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SIMON SCHAMA
Cidadãos
Uma Crónica da Revolução Francesa
Traduzido por
Miguel Mata
• Civilização
Editora
Título original
Citizens
Créditos fotográficos
Fotografia do autor© Margherite Mirabella
Fotografia da capa© Musée de la Ville de Paris,
Musée Carnavalet, Paris/Bridgeman Girandon/Lauros
Adaptação da capa
Departamento Editorial
Tradução
Miguel Mata
Revisão
Departamento Editorial
ISBN 978-972-26-3280-5
Depósito Legal 322914/11
Civilização Editora
Rua Alberto Aires de Gouveia, 27
4050-023 Porto
Tel.: 226 050 900
geral@civilizacaoeditora.pt
www.civilizacao.pt
Para JACK PLUMB
J 'avais rêvé une république que tout le monde
eut adorée. Je n 'ai pu croire que les hommes
fussent si féroces et si injustes.
WILLIAM WORDSWORTH
JULES MICHELET
PARTE UM
Mudanças: A França de Luís XVI
1 Homens Novos
PAIS E FILHOS 17
II HERÓIS PARA O S TEMPO S 24
3 O Absolutismo Atacado
AS AVENTURAS DE MONSIEUR GUILLAUME 82
II A SOBERANIA REDEFINIDA: O DESAFIO D O S
PARLAMENTO S 89
III NOBLESSE OBLIGE? 98
5 O s Custos d a Modernidade
UM RE GIME ANTIGO OU NOVO? 155
II VIS Õ E S D O FUTURO 165
PARTE DOIS
Expectativas
6 A Política do Corpo
I FURORES UTERINOS E OB STRUÇÕES DINÁ STICAS 173
II O RETRATO DE CALONNE 1 90
III EXCEPÇÕ ES NOTÁVEIS 200
7 Suicídios 1787-1788
REVOLUÇÃ O NA PORTA AO LADO 208
II O Ú LTIMO GOVERNO D O ANTIGO RE GIME 213
III O CANTO D O CISNE D O S PARLAMENTOS 219
IV A JORNADA DAS TELHAS 230
V JOGOS FINAIS 240
PARTE TRÊS
Escolhas
15 Sangue Impuro
I UM "HOLOCAUSTO PELA LIBERDADE" 529
II GOETHE EM VALMY 544
III "NÃ O SE REINA INOCENTEMENTE " 549
IV O JULGAMENTO 558
V DUAS MORTE S 567
PARTE QUATRO
Virtude e Morte
EPÍLOGO 715
Reuniões 725
• � ia
d
A França no Antigo Regime:
Províncias e Principais Vilas e Cidades
V
MAR MEDITER R ÂNEO
100 Km
Prefácio Especial à Edição Portuguesa
Uma grande parte dessa escrita enérgica - de B urke a Carlyle - fora menos
académica ou aquilo que Voltaire designava por " filosófica " e não procu
rava ser imune às paixões, tal como acontecia com a tradição republicana
em França, onde a história era sempre mais do que a crónica ou a análise
académicas e sempre problematicamente inseparável da política contem
porânea. Em ambos os lados do Canal, como que por afinidade, este
tópico podia desencadear insurreições literárias de retórica escrita - espec
taculares no caso de Carlyle. John Stuart Mill ( que queimou acidental
mente o manuscrito de Carlyle ! ) caracterizou o texto como um grande
"poema em prosa", um poema que respondia plenamente à ambição de
Carlyle de derrubar a distinção de Aristóteles entre a história e a poesia .
Carlyle afirmava que a história, "se pudesse ser escrita, seria a única poe
sia " . Escrita à sua maneira, queria ele dizer. Ainda me deparo com cons
ternação quando ponho os meus alunos a ler o espantoso terramoto de
verborreia de Carlyle, alternadamente transcendente e desarticulado .
Cambridge ( e Oxford) do século XIX não queriam nada com aquilo .
O próprio sucesso de French Revolution de C arlyle era uma espécie de pro
vocação, a transbordar de horror e desprezo, para definir a disciplina his
tórica contra os excessos românticos corporizados na famigerada obra .
Contra a poesia e a proximidade, cerraram fileiras a ciência e a fria obj ec
tividade. As epítomes da reacção foram lorde Acton ( sentencioso à sua
maneira ) e J . B. B ury, para quem a história tinha de aspirar pelo menos à
condição da ciência forense para não ser tratada como especulação j uve
nil. Os arquivos falariam por si próprios e a subj ectividade intrusiva dos
seus intérpretes teria de ser excisada para que a pureza do registo herdado
pudesse ser transmitida de geração em geração. Na verdade, os historia
dores mais não seriam do que filólogos e editores críticos do que recebiam
alegremente para a posteridade .
E assim ficaram as coisas, pelo menos em Cambridge . Os grandes
tomos frios de Acton (e o seu proj ecto ultra -racional, "The C ambridge
History of Europe " ) , com os seus comités de eruditos lapidares, dobravam
as prateleiras das bibliotecas onde as suas páginas dormiam em gélida cor
recção. Naquela mentalidade política extremamente liberal, a Revolução
Francesa tornou-se parte da educação dos funcionários públicos britâni
cos, especialmente dos destinados aos negócios estrangeiros e às colónias,
por causa do muito que revelava acerca da qualidade míope do zelo insur
recto, dos modos como as repúblicas se transformavam em ditaduras
imperiais ou dos perigos e oportunidades presentes às monarquias que se
reformavam. Mas para ser um manual sobre o acesso e o exercício do
poder, a história tinha de ser purgada do seu caos poético, ou sej a, da sua
essência. Por conseguinte, as primeiras palestras dadas em muitos e mui
tos anos nesta Universidade, onde a história era uma verdadeira potência
disciplinar, couberam-me a mim, então com vinte e tal anos.
Simon Schama 1 CIDADÃOS
branco, a parte de cima era a parte de baixo, dentro era fora. Finalmente,
tudo fazia sentido, e parte do meu entusiasmo decorrente daquela aprendi
zagem tardia foi certamente parar àquelas excitadas e excitáveis palestras.
O que não é dizer que eu neguei que a raiva que incendiou a
Revolução não tinha a sua génese em desigualdades sociais enormes, na
perpetuação da fome no meio de uma espécie de idade de ouro plutocrá
tica francesa. No entanto, tudo isto j á fora observado por uma geração
anterior de historiadores em França e Inglaterra . A Revolução era efecti
vamente um drama social de muito desespero e só quando eu comecei a
conduzir os cento e trinta quilómetros entre Cambridge a Oxford para
assistir a um seminário quinzenal sobre a Revolução Francesa conduzido
por Richard C obb no B alliol C ollege é que me aproximei verdadeiramente
do evento. "Le Formidable M. Cobb", como ele era conhecido nos círculos
históricos franceses, era e não era formidável. Era "formidable" nos seus
conhecimentos bilingues e no espantoso domínio que tinha dos arquivos .
Fizera a sua tese sob a orientação de u m dos maiores e mais severos dos
mestres da geração marxista, Georges Lefebvre, e escrevera a sua tese -
obrigatoriamente imensa - sobre os "exércitos revolucionários" que não
eram soldados no sentido convencional do termo, mas sim brigadas arma
das de sans-culottes geralmente enviados de Paris para garantir o abasteci
mento alimentar e a aplicação do controlo dos preços e de outros aspectos
da ortodoxia j acobina nas províncias recalcitrantes . Mas a ênfase de
Richard era sempre nas vítimas, nos pobres dos pobres, nos indefesos e
cada vez mais em todos aqueles para os quais a política, incluindo ( ou
especialmente ) a política revolucionária, era uma espécie de malfeitoria
iludida, a extracção da decência humana em nome da Ideologia
Melhoradora.
Nenhuma das pessoas que assistiu ao seminário - muitas eram histo
riadores que viriam a escrever com grande eloquência sobre a•Revolução
- esqueceria a experiência. Na presidência da sessão, além de C obb, com
o seu aspecto de pássaro ossudo e desgrenhado, havia um busto de
Voltaire por Houdon - visto de um certo ângulo, tinha algumas seme
lhanças com o professor. O debate era frequentemente imoderado mas
nunca arrogante . Havia chispas. Ao j antar, C obb bebia de mais para a sua
débil constituição . D epois do j antar, bebia ainda mais . Em várias ocasiões,
eu e outros tivemos de levar a sua frágil figura para o quarto e deitá-lo na
cama. Fora precisamente naquele tipo de postura caprichosa mas bondosa
e na sua experiência directa de uma vida vivida nas margens que a dedi
cação de C obb aos pobres revolucionários parecia genuinamente cama
rada e não académica . E C obb escrevia cada vez mais com um desprezo
absoluto pela aridez do " discurso" académico - a palavra deixava-o fisica
mente doente . Às vezes, partes dos seus escritos desmoronavam-se em lis
tas rabelaisianas, em acumulações ricas de pormenores, na matéria
Simon Schama 1 CIDADÃOS
o ano a celebrar. E sta era mais ou menos a minha posição quando iniciei
a minha investigação mas não quando a terminei. Nessa altura, pareceu
-me que os dentes do dragão tinham sido semeados logo no início, com o
ostracismo a que foram votados do corpo político os "não cidadãos" ( como
os padres ) , com a execução exemplar de figuras simbólicas para a fúria
popular, quando as sucessivas facções descobriram que podiam incomo
dar e deslocar os incumbentes do poder libertando sobre eles as demoni
zações da traição. Por vezes, foram aj udadas por traidores verdadeiros,
incluindo o próprio rei, no seu momento de idiotice criminosa com a fuga
para Varennes .
Eu quis escrever sobre as coisas mais feias d e um modo directo q u e era
considerado vulgar ou sensacionalista pela academia, e assim aconteceu .
A propósito das descrições d o s Massacres d e Setembro fui acusado, pela
crítica inglesa Marilyn B utler, de uma certa pornografia histórica e de gos
tar daquilo que , na sua opinião, eu dizia considerar repugnante . É capaz
de ter sido a afirmação mais terrível e também a mais falsa alguma vez
feita sobre o meu trabalho (e têm sido ditas algumas ) , e as coisas não fica
riam por ali. Deplorar o princípio da violência revolucionária e não o seu
consumar apocalíptico no Terror jacobino significava que o meu trabalho
fora seguramente concebido no espírito e executado na letra da direita
contra -revolucionária . Cidadãos foi acusado de pertencer ao ninho de
víboras que tinha gerado as efusões reaccionárias de Burke, Taine e
Carlyle. As eminências correram a imprimir estas apreciações ainda antes
de lerem o livro . Roger Chartier classificou-o como "reaganismo" nas
páginas do Le Monde, o que significou que fui de imediato felicitado nas
páginas do Le Figaro. Nem um nem outro tinham razão . Julgo que se
tomei alguma posição durante a escrita do livro, foi a de um envergo
nhado social-democrata a pender para a esquerda lacrimante que sentiu
que não honrava a memória nem as comemorações do bicentenário
de 1 789, para disfarçar o seu carácter essencialmente trágico .
Paguei um certo preço pelas caricaturas antecipativas do livro e pela
sua suposta orientação política . Enquanto - para meu grande alívio e gra
tidão - Richard C obb fez uma recensão generosa no Times Literary
Supplement e C olin Jones, muito mais à esquerda do que eu, decidiu dis
cordar mas fê -lo de forma extremamente compreensiva e calorosa, houve
outros que transformaram temporariamente o livro e o seu autor em
párias. Amigos que tinham sido próximos deixaram de me falar; voltaram
a fazê -lo passado algum tempo, mas a amizade nunca mais foi a mesma .
xxiii
Uma queixa comum era que o livro, além de reaccionário, era intelec
tualmente trivial; ou oferecia uma argumentação errada ou não oferecia
argumentação nenhuma. Segundo alguns dos comentários mais virulen
tos, eu tinha conseguido (milagrosamente) fazer as duas coisas ! As pales
tras em conferências eram interrompidas pela "Marselhesa" e eu
j untava -me de imediato ao coro - sempre gostei de versos de gelar o san
gue . A carga inerente ao facto de o livro ser sequestrado para j ogos fac
ciosos e o ténue ar de desgraça que pairava sobre ele explica parcialmente
porque é que as muitas línguas para as quais foi traduzido não incluem o
francês ( uma situação que estará aparentemente a ser corrigida) .
Aqueles que, à direita, pensavam ter e m mim u m aliado acabaram por
ficar tão alienados como os da esquerda . Livros subsequentes desmasca
raram-me como um conservador muito pouco de fiar, e algumas luminá
rias daquela área ferraram os dentes nos meus dúplices calcanhares e
ainda não largaram.
No fim, nada disto importa, e na época não importou muito. Mais do
que qualquer outro livro meu, atingiu a imaginação popular e teve bas
tante sucesso comercial na Grã-B retanha e nos E stados Unidos. As críticas
não académicas foram embaraçosamente excessivas. C onquistou prémios.
E durante todo este tempo, não fiz muito para reexaminar profunda
mente os seus argumentos, embora possa dizer que as suas linhas princi
pais - no que diz respeito à violência, por exemplo - foram ultrapassadas
por investigações muito mais recentes. Alguns dos antigos refrães conti
nuam a ouvir-se. No ano passado, foi incluído num excelente documen
tário da B B C , da autoria de Mark Hayhurst, sobre as últimas semanas do
Terror e dei comigo a ter de repudiar mais uma vez a opinião de que é um
erro do mais débil liberalismo e de falta de coragem burguesa deplorar a
violência sem a qual, segundo reza o argumento - e reza ! - nenhuma
revolução pode garantir as liberdades do povo ou as suas pretensões à j us
tiça social. E sgrimi veementemente com Slavoij Zizek em relação a esta
matéria e nenhum de nós. cedeu . Não sei qual de nós seria o primeiro a
subir para a carroça destinada à guilhotina moderna mas a paixão do
debate - tal como as notícias do Cairo e de B enghazi - validou o meu ins
tinto de que este tema nunca ficará ou nunca deverá ficar encerrado nas
deliberações remotas dos especialistas.
D e facto, uma das coisas que mais me agrada nas novas traduções é o
seu potencial de insuflarem nova vida nestas páginas que começam a
amarelecer, de recuperar para novos leitores os números que tropeçam e
correm, de exclamar e chorar com as suas páginas: Lucy de La Tour du
Pin, Malesherbes, Lafayette, Talleyrand, o céptico de olhos vivos, e a
minha trágica ménada da fúria revolucionária, Théroigne de Méricourt,
cuj a história terrível encerra o livro . Uma das queixas mais suaves acerca
de Cidadãos - perfeitamente j ustificada - é que não "acaba" como deve ser,
Simon Scharna 1 CIDADÃOS
que não tem uma " C onclusão" ( o leitor reparará que também não tem
"Introdução", pelo que estas deficiências são .simétricas ) . É verdade que a
narrativa poderia ter sido levada até ao fim tradicional, o golpe de
Napoleão B onaparte a 1 8 de B rumário. Mas pareceu-me e ainda me
parece que todos os fins, pelo menos, além da extinção da tirania robes
pierrista, foram arbitrários . Mas a verdade é que eu estava intelectual
mente e, enquanto escritor, vazio, exausto, aniquilado, kaputt. Levei
menos de um ano a escrever o livro mas consumiu -me a minha vida e eu
continuava a ser assombrado pela pergunta - relativamente respondida
nas passagens finais do livro, com Talleyrand na América e Lafayette na
prisão - acerca do problema da saída, que era muito mais crítico para as
legiões de impotentes de C obb do que para os poderosos. Depois de se
entrar no furacão, como é que se sai?
A assombração pareceu tornar-se quase literal. Prestes a terminar o
livro, as minhas noites eram visitadas por um desfile dos desesperados e
dos paranóicos, dos aterrorizados e dos resignados, como se eu estivesse
numa das câmaras de detenção revolucionária . Os fantasmas não estavam
vestidos a rigor mas uma vez acordei em pânico, encharcado em suor, a
pensar onde teria deixado a minha peruca e o meu cavalo. Mas sentia-me
como um fugitivo e a fuga envolvida na conclusão do trabalho inconcluí
vel da narração parecia-me uma deserção, o abandono dos meus conci
dadãos cuj a companhia me tinha abrigado, entusiasmado, assustado e
comovido através do processo da sua ressurreição literária .
Com esta consciência irracionalmente intranquila, dou as boas -vindas
aos leitores portugueses destas páginas. Cuidado ! S egundo me dizem,
ainda ferram e queimam. Espero que sim.
Londres, Fevereiro de 2 0 1 1
Prefácio
declarações dos oradores pouco mais eram do que uma verborreia ligeira
que não conseguia disfarçar a sua impotência nas mãos das forças históri
cas impessoais . Do mesmo modo, o fluxo e refluxo dos acontecimentos só
era compreensível fazendo- o revelar as verdades essenciais e primaria
mente sociais da Revolução. No centro destas verdades encontrava-se o
axioma, partilhado por liberais, socialistas e até por monárquicos- cristãos
saudosistas, de que a Revolução fora o cadinho da modernidade, o reci
piente no qual todas as características do mundo social moderno tinham
sido destiladas - para o bem e para o mal.
Seguindo a mesma lógica, se a Revolução definia uma época, então as
causas que a tinham originado eram necessariamente de magnitude equi
valente. Um fenómeno dotado de um poder tão incontrolável e que tinha
aparentemente varrido todo um universo de costumes, mentalidades e
instituições tradicionais só poderia ter sido gerado por contradições pro
fundamente embebidas no tecido do Antigo Regime. Por conseguinte,
entre o centenário de 1 88 9 e a Segunda Guerra Mundial, surgiram gran
des e pesados volumes documentando todos os aspectos dessas falhas
estruturais. As biografias de D anton e Mirabeau desapareceram, pelo
menos das editoras académicas respeitáveis, e foram substituídas por estu -
dos de flutuações de preços no mercado dos cereais . Numa fase posterior,
os grupos sociais, colocados articuladamente em oposição uns aos outros
- a "burguesia ", os sans-culottes -, foram definidos e dissecados e as suas
danças dialécticas foram convertidas na coreografia exclusiva da política
revolucionária.
Nos cinquenta anos decorridos desde o sesquicentenário, verificou-se
uma séria perda de confiança nesta abordagem. As mudanças sociais drás
ticas imputadas à Revolução surgem menos nítidas ou nem sequer apare
cem. Os "burgueses", que nas narrativas marxistas clássicas eram
apontados como principais autores e beneficiários do evento, tornaram-se
zombies sociais, um produto de obsessões historiográficas e não de realida
des históricas. Outras alterações ocorridas na modernização da sociedade
e das instituições francesas aparentam ter sido antecipadas pela reforma
do Antigo Regime. As continuidades surgem tão marcadas como as des
continuidades.
A Revolução j á não parece um grande desígnio histórico, pré - orde
nado pelas forças inexoráveis da mudança social. Pelo contrário, afigura
-se como obj ecto de contingências e consequências imprevistas (a
começar pela própria convocação dos Estados Gerais ) . Uma profusão de
excelentes estudos locais demonstrou que, em vez de uma única
Revolução imposta por Paris ao resto de uma França homogénea, se veri
ficaram várias "revoluções", determinadas amiúde pelas paixões e inte
resses locais . A par do ressurgimento do lugar como condicionante,
afirmaram-se as pessoas. Assim, com o enfraquecimento das "estruturas",
xxvii
* * *
xxix
Lexington, Massachusetts
1 988
Cidadãos
FAUBOURG
• DU TEMPLE
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PR Ó L O G O
O Poder da Memória:
2 O autor faz um trocadilho com o poema A Revolução Francesa como pareceu aos entusias
tas no início, escrito por William Wordsworth em 1 809, onde se lê: "Era uma bênção estar
vivo naquele alvorecer, mas ser j ovem era como estar no paraís o . " (N. do T )
9
' Da ópera cómica Richard Coeur-de-Lion, com música de Grétry sobre libreto de Sedaine,
estreada em 1 784. A ária "Ô Richard, ô mon roi!" tornou-se uma canção monárquica muito
popular durante a Revolução Francesa. (N. do T. )
4 Nome d a espada lendária d e Carlos Magno. ( N. do T. )
Simon Schama 1 CIDADÃOS
ninguém que todas estas artes eram tão necessárias no futuro político
como tinham sido no passado.
Em 1 8 3 0, o que Talleyrand mais queria para si e para a França era
uma vida tranquila . Em Valençay, no seu deslumbrante palácio renas
centista, desempenhava o papel de nobre de província: era presidente da
Câmara e ocupava os tempos livres a fazer experiências com novas varie
dades de endívias e cenouras e a tratar dos seus pinheiros- silvestres . Em
Rochecotte, a residência de D orothée de Dino, a sua companheira -
muito mais nova do que ele -, Talleyrand deliciava -se com prazeres ainda
mais prosaicos, saboreando pêssegos dos seus enxertos que comia com
B rie, o "Rei dos Queij os" ( " o único rei ao qual ele foi leal", disse um dos
seus muitos detractores) . Em Paris, Talleyrand mal saía do seu palacete,
na rua de Saint- Florentin. Recostava-se numa montanha de almofadas
( mesmo na cama, pois tinha muito medo de cair de noite e sofrer uma
concussão ) , mordiscando um biscoito e bebericando o seu Madeira
enquanto lia, sem precisar de óculos, um livro da sua imensa e especta
cular biblioteca . Talleyrand ainda era um homem vaidoso, e usava a farta
cabeleira empoada e penteada em caracóis brancos, constrangia a papada
num colarinho alto ao estilo D irectório e suj eitava o seu famoso nariz
arrebitado ( que ele continuava a arrebitar como µma arma mortífera) a
uma peculiar operação de lavagem no fim da única refeição a que se per
mitia diariamente .
A Ary Scheffer, que o pintou em 1 828, Talleyrand terá parecido a morte
vestida de seda preta. No entanto, como uma tartaruga imensamente enve
lhecida e formidável, Talleyrand tirava o máximo da vida tratando-a com
propósito e cautela. Era por isto que a estupidez obtusa de Carlos X o exas
perava tanto. Na sua temerária determinação de fazer frente a todos os faná
ticos - menos aos mais reaccionários -, o soberano condenara a França a um
novo período de "anarquia, a uma guerra revolucionária e a todos os outros
males dos quais a França foi salva com tanta dificuldade em 1 8 1 5 " . Se para
Lafayette a revolução chegou como uma torrente de sentimentos, um elixir
da j uventude, para Talleyrand, os sinos a tocarem a rebate soavam como um
alarme na sua inteligência. Para Lafayette, 1 8 30 tinha de ser o anúncio da
Liberdade e da Democracia, não só para a França mas também para todo o
mundo (e especialmente para a Polónia) . Para Talleyrand, a única coisa que
j ustificava uma mudança de regime era o controlo dos danos.
Se as manobras brilhantemente histriónicas de Lafayette com a ban
deira tricolor e a sua bênção perante as multidões " Voilà la meilleure des
-
Mudanças
A FRAN Ç A D E LUÍS XVI
1
Homens Novos
I PAIS E FILHOS
quês a divisão que ele tanto desej ava - que Washington observou que
gostaria de merecer a confiança de Lafayette " como amigo e pai".
Simon Schama 1 CIDADÃOS
Washington poderá ter deixado escapar este gentil elogio de forma casual
mas a verdade é que para Lafayette foi um momento de epifania. A par
tir de então, Lafayette foi o filho adoptivo, dedicado quase até à escravi
dão à causa do seu novo pai, com patrie e pater unidos num apertado nó
emocional.
Se Talleyrand se considerava praticamente um órfão, " o único homem
bem-nascido e pertencente a uma família numerosa . . . que nunca conhe
ceu, nem por uma única semana da sua vida, a alegria de viver sob o tecto
paterno ", Lafayette sentia a sua perda de forma mais dolorosa. Quando
Lafayette tinha dois anos de idade, o pai, coronel dos Granadeiros da
França, morreu na Batalha de Minden, 1 e o tio caíra no cerco de Milão,
em 1 7 3 3 , durante a Guerra da S ucessão Polaca. Por conseguinte, o j ovem
Gilbert foi criado na propriedade da família, em C havaniac, no Auvergne,
com a cabeça cheia de sonhos marciais . Perto do palácio existiam alguns
campos a que os camponeses chamavam " campos de batalha" e era lá que
.
' Em 1 7 5 9 . ( N. d o T. )
21
Lafayette não era manco como Talleyrand mas parecia, de tão desaj eitado
que era no salão de baile. Ciente da sua falta de polimento, Lafayette sen
tia que as suas qualidades, apesar de serem cruas, não tinham só falhas,
tinham também mais-valias porque lhe tinham preservado uma virili
dade natural. "A rudeza das minhas maneiras, apesar de não ser deslocada
nos grandes acontecimentos", escreveria ele nas suas memórias, "não me
permitia curvar-me perante as delicadezas da C orte . "
Foi a mesma incapacidade para viver com os ornatos e não com a subs
tância da vida militar que o empurrou ainda mais para uma espécie de
action d 'éclat.2 Em 1 77 5 , Lafayette j á estava farto das palhaçadas que pas
savam por ousadias no seu círculo de amigos aristocratas e ricos que cos
tumavam reunir- se na estalagem Epée de Bois. Entre esta " C ompanhia da
Espada de Pau " encontravam-se vários j ovens - La Rochefoucauld,
Noailles, S égur - que, além de abraçarem a causa dos "insurrectos" ame
ricanos, seriam dos mais notórios cidadãos-nobres de 1 78 9 . E foi quando
servia sob as ordens de outro militar de ideias progressistas, o duque de
Broglie, que Lafayette decidiu usar a sua enorme fortuna ( um rendimento
anual de 1 2 0 000 libras, herança do avô materno ) para transformar
anseios abstractos em acções concretas . Ironicamente, B roglie, ex-cama
rada do pai de Lafayette, tinha -se comprometido a manter o j ovem irre
quieto debaixo de olho para o impedir de qualquer temeridade que
pudesse colocar em risco o que restava da linha masculina da família.
Todavia, no seguimento de uma apologia eloquente da causa americana
pelo próprio irmão de Jorge III, o duque de Gloucester, o empenhamento
de Lafayette foi de tal ordem que, depois de tentar levá-lo à razão, B roglie
resignou -se e aceitou (ou pelo menos não impediu fisicamente ) a aven
tura americana. Na verdade, longe de reter Lafayette, B roglie, j untamente
com Ségur e Noailles, decidiu seguir as suas pisadas.
A causa da vingança pessoal, familiar e patriótica, aliada a uma sede de
glória pré-romântica, foi fundamental na motivação de Lafayette para
equipar o Victoire e partir para a América, no Outono de 1 77 7 . Mas exis
tiu outro elemento não menos importante na sua decisão, nomeadamente
a sua profunda e sentida dedicação à causa da "Liberdade " . Segundo
Lafayette, esta dedicação chegou -lhe cedo e de forma natural. De facto, é
a veia romântica da sua autobiografia, que retrata o j ovem marquês como
um filho da natureza em empatia com os livres e os indomados, que ofe
rece a melhor pista para a compreensão das suas subsequentes paixões
políticas . Os planaltos rochosos e arborizados do Auvergne onde Lafayette
crescera estavam muitíssimo longe das civilidades urbanas da sociedade
parisiense, e a imaginação romântica de Lafayette pôde dar livre curso aos
seus devaneios. Em 1 76 5 , quando tinha oito anos de idade, uma besta
conhecida por " hiena de Gévaudan" e descrita nos avisos como "do tama
nho de um touro j ovem" andava a matar gado mas também, alegada
mente, a "atacar de preferência mulheres e crianças e a beber-lhes o
sangue" . B andos de camponeses começaram a perseguir o "monstro " mas
o pequeno Lafayette identificou-se com o carnívoro fugitivo e, na compa
nhia de um amigo, vagueou pelos bosques na esperança de um encontro
fortuito . "Mesmo com oito anos de idade", escreveu ele, "o meu coração
bateu por simpatia para com a hiena . " Anos mais tarde, quando frequen
tava o C ollege du Plessis, um colégio de ex-j esuítas em Paris, disseram-lhe
para escrever um ensaio descrevendo o cavalo perfeito. Lafayette louvou
um animal que escoiceava, se empinava e derrubava o cavaleiro logo que
sentia a chibata - um acto de impertinência pelo qual foi ele próprio devi
damente vergastado.
A insubordinação criativa de Lafayette no colégio tem uma importân
cia mais do que anedótica . D este os tempos de Pluvinel, o grande mestre
de equitação do reinado de Henrique IV, o domínio da equitação era
simultaneamente uma metáfora e uma preparação literal para o exercício
do poder público . A partir de Richelieu, uma sucessão de governantes
aprendeu, através do paralelo entre a equitação e a arte do estadista, a
importância do autocontrolo, da subj ugação do espírito de outrem e da
demonstração de autoridade. C ontudo, na década de 60 do século XVIII,
o culto da Sensibilidade, com a sua ênfase dramática no natural e não no
ensinado, na liberdade e não na disciplina, ofereceu um modelo alterna
tivo de conduta social e até política . E o que começou com actos infantis
de simpatia por animais teimosos não tardou a florescer numa preferên
cia generalizada da liberdade à autoridade, da espontaneidade ao calcu
lismo, da franqueza ao artifício, da amizade à hierarquia, do coração à
cabeça e da natureza à cultura. Terreno fértil para a formação de um tem
peramento revolucionário. Quando se preparava para embarcar no
Victoire, Lafayette escreveu a Adrienne :
Admitireis, coração meu, que as tarefas e a vida às quais rumo são muito
diferentes daquelas que tive por destino naquela fútil viagem a Itália [o
Grand Tour, digressão de turismo cultural] . ' D efendo a liberdade que ido
latro, vou completamente livre e como amigo oferecer os meus serviços à
mais interessante das Repúblicas, com franqueza e boa vontade, sem ambi
ções nem motivos secundários . Trabalhar em prol da minha glória será tra
balhar em prol da felicidade dele s .
Que marchas, que manobras, que fez ele para ser comparado ao herói
que, à cabeça de mil e seiscentos camponeses, perseguiu no Inverno pas
sado um poderoso exército disciplinado através de uma região vasta e
aberta -, com o grande general que nasceu para salvação do seu país e
4 O general Horatio Gates era o principal rival de Washington para o posto de generalís
simo dos exércitos americanos e envolveu -se numa campanha de maledicência (a Cabala de
Conway) para o desacreditar e substituir. (N. do T. )
Simon Schama 1 CIDADÃOS
' A execução sumária do capitão Huddy foi aprovada por William Franklin, último
governador real de Nova Jérsia e filho de Benj amin Franklin. (N. do T. )
Simon Schama 1 CIDADÃOS
para lhe oferecer [ao meu pai] a minha primeira homenagem e o meu
eterno adeus; para que ele pudesse pelo menos ouvir a voz do filho no
meio dos apupos dos carrascos e abraçá -lo no cadafalso onde perece u .
B elloy deu o seu melhor para promover este programa através das suas
peças de teatro e escreveu uma série de melodramas que, aquando da
publicação, complementou com um conj unto impressionante (para a
época ) de notas históricas. Tal como observou o seu crítico mais implacá
vel, La Harpe, o feroz editor do Journal Littéraire et Politique, Belloy era pre
j udicado por uma mediocridade insupe rável como dramaturgo,
especialmente no tocante ao desenvolvimento das personagens . Em
Gaston et Bayard, ligeiramente baseado na tumultuosa amizade entre
Gaston de Foix ( duque de Nemours ) e o chevalier de B ayard (a fina-flor da
cavalaria francesa renascentista ) , La Harpe queixou-se j ustificadamente
de que B elloy deu ao j ovem Gaston as características de um homem aus
tero e de meia -idade e a Bayard, que era mais velho, as de um j ovem
impetuoso. No entanto, a qualidade manifestamente medíocre das peças
não as impediu de serem muito populares .
A peça Le Siege de Calais foi s e m dúvida a q u e mais significado teve para
Belloy em termos de exercício de instrução patriótica, principalmente por
ser um drama tirado da história da sua cidade natal. Quando a peça foi
publicada, B elloy sentiu um orgulho muito especial ao ver impresso,
debaixo do seu nome (e por cima da referência de que era membro da
Académie Française ) , que era CIDADÃO DE CALAIS. O enredo - que se arroga
algumas liberdades históricas, omitindo a célebre intercessão da rainha
Filipa j unto de E duardo III em prol das vidas dos burgueses - é uma espé
cie de panfleto sobre cidadania patriótica transplantada da antiga Roma
para a França medieval. Não é obviamente por acaso que tem como vilão
quase implacável, o plantageneta Eduardo III, e como heróis Eustache de
Saint-Pierre, o simples presidente da C âmara, e os cinco cidadãos-bur
gueses que oferecem o sacrifício das suas vidas para desviar dos seus con
cidadãos a fúria do rei inglês. E mais uma vez, a relação pai-filho
encontra-se no centro do drama, pois a rainha Filipa é substituída por
uma passagem de ir às lágrimas na qual o filho de Saint-Pierre (improva
velmente chamado Aurelius/Aurele) implora ao intratável monarca
inglês que o deixe morrer na fogueira primeiro e longe da vista do seu
aflito pai. É obviamente neste momento que Eduardo cede, espantado
com a abnegação e a coragem dos mártires patriotas.
A peça alcançou um êxito estrondoso. E m 1 7 6 5 , foi representada
gratuitamente na C omédie -Française e atraiu público oriundo de todas
Simon Schama 1 CIDADÃOS
'' O combate entre estas duas fragatas também foi considerado uma vitória na Grã
-Bretanha . ( N. do T. )
Simon Schama 1 CIDADÃOS
"Estes versos ", escreveu Madame Campan, " eram aplaudidos e conti
nuamente pedidos no Théâtre -Français . . . não havia nenhum lugar onde
a aj uda dada pelo governo francês à causa da independência americana
não fosse delirantemente aplaudida. "
A celebridade d e Lafayette é u m momento importante na cunhagem
de um novo patriotismo pois tornou autóctone e modernizou um género
que estivera limitado aos ideais clássicos e conferiu a esse mesmo patrio
tismo uma cor ideológica - ténue mas distinta. Seria ingénuo imaginar
que a popularidade teria bastado para empurrar a França para uma inter
venção mais agressiva na guerra americana, não tivessem os ministros
Vergennes e Maurepas 12 decidido enveredar por essa via por motivos
" Vergennes era ministro dos Negócios E strangeiros, Maurepas era ministro de Estado e
principal conselheiro de Luís XVI. ( N. do T. )
33
Junho de 1 779, B enj amin Franklin escreveu à filha que todos aqueles
retratos "tornaram o rosto de teu pai tão conhecido como o da Lua . . . dada
a quantidade de bonecos que fazem dele, pode -se afirmar com verdade que
ele é o 'abonecado' deste país " . Numa célebre ocasião, a fama de
Benj amin Franklin induziu mesmo o rei a um solitário acto de humor: na
sua tentativa de levar Diane de Polignac a deixar-se dos seus elogios diá
rios ao Grande Homem, Luís mandou pintar a imagem de Benj amin
Franklin no fundo de um penico de S evres.
Naturalmente, Benj amin Franklin foi o criador da sua própria celebri
dade e, por extensão, da causa dos Patriotas em ambos os lados do
Atlântico . C iente de que os Franceses idealizavam a América como um
lugar de inocência, franqueza e liberdade naturais, tirou deste estereótipo
tudo o que pôde. Não sendo o mais típico dos Quacres, B enj amin Franklin
também explorou a reputação ( semicompreendida ) de probidade e sim
plicidade deste grupo para conquistar a simpatia dos sectores cultos da
sociedade francesa. E B enj amin Franklin sabia que a imagem do velhote
incorruptível e virtuoso caía muito bem precisamente porque punha
negativamente em destaque os aspectos mais rococós e sibaríticos do estilo
da corte - os quais, verdade sej a dita, já estavam de saída, empurrados
pelo estilo bastante mais sóbrio dos novos soberanos . Daí a sua adopção
do peculiar gorro de pele de castor, utilizado em muitos dos seus retratos
de propaganda e directamente derivado de imagens mais antigas de Jean
-Jacques Rousseau . As desgrenhadas madeixas brancas de Benj amin
Franklin e o seu casaco castanho - ostentosamente discreto -, intencio
nalmente usado nas audiências na corte, foram expressamente destinados
para consumo da opinião pública, no que alcançaram um êxito brilhante .
Madame Campan descreve - o ingenuamente a comparecer na corte "ves
tido como um lavrador americano" mas sublinha o seu contraste com "os
casacos cheios de rendas e bordados e os cabelos empoados e perfumados
dos cortesãos de Versalhes " . O panegirista e cronista mercenário Hilliard
d' Auberteuil vai ainda mais longe, transformando praticamente Franklin
num fragmento da imaginação de Rousseau ou num dos "homens velhos
e bons " de um melodrama de Greuze: "Tudo anunciava nele a simplici
dade e a inocência da moral primitiva . . . Ele mostrava à espantada multi
dão uma cabeça digna do pincel de Guido [Reni] assente num corpo
erecto e vigoroso vestido no mais simples dos traj es . . . falava pouco . Sabia
ser deselegante sem ser rude e o seu orgulho parecia o da natureza . Uma
pessoa assim excitava a curiosidade de Paris. As pessoas j untavam-se
quando ele passava e diziam: ' Quem é este velho lavrador que tem um ar
tão nobre ? " '
Apelidado d e "Embaixador Eléctrico ", B enj amin Franklin também
estava perfeitamente a par da ânsia de conhecimentos científicos que se
apoderara da elite francesa e sabia muito bem como explorá-la. "Em
35
França, todos acreditam que foi a sua varinha eléctrica que realizou toda
esta revolução ", escreveu John Adams com algum azedume . E a ciência
de Benj amin Franklin tornou -se uma característica vital da sua atracção
porque parecia tanto obra do coração como da cabeça - era a sabedoria
moralizada. O seu Poor Richard 's Almanack foi traduzido com o título de
La Science du Bonhomme Richard e tornou -se um campeão de vendas em
1 77 8 . A sociedade parisiense tinha fome de conhecimentos científicos e
não faltavam cientistas amadores e profissionais, dos charlatães mais
implausíveis aos empiristas mais rigorosos, desej osos de publicitarem as
suas descobertas. Quase todas as edições do diário Journal de Paris conti
nham inúmeros relatos de experiências realizadas nas províncias e na
capital, bem como anúncios de ciclos de palestras públicas conduzidas
pelas luminárias mais conhecidas, tais como Fourcroy e Pilâtre de Rozier.
Por conseguinte, a imagem de Benj amin Franklin, que conseguia ir bus
car aos céus o fogo celestial da electricidade, uniu -se à celebração das
suas virtudes "americanas ", em especial a da liberdade . Turgot pode ter
criado o famoso epigrama Eripuit Coe/o Fulmen, Sceptrumque Tyrannis ( Ele
arrebatou o fogo aos céus e o ceptro aos tiranos ) como um inócuo j ogo
de palavras, mas a frase converteu-se rapidamente numa espécie de sinó
nimo do papel de B enj amin Franklin como arauto da liberdade.
Popularizado primeiramente num medalhão com o seu rosto e depois em
várias gravuras, este tema, com a sua habitual iconografia de raios e leões
britânicos vencidos, tornou-se um padrão para a porcelana pintada e os
tecidos estampados, mesmo os expostos em Versalhes. Tornado casual
mente respeitável, o elo entre a queda dos tiranos e o fogo celestial tinha
implicações sombrias numa França absolutista porque sugeria inevitavel
mente, numa veia romântica, que a liberdade era uma força natural e,
por conseguinte, irresistível, e contribuiu de forma acrescida para uma
crescente bipolaridade entre as coisas naturais ( " Humanidade " ,
" Liberdade " , " Patriotismo " ) e as coisas artificiais ( " Privilégio " ,
"D espotismo ", a corte ) . Não admira q u e esta equiparação d a liberdade a o
raio tenha sido prontamente sancionada n a Revolução . P o r exemplo, o
relato pictórico que Jacques-Louis David faz do Juramento da Sala do
Jogo da Péla, um raio carregado de liberdade eléctrica atinge Versalhes ao
mesmo tempo que uma grande raj ada de vento enche de ar fresco o
espaço cheio de gente .
Em certa medida, a paixão das elites pela causa americana surgiu
facilmente : era a novidade mais recente depois das novelas inglesas e da
ópera italiana . É difícil dizer se os belos têxteis manufacturados por Jean
-Baptiste Huet em Joüy, em 1 784, celebrando a " Liberdade Americana" e
a "América Independente" com emblemas alegóricos e retratos de
Washington e B enj amin Franklin são prova da seriedade com que a revo
lução foi vista ou se traduzem apenas uma moda de consumo . Quando
Simon Schama 1 CIDADÃOS
I LE S B EAUX JOURS
Como toda a sua geração, Luís XVI foi criado para a busca da felici
dade. O avô, Luís XV, redesenhara Versalhes com a felicidade por obj ec
tivo e tivera uma aptidão natural para usufruir dela. Mas a felicidade não
foi fácil de alcançar para o seu j ovem sucessor, e o facto de ser rei de
França pô-la praticamente fora do seu alcance . Progressivamente prisio
neiro da ansiedade, Luís XVI recordar- se-ia de apenas duas ocasiões em
que ser rei o tinha feito feliz. A primeira foi a sua coroação, em Junho de
1 77 5 ; a segunda, a sua visita a Cherburgo, em Junho de 1 78 6 . Na pri
meira ocasião, envolveu -se no manto dos arcanos mistérios régios; na
segunda, revelou - se como um homem moderno - cientista, marinheiro e
engenheiro . Para os observadores presentes em ambas as ocasiões, os
paradoxos da personalidade do soberano foram motivo de comentários ou
talvez mesmo de preocupação, mas a inocência de Luís XVI nunca o dei
xou aperceber-se dos problemas. Se a sua autoridade devia tudo ao pas
sado, o seu forte sentido do dever apontava -o firmemente para o futuro.
A Revolução iria representar esta qualidade típica de Jano como traição e
não como indecisão . Mas foi unicamente a equiparação que fez do
passado -futuro à traição-patriotismo que colocou o rei no dilema que
determinaria o fim do seu reinado e da sua vida. Luís XVI iniciou o seu
reinado em 1 774, com enormes expectativas, que tiveram eco por toda a
França, de que o futuro seria abençoado com uma nova Idade de Ouro.
O símbolo dessas esperanças era o Sol. Na coroação, em Reims,
quando Luís tinha vinte anos de idade, o s raios de Sol - que evocavam
obviamente o apogeu da monarquia com Luís XIV - decoravam todas as
colunas e arcos triunfais erguidos para a cerimónia . E o tema da renova
ção estava evocado no pedestal de uma estátua que representava a
Justiça, com uma inscrição que proclamava o alvorecer de les beaux jours.
Mas a coroação não foi motivo de regozij o generalizado. As tênsões entre
o passado e o futuro estavam presentes nas preocupações em relação ao
presente, até porque, enquanto as cerimónias estavam a ser organizadas,
a França era palco de um dos mais graves motins dos cereais em anos.
41
' No Antigo Regime, o "contrô/eur général des finances", quase sempre ministro de Estado,
era responsável pelas finanças, pela agricultura, pela indústria, pelo comércio, pelas pontes
,
e calçadas e por parte da administração interna. (N. do T. )
Simon Schama 1 CIDADÃOS
' Do Tratado de Paris de 1 7 6 3 , que pôs fim à Guerra dos Sete Anos. (N. do T )
45
ou dique atrás do qual seria criado o porto, mas foi o esquema espectacu
lar e improvável de De Cessart que agradou ao recém-nomeado coman
dante de Cherburgo, um oficial de carreira chamado C harles -François
Dumouriez, recém-chegado da conquista da Córsega, e que apelou à ima
ginação vagabunda do rei e do seu ministro da Marinha, De Castries .
O plano d e De Cessart contemplava a construção d e enormes cofres de
carvalho, com a forma de um cone invertido, os quais, estabilizados com
um lastro de pedras, constituiriam uma espécie de barreira de correntes nos
ancoradouros. O espaço delimitado por esta barreira formaria o porto. Cada
cone tinha uma base com um diâmetro de quarenta e sete metros e erguia
-se quase dois metros acima da linha de água, sendo o topo chato; a cons
trução de cada uma destas estruturas exigia 566 metros cúbicos de madeira,
e depois de cheia com o lastro pesava 48 000 toneladas. Não foi fácil mani
pular este monstros. Tiveram de ser rebocados da costa até ao ponto de
ancoragem, com o lastro suficiente para evitar que se virassem ao contrário.
De seguida, foram enchidos com a pedra restante através de trinta abertu
ras laterais. Depois de submersos pela acção do peso, a parte de cima foi
coberta com cimento de modo a constituir uma espécie de plataforma.
O plano original de De Cessart previa nada menos de noventa e um destes
extraordinários objectos. Era um esquema suficientemente lunático para
agradar a uma cultura embeiçada com as mais loucas pretensões da ciência.
Depois da electricidade de B enjamin Franklin - o raio patriótico -, tudo era
possível. Os homens subiam aos céus de Versalhes em balões cheios de gás
ou sentavam-se em banheiras de cobre para experimentarem o poder tera
pêutico do magnetismo animal. Neste clima de delírio científico, a cordi
lheira subaquática de De Cessart deve ter parecido quase modesta.
O primeiro cone foi submergido com êxito em Junho de 1 784, na pre
sença do ministro da Marinha, De Castries . Animado pelo avançar do pro
jecto, o rei enviou o seu irmão mais novo, Artois, para assistir à
submersão do oitavo cone, em Maio de 1 786, e foi o seu relato entusias
mado que decidiu Luís XVI a empreender uma invulgar deslocação a
Cherburgo para inspeccionar os trabalhos em primeira mão. Foi uma ati
tude extraordinária. Desde a fase inicial do reinado de Luís XIV, os
Bombons tinham abandonado toda a espécie de "progressos" pela França
e sedentarizado a monarquia na enorme corte- caserna de Versalhes. Era
a França - ou a parte dela que "contava" - que ia ter com o soberano e
não o contrário . Por conseguinte, como observaria secamente Napoleão,
quando Luís XVI anunciou a sua intenção de se deslocar à Normandia,
"foi um grande acontecimento " .
N o dia 2 1 d e Junho, com o que passava por u m séquito modesto de
cinquenta e seis pessoas, o rei e a rainha partiram de Versalhes com des
tino à costa oeste da Normandia. O monarca mandara fazer para a ocasião
um casaco vermelho bordado com flores-de-lis douradas, mas pretendia
Simon Schama 1 CIDADÃOS
o rei conhece na perfeição tudo o que diz respeito à Marinha e parece fami
liarizado com a construção, o equipamento e as manobras dos navios . É
óbvio que esta linguagem bárbara não é nada de novo para ele; fala como
um marinheiro .
II UM MAR DE D ÍVIDAS
nem sequer pela Revolução -, pois Tocqueville via os mesmos males da cen
tralização e da mão pesada do despotismo burocrático surgindo de forma
constante e irremediável na história francesa.
Em que medida as dificuldades financeiras da França após a guerra
americana eram preocupantes? É verdade que a França tinha acumulado
uma dívida impressionante, mas não era uma dívida maior do que as acu
muladas nas outras guerras consideradas igualmente essenciais para a
manutenção da sua posição como grande potência. Aqueles que condenam
prontamente os ministros de Luís XVI pela sua incorrigível prodigalidade
fariam bem em reflectir que nunca um Estado com pretensões imperiais
subordinou o que considerou serem os seus irredutíveis interesses milita
res aos ditames de um orçamento equilibrado . Tal como os apologistas do
poderio militar na América e na União S oviética, os defensores dos recur
sos "indispensáveis" similares na França setecentista apontaram para as
vastas reservas demográficas e económicas do país e para uma economia
próspera como sustentáculos desse ónus. Na verdade, segundo eles, o flo
rescimento d a economia dependia d o s gastos militares, quer directos, em
bases navais como B rest e Toulon, quer indirectos, na protecção que pro
porcionavam ao sector da economia que mais rapidamente se expandia.
Além do mais, a seguir às guerras do século XVIII, verificara-se sem
pre um período doloroso mas necessário de aj ustamento destinado a pôr
Simon Schama 1 CIDADÃOS
custou cerca de mil milhões de libras francesas e o segundo, que foi uma
guerra naval e terrestre, cerca de 1 , 8 mil milhões. Em 1 7 5 3 , o défice era
já de 1 , 2 mil milhões de libras francesas e os j uros anuais de 85 milhões
de libras francesas, 2 0 % das receitas correntes. O controlador-geral das
Finanças no pós-guerra, Machault d'Arnouville, calculou que o défice
poderia ser pago em cinquenta a sessenta anos, partindo do princípio de
que não haveria mais guerras. Mas isto, como é óbvio, era como partir do
princípio de que a França ou a Grã-Bretanha deixariam de existir. D epois
da guerra seguinte, em 1 764, o défice subiu para 2 324 mil milhões de
libras francesas, com o serviço da dívida a absorver qualquer coisa como
60% do orçamento, o dobro da proporção que se verificara na década de
50 do século XVIII. Em treze anos, a dívida cresceu mil milhões de libras
francesas.
