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Cidadãos

SIMON SCHAMA

Cidadãos
Uma Crónica da Revolução Francesa

Traduzido por
Miguel Mata

• Civilização
Editora
Título original
Citizens

Copyright da edição original


© Simon Schama, 1989

Copyright da edíção portuguesa


© 2011 Civilização Editora
Todos os direitos reservados

Créditos fotográficos
Fotografia do autor© Margherite Mirabella
Fotografia da capa© Musée de la Ville de Paris,
Musée Carnavalet, Paris/Bridgeman Girandon/Lauros

Adaptação da capa
Departamento Editorial

Tradução
Miguel Mata

O excerto do poema de William Wordsworth (p. vii)


O Prelúdio, tradução, prefácio e notas
foi retirado do livro
de Maria de Lourdes Guimarães,
Relógio D'Agua Editores, 2010

Revisão
Departamento Editorial

Pré-impressão, impressão e acabamentos


CEM Artes Gráficas

1.' edição em Abril de 2011

ISBN 978-972-26-3280-5
Depósito Legal 322914/11

Civilização Editora
Rua Alberto Aires de Gouveia, 27
4050-023 Porto
Tel.: 226 050 900
geral@civilizacaoeditora.pt
www.civilizacao.pt
Para JACK PLUMB
J 'avais rêvé une république que tout le monde
eut adorée. Je n 'ai pu croire que les hommes
fussent si féroces et si injustes.

CAMILLE DESMOULINS, da prisão para a sua mulher


4 de Abril de 1 794

. . . era na verdade, um momento


Em que o tumulto era geral; os mais pacíficos
Estavam ansiosos; e o alvoroço, a luta
Das paixões e opiniões ecoavam nas paredes
Das casas tranquilas com o seu rumor inquietante.
Nesse tempo, estava demasiado quente
O chão da vida para se pisar. Muitas vezes disse,
E não só nessa altura: "Como é apenas uma farsa
A história, seja do passado ou do futuro!
Agora sinto como todos os homens são enganados
Pela sua fé ao lerem o que se diz sobre as nações
E os seus feitos - uma fé destinada à vaidade e ao vazio;
Oh! Uma risada para q página que quisesse
Projectar no futuro o rosto do presente!

WILLIAM WORDSWORTH

O Prelúdio ( 180 5), Livro IX

L'histoire accueille et renouvelle ces gloires déshéritées;


elle donne nouvelle vie à ces morts, les ressuscite. Sa justice
associe ainsi ceux qui n 'ont pas vécu en même temps, fait
réparation à plusieurs qui n 'avaient paru qu 'un moment pour
disparaftre. Ils vivent maintenant avec nous qui nous sentons
leurs parents, leurs amis. Ainsi se fait une famille, une cité
commune entre les vivants et les morts.

JULES MICHELET

Prefácio a Histoire du X!Xe Siecle, Vol . II


Sumário

Lista das Ilustrações xii


Prefácio Especial à Edição Portuguesa xv
Prefácio XXV

PRÓLOGO: O Poder da Memória : Quarenta Anos D epois 3

PARTE UM
Mudanças: A França de Luís XVI

1 Homens Novos
PAIS E FILHOS 17
II HERÓIS PARA O S TEMPO S 24

2 Horizontes Azuis e Tinta Vermelha


LES BEAUX JOURS 40
II UM MAR DE D ÍVIDAS 48
III ARRENDAMENTO FISCAL E GUERRAS D O SAL 59
IV A ÚLTIMA E S PERANÇA: O C O C HEIRO 65
V A ÚLTIMA ESPERANÇA: O BANQUEIRO 73

3 O Absolutismo Atacado
AS AVENTURAS DE MONSIEUR GUILLAUME 82
II A SOBERANIA REDEFINIDA: O DESAFIO D O S
PARLAMENTO S 89
III NOBLESSE OBLIGE? 98

4 A Construção Cultural de Um Cidadão


EM BUSCA DE UM PÚBLICO 1 08
II A ATRIBUIÇÃ O DOS PAPÉIS: OS FILHOS DA
NATUREZA 125
III PROJECTAND O A VOZ: O E C O D A ANTIGUIDADE 135
I V DIFUNDINDO A PALAVRA 147

5 O s Custos d a Modernidade
UM RE GIME ANTIGO OU NOVO? 155
II VIS Õ E S D O FUTURO 165
PARTE DOIS
Expectativas

6 A Política do Corpo
I FURORES UTERINOS E OB STRUÇÕES DINÁ STICAS 173
II O RETRATO DE CALONNE 1 90
III EXCEPÇÕ ES NOTÁVEIS 200

7 Suicídios 1787-1788
REVOLUÇÃ O NA PORTA AO LADO 208
II O Ú LTIMO GOVERNO D O ANTIGO RE GIME 213
III O CANTO D O CISNE D O S PARLAMENTOS 219
IV A JORNADA DAS TELHAS 230
V JOGOS FINAIS 240

8 Queixas, Outono de 1788-Primavera de 1789


1 788, NÃ O 1688 244
II A GRANDE DIVIS Ã O, AGO STO -DEZEMBRO DE 1 788 250
III FOME E F Ú RIA 259
I V C OELHOS MORTOS E PAPEL D E PAREDE RASGADO, MARÇO-
-ABRIL DE 1 789 277

9 Improvisando Uma Nação


I DOIS TIPOS DE PATRIOTA 287
II NOVUS RERUM NASCITUR ORDO, MAIO-JUNHO DE 1 789 297
III TAB LEAUX VIVANTS, JUNHO DE 1 7 89 308

10 A Bastilha, Julho de 1789


DOIS TIPOS DE PALÁ CIO 319
II E S PÉ CTACULO S : A C ONQUISTA D E PARIS, 1 2 - 1 3 D E JULHO DE
1 789 327
ill ENTERRADOS VIVOS? MITOS E REALIDADES D A BASTILHA 335
I V O HOMEM Q U E GOSTAVA DE RATAZANAS 341
V 1 4 DE JULHO DE 1 78 9 344
VI A VIDA DA BASTILHA DEPOIS DA SUA TOMADA: O PATRIOTA
PALLOY E O NOVO EVANGELHO 349
VII PARIS, REI DOS FRANCE S E S 358

PARTE TRÊS
Escolhas

11 Com e Sem Razão, Julho-Novembro de 1789


I FANTASMAS, JULHO-AGO STO 367
II PODERES DE PERSUAS Ã O, JULHO-SETEMBRO 380
III LUTA D E MULHERES, 5 -6 D E OUTUB RO 392

12 Actos de Fé, Outubro de 1789-Julho de 1790


I HISTÓRIA VIVA 405
II APO STASIA 415
III ACTORE S E CIDAD Ã O S 424
IV ESPAÇO S SAGRADO S 43 1

13 Partidas, Agosto de 1790-Julho de 1791


I AS MAGNITUDES DA MUDANÇA 442
II POLÉMICAS INC ONTINENTE S 448
III MIRABEAUPAGA AS SUAS D ÍVIDAS 458
I V RITOS D E PAS SAGEM 469

14 "A Marselhesa", Setembro de 1791- Agosto de 1792


I ASSUNTO ENCERRADO? 489
II O S CRUZAD O S 496
III "A MARSELHESA" 512

15 Sangue Impuro
I UM "HOLOCAUSTO PELA LIBERDADE" 529
II GOETHE EM VALMY 544
III "NÃ O SE REINA INOCENTEMENTE " 549
IV O JULGAMENTO 558
V DUAS MORTE S 567

PARTE QUATRO
Virtude e Morte

16 Inimigos do Povo, Inverno-Primavera de 1793


I CIRCUNSTANCIAS DIFÍ CEIS 577
II C ORAÇÕ E S SAGRAD O S : A SUBLEVAÇÃ O DA VENDEIA 589
III "RELES MERCAD ORIAS", MARÇO -JUNHO 603
IV SATURNO E O S SEUS FILHO S 61 1

17 "O Terror Está na Ordem do Dia", Junho de 1793-


Frimário do Ano II (Dezembro de 1793)
O SANGUE DO MÁ RTIR 622
II O TERROR ESTÁ NA ORDEM D O DIA 638
III OB LITERAÇÕ ES 654
18 A Política da Torpeza
I LOBAS E OUTROS PERIGO S 672
II O FIM DA INDULGÊNCIA 68 1

19 Quiliasmo, Abril-Julho de 1794


I A MORTE DE UMA FAMÍLIA 696
II A E S C OLA DA VIRTUDE 70 1
III TERMID OR 707

EPÍLOGO 715
Reuniões 725

Fontes e Bibliografia 739


Índice Remissivo 773
Lista das Ilustrações

( O s créditos fotográficos estão referidos entre parênteses . )

1 . Antoine Callet, Luís XVI com os Trajes da Coroação, Musée B argoin,


C lermont-Ferrand ( Lauros- Giraudon/Bridgeman Art Library ) .
2 . Jacques-Louis David, O Juramento dos Horácios ( 1 78 5 ) , Musée du
Louvre, Paris (AKG-Images/Erich Lessing ) .
3 . Elisabeth Vigée-Lebrun, Maria Antonieta com os Filhos ( 1 78 5 ) , Musée
du Château, Versalhes, (AKG-Images) .
4. Angélique Allais, Retrato de Honoré Gabriel Victor Riquetti, Conde de
Mirabeau, Musée Carnavalet, Paris (© Phototheque des Musées de la
Ville de Paris ) .
5 . Antoine Vestier, Jean-Henri, Chevalier de Latude ( 1 7 8 9 ) , Musée
Carnavalet, Paris, ( Lauros- Giraudon/B ridgeman Art Library ) .
6 . C laude Cholat, A Tomada da Bastilha, 14 de Julho de 1789, Musée
Carnavalet, Paris, (AKG-Images ) .
7 . Pierre François Palloy, modelo da Bastilha feito com as suas pedras
( 1 78 9 ) , Musée Carnavalet, Paris, ( Lauros- Giraudon/Bridgeman Art
Library) .
8 . Louis- Philibert Debucourt, Lafayette como Comandante da Guarda
Nacional ( 1 7 9 0 ) , Musée de la Ville de Paris (AKG-Images ) .
9 . Anónimo, " Para Versalhes ! Para Versalhes ! " ( 1 78 9 ) , Musée de la Ville
de Paris (AKG-Images ) .
1 0 . Jacques-Louis David, O Juramento da Sala do Jogo de Péla, Musée du
Louvre, Paris (AKG-Images ) .
1 1 . Louis -Jean-Jacques Durameau, Pierre-Victurnien Vergniaud ( 1 792 ) ,
Musée Lambinet, Versalhes (Lauros- Giraudon/Bridgeman Art Library) .
1 2 . Anónimo, Luís XVI Bebe à Saúde da Nação a 20 de Junho de 1792, Musée
de la Revolution, Vizille ( Visual Arts Library/B ridgeman Art Library ) .
1 3 . Jacq ues- Louis D avid, Cabeça de Lepeletier de Sain t-Fargeau (©
Bibliotheque Nationale, Paris ) .
1 4. Anatole D evosge ( segundo Jacques-Louis David ) , Lepeletier de Saint­
-Fargeau no Leito de Morte, Musée des Beaux-Arts, Dij on, (© RMN,
Paris ) .
1 5 . Villeneuve, Matiere à Reflection pour les Jongleurs Cóuronnées, Musée
Carnavalet, Paris, (© Phototheque des Musées de la Ville de Paris ) .
xiii

1 6 . Joseph Boze, Retrato de Jean-Paul Marat ( 1 79 3 ) , Musées Royaux de


B eaux-Arts de Belgique, B ruxelas ( B ridgeman Art Library) .
1 7 . Jacques-Louis David, A Morte de Marat ( 1 79 3 ) , Musées Royaux de
B eaux-Arts de Belgique, B ruxelas ( Lauros-Giraudon/Bridgeman Art
Library ) .
1 8 . A. Clement ( segundo Simon Louis B oizot) , La France Républicaine,
B ibliothéque Nationale, Paris ( Lauro s - Giraudon/ B ridgeman Art
Library) .
1 9 . De B rehen, Maria Antonieta de Luto na Conciergerie, Musée Carnavalet,
Paris (AKG-Images ) .
2 0 . Thomas Naudet, O Festival do Ser Supremo no Campo de Marte, 8 de Junho
de 1794, Musée Carnavalet, Paris ( Lauros- Giraudon/B ridgeman Art
Library) .
2 1 . Anónimo, Maximilien de Robespierre (e. 1 79 0 ) , Musée C arnavalet, Paris
(AKG-Images ) .
2 2 . Anónimo, Robespierre Guilhotinando o Carrasco ( 1 79 3 ) , Musée de la
Ville de Paris (AKG-Images ) .
OOEANO

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A França no Antigo Regime:
Províncias e Principais Vilas e Cidades
V
MAR MEDITER R ÂNEO
100 Km
Prefácio Especial à Edição Portuguesa

Passados vinte e tal anos . . .

"É o fim do caminho. " Lentamente, dolorosamente, o boj o suj o e gélido


do Inverno vai dando lugar à terna Primavera. Onde quer que eu estej a,
vem-me à cabeça " Águas de Março", de Tom Jobim. O regresso do sol, " é
a vida, é o sol", mas com ele, perigos, "é a morte, é o laço, é o anzol" . .. C om
a Primavera dos povos é a mesma coisa. As revoluções são vernais antes de
verdadeiramente aquecerem. Fevereiro de 1 848 despediu-se da última
monarquia francesa; Fevereiro de 1 9 1 7, dos Romanov. Antes do 1 4 de
Julho de 1 789, houve o Maio dos Estados Gerais. Estas poderosas insur­
reições germinam e agitam-se na escuridão subterrânea, cegas como tou­
peiras, mas quando a crusta amolece, surge uma teia de fendas na
superfície - e assim começa a saída para a luz. A primeira cor que os revo ­
lucionários de 1 789 escolheram como símbolo da liberdade foi o verde .
Ainda faz frio no Cairo e em Benghazi, nesta quase-Primavera revolu­
cionária de 2 0 1 1 . As pessoas que cantam nas ruas e ocupam as praças têm
o calor da solidariedade fraterna. Cada novo dia traz notícias más para os
déspotas, notícias do nascimento de cidadãos. As notícias, com o seu fraco
e abreviado sentido da História, agitam-se em busca de comparações e
contextos : Berlim, 1 9 89; Teerão, 1 979; o Maio estudantil de Paris e o
veludo rasgado de Praga, 1 9 6 8 . Mas para quem viveu a mãe de todas as
revoluções modernas, a efervescência inocente dos braços dados em soli­
dariedade, a crença de que a liberdade traz j ustiça e enche a barriga de
quem tem fome, o choque e a fúria perante os contra -ataques caóticas
que ensanguentam as ruas, o choque eléctrico do j úbilo quando um
tirano pestaneja, tudo isto torna para sempre contemporânea a história
antiga da Bastilha e das Tulherias, da C onvenção e da guilhotina.
Tal como aconteceu em 1 989, aquando da publicação de Cidadãos,
apontada ao bicentenário. Não obstante a presciência de Peter C arson, da
Penguin B ooks - foi sua a ideia do livro -, a obra não previu a Praça
Tianamen nem o súbito colapso da União Soviética, mas quando ele aven­
tou a hipótese de eu escrever uma nova história narrativa, o Peter - que
tem algo de russo - estava certamente a pensar que as revoluções e a
Revolução Francesa em particular são fenómenos que nunca se aquietam
no túmulo poeirento da escrita académica.
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Mesmo assim, a conversa surgiu do nada. Eu tinha acabado de publi­


car The Embarrassment of Riches, o meu livro sobre a cultura holandesa do
século XVII, do qual eliminara cuidadosamente o tema omnipresente de
Rembrandt porque tencionava escrever um estudo histórico sobre o
maior de todos os pintores geniais da Idade de Ouro. E era isto que os
meus editores americanos esperavam. "Mas será que o mundo necessita
de outro livro sobre a Revolução Francesa? ", foi a compreensível reacção
de um deles, com um suspiro audível, quando eu abordei o assunto por
alto. O meu agente literário inglês, apesar de mais entusiasmado, tinha
algumas reservas fundadas. Embora The Embarrassment of Riches tivesse
recebido um acolhimento generoso, fora entregue para publicação muito,
muito atrasado . Quanto tempo? Em vez de pensarmos em meses, pense ­
mos em anos . "Atenção, Simon", disse ele durante o seu sempre hospita­
leiro almoço, mas olhando -me com a determinação inquiridora que é
geralmente associada aos procônsules do Império B ritânico, "Não fará
sentido entregar este em 1 990 ! " Respirei fundo e menti: "Mas porque é
que acha que eu iria fazer isso?"
Mas Cidadãos chegou a horas . Foi escrito com uma improvável tem­
pestade de energia, com a impulsividade furiosa que os revolucionários
consideravam ser uma expressão de "l 'audace" . Escrevi muito antes do
alvorecer; foi a única vez que escrevi constantemente muito cedo . Um dia,
com a primeira luz a despontar, lembrei-me de uma cena do filme La
Marseillaise, de Jean Renoir, em que dois revolucionários estão encostados
um ao outro para se aquecerem ao pé de uma sombria fortaleza,
enquanto um orador revolucionário fala no alvorecer da liberdade . Um
vira-se para o outro e diz, "mas porque é que eles falam sempre na alvo ­
rada?", e o outro responde, "porque nunca têm de se levantar tão cedo " .
Mas as minhas alvoradas passadas com Mirabeau, Lafayette, o "chevalier
Latude" e Luís XVI pareceram-me livres e fáceis; o livro quase que se
escreveu a si próprio; as cenas e as palavras fluíram por mim como uma
música agreste, ritmada como a " Carmanhola " : "Ah ça ira ça ira ça ira" .
Peter Carson inspirara-se nas minhas palestras na Universidade de
Cambridge, em finais da década de 60, no âmbito da formação pedagógica
dos j ovens membros da faculdade. As palestras tinham efectivamente ver­
sado sobre a Revolução Francesa, em parte porque eu estava a investigar a
República Holandesa quando fora atingida pela tempestade revolucionária
das décadas de 80 e 90 do século XVIII, nomeadamente pela força dos
exércitos franceses "libertadore s " . Fiquei surpreendido ao constatar que as
minhas palestras eram as primeiras dadas em C ambridge sobre a
Revolução desde ( tanto quanto consegui aferir) os anos vinte. Para o bem
ou para o mal, com simpatia e antipatia, a grande epopeia fora uma das
duas grandes bigornas nas quais havia sido forj ada a escrita história britâ ­
nica moderna, sendo a outra as duas revoluções inglesas do século XVII .
xvii

Uma grande parte dessa escrita enérgica - de B urke a Carlyle - fora menos
académica ou aquilo que Voltaire designava por " filosófica " e não procu ­
rava ser imune às paixões, tal como acontecia com a tradição republicana
em França, onde a história era sempre mais do que a crónica ou a análise
académicas e sempre problematicamente inseparável da política contem­
porânea. Em ambos os lados do Canal, como que por afinidade, este
tópico podia desencadear insurreições literárias de retórica escrita - espec­
taculares no caso de Carlyle. John Stuart Mill ( que queimou acidental­
mente o manuscrito de Carlyle ! ) caracterizou o texto como um grande
"poema em prosa", um poema que respondia plenamente à ambição de
Carlyle de derrubar a distinção de Aristóteles entre a história e a poesia .
Carlyle afirmava que a história, "se pudesse ser escrita, seria a única poe­
sia " . Escrita à sua maneira, queria ele dizer. Ainda me deparo com cons ­
ternação quando ponho os meus alunos a ler o espantoso terramoto de
verborreia de Carlyle, alternadamente transcendente e desarticulado .
Cambridge ( e Oxford) do século XIX não queriam nada com aquilo .
O próprio sucesso de French Revolution de C arlyle era uma espécie de pro­
vocação, a transbordar de horror e desprezo, para definir a disciplina his ­
tórica contra os excessos românticos corporizados na famigerada obra .
Contra a poesia e a proximidade, cerraram fileiras a ciência e a fria obj ec­
tividade. As epítomes da reacção foram lorde Acton ( sentencioso à sua
maneira ) e J . B. B ury, para quem a história tinha de aspirar pelo menos à
condição da ciência forense para não ser tratada como especulação j uve­
nil. Os arquivos falariam por si próprios e a subj ectividade intrusiva dos
seus intérpretes teria de ser excisada para que a pureza do registo herdado
pudesse ser transmitida de geração em geração. Na verdade, os historia ­
dores mais não seriam do que filólogos e editores críticos do que recebiam
alegremente para a posteridade .
E assim ficaram as coisas, pelo menos em Cambridge . Os grandes
tomos frios de Acton (e o seu proj ecto ultra -racional, "The C ambridge
History of Europe " ) , com os seus comités de eruditos lapidares, dobravam
as prateleiras das bibliotecas onde as suas páginas dormiam em gélida cor­
recção. Naquela mentalidade política extremamente liberal, a Revolução
Francesa tornou-se parte da educação dos funcionários públicos britâni­
cos, especialmente dos destinados aos negócios estrangeiros e às colónias,
por causa do muito que revelava acerca da qualidade míope do zelo insur­
recto, dos modos como as repúblicas se transformavam em ditaduras
imperiais ou dos perigos e oportunidades presentes às monarquias que se
reformavam. Mas para ser um manual sobre o acesso e o exercício do
poder, a história tinha de ser purgada do seu caos poético, ou sej a, da sua
essência. Por conseguinte, as primeiras palestras dadas em muitos e mui­
tos anos nesta Universidade, onde a história era uma verdadeira potência
disciplinar, couberam-me a mim, então com vinte e tal anos.
Simon Schama 1 CIDADÃOS

E a avaliar pelas lendas peculiares que nasceram à sua volta, essas


palestras eram célebres - ou famigeradas - por serem dadas precisamente
com a retórica elevada que se tornara tabu. Se me lembro? Lembro -me de
as escrever febrilmente, do ritmo acelerado do desastre a aproximar-se de
Versalhes à ligadura sangrenta que mal segurava o queixo de Robespierre
quando o arrastaram para a guilhotina. Mas também me lembro de deitar
fora os manuscritos e de as improvisar - com algum academismo, conve­
nha- se, mas aparentemente com algum excesso de empatia, ao subir para
cima de uma mesa e esbracejar quando falei sobre Camille Desmoulins a
fazer a mesma coisa no Palais-RoyaL no dia 1 2 de Julho de 1 7 8 9 .
E stes exercícios de teatralidade descarada eram uma resposta não só a o
torpor do positivismo liberal, mas também ao positivismo igualmente
dominante da minha geração de meados do século XX, maioritariamente
marxista e criatura da ciência social pura e dura. Em França, em particu ­
lar, a Revolução era vista necessariamente como a comprovação da visão
instrumental marxista de que a política era apenas uma expressão da
grande dialéctica, no caso vertente, o colapso final do " feudalismo" ou do
Estado monárquico, derrubados por uma burguesia em ascensão social
que via serem-lhe negados os direitos políticos correspondentes ao seu
novo estatuto e poder económico . Era este o evangelho, transmitido apos ­
tolicamente por Jean Jaures, Albert Mathiez, Georges Lefebvre e Albert
S obouL e consagrado na bíblia incontestável dos Annales Historiques de la
Revolution Française.
Até que foi contestado. Lembro -me de estar sentado numa das cadei­
ras de braços azuis da longuíssima sala de leitura da biblioteca da
Universidade de Cambridge, a perscrutar as páginas dos mais interessan­
tes Annales: Economies, Societes, Civilisation, fundados por Marc Bloch e
Lucien Febvre, e onde se sentava entronizado o génio difícil e poderoso
de Fernand B raudel. Foi então que dei com um artigo de François Furet
intitulado "Le Catechisme Revolutionnaire " . Foi um daqueles momentos
de inspiração luminosa que às vezes se abatem afortunadamente sobre os
escritores . Caíram-me as palas dos olhos. Nada voltou a ser o mesmo.
Furet - que me adaptaria como um j ovem rebelde necessitado de protec­
ção ( e de ser acalmado ) - disparava uma devastadora barragem de cepti­
cismo sobre os principais pressupostos dos marxistas . Longe de a
"burguesia" ver negado o acesso às elites do Antigo Regime, a maioria dos
ricos integrou-se em esforço nas suas fileiras, enobrecendo-se com o
dinheiro que tinha . Longe de serem burgueses insatisfeitos que se volta ­
ram para a revolução, os porta- estandartes da revolta radical tinham sido
- de forma notável - aristocratas e clérigos renegados ! Em vez de um
Antigo Regime atolado numa obstinação arcaica, foi precisamente ao
embarcar em reformas - como Tocqueville j á tinha observado - que se
tornou mais vulnerável às experiências que o destruiriam. O preto era
xix

branco, a parte de cima era a parte de baixo, dentro era fora. Finalmente,
tudo fazia sentido, e parte do meu entusiasmo decorrente daquela aprendi­
zagem tardia foi certamente parar àquelas excitadas e excitáveis palestras.
O que não é dizer que eu neguei que a raiva que incendiou a
Revolução não tinha a sua génese em desigualdades sociais enormes, na
perpetuação da fome no meio de uma espécie de idade de ouro plutocrá­
tica francesa. No entanto, tudo isto j á fora observado por uma geração
anterior de historiadores em França e Inglaterra . A Revolução era efecti­
vamente um drama social de muito desespero e só quando eu comecei a
conduzir os cento e trinta quilómetros entre Cambridge a Oxford para
assistir a um seminário quinzenal sobre a Revolução Francesa conduzido
por Richard C obb no B alliol C ollege é que me aproximei verdadeiramente
do evento. "Le Formidable M. Cobb", como ele era conhecido nos círculos
históricos franceses, era e não era formidável. Era "formidable" nos seus
conhecimentos bilingues e no espantoso domínio que tinha dos arquivos .
Fizera a sua tese sob a orientação de u m dos maiores e mais severos dos
mestres da geração marxista, Georges Lefebvre, e escrevera a sua tese -
obrigatoriamente imensa - sobre os "exércitos revolucionários" que não
eram soldados no sentido convencional do termo, mas sim brigadas arma­
das de sans-culottes geralmente enviados de Paris para garantir o abasteci­
mento alimentar e a aplicação do controlo dos preços e de outros aspectos
da ortodoxia j acobina nas províncias recalcitrantes . Mas a ênfase de
Richard era sempre nas vítimas, nos pobres dos pobres, nos indefesos e
cada vez mais em todos aqueles para os quais a política, incluindo ( ou
especialmente ) a política revolucionária, era uma espécie de malfeitoria
iludida, a extracção da decência humana em nome da Ideologia
Melhoradora.
Nenhuma das pessoas que assistiu ao seminário - muitas eram histo ­
riadores que viriam a escrever com grande eloquência sobre a•Revolução
- esqueceria a experiência. Na presidência da sessão, além de C obb, com
o seu aspecto de pássaro ossudo e desgrenhado, havia um busto de
Voltaire por Houdon - visto de um certo ângulo, tinha algumas seme ­
lhanças com o professor. O debate era frequentemente imoderado mas
nunca arrogante . Havia chispas. Ao j antar, C obb bebia de mais para a sua
débil constituição . D epois do j antar, bebia ainda mais . Em várias ocasiões,
eu e outros tivemos de levar a sua frágil figura para o quarto e deitá-lo na
cama. Fora precisamente naquele tipo de postura caprichosa mas bondosa
e na sua experiência directa de uma vida vivida nas margens que a dedi­
cação de C obb aos pobres revolucionários parecia genuinamente cama­
rada e não académica . E C obb escrevia cada vez mais com um desprezo
absoluto pela aridez do " discurso" académico - a palavra deixava-o fisica ­
mente doente . Às vezes, partes dos seus escritos desmoronavam-se em lis­
tas rabelaisianas, em acumulações ricas de pormenores, na matéria
Simon Schama 1 CIDADÃOS

material do seu tema, em grilhetas ou em passagens sobre mães j ovens e


suicidas cujos corpos flutuavam no S ena, ou na fome e no frio que asso­
laram o Inverno de 1 7 9 5 , e ele conseguia uma nova poesia em prosa, viva
com a obra dos sentidos, cores, aromas, tagarelices e canções. Era fantás ­
tico e eu queria s e r suficientemente valente para fazer algo q u e prosse­
guisse a passagem anárquica de Cobb da metodologia para a realidade
humana .
Mas quando tentei foi, num aspecto crítico, na direcção oposta do
exemplo de C obb . Para ele, só existia a realidade social - dor, fome, raiva,
encanto . As palavras nas quais a Revolução se afogara eram as fantasias
mortíferas . Mas eu ia parar constantemente a essas palavras. A escola
marxista também as tinha classificado de meras ornamentações artificiais
apostas à pétrea realidade dos interesses de classe. Era uma interpretação
considerada credível, até porque a ciência social da Revolução Francesa
fora fundada numa furiosa reacção ao tipo de escrita representada pelos
historiadores românticos como Jules Michelet, deão do século XIX e direc­
tor dos Archives Nationales, com a sua comunhão quase mística com a
igrej a da democracia. Em finais do século XIX e no princípio do século XX,
o estudo da oratória da Revolução era considerado, por Alphonse Aulard
e outros, como a chave das energias violentas do evento. Aulard tinha
coligido textos e manuscritos do mundo e das guerras das palavras, não só
discursos mas também cartazes, panfletos, j ornais e até baladas. E sta
grande colecção - desprezada pelos historiadores "verdadeiros" da
Revolução e considerada mais do que dispensável - fora adquirida por
Archibald C ary C oolidge, um historiador de Harvard, durante as suas
andanças pela Europa pós-Primeira Guerra Mundial em busca de tesou ­
ros literários e históricos que pudesse levar para a sua universidade, tal
como William Randolph Hearst levava obras de arte "aos navios" .
Foi n o quinto andar d a cave d a Biblioteca Widener d e Harvard - algu­
mas das peças mais raras tinham sido transferidas para a biblioteca de
investigação Houghton - que descobri volume após volume de declara­
ções revolucionárias perdidas e fiquei absolutamente convencido de que,
longe de serem a mera expressão de uma realidade social mais profunda,
tinham, como os historiadores do século XIX haviam imaginado, consti­
tuído as lealdades da Revolução . Eram a sua coluna vertebral, o sangue do
seu coração, e eram aos monte s ! E foi ao imergir-me naqueles gritos e ej a­
culações, naquelas representações teatrais sofisticadamente neoclássicas,
nos pleitos j urídicos e nas exortações dos clubes, que senti o hálito quente
da Revolução. E quis estar perto, não longe, o que também era uma vio ­
lação do mandamento académico do distanciamento, o abraço em vez do
repúdio da proximidade .
E sta ênfase renovada na força formativa da linguagem também me
parecia responder à pergunta implícita na demolição, por Furet, da
xxi

"interpretação social" das causas da Revolução, e com a aproximação do


bicentenário - e dos sarilhos -, Furet e os colegas que comungavam das
suas ideias começaram a editar e analisar os irreprimíveis animais da fala,
os actores e os tribunos e as suas orações com uma clareza dura mas
empenhada. Foi esta "viragem para a língua" (assim foi insipidamente
rotulada ) que eu j ovem inocente, encontrei, numa reunião do
C onsortium on Revolutionary Europe, em Charleston, em meados da
década de 70. C onheci Lynn Hunt, cuj o primeiro livro sobre a Revolução
era a melhor obra que assumia a estrutura social como premissa organi­
zadora da lealdade política . Mas até esse livro tinha uma segunda parte
que lançava algumas dúvidas sobre essas certezas. Quando nos encontrá­
mos no meio das magnólias da Carolina do Sul, ela própria vinha pen­
sando cada vez mais no poder independente da retórica . Tivemos muita
coisa de que falar.
Por conseguinte, quando respondi que sim ao Peter Carson, dispus-me
a correr um risco considerável e quiçá temerário: escrever uma história
que dissesse As Coisas Erradas, especialmente no ano do bicentenário.
Que a Revolução fora movida pela linguagem; que as palavras eram tão
perigosas como os mosquetes; que em certos aspectos, a força da fúria
revolucionária não fora modernizadora mas contra a modernização da
economia francesa durante a monarquia; que o Antigo Regime era na rea­
lidade um regime inovador (o que no entanto não o coibiu de uma espé­
cie de indiferença brutal para com os desfavorecidos pela modernização ) .
D e forma ainda mais provocadora, eu queria que o livro tocasse as formas
literárias pré-modernistas, as de Michelet e de Carlyle, sem necessaria ­
mente as absorver. Eu queria proximidade e não distanciamento; espec­
táculo e não ciência social; queria plantar nas páginas uma espécie de
incerteza rodopiante, numa correspondência mimética com as ansiedades
e terrores do que estava a ser obj ecto da crónica. Daqui o subtítulo do
livro, talvez uma luva infantilmente atirada à cara dos determinismos.
Queria que o livro transportasse o leitor para o vórtice, que o leitor per­
desse o norte como o perderam os protagonistas e as vítimas da incerteza
revolucionária . Eu queria que o louco e o violento, que o filosófico e o
instintivo, que os discípulos hipócritas da virtude pública e que as criatu­
ras sem escrúpulos da autopromoção vã desfilassem pelas suas páginas.
E queria que a gente de C obb, todos aqueles para quem a política eram os
actos incompreensíveis e repreensíveis cometidos por "Eles" mas que se
sentiram chamados a mergulhar naquele mundo não fosse a sua ausência
constituir desvantagem para eles e para as suas famílias - eu queria espe­
cialmente que eles desempenhassem um papel no livro .
Havia ainda outra coisa, de uma importância profunda mas perturba­
dora, que eu queria assinalar no centro do poder revolucionário e que era
a sua violência . Esta temática tornou - se quase insípida mas há vinte anos
Simon Schama 1 CIDADÃOS

colocar a raiva física, o castigo exemplar e a crueldade enlouquecida no


âmago da acção revolucionária como se faria sem hesitar no caso da
Rússia Soviética ou da China C omunista era impensável, uma profanação
do cânone. Porque o cânone dizia que o Terror jacobino fora uma defor­
mação lamentável do momento menos militante e menos feroz de 1 78 9 -

o ano a celebrar. E sta era mais ou menos a minha posição quando iniciei
a minha investigação mas não quando a terminei. Nessa altura, pareceu­
-me que os dentes do dragão tinham sido semeados logo no início, com o
ostracismo a que foram votados do corpo político os "não cidadãos" ( como
os padres ) , com a execução exemplar de figuras simbólicas para a fúria
popular, quando as sucessivas facções descobriram que podiam incomo ­
dar e deslocar os incumbentes do poder libertando sobre eles as demoni­
zações da traição. Por vezes, foram aj udadas por traidores verdadeiros,
incluindo o próprio rei, no seu momento de idiotice criminosa com a fuga
para Varennes .
Eu quis escrever sobre as coisas mais feias d e um modo directo q u e era
considerado vulgar ou sensacionalista pela academia, e assim aconteceu .
A propósito das descrições d o s Massacres d e Setembro fui acusado, pela
crítica inglesa Marilyn B utler, de uma certa pornografia histórica e de gos­
tar daquilo que , na sua opinião, eu dizia considerar repugnante . É capaz
de ter sido a afirmação mais terrível e também a mais falsa alguma vez
feita sobre o meu trabalho (e têm sido ditas algumas ) , e as coisas não fica ­
riam por ali. Deplorar o princípio da violência revolucionária e não o seu
consumar apocalíptico no Terror jacobino significava que o meu trabalho
fora seguramente concebido no espírito e executado na letra da direita
contra -revolucionária . Cidadãos foi acusado de pertencer ao ninho de
víboras que tinha gerado as efusões reaccionárias de Burke, Taine e
Carlyle. As eminências correram a imprimir estas apreciações ainda antes
de lerem o livro . Roger Chartier classificou-o como "reaganismo" nas
páginas do Le Monde, o que significou que fui de imediato felicitado nas
páginas do Le Figaro. Nem um nem outro tinham razão . Julgo que se
tomei alguma posição durante a escrita do livro, foi a de um envergo­
nhado social-democrata a pender para a esquerda lacrimante que sentiu
que não honrava a memória nem as comemorações do bicentenário
de 1 789, para disfarçar o seu carácter essencialmente trágico .
Paguei um certo preço pelas caricaturas antecipativas do livro e pela
sua suposta orientação política . Enquanto - para meu grande alívio e gra ­
tidão - Richard C obb fez uma recensão generosa no Times Literary
Supplement e C olin Jones, muito mais à esquerda do que eu, decidiu dis ­
cordar mas fê -lo de forma extremamente compreensiva e calorosa, houve
outros que transformaram temporariamente o livro e o seu autor em
párias. Amigos que tinham sido próximos deixaram de me falar; voltaram
a fazê -lo passado algum tempo, mas a amizade nunca mais foi a mesma .
xxiii

Uma queixa comum era que o livro, além de reaccionário, era intelec­
tualmente trivial; ou oferecia uma argumentação errada ou não oferecia
argumentação nenhuma. Segundo alguns dos comentários mais virulen­
tos, eu tinha conseguido (milagrosamente) fazer as duas coisas ! As pales­
tras em conferências eram interrompidas pela "Marselhesa" e eu
j untava -me de imediato ao coro - sempre gostei de versos de gelar o san­
gue . A carga inerente ao facto de o livro ser sequestrado para j ogos fac­
ciosos e o ténue ar de desgraça que pairava sobre ele explica parcialmente
porque é que as muitas línguas para as quais foi traduzido não incluem o
francês ( uma situação que estará aparentemente a ser corrigida) .
Aqueles que, à direita, pensavam ter e m mim u m aliado acabaram por
ficar tão alienados como os da esquerda . Livros subsequentes desmasca ­
raram-me como um conservador muito pouco de fiar, e algumas luminá­
rias daquela área ferraram os dentes nos meus dúplices calcanhares e
ainda não largaram.
No fim, nada disto importa, e na época não importou muito. Mais do
que qualquer outro livro meu, atingiu a imaginação popular e teve bas­
tante sucesso comercial na Grã-B retanha e nos E stados Unidos. As críticas
não académicas foram embaraçosamente excessivas. C onquistou prémios.
E durante todo este tempo, não fiz muito para reexaminar profunda­
mente os seus argumentos, embora possa dizer que as suas linhas princi­
pais - no que diz respeito à violência, por exemplo - foram ultrapassadas
por investigações muito mais recentes. Alguns dos antigos refrães conti­
nuam a ouvir-se. No ano passado, foi incluído num excelente documen­
tário da B B C , da autoria de Mark Hayhurst, sobre as últimas semanas do
Terror e dei comigo a ter de repudiar mais uma vez a opinião de que é um
erro do mais débil liberalismo e de falta de coragem burguesa deplorar a
violência sem a qual, segundo reza o argumento - e reza ! - nenhuma
revolução pode garantir as liberdades do povo ou as suas pretensões à j us­
tiça social. E sgrimi veementemente com Slavoij Zizek em relação a esta
matéria e nenhum de nós. cedeu . Não sei qual de nós seria o primeiro a
subir para a carroça destinada à guilhotina moderna mas a paixão do
debate - tal como as notícias do Cairo e de B enghazi - validou o meu ins­
tinto de que este tema nunca ficará ou nunca deverá ficar encerrado nas
deliberações remotas dos especialistas.
D e facto, uma das coisas que mais me agrada nas novas traduções é o
seu potencial de insuflarem nova vida nestas páginas que começam a
amarelecer, de recuperar para novos leitores os números que tropeçam e
correm, de exclamar e chorar com as suas páginas: Lucy de La Tour du
Pin, Malesherbes, Lafayette, Talleyrand, o céptico de olhos vivos, e a
minha trágica ménada da fúria revolucionária, Théroigne de Méricourt,
cuj a história terrível encerra o livro . Uma das queixas mais suaves acerca
de Cidadãos - perfeitamente j ustificada - é que não "acaba" como deve ser,
Simon Scharna 1 CIDADÃOS

que não tem uma " C onclusão" ( o leitor reparará que também não tem
"Introdução", pelo que estas deficiências são .simétricas ) . É verdade que a
narrativa poderia ter sido levada até ao fim tradicional, o golpe de
Napoleão B onaparte a 1 8 de B rumário. Mas pareceu-me e ainda me
parece que todos os fins, pelo menos, além da extinção da tirania robes­
pierrista, foram arbitrários . Mas a verdade é que eu estava intelectual­
mente e, enquanto escritor, vazio, exausto, aniquilado, kaputt. Levei
menos de um ano a escrever o livro mas consumiu -me a minha vida e eu
continuava a ser assombrado pela pergunta - relativamente respondida
nas passagens finais do livro, com Talleyrand na América e Lafayette na
prisão - acerca do problema da saída, que era muito mais crítico para as
legiões de impotentes de C obb do que para os poderosos. Depois de se
entrar no furacão, como é que se sai?
A assombração pareceu tornar-se quase literal. Prestes a terminar o
livro, as minhas noites eram visitadas por um desfile dos desesperados e
dos paranóicos, dos aterrorizados e dos resignados, como se eu estivesse
numa das câmaras de detenção revolucionária . Os fantasmas não estavam
vestidos a rigor mas uma vez acordei em pânico, encharcado em suor, a
pensar onde teria deixado a minha peruca e o meu cavalo. Mas sentia-me
como um fugitivo e a fuga envolvida na conclusão do trabalho inconcluí­
vel da narração parecia-me uma deserção, o abandono dos meus conci­
dadãos cuj a companhia me tinha abrigado, entusiasmado, assustado e
comovido através do processo da sua ressurreição literária .
Com esta consciência irracionalmente intranquila, dou as boas -vindas
aos leitores portugueses destas páginas. Cuidado ! S egundo me dizem,
ainda ferram e queimam. Espero que sim.

Londres, Fevereiro de 2 0 1 1
Prefácio

C onsta que quando pediram a opinião a Chu En-lai, o primeiro -minis­


tro chinês, sobre o significado da Revolução Francesa, ele terá respondido :
"É demasiado cedo para dizer. " Duzentos anos ainda poderão ser dema­
siado cedo (ou demasiado tarde ) para dizer.
Os historiadores confiam excessivamente na distância temporal, acre ­
ditando que, de algum modo, oferece obj ectividade, um dos valores ina­
tingíveis nos quais depositam tanta fé . Mas a proximidade talvez tenha
algumas vantagens. Lorde Acton, que proferiu as primeiras e célebres
palestras sobre a Revolução Francesa, em Cambridge, na década de 70 do
século XIX, teve a possibilidade de ouvir directamente de um membro da
Dinastia de Orleães a sua recordação da "algaraviada de D umouriez nas
ruas de Londres ao ouvir as notícias de Waterloo " .
A suspeita d e que o facciosismo prejudicou fatalmente a s grandes nar­
rativas românticas da primeira metade do século XIX dominou as opiniões
académicas da segunda . Ao institucionalizarem-se numa profissão acadé ­
mica, os historiadores acreditaram que a investigação conscienciosa dos
arquivos conferiria imperturbabilidade, o pré -requisito para chegar às
misteriosas verdades da causa e efeito. O resultado almej ado deveria ser
científico e não poético, impessoal e desapaixonado . E, no entanto,
durante algum tempo, as narrativas históricas mantiveram-se centradas
no ciclo de vida dos estados-nações europeus - guerras, tratados e destro ­
namentos - mas a atracção magnética da ciência social era tal que as
" estruturas" sociais e políticas pareceram tornar-se os principais obj ectos
de inquérito .
No caso da Revolução Francesa, isto traduziu -se na transferência da
atenção dos eventos e personalidades que tinham dominado as crónicas
épicas das décadas de 30 e 40 do século XIX. O brilhante relato de
Tocqueville, L'Ancien Régime et la Révolution, produto das suas investigações
nos arquivos, ofereceu um raciocínio frio onde antes tinham imperado as
quentes disputas do facciosismo. A qualidade olímpica das suas conclu ­
sões reforçou, ainda que de uma perspectiva liberal, a premissa científico­
-marxista de que o significado da Revolução devia ser procurado numa
grande alteração do equilíbrio do poder social. Nestas duas visões, as
Simon Schama 1 CIDADÃOS

declarações dos oradores pouco mais eram do que uma verborreia ligeira
que não conseguia disfarçar a sua impotência nas mãos das forças históri­
cas impessoais . Do mesmo modo, o fluxo e refluxo dos acontecimentos só
era compreensível fazendo- o revelar as verdades essenciais e primaria­
mente sociais da Revolução. No centro destas verdades encontrava-se o
axioma, partilhado por liberais, socialistas e até por monárquicos- cristãos
saudosistas, de que a Revolução fora o cadinho da modernidade, o reci­
piente no qual todas as características do mundo social moderno tinham
sido destiladas - para o bem e para o mal.
Seguindo a mesma lógica, se a Revolução definia uma época, então as
causas que a tinham originado eram necessariamente de magnitude equi­
valente. Um fenómeno dotado de um poder tão incontrolável e que tinha
aparentemente varrido todo um universo de costumes, mentalidades e
instituições tradicionais só poderia ter sido gerado por contradições pro ­
fundamente embebidas no tecido do Antigo Regime. Por conseguinte,
entre o centenário de 1 88 9 e a Segunda Guerra Mundial, surgiram gran­
des e pesados volumes documentando todos os aspectos dessas falhas
estruturais. As biografias de D anton e Mirabeau desapareceram, pelo
menos das editoras académicas respeitáveis, e foram substituídas por estu -
dos de flutuações de preços no mercado dos cereais . Numa fase posterior,
os grupos sociais, colocados articuladamente em oposição uns aos outros
- a "burguesia ", os sans-culottes -, foram definidos e dissecados e as suas
danças dialécticas foram convertidas na coreografia exclusiva da política
revolucionária.
Nos cinquenta anos decorridos desde o sesquicentenário, verificou-se
uma séria perda de confiança nesta abordagem. As mudanças sociais drás­
ticas imputadas à Revolução surgem menos nítidas ou nem sequer apare ­
cem. Os "burgueses", que nas narrativas marxistas clássicas eram
apontados como principais autores e beneficiários do evento, tornaram-se
zombies sociais, um produto de obsessões historiográficas e não de realida ­
des históricas. Outras alterações ocorridas na modernização da sociedade
e das instituições francesas aparentam ter sido antecipadas pela reforma
do Antigo Regime. As continuidades surgem tão marcadas como as des­
continuidades.
A Revolução j á não parece um grande desígnio histórico, pré - orde ­
nado pelas forças inexoráveis da mudança social. Pelo contrário, afigura­
-se como obj ecto de contingências e consequências imprevistas (a
começar pela própria convocação dos Estados Gerais ) . Uma profusão de
excelentes estudos locais demonstrou que, em vez de uma única
Revolução imposta por Paris ao resto de uma França homogénea, se veri­
ficaram várias "revoluções", determinadas amiúde pelas paixões e inte ­
resses locais . A par do ressurgimento do lugar como condicionante,
afirmaram-se as pessoas. Assim, com o enfraquecimento das "estruturas",
xxvii

o peso da acção individual e, em especial, das declarações revolucionárias,


tornou-se proporcionalmente mais importante.
Cidadãos é uma tentativa de sintetizar muitas destas reavaliações e
levar a argumentação um pouco mais longe. Levei um dos elementos
essenciais da argumentação de Tocqueville - a sua compreensão dos efei­
tos destabilizadores da modernização antes da Revolução - mais longe do
que a sua narrativa permite . Se nos libertarmos do rótulo revolucionário
de Antigo Regime, com a sua pesada carga de obsolescência, é possível
vermos a cultura e a sociedade francesas do reinado de Luís XVI mais afec­
tadas pelo vício da mudança do que pela resistência à mesma. De forma
oposta, quer-me parecer que uma grande parte da fúria que desencadeou
a violência revolucionária teve origem na hostilidade à modernização e
não na impaciência com a lentidão da sua implementação .
Por conseguinte, a narrativa das páginas que s e seguem coloca o seu
enfoque, talvez até excessivamente, nos aspectos dinâmicos da França pré­
-revolucionária, sem ignorar os genuinamente obstrutivas e arcaicos. Um
ponto importante da argumentação é a afirmação de que a cultura patriótica
de cidadania nasceu nas décadas que se seguiram à Guerra dos Sete Anos e
que foi mais uma causa e menos um produto da Revolução Francesa.
Três temas serão desenvolvidos ao longo desta argumentação. O pri­
meiro prende-se com a problemática relação entre o patriotismo e liber­
dade, que na Revolução se converte numa competição brutal entre o
poder do E stado e a efervescência da política. O segundo tema centra-se
na crença do século XVIII de que a cidadania era, em parte, a expressão
pública da família idealizada. A estereotipagem das relações morais entre
os sexos, entre pais e filhos e entre irmãos, revela- se, talvez de modo ines­
perado, uma pista significativa para a compreensão do comportamento
revolucionário. Finalmente, o livro tenta confrontar directamente a dolo­
rosa questão da violência revolucionária. D esej osos de não cederem ao
sensacionalismo e de não serem tomados por acusadores contra -revolu ­
cionários, os historiadores têm demonstrado excesso de escrúpulos ao tra -
tarem esta questão. Eu devolvi-a ao centro da história porque me parece
que não foi apenas um infeliz efeito secundário da política nem o instru­
mento desagradável através do qual fins virtuosos se atingiram: num sen­
tido profundamente inevitável, a violência foi a Revolução.
Decidi apresentar estes argumentos sob a forma de uma narrativa. Se,
na verdade, a Revolução foi muito mais um evento casual a caótico e pro­
duto do homem do que do condiciona mento estrutural, a cronologia afi­
gura - se indispensável para tornar inteligível as suas complicadas voltas e
reviravoltas . Por conseguinte, Cidadãos regressa ao formato das crónicas
do século XIX, permitindo a diferentes questões e interesses moldarem o
fluxo da história à medida que se fazem sentir, ano após ano, mês após
mês. Além disso, também descartei, talvez perversamente, o tradicional
Simon Schama 1 CIDADÃOS

formato "panorâmico" através do qual os vários aspectos da sociedade do


Antigo Regime são analisados antes de se partir para a descrição política .
Na minha opinião, o facto de se iniciar automaticamente os livros com
capítulos imponentes sobre "a economia", "o campesinato", "a nobreza" e
outros do género privilegia a sua força explicativa. Espero não ter igno­
rado nenhum destes grupos sociais, contudo, procurei introduzi-los nos
pontos da narrativa em que afectam o rumo dos acontecimentos. Por sua
vez, isto ditou uma abordagem que não está na moda: "de cima para
baixo" em vez de " de baixo para cima" .
A s narrativas foram descritas, por Hayden White e outros, como uma
espécie de artifício ficcional usado pelo historiador para impor uma ordem
tranquilizadora à cascata irregular de fragmentos de informação sobre
pessoas que já morreram. E sta assustadora conclusão encerra alguma ver­
dade, mas o meu ponto de partida teve a sua génese num artigo bastante
sugestivo de David Carr em History and Theory ( 1 9 8 6 ) , no qual defende a
validade narrativa de forma diferente e engenhosa . Por muito artificiais
que as narrativas escritas possam ser, correspondem frequentemente aos
modos através dos quais os agentes históricos constroem os acontecimen­
tos, ou seja, muitos - senão mesmo a maioria - dos homens públicos vêem
parcialmente a sua conduta situada entre os modelos de um passado
heróico e as expectativas acerca do j ulgamento da posteridade. Se isto foi
alguma vez verdade, aplica-se certamente à geração revolucionária da
França . Catão, C ícero e Júnio B ruto pesaram nos ombros de Mirabeau,
Vergniaud e Robespierre mas também instaram com frequência os seus
devotos a uma conduta que seria j ulgada pelas gerações vindouras.
Finalmente, a narrativa, como resultará óbvio, bebe na vida privada e
na vida pública dos cidadãos que surgem nas suas páginas, não só para
tentar compreender as suas motivações de forma mais profunda do que o
que permitem as suas declarações públicas, mas também porque muitos
deles - frequentemente para sua própria desgraça - viram a sua vida como
um todo coeso, com o seu calendário de nascimento, amor, ambição e
morte impresso no almanaque dos grandes eventos . Esta interligação
necessária entre as histórias públicas e privadas é evidente em muitas das
narrativas do século XIX e, dado que segui o seu precedente, o que tenho
para oferecer também corre o risco de ser visto como uma narração mali­
ciosamente antiquada. Difere das narrativas pré -tocquevillianas porque é
oferecida mais como testemunho do que como um julgamento, mas, tal
como esses relatos antigos, procura ouvir com atenção a voz dos cidadãos
cuj as vidas descreve, mesmo quando essas vozes se encontram no auge da
cacofonia . Neste sentido, também prefere a autenticidade do caos à ordem
dominadora da convenção histórica.

* * *
xxix

Richard C obb foi o primeiro a propor uma "abordagem biográfica "


para a história da Revolução, há cerca de vinte anos, embora estivesse a
pensar mais nas vítimas anónimas da agitação revolucionária e menos nos
seus responsáveis. Tendo isto em conta, espero que C obb não considere
imprópria a minha declaração de fidelidade a essa abordagem. No seu
inesquecível seminário no Balliol C ollege, em finais dos anos 60, aprendi
a tentar ver a Revolução não como um desfile de abstracções e ideologias
mas como um evento humano prenhe de desfechos complicados e muitas
vezes trágicos . Outros participantes no seminário - Colin Lucas, Olwen
Hufton, hoj e meu colega na Universidade de Harvard, e Marianne Elliott
- têm sido uma enorme fonte de conhecimentos e amizade académica
para os quais este livro é um gesto de agradecimento bastante desaj eitado.
Uma das minhas dívidas maiores é para com outro colega meu, Patrice
Higonnet, que me fez a gentileza de ler o manuscrito e poupar-me a mui­
tos erros e confusões (mas temo que não a todos ) . Muito do que tenho
para dizer, especialmente em relação ao grupo a que chamo "nobreza ­
-cidadã ", deve o seu ponto de partida à sua importante e original obra
Class, Ideology and the Rights of Nobles During the French Revolution ( Oxford,
1 98 1 ) . Outros amigos - John B rewer, John C live e David Harris Sacks -
também leram partes do trabalho e, como sempre, foram generosos com
os seus comentários e·úteis com as suas críticas .
A minha preocupação com a análise da oratória da Revolução e com a
consciência que a elite política tinha de si própria teve origem no
" C onsortium on Revolutionary Europe", que se realizou na Carolina do
Sul, em 1 9 7 9 . Estou profundamente grato a Owen C onnelly pelo convite
para participar num painel memorável que incluiu Elisabeth Eisenstein e
George V. Taylor. Foi em Charleston que as minhas longas conversas com
Lynn Hunt contribuíram para estimular o meu interesse pela força da lin­
guagem revolucionária e agradeço-lhe a ela e a Tom Laqueur pelo inte­
resse e encoraj amento que me manifestaram desde então. Robert
Darnton, cuj o primeiro livro sobre o Mesmerismo e o Iluminismo tardio
me puseram a pensar, já lá vão muitos anos, nas fontes da truculência
revolucionária, tem sido obrigado a ouvir-me vezes de mais mas sempre
me providenciou conselhos valiosos e correcções gentis e tem sido uma
fonte constante de inspiração.
Este livro não teria sido escrito sem o contributo póstumo de um dos
mais extraordinários eruditos de Harvard : Archibald Cary Coolidge,
bibliotecário da universidade na década de 20 do século XX. Ao adquirir
a biblioteca de Alphonse Aulard, o primeiro professor de história da
Revolução da Sorbonne, C oolidge criou um recurso precioso para os aca­
démicos que trabalham neste campo: uma colecção tão rica em jornais e
panfletos como em trabalhos de história local raros e obscuros. C omo
sempre, estou profundamente grato à esplêndida equipa da Houghton
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Library, sem cuj a paciência e eficiência muitos professores aflitos com um


intenso ano académico não conseguiriam levar a cabo as suas pesquisas.
C omo sempre, Susan Reinstein Rogers e os seus colegas da Kress Library
da Harvard Business School foram muito prestáveis e forneceram-me
fotografias excelentes das suas espectaculares edições da Description des
Arts et Métiers.
E stou também profundamente grato a Philippe B ordes, do Musée de la
Révolution Française, em Vizille, pela sua colaboração na descoberta de
material relacionado com a Jornada das Telhas. Mrs . Perry Rathbone
autorizou-me gentilmente a incluir uma ilustração do seu desenho de
Desmoulins por Hubert Robert, e Emma Whitelaw chamou-me a atenção
para a importância das memórias de Madame de La Tour du Pin.
· Muitos colegas e alunos meus contribuíram generosamente com o seu
tempo, a sua paciência e a sua amizade para tornar este livro possível
quando parecia impossível, em particular, Judith Coffin, Roy Mottahedeh
e Margaret Talbot, e agradeço também a Philip Katz por me ter deixado
ler a sua tese sobre a iconologia de Benj amin Franklin. Os meus amigos
do C entro de E studos Europeus, em especial, Abby C ollins, Guido
Goldman, Stanley Hoffmann e Charles Maier, mantiveram-me no rumo
certo sempre que eu ameacei descarrilar e dissimularam a sua increduli­
dade face à empresa do modo mais discreto possíve.J.
Na Alfred A. Knopf, tenho uma profunda dívida de gratidão para com
a minha editora, Carol Janeway, por me ter incentivado a acabar o livro
e por acreditar que seria mesmo acabado. Robin Swados foi uma força
constante e estou muito grato a Nancy Clements e a Iris Weinstein por
terem acompanhado o trabalho até à sua versão final. Peter Matson, em
Nova Iorque, e Michael Sissons, em Londres, deram-me, como sempre,
todo o seu apoio e demonstraram que bons agentes literários também
podem ser bons amigos.
Fiona Grigg fez praticamente tudo por este livro excepto escrevê-lo.
O contributo que deu com a pesquisa de imagens, a leitura de provas, a
"diplomacia museológica" e a tranquilização dos meus nervos com doses
substanciais de inteligência e boa-vontade tornaram possível a conclusão do
trabalho - nunca lhe poderei agradecer o suficiente pela sua colaboração.
Durante a escrita do livro, os meus filhos, Chloe e Gabriel, e a minha
mulher, Ginny, tiveram de aturar um excesso de humores oscilantes,
horários excêntricos e comportamentos insuportáveis. Em troca, recebi
deles doses generosas de amor e tolerância. A Ginny esteve sempre pre­
sente com as suas opiniões infalíveis em relação a todos os aspectos do
livro, desde a argumentação até à concepção gráfica. Se existe um leitor
ao qual tudo o que escrevi se dirige, é ela.
Peter Carson, da Penguin Books, foi o primeiro a sugerir-me a ideia de
escrever uma história da Revolução Francesa, e quando eu respondi com
xxxi

a proposta de uma grande narrativa em linhas excêntricas ele permaneceu


imperturbável. Estou -lhe profundamente agradecido pelo apoio e encora ­
jamento que me deu ao longo dos anos, mas temo que o resultado final
não sej a exactamente o que ele tinha em mente.
A sugestão para que eu abordasse este tema partiu, no entanto, do
meu velho amigo e professor, Jack Plumb. C reio que a fez na vã esperança
de que, por fim, eu fosse capaz de escrever um pequeno livro . Lamento
desiludi-lo de forma tão esmagadora, mas espero que ele vej a na vastidão
desta obra um pouco da sua convicção de que a história deve ser síntese
e análise, crónica e texto. Foi também Jack Plumb quem me encoraj ou a
ignorar as barreiras convencionais que se ergueram como um arame far­
pado intelectual em torno das subdivisões da nossa disciplina, e espero
que ele desfrute desta minha tentativa de derrubar essas vedações. Acima
de tudo, Jack Plumb ensinou -me que escrever história sem imaginação é
escavar num cemitério intelectual, e em Cidadãos procurei dar vida a um
mundo em vez de o sepultar num discurso erudito . Dado que as eventuais
virtudes do livro tanto devem aos seus ensinamentos, é a ele que o dedico
com muita estima e amizade .

Lexington, Massachusetts
1 988
Cidadãos
FAUBOURG
• DU TEMPLE
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PR Ó L O G O

O Poder da Memória:

Quarenta Anos D epois

Entre 1 8 1 4 e 1 846, um elefante de gesso esteve no local onde antes se


erguera a B astilha. D urante uma grande parte deste tempo, foi um triste
espectáculo . Os peregrinos em busca de inspiração revolucionária per­
diam as ilusões quando o viam, maciço e lúgubre, no canto sudeste da
praça . Em 1 8 3 0, quando a revolução revisitou Paris, o elefante encon­
trava-se num estado avançado de decomposição. Uma das presas tinha
caído, a outra estava reduzida a um coto poeirento . O corpo estava preto
da chuva e da sujidade e os olhos tinham-se afundado, para além de toda
e qualquer verosimilhança natural, nos sulcos e covas da sua enorme
cabeça erodida.
Não fora esta a intenção de Napoleão. Desej oso de obliterar a memó­
ria revolucionária, Napoleão pensara primeiro em erguer um grande arco
triunfal no espaço vagado pela fortaleza demolida, mas a parte oriental de
Paris não era nobre, pelo que foi decidido erguer o arco na zona ociden­
tal. Vasculhando nos devaneios da Antiguidade, Napoleão saiu-se com
outra ideia que, na sua óptica, representaria de forma igualmente decisiva
a superioridade da vitória imperial sobre o caos da insurreição. Não fazia
diferença que os elefantes fossem apanágio da parte derrotada nas
Guerras Púnicas. Ao ilusionista -imperador, tanto sugeriam Alexandre
como Aníbal, os troféus do Egipto, a tricolor ondulando de Acre a Lisboa.
O elefante seria fundido com o bronze dos canhões inimigos capturados
em Espanha e seria suficientemente grande para que os visitantes pudes­
sem subir por uma escada interior até à torre que teria no dorso. Da
tromba, j orrar-lhe-ia água. Seria heróico e encantador e todos os que o
contemplassem esqueceriam 1 789 e a Bastilha e perder- se-iam numa
autocongratulação imperial.
Mas 1 789, o ano inicial da Revolução Francesa, sempre foi mais
memorável do que 1 799, quando B onaparte proclamou o seu fim.
A Bastilha e os seus conquistadores foram celebrados, o elefante foi
esquecido . De facto, desde o princípio da sua história, estava destinado a
sofrer de um orgulho excessivo. As opiniões dos homens incumbidos da
ingrata tarefa dividiram -se e quando se chegou a consenso j á a sorte do
Império tinha mudado . As vitórias alcançadas em Espanha tiveram um
preço muito elevado e foram seguidas de carnificinas tão dispendiosas que
Simon Schama 1 CIDADÃOS

mal se distinguiram de derrotas. Em 1 8 1 3, o ano em que o elefante deve­


ria ter sido erigido, não havia canhões nem dinheiro a mais. Por conse­
guinte, em vez de um monólito de bronze, foi um modelo de gesso que se
ergueu na praça da Bastilha, à espera dos planos finais para uma grande
remodelação do local.
No princípio, deve ter sido difícil de ignorar. Alto como um prédio de
três andares, o Elefante do Esquecimento Revolucionário vigiava como
uma sentinela as memórias sediciosas de multidões enfurecidas, demoli­
ções populares e humilhações régias. Assim, quando o Império ruiu de
vez, após Waterloo, os governos bombons da Restauração, com o seu
receio das memórias revolucionárias, decidiram fazer uso da distracção
proporcionada pela estátua. Mas seria esculpida no pacífico mármore e
não no belicoso bronze, e rodeada de outros monumentos alegóricos mais
convencionais: representações de Paris, das estações do ano, de artes e
ciências úteis como a cirurgia, a história e a dança. Os ministros que
sonhavam com novos impérios no Norte de Á frica terão mesmo conside­
rado oportunas as alusões elefantinas a C artago. C ontudo, se a parte final
do Império foi muito difícil financeiramente, a Restauração (e em especial
Luís XVIII ) foi miserável. As autoridades apenas tinham dinheiro para
pagar oitocentos francos a um guarda chamado Levassem que sobreviveu
à denúncia de bonapartismo e fixou residência, com as ratazanas, numa
das bolorentas pernas da criatura .
O concierge do elefante estaria atento aos vândalos ou às comemorações
sub-reptícias da memória de 1 789, mas não podia combater a vingança do
tempo. A praça da Bastilha era um ermo urbano, um lamaçal no Inverno,
um buraco poeirento no Verão . As escavações para a abertura do Canal do
Ourcq e as repetidas tentativas para nivelar o local deixaram o elefante a
afundar- se numa depressão pantanosa como se estivesse gradualmente a
vergar- se à idade e à fadiga. E a natureza acrescentou as suas indignida ­
des. Desmoronado o boj o de gesso, o plinto foi engolido pelos dentes-de­
-leão e pelos cardas. Abriram-se grandes cavidades no tronco, convidativas
para roedores, gatos vadios e vagabundos. O problema das ratazanas tor­
nou -se tão grave que os residentes da zona viram as suas casas coloniza ­
das por grupos de ataque saídos do elefante . A partir de finais da década
de 20 do século XIX, os moradores solicitaram regularmente a demolição
do elefante mas sem sucesso . As autoridades da Restauração não sabiam o
que fazer. Talvez o paquiderme pudesse ser repintado e reinstalado num
lugar mais inócuo, como nos Invalides ou mesmo nas Tulherias . Mas
imperava o nervosismo e o elefante ou o que dele restava permaneceu
onde estava.
Só em 1 8 3 2 , depois de a memória revolucionária ter sido levada para
as ruas na insurreição que substituiu os Bombons pelo " cidadão -rei" Luís
Filipe, se j untou ao elefante, no outro extremo da praça, uma coluna ( que
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ainda lá se encontra ) comemorativa não de 1 789 mas dos que pereceram


na Revolução de Julho de 1 8 3 0 . No entanto, foi preciso esperar até 1 846
para que um golpe de misericórdia se abatesse sobre a estátua em desin­
tegração. E como se a memória tivesse sido liberta da sua prisão, não tar­
daram a seguir-se uma nova revolução e uma nova república .
Ou sej a, o Elefante do Esquecimento Intencional não se conseguiu
bater com a Persistência da Memória Revolucionária. Contudo, a memó ­
ria refrescada é pelo menos tão difícil como a amnésia histórica. Afinal de
contas, a Revolução Francesa foi uma grande demolição, e as várias ini­
ciativas para a monumentalizar têm sido condenadas pela contradição nos
termos . Mas houve tentativas, a começar pela " Fonte da Regeneração"
dos jacobinos, erigida em 1 79 3 : uma versão em gesso da deusa Í sis de
cuj os seios jorrava (nas ocasiões cerimoniais) o leite da Liberdade . No
"Festival da Unidade" que comemorou a queda da monarquia, o presi­
dente da C onvenção, Hérault de Séchelles, bebeu esta libação republicana
de uma taça desenhada para o efeito que ergueu numa saudação à mul­
tidão. Oito anos depois, a fonte ruiu e os escombros foram levados em car­
retas. Outros proj ectos - uma nova C âmara Municipal, um teatro popular,
uma assembleia legislativa - foram ponderados e descartados. Ficou um
espaço em branco exactamente em cima da fronteira entre a Paris patrí­
cia e a Paris operária, uma terra-de-ninguém da memória histórica .
As comemorações são mais fáceis quando menos monumentais. Os
espectáculos pirotécnicos anuais e os bailes do 14 de Julho têm prestado
melhores serviços do que os proj ectos arquitectónicos grandiosos.
Contudo, a primeira geração de historiadores românticos cometeu o feito
de celebrar a Revolução com fogueiras de prosa. Enquanto o elefante se
transformava lentamente em pó e escombros, a narrativa triunfal de Jules
Michelet convertia a Revolução numa espécie de espectáculo grandioso,
simultaneamente escritura, drama e invocação. Seguiram-se outras cróni­
cas - por Lamartine, Victor Hugo - mas nenhuma abafou o potente tím­
pano do épico de Michelet. O culminar foi a história como mimese,
Lamartine falando às multidões numa terceira revolução, a de 1 848.
A apoteose da história romântica foi também o seu desej o de morte .
Em 1 8 5 0, com o vapor retórico da Segunda República a esfumar- se
perante as duras e inexoráveis realidades do dinheiro, do poder e da vio­
lência estatal, ocorreu um grande arrefecimento histórico . Em 1 848, por
toda a Europa mas de maneira especial e particularmente sangrenta em
Paris, a retórica revolucionária foi vencida nas barricadas pelo calculismo
contra- revolucionário; a paixão foi subj ugada pela frieza, os operários
pela artilharia. Não admira, pois, que a história escrita tenha passado do
empenhamento lírico à análise científica, da subj ectividade descarada à
fria objectividade. Antes, o êxito da revolução parecera depender da ade­
são espontânea; agora, parecia depender da compreensão lúcida .
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Começando com Alexis de Tocqueville e Karl Marx ( ainda que de modos


muito diferentes ) , os historiadores procuraram dar rigor científico às suas
narrativas . Pela primeira vez, viraram as costas ao drama enfeitiçante dos
acontecimentos - a superfície brilhante do registo histórico - para sonda­
rem as profundezas dos arquivos ou das leis gerais do comportamento
social. As causas da Revolução Francesa foram despersonalizadas e liber­
tas do discurso e da conduta dos Grandes Homens e situadas no cerne da
estrutura da sociedade que a antecedeu. A classe, não o discurso, e o pão,
não a crença, foram considerados os determinantes das lealdades . Tinha
chegado a história científica - ou pelo menos sociológica - e com ela a des­
promoção da crónica para o reino da irrelevância anedótica . É, pois, desde
há muito que os historiadores, envoltos no manto da obj ectividade rigo ­
rosa, se afadigam com estruturas, causas e efeitos, probabilidades e con­
tingências, gráficos circulares e de barras, semiótica e antropologia,
micro-histórias de departamentos, distritos, cantões, aldeias e aldeolas.
O que se segue ( não preciso dizê -lo) não é ciência . Não pretende ser
desapaixonado. Não é obviamente ficção ( carece de invenções intencio­
nais) mas poderá parecer ao leitor uma história em vez de História .
É um exercício de descrição animada, uma negociação com uma memó­
ria velha de duzentos anos sem pretender encerrar definitivamente a
questão. E a forma da narração e a matéria - obj ecto escolhida represen­
tam um desvio deliberado da história analítica em direcção aos
Acontecimentos e às Pessoas, ambos proibidos desde há muito ou des­
cartados como mera espuma dos vagalhões da história . Não é uma nar­
rativa por defeito, mas por opção: é um princípio, um meio e um fim
que procura raciocinar com o sentimento sobredesenvolvido de passado,
presente e posteridade dos seus protagonistas, pois não foi por acaso que
a criação do mundo político moderno coincidiu precisamente com o
nascimento do romance moderno.

A maioria das histórias revolucionárias apresentam-se lineares, como


uma passagem temporal do velho para o novo, mas não conseguem evi­
tar a circularidade . No seu significado original, revolução era uma metá ­
fora tirada da astronomia e que traduzia o movimento circular periódico
das esferas celestes . Implicava previsibilidade, não imprevisibilidade.
" O Mundo Virado Ao C ontrário", como ficou conhecido o hino popular da
Revolução Americana, implicava paradoxalmente um aj ustamento que
convertia o avesso no direito. Da mesma forma, os homens de 1 776 ( e de
sobremaneira os pais da Constituição) estavam mais preocupados com a
preservação da ordem do que com a perpetuação da mudança. Um nervo ­
sismo similar esteve patente em França no modo como os homens de 1 789
usaram a palavra "revolução " . C ontudo, no seu caso, a retórica transfor­
madora do evento abafou quaisquer dúvidas e apreensões que pudessem
7

existir. C uriosamente, os que esperavam uma mudança limitada em 1 78 9


foram os mais dados à hipérbole d o irreversível, e a partir dessa altura
revolução passou a ser sinónimo de inauguração e não de repetição.
Foi em 1 8 3 0 que a "Revolução Francesa" se tornou uma entidade
transferível. Deixou de ser uma série finita de acontecimentos, presa a
uma poita histórica ( digamos, 1 78 9 - 1 794 ) . Pelo contrário, a memória
(principalmente escrita mas também cantada, registada e falada ) cons­
truiu a realidade política. Existira sempre uma memória romântica que
lidara com a obliteração real de uma grande parte da Revolução Francesa
proclamando a sua imortalidade na memória patriótica. Tentando galva ­
nizar um país que j á estava ocupado em 1 8 1 5 , Napoleão, que fora o mais
entusiástico dos coveiros da Revolução, tentou erguê-la da tumba .
Embrulhando-se em palavras de ordem e emblemas revolucionários, ten­
tou despertar o medo e a camaradagem de 1 79 2 : la patrie en danger. Mas
Waterloo acabou com o que a Batalha de Valmy tinha começado.
Regressados ao trono por via de uma invasão estrangeira, os Bourbons
compreenderam que a sua legitimidade dependia de um acto de esqueci­
mento prudencial. O seu primeiro rei, Luís XVIII, com a sua fome supre­
mamente burguesa de dinheiro e pitéus, foi um bom praticante do
esquecimento político. Nomeou sem grande relutância ministros que
tinham servido a Revolução e o Império e evitou uma coroação formal.
Mas o irmão, Carlos X, estava cativo de uma memória muito mais irre ­
qu� eta. Ao procurar enfrentar o passado revolucionário - coroou-se com
todósos rituais tradicionais, na Catedral de Reims1 -, fez sair os fantasmas
revolucionários do túmulo da memória. Apesar de Carlos estar assom­
brado pelas memórias revolucionárias, o comportamento que teve garan­
tiu o seu reaparecimento. O seu último e mais recalcitrante ministro foi
um Polignac, um membro do clã aristocrático talvez mais odiado na
década de 80 do século XVIII. Os decretos arbitrários de 1 8 3 0 trouxeram
à memória os de 1 7 88, e o pacote histórico de palavras de ordem, traj es,
bandeiras e canções que passara de geração em geração reconstituiu -se
nas barricadas para os confrontar.
Em 1 8 3 0, eram muitos os factores passíveis de provocar a fúria popu ­
lar. Uma recessão comercial, com a subida do preço do pão e o aumento
do desemprego consequentes, levou grupos de operários a congregarem­
-se no bairro de Saint-Antoine para ouvir os j o rnalistas e oradores que
denunciavam o governo. Mas o que desencadeou as suas emoções e
garantiu a sua determinação foi a sua exposição às recordações revolucio ­
nárias que lhes pareceram relíquias sagradas: a tricolor hasteada de novo
em Notre Dame e os cadáveres baionetados pelas tropas reais desfilando
nas suas mortalhas ensanguentadas para incitamento à revolta. A C âmara

1 Local tradicional de coroação dos reis de França a partir do ano de 8 1 6 . (N. do T. )


Simon Schama / CIDADÃOS

Municipal foi de novo sitiada pelos marceneiras, chapeleiros e luveiros do


bairro de Saint-Antoine, desta vez com a sua marcha para oeste obstruída
apenas pelo traseiro escamoso de um elefante de gesso. A "Marselhesa"
voltou a ouvir-se, os barretes vermelhos da liberdade ( tão anacrónicos em
1 8 3 0 como tinham sido em 1 7 8 9 ) foram enfiados nas cabeças sem peru ­
cas e os enferruj ados canhões de dez libras foram de novo rebocados pelas
calçadas . Um duque de Orleães conspirou de novo ( desta vez com êxito )
para ser o beneficiário do desaparecimento de um monarca bourbon. Até
o marechal Marmont, incumbido da defesa de Paris, pareceu aprisionado
naquele sonho histórico . Ao ver os militares fugirem-lhe da mão, o
melhor que conseguiu fazer foi repetir exactamente ao seu soberano as
palavras do duque de La Rochefoucauld-Liancourt a Luís XVI no dia 1 5
de Julho de 1 78 9 : " Senhor, isto não é um motim, é uma revolução . " Mas
enquanto Luís XVI não compreendeu minimamente o significado de um
vocabulário político transformado, Carlos X sabia perfeitamente o que sig­
nificavam aquelas palavras. Tinha lido o guião. Tinha lido as histórias. Até
estava fadado para repetir não o comportamento de Luís XVI mas a sua
própria conduta em 1 789, pois na altura fora lesto a partir e agora foi
ainda mais rápido .
O texto era o mesmo mas os protagonistas estavam muito mais
velhos . A idade avançada de muitas das principais figuras da Revolução
de Julho de 1 8 3 0 era um embaraço . "Era uma bênção estar vivo naquele
,
alvorecer, mas ser velho era ser ponderado' , . . . C omo? Nem pensar. Os
veteranos estavam a desempenhar os papéis que deveriam ter cabido a
j ovens prometedores. As revoluções são o terreno dos j ovens . Michelet,
que nasceu quatro anos depois do Terror, deu palestras sobre rej uvenes ­
cimento a turmas pej adas de alunos senis . Na s u a épica narrativa, o s
j ovens de 1 7 8 9 adornam-se com ramos verdes n o jardim do Palais-Royal,
no dia 1 2 de Julho, como sinal da Primavera de uma nova França . Os
velhos da B astilha são exclusivamente apresentados como vilões ou víti­
mas: os guardas dos Invalides que estão de sentinela nas torres e o conde
de Solages ( detido pela sua própria família ) , cuj a barba branca, adequa­
damente pungente, figura mirrada e rugas imemoriais, parecem indiciar,
pela mera aparência, a longevidade do despotismo . À luz do mentor da
revolução, Rousseau, ser j ovem era ser inocente e imaculado, pelo que o
obj ectivo apropriado da revolução devia ser libertar os filhos da natureza
encarcerados na carapaça da maturidade. Durante a Revolução, os mais
ardentes dos j ovens discípulos de Rousseau consumiram -se com a
Virtude e depois mataram-se uns aos outros até sofrerem o desencanto

2 O autor faz um trocadilho com o poema A Revolução Francesa como pareceu aos entusias­
tas no início, escrito por William Wordsworth em 1 809, onde se lê: "Era uma bênção estar
vivo naquele alvorecer, mas ser j ovem era como estar no paraís o . " (N. do T )
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da longa memória. O Terror até beatificou os j ovens que morreram, mas


que se tornaram imortais . O imortal Bara, abatido a tiro com treze anos
de idade por se recusar a entregar cavalos aos rebeldes a quem chamou
"bandidos"; o j ovem Darruder viu o pai tombar no campo de batalha,
pegou no tambor paterno e liderou a carga . Camille D esmoulins já era um
revolucionário veterano com vinte e oito anos de idade, quando pereceu
às mãos de Saint-Just, que por sua vez foi guilhotinado aos vinte e seis.
Era difícil levar a sério revolucionários velhotes . C orriam o risco de cair
no ridículo, e do ridículo não há revolução que recupere plenamente . Os
homens que tornaram possível 1 8 3 0 - estudantes do Politécnico, tipógra ­
fos e guardas nacionais - foram certamente uma nova geração, e se os j or­
nalistas e os políticos liberais que se empenharam numa mudança de
regime violenta não estavam no auge da j uventude, também não eram
nenhuns velhotes tremelicosos. Todavia, os actores principais de Julho ( e
num grau ainda maior, os "Notáveis" que formaram a nova elite da
monarquia constitucional - banqueiros, burocratas e advogados ) já esta ­
vam manifestamente entradotes . As implacáveis caricaturas de D aumier -
cabeças carecas e caras chupadas, panças, coxas e rabos mirrados - esta­
vam perigosamente mais próximas da realidade do que a atlética
Liberdade de Delacroix nas barricadas . D urante 1 8 3 0 e as duas décadas
seguintes, os velhos foram atemorizados pelos j ovens, os cerebrais foram
assustados pelos viscerais. A Revolução e a Restauração que ela depôs
foram curiosidades históricas, exumadas do passado, enfarpeladas de
novo para o seu encontro mas com os ossos velhos a chocalharem debaixo
da fatiota . O rei Carlos X, ostentosamente pio, era uma fraca reencarna ­
ção da sua antiga pessoa como conde de Artois, outrora o mais garboso
dos dândis de Versalhes, um notório libertino na caça, no salão de baile e
na cama . Tinha cuspido no olho da revolução de 89, espezinhara cocares
e fizera de "Ô Richard, ô mon roi!"' o hino da contra- revolução. O monarca
seguinte, Luís Filipe, uma cópia flácida do seu pai regicida, "Philippe
Egalité ", pôs as suas memórias a circular na tentativa de se apresentar
como um j ovem cidadão- soldado dos exércitos revolucionários em
Jemappes, em 1 792, mas de pouco lhe serviu, pelo que criou a Galeria das
B atalhas, em Versalhes, com quadros e quadros de Horace Vernet desti­
nados a identificá-lo com a virilidade das armas francesas. Mas para o
grande público, que se ria com as caricaturas de Philipon e Daumier, a
espada protectora da França - la Joyeuse4 transformou-se comicamente
-

no eterno guarda-chuva de Luís Filipe. Pior ainda, a figura da maj estade


assumiu a forma letalmente absurda de uma pêra.

' Da ópera cómica Richard Coeur-de-Lion, com música de Grétry sobre libreto de Sedaine,
estreada em 1 784. A ária "Ô Richard, ô mon roi!" tornou-se uma canção monárquica muito
popular durante a Revolução Francesa. (N. do T. )
4 Nome d a espada lendária d e Carlos Magno. ( N. do T. )
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Apesar de ser uma infelicidade ser-se velho em 1 8 3 0, os comporta ­


mentos não foram ditados exclusivamente pela idade . Para duas histórias
vivas septuagenárias, o apelo da memória revolucionária significou coisas
muito diferentes . Para Gilbert de Lafayette, Herói dos Dois Mundos, um
viçoso rapagão de setenta e três anos de idade, traduziu-se em ilusões da
j uventude, no reacendimento da paixão e no acelerar do batimento car­
díaco . Aos fisionomistas, a sua compleição terá parecido uma têmpera
concebida para a ignição, e Lafayette complementava o seu perene brilho
corado com uma hirsuta peruca vermelhusca, anúncios de que o fogo da
acção revolucionária ainda lhe ardia por dentro .
Em contraste com o sanguíneo ânimo revolucionário de Lafayette,
Mamice de Talleyrand, príncipe de Bénévent, apresentava ao mundo um
exterior de fleuma imperturbável. C om setenta e cinco anos de idade, era
dois anos mais velho do que Lafayette e pelo menos tão rico em memórias
revolucionárias. A crise parecia algo já visto mas não deixava de ser uma
ocasião para manobrar com cautela e evitar atitudes impulsivas. Enquanto
um ouviu o galo cantar por uma França renascida, o outro ouviu a
"Marselhesa" como uma cacofonia que perturbava o seu calmo crepúsculo.
Para Lafayette, o momento cantava celebridade, para Talleyrand murmu ­
rava discrição. Lafayette partiu a cavalo para Paris para se apresentar a uma
multidão de adoradores, Talleyrand retirou a placa de bronze com o nome
da fachada da sua residência para não ser reconhecido .
Lafayette levava a s u a memória a sério e sabia usá-la como arma.
Adequadamente editada para excluir os embaraços, que foram tantos
como os seus muitos triunfos, a sua convocatória pela revolução foi um
último apelo da posteridade . Em 1 8 3 0, garantiu à multidão: " Podeis ter a
certeza de que a minha condição com 7 3 anos de idade é a mesma que era
aos 3 2 . " "A Restauração adoptou o lema 'Unir e Esquecer"', disse ele a
uma legião da Guarda Nacional, "Eu adopto 'Unir e Recordar' . " E recor­
dou -se. Em Grenoble, num dos muitos banquetes que marcaram a sua
digressão triunfal pela França, Lafayette respondeu a um brinde recor­
dando aos cidadãos a sua "Jornada das Telhas" de 1 787, quando tinham
feito frente às tropas reais . Foi por Lafayette ter comandado a Guarda
Nacional em 1 789 que os nervosos líderes da oposição consideraram pru ­
dente que ele retomasse o cargo. Lafayette envergou prontamente o seu
velho uniforme e, com falsa modéstia, anunciou publicamente que "nesta
grave crise em que nos encontramos, um veterano pode prestar um bom
serviço " . Quando chegou à Câmara Municipal na qualidade de coman­
dante da Guarda Nacional e acompanhado por uma multidão em delírio,
um oficial bem-intencionado tentou dar-lhe direcções. "Eu conheço o
caminho", retorquiu ele com ênfase, "j á aqui estive antes . "
Acima d e tudo, Lafayette lembrava -se d e como saudar a grande musa
revolucionária: com um abraço fraterno. Por conseguinte, beij ou a tricolor,
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beij ou os oficiais da Guarda e beij ou o duque de Orleães ao receber a sua


bênção. B eij ou a nova era com tanto ardor que o seu beij ocar se tornou
notório e os homens se riam dele como o incorrigível "Pere Bisem" . Mas
quantos têm três apoteoses na vida? Acostumado a ocupar o centro do
palco, Lafayette compreendia instintivamente o apelo do teatro político,
os gestos, a linguagem corporal e a retórica verbal e física dos momentos
cruciais. Apenas cinco anos antes, na América, aquando de uma última
digressão triunfal, Lafayette tornara-se a primeira criação da política
populista, transformado em "Marcus D. Lafayette" e deliciando-se com os
aplausos e as chuvas de pétalas de rosa, do Maine à Virgínia, incansável
nos abraços e nos apertos de mão até ter a sua esfolada, e repetindo até à
exaustão mas com uma sinceridade transparente às multidões extáticas:
"Zo appy; zo appy" . Perante as muitas pessoas reunidas na C âmara
Municipal, muitas das quais viam no velho marechal a possibilidade de
uma república, Lafayette envolveu Luís Filipe na tricolor como se fosse a
toga do seu constitucionalismo e empurrou -o sem cerimónias para a
varanda . Naquele gesto vaudevilliano, Lafayette guindou -se ao centro do
palco e mostrou os dentes do republicanismo . Recordou -se certamente do
choque de Luís XVI quando um simples cocar lhe fora preso no chapéu
após a tomada da Bastilha . Para um rei que quisesse sobreviver, era neces­
sária uma grande mortalha tricolor.
Lafayette foi o Grande Recordador. Em 1 8 1 5 , quando, não obstante o
desastre de Waterloo, se verificou uma tentativa para preservar o Império
Napoleónico, proferiu um discurso devastador para o qual chamou como
testemunhas de acusação os fantasmas dos milhões de soldados entregues
à morte pelo Grande Homem no Egipto, na Rússia e na Alemanha. Na
América, Lafayette procurou sempre reforçar, através de evocações cons­
tantes das liberdades fraternas, uma amizade que pouco sofrera com o des­
gaste do tempo deste 1 78 3 , e foi por esta razão que ofereceu uma chave da
Bastilha a George Washington. Para Lafayette, a memória era o incentivo
à acção e a revolução fazia parte do processo de renovação perpétua, um
modo através do qual a França poderia recuperar o seu élan vital.
Talleyrand não estava interessado nos trinados das primaveras políticas.
Tinha-se reconciliado confortavelmente com o inverno político. As suas
memórias deixavam-no exausto e não entusiasmado, e o garbo romântico
estivera sempre fora de questão. O seu pé deformado afectara- o desde bebé
e ele aprendera desde cedo a cultivar uma espécie de languidez artificial
que irritava os medíocres . Durante toda a sua vida, Talleyrand fora um
anátema para qualquer apóstolo de Rousseau, pois preferia a dissimula ­
ção à franqueza, a civilidade à espontaneidade, a reflexão ao impulso, a
diplomacia à agressão, as negociações à porta fechada aos discursos em
reuniões públicas. Constantemente descartado como um fóssil político,
um sobrevivente arcaico do Ancien Régime, Talleyrand sabia melhor do que
Simon Schama 1 CIDADÃOS

ninguém que todas estas artes eram tão necessárias no futuro político
como tinham sido no passado.
Em 1 8 3 0, o que Talleyrand mais queria para si e para a França era
uma vida tranquila . Em Valençay, no seu deslumbrante palácio renas ­
centista, desempenhava o papel de nobre de província: era presidente da
Câmara e ocupava os tempos livres a fazer experiências com novas varie­
dades de endívias e cenouras e a tratar dos seus pinheiros- silvestres . Em
Rochecotte, a residência de D orothée de Dino, a sua companheira -
muito mais nova do que ele -, Talleyrand deliciava -se com prazeres ainda
mais prosaicos, saboreando pêssegos dos seus enxertos que comia com
B rie, o "Rei dos Queij os" ( " o único rei ao qual ele foi leal", disse um dos
seus muitos detractores) . Em Paris, Talleyrand mal saía do seu palacete,
na rua de Saint- Florentin. Recostava-se numa montanha de almofadas
( mesmo na cama, pois tinha muito medo de cair de noite e sofrer uma
concussão ) , mordiscando um biscoito e bebericando o seu Madeira
enquanto lia, sem precisar de óculos, um livro da sua imensa e especta­
cular biblioteca . Talleyrand ainda era um homem vaidoso, e usava a farta
cabeleira empoada e penteada em caracóis brancos, constrangia a papada
num colarinho alto ao estilo D irectório e suj eitava o seu famoso nariz
arrebitado ( que ele continuava a arrebitar como µma arma mortífera) a
uma peculiar operação de lavagem no fim da única refeição a que se per­
mitia diariamente .
A Ary Scheffer, que o pintou em 1 828, Talleyrand terá parecido a morte
vestida de seda preta. No entanto, como uma tartaruga imensamente enve­
lhecida e formidável, Talleyrand tirava o máximo da vida tratando-a com
propósito e cautela. Era por isto que a estupidez obtusa de Carlos X o exas­
perava tanto. Na sua temerária determinação de fazer frente a todos os faná­
ticos - menos aos mais reaccionários -, o soberano condenara a França a um
novo período de "anarquia, a uma guerra revolucionária e a todos os outros
males dos quais a França foi salva com tanta dificuldade em 1 8 1 5 " . Se para
Lafayette a revolução chegou como uma torrente de sentimentos, um elixir
da j uventude, para Talleyrand, os sinos a tocarem a rebate soavam como um
alarme na sua inteligência. Para Lafayette, 1 8 30 tinha de ser o anúncio da
Liberdade e da Democracia, não só para a França mas também para todo o
mundo (e especialmente para a Polónia) . Para Talleyrand, a única coisa que
j ustificava uma mudança de regime era o controlo dos danos.
Se as manobras brilhantemente histriónicas de Lafayette com a ban­
deira tricolor e a sua bênção perante as multidões " Voilà la meilleure des
-

républiques" - foram efectivamente a coroação popular de Luís Filipe,


coube a Talleyrand ( que estivera presente nas coroações de Luís XVI,
Napoleão e Carlos X) fornecer o nomeado. Enquanto Lafayette ocupava o
centro do palco, Talleyrand controlava tudo o que se passava nos bastido ­
res . Os dois homens tinham sempre mantido esta relação curiosamente
13

simbiótica - actor/produtor, artista/bonequeiro -, e tinham sempre dis ­


cordado sobre onde residia a realidade do poder revolucionário. Para
Lafayette, os discursos, as formas, os traj es, os símbolos e uma crença mis ­
sionária nas Causas Justas constituíam a única epopeia histórica digna de
ser recordada. Para Talleyrand, estas construções simbólicas eram as
palhaçadas da história, eram poções para os crédulos, eram os abracada ­
bras seculares que tinham substituído as relíquias e os milagres . Eram
espectáculos circenses, simultaneamente indispensáveis e fals o s .
Talleyrand j á tinha visto Lafayette montado n u m cavalo branco, n o 1 4 de
Julho de 1 790, quando, na qualidade de comandante da Guarda Nacional,
jurara fidelidade à Nação no Campo de Marte perante 400 000 revolucio­
nários entusiastas. Mas fora Talleyrand, na altura cidadão -bispo de Autun,
quem compusera a missa que abençoara a cerimónia, e fora Talleyrand
quem continuara a agir com calculismo. Enquanto Lafayette se imergia no
brilho da celebridade revolucionária, Talleyrand levava a banca à falência
na mesa de j ogo.
Mais uma vez, enquanto Lafayette j ogava para a bancada, Talleyrand
manipulava a bolsa ( "Jouez à la baisse", recomendou ele aos amigos três
dias antes dos combates de rua em Paris ) . Do mesmo modo, as suas ope­
rações de rescaldo, ainda que relacionadas, contrastaram bastante.
Lafayette compensou a sua deserção da causa republicana em 1 8 3 0 pro ­
clamando um internacionalismo revolucionário messiânico e a libertação
imediata da Polónia . Talleyrand assumiu o seu último cargo oficial em
1 8 3 0 como embaixador francês em Londres, onde tratou de apagar os
fogos que Lafayette descontroladamente ateara e prometeu ao seu velho
duplo fantasmagórico de Viena, o duque de Wellington, que a arma mais
perigosa de Luís Filipe era um guarda -chuva fechado. Tout va bien .
Lafayette e Talleyrand corporizaram a dupla personalidade da
Revolução Francesa. Reconhecer que a Revolução deu origem a uma
nova espécie de mundo político é um lugar-comum mas é menos reco­
nhecido o facto de que esse mundo foi o produto de dois interesses irre ­
conciliáveis - a criação de um E stado poderoso e de uma comunidade de
cidadãos livres . A ficção da Revolução foi imaginar que seria possível ser­
vir cada um destes interesses sem prejudicar o outro, e a história da
Revolução é a compreensão desta impossibilidade .
Seria um erro enorme, no entanto, assumir à partida um tom inapro­
priadamente irónico em relação aos mais idealistas destes obj ectivos .
Talleyrand, que era dado a fazê-lo, foi, por uma sublime ironia, o avô indi­
recto da mais perene de todas as imagens de exaltação revolucionária :
A Liberdade Guiando o Povo, de Eugene Delacroix. Em cima dos escombros
de uma barricada, a sua Marianne do Povo, de seios desnudados e osten­
tando o barrete vermelho dos sans-culottes, guia os trabalhadores e os estu -
dantes em direcção ao destino indeterminado da arcádia revolucionária .
Simon Schama 1 CIDADÃOS

A Nossa Senhora da Liberdade tem como pano de fundo Notre Dame de


Paris, j á conquistada para a Liberdade, com a tricolor hasteada nas torres .
E o q u e tem Talleyrand a v e r com este relâmpago a óleo, tão visceral­
mente emotivo que Luís Filipe se assustou e comprou o quadro de
Delacroix para o esconder dos olhos do público durante uma geração?
Não foi Talleyrand quem trouxe ao mundo este imperecível embaraço
revolucionário mas, segundo tudo indica, foi ele quem gerou Eugene
Delacroix. No revolucionário Ano VI ( 1 79 8 ) , enquanto a primeira revo­
lução era discretamente anestesiada pelos seus corruptos guardiães em
Paris e pontapeada até à morte pelos seus generalíssimos no campo de
batalha, Talleyrand foi excessivamente malicioso. Ao substituir o ministro
dos Negócios Estrangeiros da República, Charles Delacroix ( que foi exi­
lado para a insípida e monótona embaixada francesa em Haia ) , Talleyrand
substituiu- o também na cama . Podemos partir do princípio de que
Madame D elacroix respondeu positivamente aos seus avanços dado que o
marido estava incapacitado há algum tempo por causa de um gânglio
monstruoso que lhe ia da barriga à virilha. A sua excisão pelos cirurgiões
mas brilhantes de Paris foi uma cause célebre médica e a deformidade de
Monsieur Delacroix foi um acontecimento histórico amplamente publici­
tado . A deformidade de Talleyrand, um pé quebrado que se arrastava den­
tro de um sapato especialmente concebido, nunca fora um obstáculo para
o seu êxito como amante. Talleyrand acreditava que o poder e a inteli­
gência eram o perfume da corte e manipulava -os com um encanto letal.
Madame Delacroix não tardou a sucumbir-lhes. Tiveram como progeni­
tura o prodigioso Eugene : o maior romântico da nova época foi gerado
pelo maior céptico da antiga.
O sangue da paixão revolucionária saiu, pois, da carne da inteligência
revolucionária . E stes dois temperamentos - retórico e racional, visceral e
cerebral, sentimental e brutal - não se separarão nesta história. Na ver­
dade, foi da sua união imperfeita que nasceu uma nova política .
PA R T E U M

Mudanças
A FRAN Ç A D E LUÍS XVI
1

Homens Novos

I PAIS E FILHOS

Na luminosa Primavera de 1 778, Talleyrand foi apresentar os seus


cumprimentos a Voltaire . Mesmo numa sociedade em que era notória a
mundanidade do C lero, o gesto era um pouco inapropriado. A tinta ainda
mal secara no seu diploma de graduação na Sorbonne e já o j ovem sacer­
dote, senhor de um benefício em Reims e delegado à Assembleia do Clero,
corria a prestar homenagem ao maior flagelo da Igreja. A visita tinha algo
de sacrilégio filial. Talleyrand procurava indubitavelmente uma figura
paternal mais satisfatória do que os seus pais biológicos . Eles tinham-no
entregue às mãos de uma ama e fora ela a responsável por ele ter caído
de um armário e esmagado um osso do pé deixando- o aleij ado para sem­
pre . Além da desgraça de ficar manco, o j ovem Talleyrand viu -se também
deserdado . Um j ovem que não pudesse esgrimir nem dançar não tinha
esperanças de êxito na corte nem no exército, as duas únicas carreiras
possíveis para um rebento da linhagem de Périgord. Restava-lhe apenas
um rumo: uma carreira na Igrej a, onde poderia adquirir riquezas e emi­
nência mas pela qual, cedo se constatou, Talleyrand sentia a mais pro ­
funda aversão. No C ollege d'Harcourt, para onde foi enviado com sete
anos de idade, mandaram-lhe obedecer e acreditar, enquanto todos os
seus instintos e a sua inteligência lhe diziam para desobedecer e questio­
nar. No S eminário de Saint - Sulpice mandaram-no respeitar ainda mais a
autoridade, mas Talleyrand começou a formar uma biblioteca com obras
dos filósofos mais cépticos do Iluminismo e de pornografia sumarenta,
versando principalmente a libido de padres e freiras. D estinado a ser um
marginal por via dos seus infortúnios e das suas inclinações intelectuais,
Talleyrand foi atraído para outros marginais . Numa noite chuvosa de
1 77 1 , depois da missa, ofereceu o seu guarda- chuva a uma j ovem actriz
de origem j u daica, Dorothée D orinville, conhecida nos palcos da
Comédie -Française por Luzy. Foi o primeiro de uma longa sucessão de
casos amorosos e talvez o mais terno: o seminarista herético, na sua
sotaina preta, coxeando ao lado da piedosa convertida enquanto se diri­
giam para o que Talleyrand chamava o "santuário" dela, na Rue Férou .
Simon Schama 1 CIDADÃOS

O encontro com Voltaire foi uma espeoe de bênção paterna para


Talleyrand: a colocação de mãos nodosas numa longa e loira cabeleira per­
fumada. Sessenta anos separavam o deísta do acólito, os vinte e três dos
oitenta e quatro anos. Enquanto o j ovem e mundano clérigo procurava
coragem para as suas convicções, o velho filósofo estava a colocar um véu
sobre as suas. Exilado da França durante vinte e sete anos, Voltaire regres­
sara em Fevereiro de 1 77 8 para uma ruidosa apoteose pública. Estava
muito velho e não se sentia bem, e a longa viagem de Ferney, na fronteira
suíça, não melhorara as coisas. Tinha-se aloj ado na residência urbana do
marquês de Villette . De quando em quando, tossia escarro e sangue .
Chamava-se o D r. Tronchin, o famoso médico suíço q u e se tinha mudado
para França em parte para cuidar dos seus célebres pacientes (o outro era
Rousseau ) . Liam-se na imprensa expressões de preocupação. Mas Voltaire
estava decidido a viver o suficiente para desfrutar das atenções dos j ovens
discípulos que acorriam para o ver e do embaraço de homens mais velhos,
amigos desleais que agora procuravam j unto dele conforto e absolvição. No
entanto, independentemente das reservas que sentisse, Voltaire mostrava­
-se sempre gracioso aos admiradores que faziam fila para serem conduzi­
dos à sua presença . " Posso morrer sufocado", queixava-se ele a fingir, "mas
será sob uma chuva de rosas."
Quando o tempo e a saúde melhoravam o suficiente para lhe permiti­
rem aventurar- se fora de casa, Voltaire aparecia no Thêatre -Français para
dirigir os ensaios da sua tragédia Irene. Na estreia, no dia 1 6 de Março,
toda a família real (à excepção do rei ) se apresentou a saudar o autor. No
fim da sexta representação, a 30 de Março, um retrato de Voltaire espe­
cialmente encomendado a Caffieri foi colocado no centro do palco e
coroado com louros pelos actores . O público ovacionou - o de pé e o
velhote deliciou-se com os aplausos. Não fazia segredo do facto de gostar
desta imortalização em vida . Em finais de Maio, até o seu leito de morte
foi transformado num local semipúblico, com Paris em peso a ver se ele
sucumbia às manhas do confessor que, até ao fim, tentou um rito de
absolvição ortodoxo e não a fórmula engenhosamente não compromete ­
dora que Voltaire concebera : "Morro na religião católica em que nasci . "
Até as suas supostas últimas palavras, recusando-se a negar o Diabo ( "Mas
esta é uma altura para se fazer inimigos? " ) , foram estritamente apócrifas,
e a censura que se sabe ter dirigido ao tenaz sacerdote à despedida é quase
tão boa: " D eixai-me morrer em paz . "
Por conseguinte, a visita d e Talleyrand tinha algo d e ligeiramente idó­
latra . Alguns relatos põem-no aj oelhado perante Voltaire em sacrílega
veneração, e não há dúvida de que o j ovem e mundano clérigo idolatrava
o malvado deísta cuj o grito de guerra fora "Ecrasez l 'infâme!" ( Esmaguem
a infame - ou seja, a Igrej a ) . Talleyrand foi levado ao Hôtel de la Vilette,
na Rue de Beaune, pelo chevalier de Chamfort, seu amigo de escola . Foi
19

conduzido a uma saleta quase completamente às escuras excepto uma


persiana estrategicamente aberta que deixava incidir um raio de luz sobre
o rosto enrugado e travesso de Voltaire : o Iluminismo iluminado. Por um
breve instante, o j ovem Talleyrand ficou desconcertado e até repugnado
com as pernas escanzeladas e os pés ossudos que saíam debaixo do rou­
pão. Algures na penumbra, a sobrinha de Voltaire, Madame Denis, que j á
não era nenhuma belle e t bonne - s e é que alguma vez fora - preparava o
chocolate, e ondas de vapor adocicado foram enchendo a sala enquanto o
filósofo inquiria com gentileza e admiração sobre a família Périgord.
Partindo deste início banal, a conversa de Voltaire ganhou ímpeto e o seu
j ovem e impressionável admirador viu - o possesso do seu famoso esprit. As
palavras "fluíam tão rápidas e concisas mas ao mesmo tempo tão distintas
e claras . . . Ele falava de forma rápida e nervosa, com trej eitos que eu
nunca vi em nenhum outro homem . . . Os olhos brilhavam-lhe com um
fogo vivo, quase que ? fuscavam" . Tudo aconteceu como fora esperado : o
crânio, brilhantemente animado, falou para o devoto e silencioso discí­
pulo. Foi um dos momentos decisivos da vida de Talleyrand. "Todos os
sulcos daquelas notáveis feições ficaram-me gravados na memória",
recordou ele na velhice . "Vej o -as à minha frente - os olhos pequenos, cin­
tilantes e encovados, mirando-me como os de um camaleã o . " E apesar de
no traj ecto entre a residência de Voltaire e o Palais-Royal Talleyrand se ter
esquecido do que Voltaire lhe tinha dito, nunca se esqueceu do modo
como fora dito nem do carinho peculiar da despedida. Foi, nas suas pala­
vras, um adeus paternal.

Para Talleyrand, a Revolução poderá ter começado com esta consagra­


ção da descrença na Rue de B eaune . Para Lafayette, começou com um
acto de fé . Para a França, a Revolução começou indubitavelmente na
América.
Enquanto Talleyrand se aj oelhava aos pés do seu patrono intelectual,
Lafayette tiritava de frio em Valley Forge, na Pensilvânia . Entre as " caba­
ninhas, pouco mais alegres do que as celas de uma masmorra ", que
albergavam os patéticos sobreviventes do Exército C ontinental, o mar­
quês, então com vinte anos de idade, tinha encontrado um pai adoptivo
na figura imponente de George Washington. Na sua primeira descrição
do general, escrita à mulher, Adrienne, depois de ter conhecido
Washington em Filadélfia, em Julho desse ano, apresenta - o como "um
cavalheiro calmo e reservado, com idade suficiente para ser meu pai"
mas facilmente distinguível "pela maj estade do rosto e da figura" . E foi
durante o que Lafayette chamou "a grande conversa" de 1 4 de Outubro
de 1 777 talvez para compensar o facto de não poder entregar ao mar­
-

quês a divisão que ele tanto desej ava - que Washington observou que
gostaria de merecer a confiança de Lafayette " como amigo e pai".
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Washington poderá ter deixado escapar este gentil elogio de forma casual
mas a verdade é que para Lafayette foi um momento de epifania. A par­
tir de então, Lafayette foi o filho adoptivo, dedicado quase até à escravi­
dão à causa do seu novo pai, com patrie e pater unidos num apertado nó
emocional.
Se Talleyrand se considerava praticamente um órfão, " o único homem
bem-nascido e pertencente a uma família numerosa . . . que nunca conhe­
ceu, nem por uma única semana da sua vida, a alegria de viver sob o tecto
paterno ", Lafayette sentia a sua perda de forma mais dolorosa. Quando
Lafayette tinha dois anos de idade, o pai, coronel dos Granadeiros da
França, morreu na Batalha de Minden, 1 e o tio caíra no cerco de Milão,
em 1 7 3 3 , durante a Guerra da S ucessão Polaca. Por conseguinte, o j ovem
Gilbert foi criado na propriedade da família, em C havaniac, no Auvergne,
com a cabeça cheia de sonhos marciais . Perto do palácio existiam alguns
campos a que os camponeses chamavam " campos de batalha" e era lá que
.

Lafayette comunicava com as sombras de um Vercingetórix armado para


a refrega . Mas se a cabeça estava cheia de romances históricos, o coração
transbordava -lhe de desej os de vingança. Muito mais tarde, Lafayette des­
cobriria a identidade do comandante da bateria que ceifara o regimento
do pai e procuraria o maj or Philips . Na adolescência, bastou-lhe respon­
der à causa americana como a oportunidade perfeita para se vingar das
humilhações sofridas pela França na Guerra dos Sete Anos e das perdas
sofridas pela família . Em Outubro de 1 7 77, Lafayette escreveu a
Vergennes, o ministro dos Negócios E strangeiros, cuj a política pró-ameri­
cana ainda dava mostras de grande circunspecção:

firmemente convicto de que prej u dicar a Inglaterra é servir ( ouso dizer


vingar) o meu país, acredito na ideia de pôr em j ogo todos os recursos de
todos os indivídu os que têm a honra de ser Franceses .

Pater e patrie fundiram-se numa paixão que ardeu no peito sentimen­


tal do marquês órfão (a mãe morrera em 1 7 70, tinha ele treze anos de
idade ) . Esta irrequietude marcial afectava muitos dos seus contemporâ ­
neos. "Estávamos fartos da duração da paz, que se vinha arrastando há
dez anos", escreveu um dos camaradas voluntários de Lafayette, o conde
de S égur " e em todos e cada um de nós ardia o desej o de reparar as
afrontas das últimas guerras, de combater os Ingleses e de correr em
auxílio da causa americana" . A experiência na corte de Luís XV, em
Versalhes, onde a riqueza e os contactos de Lafayette ( incluindo a sua
entrada por casamento, com catorze anos de idade, para o grande clã
Noailles) tinham algum peso, não saciou esta insatisfação emocional.

' Em 1 7 5 9 . ( N. d o T. )
21

Lafayette não era manco como Talleyrand mas parecia, de tão desaj eitado
que era no salão de baile. Ciente da sua falta de polimento, Lafayette sen­
tia que as suas qualidades, apesar de serem cruas, não tinham só falhas,
tinham também mais-valias porque lhe tinham preservado uma virili­
dade natural. "A rudeza das minhas maneiras, apesar de não ser deslocada
nos grandes acontecimentos", escreveria ele nas suas memórias, "não me
permitia curvar-me perante as delicadezas da C orte . "
Foi a mesma incapacidade para viver com os ornatos e não com a subs­
tância da vida militar que o empurrou ainda mais para uma espécie de
action d 'éclat.2 Em 1 77 5 , Lafayette j á estava farto das palhaçadas que pas­
savam por ousadias no seu círculo de amigos aristocratas e ricos que cos ­
tumavam reunir- se na estalagem Epée de Bois. Entre esta " C ompanhia da
Espada de Pau " encontravam-se vários j ovens - La Rochefoucauld,
Noailles, S égur - que, além de abraçarem a causa dos "insurrectos" ame ­
ricanos, seriam dos mais notórios cidadãos-nobres de 1 78 9 . E foi quando
servia sob as ordens de outro militar de ideias progressistas, o duque de
Broglie, que Lafayette decidiu usar a sua enorme fortuna ( um rendimento
anual de 1 2 0 000 libras, herança do avô materno ) para transformar
anseios abstractos em acções concretas . Ironicamente, B roglie, ex-cama­
rada do pai de Lafayette, tinha -se comprometido a manter o j ovem irre ­
quieto debaixo de olho para o impedir de qualquer temeridade que
pudesse colocar em risco o que restava da linha masculina da família.
Todavia, no seguimento de uma apologia eloquente da causa americana
pelo próprio irmão de Jorge III, o duque de Gloucester, o empenhamento
de Lafayette foi de tal ordem que, depois de tentar levá-lo à razão, B roglie
resignou -se e aceitou (ou pelo menos não impediu fisicamente ) a aven­
tura americana. Na verdade, longe de reter Lafayette, B roglie, j untamente
com Ségur e Noailles, decidiu seguir as suas pisadas.
A causa da vingança pessoal, familiar e patriótica, aliada a uma sede de
glória pré-romântica, foi fundamental na motivação de Lafayette para
equipar o Victoire e partir para a América, no Outono de 1 77 7 . Mas exis­
tiu outro elemento não menos importante na sua decisão, nomeadamente
a sua profunda e sentida dedicação à causa da "Liberdade " . Segundo
Lafayette, esta dedicação chegou -lhe cedo e de forma natural. De facto, é
a veia romântica da sua autobiografia, que retrata o j ovem marquês como
um filho da natureza em empatia com os livres e os indomados, que ofe­
rece a melhor pista para a compreensão das suas subsequentes paixões
políticas . Os planaltos rochosos e arborizados do Auvergne onde Lafayette
crescera estavam muitíssimo longe das civilidades urbanas da sociedade
parisiense, e a imaginação romântica de Lafayette pôde dar livre curso aos
seus devaneios. Em 1 76 5 , quando tinha oito anos de idade, uma besta

2 Em francês no original: acção notável. ( N. da R. )


Simon Schama 1 CIDADÃOS

conhecida por " hiena de Gévaudan" e descrita nos avisos como "do tama ­
nho de um touro j ovem" andava a matar gado mas também, alegada­
mente, a "atacar de preferência mulheres e crianças e a beber-lhes o
sangue" . B andos de camponeses começaram a perseguir o "monstro " mas
o pequeno Lafayette identificou-se com o carnívoro fugitivo e, na compa­
nhia de um amigo, vagueou pelos bosques na esperança de um encontro
fortuito . "Mesmo com oito anos de idade", escreveu ele, "o meu coração
bateu por simpatia para com a hiena . " Anos mais tarde, quando frequen­
tava o C ollege du Plessis, um colégio de ex-j esuítas em Paris, disseram-lhe
para escrever um ensaio descrevendo o cavalo perfeito. Lafayette louvou
um animal que escoiceava, se empinava e derrubava o cavaleiro logo que
sentia a chibata - um acto de impertinência pelo qual foi ele próprio devi­
damente vergastado.
A insubordinação criativa de Lafayette no colégio tem uma importân­
cia mais do que anedótica . D este os tempos de Pluvinel, o grande mestre
de equitação do reinado de Henrique IV, o domínio da equitação era
simultaneamente uma metáfora e uma preparação literal para o exercício
do poder público . A partir de Richelieu, uma sucessão de governantes
aprendeu, através do paralelo entre a equitação e a arte do estadista, a
importância do autocontrolo, da subj ugação do espírito de outrem e da
demonstração de autoridade. C ontudo, na década de 60 do século XVIII,
o culto da Sensibilidade, com a sua ênfase dramática no natural e não no
ensinado, na liberdade e não na disciplina, ofereceu um modelo alterna ­
tivo de conduta social e até política . E o que começou com actos infantis
de simpatia por animais teimosos não tardou a florescer numa preferên­
cia generalizada da liberdade à autoridade, da espontaneidade ao calcu ­
lismo, da franqueza ao artifício, da amizade à hierarquia, do coração à
cabeça e da natureza à cultura. Terreno fértil para a formação de um tem­
peramento revolucionário. Quando se preparava para embarcar no
Victoire, Lafayette escreveu a Adrienne :

Admitireis, coração meu, que as tarefas e a vida às quais rumo são muito
diferentes daquelas que tive por destino naquela fútil viagem a Itália [o
Grand Tour, digressão de turismo cultural] . ' D efendo a liberdade que ido­
latro, vou completamente livre e como amigo oferecer os meus serviços à
mais interessante das Repúblicas, com franqueza e boa vontade, sem ambi­
ções nem motivos secundários . Trabalhar em prol da minha glória será tra ­
balhar em prol da felicidade dele s .

' Digressão p e l a Europa tradicionalmente empreendida p o r j ovens da classe alta, asso­


ciada a um itinerário específico. Era uma espécie de rito de passagem educativo e expunha
os seus praticantes ao legado da Antiguidade Clássica e da Renascença. Podia durar semanas
ou anos. (N. do T. )
23

Para muitos dos nobres contemporâneos de Lafayette, a América cor­


respondia precisamente à sua visão de uma sociedade ideal, alegremente
afastada do cinismo e da decrepitude do Velho Mundo. A sua paisagem,
encantadoramente descrita pelo abade D elaporte, e até os seus selvagens,
irremediavelmente idealizados nos palcos de Paris em peças como Hirza ou
les Illinois, de Billardon de Sauvigny, e os seus colonos, representavam, em
maior ou menor grau, as qualidades admiradas da inocência, da franqueza
rude e da liberdade . Ao chegar a Charleston, no Verão de 1 777, Lafayette
declarou que discernia esta fraternidade imaculada nos habitantes locais
( uma impressão provavelmente reforçada pela forte presença huguenote
na cidade ) . " São tão amistosos como o meu entusiasmo os pintou", escre ­
veu ele a Adrienne. "Aqui prevalecem as maneiras simples, a vontade de
agradar, o amor ao país e à liberdade e uma igualdade fácil. Os mais ricos
e os mais pobres estão no mesmo nível e, embora existam fortunas imen­
sas, eu desafio sej a quem for a encontrar a mínima diferença no modo
como se dirigem uns aos outros. "
Estas qualidades eram manifestas e m George Washington e tinham
acrescidas, aos olhos de Lafayette, as virtudes dos heróis da Antiguidade:
o estoicismo, a resistência na adversidade, a bravura pessoal e a abnega ­
ção, a incorruptibilidade, a ausência de ambição pessoal, o desprezo pelo
facciosismo e pela intriga, a elevação de alma e até a reserva taciturna que
reprovava a loquacidade falsa do Velho Mundo . De facto, a decisão de
Lafayette de permanecer na América, apesar da desilusão de não receber
a sua desej ada divisão e quando muitos dos seus companheiros franceses
se preparavam para regressar a casa, foi muito influenciada pela sua
ardente determinação de dar provas perante a sua figura paternal. Ferido
em combate em B randywine C reek, Lafayette partilhou os rigores de
Valley Forge e aceitou liderar uma expedição manifestamente fútil ao
Canadá no meio dos nevões invernais . Inamovível no seu apego a
Washington, Lafayette chamou a si a missão de defender o general dos
ataques capciosos dos rivais e críticos que tinha no Exército C ontinental.
Apostrofava indignado quem se atrevesse a comparar o general Gates com
Washington• e a paixão ingénua que punha na defesa ganhava com o
inglês macarrónico na qual era expressa .

Que marchas, que manobras, que fez ele para ser comparado ao herói
que, à cabeça de mil e seiscentos camponeses, perseguiu no Inverno pas­
sado um poderoso exército disciplinado através de uma região vasta e
aberta -, com o grande general que nasceu para salvação do seu país e

4 O general Horatio Gates era o principal rival de Washington para o posto de generalís­
simo dos exércitos americanos e envolveu -se numa campanha de maledicência (a Cabala de
Conway) para o desacreditar e substituir. (N. do T. )
Simon Schama 1 CIDADÃOS

admiração do universo? Sim, caro senhor, essa campanha de Inverno cons­


tituiria uma das partes mais nobres da vida de César, de C ondé, de
Turenne, desses homens cuj o nome nenhum soldado consegue pronunciar
sem uma adoração entusiástica .

Reflectido no olhar babado do seu filho adoptivo, Washington tornou­


-se o campeão de todas as virtudes - marciais, pessoais e políticas. Parecia
o líder perfeito porque também parecia o pai perfeito, simultaneamente
forte e compassivo, j usto e solícito; era o cidadão-general que se preocu­
pava paternalmente com os seus homens e, por extensão, com a nova
nação. E, embora Washington tenha ficado inicialmente desconcertado
com o ardor da devoção canina de Lafayette, acostumou -se - e com algum
prazer - ao papel de pai adoptivo. Quando Lafayette foi ferido, Washington
certificou-se de que ele era visto pelo seu médico pessoal. Interessou -se de
forma directa e activa pela mulher e pela família de Lafayette, e comise ­
rou -se sinceramente com Lafayette quando lhe morreu a filha . Adrienne
Lafayette retribuiu bordando um avental maçónico para o general ( outro
elo que os dois homens partilhavam, pois o marquês, muito apropriada­
mente, aderira à loja de Saint-Jean de la Candeur, em 1 77 5 ) , e Washington
usou -o quando presidiu ao acto supremamente maçónico do lançamento
da primeira pedra do Capitólio. Não admira, pois, que Lafayette tenha
dado ao seu primogénito ( nascido em 1 7 8 0 ) o nome de George
Washington "como um tributo de amor e respeito pelo meu querido
amigo" ( uma filha recebeu o nome de Virgínia ) . Mais tarde, quando as res ­
ponsabilidades paternas de Lafayette se viram constrangidas por uma pri­
são austríaca, George Jr. foi enviado para Mount Vernon' para ser educado
pelo seu homónimo. Na verdade, as linhas da paternidade tornaram-se
ocasionalmente complicadas. Segundo uma história - que talvez não sej a
apócrifa -, u m j ovem oficial americano que s e preparava para regressar à
América visitou Madame Lafayette para saber se ela tinha alguma mensa­
gem para o marido . Supostamente, o seu filho ainda pequeno respondeu:
"Faites mon amour à mon papa Fayette et à mon papa Washington . "

II HERÓIS PARA O S TEMPO S

Mesmo que a aura d e autoridade paterna d e Washington s ó tivesse


influenciado Lafayette, não deixaria de ter uma importância mais do que
puramente biográfica, pois ofereceu ao j ovem rico e impressionável um
modelo que afectaria a sua pessoa pública em momentos cruciais da histó­
ria francesa, nomeadamente em 1 789 e 1 8 30. Mas o general americano

' A propriedade de Washington, na Virgínia. (N. do T. )


25

tinha uma reputação muito maior e mais potente como corporização de


uma nova espécie de cidadão-soldado: a reencarnação dos heróis da Roma
republicana. Além disso, a atracção extraordinária que Washington exercia
em França (e no resto da Europa C ontinental) tinha um elemento adicional
importante. A religião secular da Sensibilidade, parcialmente importada de
Inglaterra, com o seu enfoque na verdade emocional, na candura e na na tu -
ralidade, adquirira a sua forma definitiva nos escritos sentimentais de
Rousseau, no princípio da década de 60 do século XVIII . Uma das muitas
consequências de monta desta revolução na moral foi a purificação do ego­
tismo. A ascendência do romantismo tornou possível os cultos sentimentais
da personalidade . De modo paradoxal, quanto mais humilde e modesto apa­
rentava ser o sujeito, mais potente era a sua celebridade . E nesta fórmula, o
patriotismo e a parentalidade estavam irremediavelmente combinados.
O caso Asgill é um bom exemplo. O capitão Asgill era um militar bri­
tânico capturado em Yorktown que foi condenado à morte como retalia­
ção pelo enforcamento sumário do capitão americano Joshua Huddy
pelos lealistas.6 Washington não ficou agradado com a sentença e agiu
para suspender a execução mas na sua qualidade de comandante não se
sentiu inicialmente capaz de a anular. Só depois de a mãe de Asgill ter
implorado pessoalmente a Vergennes que interviesse e de o ministro fran­
cês ter mostrado a carta da lamentosa senhora ao rei e à rainha é que
Washington tratou de comutar a sentença. E scusado será dizer que a his ­
tória de Asgill se tornou um pequeno fenómeno em França, onde foi
transformada numa novela sentimental, em poemas e numa curiosa peça
da autoria de Billardon de Sauvigny ( autor, durante a Revolução, de
Vashington ) , na qual a cena se passa numa Tartária mítica e Washington
surge mal disfarçado na pele de "Wazirkan" . Mas independentemente do
ténue disfarce do generalíssimo, a frase de Wazirkan - "Je commande aux
soldats et j 'obéis aux fois" (Eu comando soldados e obedeço às leis ) - anun­
cia o dilema supremo do herói contemporâneo : como ordenar os valores
públicos e privados, como reconciliar a j u stiça com a emoção.
Este foi o tema de muitos dos " C ontos Morais" levados à cena em Paris
nas décadas de 60 e 70 do século XVIII e o tom dado às produções reno­
vadas do repertório trágico clássico de Racine e Corneille, e forneceu o
poder narrativo para alguns dos quadros mais grandiosos de Greuze, tais
como Le Fils Puni. O quadro Belisário, de Jacques-Louis David, exposto
pela primeira vez em 1 779, que levou Diderot a comentar que o j ovem
artista tinha "alma", centra-se na contenda entre pais adoptivos bons e
maus . O tema é o reconhecimento, por um j ovem soldado, do general
Belisário, reduzido à condição de mendigo cego devido à ingratidão e

' A execução sumária do capitão Huddy foi aprovada por William Franklin, último
governador real de Nova Jérsia e filho de Benj amin Franklin. (N. do T. )
Simon Schama 1 CIDADÃOS

crueldade do imperador Justiniano. O conflito entre o sentimento fami­


liar e o dever patriótico vem de novo à superfície noutra obra -prima de
David, O Juramento dos Horácios, mostrado na exposição bienal de pintura
conhecida por Salon, em Paris, ao mesmo tempo que a peça de Billardon
de Sauvigny sobre Asgill estava em cena no Théâtre -Français. Esta temática
foi ainda recapitulada de forma absolutamente impiedosa em A Morte de
Sócrates, onde os discípulos choram o suicídio patriótico do mestre, e mais
especificamente, em Os Lictores Devolvendo a Brutos os Corpos dos Seus Filhos,
em que um pai implacavelmente recto sacrificou os filhos à Res Publica. Mas
enquanto a linha oficial assumida pelos revolucionários jacobinos subordi­
naria os sentimentos pessoais e familiares ao apelo público e patriótico, o
poder da atracção de Washington provinha precisamente de ele (e mais
improvavelmente, Vergennes) ter sucumbido às lágrimas de uma mãe
aflita. De Mrs. Asgill para Maria Antonieta, de mãe para mãe; de Luís para
"Vashington", de pai para pai - o efeito sentimental era irresistível.
D o pai à pátria era um pequeno passo. A corporização de ambos por
Washington em França devia a sua atracção a um desej o mais profundo e
mais geral de uma nova geração de heróis patrióticos. Alguns j ovens aris­
tocratas politizaram-se precisamente porque não viam na corte nem no
monarca ( especialmente nos últimos anos de Luís XV) as virtudes próprias
da severidade patriótica. De facto, chegaram a acusar ocasionalmente a
corte de manchar a reputação de patriotas por razões de pura conveniên­
cia e auto -exculpação. O j ovem Lally-Tollendal, por exemplo, estava no
caminho de se tornar um aristocrata revolucionário por via da sua cru -
zada para vingar a reputação do pai, que fora j ulgado e executado como
bode expiatório do fracasso militar francês na Índia . Foi uma desgraça tão
horrível que o j ovem foi criado na mais absoluta ignorância em relação ao
pai; até o seu apelido foi alterado para Trophime, que era o seu nome pró­
prio, para o poupar da vergonha . Todavia, aos quinze anos de idade, des­
cobriu inadvertidamente a verdade pela boca de um velho camarada do
pai e, como mais tarde escreveu, " corri para o registo criminal"

para lhe oferecer [ao meu pai] a minha primeira homenagem e o meu
eterno adeus; para que ele pudesse pelo menos ouvir a voz do filho no
meio dos apupos dos carrascos e abraçá -lo no cadafalso onde perece u .

D epois de uma persistente campanha de dez anos para inverter a


inj u stiça, o novo rei ouviu - o . Em 1 7 78, depois de trinta e duas sessões
de debate, o conselho real de Luís XVI anulou os procedimentos contra
Lally pai, embora o caso ainda tivesse de ser apreciado pelo Parlamento
de Rouen para que a sentença fosse formalmente anulada . 7 Quando a

1 Mas o Parlamento de Rouen confirmou a sentença . (N. do T. )


27

decisão do conselho foi anunciada, Lally foi t e r com Voltaire, q u e fora


conquistado para a causa, e o velho guerreiro, no seu leito de morte, pou­
sou as mãos na cabeça do j ovem numa última bênção paterna .
Era uma história à maneira dos Romanos, com os quais as vítimas da
inj ustiça imperial estavam sempre a ser comparadas ( a analogia entre o
destino de Lally e o repúdio de B elisário por Justiniano era frequente ) . Os
j ovens da geração de Lafayette e Lally tinham si � o bombardeados até à
exaustão na escola com as virtudes da República Romana, formuladas nas
obras de Plutarco, Lívio e Tácito. Mas o seu conceito de exemplum virtutis
não se limitava exclusivamente aos modelos apresentados na
Antiguidade. Na sua Histoire du Patriotisme Français, publicada em 1 769, o
advogado Rossel afirmava que os sentimentos patrióticos "estão mais des­
pertas e são mais generosos no cidadão francês do que no mais patriótico
dos Romano s " . No seguimento das derrotas da Guerra dos Sete Anos,
viram-se sinais nítidos de uma nova busca - ainda que selectiva - nos
anais da história francesa de heróis que representassem os seus momen­
tos mais felizes . São Luísª era sempre um dos predilectos, mas entre os
cortesãos mais j ovens de Versalhes nasceu uma espécie de culto de
Henrique IV.9 Luís XII foi expressamente celebrado por ter sido procla­
mado "Pai do Povo" nos Estados Gerais de 1 5 06, e também era consola­
tório o interesse renovado em Guilherme, o Conquistador, 1 º idealizado no
enorme quadro histórico de Lépicié - com mais de cinco metros de lar­
gura, foi, de longe, o maior do Salon de 1 76 9 .
A publicação d a antologia histórica Portraits des Grands Hommes Illustres
de la France foi um acontecimento importante na criação de um novo pan­
teão de heróis exclusivamente francês, em especial por ir buscar muitos
deles à história medieval, preferindo figuras que pertenciam inequivoca­
mente à pátria a nomes mais remotos da antiguidade romana . Com a
excepção de Henrique IV, os Bourbons estavam ausentes; Turenne e
C ondé estavam presentes, Luís XIV não. Além disso, a obra alargou os
seus critérios de mérito para incluir eventos e figuras da vida civil, tais
como o chanceler d'Aguesseau, celebrado por ter "salvado a França da
fome ", no princípio do século XVIII, e o filósofo Fontenelle, " contem­
plando a pluralidade dos mundos". Os heróis mais modernos, tal como
François de Chevert, herói da retirada de Praga, durante a Guerra da
Sucessão Austríaca, são elogiados pela modéstia das suas origens, pela sua

' Luís IX, rei de França ( 1 2 1 4 - 1 2 7 0 ) , cruzado e protector da Igreja, canonizado em 1 2 9 7 .


( N . d o T. )
' Um d o s monarcas mais populares da história francesa ( reinou entre 1 5 89- 1 6 1 0 ) , sem­
pre atento ao bem-estar dos seus súbditos e promulgador do E dito de Nantes, que garantiu
a liberdade religiosa aos Protestantes e pôs fim às Guerras da Religião. (N. do T. )
' º Pela sua conquista de Inglaterra, e m 1 066, à frente de u m exército d e contingentes
normandos, bretões, flamengos e franceses. (N. do T. )
Simon Schama 1 CIDADÃOS

louvável proximidade do soldado comum e por uma carreira que depen­


deu " do mérito e não da lisonj a ou da intriga" . O epitáfio de Chevert, na
Igrej a de Saint-Eustache, em Paris, citado no livro, começa da seguinte
forma : " Sem antepassados nobres, sem fortuna, sem apoios poderosos,
órfão desde a infância, entrou para o Exército com onze anos de idade . . . "
As mulheres são incluídas pelo seu patriotismo exemplar, especialmente
quando teve por alvo, como no caso de Joana d' Are, os britânicos . Além
disso, os elogios mais extravagantes são possivelmente os reservados para
aqueles que tombaram em combate contra o odiado inimigo, nenhum
deles mais sublime do que o marquês de Montcalm, caído na planície de
Abraão, no Quebeque. O tom global da obra era optimista mas não triun­
fal, anunciando uma nova idade de patriotismo na qual os heróis se dis­
tinguiriam por contraste com as vaidades da vida da corte e pela sua
simplicidade, sobriedade e estoicismo. À frente da fila, sem o mínimo sinal
de incongruência irónica, surge Luís XVI, celebrado como o benfeitor da
independência americana, na companhia de B enj amin Franklin, de
"Waginston" ( George ) e da personificação da América, erguendo bem alto
o chapéu da liberdade e espezinhando a besta imperial britânica - mais
leopardo do que leão.
Nesta campanha de criação de um cânone patriótico moderno, nin­
guém trabalhou mais para substituir os modelos clássicos por modelos his­
tóricos franceses do que o dramaturgo Pierre de B elloy. No prefácio da sua
peça Le Siege de Calais ( dedicado a Luís XV com o epíteto algo improvável
de "Pere de la Patrie " ) , B elloy declara especificamente o seu proj ecto de
reforma da temática da tragédia histórica de modo a abarcar a história
francesa, uma tarefa que considera urgente, nem que sej a apenas por
razões didácticas .

Sabemos exactamente tudo o q u e César, Tito e Cipião fizeram, mas igno­


ramos por completo os feitos de C arlos Magno, de Henrique IV e do Grande
C ondé . Pergunte -se a uma criança que sai da escola quem foi o general
vitorioso em Maratona . . . e ela responderá num ápice; pergunte - s e - lhe que
rei ou general francês venceu a B atalha de B ouvines ou a B atalha de Ivry . . .
e ela ficará calada e muda . . .
É promovendo a veneração da França pelos grandes homens que
gerou que poderemos inspirar na Nação a estima e o amor-próprio que
são a s únicas vias que lhe permitirão regressar onde j á esteve . A alma é
levada pela admiração a emular as virtudes . . . [de futuro ] , ninguém
deverá poder dizer, a o deixar o teatro, "os grandes homens que acabei
de ver repre sentados eram Romanos, mas como e u não nasci no seu país
não posso as semelhar-me a el e s " . D everá dizer- s e , pelo menos de
quando em quando, " Acabei de ver um Herói francês; posso ser um
Herói como ele " .
29

E B elloy vai mais longe noutra passagem, ao atacar a anglomania:

Alguém j ulga que imitando - bem ou mal - as suas carruagens, os seus


j ogos de cartas, os seus passeios, o seu teatro e até a sua suposta indepen­
dência iremos merecer a estima dos Ingleses? Não. Amai e servi a nossa
Patrie como eles amam a sua . . .

B elloy deu o seu melhor para promover este programa através das suas
peças de teatro e escreveu uma série de melodramas que, aquando da
publicação, complementou com um conj unto impressionante (para a
época ) de notas históricas. Tal como observou o seu crítico mais implacá­
vel, La Harpe, o feroz editor do Journal Littéraire et Politique, Belloy era pre ­
j udicado por uma mediocridade insupe rável como dramaturgo,
especialmente no tocante ao desenvolvimento das personagens . Em
Gaston et Bayard, ligeiramente baseado na tumultuosa amizade entre
Gaston de Foix ( duque de Nemours ) e o chevalier de B ayard (a fina-flor da
cavalaria francesa renascentista ) , La Harpe queixou-se j ustificadamente
de que B elloy deu ao j ovem Gaston as características de um homem aus­
tero e de meia -idade e a Bayard, que era mais velho, as de um j ovem
impetuoso. No entanto, a qualidade manifestamente medíocre das peças
não as impediu de serem muito populares .
A peça Le Siege de Calais foi s e m dúvida a q u e mais significado teve para
Belloy em termos de exercício de instrução patriótica, principalmente por
ser um drama tirado da história da sua cidade natal. Quando a peça foi
publicada, B elloy sentiu um orgulho muito especial ao ver impresso,
debaixo do seu nome (e por cima da referência de que era membro da
Académie Française ) , que era CIDADÃO DE CALAIS. O enredo - que se arroga
algumas liberdades históricas, omitindo a célebre intercessão da rainha
Filipa j unto de E duardo III em prol das vidas dos burgueses - é uma espé­
cie de panfleto sobre cidadania patriótica transplantada da antiga Roma
para a França medieval. Não é obviamente por acaso que tem como vilão
quase implacável, o plantageneta Eduardo III, e como heróis Eustache de
Saint-Pierre, o simples presidente da C âmara, e os cinco cidadãos-bur­
gueses que oferecem o sacrifício das suas vidas para desviar dos seus con­
cidadãos a fúria do rei inglês. E mais uma vez, a relação pai-filho
encontra-se no centro do drama, pois a rainha Filipa é substituída por
uma passagem de ir às lágrimas na qual o filho de Saint-Pierre (improva ­
velmente chamado Aurelius/Aurele) implora ao intratável monarca
inglês que o deixe morrer na fogueira primeiro e longe da vista do seu
aflito pai. É obviamente neste momento que Eduardo cede, espantado
com a abnegação e a coragem dos mártires patriotas.
A peça alcançou um êxito estrondoso. E m 1 7 6 5 , foi representada
gratuitamente na C omédie -Française e atraiu público oriundo de todas
Simon Schama 1 CIDADÃOS

as camadas da sociedade de Paris, incluindo operários e loj istas. A peça


foi vista por dezanove mil pessoas na primeira temporada, o que teria
sem dúvida constituído um recorde não tivesse a representação sido
interrompida por uma querela grave entre os actores - um dos proble­
mas habituais do teatro do século XVIII. Nesse mesmo ano, Le Siege de
Calais foi a primeira peça de teatro francesa a ser publicada na América
gaulesa. O conde d'E staing, governador de S aint-D omingue ( actual
Haiti ) , mandou imprimi-la e distribui-la gratuitamente à população e à
guarnição. A sua primeira representação nas Índias Ocidentais Francesas,
no dia 7 de Julho, foi agendada em simultâneo com uma convocação da
milícia, à qual foi obviamente destinada, e para vincar a mensagem, as
festividades organizadas nessa noite incluíram, com especial destaque,
versos apropriados da peça .
"Ele revelou aos Franceses o segredo do seu amor ao E stado e ensinou ­
-lhes que o patriotismo não é apanágio exclusivo das Repúblicas", decla­
rou o panegirista de B elloy depois da sua morte, em 1 77 5 . Isto teria sido
uma tarefa colossal e é muito pouco provável que o medíocre dramaturgo
tenha conseguido alguma coisa, mas, no mínimo as suas preocupações, e
a sua utilização frequente de termos como patrie, patriotique, la Nation e
citoyen olhavam directamente para o futuro vocabulário básico da exorta­
'
ção revolucionária . Além disso, na métrica arrastada de Belloy encontra­
-se a equiparação pouco consistente de "Liberdade" a "Patriotismo " que
promoveu a dedicação da j ovem nobreza liberal à causa americana.
A guerra proporcionou oportunidades para passar do reino do melo­
drama histórico ao heroísmo contemporâneo . O exemplo mais espectacu ­
lar (mas não o único ) da nova mitologia patriótica foi o herói naval
Chevalier du C ouedic. O Sieur du C ouedic de Kergolaer - para lhe man­
ter toda a magnificência do seu nome bretão - era um oficial de carreira
que servia embarcado desde os dezasseis anos de idade. D urante a Guerra
dos Sete Anos, foi prisioneiro dos britânicos - sempre um bom motivo
para uma vingança pessoal e patriótica . Mais tarde, j untou - s e a
Kerguélen, seu conterrâneo, numa das viagens de circum-navegação até
à Austrália que devolveram aos Franceses o sentimento de que eram
iguais da Grã-B retanha como pioneiros da geografia imperial. Na manhã
de 5 de Novembro de 1 779, saiu de B rest com a sua corveta, La
Surveillante, e deu de caras com uma fragata britânica, a Quebec, que
andava a reconhecer a costa. Em vez de retirarem imediatamente ou de
se lançarem em infrutíferas manobras para tentarem ganhar uma posição
de vantagem, as duas embarcações puseram-se lado a lado e envolveram­
-se num terrível canhoneio que durou seis horas e meia . Por volta das
quatro e meia da tarde, o que restava da Quebec foi pelos ares, oferecendo
à Surveillante uma vitória pírrica . Desmastreada e transformada num des­
troço flutuante, a Surveillante foi rebocada para B rest, levando a bordo
31

quarenta e três marinheiros britânicos salvos de afogamento . O mestre,


ainda de meias de seda e sapatos de fivela, estava tão ferido que teve de
ser transportado para terra . A multidão que esperava no porto para sau­
dar os heróis ficou horrorizada pelo estado a que o selvagem combate
tinha reduzido a tripulação e o navio.
Quando D u Couedic morreu dos ferimentos, três meses depois, j á era
um símbolo do renascimento do ânimo patriótico da França. Tinha havido
outras vitórias navais importantes e muito publicitadas, a mais célebre das
quais fora o êxito da resistência da Belle-Poule contra a Arethusa, 1 1 em 1 778
- a contenda que lançara o penteado "Belle-Poule " : as mulheres que anda­
vam na moda decoravam os cabelos com navios em miniatura oscilando
sobre ondas de caracóis empoados . Contudo, o lado macabro da história da
Surveillante conferiu-lhe uma autoridade trágica. Numa altura em que a
prometida invasão da Grã-Bretanha não conseguia ser concretizada, esta
saga ofereceu aos Franceses um modelo de resistência heróica: um chevalier
antigo e moderno, coraj oso e compassivo . No elogio fúnebre proferido nos
Estados da B retanha, foram sublinhadas as qualidades mais admiradas pelos
devotos da sensibilité. Du C ouedic foi descrito como um (citoyen bienfaisant) ,
um "amigo generoso", um "bom amo para os serviçais, que o amavam; um
pai extremoso que quando estava em Quimperlé passava a maior parte das
manhãs a brincar com os filhos, que o adoravam " . O governo francês res­
pondeu na mesma veia de boa-vontade familiar e anunciou uma pensão de
duas mil libras para a viúva e uma de quinhentas para cada filho, em reco­
nhecimento do contributo único do pai para a patrie. O rei, que era um apai­
xonado pelos assuntos náuticos, mandou construir um grande mausoléu na
Igreja de São Luís, em Brest, com uma inscrição para edificação dos cadetes
locais: "Jovens pupilos da Marinha, admirai e emulai o exemplo do bravo
Couedic". E quando Sartine, o ministro da Marinha, propôs a execução de
uma série de quadros para celebrar as vitórias da guerra americana, o com­
bate de Du C ouedic foi concebido como elemento central.
A atracção exercida por D u C ouedic como uma espécie de cavaleiro
andante moderno é importante porque é no topo e não num meio ima ­
ginário da sociedade francesa que se devem procurar as raízes culturais da
Revolução . Será infrutífero procurar uma burguesia notoriamente insa­
tisfeita mas a presença de uma aristocracia de j ovens "patriotas" descon ­
tentes ou, pelo menos, desiludidos, é manifestamente óbvia na história
do envolvimento francês na Revolução Americana . Ao contrário do que
por vezes se supõe, esta revolução não deu origem ao patriotismo fran­
cês; o que fez foi dar a esse patriotismo a oportunidade de se definir em
termos de "liberdade" e de dar provas através de um espectacular sucesso

'' O combate entre estas duas fragatas também foi considerado uma vitória na Grã­
-Bretanha . ( N. do T. )
Simon Schama 1 CIDADÃOS

militar. Foi entre os Noailles e os S égurs - mesmo no país profundo - que


as paixões mais se inflamaram na década de 70 do século XVIII. O acolhi­
mento extático de Lafayette aquando do seu regresso da América, em
1 7 79, é sintomático disto. De j ovem provinciano comicamente impulsivo,
Lafayette transformou - se, aos olhos de les Grands, num modelo da
Cavalaria francesa contemporânea. O facto de ter sido colocado sob uma
forma simbólica de "prisão domiciliária " em Paris, na casa da família da
mulher, durante uma semana, pela audácia de ter ido para a América ape ­
sar da desaprovação do rei, só serviu para distinguir o novo patriotismo da
tradição bafienta. Além disso, agora que a França tinha concluído um tra ­
tado com o C ongresso, Lafayette estava plenamente j ustificado, o que o
levou a escrever ao rei, num tom humilde mas firme de auto -exoneração:
" O meu amor pelo meu país, o meu desej o de assistir à humilhação dos
seus inimigos, um instinto político que o recente tratado parece justifi­
car . . . foram, Senhor, as razões que determinaram o papel que desempe­
nhei em prol da causa americana . "
Luís deu mostras d a sua benevolência convidando Lafayette para uma
caçada, e Maria Antonieta, que pouco antes classificara Lafayette de
labrego preconceituoso, não se poupou a esforços para lhe elevar o esta­
tuto social, e foi graças à sua intervenção que Lafayette ascendeu drama­
ticamente a comandante dos D ragões da Guarda ( aos vinte e um anos de
idade ) . A fama de Lafayette estendeu -se da corte ao público parisiense,
ávido de j ovens heróis . Madame C ampan, dama de companhia da rainha,
escreveu que alguns versos de Gaston et Bayard, de B elloy, foram conside­
rados pelo público um panegírico ao seu cavaleiro andante :

Admiro a sua prudência e gosto da sua coragem


Com estas duas virtudes, um guerreiro não tem idade.

