sobre o processo de
tomada de decisão dós líderes políticos no presente. A tentativa de manipular a
•tecordação'exisle, n u s o passado-está dotado de firme consistência e'resiste às
manobras de distorsão e livre reconstrução.’8A origem da divergência entre pre-
seutistas e conservadores, bem como do fato de que suas diferenças sejam de
grau, è o cárátèr dialético da relação preserite/passado: o presente depende em
nuiilo do pa’ssado, mas a retenção e reconstrução do passado se dão no presen­
te e nele estão ancoradas, pelo qual, entre outras consequências, existirão .sem­
pre, simultaneamente,
• • V*
“memórias herdadas” e “memórias inventadas”. • -

16 SCHWARTZ, Barry. The social conlext of comniemoration: a study in collectíve


memory. Social Forces, 61, p, 374-402, 1982; Social changc and collçctive me-
mory: ijiedemocnUizatión of Georgc Washington. American SaciologiCal Review, '
56, p. 221-236, 1991. .
17 ÜJMMIS, Trevor. Listenins to histor}". í.omlon: Hutchíiison, 1987; HOBSBAWM,
Eric. The invention of iraditwn.'Cambridge: Cambridge Un.iversity Press, 1987; NE­
RONE, John, Protcssional hislory and social inemory.■Comniunication, 11, p 89-104,
1989; LOWKNTHAL, David. The past is a foreign country. Cambridge: Cambridge
University Press, 1985; The limeiess past: some Anglo-American historical precom
ceptions, Journal^ o f American Historyi 75, p. 1.263-1.280,1989. ‘
18 SCHUDSON, Michael. The present in the past versus tire paxt.in the present. Com-
muniauioit, 11, p. 105013,1989; Walcryate iri American inemory; fjowwe remcm-
ber, folget and reconstrua the past. New York: Basic Books, 1992; JERVIS, Robert.
Pcrceptioit and mispercepiion in internalional poihics. Princeton; Prihcèton Univer- v
sity Press, 1976; BERMEO, Naney. Democracy aricj the lessons of dictatorship.
Conípanitive Politics, p. 273-291, 1992. . V. ç

20

v
EVOLUÇÃO SOCIAL, EVOLÜCIONÍSMO:
CONCEITOS FALIDOS? ' • ' V , V ' ; Ç\
Há enlre os historiadores pós-modernos - ou, 'por vezes, entre os que
fazem um balanço das tendências atualmente vigentes na disciplina histórica,
mesmo quando não sejam pós-modernos ou o sejam só m odeia damente -
uma forte convicção de que nossa percepção temporal tenha ínudado, defini-'
tivamente segundo alguns. Devido ao abandono da crença num tempo ó rie n -.
taci.o e na noção de progresso, o tempo leria deixado de Ser um princípio de
inteligibilidade, cònFisto dahdo-se a crise da História .com sentido, evolutiva.
Vejamos alguns ex.emplos.
*- François Dosse escreveu ter ocorrido “o abandono de toda dialética en­
tre passado/presente e futuro. A história não é mais considerada como o lugar
de esclarccirhento da época contemporânea”.1'1 No. II Gpgresso Internacional
“História a Debate” reunido em julho de 1999 em Santiago' de Compostela,
ouvi-o mesmo.dizer que a Inexistência de uma orientação do tempo histórico
é um “truísmp” (curiosa expressão na boca de um “persjpeclivistà”!):
/ Gomentando as tendências recentes da História, àfirmou por sua voz
Georglggers: ' : i

Juntamente com o conceito do tempo perde-se também a confiança no' pro-


, gressò e, com.ela, a fé na primazia da cultura ocidental moderna na História. Não
se trata somente de que já não exista um tempo único qiie possa servir como fio
condutor de uma narração; também inexiste .qualquer ponto de referência em tor­
no do qual tal narração possa articular. sç.:o : f

É interessante notar que, pàra lggers, isto já havia acontecido como con­
sequência do tipo de História praticado no auge dos Annalcs-, è certo, porém,
que ele não estabelece fases ao abordar tal escola ou tendência lústoriográfica.1920

19 DOSSE, François. A história cm.migaihàs: dos Annalcs à nova história. Trad. Dulce
A.SilVaRamoS.São Paulo: Ensaio, 1992.p .250. . >
20 IGGERS, Ccorge G. La ciência histórica eti clshJoXXt Las téndènciàs actualcs. Trad.
de Clemens Bieg. Barcelona; Labor, 1995. p. 54,
Como ullimo exemplo, ouçamos o que tem a dizer Gertrude Himmel-
(arl), desta vez sobre a noção de progresso, associada desde o lluminismo à de
evolução social: '

A idéia de Progresso - Progresso com.P maiiisçulo - saiu de moda há já bas­


tante tempo. E por boas razões, poder-ase-ia pensar. As experiências deste século [o
século XX - C.F.C.] dificilmente nos dispõem a manifestar complacência para com
o presente, menos ainda para com o futuro. Uma visão pessimista, até mesmo apo­
calíptica, afeta mais naturaltnenle uma geração que aprendeu dolorosamente que
. as mais impressionantes descobertas científicas .podem ser usadas da.maneira mais
grotescarquc uma política social generosa pode criar tantos problemas qUanto os
que soluciona; que até mesmo os mais benignos governos sucumbem ao peso mor­
to da burocracia, enquanto os menos benignos mostram-se criativos na invenção
de novos e horrendos modos de tirania; que as,paixões religiosas se exacerbam
num mundo cresçentcmente. sçculapas-paixões nacionais, num mundo fatabnen-
le interdependente; que os países mais avançadosc poderosos podem tornar-se ré-
1 féns de um bando de terroristas''primitivos; que nossos mais amados princípios -
liberdade, igualdade, fraternidade, justiça, mesmo paz - foram pervertidos e dégra-
• dados de maneiras nem spnliadas por nossos antepassddos. A cadá passo somos
confrontados por promessas quebradas, esperanças fenecidas, dilemas itreconciliá-
veis, boas intenções que se desviaram, escolhas entre,males, um mundo à beira do
desastre - tudo isto quê, já virou clichê mas é verdadeiro demais e parece desmen-
. tir a idéia-de progresso.31
- * "

Se passarmos dos historiadores paia os arqueólogos, também podere­


mos encontrar, como é óbvio, posições decididamente anti-çvohjdo.nistas.
Michael Shanics e Christopher Tilley, gimts pós-modernos no ambiente ar­
queológico, consideram que
A »
(...) todas as formas de evólucionismo cultural tratam o tempo, do passado como
algo homogêneo e abstrato que permite a comparação d.c diferentes sociedades,
pregando etiquetas nus sociedades de acordo com uma seqüência tipológica pre­
viamente definida..Isto não é um processo neutro: c a politizaçáo do tempo.3321

21 HIMMEI.FARB, Gertrudo. The New Histor)’ and the oldiCriticai éssnys and reap-
praisals. Cambridge, MA: Harvard Univérsity Press, 1987. p, 155.'
12 SHANKS, Michael; TILI.EY, Christopher. Rc-conslructing arc!íaeüh>gy: theory
and practice. 2lrf, ed. London: Routledge, 1992. p, 54; Archaeology as soçia-poli-
tical action in the presenl. ín: PINSKV, Valer Íe;WYLIF„ Alison (Org.). Criticai
tmditions in coitteniporary archaeology. AlbuqtierquerUniversity of New México
Press, 1993. p. 104-116. i,

t ■■• • • • . f '
. .. J
22 . v, * •
. X ' • . ’■ • : ’ ; '
Os .autores da passagem acima, curiosamente, não pareceín perceber,
que sua própria visão do tempo seja igualmèlile uma politizaçáo do mesmo,
embora com signo diferente,,. Seja como for, há uma importante diferença a
estabelecer entre qs debates a respeito em Arqueologia cem História: Shanks
e Tilley, bem como outros arqueólogos põs-modernos, hão estão, em textos,
como o que se citou, passando um atestado de óbito à idéia de evolução ou às
teorias evoluciómslas, como certos historiadores às vezes dão a impressão de
fazer rio que dizem ou escrevemrestão é engajados num combate ativo contra
o evolucionismo. Isto porque, nos estudos arqueológicos, pré-históricos, an­
tropológicos e de certos setores da História Antiga, os congressos internacio­
nais ,é as antologias, teóricas continuam contendo Seções acerca da evolução
cultural ou social,2'a qual'vem suscitando publicações muito numerosas nes­
ta última década.21 Na verdade, seria mais exato dizer que tais publicações
nutica.se interromperam. O evolucionismo contemporâneo, nestas discipli­
nas, manifesta a presença de algumas grandes correntes; sendo a mais recente
a que tenta'estabelecer uma ponte éntve o biológico e o social, de um niodo
completanientç diferente do dánvinismp social dó século 19.“ *•

23 ■Por exemplo: PREUCEL, Roberl; HODDER, Ian (Org.)'. Coutmporury archaco


. logy in theory. Cambridge, MA: Blackwell, .1996. Livro ein que a seçaqsbbre^Evo-
liiç3o social e cultural” integrada por uma introdução e quatro capítulos, ocupa
• " as p; 203-296. ' ‘
' 24 Alguns exemplos: MAISELS, 'Charles Kcith. The emergená: of civUizatíoii: From
huntingandgalheringto agriculture,cities,and theslaleiri the Nenr Ea.sk I.ondon:
. Rouliedge, 199.0; GOLDSMITH,T .H.T/ie biobgicül rootsóflniiluin imtura Forging
' links bctween évoltilibn and béíiaviour. Oxford: Oxford University Press, 1991;'
■Ó i.TEBERMAN, P. Uniqiicly hiiiiian: The evôlption of speech, thought, and selfless
behavior. Camlúidge, MA: Harvard Unívcrsilg Press, .1991; COLL1NS, Desmond.
Himian histoty: An evolutionary vievv. A preliminaryoutline of an investigalion
. : into cultural cvolutioii, Bntnpton: Clayhanger Books, 1991; ÇOWAN, W.; WAT-
SON P. J. {Qrç,.).The origins o f tigriciiluire: An inlernational perspective. Washing­
ton: Smithsonian Instituíion Press, 1992; TRIGGER, Bruce G. Eiwly civilizatiotis:
Ancient Egypt in contrasf. Cairo;.'The American University in Cairo Press, 1993;
. HAGER, L. (Org,). Womeii iii Ininian cvolutioii. London; Roulledgè, 1997; DUN-,
A BAR, Georgc et aí; (Org.). Tlicevolution pfcuhtire. New Brunswick, NJ: Rutgers
' University Press, 1999. .' . ...
. ,,25’ Ver'DIAMOND, Jaréd, The third.chimpattíee} The evoliuion and future of the hu-
man animal. New York: Harpcr Collins, 1992.

23
Não é minha intenção, aqui, abordar cm detalhe uma Corrente especí­
fica dos estudos de Pré-história, Arqueologia, Antropologia e História Antiga. >
Parece lógico, no entanto, qüe a temporalidade das sociedades humanas não
pode scr orientada nos casos abordados nesses estudos e, simultaneamente, ’
carecer de orientação nos outros casos! A conclusão é dara, então: parafra­
seando Mark Iwain ao referir-sé a notícias jornalísticas de que tomara conhe­
cimento acerca de seu próprio falecimento, podemos dizer que são muito exa­
geradas as notíçias sobre a morte' do evolucionistno como teoria —e portanto,
sobre o abandono da noção de .um tempo social e :cultural direcionados.
Deve-se, então, perguntar: o quê pode explicar a discrepância entre disciplinas
nas quais.o evòluçionismo é corrente viva, embora competindo com outras, e
aqueles setores da História que o ignoram comp le lamente e até creem que de­
sapareceu do mapa? , -■
Uma pista valiosa nos é fornecida por Peter Burke:

. P*1'* minha opinião; os nóvos histoi íadorés —de Edward Thompson a Rogcr
Ghai.tiei - tiveram bastante sucesso em.revelar os aspectos inadequados das expli- '
cações materialistas e deterministas tradicionais do comportamento individual c
coletivo na curta duração e env mostrar que, tanto no dia-a-dia jptanto em mo­
mentos de crise, a cultura é que conta. No entanto, pouco fizeram no sentido de de­
safiai a importância dos fatores materiais, do meio ambiente físico e de seus recur­
sos na longa duração. Ainda parece útil achar que tais tãtores estabelecem o tema,
os problemas aos quais os indivíduos, os grupos e, falando metaforicamente, as cul­
turas procuram,adaptar-se e reagirA

Bm outras palavras, a escala de observação é essencial para definir o


• que se percebe e o que se deixa de perceber. Ou, dizendo-o de outro modo: a
escala de observação, acompanhada de um dado ângulo ou perspectiva, nios-
tta ou oculta determinadas coisas. Segundo Giovanni Lcvi, uo princípio unifi-
eador de toda pesquisa mícro-histórica é a crença de que a observação micros- -
cópica revelará fatos previaménte não observados” Isto se taz segundo uma
“inversão de perspectiva" relativamente às formas anteriores de fazer História,
consistindo em que os micro-historiadores •:

i ■ . ■.
26 BURKfi, Peter. Overture: the New History, its past and its fiiUire. In: BLTRKK, Peter. 1
(Úrg.). Nwperspectives cm historiail wriliii^ Cambridge: Politv; Oxford: Blackwdl,
1991,p. 18. ‘
I ■' . . ' ‘ ' ' - ;■ ' ■ . • ' j
n
(...) sc coucontrai smi nas contradições dos sistemas normativos c, por conseguinte,
na fragmenlaçilo, nas contradições e na pluralidade de pontos de vista que tomam
todos os sistemaS íluidos e abertos/7 .

A A rqueologia-e a Pré-história trabalham com recortes tem poráis e es­


paciais necesariam ente diferentes daqueles que são habituais entre os.historia-;,,
dores, com a exceção parcial dos h istoriadores d a'alta Antiguidade; isto é as-
. sim tan to no relativo à Paleontologia H um ana-(que lida tam bém , sem dúvida,
com um “tem po o rien tad o ”, em função das teorias da evolução biológica)
q u an to n o "que di'/, respeito: à Pré-história estudada çulturalm enlc, jâ que a
natureza dos dados clisponíveis p ara o arqueólogo torna quase sem pre im pôs- .
sível fo rm u lar questões,fora de um a escala tem poral m uito am pla, além de só
■raram en te perm itir-a percepção de individualidades (m enos ainda a identifi­
cação de indivíduos). O que quero dizer é que a perspectiva tem poral e espa­
cial arqueológica e pré-histórica é do tip ò m acro. Esta é um a das raxões pelas .
qúais, em tais disciplinas, n ão é fácil livrar-se do conceito de evolução —ou, no J
• m ín im o , deixar d éd eb atô -lo . ’!•'
Pode-se dizer, então, tjue a preferência de m uitos historiãdorcs pós-
; m od ern o s pela cu rta duraçãó, pelos pequenos grupos o u indivíduos e p o r te­
m áticas culturais stríeto setisil tem -lhes perm itido; sim plesm ente, escam otear
’• ' . as discussões em to rn o do evolucibnism o e. viver na doce ilusão dc que ele es-
.taria m o rto . No caso da Pré-história e de certos sejores da H istória, no entan-
• to, neste início do século 21 tanto quanto.antes, continua sendo possível afir-
■i " ■’ ■ m ar tran q ü ilam en le coisas com o estás: a sociedade baseada na agricultura não
pode surgir pela primeira vez n o .m u n d o (ou surgir indcpendentem enfe) an-
tes da sociedade db caçadores-coletores; a sociedade urbana, ao surgir pela
j ■' p rim eira véz n ó m u n d o (ou ao surgir in d ependentem enle), não podia precê-
; „der o conhecim ento da agricultura; a sociedade industrial, ao apaiecer histo-

27 LEVI, Giovanni. On inicrohistory, In: BURKP, Peter. (Org.). New perspectives on


histórica! wriíhtg. Cambridge: Polity; Oxford: Blackwell, 1991. p. 93-113. (as passa­
gens reproduzidas no meu texto estão nas p. 97 e 107).
'28 COPPENS, Yves, Lc singe, 1'Afnqite et 1'hómine. Paris: Papard, 1983. p. 15-16.,'.
29 LAMlNG-EMPERAi RE, Amietté. La arqueologia préhistóricu. Trad. Oriol Dürán,
Barcelona: Martínez Rota, 1968. p." 129-149. ; ■

V ’ : ' ' . . . . ,-25


rica mente pela primeira vez neste planeta, não pôde fazê-lò antes de existirem
agricultura e cidades. Seria preciso perguntar.sé coisas assim, que nunca fo-
ntm icfutadas, carecem de importância para os historiadores. Se são relevan­
tes mas sua.explicação evolucionista está errada, seria necessário apontar èx-
plicações.alternativas (o;que os arqueólogos, antropólogos e historiadores da
Antiguidade anti-evolucionistas não se privam cie fazer). Escamotear simples­
mente a questão, no entanto, parece atitude de avestruz ou resultado de um
grau,inaceitável de ignorância (às vezes, de má-fé).
Existem, indubitavelmente, modalidades de evoíucionismo absoluta -
menle refutadas e que, portanto, séria ilegítimo tentar ressuscitar nà atuali­
dade. Há já décadas, por exemplo, à arqueóloga Annette Laming-Emperaiíe
escrevèu: -
\ '
[O] não paralelismo na evolução das diferentes características que definem a
htimanidade num momento.qualquer de sua evolução torna sumãmente difícil a
definição das. g<andes etapas da humanidade” Estas podem ser determinadas com
relativa facilidade,apesar d.e superposições e irrègulariÔades, sc nos.centrarmos no
estudo de uma única característica, cui de um pequeno grupo de características as­
sociadas, Por exemplo, podemos elaborar um quadro mais ou menos' coerente da
história que vai do antropoide ao homem ou da vida dos caçadores nômadesà dos
primeiros agricultores, a següir-à das primeiras grandes concentrações urbanas.-’11

Nenhuma das obras escritas recentemente numa perspectiva evolucio*


nista, entretanto, pretende voltar as velhasexplicações que deduzem "sUpcres-
liuluras de infra-estruturas , nem restaurar dicolomias como a-que estabe­
lecia Lucien Lévy-Bnihl (1857-1939.) entre'‘mentalidade primitiva” (pré-lógi-
ca) c mentalidade civilizada (lógica), aspecto já tão bem criticado por Çlau-
de Lcvi-Strauss.3031 • '

30 LAM1NG-ÈMPERAIKE, Annette. La arqueologia prehisiórica. Trad. Oriol Durán.


Barcelona: MartínezRoca, 1968.p. 153.-
31 CUCHE, Denys. La riotlon de cullure dahs les Sciences sociaks. Paris: Và Dçcouverte ■-
1996. p. 26-29. . . ‘

26
MAIS UM “ITM DA HISTÓRIA”.. ;
Os conservadores de todos os matizes e épocas frequentemente procla-
niarãm, em períodos, que lhes fossem favoráveis, que o futuro não passaria de ,
uma continuação do presente. Isto desde os faraós, cujos decretos eiairi for­
mulados e cujos templos e tumbas eram construídos para durar “para sempre,
pela eternidade” ou “por milhões de anos” No próprio século 20, houve outro
"fim da História” famoso proclamado, tios Estados Unidos, bem anterior m eo- ,.
te ao de Fukuyama. WalteiyW. Rostow, no bojo da expansão econômica poste­
rior à Segunda Ç.uerra Mundial, proclamou a inelulabilidade'de que o mun­
do todo desembocasse no capitalismo avançado dd tipo norte-americano, ao
mêsmo tempo que várias teorias econômicas de então afirmavam o fim das
crises cíclicas, num capitalismo que avançaria doravante sem solavancos. Am­
bas as.profecias foram desmentidas dramaticamente pelos choques do petró­
leo que, na década de 1970,'marcaram o término da tase expansiva do pós-
guerra e iiiaugurarain a fase depressiva de longa duração em que ainda per­
manecemos. O pós-modernismo, mais próximo no tempo deste nosso.ponto
de passagefn entre séculos, também suscitou teorias do “fim da História ’ Dois
anos antes do notório artigo de.Francis Fukuyama >Noibert Lcchner, inteno-
gando a "cultura pós-moderna” num contexto específico, latino-americano e .
sobretudo chileno, interessado no que o pós-modernismo tivesse a conüibuit
ão processo de tentar construir uma democracia, constatou que sucessivas
mudanças ocorridas nas úllimas décadas nos países iatino-ámericanos. não
conseguiram consolidar projeto algum, em decorrência do qual, >- . .

Vivemos até hoje e de modo cada vez mais dramático o tempo como uma se -.
' qiíência- de acontecimentos, de conjunturas, que não conseguem cristalizai-se
numa “duração”, isto é, numa periodização estruturada de passado, presente, íulu-
' ■ ro. Vivemos um presente continuo. (...) Mesmo países dotados dc uma ordem social
relativamente estável enfrentam uma ausência de futuro. Há projeções mas nao há
projeto. Quanto ao presente, réstringe-se a uma repetição recorrente; o futuro, por
. . sua vez, restringe-se a um “além” (...). O sentimento dc onipotência que reinava nos •
anos'60 foi substituído por- um sentimento de impotência. (...) Que esta imagem
de iniprodutividade surja da.cultura pós-moderna não deixa de set um paradoxo,
justamente a eultuní.que desmonta ó determinismo e sê abre radiçalménte à expio- *
raçã<> do campo do possível desemboca numa visão do.axistenle como necessário.3?

32 LECHNER, Norbert, El presente contínuo. Nexos. México, 1.18,p. 45-52,oet. 1987


(as passagens .citadas são das p. 51-52). .
I assemos, entretanto, ao proprío Francis Eukuyania, o último propo­
nente de um fim da História” a surgir com grande embora efêmera proemi-
nencia no século 20. Seguiremos, ao falar dó autor e da corrente neoconservã-
dora a que pertence, as excelentes análises de,Israel Sanmartín, da Universida­
de de Santiago de Composlefa. :
Fukuyama integra uin grupo de intelectuais que surgiu élaramente só
ua década de 1970, o qual foi balizado pelo liberal Michqel Harrington com a
designação os neoconservadores” (em inglês cómumenté resumida cómo
ncocons). Trata-se de uma corrente que não deriva de alguma das tendências
ti adicionais do conservadorismo estadunidense, mas, sim, constituiu-se inle-
gi.mdo pessoas de horizontes druito diferentes: bom número de judeus mi-
gt a dos da Europa Central que anterior mente haviam tido posições de es que r-
da, alguns anarquistas, sobretudo numerosos liberais que, diante do que vi­
ram como a ingoverriabilidade” dos Estados Unidos na década de‘1970, tq-
maram posição a respeito denunciando como problemas a impotência do Es­
tado para continuar a satisfazer as expectativas “exageradas” do cidadão mé - 1
dio, a crise do mesmo Estado em função, em especial, das políticas de bem-e$-
lar e seguridade social desenvolvidas e ampliadas.desde a era hoosevelt; por
fim a crise moral e espiritual do país manifestada no abandono dos. valores
11adicionais e numa educação corrompida. Além de.um forte anticomunismo,
o que unia os neoconservadores - em outros aspectos bastante variados ein
suas crenças e posições - era, por um lado, a preconização de uma receita. neo-
libeial paia os Estados Unidos, com a redução do Estado (mediante privatiza­
ções) e cortes nas despesas sociais, por outro lado, a tomada de posição con­
tra o que consideravam um exagero dos ideais democrá ticos - à luz, por exem­
plo; de sua indignação diante do que chamavam de “excessos” cometidos nos
pintes tos norte-americarios contra a guerra do Vietnã —e pretenderem uma
renovação espiritual e moral da pução mediante uma.retomada da tradição e
da hierarquia. . \
Entre os neoconservadores màís influentes estavam, o fdósófo político
beo Strauss, Allaii Bloom, Seyniqur Martin Lippset (conhecido cientista so-
ciai), Daniel Bell - que prenunciou algumas das teses de Fukuyama ao provo­
car famoso debate sobre o “fim das ideologias” nas décadas de 1960 e 197Q
h ving Krislol e, cpnsiderando-se aqueles que ocuparam cargos políticos im-

28-
- portardes, Zbigtjicvv Brezinsky c Jane Kirkpatrick. Diversas revistas terviram
,s de fórum à difusão das teses neoconservadoras (entre outras: Commentary,
Encounter, National Review).w
Francis Fukuyama, um estadunidense descendente de japoneses, estu­
dou em Yalc, na Sorbomie e em Harvard, onde se doutorou em Ciência Polí­
tica. Pertenceu ao Departamento de Estado dos Estados Unidos desde 1981 até,
1990, sendo então especialista sucessivamente no Oriente Médio e na União
Soviética; também trabalhou na Rand Corporation, instituição que riiantém
• fortes laços com o establishment político norte-americano. É atualmente pro­
fessor de Política Pública na Mason University (Fairfax, Virgínia). ■
Os argumentos do autor ora analisado ficam.mais compreensíveis se se
considerar em conjunto os diversos escritos em que os expôs, além daqueles
em que respondeu aos.seUs cnticpsd1Antes dc sintetizai suas idéias, entietan
' to, talvez convenha refletir $obre‘as razões de ter sido a popularidade.de Fului-
yama c de sua versão do “fim da História” (primeiro com, depois sem ponto
de interrogação), como na verdade foi, um fogo de palha. Os motivos princi­
pais parecem,ser três. Em primeiro lugar, todo o ruído feito cm toino do pn-^
meiro artigo por ele publicado sobre o tema foi algo claramente montado pe­
los meios de comunicação de massa, nos Estados Unidos e talvez mais ainda
■na Europa, sendo tal armação perceptível, em grau menor, mesmo cm países
como os da América Latina. Em segundo lugar,'a forma em que organizou
seus argumentos teve o dom de desagradar a gregos e troianos, à. esquerda e à
direita por igual. Por último, ciiquanto 0 artigo de 1989 e (já.bem menos) o
, livro de 1992 se beneficiaram còm o grande impulso e a euforia ganhos pelo
conservadorismo em geral, em suas diferentes tendêpcias, em função da con-;
juntura de 1989-1991 - queda do Muro de Berlim, desagregação da'União So-
“ viética mantendo-se ainda um clima bastante à direita até 1995 nos países

33 Para uma excelente síntese do ambiente intelectuiil neoconservador, ver SANMAR-


TÍN, Israel. Quíén es Francis Fukuyama? Cuaderrw de Estúdios Gafícgos, Santiago
,deCoiiipostcla, 46, tásc.l 11, p .l 93-206, 1999. , _
.34 PUKUYAMÀ, Francis. .The end of History?" Thi National Interest, 16, p. 3-18,
v A Sumnier 1989;'Respuesta á mis críticos. 67 PuB, Madrid.p. 10-11,24 sepj. 1989; The
." end of History andjhe last watt. New York: The Free Press, 1992; Rcflectjons on thc
• end of History, five years lutervHijfoq’and Thcory, 34, p. 27-43,1995; TritsP. The so*.
' 1- ciaívirtues and lhe création of prosperity.NéwYork:The Free Press, 19.95,

' •V ’ *' ' • / .


do íinligameiite chamado Primeiro Mundo, a'situação mudou muito, posiè-.
rioimenle, em vários daqueles países (embora ainda não, ai de nós, em outros,:
periféricos, como o Brasil oü a Argentina, ainda soba férula de políticas neo-
liberais e pró-FMI): 1 ’ • r . ,
Se o presente continuo’ fora percebido por Léchner como algo assus-
ladoi e negativo, o fim da.História cora H maiusculo” proclamado por Fuku- >
)sima er;i triunfalista; coiii o sucessivo fracasso do fascismo e do comunismo,
o Iriunfo da democracia liberal constitui o “ponto final da evoluçào ideológi­
ca da humanidade”. O futuro trará novos acontecimentos e conflitos —uma
!"Stórm com h minúsculo - mas, não; novas ideologias: a História com H
maiusculo, isto é, uma História liegeliana da ideologia acerca do governo po­
lítico e da oiganização social, estaria concluída, em função do qual Fukuyama
SC refere a um período “pós-histórico”. - ^ • ; ' - ; •
Não se tratava, então, de que proclamasse o fim da História-disciplina,
como foi entendido erroneamente por alguns de seus críticos. A respeito dos
historiadores pr ofissionais, Fukuyama escreveu o seguinte:

Ninguém tem a obrigação de usara definição hegeliaua da História. Ninguém,


entretanto, possui direitos exclusivos sobre a palavra, mènps ainda os historiadores
profissionais, os quais fVcqüenleniente falam como se fossem donos do mundo.
Um(a) historiador(a) profissional pode dizer-nos algo sobre a causalidade iiá his­
tória: ele ou ela não podem dizer-nos, porém, se um acontecimento histórico tbi
bom ou mau ■

Quanto a este argumento, é bom lembrar os numerosos lapsos —expli­


cáveis sobretudo por um forte anticomunismo —do próprio Fukuyruna, que
ao longo de sua redação oscila com desenvoltura entre História e história, não
sendo fiel, poi tanto, à sua afirmação de estar tratando da História com H
•maiusculo, nãò da outra.
Fazendo uma síntese dc suas principais idéias nos diversos escritos e
tentando perceber-lhes uma lógica geral, embora ele também*invoque Kant e '
proceda,a uma espécie de inversão de Nietzschc, o fulcro de suas opiniões pa-
iece sei uma íeinterpretação do Hegcl mais^ovem (p Hegel da Féiiotiieiiologin
ilo espírito) visto.pela lente de um de seus comentaristas contemporâneos de*

35 FUKUYAMA, Francis. Respuesla a mis críticos. El País, Madrld, p; 10-11,2-1 sept.


1980. r - .

30
dirdlíi» Kojève, um filósofo decidido a salvar Hegél clc seus intérpretes marxis­
tas. A expressão mesma, “fim da História”,y d e Kojève, não de Hegelr1''
Os argumentos centrais esgrimidos por Fuicuyama envtavor de sua tese
são dòis, que chamou em 1995 de “empírico” e “teórico' respeclivamente. O ar­
gumento empírico - iniciaímente o chamara dc “interpretação econômica da
1listória” - teria a'ver com as tendências nascidas com a “ciência natural mo­
derna”, encarada'corno mecanismo orientador da História; competência mili­
tar, desenvolvimento econômico e-tecnologia passaram a mudar-lhe o rumo. O
• marxismo o havia afirmado, disto tirando, porém, conclusões errôneas segun-
do Flíkuyama: o capitalismo, não o,comunismo, afirma, é o tipo de organiza­
ção social que permite-ã humanidade produzir e consumir a maior quantida-
■cie possível dé produtos e dc o fazer numa base mais igualitária, A “ciência na­
tural moderna”, entretanto, não conduziu por si mesma à democracia liberal.
Daí a necessidade de um “argumento teórico” baseado em I legei-Kojève, no
sentido de que um segundo motor levaria inclutavehnente ao fim da História:
■a “luta pelo reconhecimento”, noção em cuja defesa também apelava para o
Platão de seu professor AUan Bloom. Neste ponto, o autor fez ainda uma revi­
ravolta no temã hegeliano da luta do senhor e do escravo, tal como foiçrreto-
m adòpor Nietzsche. O que quer demonstrar é ò seguinte: as verdadeiras liber­
dade e criatividade mediante as quais a “luta pelo reconliecimento” dos indiví-
. duos'possa obter realização sò são possíveis na democracia liberal, que por sua
vez depende, para funcionar adequadamente, das oportunidades dadas aos ci-
i.dadãôs para satisfazer sua aspiração ao máximo de reconhecimento (megathy-
v f/jifl). Ná democracia liberal, barrada somente a tirania política como ativida-,
de ònde alguém sobressaia, em todos os outros cam posatividade econômi-
.; ça, exercício da política, práticaUas artes c esportes etc. - dão-se as condições
■para que os indivíduos possam‘sobressair c, assim, obter reconhecimento; ra­
zão pela qual só nesse regime se pode desenvolver um “Estado homogêneo uni-’
versai”. Paça isto, um papel importante cabería também às funções da socieda­
de civil e aõ assoçiácionismo na sociedade contemporânea.'' ^ • , :

; 36 ' a n DÈRSON, Perry. Los fines cie la historia. Barcelona:. Anagrania, 1996. p. 21-22
. (eillção em inglês, 1992). - ' ‘ ■
37 ■A melhor síntèse que conheço é SANtVtÀRTÍN, Israel. Evolución de la teoria dei fin
: de la Historia” de Brands fukuy.ima, Memória y Çíviíizadón, I, p. 233-245,1998.

31
O imnlü em que Fúkuyama organizou sua argumentação desagradou à
direita norte-americana, que percebeu nela laivos de marxismo: uiii dos críti­
cos do autor foi o neoconservador Irving Kristol; Leo Strauss já tomara posi­
ção contra a noção do fim da História” rui versão anterior de Kojève. E, 'ob­
viamente, as idéias de Fukuyama não poderíam atrair a esquerda. 1' -
Existiu um exemplar cspècifieamente francês e assuniidainçnté pós-
moderno (coisa que Fukuyama certamente não c) da tese do “fim da Histó-
i ia , num sentido no fundo bastante similar ao do autor norte-americano —
poi ti atar-se esscncíalmente da proclamação do fim dás ideologias associado *
á vitória da democracia liberal conhecida como “discurso dó consenso”
peiceptivel em três obras que tiveram grande influência e enquadraram o-
auge do pós-modernismo na França, provavelmente atingido nos anos Í984-
1994: falamos de Les lieuxdc mérnoire, coordenado por Pierre Nora ou, mais
exatamente, de algumas dás contribuições,a essa volumosa obra publicada em
19b4; de urri livro coletivo de 1988 sobre “o fim da éxcepcionalidade írancc-
sa ; c de um éscrito de Marc Augé acerca da “Antropologia dos mundos con­
temporâneos , surgido em 1994. No ano seguinte, os movimentos de massa
franceses de novembro e dezembro de 1995 puxaram o tapete de sob os pés
dos proponentes deste fim dá Historia íí lã piirisienne, ‘silcnciando-ós quanto
a esta le$e.is ’ , ’ 1
Os mencionados pensadores franceses conservadores (ou mais éxata-
mente neocqnservadores, embora sem a conotação ideológica especificamente
nortç-americana do termo) acreditaram, naqueles anos, ter-se chegado nu
Fiança a um consenso no sentido de existir uma relação necessária entre eco­
nomia de mercado e democracia representativa: clescíe então, por um lado a di­
ferença entre direita e esquerda teria perdido o sentido, na era da morte.das
ideologias; e, por outro, os franceses, qué uhteriormente reivindicavam o cará-;,
ter universal da Revolução de 1789 e assim “universalizavam” sua própria His­
tória nacional, teriám dado fim a tal excepcionalidade,-comportando-se dora-

38 NORA, pierre (Oi'g.). Les lieux cie inénwirc. Paris: Galli mard, 1984.4 v. (em espe­
cial, as contribuições de: Pierre Nora,-Motia Ozouf e Marcei Gauchet); PURF.T,
François; JUL1.1ARD, Jacques; ROSANVA1.LON, Pierre. ia'Republique du ■centrei Ia
\ fin de 1’exceptiòn française. Paris: Çatmaiin-lévy, 1988; AUGÉ, Marc. Hacia una
antropologia de fos mundos contemporâneos. Trad. Alberto Lnis,B£xio. Barcelona:
Gradiva, 1996. p. 31-59 (a edição original eiri francês é de 1994).

32
vante como os cidadãos das outras democracias desenvolvidas. Esla tese do
consenso, dramaticamente dèsmcniida^nas ruas pelos acontecimentos do final
de 1995 e pelas eleições de 1996, tinha todos os ingredientes, de um “fim da His-
lória” à maneira dé Fukúyamá: algo'grande e importante terminará entre qs
humanos se ainda existiríam naturalmente eventos, trá far-se-ja em todo caso
"de .uma'história menor, não da Historia pautada pelos conflitos ideológicos.
* Como sempre, porém, a própria História enterrou seus pretensos coveiros...

CO N CLU SÃO

As posturas contemporâneas'sobre o tempo que analisei foram por


mim associadas, na sua maioria,, um tanto simplificadâmenté, segundo afii -
mei, a uma visão do inundo atual'e do conhecimento que pode ser chamada,
em linhas gerais, de pós-moderna. Convem, entretanto, esclarecer um pouco
' este ponto. Acha Michael Bentley qüe a qualificação de algo como "pós-mo-
. der.no” funciona melhor num certo contexto de uso do que em outros em que
também é invocado: ;, '

• • “Põs-moderno'’ é um adjetivo maís útil vinculado a um período ou fase parti­


cular do pensamenlo, como sugere Jane Caplan, do que a unia coleção específica dc
ferramentas e cntbques. Corno alunumsta ou 1 romântico , assinala jurna convic-
’ ■ ção que obteve, um domínio, parcial soliré as especulações de uma dada época. E,
como òs outros adjetivos indicados, só provê.uma pista vaga.sobre o que uma pes-
soa específica inserida em-seu âmbito possa crer.K

Isto seria ainda màis verdadeiro'entre historiadores, já que estes difí-


v cilmenfe se declaram põs-modemos e só. limitadanienle assumem o jargão
habitual dessa tendência. E no entanto, quanto a numerosos historiadores
contemporâneos,

(...) ás suas revistas de diversos tipos e, crcscentemente, as suas obras mòoográficas


. começaram a refletir um clima alterado. Um testemunho da oniprêsença desse
meio ambiente é que as visões dc conjunto sobre historiografia, quando, discutem

- 39 BENTLEY, Michael. Modem' historwgraphy. An introduetion. London: Routlcdge,


1999.p. 140. -' . '.. . a.; ‘

33 •
mudanças lias tendências deste período recente, mintas vezes pouco dizem explici­
ta mente sobre o pós-módernismo, enquanto implicam, nas entrelinhas, volumes
■ inteiros sobre o seu impacto." ' ' * , -

Meu caso pessoal é o dc um profissional da História visceral e convic­


tamente racionalista, pór tal razão oposto ao pós-modernismo e, como Inte­
lectual muito influenciado pelo''marxismo, também'ao neocotiservadorismo
norte-americano. Tenlio combatido ativamente tais tendências recentes em '
numerosos escritos, desde' 1988 princípalniente. Entretanto, como Adam
Schaíf, acho que é preciso, ao criticar uirta tendência qualquer que tenha tido
ou continue tendo um impacto considerável, nunca esquecer de buscar o seu
. núcleo racional,1' que sempre existe: se uma postura surge e consegue grande
difusão durante um. período relativamentc longo'é porque, à sua maneira,
proporciona respostas a indagações que estão indubitavelmente presentes nas
sociedades humanas numa época dada.
As considerações sobre o tempo que forain examinadas - com exceção
de duas delas, a que afirma mentirosamente ler desaparecido'o evolucionismo
(e portanto a concepção de uma temporalidade dotada de sentido e orienta- '
ção), assim como a que está contida nas teorias do “fim da História” em suas
versões norte-americana e francesa, comprometidas diretamente demais com •
' um establíshmeinsocial e político reacionário - contêm aspectos valiosos para
a discussão da temporalidade histórica ta.l como tem sido construída ê perce­
bida no mundo atual. Mas com fieqiiéncia exibem igualmente, nos escritos de
alguns dos que as utilizara ou defendem, componentes menos aceitáveis.
Quanto ao “retorno do acontecimento”, para começar, Nora e Augé ex-,
puseram a respeito reflexões que se restringiam ao mundo estritamente con­
temporâneo e a fenômenos específicos Seus,, como o grande impacto dos
meios de comunicação'de maSsa. Acontece, porém, que historiadores houve,
çomo Theodore Zeldin, qúc encararam.a “volti* do acontecimento” como algo
muito mais geral, aplicável por exemplo à história de qualquer época. Enten-

40 BENTLEY, Michaél, Modem hislonogmphyi An mtrochiclion. Loiidon: Routledge;


• 1999.p. 140” ■ ' ' : .
41 SCHAPF, Adam. Ehsciyos sobre Iafilosofia dei letigiiaje. Ti ad. F. Formosa. Barcelona;
Ariel, 1973. p. 13-18. ^ .

;q ‘ . \ " . • . V: . 'V : ‘ •
derami-na, em outras palavras, como um pretexto para a desconstrução dos
grandes objetos e processos históricos e, não, còmo queria Nora, como um ar­
tifício ou instrumento para evidenciar á rele.vânçia de certos fatores a longo-
prazd' mediante o acontecimento contemporâneo tomado como ponto de
partida em tal operação metodológica.11 v
As reflexões sòbre a memória coletiva podem ser muito interessantes,
como vimos. A meu ver são infundadas, entretanto, as tentativas de reduzir a ,
Histôria-cüsciplina, em suas diversas, modalidades, somente a uma dentre as
memórias construídas presentes numa sociedade. A História que fazem os
historiadores é qualitativamente diferente, pelo menos ein muitos casos, tan­
to em seu conteúdo quanto em suas formas de construção, das memórias co­
letivas dominantes, oficiais, que o poder constrói; na verdade, com frequência ■
se ocupa com a desmist.ificação destas últimas. Para Alichael Bentley, a co,isa
fíuia mais sentido invertendo-se a afirmação;

(...) a História é prccisamcntc à não-memória, uma disciplina sistemática que pro­


cura apoiar-se em mecanismos e controles muito diferentes daqueles acionados
pela memória, freqtientemente desmentindo-a.13 ■ , 1

Em relação aos outros dois pontos tratados, minha atitude é bem me­
nos condescendente. Os pós-moderhos têm todo o direito de combater ó con­
ceito de evolução e quaisquer das correntes evolucionistas: mas, não, de fingir
que o evolucionismo,tenlia morrido. Como vimos, de está aliyc and kicking,
como se diz em inglês, fi cômodo ignorá-lo, mas.trata-se dè.uma comodida-
) de preguiçosa, baseada na-ignorância òu na má-fé. Por sua vèz, os fins da His-" »
tó.ria” proclamados sob o signo dos neoliberalismqs e neocoiiscrvadorismos
recentes não passaram de teorias-de intelectuais excessivamente ligados a re*..
gitnés socialmente perversos e politicamente reacionários. Suas teorias triun-

42 Não.foi por acaso que um historiador'dáramente.pós-moúemo em suas inclina­


ções achou necessário, no final de um de seus livros, atacar, mesmo que perfuncto-
riamente, as lemporalidades múltiplas de Fernand Braudel: Cf. CORB1N, Alain. O
território .do vazio; a praia ç 0 imaginário ocidental. Trad, Paulo Neves. Sáo Paulo:
Companhia das Letras, 1989. p. 3Ó1-302. - 1
43 BENTLEY, Michael. Modem ftisloríography: Alt iiiUoduction. London: Routledge,
1999. p. 154-155. ' - ' ..V ■ .. '

35 r
fiilislus tornararii-se já, felizmenteí impossíveis de sustentar, na ^atualidade,
como lratavam dc fazer nos anos que vão cie 1984 a 1994. Qüem ousaria diZef
lioje, a não ser defendendo posições francamente conservadoras, que a òra do
neo liberalismo e do neoconservadorismo instalou-se pelos séculos dos sécu­
los, amém, enterrando as ideologias e a História?

36
■ • ' Capítulo 2

:■■ R epe
CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO •
, « '' *

GENERALIDADES :
■ ' t
É provável que a noção de espaço tenha sido percebida pelos seres hu­
manos antes da de tempo, já o vimos no capítulo anterior deste livro. Sendo
assim, pode parecer assombroso quç, na filosofia ocidental, desde Leibnitz a
noção de tempo tenha tomado a dianteira sobre a de espaço.12Mesmo se a re­
latividade as tórna inseparáveis em princípio, posto que existem como espa-
ço-tempò indissoluvelmente, isto não impediu a,primazia da temporalidade
em m uitàs das elucubrações feitas a partir das teorias relativista e quàntica; as
de Ilya Prigone, por exemplo.* .
Poder-se-ia perguntar se o,que á ciência contemporânea acha a respei­
to do espaço'é pertinente para a sua construção nas ciências sociais e huma­
nas. Minha opinião é que sim, como já disse, sobre o tempo (ver o primeiro
ensaio contido peste volume), mas de piodo indireto e, às vezes, com atraso
considerável em relação às descobertas das ciências naturais.
Em' 1976, o geógrafo francês Yves Lacoste criticou radicalmente o con­
ceito de região tal como fora herdado de Vida! de La Blaché: teríamos, nele,

1 JAMMER» Máx. Conceptos de.espado. TVadi Daniel Cazes. México: Grijalho,j_t970.


p. 23. A edição original em inglês é de 1954, .
2 PRIGOGINE, llya. O nascimento do tempo. Trad. João Gama. Lisboa: Edições 70,
1990 (a edição original em italiano é de 1988); do mesmo autor: Origitis ofeotn-
plexity. In: FAB1AN, A. C. jOrg.}. Origim: The Darwin Collége Içcturcs. Gámbríd-
ge: Cambddge University Press, 1988, p. 69*88. .

37
um “conceito-obstáculo”, pelo fato de privilegiar explicitamente uma das for­
mas possíveis de recortar o espaço c, implicitamente, por dar a impressão cie
c(ue não há outras. A realidade social evocada no espaço - e isto seria ainda
mais verdadeiro rio.mundo contem porâneo- exigiría o reconhecimento de
espacialidades diferenciais, cujas dimensões e significados variam, cujos iimi-
. les se superpõem e sc recortam, de tal modo que, nutn ponto qualquer do pla­
neta, não estaremos no interior de úm mas, sim, de diversos conjuntos espa­
ciais definidos segundo variáveis também diversas. Regiõès unívocas, defini­
das de uma vez para sempre, deveríam dcjxar-se de lado em favor de regiões
operacionais de diferentes tipos, com dimensões e-significados variáveis e
complementares,’ Em minha opinião, a crítica de Lacosté refletia, na geogra­
fia luimana, décadas depois da descoberta de Einstein - cuja exposição da re­
latividade, em duas etapas, fez-se em. 1905-1916 —, o fato de que a teoria rela-
livista terminara por implantar firmemente na culturaxlo século 20 ja noção
de que não há espaço absoluto: existem espaços que só se configuram e po­
dem ser definidos em função de seus conteúdos, específicos.
Ao referir-me, anos atrás, à noção de tempo, mostrei que o marxismo
tinha coisas extremamente interessantes a dizer a respeito. Hoje em dia há, no
Brasil, uma forte tendência a arregalar os olhos quando alguém fala'nisso:
“Como, você ainda presta atenção a tais velharias?!”.Ma.is forte ainda é a no­
ção de que, em especial, toda a reflexão feita na União Soviética em termos do
materialismo dialético e do.materialismo histórico tenha sido simples impo- ,
sição do sistema e, por tal razão, tendeu a desabar-como um castelo de cartas
uma vez desaparecido o poder soviético.34 É verdade que houve pór lá muita
coisa escrita de baixíssimo nível: mas não tudo, como aliás foi hem mostrado,

3 LACOSTF, Yves. Lct gêogmphíc, çnsert, dabonl, à ja ke la guerre. Paris: François


Máspero, 1.9.76, p.49-72,163-174. Tentei tiraras consec]i)êndas dessas idéias para a
história regional em: CARDOSO, Ciro Flamatipn, Agricultura, escravidão e tiipita-
. lismo. Petrópolis: Vozes, 1979. p. 72-73; CARDOSO, Ciro Fiamarion. Regional his-
.tory. Bibiiotheca Americana, Miami: Univérsity- o t Miami at Coral Cables, v. 1 n. 1,
p, J-S, 1982. ' 1
4 Pára a visãqde um historiadora respéito de tais questões, ver: C.UREV1CH, Aaròn
' t, The double responsihility of the historian. In: BÉDARIDA, François (Org.). The
social responsibility ofthe historiam Providencc, Rl: Berghahn Books, 1994. p. 65-83,

38
em livro de 1972, pelo pesquisador nòrte-americano Loren Graham, historia-
dorda Universidade de Columbia, em Nova York,5
No tocante à questão do espãço-tempo, mais pertinentes do que os es­
critos soviéticos foram'as idéias do alemão oriental Robert Havemann, profes­
sor em Leipzig, em conferência de 1963. Completando aobservação de Frie-
dridi Engels de que espaço e tempo não existem em si ntas, sim, unicamente
como “formas de existência da matéria” ~ <>qúe, diga-se de passagem, era mui­
to mais compatível com a futura teoria da relatividade dò que a maioria db que
' sé escrevia a respeito num século19 ainda basicamente newtòniano (ekantia-
noj Havemann propõe considerar também espaço e_tempo como “formas da
percepção” presentes na nqtureza. Primeiro.surgiu a forma perceptiva espacial,
posto que a capacidade de oriéntar-se nas conexões espaciais precede o domí-
. niõ da memória sobre sucessões temporais. A orientação espacial desênvolveu-
se acompanhando o desenvolvimento do órgão que proporciona informações
sobre as relações espaciais, o olho: .mas a elaboração dessas informações supõe
uni modelo específico da realidade, que varia de espécie~a espécie. Com o de­
senvolvimento, posterior na história da yida na Terra, das conexões temporais
e da possibilidadfc de elaborá-las nó cérebro, surgiram modelos èspaciotempo-
raís dá realidade, diferentes aliás de uma espécie a outra.
A finalidade.de Havemann é demonstrar que o modelo espaciotempo-
ral não, constitui mera criação ou construção arbitrária humana, nem uma
fonua a priorí de percepção própria dos humanos, à maneira de Kant: trata-
se de “um êxito pré-social da vida” variável em suas manifestações, entretan­
to, conforme as espécies. O espaço “psicológico” dos humanos não coincide
com o euclidiano; ainda menos com o da física clássica ou da relatividade: ele
é„por exemplo, anisótropo, já que a consciência humana estima diférente-
. menlc as dimensõès horizontais e verticais'(aquelas bem abaixo destas). A ani-
sotropia dessa percepção —ligada, às espccificidádes da história evolutiva da
humanidade - desempenha um papel importante nas representações espa-

5 GRAHAM, Loren R. Ciência y filosofia1*!t la Union Soviética. Trad. Máximo Çajal.


Madricl: SigloXXI de Espafia, 1976 (a edição original em inglês é dc 1972). Um dos
últimos'esforços filosóficos soviéticos no campo da Filosofia da Física foi: OMEL-
YANOVSKY, M. lí. Diakctics iit ntodérn physics. Moscou: Progress Pulilishers, 1979
(a. edição original em russo é dê 1977).

39
ciíiis: arte, arquitetura; e, embora não o mencione Havemann, também no re­
corte analítico do espaço em regiões. Isto abriría interessantes disquisições
acerca das construções espaciais nas ciências sociais e hum anas/
Mais perto de nós em suas preocupações - mas ainda no interior do
marxismo um dos poucos pensadores latino-americanos a manifestar um
interesse especial na construção do espaço èm História foi o argentino Sérgio
Hagú. Sendo um historiador, sua tendência foi subordinar a visão espacial à.
temporal, ao contrário d o :quc fazem òs geógrafos. Para Bagú,' “o espaço é o
tempo organizado como raio.de operações” Os elementos que ágem nos ci-
cios sociais precisam dá distância fisicamente mensurável pára funcionar. O
espaço social é uma realidade relacionai que ocupa um espaço que é possível
medir e delimita concretamente a integração funcional da realidade social; o
espaço social, por sua vez, apóia-se num outro espaço mensurável, o espaço fí­
sico. O espaço social seria \ r

(...) a superfície mensurável em que operam desde uma realidade réíaeiona] míni­
ma (um encontro transitório entre duas pessoas) até outra, máxima (um niacros-
- ■- sistema social internacional, 'como pode ser o mercado contepiporâneo de u nr pro­
duto que abarque gràndes zonas de todos os continentes).’ >•

Um problema tiá construção como.conceito do espaço social é-que


adiamos muitò difícil distinguir a realidade do mundo relacionai e a do m un­
do físico, as pessoas tendem a considerar o social e ó homem como coisas en­
tre as outras coisas do mundo. Para Bagú, sociedade e sistema social global na­
cional nãò coincidem; elechama sociedade tal sistema,: mais a população; mais
os recursos. Os sistemas sociais ârticulaip-so desde algo menor que o sistema
global nacional (este último na verdade integra vários sistemas regionais) até
sistemas sociais internacionais que podem ser muito vastos. O sistema social,
ou espaço social, era qualquer de seús recortes, seria formado pelo entrecru-67

6 HA\ BMANN, Robcrt. Dialccllcu sín dogvun Ciência, natural y concepciún dei
mundo. Trad. Manuel Sacristán. Barcelona: Ariel, 1967. p. 46-61. Bastante seme­
lhante i visSo de Havemann é; LEAKF.Y, Richurd. The origtit of lutmcmkind. New.
York: Harper Collíns, 19?4. p. 101-157,
7 BAGÚ, Scrgio; Tiempo, rcalidcui sociql y úmodnüento, Buenos Aires: Siulo XXI,
1973. p. 114. .
za mento de ciclos - antigos du receri,tes> curtos ou longos - que atuam num
dado espaço fisicamente mensurável: ciclos que, em suas relações mútuas, for-,
mam o sistema.5 . ■
Partindo deste preâmbulo de caráter geral, vou doravante circunscrever
a discussão a dois temas, duas maneiras em que as reflexões contemporâneas
podem incidir sobre as formas de conceituar e delimitar o espaço em Histó- ■'
ria: alguns dos aportes antropológicos; e a incidência das.noções acerca dó que
se costuma chamar de “mundialização” ou “globalização”.

ANTROPOLOGIA DO ESPAÇO , f
'' ’ , *
Existe uma .interessantíssima Antropologia do Espaço que, há já bas­
tante tempo, deveria ter sido acompanhada tão de perto pelos historiadores
quanto se interessaram por outras formas do pensamento antropológico (a
geertziana, por exemplo).. ’ -
Para André Leroi-Gourhan, o fato de ser humano tem mais a vèr com
■ a domesticação do tempo e do espaço do que com a; fabricação de instrumen­
tos. Ele entendia tratar-se de uma domesticação simbólica: o tempo e o espa­
ço vão sendo pfogressiva.mente -- e em modalidades diversas - inseridos no
“dispositivo simbólico de que a liqguagem é o instrumento principal ; ou seja,
dá-se uma apropriação dèles por meio dos símbolos, Domesticar toi empre­
gado com uma intenção precisa: para designar a criação de um espaço e um
tempo controláveis, humanizados, “ha casa” (domus) e partindo da casa.*
Em texto que surgiu como unia reação a Jack. Goody, m aisdo que por
influência de Leroi-Gourhan, Peíer Wilson desenvolve a lese de ter ocorrido,
a partir do Neolítico, uma domesticação (num sentido, também neste caso,
ctimologicamente ligado a donuts) da espécie humana, O que ele quer dizer é
que a primeira verdadeira alteração da paisagem dó mundo, um ponto de in­
flexão cultural marcante, foi “a adoção da arquitetura” a partir do Neolítico,

8 BAGÚ, Sérgio. Tienipp, rcaliçlad social y cutwdmiènlo. Buenos Àires: Siglo XXI,'
1973. p. 113-115.. ' • ■ / =.. •
9 LEROI-GOURHAN, André;Lesesie et la .parok: La mémoire et les rythmcs. Paris: ,
. Albin, Michel, 1975. p. 139-140. -

41
islo é, ;i construção planejada de abrigos permanentes, cm contraste com as
frágeis cabanas dos caçadores-coletorcs."’A partir daí é que se funda de verda-.
de a vida em contunidade e surgem as condições do político, da separação en-
Ire o público e o privado: pois a.casa é abrigo de pessoas, mas também, bar­
reira entre pessoas, bem como entre estas e o;neio ambiente natural. Na casa
e mais em geral na arquitetura configura-se,.outrossim, um modo de comu­
nicação e armazenagem de informação (aqui, sente-se passar uma aragent que<
evoca Clífiord Geertz), bem como uma ferramenta do pensamento.101112
Como se pode notar nestes escritos,' o seu resultado seria uma espécie
de “culluralização” da noção de espaço, por caminhos semiólicos, Como há
mais tempo e com mais frequência vera sendo feito-em relação à noção de
lenipo, as construções espadais apareceríam, neste modo de ver, como algo
qúe varia no tempo e rio espaço, acompanhando as variedades culturais, e se
insere nas formas mais gerais dc comunicação e pensamento/2 • '
Refleti ruio em forma geral- acerca do espaço e sua-categorização no
mundo de hoje, (críamos, segundo.o antr opologo francêsMarc Augé, úma si-
t nação paradoxal. A Terra é vista do espaço comò uma pequena bola colorida:
algo distante, insignificante. Ao mesmo tempo, porém, o nosso m undo'- tor­
nado pequeno pelas comunicações instantâneas e pelos transportes rápidos —
é superabundante em espaço, posto que todo o espaço do planeta está virtual­
mente aberto às pessoas. A Supermodernida.de torna difícil a apreensão do'es­
paço, devido a tal superabundâncià. Nele, os pontos de referência culturais
não deixam de existir; mas o'espaço se complica e se relativiza. Surge a .estra­
nheza, aparece a alteridade, mesmo.porque ainda não conhecemos bem a dia-

10 Os pontos de referenda de Wilson parecem ser caçadores-coletores do tipo.dos


bosquímanos, dos australianos ou dos pigmeus Ba-Mbuti, Mas'alguma dúvida
sobre a generalização nos virá se recordarmos os vastos abrigos - sem dúvida
permanentes e planejadoá- dos caçadores paleolítiços de ma mui es da Ucrânia,
por. exemplo: cf. KLBIN, Richaid G, ke-Agc huntèrs of ükraitie. Chicago: The
Univèrsilpof Chicago Press, 1973.,p. 68-71, 89-109. '
11 WlbSÒN, Peler J. Theâomcslicaiion vfthe iiiiman spedes. New Ilavem. Yalc Univer-
• sity Press, 1988. p. 151-152 sobretudo.
12 Quanto ao tempo encarado assim, ;ver por exemplo: WH1TROW, G. J. O tempo nà
história: concepções do tempo dá pré-história aos nossos dias. Trad. Maria. Luiza X.
de A. Borges, Rio de JaneirofjürgeZahar, 1993.

'12
lctícii globalidade/particularismos, liem a organização espacial específica da
Supermodernidade (domínio eni que, precisamente, Augé oferece suas hipó­
teses principais).
Augé parte de três traços que, segundo acredita, marcam a vivência atual
- superabundância dos eventos no tetupo, superabundância do espaço.c indi- -
vidtjalização das referências - para construir o seu conceito de Superníodemi-
dade - uma noção complexa e contraditória, já que um de seus atributos çon--
siste em, mais do que destruir, acumular componentes uns ao lado’dos outros,
fi hoje habitual falar'das realidades deste fim de século em termos de Pós-mo- .
dernidade. Aug<* considera esta última expressão como o lado negativo da
moeda, uma tentativa de refèrír-se ao que o mundo já não é, Seu conceito de
Supermodernidade seria o lado positivo da moeda; isto é, tentar dizer ò que ele
é. O autor empreende tal tarefa a partir de uma Antropologia do espaço.
O lugar antropológico define-se como a construção ao .mesmo tempo
concreta e simbólica do espaço, servindo de referência para todos aqueles que
são destinados por ésse lugar a uma posição - não importa se central, inter­
mediária ou periférica - no sistema dos valores, da hierarquia, do poder. As-
&rti definido, proporciona uma base de sentido para os que nele vivem; e toi-
na-se fundamento da inteligibilidade para a pessoa de outra cultura interessa­
da em observar c entender aquela comunidade em que o lugar em questão foi
construído.-O lugar antropológico caracteriza-se por garantir simultanea­
mente identidade, relações e história aos membros do grupo cuja cultura o
constituiu. • • • . , ' • .
Lugaré a idéia, parcialmente materializada (porque em parte inscrita
concretjimente no espaço), que os habitantes têm de suais:relações com seu
território, com suas famílias e çom os outros. Tal idèía é variável, em parte, se- ■
gundo aá posições que indivíduos e grupos ocupam tio sistema; e pode ser
transformada em mitologia. Provê e impõe, porém, referências que, quando
desaparecem, são de dificil substituição. !, .. .
. . ; A Modernidade não anulou os lugares assim definidos: concebeu a si
mesma como um presente que supera mas também reivindica e incorpora
um passado, reconcilia-se com ele, integra-o á si. Embora Augé não analise
tal coisa, achamos ser evidente que a própria Modernidade também é cria- ■
. dora de novos .lugares antropológicos, além de integrar a si aqueles que o
passado pré-moderno criara. • v

43
lím contraste com o que foi exposto antes, Auge define.uni não-lugar
como um espaço organizado que não/garanta identidade, relações e história..
As hipóteses centrais de nosso antropólogo acerca da Supermodernida-
dc são duas: ela produz não-lugares; e não integra a si os lugares antropológi­
cos que o passado criou, os quais são especializados, delimita dos," transforma­
dos em “lugares da memória” que funcionam como símbolos dá alteridáde do
passado em relação ao mundo de hojç, não de sua integração ou absorção ao
presente. ■* • ........ - ‘
A distinção entre lugares e não-lugares parte de uma oposição entre lu­
gar e espaço, no sentidq em queAiigé usa tais noções.( diferentemente de como
o faz, por exemplo, Micíiel de Certeau tendo Meríeau-Ponty como base-filo-
sólica), O lugar é, para Auge, antropológico, no sentido de ser estabelecido
mas, também, simbolizado. Com efeito, ele inclui na noção de lugar antropo­
lógico os discursos nele circulantes e a lingüagera que o caracteriza, bem como
os movimentos nele realizados. B o termo “espaço” foi por ele tomado 11a ma­
neira funcional, estereotipada, que achamos em expressões como “conquista
do espaço”, “espaços de Jazer” etc., maneira que designa o espaço sem simbo­
lizá-lo. Este último ponto é alta tu ente duvidoso; acho que seria necessário pre­
cisar: sem simbolizá-lo de um modo que garanta identidade, relações e histó­
ria,.pos Io que não pode deixar de ocorrer alguma simbolização. ParáÀugé, em -
suma, o espaço é uma noção mais abstrata do que o lugar. Esle último, para
poder ser designado, deve ligar-se a algum evento, mito ou história, bem como
a redes dc relações. ; . . ■ ,
Em forma prosaica, generalizada e sistemática, a Supermódernidade,
através da proliferação e da própria aparência dos não-lugares, submete o in­
divíduo e sua consciência a experimentar agudainerüea solidão. Os não-luga-
ics são anônimos e vividos solitariamente. Augé crê que existirá em breve, ou
talvez já' exista agora, a necessidade de uma “Etnologia da solidão”. A Super-
moderuidade dissolve as soliciariçdades; e as tentativas no sentido de restabe­
lecê-las, por. exemplo em nome dá lula pára salvar o meio ãmbiente ameaça­
do de degradação, são de todo ineficazes é insuficiéntes como mecanismo mo~
bílizadorgeral.-,'-,. ' ■ A' 1 , :• ■„
Ao falar dos não-lugares, entenda-se que a expressão designq duas rea­
lidades complementares mas diferentes: útn. espaço formado em relação com
'certos fins (por exemplo transporte, trânsito, comércio, lazer); e as relações
que indivíduos mantém com este espaço.'As duas realidades se superpõem em .
parto; mas mesmo se, ofidalmente, o indivíduo é que viaja, compra ou expe-
v ri menta o lazer, os não-lugares servem de suporte a numerosas relações con­
sigo mesmo e com outros que sõ indiretamente estão ligadas às finalidades
precípuas ou '‘oficiais” dos não-lugares. - • ^ •
O lugar antropológico cria o que é organicamente social; o não-lugar cria
uma contratualidacíe solitária estabelecida pela mediação dc palavras, signos è
textos. Pois os não-lugárcs abundam em “instruções para uso” quê podem ser
• preseritivas (“vire à esquerda” numa rua ou estrada), proibitivas (' proibido fu­
mar”) oit informativas (“A companhia aérea X anuncia a partida do Vôo...”).
Tanto faz que as instruções apareçam ejn palavras ou em signos icônicos, por
exemplo. O que dc fato importa é que os indivíduos interagem, não uns com os
outros, nesses não-espaços, mas sim, com textos propostos por instituições óu
pessoas morais (aeroportos, linhas aéreas, emptesas, polícia, poder municipal
etc.), embora quais sejam elas possa ser ou não explicitado.
q Vivemos num mundo èm que as pessoas nascem em clínicas, e morrem
em hospitais - não, em ambos os. casos, em casas - em que proliferam pontos
• de trânsito e residências, temporárias: estas últimas podem ser luxuosas (ca­
deias de hotéis ou s[h is inlcrcambiávéis,.clubes de férias ou dc lazer) ou desu­
manas (favelas, campos de refugiados). No mtindo de hoje existe,, também,
uma densa rede de meios de transporte que multiplica não-lugares: estradas de
alta velocidade que evitam e escondem as aglomerações humanas, aeroportos,
cabines de avião ou de trem, interiores de automóveis. Os freqtienladores'de
supermercados, bancos 24 horas e fnáquinas caça-níqueis comunicam-se por
gestos, sem-palavras ou com um mínimo de palavras, li, além dos não-lugares
físicos, há o que poderiamos chamar de não-lugares virtuais: as pessoas passam
muitas horas .diante de. tubos çalódicos de televisão ou de microcomputador.
Lugares e não-lugares são como polaridades opostas. Os primeiros
nunca são de todo apagados, os segundos não chegam a tudo i nvadir. Lugares
no sentido antropológico podem constituir-se pelo menos parcialmente nos
íião-íugares, humanizando-os e tornando-os menos assépticos, impessoais e
causadores de solidão. ”
Solitário, mas. na qualidade de Integrante de uma multidão, o usuário
de um não-lugar está em relaÇão a este último numa situação contratual (com
ele ou com os'poderes que o controlam). Quandq necessário, a existência do

45
contrato é tomada explícita: signos dele são, por exemplo, o bilhete de passa-
gem, o car tão de embarque, o cartão que aciona o banco 24 hòras, o carrinho
empurrado no supermercado. Certos rituais podem existir: por exemplo, nos
aeroportos, apresbntar a passagem nó balcão de embarque, o passaporte no
controle de migração, o cartão de embarque para tér acesso ao avíão.Tais ri-
luais explicitam o contrato entre um indivíduo (cuja identidade é verificada)
e as entidades que põem à sua disposição ps não-Iugares segundo certas re­
gias. Kntre um rito e.oíltro, ò indivíduo retomasua anonimidade, sua sòlidãõ,
num saguão de aeroporto ou talvez num corredor cheio de lojas duty-free.
Augé não considera tal aspecto, mas' seria interessante verificar como
esses rituais, alternando com anonimidade, são às vezes projetados pela ficção-
c pelo cinema contemporâneos, anacronisticamente, sobre períodos e regiões
a que não se aplicam ou em que têm significados distintos,
Nos não-Iugares, a solidão acompanha-se dc uma perda de verdadeira
identidade. Cada indivíduo é simplesmente uni entre vários e anônimos pas­
sageiros, clientes, pacientes, motoristas etc. A identidade reáfirmada nos pon­
tos e momentos dc conUolejrerde-se.a seguir, quarido sé torna só um entre
muitos que absorvem as mesmas merisagfcns-instnjções,' obedeccm aos mes-'
mos códigos e estímulos. O espaço do não-lugaf não cria identidade singular,
nem relações: cria solidão ésimilitude. Também não há campo, nele, para a
história, a não ser que tenha sido transformada em espetáculo para consumo
Oulrossim, os folhetos turísticos vendem imagens de exofismo; mas, ao cotu­
pi ar tal imagem e embarcar na viagem, o turista freqüentará em seu ponto dc
destino preteiisamênle exótico não-Iugares intercambiáveis cotai aqueles .-quê
conhece em seu próprio país: vér-se-á num presente perpétuo- e nutri perpé­
tuo ieencontro> com sua própria sol itlão/As reflexões dc Augé, neste-ponto,
manifestam ecos de Claudc Lévi-Strauss. .. .• ,•
Vou escolher agora, para expô-la, unia das conclusões formuladas no li­
vro de Augé;que resumi e comentei. Aeroportos, aviões, o metrô, estações de
ferrovias, grandes lojas de departamentos, eis aí alvos freqüentes de ataques c
bombas terroristas. Uma forma de maximizar o dano itiHigidp, sem dúvida.
Mas também, talvez., o fatò de que, dc modo mais ou menos confiiso, aqueles •
que desejam estabelecer novas identidades, nòvas relações, uma nova história
e lugares antropológicos,segundo suas aspirações (nacionalistas, pór exemplo)
percebem os não-lugarès unicamente como unia negação do seu ideal. Com

46
efeito, 6 não-lugar é o oposto da litopia: ele existe, mas não. estabelece uma'so­
ciedade orgânica. 'l
> Minha própria conclusão sobre o livro de Augé é a seguinte: de um ân- ,
guio delimitado - o da Antropologia do espaço - s u a s idéias fornecem as ba­
ses para uma interpretação,-"dentre.muitas possíveis, do mundo atual. Oferecei
portanto, ao historiador uma grade de leitura possível: a do espaço e das mo­
dalidades de sua organização social e cultural que resultem ou hão, conforme ■
os casos, na gárantia de identidade, relações e história.
' Para mim, o problema central do livro' é que, como se tornou muito
freqíientc'recentemente, percehé o sujeito unicamente no nível individual. As­
sim sendo, as forças que regem o que chama de Supermodernidade se tornam
esfumadas, difusas, difíceis de captar em detalhe. Talvez por esta razão, 11a ver-'
dade,-em minha opinião, o seu conceito de lugar antropológico seja mais in­
teressante e funcional para o historiador do que a noçãõ dc.não-lugar, poi
mais que esta última permita descrever alguns aspectos relevantes do mundo
de nossos dias. Seria preciso perguntar também se sua Antropologia do con­
temporâneo é relevante para os países do que antes era chamado de Terceiro
Mundo. Intui-se que, nestes últimos', as relações mantidas por pessoas e gru­
pos com os elementos concretos que usa para definir sua Super modernidade
—aeroportos, supermercados, vias de alta velocidade., centros.comerciais etc. -
sejam nã verdade diferentes das que ocorrem na Europa, nos Estados Unidos
ç>u no Japão, embora tal constatação precisasse ser estudada em detalhe/’

"V - , x

TEMPOS ccPÓS-MODERNÒS” E ÈSPAÇIA L1DÀD E


/ Passarei agora a indagar de que modo as reflexões atuais acerca da
globalização - ou, mais exatamente, do que se poderia chamar de dialética .>
da globalização e da pulyevização - podem incidir nas foimas de categorizar
0 espaço e recortá-lo. pára análise, Não rae cabe aqui, porém, estudar em si
as rúultiformcs caracterizações que se podem achar hoje em dia acerca do

13 AUGÉ, Marc. Non-placea: Introduction to an anlhropology of Supermodernity.


Translated hy John Howe. London: Verso; 1V95 (ed. original cm francês, 1992).,

47
que é chamado diversainente.de “globalização”, “revolução informacional”,
"paradoxo global” etc.H '■
A nnindíaíização, ideologicamente cliamada de “globalização” acentua a
helerogetieidade - mesmo nos países mais desenvolvidos - pelo fato de tender a
for mm bolsões prósperos de alta produtividade, alta tecnologia e intensa integra­
ção íio resto do mundo, conlrastando.com outras áreas'menos dinâmicas. O con-
liasle é especialmente marcado tio interior dos países menos avançados econô­
mica e tecnologiçamente. Os desníveis de desenvolvimento denlrô das fronteiras
dc um mesmo país não são, é claro, uma novidade: mas parece ser certo que, nas ’
novas condições, eles se'intensifiquem. Há quem. fale na,emergência de um “ar­
quipélago de alta tecnologia, ou de £tecnopóíos”: o condado de O range, na Ca­
lifórnia, Osaka, no Japãô, a região de Lyon,na França, a do Ruhr, na Alemanha,
as de Cantão.e Hong Kong, na,China, e.outras zonas similares, num mundo ém
que as decisões dc tiíveí mais alto já não dependerão dos governos estatais mas,
sím, de companhias transnacionais em aliança com os diversos sistemas locais de
poder presentes no “arquipélago” em questão, espalhados pelo mundo, que em
alguns casos teriam a possibilidade até de virem a configurar cidades-estado in­
dependentes. Em suma, as redes formadas pelas empresas tránsnacíonais está-,
riam ignorando crescen temente o sistema dc nações-ês tado ç suas fronteiras. '
Ao longo do séçulo 20, o mímerò de países independentes triplicou. Esta
. é uma tendência qüe deverá continuar-no. futuro previsível. Acompanhada,
ct eetn alguns, da diminuição radical dos poderes efetivos dos governos centrais
• de tais países. Já hoje,a facilidade com que ós capitais se transferem de um lado
a outro, poi exemplo, mostra a existência de fatores que tais governos não con­
trolam cabalmente, No entanto, não aCredito na tendência ao recuo, dos pode­
res estatais como algo absoluto. Por uma simples razão: inexiste uma alternati­
va efetiva ao sistema estatal para efetuar as negociações internacionais ifnpres-'
cinclíveis, estabelecer e implementar políticas de todo tipo, levar a cabo asmo-:
bilízações julgadas-necessárias. Parece também claro que numerosos governos 1
continuarão contestados em sua legitimidade por,movimentos dissidentes ou
separatistas poderosos - como hoje ocorre tia Argélia, no Egito e ma Bélgica, >'
por exemplo —e também quea capacidade dos Estados para implementar efe-
livameiite suas políticas continuará tão variável quanto semprefoi. v />14

14 Ver o capítulo 7 desta antologia. Uma das análises a respeito mais inteligentes e
mçnos levadas em.co.ftsidetáçao rios debates que conheço é: LpJKiNE, Jcaiwl re~ '
yoluçãoiiiformaciómil. Trad;-José Paulo Nelto. São Paulo: Cortez, L99ê.

48
Dito isto, é preciso reconhecer o surgimento cie uní fenômeno, novo: ,
diante da falia‘de interesse estatal em lidar com assuntos delicados (prá tícas de
tortura e genocídio por agentes governamentais'ou por ocasião de guerras .
como a qu e ensangüentou a antiga Iugoslávia, problemas, ecológicos, infância
abandonada etc.), também porque müitos\Íesses assuntos envolvem necessa- '
riamente uma cooperação internacional que os governos e a própria ON1J não
,tâm sabido realizar á contento, proliferam desde a segunda metade do século
20 as chamadas Organizações Não-Govèmaiiientais (ONGs). De caráter mui- •
dnacional, fazendo uso das possibilidades abertas pelas redes interativas e ou­
tras formas atuais de comunicação instantânea, elas têm agido como forças de
pressão sobre ps Estados contra testes atômicos, sobre empresas'que agridem o
meio-ambiente, em programas assistenciais diversos e.em muitas outras áreas.
É frequente que tenham uma imagem positiva, que se deve a algumas das mais
conhecidas e sérias, como a.Greenpeácc e a Anistia Internacional. Mas não se
deve esquecer que formam um grupo muito heterogêneo: há, por exemplo,
uma multidão dessas organizações de tipo claramente corporativo (ligadas, por
exemplo, a determinadas profissões): ou, mesmo, aquelas vinculadas a idéias e
políticas de extrema direita. Pode-se prever a permanência destas organizações
como um dos elementos da política nas próximas décadas.15*
• Passando â questão da categorização e do recorte do espaço para análi­
se, convém recordar que uma das maneiras mais correntes de abordar este
tema diante dos fenômenos vinculados à globalização é mediante a noção de
que tais fenômenos desarticulem o teritório ou até mesmo o neguem como
■algo importante: daí se falar de desterrUorialízaçno. Trata-se, com frequência,
de uma' visão pós-rnodérna a respeito, cujo resultado consiste em proplarnar o
fim:da possibilidade de pensar o espaço ou o território em si:.'ele agora apare­
cería unicamente como um texto a interpretar.1*

15 Acerca da globalização, ycr: KENNEDY, PauJ. Pfeparatulo pani o scculo XXL Rio
de Janeiro: Campus, 1993; IANNI, Octávio. A sociedade global. Rio de Janeiro: Ci-
• vilmção Brasileira, 1992; W1TKOVVSKI, Nicolas (Org.). Ciência e tecnologia hoje.
.Trad. Roberto Leal Ferreira. São Pauiò: Ensaio, 1995; JAMESON, Frèdric. O pós-
inodernismo c a sociedade de consumo. In: IÇAPLAN, E. Ann (Org.). O itntl-estar
iw pós-rnoílernisino: leorias e práticas, Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge
Zaiiár, 1993. p. 25-44 (em especial, para os problemas da espacial idade, p. 34-39).
• 16' Por exemplo: CURRY, Michael R. Postmodernísm, jaiiguage, and thestrains of ro<>-
dernism. Artnals o f flteAssociation of American Geograpliers, 81,2, p. 210-228,1991.

49
Discordo de tal opinião. Seu melhor crítico, a meu ver, é o geógrafo
Miilou Santos. Na verdade, a globalização, em.sua dialética global/lucal, refor- ''
çu é a lieteiQgeneidade e a hierarquização do espaço, complicaiido sobrema-
ncira a sua cónfiguraçãò e levando a ter dè conceituá-lo de outro m õdo.O que .
aílrma Santos é a necessidade, nas novas condições, não de negar a terrilófia-,
lidiule ou a espacialidade, mas de perceber, nela, uma nova organização, que g
ele denomina "meio técnico-científico-informaciònal”:

■ [A] divisão territorial do trabalho e do capital itos obriga a reconhecer diferen­


ças de um novo tipo entre regiões. Como muitos objetos tcenicps perduram de um
pèi iodo para .outro e algumas normas intentam prolongar o passado, certos pon­
t o do planeta aparecem como espaços letárgicos,, vindos de uma lógica pretérita,
isto é, lugares que incorporam muito incómpletamehtea modernização.
Outras áreas passam a dispor do conteúdo técnico, científico è uiformacioòal
adequado às taretas características do noyo regime de acumulação. Criam-se re­
pões do mandarpm oposição às regiões dó fazer, cni virtude das novas polarizações,
A tequalificação do espaço' resulta conforme, sobretudo, aos interesses dos -
agcOtes hegemônicos. Por conseguinte, a geografia assim desenhada, mais uma vez,
e desigual e, nela, podem ser distinguidas.Zíi/ws luminosas, zonas opacas e infinitas
situações intermediárias.1'

O que me parece indubitável é que, nas condições atuais,'a categoriza-


çao e o tecorte do espaço para análise devam ser consideravelmente mais com­
plexos - e quiçá mais mutáveis s curto prazo - do que na situação vigente há
poucas décadas. Seria útil reunir as considerações de geógrafos como Milton
Santos*18a algumas das idéias de Marc Aygé.e, mais envgeral, da Antropologia
do espaço, no sentido de elaborar novas ferramentas para enfrentar o estudo
da espacialidade. Se bem que as reflexões que resumimos se refiram às circuns- ’
tâncias do presente, como sempre acontece, essas noções sobre o muhckfestri-
lamente contemporâneo não deixarão de influir poderosámente também so-
l>re as tentativas de análise espacial aplicadas a outros períodos da História.

17. SAN I OS, Milton; SILVEIRA, Maria Latira. De uma geografia da pôs-modernidadea"
uma geografia da globalização. Cullnm Vozes, 91,4, p. 14-30,1997: a citação é da p.26. '
18 Ver, deste autor: Técnica, espaço, tempo: globalização, e meto técnico-cicntífico-in-
formaçional. São Paulo: Hucitec, '1994. Cf. ainda: 1,AGOPOULOS, A, P. Pcistmoder-
nisni, gcographjç atidthe social sènfiotics of space. Environtiiciu and plaiwine, v. 11
p .255-278,19931 q '

\ ' 7“ .1■ ,

50
CONCLUSÃO ' - ’
Posições cúm oa de Marc Augé em Antropologia e a dos gcógratos que .
proclamam a “deslerHtoriaiízação^indepeiiáciitemente do interesse que apre-
sentem e de elementos úteis de análise que possam conter, são. carregadas de
ideologia. Ao despersonaiízarem os agentes que atuam nos não-lügares, ao de­
sencorajarem o ehfoque em termos de èstados-nações ou de seus recortes re­
gionais, vão no sentido qtie interessa a uma das tendências especificas que, do •
lado do poder, se referem à globalização e ao.que seriam as estratégias ncces-,
sárias diante de tal fenômeno no tocante ao desenvolvimento, à integração e à
forma de inserção internacional. i-
> Trata-se da postura conhecida conio “consenso dè Washington” ou
“ncol.iberalismo”: utna visão fundamçntalisla da globalização que supõe - de
forma doutrinária e irrealista - quê o livre jogo do mercado garanta, por si,
crescimento econômico e bem-estar social. Por tal razão, as políticas basea­
das nesta tendência defendem a abertura ê desregula mentação dos .mercados,
as privatizações a todo custo, o equilíbrio fiscal e a estabilidade de preços, '
com eliminação dos objetivos nacionais de desenvolvimento orientados pelo
poder público. ; ' . ' •
Tal doutrina compele com outra, que encara o crescimento econômico
cbmo um processo endógeno à.economia mundial, acredita na necessidade de
articular a intervenção pública com as forças do riicrcado e içva, por exemplo,
à formação de blocos de mercados protegidos.(NAFTA ou ALCA, MERCO- •
SUL, Comunidade Européia) que manifestam a ambição de^transcender a
pura integração comercial, no sentido de aumentar a possibilidade de barga­
nha e competição no nível mundial. Nesta perspectiva, governos tanto quan-
to Agentes econômicos deveríam ser átivos na fixação de políticas c estratégias,. .
acreditando-se*que as metas dê crescimento, desenvolvimento, proteção am­
biental e outros objetivos desejáveis não podem ser alcançadas unicamente
através da livre ação das forças do mercado.1’19

19 -HERRF.R, Alclo. Pois modelos de desenvolvimento. Gazcià kkrcantU Liltino-Atneri-


’ • cana, Bclò Horizonte,. 5, a ll de jaiieíro de l998, suplemento “Semanário do Mer-
.1 cosul”, p. 25.