Qualquer economista considerará estes números assustadores (e fami
liares ) , mas importa dizer que não foram eles que lançaram a França na
senda da revolução. Os anos médios do século XVIII assistiram a uma
enorme expansão quantitativa e qualitativa na escala e na sofisticação da
guerra, uma expansão que afectou de forma muitíssimo negativa todos os
principais beligerantes. A Prússia hohenzollern, que nos habituámos a ver
como uma história de sucesso do militarismo burocrático, encontrava-se
numa situação aflitiva no fim da Guerra dos S ete Anos, apesar de ter sido
mantida à tona de água pelos subsídios britânicos . O seu remédio para
todos os males foi a importação do sistema de gestão de impostos francês,
a régie, que lhe devolveu efectivamente alguma estabilidade fiscal. Nem
sequer os neutrais escaparam, pois a República Holandesa, que vinha ela
própria financiando todo e qualquer cliente, entrou numa forte depressão
em 1 76 3 - 1 764. A Grã-Bretanha, apontada como o outro grande exemplo
de competência fiscal, endividou -se ( tal como faria aquando da guerra
americana ) numa escala e numa magnitude exactamente idênticas às da
sua arqui-inimiga . Sabemos hoj e que o ónus fiscal per capita na Grã
-B retanha era três vezes superior ao da França, e que, em 1 782, a percenta
gem das receitas públicas consumidas no serviço da dívida britânico - da
ordem dos 7 0 % - era consideravelmente maior do que a francesa.
Por conseguinte, em termos absolutos, mesmo depois do imenso caos
fiscal provocado pela guerra americana, existem poucos motivos para ver
a escala do défice francês como conduzindo necessariamente à catástrofe .
Foi a percepção doméstica dos problemas financeiros - e não a sua reali
dade - que levou sucessivos governos franceses da ansiedade ao alarme e
do alarme ao pânico . Por conseguinte, os elementos determinantes da
crise financeira do E stado francês foram inteiramente políticos e psicoló
gicos, e não institucionais ou fiscais. Em todas as ocasiões - por exemplo,
depois das dispendiosas guerras de meados do século -, houve sérios
debates sobre a gestão da dívida e a adequabilidade relativa da aplicação
Simon Schama 1 CIDADÃOS
' Sessão especial do Parlamento de Paris sob a presidência do rei, por exemplo, para
registo obrigatório de éditos reais e imposição da soberania régia . ( N. do T )
55
O Antigo Regime poderá ter sido mais eficiente a obter receitas e até a
geri-las do que habitualmente se julga, mas isto pouco interessaria ao
camponês em fuga do cobrador de impostos da paróquia . D e facto, se
existe um aspecto do retrato tradicional da monarquia ainda por rever é
o ódio eloquente de quase todas as camadas da sociedade ( mais desespe
rado e selvático nas classes mais desfavorecidas ) à máquina estatal e
senhorial de cobrança de impostos . C omo dão testemunho as petições
com queixas e reclamações ( cahiers de doléances) que acompanhavam as
eleições para os Estados Gerais, aqueles que taxavam em nome do rei
eram considerados inimigos do povo. No nível mais simples da sociedade,
esta execração abatia -se sobre o infeliz ao qual fora atribuído o cargo de
cobrador da taille na paróquia. S e não conseguisse apresentar o quinhão
fiscal que lhe era atribuído pelo gabinete do intendente, podia ver seria
mente em risco os seus bens e até a sua liberdade; se fosse demasiado efi
caz, podia estar suj eito a um destino ainda pior às mãos dos outros aldeãos
na calada da noite .
No topo da sociedade, os plutocráticos financeiros, os gens de finance,
eram alvo de uma hostilidade semelhante . Na polémica obra de
Darigrand, L'Anti-Financier, publicada em 1 7 6 3 , a gravura do frontispício
mostra a França aj oelhada perante Luís XV, agradecendo -lhe ( algo pre
maturamente ) a instituição de um imposto predial único, roubando assim
aos financeiros a sua razão de existir. A Justiça, de espada erguida, obriga
o financier a regurgitar os seus ganhos ilícitos aos pés do pobre lavrador.
Simon Schama 1 CIDADÃOS
garganta e lhe tira o sangue d o corp o " . Um dos primeiros e mais espec
taculares actos da grande insurreição de Paris, em Julho de 1 7 89, foi o
derrube da barreira alfandegária erguida pelos fermiers para travar os
contrabandistas. Mas os fermiers sofreriam mais nas suas pessoas do que
nos seus bens. Além de serem perseguidos pela sua reputação de vampi
ros económicos, dizia-se que tinham escondido um espólio de três ou qua
tro milhões de libras francesas . "Tremei, vós que haveis sugado o sangue
dos pobres desgraçados", avisou Marat, e, em Novembro de 1 79 3 ,
Léonard B ourdon exigiu q u e os "vampiros d o público" ( um sinónimo dos
fermiers que se tornara imediatamente reconhecível) prestassem contas da
sua roubalheira e devolvessem à nação o que tinham roubado ou que fos
sem " entregues à lâmina da lei " . Em Maio de 1 794, durante uma das mais
espectaculares execuções em massa, foi guilhotinado um grupo de fer
miers, entre os quais o grande químico Lavoisier.
Mas os fermiers généraux não eram apenas especuladores na dívida da
Coroa e ladrões do povo. E ram um Estado dentro do E stado . Misto de
negócio, empresa, corporação financeira e governo, com pelo menos
trinta mil funcionários, a Ferme - Générale era a maior empregadora de
França a seguir ao Exército e à Marinha. Vinte e um mil fermiers consti
tuíam uma força paramilitar uniformizada, armada e com o direito de
entrar em qualquer casa que considerassem suspeita, revistá-la e confis
car quaisquer bens. Tinham o seu próprio mapa de França para fins fis
cais, dividido e m múltiplas jurisdições ( la grande gabelle, pays de quart
bouillon, etc. ) para cada um dos bens que cujos impostos cobravam. E
também não eram meros aplicadores e cobradores de impostos. Nos prin
cipais bens a que estavam associados - especialmente o sal e o tabaco -,
eram também produtores, fabricantes, refinadores, armazenistas, grossis
tas, reguladores de preços e retalhistas monopolistas.
Para apreciar o modo como o negócio dos fermiers généraux se insinuava
na vida quotidiana de todas as famílias francesas basta seguir o progresso
sinuoso de um saco de sal dos pântanos da B retanha até à cozinha. A cada
etapa, o saco era vigiado, verificado, registado, guardado, reverificado e,
acima de tudo, taxado antes de chegar ao consumidor. Do princípio ao fim
deste processo, a mercadoria estava cativa do direito dos fermiers généraux
ao exercício de uma regulação férrea. Tudo dependia do seu controlo sobre
os preços. Por exemplo, em 1 760, os produtores de sal dos pauis a oeste de
Nantes foram obrigados a vender o seu produto aos fermiers a preços fixa
dos numa negociação unilateral. O sal foi depois enviado para depósitos
costeiros localizados em estuários e embalado em sacos selados e regista -
dos. Cada um destes depósitos estava incumbido de fornecer outros depó
sitos localizados no interior, para onde o sal foi enviado em barcaças. Este
segundo grupo de depósitos situava-se nos limites da navegabilidade dos
rios, e de lá os sacos seguiram de carroça para outro conj unto de armazéns,
Simon Schama 1 CIDADÃOS
' Nome do mentor de Cândido na obra homónima de Voltaire . Na parte inicial do livro,
Cândido vive num éden onde é doutrinado pelo filósofo Pangloss com base num optimismo
absoluto definido no lema "É tudo para o melhor no melhor dos mundos possíveis" . (N. do T. )
ª Em francês n o original : preboste dos comerciantes . (N. da R . )
69
presa das nações vizinhas . " Esta afirmação disparatada levou Turgot a lem
brar ao seu oponente que "as nações em que a nobreza paga impostos, à
semelhança do povo, não são menos marciais do que a nossa . . . e nas pro
víncias abrangidas pela taille réelle, onde nobres e comuns têm o mesmo
tratamento . . . os nobres não são menos valentes nem menos dedicados à
C oroa " . Para além disso, acrescentou ele, não era capaz de se recordar de
nenhuma sociedade em que a ideia de isentar a nobreza do pagamento de
impostos "não tenha sido vista como uma pretensão antiquada abando
nada por todos os homens inteligentes, mesmo os da ordem da nobreza" .
Outros interesses egoístas foram responsáveis pela oposição à abolição
das guildas. Turgot defendeu esta medida recorrendo à elevada retórica
filosófica dos direitos naturais económicos. "Deus, ao conceder ao homem
certas necessidades e fazendo-as depender do recurso ao trabalho, tornou
o direito ao trabalho propriedade de todos os homens e esta propriedade
é primária e a mais sagrada e imprescritível de todas . " Mas para os seus
opositores, esta medida destruía a propriedade em vez de a proteger, pois
vários mestres das guildas estavam longe de ser filhos do trabalho, labu
tando sem cessar com os seus aventais de couro. Eram aristocratas que
tinham comprado sinecuras e dignidades municipais que não estavam dis
postos a ver desaparecer em nome de uma qualquer versão teórica do
bem geral. E o mesmo acontecia com os artesãos mais genuínos, que
tinham investido capital - para não falar em anos de aprendizagem - num
sistema que lhes garantia mão-de-obra especializada e preços remunera
tivos. C omparado com estas seguranças, o valente mundo novo de liber
dade económica advogado por Turgot era uma perspectiva muito ir\certa.
Mas o que fez o j ogo da oposição foi menos a substância das reformas de
Turgot e mais o modo como ele tentou implementá-las. Logo que se tornou
evidente que os Parlamentos - que ele restaurara - não iriam ser as criatu
ras dóceis da reforma real, Turgot deu um passo atrás e optou pela aplica -
ção absolutista da lei que considerara tão repugnante em Maupeou e Terray.
Não foi ao ponto de abolir os tribunais de apelação, mas instou Luís XVI,
que tinha a maior relutância em afirmar-se absolutista, a não ter receio de
recorrer a um lit de justice caso fosse necessário. Este modo classicamente
imperioso de proceder caiu muitíssimo mal porque o próprio Turgot enco
rajara a dévolution do poder às assembleias provinciais e criara dois destes
órgãos nas províncias do Berri e da Alta Guiana, em 1 774. Turgot via-se a
si próprio como o mais liberal dos controladores-gerais, mas foi ele quem
mais recorreu ao poder de detenção arbitrária conferido pelas lettres de
cachet, ' º e vários dos opositores das suas políticas foram parar à Bastilha.
' º Cartas assinadas pelo rei e por um dos seus ministros e seladas não com o selo da chan
celaria mas com um selo mais pequeno, dito "do segredo" ou "cachet" . Transmitiam convoca
tórias ou ordens directas do soberano, por vezes relacionadas com acções ou sentenças
arbitrárias que não eram passíveis de recurso. (N. do T. )
73
Isto foi o fim do ministro, pois garantiu que, além dos muitos inimigos
que tinha na corte, Turgot deixasse de poder contar com figuras que
tinham sido suas aliadas no governo. Na Primavera de 1 776, Turgot quei
xou -se ao rei das facções que começavam a opor-se-lhe abertamente no
conselho e exigiu-lhe que apoiasse as reformas com o peso da sua autori
dade . Mas fê -lo sem tacto .
S ois demasiado j ovem para avaliar os homens e vós mesmo haveis dito,
Senhor, que careceis de experiência e necessitais de um guia. Quem será
esse Guia? . . . Alguns j u lgam que sois fraco, Senhor, e houve efectivamente
algumas ocasiões em que temi que o vosso carácter sofresse desse defeito .
Por outro lado, em ocasiões mais difíceis, vi-vos dar mostras de verdadeira
coragem .
lizar. Quase por definição, para ter alguma hipótese de êxito, a sua abor-
dagem macroeconómica à resolução dos problemas económicos e
financeiros da França exigia tempo . O seu colega Maurepas, um homem
mais afável e mundano que, com setenta anos de idade, já tinha visto
muitos ministros entrar e sair, aconselhou-o a estender as suas reformas
por vários anos em vez de as implementar numa correria caótica. Mas
Turgot tinha uma pressa frenética . Era o peso da mortalidade . "Na nossa
família, morre -se aos cinquenta", retorquiu ele a Maurepas. E na sua opi
nião, a mortalidade do regime ainda era mais premente. Sem uma acção
drástica, disse ele ao rei, "o primeiro tiro [de uma nova guerra] levará o
Estado à bancarrota" .
Os fisiocratas, Turgot incluído, tinham sido sempre fortes nos fins e fra
cos nos meios. Apesar dos seus vigorosos esforços intelectuais, não se aper
ceberam da contradição inerente à concretização do seu imponente
liberalismo através dos instrumentos do absolutismo, e até derivavam
algum orgulho de chamar política absolutista ao " despotismo legal" neces
sário para realizar a terra prometida da mão-de-obra, do comércio e dos
mercados livres. Além disso, não contaram com as breves perturbações -
tais como os motins e as guerras - que constituíam a realidade quotidiana
Simon Schama 1 CIDADÃOS
11 Friedrich Melchior von Grimm ( 1 72 3 - 1 807 ) , escritor francês de origem alemã . (N. do T. )
75
verdade Necker teria que ser um santo para não lhe subirem à cabeça os
elogios que acolheu a publicação do seu Éloge de Jean-Baptiste Colbert, em
1 77 3 . Mas não era. Aliás, estava algo convencido da sua infalibilidade,
como sugere uma frase extraordinária do Éloge: " S e os homens são feitos
à imagem de Deus, então o ministro das Finanças deve ser, logo a seguir
ao rei, o homem que mais se aproxima dessa imagem. "
No clima apreensivo d e uma guerra iminente, a auto - confiança inaba
lável de Necker era tranquilizadora, até porque a melhor ideia do anterior
controlador-geral, Clugny, fora a instituição de uma lotaria. Enquanto
Turgot viera do mundo do serviço público e da especulação filosófica,
Necker era oriundo do mundo dos negócios. Mudara-se de Genebra para
Paris aos dezoito anos de idade, para integrar o banco familiar Thélusson
et Cie, e à morte do sócio principal assumira a direcção da firma . Necker
recebera o cálice envenenado da gestão da C ompanhia das Índias
Orientais francesa mas conseguira sobreviver à ruína do imperialismo
francês no subcontinente e aj udara o governo a garantir o abastecimento
de cereais na difícil década de 60 do século XVIII. Fora esta experiência
que levara Necker a publicar um tratado sobre o comércio de cereais
durante a nova vaga de desregulação de Turgot, uma altura que o minis
tro não viu com bons olhos e escreveu a Necker a dizer- lho .
Genuinamente surpreendido pelo tom irado de Turgot, Necker reiterou o
seu apoio absoluto aos princípios gerais de um comércio de cereais livre .
Mas foram as suas reservas - que nomeadamente em épocas de carestia,
o governo devesse assumir a responsabilidade pela fixação dos preços e
pelo abastecimento - que tiveram eco j unto dos seus leitores numa altura
em que os campos em torno de Paris eram palco de constantes motins .
E, o que era mais importante para um governo agora dominado por
Vergennes, o ministro dos Negócios E strangeiros, Necker prometeu finan
ciar a política americana sem incorrer nas terríveis consequências previs
tas por Turgot. A questão que desde então tem pesado na reputação de
Necker é saber se ele cumpriu estas promessas. Até há muito pouco
tempo, a opinião consensual foi esmagadoramente negativa . A publicação
do célebre Compte Rendu au Roi - o primeiro orçamento disponibilizado
para publicação - por Necker tem sido considerada pura propaganda pes
soal e caracterizada como o tipo de optimismo infundado que levou a
monarquia francesa a enveredar pelo caminho prazenteiro da perdição.
A queda em desgraça de Necker foi o resultado inevitável das expecta
tivas irrealistas que circulavam acerca das suas capacidades. Porém, ulti
mamente, investigações mais minuciosas, em especial da sua
documentação existente no Château de C oppet, 12 na S uíça, traduziram-se
numa visão mais equilibrada, simpática e totalmente convincente da sua
ficou a passar fome em Versalhes, nem à espera do j antar, dado que estes
406 cargos eram fruto de nomeações cerimoniais que permitiam aos cor
tesãos vestir- se de gala para as ocasiões especiais e exibir a sua posição na
pirâmide de vaidades que passava por ritual da corte. D esapareceram os
1 3 chefes de cozinha e 5 assistentes da Grande Despensa, os 20 copeiros
reais ( não confundir com os 4 transportadores do vinho do rei ) , os 1 6
"apressadores" do assado real, pelotões de provadores, batalhões de apa
gadores de velas, brigadas de passadbres de sal e ( muito lamentavel
mente ) os 10 aides spéciaux para os f�uits de Provence. Ao todo, foram
abolidos 5 0 6 cargos venais, com uma poupança anual de cerca de 2 , 5
milhões d e libras francesas. Os críticos d e Necker contestaram que era
uma soma que não valia o esforço, até porque o director-geral se com
prometera a reembolsar os detentores dos cargos abolidos no total de 8
milhões de libras francesas ao longo de cinco anos. Mas isto significava
que a reforma se pagaria em quatro anos e que depois se traduziria numa
poupança líquida . Talvez de modo mais importante, representava o
regresso ao rígido controlo governamental de um gigantesco império de
patrocínios e clientelismo que se tornara o brinquedo pessoal dos corte
sãos. Luís XVI parecia encantado. " D esej o pôr ordem e economia em
todas as partes da minha casa e despedaçarei como vidro quem tiver
alguma coisa a obj e ctar", disse ele a um desses cortesãos, o duque de
77
" Duas enormes propriedades que passaram a servir de residências rurais para o rei.
( N. do T. )
79
Mas tal como acontecera com Turgot, foi em parte a sua determinação
de controlar cada vez mais as finanças que lhe custou amigos na corte. Em
particular, e talvez com razão, Necker insistiu em integrar o conselho real
em vez de assumir o papel de estranho que o seu anacrónico cargo de
director-geral implicava. Não se tratou de uma simples questão de amor
-próprio. Necker vinha perdendo terreno no governo para as políticas
militares expansionistas de Ségur e de Castries, 14 e tentara temeraria
mente mediar o fim da guerra amerjcana antes que o conflito pusesse fim
à monarquia francesa . Ist � custou-lhe o apoio de Vergennes. O seu ataque
aos cargos e aos fermiers généraux granj earam-lhe muitos inimigos podero
sos, mas foi por causa de uma questão específica que Necker insistiu em
ser admitido no conselho.
Necker sempre afirmara que qualquer programa de reformas sério
carecia de um amplo apoio político. Na sua qualidade de homem de fora
do sistema, Necker, mais do que Turgot e outros seus antecessores, estava
disposto a sair do circunscrito reino político da corte e dos Parlamentos
para o conseguir. Tinha estabelecido assembleias políticas electivas no
Berri e na Alta Guiana, para as quais tinham sido transferidas tarefas pre
viamente confiadas aos intendants. E stas assembleias estavam longe de
representar a reforma das instituições de cima para baixo advogada por
Turgot ( que propunha uma cadeia de órgãos electivos, desde as assem
bleias de aldeia até uma representação a nível nacional ) , e embora os
membros das assembleias de Necker se reunissem enquadrados nas três
O Ab solutismo Atacado
ainda bem: Malesherbes era célebre por andar sempre vestido - mesmo
na corte - com o seu imundo casaco castanho e calção e meias pretas,
parecendo-se mais com um farmacêutico de província do que com um
ministro do rei.
Malesherbes adorava viaj ar e as exonerações de que fora regularmente
alvo (o preço que pagara pela sua mente independente ) tinham-lhe pro
porcionado tempo para se dedicar à sua verdadeira vocação: a botânica.
Pouco depois de apresentar a sua carta de demissão a Luís XVI no segui
mento da "desgraça" de Turgot, partiu para uma viagem a pé ao Sudoeste,
com o intuito de observar a viticultura e os pinhais das zonas arenosas das
Landes, a sudoeste de B ordéus. Malesherbes dizia que a sua verdadeira
missão na vida era refutar as teorias naturalistas de B uffon, que denun
ciava como patife e idiota, e reabilitar a obra do seu mestre intelectual,
Lineu . Malesherbes concretizaria esta empresa magna com os quarenta
volumes do seu Herbier e com o j ardim botânico científico mais extenso
de França . Para Malesherbes, o seu castelo era uma espécie de barracão de
j ardim glorificado com uma biblioteca de botânica de mil livros. A grande
colecção botânica de Malesherbes incluía cornizos da Virgínia, j uníperos
da Pensilvânia, abetos do Canadá, árvores-da-borracha tropicais e noguei
ras brasileiras. Até tinha transplantado vários ulmeiros que mandara vir
de D over num navio fretado para o efeito . Para Malesherbes, a visão mais
dolorosa do mundo - a seguir às condições nas prisões de Paris - era uma
floresta queimada como a que ele encontrara durante a sua longa deam
bulação pela Provença, em 1 76 7 . Na Holanda, a sua mente enciclopédica
disparou . Enfeitiçado por uma cultura em que ao desastre natural res
pondia o engenho natural, Malesherbes tudo observava. C olónias de coe
lhos tinham ameaçado as dunas, mas os Holandeses tinham respondido
descobrindo uma espécie de árvore com raízes pouco fundas que fixava a
areia . Até as algas marinhas eram usadas para reforçar os diques. Deitado
numa cama limpa, numa quente manhã de Agosto, na ponta norte da
Holanda, Malesherbes sentiu -se finalmente limpo da suj idade das políti
quices da corte .
Nunca foi verdadeiramente feliz no cargo. Dois anos mais tarde, na
S uíça, um pastor tentou oferecer ao anónimo e douto disputante um
vicariato vago. Quando Malesherbes se tentou esquivar, o pastor j ulgou
que ele estava a pôr em causa o seu direito de o nomear e, para o tran
quilizar, disse-lhe, "Mais moi, ministre", ao que o seu interlocutor, des
cartando temporariamente o anonimato, retorquiu, "Et moi, ex-ministre" .
Na verdade, Malesherbes adorava repudiar a autoridade oficial. Tinha
dito que não ao seu amigo Turgot na primeira ocasião em que o
controlador-geral tentara convencê -lo a aceitar um cargo, em 1 7 74.
Pouco depois de deixar o governo, deu consigo numa estalagem onde
dois homens lamentavam a demissão do excelente Monsieur de
Simon Schama 1 CIDADÃOS
E scusado será dizer, Luís XVI não percebeu. Em vez de ver na remons
trância um apelo à alteração da natureza fundamental da governação,
viu -a como uma defesa enfadonha de medidas avulsas às quais não se
opunha particularmente . De forma idêntica, no mesmo ano, a Mémoire sur
les Municipalités de Turgot, que propôs uma descentralização ainda mais
drástica da governação, a começar com assembleias de aldeia e chegando
até a uma representação nacional, não causou grande impressão no
monarca . As exortações de Malesherbes para que o rei desse publica
mente mostras de uma nova franqueza e espírito de serviço público caí
ram praticamente em saco roto ou foram derrotadas pelas exigências de
decoro tradicional avançadas por Maupeou. Assim, apesar de Luís XVI ter
ficado satisfeito por Malesherbes ir visitar as prisões de Bicêtre e da
Bastilha ( de onde saiu horrorizado com as condições das piores celas ) ,
declinou o s pedidos d o ministro para que o acompanhasse, e também se
negou a abolir, contra as fortes recomendações de Malesherbes, as lettres de
cachet ( o instrumento através do qual a C oroa podia ordenar a detenção e
o encarceramento sem audição prévia dos visados ) . Quanto às propostas
de tolerância pública do protestantismo, tão queridas de Malesherbes,
foram acolhidas com palavras ocas e pouco mais .
As grandes esperanças colocadas em Luís XVI aquando da sua coroa
ção estavam a esfumar-se rapidamente . No entanto, a remonstrância de
Malesherbes e a memória de Turgot, ao terem como autores dois dos
homens mais poderosos de França, constituíram um guia para uma
monarquia alternativa em França : uma monarquia local e não centrali
zada, electiva e não burocrática, pública e não clandestina, legal e não
arbitrária.
Pouco tempo depois, Malesherbes teve problemas com a rainha ao
negar- se a nomear um dos seus favoritos para uma embaixada . Mas
depois da queda do seu amigo Turgot, Malesherbes partiu de consciência
tranquila : não tinha comprometido a sua independência com a mácula
do cargo. Regressou ao seu solar, onde passava o tempo a cuidar das
plantas e imerso na sua biblioteca até altas horas da noite, vestido num
roupão de flanela cinzento e de barrete de dormir na cabeça . Mas
Malesherbes não deixou de acreditar na monarquia . O ano de 1 7 7 5 tam
bém assistiu à sua entrada triunfal para a Academia Francesa, onde pro
feriu uma palestra inaugural plena de optimismo e de crença num futuro
brilhante para a França . Na verdade, o seu destino e o destino do seu
soberano estavam mais ligados do que ele teria alguma vez imaginado.
Malesherbes voltaria a desempenhar o papel de advogado e o seu infeliz
cliente seria Luís XVI.
89
inglês. Envolveu -se numa conspiração para assassinar Carlos II e foi executado por traição .
( N. do T. )
99
Mas foi d' Argenson, filho do guardião dos Selos de Luís XIV e descen
dente de uma das mais antigas famílias parlamentares francesas, que
declarou a nobreza hereditária origem de todos os males do governo e da
sociedade franceses. Os nobres, na sua irresponsabilidade, tinham deixado
infectar e apodrecer as províncias; tratavam os cargos públicos como sua
propriedade privada e frustravam as melhores intenções dos intendentes
conscientes e dedicados. Na opinião de d' Argenson, a única maneira de
ultrapassar a sua obstrução era a monarquia adoptar a democracia, pois "a
democracia é tão amiga da monarquia como a aristocracia é sua inimiga" .
S e o s Parlamentos dizem representar " o povo", argumentou ele, a s suas
boas intenções devem ser postas à prova com a criação de assembleias
provinciais electivas . Uma representação nacional poderia inclusivamente
ser eleita de forma indirecta e prestar contas aos eleitores de dois em dois
anos. Sobre esta base, o monarca - que seria salvo da corrupção da corte
governando a partir das Tulherias e não de Versalhes - presidiria a uma
verdadeira república de cidadãos e não a um grupo de súbditos subj uga
dos. " Que ideia maravilhosa", exclamou d'Argenson, " . . . uma república
protegida por um rei . "
A s diferentes ordens continuariam a existir, mas a hereditariedade
seria abolida . A nobreza seria estritamente conferida em função dos ser
viços prestados e do mérito, e teria apenas um estatuto honorífico . Nesta
comunidade de iguais, todos teriam os mesmos direitos e deveres.
Governados por um corpo de funcionários públicos honestos que chega
riam aos cargos por nomeação e não por compra, os cidadãos pagariam
apenas os impostos necessários para a sua protecção e fá-lo-iam de bom
grado porque estariam a entregar uma parte da sua propriedade a uma
reserva pública que também poderiam reclamar como sua. Até o serviço
militar pareceria mais uma honra do que um fardo porque esta transfor
mação daria certamente origem a um sentimento rej uvenescido de pátria .
A nova França de d' Argenson antecipou estranhamente as prescrições
revolucionárias de 1 78 9 e 1 7 9 1 , especialmente na sua ênfase no abraço
entre cidadãos e soberano e na obliteração de quaisquer j urisdições inter
médias que pudessem intrometer- se entre eles. Isto não significa dizer
que a utopia de d' Argenson fosse um mero agregado de indivíduos ato
mizados chocando uns contra os outros como feij ões saltitantes dentro de
uma garrafa . O seu entendimento era que a "democracia real" seria mais
do que a soma das suas parte s : uma pátria purificada na qual os interes
s e s individuais d o s cidadãos se harmonizariam numa nova espécie d e
colectivo .
A concretização deste tipo de fantasia em finais do século XVIII não era
de todo uma impossibilidade . O irmão de Maria Antonieta, o imperador
habsburgo José II, imaginava -se um déspota iluminado e um pater patriae.
Apesar de não lhe passar pela cabeça qualquer representação local ou
Simon Schama 1 CIDADÃOS
britânica não era uma elite aberta mas sim relativamente fechada, os
estereótipos associados à França e à Inglaterra devem ser completa
mente invertido s . Foi na Grã - B retanha que a aristocracia rural resistiu
aos recém- chegados e formou uma espécie de crosta inquebrável no
topo da política e da sociedade, enquanto em França a elite era fluida e
heterogénea, sempre em busca de fontes de revigoramento humano e
económico.
Em França, o enobrecimento podia acontecer por muitos motivos
diferentes. Era possível ser-se enobrecido directamente pela Coroa, atra
vés de cartas patentes, em agradecimento por serviços prestados . Os mili
tares, os engenheiros, os intendants e, em menor grau, os artistas, os
arquitectos e os homens de letras eram enobrecidos deste modo. Tendo
fundos disponíveis, era possível comprar um cargo com título de
nobreza, como o de secrétaire du roi. Foi assim que mil e quinhentos
homens acederam à nobreza, através de C âmara de Paris. O s notáveis
locais - presidentes de câmara, vereadores, prévôts des marchands ( funcio
nários responsáveis pelo policiamento dos mercados e dos comerciantes ) ,
o s j uízes e até o s escriturários municipais - tinham direito à nobreza se
servissem continuamente durante um determinado período de tempo,
muitas vezes não mais de dois anos. E havia outros candidatos ao eno
brecimento entre todo um batalhão de manda - chuvas (por exemplo,
pela organização de uma grande recepção para o rei ) , ou um membro da
família real podia receber um sinal formal de reconnaissance que o elevava
à segunda ordem.
Chaussinand-Nogaret chama também a atenção para uma mudança
importante nos critérios declarados para o enobrecimento na segunda
metade do século . Em vez de ser mencionada a linhagem, as razões para
a promoção são quase invariavelmente os serviços prestados, o talento e
o mérito. D este modo, argumenta C haussinand-Nogaret, enquanto no
século anterior o burguês enobrecido era obrigado a divorciar- se dos seus
antecedentes e a imergir totalmente numa cultura nova e estranha de
honra, no século XVIII o processo de integração social funcionou ao con
trário. A nobreza foi colonizada pelo que os historiadores modernos con
sideram valores "burgueses " : dinheiro, serviço público e talento . E sta
mudança representa uma cesura fundamental na continuidade da histó
ria francesa porque recua para o século XVIII a data de nascimento da
classe de "notáveis" que dominou a sociedade e o governo franceses até
pelo menos à Primeira Guerra Mundial. C onstatamos hoj e que essa elite
não foi uma criação da Revolução nem do Império, mas das últimas
décadas da monarquia bourbon, e que entrou no século XIX não como
consequência da Revolução Francesa mas apesar da Revolução Francesa.
Nestas circunstâncias, a designação Antigo Regime parece mais inade
quada do que nunca .
Simon Schama 1 CIDADÃOS
4 Em francês no original: casamento com uma pessoa de nível social inferior. (N. da R. )
Simon Schama 1 CIDADÃOS
O conde d' Antraigues foi ainda mais longe na primeira e mais célebre
de todas as declarações aristocráticas de autoliquidação. Passando signifi
cativamente do precedente histórico e das leis imemoriais para o vocabu
lário muito mais radical dos direitos naturais, declarou que a legitimidade
dependia exclusivamente do Terceiro E stado, pois
I EM BUSCA DE UM PÚ B LI C O
proteger o balão e o próprio Montgolfier mas não foi feito nada para con
ter a multidão nem para a organizar nos espaços ordenados e ordeiros
geralmente exigidos pelos regulamentos do Antigo Regime . E também
não foi possível, além da atribuição de lugares especiais para a família real,
preservar a hierarquia da corte no meio da mole humana. Em vez de ser
um obj ecto de visionamento privilegiado - a especialidade de Versalhes -,
o balão tornou -se necessariamente propriedade visual da multidão. Em
terra, até certo ponto, o espectáculo ainda foi aristocrático; no ar, tornou
-se democrático.
A ciência oficial e reservada da Academia Real cedeu o passo à ciência
teatral das experiências públicas. E, embora os balões ostentassem o bra
são real, esta deferência formal não escondia o facto de o rei j á não ser o
centro de todas as atenções . Fora deslocado por um mago mais poderoso:
o inventor. Os irmãos Montgolfier eram fabricantes de papel do Vivarais,
no Sudeste, mas à semelhança de dezenas de milhar de franceses cultos
também eram cientistas amadores . Estrondosamente aplaudidos pelas
multidões, felicitados pelo rei e pela rainha, celebrados pela Academia e
constantemente comparados a C ristóvão C olombo, aproximavam-se mais
de um novo tipo de cidadão-herói: eram os B enj amins Franklins da estra
tosfera . Uma típica descrição contemporânea de Etienne Montgolfier
pinta- o como a epítome das virtudes sóbrias - simultaneamente clássi
cas /romanas e modernas/francesas: quer no vestuário, quer nos modos,
ele é a antítese do cortesão presumido e ornamental:
jovem herói " nadava no seu próprio sangue " . O país tratou - o como um
guerreiro morto : "Diz-se que talvez ele amasse demasiado a glória", escre
veu um panegirista . "Ah ! C omo se poderia ser francês e não a amar. " Em
Inglaterra, Jean-Paul Marat disse num lamento que "todos os corações
estão cheios de dor" . Foram realizados funerais conj untos com grande
pompa em B olonha e em Metz, a sua cidade natal; o rei mandou cunhar
uma medalha, foram encomendados vários bustos e a família de Pilâtre
recebeu uma pensão especial. E para completar um argumento digno de
Rousseau ou de um dos dramaturgos do palco sentimental, a noiva de
Pilâtre morreu oito dias depois, possivelmente pela sua própria mão .
O sentimento de que os voos de balão eram um aspecto do S ublime e
de que os seus praticantes eram semideuses românticos era contagioso.
Um dos aeronautas mais incansáveis era François Blanchard, que quatro
meses antes do acidente de Pilâtre fora o primeiro a atravessar o Canal a
partir de Dover, na companhia de um colega britânico, o D r. Jeffries. Na
sua terceira viagem, partindo de Rouen, aterrou num campo e os campo
neses, atónitos e embasbacados, saudaram-no como se ele fosse um extra
terrestre . Só quando ele se despiu e lhes deixou tocar em várias partes
decisivas do corpo é que eles acreditaram. Mas a elite local era tão curiosa
como os camponeses. Blanchard viu -se no meio de uma tempestade de
excitação e competição para ver quem teria a honra de o acolher durante
a noite enquanto o balão era inflado. As mulheres ficavam particular
mente excitadas perante a possibilidade de voar e mostravam-se amiúde
mais coraj osas do que os homens na prossecução da sua informada curio
sidade científica . Por exemplo, nesta mesma altura, a marquesa de
B rossard, a condessa de B ouban e Madame D éj ean insistiram em experi
mentar o balão . B lanchard levou-as a uma altitude de vinte e cinco
metros - com o balão preso por cordas - e elas mediram cuidadosamente
a velocidade e a altitude. " Não demonstraram", escreveu Blanchard com
admiração no relato para a imprensa, "o menor sinal de ansiedade,
mesmo no ponto mais alto . "
E spectáculos semelhantes tinham lugar por todo o país, d e Lyon à
Picardia e de B esançon aos Jardins do Luxemburgo . Os proprietários do
Caveau e do National, dois cafés rivais estabelecidos no Palais -Royal,
adoptaram equipas concorrentes de balões como se fossem cavalos de cor
rida. Retratos em miniatura e baladas celebrando as proezas dos balonis
tas foram postos à venda em Paris. Publicaram-se livros com conselhos
detalhados sobre a construção de um balão ou de uma réplica em minia
tura . As mais caras saíam a seis libras, as mais baratas a quarenta soldos
( o preço de cinco pães grandes ) . Para o modelo de setenta centímetros,
era aconselhada uma membrana de intestino de boi, que deveria ser
colada com a melhor cola de peixe . Os amadores eram alertados para os
perigos do metano, enquanto os conhecedores construíam balõezinhos
1 13
' Ou "peixês", dado que procurava imitar o calão das peixeiras (poissardes) . Ver também
capítulo 1 1 p . 39 1 . ( N. do T. )
1 17
' Butterbrodt ( "pão com manteiga " ) seria provavelmente um nome artístico. (N. do T. )
Simon Schama 1 CIDADÃOS
' O autor refere-se aos "filhos do galinheiro" (paradis) e naturalmente aos exortados na
"Marselhesa " . (N. do T. )
Simon Schama 1 CIDADÃOS
representação aqui, hoj e, mas j uro-vos que a peça será representada, talvez
até no coro de Notre-Dame . "
Este choque entre cidadão e soberano foi inconclusivo . B eaumarchais
aceitou fazer algumas alterações - que se revelaram inconsequentes - e o
rei recuou na sua posição, não fazendo segredo de que acreditava que a
peça ia ser um grande fiasco . Enganou-se e muito . No dia 2 1 de Abril de
1 784, a peça estreou no novo e neoclássico Théâtre-Français ( hoj e o
Odéon ) . A j ovem e perspicaz baronesa de Oberkirch assistiu às cenas de
pugilato que rebentaram no meio daquela multidão imensa concentrada
à frente do teatro para tentar garantir os poucos lugares que restavam.
Apesar de não ser uma radical, ficou deslumbrada com a representação e
refutou os críticos que consideraram que a peça só tivera êxito por exci
tar o humor grosseiro do público. Em 1 789, escreveu nas suas memórias
que, muito pelo contrário,
As Bodas de Fígaro será a coisa mais inteligente alguma vez escrita, com a
possível excepção das obras de Monsieur Voltaire . É deslumbrante, um ver
dadeiro fogo -de- artifício. As regras da arte são viradas do avesso de uma
ponta à outra, e é por isto que em quatro horas de representação não há
um único momento enfadonho .
críticos que rotulavam a sua peça de bagatela cómica, cheia de ditos espi
rituosos mas vazia de substância, o esquema filantrópico de B eaumarchais
sublinhava os temas morais da peça: a defesa da inocência nupcial contra
a luxúria e a força aristocráticas . O próprio Fígaro é um " órfão" cuj a redes
coberta da mãe é um dos meios através dos quais são frustradas as estra
tégias de Almaviva . C omo em qualquer um dos " dramas burgueses" da
Sensibilidade da década de 50 do século XVIII, o triunfo da virtude sobre
o vício (e da inteligência sobre a posição social) é o desfecho decisivo de
As Bodas de Fígaro.
Além do mais, o aleitamento materno não se resumia a uma questão
de saúde pública. É verdade que os seus defensores sublinharam com fre
quência que o facto de reduzir a taxa de mortalidade infantil permitiria
à França fugir à ameaça de despovoamento ( sempre presente na mente
das autoridades ) , mas esta oposição retórica entre vitalidade e mortali
dade e prática natural e social derivava o seu poder de persuasão da polí
tica moral dos seios. Dizia-se que a resistência ao aleitamento decorria da
ascendência do egoísmo sensual sobre o dever doméstico . Partia -se do
princípio de que a lactação e a actividade sexual eram mutuamente
exclusivas; havia o receio de estragar o leite ou de provocar o noj o dos
homens. Alguns autores, incluindo Rousseau e um médico seu amigo, o
Dr. Tronchin, atribuíram frequentemente a diminuição do aleitamento
materno ao estouvamento feminino ou ao receio de ofender os maridos.
Todavia, Marie-Angélique Le Rebours, que em 1 7 67 publicou Avis aux
Meres Qui Veulent Nourrir leurs Enfants, foi mais razoável e culpou o res
sentimento masculino por causa da interrupção dos seus hábitos sexuais
e criticou os homens que se tornavam violentamente ciumentos ou irri
tados na presença de bebés a chorar. O que estava em j ogo eram duas
visões antagónicas dos seios: como estímulo sexual, semi- exposto nos
decotes da moda, ou como dom natural, oferecido em cândida abundân
cia pela mãe ao bebé . Numa peça escrita para publicitar as virtudes do
aleitamento materno, A Verdadeira Mãe ( grávida de sete meses ) ralha seve
ramente com o marido por tratá -la como um obj ecto de satisfação sexual.
" Serão os vossos sentidos tão grosseiros que apenas olhais para estes seios
- tesouros respeitáveis da natureza - como um simples adorno destinado
a ornamentar o peito das mulheres?"
O erotismo e a maternidade ligavam-se ocasionalmente de modos
bizarros, pelo menos na experiência de Rousseau, que foi mais influente
do que qualquer outra pessoa na campanha a favor do aleitamento
materno. Nas Confissões, Rousseau admite (entre outras coisas) sentir- se
excitado pelo vislumbre de um seio inchado pressionando um decote de
musselina . Mas a sua descoberta de um mamilo invertido no seio de uma
prostituta veneziana transformou a rapariga de uma criatura de beleza
transcendental num monstro repulsivo e lúbrico . A relação que moldou
Simon Schama 1 CIDADÃOS
toda a sua vida foi com a sua protectora, Madame de Warens ( apenas doze
anos mais velha do que ele ) , a quem, mesmo depois de se terem tornado
amantes, continuou a chamar "mamã" . Do mesmo modo, Jean-Baptiste
Greuze, o pintor que mais do que qualquer outro artista levou à atenção
do público os idílios e dramas da vida doméstica e que foi repetidamente
felicitado por D enis Diderot pela moralidade dos seus temas, foi capaz de
manipular com engenho a voluptuosidade e a inocência, como indicia
plenamente Le Chapeau Blanc, pintado por volta de 1 78 0 .
Para a maioria do público q u e lia Rousseau, assistia aos " dramas bur
gueses" de Diderot na C omédie -Française e contemplava a felicidade e a
tristeza domésticas nos quadros de Greuze expostos no Salon, as coisas
eram muito mais simples. O que estava a ser proclamado era a antítese
da cultura rococó da corte, com a sua indulgência esbanj adora da deco
ração, a sua insistência no dito espirituoso e nas maneiras, na graciosi
dade e no estilo. Em lugar destes efeitos formais amorais, a estima devia
ser transferida para o reino da virtude. Neste novo mundo, o coração
devia ser preferido à cabeça, a emoção à razão, a natureza à cultura, a
espontaneidade ao calculismo, a simplicidade ao ornado, a inocência à
experiência, a alma ao intelecto, o caseiro à moda, Shakespeare e
Richardson a Moliere e Corneille, a j ardinagem paisagística inglesa aos
parques formais franco -italianos. Surgiu um novo vocabulário literário,
saturado de associações emotivas que abafaram não só o rococó dos ditos
espirituosos, mas até as reverenciadas sonoridades do classicismo. A uti
lização abundante de palavras como "ternura" e "alma " conferiam a per
tença imediata à comunidade da Sensibilidade, e palavras que tinham
sido usadas de forma mais casual, como "amizade " , foram investidas de
uma intimidade intensa. Verbos como embriagar ( - s e ) , quando combina
dos com "prazer" ou "paixão", tornaram-se atributos de um carácter
nobre e não depravado. A palavra- chave era " sensibilidad e " : a capaci
dade intuitiva de sentir intensamente. Ter "um coração sensível" era uma
pré- condição para a moralidade .
Foi neste período que começaram a ser aceitáveis as manifestações
exteriores dos sentimentos. O s pendentes com a imagem do ser amado ou
os medalhões com madeixas de cabelo da mulher ou dos filhos tornaram
-se emblemas comuns do coração sensível. Quando as madeixas eram de
entes queridos desaparecidos deste mundo, o significado tornava-se ainda
mais pungente, e, na década de 80 do século XVIII as expressões desinibi
das do sofrimento substituíram o fatalismo estóico como resposta espe
rada à morte de uma criança. As cartas de amor foram buscar hipérboles
extáticas à Nova Heloísa de Rousseau e empilharam-lhe declarações de pai
xão em cima . Num exemplar típico das suas cento e oitenta cartas de
amor, Julie de Lespinasse, heroína da Nova Heloísa, diz ofegante: Mon ami,
amo-vos como se deve amar, com excesso, loucura, êxtase e desespero . "
129
Vê-se que ela está a chorar há muito tempo e que acabou por se entregar
à prostração de uma dor profunda. Tem as pestanas húmidas e as pálpebras
vermelhas, e a boca ainda na contracção que provoca as lágrimas; olhando
para o peito dela é possível sentir o estremecer dos seus soluço s .
Neste ponto, era obrigatório chorar. " Deixai correr livremente as vos
sas lágrimas", escreveu Girardin, com o seu braço de autor em volta dos
ombros do peregrino. " Nunca as tereis derramado tão deliciosas ou mere
cidas" .
Alguns dos discípulos mais fervorosos foram ainda mais longe em
busca do fantasma do génio solitário. Louis - Sébastie � Mercier viaj ou pela
Suíça com o seu amigo genebrino Etienne Claviere, visitando lugares e
pessoas que tinham sido importantes na vida de Rousseau . Manon
Philipon, que na adolescência se identificara apaixonadamente com Julie,
levou o marido, Roland, um futuro ministro girondino, numa digressão
semelhante e conseguiu descobrir o presidente da C âmara que tinha tes
temunhado o casamento de Rousseau e Thérese. Insatisfeita com a sua
obsessão privada, ela atribuiu ao marido o papel de Wolmar, a figura mais
velha e bastante austera mas dedicada que Julie obedientemente desposa
em detrimento do apaixonado e j ovem tutor Saint-Preux. Philipon
escreve ao marido e deixa esta identificação bem clara : " Devorei a Julie
como se não fosse a quarta ou quinta vez . . . parece -me que eu teria vivido
muito bem com todas aquelas personagens e que eles teriam gostado
tanto de nós como nós gostamos deles . "
A publicação das Confissões, e m 1 782, com a sua promessa introdutória
de " oferecer um retrato fiel à natureza em todos os aspectos", veio refor
çar ainda mais a ligação intensamente pessoal que os inúmeros discípulos
de Rousseau sentiam com ele. Quando Rousseau ainda era vivo, como
Simon Schama 1 CIDADÃOS
' O Grand Châtelet, situado na margem direita do Sena ( hoj e Place du Châtele t ) , era um
complexo que albergava um tribunal, o quartel-general da polícia e várias prisões . (N. do T. )
Simon Schama 1 CIDADÃOS
lenço para lhe oferecer como presente . Hérault adorava exibi -lo e diz-se
que o usou durante os seus anos de militância j acobina até ao dia em que
a guilhotina lhe fez saltar a cabeça. Em 1 786, um ano depois do espectá
culo que dera no Châtelet, foi honrado com a incumbência de iniciar as
chamadas "arengas" por ocasião do regresso do Parlamento de Paris aos
trabalhos. Era uma grande ocasião pública, e um colega advogado referiu
na Gazette des Tribuneaux que "o seu discurso era aguardado com grande
impaciência pelo numeroso público presente . Abundou nas formas e na
beleza que distinguiam os oradores das antigas Repúblicas . . . foi interrom
pido por ovações frequentes e ficou patente que os advogados, em espe
cial, estavam tomados daquele entusiasmo que desperta os homens e que
os leva a descobrir as suas forças e o segredo do seu poder " .
O sucesso d a primeira fase d a carreira espectacular de Hérault terá sido
auxiliado pelo seu berço, pela sua educação e pelas suas ligações.
C ontudo, também se deveu, em grande medida, à exploração sistemática
da eloquência, como o próprio reconheceu nas suas Réflexions sur
la Déclamation . Hérault recorreu às suas capacidades oratórias para subir a
escada profissional do Antigo Regime e ao mesmo tempo afirmou-se
como figura pública com fama de integridade e independência . Todavia, a
ideia de usar a barra como uma espécie de tribuna pública generalizada
tinha limites que, quando demasiado postos à prova, podiam expulsar o
radical em vez de o absorver. Dependia muito da linha assumida pelo ora
dor. Podia contar-se com Hérault e com o seu colega Target, futuro revo
lucionário e um dos autores da constituição de 1 7 9 1 , para ficarem do lado
dos Parlamentos na maioria das disputas com a Coroa. Só em finais de
1 788 se afastaram do tribunal por causa da forma e da composição dos
Estados Gerais. Mas o homem que na década de 60 do século XVIII fez
mais do que qualquer outro para inventar o conceito e a prática de uma
barra concebida para apelar directamente ao público, Simon Linguet, fê
-lo como parte de uma campanha contra os Parlamentos .
Linguet foi um verdadeiro fenómeno d a vida pública d o Antigo
Regime. Foi um espinho cravado em quase todas as instituições gover
namentais e desenvolveu uma maneira de falar e de escrever que ante
cipou de forma exacta a prosa revolucionária de incriminação petulante
e fúria apaixonada. Até há bem pouco tempo, Linguet foi rotulado de -
na melhor das hipóteses - curiosidade excêntrica e demasiado espiri
tuoso para ter influído seriamente no rumo da política do Antigo
Regime . Todavia, uma esplêndida biografia da autoria de Darline Gay
Levy contribuiu bastante para o salvar desta obscuridade e começa a tor
nar- se mais do que evidente que não existiu praticamente nenhum canto
do mundo político da França deste período que não tenha sido tocado
pelo seu talento e pela sua reputação . Na década de 60, século XVIII, na
qualidade de advogado de barra, ganhou fama ao abraçar uma série de
139
1
Ânito foi um dos acusadores de Sócrates . (N. do T. )
141
novos - como aqueles que subiam à custa do seu sólido civismo e da sua
eloquência deu à geração 80 do século XVIII a sua insígnia de mérito.