"Estes versos ", escreveu Madame Campan, " eram aplaudidos e conti­
nuamente pedidos no Théâtre -Français . . . não havia nenhum lugar onde
a aj uda dada pelo governo francês à causa da independência americana
não fosse delirantemente aplaudida. "
A celebridade d e Lafayette é u m momento importante na cunhagem
de um novo patriotismo pois tornou autóctone e modernizou um género
que estivera limitado aos ideais clássicos e conferiu a esse mesmo patrio ­
tismo uma cor ideológica - ténue mas distinta. Seria ingénuo imaginar
que a popularidade teria bastado para empurrar a França para uma inter­
venção mais agressiva na guerra americana, não tivessem os ministros
Vergennes e Maurepas 12 decidido enveredar por essa via por motivos

" Vergennes era ministro dos Negócios E strangeiros, Maurepas era ministro de Estado e
principal conselheiro de Luís XVI. ( N. do T. )
33

totalmente desligados d a "Liberdade" ou de outras caprichosas noções


modernas. Mas como veremos, na França de Luís XVI, a segurança dos
cargos ministeriais e as políticas associadas aos próprios ministros já se
regiam por factores que se estendiam muito além de Versalhes. A campa­
nha orquestrada de vivas e aclamações que saudou o regresso de Lafayette
e a natureza sensacional dos seus feitos na América não prej udicou mini­
mamente todos aqueles que, no governo, estavam decididos a orientar a
política externa para uma guerra contra o Império B ritânico .
É claro que o responsável pela orquestração não foi Lafayette . A sua
fama e a do distante " Herói divino", Washington, foram iluminadas de
forma muito mais brilhante pela electricidade fenomenal gerada por
B enj amin Franklin. Por exemplo, foi Franklin quem transformou numa
grande oportunidade propagandística as instruções do C ongresso no sen­
tido de oferecer uma espada cerimonial a Lafayette como agradecimento
pelos seus serviços . B enj amin Franklin contratou os melhores artesãos de
Paris para fabricarem a espada, que tinha gravado no punho o lema aci­
dentalmente apropriado de Lafayette, " Cu r Non " ( "Porque Não? " ) . Mas
acrescentou-lhe a imagem de um crescente e o lema " Crescam ut Prosim"
( " Crescerei para Fazer o B em" ) , um artifício que associava automatica ­
mente a causa da América à felicidade da humanidade, um tema proe­
minente na propaganda diplomática de B enj amin Franklin . Na bainha,
viam-se medalhões alegóricos representando a França a esmagar o leão
britânico e a América a entregar uma coroa de louros a Lafayette, e cenas
dos combates do marquês. A espada foi oferecida a Lafayette em nome
do C ongresso pelo neto de B enj amin Franklin, no acampamento de Le
Havre, onde se encontrava a força expedicionária destinada a invadir a
Inglaterra . Lafayette esteve à altura da ocasião, expressando a esperança
de poder levar a espada "ao coração da própria Inglaterra " - uma espe­
rança que lhe seria negada pela incompetência da esquadra francesa e
pela imprevisível violência do tempo no C anal da Mancha .
Naturalmente, o episódio, carregado de tão grande eloquência simbólica,
foi amplamente publicitado pela imprensa francesa e a espada e as gra­
vuras que tinham dado origem aos seus desenhos foram reproduzidas
para consumo popular.
A própria popularidade de B enj amin Franklin era tão grande que não
parece deslocado classificá-la de mania . Acometido pela multidão onde
quer que fosse - e especialmente quando punha o pé fora de casa, em
Passy" - Benj amin Franklin era provavelmente mais conhecido do que o
rei e a sua imagem via-se em vidro gravado, porcelana pintada, tecidos
estampados, caixas de rapé e tinteiros, e nas produções mais previsíveis de
gravuras populares produzidas na Rue de Saint-Jacques, em Paris . Em

" Passy era uma aldeia nos arredores de Paris. ( N. do T. )


Simon Schama 1 CIDADÃOS

Junho de 1 779, B enj amin Franklin escreveu à filha que todos aqueles
retratos "tornaram o rosto de teu pai tão conhecido como o da Lua . . . dada
a quantidade de bonecos que fazem dele, pode -se afirmar com verdade que
ele é o 'abonecado' deste país " . Numa célebre ocasião, a fama de
Benj amin Franklin induziu mesmo o rei a um solitário acto de humor: na
sua tentativa de levar Diane de Polignac a deixar-se dos seus elogios diá­
rios ao Grande Homem, Luís mandou pintar a imagem de Benj amin
Franklin no fundo de um penico de S evres.
Naturalmente, Benj amin Franklin foi o criador da sua própria celebri­
dade e, por extensão, da causa dos Patriotas em ambos os lados do
Atlântico . C iente de que os Franceses idealizavam a América como um
lugar de inocência, franqueza e liberdade naturais, tirou deste estereótipo
tudo o que pôde. Não sendo o mais típico dos Quacres, B enj amin Franklin
também explorou a reputação ( semicompreendida ) de probidade e sim­
plicidade deste grupo para conquistar a simpatia dos sectores cultos da
sociedade francesa. E B enj amin Franklin sabia que a imagem do velhote
incorruptível e virtuoso caía muito bem precisamente porque punha
negativamente em destaque os aspectos mais rococós e sibaríticos do estilo
da corte - os quais, verdade sej a dita, já estavam de saída, empurrados
pelo estilo bastante mais sóbrio dos novos soberanos . Daí a sua adopção
do peculiar gorro de pele de castor, utilizado em muitos dos seus retratos
de propaganda e directamente derivado de imagens mais antigas de Jean­
-Jacques Rousseau . As desgrenhadas madeixas brancas de Benj amin
Franklin e o seu casaco castanho - ostentosamente discreto -, intencio­
nalmente usado nas audiências na corte, foram expressamente destinados
para consumo da opinião pública, no que alcançaram um êxito brilhante .
Madame Campan descreve - o ingenuamente a comparecer na corte "ves­
tido como um lavrador americano" mas sublinha o seu contraste com "os
casacos cheios de rendas e bordados e os cabelos empoados e perfumados
dos cortesãos de Versalhes " . O panegirista e cronista mercenário Hilliard
d' Auberteuil vai ainda mais longe, transformando praticamente Franklin
num fragmento da imaginação de Rousseau ou num dos "homens velhos
e bons " de um melodrama de Greuze: "Tudo anunciava nele a simplici­
dade e a inocência da moral primitiva . . . Ele mostrava à espantada multi­
dão uma cabeça digna do pincel de Guido [Reni] assente num corpo
erecto e vigoroso vestido no mais simples dos traj es . . . falava pouco . Sabia
ser deselegante sem ser rude e o seu orgulho parecia o da natureza . Uma
pessoa assim excitava a curiosidade de Paris. As pessoas j untavam-se
quando ele passava e diziam: ' Quem é este velho lavrador que tem um ar
tão nobre ? " '
Apelidado d e "Embaixador Eléctrico ", B enj amin Franklin também
estava perfeitamente a par da ânsia de conhecimentos científicos que se
apoderara da elite francesa e sabia muito bem como explorá-la. "Em
35

França, todos acreditam que foi a sua varinha eléctrica que realizou toda
esta revolução ", escreveu John Adams com algum azedume . E a ciência
de Benj amin Franklin tornou -se uma característica vital da sua atracção
porque parecia tanto obra do coração como da cabeça - era a sabedoria
moralizada. O seu Poor Richard 's Almanack foi traduzido com o título de
La Science du Bonhomme Richard e tornou -se um campeão de vendas em
1 77 8 . A sociedade parisiense tinha fome de conhecimentos científicos e
não faltavam cientistas amadores e profissionais, dos charlatães mais
implausíveis aos empiristas mais rigorosos, desej osos de publicitarem as
suas descobertas. Quase todas as edições do diário Journal de Paris conti­
nham inúmeros relatos de experiências realizadas nas províncias e na
capital, bem como anúncios de ciclos de palestras públicas conduzidas
pelas luminárias mais conhecidas, tais como Fourcroy e Pilâtre de Rozier.
Por conseguinte, a imagem de Benj amin Franklin, que conseguia ir bus­
car aos céus o fogo celestial da electricidade, uniu -se à celebração das
suas virtudes "americanas ", em especial a da liberdade . Turgot pode ter
criado o famoso epigrama Eripuit Coe/o Fulmen, Sceptrumque Tyrannis ( Ele
arrebatou o fogo aos céus e o ceptro aos tiranos ) como um inócuo j ogo
de palavras, mas a frase converteu-se rapidamente numa espécie de sinó ­
nimo do papel de B enj amin Franklin como arauto da liberdade.
Popularizado primeiramente num medalhão com o seu rosto e depois em
várias gravuras, este tema, com a sua habitual iconografia de raios e leões
britânicos vencidos, tornou-se um padrão para a porcelana pintada e os
tecidos estampados, mesmo os expostos em Versalhes. Tornado casual­
mente respeitável, o elo entre a queda dos tiranos e o fogo celestial tinha
implicações sombrias numa França absolutista porque sugeria inevitavel­
mente, numa veia romântica, que a liberdade era uma força natural e,
por conseguinte, irresistível, e contribuiu de forma acrescida para uma
crescente bipolaridade entre as coisas naturais ( " Humanidade " ,
" Liberdade " , " Patriotismo " ) e as coisas artificiais ( " Privilégio " ,
"D espotismo ", a corte ) . Não admira q u e esta equiparação d a liberdade a o
raio tenha sido prontamente sancionada n a Revolução . P o r exemplo, o
relato pictórico que Jacques-Louis David faz do Juramento da Sala do
Jogo da Péla, um raio carregado de liberdade eléctrica atinge Versalhes ao
mesmo tempo que uma grande raj ada de vento enche de ar fresco o
espaço cheio de gente .
Em certa medida, a paixão das elites pela causa americana surgiu
facilmente : era a novidade mais recente depois das novelas inglesas e da
ópera italiana . É difícil dizer se os belos têxteis manufacturados por Jean­
-Baptiste Huet em Joüy, em 1 784, celebrando a " Liberdade Americana" e
a "América Independente" com emblemas alegóricos e retratos de
Washington e B enj amin Franklin são prova da seriedade com que a revo­
lução foi vista ou se traduzem apenas uma moda de consumo . Quando
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Madame Campan descreve as trezentas damas mais deslumbrantes da


corte a serem seleccionadas para adornarem a venerável careca de
B enj amin Franklin com uma coroa de louros, a loucura pelos
"Insurrectos " parece reduzida ao nível de um concurso de beleza . Mas
existem outras indicações de um compromisso mais sério com a causa
americana transvazando muito para além de le monde da corte e das eli­
tes. Por exemplo, em Março de 1 7 8 3 , o Jou rnal de Paris publicitou um
conj unto de gravuras com comentários sobre as batalhas da guerra ame­
ricana pelo preço de apenas uma libra - um preço elevado para um ope­
rário mas perfeitamente ao alcance do grande público leitor pertencente
às pequenas profissões e ofícios. Em Marselha, as malfadadas associações
ao número 1 3 foram revogadas por um grupo de cidadãos que expressou
a sua solidariedade com as colónias insurgentes transformando o seu
número num fetiche. Neste grupo de treze, cada um usava um emblema
de uma das colónias e faziam piqueniques no dia treze de cada mês, nos
quais se bebia treze vezes à saúde dos Americanos. Numa actuação festiva,
no dia 1 3 de Dezembro de 1 778, Pidanzat de Mairobert ouviu um poema
heróico em treze estrofes, a décima terceira das quais reservada para um
panegírico a Lafayette .
As consequências do envolvimento francês na guerra revolucionária
foram profundamente subversivas e irreversíveis . Forrest Macdonald,
um historiador americano, tentou demonstrar uma elevada correlação
entre os veteranos franceses regressados à pátria e a eclosão da violência
rural em 1 7 8 9 . Investigações minuciosas e mais recentes lançam sérias
dúvidas sobre este fenómeno, embora existam efectivamente casos notá ­
veis de veteranos da América na crónica da Revolução, os mais famosos
dos quais são o tenente Elie e Louis La Reynie, ambos " conquistadores "
d a B astilha n o dia 1 4 de Julho. M a s a tese de uma causa "americana " da
Revolução Francesa não carece deste tipo de literalidade geográfica . Uma
abordagem mais qualitativa não pode deixar de registar a importância
extraordinária do namoro com a liberdade armada para um segmento da
aristocracia que era rico, poderoso e influente . S ozinhos, estes nobres
não poderiam ter constituído nenhuma espécie de oposição "revolucio ­
nária " independente à C oroa. C ontudo, quando a crise financeira da
monarquia se transformou num argumento político, o vocabulário da
"liberdade" adquiriu necessariamente uma vida própria e tornou-se dis­
ponível para aqueles que estavam preparados para fazer uma política de
apostas elevadas. Em 1 7 82, S égur, um desses nobres, antes de ingressar
no Exército francês, escreveu à mulher dizendo que " o poder arbitrário
é um peso enorme para mim. A liberdade pela qual vou combater ins­
pira -me o mais vivo entusiasmo e eu gostaria que o meu próprio país
gozasse de uma liberdade compatível com a nossa monarquia, a nossa
posição e os nossos costume s " . O facto de Ségur, pertencente ao escalão
37

mais alto d a nobreza, pressupor ingenuamente que tal transformação


seria compatível com a monarquia, poderá indiciar uma credulidade
míope mas também explica como é que muitos dos seus pares levaram a
sério a natureza exemplar da América sem lhes passar pela cabeça que
conduziria directamente a uma Ditadura da Virtude.
Em 1 78 3 , no meio da euforia que saudou um grande triunfo militar e
uma paz brilhante, 1• eram poucos os comentadores inclinados a deitar
água fria em cima da elação. Mais comummente, escritores como o abade
Gentil viram no exemplo americano um contributo reconfortante para a
" regeneração" da França ou mesmo do mundo inteiro. "É no coração
desta república recém-nascida que se encontram os verdadeiros tesouros
que enriquecerão o mundo ", escreveu o abade Gentil. Em 1 784, em
Toulouse, uma academia literária e de debate atribuiu como tema para um
concurso de ensaios a importância da Revolução Americana. O vencedor
foi um capitão de um regimento bretão, manifestamente um fervoroso
discípulo de Rousseau, que via a Revolução Americana como um exem­
plo de virtude e felicidade e um modelo a emular em França . Além disso,
muitos dos relatos de guerra, especialmente por comentadores que não
tinham sido testemunhas oculares, sublinhavam os aspectos que apresen­
tavam os Americanos como arautos de uma nova espécie de idade dou -
rada de amor e harmonia quase infantis . O abade Robin ( um membro
importante da Maçonaria ) , por exemplo, que escreveu extensamente
sobre a paisagem americana e os seus habitantes, observava que quando
os Americanos acampavam tocavam música .

Os oficiais e os soldados, os homens e as mulheres, j untam-se e dançam. É


o Festival da Igualdade . . . E sta gente ainda se encontra nos tempos felizes
em que as distinções de nascimento e de estatuto são ignoradas e vêem
com os mesmos olhos o soldado raso e o oficial.

Existiam, porém, alguns pessimistas que compensavam com a sua


inteligente presciente o que lhes faltava em número. Dizia-se que a rai­
nha tinha sérias reservas em relação ao entusiasmo com que a elite e a
populaça rej ubilavam com a humilhação de uma monarquia . E de forma
mais precisa, Turgot, o mais inteligente dos ministros de Luís XVI, opu ­
sera-se veementemente a uma intervenção activa na América, prevendo
que os seus custos seriam tão esmagadores que adiariam, talvez até para
sempre, qualquer tentativa de implementar as reformas necessárias em
França. Turgot chegou ao ponto de sugerir que o destino da monarquia

14 A vitória franco-americana de Yorktown, em 1 7 8 1 , pôs fim às operações militares em


território americano, mas o fim do conflito e a independência dos Estados Unidos só ficaram
consagrados no Tratado de Paris, assinado em 1 78 3 . ( N. do T. )
Simon Schama 1 CIDADÃOS

poderia depender dessa fatídica decisão, mas perdeu o debate para o


ministro dos Negócios E strangeiros, o poderosíssimo Vergennes, para
quem a oportunidade de embaraçar a C oroa britânica na América era boa
de mais para ser desperdiçada. Vergennes não era um belicista . Era um
diplomata com uma longa carreira e acreditava firmemente num conceito
vigente no século XVIII, o do "equilíbrio de poder" . C ontudo, no segui­
mento da unilateral e desastrosa Guerra dos Sete Anos, Vergennes chegou
à justificada conclusão de que a Grã-Bretanha era uma potência imperial
insaciavelmente agressiva, e que para conter os B ritânicos na linha defi­
nida no Tratado de Paris, em 1 7 6 3 , 15 seria necessário um castigo salutar.
Aliado à " coroa familiar" dos B o mbons espanhóis e à República
Holandesa, Vergennes concebeu uma política externa destinada a apre ­
sentar a Grã-B retanha como agressora e a C oligação como intervindo ape ­
nas para preservar a independência j ustamente declarada pelos
Americanos. As razões pelas quais Vergennes levou a França a atravessar
o Atlântico/Rubicão foram, pois, totalmente pragmáticas e, tal como ele
supunha, isentas de riscos ideológicos. Nada estaria mais longe do seu
pensamento do que a promoção de uma vaga mensagem de "liberdade " .
Afinal d e contas, e m 1 7 82, Vergennes interveio militarmente d o lado da
reacção nos assuntos da República de Genebra, estrategicamente impor­
tante, onde o patriciado governante fora derrubado por uma coligação
democrática de cidadãos e operários. E tal como Vergennes explicou, o seu
raciocínio nos casos genebrino e americano foi pragmaticamente o
mesmo :

Os insurrectos que vou expulsar de Genebra são agentes da Inglaterra,


enquanto os insurrectos americanos são amigos para muitos anos. Lidei
com ambos, não por causa dos seus sistemas políticos mas por causa das
suas atitudes em relação à França . São estas as minhas razões de Estado.

E, na verdade, em 1 7 78, quando foi tomada a decisão crucial de con­


cluir um tratado com a América, ou até em 1 78 3 , quando foi assinado o
Tratado de Fontainebleau, a visão optimista de Vergennes em relação à
guerra pareceu j ustificada. Não obstante a quantidade de tinta vermelha
nos livros de contabilidade do governo, ninguém se atreveu a sugerir
que a política americana tinha sido, em termos fiscais ou políticos, um
erro tremendo . A França era uma grande potência e tinha feito, de
forma bastante brilhante, o que faziam as grandes potências para man­
terem a sua proeminência no mundo e conterem a concorrência .
Afigurava-se possível que o tesouro britânico estivesse com problemas
tão graves como o francês e que a política britânica estivesse ainda mais

" O tratado que pôs fim à Guerra dos Sete Anos. ( N. do T )


39

desorganizada. As Índias O cidentais Francesas transferiam para a pátria


muito dinheiro proveniente da economia do açúcar e os êxitos da esqua ­
dra de Suffren no Sul da Índia deixavam entender que até ali as perspec­
tivas de recuperação económica eram mais brilhantes . Nas palavras da
viscondessa de Fars-Fausselandry: "A causa americana parecia ser a nossa
causa; tínhamos orgulho das suas vitórias, chorávamos com as suas der­
rotas, arrancávamos os boletins e líamo-los em casa . Nenhum de nós
reflectiu sobre o perigo que o Novo Mundo poderia ser para o Velho . " Ou,
nas palavras de outro "insurrecto " francês, o conde de Ségur, "caminhá ­
vamos alegremente sobre um tapete de flores sem imaginarmos o abismo
que estava por baixo" .
2

Horizontes Azuis e Tinta Vermelha

I LE S B EAUX JOURS

Como toda a sua geração, Luís XVI foi criado para a busca da felici­
dade. O avô, Luís XV, redesenhara Versalhes com a felicidade por obj ec­
tivo e tivera uma aptidão natural para usufruir dela. Mas a felicidade não
foi fácil de alcançar para o seu j ovem sucessor, e o facto de ser rei de
França pô-la praticamente fora do seu alcance . Progressivamente prisio ­
neiro da ansiedade, Luís XVI recordar- se-ia de apenas duas ocasiões em
que ser rei o tinha feito feliz. A primeira foi a sua coroação, em Junho de
1 77 5 ; a segunda, a sua visita a Cherburgo, em Junho de 1 78 6 . Na pri­
meira ocasião, envolveu -se no manto dos arcanos mistérios régios; na
segunda, revelou - se como um homem moderno - cientista, marinheiro e
engenheiro . Para os observadores presentes em ambas as ocasiões, os
paradoxos da personalidade do soberano foram motivo de comentários ou
talvez mesmo de preocupação, mas a inocência de Luís XVI nunca o dei­
xou aperceber-se dos problemas. Se a sua autoridade devia tudo ao pas­
sado, o seu forte sentido do dever apontava -o firmemente para o futuro.
A Revolução iria representar esta qualidade típica de Jano como traição e
não como indecisão . Mas foi unicamente a equiparação que fez do
passado -futuro à traição-patriotismo que colocou o rei no dilema que
determinaria o fim do seu reinado e da sua vida. Luís XVI iniciou o seu
reinado em 1 774, com enormes expectativas, que tiveram eco por toda a
França, de que o futuro seria abençoado com uma nova Idade de Ouro.
O símbolo dessas esperanças era o Sol. Na coroação, em Reims,
quando Luís tinha vinte anos de idade, o s raios de Sol - que evocavam
obviamente o apogeu da monarquia com Luís XIV - decoravam todas as
colunas e arcos triunfais erguidos para a cerimónia . E o tema da renova­
ção estava evocado no pedestal de uma estátua que representava a
Justiça, com uma inscrição que proclamava o alvorecer de les beaux jours.
Mas a coroação não foi motivo de regozij o generalizado. As tênsões entre
o passado e o futuro estavam presentes nas preocupações em relação ao
presente, até porque, enquanto as cerimónias estavam a ser organizadas,
a França era palco de um dos mais graves motins dos cereais em anos.
41

Dadas as circunstâncias, o controlador-geral, 1 Turgot, instou o rei a dar


um exemplo de modéstia simplificando os ritos e coroando-se em Paris
em vez de em Reims. Em privado, Turgot expressou a opinião de que "de
todas as despesas inúteis, a mais inútil e a mais ridícula era a da sagração".
Mas se tinha de haver uma coroação, argumentou Turgot, seria preferível
que fosse na presença dos parisienses, cuj os sentimentos monárquicos
bem precisavam de ser cultivados. Os estrangeiros seriam impressionados,
a multidão seria entretida e a conta ficaria muito abaixo dos sete milhões
de libras estimados para Reims.
Mas o rei foi peremptório. Talvez influenciado pelo zelo do confessor
da corte, o abade de B eauvais, e pelo arcebispo de Paris, desej oso de que
as cerimónias não tivessem lugar em Notre D ame mas sim em Reims, o
soberano insistiu nas formas tradicionais, incluindo o juramento de
"extirpar os hereges", que parecia gratuitamente ofensivo para as sensibi­
lidades tolerantes da década de 70 do século XVIII. O facto de depois de
fazer este j uramento ter promovido a emancipação dos protestantes e
apoiado a sua promulgação com a sua autoridade pessoal, em 1 787, é sin­
tomático da dupla personalidade de Luís XVI.
Seria um erro partir do princípio de que foi a piedade reaccionária ou
um capricho dinástico que levou Luís XVI a adoptar com tanto fervor a
panóplia medieval da sua coroação. É muito mais provável que, pelo
menos intuitivamente, comungasse da visão bastante progressista de
Martin de Morizot, um j ovem advogado e panfletista loreno, que via a
sagração como uma forma de "eleição nacional", uma aliança matrimo­
nial entre o príncipe e o seu povo. Nesta perspectiva, o espectáculo deve ­
ria ser mais próximo do matrimónio entre Veneza e o mar realizado
anualmente pelo doge e que simbolizava o bem comum, ao invés de um
ritual ou manifestação imponente. E houve efectivamente alguns gestos
rituais - a libertação de prisioneiros por clemência real; a cerimónia pecu ­
liar do toque dos escrofulosos para comemorar o poder taumatúrgico das
mãos do soberano - que testemunharam estas boas intenções. No
entanto, tal como aconteceria em muitas ocasiões futuras, Luís XVI per­
mitiu a intervenção de indivíduos menos sensíveis à opinião pública do
que ele, com resultados infelizes para a sua reputação. No caso vertente,
o clero responsável pela organização da cerimónia alterou de forma sig­
nificativa o elemento preciso que poderia ser interpretado como símbolo
da relação entre príncipe e povo. Antes dos Bombons, existira um
momento, depois do primeiro juramento, em que o povo era convidado
a dar mostras da sua anuência com a aclamação Oui. D esde Henrique IV,
este acto fora substituído por um superficial "consentimento tácito", mas

' No Antigo Regime, o "contrô/eur général des finances", quase sempre ministro de Estado,
era responsável pelas finanças, pela agricultura, pela indústria, pelo comércio, pelas pontes
,
e calçadas e por parte da administração interna. (N. do T. )
Simon Schama 1 CIDADÃOS

na coroação de Luís XVI o apelo formal ao povo foi pura e simplesmente


omitido. Este gesto sem tacto não passou despercebido, principalmente à
imprensa clandestina, que afirmou que fora causa de grande "indignação"
entre os verdadeiros patriotas.
Por conseguinte, a grande ocasião que pretendia ser um substituto da
farinha e dos motins dos cereais acabou por não agradar praticamente a
ninguém. Os operários e artesãos locais ficaram aborrecidos porque os
arcos triunfais e a longa galeria com arcadas que conduzia ao átrio da
catedral foram construídos por carpinteiros e decoradores vindos de Paris.
Houve muitas queixas a propósito do apartamento que teve de ser cons­
truído para a rainha, dotado de retretes inglesas . As famílias camponesas
da região ficaram furiosas com o recrutamento forçado dos seus homens
e rapazes para a reconstrução da porta da cidade, em Soissons, para per­
mitir a passagem do coche da coroação, numa altura em que eram urgen­
temente necessários nos campos. Os comerciantes ficaram descontentes
porque foram poucos os estrangeiros que se deslocaram para assistir às
cerimónias e gastar dinheiro . Além disso, era embaraçosa a grande quan­
tidade de camas disponível nas estalagens em redor de Reims, pois até a
nobreza rural do Norte e Leste da França, que se contava que aparecesse
em grande número, foi dissuadida pelos preços proibitivos exigidos pelos
estalaj adeiros locais.
Para os reformadores como Turgot, o evento foi um entretenimento
dispendioso e mal gerido que privilegiou anacronismos ridículos como o
recipiente com óleo sagrado alegadamente trazido ao rei C lóvis por uma
pomba enviada por Deus. Para os tradicionalistas como o duque de C roy,
o espectáculo foi algo vulgar. Os aplausos que saudaram o rei e a rainha,
comentou ele, resultavam do hábito novo e indesej ável de os aclamar em
espectáculos de teatro . Todo o evento foi transformado numa ópera. Mas,
como uma ópera, teve o poder de comover os espectadores . O j ovem
Talleyrand, vendo o pai ataviar-se com o seu chapéu ornado com uma
grande pluma preta, observou como a vaidade e a paixão se combinaram
para gerar um fervor irracional . Quando a massa popular foi admitida na
catedral e se ouviu o Te Deum, viu lágrimas de alegria escorrerem pelo
rosto do adolescente - rei enquanto a j ovem rainha, emocionada, se dirigia
para a saída .
Se Luís tinha dado início ao seu reinado com uma grande fanfarra de
celebração arcaica, iria continuá-lo numa veia oposta, a da rectidão
sóbria . Nada lhe dava mais prazer do que a mecânica e ele, na medida
do possível, decidiu viver num mundo de números e não de palavras, de
listagens e não de discursos. Tudo o que prezava era compulsivamente
enumerado : os 1 2 8 cavalos que tinha montado, as 8 5 2 viagens que
tinha realizado entre 1 7 5 6 e 1 7 6 9 . ( E sta lista parece indicar uma exis­
tência bastante nómada, todavia, a maioria destas " voyages" consistia em
43

idas e vindas na área circunscrita da Ilha de França, onde se localizava a


maioria dos palácios e pavilhões de caça. No entanto, Luís tomou fiel­
mente nota de cada deslocação entediante entre Versalhes e Marly [seis
vezes] , Versalhes e Fontainebleau [seis vezes] , etc. ) Até o passatempo que
praticava com enorme entusiasmo, a caça, era reduzida a listas de animais
abatidos. Por conseguinte, em Julho de 1 789, o mês em que a monarquia
entrou em colapso, sabemos mais sobre as suas presas diárias do que sobre
os seus pensamentos acerca dos acontecimentos políticos em Paris.
Mas tal como observa François B luche, o vício da caça de Luís XVI não
tinha nada de trivial. Era um teatro no qual ele inegavelmente brilhava
e em que desempenhava às mil maravilhas o papel de rei equestre, che­
valier et imperator, guerreiro da floresta. Montado em cima de um cavalo,
ele dava mostras de coragem e até de graça, qualidades muito prezadas
no século XVIII e que os contemporâneos lhe viam dramaticamente
ausentes nas suas outras aparições públicas. Mas existia outro mundo no
qual este homem fisicamente estranho florescia : o seu estúdio privado,
pej ado de instrumentos matemáticos, mapas e cartas náuticas coloridos à
mão, telescópios, sextantes e fechaduras que ele próprio desenhava e
fabricava. A luta para fabricar a fechadura perfeita era um símbolo de
aptidão sublime para um monarca que nunca conseguia dar a volta às
coisas como queria. Mas nos seus appartements privés, envergando a sua
sóbria sobrecasaca, Luís XVI movia -se silenciosamente no meio de lentes
polidas, esferas armilares, planetários e latão polido com toda a liberdade
e poder de um mago.
Se havia lugar onde todos estes talentos se podiam reunir, era no
mundo da náutica. Tal como o pai e o avô, Luís brincara com miniaturas
de galeões e barcas no lago conhecido por " la petite Venise", em Versalhes .
O seu tutor, Nicolas-Marie Ozanne, ensinara desenho naval aos cadetes de
B rest e transmitira ao seu ávido discípulo conhecimentos náuticos e a pai­
xão pelo mar. Luís tornou-se um especialista apaixonado e enciclopédico
em toda a espécie de assuntos navais - desenho de navios, artilharia
naval, doenças dos marinheiros e suas curas, velames, movimento das
marés, cálculo de lastros e cargas, manobras e sinais com bandeiras - e até
insistiu em implementar e aj udou a desenhar uniformes que aboliriam a
antiga distinção entre oficiais nobres e plebeus. A viagem de La Pérouse
aos antípodas foi planeada entre o explorador e o rei, que foi traçando a
sua progressão em cartas especiais até chegar à dolorosa conclusão de que
o navio soçobrara algures no Pacífico australiano. Luís XVI não precisava
que ninguém lhe dissesse que a única maneira de recuperar o poderio
colonial perdido pelo avô na Guerra dos Sete Anos era embarcando num
programa radical de construção naval . Por conseguinte, teve o cuidado de
confiar a direcção da Marinha aos homens mais dotados e capazes : pri­
meiro, o próprio Turgot, de seguida, o brilhante Sartine, o qual, mais do
Simon Schama 1 CIDADÃOS

que qualquer outro, transformou a marinha em igual da sua homóloga


britânica, e depois da sua queda, De Castries, quase tão visionário como o
seu antecessor ( mas talvez menos responsável fiscalmente ) . Quer para o
rei, quer para os seus ministros, o futuro da França imperial era a
Marinha, o horizonte azul de um grande império atlântico ou talvez
mesmo oriental.
Não causa, pois, admiração descobrir que a seguir à coroação, o evento
do seu reinado que Luís XVI recordava com maior satisfação era a sua
visita ao novo porto militar de C herburgo, na península normanda do
C otentin. Apontados directamente à costa sul de Inglaterra, um novo
porto e novas fortificações em Cherburgo seriam de grande significado
para o amor-próprio patriótico francês e para a estratégia prática. Em
1 7 5 9, o porto fora suj eito a uma incursão e ocupação britânicas lideradas
pelo capitão William B ligh, um evento que, j untamente com uma cláu ­
sula secreta2 q u e proibia a construção d e obras navais e m Dunquerque ( e
impunha inspecções britânicas a o local ) , representava uma enorme humi­
lhação. Empenhado numa política de desafio aos B ritânicos na América,
Vergennes correra com a presença britânica de D unquerque, um evento
descrito como gerador de "grande regozij o nacional" . Mas a vulnerabili­
dade dos portos do Canal da Mancha continuava a influir nos ambiciosos
planos de invasão franceses, frustrados em 1 779 ( como tantas outras
vezes antes e depois) pelo persistente mau tempo. Um porto novo e pode­
rosamente fortificado garantiria o abrigo necessário às esquadras france ­
sas em apuros sem a necessidade de se abandonar por completo as
expedições. Por conseguinte, as notícias da transformação de Cherburgo
foram recebidas com considerável ansiedade e irritação em Westminster.
Com ventos favoráveis, Portsmouth ficava apenas a três ou quatro horas.
Quando Luís XVI iniciou o seu reinado, em 1 774, Cherburgo pouco
mais era do que uma lamacenta vila piscatória de cerca de seis mil almas
que viviam uma existência de ventosa monotonia no meio dos escombros
da destruição infligida pela Marinha Real britânica. Quando se deu a
Revolução, a população já tinha quase duplicado e, mais importante
ainda, Cherburgo era sede de uma formidável concentração de capital,
mão -de-obra e engenharia aplicada . A nova Cherburgo era, pelo menos
para o rei e para o seu engenheiro - chefe, De Cessart, o símbolo de uma
França renascida à luz da ciência aplicada e do vigor marítimo. O proj ecto
de criação do porto foi monumental na sua concepção e execução. Numa
época em que estavam na moda os quadros e as gravuras representando
os colossos da Antiguidade, o projecto deve ter parecido simultaneamente
antigo na grandiosidade e futurista na imaginação. De B retonniere, o mais
modesto dos dois engenheiros, propôs a construção de um grande molhe

' Do Tratado de Paris de 1 7 6 3 , que pôs fim à Guerra dos Sete Anos. (N. do T )
45

ou dique atrás do qual seria criado o porto, mas foi o esquema espectacu ­
lar e improvável de De Cessart que agradou ao recém-nomeado coman­
dante de Cherburgo, um oficial de carreira chamado C harles -François
Dumouriez, recém-chegado da conquista da Córsega, e que apelou à ima­
ginação vagabunda do rei e do seu ministro da Marinha, De Castries .
O plano d e De Cessart contemplava a construção d e enormes cofres de
carvalho, com a forma de um cone invertido, os quais, estabilizados com
um lastro de pedras, constituiriam uma espécie de barreira de correntes nos
ancoradouros. O espaço delimitado por esta barreira formaria o porto. Cada
cone tinha uma base com um diâmetro de quarenta e sete metros e erguia­
-se quase dois metros acima da linha de água, sendo o topo chato; a cons­
trução de cada uma destas estruturas exigia 566 metros cúbicos de madeira,
e depois de cheia com o lastro pesava 48 000 toneladas. Não foi fácil mani­
pular este monstros. Tiveram de ser rebocados da costa até ao ponto de
ancoragem, com o lastro suficiente para evitar que se virassem ao contrário.
De seguida, foram enchidos com a pedra restante através de trinta abertu­
ras laterais. Depois de submersos pela acção do peso, a parte de cima foi
coberta com cimento de modo a constituir uma espécie de plataforma.
O plano original de De Cessart previa nada menos de noventa e um destes
extraordinários objectos. Era um esquema suficientemente lunático para
agradar a uma cultura embeiçada com as mais loucas pretensões da ciência.
Depois da electricidade de B enjamin Franklin - o raio patriótico -, tudo era
possível. Os homens subiam aos céus de Versalhes em balões cheios de gás
ou sentavam-se em banheiras de cobre para experimentarem o poder tera­
pêutico do magnetismo animal. Neste clima de delírio científico, a cordi­
lheira subaquática de De Cessart deve ter parecido quase modesta.
O primeiro cone foi submergido com êxito em Junho de 1 784, na pre ­
sença do ministro da Marinha, De Castries . Animado pelo avançar do pro ­
jecto, o rei enviou o seu irmão mais novo, Artois, para assistir à
submersão do oitavo cone, em Maio de 1 786, e foi o seu relato entusias­
mado que decidiu Luís XVI a empreender uma invulgar deslocação a
Cherburgo para inspeccionar os trabalhos em primeira mão. Foi uma ati­
tude extraordinária. Desde a fase inicial do reinado de Luís XIV, os
Bombons tinham abandonado toda a espécie de "progressos" pela França
e sedentarizado a monarquia na enorme corte- caserna de Versalhes. Era
a França - ou a parte dela que "contava" - que ia ter com o soberano e
não o contrário . Por conseguinte, como observaria secamente Napoleão,
quando Luís XVI anunciou a sua intenção de se deslocar à Normandia,
"foi um grande acontecimento " .
N o dia 2 1 d e Junho, com o que passava por u m séquito modesto de
cinquenta e seis pessoas, o rei e a rainha partiram de Versalhes com des ­
tino à costa oeste da Normandia. O monarca mandara fazer para a ocasião
um casaco vermelho bordado com flores-de-lis douradas, mas pretendia
Simon Schama 1 CIDADÃOS

manifestamente apresentar-se ao povo sob uma forma mais familiar e


menos régia, como o bon pere du peuple que fora o epíteto de Luís XII. No
Château d'Harcourt, residência do governador da Normandia, onde passou
a noite, o rei perdoou a seis desertores da Marinha que tinham sido con­
denados à morte pelo tribunal de Caen; nesta cidade, as ruas encheram-se
de multidões entusiasmadas e o presidente da C âmara ofereceu-lhe as cha­
ves da urbe sob um arco triunfal ornamentado com flores. Luís XVI che­
gou a Cherburgo no dia 2 3 . Impaciente para ver os trabalhos no porto, o
rei disse a missa às três da manhã e depois foi levado numa barcaça impe­
lida por vinte remadores de vermelho e branco até ao local de afunda­
mento do nono cone . Entretanto, o cone era rebocado para o lugar que lhe
fora atribuído e, passadas duas horas estava estabilizado. Abriram-se as
portinholas e a pedra foi carregada até o rei ordenar a submersão da estru ­
tura, que levou exactamente vinte e oito minutos ( o que ficou obviamente
registado no diário real ) . No momento do afundamento, um dos cabos de
um dos cofres que estabilizavam o cone retesou -se e atirou com três
homens à água, um dos quais se afogou de imediato. No meio das ovações
e das saudações navais que assinalavam a submersão, ninguém deu pelos
seus gritos mas o rei, que observava o acontecimento da plataforma do
cone mais próximo, através de um telescópio, viu tudo o que se passou.
Chocado com o acidente, ofereceu uma pensão à viúva .
Mas era preciso mais do que uma morte acidental para refrear o entu ­
siasmo da ocasião. Ao som dos aplausos, a comitiva real sentou -se para
degustar uma colação fria que lhe fora preparada debaixo de uma tenda
montada em cima de um dos cones - a magnificência e o absurdo nunca
tinham estado tão intimamente associados .
O resto d a visita foi ocupado pelo soberano a passar a esquadra e m
revista e a observar as manobras navais q u e só no s e u reinado se tinham
convertido numa prática corrente, culminando num j antar a bordo de um
vaso de guerra de nome significativo, o Patriote. O rei dirigia -se aos oficiais
e marinheiros com uma familiaridade descontraída, muito no estilo da
realeza britânica do século XX, conhecedora, como era seu dever, dos por­
menores da tecnologia . Mas tudo aquilo era claramente tanto um prazer
como um dever para o rei, e as Mémoires Secretes, por norma ofensiva­
mente críticas, relataram que nesta deslocação

o rei conhece na perfeição tudo o que diz respeito à Marinha e parece fami ­
liarizado com a construção, o equipamento e as manobras dos navios . É
óbvio que esta linguagem bárbara não é nada de novo para ele; fala como
um marinheiro .

Na verdade, o sentido de humor do rei, que era notoriamente vulgar e


horrorizava a corte e o monde parisiense (gostava particularmente de ligar
47

as fontes de Versalhes para molhar os transeunte s ) , adequava-se às mil


maravilhas aos veteranos marinheiros de Cherburgo . Quando a sua
comitiva desatou a vomitar no convés do Patriote por causa da ondula ­
ção, Luís XVI desatou às gargalhadas. Na viagem de regresso, durante
uma travessia agitada do estuário do Sena, entre Honfleur e Le Havre, o
capitão da embarcação praguej ou alto e bom som ao calcular mal uma
manobra, mas recompôs-se de imediato e pediu muitas desculpas ao rei .
" Não há nada por q u e pedir desculpa", retorquiu Luís . " É a linguagem d o
vosso ofício, eu teria dito o mesmo - p e l o menos . "
A visita foi, para todos o s envolvidos - excepto talvez para o s cortesãos
enj oados - um êxito brilhante, um triunfo proclamado em gravuras e
estampas populares e na habitual torrente de versos extáticos. Mas as
multidões que tinham tido a rara oportunidade de ver o rei pareciam
genuinamente afectuosas e Luís respondeu-lhes com uma afabilidade
natural, uma qualidade que o abandonaria totalmente nos dias críticos de
1 78 9 . Aos gritos de " Vive le roi!" nas ruas de C herburgo, Luís retorquiu,
sem ser instado a fazê -lo, " Vive mon peuple!" . Em 1 786, soou benévolo e
espontâneo - e foi. Em 1 789, soaria forçado e defensivo - e foi.
Mas a história dos beauxjours passados no C ontentin tem uma nota de
rodapé importante . É verdade que mostraram a monarquia no seu
melhor - familiar, encantadora, enérgica, patriótica: um monarca para
cidadãos e não para súbditos -, mas esta esplêndida impressão teve um
preço. O grande proj ecto do porto de C herburgo foi, na realidade, uma
fantasia dispendiosa ou mesmo um fiasco ruinoso. As despesas com os
cones subiram de forma alarmante ao tornar- se óbvio que não se pode ­
riam continuar a gastar indefinidamente tempo e dinheiro na sua cons ­
trução e imersão. O número projectado baixou de noventa para sessenta
e quatro. A distância entre os cones aumentou proporcionalmente, as
correntes entortaram-se, alguns cones caíram em cima de outros e o mar
destruiu vários cofres. Os cones que escaparam foram atacados por tere ­
dos vorazes que os deixaram tão esburacados que alguns pareciam enor­
mes coadores de madeira com pedras a sair pelos buracos. Além do mais,
ao tornar- se evidente que os cones só podiam ser colocados durante dois
ou três meses do ano, calculou-se que seriam necessários dezoito anos
para concluir os trabalhos.
Foi, pois, com alguma tristeza que, em 1 788, se desistiu da colocação
dos cones, e um ano depois o proj ecto foi suspenso e substituído pelos pla­
nos de construção do modesto dique. Entre 1 784, quando foi afundado o
primeiro cone, e Dezembro de 1 789, ano do seu cancelamento, o proj ecto
consumiu nada menos que vinte e oito milhões de libras francesas, uma
soma fenomenal. Foi, em todos os aspectos, a "iniciativa de defesa estra­
tégica " da época, e traduziu-se num fracasso dispendioso e ridículo. Em
1 800, ainda a pensar no inóspito Canal, quando os engenheiros do
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Primeiro C ônsul visitaram o porto de Cherburgo, encontraram apenas um


cone a balouçar acima da superfície. Era o nono, o cone real. Tinha sobre­
vivido sete anos ao rei náutico que erguera ao seu lado um copo de vinho
tinto para lhe desej ar uma longa vida .

II UM MAR DE D ÍVIDAS

Numa manhã quente de 1 78 3 , no porto atlântico de B rest, René de


Chateaubriand teve uma visão . Apesar de, como diria mais tarde, já se
considerar um j ovem romântico, não estava preparado para o tipo de
exaltação que sentiu ao ver a Marinha de Luís XVI regressando ao porto .

Um dia, optei por passear até à outra extremidade do porto, do lado do


mar. Fazia calor e eu deitei-me à beira -mar e adormeci. D e súbito, fui acor­
dado por um som magnífico; abri os olhos como Augusto, quando viu as
trirremes surgir no ancoradouro siciliano depois da vitória de Sexto
Pompeio. O s canhões disparavam sem cessar; o porto estava pej ado de
navios: a grande esquadra francesa regressava após a assinatura da paz [de
Versalhes] . Os navios manobravam com todo o pano, cintilando com fogo
e luz, decorados com bandeiras, mostrando a proa, a popa e os bordos,
parando e ancorando a meio do traj ecto ou continuando a cavalgar as
onda s . Nenhuma outra coisa me deu uma ideia mais elevada do espírito
humano . . .

Para muitos dos contemporâneos de Chateaubriand, o êxito das armas


francesas nos oceanos Atlântico e Í ndico ( Suffren' era o maior de todos os
heróis) foi electrizante . Em 1 78 5 , por exemplo, os E stados da B retanha
( que não gozavam das melhores relações com os B ombons ) votaram a
construção de uma estátua a Luís XVI para glorificarem o seu papel na
restauração do brio e do valor da Marinha, e foi decidido colocá-la ao lado
da colina do Château de B rest para que, qual C olosso de Rodes, pudesse
ser vista por todos os navios que entrassem no grande porto .
Mas o prazer de assistir à confusão imperial britânica e à tardia vingança
das derrotas da Guerra dos Sete Anos teve um preço elevado. Num só ano
- 1 78 1 , o ano de Yorktown• - a França gastou 227 milhões de libras fran­
cesas na campanha americana, dos quais 1 47 milhões foram para a
Marinha. Esta soma era quase o quíntuplo do montante atribuído normal­
mente à Marinha em tempo de paz, mesmo depois da sua reconstrução por

' Almirante Pierre André de Suffren de Saint Tropez ( 1 72 9 - 1 7 8 8 ) , considerado o melhor


comandante naval francês do século XVIII . ( N. do T. )
' A última e decisiva batalha da Guerra d a Independência Americana. A capitulação das suas
forças levou o governo britânico a negociar o fim do conflito. (N. do T. )
49

Luís XVI. As forças navais francesas estavam incumbidas de quatro mis­


sões igualmente difíceis. Primeira : transportar tropas para a América e
mantê -las aprovisionadas. Segunda : evitar toda e qualquer tentativa de
reforço por parte dos B ritânicos, se necessário procurando agressivamente
o combate . Terceira : proteger as principais instalações navais domésticas
( uma lição aprendida na anterior guerra global) . Quarta: Vergennes e os
seus ministros da Marinha contavam encurtar a guerra ameaçando ou
levando a cabo uma invasão da Grã-Bretanha em 1 77 9 . Foi a ausência de
sucesso decisivo das esquadras francesas no cumprimento destas missões
que aumentou a duração e o custo da guerra . D epois da desastrosa
Batalha dos Santos,' foi necessário apelar apressadamente a uma "subs­
crição patriótica" para reequipar a Marinha e, tal como acontecera em
1 762, várias entidades públicas e privadas deram o seu contributo.
A C âmara de C omércio de Marselha contribuiu com mais de um milhão
de libras francesas para a construção de um formidável navio de linha de
setenta e quatro canhões, o qual, num gesto de gratidão, foi baptizado Le
Commerce de Marseille. O ardor patriótico dos autarcas e burgueses deste
porto do Midi era de tal ordem que contribuíram com 3 1 2 4 1 4 libras fran­
cesas adicionais para apoiar as famílias de marinheiros mortos em com­
bate. Seguiram-se outras instituições, como os E stados da Borgonha e da
B retanha, e até a abominada companhia privada de cobrança de impostos
Ferme - Général e, cuj o navio foi baptizado com despudor La Ferme. Mas
era tão impossível travar uma guerra à custa de doações patrióticas na
década de 80 do século XVIII como em qualquer outra altura antes ou
depois, e os controladores-gerais de Luís XVI tiveram de se virar para o
mercado de crédito - muito menos altruísta - para satisfazerem as suas
obrigações militares. Enquanto a anterior guerra naval fora financiada
com empréstimos mas também com novos impostos directos incidindo
temporariamente sobre todas as classes da população, 9 1 % dos dinheiros
necessários para a guerra americana provieram de empréstimos .
A s melhores estimativas dos custos d a aliança com a América, d e 1 776
a 1 7 8 3 , nas suas formas sub- reptícia e abertamente militar, atingiram 1 , 3
mil milhões d e libras, sem contar com o pagamento dos j uros das dívidas
contraídas pelo governo para o efeito . Pode, pois, afirmar-se sem grande
exagero que os custos da política estratégica global de Vergennes provo­
caram a crise terminal da monarquia francesa. A prossecução de uma
política "avançada" no Atlântico e no Índico não deveria ser à custa do
papel tradicional da França como garante do equilíbrio de poder na
Europa, pelo que a manutenção ·da "velha" diplomacia continuava a
requerer um exército de pelo menos 1 5 0 000 homens. Nenhuma outra
potência europeia tentou sustentar em simultâneo um grande exército

' Em Abril de 1 78 2 . (N. do T )


Simon Schama 1 CIDADÃOS

continental e uma marinha transcontinental. ( E , provavelmente,


nenhuma o tentou sem custos a longo prazo e debilitadores para a sua
estabilidade financeira . ) Mais do que qualquer desigualdade numa socie ­
dade baseada nos privilégios ou mais do que as violentas fomes cíclicas
que assolaram a França na década de 80 do século XVIII, a Revolução foi
provocada por estas decisões de E stado .
As causas da Revolução Francesa são complexas, as causas da queda da
monarquia não . E stes dois fenómenos não são idênticos, dado que o fim
do absolutismo em França não implicava, por si só, uma revolução de
tamanho poder transformador como a que se veio a verificar. Mas o fim
do Antigo Regime era a condição necessária para o início de um novo
regime e foi provocado, em primeira instância, por uma crise de tesoura­
ria . Foi a politização da crise financeira que ditou a convocação dos
Estados Gerais .
Justiça lhes sej a feita, os ministros de Luís XVI viram-se dolorosamente
empalados nos cornos de um dilema . Era absolutamente razoável que
pretendessem restaurar a posição da França no Atlântico, pois considera­
vam - e bem - que era nas ilhas açucareiras das Caraíbas e nos mercados
potenciais das colónias anglófonas que estavam a ser feitas as maiores for­
tunas. Neste sentido, uma estratégia económica prudente impunha uma
política de intervenção ao lado dos Americanos. Mas durante a guerra e
depois da paz de 1 78 3 , as declarações oficiais pintaram essa intervenção
como destinada não à anexação imperialista de territórios mas à defesa do
comércio livre . É nesta roupagem de protector da livre navegação que
Luís XVI surge na maioria das gravuras comemorativas . Não há dúvida de
que estes obj ectivos foram alcançados a curto prazo : o comércio entre
Nantes e B ordéus e as Índias Ocidentais Francesas atingiu uma prosperi­
dade inaudita na década anterior à Revolução. Neste sentido, o investi­
mento militar nos despojos do império rendeu excelentes dividendos .
A s consequências financeiras desta mesma política tornaram, contudo,
a vitória pírrica. O aumento exponencial do défice enfraqueceu de tal
modo os nerfs , os tendões - do Estado que em 1 787 a sua política externa
-

ficou sem liberdade de acção. De facto, nesse ano, as dificuldades financei­


ras impediram a França de intervir decisivamente na guerra civil que se
travava na República Holandesa para apoiar os seus adeptos, os quais
davam pelo nome de "Patriotas". Assim, paradoxalmente, a guerra que se
destinara a restaurar o poderio imperial da França acabou por compro­
metê-lo de modo tão grave que o rei e a patrie pareciam das entidades dife ­
rentes - e a curto prazo, irreconciliáveis. Não tardou muito até que este
processo fosse levado ainda mais longe, com a própria corte a parecer um
parasita estrangeiro que se alimentava do corpo da "verdadeira" Nação.
Importa sublinhar que foram as suas políticas - fiscal, política e militar
- que puseram a monarquia de j oelhos . Excessivamente influenciados
51

pela obsolescência implicada na nomenclatura do Ancien Régime ( uma


expressão que só começou a ser usada em 1 790, numa carta de Mirabeau
ao rei, e com o significado de "anterior" e não de "arcaico " ) , os historia­
dores acostumaram-se a identificar as origens das dificuldades financeiras
da França na estrutura das suas instituições e não nas decisões tomadas
pelos seus governos. A ênfase na história institucional e social em detri­
mento da política reforçou a impressão de administrações irremediavel­
mente encurraladas num sistema que, mais tarde ou mais cedo, estava
condenado ao colapso sob a pressão das suas próprias contradições. .
C omo veremos mais tarde, nada disto é verdade. Aquilo que, da pers­
pectiva da Revolução, poderia parecer incorrigivelmente inflexível, esteve
de facto aberto a várias abordagens ao lidar com os problemas financeiros
da França. O problema esteve nas dificuldades políticas em sustentar estas
decisões governamentais até que começassem a render dividendos, e nos
repetidos recuos do rei para a alternativa política que ele considerava
temporariamente menos dolorosa. Tal como Tocqueville observou, não foi
a aversão à reforma mas a obsessão com a reforma que tornou difícil ou
mesmo impossível uma gestão financeira consistente . Mas Tocqueville
enganou - se foi ao partir do princípio de que as instituições eram intrinse ­
camente incapazes d e resolver os problemas fiscais do regime . N a sua
perspectiva, não existiram problemas de curto prazo, mas sim problemas
estruturais profundamente enraizados que não puderam ser sanados -

nem sequer pela Revolução -, pois Tocqueville via os mesmos males da cen­
tralização e da mão pesada do despotismo burocrático surgindo de forma
constante e irremediável na história francesa.
Em que medida as dificuldades financeiras da França após a guerra
americana eram preocupantes? É verdade que a França tinha acumulado
uma dívida impressionante, mas não era uma dívida maior do que as acu­
muladas nas outras guerras consideradas igualmente essenciais para a
manutenção da sua posição como grande potência. Aqueles que condenam
prontamente os ministros de Luís XVI pela sua incorrigível prodigalidade
fariam bem em reflectir que nunca um Estado com pretensões imperiais
subordinou o que considerou serem os seus irredutíveis interesses milita­
res aos ditames de um orçamento equilibrado . Tal como os apologistas do
poderio militar na América e na União S oviética, os defensores dos recur­
sos "indispensáveis" similares na França setecentista apontaram para as
vastas reservas demográficas e económicas do país e para uma economia
próspera como sustentáculos desse ónus. Na verdade, segundo eles, o flo ­
rescimento d a economia dependia d o s gastos militares, quer directos, em
bases navais como B rest e Toulon, quer indirectos, na protecção que pro ­
porcionavam ao sector da economia que mais rapidamente se expandia.
Além do mais, a seguir às guerras do século XVIII, verificara-se sem­
pre um período doloroso mas necessário de aj ustamento destinado a pôr
Simon Schama 1 CIDADÃOS

em ordem as finanças do reino. Por exemplo, o término miserável das


guerras de Luís XIV assistiu em simultâneo ao espectro da bancarrota, à
desintegração do exército francês no terreno, a revoltas fiscais e a fomes
generalizadas . Em 1 7 1 4, a dívida foi calculada em 2 , 6 mil milhões de
libras tornesas de ouro, o equivalente, para uma população de vinte e três
milhões de pessoas, a 1 1 3 libras por cada súbdito do Rei Sol - cerca de dois
terços do rendimento anual de um mestre carpinteiro ou alfaiate . No som­
brio pós-guerra, houve uma tentativa para aprender com o lado "vito ­
rioso" ( anglo -holandês ) importando os seus princípios bancários para as
finanças públicas francesas. Foi dada a John Law, um escocês empreen­
dedor, a oportunidade de gerir e eventualmente liquidar a dívida francesa
em troca do licenciamento exclusivo ao recém- criado B anco de França .
Infelizmente, Law usou o capital subscrito do banco para especular em
negócios imobiliários de empresas fantasmas americanas e quando a
bolha rebentou levou consigo o princípio de um défice público gerido por
um banco público . Na verdade, as operações especulativas de Law não
foram mais escandalosas ou repreensíveis do que as j ogatinas da
C ompanhia dos Mares do Sul na Grã-Bretanha . Todavia, o princípio de
um banco público sobreviveu melhor ao desastre neste país porque este
tipo de instituições financeiras foi colocado sob um controlo parlamentar
mais apertado . Em França não existia nenhuma instituição comparável
que pudesse actuar como cão de guarda e tranquilizar os futuros deposi­
tantes e credores do governo. Michel Morineau observou muito a propó­
sito que a diferença entre as duas dívidas residia no facto de o défice
francês ser visto pela generalidade do público como " régio", enquanto a
dívida britânica era considerada "nacional" .
Os governos franceses tinham à sua disposição outras estratégias
financeiras para manterem a dívida em níveis controláveis que não um
sistema de crédito gerido por um banco público . Os controladores-gerais
do período da Regência que se seguiu à morte de Luís XIV anularam drás­
ticamente a escala da dívida e intervieram de forma radical nos calendá­
rios de amortização. Foi uma espécie de bancarrota a prestações mas,
talvez surpreendentemente, não prej udicou muito o crédito da C oroa
francesa. Enquanto existiu capital dentro e fora do país, mesmo à procura
de rentabilidades que fossem apenas marginalmente superiores a outros
tipos de investimentos domésticos, não faltaram financiadores à França.
Em 1 726, o orçamento francês estava mais ou menos equilibrado, e com
a inflação a reduzir o valor real da dívida, as finanças do país conseguiram
sobreviver à Guerra da S ucessão Polaca, na década de 30 do século XVIII,
sem pressões adicionais excessivas.
Mas a situação foi muito diferente no caso das duas grandes guerras
que se seguiram, a Guerra da S ucessão Austríaca ( 1 740- 1 7 48 ) e a Guerra
dos Sete Anos ( 1 7 5 6 - 1 76 3 ) . O primeiro conflito, essencialmente terrestre,
53

custou cerca de mil milhões de libras francesas e o segundo, que foi uma
guerra naval e terrestre, cerca de 1 , 8 mil milhões. Em 1 7 5 3 , o défice era
já de 1 , 2 mil milhões de libras francesas e os j uros anuais de 85 milhões
de libras francesas, 2 0 % das receitas correntes. O controlador-geral das
Finanças no pós-guerra, Machault d'Arnouville, calculou que o défice
poderia ser pago em cinquenta a sessenta anos, partindo do princípio de
que não haveria mais guerras. Mas isto, como é óbvio, era como partir do
princípio de que a França ou a Grã-Bretanha deixariam de existir. D epois
da guerra seguinte, em 1 764, o défice subiu para 2 324 mil milhões de
libras francesas, com o serviço da dívida a absorver qualquer coisa como
60% do orçamento, o dobro da proporção que se verificara na década de
50 do século XVIII. Em treze anos, a dívida cresceu mil milhões de libras
francesas.
Qualquer economista considerará estes números assustadores (e fami­
liares ) , mas importa dizer que não foram eles que lançaram a França na
senda da revolução. Os anos médios do século XVIII assistiram a uma
enorme expansão quantitativa e qualitativa na escala e na sofisticação da
guerra, uma expansão que afectou de forma muitíssimo negativa todos os
principais beligerantes. A Prússia hohenzollern, que nos habituámos a ver
como uma história de sucesso do militarismo burocrático, encontrava-se
numa situação aflitiva no fim da Guerra dos S ete Anos, apesar de ter sido
mantida à tona de água pelos subsídios britânicos . O seu remédio para
todos os males foi a importação do sistema de gestão de impostos francês,
a régie, que lhe devolveu efectivamente alguma estabilidade fiscal. Nem
sequer os neutrais escaparam, pois a República Holandesa, que vinha ela
própria financiando todo e qualquer cliente, entrou numa forte depressão
em 1 76 3 - 1 764. A Grã-Bretanha, apontada como o outro grande exemplo
de competência fiscal, endividou -se ( tal como faria aquando da guerra
americana ) numa escala e numa magnitude exactamente idênticas às da
sua arqui-inimiga . Sabemos hoj e que o ónus fiscal per capita na Grã­
-B retanha era três vezes superior ao da França, e que, em 1 782, a percenta­
gem das receitas públicas consumidas no serviço da dívida britânico - da
ordem dos 7 0 % - era consideravelmente maior do que a francesa.
Por conseguinte, em termos absolutos, mesmo depois do imenso caos
fiscal provocado pela guerra americana, existem poucos motivos para ver
a escala do défice francês como conduzindo necessariamente à catástrofe .
Foi a percepção doméstica dos problemas financeiros - e não a sua reali­
dade - que levou sucessivos governos franceses da ansiedade ao alarme e
do alarme ao pânico . Por conseguinte, os elementos determinantes da
crise financeira do E stado francês foram inteiramente políticos e psicoló­
gicos, e não institucionais ou fiscais. Em todas as ocasiões - por exemplo,
depois das dispendiosas guerras de meados do século -, houve sérios
debates sobre a gestão da dívida e a adequabilidade relativa da aplicação
Simon Schama 1 CIDADÃOS

de novos impostos versus diferentes possibilidades de obtenção de crédito .


Conforme argumenta James Riley numa brilhante análise do problema,
estes debates conduziram a alterações técnicas aparentemente menores na
estratégia financeira que acabaram por ser desproporcionadamente prej udi­
ciais. Uma destas alterações foi a crescente preocupação com o calendário
da amortização. A ânsia de capturar o mais fugaz de todos os fogos-fátuos -
a amortização da dívida - persuadiu os governos franceses a passar as ofer­
tas de empréstimo das chamadas "rendas perpétuas", transferíveis depois da
morte do detentor, para "rendas vitalícias" que terminavam com o faleci­
mento do beneficiário. Esta ideia terá parecido boa aos gestores, sempre
preocupados com a amortização, mas na prática significou que a Coroa pas­
sou a pagar 1 0 % aos credores em vez de 5% sobre os empréstimos perpé­
tuos, o que fez aumentar imenso o ónus do serviço da dívida.
Em segundo lugar, foi no rescaldo da Guerra da S ucessão Austríaca e
da Guerra dos Sete Anos, quando tentaram perpetuar os impostos direc­
tos aplicados durante os conflitos, que os controladores-gerais chocaram
contra uma resistência política poderosa e inteligente . O motivo da indig ­
nação - em nome das "liberdades" francesas - foi o facto de estes impos­
tos incidirem sobre todas as camadas da população, independentemente
do seu estatuto social. Poderá parecer-nos estranho que o "público" fran­
cês (porque j á existia uma coisa chamada "opinião pública" ) não tenha
percepcionado esta oposição como sendo motivada por um desej o egoísta
de manutenção de certas isenções fiscais, mas a verdade é que nas déca ­
das de 50 e 60 do século XVIII, quando foram lançados estes ataques ao
"despotismo ministerial", o "público" político compunha-se maioritaria­
mente de pessoas inseridas no sistema de privilégios ou que tinham boas
hipóteses de vir a fazer parte dele . Nestas circunstâncias, "privilégios " tor­
naram-se sinónimos de "liberdades " . Uma posição "moderna", mediante
a qual a C oroa poderia ter passado por cima dos grupos privilegiados e
apelado ao apoio do público para os impostos não passíveis de isenção
ainda não era concebível. Mesmo em 1 789, a C oroa fê-lo com a maior
relutância . Vinte anos antes, estava completamente fora de questão . Por
exemplo, em 1 7 5 9, Silhouette, o controlador-geral propôs um imposto
sobre bens de luxo como baixelas de ouro e de prata, j óias e carruagens -
e sobre o celibato -, uma ousadia que lhe valeu ser corrido a toque de
caixa no meio de um coro de imprecações. Nos seus últimos anos - inca ­
racteristicamente resolutos -, Luís XV impôs medidas financeiras impopu ­
lares através d o lit de justice6 mas o neto, Luís XVI, era mais sensível à
questão da popularidade, pelo que os seus ministros procuraram evitar
tudo o que pudesse sugerir uma governação arbitrária. "Nada de bancar-

' Sessão especial do Parlamento de Paris sob a presidência do rei, por exemplo, para
registo obrigatório de éditos reais e imposição da soberania régia . ( N. do T )
55

rotas, nada d e impostos, nada d e empréstimos" foi a fórmula optimista


com que Turgot anunciou as suas políticas, em 1 77 5 , e o genebrino
Jacques Necker, director-geral das Finanças, decidiu financiar a guerra
americana quase exclusivamente à base de empréstimos e não de impos­
tos. A verdadeira diferença entre as dificuldades britânicas e francesas no
pós-guerra foi que William Pitt pôde obter receitas com novos impostos
sem correr o risco de uma grave crise política, uma opção que não estava
disponível aos seus homólogos franceses.
Os historiadores vêm afirmando desde há muito que o que os minis­
tros da C oroa francesa fizeram ou não fizeram em relação à dívida é de
menor importância porque o verdadeiro problema residia na natureza da
monarquia do Antigo Regime. Manietado pelos privilégios, como podia
um governo formado por homens que compravam ou herdavam os car­
gos contemplar sequer um mínimo de eficiência burocrática? Mesmo com
a maior vontade do mundo e com funcionários públicos capazes ( não se
podia contar nem com uma coisa nem com outra ) , o governo francês era
o vácuo presidindo ao caos. Acrescente -se a isto o défice monstruoso e o
que admira não é o regime ter tido um mau fim, mas sim o ter sobrevi­
vido tanto tempo.
Mas será este argumento válido? Para começar, parte do princípio de
que, para funcionar adequadamente, o E stado do século XVIII deveria ter­
-se aproximado de uma primeira versão de governação através do "fun­
cionalismo público " . Este poderia ser definido como uma entidade na qual
as funções públicas são o monopólio de funcionários assalariados, forma­
dos para a burocracia, recrutados em função do mérito, livres de quais­
quer interesses pessoais na sua j u risdição e responsabilizáveis perante um
órgão soberano desinteressado . É verdade que os contornos de tal meca­
nismo burocrático foram articulados na " ciência" setecentista do "governo
por câmaras" e que, pela primeira vez, os professores deste Kameral-und­
polizeiwissenschaft - a que chamaríamos governo e finanças - ocuparam
cadeiras universitárias criadas para o efeito, principalmente no mundo
germânico . Mas basta um olhar para a realidade da governação no século
XVIII para ver que estes princípios eram mais infringidos do que respeita­
dos. Por exemplo, a celebrada burocracia prussiana estava infestada pela
corrupção e era uma criatura das dinastias de nobres que nela se instala ­
vam como enxames. Além disso, os funcionários do governo local eram
nomeados não pela sua separação da sociedade dos latifundiários locais,
mas pela sua adesão . Em comparação, os intendentes franceses eram
modelos de integridade e objectividade. Mesmo na Grã -B retanha, o
governo hanoveriano era notório pelas sinecuras criadas para gerar
cadeias de lealdade política . Não estou a sugerir que a competência buro­
crática não fosse possível neste tipo de sistema mas isto aplica -se tanto ao
governo francês como a qualquer outro .
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Diz-se que o propósito do governo se perdeu em França nas florestas


luxuriantes dos privilégios . Afinal de contas, os privilégios eram definidos
pelas isenções fiscais, e a imunidade da nobreza e do clero aos impostos
directos era o que mais evidentemente negava ao Tesouro os fundos de
que tanto necessitava. Mas é enganador ver as classes privilegiadas afas­
tadas em bloco da base de receitas do Estado . Os nobres estavam suj eitos
ao imposto de capitation ( capitação) e a vários impostos directos sobre a
propriedade, tais como a vingtieme ( vintena ) , que era de 5 % . Em alguns
casos, estavam inclusivamente suj eitos à taille ( talha ) o principal imposto
directo do Antigo Regime . De facto, enquanto em algumas áreas a taille
incidia sobre pessoas, noutras aplicava -se à propriedade . Por exemplo, se
um j ovem nobre adquirisse uma propriedade como parte de um dote de
uma família de origem burguesa, tanto ele como os seus herdeiros esta­
vam obrigados a pagar a respectiva taille. Tendo em conta que o padrão de
herança e troca de propriedades entre diferentes grupos sociais estava a
tornar-se cada vez mais fluido, o número de nobres que se qualificavam
para pagar a taille estaria com toda a probabilidade a aumentar.
Por conseguinte, a imunidade fiscal como elemento dos privilégios
estava a ser inexoravelmente eliminada, ao ponto de, muito antes da
Revolução, alguns dos principais aristocratas proporem alegremente a sua
abolição pura e simples. Mas pela mesma lógica, se os privilegiados tives­
sem sido incluídos mais cedo nas classes taxáveis, é muito pouco provável
que a receita adicional tivesse feito uma grande diferença em relação ao
défice . O mais que se pode dizer é que o princípio da isenção nas classes
mais altas da sociedade se traduzia em necessidade de evasão nas classes
mais desfavorecidas. Tal como demonstrariam eloquentemente as petições
antes da Revolução, eram muitos os que viam a sua relação com o Estado
como uma espécie de j ogo de soma zero fiscal. Para um camponês empo­
brecido, isto significava deslocar os seus parcos bens - uma cama, meia
dúzia de panelas e uma cabra faminta - para uma aldeia fora da sua paró­
quia para fugir à avaliação fiscal. A paróquia era a unidade da taille. E ste
tipo de táctica desesperada não era propriamente conducente à constitui­
ção do "capital rural do cultivador", uma fantasia dos economistas teóri­
cos da época. Ao nível do burguês urbano, significava acumular dinheiro
suficiente para comprar um dos muitos milhares de pequenos cargos
municipais que davam direito a isenções fiscais . Por conseguinte, em todas
as principais cidades e especialmente em Paris, existiam guardiães das
guildas dos vendedores de ostras, aferidores de queij os e coalhadas e ins­
pectores de tripas, todos eles a exultarem com as suas pequenas dignida­
des e a beneficiarem das respectivas isenções .
Associada a o s privilégios, m a s n ã o sinónimo de privilégios, a venali­
dade era possivelmente uma praga maior e, sem sombra de dúvida, um
impedimento maior à possibilidade de estancar a hemorragia financeira
57

da C oroa . A compra e venda de cargos estava mais enraizada em França


do que em qualquer outra grande potência da Europa. C omeçara como
uma prática medieval, mas, em 1 604, Henrique IV institucionalizara a
venda de cargos como meio de obtenção de receitas para a C oroa. Na prá­
tica, o comprador emprestava ao governo uma quantia (o preço de com­
pra ) , pela qual recebia em troca certas benesses e emolumentos (gages)
próprios do cargo. Também aumentava o seu estatuto ( e isenções fiscais ) ,
e foram o s aspectos não pecuniários dos cargos venais que tornaram os
Franceses tão determinados a resistir à sua abolição.
Vários ministros de Luís XVI desenvolveram esforços sérios para redu ­
zir a dependência da C oroa deste tipo de receitas, mas, depois da queda
de Necker, o expediente continuou a parecer irresistível em alturas de
crise fiscal. O j uro pago pela monarquia sobre cargos antigos ou sobre a
criação de novos cargos era, afinal de contas, entre 1 % e 3 % - muito
menos do que sobre outros tipos de empréstimos. Segundo David D . Bien,
entre a Revolução Americana e a Revolução Francesa, a venda de cargos
rendeu cerca de 4 5 milhões de libras, uma soma pouco significativa se
dividida pelos anos em causa, mas indicativa dos obstáculos a uma
reforma radical. O governo pretendia aumentar a longo prazo o controlo
sobre as suas finanças e funções, mas as suas necessidades de curto prazo
tornavam este obj ectivo difícil de atingir.
O problema era também uma questão de atitude. Dado que os privilé­
gios estavam generalizadamente acessíveis e já não eram sinónimos de
nascimento ou classe, aqueles que tinham a perder estatuto e dinheiro
formaram uma coligação cada vez mais numerosa, e até entre os comen­
tadores reformistas que se indignavam com todo o tipo de abusos e ana­
cronismos e ra pouco o entusiasmo por um E stado não venal e
burocrático . Por exemplo, Voltaire e d' Alembert gostariam tanto como
qualquer outro homem de obter uma posição como a de secrétaire du roi
como primeiro passo para coisas maiores . Os ministros reformistas de
Luís XVI estavam cientes do problema, mas não se sentiram suficiente ­
mente confortáveis para o atacarem a fundo. Apenas Necker, que era
notoriamente impérvio a quase todos os pecadilhos, se dispôs a atacar os
detentores de cargos recalcitrantes, e mesmo assim foi na corte - um alvo
sempre popular - que ele encontrou os cargos mais flagrantemente inú­
teis para cortar. Mas enquanto os cargos fossem tratados como apenas
mais um tipo de propriedade privada, ninguém poderia conceber a sua
expropriação sem uma compensação adequada. Calculou-se que nas vés ­
peras da Revolução, estes cargos venais seriam na ordem dos cinquenta e
um mil, representando um capital de 600- 700 milhões de libras francesas.
Remi-los a todos ao mesmo tempo teria custado ao Estado o equivalente
a um ano de receitas, o que significaria parar a França durante um ano até
que o ónus pudesse ser transferido para o sector público .
Simon Schama 1 CIDADÃOS

A noção de cargo governamental como uma forma de propriedade pri­


vada choca as sensibilidades modernas como, por definição, irreconciliável
com o interesse público . De facto, a característica mais cronicamente
"antiga" do Ancien Régime parece ter sido a sua incapacidade de fazer ade ­
quadamente a distinção entre as esferas pública e privada em assuntos tão
vitais como as suas próprias finanças . Mas mesmo aqui é necessário algum
distanciamento para que a monarquia francesa e os seus defeitos sejam
j ulgados com base nos seus próprios padrões e não nos da teoria adminis­
trativa moderna . Todos os E stados belicistas europeus deste período - e
durante muito tempo depois - derivavam as suas receitas de três fontes:
impostos directos, geralmente cobrados por funcionários do Estado ( como
em França ) , empréstimos concedidos por grupos, instituições e indivíduos
que alinhavam certamente os seus interesses privados com os do E stado,
e impostos indirectos que em alguns locais eram administrados pelos
burocratas e noutros concessionados a indivíduos privados que avança­
vam dinheiro ao E stado em troca do direito de cobrarem os impostos.
A diferença entre o que emprestavam e o que cobravam era o seu lucro e
pagava os seus custos operacionais. O Estado napoleónico, por vezes con­
siderado como o Estado burocrático por excelência, fez uso destes três
métodos - tal como o Antigo Regime -, e mesmo assim só conseguiu man­
ter as finanças em ordem recorrendo às formas grosseiras da extorsão
militar, arrancando coercivamente quantias exorbitantes aos países "liber­
tados" pelo exército francês .
C omo foram então os resultados da combinação, p o r parte da monar­
quia setecentista, do negócio e da burocracia na gestão das suas finan­
ças? Por exemplo, vem sendo dito há muito que a confusão destes
processos atrasou o aparecimento de um orçamento sistemático até
Necker publicar o seu, em 1 78 1 . Mas tal como demonstrou Michel
Morineau, num estudo superlativo destas questões, embora não existisse
nenhum registo público, havia certamente arrangements que permitiam
aos controladores-gerais repartir as despesas pelos departamentos do
E stado e ver com bastante precisão o montante de dinheiro desembol ­
sado para esses departamentos . E os historiadores estão igualmente con­
vencidos de que se a monarquia tivesse tido a coragem de assumir
directamente a administração e cobrança dos impostos indirectos, teria
garantido para si os lucros - que se sabia serem enormes - embolsados
pelos "intermediários" comerciais que cobravam os impostos em seu
nome . Todavia, também é verdade que teria incorrido em custos admi ­
nistrativos adicionais - que poderiam ter anulado os ganhos - e no opró ­
brio irremediavelmente associado à cobrança de impostos sobre os bens
de primeira necessidade . E stimou-se que as "margens " da cobrança de
impostos em França eram de 1 3 % , comparados com 1 0 % na Grã­
-B retanha, onde os direitos alfandegários e os impostos sobre consumos
59

específicos eram efectivamente administrados por uma burocracia cen­


tralizada. Se era de facto isto o que estava em j ogo, não admira que os
controladores -gerais sentissem relutância em prej udicar o regime vigente
em troca de uma soberania teórica sobre os negócios públicos .
Foram as políticas do Antigo Regime e n ã o a s u a estrutura operacional
que quase o levaram à bancarrota e ao desastre político. C omparados com
as consequências das grandes decisões de política externa, os privilégios,
a venalidade e a administração indirecta das receitas foram muito pouco
significativos. Na raiz dos problemas do Antigo Regime estiveram o custo
dos armamentos quando combinados com a resistência política a novos
impostos e a crescente predisposição dos governos para aceitarem obriga­
ções com j uros elevados de credores domésticos e, cada vez mais, estran­
geiros. Não há dúvida nenhuma de que foi irresponsável por parte dos
governos franceses, na década de 80 do século XVIII, criarem tantos pro ­
blemas para si próprios, mas seria excessivo um americano da década de
80 do século XVIII classificá-los de irremediavelmente obtusos.

III ARRENDAMENTO FIS C AL E GUERRAS D O SAL

O Antigo Regime poderá ter sido mais eficiente a obter receitas e até a
geri-las do que habitualmente se julga, mas isto pouco interessaria ao
camponês em fuga do cobrador de impostos da paróquia . D e facto, se
existe um aspecto do retrato tradicional da monarquia ainda por rever é
o ódio eloquente de quase todas as camadas da sociedade ( mais desespe ­
rado e selvático nas classes mais desfavorecidas ) à máquina estatal e
senhorial de cobrança de impostos . C omo dão testemunho as petições
com queixas e reclamações ( cahiers de doléances) que acompanhavam as
eleições para os Estados Gerais, aqueles que taxavam em nome do rei
eram considerados inimigos do povo. No nível mais simples da sociedade,
esta execração abatia -se sobre o infeliz ao qual fora atribuído o cargo de
cobrador da taille na paróquia. S e não conseguisse apresentar o quinhão
fiscal que lhe era atribuído pelo gabinete do intendente, podia ver seria­
mente em risco os seus bens e até a sua liberdade; se fosse demasiado efi­
caz, podia estar suj eito a um destino ainda pior às mãos dos outros aldeãos
na calada da noite .
No topo da sociedade, os plutocráticos financeiros, os gens de finance,
eram alvo de uma hostilidade semelhante . Na polémica obra de
Darigrand, L'Anti-Financier, publicada em 1 7 6 3 , a gravura do frontispício
mostra a França aj oelhada perante Luís XV, agradecendo -lhe ( algo pre ­
maturamente ) a instituição de um imposto predial único, roubando assim
aos financeiros a sua razão de existir. A Justiça, de espada erguida, obriga
o financier a regurgitar os seus ganhos ilícitos aos pés do pobre lavrador.
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Nesta obra, os financiers são caracterizados como " sanguessugas que


engordam com a substância do povo " . Uma peça do satirista Lesage cria a
personagem grotesca de Turcaret: mal-nascido, grosseiro, ganancioso e
vingativo, um baronete do mundo do dinheiro cuj a infâmia só é suportá ­
vel devido à sua vulgaridade cómica. Muitos dos temas daquilo a que
poderíamos chamar "patriotismo romântico" cristalizavam a hostilidade
em relação aos financiers: a cidade como devoradora da substância do
campo inocente, o luxo sustentado através da perpetuação da pobreza, a
corrupção e a brutalidade aliadas contra a simplicidade rústica. E foi prin­
cipalmente sob a forma de cidadãos patrióticos que os polemistas como
Darigrand atacaram as gens de finance pelo seu egoísmo, ensaiando preci­
samente o que os revolucionários jacobinos quiseram dizer quando estig­
matizaram os capitalistas com o epíteto de " riches égoistes" .
Embora qualquer u m dos credores d a Coroa s e qualificasse para este
tipo de tratamento, a maior parte das invectivas mais duras era reservada
aos fermiers généraux. Afinal de contas, o seu poder residia no coração do
sistema e eles eram responsáveis por talvez um terço de todas as receitas.
De seis em seis anos, a C oroa negociava com um sindicato destes homens
um bail, ou arrendamento, pelo qual eles se comprometiam a adiantar
uma soma específica ao Tesouro em troca do direito de cobrar por arren­
damento certos impostos indirectos. E stes eram, acima de tudo e notoria ­
mente, os impostos sobre o sal e o tabaco (gabelle, tabac) , bem como outras
taxas menores sobre o couro, os utensílios de ferro e o sabão, conhecidos
colectivamente por aides. ( O utros impostos indirectos eram aplicados sob
a forma de direitos alfandegários - os octrois -, que incidiam significativa ­
mente sobre o vinho quando era deslocado de uma zona alfandegária para
outra ou para dentro e fora de cidades. )
Os fermiers atraíam um quinhão desproporcionado da aversão do
público não porque fossem o elemento mais reaccionário do aparelho fis ­
cal d o Estado m a s porque eram os mais brutalmente eficientes. Dizia-se
que era no arrendamento fiscal que o fosso entre o que o povo pagava e
o que o Tesouro real recebia era mais abissal. O facto de o seu lucro - ou
a diferença entre o que cobravam e o que pagavam à C oroa - permane­
cer um segredo comercial não aj udava a minorar este estereótipo de gan­
gue de bandidos rapaces licenciados pela C oroa. S e houve um símbolo da
cínica e impune indiferença do Antigo Regime às necessidades básicas do
povo, os fermiers généraux corporizaram-no nas suas pessoas colectivas e
individuais.
Não admira que tenham sido alvo de uma atenção especial por parte
da Revolução . Em 1 78 2 , o popular escritor e j ornalista Louis - S ébastien
Mercier escreveu que não conseguia passar pelo Hôtel des Fermes, na
Rue Grenelle - Saint- Honoré, sem ser consumido pelo desej o de "inver­
ter a marcha desta máquina imensa e infernal que agarra o cidadão pela
61

garganta e lhe tira o sangue d o corp o " . Um dos primeiros e mais espec­
taculares actos da grande insurreição de Paris, em Julho de 1 7 89, foi o
derrube da barreira alfandegária erguida pelos fermiers para travar os
contrabandistas. Mas os fermiers sofreriam mais nas suas pessoas do que
nos seus bens. Além de serem perseguidos pela sua reputação de vampi­
ros económicos, dizia-se que tinham escondido um espólio de três ou qua­
tro milhões de libras francesas . "Tremei, vós que haveis sugado o sangue
dos pobres desgraçados", avisou Marat, e, em Novembro de 1 79 3 ,
Léonard B ourdon exigiu q u e os "vampiros d o público" ( um sinónimo dos
fermiers que se tornara imediatamente reconhecível) prestassem contas da
sua roubalheira e devolvessem à nação o que tinham roubado ou que fos­
sem " entregues à lâmina da lei " . Em Maio de 1 794, durante uma das mais
espectaculares execuções em massa, foi guilhotinado um grupo de fer­
miers, entre os quais o grande químico Lavoisier.
Mas os fermiers généraux não eram apenas especuladores na dívida da
Coroa e ladrões do povo. E ram um Estado dentro do E stado . Misto de
negócio, empresa, corporação financeira e governo, com pelo menos
trinta mil funcionários, a Ferme - Générale era a maior empregadora de
França a seguir ao Exército e à Marinha. Vinte e um mil fermiers consti­
tuíam uma força paramilitar uniformizada, armada e com o direito de
entrar em qualquer casa que considerassem suspeita, revistá-la e confis­
car quaisquer bens. Tinham o seu próprio mapa de França para fins fis ­
cais, dividido e m múltiplas jurisdições ( la grande gabelle, pays de quart
bouillon, etc. ) para cada um dos bens que cujos impostos cobravam. E
também não eram meros aplicadores e cobradores de impostos. Nos prin­
cipais bens a que estavam associados - especialmente o sal e o tabaco -,
eram também produtores, fabricantes, refinadores, armazenistas, grossis­
tas, reguladores de preços e retalhistas monopolistas.
Para apreciar o modo como o negócio dos fermiers généraux se insinuava
na vida quotidiana de todas as famílias francesas basta seguir o progresso
sinuoso de um saco de sal dos pântanos da B retanha até à cozinha. A cada
etapa, o saco era vigiado, verificado, registado, guardado, reverificado e,
acima de tudo, taxado antes de chegar ao consumidor. Do princípio ao fim
deste processo, a mercadoria estava cativa do direito dos fermiers généraux
ao exercício de uma regulação férrea. Tudo dependia do seu controlo sobre
os preços. Por exemplo, em 1 760, os produtores de sal dos pauis a oeste de
Nantes foram obrigados a vender o seu produto aos fermiers a preços fixa­
dos numa negociação unilateral. O sal foi depois enviado para depósitos
costeiros localizados em estuários e embalado em sacos selados e regista -
dos. Cada um destes depósitos estava incumbido de fornecer outros depó­
sitos localizados no interior, para onde o sal foi enviado em barcaças. Este
segundo grupo de depósitos situava-se nos limites da navegabilidade dos
rios, e de lá os sacos seguiram de carroça para outro conj unto de armazéns,
Simon Schama 1 CIDADÃOS

sendo inspeccionadas a cada etapa do percurso, até chegarem finalmente


aos principais greniers à sei, os armazéns centrais alugados pelos fermiers.
Tratava -se de grandes edifícios, dotados de um número considerável de
escriturários e guardas com um chefe que era responsável pela venda do
sal - devidamente taxado - ao consumidor. Cada venda tinha que ser
acompanhada por uma factura e um recibo, ambos em duplicado . Para os
que residiam demasiado longe para poderem comprar o sal directamente
nos armazéns, existiam pequenas concessões para venda nas aldeias, mas
a preços ligeiramente superiores à tarifa oficial dos fermiers.
Mesmo que os fermiers não tivessem o direito de fixar o preço do sal, o
simples peso burocrático da sua distribuição oficial teria aumentado tre ­
mendamente o seu preço . Poucas famílias teriam concebido passar sem
este bem de primeiríssima necessidade, mas nem sequer lhes era dada essa
possibilidade pois eram obrigadas por lei a comprar uma quantidade
mínima anual, em função de uma avaliação individual. Cativo deste
espantoso sistema de controlo e taxação, o consumidor tinha uma saída,
ainda que ilegal: o contrabando. E aqui a minúcia do mapa fiscal dos fer­
miers militava contra a sua segurança . Dado que se podia adquirir sal no
outro lado da fronteira do pays de grande gabelle quase dez vezes mais
barato do que o preço dos fermiers, o contrabando prosperava natural­
mente nas zonas alfandegárias fronteiriças . Este fenómeno era ainda
maior em relação aos regimes do tabaco, perto da fronteira espanhola, a
oeste, e da Sabóia, a leste . Mas o contrabando de sal atingiu o estatuto
quase épico de uma guerra total entre os fermiers généraux e os bandos de
contrabandistas, especialmente concentrados no Oeste. Na tentativa de
travar os contrabandistas, o E stado proferiu sentenças draconianas : chico­
tadas, marcação com ferro em brasa, condenação às galés ou ( em caso de
ataque físico aos guardas ) , a morte na roda . Mas mesmo assim, centenas
ou talvez milhares de homens, mulheres, crianças e até cães treinados
participaram neste comércio arriscado mas lucrativo que abarcava todo o
Oeste francês . Necker - que tinha o hábito de apresentar números duvi­
dosamente redondos para tudo - estimou em 60 000 o número de pessoas
envolvidas no contrabando de sal. É certamente um exagero, mas, entre
1 780 e 1 78 3 , na região de Angers, j unto à fronteira com a B retanha,
foram condenados 2 342 homens, 896 mulheres e 2 0 1 crianças, e por cada
condenação poderão ter existido cinco detenções com provas insuficien­
tes para j ulgar.
Os fermiers eram muito mais simpáticos para a sua gente . Os guardas e
os escriturários eram mal pagos mas tinham empregos relativamente
seguros e podiam complementar o salário com regalias surpreendentes .
Em 1 768, a Ferme terá inventado o primeiro plano d e pensões com base
em deduções salariais complementadas pela companhia ( em 1 7 74, este
fundo de pensões já valia cerca de 260 000 libras ) . Depois de vinte anos
63

de serviço, um guarda podia reformar-se com uma pensão vitalícia cuj o


valor era baseado na sua patente e antiguidade .
A Ferme era uma versão concentrada do governo do Antigo Regime,
rica em virtudes e vícios. A nível locaL era uma mistura extraordinária de
paternalismo corporativo e comercialismo selvagem, regulação e negócio,
administração eficiente e burocracia pesadona, procedimentos complexos
e brutalidade militar indiscriminada. Em Paris, centro dos seus negócios,
apresentava um rosto totalmente diferente : era polida, urbana, tecnocrá ­
tica e, acima de tudo, irresistivelmente rica. Não obstante os muitos abu ­
s o s a q u e eram suj eitos no palco e n o s panfletos, os fermiers sabiam que
eram o centro de todas as atenções. As suas casas eram as mais esplêndi­
das e os seus salões estavam pej ados de obras de arte admiráveis, muitas
delas resultantes de um gosto aventureiro por pinturas miniaturistas
holandesas e por pinturas de género e naturezas -mortas francesas. As
filhas, cobiçadas como grandes partidos, casavam frequentemente com a
nata da antiga nobreza, em especial com a aristocracia j urídica, cuj os ora­
dores denunciavam a Ferme enquanto iam calculando os dotes das poten­
ciais noivas.
Os fermiers estavam muito longe de ser os filisteus ameaçadores, gros­
seiros e novos-ricos sugeridos pela caricatura cénica de Turcaret. Helvétius,
o philosophe, não era atípico ao combinar a especulação intelectual ousada
com a especulação financeira prudente . Quando morreu, em 1 77 1 , deixou
uma enorme fortuna à viúva, a condessa de Ligniville d' Autricourt, que
mantinha o salão mais brilhante de Paris rodeada de um bando de gatos
angorás, cada um com o seu nome e ataviado com uma fitinha de seda.
Igualmente notável era a dinastia Laborde, fundada por comerciantes de
Bordéus envolvidos no negócio do açúcar das Índias Ocidentais. Jean­
-Benjamin, o terceiro fermier général da família, além de manter a argúcia
familiar para as finanças e para o comércio, foi um prolífico compositor,
cientista e escritor sobre uma variedade de tópicos de medicina, geologia e
arqueologia . Mas o mais extraordinário de todos estes homens foi Antoine
Lavoisier, celebrado como o maior qu!mico francês .
Lavoisier e r a um fenómeno, m a s o facto d e aplicar o s e u engenho cien­
tífico a algo tão aparentemente arcaico e repressivo como a grande bar­
reira alfandegária que os fermiers estavam a construir em torno de Paris diz
muito sobre as contradições da França de Luís XVI. C omo tantos outros
inseridos na cultura da época, Lavoisier foi simultaneamente pioneiro e
arcano, intelectualmente livre e institucionalmente cativo, dedicado ao
público mas empregado pela mais egoísta das corporações privadas . Mas
não há dúvida de que Lavoisier acreditava que a sua ciência: era compatí­
vel com ( ou mesmo crucial para ) a sua profissão e que administrando a
Ferme de acordo com o melhor das suas capacidades estava a servir a
França no verdadeiro espírito da cidadania patriótica.
Simon Schama 1 CIDADÃOS

A sua rotina de trabalho não era certamente a do estereotipado e lân­


guido aristocrata do Antigo Regime, vivendo para o prazer e rodeado de
enxames de serviçais obsequiosos. Lavoisier levantava-se de madrugada e
trabalhava nos papéis da Ferme ou no seu laboratório privado das seis às
nove . Até ao fim da tarde, no seu gabinete no Hôtel des Fermes, traba­
lhava num ou mais dos comités para os quais estava designado (incluindo
a administração das fábricas reais de salitre e pólvora ) . Depois de um j an­
tar bastante frugal, regressava ao laboratório, onde voltava a trabalhar das
sete às dez da noite. Duas vezes por semana, reunia amigos e colegas das
áreas das ciências e da filosofia para ouvir ler os seus papéis e discutir
informalmente os proj ectos em curso. A família de Lavoisier não era
menos cosmopolita e produtiva. A mulher era uma excelente artista e o
brilhante e animado retrato pintado por Jacques-Louis David mostra
marido e mulher como amigos conj ugais e parceiros profissionais.
À semelhança de outros funcionários de topo da Ferme, Lavoisier não
se contentava com supervisionar o trabalho à distância. Periodicamente
fazia uma tournée para inspeccionar os escritórios e armazéns de provín -
eia . Apesar de viajar com grandiosidade, com uma comitiva pessoal de
dezoito pessoas (incluindo guardas de uniforme e armados ) e um bata­
lhão de escriturários e contabilistas, estas digressões eram extenuantes e
chegavam a durar meses. Sabemos que numa tournée semelhante, em
1 7 4 5 - 1 7 46, um fermier chamado Caze visitou nada menos de trinta e dois
armazéns de sal, trinta e cinco alfândegas e vinte e duas lojas de tabaco,
arbitrou disputas entre os funcionários da Ferme e inspeccionou um sem­
-fim de postos dos guardas. Lavoisier não terá sido menos rigoroso.
Embora a qualidade e o âmbito do virtuosismo de Lavoisier o distin­
gam como um prodígio, na França de Luís XVI não era de todo invulgar
os homens públicos serem ao mesmo tempo intelectuais, administradores
e empresários, mas em cada um destes três papéis corriam alguns riscos.
Enquanto cientista, Lavoisier podia ascender e cair com o caprichoso
fluxo e refluxo da moda científica, que na década de 80 do século XVIII
era a característica mais importante da vida cultural francesa. A sua segu -
rança financeira não era imune a mudanças imprevistas na política gover­
namental. Embora fossem pintados pelos polemistas como especuladores
isentos de risco, os financiers eram vulneráveis, enquanto detentores de
títulos, aos repúdios súbitos e imprevistos do tipo a que o Estado recorrera
nas décadas de 20 e 70 para controlar a dimensão do défice. Houve pelo
menos tantos financiers falidos como milionários .
Lavoisier, tal como a maioria dos financiers, não financiou com fundos
próprios o enorme depósito necessário para se estabelecer; pediu o dinheiro
emprestado e associou-se a sócios comanditários (os chamados croupiers, de
croupe, a parte da garupa do cavalo disponível para um cavaleiro adicional) .
Estes forneceram-lhe parte do seu capital e ele retribuía-lhes com parte do
65

s e u salário e d o s s e u s lucros. Isto significava q u e Lavoisier operava com


pouca margem de manobra e que em condições imprevisivelmente
adversas não era senhor absoluto do seu próprio destino. Se o governo
decidisse alterar ou anular os termos de um contrato, o público correria a
vender os seus billets de ferme, as notas negociáveis que os fermiers estavam
autorizados a emitir com base no seu crédito pessoal . Foi o que aconteceu
em 1 78 3 , quando o controlador-geral d'Ormesson tentou anular o
"Arrendamento Salard" ( cada arrendamento recebia o nome do principal
contraente ) , mas os fermiers negaram-se a honrar o seu papel, argumen­
tando que o governo tinha incorrido nessa responsabilidade ao interferir
no arrendamento . C onfrontado com a fúria popular, o governo recuou e
reinstalou o arrendamento antigo .
E sta crise foi sintomática da deterioração do mútuo interesse q u e tinha
unido a monarquia e os fermiers généraux. Por um lado, a C oroa precisava
mais desesperadamente do que nunca das receitas adiantadas com pron­
tidão pelos fermiers, e estava pouco interessada em assumir a gigantesca
actividade que era a cobrança dos impostos indirectos. Por outro lado, as
almas mais coraj osas da administração começavam a compreender que o
custo das repetidas transfusões de fundos de curto prazo era uma depen -
dência crescente do preço que fosse exigido pelos fermiers e pelos outros
credores, alguns dos quais eram holandeses ou genebrinos . O preço fixado
pelos fermiers foi o aumento dos lucros, sem perguntas; o preço fixado
pelos credores foi o aumento das taxas de j uro para níveis tão elevados
que, em 1 788, o serviço da dívida consumia já 5 0 % das receitas corren­
tes. Iremos ver que foi nesta altura que o governo, falho de alternativas,
teve de abandonar os aj ustamentos fiscais e virar-se para soluções políti­
cas drásticas para resolver os seus problemas. E stas soluções revelaram-se
revolucionárias.

IV A Ú LTIMA E S PERANÇA: O C O C HEIRO

As falências públicas são um estado de espírito. O momento exacto em


que um governo entende que esgotou os seus recursos ao ponto de já não
poder desempenhar a sua função mais básica, a protecção da soberania, é
bastante arbitrário . Uma grande potência nunca entra em liquidação. Por
muito terrível que possa ser a situação financeira em que se encontre, os
homens do dinheiro estarão sempre à coca para a aj udarem a levantar-se
- por um preço. Só há muito pouco tempo é que este preço sofreu uma
espécie de abdicação parcial da soberania - por exemplo, perante os dita­
mes do Fundo Monetário Internacional ou, na época do imperialismo vito­
riano, das comissões de dívida externa que os britânicos e os seus parceiros
impuseram aos cadáveres fiscalmente prostrados dos Egípcios e dos
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Chineses. Para a monarquia francesa, em finais da década de 70 do século


XVIII, o momento da verdade parece ter acontecido quando esgotou as
"antecipações" das receitas futuras para garantir novos empréstimos,
empréstimos que eram necessários para servir dívidas entretanto contraí­
das. Aparentemente, o aparelho técnico de refinanciamento avariou-se.
Embora não existisse nenhuma entidade financeira internacional à espera
nos bastidores para arcar com a dívida e ditar os termos de regularização,
o regresso de Jacques Necker, que estava associado ao mercado financeiro
internacional, foi o que mais se aproximou de tal entidade. C ontudo,
somente uma forma mais popular de autoridade política doméstica con­
quistaria a confiança do público necessária para garantir o crédito gover­
namental. Ou seja, a salvação financeira dependia da mudança política .
Este facto fora óbvio para os sucessivos governos de Luís XVI, clara ­
mente pressionados pela necessidade de reformar o modo como a C oroa
obtinha as suas receitas. De facto, já com Luís XV fora esta a prioridade
mais premente dos controladores-gerais, mas durante a década de 50 do
século XVIII, e ainda mais no decénio seguinte o músculo político que
tinham retesado para instituir a reforma fiscal fora o do absolutismo. Na
década de 60, Luís XV convocara sucessivos lits de justice para pronunciar
a ordem mais enfática do vocabulário real: "Le roi le veult" (O rei assim o
desej a ) . C ontra esta ordem, não havia apelo .
Mas Luís XVI, em conformidade com o seu carácter incoerentemente
amigável, subiu ao trono desej ando ser amado . E sta paixão patética sobre­
viveu inclusivamente às terríveis guerras da farinha que perturbaram os
primeiros anos do seu reinado quando os amotinados foram repelidos dos
portões do palácio real de Versalhes ( a corte pusera-se prudentemente ao
fresco ) . Por conseguinte, Luís XVI livrou-se dos ministros identificados
com o absolutismo vigoroso do avô e substituiu-os por reformadores que,
de uma maneira ou outra, conjurariam mudanças que seriam ao mesmo
tempo politicamente liberais e fiscalmente copiosas. O problema é que
não houve dois governos com ideias idênticas sobre quais as estratégias de
mudança a seguir. As suas políticas eram não só inconsistentes, como
também cada um definia a sua governação como a inversão total da ante ­
rior, quer nos homens, quer nas medidas. Escusado será dizer, os resulta­
dos não eram positivos .
Os controladores-gerais tinham lidado com a pressão crescente sobre
as finanças da França de três modos clássicos: bancarrotas disfarçadas,
empréstimos contraídos j unto de sindicatos domésticos e estrangeiros e
novos impostos . O abade Terray, o último controlador de Luís XV, fizera
uso dos três. Turgot, o primeiro controlador de Luís XVI, repudiou os três.
Propôs as lições da teoria económica liberal, em particular a da fisiocracia,
cuj o próprio nome a proclamava como a "Lei da Natureza", logo, era irre ­
futável.
67

A " seita" dos fisiocratas defendia que era o corporativismo, a regulação


e o proteccionismo - a mão pesada do Estado - que estavam a abafar a
produtividade e o empreendedorismo em França . As barreiras alfandegá­
rias internas, as restrições à livre circulação dos cereais e de outros pro­
dutos básicos e as complicadas tarifas de taxas e impostos sobre o
consumo tinham de desaparecer para que a economia pudesse respirar o
ar puro das transacções comerciais. O emaranhado de alcavalas indirectas
e taxas prediais em algumas partes da França e não noutras devia ser eli­
minado e substituído por um imposto predial único . Isto tornaria possível
aos cultivadores - que eram os únicos produtores de riqueza - calcular
com precisão os seus custos e orientar- se para o abastecimento do mer­
cado, onde, segundo o rumo natural das coisas, os preços mais elevados
aumentariam os rendimentos rurais e dariam origem a acumulação de
capital. E stas poupanças e lucros seriam depois reinvestidos em melhora­
mentos técnicos, o que aumentaria ainda mais a produtividade e criaria
excedentes de capital que seriam gastos nos produtos manufacturados
produzidos nas cidades . Por conseguinte, os sectores urbano e rural coe ­
xistiriam numa reciprocidade feliz e a França ficaria inundada de rústicos
contentes e racionais, todos de enxada na mão, produzindo, poupando e
gastando ao ritmo profundo do mercado.
Pelo menos, era esta a teoria. O s seus autores mais famosos foram
Quesnay, o médico da corte, · e o seu oposto temperamental, o fulminante
marquês de Mirabeau (pai do orador revolucionário ) . Muito estranha­
mente, Mirabeau tinha construído a sua reputação a denunciar as incur­
sões do capitalismo e do individualismo naquilo que ele imaginava
carinhosamente serem as virtudes paternalistas do feudalismo senhorial.
Foi durante uma longa conversa que Mirabeau descreveria mais tarde
como "partir o crânio de Golias" que ele se converteu ao laissez-faire, e o
mesmo aconteceu, para melhor ou para pior, com vários controladores ­
-gerais de Luís XV, q u e n a década d e 60 do século XVIII trataram de remo­
ver todas as restrições ao transporte interno e externo de cereais, bem
como a regulação dos locais de venda e dos preços. Resultado: carestias
imediatas e motins . Os celeiros foram pilhados, as barcaças impedidas de
partir, os comerciantes obrigados a vender ao preço considerado "j usto"
pelas multidões. Em 1 770, Terray restaurou a maior parte destas restri­
ções, obrigando os comerciantes a serem de novo licenciados e a vende ­
rem os seus produtos apenas nos mercados designados. A calma foi
restaurada .
Mas todas as medidas de Terray, algumas mais do que sensatas, foram
profundamente comprometidas pelo modo como ele e o seu colega
Maupeou as decidiram executar: através da vontade absoluta dos decre ­
tos régios. Quando Turgot assumiu o cargo de controlador-geral, em 1 774,
depois de ocupar por um breve período o posto de ministro da Marinha,
Simon Schama 1 CIDADÃOS

fê -lo como um liberal económico mas também político. Só se contasse


com o apoio dos Parlamentos da nobreza poderia implementar políticas
que evitassem os excessos mais arbitrários do reinado anterior em termos
de falências, empréstimos e impostos. Por conseguinte, com a aprovação
calorosa do rei, Turgot tirou os Parlamentos do limbo para onde o chan­
celer Maupeou os enviara . O seu erro foi partir do princípio de que os
Parlamentos apoiariam as suas reformas por gratidão e racionalidade. Na
França de Luís XVI, nada era assim tão simples.
Da simpatia de Turgot pelas ideias fisiocráticas decorria a ideia de que
a liberalização da economia francesa iria gerar a prosperidade que resol­
veria os problemas financeiros do governo. Isto aconteceria de duas
maneiras. A confiança do público, a mais alquímica das qualidades eco ­
nómicas, seria recuperada, eliminando a necessidade de contrair novos
empréstimos porque os antigos, devidamente honrados, seriam suficien­
tes. O comércio e as manufacturas floresceriam ao ponto de, através do
aumento da produção, gerarem receitas suficientes para reparar os danos .
Tu d o isto era obviamente o antepassado directo d a s finanças públicas com
base na oferta, e tinha tantas hipóteses de sucesso como teve a sua versão
de duzentos anos depois, num império diferente mas com problemas fis ­
cais similares .
Para q u e esta narrativa não pareça demasiado sardónica, importa dizer
já que Turgot não era nenhum Pangloss ministerial.7 Era um homem som­
brio que passava a vida a questionar- se a si próprio e cuj o principal deleite
era o trabalho, e que tinha uma visão demasiado pessimista da natureza
humana e excessivamente optimista das suas possibilidades de melhora­
mento. Em suma, era um homem típico dos anos finais do Iluminismo.
Nasceu numa família que se distinguia desde há muito pelo seu serviço
público. O pai Turgot fora prévôt des marchandsª de Paris e coroara a sua
carreira de especialista em planeamento urbano desenhando e cons­
truindo um grande esgoto para a margem direita do S ena . O filho, Anne­
Robert, chegou ao C ontrôle depois de muitos anos como brilhante e
excepcional trabalhador intendente da empobrecida província do
Limousin, no Sudoeste da França. Trabalhara assiduamente para fazer o
bem, construindo estradas e convencendo os camponeses a plantar e con­
sumir batatas, um género alimentício que era considerado impróprio
mesmo para os animais e muito menos nutritivo do que a papa de casta­
nhas e trigo cozidos que constituía a dieta tradicional do Limousin.
Infelizmente, a região do Limousin era particularmente inadequada
para a aplicação das ideias mais queridas de Turgot, em especial as que ele

' Nome do mentor de Cândido na obra homónima de Voltaire . Na parte inicial do livro,
Cândido vive num éden onde é doutrinado pelo filósofo Pangloss com base num optimismo
absoluto definido no lema "É tudo para o melhor no melhor dos mundos possíveis" . (N. do T. )
ª Em francês n o original : preboste dos comerciantes . (N. da R . )
69

publicara sobre acumulação de capital, pois era difícil acumular capital


quando se subsistia à base de castanhas cozidas ou mesmo de batatas. Só
quando Turgot se tornou controlador-geral é que se lhe ofereceu a opor­
tunidade de as aplicar à escala nacional. Muito mais do que a sucessão de
controladores-gerais que chegaram ao cargo a pensar quase exclusiva­
mente na sobrevivência nacional e pessoal, Turgot, nas palavras de
Carlyle, " chegou ao conselho do rei com uma revolução pacífica na
cabeça" . Um memorando enviado ao rei em 1 77 5 revela a grande abran­
gência da sua visão de uma França transformada pela liberdade econó­
mica e política . Segundo o que declarou: "Em dez anos, a nação estará
irreconhecível . . . em iluminismo, na moral e no zelo para vos servir e pela
patrie, a França ultrapassará todos os outros povos que existem e que
alguma vez existiram. "
O método operacional básico d e Turgot foi desmantelar todos o s obs­
táculos ao comércio livre, à mão-de-obra livre e aos preços livres deter­
minados pelo mercado, e dar algum encoraj amento às empresas que ele
acreditava serem o futuro . Este encoraj amento traduziu -se em formação
e subsídios directos . Homens sérios de tricórnio foram enviados para estu ­
dar a indústria de carvão britânica e foram concedidos auxílios sob a
forma de câmaras de comércio para a indústria de teares mecânicos de
Lyon, para as laminadoras de chumbo de Rouen e - previsivelmente -
para as manufacturas de porcelana de Limoges. C ondorcet e d' Alembert,
os seus doutos amigos, foram recrutados para integrar um comité formado
para estudar a navegação e a poluição fluviais, e, no espírito dos Grandes
Desígnios de seu pai, o controlador-geral iniciou a construção da "machine
Turgot", destinada a quebrar os gelos flutuantes na foz do Mame e do S ena
- mas foi a máquina que se quebrou, depois de gerar avultadas despesas.
Foi mais feliz a fundação de um novo sistema de transporte de correio e
passageiros, as Messageries royales, utilizando diligências com amortecedo­
res conhecidas por "turgotines", reduziu para metade o tempo de viagem
entre as cidades francesas e tornou ligeiramente menos absurdo o sonho
de um mercado nacional.
Mas a principal linha de ataque de Turgot foi dirigida contra as bar­
reiras que impediam a concretização de uma eco np mia livre . As primei­
ras a desaparecer tinham de ser as portagens sobre os cereais ( excepto em
Paris e Marselha ) e com elas foram todos os monopólios de negociantes,
dos comerciantes e carregadores. Embora isto representasse o desmante­
lamento do sistema de oferta regulada de Terray, Turgot teve o bom senso
de manter a proibição das exportações. Mas mesmo assim, escolheu a
pior altura possível para as reformas . O ano de 1 7 74 assistiu ao regresso
das más colheitas, e com elas novas carestias, novos preços elevados e a
fúria dirigida de novo contra os monopolistas, acusados de açambarca ­
mento para lucrarem com a alta de preço s . A consequência de tudo isto,
Simon Schama 1 CIDADÃOS

na Primavera de 1 77 5 , foi a repetição dos motins da década de 6 0 : bar­


caças paradas nas estações fluviais, ataques a celeiros e moinhos e vendas
obrigatórias a preços exigidos pelas multidões . Em Paris, a milícia dos gar­
des françaises não impediu a turba de pilhar a Abadia de Saint-Victor por­
que estava em Notre Dame a abençoar as suas bandeiras regimentais.
A resposta de Turgot a esta interrupção impertinente do comércio livre
foi chamar vinte e cinco mil soldados e instituir tribunais sumários e
enforcamentos exemplares. O comandante dos guardas reais de Versalhes,
o príncipe de Poix, que prometera apressadamente farinha a dois soldos a
uma multidão de cinco mil manifestantes que se preparava para tomar de
assalto o palácio de Versalhes, recebeu uma reprimenda pela sua temeri­
dade. Tal como haviam feito na última ronda de comércio livre dos
cereais, a polícia e os magistrados ignoraram os éditos de Turgot em bene ­
fício de uma paz pública imediata, e foi isto e uma colheita melhor - mais
do que a lei marcial - que devolveram alguma calma ao país no Verão de
1 77 5 . Ferido pelas violentas polémicas panfletárias contra a sua política,
Turgot acreditava ( como ainda hoj e acreditam muitos historiadores que
com ele simpatizam) que a "guerra da farinha" não passava de uma cons ­
piração bem montada e que as pessoas fingiam passar fome para embara ­
çar o seu governo .
Turgot estava igualmente decidido a desregular o comércio da carne, e
neste caso não parou às portas de Paris. Aboliu um grande número de car­
gos de funcionários da chamada "bolsa" de Sceaux e Poissy• que tinham
o direito de determinar o preço ao qual os boieiras podiam vender o gado
aos talhantes. S egundo os regulamentos antigos, o redanho e o sebo
( essenciais para o fabrico das velas) não podiam ser recolhidos pelos
talhantes após o abate, mas sim por guildas especiais que detinham o
monopólio da sua venda . Também estas foram atacadas por Turgot. Isto
passou -se na altura menos auspiciosa para o sucesso, pois 1 77 5 assistiu a
uma epidemia de peste do gado que devastou as manadas do país, e ao
tentar estabelecer um cordão sanitário no interior do qual os camponeses
tinham de abater o gado infectado e enterrar as carcaças com cal, os bem
intencionados intendentes de Turgot chocaram com a resistência local. No
Sudoeste, em particul9r, os prados e os bosques encheram-se de fantas ­
magóricas procissões nocturnas de camponeses q u e tentavam levar o seu
gado para fora da fronteira sanitária .
Mas foi com os Six Edicts que as políticas de Turgot começaram a ser
alvo de uma fortíssima contestação. O s elementos principais deste
pacote de reformas prendiam-se com a abolição das guildas, que tinham
confinado a mão - d e - obra, a produção e a venda dos produtos a corpo­
rações licenciadas e com o seu próprio monopólio interno da formação,

' Os dois principais mercados que abasteciam Paris de carne. ( N. do T. )


71

dos produtos e dos serviços. O sistema das guildas estava e m opos1çao


directa à visão de Turgot do mercado como determinador dos salários, da
procura e da oferta de todos estes elementos económicos. A sua reforma
teria eliminado a maioria das guildas excepto as dos barbeiros, dos peru -
queiros e dos encarregados dos banhos, dado que a extinção destes cargos
exigiria o pagamento de indemnizações. Ficaram também isentos os ouri­
ves, os farmacêuticos e os impressores, mas por um motivo muito diferente:
era do interesse público que os seus respectivos ofícios ( nos domínios da
riqueza, da saúde e da sabedoria) permanecessem licenciados. De forma
mais sombria, os éditos proibiram terminantemente toda e qualquer assem­
bleia de mestres ou trabalhadores para efeitos de negociações salariais ou
outra coisa qualquer, um princípio que a Revolução manteria até 1 79 1 .
A outra proposta principal foi a abolição do serviço de trabalho obri ­
gatório, a corvée, que os comuns deviam ao Estado e que providenciara
a mão - d e - obra para uma grande parte do programa de construção de
estradas. Turgot estava certíssimo ao partir do princípio de que a corvée
era detestada no campo por retirar uma preciosa e por vezes única fonte
de mão - d e - obra das pequenas propriedades precisamente quando era
mais necessária, em tempo de sementeira ou colheita . A corvée podia ser
convertida no pagamento de uma quantia de dinheiro mas isto pressu­
punha que o camponês pertencia a uma economia fiduciária em que isto
era viável, o que não acontecia com a esmagadora maioria dos campo­
neses franceses. Mas o elemento mais coraj oso e controverso das refor­
mas foi a proposta de substituir a corvée por um imposto predial
incidindo sobre todas as camadas da população. C om as receitas assim obti­
das, o E stado mandaria construir as estradas por fornecedores privados
e os termos dos contratos seriam publicados para mostrar a relação entre
o custo das obras e as receitas que as financiavam. E sta medida teria
repartido por toda a população o ónus da construção de estradas e
canais e, para todos os efeitos, teria também retirado mais um privilégio
às classes isentas.
C omo seria de esperar, a abolição do trabalho obrigatório foi acolhida
com intensa hostilidade por parte da nobreza, expressada pela sua voz
colectiva nos Parlamentos . Além de diluir privilégios, a abolição também
ameaçava, por exemplo, o direito de os nobres exigirem serviços compa ­
ráveis aos camponeses das suas propriedades, um efeito que Turgot tinha
possivelmente em mente . Na defesa das suas reformas, Turgot deixou-se
arrastar para uma troca de opiniões extraordinária mas reveladora com
Miromesnil, o guardião dos Selos ( na prática, ministro da Justiça ) , sobre
a legitimidade dos privilégios. Os privilégios, afirmou Miromesnil, basea ­
vam-se nas isenções concedidas à casta dos guerreiros em troca do sangue
que vertiam pela Coroa. "Tirando à nobreza as suas distinções, destruireis
o carácter nacional e a nação, deixando de ser aguerrida, não tardará a ser
Simon Schama 1 CIDADÃOS

presa das nações vizinhas . " Esta afirmação disparatada levou Turgot a lem­
brar ao seu oponente que "as nações em que a nobreza paga impostos, à
semelhança do povo, não são menos marciais do que a nossa . . . e nas pro­
víncias abrangidas pela taille réelle, onde nobres e comuns têm o mesmo
tratamento . . . os nobres não são menos valentes nem menos dedicados à
C oroa " . Para além disso, acrescentou ele, não era capaz de se recordar de
nenhuma sociedade em que a ideia de isentar a nobreza do pagamento de
impostos "não tenha sido vista como uma pretensão antiquada abando­
nada por todos os homens inteligentes, mesmo os da ordem da nobreza" .
Outros interesses egoístas foram responsáveis pela oposição à abolição
das guildas. Turgot defendeu esta medida recorrendo à elevada retórica
filosófica dos direitos naturais económicos. "Deus, ao conceder ao homem
certas necessidades e fazendo-as depender do recurso ao trabalho, tornou
o direito ao trabalho propriedade de todos os homens e esta propriedade
é primária e a mais sagrada e imprescritível de todas . " Mas para os seus
opositores, esta medida destruía a propriedade em vez de a proteger, pois
vários mestres das guildas estavam longe de ser filhos do trabalho, labu ­
tando sem cessar com os seus aventais de couro. Eram aristocratas que
tinham comprado sinecuras e dignidades municipais que não estavam dis­
postos a ver desaparecer em nome de uma qualquer versão teórica do
bem geral. E o mesmo acontecia com os artesãos mais genuínos, que
tinham investido capital - para não falar em anos de aprendizagem - num
sistema que lhes garantia mão-de-obra especializada e preços remunera ­
tivos. C omparado com estas seguranças, o valente mundo novo de liber­
dade económica advogado por Turgot era uma perspectiva muito ir\certa.
Mas o que fez o j ogo da oposição foi menos a substância das reformas de
Turgot e mais o modo como ele tentou implementá-las. Logo que se tornou
evidente que os Parlamentos - que ele restaurara - não iriam ser as criatu­
ras dóceis da reforma real, Turgot deu um passo atrás e optou pela aplica -
ção absolutista da lei que considerara tão repugnante em Maupeou e Terray.
Não foi ao ponto de abolir os tribunais de apelação, mas instou Luís XVI,
que tinha a maior relutância em afirmar-se absolutista, a não ter receio de
recorrer a um lit de justice caso fosse necessário. Este modo classicamente
imperioso de proceder caiu muitíssimo mal porque o próprio Turgot enco­
rajara a dévolution do poder às assembleias provinciais e criara dois destes
órgãos nas províncias do Berri e da Alta Guiana, em 1 774. Turgot via-se a
si próprio como o mais liberal dos controladores-gerais, mas foi ele quem
mais recorreu ao poder de detenção arbitrária conferido pelas lettres de
cachet, ' º e vários dos opositores das suas políticas foram parar à Bastilha.

' º Cartas assinadas pelo rei e por um dos seus ministros e seladas não com o selo da chan ­
celaria mas com um selo mais pequeno, dito "do segredo" ou "cachet" . Transmitiam convoca ­
tórias ou ordens directas do soberano, por vezes relacionadas com acções ou sentenças
arbitrárias que não eram passíveis de recurso. (N. do T. )
73

Isto foi o fim do ministro, pois garantiu que, além dos muitos inimigos
que tinha na corte, Turgot deixasse de poder contar com figuras que
tinham sido suas aliadas no governo. Na Primavera de 1 776, Turgot quei­
xou -se ao rei das facções que começavam a opor-se-lhe abertamente no
conselho e exigiu-lhe que apoiasse as reformas com o peso da sua autori­
dade . Mas fê -lo sem tacto .

S ois demasiado j ovem para avaliar os homens e vós mesmo haveis dito,
Senhor, que careceis de experiência e necessitais de um guia. Quem será
esse Guia? . . . Alguns j u lgam que sois fraco, Senhor, e houve efectivamente
algumas ocasiões em que temi que o vosso carácter sofresse desse defeito .
Por outro lado, em ocasiões mais difíceis, vi-vos dar mostras de verdadeira
coragem .

Esta abordagem professoral foi infrutífera . Passados treze dias, Turgot


foi demitido, por entre os habituais vivas ao derrube do despotismo . C om
ele foram alguns dos seus homens e muitas das suas medidas . As guildas
foram restauradas, ainda que numa forma atenuada, e foi dada às paró­
quias a escolha entre fornecerem a corvée ou pagarem um imposto .
Ficou tudo muito longe da revolução pacífica que Turgot esperara rea -

lizar. Quase por definição, para ter alguma hipótese de êxito, a sua abor-
dagem macroeconómica à resolução dos problemas económicos e
financeiros da França exigia tempo . O seu colega Maurepas, um homem
mais afável e mundano que, com setenta anos de idade, já tinha visto
muitos ministros entrar e sair, aconselhou-o a estender as suas reformas
por vários anos em vez de as implementar numa correria caótica. Mas
Turgot tinha uma pressa frenética . Era o peso da mortalidade . "Na nossa
família, morre -se aos cinquenta", retorquiu ele a Maurepas. E na sua opi­
nião, a mortalidade do regime ainda era mais premente. Sem uma acção
drástica, disse ele ao rei, "o primeiro tiro [de uma nova guerra] levará o
Estado à bancarrota" .

V A ÚLTIMA E S PERANÇA: O BANQUEIRO

Os fisiocratas, Turgot incluído, tinham sido sempre fortes nos fins e fra ­
cos nos meios. Apesar dos seus vigorosos esforços intelectuais, não se aper­
ceberam da contradição inerente à concretização do seu imponente
liberalismo através dos instrumentos do absolutismo, e até derivavam
algum orgulho de chamar política absolutista ao " despotismo legal" neces­
sário para realizar a terra prometida da mão-de-obra, do comércio e dos
mercados livres. Além disso, não contaram com as breves perturbações -
tais como os motins e as guerras - que constituíam a realidade quotidiana
Simon Schama 1 CIDADÃOS

dos E stados no século XVIII. C omo seria de esperar - especialmente dados


os sombrios avisos de Turgot em relação às calamidades que ocorreriam
caso se pensasse entrar noutra guerra -, quando surgiu no horizonte a
possibilidade de uma guerra do outro lado do Atlântico, a monarquia
virou-se para uma resposta completamente diferente .
Poder- se-ia supor que a promoção de Jacques Necker, depois de um
breve período tranquilo com o controlador-geral Clugny, representou
uma viragem da teoria para o pragmatismo . E assim foi, dado que ele
estava tão determinado a recorrer ao financiamento através de emprésti­
mos combinado com a reforma administrativa como Turgot estivera em
descartar ambos. Mas na realidade, a verdadeira autoridade que Necker
levou para o cargo de director-geral (na qualidade de protestante, estava­
-lhe interdito o cargo de controlador) era mágica. De facto, uma mística
foi substituída por outra : a do banco protestante . Enquanto homem "de
fora", Necker era duplamente abençoado. Isento de culpas pelos males
que afligiam a França católica, Necker era considerado a personificação
das virtudes toscamente associadas ao capitalismo protestante : probidade,
frugalidade e crédito impecável. Mas também por ser oriundo de fora do
sistema, Necker possuía ligações valiosíssimas ao mercado internacional
de crédito, cada ve� mais visto como uma alternativa às extorsões das gens
de finance.
A opinião pública viu em Necker um mago da banca, alguém que tirava
coelhos da cartola e dinheiro do nada . Necker foi investido do tipo de
poderes miraculosos associados ao eléctrico B enj amin Franklin, às banhei­
ras magnéticas do Dr. Mesmer ou aos balões de Montgolfier. A sua abso­
luta simplicidade pessoal estimulava a lisonja daqueles que desej avam
contrastá -lo ainda mais com os sibaríticos financiers ou com os pretensiosos
fisiocratas . Com efeito, Necker parecia o cidadão perfeito, aninhado na feli­
cidade de um casamento tão transbordante de alegrias conj ugais que pode­
ria ter sido inventado por Jean-Jacques Rousseau. A mulher, Suzanne,
presidia ao salão mais influente de Paris e difundia alguma sobriedade pro­
testante pelas elites com as suas obras de caridade j unto dos pobres e dos
doentes. Quando irrompeu em lágrimas durante uma das discussões mais
francas dos filósofos sobre o ateísmo, Grimm1 1 achou -a deliciosamente ino­
cente . Diderot, cuj os "dramas burgueses" enchiam de lágrimas o teatro
parisiense, confessou a Madame Necker: "É pena que eu não vos tenha
conhecido mais cedo. Ter-me -íeis decerto inspirado um gosto pela pureza
e pela delicadeza que teria passado para os meus livros. "
A vivacidade e o zelo da Madame Necker tinham algum eco na filha,
Germaine - a futura Madame de Stael -, e o brilho do lado feminino da
família realçava ainda mais as virtudes genuínas do sólido Jacques. Na

11 Friedrich Melchior von Grimm ( 1 72 3 - 1 807 ) , escritor francês de origem alemã . (N. do T. )
75

verdade Necker teria que ser um santo para não lhe subirem à cabeça os
elogios que acolheu a publicação do seu Éloge de Jean-Baptiste Colbert, em
1 77 3 . Mas não era. Aliás, estava algo convencido da sua infalibilidade,
como sugere uma frase extraordinária do Éloge: " S e os homens são feitos
à imagem de Deus, então o ministro das Finanças deve ser, logo a seguir
ao rei, o homem que mais se aproxima dessa imagem. "
No clima apreensivo d e uma guerra iminente, a auto - confiança inaba ­
lável de Necker era tranquilizadora, até porque a melhor ideia do anterior
controlador-geral, Clugny, fora a instituição de uma lotaria. Enquanto
Turgot viera do mundo do serviço público e da especulação filosófica,
Necker era oriundo do mundo dos negócios. Mudara-se de Genebra para
Paris aos dezoito anos de idade, para integrar o banco familiar Thélusson
et Cie, e à morte do sócio principal assumira a direcção da firma . Necker
recebera o cálice envenenado da gestão da C ompanhia das Índias
Orientais francesa mas conseguira sobreviver à ruína do imperialismo
francês no subcontinente e aj udara o governo a garantir o abastecimento
de cereais na difícil década de 60 do século XVIII. Fora esta experiência
que levara Necker a publicar um tratado sobre o comércio de cereais
durante a nova vaga de desregulação de Turgot, uma altura que o minis ­
tro não viu com bons olhos e escreveu a Necker a dizer- lho .
Genuinamente surpreendido pelo tom irado de Turgot, Necker reiterou o
seu apoio absoluto aos princípios gerais de um comércio de cereais livre .
Mas foram as suas reservas - que nomeadamente em épocas de carestia,
o governo devesse assumir a responsabilidade pela fixação dos preços e
pelo abastecimento - que tiveram eco j unto dos seus leitores numa altura
em que os campos em torno de Paris eram palco de constantes motins .
E, o que era mais importante para um governo agora dominado por
Vergennes, o ministro dos Negócios E strangeiros, Necker prometeu finan­
ciar a política americana sem incorrer nas terríveis consequências previs­
tas por Turgot. A questão que desde então tem pesado na reputação de
Necker é saber se ele cumpriu estas promessas. Até há muito pouco
tempo, a opinião consensual foi esmagadoramente negativa . A publicação
do célebre Compte Rendu au Roi - o primeiro orçamento disponibilizado
para publicação - por Necker tem sido considerada pura propaganda pes­
soal e caracterizada como o tipo de optimismo infundado que levou a
monarquia francesa a enveredar pelo caminho prazenteiro da perdição.
A queda em desgraça de Necker foi o resultado inevitável das expecta ­
tivas irrealistas que circulavam acerca das suas capacidades. Porém, ulti­
mamente, investigações mais minuciosas, em especial da sua
documentação existente no Château de C oppet, 12 na S uíça, traduziram-se
numa visão mais equilibrada, simpática e totalmente convincente da sua

12 Ú ltima residência e local de sepultura de Necker. (N. do T. )


Simon Schama 1 CIDADÃOS

gestão. E stas fontes revelam um Necker reformador, determinado mas


prudente, e não um Necker prestidigitador e fraudulento. Apesar de, à
semelhança de Turgot, considerar a prosperidade fundamental da C oroa
dependente de uma economia livre, Necker não estava disposto a sacrifi­
car ao planeamento económico de longo prazo a prioridade de restaurar
o crédito da monarquia. Para Necker, o que contavam eram as poupanças
imediatas e mensuráveis através de uma administração racionalizada e da
maximização das receitas.
Ciente de que estava fora de questão abolir de uma penada todos os
cargos venais, Necker concentrou-se nas áreas onde o desperdício era
mais conspícuo e onde os cargos venais mais privavam a C oroa de recei­
tas . Por conseguinte, aboliu 48 cargos de recebedores-gerais, cada um com
o seu tesouro para receber receitas de impostos directos, e substituiu-os
por doze funcionários directamente responsáveis perante o seu ministé­
rio . Foram igualmente despachados os 6 intendentes de finanças que
duplicavam desnecessariamente a burocracia ministerial, os 3 04 recebe­
dores de receitas das " Á guas e Florestas" e os 2 7 tesoureiros-gerais e con­
troladores -gerais dos departamentos militares. Assim foi criada a primeira
falange dos poderosos inimigos de N ecker.
A esta hecatombe de cargos defuntos, Necker acrescentou outros da
casa real, onde viu oportunidades para economizar. D a inflada bouche du
roi a cozinha real - desapareceram nada menos de 406 cargos . Ninguém
-

ficou a passar fome em Versalhes, nem à espera do j antar, dado que estes
406 cargos eram fruto de nomeações cerimoniais que permitiam aos cor­
tesãos vestir- se de gala para as ocasiões especiais e exibir a sua posição na
pirâmide de vaidades que passava por ritual da corte. D esapareceram os
1 3 chefes de cozinha e 5 assistentes da Grande Despensa, os 20 copeiros
reais ( não confundir com os 4 transportadores do vinho do rei ) , os 1 6
"apressadores" do assado real, pelotões de provadores, batalhões de apa ­
gadores de velas, brigadas de passadbres de sal e ( muito lamentavel­
mente ) os 10 aides spéciaux para os f�uits de Provence. Ao todo, foram
abolidos 5 0 6 cargos venais, com uma poupança anual de cerca de 2 , 5
milhões d e libras francesas. Os críticos d e Necker contestaram que era
uma soma que não valia o esforço, até porque o director-geral se com­
prometera a reembolsar os detentores dos cargos abolidos no total de 8
milhões de libras francesas ao longo de cinco anos. Mas isto significava
que a reforma se pagaria em quatro anos e que depois se traduziria numa
poupança líquida . Talvez de modo mais importante, representava o
regresso ao rígido controlo governamental de um gigantesco império de
patrocínios e clientelismo que se tornara o brinquedo pessoal dos corte ­
sãos. Luís XVI parecia encantado. " D esej o pôr ordem e economia em
todas as partes da minha casa e despedaçarei como vidro quem tiver
alguma coisa a obj e ctar", disse ele a um desses cortesãos, o duque de
77

Coigny. Procurando um efeito dramático, o rei atirou um cálice ao chão,


provocando uma resposta satisfatória do duque: "É melhor ser mordis­
cado do que ser despedaçado . "
Necker estava inclusivamente preparado para fazer frente aos fermiers
généraux, que comparava a uma espécie de erva daninha que florescia num
pântano . Afigura-se provável que, em condições ideais, tivesse desej ado
abolir por completo o sistema de contratos e devolver ao Estado a respon­
sabilidade pela cobrança dos impostos indirectos . Porém, de modo com -
preensível ( especialmente em tempo de guerra ) , recuou perante os
potenciais custos administrativos, para não falar no desaparecimento ime­
diato dos adiantamentos sobre as receitas. Mas Necker estava decidido a
garantir para o Estado um quinhão maior dos lucros da Ferroe, e depois do
término do "Arrendamento David", em 1 780, transferiu vários impostos,
em particular os direitos sobre o vinho e as bebidas espirituosas, para o
método mais directo da régie. O imposto continuava a ser cobrado por ter­
ceiros, mas em vez de embolsarem o total das receitas, independentemente
do seu valor, os cobradores tinham apenas direito a uma percentagem
acima de uma soma previamente estipulada. Mesmo em relação ao imposto
sobre o sal, que permaneceu apanágio da Ferroe, Necker deixou claro que
se as receitas ultrapassassem em determinado valor o dinheiro adiantado
para garantir o arrendamento, a C oroa teria direito a uma parte desse lucro.
Foi um golpe magistral, pois apontou ao cerne da questão das finanças fran­
cesas: o sistema de arrendamento fiscal propriamente dito não estava a pri­
var a Coroa de receitas; o que estava a acontecer era que quem colhia os
benefícios do rápido crescimento do produto interno bruto francês eram os
fermiers e não o Estado - já era mais do que evidente que a verdadeira área
de crescimento das receitas era nos impostos indirectos e não nos directos.
O princípio da partilha dos lucros fiscais com custos administrativos
baixos foi alargado a outras esferas manifestamente lucrativas. As messa­
geries royales, o sistema de transporte de pessoas, bens e correio que Turgot
concessionara foi convertido numa régie e começou a prosperar de forma
espectacular a partir de 1 870. Foi também aplicada uma régie à gestão dos
domínios e das florestas reais, fontes de madeira para a enorme expansão
do tecido urbano que estava a decorrer no reinado de Luís XVI, o que tor­
nou estes activos imensamente lucrativos.
Necker concebeu todas estas poupanças com um único fim em mente :
equilibrar as receitas e as despesas ordinárias da C oroa, um equilíbrio que
foi reflectido no seu Compte Rendu . A publicação deste documento, em
1 7 8 1 , foi um acontecimento . Os impressores reais e o maior editor de
Paris, Panckoucke, decidiram, com recurso a várias imprensas, fazer uma
tiragem gigantesca e praticamente inédita pelos padrões contemporâneos
- vinte mil exemplares -, e o calhamaço esgotou -se em poucas semanas.
Foi rapidamente traduzido para holandês, alemão, dinamarquês, italiano
Simon Schama 1 CIDADÃOS

e inglês, com o duque de Richmond a adquirir seis mil exemplares . Nas


palavras do pastor Rabaut Saint-Etienne, foi "uma luz no meio da escuri­
dão" . Marmont, um futuro marechal de Napoleão, chegou ao ponto de
dizer que tinha aprendido a ler com o Compte. Mas apesar de ser um cam­
peão de vendas, o documento não sobreviveu à queda de Necker. D epois
de 1 78 1 não houve mais edições e tornou-se uma espécie de bode expia ­
tório para os subsequentes controladores -gerais, em particular para
Calonne, que o caracterizou como uma fraude absurda, um fingimento de
que tudo estava bem quando na verdade tudo estava muito mal.
No cerne da acusação destes homens estava o argumento de que
Necker construíra intencionalmente um equilíbrio artificial que não tinha
nada a ver com a nova realidade do serviço da dívida. Mas Necker nunca
procurou dissimular o custo das dívidas de guerra . A intenção do Compte
Rendu foi muito diferente : destinou-se a mostrar que em tempo de paz,
enquanto os compromissos fixos da C oroa pudessem ser cumpridos com as
receitas correntes, os empréstimos para fins " extraordinários" como a
guerra podiam ser contraídos em condições mais vantaj osas do que fora
geralmente o caso durante a segunda metade do século. Para o lógico espí­
rito suíço de Necker, tudo dependia da confiança do público e do crédito.
Garantidos ambos, não havia razões para não procurar financiamento para
fins de política externa e militares que fossem considerados essenciais pelo
governo e pela opinião pública, um argumento que, dado o clima de apoio
extático à guerra americana, não seria passível de contestação.
O esgotamento fiscal de que Calonne deu conta a Luís XVI em 1 786
como sendo uma emergência e que precipitou efectivamente a Revolução
Francesa não era directamente atribuível aos financiamentos de Necker
durante a guerra ( 5 3 0 milhões de libras ) , mas aos empréstimos contraídos
pelos seus sucessores em tempo de paz e ao abandono a que votaram as
poupanças que ele conseguira . A sua contenção criara uma hoste de ini­
migos entre os detentores de cargos eliminados e existiam no governo
ministros, entre os quais Vergennes, que foram sendo cada vez mais alie­
nados pela forma e pela substância das suas políticas . Em Maio de 1 78 1 ,
Necker enfrentou a contestação de forma agressiva a o pedir a o rei que o
incluísse no conselho real independentemente do seu protestantismo e do
seu mero título de director-geral. Maurepas e Vergennes disseram que se
demitiriam se tal acontecesse . No dia 1 9 de Maio, Necker demitiu -se.
Joly de Fleury, que lhe sucedeu no cargo, restaurou imediatamente a
maioria dos recebedores e tesoureiros por ele abolidos, e Calonne lançou­
-se numa orgia intencional e flagrante de gastos em nome da monarquia,
adquirindo Rambouillet e Saint-Cloud13 e promovendo proj ectos militares

" Duas enormes propriedades que passaram a servir de residências rurais para o rei.
( N. do T. )
79

ambiciosos como os estaleiros navais de Toulon e o grande proj ecto do


porto de Cherburgo . Calonne também foi um administrativo pródigo,
abandonando os cuidadosos requisitos contabilísticos que tinham causado
tanto sofrimento no Exército, na Marinha ( especialmente no tocante às
compras a fornecedores) e na casa real. R. D. Harris observa com proprie­
dade que só em 1 786, quando se aproximou o fim da vigência do último
imposto, vingtieme, introduzido por causa da guerra, é que Calonne des­
cobriu subitamente que a relação entre as receitas e as despesas ordinárias
não era o excedente indicado no documento de Necker mas um défice de
1 1 2 milhões de libras. A situação era efectivamente de emergência; toda ­
via, não fora causada por Necker, mas sim pelos que se lhe tinham
seguido, e o mais culpado era Calonne .
Mais tarde, Necker suspirou sobre as oportunidades perdidas :

Ah ! O que não teria sido conseguido noutras circunstâncias ! S ó d e pensar


nisto, dói-me o coraçã o . E u labutei para manter o navio à tona durante a
tempestade . . . os dias da paz pertenceram a outro s .

Mas tal como acontecera com Turgot, foi em parte a sua determinação
de controlar cada vez mais as finanças que lhe custou amigos na corte. Em
particular, e talvez com razão, Necker insistiu em integrar o conselho real
em vez de assumir o papel de estranho que o seu anacrónico cargo de
director-geral implicava. Não se tratou de uma simples questão de amor­
-próprio. Necker vinha perdendo terreno no governo para as políticas
militares expansionistas de Ségur e de Castries, 14 e tentara temeraria ­
mente mediar o fim da guerra amerjcana antes que o conflito pusesse fim
à monarquia francesa . Ist � custou-lhe o apoio de Vergennes. O seu ataque
aos cargos e aos fermiers généraux granj earam-lhe muitos inimigos podero­
sos, mas foi por causa de uma questão específica que Necker insistiu em
ser admitido no conselho.
Necker sempre afirmara que qualquer programa de reformas sério
carecia de um amplo apoio político. Na sua qualidade de homem de fora
do sistema, Necker, mais do que Turgot e outros seus antecessores, estava
disposto a sair do circunscrito reino político da corte e dos Parlamentos
para o conseguir. Tinha estabelecido assembleias políticas electivas no
Berri e na Alta Guiana, para as quais tinham sido transferidas tarefas pre ­
viamente confiadas aos intendants. E stas assembleias estavam longe de
representar a reforma das instituições de cima para baixo advogada por
Turgot ( que propunha uma cadeia de órgãos electivos, desde as assem­
bleias de aldeia até uma representação a nível nacional ) , e embora os
membros das assembleias de Necker se reunissem enquadrados nas três

14 Respectivamente, ministro da Guerra e secretário de Estado da Marinha . ( N. do T. )


Simon Schama 1 CIDADÃOS

ordens tradicionais do Estado, os representantes do Terceiro Estado - os


comuns - estavam pela primeira vez presentes em "número duplo" para
igualarem o número de deputados do clero e da nobreza. Foi quando se
deparou não só com a resistência mas com a total indiferença do intendente
do Bourbonnais em relação à sua proposta de estabelecimento de uma ter­
ceira assembleia em Moulins que Necker apresentou o seu pedido ao rei. De
facto, a posição em que se encontrava era de tal ordem que ele teve de pedir
a um dos seus inimigos, Miromesnil, para transmitir a proposta ao rei
durante uma sessão do conselho, o que o ministro se negou a fazer.
Necker enfrentou vezes sem conta os paladinos das tradições do
regime anterior mas nenhuma das suas ofensas foi mais sentida do que o
princípio central do seu Compte Rendu, o princípio do escrutínio público .
Um dos seus críticos afirmou que a essência da governação régia estava no
secretismo e que "Muito tempo passará até que Vossa Majestade cure este
ferimento infligido à dignidade do trono" . Mas para Necker, o cerne da
questão era precisamente instituir alguma responsabilização na governa­
ção francesa. Nas mãos de homens íntegros e competentes como Bertrand
Dufresne, o seu leal assistente, esta publicidade não era uma desvantagem
mas sim uma pré -condição para o sucesso financeiro . Era a essência do
crédito. Além de muitas outras coisas, o Compte Rendu foi um exercício de
educação pública. A sua linguagem intencionalmente simples e o seu
esforço para tornar um relatório financeiro legível pelo homem comum
dão testemunho da sua tentativa de formar cidadãos empenhados.
A questão foi, pois, muito mais do que o estilo de gestão fiscal. Nasceu
de um tema profundo e apaixonado da cultura francesa de finais do
século XVIII, um tema que transvazou da moralidade pessoal para a
pública e que as tornaria inseparáveis no discurso e na conduta da
Revolução . E ste tema era a oposição entre a transparência e a opacidade,
a franqueza e a dissimulação, o interesse público e o interesse pessoal, a
rectidão e o fingimento. A Revolução faria das maneiras do Antigo
Regime, com a sua ênfase nas insinceridades polidas, uma forma de trai­
ção . No entanto, sob a forma de intrigas de corte, elas foram suficientes
para dissuadir o rei de apoiar o seu reformador de maior sucesso.
Para Necker, preservar o secretismo era salvar o despotismo. Era imo­
ral mas também imprudente . Na óptica de Necker, a verdadeira diferença
entre o crédito britânico e o crédito francês era a capacidade de os britâ­
nicos utilizarem instituições representativas como o Parlamento (por
muito imperfeitas que fossem ) para simbolizar a relação de confiança e
consentimento entre governantes e governados . Segundo o que Necker
escreveu: "O elo forte entre os cidadãos e o E stado, a influência da nação
sobre a governação, as garantias das liberdades cívicas ao indivíduo e o
apoio patriótico que o povo dá ao governo em todas as situações de crise
contribuem para tornar os cidadãos ingleses únicos no mundo . "
81

Mas s e era insensato tentar instituir u m simulacro da história consti­


tucional inglesa em França, deveria ter havido pelo menos uma tentativa
concertada de avanço nessa direcção. Necker acreditava que a pior conse­
quência da sua demissão era ter atingido a união entre redução fiscal e
liberalização política antes mesmo de ela ter começado . A existir outra
altura em que Necker e a reforma voltassem a parecer uma solução - a
única solução - seria provavelmente em circunstâncias de agitação trau­
mática . Outros temeram o pior. Grimm refere que quando a notícia da
demissão de Necker se espalhou,

Parecia que se tratava de uma calamidade pública . . . as pessoas olhavam -se


mutuamente num desconsolo silencioso e apertavam tristemente as mãos
umas das outras ao passare m .
3

O Ab solutismo Atacado

1 AS AVENTURAS D E MONSIEUR GUILLAUME

Numa manhã de Agosto de 1 7 76, nas docas de Roterdão, um cava ­


lheiro entroncado de ar andraj oso, com o tricórnio descuidadamente
encavalitado em cima de uma peruca que já tinha visto melhores dias,
observava intensamente as vagarosas barcaças carregadas de madeira que
desciam o canal em direcção a D ordrecht enquanto ia fumando o seu
cachimbo. Era uma cena perfeitamente banal, mas parecia-lhe espantosa.
Descreveu -a no diário como "um dos espectáculos mais singulares que
presenciei em toda a minha vida : uma cidade flutuante de madeira à qual
estava pregada uma bela casa feita de tábuas" . Movido pela curiosidade,
quando a barcaça seguinte parou, perguntou se podia visitar a cabina flu ­
tuante. Foi recebido a bordo por uma mulher "de alguma idade" que, para
seu espanto, se revelou a proprietária de toda aquela frota. Ela recebeu-o,
escreveu ele, " com toda a honestidade, puramente na minha qualidade de
viaj ante " .
O viajante, conhecido nas suas muitas viagens como simplesmente
"Monsieur Guillaume", era provavelmente o homem mais querido de
França. Chamava-se Chrétien- Guillaume de Lamoignon de Malesherbes e
três meses antes fora colega de Turgot e mestre da Casa Real. Para
Malesherbes, aquela visão de um maná flutuante, dirigido por uma formi­
dável barqueira, era o mais distante da França do Antigo Regime que ele
poderia encontrar. À semelhança de toda a República Holandesa, procla­
mava riqueza, a liberdade de bens e pessoas e as dignidades singelas que
contrastavam tão acusadoramente com a corte de Versalhes, o seu ponto
de partida . O "Monsieur Guillaume" gostava muito da Holanda .
Milagrosamente, pensou ele - tal como toda uma multidão de ilustres visi­
tantes franceses que incluía Diderot, Montesquieu e d' Argenson -, tinha
preservado a simplicidade de costumes mesmo no auge do seu poder. Além
do mais, era uma nação de fumadores de cachimbo, e na sociedade fran­
cesa só era permitido o rapé, com as suas caixinhas de esmalte, os seus len­
cinhos rendados e as suas esquisitas manobras com o polegar e o indicador.
Na Holanda, ninguém parecia dar muita importância às aparências, e
83

ainda bem: Malesherbes era célebre por andar sempre vestido - mesmo
na corte - com o seu imundo casaco castanho e calção e meias pretas,
parecendo-se mais com um farmacêutico de província do que com um
ministro do rei.
Malesherbes adorava viaj ar e as exonerações de que fora regularmente
alvo (o preço que pagara pela sua mente independente ) tinham-lhe pro­
porcionado tempo para se dedicar à sua verdadeira vocação: a botânica.
Pouco depois de apresentar a sua carta de demissão a Luís XVI no segui­
mento da "desgraça" de Turgot, partiu para uma viagem a pé ao Sudoeste,
com o intuito de observar a viticultura e os pinhais das zonas arenosas das
Landes, a sudoeste de B ordéus. Malesherbes dizia que a sua verdadeira
missão na vida era refutar as teorias naturalistas de B uffon, que denun­
ciava como patife e idiota, e reabilitar a obra do seu mestre intelectual,
Lineu . Malesherbes concretizaria esta empresa magna com os quarenta
volumes do seu Herbier e com o j ardim botânico científico mais extenso
de França . Para Malesherbes, o seu castelo era uma espécie de barracão de
j ardim glorificado com uma biblioteca de botânica de mil livros. A grande
colecção botânica de Malesherbes incluía cornizos da Virgínia, j uníperos
da Pensilvânia, abetos do Canadá, árvores-da-borracha tropicais e noguei­
ras brasileiras. Até tinha transplantado vários ulmeiros que mandara vir
de D over num navio fretado para o efeito . Para Malesherbes, a visão mais
dolorosa do mundo - a seguir às condições nas prisões de Paris - era uma
floresta queimada como a que ele encontrara durante a sua longa deam­
bulação pela Provença, em 1 76 7 . Na Holanda, a sua mente enciclopédica
disparou . Enfeitiçado por uma cultura em que ao desastre natural res­
pondia o engenho natural, Malesherbes tudo observava. C olónias de coe­
lhos tinham ameaçado as dunas, mas os Holandeses tinham respondido
descobrindo uma espécie de árvore com raízes pouco fundas que fixava a
areia . Até as algas marinhas eram usadas para reforçar os diques. Deitado
numa cama limpa, numa quente manhã de Agosto, na ponta norte da
Holanda, Malesherbes sentiu -se finalmente limpo da suj idade das políti­
quices da corte .
Nunca foi verdadeiramente feliz no cargo. Dois anos mais tarde, na
S uíça, um pastor tentou oferecer ao anónimo e douto disputante um
vicariato vago. Quando Malesherbes se tentou esquivar, o pastor j ulgou
que ele estava a pôr em causa o seu direito de o nomear e, para o tran­
quilizar, disse-lhe, "Mais moi, ministre", ao que o seu interlocutor, des­
cartando temporariamente o anonimato, retorquiu, "Et moi, ex-ministre" .
Na verdade, Malesherbes adorava repudiar a autoridade oficial. Tinha
dito que não ao seu amigo Turgot na primeira ocasião em que o
controlador-geral tentara convencê -lo a aceitar um cargo, em 1 7 74.
Pouco depois de deixar o governo, deu consigo numa estalagem onde
dois homens lamentavam a demissão do excelente Monsieur de
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Malesherbes. Pois o "Monsieur Guillaume" contestou com veemência a


capacidade do ex-ministro para ocupar o cargo, insistindo que Malesherbes
não era talhado para tais funções.
É claro que havia nesta atitude um elemento de satisfação pessoal.
Malesherbes, que era admirador de Rousseau - com quem se correspon­
dia -, assumia conscientemente uma postura de honnête homme. A sua
incúria na maneira de vestir enquanto mestre da Casa Real não era uma
questão de distracção desmazelada mas sim um desafio intencional à eti­
queta de Versalhes, que prescrevia vestuário da corte para os ministros .
Se a economia i a estar n a ordem d o dia, q u e começasse p o r ele .
E Malesherbes marco u ainda mais pontos com a história (provavelmente
verdadeira ) de que o famoso mestre de dança Marcel, contratado para o
ensinar na j uventude, desistira frustrado da missão e avisara o pai
Malesherbes de que, com aqueles modos e atitudes, o filho nunca pode­
ria ter esperanças de êxito em nenhuma carreira de distinção pública ou
política . Ao contrário do outro modelo do honnête homme por excelência,
Benj amin Franklin, Malesherbes era praticamente incapaz de hipocrisias
ou calculismo social, e sofreu desastres e infelicidades pessoais suficien -
tes para se tornar querido de uma geração que via no sofrimento uma
insígnia de nobreza . Em 1 7 7 1 , Malesherbes encontrou o corpo da
mulher, Marie-Françoise, filha do fermier général Grimod de La Reyniere,
no bosque perto de sua casa . Com a habilidade de um especialista, ela
atara um rifle a uma árvore, encostara o cano ao peito e puxara a fita que
tinha atado ao gatilho. Rousseau, ao apresentar as suas condolências,
escrevera o melhor encómio que pudera, que " ela não sabia fingir nem
enganar. D eve haver pelo menos algum consolo na aflição que todos os
corações sensíveis sentem" .
E m Malesherbes residiam todas a s contradições políticas d a nobreza do
Antigo Regime. Dado que era temperamentalmente inadequado para a
corte, Turgot pô-lo à frente da Casa Real. Malesherbes fingiu não reparar
nas criaturas dos grands appartements1 que se riam à socapa do mocho caído
no meio dos pavões e serviu-se da sua reputação inatingível para prepa­
rar o caminho para o ataque de Necker aos cargos da corte . Malesherbes
não tinha no seu cadastro nada que j ustificasse o seu aspecto nem os seus
modos. A sua família era uma das dinastias mais eminentes da nobreza de
França . Malesherbes, que não era nada ganancioso, ligara-se pelo matri­
mónio a uma das famílias mais ricas. Embora a sua família tivesse ascen­
dido à proeminência, com o cardeal Mazarino, como um grande clã da
toga - a nobreza judiciária -, também tinha, à semelhança de muitas
outras famílias, ocupado cargos régios e nos tribunais soberanos que se

' Os aposentos de Estado, no Palácio de Versalhes, compostos pelo grand appartement du


roí e pelo grand appartement de la reine. (N. do T )
85

tinham convertido numa oposição não oficial ao absolutismo. O pai de


Malesherbes fora chanceler e o primo, Lamoignon, seria o mais resoluto
guardião dos Selos de Luís XVI.
Quando Malesherbes assumiu um cargo, com Luís XV, exerceu-o de
modo a limitar e não a reforçar a autoridade do absolutismo . Iniciou a sua
carreira no Parlamento com vinte anos de idade . Entre 1 7 5 0 e 1 77 5 ,
Malesherbes ocupou duas posições cruciais para a defesa daquilo que, em
comum com muitos membros da elite, via como liberdades fundamentais.
A primeira era a liberdade de leitura. De 1 7 5 0 a 1 7 6 3 , Malesherbes foi
directeur de la librairie, o homem que decidia se um livro devia ou não ser
publicado. E scusado será dizer que cumpriu o seu mandato com uma ati­
tude criativa . Durante o seu consulado, foi publicado praticamente tudo o
que não era ateísmo declarado, textos pregando o regicídio e pornografia .
Mais importante ainda, Rousseau e os editores da Encyclopédie, Diderot e
d' Alembert, receberam de Malesherbes a protecção de que necessitavam
para produzir a sua grande obra. Em 1 7 5 2 , o conselho real, furioso com
os artigos do segundo volume que atacavam os Jesuítas, exigiu a supres­
são da obra e determinou multas pesadas para quem fosse apanhado a
imprimi-la ou a distribui-la. Malesherbes recebeu ordens para confiscar
todos os manuscritos, chapas e exemplares com ou sem encadernação.
Mas em vez de cumprir as suas ordens, Malesherbes avisou Diderot antes
que a polícia chegasse e persuadiu - o a esconder o exemplar criminoso em
sua casa, partindo correctamente do princípio de que seria o último lugar
onde a polícia procuraria material incriminatório .
No seu outro cargo, o de presidente do Tribunal Fiscal de Apelação,
Malesherbes revelou -se igualmente disposto a defender o cidadão (esta
palavra era comummente usada ) dos agentes do absolutismo. O Tribunal
Fiscal de Apelação tinha por missão quase exclusiva ouvir os apelos con­
tra decisões dos tribunais administrativos das autoridades fiscais e finan­
ceiras : funcionários aduaneiros, cobradores de direitos e comissários dos
fermiers généraux. Isto fazia do Tribunal uma das instituições mais popula­
res do Antigo Regime, e a sua reputação era provavelmente realçada pelo
facto de a maioria dos seus advogados e magistrados provirem de um
estrato mais baixo da nobreza do que os grands dos Parlamentos.
O presidente era capaz de ser tenaz como um perdigueiro quando se
convencia de que tinha sido cometida uma inj ustiça . Por exemplo, um
vendedor ambulante do Limousin chamado Monnerat foi preso por sus­
peitas de prática de contrabando e encarcerado nas celas subterrâneas
da prisão de B icêtre durante vinte meses sem nunca ser ouvido. D epois
de ser liberto tentou, através do Tribunal Fiscal de Apelação, obter uma
indemnização dos fermiers généraux. Acabou por ser novamente detido e
Malesherbes retaliou mandando prender o funcionário da Ferm e .
Seguiu -se um choque frontal entre o Tribunal Fiscal de Apelação e o
Simon Schama 1 CIDADÃOS

controlador-geral, Terray, que só chegou ao fim quando este dissolveu o


tribunal. A C oroa ficou temporariamente na mó de cima, mas o episódio
garantiu que, quando Luís XVI o reactivou, o tribunal passasse a ser con­
siderado como o grande protector dos súbditos contra a j u stiça adminis ­
trativa arbitrária .
O Tribunal Fiscal de Apelação tinha uma segunda função que n ã o era
menos importante. À semelhança dos treze tribunais superiores do
Parlamento, gozava do direito de "registar" qualquer édito real. S ó com
esta ratificação podia o édito tornar- se lei, embora a C oroa pudesse ultra ­
passar uma recusa prolongada de registo realizando um lit de justice e orde­
nando a sua execução. Também em comum com os Parlamentos, o
Tribunal Fiscal de Apelação tinha poder de "remonstrância " . E ste poder
caíra em desuso no auge da realeza, no século XVII, mas depois da morte
de Luís XIV, em 1 7 1 5 , o regente restaurou-o e, de um só golpe, rej uve­
nesceu a autoridade política dos tribunais. As remonstrâncias eram
admoestações críticas ou protestos - frequentemente sob a forma de lon -
gos sermões - contra políticas consideradas violações das "leis fundamen­
tais" do reino . Como veremos, não havia consenso sobre o que
compreendia este corpo de leis fundamentais, mas, à medida que as polí­
ticas fiscais de Luís XV se foram tornando mais agressivas no seguimento
de cada uma das suas guerras, as remonstrâncias que as censuraram tor­
naram-se também mais frequentes e combativas.
A maioria das remonstrâncias com origem no Parlamento tinha a ver
com a quebra de privilégios decorrente de impostos como a vingtieme, ape ­
sar d e o Parlamento declarar q u e estava a reagir a ataques às "liberdades",
mas as que tiveram origem no Tribunal Fiscal de Apelação, a partir de
1 7 5 9, foram de carácter muito mais radical. Malesherbes usou a sua pre ­
sidência para atacar todo o sistema fiscal, em especial as iniquidades da
avaliação e da cobrança. Em primeiro lugar, argumentou ele, seguindo
Montesquieu, a monarquia francesa medieval nunca tinha cobrado
impostos sem o consentimento do povo, reunido nos E stados Gerais. Em
segundo lugar, era axiomático que o número total de impostos não devia
exceder as necessidades comprovadas do E stado, e para restaurar a rela­
ção conecta entre receitas e despesas necessárias teria de se introduzir
alguma forma de responsabilização pública . Em terceiro lugar, havia que
eliminar as desigualdades da taxação - entre as diferentes classes sociais e
entre as diferentes regiões do país .
Em 1 7 7 1 , Malesherbes foi ainda mais longe. Exasperado pela obstru­
ção parlamentar, o chanceler Maupeou persuadira Luís XV a tomar medi­
das drásticas. O s tribunais soberanos foram pura e simplesmente
dissolvidos e substituídos por grupos de magistrados que fariam o que a
C oroa lhes mandasse. Em Fevereiro de 1 7 7 1 , Malesherbes publicou uma
remonstrância em nome do tribunal que, pouco depois, garantiu a sua
87

dissolução, mas não antes de Malesherbes atacar violentamente a corte por


violar direitos fundamentais de propriedade ao destituir os membros do
Parlamento dos seus cargos. A sua censura seguiu a linha parlamentar acei­
tável mas com uma ferroada: Malesherbes concluiu argumentando que
dado que a "nação" fora privada de "órgãos intermediários" que pudessem
defender as suas "leis fundamentais", a única alternativa restante ao despo­
tismo era convocar uma assembleia da nação, presumivelmente os Estados
Gerais. "O testemunho incorruptível dos seus representantes mostrar-vos-á
pelo menos se é verdade, como afirmam incessantemente os vossos minis­
tros, que os magistrados violam a lei, ou se a causa que hoj e defendemos
não é a do Povo por quem e para quem reinais."
A base condicional ou mesmo contratual desta soberania estava muito
afastada do absolutismo proclamado pela declaração formal de Luís XV no
lit de justice: "a nossa C oroa emana exclusivamente de Deus . " Em Março,
o rei convocou o recalcitrante presidente a Versalhes para assistir à mor­
tificadora cerimónia na qual o monarca anularia pessoalmente a remons­
trância do tribunal. Mas no caminho para a sua humilhação ritualizada,
deu-se um acontecimento extraordinário. Quando Malesherbes chegou à
porta dos aposentos reais, a muralha de peralvilhos decorativos, que fazia
questão de tratar com superioridade os magistrados vestidos de negro,
abriu -se para permitir ao desmazelado homenzinho gordo o acesso
directo ao rei. Um colega de Malesherbes recordaria mais tarde aquele
gesto de inesperada deferência como "assombroso" e descreveria o "res­
peito e a consideração . . . ainda mais espantosos porque os homens da
toga . . . têm por vezes dificuldade em entrar [nos] aposentos, mesmo tendo
o rei solicitado a sua presença " .
A s esperanças que Malesherbes tinha para o novo reinado eram que
Luís XVI pudesse ser salvo da corte . Por conseguinte, decidiu relutante ­
mente integrar o governo de Turgot com a promessa de que não iria parar
ao mundo dos "pequenos amos ", como ele chamava desdenhosamente
aos cortesãos, e para não ser mal interpretado, antes de assumir o cargo
publicou uma última remonstrância condenando de forma implacável o
espírito e a letra da governação francesa. O grosso deste longo tratado,
construído com uma argumentação poderosa, consta de um ataque aos
abusos dos fermiers généraux e dos seus funcionários e às iniquidades da
talha, e aborda a necessidade de substituir o precioso "secretismo " da
administração pelo escrutínio público e pela responsabilização. Mas
Malesherbes faz também questão de reiterar que esta necessidade significa
destruir o poder burocrático dos intendentes e substituir a autoridade
electiva das assembleias locais e provinciais . Só quando a Coroa puder
contar com uma representação nacional leal é que o governo será tratado
como uma imposição na qual se pode confiar e não uma imposição des­
pótica por parte daqueles que presume governar.
Simon Schama 1 CIDADÃOS

E scusado será dizer, Luís XVI não percebeu. Em vez de ver na remons­
trância um apelo à alteração da natureza fundamental da governação,
viu -a como uma defesa enfadonha de medidas avulsas às quais não se
opunha particularmente . De forma idêntica, no mesmo ano, a Mémoire sur
les Municipalités de Turgot, que propôs uma descentralização ainda mais
drástica da governação, a começar com assembleias de aldeia e chegando
até a uma representação nacional, não causou grande impressão no
monarca . As exortações de Malesherbes para que o rei desse publica­
mente mostras de uma nova franqueza e espírito de serviço público caí­
ram praticamente em saco roto ou foram derrotadas pelas exigências de
decoro tradicional avançadas por Maupeou. Assim, apesar de Luís XVI ter
ficado satisfeito por Malesherbes ir visitar as prisões de Bicêtre e da
Bastilha ( de onde saiu horrorizado com as condições das piores celas ) ,
declinou o s pedidos d o ministro para que o acompanhasse, e também se
negou a abolir, contra as fortes recomendações de Malesherbes, as lettres de
cachet ( o instrumento através do qual a C oroa podia ordenar a detenção e
o encarceramento sem audição prévia dos visados ) . Quanto às propostas
de tolerância pública do protestantismo, tão queridas de Malesherbes,
foram acolhidas com palavras ocas e pouco mais .
As grandes esperanças colocadas em Luís XVI aquando da sua coroa­
ção estavam a esfumar-se rapidamente . No entanto, a remonstrância de
Malesherbes e a memória de Turgot, ao terem como autores dois dos
homens mais poderosos de França, constituíram um guia para uma
monarquia alternativa em França : uma monarquia local e não centrali­
zada, electiva e não burocrática, pública e não clandestina, legal e não
arbitrária.
Pouco tempo depois, Malesherbes teve problemas com a rainha ao
negar- se a nomear um dos seus favoritos para uma embaixada . Mas
depois da queda do seu amigo Turgot, Malesherbes partiu de consciência
tranquila : não tinha comprometido a sua independência com a mácula
do cargo. Regressou ao seu solar, onde passava o tempo a cuidar das
plantas e imerso na sua biblioteca até altas horas da noite, vestido num
roupão de flanela cinzento e de barrete de dormir na cabeça . Mas
Malesherbes não deixou de acreditar na monarquia . O ano de 1 7 7 5 tam­
bém assistiu à sua entrada triunfal para a Academia Francesa, onde pro­
feriu uma palestra inaugural plena de optimismo e de crença num futuro
brilhante para a França . Na verdade, o seu destino e o destino do seu
soberano estavam mais ligados do que ele teria alguma vez imaginado.
Malesherbes voltaria a desempenhar o papel de advogado e o seu infeliz
cliente seria Luís XVI.
89

II A S OBERANIA REDEFINIDA: O D E SAFIO D O S PARLAMENTOS

Tal como o tempo demonstraria, Malesherbes não era nenhum revo ­


lucionário . O tom ríspido do seu ataque ao "despotismo" e à "tirania
ministerial" teria sido impensável se não tivesse sido admitido pelo uso
prolongado nas polémicas dos Parlamentos. D esde a década de 5 0 do
século XVIII que o tom da resistência parlamentar às políticas reais era de
uma veemência irada . Quanto mais a C oroa procurava desesperadamente
remédios para a sua aflição financeira, recorrendo a impostos que inci­
diam de igual modo sobre privilegiados e não privilegiados, mais furiosos
foram ficando os Parlamentos e a sua beligerância foi muito mais do que
um ataque de mau feitio colectivo . Representou um esforço concertado
para substituir o absolutismo ilimitado de Luís XIV por uma monarquia
mais "constitucional" . Neste novo regime, os Parlamentos seriam os árbi­
tros do poder legítimo, os representantes da "Nação" que controlariam
todo e qualquer excesso da autoridade governamental.
Neste processo de mutação de uma monarquia absoluta para uma
monarquia " mista ", os Parlamentos foram auxiliados por uma mudança
de ênfase na autodefinição do governo . Acompanhando a invenção
setecentista da teoria da administração (principalmente mas não exclu ­
sivamente na Alemanha ) , os funcionários da C oroa tinham-se acostu ­
mado a expressar a sua lealdade não à pessoa do rei mas à entidade
impessoal do E stado. O s intendentes, que eram referidos como commis­
saires départis do governo central, consideravam -se essencialmente a si
próprios como órgãos administrativos do conselho real e não emanações
do poder dinástico . E sta alteração foi notada por um amigo de Turgot, o
abade Veri . " O s lugares - comuns da minha j uventude " , observou ele,
" [como] 'servir o rei', desapareceram dos lábios dos Franceses . . . Seria
um atrevimento dizer que substituímos 'servir o rei' por 'servir o
Estado', uma palavra que, desde os tempos de Luís XIV, é considerada
uma blasfémia? "
Esta distinção subtil mas importante não pode s e r atribuída a um
Luís XV indeciso. No fim do seu reinado, à medida que as disputas com os
Parlamentos por causa das políticas religiosas e fiscais se foram tornando
mais acrimoniosas, também o monarca se tornou mais absolutista.
A morte prematura do delfim, em 1 76 5 , colocou no horizonte a possibili­
dade de um novo período de incerteza política até o neto de Luís XV atin­
gir a maioridade. Nestas circunstâncias, terá parecido especialmente
importante reiterar de forma inequívoca os princípios irredutíveis e basi­
lares da monarquia. Refutando a afirmação do Parlamento de Rouen de
que na cerimónia de coroação Luís XV jurara fidelidade à nação, o
monarca interrompeu a leitura da remonstrância parlamentar para decla­
rar, com alguma indignação, que apenas jurara fidelidade a Deus. No
Simon Schama 1 CIDADÃOS

documento que lhe redigiu Gilbert de Voisins, no princípio de 1 766, e que


no dia 3 de Março foi utilizado como instrumento de humilhação do
Parlamento de Paris, Luís XV desenvolveu a visão tradicional do absolu­
tismo de uma forma peremptoriamente clara.