51
As tensões e ambiguidades em torno de tais questões são evidentes, Ao
mesmo tempo que pressionam conslántemente outros países (incluindo o
ISrasil) em nome da abertura econômica desejável e do livre jogo do mercado,
os lis lados"Unidos, por exemplo, agem para fins internos segundo uma lógica
ainda bastante protecionista, mantendo mais de três mil limitações tarifarias
ás importações a seu próprio território (e, mesmo, manipulando a política de-
tarifas como força de pressão numa verdadeira guerra comercial), subsidian­
do com dinheiro público setores de sua economia interna como a agricultura,
a indústria espacial e certas produções eletrônicas, bem como tralando de.ar­
ticular um bloco econômico próprio incluindo de início o Canadá e o Méxi-.
co (NAPTÀ), mas já tratando, com métodos truculentos, de englobar, se pos­
sível, o resto dò continente (ALCA). . ,
Estamos muito longe da visão sitoplificadora de uma dialética globali-
zação/“tribalização” (ou pulverização) do espaço e dos fluxos econômicos e
tecnológicos, vista ideologicamente ao mesino tempo como a “vitória do in­
divíduo” ou “a vitória do consumidor” - no que' configura um retorno aos ve­
lhos niítós burgueses do indivíduo totalmente livre, transparente a si mesmo
e informado. ' . \
No conjunto, descartada? as propostas pós-modernas mais delirantes,
equivalentes a mais uma “desconstruçãp” —desta vez-d o espaço ou do territó­
rio notamos existir ainda a plena vigência do paradigma dos espaços regio­
nais complexos segundo, recortes que obedeçam á lógicas e dimensões variá­
veis, adaptadas às estratégias das diferenles*pesquisas, como ha proposta clc
I.acoste; a qual, por sua vez, já o vimos, reflete lorigínqüa e indiretamente a
convicção científica da inexistência de um espaço absoluto, aulocontido, evi­
dente por si mesmo e capaz de existir na independência de quaisquer conteú­
dos e processos. . . .
à 1. *
O que teve de mudar com o tempo, ajüstando-se á novas realidades, de­
correu da necessidade de levar-se em conta as maiores complexidade, hetèro-
geneidade e, talvez,- volatilidade das construções espaciais e seus recortes pos­
síveis atualmente, posto que noVos fatores, anteriormente menos visíveis
como elementos decisivos, passaram a incidir com muito mais força nestas úl­
timas décadas. . ' ’ ‘
1 ■■ i ,
l ■ '■ - -

52
Parte 2

EPISTEMOLOGIA EM DEBATE
. Capítulo1 3
s. ' ‘
• ' • _/ ’’ . ^
* " T- •

C r ít ic a de duas questões

• :r .RELATIVÁS AO ANTI- REALISMO


EPISTÊMOLÓGlCO /CONTEMPORÂNEO
♦■ \ »
• “ . •' ’ \ ' „ t

PROBLEMA ANTIGO, / ' .


LUTA SEMPRE RENQVADÀ • •' '
, - O anti-realisrnò epistemqlógico, ponto central das posições pós-mõ-
dernas, não c, entretanto, uma.invenção delas: é> de foto, bastante antigo. Pos-
•turas radicais a respeito foram defendidas muito antes de que existisse o pós-
moderliiSmo.. . . . s- a 1 . .
Assim, por exemplo, para David Hume, em pleno século 18, a legitimi­
dade do conhecimento dependería inteiramente da natureza humana e de
seus princípios, isto é, das operações mentais, aquilo cuja constância permite
explicar o resto do que deve ser explicado. Mas se, para Descartes, o sentimen­
to de si do indivíduo é o ponto de partida, para Htime não passa de uma cren­
ça, do uma rede de impressões cuja explicação não pode ser independente da.
natureza humana. Esta última, por meio dos princípios de semelhança, conli-
güidadè e causalidade, promove as associações que originam idéias complexas
a partir das sensações. Se a causalidade, princípio de associação, configura
unicamente uma crença, senejo ela também uma idéia complexa, as bases me­
tafísicas da prova da existência de Deus sãd destruídas, do mesmo modo que
,0 realismo, póstò que a realidade das cõisaS fora de nós passa a ser percebida
como sendo, por sua vez, uma crença inferida por hábito a partir das iiiípres-
. sôes sensoriãis —comprovadamente pouco confiáveis, imperfeitas -, o que.se

..55
estende, aliás, ao próprio sujeito cognoscente. Na verdade, mesmo se Hume
definia a si mesmo como um cético mitigado, é difícil imaginar, antes ou de­
pois do filósofo em.questão, um ataque mais demolidor ãs bases mesmas do
racionalismo.12*' •
Mais perto dc nós, leiamos a passagem seguinte de um livro que Ca sai­
rei' publicou originalmente em 1944:

0 homem mio pode escapar dc seu próprio sucesso, não lhe resta mais remédio
do que adotar as condições de sua própria vida: já não vive somente num universo
puramente físico mas, sim, hum universo, simbólico. A linguagem, ó mito, a arte e a
\ religião constituem partes deste universo, formam os diversos fios que tecem a rede
simbólica, a trama complicada da .experiência lnimana. Todo progresso ik>pensa-
inento e na experiência refina e reforça esta rede. O homem já não pode enfrentar a
realidade de modo Imediato; não pode vê-la, digamos, frente a frente. A realidade fí­
sica parece retroceder na mesma proporção enrque avança sua atividade simbólica.
Bm lugar de tratar coni as próprias coisas, em certo sentido conversa constantemeíi-
te consigo mesmo. Envolveu-se em formas linguísticas, em imagens; artísticas, em
símbolos.míticos ou em ritos religiosos dè tal.forma que não pode ver ou conhecer
coisa alguma senão através da interposição deste meio artificial.5 •!

Nota-se que, muito antes de se poder falar em pós-modernismo, bastari-


le antes mesmo do estruturalismo.de Lévi-Strauss, as consequências da desco­
berta da dimensão semiótica para as concepções acerca da natureza humana -
desembocando, nesta opção radical, no hòmo sy/nholicus—já haviam propicia­
do com toda clareza um pansemiotismo que faz pcridaiu ao antí-realismo.
A verdade, entretanto, c que certas lutas precisam ser empreendidas
uma e outra vez, empregando as armas que cada época põe à disposição dos
críticos das posições anti-realistas. listas últimas e o realismo epistemológíco
continuarão á ler de enfrentar-sé, simplesmente porque não há como provar
que alguma das alternativas em combate seja certa ou errada. No máximo é
possívél dizer, com Mario Bunge, que a ciência pressupõe-a realismo epislemó-
lógicofmas certamente não oprova, o que abre uma brecha suficiente àque-

1 Para um bom resumo das questões envolvidas, cf. AUROUX, Sylvain; W.EIL, Yvon-
ne. Dictioimuire des autetirs et des tkèmes de la philosophie. Paris: Hachettê, 1975.
p: 115-117. '
2 CASS1RKR, Ernsl. Antropologia'ftlbsófica: íntroducción a una filosofia de 1a Cultu­
ra. Trad. Eugênio ímaz. México: Fòndo de Cultura Económiça, 1975. p. 47-48.

56
les que preferem acreditar que a busca da verdade se sitiie além das possibili
dades dos seres humanos.’ i ;• . ’■ , . -

PÔDE O HOMEM CONHECER ./ N .


A REALIDÀDE - FÍSICA, SOCIAL - ;; '
ÉXTERIOR AO INDIVÍDUO?
. • . ; Criticando a teoria marxista do conhecimento, variante da teoria do re­
flexo, escreveu Jacques Mpnod, prêmio Nobel de Biologia: ' .

os progressos da neuroíisiológiá e da psicologia experimentai começam a reve­


larmos alguns dos aspectos, pelo menos, do fiincioiiamentó do sistema nervoso. O
bastante para que seja evidente qúe-o sistema nervoso central não pode,sem dú.vi-
' ■da nem deve, entregar à consciência uma informação que não esteja codificada,
.. . transposta, enquadrada, em normas preestabelccidas: em suma, assimilada e nâo
simplésmenle restituída.4, - • /

Esta interpretação contém implicitamente tuna falácia tomada edmo


postulado: a de que qualquer èodiíkação signifique, necessariamente, não só /
urna seleção ou simplificação como, também, uma deformação ou deturpação
dá coisa codificada.
Será verdade que o sistema nervoso humano deturpe a realidade ao pô-
la ao alcance da mente pela coordenação, nq cérebro, das informações sènso-
:riais? fi estranho - e lamentável - que os.debates a respeito da possibilidade-'
ou não do realismo costumem deixar de lado o que a Paleoantropologia c ã
.Neurobíologia contemporâneas possam ter a dizer sobre o assunto.
O que torna nossa espécie —o ííom o sapiens sapiens ou, segundo ou­
tro sistema de classificação, simplosmente Homo sapiens - algo à parte no
m undo anim al não é, acredita-se hoje, a capacidade de fabricar instruinen-
tós, e sim. a linguagem sofisticada que a caracteriza, única no quadro da zoo-

J 3 BUNGE, Mafio. La ínvestigación científica: Su estratégiay su filosofia. Trád. Manuel i


Sacrístán.Barcelôiia:Ariel, 1976.p .319-321. .. ‘
4 MONO D, Jacquès. Le hasard et Ia nécessiié: Êssai sur la phjlosophie natureile de la .
bíologie rpodeme. Paris:, Seuil, 1970. p, 56. '

.57
/ -
lojfiu tei rcstre.- Nestas ultimas décadas, psicólogos e especialístas em prima-
• tologia constataram experimentalmente úm nível de “discurso1*impressio-
iiíinle em chimpanzés e gorilas no cativeiro, usando, por exemplo, algum c6-
digo de sinais gestuais —já que o aparelho dç fonãção dos mortos antropóí--
des atuais não lhes permite falar'no sentido humano do verbo trata-se de
algo impressionante pelo feto de antes se crer na impossibilidade de qual-
<ltur discurso da parte desses monos; no entanto, fica muito aquém mesmo,
tia capacidade de falar e expressar-se de uma criança pequena,
O desenvolvimento da garganlapos humanos attiais, caracterizado por
uma faringe lònga e uma laringc situada muito mais abaixo do que em qual­
quer outro mamífero, incluindo íódos os outros primatas', impede - e é ó úni­
co caso disto entre os mamíferos - que possamos engolir e respirar ao mesmo
tempo, o que parece üm problema grave/1Por esta razão, se tal desenvolvimen­
to esteve ligado ao dá fala, çomo’é provável, è foi selecionado pela evolução,,
que vantagens evolutivas a fala apresenta para o animal humano? O que é o
mesmo que perguntar: como |>ôde emergir na evolução de nossa espécie? r
A resposta que primeiro vem à mente é que a linguagem humana cons­
titui uni poderoso instrumento de comunicação, o mais sofisticado e diversifi­
cado que existe neste planeta. Olhando para a evolução dos homínidas primiti­
vos, no final do terciário e durante o Quaternário, um dós aspectos marcantes, '
nela, foi a emergencia de um modo de vida de coleta vegetal/ánimal e mais tar-,
de de Caça, mais complexo do que o de qualquer mono antropóide. com uni-'
cação eficiente permitiría um controle mais aperfeiçoado sobre tal modo de
vida e uma monitoração melhor do meio ambiente; propiciando, portanto, uma
vantagem evolutiva que superaria a desvantagem da possibilidade de morrer
engasgado ao tentar engolir e respirar ao mesmo tempo, fim outras palavras, a
linguagem humana sofisticada seria o resultado da economia cooperativa dé ço-
lelores/caçaçlores e suas complexidades: seria um elemento posto a serviço das
tecnologias de subsistência (entre elas a produção de instnimentos).567

5 LEWIN, Roger. In lhe uge oj ttmiikind. Washington: Smithsonian Books, 1988,


p,, 170-186. . ■» N.
6 t.AITMANí leffrey T, The anatomy o f hwnaii speech. Natural .History, p.-20-27, •
Aug. 1984. '
7 Esta, visão do processo íbí adotada, por exemplo, em: LEAKEY, Riçhard k ; LEWIN,
Roger. Origíns,. New York: E. P. Duttdn, 1977. p. 148-177. Osaiitores posteriormen- .
te adotaram a opinião de Holloway, de que se tiilará a seguir. •

58
Esta maneira de ver, que parecia convincente, começou a scr. desafiada
pioneiramente, a partir dos anos 1960, por Ralph l íollòway, da Universidade
de Columbia Holloway defendeu a noção de que o desenvolvimento do cére­
bro ligòu-se ao da linguagem, e o da linguagem; mais às demandas derivadas
das interações e controles sociais do que às da tecnologia de subsistência. Em
' função da complexidade das relações sociais - perceptível também,'em grau
1muito apreciável, mesmo, nos monos antropóides atualmente existentes - , o
cresçimerito éti sofisticação do cérebro humano vinçu 1ar-se-iani à necessida-
' de de construir um modelo-especialmente.complexo da realidade, incluindo
nisto o mundo material mas talvez sobretudo os outros membros da mesma
e.spécie, para cntendè-los melhor e jogar eíicazmente o xadrez social; que in­
clui alianças cambiantès ç. a tentativa de manipular alguns desses membros,
em lugar dé prender-se ein forma principal às injünções nascidas da comuni­
cação com outrem e da elaboração da tecnologia de subsistência d
A função central do cérebro é construir um rnoMo dc realidade que per­
mita ao animal existir neste mundo, nele funcionando e sendo bem-sucedido. ■
Quanto mais complexos sejam a vida de um animal e os tipos de interação
com o mundo e com outros animais nela implicados, niais complexa, tam­
bém; tem dê sei: a estrutura do modelo dc realidade mentalmente construído.
. Assims se um dos sentidos for espeaãlmente importante para a maneira de vi­
ver e aluar de um animal, a(s) área(s). do cérebro associada(s) a tal sentido de-
sen võlver-sç-á (ão) especial mente. Üni sapo vive num mundo sobretudo vi­
sual, uma serpente num mundo principalmente olfativo. Um cão elabora corii
alguma complexidade visão (não:estereoscópica nem em cores), olfato e au­
dição. Cada sentido oferece uma avenida de acesso ao mundo: quantos mais
sentidos forem importantes pára um aninial, mais complexas têm de ser as
ayenidas correspondentes ntas, também, os circuitos mentais que permitam
integrá-las num lodo,-num modelo complexo dó mundo. O modo de fazer
;isto, entre os animais, é por nievo do desenvolvimento do cérebro. Ora, a pas-
' sagem dè anfíbio para*'réptil, de réptil para mamífero - como formas surgidas8

8 HOLLOWAY, Ralph. Human paleontolpgical evidèncerelevant to. langtíage beha-


vior. Human Neurobiojogy, 2, p. 105-114, 1983.Também: Í.EÃKEY, Richard E.; LE-
r WIN, Roger. Origins reconsiderai. New York: Anchor Books; Lond.ouS Doubleday,
1992. p. 252-311. V s •-
sucessiva mente nu evolução das espécies —significou» em cada caso, cérebros
maiores e mais complexos. De modo análogo, entre os mamíferos, o cérebro
dos primatas é cm média duas vezes maior em relação ao tamanho e ao peso
rio corpo do que ps cérebros dos outros mamíferos; e, entre os primeiros ho-
mfniclas conhecidos, os australopitecos (dentre os quais, o m ais,antigo admi­
tido na atualidade é o Austmlopithecus anàmensís, que surgiu há mais de qua-
Iro milhões de anos), e õ homem atual, 9 cérebro ém média triplicou.’
O grande cérebro dos-primatas não parece poder explicar-se, seja por­
que sua subsistência exija um a-intelectualidade tão mais desenvolvida, seja
porque explorem melhor seu meio ambiente no sentido da subsistência.
Quanto ao primeiro ponto, cada primata do passado 09 do presente partilha
o{s) meio(s) ambiente(s) cm que vive e alua com muitas espécies não-prima-
las; e rião pode ser demonstrado que seu uso da na tureza para a busca de ali­
mentos seja mais eficiente do que o d e tais espécies. O mesmo quanto à rela­
ção, por exemplo, entre mamíferos e dinossauros: sc a possibilidade de explo­
rar nichos ecológicos fosse maior nos mamíferos, o número de espécies deles <
deveria ser superior, nicho a nicho, ao das espécies do dinossauros; ora, tal nú­
mero £ grosso modo Similar. E, no entanto, não há qualquer dúvida de que os
mamíferos tenham uma capacidade [superior a dos dinossauros de construir
um modelo do mundo, ou de que tal capacidade seja maior, nos prima tas, do
que nos outros mamíferos, ou ainda que, nos humanos, esteja muito aciniá da
dos demais primatas.
O que hoje se crê é que, embora a relação de subsistência cbm o meio
ambiente natural não seja mais eficiente ou exigente no caso dos primatas do
que no dos outros mamíferos, a coisa muda se'a comparação versar sobre o
meio ambiente sòcicil. O xadrez social” jogado pelos primatas é mais comple­
xo do que o xadrez comum", já que as regras, derivadas de alianças e antago­
nismos mutáveis no tempõ, se transformam ou até se invertem, o mesmo se _
qplicando ao papel e à hierarquia das “peças” intervenientes no jogo. A inipor-

y LEROJ-GOURHAN, André. Mécànique vivante: l.e cráne des yertébrés du poissou


à I homme. Paris: Fayard, 1983; LEAKEY, Richard. The origitt o f luinuinkinti New;
York: Basic Books (Harper Collins), 1994. p. 1,39-157; fiBRMÚDEZ DECASTRO,
Josc Maria et al. Hijus ile uri tiempo perdido: La búsqueda de nuestros orígenes. Bar­
celona: Ares y Mares, 2004. p. 69. • •-


tància desse jogo nas relações sociais, ao estabelecer-se, leva à necessidade de
uma infância protraída - de que,os filhotes passem muito tempo aprendendo
o inodelo mental do mundo, no,tocante à subsistência mas também â intera­
ção social sendo isto o indicador de uma retroalimentação entre diferentes
níveis dasxínterações sociais. Assentada esta “escola de vida” entre os primatas
como mecanismo de sucesso, biologicamente falando, ela introduziu meca­
nismos de seleção próprios. Os primatologistas estão de'acordo em que não
são os espécimes .mais fortes c mais agressivos aqueles que, entre primatas,
conseguem mais acasalamentos: são os mais capazes de jogar com sucesso o
“xadrez social”. • '
, Em função do que se acaba, de afirmar, alguns especialistas chegam a
inverter o que se afirmava antes:'a necessidade de ganhar mais tempo para a
socialização é que teria forçado a melhoraras técnicas de subsistência entre os
primatas, ainda mais no caso dos humanos; por exemplo, quanto a estes últi­
mos, introduzindo carne na dieta, o que aconteceu, no tocante à caça ativa de
animais dc tamanho considerável;, talvez 1,6 milhão de anos atrás, em função
do avanço tecnológico associado ao Howocrgaster. (surgido ha cerca dç 1,8
milhão de anos); nas fases precedentes do gênero Homo (havendo porém os
que, baseando-se em indícios indiretos, atribuem a certos australopitecos o
início da introdução dá carne na dieta), parece ter-se dado uma mescla de co­
leta, uso de carniça de animais maiores ecaça atíva de pequenos animais.’*
A psique humana compreende três componentes básicos. A cognição
inclui aprendizagem, lógica, raciocínio, capacidade de resolver problemas. À
emoção envolve coisas como sofrimento, depressão, excitação, alegria. R a
consciência é aquilo que permite ao homem dar-se conta do que ele sabe, bem
como tentar prever o futuro, o que inclui o conhecimento dc sua mortalida­
de: com a consciência, a vida percebe-se a si mesma no mundo, domeslican-
do simbplicamenic o tempo e o espaço. À.consciência provê o “olho interior
que possibilita a auto-análise e em seguida a aplicação do que nela sc apren­
da, estendendo os seus resultados ao esforço de inteligência e previsão das mo-

' 10 LEWINj Roger. Jn the age-of uutnkitid. 'Washington: Smithsoniari Books, 1988.
p. 178-180; BERMÚDEZ DE CASTRO, José Maria et ãl. Hijos dç un tiémpo per-
- ' dido: I.a búsqueda de nuestros origenes. Barcelona: Ares y Mares, 2004.

61
tivações cie outrem - esforço este que informa os antagonismos, as alianças, as
defesas, as manipulações, no complexo jogo social humano."
A linguagem dos homens —sem paralelo em sua complexidade no
mundo animal deste planeta - é adiria dé tudo um ínstrumehto de constru-
çAo cio um modelo complexo do mundo físico e social’ mais ainda do que um
modo de comunicar e passar adiante instruções. O éstudo paleoantropológi-
co <lns origens e evolução da linguagem articulada humana é dificultado pelo
falo <le que o cérebro não se conserva nos fósseis - tem de ser estudado atra­
vés de moldes do in terior cios crânios, o que é muito imperfeito, pois não bas­
ta uma idéia de como é a superfície do cérebro para compreender como fun­
ciona, onde nele se localizam as diferentes funções o mesmo se aplicando
ao apaielho fonador, que é cartilaginoso ou de carne e tem de ser inferido in­
diretamente, por exemplo, analisando-se a fonnação“pro£ressiva de uma base
ciauial curva nós homínidas, cm contraste com uma base do crânio reta nos
ou Icos primatas. A origem da fala articulada, no entanto, não tem porque ocu-
par-nos aqúi.1112*, . • . ,
Omeurobiólogo Harry Jeríson estudou a trajetória da evolução cerebral
c, em função dela, da mente, desde o início da vida eni terra firme.1’ Basean-
do-se em seu estudo, eis aqui as conseqüêneias tiradas por Richard LeaJçey:

Qualquer dono de cachorro sabe que existe um mundo olfativo abertótao ser
• canino, mas não ao humano. As borboletas podem vér a luz ultravioleta: nós não
podemos. O mundo dentro da cabeça - no caso do dloino sapiens, do cão ou da

11 LKAKEY, Richard. The origin o f litimankind. New York: Basic Books (Harper Col-
linsj, 1994. p. 139-, 157.
12 Ver, entretanto, para algumas das variadas opiniões a respeito: BUNAK, Victor
Del grito .a la palabra. In: SCHOB1NCER, Juan (Org.). El origen M tomhre. Bar­
celona: Promoeión Cultural; Paris:Unesco, 1973. p. 127- 134;.I.IEBERMAN, Philip.
On lhe origirís oflanguagar. An introductíon to the evolutíon ofhum an speech.'
New YorlcMacmilIan; London: Çollier Macrflillán, 1975; LYORS, John.Origins of-
laiiguage. In: PAB1AN, A. C. (Org.p Origins. Cambridge: Cambrige University
Press, 1988, p. VI1-166; TATTERSAIA, lan. Thefóssil trail. New York; .Oxford Uni­
versity Press, 1995. p. 245; LEAKEY, Richard; The origin ofhummikind. New York:
Basic Books (Harper Collins), 1J194. p. 1 19-138, ■
|J JERÍSON, Harry, Brain size anã the evohnion of tnind. New York: American Mu-
seum of Natural HistOL-y, 1991,

62
borboleta - é, pois, formado pela. natureza qualitativa do fluxo de informação do
mundo exterior para o minutei interior,'e pela capacidade que tiver o mundo inte-
' x •• rior de processar, a informação. Há uma diferença entre o mundo real "lá fora” e •
aquele percebido na mente, “aqui dentro .u
■ -- ' . ' f ;
V • A •
. "E ainda:, ' .

Na medida cm que os cérebros aumentaram no curso do tempo da evolução,


. mais canais de informação^sensonal puderam ser manipulados de maneira mais
completa, sua informação integrada mais cabalmente. Os modélòs-mentais, por tal
' . razão, passaram a equacionar as realidades “lá fora” e “aqui dentro” mais de perto,
. . embora, conto foi mencionado há pouco, com lacunas inevitáveis na informação," ^

Assim, voltando à opinião de Jacqües Monod com que.cómècci, ela esta


em desacordo cotrt a corrente principal do raciocínio tanto paleontologia)
quanto neurobiológico da atualidade. E> dada a tendência explicativa que do­
mina agora nessas áreas, seria ainda menos yáliclq afirmar que estejamos pou­
co capacitados ao conhecimento adequado da realidade social. ■

NARRATIVA E MUNDO REAL: ' '


' CONTINUIDADE OU DESCONTINUIDÁDE?
Que relação, existe “e ntre1a narrativa e os fa tos que descreve? Este é um
importante debate epistemológico, tendo a ver divetamente com a veracidade
■ (ou não) das explicações que assumem a forma de ura relato, como ocorre fie-'
qüentemehte no caso dos textos históricos. Portanto, tal discussão, bem como
as que etWolvem o realismo e o anti-realismo (este último acompanhado, com
fieqüência, de uma tentativa clé estetização) no domínio específico do conhe­
cimento histórico, liga-se à decisão sobre a História produzir textos científicos
' ou, meramente, textos da mesma ordem dos da literatura ficcional. _
Os historiadores tradicionais praticavam ó realismo do objeto e acredi­
tavam na veracidade das narrativas históricas, desde que estas seguissem cer-14*

14- I.EAKBY, 1994, p. 144.


15 Ibid.„
tiis legras de elaboração. Em anos. recentes, porém, mim assalto a tal posição
que mm e o primeiro mas úsa vocabulário e argumentos por vezes diferentes
dos precedentes, filósofos, teóricos da literatura c certos'historiadores partem
do piincípio dc que os fatos reais humanos não se agrupam como liasnarra-
tivasj qualquer texto narrativo que deles pretender dar conta os falseia neces­
sariamente pela sua própria forma narrativa de ser. Em tfistória, este é um dos
. C:tí" 1nlu>s que conduzem ao ceticismo epistemoíógico, habituaímente através
do que se convencionou chamar de “virada linguística”, configurada na Fran­
ça pela “desconstrução” propugnada por pós-eslruturaíistas como, por.exeni-
plo, Jacqués Derrida e Gilies Deleuze, nos Estados Unidos, era especial, pelas
propostas filosóficas de Richard Rorly, em seguida por autores como Hayden
White c Pominick EaCapra.- Neste texto, estarei seguindo as opiniões, con­
trarias a tal posição, de David Carr. Este afirma que, longe de deformar os fa- .
tos que relata, a narrativa proionga seus traços fundamentais.' Em outras pa-.
lavras, existiría uma comunidade formal de características entre a narrativac
a 1 ealidadò humana, tanto a individual quanto a coletiva.*17
As teorias que afirmam a descontiiiuidadc entre narrativa e.realidade '
argumentam com freqüência que a organização do texto em forma de relato
impõe aos fatos a que se refere uma estrutura cuja forma é a de uma narrati­
va com começo, meio e fim -estrutura qpeprocede do fato de narrar, não dos
próprios .fatos vividos no mundo real. A narrativa não passa.de produto de
uma construção do imaginário (da “imaginação histórica”, diz Hayderi Whi­
te); naptem qualquer veracidade, mesmo quando apoiada eni fontes, pois não
se trata de uma questão de documentação; tratar-se-ia de uma descontinuida- .
de-profunda. Nãó há começb, meio e fim na vida individual ou coletiva; Itá
mera sequência de eventos-que “terminam” onde se quiser, mas nunca con-
cluem; posto que sempre 'existem um antes e um depois. Se acreditarmos nas >

6 P- kELLp Y‘ Dona(d*Ei p > cultural en‘la ínvesligación histórica. In: OLABARR1


.f,1UCI0;GASPISTEGUI,Francisco Javfcr (Org.). La “n u e y i f h isto ria à i l i u m k Ú in­
fluencia dei post-eitrucluralismo y cl auge de la intcrdisdpliiwiedad. Madrid-
Gomplutense, 1996. p/35-48 (em especial p. 39-43).
17 Dav,d- rnirrativè, and'histury. Bloominglon: Indiana UniversityPres?,
■9 ; , “ " ammva 1’ el,mundo real. Historias, 14, p. 1 5,27, 1986. Não vemos razão
de multiplicar as .notas de referência ao proceder a tal síntese: fique claro que, cada
; vez que mencionamos as noções defendidas por Carr, a. base são estes dois textos

64
re.couslruçõcs narrativas, tnmsfbrmar-nos-emos cm prisioneiros de um mvto.
A narrativa simplifica - elimina ruído, no sentido dado ao termo pela;teofia
da comunicação - e estrutura as coisas, m as‘isto nada tem a ver com o:real, .
não o representa adequadamente. Trata-se de uma característica do texto, de
um efeito textual: pertence unicamente.aos textos, não àVealidade. . .. n
\ Em outros termos: textos e realidadés se sitüam em pianos distintos, • f
que não há como aproximar. Ao se operar uma assimilação dos planos, cai-se .
na ilusão, -no escapismo, no desvio; ou mesnio, tal operação pode constituir
um instrumento de poder e manipulação. . ..
Os que pensam assim dívidem-sè èm,suas opiniões quanto.ao mundo .
real Alguns acreditam numa realidade contingente, aleatória, na qual agem,
quando muito, probabilidades estoajslicas. Outros crêçm numa realidade de-
.terminada e causai. Mas~ em qualquer hipótese, tratar-se-ia de uma. realidade
externa ao conhecimento humano óu, pelo mehos, estranha às tentativas de in­
duzi-la a uma narrativa que de fato a representasse, reproduzisse ou imitasse.^
A estratégia, na crítica às posições derivadas da “virada lingfllsuça.,
pode Variar. Convém, então, esclarecer em que sentido vão as,contribuições de
Dãyid Carr de que aqui nos ocupamos. Trata-se. acima de tudo de uma respos­
ta a teorias como as de Louis.O. Mink e lçlayden White, autores que, para Carr,

' ( ) propõem ser a coerência narrativa unia superposição extravagante,mas estní-


■- . niia e delurpadora [em relação à realidade social - C.RC.I, um sonho de coerência
onde de fato ela absolutamente não existe. Para eles, a loucura consiste cm supor
X que o mundo real tem coerência narrativa, quando b realista,convicto deveria su- •,
pòstanicnte reconhecer que não a (em.1 ,■
. _ • .- I I ' . . , ’
Diante de teóricos que, como Hayden White.e (ainda mais radicalmen­
te) Hafis Kellncr, neguem a'existência, lá fora, de uma história que precise ser
contadá/’ uma forma possível de crítica consiste em demostrar que a historia
cm questão .existe sem dúvida lá fora, isto é,no relativo aos indivíduos e gru-189

18 .CARR, David. Time, imrmtive. and history. Bloomihgtóii: Indiana Univeisity Press,
' 199.1» p. 89. ' ' ' -
19 ' Ver, por exemplo: WHTTE, Haydcn. Teoria.literária e' escrita da história. Estudos
Históricos 7, 18, p. 23-48, 1994; KELLNHR, Hhns. Umguayc and hhtorical repmen-
tatiora Getting the story crooked. Madison: University of Wisconsin Press, t?89.

65
I>ps humanos; e que, portanto, pode e deve ser contada. £ esta a estratégia de
Cai i. Seus argumentos contra a desoqptinuidade e a favor da continuidade en-
Ire n narrativa e o inundo social real se organizam em dois níveis; o dos indi­
víduos c o das.coletividades. Tratemos de resumir, de início, o que tem a dizer
no tocante ao patamar individual. ’ ' •
Segundo Husserl, mesmo a experiência mais passiva inclui a retenção
lio passado imediato e a antecipação tácita do futuro, que chama d e “proten-
sao. Não é possível viver algó como presente. se não for em confronto com
aquilo a que tal m om ento‘sucede e cora o que antecipamos que sucederá ao
momento em.questão, Na vida ativa, com maior razão, consultamos experiên­
cias passadas e prevemos o futuro: o presente é só um trânsito do passado ao
futuro. Se o que ocorre na experiência é um instrurtiento ou um obstáculo
|>ara nossos projetos, desejos e esperanças, a vida não se configura como uma
sequência desestvulurada{de eventos isolados. .
A estrutura da ação (passado/presente/futuro, começo/meio/fim) é co­
mum ao texto e-à-vida, à narrativa e à realidade. Quem propõe a dcsconlioui-
dade, afirmando que 11a vida real não há começo, mèio e fim, esquece não só
0 nascimento e a morte como, lambem, inúmeras formas menos definitivas
dé estruturações dotadas de inícios e conclusões. Por que um início rião seria,
real, na vida, só pelo falo de que antes dele aconteceram outras coisas? Ou por
que não õ seria um fim, só porque depois Vieram outros eventos? ' ' ■
A estrutura'd os acontecimentos da vida é complexa quanto âs estrutu­
rações temporais: configurações imbricam-se enV durações distintas, que se
entrelaçam e recebem definição e significado a partir da própria ação. O fato
de que haja diferenças entre os projetos humanos e o que deles cie fato resul-'
(a.traz süspcnse; mas não faz da àçâo ordinária um caos desconexo.
Outro modo de argumentar a favor da desconlinuidade consiste em di­
zer que, na vida, não há um narrador {um his toriador), nem um-público, lei­
tor. O relato não só organiza: escolhe, simplifica’, elimina as interferências e o
1 uídq. Unicamente uma minoria de fatos e ações se incorpora ao relato. Na ■
vida, nadá disso é verdadeiro: permanecem todas as interferências e incoerên­
cias, todo o ruído. OuLrossimj a posição ex post do narrador que escreve um
texto permite correlações ,e deduções totalmente invisíveis (e impossíveis de
estabelecer) para os que viveram o processo que se pretende estar narrando ou
relatando. Por istò mesmo, retrospectivas e antecipações são possíveis no rela-

(í6
to, não na vida reál. Na verdade, três pontos de vista acerca da sequência de
que se estiver trqtando são os que.interferem: 1) do narrador; 2) do publico,
3) das personagens. No caso da história, as personagens não têin acesso ã or­
ganização dos" eventos que, a posteríòri, c proposta pelo historiador: na vida
real, ninguém narra os eventos nem os transforma mim relato, posto que nar­
rar supõe um conhecimento externo e superior. ' ;
Para criticar esta postura, Carr retoma Husserl: õ presente é um pontò
de vista que se abre para o passado e para o futuro. Ò futuro figura, na expe­
riência, como uma potencialidade do que ainda vai acontecer. As açõés huma- t
nas são teteológicas, orientadas a um fim; isto é, orientadas para um futuro
quê se projeta. Chcentro da atenção, na vida ativa, longe de'residir no presen­
te, está no futuro. Ná visão de Heidégger, citado por Çarivo importante não
seriam as ferramentas mas, sim, o trabalho a realizar. •
‘ • Isto acontece tanto quando estamos em plena ação quanto ao haver um
distanciamento reflexivo e deliberado, como por exemplo ao formularmos
pfojetos, iivaliarmos e revisarmos as circunstâncias que mudam, o já realiza­
do e o que falta em dada seqüência de taretas. A deliberação é antecipação do
fuluro, é o que unifica à ação em passos, etapas, meios e fins. É óbvio que ela
não pode estar limitada ao presente. É claro, também, que na vida há incoe­
rências e ruído ou estática que, ao deliberarmos acerca do que fazer, não te­
mos como eliminar; simplesmente, nós .reconhecemos a sua existência e os
descartamos das análises.
. ; ! O futuro é, aqui, só imaginado oú planejado: não se trata, obviamen­
te, da posição ex post do historiador, pois esta ultima é cabal, não apaiece.li­
mitada por circunstâncias que, na vida real, podem furar toda e qualquer
previsão ou projeção do futuro. O qüe importa, porém, para o argumento.é
que mesmo Um futuro projetado ou previsto, cria, ná vida real, a possibilida­
de de transformá-la ém relato coerente - para nós mesmos ou para outros
com que falemos —e em função do qual se possa agir. A atividade narrativa,
neste sentido, é parte inseparável do plano de ação, não é só algo incidental
, ou externo. A Vida não somente se vive, ela se relata, se conta o tempo todo:
vivemos o relato, relatamos a vida. Com freqüência mudamos ó relato, ,oü
seja, nossa visão acerca da vida,,f>ará levar em conta novos eventos inciden­
tes;, mas também tentamos, na medida do possível, mudar ps eventos para
salvar o relato, isto é,' o plano, a versão, o fut uro projetado. Ê qbsplutamenlc
inisi) pretender que primeiro vivamos e só depois contemos o que fizemos -
faiseando-o ao narrá-lo Já que a narração retrospectiva .não c oposta à vi­
são do agente, é apenas um refinamento c extensão de um ponto de susta que
está embutido na própria ação anteriormente efetuada. Em suma, a ação nar­
rativa éprática antes cie ser cognitiva ou estética. Minha história de vida é con­
tada - a,mim mesmo o n a outros - j á enquanto vou vivendo e, não, única-
mente depois;.ela é contada no decorrer do próprio processo de viver. /
Uma posição similar à de Carr foi exposta por Eric Hobsbawm: ‘

(...) a par te nutçíçamcnté predominante da ação consciente liúmana qua se baseia


na aprendizagem; tu, memória e na experiência constitui um'vasto mecanismo'
paia confrontar consíantemente o passado, o presente e o futuro. As pessoas não
podem deixar de tentar prever o. futuro através de alguma forma de ler o passado.
Uas tem de o lazer. Os processos ordinários da vida humana consciente, para não
mencionar a tomada publica ck decisões, exigem-no.21* •

Vou agora tratar dos argumentos de David Carr, no tocante à continui­


dade entre narrativa e mundo social real, quanto ao nível coletivo.
A palavra “nós” às vezes significa só uma forma abreviada de reunir
atores individuais. Mas nem sempre. A vida social inclui casos importantes em
que os indivíduos participantes atribuem, mediante a própria participação, a
sua exp.eriencia e as suas ações a um sujeito maior, a um agente coletivo de que
cada um deles faz parte.
Podemos, então, estender do eu para o nós o que se disse anterionnen-
te: o tempo social humano, tal como o tempo Individual, constrói-se tendo
como base sequências configuradas ou estruturadas que integram fatos e pro­
jetos da ação e da experiência comuns. Também neste caso, a estrutura do
tempo social real é narrativa. Em cada presente, ó a projeção prpspectiva/re-
trospectiva que lhe dá sentido e configuração, unificando os tá tos e ações nurh
projeto reconhecível quanto aos objetivos.
Há, por certo, uma particularidade, ao se tratar de coletividades: a di­
visão do trabalho multiplica os pontos de vista e os papéis. Narrador, público
e personagens podem ser pessoas diferentes. Certos indivíduos podem falar
em nome do grupo e relatar o que “nós” estamos querendo ou fazendo. É pre-20

20 HOBSBAWM, Iíric. O/i hislory. Loiuion: Weidenfeld & Niçoíson.- liW. p. 33.

68 , . • ' :■ ■ ■ •
ciso, sem dúvida, que o-relato, cm questão seja aceito pelo grupo. Nem todos
08 grupos São um “nós" consciente: pode tratar-se de u m s o m e n t e esta- *
tístico,- unificado por residência,*sexo, etnia, posição numa estratifieação eco­
nômica etc. Entretanto, as próprias características objetivas que configuram
um “eles” estatístico - alguma(s) dessa(s)' característica(s)- em certas' circuns­
tâncias podem servir de base ao surgimento de uma comunidade, de um nós
consciente e disposto a uma ação concertada: nós os socialistas, nós os negros, .
nós-as mulheres, nós òs democratas etc.
■Para que aconteça algo assim, e preciso um relato articulado,' aceito e,
interiorizado que diga das origens e destinos dá comunidade de que se tratar
e interprete o presente em função do passado reconstituído e do futuro pioje-
t-ado. Sem isto, não há como conservar o grupo coeso contra ameaças externas. <•
e eventual fragmentação interna, nem como mantêrlo agindo como grupo. De
novo, a função narrativa é prática antes dé scr cognitiva, é parte e condição
sim qtta non das ações sociais organizadas. Não se trata, também aqui, de uma
reconstituição expost, mas de algo embutido na própria ação, Obviamente, as
comunidades em questão, os grupos de que se falava, podem ser efêmeros ou
duráveis, mais ou menos vastós e importantes: nações-estado, grupos linguís­
ticos ou religiosos, uma igreja, uma faculdade, um partido ou facção etc. .
O “eu” e o “nós” de que se falou não configuram realidades tísicas: mas ,
têm existência real, não são meras ficções; e se baseiam sempre em. relatos ou
narrativas. Por isto, os textos históricos, narrativas eles também, não' são um
desvio ou deturpação da estrutura dos. fatos ou processos de que talam, que
narram: são uma extensão legitima de suas características intrínsecas.
- O processo narrativo prático de primeiro nível, constitutivo de uma
pessoa ou de uma comunidade, pode converter-se legitimamente em proces­
so narrativo de segundo nível, cognitivo. Isto acarretará mudanças no conteú­
do, Um.historiador pode contar a História de uma comunidade de um modo ■
muito diferente de como a comunidade nafrava-se a si mesma através de seus
- dirigentes, cronistas, jornalistas, clérigos etc. Mas a diferença não residira na
forma. As narrativas-de segundo nívei não refletem ou reproduzem, simples—
mente, as dé primeiro nível que tomam como tema: elas as mudam e melho- _
ram o relato, mesmo porque sem dúvida sé aproveitam da posição ex post do
historiador. Mas,não è verdade que a forma narrativa,' própria do -segundo ní­
vel, inexista no primeiro, e que, por isto, narrativa e realidade vivida sejam ir-
reconciliáveis,.existam em planos distintos que não façam mtersecçãò.

69
Alt* aqui os argumentos ide Cai r. Recordarei que há outras formas -
preferidas por Paul Ricoèur num nível filosófico e retórico, ou por Roger
Cluirtier numa discussão intrínseca à “operação histórica” - de opor-se aos
eíeilos anli-realistas da “virada íingtiísüca”. Ricoeur, por exemplo, propõe re­
formular o realismo espontâneo do objeto que, na sua maioria, praticam im­
plícita ou explicitamente.os historiadores, mediante a ligação da Históría-dis-
ciplina com uma teoria da ação e.por unia consideração, à maneira de Michel
de Cerlcau, dos elementos que justificam a contiduidade entre a práxis dos
Iiisloriadores é a práxis humana em geral (desembocando num “realismo crí-..
tic»"),21 Rogcr Chartier, que também invoca de Certeau, defende o status da
história, como prática científica devido â existência, nela, de regras que permi­
tem controlar operações através das quais se produzem determinados enun­
ciados científicos,2' Por fim, há aqueles qUe escolhem,o caminho da ética, en­
fatizando os efeitos socialmente deletérios decorrentes, sem escapatória, da
evacuação nos estudos liistóricos da noção de.verdade - evacuação resultante
da “desconstrução” e da “virada lingtiística’’.21 •

CONCLUSÃO- ‘ .' .' .. . ' :. • ”, -


■ ■- . ■■ ■/
Em seu último livro, Clrristopher Lasch, falecido em 1994, traça os con-
turnos do que chama de “novas elites”, de natureza profissional e gerencial, ba­
seadas mais na manipulação de informação e de conhecimentos profissionais
do que no controle da propriedade óu do capital; fascinadas, no entanto, pelo
jogo do mercado e engajadas numa lutâ frenética para aumentar os seus ga~,';213

21 RICÒEÜR, Paul. Hístorg and rbetoric. Iii: BÉDAR1DA, François (Org.). The social ''
responsibility of lhe histònan. Provídence, TU: Berghahn Books, 1994. p. 7-24 (em
especial p. 21-24). . '
22 CHART11ÍR, Roger. A história hoje: dúvidas, desafios, propostas. Esfurfos Históricos,
7 , 13, p. 100-113,1994 (èm especial p. 111 j. Também: HODSBAWM, Eric.Orc his-
./oq'. Loiidon: Wei(ieiiteld & Nicolsori, 1997. p, 266-277.
23 V1DAL-NAQUET, Pierre. Les assassine de la méinoirèiVn Eíchmànn de papier et .
a utres études.sur Ie.révisionisme. Paris: 1ia Déeouverle, 1987; HiMMELFARB, Gen
trude..On lookihg intò the abyss: Untimely tlioughts on culture and society. New
YorkrVintage Books: Random Hoüse,1995. p. 122- 161. , •. , .
nlios. Lntelectualmente, caracteriza-as uma “cultura do discurso çríliço” - e,
eu acrescentaria, do “politicamente correto”. Estas novas elites também se dis­
tinguem das do passado por se reconhecerem muito'iriàis como integrantes de
um sistema internacional que não aceita fronteiras do que como estando liga­
das a um Estado-nação específico..- ■ ' s" '
Declarando-se tolerantes por princípio, os membros dessas novas elites,

Quando confrontados com resistência a [suas] iniciativas, traem o ódio vene.-


noso que jaz não muito abaixo da face sorridente da benevolência de classe média.
A oposição (...) [lhes] faz esquecer as virtudes liberais que afirmam defender. Tor­
nam-se petulantes, auto-justificativos, intolerantes. No calor da controvérsia polí­
tica, acham impossível ocultar seu desprezo por aqueles que teimosamente recu­
sam ver a luz: aqueles que “simplesmente não entendem” na linguagem satisfeita
consigo mesma do politicamente correto/4 ' "

Istó se ajusta como uma luva aòs.pós-modertios. Pretendem estar com­


batendo a intolerância, a “evacuação de saberes alternativos” a partir de dis­
cursos que, dos “lugares de onde falam”, exercem um “poder do'saber” que re-
vela um “saber do poder” —ou do “desejo de dominação”. Sim, mas... Mas,>fa-
risaícamente, ninguém costuma ser piais intolerante do que um pós-niqder-.,
no no debate intelectual. Mesmo porque, para quem jogoii o racionalismo às
urtigas, seja com os argumentos quéjfor, o remédio é tentar calar o adversário
a golpes de afirmações apüdíticás e retóricas. Ou a golpes de ironia: recordé-
se, a respeito, o “riso filosófico silencioso” recomendado por Foucault diante
dos que insistam em falai' do homem depois de ter o filósofo francês procla­
mado a sua morte. Não mc parece, putíossim, que a semelhança'com o que
diz Lascli sobre as novas elites seja casual: pelo contrário, eias são á base social
fundamental do pós-modernismo, sobretudo em partes do muiiclo que con­
tam mais na emergência-e reprodução da corrente,’como os Estados Unidos
ou os países da Europa Ocidental.15 ■
Este artigo teye objetivos limitados. Quis mostrar, escolhendo dois ,
pontos bem delimitados no campo do debate atual entre realismo e anti-rea-

24 LASCH, Çhristóphcr. The revoit o f the elites and lhe hetrayal of tlemocrucy. New
/' York: Norton, 1995, p. 28, , .
25 CALUNldOS, Alcx./lgmW posttnoderttim: Á Marxist critique. Cambridge: Poli ty
Press, 1991. p. 170-171. . - ' ’ ' '

.' V ' •. . .71


N
lismo, que ás posições-pós-modernas a respeito são, no fundo, bastante dé-
beis, No tocante aos itens especificamente abordados, nüm caso ignoram de
lodo a questão das bases do conhecimento do mundo, e do social pelos pri-
uiatas e pelo homem atual como vem sendo enfocada recétitemente pela Pa-
leoa ntro p.ologia e pela Neuro biologia: um enfoque que vai em sentido con-
Inírio ao que seria necessário para apoiar o anti-realismo. No outro, os argu­
mentos deDayid Carr - que, ironicamente, volta contra os pós-mòdernos
uma parte de seu próprio arsenal filosófico, ao usar na crítica, a eles Husserl
e Heidegger-m ostram carecer de substância o divórcio entre narrativa e rea­
lidades humanas (individuais e coletivas) que alguns*integrantes da ‘‘virada
lingüíslica” pretenderam estabelecer por meio de uma abordagem retórica
p a rc ia ltró p ic a e, no âmbito da trópica, concentrada na ironia —da Histó­
ria escrita pelos historiadores. ■ - . .. >
O anti-realismo, nas ciências sociais, não é politicamente inocente. In-,
dcpetidentemente das intenções - e a sabedoria popular afirma que o cami­
nho dò inferno esfeja atapetado de boas intenções - conduzâ idéia de que to­
das as versões se equivalem, enquanto qualquer pretensão a um horizonte
mais holísticò ou geral seria ilusória, impossível, perversa ou voltada para a
manipulação. Não é possível ehfrentar o cstiihlishmeiit para valer, isto é, num
sentido que não seja o de meras lutas parcializaclas/sem umá visão holística
do social a partir da qual se proponham alternativas. . . • '
• \ -.
Capítulo 4

• V ' . . . . . . • -
• . . ■ ’ • / ■ V■. . ‘ -

- Epistemologia pós -Moderna


• . • e conhecimento :
- • VISÃO DE UM.-'HISTORIADOR
* • ' •• " :\ '

O PONTO DE PARTIDA: A
ENFOQUES DA INTEGRAÇÃO,
ENFOQUES DO CONFLITO SOCIAL'
■. \ . : ■
Até a década de 1960, as teoríás acerca das sociedades complexas esta­
vam dominadas por duas posições polares: 1) teorias que enfatizavam a inte­
gração social- num sentido.bem genérico, podemos cháma-Ias de funáçnalis-
lasi 2) teorias que enfatizavam o conflito social? : •
No primeiro casoi a sociedade é vista como uma soma de indivíduos.
Cada indivíduo, por sua vez, é um ser delimitado, unificado, integrado, livre e.
transparente a si mesmo: um sujeito de conhecimento e um centro dinâmico
de consciência,'emoção, ação e juízos. A complexidade, a estratiíicação social
' e o Estado teriam surgido das necessidades sociais. Os elementos básicos des­
ta forma de pensar implicam que: 1) os interesses sociais são compartilhados,
mais do que opostos; 2) no sistema social, predominam as vantagens comuns,

1 Pota porção do texto baseia-se cm: CARDOSO, Ciro Flamarion. História do po­
der, história política. Estudos íbero^Aiiieriamos, Porto Ategre: PUC-RS, v, 23, n. 1,
p. 123-141,1997 (especificamente p.-128-132).
, 2 Para uma síntese interessante das posições polares aludidas —embora tendendo,
confessadamente, a apoiar no fim das contas 0 postura “íuncíonalistn” ou “iotegra-
A cionista" ver: TAINTER.Ioseph. The collapse o f complex socktks. Canibridge:
Canibridge University Press, 1988. p. 33-37.

73
mnis cio que o domínio e a exploração de uma minoria sobre unia maioria; 3)
lal sistema se mantém mais pelo consenso do qúe pela repressão ou çoerçãó;
d) as sociedades sãò sistemas integrados que sé modificam lentamente. em lu-’
gac dc mudarem por meio de rupturas descontínuas (revoluções).
A integração social seria, pois, algo útil e legítimo. Sc os adriiinistfa-
dores e outras pessoas de s/af/;sjdto viyem melhor e ficam com uma parte
desproporcionalmente elevada da renda social, trata-se de um custo neces­
sário para que sejam possíveis os benefícios da integração social, Em outras
palavras, a exploração social, se existe (c esta posição tenderá lEncgá-lo), ó:
tím custo normal da éstralifíçação social,' assim como a possibilidade de
maus governos é um custo normal para que haja governo. Era qualquer
caso, as disfunções sociais que surgireih deverão ser corrigidas, teformadas;
*i sociedade, tal como existe, deve ser preservada através de reformas pon-
Iliais, parciais, sendo um dado impossível de mudar tn totum num período
curto. O que existe é necessário epor isto existe. Entre os defensores desta po­
sição geral houve grande variedade de posturas e téorias; o único dado co­
mum é uma espécie de filosofia global do política c da sociedadé/Entre os
mais notáveis propónentes dc teorias temos Max Weber, Émilé Durkheim,
Talcott Parsons.
Exemplifiquemos com algumas passagens de'Max Weber:
;I -V '1 ‘
A sociologia (.„} c uma ciência que tenta um entendimento interpretativo da
ação social com a finalidade de, assim, cliegar a uma interpretação causai dé seu
curso e seus efeitos. Uma “ação” é qualquer comportamento humano quando e na
medida em que o hidivfdito agente vincule a ele um significado subjetivo, (...) A ação
é social na medida em que, em virtude do significado Subjetivo a ela vinculado pelo
. indivíduo (ou indivíduos) agente (ou agentes), leve em conta o comportamento de
, outros e seja, por conseguinte, orientada cm seii curso.’ . *
Poder é a probabilidade de qüe um alor no interior dc uma relação social este­
ja numa posiçãoqúe lhe permita impor ti sua própria vontade a despeito de resis-
tenda, independentemente da base em que tai possibilidade repouse.J

3 WEBER, Max. The theory of social and econoúiic organization. Translated by A. M.


Hcndeison and Talcott Parscins. New York: The Free Press: Collier; Macmillan,
1964.p .88. ■' ' '
4 Ibid., p. ÍS 2. ' . . .

74
Fica evidente que, para Weber, a análise parte do nível individual e o •
privilegia. Isto é assim, cocrcnlemente, em suas concepções acerca da política.
. Por exemplo, ao tratar do “conceito de partidos” (entenda-se: partidos políti­
cos contemporâneos), as atividades deles são definidas, em certo ponto da
' análise, em termos dos “elementos” nelas envolvidos: 1) “líderes partidários” e
seus assessores: tais líderes desempenham “o papel predominante”; 2) “them-
bt qs ativos cio partido”, que na maioria dos casos têm a função de “aclamar”
os*líderes, embora em certas circunstâncias possam agir mais ativamente
(ações de controle, discussão, queixas, até mesmo “iniciar revoluções dentro
do partido”); 3) “massas inativas de eleitores ou votantes”: não passam de “ob­
jetos cujos votos são procurados.na época das eleições”, importando as süas
salitudes somente para orientar as formas de engajá-los que os líderes usarão,
ou para atraí-los em detrlmcnlo.de outro partido, ao dar-se um conflito pelo
poder; 4) “financiadores do partido” que usualmente - não sempre, porém -
“permanecem ocultos” agindo nos bastidores.*5 Como se pode notar, a prióri-
' d ade nas iniciativas e o aspecto'ativo serão laníom ais importantes quanto'
menor for a instância inlerveniante; e. serão máximos no,caso dos “líderes”,
isto é, uns poucos indivíduos proeminentes. Outrosslm, cada instância coleti­
va na verdade se resolve em agregados de indivíduos em qualquer análise mais
detalhada segundo o ponto de vista weberiano. O conflito aparece como coi­
sa eventual, como circunstância fora do comum. „
No segundo caso - o das teorias que enfatizam o conflito, a luta de clas­
ses o Estado teria surgido em função dó aparecimento de interesses dividi­
dos na sociedade que se tornava complexa (trátàr-se-ia da sociedade pós-tri-
bal) e estaria baseado na dominação, na exploração, ria cóerção. Mais especi­
ficamente, as instituições governamentais de tipo estatal, fundamentadas no
monopólio da força armada, na organização territorial, na cobrança de im- :
.postos, surgiram como mecanismos coercitivos c repressivos para resolver, em
favor da posição privilegiada da classe dominante, os conflitos intrassocietais
. que surgiam por caüsa da éstratifleação econômica (prõprietários/hãp-pro-
prietários dós meios de produção mais importantes) e social. A classe domi-

. t -

S WEBER, Max. llté lheory of social and. econonúc organimtion. Transia ted by A..M.
ITenderson and Talcott Parsons. New York: The Free Press: Collicr:, Macmillan,
1964. p, 408-409. ' =' .

75
itíinlc, para existir e manter-se çomo tal, explora é degrada as massas, a maio­
ria tia população.
1 Neste caso, com frequência, o sujeito social é visto çomo sujeito tumsin-
<tivhlnal, coletivo: classes sociais, não indivíduos. Também aqui podem existir
consideráveis variações, apesai' de uma filosoíia geral similar. Entre os propo­
nentes de peso estariam Karl Marx\FriedricIi Engels, Antonio Gratnsci, Gof-
don Cliíkle, Leslie White eM orton Eriedl*.. - •
Salienta-se, nesta-posíçãò, o caráter histórico, instável, transitório dás
sociedades; mais.do que o seu aspecto integrado, homeostático; e acredita-se
na possibilidade de sua transformação radical (revolucionária) nuin período
relativamente curto. Esta visão só teve condições históricas para desenvolver-,
se quando, a partir de 1789, sucessivos surtos revolucionários ocorridos em
diferentes sociedades demonstraram á relativa fragilidade dos sistemas e regi­
mes político-sociais.; ■
Vamos tomar Antonio Gramsci conio exemplo. Para elej o partido polí­
tico “não passa de unia nomenclatura de classe”, de modo que, em se (ratando
do partido revolucionário - aquele “que se propõe anular a divisão em classes”
—, sua perfeição e o cumprimento de sua finalidade consistem em ter deixado,
de existir .por já não existirem ciasses, nem, portanto, as "expressões destas”.
É verdade, entretanto, que Gramsci vê de"maneira bem mais nuançada
do que a maioria dos pensadores marxistas a dialética do coletivo e do indivi­
dual. Não nega que o indivíduo seja, em primeira aproximação, criatura das
relações de classe; nelas-se insere; mas não as cria: Defende, entretanto, um en-.
foque radicalmcpte histórico de tal questão. No passado pcé-capitalista, os lí­
deres carismáticos tinham maior amplitude de ação, já que õ “jiomem coleti­
vo, só existia muito debilmente. No mundo moderno, entretanto, o “homem,
coletivo” tem bases concretas, materiais, criadas pelo próprio capitalismo. Este
“homem coletivo” pode representar, porém, coisas diferentes, ao resultar 'de
um “conformismo imposto” autoritariamente qu, pelo Contrário,de um “con-,
fõmiismo proposto” - em cujo caso já não sc trataria, na verdade, de confor­
mismo,'mas de uma posição consensual a partir de uma consciência crítica
partilhada que rompe com o conformismo autoritário. Do mesmo modo, “a.
lula contra o individualismo o é contra um .individualismo determinado, que
tem um determinado conteúdo social” e, não, algo abstrato.
Gramsci é coerente com tais posições aò dizer que a pergunta mais cór-
reta, a ser formulada filosoficamente, não seria “o que é o homem?”; mas, sim,
“o qúe pode o homem chegar a ser?”, ou seja, quais os limites cm que pode­
mos ser “forjadores de nós mesmos”? Uma tal questão, para o autor, levaria a-
Conceber o ser humano “como uma série de relações ativas (um processo)”.
Nisto, “a individualidade lem a máxima importância”, mas “a humanidade que
sc reflete em cada individualidade está composta de vários elementos: 1) o in- ■
dividuo; 2) os outros homens; 3).a natureza” A relação do indivíduo coín os
outros indivíduos e com a natureza é orgânica, não constituindo uma mera
justaposição; e passa necessariamente pelo tato de se pertencer, a entidades
Iransindividuais. <(Se a individualidade própria c o conjunto destas relações,
construir para si uma personalidadesignifica então adquirir consciência de
tais relações; e modificar a personalidade significa modificar o conjunto des­
sas relações”.6

DA-TENTATIVA DE INCORPORAR
CERTAS NOVIDADES AO SURGIMENTO ' ,.
DE UMA “TERCEIRA POSIÇÃO”
A partir sobretudo.do segundo pós-guerra, ambas,as posições básicas
antes expostas - as quais existiam no interior do racionalismo ocidental —pas­
saram a sofrer forte impacto de concepções originadas no final do século 19 e
desenvolvidas durante a primeira metade do século 20:1) a obra deFreud e a
psicanálise, em especial com a difusão da noção de inconsciente; 2) o estrutura-
• lismo de derivação lingüística, principalmente o de Claude Lévi-Strauss e Rò-
land Barthes, que chamou a atenção para a existência de múltiplos sistemas de
signos e, mais em geral, de sistemas de significação que, aparentemente, se im-
poriam de fora aos indivíduos ou mesmo às coletividades (como as classes, p o r .
exemplo), não parecendo que estes tivessem*controle sobre tais sistemas; 3) as
linhagens filosóficas: que iam de Niètzsche a Heidegger, passando por Husserl
■'(a fenomenologià e sua crítica), e de Kierkegaard a Sartre (o existencialisnio).
No segundo pós-guerra existiu, na França, uma sólida esquerda marxis­
ta ou marxizante que acreditou sucessivamente em Sartre, na China maoístà e

• 6 GRAMSCI, Antonio. Antologia. Selección, traducción y notas de Manuel Sacristán.


México: SiglbXXI, 1970. p. 281-283, 347-351,353-354,437-439. .

77
iu> Ihuocomunismo, desiludindo-se cadá vez mais. Do ponto de vista filosófi-
• co e propriamente intelectual, o marxismo, o existencialismo, a psicanálise e a
Icnomenologia alemã haviam sido com binados por ãitelectuais coíiio Sartre e
Mcrlenu-Ponty em receitas diversas nas quais variava a proporção relativa dos .
elementos heterogêneos nelas intervenientes. Nesta visão de inundo eclética,'
allamcntc influente por algum tempo, percebia-se o ser humano corno estap-
<lo alienado na sociedade contemporânea. Conforme predominasse algum dos
ingredientes da síntese, á alienação parecia resultar- seja do capitalismo, sejado
naturalismo científico dominante no pensamento ocidental, seja ainda de cos­
tumes sociais repressivos, ou da vida social massifícada e burocra tizada; para
não menejonar, às vezes, a indicação da religião como demento alienanle,
nunra linlia de pensamento herdeira da terceira República francesa. Aliberta-
ção podia ser vista como reconstrução da vida social ou da cultura moral, ou
ainda corno um processo de abrir-se cada um âs suas experiências mais autên­
ticas. Marxismo, exislencialismò, fenomenològía e psicanálise (ou sua mescla
em proporções variáveis) nunca, dominaram o establishment intelectual, na
frança ou alhures no Ocidente: mas constituíam núcleos de-uma oposição, teó-
rica de grande.pr estígio ao statvs quo social eacadêmicoÃ
A corrente derivada da Lírigüístiça e da Semiótica (que chamava a si
mesma de Sennologia) estruturalistas, baseadas primordialmcnte çm Ferdi-
nand de Saussurc, demonstrou ser muito mais difícil de assimilar em sínteses.
Manuel Rubio Carracedo criticou a tenta tiva de subs tituir ó eu por um isto, dis­
solvendo o sújçitcNmraclerístico do radonalixmo ocidental. Mostrou que, dian­
te dos achados da Semiótica, do que $è tratava era abandonar as ingenuidadçs .
rio cogito de Descartes, assimilando as consequências da descoberta do univer­
so sígnico numa reconstrução do eu sobre novás bases, mediatizando o cogito
duplamente: pelo mundo dos signos e mediante a interpretação de tats signos.*8

... 7 Ver, a respeito: CAHOONE, Lawrence. lrrtroduction. Ip: CAHOONE, Lawrence


(Org.). Froin modernista toposl-moderrtism: Ananthology.Cambrídge, MÀ: Black-'
well, 1996, p. 4-5. \
8 RUBIO CARRACEDO, Manuel, LévbStruttss: Estructuralismo y ciências huma­
nas. Mactríd: Istmo, 1976. p. 284-299; do mesmo autor, ver também:./V hombre y
la ética'. Humanismo crítico, desarrollo morai, constru.ctivismo cticò. Barcelona:
Anlhropos,-1987.' parte I. - .' ' \

78
• Utna posição assim não se impôs, no entanto, na maioria dos casos e das ten­
dências posteriores.
Na década de 1960, com grande influência e aceitação princrpalmente .
a partir de 1968, reagindo às sínteses anteriormente valorizadas, sofrendo'os
efeitos do estruturalismó embora, ao mesmO tempo, rebelando-se contra suas
pretensões.cientificistas,"intelectuais como Gilles Deleuze, jacques Derrida,
Michel Fóucault é outros, filosoficamente influídos por.NietzSc.he e Heidcgger •
(mais do que por Husserl, preferido pelos estruturalistas), rejeitaram o status
de possíveis focos ao eu como o categorizara a icnomenologia ou a psicanáli­
se, ou às concepções baseadas numa realização histórica da Razão. Voltando as
armas criticas dos estruturalistas contra as próprias ciências sociais e huma-
i nas, trataram de anunciar o “fim” cie várias possibilidades: de buscar a verda­
de, de um eu unificado, da fundamentação de sentidos inequívocos, de legití-
inação da civilização ocidental,,de revolucionar em profundidade as estrutu­
ras sociais. Tal movimento intelectual desembocou, previsivelmente, num es­
tado de cóisas suspenso eíitre.o niilismo e ó pansentiolismo, numa negação da
explicação em favor da hermenêutica relativista.9 .
Paralelamente, no mundo anglo-saxão, embora por outros caminhos,
a crise do pragmatismo e do emp.irismo lógico, em especial na vertente neo-
positivista, levou a resultados filosóficos comparáveis e,em seguida, a uma
forte influência dos pós-estruturalistas franceses.
Tudo isto ocorria -enquanto, nos domínios da literatura e da arte,ten- ■
dências críticas também se opunham ás correntes antes.consideradas radicais,
num mundo que assistia aos últimos estçrtores do colonialismo europeu, ao.
desenvolvimento rápido dos meiós de comunicação de masSa e à confluência
de muitos fatores no sentido de tornar o planeta cada vez menor, mais unifi­
cado e menos diverso. Em todos os níveis, as certezas do passado entravam em
crise: as do establishméní, sem dúvida, mas também as das òpòsiçõcs ao mes­
mo como antes eram categorizadas.'

9 Isto foi adçquadamente percebido por um arqueólogo: jLAMBERG-KARLOVSKY,


. C. C lntroduction. In: LAMBERG-KARLOVSKY, C. C. (Org.). Arcíiacological ^
thouglii in America. Cambridge; Cambridge University Press, 1989. p. 1-17,

• 79
EXPLORANDO UM DOS CAMINHOS '
NA EMERGÊNCIA DA ATITUDE ..' <
CONHECIDA GOMO PÓS-M ODERNA / .
N«ss;i ênfase recairá, agora, no tipo dê crítica do humanismo metafísi­
co ocidental que veio A desembocar na noção da “morte do Homem" entendi­
do como sujeito —e ao mesmo tempo objeto —privilegiado nos processos dé
conhecimento. .. . , .*
Um dos pontos de partida foi a constatação, a partir de estudos antro-
pologicos como os de Çliflòrd Geertz, de que a concepção ocidental moderna
acerca do sujeito humano é peculiar, nada tendo de universal. Assim, por
exemplo, entre os javaneses, o conceito cje pessoa é entendido como resultan­
te da ação de dois conjuntos de contrastes simbólicos de base sobretudo reli­
giosa: interno/externo; e refinado/vulgar. Ambos subsumiriam o que nós cha­
mamos dc indivíduo.Ò contraste intcrnò/éxtemo díferenÇia as relações da ex-
pei iúncia humana baseadas tia espiritualidade e"no comportamento físico
(corporal): ambos os pólos de tal contraste seriam idênticos em todas as pes­
soas, análogamente ao que.ocorre no tocante ao contraste entre refinado c
\ utgai, O predomínio momentâneo de um dos pólos de Cada contraste é que
daria origem.a diferentes condutas:'* ‘ , '
Paralelamente ao impacto da Antropologia de Geertz e'apontando 11a
mesma direção, interessa-nos mencionar a felcitura de Freud feita por Jacques
l.acan. Este achou que a relação entre sujeito e sociedade podería'ser pensada-
a partir de dois modos interdependentes de apreensão da realidade: o simbó­
lico c o imaginário. À. ordem simbólica é a .quê confere significado e relaciona
o sujeito com seu lugar na.ordem social de outros sujeitos. A ordem imaginá­
ria é aquela etn que o sujeito.desenvolve unia consciência autocentrada. O
real é uma “presença ausente": trata-se cio referente do simbólico c do ima­
ginário, mas nurfea intervém em si e por si. Esta concepção leva.a uma visão10

10 Isto deve entender-se no contexto da Antropologia-“licimencuticá" on “interpreta- '


- ti va. Para unia crítica de seus efeitos quando se transforma cm posição extrema, veri -
LEVI, Giovanni. On microhistory. In: BURK.E, Peter (Org.). Newperspectives on his- *
íoriáü 1 vritíng. Cambricíge: Polity Press, 199f. p. 93-113 (èm especial p. 100-104);,
HOBSBAWM, Eric. On kistory. Lotidon: Wçidenfeld & Nicolson, 1997. p. 192-200.

80
descentrada da consciência individual; o que, por sua vez, torna impossível
considerá-la como a origem do conhecimento, do significado e da ação. A rea­
lidade do sujeilo, produzida ao falar, nos discursos seus e de outros, é uma rea- .
lida de transindividual: o âujeito não produz o seu próprio, significado, as es­
truturas da significação lhe são sempre proporcionadas de fora como algo já
’ dado. A ilusão de uiu eu “pontual” (quando, na realidade, se trata de. uma
“rede de'sigpificantes” mais do que de um ponto fixo) vêm déquc, no.imagi- „
nário, o sujeilo constrói e organiza o mundo çentrando-o em si mesmo, ape­
sar dc sua realidade existencial ser radicalmenle descentrada.11
Outro passo neste processo de mudança dé paradigma fòi dado por.
Michel Foucault, a partir d,estas e outras influências. Afirmou que o Í-Tomem
- como sujeito/objeto privilegiado do saber - não passa de uma invenção re­
cente, que desaparecerá ao ser transcendida a estrutura do discurso contem­
porâneo. Existe, segundo eLe, uma concepção radicalmente distinta do sujeito
no mundo ocidental a partir do final do século 18, quando comparada com a
c|üe se fazia presente anteriormente.-O aparecimento do Homem como sujei­
to e objeto privilegiado ter-se-ia dado no e pcio discurso. É do discurso e no ,
discurso que ele surge dessà maneira, caracterizando-se na episteiifc moderna
conto: 1) um fato e"ntre outros, a ser estudado empíricamente, ilras, ao mesmo
tempo, proporcionando.uina base privilegiada a todo conhecimento; 2) algo
cercado pelo desconhecido, mas fonte potencial e universalmente lúcida do
conhecimento (o cogito de Descartes); 3) um produto da Historia, mas tartr-
' bé.m a fonte e o fundamento da mesma História. • •
O surgirrlento da humanidade.num campo de discurso cqrresponde a ■
uma nova maneira de existência social em qúe as pessoas são, concpmitanle-
•mente, transformadas em sujeitos e reificadas como objetos do cònhecinien-.
to; como" “corpos” situados num campo dc forças constituído por estratégias
de poder, que se constituem também em estratégias do conhecimento, tenden­
tes a instituir uma integração do sujeito no campo mencionado. ,
O Século 19 assistiu ao desenvolvimento de novos métodos de classifi­
cação, hierarquização, codificação, vigilância o tecnologia disciplinar focaliza-

11 Acerca dos vínculos destas noções lacaniánas com o pós-modernismo e para a crí-
tica delas, ver: FERRY, Luc; RENÁÜT, Alain, La petisée 68: Essai sur 1’anti-humanís-
m e contempo raia ..Par is: Gailimard, 1985, mais espedficâmente o capítulo 6.

• ' *i

81
<l;is sobre o corpo, produzindo novos tipos de coerção (disciplina, vigilância,
punição) a serviço de uma concepção inédita do sujeito e de sua subjugação.
lal disdplinarização ’ é uma manifestação do poder que desenvolve
práticas discursivas (e outras) tendentes a tornar efetivas a dominação e a rg-
pressão na família, na escola, no museu, na fábrica, no liospital, na prisão etc,;
desenvolve, portanto, um novo potencial de vigilância e subjugação através dá
produção e aplicação de certos conhecimentos que dão a si mesmos o status
de ciências e, portanto, se apresentam comoalgo ncutrô e objetivo. Estes co­
nhecimentos põerrHse a serviço de práticas que dividem interna ou externa-
menle o sujeito, objetivando-o'através de oposiçoes', (criminoso/honesto,
sub/doente, louco/mentalinenlc sadio, sóbrio/alcdólatra ou drogado etc.).
A destruição destes mecanismos de alienação depende da destruição cia
própria, episteme do humanismo ocidental: apó,s a “morte de Deus”, trata-se de
proclamara “morte do IIomem”.u • / .
A morte do Homem’ —ou seja, sua eliminação como sujeito e objeto '
privilegiados - , se.assumida como algo realmente ocorrido, impossibilitaria a
existência de ciências sociais que fossem verdadeiras ciências, em lugar de apaT
recei em unicamente como saberes constituídos por certos discursos delimita­
dos quanto às esferas de saber/poder de que provenham, mas que se arroga-
riam ilegitimamente um ,valor universal geral.como forma de conhecimento.
Em nossa opinião^ a História é tuna dessas ciências sociais: aquela que.se ocu­
pa çentralmente com o devir das sociedades hum anas—privilegiando, portan­
to, a dimensão temporal e enfocando o social em termos de mudanças e per- :
sistências, É sabido quê âs vezes as posições,pós-modernas ou pós-estrutura-
listas Vãoulém, tentando invalidar a ciência como tal; em si mesma —discus­
são que não cabe abordar aqui. - - , .
Uma pergunta importante é: até que ponto as lehtatiyàs de descons-
Iruir uma História científica, explicativa e que cònstituísse total ida des sociais
como.objeto tiveraiu êxito, caso observássemos a situação tal,como aparecia
no, final do século 20? A resposta, á nosso ver, é que tiveram bastante êxito,
dada a conjuntura que .vivemos, marcada peias consequências da derrota dos12

12 A melhor caracterização dc Midiel FoueauIt no seio da .posição pós-moderna pa~:


rece-nos ser: CALEI NICOS, Alex, Agtiinstpostmotlcniism: A Marxist critique. Cam-
bridge: Polity Press, 1991. cap. 3, . ■■ . ..

82
movimentos e regimes,que falavam èm nome cio marxismo, no século 20 a • ,
mais mobilizadora das tentativas racionais cie dar conta do social como um
todo e de suapossível (e desejável) transformação. No.entanto, esse sucesso foi •
conjuntural, parcial e relatiyo, em- nossa opinião, como lambem ocorreu no
. tocante a .outras empresas de desconstrução, . '
, Nenhum dos grandes problemas suscitados pela Modernidade'e. pelo
capitalismo foi resolvido. Isto significa que, á médio prazo) sem sõrhbra de dú-
vida, surgirão novas teorias globais que funcionarão como ideologias mobili- \
zadoras dotadas de amplo consenso entre os que se orientem a mudar um es­
tado de coisas que tende a multiplicar os desempregados, concentrar a renda,
eliminar conquistas anteriores eni diversos domínios (das relações traballus- ■
tas à seguridade social) em nome de coisas como “predomínio das atividades
super simbólicas’; “globalização”, "competição eficiente’! e assim por diante, nó
contexto de uma fase depressiva de longa duração dõ capitalismo em nível
mundial (um capitalismo desejoso, portanto, de cortar custos). E, se procla-
1mar a “morte do Homem” como sujeito''t objeto é ao mesmo tempo procla­
mar - como.os neoconservadores já trataram de fazer - a “morte da História”,
múltiplos exemplos mostram que esta, como.certa vez afirmamos numa po-
■lêmica com as idéias de Francis Fukuyama, costuma enterrar os seus autopro-
clamados coveiros.-(Ver o primeiro capítulo desta antologia,)
•x i '*

EPISTEMOLOGIA lPÓs4l ODERNA:


EXPOSIÇÃO E CRÍTICA \
‘ Pretendemos, agora, levar a calão.uma exposição crítica mais sistemáti­
ca da epistettíologia pós-moderna, até aqui abordada parciaimenlc, em algu­
mas.de suas manifestações. . ■■ , f .'.'■■■■■
Nestes tempos que alguns batizaram de pós-modernos, predomina em ,
certos ambientes acadêmicos umá visão sobre a I-listória - bem como sobre as
■demais ciências sociais - de mera construção òu representação, sob o signo de
diversos poderes (entendidos à maneira de Niclzsche) evacuadores de saberes
alternativos.‘Íbis disciplinas são entendidas como algo a abordar só herme-
neuticamente. Em outras palavras, não haVeria História e, sim, histórias “de”
e “para” determinados grupos definidos por dadas posições - constituindo, es­
tas, lugares de onde se fala”—, o que significa qué, ao escrever, um historiador
se dirigiría, na realidade, u um destes grupos, àquele que partilhe com ele as
premissas.,que construem o seu discurso. Existiría, então, uma história das
-mulheres, uma história dos negros, uma história dos homossexuais; uma his­
tória construída em torno de interesses ecológicos, em relação a Chipre uma
história grega e outra turca etc. ^ ■ : >
Isto supõe Cirna sociedade fragmentada em subcuítüras, numa ausên­
cia de horizontes liolísticòs, coletivos; bem como' da possibilidade dc quál-
quer tipo de mobilização global. Daí lodo o esforço feito desde 1974 e am-
pliado em 1989 para destruir um 'grande objeto” da História como a Revo­
lução Francesa: estuda-se a revolução no quotidiano, como festa, como ri­
tual, como. cultura, ao mesmo tempo que ela é descaracterizada como revolu­
ção social. Na verdade, trata-se, neste caso, somente de uma parte do esforço
maior np sentido de demonstrar que todas as revoluções são grandes equívo­
cos, já que só realizam, com enorme custo, o qué de todo modo aconteceria
ou já estava acontecendo. Alguns pretendem, mesmo, que tal situação seja ir-,
reversível; daí, como vimos, falar-se na "morte da História”, n a “morte das
ideologias1(entenda-se; ideologias dotadas de pretensões globais) —após ter-'
se proclamado a "morte cio homem” como sujeito e ao mesmo tempo objeto
de um saber legítimo que tivesse um sentido mais geral do que o que possa
configurar-se nas numerosas “comunidades interpretãtivas” de uma socieda­
de irrecuperavelmente fragmentada.-1’ - ■
Nosso apoio ã opinião oposta, afirmada por exemplo por Hobsbawm,H
significa que não participamos da epistemologia em moda atualmente, que do
realismo do objeto passou a um anti-reaiismo que se.disfarça comõ “realismo
simbólico” (õu pansemiqtico); pois o abandono dos "grandes objetos" em fa­
vor da História em migalhas tem a ver exatamente com o abandono do rea­
lismo epislemológico. Não cremos que.se ganhe alguma.coisa descartando
construções unilaterais como o hoiiio faberoú o homo oecofiomicuSy sc tal for
feito em favor dc outra concepção, igualmente unilateral; o homo symboUcus.
___' . ■ ' '... /

13 Uma discussão espeçi ficam ente latino-americana da questão em: 1.EC.I INER, Nor-
befí. El presente continuo. Nexos, México, n. 118, p. 45-52, oct. 1987. ,
14 HOBSBAWM, EriCi On history. London: Weiclénfeid,& Nicolson, 1997. p. 277.

84 '' 'V ' i-


Os processos de semiose estão, sem dúvida, presentes em tudo no mundo so-
.. . ciai humano; mas, se dele constituem uma dimensão onipresente, não o esgo­
tam, Pretender o contrário é apenas mais um tremendo reducionismo.'
Cabe-nos tràtar das bases epistemológiçãs em que repousa a concepção
■pós-moderna da História, também conhecida conio “Nbva História”, embora
. ' . não no sentido em que esta última expressão sc aplicava, por exemplo - bem
mais lègitimamente, aliás aos Annalcs nas décadas que vão de Marc Blòch e
. Lucien Febvrc a Fernand Braudel. IguaLmente falsa é a afirmação de que não
haverá mais ideologias totàlizadorás còin capacidade de'consenso c mobUiza-
•. •çáo. Vivemos; sem dúvida, os efeitos intelectuais de sérias derrotas políticas
das posições de esquerda em todo o mundo. Mesmo agora, porém, percebem-
se elementos que poderão Cõntluir em novas teorias globais do social (e, por­
tanto, dá história), bem como tentativas - mais oii menos sérias conforme os
- casos, além de dotadas de ideologias distintas - de efetivamente construir tco-
rias'assin.1.1516
' Vamos adotar como ponlò de partida á estratégia de dar a palavra ao
adversário, tentando expor de seu próprio ponto de vista as posições que de­
fende, Deste ângulo, os principais lemas pós-modernos são cinco, quatro dos
quais negativos, o último método logicamente afirmativo: 1) crítica dapresen-
, •• ça oü da apresentação, em favor da representação; 2) crítica da origem, em fa­
vor dos fenômenos', 3) crítica da unidade, em favor da pluralidade', 4) crítica da
transcendência das normas, em favor da sua imaríêncicr, 5) único pontò positi­
vo de tipo metodológico: análise dos fenômenos mediante a aiteridade consti­
tutiva* Note-se que, não sendo a espistemología pós-modérna uiii sistema
coerente, os temas indicados não aparecem todos necessariamente em cáda
autor ou tendência: assim, para mencionar um caso, a posição dcsconstrucio-
riista de qUe nada há fora do texto não é de todo.compatível com a de Fou-
. cault, por exemplo, o qual admite em suas análises a existência dc “práticas
ou “dispositivos” extra textuais. : • . . ' ’

15 Elementos valiosos serão'achados nos artigos'seguintes: GONZÁLEZ CASANO-


VA, Pablo. La ofensiva conservadora. Carta, 1, p. 79-87,1991; CONZÁLEZ CASA-
NOVA, Pablo. A exploração do Terceiro Mundo. Crtrm. lQ, p. 115-126, 1994. Ver
também: CARDOSO, Ciro Flamarion. Nó limiar do século 7X1. Tempo, Niterói, 2,
p. 7-30,1996.
16 Baseamos esta estrutura temática ém: ÇAHOONE, op.cit., p. 1-23.