O resultado foi uma identificação poderosa entre os republicanos anti
gos e os modernos. Quando tinha nove anos de idade, Manon Philipon
levou um exemplar de Plutarco para a igreja; recordar- se-ia mais tarde de
que "é daquela altura que dato as impressões e as ideias que fizeram de
mim uma republicana" . Ler Plutarco "inspirou -me um verdadeiro entu
siasmo pelas virtudes públicas e pela liberdade " . De facto, alguns deixa
ram-se levar tão longe que se lhes tornou difícil ou mesmo impossível
reconciliarem-se com o presente . Mercier, que na casa dos vinte tinha
ensinado num colégio, idolatrava os antigos, e depois de mergulhar na
maj estade da República considerou " doloroso ter de deixar Roma e ver
-me de novo um comum da Rue Noyer" .
O patriotismo "romano" (muito mais raramente era "ateniense" )
comungava de algumas das virtudes do culto da Sensibilidade, mas nou
tros aspectos era bastante diferente. Para começar, era menos dado às
marinadas lacrimej antes, exaltando um autocontrolo estóico das expres
sões emotivas. Era uma cultura assumidamente "viril" ou masculina -
austera, musculada e inflexível, e não terna, sensível e compassiva .
Enquanto estilo arquitectónico e de decoração de interiores, o neoclassi
cismo trabalhava com formas despoj adas e severas: capitéis austeramente
dóricos e não esmeradamente coríntios nem delicadamente j ónicos. Do
mesmo modo, a publicação de ilustrações dos murais romanos de
Pompeia e Herculano (pelo futuro ultra -jacobino Sylvain Maréchal, entre
outros ) tornou popular um formalismo inspirado nos relevos.
Alguns entusiastas da Antiguidade deslocaram-se aos seus locais mais
famosos para comunicarem directamente com os seus fantasmas. Alguns
conseguiram chegar ao Peloponeso, outros à Sicília, a Nápoles e à
Campânia . Mas os visitantes franceses eram tendencialmente menos
numerosos do que os seus homólogos ingleses do Grand Tour. Foi princi
palmente a criação do Prémio de Roma pela Academia Real de Pintura
francesa e da sua escola na mesma cidade que possibilitou aos aprendizes
de pintores franceses beberem na fonte da cultura clássica . O novo direc
tor das artes de Luís XVI ( oficialmente designado " superintendente dos
Edifícios" ) , d' Angiviller, estava particularmente decidido a que as bolsas
disponíveis fossem concedidas de uma forma mais meritocrática do que
fora o caso com o seu antecessor, Marigny e, em finais da década de 7 0 do
século XVIII, lançou um programa destinado a encorajar uma nova gera
ção de pintura histórica expressamente concebida para inculcar as virtu -
des públicas associadas à Roma republicana: o patriotismo, a força de
espírito, a integridade e a frugalidade .
Por conseguinte, os heróis que corporizavam estes valores desfilaram
em grande formato nos Salões: Júnio B ruto, que executou os próprios
145
filhos depois de serem condenados por terem participado numa conj ura
monárquica, Múcio Scaevola, com a mão no fogo para demonstrar a sua
firmeza patriótica, Horácio C ocles, que defendeu sozinho uma ponte con
tra os Etruscos, e Gaio Fabrício e Cipião, cuj a incorruptibilidade era ates
tada pelas história s . Além deles, viam - s e filósofos de inabalável
integridade - Sócrates, Séneca e Catão - morrer pelas suas próprias mãos
em vez de se submeterem a ditadores.
Muitas destas figuras ilustres j á tinham uma presença assídua na pro
paganda oficial de outras culturas republicanas . Por exemplo, em meados
do século XVII, B ruto, Gaio e Cipião tornaram-se proeminentes nas deco
rações esculpidas e pintadas da C âmara Municipal de Amesterdão. No
entanto, ao aparecerem nos Salões de finais da década de 80, século XVIII,
e no decénio seguinte - especialmente nos quadros de Jacques-Louis
David -, registaram uma mensagem nova com uma eloquência inquie
tante : eram o equivalente pintado da retórica de Linguet.
O mais espectacular de todos estes manifestos pintados foi O Jura
mento dos Horácios, de David, que apareceu - tarde e demasiado grande -
no S alon de 1 78 5 . Já se escreveu muito acerca deste quadro extraordi
nário e o debate sobre as suas implicações políticas ( ou ausência delas)
está longe de esgotado . Não há dúvida de que foi agressivamente anti
-ortodoxo e que rompeu intencionalmente com as convenções académi
cas ( mesmo com as veneradas pelos neoclassicistas como Poussin) .
Também é manifestamente evidente que recorreu a uma linguagem da
cor purificada e sombria e que ignorou a composição obrigatória "em
pirâmide" numa caixa pouco profunda, com grupos de figuras abrupta
mente separados em três composições desligadas umas das outras. O que
permanece contencioso é se estas alterações dramáticas da forma consti
tuíram uma espécie de vocabulário radical e se os contemporâneos as
reconheceram como tal . Afinal de contas, David pintou o tema como
encomenda régia patrocinada por d' Angiviller e toda a sua carreira até ao
momento fora típica, com o talento a elevá -lo facilmente à fama e à for
tuna a partir de 1 7 8 0 . Ó rgãos oficiais como o Mercure de France e as recen
sões não oficiais como a de Metra na Correspondance Secrete foram
unânimes em classificar a obra de genial. Mas como vimos no caso de
Beaumarchais e até de Rousseau, era perfeitamente possível a corte e os
maiores dos les Grands darem a sua aprovação àquilo que hoj e parecem
mensagens extremamente subversivas .
Do q u e n ã o restam dúvidas é d e q u e O Juramento dos Horácios desenca
deou um clamor inédito no Salon e nos círculos da crítica de Paris.
O Mercure declarou bombasticamente que " esta composição é obra de um
novo génio; anuncia uma imaginação brilhante e coraj osa . . . " . Parte da
sua fama deveu -se ao intenso interesse narrativo da história . D epois de
um ataque dos C oriáceos, os três filhos de Horácio desafiam três irmãos
Simon Scham� 1 CIDADÃOS
Seria prematuro ver neste quadro ( mesmo que alguns críticos tenham
visto ) uma profecia inequívoca do posterior j acobinismo de D avid. Apesar
de os deões da Academia (principalmente o "primeiro pintor do rei",
Pierre ) terem ficado nervosos com a heterodoxia da pintura, não existem
provas de que D avid tenha perdido os favores de d' Angiviller ou até da
corte, que continuou a encomendar-lhe trabalhos. Se o braço estendido
dos Horácios se tornou a forma-padrão do j uramento revolucionário -
IV DIFUNDIND O A PALAVRA
' Jean-François de La Harpe ( 1 7 39- 1 80 3 ) , escritor e crítico, membro da Academia . (N. do T.)
151
histórias, e embora sej a possível determinar a sua circulação sabe -se que
teve uma grande circulação no clima sensacionalista da década de 80 do
século XVIII.
É difícil evitar a impressão de que o mundo da literatura "baixa" no
reinado de Luís XVI era um império de formigas : colunas de correios enér
gicos e determinados levando obj ectos preciosos para os seus vários desti
nos . A França tinha, certamente, muitos destes fornecedores de rumores
e de ideologia, que empacotavam, subornavam e percorriam rotas e redes
estabelecidas. Os canais e os rios eram cruciais para a sua movimentação.
Alguns começaram a usar depósitos nos portos menos concorridos, tais
como Agde, no Mediterrâneo, e Saint-Maio, na costa bretã, e depois
subiam prudentemente rio acima, por etapas. C ontrabandear a partir de
Avinhão, rodeada de território francês, era mais complicado, mas os bar
cos de pesca do Ródano eram usados para transportar fardos de livros e
jornais rio abaixo, para Tarascon e Arles . Outra rota fazia a ligação com o
canal real de Toulouse, de onde a mercadoria seguia para oeste, para
Bordéus. Outras acompanhavam as fronteiras orientais, de E strasburgo a
Dunquerque, procurando evitar os grandes postos alfandegários de
Sainte -Menehould, na entrada para a Champagne, e Péronne, nas portas
da Picardia.
D e qualquer modo, podemos partir do princípio de que os traficantes
faziam bem o seu trabalho, dado que Lyon, Rouen, Marselha, B ordéus
e a maioria das grandes cidades estavam bem servidas de obras ostensi
vamente "proibidas " . Em Paris, podiam ser adquiridas não só no Palais
-Royal como em bancas na Pont- Neuf e nos cais - os antepassados dos
actuais bouquinistes. Apesar de expressamente proibidos, os vendedores
exerciam nos átrios dos teatros e na Opéra, e corriam os cafés e as feiras
com pacotes debaixo dos braços . Outros usavam mostruários mais sim
ples, espalhando a mercadoria em cima de uma toalha, na rua, à vista
de todo s . Alguns vendedores tornaram- s e bastante conhecidos ou
mesmo poderosos, homens como Kolman, Prudent de Roncours e
Pardeloup, e alguns dos mais formidáveis eram mulheres, nomeada
mente la Grande Javotte, 10 que vendia numa banca no cais dos Augustins,
e a sua sócia, a Viúva Allaneau, em grande forma para os seus setenta
anos de idade .
Em todo este tráfico existia um nível extraordinário de cumplicidade
por parte das autoridades. Por exemplo, Girardin, o vendedor que se espe
cializava em libelos violentos contra a rainha, operava com impunidade a
partir do beco da Orangerie, no coração das Tulherias. O átrio do Palácio
de S oubise ( hoj e os Arquivos Nacionais ) era outro lugar semipúblico
pej ado de literatura subversiva, e antes de os Jacobinos e os Cordeliers
1 1 " Cordelier" significa "franciscano", da corda que estes monges usavam à guisa de cinto.
Os Jacobinos derivam o seu nome do Convento dos Jacobinos, um convento dominicano
situado da rua de Saint-Jacques (ou Jacob ) . (N. do T. )
153
O s Custos da Modernidade
' Grande parque e jardim botânico de Paris onde o conde de B uffon instalou um impor
tante laboratório de química . ( N. do T. )
' O autor refere-se à reforma e uniformização parcial d a artilharia francesa levada a cabo
por Gribeauval, e aos mosquetes tipo "Charleville", de produção em série, que se tornaram
a principal arma da infantaria francesa. ( N. do T. )
' Madame Le Boursier d u Coudray era parteira e professora n a escola veterinária d e Lyon.
A máquina representava o corpo de uma mulher com um bebé que era colocado em diferentes
posições para ensinar às parteiras como deveriam agir. (N. do T. )
1 59
II VIS Õ E S DO FUTURO
Expectativas
6
A Política do Corpo
desmaiando e ameaçando pôr fim à vida se a rainha não lhe tirasse o colar
das mãos, mas de nada lhe serviu a estupenda representação. Mesmo que
a rainha se sentisse inclinada a ignorar os apelos oficiais à poupança,
aquela monstruosidade não era do seu gosto . Era demasiado grande, o
género de vulgaridade rasca que ela associava ao círculo da Du Barry.
Aj udando o ourives a levantar-se, a rainha aconselhou-o a desfazer o
colar e a conseguir o que pudesse pelas pedras.
Este dinossauro da j oalharia rococó seria efectivamente reduzido em
tamanho, mas não pelo seu criador. De facto, a sua história pública mal
tinha começado, pois o colar tornou-se o prémio a conquistar numa
fraude tremendamente audaciosa . O Caso do C olar - assim ficou conhe
cido - é frequentemente tratado como um escândalo secundário em rela
ção ao "verdadeiro" drama de cofres vazios, camponeses famintos e
operários raivosos que anunciou o fim da monarquia francesa . As perso
nagens que desfilaram perante o público leitor francês à medida que a
bizarra trama foi evoluindo, no Verão de 1 78 5 , pareciam símbolos perfei
tos de um regime carcomido pela corrupção: um cardeal aristocrático, dis
soluto e ingénuo; uma aventureira trapaceira que se dizia descendente dos
reis Valois; um charlatão napolitano que afirmava ter nascido na Arábia e
dominar as artes curativas do oculto; uma costureirinha de cabelos muito
louros recrutada no Palais -Royal para se fazer passar pela rainha; credores
impotentes a torcerem as mãos e a estalarem os nós dos dedos; j oalheiros
de Paris, de Picadilly e de B ond Street, em cima de cuj os balcões tinham
caído sacos de veludo preto cheios de diamantes do tamanho de ovos de
tordo. E no centro de tudo isto, inevitavelmente, Maria Antonieta. Foi a
sua transformação na opinião pública de vítima inocente em harpia vin
gativa, de rainha de França em "puta austríaca" (putain autrichienne), que
afectou de forma incalculável a legitimidade da monarquia.
Nada disto era inevitável. Até o caso ser conhecido, a rainha tinha sido
uma observadora alheia às intrigas . C ontudo, as fobias histéricas nela cen
tradas, ainda antes de a trama ser urdida, significavam que ela seria sus
peita de colusão e de atrair terceiros para a desgraça ao serviço do seu
insaciável apetite de luxúria - um termo que combinava utilmente opu
lência exuberante e libido .
Em todos os aspectos, ainda que de forma involuntária, Maria
Antonieta provocou a sua própria queda. Foi precisamente a sua reputa
ção de ser dada a sentimentalismos de adolescente que levou Louis, car
deal De Rohan, a acreditar que conseguiria recuperar a sua posição na
corte através dos favores da rainha em vez de abordar directamente o rei.
Demasiado ricos para o seu próprio bem, senhores de um longo cadastro
de conspirações e proprietários do palácio mais espectacular do Marais, 1 os
rainha. Acusado de se gabar de que tinha mil anos de idade e de outras coi
sas absurdas, Cagliostro assumiu o papel improvável de céptico do
Iluminismo e anunciou de imediato que tinha trinta e sete anos - mas
explorou o gosto pelo orientalismo continuando a afirmar que nascera e fora
criado em Medina e Meca e que viaj ara por todo o Levante, onde adquirira
a sua "arte" . Cagliostro e a mulher também tinham sido encarcerados na
Bastilha e ele comoveu o tribunal com apelos angustiados descrevendo a
separação imposta a um casal tão exemplar. "A mais amiga e virtuosa de
todas as mulheres é arrastada para o mesmo abismo; as suas muralhas espes
sas e os seus muitos ferrolhos separam-na de mim . . . ela geme mas eu não
consigo ouvi-la" - e assim por diante, nesta veia rebuscada.
Até Jeanne de La Motte encontrou uma táctica útil. Apelou à história,
à memória dos Valois, dos quais se dizia descendente, e brandiu árvores
genealógicas complexas para o provar. E se calhar não eram totalmente
espúrias. Por volta de 1 7 80 estava em expansão o culto do cavalheirismo
em apuros, um culto que se ligava ao ódio romântico a tudo o que era
Novo, a um mundo dominado pelo dinheiro e pela corrupção . O mundo
de antanho era o elemento natural de Jeanne de La Motte . Ela conseguiu
apresentar- se como órfã de uma França mais antiga, uma heroína saída de
nenhures, uma inocente transviada como as raparigas das novelas admo
nitórias de Restif de B retonne. De forma absolutamente espantosa, com
parou a sua reputação inventada com a da rainha, afirmando que Maria
Antonieta quisera efectivamente o colar e que escrevera muitas cartas a
dizê-lo, cartas que eram genuínas e não forj adas (no seu zelo infeliz para
poupar qualquer embaraço à rainha, De Rohan queimara todas as cartas
que lera, pelo que a afirmação de De La Motte não pôde ser suj eita a
nenhuma contraprova ) .
A curto prazo, não lhe serviu de nada . O marido foi condenado à reve
lia às galés, para toda a vida. Ela foi condenada e enviada para a
Salpêtriere' por tempo indeterminado, mas foi também sentenciada a ser
chicoteada em público, com uma corda à volta do pescoço, e a ser mar
cada com um V ( de voleuse ladra ) . No momento desta terrível mortifica
-
' Antiga fábrica de pólvora ( daí o seu nome ) convertida em grande hospital e hospício
para pobres e doentes mentais que era também usado como prisão para prostitutas . (N. do T. )
1 79
rei a divertir-se como lhe desse na gana. Aliás, os papéis inverteram-se, com
o monarca a permanecer acanhado, isolado e retirado enquanto a mulher
se virava cada vez mais impudentemente para o exterior. O irmão dela ficou
chocado com o seu desafio às convenções no que era uma atitude politica
mente incorrecta. "Ela não tem etiqueta", escreveu ele ao irmão, Leopoldo,
"sai e desloca-se sozinha ou pouco acompanhada, sem sinais exteriores da
posição que ocupa. Isto confere -lhe um ar indecente; se fosse uma pessoa
comum, não faria mal, mas ela não está a cumprir o seu papel. . . "
José viu claramente que a irmã queria os privilégios e as indulgências
da realeza mas com a liberdade de fingir que era uma pessoa comum.
Previu que tal atitude seria um convite à impopularidade ou mesmo uma
deslegitimação. Mas Maria Antonieta continuou decidida a criar a sua
própria identidade. Repudiou a conselheira que lhe fora oficialmente atri
buída, a princesa de Noailles, e escolheu as suas próprias amigas. A pri
meira foi a princesa de Lamballe, cuj o marido morrera de sífilis,
deixando-a viúva aos dezanove anos de idade . Seguiu-se a princesa de
Guéménée, e para compor o ramalhete uma escolha desastrosa, Yolande
de Polignac, deslumbrante mas bronca. Nada disto teria tido muita impor
tância não fosse o facto de a rainha usar a sua autoridade para cumular de
presentes, cargos e dinheiro as suas favoritas. Para horror do parcimo
nioso Malesherbes, a rainha ressuscitou especificamente para a princesa
de Lamballe o cargo redundante de superintendente da Casa da Rainha,
com um estipêndio de 1 5 0 000 libras francesas por ano. E as favoritas
trouxeram atrás de si um grande clã de parentes e amigalhaços que se
agarraram ao navio do Estado como se fossem lapas. Eles eram tias na
penúria, irmãos esbanjadores, avós mariolas, baronias arruinadas e plan
tações hipotecadas nas Antilhas, e havia que satisfazê-los e compensá- los
a todos. Por conseguinte, aquilo que à rainha parecia perfeitamente ino
cente - favorecer os amigos -, aos observadores menos parciais afigurava
-se uma rede gigantesca de sinecuras e corrupção : o império de "Madame
Défice ", como lhe chamava o cunhado, o conde da Provença .
Quanto mais a rainha pugnava pela sua independência, maior parecia a
impropriedade. Chocada com o humor grosseiro do rei e com a devoção
absoluta do conde da Provença aos prazeres da mesa, deve ter visto no seu
cunhado mais novo, Artois, um modelo de elegância, de encanto e talvez
até de inteligência (isto é ir longe de mais ) . Mas não há dúvida de que Artois
a fazia sentir inteligente, graciosa e - com os seus olhos grandes, o lábio
inferior carnudo e o queixo habsburgo - bela. Passavam muito tempo j un
tos no teatro, à mesa de j ogo e nos concerts spirituels, 5 que constituíam o
' Os C oncertos E spirituais foram uma série de concertos públicos em Paris ( 1725- 1 790 ) ,
criada para oferecer entretenimento durante a s festividades religiosas, quando o s teatros
estavam fechados. Os concertos incluíam corais sacros e peças instrumentais, e durante mui
tos anos tiveram lugar nas Tulherias. ( N. do T. )
1 83
' François B oucher ( 1703- 1 770 ) , um dos promotores do rococó, célebre pelos seus qua
dros idílicos com base em temas clássicos e pelas suas alegorias decorativas representando as
artes ou as ocupações pastoris. (N. do T. )
S imon Schama 1 CIDADÃOS
uma simples fita. A duquesa de Polignac, que era, por todos os padrões,
muitíssimo atraente, foi pintada neste novo uniforme, com o ar de um
fruto suculento recém colhido. Mesmo quando os modelos se mostravam
relutantes em ir ao fundo da informalidade, Vigée-Lebrun encontrava
maneiras de tornar as suas atitudes menos monumentais.
Tudo isto era apresentado como o traj e da inocência natural, mas tal
como algumas das poses das raparigas de Greuze, das quais era reminis
cente, tinha um poder inegavelmente erótico . Este poder está explícito na
Bacante, pintada no ano do Caso do Colar, mas alguns elementos deste
desenho carregado de sexualidade foram transferidos para o retrato : os
dentes realçados de uma boca entreaberta num sorriso ou os olhos vira
dos para cima da actriz "manteúda" Catherine Grand, futura mulher de
Talleyrand. Mas o retrato de Grand é uma excepção ao apresentar uma
mulher como uma espécie de obj ecto sexual. Na sua maioria, os retratos
de mulheres pintados por Vigée-Lebrun na década de 80, século XVIII
estão notavelmente isentos do voyeurismo rococó . Em vez de terem a
cabeça virada para longe do observador e os corpos expostos, as mulheres
aqui retratadas - entre as quais a artista - olham-no nos olhos com
expressões de desafio e independência . Surgem amiúde em grupos de
amigas ou com os filhos em poses desinibidas de afecto e abraço . Foi esta
recusa da submissão para conquistar as boas graças dos homens que os
contemporâneos acharam simultaneamente excitante e alarmante .
É claro que quando se tratou de retratar a rainha se interpuseram
algumas preocupações particulares entre a maneira "natural" de Vigée
-Lebrun e a encomenda. C hamada pela primeira vez à corte em 1 7 78,
com apenas vinte e três anos de idade, ela produziu a devida imagem tra
dicional, com o rosto a três quartos e o modelo decorado com penas e
dentro de um enorme robe à panier.1 Em 1 78 3 , deu-se uma transformação
e o retrato da rainha que foi exposto no Salon mostrava-a num simples
vestido de musselina, de rosa na mão. Seguiram-se outros retratos na
mesma veia, muitos dos quais foram copiados para as embaixadas france
sas e para clientes privados.
II O RETRATO DE CALONNE
1 Em francês no original. À letra: "o muro que mura Paris deixa Paris a murmurar." (N. da R. )
S imon Schama 1 CIDADÃOS
1 . Situação presente
2. O que fazer?
3 . C omo?
Haverá quem recorde a máxima da nossa monarquia : "si veut le roi, si veut
la loi" [a lei será o que o rei desej ar] . Mas a [nova] máxima de Sua
Majestade é "si veut le bonheur du peuple, si veut le roi" [o rei desej a o que
trouxer felicidade ao povo] .
Suicídios
1 78 7 - 1 788
direito geraram eles próprios novos obj ectivos. Dos ataques à Casa de
Orange, os j ornalistas e o C orpo Livre apontaram as baterias a todo o sis
tema tradicional de ocupação de cargos na Holanda, segundo o qual os
"regentes " assumiam o cargo a título vitalício e eram substituídos por
membros cooptados do seu meio . Contra esta "aristocracia", descrita na
literatura polémica como uma "monstruosidade gótica" e uma "tirania ",
um sistema democrático de eleições directas e frequentes purificaria a
política holandesa e recriaria a República no imaginado vigor das suas
origens .
Apesar de a retórica dos Patriotas holandeses se expressar principal
mente no idioma padrão tardo -setecentista dos direitos universais, esta
revolução em miniatura tinha muita coisa que a um visitante francês
pareceria espantosamente paroquial. Nos apelos à memória dos heróis
mortos - por exemplo, o almirante de Ruyter e Johan de Witt4 -, ele teria
encontrado ecos do passado e não prenúncios do futuro . A situação pare
cer-lhe -ia mais uma querela entre facções do que uma guerra entre "aris
tocracia" e "democracia" . Mas apesar de os tumultos provocados pelos
Patriotas nunca terem sido levados tão a sério pelos governos franceses
como os assuntos americanos, os destinos de ambos os países emaranha
ram-se de modo complexo .
Desde a guerra americana, a República Holandesa era um aliado e um
elemento importante - ainda que bastante impotente - da coligação anti
britânica criada por Vergennes. Além disso, o mercado financeiro de
Amesterdão tornara -se uma fonte vital de empréstimos de curto prazo,
muitos dos quais eram fornecidos por sindicatos cuj as simpatias iam para
os Patriotas e não para os orangistas. O dinheiro e a política "americana "
dos Patriotas pareciam caminhar de mãos dadas. Sendo a Casa de Orange
tradicionalmente pró-britânica, quanto mais embaraçada fosse maiores
seriam as hipóteses de ser substituída por um regime francófilo formado
pelos Patriotas. Mas esta oportunidade de ouro não era isenta de riscos .
O confronto a q u e se assistia n a República Holandesa estava a descambar
rapidamente para uma guerra civil. Com o endurecimento das tácticas de
rua fez aumentar correspondentemente o nível de preocupação em
Versalhes. Um enviado francês à Holanda relatou que "a agitação que aqui
existe fez progressos terríveis e se não for travada receia -se que possa pro
vocar uma explosão de consequências incalculáveis " .
Mas n a Primavera d e 1 7 87 intensificou-se a militarização do conflito.
Em Maio, teve lugar a primeira batalha campal, ainda que numa escala
reduzida, perto de Utreque, com os Patriotas a levarem a melhor. No fim
de Junho, a princesa Guilhermina foi capturada pelos Patriotas quando se
' D uas grandes figuras do século XVII, respectivamente, o herói das guerras anglo-holan
desas e o maior estadista das Províncias Unidas . (N. do T. )
211
Mas nem toda a gente estava preparada para aceitar que o Antigo
Regime perecera de inanição. A história do seu último e notável governo,
liderado por Loménie de B rienne, foi a defesa obstinada das possibilidades
do absolutismo esclarecido, e a sua derrota o reconhecimento de que a
representação era a condição para a reforma e não o contrário.
2 13
vertidas nos novos manuais. Além disso, os estrategos da velha escola não
tinham em grande conta as noções "lunáticas" de Guibert de guerra sem
inibições e da imposição de uma destruição demoníaca a um inimigo
enfraquecido . O efeito global das suas reformas foi perturbador, talvez
mesmo desmoralizador no curto prazo . Guibert tinha um temperamento
verdadeiramente revolucionário preso no corpo da governação régia.
Quanto mais visionárias foram as reformas do governo de B rienne,
menos o público as apreciou. A emancipação dos protestantes foi profun
damente impopular e deu azo a manifestações de rua nas regiões mais
devotas da França, no Oeste e no Sudeste ( esta questão seria um dos gran
des motivos de divisão durante a Revolução ) . As assembleias provinciais
que Brienne preservara das propostas de Calonne e que foram criadas em
1 787 e 1 78 8 tinham sido concebidas como um exercício de devolução,
mas em grande parte da França (não em toda ) foram estigmatizadas como
brinquedos do governo e instrumentos das suas políticas fiscais.
Nem a seriedade da crise financeira, no fim da Primavera de 1 787, nem
a reconhecida excelência das reformas do governo foram suficientes para
desarmar as insuperáveis objecções políticas aos procedimentos governa
tivos tradicionais . A Assembleia de Notáveis, concebida por C alonne para
obviar a oposição, tinha, ao levar- se a si própria a sério, virado do avesso
as prioridades convencionais. A representação e o consentimento eram
agora requeridos não como auxiliares do governo mas como condição
para o seu funcionamento, e ao apresentar o seu caso ao público - lite
ralmente aos púlpitos do clero -, Calonne tornou a política uma questão
de atenção nacional. Aberta a caixa de Pandora, revelou -se impossível
fechar a tampa e a administração de B rienne soçobrou nas mesmas dis
córdias que tinham vitimado o seu antecessor. Os Notáveis estavam dis
postos a autorizar a contracção de empréstimos para salvar o governo da
bancarrota imediata e a aceitar as reformas económicas, mas foram infle
xíveis na questão do imposto predial e do imposto de selo que o comple
mentava : só os Estados Gerais tinham autoridade para tornarem essas
medidas legais. Confrontado com esta relutância, Brienne dissolveu a
Assembleia, no dia 2 5 de Maio .
As alternativas que lhe restavam eram por demais óbvias . Podia con
verter a monarquia num regime representativo convocando ele próprio os
Estados Gerais no pressuposto de que o acto geraria a confiança pública -
logo, os fundos públicos - para sustentar o governo . Ou podia tentar ven
cer a esperada oposição dos Parlamentos à nova política fiscal através de
uma combinação judiciosa de incentivos e ameaças. Os perigos de ambas
as políticas eram evidentes e, no Verão de 1 787, ainda não era claro qual
dos rumos aliviaria ou agravaria a questão vital do crédito . Além disso,
numa altura em que seria de esperar alguma liderança por parte do rei,
Luís XVI fechou-se num mundo de alternância compulsiva entre caçadas
219
Mas o que agravou a situação foi o facto de o mais poderoso destes dois
grupos provir dos escalões mais elevados da magistratura. Era liderado por
Jean-Jacques d'Eprémesnil, uma figura atarracada mas cuj a falta de altura
era mais do que compensada pelas suas eloquentes ferroadas . A posição de
d'Eprémesnil era conservadora ou mesmo reaccionária mas isso não com
prometeu a sua popularidade; tê-la-á mesmo reforçado, já que muito do
futuro sentimento revolucionário derivaria mais a sua força de uma reac
ção ferida do que de um progressismo nobre. A retórica de d'Eprémesnil
era reminiscente da resistência ao chanceler Maupeou e aos controladores
-gerais de Luís XV. Ele reiterou a opinião generalizada de que os
Parlamentos eram responsáveis pela guarda das "leis fundamentais" da
França contra os desígnios ministeriais sobre as "liberdades do povo " . Mas
d'Eprémesnil tinha planos mais ambiciosos de reconstrução nacional, que
foram sumariamente afirmados como a "desbourbonização da França" .
A sua intenção era levar o argumento além d a resistência a éditos ilegais e
reclamar uma parte activa na actividade legislativa - ou seja, tratava -se de
uma redefinição da soberania. Em 1 777, d'Eprémesnil tinha deixado bem
claro que os Parlamentos não deviam ter um simples papel de resistentes .
A sua oposição teria de ser a parteira dos Estados Gerais, aos quais cabia
verdadeiramente a elaboração de novas leis . Volvidos dez anos, continuava
a ser esta a sua posição. Brienne terá suposto que a gravidade da crise
financeira persuadiria oradores como d'Eprémesnil a suspenderem esta
doutrina pelo menos até passar a emergência. Contudo, os leões do
Parlamento não estavam inclinados para a compaixão política . Pelo con
trário, foi precisamente na aflição do governo que viram uma oportuni
dade de ouro para forçarem o fim do absolutismo . Sim, haveria uma
revolução, uma revolução feita não com sangue mas através do direito,
uma versão francesa da Revolução Gloriosa de 1 688.'
O problema deste prognóstico era não ser credível para todos os que se
tinham j untado à oposição feita por d'Eprémesnil. Um grupo de advoga
dos do Parlamento, mais novos e agressivamente radicais (incluindo
Hérault de Séchelles e o seu amigo Lepeletier de Saint-Fargeau ) , via os
Estados Gerais não como o fim mas como o princípio de uma nova França.
Este grupo, liderado por Adrien Duport de Prelaville, de vinte e oito anos
de idade, constituía uma minoria no seio dos magistrados seniores da
"Grande Câmara " mas tinha um grupo de seguidores muito maior e muito
mais vociferante entre os advogados dos tribunais inferiores, os maítres
d 'enquêtes. Duport ascendera a conselheiro na Câmara com a tenra idade
de dezanove anos, era amigo de Lafayette e fizera da sua residência na
5 O derrube do rei Jaime II de Inglaterra por uma união entre o Parlamento e o exército
invasor de Guilherme de Orange, que ascendeu ao trono - uma revolução que pode ter sido
gloriosa, mas que, na verdade, fez correr bastante sangue. (N. do T. )
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lidar com a Nação e é perante a Nação que o rei responde quando res
ponde ao Parlamento " . Malesherbes também não receava a convocação
dos Estados Gerais . De facto, considerava-os uma forma de reforço e não
de diminuição da autoridade da monarquia.
Havia, pois, espaço para negociação de ambos os lados . Porém, no
compromisso que emergiu em S etembro, foi B rienne quem pareceu ter
feito mais cedências . O novo imposto predial que tinha estado no cora
ção do programa de reformas e do qual dependia uma grande reconstru -
ção das finanças públicas foi posto de lado, e com ele o indesejado
imposto de selo. No seu lugar, B rienne pediu exactamente o tipo de
paliativo que tanto ele como Calonne tinham esperado evitar: uma ving
tieme ( a incidir, como todas as vingtiemes anteriores, sobre todas as cama
das da população ) . Seria cobrada durante um período de cinco anos,
findo o qual se convocariam os Estados Gerais . O édito de suspensão
imposto aos Parlamentos foi também revogado. Ao abandonar o con
fronto, o governo esperava comprar cinco anos de paz política durante os
quais as finanças do Estado poderiam ser sanadas. No fundo do túnel,
mais do que luz, ver- se-ia o ofuscante brilho real. No dia 1 9 de
Novembro, Lamoignon acenou ao Tribunal dos Pares com uma visão
radiosa para 1 7 92 :
Sua Maj e stade, no meio dos seus Estados, rodeado dos seus súbditos fiéis,
apresentando-lhes confiantemente o retrato tranquilizador das finanças
em ordem, da agricultura e do comércio promovendo -se mutuamente sob
os auspícios da liberdade, de uma marinha formidável, do exército regene
rado por uma constituição mais económica e militar, do fim dos abusos, de
um novo porto construído no C anal da Mancha para garantir a glória da
bandeira francesa [Cherburgo ! ] , de leis reformadas, da educação pública
aperfeiçoada . . .
pressa. Foi necessário empenhar oito mil soldados na cidade para acalmar
a situação, o que só aconteceu em Julho . Em B esançon, Metz, Dij on,
Toulouse e Rouen verificaram -se protestos organizados suficientes para o
governo exilar os magistrados recalcitrantes, e em B ordéus, Aix e Douai -
bem como no estranhamente submisso Parlamento de Paris -, os tribunais
permaneceram em funções mas declararam os éditos obra de um despo
tismo desenfreado.
Os Parlamentos pareciam o que sempre tinham afirmado ser: tribunos
do povo . Mas no preciso momento do seu triunfo, hesitaram em desfrutá
-lo. O carácter tumultuosamente físico do apoio popular que mereceram
apanhou muitos dos magistrados de surpresa, uma surpresa que nem
sempre foi agradável. As invasões espontâneas dos Palácios da Justiça ou
desta ou daquela Câmara Municipal e a prontidão das multidões para
enfrentarem as tropas na rua colocava questões de ordem pública que
causavam apreensão aos magistrados, tradicionais guardiães da paz civil.
O Parlamento de Pau, que assistiu a algumas das manifestações mais vio
lentas, protestou contra os éditos de Maio mas com a j ustificação de que
tinham provocado tumultos incessantes e destruição de bens contra os
quais, tornava-se evidente, "a polícia regular nada pode fazer" .
Para os indivíduos sensíveis a essas coisas, existiam sinais ainda mais
inquietantes de que a crise estava a deixar rapidamente de ser uma guerra
civil no seio da elite . Em Rennes, o embaixador britânico foi informado de
que circulavam entre o povo comum augúrios alarmantes acerca da
queda da monarquia . Dizia-se que o ceptro na mão da estátua equestre de
Luís XVI começara a pender, talvez quinze centímetros em poucos meses.
No princípio de Julho, surgiram notícias ainda piores. Uma testemunha
começou a divulgar que numa noite muito quente e abafada tinha visto,
sem qualquer sombra de dúvida, a montada de pedra do rei suar gotas
anafadas e viscosas de sangue.
' Pirro ( 3 1 9-272 a . C . ) , rei do Epiro, morto durante um combate de ruas depois de ator
doado por uma telha atirada por uma mulher de cima de um telhado. ( N. do T. )
S imon Schama 1 CIDADÃOS
Haveis tentado meter- nos medo através das marcas d o vosso poder, atra
vés da força, das baionetas dos soldados, dos mosquetes, dos canhões e das
granadas, mas não daremos um único passo atrás. Enfrentá -los -emos com
a nossa coragem, armadas com as roupas mais finas e um capacete de
gaze . Mas até ao nosso último suspiro, as nossas vontades e os nossos
corações exigirão o regresso dos nossos magistrados e privilégios e o res
tabelecimento das condições que são as únicas capazes de fazer as verda
deiras leis . . .
O rei recua . . . E stá sempre com medo de cometer um erro . Passado o pri
meiro impulso, fica atormentado pelo receio de ter cometido uma inj us
tiça . . . quer-me parecer q u e tanto na governação como na educação só s e
deve dizer " é assim q u e eu quero" quando se t e m a certeza . E depois não
devemos arrepiar caminho em relação ao que ordenámos .
V JOGOS FINAIS
'º No discurso de tomada de posse: " . . . a única coisa que temos a temer é o medo". (N. do T.)
241
da violência . A corrida ao resgate durou três dias e três noites até que dois
outros anúncios governamentais garantindo o papel tiveram um efeito
temporariamente calmante. Contudo, só uma nova via teria hipóteses de
restaurar a confiança mínima necessária para impedir a desintegração do
governo . No conselho de ministros, falara -se em tentar o impossível -
integrar Necker no governo - mas se a França ia ser ressuscitada através
do governo representativo não poderia fazê -lo com o expoente mais
poderoso do absolutismo . De qualquer dos modos, Necker, que já ouvia
os primeiros aplausos que saudavam a hipótese do seu regresso, não
estava de todo interessado em partilhar a sua glória com o desacreditado
arcebispo. No dia 2 5 de Agosto, Brienne demitiu -se. À noite, dez mil pes
soas encheram o Palais-Royal; gritaram até enrouquecer e lançaram
foguetes para celebrar a notícia.
Durante a semana seguinte, Paris entregou-se a uma imensa erupção
de ódio, provocada por um aumento em flecha do preço do pão. Efígies
em palha de B rienne e Lamoignon foram queimadas noite após noite; na
Pont Neuf, quem não se curvasse perante o totem popular - a estátua de
Henrique IV - levava uns encontrões. S egundo uma testemunha ocular
inglesa
* * *
S imon S chama / CIDADÃOS
Queixas
Outono de 1 788 - Primavera de 1 789
poderia ter dado algum motivo de ceptiosmo aos optimistas, mas nin
guém, e muito menos Lafayette, estava preocupado com estas questões
em 1 788 . ) No dia em que Necker foi nomeado para substituir Brienne, os
fundos governamentais subiram trinta pontos. Necker tinha sempre insis
tido que a responsabilização pública era a chave da viabilidade fiscal. Por
conseguinte, a mera perspectiva da realização dos E stados Gerais, inaugu
rados pelo ministro que recomendara a sua convocação, foi suficiente
para garantir subscritores para os empréstimos necessários para manter o
governo da França a funcionar e pagar aos seus soldados.
Na primeira instância, a transferência do mandato financeiro não foi
um acto de pura convicção política . Os investidores nos fundos governa -
mentais - em Paris, Genebra, Londres ou Amesterdão - calcularam que
um novo regime seria mais dado a honrar os seus compromissos do que
o anterior. Isto tornou -se particularmente verdade depois de ficar claro
que a monarquia não conseguiria introduzir as reformas necessárias para
garantir uma nova liberdade de manobra . Mas aqueles que nos salões do
bairro de Saint- Germain tomaram a decisão de apostar num novo regime
pertenciam, enquanto animais sociais, à classe dos parlamentares. Por tra
dição, mesmo em situações extremas como a crise de Maupeou, na década
de 70 do século XVIII, tinham definido os seus interesses não em solida
riedade automática com a nobreza judiciária mas com o serviço à Coroa .
Desse serviço podiam esperar, como fermiers généraux ou fornecedores de
outros empréstimos, um lucro apetecível e as benesses e estatuto de car
gos que traziam consigo títulos de nobreza. O problema é que durante
todo o reinado de Luís XVI, primeiro com Turgot e Necker e depois com
Brienne, essa lealdade continuada fora seriamente posta à prova pelas
reformas . Por outras palavras, as tentativas da monarquia para garantir
um acesso mais directo às receitas e beneficiar de forma mais eficiente
com o crescimento económico da França neste período teriam de resultar
em pleno ou então não resultariam. Um sucesso parcial equivalia a um fra
casso total, pois significava ter de ir pedinchar de novo aos financeiros
cuj o interesse em sustentar a monarquia se tornara nulo .
Nesta perspectiva, um governo instituído pelos Estados Gerais seria um
devedor mais fiável. Um consenso mais alargado eliminaria os obstáculos
a novas fontes de receitas, que por sua vez seriam melhores garantes de
novos empréstimos. Os benefícios do liberalismo alimentar- se-iam a si
próprios. Todavia, este desfecho feliz pressupunha uma versão francesa de
1 688 ( anotada por Montesquieu ) , na qual a soberania efectiva passaria
sem sobressaltos da corte absolutista para uma assembleia dominada por
les Grands, a nobreza financeira e judiciária. Concomitante com esta
momentosa mudança existiria uma espécie de Declaração de Direitos dos
Cidadãos francesa, privando o absolutismo dos seus poderes j udiciais arbi
trários - as lettres de cachet, etc. - e garantindo a segurança de pessoas e
S imon Schama 1 CIDADÃOS
II A GRANDE DIVISÃO,
AGOSTO - DEZEMBRO DE 1 788
mas ainda restava u m bom número d a lista oferecida pelo Guide des
Amateurs de Thiéry - La Nouvelle-France, La Petite Pologne, Le Gros
- Caillou e Le Grand et le Petit Gentilly -, todas a seu gosto e localizadas
perto da casa da filha, onde ultimamente Malesherbes gostava de jantar.
Na noite em causa, Malesherbes levara Lafayette para que o aj udasse
a entreter dois visitantes estrangeiros, Samuel Romilly, um j ovem inglês,
e o genebrino Etienne Dumont. Tinham desembarcado do paquete de
Dover e chegado a Versalhes a tempo de vislumbrar os turbantes dos
embaixadores de Tipu deslizando pelos salões cerimoniais. Romilly era
um j ovem advogado precoce, produto de uma rede de ideias "avançadas"
que se propalava das universidades escocesas através das academias dissi
dentes e da Sociedade Lunar de Birmingham. ' Tinha a cabeça cheia de
proj ectos e fora prontamente aceite pela ala liberal dos Whigs, que se reu
nia na mansão de lorde Shelburne, em B owood. Os muitos amigos que
Shelburne tinha em França, incluindo o abade Morellet e o próprio
Malesherbes, tornaram-se amigos de Romilly, com quem falavam de
ideias "americanas" de patriotismo e liberdade, ligados através do Canal
numa união de camaradas.
Romilly ficou muito sensibilizado com o "calor e simpatia " que desco
briu em Malesherbes. E o prazer óbvio que este retirava das alegrias da
vida familiar favorecia -o ainda mais. Em brincadeiras pegadas com os
netos, o velhote atirava a peruca para o outro lado da sala de visitas e dei
tava-se em cima do tapete para que as mãozitas e os pezitos lhe atacassem
alegremente a pança. A informalidade para com os adultos e as crianças
estava a entrar na moda nos círculos progressistas whigs e seria celebrada
nos retratos familiares do seu mais brilhante artista de sociedade, Thomas
Lawrence . Mas era amiúde combinada com um constrangimento elegante
que desagradava ao sério temperamento huguenote de Romilly. Dumont
era da mesma cepa : era um pastor exilado da revolução democrática de
Genebra que fora esmagada por Vergennes, em 1 782 . Ambos já admira
vam muito Malesherbes por ter sido o paladino da emancipação dos pro
testantes, em 1 787, e quando ele os levou na sua habitual "excursão para
reformadores" às prisões de Bicêtre e da S alpêtriere eles ficaram ainda
mais impressionados com a sua determinação. Mas havia outros elos a
unir os j ovens e o idoso numa liga humanitária . Romilly era amigo do
líder evangélico da campanha contra o tráfico de escravos, William
O que são estes Estados Gerais que vos recomendam? . . . São um vestígio do
barbarismo antigo, um campo de batalha onde três facções do mesmo povo
se apresentam para se digladiarem; são o choque de todos os interesses com
o interesse geral . . . um meio de subversão, não de renovação. Tomai esta
estrutura pelo que é, uma ruína . Apenas lhe estamos ligados pela memó
ria . Apoderai-vos da imaginação das gentes com uma instituição que as
surpreenda e lhes agrade . . . Fazei com que um Rei, em finais do século
XVIII, não convoque as ordens do século XIV; fazei com que convoque os
253
Estado", enquanto "o Terceiro Estado está sempre a pagar e trabalha noite
e dia para cultivar a terra que dá o cereal para alimentar toda a gente".
As muitas gravuras que começaram a aparecer nesta altura com as
duas ordens privilegiadas escarranchadas em cima do cultivador do solo
diziam essencialmente a mesma coisa.
Coube a Qu 'est-ce que le Tiers-État?, da autoria do abade Sieyes, o mais inci
sivo de todos os panfletos, tomar decisivo o cisma entre o útil e o inútil.
"O que é necessário para que uma nação prospere?", inquire na primeira
das suas célebres perguntas retóricas. A resposta é: "Esforços individuais e
funções públicas. " E era o Terceiro Estado que providenciava todos os
esforços individuais. Assim sendo, o Terceiro Estado não era uma
"ordem" . Era a própria Nação . Por conseguinte, aqueles que reclamavam
um estatuto especial fora da Nação estavam a confessar o seu parasitismo .
Devido aos infortúnios e às delapidações, o Terceiro Estado, que era tudo,
não fora politicamente nada . Só quando a tibieza dos privilegiados amea
çara destruir a patrie pudera o Terceiro Estado tentar ser, na expressão
modesta de Sieyes, "alguma coisa" .
O Terceiro Estado foi uma ideia e u m argumento antes d e ser uma rea
lidade social e o panfleto de Sieyes foi a sua invenção mais inspirada:
cogente, lúcido e aparentemente incontestável excepto invocando o fan
tasma da historicidade - que não metia medo a ninguém. Não só deu
forma à nova entidade política nacional, como também apontou um dedo
ameaçador aos que dela se separavam. "É impossível dizer que lugar
devem a nobreza e o clero ocupar na ordem social", avisou Sieyes. "É o
mesmo que perguntar que lugar deve ser atribuído a uma doença maligna
que preda e atormenta o corpo de um homem doente . "
enveredado pelas rotas habituais d a labuta sazonal nas vinhas, nos cam
pos de trigo ou nos olivais, para depois regressarem a casa para mante
rem a sua pequena parcela de terra . Agora, o mais provável era que não
conseguissem sequer regressar e terem de lutar pela sua própria sobrevi
vência . Para os pequenos proprietários - os métayers -, que constituíam a
maior parte da população rural, foi a última volta num torno de dívidas
e empobrecimento . Sem terra suficiente para alimentarem as suas famí
lias, tentavam obter um pouco mais do seigneur, j untamente com semen
tes, alfaias e animais de tiro, em troca de uma parte da colheita. Este fardo
impedia a acumulação de quaisquer excedentes, pelo que os métayers se
viam frequentemente obrigados a comprar alimentos para conseguirem
subsistir. Assim, além de produtores eram consumidores, e .os aumentos
punitivos do preço do pão e da lenha praticados em finais da década de 80,
século XVIII, privou-os de toda e qualquer possibilidade de aproveitarem
o aumento gradual do valor do que produziam. Com as colheitas enegre
cidas pelo gelo ou pelo granizo e com impostos a pagar ao seigneur e ao
Estado, o mais provável é que os credores se apresentem a cobrar. O resul
tado é a expulsão e a despromoção para a classe dos sem-terra - que entre
tanto ficaram sem trabalho . S egundo Georges Lefebvre, em áreas
relativamente prósperas como os campos em redor de Versalhes, um terço
da população rural era constituído por famílias desenraizadas. Na Baixa
Normandia, este número era de três quartos. Toda esta gente engrossou a
torrente de humanidade desgraçada que se arrastava até às igrejas em
busca de uma esmola de pão e leite ou que acorria às grandes cidades.
Quando conseguiam chegar a uma cidade, o acolhimento era frio.
O trabalho temporário estava praticamente nas mãos dos migrantes: eram
carregadores nos mercados, cocheiros, limpa-chaminés, vendedores de
água. A crise que se abateu sobre o campo transformou-se numa depres
são que contagiou o resto da economia. A diminuição do poder de compra
reduziu o mercado para os bens manufacturados, que já sofria com a con
corrência dos produtos britânicos baratos por via do tratado comercial de
1 786. Os artesãos ficaram sem trabalho; o trabalho à peça nos teares fami
liares desapareceu; a expansão da indústria da construção urbana parou
subitamente, lançando muitos trabalhadores para o desemprego . C idades
industriais como Lyon e Rouen têm respectivamente 25 000 e 1 0 000
desempregados. Em Amiens, ainda mais próxima do ponto de entrada das
manufacturas britânicas, o número de desempregados atinge os 46 000.
Face às provas de ruína generalizada, Necker faz o que pode para pres
tar algum auxílio. Proíbe a exportação de cereais, autorizada pelos éditos
de B rienne em 1 787, e lança-se numa vigorosa política de importação,
gastando quase cinquenta milhões de libras francesas para adquirir cereais
e arroz. Mas não é fácil obter provisões. A Guerra Russo-Turca cortou as
fontes levantinas que abastecem o Sul do país e as mais tradicionais - a
S imon S chama 1 CIDADÃOS
- 1 789 não deve ser visto como uma sentença de morte antecipada da
grande experiência política em curso. No entanto, para a mente popular,
a questão de uma nova constituição fica ligada ao encher dos estômagos
vazios, o que significa incumbir o patriotismo e a representação de mais
do que um ou outra podem oferecer. Tal como a liberdade não era uma
resposta mágica para o problema da solvência fiscal, a igualdade também
não era uma resposta para o problema ainda mais difícil de alimentar a
população em anos de carestias.