O poder soberano reside exclusivamente na minha pessoa e só a mim


devem os tribunais [os Parlamentos] a sua existência e autoridade. E sta . . .
autoridade só pode ser exercida em meu nome . . . não pode ser virada con­
tra mim porque o poder legislativo me pertence exclusivamente, sem
nenhuma condição ou partilha . A ordem pública emana da minha pessoa
porque eu sou o seu guardião supremo . O meu povo e a minha pessoa são
indivisos e os direitos e interesses da nação - que alguns presumem tornar
uma entidade separada do monarca - estão necessariamente unidos aos
meus e só podem estar nas minhas mãos.

Esta declaração de Luís XV irradiou uma fúria fria face às pretensões


da ideologia parlamentar. Mas a postura defensiva das contra- declarações
do monarca sobre a indivisibilidade do poder legislativo foi um reconhe ­
cimento implícito de que este axioma se encontrava efectivamente amea­
çado. D esde há quinze anos, pelo menos, os Parlamentos vinham
tomando a iniciativa no desenvolvimento de algo parecido com uma teo­
ria constitucional da governação que praticamente substituía o absolu ­
tismo por uma versão muito mais limitada e dividida da monarquia.
Quais eram as instituições responsáveis por esta transformação? Os
Parlamentos não eram, tal como o seu nome poderá sugerir os equiva ­
lentçs franceses das câmaras parlamentares britânicas . Eram treze tribu­
nais soberanos, sedeados em Paris e nas capitais provinciais, cada um
compreendendo um corpo de 5 0 a 1 3 0 j uízes nobres ( consoante o
Parlamento ) . As áreas de jurisdição dos Parlamentos variavam muito
entre si. Por exemplo, alguns dos que se localizavam nas áreas mais
remotas, como o B éarn, no Sudoeste, e Metz, na fronteira oriental, fun­
cionavam como tribunais regionais. Pelo contrário, o Parlamento de
Paris exercia j urisdição sobre uma área enorme do C entro e do Norte de
França, que ia do Norte da B orgonha, passando pela Ilha de França e
pelo Orléannais, até à Picardia, na costa do C anal. O âmbito das suas
funções era igualmente amplo; apreciavam casos de apelação e uma
grande variedade de casos de primeira instância - os cas royaux , desde -

acusações de lesa-maj e stade, sedição e banditismo de estrada à utilização


indevida do selo real, a desvalorização da moeda ou outros tipos de con­
trafacção e falsificação de documentos (um crime capital numa socie ­
dade em que o poder burocrático era sumamente importante ) . O s
Parlamentos tinham ainda j urisdição sobre a maioria d o s casos criminais
e cíveis envolvendo membros das ordens privilegiadas, e funcionavam
91

como censores d o teatro e da literatura e guardiães d o decoro social e


moral . Mas o que tornava o seu poder especialmente difícil de circuns­
crever era o facto de partilharem com os burocratas do rei - os intenden­
tes e os governadores - a responsabilidade administrativa pelo
abastecimento das cidades, a fixação dos preços em tempos de carestia e o
policiamento das feiras e mercados.
Os Parlamentos eram, pois, uma instituição e um ethos. Nos dinâmicos
centros comerciais da França - como Bordéus -, constituíam o meio atra­
vés do qual a riqueza se traduzia em estatuto legal e dignidade política.
Nas modorrentas cidades de província - como Dij on, Grenoble e
Besançon -, a economia e a sociedade da região giravam em torno da sua
presença : regimentos de escribas, amanuenses, advogados, litigantes e
livreiros, para não falar nos membros das profissões e ofícios auxiliares
que sustentavam o seu estilo de vida aristocrático, nomeadamente os
fabricantes de coches, alfaiates, peruqueiros, traiteurs, marceneiras, mes­
tres de dança e serviçais de libré . E este sentimento de solidariedade social
entre os robins a nobreza judiciária da toga - e os seus concidadãos era
-

representado todos os Novembros nos grandiosos espectáculos que sau ­


davam o seu regresso às sessões parlamentares depois das férias. Para esta
"missa vermelha", trocavam a habitual toga preta por uma vermelha, des­
filavam pelas ruas da cidade acompanhados pela milícia e por músicos,
recebiam a bênção do clero para o novo ano parlamentar e só depois de
mais palhaçadas solenes, com andanças de um lado para o outro nos
rituais e salamaleques de obediência mútua (por vezes chamados "dança
dos presidentes " ) é que tomavam finalmente os seus lugares.
Em muitos dos complexos parlamentares, o edifício que albergava o
tribunal era conhecido por palais de justice, mas era em Paris que o título
adicional do recinto mais adequadamente simbolizava as suas pretensões
senatoriais: Capitólio da França . C olado a Notre Dame e às Tulherias, o
imenso complexo albergava o que os contemporâneos descreviam como
uma cidade em miniatura. O pátio era um bazar onde ecoava a algazarra
dos pregoeiros e dos vendedores ambulantes, um formigueiro de nego­
ciantes de toda a espécie - vendedores de fitas, de limonada, de livros.
Muitos dos que vendiam nas bancas eram especializados em gravuras e
sátiras baratas, frequentemente contra o governo, e estavam protegidos
contra a polícia naquele santuário da j ustiça. E ra um lugar para onde as
correntes ricas e lamacentas dos boatos, dos rumores e dos escândalos
convergiam para alimentarem um espesso rio de sugestões que fluía do
Palácio da Justiça para as ilhas de jornalistas e traficantes de calúnias que
esperavam nas margens do Sena pelas notícias do dia .
Nas câmaras do Palácio, os presidentes e conselheiros do tribunal afir­
mavam o estatuto que tinham no reino através de todo o tipo de expres ­
sões simbólicas. O mero aspecto d a grande " câmara dourada" fora
Simon Schama 1 CIDADÃOS

concebido para intimidar: o tecto estava decorado com relevos e florões


encimados e ornamentados com brasões, e as paredes estavam adornadas
com retratos de soberanos e quadros históricos representando a maj e s ­
tade d o j ulgamento. Os robins sentavam-se em bancos ataviados com flo ­
res-de-lis q u e estavam expressamente vedados a o s meros duques e
outros pares " de espada " (a nobreza militar) e ao " sangue" ( a dinastia
real e os seus rebentos ) . Em 1 68 1 , o presidente Potier de Novion tivera
audácia e sangue-frio para não tirar o chapéu na presença dos duques de
sangue real, e os Parlamentos tinham preservado este direito, uma ques­
tão que nos poderá parecer uma coisa de somenos importância mas que
no século XVIII proclamava bem alto que era a nobreza de espada que
lhes devia deferência e não o contrário . Até a natureza do chapéu parla ­
mentar, o capelo preto decorado com fitas e borlas douradas, era suges­
tiva de uma relação directa com a C oroa, pois era considerado pelos
antiquários dos Parlamentos a representação da coiffe royale atribuída por
Filipe, o B elo, aos seus tribunais soberanos .
Não admira, pois, que os robins fossem extremamente conscientes da
sua dignidade colectiva e temerosos de quaisquer tentativas de usurpa ­
ção da autoridade que exerciam. Os Parlamentos tornaram-se inevitavel­
mente fóruns de declarações políticas articuladas através das suas
remonstrâncias, proferidas quando os éditos reais requeriam o registo
nos Parlamentos para poderem entrar em vigor. Era neste requisito que
os seus ideólogos viam o princípio de assentimento que diziam tornar a
monarquia condicional e não absoluta. Este argumento tinha uma base
histórica . Embora fosse verdade que os Parlamentos datavam apenas do
século XIII, os seus ideólogos propunham uma linhagem muito mais
antiga. Em 1 740, o abade Laboureur, na sua Histoire de la Pairie de France,
afirmou que "o Parlamento representa a nação francesa no seu estado
antigo ", e uma hoste de antiquários determinados vasculhou cartas e
capitulares antigas para provar que o Parlamento descendia das assem­
bleias francas da Alta Idade Média . Por conseguinte, a sua linhagem não
era apenas contemporânea como também mesmo anterior à fundação da
monarquia franca . Tal como tantos outros passados úteis inventados
pelos teóricos constitucionais dos séculos XVII e XVIII, os antiquários
franceses situaram o nascimento da liberdade nas florestas teutónicas
onde as hostes montadas dos Francos se congregavam, de lança na mão,
em assembleias primitivas, e estas assembleias tribais tinham delegado o
poder aos chefes que se haviam tornado os "reis da primeira raça" - os
Merovíngios.
O significado de tudo isto era que os Parlamentos nunca tinham sido
uma criação dependente da monarquia (ao contrário do que afirmava
Luís XV) . C omo condição da sua fundação e durante toda a Idade Média,
a C oroa tinha reconhecido que o poder que detinha estava limitado pela
93

responsabilização perante a lei. Os cães de guarda desta responsabilização


eram os Parlamentos, e só eles decidiam quando e onde o insinuante des­
potismo ameaçava sobrepor- se à legítima autoridade régia. Não se tratava
de uma visão esotérica confinada aos trocadilhos dos antiquários . Baseado
em trabalhos históricos anteriores, O Espírito das Leis, de Montesquieu,
publicado em 1 748, conferiu -lhe uma enorme respeitabilidade política e
ampla circulação . Montesquieu era presidente do Parlamento de B ordéus,
e numa altura em que os Parlamentos diziam proteger as "liberdades dos
Franceses" da política fiscal da C oroa, o livro foi um sucesso de vendas -
doze edições em seis meses. Em Abril de 1 7 5 0, o chevalier de S olar con­
gratulou Montesquieu pelo que disse ser a vigésima segunda edição da
obra . "Desde a criação do Sol", escreveu um bel esprit de Baillon, " esta
obra será a que mais iluminará o mundo . "
Alexandre D eleyre elaborou u m guia com excertos editados para uso
polémico, o Génie de Montesquieu . Mas muito antes de tudo isto, os argu ­
mentos históricos contidos na obra já se tinham tornado não só teoria
mas também munições para o tiroteio político . Quando as suas remons­
trâncias eram ignoradas e a monarquia procurava aplicar um édito à
força, os magistrados respondiam com greves j u diciárias . Em retaliação,
eram ameaçados com o exílio caso se negassem a cumprir as ordens da
Coroa. Pressionados desta forma, os presidentes dos Parlamentos de Aix
e Dij on invocaram a afirmação de Montesquieu de que a magistratura
constituía um órgão intermédio entre o rei e o povo que não era remo­
vível sem se derrubar a própria constituição da França . Em 1 760, a
remonstrância do Parlamento de Toulouse avisou ainda mais dramatica­
mente que:

A i do poder estabelecido sobre a ruína d a s leis . . . o Príncipe será obrigado a


reinar no seu E stado como reinaria numa terra conquistada.

Mas os adeptos deste ponto de vista não se limitavam aos robins. Um


dos mais empenhados dos seus aliados entre a nobreza de espada era o
príncipe de C onti, primo do rei e um orador poderoso e inteligente.
O seu arquivista, Le Paige, era o mais engenhoso e implacável dos pro ­
pagandistas parlamentare s . No outro extremo do espectro d a moda aris­
tocrática, nas profundezas do Poitou rural, um oficial de cavalaria
reformado, o barão de Lezardiere ( depois de algumas dúvidas iniciais ) ,
encoraj ou as pretensões d a filha, Pauline, então com dezassete anos de
idade, a tornar-se uma medievalista e uma teórica política . Depois de
longas horas passadas com cartas e anais poeirentos, Pauline construiu
uma narrativa em vários volumes da fundação da monarquia franca e
da sua relação com as primeiras assembleias medievais. Era mais do que
uma crónica . Na sua versão acabada, apresentou-se como uma teoria
Simon Schama 1 CIDADÃOS

bem elaborada da legitimidade das instituições políticas francesas. Mas


quando a menina de Lezardiere lhe deu os últimos retoques já a autori­
dade da obra estava ultrapassada pela Revolução e os seus parentes
entregues aos seus trágicos destinos: no exílio na Grã- Bretanha, no exér­
cito monárquico, no meio dos cadáveres ensanguentados resultantes dos
massacres nas prisões de Paris.
C omparadas com o que estava para vir, as questões que provocaram
este intenso conflito sobre a natureza da monarquia parecem arcanas ou
profundamente paradoxais. O governo foi pela primeira vez estigmatizado
como " despótico" na década de 50 do século XVIII, ao tentar impor a bula
papal Unigenitus, que negava os sacramentos do baptismo, do matrimónio
e da extrema-unção a quem não desse provas de uma ortodoxia impecá­
vel. Era uma medida destinada a extirpar a heresia católica do jansenismo,
que tinha uma perspectiva muito mais austera da salvação do que a
norma aceitável e que possuía adeptos nos mais altos escalões dos
Parlamentos, especialmente em Paris . Mas quando se chegou à prática e
os padres começaram a negar os sacramentos a pessoas que tinham apa­
rentemente levado uma vida exemplar, os Parlamentos passaram à ofen­
siva em nome do "povo" e da "nação" . Disseram que os Jesuítas queriam
tornar a igrej a nacional "galicana" refém dos desígnios papistas interna­
cionais e, ao fazê -lo, transformar a monarquia num despotismo estran­
geiro . Conseguiram obrigar o governo a inverter totalmente a sua posição,
e uma das consequências foi a liquidação da Ordem Jesuíta em França,
em 1 76 2 . O mesmo aconteceu, por exemplo, quando os impostos amea­
çaram afectar as classes privilegiadas e os Parlamentos se arvoraram em
protectores das "liberdades" da nação - uma ironia que não escapou a
Voltaire, que os classificou de hipócritas.
Esta disputa acérrima escalou nos últimos anos do reinado de Luís XV.
Em 1 7 70, o chanceler Maupeou decidiu cortar as pernas à resistência par­
lamentar. Eliminou os cargos que conferiam aos magistrados a sua j uris­
dição e criou novos tribunais, directamente responsáveis perante a C oroa .
Os parlamentares que resistiram foram exilados, mas não para uma qual­
quer Sibéria do Antigo Regime . Na maior parte dos casos, foram enviados
para uma confortável reforma rural onde ( segundo indiciam os inventá­
rios das suas comezainas ) não lhes faltaram os doze pratos das coisas boas
da vida. Mas houve casos em que os seus líderes sofreram o verdadeiro
desconforto da prisão ao serem alvo de lettres de cachet. Ainda antes da crise
Maupeou, o mais eloquente de todos os oradores parlamentares, o bretão
La Chalotais, passou por nove anos de cativeiro sem nunca ser j ulgado .
A resposta inicial ao ataque de Maupeou foi uma tempestade de polé ­
micas inflamadas descrevendo as suas políticas como a introdução do
"despotismo oriental" em França . Em 1 77 1 , foram publicados nada mais,
nada menos que 207 panfletos com ataques violentos ao chanceler e ao
95

governo, e o filósofo D enis Diderot escreveu a um amigo na Rússia que a


crise "pôs a constituição à beira do abismo . . . Desta vez, não vai acabar
apenas com remonstrâncias . . . este fogo vai propagar- se até consumir o
reino " .
Diderot estava enganado. Apesar d a unanimidade aparente d a sua
indignação, a nobreza j u diciária dividiu -se profundamente na sua con­
duta . Tinham muito a perder: cargos, estatuto, títulos e as corresponden­
tes regalias, que não eram de deitar fora. Não é, pois, de admirar que
quando o volume da polémica da oposição começou a diminuir, em 1 772
e 1 77 3 , muitos deles se tivessem oferecido para integrar os dóceis tribu­
nais Maupeou, expondo-se ao ostracismo por parte dos antigos colegas.
Só a morte inesperada do soberano, em 1 7 74, pôs fim à experiência da
governação burocrática sem qualquer tipo de obstáculo.
Mas os Parlamentos, face à perspectiva da sua emasculação, tinham
sido empurrados para uma defesa ainda mais radical da sua posição cons­
titucional . Em particular, esta defesa gerou uma solidariedade através da
qual, na obra do seu propagandista mais formidável, Le Paige, os
Parlamentos afirmaram reflectir uma união histórica . Os treze Parla­
mentos, argumentou ele, eram os descendentes arbitrariamente divididos
do único órgão que impunha restrições legais à monarquia, e o seu direito
de remonstrância convertera-se progressivamente numa espécie de repre ­
sentação. Em 1 77 1 , o Parlamento de Rennes, na B retanha, foi o primeiro
a apelar explicitamente à reunião dos E stados Gerais como único travão
possível às ambições presunçosas do despotismo ministerial, um apelo
repetido por Malesherbes.
Mas mesmo neste clima político fervoroso era possível a retórica
oposicionista extravasar das fronteiras da prudência . Em 1 7 7 5 , depois
da restauração dos Parlamentos por Luís XVI, o j ovem advogado Martin
de Marivaux, na expectativa de conquistar as boas graças do tribunal
de Paris, dedicou aos magistrados alguns exemplares do seu panfleto
L'Ami des Lois. C om a memória da crise ainda bem fresca, seria de esp e ­
rar que Marivaux fosse encoraj ado n o s seus lugares- comuns sobre o
despotismo ministerial. Porém, os motivos pelos quais criticava o poder
arbitrário e ram perigosamente nóveis : não eram os do precedente his­
tórico nem o s das " leis fundamentais" da constituição, mas os da igual­
dade natural:

O homem nasce livre . Nenhum homem possui nenhuma autoridade natu­


ral sobre o seu semelhante; a força não confere tal direito; o poder legisla ­
tivo pertence ao povo e só ao povo pode pertencer. . .

Os Parlamentos reconheceram imediatamente o que era uma versão


mal disfarçada do Contrato Social de Rousseau, tiraram as conclusões lógicas
Simon Schama 1 CIDADÃOS

e, em vez de felicitarem o j ovem fanático, ordenaram a incineração do seu


livro pelo carrasco público .
Fazer frente à C oroa envolvia outros riscos, não de incorrer numa
retaliação oficial mas de provocar uma perigosa explosão popular. No
auge da crise Maupeou, surgiram cartazes ameaçando uma insurreição
geral. O mais notório era "Paris à louer; Chancelier à rouer; Parlement à rap­
peler ou Paris à bruler" ( Paris a alugar, chanceler a quebrar na roda,
Parlamento a convocar ou Paris a arder) . Mas havia outros ainda mais
sombrios, que associavam directamente a fúria à fome e a política à sub­
sistência :

Pão a 2 soldos; [restauração] do Parlamento; morte ao chanceler ou revolta .

Existiam, portanto, limites sérios à capacidade de os Parlamentos


actuarem como a vanguarda de uma rebelião geral contra a C oroa. Os
parlamentares podiam ser oradores oposicionistas mas também eram j uí­
zes que mandavam enforcar (e queimar e torturar); eram os guardiães da
paz cívica e o flagelo da sedição. Para que não se pense que viviam à altura
da sua autodesignação de apóstolos da liberdade, importa não esquecer
que foi um Parlamento que proferiu a condenação à fogueira de uma
jovem nobre acusada de sacrilégio e que foram também os Parlamentos
que cometeram outras atrocidades judiciais semelhantes mas que mere ­
ceram menos publicidade. Aqui residia precisamente a obj ecção de
Voltaire . Ele escreveu uma contundente paródia sobre as remonstrâncias
parlamentares que defendiam "as 'leis fundamentais', as leis fundamen­
tais dos cargos venais . . . a lei fundamental que lhes permite arruinar a
província e entrega aos advogados a propriedade das viúvas e dos órfão s " .
Aquando da s u a restauração, em 1 7 7 5 , os Parlamentos obj ectaram
inevitavelmente contra as modestas restrições colocadas por Turgot à sua
capacidade de travarem a legislação real. C ontudo, na sua maioria, evita­
ram os choques frontais com a C oroa que, em 1 7 7 1 , os tinham obrigado
a escolher entre a rebelião e a extinção. Assim, as cerimónias que marca ­
ram o seu regresso foram demonstrações de dois mitos de harmonia -
entre a C oroa e os magistrados e entre os magistrados e o povo . E stas
celebrações foram, por vezes, implausivelmente inconclusivas. Em Metz,
por exemplo, a comunidade j udaica ( que sofria muito às mãos da nobreza
local ) ofereceu uma fête especial na qual o principal ponto de atenção era
uma divisa do livro de Isaías: "Restabelecerei os teus j uízes como eram
outrora, e os teus conselheiros como eram antigamente . Então serás cha ­
mada ' C idade j usta', ' C idade fiel' . " Em B ordéus, os nobres de toga rece ­
beram delegações de comerciantes agradecidos, incluindo uma de
peixeiras entre as quais o presidente se movimentou com graciosa con­
descendência.
97

Na cidade pirenaica de Pau ( onde os robins se tinham dividido de forma


mais acérrima ) , assistiu -se a uma manifestação absolutamente extraordi­
nária. Além dos discursos da praxe, dos brindes e dos ramos de flores, o
berço do rei Henrique IV, que nascera na cidade, foi levado em procissão
pelas ruas . O governador, juntamente com o Parlamento, fez tudo o que
estava ao seu alcance para que o desfile fosse o mais inócuo possível, mas
depressa se tornou uma ocasião para actos de piedade popular espontâ ­
nea. À medida que o berço passava, erguido bem alto, as pessoas aj oelha ­
vam-se num silêncio reverente . O berço foi colocado numa tribuna
construída sob um pórtico j unto das portas da cidade, onde os comissários
da Coroa ouviram as homenagens prestadas à memória de Henrique IV e
as denodadas tentativas para associar o mais amado dos Bourbons à sua
mais recente incarnação .
Os Parlamentos entraram n o s anos críticos em meados da década de 80
do século XVIII com um legado ambivalente. Por um lado, a sua posição
como limite constitucional indispensável ao poder régio tornara-se incon­
testável. Radicalizados pelos anos da crise Maupeou, os seus propagandis­
tas e historiadores conseguiram, para todos os efeitos, persuadir o público
da justiça inegável da sua causa. Se agiam de forma mais educada com
Luís XVI e os seus ministros do que tinham agido com o seu avô era por­
que havia muito mais cuidado de evitar desagradar aos Parlamentos.
Quando tal aconteceu, revelaram-se perigosos, como demonstra ampla­
mente o papel que tiveram na queda de Turgot. Mas se é verdade que
tinham infligido danos irreparáveis à credibilidade do absolutismo, a sua
ascendência também não era invulnerável nem isenta de riscos. O excesso
de zelo de alguns dos seus escribas mercenários, a violência da linguagem
polémica que adaptaram e as formas ocasionalmente viscerais nas quais
se expressava o entusiasmo popular pela sua causa indiciavam cada vez
menos espaço de manobra. A sua ânsia de se apresentarem como um
órgão quase representativo deixava no ar algumas perguntas perigosas.
A haver uma representação a nível nacional, como seria constituída?
E durante quanto tempo conseguiriam eles defender os privilégios e a
liberdade como inseparáveis? Foi por causa de uma destas questões com­
plicadas ( mais especificamente, por causa da composição e dos procedi­
mentos dos Estados Gerais) que se quebrou a união da oposição dos
nobres às políticas da Coroa, em 1 7 88 e 1 7 89, e colegas que tinham tra­
vado lado a lado a campanha contra o " despotismo " viram-se subitamente
divididos por uma escolha dolorosa: ser tradicionalista ou ser revolucio­
nário. Entre os oradores de toga preta do Parlamento de Paris, esta esco­
lha atiraria rapidamente presidentes como d' Aligre e Joly de Fleury para
a emigração, os seus combatentes mais eloquentes como Adrien Duport
para uma carreira revolucionária, e constitucionalistas como d'Eprémesnil
para a guilhotina .
Simon Schama 1 CIDADÃOS

III NOBLE S S E OBLIGE?

De manhã, o presidente Hénault era um magistrado. À noite, era um


aristocrata . De manhã, envergava as suas sombrias vestes negras e denun­
ciava os males da tirania governamental. C onfrontados com o despotismo,
nem ele nem nenhum dos seus colegas se furtavam ao seu dever de pro­
teger as "leis fundamentais" da nação. Muito antes do pôr do S ol, o pre­
sidente Hénault aguardava a chegada de um dos seus doze coches que o
levava ao seu estupendo palacete na Rue Saint-Honoré, onde era rei e
senhor. Seguia-se uma copiosa refeição, confeccionada pela que era reco ­
nhecidamente a melhor cozinha de Paris, servida em porcelana de S evres
sobre uma mesa de mármore verde . C om uma sala de j antar equipada
com vinte e oito cadeiras e dez fauteuils, Hénault podia receber convida­
dos e fazia- o com frequência . Os convivas eram entretidos sob um enorme
lustre de cristal da Boémia e rodeados pela deslumbrante colecção de arte
na qual quadros históricos italianos partilhavam as paredes com Watteau
e Ter B orch.
Para a sensibilidade revolucionária, esta discrepância entre as declara ­
ções políticas e o ambiente social seria uma espécie de crime moral. Ao
leitor moderno parecerá no mínimo incongruente que les Grands e a
nobreza em geral tenham sido os líderes naturais incontestados da oposi­
ção até à véspera da Revolução . Mais concretamente, poderá parecer
estranho que uma monarquia tão repetidamente frustrada pela oposição
colectiva da nobreza judiciária não tenha explorado de forma mais deci­
siva a vulnerabilidade social dos robins.
Os ministros mais perspicazes recomendaram efectivamente uma pos­
tura mais agressiva . Em 1 7 3 9, o mais visionário e enérgico dos funcioná ­
rios públicos de Luís XV, René -Louis de Voyer, marquês d' Argenson,
escreveu um tratado esboçando aquilo a que chamou " democracia real " .
C onhecido n o s círculos d a corte ( que à semelhança d e Malesherbes
detestava ) por "a B esta", d'Argenson não era um ministro como outro
qualquer. Era um aficionado dos romances ingleses, foi o autor da admi­
rável recensão crítica da obra Tom Jones, de Henry Fielding, mas também
era amigo de Voltaire, lera com o maior interesse Algernon Sidney, ' o
regicida britânico do século XVII, e era defensor de uma Força Aérea fran­
cesa em balões de ar quente . As propostas de reforma que delineou nas
Considérations sur le Gouvernement Ancien et Présent de la France eram tão
radicais que só puderam ser publicadas em 1 764, trinta anos depois de
terem sido escritas, e em Amesterdão. Muitos pensaram que o verdadeiro
autor era Jean-Jacques Rousseau.

2 Algernon Sidney ( 1 62 3 - 1 68 3 ) oficial do exército, político e teórico político republicano


.

inglês. Envolveu -se numa conspiração para assassinar Carlos II e foi executado por traição .
( N. do T. )
99

Mas foi d' Argenson, filho do guardião dos Selos de Luís XIV e descen­
dente de uma das mais antigas famílias parlamentares francesas, que
declarou a nobreza hereditária origem de todos os males do governo e da
sociedade franceses. Os nobres, na sua irresponsabilidade, tinham deixado
infectar e apodrecer as províncias; tratavam os cargos públicos como sua
propriedade privada e frustravam as melhores intenções dos intendentes
conscientes e dedicados. Na opinião de d' Argenson, a única maneira de
ultrapassar a sua obstrução era a monarquia adoptar a democracia, pois "a
democracia é tão amiga da monarquia como a aristocracia é sua inimiga" .
S e o s Parlamentos dizem representar " o povo", argumentou ele, a s suas
boas intenções devem ser postas à prova com a criação de assembleias
provinciais electivas . Uma representação nacional poderia inclusivamente
ser eleita de forma indirecta e prestar contas aos eleitores de dois em dois
anos. Sobre esta base, o monarca - que seria salvo da corrupção da corte
governando a partir das Tulherias e não de Versalhes - presidiria a uma
verdadeira república de cidadãos e não a um grupo de súbditos subj uga­
dos. " Que ideia maravilhosa", exclamou d'Argenson, " . . . uma república
protegida por um rei . "
A s diferentes ordens continuariam a existir, mas a hereditariedade
seria abolida . A nobreza seria estritamente conferida em função dos ser­
viços prestados e do mérito, e teria apenas um estatuto honorífico . Nesta
comunidade de iguais, todos teriam os mesmos direitos e deveres.
Governados por um corpo de funcionários públicos honestos que chega­
riam aos cargos por nomeação e não por compra, os cidadãos pagariam
apenas os impostos necessários para a sua protecção e fá-lo-iam de bom
grado porque estariam a entregar uma parte da sua propriedade a uma
reserva pública que também poderiam reclamar como sua. Até o serviço
militar pareceria mais uma honra do que um fardo porque esta transfor­
mação daria certamente origem a um sentimento rej uvenescido de pátria .
A nova França de d' Argenson antecipou estranhamente as prescrições
revolucionárias de 1 78 9 e 1 7 9 1 , especialmente na sua ênfase no abraço
entre cidadãos e soberano e na obliteração de quaisquer j urisdições inter­
médias que pudessem intrometer- se entre eles. Isto não significa dizer
que a utopia de d' Argenson fosse um mero agregado de indivíduos ato ­
mizados chocando uns contra os outros como feij ões saltitantes dentro de
uma garrafa . O seu entendimento era que a "democracia real" seria mais
do que a soma das suas parte s : uma pátria purificada na qual os interes ­
s e s individuais d o s cidadãos se harmonizariam numa nova espécie d e
colectivo .
A concretização deste tipo de fantasia em finais do século XVIII não era
de todo uma impossibilidade . O irmão de Maria Antonieta, o imperador
habsburgo José II, imaginava -se um déspota iluminado e um pater patriae.
Apesar de não lhe passar pela cabeça qualquer representação local ou
Simon Schama 1 CIDADÃOS

nacional, José II lançou um ataque violento e implacável contra a sua


aristocracia hereditária . Através dos sucessivos éditos emanados da sua
inesgotável pena, plebeus e aristocratas receberam ordens para partilhar
as mesmas escolas, os mesmos cemitérios, os mesmos impostos. Os nobres
que resistissem ao esquema draconiano de serviço ao Estado, o único
esquema que j ustificaria o seu estatuto de nobreza, seriam postos a fazer
trabalho útil, como varrer as ruas de Viena.
O salário da audácia não foi muito mais gratificante do que o da reti­
cência, já que o reinado de José acabou, como o de Luís XVI, numa insur­
reição gerai, em 1 790. Uma das principais razões para o descalabro foram
os inadequados recursos burocráticos que a monarquia pôde colocar no
terreno para impor a sua vontade à nobreza regional. É certo que os
Bombons não tinham de administrar um império que se estendia, de
forma descontinuada, do E scalda ao Danúbio, mas a sua dependência das
elites locais para uma administração eficaz das províncias não era menos
forte. O modelo do governo central ( largamente reiterado no célebre relato
de Tocqueville ) , herdado de C olbert e Luís XIV, era o dos commissaires dépar­
tis os intendants que cumpriam fielmente as instruções do conselho real,
- -

se necessário passando por cima da obstrução dos magistrados e corpora­


ções locais. E a história do reinado de Luís XV é um sem-fim de confron­
tos directos entre os intendants e os governadores militares de província,
por um lado e, por outro, os Parlamentos recalcitrantes . Mas há também
uma história de colaboração. Afinal de contas, o intendant, independente ­
mente das suas inclinações, não tinha grande alternativa. Os seus gabine­
tes, que eram responsáveis pelas deslocações de tropas, pela contenção das
epidemias, pelas estradas, pontes e canais, pelas instituições públicas de
socorro e pela supressão do banditismo, funcionavam com um pessoal
muitíssimo escasso. Em 1 787, por exemplo, Bertrand de Moleville, inten­
dente da B retanha, dispunha de apenas dez escriturários no seu escritório
central. É verdade que era apoiado por sessenta e três assistentes locais -
os subdélégués - mas estes ganhavam muito mal ( quando eram pagos) e
nem sempre eram fiáveis. No Delfinado, Caze de La Bove afirmou que dos
seus sessenta e cinco subdélégués apenas considerava vinte verdadeiramente
capazes de desempenharem as suas funções .
Nestas circunstâncias, a única opção do intendant era garantir o máximo
de cooperação possível por parte dos notáveis locais, quer fossem magistra­
dos e vereadores das cidades quer fossem membros dos tribunais rurais. Em
muitos casos, era a atitude mais natural, dado que os funcionários da admi­
nistração real e os dos Parlamentos não estavam tão afastados uns dos
outros como as suas ideologias poderiam sugerir. Pertenciam todos à
nobreza de serviço e estavam ligados pela formação académica e, muitas
vezes, por laços matrimoniais ou de sangue. Por exemplo, os famosos clãs
Lamoignon e Joly de Fleury forneceram ocupantes para cargos importantes
101

n o governo e nos Parlamentos. A família Maupeou, principalmente recor­


dada por ter fornecido um chanceler - que foi um dos mais determinados
flagelos dos Parlamentos -, enviou durante muito tempo funcionários
para os tribunais soberanos. O mesmo se aplica aos Séguier e a muitas
outras dinastias semelhantes . Além do mais, o governo de Luís XVI reco­
nheceu a necessidade de harmonizar o mais possível os interesses do
governo e das elites locais e abandonou a política de nunca enviar inten­
dants para províncias onde tivessem laços pessoais ou familiares .
Havia outra razão q u e tornava improvável q u e os Bourbons seguissem
a recomendação de d' Argenson para que alicerçassem o seu poder na sepul­
tura da nobreza hereditária. Tanto Luís XV como o neto se orgulhavam de
serem "o primeiro cavalheiro da França", e este título familiar encerrava
todo um conj unto de pressupostos relativos à legitimidade real que impos­
sibilitavam o oxímoro de uma monarquia revolucionária. A frase signifi­
cava, em particular, que a Coroa existia para proteger o complexa teia de
entidades corporativas, cada uma investida da sua "pequena soberania" . Em
resposta aos éditos de Turgot, em Março de 1 776, o advogado-geral do
Parlamento de Paris, Séguier, comparou este sistema a uma grande corrente
resultante da união dos diversos elos - os três estados ou ordens, as guildas
e corporações, as universidades e academias, as associações comerciais e
financeiras, os tribunais. No centro estava a Coroa, que não deixava desa­
gregar a corrente e, sem a garantia da sua boa fé, estas delicadas reciproci­
dades cairiam por terra e arrastariam consigo a paz social.
Luís XVI ponderou em diferentes alturas a possibilidade de modificar
este conceito limitativo da sua soberania como uma "presidência do privilé­
gio". O seu apoio às reformas de Turgot e depois à abolição dos cargos venais
por Necker foram neste sentido. Mas em ambos os casos, a experiência foi
seguida de um ignominioso recuo e da restauração do que fora anulado. Na
verdade, a posição da C oroa em relação aos privilégios era profundamente
ambígua. Por um lado, continuava a ser do interesse da C oroa, nem que
fosse por razões exclusivamente fiscais, estender a sua autoridade paternal
às áreas recalcitrantes da sociedade . Como vimos, a ambição de Necker era
substituir os intermediários venais da burocracia financeira por burocratas
directamente responsáveis perante o governo. Mas por outro lado, a C oroa
não só tolerava como alargava os privilégios, mesmo nas referidas áreas das
finanças . Isto devia-se, em parte, a uma profunda relutância em abandonar
um sistema de venda de cargos que rendia ao pressionado Tesouro cerca de
quatro milhões de libras francesas por ano, mas também porque com a cria ­
ção de cada cargo se contava criar novas linhas de clientelismo e fidelidade
que fortaleceriam o peso político da monarquia.
Visto a uma luz superficial, tudo isto poderá parecer irremediavel­
mente míope . Segundo o pensamento moderno, se a C oroa queria verda­
deiramente mobilizar a sua autoridade, devia ter tratado de suprimir e
Simon Schama 1 CIDADÃOS

não de alargar o mundo dos privilégios corporativos . Mas esta visão


moderna é tão obscurecida pelo vocabulário normativo da Revolução
que interpreta de forma incorrecta a verdadeira natureza dos privilégios
na França de finais do século XVIII. O s privilégios funcionaram com
tanto êxito precisamente porque não eram como as subsequentes polé­
micas revolucionárias os pintaram, um sistema fossilizado e arcaico de
exclusão que, por definição, negava o acesso ao candidato qualificado e
tornava cumulativamente impossível qualquer espécie de progresso
social e económico .
Para começar, os privilégios não eram um monopólio da nobreza .
Dezenas de milhar de plebeus tinham sido inseridos no sistema, quer
pelos cargos que ocupavam nas guildas e corporações municipais, quer
pelas suas ligações matrimoniais com famílias privilegiadas . D e igual
modo, como vimos, os privilégios e, em especial, a nobreza, nem sempre
implicavam direitos de isenção fiscal. Mas o mais importante de tudo é
que, na segunda metade do século XVIII, o acesso às ordens privilegiadas
se foi tornando cada vez mais fácil. Protestar contra a nobreza por moti­
vos de exclusão era como bater a uma porta aberta . É por esta razão que
o historiador procura em vão uma classe revolucionária putativa - cha ­
memos-lhe burguesia - frustrada na sua mobilidade social e empenhada
na destruição das ordens privilegiadas . Em 1 789, existiria efectivamente
um grupo assim mas os seus membros mais significativos e poderosos não
surgiram do exterior mas sim do interior da nobreza e do clero. E não
seriam o produto de uma "reacção aristocrática " mas sim do seu exacto
oposto, uma modernização aristocrática .
As vias de acesso à nobreza nunca tinham sido tão largas ou tão aco ­
lhedoras como com Luís XVI. Numa brilhante história da sociedade e da
cultura da nobreza, Guy Chaussinand-Nogaret vê este processo de assimi­
lação social tão fácil que "um nobre não passava de um burguês bem
sucedido" . Tomando como exemplo os Parlamentos - esses bastiões dos
valores aristocráticos -, dois terços dos magistrados dos Parlamentos de
Metz e Perpignan eram plebeus recém-enobrecidos. Em B ordéus, Pau e
Douai, eram metade, em Rouen e Dij on um terço. Paris era a grande
excepção, mas principalmente porque os seus magistrados eram promovi­
dos "de dentro" da ordem jurídica e de acordo com regras mais estritas de
antiguidade. E dentro deste órgão, o elevador do estatuto movia-se com
uma previsibilidade tranquilizadora. Um quarto da nobreza francesa -
cerca de seis mil famílias - foi enobrecido no século XVIII e dois terços nos
séculos XVII e XVIII. Era, como insiste Chaussinand-Nogaret, uma classe
social j ovem. D e facto, se Lawrence Stone' está correcto e a aristocracia

' Lawrence Stone ( 1 9 1 9 - 1 9 9 9 ) , historiador inglês especializado no princípio da idade


moderna e na guerra civil em Inglaterra . (N. do T. )
103

britânica não era uma elite aberta mas sim relativamente fechada, os
estereótipos associados à França e à Inglaterra devem ser completa ­
mente invertido s . Foi na Grã - B retanha que a aristocracia rural resistiu
aos recém- chegados e formou uma espécie de crosta inquebrável no
topo da política e da sociedade, enquanto em França a elite era fluida e
heterogénea, sempre em busca de fontes de revigoramento humano e
económico.
Em França, o enobrecimento podia acontecer por muitos motivos
diferentes. Era possível ser-se enobrecido directamente pela Coroa, atra ­
vés de cartas patentes, em agradecimento por serviços prestados . Os mili­
tares, os engenheiros, os intendants e, em menor grau, os artistas, os
arquitectos e os homens de letras eram enobrecidos deste modo. Tendo
fundos disponíveis, era possível comprar um cargo com título de
nobreza, como o de secrétaire du roi. Foi assim que mil e quinhentos
homens acederam à nobreza, através de C âmara de Paris. O s notáveis
locais - presidentes de câmara, vereadores, prévôts des marchands ( funcio­
nários responsáveis pelo policiamento dos mercados e dos comerciantes ) ,
o s j uízes e até o s escriturários municipais - tinham direito à nobreza se
servissem continuamente durante um determinado período de tempo,
muitas vezes não mais de dois anos. E havia outros candidatos ao eno­
brecimento entre todo um batalhão de manda - chuvas (por exemplo,
pela organização de uma grande recepção para o rei ) , ou um membro da
família real podia receber um sinal formal de reconnaissance que o elevava
à segunda ordem.
Chaussinand-Nogaret chama também a atenção para uma mudança
importante nos critérios declarados para o enobrecimento na segunda
metade do século . Em vez de ser mencionada a linhagem, as razões para
a promoção são quase invariavelmente os serviços prestados, o talento e
o mérito. D este modo, argumenta C haussinand-Nogaret, enquanto no
século anterior o burguês enobrecido era obrigado a divorciar- se dos seus
antecedentes e a imergir totalmente numa cultura nova e estranha de
honra, no século XVIII o processo de integração social funcionou ao con­
trário. A nobreza foi colonizada pelo que os historiadores modernos con­
sideram valores "burgueses " : dinheiro, serviço público e talento . E sta
mudança representa uma cesura fundamental na continuidade da histó ­
ria francesa porque recua para o século XVIII a data de nascimento da
classe de "notáveis" que dominou a sociedade e o governo franceses até
pelo menos à Primeira Guerra Mundial. C onstatamos hoj e que essa elite
não foi uma criação da Revolução nem do Império, mas das últimas
décadas da monarquia bourbon, e que entrou no século XIX não como
consequência da Revolução Francesa mas apesar da Revolução Francesa.
Nestas circunstâncias, a designação Antigo Regime parece mais inade ­
quada do que nunca .
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Além de estar aberta a sangue novo, a nobreza francesa estava também


aberta a novas ideias e ocupações. Um dos clichés prevalecentes da histó ­
ria do Antigo Regime é que os privilégios eram inimigos do empreendi­
mento comercial. Mas até uma análise superficial da economia francesa
setecentista ( que era muito mais dinâmica e abundante do que o seu este ­
reótipo sugere ) revela a nobreza profundamente envolvida nas finanças,
nos negócios e na indústria - tanto como a sua homóloga britânica .
A nobreza endinheirada derivava os seus rendimentos de uma ampla
variedade de fontes que incluíam rendas e lucros imobiliários, títulos e
notas de débito governamentais e propriedades urbanas. Todavia, é menos
conhecida a extensão do seu envolvimento como participantes importan­
tes na banca, no comércio marítimo, em especial na próspera economia
atlântica, e em empresas industriais muitíssimo inovadoras. Por conse ­
guinte, n o coração da elite francesa existia uma nobreza capitalista de
imenso significado para o futuro da economia nacional.
Este fenómeno não teria surpreendido o abade C oyer. Em 1 7 5 7 , publi­
cou La Noblesse Commerçante, com o intuito de derrubar os eternos pre ­
conceitos da nobreza em relação à natureza desonrosa dos negócios - e de
fazer frente ao que ele considerava ser o neofeudalismo sentimental do
chevalier d' Arcq. A missão do cavaleiro era afastar a aristocracia do mundo
envenenado do dinheiro e devolvê -la às virtudes simples do serviço
patriótico, preferivelmente militar. Estas duas doutrinas influenciariam a
geração revolucionária, a do cavaleiro-cruzado talvez mais do que do
empresário abade . Mas a verdade é que os nobres não se fizeram rogados
na procura dos investimentos mais lucrativos para o seu capital, e em
1 7 6 5 um édito real removeu oficialmente os últimos obstáculos formais
que impediam a nobreza ( excepto a magistratura ) de participar directa­
mente no comércio e na indústria.
E a nobreza arregaçou as mangas e participou . Juntando os seus capi­
tais, os nobres formaram uma grande variedade de empresas, desde negó ­
cios de importação de cavalos até uma companhia para converter vinho
azedo em vinagre . Outro sindicato fabricava óleo para iluminação e
adquiriu o monopólio da iluminação das ruas de Paris e de várias cidades
de província. Os nobres estavam particularmente bem colocados para
explorar as oportunidades ligadas à política externa, pelo que não causa
surpresa descobrir grandes famílias envolvidas nos negócios da construção
naval e do armamento, especialmente na B retanha. Mas foi o comércio
colonial, com os seus riscos elevados mas com margens de lucro ainda
maiores, que atraiu os nobres como moscas a um pote de mel, e fizeram­
-se e perderam -se grandes fortunas nas Í ndias Ocidentais.
Muitos dos investidores nestes negócios (bem como nos bancos e nas
companhias financeiras que geriam as dívidas da monarquia ) eram
sócios comanditários, mas havia um número impre ssionante de nobres
105

activamente envolvidos nas empresas industriais formativas de França .


Por exemplo, o irmão mais novo do rei, o conde de Artois, foi efectiva­
mente o inútil frívolo e viciado na caça e no j ogo que os jornalistas satiri ­
zavam, mas também era proprietário de fábricas de porcelana e ferro, e
redigiu pessoalmente os contratos especificando os pormenores das for­
nalhas e do equipamento pesado . Entre os principais proprietários de
minas de carvão estavam os Rastignac do Périgord, os duques de Praslin,
na Normandia, o duque de Aumont, no B oulonnais, e os duques de Lévis,
no Rossilhão. Guyton de Morveau, advogado-geral do Parlamento de
Dij on, na Borgonha, foi o primeiro empresário de Chalon- sur- Saône a
fazer experiências com coque como combustível para as suas vidrarias.
O duque de Orleães possuía vidrarias em C otteret e fiações em Montargis
e Orleães; o visconde de Lauget era dono de fábricas de papel; o duque de
La Rochefoucauld-Liancourt era proprietário de uma manufactura de
linhos. E stes exemplos poderiam multiplicar-se indefinidamente . A indús ­
tria mais avançada d e todas - a metalurgia - era totalmente dominada
pela nobreza . Por algum motivo inexplicável, a grande dinastia de
Wendel, que construiu as enormes siderurgias de Le C reusot, é frequen­
temente tida por burguesa mas foi enobrecida em 1 72 0 - pelo menos há
tanto tempo como muitos dos principais parlamentares. Com a participa­
ção de dois tesoureiros gerais aristocráticos, Saint-James e Sérilly, a
empresa converteu-se na mais formidável concentração de trabalhadores
e capital da Europa O cidental. Do mesmo modo, foram capitalistas aristo­
cráticos que forneceram os activos empresariais - monetários e humanos
- para iniciar a construção de motores a vapor e a exploração mecânica
das minas de carvão, e para a introdução de maquinaria britânica nas fia­
ções de algodão no Norte e no Leste do país .
Por conseguinte, os nobres não torciam o nariz quando embolsavam o
dinheiro . Na verdade, adoravam a plutocracia. C omo bem sublinha
Chaussinand-Nogaret, os matrimónios entre j ovens nobres hipotecados e
herdeiras burguesas endinheiradas que proliferaram durante o século XVIII
não eram vistos como mésalliances4 mas como oportunidades de ouro. Isto
devia - se, pelo menos em parte, ao facto de os estilos de vida do burguês
opulento e do nobre grandioso serem, na prática, indistinguíveis. Um maior
ou menor grau de esplendor decorria da riqueza e não do estatuto legal.
Nem todos os nobres se encontravam nesta feliz posição . Por cada nobre
empresário que inspeccionava as suas fornalhas de coque ou os seus teares
mecânicos com a sua peruca empoada e as suas calças de seda, dez vegeta -
vam nas suas propriedades rurais numa miséria dissimulada. Nada menos
de 60% dos nobres - cerca de dezasseis mil famílias - viviam em condições
que iam de uma modesta delapidação à mais completa indigência . No

4 Em francês no original: casamento com uma pessoa de nível social inferior. (N. da R. )
Simon Schama 1 CIDADÃOS

fundo, estavam demasiado pobres para possuírem os símbolos mínimos


de nobreza, uma espada, um cão e um cavalo ( talvez cinco mil famílias ) .
S e tivessem sorte, vendiam trutas dos ribeiros ou tordas dos bosques que
eram nominalmente seus. Muitos viviam em condições indistintas dos
camponeses que os rodeavam, e não necessariamente os camponeses
mais prósperos. Por exemplo, nos arredores de Angoulême, um certo
Antoine de Romainville arava os campos pedregosos com o seu boi exac­
tamente como faziam os vizinhos. Quando morreu, deixou ao filho algu ­
mas cadeiras de palha e as dívidas. Outros mais endividados acabavam na
prisão ou viam-se reduzidos a viver das esmolas da Igrej a .
Num nível marginalmente acima encontravam-se os aristocratas rurais
empobrecidos; viviam das quintas e de uma pequena renda . Para esta
classe - talvez 40 % do total - estava fora de questão qualquer tipo de vida
urbana . Para manterem intactas as suas pequenas propriedades, muitas
vezes tinham de entregar os filhos à Igrej a ou ao Exército . Eram os hobe­
reaux' que Arthur Young6 viu no B ordelais - gentis-homens de guarda­
- roupa tão escasso que tinham de ficar na cama enquanto lhes
remendavam as calças .
A receita do abade C oyer para estes nobres miseráveis - q u e abando­
nassem a terra e integrassem o mercado como membros produtivos de
uma comunidade afadigada - caiu inevitavelmente em saco roto . S e sou­
bessem ler ( o que não era provável ) , mais depressa responderiam ao apelo
do chevalier d' Arcq à renovação do serviço patriótico . E pela mesma lógica,
eram os nobres mais pobres que mais tenazmente se agarravam aos seus
privilégios. Em muitos casos, os privilégios faziam a diferença entre a
miséria e a destituição. Foi a pensar na sua condição aflitiva que a notó ­
ria loi Ségur foi aprovada, em 1 7 8 1 , limitando a aquisição de postos de ofi­
cial no exército às famílias nobres que pudessem traçar a sua linhagem a
pelo menos quatro gerações.7 Frequentemente mal interpretada como
prova da "reacção aristocrática ", a Lei Ségur deu testemunho do senti­
mento de que havia uma necessidade desesperada e cada vez maior de
proteger pelo menos parte da esfera pública da invasão do dinheiro, o
omnipresente "atenuador" das distinções sociais .
No outro extremo da escala, les Grands podiam dar- se ao luxo de dis­
pensar muitos dos seus privilégios. Quando os defendiam não era pelo
seu valor pecuniário mas sim pela crença que tinham na propriedade das
instituições corporativas . Em 1 7 88 e 1 789, dividir-se-iam em função da

' Em francês no original: fidalgote provinciano. (N. do T. )


' Arthur Young ( 1 74 1 - 1 82 0 ) , escritor e político inglês, autor d e obras sobre agricultura,
economia e estatísticas sociais. Viaj ou por toda a França pouco antes da Revolução e descre­
veu a condição do povo e a conduta dos assuntos públicos. (N. do T. )
' De forma a evitar a concorrência dos burgueses e dos nobres mais recentes, que faziam
subir os preços para patamares onde a nobreza empobrecida não podia chegar. ( N. do T. )
1 07

geração e das convicções e não do estatuto social ou da posição económica


na questão de decidir se as distinções legais tradicionais deveriam ser
mantidas ou descartadas. Entre os nobres mais pobres, as opiniões pare ­
cem ter sido mais unânimes na oposição à abolição das suas prerrogativas.
Ironicamente, foi o processo eleitoral que eliminou pela primeira vez a
imensa distância entre colossos e anões na nobreza, de modo que os
pobres e numerosos puderam ditar aos poucos e sofisticados a posição
colectiva do estado nobre . O processo de polarização similar que se verifi­
cou no Primeiro E stado - o clero - gerou, como veremos, o resultado
oposto, com os curas pobres a imporem a democracia a um episcopado
recalcitrante . Mas em ambos os casos, a desintegração da ordem antiga
não se deu quando os indivíduos marginalizados, exasperados com a sua
exclusão dos privilégios, decidiram destrui-la pela força; pelo contrário,
teve origem no interior, com aqueles que se enamoraram da visão de
d' Argenson de aristocratas-tornados - cidadãos a derrubarem as paredes do
seu próprio templo e a proclamarem o advento de uma monarquia demo­
crática sobre os escombros.
Em 1 788, Montesquieu, o modelo ideal do constitucionalismo nobre,
foi atacado pelos radicais nobres . Mounsier, um j ovem advogado parla­
mentar, acusou-o de defender convenientemente tudo o que encontrava
estabelecido . Outro comentador, Grouvelle, censurou-o de forma ainda
mais directa :

Oh, Montesquieu, fostes Magistrado, Gentil - Homem, rico; achastes por


• bem . . . demonstrar as vantagens de um governo no qual ocupastes um
lugar vantaj os o .

O conde d' Antraigues foi ainda mais longe na primeira e mais célebre
de todas as declarações aristocráticas de autoliquidação. Passando signifi­
cativamente do precedente histórico e das leis imemoriais para o vocabu­
lário muito mais radical dos direitos naturais, declarou que a legitimidade
dependia exclusivamente do Terceiro E stado, pois

é o povo e o Povo é a fundação do E stado; na verdade, é o próprio Estado;


as outras ordens são meras divisões políticas, enquanto pelas leis imutáveis
da natureza o povo é, por lei, tudo . . . é no povo que reside todo o poder
nacional e é para o povo que existem todos os Estados, só para o povo .

Mas este Povo tão invocado não se comportaria exactamente do modo


prescrito pelo radicalismo aristocrático. O conde d' Antraigues começou
como revolucionário mas acabaria como contra-revolucionário .
4

A C onstrução C ultural de Um C idadão

I EM BUSCA DE UM PÚ B LI C O

N o dia 1 9 d e Setembro d e 1 78 3 , pela uma d a tarde, a o s o m d o tambor,


um gigantesco balão feito de algodão e papel subiu oscilantemente aos céus
por cima do Palácio de Versalhes. Tinha quase quatro metros de altura e
estava pintado de azul e decorado com flores-de-lis douradas. No cesto iam
uma ovelha chamada Montauciel ( Sobe-ao-Céu ) , um pato e um galo.
Quando uma forte raj ada de vento abriu um rasgão quase no topo do
balão, temeu-se pela segurança dos aeronautas da quinta mas todos sobre­
viveram razoavelmente bem ao voo de oito minutos. Depois de o balão
aterrar no bosque de Vaucresson, a poucos quilómetros do palácio, a ove­
lha foi encontrada a mordiscar imperturbavelmente na palha do cesto; o
galo e o pato tinham um ar assustado. Mas a história parecia demasiado
uma fábula de La Fontaine para evitar as especulações. Alguns relatos
insistiam que o galo tinha partido o pescoço na aterragem, outros que f9ra
atingido de raspão na asa direita por um coice da ovelha. Mas o consenso
foi positivo. " C onstatou-se que não sofreram", referiu um comentário na
imprensa, "mas estavam, para dizer o menos, bastante espantados."
O espanto não se limitava aos passageiros . Um relato deu conta de
1 3 0 000 pessoas a assistirem ao evento, a maioria falou em 1 00 000 espec­
tadores . Estas estimativas são numericamente irrelevantes mas não res­
tam dúvidas de que uma multidão imensa se congregou no pátio
do palácio e nas suas imediações, onde fora erguida uma plataforma octo ­
gonal. A maioria dos curiosos tinha vindo de Paris, onde Etienne
Montgolfier era já uma celebridade . Em Agosto, enviara para os céus um
pequeno balão impelido por gás inflamável (e não pelo ar quente que fora
pioneiro a experimentar) . Seis mil espectadores resistiram à chuvada
incessante e muitos pagaram para ocupar lugares especiais no Campo de
Marte, com o grosso da multidão a assistir de pé. E sperava -se com ansie ­
dade um voo mais espectacular, que receberia a bênção oficial do rei.
Por conseguinte, às dez da manhã, todas as avenidas e estradas que
conduziam a Versalhes estavam congestionadas com carruagens .
Multidões de pessoas a pé e de liteiras esforçavam-se por abrir caminho
1 09

em direcção ao cour des ministres. C omo peregrinos atraídos pelo relato


de um milagre, estavam decididos a não perder o que quase toda a gente
considerava ser um evento histórico . "Poderia acompanhar- se Ovídio " ,
gorj eou um relato, invocando o profeta da Idade Dourada, " e dizer que
se farão muitas coisas até agora consideradas completamente impossí­
veis . " RivaroL outro entusiasta escreveu : " Finalmente, descobrimos o
segredo pelo qual os séculos suspiravam: o homem passará a voar e
apropriar- s e - á de todo o poder do reino animal; será senhor da terra, das
águas e do ar. " Mas também houve comentários sardónicos sobre a febre
dos balõe s . O autor da Correspondance Secrete (provavelmente Louis Petit
de Bachaumont) comentou secamente que "a invenção de Monsieur de
Montgolfier deu tamanho choque aos Franceses que devolveu o vigor aos
idosos, a imaginação aos camponeses e a constância às mulhere s " .
Os globes airostatiques também foram históricos noutros aspectos, pois
aj udaram a reordenar a natureza do espectáculo público em França e ao
fazê -lo geraram um público difícil de conter nos limites do decoro do
Antigo Regime.
A própria ascensão em Versalhes constituiu uma quebra importante do
protocolo da corte . O palácio fora construído em função do controlo ceri­
monial do espectáculo através do qual a mística do absolutismo era pre ­
servada e gerida . No centro, em termos arquitectónicos mas também
simbólicos, situava-se o monarca recluso. O acesso à sua pessoa estava
minuciosamente definido pela etiqueta da corte e a proximidade ou a dis ­
tância, a audiência ou a recusa de a conceder, definiam a ordem de impor­
tância dos nobres que serviam directamente o rei. A fachada do palácio,
virada para a cidade, exprimia esta medição calculada do tempo e do
espaço confrontando o visitante com uma sucessão de áreas progressiva ­
mente menos amplas . Dos estábulos e do Grand C ommun, que aloj ava as
cozinhas, onde o espaço tinha imenso valor, até ao "pátio de mármore ",
no centro do qual se localizava o quarto do soberano, o embaixador visi­
tante tinha de negociar uma série de barreiras ou gradeamentos que lhe
iam facilitando progressivamente o acesso.
Toda esta etiqueta graduada fora atropelada sem cerimónias no pri­
meiro ano de reinado de Luís XVI, quando uma turba amotinada mar­
chara sobre o palácio para exigir a restauração dos preços fixos para a
farinha e para o pão. Em Outubro de 1 789, o palácio seria de novo inun­
dado pela fome e pela fúria de uma marcha revolucionária proveniente
de Paris. C ontudo, seis anos antes, o espectáculo aparentemente inocente
do balão de Montgolfier eliminou quase com idêntica brusquidão a com­
plicada protecção da etiqueta da corte. Afinal de contas, o evento não
decorreu atrás do palácio, no parque, onde poderia ter sido patrulhado
mais cuidadosamente pelos Guardas Suíços, mas no espaço sem barreiras
do pátio dos ministros . Foram formados dois cordões de soldados para
Simon Schama 1 CIDADÃOS

proteger o balão e o próprio Montgolfier mas não foi feito nada para con­
ter a multidão nem para a organizar nos espaços ordenados e ordeiros
geralmente exigidos pelos regulamentos do Antigo Regime . E também
não foi possível, além da atribuição de lugares especiais para a família real,
preservar a hierarquia da corte no meio da mole humana. Em vez de ser
um obj ecto de visionamento privilegiado - a especialidade de Versalhes -,
o balão tornou -se necessariamente propriedade visual da multidão. Em
terra, até certo ponto, o espectáculo ainda foi aristocrático; no ar, tornou­
-se democrático.
A ciência oficial e reservada da Academia Real cedeu o passo à ciência
teatral das experiências públicas. E, embora os balões ostentassem o bra­
são real, esta deferência formal não escondia o facto de o rei j á não ser o
centro de todas as atenções . Fora deslocado por um mago mais poderoso:
o inventor. Os irmãos Montgolfier eram fabricantes de papel do Vivarais,
no Sudeste, mas à semelhança de dezenas de milhar de franceses cultos
também eram cientistas amadores . Estrondosamente aplaudidos pelas
multidões, felicitados pelo rei e pela rainha, celebrados pela Academia e
constantemente comparados a C ristóvão C olombo, aproximavam-se mais
de um novo tipo de cidadão-herói: eram os B enj amins Franklins da estra­
tosfera . Uma típica descrição contemporânea de Etienne Montgolfier
pinta- o como a epítome das virtudes sóbrias - simultaneamente clássi­
cas /romanas e modernas/francesas: quer no vestuário, quer nos modos,
ele é a antítese do cortesão presumido e ornamental:

E stava vestido de preto e durante toda a experiência deu as suas ordens


com o maior sangue frio. A severidade e a tranquilidade do seu semblante
pareciam proclamar a certeza que este hábil físico tinha do êxito da expe ­
riência . Não há ninguém mais modesto do que Monsieur Montgolfier.

A par desta reputação de Virtude e Utilidade, existia um traço de inde ­


pendência ou mesmo de insubordinação. O principal colaborador cientí­
fico de Montgolfier era Monsieur Charles, um professor de física que fora
o primeiro a propor como combustível o gás produzido pelo vitríolo em
vez da palha e da lenha húmidas que Montgolfier utilizara em voos ante ­
riores. Charles estava desej oso de subir num balão, mas chocara contra o
veto firme do rei, o qual, desde os primeiros relatos, vinha seguindo o
progresso dos voos com toda a atenção. Preocupado com os riscos de um
voo inaugural tripulado, o rei propusera o envio de dois criminosos mas
Charles e os seus colegas tinham-se mostrado indignados.
"O rei poderá ser o soberano da minha vida, mas não é o guardião da
minha honra", terá sido uma das respostas . Além do mais, tanto os seus
críticos como os entusiastas do voo tripulado se tinham rapidamente
apercebido das suas implicações graves para a preservação do status quo.
111

O contrabando era uma preocupação imediata : as viagens de balão fariam


com que os postos e as barreiras alfandegárias se tornassem irrelevantes.
Talvez pudesse mesmo haver guerras no céu . Rivarol zombou dos temo­
res mais histéricos ao afirmar que a religião perdera o seu controlo sobre
as pessoas dado que as futuras gerações deixariam de ver como milagrosa
a Ascensão da Virgem. Além disso :

Parecia tudo - o mundo civil, político e moral - virado do avesso. Já viam


exércitos chacinando -se mutuamente no ar e o sangue a chover sobre a
terra . Os amantes e os larápios desceriam pelas chaminés e levariam para
lugares distantes os nossos tesouros e as nossas filhas.

Caracteristicamente, o mais autónomo dos aviadores era também o


mais novo : Pilâtre de Rozier, um físico de vinte e seis anos de idade. Em
parceria com um oficial do exército, o marquês d' Arlandes, conseguiu
realizar a primeira ascensão tripulada, no dia 2 1 de Novembro de 1 78 3 .
A combinação d o saber científico com o saber militar - d o conhecimento
técnico com a audácia física - que se tornaria o formato-padrão da avia ­
ção e da exploração espacial j á estava estabelecida. C ontudo, Pilâtre de
Rozier, mais do que muitos outros cientistas, tivera sempre olho para o
público . Nativo de Metz, na Lorena, fora um dos mais conspícuos dos
muitos oradores que davam palestras sobre tópicos científicos nas tardes
parisienses para um público ávido da novidade . Em 1 78 1 , abriu um
Museu das C iências na Rue S ainte-Avoine, especificamente dedicado aos
excluídos da Academia Real . Albergava uma colecção de instrumentos,
livros e equipamento experimental, e os amadores podiam conviver com
os doutos e participar em debates públicos e privados. As mulheres eram
admitidas, mas só se recomendadas por três membros do museu . Mais de
setecentos interessados de todas as classes e condições tornaram-se mem­
bros para ouvir Pilâtre dar palestras sobre a arte da natação e ver as suas
demonstrações de uma túnica impermeável que lhe permitia emergir
seco de uma banheira cheia de água. Entre as invenções em exibição no
museu contavam -se um chapéu com uma luz incorporada para salva ­
mentos nocturnos, e Pilâtre realizava sessões de leitura do seu livro
Mémoire sur l 'Électricité et le Magnétisme.
Pilâtre de Rozier completou as suas credenciais de cidadão -balonista
tornando -se um "mártir da ciência" aos vinte e oito anos de idade . Ao ten­
tar atravessar o Canal de Mancha, partindo de B olonha, em Junho de
1 78 5 , o balão explodiu, " envolto numa chama violeta" . Perante a imensa
multidão plantada na costa, Pilâtre e o seu companheiro caíram de qua­
trocentos e cinquenta metros de altura em cima das rochas em frente de
Croy, à saída do porto . Os relatos foram plenos de horror e pormenor.
O corpo de Pilâtre estava despedaçado, com um pé separado da perna : o
Simon Schama 1 CIDADÃOS

jovem herói " nadava no seu próprio sangue " . O país tratou - o como um
guerreiro morto : "Diz-se que talvez ele amasse demasiado a glória", escre­
veu um panegirista . "Ah ! C omo se poderia ser francês e não a amar. " Em
Inglaterra, Jean-Paul Marat disse num lamento que "todos os corações
estão cheios de dor" . Foram realizados funerais conj untos com grande
pompa em B olonha e em Metz, a sua cidade natal; o rei mandou cunhar
uma medalha, foram encomendados vários bustos e a família de Pilâtre
recebeu uma pensão especial. E para completar um argumento digno de
Rousseau ou de um dos dramaturgos do palco sentimental, a noiva de
Pilâtre morreu oito dias depois, possivelmente pela sua própria mão .
O sentimento de que os voos de balão eram um aspecto do S ublime e
de que os seus praticantes eram semideuses românticos era contagioso.
Um dos aeronautas mais incansáveis era François Blanchard, que quatro
meses antes do acidente de Pilâtre fora o primeiro a atravessar o Canal a
partir de Dover, na companhia de um colega britânico, o D r. Jeffries. Na
sua terceira viagem, partindo de Rouen, aterrou num campo e os campo­
neses, atónitos e embasbacados, saudaram-no como se ele fosse um extra ­
terrestre . Só quando ele se despiu e lhes deixou tocar em várias partes
decisivas do corpo é que eles acreditaram. Mas a elite local era tão curiosa
como os camponeses. Blanchard viu -se no meio de uma tempestade de
excitação e competição para ver quem teria a honra de o acolher durante
a noite enquanto o balão era inflado. As mulheres ficavam particular­
mente excitadas perante a possibilidade de voar e mostravam-se amiúde
mais coraj osas do que os homens na prossecução da sua informada curio­
sidade científica . Por exemplo, nesta mesma altura, a marquesa de
B rossard, a condessa de B ouban e Madame D éj ean insistiram em experi­
mentar o balão . B lanchard levou-as a uma altitude de vinte e cinco
metros - com o balão preso por cordas - e elas mediram cuidadosamente
a velocidade e a altitude. " Não demonstraram", escreveu Blanchard com
admiração no relato para a imprensa, "o menor sinal de ansiedade,
mesmo no ponto mais alto . "
E spectáculos semelhantes tinham lugar por todo o país, d e Lyon à
Picardia e de B esançon aos Jardins do Luxemburgo . Os proprietários do
Caveau e do National, dois cafés rivais estabelecidos no Palais -Royal,
adoptaram equipas concorrentes de balões como se fossem cavalos de cor­
rida. Retratos em miniatura e baladas celebrando as proezas dos balonis­
tas foram postos à venda em Paris. Publicaram-se livros com conselhos
detalhados sobre a construção de um balão ou de uma réplica em minia ­
tura . As mais caras saíam a seis libras, as mais baratas a quarenta soldos
( o preço de cinco pães grandes ) . Para o modelo de setenta centímetros,
era aconselhada uma membrana de intestino de boi, que deveria ser
colada com a melhor cola de peixe . Os amadores eram alertados para os
perigos do metano, enquanto os conhecedores construíam balõezinhos
1 13

com a forma e a cor de frutos diversos para que em momentos especiais


das recreações nocturnas subissem no ar e ficassem a pairar sobre o
decantador de clarete.
Mas os balões eram muito mais do que o divertimento da moda.
Atraíam um público enorme, um público entusiasta e espontâneo que não
se expressava com o sotaque da sociedade culta mas com o vocabulário
emocional da sublimidade de Rousseau . Neste ambiente poético, o terror e
a alegria estavam invariavelmente ligados e os sentimentos eram frequente
e eloquentemente expressados através da linguagem corporal. Quando o
balão de Monsieur Charles e de Monsieur Robert se ergueu por cima de
Saint-Cloud, em Julho de 1 784, "homens e mulheres", escreveu um espec­
tador, "grandes e humildes, caíram de j oelhos, completando o quadro mais
extraordinário alguma vez visto" . Numa ocasião mais dramática, na planí­
cie de B roteaux, adj acente ao Ródano, perto de Lyon, uma multidão
enorme viu horrorizada Pilâtre de Rozier - pouco antes do seu acidente
fatal -, Montgolfier e seis outros passageiros, incluindo o filho do príncipe
de Ligne, cair subitamente a pique envoltos em fumo e chamas. A resposta
unânime dos espectadores foi "erguerem os braços e as mãos num movi­
mento involuntário, como que para apanharem o balão na queda" .
Quando s e constatou que tinham sobrevivido n o meio dos destroços do
enorme globo de noventa metros de diâmetro, os cavalos foram desatrela­
dos das suas carruagens e eles foram levados em ombros por uma torrente
de celebrantes . " C obertos de suor e fumo, [eram] constantemente parados
pelos que queriam vê-los de perto e abraçá -los . " À noite, na Ó pera,
aquando de uma representação de Ifigénia em Á ulida, de Gluck, foram sau­
dados com estrondosos vivas e hurras. O cantor que fazia de Agamémnon
ofereceu-lhes coroas de louros; Montgolfier, de modo característico, depo­
sitou a sua na fronte da mulher, e Pilâtre ( competindo em modéstia ) , colo­
cou a dele na cabeça de Montgolfier.
Por outras palavras, Montgolfier, Pilâtre e Blanchard conseguiram
estabelecer uma relação de camaradagem directa e não mediada com as
multidões. As massas de espectadores que passavam por emoções descon­
troladas quando os viam comportavam-se exactamente como as multi­
dões não se deviam comportar no Antigo Regime . Em Lyon, por exemplo,
como noutras cidades de província - especialmente as que eram sede de
um Parlamento -, os eventos de massas eram regulados através de pro­
cissões religiosas ou cívicas. A coerência e a estrutura destas ocasiões eram
prescritas pela ordem dos participantes, pelo vestuário que usavam ou
pelos atributos que ostentavam. Precedidas por sacerdotes ou dignitários,
as suas cerimónias davam expressão ao mundo corporativo e hierárquico
no qual tinham sido criados .
A física carismática alterou tudo isto . C omo espectáculo, era imprevi­
sível, e os espectadores eram incoerentes, espontâneos, viscerais. Mas
S imon S chama 1 CIDADÃOS

também não eram uma turba un attroupement nem um aj untamento casual.


O sentimento de estarem a testemunhar um acontecimento libertador -
augúrio de um futuro flutuando livremente - convertia-os numa espécie
de irmandade temporária ao ar livre, sob a morrinha estival parisiense ou
os flocos de neve de um Janeiro lionês. Era uma calistenia menos severa
do que a ginástica neo-espartana recomendada por Rousseau (e posterior­
mente ordenada pelos Jacobinos) mas não deixava de exemplificar a visão
do filósofo de um festival de liberdade: visões elevadoras do Sublime nas
quais o que era nobre era a experiência e não o público.

Mas os balões não eram o único espectáculo que atraía multidões em


que as distinções formais de estatuto eram engolidas pelo entusiasmo par­
tilhado. As décadas finais do Antigo Regime foram notáveis pelo número
de fenómenos culturais nos quais os gostos do povo e das elites convergi­
ram. A dimensão e a diversidade do público do teatro de variedades, das
canções populares e até da exposição bienal do Salon eram de tal ordem
que obliteravam as distinções tradicionais da ordem social e jurídica pre ­
servadas nas formas de arte oficiais e licenciadas pela monarquia . A des­
crição vívida feita pelo popular j ornalista Pidanzat de Mairobert do público
do Salon em finais da década de 70 do século XVIII realça esta mistura desi­
nibida de tipos sociais num espaço confinado. Os corpos, as vozes e os odo­
res estavam tão j untos que formavam, no augusto espaço do Salon Carré
do Louvre, um gigantesco caldo fervente de humanidade. Depois de subir
uma escadaria permanentemente pej ada de gente, o visitante mergulhava
num "abismo de calor, num turbilhão de poeira e barulho" . "Numa atmos­
fera venenosa, impregnada do hálito de pessoas pouco higiénicas . . . ensur­
decidos por uma barulheira como o rebentamento das ondas do mar", mas
mesmo assim observava-se uma "mistura de todas as ordens do E stado, de
todas as camadas da sociedade, de todas as idades e sexos" . . .

o presumido desdenhoso ou a [vaporeuse] ; o faz-tudo saboiardo lado a lado


com o " cordon bleu" [o nobre da mais elevada estirpe] ; a vendedora do mer­
cado troca odores com a mulher de qualidade, levando-a a apertar o nariz
para escapar ao poderoso cheiro a brandy que a engolfa; o rij o artesão,
guiado apenas pelo instinto, sai-se com um comentário acertado que, por
causa do sotaque cómico, põe o tonto bel esprit às gargalhadas; o Artista,
escondido na multidão, tenta interpretar tudo aquilo e tirar partido . Os cole­
giais instruem os mestres . . . pois são estes j ovens, dispersos pela imensa con­
gregação, que pronunciam quase sempre os j u lgamentos mais perspicazes .

Nas suas origens, o Salon fora o templo da hierarquia académica e ins ­


titucional. A Academia, sob cuj os auspícios era organizada a exposição,
estava dividida em três classes rigidamente estruturadas e as paredes da
1 15

exposição preservavam cuidadosamente a hierarquia formal dos géneros - os


quadros históricos no topo, seguidos da pintura de género e das naturezas­
-mortas. Mas estas formalidades tornaram-se supérfluas no fluxo e refluxo
caótico do entusiasmo público. Nas décadas de 60 e 70 do século XVIII, os
quadros que atraíram as multidões e os comentários excitados da imprensa
não foram as pomposas pinturas históricas de artistas como Brenet e
Lagrenée mas os sentimentais dramas de género de Greuze.
Um processo similar de derrube de fronteiras estava a decorrer no tea ­
tro, e isto é de sobremaneira surpreendente dado que o teatro de Paris
estava dividido em dois mundos fortemente contrastantes. O drama do
gosto elevado e da respeitabilidade oficial estava a cargo de companhias
licenciadas como a C omédie -Française e a Opéra. Os grandes teatros, com
as suas fachadas com pórticos, ofereciam uma dieta regular de tragédias
clássicas e c omédias aceitáveis de Moliere . Os· actores declamavam os ver­
sos alexandrinos de acordo com convenções de dicção e cadência consa­
gradas pelo tempo. Nada podia estar mais longe do mundo barulhento e
terreno dos teatros de variedades, nos quais as farsas brej eiras, ricas em
calão e humor burlesco, disputavam o público às feiras dos horrores, aos
espectáculos de funambulismo e aos baladeiros .
Os historiadores retratam frequentemente o século XVIII como o
período em que a cultura popular foi finalmente subj ugada pelos severos
guardiães do gosto moral oficial. Nesta visão, a cultura popular, do lugar
central que ocupava na vida do povo, tornou-se marginal, cedendo às
campanhas de Melhoramento e E dificação. Os Jacobinos tentariam efec­
tivamente algo deste tipo. C ontudo, graças às investigações de Michele
Root-Bernstein e Robert Isherwood, sabemos hoj e que durante as últimas
décadas do Antigo Regime se verificou um processo oposto . Era o teatro
oficial que estava a perder vitalidade e, até certo ponto, público, e era o
teatro popular que se estava a tornar a principal atracção. E ainda mais
espantoso era o fenómeno - notado pelos contemporâneos - de os dois
mundos não estarem a afastar- se mas a aproximar- se. Estava em forma ­
ção um único público, ávido de entretenimento e que ia da família real e
da corte até aos operários, loj istas, comerciantes e soldados. Acorriam a
ver As Bodas de Fígaro na C omédie-Française, onde assistiam de pé na
tumultuosa plateia; ou então, pela módica quantia de doze ou vinte e
quatro soldos, viam os Grands Danseurs de Nicolet no B oulevard du
Temple, com a sua rodopiante combinação de acrobacias, burlesco, pan­
tomina, actuações de mimos, canções e dramas sentimentais ( durante
algum tempo, a sua vedeta principal foi um macaco chamado Turcot que
imitava o grande actor " sério " Molé ) .
Existem inúmeros exemplos desta fusão cultural e m acção. O Journal
de Paris oferecia informações diárias sobre o teatro " elevado" da Opéra,
da C omédie-Française e da C omédie Italienne, mas também listava as
Simon Schama 1 CIDADÃOS

atracções do Variétés e do Ambigu C omique. Abundavam as transferên­


cias de um mundo para o outro. Audinot, antes de fundar o seu próspero
teatro de variedades, o Ambigu C omique, fora cantor (e era filho de can -
tor) da Opéra C omique e encenara espectáculos em Versalhes . O grande
sucesso da década de 70, século XVIII, Les Battus, de Dorvigny, punha em
cena Janot, um serviçal indefeso que depois de levar com o conteúdo de
um penico em cima procura j u stiça na lei e acaba por ir parar à cadeia.
Em 1 780, Les Battus j á tinha sido representada mil vezes, tornando o actor
principal, Volange, uma celebridade em Paris, e foi representada em pri­
vado para o rei e para a rainha, em Versalhes .
N a verdade, a família real estava tão envolvida nesta cultura d o palco
como qualquer outra pessoa. Sabe-se que Artois, por exemplo, escreveu
versos para as canções implacavelmente satíricas e frequentemente obsce­
nas que os vendedores de baladas apregoavam na Pont Neuf, e não obs­
tante o franzir de sobrancelhas do rei por causa da quebra do decoro, Maria
Antonieta ia com frequência ao teatro . A reacção do público à sua presença
acabou por se tornar um barómetro da sua popularidade. Foi uma expe­
riência obviamente agradável enquanto os aplausos duraram, mas, em
meados da década de 80, século XVIII, os silêncios gélidos ou outras mani­
festações piores reforçaram a sua sensação de alienação das graças do
público . Mas a rainha continuou interessada na gíria dos mercados - o pois­
sard,1 - e convidou membros da trupe Montansier para ensinarem ao seu
pequeno grupo de actores da corte (incluindo Artois ) o seu áspero calão.
Fazia parte desta trupe a família Grammont, que exemplificava o carácter
inclusivo do mundo dramático. À vontade nos teatros de variedades, onde
tinham começado como equilibristas e palhaços, na trupe de Nicolet, mas
habituados a actuar em Versalhes, os Grammont tornar- se-iam oficiais nos
armées révolutionnaires, as tropas de choque parisienses criadas para impor
a legislação revolucionária e alimentar a guilhotina com traidores .
Mas foi o duque de Chartres quem mais fez para institucionalizar este
cadinho cultural ao converter o Palais-Royal no local espectacular da
Europa para tratar de assuntos de prazer e políticos . Em 1 776, o duque
recebeu do pai, o duque de Orleães, este lugar de primeiríssima categoria
- outrora os jardins do cardeal Richelieu -, adjacente ao Louvre e às
Tulherias. A combinação de um estilo de vida pródigo com a sua iniciativa
empresarial levou-o a congeminar um plano extravagante para transfor­
mar os j ardins num espaço de recreio dotado de arcadas que combinariam
cafés, teatros, loj as e locais de recreação mais dúbia. O arquitecto Victor
Louis, autor do magnífico teatro de B ordéus, foi contratado para criar os
espaços interiores . Escusado será dizer, a ambição sobrepôs-se aos fundos

' Ou "peixês", dado que procurava imitar o calão das peixeiras (poissardes) . Ver também
capítulo 1 1 p . 39 1 . ( N. do T. )
1 17

disponíveis e só em 1 7 84 começou a ser concretizado algo parecido com


o plano original. Entretanto, foi erguida uma galeria de madeira ao longo
do Palais, a qual, conhecida por Camp des Tartares, depressa se tornou
notória como antro de prostitutas e carteiristas. Por meia dúzia de soldos
podia -se ficar fascinado perante o perímetro abdominal do alemão Paul
Butterbrodt ( que pesava duzentos quilos ) , 2 e por urp.a dúzia inspeccionar
as credenciais da "bela Zulima", desnudada e alegadamente morta há
duzentos anos mas em perfeito estado de conservação ( era de cera ) .
Em 1 78 5 , quando o velho duque de O rleães morreu, deixando ao
filho fundos suficientes para concluir os trabalhos, o Palais-Royal já tinha
conseguido levar a crua e rabelaisiana cultura popular para o coração da
Paris real e aristocrática. Uma década antes, ainda fora possível ver o cen -
tro de Paris como coutada da arte oficial, com as formas "menores" rele­
gadas para os teatros de variedades e para as feiras de S aint- Germain e
Saint- Laurent. O encerramento destas formas não oficiais nestes grandes
recintos de prazer dava à polícia a sensação de que ao menos as impro­
priedades estavam circunscritas a zonas próprias e que se os cidadãos res ­
peitáveis decidiam frequentá-las faziam-no por s u a conta e risco . Os
teatros da elite podiam olhar de esguelha para a crescente popularidade
e para a invej ável prosperidade dos seus rivais mas pelo menos tinham a
satisfação de os ver em saletas acanhadas e de segunda categoria, longe
dos bairros da moda.
A chegada do Palais -Royal como carnaval quotidiano dos apetites alte­
rou drasticamente tudo isto. Enquanto domínio privado da Casa de Orleães
estava praticamente a salvo do patrulhamento policial, uma liberdade que
explorou ao máximo . "Este lugar encantado é uma pequena cidade
luxuosa dentro de outra maior", escreveu Mercier. Entusiasticamente aco ­
lhido por Chartres/ Orleães, o Théâtre B eauj olais (baptizado com o nome
do irmão de Chartres) abria com marionetas de um metro de altura e pros­
seguia com actores infantis, e o Variétés Amusantes encenava as farsas e os
melodramas dos teatros de variedades; estavam ambos sempre esgotados .
Floresciam todo o tipo de cafés, desde o tranquilo F o y ao arriscado Grotte
Flamande. Era possível visitar as lojas dos peruqueiros e dos rendeiros,
bebericar limonada comprada numa banca, j ogar xadrez ou damas no Café
de Chartres ( hoj e Grand Vefour) , ouvir um abade especializado em can­
ções brej eiras tocar guitarra durante a sua passeata (presumivelmente
expulso do clero ) , dar uma vista de olhos pelas implacáveis sátiras políticas
que eram escritas e distribuídas por uma equipa de mercenários a soldo do
duque, dar uma olhadela aos espectáculos de lanterna mágica ou de luz e
sombras, j ogar bilhar ou ir ver o canhão disparar, ao meio -dia em ponto,
quando era atingido pelos raios do Sol.

' Butterbrodt ( "pão com manteiga " ) seria provavelmente um nome artístico. (N. do T. )
Simon Schama 1 CIDADÃOS

No interior dos espaços confinados do teatro de variedades era difícil -


senão mesmo impossível - manter qualquer tipo de distinções sociais.
O teatro de Nicolet comportava quatrocentas pessoas que se amontoavam
num espaço de quinze metros por doze . A luz das velas de sebo não era
grande coisa para exibições de carácter social e os reduzidos preços prati­
cados significavam que havia pessoas de mundos sociais drasticamente
diferentes comprimidas como sardinhas em lata. Mas até nas avenidas e
nas arcadas do Palais -Royal, onde passear (para não dizer andar à cata de
clientes ) , mirar e inspeccionar eram um passatempo muito apreciado, a
condição e a classe social estavam indiscriminadamente aglomeradas. No
meio do amontoado de gente, era fácil tomar uma cortesã vestida de
forma espampanante e com brilhantes de imitação por uma condessa
adornada com o produto genuíno. Para impressionarem as raparigas, os
jovens soldados vestiam os seus uniformes ( uma inovação relativamente
recente no Exército ) , onde as patentes estavam ausentes ou eram inde ­
terminadas. Com as suas togas negras, os magistrados nobres do
Parlamento pareciam-se com os humildes advogados e escriturários.
É evidente que os contemporâneos adoravam esta mescla social. Louis­
- S ébastien Mercier, que se insurgira contra os teatros de variedades por
encoraj arem os " cidadãos honestos" a uma dissipação estulta, adorava o
Palais -Royal, onde assistia "à confusão dos estados, à mistura, ao aj unta ­
mento " . Mayeur de Saint-Paul, que escreveu de forma ainda mais lírica,
insistiu que "j untam-se todas as ordens de cidadãos, da dama à dissoluta,
do soldado distinto ao mais humilde funcionário da Ferme" .
Nos salões dignificados d a Comédie-Française o u d a Opéra C omique, a
ordem social era obviamente muito mais vincada, mas a principal condi­
ção de distinção ( foi assim durante todo o Antigo Regime) era o dinheiro
não o nascimento ou o estatuto . Além do mais, mesmo no teatro " sério"
existem alguns indícios de uma crescente infusão de público da classe
média e até da classe média-baixa : loj istas e mestres de ofícios "honestos"
como a marcenaria e a reloj oaria. Em ocasiões especiais, como no aniver­
sário do delfim, em 1 78 1 , havia representações gratuitas e o teatro
enchia-se com estes espectadores mais modestos. Mas mesmo durante a
temporada normal, o preço relativamente módico do parterre tornava- o
acessível a o s apreciadores, entre os quais os estudantes e os escriturários
j udiciários. O amante do teatro podia custear a sua entrada inscrevendo ­
-se numa das claques organizadas que eram pagas para aplaudir ou vaiar
actores e peças, dependendo da encomenda . E por causa da liberdade que
vigorava no parterre, era ali que, na noite de estreia, ficava praticamente
decidido o êxito ou o fracasso da peça. O dramaturgo Marmontel, que não
era amigo da plateia, ao ser estrondosamente ovacionado pelo êxito da
sua peça Belisário, viu-se forçado a admitir que "no meio da massa de
homens incultos existem realmente alguns bastante iluminados " .
1 19

Seriam então les enfants du paradis aparentados com les enfants de la


patrie?' É difícil saber se a aparente mistura social no público dos teatros e
entre os passeantes dos jardins de prazer pode ser tida como um indica ­
dor preciso do colapso do estatuto na França do Antigo Regime . Afinal de
contas, estamos a lidar com a Paris metropolitana na sua faceta mais des­
contraída. Mas sobre o pano de fundo de uma grande mistura de cidadãos,
os incidentes isolados de hostilidade entre grandes e pequenos, entre pri­
vilegiados e cidadãos, tornaram-se um tipo exemplar de drama social e
político : o do anacronismo. Assim, neste sentido, nos públicos de Paris
houve efectivamente ensaios para o grande teatro dos E stados Gerais.
Um caso exemplar foi a famosa guerra dos lugares no teatro que che ­
gou ao tribunal d o Parlamento d e Paris . Esta disputa acabou p o r simboli­
zar a transferência para o público de um dos enredos típicos representados
no palco: a cidadania virtuosa espezinhada pela arrogância aristocrática .
No dia 9 de Abril de 1 782, rebentou uma disputa no balcão da Comédie ­
Française. As partes envolvidas eram um tal Pernot-Duplessis, procurador
do Parlamento, e o conde de Moreton- Chabrillant, capitão da guarda do
duque da Provença - o irmão mais novo do rei. Durante o j ulgamento, foi
sublinhado que o queixoso era "um homem honesto em todos os aspec­
tos, conhecido pela suavidade dos modos e pela graciosidade da disposi­
ção "; que na noite em questão estava sobriamente vestido de preto, sem
peruca. Pelo contrário, o oficial chegara tarde, de casaco cor- de- rosa,
espada e chapéu emplumado - por outras palavras, a essência do cortesão
militar. Segundo o registo do tribunal, eis o que aconteceu a seguir:

C HABRILLANT: O que fazeis aqui?


DUPLE S S I S : Estou sentado no meu lugar.
C HAB RILLANT: Retirai-vos.
DUPLE S S I S : Pelo que paguei, tenho direito a estar aqui . . . Paguei o lugar e
não me vou retirar. Vou ficar.
C HAB RILLANT: Um c . . . rão dum robin atreve -se a insultar-me [neste
momento, deu um empurrão ao queixoso] . Sou o conde de Chabrillant,
capitão da guarda de S ua S enhoria, o irmão de Sua Maj estade. Quem
manda aqui sou e u . Por ordem do Rei. Ides para a prisão, mariola, para a
prisão . . .
DUPLE S S I S : Não me importa quem sois, um homem como vós não pode
obrigar um homem como eu a passar a noite na prisão sem motivo .

A batalha do balcão foi ganha pelo aristocrata abusivo mas quem


ganhou a guerra foi o j usto advogado . Chabrillant chamou a guarda, que

' O autor refere-se aos "filhos do galinheiro" (paradis) e naturalmente aos exortados na
"Marselhesa " . (N. do T. )
Simon Schama 1 CIDADÃOS

arrastou D uplessis escada abaixo pelos cabelos e deteve -o durante quatro


horas e meia - até muito depois do fim da representação. Mas era impru ­
dente - para não dizer mais - humilhar um membro de um tribunal sobe­
rano, mesmo que, como argumentou a defesa, o conde não tivesse
acreditado que alguém tão "malcriado" pudesse ser um magistrado .
B londel, o advogado de D uplessis, explorou ao máximo o contraste entre
o altivo oficial- cortesão, desdenhoso dos direitos legais básicos e pronto a
fazer uso arbitrário da força, e o homem da lei, calmo, determinado e
modestamente trajado. Era, disse ele em tribunal, "do interesse geral do
Público defender o indivíduo cujo simples estatuto de Cidadão deveria ter-lhe
poupado qualquer tipo de insulto num lugar onde só o dinheiro põe plebeus
e nobres em pé de igualdade" (itálicos meus ) . Escusado será dizer, o tribunal
pronunciou -se a favor de D uplessis e condenou o conde a pagar-lhe uma
indemnização de seis mil libras - uma soma considerável - e a admitir em
tribunal que o homem que tinha insultado era "honrado e probo" .
Houve outros casos e m que o teatro s e converteu num campo d e bata ­
lha pela disputa de direitos contestados. Por exemplo, em Bordéus, em
1 784, o presidente da câmara e os seus conselheiros municipais viram ser­
-lhes negada a entrada no teatro por ordem do governador militar e
quando persistiram na sua tentativa de entrar foram parar à prisão .
O governador tentou j ulgar o presidente d a câmara ( que era u m nobre )
em tribunal militar, opondo a sua força marcial às pretensões civis do pre­
sidente da câmara a exercer a autoridade no teatro em nome dos seus
concidadãos.
A política podia, pois, afectar o teatro, mas o teatro também era capaz
de criar drama político. O caso mais espectacular de todos é obviamente o
de Beaumarchais e As Bodas de Fígaro. As circunstâncias difíceis em que
esta peça foi invariavelmente levada a palco são tidas como representati­
vas de uma etapa no caminho do Antigo Regime para o colapso.
Beaumarchais é retratado como um lutador pela liberdade de expressão e
o rei como um disciplinador atemorizado e petulante . Mas este cenário
simples é consideravelmente complicado pelo facto de, quando Fígaro foi
escrito e levado à cena, Beaumarchais não era nenhum Fígaro oprimido
mas sim um magistrado enobrecido, senhor de considerável riqueza e de
uma influência formidável. O significado que tem a diatribe contra a
ordem estabelecida que ele põe na boca de Fígaro, no Acto V, não decorre
de ter origem num membro da classe baixa literária, mas num dos filhos
favorecidos do sistema .
Tendo em conta estas reservas, seria igualmente enganador desroman­
tizar B eaumarchais ao ponto de o confundir com um aristocrata a brincar
aos radicais chiques. A sua notável vida foi maculada pelas ambiguidades
sociais da França de finais do século XVIII. Foi magistrado e prisioneiro,
cortesão e rebelde, diplomata e espião, homem de negócios e insolvente,
121

editor e publicista, foi u m adaptado e u m inadaptado. A trajectória d a sua


carreira não foi uma ascensão ininterrupta de artesão modesto a nobre
gabarolas. Foi marcada por ascensões espectaculares na fama e na fortuna,
desfeitas por rej eições e desilusões igualmente espectaculares . Se cultivou
assiduamente o paradoxo, também é verdade que o paradoxo lhe era
natural. Numa das suas muitas comparências em tribunal acusado de
difamação, envergou as vestes do "homem honesto" - casaco e calças pre ­
tas ( e fez por se apresentar particularmente pálido ) - mas não conseguiu
resistir a exibir o enorme anel de diamantes que lhe fora oferecido pela
imperatriz austríaca, Maria Teresa. Em 1 787, contratou o arquitecto da
moda, Lemoyne, para lhe construir uma mansão espectacular com duzen­
tas j anelas e que custou quase um milhão de libras. Mas passava a vida no
delapidado bairro de Saint-Antoine, coração da Paris operária e fulcro do
radicalismo sans-culotte durante a Revolução.
Para compreender a atracção inaudita de As Bodas de Fígaro, e porque
foi a obra usada como um pau para bater na cabeça dos elementos mais
obstinados do Antigo Regime, é necessário ver como o seu autor assumiu
o papel de honnête homme e cidadão inj uriado . Tal como Rousseau,
Beaumarchais era filho de um reloj oeiro protestante, mas ao contrário do
filósofo alargou os seus conhecimentos do ofício paterno e tornou -se um
inventor brilhante e prodigioso. O seu mestre roubou-lhe o crédito pela
invenção de um mecanismo de escape que tornava os relógios mais pre­
cisos e mais compactos, mas Beaumarchais desmascarou o usurpador e
em pouco tempo tornou-se famoso e abastado. Apresentado a Luís XV aos
vinte e dois anos de idade, foi nomeado reloj oeiro da corte . A sua amizade
com o rico financier Paris-Duverney abriu-lhe as portas da nobreza e, em
1 76 1 , B eaumarchais comprou o título. Aos vinte e nove anos de idade,
deixou de ser Pierre -Augustin Caron e passou a usar o nome da sua pro ­
priedade, B eaumarchais . Dado que o novo estilo de nobreza pressupunha
serviço público, Beaumarchais tornou -se j uiz presidente do tribunal que
apreciava os crimes contra as leis da caça - um cargo particularmente difí­
cil e no qual não mostrou nenhuma simpatia especial pela multidão de
patéticos caçadores furtivos profissionais e amadores que eram arrastados
até à sua presença.
Foi obviamente O Barbeiro de Sevilha que consagrou Beaumarchais
como dramaturgo, mas as peças que escreveu depois foram uma sucessão
de dramas bastante fracos, plenos de todas as expressões correctas de uma
sensibilidade elevada : amizade, amor frustrado, posteridade honrada, etc.
Ao tornar-se uma celebridade, Beaumarchais tornou-se também alvo de
maridos ciumentos e de escribas oportunistas, e o seu gosto por toda a
espécie de prazeres era como um íman para os ataques. Mas, apesar de
toda a sua notoriedade ( em parte bem merecida ) , o chevalier Beaumarchais
coexistia com o cidadão Beaumarchais. O libertino e gabarolas foi também
Simon Schama 1 CIDADÃOS

o obstinado combatente propagandista da causa americana, que equipou


toda uma marinha privada com armamentos para os rebeldes e cuj a bolsa
pôs o que faltava entre o custo cada vez maior da assistência francesa e os
desembolsos secretos da monarquia. Outro proj ecto de significado quase
comparável arruinou-o ainda mais. Decidiu publicar as obras completas e
os manuscritos de Voltaire quando o grande editor e livreiro parisiense
Panckoucke desistiu da tarefa. B eaumarchais editou a obra colossal, lidou
com as partes ultraj adas que lhe caíram em cima de todos os lados
( incluindo Frederico, o Grande, da Prússia ) e que não queriam ver a sua
correspondência tornada pública, montou a sua própria imprensa na
Lorena, comprou tipos em Inglaterra e tentou cobrir os custos garantindo
trinta mil assinantes à cabeça. Previsivelmente, ficou-se por uns parcos
dois mil. Os tipógrafos, por não receberem, vandalizaram as máquinas, e
um tesoureiro eclipsou-se com algumas receitas. O projecto, que se cifrou
em setenta e dois volumes in- quarto, revelou-se um fiasco comercial de
proporções titânicas, mas foi também uma glória cultural, talvez a melhor
coisa que Beaumarchais fez na vida .
Foi a inquestionável capacidade de B eaumarchais de fazer de pessoa
comum que conferiu às Bodas de Fígaro a sua voz universal. Rompeu as
barreiras do estatuto e j untou os géneros, levou a sátira mordaz do teatro
popular para o palco augusto da C omédie -Française e deu fama imediata
a actores talentosos como Louise C ontat ( Susana ) e d'Azincourt (Fígaro ) ,
que foram capazes d e desempenhar o s seus papéis com espontaneidade e
frescura. Muitas comédias do teatro de variedades tinham atacado as pre­
tensões do poder senhorial, mas nenhuma o fizera com tanto e tão con­
tundente humor. A peça estava mais próxima do " drama popular"
invocado por Mercier em 1 77 3 do que qualquer outra vista até então no
século XVIII. Aqueles que conhecem apenas a versão operática de Mozart
e Ponte conhecem apenas um Fígaro expurgado da maior parte das
malandrices. Tal como comentou o autor da Correspondance Secrete, os
antecessores de B eaumarchais

tinham sempre tencionado provocar gargalhadas à custa dos pequenos;


aqui, os pequenos podiam-se rir dos grandes, e sendo tão considerável o
número de pessoas comuns não é de admirar a enorme multidão de espec­
tadores de todos os quadrantes que foram atraídas pelo Fígaro .

Não há dúvida de que B eaumarchais teria gostado que a peça tivesse


sido produzida sem quaisquer interferências oficiais. Todavia quando
estas lhe foram desaj eitadamente oferecidas ele aproveitou para as publi­
citar como um combate entre o despotismo arrogante e as liberdades dos
cidadãos. Tipicamente, B eaumarchais conseguiu representar este papel
porque entre os cidadãos mais desej osos de assistirem à peça incluíam-se
123

Maria Antonieta e a corte . Beaumarchais dera o manuscrito a Chamfort


( que era amigo de Talleyrand ) , que por sua vez o depositara nas mãos de
Vaudreuil, o favorito da rainha. Fora organizada uma leitura em privado
e quanto mais chocantes tinham sido as denúncias da ordem estabelecida
mais a rainha tinha gostado. O rei não achou tanta graça . A meio do céle­
bre monólogo de Fígaro, no Acto V, levantou-se da cadeira e, num raro
acesso de eloquência e presciência, declarou a peça " detestável. Nunca vai
ser levada à cena; seria preciso destruir a Bastilha para a sua representa ­
ção não ter consequências perigosas".
O proj ecto foi oficialmente proscrito, mas Beaumarchais recorreu a todos
os meios possíveis para o manter vivo. Astutamente, tinha incorporado uma
canção popular na peça, Malborouck S 'en Va-t-en Guerre. " Va-t-en guerre" era
uma ironia, significava guerra com fanfarronice e não com actos, e a canção
fora escrita durante as campanhas de Luís XIV, quando circulara o falso boato
de que a némesis do monarca francês, o duque de Marlborough, morrera em
combate.4 Ressuscitada na década de 80, século XVIII, a canção foi usada
para troçar da humilhação da Grã-Bretanha na América e no Índico, onde
o almirante Suffren estava a trocar as voltas à Marinha Real britânica.
Beaumarchais adaptou-a como se a sua própria luta fosse o equivalente
dramático de uma campanha militar, e usou a zombaria da canção como se
o seu inimigo estivesse prestes a ser derrotado . Numa cultura de rua e de
salão em que os double-entendre eram praticamente uma linguagem oficial,
a insinuação não passou despercebida .
Mas como sempre, foi o desej o de parte da elite nobre de humilhar a
corte que minou a autoridade real. O manuscrito da peça foi clandestina­
mente copiado e posto a circular pelas grandes casas da nobreza liberal ( e
não tão liberal) . Algumas destas famílias possuíam os seus próprios teatros,
nos quais a polícia não mandava. Foi a ameaça de realização de representa­
ções privadas e, mais embaraçosamente ainda, a possibilidade de a peça ser
estreada em São Petersburgo com o patrocínio do grão-duque Paulo, que
deu origem a um acordo informal no sentido de As Bodas poderem ser leva­
das à cena em Paris, num espaço da rainha, a Salle des Menus Plaisirs, que era
utilizada para os ensaios da Ó pera. No dia 1 3 de Junho de 1 78 3 , milhares
de pessoas inundaram as ruas adjacentes ao teatro cantando em desafio
"Marlbrouck". Meia hora antes de subir o pano, o rei enviou o seu cama­
reiro armado com lettres de cachet com ordens de impedir a representação,
"sob pena de incorrer na indignação de Sua Maj estade", o que significava
claramente uma estadia na prisão. Beaumarchais respondeu com uma
ameaça digna de Fígaro: "Eh bien Messieurs, poderá não haver nenhuma

' O outro título da canção é "Mort et Convoi de l'Invincible Malborough" (Morte e


Enterro do Invencível Marlborough ) . A música é a da conhecida canção "For He's a Jolly
Good Fellow " . Beaumarchais substituiu o refrão por " Que mon coeur, que mon coeur a de peine",
que é cantado na peça por Querubim. ( N. do T. )
Simon Schama 1 CIDADÃOS

representação aqui, hoj e, mas j uro-vos que a peça será representada, talvez
até no coro de Notre-Dame . "
Este choque entre cidadão e soberano foi inconclusivo . B eaumarchais
aceitou fazer algumas alterações - que se revelaram inconsequentes - e o
rei recuou na sua posição, não fazendo segredo de que acreditava que a
peça ia ser um grande fiasco . Enganou-se e muito . No dia 2 1 de Abril de
1 784, a peça estreou no novo e neoclássico Théâtre-Français ( hoj e o
Odéon ) . A j ovem e perspicaz baronesa de Oberkirch assistiu às cenas de
pugilato que rebentaram no meio daquela multidão imensa concentrada
à frente do teatro para tentar garantir os poucos lugares que restavam.
Apesar de não ser uma radical, ficou deslumbrada com a representação e
refutou os críticos que consideraram que a peça só tivera êxito por exci­
tar o humor grosseiro do público. Em 1 789, escreveu nas suas memórias
que, muito pelo contrário,

As Bodas de Fígaro será a coisa mais inteligente alguma vez escrita, com a
possível excepção das obras de Monsieur Voltaire . É deslumbrante, um ver­
dadeiro fogo -de- artifício. As regras da arte são viradas do avesso de uma
ponta à outra, e é por isto que em quatro horas de representação não há
um único momento enfadonho .

Mas a baronesa de Oberkirch também teve a perspicácia para reparar


numa obtusidade peculiar por parte dos aristocratas, que se escangalha­
ram a rir quando Fígaro descarregou a sua fúria sobre o conde Almaviva :

Só porque sois um grand seigneur j ulgais-vos um grande génio . . . nobreza,


riqueza, estatuto, cargos ! É isto que vos torna tão grandioso e poderoso?
O que haveis feito para ter tanto? Deste-vos ao trabalho de nascer, mais
nada; quanto ao resto, sois uma pessoa normal enquanto eu - raios ! -, per­
dido na multidão anónima, tive de recorrer a toda a minha ciência e a todo
o meu engenho só para sobreviver.

Juntando -se aos aplausos que choviam invariavelmente sobre esta


fala, a baronesa de Oberkirch observou que os grands seigneurs na audiên­
cia "se esbofeteavam a si próprios [ils se sont donnés un soufflet sur leur pro­
pre joue] ; riam às suas próprias custas e, o que é ainda pior, punham os
outros a rir . . . que estranha cegueira ! " .
Mas h á indícios d e que o s "bravos ! " e o s "bis ! " morreram nos lábios dos
nobres quando eles começaram a aperceber- se do significado de uma
polémica que era dirigida contra eles e não contra a monarquia ou os
ministros. Depois de Fígaro ter saído de cena do Théâtre-Français, em
Janeiro de 1 78 5 , começaram a orquestrar um contra-ataque. O arcebispo
de Paris denunciou a atrocidade do púlpito e o escritor Suard, fazendo -se
125

passar p o r padre, seguiu - o com uma crítica contundente e sarcástica .


Beaumarchais respondeu com um desprezo devastador no Journal de
Paris. Depois de ter repelido o ataque dos "leões e dos tigres", disse ele,
não se ia rebaixar dando resposta a pequenos parasitas, para não ser colo­
cado na posição de uma " dona de casa holandesa que todas as manhãs
tem de bater no colchão para expulsar os imundos bicharocos " .
N o dia 6 d e Março, o artigo foi levado a o rei, o qual, talvez ainda res­
sentido por os seus desejos serem sido frustrados, interpretou a referência
aos insectos ( não eram vermes ) como um ataque pessoal. Foi o que bas­
tou para B eaumarchais ir parar à prisão e o rei, num amuo tonto, decidiu
que a repreensão mais devastadora que poderia dar a um ironista seria
uma humilhação cómica . Nessa noite, à mesa de j ogo, escrevinhou nas
costas do sete de espadas que Beaumarchais não deveria ficar na Bastilha
(local de detenção habitual para os escritores insubordinados) mas em
Saint-Lazare, a casa de correcção para rapazes delinquentes . Esta humi­
lhação j ocosa deitou B eaumarchais abaixo. Recusando -se a emergir da
prisão, ciente de que era motivo de piadas, nunca recuperou por completo
a confiança airosa que o sustentara nos seus muitos infortúnios. Nos últi­
mos anos do Antigo Regime, B eaumarchais tornou - se o saco de pancada
de radicais e reaccionários.
A estadia em Saint-Lazare poderá ter levado B eaumarchais a passar per­
manentemente da ofensiva à defensiva, mas não fez o mesmo a Fígaro. A
peça continuou a ser, de longe, o sucesso mais popular e duradouro do tea­
tro "legítimo" de Paris. B eaumarchais tinha muitos inimigos que se regozi­
jaram com o seu castigo e que acreditavam que o seu arvoramento em
campeão da liberdade era uma postura hipócrita. Mas Beaumarchais tam­
bém tinha muitos amigos na "multidão anónima" que ouviam atentamente
Fígaro descrever-se a si próprio como um "homem honesto" obrigado a
encolher-se e a rastejar aos pés de uma aristocracia desdenhosa, um homem
cuj o talento e espírito se insurgiam contra as barreiras arbitrárias do esta­
tuto. Se é um mito que nos clubes e nas multidões revolucionárias existi­
ram legiões de Fígaros impacientes para se vingarem dos seus Almavivas,
não deixa de ser verdade que os antigos dramaturgos, panfletistas, actores e
directores de teatro foram dos mais entusiásticos devotos da guilhotina.

II A ATRIBUIÇÃO D O S PAPÉI S : OS FILHOS DA NATUREZA

Um ano antes da sua humilhante e stadia em S aint - Lazare,


B eaumarchais teve uma ideia p romocional inspirada . Oferece u - s e para
doar a receita de As Bodas de Fígaro a uma causa j u sta: a promoção do
aleitamento materno. S eria estabelecido em Paris um Instituto de
Saúde Materna que conce deria subsídios às mães para que estas não
Simon Schama 1 CIDADÃOS

tivessem de entregar os filhos às amas - d e - leite das aldeias para pode­


rem ir trabalhar.
S egundo o tenente Lenoir, da polícia de Paris, das mães dos vinte mil
bebés que nasciam anualmente só cerca de um terço amamentava, e estas
pertenciam quase exclusivamente a famílias ricas e que seguiam a apai­
xonada defesa que Rousseau fazia do aleitamento materno . Outras famí­
lias com posses pagavam às amas -de-leite para irem a suas casas ou
enviavam os bebés para os faubourg . 5 Mas a maioria esmagadora das famí­
lias modestas e pobres recorria a um departamento oficial e aos seus agen­
tes itinerantes - os meneurs para encontrar amas -de-leite nas aldeias em
-

redor da capital. Os mais pobres abandonavam os filhos à porta das igre ­


jas para serem depositados no Hospital das C rianças Abandonadas, que os
entregava depois às amas-de-leite das aldeias. Para metade destes bebés, a
aldeia era uma sentença de morte : a pobreza urbana era complementada
pela miséria rural. D esesperadas para garantir a ninharia que recebiam
pelo serviço, muitas mulheres mentiam aos meneurs sobre as suas capaci­
dades e davam aos bebés leite animal ou uma papa de água e pão ( fre­
quentemente bolorento ) . Às vezes enfiavam-lhes trapos podres na boca .
Os bebés eram abandonados n o meio d a s imundícies animais e humanas,
deixavam-nos pendurados num gancho envoltos em panos que não eram
mudados ou punham-nos numa rede improvisada suspensa das vigas do
tecto . As febres disentéricás matavam-nos às dezenas de milhar, e não era
raro o meneur, responsável por informar os pais ( ou o Hospital das
Crianças Abandonadas ) dos progressos do bebé, ocultar a morte e meter
o dinheiro ao bolso .
Afectado por relatos do que se passava nesta indústria caseira da
morte, B eaumarchais mobilizou Fígaro para socorrer as mães lactantes.
Uma gravura que celebra o seu esquema mostra Fígaro a praticar a cari­
dade entre mães lactantes generosamente dotadas e satisfeitas, enquanto
outras, de pé por detrás dele, o saúdam como seu libertador da "prisão das
lactantes " . Um Filósofo mostra a cena feliz ao "Bem-E star" e por cima vê ­
- se a "Humanidade" segurando uma tabuleta onde se lê "Auxílio às Mães
Lactantes " .
O sucesso d e B eaumarchais j á era suficientemente irritante para o s
seus inimigos em Paris, q u e não estavam minimamente dispostos a deixar
que a sua aura brilhasse ainda mais através da filantropia. Contudo, o
arcebispo de Lyon gostou da ideia e recebeu de bom grado o donativo de
85 000 libras que estabeleceu um "Instituto" na cidade. Foi um sucesso
incontestado, provocando um declínio acentuado na mortalidade infantil.
Beaumarchais, que estava constantemente a defender-se de acusações de
libertinagem, foi astuto ao associar-se a tão sublime filantropia. C ontra os

' Em francês no original: subúrbios. (N. da R. )


127

críticos que rotulavam a sua peça de bagatela cómica, cheia de ditos espi­
rituosos mas vazia de substância, o esquema filantrópico de B eaumarchais
sublinhava os temas morais da peça: a defesa da inocência nupcial contra
a luxúria e a força aristocráticas . O próprio Fígaro é um " órfão" cuj a redes­
coberta da mãe é um dos meios através dos quais são frustradas as estra­
tégias de Almaviva . C omo em qualquer um dos " dramas burgueses" da
Sensibilidade da década de 50 do século XVIII, o triunfo da virtude sobre
o vício (e da inteligência sobre a posição social) é o desfecho decisivo de
As Bodas de Fígaro.
Além do mais, o aleitamento materno não se resumia a uma questão
de saúde pública. É verdade que os seus defensores sublinharam com fre ­
quência que o facto de reduzir a taxa de mortalidade infantil permitiria
à França fugir à ameaça de despovoamento ( sempre presente na mente
das autoridades ) , mas esta oposição retórica entre vitalidade e mortali­
dade e prática natural e social derivava o seu poder de persuasão da polí­
tica moral dos seios. Dizia-se que a resistência ao aleitamento decorria da
ascendência do egoísmo sensual sobre o dever doméstico . Partia -se do
princípio de que a lactação e a actividade sexual eram mutuamente
exclusivas; havia o receio de estragar o leite ou de provocar o noj o dos
homens. Alguns autores, incluindo Rousseau e um médico seu amigo, o
Dr. Tronchin, atribuíram frequentemente a diminuição do aleitamento
materno ao estouvamento feminino ou ao receio de ofender os maridos.
Todavia, Marie-Angélique Le Rebours, que em 1 7 67 publicou Avis aux
Meres Qui Veulent Nourrir leurs Enfants, foi mais razoável e culpou o res ­
sentimento masculino por causa da interrupção dos seus hábitos sexuais
e criticou os homens que se tornavam violentamente ciumentos ou irri­
tados na presença de bebés a chorar. O que estava em j ogo eram duas
visões antagónicas dos seios: como estímulo sexual, semi- exposto nos
decotes da moda, ou como dom natural, oferecido em cândida abundân­
cia pela mãe ao bebé . Numa peça escrita para publicitar as virtudes do
aleitamento materno, A Verdadeira Mãe ( grávida de sete meses ) ralha seve­
ramente com o marido por tratá -la como um obj ecto de satisfação sexual.
" Serão os vossos sentidos tão grosseiros que apenas olhais para estes seios
- tesouros respeitáveis da natureza - como um simples adorno destinado
a ornamentar o peito das mulheres?"
O erotismo e a maternidade ligavam-se ocasionalmente de modos
bizarros, pelo menos na experiência de Rousseau, que foi mais influente
do que qualquer outra pessoa na campanha a favor do aleitamento
materno. Nas Confissões, Rousseau admite (entre outras coisas) sentir- se
excitado pelo vislumbre de um seio inchado pressionando um decote de
musselina . Mas a sua descoberta de um mamilo invertido no seio de uma
prostituta veneziana transformou a rapariga de uma criatura de beleza
transcendental num monstro repulsivo e lúbrico . A relação que moldou
Simon Schama 1 CIDADÃOS

toda a sua vida foi com a sua protectora, Madame de Warens ( apenas doze
anos mais velha do que ele ) , a quem, mesmo depois de se terem tornado
amantes, continuou a chamar "mamã" . Do mesmo modo, Jean-Baptiste
Greuze, o pintor que mais do que qualquer outro artista levou à atenção
do público os idílios e dramas da vida doméstica e que foi repetidamente
felicitado por D enis Diderot pela moralidade dos seus temas, foi capaz de
manipular com engenho a voluptuosidade e a inocência, como indicia
plenamente Le Chapeau Blanc, pintado por volta de 1 78 0 .
Para a maioria do público q u e lia Rousseau, assistia aos " dramas bur­
gueses" de Diderot na C omédie -Française e contemplava a felicidade e a
tristeza domésticas nos quadros de Greuze expostos no Salon, as coisas
eram muito mais simples. O que estava a ser proclamado era a antítese
da cultura rococó da corte, com a sua indulgência esbanj adora da deco­
ração, a sua insistência no dito espirituoso e nas maneiras, na graciosi­
dade e no estilo. Em lugar destes efeitos formais amorais, a estima devia
ser transferida para o reino da virtude. Neste novo mundo, o coração
devia ser preferido à cabeça, a emoção à razão, a natureza à cultura, a
espontaneidade ao calculismo, a simplicidade ao ornado, a inocência à
experiência, a alma ao intelecto, o caseiro à moda, Shakespeare e
Richardson a Moliere e Corneille, a j ardinagem paisagística inglesa aos
parques formais franco -italianos. Surgiu um novo vocabulário literário,
saturado de associações emotivas que abafaram não só o rococó dos ditos
espirituosos, mas até as reverenciadas sonoridades do classicismo. A uti­
lização abundante de palavras como "ternura" e "alma " conferiam a per­
tença imediata à comunidade da Sensibilidade, e palavras que tinham
sido usadas de forma mais casual, como "amizade " , foram investidas de
uma intimidade intensa. Verbos como embriagar ( - s e ) , quando combina ­
dos com "prazer" ou "paixão", tornaram-se atributos de um carácter
nobre e não depravado. A palavra- chave era " sensibilidad e " : a capaci­
dade intuitiva de sentir intensamente. Ter "um coração sensível" era uma
pré- condição para a moralidade .
Foi neste período que começaram a ser aceitáveis as manifestações
exteriores dos sentimentos. O s pendentes com a imagem do ser amado ou
os medalhões com madeixas de cabelo da mulher ou dos filhos tornaram­
-se emblemas comuns do coração sensível. Quando as madeixas eram de
entes queridos desaparecidos deste mundo, o significado tornava-se ainda
mais pungente, e, na década de 80 do século XVIII as expressões desinibi­
das do sofrimento substituíram o fatalismo estóico como resposta espe­
rada à morte de uma criança. As cartas de amor foram buscar hipérboles
extáticas à Nova Heloísa de Rousseau e empilharam-lhe declarações de pai­
xão em cima . Num exemplar típico das suas cento e oitenta cartas de
amor, Julie de Lespinasse, heroína da Nova Heloísa, diz ofegante: Mon ami,
amo-vos como se deve amar, com excesso, loucura, êxtase e desespero . "
129

Neste mundo refeito de declarações e manifestações, as lágrimas eram


especialmente prezadas como prova de sublimidade e não de fraqueza.
Eram prezadas precisamente porque ( assim se supunha ) não havia como
pará -las : eram a alma a irrigar o semblante . As lágrimas eram inimigas
dos cosméticos e sabotavam o disfarce polido . Mais importante ainda, um
valente ataque de choro indicava que a criança fora miraculosamente
preservada no homem ou na mulher. Por conseguinte, os heróis e as
heroínas de Rousseau ( com ele à cabeça ) soluçavam, lacrimej avam e cho­
ravam à mais pequena provocação, e o mesmo faziam os recenseadores
de ópera quando ouviam Gluck ou os críticos do Salon ao contemplarem
Greuze . Quando viu a segunda versão do quadro de Greuze Jeune Filie Qui
Pleure son Oiseau Mort, no S alon de 1 76 5 , Charles Mathon de La Cour cal­
culou a idade da garota ( cerca de onze anos) na fase em que "a Natureza
começa a amolecer o coração para que receba as impressões mais doces",
pelo que as lágrimas dela eram simultaneamente infantis e pré -adultas.
De seguida, o crítico examinou detalhadamente o tratamento pictórico
daquele estado sofrido :

Vê-se que ela está a chorar há muito tempo e que acabou por se entregar
à prostração de uma dor profunda. Tem as pestanas húmidas e as pálpebras
vermelhas, e a boca ainda na contracção que provoca as lágrimas; olhando
para o peito dela é possível sentir o estremecer dos seus soluço s .

" Conhecedores, mulheres, peralvilhos, pedantes, espirituosos, igno­


rantes e tontos ", escreveu ele, "todos com a mesma opinião sobre aquele
quadro", pois nele "vemos natureza, comungamos da dor da garota e,
acima de tudo, queremos consolá -la. Passei várias vezes horas e horas a
contemplá -lo, até me embriagar com uma tristeza doce e terna . "
Era a capacidade d e Greuze d e envolver directamente o observador
no mundo das emoções demonstradas ( oferecendo-lhe ao mesmo tempo,
como argumenta Michael Fried, a ficção do seu olvido ) que explica o
poder persuasivo das suas óperas domésticas. " C omovei-me, espantai­
-me, enervai-me, fazei-me tremer, chorar, estremecer, encolerizai -me",
exigia Diderot, e não há dúvida de que, pelo menos nos seus quadros
mais ambiciosos - por exemplo, L'Accordée de Village, pintado em 1 76 1 , -

Greuze o fez a muitos espectadores . São muitos os contemporâneos que


referem a força dos sentimentos que se apoderavam das multidões que
se aglomeravam tão densamente j unto dos quadros que, diz-nos Diderot,
mal se conseguia abrir caminho para os ver. S obre os desenhos para o par
La Malédiction Paternelle e Le Fils Puni, que representavam um j ovem a
abandonar a família para se alistar no exército e o seu tardio regresso
para encontrar o pai morto, Mathon de La Cour disse que não sabia se
devia aconselhar Greuze a transformá -los em quadros, pois "j á se sofre
Simon Schama 1 CIDADÃOS

bastante a vê-los [como estão] . Envenenam a alma com um sentimento


tão terrível e tão profundo que nos forçam a desviar o olhar".
A drástica alteração cultural representada por esta primeira erupção
fervente da sensibilidade romântica tem uma importância mais do que lite­
rária. Significou a criação de um discurso falado e escrito que se tornaria a
voz da Revolução, partilhada pelas suas vítimas e pelos seus mais impla­
cáveis acusadores. Os discursos de Mirabeau e Robespierre, as cartas de
Desmoulins e Madame Roland e os festivais orquestrados da República
transmitem apelos à alma, à humanidade terna, à Verdade, à Virtude, à
Natureza e ao idílio da vida familiar. As virtudes proclamadas nos quadros
de Greuze formaram a base moral daquilo que a Revolução entenderia
por Virtude. "É a virtude que adivinha com a rapidez do instinto o que é
conducente à vantagem geral", escreveu Mercier em 1 78 7 . "A razão, com
a sua linguagem insidiosa, pode pintar a empresa mais equívoca com
cores cativantes mas o coração virtuoso nunca esquece os interesses do
mais humilde dos cidadãos. C oloquemos o estadista virtuoso à frente do
político inteligente . " Era exactamente esta a perspectiva de Robespierre,
para o qual, como ele próprio dizia, a política era pura e simplesmente a
moralidade pública. A maternidade, um matrimónio feliz no qual a lascí­
via banal era vencida pela lactação conscienciosa, o respeito pelos idosos
e o carinho para com os j ovens eram valores considerados uma escola de
cidadania . Neste esquema de valores, não podia haver distinção entre a
esfera privada e a pública . De facto, ter uma vida familiar plena era con­
siderado oficialmente um atributo necessário do patriotismo. A sua apo­
teose pictórica poderia ser La Mere Bien-Aimée, encomendada por Laborde,
fermier général e escritor prolífico, para representar a sua família num
estado exemplar de felicidade doméstica . Exposto no S alon, foi elogiado
por Diderot como "excelente em dois aspectos : como obra de arte e como
exemplo de uma vida boa. Prega a procriação e retrata com grande senti­
mento a inestimável alegria e o valor da felicidade doméstica " .
A geração revolucionária cresceu em sintonia com este modo de
expressão exaltado. Greuze acabou por se prej udicar a si próprio em 1 769,
ao tentar traduzir o seu confronto pai-filho no género da pintura histórica
com Severo e Caracala, no qual o imperador romano acusa o filho de cons­
piração. Em vez de promover Greuze ao topo da hierarquia da Academia,
o quadro valeu-lhe a pesada humilhação pública de ser admitido como
"pintor de género " . Mas, embora a sua reputação tenha perdido algum
brilho a partir de 1 770, perante o modo novo e mais austero da pintura
histórica romana, os dramas domésticos das duas décadas anteriores man­
tiveram cativada a imaginação do público e aumentaram o seu alcance
através das gravuras de Jean- Georges Wille e outros.
Embora os quadros de Greuze, como as peças de Diderot e o romance
de Rousseau, sej am por vezes classificados de "burgueses", é crucial ter
131

e m conta que o s seus devotos começavam n o topo da sociedade francesa.


Se o Antigo Regime foi subvertido pelo culto da Sensibilidade, uma
grande parte dos danos ( como em tantos outros aspectos ) foi auto -infli­
gida . L'Accordée de Vil/age, que na verdade representa uma cerimónia pr_o ­
testante com o notário a substituir o padre e que era a antítese exacta dos
grandiosos casamentos dinásticos de Versalhes, foi comprado pelo mar­
quês de Marigny, ministro das Artes de Luís XV. A sua irmã era a amante
do rei, Madame de Pompadour, e foi ela que organizou a primeira repre­
sentação da ópera de Rousseau, Le Devin du Vil/age, em Fontainebleau, em
1 7 5 2 . O compositor teve o cuidado de se vestir "mal" para a ocasião, "com
uma barba hirsuta e uma peruca descomposta" . Na simplicidade do seu
cenário rústico, da história e da música, a ópera exemplificava a vitória da
natureza infantil sobre os produtos da cultura urbana e da corte .
O Mercure de France elogiou-a precisamente pela "verdade e rara ingenui­
dade de expressão na música " .
Esta paixão não desapareceu com a subida ao trono d e Luís XVI. Na
verdade, dizia -se que o pai do monarca, o delfim, ficara tão comovido com
o elogio de Rousseau aos simples ofícios artesanais que mandara ensinar
ao filho o ofício de serralheiro . Orientada pela sua modista, Rose Bertin,
Maria Antonieta não escondia a sua predilecção pelos vestidos simples
que o culto prescrevia, muito ornamentados com flores acabadas de
colher e adornos bucólicos. A sua amiga Elisabeth Vigée-Lebrun foi ainda
mais longe e pintou-a deste modo espantosamente informal, com chapéus
de palha e boinas. A criação para a rainha da "Aldeia Rústica" ( Hameau
Rustique), obra do arquitecto paisagístico Mique, no Petit Trianon, com
vacas ataviadas com fitas, ovelhas alpinas e uma azenha, foi uma tenta­
tiva sincera mas desastrosamente desaj ustada de cultivar a inocência da
vida rural no meio da pomposidade do protocolo da corte . Em 1 789,
numa paródia obscena, Maria Antoni�ta andaria a brincar às pastoras e a
cozer ovos para o pequeno-almoço enquanto as ruas da Ilha de França se
enchiam de camponeses esquálidos a pedir.
O mais espantoso ainda foi que, em 1 782, Maria Antonieta visitou o
túmulo de Rousseau, em Ermenonville, a cerca de quarenta quilómetros
de Paris. Se a Sensibilidade era a religião não oficial dos aprendizes de
cidadãos, Ermenonville era o seu templo mais sagrado. Foi ali que o mar­
quês de Girardin, um abastado oficial de cavalaria e fermier général, ofere ­
ceu a Rousseau um último "eremitério" onde o filósofo pôde trabalhar e
passear na solidão quase absoluta que recomendava a si próprio e aos
outros. Infantil até ao fim, Rousseau insistira em adoptar Girardin e a
mulher como seus últimos "papá e mamã " . Rousseau morreu no princí­
pio de Julho de 1 778, e poucos dias depois já circulavam na capital rumo­
res sobre as suas palavras de despedida à mulher, Thérese: expressões de
remorso por ter entregado os cinco filhos de ambos ao Hospital das
Simon Scharna 1 CIDADÃOS

C rianças Abandonadas e a indicação do paradeiro das suas "memórias" ou


" confissões", das quais se dizia serem de uma franqueza inaudita e que
certas pessoas de renome - Diderot e Madame d'Épinay - desej avam ver
suprimidas. Não tardou muito até que os curiosos começassem a chegar à
propriedade de Girardin, a começar pelos editores do Journal de Paris, que
tinham conhecido Rousseau bastante bem e que estavam impacientes
para deitar a mão a quaisquer fragmentos literários que restassem. Em
meados de 1 779, Rousseau, que fora evitado por tantos durante a sua
vida, estava prestes a adquirir uma aura de imortalidade. Foi-lhe dedicada
uma estátua em Genebra, e em Paris um busto da autoria de Houdon;
uma Necrologia semioficial de franceses eminentes incluiu o seu retrato e
um panegírico ao lado dos de Voltaire, Turenne e Henrique IV, e Le Devin
du Village foi de novo representada com muito público, em Paris. Em
1 7 8 1 , foi publicada uma compilação de melodias da autoria de Rousseau,
chamada Consolações pelas Mágoas da Minha Vida, com as receitas a serem
doadas, em nome da viúva, ao Hospital das C rianças Abandonadas. Entre
os subscritores contaram-se a rainha e Benj amin Franklin.
Segundo afirma o autor das Mémoires Secretes, em 1 7 80, "metade da
França deslocou -se a Ermenonville para visitar a ilhota que lhe foi consa­
grada, onde os amigos da sua moral e da sua doutrina renovam anual­
mente a sua pequena viagem filosófica " . Luc-Vincent Thiéry incluiu
Ermenonville no seu guia turístico da região de Paris mas foi o marquês
de Girardin, dono da propriedade, que providenciou o mais completo iti­
nerário para os peregrinos. O seu Promenade é uma excursão à paisagem
mental e topográfica da sensibilidade de Rousseau . Girardin frisou bem
que o seu parque não devia ser considerado uma propriedade senhorial
mas como uma espécie de dádiva a todos os devotos . "Não é necessária
autorização do dono para entrar no parque", sublinhou ele, e teria todo o
prazer em ser o guia de quaisquer ':estrangeiros ou artistas de renome " .
" É a vós, amigos d e Rousseau, que m e dirij o " , escreveu Girardin com
uma apropriada expressão de sinceridade, e o seu guia foi escrito como
se uma mão amiga estivesse a guiar o discípulo pelo cenário da virtude.
Pressupunha não só um conhecimento íntimo das obras e da vida de
Rousseau ( " aqui podeis contemplar a sua cabana " ; foi aqui que Saint­
-Preux cismou sobre a sua paixão frustrada ) , como também um gosto
partilhado pela natureza . O passeio, que durava três a quatro horas,
começava numa aldeola que, segundo Thiéry, "parece habitada por
amantes fiéis" , e seguia para " uma floresta onde um imenso silêncio e
uma imensa solidão se apoderam de nós e é com terror que mergulha ­
mos nas profundezas do bosqu e " . Surpreendido pelo súbito apareci­
mento de um pequeno templo consagrado à Natureza, o caminhante
emergia do bosque para uma planície onde se localizava outro monu ­
mento - este à Filosofia -, e seguia depois para um "mato" de pinheiros,
133

cedros e juníperos, com afloramentos rochosos e cascatas. Chegava-se


depois a um lago j unto do qual se via uma pedra que tinha gravados ver­
sos de Petrarca e de Julie, da Nova Heloísa. Só depois era sugerida a pre­
sença do homem, mas apenas na sua faceta mais artesanal e virtuosa: uma
azenha e uma prensa para vinho . Uma torre gótica semiarruinada, rega­
tos cheios de peixes gordos e um prado "holandês" com gado anafado
davam para um espaço que, em dias especiais, Girardin enchia de rústicos
treinados para parecerem felizes enquanto se entregavam a passatempos
inocentes e j ogos musicais .
O Santo Graal da peregrinação era obviamente o túmulo de Rousseau,
na Ilha dos Álamos, no meio do lago . Sentados num banco expressamente
colocado no local para as mães poderem amamentar os seus bebés
enquanto as outras crianças brincavam, os devotos podiam contemplar o
modesto monumento erguido por Girardin. Lia -se no epitáfio:

Entre estes álamos, à sua pacifica sombra


Jaz Jean-Jacques Rousseau
Mães, idosos, crianças, corações verdadeiros e almas sensíveis
Nesta tumba dorme o vosso amigo

Neste ponto, era obrigatório chorar. " Deixai correr livremente as vos­
sas lágrimas", escreveu Girardin, com o seu braço de autor em volta dos
ombros do peregrino. " Nunca as tereis derramado tão deliciosas ou mere­
cidas" .
Alguns dos discípulos mais fervorosos foram ainda mais longe em
busca do fantasma do génio solitário. Louis - Sébastie � Mercier viaj ou pela
Suíça com o seu amigo genebrino Etienne Claviere, visitando lugares e
pessoas que tinham sido importantes na vida de Rousseau . Manon
Philipon, que na adolescência se identificara apaixonadamente com Julie,
levou o marido, Roland, um futuro ministro girondino, numa digressão
semelhante e conseguiu descobrir o presidente da C âmara que tinha tes­
temunhado o casamento de Rousseau e Thérese. Insatisfeita com a sua
obsessão privada, ela atribuiu ao marido o papel de Wolmar, a figura mais
velha e bastante austera mas dedicada que Julie obedientemente desposa
em detrimento do apaixonado e j ovem tutor Saint-Preux. Philipon
escreve ao marido e deixa esta identificação bem clara : " Devorei a Julie
como se não fosse a quarta ou quinta vez . . . parece -me que eu teria vivido
muito bem com todas aquelas personagens e que eles teriam gostado
tanto de nós como nós gostamos deles . "
A publicação das Confissões, e m 1 782, com a sua promessa introdutória
de " oferecer um retrato fiel à natureza em todos os aspectos", veio refor­
çar ainda mais a ligação intensamente pessoal que os inúmeros discípulos
de Rousseau sentiam com ele. Quando Rousseau ainda era vivo, como
Simon Schama 1 CIDADÃOS

demonstrou Robert D arnton, eles escreveram ao seu editor, Marc-Michel


Rey, em Amesterdão, inquirindo sobre o seu bem-estar e a sua saúde
como se ele fosse um amigo íntimo deles. Nada do que o filósofo escreveu
nas Confissões a franca admissão de ter abandonado os filhos, a confissão
-

de ser viciado na masturbação e no masoquismo, a sua participação num


ménage à trais com Madame de Warens e o ervanário dela - abalou a fé dos
seus discípulos na pureza moral essencial de Rousseau. A franqueza exci­
tante das suas admissões de vícios e virtudes reforçaram a opinião dos
devotos de que ele era o maior honnête homme do século . A convicção
paranóica de Rousseau de que era perseguido pelos filósofos invej osos,
entre os quais o seu ex-amigo, Diderot, bem como Voltaire e Melchior
Grimm, alimentou a alienação de muitos escritores que se julgavam inde­
vidamente apreciados pelo mundo literário de Paris. Também eles atribuí­
ram esta ausência de reconhecimento a uma conspiração dos medíocres .
Também comungaram de muita d a ambivalência de Rousseau em relação
à dependência necessária de um patrono aristocrático e do seu desdém
pela moda corrupta e pelo domínio atrofiado da Razão.
Rousseau tornou - se, assim, a Divindade ( e foi invocado como tal ) dos
excluídos literários. D esdenhado, maltratado e nómada, Rousseau foi ao
mesmo tempo o seu consolo e o seu profeta, e eles adoptaram o seu evan­
gelho de compromisso com a Natureza, com a Virtude e com a Verdade .
Há muito que os historiadores procuram determinar a influência de
Rousseau na geração revolucionária avaliando o quanto esta última
conhecia ou ignorava as suas obras de teoria política, em particular
O Contrato Social. Embora se acumulem as provas de que esta obra foi
efectivamente lida e compreendida antes da Revolução, não deixa de ser
verdade que nunca granj eou um número tão elevado de leitores devotos
como a sua "biografia" educativa Emílio e a Nova Heloísa . Mas partir do
princípio de que estas obras tiveram pouca influência na linha política de
cada um é adoptar uma definição demasiado estreita da palavra política .
Tanto como os seus escritos sobre a soberania e os direitos do homem, as
obras de Rousseau que abordam a virtude pessoal e a moralidade das
relações sociais agudizaram a antipatia pelo status quo e definiram uma
nova linha política. De facto, Rousseau criou uma comunidade de j ovens
crentes que acreditavam na possibilidade de um renascimento moral e
político colectivo no qual a inocência da infância seria preservada até à
maioridade e através da qual a virtude e a liberdade se sustentariam
mutuamente.
O modo como tudo isto seria conseguido é notoriamente obscuro em
todos os escritos de Rousseau. Rousseau mostrou-se sempre circunspecto -
mas não absolutamente hostil - em relação a qualquer sugestão de revolta.
O que ele inventou não foi um itinerário para uma revolução, mas sim o
idioma no qual os descontentamentos e os objectivos revolucionários
135

seriam articulados . Acima d e tudo, Rousseau ofereceu u m modo n o qual


os tormentos do ego - um passatempo crescentemente popular no
século XVIII - podiam ser aliviados através da pertença a uma sociedade
de amigos . Rousseau substituiu uma oposição irreconciliável entre o
indivíduo, com a sua liberdade intacta, e o governo, desej oso de a cer­
car, por uma soberania na qual a liberdade não era alienada mas sim,
como vimos, dada em confiança . A submissão dos direitos individuais à
Vontade Geral era condicional de esta entidade os preservar de modo
que os cidadãos pudessem verdadeiramente afirmar ( assim rezava a teo­
ria ) que pela primeira vez se estavam a governar a si próprios.
A natureza paradoxal deste acordo revelar- se-ia de forma intensa­
mente brutal durante a Revolução. Todavia, para os acólitos de Rousseau,
na década de 80 do século XVIII, abriram-se horizontes de possíveis socie ­
dades que poderiam ser capazes de integrar o "Eu" imperioso no "Nós"
fraterno . Pelo menos, era esta a visão reconfortante oferecida por um
espectáculo em dois actos, A Reunião nos Campos Elísios, que representava
o acolhimento de Rousseau no seio dos imortais. E stavam obviamente
presentes Julie e o seu infortunado apaixonado, Saint-Preux, que segu ­
rava um ramo de rosas; Emílio, atacado nas profundezas de um bosque
pelo Monstro do Fanatismo, era salvo pela Verdade; noutra cena, uma
mãe, um bebé e uma ama -de-leite louvavam as virtudes do seio materno.
Mas o espectáculo tinha uma faceta incongruente. Rousseau permanecia
incaracteristicamente silencioso, afastado das suas criações. C ontudo, só
quando os seus sentimentos foram transmitidos através do poder da elo­
quência pública é que se tornaram o discurso da revolução.

III PROJE CTAND O A VOZ: O ECO DA ANTIGUIDADE

Numa tarde de Agosto de 1 78 5 , um correspondente do Journal de Paris


viu um j ovem de vinte e tal anos falar para uma multidão de cima de uma
plataforma à frente do Châtelet.6 Hérault de Séchelles, recém -nomeado
advogado geral do Parlamento, exercia pela primeira vez o seu direito de
falar daquele modo e estava a tratar o tema com bastante eloquência. Era
um tema calculado para provocar apertos nos coeurs sensibles. Um j ovem
de boas famílias desej ara expressar a sua gratidão pela boa vida que tinha
através de donativos aos pobres da paróquia de Saint - Sulpice, mas igno­
rara inadvertidamente as formas oficiais prescritas para aquele tipo de
doação e o tribunal do Châtelet declarara-as inválidas . Hérault chamara a
si a tarefa de defender o benemérito e arengava à multidão sobre o

' O Grand Châtelet, situado na margem direita do Sena ( hoj e Place du Châtele t ) , era um
complexo que albergava um tribunal, o quartel-general da polícia e várias prisões . (N. do T. )
Simon Schama 1 CIDADÃOS

absurdo da anulação. No entanto, o conteúdo do discurso era menos


importante do que a forma . Tanto o j ornalista como a multidão tinham
percebido que se tratava de uma demonstração de oratória na qual o
jovem orador estava a testar as suas capacidades de influenciar um
público espontaneamente reunido.
Segundo o mesmo relato, que foi publicado no j ornal, a estreia de
Hérault como orador público foi triunfal e particularmente impressio­
nante porque ele teve o cuidado de evitar os excessos vistosos do palco
( embora este futuro j acobino já estivesse a ter lições com a actriz Made­
moiselle Clairon ) :

O discurso d o j ovem Magistrado não tinha pretensões d e eloquência; o


estilo foi calmo e tranquilo, como o da lei: ele demonstrou o controlo das
paixões que tão necessário é à inteligência quando queremos descobrir a
verdade. A convicção e o esclarecimento emergiam suave e gradualmente
das suas palavras . . . sem nenhum daqueles silogismos que nada têm a ver
com a razão . . . todos quantos ouviram o j ovem Magistrado falar apreciaram
a sabedoria com que o tom do discurso promoveu a natureza da causa .