.85
Tomando o primeiro tenixa, “presença” refere-se <\ qualidade da expe­
riência imediata e aos objetos que por meio dela se “apresentam” também
imediata mente. O que é direta ou imediatamente dado na experiência tem
sido contrastado em foijma tradicional, em filosofia do conhecimento,- com as
representações - .a esfera dos signos lingüísticos e dos conceitos - e com as.
construções; em outras palavras, com os produtos, da invenção humana (tudo
u que for mediado pelo fator humano). Assim, por exemplo, a percepção, a
sensação, os dados sensóriais foram considerados, em diversas épocas, condu­
tos de lípo imediato para a realidade, mais confiáreis bu seguros do c[iie os
conteúdos mentais subsequentemente modificados, répresentados e alterados
pelo pensamento e pela linguagem, O pós-modernismo questiona e às vezes
lejeila esla distinção. Nega que qualquer coisa esteja “imcdiataniente presen-
le” e seja, assim, independente dos signos, da linguagem, da interpretação; das
diferenças de opinião etc. Em alguns casos,argumenta que a apresentação dê
G>1° pressupõe a representação. Assiiii, Dérrida nega taxati vam ente que exístii
algo que se possa chamar de “percepção”, ou seja, uma recepção do dado ime­
diata e transparente. -. ’■ , ' ' •
A negação da presença leva oçasionalmetite os pós-modermstas a su bs-
lituira discussão da coisa pela.análise das representaçõesAa coisa. Reproduzin­
do um exemplo exposto por Cahoone, num debate acerca’de se dever ou não
usar testes de inteligência num sistema escolar local, üm pós-moderaoTratá-
ria dé elaborar uma longa análjsc retórica acerca de como o termo “inteligên­
cia” tem sido usado por aqueles que propõem o teste, implicando que o obje­
to ou o referente do termo “inteligência” nunca está presente para nós, de tal
modo qne o que estaria cm jogo seria a História de dadas representações e do
seu uso .político.17A crítica da presença ás vezes é expressa pela frase: “Nãq há
nada fora do texto”. Isto não.precisa significar que o mundo real não exista;
mas, sim, que nós só encontramos referentes com que possamos lidar através
-de textos ou representações, ou seja, mediados, Nunça podemos dizer.o que
independe de qualquer dizer. .. - . <: .
Note-se que isto não é inovo de verdade, A descoberta da dimensão se­
miótica há décadas havia já levado a um pansemiotísmo anti-realista (ou, se
se preferir, a uma transferência do realismo pára os signos oü símbolos).

17 Ibíd',14.
O segundo ponto tem a ver com a contestação do problema dá ori­
gem. “Origem” é. a noção de existir um a-,fonte do objeto que. estiver sendo
considerado, Uma yolta à qual c muitas vezes vista corno o objetivo da bus-
ca racional. A procura das; origens é uma tentativa de enxergar, por trás ou
além dos'fenômenos, seu fundamento último.' Para as filosofias, modernas
do eu - existencialísmo, psicanálise, fenomenologia etc. - , a-tentativa de des­
cobrir a origem do eu constitúiria o caminho da autenticidade. O pós-mo­
dernismo negà tal possibilidade. Contesta ser factível voltar a, captar ou
mesmo rèpreseutar. a origem, fonte, ou qualquer realidade mais profunda
por trás dos fenômenos; lança dúvidas até mesmo sobre sua existência, ou
chega a negá-la taxativa tu en te. N um sentido, tal corrente’ó inienaottalmen-
te superficial,; não por negar que se deva,proceder a análises rigorosas, mas
por considerar a superfíéie das coisas - os fenômenos - “como algo que não
reqúer uma referência a qualquer coisa ma is profunda ou fundaínéntal. Esta
•é uma das diferenças centrais entre estruturalismo e pós-estruturalismo. As­
sim, pôr exemplo, no exame de um texto, as intenções do autor não seriam
especialmente relevantes pata sua compreensão, estando etn igualdade de
condições com quaisquer outras considerações: elas não são á “origem” do
texto, portanto, não têm qualquer “privilégio” ou “autoridade” maiores do
que os que teriam outros tatores. , , •
Em terceiro lugar, temosVnegação da unidade e a afirmação da plura­
lidade. Virtualmênte em qualquer tipo de empreendimento intelectual,, os
pós- m o de r n os tentam mostrar que o qúe outros viram como uma unidade ,
um conceito ou existência único ou integral, é, na verdade, plural. Isto deriva
até certo ponto do estruturalismo, que.entendia os elementos culturais —pa­
lavras, significados; experiências, seres humanos individuais, sociedades -
couro estando constituídos por relações com outros elementos, mas remete,
igualmente aos próprios fundamentos da filosofia de Nietzsche. Posto, que as
relações são inevitavelmente plurais, o elemento, postulado hàbünalmeíite
como individual é, de fato, também plural. Tudo é constituído por relações
coin oütrás coisas:'nada, portanto, é simples, imediato ou totalmente presen-
‘ te; e nenhuma análise de algo pôde ser completa .ou final. Por exemplo, um
texto pode ser íidõ segundo uma mfinidade.de maneifas, nenhuma das quais
provê d seu significado “verdadeiro” pu completo. O eu humano não é urna
unidade simples, hierarquicamente composta, sólida, auto-coritrolada: çonsis-

S7
le numii multiplicidade de forças ou elementos. Qualquer pessoa estaria mais
próxima cia verdade se dissesse possuir “eus”; mas, não, “um eu".
.Enquanto os dois primeiros pontos discutidos decorrem de opções opos-
las que se vêm manifestando em-diferentes formas nos debates cpistemológicos
desde o século 17, neste terceiro princípio ou tema achamos um primeiro cril-
canbar de Aquiles importante do pòs-modemismo. Apesar do que parecería in­
dicar se os pós-modernos fossem coerentes, ocorre de fato é o que foi chamado
ironicamente por alguns de "vingança póstuma do sujeito", cuja morte foi pro­
clamada tão vociferantemente em linguagem metzscheana.wNa prática, o põs-
modemismo cai no subjetivismo e, ao contrário do poeta inglês do finai do sé­
culo 16 e início do 17, John Dormc. que afirmava que no man is an ishmd, age
como se cada homem fosse, sem dúvida, uma ilha. Vivemos, atualmente, uma
inibição ou excesso do ego, da individualidade. Apesar das proclamações em
contrário, o individualismo burguês vê-se excluído do veto à unidade, a não ser,
em piano esIritamente teórico e abstrato, num debate em forno do cogito carte-
siano cuja finalidade é minar filosoficamente as bases do rácionali.smo,
O indivíduo, no final do séculò 20, queria ser um mundo em sí, inter­
pretai' a informação a que tem acesso por si e para si mesmo. Esta, aliás, e a
base real deste terceiro princípio epistemológico qúe estamos examinando,
aqiicle que nega a unidade e proclama a pluralidade; do mesmo modo que é'
o Umdamenfo da História era.migalhas” de se querer opor “histórias”, no
plural, a qualquer História” holística, Isto tem por força, como premissa, a '
crença no valor absoluto do indivíduo', de seus direitos, desuas expectativas; e
desemboca na çonvicça~o (às vezes em nome do “politicamente correto” e do
imilticulturalismo) de existir uma necessária multlpliÇaçãõ,dos enfoques.
• Tal situação, entretanto, como afirma o antropólogo Marc Augé, expli- .
ca-sc, na verdade, por um desnorteamento dos indivíduos no mundo de hoje,. •
acelerado em suas- transformações: vêem-se afetados por elas, num momento
em que os elementos de identificação coletiva disponíveis para o indivíduo es­
tão mais enfraquecidos do que nunca estiveram no passado (por exemplo: fa-

18 Vcr: KKI-LEY, Donald R. EI giro cultural eu la invcstigación histórica. In: OLÁBAR-


RI, tgnacio; CAPISTEGUI, Francisco Javier (Org.), [M “niicva" historia cuíturak La
influencia dei post- cstructuralisino jqel auge de la interdisciplinariedad, Madrid-
Complutense, 1996. p. 35-48 (em especial p. 43). ' I .

S8
Ittília; nação, ideologias), Sente-se a necessidade urgente dê uma produção in­
dividual,de significações,” que, no entanto, como não podería deixar de ser,
ocorre sob a influência de um aparelho nniltifa cético de publicidade e de pro­
paganda política qué se adapta bem ao individualismo extremado de boje: a ..
publicidade fala do corpo, dos sentidos, da vida sadia: os políticos proclamam
as liberdades individuais. E o imperialismo, ao sul do Equador, adota e.instru-
inentaliza, hoje em dia, uma-linguagem muiticultur alista. y
- O quarto, ponto da cpistemologia pós-modcrna tem a ver com a nega­
ção da “transcendência das normas”. Normas como verdade, bondade, beleza,
racionalidade,.não são mais vistas corno sendo independentes dos processos
|,ara cujo governo ou juízo servem. Melzschedixfc.Por exemplo, onde muitos
filósofos usariam a idéia de justiça para seu juízo-sobre uma dada ordem so-
cial, o .pós-modernismo considera aquela idéia corno sendo, èla mesma, um
produto das relações sociais a cujo julgamento, seja aplicada. Isto é, a idéia foi
criada numa certa época e num certo lugar para servir a certoS interesses, é de­
pendente de um certo contexto intelectual e social etc. Isto complica grande-
mente toda pretensão acerca da justiça de determinadas relações sociais. ^ .
• É falso dizer .que uma cat egoria de coisqs - as "normas - possa ser in-
dependente da semiose, ou da experiência, ou de interesses, sociais delimita­
dos. O conceito “bom” e o ato de clmmar algo de “bom” nao são independeu-,
. tes dãs' coisas que queremos chamar dé “boas” Os pós-modernos.respondem
às pretensões normativas de outrem mediante a exposição dos processos de
pensamento, escrita, negociação e poder que produziram aquelas.pretensões
normativas, isto não significa, porém, que tais pós-modernos deixem de ter
suas próprias pretensões normativas; pelo contrário, cosnim^m sér óu ecolo­
gistas e/ou contrários à energia nuclear, ou feministas, ou ligados ao movi­
mento negro, ou ao movimento $«>’, ou, na Europa, aos diversos regionalis­
mos éteM as temos aqui um segundo d grave calcanhar de Aquiles. Pois, o que
acontecerá se algum crítico'decÍdir tomar carona na forma de análise crítica
pos-moderna a respei to - que torna todas ** pretensões normativas problemá­
ticas, sem excluir, portanto, aquelas Comuns entre os pós-modernos para
aplicá-la.ao próprio pós-modernisniõ è aos valores que ele sustenta?.

19 ÀUGÉ, Marc. Noti-placei: IiUroductipn to an anthropology ot Supeimodermty.


Translated by John Hqwe.Londoh: Verso, 1995. p. 7.-41.

89
,>or f|m»ll!S° «firmativo: o quinto princípio. Trata-se de uma estratégia
metodológica centrada no emprego dq noção de “niteridade constitutiva” ao
analisar-se,qualquer entidade cultural. O que parecem ser unidades culturais
- seres humanos, palavras, significados, idéias, sistemas filosóficos, organiza­
ções sociais - são mantidos em sua unidade aparente-únicajnente através de
um processo afivo dc exclusão, oposição e hierarquização. Outros fenômenos
ou unidades precisam ser representados como estranhos ou “outros” o que se
efetua mediante a representação cie um dualismo hierárquico.no qual uma
unidade é favorecida ou “privilegiada” e uma outra é desvalorizada de algum
modo. Por exemplo, digamos que se estejam examinando sistemas sociais ca­
racterizados por uma divisão grupai ou étnica, em que existam grupos privi­
legiados. Neste ponto, é bom notar, porém, que, ao referir-se a grupos privile­
giados, os pós-modernos falam de qualquer tipo de privilégio: não estamos
diante de análises.em termos das classes sociais e da exploração social; embo-
m, incoércntemeiüe com suas premissas, análises assim também possam apa­
recer em textos pós-modernos. Os grupos privilegiados precisam produzir é
manter ativa mente sua posição representando ou figurando a si mesmos - no
pensamento, na literatura, na arte, na lei - como estando isentos dás proprie­
dades atribuídas aos grupos não-privllegiados; c precisam representar estes
últimos como desprovidos das propriedades dos grupos privilegiados. Km se
tratando da psique humana, o cu pode sentir-se compelido a representar a si
mesmo como isento de sentimentos sexuais ou agressivos, os quais, porém,
não podendo ser simplesmente eliminados, precisarão ser atribuídos a situa-
ções casüaís, a eventos idiossincráticos. Nunt sistema filosófico, o dualismo
entie realidade -e aparência’ envolve a construção de uma espécie de lata de
Iixo enj ,que os fenômenos que o sistema não quer sacramentar com o ierrito
privilegiado de “fenômenos reais” possam ser jogados, considerando-os como
metas aparências . Só assim pode a integridade do termo, idealizado óu pri­
vilegiado ser preselvada. i. . '
Isto pode ser expressado,-metaforicamente, dizendo que m margênsé
que constituem o texto. As unidades aparentes são constituídas mediante a re-
p te ssão de siuuiependencia e d as stias relações com outras unidades. Por con-
seguinte, o pesquisador esclarecido tratará,.dé perceber aquilo que forexduí-
do ou marginalizado, os elementos descartados de qualquer sistema ou texto.
Implícita ou explicilamcnte presente- neste tipo de análise está, para os pós-

90
modernos, a noção de que o processo de exclusão Ou repressão - de "empur­
rar para a margem” —é falso, instável e/ou imoral. Falso, porque mentiroso,
instável, porque a repressão acabará por precisar ser admitida, forçando a u m .
reconhecimento de que existem fatores excluídos ny representação da unida-^
de privilegiada; imoral, porque toma'a forma da opressão. Todo. texto é cons­
truído a partir de algum tipcf de exclusão ou de repressão; portanto, ele nega
a si mesmo e, quando lido cuidadosamente, abala sua própria mensagem.
Achamos, mais uma vez, outro calcanhar de Aquiles de peso. 0 que nos.
•impediría de-aplicar eslé.método aos >róprios textos pós-modernos e suas
modas temáticas,.por exemploem História, tratando de verificar-o que em-
pUrram para a'margem”? Verificaríamos que são os grandes objetos, a concep­
ção holístjca tia sociedade, sem a qual ela não tem comb.ser contestada in to-
tum, nem alternativas globais põderrí ser propostas ou formuladas; verificaría­
mos também que isto significa üm consentimento, um apoio tieffícto ao esta-
blislt taen t ca pi t alista e burguês que, na fase çla famosa “globalização , concen^
tra a re nda e as oportunidades (geográfica tanto quanto socialmcnte) aitula
mais do que. ocorria nas fasesnnteriorestdo capitalismo. Hão poderiamos con­
siderar isto imoral? E não estará,em jogo, neste fato de empurrar, a dimensão
holística para a margem, o apoio tácito dos pós-modernos a uma concepção
da"náturcza humana” condizente, na prática, com o individualismo tradicio­
nal da fiíosofia ocidental, mesmo se, agora, afastando-se de alguns de seus as-,
pectos, como o cogito cartesianó?
. : i ' *
- . • . • v •
CONCLUSÃO • ' .. - •
. Em dezembro de 1995 ocorreu, na"França, a inais forte oiida grevista"
"que àquele país conhecia desde 1968, O povo francês, diante da implementa-
, ção das políticas nèolibèràis eini nomc das regras do mercado e de imperati­
vos demográficos declarados incontornáveis pelo governo (aumento do nú­
mero de idosos não acompanhado .pelo de contribuintes), formulou pergun­
tas còmo a seguinte: por que seria errôneo dar cinqüenta bilhões de trancos
-do tesouro nacional pára aumentar os recursos da seguridade social e assim
gàranti-la, se o governo considerava correto dar cinqüenta bilhões de trancos
daquele tesouro para sanear um banco, o Çrédit Lyotwais, antes dè privatizá-

91
Io? Isk), mim país que contara com .seis milhões de marginalizados, marcado
por uma deterioração de serviços sociais antes altamente eficientes como re­
sultado de medidas de “austeridade” decididas com total insensibilidade so-
ciai, pela diminuição progressiva dos benefícios da seguridade social, pelo.au-
. mento do número dos trabalhadores que ganhavam tpenos do que o salário
mínimo de que o governo fingia garantir a universalidade, bem como pelo in­
cremento de formas temporárias e precárias de emprego, enquanto ò desem­
prego lotai alcançava 12% dás pessoas em. idade de trabalhar, sem qualquer
perspectiva de diminuição.
, ^ gteve fez o governo francês recuar, mostrando com clareza não exis-
tir qualquer coisa inevitável no néoliberãlisrao* O que há são, simplesmente,
um sistema de poder e escolhas políticas e sociais acerca de quem sairá ga­
nhando (uma pequena minoria) e quem sairá prejudicado (a imensa maioria-
da população, à qual-se impõem sempre novos sacrifícios, numa socialização
<las peidas más nunca dos ganhos). Tal greve sé articulou em torno da reivin-
<1icaça o de unia solidariedade soçial ameaçada: por que seria impossível ao Es­
tado continuar proporcionando direitos estáveis aos trabalhadores, cm lugar
dc só garantir aos empresários o direito.de investir e lucrar, sem se sensibili­
zai com sacrifícios sociais inaceitáveis? Nas éleições seguintes, o goder políti­
co íoi retirado da direita e dado a uma esquerda moderada.
Imediatamente antes dos acontecimentos dc 1995, havia estado na
moda, na França, uma discussão tipicamente pós-moderna entre historiadó-
ics e especialistas de outrás ciências sociais conservadores (ainda quando não.
sc apresentem ou considerem assim) cm torno de noções como estas: termi­
naram finalmente á Revolução Francesa e a oposição entre direita e esquerda;
o “fim dá história” à maneira de Francis Fukuyama; c so bretu do, um suposto
r consenso político que sc teria tornado possível ao impor-se a convicção dç,
. cxistir uni víncul° necessário entre a democracia representativa e o mercado,
lin.função do primeiro e do último pontos, sublinhava-se ainda que a França,-

2° -Um exemplo de país latino-americano onde, após oitó a«os de reformas liberais
feitas em associação com o FMI e outros organismos internacionais,com total in­
sensibilidade social como sempre, nos mandatos dos Píesidentfes Morige e Árias '
■ (1982-1990), conseguiu-se reverter pelo menos em parte a tendência, é Cosia Riça i
ver PIsltEZ 1.5RIG.NOU, Héctor. Breve historia contemporânea dc Costa Rica. Méxi-
. co: Fondo de Cultura Econômica, 1997. cap. IV.

92
estava abandonando uma visão que universalizava sua própria história çomo
.historia da humanidade, para comportar-se e pensar, doravante, çomo as ou­
tras democracias representativas desenvolvidas.-' Ora, ante a explosão de 1995
e as eleições seguinles, seria preciso perguntar: quem, exataideiite, Jjailicipava
d o “consensò” invocado nas'discussões intelectuais ainda ÍÕo recentes (sendo
evidente que o tema do consenso .foi tacitaiiiente abandonado após aqueles
acontecimentos)? d 'quem interessava ou aproveitava tal consenso? ^
Os franceses .têm vocação para olhar para o próprio umbigo, intelec-
;. tuai mente falando. Assim, as discussões aludidas dão a impressão de constituí­
rem uma grande novidade; mas não é assim. Tomemos um exemplo alemão
'da década de 1980, mais honesto no sentido de que declara sem disfarces de­
fender uma posição conservadora, mesmo tratando-se do que chama de “con-
. seryaclorismo moderno’':-Haas Buchlieim, professor de' ciência política na
Universidade de Mogúnciaçdizià por exêmplo o seguinte: 1
f ' m 4 ‘ • • •• • ' -
' (’...) mudou em nosso país a forma de pensar dominante em relaçàp aos anos se-
• tenta. Não "se trata de um giro do pêndulo da “esquerda” para a direita e, sim, dc
qlic a vida pfiblica, que durante mais de um decênio esteve altamente condiciona-
: x da pela ideologia, retorna (...) ã razão quotidiana. Dc certo modo, voltamos a ser
.... ' normais. Isto não significa, porém, que tudo o que durante quase duas décadas se
' • havia conseguido graças às iniciativas da “esquerda'-’seja agora deixado sem efeito *
(...). Isto pode apreciar-se de maneira'muito dara no pensamento e na forma de
vida daqueles que cresceram nestesdois.últimos decênios. Pode observar-se, neles,
de qtie maneira burguesa se pode ser "esquerdista”; è como se pode ter mna wdn
' -• normal de maneira “esquerdista”, tanto nosdvábrtos priyados quanto nas concep­
ções sobre o EstadoA

Na década de 1980 ainda era possível, na Europa Ocidental (embora já


não no Reino Unido de MargaVetThãtcher), cantar loas, uma vez mais, aos be­
nefícios do Wêlfare. State: deixem-se convencer d e que é desnecessário manter
a combatividade da esquerda,-bestas condições em que o bem-estar foi cònse-*2

. '2 1 - Ver, por exemplo: AUGE, Marc. Hacia mm antropologia iie tos mundos cotUcmpora-
ncos. Trad- Alberto Liiis Bixio. Barcelona: Gcdisa, 1996 (a edição original em fran­
cês é de 1994); PURET, Prançois; JUU.1ÀRO, lacqties; ROSANVALLON, Picrre. L<f
' Republique itu centre: Ia finde 1’exception française. Paris; Calniann-Lévy, 1988.
22 BUCHHEÍM, Haas. Política y poder. Trad. Carlos de Santiago. Parcel ona: Alfa,
1985. p. 122. •'

93
guklo tlc jacto, mesmo sem eliminar cí capitalismo. Mas, após 1990, quando o :
modelo Tliatcher se generalizava na Europa, sem excluir a França, a discussão
francesa do “consenso" teve de ser muito mais abstrata, já que, depois da con'-
juntura de 1989-1991, a direita estava exatamente tratando de destruir o "-Rs-
lado do bem-estar” em nome da eficiência e da'necessidade de competir na
em da globalização.2-' Não é casual que se queira insistir na autonomia.da po­
lítica: como certa vez notou Habermas, Hannah Arendt gostava- de refugiar-se
na Atenas antiga para não ter de discutir problemas éconômicó-sociais con­
temporâneos incômodos: se era assim há algumas décadas, imagine-se na
atualidade! Ou seja: o debate pós-moderno francês açerça do "consenso”, an­
terior a novembro e dezembro de 1995, era um debate de direita,24 conserva­
dor. O abandono dos enfoques: holísticos e a politizarão pulverizada que o
íicompanha nada têm de casual ou de politicamente Inocente.25

23. É interessante notar que, já em 1961, o britânico tí. Strauss reconhecia seç o “Esta­
do do bem-estar" simplesmente o resultado de circunstâncias nas quais “a$ classes
proprietárias devem pagar u n i‘resgate’ para-mantemseus privilégios”; já naquela
época, havia setores ullraconservadores - do mesmo tipo dos que tenderam a im- •
por-se ern muitos países (em espcciql após 1989-1991), urna vez que o thateheris- '
mo mostrou o çamínho - que o criticavam co mo se constituísse uma espécie de so­
cialismo c em nome de teorias neoliheraisfver ò lúcido artigo de ZAWADSKi, S. La
génèse et Fessencc dela çonceplion de Welfare State. Lu Pologne etlcsAffaires Occi-
dcntaks, Poznán: lustytut Záchodni, 1 ,1 /i,p .5 -4 2 ,1965.
24 Ver, acerca da contínua pertinência (e uso habitual) das noções de direita e esquer-
, da. BOBBlO, Norberto. D ireita e esquerda: razões e significados de uma distinção
política. Trad. Marco Aurélio Nogueira, Sâo Paulo: Ed. da Unesp, 1993. inclusive.a '
resposta do autor a seus críticos, redigida em 1994 (p. 7-25). ■ :
25 A respeito da base social do pós-modemismo nos países em que sc originou, ver
CALLÍNICO.S, Alex. Àgainst postmodernism: A iVlarxist critique. Cambridgc: Políty
Press, 1991. p. 170-171; LASCH, Christophcr. The revoit ofthe elites and the Itélra-
yal vfdanocracy, New York: Norton,-1995.

94
' Capitulo 5

C omeçando o século

PONTOS DE PARTIDA - '’


' ' Das tendências que se entrecruzavam nò final do sccülõ 20, quais mar­
carão a parte inicial do presente século? Os fins e inícios de século convidam a
fazer balanços é a olWr para a frente. O historiador, como homem de sua épo-
•ca, a partir dela interroga o passado - e às vezes também o futuro, por que não?
Isto só parecería improvável a quem achasse ser a História um discurso pro­
blemático que, “ostensivámente”, pretende talar sobre o passado.12Não é, porém,
o meu caso,já que para mim a História é uma ciência social que, em séu estu­
do, sc ocupa das sociedades humanas privilegiando a dimensão temporal.
O romancista e ensaísta Ben Bovà, escritor de ficção científica, afirmou
com bastante razão, no entanto, que 1 . .

- ninguém, de fato, ésçrcve sobre o fuUipo. Os escritores.usam situações fàrturis-


las para iluminar mais tbrtenientc os problemas c oporlunidadcs-do ptesente.
, • >. .
t *
Ou seja: apesar das aparências, não tratarei aqui de verdade do futuro,
mas ó tomarei às vezes como meio ou pretexto p.ara referir-me aos processos
sociais do presente e às tendências dinamicasque contem. C-

1 Cf. ÍENK1NS, Keitli. Re.-thínking histoty. London: Rouliedge,-1991, p. 26.


2 BOVA, Ben. Challengcs. New York: Thor, 1993. p. 295. y
.Meus pontos de partida são limitados. Consistem cm.diíhs de minhas
preocupações como historÍador;e partem destas constatações: 1) ocorreu nas
últimas décadas uma deterioração palpável e ácclerada do registro erudito da
linguagem, principal instrumento que se maneja ao escrever História ou ao
dissertar acerca dela;1 2) fala-se hoje em dia de estarmos ingressando numa
epoca pós-modenui (ou, para MarçAugé, supermodema) cm que não mais se
crena numa História.que.faça sentido e tenha direção: mais em geral, tratar-
se-ia de um período em que as teorias globais de qualquer tipo seriam im ­
possíveis ou perderíam credibilidade e influência mobilizaclora— tim assun­
to que já apareceu proeminentemente em alguns dos capítulos precedentes
desta antologia. ' . ,
Quero, pois, interrogar o presente e 6 que parece será o futuro próxi­
mo, naquilo em que pode quiçá ser previsível, em busca de respostas àquelas
preocupações que mencionei. ' - >

SOBREVIVERA O REGISTRO
ESCRITO E ERUDITO DA LINGUAGEM?
fl'ês processos, segundo creio1, ameaçam ná.atualidade c continuarão
ameaçando no futuro imediato a palavra escrita e o registro erudito dá língua.
Sua atuação, configura um fenômeno geral que, pessoalmente, pude ver cm
açao, nas últimas décadas, no Brasil, m> França, no México, na Costa Rica e
nos Estados Unidos.
-.0 primeiro processo concerne à copipelição com a leitura e a escrita de
novas tecnologias que garantem acesso à informação sem a necessidade de ler,
ou limitando muito a leituratmeios áudio-visuais; computador (em especial
a difusão da multimídia); tipò de escrita empobrecida c gramatiçalmentc bár-
b;ua usua' nos programas de software, e também nas redes interativas como a
Internet (nesta, é verdade, paralelanienle a redações de alto nível); tecnologias3

3 Instrumento, nao substância! Para uma excelente refutação das opiniões que equi­
param a I listória a discursos ficcionais ou literários, ver: CARR, Davíd. Time, m r-
. rntíve, and hiitory. Bloomington: Indiana Univcrsity Press, 1991, bem como o capí-
lulo 3 desla antologia. .

96
previsíveis a curti) prazo e seus prováveis, efeitos: penso sobretudo no livro ci­
bernético ç em processadores de texto capazes de reconhecer.a voz do dono e
receber ditado.. .i “• . ".
- O. segundo processo é a crise da escola tradicional.,Na.realidade, foi só
há dois séculos que, começando em certos paísés europeus, leve mícto a difu- ,
são generalizada do ensino básico universal, Agora, inteiramente defasada, a
escola não consegue responder aos desafios e competições do século 20 tardio
e deste início de um novo século de modo a preservar nos alunos os mvehs de
atenção e interesse que permitam treiná-los a que leiam, desenvolvam a lcitu- ,
ra como atividade habitual (sem a qual nunca poderão redigir adequadamen­
te nos padrões da língua erudita). As teorias, correntes, há algum tempo, de
que não baveria'formas erradas de falar ou escrever, e sim, registros diferentes
de uso da língua, embora não sejam ém si de todo equivocadas, parecem-se a
uma confissão disfarçada de impotência ou derrota, Já que, entre os tais níveis
ou registros de uso, o que a escola'nãó preserva é, precisamenle, a linguagem
erudita, não mais conseguindo garantir que passe de uma geração à seguinte
sem constante-empobrecimento,
O terceiro processo.forma um dos contextos em que os anterionqentc
mencionados ocorrem. Ao dar-se a abertura progressiva da educação de eiist-
:■no médio e superior, no século 20, a cada vez maior proporção da população,
os grupos sociais que controlam o poder e as decisões não aceitaram garantir
os Custos per capita necessários, para manter a mesma qualidade anterior do
-ensino e da formação, nas novas condições históricas cm que semelhante de-
r sideratiun tornava-se de difícil obtenção.
Assistímos, áo longo.de cem anos, à invasão progressiva do áudio-vi-
sual: cinema, rádio, televisão; videocassetes, televisão a cabo etc. já hoje, em
certos países, muitos dos livros são lançados páralelamente cm cassete aqdio
ou em CD. No futuro próximo, como bits são bits c se misturam sem dificul­
dade, òs livros em multimídia - som, escrila empobrecida e simplificada, ima-
. gens - deverão multiplicar-se. Já existem; e, neles, é fácil prever que diminui­
rá ainda mais a parte escrita, como1em outros veículos que se desenvolveram
no século 20: fotonovela, história em quadrinhos. Mesnm porque, a Cada ge­
ração as pessoas estão em. média menos preparadas a redigir com alguma so-
fisticáção e a ler textos de relativa complexidade e extenso vocabulário. Não
í compartilho, portanto, o otimismo daqueles que dizem: a difusão dos nucro-

97
computadores se fez a serviço da programação de textos/da escrita. Talvez seja'
ve idade.-Mas a maioria - e «tua maioria que tende a continuar aumentando
- dos texto» digitados-em computador é de muito'baixo nível quanto às exi­
gências de linguagem. É verdade que digitai- na Internet constitui unia forma
de escrita. E daí? A pichação de paredes e muros também constitui, mas não
avança a preservação do registro erudito e sofisticado da língua que, até sur-
g"- uma alternativa, viável, parece ser necessária àquilo que nos'leva a discutir
i,(l" ‘ ° aSSUIltò; a escrita da História em modalidades aceitáveis no tocante à
construção lógica do pensamento e à preservação, através de vocabulário ade­
quado, de idéias e conceitos com grau suficiente dc riqueza, nuance e precisão.
JJmberto Eco mantém aparentemente um otimismo limitado quanto
no lema ora em discussão, ao assinalar que a nossa não é, como se pretendeu, '
u epoca da civilização da imagem, em que a escrita entre em decadência. Se­
na, sem dúvida, a época do computador e doriudio-visual, mas também da
escrita e, mesmo, de uma “nova alfabetização acelerada”. Em sua Opinião, a
maior parte, do-que será visto nos próximos anos nas telas da TV ç dos com­
putadores “será,palavra escrita, mais do que imagem”. Outrossim, pará apren- '
liei- a trabalhar adequadamente com os computadores é preciso ler livros. Ou
seja (e este é só um exemplo entre outros), na idade da imagem aumenta o nú­
mero de:livros,-de revistas c de leitores: aS:“forçasçcntrífugasem relação ao li­
vro suo, afinal de contas, forças centrípeUis c produzém a necessidade de m ais;
pnpeJ.mpresso”. Mas ele não deixa.de acrescentar que, de momento, “estamos
alando de quantidade” e, não, “de qualidade”.J E é a qualidade que me interes­
sa nesta discussão, • ' '
Mula mdica que tais tendências, que se vem acentuando há décadas,utàs-
lando as pessoas dos livros e mesmo dos jornais e revistas (cujo nível de língua-
gem escrita ja é hoje pífio no Rrasil) - outpace Ecó, de certos lipos de livros, jor-
mus e revistas- vão mudar no futuro previsível. Elas afetarão ainda mais, isto '
sim, a educação, os modos dè comunicat\ à informação e o entretenimento; '
Prevê-se para muito em breve o livro cibernético: um microcomputador
. finalidade restrita, do tamanho de um livro de bolso, cpm tela de alta roso-4

4 to U íV ,! ! C1r a R-íl^ neS S°bfe e, PaPd impreso. In: RODHÍGUEZ,.Maria FJia;


dJ S S fp jo a .K f * * Nucva

98
iução, contendo lexto/imagem/son* pois será multimídia em sua vocaçao,
sem dúvida alguma; O texto c eventualmente some-imagem serão gravatos
num chip, talvez poV telefone (db editor à livraria, ou mesmo à casa do leitor). , ■
Este tipo de. livro poderá também falar: ou seja, se o consumidor nao quisct
ler, o texto sèrá lido para ele pela máquina.56No tocante aos textos produzidos
para este tipo de livro, é previsível que o novo meio encoraje o uso, pelo au­
tor, da linguagem coloquial. Mesmo porque deverá agir em tal sentido o com­
putador capaz de ser treinado a reconhecer a voz do dono e ao qual se ditarão
textos* o desenvolvimento de computadores assim ocupa muitas equipes asia-
ticas, norte-americanas e a m Y p é ia s .'^ isto ampliará ainda mais a tendên­
cia já existente a cortaf radicalmentc os custos da editoração de texto nas ed;-
loras. Agora mesmo, em muitos casós o texto passa do micro do autor direta- ..
mente aos terminais da editora e.é publicado sem revisão ou nuulança. T or-
nou-se assustadoramente comuni que, mesmo quando o contrato declare que
o devam fazer" os editores creiam poder furtar-se a enviar provasuo a utor para .
que as revise, previamente à publicação, É claro também que, dado o alto pre­
ço do papel e do transporte dele de um lugar a outro, o livro cibernético, uma
vez introduzido, será muito mais barato e, portanto, irresistível, mesmo com
a dificuldade de controlar as infrações aos direitos autorais, çoisa-ja grave es-
de a introdução.da. cúpia xqrográfica. Existem, sem dúvida, opiniões contra­
rias: o debate a respeito aparece, às vezes, mesmo na grande imprensa, que sc
' ocupa.também de assuntos correlatos, como as tentativas do grande capita e..
ganhar controle sobre a Internet para seus próprios fins.5
Note-se qüe pode acontecer que tais inovações não se generalizem logo,
como.se viu recentemente com o videofone (telefone acoplado à televisão);
cuja tecnologia existe mas foi preterido, na implementação papá o mercado,
em favor do telefone celular, por se' julgar mais urgente a mobilidade telefoni- ■
ca na independência de redes fixas. Mas, mesmo se não se generahzarem de-

5 Ouem duvidar dessa possibilidade a. curto prazo, trate de examinar o programa


itxto ‘LE, no Souild Blastcr. 16 do Windotvs'95. Verificará já sei; possível a leitura
por computador: este, a partir de padrões-sbnoros incorporados à memória, i -
. constitui a voz humana,'', ' • * " :
6 ver os materiais reunidos e.m ie Monde D ip lo m a tique, Paris, 43, n. 506, p, 1,15,20,
mái 1996. ' .

99
pressa, isto nuo alclaiá a deterioração da língua erudita eserilu, a não ser tal­
vez no ritmo, pois liá suficientes tecnologias já instaladas e em plena expansão
que, com os outros fatores apontados - crise da escola, recusa dos grupos do^
mimmtes a aceitar os custos de uma educação democratizada de qualidade
vão nessa direção, Nada indica que a tendência possa ser revertida facilmente;
c ela é mundial/ ' • ‘

SÃO OU SERÃO POSSÍVEIS TEORIAS HOLÍSTICAS


DO SOCIAL? A - ■• • . ' . •

A RliCUSA PÓS-MODERNA” DA HlSTÓRIA COM SENTIDO E


DAS TEORIAS GLOBAIS '' : ,

Como foi dito, meu segundo ponto de partida foi a constatação de ha­
ver atualmente quem afirme uma pretensa impossibilidade de que surjam no-
, vas ideologias mas também leorias globais, holístícas, que funcionem como
amplas visões do mundo e da sociedade, no que já foi chamado de “fim da
I Iis foria . Entenda-se: fim da história que os homens fazem, se se pretender
perceber nela algum sentido, evolução ou progresso;,e, concomitantemente,,
fim da História-disciplina entendida corno uma explicação global dp social
em seu movimento e enrsuas estruturações. Diz-se hoje que não'há História,
e sim, histórias no plural; histórias que são “de” e “para” grupos definidos, sem
possibilidade alguma de reivindicar uma autoridade universal.5A respeito, ver,
em especial, o sétimo capítulo desta antologia.
Nesta posição há, em primeiro lugar, algo de certa forma existencial, tí- •
pico de uma geração: a chamada geração dc 1968. Esta conteve, ha Europa,
uma sólida esquerda marxista ou marxizanté e, no*segundo pós-guerra, acre7
ditou sucessivamente em Sartre, na China maoísta. ho Eurocomuhismo, desi-78

7 Acerca dos temas dlscutidos/adma, examine-se também a visão interessante, se


bem que ófccssivamente otimista, contida em: NEGROPONTE, Nicholas. A vida
digital* 2. ed. Thul Sérgio Tclfarol LSão Paulo: Companhia das Letras, 1995/
8 JENICINS, Kéith. Re-tltinkíng ltisiaiy,; London: Routledge, 199Í. p. 59-70. '
lüdtiido-sc cada vez mais. De portadora de esperanças transformadoras do so­
cial num sentido abrangente, a geração cm questão passou a apoiar movimen- •
tos parciais de luta ereivindicação; feminismo, regionalismo, movimento g ü y ,
ecologismo, movimento negro etc. Outros de seus membros desembocaram
na social-democraçia, na técnbcracia, no heoconservádorisino ou no neoli.be-
ralismo. Paralelamente à descrença, houve de sua parte uma remterpretaçao
da Modernidade e, em especial, do século 20, visto como era de atrocidades,
massacres; destruição do meio, ambiente, manipulação de uma humanidade, .»
cada vez mais masslficada - e, não, como era dc progresso da humanidade e
da razão em que a ciência e a tecnoldgia trariam a felicidade.4 Também no -
caso da recusa das teorias holístiças, veja-se o sétimo capítulo deste livro.
Enquanto ocorria tal:recusa, também nos, domínios da literatura e da
a, te tendências críticas se opunham às correntes antes-consideradas radicais,
num mundo que assistia aos últimos estertores do colonialismo europeu, ao
desenvolvimento,rápido dos meios de comunicação de massa e à confluência
de muitos fatores no sentido de tornar o planeta cada vez menor, mais unifi-
cado è menos diverso. Eni todos os níveis, as certezas do passado, as do e s t a -
b l i s h t n ç n t mas também as das «posições ao mesmo como antes eram catego­

rizadas, entravam em crise.’0 , •


Daí o que alguns chamam de “atitude pós-nioderria , caracterizada pela
■“morte dos,centros" e pela “incredulidade em relação às inetanarrativas”. O
primeiro ponto, aplicado à História, leva a afirmar que os pretensos çenlros,
cm outras palavras, lugares de onde se tala, a partir dos quais se afirmam as
diversas‘posturas diante da História-disciplina, não são legítimos nem natu­
rais, mas sim, ficçõès arbitrárias e passageiras, articuladoras dc interesses hoje
percebidos como relativos a grupos limitados, não podendo falar em nome de
.unia sociedade inteira e, menos ainda, da humanidade. O óutro.ponto signi­
fica que qualquer “metadiscurso” ou tentativa de teorizar o mundo completo
ou a sociedade como um todo.tornou-se impossível devido- ao colapso m e-

• 9 para uma boaanálise' á.respeito, deste processo,'ver: CAÜ.INICOS,-Álex..


• À g a in s l p o s tm o ik r n is m : A iVlatxist critique. Gunbridge: Pòlíty Press, 1989, cm
especial p. 162-171, ■.
10 ver iniroduçao do compilador à- antologia: CAI IOÓNE, Lawrence, E. (Org.].,
Cambndge, MA: Bla.ckwell, 1996. p. 1-23.
l'ro m m o d e rn isin to p o s tm o d e m is m .

Gu
medíável da crença nos valores de qualquer tipo e numa hierarquização deles
que seja válida universaímente. Disto resulta a recusa das'teorias —que scgun-
• do alguns continuará indefinidamente o niilismo intelectual contemporâ­
neo, com seu fclativismo absoluto e suá convicção de que o conhecimento se
reduza a processos de semiose (produção do sentido) e interpretação (herme­
nêutica), impossíveis de hierarquizar de algum modo consensual. Daí a inevi-
lãvel dispersão de posições, numa sociedade que, de qualquer maneira, diz-se,
letule a partir-sé em subcuituras pouco relacionadas entre si.11
Já alirmei que, infeliznienle, sou forçado a acreditar na deterioração da
esci iía e da linguagem erudita como as conhecemos, o que terá conseqüêncías
<lifíceis de prever para os historiadores do futuro. Acho, pelo contrário,;que a
afirmação de que nunca mais haverá teorias globais com alguma chance de
promover mobilizações importantes seja pura aSneira,
Como 'historiador, considero- me'vacinado contra os “fips da História”
de.qualquer tipo, pois em minha própria vida. já conhecí vários deles, À ex­
pansão econômica do. segundo pós-guerra, antes dos choques do petróleo,
não levou acaso a que sê proclamasse, como fez Walter Rostow, a inelutabili- .
dade de que o mundo todo convergisse para o capitalismo avançado ociden­
tal e nele permanecesse depois? E não fez aparecer várias teorias acerca de um
capitalismo doravante cm eterna expansão, sem crises conjunturais? Qra, tudo
istó hoje tornou-se risível. .
Inexistem soluções à vista para problemas còmo a miséria, o amplo^le- *
seinprego sein perspectivas previsíveis de absorção, a exploração social, a pun-
ção de recursos de certas partes do mundo em proveito de outras mediante
mecanismos velhos (a guerra do Goltb e o mais recente ataque ao Iraque, ino­
vadores tecnológica e estrategicamente, velhíssimos em seus objetivos reais) ou
novos —serviço da divida externa do oütrora chamado Terceiro Mundo, polí-
lica de patentes. As próprias questões caras aos “pós-modernos”- devastação
da natureza, arma mentismo, perigos do emprego da energia nuclear, apèrfei- •

11 No tocante às consequências das posições indicadas para as ciências humanas e soC


ciais, cf.; BOHMAN, James. New/Mosophy of social Science: Problcms of indeter-
minacy. Cambiidgé, MA: The M1T Press, 1991; MARCUS, Çeorge E.; PJSCHER,
M.J. Aiillwojxibgy tis cultural criticjüc: An .experimental meiment in the huinan
sciences. Chicagò: The Univcisityof Chicago Pressa 1986.

102’
çoiimenU) das técnicas de opressão db indivíduo ou de alguma modalidade es­
pecífica de indivíduos (mulheres, negros, minorias diversas) - não podem, sem
frustração permanente, enfrentar-se sem visões ç estratégias globais do so'cial.u
A meu ver, o verdadeiro problema é a dificuldade de teorizar com suces- ~
so sobre uma sociedade em plemt e profunda, transformação em seus padrões
de organização, em suas formas de relacionamento pessoal, em seus sistemas
de produzir, armazenar e transmitir conhecimentos e informações, entre dlver-.
sos aspectos. Vivemos com um pé nq .mundo gerado pelas revoluções Indus- .
triais, outro, num mundo emergente, potéhcialmente muito distinto, mas cu­
jas características e consequências não estão de todo instaladas, nem são sem­
pre claras. Conseguir teorias .globais convincentes implicaria saber separar, nos
processos que hoje se cntrecruzam, os que serão mais duráveis e estruturántes.
Ainda assim, será' que, de fato, inexistem teorias globais do social corn
potencial mobilizador na atualidade? É incontestável que, à direita, certamente
existem e estão tendo bastantes sucesso, Ãesquerda, isto é, entre os que acham
que as sociedades humanas são mutáveis em prazos rçlativamenle curtos e in-
-teligíveis como totalidades e.não apenas setor a setor—“em migalhas’ - , *13o qua­
dro é menos claro. O mesmo'teríamòs a dizer se, simplesmente, procurássemos
teorias e explicações genèralizanles respeitáveis do ponto de vista intelectual,
acadêmico: o que aquelas teorias ncoconsèrvadoras não são. Eu dizia que o qua­
dro seria menos claro; nada desprezível,' porém, já o veremos,
»• ; -

T e o r ia s à d i r e i t a : ^ t e r c e ir a o n d a ”, .
“ PARADOXO global”

O caráter social e poli ticamente conservador das posições de que se tra­


tará agora não t duvidoso, por mais que as pessoas que propuseram as teorias

\ 12 Por exemplo: CALVERT, Petei'. The. çoncept of class: an histórica! introdiietion. Lon -
’ dons Hotchinson, 1982. 1 -
13 Nestes tempos em qtie há esforços quotidianos no sentido de confundir a questão,
é bom recordar os .critérios básicòs que distinguem as atitudes de direita e de es­
querda diante do social, muito bem sintetizadas em: GONZÂLE2CÀSÀNO.VÀ, Pa-
blo. Las categorias ãel desanvlío econômico yla investigaciát) en ciências sociaics. Mé­
xico: Üniversidad Nacional Autônoma de México; 1967, '• . j
cm pauta se apresentem como defensoras de uma nova civilização, que enca­
ram como um progresso para Ioda a humanidade. O último livro dc Alvin é
Heidi Toftler foi prefaciado por Newton Gingricht, líder republicano ultra-
conservador do Congresso dos Estados Unidos.no passado recente.1'1E, em -seu
pi efácio, ele mencionou que os Toffler, de que é aniigo íntimo há mais de vin­
te anos, foram, nos anos 1980, chamados a assessorar o Comando dç Treina­
mento e Doutrina do Exército dós Estados Unidos (coisa que também fez o
próprio Gingricht); de um modo que, suponho, pode ter influído pas moda­
lidades de guerra aplicadas em 1991 contra o Iraque. Por outro lado, rnreaso
de um atitor como John Naisbitt, é evidente o caráter de aberta apologia do
capitalismo na era do que eic chama_de paradoxo global - uma nnindializa-
ção econômica que, ao mesmo tempo, diz ele, se traduz na terceirização e des­
centralização que favorecem empresas pequenas é médias eficientes, bem
cotno a autonomia dos indivíduos. Por exemplo, ein frases como estas da con­
clusão de um livro qüe escreveu com Patrícia Aburdene:

No limiar do milênio, (...) possuímos os' instrumentos e a capacidade para •


construir a utopia aqui e agora. (...)
V A e.\papsào econômica do mundo desenvolvido será « fundamento de uma
■.evoldção superior e de uma riqueza planetária. (...) ■ • ■
O pós-guerra fria;verá bs Estados Unidos e a União Soviética colaborando
quanto ao meio ambiente e a modos não-ideológicos de acabar com a pobreza.1415

. .Estas frases soam estranhamente hoje, diante do que tem acontecido de


verdade no mundo desde que- o livro de.Naisbitt e Àburdene foi escrito. Não
há dúvida, entietanto, de que autores como.estes tivessem intenções normati­
vas ao propor teorias bastante globais e,integradas dó social, que pretendiam
fossem válidas para d futuro previsível.
Sua visão —coerente em linhas gerais, mas com variantes de autor a au-i
tor - parte da noção de que estamos vivendo o nascimento de uma nova civi-

14 TOFFLER, Alvin; TOVPLER, Heidi. Créating a new civilim m n The polifics.of the
Third Wavc. Atianta: Turncr- Publishing, 1995. As menções às idéias dos autores ba-
scar-se-5o neste iivro. Ç " ^
15 NAISbIT 1, John; ABURDENE, Patrícia. Megqtrends 200Ò-. The new directiuns for
the 1990 s. New York: AvonBooks, 1990. p. 336,338. Ver também outro livro do au­
tor: NAISBITT, jobn. Globalpítradox New York; Avon Books, 1994.'

104
iização, cuja tônica é a “vitória do indivíduo”; e, ao mesmo tempo, num para­
doxo apenas aparente, vivemos a era da “mundialização ou globalização.
Como somos a última geração de uni mundo em desaparecimento e a.pi imei-
ra de outro que surge, sofremos conflitos, incertezas, perplexidades, coletiva e
' individualmente. ■ > .
À percepção dessa nova civilização poderia remontar, nos Estados Uni- ~
dosl à década, de 1955 a 1965: pela primeirayez, então, Os,trabalhadores de ser­
viços e de gestão tornaram-se mais numerosos que os operários.e os trabalha­
dores primários (da agricultura, das minas). O computador se difundia na- ,
quela é£oçá, bem como o transporte comercial por aviões a jato, a pílula an­
ticoncepcional etc. Nos anos 1970, o declínio da civilização ligada às revolu- „
■ ções industriais seria já visível. E, ncslcs últimos anos, os indicadores não po- >
deriarn ser mais claros. Em 1989 havia, nos Estados Unidos, uns quinze .mi- .
llioes de negócios operados em tempo integral de casa. Seis anos mais tarde,
cerca de trinta milhões de estadunidenses trabalhavam em casa-total ou pàr-
, cíalmente, graças ao computador, ao telefone ceiular, ao fax. Em 1995, a ex­
portação de serviços e propriedade intelectual (patentes) foi igual, naquele
, país, àsoma das exportações de artigos eletrônicos e de carros. Três quartos da
força de trabalho situavam-se nos serviços e nas atividades “supérsimbólicas
(ou seja, vinculadas à informação, ao conhecimento). Desde os anos 1970, em
modalidades variáveis, as mesmas tendências percebiam-sqno resto do m un­
do desenvolvido.. ’ '
' Os Toffler falam, a respeito, de úiha “terceira onda”. A “primeira onda”
foi a Revolução Agrícola, superando a caça-coleta: levou milhares dc anos para
firmar a “civilização da enxada” A.“segunda onda” foi a da civilização indus­
trial ou da “linha de montagem”, que se impôs em menos de trezentos anos. E
a “terceira onda1’ é a da “civilização do computador”: dos que hoje vivem, mui­
tos constatarão a sua vitória nas próximas décadas.
Por enquanto, as três civilizações coexistem no planeta. As sociedades da
primeira onda proyêem produtos primários: matérias-primas agi ítolas e minc-
' . rais. As da segunda onda proporcionam trabalho barato e produção massifica-
da, As da terceira onda possuem novos modos de criar e .explorar o conheci-
mento e a Informação - isto é, algo intangível em comparação com bs fatores de
produção que os economistas costumam considerar: capital, matérias-primas,
terta, trabalho etc. Na verdade, informação e conhecimento substituem ciescen-

105
temente o capital e os demais recursos (uma noção falsa,'como veremos no sé­
timo capítulo), cortando custos. Assim, por.exemplo, quanto a u.ni programa de
computador dirigindo uma maquina-robô que corta aço: conseguem-se mais
, peças com a mesma quantidade de matéria-prima do que se fossem cortadas
por operadores humanos. A manipulação genética e molecular cria novos ma­
teriais,, menos volumosos e mais leves, para o que a miniaturização também
contribui - q que.se traduz em menores custos de produção, armazenagem e
transporte; ainda mais porque, paralelamente, estabelece-se uma informação
rápida (até minuto a ,minuto, se for preciso) da relação estoque/íluxo de mate-
. riais ou produtos prontos, graças á informática. Ào mesmo tempo que o conhe­
cimento se torna o recurso principal e mais remunerado, o tempo.revela-se um
recurso econômico também central em função da aceleração do ritmo da ino­
vação, dos investimentos, das transações'. A competição é intensa e há redes
computadorizadas-que movem capitais instantaneamente -. capitais, que mi-
gram sem dificuldade entre setores e países, Se p dinheiro se move à velocidade
da luz, a informação, ideal mente, teria de andar ainda mais depressa! '
Em tais condições, torna-se economicamente viável a desmassificação
da produção. O comprador de um carro Volvo, nos Estados Unidos, pode es­
colher entre 20 mil possibilidades para criar, deste modo, o seu *veículo ideal”.
H o triunfo dò consumidor, num mercado que não é mais global, nem mesmo
. segmentado, mas, sim, atomizado: são indivíduos oti famílias comprando por
mala direta, pela TV, pela Internet. . , .
Tudo isto exige uma infra-estrutura crescente de meios de comunicar
ção avançados: computadores ligados em redes, estas em redes maiores; tele­
fonia celular; fax. E, na gestão, obriga a terceirização - triunfo das empresas^
pequenas e médias eficientes e inovadoras - , à descentralização,.à reengenha-
ria empresarial, à iniciativa dos empregados em equipes pequenas; também
conduz á remuneração altamente diferenciada do trabalho, em lugar de todos"
ganharem o mesmo, como eia o ideaído sindicato tradicional.
No limite, pòdcr-se-ía imaginar a humanidade toda - tuas uma huma­
nidade feita de indivíduos autônomos - ligada entre si muridialmente pela In­
ternet e por outros meios. Serja já possível, no mundo desenvolvido, iniciar a
eliminação das grandes cidades, descentralizando residências, produções, ges­
tão, sem qualquer'perda decòntalo ou informação. ' ' ... , ;
, O que acaba de ser resumido configura, claro) uma visão altamente
idealizada ou ideológica, através de insistentes imagens que enfatizam.o in-
divíduo livre, criativo, lolalmente informado e que não sofre, ao que parece,
a interferência de fato/'es mais amplos - ideologia de classe, publicidade, pro­
paganda política,-socialização no.in.lcrior.de certos valores; desde a infância
etc. Uma das imagens preferidas é a da autojjrogramação individual da cultu­
ra; da Instrução e do lazer pelo uso da televisão a cabo interativa,, d o video­
cassete, da multimídia, da obtenção de dados por fax. Insiste-se em que indi­
víduos, mais cio que grupos ou instituições, é que são ligados pelos novos
meios de comunicação.
. , Ao contrário do utopismo aberto de Naisbitt, os Toffler—mais próximos
de fa to do círculo de poder vinculado aos novos interesses e, pela mesma razão,
mais realistas - percebem sombras no quadro, mas são, a respeito, adeptos da
Realpolitih. o pa’rto de uma nora civilização nunca é indoloq.mas o custo social
vale a pena. Cm todos esses autores, a brutal e acelerada concentração da renda
está ausente das análises, como estão os hoindess; o desemprego maciço.é visto
como problema passageiro’que só será resolvido por políticas àfinadas com os
novos tempos, nunca pelas do Welfare slate —um dinossauro da segunda onda.
Os Tofllcr acham qnejierá impossível uma coexistência pacífica da se­
gunda e da terceira ondas no âmbito mundial: são duás civilizações com ne­
cessidades radicalmente contrastantes c ideologias também opostas, a enfren­
tar-se. O “uítranacionalismo”, creem, é próprio dos países que ainda não com-
' pletaram á segunda ónda e dificilmente poderíam atingir a terceira na sua ple­
nitude'; a ele se oporia uma "consciência planetária", uma ideologia de “cida-
, dão do mundo”, posta pela terceira onda a trabalhar pela “globalização” a
c qualquer preço dos serviços, finanças, negócios e patentes. Derramamentos de
sangue são, pois, previsíveis no futuro próximo. Mesmo porque a poluição do
mundo, as doenças e a imigração ameaçam a riquèia e o bem-estar minoritá-
' rios do mundo desenvolvido a partir dos países semi ou subdesenvolvidos: as
tensões crescerão e ã “nova civilização da terceira onda” provavelmente guer­
reará para estabelecer sua hegemonia política.*16 v ‘ •.

_' - /
16 Consulte-se: TOFFLER, Alvin; TOFFLER. Heidi. War and anti-war: Making sense
qftodayE global chãos. New York: Warner Books,.1995.

107
T e n t a t iv a s m a is in t e r e s s a n t e s : ■
' “ e s t r u t u r is m o ” “ c o m p l e x id a d e ” 1718

Chrístopher Líoyd, de cujo “estruturismo” tratarei agora, acha impres­


cindível que exista uma História holística, estrutural e científica. Para ele, tol
um em», comparável a jogar, fora p bebê com a*água suja. do banho, ter-se'
nbmujonatlp o projeto do Modernismo de construir um fundamento intef-
subjetivo para o conhecimento do social, aiegando.em favor desse abandono
0 c.uálet destruidor e opressivo dos usos e abusos políticos do cieutificismo,
da própria ciência e da tecnologia; De acordo com Lloyd:

Abandonar a .razao científica é abandonar o único meio de identificar c.supe­


rar as causas da degradação do meio ambiente ecológico, político e social.”

A ciência, no entanto, só pode realizar tarefa que .seja libertadora


dcn tio de uma comunidade racionai, esclarecida, e democrática, na’qual
emerja setn os vícios habituais o nível normativo constituído pela metodo­
logia e t.eotia da pesquisa científica. À.ciência não é socialmente normativa
em si mesma: mas ela se justifica por suas perspectivas críticas e explicati­
vas, e caso sirva de alicerce para uma cultura de libertação social, cujos con­
teúdo e condições a ciência do social pode e deve esclarecer. As alternativas
para a validação crítica intersubjeliva da libertação social são a tirania ou o
niilismo. assim, uma ciência histórico-social, estrutural, da sociedade é,
para Lloyd, uma necessidade política, Orá, esta necessidade se acha, hoje,
sob a mais forte contestação intelectual quê já conheceu, em função da c ri- '
se dos modos-de pensar neo-ijuministas, 0 .reíativismo etn múltiplas va-
1ianles agora prolifera e ameaça qualquer entendimento.e explicação inter-
subjclivos da sociedade, quando nãó da natureza. Com isto também se per­
dería a possibilidade da transformação, racional, democrática e emancipá-

17 Na versão deste texto publicada na revista" Tempo, inseria-se também, neste ponto,
uma análise das idéiasde Marc.Àugé sobre os nião-Iugares: como tais idéias apare­
ceram no capítulo 2 deste livro, lião voltei a tratá-las aqui.
18 LLOYD, Christophêr. As estruturáriia História. Trád. Maria Julia Goldwasser. Rio
de janeiro: Jorge Zahar, 1995 (a edição original em inglês é de 1993). p. 2 i 5. •

108
dura do inundo social. Neste ponto, o pensamento de Lloyd ç o de Jõrn Rü-
sen se encontram.” *
Lloyd propõe “um arcabouço construído, numa perspectiva histórico-es-
truturista” (expressão qüe usa para evitar confusão com qualquer estruturalismo)
que seja um caminho para solucionar os problemas metodológicos e filosóficos
existentes nqs estudos sociais —em. especial, para transcender velhas dicotomias.
ciência versus hermcnêuliat, explicação versus compreensão, ação versus estrutu-
1ra, mudança versus continuidade, História (entendida como o estudo do unico c
irrepetível) versus Sociologia (tomada confo estudo das regularicladcs do social).
Ao apresentar o tal arcabouço, oferece uma lista de oito pontos nos
quais se nota o desejo de unir elementos do que eu tenho chamado de para­
digmas ilumirrista e pós-tnoderno da História. Não me parece, porém, que nos
dê o mapa da mina, ou seja, o modo efetivo e detalhado de vincular esses ele­
mentos num todo coerente teórica e metodologicaniente. Mesmo assim, seu
livro avança em .tàl sentido, quando mais não seja por'denunciar e dissolver
falsos becos sem saída e esclarecer pontos que uma discussão até agora bastan­
te anárquica obscurecera —pnesmo porque os pós-modernos são dados a afir-
. mações apódícticas, mais do que a refutações rigorosas e detalhadas; etendem
* a ver contradiçõçs insolúveis nas posições alheias, mas nãó nas suas.
Numa atitude contraditória que talvez lhe tosse muito difícil funda­
m entarem detalhe, apesar do que prega cm matéria de teoria do social, cm
. política Lloyd é, no essencial, um “pós-moderno”. Digo isto porque.recusa
“planos hòlísticos e utópicos em relação à boa ou perfeita sociedade futura
como base das práticas políticas e prega a adoção de “modestos objetivos po­
líticos de curto prazo dentro de uma'perspectiva de igualitarismo e democra-
: cia a longo prazo”.*20Isto. torna duvidoso o que antes proclamou acerca da ím-

19- Cf. ROSFiN, jõrn. Conscientização histórica frente à pós-modernidade; a história


na era da nova intransparencia. História: Questões e Debutes, 10, p. 303-328, 1989,
20 LLOYD, Chrístopher. As estruturas da História. Tra.d. Maria julia Goldwasscr. Rio
de janeiro: Jorge Zahar, 1995. p. 229. Josep Fontana,.no epílogo à edição brasileira
de um Ue seus livros —um volume dc altíssimo íiíyçl —,apesar de também contei 0
te.xto em questão análises muito acertadas, parece-me fazer demasiadas concessões
às posições “perspectivistas” ou "d ialógicas”, sob' a influência, ao que parece, daas-
sím chamada. Escola dc Fraúldrirt, que, para mim, cm sua 'fase mais recente, é uma
■corrente paramarxista que, nofundamental, compartilha fortemente de posições
pós-modernas: FONTANA,' Josep* História: análise do passado e projeto social.
Trad. Liiiz Roncari. Bauru, SP: Edtisc, 1998. p. 272-281. . _

109
poi tôncia <la unia visão “estou tu lista”, pelomenos no terreno da estratégia po­
lítica em migalhas” que parece ser aquela em que acredita “no curto prazo”
(seria o caso de perguntar: de onde virá o.longo prazo marcado por “uma con­
cepção radical mente igualitária e democrática do processo político”, de que
também fala? .... ' - V .. ..
Referir-me-ei agora a uma super teoria em construção, fundada nos
conceitos de complexidade e limite âo caos.2'
• Nas décajlas de 1980 e 1990, a partir dá generalização e de aplicações
numerosas da teoria matemática é física do cao s-q u e tendeu a ser vista còmo
caso especial no conjunto,dos estudos de sistemas cofopiexos comèçòu.a to ­
mai corpo uma süperteoria que, embora sobre bases muito distintas .(por
exemplo, apesar de evolúcionista, recusa a noção dé progresso), recorda o Ma-
lerialismo Dialético marxista em sua tentativa de unificar numa única visão
integra! de mundo o humano e o natural, mediante a busca de princípios co­
muns em pesquisas da complexidade em informática, Matemática, física,
Biologia, Arqueologia, História etc. . . • . .•
O ponto de encontro multidisciplinar é o Santa Fe Institúte, fundado
nos hstados Unidos em 1984, O.uso maciço cie computadores impõe-se, afi,'
pelo fato dc serem os sistemas complexosaltaménte não-lineares e,‘portanto, *
de difícil estudo matemático, • - 'l- -' , '
Durante trezentos anos, a ciência natural concentrou-se cm estudar os
i llSPcctos mecânicos, precisos, repetitivos e previsíveis do universo, usando a Ma-
lemática de Newton e Leibniz. Isto significou, na prática, deixar de lado, em sua
maior parte, os processos que ocorrem no mundo, pois são não-lineares ç difi-
ciimente previsíveis majoritariamente: clima, ecossistemas, entidades sociais,-
embriões em desenvolvimento, o cérebro - todas estas são totaÜdades de dina-
mica complexa enão-linear. Em sistemas assim, estímulos pequenos podem, em
delei minados momentos do processo, levar a conseqüências enormes: ou seja,
difeiençás mínimas nas,condições, iniciais de sistemas não-linearés produzem
resultados não só grandes como variáéeis, razão dc sua imprevisibiiidade.( ■
É lógico que üma Física, Matemática e Cibernética voltadas para siste­
mas complexos não-iineares são pofendálriiente capazes de fornecer idéias e

21 Basear-me-ei cm: LEW1N, Rogdr. Complexidade: a" vida no limite do caos. Trad.
Maria Rodolfo Schmidn Rio dc Janeiro: Rocco, 1994. '
-v ' • .

modelos à História e outras ciências sociais. Isto está acontecendo, mas num
1 processo ainda incipiente em que há coisas loucas é um tanto místicas (como ^
a noção de Gaia, o planeta Terra visto como entidade holíslica viva), outras
bem mais sérias. ..
Os:sistemàs dinâmicos complexos ou não-lineares podem ser p ro d ü zi-.
• dos por um conjunto relativaniente simples de subprocessos: isto porque, no
processo de complexificação (que pode ser.bem Curto), a teóríu’prevê e estu­
da o surgimento de uni número limitado dc utvatofcs, isto é, configurações a
que tenderão os elementos êm processo de alteração. •
Segundo as teorias e Simulações dos estudiosos dos sistemas complexos,
propriedades globais podem emergii.de interações menores ou locais e, tuna
vez formadas, interagir com os elementos de base. A auto-organização seria
uma propriedade inerente aos sistemas complexos. Os proponentes de uma vi- - -
são como esta não gostam 'dos fatores exógenos, cuja.incídçncia tendem a mi-
nimízar: é o caso da seleção natural em Biologia (sem unanimidade, no entan- '
to), ou das hipóteses migracíònistas.ou invasionistás em^Arqueologia. Também
se opõem aos reductonísmos caros aos pós-moclernos: por exemplo, a tendên-
cia a esquecer as propriedades morfclógicas globais dos indivíduos desde os
achados da Biologia molecular'de Jacqucs Mónod e François Jacob; ou a Hh"
1 tória em migalhas”, o cultu ralismo'relativista antropológico e arqueológico etc.
Os matemáticos, iio tocante a sistemas dinâmicos, haviam teorizado •
. três classes de compórtamento: ponto lixo, ponto periódico, ponto caótico. Os
estudos do caos identificaram um quarto tipo dc ponto, intermediário eíitie
ó caótico, de um lado, e o fixo ou o periódico, de outro, batizando-o “limite
do caos”.' Este último é usado pára conceituar as modalidades rápidas, seja de
aumento da complexidade (emergência de níveis ou patamares mais comple­
xos de organização num sistema), seja, pelo contrário, de desmoronamento
.. _ também rápido de uma condição de equilíbrio qüase estável em direção à um
ponto caótico, com diminuição de complexidade. Note-se que, em lais estu­
dos, prefere-se trabalhar com um subtipo específico cios sistemas complexos.
• os sistemas adaptativos complexos, os. quais feriam, ao mesmo tempo, a má­
xima capacidade dc transformação e á máxima possibilidade de simulação dq
. seus processos em computador,
' Exemplos da aplicação de tais princípios (ou segundo bases por eles in-
: fluídas) às ciências h u m an as- cm estudos que usam métodos e argumentos

111
históricos e arqueológicos —são as análises do colapso de sociedades comple­
xas por autores còmo Joseph Tainíèr e.Norraan Yoífee.M

CONCLUSÃO /' . ^ ';

Pode-se ver que enxergo o futuro imediato com pessimismo quanto a


alguns processos, com otimismo tio tocante á outros. O importante, porém, é
não perder o futuro de vista, nem a convicção de ser possível nele influir atra­
vés das ações e batalhas do presente. O aspecto mais insidioso do pós-moder-
nismo. entendido como posição intelectual ç, em minha opinião, a visão cin­
zenta de um futuro em que coisas ocorrerão, mas uada de fato acontecerá, no
sentido tbrte da palavra —já que o termo^chave para os que assim pensam é
morte: depois da morte do Homem (enlenda-sc; do sujeito individual ou tran-
siiidividuaJ), proclama-se a morte da História, a morte das ideologias, a mor­
te* das teorias globais. Eu. certamente não gostaria de viver nesse futuro que
pintam; um futuro morto. Ainda bem que se trata de um porvir tão reacioná­
rio quanto ficcional, construção pessimista e niilista que já agora não é tão di­
fícil desmascarar e desmentir. Sobre este assunto, ver o primeiro capítulo des­
ta aulologia, quanto ao “fim dq História”, bem como o.sétimo.

22 TAINTER, Joseph. The collapse. of completosocietics: Cámbrklge: Çambridge Uhiver-


síty Press, 1988; YOPFER, Norniín} COWGII.L, Geo.rge L.(Org.}. The còllapse of
ancíertt States and civilizations, Tucsori: Ttie University of Arizona PresS, 1991.

112
. • . Parte 3

H is t ó r ia : o n t e m e h o je
1 ' Capítulo 6

\ -4 ’: s

Fwokama i >.\

H istoriografia O cidental
(atíé aproximadamente 1930)

INTRODUÇÃO
A Historiografia é: I) uma-filosofia ou metodologia aplicada da Histó­
ria: modos .de fazer, concepções sobrc"o fazer, exemplificados; 2) o conjunto
das obras históricas produzidas numa época ou num país; 3) o estudo siste­
mático de um historiador, escola de historiadores ou época-(ou local) da-pro-
dução histórica, buscando estabelecer padrões de explicação ou compreensão.
Este panorama da historiografia ocidental basear-se-á, necessariamen­
te, em escolhas.'Por exemplo: no tocante à Antigüidade, a atenção será focali­
zada na Grécia, não em Poma; e a ênfase expositiva recairá mais nos períodos
mais antigos do que no presente, já que é bem mais fácil obter uma visão su­
mária.da historiografia pós-1930 do que da anterior.

ANTIGÜIDADE

A existência da ''História”, entendida como uma disciplina, uma área


'específica e reconhecida cOmo tal de estudos sobre-associedades humanas, é
condição prévia para que possa existir a historiografia em qualquer dos senti­
dos indicados. Ora, não é possível datar o surgimènto de algo assim, nas áreas
do.Mediterrâneo e adjacentes, antes do século 5o a.C. grego. '

115
No antigo Oriente Próximo, nenhuma cias civilizações locais tinha al­
gum termo em seu vocabulário que correspondesse a ‘'História1', seja no sen­
tido da história que os homens taxem coletívamènte, seja no de uma área de
•escritos e estudos separada de outras que tome a primeira (a história feita pe­
los homens) como objeto. _> /
No antigo Egito, por exemplo, o mais próximo que existe à idéia cie
uma História-disciplina ou raais exatamente de um texto histórico é guenuf,
termo plural que sé traduz normalmente como “anais’’ Parece corresponder a
relatos sobre fatos passados encarados como objetos, em sua materialidade. O'
registro do passado tomava a forma de; 1) listas de reis (Pedra de Palermo:
anais primitivos); 2) genealogias privadas, por exemplo aquela, tardia, de sa­
cerdotes menfitas, estendendo-se da dinastia XI à XXII, ou-seja, por mais de
1350 anos, correta nos pontos em que é possível verificá-la por outros docu­
mentos; 3) relatos e imagens de campanhas militares, da paleta de Nanner
(fim do quarto milênio a.C.) em diante; 4) escaravelhos “históricos1’ (só na
XVIII dinastia tardia,século 14 a.C.j. O sentido do tempo; ò início, quando os
deuses viviam entre os homens, é valorizado; valorização do que é antigo, có­
pia constante de documentos antigos, arcaísmo da Época Tardia. Por iòngo
(empo, predominou a visão cícíica de um tempo;voltado para as origens: pi ex.
o rei massacrando os agentes do caos. Percebiam-se, porém, duas temporali-
daclcs,.neheh (tempo cíclico) e djet (tempo linear). No Reino Novo, surgiu, a
noção de que os.deuses criant o tempo mas também seus conteúdos,os even-
los; isto trouxe a possibilidade de certa historicidade (os relevos e textos inili-
tares mostram agora guerras é inimigos “históricos”: hititas, líbios, povos dó
mar); também multiplicou o recurso ao$;oráculos. Mas isto não desembocou
cm algo parecido a unia História” como gênero. i
No antigo Israel, a coisa é distinta, por tratar-se dc uma civilização que
conhecemos somente, à parle a Arqueologia, por uma literatura sagrada, sa­
cerdotal, de uma religião revelada. Ora, tal tipo de religião depende de poder
demonstrar ás pessoas, ou pelo menos cOnvcncê-las; que o ato fundador da re­
velação - as Tábuas da Lei dadas a Moisés pela divindade no monte H oreb^
è aulêntico c, portanto, também o são às leis ednstituições vigentes; e, a seguir,
a mesma necessidade de demonstração e convencimento se estende a outros
elementos; as intervenções de lahweh a favor do povo eleito, ou, pelo contra-,'
i io, para garantir o^seu castigo através dê desgraças naturais e ataques vitori.o-
sos cie inimigos, tomam a forma, por exemplo, de “oráculos” que preveem a
destruição destes inimigos (naturalmente, feitos a postcriori para sei em entro-
duzidos em alguns dos livros bíblicos). O reconhecimento não só de um pon-
' to inicial, a criação do mundo, como também acontecia nò Egito ou na MesoT
polâmia, mas também de outros “pomos fortes” na trajetória de Israel, pót
exemplo: a aliança de lahweh primeiro coirn Abraão, a. seguir com 0 povo elei-
to mediante as Tábuas da Lei, depois com a casa de Davi por meio do orácu­
lo de. Natã, o Primeiro Templo de Salomão, 0 cativeiro de Babilônia e a volta
e reconstrução do Templo, mais. tardiamente a idéia apocalíptica e o messia-
x nismo - noções que situavam também no futuro coisas, que deverão ineluta-^
velniente acontecer - criaram uma lemporalidade linear muito mais clara cio
que a que pudesse ser percebida por qualquer outra das-civilizações orientais..
Não era a única forma de rei ato do passad o qu é achamos na Bíblia (que con­
tém também, por exemplo, mitos de origem òu etiológicos, reintcrpretãdos a
luz da intervenção divina, por exemplo a história de Juclá e Tamar para expli­
car e apoiar ideologicamente o costume do levirato, ou contos folclóricos he-
. róicos como a história de Sansãój, nem o único interesse era sacerdotal: por
•' exemplo, o modo de narrar a história de Saul é favorável a Davi, a narrativa
do fim do reino unificado é favorável à casa'de Davi e a )ndá e contraria ao rei
no de Israel e a cada um cie seus reis etc. Muitos dos livros bíblicos se parecem
a crônicas, pois" a narrativa da relação do Deus.de Israel com seu povo esco­
lhido impunha tal forma de expor, que permitisse demonstrar as etapas de
uma relação que passava da escolha à salvação e à ajuda, à recompensa, ao cas­
tigo quando o povo eleito (ou os reis de Israel) se afastava de suas obrigações
para com a divindade etc. Na realidade, o que vemos como noção central é a
obra cie uma inteligência e vontade divinas agindo pelo bem do povo que es­
colheu a partir de um plano.moral, mas.em luta constante com as vontades li­
mitadas, tolas e teimosas dos homens. A divindade prpmete, adverte, julga,'
condena, pune, deslrói; mas também abençoa, salva e recompensa: A história
assim narrada, embora nela se perceba uma linha principal, também admite
rejeições, fracassos, fins, reinídos etc. É preciso sempre lembrar que, na Bíblia,
não temos relatos' contemporâneos ou 'quase contemporâneos dos eventos
contados (ao contrário, por cxemplovdas inscrições militares egípdàs, meso-
polâmicas, hititas ou persas) mas, sim, o resultado de longo processo de trans­
missão oral de tradições variadas oú mesmo divergentes, em seguida de edi-

117
Vilo reiiUerpretadom e homogeneizadòra efetuada por sacerdotes, a seguir de
copias manuscritas sucessivas que também introduziram modificações e va­
riantes. .Não dispomos de inscrições regias: a única, relativa <Vconstrução do
túnel de Siloã, nem -mesmo nomeia o rei construtor, Se houve tais inscrições
—e umas poucas passagens do Antigo Testamento parecem indicar que sim —,
elas não se conservaram. ' . ' .,. i ’
A História como a entendemos,é uma criação grega. Se Cícero dizia de
Herodotü ser ele o pai da História”, também os intelectuais do Renascimen­
to em diante o diziam é dizem, lal ponto de partida reconhecido para a His­
tó ria ocidental como -disciplina ruio é algo natural; decorre de uma escolha
Conscientemente feitã pelos renascentistas. Assim,.a disciplina histórica mo­
derna e contemporânea é, entre outras coisas, uma retomada e reelaboração *
de uma visão do trabalho do historiador mais esboçada, do que de fato desen­
volvida pelos gregos e pelos romanos que á adotaram e em parle modificaram;
também muitos pontos e debates de detalhe foram retomados e reelabórados:
a discussão do utilitaristno histórico de Tucídides e Políbio versus a memória
cios feitos do passado de-Heródoto; a.inclusão ou não na História de gêneros
próximos, como n biografia (os gregos as separavam, o. que foi explicitado por
1'lutarco) eos trabalhosdeantiquáriosetc, D ' '
Os antigos distinguiam daramente a História —que-viam,' conv razão,
como algo ligado aos Inicio de textos longos cm prosa (o primeiro que se pre­
servou foi exatamente o de Heródoto), criando um gênero novo - da poesia
épica; Homero podia ser usado às vezes, coibo lonte por historiadores gregos;
e romanos, más a História, escrita em prosa, pretendia separar os fatos das coi­
sas imaginadas sobte.o passado antigo ou recente. Heródoto, o primeiro his­
toriador cüjo texto temos, reconhecia antecessores; etn especial, Hecatéu de
Milelo, que foi ativojia revolta da Jônia contra.os persas por volta de 500 a.Ç.>
aln-mando que fora o primeiro a pòr ordem e.racionalidade nas genalogias'
míticas e ti adições locais dos gregos. Dioniso de Halicarnasso afirmou, emsèti
texto sobre Tucídides, que a escrita grega da História derivou de descrições lo- :
cais de cidades ou regiões, de ênfase tanto sagrada quanto profana; Também
sabemos que, anteriormente, houve compiladores de listas cronológicas e es-,
crilos biográficos ou autobiográficos. Mais próximos de Heródoto na forma '
devem ter sido Dioniso de Mileto e Xanto,que, já no século 5Üa.C., deram aos
gregos informações sobre os assuntos persas e o reino da Lídia: mas suas obras
se perderam. Tucídides, por sua vez, criticava, além de Heródoto, Helânico de
I.esbos, autor de históricas locais, mitografias e textos de “geografia’ (p. ex,
uma crônica da Ática), mas não dispomos das obras desté último.
Que diferenças devem ter existido'entre Heródoto e seus predecessorés?
' 1) Ele parece ter sido pioneiro na produção de uma descrição analítica dè con­
flitos, ao óçupar-se das. Guerras Médicas; 2) e parece ter sido o primeiro a as­
sociar dàdos etnográficos {características e costumes dc povõs diversos) e
constitucionais {diferentes formas de organização político) na explicação de
uma O I • va o termo historia
guerra e de seus resultados;.Usa f ' para designar•um in-
quérito ou pesquisa, em especial de tipo etnográfico; mas já no século 4o a.C.
.o termo História, exalamente ao falar em Heródoto e em homenagem ã.ele,
tomou a acepção dè uma pesquisa sobre eventos passados. A combinação Iri-
partite feita por Heródoto —guerras, constifiiições e etnogváfias —não pernia-
Tieceu necessariamente unida em outros escritores antigos dc Historia. Tucí-
dídes, ppr exemplo, privilegiou a relação da análise integrada das guerras e da
história constitucional,-mas deixou ‘quase de todo de lado a etnografia (a não
sçr no relato das origens gregas). Também existiram pesquisas de história
constitucional; ou descrições de constituições como algó feito érn separado. A
equipe de Aristóteles que investigou historicamente numerosas constituições
foi uma exceção, por trabalhar como grupo c não individualmente (caso úni­
co na Antigüidade), más houve estudos constitucionais não-históricos, corho-
por exemplo a Constituição de Atenas do “velho oligarca , no passado atribuí­
da a Xcnòfonte. No entanto, a noção de haver relevância mútua de costumes,
instituições e guerras permaneceu viva durante toda a Antigüidade, atribuLn-
- do-sc poder explicativo às vincnlações desses campos, todos eles ou dois, à
dois: uma constituição melhor garante a vitória na guerra, mudanças nos cos­
tumes e instituições podem levara derrotas etc. Á explicação histórica era, en­
tão, uma busca das causas das guerras e das mudanças de regime polí tico, iu-
cídides parece ter sido õ primeiro a separar as causas remotas e imediatas, bem
com o. as causas dós pretextos: No conjunto, os historiadores antigos, foram
mais profundos nas análises das lutas e transformações políticas do que na­
quelas das guerras: mesmo Tucídides e Políbio não constituíram exceções. Isto
talvez se ligue a acharem as guerras inevitáveis e naturais (portanto, de expli­
cação mais fácil), enquanto não viam assim òs conflitos políticos internos
■ (cujo- entendimento, portanto, lhes exigia mais raciocínios e. explicações).