Depois de levada à atenção da populaça, a interdependência da comida
e da liberdade não mais desaparece . A ilusão de que novas instituições
políticas poderiam garantir sustento onde as antigas tinham fracassado
baseava-se na crença de que os agentes parasitários do Antigo Regime
tinham usado intencionalmente o seu poder para provocarem crises com
as quais poderiam beneficiar. Nestes pactes de famine, as carestias periódi
cas tinham sido o sinal para os especuladores retirarem os cereais do mer
cado para fazerem subir os preços até ao momento em que pudessem
obter o lucro máximo. A política de liberalização do comércio de cereais,
isentando-o dos regulamentos que determinavam a venda licenciada em
mercados específicos, tinha oferecido possibilidades acrescidas à extorsão.
Estas crenças, muito difundidas, carecem de culpados: são os agioteurs
( especuladores) e os accapareurs ( açambarcadore s ) , para os quais alguns
cahiers rurais exigem a pena de morte, mas com igual frequência os minis
tros suspeitos de colusão. No princípio da Revolução, foi possível atribuir
a responsabilidade pelo prolongamento da crise alimentar à aristocracia
intransigente, que se dizia estar a conspirar para subj ugar o povo pela
s Com o apropriado subtítulo de Pontzfes, Que Fait Z :Or dans les Temples?. (N. do T. )
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Le Montat localiza -se nas profundezas de uma das regiões mais áridas
da parte sudoeste do Maciço C entral. No centro do pays des petites cultures,
é uma região em que gente a mais esgaravata um solo demasiado escasso
e fino e onde centenas de milhar de camponeses deixaram de cultivar as
suas parcelas de encosta para se tornarem trabalhadores nómadas sem
terra . Mas no pays des grandes cultures, onde os lotes são maiores, as colhei
tas para venda nos mercados urbanos mais comuns, as comunicações
melhores, a terra mais fértil e as colheitas mais abundantes, muitas das
queixas são as mesmas. Além do mais, o facto de nestas regiões ( como a
Ilha de França, a B eauce, o Vale do Loire, a Flandres Francesa e o Artois)
os camponeses viverem melhor, possuindo terrenos maiores e alguma
educação, leva -os a sentirem de forma mais aguda as ameaças à sua segu
rança decorrentes dos desenvolvimentos da segunda metade do século.
A sua resistência à vedação dos maninhos, à drenagem dos lagos e à des
florestação talvez sej a caracterizada de forma mais apropriada como uma
luta por recursos capitais com os agentes das propriedades senhoriais do
que como um mero conservadorismo cego. No entanto, baseava-se nos
seus princípios e actos colectivos, e não no individualismo. Muito antes
de 1 789, a resistência às apropriações dos proprietários de terras foi mon
tada através das assembleias de aldeia e dos tribunais locais, nos quais os
agentes judiciais do governo tomam cada vez mais o partido dos aldeãos
contra os seigneurs. Por conseguinte, quando é emitido o apelo ao envio dos
cahiers, a liderança das aldeias, geralmente nas mãos dos lavradores mais
abastados, já tem as suas queixas definidas, já testou a sua força contra a
nobreza local e parte cada vez mais do princípio de que a Coroa vai ser sua
aliada na campanha pelos direitos comunitários.
Mas estes "chefes" ( em neerlandês eram chamados literalmente hoof
mannen ) não são imunes às críticas . Nos lugares em que - como acontece
na Beauce e no Brie - se aproveitam da vedação ou da partilha dos mani
nhos, estas situações geram nos cahiers uma quantidade de queixas seve
ras por parte dos camponeses menos abastados . Em muitos casos, como
em Châtenay, B aillet, Marly e S ervan-en-Brie, os lavradores mais ricos
são directamente acusados de empobrecerem os outros e é exigido que o
tamanho das quintas seja limitado a terras que possam ser cultivadas com
quatro arados. "É tempo de pôr um travão nas ambições dos proprietários
ricos", declara o cahier de Fosses, que acusa os agricultores abastados de
273
para seu deleite, a língua de cada boi morto . Mais vexante é a mão-morta,
que exige a autorização do senhor para que o camponês possa vender
terra e que o proíbe de a legar a quem não sej a seu parente directo e que
com ele tenha coabitado. Mas estas bizarrias não passam de farrapos de
um feudalismo desaparecido do resto da França .
Mais tipicamente, os privilégios foram convertidos pelos gestores
senhoriais em taxas por serviços alegadamente prestados: moer os cereais,
fazer a cervej a, atravessar um rio, levar animais ao mercado - bem como
nas rendas exigidas anualmente pelo simples privilégio de cultivar o que
são, em termos puramente titulares, as terras do senhor. Estas taxas de
serviços e j udiciais vêm sendo agressivamente cobradas como uma nova
prática de negócios, a par da criação de moderníssimos arquivos docu
mentais ( o que na França setecentista não era um oxímoro ) e da nova
profissão de investigadores para conferir credibilidade às pretensões caso
sej am contestadas em tribunal (e são-no cada vez mais ) .
Por conseguinte, desde o seu· advento, a Revolução correu a toda a
velocidade em sentidos opostos. Os seus líderes queriam a liberdade, a des
regulação e a mobilidade do trabalho, a comercialização e uma actividade
económica racional. Mas as dificuldades e a aflição que empurrariam mui
tos homens para actos de violência - autorizada pelo rei, supunham eles -
prenderam-se com necessidades diametralmente opostas, e isto aplica -se
tanto aos artesãos urbanos como aos camponeses. Um número considerá
vel de cahiers das cidades e, em especial, das zonas rurais dependentes da
tecelagem e da fiação caseiras ataca a mecanização e a j unção dos proces
sos industriais em fábricas. E são muitos mais os que denunciam de forma
peremptória a venda a retalho - não especializada nem organizada - nas
feiras e mercados. Os vendedores ambulantes de toda a espécie são vistos
como intrusos que vendem artigos de má qualidade a preços que deixam
fora do mercado os profissionais que pagam as taxas às guildas e passam
por anos de aprendizagem até conseguirem as suas licenças oficiais.
É verdade que são opiniões previsíveis tendo em conta que as assem
bleias primárias do Terceiro Estado estavam organizadas por guildas e cor
porações, pelo que seria de esperar a predominância das opiniões dos
mestres sobre as dos jornaleiros. Mas seria igualmente ingénuo partir do
princípio de que os mestres e os empregados estavam necessariamente divi
didos quanto à ameaça da mão-de-obra desregulada simplesmente porque
outras questões - o salário mínimo - eram objecto de constantes discórdias.
Na maior parte das grandes cidades, existia uma hostilidade de longa data
entre os artesãos estabelecidos em ofícios, como o de alfaiate, e os traba
lhadores migrantes que produziam à peça para venda nos mercados em
bancas improvisadas. Mesmo em Paris, onde o mercado de trabalho era
fluido, não é líquido que o cahier das floristas e chapeleiras não represente
as trabalhadoras e as patronnes da guilda . Mostram-se particularmente
275
que saem da cidade com a sua preciosa carga, violando o quid pro quo.
Além de serem explorados por esta nova prática, os aldeãos não estão
autorizados a cobrar nada aos comerciantes de carne pela utilização das
pastagens. Na sua opinião, a compensação não está na solução liberal de
deixar cada uma das partes cobrar a taxa em vigor pelo respectivo serviço
prestado, mas no restauro dos termos do acordo . Caso nada seja feito,
ameaçam enxotar o gado dos talhantes à sua maneira .
Muitos outros processos de modernização económica desencadearam
reacções furiosas. Um sindicato formado pelo empresário Defer de La
Nouerre para desviar para um novo canal um afluente do Sena, o Yvette,
provocou uma violenta oposição por parte de todas as paróquias ribeiri
nhas. O esquema privaria o bairro de Saint-Marcel de uma importante
fonte de água, arruinaria as tapeçarias de Gobelin e, pior ainda, impossi
bilitaria dezasseis azenhas de produzirem farinha. Em Fevereiro de 1 788,
o Parlamento de Paris proibiu a implementação do esquema e ordenou a
Defer que reparasse todo e qualquer dano provocado pelos trabalhos já
realizados e devolvesse o rio ao seu leito original. No entanto, o projecto
contou com o apoio dos governos de Brienne e de Necker, pelo que os
cahiers das comunidades afectadas manifestam veemente a sua indignação
face à possibilidade de ser levado por diante .
Foram estas queixas locais e extremamente específicas que suscitaram
paixões poderosas no Inverno e na Primavera de 1 789. Enquanto casos
apresentados aos Parlamentos, tinham sido exemplos isolados do conflito
entre o capitalismo nascente e os direitos comunitários; plasmados nos
textos dos cahiers e nos procedimentos de eleição de deputados aos
Estados Gerais, contribuíram de forma assinalável para a politização do
Terceiro Estado. Pelo menos neste sentido, a política da nação compunha
-se tanto de uma miríade de queixas materiais locais como dos epítetos
sonantes associados à elaboração de uma nova constituição, e tal como
aconteceria durante a Revolução, os interesses do centro e das periferias,
da elite e da arraia -miúda, nem sempre puxavam na mesma direcção.
Enquanto os cahiers da nobreza liberal oferecem um retrato cativante
de uma França em modernização acentuada que consumará as grandes
alterações das décadas de 70 e 80 do século XVIII descartando as restrições
como uma borboleta a emergir de uma crisálida, os do Terceiro Estado
pretendem amiúde um regresso ao casulo. Por implicação, sugerem uma
França mítica, governada por um monarca omnividente, j usto e benigno
e amparada por um clero humilde e responsável. Nesta comunidade ideal,
a administração conseguirá estar ao mesmo tempo em todo o lado e em
lado nenhum, presente na comunidade local quando é necessária (por
exemplo, sob a forma do reforço da maréchaussée, 6 solicitado por muitos
que havia homens a trocar a camisa por pão e deram conta d e u m caso
em que uma mulher dera o espartilho ao padeiro em troca de um pão.
Nestas circunstâncias, surgiu um Cahier des Pauvres exigindo um salário
mínimo consagrado na lei e subsistência garantida para todos os homens
e mulheres capazes de trabalhar. Um documento similar, o Cahiers .du
Quatrieme Ordre, escrito por Dufourny de Villiers, exortou à aplicação de
um imposto substancial aos ricos para apoiar os pobres, tendo em conta
que a cupidez dera origem a uma sociedade em que "os homens são tra
tados como descartáveis " .
N o fim d e Abril, uma semana depois d e o Terceiro Estado d e Paris ter
realizado as suas assembleias primárias - depois de muitos adiamentos -, a
miséria e a desconfiança descambaram em violência . A ocasião foi propor
cionada por um boato que começou a circular no bairro de Saint-Antoine
(imediatamente a leste da Bastilha ) de que o fabricante de papel de parede
Réveillon tinha dito que ia reduzir o salário dos seus trabalhadores para
quinze soldos por dia . Revéillon e a outra vítima, o fabricante de salitre
Henriot, negaram indignadamente o rumor. Réveillon era um dos empre
gadores mais conscienciosos de Paris; pagava uma média de entre trinta e
cinco e cinquenta soldos por dia e mantivera uma grande parte da sua
força de trabalho durante o período mais difícil do Inverno, quando o
tempo tornara a produção impossível. Mas ele era precisamente o tipo de
empresário capitalista que provocava garantidamente a fúria dos artesãos
independentes e dos jornaleiros que constituíam a maioria da população
do bairro de Saint-Antoine.
A carreira de Réveillon é a história exemplar de um homem de negócios
que subiu a pulso, uma história que não era invulgar em finais do Antigo
Regime. Réveillon começou como simples aprendiz de papeleiro mas trocou
esta indústria, que era controlada pela guilda, pelo sector mais recente e
mais livre do fabrico de papel de parede. Casou bem e usou o dote da
mulher para adquirir a sua própria oficina . Em 1 789, esta localizava-se no
rés-do-chão de uma grande residência que Réveillon adquirira a um finan
ceiro arruinado e cuja mobília passara para os seus aposentos, nos andares
superiores. Em vez de se limitar a imprimir, colar e acabar, Réveillon adqui
riu uma manufactura de papel, o que lhe deu o controlo de todos os pro
cessos de produção. Tal como demonstra a história dos aeróstatos, os
fabricantes de papel tinham ligações estreitas ao mundo da ciência, e foi na
oficina de Réveillon que Pilâtre de Rozier realizou as suas primeiras expe
riências com balões. O próprio Réveillon experimentou o suficiente com a
química para descobrir um novo processo de fabrico de velino, que come
çou a produzir na sua fábrica no Brie . Em 1 784, Réveillon empregava qua
trocentos trabalhadores, encomendava padrões e desenhos aos melhores
artistas dos Gobelins e tinha recebido uma medalha de ouro especial por
excelência em manufactura - e até exportava as suas linhas para Inglaterra.
S imon S chama 1 CIDADÃOS
nosso irmão, abraça-nos . " ( Uma prova de fraternidade que muitos dos
mais fervorosos jacobinos, no seu apogeu, não conseguiram dar. ) "É para
já", replicou Charton, "desde que larguem os paus . " A explicação de que
Réveillon e Henriot eram bons patriotas e amigos do povo pareceu surtir
o desejado efeito calmante, uma vez que os manifestantes dispersaram.
Mas os problemas não tinham acabado. Impedidos de chegar a casa de
Réveillon por uma companhia de cinquenta Gardes Françaises, os manifes
tantes dirigiram-se à de Henriot, que arrasaram de cima a baixo, des
truindo a mobília e queimando os destroços na rua .
No dia seguinte, 28 de Abril, a situação agravou-se. Uma multidão
quase tão grande como a da véspera foi arengada por Marie -Jeanne
Trumeau, uma mulher grávida de quarenta anos de idade, casada com um
jornaleiro do bairro de Saint-Antoine. Juntamente com Pierre -Jean Mary,
de vinte e quatro anos e dado como "escritor" nos registos do j ulgamento,
ela incitou a turba a continuar o que tinha iniciado no dia anterior. Os
reforços enviados de Saint-Marcel, do outro lado do S ena, tinham engros
sado com as "gentes do rio", estivadores e "condutores" das jangadas de
madeira desempregados. Juntamente com os cervej eiros, os curtidores e
os trabalhadores de Saint-Antoine, formaram uma multidão formidável
de entre 5 000 e 1 O 000 pessoas que confrontou a barreira de Gardes
Françaises postada à frente da casa de Réveillon.
O motim ameaçava descambar em algo de muito mais grave do que a
destruição de bens ou a disrupção do policiamento de Paris; ameaçava
interromper as corridas de cavalos em Vincennes. De facto, quer residis
sem nos palacetes de Marais quer nos de Saint- Germain, os proprietários
dos garanhões e dos potras e os muitos outros que neles apostavam
tinham de atravessar Saint-Antoine para chegar ao hipódromo . Um
motim, era um motim, mas os engarrafamentos de trânsito eram verda
deiramente graves, para não falar nos insultos e nos punhos brandidos a
quem passava numa carruagem rica e não demonstrava entusiasmo pelo
Terceiro Estado . A única excepção foi o duque de Orleães, herói da mul
tidão ( e magnata dos cavalos ) . Saudado como ( mais um) "pai do povo", o
duque desceu da carruagem, acenou amigavelmente e balbuciou que os
seus amigos deveriam acalmar-se. Quando eles lhe retorquíram que tinha
razão mas que os sacanas dos patrões lhes iam reduzir o salário para
quinze soldos por dia, Orleães respondeu da única maneira que sabia -
atirou sacos de moedas à multidão e saiu de cena debaixo de uma ovação.
Compreensivelmente, a tensão diminuiu, mas nem a multidão nem os
guardas arredaram pé de Titonville . Passadas algumas horas, os amantes
das corridas regressaram ao local. A maior parte do tráfego fora sensata
mente desviada na barreira da Praça do Trône, excepto a carruagem da
mulher de Orleães, que insistira em seguir para o Palais-Royal pelo cami
nho mais directo. Fatalmente, os guardas abriram alas para a deixarem
S imon Schama 1 CIDADÃOS
Ora era precisamente essa autoridade que Les Quatre Cris d 'un Patriote a
la Nation contestava. E para que a contestação fosse real, asseverava o
autor, havia que armar os cidadãos - imediatamente . Para que fosse real,
os aristocratas deviam ser banidos para que a nação fosse liberta das suas
"maquinações infernais " . De que servia "pregar a paz e a liberdade a
homens que morrem de fome? De que serve uma constituição sábia a um
povo de esqueletos?"
Esta era a segunda voz da revolução. Durante o primeiro ano da revo
lução, as duas vozes estariam em harmonia no coro do Terceiro Estado,
Cidadãos-e-Irmãos. Pouco depois, os aristocratas desapareceriam ou pere
ceriam e a fome continuaria presente . Nessa altura, a discussão subiria de
tom e tornar- se-ia mais séria.
9
* * *
S imon Schama 1 CIDADÃOS
um amigo da família, o abade Roy, foi acusado de ter sido um dos insti
gadores dos motins de Réveillon. Quatro dias depois de Ferrieres deixar
Orleães, fora atacado um armazém de cereais e pilhado um convento car
tuxo, sob a liderança de barqueiros, pedreiros e outros trabalhadores e
suas mulheres, armados com machados. Tal como em Paris e muitas
outras cidades francesas, registaram -se mortes, a tropa interveio e for
maram-se milícias de defesa de cidadãos. "Tudo isto faz tremer o nosso
pobre Reino - é uma teia de horrores e abominações", escreveu o aba
lado marquês.
Mas recuperou a coragem em Versalhes, pois aproximava-se o grande
dia no qual estavam depositadas tantas expectativas impossíveis. Ferrieres
via-se a si próprio como um homem do Iluminismo: razoável, benevo
lente, dedicado à causa pública e, acima de tudo, culto de uma forma
cavalheiresca. Ferrieres, que era descendente do poeta Bellay, combinava
a curiosidade filosófica e científica com a expressão literária. Publicou um
primeiro livro, chamado Theism ( enganadoramente, já que está cheio de
deísmo e põe um pároco de aldeia a fazer a improvável observação de que
"a teologia é apenas uma ciência das palavras" ) , em 1 78 5 , e um ano mais
tarde deu à estampa outro trabalho, La Femme dans l 'Ordre Social et dans
l 'Ordre de la Nature. Vários dos seus pares presentes na assembleia de
Saumur pertenciam também ao clube da razão, pelo que não admira
constatar que o seu cahier foi um dos mais liberais da nobreza. Insiste já,
no preâmbulo, na igualdade de todos os cidadãos perante a lei, preocupa
se com o excesso de representação não dos comuns mas do clero, e
declara tão insistentemente como qualquer cahier do Terceiro Estado que
não se podem aplicar impostos sem primeiro serem estabelecidas certas
liberdades civis e políticas fundamentais.
Em conformidade com este individualismo patrício, a assembleia decidiu
não impor aos seus deputados instruções vinculativas sobre a forma como
deveriam deliberar e votar - individualmente ou por ordem. O "estabeleci
mento da constituição" levá-los-ia magicamente a tomarem a atitude cor
recta. A nobreza do Poitou parece ter pertencido ao grupo "misto" que
deixou às contingências políticas a determinação da sua conduta.
Sej a como for, a questão não pesava muito no espírito de Ferrieres
enquanto se ataviava para as cerimónias de abertura dos Estados Gerais.
Ele tinha descoberto na nobreza uma hostilidade virulenta contra Necker
como instigador de todos os seus males, uma constatação que o chocara,
e vira com ambivalência a facilidade com que alguns dos seus colegas
deputados, como o conde de Gallissonniere, se deixaram influenciar pela
reacção da corte e se comportavam de modo bastante diferente do que em
Saumur. Mas nos dias que antecederam a cerimónia de abertura, Ferrieres
dedicou -se de alma e coração "ao lado agradável e quase ridículo" dos
procedimentos: o espectáculo.
S imon Schama 1 CIDADÃOS
Mas tal como Ferrieres sentira com desconforto, os próprios meios uti
lizados para induzir delírio patriótico militaram contra a sua adopção pelo
Terceiro Estado. Historicamente, os rituais públicos que sustentavam o
mito de uma única comunidade davam grande proeminência, no vestuá
rio e nas bandeiras, precisamente aos grupos que, na realidade, estavam
excluídos do poder. Na Veneza renascentista ou na Amesterdão seiscen
tista, em dias de desfile, as irmandades e os milicianos comungavam em
pleno da cor e do espectáculo das festividades . Este mito de incorporação
era muito mais do que um pretexto para vestir com fausto, gerava e con
solidava a fidelidade .
Em Versalhes, na primeira semana de Maio, aconteceu exactamente o
oposto . A abertura dos Estados Gerais não foi tratada como uma ocasião
pública na qual o estatuto se dissolvia no dever patriótico, mas como
uma extensão do cerimonial da corte . Em vez de ser inclusiva, foi exclu
siva . Em vez de abrir espaços, fechou -os. Em vez de reflectir a realidade
social da França de finais do século XVIII, na qual a posição social era ero
dida pela propriedade e pela cultura, afirmou uma hierarquia anacró
nica . Necker tê-lo-á receado. Tal como Turgot, em 1 77 5 , ele quisera que
as cerimónias fossem mínimas e que decorressem em Orleães. Quando o
rei declinou, ele ficou à mercê dos conhecimentos dos mestres-de-ceri
mónias e dos que ditavam as leis em termos de precedentes históricos .
O chapeau à la mode de Henri I V devia mais à moda henriquina d a década
de 80, do século XVIII, do que a qualquer investigação antiquária séria
sobre o vestuário de 1 6 1 4. A tradição foi reinventada para a ocasião, tal
como as coroações britânicas dos séculos XVIII e XIX a fabricariam para
investir a monarquia de uma aura imperial.
A consequência de tudo isto foi garantir que a forma dos Estados
Gerais estava em guerra com a sua substância. Quanto mais brilhantes se
apresentaram as duas primeiras ordens, mais alienaram o Terceiro Estado
e o provocaram ao ponto de mandar a instituição pelos ares. Desde o iní
cio, os representantes do Terceiro Estado foram ofendidos de forma gra
tuita . O monarca recebeu os deputados das ordens privilegiadas no cabinet
du roi, mas os do Terceiro Estado foram levados para outro salão, onde
desfilaram perante o soberano qual fila indiana de colegiais amuados.
O seu vestuário era tão deselegante como vistosas eram as vestes do clero
S imon S chama 1 CIDADÃOS
Este bom cidadão [é] o homem mais eloquente d o seu tempo; a sua voz
domina as reuniões públicas como o trovão se sobrepõe ao rugido do mar;
a sua coragem suscita ainda mais espanto do que o seu talento e não existe
nenhum poder humano que o consiga fazer desistir de um princípio.
2 A cidade foi fundada pelos Romanos com o nome de Aquae Sextiae, em 123 a . C .
( N. do T. )
' Tribuno d o povo que procurou aj udar o s pobres urbanos com leis que lhes garantissem
o abastecimento em cereais e que acabou assassinado pelos patrícios. ( N. do T. )
S imon Schama 1 CIDADÃOS
Meus bons amigos, venho dizer-vos que aquilo que penso acerca dos acon
tecimentos dos últimos três dias na vossa orgulhosa cidade. Ouvi-me, ape
nas quero ser-vos útil e não enganar-vos. C ada um de vós desej a apenas o
que está correcto porque todos vós sois homens honestos; mas nem todos
sabeis o que é preciso fazer; muitas vezes cometemos erros que prej udicam
os nossos próprios intere s s e s . C omecemos por pensar no pão . . .
Actualmente, caros amigos, estando o trigo caro em todo o lado, como
poderia ser barato em Marselha? . . . A cidade de Marselha, como qualquer
outra cidade, contribui para as despesas do reino e para prover ao nosso
bom rei. Sai um pouco de dinheiro daqui, outro tanto dacolá . . .
Dois dias mais tarde, Aix emulou Marselha com um tumulto e as tropas
dispararam sobre a multidão. O arcebispo, um bretão, ficou aterrorizado.
297
"O povo comum, no seu ódio, só faz ameaças de morte e só fala em arran
car os nossos corações e comê -los . " Mirabeau foi de novo chamado como
pacificador e criou uma milícia de cidadãos para garantir que as pessoas
respeitariam a ordem e distribuiu pão a preços fixos . Não admira que
todos estes esforços tenham dado grandes dividendos . Mirabeau foi eleito
por margens substanciais para o Terceiro Estado em Aix e Marselha.
Depois de pronunciar orações elogiosas aos cidadãos de Marselha para
não os ofender, anunciou que iria para Versalhes como deputado por Aix.
Mirabeau referiria mais tarde que não era apenas estimado . Era
amado . A ovelha negra da família tornara-se o cavaleiro branco do Povo .
O homem odiado e desprezado pelo irmão reaccionário tinha uma pro
víncia de irmãos. O filho que nunca conseguira agradar ao pai implacável
tornara -se pai de um país de filhos adoptivos. " Obedeciam-me como a um
pai adorado", escreveu ele acerca daqueles tempos, "as mulheres e as
crianças banhavam com as suas lágrimas as minhas mãos, as minhas rou
pas, os meus passos" .
para não dar a impressão de que os Estados Gerais tinham liberdade para
ir escrevendo o guião . Assim sendo, por exemplo, o rei aceitou manter o
costume - no mínimo, politicamente incorrecto - de obrigar todo e qual
quer membro do Terceiro Estado que se quisesse dirigir ao trono a fazê -lo
de j oelho dobrado.
Todavia, no calor do momento, até a encenação mais minuciosa
mente planeada pode correr mal. No fim do seu discurso inaugural, na
Salle des Menus Plaisirs, o rei tirou o chapéu - um "Henrique IV" de pele
de castor com plumas brancas e um cintilante diamante ao centro - na
habitual saudação à assembleia. Depois do seu gesto correcto e maj esto
samente desprendido, repôs o chapéu na cabeça, seguido da nobreza,
que assumiu a sua superioridade sobre o desprivilegiado Terceiro Estado.
Na dúvida quanto aos formalismos ou liderados por agitadores calculis
tas, os representantes do Terceiro Estado quebraram horrivelmente o
protocolo pondo igualmente o chapéu na cabeça. No meio da confusão,
alguns ficaram de chapéu, muitos mais voltaram a tirá -lo e o rei, ao ver
o que estava a acontecer, considerou que tinha de tirar o seu. Para
Gouverneur Morris, o agente americano, foi um momento delicioso;
para a rainha, lívida de raiva, o colapso da cerimónia não augurou nada
de bom para o futuro .
O Fiasco dos C hapéus não teria passado de uma irrelevância se os pre
sentes tivessem ficado hipnotizados com as palavras do rei, mas não foi
propriamente essa a sua reacção. O discurso do soberano fora de uma bre
vidade quase superficial e uma mistura peculiar de entusiasmo e vexação .
Embora se tivesse referido ao "grande dia, tão ardentemente desejado", o
rei também fizera referências irritantes ao "exagerado desej o de inova
ções". Se parecera falar a duas vozes, foi porque ainda não encontrara a
sua. Existia indubitavelmente um conflito de sentimentos na sua perso
nalidade, tentada pelas aclamações do povo mas assustada com o seu sig
nificado. Mas este conflito não era nada quando comparado com o
combate que estava a ser travado no seio do governo, principalmente
entre o optimismo esclarecido de Necker e o Guardião dos S elos, o intran
sigente B arentin, que recusava contemplar tudo o que não fosse a forma
tradicional da separação dos Estados.
Barentin falou a seguir ao rei. Manteve a toada de concessões relu
tantes oferecendo-se para debater a questão de uma imprensa livre, mas
fez vários avisos professorais contra as "inovações perigosa s " . Porém,
quaisquer danos que o seu discurso pudesse ter causado à possibilidade
de uma reconciliação foram mitigados pela sua total inaudibilidade .
Necker, como sempre, estava mais bem preparado para lidar com a acús
tica impossível da Salle des Menus Plaisirs, com os seus quarenta metros
de comprimento, e ainda bem, já que o seu discurso sobre as finanças
durou três horas. Leu durante a primeira meia hora e depois passou o
299
parentes mais novos para esta ou para aquela diocese tendo apenas pre
sente a mais primitiva das relações de propriedade .
Por exemplo, Talleyrand esperara impacientemente desde 1 786 que
uma das muitas apoplexias do bispo de B ourges o levasse desta para
melhor para poder mobilizar os seus amigos e parentes numa campanha
de sucessão. Contudo, o velhote dera mostras de uma resiliência irritante
e quando finalmente sucumbira o patrono de Talleyrand, Calonne, fora
substituído pelo antipático Brienne . Talleyrand viu -se obrigado a esperar
até que outro falecimento atempado - em Lyon - resultasse na vagatura
desejada. O bispo de Autun mudou -se para Lyon e, no dia 1 6 de Janeiro
de 1 789, Talleyrand deu finalmente consigo de j oelhos, com toda a sole
nidade de que conseguiu dar mostras, a j urar obedecer ao sucessor apos
tólico de São Pedro e "preservar, defender, aumentar e promover a
autoridade, honras, privilégios e direitos da Santa Igrej a " . No dia seguinte,
tomou posse do pálio de Autun, que se dizia ser feito da lã de ovelhas
abençoadas que tinham pastado nos campos dos primeiros cristãos da
Antiguidade e, mais importante ainda, das vinte e duas mil libras france
sas dos seus rendimentos episcopais . Juntamente com o seu antigo bene
fício de Saint-Rémy e de outro mais recente em Poitiers, ficou com a bela
maquia de mais de cinquenta mil libras francesas por ano. Nessa noite, o
defensor de São Pedro, como era seu timbre, j antou no Louvre com
Adelaide de Flahaut, sua amante .
Esta imensa transferência de propriedades e poder foi concretizada
sem Talleyrand se aproximar sequer de Autun. Só no dia 1 2 de Março é
que Talleyrand se dignou a fazer a sua entrada oficial na catedral, onde
jurou ( mais uma vez ) fidelidade à sua "noiva de Autun" . Aproximava -se
a Semana S anta, mas o aparecimento de Talleyrand foi ditado pelo calen
dário político e não pelo religioso, pois ele queria ser eleito para os Estados
Gerais pelo clero de Autun, tendo preparado para o efeito o cahier do capí
tulo e da diocese. É um documento típico da imagem que Talleyrand tinha
da França : racional, liberal e constitucionalista, sem a mínima preocupa
ção com o cuidado das almas. Para garantir a sua eleição, no dia 2 de
Abril, Talleyrand deu -se ao trabalho de fingir que era um bom bispo .
Exortou os seminaristas à oração, tentou ( sem sucesso ) celebrar a missa
sem confundir as suas diferentes partes e, para cúmulo do descaramento,
pregou no colégio oratoriano uma homilia intitulada "A Influência da
Moralidad� nos Líderes dos Povos". Dez dias depois da sua eleição para os
Estados Gerais, no dia 1 O de Abril, menos de um mês depois da sua che
gada a Autun, desapareceu d e vez. Era domingo d e Páscoa e ele tinha de
evitar a todo o custo dizer a missa.
É difícil imaginar uma distância maior entre o conceito de Igrej a de
Talleyrand e o dos clérigos rurais que compunham quase dois terços da
ordem do clero em Versalhes. Seria errado considerar o bispo de Autun
S imon Schama 1 CIDADÃOS
deixar livres os bancos das outras ordens para o dia em que elas regres
sassem para deliberar em conj unto . No dia 1 8, apelaram formalmente à
verificação conj unta das credenciais, argumentando que as três ordens
não passavam de divisões arbitrárias de um órgão, pelo que deveriam pro
ceder em conformidade .
Ferrieres estava entediado e exasperado. " O s Estados não fazem nada ",
escreveu ele a Henriette no dia 1 5 . "Reunimo -nos todos os dias às nove
da manhã e vamo -nos embora às quatro da tarde, depois de passarmos o
tempo com mexeriquices inúteis . " Tinha chegado a Versalhes com cre
denciais de liberal mas quanto mais tempo passava mais impaciente ficava
com as "intrigas" do Terceiro Estado, que culpava pelo impasse. Até jan
tou com Artois, com os Polignacs e com Vaudreuil, que o deslumbrou com
o seu encanto urbano. "O conde [Vaudreuil] e eu ficámos amigos ", chil
reou ele excitado a Henriette . Diane de Polignac fez-lhe um elogio e ele
lançou - se a seus pés, pondo -se eternamente às suas ordens. Ao comentar
a liberdade de conversação que existia em casa dos seus anfitriãos, cha
mou -lhe "l 'Hôtel de la Liberté" .
Mirabeau tinha uma noção completamente diferente da Liberté.
Enquanto Ferrieres se retirava da opinião pública, Mirabeau estava a
moldá-la. No dia 7 de Maio, começou a publicar o Journal des États
Généraux, concebido para dar conta dos trabalhos e escrever editoriais
sobre o seu significado. O cabeçalho tinha a legenda Novus Rerum Nascitur
Ordo Nasceu Uma Nova Ordem das Coisas. O governo encerrou -o de
-
' Palácio localizado n a época a cerca d e quatro quilómetros d e Paris, onde o delfim jazeu
em câmara a rdente . (N. do T. )
309
' Jogo antigo, considerado como precursor do ténis, em que se batia uma bola com a mão
ou com uma raqueta. ( N. da R. )
311
mado porque um acto parlamentar estipulou que só poderia ser dissolvido com o assenti
mento dos seus membros, que apenas chegaram a acordo nesta matéria em 1 648, depois da
guerra civil. ( N. do T. )
S imon S chama 1 CIDADÃOS
Tal como sucedera no Verão e n o Outono d e 1 787, o rei teve a pior ati
tude possível: fez uma demonstração de autoridade real mas depois abs
teve -se de a aplicar. Era cada vez menos capaz de decidir se poderia
tornar- se uma espécie de Rei do Povo, como Mirabeau desej ava, ou o
ungido de Reims, armado com a oriflamme.9 Mas a questão tornou-se subi
tamente urgente, pois no centro de Versalhes parecia estar prestes a eclo
dir um motim popular em resposta à eloquente ausência de Necker da
séance royale. Ao fim da tarde, centenas de deputados foram vistos a entrar
no Controlo - Geral num gesto de solidariedade, e j untou-se-lhes rapida
mente uma multidão de cinco mil pessoas que se pôs a gritar " Vive
Necker!" . Maria Antonieta, que fora a mais ousada a desafiar o povo, foi a
primeira a assustar- se quando os populares entraram no pátio do palácio
e depois no interior, sem serem incomodados pelos milicianos dos Cardes
Françaises. Pedindo para ver Necker, implorou-lhe que não se demitisse;
pouco depois, numa entrevista privada, o rei pedia -lhe a mesma coisa.
C om a política de linha dura tão evidentemente em cacos, Necker acei
tou permanecer no seu posto na condição de o rei implementar o seu pro
grama de união das três ordens. Deixando a presença do monarca,
caminhou entre os deputados e os populares, tentando caracteristica
mente acalmar o seu j úbilo . "Agora sois muito fortes", disse ele aos depu
tados, "mas não abuseis do vosso poder. " Contrastando com este triunfo
popular, o rei partiu para Marly e os cocheiros tiveram de abrir caminho
por uma multidão carrancuda e ominosa.
Ainda se verificaram tentativas espasmódicas de imposição da autori
dade régia. No dia seguinte à séance royale, B ailly deu com o salão barrado
por tropas que, tal como na véspera, tinham ordens para só deixarem
entrar os delegados da nobreza e do clero, e nenhum membro do público.
Porém, a indignação de B ailly desapareceu quando se tornou evidente
que o oficial incumbido da missão se passara para a Assembleia Nacional
e que os seus homens confraternizavam entusiasticamente com os depu
tados, insistindo, "nós também somos cidadãos " . O "clero patriótico" foi
conduzido pelas traseiras à Salle des Menus Plaisirs onde, sob a liderança
do arcebispo de Vienne, integrou de novo a Assembleia Nacional. Mais
tarde, o arcebispo de Paris, que fora erroneamente identificado como
grande inimigo do povo, mal conseguiu escapar ao apedrej amento na sua
carruagem.
O dia seguinte, 25 de Junho, consagrou outro tableau vivant nos anais da
Assembleia Nacional quando quarenta e sete dos nobres liberais lhe aderi
ram finalmente . Tinham sido precedidos por dois nobres dos oito deputa
dos do Delfinado, e os restantes j untaram-se-lhes en bonne compagnie, como
' Em francês no original : auriflama - estandarte de seda vermelha com reflexos doura
dos, usado na guerra pelos reis da França . (N. da R. )
S imon Schama 1 CIDADÃOS
Dir-vos-ei apenas uma palavra, cara irmã, pois talvez vos tenhais ralado
por causa de d'Iversay e de mim. Estivemos perto da catástrofe sangrenta,
de uma repetição dos horrores do massacre de São Bartolomeu. A fraqueza
do governo parece permitir tudo . . . A séance royale apenas serviu para
garantir um triunfo ao Terceiro Estado. Nessa mesma noite, o rei foi obri
gado a alterar a sua declaração, apesar de ter sido aceite por nós . . . Na
sexta -feira, cinquenta membros da nobreza, com o duque de Orleães à
frente, j untaram-se ao Terceiro Estado, apesar de a maioria dos seus cons
tituintes lhes ter expressamente proibido votar por cabeça . Eu teria certa
mente feito o mesmo e com maior j ustificação, dado que o meu cahier não
dizia nada de rigoroso em matéria de votar por ordem ou por cabeça, e o
modo como se delibera é -me perfeitamente indiferente . . . mas não achei
que devesse abandonar a minha Ordem dadas as circunstâncias críticas em
que se encontra . No Palais-Royal, as pessoas falam abertamente de nos
massacrar, as nossas casas estão marcadas para esta mortandade e a minha
porta foi assinalada com um 'P' preto [de proscrit - proscrito] . A chacina
estava prevista para a noite de sexta -feira ou de sábado . Verdade sej a dita,
toda a gente de Versalhes era cúmplice.
A própria C orte esperava, a todo o momento, ser atacada por quarenta
mil rufiões armados, dos quais se dizia terem já saído de Paris . Os Guardas
Franceses recusaram obedecer às ordens; companhias inteiras desertaram
e foram para o Palais -Royal, onde lhes deram bebidas e gelados e os pas
searam em triunfo . Felizmente, o homem em cuj o nome esta conj ura
infernal foi engendrada [Orleães] é demasiado cobarde para ser um vilão.
P or conseguinte, as noites de sexta- feira e de sábado passaram tranquila
mente e no dia 2 7, sábado, o Rei escreveu-nos por intermédio do nosso
S imon S chama 1 CIDADÃOS
Ü VOSSO,
Charles -Elie
10
A Bastilha
Julho de 1 789
1 Genebra . ( N. do T. )
S imon S chama 1 CIDADÃOS
desertavam pela primeira vez: dez passagens por duas fileiras de cin
quenta homens armados com as varetas dos mosquetes. No dia 2 de
Julho, o embaixador britânico relatou que este castigo fora infligido a dois
homens do regimento suíço de Salis- Samade que se tinham conluiado
com alguns guardas franceses amotinados; dois outros foram enforcados.
O problema mais sério era que a insatisfação não se limitava aos pra
ças, tendo-se insinuado nas fileiras dos oficiais de baixa patente . Se havia
um lugar do Antigo Regime em que a realidade social fazia jus às polémi
cas sobre os monopólios aristocráticos e a promoção frustrada era no
Exército . As reformas de Guibert melhoraram a situação do pré mas tam
bém introduziram a disciplina prussiana e a reconfirmação peremptória
da reserva das altas patentes para a "antiga" nobreza . As ordenanças de
Ségur tiveram o intuito de proteger a nobreza mais velha e mais pobre
mas as queixas mais publicitadas continuaram a prender-se com a oferta
de postos regimentais aos filhos mimados das dinastias ricas logo após a
sua saída do colégio. Esta situação irritou os oficiais de carreira e os subal
ternos, que viram toda e qualquer hipótese de ascenderem à casta dos ofi
ciais bloqueada pela nova lei. Não foi, pois, por acaso que a retórica
antiaristocrática fez progressos j unto das patentes mais baixas.
Os praças do Exército Regular terão sido ainda mais receptivos a iden
tificarem-se com os cidadãos do Terceiro Estado. Segundo Samuel Scott,
mais de 8 0 % já tinham tido outra profissão e uma percentagem sur
preendentemente elevada era oriunda dos meios operários urbanos. Por
conseguinte, o Exército Real de linha não era, de todo, uma força campe
sina, estando mais próximo dos trabalhadores dos bairros que tinham
saqueado as oficinas de Réveillon, e viria a compor a maioria dos "con
quistadores " da B astilha. Esta solidariedade improvisada entre as tropas e
o povo seria crucial no dia 1 4 de Julho, quando mais de cinquenta regu
lares se j untaram aos populares no assalto à fortaleza. No entanto, antes
destes acontecimentos começavam a tornar-se comuns os relatos da relu
tância das tropas em fazer uso da força contra os confiscas ou a venda for
çada de cereais.
Esta fraternidade instintiva era ainda mais óbvia entre os Gardes
Françaises. Até à investigação monumental de Jean Chagniot, pensou -se
que os guardas eram mais velhos, que estavam estabelecidos no seio da
população parisiense e que não era raro terem outro ofício para comple
mentar o seu magro pré . Hoj e temos um perfil bastante diferente, mas é
um perfil que torna ainda mais evidente a sua vulnerabilidade à propa
ganda revolucionária. Muitos guardas eram j ovens, oriundos das provín
cias - em especial, de cidades nortenhas como Amiens, Caen e Lille - e
estavam longe de terem assentado . Uma série de reformas implementadas
nas décadas de 60 e 70, século XVIII, vedara-lhes a possibilidade - aberta
aos seus predecessores do princípio do século - de terem lojas ou bancas
325
Nunca existira nenhuma duvida sobre qual era a atracção que mais fas
cinava os clientes no museu de cera do Sr. C urtius. Le Grand Couvert repre
sentava a família real a j antar com o irmão da rainha, José II. Era o ponto
forte de uma exposição que apresentava celebridades e heróis como
Voltaire e o vice -almirante d'Estaing. Todos tinham sido modelados e pin
tados por Peter Creutz (o seu nome alemão de nascimento ) , cuj a carreira
de homem do espectáculo e empresário constitui outra história de sucesso
S imon S chama 1 CIDADÃOS
' Esta operação consistia em cravar parcialmente um espigão de ferro no ouvido para
depois o partir pela parte de fora, impossibilitando o funcionamento da peça em virtude da
obstrução assim criada . ( N. do T )
S imon S chama 1 CIDADÃOS
um para beber, e duas pedras da calçada para fazer uma fogueira" . (Algum
tempo depois, os carcereiros levam-lhe atiçadores e tenazes - mas não
queixa-se ele, morilhos ) . Os seus piores momentos são quando os ovos
das traças eclodem e toda a sua roupa de cama e pessoal se transforma em
"nuvens de borboletas".
Apesar da esqualidez destas condições, é o tormento mental do encar
ceramento - mais do que o físico - que provoca mais sofrimento a Linguet
e que ele comunica com uma originalidade espantosa no seu livrinho. As
suas memórias do cárcere são efectivamente o primeiro relato da psicolo
gia da prisão na cultura ocidental e têm para o leitor moderno uma espé
cie de poder profético que ainda torna a sua leitura perturbante . Michel
Foucault enganou -se redondamente ao pressupor que a categorização dos
presos era uma das técnicas mais repressivas, pois Linguet obj ecta com
toda a veemência exactamente contra a ausência de categorização .
"A Bastilha, como a própria morte", lamenta-se ele, "igualiza todos os que
engole : o sacrílego que meditou na ruína da sua pátria e o valente que
apenas é culpado de ter defendido os seus direitos com um ardor exces
sivo" (ou sej a, ele próprio ) . E o pior era ter de partilhar o mesmo espaço
com aqueles que eram encarcerados por abominações morais.
Tudo o que se prendia com o regime da prisão, mesmo quando pare
cia - superficialmente - minorar a brutalidade, fazia aparentemente parte
de um desígnio: despojar o preso da sua identidade - o "eu" que para os
românticos era sinónimo da própria vida. Aquando da admissão, por
exemplo, os obj ectos potencialmente perigosos - uma categoria que
incluía as tesouras e o dinheiro - eram confiscados e registados em inven
tário para serem devolvidos aquando da libertação, exactamente como o
procedimento moderno. Os motivos para este confisco eram lidos ao
preso, um processo que Linguet considera intencionalmente humilhante :
é a redução sistemática de um adulto racional à dependência de uma
criança. Linguet vê esta condição acentuada por toda a espécie de peque
nas tiranias, tais como a obrigação de ter uma escolta quando se exercita
num patiozinho rodeado de altas muralhas.
Pior ainda era a impossibilidade de comunicar, particularmente irri
tante para um escritor e terrível num cativeiro de duração indeterminada.
Roubada sem aviso - e geralmente de noite - ao mundo dos vivos, a
vítima deste rapto de Estado era privada de todo e qualquer meio de
comunicar a sua existência à família ou aos amigos. Isto não constituía um
problema para a maioria dos detidos, mas Linguet esteve algum tempo
privado de materiais de escrita e foi esta impotência que mais o oprimiu .
A espessura massiva das paredes, que tornava impossível falar com os
outros presos ou ouvi-los, ou mesmo pedir um médico em caso de doença
súbita, acrescia à sensação de um enterro em vida. Os muros da B astilha
tornavam-se a fronteira entre o ser e a inexistência. Quando o barbeiro da
341
prisão foi levado a Linguet, ele disse-lhe a frase que se tornaria famosa:
"Puisque vous êtes le barbier de la Bastille, faites-moi le plaisir de la raser. "6
' "Já que sois o barbeiro da B astilha, fazei- me o favor de a arrasar. " O verbo raser tam
bém significa barbear, mas aqui foi usado no sentido de arrasar; demolir; destruir para se
conseguir um trocadilho . ( N. da R . )
' O Dr. François Quesnay, médico da corte. ( N. d o T. )
S imon Schama 1 CIDADÃOS
lenha dada aos presos no Inverno. O resto é feito com farrapos de cami
sas e roupa de cama, atados e cosidos com um moroso cuidado. A barra
do tripé da mesa é transformada numa faca . Com a sua paixão para atri
buir nomes sagrados aos instrumentos da liberdade (e também como pre
caução contra a sua descoberta ) , Latude chama à escada "Jacob " e à corda
branca a sua "pomba" . Latude apresenta -se nas suas memórias como o
perfeito artesão: frugal, industrioso, engenhoso e puro de coração - um
Rousseau condenado .
Na noite de 2 5 de Fevereiro, os dois presos sobem pela chaminé da cela,
"quase sufocados com a fuligem e queimados vivos", e depois abrem a grade
para subirem para o telhado de uma das torres. De seguida, usam a escada
de sessenta metros para descer para um dos fossos. É ali, contará Latude,
que ele sente remorsos por ter de abandonar as suas ferramentas e a escada
que tão bem o serviram, "monumentos raros e preciosos à indústria
humana e virtudes que foram o culminar do amor à liberdade" . Mas os dois
homens ainda não estão livres. A chuva com a qual contavam para afastar
as sentinelas parou e os soldados voltaram a fazer as suas rondas, armados
com grandes lanternas. A única maneira é por baixo, remover os tijolos um
a um, com o mínimo barulho, até conseguir abrir uma saída. Quando final
mente conseguem abrir um buraco suficientemente grande para se esguei
rarem, a escuridão fá-los cair num aqueduto e quase se afogam.
Depois desta provação, um alfaiate esconde-os durante algum tempo na
abadia de Saint- Germain. Passam depois aos Países Baixos, onde se sepa
ram. Em Antuérpia, Latude encontra um saboiano que, sem mais nem
menos, lhe conta a história de dois homens que fugiram da Bastilha. Um já
foi recapturado e os "isentos" - os polícias que se atravessam livremente as
fronteiras - andam à caça do outro. Latude é capturado em Amesterdão e,
preso num horrível arnês de cabedal, "mais humilhante que o de qualquer
escravo", é devolvido à B astilha. A sua liberdade durou apenas três meses.
Desta vez, as asas do passarão são cortadas. Para que a fuga lhe sej a
impossível, Latude é metido num dos horríveis cachots subterrâneos, e é
neste confinamento de verdadeiro pesadelo que ele descobre novos com
panheiros: as ratazanas . C omparadas com a desumanidade que Latude
sofreu, as ratazanas parecem amorosas. Utilizando bocados de pão, Latude
treina-as a comerem do seu prato e a deixarem-no coçar-lhes o pescoço e
o queixo . Também recebem nomes e algumas, como a fêmea "Rapino
-Hirondelle ", pedem como um cão ou fazem truques em troca dos peda
citos de pão. Esta cena de idílio no Inferno completa-se quando Latude
consegue fabricar uma flauta primitiva com pedaços da grade e assim, de
tempos a tempos, faz uma serenata aos seus amigos roedores, tocando
-lhes uma ária ou uma gavota8 enquanto eles roem satisfeitos os restos da
' Antiga dança francesa a dois tempos, muito em voga nos séculos XVII e XVIII . ( N.da R . )
343
sua comida . São, escreverá ele, a sua "pequena família", vinte e seis, e
Latude estuda o seu ciclo de vida - acasalamentos e nascimentos, lutas e
brincadeiras - com a terna preocupação do guardião e tutor de Rousseau .