Apesar de o estilo escolhido ser o do grave homem de toga, o desem­


penho não foi menos calculado. Quando terminou, a multidão irrompeu
numa longa ovação à qual Hérault respondeu com modéstia, dirigindo os
aplausos para os magistrados seniores que o tinham precedido . Era teatro
do mais alto calibre, pelo qual Hérault se tornaria merecidamente famoso
na C onvenção e até ao fim, no cadafalso, antes de ser decapitado com o
seu camarada Danton. Em 1 78 5 , Hérault pareceu - até ao veterano repór­
ter do Journal - exsudar sinceridade. "Nunca o talento demonstrou tanta
graciosidade como quando ele [Hérault] se apagou para desviar a sua
fama para o talento alheio . " Vem-nos à memória Pilâtre de Rozier no tea­
tro de Lyon, tirando a coroa de louros da cabeça e colocando-a na de
Montgolfier. Era o novo heroísmo, o heroísmo à moda de Roma.
Depois da autoridade e da modéstia veio a Sensibilidade . Descendo da
tribuna, Hérault foi abraçado pelos colegas mais velhos, incluindo o céle ­
bre orador Gerbier, ao qual chamou "pai" profissional. O j ornalista disse
que a sua alma "Nunca ficou tão comovida como com aquela cena" .
Apesar de, astutamente, s e fingir inexperiente n a arte d a oratória,
Hérault já era, aos vinte e seis anos de idade, um mestre . À semelhança
de muitos dos radicais mais eloquentes e ambiciosos deste período, tinha
antecedentes aristocráticos . Tal como Lafayette, ficara órfão devido à
Batalha de Minden, onde o pai, um coronel de cavalaria, carregara as
linhas britânicas no gesto fútil que ceifara a flor da aristocracia militar
francesa, e morrera dos ferimentos em CasseL no ano do nascimento de
Hérault. O avô fora colega de escola de Voltaire e tenente da polícia de
137

Paris, e n o exercício destas funções procurara acabar com a s lutas entre


touros e cães e organizar a limpeza do lixo das ruas imundas da cidade .
D esta tradição de patriotismo e serviço público, o j ovem Hérault de
Séchelles, abençoado com um talento precoce, decidiu em consciência
"abraçar a toga e não a espada " . E ducado pelos oratórios e promovido
pelos seus parentes, foi nomeado avocat du roi no Parlamento com a
espantosa idade de dezanove anos. Aprendendo possivelmente com uma
das novas obras de referência sobre a retórica j urídica - por exemplo, De
l 'Eloquence du Barreau ( 1 76 8 ) , de Pierre -Louis Gin -, adquiriu fama ao
especializar-se na defesa daqueles que podiam ser plausivelmente apre­
sentados como "vítimas da opressã o " . Os seus casos incluíram, por exem­
plo, a defesa de uma mulher separada que o Parlamento de Rennes
condenara ao claustro a pedido do marido, e o de uma rapariga - filha ile ­
gítima - à qual o pai queria tirar bens legados pela mãe .
Em 1 779, Hérault alargou a sua abrangência retórica participando
num concurso de ensaios promovido pela Academia, tendo por tema um
panegírico do abade S uger, o grande criador de Saint-Denis, no século XII.
Ainda com vinte e poucos anos de idade, Hérault, no seu entusiasmo inte ­
lectual, apegou -se a Rousseau (previsivelmente ) e ( menos previsivel­
mente ) a Buffon, um naturalista . Em 1 78 3 , na companhia do seu amigo
Michel Lepeletier ( oriundo de outro grande clã parlamentar) , Hérault
empreendeu uma viagem de homenagem a Zurique para ver o grande
homem. Fontes próximas de B uffon insistem que o cientista, afligido por
terríveis dores provocadas por cálculos biliares, não pôde receber Hérault
e Lepeletier, o que não impediu este último de fazer circular - e mesmo
de publicar - um relato detalhado do encontro. Nesta versão, B uffon é
retratado como um sábio venerável no qual foi preservada a simplicidade
da natureza, conferindo a sua bênção ao j ovem acólito fervoroso. Vestido
num roupão amarelo com riscas brancas e flores azuis,

C umprimentou-me maj estosamente, abrindo os braços . . . e disse, " C on ­


sidero-vos um velho amigo porque haveis desej ado ver-me " . Observei u m
b e l o semblante, nobre e sereno. E stava c o m setenta e oito anos, m a s dir­
-se-ia que tinha apenas sessenta, e o mais singular era que, depois de
dezasseis noites sem pregar olho e apesar do imenso sofrimento que ainda
o afligia, estava fresco como uma criança e tranquilo como se estivesse de
perfeita saúde.

Hábil a promover-se, Hérault era um orador poderoso ( e um homem


muito bem parecido ) , e a rainha acabou por ouvir falar nele; afinal de
contas, Hérault era um dos "homens do rei" (nomeado pelo governo) no
Parlamento . A rainha recebeu-o na corte e ficou tão manifestamente
impressionada com a sua garbosa autoconfiança que mandou bordar um
Simon Schama 1 CIDADÃOS

lenço para lhe oferecer como presente . Hérault adorava exibi -lo e diz-se
que o usou durante os seus anos de militância j acobina até ao dia em que
a guilhotina lhe fez saltar a cabeça. Em 1 786, um ano depois do espectá­
culo que dera no Châtelet, foi honrado com a incumbência de iniciar as
chamadas "arengas" por ocasião do regresso do Parlamento de Paris aos
trabalhos. Era uma grande ocasião pública, e um colega advogado referiu
na Gazette des Tribuneaux que "o seu discurso era aguardado com grande
impaciência pelo numeroso público presente . Abundou nas formas e na
beleza que distinguiam os oradores das antigas Repúblicas . . . foi interrom­
pido por ovações frequentes e ficou patente que os advogados, em espe­
cial, estavam tomados daquele entusiasmo que desperta os homens e que
os leva a descobrir as suas forças e o segredo do seu poder " .
O sucesso d a primeira fase d a carreira espectacular de Hérault terá sido
auxiliado pelo seu berço, pela sua educação e pelas suas ligações.
C ontudo, também se deveu, em grande medida, à exploração sistemática
da eloquência, como o próprio reconheceu nas suas Réflexions sur
la Déclamation . Hérault recorreu às suas capacidades oratórias para subir a
escada profissional do Antigo Regime e ao mesmo tempo afirmou-se
como figura pública com fama de integridade e independência . Todavia, a
ideia de usar a barra como uma espécie de tribuna pública generalizada
tinha limites que, quando demasiado postos à prova, podiam expulsar o
radical em vez de o absorver. Dependia muito da linha assumida pelo ora ­
dor. Podia contar-se com Hérault e com o seu colega Target, futuro revo ­
lucionário e um dos autores da constituição de 1 7 9 1 , para ficarem do lado
dos Parlamentos na maioria das disputas com a Coroa. Só em finais de
1 788 se afastaram do tribunal por causa da forma e da composição dos
Estados Gerais. Mas o homem que na década de 60 do século XVIII fez
mais do que qualquer outro para inventar o conceito e a prática de uma
barra concebida para apelar directamente ao público, Simon Linguet, fê ­
-lo como parte de uma campanha contra os Parlamentos .
Linguet foi um verdadeiro fenómeno d a vida pública d o Antigo
Regime. Foi um espinho cravado em quase todas as instituições gover­
namentais e desenvolveu uma maneira de falar e de escrever que ante­
cipou de forma exacta a prosa revolucionária de incriminação petulante
e fúria apaixonada. Até há bem pouco tempo, Linguet foi rotulado de -
na melhor das hipóteses - curiosidade excêntrica e demasiado espiri­
tuoso para ter influído seriamente no rumo da política do Antigo
Regime . Todavia, uma esplêndida biografia da autoria de Darline Gay
Levy contribuiu bastante para o salvar desta obscuridade e começa a tor­
nar- se mais do que evidente que não existiu praticamente nenhum canto
do mundo político da França deste período que não tenha sido tocado
pelo seu talento e pela sua reputação . Na década de 60, século XVIII, na
qualidade de advogado de barra, ganhou fama ao abraçar uma série de
139

causes célebres espectaculares, incluindo o caso d o chevalier d e L a Barre,


acusado de mutilar um crucifixo e condenado. A sentença exigia que lhe
cortassem a língua e a cabeça para depois lhe queimarem o corpo e a
cabeça na fogueira. Expulso da ordem por usar sistematicamente a barra
para fazer guerra aos tribunais e aos magistrados, Linguet virou -se para o
j ornalismo, onde o seu talento para desferir ataques contundentes e pode­
rosos se revelou tão impressionante como a sua oratória. Mais do que
qualquer outra coisa, foram dois aspectos dos seus escritos que antecipa­
ram o discurso revolucionário: a sua preocupação em confrontar a retó­
rica da "Liberdade" com as questões da fome, da propriedade e da
subsistência, e as iradas Mémoires de la Bastille, escritas em 1 78 3 , depois do
cumprimento de uma pena de dois anos resultante de uma lettre de cachet.
Obj ecto de enorme procura, as memórias de Linguet foram o maior con­
tributo para a criação de um símbolo do despotismo do Antigo Regime
que concentrou toda a raiva, fel e desespero acumulados na década de 80
do século XVIII.
Linguet foi o verdadeiro inventor do advogado como advogado
público, e tornou possível à geração subsequente passar com facilidade
das arengas nos tribunais para o debate político. Já na sua Histoire du Siecle
d 'Alexandre, publicada em 1 762, Linguet virara -se para a Grécia Antiga
em busca do ideal do advogado -orador capaz de articular para o público
"as fontes do coração humano" . Em contraste, os E stados modernos
tinham privado o tribuno público de qualquer papel importante nos pro­
cedimentos judiciais, encerrando-os no secretismo ou envolvendo-os em
convenções j urídicas formalistas . Cabia ao orador talentoso desmascarar
estas mistificações expondo-as directamente à censura do povo .
E foi o que Linguet fez nos seus casos, usando as multidões que acor­
riam a ouvi-lo falar na Grande C âmara do Parlamento como se fossem o
público de um teatro, incitando - o a aplaudir, a dar vivas e a assobiar, a
chorar e a patear. Certificou-se de que tinha casos (poucos dos quais
ganhou ) que o ligassem directamente a questões relacionadas com a
Sensibilidade. No caso La B arre, recorreu a estratégias discursivas, como
pausas emocionais, criando um quadro sonoro digno de Greuze .
Criticando o testemunho confessional de um dos companheiros de La
Barre como resultante de uma intimidação brutal, pintou um retrato oral
" desta criança infeliz, prostrada aos pés do j uiz . . . ". Além do caso La
Barre, Linguet defendeu a mulher protestante do visconde de B ombelles,
trocada pelo marido por uma mulher católica e cuj os filhos tinham sido
entregues a uma custódia católica. Linguet perdeu o caso mas conquis­
tou o público . A sua táctica de j ogar para a bancada era profundamente
chocante para a magistratura. Um j uiz régio instruiu os j ovens advoga­
dos a não "o tomarem como modelo . . . quer na sua perigosa arte de
cobrir tudo de sarcasmo . . . quer . . . na desbridada audácia de formular
Simon Schama 1 CIDADÃOS

apóstrofes independentes para o público e na tentativa de o usar como ala­


vanca para forçar o voto dos j uízes".
Mas até este disruptivo estilo público poderia ter sido aceitável se
Linguet tivesse sido mais condescendente politicamente. Porém, em vez
de expressar a sua solidariedade para com os tribunais nos conflitos com
a Coroa, a sua Théorie des Lois Civiles na verdade endossou o "Despotismo
Oriental" como o melhor de todos os sistemas pois só ele podia proteger
garantidamente o povo das privações materiais. Afirmando uma posição
tão reaccionária que se tornou radical, Linguet defendeu a escravatura
como um sistema social mais dado a garantir as reciprocidades de obriga­
ção e subsistência do que as "liberdades" de um mercado de mão -de-obra.
Além do mais, Linguet atacou as credenciais pessoais e a competência dos
j uízes para decidirem em casos importantes (muitos tinham uma forma­
ção jurídica medíocre porque haviam comprado o cargo ) . Por conse­
guinte, em nome da j ustiça régia e da protecção dos pobres, Linguet
desencadeou um ataque directo ao sistema da nobreza de toga. Dado que
tinha, ao mesmo tempo, lançado um ataque igualmente violento aos filó­
sofos como outra elite que se perpetuava a si própria, conseguiu reunir
uma formidável coligação de inimigos. Em 1 77 5 , tornou-se o seu próprio
cliente num processo de expulsão da ordem; perdeu mas quinhentos dos
seus apoiantes invadiram a Grande Câmara brandindo paus e facas .
"Poderei sucumbir como Sócrates", anunciou o tribuno, derrotado mas
não curvado, numa voz que todos os relatos classificam de aflautada e
aguda, "mas não quero que os meus Ânitos1 fiquem impunes. Alegais que
me estais a j ulgar. Concordo, mas interporei entre vós e eu este Juiz
Supremo ao qual até os tribunais mais absolutos estão subordinados: a opi­
nião pública" .
Arvorando -se numa espécie de "Rousseau dos tribunais " - perseguido,
isolado e ostracizado, incapaz de abafar as verdades que o coração ditava
aos lábios -, Linguet tornou-se o herói improvável de toda uma geração de
j ovens escritores e advogados desej osos de assumirem o papel do Tribuno
greco -romano . Linguet foi a primeira pessoa procurada por Jacques-Pierre
Brissot quando este chegou a Paris oriundo da província. B rissot também
tentaria usar a carreira j urídica para tornar audível o argumento escrito, e,
tal como o seu modelo, também ele ficou impaciente com os bizantinos
processos de entrada para a ordem dos advogados. Farto do seu estatuto de
noviço, fez campanha a favor de uma versão renascida do que imaginava
ser a barra republicana romana . Nesta nova ordem, os advogados pode­
riam pleitear numa tribuna perante o povo reunido, e ser livres de todas as
restrições hierárquicas corporativas e de toda e qualquer censura; quanto
aos j uízes, seriam nomeados pelo Estado exclusivamente com base numa

1
Ânito foi um dos acusadores de Sócrates . (N. do T. )
141

integridade e numa eloquência impecáveis. A visão mítica d e B rissot de


uma advocacia virtuosa derivava directamente da nostalgia de Linguet
por uma Antiguidade onde tinham existido "assembleias inconcebíveis de
toda a nação onde um único homem podia arengar a vinte mil . . . " .

Linguet e os seus admiradores privilegiavam a palavra falada à palavra


impressa porque acreditavam que estava menos suj eita à alienação. A voz,
neste sentido, era considerada "indivisível" do homem, enquanto o pan­
fleto ou o tratado podiam ser mais facilmente censurados, suprimidos ou
emendados pelas autoridades. S upostamente mais espontânea na sua
expressão, a voz oratória denunciava mais fielmente as qualidades do
indivíduo, pelo que se prestava menos aos sofismas, dissimulações e arti­
fícios que podiam ser impressos na página. Quando chegou a Inglaterra,
por volta de 1 770, Linguet ficou desconsolado ao descobrir como eram
ponderosos, formalistas e pouco inspirados os discursos no Parlamento, e
distinguiu-os marcadamente do tipo de declamação neo- romana que seria
a voz da virtude pública.
E foi esta virtude superior que veio a ser obj ecto de enorme apreço por
parte dos revolucionários. De facto, as declarações públicas nos diferentes
fóruns - no clube revolucionário, na convenção e até no acampamento
militar - revestir-se-iam de uma importância estratégica . Em vários
momentos críticos, a capacidade de influenciar o auditório - grande ou
pequeno - fez a diferença entre o triunfo e o desastre, entre a vida e a
morte. As grandes cataratas retóricas que j orravam da boca dos oradores
revolucionários agradaram de tal modo aos historiadores românticos do
século XIX, admiradores do seu espalhafato teatral, que eles tentaram
reproduzi-las nas suas narrativas, o que por sua vez levou os relatos
modernos, até há muito pouco tempo, a menosprezar relativamente o
efeito da retórica falada na lealdade política. Mas as famosas réplicas de
Mirabeau à intervenção régia nos E stados Gerais, o discurso inflamado de
Desmoulins em cima de uma mesa no Palais-RoyaL a 1 2 de Julho de
1 789, e a estimulante retórica de Saint-Just perante o Exército do Sambre
e Mosa tiveram um papel vital na substituição de uma mistura incipiente
de medo e raiva por um sentimento de solidariedade fraterna . Neste sen­
tido, não será exagero dizer que foi a oratória que criou " o Povo" e não o
contrário. Do mesmo modo, não ser ouvido podia significar uma sentença
de morte . Robespierre certificou - se de que a sonora voz de barítono de
Danton não sabotaria o seu j ulgamento privando - o de uma audiência
pública . No entanto, foi o colapso da eloquência de Robespierre perante a
Convenção que abafou o seu discurso e garantiu a sua queda no 9 do
Termidor.
Dicção pública era, por conseguinte, poder público . Para enriquecer e
treinar a elocução, havia outras possibilidades que não a barra dos tribu­
nais . Por exemplo, Hérault, com o intuito de polir o ritmo e a inflexão,
Simon Schama / CIDADÃOS

virou-se para o teatro . S ob a batuta de Mademoiselle Clairon, fez por imi­


tar um estilo específico do teatro clássico, o dos actores Molé e D e Larive,
célebres pelos seus retratos dos graves heróis patriarcais . Um número
impressionante de revolucionários teve ligações directas e profissionais
com o teatro - C ollot d'Herbois, C amille D esmoulins, os irmãos C hénier,
Ronsin, o militante sans-culotte e muitos outros. Philippe Fabre, oriundo
da pequena cidade pirenaica de Limoux, metamorfoseou -se no grandioso
" Fabre d'Églantine" depois de conquistar a rosa -brava ( églantine) de ouro
como prémio de eloquência da Academia de Toulouse, o que o lançou na
sua carreira nómada de dramaturgo, poeta, cançonetista, guitarrista e
actor itinerante que acabou em Paris na véspera da Revolução com uma
série de fiascos espectaculares .
Outra forma importante d e ensaio foi o sermão proferido d o púlpito .
Na parte final do século XVIII, a Igrej a tentou travar o avanço da secula­
rização através do lançamento de missões de pregação evangélica em Paris
e nas províncias . O êxito foi assinalável e vários dos oradores mais enér­
gicos da Revolução tinham antecedentes eclesiásticos, nomeadamente
C laude Fauchet, bispo de C aen, que pregou o evangelho da igualdade
social nas reuniões do seu " C írculo S ocial", em Notre Dame, e o abade
Grégoire, que promoveu os princípios da tolerância e da igualdade de
direitos para os Judeus .
No mundo laico havia muitas oportunidades para declamações públi­
cas fora da esfera da política . As academias requeriam panegíricos de
luminárias recém-falecidas e de figuras há muito desaparecidas, e os dis­
cursos de acolhimento de novos membros também serviam. Alguns dos
notáveis da elite parisiense tornaram-se célebres pela qualidade da sua
retórica . Por exemplo, C hamfort, que era amigo de Talleyrand, recebeu da
Academia um prémio de eloquência, em 1 769, e foi eleito membro, em
1 78 1 , em grande medida devido à força do seu polimento retórico. O tea­
tro clássico oferecia um modelo de elocução grave preferido para estas
ocasiões, mas uma fonte mais provável seria o latim que teriam aprendido
na escola todos os aspirantes à prática da eloquência pública .
Tal como sugere o relato do discurso proferido por Hérault em 1 786,
não havia maior elogio para os oradores do que serem comparados com as
figuras da Antiguidade que procuravam emular. A Revolução Francesa foi
obcecada pelo modelo da República Romana, em particular, e procurou
inspiração nos discursos de Cícero e na oratória das histórias de Salústio,
Lívio e Plutarco . Camille D esmoulins, por exemplo, citou Cícero quarenta
e três vezes durante as suas presenças relativamente breves nas assem­
bleias revolucionárias, B rissot citou-o dez vezes via Plutarco . O abade
Boisgelin, que seria deputado pelo clero em 1 789 e que dez anos depois
publicou uma obra sobre a eloquência antiga, resumiu a reputação deste
modelo afirmando que " quando Cícero falava no senado, era o pai do seu
143

país [pere de la patrie] " . B oisgelin queixou-se da ausência de retórica com­


parativamente séria no seu tempo, dado que "j á não existem grandes
temas sobre os quais versar" - uma situação que não tardaria muito a ser
remediada. Mas aqueles que procuravam ressuscitar a tradição antiga da
oratória política associavam-na, tanto em Atenas como na Roma republi­
cana, à prática da liberdade. A "barra" tornou -se a "barra do povo" ou a
"tribuna", como passou a ser chamada nas assembleias revolucionárias
nas quais a voz dos que procuravam persuadir os representantes do povo
podia ser j ulgada com justiça .
Através do poder da oratória, a geração revolucionária procurou res­
suscitar a cidadania activa que se acreditava ter existido em determinados
períodos da Antiguidade . C om toda a probabilidade, os revolucionários
conheceram-na na escola, onde fazia parte dos currículos de muitos colé­
gio s . Era o caso, por exemplo, do C ollege Louis - l e - Grand, onde
Robespierre foi um dos muitos bolsistas, alguns dos quais tinham antece­
dentes ainda mais modestos - comerciantes, loj istas, artesãos. Camille
Desmoulins recordou que nesta mesma escola, professores como o abade
Royau instavam os alunos a admirar a frugalidade, a austeridade, a cora ­
gem e o patriotismo dos heróis da República Romana. E era no colégio
que os alunos tinham de elaborar os seus discursos de acordo com a cons­
trução precisa de C ícero, recorrendo, por ordem, ao exórdio, à narração,
à confirmação, à refutação e à peroração. Lá aprendiam também os orna­
mentos da retórica: metáfora, tropo, exclamação e interrogação, todos
eles muito presentes no discurso revolucionário.
Não há dúvida de que a geração revolucionária encontrou grandes
modelos nos heróis da antiguidade republicana, e ao mesmo tempo a sua
admiração aj udou a agudizar a sua opinião de que os estereótipos da época
em que viviam correspondiam aos piores excessos da corrupção que era
condenada nas histórias romanas. Por exemplo, liam em A Conspiração de
Catilina, de Salústio, que depois da derrota de Cartago "a virtude começou
a perder o seu lustro . . . como consequência das riquezas, do luxo e da
ganância" . Em contraste, na idade de ouro da República,

os bons costumes morais eram cultivados no lar e no campo de batalha . . .


a j u stiça e a probidade prevaleciam entre eles graças não tanto às leis como
à natureza . As disputas, a discórdia e a luta eram reservadas para os seus
inimigos; os cidadãos apenas competiam uns contra os outros no mérito.
E ram generosos nas suas oferendas aos deuses, frugais no lar e leais aos
amigos . . .

O facto de esta visão de uma relação exemplar entre a moral privada


e as virtudes públicas soar a Rousseau não a impediu de ser um modelo .
Do mesmo modo, a designação, por C ícero, dos homines novi - homens
Simon Schama 1 CIDADÃOS

novos - como aqueles que subiam à custa do seu sólido civismo e da sua
eloquência deu à geração 80 do século XVIII a sua insígnia de mérito.
O resultado foi uma identificação poderosa entre os republicanos anti­
gos e os modernos. Quando tinha nove anos de idade, Manon Philipon
levou um exemplar de Plutarco para a igreja; recordar- se-ia mais tarde de
que "é daquela altura que dato as impressões e as ideias que fizeram de
mim uma republicana" . Ler Plutarco "inspirou -me um verdadeiro entu­
siasmo pelas virtudes públicas e pela liberdade " . De facto, alguns deixa­
ram-se levar tão longe que se lhes tornou difícil ou mesmo impossível
reconciliarem-se com o presente . Mercier, que na casa dos vinte tinha
ensinado num colégio, idolatrava os antigos, e depois de mergulhar na
maj estade da República considerou " doloroso ter de deixar Roma e ver­
-me de novo um comum da Rue Noyer" .
O patriotismo "romano" (muito mais raramente era "ateniense" )
comungava de algumas das virtudes do culto da Sensibilidade, mas nou­
tros aspectos era bastante diferente. Para começar, era menos dado às
marinadas lacrimej antes, exaltando um autocontrolo estóico das expres­
sões emotivas. Era uma cultura assumidamente "viril" ou masculina -
austera, musculada e inflexível, e não terna, sensível e compassiva .
Enquanto estilo arquitectónico e de decoração de interiores, o neoclassi­
cismo trabalhava com formas despoj adas e severas: capitéis austeramente
dóricos e não esmeradamente coríntios nem delicadamente j ónicos. Do
mesmo modo, a publicação de ilustrações dos murais romanos de
Pompeia e Herculano (pelo futuro ultra -jacobino Sylvain Maréchal, entre
outros ) tornou popular um formalismo inspirado nos relevos.
Alguns entusiastas da Antiguidade deslocaram-se aos seus locais mais
famosos para comunicarem directamente com os seus fantasmas. Alguns
conseguiram chegar ao Peloponeso, outros à Sicília, a Nápoles e à
Campânia . Mas os visitantes franceses eram tendencialmente menos
numerosos do que os seus homólogos ingleses do Grand Tour. Foi princi­
palmente a criação do Prémio de Roma pela Academia Real de Pintura
francesa e da sua escola na mesma cidade que possibilitou aos aprendizes
de pintores franceses beberem na fonte da cultura clássica . O novo direc­
tor das artes de Luís XVI ( oficialmente designado " superintendente dos
Edifícios" ) , d' Angiviller, estava particularmente decidido a que as bolsas
disponíveis fossem concedidas de uma forma mais meritocrática do que
fora o caso com o seu antecessor, Marigny e, em finais da década de 7 0 do
século XVIII, lançou um programa destinado a encorajar uma nova gera­
ção de pintura histórica expressamente concebida para inculcar as virtu -
des públicas associadas à Roma republicana: o patriotismo, a força de
espírito, a integridade e a frugalidade .
Por conseguinte, os heróis que corporizavam estes valores desfilaram
em grande formato nos Salões: Júnio B ruto, que executou os próprios
145

filhos depois de serem condenados por terem participado numa conj ura
monárquica, Múcio Scaevola, com a mão no fogo para demonstrar a sua
firmeza patriótica, Horácio C ocles, que defendeu sozinho uma ponte con­
tra os Etruscos, e Gaio Fabrício e Cipião, cuj a incorruptibilidade era ates­
tada pelas história s . Além deles, viam - s e filósofos de inabalável
integridade - Sócrates, Séneca e Catão - morrer pelas suas próprias mãos
em vez de se submeterem a ditadores.
Muitas destas figuras ilustres j á tinham uma presença assídua na pro­
paganda oficial de outras culturas republicanas . Por exemplo, em meados
do século XVII, B ruto, Gaio e Cipião tornaram-se proeminentes nas deco­
rações esculpidas e pintadas da C âmara Municipal de Amesterdão. No
entanto, ao aparecerem nos Salões de finais da década de 80, século XVIII,
e no decénio seguinte - especialmente nos quadros de Jacques-Louis
David -, registaram uma mensagem nova com uma eloquência inquie ­
tante : eram o equivalente pintado da retórica de Linguet.
O mais espectacular de todos estes manifestos pintados foi O Jura­
mento dos Horácios, de David, que apareceu - tarde e demasiado grande -
no S alon de 1 78 5 . Já se escreveu muito acerca deste quadro extraordi­
nário e o debate sobre as suas implicações políticas ( ou ausência delas)
está longe de esgotado . Não há dúvida de que foi agressivamente anti ­
-ortodoxo e que rompeu intencionalmente com as convenções académi­
cas ( mesmo com as veneradas pelos neoclassicistas como Poussin) .
Também é manifestamente evidente que recorreu a uma linguagem da
cor purificada e sombria e que ignorou a composição obrigatória "em
pirâmide" numa caixa pouco profunda, com grupos de figuras abrupta ­
mente separados em três composições desligadas umas das outras. O que
permanece contencioso é se estas alterações dramáticas da forma consti ­
tuíram uma espécie de vocabulário radical e se os contemporâneos as
reconheceram como tal . Afinal de contas, David pintou o tema como
encomenda régia patrocinada por d' Angiviller e toda a sua carreira até ao
momento fora típica, com o talento a elevá -lo facilmente à fama e à for­
tuna a partir de 1 7 8 0 . Ó rgãos oficiais como o Mercure de France e as recen­
sões não oficiais como a de Metra na Correspondance Secrete foram
unânimes em classificar a obra de genial. Mas como vimos no caso de
Beaumarchais e até de Rousseau, era perfeitamente possível a corte e os
maiores dos les Grands darem a sua aprovação àquilo que hoj e parecem
mensagens extremamente subversivas .
Do q u e n ã o restam dúvidas é d e q u e O Juramento dos Horácios desenca­
deou um clamor inédito no Salon e nos círculos da crítica de Paris.
O Mercure declarou bombasticamente que " esta composição é obra de um
novo génio; anuncia uma imaginação brilhante e coraj osa . . . " . Parte da
sua fama deveu -se ao intenso interesse narrativo da história . D epois de
um ataque dos C oriáceos, os três filhos de Horácio desafiam três irmãos
Simon Scham� 1 CIDADÃOS

do campo inimigo para pouparem às respectivas nações a devastação de


uma guerra.• Mas a história complica-se porque um dos Horácios está
casado com uma irmã dos C oriáceos e a irmã dos Horácios, Camila, está
noiva de um dos seus inimigos . O combate revela -se tão letal que só um
dos irmãos romanos sobrevive e quando regressa e encontra a irmã de
luto pelo noivo mata-a num acesso de raiva patriótica.
Ou seja, a história dos Horácios casava os temas morais das virtudes
domésticas exibidos nos quadros da Sensibilidade das décadas de 60 e 70
do século XVIII com as epopeias marciais e patrióticas da geração seguinte .
E David imaginou uma cena que não fora contemplada em nenhuma das
fontes mais previsíveis, incluindo a mais conhecida, Les Horaces, a tragédia
de C orneille . De facto, o momento em que o pai aceita o j uramento de
sacrifício patriótico dos gémeos é aquele em que espada emocional
adquire dois gumes acerados: a severa determinação masculina do patrio ­
tismo, na parte esquerda e no centro do quadro, em oposição ao terno
grupo de género do lado direito, com as mulheres aflitas e a criança ino­
cente ensombradas pela tragédia iminente . Foi esta espantosa articulação
entre o heróico e o trágico que cativou muitos dos admiradores do qua­
dro, que não hesitaram em colocá-lo não só no contexto da retórica neo­
clássica, como também no da franqueza emocional de Rousseau . O relato
do Journal de Paris é típico :

É imprescindível ver [este quadro] para compreender o que o torna mere -


cedor de tanta admiração . Observei . . . um desenho correcto . . . um estilo
que é nobre sem ser forçado, cores verdadeiras e harmoniosas . . . um efeito
que é nítido e claro e uma composição plena de energia, apoiando uma
expressão forte e terrível [por exemplo, nos rosto..s do grupo central] que
contrasta com a prostração que reina no grupo das mulhere s . No fim, se
tiver de me pronunciar com base no sentimento alheio e no meu, direi que
ao contemplar este quadro somos tomados de um sentimento que exalta a
alma e que, para usar uma expressão de J. J. Rousseau, tem algo de pun­
gente que é atractivo; os atributos observam -se tão bem que nos acredita­
mos transportados para os primeiros tempos da República Romana .

Seria prematuro ver neste quadro ( mesmo que alguns críticos tenham
visto ) uma profecia inequívoca do posterior j acobinismo de D avid. Apesar
de os deões da Academia (principalmente o "primeiro pintor do rei",
Pierre ) terem ficado nervosos com a heterodoxia da pintura, não existem
provas de que D avid tenha perdido os favores de d' Angiviller ou até da
corte, que continuou a encomendar-lhe trabalhos. Se o braço estendido
dos Horácios se tornou a forma-padrão do j uramento revolucionário -

' Os Horácios eram de Roma, os Coriáceos de Alba Longa. ( N. do T. )


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registada no quadro inacabado de David, O Juramento da Sala do Jogo da


Péla, de 1 78 9 é porque o gesto foi apropriado pela Revolução. Mas seria
-

míope não reparar que neste quadro estão espectacularmente anunciados


todos os ingredientes da retórica revolucionária: patriotismo, fraternidade
e martírio. A virtude pública da geração anterior de visitantes do Salon
nascera e fora alimentada no seio de uma família carinhosa; agora estava
a ser desmamada para assumir uma postura de desafio brutal.

IV DIFUNDIND O A PALAVRA

Suponhamos que um cortesão tinha um desej o súbito de ler uma das


muitas publicações proibidas - a sumarenta folha de boatos L'Espion
Anglais, publicada por Pidanzat de Mairobert a partir de Londres, as
Confissões de Rousseau, as Mémoires de la Bastille de Linguet ou o ataque
incendiário do abade Raynal ao colonialismo europeu, Histoire
Philosophique et Politique des Établissements et du Commerce des Européens dans
les Deux Indes - onde deveria procurá -la? Não seria preciso ir longe, pois
mesmo ao fundo da rampa da esplanada do Palácio de Versalhes existia o
quiosque de Monsieur Lefevre, onde, na altura e pela quantia certas,
podia adquirir-se do melhor que havia deste tipo de publicações. Com
uma linha directa para um dos mais prolíficos impressores de livros proi­
bidos, Robert Machuel, de Rouen, e casado com uma representante da
dinastia de livreiros Mérigot, Lefevre parecia seguro na sua posição de
vendedor tolerado às portas do poder régio . Mas em 1 777 pisou o risco ao
comercializar panfletos pornográficos que difamavam a rainha - talvez o
famoso Anandria, que a retratava em triângulos amorosos lésbicos - e foi
prontamente detido; diga-se que depois de sair da B astilha enveredou por
uma carreira mais segura como proprietário de uma loj a de brinquedos.
Poderá parecer espantoso, mas a corte e a alta nobreza eram consumi­
dores ávidos das obras que mais danos causavam à sua própria autori­
dade. Versalhes possuía várias loj as onde os vendedores ambulantes mais
profissionais (colporteurs) descarregavam a sua mercadoria . Por exemplo,
Delorme, que usava D unquerque como ponto de entrada para os seus
livros, tinha uma loj a em Versalhes, e não era o único . O apetite da corte
pela literatura ousada - política e erótica - pode avaliar-se pelo facto de
existirem lojas que vendiam este tipo de obras nos locais para onde a corte
se transferia sazonalmente, em particular, C ompiegne, Fontainebleau e
Saint - C loud. Além disso, a imunidade das grandes famílias aristocráticas
às buscas e aos confiscos significava que os negociantes as utilizavam des­
caradamente para contrabandearem os seus artigos . O cocheiro do duque
de Praslin era, ao que tudo indica, um colporteur, e em 1 767 foram desco ­
bertos seis fardos de livros clandestinos numa carruagem com as armas do
Simon Schama / CIDADÃOS

marechal de Noailles. Dizia-se inclusivamente que o irmão mais novo do


rei, Artois ( que como C arlos X exerceria uma censura férrea sobre a lite­
ratura sediciosa ) , protegia alguns vendedores de calúnias.
Estas histórias parecem dar razão à opinião de Tocqueville de que o
Antigo Regime se desgraçou a si próprio ao brincar irresponsavelmente
com ideias que compreendia mal mas achava divertidas - o equivalente
literário à síndroma de Fígaro. Aos escritores contra -revolucionários que
analisaram o desastre de 1 789, a proliferação de material sedicioso e calu­
nioso pareceu ainda mais sinistra, uma prova de uma conspiração urdida
entre os ímpios seguidores de Voltaire e Rousseau, os mações e o duque
de Orleães. Afinal de contas, não era o Palais -Royal um dos mais notórios
antros de iniquidade, onde até a polícia estava proibida de cair em cima
dos vendedores ambulantes de lixo literário?
C ompreensivelmente, os historiadores modernos têm-se afastado de
tudo o que possa ser considerado uma aceitação da teoria da conspiração
literária da Revolução Francesa. Não tendo encontrado nas bibliotecas da
época a obra oficialmente canonizada pela Revolução, o Contrato Social de
Rousseau, puseram praticamente de lado o conceito da agitação como
resultado de hábitos de leitura perigosos. A descoberta, por Robert
Darnton, de um rico filão de esterco literário - uma misturada de libelos
pornográficos, sátiras vitriólicas e teoria política radical - reafirmou a
importância corrosiva das publicações ousadas . Mas embora sej a verdade
que os produtores de grande parte deste material dirigiam o seu fogo mais
devastador contra os grandes do sistema literário e político, seria engana­
dor vê-los como " estranho s " . Pelo contrário, era do enraizado radicalismo
aristocrático - do Palais-Royal ou do átrio do Palácio da Justiça - que as
suas descargas partiam. E não foi a separação mas sim a ligação entre o
mundo do patrocínio endinheirado e o mundo da polémica que tornou
tão graves os danos provocados às dignidades do Antigo Regime.
Na sua euforia inicial, a Revolução abandonou todas as formas de cen­
sura e controlo das publicações. A explosão da informação impressa daqui
decorrente foi tão fenomenal que faz parecer o Antigo Regime compara­
tivamente destituído deste tipo de informação . Na verdade, a última
década da monarquia assistiu a uma proliferação de literatura efémera de
todos os tipos - jornais, j o rnais literários, brochuras e panfletos, baladas e
poemas impressos. Esta transformação da imprensa terá contribuído bas­
tante para criar o público ávido de notícias e receptivo cuj a lealdade revo ­
lucionária os j ornalistas lutavam para conquistar e manter.
Antes de meados da década de 70, século XVIII, só era possível obter
notícias políticas no estrangeiro . Em França, existiam dois jornais licen­
ciados, a Gazette de France e o Mercure de France, um descendente do jornal
literário fundado por volta de 1 6 3 0 . A Gazette transmitia uma visão muito
mística de uma monarquia que ia fazendo paulatinamente o seu caminho
1 49

de cerimónia em cerimónia, sem atropelos, enquanto exercia uma


administração incontestada; o Mercure abundava em ensaios inócuos
provenientes do mundo polido das academias e das belas -letras. As prin­
cipais fontes fiáveis de notícias do estrangeiro eram as gazetas holande ­
sas, das quais a mais importante era a Gazette de Leyde, uma publicação
bissemanal. Publicavam-se j ornais similares noutras cidades holandesas,
como Amesterdão e Utreque, no enclave papal de Avinhão e do outro
lado da fronteira, em Genebra ou C olónia . Cheios de relatos dos acon­
tecimentos militares e políticos em quase todos os principais Estados da
Europa e da América do Norte, apresentavam- s e como actuais e fiáveis,
evitando a anedota infundada ou o diz que disse. Mais importante
ainda, como observou Jeremy Popkin, publicavam na íntegra os grandes
manifestos da "política oposicionista " de França, as remonstrâncias do
Parlamento e do Tribunal Fiscal de Apelaçã o . Ao dar-lhes lugar de des­
taque, a família Luzac (pertencente à diáspora huguenote, como tantos
outros editore s ) , que editava a Gazette de Leyde, não fazia segredo do seu
apoio a uma visão antiabsolutista da constituição francesa. Apesar disto,
as gazetas não só eram tacitamente toleradas em França, como também
estavam a autorizadas a publicitar os seus locais de venda espalhados
pelo país, a angariar assinantes e a usar o correio real para se distribuí­
rem. A melhor estimativa da tiragem da Gazette de Leyde situa - a em cerca
de quatro mil exemplares, um número considerável para os padrões do
século XVIII .
O homem que mais fez para transformar o negócio dos j ornais - de um
ramo menor de cartas doutas para uma empresa comercial moderna - foi
o formidável editor Charles-Joseph Panckoucke . C riado em Lille, pelo pai,
que era escritor e livreiro, Panckoucke abraçou a escrita e a tradução. Em
1 760, mudou -se para Paris, onde adquiriu duas livrarias e editoras impor­
tantes, e aprofundou a sua posição no mundo literário ao desposar a irmã
de uma das suas figuras pouco importantes, Suard. Em pouco tempo,
Panckoucke tornou -se o grande magnata do comércio livreiro de Paris.
Mimava os seus autores - visitava Voltaire em Ferney e Buffon em
Montbard -, apaparicava-lhes o ego e, numa época notória pela fraude e
pela pirataria, tentava garantir-lhes rendimentos decentes, chegando
algumas vezes ao ponto de lhes pagar adiantamentos.
Panckoucke foi igualmente ousado como explorador de j ornais .
Publicava dois j ornais poderosos e importantes, o Journal de Geneve e o
Journal de Bruxelles, e em 1 7 74 contratou Linguet para editar este
último . Previsivelmente, em resposta ao hábito que Linguet tinha de ati ­
rar ácido à cara de todas as luminárias intelectuais e políticas da época,
as tiragens dispararam, chegando aos seis mil . Mas Panckoucke, eterna ­
mente dividido entre o acúmen comercial e o desej o de respeitabilidade,
não conseguiu aguentar os tiros certeiros de Linguet contra alguns dos
Simon Schama 1 CIDADÃOS

seus autores preferidos e livro u - se dele passados dois anos, substituindo­


-o por um dos seus alvos preferidos, La Harpe.9 Em Londres, Linguet fun­
dou o seu próprio j ornal, os Annales Politiques et Littéraires, que
estabeleceu novos padrões em termos de vituperação mordaz mas que
também abundava em artigos interessantes sobre as artes e as ciências .
Surpreendentemente equipadas com a permission tacite q u e as protegia
dos tribunais sem, no entanto, lhes conferir abertamente respeitabili­
dade, setenta e uma edições dos Annales foram publicadas entre 1 7 7 7 e o
encarceramento de Linguet na B astilha, em 1 78 0 . Todas elas foram dis­
tribuídas em Paris por um comerciante abastado, Lequesne . O biógrafo
de Linguet é da opinião de que a tiragem poderá ter ascendido aos vinte
mil exemplares .
Insatisfeito com a s u a posição, Panckoucke fundou o primeiro jornal
diário, o Journal de Paris, com Suard, o cunhado, como co-proprietário e
editor; o j o rnal informava sobre os acontecimentos diários e oferecia
pequenas recensões e despachos noticiosos. Em 1 778, Panckoucke pegou
no Mercure de France, e foi neste j ornal que se tornou mais evidente o
aspecto drasticamente alterado da imprensa. D e desinteressante e forma­
lista, o Mercure expandiu -se para quarenta e oito páginas e passou a ofe ­
recer uma grande miscelânea de tópicos: notícias das capitais europeias e
americanas e resumos das gazetas, mas também canções populares ( com
a música e os versos impressos ) , quebra- cabeças e adivinhas, recensões
de música, teatro e literatura . Na edição de 8 de Maio de 1 784, As Bodas
de Fígaro tiveram direito a uma recensão de dezasseis páginas. Era uma
fórmula vencedora e a tiragem do Mercure subiu para vinte mil na vés­
pera da Revolução. S e as estimativas de um contemporâneo em relação
ao rácio entre as tiragens e o número de leitores estão conectas, é possí­
vel que o Mercure chegasse a mais de cento e vinte mil quando relatou,
com os terríveis pormenores, o colapso final do governo de Luís XVI. Um
comentador observou que : "Esta revista chega a todo o lado, ao plebeu e
ao nobre, aos salões da aristocracia e ao lar modesto do burguês, deli­
ciando em igual medida a corte e a Cidade . " E não se tratava apenas de
um fenómeno parisiense, pois o Mercure vendia metade da tiragem nas
províncias .
Existiam outras formas de publicidade para saciar os ávidos apetites
literários dos Franceses. Revistas de baixo nível como a Correspondance
Secrete ( atribuída a Metra ) e as Mémoires Secretes circulavam em forma
manuscrita e debruçavam-se detalhadamente sobre a política sexual da
corte ou sobre escândalos envolvendo dinheiro e, se possível, o clero .
O L'Espion Anglais (ou Correspondance Secrete entre Milord All Eye et Milord
All Bar) , impresso e importado de Londres, repetia muitas das mesmas

' Jean-François de La Harpe ( 1 7 39- 1 80 3 ) , escritor e crítico, membro da Academia . (N. do T.)
151

histórias, e embora sej a possível determinar a sua circulação sabe -se que
teve uma grande circulação no clima sensacionalista da década de 80 do
século XVIII.
É difícil evitar a impressão de que o mundo da literatura "baixa" no
reinado de Luís XVI era um império de formigas : colunas de correios enér­
gicos e determinados levando obj ectos preciosos para os seus vários desti­
nos . A França tinha, certamente, muitos destes fornecedores de rumores
e de ideologia, que empacotavam, subornavam e percorriam rotas e redes
estabelecidas. Os canais e os rios eram cruciais para a sua movimentação.
Alguns começaram a usar depósitos nos portos menos concorridos, tais
como Agde, no Mediterrâneo, e Saint-Maio, na costa bretã, e depois
subiam prudentemente rio acima, por etapas. C ontrabandear a partir de
Avinhão, rodeada de território francês, era mais complicado, mas os bar­
cos de pesca do Ródano eram usados para transportar fardos de livros e
jornais rio abaixo, para Tarascon e Arles . Outra rota fazia a ligação com o
canal real de Toulouse, de onde a mercadoria seguia para oeste, para
Bordéus. Outras acompanhavam as fronteiras orientais, de E strasburgo a
Dunquerque, procurando evitar os grandes postos alfandegários de
Sainte -Menehould, na entrada para a Champagne, e Péronne, nas portas
da Picardia.
D e qualquer modo, podemos partir do princípio de que os traficantes
faziam bem o seu trabalho, dado que Lyon, Rouen, Marselha, B ordéus
e a maioria das grandes cidades estavam bem servidas de obras ostensi­
vamente "proibidas " . Em Paris, podiam ser adquiridas não só no Palais ­
-Royal como em bancas na Pont- Neuf e nos cais - os antepassados dos
actuais bouquinistes. Apesar de expressamente proibidos, os vendedores
exerciam nos átrios dos teatros e na Opéra, e corriam os cafés e as feiras
com pacotes debaixo dos braços . Outros usavam mostruários mais sim­
ples, espalhando a mercadoria em cima de uma toalha, na rua, à vista
de todo s . Alguns vendedores tornaram- s e bastante conhecidos ou
mesmo poderosos, homens como Kolman, Prudent de Roncours e
Pardeloup, e alguns dos mais formidáveis eram mulheres, nomeada ­
mente la Grande Javotte, 10 que vendia numa banca no cais dos Augustins,
e a sua sócia, a Viúva Allaneau, em grande forma para os seus setenta
anos de idade .
Em todo este tráfico existia um nível extraordinário de cumplicidade
por parte das autoridades. Por exemplo, Girardin, o vendedor que se espe­
cializava em libelos violentos contra a rainha, operava com impunidade a
partir do beco da Orangerie, no coração das Tulherias. O átrio do Palácio
de S oubise ( hoj e os Arquivos Nacionais ) era outro lugar semipúblico
pej ado de literatura subversiva, e antes de os Jacobinos e os Cordeliers

1º Em francês no original : A Grande Linguareira . ( N. do T. )


Simon Schama 1 CIDADÃOS

serem clubes revolucionários j á eram ordens religiosas 1 1 mas de tipo dife ­


rente, pois também acolhiam os omnipresentes colporteurs. Os Annales de
Linguet, com os seus ataques devastadores a cortesãos e académicos, a
Panckoucke e aos fermiers généraux, estavam suj eitos a um único censor:
Lenoir, o tenente -general da polícia de Paris, e ele revelou -se um crítico
bastante tolerante.
Porquê? Talvez Lenoir gostasse de assistir ao espectáculo dos refor­
madores e críticos confessos da monarquia a levarem uma boa esfrega ­
dela às mãos de Linguet ( que ainda se apresentava como um monárquico
dedicado mas algo excêntrico ) . Mas também há motivos para acreditar
que Lenoir considerava útil saber o que se passava nas franjas mais radi ­
cais de opinião, em vez de as levar a esconderem -se. Por outras palavras,
à semelhança de muitos outros níveis da autoridade oficial, Lenoir aca­
bara por aceitar a existência da opinião pública e, em vez de ser o seu alvo
impotente, preferia, na medida do possível, manipulá -la. Outros, como o
duque de Orleães e o filho, o duque de Chartres, terão sido ainda mais
ousados ao verem na opinião pública, no boato e na difamação armas
úteis para embaraçarem os seus oponentes . Por conseguinte, a vantagem
táctica de curto prazo obscureceu por completo os perigos de longo prazo
colocados pelo cultivo do mundo volátil da opinião pública . Enquanto
procuravam garantir as melhores posições na estima do público, os
patronos da insinuação e do escândalo continuaram a partir do princípio
de que a sua posição era sólida como uma rocha quando na verdade se
estava a transformar em areias movediças . Era impossível manter o prin­
cípio geral de deferência incontestada quando era sabotado diariamente
nos pormenores dos ataques pessoais à corte, aos ministros, à Igrej a, às
academias e à toga .
E aqueles que brincavam com a caixa de Pandora também não sabiam
o quão vasto se tinha tornado o público receptivo às polémicas e à pro­
paganda. D a perspectiva do grand seigneur que, na sua sala de estar, desa­
tava as fitas cor- de-rosa dos embrulhos de livros proibidos, o tráfico de
opiniões era uma coisa circunscrita, uma moda parisiense, hoj e presente,
amanhã desaparecida . Mas as muralhas limitadoras da opinião culta
estavam a enfraquecer rapidamente. " Paris lê dez vezes mais do que há
um século ", observou Mercier, e a mudança estava tanto no número de
leitores como no volume e na variedade das matérias. Com base num
estudo de assinaturas de testamentos, Daniel Roche descobriu números
espantosos para a literacia adulta na capital, no fim do Antigo Regime.
Em Montmartre, por exemplo, onde 40% dos testadores pertenciam à

1 1 " Cordelier" significa "franciscano", da corda que estes monges usavam à guisa de cinto.
Os Jacobinos derivam o seu nome do Convento dos Jacobinos, um convento dominicano
situado da rua de Saint-Jacques (ou Jacob ) . (N. do T. )
153

classe operária o u assalariada, 7 4 % dos homens e 6 4 % das mulheres


sabiam escrever o seu nome. Na Rue de S aint-Honoré - uma rua elegante
mas onde um terço dos residentes pertencia ao povo comum -, a taxa de
literacia era da ordem dos 9 3 % . Na Rue de Saint-Denis, uma rua de arte ­
sãos, 8 6 % dos homens e 7 3 % das mulheres redigiram e assinaram os seus
contratos de casamento.
Por outras palavras, as taxas de literacia da França do século XVIII
eram muito mais elevadas do que nos E stados Unidos em finais do
século XX . O analfabetismo só predominava nos grupos de j ornaleiros
não especializados - carregadores dos mercados, operários da constru -
ção civil, estivadores, limpa- chaminés e cocheiros, muitos deles traba­
lhadores imigrantes oriundos da província. Pelo contrário, os serviçais
domésticos, também eles oriundos do campo, sabiam quase todos ler e
escrever - liam os seus contratos de emprego. As " escolinhas " promovi­
das pelas missões católicas nos séculos XVII e XVIII tinham manifesta­
mente cumprido a sua tarefa . Por volta de 1 780, segundo Roche, 3 5 %
de todos o s testamentos feitos pelas classes populares e 40 % dos per­
tencentes a loj istas e pequenos artesãos e comerciantes incluíam livro s .
É claro q u e o q u e esta população lia n ã o a ligava necessariamente à s
poderosas marés d a opinião pública. Não há dúvida d e q u e a literatura
religiosa e devocional permaneceu muito difundida, seguida das histórias
de fantasia e dos contos de fadas chamados "Biblioteca Azul", disponíveis
a preços baixos nas bancas da Pont Neuf e nas feiras de Saint-Laurent e
Saint - Germain. Mas mesmo que estes leitores não bebessem directamente
no poço de Rousseau, havia muitos exemplos de literatura popular que
transmitiam as mesmas mensagens da inocência corrompida, da maldade
do dinheiro urbano e da brutalidade do poder. Por exemplo, não restam
dúvidas de que Restif de B retonne, que adornava com aventuras sexuais
pormenorizadas as suas histórias de rapazes e raparigas da província caí­
dos no esgoto da urbe, alcançou um êxito enorme quer j unto dos leitores
simples e quer j unto dos leitores sofisticados.
A literatura sem restrições - os almanaques e as notícias afixadas e os
cartazes - é que terá ligado cada vez mais o povo das cidades francesas ao
mundo dos acontecimentos públicos. Em Paris, todas as manhãs, qua ­
renta funcionários colavam pela cidade notícias de batalhas ganhas ou
perdidas, éditos do rei e do governo, avisos de festividades públicas para
assinalar um evento auspicioso, informações sobre o transporte do lixo ou
a trasladação de sepulturas. Em alturas de crise, estas folhas e cartazes
eram desfigurados ou substituídos por notícias parodiando as ordens do
governo ou expondo este ou aquele ministro . A exuberância do seu sis­
tema de transmissão visual era igualada pelo virtuosismo do mundo oral
dos parisienses, em sintonia com todo um universo de canções. A subse­
quente importância da "Marselhesa" ou da " Carmanhola" enquanto
Simon Schama 1 CIDADÃOS

hinos revolucionários só pode ser compreendida tendo em conta a paixão


universal pela canção que existia na França de Luís XVI. As canções eram
vendidas nas avenidas, nas pontes e nos cais, e cantadas nos cafés; os
temas eram os mais variados, desde o namoro, a sedução e a rej eição até
aos filhos da Liberdade na América, o desregramento da corte, a impo­
tência do rei e a libertinagem da rainha .
O império das palavras - faladas, escritas, declamadas ou cantadas - de
finais do Antigo Regime estendeu-se a fronteiras distantes . Apesar de mais
fervilhante em Paris, não era um fenómeno exclusivamente metropoli­
tano . Não existiria nada igual ao Palais- Royal na província, mas os ven­
dedores ambulantes, os livreiros destemidos e uma clientela ávida
garantiam que o negócio dos jornais e o mercado das obras clandestinas
eram tão vivos em B ordéus, Lyon, Rennes e Marselha como na capital. Na
província encontravam-se também outras comunidades de debate, as
lojas maçónicas, as sociétés de pensée e os musées que eram motivo de orgu­
lho para as elites locais. E se algumas tinham o cuidado de manter certas
distinções de estatuto que correspondiam às divisões sociais formais,
abriam-se quase sempre aos membros correspondentes, cuj o sentimento
de serem simultaneamente incluídos e rej eitados nestas irmandades inte ­
lectuais agudizava a sua consciência pública.
No reino além das palavras - nos espectáculos ao ar livre, na
pequena ópera de Rousseau, que ainda e ra representada nos anos 8 0
do século XVIII, e n a s telas empapadas de lágrimas de Greuze - a s
falanges d o s cidadãos estavam a formar para a batalha. D e facto, e m
meados da década de 80, as s u a s personalidades individuais e colectivas
já estavam construídas. E ram devotos da Natureza, ternos de coração e
desdenhosos da moda e da ostentação dos poderosos, eram apaixona ­
dos no seu patriotismo e enfureciam- s e com os abusos do despotismo.
Acima de tudo, eram apóstolos da virtude pública e viam uma França
prestes a renascer como uma república de amigos . De braço dado, com
as penas escrevinhando febrilmente em cartas e com os pulmões
ensaiando discursos e canções, este exército de j ovens cidadãos via o
governo desmoronar- s e .
5

O s Custos da Modernidade

1 UM RE GIME ANTIGO OU NOVO?

Nas suas encantadoras memórias, Madame de Genlis recorda-se de ela


e a irmã se terem vestido de raparigas do campo. Assim disfarçadas, reco ­
lheram todo o leite que puderam nas quintas existentes na sua proprie ­
dade e levaram-no para casa em cima de burros. Encheram uma banheira
- uma banheira famosa nas redondezas por dar para quatro pessoas - e
deliciaram-se durante duas horas num banho de leite aromatizado com
pétalas de rosa.
Se calhar era este tipo de coisa que Talleyrand tinha em mente
quando lamentou o desaparecimento da douceur de vivre do Antigo
Regime. Estas frivolidades sociais, retratadas a pastel por Fragonard, 1
mascaradas por Diana Vreeland, 2 iluminadas por um brilho crepuscular
e perfumadas por flores estivais, continuam perenes como um mito his ­
tórico agradável. Mas têm inevitavelmente algo de insubstancial e de
auto - enganador, como o rei a brincar aos serralheiros e a rainha a tra­
tar das ovelhas . O s historiadores são lestos a recordar-nos que além
desta França sonhadora e lúdica existia a Realidade : os exércitos de
mendigos emaciados que morriam à beira das estradas, as ruas de Paris
a transbordar de imundícies e de desperdícios dos talhos, os implacáveis
feudistes a roubarem até ao último soldo camponeses que mal conse­
guiam subsistir à base de papa de castanhas, os presos a apodrecerem
nos navios-prisões pelo roubo de um bocado de açúcar ou do contra­
bando de uma caixa de sal, os cavalos e os cães a devastarem as planta ­
ções em nome do droit de chasse do senhor, os bebés recém -nascidos
embrulhados em trapos imundos depositados todas as manhãs nas esca­
das das igrej a s de Paris com um bilhetinho patético a pedir o baptismo,
quatro pessoas por cama no Hôtel- D ieu, ' morrendo de disenteria mas
pelo menos acompanhadas .

1 Jean- Honoré Fragonard ( 1 7 3 2 - 1 80 6 ) . ( N. do T.)


2 Diana Vreeland ( 1 90 3 - 1 98 9 ) , colunista e editora de moda norte-americana. (N. do T. )
' Grande hospital d e caridade d e Paris. (N. do T. )
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Para muitos dos que se tornaram revolucionários, estes opostos, além


de coexistirem, tornavam-se mutuamente possíveis. A grande opulência e
a grande frivolidade eram alimentadas pela miséria e pelo desespero. Na
fantasia futurista L'An 2440, Louis- Sébastian Mercier imaginou uma
França miraculosamente liberta do despotismo e da pobreza e governada
por um amistoso cidadão-rei. Numa galeria cheia de quadros alegóricos, o
que representava o século XVIII assumiu a forma de uma barregã de tra­
jes garridos e boca e bochechas pintadas, segurando duas fitas cor- de- rosa
que dissimulam grilhetas. No chão,

tinha o vestido esfarrapado e coberto de imundícies. Os pés nus estavam


metidos numa espécie de atoleiro e as suas extremidades inferiores eram
tão hediondas como a cabeça era brilhante . . . Atrás dela, várias crianças
escanzeladas e lívidas choravam pela mãe enquanto devoravam um naco
de pão preto .

A impressão transmitida por estas imagens é a de um desespero per­


manente, de um mundo que para ser substancialmente modificado teria
de ser obliterado. Logo depois do seu aparecimento, o termo "Antigo
Regime" viu - s e semanticamente associado ao tradicionalismo e à senes­
cência . C onj urava uma sociedade com anacronismos tão incrustados
que só um choque de grande violência poderia libertar os organismos
vivos nela encerrados. Institucionalmente tórpido, economicamente
imóvel, culturalmente atrofiado e socialmente estratificado, o "Antigo
Regime" era incapaz de se modernizar. A Revolução necessitou de o des­
pedaçar para depois actuar como Grande Acelerador na auto - estrada
para o século XIX. Antes, tudo era inércia; depois, tudo foi energia;
antes, havia corporativismo e Gemeinschaft; depois, individualismo e
Gesellschaft.• Em suma, a Revolução foi a condição que possibilitou a
modernidade.
Pode argumentar- se, no entanto, que a Revolução Francesa não foi
apenas o catalizador da modernidade, mas também a sua interrupção.
Não em todos os aspectos, dado que no seu estágio mais militante a
Revolução inventou efectivamente uma nova espécie de política, uma
transferência institucional da soberania da Vontade Geral de Rousseau
que aboliu o espaço e o tempo privados e criou uma forma de militarismo
patriótico mais abrangente do que tudo o que até então se vira na Europa .
Inventou e, durante um ano, praticou a democracia representativa;
durante dois anos, impôs um igualitarismo coercivo ( embora dizer isto
sej a uma simplificação ) . C ontudo, durante duas décadas, o seu produto
foi um novo tipo de E stado militarizado .

' Em alemão no original: comunidade e associação, respectivamente. (N. da R. )


1 57

Mas não é a isto que muitos dos historiadores se referem quando


escrevem que a Revolução originou uma modernidade inimiga do
Antigo Regime. Aquilo que geralmente têm em mente é um mundo em
que o capital substituiu o costume como árbitro dos valores sociais,
onde os profissionais e não os amadores dirigiam as instituições da lei
e da governação, e onde o crescimento económico não era liderado
pela terra mas sim pelo comércio e pela indústria. C ontudo, em prati­
camente todos estes aspectos, o grande período de mudança não foi a
Revolução mas sim os finais do século XVIII. De facto, poderia até
dizer- se que a Revolução derivou muito do seu poder na tentativa
( infrutífera ) de travar e não de acelerar o processo de modernização, e
em muitos aspectos foi bastante bem sucedida . Em 1 7 9 5 , o valor total
do comércio da França era menos de metade do que fora em 1 7 8 9 ; em
1 8 1 5 , ainda e ra apenas 60 % . O ímpeto da mudança económica e social
em França aumentou com o desaparecimento da Revolução e do
E stado militar por ela criado.
É verdade que a abolição dos privilégios significou a eliminação de dis ­
tinções jurídicas que são correctamente vistas como pré -modernas, mas
tendo em conta que o acesso aos títulos era cada vez mais uma questão
de dinheiro e de mérito e não de nascimento, os privilégios existentes no
século XVIII parecem assemelhar-se mais às distinções e formas honorífi­
cas comuns a todas as sociedades modernas do século XIX e, em muitos
casos, do século XX. Não eram certamente incompatíveis com a criação de
uma economia nem de um E stado modernos. Do mesmo modo, se a
Revolução aboliu formas antigas de obrigações sociais e propriedades
senhoriais, também é verdade que muitas destas obrigações já tinham sido
convertidas em dinheiro e foram simplesmente transformadas em rendas
no Novo Regime.
Por conseguinte, o Antigo Regime não era uma sociedade a caminhar
cambaleantemente para a sepultura. Longe de dar com ele moribundo, o
historiador encontra sinais de dinamismo e energia onde quer que pro ­
cure . Do rei para baixo, a elite estava mais obcecada com a novidade do
que com a tradição, e menos preocupada com o feudalismo do que com a
ciência . O grande complexo do Louvre albergava não apenas a Academia
Francesa e as academias de pintura e de inscrições e medalhas, mas tam­
bém a da ciência e a mais recente fundação régia, a Academia de
Medicina. Além disso, foi por iniciativa real que em 1 78 5 se alargaram as
secções da Academia das C iências para incluir a mineralogia, a história
natural e a agricultura . Se prodígios de talento como Jacques-Louis David
tinham direito a um apartamento no Louvre, o mesmo se verificava com
os modelos da nova matemática, como Lagrange, atraído de Berlim para
um regresso a França . Os génios confirmados eram promovidos cedo e
agraciados com estatuto e honrarias . C om vinte e nove anos de idade,
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Fourcroy, o químico mais inventivo da época, era professor no Jardin du


Roi' e uma das luminárias da Academia; Gaspard Monge, filho de um
vendedor ambulante e fundador da moderna geometria descritiva, tor­
nou -se regente de cadeira aos vinte e cinco . E outros foram colocados em
posições de honra e estima pública, tais como o astrónomo Lalande, o
mineralogista Haüy e, em especial, o matemático Laplace, nomeado para
um posto especial na E scola Militar.
Este entusiasmo oficial pela ciência não foi meramente uma questão
de teoria especulativa. Sempre que possível, a Coroa e o governo procu ­
raram aplicar na prática os conhecimentos novos que iam surgindo . A tec­
nologia militar deu origem ao canhão Gribeauval e ao mosquete6 que,
combinados com as alterações tácticas introduzidas pelo grande reforma­
dor Guibert, possibilitaram a ascendência das armas francesas no primeiro
quartel de século seguinte. Nos arredores de Paris, em Vanves, C harenton
e Javel, existiam várias oficinas dedicadas ao desenvolvimento de proces­
sos químicos úteis para a indústria: vitríolos para descoloração, brancos de
chumbo para tintas, gases inflamáveis.
A parceria entre o governo e as academias subscrevia a visão de finais
do Iluminismo - especialmente acarinhada pela sua figura exemplar, o
marquês de C ondorcet - de que a recolha empírica de dados era o pri­
meiro passo para uma sociedade que se poderia libertar progressiva­
mente da pobreza, da ignorância e do sofrimento . Uma chuva de papel,
concebida para obter informações com base nas quais se pudesse actuar,
abateu-se de Paris sobre as províncias. Pouco depois da sua fundação, a
Academia de Medicina distribuiu a cento e cinquenta médicos uma cir­
cular sobre a ecologia das doenças locais, com informações sobre a sua
sazonalidade, o contributo da água contaminada, das ruas imundas, da
subnutrição, etc. Do Louvre saíram instruções para os produtores de
sidra da Normandia sobre a forma de evitarem a corrupção dos barris, e
para os camponeses de Sologne para deixarem de comer a farinha de
centeio que lhes provocava ergotismo ( com os efeitos secundários de
gangrena e pés em decomposiçã o ) . Foram organizadas digressões com
palestras para a formidável Madame du Coudray, com o seu útero mecâ­
nico capaz de se contrair a ritmos diferentes, para oferecer cursos básicos
de obstetrícia às parteiras da província.7 A propaganda de Monsieur
Parmentier em prol da batata como a cultura milagrosa que salvaria a

' Grande parque e jardim botânico de Paris onde o conde de B uffon instalou um impor­
tante laboratório de química . ( N. do T. )
' O autor refere-se à reforma e uniformização parcial d a artilharia francesa levada a cabo
por Gribeauval, e aos mosquetes tipo "Charleville", de produção em série, que se tornaram
a principal arma da infantaria francesa. ( N. do T. )
' Madame Le Boursier d u Coudray era parteira e professora n a escola veterinária d e Lyon.
A máquina representava o corpo de uma mulher com um bebé que era colocado em diferentes
posições para ensinar às parteiras como deveriam agir. (N. do T. )
1 59

França da fomeª recebeu apoio oficial, ao ponto de a rainha substituir os


raminhos que usava habitualmente nos vestidos por flores da batata num
gesto deslocado de fervor público .
Onde quer que o governo se pôde ocupar do bem público, fê -lo. Depois
de quinze memorandos sobre o terrível problema dos desperdícios dos
matadouros, tentou mudar alguns dos talhantes do bairro de Saint­
-Jacques. Tentou limitar o despej o de imundícies abrindo grandes fossas
em Montfaucon, e em nome da saúde pública até incomodou o repouso
dos mortos ( cuj os vapores tóxicos se j ulgava envenenarem a atmosfera ) ,
exumando restos mortais das igrej as d e Paris e trasladando-os para o cemi­
tério recém- criado do Pere Lachaise . Na terra dos ( semi ) vivos, a tortura foi
abolida em 1 787, o projecto de Turgot para a emancipação dos protestan­
tes foi finalmente concretizado no mesmo ano, e a �omplicada variedade
de direitos alfandegários internos foi substituída por uma única taxa .
E isto não constitui uma lista exaustiva. A extraordinária explosão de
activismo oficial que cataloga pode ser lida - à maneira de Tocqueville -
como prova adicional do efeito de entorpecimento da intervenção buro­
crática mas muito do que foi realizado traduziu-se numa diferença men­
surável e frequentemente positiva nas vidas tocadas por uma governação
conscienciosa. Até os vilipendiados intendants eram capazes de modificar
duradouramente para o bem as condições nas suas ºregiões. À sua chegada,
Raymond de Saint-Sauveur encontrou a parte sudoeste do Rossilhão, em
especial a capital, Perpignan, num estado de penúria. A cidade possuía
reservas alimentares para apenas um mês; a estrada para a Catalunha, de
onde se poderiam importar alimentos, estava arruinada, e as chuvas tor­
renciais tinham destruído a maioria das poucas pontes utilizáveis da pro­
víncia. Em poucas semanas, recorrendo a grupos de trabalhadores ( alguns
contratados em Barcelona ) , Saint-Sauveur reabriu os desfiladeiros. Antes
do fim do ano, reparou as pontes e construiu diques de cascalho, toscos
mas eficazes contra as inundações das áreas baixas . Durante os três anos
seguintes, abriu poços para abastecer Perpignan de água pura, disponível
a partir de sete fontanários públicos ou (pagando) canalizada até às resi­
dências dos cidadãos abastados . Foi criado um corpo de bombeiros perma­
nente ( com doze homens pagos e a tempo inteiro ) , e um sistema para
limpar as ruas nos meses estivais . Foram ainda criados banhos públicos,
iluminação para as ruas, um corpo de guardas-nocturnos, um atelier de cha­
rité para instruir as crianças pobres nas "artes úteis" ( cardagem, tecelagem
e fiação de lã ) . Saint- Sauveur, que tinha nove filhos, ficou espantado com
a ignorância dos princípios básicos da obstetrícia de que se apercebeu

' E assim aconteceu efectivamente no Norte da França, em 1 78 5 , um ano de más colhei­


tas. Foi assim que a sociedade francesa começou a aceitar a batata, j ulgada digna apenas para
os porcos e cuj o consumo por seres humanos era proibido por lei. ( N. do T. )
Simon Schama 1 CIDADÃOS

durante as suas duas longas visitas de inspecção ao interior montanhoso,


montado numa mula, e instituiu um curso de obstetrícia em Perpignan,
ao qual cada aldeia podia enviar gratuitamente uma mulher. Foi fundado
nas montanhas um estabelecimento termal de água mineral para terapia
dos doentes abastados e pobres.
O intendant nutria sonhos maiores de converter o Rossilhão no centro
de uma próspera economia regional que se estenderia do Languedoc à
Catalunha, sem limitações de E stado ou de língua. Fundaram-se socie ­
dades agrícolas com subsídios régios e introduziram -se novas raças de
ovelhas em quintas-modelo. Ao mesmo tempo, S aint- Sauveur afrouxou
a ferocidade da guerra contra os contrabandistas de sal, culpando publi­
camente as taxas elevadas e compreendendo que a brutalidade policial
seria contrariada pela brutalidade dos bandos de contrabandistas. Muitos
dos planos mais ambiciosos de Saint- Sauveur ficaram por concretizar,
mas ele conseguiu financiar o seu programa de obras públicas com a
aj uda de subsídios governamentais e sem impor novos impostos à popu­
lação local. Mas nada disto o tornou necessariamente amado . À seme­
lhança de muitos outros intendants eficientes e honestos, teve de fugir do
seu posto em 1 7 90, perseguido por uma turba revolucionária. No
entanto, as suas realizações foram substanciais e à sua escala dizem
muito sobre a energia e o pragmatismo que foram as marcas da gover­
nação em finais do Antigo Regime .
No centro simbólico de todas estas iniciativas públicas estava Luís XVI.
Não obstante o seu vício da caça, as suas reticências inarticuladas no con­
selho e a sua tolerância cada vez maior para com os excessos da mulher e
dos irmãos, existem bastantes provas da sua participação empenhada e
activa em muitos destes assuntos públicos. Por exemplo, no dia 2 6 de
Dezembro de 1 786, assistiu a um evento que lhe deu mais satisfação do
que a deslocação a Cherburgo. Numa escola especial para crianças cegas -
a primeira do género no mundo -, dirigida por Valentin Haüy, o irmão
mais novo do grande mineralogista, o rei testemunhou os milagres do
Iluminismo, a benevolência e a perícia . Vinte alunos, todos eles cegos de
nascença ou desde tenra idade, leram em voz alta de livros especialmente
impressos em relevo, identificaram lugares e características geográficas em
mapas, cantaram e tocaram instrumentos em sua honra . As crianças mais
velhas mostraram que sabiam tipografar, fiar algodão e tricotar meias.
Especialmente impressionante foi um garoto de onze anos, Le Sueur, que
fora o primeiro dos alunos de Haüy, encontrado numa estado patético, a
pedir para si próprio e para os seus sete irmãos e irmãs, e que agora era o
prodígio da turma, quase um professor. Alguns meses antes, a Academia
de Música realizara o primeiro de uma série de concertos de beneficência
em prol desta "Escola Filantrópica " e o rei comovera-se e impressionara ­
-se ao ponto de lhe atribuir fundos especiais e bolsas. Uma instituição
161

similar, dirigida pelo abade L'Epée, que cuidava d e surdos-mudos, inven­


tou o primeiro sistema de leitura dos lábios, o que permitia aos seus tute ­
lados levarem uma vida normal e manifestamente feliz.
O Terror destruiria estas instituições, classificando -as de relíquias infa ­
mes da caridade absolutista e da superstição religiosa, e devolveria as
crianças à boa vontade dos cidadãos ( por outras palavras, à mendicidade
e à perseguição) . No entanto, na década de 80, século XVIII, o conheci­
mento público de que os cegos e os surdos, tradicionalmente tratados
como párias amaldiçoados, podiam revelar-se homens e mulheres felizes
e trabalhadores era um sinal inequívoco de que se aproximavam tempos
melhores .
Até às colheitas calamitosas e à recessão industrial d e finais d e década
de 80, houve alguns motivos de optimismo em relação à economia fran­
cesa. Neste domínio, apesar de uma produção agrícola obstinadamente
atrasada, o padrão também foi de crescimento e modernização, até ser
desastrosamente interrompido pela Revolução. As melhores estimativas
deste crescimento colocam-no em cerca de 1 , 9 % ao ano . Somente
durante o Império, quando o poderio militar selou a França da concor­
rência britânica e expandiu as fontes de matérias-primas e os mercados
cativos na " Grande França", conseguiu a indústria crescer a um ritmo
comparável ao do Antigo Regime.
Em 1 780, as mercadorias, o correio e as pessoas deslocavam-se por
toda a França a um ritmo, num número e com uma frequência dramati­
camente diferentes de vinte anos antes . Numa rápida e fiável ( ainda que
saltitante) diligência demorava- se oito dias de Paris a Toulouse em vez dos
quinze em 1 7 60, cinco a B ordéus em vez de catorze, três a Nancy em vez
de uma semana e apenas um dia a Amiens em vez de dois. A diligência
para Rouen partia diariamente de Paris ao meio - dia e chegava ao destino
às nove da manhã . O negócio fora concessionado a uma empresa privada,
mas o E stado mantinha o controlo dos preços do transporte de passagei­
ros e mercadorias. Por exemplo, um lugar interior na diligência de Lyon
custava 1 1 4 francos com comida e dormida; um lugar no tejadilho custava
apenas 50 francos ( sem comida ) . Cada passageiro podia levar gratuita­
mente consigo um saco desde que não excedesse 5 kg de peso.
Melhores comunicações - através de uma rede de estradas e de canais
- significaram a expansão dos mercados. A França ainda estava muito
longe do tipo de mercado nacionalmente unificado praticamente imple ­
mentado na Grã - Bretanha, mas estava a emergir do seu provincianismo
extremo. Em finais do reinado de Luís XVI, 3 0 % dos produtos agrícolas
(a mais lenta de todas as mercadorias a chegar à economia de mercado )
eram vendidos e consumidos fora dos seus pontos de produção. Mesmo
que isto se limitasse a carregamentos de ovos, leite e legumes levados de
uma quinta ou aldeia para uma vila, representou uma mudança de
Simon Schama / CIDADÃOS

enorme significado na economia rural e a transformação do camponês


que cultivava para sua subsistência no lavrador que cultivava para ganhar
dinheiro . A eliminação progressiva - e depois muito súbita - das barreiras
alfandegárias internas também terá feito uma grande diferença no comér­
cio a longa distância, especialmente se tivermos em conta que uma carga
de madeira que se deslocava da Lorena para o Mediterrâneo era obrigada
a parar em vinte e um postos alfandegários para pagar trinta e quatro
taxas diferentes.
Nas vésperas da Revolução, também o comércio internacional francês
estava no auge - valeria cerca de mil milhões de libras -, principalmente
concentrado nos prósperos portos da economia do Atlântico . À conta do
comércio com as Caraíbas francesas, B ordéus sofreu uma expansão demo­
gráfica espectacular, de 60 000 habitantes em 1 760 para 1 1 O 000 em
1 78 8 . Da enorme quantidade e valor das mercadorias desembarcadas no
seu porto, 8 7 % do açúcar, 9 5 % do café e 7 6 % do índigo eram imediata­
mente reexportados com lucros substanciais . Outros portos, tais como
Nantes, na B retanha, participavam neste próspero comércio - de bens de
consumo e também de escravos -, e toda uma rede de portos beneficiava
com os importantes negócios e serviços auxiliares : fabrico de mastros e
velas, reparações, armamentos navais, etc. No Mediterrâneo, Marselha
encontrava -se numa posição quase igualmente invej ável, comerciando
principalmente com o Levante mas também exportando produtos manu ­
facturados pelas prósperas indústrias do Languedoc.
Até a indústria francesa, eternamente à sombra da expansão especta ­
cular que estava a ter lugar na Grã-Bretanha, se encontrava em cresci­
mento no fim do Antigo Regime . A França era incontestavelmente a
potência industrial mais importante do continente europeu, e embora a
sua produção em termos absolutos se situasse muito aquém da britânica,
a sua taxa de crescimento em alguns sectores era superior. Por exemplo,
na manufactura de derivados do algodão e na mineração de carvão, a pro­
dução estava a crescer a 3 , 8 % ao ano. Só nas grandes minas de Anzin, a
produção aumentou 700 % durante a segunda metade do século, e nos
Vosges as manufacturas de algodão aumentaram 1 800 % . Entre 1 72 0 e
1 790, as indústrias metalúrgicas francesas cresceram na ordem dos 5 0 0 % ,
enquanto n a Grã - Bretanha o crescimento foi d e 1 00 % . Existem outros
dados que colocam a comparação em perspectiva . Os historiadores esti­
mam, que em 1 790, 2 5 % do produto interno bruto britânico era indus­
trial, contra 20% no caso francês ( e quase metade tinha origem nos
têxteis ) . Seria inútil afirmar que a França estava a passar pela industriali­
zação explosiva que se verificava na Grã-Bretanha, mas é inegável que na
véspera da Revolução a traj ectória era nitidamente ascendente .
Não se trata apenas de uma questão de números, ainda que estes sej am
efectivamente impressionantes. A mentalidade empresarial e a sofistica-
163

ção técnica q u e se d ã o frequentemente p o r ausentes n a França deste


período estavam bem presentes. Por exemplo, por volta de 1 760, a
Academia das C iências encomendou uma série espectacular de volumes
constituindo um Dicionário das Artes e Ofícios. Usando abundantemente
gravuras de grande precisão técnica e beleza, estes volumes eram um guia
não só das técnicas industriais tradicionais como também da maquinaria
mais recente . O dicionário começou com volumes sobre as artes de luxo
- porcelana, vidro e mobiliário - mas expandiu -se rapidamente para
incluir muito mais informação sobre os processos industriais relacionados
com o ferro, o carvão, o tingimento dos têxteis, a produção mecânica de
seda e a refinação de açúcar. Por exemplo, os volumes sobre a produção
mecânica de algodão foram escritos por Roland de La Platiere, inspector­
geral das manufacturas da província da Picardia.
A partir de 1 780, pareciam surgir quase todos os meses empresas
novas envolvendo a mecanização, ligando o capital à tecnologia . Em
alguns casos, conduziram o investimento para negócios antigos estagna­
dos por falta de capital. Em 1 786, com o encoraj amento da E scola Real de
Minas, fundada em 1 78 3 , foi criada uma companhia fortemente capitali­
zada para reabrir as minas de cobre de Bigorre, nos Pirenéus franceses. Os
sócios que assinaram o contrato eram uma mistura típica de aristocratas
do mundo da alta finança ( Saint-James e Pache de Montguyon ) , parla ­
mentares virados para o negócio ( François -Jean Rumel ) e bancos como
Thélusson et Cie. Outro êxito espectacular foi o sindicato formado em
torno dos irmãos Péreire para operar uma grande estação de bombagem
mecânica em Chaillot, destinada a garantir a Paris, pela primeira vez, um
abastecimento de água decente .
É frequentemente dito, até pelos historiadores mais optimistas deste
período, que existiam na realidade duas Franças. Uma era a França em
modernização e expansão da periferia da bacia de Paris, com um prós­
pero comércio atlântico e mediterrânico, com têxteis no Nordeste e, em
especial, em C hampagne e nas regiões orientais, carvão no Pas-de­
- C alais, fornos e fundições metalúrgicos na Lorena. Era uma França de
capital e mão -de-obra concentrados, tecnologias inovadoras ( mesmo
que no princípio algumas tenham sido roubadas aos britânico s ) , investi­
mentos arriscados e boas comunicações, uma França orientada para o
mercado. Mas esta França coexistia com a França do centro, sonolenta e
letárgica, presa a tradições locais e antigas de oferta e procura, impávida
perante quaisquer impulsos demográficos poderosos, onde as cidades,
dominadas pela toga, pelo clero e pelo governo, presidiam a um interior
rural que compreendia, na sua maioria, camponeses que praticavam
uma agricultura de subsistência . Por cada Mulhouse, Hayange ou
B ordéus existiam muitos lugares como Tours, onde, em 1 7 8 3 , o intendant
se queixava de que os habitantes "preferiam a indolência na qual foram
Simon Schama 1 CIDADÃOS

educados às preocupações e ao trabalho duro necessários aos grandes


empreendimentos e aos investimentos ousados " .
Este contraste tem muito d e verdadeiro, mas disfarça alguns processos
importantes que começavam a espicaçar a França dormente e que tornaram
a expansão das empresas industriais e comerciais muito mais uniforme.
O mais significativo foi a gigantesca proliferação das indústrias caseiras
rurais nos arredores de centros urbanos mais antigos. Libertos das restri­
ções impostas pelas guildas, os empresários entregavam cada vez mais
matéria -prima aos tecelães e fiadores das aldeias ( fornecendo-lhes por
vezes o equipamento básico ) , pré-negociando a entrega do produto aca­
bado . Por conseguinte, por detrás da economia aparentemente tórpida das
pequenas e médias cidades, verificou-se a comercialização generalizada do
campo. Julgou-se durante algum tempo que este fenómeno foi um factor
de retardamento do processo de industrialização mas a verdade é que
onde se verificou ( em grande parte da Renânia, por exemplo, bem como
na França ) pode claramente ser visto como complementar e não como
inimigo da modernização das manufacturas . Alguns processos - entre os
quais a tecelagem - permaneceram indústrias caseiras mas a fiação con­
centrou -se rapidamente em fábricas mecanizadas . Foi o que aconteceu na
Flandres francesa, por exemplo, onde as perdas de Lille foram ganhos
para Roubaix e Tourcoing.
Em algumas regiões, esta parceria industrial semimanufactura e semi­
doméstica abanou a economia local. No caso de Grenoble, sede de Par­
lamento, mais de seis mil homens e mulheres da cidade e arredores
trabalhavam para cerca de sessenta mestres luveiros, cortando, curtindo e
perfumando as peles e cosendo e bordando o produto acabado . Algumas
das oficinas maiores aloj avam vinte trabalhadores mas era muito mais
comum um padrão de quatro ou cinco artesãos partilhando um espaço
doméstico .
Outras cidades de média dimensão, tais como Rouen, na Normandia,
que viram o seu comércio tradicional - os têxteis - decair no princípio do
século tiveram uma evolução complicada . Alguns capitalistas revitaliza­
ram a produção importando equipamento fabril britânico e fundando fia­
ções modernas, mas outros continuaram a usar mão-de-obra rural.
A cidade diversificou a sua produção, exportando muito mais para Paris e
para o resto da Normandia, produzindo bens para os artesãos rurais locais
que os podiam adquirir e oferecendo um mercado para os produtos
comerciais. Rouen teria a triste fama de cidade mais malcheirosa e insa­
lubre da França, mas era uma das mais poderosas em termos económicos.
No fim do Antigo Regime, produzia (além de produtos manufacturados de
algodão ) meias de lã, chapéus, porcelanas, papel, açúcar refinado, vidros
e sabão, linhos branqueados com o novo processo à base de cloro inven­
tado por Berthollet, produtos de cobre e ácido sulfúrico.
165

Era o espectáculo destas colmeiazinhas humanas, com a sua azáfama


comercial, que alegrava o coração dos optimistas como o marquês de
C ondorcet. Apesar de impaciente para ver o império da ciência e da razão
varrer os últimos impedimentos à sua ascendência, C ondorcet acreditava
que não havia motivos para que tal não acontecesse numa monarquia
reformista tão iluminada como a de Luís XVI.

II VIS Õ E S DO FUTURO

O capitalismo benevolente, na sua versão Antigo Regime, nunca


expressou a sua alegria evolutiva de forma tão excêntrica como no extraor­
dinário Testament de M. Fortuné Ricard. Publicado como suplemento à popu­
lar edição francesa do Poor Richard 's Almanack, de Benj amin Franklin, o
Testament foi escrito por Charles Mathon de La Cour, homem de letras e crí­
tico de arte lionês . Monsieur Ricard recorda o avô, que o ensinou a ler e o
instruiu na aritmética e nos princípios do j uro composto quando ele era
um garoto. '"Meu filho', disse -me ele, tirando 24 libras francesas do bolso,
'lembra-te de que com parcimónia e cálculos cuidadosos nada é impossível
para um homem. Se investires e não gastares, à hora da morte terás o sufi­
ciente para fazeres boas acções para descanso da tua alma e da minha ' . "
C om setenta e u m anos d e idade, Ricard, a partir d a soma original, acu ­
mulara 5 00 libras. O montante não era propriamente uma fortuna, mas
ele tinha grandes planos. Dividiu -a em cinco somas de 1 00 libras france ­
sas cada, com a intenção de deixar a primeira para cem anos, a segunda
para duzentos e assim por diante; cada uma geraria somas com as quais
poderiam ser financiados programas cada vez mais ambiciosos. A pri­
meira, decorrido um século, teria gerado apenas 1 3 1 00 libras francesas,
das quais seria atribuído um prémio ao melhor ensaio teológico que pro ­
vasse a compatibilidade do comércio com a religião . Cem anos depois, a
segunda soma ( 1 , 7 milhões de libras francesas ) alargaria este programa
para oitenta prémios anuais que premiariam as melhores obras nos domí­
nios da ciência, matemática, literatura e agricultura ( " comprovada com as
melhores colheitas" ) , e uma categoria especial para "acções virtuosas " .
A terceira soma ( trezentos anos depois ) seria superior a 2 2 6 milhões de
libras francesas, o suficiente para estabelecer em França quinhentos "fun -
dos patrióticos" para combate à pobreza e investimento na indústria e na
agricultura, administrados por "cidadãos da maior honestidade e zelo " .
A verba que restasse constituiria a dotação d e doze museus e m Paris e nas
principais cidades de França, que alojariam cada um quarenta grandes
intelectuais em todos os campos. Residindo em conforto mas não em opu ­
lência, teriam ao seu dispor uma sala de concertos, um teatro, laborató ­
rios de química e física, lojas de história natural, bibliotecas e parques e
Simon Schama 1 CIDADÃOS

zoológicos para a realização de experiências. As bibliotecas e colecções de


arte estariam abertas ao público todos os dias, gratuitamente, e os mem­
bros dos musées dariam palestras públicas no âmbito das respectivas espe­
cialidades. Apenas seriam admitidos os membros que "fizessem prova não
de nobreza mas de moralidade", e teriam de j urar "preferir a virtude, a
verdade e a justiça a tudo o resto " .
Tudo isto é arrebatador mas não s e compara com o que aconteceria nos
quarto e quinto séculos após o testamento de Ricard. A quarta soma
( 3 0 000 milhões de libras francesas) bastaria, segundo os seus cálculos,
para construir "nos locais mais aprazíveis que fosse possível encontrar em
França " cem novas cidades, cada uma de quarenta mil habitantes, pla­
neadas de acordo com linhas ideais de beleza, salubridade e comunidade.
C om a verba final ( 3, 9 biliões de libras francesas ) , seria possível resolver
praticamente os últimos problemas do mundo . Seis mil milhões bastariam
para pagar a dívida pública francesa (mesmo ao ritmo a que os B ombons
gastavam ) ; num gesto de magnanimidade e para dar início a uma entente
cordiale, 1 2 mil milhões fariam o mesmo pelos britânicos . O restante iria
para um fundo geral para ser distribuído por todas as potências do mundo
na condição de que nunca entrassem em guerra entre si. Se tal acontecesse, o
agressor perderia o seu maná, que reverteria para a vítima . E a partir de
uma soma especial posta de parte para a França seria resolvido todo o tipo
de problemas intrincados: os cargos venais seriam comprados todos de
uma vez; o E stado estabeleceria um sistema de parteiras e párocos assala ­
riados; meio milhão de lotes de terra seriam limpos e entregues a campo­
neses necessitados de terra; o país seria coberto por uma rede de escolas e
de "Hospícios dos Anjos" para meninas de sete anos, onde seriam educa­
das para uma vida de domesticidade útil e providas de um dote aquando
da formatura, aos dezoito anos de idade; finalmente, as cidades seriam
beneficiadas com parques, praças e fontes, e eliminar-se-iam as fontes de
contágio - os pântanos seriam drenados, as fossas seriam secas e os cemi­
térios transferidos para vales remotos e aprazíveis.
Esta abrangente utopia - um híbrido das visões da república perfeita de
Rousseau e C ondorcet - não decorreria de uma revolução nem da vio ­
lência mas do funcionamento simples e gradual do j uro composto. Era a
grande fantasia de uma França modernizada sem dor, transformada pela
sabedoria do colectivo e pelo capital acumulado em benfeitora não só de
si própria, mas também do mundo inteiro . A visão futurista de Mathon de
La Cour abraçava a modernidade sem grandes apreensões . D e facto, o seu
castelo nas nuvens seria construído sobre aquilo que ele via como as rea ­
lizações constantes e potencialmente ilimitadas da governação esclarecida.
A sua reveladora estipulação de que os membros da elite intelectual
devessem fazer prova "não de nobreza mas de moralidade" não era atacar
os tempos mas sim acompanhá-los.
167

Para outros, contudo, a modernidade era cada v e z mais considerada


uma maldição e não uma bênção. As mesmas concentrações de capital e
tecnologia, de mão-de-obra urbana e comércio rural que deliciavam os
"modernistas", como C ondorcet, provocavam noutros comentadores sen­
timentos de pessimismo e agouro . Acima de tudo, a modernidade encheu
muitos deles da j usta indignação que os transformou em revolucionários.
Muitos destes pessimistas eram optimistas arrependidos. Simon
Linguet - que encontramos por todo o lado como voz da alienação pré­
-revolucionária - publicou o seu primeiro memorando sobre questões
económicas em 1 764, no qual propôs a dragagem do Somme e a abertura
de um novo canal através da Picardia para ligar a cidade de Amiens ao
mar. Linguet sabia que estas propostas enfrentariam a oposição dos
senhores dos têxteis de Abbeville, uma cidade a poucas milhas da foz do
rio . Mas a sua visão contemplava um tipo de investimento que pudesse
reconciliar os dois interesses urbanos e em lugar da desconfiança mútua
criar uma energia económica comum. O seu modelo era a Holanda, onde,
supunha ele (erradamente ) , a comunidade dava o seu apoio a este tipo de
proj ectos e ignorava as futilidades vaidosas como os edifícios monumen­
tais e os palacetes patrícios urbanos. Apesar de defendido com eloquência,
o proj ecto estava enfermo de um pessimismo realista em relação à possi­
bilidade de um acordo ( na verdade, foi ressuscitado por volta de 1 780,
numa escala muito mais vasta, e teria provavelmente avançado não fosse
a Revolução ) .
Apesar de desiludido, o Linguet de 1 7 60 abraçava pelo menos a cul­
tura da modernidade comercial. Dez anos mais tarde, mudou de ideias e,
durante o governo de Turgot, lançou um ataque tão devastador contra a
política do comércio livre de cereais que o governo ordenou a supressão
do texto . Nas suas invectivas contra a obsessão dos fisiocratas com os
benefícios a longo prazo e o seu ignorar das necessidades do presente,
Linguet pintou um retrato negro dos horrores da sociedade industrial .
Regressando a Abbeville, com os patrões a tiranizarem a mão -de-obra e
recrutando-a ou descartando -a ao sabor dos ciclos comerciais, Linguet
virou do avesso a teoria fisiocrática/ condorcetiana de que o capital e a
tecnologia eram sinónimos de prosperidade e felicidade. Tomando todas
as cidades, "podeis estar certos de que naquela onde existirem mais seres
humanos a morrer de fome é aquela onde há mais gente a trabalhar com
a lançadeira. Nenhuma cidade de França possui mais teares do que Lyon,
o que faz de Lyon a cidade francesa com o maior número de pobres sem
pão " . Num lugar tão impiedoso podia haver um hospital novinho em
folha, mas nunca seria suficientemente grande para acolher "todos os
que trabalharam na seda durante cinquenta anos . . . que se arrastam para
lá a gemer para morrerem deitados em esteiras de palha" . Na sua óptica,
o capitalismo industrial prometia o Céu e dava o Inferno. Fazia do
Simon Schama 1 CIDADÃOS

empresário um novo amo e transformava os seus peões urbanos em tro ­


gloditas. Estavam condenados a viver em "habitáculos" ,

tocas como as q u e constroem os castores; buracos negros onde se escon­


dem manadas de animais laboriosos, respirando apenas ar fétido, envene­
nando -se uns aos outros com a contaminação que é inevitável na sua
aglomeração, inalando a cada instante as sementes da morte enquanto
labutam sem descanso para ganharem o suficiente para prolongarem as
suas vidas miseráveis .

A retórica de Linguet era apocalíptica e as suas soluções peculiares mas


com algum sentido. Por exemplo, a sua resposta à perene crise do pão era
desmamar os Franceses da sua obsessão com os cereais e orientá- los para
uma dieta de batatas, peixe, milho, legumes e arroz. Até se dispôs a con­
vencê -los de que as castanhas ( consideradas piores do que a fome ) , devi­
damente confeccionadas, podiam ser saborosas e nutritivas .
Existiam outros cuj o fogo revolucionário foi ateado pela sua rej eição
do comercialismo e da cidade moderna . Paradoxalmente, o seu ódio ao
Antigo Regime não tinha como alvo o que ele preservava, mas o que
tinha destruído. Idealizavam todo um desfile de tipos humanos imaginá­
rios e exemplares : o artesão independente (por exemplo, o reloj oeiro, que
muitos deles tinham como pai ) , arruinado pelas máquinas e transformado
num amolador de facas ou num limpa-chaminés nómada, degradando-se
como um adeleiro na selva urbana; o lavrador arruinado pela ganância
dos seigneurs que o depenavam para pagaram as suas grandiosas residên­
cias urbanas ou que, em nome de direitos de propriedade absolutos, ane ­
xavam os campos comuns nos quais ele apascentava as vacas e as cabras
ou lhe negavam o acesso aos bosques onde obtinha o combustível. E stas
polémicas eram filhas de Rousseau, mas em 1 789 atrairiam um grande
número de pessoas que tinham efectivamente sido prejudicadas dos
modos descritos . Para estas pessoas, a investida de uma monarquia
modernizadora agravara a sua condição em vez de a aliviar. Não preten­
diam iluminismo social nem obras públicas, queriam apenas j ustiça .
Nenhuma obra exprimiu melhor este sentimento de raiva contra um
mundo dividido em luxo e miséria do que os doze volumes do Tableau de
Paris, de Mercier. À semelhança de Linguet, Mercier era um optimista
arrependido, embora o seu optimismo tivesse sempre sido menor do que
o seu cepticismo . Em L'An 2440, a França fora transformada num paraíso
de virtude rousseauniana, erguendo -se sobre as ruínas de Versalhes e os
escombros da Bastilha e governada por um monarca modesto e conscien­
cioso. Os cidadãos meritórios usavam chapéus com os seus nomes, mas a
nobreza hereditária desaparecera. Tudo aquilo parecia ter acontecido por
magia política . " Bastou uma voz poderosa para despertar a multidão do
169

sono . . . A liberdade e a felicidade pertencem àqueles que se atrevem a


tomá-las", ouviu dizer o visitante do futuro . Mas não parecia ter aconte ­
cido a apocalíptica convulsão de violência que Mercier via inevitavel­
mente para breve .
Fascinado pela geologia, que sugeria a regularidade das grandes agita ­
ções na história primordial, e pela arqueologia, que implicava a mesma
coisa para as antigas civilizações, Mercier tornou-se uma espécie de espe ­
cialista em catástrofes. Do seu exílio na Suíça, observou uma França -
especialmente uma Paris - correndo para o abismo pelas vias abertas pela
ciência e pelo comércio. Via tudo isto como uma catarse terrível mas
necessária para limpar a metrópole dos excessos de riqueza e de pobreza .
"Irá a guerra, a peste, a fome, um terramoto ou um dilúvio, um incêndio
ou uma revolução política, aniquilar esta soberba cidade? Talvez uma
combinação destas causas provoque uma destruição colossal. "
Para Mercier, Paris era a o mesmo tempo u m lugar putrefacto e puru ­
lento de imundície, sangue, cosméticos e morte, e uma espécie de orga­
nismo omnívoro imparável. Suava com um carnudo prazer animal e
enterrava -se debaixo de uma mortalha doentia de miséria e destituição.
Era a feira do Palais-Royal de que ele tanto go. s tava e o horror das enor­
mes valas comuns abertas em Clamart.9 Eram os desfiles e as farsas dos
teatros de variedades e o espectáculo, em Bicêtre, dos condenados esma ­
gados na roda com barras de ferro; prostitutas em carruagens douradas;
gulosos tão cheios que já nem tinham paladar; fedor a desprender-se dos
esgotos e das sarj etas a céu aberto; suicidas atirando -se das pontes do
Sena.
Louis - Sébastien Mercier, o apóstolo de Rousseau descrevendo o
inferno urbano à vista do Monte B ranco, declarou guerra a este vasto
império metropolitano de dinheiro e morte . A sua imaginação romântica,
t'Omada por uma visão do sublime e do terrível, conj urou uma gigantesca
convulsão cósmica. Num segundo "terramoto de Lisboa", a terra tremeria
e abrir- se-ia, e "em dois minutos seria desfeita a obra de séculos . Os palá­
cios e as casas seriam destruídos, as igrej as desmoronar-se-iam, com as
suas abobadas despedaçadas . . . ". Seria o castigo da j ustiça para o materia­
lismo, e só desse j uízo final poderia nascer uma verdadeira república de
cidadãos.

' Cemitério parisiense. (N. do T.)


PARTE DOIS

Expectativas
6

A Política do Corpo

1 FURORE S UTERINOS E OB STRUÇ Õ E S DINÁSTICAS

O riviere, um colar bastante comprido, foi, durante uns tempos, popu ­


lar nos anos 80 do século XVIII. Tal como o nome indica, depois de posto,
caía generosamente sobre o vestido, até à cintura. Numa altura em que a
moda estava a tornar- se mais simples, o riviere era um artigo espampa­
nante, muito associado às actrizes do Palais-Royal, que não se envergo­
nhavam de exibir a generosidade dos seus benfeitores. Certa noite, no
teatro, dois j ovens amigos viram um riviere que corria sobre o decote de
uma conhecida cortesã. "Olha para aquilo", disse um deles, "um riviere a
correr muito para baixo . " Retorquiu o seu companheiro : "É porque está a
regressar à nascente . "
A s piadas sobre sexo e j óias não eram nenhuma novidade, mas, em
1 787, os leitores do boateiro Tableau de Paris, que publicou a graçola,
teriam reconhecido mais do que um duplo sentido obsceno . Há dois anos
que a reputação da rainha estava atolada num escândalo centrado em
torno de um colar de diamantes com 647 pedras e 2800 quilates. Fora
criado a pensar em Madame Du B arry pelos joalheiros da corte, Bõhmer
e Bassenge, mas Luís XV falecera antes de o conseguirem entregar. Seria
ruinoso ficarem com um artigo que valia 1 , 6 milhões de libras francesas
no inventário, e Maria Antonieta parecia uma potencial cliente . Já tinha
adquirido à mesma firma um par de brincos "candelabro", um pulveriza­
dor e uma bracelete. Quando se lhe acabava o dinheiro, ia ter com o rei,
que geralmente lhe fazia as vontades. Sendo j ovem, Maria Antonieta
tinha uma fraqueza por diamantes que foi referida com desaprovação pelo
embaixador austríaco e que lhe valeu urna palmada na rnão da sua impe­
rial mãe. "Nada melhor para degradar uma rainha", escreveu Maria
Teresa, "do que esse tipo de extravagância estouvada em tempos difíceis . "
N a década d e 80, século XVIII, Maria Antonieta parecia ter levado a lição
a sério; tornara-se mais conscienciosa e evitava os luxos vistosos. Sej a como
for, declinou repetidamente adquirir o colar. Em desespero de causa (e tal­
vez ciente do fraquinho de Maria Antonieta pelos lagrimosos drames bour­
geois), o joalheiro Bõhmer fizera urna cena na corte, soluçando, gritando,
S imon Schama 1 CIDADÃOS

desmaiando e ameaçando pôr fim à vida se a rainha não lhe tirasse o colar
das mãos, mas de nada lhe serviu a estupenda representação. Mesmo que
a rainha se sentisse inclinada a ignorar os apelos oficiais à poupança,
aquela monstruosidade não era do seu gosto . Era demasiado grande, o
género de vulgaridade rasca que ela associava ao círculo da Du Barry.
Aj udando o ourives a levantar-se, a rainha aconselhou-o a desfazer o
colar e a conseguir o que pudesse pelas pedras.
Este dinossauro da j oalharia rococó seria efectivamente reduzido em
tamanho, mas não pelo seu criador. De facto, a sua história pública mal
tinha começado, pois o colar tornou-se o prémio a conquistar numa
fraude tremendamente audaciosa . O Caso do C olar - assim ficou conhe­
cido - é frequentemente tratado como um escândalo secundário em rela­
ção ao "verdadeiro" drama de cofres vazios, camponeses famintos e
operários raivosos que anunciou o fim da monarquia francesa . As perso ­
nagens que desfilaram perante o público leitor francês à medida que a
bizarra trama foi evoluindo, no Verão de 1 78 5 , pareciam símbolos perfei­
tos de um regime carcomido pela corrupção: um cardeal aristocrático, dis ­
soluto e ingénuo; uma aventureira trapaceira que se dizia descendente dos
reis Valois; um charlatão napolitano que afirmava ter nascido na Arábia e
dominar as artes curativas do oculto; uma costureirinha de cabelos muito
louros recrutada no Palais -Royal para se fazer passar pela rainha; credores
impotentes a torcerem as mãos e a estalarem os nós dos dedos; j oalheiros
de Paris, de Picadilly e de B ond Street, em cima de cuj os balcões tinham
caído sacos de veludo preto cheios de diamantes do tamanho de ovos de
tordo. E no centro de tudo isto, inevitavelmente, Maria Antonieta. Foi a
sua transformação na opinião pública de vítima inocente em harpia vin­
gativa, de rainha de França em "puta austríaca" (putain autrichienne), que
afectou de forma incalculável a legitimidade da monarquia.
Nada disto era inevitável. Até o caso ser conhecido, a rainha tinha sido
uma observadora alheia às intrigas . C ontudo, as fobias histéricas nela cen­
tradas, ainda antes de a trama ser urdida, significavam que ela seria sus­
peita de colusão e de atrair terceiros para a desgraça ao serviço do seu
insaciável apetite de luxúria - um termo que combinava utilmente opu ­
lência exuberante e libido .
Em todos os aspectos, ainda que de forma involuntária, Maria
Antonieta provocou a sua própria queda. Foi precisamente a sua reputa ­
ção de ser dada a sentimentalismos de adolescente que levou Louis, car­
deal De Rohan, a acreditar que conseguiria recuperar a sua posição na
corte através dos favores da rainha em vez de abordar directamente o rei.
Demasiado ricos para o seu próprio bem, senhores de um longo cadastro
de conspirações e proprietários do palácio mais espectacular do Marais, 1 os

' Distrito parisiense. ( N. do T. )


175

De Rohan eram mantidos à distância pelos B ombons. Como embaixador,


a passagem de De Rohan por Viena fora um desastre, resultando na alie­
nação da mãe de Maria Antonieta, a imperatriz Maria Teresa.
A ânsia conhecida de De Rohan de ser aceite em Versalhes era exacta ­
mente a benesse que Jeanne de La Motte procurava. Nascida no seio de
uma abjecta e obscura penúria rural, dizia-se descendente de um dos últi­
mos reis Valois, Henrique II, e foi com esta linhagem esfarrapada que se
pôs a desmaiar no caminho de Madame Elisabeth, a irmã do rei, até que
lá conseguiu narrar a sua história de aristocracia espezinhada.
Impressionada pela sua aparente sinceridade, Madame Elisabeth instalou­
-a modestamente em Versalhes, e ela convenceu D e Rohan que era íntima
da rainha. Se o cardeal lhe fizesse um favor de vez em quando, havia
grandes possibilidades de vir um dia a merecer o sorriso radiante de Maria
Antonieta. De Rohan, qual borboleta atraída pela chama, começou a
entregar-lhe periodicamente somas de dinheiro supostamente destinadas
a actos de caridade patrocinados pela rainha, mas que, na realidade, iam
geralmente parar à modista de Jeanne.
O acto mais equívoco desta comédia de persuasão parece saído de
As Bodas de Fígaro. No dia 1 0 de Agosto de 1 784, uma chapeleira loura
(posteriormente descrita, com alguma injustiça, como uma vulgar pros­
tituta ) , Nicole Le Guay, foi vestida por Jeanne de La Motte com o vestido
de musselina branca preferido da rainha e conduzida ao B osque de
Vénus, nos j ardins de Versalhes, às onze horas da noite . Encontrou o car­
deal ansiosamente à sua espera e meteu -lhe na mão uma rosa. Disse a
única frase que tinha para dizer ( Rohan imaginaria mais tarde que ela
lhe dissera dua s ) - " Sabeis o que isto significa " - e regressou apressada­
mente à obscuridade de onde saíra. Com a cabeça a andar à roda de ale­
gria pelo tão aguardado sinal de favor, De Rohan transformou-se num
boneco nas mãos de Jeanne de La Motte, que foi recebendo quantias
cada vez maiores.
O exibicionismo comprava credibilidade e, em Novembro, com D e
Rohan ausente, Jeanne de L a Motte pediu a o s desesperados j oalheiros
que lhe levassem o colar. Quando D e Rohan regressou, ela convenceu -
-o de que a rainha desej ava adquiri-lo, pagando em quatro prestações,
um informação aparentemente corroborada por uma carta forj ada
incumbindo o cardeal de agir em seu nome . C om o seu passado de
embaixador, De Rohan devia ter reparado que a carta estava assinada de
forma incorrecta - "Maria Antonieta de França "' - mas a atenção nunca
fora o seu forte . No dia 29 de Janeiro de 1 78 5 , o colar foi levado ao
Palácio do Cardeal e entregue quase de imediato ao suposto correio da
rainha ( D e Réteaux, o amante de Jeanne ) . E ste separou-o e iniciou o

2 D everia estar assinada apenas com os nomes próprios, "Maria Antonieta". ( N. do T. )


S imon Schama 1 CIDADÃOS

arriscado processo de venda das pedras em Paris. Quando começaram a


surgir suspeitas, o cúmplice de Jeanne levou o colar para Londres, onde
vendeu as pedras, em parte por dinheiro, em parte por artigos que incluí­
ram alfinetes de peito de rubis, caixas de rapé lacadas e uma pinça para
espargos de prata .
Surpreendentemente, Jeanne deixou que o sucesso lhe subisse à
cabeça . Tornou-se imprudente . Depois de ter finalmente conseguido acu­
mular bens ao nível das suas pretensões, começou a afectar o título de
"Baronesa de La Motte de Valois" e adquiriu uma grande propriedade em
Bar-sur-l'Aube, para onde seguiram, na Primavera de 1 78 5 , nada menos
de quarenta e duas carroças a transbordar de um espólio elegante - mobi­
liário Adam, obras de arte, tapeçarias d' Aubusson. Entretanto, o cardeal
ia esperando que a rainha exibisse a sua nova bugiganga e lhe desse um
sinal - qualquer sinal - de favor. A Festa da C andelária (para a qual a rai­
nha, na carta, dissera que queria usar o colar) veio e foi -se. Passaram-se
semanas e meses. Pior ainda, não tinha aparecido nenhum dinheiro com
o qual De Rohan deveria pagar a primeira prestação de 400 000 libras, que
vencia no dia 1 de Agosto. Bõhmer, o joalheiro histriónico, permanecia na
mais santa ignorância . No dia 1 2 de Julho, meteu um bilhete na mão da
rainha que mencionava "os diamantes mais belos do mundo adornando a
maior e melhor das rainhas". Maria Antonieta supôs que ele não estava
outra vez bom da cabeça e queimou o bilhete.
Na véspera do vencimento da primeira prestação, Jeanne informou De
Rohan que só haveria dinheiro em Outubro . Ele tentou acalmar os j oa­
lheiros, que estavam a ser pressionados pelos credores. Resignando -se
bizarramente a revelar a trama, Jeanne de La Motte informou directa­
mente os joalheiros que tinham sido enganados com uma carta forjada.
No dia 5 de Agosto, eles abordaram Madame Campan, a dama de compa­
nhia da rainha, e a horrível verdade depressa veio ao de cima. No dia 1 0,
De Rohan foi convocado à presença do rei. Admitiu ter sido ludibriado por
uma mulher que se fizera passar pela rainha e implorou ao rei que aba­
fasse o escândalo em nome da sua família . Mas Luís XVI - compreensi­
velmente - estava lívido de raiva e mandou prender o cardeal na B astilha.
De Rohan seria coloridamente retratado pelo seu advogado, Target,
definhando "a ferros" na Bastilha, mas o cardeal foi alojado num confor­
tável apartamento no exterior das torres, onde passou nove meses a rece ­
ber um sem fim de visitantes distintos. Os convidados degustavam ostras
e champanhe e o cardeal tinha ao seu dispor uma selecção do que de
melhor havia na sua biblioteca e todo um séquito de serviçais para o aj u­
darem a suportar as agruras da prisão.
Mas a palavra Bastilha (especialmente depois do êxito fenomenal das
Memórias de Linguet, que descreviam os seus tormentos) bastou para garan­
tir a De Rohan um martírio popular. Uma enorme torrente de panfletos e
1 77

libelos retratou-o como vítima patética da opressão absolutista . No seu


julgamento perante o Parlamento de Paris, o seu advogado, Target, j ogou
brilhantemente com outro motivo caro à época final do Iluminismo ao
afirmar que o cardeal fora vítima do seu "excesso de candura" ( "crédule par
exces de franchise" ) , da sua natureza simples, do seu bom feitio, do seu
desej o cavalheiresco de servir a rainha e assim por diante. A defesa tinha
ainda a seu favor o facto de algumas destas alegações serem verdadeiras.
O cardeal era efectivamente um simplório imaturo com um cadastro de
pouca moralidade, mas isto não era motivo para levar com todo o peso da
fúria real e o resultado foi a absolvição ( à tangente ) . O coro de aleluias
populares foi tão clamoroso que De Rohan regressou de imediato à
Bastilha para passar a noite até as coisas acalmarem o suficiente para ser
liberto em segurança .
Os dossiês dos réus, as chamadas mémoires, foram publicados em gran­
des fornadas para consumo do grande público, e o mesmo aconteceu com
gravuras dos principais réus, de modo que os procedimentos se transfor­
maram numa espécie de teatro público no qual a peça absurda foi repre ­
sentada para uma casa cheia. Depressa se tornou óbvio que no banco dos
réus, mais do que De Rohan, De La Motte ou os seus cúmplices, estava
sentado o próprio regime . Apesar de as hipóteses de absolvição de alguns
dos réus serem, para não dizer mais, diminutas, alguns dos advogados
mais poderosos e eloquentes do Parlamento correram a aceitar o caso por
causa da publicidade. Ao ler os dossiês, o historiador dá-se rapidamente
conta de que actuaram de forma brilhante, variando os seus apelos em
função das qualidades particulares do cliente, mas evocando sempre uma
ou outra das idées fixes fundamentais da década de 80 do século XVIII.
C omo defender Nicole Le Guay, generosamente enobrecida por
Jeanne de La Motte com o título de "Baronesa d'Oliva " ? A acusação cha ­
mou-lhe "vulgar prostituta ", mas a defesa apresentou -a como uma rapa­
riga vulnerável, órfã desde tenra idade, residente num quartito na Rue du
Jour, perto de Saint-Eustache ( convenientemente próximo do Palais ­
-Royal ) , ganhando a vida como chapeleira e atraída pelas quinze mil libras
prometidas por De La Motte para se fazer passar pela rainha. Por outras
palavras, era uma vulnerável filha da natureza, um quadro tridimensio­
nal de Greuze, e tinha sido recrutada para um estratagema que mal com­
preendera. A notícia de que tinha dado à luz um bebé ilegítimo na
Bastilha e a sua incapacidade para responder a toda e qualquer pergunta
no tribunal devido ao seu constante soluçar aj udou ainda mais a reforçar
esta impressão de empatia. Como afirmou o seu advogado, B londel, era
evidente que a moça tinha de l 'âme ( alma ) . Foi absolvida. C agliostro, o
infame charlatão, tornara-se o profeta pessoal do cardeal ao dizer que
comungava com as divindades do Nilo e do Eufrates, e explorara a sua
influência para convencer De Rohan de que ele caíra nas boas graças da
S imon Schama 1 CIDADÃOS

rainha. Acusado de se gabar de que tinha mil anos de idade e de outras coi­
sas absurdas, Cagliostro assumiu o papel improvável de céptico do
Iluminismo e anunciou de imediato que tinha trinta e sete anos - mas
explorou o gosto pelo orientalismo continuando a afirmar que nascera e fora
criado em Medina e Meca e que viaj ara por todo o Levante, onde adquirira
a sua "arte" . Cagliostro e a mulher também tinham sido encarcerados na
Bastilha e ele comoveu o tribunal com apelos angustiados descrevendo a
separação imposta a um casal tão exemplar. "A mais amiga e virtuosa de
todas as mulheres é arrastada para o mesmo abismo; as suas muralhas espes­
sas e os seus muitos ferrolhos separam-na de mim . . . ela geme mas eu não
consigo ouvi-la" - e assim por diante, nesta veia rebuscada.
Até Jeanne de La Motte encontrou uma táctica útil. Apelou à história,
à memória dos Valois, dos quais se dizia descendente, e brandiu árvores
genealógicas complexas para o provar. E se calhar não eram totalmente
espúrias. Por volta de 1 7 80 estava em expansão o culto do cavalheirismo
em apuros, um culto que se ligava ao ódio romântico a tudo o que era
Novo, a um mundo dominado pelo dinheiro e pela corrupção . O mundo
de antanho era o elemento natural de Jeanne de La Motte . Ela conseguiu
apresentar- se como órfã de uma França mais antiga, uma heroína saída de
nenhures, uma inocente transviada como as raparigas das novelas admo­
nitórias de Restif de B retonne. De forma absolutamente espantosa, com­
parou a sua reputação inventada com a da rainha, afirmando que Maria
Antonieta quisera efectivamente o colar e que escrevera muitas cartas a
dizê-lo, cartas que eram genuínas e não forj adas (no seu zelo infeliz para
poupar qualquer embaraço à rainha, De Rohan queimara todas as cartas
que lera, pelo que a afirmação de De La Motte não pôde ser suj eita a
nenhuma contraprova ) .
A curto prazo, não lhe serviu de nada . O marido foi condenado à reve ­
lia às galés, para toda a vida. Ela foi condenada e enviada para a
Salpêtriere' por tempo indeterminado, mas foi também sentenciada a ser
chicoteada em público, com uma corda à volta do pescoço, e a ser mar­
cada com um V ( de voleuse ladra ) . No momento desta terrível mortifica­
-

ção, na presença de uma multidão enorme, a mão do carrasco escorregou


do ombro que deveria ser marcado e fez-lhe uma grande marca na parte
inferior do seio. Nenhum dos espectadores alguma vez esqueceria aquela
cena . Dois anos mais tarde, Jeanne fugiu da prisão e foi para Londres,
onde se lançou numa diatribe fenomenalmente venenosa contra a rainha
perante um público totalmente receptivo.
A verdadeira vítima do caso foi a sua personagem principal: Maria
Antonieta ( mas a mesquinhez do rei em insistir num j ulgamento

' Antiga fábrica de pólvora ( daí o seu nome ) convertida em grande hospital e hospício
para pobres e doentes mentais que era também usado como prisão para prostitutas . (N. do T. )
1 79

público foi negativamente contrastada com o deslocado sentimento de


honra do desditoso cardeal) . Misteriosamente, foi a rainha que saiu da
história retratada como uma esbanjadora e uma rameira vingativa que
não recuava perante nada para satisfazer os seus apetites. Dizia-se que ela
tinha decidido destruir De Rohan porque ele não respondera aos seus
avanços indecentes ( um cenário espantoso ) e que, cheia de despeito,
manipulara De La Motte para o derrubar. Os Iibelles mais imaginativos que
circularam na época retratam-na em actos lésbicos com Jeanne, que ela
descarta quando outros favoritos lhe parecem mais apetitosos. " Que delí­
rio", confessa, "j ulguei-me a entrar no Olimpo, pois os meus êxtases não
foram os de um mortal. "
Nada disto teria sido possível se não existisse j á u m rico filão d e por­
nografia associada à corte . Apesar de o género ser muito antigo
( devendo talvez um pouco a Suetónio e, mais tarde, a Aretino ) , evoluiu
para uma fase particularmente madura nos últimos anos do reinado de
Luís XV, quando estavam em voga as " histórias " do seu bordel privado
em Versalhes, no Parc-aux - C e rfs ( a C outada Real ) , que só perdiam em
vendas para as incontáveis versões das anedotas relacionadas com
Madame du B arry, cuj o protótipo fora escrito por Pidanzat de Mairobert.
O apoio de D u B arry ao infame "triunvirato " de Terray, Maupeou e
d' Aiguillon• possibilitou aos satiristas que se opunham a Maupeou asso­
ciarem sexo e tirania . As histórias de sodomia, adultério, incesto e pro­
miscuidade tornaram -se uma espécie de metáfora para uma constituição
enferma . Quando Luís XV morreu subitamente, de varíola, circulou o
boato de que a portadora fora uma rapariga que Madame du B arry lhe
arranj ara.
Na imaginação popular, a constituição política da França e a consti ­
tuição física do monarca eram a mesma coisa. O corpo do rei sempre
pertencera à esfera pública, com uma ou outra das suas partes privile ­
giadas como sede peculiar de autoridade . Os reis merovíngios tinham a
sua mística sacra nos longos caracóis . Mesmo depois de os prefeitos
carolíngios do palácio os terem privado do poder, os Merovíngios foram
preservados como tótemes sagrados, com tranças até à cintura, e deslo­
cados de um lado para o outro em carros de bois para legitimarem os
seus sucessore s . O ritual da corte de Versalhes tratava o corpo do sobe­
rano como um fetiche, pelo que as hierarquias eram estabelecidas em
função de quem entregava o chinelo ao rei ou a camisa de noite à rai­
nha. O corpo de Luís XIV - que era senhor de uma constituição excep­
cionalmente impressionante - era projectado perante os seus súbditos
como investido de um poder sobre -humano. Dizia - se que o apetite

' Respectivamente, controlador geral, chanceler e ministro dos Negócios Estrangeiros de


Luís XV. ( N. do T. )
S imon Schama 1 CIDADÃOS

fenomenal do rei derivava de uma cavidade estomacal muitíssimo maior


do que o normal ( ao contrário de Luís XVI, ele nunca engordou) e cujas
dimensões "divinas" foram devidamente informadas ao público depois de
uma autópsia .
Para um regime dinástico, a parte do corpo do soberano que era de
longe a mais importante localizava -se abaixo da cintura . Em contraste
com muitos dos seus homólogos, os Bourbons reproduziam-se com um
sucesso notável. A desastrosa taxa de mortalidade que afectava os delfins
era compensada pela sua capacidade de gerarem herdeiros varões antes de
morrerem. Luís XV era bisneto de Luís XIV e Luís XVI neto do seu ante ­
cessor. Dadas as circunstâncias questionáveis da morte do velho rei, a
decisão de Luís XVI de se vacinar foi muito explorada. Depois de aparece­
rem as primeiras pústulas no tronco real, os boletins foram anunciando ao
mundo a sua evolução satisfatória. Maria Antonieta informou a impera­
triz sua mãe ( que era totalmente a favor do procedimento ) , comentando
as pústulas particularmente impressionantes que tinham aparecido no
régio nariz. Mas embora tudo isto constituísse um exemplo admirável
para os súbditos, eles tinha as suas expectativas centradas noutro sítio.
Segundo o consenso comum, o Rei-Pai- da-Patrie tinha três deveres bási­
cos: garantir ao povo pão, e ao reino vitória na guerra e herdeiros. Nos
anos que se seguiram à acessão de Luís XVI, começou a haver dúvidas em
relação aos dois primeiros deveres, mas foi em relação ao último que o seu
fracasso provocou mais comentários.
A primeira filha nasceu em 1 7 78 mas as expectativas dinásticas só se
tranquilizaram três anos depois, com o nascimento do delfim. Foi dado
um grande baile na Câmara Municipal, as ruas de Paris brilharam com
fogos-de-artifício e festejos e uma delegação de vendedoras do mercado
apresentou-se a felicitar a rainha ( regressariam dezoito anos depois mas
com uma disposição menos amistosa ) . O regozij o foi generalizado porque
a capacidade da rainha para procriar vinha sendo um tópico de cáusticos
comentários populares desde há alguns anos. Todavia, o verdadeiro pro ­
blema estava no seu parceiro. Durante alguns anos ( não se sabe exacta ­
mente quantos ) , as relações sexuais entre Luís e Maria Antonieta foram
complicadas, se não mesmo impedidas, pela fimose do rei, um aperto aci­
dental ou natural que impede que se possa puxar o prepúcio para trás,
tornando as erecções dolorosas. Por conseguinte, as relações sexuais, quer
do ponto de vista conj ugal, quer do ponto de vista dinástico, eram super­
ficiais e insatisfatórias. A rainha ficava desconcertada e infeliz, o rei per­
seguia o javali e o cervo com todo o ardor que lhe era negado na cama .
Ambos parecem ter-se aberto a José II aquando da sua visita à irmã, em
1 777, pois ele escreveu um relatório caracteristicamente clínico sobre o
problema ao irmão, Leopoldo.
181

[Luís] tem erecções fortes e adequadas, introduz o membro, fica dentro


sem se mexer talvez uns dois minutos e retira -o sem ej acular mas ainda
erecto e diz boa-noite; isto é incompreensível porque ele às vezes tem
emissões nocturnas mas quando está enfiado e em acção nunca - ele diz
francamente que o faz por uma questão de sentido do dever.

A intervenção fraterna neste delicado assunto parece ter dado origem


à pequena cirurgia necessária para corrigir a anomalia. Em Agosto - dois
meses depois da carta de José -, Maria Antonieta escrevia extasiada à
mãe, dizendo -lhe explicitamente que o seu casamento estava "perfeita­
mente consumado " .
N o entanto, a ausência d e uma gravidez nos primeiros sete anos de
matrimónio foi suficiente para dar espaço à maledicência e terminar o
período de graça de que Maria Antonieta beneficiara desde a sua chegada a
França. No entanto, o que causou os prej uízos mais graves foi a sua própria
atitude face à posição que ocupava. Ela crescera numa corte habsburga
onde os excessos da cerimónia e do protocolo estavam a ser substituídos por
um estilo de governação mais simples e mais empenhado. A mãe subira ao
trono ainda jovem, numa altura catastrófica da história do Império - a
perda da Silésia para Frederico, o Grande - e aprendera à bruta o que era o
absolutismo esclarecido. O irmão, José, era um iconoclasta notório em
matéria de rituais da corte. Todavia, ambos compreendiam que numa época
em que os soberanos deviam ser "servos do Estado" era especialmente
importante apresentar aos súbditos uma imagem de abnegação dedicada.
Mas foi precisamente esta postura grave que Maria Antonieta pôs de
lado quando chegou a Versalhes. Noiva aos quinze anos de idade e rainha
aos dezanove, Maria Antonieta, como todas as raparigas da sua geração,
bebia sequiosamente no poço da literatura sentimental. Na sua biblioteca
abundavam as obras de Richardson, Rousseau, Mercier e até Restif de
Bretonne. Afinal de contas, a paixão pelas flores, uma candura bastante
alegre e a antipatia pelos formalismos eram as virtudes em voga . Mas
deviam ser escondidas atrás da máscara da realeza .
Quase desde o primeiro momento, a rainha não fez nenhuma conces­
são ao seu papel público. Ria -se da guerrilha hierárquica travada pelas
damas de companhia, bocej ava ou suspirava ostentosamente perante as
intermináveis cerimónias que a deixavam nua no frio dos seus aposentos
de Versalhes enquanto esperava que lhe escolhessem a camisa interior ou
as fitas. Pior ainda, começou a revoltar- se contra os corpetes e os esparti­
lhos. As irmãs do rei eram cansativas, as mulheres dos irmãos eram agres­
sivamente antipáticas e - pior ainda - estavam grávida s . Todos
compreenderam gradualmente que Maria Antonieta não estava disposta
a resignar- se ao papel habitual desempenhado pelas rainhas e princesas
bombons : a produção de herdeiros numa dócil invisibilidade, deixando o
S imon Schama 1 CIDADÃOS

rei a divertir-se como lhe desse na gana. Aliás, os papéis inverteram-se, com
o monarca a permanecer acanhado, isolado e retirado enquanto a mulher
se virava cada vez mais impudentemente para o exterior. O irmão dela ficou
chocado com o seu desafio às convenções no que era uma atitude politica­
mente incorrecta. "Ela não tem etiqueta", escreveu ele ao irmão, Leopoldo,
"sai e desloca-se sozinha ou pouco acompanhada, sem sinais exteriores da
posição que ocupa. Isto confere -lhe um ar indecente; se fosse uma pessoa
comum, não faria mal, mas ela não está a cumprir o seu papel. . . "
José viu claramente que a irmã queria os privilégios e as indulgências
da realeza mas com a liberdade de fingir que era uma pessoa comum.
Previu que tal atitude seria um convite à impopularidade ou mesmo uma
deslegitimação. Mas Maria Antonieta continuou decidida a criar a sua
própria identidade. Repudiou a conselheira que lhe fora oficialmente atri­
buída, a princesa de Noailles, e escolheu as suas próprias amigas. A pri­
meira foi a princesa de Lamballe, cuj o marido morrera de sífilis,
deixando-a viúva aos dezanove anos de idade . Seguiu-se a princesa de
Guéménée, e para compor o ramalhete uma escolha desastrosa, Yolande
de Polignac, deslumbrante mas bronca. Nada disto teria tido muita impor­
tância não fosse o facto de a rainha usar a sua autoridade para cumular de
presentes, cargos e dinheiro as suas favoritas. Para horror do parcimo­
nioso Malesherbes, a rainha ressuscitou especificamente para a princesa
de Lamballe o cargo redundante de superintendente da Casa da Rainha,
com um estipêndio de 1 5 0 000 libras francesas por ano. E as favoritas
trouxeram atrás de si um grande clã de parentes e amigalhaços que se
agarraram ao navio do Estado como se fossem lapas. Eles eram tias na
penúria, irmãos esbanjadores, avós mariolas, baronias arruinadas e plan­
tações hipotecadas nas Antilhas, e havia que satisfazê-los e compensá- los
a todos. Por conseguinte, aquilo que à rainha parecia perfeitamente ino­
cente - favorecer os amigos -, aos observadores menos parciais afigurava ­
-se uma rede gigantesca de sinecuras e corrupção : o império de "Madame
Défice ", como lhe chamava o cunhado, o conde da Provença .
Quanto mais a rainha pugnava pela sua independência, maior parecia a
impropriedade. Chocada com o humor grosseiro do rei e com a devoção
absoluta do conde da Provença aos prazeres da mesa, deve ter visto no seu
cunhado mais novo, Artois, um modelo de elegância, de encanto e talvez
até de inteligência (isto é ir longe de mais ) . Mas não há dúvida de que Artois
a fazia sentir inteligente, graciosa e - com os seus olhos grandes, o lábio
inferior carnudo e o queixo habsburgo - bela. Passavam muito tempo j un­
tos no teatro, à mesa de j ogo e nos concerts spirituels, 5 que constituíam o

' Os C oncertos E spirituais foram uma série de concertos públicos em Paris ( 1725- 1 790 ) ,
criada para oferecer entretenimento durante a s festividades religiosas, quando o s teatros
estavam fechados. Os concertos incluíam corais sacros e peças instrumentais, e durante mui­
tos anos tiveram lugar nas Tulherias. ( N. do T. )
1 83

entretenimento musical nocturno de Paris. Eram adeptos fanáticos do


compositor Gluck contra o seu inimigo Piccini e - pasme -se ! - paladinos
fervorosos de Beaumarchais . Criaram a trupe de teatro amador da corte,
no Trianon, onde levaram à cena Le Devin du Village, de Rousseau, e
O Barbeiro de Sevilha.
Mas havia outros chevaliers servants à mão para lisonj earem e entrete­
rem a rainha: Arthur Dillon, duque de Lauzun, Axel von Fersen, o barão
de Besenval, o príncipe de Ligne e, em especial, o conde de Vaudreuil.
À excepção de Lauzun - que namoriscou tão descaradamente a rainha na
pista de corridas da Plaine des Sablons que foi banido -, nenhum deles
tinha antecedentes de nobreza convencionais. Segundo os boatos impla ­
cáveis, todos eles eram notórios pela sua linhagem ou filiação estrangeira:
os Dillons eram irlandeses e jacobitas, Fersen era um soldado-cortesão
sueco e o príncipe de Ligne provinha da Holanda habsburga. A rainha
sentia-se manifestamente mais confortável com os arrivistas estrangeiros
do que com a hierarquia estabelecida da corte, e o seu favoritismo alie ­
nou -a. As campanhas de sussurros que a perseguiram durante o seu rei­
nado começaram no próprio palácio. Vaudreuil era um alvo especial.
Originário de uma família de plantadores das Índias Ocidentais, fizera
furor na sociedade parisiense ao esbanjar num piscar de olhos a fortuna
que ganhara com o açúcar. A sua amante era Yolande de Polignac, a favo­
rita da rainha, o que lhe valeu as bênçãos do convívio com a rainha e uma
cornucópia de cargos - alguns muito lucrativos, todos de grande prestígio .
Só em 1 780, Vaudreuil foi nomeado grão-falcoeiro de França, governador
de Lille e maréchal de camp. Por sua vez, Vaudreuil tratou bem dos seus.
Fez com que Elisabeth Vigée-Lebrun, que em 1 784 pintou um retrato do
conde cheio de condecorações, se tornasse a artista mais importante da
corte ( merecidamente, diga-se de passagem ) , conseguiu que o irmão dela
fosse incluído no grupo dos secrétaires du roí - enobrecendo -o - e que o
marido, que era negociante de arte, recebesse um fluxo constante de
clientes bem-nascidos e providos. Vaudreuil adorava ser o j anota do
Antigo Regime e o seu melhor actor amador (um Almaviva inspirado,
segundo o consenso geral) . S empre cheio de dívidas enormes, sempre
atrás de cargos para as pagar mas sem nunca o conseguir, Vaudreuil era
tudo o que os revolucionários tinham em mente quando caracterizavam
a corte como recreio de crianças mimadas e gananciosas.
Não parece provável que algum destes homens ( a não ser possivel­
mente Fersen, e mesmo assim muito mais tarde) tenha sido mais do que
um companheiro lisonj eador da rainha . Todavia, a informalidade que ela
praticava e a visibilidade que procurava nos três principais teatros de Paris
- a Comédie -Française, a Opéra e a Comédie Italienne -, contra a vontade
expressa do rei, faziam o j ogo dos boateiros e dos pornógrafos. Maria
Antonieta não estava minimamente preparada para o tipo de críticas ao
S imon Schama 1 CIDADÃOS

qual se expôs ao redesenhar a identidade real. A palavra em voga na


década de 80 do século XVIII era Natureza e ela partiu alegremente do
princípio de que agindo com "naturalidade" seria tomada pela inocente
que (praticamente ) era . Mas o que lhe parecia a ela espontâneo era cho­
cantemente licencioso para muitos dos seus súbditos, e há na sua resposta
irada e visceral mais do que um elemento de ansiedade psico -sexual.
Maria Antonieta representava - embora nunca lhe tivesse passado isso
pela cabeça - uma ameaça ao sistema estabelecido de relações entre os
géneros. Se o rei era supostamente o chefe emblemático de uma ordem
patriarcal, pela mesma lógica a mulher devia mostrar uma imagem de
especial obediência, humildade e submissão . É claro que nem sempre fora
assim na história francesa e não causa surpresa descobrir uma súbita
colheita de "histórias " a surgirem na década de 80 protagonizadas por
outras rainhas transviadas ( isto é, decididas e independentes ) - em espe­
cial, Ana de Áustria (viúva de Luís XIII ) e a ainda mais notória Catarina
de Médicis -, todas com analogias veladas com a presente incumbente.
Mais importante ainda foi a forma directa como a rainha represen­
tou a sua feminilidade. Aquilo que era permissível ou mesmo expectá ­
vel numa amante do monarca era intolerável numa rainha. E não
aj udou que esta feminilidade fosse candidamente apresentada e conce ­
bida, mais ou menos exclusivamente, por outras mulheres. Rose B ertin,
a modista da rainha, tornou - s e uma das mulheres mais influentes de
França e foi ela que encorajou Maria Antonieta a trocar a rigidez ( mate­
rial e figurativa ) do vestuário formal da corte pelos vestidos soltos e sim­
ples de cambraia, algodão e musselina brancos que se tornaram os seus
preferidos. A comparência nas ocasiões formais, com vestidos e pentea­
dos com armação, foi restringida às " cortes de domingo" e mesmo assim,
conforme recorda Madame de La Tour du Pin, tornaram -se moda as
queixas da monotonia da rotina. E não há dúvida de que o que deu azo
a comentários adicionais foi a imagem menos convencional da monar­
quia exibida nos quadros pintados por outra grande amiga da rainha,
Elisabeth Vigée- Lebrun.
Apesar de grande parte dos seus trabalhos serem de uma qualidade
manifestamente espectacular, Vigée-Lebrun foi, até há bem pouco tempo,
ignorada como outra artista ligeira do Ancien Régime, uma dama de com­
panhia de pincel e paleta, e ela tem sofrido tanto com a nostalgia senti­
mental pelo Antigo Regime como com o neoclassicismo desdenhoso. Mas
no seu tempo foi correctamente reconhecida como um fenómeno, e expôs
nada menos de quarenta quadros nos Salons bienais. Em 1 78 3 , ano em
que se tornou uma das duas únicas mulheres admitidas na Academia Real
(a outra foi a sua rival, Adelaide Labille- Guiard ) , as Mémoires Secretes
deram testemunho da sua influência e renome :
185

Quando alguém anuncia que acabou de chegar do Salon, a primeira coisa


que lhe perguntam é: viu Madame Le B run? O que acha de Madame Le
B run? E a resposta imediatamente sugerida é: Madame Le B run não é
espantosa? . . . as obras da moderna Minerva são as primeiras a atrair o olhar
do espectador, chamam-no repetidamente, apoderam-se dele, possuem­
-no, arrancam-lhe exclamações de prazer e admiração . . . os seus quadros
são os mais elogiados e os tópicos mais falados nas conversas em Paris.

Parte da atracção exercida por Elisabeth Vigée-Lebrun decorria tanto


da pessoa como da sua arte. Era filha de um retratista menor e de uma
cabeleireira de origem camponesa . O pai morreu quando ela tinha doze
anos de idade, e ela era praticamente autodidacta. Recorrendo aos seus
familiares como modelos, mas retratando-os de um modo ousado e
expressivo no qual o brilhantismo das cores igualava a exuberância das
poses e da composição, Elisabeth adquiriu uma reputação de prodígio.
Aos dezanove anos de idade j á estava matriculada na academia de pinto­
res de Saint-Luc. O casamento com o senhorio da mãe, o negociante de
arte Lebrun, abriu -lhe as portas da sociedade parisiense e deu-lhe a pos­
sibilidade de expor o seu talento nas galerias e nos saraus que organizava
na sua residência urbana. Era inteligente, articulada e lindíssima, uma
combinação vencedora na Paris de 1 780. Além do mais, conseguiu dife ­
renciar- se da massa de académicos enfadonhos ou pseudo-B ouchers6 pro ­
movendo, tanto na sua vida social como na sua arte, o culto da
simplicidade . Nos seus saraus, apenas eram servidos peixe, aves e salada .
No célebre souper au grec, ela desnudou Lebrun das suas pretensões "lim­
pando -lhe o polvilho, desalinhando-lhe as suíças e pondo- lhe uma coroa
de louros na cabeça ", enquanto era servido bolo de mel com passas de
Corinto e vinho cipriota .
A pintora transportou esta ostentosa simplicidade para a corte . Nas
suas memórias ( certamente idealizadas ) , Elisabeth recorda duetos impro­
visados com a rainha cantando canções de Grétry. Noutra ocasião, observa
com admiração quando Maria Antonieta obriga a princesa sua filha, então
com seis anos, a j antar ( na verdade, a servir) com uma camponesa da sua
idade. O polvilho, os penteados complicados, os corpetes e as saias com
armação são banidos, excepto para as cerimónias formais . O cabelo cai em
caracóis naturais sobre os ombros, usam-se flores e erva à guisa de orna ­
mentos e bonés de palha e chapéus rústicos de aba larga . As linhas natu­
rais do corpo são expostas sob vestidos diáfanos e de tipo camisa de
cambraia branca ou cor de marfim cintados abaixo do peito e presos com

' François B oucher ( 1703- 1 770 ) , um dos promotores do rococó, célebre pelos seus qua­
dros idílicos com base em temas clássicos e pelas suas alegorias decorativas representando as
artes ou as ocupações pastoris. (N. do T. )
S imon Schama 1 CIDADÃOS

uma simples fita. A duquesa de Polignac, que era, por todos os padrões,
muitíssimo atraente, foi pintada neste novo uniforme, com o ar de um
fruto suculento recém colhido. Mesmo quando os modelos se mostravam
relutantes em ir ao fundo da informalidade, Vigée-Lebrun encontrava
maneiras de tornar as suas atitudes menos monumentais.

C omo desprezava o vestuário q u e as mulheres usavam na época, eu ten­


tava de todas as maneiras possíveis torná -lo mais pitoresco e ficava encan­
tada quando os meus modelos, confiando em mim, me deixavam vesti-los
a meu bel-prazer. Os xailes ainda não estavam na moda mas eu usava
grandes lenços ligeiramente enrolados à volta do corpo e por cima dos
braços, com os quais procurava imitar o belo estilo de Rafael e
D omenichino.

Tudo isto era apresentado como o traj e da inocência natural, mas tal
como algumas das poses das raparigas de Greuze, das quais era reminis­
cente, tinha um poder inegavelmente erótico . Este poder está explícito na
Bacante, pintada no ano do Caso do Colar, mas alguns elementos deste
desenho carregado de sexualidade foram transferidos para o retrato : os
dentes realçados de uma boca entreaberta num sorriso ou os olhos vira­
dos para cima da actriz "manteúda" Catherine Grand, futura mulher de
Talleyrand. Mas o retrato de Grand é uma excepção ao apresentar uma
mulher como uma espécie de obj ecto sexual. Na sua maioria, os retratos
de mulheres pintados por Vigée-Lebrun na década de 80, século XVIII
estão notavelmente isentos do voyeurismo rococó . Em vez de terem a
cabeça virada para longe do observador e os corpos expostos, as mulheres
aqui retratadas - entre as quais a artista - olham-no nos olhos com
expressões de desafio e independência . Surgem amiúde em grupos de
amigas ou com os filhos em poses desinibidas de afecto e abraço . Foi esta
recusa da submissão para conquistar as boas graças dos homens que os
contemporâneos acharam simultaneamente excitante e alarmante .
É claro que quando se tratou de retratar a rainha se interpuseram
algumas preocupações particulares entre a maneira "natural" de Vigée­
-Lebrun e a encomenda. C hamada pela primeira vez à corte em 1 7 78,
com apenas vinte e três anos de idade, ela produziu a devida imagem tra­
dicional, com o rosto a três quartos e o modelo decorado com penas e
dentro de um enorme robe à panier.1 Em 1 78 3 , deu-se uma transformação
e o retrato da rainha que foi exposto no Salon mostrava-a num simples
vestido de musselina, de rosa na mão. Seguiram-se outros retratos na
mesma veia, muitos dos quais foram copiados para as embaixadas france ­
sas e para clientes privados.

7 Em francês no original: vestido com armação . (N. da R.)


1 87

Nada disto contribuiu para travar a deterioração da reputação da rai­


nha . De facto, poderá mesmo tê-la acentuado ao parecer confirmar uma
imagem de desdém pelo decoro . Sej a como for, quando chegou a altura
do Salon de 1 78 5 , ponderou-se com preocupação a forma como a rainha
deveria ser retratada perante o público. O quadro exposto nesse ano foi
da autoria de um artista da corte, o sueco Wertmüller, e mostrava-a a
caminhar no parque de Versalhes na companhia dos filhos . Esperava -se
que agradasse à moda dos grupos familiares sentimentais. Porém, estava
tão mal conseguido e era tão rígido que acabou por reforçar a implacável
opinião de que a propaganda doméstica dissimulava a libertinagem pri­
vada . O quadro foi retirado e encomendou-se um substituto a Vigée ­
-Lebrun, q u e explorou a simpatia q u e existia então pela rainha p o r causa
da perda de um filho retratando-a sentada com os outros em frente de um
berço significativamente vazio . Mas apesar de espectacular, o quadro tam­
bém sofreu de uma postura ideológica defensiva que não se coadunava
com as suas banalidades domésticas. De facto, se a intenção era mostrar
Maria Antonieta como Mãe, colocá -la com as crianças à frente da Sala dos
Espelhos de Versalhes e envolvê - la num vestido formal de veludo mais
não fez do que assinalar que ela continuava a ser uma rainha . Exposto no
Salon de 1 787, o quadro foi recebido com ambivalência .
Quando este grande retrato foi exibido, o Salon era o único lugar onde
a rainha podia ser vista fora da corte . Ferida pela barragem de pornogra­
fia violenta - de que estaria certamente ao corrente -, ela furtava-se aos
olhares do público . Nas poucas ocasiões em que se aventurou a ir ao tea­
tro foi recebida com um silêncio gélido ou mesmo com assobios. Em con­
traste com este silêncio, nos cafés de Paris e na Pont Neuf, ouviam-se
canções alegremente insultuosas:

Notre lubrique reine A nossa lúbrica rainha


D 'A rtois le débauché E o debochado Artois
Tous deux sans moindre peine Juntos, sem dificuldade
Font ce joli péché C ometem o belo pecado
Eh! mais oui-da E depois?
Comment peut-on trouver du mal à ça? Que mal tem?

Cette belle alliance Este lindo parzinho


Naus a bien convaincu C onvenceu-nos bem
Que le grand Roi de France Que o grande Rei de França
Est un parfait cocu É um refinado cornudo
Eh! mais oui-da E depois?
Comment peut-on trouver du mal à ça? Que mal tem?
S imon S chama 1 CIDADÃOS

Outras canções especulavam sobre o tamanho e/ou a potência do


equipamento do rei, sobre o número de amantes da rainha ( de ambos os
sexos ) , sobre a cronologia dos seus favores. Chegou a ser cunhada uma
moeda, em Estrasburgo, mostrando o rei de perfil e ornado com um
inconfundível par de cornos . A literatura burlesca era ainda mais desa­
vergonhada . Uma obra popular, Les Amours de Charlot [Artois] et Toinette
começava com Maria Antonieta a masturbar- se para passar depois à orgia
da praxe.
O protótipo de muitas destas produções foi o Essai Historique sur la Vie
de Marie-Antoinette, publicado em 1 78 1 , reeditado em 1 78 3 e daí em diante
actualizado anualmente para acompanhar os acontecimentos até à exe­
cução de Maria Antonieta, em 1 79 3 . Quinhentas e trinta e quatro cópias
foram queimadas pelo carrasco na Bastilha, em 1 7 8 3 , mas continuou a ser
um dos artigos favoritos dos contrabandistas de livros e a circular ampla­
mente em Paris . Tinha a forma de uma confissão autobiográfica que, por
vezes, parece antecipar com precisão as acusações revolucionárias mais
ácidas :

C atarina de Médicis, Cleópatra, Agripina, Messalina, os meus feitos ultra ­


passaram os vossos e se a memória das vossas infâmias ainda provoca arre ­
pios, se os seus horríveis pormenores põem os cabelos em pé e fazem j orrar
as lágrimas, que sentimentos não provocará o conhecimento da vida cruel
e lasciva de Maria Antonieta . . . rainha bárbara, esposa adúltera, mulher
sem moralidade, maculada pelo crime e pelo deboche, estes títulos são os
meus ornamentos .

Depois, a descrição da "vida " que se segue é, conforme a própria


autora confessa, a de uma "prostituta noj enta " : passa a noite da véspera
de coroação, em 1 77 5 , na Porte Neuve, em Reims, uma "ilhota de amor",
vestida de bacante, a copular durante três horas com um "Hércules " espe­
cialmente seleccionado; no Trianon, aprende novas posições com Artois;
experimenta com as suas damas de companhia, em especial com a
Polignac. Os três vícios mais presentes nesta literatura são a masturbação,
o lesbianismo e uma ninfomania insaciável . Não é por acaso, pois cada um
deles figurava também em destaque na literatura médica de 1 780, escrita
no género científico e em versões previsivelmente mais vulgarizadas - a
titilação mascarada de edificação. A narrativa confessional do apetite
sexual de Maria Antonieta nos libelles descrevia exactamente o tipo de sin­
tomas que os leitores da popular La Nymphomanie ou Traité de la Fureur
Utérine, de Bienville, eram ensinados a reconhecer na ninfomaníaca com­
pulsiva . "Mal via um homem bem-parecido ou uma mulher bela, o meu
corpo ficava irrequieto e espalhava -se-me na face uma expressão de posse
agradável; mal conseguia dissimular a violência dos meus desejos. "
189

A Maria Antonieta dos libelles era um monstro sexual, infectado com


doenças depois de dormir com um cardeal dissoluto, e dado que o lesbia­
nismo era conhecido por "vício alemão", ela era também uma presença
estranha no corpo político . Por conseguinte, as suas perversões sexuais
eram frequentemente tratadas como estratagemas políticos.
Em 1 78 5 , rebentou uma crise quando o irmão de Maria Antonieta, o
imperador José II, tentou forçar a abertura do estuário do Escalda para
expandir a liberdade de navegação a partir dos portos de Ostende e
Antuérpia, na Holanda austríaca. Esta atitude violava os compromissos
que a França assumira por tratado com a República Holandesa, que tinha
a perder com a mudança, e dado que as duas potências tinham sido alia­
das na guerra americana, a atitude lógica seria resistir à manobra aus­
tríaca, se necessário com ameaças bélicas. Aflita com esta possibilidade, a
rainha interveio e persuadiu o rei a moderar a posição francesa . A crise
passou por si própria, mas a interferência da rainha foi tomada por aque­
les que lhe eram hostis como mais um exemplo da sua colonização da
corte no interesse de uma potência estrangeira. Ela tornou- se, mais do
que nunca, Maria Antonieta de Áustria .
Todas estas demonologias sexuais - puta -espia, dominadora do rei,
infectante da constituição - foram combinadas numa polémica extrema ­
mente venenosa e contribuíram sem sombra de dúvida para a erosão
fenomenalmente rápida da autoridade real em finais da década de 80,
século XVIII. No princípio da Revolução, quando a rainha assumiu um
papel mais agressivo na política e foi suspeita de fomentar conj uras mili­
tares contra a Assembleia Nacional, os seus críticos invocaram uma nova
fonte de monstruosidade para afixar à sua imagem repulsiva. Em meados
da década, tinham começado a circular histórias acerca de uma "harpia "
- uma criatura alada de apetites selvagens e garras brutais - que se dizia
ter sido descoberta em Santa Fé, no Peru . Os produtores de gravuras
populares, sempre à cata de novidades, aproveitaram bastante a história e
em 1 79 1 - como seria de esperar - a rainha apareceu transformada no
mítico horror, esmagando nas garras "Os Direitos do Homem" .
A desconstrução d a imagem d e Maria Antonieta foi algo d e patético.
Ela tirou a máscara da realeza no interesse da Natureza e da Humanidade
(e no das suas próprias predilecções) para acabar representada - logo ela
- como a mais desnaturada e desumana de todas as mulhere s .
Finalmente, quando a "Viúva C apeto" foi presente ao tribunal revolucio ­
nário, a fusão de crime sexual e crime político foi tornada explícita.
Insultada na linguagem dos libelles como "imoral em todos os aspectos,
uma nova Agripina", acusada de estar conluiada com o imperador e de lhe
ter fornecido secretamente duzentos milhões de libras francesas ( antes da
Revolução ) , foi finalmente acusada pelo editor do j ornal Le Fere Duchesne
e pelo presidente da Comuna de Paris, Jacques-René Hébert, de abusar
S imon Schama 1 CIDADÃOS

sexualmente do próprio filho, o desgraçado ex-delfim, que tinha onze


anos de idade . Alegadamente ( segundo a confissão do garoto ) , Maria
Antonieta e Madame Elisabeth, sua cunhada, punham-no a dormir entre
elas, "uma situação na qual ele fora acostumado às indulgências mais abo­
mináveis" . Tinham-lhe ensinado a masturbar-se, não só para seu próprio
deleite, na opinião de Hébert, mas com propósitos políticos sinistros.
Bebendo no sombrio prognóstico dos efeitos da masturbação expostos na
obra Onania do Dr. Tissot, a acusação foi que as rés tinham pretendido
"enervar a constituição da criança para adquirirem ascendência sobre a
sua mente " .
Pressionada para responder à s acusações, Maria Antonieta retorquiu,
"Mantenho -me em silêncio em relação a esse assunto porque a natureza
abomina esse tipo de crimes " . Mas a sua réplica final foi como o retrato de
uma rainha maternal pintado por Vigée-Lebrun: "Apelo a todas as mães
presentes na sala - será este crime possível?"