119
I

; Quanto à etnografia, era nomiulmente descritiva; às vezes, a geografia era iii-


Víjcadá para explicar costumes bizarros ou específicos. A base explicativa qua­
se xntica da etnografia grega em, porém, a'oposição gregos/bárbaros. Ê notá-
vel que os gregos dificilmente aprendessem línguas estrangeiras, dependendo
assim, cm suas pesquisas sobre outros povos, de informantes e tradutores;
qmise sempre usavam, destarte, materiais de segunda mão. A etnografia rela­
tiva aos próprios gregos interessava-se somente pela abordagem eventual dc
assuntos pontuais: explicar,ou descrever cultos locais, dialetos ou monumen- '
íos, por exemplo. ! :■ . ' . .
Os historiadores gregos se voltavam primordialmente para à história a :
eles conlemporânea-ou quase contemporânea, e bem monos.para o passado
mais remoto. Isto porque sentiam tórtemente a necessidade de pôr à prova o.s
tlados que usavam. O modo màis simples òu confiável de conhecer algo era
vendo-o: Heródoto considerava o testemunho ocular o melhor fornecedor dc
dados, cm seguida, recolher testemunhos dos que viram ou participaram de
algo. Na Giécia do século 5° a.C. não ora fácil recolher testemunhos escritos.
Os textos provenientes déépocas mais antigas eram de difícil compreensão e
interpretação, pois não existiam procedimentos filológicos e outros para sua
análise. Assim, erà hem mais fácil priorizar o passado recente ou o presente, -
mesmo não descartando de todo os acontecimentos remotos. Enquanto He-
ródolo considerava legítimo usar testemunhos nos.casos em que não pôde ver
por si mesmo, simplesmente avisando ao ouvinte ou leitor que não podería
• ^,!raüt'r pessoalmeúte o valor da declaração, Tucídidcs julgãva necessário des­
cartar de. todo os testemunhos que não considerasse confiáveis. Outróssim,'
transcrevia eventualmerifé dados escritos: cartas, inscrições, tratados. Como
Heródoto, tio entanto, preferia o.s dados orais aos escritos. Observações dire-,
ias e testemunhos oculares seriam sempre preferíveis aos dados, escritos,
Como Tucídidcs simplesmente suprimia aquilo em que não acreditava ou
CO" liava, Isto podia incidir em seu rigor. Mas a impressão geral que fica de sua
leitura é a presença, nele, de uma ética austera de historiador. ' ' - .
Heródoto e Tucídides devem ser entendidos no bojo da revolução inte-.
lectual do século 5" a.C., época em que surgiram'ou pelo menos se desenvol­
veram muito não só a História como também a tragédia, a comedia, a medi­
cina, a filosofia e a eíoqüêricia baseada em regras estritas de retórica. Há um
parentesco de idéias entre Sófocles e.Heródoto; o mesmo se pode dizer, quan-" \
to \\ sentimentos morais, religiosos e políticos, ao serem comparados Tuddi-
des,.Hipócrates e Eurípjdes, Uma das invenções de.Tucídides que influenciou
a seguir toda a escrita antiga da História —a inserção de discursos, que nios-
trassem a opinião pública ou as motivações de líderes políticos e militares -
seria impensável sem a formalização da eloquência retórica no mesmo petíor
do. Também há um pressuposto na cultura da época qUc encontramos nos
dois primeiros historiadores importantes: o de que a intervenção dos deuses
nos negócios humanos seja pouco constante e direta. Políbio, na mesma linha,
apelou para a poção abstrata de “fortuna” como modo de evitar incluii. afir­
mações de tipo religioso ou filosófico no que escrevia. Para todos os efeitos, os
fetos políticos e militares que interessavam acima de tudo aos historiadores ;
antigos tinham, para tais autores, explicações humanas. Á fraqueza mais pa-
tente dos historiadores clássicos erá sua atitude para com os dados, portanto, *
seus critérios para estabelecer os fatos. Incxistiam regras precisas aceica da co­
leta e escolha de dados, o que, ocasionaímente, criava confusão na cabeça tan­
to' dos autores .quanto dos leitores, Heródoto foi considerado, já na
Antiguidade, o pai da História; mas, igualmente, üm mentiroso... As regras re­
tóricas de composição podiam afastar os historiadores da fidelidade exclusiva
àquilo que era conhecido de maneira cabal (por exemplo no caso da inclusão
nq texto de discursos fictícios'.postos na boca dos personagens). A seleção de
assuntos a tratar era de todo dependente do que se considerava importante na
vida política no mundo clássico, e tal visão atuava como uma camisa de foi­
ça. Tanto a vida intelectual quanto a econômica eram assuntos claramente
eventuais ou marginais, o que por sua vez influía nos. modelos explicativos.
A História não era incluída na educação infantil ou.dos jovens, a não
ser, eventual e exclusivamente, de um ponto de vista literário, estilístico, por
meio çlç passagens lidas e examinadas. Tratava-se, portanto, de uma atividade
não-profissional e quase sempre .estritámente individual (vimos já a exceção
da escola arístotélica na pesquisa'constitucional), embora alguns historiado­
res esçolhessem “êoptinuar” ou retomar a obra de outro onde este houvesse
'•interrompido sua narrativa. Còm enorme .frequência, os historiadores eiam
pessoas que viviam fora de,sua polis de origem, voluntariamente ou por terem
sídò exilados: Heródoto, Tucídides, Xenofontc, Ctésins, Teopompò, Filisto, l i -
tóeu, Políbio, Díoniso de Halicarnasso,' Posidônio (um cidadão dc Rodes mas
nascido na Síria). Isto talvez sugira tlma certa ambigüidade da escrita da his-

121 '
/
lorui UiJ como vista pela sociedade grega: era mais lacil, talvez, conseguir mais
m formação e manter-se mais imparcial ao ser um pesquisador exilado. Os his­
toriadores, dependendo do que escrcyessem e das mudanças de regime e cli­
ma político, podiam ser recompensados ou, pelo contrário, punidos. Heródo-
k> recebeu um prêmio da pôlis atenfense; Alexandre, o Grande escolheu um
historiador para acompanhá-lo .em suas campanhas, Galístenes.e terminou
por matá-lo. Reis helenísticos e imperadores romanos honraram ou persegui­
ram historiadores.Jistes últimos não pertenciam a qualquer comunidade re­
conhecida'; não tinham instituições que lhes dessem apqio e chancela.
No Período Helemstko (338/330 a.C -30 a.C.), novidades de peso são
perceptíveis. Num sentido, ascoisas permaneceram conio antes, No século'
2" d.C., um in telectual de língua e cultura grega.do Império Romano, Luçia-
‘ n° t,e Samósata, em seu texto Como escrever História, dizia que um livro de
História deve ser verdadeiro c útil. O historiador deve possuir entendimen­
to político e um estilo (retórico) apropriado de prosa. Deve ser de preferên­
cia uma testemunha.ocular do que descreve e ser dotado de experiência, por
exemplo militar, para desempenhar bem sua tarefa. Deve começar com um
prdácio, arranjar os eventos narrados numa ordem cronológica apropriada,
compor falas para os personagens históricos.e ser moderado.em seus juízos
morais. Tudo isto seria aceitável para Tucídides, por exemplo, No entanto,
desde as campanhas de Alexandre, novidades haviam-se acumulado. Uma
delas loi a fertilização m útua da História de origem grega e da maneira ju­
daica de encarar, o devir dos homens. Flávio Josefo e ós autores de I e IIMa-.'
ail/etis escreveram histórias num modelo grego. Manethon, sacerdote egíp­
cio do século 3“ a.C., compilou uma lista das dinastias egípcias e comparou-
n com a cronologia dos hebreus e de outros povos orientais. Os judeus de
Alexandria refinaram e expandiram seu? cálculos cronológicos. B historia­
dores como o pseudo-Eumplpo (por.volta de 200 a.C.) trataram de identifi­
car a geração de Nfté com contemporâneos babilóiiicos edielênicos. No sé-
cuio 2*’ a.C., sempre em Alexandria, havia polêmicas entre gregos é judeus
em matéria de cronologia e precedência histórica. As .mesclas apareciam
tiimbém nos conteúdos: Eupolemp, uni. residente da Palestina, escrevendo
em 158 a.C., afirmou que MòiséS tiuha dado o conhecimento do alfabeto" âos
íenícios, que por sua vez o.passaram aos gregos. Daí por diante, muitas.fo-
iam as tentativas de buscar uma sincronia de longa duração entre.a história.

122 .
bíblica, helênica, egípcia ç babjlôriica.As enormes bibliotecas do período he- ■
leníslico - em Alexandria, em Pérgamo etc. - facilitavam as pesquisas, coi-
rclações e'compiláçõcs\ Crescentemente,:.havia uma unificação, um a.con­
fluência das histórias antes paralelas nuínU espécie de História Universal.
Embora as crônicas e os anais baseados ém cronologias globais (estes textos
são conhecidos como cronògrafias), elaborados no Período, I lélehíslico, hão
nos tenham-chegado - por exemplo, Eratóstenes, no século 3° a.C., e Apolo-
doro, no século seguinte, escreveram livros assim pelo prelácto do livro de.
Àpolódbro, preservado em obra posterior, sabemos que tais escritos trata-
: vam de fundações e destruiçôes de cidades, migrações de povos, jogos, aliam ^
ças, tratados, ações dos reis, vidas de homens famosos etc. Q assim chama­
do Mármore de Paros cobre acontecimentos transcorridos do semi-iendárío
Kékrops (1581 a.C.) até 264 a.C.( datando os anais contidos no monumen­
to por reis e por arcontes: aparecem compilados.no texto batalhas e vitórias,
eventos políticos, estabelecimento de jogos c festivais, literatos (Homero,
Hesíodo, Safo, Esquilo), além de cometas', eclipses e terremotos. A çpnsCiên-
cia de uma espécie de unidade do mundo antigo tomava.forma. Com o ini­
cio d,o Cristianismo, a tradição, agora jiidaico-cristã, mantinha o sentido li­
near da Histórjífherdada dá Antigüidade judaica, renovando-o e conlinu.a n-
do»o com o passado recente da "Encarnação, um a história de salvação e uma
noção da Párúsia (segunda vinda de Cristo) como fim dos tempos. A linha
helenísdca e a hebraico-cristã juntaram-se por fim numa obra paradigmáti­
ca: a Crônica-escrita por Eusébío de Ccsaréia no final do século 3o d.C.
g, A putra linha - ocidental - resultante dessas cónfluências foi.a deriva­
da da Cidade de Deus, um.escrito'do bispo de Cartagó, Agostinho de Hipona,
.do início do século .5» d.C. Para Agostinho, a História é ancilarda interpreta­
ção das Escrituras (como, no1final do mundo pagão, havia sido considerada
aneflar para a compreensão, da literatura): . .

-; Tudo, então! que aprendémos da Historia sob re a cronologia dos tempos pas-
• sados ássiste-nòs muito no entendimento das Escrituras, mesmo quando o apren­
demos fora dos limites da igreja como assunto de instrução das crianças. Pois fre­
quentemente procuramos informar-nos sobre um a variedade de matérias usando
■- as Olimpíadas e os nomes dos cônsules. E;a ignorância do consulado sob o qual-
; nasceu. Nosso Senhor, e daquele sob o qual sofreu, levou alguns ao erro de supor
que tivesse 46 anos de idade qitando padeceu.

'1 2 3
IDADE MÉDIA

Essa fusão de História eapologética cristã nos conduz às formas medie­


vais de escrever Histórias e crônicas. Bernard Guenéc aclia que os homens da'
. Idade Média íinliam uma dara concepção da diferença eritre História - consi- .
derada relato simples e verdadeiro - e fábula (ficção). No século 12, Hugues de
S.iiql-V.ictoi estabeleceu um conteúdo preciso para o conhecimento histórico:
"As pessoas pelas quais os acontecimentos chegam, os lugares onde chegam e
os íempos quando chegam”. Num tal programa, primou o interesse pelo tem- ■
po, segundo a noção da História Universal como uma história da Salvação que
se desenvolve ah initío scieculi ttsqúe ad finem, ou seja, da criação ao fim dos
lempos. lendia-sc a desprezar as pessoas comuns e concentrar-se nos feitos de
pessoas importantes. O inglês Ranulfo Higden (século W d.C.) afimiava:

Existem sete espécies de pessoas cujas ações sào aquelas mais frçqílentemente
lembradas nos livros de História, a saber, o príiiçipc em seu reino, o cavaleiro na
guerra, t>juiz no tribunal, o. bispo entre os clérigos, o político na sociedade, o pro­
prietário cm sua.casa, o monge no seu mosteiro. A tais espécies correspondem sete
espécies de ações, a saber, ã" construção de cidades, a. vitória sobre os inimigos, a
aplicação dos direitos, a correção dos crimes; a organização da coisa púbiica.a gesh
tão das coisas domésticas, a conquista da salvação. . .

A História, vista assim, não é disciplina por si mesma - e, dê fato, ela


na o (azia parte do ensino mas sim, uma ciência auxiliar da moral e da Teo­
logia, como também, crescentemente, do Direito. Só no extremo fim da Idade
Média a História, com o progresso da reflexão política e da idéia de nação,- se
independeutiza e passa a constituir uma seção separada nas bibliotecas.
A Idade Média conheceu uma grande variedade de tipos de historiado­
res. Gueiiée se opõe ao m odo tradicional de ver, que valoriza Raoul Glaber,
Joinville, Frõissart e Commynes/Acha ser mais útil partir de uma distinção
dos lipos de historiadores segundo os lugares onde exerciam sua função, em ' x-
forma bastante independente dos cortes cronológicos,' ■
Existia o historiador que era um monge, guardião dos manuscritos e li-
vi os do mosteiro, defensor deste e eventtiaiméíite de causas maiores (os mon­
ges cisterciehses ingleses, por exemplo, eram militantemente anti-escoceses). " *
Tais monges compunham textos, justapondo extratos de outros, às vezes con-
frontaodo-os para escolher a versão mais confiável. Da liturgia (por exemplo,
da necessidade de cálculo das festas móveis como a .Páscoa) yeiò-Lhes uma
preocupação, às vezes obsessiva, com a cronologia. A hagiografia estava, neles,
sempre presente, mesmo quando escreviam sobre ássunlos mundanos.
Um segundo tipo de historiador era o cronista ligado a cortes ou a pa­
tronos (senhores, bispos). Cantava os feitos dos príncipes e santos. Podia ser.
um capelão ou um secretário a serviço de um bispo ou abade, às vezes, de u n i,
rei ou grande senhor, em outros casos,.Ou podia ser um èscrítòi profissional
interessado êm ter seus textos copiados e vendidos, como Jean fem aiie des
Bclges, Lia pouco e dependia muito.da tradição oral e das epppeias. Cotn fre­
quência', caía no panegírico, no elogio dos patronos, ou .na prppagànda, além
de, com frequência, não'estabelecer sempre os fatos com éxa tidão. ..
Terceiro tipo:' o historiador de escritório, típico da Baixa Idade Média, :■
com seu desenvolvimento dos serviços administrativos, em .especialdas chan- .
celariás. Leonardo Bruni, no século XV, em Florença, por exemplo, escreveu
História á maneira dos contratos cm dos tratados diplomáticos, recheando-a
de passagens $le eíoqttência análogas aos discursos que também redigia para
os governantes urbanoà. Seits escritos dependiam de uma mescla de compila­
ção livresca com pesquisa'de documentação original. A informação disponí­
vel Variava com a instituição onde os autores exercessem suas atividades; sua*
obra tinha‘de contemplar o interesse institucional. Assim, em 1264, vemos os
professores da Universidade de Pàdua aprovarem a História da cidade escrita
dois anos antes por uin tabelião.-Nos escritórios, bem como nos scriptoria
(centros de cópia e produção;dé textos) dos conventos, a História erudita e
cuidadosa com os fatòs ia nascendo pouco a pouco. ■ .
D ifi cul da de.s 'grandes, devem ser enfrentadas pelos historiadores medie­
vais. Se a tradição oral pode ser úsada para períodos recentes, quando se vai
-• além no passado é preciso usar testemunhos de tipo diferente, já que a memó­
ria coletiva muítas vezes é lendária. Ora, os documentos eram difíceis de da­
tar, as bibliotecas e arquivos eram mal classificados, alémde que o acesso a eles
era hiuiUtlimitado. A partir do $éculo 13, mais ainda nos seguintes, porém, os
arquivos passam á ter melhor organização e.classificação. Isto abre novas pos­
sibilidades: Piene Lé Baud, a partir de 1498, pode usar mais de vinte bibliote­
cas monásticas para preparar sua história da Bretanha. Cada biblioteca conti-

125
" h;l aornil' l'nente P«u«s obras de historiadores do passado que pudessem
oncntar método logicamente (bacano, Salústio, Eusébio, Orósio); os livros,
antes da imprensa, circularam pouco è lentamente. A imprensa, então, foi
Uma.novidade de peso, na segunda metade do século 15: ao baixar o precq dos
hviosj numa época em que as bibliotecas também estavam se reorganizando,
tornou possível um uso maciço de livros antigos e modernos, além de-garan-
tir umaéirculação multo mais rápida das novas obras. O panorama,intelec­
tual e lustoriográfico sem dúvida sofreu uma guinada a partir de meados do"
século 15. . .
, Htienne GiIson sublinhava ter o cristianismo introduzido uma visão
uova dó devir humano, prolongando aquela, já linear, do judaísmo, e rompen­
do com a visão cíclica ou orientada para o passado que apareciam historio-
grada da Antiguidade Clássica. Para os cristãos, a história humana começa
com a criação, tem no centro a encarnação do filho de Deus e se orienta a par­
tir de então para á segunda volta de Cristo, a Parusia, seguida pelo juízo final.
A História "aparece, então, como um itinerário marcado por tempos fortes, *
uma marcha em.direção à.Jerusalém celeste'de que falava o bispo de Cartago’
Agostinho de Hipoua, desde o século 5« "Entretanto, em se tratando da Alta’
Idade Média e mesmo do período que se estende até o século 11, é preciso re­
conhecer que tal visão, embora possa aparecer nos melhores exemplares de es- .
entos que possamos chamar de históricos num sentido geral, compete edm 1
outra, cíclica: nem todos viam o intervalo entre momentos fortes dá História
como um devir, uma progressão, más sim, como uma repetição de ciçlos de
tipo milenansta. Cada mil anós, o Mal se,desencadeia. O monge cluniacense
Kaoul G laber, uni dos representantes das idéias do Ano Mil, acreditava scr a
História ordenada segundo cadências regulares e repetitivás, pelo qual os fa- '
tos. passados podem alimentar a meditação dos monges c dos fiéis. Na verda­
de, é factível distinguir diversas variedades de gêneros históricos e algumas in­
flexões importantes, situadas sobretudo.no século 12, sob a influência da ex- -
pansão agrícola e demográfica e da multiplicação de cidades, e nos séculos 14 '
e subi eludo 15, sob o impacto dos Estados nacionais nascentes.
No período que vai do fim do Império Romano do Ocidente (fim do
século 5") até o século Í2, há, visivelmente, uma proliferação de hagiografias:
vidas de sanlps, feitos de bispos, narrativas de milagres e em tornp das relí­
quias e suas peregrinações de um santuário ou convento a outro (por.exem- ‘
pl<), quando dos ataques dos vildngs). É óbvio que as funções de tais escritos .
vilão são todas espirituais. As vidas de santos podem, em certos casos, ter fun­
ção legitimadora: assini, por exemplo, a Vida de São Sansão de Dol, antes atri­
buída ao fim do século 7, ppsteriormeníc (é com bons argumentos) ao sécu­
lo 9, serviu de argumento à pretensão do bispo dc Dol a ser reconhecido «m m
titular da Sé.metropolitana da Bretanha, em lugar do bispo de Tours. A vida
em questão, de caráter heróico, foi calcada no texto p eyita Beati MarUtn, uma
vida de MartinhodeToursescrita porSulptcioSevero por yo.ua de 410. .
. . Outro gênero: ps anais oü crônicasOs tinais são redigidos com freqüên-
' da „ós mosteiros e trazem, ano a ano, fatos resumidos secamente, incluindo
.guerras, coroações ou mortes de reis, alénvde prodígios, milagres etc. A crôni­
ca, pelo contrário, pode ter amplas pretensões, como a dc Beda, o Venerável,
(séculos 7ü-8°), Chronica dc scxaetatibus nutudi, imitada da de Eusébm de Ce-
saréia, que relata seletivamente o acontecido da criação cio mundo ate 324.
Existem, também, Histórias, à imitação do romano Tácito, por exemplo
' a História dos lombardos, de Paulo Diácono e sobretudo a História dos francos,
do bispo Gregório de Tours, cuja narrativa engloba da criação ato o ano 591,
três anos antes de sua morte, copiando na forma Eusébio e Orosio, exemplos
da Baixa Antigüidade romana. O trabalho tem características mistas. Abunda
em milgres e prodígios, mas também còntéro páginas mais interessantes, por
cxemplo ao descrever a' peste de Marselha em 588, quando discute a prove-
niència do contágio, suas fiises, o auge da epidemia etc. Mas tudo isso para
mostrar o rei e ò bispo que sobrevivem ç, no centro das coisas, servem dç.me­
diadores entre os homens e o mundo-divino.. A História explicita uma dialéti­
ca do castigo e da intercessão. Quanto ao método, ha lampejos de crítica das
fontes: confronto de documentos diferentes em torno da origem da dinastia
•franca, afastando-se o autor da fesponsãbilidade pessoal por certas afirmações •
pclõ uso da'expressão "muitos contam qúe . ->
Por último,'temos-as biografias e autobiografias, também inspiradas em
. - exemplos antigos (por exemplo, as Confissões dc Agostinho de Hiponativeram
■ «clara influência sobre a Historia cálamitalum, de Pedro Abelardo, no século
12; e, bem antes, ás Vidas dos doze Césares, de Suetônio, serviram de modelo à
Vida de Carlos Magrío, de Eginhafdo, escrita no início do século 9). Eginhar-
. do atribuiu a Carlos Magno traços copiados de Suetônio, relativos a alguns
dos'Césares rémanos, mas o conjunto reflete o ambiente i ntelectual cristão da
eSpoca cnrcilíngiu. Como os outros gêneros, este mostra conhecimento de mo­
delos latinos e quase total ignorância dos textos antigos escritos em grego, in­
cluindo os cristãos (quando não traduzidos nâ Antiguidade para o latim).
Uf .csPcciaHsta norte-americano, W. J. Brandi, acha que os homens da
Idade MediaUnham mentalidade radicalmente anti-histórica, já que tendiam
aperceber a realidade como descontínua: cada coisa era única e dotada cie es­
sência própria, já que derivava de uma idéia divina. Daí não se interessarem
.por relações dc causalidade, nem no mundo físico, nem na História, vendo os
acontecimentos como isolados uns dos outros, produzidos todos por uma
vontade divina arbitrária. Isto levava, mais do que a uma idéia causai - a não
ser que a vontade divina seja considerada uma causa geral a associações de
eventos que passassem sempre por tal vontade (assim, um acontecimento his-
lói ico e um fenômeno climático poderíam ser associados no texto). Disto re-
suliana um encadeamento de1fotos não organizados.segundo-a-causalidade,
mas sim, todos decorrentes da vontade de Deus. Outros especialistas nossos
contemporâneos defendem idéias'simüares, falando de uma identidade essen­
cial entre Kagtognfa e História: em todos òs casos, fatos notáveis devem ser
salvos do esquecimento e sua verdade deve em princípio ser garantida, mas
tudo isto para Ilustrar o poder discricionário da Divindade. Havería então,
para Bnmdt, razões estruturais de tipo teológico para a modalidade de Histó-
ny, no sentido geral do termo, possível na Idade Média inicial. Bernard Gue- .
nee, por sua vez, acredita sobretudo em .fatores contingenciais: mediocridade
intelectual de muitos autores; ausência dc formação sistemática dos mesmos,
já que a História não era uma das matérias ensinadas nas escolas, sendo vista
somente como^auxiliar dá exegese dos livros sagrados.
No século 12, nota-se uma transformação, ligada centralmente a uma
"<>ra percepção temporal Sc o homem, nos escritos dos séculos anteriores, pa­
recia passivo diante dos acontecimentos determinados pela vontade divina, no
mundo mais dinâmico da Baixa Idade Média os teólogos (Gilbcrt de la Por-
ree, Hugues de Saiut-Victor) o vêetn como um ser ativo quê impõe sua ars à
tuiturm transformando-a - sob a égide da Providência, ?em dúvida. Clérigos»
pertencentes à corte de governantes (por exemplo Oto de Freisingen a serviço
dos imperadores germânicos, Orderico Vital e João de Salisburp a serviço da
corte anglo-normanda) salientam a obra e as áções^ios prinqípes. Agora de
lato se percebe a História como.uma progressão, um progresso. A idéia dc
a,tajs ou cônicas é sucedida pela d ti.se/uss m mtionis, uma sucessão organiza­
da e contínua. A percepção diferente da temporalidade condiiz a esforços de
periodização’que tomam várias formas: analogia com os dias dá semana, em
ligação com a criação do mundo, havendo seis dias em que Deus p criou e seis
idades do mundo; Pu então, uma tripariição, ante legem, sub lege e sub gralta, .
isuré, antes da lei de Moisés, sob a lei e sob a graça (ou seja, após a Encarna-
ção de Cristo);ou outro tipo de tripartiçãp,a Era do Pai.-a Erado Filho eaE ra
do Espirito Santo. Unia solução menos teológica era aquela marcada pcfe
transkitio imperüi.isto é, pola transferência da dignidade imperial ao longo dos
séculos, dos reis do Antigo Testamento ao Império Romano e depois ao Bizan- _
tino, passando a seguir por Carlos Magno para chegar aos Otórndas alemaes,
por exemplo. Ou ainda uma transiatio studii, uma transferência dos centros de
saber do Oriente para-o Ocidente: Atenas, Roma, Ak-la-ChapeUe, escolas ca­
tedrais francesas da região entre. Reno e Loire. Eimtodas estas versões, a nar­
rativa dos acontecimentos torna-se mais coerente c existe uma preocupação
maior com a causalidade. . . , .• ■• t . •
Os cronistas das cruzadas, como Guiberto de Nogent, Cuilhermc de
Tiro ou ornais femoSo deles, Joinville (1224-1317), têm vjsível preocupação '
com ã buscadas razões humanas dasXoisas acontecerem, do sucesso ou insu:
cesso militar, embora por trás do mutável esteja, sempre, o imutável, o plano
divino de salvação: afinal, a visão providencialísta.da História humana persis- ,
tirá até o DÍsburso sobre a História Universal dc Bossuet - clérigo da tendencia
galicana liei à monarquia francesa e crítico do protestantismo, do jansemsmo
e do quielismo, como-teólogo oficial que era obra.escrita.em. lodl e amplia­
da e mudada eni 1700. Joinville, senescal da Champanha e companheiro de
São Luís (Luís IX da França) eni sua-campanha do Egito (1248), no fim da
vida escreveu.memórias centradas n o “rei santo” concluídas em 1309. As lem-
' brariças pessoais associam-se á considerável compilação, baseando-se, por
exemplo, cm uma vida anterior de Sâô Luís escrita por Guilherme de Nangis,
o qual, por sua vez, se apoiara no testemunho do confessor dó rei. Hagiógra-
. fo e cronista ao mesmo tempo, Joinville acreditava em constantes intervenções
1divinas nos negócios humanos e n a guerra de Cruzada. Entretanto, relatava
' minuciosamente os fatos diplomáticos, as; negociações após a tomada dé Da- ^
mieta pelos cruzados, a forma de repartição do butim é a insatisfaçao,das tro­
pas por ter o rei ficado com uma parte maior do que era costumeiro nas cru-

129
Z;,dils ;mlerioros' düSa'tívíi>em detalhe os costumes dos beduínos, sem mesmo
deixai de proporcionar detalhes de tipo econômico-social, •
Omro lempo de mutações èsleve constituído pelos séculos 14e sobretii-
do 15, como se nota nos cronistas vinculados às monarquias nacionais que se
(urinavam então. Vamos abordar as novas tendências referindo-nos a dois cro-
nislas régios, )ean Froissart (1337-1410) e Philippe de Commynes (1447-1511).
)ean Froissart exemplifica <> que na França se chama historien enirete-
iiik ia de corte em corte, primeiro a serviço dos ingleses, depois ,de 1370, dos
franceses; também serviu ao conde de Fóix, Gaston Phébus, em cuja corte co- •
lelou numa informação. Mesclava a compilação de escritos (por exemplo; se-
s " w llü Pcrto Je-m Le Rd) e informação oral recolhida de testemunhas òcüla-
lcs ° ni « fre n te s lugares do conflito angio-francês (daí viajar muito). Apesar
de conter, de todos modos, erros grave?, às vezes apresenta uma análise refina­
da; por,exemplo, ao descrever as divergências surgidas na cidade de.Rennes
quando estava sendo sitiada por Charles de Blois em 1342; os burgueses e o .
povoqueriain entregar-se, mas o representante da condessa de Montfort que- '
na resistir, de modo que só encarcerando .tal representante foi possível n nc- '
gociaçao com o comandante inimigo, que concordou em não executar nin­
guém na cidade. Muitas vezes, o texto reproduz yerbatim algum testemunho .
oral. Os aspectos militares são sempre muito ressaltados. Um dos exemplos de
deformação grosseira é o relato da jaequerie ou revolta camponesa de 1358; a
posição do autor reproduz os preconceitos aristocráticos e deforma volunta­
riamente as causas do evento e o desenrolar do procésso, tratando de minimi­
zá-lo è também, não relatando em detalhe a tremenda matança que marcou a
repressão sofrida pelos campôníos uma vez derrotada a jaequerie/
Plulippe de Commynes nasceu numa família ,de funcionários dos du­
ques de Borgonha, sendo afilhado de uni deles, Filipe, o Bom. Entrou em 1764
a serviço de um conde que depois se tornaria o duque Carlos, o Temerário da
Borgonha. Abandonando tal serviço, passou em 1472 ao do rei Luís XI da
França, que o cobriu de honrarias até 1477, deixando-o depois numa semi- ’
desgraça (coisa que o cronista, aliás, mascara em suas Memórias). Morto o ret,
Commynes, p o r ler apoiado qs Estados Gerais contra a regente Anne de Beau-
jeu, foi preso por alguns meses.1Sob Carlos VIII e Luís XII, voltou a gozar do
lavor real. Em várias ocasiões, foi embaixador na Inglaterra, no ducado .da"
Bretanha, na Espanha e por fim em.Veneza. Suas Memórias foram redigidas
entre 1489 e 1492 (livros 1a VI, sobre Luís XI) e entre 1495 e 1498 (sobre a ex-
pedição de Luís VlU na Itália), publicadas em 1525. Em princípio, foram çs- .
çritas para servir de materiais preparatórios de uma obra em latim a ser redi­
gida pelo'arcebispo de Vienne, M geloC ato, Historiador de cortefCoinmyiies
elogiava’as ações e o caráter dòs.reis a que servia. Separa-se de outros cronis­
tas pòr um interesse menor nos feitos de armas e uma visão um taftto cética
do cerimonial de corte, enquanto o cronista do duque de Borgonha, Otwjer de
La Marche, por exemplo, ocupa a m étadode sua narrativa do governo do Te-^
merário cóm a. descrição de seu casamento com Margarida de York, e sessen­
ta páginas com ute banquete de 1454! Commynes menciona as comemora­
ções muito brevemente e deixa perceber, por trás delas, príncipes tratando de
déstruir-sé. niutuàmente. O cerimonial e os desfiles mascaram' sórdidas m a­
quinações, os casamentos reais não passam dc acordos interessares? alem do
mais, as festividades são ruinosas para as finanças. Em lugar da guerra,que lhe
interessa mais do ponto de vista da evolqção das relações de força entre os Es-
tados e cujos sofrimentos (a. fome, por exemplo) são ressaltados, o centro das
atenções de Commynes - diversas vezes embaixador - é a diplomacia. Esta­
mos longe dos cronistas do passado que tentaram decifrar as mensagens divi­
nas aos homens por meio dos acontecimentos, mais perto.de Maquia vel (por
certo, contemporâneo do cronista), nessa época marcada pela emergência dos . >
Estados iiacionais. G sentimento nacional é extremamenlc forte em outros
cronistas do século' 15, como Alain Bouchart (cronista do dpeado da Breta­
nha) e Robcrt Gaguin, anglófobo e marcado por um nacionalismo francês
exacerbado.

TEMPOS MODERNOS .. , ' ,


O extremo fim da Idade Média, em conjunto com os séculos 16 e 17/
testemunharam mudanças progressivas na visão de mundo, que teriam con-
^eqüências na forma de pensar a respeito da História - criando Cima nova ati­
tude qtiejnp entanto, coexistiría.longamenle com a antiga, como.o ilustra o
fato de Bossuet pbder ainda escrever mum espírito! cm grande parte "medie--
' vai” por volta de 1700.0 Renascimento, com sua proposta humanistae de vol­
ta aos modelos ateigos (inclusive’em historiografia, campo em que aos pou-
COS os gregos foram redescpbertos e valorizados ao lado dos latinos), e a Re­
forma, vistos em seu conjunto, significaram um golpe decisivo na noção da
Igreja como grande instituição unitária a dar sfenfido e valores à cristandade
oc.de,itaK A descoberta da América e as descrições do novo continente, bem
• como o contato ampliado da Europa com a Ásia, sacudiram as noções ante­
riormente vigentes sobre como as. coisas eram dadas-e conformadas de unia
vez para sempre. Os Estados nacionais e as monarquias absoíutistas surgidas
em vanos deles romperam as noções hierárquicas baseadas numa idéia de Im-
pé.-.o cristão,.mesmo sé este último continuava formalmente existindo como
bacro Império Romano-Germânico, ainda «ma idéia poderosa no século 16,
n'" l\0 !' lcnos no sécul° sc§uinte- « realidade política maior já era, então, a dè
Estados nacionais em processo de fortalecimento e unificação, éom a progres-
s.va ruptura das barreiras internas criadas ha Idade Média'(alfândegas, cida­
des «muralhadas com certas prerrogativas etc.), em disputa uns com os outros
em diversos níveis. Por fim, com lsaac Neivton (1642-1727.) chega-se â conso­
lidação de uma visão de mundo de base científica, com uma noção absoluta
sobie o Tempo que, potencial mente, póder ia proporcionar uma base ao aban-
t ono de qualquer visão relativisla e providcndalista do devir humano nessa
temporalidade. A Filosofia, de seu lado, com pensa dores, como Descartes, Spí-
noza e Locke, agia negativamente sobre explicações do universo e do humano
cuja base fosse divina, ou pelo menos trazia a heeéssidãdc de tornar uma ar­
gumentação assim muito inais complexado que no passado. *'
Entretanto, ambas as visqes de mundo coexistiram por longo tempo
em História, porque o instrumental metodológico necessário para basear de’
. Ií,t0 uma verpao «dioslmente distinta do trabalho dos historiadores se for­
mou bem leiitaniente. F. verdade que, já entre os séculos 15 e 16 aumentaram
duas preocupações: 1) a preocupação crítica a respeito dos tâtos e da autenti­
cidade dos textos usados como fontes; 2) a preocupação com á construção do>
le.Mto, ja com alguma frequência encarando a obra a ser construída como re­
solução de um problema percebido pelo autor. Por exemplo, no século 16, o
humanista Cmllaume Budé, ao dedicar-se ao estudo das moedas romanas (De
“SSe)‘ nã0 scUl,1ita à descrição: tenta fazer comparações transteníporais de
longo prazo sobre as mudanças no pocler aquisitivo cias moedas tanto antigas
quanto modernas; para tanto, trata de apreender qual a relaçafo en(e a quahti-i -
dade de trigo requerida para a feitura de certa quantidade de pão, cie averiguar
quanlo trigo pode ser produzido por superfície de terra nos arredores de Pa­
ris, que quantidade de metal (precioso e não-prcdoso,já que se tratava de -
uma liga) cohlínham as moedas antigas etc. Tudo isto, aliás, no contexto as
■repercussões inflacionárias da conquista da América,'que tez chegar grande
quantidade de ouro é depois sobretudo de prata à Europa, coisa sobre a qual
escreveu Budé,' especificamente, em 1568. EmborirBtidé' não fosse um h.sto-
rlador,' seu .caso ilustra um dos pontqs altos de um novo espirito critico pre-
sente üo humanismo europeu desde o século 16. Faltava, porém, o “como fo- ■
zer” que de fato permitisse aprofundar essa transformação, Jean Bodin, por
exemplo, ao escrever sobre. O Método da História justapõe preocupações já .
bastante modernas com hm interesse pelos demônios e pela astrologia, bem
como com considerações.morais* e religiosas bem tradicionais. A preocupação
crítica em relação aos documentos, ameaçava os conventos: õ jesuíta Joseph ^
' Bolla.nd (Acra sanctorwn), por exemplo, negou-qualquer validade aos doem
mentos merovíngios ,c carolíngios conservados nos arquivos. Ora, muitos
mosteiros tinham terras c privilégios garantidos exatamente .por tais doçu-
mentes. Daí veio o impulso para que o monge maurista dom Mabillon (1632-'
1707),criasse, em D e red/p/omarica. (1681), um a‘‘dência-raciomd dos docu­
mentos, capaz de estabelecer dè modo incontrovertívcl a autenticidade odnao
de cada manuscrito disponível, a partir de indícios materiais nele contidos e
de um raciocínio lógico. Esta crítica erudita era condição sine qua non para
uma História com pretensões racionais quanto ao método e jáestava, portan-
' to,'disponível quando ú século 18, sobretudo em sua segunda metade, tornou
a sacudir o mundo europeu e, portanto, as consciências e os tipos de cunosí- ,
dades e inquirições dos historiadores, • -
Gianbàttista Vico (1668-1744) é um caso que ilustra a fama póstuma
v obtida por certos autores, já cjue durante sua vida, embora escrevesse e publi-
■ casse, foi bastante obscuro - um professor pobre de retórica na Universidade
■ de Nápoles, Foi o historiador Julcs Michelct que, no século 19, redescobnti-
o e reivindicando muitas de suas'noções;popularizou-o no mundo dos his-
' toriádores. No sçculo 20,- sua Ciêhcia nova (1725-1744) foi entendida com o:
* 'um* passo gigantesco no caminho de uma'filosofia moderna da Historia, oU
mesmo como o ponto de inflexão em que o pensamento histórico moderno
atihgiü o estado adulto. Isto é um taiitq.curioso, porque a seleção foitrf por
■Michclet poderiaTer recaído perfeitamente em algum outro dos italianos da
mesma época, por exemplo Pieíro Giannone (1676-1748), ou Uidovico Mu-
1Oloi i ( 1672* I7o0), precursor de uma História, nacionalista preocupada com
o conhecimento'das "origens5' da nação., Como historiador ~ ou seja, em
obras que não fossem de natureza filosófica mas sim escritos de História, em
especial sua De antiquissima Iuilonun sapientia ex linguae Ldtinae origmibus
erttmla, de 1710-V ico era absolutamenje.tradicional, marcado nas explica­
ções por um catolicismo renitente (ao contrário de Giannone). A possibili­
dade, seja como for. de avançar na Filosofia da História vinha de uma dico-
lomia: como Detis fez ó mundo físico, só Ele o pode entender è explicar; mas
05 i,omcn* ,ísserdm ° mundo social, a sociedade civil, portanto,podem enten-
dó-lo c tratar de explicado (implicitamente se entende: sem buscar a cada
passo o dedo da Providência):
r ' • .'
Na noite densa que envolve á Antiguidade mais primeva, tão distante de nós
aparece a et«rna luz, que nunca sc oculta, desta verdade que não é passível de dú­
vida: o mundo civil iot feito por homens, de modo quc.os seus princípios podem,
e devem, ser rcdescpbertos no interior das modificações de nossa própria mente E
isto, a qualquer um que refletir sobre a eausa.de tal falo, deve levar a que se súr-
picenda por terem todos ps filósofos tratado com empenho de atingir o conheci­
mento do mundo na tural, que, já que foi feito por Deus, só pode ser conhecido por
- e, negligenciando.a meditação sobre eslç mundo de nações, ou mundo civil, cujo
i collllccimento,;á que cie foi feito porhomens, poderíam atingir.

No fundo, em sua teorização, Vico, como Montesquíeu, parecia mais


sociolpgo do que historiador. Ele acreditava numa modificação das sociedades ’
lmmanas que não acontecia ao acaso, tnas sim, apresentando fases que formá-
vani series semelhantes às das etapas da, vida de üm indivíduo. Tais fases das :
sociedades ou nações, feriam um caráter cíclico (ternário, segundo Vico) de
avanço e regressão, não expressando uma série de causas econseqüêncías me­
cânicas, e sim, etapas no desenvolvimento de um propósito inteligível: o do es­
forço humano para entendimento próprio e para realizar no mundo as suas
capacidades. As modificações na visão do mundo de que fala o texto que foi
reproduzido acima dão uma chave para.loçalizar os momentos em que a His­
tória muda de fase. . ■
lal como em Vico, cm ou tros, autores, do século 18 percebemos noções
que aparecem como promessas impossíveis dç cumprir à época, portanto;
como pienüncios. Vollairc, em suas Novas considerações, sobre, a Historia (1744),
afirmava que a História, como as ciências físicas, talvez logo viesse a passar por
«má transformação no seu modo de percepção é explicação. Prenunciando em
que isto podería consistir, c ritic a i ás fábulas aceitas pelos homens de scy tem.
po c o gosto pelas anedotas históricas e pelos relatos sobre a vida de corte, para
ele bem pouco interessantes, bem como as descrições numerosas c detalhadas
de batalhas e tratados: ao ler este tipo de História, escrevia,‘-no fundo cu. fica­
va como antes, só me inteirava de acontecimentos”. Em seu texto de 175,6, Bi).
saio sobre os costumes, contrapondo-se ao livro de Bossuet (1.681 e 1700), m es-
mo porque.um sardònico anticlericalismo era bem característico dos'filosofos,
franceses da época, fazia perguntas que, achava, poderíam de lato proporcio­
nar conhecimentos novos c relevantes: quais são os,reçursos de. um pais antes
de uma guerra? Aumentaram ou diminuí ram com:a guerra em questão? A Es­
panha ficou mais rica ou mais pobre em conseqüênçia.de sua conquistas,no Ul­
tramar? Por que Amsterdã, em duzentos anos, passou de 20 mil habitantes para
240 mil? Portanto, Voltaire aspirava a úm if mudança radical da matéria habi­
tual,'da problemática enfrentada pelos historiadores. Tal tendência culmina, no
fim do século 18, com o marquês de Condprcet (1743-1794) e seu Esboço de uni
quadro histórico'dos progressos do espírito Humano (escrito na prisão em 1794 e
publicado postumamente em 1795), um produto do llumiriismo e seus ideais- •
em que postula uma Visão evolucionisla do devir humano - ternáría como em
Vico, mas em princípio única, universal, embora admitindo também retroces­
sos, compreendendo um primitivismo inicial, unja segunda fase que. tem ini­
cio com a invenção da linguagem é uma terceira etapa começada com a inven­
ção da escrita alfabética e compreendendo.tpdo o resíojeada fase inclui subfa-
ses; a última subfase da terceira fase havia começado com a invenção da ím-
prensa e á afirmação dè uma visão científica do. mundo e das coisas, mostran­
do a possibilidade de um coiüieciúientb científico dos fatos humanos, sociais
ou “civis”,-e até mesmo de prevê-los, assim prevenindo nó futuro os retroces­
sos e homogeneizando o estado da civilização; em todas as sociedades hurna-
nas. Se Voltaire apontava para uma mudança na matéria, em Condorçcl temos
.uma exigência - prematura,' como. o mostra a historiografia das décadas se-
guintes - de síntese histórica explicativa. . .
' . Fofa da França, o íluminismo também aparece, por exemplo, na. fa­
mosa obra de Edward Gibbón (1737-1794), A Hisíária do dceUnio e da qtte-
- dado Império Romam'(5 volumes, 1776.1788). Gibbon tomou Tácito como

135
modelo e, às fonlcs literárias habituais da História Romana, juntou as ins-
cuçócs em moda no século 18. Em sua escrita podcm_perceber-se dois ui­
ves diferentes: o primeiro é o nível público das intenções declaradas dos
agentes; mas aparece em filigrana um segundo nível, em que o leitor, torna-
<o cúmplice do historiador, é obrigado a-tirar p o rsl mesmo inferências de-
sagraç ave.s e cínicas sobre os mencionados'agentes. Apesar de considerável
esforço de documentação, a criatividade de GibboauTtrapassava em muito
suas fontes è seus processos de crítica delas. Seu pensamento era geral e no-
moteüco. A explicação-dos acontecimentos dependia do enunciado das leis '
(|ue os governam; por exemplo: a falta de guerras leva os homens a sé (orna-
iem efeminados;, os impérios se enfraquecem quando Se expandem além de
certos limites; os eleitos econômicos da exploração de outros povos podem
ser imprevisíveis e funestos,' A mais importante e onipresente dessas leis •
umsisle, para G.bbon, em ser a liberdade a única garantidora da saúde cívi­
ca, sendo sua negação*causa de esclerose social. Entretanto, este membro dos
grupos privilegiados da sociedade não entendia liberdade e democracia
•como o mesmo: para ele, a fase ideal do Império Romano foi a dos Antoni-
nos, sob os quais “as províncias obedientes estavam unidas por leis e ador­
nadas pelas artes” quando “o princípio geral do governo enfsábio, simples e r /
H-nehco . Seu livro celebrava implicitamente a Revolução Gloriosa inglesa
de 168;; os romanos eram criticados por terem obtido e depois perdido algo
semelhante. . ■
■ O pensamento da segundam,etade do século 18 por um lado rompeu
de vez com qualquer autoridade metafísica, por outro, eliminou de tal modo
’’ pie0CUpaÇa° com ° esPedfico e o particular que, reduzindo a História a leis
«u processos gerais, truncou as possibilidades da pesquisa histórica. Aquele '
pensamento tornou-se obsoleto apenas expressado: a Revolução Francesa se­
guida pelo Império Napolcônico, sacudiu às certezas do século 18, No mundo "
cio século seguinte, aparece uma preocupação com as diferenças entre as His-
lónas das nações, em lugar de sublinhar de preferência o que houvesse de co- .
mum em suas trajetórias. Cinismo, a mão oculta da razão humana ascenden­
te e amp as generalizações passaram a não ser ingredientes suficientes para
uma visao da História que parecesse plausível aos homens do Século 19.
PRINCIPAIS TENDÊNCIAS DO
INÍCIO DO SÉCULO 19 ATÉ
APROXIMÁDAMENTE 1930 ' - \ • .
A primeira parte do sccnlo -1 9 - até aproximadamente 1 8 7 0 - esteve _
marcada por tóndêndas contraditórias,, a primeira das quais pode ser chama­
da “Contra-lluminismo”) cujos inícioscíevem ser buscadosna Alemanha. Com
efeito foi-aii que se inauguraram os passos seguintes na constituição de uma
História metódica - a criação da Monumento G ç r n m w n h tm ca pelo arqut-
yistã Augusl Friedrich Pertz, eni 1821 (iniciativa imitada na França em 18?6. ,
Callectum âo dociunmls inêâits sur Vhj.stoirrdeFrance), consistindo na reqnlao
de manuscritos dispersos mas também na compilação do foiclore^e da liteia-
tura da Alemanha. Ò termo Contra-Iluminismo parece adequado devido à
forte reação nacionalista -incluindo a insistência no sentido de uma presen­
ça crescente da História alemã nas.escolas- que seseguiu à ocupação napo- .
leônica; c a seu núcleo, logo percebido e assumido no assim chamado Bspii-■
ío de 1813”:Xreforma da monarquia prussiana foi saudada poi to a uma í
nha de historiadores do século 19,de Droysen a Meinccke, como a inaugura­
rão de uma era de “liberdade” que, no entanto, em contraste com o atomis-
"m0” qUe se percebia nas idéias da Revolução Francesa, preservava a mtegraçao
dos indivíduos numa totalidade social. O núcléo do impulso h.stormgrafico
esteve nas universidades de Gottingen (de durável impacto na H.stóna do Di­
reito) e na nova Universidade de Berlim, fundada em 1810, á qual foram atraí­
dos intelectuais do porte do jurista Savary e d o. dinamarquês Larthold Ceorg
Niebuhr, que dominaria a História Romana por décadas, famoso por suas exi­
gências, de rigor. ■ ' _
No caso da Alemanha, o impacto da Filosofia sobre as cooccpçocs acer­
ca da História foi maior do que em qualquer outro'país ocidental. Destacam-
se as noções derivadas de Kant, He.der e Hegel. Immanuel Kant, na Critica cia -
razão pura, de 1781, separava radicalmentc o observador (sujeito do cm ieci-
mento) de ?eu objeto (a coisa a ser coiihecida), de maneira muito mais taxati-
va do que na epistemologiá moderna^anterior. O conhecimento do observador
’ depende totalmente de sua informação sensorial: não podendo sair de si mes- :
' mo para atingir a Ding-an-skhícoisz em si), o conhecimento se passa inteira- .

137
incute no inlerior do sujeito, tem u ver com suas noções, nascidas da elabora-
çao da informação scnsorial: o mundo exterior existe e nos estimula; mas os es­
tímulos dentro de nós e elaborados por nós, e não aquele mundo, è que são a
matéria-prima única do conhecimento. Tais idéias nao tiveram suas possíveis
consequências para a História derivadas pelo próprio Kant: seu únicó texto, so­
bre a Filosofia da História está redigido na linha de Voltáire. Mas os alemães da
primeira metade do século 19 tiraram sem dúvida tais conclusões: é impossí­
vel a tarefa, proclamada por tantos historiadores, de “reconstituir” o passado, já
(jue, ao contrário çlo mundo exterior, o passado já nem mesmo existe; o que.se
pode fazer é "construir5; no píeseiite do historiador, uma imagem‘do. passado,
uma espécie.de modelo dele que se considere coerente com os dados dós arqui­
vos, sem poder garantir qualquer identida de simples, um a um, entre a imagem
assim feita e o passado em si. Das idéias deduzidas de Kant se alimentaram Dil-
tluy,Croce, Collingwood emuitos outros, bem como opós-modernismo pós-
197(). No caso* de I. G. voii Herder, a tendência principal foi contrária à.do ilu-
minismo; este tendia a generalizar para a humanidade; Herder, pelo contrário,
fm fundador da idéia de que cada povo tem seu próprio devir e suas próprias
potencialidades, vistas sempre em fluxo, em movimento perpétuo. Acusava os
historiadores de anacronismo: em lugar de projetar sua época em outras, deve­
ria m perceber o que é próprio dc cada época. Esta visão, retomada na segunda
metade do século por Friedrich Meinecke (1862-1954),'foi chamada por este
de Histonsmus, isto é, a substituição de uma visão generalizadora sobre as for­
ças humanas na História por uma visãq.ihdividualizadora, negando' qualquer
“natureza hum ana’ dadá de uma vez por todas, imutável, e qualquer “lei da
História” ou "lei social” do'tipo daquelas buscadas por Cibbpn oq pelos filóso­
fos iluministas. Por fim, C, W. F. Regei foi uma espécie de anti-Kant, já que não
concebia uma separação.entre o sèr humano c o mundo. Este último não pas­
sa de uma projeção do Espírito:,a mente c o nuindo se unem numa relação dia-
léfica que se completa quando se percebe que ambos formam um todo que só
é diferenciado (enganosamente) pelas.abstrações do entendimento humano..
Poi trás de um tal projeto filosófico se percebe um projeto nacional; em 1793,
Hegel escrevera que nao acreditava que os alemães tivessem menos sentimen-
to do que outras nações pelos méritos dos antepassados; e augurava Uma era
em que isso se tornasse central no pensamento alemão. Hegel se'identificou
fortemente com a reforma do Estado prussiano em 1813.
Ihiminismo e Conlra-Iluminismo, cm seu contraste; marcaram o.sécu-
k> 19 Inteiro e mesmo o século 20, De um lado, a razão, as leis da História, o
evolucionismo, a humanidade (embora, posteriormente, hicrarquizada pelo
colonialismo): Comle, 'lâine, Fustel de Coulanges,-Gabriel Monod, Henry
Thomas Buclde; do outro, a diferença entre MatúrWissenschaft (ciência natiri
ral) e Geistes- o u ■Kuüunvissenschaft (ciência do espírito ou ciência,cultural):
autonomia da História (edas dências sociais) em seu método diante das cién-
ciaà da natureza, indivldualização de povos, personagens históricos e épocas,
ausência de leis. Esta última tendência também foi caracerística de historiado­
res fora da Alemanha, comò Carlyle, Macaulay ou Miçhelet.
. Entre os historiadores situados na linha do Contra-Iluminismo na pro-
pria Alemanha, Leopold von Ranke (1795-1886) merece menção especial. No
século do Màch$taat, ó centro das atenções foi com frequência o Estado prus­
siano visto como uma .realidade não.somente política mas ética (um Estado
garantidor das liberdades) - um valor em si meámo. A ética é algo centrai para
ús historiadores alemães: uma ética que supostamente não é imposta de fora
. aó.s fatos, mas sim, percebida nos próprios fatos. Isto implicava um forte sen­
tido de que o que acontece é exatamente o que deve.acontecer: o que existe e
necqssário. Vimos que uma das linhas de força da historiografia alemã cia õ
“historismp”, que implicava um programa de trabalho cm que ò conhccimén-
to histórico deveria evitar esquemas conceituais aplicados ao passado e, em lu­
gar disso, analisar instâncias individuais e eventos concretos. Nesse programa
geral pode-se dividir o século passado em dois grandes cortes: 1820-1870, isto
é, até a unificação alemã; e 1870-1914. No primeiro período, apesar de Seu for­
te nacionalismo, os historiadores alemães tinham afinidades com intelectuais
estrangeiros,'sobretudo ingleses; no segundo, fecharam-se no próprio mundo
alemão, desenvolvendo uma ideologia fortemente chauvinista. Em reação, por
exemplo, até a década de 1960, Ranke não voltou a ser publicado na Inglater­
ra oú na França. Em sua própria épòca, entretanto, sua influência foi enorme,
dentro e fora 'da Alemanha. Leopold von Ranke é característico das tendências
maiores do século 19 pela dicotomía nele presente: um método de. conheci­
mento particularistá; c uma substância desse conhecimento marcada, pelo
contrário - implicitamente e de forina não necessariamente consciente para o
autor pela buscaide verdades universais, em princípio impossíveis cm tei-
mos da teoria que aceitava - presentes, porém, na prática, operacionalmente.

.139
Unui de suas expressões mais citadas,.a injunção de que o passada deveria ser
recaaslruído ivlc cs.cigenllkh gcwesm, habitualmeole traduzida literalmente,
como realmente aconteceu”, leva a vê*lo, erroneamente, corno um positivista
obcecado pelos eventos verdadeiros. Na verdade, porérir, no contexto de é p o -'
ca, o sentido parece ser mais “como aconteceu em essência” O termo “essên­
cia’ era, aliás, muito usado por Ranke, que escreveu a seu irmão èm 1838 sçr
seu projeto baseara visão do passado no conhecimento do que aconteceu e na
intuição da essencia daquilo que aconteceu. É verdade que também escreveu,
em 1825, que este desiâcrãtuin de atingir a essência permanece incompleto e .
deixa o historiador permanentemente insatisfeito. Gomo sempre acontece, há
algo dc ai bilrário na escolha de um guru ou símbolo dc uma tendência pelos
especialistas em historiografia posteriores: um discípulo de Ranke, Theodor
Mommsen (1817-1903),,com'suas 1500 publicações, professor-em Leipzig,
I5i eslau e Berlim, poderia ter sido tal símbolo no caso d a assim chamada “es­
cola metódica alemã” tanto quanto o próprio Ranke; e talvez tenha até forma­
do mais pessoas e influído sobre mais historiadores, por encontrar-se no apo­
geu na época muito mais profissionalizada posterior a 1870.
Outra influência marcante na primeira parte do século 19 foi o Ro­
mantismo, Com a queda de Napôleão e a Restauração dc 1815, o impacto do
Uimiinismo recuou durante algumas décadas em toda a Europa ocidental, in-
cluindo a França. Abriram-se as décadas do que pode ser chamado*de “histo-,
riografiü romântica”, cujo traço mais importante.é uma revolta contia a frie­
za de uma visão estritamente racional; mesmo assim, muitos dós românticos
ei am exigentes quanto à documentação e participavam do rigor crescente, ini­
ciado como vimos já no século 17 e fortemente impulsionado - primeiro pe­
los alemães - no século 19, aplicado à busca, ordenamento e crítica das fontes
e da mlormação por elas proporcionada. Os românticos muitas vezes critica­
vam os Üuministas por sua visão generalizante pouco apoiadaeiri fontes e fa­
tos: um dos críticos-mais ferozes foi Thomas Babíngton Macaulay (180ü-;
1859), em sua apreciação sobre Humè como historiador da Inglaterra. Os ro­
mânticos admiravam a literatura de Goethe e Schiller e também foram m ar­
cados pelos modeios do jurista Sayigny e.do romanistá Niebuhr, atnbOs de
Berlim, acerca de como proceder rigofosamente na pesquisa. Mas, acima de
tudo, investiam num estilo què tornasse a História viva. e interessante: sua His­
tória era altamente literária e retórica. Na sua maioria, ós liistoriadores rq-

140
mânücos educaram-se uas décadas de 1810 e 1820 c estiveram em'seu auge
produtivo nas décadas dc 1830 a 1860. Seu credo foi expressado por Thomas
Carlyle (1795-1881) ao dizer que a única verdadeira poesia é a História quan-
do contada com “verdade”; ou seja, ps românticos queriana escrever estilisti-
camente com brilho, mas acreditavam no rigor e na verdade de suas reconsti­
tuições. Macaulay ou jüles Michelet: (1798-1874) - um admirador de Vico —
subscreveríam sem dificuldade o sentimento de Carlylè, embora talvez não a
letra de sua afirmação. Michelet, por exemplo, tinha verdadeira.obsessão com
o “sangue”, ou seja, com a reconstituição da vida . Verdade poética c técnica
narrativa estavam no centro para eles, bem como uma tendcncia eventual a
dissolver a História na atenção biográfica a heróis e heroínas, mesmo se não
negavam a existência dè um mundo social a ser tratado o mais globalmcnte
possível (Michelet foi mais longe do que qualquer oUtro romântico nessa via,
pelo qual os Annalcs o proclamaram seu antepassado), liste foi um período em
que os livros de História rivalizavam com os romances conto best-selkrs (nos
padrões de vendas de livros do século 19). Nos Estados Unidos, a sumidade,
nesta íinha. foi George Bancrofl (1800-1891), impressionado pelos ingleses;
formado na Alemanha (em Gõttingen) e tendo conhecido Michelet; foi em­
baixador na Alemanha. 1
Ranke. era um luterano convicto, Bahcrpft um congregacionalista, mui­
tos historiadores românticos ingleses eram anglicanos militantes: mas esse pe­
ríodo anterior a 1870 marca, na verdade, os últimos estertores'significativos da
noção providéncialista da História, mesmo assint, mais em lapsos ocasicínais
de autores como estes do que no núcleo do que acreditavam e escreviam conto
historiadores. Gpnformc avança o século 19, e com ele a~ciência contcmpórâ-
' néa e a Revolução Industrial, o ciçnlificismo e a laicízàção ou secularizàção da
cultura em geral c da História em particular avançam por Sua vez. Q vocabu-
■lârio cristão para falar do mundo e das coisas não e nècessamente enfrentado,
é crésceníemente ignorado. Unia Historia Econômica surge na esteiia da Re­
volução Industrial: W. J. Asbley, Wiljiam Cuhningham; na Alemanha, ITilde-
brand, Rosçher, Knie, Schmoller e depois Max Weber. Houve, sobretudo na
França, uiti anüclcricalismo explícito de muitos historiadores, sobretudo sob
a III República, mas esta não foi pm toda parte a pauta da sçcülarização. Sim­
plesmente, a consciência coletiva assumiu novas visões de mundo e um novo
vocabulário, confinando a religião doravante a ser uma atividade sepai a da,

141
delimitada, que nada tem a ver com o dia-a-dia profissional de um hislorta-
dor católico ou protestante, mesmo quando seja praticante. No campo das
ciências naturais, caso se deseje citar uma influência mais importante do que
as outras sobre a visão do social, provavelmente,convenha escolher o evolucio-
nismo, sobretudo na versão darwínistá, publicada em 1859 pela primeira vez
e cujo impacto maior nesse sentido já começou a ficar muito visívei nas déca­
das de 1870 c 1880. Isto foi visto, retrospectivamente,-como uma retomada das
tendências iluministas. Marx, p o r exemplo,, mencionava Danvin com fre-
qflôncia, bm todos os países europeus, ernborá mais tardiamente na Inglater- *
rn, esta tendência foi acompanhada por aquelas da profissionalização (cáte-.
dtus, te vistas especializadas, bibliotecas e arquivos públicos organizados, niu-
seus, grandes coleções de documentos históricos nacionais.etc.) e da presença
ampliada do ensino da História no primário e rio secundário. A preoçupação
com o ensinó fica patente em.uni detalhe que podemos tomar como exemplo:
a Rmic Historique havia sido fundada por M onod em 1876; quando o funda- ’
dor foz uma retrospectiva do que nela fora publicado até 1907, ou seja, em
suas primeiras três décadas, descobriu que,.37 dos artigos tinham a vercom o
ensino da História. O auge do nacionalismo facilitou uma grande presença da *
I tistórid nos currículos de todos os países,- como parte da formação de u m a .
consciência nacional. 1 • ■ • . .
A Alemanha foi uma referência, muito citada pór historiadores de to­
rtos os países, para um enfoque “científico” aplicado ás fontes. A França, po-
i em, pretendeu.trazer tal enfoque para a própria concepção dos conteúdos, re­
tomando a tradição do Ilumínismo mas, agora, a sso cian do -aaum ^t r ata m en - '
to muito mais metódico da documentação. Nesta linha situam-se Guizot,
1hiets c, já mais característica mente de um cientificisnro assumido em todas
as 1tentes, Gabriel Monod (1844-1912) e Léon.Denis Fustel de Còulanges
(1830-1889). Se a visão explicativa de Mafx foi minoritária entre os historia-
dotes no século 19, Fustel de Goulanges não oferece uma versão menos nomo-
Iética e explicativa, embora em. seu caso bas.eada na religião e nas instituições
como elementos explicativos centrais (como o era a Razão para Cqmte), .
Monod foi um pioneiro da historiografia como ramo dè pesquisa, ao
publicar em 1894. o livro Lcs ipaitres de Vhistoue. O representante maior da ten-
dênciá científica é ao mesmo tempo fnetódica na Inglaterra - onde ela perma­
neceu m inoritária-foi Henry Thomas Buckley, com sua Historyofchnlization
• . 'J
in Fm^ ívkI (1857-1861), deixada incompleta, marcada por um determinismo
estrito. A crítica desse livro de Ruckley por Lord Àcton, previsivelmente, foi
marcada pela afirmação de que a verdadeira^História tem necessariamente o
indivíduo em seu centro; o lórde ficou chocado com a tentativa de ati ibuit nina
espécie de personalidade própria a multidões, exércitos, ou quaisquer coletivi­
dades. Uma veia cicntifidsta de maior influência foi a de Henry.Maine, com
seu Ancient Iciw (1861), obra que continha a idéia de uma transição, de uma so-
ciedade.báseada no status, para oulra, baseada no contrato.
Na Europa de língua alemã, um desenvolvimento peculiar foi o da
História Cultural nas modalidades'dó século 19, em vinculação com a neces­
sidade de elaborar uma consciência nacional no processo de unificação e, a
seguir, para ò.Império Alemão, numa visão já deformada pela noção pseudo-
ciéntíficá de “raça”. Por um lado, temos historiadores como Karl Larnprecht
(especialista de História comparada das culturas vistas como entidades indi- ■
vidualízadas), identificado de perto com 6 Estado prussiano como núcleo da
cultura alemã e de seu conteúdo “etico e, portanto, çotn um nacionalismo
alemão cada vez mais exacerbado. Por outro lado, uma modalidade distinta
de'História Cultural, relativamente pouco admirada em vida do autor, “des­
coberto” só depois, levou a que surgisse A cultura do Renascimento na Itália,
do suíço Jacob Burckhardt (1818-1897), primeira tentativa de escrever um li­
vro de História onde narrativa e cronologia passavam para o. segundo plano,
no qual fontes não-escritas, pov exemplo as artes plásticas, e fontes literárias
(em especial a poesia) se tornavam quase tão importantes quanto os docu­
mentos dos arquiyos. O principal.seguidor de Burckardl e seu método foi o
holandês Johán Huizinga..
A História científica à francesa, herdeira do fiumintsmõ, e o marxismo, -
de mesma estirpe, de um lado, do outro o'idealismo alemão em suas diversas
modalidades (tendo comó núcleo mais consistente o hístorismo), entraram fi­
nalmente em choque frontal, na Alemanha - epicentro da “História metódi­
ca” (ponto pqcífíco) mas também do idealismo historistá —no assim chama'-
,do Methodenslrcit da década de'1890, num momento em que 0 historismo foi
codificado metodólogicamenté. pelos neokantianos Dilthey, Windelband (ó
inauguvador da divisão em “ciências nomòtéticas” ou das regularidades e
“ciências' idi o gráficas” ou do pàrticular), Riclrert eMeinecke. Estes últimos
criticaram a possibilidade ou mesmo que fosse desejável uma História çientí- -

143
Ik‘l> lK*° contrário, defendiam Laiuprecht e os.marxistas. A posição liis-
u>risla conseguiu um grau de convencimento maior do que no passado ao
criar uma alternativa durável ao m arasm o do ponto de vista epistemológíco
e metodológico, com Max Webcr (1864-1 920), çújos raciocínios de tipo teóri-
co-metodológico foram interisificados depois de 1904-1906. Retomou a no­
ção - exposta por Dilthey - da Verslehen ou “compreensão” corno alternativa,
nas ciênçias sociais, à “explicação" das ciências naturais, mas criticando o seu
iuüiicionismo esteticista, iambém apreciava a crítica mordaz de Ricfcert às
pielensões científicas em História, mas não o tipo* de descrição,delalíiista de
tspccificidades que praticava. Sua solução consistiu em insistir na importân­
cia dos conceitos para as ciências.sociais e a, História, Em sua maioria, os his­
toriadores aceitavam que devessem buscar características comuns aos fenô­
menos que estudavam c tratar de classificá-los; mas fugiam de quaisquer con­
ceitos generalizantes. Weber propôs o conceito-chave de tipo'ateai, que unia
em sí a concepcção kantiana acerca das idéias, que ria nelas uma imposição
snnplificadora da mento sobre a complicação irredutível do mundo externo,’ a
um outro sentido do que fosse “ideal’’: como.indivíduos, grupos, instituições
.ou formações sociais agiríam num mundo-ideal que fosse totalmente racional
e consistente. Na verdade, os dois sentidos do'termo “ideal” não são de todo
compatíveis, de modo que intermináveis discussões se sucederam'ao . longo
das décadas, depois do fim da Primeira Guerra Mundial, acerca de como en-
lender, afinal de contas, o conceito dè “tipo ideal”. Seja como for, Weber mos­
trou com um exemplo famoso a construção de um modelo em que o pro­
testantismo e o capitalismo implicavam um ao outro - a possibilidade de um
método não-marxista que permitisse dar conta, da complexidade das coisas
sociais. ' .
A partir sobretudo de. 1900, a França vi yen umá modalidade própria de
debate do método . As transformações que se faziam/presentes estiveram vin­
culadas a uma ligação estreita de alguns historiadores com a Geografia Huma­
na de Paul .Vidai de ía Bíache desde as últimas décadas do século 19, dando .
origem a uma vigorosa História Regional - setor dc estudos em que.um dos
futuros fundadores dos Ammles, LucienFcbvre, preparou seu doutorado, de­
fendido érii 1911, sobre Filipe II e o Franco-Condado (região francesa situada
a sudeste do país). Febvre chegou a escreverem 1953,'exagerando se.m dúvi­
da, tei sido.a Geografia^ dè Vidai de la Blachc a iniciadora de um enfoque que •

144 '■i
desembocaria, mais tarde, naquele dos Âtmalcs. Henri Berr (1863-1954), Um
filósofo da História mais db que um historiador, veemente crítico da “Histó­
ria tradicional” (principalmente política, militar e diplomática), propugnadov
■dé uma unificação da História e da Sociologia, que via como dois pólos de
uma mesma coisa, recusado quando pretendeu ingressar no Collège de France
em 1912, foi o fundador da Kcnie de SynthèseHistorique. e o coordenador.da
coleção “Uévolution de Fhúmanité”: tanto tuçieii Febvre quanto Marc Bloch
f colaboraram na revista e na ,coleção;e ambos, colegas na Universidade de Es­
trasburgo depois da Primeira Guerra Mundial, já mostravam em seus escritos
- sendo Bloch de longe o mais talentoso dos dois (seu'assassinato pelos nazis-
• tas em 1944 garantiu, porém, que a liderança de Febvre fosse niais duradou-
•í " ■; ra) - claros indícios, do que vi ri a a ‘sero conjunto de pontos de vista dosAn- •
.nales. Mesmo antes da fundação da revista, eles se interessaram pela Sociolo­
gia de Maurice Halbwachs e Émiie Dqrkheim, pela-Antropologia de Marcei
Mauss, pela Psicologia de Henri Blondel, pela História Econômica em desen­
volvimento na França (a Rcyue d‘Históire Êcotiomiijue foi fundada em. 1908).
Os livros de Bloch sobre os reis taumaturgos (1922) e de Febvre sobre. Rábe-
lais (1942) - este já posterior à fundação dos Annalés em 1929 - preparavam
a futura História francesa das Mentalidades. _ ,
Como se disse ao começar, a ênfase desta Introdução à Historiografia
Ocidental seria mais nos períodos mais antigos do que neste. Vou, então, sim­
plificar bastante as tendências posteriores á 1930, a começar pela que.'teve ng
revista francesa Antudcs. EcotwrnleSy.soctétcs, dvilisations, iniciada cm 1929, o
seu epicentro. Falo de tal revista êm sua fase de 1929 até 1969, isto e, o que se
• conhece como^ primeira (de Blòche Febvre) e a segunda (de Fernatid Bmu­
dei)1gerações dos Annales, posto que, em minha opinião, após retirar-se Btau-
•. dei, o periódico em questão deu mm a guinada radical em outras direções,
muito distintas quanto concepção da História. Note-se que a escolha de pò r
no centro a França - devido à sua longa influência predominante sobre os paí-
: ses la tinos - significa deixar de lado, por exemplo,'as fortes especificidadcs das
trajetórias historiográficas e epistcmológicas da Alemanha, da Inglaterra e dos
Estados Unidos. .
' As características mais marcantes da tendência histonográfica que gra­
vitava em (orno da revista Annales entre 1929 e 1969 foram, a meu vci, ás se-
• guintes; 1) a crença no caráter científico da.História, mas como.ciência cm

145,
constmçao: n História antes baseada na narrativa deveria, paia construir-se
como ciência, tornar-se uma “História-probleriia” ou seja, passar à formula-
çao cie hipóteses de.trabalho explícitas; 2) uma abertura crítica às ciências so­
ciais, sem reconhecer fronteiras estritas entre elas.vmenos estruturada do que •
tais ciências, a História deveria delas importar problemáticas, métodos etéc-
nicas (entre estas, as da quantificação sistemática e o uso de modelos forma­
lizados); 3) o desejo de formular uma, síntese histórica holística ou global
acerca das sociedades humanas no .tempo (sendo que as preferências dos his­
toriadores dos Annalcs tendíarp. a ’concentrar-se na ldade-Médiã e no início
dos Tempos Modernos), mediante a articulação dos enfoques voltados, para as"
técnicas, a economia, o poder (este com freqüència pouco considerado na prá­
tica) e as menlalidades coletivas, também tratando de perceber os contrastes e
arnlmias entre tais setores vistos historicamente; 4) a descrença em uma His- -
lória baseada em fitos e personagens Isolados e a preferência pórsujéitos
trausindividuais, coletivos, dècorrendo disto uma ênfase na economia, na de- ' •
mografía, nas mentalidade», socialmente consideradas; 5) o desejo de associar ■
outros tipos de documentos (paisagens agrárias, testemunhos orais, cultura
material, iconografia etc.) às fontes escritas, tradicional mente as mais usadas
pelos historiadores; 6) uma preocupação - sobretudo a partir dos escritos de ;
Fcrtiand B raudel- com o caráter múltiplo das temporalidades; tempo quase
imóvel dá Geografia, tempo longo dás estruturas, tempo intermediário das
conjunturas, tempó rápido e superficial dos eventos; também arritmias entre "
as diferentes estruturas do social (a técnica evolui mais lenta mente do que a
economia, esta do que as mentalidades, por exeulplo); 7) a preocupação com
o espaço, herdada da Geografia Humana de Vidal de la Blache, levando à mui- '
tiplicação dos estudos históricos de mares e oceanos, ou seja, dos espaços que
estes unem e separam ao mesmo tempo (o Mediterrâneo de Braudel, o AUân- .
tico dc hréderic Mauro, o Atlântico e o Pacifico de Pierre e Huguette Chaunu);
_B) a convicção de ser a História “ciência do passado” e “do presente” inàissó-
luvelmente: a História-probiema é uma. iluminação consciente do presente c
petmitiiia entender m elhoras lutas ,de hoje, enquanto o conhecimento do
passado só é. possível partindo daquele do presente do historiador. •
Rstas concepções dos Annalcs mostravam tòr fe confluência com outra'
das grandes tendências que se faziam sentir- nessas década?: o marxismo,' cuja
presença entre ós historiadores foi muito mais um fato do século 20jdo que do
19. Os principais pontos dc coincidência (máxima, claro está, no caso de his-

1
' toriàdores como Pierre Vilar e Albêrt Soboul, ao mesmo tempo próximos dos
1 Annales e marxistas).eram os seguintes:.1). o reconhecimento da necessidade
de uma síntese global que explicasse tanto as articulações entre os níveis q u e ,
•fazem da sociedade uma totalidade estruturada quanto das especificidades tio
desenvolvimento de cada nível (entretanto, uma dife ren ça importante, quan- _
’ to a isto, vinha da pouca inclinação teórica nias não metodológica - dos un- • '
nalktes e do fato de não disporem estende uma teoria acerca da mudança so­
cial); 2) a convicção de que a consciência que os homens de determinada épo-
ca têm da sociedade cm que vivem não coincide com a. realidade social da cpo-
' ca em questão (isto é, cumpre efetuar um desvelaméntoras estruturas funda­
mentais não se dão na superficicda descrição, dos fatos); 3) o respeito pela es-
' pecificidadç histórica de cada período, dê cada sociedade: por exemplo, as leis
econômicas descobertas pelo estudo do capitalismo conteniporâneo não são
automaticamente aplicáveis ao mundo pré-capítalista; 4) a inexistência de
• fronteiras estritas entre as.ciências sociais, sendo a História uma delas; 5)-a
• vinculaçgo da pesquisa histórica com as preocupações e interesses do.presem ■.
te; 6) alguns dós’ atinalistes - minoritário^, no entanto —aproxima raln -se da
"noção marxista de uma determinação em última instância do conjunto.social
. pelo nível econômico. . '
. . Este paradigmai derivado do Iluminismo, passou a estar sob forte crí-
., tica a partir de 1968, más não me ocuparei disto neste capítulo: eSta antologia
contém numerosas outras análises das tendências mqis recentes.

' .CONCLUSÃO O. ; '


•" Procuramos mostrar que a profissionalização da História como disci­
plina ç algo relativamente recente, vinculando-se em forma muito clara à con- .
vicção dos Estados nacionais, a partir sobretudo de 1870, dc ter ela umjmpel
central na construção da identidade nacional. H factível perguntai, então, se,
num mundo onde o pensamento neoconservador e neoliberal, hegemônico
entre- os governos,''insiste na globalização e na formação de blocos plurinaciò-
. • . nais (Europa, Al.CA)., onde, além do mais, o pós-modernismo tudo tez para
• enfraquecer-a noção de uma tèmporalidade linear.e orientada (que mostra-

147

\
im,s tísli,r central mente vinculada no desenvolvimenlo da História-discipli-
"íO, ela poderá conservar-se no interior dás estruturas profissionais íortemen-
le institucionalizadas - cuja manutenção depende de um financiamento que
muitos governos já não se dispõem a garantir - herdadas do século 19. Volta-
tá então a História a ser uma atividade de diletantes, cuja presença nos currí­
culos se torne bem menor do que ocorre atualmente? No Brasil, um primeiro
ensaio tio reduzir a importância cia História-disciplina no ensino foi o dós
“listmloS Sociais” é das “licenciaturas curtas*, deletérias iniciativas.do regime
militar inaugurado em 1964.,Mais recenteménte, unia Comissão de Especia­
listas dç Isnsino da áreà cie História escutou em Brasília, sem qualquer ambi- -
gílidiide, ser dcsiâeratum do governo (ná época o de Fernando Henrique Car­
doso) a regulamentação das normas curriculares para adequá-las à nova lei de,
Oitcli izes.e Bases da Educação (o também famigerado substitutivo Dárcy Ri­
beiro), não em História em separado, mas em algo que sè chamava'dè “Ciên­
cias Humanas . Resistiu-se, de ínomeiito com sucesso. Por quanto tempo se
poderá resistir? -
' * .) .'
Chama-nosa atençãq, outrossim, o ciado seguinte: a profissionalização
da História vinculou-se.estreitamente, como vimos, ao nacionalismo em seu
auge dos séculos 19 e 20. Poder-se-ia então perguntar: sobreviverá âs tendên­
cias contrárias da mundialização atual? Continuarão c>s governeis, na maioria
dos países, a garantir as'grandes despesas necessárias à infra-estrutura que
permite o trabalho dos historiadores: profissionais, bem como aó íuncioha1-
mutilo das instituições em que atuam os próprios historiadores? Em'certas
parles cio mundo isto parece bastante duvidoso;
O estudo panorâmico da historiografia ocidental,, a nosso ver, mostra
um forte impacto das mudanças e dosvcpaflitos sociais (no sentido genérico
deste termo) sobre as concepções e a configuração da disciplina histórica.
Uma historiografia atenta ao “cultural” mas não ao social seria, portanto, um
(i;emendo contrasenso. ■

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VILAR, Pierre. lnidadôn al vocabulário dei ahálisis histórico. Trad. M. Dolors
Folch. Barcelona: Crítica, 1980.
' Capítulo 7

A H i s t ó r i a n a v ir a d a d ê m i l ê n i o :

FIM d a s c e r t e z a s ,, c r i s e .d o s

PARADIGMAS? Q U E H lSTÓ RÍA


. ' A - ’ ,- ; CONVIRÁ ÂO SÉCULO 2 1 ?

“O historiador trabalhapartindo do suposto de scr capaz derecpns-


truir e compreender os fatos' do passado. Se um epistemólogo conseguir
convencê-lo do contríirio, o historiador deve mudar de profissão.”
r '• Arnaldo Momigliano (1974)
- * , ‘ •• • ‘

Tornaram-se corriqueiras, ,nos últimos tempos, as afirmações sobre a


História marcadas pela proclamação de “mortes”^ “fins”: morte do Homem,
morte das ideologias, fim dos sistemas explicativos holísticos, fim da Histó­
ria.. ; Correspondem, em linhas muito gerais, ao pessimismo epi.stemológico
dito pós-moderno, cuja importância talvez tenha sido máxima, no mundo
ocidental, entre 1984 e 1994. Atualmente, nos países mais desenvolvidos, há
claros sinais de esgotamento do pansemiotismo e do ceticismo (às vezes, do
niiiisnio) que são traços centrais dessa postura diante do conhecimento.^
Ao constatar tal fato, Michael Bentley narra, entretanto, um interessan­
te episódio por ele observado, Em 1998, no Congresso Mundial de Filosofia,
reunido em Boston, numa mesa redonda sobre a Filosofia da História, falaram
dqis.filósofos e um historiador. O tema específico cra a qarraliva, em suas re­
lações com a verdade histórica. Bentley escreve, com certa ironia, que, vinte
’ anos antes; poder-sc-ia apostar que os filósofos combatessem a possibilidade
de uma verdade histórica e o historiadpr, um tanto lia defensiva, se ativesse à
noção de que os escritos produzidos jpor historiadores contivessem pelo me­
nos algum gra u de verdade. Ora, em 1998, ocorreu o inverso I A posíura epls-

151
tomológica pós-moderna e o rclaiivismo ciillurnl foram, naquela ocasião, fús-
(igados pelos dois filósofos, cpie se fizeram defensores de um enfoque da dis­
ciplina histórica baseado no realismo epist etnológico, enquanto o historiador
defendeu a tese contrária. Talvez, em parle, en; função cie tal episódio, BenUey
comenta que, a partir da constatação de um já' evidente recuo filosófico do ce­
ticismo epístemológico pós-moderno, “dentro de .uns'trinta anos” talvez os
historiadores voltem * acreditar na possibilidade de aceder à Verdade históri­
ca.12Sou menos pessimista do que ele quanto* áos prazos, nesta época de infor­
mação instantânea oú rapidamente difundida, mesmo porque há já alguns
liistoi iadores, dotados de vivo interesse pélá epistemologia e pelos métodos de
siilí .ircm de estudos, berri conscientes, e isso'há vários: anos, do esgotamento
das posturas pós-toodernas e culturalistas à outrance, òs quais, por tál razão,
m os liam-se atentos - como também estarei nesta palestra - ás repercussões
possíveis do declínio do pós-modérnistno sobre o futuro imediato da Histó-
ria-disciplinad '
Meu tema tem á ver, então, com o que acredito ter mais p to habilidades-
de acontecer nas primeiras décadas do século 2f que ora se inicia, no tocante
a como os historiadores encaram o seu ofício. Tentarei avaliar,' entre as tendên­
cias mais gerais detectáveis atualmente nos estudos históricos, quais deverão
continuai importantes e quais, pelo contrário, poderão vir a perder fôlego.
Dada minha tendência a discutir tais questões num nível que não é o habitual
nas discussões de Historiografia, ou seja, num contexto .mais abstrato e gene-
lalizante -- em suma, mais metateórico - do que é comum nesses debates, tal­
vez convenha começai* pela exposição .do que parece ser um dilema que se tenr
evidenciado com insistência, no mundo dos historiadores, ao longo das déca­
das e mesmo por mais de um século até agora, desde que a sua profissionali­
zação, começada Tio século 19, trouxe esporadicamente à baila —émbora não

1 UKNTLEY, Michaei. M o d e m Insio rio ^ra p h y. An introduotion. Loiulnn: Routledue ■


1999. p. 150-156, . • b ’
2 liARROS, Cailos. La historia quc vièiie. In: BARPOS, Carlos (Org.). H isto ria a d e-r -
b a te. Actas dei Congreso Internado nal A H istó ria a D ebate celebrado el 7-11 de ju-
lio de 1993 en Santiago, de Compostcla, torno I: Pasado y futuro. Santiago de Com- ’
postei a: Historia a Debate, 1995. p. 95-117; e, já bem anteriormente: R.ÜSEN, JOrnA
Conscientização Histórica frente à pós-modernidqde: a História na era da “nova iii
transparência”. H istó ria : Q uestões e D ebates, Curitiba, 1 0 ,13/19,p. 303-328, 1989.
com u freqliència que seria desejável desde a década de 1890 (e pioneira-,
mente na Alemanha), o Methodenstreit ou “débate sobre o método”, de cuja
fase inicial se tratou no capítulo precedente.’ O dilema em questão, entrclan- *■
to, tem a ver com ó conjunto das disciplinas humanas e sociais, ultrapassan­
do, em muito, as fronteiras do saber histórico.’
Os estudos dos seres humanos em sociedade sempre encontraram
„ diante de si a escolha entre abordar o social, seja privilegiando o ângulo ma­
terial e das ações qtie os homen s efetivam ente realizam, seja .dando maior im ­
portância ao ângulo mental.1 .•
• No primeiro caso, sublinha-se aquilo que todo sujeito individual ou co­
letivo já acha diante de si nà sociedade em que vem a existir (os objetos, a lín­
gua, a divisão do trabalho etc.; em resumo, aquilo que determina o enquadra- .
mentp instrumental de sua ação), bem comò as próprias ações individuais ou
coletivas, as práticas pelas quais tal sujeito participa na perpetuação, reprodu-
ção e reirtvenção permanentes do,social. Esta opção costuma vir acompanha- .
da, por mais que isto não seja obrigatório, da escolha de uma abordagem ana­
lítica e explicativa, de. uma possível perspectiva holística acerca do social,,
eventualnierite da convicção, dc ser preciso elaborar uma ciênciu social não es­
sencialmente diferente, em seus contornoS e procedimentos básicos, das ciên­
cias naturais. . .
"Caso a preferência récaia no ângulo mental, perccber-se-ão central­
mente coisas como a subjetividade, as vivências, a religião, as ideologias, mais
em geral 05 sistemas simbólicos: aquilo, portanto, que é.pensado consciente­
mente, mas também o impensado‘social (sonhos, mitos, o inconsciente ou
hão-conscienle coletivo). Aqui, é frcqüente (entbora não forçoso) que as pre--
• ferências metodológicas se dirijam a enfoques qüe parlam da compreensão e
da interpretação (hermenêuticos), ao serem postulados os vaiores, os signifi-
■cados a decifrar, a subjetividade individual e coletiva como algo não só essen­
cial para a abordagem do humano; como também fundado v de uma difere n-3*

3 .Ver, por exemplo: LUTZ, Raphad. Lamprecht-Strelt und franzôsischeV Mcthodens-


- treit: der Jaluhundertwendc in vergleichender Pmpeklive. I listorische'Zeitschrift,
. 251, p. 325-363, 1990.
' ,4 Nosso pomo de partida será, aqui: ROBERT, André D.; BOUIIXAGUET, Anníck.
Üaaatyte de contam- Paris: Presses Univcrsitaires de France, 1997. P-A3-45.