Passam os anos. Latude mantém-se ocupado a preparar um proj ecto de
reforma dos alabardeiros e piqueiros do exército francês, tem a certeza de
que interessará ao ministro da Guerra . Privado de papel, usa tabuletas de
pão que humedece com a saliva, achata e depois seca, e para tinta recorre
ao seu sangue diluído em água. Quando o retiram do cachot, fica devas
tado por perder as suas ratazanas mas constrói uma nova família com os
pombos, até que o governador, num acesso de vingança, os manda matar.
Latude volta a fugir em 1 76 5 mas compromete-se de novo devido à sua
incurável inocência, que o leva a apresentar-se em Versalhes no gabinete
de um ministro em cuj a reputação de benevolência confia . É novamente
encarcerado no Castelo de Vincennes. Porém, já com o novo soberano, a
sua história chega ao conhecimento de Malesherbes, que ordena a sua
transferência para o manicómio de Charenton. Latude volta a encontrar
D 'Alegre, o seu velho companheiro de fuga, cuj a sanidade mental foi
completamente destruída pelos , anos de cárcere . Ao ver Latude, D' Alegre
toma-o por Deus e cobre - o de lágrimas e bênçãos.
Latude é finalmente liberto em 1 777 mas a publicação imediata das
suas Mémoires Authentiques de Latude garante -lhe um novo encarceramento,
primeiro no Petit Châtelet e depois na Bicêtre. Latude continua a escrever
relatos das suas muitas provações até que um deles chega às mãos de uma
pobre vendedora de panfletos e revistas, Madame Legros. Ela começa a
fazer campanha em nome de Latude junto das residências dos les Grands,
até que consegue encontrar um público receptivo nas pessoas de Madame
Necker e da própria rainha . Latude é finalmente liberto, em Março de
1 784, e, apesar de ser formalmente "exilado" de Paris, é autorizado a resi
dir na cidade e é-lhe concedida uma pensão de quatrocentas libras france
sas por ano. Ao contrário de d' Alegre, Latude conseguiu passar por vinte e
oito anos de cadeia com o seu juízo praticamente intacto e torna-se uma
celebridade imediata . Elogiado pela Academia Francesa e por Jefferson,
Latude torna -se o beneficiário de um fundo público .
A história de Latude, publicada em muitas formas e edições antes da
Revolução, parecia o triunfo do honnête homme sobre as piores misérias que
o despotismo podia infligir. Juntamente com as memórias de Linguet e de
outros escritos como La Bastille Devoilée, contribuiu para uma campanha
crescente no sentido de, primeiro, restringir as lettres de cachet e o encarce
ramento sumário àqueles que ameaçavam deveras a paz pública, e depois
em prol da pura e simples demolição da Bastilha. Estes planos coaduna
vam-se com os esquemas de embelezamento urbano que eliminavam as
muralhas e as cidadelas medievais para darem lugar a jardins, praças e pas
seios públicos. Em 1 784, como acompanhamento ao memorando de
S imon S chama 1 CIDADÃOS
V 14 DE JULHO DE 1 789
momento De Launay, nas últimas, grita "Deixai-me morrer! ", e desata aos
pontapés, acertando em cheio na virilha de Desnot. É imediatam�nte ata
cado com facas, espadas e baionetas; depois, atiram-no para uma sarj eta e
acabam com ele com uma barragem de tiros de pistola.
A Revolução começou em Paris com cabeças erguidas acima da multi
dão. Cabeças de heróis, feitas de cera, substitutas de comandantes. Tinha
de acabar de forma semelhante: com mais cabeças, mas desta vez troféus
da pelej a . Dão uma espada a Desnot mas ele descarta-a e pega numa faca
de bolso, com a qual corta a cabeça a De Launay. Pouco depois, De
Flesselles, o prévot des marchants, também ele acusado de enganar intencio
nalmente o povo na procura das armas, é morto a tiro ao sair da C âmara
Municipal. As cabeças são espetadas em piques e ficam a ondear e a pingar
sobre a multidão que enche as ruas exultante, rindo e cantando .
Nove dias depois, há mais duas cabeças em exposição: as de Bertier de
Sauvigny, intendant de Paris, e de Foulon, um dos ministros do governo
que teria substituído o de Necker. Tendo Foulon sido acusado de promo
ver a fome, enchem a boca da cabeça com erva e imundícies para tradu
zir este crime particular. O j ovem pintor Girodet acha aquele simbolismo
popular tão pitoresco que desenha cuidadosamente um esboço quando as
cabeças passam à sua frente .
Mais do que as baixas provocadas pelo combate ( que como vimos
foram bastante reduzidas ) , foi esta exibição de sacrifício punitivo que
constituiu uma espécie de sacramento revolucionário. Alguns, que
tinham celebrado a Revolução enquanto se expressou em abstracções
como a Liberté, ficaram em choque com o sangue que escorreu à sua
frente . Outros, de nervos mais sólidos e menos débeis de estômago, assi
naram o pacto moderno segundo o qual o poder podia ser obtido pela vio
lência . Os beneficiários desta negociata enganaram-se a si próprios ao
pensarem que poderiam activar e desactivar a violência como se abre ou
fecha uma torneira e orientar a sua força com uma selectividade exacta .
Barnave, o político de Grenoble que em 1 789 foi um dos membros mais
irredutíveis da Assembleia Nacional, ao ser inquirido se as mortes de
Foulon e B ertier tinham sido verdadeiramente necessárias para alcançar a
liberdade, deu a resposta que, convertida num instrumento do Estado
revolucionário, seria a justificação para a sua morte na guilhotina :
"Mas o sangue deles era assim tão puro?"
2 . O Juramento dos
Horácios (Jacques-Louis
David, 1 78 5 )
3 . Maria Antonieta com os Filhos ( Elisabeth Vigée-Lebrun)
4. Mirabeau
5 . Retrato de Latude
(Antoine Vestier,
1 78 9 )
6. A Tomada da B astilha vista por um dos combatentes, o vendedor de vinhos
Claude Cholat. C omo era típico das gravuras populares, os acontecimentos estão
comprimidos numa única imagem.
7 . Modelo da Bastilha feito com as suas pedras
8. Lafayette como
Comandante da
Guarda Nacional,
( Louis-Philibert
D ebucourt, 1 7 8 9 )
9 . " Para Versalhes ! Para Versalhes ! "; a marcha d a s poissardes para o Palais -Royal
(desenho anónimo )
1 0 . O Juramento da Sala do Jogo da Pé/a (Jacques-Louis David)
1 1 . ( acima, à direita) Pierre
Vergniaud
1 3 . (à direita ) Lepeletier
( desenho de Jacques-Louis
David)
1 4. Lepeletier no Leito de Morte
(Anatole D evosge segundo Jacques-Louis David)
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.a'<> la.. . .D.'berte' a· ;., l:d.i•een.a'an.-r, a'e la- 1vertu. .
.J11V1ra,bde ltL tl�kttru . na:t.�m'hén. Jlobefp�cl•re
d� K
2 2 . Robespierre
Guilhotinando o Carrasco
(anónimo )
353
sivamente por parte da " Society of St. Tammany, de Nova Iorque " , 1 º em
1 792 e Palloy decidiu criar o que esperava ser um "Museu da Liberdade"
-
No dia 1 4 de Julho de 1 789, o diário de Luís XVI apenas tem uma pala
vra : "Rien " (Nada ) . Os historiadores costumam ver nisto um sintoma
cómico do desgraçado afastamento do rei da realidade política, mas não se
trata disso - de todo . O diário era menos um diário do que uma das suas
implacáveis listas de presas. Tendo o seu passatempo predilecto sido mais
ou menos interrompido de forma permanente, não poderia ter havido
uma expressão mais eloquente da sua triste situação do que "Rien" .
É certo que, e m grande medida, ele fora o causador d o seu próprio
infortúnio. A sua popularidade pessoal, especialmente fora de Paris, ainda
era enorme, e mesmo depois do Juramento da Sala do Jogo da Péla ele
teve muitas oportunidades para a explorar, como Mirabeau e Necker
tinham querido que fizesse, e para criar uma autêntica monarquia cons
titucional. Desperdiçou-as a todas. Pior ainda, Luís XVI revelou-se fraco e
submisso, como depois da séance royale, ou traiçoeiro e reaccionário, como
na escalada militar até à exoneração de Necker.
Na noite de 1 4 de Julho, o visconde de Noailles, cunhado e camarada
revolucionário de Lafayette, deu conta dos acontecimentos do dia em
Paris à Assembleia Nacional. Os deputados decidiram passar a informação
" C urtius refere -se assim ao cemitério da Madeleine porque lá tinham sido sepultados
numa vala comum 22 girondinos guilhotinado:s .no dia 3 1 de Outubro desse ano. (N. do T. )
'·-·f!i_��r.
359
Dizei ao rei que as hordas estrangeiras que nos cercam foram visitadas por
príncipes, princesas e favoritos de ambos os sexos que os elogiaram . . . durante
toda a noite, esses satélites do estrangeiro, empanturrados com ouro e vinho,
profetizaram nas suas ímpias canções a escravidão da França e a destruição da
Assembleia; dizei-lhe que . . . os cortesãos dançaram músicas bárbaras e que foi
uma cena similar que antecedeu o massacre de São Bartolomeu . . .
não fazia segredo d e que contava com uma espécie d e aliança entre o s regi
mentos franceses leais e forças ainda indeterminadas ( mas com toda a pro
babilidade, austríacas) para vencer a Revolução. Não lhe teria passado pela
cabeça que seriam necessários quinze anos para alcançar essa vitória.
No dia seguinte, 1 7 de Julho, Luís XVI fez-se à estrada para Canossa. 1 2
L a Rochefoucauld-Liancourt exortara -o a demonstrar a s u a boa vontade
aparecendo em Paris, mas foi só depois das amargas constatações feitas no
conselho, no dia anterior, que o rei aceitou o inevitável. De qualquer dos
modos, a questão do governo forçara -lhe a mão. A recondução de Necker
e a demissão do governo de Breteuil tinham sido anunciadas e provocado
enorme regozij o, e as tropas tinham começado a desmontar as tendas no
Campo de Marte e a retirar para S evres - onde setenta e cinco soldados
desertaram de imediato .
Não foi a última vez que Luís XVI deu mostras, numa situação de total
impotência, de uma dignidade que lhe faltou nos seus poucos momentos
de afirmação pessoal. Sem revelar nenhum sinal de pânico, tomou dispo
sições para a continuação da governação régia caso não regressasse. Fez o
seu testamento e conferiu autoridade a Provença, o único dos príncipes
reais que decidira permanecer em França, como tenente -general do
Reino . O rei orou na capela real com a família e depois partiu, vestido
num simples fraque sem os ornatos habituais da maj estade . A carruagem,
tirada por oito cavalos pretos, também não tinha qualquer decoração.
O rei era precedido por um pequeno destacamento da sua guarda pessoal,
em grande inferioridade numérica perante a escolta da milícia de
Versalhes, de uniformes improvisados e ostentando cocares. Seguiam-nos
cerca de cem deputados da Assembleia e uma enorme multidão de habi
tantes de Versalhes, que cantava e gritava " Vive le roi" e " Vive la nation ! ",
brandindo piques, mosquetes e podões .
O tempo, invariavelmente descrito pelos contemporâneos como se
fosse um actor revolucionário, foi cúmplice da tristeza real. O astro solar
que resplandeceu sobre a procissão até Paris anunciou o eclipse da fanta
sia do Rei Sol. Luís XIV construíra Versalhes como retiro de fuga às restri
ções da capital, como um lugar onde podia ditar a sua vontade apolónia
rodeado de pedra, água, rituais e ícones. Em 1 77 5 , aquando da sua coroa
ção, em Reims, Luís XVI deveria ter supostamente iniciado uma nova
idade de iluminismo solar. Mas o sol fora derrubado.
QÚe tipo de rei deveria ele passar a ser? Onde quer que fosse, a res
posta era sempre a mesma : não um Luís XIV, mas sim um Henrique IV.
O culto do primeiro Bourbon, que pusera fim às Guerras da Religião e
fora assassinado por um fanático católico, estava a atingir proporções
mente em penitência para pedir ao papa Gregório VII a anulação da sua excomunhão. (N. do T. )
S imon S chama 1 CIDADÃOS
Escolhas
11
não foi de todo o que a maioria das pessoas desej ava. Pelo contrário, tal
como os cahiers tinham frequentemente mostrado, o que as pessoas que
riam era mais e não menos policiamento. As repetidas invocações do
augusto e benévolo nome do rei por indivíduos que ameaçam praticar ou
que cometem actos de violência sugerem quão profunda era a sua apreen
são face ao vazio criado pelo colapso do poder régio. As pessoas que ape
drejavam com satisfação as carruagens d o s intendants d e partida eram a s
mesmas q u e ansiavam pela restauração d e uma grande autoridade pater
nal que as alimentasse e protegesse dos abusos dos subalternos. Neste sen
tido, a violência popular de 1 789 pelo menos fora de Paris - não foi em
-
II PODERE S DE PERSUASÃO,
JULHO - SETEMBRO
B ertier já não existe; a sua cabeça não passa de um coto mutilado separado
do corpo. Um homem, oh ! , deuses, um homem, um bárbaro arranca-lhe o
coração das entranhas palpitantes . C omo posso dizer isto? Ele está a vin
gar- se num monstro, no monstro que lhe matou o pai. C om o sangue a
escorrer-lhe das mãos, ele parte para oferecer o coração, ainda fumegante,
perante os olhos dos homens de paz reunidos neste augusto tribunal da
humanidade. Que cena horrível ! Tiranos, ponde os vossos olhos neste
espectáculo terrível e repugnante. Estremecei e vede como vós e os vossos
sereis tratados. Este corpo, tão delicado e tão refinado, banhado em perfu
mes, é horrivelmente arrastado pela lama e pelo empedrado. Que terríveis
lições, déspotas e ministros ! Teríeis alguma vez acreditado que os Franceses
tinham tamanha energia ? ! Não, não, o vosso reinado acabou . Tremei, futu
ros ministros, se sois iníquos . . .
Franceses! Vós exterminais os tiranos ! O vosso ódio é repugnante, medo
nho . . . mas sereis finalmente livres . Eu sei, meus caros concidadãos, como
estas cenas repugnantes afligem as vossas almas . . . mas ponderai como é
ignominioso viver como um escravo. Ponderai quais os castigos que devem
ser infligidos pelo crime de lese-humanité. Ponderai, finalmente, que bem,
que satisfação, que felicidade esperam por vós e pelos vossos filhos . . .
quando o templo augusto e sacro da liberdade for vosso.
primeiro ano, tornou -se evidente que a violência não era apenas um
efeito secundário infeliz do qual os Patriotas esclarecidos podiam desviar
selectivamente o olhar; era a fonte de energia colectiva da Revolução. Foi
o que tornou a Revolução revolucionária .
Ninguém se apercebe deste facto inquietante mais depressa do que
Lafayette . Na qualidade de querido das multidões, é a ele que é oferecida
a dádiva votiva dos dísjecta membra de Bertier. Lafayette ignora-a com o
comentário seco de que ele e o presidente da câmara estão demasiado ocu
pados para receberem mais "delegações", mas o facto de o comandante da
Guarda Nacional ter sido impotente para impedir a execução sumária de
Bertier constitui uma prova alarmante de que para a Revolução de Paris
não descambar rapidamente para uma espiral de anarquia sangrenta será
necessário algo mais do que a elevada Declaração dos Direitos do Homem
( na qual Lafayette ainda está a trabalhar com Jefferson) .
Sylvain B ailly também s e terá sentido ultraj ado pela brutalidade que
foi forçado a testemunhar. Deve ter sido chocante para a sua fé iluminista
na civilidade do homem ver- se confrontado com os resultados do aspecto
mais bestial do homem a balouçar nas lanternes. No imediato, Bailly é con
frontado com necessidade de impor alguma calma à governação da capi
tal, mas as suas intenções são frustradas pela truculência das assembleias
eleitorais de distrito. Tal como a assembleia de eleitores que se reunira na
Câmara Municipal permaneceu em existência, o mesmo aconteceu com
as suas constituintes das ses senta "mini- república s " formadas na
Primavera . Organizaram-se em associações de debate e fazem reuniões
regulares durante as quais analisam, de forma bastante crítica, as medidas
aprovada pelo comité de Bailly, em especial as relativas a duas questões
que durante os próximos cinco anos estarão no centro da política pari
siense : o pão e a polícià. As assembleias mais articuladas - principalmente
a dos Cordeliers, na margem esquerda - vêem-se já como reencarnações
dos democratas atenienses, como células primárias da liberdade às quais
os representantes eleitos têm de responder e ceder o passo. Ora é precisa
mente a liberdade com que os jornalistas e os oradores de café criticam as
decisões tomadas na Câmara Municipal e em Versalhes que leva Sieyes a
querer que a Assembleia Nacional repudie o "mandato imperativo" . Se os
deputados forem obrigados a ceder aos seus constituintes em toda e qual
quer matéria, a Assembleia Nacional não passará de um grupo de correios
glorificados a correrem permanentemente dos e para os distritos. Bailly
procura travar esta tendência para uma espécie de democracia rousseau
niana primitiva instruindo cada uma das sessenta assembleias a eleger
dois representantes para um órgão a estabelecer da Câmara Municipal e
que seria conhecido por C omuna, mas depois de as tabernas terem encon
trado a sua voz e os prelos de esquina os seus leitores - e enquanto per
sistir a suspeita de que os homens que ocupam o poder conspiram para
387
Coração de Leão, depois da cruzada - entre elas, " O Richard mon roi, l 'univers
t 'abandonné" e a família real é persuadida a aparecer brevemente, o que
-
C antavam as poissardes:
Actos de fé
Outubro de 1 789-Julho de 1 790
1 HISTÓRIA VIVA
OCEANO
ATLÂNTICO
E scolhei ! Não será deveras necessário que poucos pereçam para que a
massa do povo se salve? . . . Atacai, destruí sem piedade estas miseráveis víti
mas, lançai-as ao abismo . . . O quê? O horror faz-vos recuar? Homens
inconsequentes, homens pusilânimes...
Contempladores estóicos dos males que esta catástrofe vomitará sobre a
França; egoístas impassíveis que j ulgam que as convulsões do desespero e
da miséria passarão como tantas outras... tendes assim tanta certeza de que
tantos homens sem pão vos deixarão em paz para saboreares pratos dos
quais não haveis reduzido o número nem a delicadeza? Não, perecereis e
na conflagração universal que não temeis atear a perda da vossa "honra "
não poupará um único dos vossos detestáveis prazeres.
II APOSTASIA
Quem poderia aj udar Mirabeau no seu plano sem pés nem cabeça?
Mirabeau virou-se naturalmente para os seus colegas do Clube de 1 789
para depor Necker e formar um governo alternativo de salvação nacional.
Porém, as suas escolhas - Dupont de Nemours, Ségur, Panchaud, Talleyrand
- pareciam uma reunião da "liga dos j ovens cérebros de Calonne" . A única
excepção era Lafayette. Quanto mais o general se tornava uma figura de
culto popular, menos Mirabeau gostava dele, e chamava-lhe ironicamente
" Gilles César" .' Contudo, era obrigado a reconhecer que o assentimento de
Lafayette seria indispensável para a legitimação do "golpe" que estava a pla
near. Aliás, diga-se de passagem, a escolha mais surpreendente de Mirabeau
foi a de Talleyrand para ministro das Finanças .
Possivelmente só u m endividado crónico como Mirabeau teria consi
derado esta pasta adequada, m a s Talleyrand, não obstante os s e u s gostos
dispendiosos, não era um inocente no tocante ao dinheiro . C onstruíra
uma reputação pública como gestor e contabilista dos bens da Igrej a, e foi
este conhecimento directo e profundo do capital eclesiástico que o levou
a conceber uma solução audaciosa para financiar a Revolução . À seme
lhança de Mirabeau, Talleyrand reconhecia plenamente a necessidade de
dar força a um E stado executivo viável para a nova França não se tornar
uma criatura impotente do capricho legislativo . O seu instinto e a sua for
mação eram burocráticos, racionais e voltaireanos . Mais do que uma
nação de cidadãos virtuosos unidos num abraço fraterno, Talleyrand que
ria uma nação- estado rej uvenescida, um império da razão onde quem
mandava era o senso e não a sensibilidade . Mas Talleyrand também com
preendia que os próprios poderes que tornavam Mirabeau admirável o
destituíam amiúde de senso comum. Tal como o seu amigo, Talleyrand
2 Além de foneticamente parecido com "Jules", gilles significa "pateta ", "tanso". ( N. do T )
S imon Schama 1 CIDADÃOS
unne bonne vie bourgeoise, uma mesa excelente; todos os prazeres permitidos
aos homens do mundo; todas as guloseimas permitidas pela opulência . . .
dão-se com as melhores companhias; recebem um grande círculo de ami
gos em residências imensas e aposentos soberbos; vestem-se à moda,
mesmo por debaixo do hábito; têm belos livros e quadros . . . caçam, j ogam
a dinheiro e usufruem de todo o tipo de luxo e entretenimento; hoj e em
dia, os pretensos pobres de Cristo são exclusivamente conhecidos como os
queridos da riqueza e da fortuna .
a freiras que desej aram partir, com a excepção das do C onvento de Sainte
-Madeleine, em Paris, onde algumas organizaram um protesto formal
contra o " despotismo " da abadessa, uma Montmorency-Laval. Uma res
posta muito mais típica foi a declaração das carmelitas de Paris, que pro
testaram que "se existe felicidade na terra, gozamo-la no abrigo do
santuário " . C om os monges aconteceu a mesma coisa, nem todos estavam
desej osos de fugir. Em Setembro de 1 789, os beneditinos de Saint-Martin
-des - C hamps tinham votado abrir mão dos seus bens em troca de pensões
pagas pelo E stado, mas em 1 790 decidiram manter os seus votos monás
ticos. No entanto, o espectáculo mais dramático teve lugar no coração da
renovação monástica do século XII, as grandes abadias cistercienses de
Clairvaux, Cluny e Cí:teaux. Dos imensos e belos refeitórios, bibliotecas e
dormitórios góticos, criados como uma barreira auto-sustentável contra as
corrupções do mundo, saiu um grande êxodo de cidadãos tonsurados de
regresso ao seio dos seus irmãos mortais.
A invasão da autonomia do clero pelo Estado foi sentida em todos os
aspectos da vida eclesiástica. Antes das primeiras vendas de bens, em
Dezembro, foram enviados comissários às casas dos capítulos diocesanas para
inspeccionar e selar os documentos referentes aos títulos para não serem
substituídos por papéis falsos nem transferidos clandestinamente para tercei
ros. Em Março e Abril de 1 790, chegaram aos conventos e mosteiros mais
homens de faixa tricolor para garantir que os decretos da Assembleia eram
comunicados e respeitados pelos abades e madres superioras.
Em Fevereiro, a Revolução recrutou o próprio púlpito. No dia 9, o
abade Grégoire, cura da Lorena e advogado da emancipação dos Negros e
dos Judeus, deu conta da ocorrência de tumultos generalizados nos cam
pos do Sudoeste, uma região muito acidentada e cortada por rios. No
Quercy, no Rouergue e no Tarn, os camponeses estavam a cometer actos
de violência porque pressupunham que os decretos de 4 de Agosto
tinham abolido todos os direitos e taxas pagáveis ao senhor, em vez de
terem em conta as importantes e complexas distinções cuidadosamente
feitas pela Assembleia entre serviços pessoais e obrigações transformadas
em rendas . Grégoire disse que uma grande parte desta confusão advinha
da ignorância da língua francesa numa região onde se falavam um calão
local e dialectos da Zangue d 'oc. C ontudo, em Sarlat, na arborizada
Dordonha, o bispo tinha dado um bom exemplo ao publicar uma circular
pessoal explicativa dos decretos e aproveitando os sermões para esclarecer
quaisquer mal- entendidos - tudo de um modo muito pastoral.
As conclusões de Grégoire foram, primeiro, que um dos deveres pri
mários da Revolução deveria ser a unificação da nação através de uma
campanha agressiva de ensino da língua francesa, apoiada pela propa
ganda - uma campanha que ele liderará . Mas para já, o clero tinha de ser
recrutado para aj udar o povo, especialmente no campo, a compreender
S imon Schama 1 CIDADÃOS
foi representada no dia seguinte, para uma casa cheia de guardas nacionais
ruidosamente entusiásticos.
Mas o drama não chegara ao fim. Em Setembro de 1 790, não obstante
a sua enorme popularidade dentro e fora dos palcos, Talma foi suspenso
do Théâtre de la Nation por indisciplina . No entanto, o número dois da
facção patriota da companhia, D ugazon, aproveitou de novo a ribalta
para proferir um discurso político no qual defendeu Talma como um
cidadão -actor exemplar. O público ovacionou -o, cantou canções revolu
cionárias, destruiu cadeiras, empilhou-as e subiu por cima delas para o
palco e para os camarotes . D ugazon e a mulher j untaram-se a Talma num
breve exílio heróico do teatro, até que foram readmitidos por imposição
de Bailly, o presidente da C âmara Municipal. No dia 28 de S etembro de
1 790, Carlos IX subiu novamente à cena .
Ao mobilizarem o público como tropa para os ajudar a travar as suas
batalhas de bastidores, Talma e os D ugazons romperam a linha do proscé
nio que dividia o teatro da política. Tal como David acabou por ver os seus
quadros, de alguma forma, como participantes na Revolução, Talma via a
sua retórica como instrumento de galvanização das virtudes públicas e de
dissolução das barreiras que separavam os líderes dos liderados. A partir
dessa altura, os actores vão ser participantes regulares nas cerimónias
revolucionárias e as ruas serão o cenário do teatro político . Por exemplo,
quando Dugazon se quer manifestar contra os privilégios continuados da
Comédie -Française, veste oito actores de lictores, enche quatro grandes
cestos com os adereços de Talma - capacetes, togas, couraças - e conduz
o seu exército romano numa lenta procissão até ao Palais-Royal, onde ful
mina contra os patrícios.
Em Paris, pelo menos, os limites da participação política estavam em
franca expansão, pressionando não só as convenções do Antigo Regime
como também as que o novo regime de 1 7 89 tinha estabelecido para sua
própria segurança . Este processo foi encorajado pela retórica da liderança
revolucionária, que tinha falado da nação, da patrie e da cidadania em ter
mos indefinidamente inclusivos, como se cada francês e cada francesa
tivessem um interesse directo nessa família política alargada. Agora, os
jornais repetiram estas receitas universais não só na linguagem dos cultos
mas também na fala das ruas, dos mercados e dos cabarets. Por conse
guinte, as expectativas populares traduziram-se nas múltiplas utopias que
eclodiram nas cidades e nos campos: quintas sem rendas; igrejas sem bis
pos nem monges; exército sem recrutadores; E stado sem impostos. E a
verdade é que o estado curiosamente transitivo do país, em processo de
constituição pela Assembleia, reforçou estas expectativas irrealistas .
N ã o tardou q u e as contradições profundamente enraizadas n a perso
nalidade da Revolução Francesa se transformassem em hostilidades
declaradas. D e facto, enquanto as expectativas de um milénio de cidadãos
429
IV E S PAÇ O S SAGRAD O S
velho de cada regimento . A chuva não pára de cair e às oito, quando ini
ciam o desfile numa coluna com oito homens de frente, é j á torrencial.
Indiferentes aos uniformes encharcados e aos esguichos das botas, os
federados marcham para oeste, pela Rue de Saint-Denis e depois pela de
Saint-Honoré, ao som de salvas de artilharia e de bandas militares. Apesar
do tempo miserável, as multidões são enormes e atiram flores aos solda
dos. As mulheres e as crianças oferecem-lhes carnes fumadas e tartes e
cantam-lhes " Ç a ira".
Na Praça Luís XV, j untam - s e - lhes os deputados da Assembleia
Nacional. A procissão, imensamente longa, chega ao C ampo de Marte por
volta da uma da tarde. O arco triplo ergue-se vinte e cinco metros acima
do anfiteatro, encimado por uma plataforma perigosamente pej ada de
espectadores . A chegada da coluna é saudada pelo clamor de quatrocen
tas mil pessoas, num crescendo que provoca certamente um arrepio na
espinha aos loj istas, advogados ou farmacêuticos de província encharca
dos mas resplandecentes nos seus uniformes azuis e brancos da Guarda.
No centro do campo, vê-se o "Altar da Pátria", acabado em falso mármore
e decorado com símbolos edificantes . Num lado, uma mulher simboliza a
constituição; no outro, os guerreiros que representam a pátria surgem de
braço estendida, na pose revolucionária aprovada. Palavras de ordem
anunciam que "todos os mortais são iguais; distinguem-se pela virtude,
não pelo nascimento / Em todos os E stados, a Lei deve ser universal e os
mortais, sejam eles quem forem, iguais perante ela" . No lado oposto, a
imagem da Fama declara imortais os decretos da Assembleia e pede às
pessoas que pensem nas três "palavras sagradas que as protegem" :
rir, mas a verdade é que todas as indicações são de que ambos levaram a
ocasião bastante a sério. A Constituição C ivil do Clero fora promulgada
pela Assembleia Nacional apenas dois dias antes, a 1 2 de Julho, e
Talleyrand, na qualidade de seu maior defensor, estava ciente da necessi
dade de proporcionar uma espécie de religião revolucionária inspiradora
que libertasse as paixões emotivas e até místicas de que a Igreja C atólica
dependia para ligar os fiéis à Revolução. E enquanto Talleyrand era
ensaiado por sua eminência Mirabeau, uma cantata extraordinária, meio
sagrada, meio profana, chamada Prise de la Bastille, era executada em Notre
Dame. Integrava actores da trupe Montansier, cantores da Ó pera e do tea
tro italiano e até artistas dos teatros de variedades Nicolet e Ambigu
-Comique, recrutados para os papéis de patriotas beligerantes . A par de um
genuíno coro religioso, fazia uso de uma orquestra militar, de canhões e de
excertos do Livro de Judite gritados por cima da barulheira. Era o tipo de
coisa que Talleyrand considerava boa para moralizar as gentes.
Mas Talleyrand, encharcado que nem um pinto, está a ter dificuldades
para preservar a dignidade da ocasião. O vento apaga constantemente os
queimadores de incenso e os seus paramentos ensopados pesam uma
tonelada. Por baixo da mitra que escorre água para o seu elegante nariz,
o pontífice da Federação observa sombriamente a interminável fila de
guardas que continua a entrar na arena . "Mas será que estes gajos nunca
mais acabam de chegar? " ) , diz ele para o seu acólito, o abade Louis, que
virá a renunciar aos seus votos e será ministro das Finanças no Império e
na Restauração. Por fim, tudo está a postos e Talleyrand prossegue com a
missa e com a bênção das bandeiras, erguendo benignamente os braços
sobre os estandartes ondulantes . " Cantai e chorai de alegria", diz ele ao
seu rebanho, "a França renasce hoje . "
O resto d o dia pertence a Lafayette . Afinal d e contas, é para ele que o
país inteiro se vira como corporização do cidadão - soldado, não só como
seu comandante mas também como o seu heróico exemplar. Além do
mais, Lafayette, na qualidade de agente de uma espécie de consenso cons
pícuo, sabe muito bem que a viabilidade da monarquia constitucional
requer manifestações teatrais da vontade patriótica . Em finais de Outubro
de 1 789, insistiu na imposição da lei marcial em Paris para evitar injusti
ças como o linchamento sumário de um padeiro erroneamente acusado
de enganar na pesagem, mas transformou a ocasião numa cerimónia
especial, conseguindo que o rei fosse o padrinho das crianças órfãs numa
demonstração literal da sua benevolência paternal. Em Abril, Lafayette
levou o herói da independência da C órsega ( aniquilada pela França em
1 7 6 9 ) , o general Paoli, a Paris para lhe mostrar que os seus conterrâneos
nada tinham a recear dos " irmãos" da nova França . Visitaram juntos o
local onde se erguia a Bastilha e passaram em revista um desfile de guar
das nacionais numa demonstração de fraternidade.
439
Partidas
Agosto de 1 790-Julho de 1 791
I AS MAGNITUDE S DA MUDANÇA
E sta mistura do velho com o novo repetiu -se por toda a França . No
papel, a transformação não poderia ter sido mais abrupta nem mais abran
gente . Enquanto órgãos corporativos, os Parlamentos foram pura e sim
plesmente substituídos pelos decretos legislativos da Assembleia
C onstituinte, e a antiga jurisdição dos bailiados pelas dos j uízes de paz e
dos tribunais distritais e departamentais, todos eles eleitos. Do mesmo
modo, a natureza remendada e complexa da governação, com fronteiras
sobrepostas que diferiam da administração civil, para os governos milita
res e destes para as dioceses eclesiásticas, foi engolida por uma unidade
aglutinadora: o departamento . Ainda mais espantosa foi a eliminação das
hierarquias de funcionários régios nomeados - dos conselheiros munici
pais ou " cônsules" aos intendentes e procuradores - em benefício de fun
cionários eleitos. Na verdade, o " cidadão activo " consciencioso de 1 790 foi
bombardeado com eleições, sendo instado a escolher sucessivamente o
presidente da câmara e os conselheiros municipais, os funcionários dos
conselhos distritais e departamentais, os juízes de paz e dos tribunais e
finalmente, no fim do ano, um bispo constitucional e o cura local.
O aparecimento dos " homens novos " - médicos, engenheiros e advo
gados em grande número e um ou outro comerciante ou artesão - na pri
meira vaga de instituições criadas pela Revolução deveu -se parcialmente
à enorme expansão dos cargos electivos. Pelo menos nesta resposta aos
apelos dos cadernos - mais e não menos governo -, os notáveis revolu
cionários cumpriram plenamente o seu dever. C ontudo, tal como aconte
ceu em Grenoble, esta expansão súbita da procura de funcionários
Simon Schama 1 CIDADÃOS
experientes significou que por todo o país muitos dos que se apresentaram
para preencher as vagas eram ex-funcionários do Antigo Regime . Não era
frequente constituírem uma maioria mas ocuparam amiúde os cargos mais
influentes, tais como presidente da câmara ou do directório municipal, e
um número considerável eram nobres ci-devants. As listas de ocupações que
os historiadores costumam apresentar quando indagam sobre as profissões
dos homens de 1 790 e 1 79 1 ignoram frequentemente este facto porque
"aristocrata" ou "nobre " já se tinham tornado sinónimos de "traidor" e
muitos ex-conselheiros dos Parlamentos apresentaram-se simplesmente
como " advogados " - que o eram. Em muitos casos, promulgada a lei de
abolição dos títulos hereditários, tinham obviamente descartado as suas
nomenclaturas aristocratas: D 'Eprémesnil tornou-se simplesmente o
Monsieur Duval e o seu adversário à esquerda, "Huguet de Sémonville,
passou a ser o Monsieur (barão com Napoleão) Sémonville.
Uma inspecção mais minuciosa dos novos regimes em muitas cidades
de província, grandes e pequenas, revela que muitas destas relíquias do
Antigo Regime estavam estrategicamente colocadas. Em Toulouse, por
exemplo, a reputação notoriamente inflexível da aristocracia local - os
capitouls1 não impediu alguns de aderir ao novo regime . O funcionário
-
1Os representantes eleitos pelos diversos bairros de Toulouse para integrarem o conse
lho municipal. Os candidatos tinham de ser do sexo masculino, ter mais de vinte e cinco
anos de idade, ser casados e católicos, possuir uma casa na cidade e exercer uma profissão
honrosa (advogado, procurador, comerciante ou estribeiro ) . ( N. do T. )
445
Mas isto não é afirmar que nada de importante mudou como resultado
directo da primeira fase da Revolução Francesa. As liberdades consagradas
449
como se via nas personagens de Talma nos palcos. "Este penteado", insis
tia o autor, " é o único adequado aos republicanos: é simples, económico
e requer pouco tempo e cuidados, o que garante a independência das pes
soas; é um testemunho de uma mente dada à reflexão e suficientemente
coraj osa para desafiar a moda . "
O jornal d e B rissot não era o único a procurar reforçar a s notícias com
editoriais, sermões políticos e episódios exemplares destinados a criar lei
tores não só curiosos como também moralmente alerta . De todos os meios
de comunicação social através dos quais se constituiu um novo público
político, a imprensa terá sido o mais poderoso. A magnitude da sua
expansão pós- 1 78 9 foi verdadeiramente espantosa. Antes da Revolução,
existiam em França cerca de sessenta jornais - sendo que, como subli
nhou Jeremy Popkin, as gazetas estrangeiras francófonas constituíam um
complemento importante . Em Agosto de 1 792, só em Paris, havia quase
quinhentos j ornais. É claro que nem todos eram importantes ou se
podiam gabar de sustentabilidade ou de uma circulação mais do que
modesta mas os grandes sucessos, tais como os Annales Patriotiques de
Carra, tinham tiragens de oito mil exemplares, e a imensamente popular
Feuille Villageoise do abade Cérruti, que se pretendia um manual político
para o campesinato, chegava a um público muito maior. Segundo Jacques
Godechot, o jornal de Cérruti, através das muitas assinaturas subscritas
pelos clubes políticos, poderá mesmo ter tido duzentos mil leitores - um
número que pertence ao reino da optimização editorial.
O que a explosão da imprensa política teve de impressionante não foi
o aumento enorme da circulação, mas sim a gigantesca gama de estilos,
tons e formatos adaptados, das entediantes e dignas reportagens da
Constituinte no Patriote Français de B rissot ao grosseiramente sumarento
e muito mais legível L 'Orateur du Peuple. Alguns j ornais, como o de Marat,
capturavam as atenções através de ferocidade implacável das suas diatri
bes e das ondas de indignação e pânico que eram capazes de desencadear
apontando para ninhos de traidores e conspiradores, quais vedares políti
cos armados de varinhas acusatórias. Outros, ainda mais experimentais,
como o Fere Duchesne de Hébert, e publicações efémeras como o apopléc
tico Tailleur Patriotique, procuravam reproduzir a voz autêntica do bon bou
gre - o homem desbocado das tabernas e dos mercados, com a cabeça
envolvida pelos fumos do álcool e do tabaco e a língua a ferver com exple
tivos dirigidos à Autri- C hienne ( à puta austríaca, ou seja, à rainha ) . O seu
atractivo era a violência verbal; por exemplo, o Alfaiate Patriótico descrevia
habitualmente os clientes que lhe apareciam para tirar as medidas como
aristocrates à pendre ( aristocratas para enforcar) .
Os j ornais de maior sucesso procuravam também ser instrumentos para
converter, eliminar as dúvidas dos indecisos, pregar aos não iluminados e
informar aqueles que tinham dificuldade em compreender os decretos da
453
' Sociedade Fraterna do Palais-Cardinal, que se reunia no convento dos Mínimos. (N. do T)
S imon Schama 1 CIDADÃOS
que era o confidente mais íntimo da rainha, que Mirabeau ansiava servir
o rei, e em Março de 1 7 90 fora dada luz verde para sondar as intenções
de Mirabeau. Em finais de Maio, Mirabeau, de contrato assinado, travou
a sua primeira batalha na C onstituinte pela preservação de um papel para
a monarquia nas decisões sobre a paz e a guerra .
E ra imprudente para Mirabeau constar da folha de salários da monar
quia precisamente quando a publicação do Livre Rouge, expondo as pen
sões secretas do Antigo Regime, estava a causar tanta celeuma. O seu
estilo de vida, subitamente tão melhorado, não podia escapar às atenções
gerais, em especial ao coincidir, no dia 2 1 de Maio, com um discurso apai
xonado em prol da manutenção dos poderes régios em matéria de decla
rações de guerra . Pouco depois, começou a circular em Paris um panfleto
escrito por Lacroix que asseverava ter descoberto a sua "Traiçã o " . A teme
ridade e o descuido de Mirabeau só se explicam pelo facto de ele acredi
tar que a sua conduta era pura, que estava a receber honorários por
conselhos desinteressados e em total conformidade com os princípios polí
ticos que sempre tinha defendido .
No cerne desses princípios estava o estabelecimento de uma monar
quia constitucional que aceitasse as conquistas de 1 789 mas sem se resig
nar a ser um instrumento passivo da vontade de uma legislatura .
Mirabeau era, como escreveu a La Marck, a favor "do estabelecimento da
ordem, não da velha ordem" . A premissa da sua política era, pois, que a
monarquia devia pôr de lado qualquer ideia de namoro com a contra
-revolução e dizer adeus à hipótese de restaurar uma sociedade de ordens
com instituições corporativas como os Parlamentos. Na sua óptica, uma
justiça livre e socialmente cega e a liberdade de imprensa também eram
irreversíveis. Além disso, o povo deveria aceitar a C onstituição Civil do
Clero como a extensão lógica do galicanismo e como meio absolutamente
indispensável para evitar a bancarrota . Porém, ao mesmo tempo, teria de
existir um executivo genuíno, com liberdade para nomear os ministros -
e não obstante o decreto promulgado pela Assembleia em 7 de Novembro
de 1 789, Mirabeau continuava a defender que os ministros deveriam ser
responsáveis perante a legislatura e escolhidos no seio dos deputados para'
evitar uma luta constante entre os dois braços da constituição. A menos
que a C oroa tomasse medidas urgentes no sentido de recuperar alguns
poderes de governação com significado, a soberania quase autónoma da
legislatura tornar-se-ia um facto consumado. "O povo acabará por se acos
tumar a outro tipo de governo e a monarquia, completamente nula, cons
tantemente vilipendiada e, ainda assim, muito cara, não tardará a parecer
um fantasma" .
Mirabeau gizou estas posições, bem como a s suas implicações políticas
e tácticas, em dois documentos, um em Outubro de 1 790 e o outro, um
memorando muito mais completo dirigido a Montmorin, o ministro dos
461
mais firmemente sob o controlo do governo para que o rei não sej a refém
de um exército parisiense.
Já que não há nada a fazer acerca da efervescência política de Paris, o
melhor é deixá-la andar. Quanto mais ofensiva se tornar e quanto maior
for o seu apetite de anarquia e militância, maior será o fosso com as pro
víncias que presume governar em nome da "Nação" . Com a acção do
governo paralisada por ameaças de insurreições parisienses, as províncias
persuadir- se-ão da necessidade de um poder público mais forte e verão
com ressentimento o monopólio da capital. É uma das previsões mais
prescientes de Mirabeau, ainda mais impressionante por ser feita na altura
em que a ficção soberana de uma nação unida acabou de ser consumada
no C ampo de Marte .
Para a truculência da Assembleia, a solução é similar. Deixe -se a
Assembleia descredibilizar- se a si própria com a sua polarização irreme
diável entre contra- revolucionários fátuos e zelotas impossíveis . Quando
a Assembleia conseguir finalmente tornar a governação impossível, o rei
poderá, numa iniciativa audaciosa, convocar eleições para uma nova
legislatura com poderes para rever uma constituição que é, para
Mirabeau, perigosamente disfuncional. Trata-se de outra j ogada táctica
arguta recomendada por Mirabeau e que não se prestará a imputações de
contra- revolução. Ele defende que os deputados à nova assembleia ape
nas possam ser elegíveis nos círculos eleitorais onde residem, o que na sua
óptica impedirá os militantes dos clubes de Paris de serem eleitos repre
sentantes de Arras ou Marselha, por exemplo. Até se mudar para outro
lugar, esta segunda assembleia deverá ser provida de uma força militar
própria para a libertar da sua dependência da Guarda Nacional de Paris.
O s proj ectos de Mirabeau encerram muita sabedoria e muita loucura .
Por um lado, a noção de um governo jacobino a propor a substituição da
Constituinte parece completamente fantasiosa; por outro, Mirabeau vê
com nítida sagacidade as questões que determinarão as lealdades numa
era revolucionária . Por exemplo, os impostos serão uma questão que "fará
cair o véu", porque
' D otação anual atribuída pela legislatura a Luís XVI para suprir as suas despesas pessoais
e as da sua Casa (artigo 1 0 . º da C onstituição de 3 de Setembro de 1 79 1 ) . Até Agosto de 1 792,
entraram mensalmente na lista civil mais de dois milhões de libras francesas. ( N. do T )
S imon S chama 1 CIDADÃOS
contra a posição de que os direitos sobre o minério pertenciam "à nação " .
Reybaz escrevera u m panegírico extraordinário à intrepidez d o empresá
rio industrial, cheio de túneis fumegantes e milhões afundados na terra
gananciosa. D evastado pelas dores e com um péssimo aspecto, Mirabeau
chegou a casa de La Marck e caiu . Não podeis ir, disse - lhe o amigo. Devo
ir e irei, respondeu - lhe o tribuno . Fortificado com uma garrafa de Tokaj i
Esterhazy, Mirabeau conseguiu chegar à Assembleia e proferir o seu dis
curso. Os colegas viram um Mirabeau fantasma: pálido, a escorrer suor,
com o cabelo frisado liso e escorrido pela doença. A grande voz de barí
tono convertera - se num grunhido peitoral abafado. "O vosso caso está
ganho ", disse ele depois a La Marck " e eu estou morto . "
Não era u m exagero . Alguns dias d e descanso em Argenteuil fizeram
-no sentir- se suficientemente melhor para regressar a Paris, e uma noite
até tentou ouvir a diva Morichelli no teatro italiano . Saiu a meio da actua
ção, a tremer, não quis esperar num café até se encontrar uma carruagem
e seguiu cambaleante para casa . O seu médico e amigo, C abanis, deu com
ele prostrado, a tossir sangue . O mal que o afligia foi e continua a ser
obj ecto de várias interpretações. Obviamente, Fréron e outros jornalistas
inimigos de Mirabeau insinuaram que ele fora finalmente atingido por
uma doença sexual. Realizada a autópsia para investigar se tinha sido
envenenado, a causa da morte foi atribuída a uma pericardite linfática,
complicada por inflamações do fígado, dos rins e do estômago . Mas inde
pendentemente da causa última, Mirabeau sabia que estava a morrer e
decidiu finar- se num estilo apropriado à sua desmesurada vida . Multidões
lastimosas aglomeraram-se j unto à sua casa enquanto os visitantes se iam
sucedendo, incluindo Talleyrand, que contava deliciado a toda a gente
que acabara de ser excomungado pelo papa . " Um digno confessor", disse
um fala-barato. C onversaram durante duas horas, com os gracej os ele
gantes e o propósito intelectual que sempre constituíra a sintaxe da sua
peculiar amizade. " Supostamente, os doentes não devem conversar, faz
lhes mal", disse Mirabeau, " mas pode - se viver muito bem rodeado de
amigos e até morrer de forma agradável. "
Talleyrand comentará posteriormente, d e forma pouco simpática, que
Mirabeau "tinha encenado a sua própria morte " . Talvez estivesse a recor
dar- se do comentário do amigo ao ouvir troar o canhão : "Já estão a
começar o funeral de Aquiles ? " Mas o leito de morte era para os neo
classicistas estóicos do século XVIII uma forma de arte exemplar, cele
brada nas grandes telas de D avid sobre as mortes de Séneca e de Sócrates .
Mirabeau também queria partir com os s e u s assuntos e m ordem, rodeado
de amigos e acólitos, depois das despedidas adequadas. Pediu a La Marck
que levasse consigo ou queimasse quaisquer papéis comprometedores e,
ainda endividado, deixou vinte e quatro mil libras a Coco, o filho ilegítimo
que tivera de Yet- Lie.
469
5 Jean-Michel Moreau. ( N. do T. )
473
dej ecção e, por fim, à resignação . Lafayette compreendeu que não havia
alternativa à humilhação. O s cavalos recuaram e Luís XVI e Maria
Antonieta regressaram aos seus aposentos no palácio, amargamente cien -
tes de que, mais do que nunca, eram cativos . No dia seguinte, o rei reite
rou à Assembleia Nacional a exigência de que fosse honrado o seu direito
legal a deslocar- se num raio de trinta quilómetros da capital. No mesmo
dia, o jornal de B rissot publicou uma recensão laudatória da obra de um
certo Louis La Vicomterie, intitulada Les Crimes des Rois de France depuis
Clovis jusqu 'à Louis XVI.
É esta experiência aterradora que, segundo ele próprio explicará, leva
Luís XVI a optar por um plano de fuga mais drástico . A morte de
Mirabeau eliminou a única figura cuj a capacidade de persuasão e inteli
gência poderiam ter possibilitado uma monarquia constitucional genuína .
A consciência pesada do rei por causa da questão religiosa e os seus cres
centes receios pela segurança física da família empurram-no para os pla
nos secretos de fuga que são desde há muito o meio escolhido por Maria
Antonieta para libertar a monarquia da sua situação aflitiva. Foi aconse
lhada neste sentido por uma sucessão de pessoas, principalmente o ex
-ministro B reteuiL refugiado na Suíça . D o seu exílio em Londres,
C alonne, que assl.).miu uma espécie de liderança activa da contra-revolu
ção, também é da op �nião de que essa será a melhor estratégia . Mp.is
importante ainda, o primo de Lafayette, o marquês de B ouillé, coman
dante militar de Metz, informou que numa guarnição de fronteira será
possível reunir tropas suficientes para garantir a protecção dos fugitivos.