II O RETRATO DE CALONNE

No dia 1 4 de Fevereiro de 1 787, Talleyrand foi chamado a Versalhes


pelo controlador-geral, Calonne . S egundo escreveria mais tarde, recebeu
a convocatória com alguma ambivalência. Por um lado, sentiu -se lison­
j eado. Calonne persuadira o rei a reunir uma Assembleia de Notáveis que
deveria considerar as medidas necessárias para salvar as finanças públicas
francesas da bancarrota. A Assembleia teria um papel estritamente con­
sultivo mas a sua inauguração ( adiada por duas vezes mas finalmente
agendada para o dia 22 de Fevereiro ) estava já a ser saudada como o prin­
cípio de uma nova era da história francesa . Na carta que enviara a
Talleyrand, Calonne pedira -lhe que colaborasse na elaboração de memo ­
randos que seriam apresentados aos Notáveis como base para as suas deli­
berações . C iente de estar perante uma oportunidade especial para
promover a sua reputação, Talleyrand não podia declinar uma incumbên­
cia tão importante .
Mas, por outro lado, não estava com muita vontade de trocar o con­
forto de Paris pelo tédio de Versalhes, especialmente durante as chuvas
torrenciais do Inverno. A vida tinha sido boa para o homem a quem os
amigos chamavam com ironia "o abade do Périgord" . Com trinta e três
anos de idade, Talleyrand tinha até construído o ninho doméstico que
não conhecera na infância - ainda que de um modo caracteristicamente
heterodoxo. A sua amante, a condessa de Flahaut (por sinaL filha ilegí­
tima de um fermier général) , fora casada aos dezoito anos de idade com
um oficial de cinquenta e quatro . O cunhado, o conde d' Angiviller, que
era superintendente dos Edifícios do rei ( ou sej a, mordomo da cultura
191

oficial ) , disponibilizara simpaticamente à j ovem condessa u m apartamento


no Louvre . Ela estabeleceu um salão de artistas e intelectuais dóceis, e ini­
ciou um feliz ménage com Talleyrand, que, em 1 78 5 , foi pai de um menino.
Não obstante a sua fama de pessoa distante, os poucos privilegiados que
eram admitidos no seu círculo familiar descrevem uma atmosfera de inti­
midade carinhosa muito diferente da postura da pessoa pública do abade .
Gouverneur Morris, o agente comercial americano que estava seriamente
embeiçado por Adelaide de Flahaut, ficou ainda mais perturbado ao teste­
munhar o contentamento aparentemente inabalável do casal.
Talleyrand j antava com frequência com a amante e com o filho, mas
tomava um pequeno - almoço tardio com os amigos, na sua casa na Rue
de B ellechasse. C om a sua perspicácia habitual, ele percebera que a
sociedade parisiense era uma galáxia que compreendia muitas constela­
ções planetárias, todas girando nas suas próprias órbitas, por vezes
cruzando - se, por vezes colidindo entre si. O que contava era ser reco ­
nhecido como o centro de uma constelação, coisa que ele conseguiu aos
trinta anos de idade . Os satélites que o orbitavam eram notoriamente
luminosos: C hoiseul- Gouffier, cujas viagens pela Grécia lhe tinham
merecido a reputação de especialista e um lugar na Academia; o conde
de Narbonne (o mais brilhante dos muitos bastardos de Luís XV ) , articu ­
lado, amoral e com excelentes contactos; o j ovem escritor fisiocrata D u
Pont de Nemours; o duque de Lauzun, guerreiro -herói da América cuj a
reputação não se ressentira (bem pelo contrário) por ter sido banido da
presença da rainha; o médico -cientista da praxe, o Dr. B arthes, de
Montpellier, e o também obrigatório banqueiro suíço, Panchaud, inimigo
figadal de Jacques Necker.
Era como se Talleyrand tivesse criado esta companhia como uma refei­
ção rica mas equilibrada, com a adstringência intelectual de Panchaud e
Du Pont de Nemours contrastando com a confecção rica de Lauzun e
Narbonne . Falavam de assuntos sérios mas sem excessos de solenidade, e
foi talvez esta maneira de tornar ligeiro o trabalho difícil que recomendou
Talleyrand a Calonne, cuj o modus operandi era muito semelhante . Eram
vizinhos, e Talleyrand participava nas ocasiões sociais organizadas por
Calonne e vice -versa. Mas um estilo gracioso não teria bastado se Calonne
não tivesse visto em Talleyrand algo muito mais importante: a compreen­
são do poder dos dados. Depois da sua ordenação, em 1 7 79, Talleyrand
recebera um benefício em Reims suficiente para lhe permitir uma vida
confortável mas ele era muito mais ambicioso e orientou-se para a única
esfera do mundo eclesiástico que considerava suportável, a gestão de
negócios. Neste domínio, como agente geral de olho nos imensos bens dos
episcopados, ele estava no seu elemento. A ganância aplicada era um dos
talentos naturais de Talleyrand e ele exerceu-a conscienciosamente em
seu benefício e em benefício da sua ordem.
S imon Schama / CIDADÃOS

O seu outro grande talento era para a burocracia. Na qualidade de


agente geral, Talleyrand levou a cabo uma inspecção de todos os assuntos
económicos da Igreja, desde os salários dos párocos de aldeia até aos hos­
pitais e hospícios mantidos pela Igrej a por todo o país. Durante uma visita
de inspecção, deu consigo a meter-se em assuntos que não faziam parte
das suas atribuições, mas que a sua aptidão para a administração pública
via que requeriam atenção. Por exemplo, na Bretanha, ficou tão chocado
com o número de mulheres cuj os maridos não voltavam do mar, mas que
não podiam ser declarados oficialmente mortos, que procurou que lhes
fosse autorizado voltarem a casar passados vários anos. Na Assembleia
Geral do Clero, em 1 78 5 , esta sugestão foi considerada profundamente
imprópria e rej eitada, mas foram muitos os prelados que ficaram impres­
sionados com o domínio de Talleyrand da imensidão de números e infor­
mações relacionados com os assuntos da Igrej a . O seu gigantesco relatório,
comentou o arcebispo de B ordéus, era "um monumento de talento e zelo"
e a Assembleia recompensou prontamente os seus serviços com um bónus
especial de vinte e quatro mil libras.
Com esta reputação de trabalho sério e fineza política, Talleyrand foi
empregado por C alonne como seu agente e assistente não oficial.
O recruta mais difícil de Talleyrand era Honoré - Gabriel Mirabeau, filho de
um pai tirano que o mandara encarcerar muitas vezes por actos de con­
testação. Apesar de seis anos mais velho do que Talleyrand, Mirabeau
começou por cumulá -lo de vibrantes elogios. Foi incumbido de uma mis­
são j unto da corte de Frederico, o Grande, em Berlim, mas irritou -se com
o seu estatuto não oficial e não tardou que se começasse a virar contra o
seu mentor. "Era capaz de vender a alma por dinheiro", queixava -se ele
de Talleyrand, "e ainda ganhava com o negócio, pois venderia merda por
ouro . " Mas no princípio de 1 787, ambos comungavam do sentimento de
que a Assembleia de Notáveis seria de grande importância. Mirabeau
escreveu a Talleyrand que via " uma nova ordem das coisas, passível de
regenerar a monarquia. Considerar-me -ia mil vezes honrado nem que
fosse o mais humilde secretário da assembleia, cuj a ideia de constituição
[teve ele o cuidado de acrescentar] partiu de mim . . . ". E Mirabeau implo­
rou a Talleyrand que o libertasse do seu exílio prussiano para poder par­
ticipar no momentoso renascimento.
Foi com estas fanfarras a tocarem-lhe ao ouvido que Talleyrand res­
pondeu à convocatória de Calonne . As expectativas exageradas de uma
nova época, de finanças saneadas e de confiança pública a florescer com
os narcisas deixavam-no bastante inquieto, mas ele contava certamente
que Calonne, a quem muito admirava, tinha a situação controlada. Sofreu
uma grande desilusão.
Ao entrar no estúdio privado de C alonne, Talleyrand encontrou um
grupo bastante heterogéneo. Incluía Pierre Gerbier, um alto magistrado
193

do Parlamento de Paris, orador famoso e um dos poucos robins que fora


perdoado por ter integrado o tribunal de Maupeou. Talvez fosse o seu
passado de pragmático que o recomendara a Calonne como um elemento
útil. Junto dele estava um vetusto fóssil de três reinados, o marquês de La
Galaiziere, que começara a sua longa carreira como intendant no tempo da
Regência. Do círculo de Talleyrand, estava presente Du Pont de Nemours,
junto de dois assistentes de Calonne que vinham trabalhando em proj ec­
tos para apresentar aos Notáveis . Depois de se sentarem, cada um deles
recebeu grandes maços de documentos atados com fitas, que Calonne
anunciou ser a matéria-prima a partir da qual deveriam elaborar um pro ­
grama de reformas credível para a Assembleia - ou que pelo menos a per­
suadisse a não levantar obstáculos . Talleyrand, a quem coube o proj ecto
de restauro do comércio livre de cereais, ficou consternado . Tal como os
outros, sabia que Calonne estivera gravemente doente (os amigos diziam
que tossia sangue, os inimigos que era o castigo pelo seu deboche ) , o que
atrasara a elaboração dos proj ectos de reforma e a inauguração da
Assembleia ( originalmente anunciada para 29 de Janeiro ) . Mas nunca lhe
passara pela cabeça que teria apenas uma única semana para apresentar a
informação não trabalhada de uma forma suficientemente persuasiva
para desarmar o cepticismo de que toda a gente estava à espera por parte
dos Notáveis.
De súbito, Talleyrand viu que o controlador-geral, que admirava há
anos como um perspicaz analista da administração pública, cometera um
erro político colossal. Não se dera minimamente conta das possíveis con­
sequências da sua iniciativa - só isso poderia explicar o aparente descuido
dos seus preparativos. Tornou-se óbvio para Talleyrand que Calonne via
na Assembleia um mero carimbo para o imposto predial que ia propor.
A súbita revelação de Calonne como um jogador impulsivo foi ainda
mais alarmante para Talleyrand porque ele comungava da opinião genera­
lizada que considerava o controlador-geral um gestor hábil de contingên­
cias imprevistas. Calonne fora nomeado em 1 78 3 , no seguimento do
pânico provocado pelas tentativas de reforma financeira de d' Ormesson o
seu antecessor. D'Ormesson limitara-se a ressuscitar os planos de Necker
de passar parte da Ferme Général para uma régie gerida pelo Estado. E pro­
curara conferir à Caisse d'Escompte8 - fundada em 1 776, como uma imi­
tação subcapitalizada do Banco de Inglaterra - alguma eficácia exigindo a
circulação do seu papel-moeda. Não era muito, mas no estado nervoso do
mercado financeiro de Paris foi o suficiente para provocar uma corrida às
letras da Ferme, que eram usadas para fazer pagamentos comerciais.
Calonne apaziguou a situação restaurando os termos do contrato da Ferme
Général e deixando claro que trabalharia com e não contra as convenções

' " Caixa de Desconto " . (N. do T. )


S imon Schama 1 CIDADÃOS

financeiras vigentes. Em vez de impor à força o papel-moeda da Caixa, pre­


feriu promover a confiança no banco autorizando a utilização do seu
papel-moeda no pagamento de impostos e tornando mais abrangente a sua
esfera de actividades. Mais importante ainda, Calonne acreditava que a
viabilidade do banco dependeria do seu sucesso comercial, pelo que, a par­
tir de 1 78 5, os dividendos passaram a estar indexados aos lucros dos exer­
cícios transactos e não à especulação de curto prazo .
Calonne tem sido muito criticado (e também o foi na altura, particu­
larmente por Necker) pela sua dócil capitulação perante os interesses ins­
talados. Os críticos acusaram-no de trocar a tranquilidade a curto prazo
pelo desastre a longo prazo, e dado que Calonne, durante os três anos
seguintes, pediu emprestados quinhentos milhões de libras francesas para
manter o governo solvente, é difícil negar este veredicto negativo sobre o
seu mandato.
Mas Calonne não foi uma cabeça oca a gerir uma bolsa vazia . O seu
regime seguiu princípios de política, embora no fim se tenham revelado
desastrosamente errados. A sua política regeu -se por uma importante
consideração que Necker, o mais persistente crítico de Calonne, não teve
em conta: os custos da paz eram quase tão pesados como os custos da
guerra. Os cálculos de Necker basearam-se no pressuposto de que termi­
nada a guerra americana, o governo francês poderia recuar para um nível
significativamente mais modesto de despesas militares. Mas Vergennes,
que continuou a ser a figura dominante do governo até à sua morte, em
Fevereiro de 1 7 87, sabia que não poderia ser assim. Acreditava que para
beneficiar das oportunidades oferecidas pela paz de 1 78 3 seria essencial
que o equipamento e a prontidão da Marinha e do Exército franceses per­
manecessem elevados . E esta opinião era subscrita por De C astries e Saint­
-Germain, respectivamente ministros da Marinha e do Exército, dois
gestores militares agressivos, reformistas e modernos . Além disso, com as
vitórias de Suffren no Índico, surgiu inclusivamente a oportunidade de
uma aliança com o poder crescente do sultão de Misore para restaurar a
influência da França na região carnática do subcontinente. Negligenciar
estas questões, argumentou Vergennes, seria um convite a levar uma
nova tareia ao nível da da Guerra dos Sete Anos. Foram estes requisitos e
não um despesismo pródigo por parte da corte que ditaram o infeliz
padrão de contracção de empréstimos de Calonne . Embora o controlador­
-geral tenha cometido provavelmente uma imprudência com a compra
dos palácios de Rambouillet e Saint-Cloud para a Coroa, as despesas rela­
tivas a todas as rubricas associadas à corte - incluindo as casas dos extra­
vagantes irmãos do rei - nunca ultrapassaram os quarenta milhões de
libras num orçamento total de seiscentos milhões, ou seja, 6 % - 7 % . Para
colocar este valor em perspectiva, diga -se que era cerca de metade do
orçamento britânico para gastos com a monarquia.
195

O que poderia Calonne fazer para tornar estas exigências suportáveis?


Ele não se limitou a cambalear de contingência em contingência, armado
de expedientes improvisados. Pelo contrário, foi com o seu Controlo que
o governo teve uma política económica minimamente concertada desde
Turgot. Pouco experiente em economia e finanças, Calonne dependeu de
três tipos de conselheiros. O primeiro foi Isaac Panchaud, o genebrino que
publicou um trabalho sobre crédito público em 1 7 8 1 e que adquiriu uma
reputação formidável j unto de todos quantos tinham sido alienados pela
hipocrisia de Necker ( além de muitas outras coisas, Paris oferecia uma
selecção de banqueiros suíços ) . O conselho básico de Panchaud a Calonne
foi que evitasse danos estruturais ao aparelho financeiro estabelecido e o
tornasse mais funcional criando novas linhas de crédito com condições
mais vantajosas. Isto significava especificamente evitar ataques directos
aos fermiers généraux e permitir a concorrência de bancos de Amesterdão,
onde podiam ser lançados empréstimos anuais a 5 % . Por volta de 1 780,
os empréstimos holandeses e suíços tornaram-se subitamente importan­
tes por darem à administração mais flexibilidade nos seus calendários e
termos de amortização.
O tempo adquirido com o novo crédito não seria de ócio mas de esfor­
ços concertados para melhorar as intra-estruturas e o desempenho eco ­
nómicos franceses, e foi aqui que entraram em j ogo os outros dois grupos
de conselheiros de Calonne, a segunda geração de fisiocratas e os mais
capazes dos funcionários reais, treinados para supervisionar empreendi­
mentos económicos. A equipa de j ovens burocratas de Calonne incluía
Mollien, Gaudin, o abade Louis e Maret, homens que estariam no centro
da governação napoleónica e alguns dos quais ( como Louis ) seriam ele­
mentos quase permanentes da gestão financeira francesa do princípio do
século XIX. Só se partíssemos da premissa de que um regime tão "antigo "
estava destinado a desaparecer da face da Terra é que nos surpreendería­
mos ao encontrar estes processadores de dados de duas pernas integrados
no futuro e não no passado. Em conj unto com fisiocratas como Du Pont
de Nemours, elaboraram uma política económica que era um compro ­
misso calculado entre o livre empreendimento e o paternalismo estatal.
Várias destas medidas eram bastante radicais e requeriam uma preparação
cuidada. O facto de serem apresentadas aos Notáveis como parte do
pacote fiscal não deve obscurecer a sua importância independente .
Por exemplo, no "Proj ecto da Taxa Ú nica ", a miríade de barreiras
alfandegárias internas seria substituída por uma única tarifa . Era menos
uma atitude de puro laissez-faire do que de nacionalismo económico (tam­
bém aqui antecipando a política napoleónica ) , já que a liberdade de
comércio dentro da França seria complementada com a imposição de bar­
reiras mais elevadas nas fronteiras. A mesma distinção cuidadosa obser­
vou -se na devolução da livre circulação ao comércio de cereais .
S imon Schama 1 CIDADÃOS

O comércio doméstico foi liberalizado mas as exportações ( fonte de mui­


tas queixas no passado ) foram indexadas aos preços em vigor. Caso ultra­
passassem um determinado nível, seriam de novo proibidas . Acima de
tudo, o relacionamento económico com a Grã -B retanha passou a reger-se
por aquilo que pode ser classificado de "oportunismo de Estado" . Foram
contratados engenheiros britânicos para instalarem no Norte da França
teares mecânicos e a "mula mecânica"9 de Crompton, e em finais de 1 786
acalentou-se a esperança de "roubar" às Midlands britânicas os célebres
Matthew B oulton e James Watt . 1 0 Eles visitaram efectivamente Paris, mas
apenas para consultas sobre os motores a vapor a instalar nas novas
máquinas de bombagem de Marly.
Além da propagação das sociedades anónimas, os fundos de origem
estatal tornaram -se significativos no financiamento de empresas que
necessitavam de capital de risco para inovarem com novas fábricas.
Porém, o governo de C alonne parecia dar com uma mão e tirar com a
outra, dado que o culminar das novas políticas foi um tratado comercial
com a Grã-Bretanha, assinado em 1 786, que abriu os mercados aos pro­
dutos dos signatários . Escusado será dizer que enquanto o vinho e a seda
franceses prosperaram com o acordo, os outros têxteis e os artigos de ferro
sofreram o assalto da concorrência barata promovida pelas manufacturas
britânicas, que estavam muito mais avançadas . Mas a visão de Calonne e
dos seus conselheiros parece ter sido a de que, a longo prazo, toda a con­
corrência saudável estimularia os produtores franceses a emularem os
seus homólogos britânicos.
Uma simples lista destas iniciativas económicas, apesar de quase todas
meritórias, não vai ao cerne da questão. O governo de Calonne (tal como
acontecera com o de Turgot ) partiu sempre do princípio de que os seus
planos seriam impostos e não propostos à França . Provavelmente, foi esta
a razão pela qual tantos dos seus protegidos deram burocratas napoleóni­
cos tão bons. Calonne formou-se na tradição absolutista de serviço à
Coroa como intendant, primeiro na sua Flandres natal e depois em Metz,
nos "Três Bispados" . 1 1 Ambas eram áreas muito importantes de empreen­
dimento económico, especialmente nos têxteis, e Calonne foi um cons­
ciencioso promotor destas actividades. Mas ele foi também a epítome do
funcionário centralista conj urado por Tocqueville, concedendo subsídios
aqui e acolá e atribuindo prémios para ensaios inspiradores sobre a car­
dagem mecânica da lã como se fosse um mestre -escola a recompensar alu -
nos diligentes .

' Máquina d e fiação movida a água. (N. do T. )


' º Sócios n o desenvolvimento e difusão d o motor a vapor, que permitiu a mecanização

de inúmeras instalações fabris e contribuiu decisivamente para a Revolução Industrial . As


Midlands eram a região inglesa de maior concentração industrial . ( N. do T. )
1 1 Província que incluía os bispados de Metz, Verdun e Toul e a Lorena. (N. do T. )
197

E como controlador-geral, não se saiu melhor com as relações públi­


cas . Calonne mostrou algum interesse por autores como Mirabeau e
Brissot mas só como espiões infiltrados no submundo literário ou merce ­
nários contratáveis para a confecção de propaganda ao serviço da linha
oficial (Mirabeau revelou -se incapaz deste tipo de lealdade incondicional) .
No entanto, Calonne acompanhou quase sempre a determinação de
Vergennes de açaimar as vituperações da imprensa oposicionista, blo­
queando as suas rotas de contrabando e secando as fontes de opinião hos­
til . Os editores que, à semelhança de Panckoucke, estivessem dispostos a
ficar-se pela opinião moderada (no relativamente anódino Mercure de
France) poderiam ser domesticados através da cooptação.
Esta política de abafamento da oposição teve algum sucesso, especial­
mente nos primeiros anos da administração de Calonne. No auge do
poder, em 1 784, Calonne posou para Vigée-Lebrun com uma expressão -
a j ulgar pelo retrato acabado - de doce auto - satisfação. Mas a pintora teve
o cuidado de dar ao modelo um ar de inteligência alerta através dos olhos
e dos atributos do cargo, colocados em cima da secretária. O retrato de
Calonne proclama um estatuto elevado, garantido através do cumpri­
mento consciencioso do dever. Só mais tarde seriam dolorosamente reve ­
ladas as ironias involuntárias da representação. C alonne tem na mão uma
carta endereçada ao seu único amo, o rei, mas o documento mais conspí­
cuo na sua secretária é a carta da Caisse d' Amortissement, o fundo para o
saldo de dívidas que deveria acumular recursos dedicados à redução da
imensa dívida pública. Mas em 1 787, quem desapareceu não foi a dívida,
mas sim C alonne .
Além disso, quando a reputação de prodigalidade e opulência de
Calonne se tornou impossível de ignorar, o retrato seria lido como uma
faustosa conta de alfaiate . Os punhos de renda à la valencienne e o casaco
de tafetá florentino são de Vanzut e Dosogne, os melhores e mais caros
costureiros de Paris. Os grandiosos tinteiros são obra do j oalheiro da rai­
nha, Granchez, estabelecido no cais de C onti, onde Calonne adquirira
uma bengala de bambu com um primoroso castão de ouro que era
comentadíssima do Palais-Royal. O quadro quase que cheira à água de
lavanda que ele adorava . O controlador-geral não fazia o mínimo esforço
para dissimular o seu gosto pelo luxo dispendioso. Vestia os seus muitos
criados de libré completa e tinha assentos forrados a pele no interior dos
seus coches mas também para os cocheiros, para que não tivessem frio no
Inverno. Além do C ontrolo, que ele redecorou de cima a baixo, podia resi­
dir num dos seus dois palácios ou na casa da Rue S aint-Dominique, que
albergava a sua espectacular colecção de pintura - Watteau, Rembrandt,
Ticiano, Giorgione, Boucher, Fragonard, Teniers.
A sua cozinha era igualmente famosa ou infame - uma opinião que
dependia de se fazer parte da lista de convidados ou não . O chefe principal,
S imon S chama 1 CIDADÃOS

Olivier, presidia como um barão a uma enorme équipe de sauciers, pâtissiers


e outros especialistas da mesa. Só para cuidar das carnes assadas havia três
serviçais, que dispunham do seu próprio aj udante, um garoto chamado
Tintin. Calonne tinha um fraquinho por trufas, que encomendava do
Périgord aos cestos, caranguej os frescos, perdizes j ovens e, mais sur­
preendentemente, "macarrão de Nápoles " com parmesão ou gruyere, um
prato que se diria incompatível com punhos de renda. Quando se deslo­
cava do seu palácio privado ao seu palácio oficial, em Versalhes, Calonne
reproduzia os seus esplendores numa escala apropriadamente régia .
Durante a sua administração, os últimos bailes de Versalhes foram dados
com um abandono elegante que criaria para gerações de admiradores nos­
tálgicos a visão da antiga monarquia movendo-se para sempre ao ritmo de
um minuete enquanto fontes de mármore deitavam água perfumada para
bacias em forma de concha.
Tudo isto estava muito bem enquanto se continuaram a obter emprés­
timos e o clima económico permaneceu ameno, mas o horizonte escure ­
ceu consideravelmente a partir de 1 78 5 . Em Amesterdão, a possibilidade
de novos empréstimos a taxas de j uro baixas complicou-se por causa de
uma crise política que ameaçava transformar-se em revolução. Uma seca
muito intensa no Verão deu origem à pior colheita em anos, o que por sua
vez ameaçou reduzir o poder de compra dos consumidores franceses e
piorar um mercado j á seriamente afectado pelo influxo dos produtos
manufacturados britânicos decorrente do tratado comercial.
Quando todas estas más notícias se combinaram com o Caso do Colar,
a gestão dos assuntos da nação por Calonne foi implacavelmente criticada.
Não obstante os denodados esforços da polícia para estancar a torrente, a
procura de panfletos e libelos insolentes tornou-se demasiado grande e a
oferta demasiado acessível para amordaçar a oposição. Na opinião desta,
a prodigalidade financeira de C alonne tornou -se sinónima das extrava­
gâncias da corte, de conspirações, de mendacidade e indulgência . Foi
nesta altura que começou a circular a história de que ele tinha enviado a
Madame Vigée-Lebrun uma caixa de pastilhas, cada uma embrulhada
numa nota de trezentas libras. Dizia -se que eram amantes, uma alegação
que Vigée-Lebrun atribuiu ao facto de a verdadeira amante de Calonne, a
condessa de C eres, lhe ter pedido a carruagem emprestada para se deslo ­
car ao teatro, deixando -a depois intencionalmente à porta da residência
de Calonne durante toda a noite para ser identificada pelos boateiros.
Muitas das iniciativas mais conspícuas de Calonne podiam ser facil­
mente rotuladas de conspirações contra o interesse público . Em 1 78 5 ,
aconselhado pelo corrector Modinier, Calonne decidiu recunhar a moeda
para aj ustar o seu teor de ouro e prata de acordo com os rácios vigentes
no mercado. Prevendo alguma confusão, Calonne fixou o prazo de um
ano para que a nova moeda substituísse a antiga. Mas para os lojistas ou
1 99

para os moleiros do campo, com o dinheiro guardado em caixas debaixo


do colchão, o esquema foi um acto mal disfarçado de extorsão destinado
a trocar dinheiro "bom" por dinheiro "mau " . Do mesmo modo, a nova
barreira alfandegária dos fermiers généraux ( Paris não beneficiava da elimi­
nação de tarifas internas implementada no resto do país ) suscitou a mais
profunda desconfiança . Incumbido por Lavoisier, o visionário arquitecto
neoclássico Ledoux desenhou propileus espantosos com figuras e motivos
antigos para adornar as várias portas da barreira, mas isto nada fez para
desarmar as suspeitas (na verdade, a bizarria do plano tê-las-á mesmo
reforçado ) . O novo muro, diziam as pessoas, encerraria os parisienses
numa prisão atmosfericamente fétida ao negar-lhes os ares do campo
necessários para ventilar o seu bafio urbano, fonte de contágios e epide ­
mias . Alguém até calculou a quantidade cúbica exacta de perda de ar puro
que resultaria do novo muro . Lá dizia o ditado, " le mur murant Paris rend
Paris murmurant" . 1 2
Existem outras acusações similares d e interesse pessoal. Dizia-se que
Calonne se fingia estadista mas que não passava de um arrivista especu -
lador. A sua nova Companhia das Índias ( lançada para tentar capitalizar
as novas oportunidades que se abriam no Sul da Índia ) era alegadamente
uma empresa espúria, concebida para extrair capital dos crédulos sem
perspectivas de um retorno previsível . Outros contratos e companhias
específicos, como o sindicato estabelecido para operar uma estação de
bombagem a vapor para o abastecimento de água de Paris, estariam vicia ­
dos para garantirem vantagens antecipadas a certos investidore s .
Pincelada a pincelada, foi pintado u m retrato d e Calonne muito menos
lisonj eador do que o de Vigée-Lebrun. Ele era o homem que amordaçava
a imprensa, asfixiava os pulmões, esvaziava os bolsos, desvalorizava a
moeda, esbanj ava a fortuna nacional e andava a reboque da corte .
Com a sua reputação tão em baixo, porque terá Calonne embarcado
numa iniciativa tão perigosa e radical como a Assembleia de Notáveis,
onde a sua autoridade seria suj eita ao escrutínio público? A resposta con­
vencional é que ele não tinha alternativa, e este foi efectivamente o argu ­
mento que apresentou ao rei em Agosto de 1 786, quando falou pela
primeira vez no assunto. Calonne estimou o défice para esse ano em 80
milhões de libras ( descobriu -se posteriormente que era de 1 1 2 milhões ) ,
consumindo quase 2 0 % das receitas correntes, e uma percentagem muito
maior tinha de ser alocada ao serviço da dívida. Pior ainda, o calendário de
amortização relativamente rápido aceite por Necker durante a guerra ame­
ricana significava que no ano seguinte teriam de ser feitos pagamentos
substanciais. Não era inconcebível contrair novos empréstimos, mas, tal
como Calonne tinha descoberto em Dezembro de 1 7 8 5 , ao tentar lançar o

1 Em francês no original. À letra: "o muro que mura Paris deixa Paris a murmurar." (N. da R. )
S imon Schama 1 CIDADÃOS

empréstimo mais recente, j á não poderiam ser contraídos a título de


adiantamento sobre receitas presentes ou futuras. Isto significava que ele
tinha de fazer o que sempre procurara evitar: impor novos impostos,
menos pelo seu valor e mais como garantia para a dívida pública .
Quando ouviu falar no plano para convocar uma Assembleia de
Notáveis que legitimaria o novo imposto, a resposta do rei foi: "Mas isso
que me dizeis é puro Necker ! " E foi seguramente a sensação de ter Necker
sempre atrás de si que levou Calonne a fazer a sua dramática proposta.
Em 1 784, o velho director-geral publicara De l 'Administration des Finances
de la France, onde atacara a administração de Calonne, em especial pelo
seu vício de contrair empréstimos em tempo de paz. No ano seguinte, no
auge do escândalo do Caso do Colar, Necker regressou do seu exílio suíço
e foi entusiasticamente acolhido em Paris. Parte da decisão de Calonne de
tornar pública a terrível verdade do défice e de a apresentar como uma
quase bancarrota foi para refutar o optimismo do Compte Rendu de 1 78 1 ,
com a sua alegre visão de excedentes entre a s receitas "ordinárias" e as
despesas. Calonne disse especificamente que no lugar do excedente de
Necker descobrira um défice de cerca de 40 milhões para o ano em causa.
Apesar das provas de uma crescente hostilidade pública, Calonne deci­
diu entrar no j ogo de Necker e apelar ao apoio do público . Ao contrário
do que Talleyrand suspeitava, não se tratou apenas de um gambito cínico.
Incentivado pelos sobreviventes do regime de Turgot, entre os quais Du
Pont de Nemours, o controlador-geral estava a regressar à política de uma
monarquia popular, esboçada por D' Argenson na década de 40, século
XVIII, uma política que faria tábua rasa dos interesses privados e da obs­
trução parlamentar para garantir uma nova liberdade de acção com a bên­
ção do povo .
A Assembleia de Notáveis fora, pois, concebida como um exercício do
que poderia ser chamado absolutismo popular. Mas tal como Talleyrand
viu, ainda antes da sua primeira sessão, a assembleia traduziu-se inevita ­
velmente numa aprendizagem de representação nacional.

III EXCEPÇ Õ E S NOTÁVEIS

A Assembleia de Notáveis foi finalmente inaugurada na Salle des Menus


Plaisirs, em Versalhes, no dia 22 de Fevereiro de 1 787. Os sucessivos adia­
mentos entre o anúncio formal do rei, no último dia do ano, e a inaugura­
ção da assembleia tinham dado aos muitos inimigos de Calonne a
oportunidade de montarem uma campanha de oposição, no que foram aju­
dados pelo facto óbvio de que, num momento crítico, o governo estava a
desfazer-se física e politicamente. Vergennes, que se encontrava grave ­
mente doente, morreu no dia 1 3 de Fevereiro, privando o controlador-geral
201

d o s e u mais poderoso apoiante . O guardião dos Selos, Miromesnil, estava


furioso por ter sido excluído dos debates prévios e era abertamente crítico
da assembleia . Consternado pela imprevisível transformação de Calonne
- de alegre optimista em profeta do apocalipse -, Luís XVI prometeu - lhe
todo o seu apoio. Depois de assinar o decreto autorizando a constituição
da Assembleia, escreveu a Calonne : "Na noite passada não preguei olho
mas foi de alegria . " Mas a insónia passou gradualmente de alegre a
ansiosa. C om a aproximação da inauguração, o rei foi ficando mais ner­
voso com a experiência e a perda de Vergennes, j unto do qual ele sempre
procurara um conselho paternal, deixou -o muito abalado. Além do mais,
estava certamente ao corrente da exclamação do conde de Ségur ao ouvir
a proclamação da constituição da Assembleia: "O rei acaba de se demitir. "
Depois do entusiasmo inicial, a reacção da opinião pública à iniciativa
de Calonne tornou-se reservada. Existia a suspeita generalizada de que o
controlador-geral andara três anos no regabofe e que agora se preparava
para apresentar a conta ao povo . Segundo os panfletos, a retórica gran­
diosa sobre a crise nacional era uma maneira hábil de cobrir o seu rasto.
Pior ainda, as sátiras dirigiam-se à assembleia propriamente dita . A gra­
vura mais popular consistia num macaco a dirigir- se a um bando de aves
de capoeira : "Minhas caras criaturas, reuni -vos aqui para deliberardes
sobre o molho em que ireis ser servidas." É significativo que tenham apa­
recido muitas variações sobre o mesmo tema num curto espaço de tempo.
Outro grupo de animais é informado de que vai ser morto sem direito de
recurso mas é - lhe concedido o luxo de decidir como será cozinhado. Às
portas do Controlo descobriu -se um cartaz anunciando "uma nova trupe
de comediantes que actuará em Versalhes, no próximo dia 2 9 " , abrindo a
temporada com Les Fausses Confidences, seguida de Les Consentements Forcés.
Calonne previra esta oposição. Na verdade, fora para evitar o destino
habitual das reformas fiscais régias - a resistência parlamentar - que ele
decidira constituir a Assembleia de Notáveis, U!ll a forma de consulta
usada pela última vez em 1 62 6 . Calonne esperava que a incorporação de
uma proposta sobre assembleias provinciais eleitas anulasse as crescentes
exigências de convocação dos Estados Gerais. E, além disso, a Assembleia
de Notáveis, com o acesso rigorosamente controlado, não poderia ter pre ­
tensões de representatividade . A composição social dos seus 1 44 membros
pareceu confirmar a cautela de Calonne . Os sete príncipes reais - os dois
irmãos do soberano e os duques de Bourbon, Orleães, Condé, Penthievre
e Conti - presidiam a sete comités deliberativos separados. Imediatamente
abaixo estavam sete dos principais arcebispos, incluindo Champion de
Cicé, arcebispo de B ordéus, liberal e neckerita confesso, e outro inimigo
de Calonne, Loménie de Brienne, arcebispo de Toulouse. Seguiam-se sete
duques hereditários, oito marechais de França, seis marqueses, nove con­
des, um barão, os presidentes dos Parlamentos e outros altos funcionários,
S imon Schama 1 CIDADÃOS

incluindo o prévot de Paris e o prévot des marchands. A inclusão mais sur­


preendente de todas foi a de Lafayette, cuj o crescente radicalismo desa­
gradava enormemente ao rei e à rainha mas que se viu incluído a pedido
de Noailles, " que era seu parente
Não parecia minimamente um clube de revolucionários. Contudo, ini­
ciadas as sessões, tornou - se óbvio que o carácter intensamente aristocrá ­
tico da Assembleia não obstava ao radicalismo político nem predispunha
os seus membros a serem instrumentos obedientes do programa de
Calonne . A insubordinação começou no topo, pois, de todos os príncipes
reais, só Artois se mostrou disposto a apoiar incondicionalmente o
governo. O seu irmão mais velho, "Monsieur", foi particularmente impla­
cável em relação aos procedimentos e outros, entre os quais os condes de
Orleães e Conti, que estavam notoriamente alienados da corte, secunda­
ram-no com críticas mordazes.
Mas o controlador-geral não se resignou à derrota . Depois dos comen­
tários formais do rei aquando da abertura, nos quais aludiu não só à
necessidade de receitas mas também a uma distribuição mais equitativa
do ónus fiscal, Calonne fez um longo discurso de grande poder intelectual
e eloquência . A sua grande qualidade fora sempre um discurso articulado
aliado ao classicismo aplicado a que recorrera na sua carreira administra­
tiva . O próprio soberano tivera uma amostra disto em Agosto, quando
Calonne lhe apresentara o seu memorando dividido nos seguintes tópicos:

1 . Situação presente
2. O que fazer?
3 . C omo?

Este tipo de clareza distintamente enumerada era perfeita para o


monarca serralheiro mas os capciosos Notáveis necessitavam de algo mais
complexo e foi isso que, assistido por Du Pont de Nemours, Calonne lhes
deu. O discurso começou mal, com uma agressiva passagem em revista de
Necker e uma avaliação parcial da sua própria tenência . Calonne referiu
que, desde 1 776, tinham sido contraídos empréstimos no valor de 1 2 5 0
milhões de libras francesas, grande parte dos quais para travar a "guerra
nacional" e criar uma marinha poderosa, mas aquele modo de proceder
acabara por se tornar contraproducente e atolara-se em "abusos ", um
termo que Calonne usou para classificar a confusão excessiva das finanças
privadas e públicas e as isenções injustificáveis em nome dos privilégios.
A resposta àquela triste situação teria três vertentes. Em primeiro lugar,
impunha -se j ustiça fiscal. Em vez de uma trapalhada de impostos directos
complicados, o novo imposto predial incidiria sobre todos os súbditos e

" Louis de Noailles, duque de Noailles. ( N. do T )


203

teria em conta as condições do lavrador, inclusivamente consoante as


estações do ano . A segunda vertente seria a consulta política : eleger-se­
iam assembleias locais - paroquiais, distritais e provinciais - que partici ­
pariam na avaliação, na distribuição e na administração do imposto . A
terceira e última seria a liberdade económica. A corvée ( conscrição para
obras públicas ) , que afastava o camponês da terra quando era mais neces­
sário, seria substituída por um imposto em dinheiro. Além do mais, a
adopção de um imposto único poria fim às terríveis guerras do contra ­
bando e anunciaria uma nova era de mercados comerciais no país . Ex tene­
bris lux, da beira do abismo, a nação recuperaria o seu destino . E Calonne
concluiu com uma excelente peroração:

Haverá quem recorde a máxima da nossa monarquia : "si veut le roi, si veut
la loi" [a lei será o que o rei desej ar] . Mas a [nova] máxima de Sua
Majestade é "si veut le bonheur du peuple, si veut le roi" [o rei desej a o que
trouxer felicidade ao povo] .

Uma grande parte do programa de Calonne era uma reciclagem de


Turgot. Na verdade, a proposta de criação de assembleias locais elaborada
por Du Pont de Nemours baseara -se no memorando que ele tinha escrito
para Turgot mais de uma década antes (e não gostou de saber que
Mirabeau a tinha pirateado e que estava a circular uma versão sob o seu
nome ) . Mas o facto de as reformas já terem uma história não diminuía o
seu genuíno radicalismo. Calonne, com base no precedente dos confron­
tos com os Parlamentos, terá contado com resistência por causa das viola­
ções dos privilégios implícitas na ausência de isenções para a nobreza e
para o clero no imposto predial. E previu bem, j á que em alguns comités
houve murmúrios de que as propostas atacavam os privilégios e se colo ­
cou em causa a constitucionalidade da criação das assembleias locais.
Mas o que os debates da Assembleia tiveram de verdadeiramente espan­
toso foi o facto de serem marcados por uma manifesta aceitação de princípios
que alguns anos antes teriam sido impensáveis, como o da igualdade fiscal.
Vivian Gruder mostrou como a personalidade social dos Notáveis - como
proprietários de terras e homens de negócios agrários - os imbuía de um
forte sentimento de que os privilégios eram redundantes. Neste sentido,
como em tantos outros, eles já faziam parte de um "Novo Regime" e esta­
vam apenas à espera da oportunidade para institucionalizarem as suas preo­
cupações, que eram caracteristicamente novas . Por exemplo, não se
verificou nenhuma oposição à eliminação das isenções das tarifas pagas pelo
transporte dos produtos das fazendas para os mercados. Alguns comités pro­
puseram a eliminação de todas as isenções da taille, outros que o enobreci­
mento fosse essencialmente uma questão de estatuto e deixasse de conferir
qualquer tipo de isenção fiscal (já toda a gente sabia que era assim) .
S imon Schama 1 CIDADÃOS

Por outras palavras, os comités igualaram taco a taco o radicalismo de


Calonne e, em muitos casos, foram até bem mais longe . Calonne tinha
partido do princípio de que o novo imposto a pagar em substituição da
corvée só seria pago pelos anteriormente corvéable. Mas três comités insis­
tiram que fosse um imposto verdadeiro de obras públicas, com incidên­
cia sobre todos os súbditos. Outros argumentaram que o novo imposto
predial, em lugar de se cingir à terra, deveria abranger outros tipos de
propriedade imobiliária, tais como a urbana (na qual les Grands tinham
um interesse especial ) , e outros ainda exigiram que fosse aplicado com
base num cadastro completo e abrangente, que seria periodicamente
revisto para garantir uma avaliação j usta. Outras propostas centraram-se
na diminuição de impostos para os demasiado pobres e, em especial, para
todos os j ornaleiros.
Os desacordos não se verificaram por Calonne ter chocado os Notáveis
com o seu anúncio de um mundo fiscal e político novo; verificaram-se por
ele não ter ido suficientemente longe ou porque eles não gostaram dos
métodos operacionais contidos no programa . Os debates sobre o imposto
predial não sugerem um grupo de latifundiários ricos ( que o eram) a resis­
tir com denodo ao ataque aos seus privilégios. Assemelham-se muito mais
às prolongadas sessões de uma academia de província reunida para discu ­
tir os efeitos de versões alternativas da equidade fiscal na produção agrá ­
ria . Du Pont de Nemours afirmou -se espantado com a familiaridade com
as teorias em voga demonstrada nos debates. Quando Calonne propôs que
o imposto se baseasse numa percentagem da produção bruta em qualquer
ano ( ligeiramente variável em função da qualidade da terra ) , os Notáveis
contrapropuseram uma taxa sobre a produção líquida depois de deduzidos
os custos das sementes, da mão -de-obra e do equipamento . Também pre ­
feriam uma quantia fixa a ser partilhada do nível da paróquia para baixo
em vez de um valor que aumentasse anualmente com os níveis da pro­
dução individual. Esta última fórmula, argumentaram eles com a verda­
deira voz da nova economia, penalizaria a produtividade. Além disso,
enquanto Calonne era da opinião de que o imposto deveria ser pago em
espécie, eles acreditavam que as dificuldades de avaliação ditavam o seu
pagamento em dinheiro.
Os historiadores tendem a considerar os Notáveis um episódio efémero
na luta pelo poder que antecedeu o dealbar da Revolução mas um simples
olhar para os debates confirma que estava para acontecer algo de extre ­
mamente sério ( o imposto predial, emendado pelos Notáveis, foi adoptado
pela Revolução e, pouco modificado, persistiu até à Primeira Guerra
Mundial ) . A taxação foi discutida à luz da sua relação com outras activi­
dades económicas e pela primeira vez ninguém discordou de que a sua
aceitação dependia estritamente de alguma forma de representação. De
facto, a insatisfação com os limites das autoridades provinciais projectadas
205

foi expressa de forma inequívoca e veemente. Lafayette, como seria de


esperar, queria transferir praticamente todos os poderes do intendant -
sobre todas as formas de taxação ( não apenas o imposto predial) : obras
públicas, administração, aboletamento, etc. - para as novas autoridades
locais. Outros Notáveis seguiram a linha parlamentar de que o único
órgão capacitado para deliberar sobre qualquer nova forma de imposição
era os Estados Gerais . E apesar de Calonne ter j ogado pelo seguro estipu­
lando um rendimento mínimo de seiscentas libras francesas para o direito
ao voto, a maioria dos comités mostrou -se favorável à redução deste
limite . Ainda se estava muito longe da democracia, mas havia um senti­
mento genuíno de que os órgãos eleitos deveriam representar de forma
abrangente os "interesses" existentes na nação.
Este cenário, com a elite de França a competir entre si em nome do
bem público, não era de todo o que Calonne tinha previsto . Era como se
ele tivesse decidido conduzir uma carroça pesada com uma mula teimosa
e desse consigo montado num cavalo de corrida que arrancava a galope
depois de o atirar para a valeta . Vivian Gruder sublinha, com toda a razoa­
bilidade, que foi a identidade social do grupo enquanto composto por lati­
fundiários que o tornou tão impávido face à abolição de privilégios e
anacronismos aos quais a sua casta estava há muito associada . Mas
enquanto a modernização económica do grupo desempenhou certamente
um papel no realismo com que os seus membros abordaram a questão das
reformas, foi também o seu sentimento de estarem a viver um momento
histórico partilhado que os levou à sua demonstração de altruísmo patrió­
tico. Tinha -lhes sido atribuído o papel de um coro mudo, mas eles desco­
briram que possuíam - individual e colectivamente - uma voz poderosa e
que a França estava a prestar atenção. Esta descoberta abrupta da política
foi intoxicante e existem sinais de que os Notáveis, apesar de geralmente
ignorados como a cauda do Antigo Regime, foram, em termos de cons­
ciência política, os primeiros revolucionários.
Por conseguinte, longe de necessitarem que o controlador-geral com­
pletasse o processo de reforma, depressa deixaram bem claro que a con­
dição para o sucesso era o seu afastamento . A reputação de Calonne
estava já demasiado atolada em escândalos e suspeitas de j ogos duplos
para poder conferir credibilidade à Assembleia . Em Março, vieram à luz
pormenores muito negativos relativos a transacções imobiliárias nas quais
Calonne persuadira o rei a desfazer- se de algumas propriedades dispersas
em troca do Condado de Sancerre, que era menos valioso. Ao que parece,
Calonne e alguns dos seus amigos tinham depois comprado os lotes em
condições muito vantajosas. Na B olsa, fizeram-se perguntas sobre a
Companhia das Índias e o sindicato contratado para abastecer Paris de
água. Mirabeau, que ainda era tido como apoiante de Calonne, alterou
dramaticamente o seu rumo com a publicação de uma denúncia de todas
S imon Schama 1 CIDADÃOS

as especulações nas quais Calonne estava particularmente comprometido .


Por seu lado, Lafayette rompeu com o seu comité, o mais leal dos sete à
monarquia, liderado por Artois, e atacou publicamente a "especulação
monstruosa", insistindo na abertura de um inquérito judicial para revelar
quem é que estava a enriquecer à custa do "suor, das lágrimas e até do
sangue" do povo .
Fustigado de todos os lados, o controlador-geral ripostou pela última
vez, recorrendo às técnicas de polémica pública que eram usadas contra
ele. Uma medida da profunda alteração da linguagem do debate foi o facto
de o seu avertissement ( anúncio ) ao público ter no centro a acusação de
que as classes privilegiadas estavam a distorcer os seus planos para melhor
conspirarem contra o povo . Soando como um orador revolucionário de
1 789 ou até como um jacobino denunciando os "egoístas ricos", Calonne
respondeu à pergunta que estava nos lábios de todos: "Haverá que pagar
mais? Sem dúvida. Mas quem pagará? Só aqueles que ainda não pagaram
o suficiente . Os privilegiados serão sacrificados, sim - quando a justiça o
requerer e a necessidade o exigir. Ou será melhor taxar novamente os
desprivilegiados, o Povo?"
Mas este apelo directo e franco à opinião pública não salvou Calonne.
Na verdade, terá mesmo agravado a sua posição . Ele tinha -se tornado tão
impopular que esta última surtida foi vista como um esquema hipócrita
para esconder a sua culpabilidade privada e pública. Pior ainda, Calonne
estava em queda na corte . O rei ficara atónito - talvez mesmo furibundo
- ao descobrir a verdadeira extensão do défice, 32 milhões acima das esti­
mativas de C alonne. É verdade que saber o número exacto já não fazia
grande diferença, mas o principal dano foi a perda de confiança do
monarca no ministro . Não foi a última vez que C alonne se começou a
arrepender da sua ousadia política e procurou a saída menos dolorosa, e
não foi a última vez que a rainha pareceu providenciar tal saída . Com a
estrela de Calonne em queda, ela começou a recordar as ocasiões em que
ele se negara a fazer-lhe a vontade (geralmente em questões de dinheiros
ou cargos para os seus favoritos ) . Por conseguinte, a rainha escutou aten­
tamente quando Breteuil a informou de que o afastamento de Calonne
era indispensável para a sobrevivência do programa de reformas. Cada vez
mais vexado pela posição em que Calonne o colocara, Luís XVI deu ao
ministro um sinal das suas intenções ao permitir a publicação das respos­
tas ao seu avertissement.
Calonne tentou tirar o mais possível de uma situação crescentemente
difícil. Ofereceu a sua demissão em troca da concordância com o pro ­
grama, mas a verdade é que ele j á não tinha força negocial. Tal como
Turgot e Necker, foi levado a fazer um ultimato que seria impossível de
aceitar, a exigência de afastamento dos seus adversários mais poderosos.
O rei pareceu ir ao seu encontro ao afastar MiromesniL mas a medida
207

revelou-se o prelúdio de um acto de justiça salomónica. No dia 8 de Abril,


Calonne foi demitido.
Mas não se tratou apenas de uma demissão. Tal como acontecera com
Turgot, o termo atribuído à sua demissão foi disgrâce, e o rei teve o cuidado
de limpar a imagem da sua autoridade suj ando a de Calonne . "Todos estão
contentes", referiu um observador na corte . A rainha ficou contente por
se ver livre de uma maçã podre e por ter a possibilidade de instalar um
ministro da sua escolha. Os príncipes reais ficaram encantados com o
regresso do intendant arrivista à obscuridade . A opinião pública delirou
com o desaparecimento do arqui- especulador e queimou Calonne em efí­
gie na Pont-Neuf. Quanto a Luís XVI, não perdeu nenhuma oportunidade
para fazer gala do seu agrado em actos de vingança mesquinha. Calonne
foi destituído da faixa azul da Ordem do Espírito Santo, que tanto gostava
de exibir, e obrigado a ceder a sua propriedade de Hannonville como uma
espécie de fiança tendo em conta futuros procedimentos j udiciais. A cami­
nho do exílio, a carruagem de C alonne foi frequentemente rodeada de
multidões carrancudas ou insultuosas que quase o atacaram.
C alonne foi o primeiro de uma longa linha de políticos franceses que
se tornaram vítimas do seu próprio aventureirismo. No entanto, seria um
erro crasso rotulá-lo de um mero peso -pluma que explorou irresponsa­
velmente a crise financeira para se beneficiar no curto prazo . Na verdade,
Calonne foi o primeiro homem público que compreendeu as consequên­
cias políticas da crise e o retrato que traçou para os Notáveis de uma
grande cesura na história da França estava, não obstante toda a sua hipo­
crisia, absolutamente correcto . Por outras palavras, a linguagem que falou
e a visão futura que conj urou foram mais importantes do que a questão
dos motivos da exposição. Depois de Calonne, tudo seria possível.
Tipicamente, Calonne procurou manter- se em jogo. Pressupondo erro­
neamente que o seu exílio não seria de longa duração ( na verdade, foi o
prelúdio de um exílio de França ) , fez alguns preparativos para o regresso
à sociedade parisiense. No próprio dia da sua desgraça, pediu a um mos­
teiro localizado na Rue de Saint-D ominique, perto da sua casa, para lhe
alugar espaço para armazenar mil garrafas de vinho . Nunca as bebeu .
7

Suicídios
1 78 7 - 1 788

1 REVOLUÇÃO NA PORTA AO LAD O

No Verão de 1 7 8 7 era possível viajar de Paris para nordeste, durante


dois dias, e ir parar ao meio de uma revolução . O cenário era engana­
dor - as praças com coruchéus e os canais plácidos da República
Holandesa, desde há muito um sinónimo de estabilidade política - e o
elemento de violência espontânea e posteriormente gerida que seria a
marca da Revolução Francesa esteve praticamente ausente na Holanda .
Em Amesterdão não se viram carroças com aristocratas a caminho do
cadafalso nem cestos cheios de cabeças cortadas. No entanto, não foi
por isto que a agitação que se apoderou da política holandesa na década
de 80 do século XVIII deixou de ser menos revolucionária. Utreque,
Leiden e Haarlem eram patrulhadas por regimentos da milícia dos cida­
dãos, o Corpo Livre . D esfilando e treinando sob bandeiras que procla­
mavam "Liberdade ou Morte", os cidadãos armados participavam em
cerimónias de j uramento de dia e congregavam -se à roda das fogueiras
patrióticas de noite . Em Leiden, em 1 7 8 5 , milhares de milicianos - os
Patriotas - reuniram-se para j urar um " acto de federação" que os uniu
na defesa comum.
Que causa era a deles? Na praça principal de Utreque fora erguido um
"Templo da Liberdade" para proclamar a derrota do "dinastismo" e da
aristocracia e a vitória da representação, e o Corpo Livre retesara os mús­
culos para mobilizar milhares de pessoas contra o regime patrício insta­
lado na Câmara Municipal, que foi substituído por "representantes do
povo " eleitos por sufrágio directo, tal como acontecia com os oficiais da
milícia . Um manifesto radical publicado em Leiden, em 1 7 8 5 , e forte ­
mente reminiscente da Declaração da Independência americana e do
Catechisme du Citoyen do advogado bordalês S aige, foi ainda mais explícito .
"A liberdade", insistiu, "é um direito inalienável de todos os cidadãos da
comunidade. Nenhum poder terrestre e muito menos nenhum poder ver­
dadeiramente derivado do povo . . . pode desafiar ou obstruir o desfrute da
liberdade quando o mesmo é desejado . " Do mesmo modo, "o soberano é
única e simplesmente o voto do povo " .
209

Decorridos cinco anos, a política holandesa transferira-se explosiva­


mente do reino de uma elite polidamente circunscrita para uma activi ­
dade de massas impulsiva e caótica . Uma imprensa não censurada e
radical tinha como público - alvo os loj istas e os profissionais menores. Os
dois semanários mais populares, o Post van Neder Rijn e o Politieke Kruijer, '
chegavam pelo menos a cinco mil leitores com cada número . As suas
páginas denunciavam o príncipe Guilherme V de Orange como um bor­
rachão imbecil e a sua mulher prussiana como uma megera arrogante, e
não foi preciso muito tempo para que os inimigos a abater incluíssem
também os " aristocratas" (as tradicionais classes "regentes " das cidades)
recalcitrantes que procuravam preservar sistemas de nepotismo e oligar­
quia no governo local . As tentativas de amordaçar a voz sonora da
imprensa dos Patriotas mais não fizeram do que transformar os seus edi­
tores em heróis populares de um dia para o outro . Hespe, o editor do
Kruijer, de Amesterdão, cultivou a sua celebridade como ex-preso polí­
tico mandando imprimir cartões-de-visita com grilhetas quebradas. As
invectivas saltavam da página impressa para o mundo da imagem: circu ­
lavam pelos cafés e pelas tabernas caricaturas satirizando os orangistas e
os "aristocratas", e contra - caricaturas antipatriotas. Os estabelecimentos
rivais decoravam os seus interiores e as suas tabuletas com os emblemas
apropriados: a laranj eira e as fitas cor de laranja no caso dos apoiantes do
Stadhouder,1 o cocar preto e o keeshond' dos Patriotas para os seus oposi­
tores. O tom podia ser de uma vulgaridade agressiva . Uma gravura dos
Patriotas mostrava o keeshond a urinar de perna alçada na árvore de
Orange . Até a vida doméstica cedeu ao avanço dos slogans. As caixas de
rapé, as taças gravadas, as canecas de cerveja e os pratos de porcelana
viram -se cobertos de palavras de ordem, e as travessas de ir ao forno
foram moldadas de forma que os pães e os pudins emergissem com os
emblemas da filiação política da família.
Esta saturação da vida quotidiana pelo combate político antecipou
directamente o clima da Revolução Francesa, e houve muitas outras simi­
laridades: a transferência do sentimento patriótico do Príncipe para os
Cidadãos, a imputação de conluios sinistros com interesses estrangeiros à
consorte do governante, a criação de clubes para "educar" as pessoas nos
seus direitos e a ênfase em cerimónias e desfiles públicos para dramatizar
a "liberdade armada " . E embora o conflito tenha começado como um
protesto contra o poder que o governo do stadhouder detinha para con­
trolar as nomeações locais, os meios radicais utilizados para reclamar esse

' Respectivarnente, o Correio do Baixo Reno e o Correio Político. (N. do T.)


2 " Governador", neste caso o chefe do Estado. (N. do T. )
1 Cão que s e tornou o símbolo dos rebeldes contra a Casa d e Orange e cuj o nome deu
origem a urna raça . A palavra significa "Cão ( hond) de Kees ( alcunha de C ornelis de
Gij selaar, líder da rebelião ) " . ( N. do T. )
S imon S chama 1 CIDADÃOS

direito geraram eles próprios novos obj ectivos. Dos ataques à Casa de
Orange, os j ornalistas e o C orpo Livre apontaram as baterias a todo o sis­
tema tradicional de ocupação de cargos na Holanda, segundo o qual os
"regentes " assumiam o cargo a título vitalício e eram substituídos por
membros cooptados do seu meio . Contra esta "aristocracia", descrita na
literatura polémica como uma "monstruosidade gótica" e uma "tirania ",
um sistema democrático de eleições directas e frequentes purificaria a
política holandesa e recriaria a República no imaginado vigor das suas
origens .
Apesar de a retórica dos Patriotas holandeses se expressar principal­
mente no idioma padrão tardo -setecentista dos direitos universais, esta
revolução em miniatura tinha muita coisa que a um visitante francês
pareceria espantosamente paroquial. Nos apelos à memória dos heróis
mortos - por exemplo, o almirante de Ruyter e Johan de Witt4 -, ele teria
encontrado ecos do passado e não prenúncios do futuro . A situação pare ­
cer-lhe -ia mais uma querela entre facções do que uma guerra entre "aris­
tocracia" e "democracia" . Mas apesar de os tumultos provocados pelos
Patriotas nunca terem sido levados tão a sério pelos governos franceses
como os assuntos americanos, os destinos de ambos os países emaranha­
ram-se de modo complexo .
Desde a guerra americana, a República Holandesa era um aliado e um
elemento importante - ainda que bastante impotente - da coligação anti­
britânica criada por Vergennes. Além disso, o mercado financeiro de
Amesterdão tornara -se uma fonte vital de empréstimos de curto prazo,
muitos dos quais eram fornecidos por sindicatos cuj as simpatias iam para
os Patriotas e não para os orangistas. O dinheiro e a política "americana "
dos Patriotas pareciam caminhar de mãos dadas. Sendo a Casa de Orange
tradicionalmente pró-britânica, quanto mais embaraçada fosse maiores
seriam as hipóteses de ser substituída por um regime francófilo formado
pelos Patriotas. Mas esta oportunidade de ouro não era isenta de riscos .
O confronto a q u e se assistia n a República Holandesa estava a descambar
rapidamente para uma guerra civil. Com o endurecimento das tácticas de
rua fez aumentar correspondentemente o nível de preocupação em
Versalhes. Um enviado francês à Holanda relatou que "a agitação que aqui
existe fez progressos terríveis e se não for travada receia -se que possa pro ­
vocar uma explosão de consequências incalculáveis " .
Mas n a Primavera d e 1 7 87 intensificou-se a militarização do conflito.
Em Maio, teve lugar a primeira batalha campal, ainda que numa escala
reduzida, perto de Utreque, com os Patriotas a levarem a melhor. No fim
de Junho, a princesa Guilhermina foi capturada pelos Patriotas quando se

' D uas grandes figuras do século XVII, respectivamente, o herói das guerras anglo-holan­
desas e o maior estadista das Províncias Unidas . (N. do T. )
211

deslocava entre o bastião orangista da Guéldria para Haia, em busca de


apoios, e ficou indignamente detida na fronteira oriental da província da
Holanda . O irmão, Frederico Guilherme, rei da Prússia, ficou despeitado
com a humilhação e, incitado pelo embaixador britânico, preparou uma
invasão.
O que deveria a França fazer perante semelhante crise? Luís XVI
nunca escondera o seu desagrado pela conduta dos Patriotas e não estava
inclinado para intervir a seu favor. Antes da sua morte, em Fevereiro,
Vergennes tinha deixado bem claro que a satisfação decorrente da elimi­
nação da influência britânica não deveria ser tida como uma aprovação da
insurreição . Mas apesar destas reservas, fora indubitavelmente transmi­
tida a impressão à Holanda de que a França faria uso do seu poderio mili­
tar para dissuadir e contrariar a ameaça de uma intervenção
anglo-prussiana, e existiam vozes em França, algumas delas famosas e
eloquentes, que proclamavam a indivisibilidade da causa da liberdade -
era tão óbvia em Amesterdão e Utreque como o fora em B oston e
Filadélfia . Mirabeau ( com a bênção do seu mais recente patrono, o duque
de Orleães ) publicou o apelo Aux Bataves Sur Le Stathouderat, denunciando
a infâmia do stadhouder, e Lafayette cavalgou a toda a brida para a fron­
teira holandesa na expectativa de ser nomeado para o comando das tro ­
pas dos Patriotas, para descobrir ( com grande desilusão) que j á fora
confiado ao conde de Salm, um mercenário incompetente .
A política externa francesa viu -se num grande dilema. Se nada fosse
feito para impedir uma invasão prussiana, a credibilidade do poder e da
autoridade da França sofreriam uma humilhação desastrosa praticamente
à porta de casa. Uma presença militar simbólica, aliada à circulação de
boatos de mobilização, poderia ter um efeito dissuasor, mas se o estrata ­
gema não resultasse a escolha entre a guerra e a capitulação seria ainda
mais humilhante . C ontudo, ir para a guerra em nome de uma causa repu­
diada pelo rei parecia igualmente irresponsável. O factor decisivo acabou
por ser o dinheiro . Embora os ministros do Exército e da Marinha, Ségur
e De Castries, considerassem indigno pôr um preço na honra e integridade
da França, foram ignorados pelo novo ministro principal, Loménie de
Brienne . Ressuscitando as previsões de Turgot acerca dos custos da guerra
americana e evocando as difíceis lições aprendidas depois do conflito,
Brienne avisou que qualquer tipo de acção militar atiraria de imediato o
Estado para a bancarrota. "Pas un sou", foi a lúgubre mensagem transmi ­
tida por Versalhes ao embaixador francês em Haia.
O s B ritânicos e os Prussianos não precisaram de muito tempo para
descobrir que os rumores que davam conta de trinta mil soldados fran­
ceses acampados na fronteira sul da República eram falsos. Não obstante
todas as suas poses de milícias de cidadãos, a resistência armada dos
Patriotas desmoronou-se perante as tropas prussianas e passado um mês
S imon S chama 1 CIDADÃOS

os granadeiros do duque de B runswick chegavam a Amesterdão e Haia.


Milhares de Patriotas amargurados fugiram para França, onde contribuí­
ram para o aumento da dívida pública exigindo e obtendo pensões a
título de refugiados honrosos. Lafayette lamentou publicamente a honra
maculada da França, erguida bem alto na América e arruinada na
Holanda .
A crise holandesa pôs brutalmente a nu a perda de credibilidade do
poderio francês. As coisas pareciam ter chegado a um ponto em que
enquanto não fosse tomada uma atitude drástica a França não se poderia
dar ao luxo de conduzir uma política externa digna de uma grande potên­
cia. A exclusão da opção militar por Brienne foi a funesta admissão de que
a monarquia estava refém do défice e significou que a monarquia nunca
recuperaria a sua liberdade de acção através de nenhum tipo de paliativo .
Levando o argumento um pouco mais longe, poder-se-á dizer que, a par­
tir daquele momento, o absolutismo tradicional estava manifestamente
morto. Restavam apenas duas alternativas, e nenhuma delas poderia
devolver à Coroa francesa a plenitude de poder usufruída por Luís XIV.
A primeira era a reforma de cima para baixo, uma reforma suficiente ­
mente dramática para galvanizar o apoio popular e que permitisse à Coroa
preservar pelo menos a iniciativa na reconstrução da constituição.
A segunda opção, mais sombria, era uma espécie de abdicação voluntária
na qual a autoridade do Estado seria transferida da Coroa para uma espé­
cie de regime semiparlamentar investido nos Estados Gerais. Em 1 787,
alguns observadores acreditavam que isto j á tinha acontecido. Referindo­
-se a uma reunião particularmente capciosa dos Notáveis, Du Pont de
Nemours comentou que:

no dia 1 de Maio, a França ainda era uma monarquia e a primeira da


Europa. No dia 9 de Maio . . . a França tornou-se uma República na qual
continua a existir um magistrado decorado com o título e as honras da rea­
leza mas que está para sempre obrigado a reunir o seu povo para lhe pedir
que supra as suas necessidades, para as quais as receitas públicas, sem este
novo consentimento nacional, serão sempre inadequadas. O rei de França
transformou-se em rei de Inglaterra .

Mas nem toda a gente estava preparada para aceitar que o Antigo
Regime perecera de inanição. A história do seu último e notável governo,
liderado por Loménie de B rienne, foi a defesa obstinada das possibilidades
do absolutismo esclarecido, e a sua derrota o reconhecimento de que a
representação era a condição para a reforma e não o contrário.
2 13

II O Ú LTIMO GOVERNO D O ANTIGO REGIME

Para sobreviver, a monarquia francesa necessitava de reformas deter­


minadas e de políticas engenhosas. O governo de Loménie de Brienne
deu -lhe muitas das primeiras e nenhuma das segundas, o que surpreende
ainda mais tendo B rienne sido uma figura da oposição recrutada para legi­
timar as reformas que criticara na Assembleia de Notáveis . Todavia, a ver­
dade é que depois de ter passado " de fora para dentro", também ele caiu
vítima da premissa tradicional de que o governo e a política eram mutua­
mente incompatíveis. Do ponto de vista do governo, a política acabara por
significar oposição e oposição era sinónimo de obstrução. Por conseguinte,
as reformas tinham de ser implementadas apesar da obstrução e não atra ­
vés da cooperação.
Diga - se que Brienne não era inflexivelmente hostil à governação atra­
vés da representação, e nem sequer aos Estados Gerais. No Outono de
1 788, comprometeu -se a convocar este órgão, prometendo que estaria
pronto a funcionar em 1 7 92, o mais tardar. No entanto, dada a condição
manifestamente catastrófica das finanças francesas, B rienne não quis
esperar pelos Estados Gerais para resolver a situação. Dinheiro primeiro,
eleições depois; foram estas as suas prioridades para lidar com o que con­
siderava ser ( com alguma justificação) uma emergência nacional ( depois
de 1 798, os governos da Revolução chegariam praticamente à mesma
conclusão ) .
Muitas das suas dificuldades tiveram origem na frustração de expecta ­
tivas do público . B rienne chegara ao poder beneficiando da desgraça de
Calonne . Houvera um breve interregno no qual o idoso Bouvard de
Fourqueux fora nomeado controlador-geral, mas ele era visto como um
dependente de Calonne e repugnara os Notáveis. Brienne, pelo contrário,
parecia aceitável a toda a gente . A rainha ( algo improvavelmente, dado o
pronto ataque do ministro às sinecuras e despesas da corte ) promoveu
com entusiasmo as pretensões dele j unto do marido . O clero, que ficara
extremamente nervoso com os planos de Calonne para atacar as suas
isenções fiscais, ficou encantado ao ver o arcebispo de Toulouse ocupar
um alto cargo e a opinião pública partiu do princípio de que ele evitaria
qualquer tipo de procedimento arbitrário, implementando as reformas
através da consulta e da representação. Quando o rei se dirigiu aos
Notáveis, no dia 2 3 de Abril, recitou essencialmente as posições de
Brienne em várias matérias importantes: "Nunca um rei de Inglaterra
disse verdades mais populares ou falou numa linguagem mais nacional",
foi o veredicto do arcebispo de Aix.
Nem todos estes pressupostos estavam errados. Depois de assumir o
cargo, Brienne emendou o imposto predial de Calonne exactamente como
recomendara enquanto notável. Em vez de um imposto proporcional e
S imon Schama 1 CIDADÃOS

pago em especie, aumentando a par e passo com a produção, Brienne


redefiniu-o como uma quantia de dinheiro específica a ser determinada
pelas necessidades de receitas de cada ano . Esta verba seria depois dividida
por quotas, dando aos taxados uma ideia clara da sua contribuição de ano
para ano. Este método eliminava de imediato aquilo que fora publicitado
como o carácter sinistro e infinitamente expansivo do imposto. B rienne
acompanhou também a vontade dos Notáveis de alargar a todas as cama­
das da população ( e não apenas aos que eram corvéable) o imposto desti­
nado a substituir a corvée, a conscrição de mão -de-obra pelo Estado .
Outros pontos da agenda de C alonne, entre os quais o restabelecimento
do comércio livre de cereais e a instituição de uma união alfandegária,
não eram obj ecto de contenção e passaram para o programa do novo
governo.
Quando os Notáveis inspeccionaram os livros do governo, a situação
negra anunciada por Calonne deixou de ser vista como um truque publi­
citário para seu próprio proveito : era a realidade nua e cria, um défice de
1 40 milhões de libras francesas (posteriormente revisto para cima de 1 6 1
milhões ) . A magnitude da crise levou Brienne a acreditar que, ao contrá­
rio do seu antecessor, poderia apelar a uma espécie de consenso patriótico
para a toma de um amargo remédio fiscal. Além do mais, a administração
que reuniu à sua volta para cumprir os seus compromissos em matéria de
redução de despesas e de obtenção de receitas era de elevada qualidade
em termos intelectuais e administrativos. É verdade que se tratava de um
grupo muito fechado de amigos e parentes . B rienne convenceu
Lamoignon, primo de Malesherbes, a trocar a botânica pelo bem público
e a tornar-se guardião dos Selos. La Luzerne, sobrinho de Malesherbes,
tornou -se ministro da Marinha depois de De Castries se ter demitido por
causa da crise holandesa, e o irmão de B rienne assumiu a pasta do
Exército .
Mas, no princípio, o governo não foi acusado de ser uma cabala fami­
liar, o que se deveu, em parte, à elevada reputação de integridade e inte­
ligência dos seus membros. Chrétien-François de Lamoignon fora um dos
mais admirados e respeitados presidentes do Parlamento de Paris, pelo
que era considerado um elo de ligação útil à magistratura, que era noto ­
riamente recalcitrante . Malesherbes continuava a ser uma espécie de
herói popular e quando entrou para o governo, no Verão de 1 788, tomou
a seu cargo a redução das despesas da casa real que iniciara no consulado
de Turgot. Os palácios e os pavilhões supérfluos foram vendidos, o que
gerou uma poupança de cinco milhões. Malesherbes atreveu-se inclusi­
vamente a intrometer-se na esfera mais sagrada da corte, a caça, votando
à extinção bandos de falcoeiros e matilhas inteiras de caçadores de lobos
e de javalis . Fundiu os grandes estábulos reais com os mais pequenos e
poupou dois a quatro milhões de libras, mas ao fazê -lo provocou a rainha,
215

que viu tornar- se redundante o duque d e C oigny, seu favorito. O s cargos


criados no serviço postal como sinecuras para o clã Polignac foram pura e
simplesmente abolidos e as pensões para os beneficiários com menos de
setenta e cinco anos de idade ( uma fonte notória de abusos ) substancial­
mente reduzidas .
Tudo isto contribuiu para tornar plausível a declaração do governo de
que governaria de forma severa para o bem comum, até porque o próprio
Brienne estabelecera uma reputação de independência com as suas críti­
cas inequívocas na Assembleia de Notáveis. Brienne era oriundo de um
círculo de prelados extremamente cultos ( como Dillon de Narbonne e
Boisgelin de Aix ) , que combinavam o encanto e a sofisticação mundanos
com uma considerável firmeza intelectual. Apesar de padecer de uma
doença da pele que lhe deixava frequentemente o rosto numa massa de
escamas e tecidos soltos, Loménie de B rienne era considerado um homem
bem apresentado e agradável, tão inteligente como Calonne mas sem a
sua vaidade ou duplicidade . Só o dramaturgo Marmontel, que serviu
numa comissão incumbida de elaborar um plano de educação nacional,
considerava "a sua boa disposição demasiado inquietante e seu semblante
demasiado calculista para inspirar confiança " .
Brienne não queria ser visto como o mero engenheiro d a salvação fis ­
cal - p o r muito crucial q u e esta fosse. Acreditava que a legitimidade do
seu governo dependia de ser visto como uma administração reformista
que chegaria a muitas áreas da vida francesa. Instado por Malesherbes
( que por sua vez era pressionado pelo pastor Rabaut Saint-Etienne, seu
amigo ) , Brienne implementou a emancipação civil dos protestantes, um
feito que não era de somenos para o governo de um arcebispo da Igreja
Galicana. Rabaut contara com uma plena emancipação, traduzida no
direito de os protestantes praticarem a sua religião, incluindo a possibili­
dade de orarem publicamente em capelas, e insistiu que os cargos públi­
cos lhes fossem abertos, mas isto teria sido pressionar demasiado Luís XVI,
que jurara, aquando da coroação, " extirpar os hereges". Durante mais
algum tempo, os pastores teriam de se contentar com os púlpitos portá ­
teis . No entanto, a medida aprovada descriminalizou a "heresia ", possibi­
litou o registo notarial de casamentos, nascimentos e mortes e permitiu
que os membros da Igrej a Reformada praticassem artes e ofícios.
Decorrido um século sobre a revogação do Édito de Nantes, os hugueno­
tes voltavam a ser pessoas civis.
No mesmo espírito de liberalismo j udicial, foi abolido o último proce ­
dimento que recorria à tortura para a obtenção de informações sobre
cúmplices. A bota, os anj inhos e os tubos para o suplício da água foram
lançados para a fogueira de anacronismos que crepitou alegremente no
último ano da antiga monarquia . Uma comissão presidida pelo parlamen­
tar ( e futuro revolucionário) Target recomendou a suspensão temporária
S imon Schama 1 CIDADÃOS

da aplicação de todas as sentenças de morte para uma possível reanálise


dos casos e subsequente comutação pelo rei - uma medida que, no
entanto, foi considerada inaceitável pelo Parlamento . Refira -se ainda que
a administração das prisões foi alvo de um inquérito - com incidência no
alojamento e no vestuário - tendo em vista a sua reforma .
O mais formidável de todos os colegas de B rienne, apesar de não deter
nenhuma pasta ministerial, era uma figura na qual o poder político e a
autoridade intelectual se concentraram a um nível quase alarmante . Era
ele Jacques, conde de Guibert, crítico teatral, laureado da Academia
Francesa e, até ao advento de Clausewitz, o teórico militar mais influente
da Europa . Aos quarenta e três anos de idade, era um dos grandes prodí­
gios da vida intelectual francesa. Ocasionalmente acometido de acessos de
uma sombria melancolia romântica, Guibert brilhava em público, descon­
certando os ouvintes com os seus conhecimentos enciclopédicos de ciên­
cia, filosofia e literatura . "A sua conversação", escreveu a filha de Necker,
Germaine de Stael ( que não se impressionava com facilidade ) , "era a mais
abrangente, viva e fértil que alguma vez ouvi " .
Guibert estabelecera a sua reputação dezasseis anos antes, com o seu
Essai Général de Tactique. Este documento profético e assustador previra com
arrepiante presciência uma época em que a guerra deixaria de ser o des­
porto cavalheiresco dos dinastas e em que os exércitos já não formariam
obedientemente em linhas de infantaria segundo o modo tradicional de
Frederico, o Grande. Guibert previu o emprego em massa de exércitos de
conscritos e o seu envolvimento em guerras de ideologia nacional nas
quais as distinções entre civis e soldados se turvariam e em que o teatro de
operações se expandiria brutalmente, abarcando não só as zonas de com­
bate delineadas mas também regiões e países inteiros. Seguindo esta linha
de pensamento, Guibert remodelou a logística, a artilharia de campanha e
a engenharia militar, colocando a ênfase na mobilidade, na irregularidade,
na adaptabilidade - pecados cardinais nos manuais antigos. Em Março de
1 788, Guibert agrupou regimentos de cavalaria e infantaria em brigadas
combinadas que foram depois treinadas intensamente para adquirirem um
elevado estado de prontidão. Por conseguinte, Guibert, uma figura do
"Antigo Regime ", foi o verdadeiro arquitecto da ascendência militar fran­
cesa nos anos vindouros (Napoleão reconheceu-o inequivocamente ) .
Numa passagem que foi e tem sido muito citada, Guibert escreveu:

Suponhamos que aparece na E uropa um povo que combina as virtudes


austeras e um exército de cidadãos com um plano de agressão bem gizado
e que cumpre com rigor - compreendendo como travar a guerra economi­
camente e como viver às custas do inimigo . . . este povo subj ugaria os seus
vizinhos e derrubaria a nossa débil constituição como um temporal dobra
os caniços .
217

Guibert estava oficialmente subordinado a o ministro d o Exército, o


conde de Brienne ( irmão mais novo de Loménie ) , que sucedeu a Ségur
quando este se demitiu por causa da crise holandesa, mas, na realidade,
foi Guibert quem assumiu de imediato o controlo sobre um novo conse­
lho de guerra de nove membros que combinava oficiais superiores, admi­
nistradores e estrategos - o embrião de um estado-maior geral. Convicto
de que conseguiria ao mesmo tempo poupar dinheiro e tornar o exército
mais eficiente, Guibert encerrou a Escola Militar de Paris, que suspeitava
há muito de ser mais uma escola de etiqueta e boas maneiras para aristo ­
cratas do que um centro de instrução a sério, e substituiu -a por doze esco­
las de província, generosamente dotadas de bolsas para aj udar os filhos da
pequena nobreza rural. Foi precisamente numa destas escolas - em
Brienne, apropriadamente - que B onaparte estudou . A casa militar do rei,
outra instituição decorativa, foi igualmente sangrada e os coronelatos­
-generais, reservados para a família real, foram sendo eliminados depois
da morte dos respectivos detentores . Guibert reduziu também bastante o
corpo de oficiais, convicto de que a sua inflação tinha desvalorizado o sig­
nificado da hierarquia e pervertido a cadeia de comando. De forma mais
significativa, o negócio notoriamente corrupto das compras militares foi
tirado das mãos dos fornecedores privados e colocado sob administração
directa do Estado - outra inovação mantida pela Revolução.
Com estas reformas e outras, Guibert conseguiu uma poupança na
casa dos trinta milhões de libras, o que lhe permitiu aumentar o pré dos
soldados, que caíra para uma ninharia . Mas seria enganador apresentar
Guibert como o "Iluminismo em Armas". O seu lado mais escuro nunca
deixou de estar em evidência . Tornou as disposições disciplinares do
código militar mais e não menos selvagens, ainda que bastante menos
arbitrárias, e também não foi nenhum igualitário em termos sociais. Pelo
contrário, embora estivesse disposto a ver j ovens brilhantes das classes
médias e dos ofícios ocupar postos na artilharia e na engenharia, era da
opinião de que o grosso do corpo de oficiais tinha de provir da nobreza .
Paradoxalmente, esta postura não era inconsistente com a sua visão de
um exército renascido, de um exército de cidadãos. O que Guibert queria
era eliminar do exército o ethos do dinheiro e substitui-lo por um ideal
neo-romano de sacrifício patriótico e coragem física, valores que associava
a uma nobreza transformada, uma nobreza não definida pelos privilégios
e muito menos pela riqueza, mas antes como uma profissão inabalável de
devoção ao serviço do Estado .
Este programa era muito pouco tendente a tornar Guibert querido dos
militares profissionais, fossem eles oficiais ou soldados. Os primeiros não
gostaram dos seus malabarismos com a independência dos regimentos e
muito menos da sua atitude puritana face às promoções; os segundos
viram a satisfação do aumento do pré anulada pelas severas punições
S imon S chama 1 CIDADÃOS

vertidas nos novos manuais. Além disso, os estrategos da velha escola não
tinham em grande conta as noções "lunáticas" de Guibert de guerra sem
inibições e da imposição de uma destruição demoníaca a um inimigo
enfraquecido . O efeito global das suas reformas foi perturbador, talvez
mesmo desmoralizador no curto prazo . Guibert tinha um temperamento
verdadeiramente revolucionário preso no corpo da governação régia.
Quanto mais visionárias foram as reformas do governo de B rienne,
menos o público as apreciou. A emancipação dos protestantes foi profun­
damente impopular e deu azo a manifestações de rua nas regiões mais
devotas da França, no Oeste e no Sudeste ( esta questão seria um dos gran­
des motivos de divisão durante a Revolução ) . As assembleias provinciais
que Brienne preservara das propostas de Calonne e que foram criadas em
1 787 e 1 78 8 tinham sido concebidas como um exercício de devolução,
mas em grande parte da França (não em toda ) foram estigmatizadas como
brinquedos do governo e instrumentos das suas políticas fiscais.
Nem a seriedade da crise financeira, no fim da Primavera de 1 787, nem
a reconhecida excelência das reformas do governo foram suficientes para
desarmar as insuperáveis objecções políticas aos procedimentos governa­
tivos tradicionais . A Assembleia de Notáveis, concebida por C alonne para
obviar a oposição, tinha, ao levar- se a si própria a sério, virado do avesso
as prioridades convencionais. A representação e o consentimento eram
agora requeridos não como auxiliares do governo mas como condição
para o seu funcionamento, e ao apresentar o seu caso ao público - lite­
ralmente aos púlpitos do clero -, Calonne tornou a política uma questão
de atenção nacional. Aberta a caixa de Pandora, revelou -se impossível
fechar a tampa e a administração de B rienne soçobrou nas mesmas dis­
córdias que tinham vitimado o seu antecessor. Os Notáveis estavam dis­
postos a autorizar a contracção de empréstimos para salvar o governo da
bancarrota imediata e a aceitar as reformas económicas, mas foram infle­
xíveis na questão do imposto predial e do imposto de selo que o comple­
mentava : só os Estados Gerais tinham autoridade para tornarem essas
medidas legais. Confrontado com esta relutância, Brienne dissolveu a
Assembleia, no dia 2 5 de Maio .
As alternativas que lhe restavam eram por demais óbvias . Podia con­
verter a monarquia num regime representativo convocando ele próprio os
Estados Gerais no pressuposto de que o acto geraria a confiança pública -
logo, os fundos públicos - para sustentar o governo . Ou podia tentar ven­
cer a esperada oposição dos Parlamentos à nova política fiscal através de
uma combinação judiciosa de incentivos e ameaças. Os perigos de ambas
as políticas eram evidentes e, no Verão de 1 787, ainda não era claro qual
dos rumos aliviaria ou agravaria a questão vital do crédito . Além disso,
numa altura em que seria de esperar alguma liderança por parte do rei,
Luís XVI fechou-se num mundo de alternância compulsiva entre caçadas
219

e comezainas, entre matar e empanturrar- se. Numa ocasião, foi encon­


trado a chorar e a lamentar a perda de Vergennes . Contudo, não obstante
a impotência neurótica do monarca, era óbvio para B rienne que ele não
estava preparado para aceitar o tipo de regime constitucional que poderia
gerar reformas através do consentimento.
Restava a via do confronto.

III O CANTO DO CISNE D O S PARLAMENTO S

A Assembleia de Notáveis é um exemplo típico de um grupo escolhido


a dedo para ser dócil a descobrir o que é fazer oposição. Quanto mais se
queixavam, mais entusiasticamente eram aplaudidos nos panfletos. Os
cães de colo do governo tinham-se convertido nos cães de fila do povo .
Muitos dos magistrados provinciais, conselheiros municipais e bispos que
tinham chegado a Versalhes com um sentimento pelo menos neutral em
relação à causa da reforma fiscal descobriram que lhes bastava recorrer à
obstrução para exercerem mais poder do que alguma vez tinham imagi­
nado . A sua entrada na vida política definiu -se, pois, como oposição e não
como cooptação, e esta truculência criativa persistiu mesmo depois da dis­
solução dos Notáveis.
O primeiro obstáculo com que o programa do governo chocou foi o
Parlamento de Paris . Quando a administração de B rienne apresentou as
suas propostas ao tribunal, em Maio e Junho de 1 787, o Parlamento
estava reunido na sua versão alargada, o Tribunal dos Pares . Esta expan -
são incluía vários pares laicos do reino, muitos dos quais tinham sido
Notáveis - tal como muitos dos principais magistrados. A intensidade da
oposição parlamentar não fora previamente concertada dado que o tri ­
bunal (bem como os pares complementare s ) começava a dividir- se em
relação aos custos políticos da oposição . O presidente, d' Aligre, que
representava os magistrados mais velhos e mais antigos, dera a entender
a Brienne que ele poderia contar com alguma cooperação do tribunal
em matéria de registo de empréstimos e de algumas das questões prin­
cipais deixadas pela agenda dos Notáveis, em particular, a união alfan­
degária e o restabelecimento do comércio livre de cereais. E assim foi,
no princípio . Nem as assembleias provinciais, vistas com profunda des­
confiança como dependências do governo e não como órgãos delibera ­
tivos verdadeiramente livres, suscitaram a oposição unida dos
Parlamentos provinciais. Mas d' Aligre e os seus colegas pró- governo,
entre os quais S éguier, viram -se confrontados no tribunal por dois gru ­
pos que recorreram à força bruta retórica para se apoderarem da inicia ­
tiva política e estigmatizarem a colaboração com o governo como uma
traição à tradição parlamentar.
S imon Schama 1 CIDADÃOS

Mas o que agravou a situação foi o facto de o mais poderoso destes dois
grupos provir dos escalões mais elevados da magistratura. Era liderado por
Jean-Jacques d'Eprémesnil, uma figura atarracada mas cuj a falta de altura
era mais do que compensada pelas suas eloquentes ferroadas . A posição de
d'Eprémesnil era conservadora ou mesmo reaccionária mas isso não com­
prometeu a sua popularidade; tê-la-á mesmo reforçado, já que muito do
futuro sentimento revolucionário derivaria mais a sua força de uma reac­
ção ferida do que de um progressismo nobre. A retórica de d'Eprémesnil
era reminiscente da resistência ao chanceler Maupeou e aos controladores­
-gerais de Luís XV. Ele reiterou a opinião generalizada de que os
Parlamentos eram responsáveis pela guarda das "leis fundamentais" da
França contra os desígnios ministeriais sobre as "liberdades do povo " . Mas
d'Eprémesnil tinha planos mais ambiciosos de reconstrução nacional, que
foram sumariamente afirmados como a "desbourbonização da França" .
A sua intenção era levar o argumento além d a resistência a éditos ilegais e
reclamar uma parte activa na actividade legislativa - ou seja, tratava -se de
uma redefinição da soberania. Em 1 777, d'Eprémesnil tinha deixado bem
claro que os Parlamentos não deviam ter um simples papel de resistentes .
A sua oposição teria de ser a parteira dos Estados Gerais, aos quais cabia
verdadeiramente a elaboração de novas leis . Volvidos dez anos, continuava
a ser esta a sua posição. Brienne terá suposto que a gravidade da crise
financeira persuadiria oradores como d'Eprémesnil a suspenderem esta
doutrina pelo menos até passar a emergência. Contudo, os leões do
Parlamento não estavam inclinados para a compaixão política . Pelo con­
trário, foi precisamente na aflição do governo que viram uma oportuni­
dade de ouro para forçarem o fim do absolutismo . Sim, haveria uma
revolução, uma revolução feita não com sangue mas através do direito,
uma versão francesa da Revolução Gloriosa de 1 688.'
O problema deste prognóstico era não ser credível para todos os que se
tinham j untado à oposição feita por d'Eprémesnil. Um grupo de advoga ­
dos do Parlamento, mais novos e agressivamente radicais (incluindo
Hérault de Séchelles e o seu amigo Lepeletier de Saint-Fargeau ) , via os
Estados Gerais não como o fim mas como o princípio de uma nova França.
Este grupo, liderado por Adrien Duport de Prelaville, de vinte e oito anos
de idade, constituía uma minoria no seio dos magistrados seniores da
"Grande Câmara " mas tinha um grupo de seguidores muito maior e muito
mais vociferante entre os advogados dos tribunais inferiores, os maítres
d 'enquêtes. Duport ascendera a conselheiro na Câmara com a tenra idade
de dezanove anos, era amigo de Lafayette e fizera da sua residência na

5 O derrube do rei Jaime II de Inglaterra por uma união entre o Parlamento e o exército

invasor de Guilherme de Orange, que ascendeu ao trono - uma revolução que pode ter sido
gloriosa, mas que, na verdade, fez correr bastante sangue. (N. do T. )
221

Rue d u Grand Chantier u m centro d e discussão sobre o futuro político da


França . Em casa de Duport ( ele tinha descartado o aristocrático "de
Prelaville " em 1 788, para se identificar com o Terceiro Estado ) , a conversa
não era acerca dos privilégios tradicionais nem dos antigos Estados mas de
soberania investida nos cidadãos. Muitos destes argumentos radicais
tinham sido expostos no Catechisme du Citoyen, de Saige, uma obra muito
lida e que fora reeditada em 1 7 88. Para o grupo de Duport, esta nova
soberania seria corporizada numa representação nacional, e nacional signi ­
ficava necessariamente a antítese do privilégio, da diferenciação e da sepa­
ração das ordens sociais .
Enquanto foi o Parlamento a parecer o foco d e resistência e , logo, o
alvo da força governamental, os dois grupos uniram-se numa demonstra­
ção de solidariedade . Ambos tinham interesse em negar ao governo toda
e qualquer possibilidade de executar o seu programa sem pagar o preço
da devolução constitucional. Mas logo que o preço foi fixado e a questão
da representação veio ao de cima, as diferenças afirmaram-se com uma
nitidez súbita e brutal e foram elas que acabaram por distinguir os cida­
dãos dos nobres e os revolucionários dos conservadores. O embaixador
britânico em Paris viu que, de uma maneira ou de outra, a campanha
oposicionista em curso era contraproducente : os parlamentares acabariam
por forçar o governo a recorrer a uma repressão drástica ou os
Parlamentos acabariam por ceder lugar a instituições mais representati­
vas. Em qualquer dos casos, seria "o último suspiro dos Tribunais
Soberanos". Nem todos os magistrados ignoravam o que estava em j ogo.
Etienne Pasquier, que se guindaria a chanceler do Império Napoleónico
mas que em 1 788 era um j ovem e impressionável advogado, recordaria
nas suas memórias que

as cabeças sensatas da Grande Câmara estavam preocupadas com esta pers­


pectiva . Nunca me esqueci do que me disse um daqueles velhos j uízes
quando passou por detrás do meu banco e me viu todo entusiasmado.
"Jovem, no tempo do seu avô foi avançada uma ideia semelhante . "
E depois disse: "Meus senhores, isto não é uma brincadeira d e crianças; na
primeira vez que a França vir os Estados Gerais, verá também uma confu ­
são terrível. "

Mas as reservas que eventualmente existiam foram abafadas pelo


poder inspirador da retórica de d'Eprémesnil. O esquema de Brienne,
complementar as receitas do imposto predial com um imposto de selo, fez
o j ogo de d'Eprémesnil, pois além de evocar o imposto que desencadeara
a "causa sagrada" da liberdade na América, o orador parlamentar conse­
guiu pintá -la como uma imposição que atingiria tanto o grande como o
humilde, que embrulharia comerciantes, livreiros, lojistas e artesãos em
S imon Schama 1 CIDADÃOS

resmas de papel e que constituiria um pretexto adicional para que a mão


do governo pesasse ainda mais nos ombros dos cidadãos indefesos. Em
relação às multas a aplicar aos que não selassem a sua papelada,
d'Eprémesnil brotou uma cascata de oratória melodramática:

É cruel imaginar o cidadão sozinho que vive na mais profunda solidão, o


calmo comerciante que labuta em prol do comércio nacional . . . o sábio
médico que consagra o seu labor ao bem-estar das famílias . . . todos eles
confrontados com a horrível perspectiva de se verem ligados por uma gri­
lheta comum e suj eitados, na altura em que menos se julgavam vulnerá­
veis . . . a multas cuj o peso devoraria . . . inocentes e culpados . . .

No dia 2 de Julho, o Parlamento, gozando o seu papel de defensor dos


fracos e dos oprimidos, rej eitou liminarmente o imposto de selo. Duas
semanas mais tarde, o imposto predial emendado sofreu o mesmo des­
tino . Tornou-se evidente para o governo que a maioria parlamentar
estava decidida a frustrar qualquer medida que permitisse ao Estado recu­
perar a sua liberdade de acção. Era inevitável uma colisão. No dia 6 de
Agosto, o rei convocou um lit de justice no Parlamento. A Grande Câmara
encheu-se de centenas de magistrados e pares do reino togados, suando
em bica sob o sufocante calor estival. Não obstante o ambiente dramático
da ocasião, Luís XVI levou a presença do "leito " cerimonial demasiado a
sério e adormeceu no princípio da sessão, obrigando Lamoignon a sobre­
por a sua voz ao potente ressonar que emanava de debaixo do dossel.
Congratulava -se, disse ele, pelo facto de o Parlamento ter aceitado os
princípios estabelecidos pelos Notáveis ( o Parlamento tinha efectivamente
registado éditos sobre o comércio de cereais, a corvée e a união alfandegá­
ria ) . Por conseguinte, as leis referentes ao imposto iriam então ser regis­
tadas na forma tradicional - le roi le veult.
No dia seguinte, d'Eprémesnil declarou ilegal a imposição dos éditos,
tornando -os nulos e írritos, uma opinião que foi formalizada através de
uma grande remonstrância. "O princípio constitucional da monarquia
francesa", declarou inequivocamente, "é que os impostos sejam consenti­
dos por quem os paga . " No dia 1 0 de Agosto, o Parlamento intensificou o
contra -ataque instituindo procedimentos criminais contra Calonne ( que
entretanto se pusera a salvo, em Inglaterra ) . Duport aproveitou para lan­
çar um ataque feroz contra o desacreditado ministro, que foi declarado
origem da infâmia e da corrupção - pecuniária, política e sexual. Calonne
era tão obnóxio que não o proscrever equivaleria a uma espécie de apoio
tácito . A vituperação de Duport, que se inspirou nas violentas polémicas
em circulação, da autoria dos publicistas B ergasse e Carra, constituiu um
momento importante na história da retórica revolucionária . Foi a pri­
meira vez que a acusação a um político se converteu na condenação geral
223

de uma administração em funções, apesar de esta nada ter a ver com a


sua conduta . Esta incriminação por associação seria um instrumento
típico dos grupos oposicionistas que exploravam a fome de vilões do
público para bodes expiatórios deste ou daquele desastre anunciado.
Durante a Revolução, estas campanhas gerariam não só patifes mas tam­
bém traidores, que seriam uns e outros não só desgraçados mas também
guilhotinados.
O Parlamento cavalgou as ondas espumosas da oratória sustentado
num poderoso e barulhento apoio do público . Além da Grande Câmara
propriamente dita, a Basoche6 - os escribas, os advogados de defesa, os
cadeirinhas, os impressores e os colporteurs, toda a comunidade do Palácio
da Justiça - formava uma claque perpétua e vociferante que incentivava
os seus heróis, apupava os vilões ( como o conde d'Artois ) e exortava os
magistrados a crescentes demonstrações de contestação . Por sua vez, estes
levaram o teatro para a Pont Neuf, o Palais-Royal, os cafés e uma
imprensa panfletária que a cada dia que passava se tornava mais desini­
bida nas suas denúncias do "despotismo" governamental. Os cartazes afi­
xados pelo governo eram arrancados logo a seguir, Lamoignon era
queimado em efígie nas ruas . E à medida que a resistência ganhou em
atrevimento, Brienne e Lamoignon enfiaram a carapuça estereotipada de
contra -revolucionários. Ambos deram mostras de uma espécie de inten­
cionalidade cirúrgica que antecipou as tácticas contra -revolucionárias sis­
temáticas do século XIX. A primeira coisa que fizeram foi encerrar o
"teatro" e deportar os actores - no dia 1 5 de Agosto, o Parlamento foi exi­
lado para Troyes. A 1 7, o Palácio da Justiça foi investido pelos Guardas
Suíços, que bloquearam as entradas e as saídas das câmaras para impedir
tumultos que pudessem impedir o registo dos éditos . Seguiu-se uma cam­
panha para silenciar a oposição. As tipografias foram alvo de incursões, os
jornais fechados e, em especial, foram encerrados todos os clubes ou
assembleias suspeitos de fomentar a oposição - que incluíam os clubes de
xadrez, antros notórios de subversão.
O exílio em Troyes e o súbito e pesado recurso à força pouco fizeram
para silenciar o clamor das ruas, mas pesaram indubitavelmente sobre os
magistrados. Pelo menos, predispuseram alguns dos menos valentes a
escutar os prudentes conselhos dos magistrados mais velhos, entre os
quais d' Aligre e Séguier. Ao mesmo tempo, em Agosto, tinha lugar uma
transformação interessante . Os intendants, no meio de grande alarde
patriótico, inauguravam as assembleias provinciais, declarando-as osten ­
tosamente uma transferência de poder do servo do rei para o Povo . Dado
que os membros das assembleias se compunham dos níveis mais baixos da
profissão jurídica, de funcionários, de médicos e da nobreza leal - ou seja,

' Guilda dos funcionários dos tribunais de Paris. (N. do T.)


S imon S chama 1 CIDADÃOS

das classes alfabetizadas -, foram intencionalmente concebidas para anu ­


lar as pretensões dos Parlamentos de serem representativos da Nação, em
especial nas questões de ordem fiscal . A despedida formal dos intendants
sublinhou esta revolução pacífica . Ao inaugurar a assembleia da Ilha de
França, a 1 1 de Agosto, Bertier de Sauvigny declarou: "A Nação convo ­
cou -vos . . . iluminados pelo vosso interesse e movidos pelo espírito do
patriotismo, não mostrareis menos zelo do que eu no estabelecimento de
uma proporção j usta para os impostos . . . sereis movidos às lágrimas pelo
enorme fardo que oprime os taxáveis . "
N o dia 2 0 d e Agosto, n a Alsácia, De L a Galaiziere, num discurso notá ­
vel, foi ainda mais consciente do significado do momento . Tratava -se,
disse ele aos presentes,

de uma época memorável na história do nosso século e da nossa nação . . .


O tempo, os avanços do conhecimento e a modificação dos costumes e
das opiniões geraram e necessitaram de revoluções [foi a sua palavra
exacta] no sistema político dos governos. Há trinta anos que vemos a
sementeira invisível de ideias patrióticas em todas as mentes . Hoj e, todos
os cidadãos desej am ser chamados em apoio do bem geral. Há que conti ­
nuar a encoraj a r esta postura . O que o rei mais desej a é a felicidade dos
seus súbditos.

Os intendants competiam entre si em expressões de zelo pelo bem


comum. Em Caen, por exemplo, Cordier de Launay comparou Luís XVI
com S ólon e Licurgo e declarou que o seu coração ardia "com um novo
patriotismo " .
O encoraj amento autorizado deste tipo d e linguagem representou cla­
ramente uma tentativa de o governo se intrometer entre os Parlamentos
e o povo . Ao sublinhar a equidade social dos trabalhos de avaliação fiscal
e cooptar pessoas que de outro modo poderiam integrar o campo parla­
mentar, o governo tentou demonstrar que as reformas eram populares e
não burocráticas, e os seus esforços não foram em vão. Existem indícios
de que durante todo o Outono, as assembleias provinciais lançaram com
afinco mãos à obra e que os protestos parlamentares se tornaram desco­
nexos e ineficazes, um desenvolvimento que terá provocado uma atitude
mais conciliatória por parte do Tribunal dos Pares, em Paris. Ao mesmo
tempo, vozes mais moderadas no seio do governo tentavam pôr de pé um
compromisso que permitisse obter receitas sem confronto político .
A inclusão de Malesherbes no governo, em Agosto, foi especialmente sig­
nificativa porque ninguém levava as remonstrâncias mais a sério do que
ele. Malesherbes recordou aos seus colegas que quer gostassem quer não,
"presentemente, o Parlamento de Paris é o eco do público de Paris . . . e o
público de Paris é o eco de toda a Nação . . . Por conseguinte, estamos a
225

lidar com a Nação e é perante a Nação que o rei responde quando res­
ponde ao Parlamento " . Malesherbes também não receava a convocação
dos Estados Gerais . De facto, considerava-os uma forma de reforço e não
de diminuição da autoridade da monarquia.
Havia, pois, espaço para negociação de ambos os lados . Porém, no
compromisso que emergiu em S etembro, foi B rienne quem pareceu ter
feito mais cedências . O novo imposto predial que tinha estado no cora ­
ção do programa de reformas e do qual dependia uma grande reconstru -
ção das finanças públicas foi posto de lado, e com ele o indesejado
imposto de selo. No seu lugar, B rienne pediu exactamente o tipo de
paliativo que tanto ele como Calonne tinham esperado evitar: uma ving­
tieme ( a incidir, como todas as vingtiemes anteriores, sobre todas as cama ­
das da população ) . Seria cobrada durante um período de cinco anos,
findo o qual se convocariam os Estados Gerais . O édito de suspensão
imposto aos Parlamentos foi também revogado. Ao abandonar o con­
fronto, o governo esperava comprar cinco anos de paz política durante os
quais as finanças do Estado poderiam ser sanadas. No fundo do túnel,
mais do que luz, ver- se-ia o ofuscante brilho real. No dia 1 9 de
Novembro, Lamoignon acenou ao Tribunal dos Pares com uma visão
radiosa para 1 7 92 :

Sua Maj e stade, no meio dos seus Estados, rodeado dos seus súbditos fiéis,
apresentando-lhes confiantemente o retrato tranquilizador das finanças
em ordem, da agricultura e do comércio promovendo -se mutuamente sob
os auspícios da liberdade, de uma marinha formidável, do exército regene­
rado por uma constituição mais económica e militar, do fim dos abusos, de
um novo porto construído no C anal da Mancha para garantir a glória da
bandeira francesa [Cherburgo ! ] , de leis reformadas, da educação pública
aperfeiçoada . . .

Embora os membros mais radicais da magistratura tivessem relutância


em aceitar toda e qualquer coisa que o governo tivesse para oferecer, as
opiniões dividiram-se quanto ao nível de obstrução que o tribunal lhe
deveria fazer. Por conseguinte, o resultado dos trabalhos de 1 9 de
Novembro foi inconclusivo. O governo continuava a dar mostras de falta
de tacto. Receoso de que os magistrados moderados fossem intimidados,
voltara a encher de guardas o Palácio da Justiça. A presença dos militares
fez subir a tensão. D 'Eprémesnil e o conde d' Artois quase se pegaram ao
soco por causa da importantíssima questão do estacionamento das res­
pectivas carruagens. Mas a forma dada à reunião pretendia ser tranquili­
zadora: uma séance royale, na qual era permitido ventilar todo o tipo de
opiniões, e o rei sentou -se numa tribuna e não debaixo do sombrio dos­
sel que simbolizava a compulsão do lit de justice.
S imon S chama 1 CIDADÃOS

Depois de um longo dia de discursos desconexos, dava a sensação de


que o Parlamento iria efectivamente registar os novos éditos, mas uma
súbita e imprevista viragem dos acontecimentos deitou por terra o relu­
tante consenso . O rei, possivelmente irritado com os sucessivos apelos à
convocação dos E stados Gerais antes de 1 7 92 e decidido a evitar uma
votação sobre a matéria, mandou impulsivamente converter a sessão
real num lit de justice. A resposta a este brusco procedimento foi um
silêncio horrorizado, que acabou por ser quebrado no canto mais impro ­
vável . Numa atitude que era, no mínimo, inesperada, Philippe, duque
de Orleães, primo do rei, levanto u - s e . O s membros da família real - os
B ourbon, os C ondé e os Orleães ( mas não os C onti) - eram célebres pela
sua manifesta incapacidade de articularem em público algo que não
fosse prescrito pelo ritual cerimonial. Artois, que fulminava de forma
impressionante em privado, tentou por diversas vezes defender a von­
tade régia no Tribunal dos Pares, mas soçobrou invariavelmente numa
incoerência gaga ou num silêncio amuado. Orleães, o grande proprietá­
rio e patrono do Palais-Royal, gostava de se rodear de espirituosos e
intelectuais. As equipas de ociosos literários ( incluindo Mirabeau e
C hoderlos de Lado s ) que produziam polémicas em seu nome conferi­
ram - lhe uma reputação imerecida de intervenção política. No entanto,
a sua intervenção no dia 1 9 de Novembro foi um choque tremendo
tanto para os seus detractores como para os seus admiradores. Virando­
-se para o rei, observou: " S enhor, peço a Vossa Maj e stade que me per­
mita apresentar a vossos pés e no coração deste tribunal [a opinião] de
que considero este registo ilegal. "
Foi um daqueles momentos teatrais que, parados n o tempo e ornados
nas memórias do filho, seriam apresentados como o primeiro tableau
revolucionário. A resposta do rei foi num tom caracteristicamente errado :
petulância seguida de facécia . "O registo é legal porque ouvi a opinião de
toda a gente. " E depois rematou a bizarra falácia com uma graçola impro­
visada dirigida a Orleães: "Mas tanto se me dá, vós é que mandais . "
O efeito deste peculiar espectáculo n ã o poderia ter sido pior: o despotismo
sem coragem de assumir as suas convicções.
Luís XVI e os irmãos abandonaram o Parlamento; Orleães ficou e reci­
tou um texto que lhe fora obviamente preparado confirmando a ilegali­
dade dos trabalhos . A sua estratégia de se transformar num herói popular
viu -se ainda mais j ustificada ao ser detido e exilado para a sua proprie­
dade de Villers - Cotterêts, onde se deliciou na reputação de mártir da
causa da liberdade - o seu palácio até começou a assumir o carácter de
uma corte alternativa. Foram também detidos dois outros parlamentares,
acusados de terem falado de forma insolente.
A intervenção de Orleães revelou-se outro ponto de viragem na sabo­
tagem de toda e qualquer reforma colaborativa entre o governo e os
227

Parlamentos. Resignado a recorrer a demonstrações de força mais siste ­


máticas, B rienne entendeu que pouco teria a perder levando a questão
do imposto mais longe do que o sugerido pelo seu acordo de Setembro
com os Parlamentos. A vingtieme deixou de ser considerada um imposto
sem metas a atingir para passar a requerer a colecta de um montante de
receitas predeterminado. Quaisquer valores em falta seriam compensa ­
dos pelas chamadas abonnements, que eram, na prática, complementos
impostos pelas assembleias provinciais . Este esquema parecia -se dema­
siado com o imposto predial abandonado, que agora era promulgado de
forma dissimulada .
Em consequência desta manobra, a credibilidade das assembleias pro­
vinciais como bastiões do bem-estar do povo viu-se fatalmente afectada.
Os seus membros começaram a resistir aos intendants ou desistiram de
cooperar com o governo e expressaram o seu apoio aos Parlamentos. Em
Janeiro de 1 788, Lafayette fez saber a Washington o gozo que lhe tinha
dado a sua actuação na assembleia do Auvergne, em Riam, onde conse­
guira obstruir as tentativas de colecta de receitas adicionais. "Tive a felici­
dade", escreveu ele com bastante presunção, "de agradar ao povo e a
infelicidade de desagradar muitíssimo ao governo . " Além do mais, a dou­
trina que defendia que os treze Parlamentos eram na realidade um órgão
unificado e garante das liberdades francesas tinha conquistado tanta ade­
são que o Parlamento de Paris passou a Primavera de 1 788 a emitir uma
série de declarações afirmando esta teoria ao rei. No dia 1 1 de Abril, o
Parlamento de Paris disse ao monarca que "a vontade do rei não basta
[para fazer] lei"; no dia 29, negou -se formalmente a sancionar qualquer
colecta fiscal adicional e no dia 3 de Maio insistiu que a convocação dos
Estados Gerais era uma pré - condição para futuros impostos e que as lettres
de cachet e outras formas arbitrárias de detenção eram ilegais.
Por seu lado, o governo não estava interessado em permanecer inac­
tivo . No dia 1 7 de Abril, num discurso escrito para o rei, Lamoignon apre ­
sentara a autoridade real como um escudo contra os interesses sectoriais.
Se os tribunais pudessem coagir a vontade régia, "a monarquia resumir­
-se-ia a uma aristocracia de magistrados, tão contrária aos direitos e inte ­
resses da nação como aos do soberano " . Mas esta táctica de "absolutismo
popular" não se limitou às refutações retóricas. A sua arma mais poderosa
foi um conj unto de reformas j udiciais de espantosa abrangência e ousadia
e claramente destinadas a destruir de uma vez por todas a capacidade de
oposição dos Parlamentos. No entanto, este exercício de despoj amento foi
concebido como uma pré - condição para a construção de um sistema de
justiça totalmente novo, capaz de merecer o apoio do público . Mais uma
vez, o governo apontou astutamente aos advogados dos escalões mais bai­
xos da hierarquia j urídica ( cuj a progressão era bloqueada pela magistra ­
tura superior) e procurou cooptá -los. Os tribunais inferiores das
S imon Schama 1 CIDADÃOS

províncias seriam subitamente elevados ao estatuto de grands bailliages1 e


passariam a ter jurisdição sobre a vasta maioria dos casos criminais e civis.
A actuação dos Parlamentos seria restringida aos casos envolvendo a
nobreza e às acções civis de valor superior a vinte mil libras francesas -
para todos os efeitos, seriam reduzidos a um tribunal arbitral intra- elite.
Seriam também destituídos do seu poder político de registo dos éditos
antes de estes assumirem forma de lei, que caberia a um "tribunal plená ­
rio" central nomeado pelo governo. C om este volume de negócios drasti­
camente reduzido, muitos dos cargos requeridos pelo Parlamento
deixariam de ter razão de existir e seriam eliminados. Além de tudo isto,
o carácter manifestamente antiaristocrático das reformas foi sublinhado
com a abolição dos "tribunais senhoriais" através dos quais a nobreza
administrava justiça aos camponeses seus dependentes .
Juntamente com as novas disposições relativas à s prisões e a o s proce­
dimentos que envolviam as penas capitais, o programa revolucionário de
Lamoignon visava criar uma "j ustiça iluminada " : rápida, imparcial, aces­
sível à maioria da população e livre das garras de uma aristocracia venal.
À semelhança de muitas outras reformas da época, foi um ataque directo
às corporações e o exemplo mais dramático do Ancien Régime morto pelo
seu próprio governo . Foi por esta razão que muitos membros da elite inte ­
lectual liberal, como o marquês de C ondorcet, tiveram dificuldade em
negar a valia das reformas. Num espírito semelhante, Lally-Tollendal con­
siderou que o "tribunal plenário" teria mais possibilidades do que o
Parlamento de produzir uma "Magna C arta " para a França .
Mas toda e qualquer avaliação racional das reformas foi abafada pelo
uivo de raiva contra o modo como foram introduzidas, e as suas implica­
ções geopolíticas provocaram mais oposição do que assentimento . A des­
promoção dos antigos centros parlamentares, que significava a perda do
seu monopólio sobre a j ustiça para as cidades vizinhas, desencadeou uma
tempestade de invejas locais. Na B retanha, por exemplo, Rennes veria os
seus privilégios devolvidos a centros rivais como Nantes e Quimper.
Assistiu -se por toda a França a uma competição acérrima entre pequenas
cidades que aspiravam a tornar- se os novos centros administrativos e jurí­
dicos, alimentada precisamente pelas classes profissionais que tinham a
ganhar com a transferência de autoridade, e estas batalhas entre escritu ­
rários de província prosseguiram de forma ainda mais mortífera - por
vezes literalmente - durante a Revolução.
Na campanha panfletária contra Lamoignon, dizia -se amiúde que
ele fora possuído pelo espírito do chanceler Maupeou, que congemi ­
nara o último ataque aos Parlamentos . As polémicas mais extremistas

' Em francês no original: grandes bailiados. Um bailiado é a área de j urisdição de um


governador com funções administrativas e j udiciais. (N. da R.)
229

apresentavam Brienne e Lamoignon num pacto com um poder ainda


mais formidável e negro - o Diabo - com vista à destruição das liberdades
da França . No Dialogue entre M. l 'Archevêque de Sens et M. le Carde des Sceaux,
Brienne confessa que os grands bailliages servem para levar o povo a acre ­
ditar na continuação da j ustiça, mas depois de eliminados os Parlamentos
ele privá -los -á " [aos novos tribunais] do mais ínfimo sopro de vida " .

LAMOIGNON: Mas a j ustiça será muito mal administrada.


B RIENNE : Que importa isso . . . ? E mesmo que alguém se ponha aos gritos,
não me interessam para nada os gritos dos indivíduos. Apenas temos a
temer as Remonstrâncias dos Parlamentos . . . mas daqui a nada ( que visão
deliciosa ! ) os Tribunais S oberanos não poderão ler nem falar. O meu génio
conseguirá seguir adiante sem eu ter os meus passos tolhidos por pessimis­
tas inconvenientes . . .

O volume e a ousadia das polémicas antigovernamentais garantiu que


toda e qualquer concessão em nome do "bem público " inserida nas refor­
mas de Lamoignon era anulada pelas suas repercussões políticas. Além
disso, o governo não estava seguramente confiante no seu bom acolhi­
mento, dado que decidiu implementar o programa através de uma força
esmagadora . No dia 6 de Maio, d'Eprémesnil e Goislard, os dois líderes da
resistência em Paris, foram presos . D ois dias depois, Lamoignon em pes­
soa enfrentou a hostilidade muda mas implacável do Parlamento e impôs
os éditos num lit de justice. Este cenário de determinação militar repetiu-se
nos outros doze centros dos tribunais soberanos, onde tinham sido posta­
das tropas para persuadir os magistrados a partirem pacificamente de
"férias" obrigatórias.
Nada disto funcionou . Nem a publicidade oficial sobre os efeitos salu ­
tares das reformas nem o planeamento militar com que foram implemen­
tadas conseguiram conter a imensa torrente de fúria pública, que se
estendeu do proletariado j urídico dos cadeirinhas, peruqueiros e escribas
à alta nobreza e ao alto clero . E a algazarra ouviu -se de uma ponta à outra
de França . Mas o que foi especialmente ominoso para o governo foi o
facto de a resistência aos decretos parecer mais intensa nas províncias do
que em Paris. Em Pau, nos Pirenéus, no dia 1 9 de Junho, uma manifes­
tação violenta forçou as portas do Palácio da Justiça para exigir o restabe­
lecimento do Parlamento. Incapaz de chamar tropas para uma província
tão remota com a prontidão necessária, o governador viu -se obrigado a
deixar a magistratura ficar e acalmar a situação, contrariando aberta ­
mente as ordens de Versalhes . Na cidade bretã de Rennes, o intendant
Bernard de Moleville escapou à j usta de ser apedrejado. No princípio de
Junho, quando os parlamentares foram intimados a partir por lettres de
cachet, foi o intendant e não os magistrados que teve de fugir a toda a
S imon Schama 1 CIDADÃOS

pressa. Foi necessário empenhar oito mil soldados na cidade para acalmar
a situação, o que só aconteceu em Julho . Em B esançon, Metz, Dij on,
Toulouse e Rouen verificaram -se protestos organizados suficientes para o
governo exilar os magistrados recalcitrantes, e em B ordéus, Aix e Douai -
bem como no estranhamente submisso Parlamento de Paris -, os tribunais
permaneceram em funções mas declararam os éditos obra de um despo­
tismo desenfreado.
Os Parlamentos pareciam o que sempre tinham afirmado ser: tribunos
do povo . Mas no preciso momento do seu triunfo, hesitaram em desfrutá­
-lo. O carácter tumultuosamente físico do apoio popular que mereceram
apanhou muitos dos magistrados de surpresa, uma surpresa que nem
sempre foi agradável. As invasões espontâneas dos Palácios da Justiça ou
desta ou daquela Câmara Municipal e a prontidão das multidões para
enfrentarem as tropas na rua colocava questões de ordem pública que
causavam apreensão aos magistrados, tradicionais guardiães da paz civil.
O Parlamento de Pau, que assistiu a algumas das manifestações mais vio­
lentas, protestou contra os éditos de Maio mas com a j ustificação de que
tinham provocado tumultos incessantes e destruição de bens contra os
quais, tornava-se evidente, "a polícia regular nada pode fazer" .
Para os indivíduos sensíveis a essas coisas, existiam sinais ainda mais
inquietantes de que a crise estava a deixar rapidamente de ser uma guerra
civil no seio da elite . Em Rennes, o embaixador britânico foi informado de
que circulavam entre o povo comum augúrios alarmantes acerca da
queda da monarquia . Dizia-se que o ceptro na mão da estátua equestre de
Luís XVI começara a pender, talvez quinze centímetros em poucos meses.
No princípio de Julho, surgiram notícias ainda piores. Uma testemunha
começou a divulgar que numa noite muito quente e abafada tinha visto,
sem qualquer sombra de dúvida, a montada de pedra do rei suar gotas
anafadas e viscosas de sangue.

IV A JORNADA DAS TELHAS

O sangue que se viu em Grenoble não era imaginário . No dia 7 de


Junho, uma j ornada de tumultos, Henri B eyle (posteriormente conhecido
por Stendhal ) , então com cinco anos de idade, viu do apartamento dos
pais um j ovem chapeleiro, ser arrastado aos ombros por dois camaradas
para um lugar seguro . Stendhal diz que o sangue sempre o fascinou. A sua
primeira memória é a de dar uma dentada na bochecha de uma certa
Madame Pison de Gallon, que exigira um beijo da criança dentuça num
campo de margaridas . Dois anos mais tarde, encostou o rosto à j anela para
ver o sangue escorrer de um buraco no fundo da coluna vertebral do cha­
peleiro, ferida pela baioneta de um soldado. Henri continuou a observar
23 1

enquanto a camisa e as calças castanhas do homem se iam avermelhando.


O chapeleiro, em sofrimento, foi transportado devagarinho para a casa de
um vizinho de Stendhal, um comerciante abastado e liberal de nome
Périer. Dando-se subitamente conta de que ele estava a assistir a tudo, os
pais afastaram-no bruscamente da j anela e repreenderam-no como se ele
tivesse sido apanhado a ouvir atrás da porta . Mas Henri não se deu por
vencido e pouco depois conseguiu regressar ao seu posto de observação,
de onde viu o corpo ser arrastado seis lanços escada acima, enquadrado
pelas largas j anelas rectangulares da casa em frente . No sexto lanço, como
talvez fosse de esperar, o homem expirou. Segundo escreveu Stendhal no
texto autobiográfico Vida de Henri Brulard, foi "o primeiro sangue derra­
mado em nome da Revolução". Nessa noite, o pai, Cherubin B eyle, nar­
rou à família a história da morte de Pirro .ª
À primeira vista, Grenoble era um lugar improvável para "berço da
Revolução", como subsequentemente gostou de se auto -intitular. Stendhal
- que confundia um ódio intenso ao pai com o ódio à sua cidade natal - não
se recordava dela com nenhum calor. "Para mim", escreveria, " Grenoble é
como a recordação de um terrível ataque de indigestão, sem ser perigoso
mas horrivelmente nauseante . " Esta dispepsia era provocada pelo que
Stendhal caracterizava como a sua sufocante tacanhez provinciana. Mas
embora Grenoble não fosse nenhuma Bordéus, com cais azafamados e
dinheiro que depressa se fazia e mais depressa se gastava, também não era
o lago estagnado da memória de Stendhal. Grenoble tinha gerado mais do
que a sua quota de filósofos do Iluminismo, tais como o abade Mably e
Condillac, e a sua localização espectacular no rio Isere, no sopé dos Alpes
Saboiardos, colocara-a na rota dos peregrinos de Rousseau. O próprio Jean­
-Jacques residira na cidade em 1 768, enquanto botanizava virtuosamente
nas montanhas. Um ano mais tarde, Grenoble apresentava com orgulho o
seu Almanach des Muses, que emulava o jornal literário homónimo de grande
sucesso nascido em Paris, em 1 76 5 . Pouco depois, surgia Les Affiches de
Grenoble, um semanário que custava três soldos e que convidava "qualquer
cidadão interessado em tomar parte da observação de assuntos importan -
tes" a enviar artigos para publicação. Fora neste meio pequeno mas ani­
mado que o avô materno de Stendhal, o Dr. Gagnon, fundara uma próspera
biblioteca pública e uma Escola Central para alunos prometedores. Os inte ­
resses publicados de Gagnon, que iam dos estudos sobre a retenção da urina
a uma história dos vulcões do Auvergne, eram típicos da elite da cidade, de
espírito enciclopédico e politicamente alerta. Quando Antoine Barnave
publicou a sua devastadora polémica contra as reformas de Lamoignon,
L'Esprit des Édits, tinha garantido um público atento e indignado.

' Pirro ( 3 1 9-272 a . C . ) , rei do Epiro, morto durante um combate de ruas depois de ator­
doado por uma telha atirada por uma mulher de cima de um telhado. ( N. do T. )
S imon Schama 1 CIDADÃOS

Em muitos aspectos, foi a natureza vulgar de Grenoble que a tornou


madura para a primeira grande insurreição urbana da Revolução.
Enquanto sede do Parlamento do Delfinado, possuía a habitual concen­
tração de advogados, panfletistas, professores e escritores mercenários
cultos, mal pagos e facilmente excitáveis . Qualquer ameaça ao tribunal
soberano era um desafio directo ao seu ganha -pão e ao seu sentimento de
prestígio . Mas Grenoble também era um centro industrial regional, com
quatro mil e quinhentos operários especializados que produziam luvas de
grande qualidade e que eram exportadas para todo o país e para merca ­
dos tão distantes como Filadélfia e Moscovo. Juntamente com os carda­
dores de cânhamo, outro grupo importante da força de trabalho, os
artesãos tinham sido gradualmente empurrados do centro antigo da
cidade para a Rue de Saint-Laurent, na margem oposta do Isere, e para o
bairro de Tres Cloitre, no sudeste da urbe. Os sucessivos anos de prospe­
ridade tinham aumentado as oportunidades de emprego mas a súbita dis ­
rupção do ciclo ascendente do comércio, em 1 788, combinada com o
aumento em flecha dos preços do pão, deixara os trabalhadores irritados
e famintos. Concorriam no mercado do segundo emprego com uma
comunidade considerável de imigrantes das regiões circundantes -
Gévaudan e Sabóia -, que se tinham instalado em Grenoble como carre­
gadores dos mercados, serviçais domésticos e cocheiros.
Dadas todas estas tensões, o governo foi imprudente ao actuar num dia
de mercado: sábado, 7 de Junho. Os magistrados do Parlamento tinham
passado a reunir- se em casa do presidente, Albert de Bérulle, e, no dia 2 0
de Maio, haviam seguido a liderança d o s seus colegas de Paris e d e outras
províncias e declarado ilegal a imposição dos éditos de Maio. Dez dias
depois, B rienne deu instruções ao tenente-general do Delfinado, o duque
de Clermont-Tonnerre, para que exilasse os magistrados de Grenoble, e
no dia 7 de Junho as lettres de cachet foram devidamente apresentadas .
Havia dois regimentos à mão - o Royal-La-Marine e o Austrásia - para
convencer os magistrados a partir discretamente . E talvez tivessem par­
tido, não fosse a intervenção decisiva da multidão. Tipicamente, foi a
Basoche que deu início às lides arengando às pessoas nos mercados e dis­
tribuindo panfletos e cartazes com ataques violentos a B rienne e
Lamoignon. Dos discursos, dos insultos e das canções, os protestos passa­
ram à greve . Por volta das dez da manhã, as bancas e as lojas fecharam e
os luveiros e os cardadores saíram das oficinas e concentraram-se no cen­
tro da cidade, onde se dirigiram ao Palácio da Justiça e à casa de Bérulle,
na Rue Voltaire . Os manifestantes tinham por obj ectivo impedir a partida
dos magistrados, se necessário pela força, e até desatrelaram os cavalos do
coche preparado para o presidente, levando -os do pátio. Um segundo
grupo fechou as portas da cidade para impedir a chegada de reforços e um
terceiro organizou -se para sitiar a residência do governador.
233

Clermont-Tonnerre, o comandante d a guarnição, viu -se a braços com


um dilema terrível, um dilema que confrontaria todos os oficiais colocados
na mesma situação durante a Revolução Francesa - e durante muitas
outras revoluções. Deveria mandar os seus soldados para as ruas para con­
ter, dissuadir ou subj ugar a multidão? Se sim, deveriam ir completamente
armados? Se sim, em que condições poderiam abrir fogo? Qual destes
cenários - senão todos - poderia agravar em vez de melhorar a situação?
Como muitos outros oficiais colocados perante o mesmo dilema,
Clermont-Tonnerre reagiu com meias medidas e depois descobriu que a
decisão lhe fora tirada das mãos pela brutalidade espontânea dos aconte ­
cimentos .
Foram enviados destacamentos relativamente pequenos para os locais
onde decorriam os tumultos, armados mas com ordens para não dispa ­
rar. A sua presença bastou para enfurecer ainda mais as multidões, mas
não para lhes meter medo . Muitos dos habitantes de Grenoble subiram
para os telhados e os soldados viram-se debaixo de uma chuva de telhas.
Com as tropas a serem atingidas com gravidade, os regimentos reagiram
de forma diferente . Os soldados do Austrásia obedeceram ao tenente ­
-coronel B oissieux, que os proibiu de disparar, mesmo depois de atingido
em cheio no rosto por uma telha . O Royal-La-Marine foi menos estóico .
Na Place Grenette, mesmo em frente da casa de StendhaL um pelotão
perdeu a paciência e abriu fogo, atingindo um garoto de doze anos e des­
pedaçando-lhe uma coxa - o petiz viria a morrer por causa da hemorra ­
gia intensa . Foi também aqui que o chapeleiro foi mortalmente atingido .
As roupas das vítimas, empapadas em sangue, foram desfiladas pelas
ruas, e os sinos da catedral começaram a tocar a rebate, fazendo acorrer
à cidade muitos camponeses que tinham ouvido dizer que os seus ami­
gos e familiares, que se haviam deslocado a Grenoble para o mercado,
estavam sob ataque militar.
A meio da tarde, Clermont-Tonnerre e o intendant Caze de La B ove
procuravam desesperadamente uma solução que não fosse uma repressão
sangrenta nem a capitulação. Informaram os parlamentares de que reti­
rariam as tropas das ruas em troca da partida imediata dos magistrados.
Estes estavam desej osos de o fazer mas a decisão pertencia à fúria das
multidões. Sem estômago para um massacre, C lermont-Tonnerre eva­
cuou o edifício da câmara e a turba, em delírio, tomou conta da cidade .
A casa do governador foi pilhada, começando pela adega e terminando na
sua colecção de história natural, de onde foi levada uma águia empalhada
como troféu de vitória. A mobília foi atirada para a rua e queimada, os
espelhos foram partidos . Albert de Bérulle e os seus colegas do tribunal
foram levados em ombros por uma multidão extática e engalanados com
flores de Junho . C om trinta e dois anos de idade, belo e bastante vaidoso,
De B érulle procurara a celebridade mas agora que a alcançara não tinha
S imon S chama 1 CIDADÃOS

a certeza de querê -la . Os magistrados viram-se obrigados a vestir as suas


túnicas debruadas a arminho e a desfilar ostensivamente em triunfo até
ao Palácio da Justiça, onde as j anelas estavam iluminadas e teve lugar
uma sessão especial a pedido da multidão - os magistrados não saberiam
ao certo quem eram os líderes nem quem eram os liderados. Foi um
momento de verdade desconfortável e repetir- se-ia bastantes vezes nos
anos que se seguiram.
B ebeu-se o vinho até à última gota, caíram as últimas canas do fogo­
-de-artifício deitado na praça de S aint-André e desvaneceu-se a gritaria
contra os gémeos do diabo, B rienne e Lamoignon. Os parlamentares
seniores, mais alarmados do que entusiasmados com a sua vitória, apres­
saram-se a abandonar a cidade antes do regresso do caos, mas os mais
jovens e duros - como o j uiz real Jean-Joseph Mounier e Antoine
Barnave - viram nas desordens e na clara impotência da autoridade régia
uma ocasião para tirarem vantagem do seu colapso.
A Jornada das Telhas foi, pois, uma tripla revolução . Assinalou o
colapso da autoridade real e a impotência da força militar face à desordem
urbana sustentada; avisou a elite que beneficiou da desordem de que
havia um preço imprevisível a pagar pelo encoraj amento que dera aos
tumultos e que facilmente poderia ser ela a pagá-lo; mais importante
ainda, colocou a iniciativa política nas mãos de um grupo mais jovem e
mais radical que não se coibia minimamente de conj urar o Povo .
Passada uma semana, Mounier começou a manipular a opinião
pública de forma mais sistemática. Foi a sua mão que transformou um
tumulto incoerente numa iniciativa política importante. Mounier, que
ainda não tinha trinta anos de idade, era filho de um comerciante de
fazendas . À semelhança de tantos outros membros da geração de 1 789,
não era um produto da frustração burguesa com o Antigo Regime, mas
do seu funcional sistema de ascensão social. Estudou direito no colégio
local, onde os colegas alcunharam de Catão o j ovem austero e presun­
çoso. Estabeleceu-se como advogado e, em 1 782, casou com a filha de
um procurador real bastante bem colocado. Em 1 78 3 , com vinte e cinco
anos de idade, comprou o cargo de j uiz real por vinte e três mil libras
francesas, o que lhe conferiu título de nobreza. Por outras palavras, não
havia absolutamente nada no seu perfil social que o apontasse para a
revolução, excepto talvez a sua crença fervorosa no rejuvenescimento da
França como uma nação de cidadãos leais a um rei que honrava a sua
representação; aliás, poderá ter sido o avô de S tendhal, o Dr. Gagnon,
quem o lançou nesse rumo, pois foi o académico de província que
emprestou ao j ovem Mounier as obras de política e filosofia que inicia­
ram a sua formação intelectual . Vinte anos mais tarde, exilado em
Weimar, Mounier daria cabo da paciência a Goethe tentando menospre ­
zar a importância de Emanuel Kant.
235

N o Verão d e 1 788, os seus desígnios iam muito além d o objectivo bas­


tante conservador de restaurar os Parlamentos. No dia 14 de Junho, desa­
fiando a proibição de Clermont-Tonnerre, organizou uma reunião na
Câmara Municipal com mais de cem representantes das três ordens -
clero, nobreza e Terceiro Estado. Este último grupo era o mais numeroso
e incluía, além dos três vereadores- " cônsules" de Grenoble, o Dr. Gagnon,
o pai de Mounier e vários advogados, notários e médicos ( e alguns comer­
ciante s ) , os elementos típicos do Terceiro Estado político. Da reunião saiu
um apelo directo ao rei para que restaurasse o Parlamento e anulasse as
reformas, solicitando também a convocação dos Estados da província do
Delfinado, com a especificação de que se deveriam organizar "eleições
livres" para este órgão. Nos Estados, o número de membros do Terceiro
deveria ser igual aos outros dois combinados, a primeira declaração for­
mal do princípio que se tornaria crucial para os próprios Estados Gerais ( a
cuj a convocação a reunião também apelou ) . Este princípio provocou
alguma hesitação, mas a eloquência de Mounier levou a melhor e acabou
por ser adaptado numa erupção de "concórdia fraterna" . Foi este axioma
que Barnave posteriormente identificou como a fundação de uma "revo ­
lução democrática" :
A reunião d e Grenoble antecipou significativamente outros temas
revolucionários normais. O primeiro foi a identificação das forças opostas
como traidoras. Declarou-se que aqueles que se atrevessem a aceitar luga­
res nos tribunais de Lamoignon deveriam ser "considerados traidores à
patrie" e tratados como tal . O segundo foi a preocupação de que uma nova
ordem política prestasse atenção às queixas materiais das pessoas que a
tinham tornado possível. Não se propunha nada de muito radical: um
fundo de auxílio aos operários desempregados ou em dificuldades.
Todavia, o facto de os tribunais já estarem a misturar questões sociais com
questões políticas constituiu, por si só, um desenvolvimento fatídico .
Finalmente, a assembleia emitiu um apelo sonante às cidades e aldeias do
Delfinado para que se reunissem em Grenoble a fim de prepararem a sua
nova representação.
Entre esta reunião e a segunda assembleia, que não teve lugar em
Grenoble mas no Palácio de Vizille, que também pertencia ao mercador
Claude Périer, Grenoble foi inundada por uma grande torrente de emoções
patrióticas. Os conselheiros recebiam diariamente na Câmara Municipal
delegações e petições, algumas de constituintes que estavam a ser activa -
mente politizados pela primeira vez na vida . Por exemplo, os alunos do
Colégio Real Delfim de Grenoble protestaram que "apesar da nossa pouca
idade, um dia tornar-nos -emos cidadãos", o que lhes impunha a demons­
tração de expressões de solidariedade virtuosa para com os mais velhos.
Uma declaração ainda mais extraordinária, uma comunicação ao rei assi­
nada pelos "seus súbditos muito humildes mas muito intrépidos, todas as
S imon S chama 1 CIDADÃOS

mulheres da vossa província do Delfinado", recordava-lhe que durante


séculos as mulheres tinham sempre influenciado "o sentimento nacional. . .
[e] não existe uma única entre nós na qual não arda um fogo patriótico,
pronta para os maiores sacrifícios e para os maiores esforços . . . " .

Haveis tentado meter- nos medo através das marcas d o vosso poder, atra ­
vés da força, das baionetas dos soldados, dos mosquetes, dos canhões e das
granadas, mas não daremos um único passo atrás. Enfrentá -los -emos com
a nossa coragem, armadas com as roupas mais finas e um capacete de
gaze . Mas até ao nosso último suspiro, as nossas vontades e os nossos
corações exigirão o regresso dos nossos magistrados e privilégios e o res­
tabelecimento das condições que são as únicas capazes de fazer as verda­
deiras leis . . .

Um ano antes da altura que geralmente se considera o início da


Revolução, declarações públicas como estas já estavam saturadas com a
retórica da virtude de Rousseau . Não havia apenas cidadãos; existiam
também cidadãs.
Parte das dificuldades de Clermont-Tonnerre era o facto de ele se con­
siderar a si próprio um daqueles cidadãos e estar impossivelmente divi­
dido entre o dever ao rei e a sua tenra consciência. Por conseguinte, foi
devidamente substituído por uma figura muito mais formidável, o mare­
chal de Vaux, um veterano octogenário, e foi sob o olhar severo deste que
uma procissão de "deputados" das três ordens e das cidades do Delfinado
( mas ainda com grande preponderância do povo de Grenoble) partiu para
o palácio de Périer, em Vizille, no dia 2 1 de Julho . Havia soldados ao longo
da estrada mas, ao contrário do que acontecera na Jornada das Telhas,
alguns dos participantes consideraram-nos mais amistosos do que amea­
çadores. O marechal de Vaux, que ao princípio parecera tão ameaçador,
acabara por revelar tão pouca firmeza como os seus antecessores e ao ver­
-se confrontado com a inevitabilidade da assembleia disse: "Eh bien, vou
fechar os olhos." Dos 49 1 delegados presentes em Vizille, 50 eram mem­
bros do clero, 1 6 5 da nobreza - um contingente crucial - e 276 do Terceiro
Estado ( dos quais 1 8 7 eram de Grenoble ) . O conde de Morgues foi eleito
presidente e Mounier para o importantíssimo posto de secretário .
Tal como na reunião na Câmara Municipal, Mounier dera-se ao traba­
lho de preparar a agenda. Decorrido apenas um ano, Mounier protestaria
veementemente contra o que consideraria ser a usurpação do poder real
pela Assembleia Nacional, mas em Julho de 1 788 ele próprio levou a cabo
um exercício de reconstituição política . Não tinha nenhuma autoridade
legal para o fazer, excepto o que declarou ser uma espécie de mandato
"das leis e do povo", uma fórmula suficientemente flexível para ser apli­
cada em qualquer contingência. Embora ele não pudesse seguramente
237

conceber a assembleia de Vizille como u m ensaio para a Assembleia


Nacional, a euforia gerada nas três ordens pela retórica patriótica anteci­
pou em um ano a cena de Versalhes.
Em Vizille, Mounier voltou a marcar o seu afastamento da retórica
parlamentar tradicional com citações de Montesquieu e a ênfase nos direi­
tos historicamente preservados. Pouco depois, cometeria mesmo a heresia
de rej eitar o conceito de uma constituição "imemorial" ou "fundamental"
da França alegadamente violada pelo governo . Mas em Vizille, as suas
objecções à conduta do governo centraram-se nos direitos naturais e no
axioma de que os governos existiam para proteger as liberdades indivi­
duais - um conceito completamente novo e obviamente "americano" em
França . "Os direitos do homem", disse ele, " derivam exclusivamente da
natureza e são independentes das convenções [históricas] . " Na ausência
manifesta de uma constituição, considerou Mounier, impunha-se criar
uma a partir do nada e deveriam ser os Estados Gerais a fazê -lo. Mounier
soou o alarme . "O bem-estar da patrie é preocupação de todos quando está
em perigo . . . uma assembleia não pode ser considerada ilegal quando o
seu propósito exclusivo é a segurança do Estado . " A estigmatização de
quem aceitasse cargos de B rienne como "traidor" foi reiterada e ele defi­
niu como dever das três ordens a defesa unida de toda e qualquer pessoa
perseguida pelo governo. Além do mais, só os verdadeiros representantes
do povo - com o Terceiro Estado em duplicado para igualar os outros dois
- poderiam assentir em qualquer espécie de taxação.
Todos estes princípios foram formalizados na assembleia. Barnave, um
dos observadores mais lúcidos dos acontecimentos, viu que a importância
da reunião fora libertar a retórica oposicionista do amplexo do conserva ­
dorismo parlamentar. A nobreza de toga tinha provocado uma crise sufi­
ciente para frustrar as reformas governamentais, mas perdera o controlo
político da crise . No Delfinado, as questões da representação saltaram para
o primeiro plano ainda antes do anúncio da convocação dos Estados
Gerais e a retórica da patrie levou os privilegiados a apoiar a duplicação do
Terceiro Estado e a realização de debates e votações em comum - as gran­
des questões que dividiriam abruptamente o país político .
Não obstante a natureza totalmente não autorizada da assembleia, no
dia 2 de Agosto, Luís XVI aceitou reunir os Estados do Delfinado, em
Romans. Passo a passo, o monarca afastava -se da firmeza em que o seu
próprio governo insistira . Outras reuniões espontâneas, geralmente
dominadas pela nobreza, tinham resultado no envio de delegações a
Versalhes para pedir a convocação dos E stados das respectivas províncias
ou da nação. No dia 1 2 de Julho, apresentou-se uma delegação da
Bretanha. O rei negou -se a recebê-la, provocando uma reunião da alta
nobreza bretã de Paris no Hôtel d'Espagne . Doze dos seus líderes foram
enviados para a Bastilha e outros, incluindo Lafayette ( que se identificou
S imon Schama 1 CIDADÃOS

improvavelmente como "bretão" pelo lado da mãe ) , foram sumaria­


mente destituídos dos favores da corte. Uma segunda delegação, enviada
por Rennes, foi também metida na prisão. Mas o rei não estava prepa­
rado para ir até às últimas consequências. A campanha de Luís XV con­
tra os Parlamentos só terminara com a sua morte, mas o neto levou a
monarquia ao suicídio. Em Junho, a irmã do soberano, Elisabeth, que era
dotada de uma grande sensibilidade, notou que

O rei recua . . . E stá sempre com medo de cometer um erro . Passado o pri­
meiro impulso, fica atormentado pelo receio de ter cometido uma inj us ­
tiça . . . quer-me parecer q u e tanto na governação como na educação só s e
deve dizer " é assim q u e eu quero" quando se t e m a certeza . E depois não
devemos arrepiar caminho em relação ao que ordenámos .

Nesta disposição de vacilação nervosa - que perduraria até ao fim do


seu reinado -, Luís XVI voltou atrás e recebeu uma terceira delegação
bretã, à qual prometeu a convocação dos Estados da B retanha . Uma
semana depois, no dia 8 de Agosto, esta guinada política torno u - se irre ­
versível quando o monarca fez o anúncio por que toda a nação espe­
rava : os Estados Gerais reunir- se-iam em Versalhes, no dia 1 de Maio de
1 7 8 9 . Até lá, o tribunal plenário de Lamoignon, que deveria ter sido
incumbido do registo de novas leis, ficaria temporariamente suspenso.
Em Grenoble, tal como no resto da França, a proclamação foi acolhida
com euforia: mais fogos-de-artifício, j anelas iluminadas, canções e des­
files à luz das tochas expres�ando devoção ao rei mas não aos seus
ministros .
Apesar das provas cada vez mais conclusivas d e q u e as suas políticas
não eram implementáveis, B rienne e Lamoignon agarraram-se ao poder.
Mesmo em Julho, a sua posição não era totalmente insustentável. Fora
dos centros parlamentares, estavam a ser estabelecidos os novos tribunais
regionais - os grands bailliages -, nomeadamente em Lyon e Valence, e tal­
vez fossem atractivos para alguns elementos do Terceiro Estado, que já
começavam a fugir ao domínio da aristocracia. Além disso, B rienne não
admitiu que a convocação dos Estados Gerais significava o fim do seu
governo. Argumentou, com toda a razão, que fora sempre a favor dos
Estados e que apenas diferira dos seus críticos na questão ( importantís­
sima ) da altura da sua reunião. Brienne levou ainda mais longe este pro­
cesso de "popularização " da monarquia convidando a nação a dar a
conhecer as suas "opiniões" sob a forma que os Estados Gerais deveriam
assumir. Foi uma tentativa astuta de explorar as divisões que começavam
a tornar- se evidentes entre a nobreza e os "Patriotas " em matéria de
representação e, por acréscimo, sobre o tipo de nação política que deveria
suceder à moribunda monarquia absoluta.
239

Mas t a l como o recurso desesperado d e Calonne à opinião pública fora


visto e tal como seriam vistos outros apelos monárquicos semelhantes
durante a Revolução, este piscar de olho da monarquia ao povo, usado
como um pau para bater nos seus oponentes, foi visto como desesperado
ou, pior ainda, hipócrita. Não salvou B rienne . Na verdade, ao tornar- se
óbvio que a autoridade se encontrava em rápida desintegração, o afasta­
mento da administração de B rienne começou a ser considerado um requi­
sito para qualquer forma de governação efectiva. Houve uma breve crise
de ordem pública, com a dispersão das tropas disponíveis pelos diferentes
centros provinciais, lugares tão distantes como Rennes e Aix, a criar um
perigoso vácuo no centro . Mas o que deu verdadeiramente cabo de
Brienne não foi tanto a sua incapacidade para impor os éditos de Maio,
mas a morte súbita do crédito público .
Em Maio, a Assembleia Geral do C lero, com a qual o governo estava a
contar para um substancial don gratuit9 - a tradicional maquia votada
como seu contributo fiscal -, avançou uma quantia insignificante . A sua
recalcitrância foi obviamente um gesto de solidariedade política com os
Parlamentos . Mas as coisas agravaram-se em Agosto . No princípio do mês,
Brienne ouviu da boca do chefe do C ontrolo, Gojard, que restavam ape ­
nas 4 0 0 0 0 0 libras francesas n o Tesouro - o suficiente para o governo fun -
cionar durante uma tarde . Passado o choque inicial, a primeira reacção de
Brienne foi ( compreensivelmente ) interrogar- se porque é que Goj ard
tinha esperado até ao último momento para lhe dar aquela notícia impor­
tante. Mais tarde, depois de reformado, B rienne chegou à conclusão que
era provavelmente a mais correcta : Goj ard, em conluio com o número
cada vez maior de pessoas que desej ava ver B rienne pelas costas, tinha
esperado intencionalmente até que a situação fosse tão pavorosa que o
ministro não se pudesse safar.
O estratagema funcionou . Para salvaguardar o pré dos militares - sem o
seu pagamento, o que restava da ordem pública entraria imediatamente em
colapso -, Brienne teve de recorrer a medidas desesperadas. A queda
abrupta dos títulos do governo tornara praticamente impossível aos Fermiers
Généraux e aos outros sindicatos financeiros, dos quais o Estado dependia
para cumprir as suas obrigações de médio prazo, obterem no mercado
financeiro dinheiro para os seus adiantamentos. Com efeito, as garantias
contra as quais se poderiam obter empréstimos tinham -se depreciado ao
ponto de já não representarem um investimento seguro . Além do mais, em
termos do défice corrente, as "antecipações" de receitas já tinham sido hipo­
tecadas demasiado no futuro para alterarem este cálculo prudencial.
A aposta foi tanto política como financeira . Mesmo numa situação
aparentemente desesperada, não havia nada na estrutura intrínseca das

' Em francês no original : doação gratuita. (N. da R. )


S imon Schama 1 CIDADÃOS

instituições da monarquia que pudesse levar os potenciais financiadores a


dá-la por acabada. Aliás, foram recordados de que na época de Maupeou
a repressão andara de mãos dadas com sucessivos incumprimentos ( ainda
que tivessem sido subtis ) . A outra face da moeda era que os Estados Gerais
poderiam revelar- se melhores garantes dos seus investimentos do que a
Coroa.
Não é, pois, totalmente verdadeiro descrever a situação aflitiva do
Estado francês em Agosto de 1 788 como uma bancarrota. Quem estava
falido era o governo de Brienne, não a França, como ficou plenamente
demonstrado pela rapidez e facilidade com que o seu sucessor, Necker,
contraiu todo o tipo de empréstimos ( o talento pessoal de Necker para
obter fundos j unto dos seus colegas da B olsa e das corporações de Paris
deu ao governo dinheiro suficiente para viver até à materialização do
Valhalla dos Estados Gerais ) . Mas Necker beneficiou de uma mudança de
regime dramática . Durante as suas últimas semanas, Brienne apenas pôde
recorrer a um empréstimo forçado mal disfarçado para obter algum alívio
fiscal. Lançado no dia 1 6 de Agosto, assumiu a forma de bilhetes do
Tesouro a 5 % de j uros mas sem data de vencimento fixa . Seriam realiza­
dos pagamentos de mais de mil e duzentas libras francesas, três quintos
em dinheiro e dois quintos em bilhetes; os detentores de quantias mais
pequenas receberiam uma percentagem ligeiramente maior em dinheiro,
e assim por diante .
Tratou-se, com efeito, de uma tentativa de impingir papel-moeda aos
detentores das obrigações, mas foi vista como o equivalente financeiro da
crise holandesa. Em S etembro de 1 787, a França abandonou a sua polí­
tica externa por não ter dinheiro para a pagar. Em Agosto de 1 788, abdi­
cou de uma política fiscal por não a conseguir definir de forma
consensual.