153
çsi mcliciil entre as disciplinas liumanas c itquçlns dn nídureza; nesta peispecti
va, os enfoques liolísticos do social surgem dificilnumlcr
Os objetos a que se aplicam os dois Ângulos mencionados são íntima e
até mesmo mextricavélmenlé ligados. ílm lese, poucos negariam tal vínculo.
Mas não há dúvida, dc que a alternativa indicada exista e que possam achar-
se, majoritariamente, estudos que enfatizem bastante unilateral mente, seja
um ângulo, seja o outro. É, mesmo, muito difícil associá-los numa síntese rcal-
mente satisfatória..Acho que alguns historiadores - em,especial, em minha
opinião, os melhores historiadores jnarxistás, por exemplo Pierre Vilar e al­
guns dos britânicos-, conseguiram aproximar-se dela em seus trabalhos, além
de defcudê-la como desideratum em escritos teórico-mctodológicos.5Trata-se,
porém, de exceções que confirmanía regra, não da regra mesma. '
Seria difícil negar o caráter, inseparável dó material e do mental. Ne­
nhuma ação individual ou coletiva poderiâ exercer-se sem estar referida ao
' •«■' ' b • _i
mesmo tempo a um projeto, ou a uma ideologia, ou a um mito etc., que tenha
curso na sociedade de que se trate. Uma instituição qualquer (igreja, escola,
justiça, por exemplo) se.caracteriza tanto pelos gestos è práticas materiais ri-
lualizadas que exige quanto pelas representações que supõe. O,sociólogo
Claude Javeau escreveu que uma sociedade, enquanto ç. “agida” por aqueles
que a integram (e, reciprocamente, age sobre eles), é ,simultaneamente pensa­
da e imaginada pelos seus membros.6 Se há algo impossível de continuar dc-

5 Fixando-nos só nos escritos normativos, feríamos, por. exemplo: VILAR, Pierre.


I t ti d a á ó i v a l vo cabulário d d a n á lh is 'h is tó ric o . 'Irad. M. Doiors Folch. Barcelona:
Critica, 1980; VILAR, Pierre, Pensar h h tó r k a m e o te : reflexiones y recuerdos. Barçe-
lona: Crítica) 1997; HOBSBAWM, Eric. O u h h to ry . London: Weidenfeld & Nicol-
soa, 1997; D'ALESSIO, Mareia Mansor (Org.).- R eflexões sobre o sa b er histórico:
Pierre Vilar, Michcl Vovelle, Madelcine Rebérioux. São Paulo: Ed. da Unesp, 1998.
I louve tninbém,'sem dúvida,“de fora", críticas contundentes (embora às vozes mui­
to respeitosas) dessas posições, como: HtMMELFARB, Gertrude. T h e n e w h isto ry
a n d the.old: Criticai essays and rcappraisals. Cambridge, MA: Harvard Univérsity
Press,. 1987, p. 70-93. E, “de dentro’) ocorreram autocríticas por vezes muito radi­
cais, se bem que por vezes coerentes com a trajetória anterior do autor, .comb ê o
caso de: FONTANA, Josep. H istória: .atuíiise.d.o passado e projeto social. Trad. de
Luiz Roncari. Bauru: Edusç, 1998: p. 267-281 (estas páginas correspondem a um
postfácio à edição brasileira c não constam da edição original em éspanhol de
1982). ' . ■ ,. ■ ,
6 JAVEAU, Claude. LeçotiS da socioióyje, apud RÓBERT, André D.; BÓ.UILLAGUET,
Annick. V a n a ly se d e co n tem i. Paris: Presses Universitaires de Prance, 1997. p. 44.
fc.dendo utualmcntc!mesmo pelos marxistas, é a dicotomia
“ Mauricc Codelier mostrou muito bem, a meu ver, uao ser faet.vel sepa .

r e í t , , » . , ^ , em seu centro, a W ;

como potencialmcnte *>

na verdade, em função da emergência e cons bd çao - * -

foquediio “cultural .* . ■ • ., 0 dosmaispolissômicos,

: raz5o ^ q ^ t ó r i a C ú l t ^ r poder

Lização ;* hoje em dia, se t epc>, ^ ., ue cmbora com varian-


mente muito makm No ™ tant^ * b® cultural têm em mente uma noção .de'
. tos, os que usam a expressão - . , Alfred Kroeber em
cultura semelhante àquela exposta por Talcott Paisons

7 GODÉLIÊR, Maurice. lU d d U ^ r ^ V ^ . ^ o ^ s o a d é s . Paris: Pa-

.. i, . tvi.sTRAUSS, Claude. El pensnmiénto sãlvtije. Ttad-


8 Consulte-se, em especial. LÊ -• - 4, a p Tnltura Econômica, 1975. p-W?
Francisco Gonzálw Anmihuro. México: oiu i “ umibémpor semíotistas
' (ed. original francesa, 19.62).Este p o n to f ™X ^ T r a d . D. Sar-
marxlstas:ROSSI-LANDl,Femiccioela, »«< RUBIOCARRACF.DÕ,José.Lévi-
lo. Ruenos Aires: Galcrria, 1975> p. 122. Ver 1976, p. 284-299; RUB1Ú

CARRACRDO, José. El hoinbrcy In étiui. Barcelo a. . . . .

SériePapers,47, lt. , •■

155'
1958,10 com que trataram de eliminar da Antropologia todos os aspectos que
não fossem simbólicos ou mentais..TVata-se,de um enfoque baseado numa di-
vis;lo estrita do trabalho e do campo de atuação entre: a Sociologia, disciplina
que se ocuparia da "sociedade” e suas interações; e a Antropologia, clisãplmà
cujo objelo seria a cultura, amputada de mu.itos' elementos, nò entanto bem
presentes em numerosos trabalhos antropológicos elaborados anteriormente;
Note-se <|ue a opção pelo recorte culturalista (oirperspectivista) da Antropo­
logia costuma levar consigo, entre os historiadores - se bem que isto não seja
obrigatório uma preferência pelo enfoque micro e pelo trabalho com gru­
pos pequenos de pessoas, com comujnidãdes reduzidas.. .
N;i atual trpdição francesa da História Cullufai, que tomo como exem­
plo, o historiador cultural pôdb ser definido da maneira seguinte:

(...) o historiador que pretende reconstituir as representações constitutivas de um


giupo social é levado a privilegiar certos objetos de estudo, que requerem métodos
de analise específicos. A atenção se centra nas produções, sim bólicas d o ç n ip o c, em
princípio, em seus discursos. O que muda, de fato, é menos o objeto dê estudo - o
historiador sempre trabalhou c trabalhará ainda durante muito tempo com base
em textos, mesmo'se fizer referência a outras fontes - do que o ângulo sob o qual
é considerado.11 ' . ' .

N.io é exagerado dizer, então, que,.por mais mediações e contextuações


(|tte certos autores aceitem ou propugnem - incluindo aquele que elaborou á
definição acima, Antoine Prost - , o que hoje é chamado de História Cultural
(ou Nova História Cultural) denota um predomínio passageiro, entre nume­
rosos historiadores, de um modo dc ver que enfatiza o estudo de elementos
mentais. Em todo caso, ficamos, nesse domínio, bem longe de'um conceito .
Imlístieo da cultura como algo que inclua; pór exemplo, os níveis econômico- '
social e político vistos em si e por si (embora possa incluir o “poder” encara­
do nas vivências quotidianas ou em suas encenações “surrealistas” para úsar
tuna expressão do antropólogo Peter Wilson).12

10 KROEBKR, Altfed L.; PARSONS, Tálcott. The concept of ctilture ánd of social sys-
lem.Ammojii Sociologiail Revicw, 23,'p. 583, Í958.
11 PROST, Ahtoine..Social y cultural, indisodableinente. In: RlOUXçJean-Pierre; SI-
RINELLI, Jean-François. Pará um:historia.cultural México: 'Ihúrus; 1999. p, 146. ’
Trad. do francês sem indicação do tradutor.,
12 WILSON, Peter J. T h e do m e stica tio n o f th e l m m a n specics. New Haven: Vúle Univer- ’
sity Press,' 1988. p .U 7 - ISO. ...
A atitude dos historiadores culturais diante das concepções holísticas
do social é, no entanto, variável. Sc existem aqueles que pretendem dimensio­
nar a História Cultural como alternativa à História Social com pretensões glo-
balizadoras, como é o caso de Antoine Prost,1314*6para outros de seus cultores ela
st; situaria ao lado ou até mesmo, em última análise, á serviço de uma Histó­
ria atenta à totalidade do social, a seus “sistemas”.1'1 •-
Também a forma da relação, metodologica do historiador cultural com
as lições da Antropologia pode variar, pia é assim definida por Robert Darn-
ton, discípulo de Clifford Geertz;

os antropólogos descobriram que as melhores vias de acesso, numa tentativa


para penetrar uma cultura' estranha, podem ser aquelas em quç ela parece niais
opaca. Quando se percebe que nâo se está entendendo alguma coisa Uma piada,
' tini provérbio, uma cerimô n ia - partiailarm cnte significativa para os nativos, exis­
te a possibilidade de se descobrir o ndc captpr um sistema estranho de significação,
a fim de-decifrá-lo.1* , ,

Esta indicação de método tem a ver com a noção de alter idade , cara à
Antropologia atual em muitas de suas vertentes..No entanto, se um historia­
dor, em lugar de em Geertz, buscar apoiar-se metodologicamente na Antro­
pologia de Marc Augé, igualmeilte pós-moderiia, igualmente voltada paia a
noção dc alteridade, mas achando-a também no.contexto de úiha etnologia
do que c “próximo”, Isto é, por exemplo, da própria Europa Ocidental, encon­
trará pistas metodológicas bastante diferentes.1''

13 PROST, Antoine. Social y cultural, indisociàblemente. In: RIOUX, Jcan-Pierre; SIRJ-


NELL.1, Jean-Fraiiçots. Para u n a historia a d lu m K M è x k o '. Taurus, 1999. p. 142-146.
14 Por exeinplo: GINZBURG, Oirto. T te cheese a n d th e w o n tis : The cosmos o fa Six-
teenth-Century miller. Translatéd by John Tedeschi and Anne Tedeschi. Har-
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• gfu d e tos m u n d o s c o n tem p o rá ricos..Trad. Alberto Luís Bixio. Barcelona: Gedisaf 1996.

.1 5 7
Nüo é meu objetivo, entretanto,explorar criticamcnle a epislemologia
ou a metodologia que, grosso modo} pode-caracterizar-se como pós-moderna
“ cojsa que já fiz mais de uma vez neste antologia. Interessa-me, aqui, fazer in-
leri'ogações/ acerca. de sua superação. Tenderá ela a ser superada num futuro
próximo ou previsível? Natural mente, os cultores da (Nova) História Cultural
acham que a tendência em .que se inserem será duradoura. Amorne Prost, por
exemplo, afirma coisas como ás seguintes: r) •

Ao passo que a História Econômica è Social, preocupada, com os grandes con­


juntos e com a compreensão global, acha-se progressiva mente abandonada, a Mis­
é ria Cultural transborda dc novidades ç anuncia-se como a História de amanhã, a
mais adequada au tu a época mais desencantada e mais narcisista. (...) [Nossos con-
lutnporâneosj esperam dela uma aproximação global e pedem-lhe que esclareça ò
próprio sentido de nosso tempo, e o'da evòluçao*que a ele conduz. Enira em jogo,;
. aqui, nossa identidade coletiva.1’ .•
\ ' •' "* - .

lal não é, entretanto, minha opinião. Adio que o movimento de idéias


em cujo-bojo tomou forma á História Cultural já está sendo superado, como
foi mencionado ao começar. Acredito que, de um lado, as debilidadesántrín-
sccas dessa forma de pensamento e de História são evidentes detnais pára que
eia perdure por muito tempo; c, de outro, que as mesmas .circunstancias his­
tóricas'que favoreceram o seu fortalecimento se encarregarão de entravar, no
futuro próximo, a sua persistência.
As primeiras dcbilídades que gostaria dc mencionar são de caráter filo-
soíico geral. Como diz Blackburn, os pós-modernos deparam-se “coni o anti-.
go piobtema dos céticos acerca de como pensar e agir à luz de súá própria
doutrina”. E esclarece: ' ' ' .

Enquanto parã alguns a destruição da objetividade parece ser o caminho para


se chegai a unt radicalismo político libertador, para outros isso vcin permitir pon­
tos de vista nada libertadores, (...) é para outros ainda, como Rorty (..,), essa des­
truição permite o recolhimento de cada uni de nós muna atitude estética, irônica,
desapegada e jovial quanto às nossas próprias crcnças.c quanto ao curso dos acoti-17

17 PROST, Antoine.- Social-y cultural, indisoçiablemente. In: RIÒUX, Jcan-Picrre; Sl-


RINÉLLI, Jean-François. Paru una historia cultural: México: Tatmis', 1999. p, 139.

158
tecimentos. lisse recolhimento tem sido criticado por ser socialmente irresponsável
‘ (c, era última instância, muito reacionário).'* . - .

.Um problema.fildsóflco, de peso, em especial quanto à vertente fran­


cesa da História Cultural, é cair muito freqüèntemente no “representacib-
naíismo radical”, ou seja, na concepção de que o conhecimento humano
não pássa'dc um conjunto de idéias ou-representações. Ora, tal postura fi­
losófica tem sido criticada em fôrma irrespondível desde o fim do século 17
e início do seguinte. Os críticos cie Nicolas Malebranche e cie John Loclce,
como Antoine Arnauld, Simon Fouclier e George: Rerkeley perceberam a
aporia, central involvida no represèntadonalismo estrito. Ao se negar à
mente acesso aos objetos-exteriores a não ser mediante idéias e representa­
ções, como seria possível saber dó quê -as representações são, de fato, repre­
sentações, já que inexistiria uma fôrma independente de acesso àqueles ob­
jetos exteriores? Um dos cultores mais inteligentes da História Cultural,
Antoiue Prost, reconhece que ”é impossível compreender-uma repiesentà-
ção sem saber do quê seja a representação, sob pena de naufragar no nqmi-
nalismp”,1'’ Mas não fica claro como seria possível evitar este problema n o ’
seio de uma corrente tão ‘u nilateralmente representacionalisla quanto a for­
ma cie-História cm pauta, que o autor mencionado integra e afirma, até
mesmo num tom de propaganda ou proselitismo. A sóluçãó de Prost é al­
iam ente problemática. Vê a História Cultural como Tuna culminação da
pesquisa, supondo pesquisas anteriores (que, infere-se, proporcionariam
elementos indicadores do quê as representações que os historiadores cultu­
rais descobrem sejam representações).'0 Vimos já, porém, que para ele tal
modalidade de História é uma alternativa às form ai anteriores de encarar a*19

. ' IS BLACKBURN, Simon, D icio n á rio O x fo r d ife Filosofia. Tiad. Desidério Murcho et al.
.Rio de íaticiroT |orge Zahar, 1997, p,. 306-307 (verbete “pós-modernismo”). A res­
peito dos possíveis efeitos dá atitude pós-nioderná sobre a firá xis polílico-social, cf.
BÉDARirpA, François (Org.). T h e social resp o n sih ilily o f lhe h islo ria n . Providence,
RI: Berghan Books, 199.-1. ' ’
19 PROST, Anloine, Social y cultural, indisociabletnentc. In: RIOUX, Jcan-Pierré; Sl-
RINELL1, Jban-François. Pára u tia h isto ria cu ltu ra l. M6dco:Taurus, 1999. p. 154:
; 20; Ibid.- . ; ‘ ' - " - 1 ,

159
. disciplina, cie modo que, finalniciitc, fica conlnuliiória e alé incoerente ;
solução proposta.
Bm Umção, pelo menos em parle, dessas e oulras tlcbilidádes filosófi-
eas de base,’1a Nova História Cultural, em qunlquur de suas'variantes - que
"o *ilant°, apresentam diferenças consideráveis entre si -,.e.itra com .fie-
qiiência em-contradiçãó consigo.mesma na sua própria prática historiògráfi-
Cn>. ,,cgund0 únpíicitamènte, no que de fato faz, alguns de seus supostos. Se­
guindo Ceo cg lggers, vamos apresentar dois exemplos/
Um. d °s esforços mais ingentes da mencionada História Cultural em
suas variadas posturas e especialidades tem sido a desconstrução sistemática'
, da unidade da cultura ocidental, de qualquer coerência que se pudesse per­
ceber em sua História, de sua visão de mundo. Tenta-sc acabar com os gran­
des objetos da História dessa cultura como eram antes percebidos (muito es-,
pecialmente, as grandes revoluções sociais, a começar pela de 1789). Uma"
historiadora feminista Como Joan W. Scpu julga a metodologia científica e a
episletnologia ocidentais irremediavelmente contaminadas pela dominação
masculina e opta por pregar militantemente para a História de.Cónero uma
posltira política radicalmente desconstrucionistac* Mas, como afirma lggers
com razão: . '

. 1al' ,! z seja Ju m a contradição dc numerosos historiadores da vida quotidiana e


micro-historiadores - embora, de modo algum (...), de todos - que por um lado
certamente neguem a unidade da cultura ocidental, enquanto por outro não vão
suíiaentemcnlc longe em ada postura descentralizadora, já que dão como suposta'21

21 Sobre as quais, para um panorama geral de grande àcuidadc, consulte-se a inlro-


dução do compilador em CAHOOÚE, Lnwrenee (Org.). F rom m o tk r n is m to p o s -
tm o ilcriiism : An anthólogy. Cambridge, MA: Blackwell, 1996. p. 1-23. E, para t,ma
boa demonstração dc que as posições pós-modernas em nada avançaram relativa-
inenle aos debates anteriores da modernidade e sua crítica, ver PlPPiff, Robert B
h h H lc n u sm as a p hilo so p h ica l p r o b k m x On the dissatisfaítions oflm ropean high
culture. Cambridge, MA: Blackvvell, 1991. p. 1*18-167, 197-201;
22 SCO ! T Joan Wallacè. G e n d e n v u ! th e p o iitic s o fh h to r y . New York: Colvjmbia Uni-
versdy Press, 1988. p. 9, 176. É justo dizer, no entanto, que, refletindo a crise atua!
do pós-mndermsmo, a História de Cênero não comunga em geral com posições
epistemolõgicas radicalmente negativas.(posto que a desconstrução, quando ado­
tada com exclusividade, é absoluiamentè negativa) çómo esta de.Scotl.'
a unidade dc seu objelo de pesquisa e, assim, passam por alto q u e > d a descrição,
por muito densa que seja, é já o produto de uma seleção . .

' '• É igualmente verdadeiro que, em contraste com a negação de qualquer -


unidade à cultura ocidental, os historiadores culturais', em séu multicultura-
lismo a meu ver neoboasiano é esthuihamente estático esimplifiçador quan­
to à noção d« que seja uma cultura, concedem unidade às outras culturas, tan­
to num sentido macrdcultural (cultura muçulmana, cultura.de.Bák no século
-19 etc.) quanto naquele cm que percebem "subculturas” nas sociedades oci­
dentais contemporâneas. Cada uma delas párece dotada de uma unidade que
não se justifica ou explica em momento algum, o que não impede que se.tor-
ne explicativa de^mitras coisas. ; -
Outro ponto peitinentementé apontado por lggers como contraditóno
tem a ver com atirai-se uma visão global ou holística das sociedades humanas
pela porta, mediante a recusa hermenêutica das globálidades, so para permi­
tir, sub-rcpticiamente, que outra, não prohlematizada e aparentemente evi­
dente, e significativa por si mesma, entre pela janela sem ser percebida pelo au­
tor. Isto é-o que mostra mediante exemplos que .não reproduziremos, culmi­
nando. sua crítica na consideração dc conhecida obra de Natalie Z e m o n D ^
vis, á qual foi também acusada de projetar - anacronicamente - desejós femi­
nistas do século 20 numa campo,nesa do século 16.* .: ^
A unilateralidade da visão culturalista já foi, ígualmcnte, criticada m ui­
tas vezes, por exemplo por Peter BÍirke, em passagem, já reproduzida no Ca­
pítulo 1 deste livro, em que o autor afirma, basicamente, que o cultural é mui­
to menos-convincenteménte apresentado como determinante na longa do que
ria curta,duração.23245 ' -
\ ' Nesta linha deraciodm o, quando de minha participação num debate.
’ em torno de artigo de Ronaldo Vainfas, publicado nos Anais tio Museu Paitlts-

23 IGGERS, Georg G. L a d e lic ia histórica eti d si$lo XX: Las tcmlenc ias aclviates. Trnd.
‘ 'C lcm em Bicg. Barcelòna: Labor, 19 9 5 . p . 8 6 , A citação contida no final da passagem -
- . ré produzida e de Jlirgen Kocka.
2 4 I b i d ., p . 9 1 -9 2 . • >■ ■ • ' ( . -
25 B U R K E , P eter. O v e itu r e : ih é N e w .H is to ry .U s p a st a n d its f u tu r e . In tB U R K E , P e ter
(O rg .)! Newpcrspectim on hislorkal writing. C a m b rid g e : P olity; O x fo rd : Jilackw ell,

1-991. P. 18.
Kl c o m o lexlo de lxiscc|iic susdlasse (im tlchalc acerca da História da Vida Pri­
vada cm iumva um Uum, brincalhona'-Jd que efetuei uma espécie deparo-
dm da noçao de “sociedade de corte” lão invudida hoje em dia (a meu ver, ex-
c e s s , m m e n t e invocada) num contexto específico de História Moderna da Eu-
i<>|>a a partir de Norberf Elias, aplicando-a a contexto totalmente diverso da
Alia Idade Média - creio ter conseguido mostrar que a análise de determina­
do aspecto da História do sul da Escandinávia daquela época, no plano do pri­
vado e do quotidiano, estaria falsificando a realidade se não mostrasse que, em
ultima análise, as condições de possibilidade do objeto estudado passaram n e ­
c e s s a r i a m e n t e por respostas econômicas a tuna crise agrária, técdica, ecológi­
ca c demográfica ocorrida (numa escala temporal variável segundo as regiões
do sul escandinavo) entre os anos 200 e 500 de nossa era; respostas' que, ex­
pulsando duravelmente os filhos mais novos das famílias aristocráticas da
possibilidade de acesso aos recursos rurais, criaram, as condições para que
existissem as cortes dos grandes senhores e dos reis com ás suas características
cuiitirais específicas.2672
Para voltarmos a Iggcrs uma vez mais, não parece possível, segundo ele
uma explicação plausível da derrocada da Alemanha Oriental e da União So­
viética em 1989-91 que deixe de lado os procèssos políticos e cconômico-so-
cats - Por mais que, sem dúvida, também preocupações e enfoques em torno .
da cultura, das vivências etc. tenham indubitavelmente contribuições a dar. O
que recomenda o autor é o seguinte, com o que mcú acordo é total:

Nenhuma das três grandes correntes de pesquisa dc que tratamos (...) -isto é
a Historia Política, narrativa, que-se orienta para pessoas e acontecimentos; a His-
ona Social, orientada para as estruturas c os processos; e a Antropologia Históri-
’ “ exPcriências vitais - acha-se em condições de dar uma expli­
cação satisfatória. Juntas, porém, podem Contribuir àcompreensão destas transfor­
mações revolucionárias.2’

Analogamente, para dar outro exemplo no âmbito da História Cotitem-


porânea, por acaso o reconhecimento dc que os nazistas podiam ágír e mesmo.

26 CARDOSO, Ciro Flamarion. Comentário II. A m b d o M u s a , P aulista. H istó ria e -


C u ltu ra M a teria l, 4, p; 37-43, 1996.

27 J?G£RS-C«cúg C. La ciência l ã s t ó r k a e n c i siglo XX: las tendências actuales. Thid.


Clcmcns Bieg. Barcelona: Labor, I995,p. 116. • ■

162
matar por razõ.es-klcológicas (c nlé estéticas, como mostra o interessante doem -
mentar■lo-Arquitetura da destruição) justifica eliminar das discussõesucerca do ,
“espaço vital” {Lebeusrmnu), tal como levado ã prática na expansão alema con-
ereta,-historicamente verificada, quaisquer elementos relativos ao acesso a re­
cursos naturais, mercados e mão-de-obra, independentemente do conteúdo
específico de tal noção no próprio ideário nazista? Mesmo se se admitir a pos- ,
■sibüidade de um enfoque do nazismo e dos demais fesçismos em termos de ob­
jetivos como “salvar o coletivo, a comunidade, da aniquilação ante o outro, o
estranho/estrangeiro” se o nazismo, ao instalar-se no poder político comoue-
: gime, mediante “pactos e alianças cpnVoutrasiorças conservadoras, foi obn-:
gado “a abrir mão de parte de seu ideário inicial”, é,óbvio que isto leve efeúos
muito concretos, importantes para o historiador, sobre o que veio a ocorrer na-
, quelas décadas de 1930 e ;Í940. E, ao se falar, numa abordagem do fascismo
como fenômeno geral, de “um grupo dé pessoas incapazes (...) para o amor”,
acho dé importância primordial saber muito precisamente, em cada momento
e contexto, de quenu precisamente, se está falando, pois dc outra modo.se cor- ,
■ rerio o risco de caicem considerações genéricas e nãode todo históncâs sobre
alguma natureza humana ou alguma “característica‘intrínseca’; por exemplo,
de alemães ou de italianos - noções, a meu ver, estéreis c rmesmo, perigosas
quando ahislóricas ou só yagamente historicizadasd". p
■O, Acho que as diatribes de muitos pós-modernoS contra o llummismo, a
ciência e a razão, a partir de diversos aspectos da história do século 20, tainbém
. trazem implícita uma concepção negativa detomiináda - ingênua, genenca e
âhistórica - acerca do que seja a “natureza hum ana”;** as simplificações e con- ‘289

28 As citações entre aspas são cie SILVA, Francisco Carlos lix e ira da. O? fiiscknws In;
REIS'FILHO, Daniel Aarão et ai. (Org.). O s ê c u lo X X . ;R.o dc jane.ro: Cmtizaçao Bra­
sileira 7000, v. 2:0 tempo das crises: revoluções, íase.smos e guei ras. p. 1<«.1" » " “
Note-se que, mésmo tendo tomado este texto como entrada ao exemplo, nao acho .
qúe o ü a autor lenha incorrido nós riscos-por mim mencionados. ■^
29 ta l visão tbicxplicitadaXima vez,em vérsão claromenle reacionária: falamos da teo-
t tia do ser humano como “primata assassino'' dotado de agressividade e teu ítona -
dade^leííoutãw fê tm n s w ifh fo s , portanto inatas e inevitáveis.lalconcepção, elalo-
” rada primeiro na África do Sul por Raympnd A. Dart sem ter grande impado de nn-
do; foi depois amplamcnlé difundida no que, cm minha opinião era um esforço para
demonstrar ü caráter “inevitável"*) envolvimento dos Estados Unidos no \ elnã. cf.
ARDREY, Robert. Á fric a n genesis: A personál invesíigation mto the anunal ongms
' and nature o í maivNew York Athenenm Puhlishers, 196l.E.interessante notar como
. •' as edições desta obra se multiplicaram a partir de 1967 em foram de Im o de bolso.

163
fusões a que procedem, por epuuplo contundindo a ciência como tal e seus
usos sociais concretos, confusão esta vinculada a outra, entre ciência e tecno-
loj;m, seriam bem mais difíceis de sustentar-se os autores que nelas incorrem
perguntassem de. quem (de quelagentes ou sujeitos sociais), exatamente, se tala.
Assim ao ler um livro interessante do antropólogo Marc Augé, um problema
central parecia-mc evidente; o autor percebia o sujeito unicamente no nível in-
uvidual, pelo qual as forças sociais e econômicas que regem o que chama de
oUperniodcrnidade se tomavam, em seu texto, esfumadas, difusas, difíceis de
captar em detalhe.» Isto se tornaria impossível se examinasse, ao lado das çons-
lalaçfles sobre as vivências culturais no mundo contemporâneo, fatores políii-
cos e econômicos sem d ávida, atuantes nele, já que, ao fazê-lo, seria levado a dar
nomes aos bois. '
■ . . As carílcterísticas da História em sua fase pós-moderna ,ou da Nova
l lislona Cultural que, em minha opinião, tenderão a declinar no que têm de
unilateral,.podem- ser em parte explicadas jntrinsecamente, mediante aspectos
inerentes a própria história da História. Assim, por exemplo, Tubo Halpêrín
Donghi ahrma que a mudança de rumo ocorrida na disciplina'histórica des­
de o início da década de 1970 reflete “as novas exigências geradas por seu pró-
pno desenvolvimento interno” - mas, também, as modificações profundas,
que o mundo verii sofrendo.51 -
O que quero dizer e, então, claro: pensò ser-necéssário vincular, com to- '
das as mediações que se quiser, o que acontece com a História-disiipíim âqui-
o <jue esta acontecendo com as sociedades humanas cm cada período da hiV
Un ia que os homens em sociedade fazem. Neste sentido, estou dé acordo com
a observação de Be.uJey no sentido de,serem os anos da dócáda de 1960 (em'
especial :os movimentos sociais de diversos tipos ocorridos ém vários países, in-
clmndo o Brasil, em 19Ô8), não um ponto'dc partida mas, sim, um final* Foi
a pariu da década-seguinte que tomou forma mais visivelmente, por Um lado30*2

30 " í ^ :1Intrf dllCtÍ° n tú"an a^*roPology of Supermodemity.


Iiaiislakd by John (lowe.London: Verso, 1995. '1
J ' J1A1-PERI’N ÇONGHI, Tulio. Enstyos de historiografia. Buenos Aires: Ediciones El
CieloporAsalto-ImagoMundi, 19?6. p, 161-189 (em especial p. 177,180).
32 m T p E137MÍChael‘ M O ik rn h h t0 ri0 ^ ,v ’ * * Htrodoction, bondou: Routledge,

164
uma resposta afirmativa, ncoconscrvadora e neoUbqral,” por outro, uma res­
posta “chorosa”, negativa - que é o próprio pós-motlernismo, não por acaso .
chamado por alguns de “orfandade de tuna geração” e cujas repercussões no
m undo dos historiadores é, neste capítulo, um dos assuntos centrais- * ã cons­
tatação 'de que mudanças muito profundas estavam alterando as sociedades ;
humanas. Parece-me evidente que muitos dos elemcntos’de ambas as reações
existiam dèsde antes e também creio que o “final” ocorrido em 1968, especie de
ajuste de contas pruito confuso com uma visão de mundo que ja não parecia •_
refletir as còisas como eram, foi preparado por uma consciência que emergiu,
pouco a pouCÒ, entre 1955 v 1265, de que as circunstâncias já não eram as mes- .
mas, estavam-se alterando em direções que pareciam, a muitos, assustadoras,
imprevisíveis e desestabilizadorás," ■ >
Às versões ufanistas (neoconservadoras e neoliberais), bem conto as pos-
mddernas, sobre o que vem acontecendo nb mundo désdc meados do século 20,
prefiro a análise de Jean Lojldne, de que tratarei dç resumir alguns aspectos.’63*6

33 Penso, aqui, nas diversas teorias ufanistas c altamente ideológicas a respeito da eta­
pa atuai do capitalismo, no geral ou quanto a algum de seus aspectos; mas também _
em teorias aparentemente V a i a i s ’que partiam, por exemplq. de enganadoras no­
ções a respeito dc um mundo “pós-industriaP ou algo semelhante. Vei poi exetn-^ ,
p]0. HALBERSTAM, David. O p ró x im o século. Trad. Wpltensir Dutra. Ru> «te.Jqnci-
' ro* Campus, 1992; TOFF1.ER, Alvin; TOFFLER, Heidi. Ç m U in g a n m a v ih z d tm r .
The politics ofthe Thlrd Wave. Atlanta; Turner, 1995 (reedição de maleruus pvevia-
mente publicados); NÁISBITT, John. G lobal parado.*. New York: Avon, 1993, NE.
^ CROPONTÉ, Nicholas.it v id a d ig ita i Trad. Sérgio Tellaroli, Sao Paulo: Companhia
. das Letras, 1995, Num sentido critico: l.ASCH, Christopher. T h e rcvolt o f l h e e lm s
a n d th c betrayal o f d en w cn icy. New York: Norton, 1995. .
34' Parà uma visão “cíb dentro”, pós-móderna, da Histódmdisciplina ver: JENK1NS,
' S l - t h i n k m iástory. London: Rourtedgc. 1991; MUNSI.OW,- Aiun. Dcctms-
history. lindom R outledge, 1997; m r n X ^ W r ü n t g A n c w U ^
- tory. Uhaca, NY: Cornell University Press, 1999. Para uma crittca inteligente. Illi
' MELFARB, Cerlrude. OH lo o kin g in to th e abyss : Untimely thoughts on culture and
society. New York: Vintage Books (Randorn Mouse), 1994. .
33 CARDOSO, Ciro Plamarion, No limiar do século XXI. Im REIS F1 ^ 0 , Daniel Aa-
, 3o et al. (Org.). O século X X . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 3 , 0
: tempo das duvidas: ilo declínio das utopias às globalizações. Rio dc Janeiro: Civili­
zação Brasileira, 2000. p. 249-275. '( ' '
36 LOJKINE, Jean. À ivvohtçcío m fo n n a c io m t. Trad. José Paulo Neto, S3o Paulo: Cor-
• tez, 1995. . * •. i

165
I.

Lojkine denomina “revolução itiformacionai” a mutação que vem


ocorrendo nas últimas décadas e a considera uma transformação muito mais
profunda do que a revolução industrial iniciada no século 18; à qual sucede.-
i ia (em lugar de ser uma fase nova dela). Tal revolução informacional potên­
cia uma nova civilização pós-mercantil por meio da superação eventual, que
podei ia eventual mente permitir, da; divisão entre os que produzem c os.que
dirigem a sociedade, entre os que monopolizam o saber organizado e os que
silo excluídos de o.exercerem. No cerne da revolução em questão está a trans­
ferência para a máquina de funções cerebrais abstratas no que d autor acha
que é a verdadeira automação, expressão a seu ver mal aplicada a etapas ante­
riores do capitalismo pelo fato de isto deslocar o trabalho humano, da ma­
nipulação, para o tratamento de símbolos abstratos (informação). A revolu­
ção tia má quina-fer ramenta significou, no passado recente, a objetiVaçãq dc
funções manuais humanas, enquanto a da automação (no sentido específico
dado ao termo por Lojkine) trouxe a objetivação de.algumas das funções ce­
rebrais dcserívolvidas pelo maqiiinismo industrial: da oposíç'ão eritre ambas
11asceria, -exatamente, a revolução informacional. 1
Ao contiario do que, a partir de 1970, pretenderam os teóricos deum
mundo pós-industrial >a informação nãtí substitui a produção, nem a indús-
(ria é substituída pelos serviços. O que se dá é uma iuferpenetração dç tipo
novo entre informação e produção, entre serviços e produção. Agora já deve
ter-se tornado sufi cient emente claro que, aõ contrário do que pretenderam as
visões idílicas e idealizadas das transformações em desenvolvimento, elas, ape-
sai do que potehçiam, ao ocorrerem no seio do capitalismo, não alteraram
nem alterarão no futuro previsível a divisão, tio seio de uma estrutura hierár­
quica, entre: os què decidem de modo não programado (dirigentes, em espe­
cial os dirigentes.inovadores); os que decidem a respeito do funcionamento
habitual ou quotidiano (executivos operacionais); e os que operam processos
de base do trabalho;seja na produção, seja no que habilualmente se chama de
serviços (operadores); Em outras palavras,’ a divisão do-trabalho nas socieda­
des contemporâneas não ntúdou nem mudará facilmente, por mais que exis­
tam elementos objetivos das transformações em curso que potenciem essa
mudança, que a tornem possível, ao mesmo tempo que suscitam contradições
novas: por cxetnplo, entre a tendência e mesmo a necessidade de um.sistema
aberto de informações - qué, se monopolizadas eres tocadas como se fossem
uma mercadoria, Icndcm.a esterilizar-se, perdendo seu valor de uso e as ten­
dências do que Norber;t. Wiener chamou de'“critério norte-americano pa­
drão”, ou seja, inserção da informação, como tudo mais, no bojo da mér-
cantilização generalizada visandó ao lucro a curto prazo.^
Inseri aqui este esboço fardai de alguma? das idéias propostas por Loj-
ldne em apoio de opinião que com ele partilho: o que chama de “revolução in-
for-madonal” constitui-se. em transformação muito profunda das condições
da sociabilidade humana, significando muito mais dq que simples fase nova-
do capilalisino - se bem que também seja isto.JÍ E ígdalmente porque, copio
afirmei antes, acredito 'qiie as" mesmas circunstâncias históricas que favorece­
ram, por volta de 1970, o nascimento de uma História de corte pós-moderno
em süas íiniias gerais, efn especial da:chamada (Nova) História Cultural, se
encarregarão de dificultar em-outra de suas fases, n o futuro ptoximo, a sua
persistência. ■
No mundo “globalizado*1èni qüe vivemos, conílifivo e mais heterogê­
neo do que nunca, a meu ver a insistência exclusiva numa História que exclua
visões de conjunto em favor de úrá interesse exclusivo em miçroanálises, vi­
vências e subjetividade® se assemelha à ati tude que se atribui ao avestruz: tra­
tar de não Ver para não ter delòm ar partido, ou atuar. Os ganhos da historio­
grafia desde 1970 -.a integração definitiva de novas dimensões e campos ao
• saber liistórico - permanecerão. O caráter unilateral das escolhas, não. Mesmo
porque, os historiadores* nestas últimas décadas, -raramente foram pós-mo-
dernos radicais, ainda aquele? que faziaríi declarações teórico-metodológicas
em tal sentido.58 ' .
■' " As derrotas políticas sucessivas da esquerda propiciaram, entre os que
não viam com ufanismo as novas tendências do mundo, um recuo narcisista.

37 CARDOSO, Ciro Flamarion. Nò limiar do século XXI. T em p o , Niterói: UFP, t >2,


p. 7-30; 1996. É bom salientar que este texto, embora tenha título idêntico ao do
' capítulo em livro coletivo que aparece na nota 35, c totaimente diferente dele. •
38 Este é o sentido geral a que tende o livro dc 1GGÉRS, George G. La ciência h istô ri-
. ~caieti. t i siglo X X : Las tendenciàs'actuales. Trad. dc Clemens Bieg. Barcelona: Labor,
1995. Vér também FALCON, Francisco J. Calazans'. História c representação. In:
... CARDOSO, Ciro Flamarion; MAÜ2RBA, lurandir (Org.). Representações: contri­
buição a um debate interdiscipllnar. Campinas! Papirtis, 20Ô0. p. 41-79, interessan-
" do ati ponto discutido no momento, cm especial, as p. 63-72, 1

167'
MaS, na -medida mesma em que continuou existente e atuante a dimensão so­
cial, coletiva no sentido forte, do humano, demandas urgentes decorreram de
transformações agora muito mais claras em seus contornos do que apareciam
em 1970 (de seus aspectos perversos uvas lambém de suas virtualidades coibi­
das). Outrossim, os critérios de eficiência e relevância praticados pelo capita­
lismo em sua nova fase começam já a afetar em forma direta o pequeno inun­
do institucional.dos especialistas da História, nascido, em última análise, dos
processos e convicções que deslancharam as reformas universitárias do início
do séculp 19 e, mais adiante, a profissionalização dos historiadores. Disto tra­
tamos no capítulo precedente desta antològiá. A situação de que resultou, no
passado, uma História profissional mostra-se, hoje em dia, abalada em pro-
jundidade, o que, em muito menos do que os trinta anos previstos por Ben-
‘tley, obrigará o avestruz, diretamente ameaçado em seus próprios interesses e
em suas fontes dè renda, a tirar a cabeça da areia.

I.
« Parle 4

A l g u m a s q u e s t õ e s se t o r ia is
DE TEORIA E MÉTODO
I
, ' ' C a p ítu lo S
• ■ r ‘•

■ • • '• * . ■ v

\ ■Etnia , nação e mundo


: , / PRÉ-MODERNO: UM;DEBATE.
■ ■ ’’ '

PRÒLEGÔMENOS ' V ? \ " . -


Em 1913, num artigo intitulado “O marxismo e a questão nacional”,
Stalin definiu, assim o conceito de nação:

■ A nação é tuna comunidade estável de língua, território, vida econômica e.for­


mação psíquica, historicamente constituída, que se traduz numa comunidade de
cultura. - *

■ ■ ■' " •• (
Esta definição era acompaqhada dc duas delimitações destinadas a cir­
cunscrever sua área cronológica-e as ^circunstâncias sociais concretas de' Sua
aplicação. Eis aqui a primeira:

A nação é uma categoria histórica, E é uma categoria histórica de úma época


determinada: a do capitalismo ascendente.

V ' \ r
A segunda reza: " •. < ‘

. A questão nacional, nas diversas épocas, serve a interesses distintos e adquire


variados matizes, em função da classe que os formula e do momento ém que os
formula.

Tomando em conjunto as très afirmações, poderiamos dizer que a pri­


meira bastante similar a definições antropológicas ou históricas posteriores
do conceito de etnia - aponta para fatores de diferentes tipos e dc longa dura--

171
ça° clllc servcm cle lwse ÍIS «iiiÇões. A segunda veta n aplicação do conceito de
nação a toda a lo n g u íssim a W pfé-capitaiista, ou pré-moderna, transfor­
mando o conceito em algo aplicável unicamente a certas configurações típicas '
do último meio milênio, inidado.no século 15. R a terceira define-os fatores
conjunturais que explicariam, era cada momento que fosse considerado, a ;
mmobilidade dos elementos sociáis envolvidos na “questão nacional” e pór-
t.iuto suas grandes variações, na medida em que classes e interesses diferentes
entte si levam a que se defenda, ataque, utilize,.mobilize, organize etc. ascole-
lividades que constituem ou podem vir a constituir nações.12 ’■ ....
11curioso que, numa época como a atual/em que há muitò Stalin dei­
xou <le ser referência feérica no seio do marxismo, com maior razão para não-
mar.vistas, a proibição que formulou de uma aplicação do conceito de nação
ao mundo pré-modemo —proibição cujo sucesso derivou em boa parle da.
gi.mde voga que, em certa época, teve séu artigo - cqntinue em vigor, aceita
rpiase consensualmente, até mesmo pòr pessoas que não guardam á menor re- f
cordação da origem desse veto. .
fsta atitude não cóstüma causar estranheza, como deveria: talvez, por
estar muito longe de configurar um fenômeno isolado. Numerosas temáticas
sao afetadas por uma forte tendência de correntes importantes das ciências
sociais a cavar um abismo entre, de um i:ído, tudo o que.aconteceu antes do
scculo 16, do outro, os processos iniciados com a expansão gradual do capita- ■
lismo, Assim, ao se falar em “público” e “privado” no mundo pré-modemo,
não faltará quem intervenha para afirmar que Norbert Elias éu algum outro
autor “demonstrou” que só com a Modernidade surgiram as condições de se-
paração do público e do privado. Isto não impediu, é claro, a elaboração de. -
trabalhos de grande valor, por exemplo, sobre-o público e o privado na
Anligtiidade Clássica, ou quê utilizassem de algum modo tal oposição.* Algo
análogo acontecerá com a economia, em especial no que disser, respeito ao

1 Pára a definição mesma e sua discussão,.Ver; VlLAR, Pierre. I n k h c i ó n a l .v c a b u la - , . ‘


i io d e ia n â lk is h istó ric o . Trad.M. Dolors Folch. Barcelona; Crítica, 1980. p. í 83- 191,
2 Por exemplo: THÉBERT, Yvon. Vida privadae arquitetura doméstica na África ro-
i. dVina. In: VEYNE, Paul (Org.J. D o Im p ério R o m a n a ao a n o m il. Trad. Hildegard
Feist. São Paulo: Companhia das Letras, i 990. p ' 301 -397f THÉML, Nèydeí O p ú ­
blico c. o p riv a d o n a G récia d o V Í I l ao I V s é c u lo a.C .: o modelo ateniense. Rio de Ja­
neiro: Sctte Letras, 1998. . .
. \.

i72^ . '•.■ • -
mercado, se algum pulnnyiurto ou webcmno ortodoxo estiver presente.345
Quando cu çra estudante de graduação de História, portanto entre 1962 e
1965, qualquer tentativa de usar o termo “imperialismo sem ser para desig­
nar uma fase do capitalismo contemporâneo, à maneira do conhecido texto de
bêriin, provocava imediata correção feita com certo ar de superioridade dian­
te de tanta ignorância e impropríedade.1E, já.o dissemos, síndrome similai
acometia e continua acometendo, as discussões em tom o das nações.
• Com uma atitude assim deseja-se, provavelmente, evitar o anacronis­
mo ou o etnocenlrismo. Unia coisa, porém, é reconhecei à expansão capitalis­
ta ó status de uni corte tão importante na História humana quarto, pim exem­
plo, o que se pode atribuir ao surgimento de uma agricultura estável ou das
primeiras redes urbanas. Coisa muito diíerènte é reservar, n priori, liminar-:
mente, aos últimos séculos certas temáticas e trocas de idéias, sem qualquer
discussão prévia —comio se fosse.uqi truísmo. ■
;. Pste capítulo pretende'refevir-sp ao debate em torno das construções
identitárias coletivas, procurando, salientar os aspectos for temente ideológicos.
que interferem negativamente nas discussões.
Poder-se-ia indagar se tal temática ainda constitui tema dc debate —no
sentido forte desta palavra - entre historiadores. Que.no início do século 20,
por exemplo, no contexto do marxismo, a questãq nacional tenha sido foco de
importante controvérsia, em especial nos anos que vão de .I9tb a 1913, na qual
"intervieranvRosa Luxemburgo, Lènín, Otto Bauer e, como já se mencionou,
Stalin, é algo bom conhecido. Mais amplamente, muitos outros socialistas, en­
tre çíes Jean Jaurès, se interessaram pelo assunto nas décadas que precederam _
o início da Primeira Guerra Mundial: um período marcado na França pelo
. caso Dreytus, na Europa em geral pelo auge do nacionalismo na tase de forte

3 Criliquei o exagero do modelo de Finley, Auslin, Vidal-Naquet e Vernant, que mi­


nimizava os fatores, propriarnenle econômicos lias discussões sobre ã economia an­
tiga, em artigo publicado na revista dá Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos:
CARDOSO, Ciro Flamarion. Economia é sociedade antiga?. Conceitos e debates.
: C lássica, 1, p. 5-20, 1988. - . . .
4 Obvíamenté, tal exigência dogmática nunca foi obedecida ou levada a sério nos es­
tudos da Antigüiilade. Para citar só um exemplo, cf. GARNSEY, P. D. A.; WH1TTA-
KER, C. R. (Org.). Im p c ria lism in th e a n c ie n t w o rld . Cambridgc: Cambrldge Uni-
• versity Press,) 978. ' v • .

173
expansão colonial, por uma escola pública que difundia ideais patrióticos ex-
Iremos, pela discussão do internacionalismq do movimento operário'etc.56
Também não parece duvidoso que a questão nacional ainda possa ser elemen­
to dotado dc intensa capacidade de mobilização e trágicas repercussões no
mundo de hoje, como se viu recentemente, por exemplo, nò banho de sangue
ocorrido na Iugoslávia. -
No pequeno mundo dos historiadores, entretanto, é duvidoso que ain­
da existam na atualidade, partí utilizar a oposição de termos que faz Gérard
Noiriel, grandes controvérsias, embora abundem polêmicas, por vezes violeli-
tas. Parao autor, uma controvérsia científica é um enfrentamento entre indi­
víduos que falem, no essencial, a mesma'linguagem e partilhem o mesmo sis­
tema .de normas. Umápolêmica científica opõe indivíduos cujos critérios para
elaborar juízos expressem universos intelectuais mu tuamente incompatíveis.1’
Assim, a discussão acerca de ter sido a. sociedade européia dos séculos. 16 a 18
eslameiital ou de classes, ou seja, o debate cujos líderes em.posições opostas
foram Roland Mousnier e Erncst Labrousse, bem como aqutle, marxista, ca­
pitaneado nas posições êxlrenias por Maurice Dobb e Paul Sweezy, sobre o ca­
ráter do feudalisíno e a transição ao capitalismo, configürafam controvérsias.
Já escaramuças entre “holís ticos” e “pós-modernos”, em torno das noções
opostas de História que defendem caracterizam o que Noiriel chama de polê­
micas científicas. A pulverização e despolilização (no sentido da escassez de
militâncias que por sua vez não sejam pulverizadas) da História, bastante pro-.
fundas,-não favorecem hoje em dia o surgimento dc controvérisas como as
mencionadas. •: '
No Brasil, logo antes do golpe militar de 1964, uma controvérsia de
peso sacudiu as ciências humanas e sociais em torno da noção de reformas dc
' base, acompanhando-se de outra, referida ao caráter da sociedade brasileira e
de sua possível transformação. Na atualidade, num-Bfasil què, pela primeira
vez què èu saiba, carece de projeto e é empurrado com a barriga por succssi-

5 VI LAR, Rierrtí, I n k i a d ó n a i vòaüm U irio dei m á l i s i s histórico. Trad. M. Dolórs Folch.


Barcelona; Critica, 1980. p. 17.3-183. * . r
6 NOIRIEL, Gérard. Sobre: ia c risb ilc lq historia. Trad. Vicente Gómcz.Ibánez. Ma-
drid:'Cátedra,1997. p. 43*49: as definições do què seriam controvérsias e polêmi­
cas científicas acham-sc na nota 76 da p. 48, . ' . '
Vos governos que' luucionam.em Brasília, cm úllima anáhse analogamente a
i d L * p r « o P»n, o capitalismo "globalizado”, o FM I. o Banco Mundtal
(sem excluir o governo atual), dc onde poderíam provo estunul*soctats par
verdadeiras controvérsias! Em meu próprio Departamento de Htstor.a (o d.
Universidade Federal Fluminense), quando se tenta nilroduzir uma argun e
tação mais ampla e teorizada nas plenárias, a direita de.plantão (que ipclui vá­
rios membros da antiga esquerda que foram .gradualmente, coop ? os pe o
s sistema), naatualidade numericamente predominante entro os docentes,
ta impedi-lo com a afirmação de se estar “ideologízando" o debate, uma ati-
tude típica do assim chamado "pensamento único" neoamservador. • ,

DA NATURALIZAÇÃO DA$ FORMAÇÕES .


ÉTNICAS A SUA PERCEPÇÃO
' COMO ALGO CONSTRUÍDO
Em 1936, num manual universitário, escrevia o historiador francês
Georges Contenau: . • \
Osgrandes haixos-relevos [do palácio de,Sargào H em Nínive -
du7iam uni tipo étnico bem conhecido, cie lãbios espessas nariz nunto aquilm o1
.; 2 Z ...tu rà ..« m e frisados: o tipo
deu. Desde que sé conseguiu decifrar a eacntn que aco m p an h ai tais baixos J£
vos-reconheceu-se que o assírio pertencia à grande tatnllia i .is mgrus s • •

: civilização du Ásta Ocidental cinUgtU ■■ 1 • -. * .v

Esta passagem ilustra algo corrente na época, a. equação poyo


mente entettdido)/língua/cnltúra. Alguns grupos ltog«st,cos - hatmta (que
h„ie em dia se prefere considerar como uma parle do grupo afro-»si.t,to , st-
múa indo-europert <*. - se viram promovidos « . idades que senam Um-

- .7 Cfl GONZÁLEZ CASANOVA,Pablo. La ofensiva conservadora, C arta, 1 ,p .79-37,


1991 '
' 8 CAPART, Jeán; CONTENAU, Georges. H h to k ç . dc V O riènt a n d a i . Paris: Hachette,
. 1,936. p. 173-174. • >. ' ,

175
bem, pretensa mente, rociais e culturais. Quando um especialista da História da
nnlign Ásia Ocidental mencionava, por exemplo, os acadianos da:Baixa Mesó-
polâmia no terceiro milênio a.Ç:, cuja língua (o acadiaiio) pertencia sem som­
bra cie dúvida ao grupo semita, não estava pensando unicamenteem tal fato '
linguístico, mas também em certos traços físicos heredítariamente transmiti­
dos, em características culturais e aíé mesmo numa predisposição à proprieda­
de privada que distingúiria os acadianos semitas dos sumerios nâp-semitas! "
Partindo dè concepções dessa ordem; “descobriram-se” .'no antigo
Oi ienle Próximo asiático - para-continuar exemplificando com aquela parte
do mundo na Antigüidadc:- três povos (ou quatro, conforme os autores)
entenda-se raças/grupós lingüísticos/culturas: os asiânicos, os semitas e os;
mdo-euiopcus. A situação complicava-se ainda mais pelo fato de que, se as
línguas Semitas c as indo-européias formam sem dúvida grupos lingüísticos
consistentes, pelo, contrário os “asiânicos” e/ò.u “mediterrâneos” não passavam
de lantasmas, isto é, decatcgoria(s) hipotétiça(s) e abstrata(s) em que se,jun-v
lavam artificialmente línguas, disparatadas, sem "qualquer parentesco efetivo
em muitos casos. Mas, uma vez construído (ou seja, inventado), uni novo gru­
po tornava-sc de imediato um instrumento de explicação totalizadora da His­
tória, utilizado por sábios aparentemente sérios sem qualquer hesitação.
Tomemos como exemplo o que Contenau tinha, a dizer dos “asiânicos”.
Começava por definidos como “povos que não são nem semitas nem (...)
indo-eiiropeus” - uma categoria, portanto, confessa dam ente residual - e por
afirmar que o nome a eles atribuído não constitui qualquer juízo acerca de sua
origem (desconhecida). Isto não o impedia, a seguir, de lhes atribuir uma for­
ma específica dè linguagem (aglutinante), uma religião definida e um tipo fí­
sico próprio!’ .
Ninguém conseguiu chegara uriia definição coerente e convincente do
que seriam as ' raças humanas”. Para clizê-lo de outro modo, trata-se de um
conceito cientificamentç falido.910Por esta razão, certos autores preferiram usar ■
>
conceitos diferentes, cujo recorte se fazia de outras maneiras c cujas intenções

9 CAPAR. 1, Jean; CONTENAU, Georges. H istoirc de V O rícn t ancieft. Paris; H.ichelte,


1936. p. 175. ' ’ . . . .
10 Ver MONTACU, Ashlejs The concept o f roce. In: HUNTER,.David E.; WHtTTEN,
í Phillip (Órg.). Aútijtropology: Contempofaiy perspectives. Eoslon: Lüttle, Brown
and Gompany 1979. p. 69-81.

17Ó
eram bem menos ambiciosas:, falou-se de “estoques" ou “modificações persis­
tentes” de “grupos étnicos” (sempre mesclados), cúnharam-se termos como
“grupo genético" e "estoque genético" etc.'1 ' ( ' , ; ;
Um segundo problema teórico é que a.equação povo (mesmo quando
não seja definido racial mente)/língua/cultura é falsá. Sumérios e acadianos,
na Baixa Mesopotâmia do terceiro milênio a.Ç,, falavam duas línguas difeien­
tes mas compartilhavam a mesma cultura (vi da urbana de um tipo determi­
nado, estruturas econômico-sociais, religião etc.). A Síria, por volta do século
18 a.C,,'aparece aos arqueólogos dotada de notável unidade cultural; mas
sabe-sc que era, então, um mosaico complexo de povos e línguas. O aramaico,
nó primeiro milênio a.C„ tornou-se uma língua difundida em todo o Orien­
te Próximo, sendo falado, portanto, por pessoas de diversos povos, pei tencen-
' tes a culturas variadíssiinas. .. ! . 1
Por razões como as qüe apontamos, houve historiadores qüe,' pruden-
tementé, resolveram ignorar de todo a referência a raças e mesmo a conceitos
substitutivos delas (estoques genéticos, grupos étnicos etc.), pisando um ter­
reno menos minado e também menos fugidio, por exemplo nos casos em qüe
decidissem classificar os povos antigos que estudavam atendo-se unicamente
à sua distribuição segundo grupos lingüísticos.11Nq_entanto, isto deixava sem
solução questões importantes.relativas ao que faz ã identidade.de um grupo.
Uma alternativa, à antiga equação povo (ou raça)/15ngua/cultura foi o
conceito de etnia. Eis aqui unia boa definição do que seria uma etnia, tomada
de T. DragadzC: \ •. v. ' .

(...) um agregado .estável de pessoas, historicamente estabelecido num dado terri­


tório, possuindo em comum particularidades relativamente estáveis de língua e
; ^ cultura, reconhecendo também sua unidade e sua diferença ent rclaç3o a outras
. formações similares (autoconscicncia) e expressando tudo isto cm um nome auto--
aplicado (etnônimo),1'
. •’ 1 l v 112

11 Por exemplo: DESAITAYES, Jean» L es çivilisa tio its d e V O rien t a n cien , Paris: Ar-
. thaud, 1969.p. 53-66; ROUX, Geovgcs; A n c ie n l Jraq. Harniúnclsworth: Penguiii,
' - 1983.p.«S-89. ’ ' \ ' •
12 DRAG/VDZE, T. The place ofUellmos” theory in Soviet anthropology. In: GEI.L-
NEK, F.. (Org.). Sovie.l a n d W estern anthropology. Lòndon:Duck.worth,:i980. p. 162.

177
Um conceito como este ou algum outro similar passou n aplicar-se cor-
renlemenle a diferentes períodos e povos. No entanto, em anos recentes, ten­
deu a encarar-se com atenção unilateral ou excessiva às questões simbólicas
ou, mais em geral, “mentais” o que costuma caracterizar as definições de et­
nia hoje praticadas. Por exemplo esta, de Andiony D. Sriiith:

(...) o núcleo da etnicidade, como tràúsmíticlo no registro.histórico e como dá


forma à experiência individual,reside [nó] quarteto dos “mitos: memórias, valores '
c símbolos”; e,nas formas características oü estilos e gêneros de determinadas con­
figurações históricas.de populações.-4 ■

l:m ofitras palavras:,Se, no início do percurso, tínhamos a natura/ízação


das tulscrições grupais mediante o emprego da noção de “raça” ou “povo”, n o '-
final temeis uma ênfase - bem típica do que Marshall Sahlins definia como a
verdadeira “natureza humana” ao falar de um tíomo symbolkns - nas etnias (e ‘
nações) como meras construções. Isto toi reconhecido em forma cada vez. mais
êonsciente e assumida. Êis aqui,.por exemplo, uma formulação latino ameri­
cana taxativa: . ’ , . •

■(...) a identidade nacional é sobretudo uma constniçãiv imaginária da inteligência


e do conhecimento, á qual, por obra do tempo,'funda menta nossa diferença ’do res­
to de nossos contemporâneos:11 . : 71

1 osições assim, entretanto, embora majoritárias nestesúltimos tempos,


conhecem também exceções.'O episódio de Masada (73 d.C.), narrado por
l;lávio Jpseío, toi incorporado aos mitos fundadores do Estado'de Israel é as
i uínas da fortaleza construída por Herodes se transformaram em lugar de pe- '
regrinação moderna, Quando b arqueólogo e polítiço israelense Y.Yadin ten­
tou, num livro para o grande público, “provar” a verdade do rela to de Josefo,
contendo o volume em questão tanto fotós de material arqueológico quanto
uma reprodução da-medalha israelense comemorativa de Masada, contendo
________. • ■ ' ■.
A. • • •' • '""n ■‘ 1 ' ' ’ '
13 SM1TH, Anthony D. The ethnk origins ofmríons. Oxford: Bláckwcll,. 19861 p. i 5.
14 SABORIT GARCIA, Antônio. En |a esfera <ic Ia identidad. In: GONZÁLEZ MAR-
MOLEJO, Jorge René ei al.-Família, vida cotidiana y Merilalidades cti México y Cos­
ta Rica, siglas XV11I-X1X. tUajuéhu Musco Histórico C utturalJuanSaniam arfa,-
1995. p. 181-1.99 (a passagem citada àcha-se na p, 182).

178
'■ legenda cm liebieu com inglês que afirma '-Permaneceremos homens livres,, . g
Masada não cairá de novo’1, o historiador Pierre Vidal-Naquet - que, natural- ,
mente, não pode ser suspeito de anti-semitismob —escreveu um artigo cnfico
e desmistificador desse mito político contemporâneo; e .0 fez. em nome da vei -
dade.histórica.10 \
«_ Abordando há pouco menos de duas décadas o conjunto das visões do
século 20 sobre o conceito de nação, Anthooy Smith propôs classificá-las nas . •
modalidades seguintes: a) modernistas: a1tração seria um fcpòmeno estiila-
mente moderno e contingente, nascido das próprias condições da Moderni­
dade, não sendo legítimo atribuir-lhe algum caráter natural ou necessário ém
termos sociais ou históricos (nesta posição estariam autores como Benedict ,
Anderson c Ernest Geilner); b) primopdialislas: esta posição, que antecedeu a
dos modernista^, afirma pelo contrário que os sentimentos e laços pacionais -
são.um atributo onipresente, natural é universal da humanidade, nascido-da
comunidade de linguagem, religião, raça, elnicidade è território (Edwaid
• Shils), e pode subdividir-se' nas posturas primordialista propriamente dita
(mais radical) e pereníalista (menos radical).; c) instr.umentalistas, até ceito
ponto uma variante dos modernistas; neste caso, insisle-se no caráter instru­
mental tanto da etnicidade quanto das nações, que estariam ao serviço de uma
combinação de interesses econômicos epolíticos (apesar de seus propagandis-
tas falarem sobretudo dc finalidades culturais ou espirituais), proporcionan­
do a tais interesses um modo de mobilização e coordenação em apoio de po­
líticas sociais òu da busca do poder bem. superior àquele baseado nas classes,
sociais (Smith situa aqui Predrik Barth, mas talvez seja Izvetan Todorov um
.exémpIo-melhor, por sua insistência na exploração política da nação). O.pió-
' prio Smith assume uma posição intermediária entre modernistas e prihiòr-
dialistas: para ele, existe uni fdndamento histórico étnico para a foririãção dás
nações modernas, prefiguradas no período pré-moderno por algo ao mesmo,
-tempo'semelhante ç diferente, que convém õharoar de etnia, Assim, havería
uma cpntimiidade histórica entre, as etnias pré-modcfnas e as nações moder-

r • .
15 'cf. VIDAL-NAQÜET, Piefrê. Les assassins de Ia mémoirc. Un Eichmann de papier
ctautres études.surle révisionisihe. ParLs: La Dícouverte, 1987.
16 VIDAL-NAQUF.T, Pierre. Le tcxle, Parchéòloguc et l'histoire. In: SCHNAPP, Alam
" . (Org.). U a rch éo lo g k a u jo u r ifliu i. Paris: Hachette, 198(E p. 173-184. . . .

i
’ 179
nns c contemporâneas hem maior do que a que aceitam os modernistas; não
ses ia possível, porem, minimizar o impacto da Modernidade eseus efeitos so-
. bre as formas das leaidades e identidades colctiyas. O modo de trabalhar ado­
tado por Smilh consiste èm tratar de iluminar, mediante tim eiftfoque históri­
ca ^ compuiativo, tanto as semelhanças quanto as diferenças entre os senti­
mentos e unidades nacionais modernos é aqueles mais antigos, aos quais dô-
veria aplicar-se o termo etnia}7

AS .ÊNFASES E PREFERÊNCIAS TEÓRICO-


M irrODOLÜGICAS DO FINAL DO
SÉCULO 20: PROCESSOS E ,
.ESTRATÉGIAS IDENTITÁRIOS . -A.';
Lxaminar algumas das discussões do final do século passado em torno
da identidade —urna noção extremamente fluida e polissémica, com prétertr
sÔes a conceito, cunhada nos Estados Unidos na década de 1950 - pode ser
útil, como veremos, para verificar melhor onde residem, afinal de contas, os
aspectos leoticos decisivos (oú assim considerados recentemente) presentes
na problemática histórica referente à etnia e à' nação. - ’ -
Os debates a respeito da identidade começaram1no campo da Psicolo­
gia Social, em torno de problemas de,adaptação dos imigrantes no processo'
<ie sua integração numa sociedade diferente. A identidade social tem una nível
individual: para um indivíduo, ela se caracteriza peio conjunto de suas intera­
ções com o sistema social, levando a que ele pertença a ura gênero, a um.gru­
po etário, a inundasse social, a tuna nação etc. Graças à identidade social apli­
cada individualmente, a sociedade, por meio de representantes autorizados o.u
- no din-a-dia das interações, pode lidar com o indivíduo, classificando-o, en~
(juanto o indivíduo por sua vez pode achar o seu nicho no sistema social. En­
tretanto, a identidade social não se esgota no nível dos Indivíduos, ela tem a
ver também com interações de grupos inteiros, transindividuais', em suas rc-

.17 SMI fH, AiKhony í). The ethnicorigins of nalions. Oxford: Blackwoll, 198.6. p. 6-18.

180
laçõescom outros grupos do mesmo tipo. Em outras palavras, liga-se à distin
ção entre “nós” e “eles”, baseada na percepção de diferenças.|:>Isto nos.intei es­
sa aqui por vincular-se habitualmeiitc' nos debates atuais, quanto ao mundo
contemporâneo, às nações e, no tocante ao mundo pre-moderno, às etnias.
De um modo geral, existem duas modalidades extremas na maneira de
considerar a identidade cultural em vineufação com fenômenos nacionais ou
étnicos: 1) as concepções objetivistas ou substancialístas da identidade; 2) as
concepções subjetivistas. Ambas conduzem a impasses.
Ainda persiste nestas últimas décadas, sendo felizmente muito minori-
tária, a visão do,assufilo em termos raciais. É o caso, por exemplo, de Van den
Berglte. Falamos de.um enfoque que racializa os indivíduos e os grupos e con­
sidera estar a identidade étnica e cultural inscrita tios genes, iia hereditarieda­
de biológica. Isto significaria a impossibilidade absoluta, para grupos tanto
quanto para indivíduos, dé escapar à determinação da identidade social de
origem, posto que esta foi naturalizada.1* . ^
Uma abordagem culturalista pode também, entretanto, chegar a algo se­
melhante, quando afirma que o indivíduo interioriza modelos culturais que lhe
são impòstos de fora, desde o nascimento, por uma entidade cultural do tipo
nação ou etnia, definindo-se tal identidade como transcendente e preexistente
aos indivíduos e suas interações. Neste caso igiudmente. o modó de lidar com o
assunto iras pesquisas será o estabelecimento de uma lista de elementos míni­
mos qüc, reunidos, definir ão um dadõ agrupamento nacional ou étnico. •
Por ciirioso que isto possa parecer em se tratando de um antropólogo
pós-modernò (perspectivista) típicb, a concepção de Clífford. Geertz accica
dos grupos étnicos é primprdialista também: considera &er a identidade étni-
co-cultural primordial porque o fato de pertencer ao grupo étnico define a in­
tegração primeira, aquela na qual os laços determinantes são estabelecidos.
No grupo étnico residem as emoções e solidariedades mais profundas e mais
estruturantes. Assim definida, a identidade cultural aparece com o‘proprieda­
de essencial, íneren,te aq grupo étnico, transmitida no e pelo grupo, sem icfe-

.18 CUCHE, Deoys. La notion d e culturc dans ies Sciences soçiaks. Paris: La Décòuvertc,
.1996. p, 83-96. :; • ; ;
19 VAN DfiN BERGI í È, Pierre, T tie e tlm ic p h e n o m e n o n . New York: Elsevier, 1981.

,181
ríncm aos outros grupos: a identificação c algo evidente, inescapávcl, decidi­
da ddsde o princípio.*'
Do ol,lro lado»exíslem versões subjetivistas da identidade social e étni­
ca. 1’arn estas, a identidade em questão não é atríbutiva - definida pela presen-
Va ou ausência de traços objetivos integrantes de «má lista-, nem é dada de
uma vez por todas como fenômeno congelado e estático. Uma das versões do
Stlbjctivismo consiste cm ver ha identidade étnico-cultural meramente um
Kcnliincitlo <le pertencer, ou de identificação com uma dada comunidade, :a .
qual, vista em si mesma, 6 mais ou menos imaginária. Em casos extremos,a co-
ilUtnhlwle em questão aparece como uma espécie de fabricação de um sinistro
complô de poderes que operam em favòr de interesses excusos: se quiséssemos’
ser caricatos, assim, por exemplo, poderiamos peíccbê-la nas teorias brasileiras
sobre a identidade nacional e a cidadania excludentes, forjadas.pelas.elites em
sucessivas etapas e modalidades, com seu acompanhamento de estudos à base
de ['oucaull acerca d a '‘construção" concomitante dos tipos criminosos, des- ;
vianles ou classificáveis segundo alguma patologia cultural ou social...
Alguns entenderam a visão subjetivista como iqna oportunidade de
ikwmtruçifo dos objetos estudados pela Ciência Política ou pela Histeria Po-’
ifticit (um bom exemplo foi a tenlativa.de Theodore Zeldin de mostrar a “n a-,
çáo francesa" como construção insubstancial).2' ' ’ ,■
Se as concepções subjetivistas conduzem a impasses e becos sçm saída
tanto quanto as objetivistas, que fazer, então?
A iesposta de muitos especialistas tem sido prestar atenção especial ao
a m im o relacionai dos processos idénlitários, A identidade social é da ordem ;
tia construção, mesmo quando baseada em dados objetivos; não é, noentan--
Io, ilusória, não é algum fantasma dependente da pura subjetividade dos agen-
les e de suas escolhas. Ela produz efeitos sociais reais; é eficaz. Não há, porém,
identidade social ou étnico-cultural em-si, nem unicamente para si. A identi­
dade envolve sempre uma relação-com outros: identidade e alteridade estão201

20 GEHRTZ, Ciifford; The integra tive revolution. Primordial sentiméntsand civil po-
bt.es m the netvStates.In: GBERTZ, Cliftord..(Org.).OW so c k ties, n c w s u ite s . New :
Yi>rk; The Free Press, 1963,

21 m l - ! ! ! , » ™ inteligente a Theodore Zeldin estias numerosas contradições em:'


H1MMELFARB, Gerlrude. O n h o k m g i n t o tli c - a b y s s i V n ú m é y thoughts on cultu-
reandsocietyiNewYork: Vihtagc.-Random House, 1994. p.,107-121.
cm relação dialética indissolúvel e necessária, pois a identidade depende de
uma diferenciação tanto quanto de umà identificação. O processo construtor
da identidade se dá sempre num contexto relacionai. Por tal razão, René Gal-
Hssot achou que um conceito mais dinâmico e processual, o de “identificação”,
seria mais útil do que o de “identidade”, que dá a impressão de algo fixo, pqs-
to que, ao mudar a situação.relacionai, as formas de identificar os seus e dife­
renciar-se d o s“outros” têm também de mudar, o que sugere circunstâncias e
realidades cm fluxo.22234-
Em situações decònfiito, ocorre necessariamente algum upq.de choque
das representações identitárias e.çlassificatórias. Diz Pierre Bourdieu:
.• '■ ; \ r •
( os indivíduos e os grupos- investem nas lutas dc classificação todo o seu ser so­
cial, tudo o que define a idéia que fazem de si mesmos,todo o impensado pelo qual
' s e constituem como'“nós“ Por oposição a “eles”, aos “outros”, a que.se ligam me-
. diante unia adesão quase corporal. Isto explica, a força mobdizadora excepcional c
V tudo aquilo que tem a ver com a identidade." , .

No caso das minorias, como a dos negros norte-americanos, a questão


não consiste cm reconstituir para si mesmos uma identidade - eles já a tem,
imposta pelo grupo dominante -, mas em redefini-la em seu proveito segun­
do seus próprios critérios; trata-se de transformar uma liefero-identidade,.
uma identidade negativa, cm identidade positiva. Num^primeiro momento,
isto pode tom ara fo iW d e uma inversão de critérios em relação aos do gru-
: po dominante, seguindo-se outra fase em que o esforço consistirá em impor
uma definição autônoma da identidade. Processos assim podem levar a uma
valorização a tal ponto exagerada ela identidade étnico-cultural construída
durante o processo de luta, que'qual quer, ou ira identidade social se veja apa­
gada por aquela: para o indivíduo, o luper-lnvestimento numa identidade ét­
nica pode transformar-se em camisa dq força. Pode, mesmo, levar a cobranças
de militância de uma poténcia tal, que a mencionada identidade étnico-cultu-
ral chegaria a apagar qualquer diferenciação individual.2;1 •
■ » ‘

22 GALLISSOT, René. Sous 1’identité, le p roces d’idéntificatión. V l l o m m e Ct la Socié-


•- té, 83, p. 12-27; 1987;
23 BOURDIEU, Pierre. liidentité et la représentation. Actes de lü recherche en setmees
*: wc/flte 35, p. 63*72,1980. ‘ ' . •
2 4 Sobre o “hiper-investlmciúo” étnico e suas conseqüêncms, ver DEVEREUX, Geor-
: ges. Eihnopsychanafyse conipliinaitarisie. Paris: Flàmmarion, 1972. p. 131- , .

183
•v-
Se a identidade étmco-cukiu-al é construída no social, forçosamenté
participa da complexidade - historicamente variável r- das estruturas sociais.
Assim, na frança-, houve estudos que demonstraram o desenvolvimento, em
jovens nascidos de imigrantes, de uma identidade étnico-eultural mista. Pes­
quisas deste tipo tiveram, no entanto, de lutar Contra forte resistência. De iní­
cio, diversos cientistas sociais quiseram,ver naquele fenômeno outra coisa: a
presença, nos jovens fillios.de imigrantes, de uma dupla identidade, situação
necessariamente instável e patológica do ponto de vista psicológico. Tal ten­
dência dos estudiosos decorria d eurh forte condicionamento - que lhes vi­
nha do listado-naçíío francês a que pertenciam - a ver a identidade nacional
como unien, não podendo, portanto, misturar-se com uma outra identidade
étnico-cultural, A base destes e outros estudos existe, na atualidade, todo um
campo d e.m ves ligação voltado para as estratégias identitárias; a identidade se
presta a reformulações em esm o a manipulações. Indivíduos egrupos, sobre- -
tudo nas sociedades muito complexas de hoje em dia, podem exercer uma
ação estratégica jogando com as variadas classificações sociais e culturais,
inslrumentaiiza.iido-as dentro de determinados limites (nem tudo.é possível
mim jogo destes)." . . . -
Num estudo das recomposições de identidade dos haitianos migrados ■
,M'n' Novn Yorlí» 1’rançoise Morín mostrou que, na primeira grande onda mi­
gratória que os levou àquela cidade,- na década de 1960, quando migraram so­
bretudo mulatos da elite do Haiti, a estratégia dos haitianos consistiu,em réi--'
vmdicar uma assimilação à nação estadunidense, separando-se radical mente
dos negros norte-americanos para evitar o estigma social, fazendo valer sua
pele clara e uma distinção trazida por sua boa educação. A segunda onda de
migrantes, na década de 1970, estava integrada por negros da classe,média
haitiana: rechaçados nas tentativas de integração, sua estratégia passou a'ser a '
de afirmar sua identidade haitiana, por exemplo no fato de falar francês ou
crévlc mesmo cm público, evitando de tal modo o risco de serem confundidos
com os negros dos Estados Unidos.(Já os filhos desses migrantes, uma segun- .
da geração nascida nos Estados Unidos, respondendo aos estereótipos negali-'
vos que atingiram a identidade haitiana desde os episódios do s boatpeople na "

25 CUCHK, Denys. La. n o tio n d e m l t u r e d a m les $cumccs sQcüiIfís, Paris; Í.3 Oócouverte.
1996. p. 91-95. : • . i ' • •’
década de 1980 c a identificação dos haitianos como grupo de alto risco lela-
livanienle à AIDS, escolheram reivindicar uma identidade canbenlia, aprovei-,
tando o 'foto de ser Nova York hoje, após décadas de imigrações diversas, a d - .
dade dó mundo que contém mais gente oriunda do Caribe (muito mais do
que qualquer cidade do próprio. Caribe).■
A lição principal que se pode retirar das discussões aluais acerca da
identidade élnico-culiural é, provavelmente, a seguinte: não é da alçada do
historiador, do antropólogo ou de'outro cientista social qualquer proporcio­
nar uma definição correta e irrefutável desta ou daquela identidade nacional
ou étnica, Nem lhe cabe dizer quais são os critérios que um determinado gru­
po devería rcuriir para ser cGnsiderado uma etnia, ou unia nação. Mesmo em
sc partindo das melhores definições disponíveis entre as que proporcionem
critérios, à primeira vista de lodo razoáveis,logo se esbarraria, por exemplo,
nos casos das diásporaS, em função das quais um ou mais.dos critérios usuais
fo.rçosamente deixain de cumprir-se devido a circunstâncias históricas. Vi­
mos, por outro lado, que enxergar pura e simplesmente uma ilusão fabricada
nas adscrições étnico-culturais também não leva a grandes resultados: òs limi­
tes de tal atitude são aqueles de qualquer desconstrução, sempre uma atitude
’ m uitom ais crítica'do que utilizável para novas construções. ■
Uma .véz conscientès de ser preferível, teórica e nietodologicamenle,
uma,visão processual e interativa das identidades étnico-culturais, ao busca­
rem uma alternativa concreta, muitos estudiosos a enxergaram no conceito de
fronteira étnica,- elaborado pelo antropólogo alemão-dinamarqués Eredrík
Barth em .1969, cuja revalorização nestes últimos anos parece vmeular-se àên- 26
fase nos processos é estratégias identitários.. , ■
Barth priorizou, nos processos de identificação, a vontade dç niiuear os
, limites entre “nós” e “eles”, o que 1eva a definir e manter a “fronteira étnica” Esta
pode ou não coincidir com fronteiras geográficas, ter ou não correspondências
territoriais: isto não é essencial. ÒütrosSiin, aquilo que deline as inclusões e ex-
çlusões que estabelecem tal fronteira pode perfeitamente variar no tempo, em
função de mudanças nas interações sociais internas e externas..Barlli percebeu

26 MORÍN, Fi ancoise. Des Haitiens à New York. De la visíbilité linguistique à la cons-


' truclion ifune idenlíté caribéennc. In: S1MON-BAROUH, I.j StMON, K J. (Org.).
" Le$êtmngçrs duns Ia ville. Paris: L’Har.m'attan, 1990. p. 34Ü-355. . . . . •
<||IC a fronteira étnica depende da cultura, utiliza a cultura, mas não c idêntica
a esta última loínada em seu conjunto; Dois grupos sociais vizinhos, muito pa-
rccidos cultural mente, podem chegar a considerai-se completamente diferen-
les c excludentcs do ponto de vista étnico, opondo-se com base em uni único
demento cultural isolado, tomado como critério. Isto pôde ser visto recen te-
mel,le com clareza - e com resultados catastróficos - e m terras do qu ífo i a Iu­
goslávia, O que é basicamente uma mesma cultura pode ser instrumentaliza­
do, de modos diferentes ou mesmo opostos, em 'estratégias distintas de identi­
ficação. 1; a identificação ctnico-cultural pode.acomodar sem dificuldade con-
sidenivcl helerogeneidade entre os participantes - más, não,* quanto aos ele­
mentos culturais escolhidos para o estabelecimento da fronteira étnica. O cri­
tério principal recomendado por Bartliéquc um papèi central deva serconce-
(luio na análise àqueles elementos culturais selecionados (variáveis no tempo)
qtie, para o próprio grupo,, delimitem a fronteira étnica: isto é, os elementos
que definam a inclusão/exclusão na etnia do grupo em questão.27
fisle modo de ver permite, certamente, incluir numa mesma etnia agru­
pamentos humanos, portadores, eventual mente, de grande^ diferenças cuhu-
nus; e, quanto às‘semelhanças culturais que houvesse, apareceríam mais como
conscqíiências da existência da fronteira étnica assim definida do que como
causas ou elementos dc diagnóstico dela. Em Outras palavras,-etnia c cultura
nao sao expressões sinônimas ou coexlensjvas, A etnia constitui algo menos
vaslo do que a cultura tomada em sua totalidade, ao definir somente uma for­
ma especifica de organização grupai, cuja importância Asem dúvida enorme no
relativo à autodefinição de úma identidade coletiva em contraste com outras,
encaradas como diferentes. A autopercepção.étiiica c a relevância conjuntural-.'
mente maior ou menor atribuída à identidade étnica dependem, historicamen­
te, de múltiplos fatores, variáveis no tempo: aqueles, muito espcciaímente, que
sublinhem contrastes ou ameaças externos díanle dos quais reajam os mem­
bros da etnia em questão. Tais reações, aliás, podem dar-se de maneiras varia­
das: lembremo-nos, por cxemplo.^das.posições diametrahnente opostas dos

Tv.
2/ ««w fronteiras. In: POUT1CNAT, Pbilíppe;
M REIH-FENART, Jocelyne. T eorias d a e tn k i d a d e seguido d e g r u p o s étnicos e suas
fr o n te tr a s d e .F re d rik B a r th. Trad. Elcio Fernandes. São Paulo: Fd; da Unesp, 1998
p. 1.85-227. 1 ■■. ’ . •
oradores atenienses Demóstenes e Esquines diante da crescente pressão de Fi­
lipe da Macedôriia sobre a Grécia, em meados do século 4ü a.C,, ambos, no en- •
tanto, achando quedefendiam os interesses coletivos dos helenos.
' . ' ' " ’ *^ . .