Em Agosto, Bouillé reagiu com a máxima severidade a um motim do
Regimento S uíço de Châteauvieux, da guarnição de Nancy, a última de
uma sucessão de insurreições por causa do soldo e do direito à confrater
nização. Dado que os soldados se encontravam sob uma jurisdição militar
especial, as sentenças foram draconianas . Um soldado sofreu o suplício da
roda, vinte foram enforcados e quarenta e um condenados perpetua
mente às galés. Maria Antonieta viu n o sucedido u m a prova segura de
que o marquês era de confiança .
A cidade escolhida é Montmédy, na fronteira com a Holanda aus
tríaca, onde quatro regimentos alemães e dois suíços do exército real
garantirão a protecção adequada para o rei erguer a sua bandeira . É a
fronteira mais próxima de Paris, a quase trezentos quilómetros - talvez
dois dias de viagem a bom ritmo . No outro lado da fronteira, o irmão da
rainha, o imperador Leopoldo, poderá postar forças militares suficientes
para dissuadir qualquer tentativa de captura ou até para restaurar a auto
ridade do rei como os granadeiros prussianos restauraram o príncipe
Guilherme V em Haia, em 1 7 8 7 . O coordenador do plano de fuga é Axel
Fersen, um oficial do regimento sueco do exército francês, devoto apai
xonado da rainha e cada vez mais angustiado pela situação aflitiva da
475
implora ao rei que o deixe continuar mas este tem pelo menos a noção de
que não seria próprio para o rei dos Franceses ser conduzido à fronteira
por um soldado estrangeiro . Fersen desaparece na noite depois de pro
meter encontrar-se com o grupo em B ruxelas.
De madrugada, a família começa a descontrair- se. As remontas decor
rem conforme o previsto. As criadas da rainha j untam-se -lhe em Claye,
num pequeno cabriolé . A berlinda preta e verde com rodas amarelas, car
regadíssima e a deslocar- se a alta velocidade, não suscita quaisquer sus
peitas. Em Meaux, a trinta e cinco quilómetros de Paris, os viaj antes
batem-se com um pequeno-almoço de boeuf à la mode com ervilhas e
galantina de cenouras, e começam a sentir-se livres. "Assim que tiver o
traseiro sentado numa sela sentir-me-ei um homem novo ", diz o rei, reto
mando o tom coloquial que estava habituado a usar em Versalhes, e um
sinal ainda mais óbvio do seu regresso à boa forma é o modo obsessivo
como segue a viagem num mapa preparado para o efeito. As casinhas que
se vêem na paisagem plana e pouco próspera do Mame ficam para trás.
Numa estação de posta, perto de Châlons, comem um consommé feito pela
mulher do chefe da estação; este reconhece o rei mas remete -se a um
silêncio gratificantemente devoto .
Pouco depois, quando atravessam velozes ( isto é, a uns quinze quilóme
tros por hora ) uma ponte, uma roda bate num pilar; os tirantes partem-se
e os cavalos caem. É necessária meia hora para endireitar a carruagem, o
que, somado às demoras anteriores, deixa a berlinda muito atrasada para o
encontro com a escolta militar que deverá conduzi-la a Montmédy. B ouillé
deu instruções ao j ovem duque de Choiseul para fornecer uma escolta mili
tar quando a carruagem chegar a Pont de Somme -Vesle; será a primeira de
uma série de escoltas que acompanhará a família real até Montmédy.
Porém, a chegada inesperada de um esquadrão a Pont de Somme-Vesle sus
cita nos habitantes o receio de que os soldados se destinem a aj udar à
cobrança de impostos e grupos de aldeões e camponeses começam a j untar
-se em força para resistir. Enquanto espera nervosamente por um coche que
não chega, Choiseul garante aos populares que os guardas são para escoltar
um "tesouro " para a vila de Sainte-Menehould. Às quatro e trinta da tarde,
o grupo leva já com duas horas de atraso e Choiseul acaba por se conven
cer de que o plano se gorou. Outra figura que o acompanha na espera, apa
rentemente indispensável para a rainha, é o cabeleireiro Léonard, um
veterano da época dourada de Madame Vigée-Lebrun e de Rose Bertin.
Choiseul dá a Léonard uma missiva para os oficiais das outras escoltas,
informando-os de que algo correu mal e de que ele vai regressar para j unto
de Bouillé. Depois de esperar mais uma hora, conduz os seus homens para
a floresta do Argonne, onde rapidamente se perdem.
A partir desta altura, a coordenação da viagem, que é crucial, vai por
água abaixo. A notícia da fuga do rei chega a Sainte -Menehould antes do
477
Montmédy
A Última Etapa da Viagem para Varennes
C H A M P A G N E
t
N
Chegada: 21 h�m
1 L O R
Desapareceu este rei imbecil, este rei perj uro, esta rainha velhaca que com
bina a luxúria de Messalina com a sanguinolência dos Médicis. Mulher
execrável, Fúria da França, tu és a alma da conspiração!
discute com B rissot e Tom Paine planos para fundar um j ornal destinado
a empreender uma campanha agressiva a favor do fim da monarquia. O
cidadão Ferrieres - que não é nenhum militante -, ao escrever à mulher,
soa pela primeira vez como um acusador revolucionário, distanciando-se
enquanto C idadão Ferrieres dos "aristocratas" .
para fazer todos os gestos da realeza - vetos e outros que tais - enquanto
o verdadeiro poder está nas mãos dos que manipulam os fios .
a sua vitória sobre a fortaleza onde foi por duas vezes encarcerado.
Mensagem: ele perseverou enquanto as pedras caíram ! O caixão é colo
cado atrás de uma barreira de álamos e ciprestes e fica guardado em alter
nância por guardas nacionais e moças vestidas à ! 'antique com túnicas
brancas .
Para a procissão até ao Panteão, um pequeno comité q u e incluía
Quatremere de Quincy e Jacques- Louis D avid desenhou um carro monu
mental, da altura de uma casa de dois andares. As rodas foram fundidas
em bronze, de acordo com os modelos romanos . O sarcófago é de porfírio
imperial e está assente numa plataforma com três níveis. Voltaire repousa
num sofá antigo, a dormir, com a expressão benigna tornada famosa pelas
réplicas dos bustos criados por Houdon. Tem ao lado uma lira partida e
atrás do coxim a figura da Eternidade coloca -lhe uma coroa de estrelas na
cabeça . Nos cantos do catafalco vêem-se figuras sentadas, representando
génios, com expressões de luto, com as tochas viradas para baixo . Nos
quatro lados estão gravadas excertos das obras de Voltaire, incluindo uma
de Bruto: " Ó deuses, dêem-nos a morte antes que a escravatura. " O carro
é puxado por quatro cavalos brancos aj aezados com a tricolor.
O cortej o inclui os actores do costume - jacobinos, deputados, repre
sentantes da C omuna, guardas nacionais - mas foi tornado muito mais
interessante através da inclusão de representações das obras e da vida de
Voltaire . O vigésimo terceiro modelo da Bastilha feito por Palloy com as
suas pedras recebeu um lugar de destaque e um grupo de homens tra
jando à romana transporta como troféus de glória edições de todas as
obras de Voltaire. Actores da trupe de Talma representam a família de
Jean C alas, o protestante executado por ter alegadamente morto o filho e
cuj a prova de inocência fora a grande cause célebre de Voltaire . Os cidadãos
do bairro de Saint-Antoine ostentam bandeiras pintadas com os rostos de
outros ilustres de calibre semelhante : Franklin, Rousseau e Mirabeau.
C omo costuma acontecer em Julho, em Paris, chove, mas cem mil pes
soas aparecem para ver o cortej o percorrer uma série de " estações" até ao
Panteão, parando nos lugares dos triunfos de Voltaire : na Ó pera, onde
várias actrizes cantam um hino especial composto por Gossec e C hénier;
no Théâtre -Français, onde é cantada a ária de Sansão que insta as gentes :
"despertai, quebrai a s vossas grilhetas, ascendei para a vossa grandeza de
antigamente " . Voltaire demora sete horas, das três da tarde às dez da
noite, para chegar ao Panteão e tornar- se o terceiro elemento de uma
estranha trindade. No entanto, em muitos aspectos, o velho newtoniano
é um companheiro mais adequado para Mirabeau do que para Descartes .
Disse-se q u e quando a imensa procissão atravessou a Pont-Royal,
Luís XVI estava a observar furtivamente de uma j anela superior. Na
imprensa popular e, em especial, nas estampas, é feita a ligação entre a
desgraça do rei e a apoteose do filósofo. Num exemplo típico do género, a
485
durante o ano seguinte essa unidade será exposta como fictícia . D epois da
revelação dos seus tratos com a corte, Mirabeau, que David colocou mais
perto do observador do que qualquer outra figura, cai numa desgraça tão
profunda que em 1 7 9 3 os seus restos mortais são retirados do Panteão e
atirados para uma vala comum. Bailly e Barnave perecerão na guilhotina,
Sieyes sobreviverá mediante grandes feitos de pragmatismo ágil. O pró
prio David, na qualidade de membro do C omité de Segurança Geral, assi
nará mandatos e exceder- se-á a si próprio em expressões públicas de
devoção a Robespierre e a Marat.
Os poetas da meteorologia romântica, tais como André Chénier e
William Wordsworth, que sentem o seu drama, continuam a descrever a
Revolução como uma grande perturbação ciclónica, mas é cada vez
menos a tempestade que limpa e revigora; tornou-se uma raiva elemen
tar negra e potente, avançando e destruindo indiscriminadamente . O seu
sopro j á não é doce mas sim impuro . São ventos de guerra.
14
" A Marselhesa"
Setembro de 1 791 -Agosto de 1 792
I A S S UNTO ENCERRAD O ?
Sei que a minha franqueza é um pouco dura mas o único consolo que resta
aos bons cidadãos no perigo em que estes homens [faz um gesto de des
prezo com a mão] colocaram o interesse público é j ulgá -los de modo
severo .
II OS CRUZAD O S
com a França . O resultado fora uma pequena guerra mortífera que cul
minara na chacina de aristocratas e notáveis moderados nas prisões de
Avinhão por um bando armado liderado por Jourdan " C oupe -tête "
( C orta - C abeças ) . Outras cidades, entre as quais Arles, estavam nas mãos
de líderes católicos e monárquicos igualmente implacáveis que instavam
o povo a cuspir na Constituição e a profanar o uniforme da Guarda
Nacional. O rei era profundamente avesso a fazer fosse o que fosse que
pudesse agravar esta trágica situação, mesmo que isso significasse fazer o
jogo dos seus inimigos. B arnave, a braços com muitas decisões difíceis, fez
com que o clero refractário de Paris enviasse uma petição ao rei com base
na protecção constitucional da liberdade de consciência. Assim que tal
aconteceu, o veto real foi prontamente aplicado, desencadeando manifes
tações violentas em Paris e noutros centros de anticlericalismo como Lyon
e Marselha.
A segunda questão na qual a estratégia dos feuillants soçobrou foi a dos
emigrados. O ritmo da emigração tinha acelerado marcadamente desde o
regresso do rei de Varennes . Ferrieres lamentou-se à mulher de que se
tornara uma "epidemia" no exército: os regimentos tinham perdido um
terço dos oficiais . Por razões óbvias, o número de nobres e padres emi
grados era maior nas fronteiras - na Alsácia e ao longo da fronteira orien
tal, dos Vosges às Ardenas, no Sudoeste e no Leste, nos Pirenéus, no
Rossilhão e na Provença, e no Oeste, na B retanha. Mas estas também
eram precisamente as regiões da França onde os receios de uma invasão
estrangeira eram mais agudos e onde os deputados à Assembleia eram
mais militantes, vendo-se como patriotas cercados num mar de conspira
ções e intrigas. Os emigrantes eram responsabilizados pela especulação
monetária que estava a desvalorizar o papel-moeda e a fomentar a infla
ção - a versão mais recente da eterna " conj ura da fome " . Eram acusados,
nas suas bases de Turim e depois de C oblença, de planear invasões da
França na cauda de exércitos absolutistas que passariam à espada os bons
patriotas e as suas mulheres e filhos e arrasariam as suas cidades .
A Declaração de Pillnitz, a qual, como veremos, foi u m documento muito
contido emitido em Agosto pelo irmão da rainha, o imperador Leopoldo,
foi publicitada em França como uma ameaça directa à soberania e à segu
rança da nação.
No dia 3 1 de Outubro, a Assembleia declarou que todos os emigrados
que até ao dia 1 de Janeiro de 1 792 não tivessem dispersado dos alegados
campos armados seriam declarados culpados de conspiração e condenados
à morte e ao confisco dos seus bens . A esta legislação draconiana seguiu
- se, no dia 9 de Novembro, uma convocatória ao irmão do rei, o conde da
Provença, para que regressasse a França no prazo de dois meses, sob pena
de ser afastado da sucessão. Finalmente, a 2 9, no mesmo dia em que foi
aprovada a legislação religiosa mais severa, foi aprovada uma lei apelando
Simon Schama 1 CIDADÃOS
uma campanha sozinho mas era suficiente para servir de casus belli.
Narbonne exigiu à Legislativa um subsídio especial de vinte milhões de
libras francesas ( em numerário, não em papel-moeda) para gastar em pre
parativos militares, e em finais do ano estabeleceu o protótipo do ministro
da Guerra popular ao deslocar- se à fronteira para inspeccionar fortificações
e munições e dirigir a saudação patriótica nos campos militares .
Se tudo isto parecia u m a encenação tirada d o manual d e Lafayette,
não era por acaso. O general não recuperara verdadeiramente a sua cre
dibilidade depois da fuga para Varennes e fora humilhado nas eleições
para a presidência da Câmara de Paris, em Outubro, nas quais perdera
estrondosamente para Jérôme Pétion. Tinha-se retirado para a sua pro
priedade no Auvergne e estava a fazer pressão para que lhe fosse atribuído
um comando militar que lhe permitisse restaurar a sua reputação . Uma
guerra patriótica limitada contra o Eleitor de Trier parecia uma aposta
certa e Narbonne fez-lhe prontamente a vontade. Restava garantir a neu
tralidade britânica na eventualidade de hostilidades, e em meados de
Janeiro Talleyrand foi enviado a Londres numa missão não oficial para
conseguir esse compromisso.
Louis de Narbonne e Talleyrand eram bons amigos desde há algum
tempo e a sua amizade não fora de todo comprometida pela substituição
do segundo pelo primeiro como amante da notável filha de Necker,
Germaine de Stael. Madame de Stael fora uma conquista invulgar para
Talleyrand . Era articulada e generosamente emocional mas também
capaz, de quando em quando, de uma ironia que igualava a dele .
Fisicamente, era uma Juno de ossos largos, muito dada aos turbantes e ao
vestuário pseudo-oriental. Durante algum tempo, os prazeres partilhados
da alegre inteligência de ambos e a natureza genuinamente afectuosa de
Germaine fê -los felizes como amantes, mas a sua relação foi mais pro
funda e mais douradora como amigos. Na recomendação de Talleyrand
por Narbonne para a missão a Londres não parece ter existido nenhuma
estratégia romântica, mas sim um acto de boa vontade e a perspicácia de
compreender que o ex-bispo tinha mais vocação para a diplomacia do que
para o episcopado.
Esta primeira missão daquela que seria a carreira diplomática mais
espectacular da época foi também a mais fácil para Talleyrand, pois a
administração de William Pitt decidira que não seria do interesse da Grã
-B retanha envolver- se num conflito europeu. Todavia, isto não impediu
que Talleyrand fosse exposto à força devastadora do snobismo dos britâ
nicos, muitos dos quais viraram as costas ao notório velhaco -bispo revo
lucionário e voltaireano . Tal como Mirabeau, Talleyrand convencera -se há
muito de que o entendimento anglo-francês era a condição para a sobre
vivência da França, mas o seu entusiasmo por este proj ecto foi testado aos
limites com a sua contundente rej eição pela sociedade culta britânica.
Simon Schama 1 CIDADÃOS
fosse viável, seria melhor deixá-lo ruir sozinho do que ser visto como
ameaçado pela mão escondida do " comité austríaco" .
N a sua racionalidade serpentina, não foi uma obra típica d a diploma
cia do século XVIII ( nem de nenhum século ) . No entanto, a sua predis
posição para fazer algo diferente do que parecia dizer coloca a Declaração
de Pillnitz no extremo oposto da expressão discursiva do mundo do
patriotismo revolucionário. Embora a linguagem diplomática, desde a
época dos arautos, recorresse habitualmente aos subterfúgios e pressu
pusesse distinções entre intenções ostensivas e reais que seriam lidas
pelos destinatários das suas mensagens, a linguagem dos cidadãos que
ria -se transparentemente sincera, directa e não mediada . Face à elevada
lei moral da autodeterminação abraçada pela Revolução, nem a lingua
g e m d o s tratados entre príncipes tinha qualquer valor. C omo podia o
papa pretender- se soberano de Avinhão ou quaisquer príncipes alemães
do Império exigir direitos de propriedade na Alsácia quando os cidadãos
desses lugares não tinham consentido na alienação do seu território?
Com este tipo de critérios morais elevados, era fácil apresentar a
Declaração de Pillnitz como uma afronta directa à soberania do povo, o
primeiro estágio de uma guerra contra -revolucionária . Estava a ser pla
neada " uma conspiração gigantesca contra a liberdade não só da França
mas também de toda a raça humana ", disse Hérault de Séchelles, ex-par
lamentar e jacobino confesso, mas a luz brilhante que emanava da
Revolução penetraria no véu da obscuração que os tiranos tinham lan
çado sobre as suas maquinações.
A crise da guerra de 1 79 1 e 1 792 é frequentemente vista pelos histo
riadores modernos ( muitos deles pouco interessados na história diplomá
tica ) como uma aberração da Revolução, algo tão obviamente disparatado
que apenas é explicável no contexto das tácticas dos brissotins para rouba
rem o poder aos feuillants. Todavia, esta visão instrumentalista da guerra
revolucionária não compreende que a guerra patriótica foi, de facto, o cul
minar lógico de quase tudo o que a Revolução representava. Afinal de
contas, a Revolução tinha resultado dos esforços patrióticos na América e
continuava a definir-se, através das alusões a Roma, como o revigora
mento do poder nacional através da transformação política . Desde o prin
cípio, existia uma tendência de desafio nervoso nas declarações
revolucionárias que ao nível popular se traduzira amiúde em paranóia.
Em 1 789, tinham abundado os rumores de que os Austríacos estavam nas
fronteiras, de que os navios britânicos rumavam à B retanha e de que os
degoladores espanhóis se preparavam para invadir o Rossilhão . Pior
ainda, partira -se do princípio de que os invasores tinham colaboradores
em França que colocavam os seus interesses seccionais egoístas acima dos
da patrie. Precisamente porque o novo mundo político era definido como
"a Nação", aqueles que eram considerados seus inimigos - os aristocratas,
5 07
Liderados pelas paixões mais sublimes sob a bandeira tricolor que haveis
gloriosamente plantado nas ruínas da B astilha, que inimigo ousará atacar
-vos? . . . segui o vosso grande destino que conduz ao castigo dos tiranos que
vos colocaram as armas na mão . . . Union et courage! A glória espera-vos. Os
reis aspiravam ao título de cidadãos romanos; está nas vossas mãos fazê-los
invej ar o título de Cidadãos de França !
Simon Schama 1 CIDADÃOS
4 Papel-moeda que começou a ser emitido depois do confisco dos bens da Igreja devido
à situação de falência em que o governo se encontrava. Surgiram como títulos mas torna
ram-se progressivamente uma moeda . (N. do T. )
S imon Schama 1 CIDADÃOS
das guerras que durarão vinte e três anos e causarão milhão e meio de
mortos franceses começou como um fiasco patético .
O que aconteceu foi de sobremaneira escandaloso porque os coman
dantes nomeados para os três teatros de guerra principais eram veteranos
famosos da última campanha de sucesso da França, na América. Lafayette
recebeu a frente central, no Mame, o general Luckner a fronteira da
Alsácia e Rochambeau, o herói de Yorktown e Saratoga, a zona mais crí
tica, a fronteira belga, a norte . As visitas de inspecção de Narbonne tinham
procurado esconder a realidade mas Rochambeau estava ciente de que em
termos de quantidade, prontidão e disciplina das tropas, os exércitos fran
ceses estavam muito pouco preparados para enfrentar os Austríacos.
O colapso da hierarquia regimental assinalado pelo motim de Nancy, em
1 790, não fora travado pela repressão. De facto, o aumento da emigração
entre os oficiais depois de Varennes tinha convencido ainda mais a solda
desca de que os seus superiores hierárquicos não eram de confiança e
poderiam estar a trair a pátria disfarçados de seus comandantes.
Estas suspeitas terão consequências letais para Théobald Dillon, o
comandante das forças enviadas contra Tournai. Primo de Lucy de La Tour
du Pin, Dillon era um produto típico da nobreza liberal, patriótico, capaz
e certamente hostil aos emigrados. Mas tal como muitos outros oficiais de
carreira, simpatizava com Lafayette e desconfiava do governo brissotin .
Dillon fora incumbido por Dumouriez de entrar em acção no teatro de
operações belga, uma zona que, acreditava o ministro, estava à espera de
um sinal dos Franceses para dar início a uma grande insurreição antiaus
tríaca. A missão de Dillon era realizar u:ina expedição modesta contra
Tournai, que se pensava estar mal defendida. Dillon dispunha de cinco mil
homens, na sua maior parte cavalaria regular, complementada com uma
força de soldados voluntários. O tamanho do contingente parecia garan
tir de antemão o sucesso.
Mas as expectativas viram - s e desastrosamente frustrad a s . Em
Baisieux, a vanguarda da cavalaria começou a sofrer fogo de artilharia.
Num ápice, espalharam-se pelas fileiras francesas rumores de um avanço
austríaco. Uma retirada táctica - que fora pré-planeada - transformou-se
rapidamente num inglório sauve-qui-peut, liderado não pelos voluntários
mas pelos regulares da cavalaria. Apanhado na debandada, D illon refu
giou -se numa cabana de camponeses e cometeu o erro fatal de despir a
casaca do uniforme. Alertado pela propaganda patriótica que falava em
espiões e traidores, o lavrador convenceu-se de que tinha um em casa -
a comer-lhe o caldo - e alertou a guarnição de Douai. Levado sob escolta
para Lille, o infeliz general foi arrancado da sua carruagem por uma
turba de citadinos, soldados e guardas nacionais, golpeado no rosto e
finalmente baionetada até à morte no empedrado. O corpo de Dillon foi
pendurado num candeeiro e a perna esquerda foi cortada e passeada
5 15
como um troféu pela cidade; depois, o resto do cadáver foi atirado para
uma fogueira .
A péssima impressão transmitida pelo desastre de Tournai agravou-se
quando as forças de B iron não conseguiram atacar Mons, mas neste caso
o comandante foi preservado para perecer na guilhotina . Dado que os
Austríacos não se aproveitaram da desmoralização das tropas franceses,
pouco se perdeu estrategicamente, mas as consequências políticas do
desastre foram dramaticamente polarizadoras. À direita, muitos oficiais
superiores do exército de linha consideraram que ao menor revés se arris
cavam a sofrer um destino idêntico ao de Dillon . Alguns demitiram- se, a
começar por Rochambeau, no vértice do comando do Norte; outros emi
graram. Os que permaneceram nas fileiras, como o próprio Lafayette,
convenceram-se de que a pré- condição para a sobrevivência militar era a
restauração da ordem no exército e em Paris. Lafayette estava preparado
para fazer uso da força militar para impedir a ameaça de insurreição na
capital. No princípio de Maio, escreveu ao embaixador austríaco, Mercy
d'Argenteau, propondo-lhe uma suspensão das hostilidades enquanto
lidava com os militantes de Paris.
Mas os inimigos de Lafayette não eram obtusos. A interrupção dos
combates confirmou as suas suspeitas de que os comandantes presentes
no terreno estavam mais interessados em atacá -los a eles do que aos
Austríaco s . E sta impressão pareceu confirmada com a deserção en masse
massa de quase todo o Regimento Royal -Allemand, a cavalaria que
tinha carregado sobre a manifestação popular na Praça Vendôme e nas
Tulherias no dia 1 2 de Julho de 1 7 8 9 . "Não confio nos generais", disse
Robespierre nos Jacobinos; "são quase todos uns saudosistas da velha
ordem " . Este sentimento da existência de sabotagem por homens que se
tinham instalado em posições de comando estendeu -se às queixas eco
nómicas e sociai s . A depreciação do papel-moeda, que aumentou a
inflação dos preços dos bens alimentares, foi atribuída à especulação
monetária sistemática e de motivação política . A colheita de 1 7 9 1 fora
entre mediana e medíocre mas em algumas regiões, especialmente no
Sul e no Sudeste, as carestias eram agudas. A Revolução orientava bens
alimentares para as regiões afectadas mas com a desregulação do mer
cado de cereais que fora o legado dos fisiocratas, os fornecimentos só se
consumavam depois de retidos tempo suficiente para garantir preços
elevados. E ra exactamente isto o que os economistas liberais tinham
recomendado para garantir a acumulação de capital na agricultura mas
as teorias, por muito boas que fossem, redundavam sempre em miséria,
pânico e motins. A frequência dos ataques às carroças, às barcaças e aos
depósitos, adormecida desde 1 789, disparou assinalavelmente . C om a
premissa adicional de que a " conj ura da fome" se enquadrava numa
tentativa contra - revolucionária para obrigar o povo à capitulação pela
Simon Schama 1 CIDADÃOS
Mas não era um dado adquirido que tivesse de acontecer. O rei e a rai
nha ainda tinham os seus defensores . Quando se espalharam pela França a s
notícias dos acontecimentos d o dia 20, a Assembleia começou a receber
petições de lealistas de todo o país. Até algumas assembleias de secção repu -
diaram o sucedido. Pétion e o procurador Manuel foram suspensos dos seus
cargos pelo governo departamental por incumprimento do dever. Alguns
dos colegas de B rissot que tinham ficado em choque com a invasão do palá
cio deram início a negociações secretas com os monarcas. No auge do
debate sobre a retirada do delfim à família para lhe proporcionar "uma edu
cação patriótica", Guadet fez uma visita à rainha. Ela mostrou-lhe o prín
cipe, adormecido por detrás de uma cortina na sala adjacente, e Elie Guadet,
representante condigno de uma geração que se afectava com a inocência da
Simon Schama 1 CIDADÃOS
S angue Impuro
Agosto de 1 792-Janeiro de 1 793
e foi ele quem nos ensinou o que sabemos; sem ele, seríamos como os ani
mais. Desde que no-lo tiraram estamos tristes e lamentosos. Devolvei-o ao
nosso seio e fazer- nos-eis felizes.
Dois dias depois, face a este fogo devastador - e mais particularmente, sob
ameaça de intimidações físicas por parte dos seccionistas armados -, a
Assembleia recua . Nascerá uma nova C omuna e uma C onvenção
Nacional a ser eleita (muito nas linhas propostas por Robespierre em
29 de Julho ) por sufrágio universal masculino, com o obj ectivo de criar
uma nova constituição, presumivelmente não monárquica.
Talvez a necessidade de poderes policiais de excepção não tivesse sido
aceite não fosse verificar-se ao mesmo tempo uma crise militar genuína e
potencialmente catastrófica . No dia 1 9 de Agosto, pondo em execução
uma estratégia que mereceu a concordância do seu aliado, o imperador
austríaco, os exércitos do rei da Prússia atravessam a fronteira francesa.
Quatro dias mais tarde, a importante fortaleza de Longwy é bombardeada
e capitula quase sem oferecer resistência . No dia 30, pela primeira vez mas
não pela última, o importantíssimo bastião de Verdun é cercado pelos
Prussianos . Se cair - as previsões não são as melhores -, a estrada para
Paris ficará aberta através do vale do Mame.
Nestas circunstâncias, a capital é tomada de uma mistura convulsiva de
terror e excitação marcial. O passo de caracol da campanha austríaca da
Primavera convencera os parisienses de que a "guerra patriótica" era um
conflito travado longe e principalmente em campos de linho e nabais bel
gas . Agora, de forma repentina e avassaladora, o inimigo parece estar à
porta . Além do mais, a revolução que acabaram de consumar num claro
desafio ao Manifesto de B runswick parece expô-los a uma retribuição ter
rível se a invasão for bem sucedida. De facto, correm já histórias de abo
minações teutónicas cometidas no teatro de guerra : camponesas violadas
e mutiladas, crianças espetadas nas baionetas e atiradas às fogueiras - o
pesadelo militar do costume . Em resposta, o C onselho Executivo
Provisório ordena a conscrição imediata de uma força de trinta mil volun
tários que será enviada para a frente e a construção de novas barrieres
reforçadas nas muralhas da cidade .
C om uma proclamação de Hérault de Séchelles ( novo presidente da
Legislativa ) a declarar de novo oficialmente a " la patrie en danger", Paris
transforma-se numa cena de actividade frenética . As ruas ecoam com os
sons das botas a marchar e dos tambores que tocam a reunir. No meio de
cenas lacrimosas de despedida, os voluntários são inscritos na Pont Neuf,
em frente da estátua de Henrique IV. Quadros como A Partida do
Voluntário, de Watteau de Lille, invertem a carga moral da série do "Filhó
Pródigo" de Greuze com um j ovem a cumprir e não a negligenciar os seus
deveres partindo para a guerra . Na versão de 1 792, o lugar do sinistro sar
gento recrutador de Greuze é tomado pelo fiável granadeiro de barretina
na cabeça, cuj a silhueta se vê recortada contra a porta .
Todo este esforço fenomenal tem orquestração de Danton. O seu espírito
destemido e a sua convicção genuína de que Paris e a França sobreviverão
Simon Schama 1 CIDADÃOS
Estas alusões aos "traidores entre vós" são as mais reveladoras. A apre
sentação dos inimigos internos da liberdade como estrangeiros armados,
uma quinta - coluna da ímpia coligação do despotismo internacional, é
uma característica habitual do discurso revolucionário. Foi assim com a
retórica de 1 789 e com a dos Brissotins, em 1 79 1 . C om a guerra materiali
zada, a aliança entre os "lacaios mercenários da tirania", os emigrados que
se lhes j untaram e os malévolos sabotadores à solta nas ruas de Paris, afi
gura - se ainda mais perigosa . Tal como os "bandidos" de 1 789 foram os
sicários degoladores dos aristocratas vingativos, uma ameaça igualmente
sinistra espreita nas prisões, onde os contra-revolucionários recém-chega
dos - guardas suíços, padres refractários, jornalistas monárquicos - pode
rão subornar os criminosos comuns e torná-los seus cúmplices .
É de particular urgência encontrar uma solução para este problema,
pois diz-se à boca cheia que, depois de os voluntários partirem para a
frente, os presos fugirão das cadeias . Uma cidade indefesa será consagrada
à chacina das mulheres e dos filhos dos Patriotas, tal como prometeu o
Manifesto de B runswick. Mesmo que os membros da C omuna não dêem
crédito a estas histórias, talvez j ulguem que os homens não se alistam com
receio de que elas se concretizem.
O que fazer? O Orateur du Peuple, de Fréron, não tem quaisquer
dúvidas .
A primeira batalha que iremos travar não será fora mas dentro das mura
lhas de Paris. Os bandidos monárquicos que se aglomeram nesta infeliz
cidade perecerão no mesmo dia . Cidadãos de todos os departamentos, ten
des [reféns] as famílias dos emigrados; nessa altura, fazei-as sentir o peso
da vingança popular; incendiai os seus solares e os seus palácios, semeai a
desolação onde quer que os traidores tenham fomentado a guerra civil . . .
as prisões estão a abarrotar de conspiradores . . . é lá que deverão ser j ulga
dos.
537
Mais uma vez, cidadãos, às armas! Que a França se erice de piques, baio
netas, canhões e punhais; que todos sejam soldados; abatamos as fileiras
destes vis escravos da tirania . Que o sangue dos traidores sej a nas cidades
o primeiro holocausto à Liberdade para que quando avançarmos contra o
inimigo comum não deixarmos nada que nos prej udique atrás de nós .
A patrie será salva . . . Está tudo em movimento, toda a gente anseia pela
luta . . . Enquanto uma parte do povo acorre às fronteiras, outra escava as
nossas defesas e uma terceira, armada com piques, defenderá as nossas
vilas e cidades . . . Paris secundará estes esforços . . . O rebate que soará não é
um sinal de alarme mas um apelo à carga sobre os inimigos da pátria. Para
os vencermos, senhores, precisaremos de audácia e mais audácia [toujours
de l 'audace] , e a França será salva !
os vossos belos olhos não foram maculados pelas visões hediondas que tive
mos à nossa frente nestes últimos dias . . . Mirabeau disse que não há nada mais
lamentável ou revoltante nos seus pormenores do que uma revolução, mas
que também não existe nada mais belo nas suas consequências para a rege
neração dos impérios. É possível, mas é preciso coragem para se ser um esta
dista e manter a cabeça fria no meio de tais tumultos e crises terríveis.
Conheceis o meu coração, avaliai a situação da minha alma e o horror da
minha posição. Um homme sensible tem de cobrir a cabeça com a capa e passar
depressa pelos cadáveres para se encerrar no templo da lei [a legislatura] .
Simon Schama 1 CIDADÃOS
II GOETHE EM VALMY
Que barulho faz uma bala de canhão? S egundo Goethe, é como " o
murmúrio d a s árvores, o gorgolej o d a água, o assobio d o s pássaros " .
Goethe fez estas observações experimentais n o dia 2 0 d e Setembro, nas
colinas arborizadas do Argonne, a mesma paisagem na qual um ano antes
Luís XVI deu cabo da sua fuga . O patrono de Goethe, o duque Karl
-August de Weimar, tinha sido nomeado para o comando de um regi
mento e quando o Exército prussiano iniciou o seu lento avanço em
França, em finais do Verão, o poeta-filósofo acompanhou as tropas, mais
por curiosidade científica do que por entusiasmo político. Goethe era tão
indiferente ao igualitarismo romântico como à legitimidade arcaica,
vendo na revolução e na contra -revolução interrupções brutais do reino
da razão, mas uma campanha de cerco e uma marcha proporcionaram
lhe uma experiência nova e dramática à qual Goethe foi incapaz de resis
tir. Goethe estava profundamente imerso nas reflexões que dariam
origem à sua importante obra sobre a teoria da cor, Farbenlehre, embora
Karl-August considerasse bizarro que, durante o bombardeamento de
Verdun, Goethe estivesse a observar a cena para tentar descobrir quais
eram os tons da guerra .
Em Valmy, numa colina de onde se descortina a artilharia francesa dis
posta num arco, ele vê vermelho . C om as balas a explodirem à sua volta,
atirando pelo ar a terra e as folhas outonais fumegantes, " era como se esti
véssemos num sítio extremamente quente e ao mesmo tempo penetrados
pelo seu calor, de modo que no sentíamos unidos com o elemento em que
estávamos. Os olhos não perderam nenhuma da sua força ou nitidez mas
era como se o mundo tivesse uma espécie de tonalidade castanho - aver
melhada que tornava a situação e os obj ectos circundantes mais impres
sionantes . Não consegui aperceber-me de nenhuma agitação do sangue
mas tudo parecia engolido por aquele brilho" .
N o fim d o dia, esta "febre " , como Goethe lhe chamou, arrefece e ele
regressa a cavalo às linhas prussianas. Encontra os soldados num estado
545
esquerda do Reno, tais como Speyer, Worms e Mainz. Com eles partem os
camareiros, os j uízes, os mestres de orquestra, os postilhões, os couteiros
-mores - os séquitos que sustentavam estes principadozecos no estilo
rococó a que se tinham indispensavelmente acostumado.
Os Franceses entram no território, onde são principalmente aclamados
pelo punhado de intelectuais, jornalistas e professores que são pronta
mente instalados como guardiães da libertação. C hovem proclamações
que prometem às populações a "libertação " do " despotismo" ou da "escra
vidão" mas o preço invariável é a imposição de requisições implacáveis e
indemnizações pesadíssimas. Será este o padrão das ocupações francesas
durante os próximos vinte anos mas a primeira vez é um choque brutal.
George Forster, bibliotecário de Mainz e outrora pró -francês, queixa-se a
Custine de que os seus compatriotas se teriam sentido menos enganados
"se lhes tivessem dito à partida: 'Viemos para levar tudo ' " .
C o m as forças francesas ao ataque, não só n a Alemanha mas também
na Sabóia, onde Chambéry e Nice são reunidas com la Nation, Dumouriez
persuade a C onvenção a avançar contra os Austríacos na Holanda, onde
espera ser apoiado por uma renovação da insurreição contra o domínio
habsburgo que, em 1 789, criou brevemente um Estado belga indepen
dente. No entanto, o factor decisivo é menos o desej o dos indígenas de
verem os Austríacos pelas costas ( que é grande) e mais a superioridade das
forças militares que D umouriez pode empenhar. Em homens e artilharia,
dispõe de quase o dobro das forças inimigas. No dia 6 de Novembro,
Dumouriez ataca a posição austríaca nas elevações de Jemappes, a norte
da cidade de Mons, avançando numa frente larga enquanto lança outra
ofensiva pela direita para cortar a retirada ao inimigo. C ontra- atacadas
pela cavalaria austríaca, especialmente onde os voluntários tornam a
linha menos sólida, as posições francesas quase cedem por diversas vezes
mas conseguem sempre recompor- se. Quando os Austríacos se apercebem
da presença de tropas francesas na sua retaguarda ( atravessaram o rio em
barco s ) , Jemappes é evacuada. Ficam no terreno quatro mil homens mor
tos ou gravemente feridos. Mons abre as portas aos Franceses no dia 8 de
Novembro e uma semana depois as tropas vitoriosas de D umouriez desfi
lam na Praça Real de B ruxelas .
Em França, foi Jemappes, mais do que Valmy, que transformou a
guerra de uma agitada acção defensiva na "cruzada pela liberdade uni
versal" prometida por B rissot. Em contraste com a reacção bastante come
dida à primeira batalha por parte dos produtores de gravuras, uma grande
explosão de imagens celebra a vitória sobre os Austríacos. A trupe de
Montansier, que durante o Antigo Regime actuou frequentemente em
Versalhes, especializou -se no drama patriótico, recriando cenas heróicas
da Revolução para aumentar o moral em Paris. D epois de Jemappes, a
trupe foi em digressão até ao campo de batalha para entreter as tropas
Simon Schama 1 CIDADÃOS
' Os enragés, liderados principalmente por Roux, eram um grupo radical situado à
esquerda dos j acobinos . ( N. do T. )
S imon Schama 1 CIDADÃOS
IV O JULGAMENTO
que a viagem abortada para Saint- Cloud foi uma tentativa de fuga. Sobre
as leis que vetou em 1 79 1 , responde que a C onstituição lhe deu o direito
de o fazer, e rej eita a caracterização do seu reforço das Tulherias como pre
parativos para " um ataque contra Paris " . O rei exibe a calma de um
homem absolutamente convicto de que está com a razão. Só quando
Barere afirma claramente que ele é " responsável pelo derramamento de
sangue francês" é que o rei deixa escapar uma resposta emocional e irada.
Alguns dos presentes vêem cair uma lágrima mas o rei, decidido a não dar
mostras de fraqueza perante os seus acusadores, leva rapidamente a mão
à bochecha e depois esfrega a testa como se estivesse a limpar o suor -
sua-se e sua -se bem no abafado Manege. O momento mais fraco do seu
testemunho é o modo quase descuidado com que diz não reconhecer a
sua mão em documentos tirados do armoire de fer.
Entre a nomeação dos seus advogados e o j ulgamento, em finais de
Dezembro, o rei passa os dias a preparar a sua defesa. A C omuna decidiu
feri-lo ainda mais negando-lhe o direito de ver os filhos, um decreto gra
tuitamente cruel que a C onvenção ameniza autorizando encontros limi
tados. No entanto, a rotina do grupo familiar é substituída pelas idas e
vindas dos advogados. Malesherbes - cuj a oferta de serviços o rei aceitou
- e Tronchet decidiram pedir a assistência de um colega mais j ovem com
fama de praticar a eloquência poderosa e sonora que parece ser uma espe
cialidade da barra de B ordéus: Romain de Seze. Enquanto grupo, o rei não
poderia ter pedido defensores mais formidáveis, mas não estão unidos na
sua abordagem. Malesherbes, que segundo um relato discutiu com o rei,
em 1 788, o tratamento dado por David Rume à queda de Carlos 1, quer
que o monarca conteste as credenciais do tribunal para o j ulgar e, em
especial, que ataque a assunção, pela C onvenção, dos papéis de j úri e j uiz,
em contravenção das convenções jurídicas estabelecidas pelos próprios
códigos revolucionários. Fazê -lo será obviamente contestar a legalidade
da revolução de 1 792 - exactamente como Robespierre previu - mas
Malesherbes é da opinião de que pelo menos é uma posição de maior
cogência e poder moral.
Mas o rei está teimosamente decidido a j ogar com a sua fraqueza, a
insistir na sua imunidade constitucional, para depois defender a sua con
duta como a de um cidadão-rei consciencioso e refutar a acusação passo
a passo, à semelhança do que fez no dia 1 1 . A sua convicção de que a ver
dadeira justiça demonstrará infalivelmente a sua inocência leva - o mesmo
a suprimir o que considera serem excessos de retórica nas alegações de De
Sere.
Na manhã a seguir ao dia de Natal, o rei é de novo conduzido à barra
da Convenção. De Seze, apesar de não dormir há quatro dias, está em
grande forma para pleitear e reitera a argumentação de que a posição atri
buída ao monarca impede que sej a julgado em tribunal pelo que, para
563
se neste preciso momento vos dissessem que uma turba excitada e armada
estava em marcha contra vós, sem respeito pela vossa natureza de legisla
dores sagrados . . . o que faríeis? . . . Acusai-lo de ter derramado sangue? Ah !
Ele chora a catástrofe fatal tanto como vós . É a ferida mais profunda que
lhe foi infligida, o seu desespero mais terrível. Ele sabe bem que não foi o
autor do derramamento de sangue, embora talvez tenha sido a sua causa.
Nunca se perdoará a si próprio.
V DUAS MORTE S
1 Sobre a altura de execução da sentença, que poderia abrir a porta a uma comutação.
( N. do T. )
569
não às sete?", diz a rainha. " C laro que sim, porque não? À s sete . " Quando
vão a sair, a princesa real lança- se ao pai e cai inanimada . Despertá-la é o
último abraço da família.
Os degraus são tão altos que o rei é obrigado a apoiar-se no padre para
subir. C ortam-lhe o cabelo com a desenvoltura profissional que tornou
célebre a família Sanson. Por fim, o rei tenta dirigir- se ao mar de vinte mil
rostos que enche a praça. "Morro inocente de todos os crimes de que fui
acusado . Perdoo aos que provocaram a minha morte e peço a Deus que o
sangue que ides agora derramar nunca sej a exigido da França . . . " . Nesse
momento, Santerre manda rufar os tambores, abafando qualquer outra
coisa que o rei tivesse para dizer. O rei é atado a uma prancha que depois
de empurrada para frente lhe enfia a cabeça no buraco . Sanson puxa a
corda e a lâmina de 3 0 cm cai, assobiando pelas calhas até ao alvo. C omo
é costume, o carrasco tira a cabeça do cesto e mostra-a, a pingar sangue,
ao povo .
É a normalidade inexorável em torno do espectáculo que choca as tes
temunhas como verdadeiramente insuportável. Quando Lucy de La Tour
du Pin e o marido ouvem as portas de Paris fecharem-se muito cedo, com
preendem que a esperança acabou . Põem-se à escuta, à espera de tiros de
mosquete que possam prometer um caos redentor, mas os únicos sons que
chegam do nevoeiro pegaj oso são os do silêncio. À s dez e trinta, ouvem as
portas abrir- se " e a vida da cidade retomou o seu rumo, inalterada" .
Mercier também assistiu . Talvez fosse d e esperar que ele sentisse uma
espécie de vitória, pois profetizara com muita frequência e veemência o
apocalipse destruidor de reis que estava a abater- se sobre a França. Mas
não sentiu nada de semelhante . Apesar de toda a sua violência literária,
está a ficar cada vez mais enoj ado com o que vê à sua volta . Nunca teve a
mínima ilusão em relação à boa fé do rei durante a Revolução mas votou
contra a morte na C onvenção, não só por compaixão mas também por
que acredita - de novo, profeticamente - que a morte de Luís XVI tornará
inevitável na Europa uma guerra de uma escala inédita . Por conseguinte,
fica espantado ao ver as festividades brutais que parecem saudar a execu
ção passado o choque imediato.
O sang ue dele correu e os meus ouvidos foram atingidos pelos gritos de ale
gria de oitenta mil homens armados . . . Vi os colegiais do Quatro Nações•
atirarem os chapéus ao ar; o sangue dele correu e alguns molharam nele
os dedos, uma pena, um pedaço de papel; um provou -o e disse, 'Il est bou
grement salé' [uma alusão ao gado que era engordado nos pântanos salga
dos (pré-salé) ] . Nas escadas do patíbulo, um dos carrascos vendeu e
distribuiu saquinhos de cabelo e a fita que o atava; cada um tinha um
pedaço da sua roupa ou um vestígio sangrento daquela cena trágica. Vi pes
soas a passar de braço dado, a rir, a conversar familiarmente como se esti
vessem numa festa .
Virtude e Morte
16
Inimigos do Povo?
Inverno-Primavera de 1 793
Numa altura e m que tudo foi desfigurado e pervertido, o s homens que per
manecem fiéis à liberdade, apesar da máscara de san_g ue e imundície com
que as atrocidades a cobriram, são muitíssimo poucos. Encurralados vai
para dois anos entre o terror e a contestação, os Franceses habituaram-se à
escravidão e apenas dizem o que pode ser dito sem perigo. Os clubes e os
piques, abafando toda a livre iniciativa, acostumaram as pessoas à dissi
mulação e à vileza, e se se deixar as pessoas adquirir estes tristes hábitos
apenas terão a felicidade de trocarem de tirano. Dado que os líderes dos
j acobinos, até ao mais honesto dos cidadãos, fazem a vontade aos cortado
res de cabeças, tudo o que existe hoj e resume-se a uma corrente de vilania
e mentiras que tem o primeiro elo enterrado na imundície .
viaj a para sul, até aos Downs . A uns oito quilómetros a norte d e Dorking,
perto da aldeia de Mickleham, Germaine de Stael alugou uma casa de
estilo jorgiano conhecida por Juniper Hall como local de reunião para os
sobreviventes do Clube de 1 789 e, em especial, para o seu inconstante
amante, Narbonne . Apesar de ela só ter chegado a Inglaterra em Janeiro
de 1 79 3 , a casa está aberta para qualquer um dos seus amigos de Paris e
para muitos deles Juniper Hall torna-se um refúgio abençoado da pobreza
e do tédio . Entre os hóspedes regulares contam-se Lally-Tollendal,
Mathieu de Montmorency, B eaumetz, Jaucourt e a amante, a belíssima
viscondessa de Châtre, Stanislas Girardin ( que naturalmente pediu que
lhe mostrassem o único lugar da região associado à memória de
Rousseau) e o vice -comandante de Lafayette em 1 789, o general d'Arblay.
A sociedade do Surrey, de Leatherhead a Reigate, divide -se profunda
mente entre escandalizados e fascinados. Se há resmoneios em Fetcham e
West Humble, em Mickleham os Lockes de Norbury Park recebem com
frequência a colónia francesa . É aqui que os exilados conhecem S usanna
Phillips, filha do musicólogo Dr. Charles Burney.
Em Novembro, a irmã da Mrs. Philips, Fanny, de quarenta anos de
idade, irresistivelmente atraída para um grupo que exibe um enorme exo
tismo social e cultural, faz-lhes a primeira visita. "Não é possível imaginar
nada mais encantador e fascinante do que esta colónia", escreve ela ao
pai, desnecessariamente preocupado com o efeito na moral da filha da sua
exposição aos costumes franceses. À semelhança de quase todas as pes
soas fora do círculo de Lansdowne, ela antipatiza de imediato com
Talleyrand mas não tarda a cair sob o feitiço do seu considerável encanto.
"É inconcebível como o Monsieur de Talleyrand me converteu. Passei a
considerá -lo um dos melhores e mais encantadores membros desta nota
bilíssima companhia. As suas capacidades de entretenimento são espanto
sas, quer em termos de informação, quer na mofa . " Fanny fica bastante
impressionada com a manifesta indiferença do grupo aos prazeres gros
seiros da aristocracia rural do Surrey e com a vivacidade modesta com que
se lançam em todo o tipo de discussões - sobre história ( especialmente a
francesa ) , teatro, poesia e filosofia .
Ainda mais espantoso é o modo como todos eles seguem a liderança
de Germaine de Stael nos seus j ogos intelectuais. Ouvem-na ler excertos
da sua Apologie de Rousseau e do seu dramático ensaio em defesa do suicí
dio, De l 'Infiuence des Passions sur le Bonheur des Individus et des Nations.