V JOGOS FINAIS

Um motivo antigo da cultura popular era a Morte do Crédito . As gra­


vuras que mostravam este macabro desfecho tinham imagens de esquele ­
tos sorridentes segurando notas sem valor e bolsas vazias. No dia 1 6 de
Agosto de 1 788, em Paris, o Crédito morreu e a sua morte instalou o
pânico no gigantesco mercado do papel governamental. Ao contrário da
declaração feita por Franklin Roosevelt em 1 9 3 3, 'º o comentário do édito
real de que "nada está ameaçado a não ser. . . pelo medo " não tranquili­
zou ninguém. A Caísse d'Escompte foi sitiada por uma multidão de subs­
critores que exigiam resgatar as suas obrigações e teve de fechar por medo

'º No discurso de tomada de posse: " . . . a única coisa que temos a temer é o medo". (N. do T.)
241

da violência . A corrida ao resgate durou três dias e três noites até que dois
outros anúncios governamentais garantindo o papel tiveram um efeito
temporariamente calmante. Contudo, só uma nova via teria hipóteses de
restaurar a confiança mínima necessária para impedir a desintegração do
governo . No conselho de ministros, falara -se em tentar o impossível -
integrar Necker no governo - mas se a França ia ser ressuscitada através
do governo representativo não poderia fazê -lo com o expoente mais
poderoso do absolutismo . De qualquer dos modos, Necker, que já ouvia
os primeiros aplausos que saudavam a hipótese do seu regresso, não
estava de todo interessado em partilhar a sua glória com o desacreditado
arcebispo. No dia 2 5 de Agosto, Brienne demitiu -se. À noite, dez mil pes­
soas encheram o Palais-Royal; gritaram até enrouquecer e lançaram
foguetes para celebrar a notícia.
Durante a semana seguinte, Paris entregou-se a uma imensa erupção
de ódio, provocada por um aumento em flecha do preço do pão. Efígies
em palha de B rienne e Lamoignon foram queimadas noite após noite; na
Pont Neuf, quem não se curvasse perante o totem popular - a estátua de
Henrique IV - levava uns encontrões. S egundo uma testemunha ocular
inglesa

À noite, saí e dei com a Place Dauphine a cintilar com a queima do


Arcebispo e a iluminação das j anelas; um mar de cabeças cobria a praça,
com milhares e dezenas de milhar de pessoas envolvidas em confusão,
barulho e violência .

No dia 29, um manequim vestido com os traj os arcebispais de Brienne


foi j ulgado numa paródia por um dos grands bailliages de Lamoignon e
condenado a "pedir desculpa" à estátua de Henrique IV antes de ser quei­
mado . As fogueiras eram tantas que os celebrantes ficaram com falta de
combustível . As bancas das vendedoras de laranjas da Pont Neuf foram
"confiscadas" e queimadas, seguindo-se as guaritas da ponte, depois de
expulsos os seus ocupantes.
Isto não agradou aos milicianos das Gardes Françaises nem às tropas
que estavam a ser mobilizadas para controlar as multidõe s . Na noite da
demissão de B rienne, tinham sido usados soldados regulares para limpar
a Place Dauphine, e nos dias que se seguiram a cavalaria carregou fre­
quentes vezes contra civis armados com mocas, piques e pedras. No
dia 2 9 , a situação descontrolou-se e o oficial no comando mandou dis­
parar para o ar para obrigar a multidão a retirar. A capacidade de as
autoridades manterem a ordem na capital começava a ser seriamente
posta à prova .

* * *
S imon S chama / CIDADÃOS

Em Grenoble, os ritos fúnebres do absolutismo foram executados de


forma arrepiantemente literal. No dia 1 2 de Setembro, o velho marechal
de Vaux, que chegara a Grenoble a dizer que tinha "dez mil ferrolhos para
trancar o Palácio da Justiça", foi a enterrar. O corpo foi colocado em cha­
pelle ardente na catedral, numa tumba negra rodeada de centenas de velas.
O pequeno Henri B eyle inalou os fumos acres e ficou a olhar para o sar­
cófago de boca aberta . A ordem da obediência militar corporizada pelo
velho marechal estava a expirar ao lado do seu caixão . Os tambores des­
tacados para tocar a marcha fúnebre no cortejo queixaram-se de que os
panos negros que se colocavam sobre os instrumentos para os abafar
tinham sido inj ustamente economizados. Tinham direito a pano suficiente
para fazerem um par de calças, não fosse a mesquinhez da sovina rica, a
filha do marechal.
Seguiu-se outra morte, esta muito mais preocupante. No dia 8 de
Outubro, o bispo de Grenoble, Hay de B onteville, foi colocado em câmara
ardente na catedral, como convinha a um grande prelado, mas com o
rosto coberto por um pano que ninguém foi autorizado a levantar.
Depressa se descobriu porquê . Na noite anterior, o bispo retirara-se para
o seu estúdio, no Palácio de Herbeys, queimara todos os seus papéis,
enfiara três balas no cano de uma pistola, metera-o na boca e puxara o
gatilho . Aparentemente, enquanto j urava o seu apoio aos Patriotas de
Grenoble, correspondera-se secretamente com B rienne e Lamoignon e
oferecera-lhes assistência . Era um dos infâmes que Mounier pretendia
extirpar do corpo político . Numa sessão preliminar dos Estados do
Delfinado, em Romans, o bispo teria proferido algumas palavras impru ­
dentes. Depois, j á sem o apoio dos seus patronos, implorara em sucessivas
cartas a Mounier (o secretário dos Estados) que o apagasse das minutas .
Mas Mouni � r era inflexivelmente correcto . Não se apercebeu ( a o contrá ­
rio de outros ) de que Hay de B onteville estava profundamente pertur­
bado. "Levais -me ao desespero ", escrevera o bispo, e alguns dias depois
agira em conformidade. Foi a primeira vitória da Virtude Revolucionária
sobre uma falha humana.
Os aspectos punitivos da morte do bispo não deixaram de ser notados
em Grenoble. Na opinião de alguns Patriotas, fora um fim condigno de um
patife e traidor. Na verdade, com o Antigo Regime prestes a suicidar- se,
surgiu um interesse pelo fenómeno do suicídio. Malesherbes descobrira o
cadáver da mulher num bosque . Na Primavera de 1 789, o seu primo,
Lamoignon, que tanto tentara fazer e que caíra a tentar, foi encontrado
morto com um tiro na sua propriedade rural. Parecia ter sido um acidente
de caça e o velho Malesherbes, cheio de tristeza e ansiedade, aceitou o
veredicto das autoridades. Contudo, na nação política, onde Lamoignon
não tinha amigos, dizia -se à boca cheia que se tinha suicidado - um gesto
que, afinal de contas, fora a única coisa decente que poderia ter feito.
243

B rienne não teve um fim mais feliz. Demitindo-se, conseguira furtar­


-se ao peso do ódio que se abatera sobre Calonne, mas não era uma figura
popular. Durante a sua governação, fora promovido da diocese de
Toulouse à de Sens, a sudeste de Paris, e para lá regressou, na tentativa de
deixar passar a tempestade . Enquanto Calonne, em Inglaterra, se tornou
um contra- revolucionário activo, Brienne não se poupou a esforços para
respeitar a ortodoxia patriótica . Em 1 7 9 1 , foi um dos poucos prelados do
Antigo Regime a fazer o "j uramento cívico " requerido pela constituição
civil revolucionária, e num gesto acrescido de boa fé devolveu a Roma o
seu chapéu cardinalício. Mas o Terror acabou inevitavelmente por apa­
nhá- lo; foi detido em casa, em Fevereiro de 1 794. Mantido em prisão
domiciliária, conseguiu engolir uma dose letal do ópio e do estramónio
que usava para aliviar o tormento da sua doença de pele .
Afinal de contas, tinha assistido ao suicídio do Antigo Regime.
8

Queixas
Outono de 1 788 - Primavera de 1 789

1 788, NÃO 1 688

A monarquia entrou em colapso quando o preço do seu salvamento


financeiro se passou a medir não em lucros nem em cargos mas em con­
cessões políticas. Em Agosto de 1 788, sofreu uma hemorragia de con­
fiança por parte dos credores e potenciais subscritores. A sua relutância
em disponibilizarem novos financiamentos contra as habituais "antecipa­
ções" de receitas traduziu uma transferência de fé numa forma de
governo burocrática para uma representativa . As reformas da administra­
ção Brienne tinham sido o último e difícil esforço no sentido de gerar
mudanças suficientes para sustentar a soberania sem alterar as suas pre­
missas básicas. O seu manifesto fracasso em prevalecer sobre a resistência
a não ser com o recurso continuado à força militar foi fatal. A partir desse
momento, assistiu -se à ascendência de uma convicção alternativa : a liber­
dade patriótica geraria dinheiro onde o absolutismo reformista falhara .
Esta ligação não tinha nada de necessário, nem sequer de lógico .
Outros Estados, noutras alturas, incluindo outros Estados franceses, entre
os quais o império bonapartista, tirariam a conclusão exactamente oposta
e regressariam ao modernismo e ao pessoal burocráticos da década de 80
do século XVIII, e os financeiros das grandes potências do século XIX,
especialmente os Rothschilds, preferiram geralmente o autoritarismo ao
liberalismo como garante dos seus empréstimos. Mas em 1 788 cumpria ­
-se um aniversário importante : era o centenário da Revolução Gloriosa,
um filão para a escrita histórica liberal francesa desde Voltaire e
Montesquieu . E nesta ordeira transferência de poder de uma monarquia
absolutista para uma monarquia constitucional, os comentadores france ­
ses viam não só o consumar da virtude política, mas também as origens
do êxito financeiro britânico . Enquanto repositório da confiança do
público ( logo, do dinheiro do público ) , o Parlamento britânico - assim
rezava o argumento - era um bastião mais sólido do que os agentes minis­
teriais da Coroa . Pouco importa se esta perspectiva era exacta ou não .
O que contava era a crença de que a liberdade e a solvência eram parcei­
ras naturais. (Um olhar para a carreira financeira da América libertada
245

poderia ter dado algum motivo de ceptiosmo aos optimistas, mas nin­
guém, e muito menos Lafayette, estava preocupado com estas questões
em 1 788 . ) No dia em que Necker foi nomeado para substituir Brienne, os
fundos governamentais subiram trinta pontos. Necker tinha sempre insis­
tido que a responsabilização pública era a chave da viabilidade fiscal. Por
conseguinte, a mera perspectiva da realização dos E stados Gerais, inaugu­
rados pelo ministro que recomendara a sua convocação, foi suficiente
para garantir subscritores para os empréstimos necessários para manter o
governo da França a funcionar e pagar aos seus soldados.
Na primeira instância, a transferência do mandato financeiro não foi
um acto de pura convicção política . Os investidores nos fundos governa -
mentais - em Paris, Genebra, Londres ou Amesterdão - calcularam que
um novo regime seria mais dado a honrar os seus compromissos do que
o anterior. Isto tornou -se particularmente verdade depois de ficar claro
que a monarquia não conseguiria introduzir as reformas necessárias para
garantir uma nova liberdade de manobra . Mas aqueles que nos salões do
bairro de Saint- Germain tomaram a decisão de apostar num novo regime
pertenciam, enquanto animais sociais, à classe dos parlamentares. Por tra­
dição, mesmo em situações extremas como a crise de Maupeou, na década
de 70 do século XVIII, tinham definido os seus interesses não em solida­
riedade automática com a nobreza judiciária mas com o serviço à Coroa .
Desse serviço podiam esperar, como fermiers généraux ou fornecedores de
outros empréstimos, um lucro apetecível e as benesses e estatuto de car­
gos que traziam consigo títulos de nobreza. O problema é que durante
todo o reinado de Luís XVI, primeiro com Turgot e Necker e depois com
Brienne, essa lealdade continuada fora seriamente posta à prova pelas
reformas . Por outras palavras, as tentativas da monarquia para garantir
um acesso mais directo às receitas e beneficiar de forma mais eficiente
com o crescimento económico da França neste período teriam de resultar
em pleno ou então não resultariam. Um sucesso parcial equivalia a um fra ­
casso total, pois significava ter de ir pedinchar de novo aos financeiros
cuj o interesse em sustentar a monarquia se tornara nulo .
Nesta perspectiva, um governo instituído pelos Estados Gerais seria um
devedor mais fiável. Um consenso mais alargado eliminaria os obstáculos
a novas fontes de receitas, que por sua vez seriam melhores garantes de
novos empréstimos. Os benefícios do liberalismo alimentar- se-iam a si
próprios. Todavia, este desfecho feliz pressupunha uma versão francesa de
1 688 ( anotada por Montesquieu ) , na qual a soberania efectiva passaria
sem sobressaltos da corte absolutista para uma assembleia dominada por
les Grands, a nobreza financeira e judiciária. Concomitante com esta
momentosa mudança existiria uma espécie de Declaração de Direitos dos
Cidadãos francesa, privando o absolutismo dos seus poderes j udiciais arbi­
trários - as lettres de cachet, etc. - e garantindo a segurança de pessoas e
S imon Schama 1 CIDADÃOS

bens. A liberdade de publicação e reunião pacífica seria também garan­


tida. Os ministros que abarbatassem os dinheiros públicos ( ainda era
enorme a fixação com Calonne ) seriam responsabilizados perante os
representantes da nação. E mais nada. A Coroa continuaria a beneficiar
do direito incontestável de nomear os ministros, e de propor e talvez vetar
a legislação. Mas a legalidade da sua governação passaria a estar suj eita ao
escrutínio público .
Era esta, pois, a visão de uma reforma constitucional na qual os gran­
des de França teriam o papel sénior. Era o que D 'Eprémesnil e os outros
leões j urídicos do Parlamento tinham decerto em mente quando organi­
zaram a obstrução sistemática das reformas de B rienne, mas o que conse­
guiram em troca foi uma revolução . E os arquitectos da queda da
monarquia não se tornaram os seus sucessores mas sim as suas primeiras
e mais espectaculares vítimas.
C omo aconteceu isto? A explicação desde há muito avançada e aceite
é que, no último minuto, as expectativas de sucessão dos aristocratas se
viram defraudadas pelo súbito aparecimento de uma nova classe política
- a burguesia. Frustrado nos seus esforços de ascensão social e ocupação
de cargos, este Terceiro Estado apoderou -se da liderança política para des­
truir não só a monarquia mas também a totalidade do antigo regime "feu­
dal" e instalar-se como senhor do século XIX.
Não vale a pena explicar de novo a natureza totalmente imaginária
desta explicação. A criação de uma alternativa política ao conservado­
rismo aristocrático não se deu fora mas sim no interior da elite, e não foi
uma invenção de figuras recentemente enobrecidas como Mounier. O pri­
meiro homem que identificou a verdadeira Nação política com o Terceiro
Estado foi o arquiaristocrático conde D' Antraigues. Este tipo de político
garantiu que os Estados Gerais não poderiam ser atirados à cara da
monarquia sem se abordar a natureza da sua representação. É como se os
patrocinadores do rei Guilherme III tivessem incluído uma facção pode­
rosa e inteligente dedicada à causa da reforma parlamentar.
O efeito deste primeiro debate sobre a representação na coesão da
putativa "elite sucessora" foi decisivo, o que significou que em vez de uma
nova classe política cerrando fileiras em torno dos seus líderes naturais
( como fora efectivamente o caso em Inglaterra, em 1 688, ou quase acon­
tecera na América, em 1 77 6 ) , se abriram clivagens profundas. Os radicais
estavam não só prontos mas também desej osos de usar a força popular e
a linguagem polarizadora do patriotismo e da traição para sustentar a sua
ideologia.
Que ideologia era essa? Em primeiro lugar, o seu radicalismo pode
medir-se pelo que não era . Repudiava a historicidade e a sanção do pas­
sado, algo que por si só constituía um desvio chocante da linguagem da
oposição ao absolutismo desde o reinado de Luís XV. Sublinhava que a
247

constituição teria de ser construída de novo e não apenas salva da atrofia.


Os critérios para esta nova construção deveriam ser racionais e patrióticos.
Eram termos perigosamente imprecisos, e não tardou que as diferenças
entre os revolucionários tornassem estas prioridades menos complemen­
tares e mais opostas. Os "racionalistas" - exponentes da modernidade, de
uma monarquia popular e de uma ordem económica e j urídica liberal -,
figuras como B arnave, Talleyrand, o marquês de Condorcet e o astrónomo
Sylvain Bailly, eram produtos do Iluminismo tardio. Crentes na liberdade,
no progresso, na ciência, na propriedade capitalizada e numa administra­
ção justa, eram herdeiros do ethos reformador do reinado de Luís XVI e
foram profetas autênticos da "nova notabilidade" que emergiu finda a
Revolução. A sua linguagem era razoável e o seu temperamento frio.
Tinham em mente uma nação investida, através dos seus representantes,
do poder de eliminar as obstruções à modernidade . Este Estado (uma
monarquia, com toda a probabilidade ) não faria a guerra à França da
década de 80 do século XVIII; cumpriria a sua promessa .
Mas a racionalidade não deteve o monopólio das declarações em 1 788
e 1 7 8 9 . O tipo de eloquência necessária para mobilizar a fúria popular a
ponto de poder ser utilizada como alavanca de poder não era frio, era
quente, e os fogueiras da caldeira revolucionária não estavam dispostos a
deixá -la esfriar em nome de uma mudança constitucional moderada. Não
se guiavam pela racionalidade nem pela modernidade, mas sim pela pai­
xão e pela virtude . Para eles, o Iluminismo, como uma grande parte da
França moderna, era, na melhor das hipóteses, um pau de dois bicos . A
esse respeito o advogado Target, escreveu:

Adquirimos o Iluminismo, m a s o patriotismo, a abnegação e a virtude é


que são necessários para procurar e defender os interesses de um grande
povo. C ada homem deve esquecer-se de si próprio e ver- se exclusivamente
como parte de um todo do qual faz parte, libertar-se da sua existência indi­
vidual, renunciar a todo e qualquer esprit de corps, pertencer apenas à
grande sociedade e ser um filho da pátria [un enfant de la patrie] .

Uma sociedade que pudesse ser medida, informada, administrada, capi­


talizada e individualizada era menos importante do que uma que pudesse
ser simplificada, moralizada e tornada mais inocente . A pedra de toque da
sua governação não deveria ser a racionalidade mas sim a justiça, e em
substituição do arco da cultura propunha-se a morada da natureza . Esta
patrie seria uma comunidade de cidadãos, terna com os seus filhos e impla­
cável com os seus inimigos. Sendo uma sociedade de amigos, estaria, tal
como Rousseau, seu originador moral, rodeada de inimigos - com alguns
dos piores envoltos nas roupagens da amizade. Uma das tarefas mais
nobres do cidadão seria desmascarar essas perigosas insinceridades. Por
S imon Schama 1 CIDADÃOS

conseguinte, a retórica revolucionária afinou -se desde o princípio pelo


diapasão da elação e do perigo . O seu tom era visceral e não cerebral, idea­
lista e não realista; era mais poderosa quando dividia os Franceses entre
Patriotas e traidores, e mais entusiasmante quando mais punitiva .
A perspectiva de satisfação - no sentido setecentista de j ustiça - foi o
que empurrou o francês médio para a política, e foi a sua participação que
transformou uma crise política numa revolução . Afinal de contas, a pro ­
tecção dos pobres e a punição dos traidores eram tarefas que a monarquia
devia tradicionalmente desempenhar. Porém, tendo -se tornado o servo da
modernidade, o governo parecia ter abdicado da sua missão protectora .
Por exemplo, em vez de garantir o fornecimento de cereais a preço j usto,
tinha -se comprometido - mais recentemente, em 1 787 com o princípio
-

moderno do comércio livre . O resultado pareceu ser a muitos o aumento


catastrófico dos preços e o açambarcamento especulativo que ficava
impune . Em nome de um princípio incompreensível, o governo fizera
outras coisas irresponsáveis e que davam conforto aos inimigos que deve ­
ria perseguir. Os protestantes tinham sido emancipados e agora podiam
mandar nos católicos pobres e decentes do Sul e do Sudeste da França .
Tinha -se aberto a França aos têxteis britânicos, que agora roubavam tra­
balho aos fiadores e tecelões normandos e flamengos . Tudo aquilo era cer­
tamente o resultado de uma conspiração contra o Povo.
Recorrendo a uma considerável perícia retórica, os políticos radicais
de 1 7 89 alimentaram com estas queixas uma grande fornalha de fúria,
e do outro extremo surgiu uma linguagem de acusação, que também era
um meio para classificar inimigos e amigos, traidores e Patriotas, aristo ­
cratas e Nação. S urpreendentemente, pouco importava que esses mes­
mos políticos sancionassem muitas das reformas que tanto afrontavam o
povo comum - por exemplo, a liberdade para o comércio interno e a
emancipação religiosa . Estas contradições eram (por enquanto) disfar­
çadas pela convicção de que uma assembleia nacional seria o tribunal
que daria satisfação às queixas e j u lgaria os responsáveis. Por conse­
guinte, todos os que se declaravam contra essa assembleia eram, por
definição, antipatriotas, e todos os que a advogavam eram identificados
como amigos do Povo . O facto de o próprio rei ter pedido ao povo para
apresentar as suas queixas ao mesmo tempo que elegia os seus repre ­
sentantes para os E stados Gerais veio reforçar estas convicções primiti­
vas, pois pareceu um convite para que o aj udassem a distinguir os falsos
Patriotas dos verdadeiro s .
A oportunidade de reforma constitucional perdeu-se quando a preser­
vação das distinções sociais - as ordens do Antigo Regime - ficou estigma­
tizada como antipatriótica. (Na Grã-Bretanha aconteceu praticamente o
oposto. ) Pior ainda, as distinções foram identificadas com as causas do sofri­
mento popular. A partir do momento em que aristocrata se tornou sinónimo
249

de antinacional, qualquer pessoa que desejasse preservar as distinções de


estatuto nos órgãos políticos da nova ordem identificar-se-ia como inca ­
paz da prática da cidadania. Estas pessoas colocavam-se efectivamente à·
margem da Nação, tornavam-se estrangeiros ainda antes de emigrarem.
A possibilidade de reorganizar as lealdades deste modo assentou em
quatro aspectos que, neste momento crucial, afastaram a França da evo­
lução e empurraram-na para a revolução.
Primeiro, existiu um grupo agressivamente dissidente no seio da elite
aristocrática e eclesiástica decidido a abrir mão do seu estatuto em troca
do papel preferido de cidadãos- líderes. Quem melhor poderia distinguir
entre o s seus os altruístas dos egoístas e os patriotas dos traidores?
E pela mesma lógica, este grupo tinha de estar preparado para provo ­
car, mobilizar e orientar a violência popular na acusação e punição dos
não cidadãos.
Segundo, aqueles que defendiam uma entidade política baseada em
ordens separadas não dispunham de um poder equivalente ao do grupo
atrás referido para conseguirem preservar a sua posição. Para desalojar o
absolutismo real, as multidões tinham sido lançadas nas ruas, mas depois
tornou-se óbvio que não regressariam docilmente à obediência passiva,
especialmente quando os oradores e os panfletistas as acicatavam a novas
acções. Durante todo o segundo semestre de 1 788 e a Primavera de 1 789,
os Parlamentos tentaram actuar de novo como garantes da ordem pública,
recorrendo às tropas reais como polícia - uma atitude embaraçosa tendo
em conta o seu passado recente .
Terceiro, o governo agravou a sua posição ao deixar em aberto a ques­
tão vital da composição dos Estados Gerais. Fora obviamente esta a inten­
ção de B rienne, em Julho, quando emitira um pedido geral de
"conselhos" sob a forma a assumir pela assembleia . Com o intuito de
explorar as divisões que correctamente detectara na magistratura,
Brienne tornou possível que os defensores de uma representação verda­
deiramente "nacional" afirmassem que eles e não os conservadores reflec­
tiam o verdadeiro desej o do rei.
Finalmente, o desej o expresso do rei de que o seu povo registasse as
queixas que tinha ao mesmo tempo que seleccionava os seus represen­
tantes associou o sofrimento social à mudança política . Não foi o que
aconteceu na Grã - B retanha em 1 68 8 e nem sequer na América em
1 7 76, e faria toda a diferença . Neste sentido, pelo menos, a Revolução
Francesa não foi provocada pela estrutura social, mas foi- o pelas questões
sociais .
Se reflectirmos sobre a natureza da retórica patriótica desde Rousseau,
veremos facilmente que isto tinha de acontecer. As suas panaceias senti­
mentais estavam em perfeita sintonia com a resolução de todos os tipos de
infelicidades sociais: o camponês encurralado pelos credores usurários; o
S imon S chama 1 CIDADÃOS

soldado mal pago por oficiais disciplinadores que tinham comprado as


suas patentes; o tecelão destituído de trabalho por forças de mercado que
não compreendia; a trabalhadora da guilda das vendedoras de flores inca­
paz de competir com os vendedores ambulantes; o cura empobrecido con­
frontado com a imensa opulência de um prelado aristocrático . Quando se
disse a toda esta gente e a muitas outras pessoas que uma verdadeira
assembleia nacional, em virtude da sua qualidade moral superior - o seu
patriotismo - lhes garantiria satisfação, passaram a ser parte interessada e
activa numa ampla mudança institucional. Foi exactamente isto o que
aconteceu em finais de 1 788 e no princípio de 1 78 9 . A combinação do
patriotismo político com a agitação social - fúria com fome - seria
(fazendo uso da metáfora eléctrica preferida dos revolucionários ) como
juntar dois cabos carregados de electricidade . Quando se tocavam, des­
prendia-se deles uma incandescência brilhante de luz e calor. O que não
se sabia ainda ao certo é quem iria ser consumido pela descarga.

II A GRANDE DIVISÃO,
AGOSTO - DEZEMBRO DE 1 788

Versalhes teria ainda uma derradeira oportunidade . No dia 1 O de


Agosto de 1 7 88, teve lugar a última audiência formal, para os embaixa ­
dores do sultão de Misore, Tipu S ahib . Apesar de se encontrar a um con­
tinente de distância, no seu palácio de S eringapatam, o sultão mantinha
a fé no poderio imperial da monarquia francesa. A flor- de-lis continuava
arvorada em bases navais no oceano Índico e o génio dos mecânicos fran­
ceses tinha produzido para o sultão um relógio-tigre que enquanto tra­
balhava ia devorando um granadeiro britânico. Não poderia a França
aj udar o "Tigre da Carnática" a livrar a Índia da maldição do imperialismo
britânico?
Esta tarefa não era uma grande prioridade para Brienne . O rei deu cor­
tesmente aos embaixadores garantias ainda menos substanciais do que as
oferecidas aos Holandeses e equipou-os com uma carruagem puxada por
seis cavalos brancos. Na Opéra, onde foram sentados nos melhores luga­
res, Madame de La Tour du Pin admirou os seus chinelos amarelos, colo ­
cados, à oriental, em cima do varandim do seu camarote . Como estavam
quase em cima do palco, por vezes era difícil dizer onde acabava a fanta ­
sia e começava a realidade.
Não era um problema que perturbasse Malesherbes. Uma noite estival
apanhou-o, na companhia de Lafayette, a beber numa guinguette do outro
lado do muro alfandegário que rodeava Paris. Malesherbes gostava
daquelas tabernas rurais, com mesas e bancos ao ar livre . As famosas La
Courtille e Les Porcherons estavam sempre cheias nos meses de Verão,
251

mas ainda restava u m bom número d a lista oferecida pelo Guide des
Amateurs de Thiéry - La Nouvelle-France, La Petite Pologne, Le Gros­
- Caillou e Le Grand et le Petit Gentilly -, todas a seu gosto e localizadas
perto da casa da filha, onde ultimamente Malesherbes gostava de jantar.
Na noite em causa, Malesherbes levara Lafayette para que o aj udasse
a entreter dois visitantes estrangeiros, Samuel Romilly, um j ovem inglês,
e o genebrino Etienne Dumont. Tinham desembarcado do paquete de
Dover e chegado a Versalhes a tempo de vislumbrar os turbantes dos
embaixadores de Tipu deslizando pelos salões cerimoniais. Romilly era
um j ovem advogado precoce, produto de uma rede de ideias "avançadas"
que se propalava das universidades escocesas através das academias dissi­
dentes e da Sociedade Lunar de Birmingham. ' Tinha a cabeça cheia de
proj ectos e fora prontamente aceite pela ala liberal dos Whigs, que se reu ­
nia na mansão de lorde Shelburne, em B owood. Os muitos amigos que
Shelburne tinha em França, incluindo o abade Morellet e o próprio
Malesherbes, tornaram-se amigos de Romilly, com quem falavam de
ideias "americanas" de patriotismo e liberdade, ligados através do Canal
numa união de camaradas.
Romilly ficou muito sensibilizado com o "calor e simpatia " que desco­
briu em Malesherbes. E o prazer óbvio que este retirava das alegrias da
vida familiar favorecia -o ainda mais. Em brincadeiras pegadas com os
netos, o velhote atirava a peruca para o outro lado da sala de visitas e dei­
tava-se em cima do tapete para que as mãozitas e os pezitos lhe atacassem
alegremente a pança. A informalidade para com os adultos e as crianças
estava a entrar na moda nos círculos progressistas whigs e seria celebrada
nos retratos familiares do seu mais brilhante artista de sociedade, Thomas
Lawrence . Mas era amiúde combinada com um constrangimento elegante
que desagradava ao sério temperamento huguenote de Romilly. Dumont
era da mesma cepa : era um pastor exilado da revolução democrática de
Genebra que fora esmagada por Vergennes, em 1 782 . Ambos já admira ­
vam muito Malesherbes por ter sido o paladino da emancipação dos pro­
testantes, em 1 787, e quando ele os levou na sua habitual "excursão para
reformadores" às prisões de Bicêtre e da S alpêtriere eles ficaram ainda
mais impressionados com a sua determinação. Mas havia outros elos a
unir os j ovens e o idoso numa liga humanitária . Romilly era amigo do
líder evangélico da campanha contra o tráfico de escravos, William

1 As academias dissidentes eram estabelecimentos de ensino dirigidos por

membros das seitas dissidentes da Igrej a de Inglaterra (por exemplo, os anabaptis­


tas ou os puritanos ) , e constituíram um elemento significativo do sistema educa ­
cional inglês de meados do século XVII ao século XIX. A Sociedade Lunar de
Birmingham foi um clube de figuras importantes e intelectuais da região das
Midlands que se reuniram regularmente entre 1 76 5 e 1 8 1 3, em Birmingham. Os
encontros eram em noites de lua cheia, daí o nome da socie.dade. ( N. do T. )
S imon S chama 1 CIDADÃOS

Wilberforce, estava envolvido no movimento antiesclavagista ao qual


dedicaria grande parte da sua vida, e os seus amigos parisienses perten -
ciam à Société des Amis des Noirs .
Malesherbes podia apresentar- se plausivelmente aos seus j ovens ami­
gos como um "homem do povo", não obstante o seu elevado estatuto aris­
tocrático e o seu cadastro de serviço governamental. Com os seus modos
simples e o casaco lustroso de sebo e com as mangas manchadas de rapé,
ele vestia mais a rigor para representar esse papel do que Lafayette ou
mesmo Mirabeau, e na taberna engendrou uma piada centrada na discre ­
pância entre uma aparência discreta e a celebridade democrática . "Por
acaso haveis ouvido falar no marquês de Lafayette?", perguntou ele ao
patrão. A resposta esperada seria: "É claro que sim, como toda a gente
ouviu" - e ele revelaria então a identidade do seu ruivo companheiro de
bebida. Mas para maior gáudio ( excepto de Lafayette j , a resposta foi: "Não
senhor, penso que não . Dizei-me, quem é?"
A relação entre líderes e liderados, entre os tribunos e o Povo que
tanto invocavam, seria uma das grandes questões da Revolução. Contudo,
no Verão e no Outono de 1 788, parecia pacífica, pelo menos para o cír­
culo no qual Romilly e Dumont se moviam. Não obstante o enorme desa­
lento de Malesherbes ao ver a história repetir- se e as reformas bem
intencionadas torpedeadas por políticas absolutistas, a perspectiva dos
Estados Gerais enchera -o novamente de entusiasmo e optimismo . Além
do mais, ele era um dos primeiros defensores de uma verdadeira "assem­
bleia nacional" que não tivesse pej o de se afastar radicalmente da forma
antiga, prescrita em 1 6 1 4. Nesta versão, os Estados reuniam-se, delibera ­
vam e votavam com as ordens separadas. Os trabalhos realizados no
Delfinado tinham rompido com este precedente e Mounier e os seus cole ­
gas haviam determinado que quando os seus Estados provinciais se reu ­
nissem seria como um único órgão, com as votações por representante .
Em Julho, antes de ser tomada a decisão de convocação dos Estados
Gerais, Malesherbes escrevera ao rei em termos caracteristicamente direc­
tos, recomendando -lhe uma abordagem similarmente coraj osa - uma
abordagem que, na sua óptica, lançaria as bases de uma monarquia ver­
dadeiramente popular.

O que são estes Estados Gerais que vos recomendam? . . . São um vestígio do
barbarismo antigo, um campo de batalha onde três facções do mesmo povo
se apresentam para se digladiarem; são o choque de todos os interesses com
o interesse geral . . . um meio de subversão, não de renovação. Tomai esta
estrutura pelo que é, uma ruína . Apenas lhe estamos ligados pela memó ­
ria . Apoderai-vos da imaginação das gentes com uma instituição que as
surpreenda e lhes agrade . . . Fazei com que um Rei, em finais do século
XVIII, não convoque as ordens do século XIV; fazei com que convoque os
253

proprietários d e uma grande nação renovada pela s u a civilização. U m Rei


que se submete a uma constituição sente-se degradado; um Rei que pro­
põe uma constituição alcança a glória maior entre os homens e a sua maior
e mais viva gratidão . . .

Foi este desvio dramático do precedente histórico que marcou o pri­


meiro grande ponto de viragem da Revolução. A 25 de Setembro, dois
dias depois de ser restaurado sob as aclamaçõe s generalizadas, o
Parlamento de Paris anunciou que os Estados Gerais seriam convocados
exactamente de acordo com a forma de 1 6 1 4. De um dia para o outro, o
Parlamento perdeu a imensa popularidade que conquistara durante o
confronto com Lamoignon. De herói das multidões, d'Eprémesnil passou
a obj ecto de desprezo e escárnio. Os acontecimentos do Delfinado, muito
publicitados em Paris, tinham-se antecipado à tentativa de traçar como
limite uns Estados Gerais tradicionais.
Além do mais, o aparelho de repressão legal fora quase desmantelado
no Verão, a pedido dos próprios oradores do Parlamento . A censura, a
arma tradicional do Parlamento, foi eliminada e as ruas encheram-se com
uma torrente de literatura política . Em Setembro, apareciam cerca de dez
panfletos novos por dia. Além disso, uma minoria articulada existente no
seio do Parlamento, liderada por Adrien Duport, Hugue de Sémonville e
Guy-Jean Target, insistia num novo tipo de Estados Gerais nos quais o
Terceiro Estado seria em número pelo menos igual ao dos outros dois e as
votações seriam "por cabeça" ou individualmente, para que qualquer ten­
tativa de obstrução das decisões populares pudesse ser derrotada pelo peso
dos números. O que estava efectivamente a ser proposto era uma nova
forma de representação - não por órgãos corporativos, mas por cidadãos.
Qualquer grupo que se quisesse isolar deste órgão geral dos cidadãos e
exigir uma representação especial ou desproporcionada isolar- se-ia ins ­
tantaneamente "fora da Nação".
Assim sendo, paradoxalmente, o "Terceiro Estado " foi uma invenção
dos cidadãos-nobres. Em Novembro, o grupo que começou por se auto­
denominar Sociedade dos Trinta e mais tarde Clube C onstitucional, come­
çou a reunir- se em casa de Duport duas vezes por semana, por vezes
durante quatro horas ou mais, para debater a natureza da futura repre ­
sentação. Não era um grupo exclusivamente radical. Incluía d'Eprémesnil,
na qualidade de colega "constitucionalista" do Parlamento, e Sabatier de
Cabre . Esforçaram-se por defender a preservação de uma ordem nobre
separada como bastião contra o poder corruptor do dinheiro que, na sua
perspectiva, dominaria uma representação geral, mas a maioria do clube
de Duport foi inflexível no sentido de atribuir ao Terceiro Estado uma
representação pelo menos igual às dos outros dois combinados e de a
assembleia deliberar e votar em comum.
S imon Schama 1 CIDADÃOS

Um número surpreendentemente considerável dos membros da socie­


dade era composto por homens cuj as reputações tinham sido feitas como
"figuras públicas" e celebridades patrióticas. A imagem que tinham de si
próprios já pressupunha uma relação simpática entre líderes e cidadãos.
O parlamentar Target, por exemplo, o magistrado que mais rompera com
os seus colegas conservadores, era já o deus da Basoche, ovacionado das
galerias. A sua primeira grande oração durante um julgamento fora um
épico sentimental digno da invenção mais lamecha de Rousseau . O con­
texto era o direito de os aldeãos de Salency, na Picardia, escolherem a sua
"Rainha das Rosas" do ano - a rosiere. O ritual fora adaptado pela nobreza
bien-pensant como um idílio bucólico e Madame de Genlis, a amante de
Orleães, deslocara-se a Salency para tocar harpa na coroação da rosiere.
Quando o seigneur local disse que o direito de escolher a rosiere era apa­
nágio seu e não dos anciãos da aldeia e levou o caso ao Parlamento de
Paris, Target apresentou-o em tribunal como um teste de força clássico
entre a inocência e a força. Em 1 788, revisitou muitos dos mesmos temas,
desta vez amplificados à escala da política nacional.
Lafayette, o seu parente De Noailles, o duque de La Rochefoucauld­
-Liancourt, o duque de Luynes e o duque de Lauzun eram também cidadãos
cuja retórica exercia uma influência acrescida por serem originários do topo
do pariato. Além do mais, para muitos deles, estavam apenas na segunda
fase de uma cruzada iniciada na América. Eram cortesãos contra a corte, aris­
tocratas contra os privilégios, oficiais que pretendiam substituir o patriotismo
dinástico pelo patriotismo nacional. Apesar de crente numa assembleia
nacional, Lafayette mantinha algumas reservas em relação às consequências
da política popular e, para o conquistar para a sua causa, o Parlamento
nomeou o "Herói dos Dois Mundos" seu conselheiro honorário. Esta medida
preocupou o seu colega dos Trinta, Condorcet, que conhecia o fraquinho de
Lafayette pela adulação. Condorcet escreveu as seguintes palavras ao ameri­
cano Philip Mazzei:

Se fordes a casa de Lafayette, tentai exorcizar o demónio da aristocracia


que irá lá estar para o tentar disfarçado de conselheiro do Parlamento ou
nobre bretão. Para o efeito, levai no bolso um frasquinho com água do
Potomac e um aspersor feito com a madeira de um rifle do Exército
C ontinental, e orai em nome da Liberdade, da Igualdade e da Razão, que
são uma mesma divindade em três pessoas.

Outros membros do grupo de Duport incluíam Talleyrand, que já


começava a olhar para Lafayette com desconfiança, Mirabeau, cuj o efer­
vescente radicalismo polémico estava comprometido por todo o tipo de
escândalos - sexuais, monetários e diplomáticos; banqueiros genebrinos,
como Claviere e Panchaud, ambos ex-aliados de Calonne e que agora
255

regressavam a o s seus princípios democráticos d e 1 782; os abades Morellet


e Sieyes; o pastor provençal Rabaut Saint-Etienne e, em especial, Louis­
- S ébastien Mercier, o profeta do apocalipse . A "conspiração dos homens
bem-intencionados", como se designavam a si próprios, incluía também
vários dos cérebros do programa de reformas de Calonne, entre os quais
du Pont de Nemours e o abade Louis.
Embora discordassem em relação a muitos detalhes, quase todos os
membros do clube subscreviam alguns princípios básicos que marcaram
um rompimento dramático com a argumentação parlamentar.
Rejeitavam liminarmente o axioma de que sempre existira uma espécie
de "constituição fundamental" que os Parlamentos tinham procurado
defender. A única "lei fundamental", declarou Rabaut de Saint-Etienne,
era salus populi suprema lex est ( sej a a salvação do povo a lei suprema ) .
O simples facto, acrescentou Target, de os antiquários terem de andar a
vasculhar na história de C arlos Magno e dos C arolíngios era prova sufi­
ciente de que a França não tinha nenhuma constituição, e impunha-se
criar uma de novo .
Fora de Paris, existiam centros provinciais onde os campeões urbanos
do Terceiro Estado, seguindo o exemplo de Mounier no Delfinado, se
digladiavam com os nobres mais conservadores por causa da estrutura dos
respectivos Estados - e por acréscimo, da representação nacional. O com­
bate mais renhido tinha lugar na Bretanha, onde uma geração de j ovens
advogados de cidades como Nantes e Rennes ( treinados nas tácticas de rua
durante os combates pelo Parlamento) recorreu à oratória e à pressão das
multidões para impor uma redefinição radical da representação. Arthur
Young, o especialista agrícola inglês que visitou Nantes em Setembro,
encontrou a cidade "tão enflammé na causa da liberdade como qualquer
outra urbe de França " e ouviu conversas que "provam a grande mudança
que se efectuou nos Franceses " . As polémicas que emanavam dos clubes
de leitura e dos comités políticos que brotaram como cogumelos nas cida­
des bretãs em 1 788 faziam questão de ridicularizar a sanção da antigui­
dade, especialmente cara à nobreza da província. "O que nos importa",
escreveu o advogado Volney no seu j ornal La Sentinelle du Peuple, "o que
fizeram os nossos pais ou como e porque é que o fizeram . . . ? Os direitos
essenciais do homem, as suas relações naturais com os seus iguais no
estado da sociedade - estas são as bases eternas de todas as formas de
governo" . As Reflexions Patriotiques de Jean Lanj uinais, professor de Direito
em Rennes, foram mais duras na sua paródia da obstrução conservadora:

Escravos negros - sois reduzidos à condição de brutos - mas nada de ino­


vações ! Filhos de reis asiáticos - segundo o costume, o mais velho estran­
gula os irmãos - mas nada de inovações ! Povo da B retanha : estais mal e a
nobreza está bem - mas nada de inovações !
S imon Schama 1 CIDADÃOS

Impõe-se, insiste Lanj uinais, uma constituição para o presente e não a


veneração de relíquias . " S erá que as vestes de 1 6 1 4 nos ficam melhor do
que as de uma criança ficam a um homem no auge da maturidade? " Do
mesmo modo, o termo privilégios, que fora sinónimo de liberdades na con­
tenda entre a Coroa e os Parlamentos, passara a ser considerado a sua
antítese . A probidade política j á não requeria a protecção dos privilégios
mas sim a sua obliteração.
Em grande parte da França ( e em alguns casos até na tumultuosa
Bretanha ) , a nobreza estava disposta a ceder, pelo menos em parte, às exi­
gências que eram feitas pelos seus próprios radicais bem como pelos porta­
-vozes do Terceiro Estado que estivessem de boa fé. Tal como seria
demonstrado pelos cahiers - listas locais de queixas e expectativas -, a maio­
ria da classe privilegiada estava disposta a abrir mão da característica mais
conspícua do seu estatuto: a isenção fiscal. Esta isenção tinha sido tão ero­
dida que perdê -la já não era um grande sacrifício, em especial para os
nobres mais abastados, que a acenaram como uma concessão. Mas a ordem
para que se fundissem inteiramente numa união mais geral da nação foi
muito mais divisora, quer entre as províncias, quer dentro das províncias.
A afirmação repetida de que as ordens separadas deveriam persistir só por­
que existiam há tanto tempo foi caindo cada vez mais em saco roto .
Por conseguinte, em finais de 1 7 88, a sanção do passado perdeu o seu
poder de persuasão. Pierre Lacretelle, o advogado parlamentar, foi ao
ponto de lamentar que todos os monumentos e usos antigos não tivessem
sido consumidos num grande incêndio ( algo que a Revolução faria sim­
bolicamente em 1 7 9 3 ) . Pelo contrário, argumentaram Condorcet e outros
membros do grupo de Duport, deveria ser a razão a guiar os criadores da
nova constituição. "Princípios verdadeiros e determinados de forma racio­
nal", anuiu o conde d' Antraigues, mostrariam que a liberdade política e a
igualdade civil perante a lei eram as bases apropriadas para a nova ordem.
Mas d' Antraigues, que fora amigo de Jean-Jacques Rousseau, passaria a
defender o argumento ( típico dos cidadãos-nobres) de que o Estado e o
Povo eram uma e a mesma coisa :

O Terceiro Estado é o Povo e o Povo é a fundação do Estado; na verdade,


é o próprio Estado; as outras ordens são meras categorias políticas,
enquanto pelas leis imutáveis da natureza o Povo é tudo . Tudo lhe deve estar
subordinado; a sua segurança deve ser a primeira lei do Estado . . . É no
povo que reside todo o poder nacional e é para o Povo que todos os
Estados existem.

O namoro de d' Antraigues com a soberania popular não seria de longa


duração. Eleito deputado aos Estados Gerais, acabou por se arrepender da
sua polémica e tornou - se um contra -revolucionário tão zeloso como fora
257

prato -democrata. N o entanto, o s e u texto passou p o r catorze edições e


ficou sintetizado no axioma popular "O Terceiro Estado não é uma ordem,
é a própria nação".
A partir do momento em que esta proposição revolucionária se con­
verteu num truísmo, a defesa da preservação das ordens assumiu um tom
de interesse seccional, egoísta, antipatriótico e desdenhoso das preocupa ­
ções do povo comum, e dado que o rei tinha pedido para as ouvir, essa
posição podia inclusivamente ser rotulada de antimonárquica. A insistên­
cia de Necker na natureza estritamente provisória da sua administração e
a sua recusa em pronunciar- se sobre as questões cruciais da duplicação
dos representantes do Terceiro Estado e da votação individual abriram um
vácuo político que foi preenchido por argumentos em vez de soluções. No
dia 5 de Dezembro, este vácuo tornou-se ainda maior quando o Parla ­
mento recuou da sua intransigência e se pronunciou de acordo com
Target no sentido de não existir nenhum precedente constitucional que
devesse ser seguido pelos Estados Gerais. Pelo contrário, "a razão, a liber­
dade e o voto geral" indicariam a forma da nova instituição!
A solução interina de Necker fora convocar uma segunda Assembleia
de Notáveis para o aconselhar sobre a forma dos Estados Gerais, mas
enquanto a primeira assembleia fora mais radical do que o esperado, com
a segunda verificou-se o oposto. Só uma minoria assumiu posições
"nacionais" . Pior ainda, os príncipes reais - com a excepção importante de
Orleães e, mais surpreendentemente, de Provença, o irmão do rei - decla­
raram num memorando elaborado no dia 5 de Dezembro que "o Estado
está em perigo" e que

está em preparação uma revolução nos princípios da governação, decor­


rente da agitação das mentes . Instituições tidas como sagradas e através
das quais a monarquia vem prosperando desde há tantos séculos foram
convertidas em questões problemáticas ou mesmo denunciadas como
inj ustiças.

Ceder a uma visão da representação por maioria, prosseguiram, seria


expor a França a perigos extraordinários. Caso viesse a ter lugar, pela mão
do Terceiro Estado, "a revolução na constituição do Estado ", eles previam
entradas e saídas de reis em função dos caprichos de uma opinião pública
ataviada de vontade nacional.
O Memorando dos Príncipes percepcionou alguns dos perigos do
rumo para o qual a monarquia estava a ser empurrada num estado de
optimismo sem leme . C ontudo, os panfletistas do Terceiro Estado toma ­
ram-no como uma prova evidente da existência de uma conspiração
contra a "monarquia popular" que estava a ser criada . Com o debate a
intensificar-se, o governo sentiu -se ainda mais relutante em indicar o
S imon S chama 1 CIDADÃOS

caminho a seguir. No dia 2 7 de Dezembro, a confusão foi agravada por


um édito excepcionalmente sumário, sem qualquer espécie de preâm­
bulo. C ontra o conselho da Assembleia de Notáveis, proclamou que o
Terceiro E stado teria a sua representação duplicada mas absteve -se de
ordenar a realização de debates em comum e de votações por cabeça,
tornando ridícula a sua generosidade para com o Terceiro Estado. A opi­
nião de Necker parece ter sido que os Estados Gerais decidiriam sozinhos
sem demasiada desordem.
Todas estas iniciativas desajeitadas, mudanças de opinião e ofuscações
contrastavam enormemente com os Patriotas e o Terceiro Estado, cuja
visão tinha duas virtudes: clareza e determinação. Fora com todos aque­
les que desde há tanto tempo se vinham proclamando defensores do
Povo mas que, quando a representação popular se aproximava, se reve­
lavam não os seus paladinos mas os seus opressores. Qualquer questão
corrente podia ser convertida na retórica dos Patriotas e dos
Privilegiados. Na sua Pétition des Citoyens Domiciliés à Paris, o Dr. Joseph­
-Ignace Guillotin (ex-j esuíta e médico ) defendeu a duplicação da repre ­
sentação do Terceiro E stado exactamente com base nesta singularidade
residencial. O seu texto foi adaptado pelas S eis Guildas dos C omerciantes
da cidade de Paris e seis mil cópias foram distribuídas sob a égide destas
corporações. O Parlamento tentou suprimir a sua circulação e, no dia 8 de
Dezembro, tomou medidas contra o próprio Guillotin. Foi apresentado
em tribunal mas a multidão que se manifestou a seu favor fê -lo de forma
tão barulhenta e intimidadora que a sua absolvição triunfal foi quase um
pró -forma .
Houve outra característica do Terceiro Estado no difícil Inverno de
1 7 88- 1 789 que reforçou a sua pretensão de corporizar de forma autêntica
a Nação renascida: o seu labor. Muitos dos panfletos que tinham moldado
a identidade do Terceiro Estado haviam contrastado os privilégios adquiri­
dos de forma venal com a produtividade do roturier2, um termo que con­
jurava o emblema da pá trabalhadora. Um memorando sobre os Estados
Gerais redigido pelos funcionários municipais de Nantes foi enfático neste
ponto:

O Terceiro Estado cultiva os campos, constrói e navega as naves do comér-


cio, sustém e dirige as manufacturas, alimenta e anima o reino . . É che -
.

gado o momento de um grande povo contar para alguma coisa . . .

O cahier de uma aldeia dos Vosges, Hareville -sous-Montfort, diria o


mesmo de forma ainda mais vincada. A nobreza que se diz apoiante de Sua
Majestade, explica o texto, "só o faz a troco de pensões gordas pagas pelo

' Em francês no original : plebe u . ( N. da R. )


259

Estado", enquanto "o Terceiro Estado está sempre a pagar e trabalha noite
e dia para cultivar a terra que dá o cereal para alimentar toda a gente".
As muitas gravuras que começaram a aparecer nesta altura com as
duas ordens privilegiadas escarranchadas em cima do cultivador do solo
diziam essencialmente a mesma coisa.
Coube a Qu 'est-ce que le Tiers-État?, da autoria do abade Sieyes, o mais inci­
sivo de todos os panfletos, tomar decisivo o cisma entre o útil e o inútil.
"O que é necessário para que uma nação prospere?", inquire na primeira
das suas célebres perguntas retóricas. A resposta é: "Esforços individuais e
funções públicas. " E era o Terceiro Estado que providenciava todos os
esforços individuais. Assim sendo, o Terceiro Estado não era uma
"ordem" . Era a própria Nação . Por conseguinte, aqueles que reclamavam
um estatuto especial fora da Nação estavam a confessar o seu parasitismo .
Devido aos infortúnios e às delapidações, o Terceiro Estado, que era tudo,
não fora politicamente nada . Só quando a tibieza dos privilegiados amea­
çara destruir a patrie pudera o Terceiro Estado tentar ser, na expressão
modesta de Sieyes, "alguma coisa" .
O Terceiro Estado foi uma ideia e u m argumento antes d e ser uma rea ­
lidade social e o panfleto de Sieyes foi a sua invenção mais inspirada:
cogente, lúcido e aparentemente incontestável excepto invocando o fan­
tasma da historicidade - que não metia medo a ninguém. Não só deu
forma à nova entidade política nacional, como também apontou um dedo
ameaçador aos que dela se separavam. "É impossível dizer que lugar
devem a nobreza e o clero ocupar na ordem social", avisou Sieyes. "É o
mesmo que perguntar que lugar deve ser atribuído a uma doença maligna
que preda e atormenta o corpo de um homem doente . "

III FOME E F ÚRIA

No dia 1 3 de Julho de 1 788, uma tempestade de granizo abateu-se


sobre grande parte do centro da França, de Rouen à Normandia e até
Toulouse. O jardineiro escocês Thomas Blaikie, que assistiu à cena, escre­
veu sobre pedras monstruosas que tinham morto lebres e perdizes e arran­
cado ramos de ulmeiros. Exageros à parte, a chuva de bolas geladas fez
muitas vítimas mortais. Aniquilou os rebentos das vinhas na Alsácia, na
Borgonha e no Loire; devastou o trigo que amadurecia nos campos do
Orléanais; esburacou as maçãs novas em Calvados; mirrou as azeitonas e
as laranjas do Midi. Na província ocidental da B eauce, os cereais, que
tinham sobrevivido a uma tempestade de granizo no dia 29 de Maio,
sucumbiram ao golpe assestado em Julho. Na Ilha de França, a sul de Paris,
onde os legumes e os frutos que amadureciam foram aniquilados, os agri­
cultores escreveram, "Um campo em flor foi reduzido a um deserto árido" .
S imon S chama 1 CIDADÃOS

À seca que depois se instalou em grande parte da França seguiu -se um


Inverno de uma severidade a que não se assistia desde 1 709, quando o
B ordéus tinto terá gelado na taça de Luís XIV. As histórias contadas
oitenta anos antes voltaram a circular com o frio atroz. Dizia-se que o gelo
colava os pássaros aos poleiros; que os lobos tinham saído das suas tocas
nas Cevennes e descido às planícies do Languedoc; que os pobres de
regiões selvagens como o Tarn e o Ardeche comiam papa de casca de
árvore cozida . Mas a realidade que se podia constatar já era bastante má.
Com os rios completamente gelados, as azenhas que transformavam o
pouco trigo que havia em farinha deixaram de funcionar e o transporte
de emergência de provisões para as zonas de maior carestia ficou com­
prometido . A neve amontoou-se no solo até ao Alto Garona, a oeste de
Toulouse, onde entre 26 de Fevereiro e 1 0 de Abril nevou quase todos os
dias. Em Janeiro, Mirabeau descreveu a Provença como se tivesse sido
visitada pelo Anj o da Morte . " Caíram aqui todos os flagelos. Por todo o
lado, dei com homens mortos de frio e de fome por falta de farinha - e
isto no meio de trigo - porque os moinhos estão congelados . "
O degelo trouxe as suas próprias misérias . Em meados d e Janeiro, o
Loire inundou subitamente os campos e as pastagens, rompeu os diques
rudimentares e invadiu as ruas de Blois e Tours.
Oitenta anos antes, a fome estivera bem presente: as estradas enche ­
ram -se de cadáveres de pessoas que tinham morrido de fome . Em 1 789,
quem se apresentou foi a sua irmã mais nova, a penúria - la disette -, mas
a diferença não foi muita . A severidade extrema do tempo rematou a
escassa colheita de 1 7 8 7 . O pão de dois quilos que constituía o alimento
principal de três quartos dos homens e das mulheres franceses e que, em
condições normais, lhes consumia metade dos rendimentos, subiu de
8 soldos no Verão de 1 7 87 para 1 2 em Outubro de 1 788 e 1 5 na primeira
semana de Fevereiro . Alimentar uma família de quatro pessoas exigia o
consumo diário de dois pães destes, quando o salário médio de um tra ­
balhador manual era de entre 2 0 e 3 0 soldos e o de um pedreiro 40, no
máximo. A duplicação dos preços do pão - e da lenha - traduziu -se em
miséria. No Inverno de 1 788, alguns clérigos estimaram que um quinto
da população de Paris, mais de 1 00 000 almas, estava a receber assistên­
cia. Com grandes gestos, magnatas como o duque de Orleães venderam
quadros - dizia -se que era para socorrer os pobres - mas os actos isola ­
dos de filantropia nunca poderiam providenciar comida ou lenha em
quantidades suficientes para tornar o Inverno suportável para os milha ­
res de vítimas .
A calamidade atingiu de modo diferente os diversos segmentos popu­
lacionais, arrastando cada um para um nível de subsistência do qual se
j ulgava a salvo . A destruição das colheitas deixou sem trabalho os j orna­
leiros, muitos dos quais eram migrantes. Tinham deixado as famílias e
261

enveredado pelas rotas habituais d a labuta sazonal nas vinhas, nos cam­
pos de trigo ou nos olivais, para depois regressarem a casa para mante ­
rem a sua pequena parcela de terra . Agora, o mais provável era que não
conseguissem sequer regressar e terem de lutar pela sua própria sobrevi­
vência . Para os pequenos proprietários - os métayers -, que constituíam a
maior parte da população rural, foi a última volta num torno de dívidas
e empobrecimento . Sem terra suficiente para alimentarem as suas famí­
lias, tentavam obter um pouco mais do seigneur, j untamente com semen­
tes, alfaias e animais de tiro, em troca de uma parte da colheita. Este fardo
impedia a acumulação de quaisquer excedentes, pelo que os métayers se
viam frequentemente obrigados a comprar alimentos para conseguirem
subsistir. Assim, além de produtores eram consumidores, e .os aumentos
punitivos do preço do pão e da lenha praticados em finais da década de 80,
século XVIII, privou-os de toda e qualquer possibilidade de aproveitarem
o aumento gradual do valor do que produziam. Com as colheitas enegre ­
cidas pelo gelo ou pelo granizo e com impostos a pagar ao seigneur e ao
Estado, o mais provável é que os credores se apresentem a cobrar. O resul­
tado é a expulsão e a despromoção para a classe dos sem-terra - que entre ­
tanto ficaram sem trabalho . S egundo Georges Lefebvre, em áreas
relativamente prósperas como os campos em redor de Versalhes, um terço
da população rural era constituído por famílias desenraizadas. Na Baixa
Normandia, este número era de três quartos. Toda esta gente engrossou a
torrente de humanidade desgraçada que se arrastava até às igrejas em
busca de uma esmola de pão e leite ou que acorria às grandes cidades.
Quando conseguiam chegar a uma cidade, o acolhimento era frio.
O trabalho temporário estava praticamente nas mãos dos migrantes: eram
carregadores nos mercados, cocheiros, limpa-chaminés, vendedores de
água. A crise que se abateu sobre o campo transformou-se numa depres­
são que contagiou o resto da economia. A diminuição do poder de compra
reduziu o mercado para os bens manufacturados, que já sofria com a con­
corrência dos produtos britânicos baratos por via do tratado comercial de
1 786. Os artesãos ficaram sem trabalho; o trabalho à peça nos teares fami­
liares desapareceu; a expansão da indústria da construção urbana parou
subitamente, lançando muitos trabalhadores para o desemprego . C idades
industriais como Lyon e Rouen têm respectivamente 25 000 e 1 0 000
desempregados. Em Amiens, ainda mais próxima do ponto de entrada das
manufacturas britânicas, o número de desempregados atinge os 46 000.
Face às provas de ruína generalizada, Necker faz o que pode para pres­
tar algum auxílio. Proíbe a exportação de cereais, autorizada pelos éditos
de B rienne em 1 787, e lança-se numa vigorosa política de importação,
gastando quase cinquenta milhões de libras francesas para adquirir cereais
e arroz. Mas não é fácil obter provisões. A Guerra Russo-Turca cortou as
fontes levantinas que abastecem o Sul do país e as mais tradicionais - a
S imon S chama 1 CIDADÃOS

Polónia e a Prússia Oriental - estão afectadas por um novo conflito no


Báltico . No Norte, o gelo que bloqueia o estuário do S ena e portos como
Le Havre impossibilita a descarga dos navios. Além disso, as poucas impor­
tações que chegam a França são dispendiosas porque muitos países que se
deparam com as mesmas dificuldades competem pelo pouco cereal dispo­
nível. Os rios e os canais gelados tornam o transporte por barcaças lento
e difícil. E quando o trigo e o centeio polacos, atravessando a Holanda e
os Países B aixos austríacos, chegam finalmente ao Norte e ao Nordeste,
estão de tal forma deteriorados que dão uma farinha amarelada com
cheiro a azedo .
Em suma, não seria provavelmente a altura mais auspiciosa para pedir
ao povo francês que desse a conhecer as suas queixas . Mas das profunde­
zas das suas carências e da sua aflição, a figura do Rei-Pai (assim é cha­
mado o monarca em muitos dos cahiers de doléances' ) assume um aspecto
quase sacro, oferecendo aos seus súbditos uma audiência "à distância" .
Por conseguinte, não obstante todos o s seus horrores, o Inverno d e 1 788 -

- 1 789 não deve ser visto como uma sentença de morte antecipada da
grande experiência política em curso. No entanto, para a mente popular,
a questão de uma nova constituição fica ligada ao encher dos estômagos
vazios, o que significa incumbir o patriotismo e a representação de mais
do que um ou outra podem oferecer. Tal como a liberdade não era uma
resposta mágica para o problema da solvência fiscal, a igualdade também
não era uma resposta para o problema ainda mais difícil de alimentar a
população em anos de carestias.
Depois de levada à atenção da populaça, a interdependência da comida
e da liberdade não mais desaparece . A ilusão de que novas instituições
políticas poderiam garantir sustento onde as antigas tinham fracassado
baseava-se na crença de que os agentes parasitários do Antigo Regime
tinham usado intencionalmente o seu poder para provocarem crises com
as quais poderiam beneficiar. Nestes pactes de famine, as carestias periódi­
cas tinham sido o sinal para os especuladores retirarem os cereais do mer­
cado para fazerem subir os preços até ao momento em que pudessem
obter o lucro máximo. A política de liberalização do comércio de cereais,
isentando-o dos regulamentos que determinavam a venda licenciada em
mercados específicos, tinha oferecido possibilidades acrescidas à extorsão.
Estas crenças, muito difundidas, carecem de culpados: são os agioteurs
( especuladores) e os accapareurs ( açambarcadore s ) , para os quais alguns
cahiers rurais exigem a pena de morte, mas com igual frequência os minis ­
tros suspeitos de colusão. No princípio da Revolução, foi possível atribuir
a responsabilidade pelo prolongamento da crise alimentar à aristocracia
intransigente, que se dizia estar a conspirar para subj ugar o povo pela

' Em francês no original : cadernos de queixas. ( N. da R. )


263

fome, mas sucessivas administrações revolucionárias caíram vltlmas da


acusação de que o seu patriotismo e o seu zelo punitivo inadequados
mantinham o povo refém do ciclo da fome. O problema só diminuiu
quando as colheitas melhoraram e os soldados, quais gafanhotos, passa ­
ram a alimentar-se nos países que ocupavam.
Foi a associação da fúria com a fome que possibilitou a Revolução. Mas
também a programou para explodir devido às expectativas exageradas .
Estas expectativas instalaram-se logo que o rei solicitou aos súbditos
que se reunissem nas paróquias e bailiados para elegerem deputados e
elaborarem uma lista de todas as suas queixas e esperanças para o futuro .
Em certo sentido, este exercício veio apenas confirmar a crença tradicio­
nal de que o rei socorria sempre o seu povo em aflição, mas a confirma­
ção nunca fora tão directa e universal. Os acontecimentos da Revolução
são tão dramáticos que distraem a atenção da magnitude da experiência
que teve lugar por todo o país, de Fevereiro a Abril de 1 78 9 . Nunca fora
tentado nada de semelhante, nem em França, nem em lado nenhum - e
muito menos nesse modelo da excelência constitucional, o Reino da Grã­
-Bretanha . Vinte e cinco mil cahiers foram redigidos num acto simultâneo
de consulta e representação inédito na sua abrangência.
É claro que não ecoa em todos a voz do povo, livre de mordaças .
S egundo o processo eleitoral para os Estados Gerais, definido na convo­
catória real de 2 4 de Janeiro, a nobreza e o clero elegem os seus repre ­
sentantes directamente, mas o processo de selecção dos deputados do
Terceiro Estado é complicado e indirecto . São reunidas as assembleias
locais - que dão pelo nome medieval de bailliages ( bailiados ) -, aproxi­
madamente uma por cada cem eleitores, sendo estes definidos como
residentes e contribuintes com mais de vinte e cinco anos de idade (em
algumas assembleias locais ter- s e - ão apresentado algumas viúvas, que
argumentaram esperançosamente que o édito real não tinha especifi ­
cado o sexo ) . O eleitorado assim criado ronda os s e i s milhões de pessoas.
Não obstante todas as suas complicações e dificuldades de ordem prá ­
tica, é a maior experiência de representação política tentada até então
na história.
Quase sempre reunidas nas igrejas das aldeias, estas assembleias pri­
márias elaboraram os seus cahiers e elegeram deputados para representa ­
rem a comunidade noutra assembleia. Em algumas zonas, essa
"assembleia -geral" elegeu deputados, mas o mais frequente foi ter de ir
reduzindo o número de representantes por fases até chegar à selecção
final de delegados a enviar aos E stados Gerais, em Versalhes, um proce ­
dimento que garantiu que seriam necessariamente os mais eloquentes,
educados e politicamente experientes a sobreviver ao processo de selec­
ção . Isto significou, na prática, uma maioria esmagadora de advogados e
funcionários públicos - os esteios das academias e das sociétés de pensée
S imon S chama 1 CIDADÃOS

locais -, polvilhada de médicos, notários e ex-abades esclarecidos ( como


Sieyes) e de um ou outro homem de negócios que cumpria os requisitos .
A s assembleias locais estiveram notavelmente livres d e qualquer tipo
de intimidação oficial. Necker honrou o seu compromisso com uma
imparcialidade rigorosa e com a total liberdade de censura durante as elei­
ções . Por exemplo, aconteceu comummente os funcionários do governo
local presidirem a assembleias em que o Estado e os seus servidores, dos
intendants aos agentes dos rendeiros fiscais, foram rotundamente denun­
ciados pelas suas muitas tiranias - pequenas ou grandes . Todas estas
denúncias foram incorporadas na declaração final, pelo que, filtradas as
convicções pessoais e os feitios, os cahiers oferecem um relato espantosa­
mente completo do que ia na mente do povo francês no fim do Inverno e
no princípio da Primavera, durante o renascimento da sua nação política .
Os cahiers falam a duas vozes. Um grande número proj ecta a voz da
unidade patriótica, articulada em notável união, amiúde pelos três
Estados. As suas declarações prendem-se principalmente com questões
políticas e jurídicas e a sua voz é a do mundo urbano e culto de uma
França em modernização . Do campo e dos operários das cidades chega um
tom mais ríspido, repetindo obedientemente e por uma questão de forma
os clichés pios da política do Terceiro Estado, mas intimamente preocu­
pada com questões quotidianas como os impostos, a j ustiça, os flagelos (a
palavra fléau deve ser o termo mais usado em todos os cahiers rurais ) da
milícia e das leis da caça, por outras palavras, com a sobrevivência.
Não causa surpresa que o primeiro tipo de linguagem - o da
mudança política - sej a tão normalizado. Houve esforços conscientes no
sentido de reproduzir um "programa" publicado que incorporasse a
maior parte das principais questões levantadas pela literatura panfletá ­
ria no Outono de 1 7 8 8 . S ieyes escreveu um manual para as assembleias
locais que foi impresso e distribuído aos milhares por toda a Ilha de
França, com uma nota de aprovação do duque de Orleães. Os curas
foram especialmente aconselhados a fazer uso do panfleto didáctico, que
além de sugerir (bastante ) o que poderia ser dito, ensinava a ordem e
como deveria ser registado no cahier. Outros cahiers tornaram -se famo­
sos como manifestos-modelo do futuro liberal - principalmente o volu ­
moso documento escrito por Du Pont de Nemours para o Terceiro
Estado de Nemours .
A mensagem foi a mesma em todo o lado . Os Estados Gerais são a
Nação reunida e devem ser convocados sempre que os assuntos da Nação
o imponham. Alguns documentos propõem sessões trienais, os mais ousa­
dos insistem que os Estados Gerais deverão manter- se em funções até ao
estabelecimento de uma nova constituição. Vários cahiers identificam
especificamente o poder legislativo com uma assembleia nacional e exi­
gem a separação de poderes, à maneira inglesa . Quase todos requerem o
265

seu assentimento para a aplicação de novos impostos. Devem ser garanti­


das as liberdades individuais, de pensamento, de expressão e de publica­
ção, o que significa a abolição das lettres de cachet, de todas as formas de
justiça arbitrária ( como os tribunais militares) e praticamente de toda a
censura. São inúmeros os cahiers que referem a interferência com o cor­
reio como um ataque directo às liberdades pessoais.
No que toca às questões financeiras, verifica-se uma conformidade de
pareceres semelhante . O passivo da Coroa deve ser consolidado como
dívida soberana . Deve existir para cada ano um orçamento publicado e
que contemple todos os departamentos do Estado . Os cargos venais
devem ser abolidos (principalmente os associados às finanças ) e nenhum
contribuinte deve ser isentado de nenhuma obrigação em nome do esta­
tuto ou do privilégio. Caso a nobreza sej a para ficar ( dizem vários cahiers
da nobreza ) , deverá ser apenas honorífica, aquilo a que Rabaut Saint­
-Etienne chama "a parte ornamentada da nação" .
Os cahiers d a elite liberal, quer das primeiras duas ordens, quer d a ter­
ceira, traduzem a agenda normal das respectivas academias de debate em
assuntos de Estado . Muitos referem a necessidade de um plano de educa­
ção nacional. As lotarias, as casas de j ogo e outras frivolidades que des­
viam o povo do seu automelhoramento devem ser proibidas. Um número
substancial de cahiers compromete -se com princípios económicos liberais:
abolição das guildas e de todas as restrições à liberdade e mobilidade do
trabalho, supressão das barreiras alfandegárias internas e fim do arrenda­
mento fiscal. Paradoxalmente, na maior parte destas questões são os
cahiers da nobreza ( exceptuando o de Nemours ) que mais se aproximam
do paradigma "burguês" no seu anseio de igualar a liberdade pessoal com
a económica. Dado o envolvimento de tantos nobres no comércio, na
indústria, nas finanças e na tecnologia, este fenómeno causa menos estra­
nheza do que à primeira vista seria de esperar, mas uma grande maioria
dos cahiers da nobreza pronuncia-se a favor do axioma "burguês " básico:
igualdade perante a lei.
É uma visão da França na linha do ethos modernizador das décadas de
70 e 80 do século XVIII. O estatuto diluir-se-á na cidadania; a ciência e a
educação, sob a orientação benigna da elite, eliminará a ignorância abru ­
talhada, a pobreza e as doenças do povo . O interesse individual esclare ­
cido será prevalecente e dará origem a um campesinato próspero que,
através de métodos agrícolas racionais, acumulará excedentes suficientes
para se tornar consumidor de produtos manufacturados . Por sua vez,
este fenómeno beneficiará uma força laboral que se afastará do protec­
cionismo defensivo para as oportunidades empresariais. Este reino trans­
formado será governado com austeridade e integridade por uma
administração responsabilizável e nomeada em função do mérito e da
competência. O patriotismo e o serviço público serão exemplares, a
S imon S chama 1 CIDADÃOS

começar por uma monarquia detentora de uma popularidade inaudita; as


artes florescerão como nunca e a nova época pertencerá simultaneamente'
à França e a toda a humanidade .
Um número surpreendentemente grande de nobres comungava destas
visões, que ficaram registadas nos cahiers das principais cidades : nos dos
quatro mil nobres domiciliados em Paris, nos de grandes cidades, como
Bordéus e Rouen, e nos de centros provinciais mais pequenos, como Aix,
Saumur, Grenoble, Blois e Orleães. Até os membros de algumas das
assembleias mais distantes, como a da nobreza do Mosela, em Pont-à­
-Mousson, insistem, em nome da "razão iluminada pela filosofia", na abo ­
lição de todas as isenções fiscais da sua classe, no tratamento fiscal igual
de todos os cidadãos e na eliminação de toda e qualquer espécie de privi­
légio pessoal. E, embora dê por adquirida alguma forma de reembolso na
questão da abolição dos cargos venais, a nobreza considera que, no inte­
resse do Estado, será algo a fazer muito gradualmente .
Mas não é um coro de completa harmonia. O efeito paradoxal do apa­
relho eleitoral foi dar representação ao número muito maior de nobres
empobrecidos e atrasados que nunca fizeram parte da cultura de moder­
nidade e cuj a única auto-estima lhes advém do título de nobreza. Na
B retanha, são os épées de fer, os espadas de ferro, que se envolvem em
combates de rua em Rennes, em Janeiro de 1 789, com as multidões que
apoiam as propostas do Terceiro Estado no sentido de as votações serem
por cabeça e não por ordem. Derrotados na contenda física e política,
negam-se a eleger quaisquer deputados para os Estados . Noutros locais,
grupos de nobres menos encantados com a ideia de diluírem o estatuto
que herdaram numa nação de cidadãos declaram-se publicamente pela
votação por ordem e elegem para os Estados deputados que votarão em
consonância com a sua posiçã o . No C otentin, por exemplo, em
Coutances, os deputados têm nomes tão sonantes como Leclerc de Juigne,
Achard de B onvouloir, B eaudrap de S otteville e Arthur de Villarnois .
Embora aprovem, em termos gerais, uma "concórdia das ordens", deixam
bem claro que se deverão reunir, deliberar e votar como entidades "dis­
tintas, separadas, iguais e livre s " .
Entre os nobres de Paris, q u e protestam com veemência q u e os regu -
lamentos eleitorais os obrigaram a separar- se dos seus concidadãos do
Terceiro Estado na antiga " C omuna" e os cidadãos-nobres do Delfinado,
da Provença e do Languedoc, por um lado e, por outro, o sangue azul da
Bretanha, da B orgonha, do Franco- Condado e da Alta Normandia, as opi­
niões são muitas e variadas. Em várias assembleias da nobreza, a decisão
de votar por cabeça ou por ordem impõe-se à j usta: em B lois, por exem­
plo, houve 5 1 a favor da votação individual e 43 contra . Muitos nobres
cuj a personalidade social se divide entre uma existência urbana e
moderna e a gestão de uma propriedade senhorial argumentam que em
267

questões de interesse nacional - como a tributação e a guerra e a paz -,


deverão debater e votar em comum, mas que em questões relativas às res­
pectivas ordens deverão manter uma identidade separada. Outros
( incluindo Necker) preferem deixar a questão para os Estados Gerais, de
modo que "se as necessidades da Nação o exigirem" possam votar em
comum. Em B lois, onde se realiza uma segunda votação exactamente
desta maneira, o número a favor da votação por ordens baixa dramatica ­
mente para 2 5 e o dos que estão dispostos a apoiar uma solução "mista"
sobe para 68. Se se somarem os cahiers das assembleias a favor do voto por
cabeça nessas circunstâncias e em "questões nacionais" aos das assem­
bleias que optaram pelo voto individual por uma questão de princípio,
constata-se que em 1 789 a maioria da nobreza francesa ( cerca de 60 % )
favorecia uma assembleia genuinamente nacional.
Por conseguinte, o "Terceiro Estado" nasce como uma empresa política
conj unta, inicialmente concebida pelos membros da nobreza liberal e pos­
sibilitada pelas profundas divisões existentes no seio da sua própria elite .
Quanto ao clero, existe um grupo similar de prelados dispostos a apoiar as
queixas amargas dos curas das aldeias ( abundantemente representados
nas assembleias da sua ordem) contra uma aristocracia eclesiástica exces­
sivamente privilegiada. Mas não restam dúvidas de que o processo das
próprias eleições ofereceu a homens novos - na sua maioria, pertencen -
tes à toga e ao funcionalismo público - a oportunidade de se afirmarem
como porta -vozes do Terceiro Estado, e no seio do clero ocorreu um pro­
cesso ainda mais radical, com os curas rurais a afirmarem -se como oposi­
ção às hierarquias diocesanas. Ao fazê-lo, ambos os grupos emancipam-se
dos seus patronos, ao ponto de enfatizarem que não devem ser represen­
tados nos Estados Gerais por nobres, por bem intencionados que sejam.
A experiência humilhante de Antoine Lavoisier é típica desta separa ­
ção . Apesar de eventualmente impopular enquanto fermier général e pior
-

ainda, enquanto desenhador da nova barreira alfandegária que rodeava


Paris -, Lavoisier era também um pioneiro da nova agricultura . Secretário
do Comité Real de Agricultura, estabelecida a seu pedido, gastou bastante
dinheiro do seu bolso numa tentativa experimental de melhorar o que
era, sem dúvida nenhuma, o solo agrícola mais miserável de toda a
França: a Sologne. A Sologne era uma região pantanosa, mal drenada e
húmida a sul do centro do Vale do Loire, com um clima terrível que des­
truía regularmente as colheitas de centeio, obrigando os camponeses a
consumi-lo mesmo depois de atacado por cravagem. No mínimo, esta prá­
tica conduzia aos estados alucinatórios associados ao ergotismo, mas
incluía habitualmente uma forma de paralisia arterial que terminava em
gangrena e num estado conhecido pelos muitos médicos franceses que o
examinaram pelo nome de formicação - a sensação de se estar a ser devo­
rado por formigas.
S imon S chama 1 CIDADÃOS

Num longo relatório que apresentou à Comissão, em 1 788, Lavoisier


descreveu os resultados de dez anos de duro trabalho na sua quinta -
-modelo, em Fréchines, onde durante três anos tentara criar prados de
luzerna para passar depois, com mais sucesso, para o cultivo do trevo e do
sanfeno, e para a introdução da batata e da beterraba. Carneiros e ovelhas
tinham sido importados de Espanha e vacas Chanteloup cruzadas com
raças locais para produzir animais mais resistentes. No fim da década,
Lavoisier concluía com bastante pessimismo que embora tudo aquilo
tivesse dado alguns resultados gratificantes, seria utópico esperar que o
rendeiro médio fizesse o mesmo j á que "no fim do ano (sobrecarregado
com imposto s ) , não resta praticamer:i.te nada ao cultivador, que se consi­
dera feliz por sobreviver, mesmo para levar uma vida miserável e doente " .
Para a pequena comunidade d e proprietários d e terras empobrecidos
do Loire e da Ilha de França, Lavoisier era um herói, e ele desej ava mani­
festamente identificar- se como um Cidadão-Patriota sendo eleito como
deputado do Terceiro Estado. Era tecnicamente possível, dado que o
édito real especificara que apenas dois dos quatro eleitores iniciais teriam
de pertencer obrigatoriamente ao Terceiro Estado. Mas foi exactamente
esta disposição que causou muito mal- estar nas assembleias do Terceiro
Estado quando alguns membros da nobreza liberal, bem-intencionados
mas dados ao paternalismo, tentaram aproveitar- se dela . Lavoisier terá
participado pelo menos numa dessas reuniões, pois assinou a acta da
assembleia de La - C hapelle -Vendômoise, mas em Villefrancoeur, a sua
paróquia natal, foi bruscamente rej eitado pelo Terceiro Estado por não
ter condições sociais de elegibilidade.
Assim, enquanto a visão de cima para baixo era predominantemente de
união e concórdia, a de baixo para cima foi com igual frequência de insa­
tisfação e discórdia. Se as declarações da elite são documentos de um opti­
mismo iluminado, as do povo são verdadeiras doléances queixas. O seu
-

tom é uma mistura de tristeza e raiva e apelam menos às proposições da


razão e da natureza e mais a um rei-pai que poderá dar-lhes satisfação.
Uma musa de Allainville, perto de Pithiviers, compara o "bom coração" do
rei reformista com uma abelha polinizando as flores mas também lhe
implora que salve os aldeãos dos cobradores da gabelle, "esses vampiros da
Nação que bebiam as lágrimas dos infelizes nas suas taças de ouro " .
Os curas, notários ou advogados q u e produzem a forma escrita destas
queixas garantem a inclusão do catálogo habitual de reformas políticas.
Muitos destes escribas de província deslocaram-se de aldeia em aldeia
naquelas semanas de Março, aj udando as populações a organizar as suas
reuniões e fornecendo-lhes um documento -padrão, o que nos leva a
encontrar declarações praticamente idênticas reproduzidas nos cahiers de
aldeolas vizinhas . Mas também surgem variações bastante grandes. São
muitas as vezes em que o cahier começa como se um mensageiro estivesse
269

a conduzir um monarca numa visita guiada da aldeia e das suas terras,


explicando-lhe como é que os seus males estão enraizados na topografia
local e nas baronias senhoriais que lá montaram tenda . Por exemplo, a
aldeia de Cabrerets, no montanhoso Sudoeste, cortado pelo rio Lot, é hoje
muito visitada pelos turistas que procuram os vinhos tintos da vizinha
Cahors, mas em 1 789 os aldeões não viam nada de pitoresco para apreciar.
A comunidade, diz o cahier, "situa-se no mais horrível e abominável canto
do mundo e carece de quaisquer possessões, excepto escarpas rochosas e
montanhas praticamente inacessíveis, cobertas de arbustos e de outra
vegetação pobre e quase sem pastagens . . . pode afirmar-se com justiça que
a comunidade de Cabrerets deve ser uma das mais pobres e miseráveis do
Reino" . Os trilhos que passam por ser as suas únicas vias de comunicação
não servem sequer para cavalos ou burros, pelo que uma deslocação a pé
até Cahors demora seis horas. Não admira que o lugar tenha sido abando­
nado há muito pelo cura. Por conseguinte, as suas necessidades são sim­
ples e nada revolucionárias : uma estrada decente e uma igreja.
Noutros lugares, as brutalidades da geografia ou do clima foram agra­
vadas pelas depredações humanas, e depois de passarem em revista a sua
situação física os cahiers das aldeias elencam uma longa lista de rufiões
licenciados que tornam particularmente difícil a vida dos camponeses. No
topo da lista surgem invariavelmente os cobradores de impostos do Estado
e do seigneur, todo o tipo de bailios e os porteurs de contrainte ( obrigadore s ) ,
que e m Comberouger, no Tarn, s ã o pagos a trinta soldos p o r dia para ater­
rorizar a população e obrigá-la a pagar os impostos ou confiscar os seus
poucos haveres.
Os gabelous• que aplicam o imposto sobre o sal são os piores. Este
imposto é considerado particularmente regressivo dado que, como refere
um cahier - com um exagero perdoável -, "o sal é frequentemente a única
coisa que os pobres têm para meter na panela" . O cahier de Kanfen, uma
aldeia de setenta e quatro habitações nos arredores de Thionville, nas
Ardenas (Nordeste de França ) , é especialmente eloquente em relação a
esta matéria. Explica que a maior parte dos seus habitantes são obrigados
a trabalhar e a residir nas quintas, como j ornaleiros, dada a escassez de
pastagens, cereais e lenha. Com o seu magro salário - por vezes apenas
cinco soldos por dia -, não conseguem comprar sal, que fica muito enca­
recido com o imposto . Por conseguinte, vêem-se forçados a comprar sal
contrabandeado para oito dias e "regressam a tremer" às suas casas onde,
com toda a probabilidade, os agentes da gabelle estão à coca, escondidos
atrás de uma sebe. O malfeitor é atacado, detido e obrigado a pagar o
imposto, e quando não consegue é levado para a prisão sem que a famí­
lia sej a sequer notificada.

• Em francês no original : guardas. aduaneiros. (N. da R. )


S imon Schama 1 CIDADÃOS

Quando prendem uma mulher, sem o mínimo pudor, procuram em todo o


lado e atacam-na com insultos . . . quando entram numa casa, fazem-no ao
anoitecer. . . não como homens honestos mas como um bando de ladrões
armados com sabres, facalhões de caça e paus com pontas de aço . S e uma
mulher está na cama, procuram na cama, sem quererem saber se ela está
doente, e sem vergonha nenhuma do que estão a fazer viram a cama ao
contrário. D eixamos à vossa consideração o que acontece quando um
bando destes chega a uma casa onde existe uma grávida. Muitas vezes, o
resultado é a morte do fruto do seu ventre .

Existem muitos outros indesej áveis classificados pelos lavradores como


"flagelos " : os moleiros que os enganam pagando-se com quantidades
indeterminadas de cereais em vez de cobrarem uma quantia predefinida;
os couteiros que os atacam com cães quando eles montam armadilhas
para os coelhos que lhes devoram as colheitas; os "vagabundos" (geral­
mente migrantes sem trabalho à cata de um celeiro para dormir e de uma
esmola ) , que acusam de estarem a infestar o campo. Na Alsácia, na Lorena
e no Mosela, são comuns as queixas anti- semitas, alegando que os usurá­
rios j udeus se aproveitam das dívidas dos camponeses . Da Bretanha, che ­
gam queixas dos monopolistas do tabaco, protegidos pelo governo, que
mantêm a clientela refém para depois lhe impingirem mercadoria bolo­
renta, "mais dada a envenenar do que a acalmar os desgraçados " . Este
mesmo cahier, de B oisse, identifica os ladrões de cavalos como uma raça
particular de criminosos que, não sendo dissuadida por uma simples con­
denação às galés, é merecedora da pena de morte . Do Sul e do Sudeste
ouvem-se duras críticas às ordens monásticas que vivem dos frutos da
terra enquanto os camponeses passam fome. O cahier de Onzain, no
Médio Loire, vai ao ponto de pedir a abolição de todas as ordens religio­
sas por serem parasitas inúteis. Os funcionários e os guardas dos tribunais
senhoriais são especialmente desprezados pela sua ignorância e brutali­
dade armadas.
Os ataques a estes grupos, apesar de espontâneos, são encorajados pelas
campanhas de propaganda dirigidas pelos seus próprios membros que se
encontram sob ataque. A declaração mais veemente contra a riqueza do
clero diocesano e das abadias vem do cónego agostinho Ducastelier. O seu
Le Grand Coup de Filet des États Généraux' insta a Igreja a regressar à sua "for­
tuna primitiva", de modo a recuperar a sua "santidade original" . "Vinte
milhões são obrigados a subsistir com metade da riqueza da França
enquanto o clero e as sanguessugas devoram a outra metade . " Os padres
devem ser pura e simplesmente "cidadãos do Estado" . Do mesmo modo, é
um magistrado aristocrata do Châtelet, André -Jean Boucher d' Argis, que

s Com o apropriado subtítulo de Pontzfes, Que Fait Z :Or dans les Temples?. (N. do T. )
271

compara os tribunais senhoriais a "vampiros que sugam a última gota de


sangue dos corpos aos quais se agarram" .
O remédio para praticamente todos estes males não é tanto a liberdade,
mas sim a protecção (a única excepção é o sal ) . Um tema transversal a
quase todos os cahiers do Terceiro Estado é a necessidade de pôr o relógio
a andar para trás e subordinar as definições modernas dos direitos de pro­
priedade a uma responsabilização comunal mais tradicional. Quando são
mencionadas as leis sucessórias, é quase sempre para insistir na partilha
igual da terra entre os herdeiros ( apesar de esta prática dar origem a lotes
inviáveis ) . O comércio dos cereais deve ser mais regulamentado e só os
detentores de licenças oficiais, brevets, devem estar autorizados a vender,
e mesmo assim só nos mercados oficialmente designados. A paróquia de
Notre -Dame -de-Franqueville, na Normandia, vai mais longe, exigindo
que os preços do trigo sejam fixados "em valores que os pobres possam
pagar". A vedação dos maninhos onde os camponeses costumam apas ­
centar o gado deve ser desencoraj ada ou suprimida, bem como a drena­
gem de lagos para a criação de pastagens, o que priva as aldeias de lugares
para dar de beber aos animais .
Os bosques tradicionalmente utilizados para apascentar o gado e para
a recolha de lenha são uma fonte de discórdia ainda maior. Na
B orgonha, por exemplo, a procura de madeira - por parte da constru ­
ção naval ( apesar da distância a que fica o mar ) , da indústria de cons­
trução urbana e, mais importante ainda, das indústrias metalúrgicas, em
grande expansão e nas quais a nobreza tanto tem investido - fez dispa­
rar o preço . A gestão agressiva das propriedades, implementada na
década de 6 0 do século XVIII, não se pode dar ao luxo de sentimenta ­
lismos nem tradicionalismos em relação a um investimento tão vul­
tuoso . Empregam-se guardas florestais privados para garantir que os
animais que comem as árvores novas são mantidos à distância e os mal ­
feitores perseguidos .
Em L e Montat, perto d e Cahors, os aldeãos têm a certeza d e q u e a
mudança foi para pior. As colheitas são menos abundantes do que há cem
anos; o abate e a limpeza das florestas e as vedações privaram-nos de pas­
tagens e consequentemente de estrume para fertilizar o solo esgotado. Os
impostos, as rendas e o preço das necessidades básicas duplicaram e as
condições de vida agravaram-se. Resultado : os lavradores de Le Montat
"descobrem-se estranhos no meio das suas posses e vêem-se obrigados a
levar uma vida de errantes e vagabundos . . . A felicidade, que é a base de
todas as nossas esperanças, anseios e labores, fugiu -nos . . . há vários anos
que somos atingidos por calamidades que levam as nossas colheitas; um
sem-número de impostos acumula -se sobre a nossa cabeça e é muito
maior do que a nossa força . . . ". Apenas pedem para ter
Simon Schama 1 CIDADÃOS

propriedades nossas, a partir das quais possamos subsistir com um naco de


pão humedecido com as nossas lágrimas e o nosso suor, mas ultimamente
nem sequer desta felicidade temos usufruído . . . tiraram-nos a última côdea
e não temos esperanças para o futuro; os nossos únicos recursos são o
desespero e a morte, mas a Vossa voz paterna ouviu os nossos corações e
fez-nos saltar de alegria.

Le Montat localiza -se nas profundezas de uma das regiões mais áridas
da parte sudoeste do Maciço C entral. No centro do pays des petites cultures,
é uma região em que gente a mais esgaravata um solo demasiado escasso
e fino e onde centenas de milhar de camponeses deixaram de cultivar as
suas parcelas de encosta para se tornarem trabalhadores nómadas sem
terra . Mas no pays des grandes cultures, onde os lotes são maiores, as colhei­
tas para venda nos mercados urbanos mais comuns, as comunicações
melhores, a terra mais fértil e as colheitas mais abundantes, muitas das
queixas são as mesmas. Além do mais, o facto de nestas regiões ( como a
Ilha de França, a B eauce, o Vale do Loire, a Flandres Francesa e o Artois)
os camponeses viverem melhor, possuindo terrenos maiores e alguma
educação, leva -os a sentirem de forma mais aguda as ameaças à sua segu ­
rança decorrentes dos desenvolvimentos da segunda metade do século.
A sua resistência à vedação dos maninhos, à drenagem dos lagos e à des­
florestação talvez sej a caracterizada de forma mais apropriada como uma
luta por recursos capitais com os agentes das propriedades senhoriais do
que como um mero conservadorismo cego. No entanto, baseava-se nos
seus princípios e actos colectivos, e não no individualismo. Muito antes
de 1 789, a resistência às apropriações dos proprietários de terras foi mon­
tada através das assembleias de aldeia e dos tribunais locais, nos quais os
agentes judiciais do governo tomam cada vez mais o partido dos aldeãos
contra os seigneurs. Por conseguinte, quando é emitido o apelo ao envio dos
cahiers, a liderança das aldeias, geralmente nas mãos dos lavradores mais
abastados, já tem as suas queixas definidas, já testou a sua força contra a
nobreza local e parte cada vez mais do princípio de que a Coroa vai ser sua
aliada na campanha pelos direitos comunitários.
Mas estes "chefes" ( em neerlandês eram chamados literalmente hoof­
mannen ) não são imunes às críticas . Nos lugares em que - como acontece
na Beauce e no Brie - se aproveitam da vedação ou da partilha dos mani­
nhos, estas situações geram nos cahiers uma quantidade de queixas seve ­
ras por parte dos camponeses menos abastados . Em muitos casos, como
em Châtenay, B aillet, Marly e S ervan-en-Brie, os lavradores mais ricos
são directamente acusados de empobrecerem os outros e é exigido que o
tamanho das quintas seja limitado a terras que possam ser cultivadas com
quatro arados. "É tempo de pôr um travão nas ambições dos proprietários
ricos", declara o cahier de Fosses, que acusa os agricultores abastados de
273

emprestarem dinheiro aos mais pobres em condições de extorsão com a


intenção de executarem as hipotecas para lhes irem comendo as terras. De
Villeron, perto de Vincennes, chega o pedido explícito de uma lei que
"mantenha as terras em quintas pequenas, como eram antigamente,
,
quando davam trabalho aos habitantes locais" .
O Ancien Régime rural estava, pois, preso e m contradições que passaria
à Revolução. Por um lado, através das suas sociedades agrícolas, quintas
experimentais ( como a das experiências pioneiras de Lavoisier, na pau­
pérrima S ologne ) e políticas de comércio livre, o governo estava dedicado
a uma visão fisiocrática do futuro : mercados para venda a pronto paga­
mento, lotes consolidados, acumulação de capital, preços mais altos para
os produtores, culturas para forragem - uma agricultura racionalizada, "à
inglesa " . Contudo, as necessidades imediatas em termos fiscais (os impos­
tos cobravam-se mais facilmente por intermédio das instituições comuni­
tárias ) e de paz social empurraram- no precisamente na direcção oposta,
para o proteccionismo e para o intervencionismo .
Os cahiers deixam também bastante claro que uma grande parte da
França queria mais e não menos governo no campo. Assembleia após
assembleia pede melhor policiamento contra os ladrões de gado e de cava ­
los, contra os larápios vagabundos, contra os falsificadores - e até, em
Cloyes, no Loiret, contra uma praga de curandeiros e empiristas itineran­
tes da qual se diz infestar a região, fazendo mal a homens e animais. As
aldeias, quer nas grandes, quer nas petites culturas, pretendem curas
quando não os têm e melhor salário para os que têm; e querem escolas,
estradas, pontes, asilos para os pobres e enfermos . O tema comum é o
desej o de transferência da autoridade social das j urisdições privadas -
sej am elas dos rendeiros fiscais, dos tribunais senhoriais sej am da abadia
local - para o governo da Coroa e, por acréscimo, para a Nação . Só a jus­
tiça real ( ou nacional) deve determinar quem tem direito aos cursos de
água ou aos urzais, se os terrenos devem permanecer abertos ou vedados .
Concebe-se uma parceria entre um soberano solícito e comunidades locais
activas e com poderes.
Parece igualmente axiomático que um Estado verdadeiramente pater­
nalista do tipo definido nos cahiers era incompatível com a exploração dos
últimos e anacrónicos direitos feudais. Estes tinham sido violentamente
atacados por figuras como o abade C lerget e B oncerf, colega de Turgot, em
especial quando usados como pretexto para extorquir dinheiro aos habi­
tantes ao isentá-los da alegada obrigação de prestarem um determinado
serviço . Clerget considera particularmente rocambolesca a afirmação de
um seigneur do Franco - C ondado de que tem o direito de conduzir os seus
vassalos na caça no Inverno e de os "obrigar a abrirem as tripas para que
ele aqueça os pés nas suas porcarias" . Na B orgonha e no Nivernais, sobre ­
vivem bizarrices semelhantes, como a obrigação de oferecer ao senhor,
Simon Schama 1 CIDADÃOS

para seu deleite, a língua de cada boi morto . Mais vexante é a mão-morta,
que exige a autorização do senhor para que o camponês possa vender
terra e que o proíbe de a legar a quem não sej a seu parente directo e que
com ele tenha coabitado. Mas estas bizarrias não passam de farrapos de
um feudalismo desaparecido do resto da França .
Mais tipicamente, os privilégios foram convertidos pelos gestores
senhoriais em taxas por serviços alegadamente prestados: moer os cereais,
fazer a cervej a, atravessar um rio, levar animais ao mercado - bem como
nas rendas exigidas anualmente pelo simples privilégio de cultivar o que
são, em termos puramente titulares, as terras do senhor. Estas taxas de
serviços e j udiciais vêm sendo agressivamente cobradas como uma nova
prática de negócios, a par da criação de moderníssimos arquivos docu ­
mentais ( o que na França setecentista não era um oxímoro ) e da nova
profissão de investigadores para conferir credibilidade às pretensões caso
sej am contestadas em tribunal (e são-no cada vez mais ) .
Por conseguinte, desde o seu· advento, a Revolução correu a toda a
velocidade em sentidos opostos. Os seus líderes queriam a liberdade, a des­
regulação e a mobilidade do trabalho, a comercialização e uma actividade
económica racional. Mas as dificuldades e a aflição que empurrariam mui­
tos homens para actos de violência - autorizada pelo rei, supunham eles -
prenderam-se com necessidades diametralmente opostas, e isto aplica -se
tanto aos artesãos urbanos como aos camponeses. Um número considerá­
vel de cahiers das cidades e, em especial, das zonas rurais dependentes da
tecelagem e da fiação caseiras ataca a mecanização e a j unção dos proces­
sos industriais em fábricas. E são muitos mais os que denunciam de forma
peremptória a venda a retalho - não especializada nem organizada - nas
feiras e mercados. Os vendedores ambulantes de toda a espécie são vistos
como intrusos que vendem artigos de má qualidade a preços que deixam
fora do mercado os profissionais que pagam as taxas às guildas e passam
por anos de aprendizagem até conseguirem as suas licenças oficiais.
É verdade que são opiniões previsíveis tendo em conta que as assem­
bleias primárias do Terceiro Estado estavam organizadas por guildas e cor­
porações, pelo que seria de esperar a predominância das opiniões dos
mestres sobre as dos jornaleiros. Mas seria igualmente ingénuo partir do
princípio de que os mestres e os empregados estavam necessariamente divi­
didos quanto à ameaça da mão-de-obra desregulada simplesmente porque
outras questões - o salário mínimo - eram objecto de constantes discórdias.
Na maior parte das grandes cidades, existia uma hostilidade de longa data
entre os artesãos estabelecidos em ofícios, como o de alfaiate, e os traba­
lhadores migrantes que produziam à peça para venda nos mercados em
bancas improvisadas. Mesmo em Paris, onde o mercado de trabalho era
fluido, não é líquido que o cahier das floristas e chapeleiras não represente
as trabalhadoras e as patronnes da guilda . Mostram-se particularmente
275

preocupadas com o facto de "hoje em dia, qualquer um j ulga que sabe


compor um bouquet" e de "mulheres sem princípios" estarem a reduzir as
"floristas honestas a extremos de pobreza com as suas práticas caóticas".
Não são as baronesas das guildas mas sim as "mães de família, que têm de
pagar trinta soldos por dia para comprar comida" que estão a ser arruina­
das pelo mercado livre . E elas são particularmente hostis face às mulheres
de outros faubourgs que aparecem ao alvorecer e vendem flores abaixo dos
preços acordados. Ninguém, exigem elas, deve poder vender antes das
quatro da manhã entre a Páscoa e o Dia de São Martinho ( 1 1 de
Novembro ) , nem antes das seis no resto do ano.
Numa cidade de província mais pequena como Le Havre, na costa do
Canal da Mancha, estas animosidades são ainda mais nítidas. No mesmo
cahier que regista queixas por causa dos baixos salários, a guilda dos car­
pinteiros navais obj ecta fortemente contra a prática de os construtores
contratarem mão -de-obra ao dia. Do mesmo modo, os vendedores de
café, limonada e vinagre insurgem-se contra a concorrência não licen­
ciada que rouba as matérias-primas dos navios por descarregar e vende o
produto final em bancas a preços imbatíveis. Quanto aos chapeleiros de
Le Havre, insistem que o mercado que tem lugar duas vezes por semana
está a destruir a comunidade, dado que "o público é enganado por pessoas
que, não tendo os conhecimentos mínimos, se insinuam no negócio dos
chapéus " . O aumento dos casos de roubo, embriaguez e zaragatas violen­
tas deve -se, na sua opinião, a este elemento flutuante e indisciplinado.
Estes conflitos são particularmente agudos nas fronteiras instáveis entre
a cidade e o campo. O cenário habitual é a dificuldade que têm os citadi­
nos em aplicar os regulamentos sobre a comercialização de produtos trazi­
dos dos campos, mas ocasionalmente são os agricultores das aldeias
"extramuros" que se sentem vitimados pela exploração comercial. O affaire
des boues ( cuj a tradução pode ser "caso das lamas " ) constitui a preocupação
principal de muitas das pequenas comunidades localizadas a sul e a oeste
de Paris - hoj e outras tantas estações terminais do metro -, entre as quais
Vanves, Ivry, Pantin e La Villette. Estas aldeolas azafamadas estão desde há
muito reféns da guilda dos talhantes de Paris, à qual foi concedido o direito
de apascentar o seu gado nos campos das aldeias. Através deste monopó­
lio, a zona radial em torno de Paris foi efectivamente requisitada para ali­
mentar a grande barriga da cidade. Os agricultores locais não estão
autorizados a criar animais nem a vendê -los na cidade .
Mas podem cultivar couves, cebolas, cenouras e feijão, e em reconhe­
cimento por terem cedido os seus prados aos talhantes de Paris, as aldeias
receberam o direito de recolherem gratuitamente na cidade as imundícies
das ruas : esta "lama" vale o seu peso em ouro como fertilizante para as
hortas. A partir de finais da década de 70, século XVIII, queixam-se os
cahiers, foram erguidas barreiras para cobrar taxas às carroças das aldeias
S imon S chama 1 CIDADÃOS

que saem da cidade com a sua preciosa carga, violando o quid pro quo.
Além de serem explorados por esta nova prática, os aldeãos não estão
autorizados a cobrar nada aos comerciantes de carne pela utilização das
pastagens. Na sua opinião, a compensação não está na solução liberal de
deixar cada uma das partes cobrar a taxa em vigor pelo respectivo serviço
prestado, mas no restauro dos termos do acordo . Caso nada seja feito,
ameaçam enxotar o gado dos talhantes à sua maneira .
Muitos outros processos de modernização económica desencadearam
reacções furiosas. Um sindicato formado pelo empresário Defer de La
Nouerre para desviar para um novo canal um afluente do Sena, o Yvette,
provocou uma violenta oposição por parte de todas as paróquias ribeiri ­
nhas. O esquema privaria o bairro de Saint-Marcel de uma importante
fonte de água, arruinaria as tapeçarias de Gobelin e, pior ainda, impossi­
bilitaria dezasseis azenhas de produzirem farinha. Em Fevereiro de 1 788,
o Parlamento de Paris proibiu a implementação do esquema e ordenou a
Defer que reparasse todo e qualquer dano provocado pelos trabalhos já
realizados e devolvesse o rio ao seu leito original. No entanto, o projecto
contou com o apoio dos governos de Brienne e de Necker, pelo que os
cahiers das comunidades afectadas manifestam veemente a sua indignação
face à possibilidade de ser levado por diante .
Foram estas queixas locais e extremamente específicas que suscitaram
paixões poderosas no Inverno e na Primavera de 1 789. Enquanto casos
apresentados aos Parlamentos, tinham sido exemplos isolados do conflito
entre o capitalismo nascente e os direitos comunitários; plasmados nos
textos dos cahiers e nos procedimentos de eleição de deputados aos
Estados Gerais, contribuíram de forma assinalável para a politização do
Terceiro Estado. Pelo menos neste sentido, a política da nação compunha ­
-se tanto de uma miríade de queixas materiais locais como dos epítetos
sonantes associados à elaboração de uma nova constituição, e tal como
aconteceria durante a Revolução, os interesses do centro e das periferias,
da elite e da arraia -miúda, nem sempre puxavam na mesma direcção.
Enquanto os cahiers da nobreza liberal oferecem um retrato cativante
de uma França em modernização acentuada que consumará as grandes
alterações das décadas de 70 e 80 do século XVIII descartando as restrições
como uma borboleta a emergir de uma crisálida, os do Terceiro Estado
pretendem amiúde um regresso ao casulo. Por implicação, sugerem uma
França mítica, governada por um monarca omnividente, j usto e benigno
e amparada por um clero humilde e responsável. Nesta comunidade ideal,
a administração conseguirá estar ao mesmo tempo em todo o lado e em
lado nenhum, presente na comunidade local quando é necessária (por
exemplo, sob a forma do reforço da maréchaussée, 6 solicitado por muitos

' Força policial paramilitar antepassada da gendarmaria. ( N. do T. )


277

cahiers) mas com o cuidado de não espezinhar os direitos locais . Este


governo conseguirá estabelecer relações j ustas e recíprocas entre os cida­
dãos e entre os cidadãos e o governo .
Acima de tudo, será uma França livre das corrupções da vida moderna.
São inúmeros os cahiers do Terceiro Estado que apelam à abolição das
casas de j ogo e das lotarias - em alguns casos, até dos cafés - como luga­
res de má fama que lançam os j ovens na pobreza e no deboche . Para a
escumalha do mundo dourado - insolventes, usurários, especuladores em
cereais -, reservam os seus mais terríveis castigos, como a marcação com
ferro em brasa. Muitos cahiers apelam à proibição dos petits spectacles - os
teatros de variedades - com um fervor que teria aquecido o coração a
Jean -Jacques Rousseau . Como que seguindo a retórica apocalíptica de
Mercier, querem lancetar o carbúnculo infectado da vida urbana e limpar
a cidade.
Obviamente, isto era pedir o impossível, mas "pedir o impossível" é
uma boa definição de "revolução" .

IV C OELHOS MORTOS E PAPEL DE PAREDE RAS GAD O;


MARÇO-AB RIL DE 1 789

Quem sofreu as primeiras baixas pesadas da Revolução Francesa foram


os coelhos. Nos dias 1 0 e 1 1 de Março de 1 789, os aldeãos de Neuville
armaram-se com mocas e foices, agruparam-se em pelotões e bateram
prados e bosques em busca do pequeno e prolífico inimigo . Eram acom­
panhados por cães e o grito de "Hou, hou" ia indicando ao resto do grupo
a morte de um coelho . Nos lugares em que não se encontrou nenhum,
foram montadas armadilhas - uma infracção das draconianas leis da caça
que desde há muito aterrorizavam os camponeses e os obrigavam a uma
obediência relutante .
Por toda a Ilha de França e Norte da França, das propriedades do conde
d'Oisy, no Artois, às do príncipe de Conti, em Pontoise, verificaram-se
invasões semelhantes. Ignorando as leis da caça que tinham protegido
aves e animais, e as brutais "capitanias " que velavam pela sua aplicação,
botas cardadas percorreram florestas proibidas e treparam vedações e
muros. Nos campos de cereais, a erva foi ceifada para revelar os ninhos
das perdizes e dos faisões, das narcej as e das galinholas; os ovos foram par­
tidos, as crias entregues aos cães . As tocas foram destruídas, as lebres
enxotadas das rochas. Nas aldeias mais ousadas, foram até escavadas
armadilhas para a caça mais apreciada e que era também a consumidora
mais voraz dos rebentos, o corço . Os assaltos mais espectaculares foram os
lançados contra os castelos em miniatura, os pombais, de onde os campo­
neses viam sair as incursões aéreas contra as suas sementes, após o que os
S imon Schama 1 CIDADÃOS

atacantes regressavam absolutamente impunes aos seus recintos senho­


riais. Segundo um cahier, eram "ladrões voadores". Num distrito da
Lorena, nada menos de dezanove cahiers apelavam à sua total destruição,
enquanto dezasseis insistiam que os pombos deviam ficar fechados um
mínimo de quinze dias após a sementeira.
Não se pode chamar a isto caça furtiva, j á que o ataque nada teve de
furtivo . Em alguns casos, os animais chacinados foram pendurados em
paus como troféus e passeados pela aldeia . Inicialmente, os bandos
deram com patrulhas montadas das capitanias, mas os camponeses eram
demasiado numerosos e estavam determinados. C om as culturas de
Inverno destruídas pelo clima, não estavam dispostos a ver as estivais
transformadas em comida para coelho. Em alguns lugares, como nas pro ­
priedades do príncipe de C ondé, perto de Chantilly, os aldeãos ignoraram
pura e simplesmente as leis e caçaram a seu bel-prazer. Quando deram
com os couteiros, como aconteceu no dia 28 de Março, abateram-nos
imediatamente a tiro .
Face a esta desobediência de massas, as tentativas sistemáticas de
repressão falharam e não tardou que as autoridades começassem a fazer
vista grossa. Em Oisy, uma confederação de aldeias deu cabo da caça do
conde . Em Herblay, palco de uma chacina particularmente implacável, o
líder dos bandos - apropriadamente chamado Toussaint B oucher - foi
detido mas liberto pouco depois. Ao desafiarem as capitanias da caça,
arriscando-se a serem chicoteados, marcados e banidos por ordem dos tri­
bunais, os matadores de coelhos e aves acreditavam obviamente que
tinham do seu lado o Direito - sob a forma da vontade do rei. Um dos
cahiers da Ilha de França tinha insistido que "é vontade geral da Nação que
a caça sej a destruída porque leva um terço da subsistência dos cidadãos, e
é esta a intenção do nosso bom Rei, que zela pelo bem comum do seu
povo e o ama " .
Para os desesperados, havia algo d e particularmente satisfatório n a
destruição d e u m pombal, mas quando o s e u conteúdo era espalhado pelo
relvado de uma mansão senhorial estava a transmitir- se aos seigneurs da
França uma mensagem pouco subtil mas muito eloquente . Os motins da
caça anunciaram a passagem das queixas verbais à acção violenta . Foi
como se a consulta régia ao povo tivesse dado origem ao pressuposto de
que o rei estava a licenciar o que dantes fora ilegal e de que a nova lei e,
por acréscimo, a vontade da nação se sobrepunham às apropriações egoís­
tas dos privilegiados. Além de um acto de desespero, matar a caça foi, à
luz de 1 7 89, um acto de patriotismo.
Aliás, era preferível matar a caça dos seigneurs do que atacar as suas
pessoas, e é notável, durante as insurreições rurais de 1 789, a escolha de
uma sucessão de alvos animais ou inanimados para descarregar um ódio
visceral. Foi um derramamento de sangue por intermédio de sacrifícios -
279

manequins a arder na Pont Neuf, valiosas pombas brancas estranguladas


nos pombais ou brasões desfigurados em carruagens e bancos de igrej a -,
desempenhando todos eles a mesma função básica: uma ablação pela
liberdade .
Os ataques aos transportes de cereais, que se começaram a verificar
pela mesma altura, seguiram um padrão idêntico . Tal como acontecera
nas "guerras da farinha" de 1 77 5 , os amotinados acreditavam que esta­
vam a cumprir as ordens do rei mais fielmente do que as autoridades que
tinham usurpado o seu nome . Segundo os rumores correntes, o soberano
tinha decretado a redução do preço de um sétier1 de cereal de quarenta e
duas para vinte e quatro libras francesas - como se a transposição dos
números encerrasse uma espécie de justiça primitiva. O pão passaria a ser
vendido ao preço j usto de dois soldos por meio quilo em vez de quase
quatro, a tabela praticada nos mercados . Os inimigos do monarca eram os
inimigos do povo: especuladores, açambarcadores, moleiros fraudulentos,
padeiras gananciosos. O vácuo de poder anunciado pelas eleições para os
Estados Gerais reforçou esta impressão e tornou mais audaciosos os líde­
res dos ataques às barcaças, às carroças e aos armazéns de farinha. As
mulheres eram conspícuas na liderança . Em Viroflay, foram elas que
montaram um posto de controlo na estrada entre Versalhes e Paris, onde
paravam os comboios e os revistavam em busca de cereais ou farinha . Em
Joüy, um attroupement de mulheres exigiu que os cereais fossem vendidos
muito abaixo do preço de mercado e o agricultor mais abastado da região,
um homem chamado B ure, deixou -as sensatamente adquiri-los ao preço
que bem entenderam. Numa vasta área em torno de Paris, de B ourg-la­
-Reine a Rambouillet, a história repetiu -se.
A geografia da intervenção popular no princípio da Primavera de 1 789
foi muito mais alargada do que catorze anos antes. De meados de Março
a meados de Abril, verificaram-se ataques a padarias e celeiros por todo o
Norte, de Cambrai e Valenciennes a Dunquerque e Lille. Na Bretanha, a
violência nunca desaparecera por completo desde os confrontos de rua
em Rennes, em Janeiro, tendo alastrado a cidades mais pequenas como
Morlaix e Vannes. Entre 30 de Março e 3 de Abril, em B esançon, um
motim liderado por mulheres impôs a fixação de preços máximos para os
cereais e provocou danos graves nas casas dos parlamentares que se mos­
traram recalcitrantes.
A abrangência e intensidade das desordens no campo exigiram tropas
para conter o movimento antes que se transformasse numa insurreição
geral, mas a epidemia dos distúrbios nas cidades de província obrigou à
dispersão das forças disponíveis. As comunidades locais ficaram cada vez

' Em francês no original: sesteiro - medida de capacidade equivalente a três ou quatro


alqueires. (N. da R. )
S imon Schama 1 CIDADÃOS

mais entregues a si próprias. Troyes dera o exemplo j á em Abril de 1 788,


com a formação de uma milícia urbana responsável perante as autorida ­
des locais e não perante os oficiais da Coroa. Um ano mais tarde, as reu ­
niões convocadas para fins eleitorais conferiram u m ímpeto acrescido a
esta devolução forçada pelas circunstâncias, e Marselha, Etampes, Orleães
e B eaugency armaram guardas voluntários. Foi um momento crucial no
colapso da autoridade régia . Primeiro, deu -se o reconhecimento de que o
pere nourricier - o monarca enquanto Pai-Providente - não conseguia ali­
mentar os seus súbditos; depois, surgiram provas mais do que evidentes
de que também não os conseguia proteger.
Naturalmente, foi em Paris que a fúria e a fome se combinaram de
forma mais perigosa. Em termos colectivos, a cidade j á estava indignada
por ter sido impedida de se reunir segundo o modelo do Delfinado, como
uma "comuna " unida (o seu título medieval) . As vinte assembleias elei­
torais da nobreza de Paris ( e muitas do clero ) precederam os respectivos
cahiers com uma queixa formal de que tinham sido privadas das bênçãos
da fraternidade patriótica . Além do mais, enquanto no resto da França
cerca de um sexto dos cidadãos tinham sido desqualificados como eleito ­
res por razões fiscais, em Paris o estabelecimento de um mínimo de seis
libras francesas fez com que a proporção dos desqualificados ascendesse a
um quarto . Um panfleto típico de protesto contra esta exclusão comen­
tava iradamente que "os nossos deputados não vão ser os nossos deputa ­
dos. As coisas foram feitas de maneira que não tenhamos voto na sua
eleição e os sessenta distritos da cidade de Paris vão ser, em todos os sen­
tidos, sessenta rebanhos de carneiros".
O trabalhador parisiense foi, pois, o primeiro a experimentar, em
pouco tempo, a euforia da representação nacional seguida do ferrete da
alienação. A par da depressão industrial, o congelamento do Sena privara
de ganha-pão as gens de riviere estivadores, barqueiros e condutores de
-

toros - e as difíceis condições meteorológicas que prevaleceram até à


Primavera engrossaram o número destes desempregados com pedreiros,
pintores e carpinteiros. Quando o tempo melhorou um pouco, em Abril,
doze mil dos mais necessitados foram postos a aplanar as colinas de
Monmartre, enquanto outros raspavam e lavavam os cais ou drenavam os
rios e canais, mas estes modestos proj ectos de obras públicas não podiam
combater a escala avassaladora da desgraça.
Nas padarias, o preço do importantíssimo pão de dois quilos flutuava
entre doze e quinze soldos. Em Fevereiro, vinte e sete padeiras foram
multados em cinquenta libras cada um por terem excedido o tecto permi­
tido de catorze soldos e meio . A guilda dos padeiras protestou de imediato
que dada a escassez e os elevados preços praticados pelos grossistas, lhes
era impossível respeitar o tecto sem aldrabarem na quantidade do trigo ou
poluírem perigosamente o pão com sucedâneos. Os j ornais noticiaram
281

que havia homens a trocar a camisa por pão e deram conta d e u m caso
em que uma mulher dera o espartilho ao padeiro em troca de um pão.
Nestas circunstâncias, surgiu um Cahier des Pauvres exigindo um salário
mínimo consagrado na lei e subsistência garantida para todos os homens
e mulheres capazes de trabalhar. Um documento similar, o Cahiers .du
Quatrieme Ordre, escrito por Dufourny de Villiers, exortou à aplicação de
um imposto substancial aos ricos para apoiar os pobres, tendo em conta
que a cupidez dera origem a uma sociedade em que "os homens são tra­
tados como descartáveis " .
N o fim d e Abril, uma semana depois d e o Terceiro Estado d e Paris ter
realizado as suas assembleias primárias - depois de muitos adiamentos -, a
miséria e a desconfiança descambaram em violência . A ocasião foi propor­
cionada por um boato que começou a circular no bairro de Saint-Antoine
(imediatamente a leste da Bastilha ) de que o fabricante de papel de parede
Réveillon tinha dito que ia reduzir o salário dos seus trabalhadores para
quinze soldos por dia . Revéillon e a outra vítima, o fabricante de salitre
Henriot, negaram indignadamente o rumor. Réveillon era um dos empre­
gadores mais conscienciosos de Paris; pagava uma média de entre trinta e
cinco e cinquenta soldos por dia e mantivera uma grande parte da sua
força de trabalho durante o período mais difícil do Inverno, quando o
tempo tornara a produção impossível. Mas ele era precisamente o tipo de
empresário capitalista que provocava garantidamente a fúria dos artesãos
independentes e dos jornaleiros que constituíam a maioria da população
do bairro de Saint-Antoine.
A carreira de Réveillon é a história exemplar de um homem de negócios
que subiu a pulso, uma história que não era invulgar em finais do Antigo
Regime. Réveillon começou como simples aprendiz de papeleiro mas trocou
esta indústria, que era controlada pela guilda, pelo sector mais recente e
mais livre do fabrico de papel de parede. Casou bem e usou o dote da
mulher para adquirir a sua própria oficina . Em 1 789, esta localizava-se no
rés-do-chão de uma grande residência que Réveillon adquirira a um finan­
ceiro arruinado e cuja mobília passara para os seus aposentos, nos andares
superiores. Em vez de se limitar a imprimir, colar e acabar, Réveillon adqui­
riu uma manufactura de papel, o que lhe deu o controlo de todos os pro­
cessos de produção. Tal como demonstra a história dos aeróstatos, os
fabricantes de papel tinham ligações estreitas ao mundo da ciência, e foi na
oficina de Réveillon que Pilâtre de Rozier realizou as suas primeiras expe­
riências com balões. O próprio Réveillon experimentou o suficiente com a
química para descobrir um novo processo de fabrico de velino, que come­
çou a produzir na sua fábrica no Brie . Em 1 784, Réveillon empregava qua­
trocentos trabalhadores, encomendava padrões e desenhos aos melhores
artistas dos Gobelins e tinha recebido uma medalha de ouro especial por
excelência em manufactura - e até exportava as suas linhas para Inglaterra.
S imon S chama 1 CIDADÃOS

A sua empresa moderna era exactamente do tipo que os artesãos do


faubourg viam como uma ameaça. A concentração da mão - de-obra, o
recurso ao trabalho de crianças que não estavam no sistema de aprendi­
zagem e a integração dos processos industriais eram motivos suficientes
para apontarem Réveillon como um inimigo. Pior ainda, a sua casa,
Titonville, localizava -se na esquina da Rue de Montreuil com a rua do
bairro de Saint-Antoine, e era célebre pelo seu mobiliário espectacular,
pela sua imensa biblioteca e, mais importante ainda, pela sua adega de
duas mil garrafas, carinhosamente adquiridas por Réveillon.
Réveillon foi uma baixa das suas próprias reflexões mal digeridas sobre
economia moderna . Numa assembleia eleitoral no distrito de Sainte­
-Marguerite, Réveillon dissera que " sendo o pão a base da economia
nacional", a sua distribuição deveria ser desregulada para permitir preços
mais baixos, o que reduziria os custos dos salários e da produção e faria
disparar o consumo.
Era uma propaganda boa para a Câmara de C omércio, mas, combinada
com comentários similares feitos por Henriot, não é difícil perceber que
tenha soado a uma ameaça de redução de salários. No entanto, a primeira
manifestação não parece ter ocorrido no bairro de Saint-Antoine, onde
residiam os trabalhadores de Réveillon ( foram muito poucos os que se
envolveram nos distúrbios ) , mas em Saint-Marcel, um bairro mais pobre
do outro lado do rio. Era um distrito dominado pelos trabalhadores das
cervej eiras e das fábricas de curtumes, cujas indústrias tinham sido bas­
tante prej udicadas pelo congelamento do rio Bievre, do qual dependiam
os seus processos de produção. Uma multidão de algumas centenas de
pessoas armadas com paus dirigiu-se a Saint-Antoine, aos gritos de
"Morte aos ricos, morte aos aristocratas ! ", e manifestou -se ruidosamente
frente à fábrica de Réveillon. O livreiro Siméon Hardy, o mais cotado abe ­
lhudo de Paris, deu com um grupo de cerca de quinhentos manifestantes
que levavam um simulacro de forca onde se via pendurada uma efígie de
Réveillon e um cartaz que proclamava "Édito do Terceiro Estado Que
Julga e Condena os S upracitados Réveillon e Henriot a Serem Enforcados
e Queimados em Praça Pública" . Eram já três mil quando chegaram à
Praça de Greve, onde tentaram parar o trânsito e instalar a forca, após o
que seguiram para a casa de Réveillon, na Rue de Montreuil.
A assembleia de eleitores dos sessenta distritos eleitorais de Paris tinha­
-se instituído como administração informal com sede no Arcebispado, e
enviou três coraj osos voluntários, dois deles fabricantes de têxteis, para
falar com a multidão . " Quem são vocês e porque é que nos querem impe­
dir de enforcar o Réveillon?", perguntou um dos manifestantes. Com uma
magnanimidade grandiosa tirada directamente do teatro, o fabricante de
têxteis Charton retorquiu, " Sou Pai-Providente [pere nourricier] de alguns
de vocês [no sentido de patrão] e irmão de todos " . "Pois bem, já que és
283

nosso irmão, abraça-nos . " ( Uma prova de fraternidade que muitos dos
mais fervorosos jacobinos, no seu apogeu, não conseguiram dar. ) "É para
já", replicou Charton, "desde que larguem os paus . " A explicação de que
Réveillon e Henriot eram bons patriotas e amigos do povo pareceu surtir
o desejado efeito calmante, uma vez que os manifestantes dispersaram.
Mas os problemas não tinham acabado. Impedidos de chegar a casa de
Réveillon por uma companhia de cinquenta Gardes Françaises, os manifes­
tantes dirigiram-se à de Henriot, que arrasaram de cima a baixo, des­
truindo a mobília e queimando os destroços na rua .
No dia seguinte, 28 de Abril, a situação agravou-se. Uma multidão
quase tão grande como a da véspera foi arengada por Marie -Jeanne
Trumeau, uma mulher grávida de quarenta anos de idade, casada com um
jornaleiro do bairro de Saint-Antoine. Juntamente com Pierre -Jean Mary,
de vinte e quatro anos e dado como "escritor" nos registos do j ulgamento,
ela incitou a turba a continuar o que tinha iniciado no dia anterior. Os
reforços enviados de Saint-Marcel, do outro lado do S ena, tinham engros­
sado com as "gentes do rio", estivadores e "condutores" das jangadas de
madeira desempregados. Juntamente com os cervej eiros, os curtidores e
os trabalhadores de Saint-Antoine, formaram uma multidão formidável
de entre 5 000 e 1 O 000 pessoas que confrontou a barreira de Gardes
Françaises postada à frente da casa de Réveillon.
O motim ameaçava descambar em algo de muito mais grave do que a
destruição de bens ou a disrupção do policiamento de Paris; ameaçava
interromper as corridas de cavalos em Vincennes. De facto, quer residis­
sem nos palacetes de Marais quer nos de Saint- Germain, os proprietários
dos garanhões e dos potras e os muitos outros que neles apostavam
tinham de atravessar Saint-Antoine para chegar ao hipódromo . Um
motim, era um motim, mas os engarrafamentos de trânsito eram verda­
deiramente graves, para não falar nos insultos e nos punhos brandidos a
quem passava numa carruagem rica e não demonstrava entusiasmo pelo
Terceiro Estado . A única excepção foi o duque de Orleães, herói da mul­
tidão ( e magnata dos cavalos ) . Saudado como ( mais um) "pai do povo", o
duque desceu da carruagem, acenou amigavelmente e balbuciou que os
seus amigos deveriam acalmar-se. Quando eles lhe retorquíram que tinha
razão mas que os sacanas dos patrões lhes iam reduzir o salário para
quinze soldos por dia, Orleães respondeu da única maneira que sabia -
atirou sacos de moedas à multidão e saiu de cena debaixo de uma ovação.
Compreensivelmente, a tensão diminuiu, mas nem a multidão nem os
guardas arredaram pé de Titonville . Passadas algumas horas, os amantes
das corridas regressaram ao local. A maior parte do tráfego fora sensata­
mente desviada na barreira da Praça do Trône, excepto a carruagem da
mulher de Orleães, que insistira em seguir para o Palais-Royal pelo cami­
nho mais directo. Fatalmente, os guardas abriram alas para a deixarem
S imon Schama 1 CIDADÃOS

passar e atrás dela meteram -se milhares de pessoas, que invadiram a


fábrica de Réveillon. O fabricante e a família mal conseguiram escapar
pelo jardim, e correram a pôr-se em segurança na B astilha . Não foi pre ­
ciso mais que duas horas para que nada restasse da residência e da fábrica,
excepto a enorme quantidade de garrafas da adega, que nem os milhares
de amotinados conseguiram consumir de imediato . Fizeram-se fogueiras
imensas no j ardim, alimentadas com papel, cola - um combustível per­
feito - tinta, móveis e quadros.
Finalmente, uma força militar de algumas centenas de homens - com­
preendendo destacamentos dos Gardes Françaises, da vigia da cidade ( Guêt)
e tropas regulares armadas com alguns canhões e com os tambores a rufar
- abriu caminho até à casa. Debaixo de uma chuva de pedras e telhas, dis­
pararam para o ar mas o aviso não surtiu efeito; a seguir, apontaram à
multidão. Até o marquês de Ferrieres, um homem normalmente sereno e
que por acaso assistiu à cena, classificou o sucedido como um massacre .
As informações sobre o número de mortos oscilaram entre os vinte e
cinco e os novecentos, mas houve seguramente pelo menos trezentos civis
feridos e é provável que os mortos tenham sido outros tantos.
Numa demonstração de firmeza das autoridades, dois homens apa ­
nhados a pilhar - um carregador e um trabalhador de uma manufactura
de cobertores - foram condenados e enforcados no dia 3 0 . Três semanas
mais tarde, foram condenados outros sete amotinados e um deles, o escri­
tor de cartas Mary, foi executado depois de ser passeado pelas ruas com
um letreiro declarando-o "sedicioso " . Cinco dos seus correligionários,
incluindo um aprendiz de serralheiro de quinze anos de idade, foram
obrigados a assistir à morte de Mary, após o que foram marcados a ferro
nos ombros com as letras " GAL" e enviados para as galés. A pena de
Marie-Jeanne Trumeau foi suspensa a pedido do próprio Réveillon.
Em todos os aspectos menos num, os "motins de Réveillon" foram um
sinal inequívoco do que estava para vir. A excepção foi que os milicianos
dos Gardes Françaises, muitos deles pertencentes à classe dos amotinados,
obedeceram às ordens e não se desligaram das tropas regulares ( ao con­
trário do que fariam três meses mais tarde ) . No entanto, existem indícios
manifestos de que também eles se sentiram maltratados pelas autoridades,
em especial quando o sargento que deu ordens para abrir alas e deixar
passar a duquesa de Orleães foi despromovido. Os milicianos quotizaram­
-se para lhe pagar a diferença de salário e repudiaram o oficial que lhes
ordenou que disparassem sobre a multidão.
Foi derramado mais sangue nos motins de Réveillon do que em qual­
quer outra jornada da Revolução até à grande insurreição de 1 792, que
derrubou a monarquia. Por conseguinte, não admira que tenham sido um
choque violento para a governança da cidade . A sua premissa de que Paris
podia ser policiada pelo seu complemento habitual de seis mil homens
285

deixou de ser verdadeira. Era necessária a participação do exército, uma pos­


sibilidade que tanto tranquilizava como enchia de apreensão uma grande
parte da elite. Os motins também dividiram ainda mais os comentadores em
cidadãos-nobres horrorizados pelo derramamento de sangue e outros como
um capitão da Cavalaria Real pertencente à guarnição de Estrasburgo, o
qual, interrompido o seu jantar em Marais, foi observar o espectáculo. Não
viu uma tragédia, mas sim "mil e quinhentos ou mil e seiscentos excremen­
tos da Nação, degradados por vícios vergonhosos . . . a vomitarem brandy, a
darem um espectáculo absolutamente nojento e revoltante" .
Os oficiais que observavam o confronto foram obrigados a fugir a toda
a pressa quando alguém reparou que dois deles ostentavam no uniforme
a medalha da Ordem de São Luís,8 o que provocou a ira da multidão, mas
o que ofendeu verdadeiramente o capitão foi a "insolência" dos amotina­
dos ao apropriarem-se da respeitável palavra de ordem do Terceiro Estado
- " Vive Necker e o Terceiro Estado ! " - como grito de guerra . E o verdadeiro
significado dos motins de Réveillon foi a demonstração da vulnerabilidade
da autonomeada liderança do povo quando estabelecida aos ombros da
força popular. Tendo os operários dos bairros de Saint-Antoine e Saint­
-Marcel sido educados para acreditarem que as suas dificuldades eram
atribuíveis aos "aristocratas" e a diversas outras pessoas antipatrióticas, a
continuação dessas mesmas dificuldades pressupunha que os traidores
continuavam no poder. Por outras palavras, a fome decorria de uma con­
jura. A lógica ditava que desmascarar a conspiração e eliminar os respon­
sáveis seria pôr pão na boca dos famintos.
Por seu lado, os abalados representantes do Terceiro Estado de Paris
desconfiavam que os amotinados tinham sido subornados por espiões
monárquicos com o intuito de fomentarem a desordem e embaraçarem as
novas autoridades. Afinal de contas, Réveillon era um eleitor - um homem
do seu género, um homem moderno, politicamente liberal, um capitalista
modelo. Contudo, seria exactamente este tipo de auto -satisfação que a vio­
lência revolucionária tomaria como alvo. Os cabecilhas da turba de Abril
de 1 789 eram figuras desgraçadas e broncas, mas existiam outras prontas
a dar forma a esta retórica de incriminação social. Já circulavam pelas ruas
de Paris panfletos que subordinavam a política à fila para o pão. Um dos
títulos era Ce Que Personne n 'a Encare Dit, obra de um membro do " Quarto
Estado" mas advogado do Parlamento, La Haie . O que ele dizia era que o
pão deveria ser o tema primeiro dos Estados Gerais e que o primeiríssimo
dever do verdadeiro cidadão era "arrancar às mandíbulas da morte os vos ­
sos concidadãos que gemem à porta das vossas assembleias". La Haie nar­
rava depois que, uma semana antes, ao sair de uma assembleia eleitoral,
encontrara vários cidadãos cuj a pobreza lhes negara a participação:

' Ordem d e cavalaria fundada p o r Luís X I V e m 1 693. (N. d o T )


S imon S chama 1 CIDADÃOS

Apenas tinham uma coisa a dizer:


"Estão preocupados connosco, senhor? Estão a pensar em baixar o preço
do pão? Há dois dias que não comemos."

Em 1 789, em Paris, havia dois tipos de temperamento revolucionário.


O primeiro era o do homem moderno: Sylvain B ailly, astrónomo, acadé­
mico, residente na suburbana Chaillot, para quem a assembleia eleitoral
equivalia a uma espécie de renascimento político.

Quando me vi no meio da assembleia distrital, senti-me a respirar ar puro.


Foi verdadeiramente fenomenal ser alguma coisa na política e exclusiva­
mente em virtude da minha qualidade de cidadão . . . aquela assembleia,
uma fracção infinitamente pequena da Nação, não deixou de se sentir
parte do poder e dos direitos do todo e não teve a veleidade de que esses
direitos e esse poder lhe conferiam alguma espécie de autoridade.

Ora era precisamente essa autoridade que Les Quatre Cris d 'un Patriote a
la Nation contestava. E para que a contestação fosse real, asseverava o
autor, havia que armar os cidadãos - imediatamente . Para que fosse real,
os aristocratas deviam ser banidos para que a nação fosse liberta das suas
"maquinações infernais " . De que servia "pregar a paz e a liberdade a
homens que morrem de fome? De que serve uma constituição sábia a um
povo de esqueletos?"
Esta era a segunda voz da revolução. Durante o primeiro ano da revo ­
lução, as duas vozes estariam em harmonia no coro do Terceiro Estado,
Cidadãos-e-Irmãos. Pouco depois, os aristocratas desapareceriam ou pere ­
ceriam e a fome continuaria presente . Nessa altura, a discussão subiria de
tom e tornar- se-ia mais séria.
9

Improvisando Uma Nação

1 DOIS TIPO S DE PATRIOTA

Do marquês de Ferrieres a Madame de Ferrieres, 2 0 de Abril de 1 78 9 :

Ma bonne amie, j á cheguei a Orleães e tiro alguns minutos para conver­


sar convosco. A viagem não me cansou nada; o tempo tem estado maravi­
lhoso; dormimos em Orleães, atravessámos o rio apesar de já serem quase
oito da noite; o colapso da ponte é um grande inconveniente para os via­
jantes. Jantei com apetite e dormi muito bem. Os meus companheiros de
viagem são boa gente. Monsieur de Châtre é muito mais agradável do que
me disseram; tem uma boa capacidade de raciocínio mas talvez seja um
tanto ou quanto excessivo nas suas ideias. Houve uma revolta em Sainte­
-Maure que necessitou da intervenção de cem homens do Regimento de
Anjou. Um pão de meio quilo custa 5 soldos em Tours, cinco e meio em
Blois; as pessoas estão muito preocupadas e temem morrer à fome . . .
Comprámos um pipo de vinho em B eaugency, que vamos enviar para
Versalhes . Custou-nos 1 9 5 libras francesas, sem contar com as taxas e o
transporte, mas pelo menos sabemos que não é vinho adulterado .
Faríeis bem em vender algum trigo no mercado. Nunca se sabe o que
pode acontecer. Não vos esqueçais dos pobres e apoiai a caridade em fun ­
ção das suas necessidades . . .
C hegamos amanhã à noite a Paris e vamos aloj ar-nos na Rue Jacob,
não sei em que hotel.
Adeus, ma bonne amie, e bani a ansiedade . Conheço bem de mais a
vossa devoção para não temer que possais alarmar-vos facilmente . Sinto­
-me bem: isto é o essencial; quanto ao resto, tudo correrá como aprouver
a Deus mas eu cumprirei os meus deveres sem obstruções, nem a favor,
nem contra, de acordo com o que me parecer correcto.
B eij ai a minha Séraphine e a minha Charlotte; dizei-lhes que as amo
muito. Dai notícias minhas a Monsieur de La Messeliere . Volto a escrever
na quinta-feira.

* * *
S imon Schama 1 CIDADÃOS

Assim começa Charles-Elie de Ferrieres Marsay - gentil-homem agri­


cultor e amateur des lettres, um homem de meia idade e temperamento
moderado - uma correspondência de mais de cem cartas com a mulher,
Henriette. Da Primavera ao Outono, Henriette permaneceu na sua man­
são, no Poitou, para supervisionar a colheita, e depois j untou-se ao marido
em Paris, para passar o Inverno. Ferrieres esteve envolvido na vida política
do país durante dois anos. Quando concluiu o seu mandato na Assembleia
Constituinte, a França estava completamente transformada. O rei e a rai­
nha tinham sido recambiados para Paris de forma ignominiosa depois da
sua malograda tentativa de fuga para a fronteira; parecia certa uma guerra
com o irmão da rainha, o imperador da Áustria; manifestantes que exigiam
o estabelecimento de uma república, no Campo de Marte, tinham sido
alvejados a tiro. Para profunda consternação de Ferrieres, o irmão emigrou
e, durante o Terror, Ferrieres enviou prudentemente à Comuna local seis
sacas de títulos senhoriais, rendas e outros documentos que a Convenção
Nacional mandara suprimir "para que fossem queimados aos pés da Árvore
da Liberdade, em conformidade com a lei " .
Esta pequena expiação teria lugar num lúgubre Outono d o futuro
revolucionário. Em 1 789, a caminho dos Estados Gerais como deputado
pela nobreza do Poitou, Ferrieres estava cheio de optimismo vernal.
O cenário fumegante de desastre que a sua carruagem atravessou não
diminuiu em nada o seu entusiasmo infantil. Outros, mais sintonizados
com a cultura melancólica então na moda, teriam visto no colapso da
ponte sobre o Loire algo mais do que um mero inconveniente para os via­
jantes. No auge do degelo de Janeiro, quando a diligência pública de
Saumur iniciara a travessia, o primeiro arco cedera . Só a reacção instin­
tiva do cocheiro, que cortou as rédeas do primeiro cavalo, deixando- o cair
ao rio, salvou a vida aos passageiros - enquanto os restantes arcos ruíam
uns atrás dos outros.
A Ponte de Tours era uma construção típica da modernidade do Ancien
Régime: obj ecto de uma engenharia cuidadosa, concebida para transfor­
mar as comunicações comerciais e humanas. Fora inaugurada apenas dez
anos antes do desastre, e ao longo do caminho de Ferrieres ia ruindo tam­
bém muito do esfuziante optimismo dessa época. Instalado em Paris,
Ferrieres falou excitadamente à mulher dos j antares, do teatro e dos seus
botões dourados à la mode. Como tantos outros provincianos, entusias­
mou-se com o Palais- Royal, absorvendo o circo, as livrarias e os cafés atu ­
lhados de pessoas que ouviam os oradores políticos. Mas Ferrieres
reconheceu rapidamente que se o momento estava prenhe de excitação,
também estava carregado de perigo . Uma noite, foi à Ópera assistir a
Ifigénia em Á ulida, de Gluck, mas, conforme contou a Henriette,
"enquanto eu me entregava às doces emoções que animavam a minha
alma, corria sangue no bairro de Saint-Antoine " . Para horror de Ferrieres,
289

um amigo da família, o abade Roy, foi acusado de ter sido um dos insti­
gadores dos motins de Réveillon. Quatro dias depois de Ferrieres deixar
Orleães, fora atacado um armazém de cereais e pilhado um convento car­
tuxo, sob a liderança de barqueiros, pedreiros e outros trabalhadores e
suas mulheres, armados com machados. Tal como em Paris e muitas
outras cidades francesas, registaram -se mortes, a tropa interveio e for­
maram-se milícias de defesa de cidadãos. "Tudo isto faz tremer o nosso
pobre Reino - é uma teia de horrores e abominações", escreveu o aba ­
lado marquês.
Mas recuperou a coragem em Versalhes, pois aproximava-se o grande
dia no qual estavam depositadas tantas expectativas impossíveis. Ferrieres
via-se a si próprio como um homem do Iluminismo: razoável, benevo­
lente, dedicado à causa pública e, acima de tudo, culto de uma forma
cavalheiresca. Ferrieres, que era descendente do poeta Bellay, combinava
a curiosidade filosófica e científica com a expressão literária. Publicou um
primeiro livro, chamado Theism ( enganadoramente, já que está cheio de
deísmo e põe um pároco de aldeia a fazer a improvável observação de que
"a teologia é apenas uma ciência das palavras" ) , em 1 78 5 , e um ano mais
tarde deu à estampa outro trabalho, La Femme dans l 'Ordre Social et dans
l 'Ordre de la Nature. Vários dos seus pares presentes na assembleia de
Saumur pertenciam também ao clube da razão, pelo que não admira
constatar que o seu cahier foi um dos mais liberais da nobreza. Insiste já,
no preâmbulo, na igualdade de todos os cidadãos perante a lei, preocupa­
se com o excesso de representação não dos comuns mas do clero, e
declara tão insistentemente como qualquer cahier do Terceiro Estado que
não se podem aplicar impostos sem primeiro serem estabelecidas certas
liberdades civis e políticas fundamentais.
Em conformidade com este individualismo patrício, a assembleia decidiu
não impor aos seus deputados instruções vinculativas sobre a forma como
deveriam deliberar e votar - individualmente ou por ordem. O "estabeleci­
mento da constituição" levá-los-ia magicamente a tomarem a atitude cor­
recta. A nobreza do Poitou parece ter pertencido ao grupo "misto" que
deixou às contingências políticas a determinação da sua conduta.
Sej a como for, a questão não pesava muito no espírito de Ferrieres
enquanto se ataviava para as cerimónias de abertura dos Estados Gerais.
Ele tinha descoberto na nobreza uma hostilidade virulenta contra Necker
como instigador de todos os seus males, uma constatação que o chocara,
e vira com ambivalência a facilidade com que alguns dos seus colegas
deputados, como o conde de Gallissonniere, se deixaram influenciar pela
reacção da corte e se comportavam de modo bastante diferente do que em
Saumur. Mas nos dias que antecederam a cerimónia de abertura, Ferrieres
dedicou -se de alma e coração "ao lado agradável e quase ridículo" dos
procedimentos: o espectáculo.
S imon Schama 1 CIDADÃOS

Ferrieres troça de si próprio ao descrever os seus atavios numa carta a


Henriette : "casaco preto de seda . . . colete dourado ou prateado; plastrão
rendado, chapéu emplumado"; e para aqueles que estiverem de "luto
pesado" ( nos quais decidiu incluir- se ) , o chapéu seria, como o do rei, à la
Henri IV, com a aba virada para cima à frente. O marquês queixa-se de que
o chapéu lhe vai custar, no mínimo, 1 80 libras ( um terço do estipêndio
médio que auferia a maioria da ordem do clero ) . Contudo, Ferrieres com­
preendeu instintivamente que a questão do vestuário, bem como outros
aspectos do protocolo, não era de modo nenhum trivial. Era parte integral
de um espectáculo concebido para eliminar a descrença . Em lugar do cep­
ticismo, participantes e espectadores sentiriam admiração e entusiasmo .
Através de uma representação, sentir- se-iam incorporados no ritual de
uma França Renovada: passado, presente e futuro expostos e harmoniza ­
dos como uma metamorfose ovidiana . S eria uma segunda ascensão do Sol
que tanto se esforçara por se erguer no horizonte no dia da coroação,
catorze anos antes.
Não há dúvida de que a estratégia funcionou com Ferrieres. Durante
as cerimónias inaugurais, ele transbordou de ardor patriótico . No dia 6 de
Maio, escreveu a Henriette num tom de devoção quase mística à Ideia de
França: "França, onde nasci; onde passei os dias mais felizes da minha
j uventude; onde se formou a minha sensibilidade moral . . . " Ferrieres não
tinha obviamente ficado incomodado com a mais que longuíssima recep­
ção dos deputados pelo rei, no dia 2 de Maio . O seu coração voara como
a cotovia ao som da fanfarra de trombetas de prata tocada por arautos
sentados em corcéis brancos e vestidos de veludo púrpura bordado com
flores-de-lis. No dia 4 de Maio, uma segunda-feira, viu Luís XVI, saudado
por flautas e tambores na Catedral de Notre Dame, entronizado com a
família e a corte enquanto os coros cantavam o Veni Creator. De seguida,
caminhou em procissão até à Igreja de São Luís, atrás dos C em Suíços,
com as suas casacas renascentistas de losangos escarlates e dourados, atrás
dos Falcoeiros Reais, montados a cavalo e com as suas aves de caparão
postas no pulso. S eguia-se a sua própria ordem, um rio de sedas, rendas e
plumagens correndo por entre as tapeçarias Gobelin pendentes das casas
que delimitavam as ruas .
Mas enquanto Ferrieres desfilava lentamente, ouvindo um ocasional
" Vive le Roi!", o seu lado racional começou a impor- se e as suas reflexões
tornaram-se subitamente mais sombrias. "A França mostrava-se em toda
a sua glória; mas eu disse para comigo, conseguirão os sabotadores, os
ambiciosos, os malvados que só pensam nos seus próprios interesses,
desunir tudo o que há de grande e honroso, fazendo esta glória desapare ­
cer como fumo empurrado pelo vento?" Porém, na Praça de São Luís,
Ferrieres entregou -se de novo à magia cerimonial.
291

A s belas j anelas decoradas com mulheres lindíssimas, a variedade d e cha ­


péus, penas, vestidos; a simpática gentileza no rosto de todos, a alegria deli­
rante que cintilava em todos os olhos; os aplausos; gestos expressivos da
mais terna preocupação; os olhares que nos saudavam e que nos seguiam
mesmo depois de nos perderem de vista . Oh! Minha querida França, povo
amigo e bom, fiz uma aliança eterna convosco. Até hoj e, não tive patrie;
agora tenho uma e ser-me -á para sempre querida .