AS IDENTIDADES COLETIVAS NAS SOCIEDADES


PRÉ-MODERNAS, ÉM ESPECIAL QUANTO À
HISTÓRIA ANTIGA: NAÇÕES OU ETNIAS?. ;
• ..
Adiantarei liminarmente que, em minha opinião; seria impossível, de ■
imediato, dar lima solução ao debate sobre ser ou não aplicável ao mundo
pré-modenio’o conceito de nação. Quando falo de solução, não pretendo re-
ferir-me a alguma postura que aspire à unanimidade, o que seria impraticável"
e até mesmo indesejável para o futuro das discussões. Falo, simplesmente, da
impossibilidade que vislumbro, no momento atual, de encaminhar posturas f
bein fundamentadas e plausíveis no interior de qualquer das optmoes possí­
veis. Um livro como o de Anthony Smith, a que já me referi, ilustra o que que­
ro dizer. Muito interessante no tocante ao debate teórico, o volume, em toda
a parte relativa à História pré-modferna, está eivado de erros de todo tipo, por
vezes primários. Isto reflete algo corrente nas tentativas de comparaçao hísto-
rico-sociológica de dimensões excessivamente ambiciosas quanto aos casos
incluídos, não podendo o autor ser igualmente versado em todos os domínios
que aborda e às vezes, por isso, efetuando escolhas inadequadas ou pouco
atualizadas de materiais.Mas reflete também outra coisa: mesmo que o pro -:
blema que se acaba de mencionar não se fizesse sentir, Smith simplesmente
não podería dispor de.um a quantidade suficiente de materiais detalhados,
atentos às mudanças no tempo e bem fundamentados em documentação
abundante e variada (mesmo nqs casosr-em que éla-exista) quanto ao detalhe
das construções identitárias grupais antigas, já que materiais assim sao muito
mais a exceção do que a regra. .
Eiu 1932-1940, Gabriel Hanotaux organizou uma Histoire de Ia naúon
égyptknneem. sete volumes, na qual em momento algum se justifica por que
se achou possível falar de uma “nação egípcia” ao longo de todo um longuis-
•' sírno período, da Pré-história ao começo do século 20. Entretanto, como a

187

’A
• • \
olmi resultovn de uma iniciativa de Fuad I, rei do Egito, cuja espada de mem­
bro da Academia Francesa aparecia reproduzida, assim como uma moeda co­
memorativa da visita do soberano à França cm 1927, no final da introdução
geral do primeiro volume e da coleção, ficava claro tratar-se de obra gerada
por um desejo de legitimação do regime egípcio'da época e, ao mesnio tem-
po, de exaltação de suas relações com à França.2*
Fierre Vilar, comentando o fato.de Camilíe Juilían caracterizar a Gália
roninnu como uma “nação” acha com razãd tratar-se dé “uma projeção das
realidades políticas modernas sobre nossas representações históricas”” É inte­
ressante apontar que, não só em relação à Gália dessa época mas tafnbém aos
povos.de língua celta em geral, já se afirmou exatamente o contrário, isto é,
não haver dadò algum a sugerir que alguém, no período pré-histórico oupro-
Io-histórico, “pensasse em si mesmo ou mesma como celta”: as designações
generalizantes como celta, gaulês o u gael foram todas cunhadas por çstrangei- '
ros e os assim designados careciam de qualquer identidade cnglobante que ul­
trapassasse meras unidades tribais, E no entanto, pouco depois, contraditoria-
mente, fala-se nó mesmo texto de terem existido unidades políticas conside­
ráveis, arqueologiçamehte comprovadas, o que faz' duvidar do critério - um
.11gumento pelo silencio das fontes - que baseara a primeira afirmação.™
Má, sem dúvida, estudos mais interessantes. Um deles é o de Lolte.He-
deager, arqueóloga dinamarquesa, a respeitó da cultura material - que ela-as-
socia às fontes escritas disponíveis - çomo possível base de estudo da etnici-;*2930

2.S- HANO TAUX, Gabriel (Org.). l lh to ir c d e Ia m i t h m é g y p lie m c . Paris: Píon, 1932-


1940.7 v, ' í ■'

29 VILAR, Pierre. b ik ia c ió ii a i vocabulário d e i a ik ílm s histórico. Trad. M. Dolors Foícli.


Barcelona: Crítica, 1980, p. 1.57. Quando, em HARiVlAND, Louis. Ü O cc id e n t rò-
titaip: Gaule-Espagiie-Bretagne-Afrique du Nord. Paris: Payot, J 97Õ, vemos capítu­
los que se intitulam “Primeiros movimentos, naciúnais na Gália e na África do Nor- •/
le V A crise neroniana: òs levantes nacionais: Boudícca.CivÜis”, procuraríamos cm
v3o uma base leórico-metodológica.para o uso dessa terminologia;.no máximo
acharíamos referências a uma unidade de civilização ((língua, religião, uniformida­
de dos costumes, das estruturas sociais e dos gcheros devida, estreitem das relações
’ econôm' cas*freqlténcia <ie contatos humanos.no interior do território onde viviam
celtas) ou a uma “fraternidade espiritual” dos. celtas (p. 32- 33), - "
30 CHAMPION, Timothy. Power, polities and statiis. In: ÜREEN, Miranda (Org;). ■
T h e C e h ic w orld. Londom Routledgc, 1996. p. 85-94. •

188
dade presente, em alguas dòs reinos europeus da Àiitigüidade Tardia, Tratan­
do dos francos, suevos, alamanos, vândalos, godos, anglos, saxôes, hérulos, ju- ^
tos e burgtindios, mostra que, de um lado, nesses povos por tanto tempo ei - ■
-rahtes, nota-sè unia beterogeneidade indubitável de elementos formadores. O
. feinò (ou-confederação tribal)-ostrogodp do final do 4°?éculo,'por exemplo,
i incluía - além de godos - finlandeses, eslavos, hérulos, alanos, hunos, antae e
' sármatãs, enquanto no exército ostrogodo do rei Teodoriço, nájtaha do sécu­
lo 6o, havia os fiogodos, romanos, rdgios','vândalos, alanos, hérulos, asçani,
' turcilíngios,.suevos, sármatas, taífali, gépidos e alamanos - não como solda­
dos mercenários, mas sini, como membros plenamente reconhecidos do povo
godo. Todos se viam, portanto, como integrantes de uma só comunidade e sua
beterogeneidade não era empecilho para aceitarem mitos de formarem «m ,
mesmo grupo hereditário, havendo também uma noção de identidade básica
' entre povo e exército. A autora não hesita em aplicar a este conjunto o termo
nação, afirmando que, etimolpgicamentc, natio, tal como gens, gentis ou genos,
‘ contém um. elemento, de-suposta relação genética (grupo de descendência).
Em outras palavras, segundo os mitos fundadores aceitos, ò povo, governado
por seu rei guerreiro, reconhecia pertencer a uma espécie de família cuja ori-
' gem era derivada de sua ligação com uma.casa real de origem divina (no caso
dos ostrogodos, a família real dos Afnali, a qüe pertencia Teodoriço, descende­
ría de Gaut, deus escandinavo da guerra). O parentesco mítico dos guerreiros
com ó rei era confirmado por laços dé lealdade e juramentos. O título do rei
erâ “nacional, não territorial, e as origens do reino deveríam ser vistas como a-
• forigem do povo”. Uma cultura material germânica se desenvolveu, com estilos
próprios'baseados em motivos animais, associada à aristocracia guerreira e ao
' rei, tendente a simbolizar a autonomia simbólica dessas nações diante da cul­
tura mediterrânea.’1 _
No texto de Hcdeager, como em outros que já citamos, ocorre uma os-
•cilação entre termos como “etnia”, “etnicidade” e “nação”. Talvez porque todos31

31 HEDEAGER, I.otte. Kingdoms, ethniçity and material cultuie:.D.enmavk ín a Eurò-


' . pean perspective. ín: CARVER, Martin (Org.). Tfte age ofSvlton Toot The sevemh cen-
tuiy m Northern Entupe. Woodbridge:The.Boydell Piess, 1992, p. 279-300. Ver tam­
bém WOÍFRAM, Herwig. T h e R o tr n n Ernpire a n d its Gerimimcpeoples. Translated py
' Thomas Durtlap. Berkelcy: University.of Calitòmia Press, 1997. P -14-34.

! -189
sc v' nci,ie™ a um campo semântico basicamente semelhante, a. uma mesma
ordem de idéias, hoje vista como relacionada, centralmente, a uma modalida­
de específica de processos identitúrios coletivos. É possível, também, que a
preferência recente por um vocabulário dom inada por expressões como
Ponteira étnica tenda á pôr rio centro, conceitualmente, a etnia como fenô­
meno mais gerai, tornando-se a nação, no conjunto dos processos identitáriqs
coletivos desse tipo, somente uma espécie de caso particular, caracterizado
pelo que seria a maior novidade contemporânea: a ideologia nacionalista do­
taria de meios de reprodução, propaganda e difusão social, apoiadas por
exemplo na generalização do ensino básico, impensáveis para as sociedades •
mais antigas, c podendo desembocar eventualmente na constituição de Esta-
<los nacionais. Esta percepção da ideologia nacionalista como algo central le- •
vou mesmo, em certos casos, a afirmar algo pouco convincente hoje cm dia à
luz rios debates, que já foram expostos resumidamente,' acerca dos processos
'dei."tários: a etnia seria unia realidade sobre cuja base a nação podería vir a
se constituir como mera ideologia manipuladora. Existe, também, a jioção de
que u investimento político dos regimes contemporâneos no conceito.de na­
ção, (ratando de estabelecer, para seus próprios fins, a equação entre povo, na-f
çâo e bslarlo, e tornando,a idéia de nação incomodaraente ligada às de guerra
e fronleira, por exemplo, tornaria mais aceitável, nos estudos científicos e
mesmo politicamente, o uso preferencial rio conceito mais “neutro” de etnia,
(|tie lemetcria, acha Eric.Hobsbawm, a um “protonacionalísmo popular” - ó
<l“e tCC‘>rcla a posição, presente em alguns dos parlicípantes no dêbátcUnar-
xista sobre a questão'nacional,-no início do sccüío 20, de que de certo modo
seria necessário resgatar ó sentimento nacional de sua manipulação pela bur­
guesia, favorecendo sua construção em termos mais coletivos.32Seja qual fór a
opção adotada, parece que as preferências atuais tendem a convergir rio aban-

3 . Ver SMITH, Anthony D, The cihnicorígms of ntUkms. Oxford: fclackwell, 1986,


P; I I : 1Num sentido, os ‘modernistas’ têm razão. O nacionalismo, como ideolo­
gia e como movmienlo, é um fenômeno que data do final dó século XVTÍI en­
quanto um sentimento especifica m ente1nacional’ só pode ser discernido pouco
antes do final do século XV,.ou no século XVI, na Europa Ocidental. Também, a
nação-Estado, como norm a política, é bastante moderna.” Cf, iguaímenté P O tj-
TIGNAT, Phijippe; STRfiíFP-FENART, Jócelyne. Teorias dá emicidadeseguido de
grupos étnicos « suas fronteiras de Fredrik Bank Trad. Eicio Fernandes. São Paul
’ da UnesP’ * " « • P- HOBSBAWM, Eric. Nations.et nationaUsmesde-
. P'ÍW,.]7S,a PrtnS: Ga'lim;,rc,> 1^92; yiLAR, Kerredlniciaáônaijocabulario dei
annhsís histórico>Trad, M, Dolors Folch. Barcelona;. Crítica, 1980. p: 143*200.

190
dono, recomendado por quase todas as vertentes, dahiação como conceito.
Çaso isto se aceitasse; a discussão acerca'dc Haver oti não nações no mi.ndo
pré-moderno se transformaria num falso problema.
Ela me parece justificar-se, no entanto, ná forma seguinte: até.qnepon-
to, no concernente às construções étnicas antigas - já que não nos cabe o cu -,
par-nos, aqui, da Idade Média” houve ocasiões em que se chegou a cons­
truir algo parecido, mulatis mutanàis, a uma ideologia nacionalista oficial ma­
nipulada pelo Estado e pelos grupos soçialmènte dominantes, como a con­
temporânea? Eis aí uma pergunta difícil de responder, dado o estado atual, das
"pesquisas. Intui-se que a Ideologia, dos letrados da época de Augusto tenha
chegado perto de algo assim. Com efeito, se desde a República certas discus­
sões etn toího do grau desejável dehelenização para ps membros da elite ro­
mana'chegavam perto de algo semelhante a uma ideologia nacionalista, etn
Tito I.ívio (45,18, 1), ao lermos a narrativa do episódio absoluta mente fícti-
do em que 0 Senado convoca os cônsules fie 167 a.Ç. a que mostrem a todos
os povos que a vitória inelutável de Rom.a trar-lhes-á, não a escravidão mas a
liberdade, ou, na Enchia de Virgílio, u canto 6, com a descida de Enéias aos in­
fernos e a. revelação do futuro romano como missão de governo do mundo,
ãlém de uma ideologia imperial, vislumbramos pelo menos um esboço de na­
cionalismo ou patriotismo romano que parece mais “moderno” do que quai­
squer outra coisa que a Antiguidade nos ofereça. Mas até que ponto a ideolo-'
gia cm questão, numa época de acesso limitado (se bem que mais amplo ,do
.que antes se pensava) à possibilidade de ler, de cenáculos literários e livros co-
piados à mão e lidos em público só em circunstâncias limitadas, uma ideolo-
■ gia assim podería alcançar grande, difiisão sociàl? A preservação dos textos
mencionados e de alguns*outros, que não constituem o resultado de uma se­
leção ao acaso, pode criar uma impressão ilusória a respeito da importância
social reaf desses textos, na ausência de pesquisas que os integrem num exame
.sistemático, ao longo do tempo, de vários tipos de documentos, mesmo se te:
mos alguns estudos parciais.31 . . ' / .3

33 ' Ver, porém, á respeito: ARMSTRONG, ]. A* N a tio n s bejòre n u iio n a íim , Chapei Hill:
The Uniyersily of North Carolina Press, 1982. .
34' Cf. CARDOSO, Ciro hlamavion. Tinham os antigos uma literatura? P M n fc 5,
p. 99-121, 1999. Como exemplo de' esludo feito pqr .autora brasileira, ver MEND ,
' - Nurma Musco. Fcríae Roímim Discurso imperial romanoJ h o m x . 6, p. 282-294,ZUW.
Ver ainda: EAMTHAM, Elaine. Ronum tüerury m ltu rm From Ciceio to Apiueius, i arn-
more: T fiè Johns Hopíáns University Press, 1996. p. 34-4 lfLiterature and naüonalism.

191
, ,urnuna'K,() esta sc?ao 1,0 lc-yto, vou indicar, tomando como exemplo
minha própria área de estudo mais específica, a Egiptologia, os setores de pes-
(juisa e as respectivas documentações que precisariam ser cobertos em detalhe
para uma discussão bem fundamentada acerca das construções identitárías
coletivas num dos períodos mais bem documentados cia história faraônica do
ES'U,«° Reino Novo .0552-1069 a.C. segundo a cronologia curta).
1) A abundante documentação funerária privada —que inclui os textos
c decorações das próprias tumbas mais complexas, cujo estabelecimento era
possível unicamente para os soçialmente.privilegiados, mas também numero­
síssimas esteias funerárias depositadas como ex-votos em templos, algumas
tias quais encomendadas por estratos bem mais populares da população
comprova que o primeiro nívei(que era também o mais difundido socialmen-
le) para a inserção de cada indivíduo numa identidade coletiva passava pela
ciclíule (///»/),terrno que,em egípcio, também designa uma região ou distrito;
passava, mais exaLamente, po r ura vínculo estreito com o deus local35 A im-
portânda da cidade e, em cada,uma, do principal de seus templos como refe­
rencias identitárías básicas de tipó.local parece ter sitio um dos fatores que le­
varam à multiplicação deliberada de cidades centradas em templos quando da-
colonização sistemática de uma parte da Nubla nilótica pelos egípcios no Rei­
no Novo.36Esta superioridade da cidade bom seu deus sobre outras formas de
identificação local (como por exemplo a u(a)hj**, aldeia oü povoado cóm co­
notação também de parentesco num sentido lato) é digna de nota num Esta­
do territorial como o egípcio, que não jiasceu da .congregação de cidades-esta-
do prcviamente existenjes é onde a urbanização se completou já sob á égide
(Ia monarquia unificada.” •
2) Num setor bem menos extenso da documentação funerária privada
- em especial inscrições funerárias de membros do.exército permanente egíp­

• 3 5 Cl. t.OHLET, Ogdcn. “tow n” and “country” in ancient Egypt, in: HUDSON,' Mi-
• '■ w-ílCli LEV1NEi Barucfl A-dOrg.). U rlm n iza tiu n a n c lla n d o w ilersh ip in th e iin c ie n t
N a i r h a s t , Cambridge.MA: Feqbody Museúm o f Arcliaeology and Etnology, Har-
vard Universitp, 1999. p, 65-1 14. . . :
3(í EEMP, Bany J. Imperialísm and empite in New Kingdom Egvpi. In: GARNSEY P ■
P . A.; VVHITTAtÇÉR, C. R. (Org.j. l m p e r h ü m i m th e ã n c ie n t w orld. Cambridgc'
Cambfidge Univcrsity Press, 1978. p. 7-57. , '
37 Verp.eXiWARBURTIN, David. Sgypíand the Near Eu$t: Potitics in the Bronze Age.
Neúchâtel, Paris: Rechérches et Publica liorts; -2001. p. 114-119/ ■ ,
cio (uma criação-cio Segundo Período Intermediário, quando da guerra para
expulsão dos hiesos no século 16 a.C.) -'m as prinçipalmeiite na documenta- .
ção oficial (inscrições régias) e na literatura originada no setor dós escnbas
profissionais, a construção iderttitária como “egípcio” - de tato, existiam de­
signações para o próprio país, mas os egípcios chamavam a si mesmos reniet- t
jcf; “seres humanos'5, embora a transformação semântica desse termo ao lon­
go do período mostre que a idéia de serem eles-a única humanidade cabal es­
tava se enfraquecendo - passava por úma noção que podemos duvidar se es- -
tendesse a fração da população muito significativa numericamente. No con­
texto do mito do rei divino, descendente em linha direta do demiurgo criador
e portanto proprietário do, cosmo, intermediário‘entre a humanidade e o s
deuses, e responsável pela boa ordem do mundo, existia a idéia de ser o Egito,
agrícola, a “terra negra5' do Vale e do Delta, o núcleo do cosmo organizado, .
cujo ordenamento fora entregue ao faraó quando o deus solar se afastou da
humanidade e passou a navegar no céu em sua barca. Em texto cuja data é in­
certa1mas se refere a acontecimentos do século 11 a.C., atribui-se áo príncipe
da cidade fenícia altamente egipciamzadade Biblos a afirmação seguinte:

' Sem dúvida, Atnon fundpu todas as terras; mas cuidou dejas depois de ter fun­
dado á terra do Egito, de onde vens; Na verdade, dela saíram á eficiência e p epsi- ^ ■
namento, para atingitem o lugar onde cslon. (Relatório de Umunon, 2,19- , . )

i Vê-se que, no. final do, período aqui considerado, podia-se encarar o
Egito não mais como o único núcleo organizado do mundo, cercado pelas for-
ças caóticas do deserto e dos países estrangeiros mas, sim, como o centro pu-
mordialmente estruturado pelos deuses do qual o saber e a organizaçao po­
diam aos poucos estender-se aos estrangeiros que estivessem sob sua órbita de
influência. De qualquer modo, era ó.próprio Egito a sede da monarquia faraó- |
nica e, já por tal razão, considerava-se superior às outras regiões, mesmo as
que não lhe fossem rebeldes. . ‘ ^
Num conto da primeira metade do segundo milênio a.C., um encônno
'do rei inserido na narrativa afirma que a alegria causada nas pessoas pelo mo­
narca egipeío supera aquela provocada pelo deus local (Conto dè Sanehet, B, 66-
67), o que, aliás, confirma o Caráter, primordial, ná criação da identidade cole-

38' CARDOSO, Ciro Flamàrion. 0 relatório de Unamon. P h o ín ix , 6, p. 106-135,2000,

■. '193
(iv;i, reconhecido à ügação com cada deus local. O rei, no Reino Novo, tratou de
superpor o seu culto cm vida ao. culto divino habitual, multiplicando suas está­
tuas cultuais, associando seu próprio culto, em,certos contextos, ao dos deuses
dinásticos,'buscando assim inserir-se no sistema primordial que provia identi­
dade coletiva aos egípcios, como se viu ácirtía. isto funcionou bem melhor, em
cerios reinados prestigiosos (Ameiihotep III, Rámsés IT), do que a tentativa
muito mais radical de Akhenaton, Outra novidade dó Reino Novo foi um gêne­
ro literário desconhecido anteriormente,'o elogio da cidade real (“a Residência”
pata os egípcios), apresentando-a como microcosmo e como elemento ordena-
tl(H do mundo por meio de uma sacráiizaçãò. <ío espaço, na cidade e a partir da
cidade. Nesses textos, a tentativa de criar uma identidade coletiva claramente
enfaliza uma elite urbana sobre a qual o rçi acumula favores ç da qual aterideas
petições; mas também se afirma que, nas condições ideais da cidade real ou Re­
sidência, o pequeno é como o grande, isto é, também,ele é favorecido.5’
3) No que diz respeito à relação com os estrangejros como fator de çons-
Imção de uma identidade coletiva egípcia mediante a alteridade, a situação é
complexa, Como em todas as fases precedentes da história faraônica, no Reino
Novo o faraó é representado iconograficamènte, às vezes também em textos,
massacrando os seus inimigos, Isto, que anteriormente assumia um caráter ge-
nci ico, no período.etn exame passou a referir-se a cenas de combate com con-
trincantes históricos específicos (hilitas, líbiõs, povos do mar). Aó mesfno tem-
p<), em relação ao país africano de Púiit, que por razões logísticas e devido à
gi iinde distancia não podéria ser incidido pelos egípcios, nem ameaçar o pró­
prio Agito, bem como quanto à cidade asiática de Biblos, muito egipeianizada,
as apresentações egípcias eram alta mente favoráveis: tratava-se de vergéis per­
tencentes a Amou e'associados à deusa Háthor, tios quais o deus derTebas, na
época a divindade suprema dos egípcios, fazia crescer/espectivamenfe o incen­
so para o culto e a madeira para sua barca fluvial sagrada. A idéia .geral era, po­
rém, a seguinte; o estrangeiro rebelde identificava-se como um agente do caos,

jy CARDOSO, Ciro Flantarion. S e te olhares sobre a Antigüidade. Brasília: Ed. da UnB, ■


199-1. p. 121-159; CARDOSO, Ciro Flamarion. De Amarna aos Rãnisés. P h o in ix , 7,
p. 115-142, 2001; COEI.ET, O g d e n ,fb w ti” and “cpuntiy” iti ancient Egypt. Jn:
HUDSON, Micliad; LEVINE, Baruch A. ( O r g U r b a n iz a lio n a n d lu n d o m ie r s h ip
in lh e a n c ie n t N e a r E a s t. Çambridge, MA: Peàbody Museum of Archaeology and
Etnology, Harvard Uníversity, 1999, . ' 1 . • .

194
que o rei do Egito deve reprimir, o estrangeiro que se submetia e pagava tribu­
to, entretanto,'podería contar com o beneplácito do faraó e dos deuses egípcios
(que garantiam suas formas específicas de vida e abastecimento tanto quanto
as dos naturais do Égito). No Reino Novó, em função do Império núbio c asiá­
tico constituído pelo Egito, o contato dos egípcios com os povos da Síria-Palés-
tina e de.Kusb (Núbia) aumentou consideravelmente. Nos textos oficiais, fictí­
cia mente, aparecepn estrangeiros—incluindo-o rei hitita, monarca impoitante
de uma parte do Oriente Próximo que nunca esteve sob domínio egípcio-que,
em suas falas, reconhecem que seus países dependem do faraó. Surge,também „
a noção d em ma vida após a morte à maneira egípcia estendida aos estrangei- _
rbs assimilados; entenda-se: aos estrangeiros pacíficos residentes em seus pró­
prios países, nas áreas de influência egípcia, já que àqueles integrados à própria
sociedade egípcia o acesse? à religião funerária, caso tivessem os recursos neces­
sários, era tão natural quanio para os.egípcios natos.
, Assim, a oposição egípcio/estrangeiro passa ela também nos escritos.©
imagens oficiais (que são praticamente os únicos disponíveis para este tema)
■pêlo mito da realeza divina do faraó egípcio, teoricamente estendida a. todo o
universo: o “bom ” estrangeiro é o.que se submete, ou o que se integra à socie­
dade egípcia, na qual é tratado como se egípcio fosse. 1 . ,
- Não estão ausentes, porém, assertivas que parecem remeter mais dire­
tamente a unia construção da identidade egípcia por alteridade. Assim, poi
'exemplo, em texto cio faraó TCamés em Karnalc (meados.do século 16 a.C.), em
função da guerra empreendida pára a expulsão dos biesos, lemos a passagem
seguinte, numa fala fictícia cio rei egípcio ao seu opositor asiático, Apepí, em
que anuncía ações contra os estrangeiros mas também contra os egípcios qued­
os apoiavam: • *. ' •

Ó asiático despojado, teus desejos falharam! 0 asiático vil, que v.ivias dizendo:
• . “Eu sou uni senhor sem par até Khèmenu [I lennópolis], até Per-Hathor e também
; até Hutuaret [Avaris], junto aos dois tios [dois braços dn Nilo] 1 fu deixarei estes
lugares desolados, vazios de gente, .depois de arrasar as suas cidades, queimai as ■
suas residências, transformadas em ruínas ardentes para sempre devido ao dano
que fizeram nesta parte do Egito os que se puseram a servir aòs asiáticos que agiam ...
' v conlra o Egito, seu setihpf. (Segunda esteia de Kamés em Kornak, linhas 16-19) .40

40 Cf. MIÒSI, Fraiik t . (Org.). A r e a d in g b w k p f S à o n d I n te n n a lu itc p c r w d tcxls. To­


ronto; Benben Eublicatións,1981.'p. 46-47 para a texto egfpciorminbálraduçaò.

' ’' * ; ^ : .1 ‘ '

, 195
\

Os asiáticos pacirtcamcntç instalados ao Egito - príncipes estrangeiros


criados no palácio real (enviados depois de volta para suceder aos seus pais,
ou integrados à sociedade egípcia, às vezes nò exercício de altos cargos), sol­
dados, comerciantes etc. - tendiam a ser absorvidos sem qualquer dificuldade
na sociedade local,'cada um de acòrdo com o status variável .que fosse o seu, e
não recebiam tratamento diferenciado. A iconografia por vezes se interessava
em representar o pitoresco de sua aparência e de seus hábitos (um soldado
asiatico do exército egípcio .podería ser mostrado tomando cerveja à oipda da
Ásia, chupando-a com uin canudo, por exemplo), mas não há qualquer inrii-
ca^ao de uma discriminação ligada ao nascimento estrangeiro ou à cor da
pele. Nas dinastias 19 e 20 tornou-se comum que inimigos vencidos fossem
instalados em massa no Delta como soldados que eram hominalmente escra­
vos do Estado, recebendo terras de cultivo:‘também estes, passadas algumas
gerações, tornavam-se não somente livres como também indistinguíveis dos
elementos populares nativos do país. A prova de que o estrangeiro rebelde,
mas não aquele integrado à sociedade egípcia ou tributário em sua própria
terra, é que tinha uma representação negativa, nós a vemos no fato de que os
Nove Arcos, que resumiam bs adversários que o rei devia massacrar, incluís­
sem estrangeiros niajoritar ia mente mas, também, egípcios recalcitrantes.'11
O caráter construído das imagens e dos textqs oficiais emitidos para o
publico interno, no que dizia respeito^ relação entre egípcios e estrangeiros,
comprova-se pela presença de um outro discurso radicaJmente diferente, o da
diplomacia, que conhecemos pelas assim chamadas “cartas de Araarna”, de
meados do século 14 a.C. Na correspondência coih os outros grandes m onar­
cas do Oriente Próximo, o faraó entra com eles numa relação dé dom e coti-
liudom. Em lugar de aparecer, neste contexto, como proprietário do universo,
o rei do Egito figura como um chefe de família (identificada com o seu reino!
incluindo as regiões estrangeiras integrantes do império'egípcio) que se rela-
i• ' i ' 1

ALBELLE, Dqininíque. I.es n c u f ü r a : T/Kgyptien et les étrangers cie Ia Préhistciire


à la coaquête d'Alexandre. Paris: Arraand Colin, 199Ó; REDFOR0, Doiiald B,
C u n a a n , a n d Israel in a n d e m tim es. Princçton, N): Princeton . Univcrsity
Piess, 1992; MENU, Bcrnadéttc. La question de Pesclavage dans 1'Égypte pbaraoni-
que. D n ú t et C u ltu r a , 39, p. 59-79,2000/1; ZIVTE, Alain. D éeouvcrte à Saqqarahx Le
viztroubjié. Paris: Seuil, 1990. ■ . '

196 . ,
cioitil COI11 seus “Irmãos” (sempre bilateralmente, dois a dois), chefes por $«a
ve?, de suas respectivas famílias (isto é, de seus reinos e impérios) “
.. - Caso o critério para discutir a etnicidade egípcia.seja o mais.corrente
hoje cm dia, isto é, mediante uma atenção especial aos processos ídcntitáiios
coletivos, consta tar-se-ia' uma situação muito distante do que hoje cm dia se
entende por nação. O rçsuitado põderia ser outro se se privilegiasse uma de­
finição adscritíva atenta aos aspectos mais materiais da questão. . -
S ' " • •• . ' 1 . ■

CONCLUSÃO

:' ' __
•; .‘
. ■'• . •
'N - No movimento até certo ponto pendulir das preferências, estamos aos
poucos saindo de uma fasé em que existiu uma clara opção por privilegiar o
ângulo mental e simbólico, em detrimento do material. Isto sc refletiu tam-
bém’ como vímos ao repassar algumas das posturas das últimas décadas, nos
estudos da etnicidade e da nação. Ao estudar recèntemente um -aspecto da el~-
nicidade ná Grécia clássica, manifestei-mé com alguih detalhe sobre o que, em
tal preferência um tanto estreita pelo simbólico, pode causar lacunas e insufi-
ciências na análise dos temas abordados.nesta palestra.41 •; .' *43

42 .T/je Ainarna .letters. Edited and translated by "Williani L. Moran. Baltimore: The
Joliiis Hopkins Univeisity Press, 1992. ,
43. CARDOSO, Ciro Klamarion. La etnicidad griega: una visión desde Jenofonte. In;
i.. GALLEGO Julián (Org.). Práctiças religiosas, re g h m n e s discursivos y e l p o c le rp o lític o m
ci m w id o jyc co rro m a n o . Buenos AÚes: Univcrsidad de Buenos Aires, 2001. p. 127-150.

■ (■ . : '' •'. • ■ .' ' ' , ... .197


I

Capítulo 9

•Etnografia e H istória da leitura

. , DA ETNOGRAFIA DA ESCRITA Â DA LEITURA


' «... ’■ ‘ _ • I *
Fala-se de Etnografia - ou Antropologia - da leitura porque, na base dos
trabalhos vinculados a esta corrente dè estudos, encontra-se um enfoque màr-
: . cado por uma certa Antropologia, pelo menos inicialmenle aquela próxima às
- idéias de Clifford Geerlz; unia Antropologia) apesar do que disse a respeito p
mencionado autor, cpni forte selo de relalivismo cultural ou, numa perspectiva.
, - pós-modefna, de muiticuHuralismo. Trata-se da idéia de que hão se deve privi­
legiar a História ocidental, a cultura ocidental, sobre as outras; cada cixltura...
constituiría uma espécie de texto a ser lido segundo suas próprias regras inlrín-
■ \ * secas, partilhadas,pelos que a vivem, sendo politicamente incorreto querer im­
pugnar de fora as, suas características no todo óu em. parte, ou seja, a partir de »
. critérios que tbirani elaborados por uma crjltura diferente. No entanto, se a pers-
' . pedira c o impulso inicial vieram daí, os estudos, em si, foram devidos à uma
a . gama de especialistas universitários de ratíios diversos: antropólogos, sem dúvi- ,
da, e arqueólogos (que, nos Estados Unidos,, são considerados correntemente
. ' como antropólogos); mas também praticantes da História Cúltund à maneira
de Chartièr, além de professores de l.etras, Filologia e Estudos literários. Em
■ suma, estamos diante de um exemplo, entre outros, da tendência um tanto pa-
. ratíoxafdas ciências humanas e sociais no mundo de hoje a, por um lado, esco­
lherem campos de pesquisa cada vez mais delimitados e, por outro, abordarem-
■ ... nos a partir de um viés interdisciplinar, pluridisciplinarou transdisciplinar.1

1 BARROS,. Carlos, La historia que viene. In: BARROS, Carlos (Org.). [lista ria a d e ­
bate. Santiago de Compostela: Historia a Debate, 1995.1: Pasado y futuro, p. 95-117; ■

: . . 199
A Etnografia da escrita, surgida no fim,da década de 1960 cm forma
clara em estudos como os de Jack Goody, precedeu a da leitura, queV perce-
bc como um verdadeiro campo -específico e concorrido de estudos só na dé­
cada de 1980. As razões para isto são variadas e conhecem paralelos alhures.
Por exemplo: nas análises estruturalislas da narratologia e da Semiótica íex-
lutil, desenvolverani-se muito mais os enfoques voltados para o texto, muito
menos aqueles que se ocuparam, da leitura'como tal (é, não, de conceitos abs­
tratos como q de enunciatário ou o de leitorimplícito, inscritos, afinal de con-'
tas, no próprio texto), A principal razão talvez seja a dificuldade muito maior
que iuibitualmeritese encontra para documentar a dispersão das leituras, em
contraste com o texto escrito, que é um dado do qual se parte e com o qual se
contu. Como dizUmberío Eco* - ‘ .
\ V ! • . .
,s .
Entre a historia misteriosa de uma produção textual e o curso ineontrqlávcl de
suas interpretações futuras, o texto enquanto tal representa uma presença cont.br-
tav€l> o ponto ao qual nos agarramos**2 ■ »

Encontramos um bom exemplo desta.dificuldade cm Roger Chartier.


Em artigos metodológicos, vemo-lo defender uma noção do que chama de
tiptopriação que.a localiza, na esteira de Ginzlrurg, no domínio da leitura, mais
especificámente, das leituras divergentes de um mesmo texto. Sua idéia básica,
a respeito, é que “qualquer uso ou apropriação dè um produto cultural, ou de
uma idéia, é um trabalho’ intelectual”.3No entanto,.esta concentração nas lei-
luras ou apropriações folha no trabalho concreto de Chartier.' •
Em seu estudo Ho que aconteceu ao clássico' romance espanhol de Frán-
cisco de.Quévedo, a Historia cie la vida del Buscón, nosso autor mostra que o li-'

na p. 4.07 lemos: “As rápidas mudanças de denominação, do iiitérdisrfplinar (coope-


rar) ao pluridisciplinar (convergir), do pluridisdplinarao lronsdisciplinar.(atravesfor
e transcender), evidçnciam uma atividade científica que procura tornar-se indepen­
dente dos compartimentos acadêmicos clássicos, sem por tal razão cair na velha ilu­
são' positivista de mra'ciência, unificada’.”
2 ECO, Umbcrto ct al. Interpretação e su p a in ietp re ta çã o . São Paulo: Martins Fontes,
1993. p. 104 (ed. original em inglêç, 1992).
3 Ver:. CHARTIER, Roger, Intellcctual. hisloiy or sociocullural history? Tiie French tra-
jectories. tn: IA CAPRA, Dominick; IÍAPLAN, Steven L. (Org.). I n td íe c lm l history:
Reappraisals and new perspectives. Ithuca, NV: Cornell Uhíversity Press, i 982. p. 13-46.

2{)0
vro foi publicado'em 1626 visando'» um público sofisticado, socialmente eli-,
tista, o túesmo ocorrendo com a tradução francesa de 1633. fim meados do sé­
culo 17, porém, uma cas-a editorial da cidade de Troyes- Otídot e G arnier- co­
meçou a publicar uma série de edições baratas de episódios soltos do roman­
ce, tornando-o Uma presença permanente, por dois séculos, na literatura po- -
pular francesa conhecida como bibllothèqtie bkuc/O s editores mexeram no
texto; não só cortando o romance em episódios :de,que denvaram numerosos
livros pequenos, como também tornando as frases mais curtas, subdividindo-,
os parágrafos, multiplicando o número dos capítulos. O público-alvo eia for-. ^
mado por pessoas dé poucas posses e que dispunham de pouco tempo para a
leitura: cada pequena brochura tirada do Buscón funcionava como uma unida­
de autônoma que podia ser assimilada por si mesma, correspondendo à dura,
-ção de um sarau familiar (veillce). O livro foi assim transformado numa cole­
ção de fragmentos passíveis de leitura em qualquer ordem, deixando de ser
uma história contínua:-cada leitor podia construir, para o conjunto, o,sentido
que preferisse. Desie modo, Chartier demonstra como certas'escolhas tipográ­
ficas transformaram o leitor implícito' do autor'num leitor implícito do editor,
diferente do primeiro não só socialmente.como, também, em súa apropriação
cio texto -ag o ra transformado em textos numerosos e autônom os-, arrastan--
do o romance de Quevedo para baixo na es,cala social do Antigo Regime, até
aquilo que no século 19 viría a ser chamado, na França, de kgrqná publique.
Mas o mais interessante permaneceu fora da análise: Chartier não estudou
como, em que sentido, se deu, quanto aos'conteúdos, a.tal apropriação dó tex­
to por um público diferente daquele que o autor tinha em.'mente ao escrever, ,
já que se concentrou exclusivamente no iivró como objeto tísico.1
Por que não o fez? Provavelmente por não. lerem os leitores franceses
populares dc Quevedo deixado escritos acerca de suas experiências com tal lei­
tura. Pelo contrário, Roberl D arntonpôde contar com as cartas arquivadas
!pelo editor de Rousseau para conhecer reações do público leitor aos romances
do ãútor; e Ginzbiug, com papéis da Inquisição para penetrar nas concepções
■<le um móleiro. . ' -

. 4 A crítica foi feita, pertinentémènte,por" DAltNTON, Robert. History ofreadiiig. th;


' * ■ BURKE, Peter (Org.). N e w perspectives ou h i íto r k a l wíííiig. Cambridge:. Polity,
... / . 199 l.p . 140-167 (especificamente. p. 159-160), , • •
Suja como for, difícil ou não de documeiiW quando se trata de perío­
dos diferentes do presente, o enfoque voltado para a leitura se expandiu, pou­
co,mais de uma.década depois daquele centrado numa Etnografia da escrita.
■Por que_se desenvolveu? Provavelmente o foz, tratando-se como sc trata de
Icmlcncia claramente pós-moderna em suas linhas gerais, comô um elemen­
to, entre outros, do movimento que, depois de ter o estrüluralísmo da Lin-
gíuslica e da Semiótica textuais transferido a autoridade do autor para o tex-
(<>, q.ms ir além e negar autoridade ao próprio texto, salientando que um tex*
Io só existe de fato nas leituras que dele sejam'feitas, passando, do foco único
que constituem o texto e suas disposições ou estruturas internas do sentido, à
dispersão das leituras-examinadas segundo diferentes “comunidades de intef-
pielação. Oulrossim, trata-se ainda de uma conlinuáção por outros meios
(ou áeja, mediante uma passagem ao outro pólo da questão, à outra cara da
mesma moeda) das finalidades que também teve desde o Início a Etnografia
da escrita: problematizar dicotomias coíno escrito/oral, erudito/popular etc.;
perceber o jogp dos saberes do poder e dos poderes do saber 11a relação entre
0 escrito e o oral, u maneira dos conceitos nielzsçheanos propostos por Michel
1‘oucault; ou então, empreender análises aparentadas com as da corrente Co­
nhecida como “dcsconitiução” - -
Com efeito, por caminhos diversos segundo as sociedades, épocas e do-'
cumenlações abordadas,.a estratégia de pesquisa de inspiração antropológica
que se volta para otem a da escrita tralou sempre de mostrar a relação entre 0
escriLó e o oral como algo extremamente complexo, como o'é, mais em geral,-
a iclação entre.as formas de registro e as de comunciação.-Fê-lo,numa pers­
pectiva de alerta contra os esquemas explicativos etnocêntricos. A escrita não
e algo fácil de definir; e nossas noções preconceituosas a respeito não podem
ser transferidas a outras situações sociais e históricas, em que outros tipos de"
relações entre 0 escrito e.õ oral existiam, servindo a propósitos também dife­
rentes daqueles que podem ser detectados nas sociedades ocidentais contem- '
porâneas. Ná verdade, a escrita e as práticas a ela ligadas não passam de uma
parle de algo mais geral: 0 conjunto dos mecanismos de controle que algum
foco de poder trata de exercer sobre a sociedade, ou sobre parcelas dela. Tan­
to é assim que, às vezes (sendo este 0 caso dos pictófda Escócia antes da in­
trodução da escrita pela Igreja, ou 0 da Escandinávia pré-viking), tais meca­
nismos de comrole passaram yo r outros tipos de sistemas simbólicos que não- ;

202
O dos textos escritos, cujo monopólio cumpria funções similares as da regula­
mentação da escrita em sociedades onde a oralidade permanecesse aluda for­
te - caso este último, em especial, da Antiguidade Clássica.

DA ETNÓGRÁpIA DA LEITURA • / '


A UMA HISTÓRIA DÀ LEITURA ,

: Em sua vertente etnográfica e antropológica propriamente dita, podem


perceber-se qlgumtts caracerísticas centrais nesta corrente. Como já ocorria no
caso da Etnografia da escrita, a da leitura trata de demonstrar que o orafc o
escrito, longe.de constituírem pólos irreconcilíáveis de uma dicotomia sim­
ples, interagem.de modos complexos e multidireçionais.-Com muita freqüân-
cia'ocupa-se também com a desmistificação do estereótipo do leitor ihdm -,
d uai isolado, mostrando que qualquer leitura, mesmo aquela silenciosa :C fei­
ta na intimiditde privada, está incrustada no social; além de ocupar-se com a
demonstração dc que em todas as sociedades, sem excetuar a nossa, muitos ti­
pos de leitura são-feitos em grupos, coletivamcnte. Em suma, em ambos ps ca-
■sos, do que se trata é combater a noção de que todas as sociedades progridam
ao longo de uma seqiiência universal que conduzí ria da oralidade à possibili­
dade de ler, na qual o ápice da capacidade de lér viesse á ser a leitura privada
e silenciosa levada á cabo em caráter individual e isolado, < .

5 Eis aqui alguns exemplos de trabalhos marcados pelas perspectivas da etnografia da


escrita- GOODY, Jack.T/ie logic ofwriting and the OTganfzalio.il oj socict)'. Gambnd-
' oe* Cambridge Universíty, Press, 1986; BOTTÉRO, Jcan. A escrita c a formação da
inteligência na Mesopolâmia antiga, In: BOTTÊUO, Jeart et al. C u lm ra , p a m t m m -
to e escrita..Trad. Rosn M, Boaventura e Valter L. Siqueira. Sao Paulo: Atica, 99a.
■ p. 9-46 (o original em inglês foi publicado em 1987); HERRENSCHM1DT, C mis­
se. Eecritiiie entre mondes visible et invisiblc en -li im, en lsraêl,et civ.Grèce. In..
BO T ltR O , Jcan et ai. L’O r ic n i aiicien el noíis: Cécriture, la raison, les dieux. Paus;
Albin Michel, 1996. p , 93-188; GLEDT11LL, J, et al. (Org.). S ta te a n d society: The
emergencc and dcvelopment óf social hierarchy and political centrabzation. bon­
dou; Umvin Hyman; 1988. p. 173-276 (diversos artigos formando a terceira parle
do iivro, intitulada “The ròle o f writing in thc .development of social ajid political
poiver"}; BÜRKE, Pefor; PORTER, Roy (Org.). H istória social d<) linguagem '; Trad.
. ■. . Álvaro H attnfer. São Pardo: Ed. da Unesp; Cambridgè: Cambridge Umversity
, Press, 1997 (a ed. em inglês é dc 1987). .
Outro foco da Btnografia da leitura é a insistência cm que, apesar do
que foi diIo acima, o talado, o escrito, d ouvido e o lido implicam técnicas di­
ferentes: nao existe uma inter-relação anárquica (e, muito menos, democráti­
ca) entre os diversos níveis. Em especial, o oral e o escrito/lido vêem-se envol­
ver em relações de poder que os organizam em distinções e hierarquias, o que
é especial mente importante em sociedades, como as da Antiguidade Clássica,
por exemplo, marcadas pela presença contínua e insistente da oralidade ainda
predominante. No caso dos textos etnográficos stricto $én$it, ou seja, baseados
em trabalhos de campo, muita atenção é prestada às questões das estratégias
culturais do colonialismo e do neocòlónialismo, bem como às tentativas de
conti alegttimaçao dc parte dos grupos dominados,'por vezes cooptadas ou
abortadas pelos poderes coloniais ou neocoloniais. Como no primeiro ponto,
o esforço c, aqui, de substituição de dicotomius objetivizadas por um enfoqdé
piocessuul. Existe também a determinação, pós-moderna em sua natureza, de
tentar apagaras fronteiras e diferenças entre teoria e descrição, frequentemen­
te no mterior de uma concepção geertziana favorável à “descrição densa”, em
paralelo à negação de teorias globais em favor de “saberes locais”: atitudes, e s-
ias, coerentes com o “politicamente correto” de um multicukuralismo p o iu -
lado como valor absoluto. Pela mesma razão, muito esforço e gasto para tra­
tar de mostrar que os modos ocidentais correntes de encarar a questão do oral
e do escrito são, na verdade, peculiares, estando muito distantcs.de qualquer
possibilidade de aplicação universal.6 ^ :
Passando agora para a leitura como tema da. HistórUv Cultural, se bem '
<|UC nao ocomi l -ma niudança radical dos princípios e ainda que reconheça­
mos continuar na mesma grande tradição epísldmológíca e teórica, o santò '
patrono, o “grande precursor”, muda, passando de C eem para Micbel de Cer-
leau, Esta mudança traz algum reordenamento das ênfases,
São dois os pontos buscados em de Certeau e transformados em pos­
tulados: 1) a distinção que seria preciso estabelecer entre o texto escrito (clu-,
nível, tko, conservador) e suas leituras'(efêmeras, plurais, inventivas); 2) a
al irmaçao de que o texto só adquire significação ao ser lido* mediante as pró-
j>rias leituras que o transformam e ordenam segundo códigos variados deper-

Vcr o, volume coletivo: «OYARIN, Jonatlum (Org.)! T h e e th n o m P h y o f r c a d n m


Lteikeley: Umversityof Caiitorn ia Press, 19931 • . . ^

204
cepção sobj c os quais o autor (e o próprio texto) carecem de qualquer contro­
le: um texto só. o é de fato num a.relação com algo que lhe c externo, o leitor,
o qi!e implica um jogo complexo entre o nível da literalídadc textual .passível
de leitura (uma virtualidade) e aqtiele da abordagem çonslituídapela(s) leítu-
ra(s) (uiiià realidade).7 . • .. . .
Quais os sentidos ou intenções metodológicas inscritos nesta opção
por postulados retirados de Michel de Certeau? Km primeiro lugar, afastar-se
das concepções da Linguística c da Semiótica discursivas ou textuais: afirmar,
portanto, que a leitura não depende difelamente do texto, não está msenta
- nele em forma simples.euiiívoca. . .• ., ■ , .
■. Note:se que houve outras tentativas de solucionar esta questão, no m-
teriòic da própria Semiótica, tomarei como exemplo a noção de narratividade,
como é exposta pelo semiotista norte-americano Roberl Scholes.. Este propoe
úm uso do termo narratividade num sentido muito distinto daquele que lhe
atribuem os teórícoSÍranceses. Para estés últimos, a narratividade é úma pro­
priedade dos próprios textos (semióticamente considerados: tanto pode se
-tratar de romances quanto de filmes, por exemplo). Para Scholes, narrativida-,
• de é “q processo pelo qual aquele que os perççbe constrói aUvamentc uma his­
tória a partir dos dados ficcionais providos por qualquer meio narrativo”*Isto
é: um texto narrativo é uina narração; mas só se constrói lima histó ria- um
•relato - na medida em que, à forma cm que tal texto nos guie (como leitores,
comò espectadores); venha somar-se nossa própria narratividade, que tratara .
•de completar o processo coiidücentè a uma história.
Scholes aceita o caráter,culturalmente determinado da narratividade,,
^ mas também acha que, no mündò ocidental contemporâneo, a cultura da rnr-
'ratividade é suficientemente homogênea para que as generalizações sejam possíveis.
: Estabelece uma contraposição da narratividade envolvida ao tratar-se
de leitores de romances e de .espectadores dc cine. Em ambos os casos, existe
uma tradução passiva ou automática de convenções semióticas em elemento^
inteligíveis e, paralelamcníè, um rearránjo ativo ou interpretativo dos Signos

.■. 7 CERTEAU, Michel de. U ittv a itio n . <iu q u o tld ie n i Arts.de faire. Pans: Gallimard,
198Ü. v, I,p. 251,247., \
/ .§ SCHOLES, Robcrt. Seiniolics riúd iuterprefatiofU New Haven: Yale University Press,
1982. p. 60. ■ - ■■

205
textuais em estruturas significativas (sendo este o aspecto quede fato interes-
sn a Scholes). O modo em que isto d teilo difere, porém, devido às próprias na­
turezas intrínsecas do texto ficcional escrito (romance) e do filme encarado
como texto. No caso do romance, uma boa parte do texto envolve descrição e
lellexno: por tal razão, a parle ativa da narratividade tem de voltar-se para as
tareias da visualização. Em forma simetricamente oposta, no caso do filme a
visualização não formula problemas a quem o está assistindo: a parte ativa da
iinrrniivkb.de do espectador deverá ocupar-se do calegorial e do abstrato, pois
estes são necessariamente pobres (mesniò nos filmes mais intelectuaüzados
que utilizam, por exemplo» narrações em ojfpara tratar de transmitir concei­
tos) -m u ito mais pobres do que é possível conseguir na ficção escrita - pela
própria natureza do cinema. , .
Voltando à perspectiva da História Cultural da leitura que reconhece
derivar de certas idéias de Michel de Ccrteau, trata-se de uma linha de pesqui­
sa que porá a ênfase lias formas, circunstâncias é modalidades em que os tex­
tos são recebidos-e, no vocabulário cie Charticr, apropriados por seus leitores;
ou por seus ouvintes, levando em conta a já mencionada inter-relação entre o ‘
oral e o escrito. Parte-se sempre de uma insistência no caráter ativo dos lei to-
res/ouvintes nos processos que envolve oii supõe aquela recepção/apròpriação.
* ^ ste aspecto cia questão permite um deslizamento sutil do objeto de es-
ludo. Este, pela lógica global da opção metodológica que!expomos, deveria
ceutrai-se nã questão da apropriação vista em setts conteúdos,.isto é, nos diver­
sos sentidos que diferentes formas de ler atribuem ao que é lido. Mas isto é ex-
1rema mente difícil de estudar: até mesmo na atualidade, ainda mais no tocan­
te a períodos recuados. Por tal razão, é frequente que se.substitua tal ênfase pqr
outra, que se dirige às formas, circunstâncias c modalidades em que os textos
circulam e são lidos. Para a Antiguidade Clássica, por exemplo, á ultima possi- - ■
bilulade e mui to mais fiícil de documentar, pos k> que há tnalerial arqueológi­
co e iconográfico s uficicnte para, assoriandó-o a um material escrito bem mais
parco acerca de tais aspectos, estudar as formas que o livro manuscrito e a ma­
neira de nele escrever tomaram ao longo do tempo, bem como as posturas, ges­
tos e contextosque a leitura envolve (individuais, coletivos; uso do corpo ao ler;
leitores só masculinos ou também mulheres, representadas lendo; leituraC-m .
voz alta por uma pessoa em presença de outras ou leitura por uma pessoa iso­
lada etc.). Vimos, entretanto, que, mesmo no relativo aos Tempos Modernos,

206
nota-se às vezes o mesmo tipo <le deslizamento .entre a proposta melodologica
e a realização, coisa que loi exemplificada com Roger Chartieiy muito mais, na
pratica, uni autor voltado para a história do livro como objeto do.que para os
conteúdos tfiesmos da apropriação daquilo que é lido, apesar de suas declara­
ções de método que levariam a esperar outra coisa.
' : A História da leitura, vista rí a perspectiva de uma História Cultural do
tipo da nouvèile histoirc, pós-moderiia pelo menos quanto a algumas escolhas
básicas, leva a uma crítica.,das perspectivas de uma História Social da leitura
que partisse, por exemplo, de conceitos como o de classe social. Isto, aliás, não
é novidade: para a História Cultural, a. realidade é “construída culturalmente
é “as representações do mundo social” é que são “constitutivas da realidade so­
cial” Em suma; abandona-se uma His tória Social da cultura, considerada redu-
cionista, em favor de uma História Cultural dó sôciàl.’ GmcreUanente, isto.sig- ...
■nifiçará uma Inversão nas opções de recorte do objeto em História da leitura: _

A perspectiva prcéisa ser invertida, devendo Icicaliàir qs meios òu ai « m u n id a ,


des que partilham uma mesma relação com o escrito. Partir assim da circulaçno dos
objetos e da identidade dás práticas, e não das classes ou dos grupos, leva a rcmnhd-
" cer à multiplicidade dos princípios dc diferenciação que podem explicaras distân­
cias culturais: pòr exemplo, as propriedades de gênero ou.de geração, as adesões re­
ligiosas, as comunidades solidárias, as tradições educativas ou corporativas clc.

Isto, justamente, c que definiría as já mencionadas “comunidades de


interpretação”. _’

'‘CONCLUSÃO '
Com grandes variações de qualidade em suá realização em pesquisas,
também com variantes perceptíveis, os enfoques de diverso? tipos que podem

9 Entre os historiadores; o artigo mais influente hum sentido progvamátieo ou meto­


dológico, dentre os què adotam uma tal perspectiva, é, provavelmente,« «egumte.
CHART1ER, Rogei'. Lê monde cotnme représentatjon. A n tu n e s, 44, p. 1,50. • .5 ,
nov./déc. 1989., .
10 . CAVALLO, Gliglielmof CFIÁRTIER, Roger. Introdução; In: CAYALLO, Gugliejmo;
CHARTIER; Roger.(Òrg.), História dti Içilum no vutndo ocidental, tra.cl. rulvia JVl.
L. Moretto et al. São Paulo: Átíca, 1998. v. 1, p. 5-40 (a citação é da p. 8). (Ed. on-
: gínàl simultânea em francês e italiano, 1997) ' • :

. '■ " . ■■ . ' ’ . 207


- V
.scr genericamente reunidas sob a designação de Antropologia ou Gtnografia
‘ " CS; nlí' Cdf ldlura vê,n formulando perguntas e respostas novas acerca das
ic ações oralidade/esaitá/leitura. Indepencienlemente cia aceítaç<ão ou não
dos postulados epistemológícos que estão implícitos (ou, mais raramente, ex­
plícitos) nesle novo campo de estudos e indagações, ele já conseguiu banir a
ingenuidade - mio tão inocente, assim - com que, num passado ainda bem re-
ceute, enim tratadas, num sentidoiclaramente evÓlucionista e etnocêntrico,
( te o to n u a s do, ttp o da q u e o p u n h a p o la rm e n te a o ra lid a d e à escrita, o u o e r u ­
d ito ao p o p u la r," - , ' . ■

, Unui ol’° « |agem a n tro p o ló g ic a d e tip o p ro cessu al o u e íe tiv a m e n te his-


Id n ca d a q u estão p e rm ite v islu m b ra r u m p a n o ra m a m u ito m ais c o m p lex o d o
quC se ,pcuSiU'a; <Vao m e sn ’° tem po, b em m a is in teressan te. E n tre ta n to , m i­
n h as p ró p ria s o p çõ es teóricas e m e stu d o s d este tipo, o u an álo g o s, se ria m m u i­
to c i(crentes, c o m o pro v av elm en te se p e rc e b e rá ao le r òs d o is ú ltim o s c a p ítu ­
los desta antologia.

ii
Ü! i ' 1Sa° ln,el'cssante accrc:1 de cüm° encarar o «popular” e o «formal», como ela
pretere dizer,acha-se emiJOLLY.Karen Louise. P o p u la r re U y o n in tale4riglo-S< m > i
- tn $iand- Chapell Hill: The ünivcrsily ofNorth Carolina Press, 1996.càp. t.

208
Capítulo 10

H istória das religiões

. AS DISCIPLINAS ACADÊMICAS QUE SE .. ">


OCUPAM DAS RELIGIÕES. ^ /
OU: MULTIPLICANDO DISCURSOS EM VOLTA-
DA TEOLOGIA PARA DELA EVENTUÁ.LMENTE. -
ESCAPAR EM NOME DA CIÊNCIA
. As definições"<lo termo religião nos '.dicionários de lmguas modernas
• costumam ser pÇrifrásticas, ãs;vezes preconceituosas; 6u são genéricas a pon­
to de tornar-se inúteis. Qualquer religião que observemos é úm sistema de
crenças e práticas que nos parece intuiüvamente semelhante a outros sistemas ~
também considerados religiosos. Mas aséric integrada por todos eles não tem
limites nítidos. Por vezes, a definição parte de uma religião que se toma com o'
referêndar elemeiitos comuns se estabelecein por comparação e são então usa-
: dos para aquela definição. Mas tal processo é arbitrário e artificial. >
•. A palavra religião, no singular, é abstrata; em qualquer período d o c u -.
menlado, sempre o que se encontra!são religiões. No singular, o termo pode
denotar: 1) a classe á que pertencem todas as religiões; 2)'a essência qüè seria
supostamente comum,a todos os fenômenos religiosos; 3); o ideal de que to­
das as religiões - ou algumas por certo motivQ Consideradas “superiores - se-
rianv manifestações imperfeitas; 4) a religiosidade humana expressa em siste-
ii ms ou tradições (religião explícita) ou cm modos de vida em que está ocul-
la (religião implícita).1 • '
O problema é que as definições,tendem a ser. avaliadoras, baseadas no
compromisso, portadoras de juízos de valor. Tomemos a frase em que Trevor
Ung deline o que seja "religião”: ■. '

(...) muitas e variadas formas em que'0 ser humano manifesta estar consciente cia
, existência de uma dimensão diferente da temporal e “material”.23

k J

Uma definição como está, ao a tribuir a religião ao "ser humano” como


tal, sem restrições— isto é, a tòdos os seres humanos parte,do liómo reiigio-
stis, ou seja*da hipótese (indemonstravel) de que os humanos sejam religiosos
em sua totalidade ou por sua própria natureza; e a formulação da definição
parece dar por assentado que “uma dimensão diferente da temporal e ‘mate­
rial’ ” seja algo incontrovertivelmente existente, o que está longe de ser uma
veidade consensual, aceita por quaisquer pessoas. Bnrsuma, trata-se de uma
definição que só seria aceitável no contexto do um discurso em si religioso —
cia Teologia, portanto. ’ . •: • . . . ■r, '
fim razão de problemas assim, às vezes se preferem definições funcio­
nais. Uma definição funcional do fenômeno religioso é aquela que busca com­
preender a religião pelo que ela faz ou pelos efeitos que produz, mais do que
leiilar defini-la em si mesma. Dentre as definições funcionais propostas pot­
es pecialistas na História das Religiões, prefiro esta, dc Ângelo Brelich:

[Incluímos no fenômeno religioso] crenças, ações, instituições, condutas etc.,


as quais, apesar de sua extrema variedade, pareceram-nos constituir os produtos de
1,111 hp*-* dado de esforço criador realizado por distintas sociedades humanas, me­
diante o qual estas pretendem obter o controle daquilo qiie, eni-sua experiência
concreta da realidade, parece escapar aos meios humanos réstantes dc controle.1 •

1 HINNELb, John R. (Org.). D icionário d o s religiões. Trad, Octavio Mendes Cajado.


■São Paulo: Cultrix, 1995. p. 217. j
2 LINC, Trevor. Liis g ra n d es n lig ie m e s d e O r íe tk e y Ô ccidente. Trad. Eduardo Cha-
morro. Madrid: istmo, .1972.1: Desde Ia Prehistoriú hasta el auge dei Islám, p. 13,
3 BREI.JÇH, Ahgelo. Piolcgómenos a una historia dé. Ias. reiigiones. in: PUE&H,
Henr i-Charles (Org.), Las roligiones a iiiiguas. Ivladrid: Siglo XXI de Espafta; 1977.
* h P* áO-97 (aceitação é da p. 67). v. 1r Historia de Ias religiones Siglo Veintiunol

2 lü
' Os alemães chamam de Religípitswisscnscluíft a disciplina que seria,
como o nome indica; uma “ciência da religião . Na verdade, trata-se de um con­
junto de disciplinas; 1) História das religiões; 2) Religião comparada; 3) Feno- t
menologia da religião. História dás religiões é a trajetória, no tempo, dos siste-
, •, mas religiosos; ou o estudo de tal trajetória. “Religião comparada” é nome um
tanto enganoso e impróprio de uma disciplina que se ocupa em descrever c
classificar muitas religiões, observando as semelhanças ê diíerenças entre elas.
Quanto à Fenomenologia da religião, é o estudo ordenado dos faíômenos.
(aquilo que aparece) religiosos, feito deixando-se de lado todas as suposições a ... ■
" respeito da verdade ou lalsidáde das crenças específicas e da realidade dos ob­
jetos da experiência.religiosa. Trata-se de üm método de desenção e entendí-
, ' mento - não de explicação com suspensão de juízos, pretendendo deixar qüe
os fenômenos falem por si mesmos, Um dos setls especialistas principais é Mir-
. cea EÍiáde. A fenomenologia da religião, típica fia Escóla de Marburgo e de seu
prolongamento na Escola de Chicago, baseia-se numa antropologia (no senti-
dó filosófico do termo) cujo substrato seria.o hotrn rçligiasm: a perspectiva é .
morfoiôgica, buscando uma tipologia genérica e descritiva das formas.e práti­
cas religiosas.'1 . ' ,s . 'v ' •
' '■ 1 ' : As ciências das religiões são tentativas de aplicação de algumas dasciôn- ,
cias sociais —Psicologia, Sociologia, Antropologia aos aspectoá' religiosos das
sociedades humanas ou dós indivíduos. A.Sociologia da Religião teve inicio, no
séculol9 c início do século 20, com forte- viés funcionalista. Émile Durkheim
(1858-1917) foi um de seus grandes expoentes, encarando as religiões sobre-, .
■ tudo enquanto fator de autopercepcSo e estabilidade das sociedades humanas,
centrando-se na noção do “sagrado”, na dependência de uma teoria dá socie-:
•cíade como fato moral. Max Weber (1864-1920) introdnziu um método m ais.
comparativo1para o entendimento dás religiões, que’aborda va em especial a -
partir do ângulo da ética e da ação decorrente de uma orientação não-num- ,
dana, na dependência de sua visão da Sociologia como um estudo centrado no ■ ..
significado e na ação. Depois da Segunda Guerra Mundial, a Sociologia da Re­
ligião esteve especialmente interessada.em çoisas como o. estudo (as-vezes4

4 GOMES, Fràncisco José Silva. À religião como'objeto cia História. In; LIMA, Laná
_ • Lage da Gama et al. (Org.). H istó ria > religião; Rio de Janeiro: FAPERJ/AN-
PUH/Mauad, 20(12. p. 13-24.

211- / •• ■

'i , , >
\
quantificado) cia pratica religiosa e o avanço da secularização nas sociedades
contemporâneas, A Psicologia da Religião, iniciada por volta de 1890, preocü-
pa-se com a experiência religiosa dos .indivíduos, em temas comb conversão,
oiaçao, misticismo c estados anormais da mente. O desenvolvimento da psi­
canálise trouxe várias linhas, como a freudiana, com ênfase no caráter ilusório
da religião, ou a junguiana, que concede grande importância aos sonhos, fan­
tasias, mitos e símbolos. A Psicologia Social cia Religião, menos praticada, ini-’'
bi ica-se na Sociologia, A Antropologia da Religião de início aplicou-se a temas
como a religião pré-histórica e as religiões ditas “primitivas1. No entanto, a
Antropologia, em religião como em outros aspectos, debruça-se crescente-;
meule sobre as sociedades ocidentais, incluindo as mais avançadas. O esforço
outrora despendido, íiuma perspectiva evolucionista, para achar.a “origem da
icligiao já não ocupa o centro das atenções antropológicas:-os especialistas ■
voltani-sc mais para o estudo, em culturas específicas, da natureza e-da fun­
ção dos símbolos,..do mjto e do ritual. Mesmo antes do.advento cio pós-mo-
dei nisino, a Antropologia Social já manifestava forte propensão á substituir a
ênfase nas estruturas por uma insistência nas ações ou práticas. \
Os estudos religiosos com bastante freqüêncía estabelecem tipologias
como modo de operar. O pioneiro nisso foi Heinrich Frick (1893-1952); Al-
gmnas das tipologias mais comuns.são as que opõem as religiões reveladas às
não-reveladas, as religiões fblk às universais,.-havendo também tipologias ter-
nárias (religião tribal/nacional/mundial. por exemplo). As tipologias podem
ser estruturais.ou históricas. Valem o que valerem a teoria eas hipóteses (mes­
mo implícitas) de; que derivam: sempre. .
Existe, também, uma Filosofia da Religião, -quando os métodos filosófi­
cos são aplicados à reflexão crítica a respeito de pronunciamentos religiósps.e
pretensões ao conhecimento de base religiosa, bem como ao considerar-se o
pensamento religioso cm relação a outros inodos de pensar. A Filosofia da Re- ■
ligião não tem a ver com a expressão e,defesa de convicções religiosas —tare- '
Ias tia Teologia e da fdosofia religiosa que lhe serve de'instrumento - mas, siní,
consiste numa forma de pensar a respeito de tais convicções:-O filósofo da rc- -
ligião aplica técnicas lógicas ou analíticas ao estudo da natureza e do sentido
da linguagem reiigiosa,bem’ como do status das crenças religiosas. No Ociden­
te tal disciplina se ocupava, no passado, exclusivamente com o Cristianismo;
boje em dia seus interesses costumam ser bem mais gerais e universais. '.

212
Por fim, a Teologia, discurso religioso acerca de Deus, define a si mesma
como a ciência que trata do divino, O pensamento ocidental a respeito costu­
ma distinguir duas espécies de Teologia: a natural, acessível à razão humana,
e a revelada-, decorrente da revelação divina. Assim, a.Teologia ocidental de
base cristã tem afirmado que b entendimento da natureza e da existência de •
Deus, por um lado, do dever, da liberdade e da imortalidade do homem, por
outro, pode scr obtido, seja por intermédio de uma reflexão racional sobre o
mundo, seja mediante uma revelação divina. Um dos elaboradores deste
modo de ver - contestado por oulrqS - foi Toniás de AquÍno (c 1225,-1274),
o qual admitia que algumas conclusões válidas podem ser alcançadas pela ra- *
zão, mesmo se a revelação é que provê as normas do entendimento correto. (
Chama-se apologêtica o emprego dos argumentos da Teologia Natural para
defender a racionalidade das crenças religiosas.5
' pjas universidades européias e norte-americanas, por títuilo tempo Re-
' ligião Comparada significou, como discipLina, o estudo das inter-relações en- .
Ire os principais sistemas do pensamento religioso e o estudo da forma em que
se difundiram os temas e idéias religiosos, já que, em religião, existem múlti­
plos vínculos entre as grandés tradições. Assim, o judaísmo viu-se afetado
pelo zoroastrismo; e ambos contribuíram para o islamismo. Ò Islã, em sua ex-
pansáo em direção ao Oriente, acelerou a extinção do budismo na índia e, por
sua vez, sentiu a influência do hinduísmo. Ao atingir a índia partindo da Eu­
ropa, o, cristianismo teve efeitos sobre o hinduísmo do século 19 e sobre os
movimentos renovadores islâmicos; ém Sri Lanka, agiu como um anticoipo,
. esti mulando o budismo a quê recuperasse suas próprias idéias intrínsecas. Nas
décadas recentes, o pensamento religioso asiático marcou á teologia ocidental.
Nos últimos tempos, tratou-se de ultrapassar em Religião Comparada
uma- siniples análise comparativa das idéias religiosas e suas difusões e in­
fluências rècíprocas. Isto, ocorreu pela imposição de uma peispecliva mundial
como padrão e pela influência de disciplinas com óa Antropologia, a Sociolo-,
gia e a Filosofia da Religião —as quais, no entanto, em si mesmas raramente
têm um.escopo tão vasto assim no Ocidente: com frequência se ocupam mais

5 HINNELS, John lê (Òrg.J. D i d m í r i t ) lias religiões. Trád, Octavió Mendes Cajado.


São Paulo: Culuix, 1995. p. 262.

213
do cristianismo. Um dos especialistas contemporâneos, TreVor Ung, defende,
em |>l imeira aproximação, um modo de trabalhar que sc podería chamar de
Filosofia c Sociologia comparadas das religiões numa perspectiva mundial. .
hm seguida, porém, o autor precisa que, em sua opinião, não basta. Pa-
roce-lbc que, para ser frutífera, a comparação não pode tratar as tradições re­
ligiosas como blocos monolíticos'imutáveis. Assim, propõe somar às compa­
rações uma aproximação histórica. Por exemplo, se se quiser comparar o Islã
com qualquer outra coisa, é preciso levar em conta temas#como os seguintes; *
não se pode compreender adequadamente a religião dê um imigrante paquis-
lanês na Inglaterra pensando unicamente no que,significou o. aparecimento
do islamismo em Mecafe Medina no século 7, posto que Çal religião, no Pa- ’
quistão atual, é herdeira também de séculos de desenvolvimento islâmico no
subcontinente indiano, os quais lhe imprimiram características próprias edis-
tinlivas, sem por isto ela deixar de ser reconheeívelmente uma forma do isía-.
i"isim>. Em suma, a História é necessária até mesmo para abordar um tema"
tão contemporâneo quanto o que foi indicado.6
Exemplificando com'o budismo, objeto de seu estudo, Trevor Líng
apresenta argumentos a favor da aplicação'a tal sistema religioso, de uma
perspectiva histórica. Ele a opõe ao que chama de “enfoque literalista”, oú
seja, a maneira de ver em que os discursos atribuídos ao Buda sejam enca- .
fados como proposições a enlendér-se Íiteralmeiíte.em si mesmas, cm sua
lógica intrínseca, sem qualquer referência necessária ao contexto era qüe •'
foram enunciados. A maneira contrária de agir meto do logicamente seria o
enfoque “histórico-crítico”: os discursos em questão São relacionados à si­
tuação histórica em'que foram articíilados*, na medida em que for possível
reconstituir tal situação, já que se trata de um período pobremente docü- •
mentado da História da índia, A atenção não é dirigida somente ao signifi­
cado Intrínseco dos enunciados, mas ao fato de que se destinavam a ouvin- 1
les determinados, num contexto dado e concreto. Para avaliar o peso a con­
ceder a pontos específicos do que foi afirmado (segundo se crê) por Buda, '
é útil recordar que aquilo não foi dito num vazio e, sim, a uirqj audiência
específica. A natureza desta, seu nível de compreensão, seus preconceitos e

6 Cf. LING, Trevor. L o s g ra n d e s religiones d e O r ie n te y O çcid cn tc. Trad. Ed uardo Cha-


morro. Madrid: Istmo, 1972. l, p. 11-21. '

214
idéias assentadas, adUiralntente determinados, devem ajudar a separar o
mais durável do mais efêmero, aquilo que explica que o budismo pudesse
ao longo dos sécUlos continuar falando a Sucessivas gerações muito diferen­
tes daquela da época do fundador, ntas também que algumas partes do con­
teúdo de seus textos canônicos em outros períodos.pudessem parecer, niti­
damente ultrapassadas (sua misoginià, por exemplo, alguns aspectos de
seus preceitos morais etc.).7.. .

SERÁ MESMO POSSÍVEL TRATAR Á BÍBLIA


COMO QUALQUER OUTRO TEXTO? OU:
ESCAPAR DA TEOLOGIA É MAIS
DIFÍCIL DO QUE PARECE '
Em 1987, o doutor em Medicina e egiptólogo autòproclamado Mauri-
çe Bucaille publicou um livro sobre as múmias dos faraós examinadas' do pon-,
to de vista médico, qiie consultei ria tradução para inglês de 1990. Mas será
que se trata, mesma, do que indica ó título? já na Introdução do volume, co­
meçamos a duvidar disso, ou pelo menos de que seja aquele o assunto princi­
pal dá obrai quando lemos o relato dò autor sobre as suas impressões ao con­
templar pela primeira vez, no Museu do Cairo, a múmia do faraó Ramsés II
(1279-1213 a.C.): ‘‘ ' 1 ' '

■ Aqueles olhos [os de Ramsés II - C.F.C.] haviam permitido que um tíõs maio­
res soberanos dá Antigüidade vissem uma das maiores figuras da história relígio-
' sa - Moisés. Moisés foi uma das poucas pessoas que receberam diretjimcntc de
Deus rima comunicação contendo ordens para Ioda a humanidade, um ensina­
mento que sc acha'nas doutrinas sagradas tanto dos judeus quanto dos cristãos e
dos muçulmanos. Tendo olhado para aqúelás pálpebras fechadas, tive a certeza,
sem sombra de dúvida, dc que Ramsés II cophecera Moisés pessoalmènte.*

7 LlNG,Trevor. T h e B u d d h ih Harmondsworth: Penguin.Books, 1976. j>. 21-25.,


- 8 BUCAILLE, Maurice. Muinmies of the pharaohç Modern medicai investigadons.
Translatcd.by A. D. Parnell and Maurice Bucaille. New York: St. Martin’s Press,
' . 199ü.p.X. • .(
Seria o caso, já aí, de perguntar: tendo obtido ama certeza imediata
peía simples contemplação da múmia, e convencido como estava o autor de
<|iie aquilo que se lê no cpie ele chama de Sagradas Escrituras a respeito da
Opressão de Israel no Egito e do Êxodo subseqücnte, temperado com algumas
piladas do Alcorão e de uns poucos documentos egípcios mal interpretados,
seja a pura verdade em todos os seus detalhes (salvó algumas datações què não
lhe convêm), pata que molestar-se em pesquisar?! A resposta é óbvia: para tra­
zei' a (ais Escrituras uma comprovação pseüdoeientífica r no caso, médica.
1 ,$em ler tido acesso direto, cómq reconhece, à múmia de Merneplah (1213-
!2()‘l a.C.), filho e sucessor de Ramsés II, o Dr. Bucaiíle no entanto conclui, à
base <lc.íbtpgrafias dela feitas no princípio do século 20, que o faraó morreu
de ferida que lhe foi infligida quando perseguia òs hebreus por ocasião do
Êxodo, ou taivez afogado tiô Mar Vermelho, terido seu cadáver, no entanto, íi-
catlo pouco tempo na água... Mesmo sê o autor nos provasse,-comò médico,
ler o faraó morrido em combate, o que no contexto da cronologia conhecida
do seu reinado não parece plausível, de que modo tal tato provaria adiciona!-'
mculc, na ausência total cie outras fontes, que tàí morte teve algo a ver com o
Êxodo - um episódio que só conhecemos mediante ò rela.tó bíbüco, cuja fixa­
ção por cscrílo, seja qual for a'tradição crítica que se.seguir a respeito do Pen-
íalcuco, foi extremamente tardia em relação ao sécujo 13 a.C., c sobre o qual
os documentos egípcios disponíveis absolutamenle nada informam?! E no en­
tanto, o Dr. Bucaiíle diz. taxátívamente que “os dados religiosos e egiptológi-
cos combinados” tornam a idéia de ser Ramsés 11 o faraó da Opressão e Mcr-
neptah o do Êxodo a única hipótese defensável; agrega também ao coquetel,
claro, dados médicos obtidos sem o exame direto da múmia dc Merneptah.9
Até aqui, nada de inédito: mais uma dé tantas obras pseydocientíficas e
pse ucio-egtp tológicas qu c çiiberiám mais exátamente no que hoje se chama de
ligiptomania, qu na lista dos escritos de exegese bíblica feitos em forma pouco
■séria, de que há itifeüzmcnte muitos outros. Entretanto, a coisa muda de figu­
ra quando observamos que Ntcolas Gíimal, um egiptóiogo dotado de creden­
ciais muito mais sólidas e reconhecidas do que .o Dr. Bucaiíle, nó entanto cita

9 BUCAIUJB, Maunce. Aiuxumtes of the pharaohs: . Modern medicai invèstigatioõs,


Translated b y A . D. Parnell and Maurice Bucaiíle. New York: St. Martin’s Press,
1990,p. 145:155.: ' :

216
este último - e só ele - como autoridade para formular a possibilidade de ter
Merneptah morrido perseguindo os hebreus quando do Êxodo, se bem que se
distancie até certo ponto desta'opinião quando diz :qúc isto seria assim 1para
algitns”.10 Ou ao vermos que Chtistiane Desroches Noblecoqrl, egiptóioga de .
grande prestígio (aliás, a principal bêtc nóire do Dr. Bucaiíle ehi função de epi­
sódios vinculados aos trabalhos de preservação da múmia de Ramsés II em Pa­
ris), dedica, cm seu livro sobrè Ramscs II, váiias páginas ao Êxodo, mesmo ha '
ausência total de fontes a respeito que não sejam as do relato bíblico, que elá
glosa, tratando até mesmo de racionalizar as “pragas do Egito”, cuja existência
aparentemente aceita com pequena precaução retórica, pois, em dado ponto,
afirma (minha ênfase): “Moisés..., tornando-se ameaçador, cobre, parece, o .Egi­
to de pragas diante das qúais o soberano é obrigado, afinai de contas, a incli-
nai-se”.11 Reconhecendo ele também; a total ausência de fontes independentes,
Kennelh A. Kitchen não deixa por tal razão devreferir-sc ao Êxodo ppr sua vez,
mediante uma simples glosa do texto bíblico; e o faz, afinal de contas, reconhe­
cendo-o como se fosse um dado histórico concreto.1213Talvez seja bom recordar
que a primeira menção histórica indubitável de Israel, numa esteia do ano 5 de
Merneptah, é como um dos povos vcncidos#pelcffaraó na Palestina, por volta
' de 1208 á.C. Nada, absolutamente, há antes disso.1’
Face aos dados de feto disponíveis e a escritos como os mencionados, a
atitude metodologicamente correta, a meu ver, é a que assume Donald Red-
ford quando afirma: . .