Tipicamente, Talleyrand elogia a obra mas critica o modo como de Stael
a lê, num estilo cantarolado, como se fossem, diz ele desagradavelmente,
versos. Mais penosa para Fanny é a récita que Lally oferece do seu drama
histórico A Morte de Strafford. Ela vê-o murmurar os versos ao j antar para
os conseguir recitar de cor. A declamação está prestes a começar quando
é notada a ausência de D' Arblay. Passado algum tempo, Germaine quer
Simon Schama 1 CIDADÃOS
começar mas Talleyrand protesta que " cela !ui fera de la peine" ( ele vai ficar
com pena ) e sai a mancar em busca do ausente.
Na inocência com que vê o grupo de exilados, Fanny j ulga que
Talleyrand está a ser bondoso ao suj eitar d' Arblay ( que quase de certeza
se escondeu algures com uma garrafa de Porto ) à actuação de Lally. Os
"berros e o ribombar alternados da sua voz . . . fatigaram-me excessiva
mente ", admite ela, sem no entanto lhe ocorrer que Talleyrand foi
matreiro ao desentocar o soldado. Fanny fica demasiado comovida com a
profunda melancolia que se apodera do grupo perante a notícia da exe
cução do rei para se aperceber das estratégias subtis das suas políticas
sexuais . Jaucourt e a viscondessa de Châtre e Narbonne e Germaine
vivem j untos às claras. Aos vinte e sete anos de idade, Germaine, não
sendo uma beldade clássica, floresceu para uma mulher madura que exala
a sua personalidade como se fosse um aroma fortíssimo . Aliás, esta perso
nalidade parece ser demasiado vincada para o gosto de Narbonne ( ela
deu -lhe um filho em Novembro, em Genebra ) , que detesta a chantagem
moral de Germaine, com ameaças de suicídio se ele ceder à sua fantasia
trágica de se deslocar a Paris para testemunhar em nome do rei . C om
Narbonne cada vez mais distante, ela volta a cultivar Talleyrand, tanto
para provocar Narbonne ( sem sucesso ) como para o libertar de Adelaide
de Flahaut, com quem evidentemente antipatiza .
Na memorável caracterização de D uff Cooper• ( e ele saberia) , é como
se As Ligações Perigosas tivessem sido transportadas para a paisagem de
Sensibilidade e Bom Senso. Durante muito tempo, Fanny, apaixonada pelo
galante d' Arblay, está sublimemente a leste de todas aquelas intrigas.
A outra abanadela do dedo admoestador do D r. B urnay, ela responde
indignada: "Penso que não conseguiríeis passar um dia com eles e que não
vedes que o seu comércio é de amizade pura mas exaltada e elegante . "
Mas quando finalmente s e apercebe d o que s e passa, ela censura
Germaine - que a acolheu sob a sua espaçosa asa - com uma frieza cho
cada . Quanto a d' Arblay, é salvo do antro de iniquidade desposando a vir
tuosa Fanny e iniciando uma vida como uma curiosidade encantadora
entre a aristocracia rural inglesa.
Talvez houvesse destinos piores do que desposar Fanny Burney. Em
Março, a situação de Talleyrand agrava-se consideravelmente . Gasto o
dinheiro, vê-se obrigado a pôr a biblioteca à venda, o que lhe rende umas
míseras 7 5 0 libras. Talleyrand muda-se da casinha de Woodstock Street
para aposentos mais diminutos em Kensington Square . No dia 30, é ofi
cialmente proscrito em França, o que significa que os seus bens e os da sua
família passam a pertencer à República . Finalmente, em Maio, ao abrigo
• Alfred D uff C ooper ( 1 8 90- 1 9 54 ) , diplomata e político britânico, autor de uma biogra
fia de Talleyrand e que manteve inúmeras relações amorosas extra-conj ugais. ( N. do T. )
583
Não é provável que j ulgasse a sua carreira acabada aos trinta e nove
anos de idade . Talleyrand garantiu a Adelaide de Flahaut que voltaria e
disse a Germaine para continuar à procura de uma casa j unto ao Lago
Genebra, mas para já ele é inegavelmente uma baixa da guerra com a
Grã -B retanha que sempre considerou desastrosa para os interesses fran
ceses. A sua única esperança é que Dumouriez herde a estratégia de
Lafayette de usar a popularidade militar na frente contra os jacobinos de
Paris. E sta é efectivamente a estratégia do general mas no Inverno de
1 79 2 - 1 7 9 3 a sua concretização torna -se cada vez mais difícil. O seu plano,
a seguir a Jemappes, foi criar uma república belga independente que
negasse o Sul da Holanda aos Austríacos sem levar os britânicos a entra
rem na guerra . Isto implicou apoiar o mais conservador dos dois grupos
políticos belgas com aspirações, os " estatistas", contra os republicanos
democráticos. Foi uma decisão calculada de cooptar a elite belga que lide
rou a revolta contra os Austríacos e de evitar alienar a maioria da popu -
lação estendendo o anticlericalismo francês a um dos países católicos mais
pios da Europa.
Era efectivamente a única política com alguma hipótese de garantir a
lealdade da B élgica à França, uma vez que, como Dumouriez compreen
deu, a rebelião contra a Á ustria decorreu da determinação das províncias
de protegerem as instituições tradicionais contra as reformas imperiais . No
' Deputado, especialista em finanças e autor do " Decreto sobre a administração revolu
cionária francesa dos países conquistados", aprovado pela C onvenção. ( N. do T )
' Em Neerwinden, a 1 8 d e Março d e 1 79 3 . ( N. do T )
585
X Principais batalhas
181 Campos vendeianos em Maio de 1 793
�O Km
contra os seus membros . Dado o tom geral do seu jornalismo, não é difí
cil. O Tribunal Revolucionário elabora uma nota de culpa com dezanove
páginas, citando excertos do Journal de la République, no qual Marat canta
as virtudes de uma ditadura revolucionária e lamenta que se tenham pou
pado umas centenas de cabeças para se preservar centenas de milhar de
inocentes. Marat denunciou repetidamente os associados de Roland - que
incluem Claviere, B rissot e a maioria dos líderes girondinos - como "esta
distas" ( um termo profundamente insultuoso no vocabulário de Marat) ,
"cúmplices criminosos d a realeza ", "inimigos d e toda a liberdade e igual
dade ", "charlatães", "homens atrozes que tentam diariamente enterrar
-nos ainda mais na anarquia e que procuram acender as chamas da guerra
civil" . Recorrendo ao voto oral, no qual o próprio Marat insistiu aquando
do j ulgamento do rei, a C onvenção confirma a acusação com 22 1 votos
contra 93, sendo que se encontram 1 2 8 deputados em missão e 2 3 8 estão
ausentes.
Os acontecimentos que se seguem transformam-se num fiasco peri
goso para os girondinos . Depois de fugir à polícia durante três dias, Marat
acaba por se entregar e fica detido numa sala espaçosa da C onciergerie,
onde recebe delegações de funcionários da C omuna e outros cidadãos,
todos eles desej osos de j urar fidelidade ao Amigo do Povo perseguido . No
dia 24, ao entrar no tribunal, é saudado por uma gigantesca aclamação
que se vai repetindo até que o próprio Marat se vê obrigado a pedir silên
cio aos seus apoiantes . Marat defende -se com grande agilidade e convic
ção, declarando, com alguma hipocrisia, que muitas das passagens
aparentemente incriminatórias foram tiradas do contexto, que nunca pre
gou "assassínios nem pilhagens" - pelo contrário, defendeu a implemen
tação de medidas enérgicas para evitar precisamente esses males -, que
nunca apelou à dissolução da C onvenção - o que disse foi que a assem
bleia perseveraria ou cairia em função dos seus actos e declarações. Os j uí
zes, apesar de aprovados em Março pelos girondinos, demonstram
simpatia pelo réu e o acusador público, Fouquier-Tinville, parente de
Camille Desmoulins, é menos que rigoroso no interrogatório. Além disso,
todos eles aceitam o argumento de Marat de que as suas denúncias foram
j ustas, patrióticas e apontaram a alvos generalizados.
A absolvição transforma-se num espectacular triunfo pessoal. Lançam
-lhe coroas de louros; o seu "largo rosto amarelo ", como descreve
Michelet, ri de prazer enquanto Marat é levado em ombros até à
C onvenção. A multidão, em delírio, desfila a cantar pelas coxias da assem
bleia. No dia 26 de Abril, os jacobinos dão uma jête especial em sua honra;
a multidão que se j unta para celebrar o seu herói é tão grande que uma
das bancadas se desmorona sob o peso dos espectadores .
Dizer q u e o j ulgamento de Marat foi u m desastre para os girondinos
seria pecar por defeito. O s girondinos tinham levantado a imunidade de
615
contra vós . " N o fim, decide -se que a s exigências serão submetidas à apre
ciação do C omité de Salvação Pública.
É óbvio que as coisas não vão ficar assim. D ois dias depois, a 2 de
Junho, um domingo, com as pessoas dos bairros e das aldeias vizinhas
congregadas na cidade, uma imensa mole humana cerca a C onvenção.
A maioria das estimativas coloca o número dos manifestantes em oitenta
mil, quase todos armados. Juntaram-se para ouvir o relatório do C omité
de Salvação Pública e a resposta dos deputados, e deixam claro que se as
suas exigências não forem satisfeitas o preço a pagar será elevado. No dia
29 chegaram a Paris as notícias de uma rebelião contra o município j aco
bino de Lyon, o que confere credibilidade à declaração do comité revolu
cionário de que está em marcha uma conspiração contra -revolucionária .
Cedo se torna evidente que a C onvenção está disposta - embora não
propriamente desej osa - a aceitar as exigências de forma a evitar um mas
sacre generalizado ou a cedência de todo o poder efectivo ao comité revo
lucionário. Em nome do C omité de Salvação Pública, Delacroix aceita a
formação de um exército revolucionário pago a quarenta soldos por dia,
mas B arere propõe que os girondinos em causa sej am suspensos em vez
de detidos, e mesmo assim por um período de tempo determinado.
A proposta não vai ao encontro das aspirações dos sans-culottes, que
começam a ficar mais furiosos com o avanço dos trabalhos. Alguns depu
tados levam abanões e empurrões; o lenço elegante de B oissy d' Anglais
é - lhe arrancado do pescoço; Grégoire é acompanhado por quatro guardas
até à retrete. Quando Hanriot, no comando dos guardas postados no exte
rior da câmara, recebe uma mensagem do presidente, Hérault de
Séchelles, para pôr cobro à intimidação, ele retorque : "Dizei ao cabrão do
vosso Presidente que ele e a sua Assembleia se podem ir foder; e se daqui
a uma hora não nos entregarem os Vinte e Dois, mandamo-los a todos
pelo ar. " Para dar a entender que não está a brincar, Hanriot manda des
locar canhões para j unto das portas do Manege.
Desesperado para encontrar uma maneira de afirmar a sua autoridade
ou pelo menos de dar um ar de livre -arbítrio político, B arere sugere que
os deputados abandonem em massa a câmara e saiam a confraternizar
com os homens armados. Na sua óptica, o gesto eliminará a perigosa pola
rização entre soldados e políticos. Cerca de cem saem atrás de Hérault de
Séchelles como colegiais temerosos. A luz brilhante do sol revela-lhes
Hanriot, a cavalo, postado à frente de fileiras e fileiras de guardas bigodu
dos e imponentes que brandem as armas com um ar de manifesta irrita
ção . Hérault pede a Hanriot que respeite a obrigação de libertar as
entradas e as saídas do Manege . O comandante responde garantindo -lhe
que ninguém tem dúvidas quanto ao patriotismo dele mas pede -lhe que
prometa "pela sua cabeça" que os vinte e dois vilãos serão entregues no
prazo de vinte e quatro horas. Hérault não está preparado para prometer
Simon Schama 1 CIDADÃOS
tal coisa ( especialmente tendo em conta o preço ) , pelo que os canhões são
carregados e apontados à câmara . A coluna patética de deputados, sob os
olhares ameaçadores dos soldados, dá a volta ao perímetro do j ardim em
busca de uma saída mas todas as portas estão bloqueadas por guardas. Por
fim, regressam à câmara e dão com ainda mais seccionistas sentados j unto
dos deputados da Montanha.
Chegou o momento crucial. A C onvenção é tomada de um silêncio
surdo de culpa, medo e vergonha . O primeiro a falar é o deficiente
Georges C outhon, na sua cadeira de rodas, que diz que uma vez que os
deputados, ao confraternizarem com os guardas, ficaram a saber que esta
vam "livres" e que o bom povo apenas queria a eliminação dos malfeito
res, podem seguramente prosseguir com a sua acusação. De seguida, lê o
documento acusatório contra Claviere, Lebrun e vinte e nove deputados,
dez dos quais pertencem ao Comité dos D oze . Terminada a votação,
Vergniaud, numa atitude de desafio sarcástico, ergu e - se e oferece à
Convenção um copo de sangue para saciar a sede.
Tudo isto acontece com Hérault de Séchelles na cadeira da presidência,
o que dá uma ideia de como a Revolução se recordou de que se trata do
mesmo j ovem presidente do Parlamento de Paris que, na década de 80 do
século XVIII, foi glorificado como o modelo da eloquência j urídica. Tal
como Lepeletier, o seu amigo morto, ele converteu - se num j acobino
capaz, sempre que necessário, de fazer as denúncias da praxe da malevo
lência da sua própria classe aristocrática. Nada disto foi com má fé . Todos
os indícios são de que Hérault de Séchelles conseguiu substituir o seu sen
timento aristocrático de elite pelo da tribuna do cidadão. Mas o que ele
abandona no dia 2 de Junho de 1 79 3 é o último vestígio da pretensão de
que a Revolução se baseia na legalidade ou mesmo na representação - as
questões que, conforme ele mesmo disse em 1 789, definiriam a vida ou a
morte da França.
Talvez a sentença proferida naquele dia tenha sido toldada pelas pai
xões partidárias nas quais os anos centenários da Revolução dividiram os
historiadores entre novos girondinos e j acobinos . Os historiadores român
ticos como Lamartine viram na Gironda os seus antepassados políticos;
Lamartine acendeu a sua prosa na pira funerária da sua extinção política .
Os historiadores marxistas da geração seguinte consideraram este senti
mentalismo típico da pieguice burguesa dos estômagos fracos e do patrio
tismo flácido. O relato mais recente e excelente da insurreição ecoa a
imitação do marxista Albert S oboul da denúncia robespierrista, que diz
que os girondinos mais do que mereceram perecer porque " denunciaram
o rei mas furtaram-se à sua condenação; procuraram o apoio do povo
contra a monarquia mas recusaram governar com ele " .
Não é preciso subscrever o "mito neoliberal d a Gironda" para des
montar esta horrível casualidade . A preferência por uma república não
62 1
1 O SANGUE D O M ÁRTIR
O obj ecto da sua atenção está em casa, na rua dos Cordeliers, adoen
tado . Marat, que nunca foi particularmente saudável, desenvolveu recen
temente um devastador distúrbio dermatológico que irrompe
periodicamente e lhe transforma a pele numa massa de escamas e chagas.
O único alívio para a sua psoríase artrítica é a imersão num banho frio.
627
Quando é acometido pela doença, Marat retira -se para a casa de banho e
continua a trabalhar numa pequena mesa improvisada a partir de uma
caixa de madeira virada ao contrário que tem ao lado da banheira . O calor
tórrido de meados do Verão terá provavelmente piorado o estado de
Marat, que está ausente da C onvenção há bastante tempo. A 1 2 de Julho,
um dia depois da chegada de Charlotte C orday a Paris, dois deputados
visitam-no para inquirir sobre a sua saúde. Um deles é o pintor Jacques
-Louis David, que o encontra "a escrever os seus pensamentos para a
segurança da patrie" ao seu modo incansável, com o braço direito fora do
banho. As paredes ostentam um mapa dos departamentos da República,
emblemas da Revolução e um par de pistolas cruzadas por baixo do qual
se vê a legenda "La Mort" . Possivelmente chocado com este assustador
lema, David desej a ao Amigo do Povo uma recuperação rápida, ao que o
outro replica, "Dez anos a mais ou a menos na duração da minha vida não
me preocupam minimamente; o meu único desej o é poder dizer, com o
meu último alento, 'alegro-me porque a pátria está salva ' " . Charlotte
Corday não teria dito melhor.
Apesar de deitado, Jean-Paul Marat está no topo dos seus poderes e da
sua influência . D esde a tentativa frustrada dos girondinos para o conde
nar, em Abril, tudo correu a seu favor. No dia da sua absolvição pelo
Tribunal Revolucionário, uma mulher colocou-lhe uma coroa de rosas na
fronte . Um mês depois, a vitória tornou-se ainda mais perfumada quando
viu os seus piores inimigos proscritos e expulsos da C onvenção. O apare
lho institucional da ditadura revolucionária que advogou foi implemen
tado, pelo que as brutalidades caóticas da rua serão substituídas pelo
aparelho sistemático da repressão estatal. Os enragés, que ele detesta quase
tanto como os girondinos, não conseguiram tirar vantagem do 2 de Junho
e o próprio Varlet foi excluído dos j acobinos . Marat é ouvido na
C onvenção, respeitado na C omuna e cumulado de lisonjas nas secções.
Parece ter-se tornado um com a pessoa que criou : Amigo do Povo, orá
culo d a Revolução, desmascarador de conspirações, mortificador dos
hipócritas.
Marat fez um longo percurso desde os seus tempos de homem de
letras, médico e cientista, quando viaj ou por toda a Europa em busca de
reconhecimento para as suas teorias sobre óptica, aeronáutica e terapia
eléctrica. A sua vida política, tal como a de Jacques-Louis David, foi fruto
de uma amarga rej eição pessoal. No caso de David, a recusa da Academia
de expor as obras do seu aluno predilecto (e prodigiosamente dotado ) ,
D rouais, persuadiu - o d e que a instituição estava nas mãos d e uma cama
rilha aristocrática . Desta convicção foi um pequeno passo até defender a
sua destruição por incompatibilidade com a liberdade revolucionária, e a
um compromisso político que fez do pintor deputado à C onvenção e
membro do Comité de Segurança Geral. A incapacidade de Marat de obter
S imon Schama 1 CIDADÃOS
MONTANÉ : Foi daqueles j ornais que soubestes que Marat era um anar
quista?
C ORDAY: Sim. Soube que ele estava a perverter a França . Matei um
homem para salvar cem mil . Além do mais, era um açambarcador; em
Caen prenderam um homem que comprava mercadorias para ele . Eu j á era
republicana muito antes da Revolução e nunca me faltou energia.
MONTANÉ : O que quereis dizer com "energia" ?
CORDAY: Refiro-me àqueles q u e põem os s e u s interesses d e lado e sabem
como se sacrificar pela pátria.
MONTANÉ : Não haveis praticado, antes de golpear Marat?
C ORDAY: Oh! O monstro [Montané] toma -me por uma assassina ! ( Neste
momento [lê-se no registo do tribunal] , a testemunha parece violenta
mente emocionada ) .
MONTANÉ : Mas o relatório médico provou que se tivésseis desferido o
golpe deste modo ( demonstra com um movimento largo ) , não o teríeis
morto .
C ORDAY: Golpeei-o como haveis descoberto . Foi sorte .
MONTANÉ : Quem foram as pessoas que vos aconselharam a cometer este
assassínio?
C ORDAY: Eu nunca teria desferido semelhante ataque a conselho de ter
ceiros. E u fui a única que concebeu e executou o plano.
MONTANÉ: Mas como quereis que acreditemos que não fostes aconse
lhada a fazer isto quando nos dizeis que considerais Marat a causa de todos
633
leninismo, "aqueles que querem fazer o bem neste mundo só podem dor
mir no túmulo . "
III OBLITERAÇ Õ E S
rosa rubiginosa
avelã
lúpulo
sorgo
CARANGUEJO ( quinto dia )
laranj a amarga
solidago
milho
castanha
CE STO
anuncia que "não deve existir nenhum culto público a não ser o da liber
dade e da santa igualdade", e demite- se, seguido por Julien, um pastor
protestante de Toulouse, que declara que " o mesmo destino espera todo o
homem virtuoso, quer adore o Deus de Genebra, Roma, Maomé ou
Confúcio " .
Três dias mais tarde, realiza -se u m festival e m Notre Dame, "desbapti
zada " para Templo da Razão. No interior, por baixo das abóbadas góticas,
foi erigida uma vistosa estrutura greco- romana . Numa montanha de teci
dos de linho pintados e pasta de papel, construída no fim da nave, a
Liberdade ( representada por uma cantora da Ó pera ) , vestida de branco,
de barrete frígio e pique na mão, curva -se perante a chama da Razão e
senta -se numa cama de flores e plantas. Mercier assiste a várias cerimó
nias similares organizadas pela C omuna, em Saint- Gervais, onde a igreja
"cheirava a arenque", e em Saint-Eustache, onde as actrizes caminham
sobre pranchas chiantes em cenários com cabanas em bosques e escarpas
rochosas . Mercier horroriza- se ao ver, em redor do coro, "garrafas, salsi
chas, paios, pâtés e outras carne s " .
E m Paris, os jacobinos estão divididos e m relação à descristianização.
Os apoiantes de Hébert são entusiastas, em especial Momoro, o auto
designado "impressor da liberdade " . Danton queixa -se dos excessos retó
ricos mas depois, no fim de Outubro, pede à Convenção autorização para
se retirar para a sua casa, em Areis . Porém, alguns dos seus aliados, tais
como Thuriot, são descristianizadores confessos, possivelmente para com
bater as acusações de que estão a "amolecer" . Robespierre, por outro lado,
fica profundamente chocado com o que considera ser a imoralidade de
uma ofensiva que se tentou fazer passar por "filosofia " . Na sua opinião, os
festivais da Razão são "farsas ridículas", encenadas por "homens sem
honra nem religião" . Ao aviso que Fouché coloca nos cemitérios, ele con
trapõe que a morte não é um "sono eterno", mas sim "o princípio da
imortalidade " . É provavelmente a sua influência que impede a
Convenção de aceitar o convite de assistir em peso ao espectáculo em
Notre Dame.
Mas em Lyon, a autoridade de Fouché para realizar cerimónias de
descristianização mantém-se incontestada. Na qualidade de représentants
-en-mission na cidade reconquistada aos federalistas no princípio de
Outubro, são - lhe concedidos poderes quase ditatoriais. Fouché começa
por remover todos os vestígios de iconografia cristã da torre de relógio
medieval de Saint - Cyr, substituindo -os pelo calendário revolucionário.
No dia 10 de Novembro, os restos mortais de Chalier são conduzidos em
triunfo pelas ruas ( a cabeça será posteriormente enviada para Paris para
receber as honras do Panteão, como aconteceu com a de Marat ) . Um
asno com as vestes e a mitra de Lamourette, o bispo constitucional (que
orquestrou o "beij o fraterno" na Legislativa de 1 7 92 ) e com uma Bíblia e
661
' "Janotas", designação dos jovens elegantes e ociosos que, organizados em bandos
armados, se rebelaram contra os sans-culottes e os jacobinos em 1793-1795, integrando o
'
"Terror Branco". (N. do T.)
Simon Schama 1 CIDADÃOS
A Política da Torpeza
"Não conheço nada que sej a tão cruel como acordar numa cela, num
lugar onde o pesadelo mais horrível é menos horrível do que a realidade . "
Na sua eminência d e ministro d o Império Napoleónico, Jacques- Claude
Beugnot recorda com horror e repugnância os meses que passou na
Conciergerie, em finais de 1 7 9 3 , e espanta-se por ter sobrevivido quando
tantos outros - centenas -, detidos sob o mais ténue pretexto, saíram de
carroça para um encontro com a guilhotina .
Durante o Terror, funcionam em Paris mais de cinquenta prisões. A Lei
dos Suspeitos, de 1 7 de Setembro, tornou os critérios para detenção tão
elásticos que engrossou a população prisional para cerca de sete mil reclu
sos no princípio de Dezembro. Têm de ser encontrados novos espaços.
Alguns, como o antigo quartel-general dos rendeiros fiscais ( um grupo deles
será guilhotinado na Primavera ) e o esplêndido Palácio do Luxemburgo
terão sido requisitados com alguma justiça poética, mas o critério principal
é o espaço disponível; casernas, conventos, escolas e os célebres seminário
e biblioteca jansenista de Port-Royal (rebaptizado Port-Libre ) são converti
dos em locais de encarceramento.
De todas estas prisões, a Conciergerie, na Ilha da C idade, é a que tem
a reputação mais sinistra ( com a húmida e insalubre Sainte -Pélagie logo a
seguir) . Beugnot chama -lhe "uma vasta antecâmara da morte ", pois além
de centro de detenção antes da comparência dos detidos perante o tribu
nal e cárcere de criminosos de direito comum, alberga também aqueles
que aguardam a execução depois de sentenciados . B eugnot passa muitas
noites em claro, a ouvir os soluços e os gemidos que chegam indistinta
mente dos doentes e dos aterrorizados, enquanto os inúmeros cães da pri
são ladram ao sinistro badalar das horas no relógio da torre .
Mesmo pelos padrões da época, a Conciergerie é um lugar desgraçado,
um lugar que consegue engendrar uma miséria fenomenal dentro de um
espaço arquitecturalmente grandioso (também foi residência de prínci
pes ) . Tal como relata outro dos residentes que sobreviveu para contar a
673
exilado para a ilha, "é um homem livre, um patriota par excelence . . . são
cidadãos puros . . . que comem o pão que ganham com o suor da sua
fronte; que amam o trabalho, que são bons filhos, bons pais, bons mari
dos, bons parentes, bons amigos e bons vizinhos . . . " .
A acusação que é feita a Maria Antonieta ( e a todos quantos a segui
ram para a guilhotina durante o Terror) é praticamente a mesma .
Essencialmente, ela é impura no corpo, no pensamento e na acção . As
suas conspirações decorrem axiomaticamente desta torpeza moral. No
interrogatório inicial, conduzido pelo presidente do tribunal, Herman, ela
é retratada como uma mulher ingovernável que forçou o rei, por exem
plo, a vetar a legislação anticlerical e a organizar a fuga para Varennes .
Como todas as mulheres incontroláveis, é simultaneamente ávida de
dinheiro e pródiga a gastá -lo, "passando o ouro dos patriotas para fora do
país " . A "orgia" infame dos guardas suíços em Versalhes, em 1 789, é outro
exemplo da sua sede de domínio. Uma das quarenta e uma testemunhas
de acusação diz ter visto garrafas debaixo da cama dela, o que o conven
ceu de que ela queria embebedar os soldados .
Os testemunhos sobre o carácter imoral de Maria Antonieta culmi
nam com a notória intervenção de Hébert e a declaração que ele induziu
Louis - Charles a assinar, confessando que a mãe e a tia o ensinaram a
masturbar- se e que o obrigaram a cometer incesto. Alguns desses esfor
ços tinham-no inclusivamente ferido, e só quando foi subtraído à pre
sença maculadora delas, afirma Hébert ( contradizendo claramente a
verdade ) , é que a sua saúde melhoro u . E houve outros actos através dos
quais ela perdeu o direito de ser considerada uma boa mãe . Em vez de
educar o filho como um republicano virtuoso, tentou doutriná -lo com
crenças monárquicas. A prova está no facto condenador de ele ser o pri
meiro a ser servido às refeições por via dos seus direitos soberanos
enquanto "Luís XVII" . Um Coração S agrado, trespassado por uma flecha
( uma dádiva de Madame Elisabeth, diz a rainha - para mal da cunhada,
infelizmente ) , o famigerado totem dos bandidos vendeianos, foi desco
berto entre os haveres do garoto, o que indica que ele estava a ser edu
cado para mascote daquela horda bárbara . Não se contentando com a
destruição de um dos C apetos masculinos, ela estava determinada a fazer
o pior com o outro . Tudo aquilo são provas conclusivas do seu carácter
"antinatural", apenas "féconde" ( uma palavra que não foi certamente
escolhida ao acaso ) em intrigas.
Mais concretas são as cartas, apresentadas por Fouquier-Tinville, o
procurador público, que revelam a rainha envolvida numa correspondên
cia traiçoeira com a corte austríaca quando ambos os países se estavam a
preparar para a guerra . No entanto, estas provas, que são verdadeira
mente incriminatórias, acabam algo abafadas pelo assassínio de carácter.
É dito ao j úri que a mulher mirrada e de cabelos brancos que têm à frente
677
aos girondinos, condenados e executados dez dias antes. Mas também foi
retratada como uma esposa antinatural, como alguém que transformara o
seu lar - um lugar que, à luz da ortodoxia j acobina, era a sede da domes
ticidade patriótica - n u m ninho de conspirações. Tinha demasiado ar de
salão, uma instituição que sabia a nepotismo e adulações aristocráticas.
De facto, o período em que decorreram estes julgamentos marca a
fase mais tempestuosa da política sexual da Revolução. Registam-se zara
gatas entre as feministas da Sociedade das Mulheres Republicanas e as
poissardes por causa de saber se é ou não é apropriado as mulheres usa
rem o cocar e o bonnet rouge. Claire Lacombe e outras militantes são da
opinião de que as mulheres não só devem ser autorizadas como obriga
das a fazê -lo, e até tentam alistar-se na Guarda Nacional. Em finais de
Setembro, a C onvenção acede a algumas das exigências mais radicais em
termos de vestuário mas no dia 28 de Outubro dá-se um encontro vio
lento entre os dois grupos, que acaba com as feministas a serem feroz
mente espancadas . A C onvenção volta atrás e no dia 5 de Dezembro
ordena o encerramento de todos os clubes revolucionários femininos de
Paris. O decreto é promulgado três dias antes do julgamento e execução
de Madame Roland e dois dias depois dos de Olympe de Gouges . A actriz
teve a desfaçatez de se oferecer como defensora de Luís XVI e agravou o
pecado ao advogar abertamente soluções federalistas e referendos popu -
lares para determinar a forma de governo. Mesmo depois da sua deten
ção, em 20 de Julho, tentou publicitar os seus ataques directos a
Robespierre e Fouquier-Tinville através de amigos que os afixaram nos
lugares públicos de Paris.
Tendo em conta os esforços dispendidos para retratar estas mulheres
como desviantes perigosas das normas domésticas prescritas, é notável
que praticamente todas elas ( exceptuando Jeanne Du Barry) se tenham
revelado, nas suas cartas de despedida, modelos de maternidade terna e
conscienciosa. Na sua defesa apaixonada da rainha, Germaine de Stael
sublinhou a sua devoção abnegada aos filhos doentes e apelou às mulhe
res de França, em nome da " maternidade sacrificada", que exigissem que
a deixassem reunir- se com o filho. Olympe de Gouges escreveu ao filho,
que servia no exército, dizendo - lhe para transmitir a sua opinião acerca
da perversão inj u sta da Revolução . Manon Roland, na comovente carta
que escreveu à filha de doze anos de idade, Eudora, recordou-lhe os laços
mais profundos que as uniam:
baixo com o Povo . Se eram a favor de alguma coisa, era de uma noção
anárquica de governo popular, sempre armado para impor a vontade do
povo aos seus mandatários. Também apoiavam a extensão do poder do
Estado à economia . No número 2 7 3 do Fere Duchesne, Hébert argumenta
que "a terra foi feita para todas as criaturas vivas, e da formiga ao altivo
insecto chamado homem, todos têm que encontrar a subsistência na pro
dução desta mãe comum . . . O comerciante deve viver da sua indústria, é
certo, mas não deve engordar com o sangue do pobre . A propriedade é
[simplesmente] existência e é preciso comer, sej a qual for o preço " . Em
consonância com este conceito do Estado como protector da subsistência
mínima ( uma visão mais ou menos partilhada por Robespierre e Saint
Just ) , Hébert pretendia uma política mais agressiva de requisições para
responder às crises locais . A título de expediente temporário, para garan
tir o abastecimento adequado e preços baixos, toda a produção de vinho
e cereais deveria ser obrigatoriamente comprada pelo Estado ( indemni
zando os produtores) . Num discurso à Comuna, a 14 de Outubro,
Chaumette propôs mesmo que o Estado se reapoderasse das oficinas e
manufacturas encerradas ou abandonadas pelos empresários emigrados
( um esquema que será levado a sério oitenta anos mais tarde, pela
Comuna de Paris, em 1 87 1 ) .
Mas acima de tudo, os hébertistas eram a favor de uma incansável vigi
lância, denúncia, acusação, humilhação e morte . A imagem que o Fere
Duchesne tinha da República era uma espécie de igualitarismo de balneá
rio em que os bons bougres' não têm nada a esconder uns dos outros e se
abraçam numa fraternidade musculada . Hébert gostava muito de dizer
que "o homme pur diz sempre o que pensa, chama os bois pelos nomes,
nunca manipula as pessoas e se na sua fúria fere um qualquer desgraçado
por engano, pede -lhe desculpa e levando - o à taberna mais próxima para
beber uns copos " . (O francês é muito melhor: étouffer une demi-douzaine
d'enfants de choeur. )
Mas a ascendência hébertista encontrou resistência. Não obstante a
aparência de capitulação perante a intervenção popular, o controlo j aco
bino da j ornada de 5 de S etembro implicou a resolução da Montanha de
não ficar a mercê da Comuna. Por conseguinte, a maioria dos membros
e esses, tal como os rentiers e os loj istas que enchem as prisões, não valem
a fúria que lhes descarregam em cima .
No número quatro, Desmoulins sugere uma reforma específica ime
diata : a criação de um " comité de clemência", funcionando independen
temente dos comités de Segurança Geral e de Salvação Pública, para
rever casos de acusações ou condenações duvidosas . Trata-se obviamente
de um desafio directo ao Tribunal Revolucionário, que é dominado pela
Comuna. O comité poderá funcionar como uma salvaguarda contra as
denúncias maliciosas e corrigir farsas j udiciais tão clamorosas como a
detenção de um amigo de Desmoulins, que foi acusado de ter oferecido
um j antar a alguém que veio a ser considerado um indesej ável político.
Numa revolução é preciso ser-se cuidadoso, escreve D esmoulins, sem ter
medo de citar Mirabeau ( ainda que em termos menos terra - a - terra do
que o orador) : "A Liberdade é uma cadela que gosta de se deitar num
colchão de cadávere s . "
O Vieux Cordelier faz sensação e torna -se a arma mais potente d o arse
nal dos Indulgents. O seu tom calculado destina- s e intencionalmente à
elite revolucionária, não apenas à da C onvenção mas também às das
secções ocidentais e centrais de Paris, que estão fartas de ser pressiona -
das pela C omuna e que aplaudem a pergunta retórica de Desmoulins:
"Mas será que existe alguma coisa mais noj enta e porca [ordurier] do que
o Pere Duchesne? ". E o j ornal destina -se ainda mais especificamente à
única pessoa da qual, como D anton e Desmoulins bem sabem, depende
o êxito ou o fracasso da sua campanha : Maximilien Robespierre . No
número quatro, D e smoulins vai ao ponto de evocar o facto de terem
andado os dois no Lycée Louis - l e - Grand, um apelo explícito a
Robespierre para que considere as virtudes da humanidade como sendo
consistentes com o patriotismo .
Robespierre é extremamente receptivo ao apelo. Está farto dos des
cristianizadores, que no dia 1 1 de Novembro se atreveram a levar carra
das de obj ectos sacerdotais para a C onvenção para os despej arem sem
cerimónias no chão da assembleia - as gravuras mostram guardas sans
-culottes adornados com mitras e sotainas. Robespierre interveio pessoal
mente para impedir a detenção dos setenta e três deputados que em
Junho tinham assinado uma petição contra a expulsão dos girondinos . De
forma ainda mais surpreendente, tendo em conta o que vai acontecer três
meses mais tarde, Robespierre continua dedicado a Danton e, no dia 3 de
689
Dezembro, defende -o com firmeza das críticas que lhe são feitas nos
Jacobinos, insinuando mesmo que o simples facto de duvidar do patrio
tismo de D anton é fazer o trabalho suj o de William Pitt, que quer ver os
bons patriotas atacarem-se uns aos outros.
Com Robespierre aparentemente inclinado para os Indulgents, estes
atacam com renovado vigor. O utro aliado de D anton na Convenção,
Philippeaux, apresenta um relatório devastador sobre a brutalidade e a
corrupção alegadamente perpetradas por Ronsin e pelos armées révolution
naires em Lyon. Ronsin e Vincent são detidos e é estabelecido o comité de
clemência proposto por Desmoulins. Durante um momento, dá a sensa
ção de que o Terror vai começar a ser desmantelado. Até a famigerada lei
de 14 do Frimário (4 de Dezembro ) , amiúde chamada erroneamente
" constituição do Terror", é promulgada contra aqueles que exerceram vin
ganças brutais em nome da ortodoxia republicana. Embora subordine
" todas as autoridades constituídas" ao Comité de Salvação Pública, põe
cobro ao processo anárquico através do qual os zelotas podiam fazer lei
pelas próprias mãos. Os comités revolucionários locais passam a ter que
enviar um relatório à administração distrital de dez em dez dias; nenhum
funcionário público (incluindo os représentants-en-mission) está autorizado
a expandir ou aumentar leis promulgadas pela Convenção nem a impor
empréstimos forçados ou impostos improvisados. É claro que muito
depende do temperamento do Comité de Salvação Pública mas quando
chegam as notícias da reconquista de Toulon, no dia 1 5 de Dezembro (gra
ças ao general Bonaparte ) , e uma semana depois da decisiva e última
batalha contra os vendeianos, em Savenay, há motivos para os "indul
gentes" esperarem que uma situação militar melhorada reforce os apelos
a uma governação mais relaxada .
Vão ser duramente desenganados. No dia 2 1 de Dezembro, C ollot
d'Herbois, regressado de Lyon, aparece nos Jacobinos, onde ataca os res
ponsáveis ( em especial, Fabre ) pela detenção de Ronsin e admoesta o s
membros d o clube pela s u a pusilanimidade. Falando com a autoridade
espúria de um homem que, depois de combater na frente, regressa para
encontrar a guarda doméstica "amolecida", Collot declara: "Há dois
meses, quando vos deixei, ardíeis com sede de vingança contra os infames
conspiradores da cidade de Lyon . Agora, mal reconheço a opinião pública;
se eu tivesse chegado dois dias mais tarde, se calhar era acusado de
alguma coisa. " E conclui perguntando: " Quem são estes homens que
reservam a sua sensibilité para os contra- revolucionários, que evocam tão
pesarosamente as sombras dos assassinos dos nossos irmãos, que têm tan
tas lágrimas para derramar sobre os cadáveres dos inimigos da liberdade
quando o coração da patrie está dilacerado . . ? "
.
Riouffe, que dirá que o ouviu através da parede, ele lamenta-se por dei
xar a República em tão mau estado, governada por homens que não
fazem a mínima ideia do que é governar. " S e eu pudesse deixar os toma
tes ao Robespierre e as pernas ao C outhon, o Comité talvez durasse mais
algum tempo . "
N o dia 5 d e Abril, D anton, Hérault, D esmoulins e o s outros vão ao
encontro da morte . Observados por uma enorme multidão praticamente
silenciosa, comportam-se com grande dignidade e compostura. Danton
está decidido a mostrar afecto e amizade. Ele e Hérault de S échelles, o
prodígio do Parlamento tornado jacobino regicida, tentam abraçar-se mas
são bruscamente separados pelo carrasco, Sanson. "Não impedirão as
nossas cabeças de se encontrarem no cesto ", terá dito Danton. Mas o seu
último comentário é o melhor. Ao colocar-se à frente da prancha, com a
camisa manchada com o sangue dos seus melhores amigos, Danton diz a
Sanson: "Não te esqueças de mostrar a minha cabeça ao povo . Olha que
vale a pena . "
19
Quiliasmo
Abril-Julho de 1 794
Sabeis que viver ao vosso lado, cuidar da vossa saúde e rodearmo-nos dos
nossos filhos e cuidar da velhice de meu pai sempre foi a minha única
preocupação . . . estaremos j untos em breve, oui mon bon ami, assim o espero .
A dieu, bom e terno amigo, pensai num ser que vive apenas para vós e que
vos ama de todo o coração. O meu pai, a tia e as crianças aqui à minha
volta partilham estes sentimentos . . .
II A E S C OLA DA VIRTUDE
feudal e real. Um dos casos mais chocantes fora a destruição dos túmulos
reais da capela de Saint-Denis. Apesar de as histórias termidorianas de
sans-cullotes a j ogar à laranjinha com os ossos dos Valois e dos Bombons
serem provavelmente apócrifas, um quadro de Hubert Robert, o especia
lista em ruínas, mostra inequivocamente caixões a serem retirados das
sepulturas e lápides a serem derribadas e removidas . Grégoire tinha de ser
cuidadoso nas suas críticas porque a pilhagem de Saint-Denis fora autori
zada por decreto da Convenção, no dia 1 de Agosto de 1 79 3 , e além disso
ele não queria repudiar o ataque oficial aos tótemes do passado . Nenhum
jacobino, nem mesmo naquela fase "instrutória " do Terror, se teria atre
vido a sugerir a reposição das estátuas de Luís XIV e Luís XV nos seus
pedestais em Paris. Mas a partir do Germinal, Grégoire pressionou o
Comité do Ensino Público com um programa activista que afastaria as
hordas vândalas das portas da nova Roma e começaria a "fazer as paredes
falar" a língua dignificada do republicanismo .
No dia 20 de Germinal,2 Grégoire virou a sua atenção para outro
grupo de vândalos, tão perigosos como os iconoclastas: os bibliófagos .
Estes homens, em nome de um republicanismo desorientado, queriam
incendiar bibliotecas, destruindo na totalidade a sabedoria acumulada
antes da Revolução, talvez com algumas honrosas excepções, tais como
as obras do regicida inglês Algernon Sidney e de Jean-Jacques Rousseau.
Estes bárbaros estavam, disse Grégoire, a fazer a obra dos inimigos da
França ao despoj arem-na do seu património cultural; com toda a proba
bilidade, tal como os piores hébertistas, eram agentes do estrangeiro .
O contra - ataque proposto por Grégoire foi a criação de uma grande
bibliografia nacional - a bibliographie française - que compilaria um
registo dos acervos das bibliotecas privadas, que depois poderiam ser dis
ponibilizadas à nação. O registo poderia ser alagado para incluir objectos
conexos de interesse - medalhas e retratos, colecções de instrumentos
científicos e, mais importante ainda, mapas. Só nos ministérios de
Versalhes, informou ele a Convenção, existiam doze mil mapas à espera
de serem catalogados . O Departamento de Paris estava ainda mais
" empanturrado" com activos patrióticos : cerca de 1 8 00 000 volumes, que
constituíram o acervo fundador da biblioteque nationale. D evidamente
organizados para a promoção da virtude republicana, as bibliotecas e os
museus seriam, disse ele, "oficinas da mente humana " , especialmente
concebidas para afastar os j ovens das frivolidades próprias da idade e
conduzi-los a lugares onde poderiam " comungar com os grandes homens
de todos os países e de todos os tempos " .
A outra grande figura deste programa d e instrução republicana foi
Jacques-Louis David. Tinha assumido a liderança da comissão incumbida
III TERMID OR
"inspirar desânimo ", " difundir notícias falsas" ou mesmo " depravar a
moral, corromper a consciência pública e prej udicar a pureza e a energia
do governo revolucionário " poderão ser levados perante o Tribunal
Revolucionário. O tribunal poderá pronunciar apenas uma de duas sen
tenças: absolvição ou morte. Para acelerar a marcha da j ustiça revolucio
nária, não será chamada nenhuma testemunha nem os acusados terão
direito a advogado . Afinal de contas, não são os jurados bons cidadãos,
capazes de chegar sozinhos a um veredicto j usto e imparcial?
Na Convenção, nem todos ficam encantados com estas medidas.
O deputado Rouamps solicita o adiamento da votação ameaçando dar um
tiro na cabeça caso a sua moção não sej a atendida . É claro que
Robespierre consegue insinuar que quem tem obj ecções à proposta de lei
tem algo a esconder e declara que "não há aqui ninguém que não sej a
capaz d e decidir sobre esta l e i tão facilmente como decidiu sobre tantas
outras de maior importância . . . " Robespierre insiste que sej a debatida
ponto por ponto e depois votada, uma moção que é aprovada num
ambiente de nervosa resignação.
A lei de Pradial tem um efeito imediato no ritmo das execuções, que j á
tinham sido aceleradas n a s semanas q u e a antecederam. Com o encerra
mento dos tribunais revolucionários provinciais, excepto um ramo no Sul,
em Orange, que lida brutalmente com os culpados de Toulon, os suspei
tos dos departamentos passaram a ser j ulgados em Paris. Os terríveis
resultados foram os seguintes:
Execuções A bsolvições
Germinal 155 59
Floreal 3 54 1 59
Pradial 509 1 64
Messidor 796 208
Termidor ( 1 - 9 ) 342 84
aparece, passadas três semanas, noutra reumao conj unta dos comités.
Robespierre tem muito menos fé do que Saint-Just no tipo de engenharia
social implícito nos decretos de Ventoso e nas Institutions Républicaines do
seu amigo. Como sempre, a virtude e o terror é que lhe ocupam a mente,
e em vez de alinhar no compromisso deixa perfeitamente clara a sua
intenção de perseguir incansavelmente os vilãos presentes em ambos os
comités.
Robespierre parece ficar isolado, pois B arere persuade Saint-Just, não
obstante a intratabilidade de Robespierre, a fazer um relatório à
Convenção dando conta da unidade do governo e com poucas ou nenhu
mas referências ao Ser Supremo . Além disso, Saint-Just assina uma
ordem - talvez fatalmente para ele - de envio de unidades de artilharia de
Paris para o Exército do Norte. Contudo, apesar de parecer que está a ficar
sem aliados, Robespierre prepara um dos seus grandes apelos maniqueís
tas que distinguem entre as forças da luz e da escuridão. Em último
recurso, ele recusa-se a acreditar que Saint-Just abandone o homem sobre
o qual escreveu com tanta adoração em 1 78 9 .
N o dia 2 6 de Julho ( 8 d e Termidor ) , Robespierre faz a s u a longa ora
ção de duas horas perante a Convenção. Começa de forma bastante inó
cua, declarando que "a Revolução Francesa foi a primeira fundada nos
direitos da humanidade e nos princípios da j ustiça. As outras revoluções
apenas requereram ambição; a nossa requer virtude". Mas de seguida, pri
meiro de forma opaca e depois com total transparência, avisa a assembleia
de que está em marcha uma conspiração que ameaça arruinar a
República. Defendendo -se das acusações de ditadura e tirania, ele leva os
deputados a construir gradualmente a imagem daqueles que tem em
mente quando alude aos "monstros" que "mergulharam patriotas nas
masmorras e levaram o terror a todas as classes e condições". Esses é que
são os verdadeiros opressores e tiranos. S ustentando -se nas doutrinas
básicas da sensibilité revolucionária, declara: "Apenas conheço dois parti
dos, o dos bons cidadãos e o dos maus cidadãos. Acredito que o patrio
tismo não é uma questão de partido, mas sim do coração." No fim do
discurso, embora não tenham sido pronunciados nomes ( com a estranha
excepção de Cambon, o chefe do Comité de Finanças ) , as alusões aos her
deiros de C habot, Chaumette e Fabre deixaram claro para todos quem são
os autores da conspiração "vulcânica ".
O discurso parece ser bem acolhido, mas, para espanto manifesto de
Robespierre, segue-se um caloroso debate sobre se deverá ou não ser
impresso, como é costume da câmara sempre que uma é feita uma grande
oração. Com a discussão a aquecer, Vadier ataca Robespierre por ridicula
rizar a importância da " conj u ra Théot" e Cambon defende -se mas o seu
inimigo classifica as suas observações de "tão ininteligíveis como extraor
dinárias". Desafiado por outro deputado a pôr nomes naqueles que acusa,
Simon Schama 1 CIDADÃOS
REUNIÕE S
Beaumetz naquele O utono americano não foi uma surpresa total para
Lucy porque ele lhe escrevera de Filadélfia a inquirir onde poderia encon
trá-la depois de uma das suas expedições ao interior em busca de terras
para vender aos emigrados franceses. Mas Lucy não estava à espera de o
ver em tão boa forma . A preocupação de Talleyrand em não invadir o
recato dela (ou pelo menos para oferecer desculpas sorridentes quando
invadia ) era quase uma versão exagerada da educação elegante de que ela
se lembrava de ter existido em França, como que uma insistência de que
a América não podia, no que ele designava por sua "velhice " ( quarenta
anos ) refazer Talleyrand. Além do mais, o cumprimento sobre o borrego
traía uma certa sinceridade esfomeada, e ela pediu -lhe para regressar no
dia seguinte para jantar com o marido .
Talleyrand estava em Albany por apenas dois dias, com um amigo
inglês chamado Thomas Law que fora alguém de peso na Índia britânica
e com quem Talleyrand estava a organizar uma empresa comercial entre
Calcutá e Filadélfia . Se há que viaj ar, porque não fazê-lo globalmente?
O mentor dela, o general S chuyler, de Albany, dissera -lhe onde a encon
trar e incumbira Talleyrand de pedir aos de La Tour du Pin para j antarem
com ele no dia seguinte . Dado que Talleyrand aceitara o convite e que
Lucy, não obstante as suas reservas, ainda estava manifestamente desej osa
da sua companhia, decidiram seguir j untos para Albany, deixando as
crianças com a criada. Talleyrand e B eaumetz tinham vindo de Niagara .