Mas tal como Ferrieres sentira com desconforto, os próprios meios uti­
lizados para induzir delírio patriótico militaram contra a sua adopção pelo
Terceiro Estado. Historicamente, os rituais públicos que sustentavam o
mito de uma única comunidade davam grande proeminência, no vestuá­
rio e nas bandeiras, precisamente aos grupos que, na realidade, estavam
excluídos do poder. Na Veneza renascentista ou na Amesterdão seiscen­
tista, em dias de desfile, as irmandades e os milicianos comungavam em
pleno da cor e do espectáculo das festividades . Este mito de incorporação
era muito mais do que um pretexto para vestir com fausto, gerava e con­
solidava a fidelidade .
Em Versalhes, na primeira semana de Maio, aconteceu exactamente o
oposto . A abertura dos Estados Gerais não foi tratada como uma ocasião
pública na qual o estatuto se dissolvia no dever patriótico, mas como
uma extensão do cerimonial da corte . Em vez de ser inclusiva, foi exclu ­
siva . Em vez de abrir espaços, fechou -os. Em vez de reflectir a realidade
social da França de finais do século XVIII, na qual a posição social era ero­
dida pela propriedade e pela cultura, afirmou uma hierarquia anacró ­
nica . Necker tê-lo-á receado. Tal como Turgot, em 1 77 5 , ele quisera que
as cerimónias fossem mínimas e que decorressem em Orleães. Quando o
rei declinou, ele ficou à mercê dos conhecimentos dos mestres-de-ceri­
mónias e dos que ditavam as leis em termos de precedentes históricos .
O chapeau à la mode de Henri I V devia mais à moda henriquina d a década
de 80, do século XVIII, do que a qualquer investigação antiquária séria
sobre o vestuário de 1 6 1 4. A tradição foi reinventada para a ocasião, tal
como as coroações britânicas dos séculos XVIII e XIX a fabricariam para
investir a monarquia de uma aura imperial.
A consequência de tudo isto foi garantir que a forma dos Estados
Gerais estava em guerra com a sua substância. Quanto mais brilhantes se
apresentaram as duas primeiras ordens, mais alienaram o Terceiro Estado
e o provocaram ao ponto de mandar a instituição pelos ares. Desde o iní­
cio, os representantes do Terceiro Estado foram ofendidos de forma gra­
tuita . O monarca recebeu os deputados das ordens privilegiadas no cabinet
du roi, mas os do Terceiro Estado foram levados para outro salão, onde
desfilaram perante o soberano qual fila indiana de colegiais amuados.
O seu vestuário era tão deselegante como vistosas eram as vestes do clero
S imon S chama 1 CIDADÃOS

e da nobreza . Traj ando de preto dos pés à cabeça, pareciam corvos no


meio de pavões ou caricaturas teatrais do burguês - uma convenção de
farmacêuticos. Mas alguns, inspirados no traj e do honnête homme de
Benj amin Franklin, souberam transformar a humilhação em vantagem.
Michel Gérard, um velhote de Rennes, recusou-se a vestir o fato preto e
branco predeterminado para a ocasião e tomou o seu lugar na Salle des
Menus Plaisirs vestido de fustão castanho. Imediatamente reconhecido
como "Pere Gérard", parecia a virtude rústica em pessoa, como se tivesse
sido modelo para as gravuras de Moreau ou as obras de Rousseau.
Mas havia outra presença imensamente dominadora entre os deputa­
dos do Terceiro Estado que resistiu à sua absorção numa mole indiferen­
ciada. B astava o tamanho para destacar Mirabeau: uma montanha de
carne e músculos enfiada com dificuldade num casaco e collants pretos.
A sua altura, já de si notável, era aumentada pelos célebres tufos de cabelo
penteados para trás e empilhados numa torre gótica de fantásticas formas
nimbosas. Caíam-lhe madeixas pelas costas, para cima de um saco de
tafetá preto que tinha aos ombros. Alguns comparavam o bruto hirsuto
com Sansão, que tirava a sua força dos cabelos; outros, como o deputado
Adrien Duquesnoy, achavam que ele parecia um tigre cuj a expressão se
desfigurava num rosnar quando falava. Ciente da sua reputação de selva­
gem, Mirabeau aproveitava -a ao máximo: caminhava com a cabeça para
trás, num gesto exagerado de implacável desdém. Para todos quantos o
viam - e as pessoas esticavam o pescoço para o verem -, ele era uma força
da natureza, pagã, perigosa e irreprimível dentro de roupas ou da tradi­
ção . O seu rosto enorme parecia ter sido formado por uma erupção vul­
cânica que arrefecera, talvez temporariamente, e dera origem a uma
crosta de pedra -pomes, cheia de buracos negros, escaras e crateras (a sua
notável superfície resultara da fé errónea da mãe num curandeiro que lhe
pintalgara as pústulas deixadas pela varíola com uma mistura à base de
plantas, deixando-lhe o rosto marcado para sempre ) . Germaine de Stael,
que não tinha motivos para apreciar um homem que caluniara publica­
mente o seu pai, Necker, apodando- o de vaidoso e pusilânime, confessou
que era impossível desviar os olhos daquela aparição.
Honoré - Gabriel Riqueti, conde de Mirabeau mas deputado pelo
Terceiro Estado, sabia desde há muito aproveitar- se da sua aparência e, de
modo igualmente importante, da sua história pessoal. O pai, Victor, já fora
um praticante dos paradoxos da nobreza : autodenominara-se L'Ami des
Hommes e, antes de se tornar fisiocrata de um dia para o outro, transpu­
sera a sua versão de paternalismo feudal provençal para uma teoria das
relações sociais. "O 'Amigo do Homem"', comentou mordazmente o filho,
"não era amigo da mulher nem dos filhos" . Mirabeau cresceu desafiando
com denodo o seu assustador pai, odiando -o, mas em muitos aspectos
estava condenado a parecer-se com ele. Victor embeiçou -se pela criada da
293

mulher, instalou-a em casa e acabou por expulsar a sua atormentada


esposa - queixou -se ela quando o processou em tribunal - sem um trapo
para vestir. Culpando o pai mas pouco amado pela mãe - que uma vez o
alvej ou com uma pistola mas falhou -, Mirabeau embarcou numa longa
e espectacular carreira de namoradeiro . Tornou-se um Casanova, não no
sentido em que C asanova é habitualmente mal interpretado, um descar­
regador da libido, mas no verdadeiro Casanova, que se apaixonava de
forma absurda por todas as mulheres bonitas em que punha a vista em
cima. A estupenda fealdade de Gabriel, tal como a perna coxa de
Talleyrand, não constituiu uma desvantagem nestas conquistas. Ele
usou -a como um instrumento de desej o e acompanhou-a de uma
sonante voz de barítono que poderia ter sido feita para os ardentes cres­
cendos exigidos pelo Romantismo . Em suma, Mirabeau era como o pai:
sublime e terrível.
No exército, Mirabeau participou na invasão francesa da C órsega,
em 1 7 6 9 , contribuindo para extinguir a sua liberdade no ano em que
Napoleão nasce u . Proibido de seguir uma carreira militar por Victor,
passou o resto da sua j ovem maturidade a viver uma vida de cigano,
escrevendo textos inflamatórios, seduzindo mulheres casadas, acumu ­
lando dívidas que espantavam até a nobreza provençal, fazendo todos
os possíveis para enfurecer o pai. C ontudo, na França do Antigo
Regime, a fúria paterna podia assumir a forma de encarceramento e
Victor mandou prender Gabriel por causa da sua delinquência, pri­
meiro no C astelo de If, no Midi, e mais tarde, tendo ele fugido com
S ophie Monnier ( foram apanhados em Amesterdão e separados ) , no
Castelo de Vincennes . E ste período de detenção, apesar de ter durado
três anos, de 1 7 7 7 a 1 7 8 1 , não foi o tormento que Mirabeau apregoava,
dado que ele usufruía de aposentos próprios e tinha companheiros ami­
gáveis e um j a rdim privado onde tentou ( naturalmente ) seduzir a
mulher do seu carcereiro .
Foi uma rapariga holandesa que conseguiu, durante algum tempo,
endireitar Mirabeau . Ela também tinha relações paternais complicadas.
Era filha ilegítima de um famoso escritor holandês, Onno Zwier van
Haren . Numa atitude hipócrita que revelava mais do que dissimulava, ele
dera -lhe o apelido de Nehra - um anagrama do seu. Durante as suas
deambulações na Holanda, em Londres, em Paris e em Berlim, Henriette ­
-Amélie ( "Yet-Lie", chamava - lhe Mirabeau sem graça nenhuma ) saciou
o fogo de Mirabeau e tornou-o, pela primeira vez, um homem reflexivo,
capaz de se conhecer a si próprio. Mais do que geralmente se com­
preende, a prática política de Mirabeau foi o produto de uma perambu­
lação inteligente : uma espécie de cosmopolitismo rapinante . Aos
Holandeses, foi buscar a retórica polémica dos Patriotas e a história do
republicanismo heróico; aos Ingleses, um modelo institucional para a
S imon S chama 1 CIDADÃOS

representação; aos genebrinos, a prática jornalística. Mas o seu j eito para


a temeridade e o dom teatral através do qual era comunicada eram do
mais puro Riqueti.
Em 1 7 89, Mirabeau rompeu com "Yet-Lie", mas exorcizou finalmente
o demónio da ira paterna ao tornar- se, aos olhos da população provençal,
o seu pai colectivo - !e pere de sa patrie, como era chamado em público.
Regressou à sua região natal naquele Janeiro excepcionalmente frio para
procurar a eleição como deputado nobre aos Estados Gerais. A Provença,
sendo um pays d 'états, 1 foi autorizada a eleger através dos seus Estados .
A resistência espontânea a este esquema expressara-se numa "Assembleia
Geral" das cidades convocada pelos presidentes de câmara para Lambesc,
em Maio, e ganhara um ímpeto acrescido com o exemplo inspirador do
Delfinado e a campanha panfletária do Outono. Em Dezembro, uma peti­
ção com mais de duzentas assinaturas contestou o direito de os Estados
monopolizarem a representação da província.
O movimento reformista vingou precisamente porque possuía aliados
na nobreza e no clero . Os Estados tinham insensatamente mantido a tra ­
dição de excluir da sua ordem todos os nobres sem feudos (propriedades
senhoriais ) , e no seio do clero existia um forte ressentimento por parte
dos empobrecidos curas de aldeia face à riqueza enorme dos bispos, todos
eles previsivelmente oriundos das principais dinastias aristocráticas, uma
hostilidade na qual contavam com o apoio da substancial população de
protestantes da região. Nas cidades, a maioria dos presidentes de câmara
e dos "cônsules" municipais provinha igualmente do sector mais abastado
dos privilegiados e era alvo do antagonismo dos jornaleiros e mestres das
guildas.
Finalmente, a Provença estava a passar por uma aguda crise alimentar
e a fúria popular centrou - se na lista de vilões identificáveis . Pensava-se -
tal como no resto da França - que a resposta estava numa nova repre ­
sentação dos cidadãos. Mirabeau foi lesto a compreender o significado de
tudo isto e a apresentar-se como o nobre campeão do Povo, papel que
anunciou na procissão dos Estados, em Aix, postando -se afastado e atrás
da fila dos nobres e a alguma distância à frente do Terceiro Estado.
Na assembleia, Mirabeau atacou a legalidade da sua constituição.
Quem dizia representar? A nobreza não representava os muitos nobres
sem feudos; o clero não representava os humildes pastores da Igreja, e
quanto ao Terceiro Estado, não passava de uma amálgama de presidentes
de câmara, muitos deles aristocratas cobardemente dependentes dos pri­
vilegiados para se manterem no cargo. "Ai das ordens privilegiadas, pois
os privilégios acabarão, mas o Povo é eterno ! ", foi a ameaçadora profecia

' Províncias possuidoras de Estados ou de assembleias representativas das três ordens.


(N. do T )
295

da sua peroração. C hocado com aquela erupção e alarmado pela tempes ­


tade aclamativa que a saudou das galerias, o presidente d a assembleia
suspendeu os trabalhos na tentativa de amordaçar Mirabeau . De nada
serviu. Vinte e quatro horas depois, Mirabeau apresentava um manifesto
de cinquenta e seis páginas, A la Nation Provença/e, que foi distribuído nas
ruas de Aix.
Sob o pretexto de que as credenciais de qualificação do seu feudo ou
propriedade não estavam em ordem, Mirabeau foi proibido de aceder aos
Estados, mas isto, como é óbvio, só veio aumentar a sua popularidade.
Onde quer que fosse, era rodeado por multidões j ubilantes que cantavam
o seu nome, rodopiavam em torno da sua cadeirinha em danças proven -
çais ou lhe faziam serenatas com pífaros estridentes e tamborins choca ­
lhantes. Em Marselha, qual blasfémia, lançaram-lhe palmas aos pés e
coroaram-no com louros. As mães ofereciam ao maior debochado de
França os seus bebés para que lhes pegasse e os beij asse. Em Larpbesc, os
sinos da igrej a repicaram em sua honra e o seu peso considerável foi
suportado por ombros fortes. "Meus amigos", respondeu ele, sempre com
uma palavra para todas as ocasiões, "os homens não foram feitos para
suportar um homem, e vós já suportais demasiado . "
Apesar d e beber nesta adulação espontânea, Mirabeau teve a frieza
suficiente para a explorar. Juntamente com o advogado Brémont-Julien,
que desempenhava as funções de seu director de campanha, Mirabeau
construiu uma personalidade pública : o Tribuno do Povo . Em Aix ( onde
eram fortes as memórias de Roma2 ) , comparou-se com Mário Graco,'
acossado pelos patrícios. Em Marselha, produziu um panfleto promocio­
nal alegadamente "De um C idadão de Marselha a um dos seus Amigos
sobre os Monsieurs Mirabeau e Raynal " . Depois de alguns comentários
obrigatórios sobre Raynal, autor de uma condenação da colonização
europeia imensamente popular, Mirabeau prosseguiu com uma tímida
descrição :

Este bom cidadão [é] o homem mais eloquente d o seu tempo; a sua voz
domina as reuniões públicas como o trovão se sobrepõe ao rugido do mar;
a sua coragem suscita ainda mais espanto do que o seu talento e não existe
nenhum poder humano que o consiga fazer desistir de um princípio.

Meras frases bombásticas não teriam chegado para dar credibilidade a


Mirabeau. O seu sangue ferveria mas a sua cabeça era suficientemente fria
para o manter autocontrolado em alturas de crise. De forma crucial para

2 A cidade foi fundada pelos Romanos com o nome de Aquae Sextiae, em 123 a . C .
( N. do T. )
' Tribuno d o povo que procurou aj udar o s pobres urbanos com leis que lhes garantissem
o abastecimento em cereais e que acabou assassinado pelos patrícios. ( N. do T. )
S imon Schama 1 CIDADÃOS

o ambiente revolucionário, Mirabeau soube usar a sua imensa populari­


dade j unto das multidões das cidades e aldeias da Provença para conter os
tumultos. De facto, em finais de Março, uma grande parte da província
tornou -se ingovernável. O primeiro alvo foi o episcopado . No dia 1 4, em
Manosque, o bispo de Sisteron escapou por pouco a um apedrej amento.
O bispo de Riez teve de se resgatar a si próprio e ao seu palácio por cin­
quenta mil libras, mas ao seu homólogo de Toulon nem sequer foi dada
essa possibilidade. O seu palácio foi incendiado perante a recusa de auxí­
lio de companhias de marinheiros e soldados . Os ataques às mansões
senhoriais tornaram-se comuns. "Aqui há uma guerra aberta entre os
proprietários e a propriedade", escreveu o intendant, De La Tour. E tudo
era perpetrado em nome da vontade e do desej o do rei !
N o dia 2 3 , a câmara d e Marselha e o quartel-general d o intendant
foram destruídos e saqueados . Cavalgando a toda a brida de Aix,
Mirabeau tirou o comando das mãos do nervoso governador militar, De
Caraman, e tornou-se ditador provisório: proibiu a partida de um navio
carregado de cereais, organizou uma milícia de cidadãos (a primeira do
seu género em França ) e distribuiu rosetas vermelhas como insígnias da
sua autoridade revolucionária. A cidade encheu-se de toda a espécie de
proclamações, ordens e exortações da sua lavra, que foram impressas e
afixadas nos mercados onde outrora se liam os éditos reais.
Além do mais, o tom destes avisos anunciava uma nova linguagem polí­
tica, a da conversa entre irmãos. O seu herói já não era "o conde" mas sim­
plesmente "Mirabeau ", que falava directamente "ao Povo " . O seu discurso
era mais proferido do que escrito, como alguém a explicar uma coisa num
grupo de amigos que bebiam juntos. Era a dicção da transparência, do hon­
nête homme do ideal de Rousseau. Dominando a sua expressão, Mirabeau
teve a audácia não só de procurar acalmar os sentimentos inflamados dos
marselheses, como também de j ustificar os impostos:

Meus bons amigos, venho dizer-vos que aquilo que penso acerca dos acon­
tecimentos dos últimos três dias na vossa orgulhosa cidade. Ouvi-me, ape­
nas quero ser-vos útil e não enganar-vos. C ada um de vós desej a apenas o
que está correcto porque todos vós sois homens honestos; mas nem todos
sabeis o que é preciso fazer; muitas vezes cometemos erros que prej udicam
os nossos próprios intere s s e s . C omecemos por pensar no pão . . .
Actualmente, caros amigos, estando o trigo caro em todo o lado, como
poderia ser barato em Marselha? . . . A cidade de Marselha, como qualquer
outra cidade, contribui para as despesas do reino e para prover ao nosso
bom rei. Sai um pouco de dinheiro daqui, outro tanto dacolá . . .

Dois dias mais tarde, Aix emulou Marselha com um tumulto e as tropas
dispararam sobre a multidão. O arcebispo, um bretão, ficou aterrorizado.
297

"O povo comum, no seu ódio, só faz ameaças de morte e só fala em arran­
car os nossos corações e comê -los . " Mirabeau foi de novo chamado como
pacificador e criou uma milícia de cidadãos para garantir que as pessoas
respeitariam a ordem e distribuiu pão a preços fixos . Não admira que
todos estes esforços tenham dado grandes dividendos . Mirabeau foi eleito
por margens substanciais para o Terceiro Estado em Aix e Marselha.
Depois de pronunciar orações elogiosas aos cidadãos de Marselha para
não os ofender, anunciou que iria para Versalhes como deputado por Aix.
Mirabeau referiria mais tarde que não era apenas estimado . Era
amado . A ovelha negra da família tornara-se o cavaleiro branco do Povo .
O homem odiado e desprezado pelo irmão reaccionário tinha uma pro ­
víncia de irmãos. O filho que nunca conseguira agradar ao pai implacável
tornara -se pai de um país de filhos adoptivos. " Obedeciam-me como a um
pai adorado", escreveu ele acerca daqueles tempos, "as mulheres e as
crianças banhavam com as suas lágrimas as minhas mãos, as minhas rou ­
pas, os meus passos" .

II NOVUS RERUM NASCITUR ORD O,


MAIO-JUNHO DE 1 789

Naquele momento crítico, esperava-se muito de um terceiro tipo de


patriota : o rei. Os cahiers das aldeias tinham-no dado como "o novo
Augusto " que "renovará a Idade de Ouro " . Mas ao contrário do velho
Augusto, Luís XVI tornou -se cada vez menos divino na sua autocon­
fiança . C om a aproximação dos Estados Gerais, aumentou a sua apreen­
são. Além de duramente criticado pela mulher e por Artois por ter
aceitado o detestável Necker, ele próprio não estava muito convencido da
capacidade do ministro para resolver a crise . S ó a caça, a comida e a ser­
ralharia lhe conseguiam acalmar os nervos . A dada altura, perdeu lite­
ralmente o pé. Por causa das reparações no telhado do C our de Marbre,
viu -se obrigado a usar uma escada para chegar ao observatório. Quando
ia no quinto degrau, a escada começou a deslizar. Era uma queda de mais
de dez metros, e só o reflexo instintivo e acrobático de um dos trabalha­
dores, que agarrou os braços do rei e o puxou para cima, lhe poupou feri­
mentos graves.
O monarca, devidamente agradecido, concedeu uma gorda pensão de
mil e duzentas libras francesas ao homem que lhe tinha salvado a vida. Mas
um gesto régio para com um súbdito heróico era coisa fácil quando compa­
rado com o problema agudo de saber se os ditames do protocolo deveriam
ser preservados ou descartados. O seu mestre-de-cerimónias, o marquês de
Dreux-Brézé, de vinte e três anos de idade, não foi ajuda nenhuma, pelo
que a corte decidiu por consenso manter todas as observâncias tradicionais
S imon S chama 1 CIDADÃOS

para não dar a impressão de que os Estados Gerais tinham liberdade para
ir escrevendo o guião . Assim sendo, por exemplo, o rei aceitou manter o
costume - no mínimo, politicamente incorrecto - de obrigar todo e qual­
quer membro do Terceiro Estado que se quisesse dirigir ao trono a fazê -lo
de j oelho dobrado.
Todavia, no calor do momento, até a encenação mais minuciosa­
mente planeada pode correr mal. No fim do seu discurso inaugural, na
Salle des Menus Plaisirs, o rei tirou o chapéu - um "Henrique IV" de pele
de castor com plumas brancas e um cintilante diamante ao centro - na
habitual saudação à assembleia. Depois do seu gesto correcto e maj esto­
samente desprendido, repôs o chapéu na cabeça, seguido da nobreza,
que assumiu a sua superioridade sobre o desprivilegiado Terceiro Estado.
Na dúvida quanto aos formalismos ou liderados por agitadores calculis­
tas, os representantes do Terceiro Estado quebraram horrivelmente o
protocolo pondo igualmente o chapéu na cabeça. No meio da confusão,
alguns ficaram de chapéu, muitos mais voltaram a tirá -lo e o rei, ao ver
o que estava a acontecer, considerou que tinha de tirar o seu. Para
Gouverneur Morris, o agente americano, foi um momento delicioso;
para a rainha, lívida de raiva, o colapso da cerimónia não augurou nada
de bom para o futuro .
O Fiasco dos C hapéus não teria passado de uma irrelevância se os pre ­
sentes tivessem ficado hipnotizados com as palavras do rei, mas não foi
propriamente essa a sua reacção. O discurso do soberano fora de uma bre­
vidade quase superficial e uma mistura peculiar de entusiasmo e vexação .
Embora se tivesse referido ao "grande dia, tão ardentemente desejado", o
rei também fizera referências irritantes ao "exagerado desej o de inova­
ções". Se parecera falar a duas vozes, foi porque ainda não encontrara a
sua. Existia indubitavelmente um conflito de sentimentos na sua perso­
nalidade, tentada pelas aclamações do povo mas assustada com o seu sig­
nificado. Mas este conflito não era nada quando comparado com o
combate que estava a ser travado no seio do governo, principalmente
entre o optimismo esclarecido de Necker e o Guardião dos S elos, o intran­
sigente B arentin, que recusava contemplar tudo o que não fosse a forma
tradicional da separação dos Estados.
Barentin falou a seguir ao rei. Manteve a toada de concessões relu­
tantes oferecendo-se para debater a questão de uma imprensa livre, mas
fez vários avisos professorais contra as "inovações perigosa s " . Porém,
quaisquer danos que o seu discurso pudesse ter causado à possibilidade
de uma reconciliação foram mitigados pela sua total inaudibilidade .
Necker, como sempre, estava mais bem preparado para lidar com a acús­
tica impossível da Salle des Menus Plaisirs, com os seus quarenta metros
de comprimento, e ainda bem, já que o seu discurso sobre as finanças
durou três horas. Leu durante a primeira meia hora e depois passou o
299

texto ao secretário do Comité Real de Agricultura, B roussonnet, que esco­


lhera a dedo pura e simplesmente pela estridência megafónica da sua pro­
j ecção vocal. O efeito foi catastroficamente contraproducente . Hora após
hora, sem parar, os lúgubres dados financeiros de um défice de 2 8 0
milhões d e libras francesas foram guinchados para uma assembleia que
estava à espera de uma grande demonstração de retórica . Queria ouvir
Necker, o messias fiscal, e não Necker, o contabilista, e mais grave ainda
foi a impressão crescente de que o ministro considerava os deputados ali
reunidos mais como auxiliares administrativos do que como reinventares
da soberania .
Enquanto o discurso de Necker se ia arrastando, o monarca, como era
seu timbre, travava um combate perdido de antemão contra o bocej o
régio. Os deputados mexiam-se, tossiam, fungavam, espirravam e resso­
navam. Madame de La Tour Du Pin, sentada nos bancos reservados para
os espectadores nobres, sofreu as agonias do desconforto, tendo apenas
para se encostar os j oelhos dos que estavam sentados atrás dela. Germaine
de Stael, para quem a ocasião deveria ser a apoteose do papá, foi ficando
cada vez mais abatida, com os olhos - segundo uma testemunha sentada
perto - visivelmente marejados de lágrimas.
Mas apesar daquele início pouco prometedor, o governo continuava a
dispor de um enorme activo na popularidade pessoal do monarca . Nas
partes em que conseguiu parecer credível (e o espaço de manobra não era
muito ) , o seu discurso foi interrompido por aplausos leais, e não apenas
por parte das ordens privilegiadas. Pela razão paradoxal de que estavam a
ser cometidos actos de violência em seu nome, a Revolução estava às suas
ordens.
Era precisamente esta a esperança de Mirabeau, pois se bem que j á não
fosse um aristocrata, nunca seria um democrata . Mesmo na Provença, no
auge da sua popularidade, nunca fez segredo da sua fidelidade ao monar­
quismo . O que procurava, insistiu ele inúmeras vezes, era uma nova
monarquia, sustentada não nas hierarquias e nos privilégios mas na san­
ção popular. Os historiadores tendem a rotular esta postura como um pre­
texto hipócrita de Mirabeau para se autopromover, e seria inútil
pretender que em 1 789 Mirabeau não estivesse consumido pela ambição,
que não se visse como o primeiro -ministro de tal monarquia. Mas seria
igualmente inadequado considerar intrinsecamente disparatado o conceito
de monarquia popular. Afinal de contas, fora exactamente isso o que
D' Argenson tivera em mente quase meio século antes - um monarca
enérgico definindo a sua soberania contra e não em nome dos privilégios
e da aristocracia. E a verdade é que nos dois impérios bonapartistas se ins­
talou algo de semelhante a este patriotismo plebiscitário. Contudo, será
seguro afirmar que Mirabeau teria detestado o despotismo dos
Bonapartes . Animado pela visão da monarquia apadrinhada pelos whigs e
S imon Schama 1 CIDADÃOS

por Shelburne, ele acreditava que os seus melhores garantes seriam


governos originados pela legislatura e responsabilizáveis perante ela.
Todavia, era exactamente o toque britânico desta visão constitucional que
a desqualificava aos olhos dos seus concidadãos.
De facto, Mirabeau seria a personnage mais celebrada dos deputados
mas não era o único talento político . Quase todos os membros da
Sociedade dos Trinta que se costumavam reunir em casa de Adrien
Duport tinham sido eleitos, incluindo Target, os dois irmãos De Lameth e
o abade Sieyes . Lafayette fora eleito em representação da nobreza do
Auvergne e outros cidadãos-aristocratas, tais como Lally-Tollendal e
Clermont-Tonnerre, tinham-se-lhe j untado na segunda ordem. Entre o
clero, encontravam- se Talleyrand, finalmente elevado ao bispado de
Autun e que celebrara a sua primeira e única missa na catedral aquando
da sua ordenação, e o bispo de B ordéus, Champion de Cicé, mais agressi­
vamente liberal. Outras figuras que tinham dado um contributo impor­
tante para a transformação dos E stados Gerais numa assembleia nacional
encontravam-se entre os deputados do Terceiro Estado: Mounier e
Barnave do Delfinado, Rabaut Saint-Etienne de Nimes.
Além de abundantemente dotado em matéria de intelecto e eloquên­
cia, este grupo nuclear chegou a Versalhes depois de uma aprendizagem
política intensiva, primeiro nas revoltas do Verão de 1 788 e depois nas
intensas campanhas panfletárias e eleitorais do Outono e do Inverno .
Alguns dos seus membros, tais como Mounier e Mirabeau, tinham expe­
riência directa do trato com multidões enfurecidas na rua. Até o astró­
nomo e académico B ailly ( cuj a especialidade eram as luas de Júpiter) , um
homem aparentemente desligado das coisas mundanas, beneficiara de
uma educação política formidável, tendo presidido às eleições para o
Terceiro Estado de Paris. Num claro desafio ao rateio régio, os sessenta dis­
tritos parisienses tinham dado origem a um colégio de 407 eleitores - um
número muito maior do que o órgão designado - e esta assembleia, nou­
tra demonstração de autonomia, constituíra-se numa forma não oficial da
Comuna que o governo tinha expressamente ignorado. Na Câmara
Municipal, B ailly presidia a um comité que se arrogara o poder efectivo
de governação em Paris .
Nada disto significava a emergência de um consenso no seio do
Terceiro Estado quanto à questão estratégica da eventual elaboração de
uma constituição para a França renascida . Mirabeau, em particular, foi
uma força perturbadora ao reiterar gratuitamente a sua insistência num
veto real muito antes de se discutir essa problemática. Todavia, em rela­
ção à questão de ordem prática do relacionamento do Terceiro Estado
com as outras duas ordens, havia muito mais acordo. Mirabeau foi mais
útil nesta matéria, j ogando habilmente com o poder obstrutivo da inér­
cia. Nos dias que se seguiram à inauguração, os deputados acordaram
301

não verificar as suas credenciais nem dar início a nenhuma deliberação a


não ser em comum com as outras ordens. Isto garantiu um impasse, pois
cedo se tornou evidente que, não obstante a presença de uma minoria de
nobres famosos e articulados ( incluindo o duque de Orleães, que provo ­
cara a fúria do rei ao tornar- se deputado ) , a maioria dos representantes da
nobreza e do clero se negava a mudar a postura decorrente da sua con­
vocação separada.
De facto, a nobreza parece ter endurecido da linha mais fluida e mode ­
rada assumida em muitas das suas assembleias. Embora estivessem dis­
postos a abrir mão das suas isenções fiscais, o aumento da violência nos
campos fizera com que muitos nobres estivessem menos crentes na elimi­
nação das taxas senhoriais locais do que ficara registado nos seus cahiers,
pois receavam dar luz verde a um ataque generalizado à propriedade.
E eram ainda menos os que estavam dispostos a fundir a sua identidade
colectiva numa assembleia-geral. O conde d' Antraigues, por exemplo,
que fora a primeira e a mais ousada voz a identificar o Terceiro Estado
como sinónimo da Nação, tornou-se exigente em matéria de forma.
Insistiu que enquanto não fosse convocada uma assembleia constituinte -
que poderia fazer o que bem entendesse -, os deputados estavam neces­
sariamente obrigados pelas convenções dos Estados de 1 6 1 4. Esta altera­
ção da postura colectiva da nobreza terá talvez sido obra dos poderes
enfeitiçantes da própria Versalhes. No meio da euforia patriótica das
assembleias eleitorais, com os oradores a ultrapassarem-se mutuamente
na magnanimidade das suas opiniões, um número maior de nobres san­
cionara sem reticências a visão de uma França liberalizada. Mas depois de
reunidos no ambiente altamente ritualizado e pseudocavalheiresco do
palácio-cidade, caíram sob o feitiço da sua própria história reinventada.
Isto verificou-se especialmente com os grandes, os que tinham mais san­
gue azul, amiúde eleitos por mera deferência para com os seus congestio­
nados brasões. A sua reacção aos "j ovens coronéis" do grupo de Orleães,
que os exortavam a ser "bons patriotas e cidadãos" foi um cerrar fileiras
contra a moda metropolitana. Quem representava o sangue e o solo da
França eram eles e não quaisquer peralvilhos afectados do Palais-Royal.
Estes sentimentos de fraternidade cavalheiresca - o cidadão na sua
versão gótica - afectaram inclusivamente os paladinos da modernização,
entre os quais Ferrieres. Apesar de indiferente em relação à questão de
votar por cabeça ou por ordem, ele confessou à mulher que não era capaz
de abandonar os seus irmãos. Até Lafayette se sentiu tolhido pelos caca ­
rej os que chegavam de Mount Vernon,4 de onde o papá Washington
observava desaprovadoramente as mornices dos impetuosos e inconstan­
tes Franceses.

' A plantação de George Washington. (N. do T.)


S imon Schama 1 CIDADÃOS

Com o clero, a situação era completamente diferente e foi isto que, no


fim, quebrou o impasse. Enquanto os pequenos eleitorados produziam
amiúde resultados desproporcionalmente arcaicos na segunda ordem, na
primeira acontecia o contrário. Mais do que em qualquer outro grupo, era
na Igreja que a separação entre pobres e ricos era exposta de forma mais
amarga . Não estava em j ogo nenhum princípio de justiça social ou de
direitos naturais abstractamente definido, mas sim o destino da própria
missão cristã. O cliché iluminista de uma França em processo de seculari­
zação ignora por completo as raízes profundas das crenças cristãs em gran­
des áreas do país ( de todos os fracassos da Revolução Francesa, nenhum
seria tão inevitável ou abissal como a campanha de " descristianização " ) .
A Igreja não estava apenas a marcar passo o u a funcionar d e forma defi ­
ciente; estava a passar por um dos seus sobressaltos periódicos nos quais
as pretensões do clero pastoral à corporização do verdadeiro espírito do
evangelho primitivo - humilde, sem posses, ensinando os Evangelhos
através de obras caritativas e educativas - era contestada pela realidade
mundana dos grandes negócios episcopais.
Na sua faceta mais extrema, a divisão era espantosa. Os bispos mais
ricos, tais como o de Estrasburgo, tinham rendimentos de cinquenta mil
libras francesas por ano. Os mais pobres - vigários com rendimentos fixos
e sem propriedades nem receitas complementares -, tais como B réauté, de
Rouen, mal subsistiam com trezentas, enquanto o estipêndio normal dos
curés congrués era de apenas setecentas. S egundo o cura de S aint - Sulpice,
em N evers, depois de pagar as despesas pastorais e a comida e o vestuário
do seu único serviçal, ficava com cinco soldos por dia - um quarto da
jorna de um trabalhador não especializado em Paris. " Quando um padre
tem a felicidade, depois de vinte anos de trabalho e de tanta miséria, de
conseguir quatrocentas ou quinhentas libras francesas para viver, pode
considerar que fez fortuna e, ao tomar posse da sua igreja, pode marcar
no cemitério, enquanto primeiro pobre da paróquia, o lugar da sua sepul­
tura", escreveu o abade Cassier.
Nem todos os clérigos rurais estavam tão desesperados. Pelo menos
metade - os curés bénéficiés - complementavam os seus rendimentos com
pequenas propriedades geradoras de receitas nas quais trabalhavam ou
que arrendavam. Mas não era isto que deixava de fazer dos curas rurais
presentes nos Estados Gerais os representantes mais autênticos da maio­
ria dos Franceses. Estavam certamente muito mais próximos do povo tão
livremente invocado pelo Terceiro Estado do que os advogados, os fun­
cionários e os profissionais que o constituíam. E também podiam falar
pelos seus constituintes noutro aspecto importante, dado que a grande
maioria ( talvez 70 % ) dos quarenta mil clérigos rurais era nativa do seu
distrito ou região paroquiais, o que contrastava visivelmente com os clãs
aristocráticos que dividiam os grandes bispados entre si e enviavam os
303

parentes mais novos para esta ou para aquela diocese tendo apenas pre ­
sente a mais primitiva das relações de propriedade .
Por exemplo, Talleyrand esperara impacientemente desde 1 786 que
uma das muitas apoplexias do bispo de B ourges o levasse desta para
melhor para poder mobilizar os seus amigos e parentes numa campanha
de sucessão. Contudo, o velhote dera mostras de uma resiliência irritante
e quando finalmente sucumbira o patrono de Talleyrand, Calonne, fora
substituído pelo antipático Brienne . Talleyrand viu -se obrigado a esperar
até que outro falecimento atempado - em Lyon - resultasse na vagatura
desejada. O bispo de Autun mudou -se para Lyon e, no dia 1 6 de Janeiro
de 1 789, Talleyrand deu finalmente consigo de j oelhos, com toda a sole­
nidade de que conseguiu dar mostras, a j urar obedecer ao sucessor apos­
tólico de São Pedro e "preservar, defender, aumentar e promover a
autoridade, honras, privilégios e direitos da Santa Igrej a " . No dia seguinte,
tomou posse do pálio de Autun, que se dizia ser feito da lã de ovelhas
abençoadas que tinham pastado nos campos dos primeiros cristãos da
Antiguidade e, mais importante ainda, das vinte e duas mil libras france­
sas dos seus rendimentos episcopais . Juntamente com o seu antigo bene­
fício de Saint-Rémy e de outro mais recente em Poitiers, ficou com a bela
maquia de mais de cinquenta mil libras francesas por ano. Nessa noite, o
defensor de São Pedro, como era seu timbre, j antou no Louvre com
Adelaide de Flahaut, sua amante .
Esta imensa transferência de propriedades e poder foi concretizada
sem Talleyrand se aproximar sequer de Autun. Só no dia 1 2 de Março é
que Talleyrand se dignou a fazer a sua entrada oficial na catedral, onde
jurou ( mais uma vez ) fidelidade à sua "noiva de Autun" . Aproximava -se
a Semana S anta, mas o aparecimento de Talleyrand foi ditado pelo calen­
dário político e não pelo religioso, pois ele queria ser eleito para os Estados
Gerais pelo clero de Autun, tendo preparado para o efeito o cahier do capí­
tulo e da diocese. É um documento típico da imagem que Talleyrand tinha
da França : racional, liberal e constitucionalista, sem a mínima preocupa­
ção com o cuidado das almas. Para garantir a sua eleição, no dia 2 de
Abril, Talleyrand deu -se ao trabalho de fingir que era um bom bispo .
Exortou os seminaristas à oração, tentou ( sem sucesso ) celebrar a missa
sem confundir as suas diferentes partes e, para cúmulo do descaramento,
pregou no colégio oratoriano uma homilia intitulada "A Influência da
Moralidad� nos Líderes dos Povos". Dez dias depois da sua eleição para os
Estados Gerais, no dia 1 O de Abril, menos de um mês depois da sua che ­
gada a Autun, desapareceu d e vez. Era domingo d e Páscoa e ele tinha de
evitar a todo o custo dizer a missa.
É difícil imaginar uma distância maior entre o conceito de Igrej a de
Talleyrand e o dos clérigos rurais que compunham quase dois terços da
ordem do clero em Versalhes. Seria errado considerar o bispo de Autun
S imon Schama 1 CIDADÃOS

completamente amoral. Tal como provara enquanto agente geral do clero,


ele entendia que tinha uma compreensão "moderna" da Igreja. Os clérigos
eram os funcionários espirituais do Estado, investidos de responsabilidades
educativas e sociais e fornecedores da orientação moral que satisfaria os
anseios populares de fé sem pretensões de adjudicarem a lei ou de parti­
ciparem na governação. Era uma visão que estava muito aquém do seu
juramento episcopal mas que seria institucionalizada pelo Directório, pelo
Estado bonapartista e durante uma grande parte do século seguinte.
Mas estava muito longe do evangelho social do Vigário Saboiano de
Rousseau, no qual as almas simples abjuravam a corrupção da proprie­
dade e da urbanidade para melhor guiarem os filhos da natureza - seus
irmãos - para uma existência moralmente pura. Na história religiosa da
França, eram muitas as tendências que conduziam a esta piedade auste ­
ramente definida : o j ansenismo, o "richerismo" e uma forma de presbite­
rianismo que às vezes era explicitamente protestante, outras vezes apenas
implicitamente . Mas esta piedade ficou também embebida em muito do
que os irados cahiers dos curas urbanos e rurais tinham para dizer. Os seus
inimigos eram a riqueza monástica ou episcopal e a aristocracia laica ou
clerical. Tocaram a rebate pelos pobres e pelos famélicos, pelos endivida ­
dos e pelos mendigos que alimentavam e abrigavam nas piores circuns­
tâncias.
A força que lhes deu o número nas assembleias eleitorais e o encaixe
do seu evangelho na retórica do Terceiro Estado fez com que os curas se
atrevessem a confrontar directamente os Senhores da Igrej a . " Quem sois
vós, Monsieurs les Grands Vicaires?", perguntou o cura de Charly para dei­
tar as suas pretensões por terra . "Nada . Mas eu sou um cura e o meu título
nunca será apagado. " Em B éziers, o bispo de Agde sentiu-se intimidado
pela multidão de 2 6 0 curas numa assembleia com 3 1 O participantes.
Foram muitos os casos em que os bispos ou os seus nomeados nem sequer
conseguiram ser eleitos. Alguns que foram não esconderam o seu choque
por terem de integrar uma delegação com a ralé sacra. "Não é sem repug­
nância que aceito esta incumbência ", foi o comentário gracioso do bispo
de Luçon ao ser eleito na companhia de cinco curas.
Contrastando com as vestes púrpuras e escarlates dos bispos e arcebis­
pos, os curas usaram o seu preto com o mesmo ar de desafio dos deputa­
dos do Terceiro E stado. Não causa surpresa que muitos tenham
comungado da posição do Terceiro E stado, dividindo a sua ordt'Jll ao meio
na matéria crucial da verificação das credenciais.
Desde a sessão inaugural, no dia 5 de Maio, os trabalhos dos Estados
Gerais estiveram paralisados durante um mês por causa da verificação ( tal
como Mirabeau e os seus colegas queriam que acontecesse ) . Terminadas as
cerimónias, os deputados do Terceiro Estado podiam ter-se sentado onde
quisessem na grande Salle des Menus Plaisirs, mas tiveram o cuidado de
305

deixar livres os bancos das outras ordens para o dia em que elas regres­
sassem para deliberar em conj unto . No dia 1 8, apelaram formalmente à
verificação conj unta das credenciais, argumentando que as três ordens
não passavam de divisões arbitrárias de um órgão, pelo que deveriam pro­
ceder em conformidade .
Ferrieres estava entediado e exasperado. " O s Estados não fazem nada ",
escreveu ele a Henriette no dia 1 5 . "Reunimo -nos todos os dias às nove
da manhã e vamo -nos embora às quatro da tarde, depois de passarmos o
tempo com mexeriquices inúteis . " Tinha chegado a Versalhes com cre ­
denciais de liberal mas quanto mais tempo passava mais impaciente ficava
com as "intrigas" do Terceiro Estado, que culpava pelo impasse. Até jan­
tou com Artois, com os Polignacs e com Vaudreuil, que o deslumbrou com
o seu encanto urbano. "O conde [Vaudreuil] e eu ficámos amigos ", chil­
reou ele excitado a Henriette . Diane de Polignac fez-lhe um elogio e ele
lançou - se a seus pés, pondo -se eternamente às suas ordens. Ao comentar
a liberdade de conversação que existia em casa dos seus anfitriãos, cha­
mou -lhe "l 'Hôtel de la Liberté" .
Mirabeau tinha uma noção completamente diferente da Liberté.
Enquanto Ferrieres se retirava da opinião pública, Mirabeau estava a
moldá-la. No dia 7 de Maio, começou a publicar o Journal des États
Généraux, concebido para dar conta dos trabalhos e escrever editoriais
sobre o seu significado. O cabeçalho tinha a legenda Novus Rerum Nascitur
Ordo Nasceu Uma Nova Ordem das Coisas. O governo encerrou -o de
-

imediato, o que garantiu um público enorme ao seu sucessor, Lettres du


Comte Mirabeau à Ses Commettants. A campanha de desafio ao governo com
recurso à autopromoção não foi adoptada por acaso . A estratégia de
Mirabeau parece ter assentado na possibilidade de substituir Necker à
frente de um governo que mereceria a confiança do rei e da assembleia .
Durante algumas semanas, todos os seus comentários públicos e privados
sobre Necker foram devastadores. C ontudo, na última semana de Maio, o
seu amigo Malouet ex- intendant de Saint-Domingue e único alto fun­
-

cionário da Coroa no Terceiro Estado - descobriu que, não obstante o cho­


que de personalidades, as posições dos dois homens sobre a assembleia
não era muito diferente . Ambos queriam a verificação em comum, ambos
queriam criar uma monarquia popular. Mas foi sol de pouca dura.
Mirabeau visitou Necker no seu gabinete. "Pois bem, Monsieur", disse o
ministro sem levantar os olhos dos papéis, "Monsieur Malouet diz-me que
tendes algumas propostas para me apresentar. Quais são?" "A minha pro­
posta é desej ar-vos um bom dia", retorquiu Mirabeau, que deu meia-volta
e se foi embora assomado .
As ordens enviaram "comissários" para tentar negociar mas eles só con­
seguiram confirmar a polarização das segunda e terceira ordens. No dia 3
de Junho, os deputados de Paris tomaram finalmente os seus lugares, com
S imon Schama 1 CIDADÃOS

Sieyes no fim, reforçando de forma considerável as forças radicais da


assembleia, que agora se referiam habitualmente a si próprias como
" C omuns" . Em particular, esta radicalização significou sabotar um com­
promisso engendrado com grande dificuldade por Necker numa comissão
de reconciliação composta por representantes das três câmaras. No dia 1 0
de Junho, Mirabeau interrompeu a leitura d o acordo para permitir que
Sieyes apresentasse uma moção: recusa de todo e qualquer compromisso
por causa da intransigência dos nobres e envio de um ultimato final às
outras ordens antes de proceder à chamada, o que obrigaria a uma admis­
são do impasse ou a uma capitulação. Em qualquer dos casos, foi um acto
de autoritarismo revolucionário - mas não o primeiro, tendo em conta a
longa lista de actos semelhantes iniciada um ano antes, em Grenoble.
Num estudo perspicaz sobre o papel de Necker nos acontecimentos
de 1 789, R. D. Harris argumenta que foi esta pretensão essencialmente
irrazoável de ascendência do Terceiro Estado sobre as outras duas ordens
que condenou todas as tentativas de compromisso e empurrou a França
para uma revolução e não para uma mudança pacífica. Harris vê no suce­
dido o exercício ominoso do domínio da maioria sobre minorias despro ­
tegidas. A alternativa era uma forma de governo dispersa ou algo como o
modelo britânico, com a aristocracia preservada numa câmara alta e os
"Comuns" constituindo um órgão baixo e representativo.
Mas isto é suspirar por uma alternativa que j á se tinha tornado obso ­
leta. Este tipo de alternativa era teoricamente concebível para Necker
( cuj a versão genebrina de uma legislatura bicameral ruíra repetidamente )
ou para moderados como Malouet, mas ignora totalmente a história das
eleições, a retórica das assembleias eleitorais e as expectativas materiais,
assentes numa transformação política muito mais ambiciosa. Já não se
tratava apenas de uma questão de afinação de uma monarquia moderni­
zadora, mas de uma espécie de renascimento colectivo . Para muitos depu­
tados do Terceiro E stado, entre os quais B arnave, de Grenoble, e
Robespierre, de Arras, a cidadania era, tal como insistira Rousseau, indi­
visível. Era a expressão de uma reciprocidade sublime entre o indivíduo e
a Vontade Geral: na verdade, era a única maneira de se reconciliarem e
unirem. Era exactamente o tipo de "apelo estranho e inexplicável. . . aos
direitos ideais e visionários da natureza" que Arthur Young considerara
tão objectáveis, mas era a voz autêntica da Revolução.
E não se chegara àquele momento - para melhor ou para pior - em
resultado de sábias deliberações sobre um governo funcional à maneira
da Convenção C onstitucional americana. D esej ar que tenha acontecido
assim é interpretar erroneamente o processo através do qual se fazia
política em França - um processo que era sempre teatral e histriónico .
Terá sido deplorável, como as ovações que irrompiam do público
durante os trabalhos da assembleia, às quais Arthur Young nunca se
307

conseguiu acostumar e que considerava "grosseiramente indecentes",


mas só através desses gestos cénicos e da realidade aumentada do
Romantismo, com as suas quedas emocionais da euforia para o terror,
podiam os advogados da mudança mobilizar o seu público . O obj ectivo
não era garantir debates bem raciocinados. "O povo de Paris", observou
Etienne Dumont, "estava cheio de gás inflamável, como um balão . "
Paradoxalmente, enquanto arqui-manipulador d o momento carismá­
tico, Mirabeau ficou ocasionalmente embaraçado por toda aquela esponta­
neidade pura e dura, "uma cena de colegiais fugidos às vergastadas e loucos
de alegria porque lhes ofereceram um dia extra de férias". Para tentar impor
alguma ordem aos trabalhos, Mirabeau encorajou o seu amigo genebrino,
Dumont, a traduzir o relato de Romilly sobre as regras parlamentares britâ­
nicas, mas esta iniciativa valeu-lhe uma tempestade de indignação por ser
escravo de costumes antigos e ainda por cima estrangeiros.
Todas estas considerações foram postas de lado a 13 de Junho. Nesse
dia, três curas responderam à chamada iniciada por Sieyes . Dado que a
primeira ordem votara pela verificação separada pela margem diminuta
de 1 3 3 votos a favor e 1 1 4 contra, o momento foi decisivo . Eram os três
do Poitou - a província de Ferrieres - e o seu líder, Jallet, curé de Cherigny,
tornara-se conhecido pela sua devoção e patriotismo. Filho do jardineiro
de uma propriedade senhorial ( mais botânica virtuosa ! ) era desde há
trinta anos um modelo de humildade santa, cuidando dos doentes e dos
necessitados enquanto subsistia em condições de extrema pobreza . Era
tão pobre que não conseguira pagar a viagem para Versalhes, que fora, a
par das suas despesas correntes, custeada através de uma subscrição.
Quando entrou na Salle des Menus Plaisirs e anunciou a sua presença, foi
saudado por uma estrondosa aclamação, abraçado inúmeras vezes pelos
colegas e levado em ombros em triunfo até uma cadeira.
No dia 1 4, com a chamada a decorrer inexoravelmente, apresentaram­
-se mais padres, oriundos da Bretanha e da Lorena, incluindo Grégoire,
curé de Emberménil e paladino dos direitos dos Judeus. A 1 9, eram já mais
de cem os que se tinham juntado à assembleia, que entretanto adaptara
um novo nome . O debate sobre a questão do título, iniciado dois dias
antes, depressa revelara diferentes personalidades políticas . Sieyes, que
ainda era a voz mais radical, insistira que representando a assembleia
" 96 % " da nação, não deveria adiar por mais tempo "a obra comum de res­
tauração nacional" . Mas o título com que se saiu para tal órgão não era
matéria -prima para manifestos inspiradores: "Representantes Conhecidos
e Verificáveis" . Mounier fora ainda mais cauteloso, propondo "a parte
maior da representação reunida na ausência da parte menor". Mirabeau,
tipicamente, tentara atalhar por estas nomenclaturas abismalmente desa­
jeitadas sugerindo "Representantes do Povo", uma proposta criticada
pelas suas conotações excessivamente plebeias! Antes da conclusão dos
S imon S chama 1 CIDADÃOS

trabalhos, às dez da noite, a assembleia decidiu, por larga maioria, cha ­


mar- se "Assembleia Nacional", e q u e - d e acordo com outra moção de
Mirabeau - todos os impostos em vigor seriam declarados nulos e inváli­
dos a menos que autorizados pela dita assembleia.
Foi um momento de autodefinição. Noventa deputados votaram con­
tra uma maioria de quatrocentos e noventa mas as suas reticências face a
este acto de autoritarismo foram submersas pelas paixões patrióticas.
Arthur Young, por norma todo ele sobriedade, sentiu como os participan­
tes a descarga de adrenalina política .

O espectáculo dos representantes de vinte e cinco milhões de pessoas a


emergirem do s males de duzentos anos de poder arbitrário e a erguerem­
-se sob a bênção de uma constituição mais livre, reunidos à porta aberta,
sob os olhares do público, tinha forçosamente de converter em sentimen ­
t os animados todas as centelhas latentes e todas as emoções de um liberal,
de banir quaisquer ideias que pudessem intrometer-se de eles serem um
povo frequentemente hostil ao meu país, e de levar a reflectir com prazer
na ideia gloriosa da felicidade para uma grande nação, da felicidade para
milhões de pessoas que ainda não tinham nascido .

III TABLEAUX VIVANTS, JUNHO DE 1 789

No dia 4 de Junho, o delfim morreu. Tinha sete anos e foi o segundo


filho dos monarcas a morrer na infância . Aquando do seu nascimento, em
1 78 1 , os fogos-de-artifício tinham iluminado os céus de Paris e a Câmara
Municipal fora palco de um banquete espectacular para privilegiados e
comuns . Quando morreu, a França mal reparou e a Câmara Municipal era
sede daquilo que, em termos práticos, era um governo municipal revolu ­
cionário. Numa altura em que o preço do pão de quatro quilos batia recor­
des, terão sido destinadas para o funeral do delfim 600 000 libras francesas.
Ferrieres, antes de se deslocar a Meudon' para aspergir o cadáver com água
benta, escreveu secamente à mulher: " C omo vedes, ma bonne amie, o nas­
cimento e a morte dos príncipes não são objecto de economia" .
Todos o s testemunhos dão conta d e que s e tratava d e u m garoto inte­
ligente e cativante, e não há dúvida de que era o menino dos olhos da
mãe e do pai. Mas nunca gozara de boa saúde . Tinha sido constatado
recentemente que a tuberculose lhe destruíra o pulmão direito .
A doença fora tão prolongada e devastadora que o emaciara ao ponto de
as costelas e a pélvis lhe saírem do tronco em ângulos irregulares .

' Palácio localizado n a época a cerca d e quatro quilómetros d e Paris, onde o delfim jazeu
em câmara a rdente . (N. do T. )
309

Quando finalmente morreu, os pais ficaram de rastos - e ainda mais por­


que a crise política mal lhes permitiu o luto pessoal. De qualquer dos
modos, o ânimo do monarca fora -se abaixo com o colapso da comissão de
reconciliação, do qual tanto esperara e para a qual escrevera uma carta de
recomendação. A perda do filho e herdeiro pareceu ser um golpe muito
pior. O rei retirou-se dos assuntos públicos e decorrida a semana formal
de câmara ardente trocou Versalhes pela sua residência rural de Marly-le­
-Roy, onde ficou prostrado pela mágoa. Uma delegação do Terceiro Estado
quis apresentar-lhe condolências mas o pere de la patrie apenas queria ser
durante algum tempo um simples pere de famille em luto . Quando lhe dis­
seram que a delegação insistia em ser recebida, ele retorquiu: "Não há
nenhum pai entre eles?"
Recuperou com o apoio dos seus familiares mais próximos. Mas não foi
um apoio desinteressado. Chegaram a Marly as notícias de que o Terceiro
Estado se arvorara em Assembleia Nacional e da sua declaração de que os
impostos em vigor eram ilegais. Ambas as iniciativas eram desafios directos
ao soberano e Artois e a rainha consideraram, com algum realismo, que se
a monarquia estava interessada em retomar o controlo do seu destino teria
de o fazer imediatamente. Partindo do princípio de que haveria que tomar
uma posição firme, existiam duas alternativas possíveis: uma intervenção
militar directa, para a qual a Coroa ainda não dispunha de forças suficien­
tes, ou uma asserção da autoridade legal do rei, combinada com a promessa
de implementar as reformas que fossem acordadas. Mas mesmo nesta
última opção, Necker, que tinha bem presente o destino das reformas de
Brienne, só via a possibilidade de um desastre. Porém, foi bruscamente
posto de lado por Artois, que o culpou pela situação aflitiva da Coroa e que
não escondeu a sua determinação de se ver livre dele. Ao chegar à câmara
do conselho para a reunião crucial de 1 9 de Junho, Artois pôs-se a gritar
que Necker, enquanto estrangeiro e arrivista, não tinha o direito de estar ali.
Apoiado por três dos seus colegas, Montmorin, S aint-Priest e La
Luzerne, Necker apresentou uma lista de propostas de reforma que
acompanhavam fielmente o consenso de uma grande parte dos cahiers.
Seria dado relevo aos gestos de " dever patriótico " como a abolição das
isenções fiscais dos privilegiados. Em relação à questão que se tornara a
mais contenciosa, o plano de Necker aproximava -se da solução "mista "
para as votações, contando presumivelmente afastar a nobreza moderada
da minoria nobre reaccionária. Os deputados seriam autorizados a votar
em comum as matérias "nacionais ", tais como a periodicidade dos
Estados Gerais, mas não as questões próprias de cada ordem. Necker, que
trabalhara neste programa em finais de Maio, quisera que o rei desse a
conhecer a sua substância numa grandiosa " declaração" a fim de anteci­
par o radicalismo dos líderes do Terceiro Estado . Contudo, a oportunidade
passara e o seu compromisso estava condenado a não agradar a ninguém.
S imon S chama 1 CIDADÃOS

A preservação de uma sociedade de ordens, implícita nas suas disposições,


era totalmente irreconciliável com a Assembleia Nacional de cidadãos
comuns criada no dia 1 7 . O plano de Necker seria inevitavelmente ina­
ceitável para o novo órgão, que ainda por cima estava a ser diariamente
reforçado por um número crescente de clérigos.
E era demasiado radical para os reaccionários da corte . Sem fazerem
segredo do ódio que sentiam pelo homem que culpavam pelas dificulda ­
des da C oroa, Artois e a rainha não se pouparam a esforços para persua­
direm o rei da necessidade do afastamento do ministro. Quando o
monarca parecia prestes a aceitar o programa de Necker, a rainha inter­
rompeu o conselho para ter um conversa com o marido . Regressado ao
conselho, o soberano, para consternação de Necker, recuou e insistiu que
o plano teria de ser apresentado a um conselho alargado para apreciação.
Ficaram apenas acordados os elementos minazes do plano, o que recor­
dou vivamente a Necker o fim das reformas de B rienne . O rei confronta ­
ria os Estados Gerais numa grande séance royale, na qual mostraria a sua
benevolência paternal com as reformas e a sua maj estade augusta com a
anulação das usurpações de 1 7 de Junho .
Para um evento tão momentoso, a máquina cerimonial de Versalhes
teve de ser posta de novo em marcha. Foi preciso construir uma tribuna
e mudar a disposição dos bancos - preparados para o Terceiro Estado -
para que pudessem acomodar toda a assembleia. C ontudo, devido aos
acontecimentos de 1 7 de Junho, a Salle des Menus Plaisirs já não era uma
propriedade real para ser configurada ao bel-prazer do soberano: tornara ­
-se efectivamente o primeiro território reclamado pela Nação.
Por conseguinte, quando a Nação se viu, sem aviso, impedida de ace­
der à sua casa pelos trabalhadores que preparavam o salão para a séance
royale, partiu do princípio que se tratava de um acto intencional e não
inadvertido. Afinal, a entrada estava barrada por guardas armados e havia
cartazes anunciando sumariamente a realização da séance royale. A carta
do mestre-de-cerimónias para B ailly chegara em cima da hora e sem indi­
cações de um local de reunião alternativo . Parecia o primeiro passo de
uma dissolução da Assembleia . Os deputados ficaram na rua, à chuva, e o
desconsolo converteu-se em fúria . O bom Dr. Guillotin - o herói da cam­
panha de petições de Dezembro, em Paris - lembrou -se de uma sala de
jogo da péla que pertencia a um amigo seu e que ficava na Rue du Vieux
Versailles, e os seiscentos representantes, encharcados mas entusiasma­
dos, puseram-se a caminho, seguidos de uma multidão cada vez maior.
Apesar de lá se j ogar pé la, 6 a sala, vazia e cheia de ecos, era o oposto
exacto do palácio profusamente decorado de onde tinham vindo. Tinham

' Jogo antigo, considerado como precursor do ténis, em que se batia uma bola com a mão
ou com uma raqueta. ( N. da R. )
311

estado no domínio da monarquia, num lugar que lhes fora "empres­


tado " . Ali estavam, como Rousseau pretendia, desnudados até à cidada ­
nia e à fraternidade elementares . Apenas existiam os seus corpos, e as
suas vozes ricocheteavam dos tectos como as bolas . Foi requisitada ao
alfaiate da porta ao lado uma simples mesa de pinho para secretária do
presidente, B ailly. Os espectadores encheram as galerias inferiores e
enfiaram as cabeças pelas j anelas. Anunciava -se claramente um espectá ­
culo; mas de que tipo?
Sieyes declarou que os deputados deviam mudar- se para Paris e pôr
fim, de uma vez por todas, à charada de Versalhes. Mas foi Mounier, que
não precisava de lições sobre improvisação da autoridade (e que queria
evitar as propostas mais radicais ) quem apresentou uma alternativa .
" Feridos nos seus direitos e na sua dignidade ", proclamou ele, os mem­
bros da Assembleia tinham sido avisados das tentativas de empurrar o
rei para um rumo desastroso. Contra a ameaça de dissolução, deveriam
fazer um j uramento "a Deus e à Patrie de não nos separarmos até ela­
borarmos uma C onstituição sólida e equitativa, como nos pediram os
nossos constituintes " . Foi um gesto absolutamente genial, pois libertou
a Assembleia das amarras de um espaço específico . Até àquele
momento, a hierarquia das instituições soberanas de França fora defi­
nida pelo espaço que lhes era dado ocupar - palácios de j u stiça, salas de
concelho, tribunais -, mas a moção de Mounier lançou a nave do E stado
num mar de abstracções. A Assembleia Nacional existiria onde quer que
eles se reunissem.
Que tipo de linguagem corporal estaria à altura da grandiloquência do
momento? Com a sensação de terem finalmente construído uma história
digna dos Romanos, juntaram-se na adopção do gesto dado aos Horácios
por Jacques-Louis David e que acreditavam ser a profissão de patriotas már­
tires. Para garantir a sua proeminência presidencial, Bailly subiu para cima
da mesa do alfaiate, pôs uma mão no coração - o gesto da sinceridade rous­
seauniana por excelência - e ergueu a outra em comando. Com o braço
direito esticado, seiscentos deputados tornaram-se novos Romanos,
ecoando o juramento dos Horácios numa versão polida por Barnave.
Apenas um declinou: Martin d' Auch, de Castelnaudary, retratado no dese­
nho de David sentado, com ar carrancudo e com as mãos firmemente cru­
zadas no peito . Arthur Young reconheceu de imediato a natureza
revolucionária do acto. Foi "a assunção de toda a autoridade no Reino. De
uma penada, converteram-se no Parlamento Longo7 de Carlos I".

1 Nome d o parlamento inglês convocado p o r Carlos I em Novembro d e 1 640, assim cha­

mado porque um acto parlamentar estipulou que só poderia ser dissolvido com o assenti­
mento dos seus membros, que apenas chegaram a acordo nesta matéria em 1 648, depois da
guerra civil. ( N. do T. )
S imon S chama 1 CIDADÃOS

No dia seguinte, reuniu -se em Versalhes o conselho alargado, que


adiou por um dia a séance royale - para 23 de forma a haver mais tempo
-

para debate (e também, segundo os receios de alguns, para um reforço


militar) . O efeito do Juramento da Sala de Jogo da Péla fora agravar ainda
mais a hostilidade dos irmãos do rei contra Necker. Artois, em particular,
insultou-o e não escondeu a sua determinação de se ver livre dele . O dia
seguinte foi pior. Não obstante o apoio dos outros ministros, os príncipes
estavam decididos a rej eitar toda e qualquer diminuição da jurisdição
separada das ordens, fosse para que assunto fosse . Nesta lógica, não havia
nenhuma matéria que pudesse ser declarada "nacional" e considerada pela
assembleia como um todo. Quaisquer concessões por parte das ordens pri­
vilegiadas em relação às suas isenções fiscais e afins seriam pura e sim­
plesmente oferecidas por elas e não um tema de legislação geral. Todas
estas posições seriam sustentadas em nome da inviolabilidade da "consti ­
tuição francesa " .
N o seu repúdio dos propósitos comuns d a Nação, foi uma reacção
espantosa que regrediu para além dos programas reformistas da década de
80 do século XVIII e para além de Turgot, para uma espécie de França fan -
tástica baseada na ordem clássica e na obediência hierárquica, uma França
que nunca tinha verdadeiramente existido, excepto no idílio absolutista
da Sala dos Espelhos, à luz dos candelabros de prata com metro e meio de
altura do Rei Sol.
Iria Luís XVI tentar transformar- se em Luís XIV? Antes da última reu -
nião do conselho, no dia 22 de Junho, o rei pedira a opinião de
Montmorin e Saint-Priest, os dois ministros que apoiavam Necker. Ambos
lhe disseram não terem dúvidas nenhumas de que aquela posição de con­
fronto nunca mereceria aceitação. Teria de ser imposta . Mas não havia
dinheiro no Tesouro para pagar quem a impusesse e além do mais, disse
Montmorin, uma política reaccionária garantiria que os Estados Gerais
não aprovariam mais nenhuma receita . Qual era a alternativa? Saint­
-Priest tentou fazer com que o rei visse que, por muito infelizes que tives­
sem sido as mudanças não autorizadas, a sua decisão deveria reger-se
"pelo peso das circunstâncias presente s " . Sem exagerar a situação, Saint­
-Priest escreveu que "A nave do Estado vê-se ameaçada de naufrágio", e
observou acertadamente que, em termos históricos, a constituição fran -
cesa nunca fora imutável. Era necessário aceitar a mudança quando as cir­
cunstâncias assim o exigiam, dado que "nada há de novo debaixo do Sol"ª
- uma infeliz escolha de lugar-comum, dado que o reinado de Luís XVI se
tinha iniciado com o emblema de um novo Sol a erguer-se sobre a França .
De nada serviu . Três conselheiros - B arentin, La Galaiziere e Vidéaud
de La Tour, que escreveu um discurso alternativo para o rei - apoiaram a

' Referência B íblica - Ecl 1 , 1 0 . ( N. da R. )


3 13

linha dura de Artois e Provença. O rei substituiu o plano de Necker pelo


deles e preparou-se para o inevitável choque de vontades do dia seguinte .
Apesar de ser uma séance royale e não um lit de justice, a ocasião teve
o ambiente de uma afirmação tradicional da vontade régia . O salão foi
cercado de soldados. Pela última vez, o Terceiro Estado foi gratuitamente
humilhado ao ser obrigado a entrar por uma porta lateral com as duas
outras ordens já sentadas, e viu-se separado dos deputados do clero,
incluindo os liberais arcebispos de B ordéus e Vienne, que tinham entre ­
tanto aderido à Assembleia. Necker não estava presente para ouvir a der­
rota formal de todas as suas tentativas de conciliação . Quando o rei falou,
fê -lo com um nervosismo perceptível que não se vira na sessão inaugural,
a 5 de Maio . Segundo as suas palavras, ele era "o pai comum de todos os
meus súbditos " e era seu dever pôr fim às infelizes divisões que tinham
impedido o funcionamento dos Estados Gerais. De seguida, foram lidos
em seu nome quinze artigos que deixaram bem patente a sua intenção de
preservar as três ordens e anular os procedimentos "ilegais" do dia 1 7 e os
limites "anticonstitucionais" colocados aos deputados pelos mandatos dos
seus constituintes . Seguiu -se outro conj unto de observações pessoais pela
voz do monarca, incluindo o comentário de auto - satisfação: "Posso afir­
mar, sem ilusões, que nunca um Rei fez tanto por uma nação . "
A pílula era amarga . A s trinta e cinco propostas d e reforma que se
seguiram destinavam-se a adoçá-la, mas a camada de açúcar que as cobria
era finíssima. O primeiro ponto declarava axiomaticamente que não
poderiam ser aplicados impostos sem o assentimento dos representantes
do povo, ao mesmo tempo que se fazia tábua rasa da representação pro ­
priamente dita . Havia outras reservas semelhantes dispersas pelo texto .
A liberdade de imprensa era garantida desde que não prej udicasse a reli­
gião, a moral ou a "honra dos cidadãos" - manter-se-ia praticamente o sta­
tus quo. As lettres de cachet eram abolidas, excepto em casos de sedição ou
delinquência familiar. (Mirabeau deve ter- se rido ironicamente . ) As isen­
ções fiscais poderiam acabar mas só se os privilegiados concordassem, e
todas as taxas e direitos senhoriais seriam preservados e protegidos como
uma forma inviolável de propriedade .
No fim, o rei fez uma admoestação. Se a assembleia o "abandonasse"
nos seus esforços, ele ver- se-ia forçado a "avançar sozinho para bem do
meu povo, e considerar-me-ei o seu único representante verdadeiro" . Por
conseguinte, caso fosse necessário e com a maior relutância, converter- se­
-ia num Déspota Esclarecido . Por agora, "ordeno-vos, senhores, parti, e
reuni amanhã nas respectivas câmaras para retomar as vossas sessões " .
Não foi o que aconteceu . N o dia 2 2 , enquanto o plano d e Necker era
sabotado no conselho real, a Assembleia Nacional reunira-se, reforçada
com mais de 1 5 0 clérigos e um grupo de 4 7 nobres que tinham feito saber
a sua intenção inequívoca de se juntarem aos seus concidadãos. Numa
S imon Schama 1 CIDADÃOS

demonstração de petulância infantil, Artois alugara a sala de j ogo da péla


para impedir a reunião mas, no espírito da moção de Mounier, a Igreja de
São Luís serviu para o efeito, e os deputados tinham decidido que se reu­
niriam de novo no local logo após a séance royale.
Depois da saída do rei e da corte, debaixo de um silêncio de morte,
entraram os carpinteiros para desmantelar a tribuna e as plataformas usa­
das na cerimónia. O Terceiro Estado permaneceu sentado em desafio no
meio da barulheira e das marteladas, e metamorfoseou -se de novo na
Assembleia Nacional. Sob a presidência de Bailly, os deputados reafirma­
ram teimosamente todas as suas decisões anteriores. Mirabeau, cuj a expe­
riência de detenção sumária não era igualada por nenhum dos presentes,
instou particularmente os seus colegas a declararem a inviolabilidade pes­
soal dos deputados. Independentemente do que pudessem conter de bom,
disse ele, as reformas tinham sido impostas de forma muitíssimo ofensiva.
O "vosso mandatário" não tinha de impor leis, tinha de as receber do
"sacerdócio inviolável da Nação " . Qualquer ataque a essa inviolabilidade
seria, num neologismo que ele cunhou, um crime de lese-nation .
Nessa altura, o j ovem marquês de Dreux-Brézé, o mestre-de- cerimó­
nias incumbido pelo rei de preparar o salão para o Terceiro Estado, reuniu
coragem suficiente para reiterar a ordem régia para que os deputados
vagassem de imediato o local. Dirigiu -se a B ailly, mas foi Mirabeau, cuj a
cabeçorra despenteada se inclinou sobre o j ovem peralvilho, d e chapéu na
mão e condescendendo em dar ordens aos "não privilegiados " . Mirabeau
estava doente, enfraquecido por uma hepatite, e terá faltado à sua voz a
tonitruância habitual. Os relatos diferem quanto ao facto de as palavras
que se seguiram terem sido ou não proferidas pelo próprio Mirabeau: "Ide
dizer a quem vos mandou que estamos aqui pela vontade do povo e que
só dispersaremos na ponta das baionetas . "
Pouco importa a exactidão dos relatos. A Revolução Francesa seria
feita de tableaux vivants semelhantes, cristalizando em forma teatral a
intensidade das emoções sentidas pelos participantes. Só com esta liber­
dade dramática poderia a sua mensagem ser comunicada aos muitos
milhões que assim puderam comungar da sua euforia, empenhar-se no
seu desfecho e ligar- se-lhe fielmente . Já era um novo tipo de religião.
Na verdade, a intervenção de Mirabeau foi vista com maus olhos por
Bailly como uma gratuita chamada às armas mas ele reafirmou a decisão
de a Assembleia prosseguir com os seus trabalhos. Dreux-Brézé retirou­
-se, caminhando lentamente para trás, de chapéu na cabeça, precisa­
mente como prescrevia a etiqueta oficial, numa apropriada despedida do
ritual absolutista de Versalhes . Mas a sua reacção foi apenas uma retirada.
A de Luís XVI foi uma rendição, e uma rendição ainda mais total por ser
tão indiferentemente expressa. Ao ser informado da resolução da
Assembleia, encolheu os ombros e disse: "Está bem, deixem-nos lá ficar. "
315

Tal como sucedera no Verão e n o Outono d e 1 787, o rei teve a pior ati­
tude possível: fez uma demonstração de autoridade real mas depois abs­
teve -se de a aplicar. Era cada vez menos capaz de decidir se poderia
tornar- se uma espécie de Rei do Povo, como Mirabeau desej ava, ou o
ungido de Reims, armado com a oriflamme.9 Mas a questão tornou-se subi­
tamente urgente, pois no centro de Versalhes parecia estar prestes a eclo­
dir um motim popular em resposta à eloquente ausência de Necker da
séance royale. Ao fim da tarde, centenas de deputados foram vistos a entrar
no Controlo - Geral num gesto de solidariedade, e j untou-se-lhes rapida­
mente uma multidão de cinco mil pessoas que se pôs a gritar " Vive
Necker!" . Maria Antonieta, que fora a mais ousada a desafiar o povo, foi a
primeira a assustar- se quando os populares entraram no pátio do palácio
e depois no interior, sem serem incomodados pelos milicianos dos Cardes
Françaises. Pedindo para ver Necker, implorou-lhe que não se demitisse;
pouco depois, numa entrevista privada, o rei pedia -lhe a mesma coisa.
C om a política de linha dura tão evidentemente em cacos, Necker acei­
tou permanecer no seu posto na condição de o rei implementar o seu pro­
grama de união das três ordens. Deixando a presença do monarca,
caminhou entre os deputados e os populares, tentando caracteristica­
mente acalmar o seu j úbilo . "Agora sois muito fortes", disse ele aos depu­
tados, "mas não abuseis do vosso poder. " Contrastando com este triunfo
popular, o rei partiu para Marly e os cocheiros tiveram de abrir caminho
por uma multidão carrancuda e ominosa.
Ainda se verificaram tentativas espasmódicas de imposição da autori­
dade régia. No dia seguinte à séance royale, B ailly deu com o salão barrado
por tropas que, tal como na véspera, tinham ordens para só deixarem
entrar os delegados da nobreza e do clero, e nenhum membro do público.
Porém, a indignação de B ailly desapareceu quando se tornou evidente
que o oficial incumbido da missão se passara para a Assembleia Nacional
e que os seus homens confraternizavam entusiasticamente com os depu­
tados, insistindo, "nós também somos cidadãos " . O "clero patriótico" foi
conduzido pelas traseiras à Salle des Menus Plaisirs onde, sob a liderança
do arcebispo de Vienne, integrou de novo a Assembleia Nacional. Mais
tarde, o arcebispo de Paris, que fora erroneamente identificado como
grande inimigo do povo, mal conseguiu escapar ao apedrej amento na sua
carruagem.
O dia seguinte, 25 de Junho, consagrou outro tableau vivant nos anais da
Assembleia Nacional quando quarenta e sete dos nobres liberais lhe aderi­
ram finalmente . Tinham sido precedidos por dois nobres dos oito deputa­
dos do Delfinado, e os restantes j untaram-se-lhes en bonne compagnie, como

' Em francês no original : auriflama - estandarte de seda vermelha com reflexos doura­
dos, usado na guerra pelos reis da França . (N. da R. )
S imon Schama 1 CIDADÃOS

disseram no dia seguinte . Eram liderados por Stanislas Clermont­


-Tonnerre e incluíam muitos membros do clube fundado por Duport no
Outono: Lally-Tollendal, vingador de seu pai, o duque d' Aiguillon, o
duque de Luynes, La Rochefoucauld-Liancourt, Alexandre de Lameth,
Montmorency de Luxemburgo e o próprio primo do rei, o duque de
Orleães. Não eram nenhuns arrivistas, eram o quadro mais elevado do
pariato, homens cuj os antepassados tinham morrido nos campos de bata­
lha da Guerra dos Cem Anos, que tinham acompanhado o j ovem Rei Sol
na sua promenade militar pelo Franco - C ondado e pela Flandres, que
tinham sido marechais, condestáveis e esmoleres-mores de França .
Faltava Lafayette, e a sua ausência era ainda mais notável tendo ele
integrado um grupo de nobres liberais que, com as suas pessoas, tinham
barrado o caminho a um destacamento de tropas enviado para intimidar
o Terceiro Estado depois da séance royale. Lafayette fazia parte de um grupo
de cerca de setenta deputados nobres que tinham votado a favor da união
das ordens mas que se sentiam obrigados pelos desejos dos seus consti­
tuintes de permanecerem separados a menos que o rei os instruísse em
sentido contrário. Existia a hipótese de trazer um número decisivo de
nobres para a Assembleia Nacional se esta estivesse disposta a respeitar a
possibilidade de eles manterem uma identidade separada nas questões do
foro da nobreza . C ontudo, pedir isto era pedir à Assembleia que abando ­
nasse a premissa da sua identidade recém-inventada : a indivisibilidade
dos cidadãos. Uma "delegação" dos nobres viu ser-lhe negada uma
audiência com a j ustificação de que a sua recepção constituiria um reco­
nhecimento das suas pretensões especiais .
Os Estados Gerais morreram finalmente no dia 2 7 de Junho, com o
golpe de misericórdia assestado pelo monarca que ordenara a sua convo­
cação. O rei escreveu aos deputados das duas ordens privilegiadas, "exor­
tando-os" a unirem-se "para alcançarem os meus obj ectivos paternais" .
Não estava necessariamente a capitular perante o s acontecimentos d e 1 7
e 20 d e Junho, a obliteração das ordens n o seio d e uma soberania indivi­
sível investida na Assembleia Nacional. Mesmo depois da reunião final, às
duas da tarde, se ter realizado num ambiente de gravidade infeliz e não de
alegre reconciliação, alguns nobres e clérigos continuaram a interpretar a
carta real como significando deliberações conj untas em matérias de inte­
resse comum.
Todas estas reservas foram submersas pela grande celebração popular
fora de portas. As ruas de Versalhes iluminaram-se, os foguetes explo­
diam no céu da tarde. Dançando e cantando, as multidões encheram os
pátios e as ruas que conduziam ao palácio, gritando " Vive Necker!" pelo
menos com tanta fre quência com que gritavam " Vive /e Roí!" .
Convencidos da disposição benigna do povo, Luís XVI e Maria Antonieta
apareceram de improviso na varanda do quarto de Luís XIV, sobranceira
317

a o Cour d e Marbre, onde Moliere tinha representado e Lully regera


para o Rei S o l . Tentaram pôr um ar feliz. O rei até experimentou um
aceno, mas o obj e cto de todos os olhares foi a rainha, não pela magni­
ficência da sua aparência, mas pela humildade. Dizia -se que a dor pela
morte do filho lhe embranquecera notoriamente o cabelo, que ela tra­
zia caído sobre os ombros, como uma cidadã . Não se via uma única j óia.
A rainha entrou no quarto e, combatendo as lágrimas, regressou à
varanda e apresentou os dois filhos à multidão embasbacada. Pai, mãe
e filhos, com os caracóis louros caindo-lhes sobre os ombros, ficaram
em silêncio a olhar para a multidão que quase enrouquecia de tanto os
aclamar. Foi o primeiro de muitos destes encontros, poucos dos quais
seriam tão afáveis. Mas, por enquanto, a visão da realeza conferia um
novo significado ao comentário de B ailly ao princípio da tarde : "Agora
a família está completa . "

D o marquês de Ferrieres a Madame de MédeL domingo, 2 8 d e Junho:

Dir-vos-ei apenas uma palavra, cara irmã, pois talvez vos tenhais ralado
por causa de d'Iversay e de mim. Estivemos perto da catástrofe sangrenta,
de uma repetição dos horrores do massacre de São Bartolomeu. A fraqueza
do governo parece permitir tudo . . . A séance royale apenas serviu para
garantir um triunfo ao Terceiro Estado. Nessa mesma noite, o rei foi obri­
gado a alterar a sua declaração, apesar de ter sido aceite por nós . . . Na
sexta -feira, cinquenta membros da nobreza, com o duque de Orleães à
frente, j untaram-se ao Terceiro Estado, apesar de a maioria dos seus cons­
tituintes lhes ter expressamente proibido votar por cabeça . Eu teria certa ­
mente feito o mesmo e com maior j ustificação, dado que o meu cahier não
dizia nada de rigoroso em matéria de votar por ordem ou por cabeça, e o
modo como se delibera é -me perfeitamente indiferente . . . mas não achei
que devesse abandonar a minha Ordem dadas as circunstâncias críticas em
que se encontra . No Palais-Royal, as pessoas falam abertamente de nos
massacrar, as nossas casas estão marcadas para esta mortandade e a minha
porta foi assinalada com um 'P' preto [de proscrit - proscrito] . A chacina
estava prevista para a noite de sexta -feira ou de sábado . Verdade sej a dita,
toda a gente de Versalhes era cúmplice.
A própria C orte esperava, a todo o momento, ser atacada por quarenta
mil rufiões armados, dos quais se dizia terem já saído de Paris . Os Guardas
Franceses recusaram obedecer às ordens; companhias inteiras desertaram
e foram para o Palais -Royal, onde lhes deram bebidas e gelados e os pas­
searam em triunfo . Felizmente, o homem em cuj o nome esta conj ura
infernal foi engendrada [Orleães] é demasiado cobarde para ser um vilão.
P or conseguinte, as noites de sexta- feira e de sábado passaram tranquila ­
mente e no dia 2 7, sábado, o Rei escreveu-nos por intermédio do nosso
S imon S chama 1 CIDADÃOS

presidente, o senhor de Luxemburgo, e disse-nos para nos juntarmos ao


Terceiro Estado . . .
Agora, tudo parece tranquilo, mas os Cardes Françaises j á não reconhe ­
cem os seus oficiais; a deserção das tropas é geral e tudo anuncia uma
grande revolução . . . Os Estados Gerais de 1 78 9 serão celebrados mas com
uma bandeira de sangue que será levada a todas as partes da Europa . . .
Adeus, minha querida e boa irmã; o estado das coisas não é muito tran­
quilizador. S e houvesse pelo menos um homem [no qual se pudesse con­
fiar] eu não consideraria a situação desesperada, mas os ministros são tão
incapazes .
Abraçai Médel por mim.

Ü VOSSO,

Charles -Elie
10

A Bastilha
Julho de 1 789

1 D OIS TIPOS DE PALÁCIO

Versalhes foi construído contra Paris.


A primeira fonte que se vê no parque do palácio quando se desce da
esplanada conta a história. Num lago circular, Latona, de pé, tem ao colo
o seu bebé, Apolo. Fugiu da fúria ciumenta de Juno, cuj o marido, Júpiter,
a tentou seduzir. Ao interromper a fuga para beber água, Latona é atacada
por camponeses mobilizados pela deusa vingativa. Vendo a sua aflição,
Júpiter intervém e transforma os camponeses em rãs. Foi este o momento
que o escultor capturou, criando anfíbios do tamanho de gatos que estão
sentados ou saltam em direcção à ninfa, coaxando na sua metamorfose.
Alguns ainda têm o tronco humano mas na cabeça vêem-se olhos esbu ­
galhados e bocas rasgadas e escancaradas.
Esta história tinha um significado pessoal para o Rei Sol. A mãe, Ana
de Áustria, fora expulsa de Paris pela Fronda, qual fugitiva com o seu
Apolo. Mais tarde, já homem feito, Luís XIV decidiu que não voltaria a
ficar cativo do povo e dos pares de Paris. O Palácio de Versalhes nascera
como um pavilhão de caça e um lugar para mascaradas e folias, mas o rei
transformou -o rapidamente no sítio onde poderia redefinir o seu absolu ­
tismo. O seu ministro Colbert gastou somas avultadas no Louvre, na espe ­
rança de que o monarca fizesse dele a sede principal do governo, mas de
nada serviu. Ser o Rei Sol significava construir um reino simbólico de
pedra, água, mármore e espelhos no qual o monarca e o planeta passa­
riam o dia serenamente, imunes ao caos da vida urbana. A música da
corte impor-se-ia ao coaxar das rãs.
Durante um século, esta estratégia funcionou . Paris e Versalhes per­
maneceram mundos à parte. Em Versalhes, o sossego do rei só era inter­
rompido pelos habitantes e pelos camponeses locais, pois a caminhada de
seis horas de Paris constituía uma boa dissuasão contra as manifestações
populares. Além de intimidante em termos de tempo e distância, a viagem
também era perigosa. O B osque de B olonha, que os viaj antes tinham de
atravessar para chegar às estradas ocidentais, estava cheio de bandos de
ladrões e prostitutas.
S imon Schama 1 CIDADÃOS

Mas de carruagem, a viagem demorava apenas duas horas, três no


máximo, e no reinado de Luís XVI o centro de gravidade dos grandes da
corte regressou do palácio para a cidade. Os seus palacetes, dispendiosa -
mente renovados, localizavam-se no bairro de S aint- Germain ou no
Marais, e os seus locais de recreação eram a Ópera, os teatros e os con­
certos espirituais - ao lado de tudo isto, os entretenimentos da corte pare ­
ciam pálidos e derivativos. A melhor arte encontrava-se bienalmente no
Salon, a melhor conversa nos j antares e "assembleias" privados como os
da casa de Duport ou de Necker. Mais importante ainda, a iniciativa polí­
tica gravitara dos corredores e apartamentos de Versalhes para o Palácio
da Justiça e para o Palais-Royal. Por conseguinte, os cortesãos, cuj o esta­
tuto e identidade se definiam outrora pelo lugar que ocupavam na hie ­
rarquia do palácio, tornaram-se gradualmente ausentes. "Mesmo com as
grilhetas do despotismo", comentou Mirabeau, "Paris sempre preservou a
sua independência intelectual e os tiranos foram obrigados a respeitá-la.
Através do reino das artes e das letras, Paris preparou o da filosofia e atra­
vés da filosofia, o da moralidade pública. "
Ainda antes d e Paris i r buscar o rei a Versalhes, o Palais-Royal ven­
ceu o Palácio de Versalhes. Era em todos os aspectos o seu oposto, a sua
némesis. Na zona nuclear do palácio existia um quarteirão de pavilhões
onde o controlo do rei era formalizado pelos apartamentos enfileirados
para que o acesso a cada zona pudesse ser barrado ou cedido em função
do ritual e do decoro . Para norte e para sul, estendiam -se alas imensas,
com mais de meio quilómetro de comprimento, dependências que alo­
j avam os serviços governamentais e palacianos de um monarca teorica ­
mente omnipresente . O Palais- Royal era um espaço aberto, dotado de
um perímetro com colunas, o equivalente parisiense de espaços repu­
blicanos como a Praça de São Marcos, em Veneza . A sua arquitectura
não dava instruções. C o nvidava a passear, observar, folhear, ler, com­
prar, conversar, namorar, surripiar, comer - ao sabor das circunstâncias,
numa ordem improvisada ou sem ordem nenhuma . Versalhes era o
lugar mas patrulhado da França; o Palais - Royal, enquanto propriedade
do duque de Orleães, proibia a presença de qualquer polícia, a menos
que convidada pelo proprietário . Enquanto a Versalhes institucional
dava grande importância à hierarquia dos estatutos, a vida frenética do
Palais -Royal misturava -os subversivamente . Versalhes proclamava a dis ­
ciplina corporativista, o Palais-Royal celebrava a anarquia pública dos
apetites.
Na corte e, até certa medida, nas reuniões do conselho, as declarações
eram reservadas - em todos os sentidos. No Palais-Royal, podia dizer-se
tudo e quanto mais extravagante fosse, melhor. Em estabelecimentos
como o Café Foy, Arthur Young viu
32 1

multidões expectantes escutando alguns oradores que, em cima de cadei­


ras ou de mesas, lhes arengam a plenos pulmões. Não é fácil imaginar a
avidez com que são ouvidos nem as estrondosas ovações que recebem a
cada expressão de dureza ou violência excessivas contra o governo.

Young ficou igualmente chocado com a democratização da pirotecnia.


Em Versalhes, os espectáculos de fogo-de-artifício, desde o tempo de
Luís XIV, eram cuidadosamente montados para prestarem tributo à majes­
tade . No Palais-Royal - com os cumprimentos de Orleães -, doze soldos
compravam tantas bichas-de-rabear, foguetes e serpentes como cinco
libras francesas nos fornecedores regulares. Na noite de 27 de Junho, em
celebração da união das ordens, os céus de Paris explodiram com barulho
e cor enquanto os de Versalhes permaneceram lugubremente silenciosos.
Já não havia dúvida nenhuma de que o Palais-Royal era o império da
liberdade quando, no dia 2 8, companhias amotinadas dos Cardes
Françaises se apresentaram no local para garantir que em nenhuma cir­
cunstância disparariam sobre o povo . No dia 30, dois guardas, traj ando à
civil, dirigiram-se à Assembleia Nacional para denunciar o seu coman­
dante, o duque du C hâtelet, mas foram detidos pelos hussardos e envia­
dos para a prisão da Abadia juntamente com uma dúzia dos seus
camaradas . Espalhada a notícia da detenção, foram libertos por uma mul­
tidão de quatrocentas pessoas que os banquetearam com um jantar
público e festivo . O duque de Orleães abriu as instalações para uma noite
de folia e os granadeiros renegados, protegidos pelos seus "cidadãos­
-irmãos", dormiram no chão do teatro Variétes Amusantes . No dia
seguinte, foram pendurados cestos nos seus novos aposentos, no Hôtel de
Geneve, no Palais-Royal, para que os interessados pudessem fazer contri­
buições patrióticas para os seus heróis. Não tencionando sancionar um
desafio total à autoridade, os eleitores da C âmara Municipal e da
Assembleia Nacional engendraram um compromisso para salvar a face das
partes envolvidas: os guardas regressariam à prisão por uma noite, após o
que seriam perdoados e desmobilizados.
Dado o clima de contestação alcoolizada e loquaz que prevalecia no
Palais-Royal, não admira que a revolução parisiense tenha começado ali.
Mas nasceu menos de uma revolta festiva do que do desespero . Em
Julho, os preços do pão atingiram níveis sintomáticos não só das cares­
tias mas também da fome . Em toda a França urbana, as condições apro­
ximavam-se rapidamente de um estado de guerra alimentar. No fim de
Junho, em Lyon, a segunda cidade francesa, os amotinados tinham
imposto a venda de cereais isenta de impostos, erroneamente convictos
de que estavam a cumprir a vontade do rei. Em Paris, os ataques esporá­
dicos às barreiras alfandegárias em torno da cidade tornaram-se tão fre­
quentes que foi necessário guarnecê -las com tropas, que também
S imon S chama 1 CIDADÃOS

passaram a marcar presença nos mercados e a escoltar os comboios de


cereais e farinha. As quartas-feiras e os sábados, quando os padeiras
ambulantes vendiam os seus produtos em Les Halles e noutros mercados
designados, eram dias especialmente perigosos. Os padeiras estavam proi­
bidos de recolher das bancas os pães não vendidos ao fim do dia, e era
nessa altura que as multidões famintas se aglomeravam na expectativa de
comprar a preços de saldos e que os riscos de violência e do roubo de pão
estavam mais presentes .
O princípio de Julho foi também uma altura de crise para os pobres
noutro aspecto crucial. No fim da primeira semana corria o temível
"termo", a data de pagamento de todas as contas, incluindo a renda de
casa. Tal como Richard C obb vividamente descreve, o termo de Julho era
o pior, já que quando chegava o termo de Outubro as colheitas estavam
concluídas e o pão era mais barato, e em Janeiro a clemência e o crédito
eram geralmente alargados devido aos difíceis meses do Inverno. Em
Julho, antes das colheitas, o preço do pão estava sempre no limiar mais
elevado e com o dinheiro disponível acontecia exactamente o oposto . Na
véspera do dia de pagamento, muitas famílias e colónias de famílias desa ­
pareciam, levando por vezes consigo os lençóis que usavam para fugir
pela janela. Era uma altura de medo, desenraizamento e êxodo.
Por conseguinte, no dia 1 2 de Julho, um domingo, quando chegou ao
Palais-Royal a notícia de que Necker fora sumariamente exonerado e exi­
lado pelo rei, desencadeou -se de imediato uma onda de pânico e fúria .
Necker tornara-se não só um símbolo da vitória do Terceiro Estado, mas
também o último pere nourricier. Em muitas das inúmeras gravuras que
celebravam a sua fama, Necker era retratado como o providente de cor­
nucópias, o homem que transformaria a bancarrota em solvência, que
criaria trabalho onde havia desemprego, que levaria pão para onde havia
fome . A sua reputação de integridade coroava- o como um halo, em con­
traste directo com os aristocratas, que não recuavam perante nada - não
se coibindo sequer de engendrar uma fome - para o desaloj arem do poder.
(Nem todas estas lisonjas eram imerecidas. Necker dera a sua fortuna pes­
soal como garantia para um carregamento de cereais custeado pelo banco
Hope de Amesterdão . )
A noção de que a s fomes não eram causadas pelo clima mas sim pelas
conspirações tinha uma longa tradição em França. Contudo, nunca teve
mais aceitação nem foi expressa com mais raiva do que em 1 78 9 . Se os
padeiras e os moleiros que não punham os seus produtos no mercado
para fazerem subir ainda mais os preços eram os vilões imediatos, atrás
deles escondia -se uma cabala aristocrática ainda mais sinistra. O seu
obj ectivo imediato era desacreditar Necker e garantir a sua demissão.
Desaparecido Necker, diziam os panfletos, o povo ficaria refém até a
Assembleia Nacional ser dissolvida sem problemas . " O s séculos passados",
323

dizia o autor de um panfleto, "não mostram nenhum precedente para


uma conj ura tão infame como a que esta aristocracia moribunda conge­
minou contra a humanidade " .
Mas, à s vezes, as teorias d a conspiração estão correctas . É óbvio que
não havia nenhuma conj ura para submeter o povo pela fome mas existia
certamente o desígnio de afastar Necker e dissolver a Assembleia
Nacional. No dia 9 de Julho, por exemplo, foram expressas em Versalhes
e no Palais-Royal opiniões diametralmente opostas acerca de Necker. Ao
preparar- se para entrar no conselho real, Necker foi ameaçado por Artois
com o punho e insultado de "traidor estrangeiro " e "lastimável burguês"
que não tinha "lugar" no conselho e que faria melhor em regressar à sua
"cidadezinha" . 1 Durante a reunião propriamente dita, o príncipe foi ao
ponto de dizer ao ministro que achava que ele devia ser enforcado. No
mesmo dia, no Palais-Royal, uma "mulher de qualidade" foi sovada em
público por ter alegadamente cuspido num retrato do herói-ministro .
Todos estes receios e suspeições pareciam corroborados pela quanti­
dade cada vez maior de tropas estacionadas em Paris e arredores. As esti­
mativas do seu número exageravam a ameaça mas era notória a presença
de soldados alemães e suíços ( alguns dos regimentos franceses, da Lorena,
eram de língua alemã ) . Corriam rumores de que tropas estrangeiras, coli­
gadas com bandos de "rufiões armados", andavam pelos campos e esta­
vam preparadas para invadir as cidades como braço vingador do
despotismo .
A concentração militar sistemática não era um produto da paranóia
popular. Luís XVI dera a primeira de uma série de ordens de marcha aos
regimentos estacionados nas fronteiras no dia 22 de Junho, quando ainda
esperava que a sessão real fizesse abortar a Assembleia Nacional. No dia
26, fracassada essa política, chamou mais tropas. Até ao dia 1 6 de Julho,
uma sucessão de reforços engrossaria para mais de vinte mil homens as
tropas nas regiões de Paris e Versalhes. Um número considerável dos regi­
mentos - mais de um terço - era estrangeiro, muitos deles de língua
alemã . O rei afirmou que as tropas estavam a ser mobilizadas para preve ­
nirem eventuais desordens em Paris e arredores mas para a rainha, para
Artois e para o grupo de ministros liderados por B reteuil, desej osos de ver
Necker pelas costas, a demonstração de força militar seria o instrumento
através do qual a C oroa recuperaria a sua liberdade de manobra .
O plano seria frustrado pela ansiedade dos que foram incumbidos da
sua implementação, que receavam que a cadeia de comando estivesse
prestes a desmoronar- se. E stes receios não eram infundados . Na década
de 80, século XVIII, a taxa de deserção do exército francês subiu para
3000 por ano, apesar da selvática punição prescrita para aqueles que

1 Genebra . ( N. do T. )
S imon S chama 1 CIDADÃOS

desertavam pela primeira vez: dez passagens por duas fileiras de cin ­
quenta homens armados com as varetas dos mosquetes. No dia 2 de
Julho, o embaixador britânico relatou que este castigo fora infligido a dois
homens do regimento suíço de Salis- Samade que se tinham conluiado
com alguns guardas franceses amotinados; dois outros foram enforcados.
O problema mais sério era que a insatisfação não se limitava aos pra ­
ças, tendo-se insinuado nas fileiras dos oficiais de baixa patente . Se havia
um lugar do Antigo Regime em que a realidade social fazia jus às polémi­
cas sobre os monopólios aristocráticos e a promoção frustrada era no
Exército . As reformas de Guibert melhoraram a situação do pré mas tam­
bém introduziram a disciplina prussiana e a reconfirmação peremptória
da reserva das altas patentes para a "antiga" nobreza . As ordenanças de
Ségur tiveram o intuito de proteger a nobreza mais velha e mais pobre
mas as queixas mais publicitadas continuaram a prender-se com a oferta
de postos regimentais aos filhos mimados das dinastias ricas logo após a
sua saída do colégio. Esta situação irritou os oficiais de carreira e os subal­
ternos, que viram toda e qualquer hipótese de ascenderem à casta dos ofi­
ciais bloqueada pela nova lei. Não foi, pois, por acaso que a retórica
antiaristocrática fez progressos j unto das patentes mais baixas.
Os praças do Exército Regular terão sido ainda mais receptivos a iden­
tificarem-se com os cidadãos do Terceiro Estado. Segundo Samuel Scott,
mais de 8 0 % já tinham tido outra profissão e uma percentagem sur­
preendentemente elevada era oriunda dos meios operários urbanos. Por
conseguinte, o Exército Real de linha não era, de todo, uma força campe­
sina, estando mais próximo dos trabalhadores dos bairros que tinham
saqueado as oficinas de Réveillon, e viria a compor a maioria dos "con­
quistadores " da B astilha. Esta solidariedade improvisada entre as tropas e
o povo seria crucial no dia 1 4 de Julho, quando mais de cinquenta regu­
lares se j untaram aos populares no assalto à fortaleza. No entanto, antes
destes acontecimentos começavam a tornar-se comuns os relatos da relu ­
tância das tropas em fazer uso da força contra os confiscas ou a venda for­
çada de cereais.
Esta fraternidade instintiva era ainda mais óbvia entre os Gardes
Françaises. Até à investigação monumental de Jean Chagniot, pensou -se
que os guardas eram mais velhos, que estavam estabelecidos no seio da
população parisiense e que não era raro terem outro ofício para comple­
mentar o seu magro pré . Hoj e temos um perfil bastante diferente, mas é
um perfil que torna ainda mais evidente a sua vulnerabilidade à propa­
ganda revolucionária. Muitos guardas eram j ovens, oriundos das provín­
cias - em especial, de cidades nortenhas como Amiens, Caen e Lille - e
estavam longe de terem assentado . Uma série de reformas implementadas
nas décadas de 60 e 70, século XVIII, vedara-lhes a possibilidade - aberta
aos seus predecessores do princípio do século - de terem lojas ou bancas
325

n o s mercados. Metade dos guardas eram casados, com família constituída,


e por vezes eram sustentados pelas mulheres. No entanto, a soldadesca do
corpo militar com que o Antigo Regime mais contava para complementar
os cerca de mil e quinhentos polícias compunha-se de homens desenrai­
zados, empobrecidos e amiúde insubordinados. Entre os oficiais subalter­
nos, especialmente os sargentos, existia, queixou -se um oficial mais
velho, "um sentimento de igualdade que infelizmente mistura no século
actual todos os postos e posições " . Jean-Joseph C athol, filho de um notá ­
rio do Auvergnat e sargento da Guarda, diria posteriormente que fora em
1 788 que começara a ler os j ornais "que expunham a vilania dos padres e
dos nobres", e que levara para as fileiras a sua truculência política recém­
-descoberta . Outros, menos empenhados em questões políticas, foram
simplesmente arrastados pelo ambiente de oposição que encontraram nas
tabernas onde bebiam e no Palais-Royal, onde passeavam. Por exemplo,
no dia 1 2 de Julho, em Versalhes, um cadete do Regimento Reinach
encontrou dois guardas acompanhados por mulheres e podres de bêbe­
dos, que lhe disseram, "Vem connosco, há dinheiro e promoções à tua
espera em Paris" .
Independentemente d a combinação d e motivos, o s tumultos de
Réveillon foram uma espécie de ponto de viragem traumático para os
Cardes Françaises, na sequência do qual eles se tornaram truculentamente
pouco inclinados para obedecer a ordens, e começaram cada vez mais a
fazer jus ao seu nome como patriotas nativos. No dia 6 de Julho, em
Versalhes, quase se envolveram à pancada com os hussardos germânicos
que tinham sido mobilizados para intimidar os citadinos, e no dia 8, o cau ­
teleiro Jean - Claude Monnet foi preso por distribuir panfletos sediciosos
pelos soldados, um dos quais era um apelo aos granadeiros de "um velho
Camarada dos Cardes Françaises" . A sua mensagem era : "Antes de sermos
Soldados, somos Cidadãos; antes de sermos escravos, somos Franceses . "
A s impressões polarizaram-se muito depressa. De u m lado pareciam
estar a rainha austríaca e os seus parasitas da corte, apoiados por hussar­
dos húngaros e dragões alemães. Estavam bivacados no Campo de Marte,
nos Invalides, e dizia-se que se preparavam para minar o Palais-Royal.
Outro acampamento, em Saint-Denis, fora organizado para bombardear a
cidade a partir de B uttes-Montmartre . Breteuil, o principal oponente de
Necker, teria dito em conselho, " S e tivermos de incendiar Paris, Paris
arderá", e agora parecia que dispunham dos homens e dos meios para o
fazer. C ontra esta conspiração satânica erguiam-se os soldados nativos,
liderados pelos Cardes Françaises mas com outras tropas prontas para avan­
çar caso o povo fosse seriamente ameaçado. No dia 3 0 de Junho, em
Nangis, "suficientemente perto de Paris para as pessoas fazerem política",
o peruqueiro que vestia Arthur Young disse -lhe, "podeis ter a certeza,
como nós, de que soldados franceses nunca dispararão sobre o povo ",
S imon Scharna 1 CIDADÃOS

acrescentando, "mas se o fizerem, mais vale morrer com um tiro do que


à fome " .
Mirabeau comungava desta opinião. "Os soldados franceses não são
autómatos . . . verão em nós os seus parentes, os seus amigos, as suas famí­
lias . . . nunca acreditarão que o seu dever é golpear sem perguntar quem
são as vítimas . . . " Mas no dia 8 de Julho Mirabeau expressou esta opinião
na Assembleia Nacional num discurso sombriamente agourento. Numa
oração potentemente profética, Mirabeau pintou um quadro de guerra
civil iminente . Também exagerou o número de soldados estacionados
entre Versalhes e Paris, cifrando-o em trinta e cinco mil, mas ninguém
podia ficar indiferente à sua descrição da artilharia que percorria as estra ­
das e as pontes e da montagem das baterias. Mas o pior era o embuste pra­
ticado às claras, um vício incorrigível do Antigo Regime quando
confrontado com Homens Novos. S erá que aqueles que embarcaram nes ­
tas loucuras, perguntou ele retoricamente, "prevêem as consequências
que elas acarretam para a segurança do trono? Será que estudaram a his­
tória dos povos, de como começam as revoluções . . . ? " .
Tocou num nervo d a Assembleia . Os deputados tinham assistido,
impotentes e apreensivos, à montagem de tendas no Pátio de Mármore e
depois na grande Orangerie construída por Mansart de acordo com o
modelo de um circo romano; havia pirâmides de mosquetes encostadas às
colunas dóricas. A eloquência de Mirabeau deu voz à crescente apreensão
dos deputados e a sua peroração foi saudada com ondas de aplausos que
rebentaram sobre a sua cabeça suada . Terminada a ovação, foi redigida
uma declaração destinada ao rei que mencionava, com toda a presciência,
um "perigo . . . para além de todos os cálculos da prudência humana . . .
A presença de tropas [em Paris] provocará excitação e tumultos e . . . o pri­
meiro acto de violência a pretexto da manutenção da ordem poderá
desencadear uma horrível sequência de males". Pedia-se ao rei que reti­
rasse as suas tropas e que despoletasse aquela situação explosiva.
O rei respondeu passados dois dias, em 1 0 de Julho. Procurou tran­
quilizar a ansiedade da Assembleia afirmando que as tropas tinham sido
chamadas para conter desordens violentas em Paris da magnitude dos
motins de Réveillon, e que a sua presença era para a "protecção" e não
para a intimidação da Assembleia. Era a linguagem clássica preparatória
do golpe de Estado militar. O rei até acrescentou a sugestão gratuita de
transferir a Assembleia para Noyons ou Soissons caso as "condições"
impossibilitassem o seu funcionamento em Versalhes !
Só os monárquicos mais ingénuos poderiam ter acreditado nele. A ver­
dade é que no dia do discurso de Mirabeau - e possivelmente provocado por
ele -, Luís XVI decidiu levar a cab9 um teste : a sua força contra a que a
Assembleia Nacional dizia ter. Foi um acto mais decisivo e mais lesto do que
aqueles que o vinham instando a este confronto - em particular, a rainha e
327

os príncipes - ousavam esperar. A sua exasperação com a rectidão de


Necker tornara -se um motivo para o detestar, e ainda por cima o ministro
roubara -lhe o centro do palco no dia 2 3 de Junho . Algures durante as
caçadas aos javalis, às aves e aos veados, Luís XVI decidira afirmar a honra
dos B ombons.
Primeiro, necessitou do assentimento de B reteuil, que seria nomeado
sucessor de Necker no governo que faria frente à Assembleia Nacional.
Obtida a sua anuência, o rei informou os príncipes no dia 1 0 . Embora o
plano militar que vinham elaborando previsse que as tropas disponíveis
só estariam em posição a 1 6, ninguém ia arrefecer o inaudito ardor de
auto -afirmação do soberano. Além do mais, o fim-de-semana era ideal
para o golpe . A Assembleia Nacional não se reuniria no domingo e Necker
poderia ser posto fora do país antes de ter tempo para reagir.
No sábado, dia 1 1 , quando Necker se preparava para dar início a um
agradável j antar à hora apropriada das três da tarde, o ministro da
Marinha, La Luzerne, apresentou -se-lhe com uma carta do rei . Era seca e
concisa. Requeria que Necker partisse "sans bruit" - em segredo - de
Versalhes, aliás, da França, e regressasse à Suíça . Necker meteu a missiva
no bolso, falou brevemente com a mulher e mandou chamar a carruagem
na qual costumava dar o seu passeio nocturno. Por volta das cinco da
tarde, uma mala foi colocada no interior do veículo; Madame Necker,
ainda no seu vestido de noite, entrou, seguida do marido. A carruagem
deveria ter virado para sul - Mâconnais, Lyon, fronteira com a Suíça -
mas rumou a nordeste, em direcção a B ruxelas, onde os Neckers desce­
ram no dia seguinte . Em B ruxelas, Necker escreveu uma carta aos ban­
queiros holandeses Hope, garantindo-lhes que não obstante a sua
demissão lhes seriam pagos os dois milhões de libras francesas que eles
tinham emprestado como garantia para as iminentes importações de
cereais para França.
Foi o gesto de um "homem honesto ", num contraste dramático com a
insegurança petulante do monarca que o tinha despedido .

II E SPE CTÁCULO S : A CONQUISTA DE PARIS,


1 2 - 1 3 DE JULHO DE 1 789

Nunca existira nenhuma duvida sobre qual era a atracção que mais fas­
cinava os clientes no museu de cera do Sr. C urtius. Le Grand Couvert repre ­
sentava a família real a j antar com o irmão da rainha, José II. Era o ponto
forte de uma exposição que apresentava celebridades e heróis como
Voltaire e o vice -almirante d'Estaing. Todos tinham sido modelados e pin­
tados por Peter Creutz (o seu nome alemão de nascimento ) , cuj a carreira
de homem do espectáculo e empresário constitui outra história de sucesso
S imon S chama 1 CIDADÃOS

da França setecentista . Mayeur de Saint - Paul, cuj o livro sobre o


Boulevard du Temple se especializara em desdenhar dos especialistas da
má vida e do burlesco que por lá paravam, viu Curtius como o modelo do
homem que subira a pulso: dotado, perspicaz e, acima de tudo, indus­
trioso. Não há dúvida de que ele conhecia o mercado. Por dois soldos por
cabeça, Curtius enchia constantemente o seu museu com filas interminá­
veis de visitantes boquiabertos, oriundos de todos os quadrantes. Depois
de se maravilharem com a sua perícia e de se imaginarem a rir com
Voltaire, a soluçar com Rousseau ou a contemplar Maria Antonieta pre­
parando-se para ir para a cama, podiam adquirir uma das figurinhas de
cera de "galãs" e "libertinos" para provocarem risos picantes em casa.
Encoraj ado pelo êxito e pela prosperidade, Curtius não hesitou
quando, em 1 784, o Palais-Royal começou a alugar espaços comerciais .
Arrendou o Salão N.º 7 e encheu-o com a combinação de heróis milita ­
res e culturais e cenas da vida da corte que tanto sucesso lhe merecera na
avenida e nas feiras de Saint- Germain e Saint-Laurent. Para servir uma
clientela ligeiramente mais grandiosa, acrescentou uma balaustrada divi­
sória para admissão a dois preços: doze soldos para a frente, dois para a
parte de trás. No Palais-Royal, Curtius tinha a concorrência de algumas
atracções rivais de peso, tais como Paul B utterbrodt, o homem dos
duzentos quilos, e pior ainda, o patife que fazia passar um modelo de
cera pela "bela Zulima ", morta há duzentos anos mas miraculosamente
preservada e inspeccionável dos pés à cabeça por meia dúzia de soldos.
Mas C urtius sabia manter- se à frente da concorrência. Contratou um
ventríloquo para actuações diárias do meio- dia às duas e das cinco às
nove, e começou a fazer exposições temáticas, acrescentando os heróis
do momento - Lafayette, Mirabeau, Target e, evidentemente, o duque de
Orleães e N ecker.
Por conseguinte, no dia 1 2 de Julho, domingo, pelas quatro horas,
quando Curtius viu umas mil pessoas aproximarem-se do Salão N.º 7
num estado de excitação patriótica, deve ter percebido o que pretendiam.
Entregou-lhes os bustos de Orleães e Necker, e fez-lhes um breve discurso
digno dos melhores actores do Théâtre -Français: "Meus amigos", decla­
mou, "ele [Necker] está sempre no meu coração, e se lá estivesse de ver­
dade eu rasgaria o meu peito para vo-lo dar. Apenas tenho a sua
semelhança . É vossa. " Um desempenho tremendo . As cabeças foram leva­
das em triunfo pela multidão em delírio.
O Palais -Royal tinha estado em ebulição durante todo o dia . O rei e os
seus conselheiros haviam calculado que o domingo seria a melhor altura
para a notícia da demissão de Necker vir a público ( sabiam que seria ine­
vitável, apesar de todo o secretismo ) , pois impediria uma resposta ime ­
diata por parte da Assembleia Nacional. C ontudo, para o centro não
oficial da oposição - o Palais - Royal -, o domingo era o dia perfeito para
329

dramatismos organizados. Estava pej ado de excursionistas, fiâneurs, ora­


dores, camponeses das aldeias hors des murs, operários oriundos dos fau­
bourgs. Por volta das três horas, uma multidão de cerca de seis mil pessoas
congregou-se em torno de um j ovem de rosto pálido e olhos escuros, com
os cabelos caindo -lhe livremente pelos ombros, que gritava excitada­
mente em cima de uma mesa em frente de um café .
Camille Desmoulins tinha vinte e seis anos e era o filho predilecto de
uma grande família de Guise, na Picardia . O pai, um tenente -coronel do
bailliage local, tinha economizado e poupado para que o precoce rapaz
fosse educado em Paris, e os irmãos tiveram que se contentar com uma
carreira de oficiais de baixa patente no exército, um casamento modesto
e, no caso de uma irmã, com um convento de freiras. Desmoulins matri­
culara - s e no Lycée Louis - l e - Grand, onde conhecera Maximilien
Robespierre, oriundo de Arras, e a grande misturada de rapazes - alguns
aristocratas, muitos burgueses, outros mesmo oriundos dos meios operá­
rios - que constituíam a população estudantil daquela extraordinária ins­
tituição. Tal como eles, Desmoulins bebera sequiosamente Cícero, Tácito
e Lívio, e sentira-se romano.
O pai esperava que ele fizesse carreira no direito mas Desmoulins ten­
tou sobreviver com a escrita e compôs uma " Ode aos Estados Gerais" . Em
Junho de 1 789, La France Liberée foi aceite pelo editor Momoro, que gos­
tava de se intitular "Primeiro Impressor da Liberdade " . Apesar de só ter
sido publicado alguns dias depois da tomada da Bastilha, o texto de
Desmoulins é um exemplo perfeito do estilo declamatório que estava em
voga no Palais-Royal - com pancadas no peito e um convite aos soluços e
lágrimas. Logo nas primeiras linhas, assume que se dirige a um público de
ouvintes e não a um público de leitores.

Escutai, escutai Paris e Lyon, Rouen e B ordéus, Calais e Marselha . De uma


ponta à outra do país ouve -se o mesmo grito universal . . . toda a gente quer
ser livre .

Os apóstolos da liberdade reuniriam as suas tropas mais com recurso à


voz do que à vista . A vista seduzia mas a voz disciplinava . Na sua quali­
dade de frequentador assíduo do Palais-Royal, o j ovem D esmoulins estava
particularmente preocupado com a tentação sexual como arma potente
da corrupção régia e aristocrática. A monarquia, escreveu ele, não se
poupa a esforços para nos depravar de modo a "enervar o carácter nacio­
nal e abastardar-nos, cercando a nossa j uventude com lugares de sedução
e deboche e sitiando -nos com prostitutas".
Mas estes desígnios maquiavélicos seriam frustrados porque só na
capital existiam mais de trinta mil homens prontos a abandonar as suas
défices e a j untar-se, "ao primeiro sinal, às coortes sagradas da patrie " .
S imon S chama 1 CIDADÃOS

Já tinham assumido o controlo do teatro da eloquência. "Agora, só os


patriotas erguem a voz. Os inimigos do bem público foram silenciados ou,
quando se atrevem a falar. . . marcam-se imediatamente para o castigo
pela sua felonia e traição".
B ebendo nos seus exercícios colegiais com os clássicos, Desmoulins
usou na sua peroração o tom da Virtude Militante mas para obter um
efeito ainda maior acrescentou-lhe o martírio patriótico retratado nos
quadros históricos neoclássicos do Salon e do palco . O sangue era impor­
tante para estas semelhanças. D esmoulins comparou-se com o Otríades,
o guerreiro caído, que escreveu "Esparta triunfou" com o seu próprio
sangue num estandarte capturado. "Eu, que era tímido, sinto -me agora
um novo homem [para] poder morrer com alegria por uma causa tão
gloriosa e, trespassado pelos golpes, escrever com o meu sangue:
'A França é livre ! ' . "
Por conseguinte, Desmoulins j á tinha escrito o argumento d a repre­
sentação que daria com tanto efeito perante a multidão em frente do Café
Foy, no dia 1 2 de Julho . Escreveu ao pai que, ao chegar ao Palais-RoyaL
por volta das três, se j untou a alguns indivíduos que exortavam os cida­
dãos a pegar em armas contra a traição que afastara Necker, " que a Nação
tinha pedido para ser mantido em funções " . Sendo uma criatura de
impulsos ( logo, obediente à Natureza e não à C ultura ) , Desmoulins tinha
subido para cima de uma mesa, com a cabeça "sufocando debaixo de uma
multidão de ideias" que vocalizara sem qualquer ordem. A Necker, disse
ele, deveria erguer- se-lhe um monumento e não decretar-lhe o exílio . "Às
armas, às armas, e [arrancando as folhas de um castanheiro] ponhamos
todos um cocar verde, a cor da esperança. " Nesse momento, Desmoulins
julgou ver chegar a polícia - pelo menos, foi o que disse - e armou-se em
vítima iminente da tirania . Estava para acontecer um novo Massacre de
São Bartolomeu, avisou ele, usando uma alusão que começava a tornar­
-se um cliché importante da retórica dos Patriotas e que seria reforçado
pela peça mais popular de 1 789, Carlos IX, de Marie-Joseph Chénier.
Pondo uma mão no peito e brandindo uma pistola com a outra ( mais um
gesto teatral que se tornaria normativo com a Convenção ) , Desmoulins
desafiou os lacaios da tirania : " S im, sim, sou eu que chamo os meus
irmãos à liberdade; antes morrer do que submeter-me à servidão . "
A resposta d o público foi gratificante . Desmoulins tornou -se d e ime ­
diato um herói, rodeado por braços que o agarravam, de gritos de
"bravo ! ", beijos e j uras solenes de que nunca seria abandonado, e foi
levado no meio de uma multidão aos gritos que ia agarrando em tudo o
que encontrava de verde - fitas, folhas, ramos inteiros; era um pequeno
exército à procura de heróis e de armas de fogo.
Os heróis faltavam em pessoa: Necker estava em Bruxelas, Orleães
com o seu grupo de teatro amador, em Saint-Leu (ao inteirar- se da revolta
331

d e Paris, u m dos seus companheiros, u m pintor chamado Giroux, caval­


gou a toda a brida para a cidade, mas como ainda estava vestido de ciclope
Polifemo foi maltratado na barriere por uma multidão que j ulgou que o
seu único olho era a marca sinistra de um espião da polícia ) . Mas C urtius
podia fornecer personnages de cera. O que lhes faltava em eloquência era
mais do que compensado pela sua portabilidade e pela sua paciência com
a forma como eram tratados - as suas pessoas de carne e o osso não a
teriam aprovado tão prontamente .
O teatro transferiu -se do seu espaço habitual para a rua. Passou a ser a
sério e impôs de imediato o seu drama ao mundo do simples divertissement
( entretenimento ) . O público foi obrigado a prestar toda a sua atenção à
Revolução. Uma multidão de três mil pessoas invadiu a Ópera, onde estava
prestes a começar a representação de Aspasie, de Grétry, e proclamou o dia
o primeiro do luto pela perda de Necker. Outros teatros, em especial os do
Palais -Royal e do Boulevard du Temple, encerraram sem serem convida­
dos a tal. Os agentes da Bolsa anunciaram que estaria encerrada no dia .
seguinte, segunda-feira, conferindo um elemento novo de alarme finan­
ceiro ao crescente sentimento de crise . Tal como Desmoulins, muitos dos
actores deste drama sentiram-se subitamente enquadrados num luminoso
Momento Histórico. Tudo o que faziam ou diziam tinha peso, como se esti­
vesse a ser registado em tempo real por um novo Tácito. Esta gravidade
consciente tornou-se ainda mais pronunciada quando a multidão - agora
de seis mil pessoas - se ataviou com bandeiras, casacos e chapéus pretos
para expressar a seriedade fúnebre da ocasião.
As autoridades não teriam ligado muita importância a nada disto não
fossem os discursos, a gritaria e o repicar ser acompanhados pela exigên -
eia de armas. O barão de B esenval, novo comandante militar da região de
Paris, compreendeu de imediato que os cerca de seis mil efectivos das uni­
dades de polícia - os mil guardas, o Guêt, os besteiros e os arcabuzeiros,
com as suas pantalonas cerimoniais, e o punhado de maréchaussées ( esta­
cionadas fora dos limites da cidade ) - não conseguiriam lidar com o
tumulto . Havia tropas regulares estacionadas em Saint-Denis, em Sevres,
em Saint-Cloud e na cidade - nos Invalides, na Escola Militar, na Praça
Luís XV e nos Campos Elísios. No Campo de Marte, nessa mesma manhã,
antes de chegarem a Paris as notícias sobre Necker, algumas mulheres
tinham dançado com os hussardos do Regimento Berzcheny. Horas mais
tarde, os soldados estavam formados para o combate, e foram deslocadas
quatro peças de artilharia para a Ponte Luís XVI. Mas a questão de como
e quando usar esta força militar era tão problemática na Paris de 1 789
como fora no ano anterior em Grenoble e em inúmeras cidades francesas
durante toda a Primavera.
A situação escalou. O príncipe de Lambesc, no comando de uma com­
panhia do Royal-Allemand estacionada na Praça Luís XV ( que em breve
S imon S chama 1 CIDADÃOS

seria rebaptizada Praça da Revolução e é hoj e o espaço consensualmente


anódino da Praça da Concórdia ) , recebeu ordens para correr com a popu­
laça da Praça Vendôme . O procedimento habitual era a cavalaria usar a
face dos sabres, mas o resultado - também habitual - foi os cavalos serem
cercados e imobilizados pela multidão. Os dragões, em inferioridade
numérica, retiraram para a Praça Luís XV. Da Praça Vendôme, a multidão
invadiu os j ardins das Tulherias. Os populares chocaram com as tropas e
o homem que levava o busto do duque de Orleães cedido por C urtius foi
arrastado atrás de um cavalo para a Praça Luís XV. Com mais cavaleiros a
tentarem entrar nos jardins, a multidão, gritando "Au meurtre", postou-se
na esplanada balaustrada e começou a bombardear os soldados com tudo
o que tinha à mão. Choveram cadeiras, pedras de um estaleiro de cons­
trução e até partes arrancadas de estátuas, pondo os cavalos em pânico e
ferindo os soldados.
A escaramuça demorou o tempo suficiente para que a informação de
que "os Alemães e os Suíços estão a massacrar o povo" corresse pela
cidade. Unidades dos Cardes Françaises, equipadas para o combate, chega­
ram ao local para confrontar os cavaleiros de Lambesc. Foi o primeiro
momento em que uma força armada organizada fez frente aos soldados
do rei, decidida a contra -atacar. Mais espantoso ainda, os gardes apresen­
taram-se em número suficiente para expulsar a cavalaria das Tulherias.
Estava iniciada a batalha pela soberania sobre Paris.
Para tantas semanas de planeamento e preparativos militares, primeiro
pelo marechal de Broglie e depois por B esenval, não foi uma grande bata­
lha . Era óbvio que a acossada companhia presente na Praça Luís XV
necessitava de aj uda, mas esta foi fornecida pelo regimento suíço de Salis­
- Samade do modo mais trabalhoso possível. Com o S ol a pôr-se, as tropas
foram transportadas para o outro lado do Sena apenas em duas embarca­
ções, com canhões montados à proa para dissuadir o fogo da margem
direita, onde os Cardes Françaises tinham reforçado as suas posições.
Decorridas duas horas deste miserável avanço, os soldados tentaram for­
mar em ordem de combate sob um céu escuro como breu. Com o alvore­
cer, começaram a ser alvej ados das posições estabelecidas pelos Cardes
Françaises nas avenidas . À uma hora, o comandante do Salis - S amade
decidiu que a sua posição era insustentável. Quando B esenval regressou
ao local, tomou a decisão ainda mais dramática de evacuar toda a zona e
as tropas retiraram para oeste, para a Ponte de Sevres.
A retirada das tropas reais do centro da cidade entregou -o à violência
indiscriminada. Os armeiros foram obrigados a ceder mosquetes, sabres,
pistolas e bandoleiras. Um mestre- armeiro informou posteriormente a
Assembleia Nacional de que a sua oficina fora assaltada trinta vezes e que
ele tinha ficado sem 1 5 0 espadas, 4 lâminas de alabarda, 58 facas de caça,
1 O pares de pistolas e 8 mosquetes.
333

Equipadas com este armamento diverso - e com facas d e cozinha,


punhais e mocas -, as multidões que estavam na parte norte da cidade
começaram a destruir o símbolo odiado do seu confinamento: o muro dos
fermiers généraux e as suas cinquenta e quatro barriàes. O muro, a última
obra-prima técnica de Lavoisier, tinha três metros de altura e vinte e cinco
quilómetros de circunferência, e era interrompido, em intervalos regulares,
pelos extraordinários postos alfandegários de Claude Ledoux. Mas a multi­
dão não estava interessada em tecnologia nem em arquitectura. O muro sig­
nificava preços elevados e brutalidade policial: vexames e fome. Os
populares abriram brechas em vários pontos e depois deitaram-no parcial­
mente abaixo, guardando as pedras como munições para usar contra as tro­
pas. Quarenta postos alfandegários foram saqueados e as suas portas e
móveis queimados j untamente com os documentos e os registos fiscais.
Entre os atacantes, contavam-se quinze indivíduos que se descreveram ( em
1 790) como contrabandistas que, na euforia do momento, como comentou
Jacques Godechot, não compreenderam que estavam a destruir o seu pró­
prio ganha-pão. As multidões eram, na sua maioria dos faubourgs nortenhos
e incluíam vários pedreiros, pelo que será uma boa aposta dizer que alguns
dos que tinham ajudado a construir o muro estavam agora a derrubá-lo.
O terceiro alvo foi obviamente o pão ou, pelo menos, os cereais e
a farinha. O mosteiro de S aint- Lazare ( local da humilhação de
B eaumarchais ) , além de uma prisão, era um entreposto comercial .
Inevitavelmente, atraiu sob si próprio a reputação de ser uma casa cheia
de monges corpulentos sentados em cima de montanhas de cereais.
A turba, que incluía alguns dos parisienses mais pobres e mais famintos,
saqueou o mosteiro e roubou todo o tipo de alimentos que encontrou;
desapareceram grandes quantidades de cereais, bem como vinho, vinagre,
azeite, vinte e cinco queijos Gruyere e, por mais incrível que pareça, uma
cabeça de carneiro seca.
Naquela única noite de tumultos e demolições praticamente impunes,
a monarquia perdeu Paris . Só haveria alguma esperança de a reconquis ­
tar se B esenval estivesse disposto a usar as suas tropas no dia seguinte
para ocupar a cidade e lidar brutalmente com as desordens. Contudo, a
operação nocturna, confusa e caótica, abalara profundamente a cadeia de
comando . Quando os seus oficiais lhe disseram que não seria possível con­
tar com os soldados - nem sequer com os suíços e os alemães -, B esenval
optou por não passar à ofensiva.
Na segunda -feira, dia 1 3, B esenval viu -se confrontado com uma
ameaça mais séria do que o caos espontâneo da véspera. Às onze da noite
anterior, alguns dos eleitores tinham-se reunido na Câmara Municipal e
decidido convocar para o dia seguinte sessões de emergência em cada um
dos sessenta quartéis-generais de distrito . O único modo de dar a conhe­
cer a decisão era recorrer ao sinal reconhecido para alturas de perigo -
S imon Schama 1 CIDADÃOS

tocar os sinos a rebate - e reforçar a mensagem com tiros de canhão e o


rufar de tambores. Por conseguinte, foi com esta cacofonia - sinos e canhões
- que os cidadãos foram chamados a cumprir o seu dever patriótico.
Na Câmara Municipal, a preocupação principal era tomar em mãos
uma situação que ameaçava descambar para a anarquia. O meio, como em
inúmeras outras cidades de França, foi formar uma milícia aberta apenas
aos eleitores, por outras palavras, àqueles que tinham algo a perder. Cada
distrito mobilizou uma unidade de oitocentos efectivos, o que deu origem
a um exército de cidadãos de quarenta e oito mil combatentes. Não obs­
tante a sua inevitável inexperiência e a necessidade de ser orientada e ins­
truída pelos Gardes Françaises, não deixava de ser uma força imponente e
suficientemente substancial para cumprir as suas duas missões: fazer
frente a qualquer tentativa de repressão militar e conter - punindo, se
necessário - quaisquer actos ilegais de violência. Para a transferência de
autoridade consagrada nesta medida era crucial a disponibilização de
insígnias identificáveis. Dada a impossibilidade de providenciar uniformes
em tão curto espaço de tempo, usar- se-iam cocares nos chapéus e nos
casacos. O verde foi descartado quando se constatou que, além de ser a cor
da esperança, era também a das librés do conde de Artois. Como alterna­
tiva que traduziria melhor a transferência da legitimidade, as cores de
Paris, o vermelho e o azul, tornaram-se as cores dos seus cidadãos-solda­
dos. No entanto, a natureza oficial desta escolha não impediu interpreta­
ções mais românticas. Na sua qualidade de poeta patriota, Desmoulins
descreveu as cores do uniforme como o vermelho, representando o san­
gue que seria derramado pela liberdade, e o azul, representando a consti­
tuição celestial que seria a sua bênção. Um dos primeiros a usar a tricolor
foi o cidadão C urtius, que ofereceu os seus serviços à milícia no primeiro
dia em que esta entrou em funções.
O primeiro armamento da milícia não abonava muito em favor da sua
dignidade mas deu -lhe um toque ainda mais teatral. Ao saquearem o
garde-meuble real, nas proximidades das Tulherias, os milicianos apodera -
ram-se de alabardas e piques antigos, de uma espada que teria pertencido
ao seu herói popular, Henrique IV, e de um canhão incrustado com prata
oferecido a Luís XVI pelo rei do Sião. Era difícil conseguir equipamento
mais moderno . Alguns dias antes, segundo ordens de B esenval, a pólvora
fora transferida do Arsenal para a B astilha . Quando o prévôt des mar­
chands, De Flesselles, foi intimado a entregar as armas existentes na
Câmara Municipal, apenas encontrou três mosquetes. As sugestões alter­
nativas que propôs - o mosteiro cartuxo j unto ao Luxemburgo e a fun­
dição de canhões de Charleville - revelaram-se uma perda de tempo,
pelo que ao fim do dia a sua credibilidade estava profundamente com ­
prometida. D e Flesselles aceitou pedir ao comandante da guarnição dos
Invalides, De S ombreuil, que entregasse os trinta mil mosquetes que
335

estavam à s u a guarda mas d e u em procrastinar, alegando q u e primeiro


teria de obter autorização de Versalhes. Por fim, uma barcaça ancorada em
Port-Saint-Nicolas rendeu trinta e cinco barris de pólvora e foram distri­
buídas armas suficientes para as patrulhas dessa noite, 1 3 de Julho. Em
contraste com a noite anterior, os simpatizantes burgueses da Revolução
sentiram-se suficientemente em segurança para saírem à rua ao verem os
trabalhadores a serem desarmados pela milícia. Verificaram-se inclusiva­
mente alguns enforcamentos de saqueadores, a título de exemplo, e as
velas e os candeeiros a óleo voltaram a iluminar casas e ruas .
Foi ao princípio da manhã, com Paris sob um tecto de nuvens baixas,
que a batalha foi ganha . Insatisfeita com a resposta que obtivera na vés­
pera, uma imensa multidão - estimada por alguns em oitenta mil pessoas
- convergiu sobre os Invalides. Oitenta soldados da guarnição tinham
desertado alguns dias antes, e os restantes responderam com uma lenti­
dão paralisante às ordens de de Sombreuil para sabotar os trinta mil mos­
quetes que se encontravam no quartel. Os vinte veteranos invalides
incumbidos da tarefa ' não estariam no auge do viço mas talvez pudessem
ter feito melhor do que desaparafusar vinte mosquetes em seis horas se
não fosse o contágio do entusiasmo patriótico. Depois de algumas nego­
ciações infrutíferas, o peso do número forçou a entrada e De S ombreuil
mal conseguiu escapar com a vida. A guarnição aj udou mais do que impe­
diu a invasão e, pior ainda, ninguém tentou mobilizar as tropas estacio­
nadas nas proximidades, no Campo de Marte . Mais de trinta mil
mosquetes foram distribuídos, algo ao acaso, e o saque rendeu também
alguns canhões ( que tinham sido inadequadamente espigados ) .2
Não foi uma vitória conclusiva . Apesar das provas de defecção entre
algumas tropas e da inércia dos seus comandantes, ainda corria o boato de
que os regimentos estavam prestes a pôr-se em marcha e de que a arti­
lharia começaria a fazer fogo de Montmartre. De que serviam canhões e
mosquetes sem pólvora? Toda a gente sabia onde se encontrava a pólvora
que tornaria o exército dos cidadãos invencível: na B astilha. Faltava ir lá
buscá-la.

III ENTERRAD O S VIVOS?


MITO S E REALIDADE S DA BASTILHA

A Bastilha tinha uma morada . Era o N.º 2 32 da Rue Saint-Antoine,


como se fosse uma albergaria gigante, cheia de quartos mobilados e de

' Esta operação consistia em cravar parcialmente um espigão de ferro no ouvido para
depois o partir pela parte de fora, impossibilitando o funcionamento da peça em virtude da
obstrução assim criada . ( N. do T )
S imon S chama 1 CIDADÃOS

hóspedes de diversos estatutos ocupando aposentos que variavam em


função dos seus meios e da sua posição. O pátio exterior estava aberto ao
público ( excepto durante a sublevação de Julho ) , que podia conversar
com o porteiro ( sentado na sua casinha ) , passear pelas lojas aglomeradas
junto à entrada ou inspeccionar a horta do governador.
Mas também era uma fortaleza . Oito torres redondas, cada uma com
paredes de um metro e meio de espessura, erguiam-se sobranceiras ao
Arsenal e ao faubourg. Os quadros que celebram a tomada e a demolição
da Bastilha retratam-na invariavelmente mais alta do que na realidade
era. A mais alta das torres irregulares não passava dos vinte e quatro
metros de altura mas Hubert Robert, um especialista na altura de ruínas,
atribuiu-lhe um eminência babilónica . No seu quadro, as muralhas da
Bastilha tornam-se bastiões monstruosos como penhascos que só a cora ­
gem e a vontade sobre -humanas do Povo poderiam conquistar.
Tal como muitos outros dos seus entusiastas iniciais, Hubert Robert
acabaria prisioneiro da Revolução, mas em 1 789 ele já era um apaixonado
da estética romântica, as emoções flutuantes do Sublime e do Terrível
delineadas na primeira grande publicação de Edmund Burke . ' O seu
grande mentor visual era Giambattista Piranesi, que ele seguiu criando
panoramas das construções da Antiguidade caídas em pitoresca decadên­
cia. Talvez também comungasse do pesadelo de Piranesi, os carceri d 'in­
venzione, prisões da mente nas quais o génio mecânico da idade moderna
era aplicado à ciência do confinamento e da dor. A elevação da B astilha
no seu quadro, com as minúsculas figurinhas deambulando em j úbilo
pelas muralhas, sugere certamente um imenso castelo gótico de escuridão
e secretismo, um lugar no qual os homens que tinham desaparecido sem
aviso só voltaram a ver a luz do dia quando os escavadores revolucioná­
rios desenterraram os seus ossos.
Esta era a lenda da B astilha . A realidade era muito mais prosaica.
Construída em finais do século XIV como defesa contra os Ingleses, foi
convertida em prisão de Estado por C arlos VI. No entanto, foi o cardeal
Richelieu quem lhe deu a sua reputação sinistra de lugar para onde eram
enviados os prisioneiros de Estado. Durante o reinado dos Bombons, a
maioria dos seus ocupantes foi detida através de lettres de cachet por ordem
expressa do soberano e sem qualquer espécie de processo j udicial. Desde
o princípio, muitos deles eram bem-nascidos: conspiradores contra a
Coroa e os seus ministros, e prisioneiros religiosos, - protestantes e, no
princípio do século XVIII, "convulsionários" católicos acusados de fomen­
tarem heresias . Mas havia duas outras categorias importantes de detidos.
A primeira compunha -se dos autores cuj as obras eram declaradas sedicio­
sas e um perigo para a decência, para a ordem pública ou para ambas; a

' On the Sublime and Beautifu/, publicada em 1 7 5 6 . (N. do T. )


337

segunda era composta pelos delinquentes, geralmente j ovens, cuj as famí­


lias peticionavam ao rei o seu encarceramento.
As condições variavam muito. Os infames cachots• subterrâneos, húmi­
dos, viscosos e infestados de bicharada, j á não eram usadas no reinado de
Luís XVI, mas as calottes', logo por baixo do telhado, eram quase tão más:
no Inverno, deixavam entrar a neve e a chuva; no Verão, o calor quase
asfixiava os presos. C ontudo, para a maioria dos detidos, as condições não
eram tão más como noutras prisões, em particular os horrores que preva­
leciam em Bicêtre . (Na verdade, em comparação com o que as tiranias do
século XX têm providenciado, a Bastilha era um paraíso. ) Eram disponi­
bilizadas ao governador verbas para a subsistência dos detidos em função
dos diferentes estatutos : quinze libras por dia para os conseillers do
Parlamento, nove para os burgueses e três para os comuns. Para ­
doxalmente, os "hÓmens de letras", que criaram o mito de uma fortaleza
de atrocidades, eram os recipientes da maquia mais elevada: dezanove
libras francesas por dia. Mesmo partindo do princípio de que o governa ­
dor e o seu service lucravam com o esquema, estas diárias estavam consi­
deravelmente acima do nível ao qual a maioria da população de França
tentava subsistir.
A maioria dos prisioneiros era mantida em celas octogonais, com cerca
de cinco metros de diâmetro, nos níveis médios das torres, que tinham
entre cinco e sete andares. No reinado de Luís XVI, cada cela dispunha de
uma cama com dossel de sarj a verde, uma ou duas mesas e várias cadei­
ras . Todas estavam equipadas com um fogão ou lareira, e em muitas delas
os presos podiam subir até uma j anela com três barras de ferro através de
uma escada com três degraus embutida na parede. Muitos eram autoriza­
dos a levar os seus haveres para a prisão e a manter cães ou gatos para
lidar com a bicharada. O marquês de Sade, que esteve detido na B astilha
até à semana anterior à tomada, aproveitou estes privilégios ao máximo .
Levou para a prisão (entre outras coisas) uma secretária, um guarda-fatos
- o nécessaire para se vestir -, um conj unto completo de camisas, calções
de seda, fracs cor de camelo, roupões, vários pares de botas e sapatos, os
seus morilhos e tenazes predilectos, quatro retratos de família, tapeçarias
para pendurar nas paredes estucadas, travesseiros e almofadas de veludo,
colchões para tornar a cama mais confortável, uma selecção de chapéus,
três fragrâncias - água de rosas, água de laranj a e água-de-colónia - para
se perfumar e muitas velas e lamparinas de azeite para a noite. Estas eram
necessárias porque aquando da sua entrada, em 1 784, o marquês levou
também consigo uma biblioteca de 1 3 3 volumes, incluindo as histórias de
Rume, as obras completas de Fénelon, novelas de Fielding e Smollet, a

4 Em francês no original: calabouços . ( N. da R . )


' Em francês no original: calota - parte central d e u m a abóbada circular. ( N. d a R. )
S imon Schama 1 CIDADÃOS

Ilíada, as peças de Marmontel, literatura de viagens sobre e por C ook e


Bougainville nos Mares do Sul, bem como uma Histoire des Filles Célebres e
Danger d 'Aimer Étranger.
Se alguma vez houve uma j ustificação para a Bastilha, foi o marquês
de Sade. No entanto, se os crimes que o enviaram para lá foram invul­
garmente repugnantes (pelos padrões de qualquer século ) , as condições
em que esteve detido não foram. Recebia quase todas as semanas visitas
da mulher, sofredora de longa data, e quando os seus olhos se deteriora­
ram por causa da leitura e da escrita passou a ser visitado regularmente
por oculistas. Tal como acontecia com outros detidos na torre da
"Liberdade ", podia passear nos j ardins do pátio interior e nas torres, um
direito que só lhe foi cerceado quando abusou, gritando obscenidades ale­
gres ou indignas aos passantes ( coisa que começou a fazer com crescente
frequência em 1 789 ) .
A comida - a refeição é um evento crucial na vida de qualquer preso
- também variava em função da condição social dos detidos. Os comuns
encarcerados por envolvimento nos motins da "guerra da farinha"
de 1 77 5 eram provavelmente alimentados a papas e sopas, por vezes
decoradas com um pedaço de toucinho ou banha, mas até eles dispunham
de uma dotação decente de pão, vinho e queij o . E não era necessário ser­
se nobre para usufruir de uma cozinha muito melhor. O escritor
Marmontel babou -se ao recordar "uma sopa excelente, um naco de carne
suculento, uma coxa de galinha cozida a escorrer gordura [no século XVIII
era um elogio] ; um pratinho de alcachofras ou espinafres fritos e marina­
dos; excelentes peras Cressane; uvas, uma garrafa de Borgonha velho e o
melhor café Moka " .
Ninguém queria estar n a Bastilha, mas a vida l á dentro, para o s privile­
giados, podia tornar- se suportável. O álcool e o tabaco eram autorizados, e
no reinado de Luís XVI foram introduzidos os jogos de cartas para os deti­
dos que partilhavam celas, e uma mesa de bilhar a pedido dos nobres rurais
bretões. Alguns dos presos mais dados às letras consideraram mesmo que
uma estadia na Bastilha firmava as suas credenciais como inimigos confes­
sas do despotismo. O abade Morellet, por exemplo, escreveu: "Vi a glória
literária iluminar os muros da minha prisão . . . Depois de perseguido, tor­
nar-me-ia conhecido . . . e aqueles seis meses de Bastilha constituiriam uma
excelente recomendação e fariam infalivelmente a minha fortuna. "
A confissão d e Morellet sugere que à medida que a realidade da
Bastilha se foi tornando cada vez mais anacrónica, a sua demonologia tor­
nou-se acrescidamente importante na definição da oposição ao poder esta­
tal. Para retratar a monarquia ( com algum fundamento ) como arbitrária,
obcecada com o secretismo e investida de poderes caprichosos sobre a vida
e a morte dos seus cidadãos, a Bastilha era o símbolo perfeito desses vícios .
É seguro dizer-se que se não tivesse existido teria de ter sido inventada.
339

E em certos aspectos foi reinventada por uma sucessão d e escritos de


presos que tinham efectivamente sofrido dentro dos seus muros, mas
cuj os relatos da instituição transcendem tudo o que terão alguma vez
experimentado. As suas narrativas são tão vívidas e tão assombrosas que
conseguiram criar uma oposição inflexível que aglutinou os críticos do
regime. A oposição maniqueísta entre o encarceramento e a liberdade, o
secretismo e a fraqueza, a tortura e a humanidade, a despersonalização e
a individualidade e o céu aberto e a escuridão fechada eram elementos
básicos da linguagem romântica na qual a literatura antiBastilha se
expressou. A crítica era tão poderosa que, quando a fortaleza foi tomada
de assalto, a realidade anticlímax da libertação de apenas sete presos ( dois
lunáticos, quatro falsários e um delinquente aristocrático que dera
entrada com Sade ) foi impedida de defraudar as expectativas míticas.
Como veremos, a propaganda revolucionária refez a história da Bastilha
com textos, imagens e obj ectos, de modo a conformar- se mais plenamente
com o seu mito inspirador.
A década de 80 do século XVIII foi a grande época da literatura pri­
sional. Não se passava praticamente um ano sem um novo contributo
para o género, geralmente com o título La Bastille Devoilée ou uma varia ­
ção . Recorria aos artifícios góticos da praxe, provocando arrepios de
repulsa e medo a par de momentos de esperança de acelerar o pulso . Em
particular, como apontou Monique C ottret, bebeu num terror que
estava na moda : ser-se enterrado vivo . Era uma preocupação tão grande
em finais do século XVIII (e não apenas em França ) que as pessoas
tinham a possibilidade de aderir a sociedades que garantiam enviar um
dos seus membros ao funeral para procurar sinais e sons de vitalidade e
impedir o enterramento em vida .
Naquele que foi, de longe, o maior e o mais popular ( merecidamente )
de todos os livros antiBastilha, as Mémoires de la Bastille, de Linguet, a pri­
são é j ustamente retratada como um túmulo para os vivos. Em algumas
das suas passagens mais potentes, Linguet equipara o cativeiro à morte,
uma situação pior ainda porque o indivíduo oficialmente extinto está ple­
namente consciente da sua obliteração.
As memórias de Linguet ardem com o fogo da: traição pessoal. Segundo
diz, foi atraído de Inglaterra, onde publicava os seus Annales Politiques, a
França, em 1 7 80, com o entendimento expresso que não seria j ulgado.
Logo depois do regresso, foi despachado para a B astilha por ter atacado o
marechal D uras. O seu relato das condições físicas em que esteve detido é
muito mais cruciante do que as experiências de Morellet, Marmontel ou
Sade, e não é minimamente confirmado pelos arquivos da Bastilha. Mas
não há motivos para partir do princípio de que ele mente quando fala em
"dois colchões comidos pelos vermes; uma cadeira de palha com o assento
prestes a desprender-se, uma mesa desdobrável . . . dois potes de porcelana,
S imon Schama 1 CIDADÃOS

um para beber, e duas pedras da calçada para fazer uma fogueira" . (Algum
tempo depois, os carcereiros levam-lhe atiçadores e tenazes - mas não
queixa-se ele, morilhos ) . Os seus piores momentos são quando os ovos
das traças eclodem e toda a sua roupa de cama e pessoal se transforma em
"nuvens de borboletas".
Apesar da esqualidez destas condições, é o tormento mental do encar­
ceramento - mais do que o físico - que provoca mais sofrimento a Linguet
e que ele comunica com uma originalidade espantosa no seu livrinho. As
suas memórias do cárcere são efectivamente o primeiro relato da psicolo ­
gia da prisão na cultura ocidental e têm para o leitor moderno uma espé­
cie de poder profético que ainda torna a sua leitura perturbante . Michel
Foucault enganou -se redondamente ao pressupor que a categorização dos
presos era uma das técnicas mais repressivas, pois Linguet obj ecta com
toda a veemência exactamente contra a ausência de categorização .
"A Bastilha, como a própria morte", lamenta-se ele, "igualiza todos os que
engole : o sacrílego que meditou na ruína da sua pátria e o valente que
apenas é culpado de ter defendido os seus direitos com um ardor exces­
sivo" (ou sej a, ele próprio ) . E o pior era ter de partilhar o mesmo espaço
com aqueles que eram encarcerados por abominações morais.
Tudo o que se prendia com o regime da prisão, mesmo quando pare ­
cia - superficialmente - minorar a brutalidade, fazia aparentemente parte
de um desígnio: despojar o preso da sua identidade - o "eu" que para os
românticos era sinónimo da própria vida. Aquando da admissão, por
exemplo, os obj ectos potencialmente perigosos - uma categoria que
incluía as tesouras e o dinheiro - eram confiscados e registados em inven­
tário para serem devolvidos aquando da libertação, exactamente como o
procedimento moderno. Os motivos para este confisco eram lidos ao
preso, um processo que Linguet considera intencionalmente humilhante :
é a redução sistemática de um adulto racional à dependência de uma
criança. Linguet vê esta condição acentuada por toda a espécie de peque­
nas tiranias, tais como a obrigação de ter uma escolta quando se exercita
num patiozinho rodeado de altas muralhas.
Pior ainda era a impossibilidade de comunicar, particularmente irri­
tante para um escritor e terrível num cativeiro de duração indeterminada.
Roubada sem aviso - e geralmente de noite - ao mundo dos vivos, a
vítima deste rapto de Estado era privada de todo e qualquer meio de
comunicar a sua existência à família ou aos amigos. Isto não constituía um
problema para a maioria dos detidos, mas Linguet esteve algum tempo
privado de materiais de escrita e foi esta impotência que mais o oprimiu .
A espessura massiva das paredes, que tornava impossível falar com os
outros presos ou ouvi-los, ou mesmo pedir um médico em caso de doença
súbita, acrescia à sensação de um enterro em vida. Os muros da B astilha
tornavam-se a fronteira entre o ser e a inexistência. Quando o barbeiro da
341

prisão foi levado a Linguet, ele disse-lhe a frase que se tornaria famosa:
"Puisque vous êtes le barbier de la Bastille, faites-moi le plaisir de la raser. "6

IV O HOMEM QUE GOSTAVA DE RATAZANAS

Se Linguet foi o escritor que permitiu aos milhares de leitores do seu


livro sentir, por interposta pessoa, a queda na escuridão, outro livro, bas­
tante diferente mas igualmente popular, ofereceu aos seus leitores a ela­
ção da fuga . Neste sentido, a autobiografia do chevalier Latude é o
complemento perfeito para as memórias de Linguet.
"Latude" é na realidade um soldado chamado Danry que, terminada a
Guerra da Sucessão Austríaca, se vê em Paris sem meios nem perspecti­
vas . À semelhança de muitos outros aventureiros de segunda,
Danry /Latude tenta usar o aparelho do favoritismo da corte para se pro­
mover, mas fá- lo recorrendo a um estratagema invulgarmente arriscado.
Em 1 7 50, escreve uma carta pessoal a Madame de Pompadour - obj ecto
de inúmeras conspirações pessoais -, na qual a alerta para uma carta­
-bomba que está prestes a ser-lhe enviada . Danry/Latude tem a certeza do
que diz porque o autor da carta-bomba é ele próprio. O plano, sem pés
nem cabeça, é rapidamente descoberto e em vez de receber uma pensão
por ter salvado a vida da amante do rei, Latude dá consigo na Bastilha.
Transferido alguns meses depois para Vincennes, Latude concretiza a pri­
meira de uma série de fugas.
A descrição que Latude faz dos seus primeiros momentos de liberdade
- correndo por campos e vinhas, fazendo-se à estrada, escondendo-se
num quarto em Paris - é de divertida credibilidade . Mas ainda mais espan­
tosa é a sua decisão de se libertar do medo de ser descoberto voltando a
escrever a Madame de Pompadour, explicando-lhe a sua loucura e pondo­
-se à sua mercê . Tendo travado conhecimento com uma eminência como
o Dr. Quesnay,7 Latude confia-lhe o seu memorando apologético .
Erro grave . Ingenuamente, Latude está tão seguro de merecer clemên­
cia que indica a sua morada na carta . Passado um dia, está de regresso à
Bastilha. Mas é um revés, não uma derrota . O inocente acostuma -se rapi­
damente às manhas do mundo. Alguns meses mais tarde, solta um tij olo
na capela da prisão e engendra uma caixa de correio secreta; em conj unto
com o seu companheiro de cela, d' Alegre, passa seis meses a fabricar a
escada de corda que o devolverá à liberdade. Esta obra extraordinária
exige um sacrifício considerável pois os degraus têm de ser feitos com a

' "Já que sois o barbeiro da B astilha, fazei- me o favor de a arrasar. " O verbo raser tam­
bém significa barbear, mas aqui foi usado no sentido de arrasar; demolir; destruir para se
conseguir um trocadilho . ( N. da R . )
' O Dr. François Quesnay, médico da corte. ( N. d o T. )
S imon Schama 1 CIDADÃOS

lenha dada aos presos no Inverno. O resto é feito com farrapos de cami­
sas e roupa de cama, atados e cosidos com um moroso cuidado. A barra
do tripé da mesa é transformada numa faca . Com a sua paixão para atri­
buir nomes sagrados aos instrumentos da liberdade (e também como pre ­
caução contra a sua descoberta ) , Latude chama à escada "Jacob " e à corda
branca a sua "pomba" . Latude apresenta -se nas suas memórias como o
perfeito artesão: frugal, industrioso, engenhoso e puro de coração - um
Rousseau condenado .
Na noite de 2 5 de Fevereiro, os dois presos sobem pela chaminé da cela,
"quase sufocados com a fuligem e queimados vivos", e depois abrem a grade
para subirem para o telhado de uma das torres. De seguida, usam a escada
de sessenta metros para descer para um dos fossos. É ali, contará Latude,
que ele sente remorsos por ter de abandonar as suas ferramentas e a escada
que tão bem o serviram, "monumentos raros e preciosos à indústria
humana e virtudes que foram o culminar do amor à liberdade" . Mas os dois
homens ainda não estão livres. A chuva com a qual contavam para afastar
as sentinelas parou e os soldados voltaram a fazer as suas rondas, armados
com grandes lanternas. A única maneira é por baixo, remover os tijolos um
a um, com o mínimo barulho, até conseguir abrir uma saída. Quando final­
mente conseguem abrir um buraco suficientemente grande para se esguei­
rarem, a escuridão fá-los cair num aqueduto e quase se afogam.
Depois desta provação, um alfaiate esconde-os durante algum tempo na
abadia de Saint- Germain. Passam depois aos Países Baixos, onde se sepa­
ram. Em Antuérpia, Latude encontra um saboiano que, sem mais nem
menos, lhe conta a história de dois homens que fugiram da Bastilha. Um já
foi recapturado e os "isentos" - os polícias que se atravessam livremente as
fronteiras - andam à caça do outro. Latude é capturado em Amesterdão e,
preso num horrível arnês de cabedal, "mais humilhante que o de qualquer
escravo", é devolvido à B astilha. A sua liberdade durou apenas três meses.
Desta vez, as asas do passarão são cortadas. Para que a fuga lhe sej a
impossível, Latude é metido num dos horríveis cachots subterrâneos, e é
neste confinamento de verdadeiro pesadelo que ele descobre novos com­
panheiros: as ratazanas . C omparadas com a desumanidade que Latude
sofreu, as ratazanas parecem amorosas. Utilizando bocados de pão, Latude
treina-as a comerem do seu prato e a deixarem-no coçar-lhes o pescoço e
o queixo . Também recebem nomes e algumas, como a fêmea "Rapino­
-Hirondelle ", pedem como um cão ou fazem truques em troca dos peda­
citos de pão. Esta cena de idílio no Inferno completa-se quando Latude
consegue fabricar uma flauta primitiva com pedaços da grade e assim, de
tempos a tempos, faz uma serenata aos seus amigos roedores, tocando ­
-lhes uma ária ou uma gavota8 enquanto eles roem satisfeitos os restos da

' Antiga dança francesa a dois tempos, muito em voga nos séculos XVII e XVIII . ( N.da R . )
343

sua comida . São, escreverá ele, a sua "pequena família", vinte e seis, e
Latude estuda o seu ciclo de vida - acasalamentos e nascimentos, lutas e
brincadeiras - com a terna preocupação do guardião e tutor de Rousseau .
Passam os anos. Latude mantém-se ocupado a preparar um proj ecto de
reforma dos alabardeiros e piqueiros do exército francês, tem a certeza de
que interessará ao ministro da Guerra . Privado de papel, usa tabuletas de
pão que humedece com a saliva, achata e depois seca, e para tinta recorre
ao seu sangue diluído em água. Quando o retiram do cachot, fica devas­
tado por perder as suas ratazanas mas constrói uma nova família com os
pombos, até que o governador, num acesso de vingança, os manda matar.
Latude volta a fugir em 1 76 5 mas compromete-se de novo devido à sua
incurável inocência, que o leva a apresentar-se em Versalhes no gabinete
de um ministro em cuj a reputação de benevolência confia . É novamente
encarcerado no Castelo de Vincennes. Porém, já com o novo soberano, a
sua história chega ao conhecimento de Malesherbes, que ordena a sua
transferência para o manicómio de Charenton. Latude volta a encontrar
D 'Alegre, o seu velho companheiro de fuga, cuj a sanidade mental foi
completamente destruída pelos , anos de cárcere . Ao ver Latude, D' Alegre
toma-o por Deus e cobre - o de lágrimas e bênçãos.
Latude é finalmente liberto em 1 777 mas a publicação imediata das
suas Mémoires Authentiques de Latude garante -lhe um novo encarceramento,
primeiro no Petit Châtelet e depois na Bicêtre. Latude continua a escrever
relatos das suas muitas provações até que um deles chega às mãos de uma
pobre vendedora de panfletos e revistas, Madame Legros. Ela começa a
fazer campanha em nome de Latude junto das residências dos les Grands,
até que consegue encontrar um público receptivo nas pessoas de Madame
Necker e da própria rainha . Latude é finalmente liberto, em Março de
1 784, e, apesar de ser formalmente "exilado" de Paris, é autorizado a resi­
dir na cidade e é-lhe concedida uma pensão de quatrocentas libras france ­
sas por ano. Ao contrário de d' Alegre, Latude conseguiu passar por vinte e
oito anos de cadeia com o seu juízo praticamente intacto e torna-se uma
celebridade imediata . Elogiado pela Academia Francesa e por Jefferson,
Latude torna -se o beneficiário de um fundo público .
A história de Latude, publicada em muitas formas e edições antes da
Revolução, parecia o triunfo do honnête homme sobre as piores misérias que
o despotismo podia infligir. Juntamente com as memórias de Linguet e de
outros escritos como La Bastille Devoilée, contribuiu para uma campanha
crescente no sentido de, primeiro, restringir as lettres de cachet e o encarce ­
ramento sumário àqueles que ameaçavam deveras a paz pública, e depois
em prol da pura e simples demolição da Bastilha. Estes planos coaduna ­
vam-se com os esquemas de embelezamento urbano que eliminavam as
muralhas e as cidadelas medievais para darem lugar a jardins, praças e pas­
seios públicos. Em 1 784, como acompanhamento ao memorando de
S imon S chama 1 CIDADÃOS

Breteuil limitando as lettres de cachet, o arquitecto Brogniard propôs, em subs­


tituição da Bastilha, um espaço aberto, circular e com colunas, um projecto
que foi ressuscitado pela Academia de Arquitectura em Junho de 1 789.
Assim, poucas semanas antes de cair perante o exército dos cidadãos, a
Bastilha já tinha sido demolida nos memorandos oficiais . No grande espaço
amplo criado pela sua remoção seria erguida uma coluna, talvez de bronze,
mais alta do que a prisão demolida. A base seria revestida com rochas de
onde fontes jorrariam água, ao gosto da nova estética romântica . Uma sim­
ples inscrição bastaria para indicar à posteridade a vitória da benevolência
sobre a tirania: "Luís XVI, Restaurador da Liberdade Pública" .
Mas esta vitória pacífica nunca aconteceria. N a tentativa d e impor a
sua vontade pela força militar, a monarquia pôs fim a toda e qualquer pos­
sibilidade de recriar a sua legitimidade como benfeitora da liberdade. Pelo
contrário, as torres da B astilha, com os seus canhões postados nas ameias,
eram o símbolo da intransigência. Por conseguinte, ainda que, como os
historiadores não se cansam de observar, a multidão de mil pessoas que se
congregou à frente do pátio da Bastilha pretendesse deitar a mão à pól­
vora e não demolir a fortaleza, também fora inquestionavelmente mobi­
lizada pela força imensa da mística maléfica da Bastilha.
O marquês de Sade sabia muito bem como explorá-la. Informado de
todas as notícias de Versalhes durante as visitas semanais da mulher, ele
decidiu entrar para o rol dos honrosos mártires da Bastilha. No princípio
de Julho, as tiradas que gritava das torres aos transeuntes tornaram-se
subitamente políticas. Privado destas passeatas, seguiu a tradição de enge ­
nho artesanal da Bastilha transformando num megafone improvisado o
funil de metal que usava para depositar a sua urina e águas sujas no fosso.
Da janela de Sade, a intervalos regulares como boletins noticiosos, ouvia­
-se o anúncio de que o governador de Launay planeava massacrar os pre ­
sos ou que estavam a ser massacrados e que o Povo devia libertá -los antes
que fosse tarde de mais . Por volta do dia 5 de Julho, de Launay, com os
nervos em franj a, mandou transferir o agitador para C harenton, onde
Sade se enraiveceu perante a indignidade de estar encarcerado com tan -
tos epilépticos e lunáticos.
O marquês de Sade tornara -se um revolucionário.