1 0 C RIMAL, Nicolas. H is to h e d e 1 'E g tyle u rc ie n n e . Paris: Eayardy 1988.p. 316.- •


11: DUSROCHES NÒBLECOURT, Ghrisliane. R p m s is I h I.a Véritable histoire. Paris:
Pygmaiion: Gérard Watelet, 1996: p. 248-256. (X também, muna veia mais cética:
' LÁLOUETTE, Claire. V e m p i r e â t í R am sés. Paris: Fayard, 1985. p. 259-262.
12. KITCHEN, K. Ã. P haraoh tr íu in p h a n t: The life and times o f Ràmesses 1!. Warmihs-
ter; Aris & Phillips, 1982. p. 70-71. Em seu dicionário histórico do antigo Egito.,
Bicrbrier achou necessário incluir um verbete sobre' o Êxodo, se bem que só. par a
apresentá-lo —piTidentementc —como livro bíblico que narra algo em parte lendá-
• rio: B1ÉRBR1ÈR, Morris L. H islo ric a l d i c t i o n a r y o f a n c ie n t Egypt. Lanham, Mary-
land:ThéScarecrovvPress, 1999.p .65-66.
13 HGRNUNG. Erik. Die Israelstcle des Merenptah. Â g y p te h tin d A ltès T e sm m e n t, 5,
• p. 224-233,1983. * . " . ’

217
Níi verdade, òs escritores bíblicos mostram-se total e alegremente ignorantes da
discrepância colossal que soas “História” e “cronologia” geraram.
A Corça que tem um engajamento confessional para sustentar um juízo prévio,
.eulretardo, não permite que a maioria dos judeus conservadores ou exegetas cris­
tãos descartem a totalidade do arranjo cronológico, e trabalhos recentes mostraram'
que bs intelectuais muçulmanos sâo prisioneiros dele dé modo semelhante. Ó pa­
drão básico da Idade dos Patriarcas, da Descida para o Egito c da permanência nes­
te, do Êxodo, da Conquista e dos Juizes (e m d e estar essencialmcnte correta;.Náo é
de inerentemente razoável? Alguém clíspõe dequtío melhor? Consequentemente,
numerosas soluções engenhosas s3o ârmadas.'
Ia is manipulações dos dados lembfarii a prçstidigitaçâoe a numerologia; e, no
entanto, elas produziram os alicerces bambos sobre osquais “Histónas”.lamenta-
velmente numerosas de Israel foram construídas. (...) Quem foi o faraó da Opres­
são? I? o do Êxodo? Pode-sfe identificar a princesa que tirou Moisés do rio? Qual foi
o lugar da saída dos israelitas do Egito: passando pelo Wadi Tumilat, ou mais ao
norte? Pode-sc apreciar ri quanto estas perguntas carecem de sentido scse formu-.
larem interrogantes similares quanto às histórias do rei Artur sèm, previamente,
submeter o texto a uma avaliação crítica. Quem eram os cônsules em Roma quan­
do Arlur tirou a espada da pedra? Onde nasceu Merlim? Onde ficava Avãlon? Pode-
se seriamente imaginar um historiador clássico cogitando se foi larbas ou Enéias o-
responsável pelo su icídio de Qido, onde exata mente Remo pulou por sobre o
muro, ó que de fato aconteceu a Róniulo durante a tempestade etc.? (...) E sc o ma­
terial bíblico do Pentateuco, de Josué e de Juizes for transformado em uma coleção
de retalhos igual mente válidos de informação que os. autores aceitarã.o ou rejeita­
rão ii vontade, teremos tantas reconspuçÕesdà“Históm”pré-;monárquica de Israel
quantos tórem os ãiitores que quiserem tentar escrevê-las.1' ,

Em sum a, òs livros bíblicos, na. m aio ria dos casos, peio m enos n o c o n - ,
lexlo da civilização ocidental (c até m esm o naquele do Islã), ru m são tratados
do m esm o m odo que as o u tras fontes antigas disponíveis. E se isso é assim no
tocante às tentativas do reconstituir as origens de Israel, os estragos possíveis
à seriedade dos debates serão ain d a m aiores q u an d o se tratar de assuntos p ro - •
priam ente religiosos, sem qualq u er dúvida,-com o é atestado pelo h o rro r que
sentem m uito s orientadores de m onografias o u de dissertações - entre os
quais m e incluo - q u an d o aparece algum cristão m arcadam entè religioso que,
sendo aluno de H istória, decida escolher (com o co stu m a acontecer, in feliz-
m ente) assuntos bíblicos p ara seu trabalho de fim de ctirso ou sua dissertação

14 R E D F O R D , D o n a l d B, Eg.ypt> Cámiw, atui.Israel ,in auckttt fzí/ics. P H n c e tq n : p f i n -


c e lo n .U n iv e r s if y P re s s , 1 9 9 2 . p . '2 5 7 - 2 5 9 .'. - - ■ .

218
tio mestrado, li não se traia somente de atitude devida ao entusiasmo militan-
le de jovens estudantes. Um egiptólogo experiente ç de alto nível como Ján
Assmann escreveu a passagem seguinte, a meu ver absolutamente Incrível, que
traz embutido o freqüente desejo de muitos intelectuais alemães de perceber
sempre que possível, no an tigo Egito, elementos ou vislumbres do que viría a
ser bem mais tarde a tradição religiosa judaico-cristã; o que parece transfor­
m ar a Egiptologia num meio para um fim situado fora dela: -

(...) se o Egito tivesse desaparecido rio século XI a.C., poucos traços da civilização
faraônica teriain sido incorporados à JBtblia. (...) Estas não são somèntc especula­
ções vazias. Elas tomam claro que nossa preocupação com o antigo Egito não nas­
ceu mera mente de um interesse de antiquários mas, sim, representa uma busca de
nosso proprio passado mais remoto, um passado ao qual estamos ligados, através
dos séculos, por laços numerosos, diversoç <efreqüente mente camuflados. (,i.)ls

Com Ô. qiie eu disse até aqui, não estou qiiérendo negar os progressos
impoftantes da Ciência da Religião (Rcligionswissenschaft) em todos os seus
aspectos e divisões, desde que começou, no final do século 19, a destacar-se da
Teologia. Também é verdade que estou falando de uma diferença de grau em
comparação com outros setores da pesquisa em História e çiôncias humanas,
não de natureza. Afinal, ainda me lembro de meu espanto, ém 1967, quando
de uma viagem ao Brasil de Jacques Godechot, eminente professor de Toulou-
se, quançlo lhe perguntei, num jantar, que caminhos o haviam,conduzido a
elaborar a teoria das “revoluções a tlânticas” do final do século 18 é da primei­
ra parte do 19, ao receber a resposta seguinte: ele e o historiador estaduniden­
se Palmer, com tal noção, haviam desejado proporcionar um contexto histó­
rico à O.T.A.N. quando esta eslava sendo organizada após a Segunda Guerra
Mundial! Mas continuo,achando'que há um je ne sais quoi de diferente'quan-
do o assunto tem a ver com alguma das religiões ainda vivas, num contexto
i em que os autores c outras pessoas se importem com ela, mçsmo em compa- ■'
ração com'assuntos atinentes a paixões político-ideológicas candentes, por
exemplo. ;;

15 ASSMANN, Jan. T h e m in â o f Egyplx History and meaning íri lhe time of the 'pha-
raohs. Trarislated by Andi ew Jenkins. New York: Metropolitan Books (Henry Nolt),
2002. p. 283, ■ ' ' ■ ' '

219
, lim História das Religiões como em Religião Comparada, de fato, o ân­
gulo dc abordagem de religiões que já desapareceram costuma ser bastante di-.
íercnlc do que se aplica às religiões cuja vigência contínua no presente. Isto em.
p.utü tem a ver com a diferença básica da posição da religião no âmbito social,
no mundo pré-modemo e posteriormente, Mas também se vincula às repercus--’
sÕes das militâncias e vivências, religiosas' presentes hoje em dia. Para dar um
exemplo, se retomarmos o livro já citado de Christiane Desfoches Noblecoúrt,
seu lrala mento da afirmação de Ramsés II de ter rogado e obtido a ajuda do
deus Amon quando, na batalha de Kadesh contra os hititas e seus aliados, atra­
vessara um momento extremamente perigoso,’6 é compJetumente diferente das
já ciladas considerações da au tora sobre o Êxodo em que segue - exclusjvamen-
le, pois não há outra coisa - o texto bíblicõ: mais exatamente, àquele, é tim tra­
tamento do tipo que se espera de uma egiptóloga dotada" ao mesmo tempo de
senso ci ítico e de sensibilidade para com as crenças dos antigos egípcios; carac-
terfslicas que as suas páginas sobre o Èxódo não apresentam na mesma medida,
lun 1965 a editora dá Universidade de Chicago1publicou um volume or­
ganizado por Mircea Eliadee Joseph M. Kitagawa chamado The history ofreli-
üioiis: Esstiys m mcthoiioloyy, traduzido para espanhol cerca dê trinta anos- mais
tarde. O volume reflete claramente, duas décadas após o fim da Segunda Guer­
ra Mundial, as adaptações ocorridas na visão-religiosa de .alguns dos cristãos
ocidentais em função,do auge da descolonização, já que outros continuaram
melodulogicamente fundamentalistas e persistiram na intenção missionária. O
objetivo missionário, em tempos neocolomais, foi revisto nó sentido de pro- •
por-se um diálogo aparentemente igualitário entre as religiões do mundo, des­
locando-se a militância,-das missões visando à conversão ao cristianismo, para
uma defesa conjunta das religiões contra o avanço da laictzação.e da seculari-
'/.ação do pensamento e dás.vivências no inundo contemporâneo. No capítulo
dedicado à Religião Comparada, notam-se coisas bastante curiosas,-que, aliás,
pfefiguram as posições futuras de uma.ciência humana pós-moderna, multi-
culturalista e politiçahiente correta: falo em prefigurar porque o livro precede
dc pelo menos uma década a vigência mais ou menos considerável dessas pos­
turas uos estudos humanisticos1. Ó texto, de Wilfred Cantwell Smitli, desválo-16

16 DESROCHES NOBLECOÚRT, Christiane. Rctmsès 11: La vériiable; hlsloire. Paris:


Pygmalion: Gérard Watelel, 1996. p. 147-182. '

220
ri/a a posição dos estudiosos do século 19 que buscavam a objetividade, decla-
•ra scr necessário enfatizar as religiões ainda'existentes no mundo de hoje em
detrimento das religiões desaparecidas e faz afirmações como esta:

(...) a tarefa da religião comparada è elaborar explicações acerca da religião que sc- <
jam simultaneamente inteligíveis para pelo menos duas tradições. (...) No caso de
um encontro entre dois grüpos religiosos - digamos, por exemplo, o cristianismo
e o islamisniò -, o estudioso deve chegar a um tàl ponto que seu trabalho seja st- ,
multancamente convincente para as três tradições: a acadêmica, a cristã e a niuçui-
• mana. Isto não é fácil, mas estou convencido dé que pode ser feito tanto em prin­
cípio quanto na prática.'7 ■' .
r ..
. Assim, uma disciplina universitária —a Relígião C om parada —tra n sfo r­
m a-se n u m encontro e diálogo entre tradições religiosas, pois, paia o autot,
,. ■ ..
(...) é impossível estudar as religiões de forb, é preciso tazè-lo junto dèlas, òu nelas,
conro membro de algum credo. (...) 'Ibnninar-sc-á por reconhecei, assim, que na
religião comparada o homem estuda a si mesmo. (...) A religião comparada pode
cõnvertcr-se iia autoconscíência disciplinada da vidçr religiosa do liomeni, nuança-
da e em desenvolvimento.1*

Seria fácil encontrar, sem dúvida, posições diferentes desta; em especial,


distantes de uma militância religiosa tão aberta, atitude que parece foi a de lu-
' gar em um livro acadêmico de metodologia; e algo de fato difícil de achar (e
aluda bem!) em.qualquer terreno diferente quanto ao objeto de estudo. Smith
crê que os “encoíitros” entre religiões que propõe desembocariam '‘numa His-'
tória, já hão das diferentes religiões mas, sim, da própria religiosidade”.15

17 SJvlITH, Wilfced Caníwell. I,a rcligión comparada: adóndey por qué? In: EU ADE,
Mircea; KITAGAWA, Joseph At. (Org.). M etodologia d e la h isto ria d e las reUgiones.
Trad, Saad Chedid e Eduardo Mgsullo! Barcelona:. Paidós, .1996. p. 53-85 (a citação
encontra-se nas p. 78-79).
18 lb id .,p .8 l-8 2 .'’ '. ’ É .
19 lt}íd., p. 82. Ao propugnar a forma de tais encontros entre pessoas de diferentes co­
munidades religiosas, Smith escreve que a pergunta que quia uma deveria fazer à
òútra seria esta, que me parece.cspeciahnente bizarra no contexto de uma discipli­
na universitária dc Religião Comparada, que afinal é do que está falando (p. 7'1):
“Isto é o que vimos da verdade, isto é o qüe Deus fez por nós; digam-nos o que yi-
• .ram, o queDeusfcz por vocês, e discutamb-lo juntos”. • ,

221
ISm tempos pós-modemos, da História Cultural, a crença em não haver
verdades, só versões (perspectivísmo hermenêutico), ao mesmo tempo desvalo­
riza as mililancias —os pós-modernos deparam-se “coín o antigo problema dos
céticos acerca de como pensar e agirá luz de sua própria doutrina”-*'1e, em nome
<lo suposto caráter subjetivo <jo trabalho do historiador, leva a reivindicar a pos­
sível validade de uma História Religiosa Feita por crentes. Esta apresentaria tanto
vantagens quanto' desvantagens e, no caso.do historiador crente, exigiría maior
: vigilância no sentido de garantif pelo iigenos um relativo distanciamento aeadê-
mico dc/objelo para, assim, evitar juízos de valor, liienirqujzações indevidas do
ortodoxo c do heterodoxo, bem como outras dístorsões. Entretanto, afírma-sc,
■ • ' 1 • • •• ■■■■■
■Na<> é a “empatia participante” que é a garantia cie compreensão do objeto; ín-
versamente, pão é ò historiador não crente que é a garantia de maior objetividade
e neutralidade com relação a um objeto jyligíoso de estudo.11 ■

O distanciamento vem, às.vezes, cia própria escolha de objetos e ângulos


do análise. Se estudarem a religiosidade popular medieval européia, por exem­
plo, mesmo gutores cristãos se. acharão diante de uma realidade bastante dis­
tante da stía contemporânea. Aliás, a opção pela visão ântropológico-histórica'
lem multiplicado òs estudos de historiadores voltados para a religiosidade —
em parte devido à tendência antropológica, segundo ,ia avançando a segunda
metade do século 20, a passar da ênfase anterior nas estruturas para uma aten­
ção maior prestada por um lado às píálicas, por outro às representações e sig­
nificados (já houve, quem falasse num Iwtno symbolicus). Para Julian Pitt-RÍ-
vers, “religiosidade” é um compromisso que pretende evitar tanto o termo “su-,
pers lição” de forte carga negativa, quanto a expressão “religião popular”, que
parece ri a implicar algo .radicalmente diferente da religião culta ou oficial das
.Igrejas institucionalizadas. Às vezes se distinguem três níveis de análise: I) are-

2!) BLÀCKBURN, Siiíion, Dicionário Oxford cie Filosofia. Traí). Desidério Murcho et al.
Rio çte Janeiro: Jorge Zahár, 1997, p. t>03-306 (verbete "pós-modernismo”). A t-e$-,
peito dos possíveis efeitos .da atitude pós-moderna sobre a práxis político-social, cf.
BÉDAR1DÁ, François (Org.).'27;e social responsibilhy of the historiem.Providence,
Ri:Berghau Books, 1994. " .. ■■ ■
21 GOMES, Francisco José Silva. Á..religião como objeto da História. Im LIMA, Lana
Lage dá Gama. et al. ,(Org.). H istória & religião. Rio de Janeiro: FAJPERJ/AN-
PÜH/Mauad, 2002, p. 21. ; ■■■ ■ .... . .
I

■ligião formal, ligada ao ensino eclesiástico; 2) a religiosidade, entendida como


opção específica, no seio da religião, no relativo a valores, atitudes e comporta-
^mentos; 3) e as práticas e manifestações religiosas concretas,;1 Mais do que no; -
passado, impõe-se hoje com freqüência a análise inlerdisciplinar ou transcliscí-
plinar nós assuntos da História das Religiões e da Religiosidade.^

p TRATAMENTO DA RELIGIÃO COMO


UMA MODALIDADE ESPECIFICA DE . • •
IDEOLOGIA. OU: TENTANDO MESMO
ESCAPAR DÁ TEOLOGIA .
Em minha opinião, o conceito de ideologia continua sendo o,enfoque
metodòlogicamente mais profícuo para a análise histórico-social das religiões,
em especial ao se tratar de estudos de longa.duração, macro-históricos. Entre­
tanto, ao escolher um ponto de entrada a tal conceito extremamente polissê-
nücò, não me parece ser útil voltar à forma por ele assumida no combate ideo­
lógico do século 19, isto é, a idéqlogià como “falsa consciência”, cujas insufi- •
ciências já foram bastante esclarecidas rios debates do século seguinte.,
O ponto de partida que proponho é o conceito de ideologia tal como o
: foi desenvolvido por Antonio Gramsci. Mais éxatamente, seria proveitoso23

22 Cf. Julian Pht-Rivers, T.á gracía en antropologia e José Domíngue?, I.éon, Bases
. metodológicas para cl estúdio de ia religiosidad popular andaluza, ambos são ca­
pítulos incluídos na.obia coletiva: ÁLVAREZ SANTALÓt C. et al. (Org.). L a reli -
g io sid a d p o p u la r. Barcelona: Antbrõpos, 1989.1: Antropologia e historia, respécti-
vamenle, p. 117-212 e 143-163. Para discussões metodológicas de grande interes­
se, ver: JOÍXY, Karen Louise. P o pular r e ü p o n in L a te S a x o n E hglam í: Elf chartns in
.. context. Chapei Hill, North Carolina: The Univetsity of North Cárolinu Press,
1996. p. 18-34; FRANCO JÚNIOR; Hilário. Meu, teu, nosso: reflexões sobre o còn-
. ceito de cultura intermediária. In: FRANCO JÚNIÔR, Hilário. A Bya barbada: en-
saiôs de mitologia medieval: São Paiilo: Edusp, 1996. p. 31-44. ;
23 Cf. CARDOSO, Ciro Fiamarion. O purgatório no.mundo dc Beda, S i g ttu m ,$ $ o
Paulo, 5, p. 47-71, 2003 para o trabalho conjunto, na abordagem de um lema dà
Alta Idade Média, com Instrumentos de análise filológtcos, históricos e derivados
da Etnografia da Leitura. , i ■

■223
p:ir;i o estudo das religiões, na maioria dos casos, considerá-las como o que ele
chamou de “ideologias historicamente orgânicas”:

necessário (...) distinguir entre ideologias historicamente orgânicas, isto é, que


sito necessárias a uma determinada estrutura, c ideologias arbitrárias, mciotuúistas>
desejadas, Na medida em que são historicamente necessárias, as ideologias' têm
1,1,111 validade que ê validade psicológica : cias “organizam- as massas humanas, for­
mam o terreno jsobre o qual os hómens se movimentam, adquirem consciência de
sua posição, lutam etc. Ná medida em que sito “arbitrárias”.das não criani sendo
“movimentos” individuais, polêmicas etc. (nem mesmo estas são completam ente
inúteis, já que funcionam como o erro que se contrapõe à verdade e a atirrna).!l

Ao considerarmos, na maioria dos çasqs, as religiões a partir do concei-


lo das ideologias historicamente orgânicas, é perfeitamente possível não cair
nas simplificações a outnincc da tais a consciência (do tipo dc “ópio das nias-
susn, por exemplo). Isto fica claro nas próprias formulações gramscianas:

(...) a anâlíse do desenvolvimento da religião cristã [revela] que - em um certo pe­


ríodo lijstõriço e em condições históricas .determinadas - foi e continua a ser uma
"necessidade”, uma forma necessária da vontade das massas populares, uma.forma
dclcimmada de racionajidadé do niiindó e.da vida, fornecendo õs quadros gerais
p.na a atividade prática real.’' , ;

Cramsci tem também muito dat a a necessidade de não estabelecer cor­


relações simplificadas entre conteúdos religiosos específicos e estruturas sociais:

Na discussão entre Roma e Bigâncio sobre a procedência [a tradução que cito


traz, por crio, “procissão” - C.F.C.] do Espírito Santo, seria ridículo buscar nà cs-
ti utura da Europa Oriental a afirmação dc que o Espírito Santo decorre apenas dó
Pai, e na do Ocidente a afirmação de qtte ele decorre do Pai ê do Filho. As duas igre­
jas, cuja existência c cujo conflito estão na dependência da estrutura e de.toda a his­
tória, colocaram questões que são-principio de distinção c de coesão interna para
cada uma, mas podería ter ocorrido qtje cada uma das igrejas tivesse afirmado pre­
cisamente o que a outra afirmou: o.princípio de distinção e de conflito teria se
mantido idêntico; e este problema da distinção e do conflito é que constitui o pro­
blema histórico, não a casual bandeira de cada uma das partes." .2456

24 CRAMSCI, Antoniò. Concepção dialética <7a-História. Thid. Carlos Neison Couti-,.'


nho. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1966. p. ,62-63.
25 lbid.jp.24. ' . .. '
26 Ibid., p. 119. . ■’ ; ' * ,

224
Uma posição metodológica acerca da ideologia coibo a de Gramsci per- •
' mitiria refinar, por exemplo,"a análise de.Trevor Ling a respeito de terem sido
as religiões, no passado, núcleos de civilizações. Para mostrá-lo, Ling çòmpára
o contexto de surgimento e expansão de diferentes religiões - budismo, hin-
duísmo, islamísmo, cristianismo - com,a situação destas últimas na realidade
muito'mais laicizada do presente. Sua-idéia central é que as grandes religiões
atualmente existentes são resíduos dc civilizações completas construídas em tor- -
no das mesmas, mas que desapareceram como tais. Em suas origens, cada' uni da­
queles sistemas.religiosos era uma visão de mundo global, especificando a po­
sição do homem no universo, e também continha prescrições para ordenar os
negócios humapos em dimensões que, na atualidade, aparecem separadas en­
tre si e institucionalizadas individualmente: filosofia, política, economia, ética,
direito etc. Pelo contrário, na situação’da Antigüidade e da Idade Média, o que
nós separamos aparecia integrado num todo indivisível para os homens de en­
tão (embora nós o possamos dividir, drtificialmente, para fins analíticos).
No caso do hinduísrno, termo que na verdade cobre toda uma família
dè sistemas culturais e seitas teístas, Ling mostra que deriva de um tronco co-
num), o bramanismo. E o bramanismo foi, originariamente, metafísica, culto,
cerimonial, estrutura social, ética, prescrições econômicas e políticas. A crise
qüe originou o bramanismo foi o encontro, na índia setentrional, dos indo-
europeus recém-chegados com culturas antferiormenfc existentes tio subcon­
tinente indiano. Tal encontro e a Síntese dele resultante representam um lon­
go processo, ao cabo do qual surgiu uma civilização integrada que a vania
bràmane elaborara como urii sistema completo. Ò sânscrito tem três termos
qüe ordenam em ordem decrescente de importância as principais preocupa-
ções com a organização da vida humana: dharmq, neste contexto, modo reto
de ação ou dever; artha, economia e governo; e kania, prazer e estética. Só a
Harmonia dos três níveis é satisfatória: assim, fazia parte do bramanismo a re­
gulamentação da vida pública (direito, governo, economia), como fica claro
pela redação degíandes tratados como o Arthasliastra, ou tratado sobre 0 go­
verno, e das Leis de Mamr, c mesmo dos prazeres, como é demonstrado pelo
Kaina Sutra. ) ■
O Islã provê outro exemplo. Na época dc Maomé, até mais do que uma
religião, parecia uma tentativa de formar um povo árabe unificado, com pro-

225
visflcs pura isto cm muitos níveis além do religioso, e depois, a empresa de dar
soul ido a uma civilização islâmica mulfiétnica. Não somente o Alcorão con­
tém múltiplas indicações políticas e jurídicas, como existia outro documento
mais especificamente político, a Constituição de Medina. O Isiâ era visto.corao
necessariamente englobando o que para nós são religião, política, direito, eco­
nomia e ética. •' j ,
No caso do cristianismo a'coisa é menos clara de início. As tentativas dé,
vincular Jesus com os zelotas e outras correntes reformistas ou anti-romanas
tia Palestina antiga não são convincentes, Ào começar a ganhar aderentes no
mundo helenístico-romano fora da Palestina,'o cristianismo' se apresentava
como movimento estranho à política. Em suma, nisto se assemelhava à uma
"religião” no sentido contemporâneo e especializado do termo,'não"estando
vinculado como niicleO a uma. civilização específica. Isto mudou, entretanto,
ao integrar-se ao Estado imperial romano no início do séctilo 4U. A partir de
entílo, reuniu à sua volta elementos (incluindo os do próprio sistema romano)
que, durante todo o período medieval,.justificam que se fale de uma civiliza­
ção cristã no sentido forte da palavra. Isto só começou a enfraqúecer-se em
forma decisiva com a erojão progressiva do princípio teísta de basedessacu
vilização |)elo racíonalismo, sobretudo no niundo/fbrtemente urbanizadó.
posterior à Revolução Industrial. O protestantismo foi uma tentativa de criar
um cristianismo mais adaptado às características do mundo Urbáno-raciòna-
lista nòseu estágio inicial. Com o tempo, no entanto, o cristianismo veio a ser
simplesmente uma religião no sentido especializado, deixando,de;ser o centro
de uma civilização especifica. - .
Em suma, cada unia das grandes religiões examinadas ó-hojé em dia um '
resíduo teológico, ritual e ético de algo muito maior: a civilização de que cada
uma constituía, o núcleo, (no vocabulário de Gram sei, a “ideologia historica­
mente orgânica” que vertebrava aquela forma específica de estruturação so-
ciocultural), No Caso do Islã, o enfraquecimento do aspecto socialmente tota­
liza dor foi menor; pelo qual é mais fácil o ressurgimento dd um movimento
islâmico contempdrâheo que pretenda restaurar a religião muçulmana como
núcleo de uma civilização.27 . ■ :• ;

27 LING, Trevor. T h e B u d d lia . Harmoraiswoith: Pcnguin BookS, 1976. p. 26-39.

2 2 (i
À opção por Gramsci não resolve todos os problemas para um empre­
go adequado do conceito de ideologia no estudo das religiões. Isto porque tal
autor continuava afirmando a dicotomia material/ideàl devido a apegar-se
ainda à oposição base/superestrutura, uma postura a tneu ver impossível de
sustentar-se após as discussões da segunda metade do século 20.'* Com efeito,
ein Gramsci como em Lênin, temos uma '‘formulação sociológica ortodoxa
ém que por um lado está “o. social” por outro “a .ideologia, ambos os níveis
mantendo entre si relações variáveis, se bem que Gramsci atenua o caráter de
variável dependen te atribuído às ideologias, até então tendência muito forte
entre os marxistas.2’ .
Uma tentação do pós-modernismo —que aparece em -Louis Dumont
antes de ser assumida em uma fase de seus escritos por Roger Chartier - foi a
de manter a dicotomia ideologia/sociedade, mas transformando a primeira
em variável mais' independente e a sociedade em variável mais dependente.
Dumont afirma, ao fazê-lo, estar assumindo um ponto de vista somente m e­
todológico, não ontoiógico.(aspecto que deixa em aberto), mas na verdade, ao
proclamar o caráter decisivo da Ideologia {que postula ser idêntica à consciên­
cia), no seu estudo das castas da índia, como aquilo qué ordena e hierarquiza
uma matéria-prima não-ideológica,- afinal de contas transforma o resto do so-
' ciai (o não-consciente) ém - mero resíduo, razão pêla qual desqualifica qual­
quer caráter primário à política ou à economia, por exemplo, diante da ideo-
logia/consciência.5’ Uma posição tão radical, entretanto, não foi considerada
convincente nem mesmo pelos historiadores pós-modernos cm sua maioria.28*30

28 Ver em e sp e cial G O D F J.IE R , M a u ric e . V iá êci e t k inalériel: P e n sé e , é e o n o m ie s , so -


Fayárd, 1984,
c iè lé s. P a ris: * ' .
29. Cf. WILLtAMS, Raymond. M a r x is m o e literatura. T ra i Waltensir Dutra. Rio de Ja­
neiro: Zaliar, 1979. p. 74.
30 DUMONT, Louis. U o n w hterarchicus : The caste system and íts implieations. Lori-
don: Weidenfeld & Nicolson, 1970, ém especial p. 28,36-39,263-264,273 nota 22c,
,. . 282. Para Chartier, como se sabe, em certa fase de seus escritos, seria:preciso subs­
tituir uma História social da cultura por umá história cultural do social: CHAR-
TIER, -Roger.- 'l he world as representation. In: REVEL, Jacques; HUNT, Lynn
(Org.). H istories : French constnictions of thc pasl. Transláted by Àrthur Goldliam-
mer el ai. New York: The New Press, 1995. p. 544-558 (o artigo foi publicado em
francês em 1989). '
1éiitou-se, também, a alternativa de considerar a ideologia como varia-
N . *•
vel independente, o c]ue lorparia impossível correlacioná-la de falo com o so­
cial: tal correlação só podería ser feita com suas implicações, repercussões e
conseqüéucias, não com ela mesma. Em matéria religiosa, isto às vezes-signi-
ficou desistir de explicar coisas como por exemplo a crença em seres sobrena­
turais, devido a um tipo de Sociologia ou de Antropologia cuja refefência pri­
mária era às motivações, idéias c experiências dos atores sociais (individual­
mente considerados). Quando os elementos subjetivos assim constatados in­
cluíssem crenças no sobrenatural, por exemplo, uma saída'bizarra - mas bas­
tante comum —era estabelecer uma diferença entre ò domínio empíricp-téc-
uico c aquele não-cmpírico-técnico (ou entre um setor utilitário de atividades
c outro iião-utilitário); o que significa que a consideração da ideologia religio­
sa como variável independente em estudos sociais tão centrados na dimensão
individual levava.*1às vezes, contraditória e ironicamente, a uma distinção ana­
lítica que não estava preseute nas mentes dos crentes que sé estudava mas, sim,
cm nossa cultura científica.31 • •
A p resen tarei re su m id a m e n te , p a ra te rm in a r, u m a p ro p o sta d e a b o rd a ­
gem d a religião co m o id eo lo g ia q u e te n ta e sc a p a r d o s dilem as a p o n ta d o s: a.de
S lep h n n b eiichtw ang. . ..
lim primeiro lugar, éjiiecessário evitar a separação taxativa já.apontada'
entre material e ideal: \
i ' • " 1• ' 'j
•A produção ideológica, a produção e comunicação de idéias, não é uma práti­
ca puramènté ideal, da mesma maneira que a produção econômica não é puramen-
lç material; Elaé simplesmente social. Os'cientistas sociais reconhecem isto quan­
do tratam de elucidai’ á estrutura oti padrão de coerência interna das ideologias
como sistemas - sistemas.de prioridades, oif de classificação, ou de significação. Já
■’ que estes são sociais, eles são propriedades de relações historicamente específicas
entre indivíduos concretos; portanto, são materiais, k. produção ideológica ê deter-
% minada no interior da unidade social, de que constitui uma parte específica: em úl­
tima instância, é-determinada pcía capacidade dos indivíduos, naquela parte de

31 Cf. WORS1.EY, P. T h e tr u m p e t s lm llso u n â . 2"1. ed. London: Paladin, 1970. p. 310-311.


Critério semelhante foi adotado, às vezes,-em propostas relativas a como estudar ar-
qucològicamente a religião na ausência de fontes escritas: RENFREW, Colin, The ar-
cliaeology p f religion. In: RBláFREW, Colin; ZUBROW, f im B. W. (Grg.j. T h e a n -
cien l tnind: Rlcménts of cognitive arcKaeology. Gambridge: Cambridge University
1 Press, 1994, p. 47-54. ^ ■ V

22« .
suas relações, ele produzirem e reproduzirem o seu ser material e, portanto, o da­
quelas relações.3* ' •.

Á religião - um sistema simbõlico orientando a ação-com referência a


supostos fins últimos e a uma também suposta realidade dc ordem superior -
define-se como uma ideologia, em conjunto com o sistema simbólico e insti­
tucional em que ela é partilhada e comunicada. Os elementos a pesquisar,-
num enfoque como o proposto, seriam três (más cada um deles pode compor­
tar variados investimentos de métodos e técnicas de pesquisa):

LA apresentação das formas sociais à ideologia e a formação de pomos de vis­


ta c experiência partilhada que são os campos de operação ideológica; 2. a coerên­
cia interna da ideologia, na qual formas sociais são estruturadas como categ o rize
sujeitos; 3. a formulação constante dc idenlidades e ações pela ideologia, bem como
o$ efeitos dessa fornuilaçSo sobre o resto das prática^ sociais (...)« .

- , - -Deve se r n o ta d o , q u a n to à passagem acim a, q u e as id e n tid a d e s m e n c io ­


n a d a s n o terceiro p o n to são so c ia lm e n te p ro d u z id a s e p o d e m ser ta n to in d i­
v id u a is q u a n to tra iisin d iv id u a is (relativas a etn ia s, ao p aren tesco , a classes so

ciais etc.). - v .• ,- -

< _______■
■ ■’ . -_ . -
32 1'KUCHTWANG, Stephán. Invésügating religion. In; BLOCH, Maiirice (Org.*).
Marxht analyses and social anlhropology.- London: Malaby Press, 1975. p. 61-82 (a
citação é da p. 68). • ,; '
- 33 PEUCHTWANG, Stephán: Invcstigating religion. In: BLOCH, Maunce (Org.).
Marxisí amfyses andsodal àtuhropahgy. London: Malaby Press, 1975. p. 7..

■ 229
Capítulo 11

■ ' PENSANDO SOBRE A-ARTE


FIGURATIVA, LENDO A OBRA DE ARTE

UMA PLETORÀ DE TEORIAS E VERTENTES


Hxíste umá grande variedade de discursos sobre a arte. Vamos, aqui,
apresentar urna classificação deles baseada em idéias de Anne Cauquelin so­
bre a teoria da arte, mas modificando as denominações por ela utilizadas (in­
troduzindo, também, outras mudanças c Seleções):•

• teorias desprovidas de métodos ou grades de leitura aplicáveis a obras


de arte . _• . .
- -teorias não-prescritívas (a autora irata de Platão, de Hegel, do Ro-
• mantismo, de Nietzsche e de Schopenhauer), ou seja, que não in­
diquem critérios formais que definam o que, para o autor, permi-
- ■ te designar um dado objeto como obra de arte autêntica
- teorias prescritivas (são abordados Aristóteles, Kanl e T. Ádqrnó),
isto é, que contenham em seu interior uma definição de critérios
que permitam caracterizar certos objetos corno obras de arte au­
tenticas Â. ■,
♦ teorias que oferecem modalidades de leitura aplicáveis a obras dc arte
- a vertente hermenêutica
- a vertente semiótica A •>
- a filosofia analítica (freqtientemente, associada a umá visão panse-
mi ótica) , •

*231
* “prá liais teorizadas” . .
- a c rític a do a rte '
- os escritos d c artistas' acerca d a a rtô : . . '
- a iloxti (ç o n jü n to de o p in iõ es v ig en tes e m d a d a ép o ca) a tin e n te à
arle. .

bimilar-nos-emos, aqui, estritamente às teorias que oferecem modalidades


de leitura ttjilicdwis a obras de arte.-. ,
A Iierineniiiticd pretende restituir o “sentido” ultrapassando,o .simples
(iilo da obra como presença de um objeto/Mas, talvez, como no'caso de outros
(emas de que se ocupa, tenda a interessar-se, em última análise).pela descrição
das condições de possibilidade dé qualquer compreensão: acreditando ser V
compreensão o fenômeno humano por excelência,m fundo do pensamento ou,
mesmo, o pvoprio pensamento. A.árte, em tal processo dé “compreender como
se compreende, ocupa um lugar importante. Hans Georg Gadanjer, por exem­
plo, dodaiou que A experiência da arte faz aparecer o fenômeno hermenêutico'
em ioda a sua extensão ; e ainda: "A obra.de arte acha o seu ser verdadeiro qúan-
do acede a uma experiência que transforma àqüele que a conhece”. A hermenêu - '
hca, como se.ve, articula-se coni afenòmenóíógía envGadameri para este, a prí-
"icua deve entender-se como a teoria desta experiência efetiva que é o pensa-
menlo”. O “jogo da arte” nos ensina que não existe jogo em sifnem obra enrsi:
eles existem na medida mesma em,que1sé joga, jogadores e jogo transforman­
do-se medida que-tal jogo se desenvolve. O jogo não tem por sujeito o artista
somente, mas o próprio jogo, que engloba a ação de jogar e os jogadores. A arte
demonsti a a relação íntima e necessária entre sujeito e objeto, transformando a
p ia tic a ai tística n u m a to talid ad e em processo, em devir. A o b ra, n esta p e rsp e c ­
tiva, só em erge se o c o rre r u m a p articip ação ativa, u m a ín terp en etração , u m d iá ­
logo no q u al o q u e o co rre, e n q u a n to se dá, é à verdade do p ró p rio diálogo, o fato
d e q u e elé te n h a lugar e, deste m o d o , represente seu p ró p rio sei: c o m o diálogo.
0 visado n ã o e a verd ad e re su lta n te d u m a arg u m en tação , n e m a v e rd a d e .n u m
se n tid o d a co rresp o n d ên cia en tre o real e a fícção j o u en tre o real e a rep resem
tação), m en os ain d a a v erdade científica: trata-se d e u m “jogo de verdade”, n o
c] uu| só se d eterm in a a verdade q u a n d o é e n q u a n to seja jogad o . . . .
, ' C o to a o b ra eclode, n o jo g o d a arte; Uni m u n d o : m u n d o este q u e é lin ­
gu ag em , A in te rp re ta ç ã o é palavra, diálogo, e n te n d im e n to co m a o b ra (q u e a '
fitz aparecer como obra); mas o qué de fato se desvela nesse processo é.a ver­
dade do mundo, a saber, que o mundo é linguagem. O que se desvela, em ouj
tras palavras, é a estruturaTuudamentalméiite metafórica da linguagem, que
ultrapassa a simples função de designação dás coisas, Estás metaforas, na.yét-
dade,.ao permitir perceber q mundó que nos cçrça em seus múltiplos aspec­
tos, fazem nascer tal mundo, Pára Paul Ricoeur, a metáfora permite passar;de
uma primeira referência'(ò-mundo cómó parece nós-cercai^ como e denò la­
do, fixado pela linguagem comum) a uma segunda referência: sua abertura,
para outros mundos, para “perfis perspectivistas” òü “visões”, tanto sucessivos
quanto' simultâneos. Para Gadamer, "...o mundo só é mundo na medida em
qüe se expressa numa língua; màs a língua, quanto a ela, só existe yerdadeira-
menle nó fato de que o mundo sê representa nela”. A obra de arte sobre á qúal
se fala, tal como a linguagem, minca é ufecliadan. Elá recebe acabamento per--
manentemetite (num processo infinito) na linguagem, enquanto a linguagem,
se ancora ha obrar Pensamento, linguagem e coisas ligam-se nutna imánenóia,
numa presença fenomenológica que faz do inundo (no caso, da obra de ai tc),
não uma.coisa èi» si (inatingível).mas, sinr, um organisnio vivo, aberto, em ex--
; pansão, cujo devir depende dqs leituras, das representações; Segundo Mikel
Dufrenne, nesta forma de ver; a obr a’de arte constitui um qüasç-süjèito e utii-
quase-objeto; aquele que a observa sè deixá invadir por ela, tornando-se as­
sim, por sua vez, uin quase-sujeito. '^ /
• - ; No fondo, á hermenêutica trata de tornar explídtos, numa linguagem
1contemporânea, ós princípios constitutivos da esfera estética: acompanha um
movimento dé pensamentoacerca da arte, mais dò que se ocupa de obras con­
cretas. Quando muito, umas poucas obras são abordadas, servindo de ilustração,
ou exeniplo, de preferência,a serem objeto de um tratamento por si mesmas._
. Como, aliás,-ocorre também com as outras formas de leituia ou interpretação da
arte, as obras consideradas são quase sempie figurativas: a arte abstrata ou aS ins­
talações1artísticas não parecém.atrairo interesse da hermenêutica- ; \
V. ' Com freqüência, a perspectiva hermenêutica influi (pro fundamente
èm'certos casos) nas análises psicanalíticas ê históricas. Se a hermenêutica ten­
de a tratar cía arte em gcíal,privilegianclo-upor constituir algo essencial e es-
pecialmente difícil de decifrar, a Psicanálise e a. Historia á tomam, como .um
domínio entre outros ao qual prestar atenção; pomo um objeto entre diversos
. ,oíítros objetos Ué estudo possível.
A lUainólisc não trata de interpretar diretamente as obras de arte: o
«pie, nelas, interessa ao analista é um enigma a decifrar. Ora, na sua perspecti­
va, tal ato de decifrar não pode se .limitar a compreender, como. leitor ou es-
pecladoi, uma obra já produzida; exige ir às fontes de sua produção, tentar
cotupi eendei o ato que a tez nascer. O analista se intèressa mais é pelo proccs-,
SO de criação da obra, na medida em que procede de um sujeito que se expri­
me no gesto de criar a obra em questão, Ao abordar aquele processo, empre­
ga as ferramentas utilizadas para interpretar o sonho: deslocamento, conden­
sação, contradição, figurações por analogia, elaboração secundária, bem comO
seus corolários (negação, subliníação, trabalho do negativo, simbolização
üc.). Ohia de aite c ficção onírica são, pois, relacionados. A genealogia.da
obra depende do sujeito produtor e de um processo de produção, ambos ana-
íisáveis. Ora, a análise do sujeito produtor, em se tratando de artistas mortos
ou ausentes, é sempre discutível: os problemas de documentação, plaúsibili-
dade e convencimento, a dificuldade de não cair num raciocínio circular (de­
rivar a psique do autor de sua obra,- a seguir interpretar a obra partindo da psi­
que assim construída) são gigantescos. A seguuda via 6 mais promissora: è
possível descrever os movimentos que animam as figuras, independeu temen­
te tle qualquer tentativa de analisar o artista. Neste caso, a perspectiva se afas­
ta daquela.da hermenêutica: não procuramos atribuirum sentido à obra me­
diante nossas interpretações abertas dela mas, sim, perceber como tal sentido
põde produzir-se a partir.de.raízes ocultas, de um não-sentido produtor (Gil-
les Deleuze, Antbn Ehrenzweig). Por exemplo, M.urielle Gagnebin procura' '
perceber, na organização, nas estruturas das formas presentes na obra, o con-
llilo entie pulsões e defesas. O jogo plástico seria, então, jogo psíquico anali-
sável chi termos de uma metápsicologia. ; ■■■. ■
A interpretação histórica costuma' enfatizar a contextUalização necessária ■
ao entendimento da obra de arte. Aò situar esta última também nas determina-»
ções extra-artísticas, ajuda a eq>or sua complexidade como objeto de estudo.
Irata-se, com ojia visão psicanalítica, de estabelecer uma genealogia da obra;
mus, não, subterrânea, oculta, A História da Arte que estabelecia umà continui­
dade entre as diversas manifestações artísticas concretas, propondo um apro-
gressão orientada em direção a algum ideal; foi abandonada; òu, pelo menos,
perdeu muito de sua torça e poder de convencimento. Uma dás tentativas de es-
labelecer uma visão diferente, alternativa, c a âconologia déErwin Panofsky.Sua
eslralégia consiste cm centrar a atenção numa série de figuras em. torno de um
, tema comum (por exemplo: como se figurou, o Tempo, da Anligüidacle oté a
nossa cpoca?). Ao Êizê-lo, o-historiador escapa à Históriaentendida como su- *
. cessão de movimentos artísticos e artistas, aproxima-se das obras de aite con-
cretamenlc analisadas e de seu processo (singular) de produção, ao mesmo tem-^
po que as usa para.uma reconstituição dàs representações coletivas de diferem
. tes épocas, trabalhando-as em conjunto com textos escritos. Isto quer dizer que,
afinal de contas, o objetivo-é mais histórico do que estético,
Hoje em dia, com o declínio das teorias holísticas tradicionais, a histó­
ria dã arte tende, como outros setores de pesquisa, a tornar-se “local”, detalhis-
ta; Ao ocúpar-sè do temas (uro cios favoritos é a perspectiva, ou sua ausência)
e dc figuras (ou motivos) que se encontram repetidamente numa determina­
da série dc obras, tais aspectos aparecem conio índice de uma particularidade
1 que<revela determinações. culturais. ,
- A leitura semiótica das obras de arte figurativas será tratada alhures. . .
Mencionemos agora, então, ó impacto da Filosofai Aiuiliticft, muitas ve­
zes associada a umá visão'pansémiótica; Tratà-se do que hoje é costume deno­
minar Hnguisiic Iftrn.(virada lingüístiça, ou giro lingüísticó). Sob diversas in­
fluências, sendo Wittgenstem uma das mais importantes, o estudo da iingua-
■’ . ’ geni não. adquire, aqui, função semelhante à que desempenha em outros sis­
temas de leitura e, interpretação: não se trata, como nas análises semióticas,
correntes, de aplicar aos objetos estudados sistemas de códigos que foram pri­
meiro percebidos na análise das línguas naturais è, a seguir, generalizados para
; sistemas não-vefbais de significação. Dò que se.trala e ver como a própria lín­
gua pode engendrar a realidade do mundo que acreditamos pciceber. só po­
demos ver aquilo que nomeamos para reconhecê-lo, O qüe podemos dizer a
respeito do mundo é o m undo; como nos aparece, çle é para nós (já que não
há como aceder às coisas em sij-fora das representações c das semioses). Esta
•• visão,.desenvolvida sobretudo nos países ángló-saxôes, centrada na análise da
■_linguagem, de sua lógica, de suas funções, dc seu poder de criar mundos, vol-
.. ;. ,-ta-se contra a filosofia da Europa continental, acusando-a cie abrigar uma me-
' tafisica, seja latente, seja explícita e assumida, Recusa, no que nos interessa, as
visões ou análises da arte saídas.dessa filosofia, às quais opõe.outras, derivadas
de uma análise lógico-pefceptíva, sendo a seguinte uma: das peiguritas básicas
■■i a formular: em qiie medida c sob quê condições um objeto pode ser coiiside-

235
rudo como uma obra de arte?'Ou seja, o que foz com que uma obra de arte
seja nronDcciíiti como tal, quais são as características que nos podem condu­
zir a tal afirmação? A ênfase é> então, cpistcmológica.
I lá obra de arte quando certas condições são satisfeitas, entre elas os
, ,l ilV*0S ^'Stinlivos que permitem separar o objeto considerado artístico dos ou­
tros objetos que não são assim considerados. Não são, porém, traços sensíveis
percebidos: é de fatores abstratos que a análise se deve ocupar, de qualidades
defini ciou a is como consistência, saturação, simboliza ção, exemplaridade etc.
A arle é percebida como arte mediante um trabalho cognitivo: mas trata-sc
mais de reconhecer do que de conhecer, de nomear mais do que cie perceber.
Isto ocorre por um caminho que, partindo de uma incitado serisorial, qrien-
Ia-se a seguir, atravessando vários níveis de pensamento; era direção ao reco­
nhecimento efetivo deste ou daquele objeto específico como sendo “artístico”
Lm muitas destas análises, acha-se necessário levar em êonUí, no mencionado
processo de .reconhecimento, um contexto sócio-cultural e político (no senti­
do pós-moderno do termo), para entender como se dá o reconhecimento dó
objeto como artístico, sua transformação em símbolo, que deve muito ao lu-
g.u por de ocupado num sistema de trocas econômicas, culturais, simbólicas.
Lm suma, a filosofia analítica,- quanto: à arfe, busca os pressupostos lógicos
constitutivos de sua identidade como objeto singular entre os demais objetos.
Menos concreta do que a semiótica com suas grades de leitura, fica, na práti­
ca, mais longe das coisas. . ' , ‘ 1 ■

SEMIÓTICA DA IMAGEM '


O S S IG N O S IC Ô N IC O S
i •. • j 1

A volta a C harles Sanders-Peirce” (seja p ara-n ele ach ar u m a base, seja


para, criticando-o, b u scar u ra p o n to d e p a rtid a o u u m enfo q u e), n o to cante à se­
m iótica da im agem , se deveu, cm especial, ao fracasso na aplicação d e u m “m o ­
delo linguístico” aos objetos fig iu u tív o so u iconográficos. Se n a língua n a tu ra l é
possível, n o c a m p o das pesquisas derivadás d e F erdinand de S aussurc, d istin g u ir
níveis ou estratos co m o oà fonem as, m.orfema.s e sem antem as, tal n ão o co rre no
p la n o das figuras. E n q u a n to o fo n em a da língua é u m a u n id a d e d e báse consti-

236
tuídii por um som (mais exulíimontu, pela marca psíquica de um som), sem .sig­
nificado em si mesmo, mas permitindo que o significado surja ao opor-se a ou- ■
Iros sons, distinguindo-se deles, não se pôde adiar algo parecido, por exemplo,
na linguagem pictórica: em pintura, a forma, nas tnenores unidades que se pos-
sam advir, tem significação, o mesmo ocorrendo com a;cor, qiie se liga a deter­
minado simbolismo em vigor numa dada sociedade (ou seja, formas e cores,.em
qualquer corte doobjeto, são imedíatamente interpretadas). As unidades, ou-
trossim, parecetn ser ilimitadas envnúmero, contrastando com o núniero limita­
do de fonemas de uma determinada língua. Ao mesmo tempo, tal constatação foi
uma das bases da passagem de uma “Semiótica da,Comunicação paia uma Se­
miótica da Significação”, cuja ênfase já não reside necessariamente no signo mas,
sim, nas semioses ou processos çm qúe a significação e gerada. ^
Uma das muitas tipologias dos signos propostas por Charles Sanders Pcir- .
ce tem a ver com a relação dos signos (na visão derivada de Saussurc, seriam na
verdade significanfes) com seus objetos (referentes): distinguem-se, então, íco­
nes, índices e símbolos. •
•Os ícones são signos cujo significantc (sendo o sigmficante chamado de
■signo no sistema peirceano) mantém coiii seu objeto tinia relação de analogia,
sendo exemplos o desenho figurativo ou a fotografia. Funcionam segundo um
prmcípio de semelhança, similaridade, analogia próxima: ,■
■ Os 'índices são signos cujo"signlficanle mantem cóm seu objeto ufoa rela­
ção causai de configüidade físiav natural. Exemplos: a palidez do rosto indican­
do cansaço, a inarca de um pneu no barro.
' Os símbolos sãó signos cujo significante mantém com seu objeto uma re­
lação que depende da convenção. São exemplos a bandeira ou o hmo nacional
em reiação aó país, a pomba cm relação à paz, as palavras, em relação às coisas
■f por elas-designadas.. ‘
Para Peircc, esta classificação mostraria relações predominantes signo/ob-
"jeto mas, hão, exclusivas. Assim, por exemplo, a marca dc um pneu no barro é in­
diciai mas também apresenta semelhança com elementos do próprio pneu quan­
to à aparência: portanto, inclui aspectos icônicos. A representação pictórica, cm
cada época ou escola, làz-se segundo convenções ou regras representativas, o que
remete a aspectos convencionais ou simbólicos. Érilrc os símbolos que são aS pa­
lavras da linguá, alguns têm uma fotençíiq imitativa e por conseguinte,icônica:
são as onomatopéias. ,- • • , / . ■ ' .
, 1 t .. ’‘ ‘ _

'• ■ ' "237


Q ikiiUo ao ícone, deve esc Iareter-se que a semelhança entre o próprio
signo (ou significaiile) e seu objeto pode não ser visual. Quanclo/num seria-
<lo uai i.ativo radiofônico, se ouvia,a gravação do galope de'um cavalo, Isto
funcionava como um ícone auditivo do objeto /cavalo/, ou de /um cavaleiro
aproximando-se (ou afastando-se)/. A imitação da textura do couro natural
no couro sintético proporciona uma iconicidade táctil por meio da qual o
plástico (signo) remete ao couro verdadeiro..O sabor artificial de framboesa,
qulmicamenle elaborado, funciona como ícone do sabor natural de írantboe-
Sií, relaIivamente ao paladar. •
^ imagem 6 só um dos tipos de ícones, Também são ícones, para Peir-
cet os diagramas e as metáforas. A semelhança dos diagramas com sou objeto
6 relaciona! e não visual: por exemplo, um organograma em relação a uma
cmpiesa, ou ao governo, o esquema de um sistema elétrico em relação ao sis-
Nlema'concreto. No que diz respeito às metáforas, trata-se de um paralelismo
qualitativo entre signo é objeto e> não, de uma semelhança visual.
Agoia, poiem, interessam-nos unicamente os ícones que sejam ima­
gens figurativas e, portanto, a Semiótica da imagem, que só se desenvolveu
mais a partir de meados do século 20.
Um dos trabalhos fundadores da Semiótica da imagem foi o artigo dé
líolnnd Barthes “Retórica da imagem” de 1964') que formulava interrogantes do
tipo: como lhes vem as imagens o sentido? As mensagens visuais utilizam uma
linguagem específica? Tentando dar resposta a estas perguntas, uma primeira
aproximação consiste em constatar ser a imagem algo heterogêneo, que con-
lém pelo menos dois níveis significantes principais,’cuja interação produz um
sentido passível de decodificaçãq: 1) signos analógicos ou ícônicos sttieto sen-
Sir, 2) signos plásticos (cores, composição, textura). Além destes dois níveis, en-
lietanto, é preciso considerar um-terceiro: 3) em cada cultura, há um vocabu­
lário interiorizado pelas pessoas, conscientemente ou não, que lhes permite íà-
lar sobre imagens; assim, signos linguísticos ou verbais associam-se intimà-
menle aos visuais para a inteligibilidade d a imagem, para sua decodificarão!
A imagem é, para começar, algo que se pareée a'outra coisa: pertence,
portanto, à categoria das rcpresentaçõesvQ que se parece a outra coisa por defi- '
niçao não ó tal coisa, não é aquilo que representa. Como signo representativo, a
imagem peitence à categoria dos signbs icônlcos, portanto dos signos analógi­
cos: a semelhança é seu princípio de funcionamento. ■ •

238
. : - Existem duns modalidades básicas de imagens: 1) as imagens fabricadas,
como uma pintura ou uma escultura; 2) as imagens registradas ou gravadas nà-
turalmente. As imagens fabricadas tratam de imitar mais ou menos exata ou
corretamente, rqais ou merios,detalhadamente, aquilo a'que se referem. Ás ima- ■
geos gra vadas haturalmente—fotografia, imagens cinematográficas (que podem
ser fotográficas ou, como na televisão, no vídeo e no DVD, eletrônicas) —fot-
mam-se a partir da luz refletida pelo próprio objeto: são o traço dó objeto em
algum piaterial sensível. Em'outras palavras, o poder deste tipo de imagem vêm
do fato de ser ao mesmo tempo ícone e índice•. Tende-se a esquecer com alguma
facilidade (acima de tudo no caso do cinema, da televisão, do vídeo e do DVD, _
devido à aparência de movimento) ó seü caráter de representação: o ícone sc
oculta por trás do índice, a ilusão de realidade atinge vim ponto máximo.Mes- ■
mo assim, é importante não esquecer que, como qualquer signo, mesmo a ima­
gem gravada segundo processos tísicos ou naturais é construída segundo íegias
determinadas que implicam convenções sociais: ela circula de fato nos três ní­
veis, sendo simultaneamente ícone, índice e símbolo convencional. .

A ANÁLISE SEMIÓTICA DE OBJETOS - „ . Ã’


• ARTÍSTICOS FIGURATIVOS . *

- As tentativas de teorizar sobre a arte esbarram com frcqüência nó fató


dè que» desde I-Cant, existe uma forte propensão a achar que o juízo estético per­
tence à categoria dos juízos que não têm a ver com a naturçza do objeto mas,
sim, cora o modo de sua recepção: ou seja, “o juízo estético-só pode ser subje- ■
. tivo”. Assim sendo, as sensações estéticas não poderíam ser objeto dè conheci­
mento, de estudo raciortal intersubjetivo. Esta convicção,'ainda quando implí-
' cita, erã forte fator limitador das possibilidades de Uma teoria da arte e da Hte-*
fatura, ou de sua história racional, bem como continuou a contrapoi-se às ten­
tativas dè construir uma análise da semiótica artística ou literária cujas bases
. fossem-objetivas. Houve, sem dúvida, tentativas eni tal sentido; nunca,' no en­
tanto, foram de iodo convincentes' Para alguns, a solução seria deixar de lado,
de todo, a questão'estética. A semiótica ténlou, pois, às vezes, conj resultados
variáveis, evacuar tal questão. . • -

239
ID
Umbcií» rico maneja a noção de “lexlo estético” —e, em semiótica, içxlo
pode enlemler-se também ao se tratar de objetos não-verbais - caracterizando-o»
com apoio em Roman Jakobson» por se notar, na mensagem dotada de “íynção
poética (ou, mais em geral, função estética” poderiamos agregar), algo ambíguo
e aulo-rellexivo por sua própria natureza. Ter-se-ia uma ambigüidade estéfica
quando a um desvio nó plano da expressão corresponder uma alteração qual-
í|ticr no plano do conteúdo” Após uma série de operações que davam de início a
impressão de poder conduzira critérios objetivos, oMulor, no fim das contas, aca­
bou por definir o texto estético como “o modelo estrutural dé um processo de in­
teração comunicativa”: o que implica, no mínimo, boa doáe de subjetividade, pos­
to que o destinatário do discurso literário é chamado a exercer "uma colaboração
responsável, em sua(s) ieilurá(s) de um texto assim, tratando "de preencher os va­
zios semânticos,.de reduzir a multiplicidade dos sentidos, de escolher seus "pró­
prios percursos de leitura”, isto caracterizaria o texto estético como "fonte de uni
alo comunicativo' imprevisível” - , ■ J
A solução de Robert Schples é relátivamentc similar: embora critique Ja­
kobson, no qual Eco escolhera apoiar-se, por "regressar à estética exatamente
citiando deveria prosseguir'com a semiótica”, parlillia com este a mítica noção
de "lileiariedade” - algo que todas as obras literárias teriam em comum se
bom que destaeando-a aparentemente da estética (para Scholes, uma obra não
inécisa ler “valor” para ser literária). No entanto, enfatiza a ambigüidade como
laior central da filerariedade, numa exposição a partir da teoria da comunicá-
çao. a ambigüidade, em se tratando de um texto (conceito que pode lomar-sè.
no sentido geral que dá ao termo a Semiótica), estaria presente em todos os ní­
veis da comunicação (emissor, receptor, mensagem, contexto, cana! e código);
mas, como mostra outro conceito que maneja, o de “narratividade” como atri­
buto do decodificado- (ver, sobre este assunto, o nono capítulo desta antologia),
no fundo Scholes não fica tão longe de uma solução do tipo dd de Eco: privile­
giai o destinatário ou receptor, com o qual não se vê nruito bem como seria pos­
sível desprender-se de Kant,
talvez por tal razão, Tzvetan Todorov, embora permanecendo fiei a Ja­
kobson e à noção irremediavelmente mítica e inefável de literariedade, decide -
abandonar, provisoriamente pelo menos,, a questão do juízo estético etli sua/
Poética: uma atitude que também apareceu em trabalhos de intenção semiótica
que enfocavam as artes plásticas.
***

Após estas observações de caráter geral, abordaremos agora algumas .


das possibilidades da Semiótica aplicada a objetos visuais representativos,
exemplificando tipos de estudos possíveis nos casos em que o historiador es- ;
tiver interessado cm usar métodos semióticos em trabalhos nos quqis os obje­
tos em questão não sejam simples fontes para uma outra história. Estaremos
pensando, portanto, de momento, no uso de objetos assim, submetidos a in­
dagações' ou decodificaçôes de tipo sqiiiiótico, em -pesquisas de História da
Aite ou, mais em geral, de História Cultural, ,, .
' . Á imagem visual còstüina ser encarada; hoje em dia, como úm todo fe­
chado cie significação: um texto suscetível de análise. Na chamada semiótica *
'planar contemporânea, a imagem define-se como um texto-ocorrôncia em que
a iconicidade não passa de um juízo, uma conotação veridictória culluralmerí-
te determinada. A designação “planar”.se deve a que a semiótica em questão es-,
tuda significantes bidimensionais contidos num plano: foto, imagem cinema­
tográfica ou televisiva, cartaz, história em quadrinhos, pintura, planta uibana
ou arquitetônica etc. Diferentemente de um içonísmo à maneira de Peircc; isto
és, baseado na analogia ou na similitude, interessa-se centralmènte em es tabele- .
cer categorias visuais específicas no nível da expressão, para procurar suas re­
lações com o nível do conteúdo. Também pesquisa as coerções que o .caráter bi­
dimensional impõe à manifestação das significações. Interessa-se, ainda, cm
buscar formas semióticas mínimas: relações, unidades, sememas.
' ' Em primeiro lugar, temos a questão do estilo, uma noção que, por niui-
. to tempo, permaneceu fora das preocupações semiótiçàs básicas no concernen­
te a objetoS yisuais, salvo algumas exceções (J, Guiraud,M. RÍfiaterre). Tal como
usado em História da Arte ou pelos críticos dc arte, ofestilo tecia a Ver com o
conjunto {na verdade imprecisamentè definido) dós cleiüen tos que estabelecem
a forma específica ou típica.em que sc expressa um dacjo artista, utm dada es­
cola artística, uma dadrépoca. Como no fondo se está talando de coisas dife­
rentes ao tratar de um autor isolado ou de objetos coletivos (escola, época), uti-
liza-sc, às vezes, no primíeirovcaso o termo idiokto, no segundo, socioleto, Jogan­
do com õs dois níveis é possível mostrar, por exemplo, descritivamente, como
um artista, trabalhando no plano de úin socioleto, de um certo universo semiõ-
fico de dada escola ou época, chega a variar alguns de seus elementos, no plano

-241
<l;t expressão, para atingir conotações definidas no plano do conleiklo. O estilo
surgiría da produção dé determinadas figuras discursivas (no sentido tanto sin-
líilico quanto semântico da expressão, ou seja: na maneira como os elementos
(pie as io. mam se organizam uns em relação aos outros no discurso artístico; e
'quanto â significação que veiculam), capazes de ser reconhecidas, por alguém
que não s.cja o artista ou um conjunto de artistas* (se se estiver considerando
uma escola ou tuna época globalmente), como Uma espécie de “assinatura”, de
marca de especificidade. Em outras palavras, é possível, em princípio, coüside-
iai o estilo como certas marcas de reçpnhedmento - enunciados estilísticos -
presentes no texto (semioticamenle falando) constituído por uma obra oü um
conjunjo de obras (um corpus). Estando vinculadas à questão do reconhecí-
mento, as marcas estilísticas remetem a um aspecto definido da estética: o recò-
nhecimeuto do “valor” estético da obra de arte,
Omar Calabrese tenta estabelecer uma semiótica do estilo partindo de
um conceito que toma de Louis Hjelmsley: o de formante. Os formantes são
elos dispostos no plano da expressão, correspondendo a unidades do plano do
contendo, mas não identificávei$'como unidades básicas ou mínimas no pla­
no da expressão. A percepção dos formantes parte do uso, não da.estrutura:
seria ma is exato?por isto, sempre falar de "formante de? algo preciso.e dellmi-,
tado e, não, simples ou genericamente, de “formante”. Ampliando o conceito
pata aplicá-lo à semiótica do estilo, Calabrese considera certos elementos, os
cstíhiniis, comq formantes de” um estilo, segundo o raciocínio seguinte: 1) ò
estilo é formado.por variações no píaiio da expressão a que correspondem
eleitos de conteúdo; 2) estes efeitos poderíam chamar-se estilemas, isto é,
configurações discursivas relevantes, tanto na dimensão semântica quanto na
’ sintática”; 3) os estUenias funcionam como marcas de autoria (seja que se
considere o autor Individual, seja que se examine globalmente a escola ou a
é|>oca), conformando o enunciado que o? contém como enunciado que con-
duz o observador ao reconhecimento cognitivo de um estilo a'que sc atribui
(social ou historicamente) um valor estético; 4) por conseguinte, o estilo iqte-
gia a dimensão cognitiva da estética. A análise baseada neste raciocínio parte
de uma característica qualquer, por exemplo, o tempo, para verificar que um
uso repetitivo, reiterado, de determinada forma de representar o tempo pode
conduzir o observador informado ao (ou pode ser parcialmente responsável
pelo) reconhecimento de um estilo pictórico dado a que se atribui valor esté-L
tico, A cxcmpli(icaçãi> que busca'o próprio Calabrese é o estudo da represen­
tação do tempo num tema pictórico especial, o das naturezas mortas. - '
A Semiótica textual considera ser o texto, pop um lado, um efeito glo­
bal que é a soma dos efeitos de significações parciais que contém (o que quer M
dizer que se põstula a possibilidade de passar dá micro à-macrossemânfica); ^
por outro lado, estuda-o'como uma coristrução que regula suas cstratuiás In­
ternas num nível profundo: as estruturas internas do texto têm a ver com a or­
ganização nele perceptível mas, iguahnénte, com o íãto de encará-lo como re­
sultado de um processo, no qual se considera a relação cdtre a modalidade de
produção do texto e o próprio texto (entre emmciáção e enunciado), também .
a relação entre o "texto e o leito rí Quanto ao último ponto, não há unanimida­
de; certos autores se referem a um “leitor implícito , ou imanente, cujas mar­
cas podem ser percebidas tío próprio texto (leitura gerativa); outros tendem a
considerar que o leitor considerado abstratamente coincide com uma espécie
de média dos leitores empíricos (leitura, interpretai iva). Em outras-palavras,
um texto contém em seu interior indicações acerca-do processo enunciativo
que o gerou e acerca de, sua leitura/interpretação. ,
' - .Embora o que'se acaba de apresentar seja válido, do ponto de vista da
Semiótica, para textos de quaisquer tipos, uma transposição simples das teorias
textuais pensadas para textos escritos ou orais (verbais) aos textos pictóricos fi­
gurativos não daria resultados satisfatórios. Isto porqüe, ria pintura, a relação
entre o processo de construção do texto e o próprio texto é mais cómpléxai do :
que nos enunciados verbais. A.s razões são sobretudo, duas: l) o iconismo, isto
é, um contrato comunicativo que pressupõe a possibilidade de iden tificar a.s re­
presentações pictóricas com as coisas presentes rio mundo; 2) concomitante­
mente, o icomsmó,que tem a ver cóm a dimensão da objetividade (ou ilusão
de objetividade) obtida-pela pinturafjó se realiza na dependência de .técnicas
específicas. O efeito de vérossiniilhariça passa por artifícios, por uma prática
técnica que.deve ser aprendida. Mas, na pintura figurativa, as. técnicas específi­
cas de representação (variáveis segundo períodos, escolas, artistas) devem estai
dé algum modo ocultas rio próprio texto, implícitas mas não explícitas: sua exi­
bição, a explicitação do espaço técnico da atividade pictórica, inlcríèriria nega-
..tivamente com o espaço miriiético pressuposto no contrato içônico. O anterior
pode sèí objeto de diversos tipos de análise. No caso da Semiótica, trata-se de.
''-estudá-lo tomando ps objetos artísticos figurativos como objetos dotados dc
nieios metalingüísticos próprios, específicos. .■ ' '

243
Um cios caminhos mais imporlantes para realizar um tal programa,de
esiudo reside nu utilização da noção de intertextualidade, tratando-se dc veri-
licar: !) a existência cie modalidades de manifestação da inlertextiialidade que
sejam próprias dos objetos pictóricos representativos; 2) o fato de não se po­
der reduzira intertextualidade em questão a uma rede de fontes evocadas pelo ■
lexto em forma mais ou menos explícita', devendo-se'verificar que aquela
constitui um princípio da organização mesma do-texto representativo, de sua
arquitetura’’ ou estrutura intrínseca., . - ''
O intertexto de uma, obra éoconjunto de referências a tex to s-o u gru-
pos de lextos - anteriores, que se trata de identificar para ajudar a com preen-:
são da obra individual e de seus efeitos estéticos parciais õu globais. Segundo
Gérard Genette, tratando cie textos escritos, intertextualidade (que ele chama
d° "I 1-ms textual idade”) é termo que, no fundo, cobre coisas bastante diferen-
les entre si. Distingue cinco possibilidades: 1) o intertexto propriamente dito
(citação, alusão e plágio ou decalque); 2) o pamtexto, um aparelho que cerca
o texto (notas, títulos, subtítulos, bibliografia, índice etc.); 3) o mhtatcxto, isto
e, o conjunto das indicações metalingüístfcas*que concernem ãos textos cita­
dos e ao texto em exame; 4) o arquitexto, conjunto de propriedades de gênero
pi-escnies no texto, ou por cie instituídas; 5) o hipertexto, que são mecanismos
lipoiogicos.de transferência (por exemplo, entre a Odisséia, a Eneida c o Ulis- '
ses de James Joycc). No entanto, além de que cm certos casos a extensão desta
tipologia a obras de arte figutativas seria problemática, a tipologia em questão
nao aborda, alguns dos assuntos de maior importância: assim,'por exemplo,
11,10 Pemi<tc estudar o plano de coerêncías semânticas (ou de outros tipos)
que funcionam no nível do intertexto, por um lado; e, por outro, a presença
no intertexto do resultado de transçodificações, de relações.entre diferentes
sistemas semióticos. Trata-se, neste último ponto, de conteúdos diversos que
passam dc ura material signÍficante'a outro: assim, por exemplo,1a descrição
do jardim dc Ermenonville por Gérard de Nervaí em Syhne remete, necessá- .
namente, a qüadros de Walteau cuja citação na narrativa é explícita
Ao sc tratar da análise da intertextualidade em obras pictóricas figura- .
Iras, embora algumas questões possam ser abordadas por outras disciplinas,
s.o a Semiótica permite obter uma visão sistemática do intertexto, fim lugáf, '
por exemplo, de buscar "influências”, como fazem âs vezes os historiadores.da
at-le, do que^e trata é.investigar.ò papel do intertexto na mecânica dos discur­

244
sos artísticos. Isto pode ser percebido a partir do fato de que o intertexto pre*
sente num texto sempre evidencia transformação'dos elementos de outros
textos aludidos, copiados, citadoiou plagiados,; A natureza e funcionalidade
das modificações ocorridas e exlremaníente pertinente ã análise semiótica,
por exemplo ao abordar-se mediante a leitura.isotópica atenta ao intertexto.
Outrossim, nas artes'figurativas; ojeconhccimento dos motivos não depende
de uma estruturação arbitrária do plano da expressão, como acontece pás.lín­
guas naturais (verbais) mas, sim,'de um contrato comunicativo que implica
uma relação de verossimilhança-entre as representações c os objetos do m un­
do natural - um iconismo semiotizado e difundido socialmente. Em outras
palavras, o sistema da expressão e o sistema do conteúdo, mais do que um ver
dádeiro sistema simbólico, não constituem senão um sistema scioisimbólico
(expressão de ]. M. Flbch). Pela mesma razão, as representações da pintura e,
mais em geral, das artes figurativas süò menos estáveis, mais frágeis.do que as
da linguagem verbal, tornando mais necessário; para o. reconhecimento de
uma forma complexa, o recurso ao intertexto (citação, alusão, decalque dc ele­
mentos aparecidos anterior mente em outros textos artísticos).

INDICAÇÕES PRATICAS E ;
LEITURA, ISOTÓPICA \
■Daremos agora algumas indicações práticas acerca de como procedei
para 0 uso de métodos semiótícos de leitura ou decodificação - estóremos
pensando especifica mente na leitura isotópica - em pesquisas históricas nas
quaisNs obras artísticas figurativas nao passem cie lontes para uma historia
que não seja a da arte ou da cultura. Damos como exemplo nossa ,atual pes­
quisa pessoal, que utiliza a leitura isotópica dè um corpusconstituído pelos 36
qelevos de uma capela situada hum templo “funerário" egípcio d o in ía o d o sé­
culo XIII a.Ç. para, em conjunto com textos escritos - aqueles presentes na
mesma capela, bem como outros - e' outras imagens -. estudar alguns aspec­
tos do culto diário aos deuses e, mais em geral, da religião nessa época; e paia
tratar de explicar algumas especificídades das imagens, que, á primeira vista,
podem parecer de difícil compreensão. —
Utna pesquisa histórica que usa uma grade semiótica de leitura no pro­
cesso de dçcodificação de fontes figurativas, no sentido que se acaba de indi­
car, terá, necessariamente, de realizar escolhas relativas a teoria, hipóteses e
métodos em dois níveis: 1) aquele da pesquisa.histórica como tal; 2) aquele
que-se refere à$ operações seraióticas a realizar. '
Deixando de lado o primeiro nível, que não‘precisa ocupar-nos
.H|ui, os passos a dar na investigação de tipo semiótico seriam basicamente
os seguintes: ,

* escolha (devendo-se justificar suà pertinência rio quadro dò: projeto


global) do corpus de figuras a que se aplicarãò métodos semióticos;
- descrição do corpiis e de, seu contexto: 1) na História do período em
que se geroti; 2) rio sistema dc representações do período em‘ questão;
* primeiro nível de leitura do corpus: caracteriza-se como uma decpdifi--
cação do mesmo a partir-do conhecimento de como operam os códi­
gos de representação em cujo seio se’gerou;
segundo nível de leitura do corpus: trata-se da aplicação ao mesmo dos
métodos ou grades de leitura especificamente semióticos (por exemplo,
a leitura iso tópica); . ;
* análise dos resultados obtidos,.a serem inseridos na pesquisa global.

A descíição do corpust seu primeiro nível de leitura e eve atualmente a


consideração de textos que porventura acompanhem ás figuras podem dar lu­
gar ;'i organização de um ftchário dc imagens Usando-se-o computador, '
^Explicarei agora, resumidamente, cm que consiste a análise ísotópícá,
Uiéfodo semiótico que recomendei para a análise dé imagens.
Na terminologia deAlgirdas Gteimas, distiriguem-se três níveis semân­
ticos do. discurso: o figuratívo, o íeiudtico c o axiológico. . .
Comecemos por examinar a oposição complementar entre /figurativo/
e /temático/. O.figurativo é um significado passível de ser.correlacionado em
forma direta a um dos cinco sentidos (visão, audição, tato, olfato' e‘paladar):
ou seja, que pareça ligar-se à percepção do mundo real, do mundo exterior ao
texto. Assim, por exemplo, o /amor/ é temático; mas os gestos concretos atra­
vés dos quais o ainor se expressa.(por exemplo: carícias, beijos, abraços, escre­
ver missivas amorosas etc,) são figurativos.

246 ♦
0 figurativo pode sei- /cônico ou abslnilo. O figurativo icônico se carac­
teriza por uma ilusão referencial, isto é, pdr dar a impressão de remeter ao
mundo real (quando, no texto, o que temos de tato são somente palavra?, nãd ■
o m undo real).,O figurativo abstraio retém unicamente um número mínimo
de traços que pareçam ter como referência a "realidade11. Se quisermos uma
analogia no campo das representações visuais, a foto de um político é do do-
, niínio do icônico; sua caricatura, do domínio do abstrato, A oposição figura­
tivo icônico/figuratKm abstraio é' gradual, e não, categoria!: admite posições
intermediárias. Tenho notado, nas pesquisas concretas, que em muitos casos o
historiador pode trabalhar cqm a oposição figurativo/temático deixando t o - ,
talmenle de lado a oposição figurativo icònico/figurativo abstrato.
• . ' Falta enfocar o nível semântico axiológico, que tem a ver com algum
sistema dê valores - éticos, estéticos, religiosos, òu-outros quaisquer que os
conteúdos dos textos manifestem. Em relatos populares, por exemplo, tráta-se
amiúde de valores éticos em oposição: bcm/nial, bom/malvãdo. Euforiza-sc,
então, a dupla bom.comportamento/bom tratamento, disforizando-sc,máu
comjwrtamento/mau tratamento: e assim que, nos çontoí de fadas, os bons
são finalmente recompensados ,e Os matts, castigados. Num sistema axiológi­
co religioso como o cristão, euforizar-se-ía á "santidade” e sc disforlzaria ó ■:
.. “pecado”. Num sistema estético, o "belo” é que' seria euforizado, o "feio”, disfo-
rizado - e assim'por diante.
\ Passando à questão da isotopia, começarei por reproduzir a definição •
desta, categoria semiótica por Algirdas Greimas: •‘

Por isotopia, entendemos vim conjunto redundante de categofias.seinauücas


. . que torna-possível q leitura uniforme do relato, tal como resulta das leituras par-
ciais dos enunciados e da resolução de suas ambiguidades, guiada pela busca de
' .■uma leitura únjçaê v ■

■ É possível, com apoio nas categorias semânticas isotópicas, a passagem


da micrb-scmântica (entendida como a .significação presente em cada frase ou
enunciado'que se-tomar isoladamente) I maçro-semânlka (a significação do
discurso completo, considerado no nível transfrasal). Seriam categorias semân-I

I GREIMAS, Algirdas Julien. Du seus: Essais sémiotiques. Paris: Seuil, 1970. p. 188. -

247
tiais isolójwas.aqueles elementos de significação recorrentes, redundantes, repe-
lllims: os quais, por tais características, são subjacentes à coerência textual.
O lnélodo de leitura isotópica, para conseguir aquela transição da mi-
ci o para n macro-semântica, consta de três etapas: .

1) num primeiro momento, o exame comparativo das partes componen­


tes de um texto —.frases, enunciados - descobre suas categorias sêmicas
(de significação).subjacentes; :-
2) em seguida, isolam-se dentre elas àquelas categorias sêmicas que se re­
petem, que são recorrentes no texto: são estas, precisamente, as-Catego­
rias isotópiças; *■ . . . .
3) por lim, tais categorias isotópicas são distribuídas pelos três níveis se­
mânticos de que falei anteriormente (figurativo, temático e axiológico).