Embora afectasse indiferença aos esplendores brutais da paisagem ameri
cana, Talleyrand confessaria nas suas memórias a excitação emocional
que lhe causavam aquelas terras selvagens e virgens . Porém, na estrada
para Albany, o que ele e Lucy queriam era falar da França e da interliga
ção das suas histórias pessoais e públicas.
Eram histórias que valia a pena contar, plenas de perigo e tristeza. Lucy
e o marido tinham-se visto encurralados em Bordéus, em Setembro de
1 79 3 , e assistido ao Terror antifederalista. Não sendo tão terrível como os
acontecimentos de Lyon e Marselha, a guilhotina montada na Praça
Dauphiné continuava atarefada, e dado que marido e mulher pertenciam
a famílias da nobreza castrense tinham todos os motivos para se sentirem
assustados. Muitas vezes suportaram as longas filas para o pão e para a
carne enquanto viam os moços de recados levar as melhores carnes e o
melhor pão para os representantes em missão . Lucy afixava obediente
mente na porta os nomes dos residentes da sua casa, escrevendo, como
toda a gente, o mais ilegivelmente possível e esperando que chovesse.
O marido era filho de um ministro da Guerra em 1 790, pelo que o nome
de de La Tour du Pin era bastante conhecido e as autoridades revolucioná
rias começaram a dar sinais ominosos . Quase no termo da gravidez, Lucy
encontrou abrigo em Canole, em casa do seu médico, o Dr. B rouquens, e
o marido passou à clandestinidade. Escondeu-se primeiro num quartito,
727
Quando o capitão se sentou ao leme e gritou "Emp urra ! " , senti u m a felici
dade inexprimível. S entada à frente do meu marido, cuj a vida estava a sal
var, com os meus dois filhos sentados nos j oelhos, nada parecia impossível.
Pobreza, trabalho, miséria, nada era difícil para mim. Não há dúvida de que
o movimento do remo com que o marinheiro nos afastou da costa foi o
momento mais feliz da minha vida .
* * *
Simon Schama 1 CIDADÃOS
* * *
tricolor.
Índice
Fontes e Bibliografia
PR Ó LOGO:
O PODER DA MEM Ó RIA - QUARENTA ANOS DEPOIS
1 HOMENS NOVOS
1 PAIS E FILHOS
1 LE S BEAUX JOURS
Sobre a coroação de Luís XVI, vejam-se H . Weber, "Le Sacre de Louis XVI", in
Actes du Colloque International de Soreze, Le Regne de Louis XVI ( 1 976, pp. 1 1 - 2 2 ) ,
idem, "Das Sacre Ludwigs XVI vom 1 1 Juin 1 7 7 5 und die Krise des Ancien
Régime ", in E rnst Hinrichs, E. S chmitt e R. Vierhaus (eds . ) , Vom Ancien Régime zur
Franzi:isischen Revolution: Forschungen und Perspektiven ( Gõttingen, 1 97 8 ) , e ainda o
excelente ensaio ( que é praticamente um pequeno livro ) de Jacques Le Goff,
" Reims, Ville du Sacre", in Pierre Nora ( ed . ) , Les Lieux de Mémoire, vol. II, La Nation
( Paris, 1 9 68, parte 1, pp. 1 6 1 - 1 6 5 ) . As queixas de Turgot acerca das despesas da
coroação e os pormenores das decorações foram registados por Pidanzat de
Mairobert em L'Espion anglais ( 1 77 5 , pp. 3 2 0 - 3 2 7 ) .
A educação de Luís XVI é descrita por P. Girault de Coursac em L'Education d ' Un
Roi: Louis XVI ( Paris, 1 972 ) , e uma grande parte do diário do rei foi publicada por
L. Nicolardot, Journal de Louis XVI ( 1 87 3 ) . Sobre a visita real a Cherburgo, em Junho
de 1 786, vejam-se Histoire Sommaire de Cherbourg avec le Journal de Tout Ce Qui s 'est Passé
au Mais de Juin de 1 786 ( Cherburgo, 1 78 6 ) , Voyage de Louis XVI dans la Province de
Normandie ( "Philadelphie" [Paris], 1 786), Gazette de France (4 de Julho de 1 78 6 ) , J.M.
Gaudillot, Le Voyage de Louis XVI en Normandie ( Caen, 1 96 7 ) , e Georges Lacour-Gayet,
"Voyage de Louis XVI à Cherbourg", in Revue des Études Historiques ( 1 906) . Sobre a
familiaridade do rei com a cultura náutica, vej a-se Louis-Petit de Bachaumont,
Mémoires Secrets pour Servir à l 'Histoire de la République des Lettres ( 3 6 vols., Londres,
1 78 1 - 1 789, 2, 3 e 9 de Julho de 1 786 ) .
Sobre a paixão de Luís XVI pela caça ( e para a melhor panorâmica geral do seu rei
nado) , veja-se François Bluche, La Vie Quotidienne au Temps de Louis XVI (Paris, 1 980 ) .
II U M MAR D E D ÍVIDAS
fiscal francesa são Peter Mathias e Patrick O ' B rien, "Taxation in B ritain and France
1 7 1 5 - 1 8 1 0 ", in Journal of European Economic History ( 1 796, pp. 60 1 - 6 5 0 ) , e Michel
Morineau, "Budgets de l' É tat et Gestion des Finances Royales au 1 8e Siecle", in
Revue Historique ( 1 980, pp. 2 8 9 - 3 3 6 ) . Outros estudos importantes sobre finanças
são J. F. B osher, French Government Finance 1 770- 1 795 ( Cambridge, 1 97 0 ) , e C. B .
A . B ehrens, Society, Government and Enlightenment: The Experience of Eighteenth
-Century France and Prussia ( Nova Iorque, 1 98 5 , especialmente o capítulo 3 ) . No
entanto, a ênfase destes trabalhos nos bloqueios estruturais e institucionais à sol
vência é seriamente posta em causa pela obra poderosa mas bastante técnica de
James Riley, The Seven Years War and the Old Regime in France: The Economic and
Financial To!! ( Princeton, 1 98 6 ) . François Hincker, Les Français Devant l 'lmpôt sous
l 'Ancien Régime ( Paris, 1 97 1 ), oferece uma panorâmica clara e útil do problema .
A história institucional tradicional, algo datada, é Marcel Marion, Histoire
Financiere de la France Depuis 1 71 5 ( Paris, 1 92 1 ) . Sobre a venalidade como fonte de
receitas antes da Revolução, vej a - se o importante contributo de David D . B ien,
"Offices, C orps, and a System of State C redit: The Uses of Privilege under the
Ancien Régime ", in Keith Michael B aker ( ed . ) , The Political Culture ofthe Old Regime
( O xford, 1 987, pp. 8 9 - 1 1 4 ) .
Sobre os fermiers généraux, vej am-se George Matthews, The Royal General Farms
in 18th -Century France (Nova Iorque, 1 9 5 8 ) , Yves Durand, Les Fermiers Généraux au
XVIIIe Siecle ( Paris, 1 97 1 ), e Jean Pasquier, L'Impôt des Gabelles en France aux XVII et
XVIIIe Siecles ( Paris, 1 90 5 ) . Sobre os contrabandistas de sal, vej a-se o relato mara
vilhosamente evocador em Olwen Hufton, The Poor of Eighteenth-Century France
( O xford, 1 974) . Sobre os estereótipos dos "financiers", vej am-se H. Thirion, La Vie
Privée des Financers au XVIIIe Siecle ( Paris, 1 89 5 ) , e Jean-B aptiste Darigrand, L'Anti
-Financier ( Amesterdão, 1 76 3 ) .
Existem dois relatos excelentes da carreira de Turgot: Douglas Dakin, Turgot and
the Ancien Régime in France ( Londres, 1 9 3 9 ) , e Edgar Fauré, La Disgrâce de Turgot (Paris,
1 96 1 ) . Para uma abordagem muito mais hostil (e bastante convincente em algumas
passagens) , veja-se Lucien Langier, Turgot ou la Mythe des Réformes (Paris, 1 979) .
Algumas das acusações de Langier sustentam-se em R. P. Shepherd, Turgot and the Six
Edicts (Nova Iorque, 1 90 3 ) . Sobre os efeitos da reforma fisiocrática no comércio dos
cereais, vej a-se S. L. Kaplan, Bread, Politics and Political Economy in the Reign of Louis XV
(2 vols., Haia, 1 976 ) . Sobre a teoria fisiocrática, vej am-se G. Weulersse, Le Mouvement
Physiocratique en France 1 756- 1 770 (2 vols., Paris, 1 9 1 0) , e a importante história inte
lectual de Elizabeth Fox-Genovese, The Origins of Physiocracy ( Ithaca, N. l., 1 97 6 ) , e
Ronald L. Meek ( ed. ) , Turgot on Progress, Sociology and Economics ( Cambridge, 1 973 ) .
Necker, Reform Statesman of the Old Regime (Berkeley, 1 9 7 9 ) , esta última baseada na
nova investigação documental de C oppet sustentando muitas das afirmações
constantes da Conclusão. Vej a - se também H. Grange, Les Idées de Necker ( Paris,
1 9 74) , e Edouard C hapuisat, Necker 1 732- 1 804 ( Paris, 1 9 3 8 ) .
3 O AB S O LUTISMO ATACADO
Vários ensaios sobre a importante obra editada por Keith Michael Baker, The
Política! Culture of the Old Regime ( Oxford, 1 98 7 ) , abordam este tema, em particular
os de Dale van Kley e William Doyle. Baker publicou também um ensaio impor
tante sobre a mutação da ideologia da oposição, "French Political Thought at the
Accession of Louis XVI", in Journal ofModern History (Junho de 1 978, pp. 2 7 9 - 3 0 3 ) .
O s axiomas d o absolutismo real na sua reafirmação por Luís XV são examinados
no ensaio de Michel Antoine, "La Monarchie Absolue", no mesmo volume .
A abordagem fundamental ao desenvolvimento do vocabulário e da ideologia
oposicionistas no discurso parlamentar continua a ser uma obra notável, muito à
frente do seu tempo: E . C arcassonne, Montesquieu et le Débat sur la Constituition
Française (Paris, 1 92 7 ) . S obre a difusão e a popularização das ideias de
Montesquieu, vej a -se Franco Venturi, Utopia and Reform in the Enlightenment
( Cambridge, 1 97 1 ) . A única omissão importante de C arcassonne é o contributo da
retórica j ansenista na altura do ataque aos jesuítas, um tema coberto pela obra
notável de Dale van Kley, The Jansenists and the Expulsion of the Jesuits from France
1 75 7- 1 765 ( New Haven e Londres, 1 97 5 ) . Vej a - s e também, do mesmo autor, The
Damiens Affair and the Unravelling of the Ancien Regime 1 750-1 770 ( Princeton, 1 984) .
J . Flammermont publicou o s textos integrais das Rémonstrances du Parlement de
Paris au XVIIIe Siecle ( 3 vols . , Paris, 1 88 8 - 1 889 ) . O trabalho do mesmo autor sobre
a crise de Maupeou foi ultrapassado por D urand E cheverria, The Maupeou
Revolution: A Study in the History of Libertarianism: France 1 770- 1 774 ( Baton Rouge,
La., 1 98 5 ) . Vej am-se também Jean Egret, Louis XV et l'Opposition Parlementaire
( Paris, 1 97 0 ) , e William D oyle, "The Parlements of France and the Breakdown of
the Old Regime 1 77 1 - 1 788", in French Historical Studies ( 1 970, p . 42 9 ) . E m defesa
da monarquia na crise, veja-se David Hudson, "ln Defense of Reform", in French
Historical Studies ( 1 97 3 , pp. 5 1 - 7 6 ) . Relatos das cerimónias relativas ao regresso dos
Parlamentos em Metz e Pau encontram-se em Pidanzat de Mairobert, L'Espion
anglais ( 1 77 5 , vol. II, p. 2 0 0 ) ; vej a -se também H. C arré, " Les Fêtes d'une Réaction
Parlementaire", in La Révolution Française ( 1 8 92 ) .
Simon Schama 1 CIDADÃOS
Não existe nenhum estudo moderno de qualidade sobre d' Argenson mas, em
qualquer dos casos, esta figura extraordinária estuda-se melhor através dos seus
próprios escritos, especialmente as Considérations sur le Gouvernement de la France,
publicadas trinta anos depois da sua escrita ( Amesterdão, 1 7 64) .
Existe uma literatura abundante sobre as questões da mobilidade social e dos
privilégios . D ois pontos de partida deverão ser C olin Lucas, "Nobles, B ourgeois
and the Origins of the French Revolution", in Past and Present (n.º 60, Agosto de
1 97 3 , pp. 84- 1 2 6 ) , e o importante trabalho revisionista de Guy Chaussinand
- Nogaret, The French Nobility in the Eighteenth Century: From Feudalism to
Enlightenment ( trad. William D oyle, C ambridge, 1 9 8 5 ) , cuj a posição sobre a
noblesse commerçante acompanho de muito perto . A Biblioteca Kress da Harvard
Business School possui contratos dos sindicatos do comércio e da indústria de
finais do século XVIII que tornam dramaticamente evidente a participação activa
da nobreza . Ainda em relação a esta matéria, vej a -se o abade C oyer, Développement
et Défense du Systeme de la Noblesse Commerçante ( Amesterdão, 1 7 5 7 ) . O importante
trabalho Class Ideology and the Rights of Nobles During the French Revolution ( O xford,
1 9 8 1 ), de Patrice Higonnet, começa com uma discussão do grau de separação e da
fusão da burguesia e da nobreza e contesta alguns dos pressupostos revisionistas .
Outros estudos importantres s ã o D avid Bien, " L a Réaction Aristocratique avant
1 789", in Annales: Économies, Sociétés, Civilisations ( 1 9 7 4 ), Alfred C obban, The Social
Interpretation of the French Revolution ( Cambridge, 1 964 ) , R. Forster, The Nobility of
Toulouse in the 18th Century ( Baltimore, 1 96 0 ) The House of Saulx-Tavannes, Versailles
and Burgundy 1 700- 1830 ( Baltimore e Londres, 1 9 7 1 ) , e ainda "The Provincial
Nobles: A Reappraisal", in American Historical Review ( 1 9 6 3 ), J. Meyer, La Noblesse
Bretonne au XVIIIe Siecle ( Paris, 1 972 ) , e G. V. Taylor, "Non - Capitalist Wealth and
the Origins of the French Revolution", in American Historical Review ( 1 967 ) . Gail
B ossenga alargou os métodos de David Bien e criou uma abordagem fresca e
excepcionalmente iluminadora à história social e política das instituições deste
747
período. Vej a - se, em particular, " From C orps to Citizenship : The Bureaux des
Finances B efore de French Revolution", in Journal of Modern History ( S et e mbro de
1 986, pp . 6 1 0 - 642 ) , onde mostra os detentores privilegiados de cargos a desen
volverem paradoxalmente teorias de solidariedade e de cidadania para se defen
derem contra as medidas reformistas da Coroa na sua corporação .
O ataque d e Grouvelle a Montesquieu é citado p o r C arcassonne, Montesquieu
et le Débat, p. 620.
1 EM B U S C A DE UM P Ú BLICO
Robert Darnton foi o primeiro a chamar a atenção para o balão como uma das
novidades científicas que provocaram uma espécie de hipérbole social generali
zada, in Mesmerism and the End of the Enlightenment ( Cambridge, Mass . , 1 96 8 ) .
Sobre a ascenção do balão em Versalhes, vejam-se L'Art de Voyager dans l 'Air (Paris,
1 784, pp. 68 sqq . ) e [Rivaroli] Lettre à M. le Président xxx sur le Globe Airostatique
( Londres, 1 8 7 3 ); comentários mais irónicos s urgem em François Métra,
Correspondance Secrete Politique et Littéraire . . . ( Londres, 1 5 de Fevereiro de 1 784) ; a
descrição heróica do Montgolfier surge em Pigeron, L'Art de Paire Soi-Même les
Ballons (Paris, 1 7 84, p. 1 5 ) . Uma das muitas odes extáticas ao Montgolfier, Le Globe
Montgolfier ( 1 784), de Le Roy, compara -o a uma águia :
IV DIFUNDIND O A PALAVRA
5 O S CUSTOS D A MODERNIDADE
Fernand B raudel, em L'Identité de la France, vol. II, Les Hommes et les Choses ( Paris,
1 986, especialmente pp. 267-306), destaca a importância do crescimento industrial
pré-revolucionário em França, bem como (pp. 2 3 8 - 2 3 9 ) ao rápido crescimento do
potencial do mercado devido à transformação das comunicações entre as décadas
de 60 e 80 do século XVIII. Para mais pormenores sobre a mudança comercial e
industrial no Antigo Regime, vej a - se Ernest Labrousse et al., Histoire Economique et
75 1
6 A POLÍTICA DO C O RPO
compiladas sob o título Recuei! des Mémoires sur l 'Affaire du Collier ( Paris, 1 7 87 ) . Está
apenas a começar a investigação séria dos libelos pornográficos contra a rainha,
mas vej a - s e Hector Fleischmann, Les Pamphlets Libertins Contre Marie-Antoinette
( Paris, 1 908 ) . Robert D arnton discute a importância política dos libelos em "The
High Enlightenment and the Low Life of Literature", in Literary Underground.
O importante ensaio de C hantal Thomas, "L'Hérolne du C rime: Marie-Antoinette
dans les Pamphlets", in J . - C . B onnet et al. ( eds . ) , La Carmagnole des Muses ( Paris,
1 98 8 ) , surgiu infelizmente demasiado tarde para que eu pudesse ter em conta a
sua discussão das provas. Os documentos principais aqui considerados são as mui
tas edições do Essai Historique sur la Vie de Marie-Antoinette, Reine de France. La Vie
d 'Antoinette, Les Amusements d 'Antoinette e Les Passe-temps d 'Antoinette são ligeiras
variações do Essai. A obra The Memoirs of Antonina Queen d 'Abo ( Londres, 1 79 1 ) é a
versão inglesa de outra variação que apareceu pouco antes da Revolução. O utros
textos do cânone são a história apócrifa Les Amours d 'Anne d 'A utriche
( " A C ologne" , 1 7 8 3 ), Anandria (possivelmente da autoria de Pizandat de
Mairobert, 1 7 8 8 ) , Les Amours de Charlot et Toinette ( 1 78 9 ) , Le Bordel Royal, Suivi
d 'Entretien Secret entre la Reine et le Cardinal de Rohan ( 1 78 9 ) , Le Cadran des Plaisirs de
la Cour ou les Aventures de Petit Page Chérubin ( 1 789 ) . A informação sobre as novas
edições de La Nymphomanie ou Traité sur la Fureur Uterine ( Amesterdão, 1 77 8 ) , de
Bienville, provém do catálogo impresso do livreiro Théophile B arrois le Jeune,
que vendia numa loj a no Quai des Augustins e que se especializava evidente
mente em obras de cariz sexual e obstétrico, dado que também publicitou o texto
de Tissot contra a masturbação, Onanie, do trabalho de Angélique Rebours sobre
o aleitamento, do tratado de Vacher sobre tumores na mama e de inúmeros livros
sobre doenças venéreas. O registo do j ulgamento da rainha no Tribunal
Revolucionário foi publicado sob o título Acte d 'Accusation et Interrogatoire Complet et
Jugement de Marie-Antoinette ( Paris, 1 79 3 ) .
A s Mémoires d e E lisabeth Vigée-Lebrun, não sendo desinteressantes, estão
longe de ser um modelo de tacto e discrição. A melhor fonte sobre a carreira da
artista é o magnífico catálogo da exposição Elisabeth Vigée-Lebrun ( Kimball
Museum, Fort Worth, 1 982 ) , da autoria de Joseph Baillio, de onde tirei o comen
tário sobre ela nas Mémoires Secretes. Vej a - se também Anne Passez, Adelaide Labille
-Guiard ( Paris, 1 97 1 ) . C ontudo, ainda há muita investigação a fazer sobre as
mulheres artistas das décadas de 80 e 90 do século XVIII. A correspondência de
Maria Antonieta com a mãe e o irmão foi traduzida e publicada por Olivier
Bernier com o título de The Secrets of Marie-Antoinette ( Nova Iorque, 1 98 5 ) .
II O RETRATO D E CALONNE
Sobre a obra de Talleyrand enquando agente -geral do clero, vej a -se Louis S .
Greenbaum, Talleyrand, Statesman-Priest: The Agen t-General of the Clergy and the
Church at the End of the Old Regime ( Washington, 1 97 0 ) . A melhor biografia
moderna de C alonne é Robert Lacour- Gayet, Calonne ( Paris, 1 9 6 3 ), mas a obra
muito mais antiga de G . Susane, La Politique Financiere de Calonne ( Paris, 1 9 0 1 ) ,
continua a ser um estudo importante d a sua administração. Wilma J . Pugh,
" C alonne's New Deal", in Journal of Modern History ( 1 9 3 9 , pp. 2 8 9 - 3 1 2 ) , oferece
uma panorâmica generosa das suas reformas . A perspectiva oposta acerca da
responsabilidade de Calonne na crise financeira é apresentada em R . D. Harris,
"French Finances and the American War 1 77 7 - 1 7 8 3 ", in Journal of Modern History
(Junho de 1 9 7 6 ) . O importante artigo de James Riley, "Life Annuity B ased Loans
753
7 SUIC Í DIOS
8 QUEIXAS
II A GRANDE DIVIS Ã O
1 O A BASTILHA
Para a história do Palais-Royal, vej a-se Isherwood, Farce and Fantasy (capítulo 8 ) ,
e W. Chabrol, Histoire e t Description du Palais-Royal e t d u Théâtre Français (Paris, 1 88 3 ) .
757
O livro The Taking of the Bastille ( trad. Jean Stewart, Londres, 1 97 0 ) , de Jacques
Godechot, é uma narrativa magnífica do evento e tem anexados vários relatos de
testemunhas oculares . Sobre a segurança militar da capital, existem duas obras
essenciais : Samuel F. Scott, The Response of the Royal Army to the French Revolution:
The Role and Development of the Line Army ( Oxford, 1 978, em especial, pp. 46 - 7 0 ) , e
a monografia definitiva de Jean C hagniot, Paris et l 'Armée au XVIIIe Siecle ( Paris,
1 98 5 ) , a qual, entre outras coisas, revê completamente muitos dos lugares
comuns acerca dos Cardes Françaises. Sobre outros problemas relacionados com a
ordem, vej a -se Alan Williams, The Police of Paris 1 71 8- 1 789 ( B aton Rouge, La ., e
Londres, 1 97 9 ) . Sobre a turba revolucionária, vej a -se George Rudé, The Crowd in
the French Revolution 1 789- 1 794 ( Oxford, 1 9 5 9 ) ; vej a -se também a obra muito inte
ressante de R . B. Rose, The Making of the Sans-Culottes: Democratic Ideas and
Institutions in Paris 1 789- 1 792 (Manchester, 1 983 ) . Vej a - se ainda Jeffrey Kaplow,
The Names ofKings: The Parisian Laboring Poor in the Eighteenth Century ( Nova Iorque,
1 972, em especial, o capítulo 7 ) . O melhor trabalho sobre a anatomia social do
bairro mais revolucionário é Raymonde Monnier, Le Faubourg Saint-Antoine 1 789-
- 1 8 1 5 ( Paris, 1 98 1 ) , que também é importante para a compreensão dos motins do
Ano Novo.
Tirei os meus relatos das histórias de Linguet e Latude das suas memórias,
reimpressas por J . F. B arriere, Mémoires de Linguet et de Latude ( Paris, 1 88 6 ) ; as
memórias de Latude foram originalmente publicadas com o título Le Despotisme
Dévoilé ou Mémoires de Henri Masers de Latude. Embora os historiadores se mos
trem compreensivelmente cépticos acerca dos comentários excessivamente
optimistas de F. Funck-B rentano sobre as condições prevalecentes na B astilha,
as investigações meticulosas de Monique C ottret, La Bastille à Prendre ( Paris,
1 9 8 6 ) , confirmam a opinião de que, no reinado de Luís XVI, a B astilha se
estava a tornar rapidamente redundante e as condições em que se encontrava
a maioria dos detidos eram muito melhores do que noutros cárceres. C ottret
aborda também de forma importante os vários elementos da mitologia da
B astilha . Vej a - se também H . J . Lüsebrink, "La B astille dans l 'Imaginaire S ocial
de la France à la Fin du XVIIIe S iecle ( 1 7 74- 1 7 9 9 ) ", in Revue d 'Histoire Moderne
et Contemporaine ( 1 9 8 3 ) . S obre a importância das Mémoires de Linguet, vej a - s e
Levy, Ideas a n d Career.
Sobre os acontecimentos do 14 de Julho, segui principalmente Godechot, The
Taking of the Bastille; vej a - se também Jean D ussaulx, De l 'Insurrection Parisienne et de
la Prise de la Bastille ( Paris, 1 970 ) .
Simon Schama 1 CIDADÃOS
1 1 C O M E SEM RAZ Ã O
O trabalho de Georges Lefebvre, The Great Fear of 1 789, continua a ser uma
obra-prima e o melhor dos seus livros (o episódio em Rochechouart consta da
p. 1 48 ) , e pode ser complementado com o seu Les Paysans du Nord Pendant la
Révolution Française ( Paris e Lille, 1 924, vol. 1, pp. 3 5 6 - 3 74 ) . Sobre as raízes cultu
rais e psicológicas do medo dos "bandidos" e a tortuosidade da classificação oficial
dos pobres sem-abrigo, vej a - se Olwen Hufton, The Poor of Eighteenth-Century France
(pp. 2 2 0 - 244 ) , e Michel Vovelle, "From B eggary to B rigandage ", in Kaplow ( ed . ) ,
New Perspectives. A s experiências d e Madame d e L a Tour d u Pin são descritas nas
suas Memoirs (ed. e trad. F. Harcourt, do Journal d 'une Femme de Cinquante Ans,
Londres e Toronto, 1 969, pp. 1 1 1 - 1 1 4 ) . Sobre a destruição de solares na
Borgonha, vej a - se Joachim Durandeau, Les Châteaux Brulés (Dij on, 1 89 5 ) .
Tirei o meu relato d a noite d e 4 d e Agosto principalmente dos Archives
Parlementaires e de relatos de imprensa contemporâneos, em particular do Point du
Jour ( 1 7 89, p. 2 3 1 sqq. ) . Sobre a noite de 4 de Agosto, vej a -se P. Kessell, La Nuit
du 4 Aout ( Paris, 1 9 69 ) . Sobre os debates constitucionais do Outono de 1 789, vej a
- s e Jean Egret, L a Révolution des Notables: Mounier e t les Monarchiens ( Paris, 1 9 5 0 ) , e
Paul Bastid, Sieyes et sa Pensée. Uma fonte extremamente útil para a política da
Constituinte são os boletins escritos pelo deputado Poncet-D elpech para os seus
constituintes do Quercy; vej a - se Daniel Ligou, La Premiere Année de la Révolution
Vue par un Témoin ( Paris, 1 96 1 ) . S obre a conduta de Mirabeau durante este
período, vej a - se E. D umont, Souvenirs sur Mirabeau et sur les Deux Premieres
Assemblées Legislatives (ed. M. D uval, Paris, 1 8 3 2 ) .
Sobre Lafayette, o s problemas d a violência e a Guarda Nacional, vej a - se Louis
Gottschalk e Margaret Maddox, Lafayette in the French Revolution Through the October
Days ( C hicago e Londres, 1 969, capítulos 8- 1 2 ) . Sobre as cerimónias de bênção da
bandeira, veja-se J. Tiersot, Les Fêtes et les Chants de la Révolution Française (Paris,
1 908, pp . 1 4- 1 6 ) , e Rogers, Spirit of Revolution (pp. 1 34- 1 5 9 ) . Para outra perspectiva
eloquente do problema da violência e da legitimidade, vej a -se o abade Morellet,
Mémoires ( Paris, 1 822, p. 3 62 ) . O jornalismo extraordinário de Loustalot e a sua
exploração da violência devem ser estudados através dos textos originais. No
número de 2 - 8 de Agosto, por exemplo, ele noticia que as autoridades parisienses
receberam uma arca com seis cabeças provenientes de várias partes da França :
Provença, Flandres, etc. Vej a - se também Jack Censer, Prelude to Power: The Parisian
Radical Press 1 789- 1 79 1 , uma análise importante destas influentes publicações.
Sobre Outubro, vej a -se Albert Mathiez, " É tude C ritique sur les Journées des 5
et 6 Octobre 1 7 89", in Revue Historique ( 1 898, pp . 24 1 -2 8 1 ) ; os vols. LXVII ( 1 899,
pp. 2 5 8-294) e LXIX ( 1 899, pp. 4 1 - 6 6 ) também são importantes. Vejam-se tam
bém Gottschalk e Maddox, Lafayette in the French Revolution ( capítulos 14 e 1 5 ) ,
759
Henri Leclerq, Les Journées d 'Octobre e t la Fin de l 'Année 1 789 ( Paris, 1 924), Harris,
Necker and the Revolution of 1 789 ( capítulo 1 8 ) , e Rudé, The Crowd ( capítulo 5 ) .
Sobre o papel das mulheres e m O utubro de 1 789, vej am-se Jeanne B ouvier, Les
Femmes Pendant la Révolution de 1 789 ( Paris, 1 9 3 1 ) , Olwen Hufton, "Women and
Revolution ", in Douglas Johnson ( ed . ) , French Society and the Revolution ( Nova
Iorque e Cambridge, 1 976, pp. 1 48 - 1 66 ), Adrien Lasserre, La Participation Collective
des Femmes à la Révolution Française: Les Antécédents du Féminisme ( Paris, 1 90 6 ) , e
Dominique Godineau, Citoyennes Tricoteuses: Les Femmes du Peuple à Paris Pendant la
Révolution Française ( Aix -en-Provence, 1 988 ) .
1 2 ACTOS D E F É
S obre Jacob, vej a -se, por exemplo, o relato constante de Révolutions de France
et de Brabant ( 1 2 de Dezembro de 1 78 9 ) , de Desmoulins, que publicita gravuras do
acontecimento a 30 soldos ( 3 libras francesas se coloridas à mão ) . Sobre os ante
cedentes e as consequências da C onstituição Civil do clero, vej a -se J. McManners,
The French Revolution and the Church ( Londres, 1 96 9 ) . Timothy Tackett, Religion,
Revolution and Regional Culture in Eighteenth-Century France: The Ecclesiastical Oath of
1 79 1 ( Princeton, 1 98 6 ) , é um estudo magnífico que coloca uma grande ênfase
numa geografia religiosa francesa claramente definida; o ignorado La Révolution et
l 'Église ( Paris, 1 9 1 0 ) , de Albert Mathiez, inclui um ensaio interessante sobre a
campanha de politização do púlpito . Para um exemplo da ideologia clerical janse
nista e " reformista" pré- revolucionária, vej am-se L'Ecclésiastique Citoyen ( 1 78 7 ) e
Ruth Necheles, The Abbé Grégoire 1 78 7- 1 83 1 : The Odyssey of an Egalitarian ( Westport,
Conn., 1 9 7 1 ) . Sobre as canções anticlericais em Paris, vej a - se Rogers, Spirit of
Revolution ( p . 200 sqq . ) .
Sobre Talma, vej a - se F. H . Collins, Talma: Biography of an Actor ( Londres, 1 964) .
O estudo mais pormenorizado e interessante sobre Charles IX é A. Liéby, Étude dans
le Théâtre de Marie-Joseph Chénier ( Paris, 1 90 1 ) . Sobre a política dos cordeliers, vejam
-se Norman Hampson, Danton ( Londres, 1 978, capítulo 2), e R. B . Rose, The Making
ofthe Sans-culottes. Sobre a Fête de la Fédération, vejam-se Mona Ozouf, Festivais and
the French Revolution ( trad. Alan Sheridan, Cambridge, Mass., 1 98 8 ) , Tiersot, Les
Fêtes et les Chants (pp . 1 7 -46 ) , e Marie -Louise Biver, Fêtes Révolutionnaires à Paris
( Paris, 1 97 9 ) . Sobre a festa de Estrasburgo, veja-se Eugene Seinguerlet, L'Alsace
Française: Strasbourg Pendant la Révolution ( Paris, 1 88 1 ) . Vej a -se também Albert
Mathiez, Les Origines des Cultes Révolutionnaires 1 789- 1 792 ( Paris e Caen, 1 904) .
13 PARTIDAS
vej a -se o seu " Section Roi-de- Sicile and the Fali of the Monarchy", in Slavin e
Smith ( eds. ) , Bourgeois, Sans-culottes and Other Frenchmen (pp. 5 9 - 74) . Outro micro
- estudo fascinante de Slavin é The French Revolution in Miniature: Section Droits de
l 'Homme 1 789- 1 795 ( Princeton, 1 984) .
1 5 SANGUE IMPURO
et Documents Officiels ( Paris, 1 892 ) , em especial, o vol. II, que contém as declara
ções oficiais e os trabalhos da C omuna, bem como relatos do abade E dgeworth e
o texto do testamento de Luís XVI . S obre a defesa levada a cabo por Malesherbes,
vej a - se Grosclaude, Malesherbes (pp. 7 0 3 - 7 1 6 ) .
1 6 INIMIG O S D O POVO?
Sobre a levée en masse, a obra que ultrapassa todas as outras é J.P. Berthaud, La
Révolution Armée: Les Soldats-Citoyens et la Révolution Française (Paris, 1 97 9 ) . Baseio
-me bastante neste livro magnífico para o meu relato da mobilização. R . R . Palmer,
Tu!elve Who Ruled: The Year of the Terror in the French Revolution ( Princeton, 1 94 1 ) ,
continua a ser u m relato excepcionalmente legível ainda que algo idealizado do
governo revolucionário.
Sobre a mentalidade, as instituições e as práticas do Terror, The Structure of the
Terror, de C olin Lucas, é uma monografia brilhante, persuasiva na sua descrição
das complicações das fidelidades locais e assustadoramente vívida no seu retrato
de Javogues . Vej a -se também Lucas, " La B reve C arriere du Terroriste Jean-Marie
Lapalus", in Annales Historiques de la Révolution Française ( Outubro -D ezembro de
1 96 8 ) . E xistem outros estudos locais excelentes, em particular, Martyn Lyons,
"The Jacobin Elite of Toulouse", in European Studies Review ( 1 97 7 ) . Vej a - se tam
bém o relato de Richard C obb da carreira de Nicolas Guénot e de outros terroris
tas no seu Reactions to the French Revolution . A caracterização mais brilhante da
"mentalidade revolucionária " partilhada por terroristas e sans-culottes é o ensaio
de C obb, " Quelques Aspects de la Mentalité Révolutionnaire Avril 1 79 3 -
-Thermidor A n II" n o seu Terreur e t Subsistances 1 793-95 ( Paris, 1 9 64 ) , uma versão
abreviada da qual consta do seu livro A Second Identity ( Oxford, 1 9 72 ) . Sobre a
estrutura legal da repressão, vej a - s e John B lack Sirich, The Revolutionary
Committees in the Department of France 1 793-94 ( Nova Iorque, 1 9 7 1 ) . Num colóquio
do C entro de Estudos Europeus da Universidade de Harvard, Richard Andrews
leu uma comunicação extraordinariamente importante e provocadora que
demonstrou que a base jurídica da definição revolucionária de crimes políticos
não foi estabelecida em 1 7 9 5 , pela Lei dos Suspeitos (que no entanto a amplio u ) ,
mas pelo Código Penal de 1 79 1 . Finalmente, u m a obra importante, cuj a s con
clusões essenciais correlacionando o Terror com os departamentos na guerra civil
não foram muito afectadas pelas críticas ao uso de estatísticas por parte do autor,
é D . Greer, The Incidence of the Terror During the French Revolution: A Statistical
Interpretation ( C ambridge, Mass . , 1 9 3 5 ) .
Sobre a s repressões federalistas, vej a -se, e m relação a Lyon, Edouard Herriot,
Lyon n 'est Plus (4 vols., Lyon, 1 9 3 7 - 1 940 ) . O barão Raverat, Lyon sous la Révolution
( Lyon, 1 88 3 ) é previsivelmente (e por boas razões ) hostil aos j acobinos mas con
tém muito material interessante . Vej am-se também M. Seve, " S ur la Pratique
Jacobine: La Mission de C outhon à Lyon", in Annales Historiques de la Révolution
Française ( Abril-Julho de 1 98 3 ), Richard C obb, "La C ommission Temporaire de
C ommune Affranchie", in Terreur et Subsistances (pp. 5 5 - 94) , e o excelente livro de
William S cott, Terror and Repression in Revolutionary Marseilles ( Londres, 1 97 3 ) .
Sobre a s " colunas infernais'', a devastação d a Vendeia e o s afogamentos em
Nantes, vej a - se Sécher, J . - C . Martin e Gaston Martin, C arrier et sa Mission à
Nantes ( Pa ris, 1 924) .
S obre a descristianização, a obra essencial é Michele Vovelle, Religion et
Révolution, la Déchristianisation de l 'An II ( Paris, 1 976 ) . Sobre o calendário revolu
cionário, vej a -se B ronislaw B aczko, "Le Calendrier Républicain", in Nora (ed. ) , Les
Lieux de Mémoire, vai. I, La République (pp. 3 8 - 82 ) ; vej am-se também James
Friguglietti, The Social and Religious Consequences of the French Revolutionary Calendar
( dissertação para tese de licenciatura da Universidade Harvard, 1 96 6 ) , e Louis
Jacob, Fabre d 'Églantine: Chef des Fripons (Paris, 1 946 ) .
Simon Schama 1 CIDADÃOS
1 8 A POLÍTICA DA TORPEZA
1 9 QUILIASMO
EP ÍLOGO
Cléry, 542, 5 5 7 - 68, 567, 5 68, 5 6 9 C omité de Segurança Geral, 488, 604,
Cloots, Anacharsis, 407, 507, 5 1 1 , 627, 6 3 1 , 643, 648, 6 5 5 , 679, 6 8 5 ,
64 1 , 6 5 9, 6 8 3 , 684, 69 1 6 8 8 , 6 9 0 , 6 9 2 , 6 9 8 , 70 1 , 7 0 9
Cloyes, cahier de, 2 7 3 Comité d o Ensino Público, 5 7 1 , 702,
Clube B retão, 3 8 2 , 4 1 2 , 4 5 3 703
Clube C onstitucional, 2 5 3, 2 5 5 C omité dos Doze, 6 1 6, 6 1 7, 620
Clube de 1 789, 4 1 2, 4 1 5 , 5 8 1 C omité dos Vinte e Um, 5 6 1
Clugny, 74, 7 5 C omité Real de Agricultura, 267, 2 9 9
Cobb, Richard, xix-xx, xxi, xxii, xxiv, Commerce de Marseille, Le (barco ) , 4 9
322, 6 1 6, 7 1 6, 7 1 7 Companhia d a s Índias britânica, 7 3 2
C oblença, emigrantes em, 5 0 1 , 5 0 2 - 3 , C ompanhia d a s Índias Orientais
5 0 8 , 5 9 9, 7 3 0 francesa, 7 5
Coburgo, Friedrich Josias, duque de, C ompanhia das Índias, 1 99, 2 0 5 , 684,
588, 640, 709 689, 692
Cocarde National, La ( Mercier) , 3 9 1 C ompanhia dos Mares do Sul, 52
Coffinhal, Jean Baptiste, 7 1 3 C omps, 4 59, 469
Coigny, Marie François Henri, duque Compte Rendu, 75, 77, 78, 80, 200
de, 76-77, 2 1 4- 1 5 , 4 7 5 C omuna, 436, 484, 68 1 ; Conselho
C olbert, Jean-Baptiste, 7 5 , 1 00, 3 1 9, Geral da, 5 4 1 ; crise económica e,
470 643; descristianização e, 660; e
Colégio Real D elfim de Grenoble, execução de Luís XVI, 5 6 9 - 7 1 ; e
235 insurreição contra a C onvenção,
C ollege d'Harcourt, 1 7, 3 5 2 6 1 7 - 1 8; e j u lgamento de Luís XVI,
C ollege Louis -le- Grand, 1 4 3 5 5 6 - 5 7 ; e j ulgamento de Maria
C ollot d' Angremont, Louis, 5 3 1 Antonieta, 64 1 -42, 6 7 3 - 74; e prisão
Collot d'Herbois, Jean-Marie, 1 42, de Luís XVI, 5 5 7 - 58, 5 62 , 5 67;
4 5 1 , 5 5 0, 645, 6 5 3, 6 6 3 , 665, 689, Girondinos e, 6 1 6 - 1 7; Hébertistas e,
692, 707, 709, 7 1 0, 7 1 2, 7 1 5 68 1 - 8 3 , 690, 69 1 ; Insurrecta, 5 2 3 -
C olónia, j ornais de, 1 49 - 24, 5 2 6 - 7 , 5 3 2, 5 34- 3 5 ; Marat e,
Comberouger, cahier de, 2 6 9 6 1 4, 627; massacres de Setembro e,
C omédie Italienne, 1 1 5 , 1 8 3 5 3 6, 5 3 9, 54 1 , 542, 543; militantes
C omédie -Française, 1 7, 2 9, l l 5 - l 6, da, 6 1 3 ; oposição dos "indulgentes"
1 1 8, 1 1 9, 1 22, 1 2 8, 1 8 3 , 428 a, 687-89; Roux na, 608; secções e,
comércio, 1 62; Assembleia Contituinte 6 1 0; Termidorianos e, 7 1 2 - 1 3;
e, 443; e crise económica, 2 5 8; e Terror e, 6 4 5 - 9 , 6 5 3
República, 607; impacto da C onciergerie, 6 3 3, 6 3 4, 672 - 7 5, 677,
Revolução no, 7 1 7; políticas de 68 1 , 699, 7 1 5
Calonne, 1 9 5 - 6; retórica C ondé, Louis Joseph, Príncipe de, 27,
revolucionária, 248 2 0 l, 226, 278; emigração de, 3 60,
Comissão das Subsistências, 644, 6 5 2 3 7 5 , 502
C omité Central, 48 5 C ondillac, Etienne B onnet de, 2 3 1
C omité da Vigilância, 5 3 2 C ondorcet, Marie Jean Antoine
Comité d e Salvação Pública, 3 8 7 , 48 1 , Nicolas Caritat, marquês de, 69,
5 6 1 , 604, 6 1 9, 626, 64 1 , 643 -44, 1 5 8, 1 6 5, 1 66, 1 67, 2 2 8, 247, 2 54,
647, 648, 649, 6 5 1 , 6 5 3, 668, 674, 2 5 6, 408, 446, 5 04, 5 60, 5 68, 640; e
682, 684, 688, 689, 690, 70 1 ; e a deserção da família real, 479, 482 -
prisão e j ulgamento de Danton, - 8 3 ; enquanto j acobino, 4 5 1 ; morte
6 9 2 - 94; Hébertistas e, 682, 684, de, 680-8 1 , 7 1 0; na Assembleia
6 8 9 - 9 3 ; Termidorianos e, 708, 709, Legislativa, 497
7 l l , 7 1 2, 7 1 3 Confissões ( Rousseau ) , 1 2 7, 1 3 1 - 3 2,
Comité de Salvação Pública, 709 1 47
S imon Schama 1 CIDADÃOS
tabac, 6 0- 6 1 , 62 Tenducci, 3 9 8
Tableau de Paris ( Mercier ) , 1 68 - 9 Teniers, David, 1 97
Tableau de Paris, 1 7 3 teoria económica liberal, 67
Tableaux de la Révolution Française, 4 5 5 Terceiro E stado, 1 07, 246, 286, 300,
Tácito, 2 7 , 3 2 9 3 04, 368, 599; Assembleia Nacional
Tackett, Timothy, 42 3, 5 9 5 , 7 5 9, 7 6 3 formada por, 308-8, 309; at séance
taille, 5 6 , 5 9, 72, 2 0 3 royale, 3 1 0, 3 1 4, 3 1 5; cahiers de, 2 7 3 ,
Tailleur Patriotique, 4 5 2 274-7, 289; clero e, 3 04, 3 0 7 , 4 1 8;
Talleyrand e m , 72 5 - 2 7 Clube de 1 78 9 e, 4 1 5; de Paris, 2 8 1 ;
Talleyrand-Périgord, C harles Mamice, Duport e , 22 1 ; e morte d o delfim,
duque de, príncipe de B énévent, 1 3 - 308; em Grenoble, 2 3 5 ; Grande
-4, 20, 1 2 3, 1 42, 1 5 5 , 1 86, 247, 2 9 3 , Medo e, 3 7 3 ; grands bai!liages e, 2 3 8;
3 7 2 , 37� 4 1 3, 483, 6 1 � 7 3 5 , 7 3 � a identificado com o Povo, 2 5 6;
Igreja e, 4 1 5 -8, 422, 42 3; Calonne e, Luís XVI e, 2 9 7 - 8; militares e, 324;
1 90 - 1 ; como bispo de Autun, 300, Mirabeau e, 292, 2 9 3 , 2 94; motins e,
303; e a Declaração dos Direitos do 2 8 3 - 8 5 ; Necker e, 80, 2 5 7 -8, 2 64,
Homem, 382, 408; e o movimento 267, 2 8 5 , 320; Nobreza e, 4 1 1 ;
federalista, 434, 437-8, 439 -40; em pretensão d e ascendência do, 3 0 1 ;
Londres, 5 0 3 -4, 5 5 9, 5 7 7 - 8 3 , 587; representação de, 2 5 3 - 5 5 , 2 5 6 - 8,
Mirabeau e, 4 1 5, 46 1 , 464, 467, 468, 2 6 3 , 2 6 6 - 8; rituais públicos e 2 9 1 -2;
469; na América, 726, 729- 34; na Young e, 375
coroação de Luís XVI, 42; na Termidorianos, 7 1 2, 7 1 5
Revolução de 1 8 30, 1 O, 1 1 -4; Terray, abade Joseph-Marie, 6 5 , 66,
Narbonne e, 5 0 3 ; no Clube de 1 789, 68, 7 1 , 83, 1 7 7, 6 7 5
4 1 2; no Comité da Salvação Pública, Terror, o , 8 - 9 , 1 6 1 , 2 4 3 , 2 8 8 , 3 8 5 -6,
70 1 ; nos Estados Gerais, 3 00, 3 0 3 ; 387, 4 1 4, 444, 446, 4 5 6, 642 -49,
ordenação d os bispos constitucionais, 6 6 1 - 74, 7 1 6, 720, 72 1 , 723, 7 3 0,
464; Sociedade dos Trinta, 2 5 3 - 5; 7 34, 7 3 5 - 6; campanha dos
Voltaire e, 1 7 - 9 indulgentes para pôr fim ao 6 8 5 - 9 1 ;
Tallien, Jean Lambert, 54 1 , 7 1 2, 7 1 5, C omité d e Salvação Pública, 604;
727 Danton e o, 6 8 6 - 7; descristianização
Talma, François Joseph, 4 2 0 , 42 6-8, e o, 6 5 9-62, 7 1 9; e a lei do Pradial,
4 5 2 , 4 5 9 , 483, 6 2 9 708; e a morte de Marat, 6 3 0 - 1 ;
Talon, Omer, 7 3 1 económico, 642, 645, 6 8 3 , 690, 772;
Target, Guy-Jean, 1 3 8, 1 7 6 -7 , 2 1 5 - 6, em Lyon, 662 - 6; em Marselha, 6 6 5 -
247, 2 5 3 - 5 , 2 5 7, 3 00; e o -6; fase d e instrução, 70 1 -7;
j ulgamento de Luís XVI, 5 5 9 -60; Ferrieres durante o, 288;
imagem de cera de, 3 2 8 ; na funcionários locais e o, 444- 5 ;
Assembleia Nacional, 404; girondinos durante o, 498;
Tarn: fome em, 260; motins em, 42 1 , instituições funcionais do, 640;
650- 1 Lindet durante o, 5 6 1 ; Malesherbes
Tasso, 5 5 7 e o, 5 60, 696- 70 1 ; mulheres e o,
taxations populaires, 606 674, 6 7 7 - 9 ; na Vendeia, 666, 667-
teatros de variedades, 1 1 5 , 1 1 6, 1 1 7 - - 7 1 ; prisões durante o 672 - 3, 692,
1 1 8, 1 69, 277, 438, 4 5 1 692, 698; Target durante o, 5 5 9;
teatros, 1 1 5 - 2 5 ; de variedades, 1 1 7 -8, termidorianos, 708- 1 1 , 7 1 5 ;
2 77; e a revolta de paris, 3 3 0 - 1 ; Tesouro, 56, 1 0 1 , 2 3 9, 3 1 2 ; da
Maria Antonieta e , 1 82 - 3 , 1 87 - 8 ; República, 6 0 5 ; e arrendamento
oratória e, 1 4 1 , 1 42; políticas e o , fiscal, 60
42 6 - 8 ; Testament de M. Fortuné Ricard ( Mathon
tecnologia, 1 62 - 3 ; militar, 1 5 8 de La Cour ) , 1 6 5 - 6
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