A. QUESTÃO DA CRISE ATUAL DA ' •


CLASSIFICAÇÃO DE CERTOS OBJETOS
COMO “ARTÍSTICOS” - ■ ’
. * ■

Nestes últimos tempos, no relativo às artes plásticas, é possível ter-se a


impressão de uma crise aguda - cuja saída, pelo menos pdr enquanto, não está
à vista - dos crilérios de indusão/exclusão de objetos em categorias reconheci-
das com algum consenso como integradas pôr “objetos,de arte”. Dian te disto, é
bom recordar que nem sempre foi âssim. Até o século 18, nas sociedades aris­
tocráticas européias, O rei, os nobres e os príncipes da igreja, ao dominarem
mediante o mecenato a encomenda'.tanto-das obras monumentais (“públicas”) . 1
quanto daquelas destinadas a.coleções (“privadas”), impunham em alguma
medida as regras do gosto e do sentido rios diversos domínios das artes plásti­
cas. Uma reorganização interveio a seguir, com o museu, o inercado de arte e a
demanda estatal de obras monumentais'atuando doravante na sustentação
econômica dos diversos setores artísticos. E, rio século 1% q Romantismo ini­
ciou, mediante certas noções e reivindicações críticas, processos que desembo­
caram depois nas idéias de “arte de vanguarda” e “arte moderna’. Apesar destas
transformações, por muito tempo não se questionou a pertinência daquela dis-

248
tinção ejilie arte pública (monumental) e aíte privada (destinada a coleções)
como elemento definidor do mercado e dás encomendas ou aquisições queo
configuram. Em função disto, pôde formar-se, ao longo de muitas décadas,
toda uma sólida tradição que poderiamos chamar de “Belas Artes, teorizado-,
; ra da hierarquia entre artes maiores e artes menores (incluindo estas.as artes
aplicadas"), a^quál mantinha laços indubitaveis com o poder dos Estados bur­
gueses contemporâneos e suas políticas relativas às artes; uma tradição cujo
stütus hegemônico era ainda muito forte em meados do século 20,
Ao longo da segunda metade do século 20, entretanto, vemos essé sta-
tus perder força aos poucos, sob p embate de fatorès variados, alguns já bem
atuantes desde o século anterior, como é o caso do impacto da reprodução in­
dustrial das obras artísticas, do comércio de estampas è de miniaturas de es*
; culturas, até desembocar, em meados do século 20, em coisas como o desafio
■de Andy. Warhol ao caráter “único” da obra de arte na era da reprodução fácil
é de alto nível - que, de Warhol até hoje, algumas décadas mais tarde, aperíei-
* çoou-se ainda muitíssimo mais: a nossa é à época das imagens transmitidas
por fax ou pela Internet e impressas facilmente em domicílio (caso se dispo-'
nha dos aparelhos e programas adequados, coni alta resolução). -
Não podemos desenvolver aqui tudo o que contribuiu para a crise do
paradigma que teve tanto sucesso anteriormente na classificação das artes ^
plásticas. Pará dar alguns exemplos:'Umà mutação da concepção governamen­
tal acerca dos espaços públicos, desvinculando-os de certas formas de piodu-
"•çjo monumental comemorativa e abrindo-os às artes vivas do espetáculo, oú
à “arte da rua"; o sucesso crescente das instalações e de formas de iconografia
diferentes das tradicionais (publicidade, desenho Industrial, história em qua­
drinhos, cartazes, painéis, murais etc.), cujos canais de produção, teorízação e
. consumo, e cujos critérios dc in.clusão/cxclusão estética, ou não se percebem
• clafámente, ou são incipientes e extremamente debatidos, não contando com
qualquer consenso, além de, em certos casos, se tratar de objetos maicados.
por um caráter inlrinsecamente efêmero e descartável, típicó da chamada
“arte de massa"; 9 surgimento da “arte de empresa ’ em diversos domínios,
competindo com o artista individual tradicional no Ocidente ou integrando- .
o eni suas coletividades eéquipes.
Entre os resultados; da crise-perceptível por mais.que ás instituições,
tradicionais tentem' adáptàr-se às novas tendências (os museus, por exemplo,

249
itbrom-se a Ibrmas artísticas que seriam impensáveis neles há algumas .déca­
das) - temos este, segundo Anne Cauquclin:
1 * t i
(...) existe um lugar (...) onde a descrição da,crítica, mesmo quando quer sc exer­
cer, fracassa ruidosamehtc: este lugar é o.da arte tecnológica contemporânea. (...)
os objetos artísticos produzidos pelas novas tecnologias são impenetráveis crítica-
na medida em que obedecem a regras de produção que até agora não tinham cur-'
so 11a esfera da arte.1. , . ’. \ (

Torna-sc difícil, hoje em dia, senão impossível, portanto, até mesmo falar
acerca de certas formas de arte com algum rigor e precisão: as grades de “ leitura”
disponíveis ~ Semiótica artística, iconología, hermenêutica de Obras de arte etc;
- foram todas pensadas para a arte figurativa e oão têm como aplicar-se a outras
modalidades dc imagens. Se é assim, como, então, continuar decidindo acerca da
inclusáo/exclusão de objetósnas esferas do que é ou não “artístico”? v
, liste estado dc coisas explica certos fenômenos como, por exemplo, o
"escândalo çle Aries” em julho de 1995. A seleção dos fotógrafos quê se dirigi­
ram àquela cidade francesa para.um encontro sobre fotografia, diante do que
imtilos viram como um nível baixíssimo das obras acolhidas, provocou um'
protesto violento dos críticos e desembocou num debate inconclusivo acerca
do sUittis artístico da fotografia e de a quetn deve caber pronunciar-se sobre as
fotos: aos críticos de arte (que julgam à partir dc critérios retirados da “foto
plástica” ou artística já consagrada, aquela dos profissionais bem estabelecí- ■
dos) 011 aos fotógrafos numerosos que pretendem protagonizar pesquisas que
não aceitam os limites daquela “foto plástica” e reivindicam, contra os artistas
já hem reconhecidos do setor, o direito de também ter acesso ao status de ar­
tista, ao mercado da fotografia e às exposições? Alguns notaram a semelhança
com 0 salão qué organizaram, em 1863, os artistas não selecionados para p a r-.
liei par do Salão de Paris. » V
. Situações como está facilitara, no relativo às artes plásticas - nas quais
há 0 artista e há 0 público mas, não, o intérprete - , uma reivindicação “demo­
cratiza nlc” radical no sentido de que, onde não houver critérios ,cOm um grau
suficiente de consenso sobre a inclusáo/exclusão de objetos entre aqueles que

2 CAUQU.ELIN, Anne. Lei théoties de Vart. Paris: Presses .Universltaircs de Prance,


1998. (Que sais-je?, n, 3353) " , '
serão classificados como artísticos, todo objeto que seu autor pretender que é
artístico deverá ser assim considerado; e, por conseguinte, todos os que se
apresentem como “artistas” (uma quantidade de gente nada desprezível e mes­
mo crescente num país com os problemas, de desemprego; da França, por
exemplo) o sejam de fato. Não parece, entretanto, que o Eslado-mecenas, ou
mesmo os compradores privados, se deixem convencer por semelhantes pre­
tensões ao decidirem sobre encomendas e Compras-!..
. Caso deixássemos de ladò as arles plásticas e interrogássemos por exem­
plo o mundo da música, do lado dos criadores contemporâneos poderiamos
encontrar dilemas semelhantes: mas, neste caso, temos também d âmbito dos
intérpretes c, nele, não há sinais de uma crise do mesmo tipo. Os empresários
(estatais tanto quanto privados) ç o público..connaisseiir não têm dúvida algu­
ma sobre o tratamento diferenciado a ser dispetisado a um Arnaldo Cohen, por
exèmplo, em contraste com um pianista'não reconhecido (ou ainda não reco­
nhecido) como de nível semelhante, por mais que seja perfeilamcnté defensá­
vel que àtnbos “façam música” e á sintam e fiuam esteticamente dc maneira
respeitável. Há critérios definíveis é bastante consensuais de hierarquização,
porém - embora, sem dúvida, não excluam a incidência de jógos de poder e in- '
fluência, bem como de circunstâncias variadas (por exemplo q “azar” dos artis­
tas intérpretes europeus que atingiram seu auge. durante a Segunda Guerra
. Mundial e anos imedialamente consecutivos: muitas carreiras foram prejudi­
cadas por-fatores assim) - , vinculados a uma elevação constante, desde o sécu­
lo 48, dos níveis de formação e proficiência técnicas exigidos dos músicos, pâ-
ralelamente à ampliação também progressiva do mercado a eles aberto, o qual,
justamente, exige e permite uma especialização étn graus impensáveis nos sé­
culos-precedentes, bem como, em se tratando dos instrumentistas, ao incre­
mento das próprias possibilidades técnicas dos instrumentos, '
Todos o$'ddbatés acerca da árte, no relativo à nossa época, devem pres­
supor a inserção dos agentes (artistas) e sluis obras, como tudo mais, no âm­
bito do capitalismo e-da mercadoria, com as conseqííências resultantes no to­
cante à divisão do trabalho e à especialização crescentes - elementos de peso
na formação da noção da individualidade dos artistas bem como à forma­
ção de mercados específicos desobjetos artísticos. A situação era, sem dúvida,
consideravelmente distinta no mundo pré-capitalista.' ' . , •
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TODOROV, T/.vetan. Estrutiiralismp e poética. Trad. )osé Paulo Paes e Frederi-
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I
/ - „ Capítulo 12

* • • • ' ' * ,• ■*
\ ‘ , • ’ . - 1

Sociedade e cultura: conceitos


' COMPLEMENTARES OU RIVAIS?
♦ . I*

O PROBLEMA E SEUS
PRINCIPAIS COMPLICADÒRES
Começarei desculpando-me com o leitor pelas muitas citações, às vezes
longas. 0 tema é controverso e quero evitar deformar as posições que comba­
terei ou apoiarei neste texto. Gostaria também de precisar que se detalhará
mais, np artigo, a noção de cultura do que a de. sociedade, posto que acho
aquela muito mais problemática e causadora de confusões do que eista.
O emprego das noções (que nem em todos os contextos de uso se cons­
tituem em verdadeiros conceitos) de sociedade e cultura, em especial no tocan­
te às formas de ambas se relacionarem, pode Ou não sei- problemático, polê­
mico ou contraditório.
Existem modos de empregá-las érn que aparecem como complementa-
v. ,
resjDo ponto de vista marxista, por exemplo, já se afirmou que a cultura é um
meio ambiente artificial ou, em outras palavras, que o âmbito.cultural reúne
•“todos os elcmentos da existência humaná que não são biológicos nem podem
explicar-se pela referência exclusiva ao mecanismo fisiológico dos seres hum a-'
nós”. Assim, a cul tura associar-se-iá “à reflexão sobre a' origem social e aõ con­
dicionamento social da existência humana” Como se pode notar, “cultura” e
. ■■ n *
“sociedade”, neste modo de ver, relacionam-se èstrcitamente. Entretanto, não
designam a mesma coisa: a sociedade óu, mais exatamente, o sistema social -
definido “principalmente [como] um conjunto de indivíduos humanos entre

255
os quais existem relações” - , quando encarado relativamente à cultura, mos­
tra ser a condição histórica prévia do aparecimento das formações culturais,
Com efeito, a rede das ralações sociais, no tocante a cada indivíduo que se in­
tegra à sociedade (pelo nascimento ou pela imigração), surge como unia rea­
lidade previamente existente, uma “necessidade externa” .tão material quanto
“a terra que pisa,'a casa em que vive, as árvores queó cercam”:

Esta rede relacionai hislilúcionalizadn>isto é, transformada numa estrutura du­


rável, constituí precisamente o substrato material da cultura social transmitida de
- geração em geração,1 ' 1

No interior de unia tradição teórica muito diferente, o sociólogo webe-


riano lalcott Parsons e o antropólogo Alfred Krocber propuseram, em 1958,
definições das noções de cultura e sociedade que as tornariam, também neste
caso, estrifamentè complementares(delimitando, ipso facto, as'fi'onteIras en­
tre Sociologia e Antropologia); '

Sugerimos sér útil definir o conceito de athum '(...) restringindo seu referente
a conteúdos e padrões transmitidos e ,criados de valores, idéias e outros sistemas
signifícantes doponto de vista simbólico, encarados como fatorcs'que conformam
o comportamento humano e os artefatos qué tal comportaménlo produz. Outros-
sim, sugerímos qüe o termo sociedade. - ou, mais geraimente, sistema social—seja,
usado paia designar o sistenía especificamente relacionai de interação entre indiví­
duos c co(etividades/ |V > •, , •

Na opinião dé Parsons, discípulo de Max Weber, bem como na de Al­


fred Kroeber e dos antropólogos que o seguiram nessa postura (incluindo
Cliíford GecrLz), seria preciso reservar exclusivamente à.Sòcioiogia o estudo*•

I • BAUMAN, Zygmunt. Essai d’unc théorie matxiste de lã société. tJHoMme et iaSociété,


t . . Paris, A n th ro p o s ;15, p. 3-26, janv./mars 1970. {as citações remetem às p. 5-7,18-19).'
Muitos antropólogos que nunca foram marxistas aceitaram, igualmente, o vínculo in-
. separável'entre cultura e sociedade: “Do ponto do vista da Antropologia sociológica, é
inconcebível que a human idade, talvez, mais exatámeiHe, os seres humanos moder-
• nos, o Homo súpiens, pudesse ter vindo à existência e ler continuado a existir a nãõ ser
pôr meio da sociedade" (FORTES, M, Rulesuiid thc emergence ofsocicty. London: Ro-
yal Á.nthropologicallnstitxité, 1983. p. 1}.
2. KROEBER, Alfred 1.; PARSONS, Talco». The'eoncept o f cullure and pf social Sys­
te m . A m e ric a n Sociôlogicãl R cview , 23, p. 583,1958. .
dos sistemas e relações sociais, enquanto à Antropologia cabería somente a
análise da cultura, mas em versão que, para Parsons, limitaria Os objetos cul­
turais aos “elementos simbólicos da tradição cultural, idéias ou crenças, sím- '
bolos expressivos ou padrões de valores”. Nos.Estados Unidos, foi de fato so­
bretudo a-iniciativa dc Parsons que inaugurou, institucionalmente, uma dico-
■tomia radical entre sociedade (domínio de1sociólogos trabalhando segundo
uma teoria wéberiana da ação social: expurgada, porém, por Parsons da preo­
cupação do sociólogo alemão" com a História) e cultura (áreá reservada aos
antropólogos). Na maneira de ver proposta por Parsons - contra a qual, en-
' tre tanto, até inesmo os antropólbgos das gerações seguintes que concordavam
de início' com suas idéias básicas, a começar por Geertz» se rebelaram - a An­
tropologia estaria hierarquicamente subordinada, do ponto de vista teórico, à
Sociologia webero-parsoniana da ação social. Pode-se notar, então, que mes­
mo entre os què, no final da década de 1950, aJjrmaram serem complementa - '
res e não rivais as noções de socièdade e cultura, estavam implícitas divèrgên-
cias que afloraram posteriormente com clareza.9
Entre os historiadores, as noções de sociedade e cultura entraram em
•choque e competição pelo fato de que uma versão holística bastante influen-
' te, da década de 1950 à de 1970 sobretudo, propunha uma síntese globalízan-
te balizada de História Social ou História Econômico-Social,1enquanto, a par­
tir principalmente da década de 1980, houve quem defendesse a idéia de uma
História Cultural que, negando ser uma especialidade ao lado das outras, rei­
vindicava, po"r sua vez, o status de enlbque.com ambições abrangentes, fazen­
do-o, em forma explícita, contra a História Social ou Econômico-Social e seu
holÍsmo,\com freqüêncià (mas não sempre) defendendo uma análise micro-
' histórica. • '
Mencionarei dois exemplos claros desta posição agônica que trata de
enfrentar çntre si as duas modalidades de História c, também, as noções tnes-

3 PARSONS, Talco tf. The social system. NewYork: Free Press, 1951. p. 4. Para este epi •
■ ' sódio da história das ciências sociais.nos Estados Unidos, ver KUPER, Adam. Cul­
tura The anthropologísts’ pccdunt Cambddge, MA: Harvard Univcrsity Press,
1999. p. 47-72. *; . •
4 Ver, a respeito, CÀSANOVA, Julián, La historia social y tos historíac/ores.Bcircelanu:
Crítica, 1997. p, 35-109; IGGERS, Georg C. La ciência histórica w d sigb XX: Los
. tendendas actualcs. Tvacl. Clemens Bieg. Barcelona: Labor, 1995. p. 33-.5S.. .

257
mas <le sociedade e cultura. 0 primeiro é formado por estes dois trechos de
escritos de Rogcr Charlien . -
■ - 1 i ' "

A relação assim estabelecida não <5de dependência das estruturas mentais para
com suas determinações sociais. As plóprias representações do mundo social é-que
são os elementos constitutivos da realidade social,1
Da história social da cultura a uma história cultural do social. (...)... devemos •
encarar as representações coletivas como matrizes que dão forma ãs práticas com *
as quais o próprio mundo social é construído.1’

Ouçamos igualmente'o! que tem a dizer Antoine Prost: •„ .■

(...) a história cultural, atualmente, não quer ser uma história entre outras (,..). Pre­
tende chegar a ser uma explicação mais global, Na realidade, aspira a substituir a
história total dc ontem. (...) A história cultural não pode pretender destronar a his­
tória econômica e social de ontem, a não ser que proponha a si mesma um objeti­
vo similarmente ambicioso. Deve piretender ser válida para um conjunto amplo,
um grupo social, uma socieda de inteira. Para o conseguir, co nverte-se numa histó­
ria das representações, coletivas.*567 > . .

Estas citações bastam, segundo.creio, para'deixar claro que se trata, de


falo, de umen.frentamcnto. O tema deste artigo, entretanto, não e o confron-
Io. entre História Social e História Cultural, mas sim, entre os próprios concei­
tos (ou noções) de sociedade e cultura', se beni que minha, motivãçãò para o
fazer provenha de preocupações teóricas que tenho conto--historiador) A hipó­
tese que vou defender é a seguinte: “cultura”, ao cabo de uma trajetória de dois
séculos c meio, longe de, utilmente; poder cohtrapor-se a ‘'sociedade”, tornou-
se um conceito-obstáculo, em especial ao formularem numerosos estudiosos •

t -
5 CHARTIER, Rogei-, Texts, symbols, and Freiíchness. Jo u rn a l o f M o d e m H isto ryi 57, i
p. 682-695,.1985.
6 Il»id,, The world as representation. In: REVEL, jaeques; IIUNT, Lynii (Org.). H lsto -
ries:Frcnch constructions of the past. New York: The' New Preís',' 1995, p. 544-558
(a passagem citada está nás p. 549-552), 7 ..
7 PRQST, Anfoihe. Social y cultural, indisociablemenle, ln: RIOUX, jean-Píerre; Sl-
R1NELLI, Jean-Fiímçois (Órg.). Para una historia cultural. México: Taurus, 1999.
p. 139-156 (as citações estao nas p. 141-142) Trad. do francês sem indicação do
tradutor. Ver também: FALCON, Francisco, História, cultural: uma nova visão sej-
bre a sociedade e a cultura. Rio ‘de Janeiro: Campus, 2ÕÓ2. p. 88-102. ■

258
\
H’pretensão cie transformá-la num? noção auto-explicativa que, além disto,
provessè os dados centrais para uma compreensão dos assunfos humanos,
dentro da versão de lima '‘natureza humana” não historicizada hoje conheci­
da como o Hotno symboHais.Á posição que defendo já foi exposta eloqüenle-
mente por Adam Kuper, que cito copl total aprovação: ' •

(...) quanto mais sé considere ò que há de melhor no trabalho moderno feito pelos
antropólogos sobre .a cultura, ipais aconselhável déve parecer evitar completamen-
te tal tei mo'hipeir-referencial e falar, mais precisamcntc, de conhecimento, crença,
arte, tecnologia, tradição ou mesmo ideologia (embora problemas similares sejam
postulados por este conceito poliyalentc). (...) As dificuldades tornam-se agudas ao
máximo quando (...) a cultura desliza de algo a ser descrito, interpretado, até mes­
mo .talvez explicado, para Ser tratada, em vez disso, como unia fonte de explicação
•• ciii si mesma. Não afirmo isso para negar que alguma forma de explicação cultural
possa ser bastante útil, se mantida ém seu devido lugar; mas o apelo à cultura pode
oferecer unicamente uma- explicação parcial da m ã o das pessoas pensarem e se
comportarem como o fazem, è. daquilo que faz com que alterem seus modós de
pensar c agir. Forças políticas e econômicas, instituições sociais e processos bioló­
gicos não podem ser ignorados óu assimilados a sistemas de conhecimento e cren­
ça. R isto, eu sugerirei, é o principal obstáculo no caminho da teoria cultural/ain­
da mais «msiderando-se.suas pretensões aluais.®

.• Nota-se que o antropólogo sul-africano, ao mesmo Lenipo que advoga o


abandono do conceito de cultura, não acredita de verdade que tal possa acon­
tecer, já que feia tçseguir de “cultura" e de “explicação cultural”. Também cu não
tenho a ilusão dc que, por útil que fosse enterrar decentemente esse conceito
polissêmico em demasia (em 1952 já se recenseavqm 164 acepções diferentes cie
cultura e de seu quase-sinônimo civilização!), isso se possa conseguir. É preci­
so, pelo menos, podar as pçetensões que hoje se atribuem a tal noção. .
Como outros debates relativos às ciências sociais, os que envolvem as
noções de sociedade e cultura sofrem o efeito de elementos complicadores que
consistem na tendência à polarização unilateral de enfoques divergentes das
coletividades humanas. Duas instâncias disso interessar-me-ao neste artigo.
Uma delas já foi por mim desenvolvida em artigo publicado recentemente em
uma revista, razão pela qual será sómente mencionada. Trata-se do confronto *8

. - . ,i
8 IÍUPER, Adam. C uhure: The anthropologísts’ acçount. Cambridge, MA: Harvard
University Press, 1999. p,“X-Xl. . ,

259
ciilio tipos do Icorias acerca das sociedades humanas complexas, tendente a
distribuí-las em dois grandes grupos: o das teorias que enfatizam a integração
social (as quais habitualmente se vinculam à definição da sociedade como
soma do indivíduos), em contraste com .o das que sublinham o conflito social
(que quase sempre insistem na natureza coletiva doS sujeitos sociais).9 ' .
Bis aqui um exemplo interessante de exagçio absoluto da tendência a só
eitxeigár o nível individual, no que se refere aos efeitos dela sobre as noções
cio social e do cultural, chegando a còiisíderaf tais dimensões como meros epi-
fenòmeuos:

(...) d cultura, o sistema social e iodos òs conceitos supra-individuais desse tipo, taiíí-
como representação coletiva, espírito de grupo e organismo social, [são] abstrações
conceituais ilusórias inferidas dá observação dos “fenômenos reais” que são ós in­
divíduos interagindo uns com bs outros e com o.seu meio ambiente natural. As cir­
cunstâncias da sua interação’ levam quase sempre a similaridades no comporta-'
mento dc indivíduos diferentes, que tendemos a reitlcur sob q nome dc cultura, e
, fazem com que os indivíduos se relacionem uiis com outros de maneiras repetiti­
vas, que tendemos a rei ficar como estruturas ou sistemas. Na realidade, cultura e
sistema social são meros epifenômenos - produtos derivados cia interação social dc
pluraüdades de indivíduos."’ .• f-
.f 1 . •• -
Uma segünda polarização resulta de cjuc ós estudos do social sempre en-
cotHrai ani. diante de si um problema crucial. De modo didático, o dilema en­
volvido pode ser definido como unja alternativa entre: 1) abbrdár o social pri­
vilegiando o ângulo material e as ações quê os homens efélivamente realizam;
2) ou fazê-lo dando maior importância ao ângulo mental. Obviamentê, os dois
** / .. V
coloques menciona dos's«ãò íntima e até mesmo ínextricavelmente ligados, mas
jiiío há dúvida de qlie a alternativa indicada existe e podem achar-sé estudos (a
maioria deles, na verdade) qué enfatizem seja um ângulo, seja .o outro.
No primeiro caso, süblinha-se aquilo que todó sujeito individual ou co-
Icjivo já acha diante de si n;\ sociedade em que vem a existir (os objetos, a lín­
gua, a divisüó dó trabalho etc.; em resumo, aquilo que determina o enquadra- *10

9 CARDOSO, Ciro Flâmarión, História do poder, história política. E studos Ibero-


A m e rica n o s, 23, 1, p, 123-141,1997 (o qtie agora interessa*está nas p..128-132),'
10. MURDOCK, Georgç P; Anthropalogy’s mythology, 1972, apudSÀHUNS, Mars­
hall. Cultura e razão prática, Trad. Sérgio Tadeu Lumatão. Rio de Janeiro: Zahar,
1979. p. 110. : ■

260
J

mento instrumental de sua ação), bem como as ações individuais'ou colelivas,


as práticas mediante as quais tal sujeito participa da perpetuação, reprodução-
e reinvenção permanentes do social. - •> '
Caso á preferência recaia no ângulo mental,- perceber-se-ão central­
mente a religião, as ideologias, as representações, o imaginário;, a interpreta- Ç
ção dos símbolos; aquilo, portanto, qüé é pensado, mas também o impensado
social (sonhos, mitos, o inconsciente.ou não-consciente coletivo).
Como se afirmou, ninguém nega o caráter inseparável do material e do
mental. Nenhuma ação individual ou coletiva podería exercer-se sem estar re­
ferida ao mesmo tempo a um piojeto, ou .a uma ideologia, ou a um mito etc.,
que tenlia cursò na sociedade de. que se trate. £, simetricamente,- uma institui­
ção qualquer (igreja, escola, justiça, por exemplo) se caracteriza tanto pelos
gestos e práticas materiais ritualizadas que exige quanto pelas representações
que supõe. A dialética do material e do mental tem,-em seu centro, a lingua­
gem, já que esta contém tanto ação quanto representação, pelo qual permite
formular, melhor do qualquer outro elemento da sociedade, as relações entre
idéia e ação na consciência social. Nas palavras do sociólogo Claude Javeau:

Unia:sociedade (...), ap mesmo témpo que é "agida” por seus membros - e, re-
cíprocamente, ao mesmP tempo que age sobre eles - , é, em forma simultânea, .
“pensada” c "imaginada” por eles," - '
• ' \ '' 1 ' .
A tentação de privilegiar o mental (as idéias) sobre o material sempre
tbi mais forte no tocante à noção antropológica de cultura do que nas defini­
ções dó que seja a sociedade. CitareiVum exemplo taxativo:
' ' ■ ■■ -■ ‘ " ■■■' ■ ” ' ' ' ■/ ■■■
Á distinção entre cultura çomó ordem fenomenológica e cultura como ordem
ideacionalf a primeira característica.de uma comunidade e a segunda'característica
de seus membros [individualmente considerados - C.F.C.], é algo de que os antro­
pólogos vêm trata ndo a partir tíe diferentes pontos de vista há já algum tempo (...}. .
Alguns antropólogos, incluindo este que escreve, preferem utilizar o termo "cultu­
ra” para referir-se unicamente â ordem içieaciohal.‘:

11, JAVRAU, Claude. Leçons tk sociologíe apud ROÍ5ERT, André D.; BOUÍLLAGUET,
Annick. Ctuwfyse.de contému Paris:-Presses Univcrsitátres de Fratke, 1997. p. 44.'
12 GOODENOUGH, Ward. H. Introducción. In: LLOBERA, José R. (Org.). La antro­
pologia como ciência. Trad. Antonio Desmonts et al. Barcelona: Anagrama, 1975.
p. 25-45 (a citação é da p. 37, texto e nota 19):

A. i ' 2õl
CULTURA'
A NOÇÃO'DB CULTURA ANTES DE EXISTIR A ÁNTROPOLOGIA
CO M O DISCIPLINA ACADÊMICA CONSTITUÍDA ■\

Poi no século 18 que a noção de cultura, até então limitada—como na pa­


lavra latina idêntica de que deriva - à cultura da terra e do gado (agricultura),
adotou, n metáfora também de origem latina', posto quê deriva da expressão cul-
lura animí, de Cícero, que aestende, dos cuidadosprodigados à terra, àqueles de
i|ue a mente é objeto. Seu emprego na pqvá modalidade, tal como consagrado'
já cm 1718 peio; Dicionário da Academia Francesa, exigia dc início que a palavra
fosse seguida de um objeto específico: “cultura das artes”, “cultura das letras”,
“cultura das ciências” —entendendo-se cm cada caso a' ação de desenvolver ó
campo mental assim especificado. Num contexto de uso já mais próximo do
nosso, ou seja, integrando no campo semântico do termo numerosos traços de­
finíveis como “culturais", o que toríia desnecessário fazer seguir a palavra cultu-.
rã <le um complemento, talvez o primeiro .a empregar o termo tenha sido Gott-
fried Herdei, em 1774, o qual se apoiou précísamente em Cícero para o fazer.
' Nesta nova acepção, muito cedo ocorreu uma primeira grande bifurca­
ção semântica no relatiyò à noção moderna de cultura.-De um lado estavam
os que identificavam.na cultura uma entidade complexa, hôlísticaé estrutura­
da (mesmo se, por muito tempo, não se usassem termos assim, e sendo a idéia
de cultura, de início, razoavelmente abstrata e genérica) que .fosse o atributo
dc uma coletividade transindividual de dimensões variáveis: a humanidade in­
teira ém çértos casos, um conjunto de países em outros, ou um país ou nação, ,
ou ainda uma classe social, seja no geral, como em “a cultura burguesa”, seja '
especi ficamente, como em “a cultura burguesa na França” ou “em Paris”.
Do outro lado, temos os que viam na cultura o mesmo que é assim desjg- ';
nado no uso mips corrente oü vulgar do” termo: à “alta cultura intelectual”, um
atributo das pessoas cultas, ínstruídas.Mesmo sendo verdade que o conjunto das
pessoas educadas'forma em eada país uma.pequena elite, responsável entre ou-í
Iras coisas pela"apreciação da arte e da literatura, neste contexto de uso ,ò, que se
privilegiava era a trajetória individual de aquisição, difusão e defesa da cultura as-

262
sim definida. À própria cultura era entendida mun sentido normativo, genérico
. e mesmo um tanto vago, carregado de juízos de valor, com frequência limitado à ;
\ áita cultura intelectual européia ou ocidental; podendo constar dela, como uma .
espécie de anexo, os elementos de altas culturas não-ocidentâis de que o Ociden­
te se apropriasse. O país onde este modo de ver a cultura leve maior sucesso eti?
ire intelectuais de alto dívcl foi o Reino Unido. Com efeito, seria difíçil que se
■adotasse afi a visão holística da cultura na variante alemã, nacionalista, em se tra­
tando de,um país integrado pór diversas nações (inglesa, escocesa, galesa, írlan-
' desa); do meSmo modo, não era forte, entre os intelectuais britânicos, a tendên­
cia a aceitar a vertente francesa que celebrava uma cultura universal (neste caso
quase sempre chamada dè civilização), versão ligada às Luzes e à própria Revo­
lução Francesa. Em meados do século 19, vemos Matlliew Arnold defender a alta
' cultura - que ele, como outros escritores, por exemplo Coleridge, Carlyle ou o
cardeal Newman (embora cada autor destes pudesse ler, a respeito, perspectivas
bem divergentes), viam como uní conjunto de valores intelectuais, artísticos, re­
ligiosos e morais ameaçado-pelo “hídustrialismo” materialista. No-séçulo 20, a
. massificação e o conformismo, de que os subúrbios são símbolos em países,como
o Reino Unido ou ós Estados Uniclós, foram com frequência percebidos como os
grandes Inimigos da alta cultura. Nos países anglo-saxões a tendência conserva­
dora a defender a cultura, identificada como alta cultura intelectual dq Ociden- -
‘- j le, contra “barbáries” ameaçadoras de diversas espécies continua existente e
atuante: nos Estados-Unidos, por exemplo, um dos nomes atuais mais famosos
■ no interior desta postura é o neoçonseivador Allan Bloom: . ,

•(...) cultura refere-se a arte, música, literatura, televisão educativa, certos; filmes -
cm resumo, a tudo que é elevado c edífieantei em contraposição a comércio. {...).
, Umã cultura é uma obra de arte, de que as belas artes representam a expressão su­
blime. (...) ' ’ -y. . ,
A cultura como arte é a expressão da criatividade do homem, da sua cápacida-
■de de libertação dos estritos limites da natureza e, portanto, da degradante inter-
pretação-que lhe atribuem as modernas ciências naturais e poiíticas. (...) A cultiu-a
'. restaura ") unidade da arte e da vida” da antiga polis.13'
i . >. v•

13 BI.OÓM, Allan, O declínio dq cultura ocidental: da crise da universidade à crise da


sociedaderifrad, João Alves dos Santos. São Paulo: Best Séiler, 1989. p. 234-235.

263
N;t !;nmçn, por muito tempo, a palavra “civilização” foi preferida à “cul­
tura”; ocasional mente, também podiam aparecer como sinônimos.
Civilização é, igualmente, um termo do século 18, usado em forma pio­
neira, num sentido próximo ao atual, na década de 1760, para referir-se ao
processo que fez a humanidade sair da barbárie; e, já na década seguinte, para
significar o próprio estado civilizado, A palavra foi aceita na edição de 1798 do
Dicionário da Academia Francesa. Quando o termo cultura se tornou, por sua
vez, mais usual em francês, o sentido que lhe foi atribuído era muito seme-'
lhante, marcado pela noção - derivada do Jluminismo - dá unidade do gene-
r' _■ f. x.
ro humano. Pòr mais que, em 1819, a palavra civilização surgisse pela primei­
ra vez iiu forma plural,‘‘civilizações” indicando a consciência de existirem di­
ferentes maneiras‘de ser civilizado, de um modo geral a tendência francesa foi,
durável mente, no sentido de uma ênfase bçm m aior na universalidade cultu­
ral da humanidade do que nas particularidades ou na multiplicidade das cul­
turas humanas: as diferenças culturais entre sociedades eram percebidas mas,
luibjliial mente, minimizadas.
Os evolucioriismos deunaior prestíglo no século 19 - o de I/airtarck, de­
pois o de Darwiri - contribuíram para' assentar a noção de existir uma unjda-’
de do gênero humano, explicando-se as diferenças maiores constatáveís ao sò-
rem comparadas as culturas mediante a evocação de etapas sucessivas e pro­
gressivas: selvajaria/barbárie/civilização, por exemplo. O marxismo, outro filho
do liuminismoj iria na mesma'direção ('áob a influência de Lewís Henry Mor­
gan) com sua idéia de urn processo pelo qual a humanidade se destacava pro-
giessivamenté dó natural para passar ao histórico —o que significa, entre ou­
tras coisas, que a cultura substitui crescentemente a biologia como ponto de re­
ferência para os humanos—, bem domo com a pluralidade dos modos de pro­
dução, cuja sucessão indica níveis crescentes de complexidade e possibilidades.
Na Alemanha iria predominar, porém) e mesmo fortalecer-se duran-.
te o período'que vai da derfòta aiemã õm íena diante de Napoleão, emd806,
até a unidade alemã consagrada em 1870, uma versão particularista, c não
universalista, da cultura, associada a uma oposição entre as noções de cul­
tura e civilização. ■ '•• • ; '
Os intelectuais alemães de origem burguesa, apartados do poder e das
honrarias reservadas à nobreza) se opuseram, á partir das universidades, à aris­
tocracia das cortes anteriores à unificação do país: nestas cortes, predominava a

26-1
i
língua francesa e, em geral, eram muito cosmopolitas e voltadas para o Qciden-
, ttí. Tais intelectuais tenderam a considerar a situação nestes termos: a nobreza de
corte era civilizada, mas, voltada para o universalismo uniformizador-dérivadb
do Iíuminismo francês, não paiticipava da veidacleira. cultura nacional alemã,
que consistia naqueles aspectos intelectuais, artísticos e morais autênticos, vin­
culados à alma ou gênio do povò. No século 19, pôde-se entender também a ci­
vilização, no contexto da rebelião romântica, como o progresso material, o de-
senvolvimento econômico e, técnico, contínuando-sé a lhe opor uma visão da.
cultura baseada numa concepção étnico-racial da nação. Esta linha de interpre­
tação tendia, portanto, ao pensar çomparativarrien tc, a acreditar na pluralidade
das culturas, posto que cada povo teria a sua própria cultura.
• Seria um erro, entretanto, pensar que, na Alemanha, o tema cultural só
se desenvolvesse numa Unha reacionária, vinculada à noção de raça^e à crença
na superioridade dos alemães e de sua cultura. Esta foi, sem dúvida, uma das
posturas, no início do século 20 defendida pór Gustav Kosinna e, mais tarde, en­
tusiasticamente adotada pelos nazistas. Mas também surgiu naquele país, no sé­
culo passado, ém função dos estudos culturais (KuUurwissenschafle.n)’ e das
“ciências do espírito” (Geistesyvissenschaften) —estas últitnas mais conservado­
ras, de forte tendência idealista, relativista e hermenêutica, recusando explica­
ções de .tipo científico - , uma linha dc interpretação devida a intelectuais poli­
ticamente liberais que, mesmo acreditando na pluralidade das culturas, recusa­
vam o determinismo racial dos aspectos culturais: raça, cultura, língua e nacio­
nalidade não tinham porque coincidir, argumentava por exemplo o mentor da
Sociedade de Antropologia de Berlim,' Rudolf Virchow, Também seu discípulo
Adolf Basüan, o primeiro diretor do Museu de Etnologia dé Berlim, acreditava
que âs diferenças culturais fossem causadas por desafios diferenciais proporcio­
nados por meios ambientes diversos, bem como pelos contatos e empréstimos
entre grupos. As mudanças culturais dependeríam de processos locais'específi- .
cós, não redutívexs a leis -r pressões ambientais, migrações, comércio pelo qual
inexisliriam leis gerais da História. Deste ambiente intelectual saiu Franz Boas,
o qual, migrando para os Estados Unidos, para lá levou esta visão cultuiãlista"
que, no entanto, estava muito distante da linha nacionalista e racista, aieniã. ■
A A n t r o p o l o g ia c o m o .d is c ip l in a a u t ô n o m a -

li O CONCEITO CIENTÍFICO DE CULTURA: DE UMA .


ACEPÇÃO HOLÍSTICA A. OUTRA- _N '
RADICALMENTE REDUCIONISTA •

O aparecimento de um conceito científico explicitamente formulado


/Io que fosse a cultura foi importante no .sentido de tirar desse termo a carga
normativa que de início teve, substituindo-a por um enfoque descritivo' se
bem que, na prática, nem sempre'dc todo desprovido de juízos de valor. A pri­
meira definição mais séria de cultura foi elàborada pelo antropólogo britâni­
co Edward-Burnett Tylor (1832-1917) em 1871: - ' <

Cultura ou civilização, tomada em seu sentido etnológico mais vasto, é um


todo complexo qué compreende o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, as leis,
os costumes e as outras capacidades ou hábitos adquirido?pelo homem enquanto
membro da sociedade,11c ' ■ j

Notam-se nesta definição várias coisas: l) aãturaé algo adquirido, que


se aprende no seio dò social, e não algo transmitido geneticamente, o que quer
dizer que, deste pontò.de vista, “cultural” se opõe a ‘'natural”; 2)xembora a defi­
nição insista mais nos componentes mentais dâ cultura, a menção aos “coslu-
mes^e “outras capacidades ou hábitos” abre caminho a que também sé integrem
iu> enfoque cultural coisas como os aspectos econômicos, as tecnologias etc,,
vistos em seus traços materiais (daí que se tornasse usual por bastante tempo
dislinguir a “cultura material” da “cultura não-materiaT); 3) a definição de
Tylor c bem mais “francesa” do que'“alemã” inclusive na equação que estabele­
ce entre cultura e civilização, encaradas como termos sinônimos. Com o avan­
ço de seus estudos, no entanto, Tylor passou a. preterir o termo cultura, posto
que a palavra civilização parecia adaptar-se mal - estando vinculada etimologi-
cainente à noção de cidade —áo tipo de sociedades (tribais) mais usualmente,
na época, examinado pela Antropologia (já que éra-a Sociologia que tratava das
sociedades ocidentais desenvolvidas, como as da Europa ou os Estados Unidos).
. I Tyl or, ao ocupar eni 1883, na Universidade de Oxford, a primeira cáte^
<lra britânica de Antropologia, confígurou-se como um dos pioneiros da dis-

l<| TYLOR, lidward Burnett..Pm/fiím> Cuhure,Lóndon: John Murray, I87|. p. 1.


ciplina «a líuropa. Seu trabalho de campo (no México) foi, entretanto, limita­
do. O verdadeiro fundador da elnografia, isto é, da pesquisa antropológica de
campo prolongada e baseada na observação direta, foi Franz Boas (1858-
1942). Não é minha intenção acompanhar em detalhe a trajetória e as tendên­
cias da disciplina antropológica. Quero, porém,.prestar atenção às etapas da
Antropologia em correlação cont a história posterior a 1870.
José R. Llobera chama a atenção para o fato de ser a Antropologia “fi­
lha do colonialismo”, tendo sido suaprátíca tornada possível graças ao contex­
to colonial,- Outro que o' afirma é Claude Lévi-Strauss: -

[À Antropologia) é produto do mesmo processo histórico que tornou a maíor


parte da humanidade subordinada à outra e durante o qual milhões de áeres huma-
• ,iíos inocentes foram despojados de seus recursos, enquanto suas instituições e crèn-
. ças loram destruídas. Muitos deles foram mortos sem piedade, outros, submetidos
• à escravidão ou infectados por doenças a que lhes era impossível resistir. A Antro­
pologia é filha desta era de violência. Sua capacidade de avaliar mais objetiva mente
, os fatos que pertencem à condição hunuuia reflete, cpi$tcmologicamentc,um esta-
. do de coisas eõi que uma parte da humanidade tratava a outra como objeto."-

.Ao dizer que a Antropologia é filha dp colonialismo se está afirmando


também que ela se desenvolveu de início "em estreita dependência do'mundo
colonial. Alguns antropólogos o tinham bem claro - Lubboek ou Malinowski,
1 por exemplo -, ao observarem que o estudo dosassim chamados primitivos
apresentava um interesse prático para os países possuidores de colônias. Ou-
trossim, diz Llobera: - ' '■
■. ’ . t‘
(„,j o objeto [da Antropologia] é residual e consiste no estudo do homem que não
seja ocidental, branco e civilizado, em outras palavras, no est udo de um ser não ple­
namente humano, inferior. Umá vez constituída a categoria de “primitivo” podia
facilmente ser tratada como um objeto e submetida n um escrutínio sistemático.
- Este tipo de exame detalhado, que a Antropologia propunha como a quintessência
de seu'método, era totalmente inaceitável aplicá-lo a um contexto europeu, pelo
menos no século XLXe no início do século XX...11 ,*16

■15 LÉVI-STRAUSS, Claude.' Anthropology: its achievement and future. C u rr e n t


■ A n th r o p o h g y , 2, p. 12ó, 1966. • . ' • _n.
16 LLOBERA, José R. Postcriptum: algunas tesis provisionales1sobre lá náturaleza dè
la antropologia. In: LLOBERA, José R. (Org,). La antropologia como cicncia. Barce­
lona: Anagrama, 1975. p. 373-387 (a citação é das p. 374-375).

2b7
ISste autor distingue três períodos no colonialismo moderno: expansão
colonial (até a Primeira Guerra Mundial); consolidação colonial (até a Segun­
da Guerra Mundial); e desintegração colonial ou descolonização, (depois da
Segunda Guerra Mundial). Acha ser possível correlacionar, em linhas gerais,
as teorias antropológicas vigentes com cada etapa, Na primeira, constata-se
um tipo de evolucioriismo que, agora, cavava um abismo entre os ocidentais
e ns “raças inferiores”; e, na noçãp de “áreas culturais” de Franz Boas, uma vi­
são teórica destinada, entre outras finalidades, a enfrentar o matedalismo his-
lói ico. Na segunda, de estabilidade relativa do sistema colonial consolidado, o
desejo de não enfatizar conflitos ou disfunçoes teria levado qo predomínio do
funcionalismo (Malinowski, Raddiffe-Brown), cm cujo contexto o colonialis­
mo se reduzia a um “contato cultural”, não se considerando (ou minimizan­
do-se) a natureza exógenã das mudanças que provocava, a violência nele pre­
sente, a exploração e a dominação, Depois da. Segunda Guerra Mundial, em
tempos dc descolonização, ocorreu uma crise nos próprios fundamentos da
Anlro|>ologia: respostas à criseforam ó estruturalismo é, a seguir, o pós-mó-
dernismo, com sua ênfase “multiçulturalista” que parece ilusoriamente inver­
ter a postura política num sentido progressista. Outra consequência da crise .
foi o lalo.de imüloskmtropólogos se voltarem, agora, para o estudo das pró­
prias sociedades ocidentais “desenvolvidas”17
Será, porém, assim tão progressista a Antropologia pós-moderna?
Mencionarei, como exemplo dela, a análise do reino de Negara (na ilha de
Bali) no século 19 por Clitford Geertz, com sua teoria da teatralizáção do Es--
la<lo (1980). Sendo o rei de Negara o centro sagrado da sociedade, por tal ra­
zão não tendo lugar em sua corte a política secular, o autor afirma ser tal cor­
te “um centro sagrado, um templo ou um teatro, montando espetáculos ri­
tuais” que funcionavam como uma celebração, não da ordem política ou do
poder, mas sim, da hierarquia como tal. A política, a guerra, a taxação,- a dis-'
(ribuição das terras e os sistemas de irrigação seriam elementos tratados num .

17 Ibid. Uobera, escrevendo em 1972, chega cm sua análise ao estruturalismo mas, ob-
viamente, não ao pôs-modernismo em Antropologia. Como exemplo da analise
antropológica das sociedades ocidentais do que antes se chamava de Primeiro
Mutido, çf. AUGÊ, Marc. H a d ti iina antro p o lo g ia d e ios m u n d o s co n tem porâneos.
Trad. Alberto L. Bixio. Barcelona:*Gedisa, 1996.

268 .. \
nível inslíiucionaJ dé status datamenterinferior. Os Conteúdos mesmos do es­
tudo de Geertz foram posteriomieiilc desmentidos por- múltiplas pesquisas,
que salientaram, entre outros pontos, a evacuação sistemática, nele, da violên­
cia e do conflito, no entanto bem presentes nas sociedades de Báli. Além dis­
to, o esquema geertziano não enfatiza o fato seguinte, decisivo, no. entanto: a
ilha estava, tia época, submetida ao colonialismo holandês. Isto evodia irreme- ‘
diavelmènte ás atribuições.políticoradministrativas.efetivas'do reino de Nega­
ra, forçarido a sua corte a concéntrar-sé crescentemente em rituais vazios e -
formalistas (na verdade, á aristocracia que cercava 0 rei eslava, assim, efetuan- é '
do o único protesto anti-colonialista possível nas condições vigentes). O pós-
modemismo perspec Avista pode, então, elogiar a- descolonização Co mglti-
culturalismo; mas,,com frequência, oculta ele também as lutas sociais c a ação
imperialista, tanto qüanto o faziam as correntes'antropológicas dominantes
ent fases precedentes da História ocidental.18 . ■1
«Qs conceitos de cultura e de sociedade sempre pareceram, até certo
ponto, alternativos ou concorrentes. No entanto, numerosos antropólogos -
por exemplo os da Antropologia Social inglesa, em que sobressaiu, em mea­
dos do século.20, E. E. Evans Pritohard - incluíam sem dificitldade, em suas
análises culturajs, a .consideração (quase sempre exclusivamente em socieda­
des tribais, porém) de elementos como as estruturas sociais, a subsistência, a
economia, a tecnologia, mais enrgeral os elementos materiais da cultura, Esta
última era vista, desde Tyloq como totalidade' holísticá estruturada, embora
na prática o cnltúralismo pudesse adotar acepções e estratégias bastante varia­
das. Eitn meados do século 20, em diversos autores, a cultura aparecia - por in­
fluência sobretudo.de Vere Gordon Childe - como uma espécie de meio am­
biente artificial, material tanto.quantò mental, cuja função é mediar a relação v
da sociedade humana com o meio ambiente natural:
\ • ■ " • • • ■s ■
A cultura (...) compreende todas as coisas é.meios-inclusive os não-matêriais,
1 como mitos, crenças e relatos que os seres humanos criáni para ampliar, proteger
e expressar a si mesmos, No curso da evolução, á cultura tornou-se'a .propriedade
•- peculiar (embora não a única), dos seres humanos; e a especialização humana na

18 Ver) para uma crítica detalhada e bem documentada, KUPBR, Adam; Cu/jUre:
.. The anthropologisls!'accoui\t. Cambridge, MA: Hárvard University Press, 1999.
p .75-121. \ .\
culiura (íom o a especialização dos tigres eni grandes dentes afiados e das girafas
em pescoços longos) foi o meio pelo‘qual o homem sobreviveu e engrandeceu-se
no planeta, fc, pela cultura que ele deve (ç vai), seja sobreviver, seja perecer.1’

O lexto acima é de 1971 em sua publicação original, Entretanto, pelo


menos desde a década de 1920 existia uma tendéticia de signo contrário, ten­
deu lc a limitar a área de interesse dos antropólogos. Assim; em 192d, Edvvard
Snpir advogou que estes últimos deixassem aos historiadores da cultura a:aná-
lise dos sistemas culturais holísticos (para ele, civilizações), limitando-se, de
stia parte, a nina cultura'definida, como objeto, no sentido pluralista tradicio­
nal nos Estados Unidos (há múltiplas culturas, cada grupò humano tem a sua
culiura), mas reduzida a algo puramente mental; enfatizando a questão do
significado espiritual da cultura - algo bem próximo, então, do que os alemães
mais conservadores consideravam ser o Geist ou espírito de um povo, homo-
geiieizador de sua cultura autêntica. •
Na vitória de uma concepção radicalmente restritiva da cultura —que
se oporia a uma consideração'pelos antropólogos do Homo faber õu do Homo
ocamo miais para que, doravante, só percebessem, o Homo symbolicus - se perT
cebc a influência dò pansemiotismo em sua'versão pós-estruturalista, como
aparece por exemplo na corrente ‘conhecida como déscònslrução; mas, tam­
bém, a proposta, no final da década de 1950, deuiha divisão do trabalho en-
Ire as ciências sociais, propugnada por Talcott Parsons, que contou para tal
com o apoio do veterano antropólogo Alfred Kroelier, coisa de que já tratei.
Em 1952, num escrito em colaboração com Clyde Kluckholm, Kroeber já che­
gara à conclusão de que a cultura é um discurso coletivo de tipo simbólico,
lendo a ver com conhecimento, crenças e valores. A vitória, com o,pós-mo-
demismo, da concepção amputada de cultura foi decisiva na transformação
<lesssa- noção num anticonceito, num conceito-obstáculo, Com efeito, dado ó
passo inicial, em algumas décadas o radicalismo da posição aumentou muito
mais ainda, sob influência do pós-eslruturalÍsmo. Eis aqui, por exemplo, a ver-19

19 LiOHANNAN, Paul. Beyond civiiízatiun: On the past, present, and future of rnaii..
In: HIJNTER, David E.; W HffTEN, Phillip (Org.). A tith ro p o lo g y; Contemporary
perspectives. Boston: Littlc, Brown and Company, 1979,p. 326-343 (Esíê artigo foi .
publicado pela primeira vez em 1971.) • .

270
são de Marshall Sahlins, com sua ênfase numa natureza humana que se costu­
ma designar como J-Iotno symboliçns: - .

Neste livro, afirmo que o significado é a propriedade específica do objeto an­


tropológico. As cplturas são ordens de significado;de.pessoas e coisas. Uma vez que
essas ordens são sistemáticas, elas não podem ser livre invenção do espírito; Mas a,
Antropologia deve consistir na descoberta'do sistema, pois, conjo espero mostrar,
não pode mais contentar-se com a idéia de què os costumes sejam simplesmente
utilidadesfctichizadasA " _

A reínterpretação radiçaimente reducionisln do conteúdo do que seria a


cultura no começo irão afetou a metodologia antropológica da observação par­
ticipante: cia foi de início assumida porClifford Geertz, que invocou primeiro-
Parsons, em seguida Weber, por'(mi a hermenêutica. No entanto, com o tem­
po, Geertz, como os pós-estruturalistaS, deixou de considerar o método antro­
pológico còmo científico: a cultura fjoctta serinterpretada'mas,não, explicada.
Inexistiriam leis gerais dó funcionamento e da mudança cultural. A idéia ago­
ra passou a .ser que caçla ctiltuça deve ser lida, em si' e por si, como um texto, À
Antropologia geertziaiia propôs um método de “descrição densa” e uma valo­
rização dos “saberes locais”, coerentes com a era do muUiculturalismo. Apre­
sentando variantes às vezes importantes, esta visão das culturas e-dos estudos
■antropológicos foi aceita e aplicada por diversos antropólogos além do Geertz;
por exemplo David Schneider e - passada sua etapa neo-evolucionista - Mars­
hall Sahlins. Os discípulos de Geertz - e outros antropólogos - enveredaram,
mais ainda do que o.mestre, pelo caminho dò pós-estruturalisluo. Alguns che­
garam ao ponto de afirmar que a cultura é uni texto, sem cíúvidà; mastim, tex­
to fabricado pelo antropólogo, mera ficção! Um caso extrétrío foi ó de Richard
Price, aulor de trabalhos antropológicos de enorme inieresse. Num estudo
etno-históricò sobre, os Sàramaka do Suriname no período 1740-1820, publi­
cado em 1990, procurou Simplesmente apagar-se como aulor c como antropó­
logo - com resultados lamentáveis, como foi moslrado pór firíc Hobsbawm.21*•

20 SAHLINS, Marshall. C u ltu ra e razão prática. Trací, Sérgio Ta deu Lama rã o. Rio de
• Janeiro: Zahar, 1979. p. 10. . . .. "■ -
, 21 HOBSBAWM, Erlc. O n history. London: Weidenfeld & Nicolson, 1997. p. 192-200:
Pos(\nodernis.nvio theforcst. '■

271
Nilo há - lelizmenle apesar da voga e do .prestígio da visão pós-mo-
dei na ria Antropologia e de suas opiniões acerca.da cultura,'consenso em tor­
no de posturas como as propostas por Kroebcr e Parsons. Há estudos que.cn-
veredam por caminhos muito diferentes, Existe, por exemplo, toda uma gama
de pesquisas que se interessam pela dominação cultural, pelas culturas de clas­
se (burguesa,proletária), pela cultura popular, pela “cultura dem assa”, ou tra­
balham com o conCeito de habitus à manèira de Pierre Bourdieu, E há muitos
autores voltados para a questão das subeulturas e contraculturás, às vezes em
vinculação com o conceito de socialização. Em numerosos casos, tais pesqui­
sas dependem de noções do que seja a cultura si tu adas‘a léguas de distância
das'versões pos-modernaS, pós-cstruíuralistasA E, como mencionamos no
caso do estudo de Negara por Gcertz, já existem críticas demolidoras que de­
monstram as numerosas falhas e inconsistências perceptíveis na.Antropologia
em seu novo recorte. ■

O GRUPO DE HISTORIADORES MARXISTAS BRITÂNICOS /


li A cultura: o exem plo d e E r ic H o bsba w m e u m a

RliPLEXÂO A PARTIR DE R a YMOND W ILLIAM S E DOS ;


ASSIM CHAMADOS ESTUDOS CULTURAIS

Se bem que eu ache efemprego da noção de cultura bem menos empo-


brecedor nos autores de que agora tratarei, a hipótese que vou defender é que,
neles, a cultura como conceito é descartável, podendo ser substituída cpm
proveito por outras uoçõds e conceitos,
O conjunto dc historiadores cujo lugar de congregação foi, dc 1946 até ,
1956, b Grupo de Historiadores do Partido Comunista (Britânico) constitui
uma das comunidades intelectuais, mais consistentes da História Intelectual
do século 20. Na sua maioria, conheciam-se desde o fim da década de 1930,
lendo em comum, além do caráter institucionalizado do Grupo como ponto
de encontro, um engajamento político similar e um interesse central pela His-2

22 Ver, por exemplo, paraptn bom panorama: CUCH.B, Denys: L« Hotion de cultitre
d u n s les Sciences S iw ia h iÇ P a m : Là Découverte, .1996,

272
lória escrita numa linha marxista, bem como pelas controvérsias'.e debates. É
verdade que a qualidade dos meiiibrps do Grupo, no conjunto muito alta, po­
dia variar. Em especial, A. L. N orton estava num nível ciaram ente inferior à
média. E. P.; Thompson, Eric Hobsbawm, Chrislopher Hiil, Rodnev Hilton,
George Rudé, Dorothy Thompson, Rpyden Harrison, John Saville, Victòr
Kiernan, George Thomson, Raphael. Samuel e, entre os mais velhos, Maurice
Dobb e Dona Torr, formavam um time com altos e'baixos mas sem rival no
mundo. Analogamente, a revista Ptisl and Pvcscnt foi á mais influente de todas,-
mesmo considerando-se Im Pcnsée, entre os intelectuais de esquerda da segun­
da metade do século 20 “
Se‘Antonio Gram sei, percebido por diversos membros do Grupo como.,
um antepassado intelectual de.máxima importância, é indisputavelmente de
'altíssimo nível, um dado a meu ver um tanto embaraçoso é o resgate e mes­
mo a reivindicação de William Morris, èm especial por Thompson (1924- ,
1993), o mais jovem dos membros mais importantes do Grupo. É bom des­
confiar, como possívej antepassado intelectual, de um pensador c poeta que,
no Parlamento, foi retrospectivamente transformado cm-pai fundador tanto
por Ciement 'Atlee, líder do Partido. Trabalhista, quanto porW illiani Galla-
cher, deputado comunista. Thompson, por suavez, em mais de uma ocasião
escreveu que Morris, se vivo fosse, seria membro do Partido Comunista. Mais
cm geral, a reivindicação de movimentos1muito heterogêneos, considerados _
■*radicais” por Thompson, recorda a dèvuirclte que, cm outro contexto, levbu,
no tocante à História dos Estados Unidos, à que.se achassem centenas dc mo­
vimentos de revolta negra - istò porque se definia “revolta” de um modo irre­
mediavelmente vago, niinifnalista e inclusivo.21 . ; ; "
' Não vou, entretanto, tomar como exemplo o uso de cultura na obra de
Thompson, que conheço pouco, mas sim cm um texto de Eric Hobsbawm,-o23*

23 Uma contexto ação interessante do Grupo em: MOL1NA J1MÉNEZ, Tvdn. Imagen
■dc ío imginario. Introducción a la historia de Ias jnentalidades colectivas. liu
.'. FONSECA, Etirabeth (Org.). H isto ria : Teoria ,y métodos. San José, Costa Rica:
. Editorial' Universitária Cenlroamérkana» 1989. p. 179-224; uma síntese bétn me­
nos simpática aos'historiadores marxistas britânicos é: H1MMEIFARB, G ertru-
' de. T l U N e w H p t o r y a n d t h e o l d . Càmbridge,MÀ:. Harvard University Press, 1987.
p. .70-93, 192-195. ..
' 24 Cf. para uma visão critica a respeito, RAWfCK, George..j.e radiei storiche delia-U-
berazfoné ncra. Quaderw Piaçcntinh p. 77-84, mar. 1969;

27.1
ítrligo “As classes operárias inglesas e a cultura' desde o início da Revolução in­
dustrial”," além de levar em conta a coletânea On history. No caso do artigo,
cicio poder dizer que iodos as passagens em que se menciona a “cultura” fica­
riam melhores se se substituísse tal termo por outros, mesmo porque em ne­
nhum momento a noção é explicitada ou exposta (coisa que também caracte­
riza a meia dúzia de vezes cm que “cultura” aparece em On history, no entanto -
um livro feórico-metodòlógico no essencial). Tem-se à impressão de tratar-se
de um termo evidente por si mesmo, quando na verdade é altamente polissê-
mico e controverso, como já vimos. No artigo de Hobsbawm —comunicação
apresentada a um simpósio em 1966—/ ‘cultura popular” é virtualmente um si-
nAnimo de, e alterna com, numerosos outros vocábulos e noções: “njentalida-
dus populares” (p. 197);“ ‘cullura’ operária nó sentido antropológico do termo”
[<]unl dos sentidos, seria o caso de indagar?!], imediatamente chamada a seguir
de “tradições operárias” num sentido que recorda a noção posteriormente
mu i lo popular de memória (p. 198); “as mentalidades e à cultura pòpular” sem
maiores especificações.(p, 199); “numa sociedade de classes há normalmente
separação de classe entre as culturas, embora amiúde trp quadro de uma cultu­
ra comum: cristianismo,.instituições comuns, sistemas de ensino, cujas formas
estão cm sua maioria fixadas pelas camadas e pelas instituições dominantes da
sociedade” (pv200): será quê, nos dois casos, “cultura” significa exatamente o
mesmo?; “hegemonia cultural” e “simbiose” de culturas (p. 200), em.ambos os
casos como se-fossem conceitos não necessitados de explicação; “sistemas de
valores” opostos (p. 201); separação institucional num sentido dassista como
demento que aéentua a “separação cultural” (p. 201); a “cultura operária”
como resultado de uma “tradição cultural mais vasta, a.das classes subalternas
. pré-industriais” (p. 201): neste ponto, Hobsbàwm apela dirctamenté para a }
obra de Thompson sobre o radicalismo vinculado ao pensamento “plebeu”, em­
bora avalie diferentemente tal radicalismo, vendei-o como a "ala esquerda do li­
beralismo burguês”, mesmo se, depois, introduz nuances a respeito, (p. 203); a
cultui a das classes hegemônicas” (p. 203) aparece agora em sentido totalmen-25

25 HOBSBAWM, Eric. Las dáses obreras inglesas / !a cultura desde los cümienzos de •
la Revolución Industrial. ln> BÉRGERON, LouisfOig,), N ive les d e c u ll u r a y g n ip o s
sociales. 'IVad. César Guifiazú?México: Sigla XXI, 1977. p, J97-208. A edição'origi-
. nal em francês é de 1967; trata-se de um colóquio da Escola Prática de Altos Estu­
dos (Paris) reunido em I%6.

274
te diverso, o de haitte ailtureh exemplo é nesse ponto o feilé russo); as pági­
nas 204-206 opõem “cultura operária” ^"culturas operárias” ao talar de sua
. evolução desde antes de 1840, mostrando que acompanha as etapas' do capita­
lismo: industrial: entretanto, a ênfoseeslá no “estilo de vida proletário”, a seguir
na “ideologia” e na “consciência dc classe”; “cultura operária” volta a ser basi­
camente “estilo de vida do proletariado” na p. 206; na p, 207 fala-se de uma
“cqltura operária mais separatista” na segunda metade do'século 19, nras dc
fato se está falando deníveis e estilos de vida; na conclusão do'artigo (p. 208),
' sintomaticamente, o autor menciona “estilo de vida” e “consciência de classe
proletária”, não “cultura”, menos ainda este último conceito cm alguma de suas
. acepções antropológicas disponíveis na década de 1960,
■ , Em surtia, aòdongo do artigo, os elementos que de tato se discutiram
efetívnmcnte com base na análise de fontes foram: mentaüdades populares,
tradições operárias, sistemas de valores especificamente proletários, cpnsciên-
‘cia dc classe, níveis e estilos de vida diferenciais. O único ponto do texto em
que pareceu auunciar-sc um debate em torno dc cultura de classe, hegemonia
. cultural é simbiose de culturas acabou por ceder o lugar imediatamente, na
análise, aos elementos previa mente citados - de feto os quê interessavam ao
autor. Note-se que, no manejo do termo “cultura” por Gramsci, tal noção é,
igualmente, bastante vaga e também parece, às vezes, um sinòniniò.de concei­
tos mais típicos do marxismo e do vocabulário dos debates socialistas. En.tre-
. tanto, Isto era menos grave nas primeiras décadas do século 20, a mcu ver, do
que cm sua segunda metade, quando “cultura” caminhava a passos largos, nos.
escritos antropológicos, para tornar-se uma alternativa mal definida e reacio­
nária ao conceito dc “sociedade"-além de vir a ser noção excessivamente po-
* lissêmiea para se poder utilizar.sem especificações.
Se bem que Raymond Williams não fosse historiador neni membro do
Grupo,.não há dúvida de que suas posições sobre'cultura e estudos culturais
(que partiam de uma perspectiva marxista em suas linhas-gerais), bem assen­
tadas já nos Estudos Culturais universitários do Reino. Unido na década dc
1960, influenciaram alguns dos historiadores marxistas britânicos menciona­
dos. Ora, tais posturas apresentam alguns problemas e anibigüidades. Em es­
pecial, cpmo Williams, reconhece muito bonestamen te, “a explicação materia­
lista habitualmente fica reservada às outras atividades, ‘primárias’, deixando a
‘cultura’ para uma versão do ‘espírito formador’, agora, naturalmente, em ba-
st* diferentes, c niSo primária, mas secundária” Ou seja, Lambém aqui, "cultu­
ra’' parece uni termo que se auto-explica. E, p o r‘outro lado, Williams - e tal­
vez. também outros marxistas britânicos - cede às vezes à tendência, explicita­
da darámente na declaração dc princípios conjunta de Parsons c Kroeber,
como foi visto, a enfatizar, na cultura, um “sistema de significações”, na práti­
ca amputando fatalmente uma noção antes holística,3'’ ‘
Na Grã-Bretanha, Jde início, a partir da década de 1960, apesar das res­
trições feitas acima, os Estudos Culturais universitários, sob influência de es­
tudiosos como Raymond Williams e Stuart Hall, como constatou John Storey,
partiam de premissas marxistas.’7 Entretanto, primeiro.nos Estados Unidos,
embora também ganhando-a seguir as universidades britânicas, com a onda
,pós-moderna dominada pelo mulliculturalismo "politicamente correio”, a
partir sobretudo da década de 1980, tais Estudos Culturais - que se posicio­
naram, sem dúvida, abertamente contia a, História duCivilização Ocidental
-«I lamente reacionária dominada por concepções de campeões desta civiliza­
ção contra o que vêem como barbárie; do tipo dc Samuel Huntington ou Al-
lan Bloom passaram a organizar-se em torno de uma agenda baseada no par
i(len(idade/alteridade, isto é,em estudos feministas,degênéro,raciais (no sen­
tido peculiar dado a çstes pelo movimento negro estadunidense), do movi­
mento do Orientalismo à maneira de Edward Said etc. Neste processo,
embora estudiosos como Clifford Geertz, David Schneicier e Marshall Sahíins
(o Sahlins posterior a 1976) tivessem seu conceito de cultura, derivado da pos- •
lura rcdúcionisla Parsons-Kroeber, adotado pelos Estudos Culturais, aqueles
antropólogos, hãõ ativos politicamente, passaram a sofrer-uma espécie de chá
de cadeira: antropólogos mais jovem (como-George E. Marcus è Michael M.
J. Eischer) que propugnaiU os Estudos Sociais, bem como muitos intelectuais
que são ativos nesses últimos Uras não são antropólogos, parecem pouco dis­
postos a convocá-los ao debate, achando que lhes faltam credenciais de mili­
tância (como à entendem os pós-modernos politicamente corretos).26278 /■

26 WILLIAMS, Raymond. Cw/fí/rá. íra d . Lólio L. de Oliveira. 2. ed. Sâo Paúlo: Paz e
■ Terra, 2000. p, 11-13.
27 STOREY, John. Cultural studies. In: KUPER, Adam; KUPER, Jessica (Org.). T h e S o ­
cia l Science Eneyclopedla. Lon.don: Routlcdge, 1996. p. 160.
28 Cf, MARCUS, George E,; FISÇHER, Michael M. J. Atuhropohgy as cultural critique,
An experimental mórnem in the human Sciences. Chicago; The Uoiversity of Chi­
cago Press, 1986. . . . •

27 6
Convêm assinalar que, apesar desses militantes politicamente corretos
se apresentarem com frequência como opostos ao sistema ocidental e capita-.
lista, este, ao contrário do que ocorria com as análises marxistas, não tem
grande dificuldade em aceitar e às vezes assumir muitas de suas posturas. Nas
palavras, do historiador argentino Túlio Halpèrtn Oonghi; o Estado norte-
americano e suas instituições. . : U . ' ■, -

(...) chamaram a st a taretà de atenuar o impacto das desigualdades socioeconômi-


cas a partir de uma imagem da sociedade que as relaciona com variáveis étnicas, se-
xUaise de idade, enquanto evitam cuidadosamenle projetá-las Sobre alguma pers-
péctiva de classe.” '

A GUISA DE CO,NCLUSÃO: PODE O


CONCEITO DE CULTURA SUBSUMIR
.UTILMENTE O DE SOGIEDADE? .. . '
Mesmo sc, em m inha opinião,, oulros conceitos menos carregados de
pretensões talvez funcionassem melhor, pode sér útil usar q conceito de cul­
tura para designar os objetos materiais, as normas de comportamento e os
processos de pensamèrfio {bem como as produções deles resultantes) quereú-
nam certas condições:.!).serem.elementos de um patrimônio social, histori­
camente produzidos por sucessivas gerações, assimilados e selecionados pela
comunidade humana que os transmite de geração em geração; 2) terem urii
nível qüe ultrapasse o individual e cuja dimensão se torne etetivamenlç social
(a descoberta'de algum pensador ou cientista, guardada numa gaveta e não
dada a público, enquanto permanecer assim hão será parte integrante da cul­
tura); 3) serem duráveis, o, que é garantido pelo coqtrole, sanção e pressão so­
ciais, mais ou menos institucionalizados segundò os casos, ó que de modo al­
gum significa que sejam imutáveis. Também' pode ser proveitoso empregar
"culturas” no plural, paia designar as especificidades que os três pontos aci­
ma apresentam quando considerados em seus conteúdos presentes em dife-29

29 .HALPERÍN DONCH1, Tulio. 'E tm y o s d e histo tio g ra fla , Buenos Aires: Edicibnes El
Ciclo por Asalto-linagô,Mundi, 1996.p. 161-189 (em especial p. 177, ISO),

277
rontw sociedades ou conjuntos de sociedades (a tradição francesa costuma
utilizar o termo "civilização” para referir-se a conjuntos tornados relativamon-
te homogêneos segundo certas caracleristricas culturais básicas comuns o.que
englobem ditei entes sociedades num dado recorte de longa duração, por
exemplo, civilização islâmica ).“ O problema surge é quando se pretende sn-
jilnntíir, com o emprego dc aígtima noção de cultura (hoje em dia, quase sem­
pre aquela de Clifford Geertz, ou alguma outra própria do perspeclivismo
hermenêutico), ad e sociedade, formação social Ou estrutura social.
Existem diversas dimensões do social’que o conceito de cultura - em
qualquer de suas modalidades - não cobre, mesmo porque não foi êriado pata
isso. f; verdade, sem dúvida, que alguns dos. recortes das noções de “sociedade”
e 'social", praticados por certas Sociologias, não deixariam saudades se desapa-
i ecessem. Penso, por exemplo, na visão dás comunidades humanas, não como
entidades dotadas, cm cada momento do tenipò que for examinado, de redes
relalivamente estáveis e hierarqyizadas de relações institucionalizadas, mas
sim, como uma coleção de-múltiplos recortes arfiitrariamente construídos pela •
análise mediante' seleções de variáveis: cada grupo assim determinado, (por
exemplo mediante perguntas feitas por amostragem) será uma coleção de in­
divíduos que têm cm comum certas características (renda, idade, sexo, nível de
instrução-ou quaisquer outras que se quiser escolher), numa atitude metodo­
lógica contrária a qualquer interpretação de conjunto, holística.51 .
Cada sociedade humana é tjm conjunto real, um produto histórico que
se.distringue de urna outra por apresentar coníigürações específicas cm sua_
rede relutivamente fechada de relações sociais. As relações sociais instituciona­
lizadas articulam os membros da sociedade numa totalidade configurada
como lede dê relações (a estrutura da sociedade). Ao se tratar de formações so-

3ü CZARN0WSK1, Steíán. Kullum, 195.6, apud BAUMAN, Zggnituit. Essai d.hme


lheorie inarxiste de lá société.' LTJomme et la Sóciété, Vms: Anthropos, 15, p. 5, '
janv./mars 1970. • > ''

31 1I.Í sociologos ou cientistas políticos conservadores que ao se referirem, por exvni-


plo, ao conceito de classe social chegam a declarar que ele só seria válido se pudes­
se preencher duas condições: 1) que alguma modalidade do conceito de classe ob­
tivesse o consenso dc todos os seus usuários; 2) que, se isso acontecesse, õ uso con* ■
tinuado do conceito, nesse' recorte consensual mostrasse uma utilidade .'heurística
durável: tt. CALVHRT, Peter. The conc.ept of class: An historicaLiniroduction. Lon-
don: Huidiinson, 1982. p:213. Dadas.às próprias razões históricas pela qual 6 con-

278 ‘
■4
ciais rela li va mente complexas, há diferentes tipos de relações a considerar, três,
em especial: 1) o comportamento de certos indivíduos influencia (de certo
modo e até çerto ponto) u satisfação das necessidades dc algum tipo-pessoais,
materiais, intelectuais etc. —de outros indivíduos, embora, na .maioria dos ca­
sos, eles ignorem nnituamente a existência uns dos outros como indivíduos e
a presença dqsuas mútuas-dependências: formam-se desse modo as redes .mais
importantes de'relações sociais (na verdade,-trata-se dás relações sociais stricto
sensu)',-2) cada indivíduo, de seu lado, tende a encarar a sociedade completa, sc
é que alguma vez a encara, como uma abstração, mas se relaciona pcssoalmen-
te com alguns dè seus membros, seja dirclamente (família, amigos, colegas da
escola.-ou do trabalho etc.), seja indirclamente, ruas num nível em que os
dprècnde como indivíduos (por exemplo a relação de alguém, a distância, com
um político, uma cantora ou uma atriz de Hollywood - na maioria dos casos,
uma relação com meras imagens ou representações deles): em todos os casos,
porém, existe a consciência de outros seres como indivíduos concretos, mani­
festa-se algum tipo de interesse é significação c pode ocorrer, eventualmente, a
satisfação de uma necessidade individual, mesmo se a relação ficar só no nível
de representações; dá-se, oiitrossim, uma atitude de valoração (positiva, nega­
tiva, de suspensão de juízo étc.), nascida das mencionadas representações, mas
que pode provir também, em parte pelo menos, dq .sentimento ou juízo da co­
munidade; 3)- laços sociais desse tipo (em que a consciência clqs iiidjvíduos
concernidos tem um papel decisivo; o que não ocorre nas relações sociais pro­
priamente ditas, nascidas em priineira instância da divisão social do trabalho)

ceito de classe,social veio a existir, as condições apontadas não são só impossíveis,


mas constituem, igualmenté, uma e.xigcíiciaabsiirda, ao traduzirem o desklantim
de Uma ciência social "neutra’!em sociedades marcadas põe desigualdades em coi­
sas centrais como propriedade, staius e poder. A conclusão de Calverf de que sè tra­
ta de um conceito sobre o qual não pode haver acordo socialmente global não pas­
sa de umá taütolpgia; Sua opinião dç que ele deveria ser abandonado (p. 216} é
uma opinião... de classe! Será um acaso o fato de que, na Europa pós-Estado do
Bem-Estar, o conceito dc classe social seja muito menos contestado do que o foi no
passado pré-Tliatcher '(ou do início da era Thatcher)? Na América Latina, por ra ­
zões óbvias, houve, muito menos tentativas acadêmicas de tentar negar validade so­
ciológica ou política a tal conceito. Tambcm entre nós, sem dúvida, os néoconscr-
vàdores de plantão .verão cm seu usó uma: tentativa de "ideologizárK o debate (ria
verdade, é o próprio debate que othaniado pensamento único gostaria.de debelar,
já que pm sua opinião nãô existem alternativas às políticas neoliberais).

•\ • ■ I i
' - ' . , 279
, ■ * • . '; ^ ,

/
também podem ocorrei- sem contatos diretos ou indiretos, com valorização e
investimento emocional mediados por sistemas simbólicos institucionalizados
que substituem de certo modo o contato em questão,' por exemplo ao sc tratar
<ln adesão (ou, pélo contrário, cia repulsa) de indivíduos a um partido ou a um,a
corporação (igreja, nação, forças armadas, por exemplo)í Enquanto as relações
sociais do primeiro tipo são.mais homogêneas e gcheralizáveis, os laços-sociais
de que se falou no segundo e terceiro pontos são, pelo contrário; além de frag-
mentários (parciais, seletivos), muito heterogêneos entre si (a relação entre pai
e fillio c djferente daquela entre marido e mulher; a de um empregado com um
patrão específico dotado de certas características é bem mais seletiva - isto é,
leva em conta conhecimentos e interesses que sõ mobilizam um conjunto res-
Irilo de variáveis sobre o indivíduo-patrão^- do que a que o primeiro possa ter
com um amigo etej.”
As considerações acima são altamente resumidas e incompletas, além
de, nesses exemplos, eu ter escolhido o nível tia descrição estrutural, mais do
que o,da dinâmica das relações. Mesmo assim, em todos-òs pontos do que ali
expus, se por um lado sempre séria possível apontar aspectos culturais rele­
vantes-em qualquer dos muitos sentidos que se possa dar ao termo cultura-,
também é certo que eles nunca seriam capazes de esgotar a análise de algum
daqueles pontos (ou de outros que se escolhessem). Na época do auge da His­
tória Social com pretensões sintéticas,-a Sociologia atravessava uma fase espe-
•' cialmeute anti-histórica em suas características e correirtes básicas, o que d i f i ­
cultou e deformoíi os contatos entre ambas as disciplinas.” ,Tal constatação
não justifica, entretanto, o empobrecimento evidente do enfoque que çònsis-
l iria em ignorar) por exemplo, os aspectos materiais de elementos sociológicos
como os que foram apontados, Existem representações envolvidas nas rela-
ções sexuais, mas um marido, por exemplo, faz amor com uma esposa de çar-
- ue e osso, não com uma representação. Üm indivíduo pode se alistar e partir
para a guerra invocando uma noção que tenha (oii que a propaganda nado-

. . - ■
32 BAUMAN, Zygmunt, Essai dfone théorie marxiste de la société.. VUommeet Ia
Sociélé, Paris, Ànlhropos, 15, p. 3-26, japv./mars 1970. Ver também MELOTTI, Um-
bertp (Org.). Ip tro flu z lo n e alia sociologia. MHano: Centro Stiuli Tcrzo Mondo, 1980,.
33 CASANOVA, Julián. i a h is to r ia s o c ia l y los liisk)rí<iclõi:es. Barcelona: Crítica, 1997. '
p. 1-12-113. 1, / > ' -■ ,
nalistíi Ihè inculquc) sobre a pátria, mas, na guerra, tratar-sé-á, entre outras
coisas, de matar e/ou morrer, e náo.unicamente de representações. Podem-se
estudar asjmlsôcs envolvidas nas ações represssivas, mas quando alguém apa-
nba da polícia ou é preso, trata-se de uma pessoa de verdade que é de fato es­
pancada ou trancafiada. Um antropólogo pós-moderno como Peter Wilson
pode avisar aos leitores que, entre as “realidades” e as “surrealidades” do po­
der, interessar-se'-á só por,estas últimas - más, naturalmente, não terá como
negara existência das primeiras.31 Sendo-assim, no entanto, de onde virá tal
interesse exclvisivo pelas “surrealidades”?
Num sentido mais geral, o Homo sytnbolicus só podería funcionar den­
tro da teoria teológica dc uma criação especial ou separada da huúianidade
por Deus, único modo de efetuar uma-separação taxativa entre cultura e na-
tuveza. Mas todos os estudos recentes disponíveis, em muitas áreas de estudos,
comprovam, pelo contrário, que o comportamento cultural .existe líiiiitada- ;
mente nas sociedades dos primatas rião-humanos atuais, que sem dúvida pos­
suem uma vontade subjetiva. Embora tal fosse feito no século 19, já não Ká
como separar os animais,, puramente “instintivos", de uma humanidade sem
herança hereditária, cujo comportamento fosse exclusivamente cultural devi-'
do a seu acesso, exclusivo à abstração e á simbolizarão: /'

(,„) há muito a-ser-ganho.com,o entendimento de que á vida social humana repou­


sa sobre um conjunto complexo de iuecanismos sociais, psíquicos e biológicos in­
tegrados que emergiram durante uma trajetória evolutiva qtie' é em parte dividida^
com outros animais. Com isto se quer argumentar que a oposição simples entre na-
, tureza e aprendizagem, tão tVeqücntemente encontrada nas ciências sociais, é em
■grande parte errônea, pois não iiá uma distinção ou uma fronteira final que divida
Ç a natureza da cultura. A afirmação de que a maior parte do comportamento huma­
no é aprendido não é desmentida pelo tato de qúc a aprendizagem só pode ocorrer
em virtude dc um'conjunto dc mecanismos biológicos c psicológicos que sc desen­
volveram ao desenvolver-se a sociedade humana e pré->húmana;.Mas tais habilida-
des do corpo e da riiente, tanto nos humanos quanto nos animais superiores, hão
1existem independentemente da interação social.”
'■ • '* ' . *

— :------------— - 1' . / ’ . v.
34 WILSON, Peter. The tlomestiçation oftlw hunum spt’qes. Nè\v Haven: Yale Univer-
, siíy Press, )988,p. 117-150. .. ^
35' MEGARRY, Tim.Socittyin Prehistòry: The origins ofhuman cullure. Houndmills-
London: Macmülan, 1995. pi 7.;

2HI
1
lim suma, os seres humanos são animais, produtos da seleção natural,
dotados de um passadonão-humano -que, entre outras coisas, não pode ser
desvinculado do fato de terem emergido as sociedades humanas como entida­
des coletivas que, como vimos ao começar, servem de substrato material à cul-
tura social. Mas os humanos São animais que leváram tão ionge a possibilida­
de de viver mediante comportamentos culturalizados (cuja possibilidade, en­
tretanto, tem fundamentos genéticos), qúe “o desenvolvimento cultural e a
mudança social levam--.se a cabo poVmeio de forças que se originam no inte­
rior da sociedade e nãó podem explicar-se por um mecanismo evolucionârto”.
Um síntese: ,

As idéias socialistas e a Física moderna existem indeperuleritemente dos geiics.


Mas a possibilidade de ter tradições culturais como parte de uma história real re-
. pousa numa longa interação entre os processos genéticos e culturais que corh-
preentlem a evolução huiYiana.K ■ '
^ ; • •
O Homo symbolicus do antropologísmo idealista é um fantasma sem
substância, como qualquer'outra “natureza humana” desencarnada e despro­
vida de dimensão histórica. Por conseguinte, já que não é possível descartar
um conceito tão polissêmico como o de cultura, deve-se pelo menos selecio­
nar, entre suas açepções éxcessivamente numerosas, as que preservem o vín­
culo indissolúvel entre o cultural e o social, bem como o laço entre o socio-
cultural e o natural, em lugar de preferirías que, operando recortes unilaterais,
cindem, de tal modo; á-unidade do humano’, - .

3 6 M BGARRY, T in i. Society in Prehistory: The o r ig in s o f h tin a m c u ltu re . H o u n d rnills-


Londoti: M a c m illa n , 1995. p. 90, -

282
«• Sobre o Livro
Formato lfa23tin
. TjPoloqüt .Vlínlon (texto) ' !
Mmlyii (títulos)
•fí«fV Recidato 70 g/m! õniolo)
(«irtüoSupremo 250 g/m-(r.ij>a)
4 Im p tm à o ' Soli demaitdii
■Acabdmenta Ctisluradõe Ctjkuki
M ugem I.fl(K)

Equipe de.Realização
, ProtfuçõoGnffica Reiuitofâlcítítra/orts
. E tliçàockTrxto Kenmmla GoUoy'lh»x:in;tlU
M a n to s cto Edição d o m to Beatriz Rudrjgucs de Lima
, • Josle Chris üabrld
. ‘ ■. JúNaCaroíIniufcUiaa - "
■ \íiléri.i Blomio
R otéào júlia OiroUiut rfeLucra ^ .
Pmje/o Gníjico ■ÈquipoEtlBC
CrítTçiioúu Capa ( Carlosfendei
C alíilogtçàov '
. R efirêm iíB ib lio g n íflim KliawdeJesus Charret '
D higm m açio ' Daniel CastiUioRarafoi*

Impressão e Acabamento

, ' b a n d e Ir a n tf ^ • ’■ : ■■
<3 N . d f m * . n o

«nífica Bandoiraõt^
Ciro Flamarion Cardoso
nasceu cm Goiânia cm 1942. Formou-se cm História pola
Universidade l;cdcral do Rio de Janeiro (1965), tendo então
lecionado ali durante dois anos, como assistente da ente-
drática Maria Yedda Linhares, e na Universidade Católica de
Pelrópolis, Cursou seu doutorado cm História na Universile
de Paris X (Nanterre), sob a orientação de Frédéric Mauro,
concluindo-o em 1971 com uma tese sobre a Guiana
Francesa no século 18 que, publicada em forma completa só
em 1999, ganhou em 2000 o Prêmio Delavignelle, atribuído
ao melhor livro sobre o Ultramar francês.
Após doutorar-se, pesquisou e ensinou na Costa Rica
(1971-1976) e no México (1976-1978), regressando ao
Brasil em 1979 para trabalhar na Universidade Federal
Fluminense, cm Niterói, onde é, desde 1993, Professor
Titular de História Antiga e Medieval e, desde 1998,
Coordenador do Centro de Estudos Intcrdisciplinares da
Antiguidade. Entre 1979 e 1984 lecionou também na
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Foi pro­
fessor visitante em numerosas universidades do país e do
exterior (Oxford, Amsterdã, Toulouse-I.c Mirail, New York
Universíty, Madison WI, cnlre outras). É pesquisador do
CNPq, com bolsa dc Produtividade em Pesquisa.
É ainda autor e organizador de mais de trinta livros,
publicados no Brasil e em outros países, tendo também pro­
duzido inúmeros artigos destinados a revistas científicas
nacionais e estrangeiras. Entre seus livros, destacam-se; Os
métodos da História, em colaboração com iléctor Perra
Brignoli (publicado na Espanha em 1976 c no Brasil cm
1979); Rio de Janeiro, em colaboração com Paulo 1lenriqne
Araújo (Madri, 1992); Sele olhares sobre a Antiguidade
(1994); Domínios da História, organizado cm colaboração
com Ronaldo Vainfas (1997); La Guyatwfmçaisc 1715-1817
(Guadcloupe, 1999); B/jíiyos (San José, 2001) e/l ficçilo cien•
tífica, imaginário do mundo cmiícjiijwrdmii (2003).

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