V 14 DE JULHO DE 1 789

Bernard-René de Launay nasceu na B astilha, onde o pai era governa­


dor, e morreu na noite de 1 4 de Julho, à sombra das suas torres . Sa.de, o
revolucionário aristocrata, zombou do "soi-disant marquês, cuj o avô era
valet-de-chambre" . Na realidade, o governador era um típico funcionário
menor do Antigo Regime, razoavelmente consciencioso embora um
345

pouco rígido, certamente melhor do que disciplinadores como o governa ­


dor B erryer, que fez a vida tão negra a Latude.
No dia 14 de Julho, De Launay estava j ustificadamente apreensivo.
A responsabilidade pela integridade da autoridade régia em Paris parecia­
-lhe ter caído nos braços por defeito. O barão de B esenval tinha pratica­
mente evacuado o centro da cidade . O comandante dos Invalides
tinha-lhe enviado uma quantidade enorme de pólvora, 2 5 0 barris ( cerca
de 1 5 toneladas ) , mas a força de que ele dispunha para a defender era
modesta . Em resposta ao seu pedido urgente de reforços, tinham-lhe
enviado, no dia 7 de Julho, 32 homens do regimento suíço Salis - S amade,
que se juntaram aos 82 pensionistas invalides estacionados na fortaleza.
Não era expec:tável que os pensionistas, bem conhecidos no faubourg por
serem ociosos amigáveis, defendessem a fortaleza até ao último homem.
Pior ainda, em caso de cerco, a Bastilha possuía alimentos para apenas
dois dias e nenhuma fonte interna de água. No fim, foi provavelmente isto
que decidiu a sua capitulação .
C erca de novecentos parisienses congregaram-se em frente do pátio
exterior. Incluíam alguns homens de estatuto e posses, tais como
Santerre, um amigo de Réveillon que era dono da famosa fábrica de cer­
vej a Hortensia, especializada nas ales e stouts de tipo inglês que tinham
muita procura na capital, e um número considerável de desertores e de
elementos dos Cardes Françaises. No entanto, os mais numerosos eram, de
longe, os artesãos que viviam no bairro de Saint-Antoine - marceneiras,
carpinteiros, chapeleiros, serralheiros, sapateiros, alfaiates, entre outros.
Segundo a lista dos vainqueurs de la Bastille, estavam também presentes em
bom número os comerciantes de vinhos, isto é, os proprietários dos caba­
rés que serviam e vendiam vinho e que eram os quartéis-generais da boa­
teira e da política do bairro. Um deles, Claude Cholat, cuj a loj a de vinhos
se situava na Rue Noyer, deixou um retrato gráfico "primitivo " merecida ­
mente famoso dos acontecimentos do dia. Das seiscentas pessoas sobre as
quais possuímos informações, quase quatrocentas tinham imigrado das
províncias para Paris, e tendo em conta que no dia 14 de Julho o preço do
pão de dois quilos atingiu um novo recorde, a maioria das suas famílias
estaria certamente faminta.
E estavam também cheias de medo. Na noite anterior, tinham circu­
lado rumores de que as tropas se preparavam para marchar ou que j á
estavam a caminho d e Sevres e Saint-Denis para esmagar a insurreição de
Paris. Além do mais, a B astilha parecia estar bem equipada, com quinze
canhões nas torres e três no pátio interior, apontados para os portões .
Outras doze peças foram montadas nas muralhas, e, n o meio d o s e u ner­
vosismo, De Launay fora ao ponto de reunir um arsenal bizarro de pro­
jécteis, tais como pedras da calçada e bocados de ferro ferrugento, para
lançar sobre os assaltantes caso fosse necessário.
S imon S chama 1 CIDADÃOS

O obj ectivo inicial da multidão era simplesmente neutralizar os


canhões e apoderar- se da pólvora . Com este intuito, dois delegados da
Câmara Municipal solicitaram um encontro com o governador, e dado
que eram dez da manhã foram convidados para o déj euner. Contudo, o
almoço, mesmo pelos padrões do Ancien Régime, parecia nunca mais aca­
bar. A multidão ficara desconfiada logo no princípio das negociações,
quando De Launay apenas deixara entrar os dois delegados, e exigira em
troca três soldados como "reféns " . O prolongado almoço, combinado com
algumas movimentações j unto dos canhões montados nas muralhas ( esta­
vam a ser afastados das ameias) intensificaram a suspeição reinante .
O quartel-general do distrito, em Saint-Louis-la - C ulture, enviou um
segundo delegado, Thuriot de La Roziere, que também foi admitido à pre ­
sença de De Launay e que era portador de instruções específicas. Os
canhões e a pólvora deviam ser removidos e entregues à milícia que
representava a cidade de Paris, e uma unidade da milícia devia ser admi­
tida na B astilha . De Launay retorquiu que estava impossibilitado de cum­
prir estas exigências até receber instruções de Versalhes, mas levou
Thuriot às muralhas para inspeccionar a retirada dos canhões .
Meio- dia e meia. Nenhuma das partes conseguiu nada de concreto .
Nenhuma das exigências essenciais de Thuriot foi aceite, e apesar de ele
ter tentado que os invalides chegassem a um entendimento com o povo,
os oficiais de D e Launay insistiram que seria desonroso entregar a forta ­
leza sem ordens expressas dos seus superiores hierárquicos. Thuriot
decide regressar à C âmara Municipal e obter novas instruções para nego ­
ciar. Os eleitores não querem inflamar a situação. À uma e meia, quando
Thuriot se prepara para regressar à Bastilha com outro eleitor, Ethis de
C orny, equipados com um clarim e um megafone para anunciarem ao
povo a remoção dos canhões, a Câmara Municipal estremece com uma
explosão, que é seguida do som de disparos de mosquete provenientes da
fortaleza .
Durante a ausência de Thuriot, a impaciência da multidão chegou
finalmente ao limite . Ouvem-se gritos de "Entreguem-nos a Bastilha ! " e
os novecentos manifestantes, cada vez mais furiosos, entram no pátio
interior, que não está defendido. Um grupo que inclui um ex-soldado tor­
nado fabricante de carruagens, subiu para o telhado de uma perfumaria
adj acente ao portão do pátio interior e, não encontrando as chaves, par­
tiu as correntes da ponte levadiça . A ponte caiu sem aviso, matando um
dos que estavam em baixo, e centenas de sitiantes atravessaram-na e
entraram no pátio interior. Os soldados gritam às pessoas para se retira­
rem; caso contrário, abrirão fogo, mas a ameaça é erroneamente inter­
pretada como um convite à aproximação. São disparados os primeiros
tiros. Ambos os lados dirão mais tarde que o outro foi o primeiro a dispa­
rar, mas dado que os populares não sabem que foram os seus a baixar a
347

ponte levadiça j ulgam que os deixaram entrar no pátio interior para


serem ceifados pelos canhões naquele espaço exíguo.
É uma suposição consonante com todas as outras suposições de traição
e conspiração - o cumprimento cordial que esconde desígnios de morte e
destruição. Artois e os responsáveis pelo afastamento de Necker; De
Flesselles, que aconselhou a procurar armas em lugares vazios; a rainha,
que parece terna mas que congemina a vingança - para o povo, todos eles
pertencem ao grupo dos maus da fita. E agora j unta-se-lhes De Launay, o
governador que desceu a ponte levadiça para poder apontar melhor.
A raiva desencadeada por este "logro" impossibilita às subsequentes dele ­
gações de eleitores ( e são muitas ) atravessar a zona de confronto e orga ­
nizar um cessar-fogo .
O combate encarniça-se. Por volta das três da tarde, a multidão é refor­
çada com companhias dos Cardes Françaises e por desertores, incluindo
vários veteranos da campanha americana . Dois deles, o segundo-tenente
Jacob Elie, porta-bandeira do Regimento de Infantaria da Rainha, e Pierre­
Augustin Hulin, director da lavandaria da rainha, serão cruciais na con­
versão de um assalto incoerente num assédio organizado. Tal como muitos
dos participantes-chave nos acontecimentos de 1 789, Hulin foi revolucio­
nário em Genebra, em 1 782, e no dia anterior, ao encontrar Madame de
Stad j urou "vingar vosso pai naqueles canalhas que nos estão a tentar
matar" - uma promessa que não se sabe se agradou à senhora .
Hulin e Elie trazem consigo um número considerável de armas retira ­
das de manhã dos Invalides; incluem duas peças de artilharia, uma de
bronze e a outra o canhão siamês incrustado com prata que foi retirado
do armazém real no dia anterior. Será um brinquedo de Luís XVI a pôr fim
ao Antigo Regime em Paris.
Decide -se apontar os canhões aos portões (as balas parecem ricoche­
tear inofensivamente nas muralhas, com os seus dois metros e meio de
espessura ) . No entanto, antes desta operação, as carroças cheias de
estrume e palha incendiadas por Santerre para cobrir com fumo as movi­
mentações dos sitiantes têm de ser removidas para permitir a aproxima­
ção aos portões. C orrendo algum risco pessoal, Elie trata do assunto
aj udado por um capelista conhecido por "Vive l'Amour". Os canhões são
posicionados, carregados e apontados.
Um portão de madeira separa os canhões dos sitiantes das peças dos
defensores - distarão uns trinta metros uns dos outros. S e ambos os lados
tivessem disparado com a artilharia, o resultado teria certamente sido
uma carnificina medonha. C ontudo, se os atacantes não conseguem ver
os canhões dos defensores, estes estão bem cientes do perigo em que se
encontram. Confrontado com a crescente relutância dos invalides de pro­
longarem o combate, De Launay fica desmoralizado. Além do mais, não
há comida para resistir a um cerco prolongado. A principal preocupação
S imon S chama 1 CIDADÃOS

do governador passa a ser garantir uma rendição que preserve a honra e


as vidas da guarnição. Tem um trunfo na manga: a pólvora. No seu
momento mais negro, De Launay ainda pondera mandá -la pelos ares - e
destruir uma grande parte do bairro de Saint-Antoine - em vez de capi­
tular. Mas depois, dissuadido deste acto de desespero, decide usá-lo como
ameaça para garantir uma evacuação honrosa.
À míngua de uma bandeira branca, é pendurado um lenço numa das
torres e os defensores da B astilha cessam fogo . Por volta das cinco, uma
missiva escrita pelo governador, solicitando uma capitulação honrosa - e
ameaçando mandar a pólvora pelos ares em caso de recusa - é enfiada
numa fenda da ponte levadiça do pátio interior. É colocada uma prancha
sobre o fosso e alguns homens sentam-se na extremidade mais afastada
para não a deixarem mexer. A primeira pessoa que tenta atravessar cai ao
fosso mas a segunda - cuj a identidade será acerrimamente disputada -
recolhe a missiva . Porém, a exigência é recusada. Em resposta à fúria con­
tinuada da multidão, Hulin prepara-se aparentemente para disparar o
canhão siamês quando, de súbito, a ponte levadiça desce .
Os vainqueurs lançam-se em frente, libertam os sete presos, apoderam­
se da pólvora e desarmam os defensores. Os guardas suíços, que despiram
prudentemente as suas casacas, são inicialmente tomados por detidos e
ninguém os molesta. Todavia, alguns invalides recebem um tratamento
brutal. Um soldado chamado Béquard, que foi um dos responsáveis por
dissuadir De Launay de fazer explodir a pólvora, fica sem uma mão assim
que abre um dos portões da fortaleza. C onvencida de que ele é um dos
carcereiros, a multidão passeia a mão pelas ruas - ainda agarrada à chave .
À noite, B équard é novamente confundido com outra pessoa, desta vez
com um dos artilheiros que foram os primeiros a disparar sobre o povo, e
enforcam-no na Praça de Greve, j untamente com um dos seus camaradas;
os trinta guardas suíços são formados em linha e obrigados a assistir.
O combate roubou a vida a oitenta e três membros do exército dos cida­
dãos. Outros quinze morreram dos ferimentos. Só um dos invalides morreu
no combate e três ficaram feridos. O desequilíbrio foi suficiente para a mul­
tidão exigir um sacrifício punitivo, que recai sobre De Launay, no qual se
concentra todo o ódio que, em grande medida, foi poupado à guarnição. Os
seus atributos de comando, uma espada e um bastão, são-lhe retirados e ele
é conduzido até à Câmara Municipal por entre uma enorme multidão que
está convencida de que ele foi frustrado na sua conj ura diabólica para mas­
sacrar o povo. Hulin e Elie conseguem impedir a multidão de o matar na
rua, mas ele é por mais de uma vez atirado ao chão e severamente espan­
cado. Durante o traj ecto, cobrem-no de insultos e de cuspo. No exterior da
Câmara Municipal, são apresentadas diversas sugestões para lhe pôr termo
à vida, incluindo prendê-lo a um cavalo e arrastá-lo pela calçada. Um pas­
teleiro chamado Desnot diz que é melhor levá-lo para a Câmara mas nesse
349

momento De Launay, nas últimas, grita "Deixai-me morrer! ", e desata aos
pontapés, acertando em cheio na virilha de Desnot. É imediatam�nte ata­
cado com facas, espadas e baionetas; depois, atiram-no para uma sarj eta e
acabam com ele com uma barragem de tiros de pistola.
A Revolução começou em Paris com cabeças erguidas acima da multi­
dão. Cabeças de heróis, feitas de cera, substitutas de comandantes. Tinha
de acabar de forma semelhante: com mais cabeças, mas desta vez troféus
da pelej a . Dão uma espada a Desnot mas ele descarta-a e pega numa faca
de bolso, com a qual corta a cabeça a De Launay. Pouco depois, De
Flesselles, o prévot des marchants, também ele acusado de enganar intencio­
nalmente o povo na procura das armas, é morto a tiro ao sair da C âmara
Municipal. As cabeças são espetadas em piques e ficam a ondear e a pingar
sobre a multidão que enche as ruas exultante, rindo e cantando .
Nove dias depois, há mais duas cabeças em exposição: as de Bertier de
Sauvigny, intendant de Paris, e de Foulon, um dos ministros do governo
que teria substituído o de Necker. Tendo Foulon sido acusado de promo­
ver a fome, enchem a boca da cabeça com erva e imundícies para tradu­
zir este crime particular. O j ovem pintor Girodet acha aquele simbolismo
popular tão pitoresco que desenha cuidadosamente um esboço quando as
cabeças passam à sua frente .
Mais do que as baixas provocadas pelo combate ( que como vimos
foram bastante reduzidas ) , foi esta exibição de sacrifício punitivo que
constituiu uma espécie de sacramento revolucionário. Alguns, que
tinham celebrado a Revolução enquanto se expressou em abstracções
como a Liberté, ficaram em choque com o sangue que escorreu à sua
frente . Outros, de nervos mais sólidos e menos débeis de estômago, assi­
naram o pacto moderno segundo o qual o poder podia ser obtido pela vio­
lência . Os beneficiários desta negociata enganaram-se a si próprios ao
pensarem que poderiam activar e desactivar a violência como se abre ou
fecha uma torneira e orientar a sua força com uma selectividade exacta .
Barnave, o político de Grenoble que em 1 789 foi um dos membros mais
irredutíveis da Assembleia Nacional, ao ser inquirido se as mortes de
Foulon e B ertier tinham sido verdadeiramente necessárias para alcançar a
liberdade, deu a resposta que, convertida num instrumento do Estado
revolucionário, seria a justificação para a sua morte na guilhotina :
"Mas o sangue deles era assim tão puro?"

VI A VIDA DA BASTILHA DEPOIS DA SUA TOMADA:


O PATRIOTA PALLOY E O NOVO EVANGELHO

O primeiro número do Révolutions de Paris, publicado no dia 1 7 de


Julho, foi dedicado a um relato bastante longo - e muito confuso - da
S imon Schama 1 CIDADÃOS

insurreição. O clímax em torno da Bastilha é apresentado como um alegre


festival familiar, com a garotagem a saltitar por entre os combatentes:

As mulheres não se pouparam a esforços para nos apoiar e até as crianças,


depois de cada descarga da fortaleza, corriam a recolher balas de mosquete
e de canhão e depois, esquivando-se, regressavam alegremente para j unto
de nós, abrigavam-se e entregavam os projécteis aos nossos soldados.

Depois das crianças, os avós . A libertação da prisão trouxe à luz do dia


os patriarcas, homens que tinham envelhecido emparedados pela tirania
que se esquecera do seu encarceramento. "As celas foram abertas para
libertar as vítimas inocentes e os velhos veneráveis que ficaram espanta­
dos ao verem de novo a luz do dia . " A realidade foi menos dramática. Dos
sete presos, quatro eram falsários que tinham sido j ulgados em tribunal .
O conde de Solages, tal como Sade, fora encarcerado por libertinagem a
pedido da família e ficou encantado com a libertação. Ofereceram-lhe alo­
j amento gratuito no Hotel de Rouen, no distrito do Oratoire, e depois ele
esfumou -se, para desagrado dos familiares. Os restantes dois detidos eram
lunáticos e não tardou muito que fossem ambos recambiados para
C harenton. C ontudo, um deles, o "Maj or Whyte" ( referido nas fontes
francesas como inglês e nas inglesas como irlandê s ) , de barba até à cin­
tura, serviu às mil maravilhas para a propaganda revolucionária. Com
longas patilhas grisalhas e de aspecto ossudo e mirrado, ele pareceu às
pessoas que esperavam ver vários Latudes emergir das masmorras a incar­
nação do sofrimento e da resiliência . Alcunharam-no de major de l 'im­
mensité e passearam-no em triunfo pelas ruas de Paris, enquanto ele ia
acenando debilmente mas de forma amistosa, pois na sua condição con­
fusa continuava a j ulgar-se Júlio César.
O poder simbólico da Bastilha para chamar a si todas as misérias pelas
quais o "despotismo" passou a ser responsável era de tal ordem que
durante a pilhagem da fortaleza a realidade se viu magnificada com fan­
tasias góticas. Partes de armaduras antigas foram declaradas "corpetes de
ferro " que apertavam maleficamente a vítima, e uma máquina dentada
que pertencia a um prelo foi classificada de roda de tortura . Inúmeras gra­
vuras oriundas da Rue Saint-Jacques, que aumentou consideravelmente
a produção para satisfazer a aguda fome de notícias, ofereceram ao
público imagens adequadamente horríveis, com esqueletos de pé, instru ­
mentos de tortura e homens com máscaras de ferro .
No dia 1 6, teve lugar um encontro genuíno entre a lenda e a realidade :
Latude visitou o lugar do seu cativeiro . Para seu espanto, apresentaram­
-lhe a corda, a escada e os outros instrumentos da sua fuga, consciencio­
samente preservados pelos guardas que os tinham encontrado trinta e três
anos antes. Foram cerimoniosamente oferecidos ao grande fugitivo como
351

"propriedade adquirida a j usto título " . N o Outono, no Salon, foram exibi­


dos j unto de um esplêndido retrato de Latude da autoria de Antoine
Vestier, no qual o herói aponta para a sua rota de fuga e mostra a escada
como atributo da sua santidade revolucionária.
A B astilha, foi, pois, muito mais importante depois da sua "queda" do
que alguma vez fora como instituição estatal. Ofereceu uma forma e uma
imagem a todos os males contra os quais a Revolução se definia .
Transfigurada de um anacronismo quase vazio e desguarnecido em sede
do Despotismo B estial, incorporou todos os que se regozij avam com a sua
tomada numa nova comunidade da nação. Participantes, testemunhas ou
celebrantes, todos eles eram amigos da humanidade, portadores da luz à
cidadela da escuridão.
Ninguém se apercebeu melhor das oportunidades criativas oferecidas
pela fortaleza conquistada do que Pierre -François Palloy. Ele seria, ao
mesmo tempo, empresário e agente da maior obra de demolição da histó ­
ria moderna. Apesar de Palloy recorrer ao talento de escritores, poetas e
artistas gráficos, foi a sua concepção da utilidade política do culto da
Bastilha que a transformou num símbolo nacional e internacional de
humanidade libertada. Desconstruindo o edifício, Palloy construiu um
mito que, embalado, distribuído e comercializado, foi colocado ao dispor
de públicos e clientes de todo o país .
Palloy também compreendeu ( e aqui não foi o único ) que a Revolução
tinha criado uma procura de um novo tipo de história : a epopeia do
homem comum. E teria de ser narrada de uma forma nova; não com o
ritmo ponderoso nem com o distanciamento sardónico de um Gibbon ou
de um Voltaire, mas em segmentos cortados com paixão - actualités nos -

quais se tornava contemporânea da vida do leitor. O leitor-participante


poderia inserir as suas próprias experiências neste presente contínuo,
mesmo que fossem em segunda mão. Tudo isto requereria também um
novo estilo de apresentação, pleno de hipérboles ofegantes e exclamações
patrióticas. Em vez de contemplar os séculos ao modo de um historiador
de poltrona, a nova história seria segmentada nas unidades de memória
de um trabalhador - um dia ou uma semana . Finalmente, para conferir
proximidade aos que estavam geograficamente distantes do aconteci­
mento, as memórias souvenirs da história assumiriam uma forma con­
- -

creta, se necessário produzida em série, de modo que ao contemplá-las ou


tocá - las o cidadão comungasse da intensidade do grande Dia
Revolucionário . As Gravures Historiques de Jean-François Janinet, publica­
das todas as terças-feiras de Novembro de 1 789 a Março de 1 79 1 , provi­
denciaram esta apresentação tipo noticiário cinematográfico, oferecendo
por oito soldos apenas uma gravura de um acontecimento célebre e oito
páginas de texto explicativo. Dada a importância do dia 1 4 de Julho,
foram- lhe dedicadas oito edições.
S imon Schama 1 CIDADÃOS

Quem foi o "Patriota Palloy" ? Palloy é mais um exemplo de um burguês


que subiu a pulso e prosperou com a expansão da economia urbana do
Antigo Regime e que não precisava certamente de uma revolução para
fazer fortuna. A mãe e o pai eram oriundos de famílias proprietárias de
lojas de vinhos mas conseguiram pô-lo a estudar no College d'Harcourt,
maioritariamente frequentado por filhos de aristocratas liberais. Seguindo ­
-lhes o exemplo, Palloy torna-se oficial do exército, contudo, aos vinte
anos de idade, no que deve ter parecido um passo atrás mas que na reali­
dade foi uma j ogada perspicaz, torna-se aprendiz de pedreiro. Decorrido
um ano, casa com a filha do mestre e lança-se na indústria da construção,
que nas décadas de 70 e 80 do século XVIII foi o negócio onde se fizeram
os lucros mais espectaculares em Paris. Palloy trabalha em residências pri­
vadas em Saint- Germain, no muro dos fermiers généraux ( que mais tarde
aj udará a derrubar) e no novo mercado de carnes, em Sceaux, e passa rapi­
damente de pedreiro a capataz e de capataz a empresário. Em 1 789, Palloy
é senhor de uma espantosa fortuna de meio milhão de libras francesas e
possui três casas - uma delas herdada do sogro -, várias lojas e lotes por
urbanizar. Palloy ostenta todos os atributos do sucesso - uma carruagem,
belas mobílias, uma biblioteca grande e adquirida com inteligência -, e tal
como muitos outros parisienses, gosta de citar histórias romanas à guisa de
exemplos inspiradores. Tem trinta e quatro anos de idade.
À semelhança de tantos outros revolucionários, Palloy não é um zero
à esquerda, um ressabiado, mas sim o modelo exemplar de uma história
de sucesso do capitalismo do Antigo Regime. Mas isto não impede a sua
identificação imediata com a causa da patrie. No dia 1 4 de Julho, Palloy
comanda a milícia do seu distrito, na Ilha de Saint-Louis, onde os sons do
combate são bem audíveis . Palloy dirá mais tarde que correu para o local
e que ao chegar, quando estava ao lado do tenente Elie, uma bala lhe atra­
vessou o tricórnio . Apesar de constar da lista oficial como "Pallet", não
restam dúvidas de que ele adquiriu um brevet de vainqueur certificando que
foi um dos sagrados novecentos.
Palloy leva apenas um dia para compreender que na sua qualidade de
vainqueur, engenheiro da indústria da construção e capataz experiente, se
encontra numa posição excelente para adquirir o terreno mais importante
que até então existiu. No dia 1 5 de Julho, chega à Bastilha à frente de oito­
centos homens, pronto para iniciar os trabalhos de demolição caso os elei­
tores dêem o seu assentimento. O facto de se adiantar granj eia-lhe inimigos
imediatos. Há arquitectos com planos para a preservação da Bastilha corria
monumento à queda da tirania, e alguns oficiais da milícia dos guardas
voluntários ( que em breve se converterá na Guarda Nacional) entendem
que o edifício deve ficar à sua guarda exclusiva. Todavia, os planos de Palloy
não tardam a receber luz verde dos eleitores, que receiam que as tropas
reais possam reconquistar a cidadela através dos túneis que alegadamente
1 . Retrato de Luís XVI
no traj e da coroação
( Antoine Callet) .

2 . O Juramento dos
Horácios (Jacques-Louis
David, 1 78 5 )
3 . Maria Antonieta com os Filhos ( Elisabeth Vigée-Lebrun)
4. Mirabeau

5 . Retrato de Latude
(Antoine Vestier,
1 78 9 )
6. A Tomada da B astilha vista por um dos combatentes, o vendedor de vinhos
Claude Cholat. C omo era típico das gravuras populares, os acontecimentos estão
comprimidos numa única imagem.
7 . Modelo da Bastilha feito com as suas pedras
8. Lafayette como
Comandante da
Guarda Nacional,
( Louis-Philibert
D ebucourt, 1 7 8 9 )

9 . " Para Versalhes ! Para Versalhes ! "; a marcha d a s poissardes para o Palais -Royal
(desenho anónimo )
1 0 . O Juramento da Sala do Jogo da Pé/a (Jacques-Louis David)
1 1 . ( acima, à direita) Pierre
Vergniaud

1 2 . ( acima ) Luís XVI bebe à


saúde da nação, 20 de Junho
de 1 792

1 3 . (à direita ) Lepeletier
( desenho de Jacques-Louis
David)
1 4. Lepeletier no Leito de Morte
(Anatole D evosge segundo Jacques-Louis David)
.MA T IE RE A .RE F L E C 'l' I O N P O UR L E S -JO N �L)1 U RS C O ITT.l O N N E � S.
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,•.,,i;;, t':!jlne. .X.. la, cu{J/Ja11""' dNJl'W'JlC<?/J'. . . . . . . . .
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la, àillflrf:lt:á:;-'/flt- cÂarh tn.nWm,, et; a'e ./a, cluéane; ú
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1 5 . Matiere à Reflection pour les Jongleurs Couronnées [Tema de Reflexão para os


Malabaristas Coroados] . A inscrição no fundo foi retirada da carta de Robespierre aos
seus constituintes e declara que a execução "imprimiu um grande carácter à Convenção
Nacional e tornou -a digna da confiança dos Francese s " .
1 6 . Retrato de Marat (Joseph Boze)
1 7 . A Morte de Marat (Jacques-Louis David)
(-:,
\('.

1 8 . La France Républicaine (A. Clément segundo Boizot)


1 9 . Retrato de Maria Antonieta ( bastante idealizado)
de luto na Conciergerie ( D e Brehen)
2 0 . O Festival do Ser Supremo (Thomas Naudet)
2 1 . Robespierre
( anónimo )

2 2 . Robespierre
Guilhotinando o Carrasco
(anónimo )
353

s e estendem até a o Castelo d e Vincennes. Ou sej a, o s mitos d a Bastilha con­


seguem até influenciar ex-detidos tão duros como Mirabeau. Em resposta
aos relatos de residentes locais que dizem ter ouvido sons de gemidos e de
gente a falar debaixo da terra, Mirabeau, acompanhado pelo filho de um
ex-carcereiro, inspecciona as cachots e as criptas, batendo nas paredes e nas
portas em busca de uma ligação labiríntica a Vincennes.
Tranquilizado, Mirabeau sobe a uma torre para dar início a um evento
menos sinistro . Depois de acenar à multidão, golpeia a muralha com uma
picareta e a primeira pedra cai ao som de uma tremenda ovação . Seguem­
- lhe o exemplo outros notáveis, entre os quais B eaumarchais e o marquês
de Lusignan, e depois é a confusão generalizada. Durante os dias que se
seguem, inúmeros documentos são espalhados, queimados ou escondidos
a título de recordações; de dia, ardem as fogueiras, à noite rebenta o fogo­
-de-artifício . Os carcereiros, entretanto aceites como bons Patriotas, ofe ­
recem visitas guiadas às celas e ornam as suas historietas em
conformidade com a mitologia habitual da tortura e das grilhetas.
Algumas mulheres trancam-se e passam a noite nas celas para de manhã
poderem dizer que dormiram com as ratazanas, as aranhas e os sapos que
foram companheiros de Latude.
Durante todas estas festividades, Palloy engendra os seus negócios.
A obra de demolição foi inevitavelmente licenciada pelo C omité
Permanente, estabelecido na Câmara, que foi criado como órgão execu ­
tivo municipal. Palloy é apenas um dos cinco especialistas nomeados para
supervisionar a demolição, cabendo aos outros a responsabilidade pela
carpintaria, marcenaria, serralharia, etc. No entanto, não tarda a afirmar
a sua proeminência . Além da demolição da pedra, o resto é trabalho
menor e os seus trabalhadores são, de longe, os mais numerosos - quase
mil no auge dos trabalhos. Palloy recebe 1 5 0 libras francesas por mês e
paga bem aos seus homens : 45 soldos por dia para os capatazes, 40 para
os subcapatazes e 36 para os cabouqueiros. No fim do Verão de 1 789, com
a enorme escassez de trabalho e os preços altíssimos, a obra de demolição
da Bastilha é um maná, especialmente para a população de Saint­
-Antoine, o bairro local, e das zonas imediatamente a norte e a sul do
Sena, onde é recrutada uma grande parte da mão-de-obra braçal.
Além de oferecer trabalho e salário, Palloy estrutura o empreendi­
mento. Todos os homens que desempenham funções no local são obriga­
dos a usar um cartão de identificação especialmente desenhado por Palloy,
numa das três cores patrióticas: branca para os empresários, azul para os
inspectores, vermelho para os trabalhadores. O cartão mostra um globo
rodeado por uma flor-de-lis, os emblemas das três ordens e o lema opti­
mista "Ex Unitate Libertas" . 9 Os cartões tornam-se rapidamente artigos pre-

' "Da união vem a liberdade . " ( N. do T. )


S imon Schama 1 CIDADÃOS

ciosos, pelos quais os coleccionadores chegam alegadamente a oferecer


doze libras por cada um. Palloy é patrão e pai: organiza festas para os tra­
balhadores, brinca com as muitas crianças presentes e mantém-nas afas­
tadas dos trabalhos para não se magoarem. De bengala e sineta na mão
para chamar a atenção das pessoas, Palloy também é polícia, j uiz e j úri, e
multa aqueles que se embriagam e andam à pancada ou que são apanha ­
dos a rapinar. Dois deles são inclusivamente enforcados, e no fim da obra
Palloy faz contas às baixas: "quatro sublevações; quinze acidentes; oito
assassínios e dois ferimentos infligidos" - parecem-lhe manifestamente
números normais para a dimensão do empreendimento .
Não obstante todas estas interrupções, os trabalhos prosseguem num
ritmo espantoso. Os andares são rapidamente demolidos e em finais de
Julho ficam expostas as criptas e as traves que suportam as cargas. Uma
torre de relógio na qual as horas são dadas por figuras de presos acorren­
tados é derretida numa fundição, e em meados de Agosto o escultor
Dumont recebe quatrocentas libras francesas para destruir as quatro está ­
tuas que ornamentam a Porta de Santo António - Carlos V, Carlos VI,
Joana de Bourbon e santo António .
No fim de Novembro, a Bastilha está praticamente demolida . Os tra­
balhadores temem que o seu zelo os vá deixar sem trabalho, e Palloy não
quer que as suas encomendas de trabalho se esgotem nas ruínas da forta­
leza. Enquanto os trabalhos físicos são concluídos, a sua versão inspirada
do Negócip da B astilha está prestes a começar.
Parte deste negócio envolve novos proj ectos. O município aceita a
sua proposta de erguer uma plataforma na Pont Neuf, frente à estátua
de Henrique IV, onde se poderão montar os canhões da Bastilha .
Durante os meses de Inverno, uma parte dos trabalhadores de Palloy
limpa os fossos e as valas da fortaleza mas as energias dele orientam-se
para a promoção do culto da B astilha como atracção turística política,
incluindo visitas guiadas, palestras históricas e relatos dos acontecimen­
tos de 14 de Julho pela boca dos vainqueurs. No princípio de 1 7 90,
Millingen, filho de um médico britânico, é levado pelo pai de visita à
famosa atracção.

Eram a o s milhares a contemplar as ruínas d a B astilha, e o m e u p a i levou­


-me a ver aquela fortaleza do poder tirânico caída . Nas masmorras arrui­
nadas perto do fosso, infestadas com ratazanas, sapos e outros répteis,
ainda se viam pedras sobre as quais tinham repousado os infelizes presos,
condenados a expirar nas oubliettes, esquecidos por todo o mundo, conde ­
nados à sepultura em vida, e os anéis de ferro que prendiam as suas gri­
lhetas ainda estavam cravados no canapé pétreo que tinha marcas de
membros doloridos.
355

O importante era produzir - n o sentido cénico - eventos que recapitu­


lassem os horrores da Bastilha e a euforia da sua tomada para que as suces­
sivas vagas de Patriotas visitantes pudessem ser recrutadas para o entusiasmo
revolucionário. O primeiro destes eventos que Palloy organizou foi uma
cerimónia para os seus trabalhadores, que se tornaram vainqueurs das pedras
da fortaleza. No dia 2 3 de Fevereiro, foi erguido nas ruínas um "altar" (o pri­
meiro dos altares de todos os festivais revolucionários que se seguiram) ,
construído inteiramente d e bolas d e ferro, correntes e algemas. N o dia
seguinte, numa cerimónia religiosa na Igreja de São Luís, setecentos traba­
lhadores juraram lealdade à constituição e por obra de um mecanismo enge­
nhoso a ferraria punitiva autodestruiu-se e revelou um enorme arranj o floral
(artificial, dada a estação do ano? ) . Depois daquele milagre cénico, os sete­
centos homens foram em procissão até à Câmara Municipal, levando um
modelo da Bástilha que tinham feito com as suas pedras.
A ideia de um modelo da B astilha não foi de Palloy mas sim de um dos
seus pedreiros, de nome Dax. No entanto, de forma típica, Palloy pegou
numa engenhosa ideia artesanal e converteu-a numa grande empresa - e
reclamou a sua autoria. Outros desenvolvimentos que ocorreram na
Primavera de 1 790 aj udaram-no a manter aceso o interesse pela Bastilha .
No fim de Abril, foram descobertas ossadas humanas na substrutura, des­
critas de imediato como os restos mortais de presos que tinham perecido
no cativeiro, acorrentados às paredes, esquecidos até pelos seus carcerei­
ros. Tratava -se, com toda a probabilidade, de ossos de guardas que remon­
tavam à Renascença, mas a oportunidade para fazer sensação era
irresistível . Foram exumados com grande solenidade e, no dia 1 de Junho,
levados em quatro caixões ( apesar de ninguém saber de quem eram) para
o cemitério de São Paulo, onde foram enterrados. No seu sermão, Claude
Fauchet, o radical bispo de C aen, usou as ossadas ressequidas para se
apresentar como um Ezequiel revolucionário saudando um novo "Dia das
Revelações, pois os ossos ergueram-se à voz da liberdade francesa; através
de séculos de opressão e morte, profetizam agora a regeneração da natu ­
reza e da vida das nações" .
A s celebrações d e Palloy são, durante algum tempo, ofuscadas pelos
preparativos monumentais para a Festa da Federação, no Campo de
Marte, mas a sua data - 14 de Julho - contribui para manter vivo o inte­
resse pela B astilha . Até ao primeiro aniversário, Palloy lucra com peças
que recriam o grande dia, com uma enorme quantidade de estampas, gra ­
vuras, poemas e canções, e com as centenas de milhar de guardas nacio ­
nais chegados a Paris das províncias para o grande festival de unidade
patriótica, para os quais uma visita à B astilha é uma peregrinação obriga­
tória . Palloy organiza para eles um grande baile nas ruínas da cidadela,
com iluminações e fogos-de-artifício, grandes tendas decoradas com a tri­
color e um gigantesco sinal onde se lê: lei l 'on danse.
S imon S chama 1 CIDADÃOS

Mas ficam ainda de fora muitos milhões de franceses para os quais a


tomada da B astilha é um acontecimento remoto, e é para os trazer para o
rebanho patriótico que Palloy cria o seu "conj unto revolucionário" itine­
rante . S erá levado por "Apóstolos da Liberdade ", recrutados e vestidos
para o efeito, aos oitenta e três departamentos nos quais a França foi divi­
dida . Entre eles, incluem -se o filho de Palloy, de dez anos de idade,
Fauchet, Dusaulx, autor do popular L'Oeuvre de Sept Jours (a recriação do
mundo em Julho de 1 78 9 ) e outro amigo de Palloy, Titon Bergeras, que
virá a ensurdecer a Assembleia Legislativa com a sua oratória de barítono .
Sempre que possível, Latude acompanhará os apóstolos com a sua escada
de corda para relatar pessoalmente as suas provações.
Para equipar os seus apóstolos, Palloy produz 246 baús de souvenirs.
Inspirado na ideia de Dax, já tinha entrado em produção, criando toda a
espécie de artigos concebíveis a partir dos escombros da Bastilha que lhe
restavam. Fizeram-se tinteiros de "grilhetas" e outros pedaços de ferro; a
miscelânea de documentos da fortaleza deu origem a leques com repre ­
sentações da batalha; com as suas pedras, fabricaram-se pisa -papéis em
forma de pequenas Bastilhas, e ainda caixas para rapé e adagas cerimo ­
niais. Até o delfim recebeu um dominó de mármore com as peças em
forma de B astilha . Os dominós podem ser vendidos ou oferecidos aos
Patriotas da província mas são bónus no meio dos artigos que enchem os
baús, cuj a composição é estritamente regulada por Palloy.
Cada "conj unto revolucionário" consiste de três baús. O primeiro
encerra a piece de résistance, um modelo à escala da Bastilha praticamente
com todos os pormenores, com portas, grades e pontes-levadiças que
abrem e fecham. Vêem-se uma miniatura da escada de Latude pendurada
na torre apropriada, e no pátio uma pequena forca, com corda e tudo,
para dar efeito ( embora nunca tenha havido nenhuma execução na
Bastilha ) . Para as cenas de combate, há canhões, balas e uma bandeira
branca, tudo em miniatura. O relógio, pintado, marca as cinco e meia da
tarde, o momento sagrado da rendição. O segundo baú contém a plata­
forma de madeira do modelo e uma gravura do rei. O terceiro tem ima ­
gens alusivas aos " esqueletos" e ao seu segundo enterro, retratos de
notáveis revolucionários como Lafayette e Bailly, uma bala de canhão e
uma couraça da B astilha, a biografia de Latude, uma planta da fortaleza e
poemas sobre os vários acontecimentos compostos para o efeito pelo pró ­
prio Palloy. Um último artigo do terceiro baú - também disponível para o
público parisiense - é um "fragmento de uma crosta, com duas ou três
polegadas de espessura, formada nas criptas das celas pela respiração, pelo
suor e pelo sangue dos infelizes presos".
É possível fazer uma ideia da missão dos apóstolos com o novo evan­
gelho com base na experiência de um deles, o actor François -Antoine
Legros. Tendo em conta as condições em que se viaj ava e o fardo que
357

constituíam os trinta e três baús q u e e l e transportou, a viagem de Legros


foi de uma escala quase épica . Legros partiu em Novembro de 1 7 90, com
destino à Borgonha . Passou por Melun, Auxerre e Dijon e depois rumou
para sul, em direcção à Provença . Em Lyon, aj udou a prender conspira ­
dores contra a patrie. Nas proximidades de Salons, a sua caravana de
mulas foi atacada por bandidos. Legros conseguiu matar um mas o dis­
paro da pistola assustou o seu cavalo, que se empinou e o atirou ao
chão; Legros partiu a perna . Quando chegou a Toulon, já quase não
tinha dinheiro ( a diária de nove libras francesas estipulada por Palloy,
além de chegar com intermitências, não era suficiente ) e viu - se forçado
a regressar a uma trupe à qual pertencera em tempos. Apesar de o seu
desempenho em Zaire, de Voltaire, não ter, segundo as suas próprias
palavras, "alcançado o êxito que eu esperava ", Legros terá ganho
dinheiro suficiente para retomar a sua missão, pois embarcou para
B astia, na C órsega, a última etapa da sua extraordinária viagem. Legros
esteve dez meses na estrada e percorreu quase dois mil e quinhentos
quilómetros.
Se os apóstolos ficaram exaustos com os seus esforços, Palloy não ficou
muito menos cansado . Em vez de ter feito a sua fortuna com a Revolução,
dá a sensação que a perdeu no seu empenho incansável em divulgar o
novo evangelho . Havia uma procura constante dos seus souvenirs inclu­ -

sivamente por parte da " Society of St. Tammany, de Nova Iorque " , 1 º em
1 792 e Palloy decidiu criar o que esperava ser um "Museu da Liberdade"
-

permanente perto da Pont Neuf.


Mas Palloy estava a perder o pé politicamente. O mito da unidade
patriótica consagrado no culto da B astilha foi severamente posto à prova
em 1 7 92 e muitos dos heróis predilectos de Palloy estavam a ficar desa­
creditados. Mirabeau, cuj o busto Palloy fizera com uma pedra da B astilha
e apresentara no seu funeral, em Abril de 1 79 1 , foi desmascarado como
um intriguista monárquico um ano depois; pela mesma altura, Lafayette,
para o qual Palloy mandara fazer uma espada com quatro ferrolhos da
Bastilha, decampou para os Austríacos. Pior ainda, o rei, cuj a imagem
decorara todos os seus baús, foi apanhado a fugir do país . Em Julho de
1 792, um mês antes da queda definitiva da monarquia, Palloy ainda espe ­
rava que o rei comparecesse numa cerimónia de lançamento do proj ecto
real de erguer uma coluna no lugar da Bastilha .
Em Dezembro de 1 79 3 , Palloy visita um velho amigo . O cidadão
C urtius está a modelar uma cabeça de Madame du B arry, a amante de
Luís XV, para os bons Patriotas poderem insultar. Palloy sabe reconhecer
o génio. Fica maravilhado com a semelhança e Curtius diz-lhe com toda
a naturalidade que sim, que a acha particularmente boa porque conseguiu

" Aparelho político do Partido D e n; ocrata em Nova Iorque . (N. do T. )


S imon Schama 1 CIDADÃOS

ir ao cemitério dos girondinos1 1 e inspeccionar a cabeça verdadeira -


recém-decepada. Apesar do frio, tinha-se sentado e procurado conseguir
a imagem de cera que melhor transmitisse a sua expressão aquando do
golpe de misericórdia.
Três semanas mais tarde, Palloy encontra-se na prisão de La Force -
não obstante intitular- se a si próprio "Republicano Diógenes" Palloy -,
vítima, segundo insiste, de uma conspiração inj usta e pérfida. No dia 8 de
Fevereiro de 1 794, o homem que levou a França a acreditar que com a
demolição da Bastilha nenhuma prisão voltaria a macular a face da liber­
dade em França, escreve daquilo a que chama a sua cachot, protestando a
sua inocência e o seu patriotisme, e dando conscienciosamente instruções
para o envio de modelos da Bastilha para os departamentos recentemente
"libertados " . É posto em liberdade no dia 1 7 de Março, e embora aj ude
nos preparativos das festividades republicanas, em Julho, observa com
franca consternação que " até hoje, apenas utilizei as ruínas da B astilha,
local sagrado do início da liberdade, para festas alegóricas . . . mas agora os
cidadãos querem assistir a outro género de espectáculo, e instalaram lá a
'j anelinha' de Guillotin" .

VII PARIS, REI D O S FRANCESES

No dia 1 4 de Julho de 1 789, o diário de Luís XVI apenas tem uma pala­
vra : "Rien " (Nada ) . Os historiadores costumam ver nisto um sintoma
cómico do desgraçado afastamento do rei da realidade política, mas não se
trata disso - de todo . O diário era menos um diário do que uma das suas
implacáveis listas de presas. Tendo o seu passatempo predilecto sido mais
ou menos interrompido de forma permanente, não poderia ter havido
uma expressão mais eloquente da sua triste situação do que "Rien" .
É certo que, e m grande medida, ele fora o causador d o seu próprio
infortúnio. A sua popularidade pessoal, especialmente fora de Paris, ainda
era enorme, e mesmo depois do Juramento da Sala do Jogo da Péla ele
teve muitas oportunidades para a explorar, como Mirabeau e Necker
tinham querido que fizesse, e para criar uma autêntica monarquia cons­
titucional. Desperdiçou-as a todas. Pior ainda, Luís XVI revelou-se fraco e
submisso, como depois da séance royale, ou traiçoeiro e reaccionário, como
na escalada militar até à exoneração de Necker.
Na noite de 1 4 de Julho, o visconde de Noailles, cunhado e camarada
revolucionário de Lafayette, deu conta dos acontecimentos do dia em
Paris à Assembleia Nacional. Os deputados decidiram passar a informação

" C urtius refere -se assim ao cemitério da Madeleine porque lá tinham sido sepultados
numa vala comum 22 girondinos guilhotinado:s .no dia 3 1 de Outubro desse ano. (N. do T. )
'·-·f!i_��r.
359

ao rei, q u e se lhes adiantou anunciando que tinha decidido retirar as tro­


pas do centro de Paris para Sevres e Saint - C loud. O monarca expressou
tristeza e espanto pelo derramamento de sangue resultante de quaisquer
ordens que pudessem ter sido dadas aos soldados mas, contrariamente ao
que a Assembleia pretendia, não se dispôs a reconduzir Necker. En­
tretanto, apresentaram-se na Assembleia dois eleitores de Paris que con­
firmaram o relatório de Noailles, mas o rei continuou aparentemente sem
se aperceber da gravidade da situação.
Por volta das onze da noite, o duque de La Rochefoucauld-Liancourt,
que pertencia ao círculo de Lafayette, pediu para ver o rei nos seus apo­
sentos privados. Segundo uma versão anedótica célebre, o cidadão-nobre
informa Luís XVI da tomada da Bastilha. O rei reage com a pergunta,
"É uma revolta?", ao que Liancourt responde, "Não, Senhor, é uma revo ­
lução" . Embora o soberano j á soubesse da insurreição através das infor­
mações de Noailles e dos eleitores, é inteiramente possível que esta
conversa tenha acontecido e provável que o relato aparentemente vívido
feito por Liancourt das mortes de De Launay e De Flesselles tenha final ­
mente convencido o rei d a grandiosidade d o evento. O s e u poder militar
na capital ruíra, e com ele toda e qualquer possibilidade de derrubar pela
força a autoridade da Assembleia Nacional.
Na manhã seguinte, a Assembleia decidiu enviar dois deputados ao rei
para pedir a exoneração do governo de B reteuil. Quando se preparavam
para partir, Mirabeau saiu -se com outra das suas célebres tiradas, segundo
a qual os lacaios debochados das potências estrangeiras se preparavam
para espezinhar os direitos da França libertada.

Dizei ao rei que as hordas estrangeiras que nos cercam foram visitadas por
príncipes, princesas e favoritos de ambos os sexos que os elogiaram . . . durante
toda a noite, esses satélites do estrangeiro, empanturrados com ouro e vinho,
profetizaram nas suas ímpias canções a escravidão da França e a destruição da
Assembleia; dizei-lhe que . . . os cortesãos dançaram músicas bárbaras e que foi
uma cena similar que antecedeu o massacre de São Bartolomeu . . .

O seu discurso mal tinha terminado quando foi anunciada a chegada


do rei. Mirabeau impôs-se e silenciou os aplausos espontâneos, instando
a Assembleia a um acolhimento mais frio, pelo menos até se conhecerem
as intenções do soberano. "O silêncio do povo", admoestou ele, "é uma
lição para os reis . " Não valia a pena ter-se incomodado, pois a chegada do
rei foi tão espantosa e tão desconcertantemente nua que parecia uma
abdicação. Chegou a pé, sem comitiva nem séquito, nem sequer com um
único guarda de peruca e pantalonas. Apenas trazia consigo os irmãos,
Provença e Artois, respeitosamente à sua esquerda e à sua direita ( físicas
e ideológicas ) . O rei confirmou à Assembleia a retirada das últimas tropas
S imon Schama 1 CIDADÃOS

do Campo de Marte e negou peremptoriamente qualquer desígnio contra


a segurança dos seus membros.
O rei não foi ao ponto de anunciar a recondução de Necker, mas a con­
firmação oficial do fim da ameaça militar bastou para provocar uma grande
ovação na Assembleia, que chegou à multidão congregada no exterior e
deu origem a outra manifestação - meio entusiasta, meio ameaçadora -
que exigiu a presença da família real na varanda do palácio. Às duas da
tarde, um enorme cortejo de oitenta e oito deputados em quarenta car­
ruagens partiu para transmitir a boa-nova a Paris . Era liderado por
Lafayette, na qualidade de vice-presidente da Assembleia. A última parte
do traj ecto, da Praça Luís XV à Câmara Municipal, foi feita a pé e conver­
teu -se numa espécie de marcha triunfal pela cidade . No edifício onde, qua­
renta e um anos mais tarde, apareceria numa epifania similar, Lafayette
dirigiu-se a uma multidão enorme e coberta de cocares patrióticos. O rei
tinha sido mal aconselhado, disse ele, mas agora retomara a plena bene ­
volência do seu coração. Em troca, os eleitores prometeram-lhe lealdade,
e no que parece ter sido uma proposta improvisada (feita por Brissot de
Warville, amigo de Lafayette ) , o marquês aceitou o comando da nova milí­
cia de Paris. Bailly tornou-se presidente da câmara. Seguiu-se um Te Deum
em Notre Dame, onde Lafayette j urou defender a liberdade com a vida.
Com a deslocação penitencial do rei à Assembleia, morreu a corte
augusta dos B ombons. Na manhã de 1 6 de Julho, o conselho real reuniu­
-se pela última vez na sua forma tradicional. Tinha assuntos muito sérios
para tratar. O marechal de B roglie deixou bem claro que, dada a desinte ­
gração do exército, qualquer tentativa de contra- ataque em Paris estava
fora de questão. O que poderia então ser salvo da catástrofe? A rainha e
Artois queriam que o rei se mudasse para uma capital de província,
quanto mais próxima da fronteira prussiana ou austríaca, melhor - Metz,
por exemplo -, para lá reunir as tropas fiéis. No entanto, De Broglie, de
forma bastante realista, avisou o rei de que com a cadeia de comando a
desintegrar-se tão depressa, ele não poderia garantir a sua segurança
numa viagem longa .
Restava-lhe apenas capitular, com a maior elegância de que pudesse
dar mostras.
Para o irmão mais novo do monarca e seus apaniguados, a humilhação
que estava a ser infligida à monarquia era insuportável. Nessa mesma
noite, Artois, os príncipes de C onti e Condé, os seus amigos Polignacs e o
abade Vermond, conselheiro pessoal da rainha desde os seus tempos de
princesa em Viena, partiram de Versalhes para a fronteira. A sua emigra­
ção comprovou tudo o que os panfletos revolucionários diziam da corte :
era um enclave estrangeiro que comia à conta da nação, e agora acrescen­
taria a esse ódio a reputação de ser cliente de exércitos estrangeiros, dos
quais dependia para reafirmar a sua autoridade em França. De facto, Artois
361

não fazia segredo d e que contava com uma espécie d e aliança entre o s regi­
mentos franceses leais e forças ainda indeterminadas ( mas com toda a pro­
babilidade, austríacas) para vencer a Revolução. Não lhe teria passado pela
cabeça que seriam necessários quinze anos para alcançar essa vitória.
No dia seguinte, 1 7 de Julho, Luís XVI fez-se à estrada para Canossa. 1 2
L a Rochefoucauld-Liancourt exortara -o a demonstrar a s u a boa vontade
aparecendo em Paris, mas foi só depois das amargas constatações feitas no
conselho, no dia anterior, que o rei aceitou o inevitável. De qualquer dos
modos, a questão do governo forçara -lhe a mão. A recondução de Necker
e a demissão do governo de Breteuil tinham sido anunciadas e provocado
enorme regozij o, e as tropas tinham começado a desmontar as tendas no
Campo de Marte e a retirar para S evres - onde setenta e cinco soldados
desertaram de imediato .
Não foi a última vez que Luís XVI deu mostras, numa situação de total
impotência, de uma dignidade que lhe faltou nos seus poucos momentos
de afirmação pessoal. Sem revelar nenhum sinal de pânico, tomou dispo­
sições para a continuação da governação régia caso não regressasse. Fez o
seu testamento e conferiu autoridade a Provença, o único dos príncipes
reais que decidira permanecer em França, como tenente -general do
Reino . O rei orou na capela real com a família e depois partiu, vestido
num simples fraque sem os ornatos habituais da maj estade . A carruagem,
tirada por oito cavalos pretos, também não tinha qualquer decoração.
O rei era precedido por um pequeno destacamento da sua guarda pessoal,
em grande inferioridade numérica perante a escolta da milícia de
Versalhes, de uniformes improvisados e ostentando cocares. Seguiam-nos
cerca de cem deputados da Assembleia e uma enorme multidão de habi­
tantes de Versalhes, que cantava e gritava " Vive le roi" e " Vive la nation ! ",
brandindo piques, mosquetes e podões .
O tempo, invariavelmente descrito pelos contemporâneos como se
fosse um actor revolucionário, foi cúmplice da tristeza real. O astro solar
que resplandeceu sobre a procissão até Paris anunciou o eclipse da fanta­
sia do Rei Sol. Luís XIV construíra Versalhes como retiro de fuga às restri­
ções da capital, como um lugar onde podia ditar a sua vontade apolónia
rodeado de pedra, água, rituais e ícones. Em 1 77 5 , aquando da sua coroa­
ção, em Reims, Luís XVI deveria ter supostamente iniciado uma nova
idade de iluminismo solar. Mas o sol fora derrubado.
QÚe tipo de rei deveria ele passar a ser? Onde quer que fosse, a res­
posta era sempre a mesma : não um Luís XIV, mas sim um Henrique IV.
O culto do primeiro Bourbon, que pusera fim às Guerras da Religião e
fora assassinado por um fanático católico, estava a atingir proporções

1 2 Localidade italiana onde, em 1 077, o imperador Frederico II se deslocou humilhante­

mente em penitência para pedir ao papa Gregório VII a anulação da sua excomunhão. (N. do T. )
S imon S chama 1 CIDADÃOS

epidémicas. Henrique teria supostamente combinado na sua pessoa bene ­


volência, humanidade e sabedoria em abundância; era o protótipo do rei­
-cidadão que o povo de França, ainda esmagadoramente pró -monárquico,
esperava ver reencarnado em Luís . Acima de tudo, Henrique IV era des­
crito, nas canções e poemas populares, como o Rei-Pai ideal: ter-lhe-ia
sido tão impossível fazer mal ao povo como assassinar os seus próprios
filhos. Este conceito fora vertido no desenho para um novo monumento
grandioso a Henrique IV expressamente concebido para associar o mártir
patriótico à sua nova encarnação, Luís XVI. Uma vasta rotunda seria
rodeada de um círculo duplo de colunas. No centro, uma estátua do rei
assassinado, "na atitude do bom pai no meio dos filhos . . . com os trajes
simples de que gostava" . No pedestal, a inscrição : "A Henrique IV, de toda
a humanidade . " Num dia que seria de grande festa, Luís XVI colocaria
uma coroa na cabeça e, como que se ensinando a si próprio, pronunciaria
as palavras "Eis o modelo dos soberanos".
Por conseguinte, não causou surpresa quando Bailly, ao saudar Luís
XVI na Porta de Chaillot, aludiu ao seu antepassado - tão citado como
exemplo - e, em particular, à sua entrada em Paris, em 1 604. Oferecendo
ao rei as chaves da cidade - um costume associado às entradas triunfais -,
o presidente da câmara conseguiu inclusivamente melhorar a cena origi­
nal . "Estas chaves", disse ele, " foram oferecidas a Henrique IV; ele con­
quistou o povo, agora é o povo que conquista o rei" - uma inversão que
não terá caído muito bem a Luís XVI.
Seguiram-se outras emendas sérias às entradas triunfais reais. Os reis
Valais da Renascença francesa - Francisco I, Henrique II e Carlos IX -
tinham sido saudados por arcos que proclamavam a sua identidade como
Hércules gálicos, senhores (por vezes até imperadores, à maneira de Carlos
Magno ) da Gália e da Germânia . Luís XVI foi saudado por Lafayette, ves­
tido à civil e ostentando o cocar azul e vermelho da cidade ( que também
eram, ominosamente, as cores da Casa de Orleães ) , e conduzido até à Praça
Luís XV por ruas com cidadãos-guardas armados alinhados dos dois lados.
As vendedoras dos mercados fechavam a procissão, com os traj es brancos
que vestiam nas ocasiões de cerimónia, decoradas com fitas azuis e verme ­
lhas e com ramos de flores nas mãos. Na Câmara Municipal, por cima do
arco de espadas desembainhadas formado para si - como que em home­
nagem e desafio - o rei leu a designação oficial da sua nova identidade:

LU Í S XVI, PAI DOS FRANCE S E S


R E I DE U M POVO LIVRE

Admitindo esta reinvenção da realeza, o soberano aceitou o cocar


que B ailly lhe ofereceu na escadaria da C âmara Municipal e pregou-o ao
363

chapéu no meio de ovações, toques de trombeta e tiros de canhão. Depois


de um discurso breve e praticamente inaudível no salão nobre, onde pro­
curou expressar satisfação pelas nomeações de Lafayette e B ailly - outra
legitimação de actos sobre os quais não tivera controlo -, o rei mostrou -
-se de novo à varanda, com o cocar.
Luís XVI regressou a Versalhes por volta das dez da noite, exausto e
desorientado mas muito aliviado por o dia ter chegado ao fim sem derra­
mamento de sangue . C umprimentou com afecto a mulher e os filhos, que
estavam ainda mais aliviados do que ele. A grande preocupação do rei
parecia ser cada vez mais a segurança física da família. C om a sua corte
praticamente abolida e despojado do seu cerimonial régio, Luís XVI tinha ­
-se finalmente tornado um simples "pere de famille", e fora precisamente
para proteger a sua família que ele tinha consentido tornar-se ao mesmo
tempo o "bon pere de la France" . Os idealistas apostados numa monarquia
revolucionária declarariam que o segundo título mais não era do que uma
extensão do primeiro . Os pessimistas ( que em 1 789 eram uma minoria )
olhavam para o futuro e viam discórdias familiares. Na eventualidade de
semelhantes conflitos, ainda não era claro - muito menos para Luís XVI -
a qual das suas duas famílias iria o monarca dedicar o resto da sua vida.
PARTE TR Ê S

Escolhas
11

Com e sem Razão


Julho-Novembro de 1 789

1 FANTASMAS, JULHO-AGO STO

Julho de 1 7 8 9 . Madame de La Tom du Pin vai a banhos em Forges ­


-les-Eaux, n a Normandia . Tem apenas dezanove anos d e idade e o parto
do seu segundo filho foi particularmente traumático, pelo que o médico
da família insistiu numa cura de repouso. Inteligente e de bom coração,
Henrietta -Lucy pertence ao clã anglo -irlandês católico dos Dillon, alguns
dos quais se exilaram em França aquando da expulsão de Jaime II,
em 1 6 8 8 . No ano em que nasceu, 1 770, os Dillon já estavam plenamente
inseridos na nobreza militar, com regimentos próprios e ligações às famí­
lias mais ricas e sofisticadas de França . Henrietta é uma criatura do
Iluminismo e, como toda a sua geração, lê muito Richardson, Rousseau
e até o whig Defoe . Apercebendo -se da inteligência dela, o seu mundano
tio -avô, que é arcebispo de Narbona, providencia -lhe Chaptal ( futuro
ministro do Interior de Napoleão) para tutor nas ciências . E quipada com
a sua bagagem de química, física, geologia e mineralogia, Henrietta visita
como uma conhecedora as minas de carvão e enxofre da família Dillon,
nas C évennes.
A rainha recebe-a na corte e Henrietta entra para a sociedade da
nobreza liberal de Paris. Lally-Tollendal é seu primo afastado e os irmãos
Lameth, que são ainda mais militantes do que ele em termos políticos, são
parentes de Lucy pelo seu casamento com De La Tom du Pin. Durante
toda a última época de prazeres do Antigo Regime, na qual, segundo mais
tarde escreverá, "rimos e bebemos até à beira do precipício", Lucy perma­
nece extremamente atenta e perceptível .
N o Verão d e 1 789, a Revolução fecha-se e m torno d a família. O seu
distinto sogro é apontado como futuro ministro da Guerra de Necker ( será
efectivamente nomeado pouco depois ) . O marido está estacionado em
Valenciennes, a sessenta quilómetros de distância, mas temendo pela
segurança dela pede licença do regimento e j unta-se-lhe na Normandia .
Reunida, a família passa uns últimos momentos idílicos, do tipo que os
sobreviventes das revoluções sempre se recordam vivamente .
S imon Schama 1 CIDADÃOS

No dia 28 de Julho, quando se prepara para o seu passeio matinal a


cavalo, Henrietta ouve uma grande comoção na rua, mesmo por baixo dos
seus aposentos. Os aldeões soluçam, torcem aflitivamente as mãos, rezam e
lamentam-se de que estão "perdidos" . No meio da multidão está um
homem "de casaco verde todo rasgado, com mau aspecto", montado num
cavalo cinzento que espuma da boca e tem os flancos ensanguentados de
tanto ter sido esporeado. "Eles estarão aqui em três horas", diz ele aos seus
aterrorizados ouvintes; "em Gaillefontaine [a oito quilómetros de distância] ,
estão a saquear tudo e a deitar fogo aos celeiros. " Depois de transmitir a sua
útil mensagem, o homem parte para Neufchâtel com as boas novas.
Neste caso, "eles" refere-se às tropas austríacas que terão invadido a
França a partir da Holanda. No entanto, nas semanas de pânico que se
seguiram à tomada da Bastilha, "eles" pode também referir-se aos fuzilei­
ros britânicos que terão desembarcado em Brest e Saint-Malo, ao regi­
mento de suecos comandado pelo conde d' Artois na fronteira nordeste ou
aos trinta mil soldados espanhóis prestes a saquear B ordéus. Mais
comummente, "eles" significa "bandidos", concentrados em exércitos e
pagos por Artois, pelos príncipes ou pela aristocracia para exercerem uma
vingança sanguinolenta sobre o Terceiro Estado pelo seu atrevimento.
É uma possibilidade horrível: diz-se que os bandidos adoram praticar atro­
cidades como violações e desmembramentos, e incendiar de forma indis ­
criminada colheitas, celeiros e habitações.
Tendo o marido ido a banhos, Lucy tenta acalmar sozinha os espíritos
agitados. Não há guerra nenhuma, garante ela aos aldeãos . O marido,
estacionado precisamente na fronteira com a Holanda Austríaca, teria
decerto sabido se as suas tropas tivessem sido mobilizadas . Mas Forges
localiza-se no centro de uma região onde impera o nervosismo devido aos
motins alimentares que continuam a ocorrer em Rouen, trinta e cinco
quilómetros a noroeste, e pelas instruções dadas em Lille de tocar os sinos
ao menor sinal de perigo . Lucy dirige-se à igrej a e dá com o cura prestes
a puxar a corda . Ciente de que o pânico será irreversível a partir do pri­
meiro toque, Lucy agarra o padre pelos colarinhos da batina e, enquanto
lhe passa um raspanete, tenta impedi-lo de dar o alarme. As águas de
Forges devem-lhe ter restaurado as forças, pois quando o marido regressa
dá com os dois engalfinhados à volta da corda. Para tranquilizarem os
receios da aldeia, o casal promete deslocar-se a Gaillefontaine, onde os
Austríacos estão supostamente acampados.
Mas as aventuras do dia ainda não chegaram ao fim. Em Gaillefontaine,
são confrontados por camponeses armados com mosquetes enferrujados
que exigem saber se os soldados estão em Forges. Os locais reúnem-se e
parecem acalmar- se face à negação tranquilizadora do casal até que um
deles, olhando intensamente Lucy, a identifica como sendo a rainha. Ela
fica momentaneamente em perigo mas um serralheiro, a rebentar de riso,
369

insiste que a rainha tem o dobro da idade e da largura de Madame de La


Tour du Pin. Libertados, marido e mulher regressam a Forges, onde os
aldeãos já j ulgavam que eles tinham sido capturados pelos Austríacos e
que iriam desaparecer sem deixar rasto.
C enas como esta repetem-se por toda a França oriental, de Hainaut e
da Picardia, a norte, descendo para sul pela Champagne até à Alsácia, à
B orgonha e ao Franco - C ondado. Um rasto ocidental daquilo a que os con­
temporâneos chamam o "Medo" marca o Poitou e chega aos campos de
Versalhes. Mesmo em alturas normais, os quatro mil efectivos da maré­
-chaussée (polícia provincial) não chegariam para lidar com uma histeria
de massas desta dimensão. Mas, com a autoridade central praticamente
em ruínas, o efeito do pânico é a fragmentação da França em milícias que
se armam e comunas municipais que tomam a autoridade nas mãos, todas
elas mobilizadas para vasculhar o horizonte em busca de exércitos de ban­
didos ou de soldados espanhóis ou austríacos.
Por vezes, o pânico dura poucas horas. Na aldeola de Vaux, perto de
Creil, Marie-Victoire Monnet, a mais velha de quinze irmãos, esconde-se
num palheiro com três das suas irmãs . A mãe deixou -lhes um pão e um
quarto de Brie, o suficiente para aguentarem os vários dias de cerco que
a aldeia espera sofrer. Diz-se que os bandidos j á mataram os homens da
vila mais próxima. Depois de três horas sentadas no celeiro abafado,
poeirento e escuro, e de terem comido o pão e o queij o, o terror das rapa­
rigas transforma-se em tédio e o tédio em desilusão. Marie, seguida das
irmãs, desce nervosamente a escada e, sem sinais do caos anunciado,
regressam as quatro a casa, onde encontram a mãe e os restantes irmãos
igualmente espantados pela falta de comparência dos temíveis elementos
criminosos .
Noutros lugares, as consequências são mais graves. Nas grandes cida ­
des, tais como Lyon e Dij on, ambas bastante próximas da fronteira, milha­
res de milicianos voluntários permanecem semanas a fio postados em
barricadas e portas, convictos de que se baixarem a guarda os bandidos se
materializarão. Obviamente, ao mesmo tempo, tentam lidar com os vio­
lentos ataques aos armazéns de cereais, às padarias e às residências dos
funcionários régios localizados nos limites da cidade. É a primeira ocor­
rência da síndroma da patrie en danger, das emergências patrióticas que
irão dar força a regimes punitivos cada vez mais radicais.
O confisco dos depósitos de munições e a criação das milícias, que res ­
pondem perante comités revolucionários improvisados, levará gerações
de historiadores monárquicos a partir do princípio de que o pânico decor­
reu de uma conspiração engendrada por homens como o duque de
Orleães para transformar a França num campo armado, irrecuperável
para a autoridade tradicional. Em simultâneo, a corte e, por acréscimo, a
nobreza, são estigmatizados como um dos inimigos, como estrangeiros
S imon Schama 1 CIDADÃOS

que não têm escrúpulos em planear o massacre de franceses e francesas


para recuperarem os privilégios perdidos.
É verdade que o estado ( e Estado ) paranóico que foi a característica
mais óbvia da política revolucionária não foi uma criação do Terror mas
de 1 78 9 . No entanto, também é óbvio que as teorias de conspirações bem
urdidas são imaginárias . O Grande Medo, como lhe chamou o historiador
Georges Lefebvre, apresenta todos os sinais de um pânico espontâneo.
Já tinha acontecido antes . Em 1 70 3 , quando os exércitos de Luís XIV
pareciam estar a perder uma guerra para resistir à invasão da França e
com a fome a assolar várias partes do país, espalhara -se a crença de que
o rei Guilherme III tinha dado instruções a bandidos protestantes para
se vingarem de forma indiscriminada . As repetidas afirmações de que o
rei morrera há mais de um ano não surtiram efeito nenhum na histeria .
Em 1 7 89, o pânico espalha -se da mesma maneira, por um cavaleiro que
monta um cavalo brutalmente estafado e que anuncia, com manifesta
convicção, que a aldeia vizinha está a ser alvo de uma chacina . Acredita -
-se em fulano ou em beltrano porque se supõe que dispõem de acesso
privilegiado a este tipo de informação - são os estalaj adeiros, os porta -
dores de cartas, os soldados. E quando são homens de estatuto, a sua
palavra é considerada duplamente fiável. Por exemplo, no dia 2 9 de
Julho, em Rochechouart, perto de Limoges, o senhor Longeau de
B ruyeres entra a galope na vila, gritando que viu com os próprios olhos
um massacre de velhos, mulheres e criancinhas . "É horrível, é medo ­
nho; por todo o lado se vê fogo e sangue . . . salvai -vos . . . Adieu, adieu, tal­
vez pela última vez . "
Nunca saberemos o que verdadeiramente viu, mas a sua referência a
"casas incendiadas" poderia indicar uma das muitas fogueiras alimentadas
com arquivos senhoriais e títulos feudais acendidas naquele Verão . Mas
no pesado ambiente de finais de Julho, não é preciso tanto para desenca ­
dear uma reacção em cadeia, e como Lefebvre observou, numa altura em
que a fome de notícias de Paris que existe nas províncias é saciada de
forma inadequada e imprevisível pelas diligências postais, a credibilidade
dos autodenominados "correios" e "testemunhas" torna-se desproporcio ­
nalmente elevada. Além do mais, as declarações oficiais confirmaram a
existência de "bandidos" pagos pelos britânicos, apostados em sabotar a
nova ordem com actos indiscriminados de banditismo.
Assim, perto de Angoulême, uma tempestade de poeira anuncia a che­
gada dos bandidos; em Saint-Omer, no Norte, e em B eaucaire, no Sul,
gera-se o pânico quando o reflexo do sol nas j anelas de um solar convence
as pessoas de que os bandidos deitaram fogo à propriedade; no Sul da
Champagne, no dia 24 de Julho, nada menos de trezentos homens são
mobilizados para dar caça a um grupo de bandidos - que se revela,
quando inspeccionado mais de perto, uma grande manada de vacas.
371

A s reacções são notoriamente a s mesmas e m todo o lado . Tal como


Madame de La Tour du Pin descobre, ninguém fica à espera da confirma­
ção . Toca-se o sino e as pessoas que estão nos campos vêm a correr para
a praça da aldeia. Constitui-se uma milícia que, à falta de algo mais impo­
nente, se arma com gadanhas e ancinhos . As mulheres e as crianças são
levadas da aldeia ou escondidas, e o grupo armado segue para a aldeia
vizinha para a avisar do perigo ou aj udar na sua defesa. No entanto,
durante o traj ecto, com o seu aspecto desgarrado e de armas na mão, são
quase de certeza considerados eles próprios os "bandidos" contra os quais
se mobilizaram.
Os bandidos-fantasmas não foram conj urados pela primeira vez
em 1 78 9 . O Grande Medo foi apenas uma forma extremamente concen­
trada das ansiedades gerais relativas aos nómadas e vagabundos - homens
sem domicílio que não reconheciam a lei - partilhadas por aldeãos, citadi­
nos e funcionários governamentais na França do século XVIII. Olwen
Hufton reconstruiu de forma comovente as grandes vagas de migração que
arrancavam os trabalhadores rurais mais pobres aos seus parcos lotes nas
regiões montanhosas e arborizadas e os levavam para as planícies mais
populosas para trabalhos sazonais na época das colheitas. Algumas provín­
cias - entre as quais o Auvergne, no centro do país, o Limousin e os
Pirenéus, no Oeste, e os Vosges, o Jura, o Morvan e a Sabóia, no Leste -
perdiam a maior parte da sua população masculina na enxurrada desta
migração. As rotas estavam bem assinaladas e durante o trajecto os
migrantes pediam ou roubavam fruta dos pomares e ovos das capoeiras
abertas para complementarem a sua precária subsistência. Por vezes, leva­
vam a família inteira a reboque, pois para mendigar as crianças eram mais
comoventes.
Alguns nunca regressavam, fixando-se com os seus conterrâneos em
bairros de imigrantes nas grandes cidades tais como Marselha e Paris, mas
a depressão de finais da década de 80, século XVIII, reduziu a procura de
trabalho rural e as possibilidades de encontrar trabalho temporário na
indústria da construção e até nos mercados. Ao mesmo tempo, a enorme
inflação que se verificou nos preços dos produtos alimentares ( refira-se
que nenhuma destas pessoas era auto- suficiente em termos alimentares)
e as dívidas transformaram inúmeros pequenos proprietários num prole­
tariado rural. Hufton identificou um fluxo de indigentes em ambos os sen­
tidos desta "economia improvisada " : das cidades de regresso ao campo em
busca de um trabalho cada vez mais escasso, e das aldeias para as cidades
pelo mesmo motivo .
Quando as dificuldades se transformam em desespero, muitos dos que
se acostumaram à mendicidade começam a mendigar em conj unto .
A fronteira entre a mendicidade e a extorsão torna -se nebulosa, pelo
menos para as autoridades, que consideram que os errants ( vadios) se
S imon Schama 1 CIDADÃOS

convertem sucessivamente em errants-mendiants (vadios-pedintes) e, por


fim, em vagabonds. A década de 80 do século XVIII parece ter efectiva ­
mente assistido a um aumento no número dos bandos de criminosos, e as
histórias das suas proezas - por vezes espectaculares - são amplamente
difundidas de boca em boca . No entanto, não foi a criminalização da
pobreza na linguagem oficial que j ogou com a apreensão geral daqueles
que estavam apenas marginalmente acima dos destituídos na hierarquia
social. O que os distinguiu dos seus supostos inimigos foi o facto de,
enquanto aldeãos, não terem arredado pé para defenderem o seu lote de
terra ou para fazerem a colheita de 1 789 ( que foi muito melhor do que a
do ano anterior) . Por conseguinte, as guerras locais de Julho e Agosto
foram travadas entre os que tinham algo a perder e aqueles que eles ima­
ginavam não terem nada a perder.
Na realidade, não foi este o caso. Na maior parte das situações, a vio­
lência que deu origem ao Grande Medo não foi desencadeada por hordas
sem rosto nem tecto, mas sim pelas gentes sedentárias. Foi a continuação
dos motins da Primavera, dirigidos contra a caça senhorial, os róis que
registavam as suas obrigações em espécie e mão -de-obra e outros símbo ­
l o s d a s u a subordinação, como o cata-vento n o solar e o s bancos brasona­
dos na igrej a . Em algumas áreas bastante definidas - o bocage normando,
a Picardia, a Borgonha, o Franco- C ondado e a Alsácia -, os ataques aos
solares foram generalizados. Em alguns casos, como sucedeu com o
grande solar de Senozan, perto de Mâcon, pertença do irmão de
Talleyrand, o edifício foi literalmente arrasado. Todavia, curiosamente,
verificaram-se poucas mortes e os camponeses foram liderados por pes­
soas que pertenciam reconhecidamente ao meio das vítimas: alguns lavra­
dores abastados e até, muitas vezes, o funcionário da aldeia, o syndic. 1
Além do mais, em quase todos os casos, os atacantes declararam estar a
cumprir os desígnios do rei, partindo do princípio de que ele não só apro­
vara como encoraj ara a sua recusa de pagarem quaisquer impostos feu­
dais. No Franco- C ondado, onde o regime senhorial era invulgarmente
antiquado, um grupo de camponeses armados a caminho de incendiar um
solar procurou tranquilizar o barão Tricornot dizendo -lhe: "temos ordens
escritas do rei mas não vos preocupeis - não constais da lista" . No
Macônnais, o cura de Péronne disse ter visto um papel escrito em nome
do rei que autorizava os camponeses a entrar nos solares e a exigir os títu­
los senhoriais; quando os documentos não lhes eram apresentados de
imediato, ficavam à vontade para pilhar e incendiar.
Esta distinção entre actos violentos legais e ilegais - de que a violência
de quem atacava era mais legal do que a de quem lhe resistia - teve o seu

' Em francês no original: síndico - antigo procurador de cortes, comunidades, colegia­


das, etc. (N. da R. )
373

reflexo nos motins alimentares urbanos que continuaram a eclodir por


toda a França no Verão . No dia 2 1 de Julho, em Cherburgo e Estrasburgo,
exigiu-se que o pão fosse vendido a dois soldos o meio quilo (o preço de
mercado era quase o dobro ) , novamente com a j ustificação de que o rei
ordenara que os seus cidadãos-súbditos fossem devidamente providos.
Nas cidades e nos campos, a fúria violenta foi dirigida contra aqueles que
se supunha estarem a frustrar a vontade régia : os funcionários municipais
acusados de açambarcarem os cereais e a farinha para fazerem subir os
preços, e os bandidos e aristocratas que para matarem o povo à fome
tinham destruído as searas maduras. Em ambos os casos, os resultados
foram incendiários. Nas cidades, os alvos humanos viram as suas casas
pilhadas ( com as adegas sempre em lugar de destaque) e às vezes, como
em S aint-Denis, perderam também a vida . No campo, as baixas humanas
foram mais raras mas registaram-se muitos casos em que os mordamos e
bailios das propriedades senhoriais foram severamente espancados e
depois expulsos.
O resultado foi o colapso generalizado da hierarquia de comando local,
seguido de imediato da formação de novas autoridades armadas para con­
ter os tumultos . Mas foram também estas erupções reais de violência que,
depois de divulgadas, deram origem aos receios de uma erupção genera ­
lizada de banditismo . Os citadinos liam os relatos de pilhagens e incêndios
no campo como prova de que o temível terror com que os emigrados e os
aristocratas tinham ameaçado o Terceiro Estado estava a avançar inexora ­
velmente na sua direcção. As pessoas do campo ouviam falar dos tumul­
tos e das destruições nas cidades e partiam do princípio de que esquadrões
de gens sans aveu gente sem eira nem beira - estavam a sair de Paris e de
-

outras urbes importantes para assolarem os seus campos e as suas casas.


No mundo profundamente lunático dos mal-entendidos mútuos, um
indivíduo podia assumir uma aparência na cidade e outra no campo.
Por exemplo, Frédéric Dietrich, o talentoso cientista, metalúrgico e
homem de negócios, aproveitou-se do destrutivo motim de 2 1 de Julho
para roubar o poder a Klinglin, o principal funcionário régio de
Estrasburgo. Dietrich tornou-se o primeiro presidente da câmara da
cidade, apoiado por uma milícia de cidadãos. Todavia, no campo, este
herói do Terceiro Estado era conhecido por barão de Dietrich, senhor de
Rothau, cuj o solar foi ameaçado de destruição se ele não abolisse todos os
seus direitos senhoriais. Mas ainda mais vulneráveis estavam as suas for­
jas e as serrações que lhes forneciam o combustível, que se tornaram alvos
principais do ódio inflamado do campesinato, que fora expropriado dos
seus direitos consuetudinários à madeira .
O verdadeiro significado do Grande Medo foi o vácuo de autoridade
que expôs no coração do governo francês . Apesar de ter criado, por
defeito, uma França de inúmeras comunas, esta descentralização armada
S imon Schama 1 CIDADÃOS

não foi de todo o que a maioria das pessoas desej ava. Pelo contrário, tal
como os cahiers tinham frequentemente mostrado, o que as pessoas que­
riam era mais e não menos policiamento. As repetidas invocações do
augusto e benévolo nome do rei por indivíduos que ameaçam praticar ou
que cometem actos de violência sugerem quão profunda era a sua apreen­
são face ao vazio criado pelo colapso do poder régio. As pessoas que ape ­
drejavam com satisfação as carruagens d o s intendants d e partida eram a s
mesmas q u e ansiavam pela restauração d e uma grande autoridade pater­
nal que as alimentasse e protegesse dos abusos dos subalternos. Neste sen­
tido, a violência popular de 1 789 pelo menos fora de Paris - não foi em
-

busca de inovação, mas sim da protecção.


Se a intenção dos motins e do armamento das massas não foi revolu­
cionária, as suas consequências certamente foram. Tanto os camponeses
como os citadinos tinham a perfeita noção de que quando queimavam os
títulos senhoriais ou destruíam os pombais estavam a ultrapassar uma
fronteira . Tranquilizaram-se convencendo -se de que estavam a cumprir
uma espécie de lei moral primitiva autorizada pela Assembleia Nacional e
pelo rei, uma lei que se sobrepunha totalmente às instituições que os
tinham mantido cativos. Mas perto da excitação da libertação rondava o
receio do castigo . E se tivessem sido levados por maus caminhos? Ou se
os ministros que há tanto tempo vinham mantendo o rei afastado do povo
que o amava voltassem a prevalecer? Nesse caso, poderiam ser vítimas de
um destino terrível.
Uma reacção a este medo da morte, imaginado de forma tão vívida,
como René Girard observou no caso da Antiguidade, é exteriorizar o ter­
ror e proj ectá-lo sobre terceiros nos quais se pode concentrar sacrificial­
mente o medo da morte . Dito de outra maneira, os indivíduos ou grupos
considerados responsáveis pelo perigo em que as comunidades se encon­
tram são separados do anfitrião no qual se terão tomado poderosos e
depois destruídos em actos que são ao mesmo tempo de desafio e propi­
ciação. A França de 1 789 oferecia todo o tipo de bodes expiatórios para
este processo - alguns imaginários, outros reais . Para os aldeãos das comu ­
nidades do Mâconnais que tinham atacado à tocha o regime feudal, a sua
némesis vingadoras podiam ser os lenhadores e queimadores de carvão
vegetal das florestas e montanhas do Morvam e do Jura . Para o campesi­
nato alsaciano, os estranhos a expurgar foram enfaticamente os j udeus,
cujas casas pilharam e incendiaram e cuj as pessoas molestaram no que só
pode ser descrito como perseguições espontâneas. Os vendedores ambu­
lantes, conhecidos das comunidades como errantes mais ou menos ino ­
fensivos e que ofereciam peles de toupeira e de coelho ou
pseudo -mezinhas assumiram a forma sinistra de envenenadores. Os
galeotes tomaram-se outro grupo favorito na demonologia do Medo;
dizia-se que a sua propalada libertação iminente pelos aristocratas seria o
375

prelúdio de vinganças terríveis. Alguns camponeses até disseram ter


encontrado galeotes libertados, que tinham identificado pelas letras GAL
marcadas com ferro em brasa nas costas ou nos ombros.
Os mais assustadores eram os indivíduos que não eram propriamente
franceses, que não eram "cidadãos da pátria ", mas estrangeiros, verdadei­
ros estranhos. Com a sua emigração no dia 1 6 de Julho, Artois e Condé
tinham -se revelado como líderes da cabala estrangeira . Dizia-se à boca
cheia que tinham levado milhões de libras em ouro francês para pagar aos
mercenários estrangeiros que seriam os instrumentos da sua vingança. E a
pior de todos, dizia-se nas tabernas, era Maria Antonieta, que só ficara
para trás para organizar a destruição da Assembleia Nacional. Ao viajar
pela Borgonha e pelo Franco - C ondado, Arthur Young encontrou, em
Dij on e B esançon, pessoas inteligentes e cultas que insistiam que a rainha
ia colocar uma mina debaixo da Assembleia Nacional, envenenar o rei e
pôr Artois no seu lugar. Ainda mais comum era a história segundo a qual
ela tinha escrito ao irmão, o imperador austríaco, a pedir-lhe uma força
de invasão de cinquenta mil homens.
O efeito deste estado de ansiedade prolongado foi dar origem à política
da paranóia que acabaria por engolir a Revolução. A noção de que, entre
1 78 9 e 1 7 9 1 , até à edificação da guilhotina, a França se refastelou numa
espécie de j ardim dos prazeres liberal é uma pura fantasia . Logo no início,
a violência que tornou possível a Revolução criou uma distinção brutal
entre Patriotas e Inimigos e entre Cidadãos e Aristocratas na qual não
podia haver meios -termos.
Para sua consternação e intensa irritação, Arthur Young viu -se for­
çado a lidar com funcionáriozecos obcecados com os passaportes muito
mais obstrutivos e obtusos do que o que alguma vez experimentara com
o Antigo Regime. Repetidamente incomodado, escreveu, com com­
preensível vexação, que " estes passaportes são coisas novas para novos
homens num novo poder, e mostram que eles não ostentam as novas
honras com meiguice " . Na qualidade de inglês viaj ando pela França sem
um motivo que as autoridades locais conseguissem perceber ( a investi­
gação agrícola e científica parecia uma razão muitíssimo improvável
para percorrer a cavalo as estradas dos vales do Ródano e do S aône ) ,
Young torna - se alvo d e intensa desconfiança . A s suas anotações frené ­
ticas são tidas como prova de que ele é um espião por conta da rainha,
de Artois ou, no Vivarais, do conde d' Antraigues. Nos arredores de
B e sançon, impedem-no de seguir viagem por não ter passaporte, mas
depois negam -lhe um com a j u stificação de que ele não pode provar
que conhece gente de confiança na cidade . Segue-se uma troca de pala ­
vras hilariante, com o agricultor do Suffolk a ficar cada vez mais irri ­
tado: "É a primeira vez que me vej o obrigado a lidar com os cavalheiros
do Terceiro Estado, e não fico com muito boa ideia dos senhores. "
S imon S chama 1 CIDADÃOS

O funcionário, encolhendo os ombros responde - lhe : "Monsieur, cela m 'est


fort égal" [Meu caro senhor, estou -me nas tintas ) . Exasperado, Young saca
da derradeira arma do escritor, a ameaça de incluir a conversa no seu pró­
ximo livro . É uma ameaça terrível mas não parece amolecer o funcioná­
rio: "Monsieur, je regard tout cela avec la derniere indifférence" (Meu caro
senhor, isso provoca -me a mais profunda indiferença ) .
Young fica repetidamente espantado com a discrepância entre a retó ­
rica expansiva dos revolucionários de elite, especialmente em Paris, e a
desconfiança carrancuda, a apatia política, a desinformação e a violência
caótica que experimenta nas províncias. Ao ver uma turba uivante pilhar
a Câmara Municipal de Estrasburgo, Young tem dificuldade em associar a
cena às declarações grandiosas e grandiloquentes que lhe chegavam de
todos os lados nas soirées de Paris e Versalhes.
De facto, alguns dos mais ardentes discípulos da mudança ficam per­
turbados com o descontrolo da situação . Por exemplo, Lally-Tollendal, o
parente de Lucy de La Tour du Pin, ter- s e - á inclinado cada vez mais para
o conservadorismo influenciado pelos acontecimentos no solar de
Saulcy, pertença de amigos seus. Ele descreve Madame de Listenay a
fugir com as filhas do edifício em chamas, o chevalier d' Ambly, com os
cabelos e as sobrancelhas arrancados, arrastado para cima de um monte
de estrume e outros dos seus companheiros pendurados por cima de um
poço enquanto a turba discute o que fazer com eles. A família de
Stanislas Clermont-Tonnerre também é apanhada na violenta insurrei­
ção de Vauvilliers, que acaba com vinte camponeses mortos ou grave ­
mente feridos pela tropa e a duquesa extraída do palheiro onde se
refugiou.
Na noite de 4 de Agosto, os deputados da nobreza e do clero à
Assembleia Nacional são presa de uma mistura de apreensão e patriotismo
demonstrativo. Há muito que o sistema senhorial se vem erodindo fora
dos bastiões do feudalismo, tais como a B orgonha, a Bretanha e o Franco­
- C ondado . Numa grande parte do país, foi convertido numa espécie de
prática empresarial e não há motivo nenhum para que os negócios não
possam continuar depois da eliminação do aparelho formal do poder
senhorial. Tipicamente, os cidadãos-nobres que se levantam dos seus
lugares na sessão do dia 4 de Agosto para propor e depois exigir a extin­
ção da sua sociedade consuetudinária são gente do topo, homens como o
duque du Châtelet e o duque d' Aiguillon, cuj a considerável riqueza pode
facilmente suportar uma subtracção de direitos de moagem e de taxas
pagas em mão-de-obra. Mas estes aristocratas têm um historial consis­
tente de apoio dedicado à causa da liberdade patriótica que remonta aos
seus serviços à América, na década de 70 do século XVIII. Por conse ­
guinte, importa não j ulgar a sua célebre intervenção como uma postura
tíbia ou uma tentativa cínica de salvar alguma coisa da catástrofe .
377

Ninguém esperava esta atitude, dado que a Assembleia está precisa­


mente a debater a necessidade urgente de manter e não de suspender os
impostos em vigor até se legislarem novos. Porém, o visconde de Noailles,
cunhado de Lafayette, transforma aquele debate paroquial numa
demonstração de oratória revolucionária. O reino, diz ele, "oscila entre as
alternativas de uma destruição completa da sociedade e uma governação
que sej a admirada e seguida em toda a Europa" . Para concretizar esta
última opção, é necessário acalmar as pessoas mostrando-lhes que a
Assembleia está efectivamente preocupada com a sua felicidade . Com este
obj ectivo em mente, Noailles propõe a obrigação formal de todos os cida­
dãos pagarem impostos de acordo com os seus meios, a revogação de
todos os direitos feudais - com indemnização - e a abolição imediata de
quaisquer vestígios de servidão pessoal como a mainmorte e a corvée.
Noailles é secundado pelo seu amigo, o duque d'Aiguillon, um dos
maiores latifundiários de França, que se refere especificamente a "cenas
de horror" e a uma insurreição que se poderá desculpar em virtude das
vexações sofridas pelo povo . Nada demonstrará melhor o empenhamento
da Assembleia na garantia da igualdade de direitos do que a eliminação
dos últimos vestígios de "barbárie feudal" de que o povo se queixa.
Foi um momento improvisado de autodescoberta, mas teve o caminho
aberto pela revolução cultural que aconteceu no coração da nobreza
desde a Paz de Paris. A vanguarda da nobreza liberal professava há muito
o desej o de trocar o seu estatuto titular e as suas " superstições" feudais
pela nova dignidade aristocrática de "cidadão " . Agora têm a oportunidade
de concretizar as suas intenções e agarram-na - na noite de 4 de Agosto .
Seguindo Noailles e d' Aiguillon, quais acólitos soltando risinhos nervosos
perante a emoção da iniciação, sucessivos duques, marqueses, viscondes,
bispos e arcebispos despojam-se até à feliz nudez da cidadania.
O gentil-homem bretão Le Guen de Kergall fala em deveres humi­
lhantes que "obrigam os homens a ser presos à charrua como bestas de
tiro " e que "lhes impõem noites inteiras a bater os pântanos para impedir
que os sapos perturbem o sono dos voluptuosos senhores". O duque du
Châtelet (provavelmente para horror de muitos dos curas presentes) pro ­
põe a abolição da dízima; o bispo de C hartres e o marquês de S aint­
-Fargeau propõem que se extingam todos os direitos de exclusividade à
caça e que se autorizem os camponeses a matar quaisquer animais que
interfiram nas colheitas ou para se alimentarem. O visconde de
Beauharnais fala na necessidade de garantir a igualdade absoluta nas con­
denações por actos criminosos e na igualdade de acesso de todos os cida ­
dãos aos cargos civis e militares, mas mesmo assim perde para o marquês
de B lacon, que anuncia com pompa que os Estados do Delfinado, esse
órgão notoriamente vanguardista, já instituíram esse regime. O marquês
de Saint-Fargeau, colega de Hérault de Séchelles no Parlamento de Paris,
S imon Schama 1 CIDADÃOS

não só propõe a abolição de todas as isenções fiscais da nobreza, mas tam­


bém que o respectivo decreto sej a retroactivo ao princípio de 1 78 9 .
De seguida, é ateada a fogueira dos particularismos. Os mesmos privilé­
gios provinciais e constituições especiais que foram defendidos de forma tão
obstinada contra as reformas do Antigo Regime como elementos irredutí­
veis da "constituição francesa" são negligentemente atirados para a pilha
dos anacronismos demolidos. Os representantes dos antigos pays d 'états -
Borgonha, Artois, Languedoc, D elfinado, Alsácia, Franco - C ondado,
Normandia e Limousin - chegam-se à frente e sacrificam os seus privilégios,
um gesto em que são acompanhados pelos deputados de cidades privilegia­
das como Lyon, Bordéus, Marselha e principalmente Paris. A venalidade e
a hereditariedade dos cargos - Maupeou e B rienne foram condenados por
ameaçarem estas "liberdades" - vão igualmente borda fora, e o mesmo
acontece com toda a espécie de pluralidade de benefícios do clero .
Talleyrand diz adeus à sua carteira de abadias geradoras de receitas,
Lafayette fica sem os seus regimentos. Segundo Ferrieres, perdido em
admiração, é " um momento de embriaguez patriótica" .
Esgotado o vagalhão d e altruísmo revolucionário, não causa surpresa
quando o arcebispo de Paris propõe um Te Deum para celebrar o evento .
Outros querem uma festa nacional anual, a realizar no dia 4 de Agosto, e
a cunhagem de uma medalha comemorativa. Lally-Tollendal, um dos pri­
meiros e mais apaixonados paladinos da liberdade, permaneceu sentado
no seu lugar, assiste a tudo aquilo com uma crescente sensação de des­
conforto - está a descobrir o carácter irresponsável da embriaguez român­
tica. A dada altura, envia uma missiva urgente ao seu amigo, o duque de
Liancourt, que preside à sessão. "Não estão bons da cabeça", escreveu ele,
"adiai a sessão . " Mas Liancourt não é suficientemente coraj oso nem teme ­
rário para o fazer. Em lugar de uma sessão adiada, o sol irrompe pelas
janelas da Salle des Menus Plaisirs enquanto os deputados choram, se
abraçam, cantam e se entregam à rapsódia patriótica. No mínimo, pensou
Lally-Tollendal, há que dar algum crédito à monarquia pela descarga deste
amor fraternal.
É o último a levantar- se e, com algum esforço, confessa-se também
"ébrio de alegria" . De seguida, manipulando bastante a verdade, pede aos
deputados que se recordem do rei que os convidou a reunirem-se, que os
convocou para aquela feliz reunião de mentes e corações. Se o bom rei
Luís XII foi declarado " Pai do Povo" no meio da nação, Luís XVI deve ser
proclamado "Restaurador da Liberdade Francesa" no meio da Assembleia
Nacional.
A noite de 4 de Agosto dá origem a um culto de autodespoj amento .
Oferecer algo à Nação torna -se uma demonstração de probidade patrió­
tica . Quem não tem títulos feudais nem abadias para ceder pode contri­
buir para os magros cofres do governo com outros tipos de donativos. Por
379

exemplo, no dia 7 de S etembro, uma delegação de mulheres de pintores,


liderada por Madame Moitte e que inclui as madames David, Vestier,
Vien, Vernet, Peyron e Fragonard, apresenta-se na Assembleia para ofe ­
recer as suas j óias a título de contributo patriótico. É provável que elas
( como os próprios pintore s ) tivessem j á começado a viver no reino das
virtudes neoclássicas, dado que este despoj amento de j óias é bastante
reminiscente da história de C ornélia - uma história muito retratada -, a
mãe dos Gracos, que quando uma patrícia de visita a sua casa lhe per­
guntou onde estavam as suas j óias lhe apresentou orgulhosamente os
filhos. Madame Moitte e as outras mulheres tiveram o cuidado de se ves ­
tir de branco e de se pentearem de forma singela, como se tivessem saído
de um quadro histórico de temática romana, e referem-se às jóias como
bugigangas "que teriam vergonha de usar quando o patriotismo lhes impu­
nha o seu sacrifício" . Depois de ouvirem o reconhecimento oficial e de
terem sido objecto de um voto de gratidão, as mulheres são obsequiadas
com uma procissão à luz das tochas até ao Louvre, com uma guarda de
honra formada pelos alunos da Academia de Pintura, ao som de uma banda
que tocava a popular ária "Onde melhor se pode estar do que no seio da
nossa família? " .
S ã o as mulheres que lideram a campanha dos contributos patrióticos .
As freiras do priorado de Belle - C hasse, em Versalhes, oferecem as pratas
da casa; a marquesa de Massolles, os brincos; a Dama Pages, três mil libras
provenientes das suas manufacturas. Lucile Arthur, de nove anos de
idade, envia uma corrente de ouro, as suas poupanças ( dois luíses de
ouro ) e uma carta implorando à Assembleia que tudo aceite, pois uma
eventual recusa causar-lhe -ia "demasiada mágoa e sofrimento". Até as
cortesãs, com os seus corações de ouro, contribuíram: no dia 22 de
Setembro, Rabaut Saint-Etienne lê na Assembleia uma carta de uma das
"Madalenas" que anuncia o seguinte: " S enhores, tenho um coração feito
para o amor e acumulei algumas coisas através do amor; deposito agora
nas vossas mãos a minha homenagem à patrie. Que o meu exemplo seja
imitado pelas minhas colegas de todos os estatutos . "
O tom foi indubitavelmente dado pelas mulheres, mas o s homens tam­
bém começam a demonstrar a sua devoção pelo bem comum. O j ornal de
Camille Desmoulins, Les Révolutions de France et de Brabant, enumera minu ­
ciosamente as contribuições como meio de expressão da solidariedade
provincial com a causa patriótica. Em Lyon, um grupo de j ovens oferece
j óias e um poema dedicado aos "Pais da Pátria, augustos S enadores"; onze
serviçais de um milorde inglês enviam 1 2 0 libras francesas; os clientes do
Café Procope ( onde Desmoulins costuma beber na companhia de Danton
e do editor Momoro ) enchem uma tina com quarenta pares de fivelas de
prata dos sapatos, com os quais fazem uma corrente que é levada à
Assembleia - Paris e todas as grandes cidades de província são de imediato
S imon S chama 1 CIDADÃOS

atingidas pela previsível epidemia de remoção de fivelas de prata. Ser apa­


nhado com elas equivale a uma auto-incriminação.
A Revolução Francesa começa, pois, com gestos de dar e com gestos de
receber, mas o seu futuro imediato depende do que o seu primeiro cida ­
dão, Luís XVI, possa oferecer à patrie. A dada altura, quando as necessida­
des do Tesouro se tornam particularmente prementes, e quando ainda têm
que se cobrar impostos aos seus súbditos, Luís XVI sacrifica uma grande
quantidade de pratas da mesa real, que são derretidas para cunhar moeda.
Afinal de contas, Luís XIV derreteu o mobiliário de prata da Sala dos
Espelhos para encher o cofre de guerra . Mas pede -se mais deste rei.
O sacrifício que é chamado a fazer é mais o das suas prerrogativas do que
o dos seus lingotes, um despojamento que parece ser muito mais doloroso.

II PODERE S DE PERSUASÃO,
JULHO - SETEMBRO

Os decretos de Agosto foram o primeiro teste sério à credibilidade de


Luís XVI como patriota e rei. Como sempre, ele foi ambivalente . Numa
carta ao arcebispo de Arles, expressou a sua satisfação com "a nobre e
generosa démarche das duas primeiras ordens do Estado. Fizeram grandes
sacrifícios em prol da reconciliação geral, da sua patrie e do seu rei " . Por
outro lado, como deixou bem claro, mesmo "sendo o sacrifício belo
[beau] , não posso admirá -lo; nunca consentirei a espoliação do meu clero
e da minha nobreza . . . Nunca sancionarei os decretos que os despoj am;
se o fizesse, o povo francês poderia acusar-me um dia de inj ustiça e de
fraqueza " .
Esta carta foi recentemente interpretada d e forma caridosa como uma
indicação da vontade de Luís XVI de aceitar uma grande parte da demoli­
ção do 4 de Agosto . A sua principal preocupação teria sido garantir uma
compensação adequada pela perda de cargos herdados e de taxas senho­
riais que podiam ser considerados direitos de propriedade e não instru ­
mentos de suj eição pessoal. Pode ser verdade, mas a sua utilização, ainda
que inadvertida, de termos como " duas primeiras ordens" e do pronome
pessoal régio indicam a dificuldade muito concreta que ele tinha em aj us­
tar-se ao mundo político anunciado pela Declaração dos Direitos do
Homem.
Embora existissem muitas diferenças de ênfase entre os vários projec­
tos que foram apresentados à Assembleia Nacional, todos eram unânimes
em relação a determinados axiomas básicos em torno dos quais a nova
constituição deveria ser construída. O primeiro era o de que a soberania
residia na Nação: era a nação que definia o monarca e não o contrário.
Em segundo lugar, "todos os homens nascem livres e iguais" . Declarado
381

inequivocamente como l e i natural incontestável, este princípio impedia


evidentemente qualquer espécie de distinções institucionalizadas do tipo
pressuposto numa sociedade de ordens. Terceiro, o objectivo da governa­
ção residia única e exclusivamente na promoção da felicidade dos gover­
nados. Neste contexto, o seu dever fundamental era a salvaguarda das
liberdades que eram uma qualidade inalienável da cidadania .
Mas além destes princípios muitos gerais, quase não existia consenso,
nem sequer entre o grupo relativamente pequeno de políticos que domi­
navam os comités constituintes formados em Julho, e as divisões eram
particularmente profundas quanto ao papel da monarquia na nova
França.
Os diferendos a propósito dos princípios gerais foram uma profunda
desilusão para Lafayette, que tinha sido o primeiro a propor um projecto
da Declaração dos Direitos à Assembleia, no dia 1 1 de Julho . Escusado
será dizer, tinha em mente algo parecido com o modelo americano e par­
tira do princípio de que essa declaração seria suficientemente ecuménica
para minorar e não acentuar as diferenças e dar aos franceses e às fran­
cesas um sentimento vívido da comunidade a que agora pertenciam.
O seu pai-mentor; o presidente Washington, estava aparentemente indis­
ponível para comentar a situação em pormenor, ou por excesso de tra ­
balho ou para salvaguardar a discrição política . Todavia, este tipo de
escrúpulos não incomodava o embaixador americano, Thomas Jefferson,
que durante o Verão leu os vários rascunhos de Lafayette e lhes acres­
centou algumas considerações baseadas na sua experiência americana,
em especial uma disposição no sentido de garantir a realização, em inter­
valos periódicos, de uma convenção constitucional destinada a efectuar
alterações à constituição.
O momento escolhido por Lafayette para apresentar a sua proposta à
Assembleia não poderia ter sido mais infeliz: a véspera de vir a público a
notícia da demissão de Necker. Quando a Assembleia regressou ao seu
proj ecto, ficou patente que a breve harmonia que prevalecera após a reu ­
nião das ordens era coisa do passado . A divisão era absolutamente nítida.
De um lado estava um grupo mais pragmático, liderado por Mounier e
que incluía Lally-Tollendal, Clermont-Tonnerre, o arcebispo de Bordéus,
Champion de Cicé, e o ex- intendant da marinha, Malouet. Este grupo
receava que uma Declaração de Direitos pudesse dar azo a expectativas
acima das que poderiam ser confirmadas por uma constituição funcional
e prática. "Não há nada mais perigoso", comentou o conde de La Biache,
"do que dar às pessoas ideias de liberdade indeterminadas sem lhes falar
nas suas obrigações e deveres . " Ao contrário de Lafayette, eles percebiam
que tinha sido muito mais fácil para os Americanos do que seria para os
Franceses passar dos princípios gerais para as instituições funcionais por­
que os Americanos não tinham sido obrigados a lidar com a questão da
S imon S chama 1 CIDADÃOS

monarquia. "Não nos podemos esquecer", disse La Biache no dia 9 de


Julho, com alguma falta de tacto, "de que o povo francês não é um povo
que acabou de sair das profundezas de um bosque para formar uma asso­
ciação original. " Em vez de procurar princípios "naturais", seria melhor
criar uma constituição e um Estado com os materiais à mão, que não eram
todos de descartar. Isto significava aceitar que a monarquia continuaria a
ser o poder executivo indispensável, com autoridade para nomear os
ministros, controlar a política externa e, se necessário, dissolver a legisla ­
tura . Para a monarquia ser um ramo verdadeiramente independente do
governo constitucional, seria também necessário conceder ao rei o direito
de vetar legislação conforme entendesse apropriado .
Mounier, que tinha as ideias mais amadurecidas do que os restantes,
também insistia numa legislatura bicameral. Começou por defender que a
câmara alta deveria ser nomeada pelo rei a título vitalício, mas depois, na
tentativa de garantir a aceitação do princípio, mostrou-se disposto a con­
siderar a alternativa americana de Lafayette, um senado eleito para legis­
laturas de seis anos . Para o efeito, Mounier teve o cuidado de modificar a
declaração sobre igualdade natural da Declaração de Direitos de modo a
permitir distinções, desde que exclusivamente baseadas na utilidade.
Os monárquicos admitiam prontamente a inspiração britânica para
grande parte do seu pensamento constitucional. Poucos anos antes, esta
inspiração teria sido uma mais-valia, mas dado o quente clima patriótico
de 1 789 o mais provável era que fosse contraproducente para a sua causa,
mesmo quando Mounier declarou que seria uma constituição britânica
com as imperfeições eliminadas .
Frente a este grupo conservador postou-se uma facção mais abran­
gente e mais diversa que incluía Sieyes, Talleyrand, os irmãos de Lameth,
B arnave, Adrien D uport e o bretão Le Chapelier. O Clube Bretão, em
Versalhes, fora organizado para concertar acções antes das sessões dos
Estados Gerais . Incluíra os oradores mais progressistas mas também os
que comungavam das opiniões de Mounier. Todavia, em finais de Julho,
as diferenças eram já demasiado pronunciadas para que o clube manti­
vesse a sua unidade, e tornou-se o centro principal de oposição organi­
zada aos monárquicos. Sieyes, em particular, virou do avesso o conceito
de Estado viável de Mounier. Enquanto a intenção dos monárquicos era
estabilizar a constituição separando claramente os seus três ramos, ele
sublinhou a importância da unidade . Enquanto para Mounier o perigo
estava numa legislatura ditatorial e num governo fraco, Sieyes receava
precisamente o contrário.
Não estavam apenas em j ogo as questões comezinhas de pormenor
constitucional, mas sim uma linha de fractura que era muito profunda na
cultura de finais do século XVIII. Mounier e a facção "inglesa" eram her­
deiros de Montesquieu e da tradição aristotélica de ver um equilíbrio
383

satisfatório na diversidade, nas divisões e nos equilíbrios . Os seus opo­


nentes, quer argumentassem com o rigor neoclássico quer com a consis­
tência rousseauniana, eram holistas. Para eles, a patrie era indivisível, e
responderam às acusações de que estavam a criar um novo despotismo -
o despotismo da maioria - retorquindo que a nova soberania indivisa era
um animal moralmente renascido que não podia ter nada de comum com
as impurezas da antiga. Para Sieyes, cuj a dívida ao Contrato Social de
Rousseau era explícita, embora a Vontade Geral fosse mais do que a soma
das vontades que compreendia, era, por definição, incapaz de ferir as
liberdades em nome das quais era soberana . Neste sentido, os cidadãos
eram incapazes de fazer mal a si próprios.
Para Mounier, esta asserção só podia ser ingénua ou hipócrita. A única
protecção segura contra a tirania da maioria e a única maneira de recons­
truir uma autoridade executiva capaz de governar a França era dotar o rei
do poder de veto "absoluto" . Ignorar a necessidade do consentimento
régio às reformas era, na sua perspectiva, promulgar uma República - em
tudo menos no nome - ou provocar uma guerra civil. Mas muitos depu­
tados contrapuseram que conceder ao rei um poder de bloqueio infinito
seria pôr em causa a própria constituição. Persuadindo Sieyes a abando­
nar a sua oposição a qualquer tipo de veto, aglutinaram-se em torno do
compromisso de Necker de um veto "suspensivo " : poderia adiar a legisla­
ção através de duas votações mas à terceira seria obrigado a ceder.
O debate entre os monarchiens e os seus adversários não decorreu no
isolamento discreto de Versalhes. Era avidamente noticiado na imprensa
política, que era, na sua esmagadora maioria, hostil à posição de Mounier.
Em particular, o Révolutions de France et de Brabant, de Camille Desmoulins,
estereotipou os proponentes do veto como "aristocratas " empenhados
num combate de retaguarda para preservar os privilégios e uma monar­
quia presunçosa. A verdade, obviamente, é que havia tantos cidadãos­
-nobres no grupo de Sieyes como no de Mounier: os irmãos de Lameth
não eram menos aristocráticos do que Clermont-Tonnerre ou Lally­
-Tollendal. Contudo, falhos de órgãos de comunicação social em Paris, os
monarchiens deixaram-se retratar como antipatriotas e quase ingleses,
como homens que desconfiavam do povo e que condenavam mais
depressa uma ou outra punição popular do que os culpados punidos.
Isto resumia -se tudo a uma questão de fundo : qual é a relação entre
a violência e a legitimidade? Esta pergunta assombrará a Revolução
Francesa durante toda a sua história à medida que os sucessivos regimes
caem perante a disposição dos seus opositores para sancionarem a vio ­
lência punitiva no interesse da j ustiça patriótica. Só quando o E stado
devolve a si próprio o monopólio da força - o que acontece em 1 794 , -

é que a questão desaparece . Neste sentido, pelo menos, Robespierre será


o primeiro contra -revolucionário de sucesso . Mounier, preocupadíssimo
S imon Schama 1 CIDADÃOS

com a ameaça de intimidação física à independência a legislatura,


esqueceu -se convenientemente de que o seu desafio à autoridade esta­
belecida em Grenoble, dois anos antes, apenas fora possibilitado pela
Jornada das Telhas.
No pino do Verão de 1 789, o que mais perturbou os "moderados"
como Mounier foi a violência mortiferamente festiva das multidões - a
satisfação evidente que a turba derivava de pendurar malfeitores arbitra­
riamente identificados nos réverberes ( candeeiros das ruas ) e de passear
cabeças espetadas em piques. Clermont-Tonnerre ficou tão nervoso que
repetiu uma proposta que, quando fora atribuída ao rei, levantara suspei­
tas de um golpe de Estado régio: deslocar a Assembleia Nacional para
longe de Paris. Não foi apenas a natureza espontânea da retribuição popu­
lar que os alarmou, foi também a violência verbal e j ornalística que pare­
cia atiçar as manifestações. Não há dúvida de que alguns dos mais
emotivos e lidos dos muitos jornais que começaram a ser publicados na
altura descobriram o atractivo do insulto. Por exemplo, o L'Ami du Peuple,
de Marat, criminalizava rotineiramente os políticos dos quais não gostava
como errados e ainda por cima desumanamente vampirescos - "sugar o
sangue " era uma expressão predilecta - e exigia a sua excisão do corpo
político .
O mais insidioso de todos talvez fosse o tom assumido pelo mais bem
sucedido de todos os j ornais, o Révolutions de Paris, de Elysée Loustalot.
Loustalot, que apenas sobreviveria até 1 7 90, era um advogado de vinte e
sete anos que mostrara um talento natural para o j ornalismo inovador.
C onseguiu oferecer a um público leitor completamente novo uma combi­
nação brilhante de relatos oculares, editoriais veementes e, acima de tudo
e pela primeira vez, integrando no j ornal gravuras ilustrativas dos even­
tos correntes . "A honrosa vocação de escrever sobre as revoluções da capi­
tal", escreveu ele no seu j ornal, no princípio de Agosto, "não é apenas
para oferecer o relato árido de alguns factos . . . o nosso dever é ir à fonte
dos actos e descobrir as causas das mudanças e perceber as diferentes
nuances que diariamente se apoderam da disposição do público em função
das questões que excitam o interesse geral. " Podia ser o manifesto do j or­
nalismo popular moderno .
Loustalot compreendeu o que os seus leitores queriam: menos réci ­
tas monótonas dos debates institucionais e mais reportagens vívidas dos
acontecimentos - que dariam aos leitores de Paris e, em especial, das
províncias, a sensação de serem testemunhas presenciais. Por conse­
guinte, Loustalot finge -se chocado com muita da violência que descreve,
mas a sua prosa chafurda nela. A cabeça de Foulon, com feno enfiado
na boca e espetada num pique depois de o tronco ter sido arrastado
pelas ruas até se desfazer em pedaços, "anunciou aos tiranos a terrível
vingança de um povo justamente enfurecido " . Foulon não é uma vítima
385

sacrificial patética, quase escolhida ao acaso, mas um monstro cuj a


malignidade contrabalança a sua morte : um " homem cruel e ambicioso
que só podia ter existido para merecer o ódio dos homens e provocar
sofrimento aos infelize s " .
Naturalmente, Loustalot publica, sob a forma de texto e de imagens, o
momento em que, no dia 22 de Julho, Bertier de Sauvigny, genro de
Foulon, anteriormente detido pela multidão, é confrontado com a cabeça
do sogro e depois pendurado e mutilado. B ertier é conduzido à Câmara
Municipal, escreve Loustalot, numa procissão ao som de pífaros e tambo­
res que proclama "a alegria cruel do povo " . Quando lhe põem à frente da
cara a cabeça decepada, "Bertier estremeceu e, talvez pela primeira vez, a
sua alma sentiu o aperto do remorso. Foi tomado de medo e de terror" .
Segue-se uma escrita ainda mais sensacionalista quando Loustalot
passa para o tempo presente - para conseguir mais efeito - e descreve
a cena no interior da C âmara, onde os eleitores não conseguem impedir a
multidão de se apoderar do prisioneiro:

B ertier já não existe; a sua cabeça não passa de um coto mutilado separado
do corpo. Um homem, oh ! , deuses, um homem, um bárbaro arranca-lhe o
coração das entranhas palpitantes . C omo posso dizer isto? Ele está a vin­
gar- se num monstro, no monstro que lhe matou o pai. C om o sangue a
escorrer-lhe das mãos, ele parte para oferecer o coração, ainda fumegante,
perante os olhos dos homens de paz reunidos neste augusto tribunal da
humanidade. Que cena horrível ! Tiranos, ponde os vossos olhos neste
espectáculo terrível e repugnante. Estremecei e vede como vós e os vossos
sereis tratados. Este corpo, tão delicado e tão refinado, banhado em perfu ­
mes, é horrivelmente arrastado pela lama e pelo empedrado. Que terríveis
lições, déspotas e ministros ! Teríeis alguma vez acreditado que os Franceses
tinham tamanha energia ? ! Não, não, o vosso reinado acabou . Tremei, futu­
ros ministros, se sois iníquos . . .
Franceses! Vós exterminais os tiranos ! O vosso ódio é repugnante, medo­
nho . . . mas sereis finalmente livres . Eu sei, meus caros concidadãos, como
estas cenas repugnantes afligem as vossas almas . . . mas ponderai como é
ignominioso viver como um escravo. Ponderai quais os castigos que devem
ser infligidos pelo crime de lese-humanité. Ponderai, finalmente, que bem,
que satisfação, que felicidade esperam por vós e pelos vossos filhos . . .
quando o templo augusto e sacro da liberdade for vosso.

A premissa de que existe uma relação directa entre sangue e liberdade


- na verdade ( como Loustalot implica noutros textos ) , entre sangue e pão
- é geralmente considerada como a linguagem-padrão do jacobinismo
punitivo, do Terror. No entanto, foi uma invenção de 1 789, não de 1 7 9 3 .
O Terror foi apenas e m 1 789 com u m número maior d e vítimas. Logo no
S imon Schama 1 CIDADÃOS

primeiro ano, tornou -se evidente que a violência não era apenas um
efeito secundário infeliz do qual os Patriotas esclarecidos podiam desviar
selectivamente o olhar; era a fonte de energia colectiva da Revolução. Foi
o que tornou a Revolução revolucionária .
Ninguém se apercebe deste facto inquietante mais depressa do que
Lafayette . Na qualidade de querido das multidões, é a ele que é oferecida
a dádiva votiva dos dísjecta membra de Bertier. Lafayette ignora-a com o
comentário seco de que ele e o presidente da câmara estão demasiado ocu­
pados para receberem mais "delegações", mas o facto de o comandante da
Guarda Nacional ter sido impotente para impedir a execução sumária de
Bertier constitui uma prova alarmante de que para a Revolução de Paris
não descambar rapidamente para uma espiral de anarquia sangrenta será
necessário algo mais do que a elevada Declaração dos Direitos do Homem
( na qual Lafayette ainda está a trabalhar com Jefferson) .
Sylvain B ailly também s e terá sentido ultraj ado pela brutalidade que
foi forçado a testemunhar. Deve ter sido chocante para a sua fé iluminista
na civilidade do homem ver- se confrontado com os resultados do aspecto
mais bestial do homem a balouçar nas lanternes. No imediato, Bailly é con­
frontado com necessidade de impor alguma calma à governação da capi­
tal, mas as suas intenções são frustradas pela truculência das assembleias
eleitorais de distrito. Tal como a assembleia de eleitores que se reunira na
Câmara Municipal permaneceu em existência, o mesmo aconteceu com
as suas constituintes das ses senta "mini- república s " formadas na
Primavera . Organizaram-se em associações de debate e fazem reuniões
regulares durante as quais analisam, de forma bastante crítica, as medidas
aprovada pelo comité de Bailly, em especial as relativas a duas questões
que durante os próximos cinco anos estarão no centro da política pari­
siense : o pão e a polícià. As assembleias mais articuladas - principalmente
a dos Cordeliers, na margem esquerda - vêem-se já como reencarnações
dos democratas atenienses, como células primárias da liberdade às quais
os representantes eleitos têm de responder e ceder o passo. Ora é precisa­
mente a liberdade com que os jornalistas e os oradores de café criticam as
decisões tomadas na Câmara Municipal e em Versalhes que leva Sieyes a
querer que a Assembleia Nacional repudie o "mandato imperativo" . Se os
deputados forem obrigados a ceder aos seus constituintes em toda e qual­
quer matéria, a Assembleia Nacional não passará de um grupo de correios
glorificados a correrem permanentemente dos e para os distritos. Bailly
procura travar esta tendência para uma espécie de democracia rousseau ­
niana primitiva instruindo cada uma das sessenta assembleias a eleger
dois representantes para um órgão a estabelecer da Câmara Municipal e
que seria conhecido por C omuna, mas depois de as tabernas terem encon­
trado a sua voz e os prelos de esquina os seus leitores - e enquanto per­
sistir a suspeita de que os homens que ocupam o poder conspiram para
387

fazer aumentar o preço do pão - é difícil gerir a política parisiense a par­


tir do centro. Por exemplo, no auge do debate sobre o veto real, Loustalot
propõe que a Assembleia Nacional suspenda as suas sessões enquanto
cada bailliage eleitoral do reino é auscultado sobre a respectiva posição !
Havia algumas medidas que podiam ser tomadas para impedir o
colapso total da autoridade organizada. Contudo, mesmo no período
ostensivamente liberal da Revolução, os políticos não tardaram a desco­
brir que entre a anarquia e a coerção tinham pouco espaço de manobra .
Ao afastarem-se da ruptura completa da ordem, não conseguem evitar
recriar instituições de poder estatal que, com poucas modificações, se tor­
narão os instrumentos do Terror. Em finais de Julho, Volney e Adrien
Duport estabelecem na Assembleia Nacional dois comités executivos des­
tinados a centralizar as decisões políticas em duas áreas cruciais. O pri­
meiro, o Comité dos Pareceres, tem autoridade, à margem do conselho
régio, para aprovar ou invalidar as nomeações locais. Por conseguinte,
como Ferrieres observa com algum alarme, os seus membros podem
designar arbitrariamente, entre as inúmeras revoluções municipais, quais
são legítimas e quais não são. Por outras palavras, este comité tem a capa­
cidade de provocar uma guerra civil.
O segundo, o Comité de Vigilância, é efectivamente o primeiro órgão de
um Estado policial revolucionário. Arroga-se todos os poderes que foram
considerados tão obnóxios com o Antigo Regime : a possibilidade de violar
a correspondência, de criar redes de informadores e espiões, de realizar
buscas domiciliárias sem mandatos, de construir um aparelho para a trans ­
missão de denúncias e de encorajar os Patriotas a levar toda e qualquer
uma das suas suspeitas à atenção das autoridades. Este comité de doze
membros ( com o mesmo número de elementos do futuro Comité de
Salvação Pública ) é inclusivamente dotado do poder de encarcerar suspei­
tos sem j ulgamento enquanto forem considerados perigosos para a pátria.
Em teoria, este esquema é preferível aos caprichos da turba que, com base
num artigo do j ornal de Marat, identifica indivíduos para proscrição e jus­
tiça sumária. Contudo, encerra o potencial para se tornar, nas palavras de
Ferrieres, "o temível tribunal perante o qual toda a gente tremerá " .
Em Paris, o dilema crucial d e como ser o amo e não o servo impotente
da força revolucionária centra-se no marquês de Lafayette. Ele é uma
figura tão imponente no Verão e no princípio do Outono de 1 7 89 que
espanta vê-lo com apenas trinta e dois anos e na pele de um completo
novato político . A sua experiência americana não o preparou para o bap ­
tismo de fogo nos distritos e bairros de Paris, pois ele imaginara o advento
da liberdade como uma cruzada simples, com heróis e vilões facilmente
identificáveis. Frustrado pela nobreza conservadora do Auvergne e obri­
gado a obedecer ao seu mandato nos Estados Gerais, ele continuara a par­
tir do princípio de que nos momentos críticos uma preocupação
S imon Schama 1 CIDADÃOS

partilhada pelo bem comum enterraria as diferenças numa eclosão de


concórdia fraterna .
Mas não é este o cenário que se desenvolve nas ruas de Paris quando
ele está de sentinela. Pelo contrário. Lafayette vê-se diariamente confron­
tado com multidões desesperadamente famélicas e irracionalmente des­
confiadas que em poucas horas são capazes de passar da fúria ao
assassínio. Lafayette é obrigado a desenvolver rapidamente competências
de negociador laboral, árbitro, comandante de milícia e diplomata . O que
admira não é o facto de os seus poderes acabarem por lhe falhar, mas sim
que tenha conseguido controlar a capital durante tanto tempo.
A primeira preocupação de Lafayette é garantir que os carregamentos
de cereais, farinha e pão chegam aos mercados designados e que os pre ­
ços são mantidos a níveis não susceptíveis de desencadear tumultos . No
fim da primeira semana de Agosto, o preço do pão de dois quilos, de um
máximo de catorze soldos e meio, baixa para doze soldos. A perspectiva
de uma colheita muito melhor em 1 789 contribui para aliviar a sensação
de pânico, mas o tempo continua a pregar partidas cruéis aos parisienses.
A seca volta a impedir o funcionamento das azenhas, negando a farinha
aos padeiras da cidade. Resultado : o fim do Verão e o princípio do Outono
assistem a motins frequentes j unto das padarias, a roubos e ao confisco de
pães - muitas das multidões são lideradas por mulheres. Lafayette e B ailly
não se poupam a esforços para convencerem os trabalhadores assalariados
da cidade de que pelo menos as autoridades municipais não estão a cons­
pirar para aumentar os preços e perpetuar a "conj ura da fome " .
Por conseguinte, as dificuldades económicas continuam a ser uma
ameaça grave à restauração da ordem. Uma sucessão de grupos de arte ­
sãos manifesta-se por salários mais elevados para poder responder ao
aumento do preço do pão, e são precisas duas reuniões tempestuosas na
praça do Louvre para que os alfaiates assalariados consigam ver a sua
jorna média aumentada de trinta para quarenta soldos. Os peruqueiros
estão furibundos com a Revolução, que tornou redundantes os seus ser­
viços (a ausência de peruca é obrigatória para muitos Patriotas, com a
excepção de Robespierre ) , e com os "aristocratas", cuj os gostos volúveis
culpam das dificuldades em que se encontram. Mas a manifestação mais
notável de todas é a dos quatro mil Fígaros e Susanas - serviçais domésti­
cos - que exigem nos C ampos Elísios a revogação da sua desqualificação
(por serem dependentes ) para prestarem serviço na Guarda Nacional.
Na verdade, muitas destas exigências são típicas do paroquialismo
furioso do operário revolucionário. Os servos domésticos insistem na
exclusão dos saboiardos da sua profissão e outros grupos profissionais exi­
gem que a cidade ponha fim às obras de apoio aos pobres que decorrem
nas colinas de Montmartre - com base num panfleto segundo o qual os
indigentes que lá trabalham estão a apontar canhões à cidade. Lafayette
389

tem de enfrentar a hostilidade de ambos os lados - dos que querem ver


encerrados estes ateliers de charité e dos trabalhadores indigentes, que são
recambiados para as respectivas paróquias, fora da cidade, devido ao
encerramento das obras.
Existe também ressentimento devido à necessidade de garantir a protec­
ção de fontes de receitas municipais sem as quais as outras obras públicas
de caridade seriam certamente interrompidas. Isto obriga a que a Guarda
Nacional patrulhe alguns dos postos alfandegários restantes onde conti­
nuam a cobrar-se direitos sobre produtos como o tabaco . No entanto,
Lafayette consegue, na generalidade, anular os aspectos obviamente
impopulares do seu policiamento com ocasiões concebidas para maximi­
zar a sua popularidade pessoal, especialmente quando recebem plena
cobertura do j ornal Patriote Français, que pertence ao seu amigo B rissot.
Numa destas cenas comoventes, o equivalente do que hoj e seria descrito
como uma "oportunidade fotográfica ", Lafayette visita casas no bairro de
Saint-Antoine onde alguns vainqueurs de la Bastille, feridos no dia 14 de
Julho, definham sem comida nem cuidados médicos elementares. Em
todas estas actividades - e sem nenhuma aspiração à ditadura -, Lafayette
move -se manifestamente no espaço vagado pela autoridade régia .
Durante pelo menos alguns meses, Lafayette é o p e re nouricier, o "pai-pro­
vidente " da cidade; é o seu j uiz e árbitro, a sua fonte de protecção policial
e autoridade militar. A sua gestão de todas estas situações esteve longe da
perfeição mas Lafayette e B ailly merecem o crédito por terem conseguido
firmar a credibilidade da governação revolucionária .
Nada disto teria sido possível sem a Guarda Nacional, e Lafayette foi
incumbido de controlar as sessenta companhias distritais para não as deixar
degenerar em instrumentos de feudos locais. Lafayette dá-se conta disto
logo no dia 1 6 de Julho, quando Georges Danton, oficial dos guardas dos
Cordeliers, entra na Câmara Municipal com uma figura miserável sob
escolta. Trata-se de um certo Soules, dito "segundo governador da Bastilha",
que se negou a deixar entrar a milícia sem uma autorização específica.
Soules é o eleitor a quem a Câmara Municipal confiou a fortaleza como
uma espécie de porteiro enquanto se organizava a sua demolição, mas só a
intervenção de Lafayette impede que seja severamente maltratado.
A Guarda tem de fazer uso de uma espada de dois gumes: contra a con­
j ura monárquica num flanco e contra a anarquia da turba no outro.
Lafayette garante - com a plena aprovação de Bailly e de Necker - que a
força se compõe exclusivamente de elementos que ele considera fiáveis nes­
tes dois aspectos. O núcleo é composto por quatro mil e oitocentos guardas
assalariados, principalmente constituídos por ex-membros dos Gardes
Françaises, desertores das companhias de linha do exército real e membros
de unidades paramilitares estranhas como os estudantes de direito e os
escriturários da basoche. Em meados de Setembro, esta força é bem equipada
S imon Schama 1 CIDADÃOS

com seis mil mosquetes e constitui-se como o "centro" da Guarda Nacional.


Lafayette evita o elitismo distribuindo o pessoal pelos sessenta distritos, de
modo que cada um fica com uma companhia de efectivos pagos para qua­
tro de voluntários. O resultado, pelo menos no papel, é a criação de uma
força de polícia para Paris, com cerca de trinta mil homens, mais eficaz do
que qualquer uma das que estavam ao dispor do Antigo Regime.
Mas a integração dos vários tipos de guarda não decorre às mil mara­
vilhas. Verificam-se disputas por causa das distinções dos uniformes. Os
ex-membros dos Cardes Françaises devem ser autorizados a preservar
algum sinal exterior de identidade separada? Os advogados da basoche,
sempre de sabre na mão, devem mesmo ser autorizados a desfilar nas suas
espampanantes casacas vermelhas e prateadas? Quem pode usar drago ­
nas; que desenho terão?
Lafayette ultrapassa toda esta petulância com o fardamento atribuindo à
Guarda um uniforme tingido com as cores da patrie: casacas azuis com lape­
las, vivos, coletes e calças brancas, e debruados vermelhos. O facto de terem
de pagar do seu bolso esta esplêndida fatiota, bem como as suas armas e
munições, garante que os guardas pertencem exclusivamente às classes pro­
prietárias de Paris (em 1 789, o próprio capitão Danton é um homem de pos­
ses relativamente substanciais, ainda que assentes no crédito da mulher) .
Lafayette garante também que, quase desde o princípio, a Guarda pos­
sui um forte esprit de corps. No dia 9 de Agosto, um domingo, ele manda a
Guarda vestir pela primeira vez o seu novo uniforme. Cantam-se missas
nas igrej as das companhias, com o comandante a assistir à de Saint­
Nicolas-des - C hamps. Nas ruas, cantores da Ópera e bandas militares em
desfile anunciam o advento de um corpo de cidadãos. À tarde, no Palais ­
Royal, batalhões de vários distritos formam em parada, "ao som dos tam­
bores e de música marcial" . Cada um dos novos batalhões foi incumbido
de desenhar a sua própria bandeira, que é cerimoniosamente abençoada
na igreja de onde o respectivo distrito retira o seu nome . Lafayette faz por
estar presente no máximo de cerimónias e quando tal se verifica impossí­
vel envia B ailly ou, no caso da fête patriotique em Sceaux, no princípio de
Setembro, o duque e a duquesa de Orleães, acompanhados pelos filhos .
N o dia 2 7 , realiza -se uma bênção geral e m Notre Dame, que é precedida
de uma grande parada com todos os batalhões, que marcham dos seus dis­
tritos até ao centro da cidade. Na catedral, o abade C laude Fauchet, um
radical que é deputado por Caen e pregador da "religião social", prega um
sermão sobre a santidade da liberdade armada.
Lafayette compreende genuinamente o poder psicológico dos símbo­
los emotivos. Ele sabe que, numa altura em que se romperam os laços
tradicionais que mantinham os homens em relações de deferência, é vital
reincorporá -los numa nova comunidade patriótica . Para que este desíg­
nio funcione, as formas exteriores que podem significar "amigo", "irmão "
391

o u "cidadão" são tão o u mais cruciais d o que o s decretos emanados da


Assembleia Nacional. Por conseguinte, Lafayette inventa o cocar tricolor
como insígnia obrigatória da identidade patriótica. Desej oso de evitar quais­
quer acusações de que as tropas da Guarda são a falange do duque de
Orleães, Lafayette acrescenta o branco dos Bombons ao vermelho e ao azul
que são, por coincidência, as cores de Paris e da Casa de Orleães. O cocar
aparece em todo o lado, não só nos tricórnios dos guardas mas também
espontaneamente nas faixas usadas sobre os vestidos brancos e largos pre­
feridos pelas cidadãs, em substituição das fivelas de prata, presos às benga­
las e usados à guisa de correntes de relógio. Com tudo isto, o cocar origina
uma expansão enorme do negócio dos fabricantes de fustão. Nas províncias,
o cocar converte -se de imediato no emblema da solidariedade com Paris e a
Assembleia. No dia 2 6 de Julho, em Brest, uma actriz envolta nas suas cores
canta que o cocar é branco pela pureza, vermelho pelo amor do rei aos seus
súbditos e azul pela felicidade celestial experimentada por todos os france ­
ses em 1 789. Mercier, que escreveu um panfleto intitulado La Cocarde
National, vê nele a insígnia da nova raça de guerreiros-cidadãos, e Lafayette
pega neste tema do império da liberdade quando profetiza que o cocar "dará
a volta ao mundo; é uma instituição simultaneamente civil e militar; desti­
nada a triunfar sobre as antigas tácticas da Europa e que reduzirá os gover­
nos arbitrários à alternativa de serem vencidos caso não o emulem" .
Não h á dúvida d e que Lafayette adora desempenhar o papel d e novo
"pai da patrie", mas também está ciente da sua utilidade como ponto de
aglutinação. Além disso, conhece bem o valor da retórica familiar nas revo­
luções. A mulher, Adrienne, e a filha, Anastasie, acompanham-no em
muitas cerimónias de bênção das bandeiras, onde fazem colectas para os
pobres. Durante um jantar especial que lhes é oferecido, no dia 2 2 de
Setembro, pelos guardas de Saint-Etienne -du-Mont, são celebradas em
canções e poemas que declaram que Madame Lafayette está com a sua
família, dado que a família do marquês é, na verdade, toda a humanidade
- o que faz de Adrienne a "mãe universal " . Um dia, prevê -se, os seus filhos
serão honrados em todo o país como rebentos do "pai que salvou a
França" . No mesmo espírito, quando os guardas do distrito da Sorbonne
querem nomear para seu segundo-tenente o pequeno George Washington
Lafayette, então com dez anos de idade, o marquês protesta que a promo ­
ção é algo prematura mas que o garoto ficará encantado por servir como
simples fuzileiro . ( Os Guardas tinham companhias de crianças que eram
uma atracção especial nas manobras e nos desfiles ) . Perante a insistência
da tropa, o pai cede, assumindo a mais romana das suas poses:
" C avalheiros, o meu filho j á não é meu; pertence -vos a vós e à patrie" .
Durante todo o Agosto e grande parte do mês de Setembro, esta com­
binação de contenção armada e carisma patriótico protege Paris da con­
tra-revolução e da anarquia. Por exemplo, em 30 de Agosto, um aristocrata
S imon S chama 1 CIDADÃOS

radical, o marquês de Saint-Huruge ( recém-libertado do manicómio de


Charenton, onde partilhou o pátio de exercícios com Sade ) , tenta liderar
uma manifestação popular do Palais-Royal a Versalhes. Saint-Huruge ela­
borou uma lista de sessenta partidários do "veto absoluto" que proscreveu
como "traidores" e exige que sejam expulsos da Assembleia Nacional, e
insiste no regresso imediato da família real a Paris. Lafayette preparou-se
bem para fazer frente à expedição e recambia-a para Paris com o recurso
a fortes destacamentos da Guarda Nacional e prende Saint-Huruge .
A ameaça foi facilmente frustrada, mas Lafayette não pode ser compla­
cente. As coisas dão frequentemente para o torto j unto das padarias, pois,
apesar dos esforços para controlar os preços, a matéria-prima é escassa e as
filas compridas. Alguns padeiras são ameaçados com a lanterne; os guardas
aparecem para manter a ordem e são cada vez mais numerosas as queixas
de que os funcionários municipais são cúmplices numa conspiração para
matar o povo à fome. No dia 3 de Setembro, um telhador é detido por cul­
par o próprio Lafayette pelas carestias e ameaçar enforcá-lo.
Este incidente indica que o herói do momento, engalanado com flores
e imperturbavelmente montado no seu cavalo branco, podia facilmente
tornar-se um vilão ou uma vítima no dia seguinte. A capacidade de
Lafayette e Bailly manterem a turba longe da estrada para Versalhes
depende, em última análise, da conduta da Assembleia Nacional, do
governo de Necker e - principalmente - do próprio Luís XVI. Enquanto a
atitude do rei face à sua transformação iminente em monarca constitu ­
cional permanecer desconhecida, Lafayette deposita grandes esperanças
num final feliz. Embora o sentimento não sej a de todo recíproco, a atitude
de Lafayette para com o rei e a rainha é algo sentimental. Ele espera fazer
de Luís XVI em 1 78 9 o que fará de Louis Philippe em 1 8 3 0 : um rei­
-cidadão envolto num manto tricolor.
Haverá em breve outro aparecimento à varanda, com Lafayette num
dos seus melhores desempenhos teatrais, mas será menos uma coroação
e mais uma operação de salvamento - com o terror a um passo atrás dos
aplausos.

III LUTA DE MULHERE S ,


5 - 6 DE OUTUBRO

Maria Antonieta está acostumada a receber as vendedoras de Paris em


Versalhes. A 25 de Agosto, dia da festa anual de São Luís, elas integram a
delegação de "gente honesta" que se desloca ao palácio para oferecer os
seus cumprimentos e j urar obediência ao rei e à rainha . Vestidas de
branco cerimonial e despojadas dos odores dos mercados, elas oferecem à
rainha ramos de flores como símbolos da sua lealdade e afecto . Os seus
393

breves discursos são-lhes geralmente escritos por um assistente do mestre ­


-de-cerimónias mas de quando em quando ouvem-se algumas frases
espontâneas j oviais na gíria dos mercados, o poissard. 2
O nome deriva da palavra francesa para "piche " (poix) . O poissard não
era propriamente uma gíria, mas antes o que o seu historiador,
Alexander Parks Moore, caracterizou como um ataque sistemático à gra ­
mática. Recorrendo com frequência à elisão, à gramática e à sintaxe frag­
mentadas e a ritmos forçados, o poissard era ideal para fazer versos
cómicos e ofensivos, para lançar insultos rimados e para uma espécie de
fala dura e ameaçadora na qual o escárnio e o ridículo desempenhavam
um papel importante . As suas canções e piadas eram mantidas vivas nas
tabernas e nos mercados de ruas de Paris, mas também eram cultivadas
nas excursões literárias à cultura do povo que se tornaram uma moda da
aristocracia em finais do Antigo Regime . Aqueles que na feira de Saint­
- Germain se rebolavam a rir com o Pere Duchesne e os seus insultos des­
bocados e manchados de tabaco são exactamente os mesmos cuj as cabeças
serão pedidas pela reencarnação política desta personagem no irado j or­
nal de Jacques-René Hébert. O duque de Orleães levava com frequência
à cena peças em poissard no seu teatro privado, e em 1 7 77 a rainha con­
vocou um grupo de peixeiras e vendedoras ao Trianon para lhe ensinarem
e à sua trupe amadora a pronúncia correcta do poissard.
De súbito, em 1 789, o poissard deixa de ter graça . A "Moção das
Peixeiras de La Halle", uma das primeiras canções revolucionárias, torna­
-se duplamente ameaçadora porque os seus últimos versos imitam com
sarcasmo a deferência habitual que as vendedoras mostravam quando se
deslocavam à corte .

Si les Grands troublent encare


Que le Diable les confond
Et puisqu 'ils aiment tant l 'Or
Que dans leur gueule on en fonde
Voilà les sinceres voeux
Qu 'les Harengeres font pour eux

Se os Grandes continuarem a provocar sarilhos


Que os Diabo os confunda
E já que gostam tanto de Ouro
Que lho derretam na goela
São estes os votos sinceros
Das Peixeiras para eles

2 Ver também capítulo 4, página 1 1 6 . ( N. da R. )


S imon Schama 1 CIDADÃOS

Em 1 789, ainda houve ocasiões em que as poissardes - as peixeiras e


vendedoras - agiram em conformidade com o seu papel cerimonial. Na
festa de São Luís, lideraram uma procissão de mil e duzentos "delegados"
até Versalhes, acompanhadas pela Guarda Nacional, com ramos de flores
envoltos em gaze com a inscrição dourada : "Em homenagem a Luís XVI,
o Melhor dos Reis", e participaram nas muitas procissões em honra da
padroeira de Paris, Santa Genoveva, que tinham lugar no final do Verão.
Mas despidas as suas fatiotas de cerimónia, as mulheres de Paris viram­
-se crescentemente para actividades políticas menos corteses. Cabendo-
-lhes de forma mais directa a responsabilidade de pôr o pão na mesa, são
elas que se sentem mais desesperadas e furiosas com a carestia que, depois
de uma boa colheita, parece de sobremaneira inexplicável. Aproxima-se a
passos largos o termo de Outubro para o pagamento da renda e das fac­
turas dos comerciantes, e durante todo o mês de Setembro aumentam as
ocorrências de assaltos às padarias suspeitas de enganarem na pesagem ou
de açambarcamento . Além disso, as mulheres tornam-se mais audazes nas
suas expedições em busca do cereal que os moleiros dizem ser escasso. No
dia 1 6 de Setembro, em Chaillot, a oeste de Paris, mandam parar cinco car­
roças carregadas de cereais, que levam para a Câmara Municipal. No
dia 1 7, depois de uma manifestação contra os padeiras, param uma carroça
na Place des Trois Mairies e levam-na para o quartel-general do distrito.
Não existem provas de que, confrontada com as notícias da fome,
Maria Antonieta tenha alguma vez dito qualquer coisa parecida com " Que
comam bolo" . No entanto, esta fábula apócrifa não deixa de constituir um
testemunho eloquente da crescente suspeição e ódio apontados à corte, a
qual, j untamente com os funcionários municipais de Paris, é considerada
responsável pela situação aflitiva da arraia-miúda. Em Setembro, com a
crise da subsistência a dar mostras de se agravar, parece acontecer o
mesmo com a crise política . Na mente popular, estão ligadas uma à outra .
No dia 1 0 de S etembro, Mounier e os seus monarchiens são rotunda­
mente derrotados na votação sobre os primeiros princípios da constitui­
ção. A Assembleia Nacional prefere uma legislatura de uma câmara à de
duas por 849 votos contra 89, registando-se 1 1 2 abstenções. No dia
seguinte, opta pelo "veto suspensivo" de Necker-Lafayette em detrimento
do veto absoluto por uma margem quase tão impressionante: 6 7 3 votos a
favor, 3 2 5 contra e 1 1 abstenções.
Mas irá o rei acatar a sua constitucionalização? Os oradores da
Assembleia acreditam ter poder para instituir as "leis fundamentais" da
constituição passando por cima da oposição do monarca caso sej a neces­
sário, mas preferem de longe ter o seu assentimento. No dia 1 9, depois
de lida a resposta do rei à Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão e aos decretos de Agosto, as perspectivas de um acordo amigá ­
vel afiguram-se remotas. O monarca declara que aprova o seu "espírito"
395

na generalidade mas mostra tantas reservas em relação à compensação


das dízimas, dos títulos senhoriais e dos cargos hereditários que a sua res­
posta mais parece uma rej eição do que uma aceitação. No dia 2 1 , o rei
anuncia que ordenou a publication dos decretos, um passo que torna
ainda mais irritante o adiamento da sua promulgação. Mas a maior
imprudência de todas é a insistência de Luís XVI de, na questão dos direi­
tos feudais, ser forçoso dar uma atenção especial aos direitos dos prínci­
pes estrangeiros ( alemães) que possuem domínios na Alsácia - não teria
feito melhor se a sua intenção fosse inventar razões para os j ornalistas o
acusarem de privilegiar os direitos de dinastas estrangeiros em prej uízo
dos patriotas franceses.
Nos cafés do Palais-Royal, nos clubes políticos e nas páginas da
imprensa polémica, tudo aquilo parece - ou é-lhe dada essa aparência - a
preparação de um novo golpe de Estado monárquico . Diga -se de passa ­
gem, aliás, que o conceito de veto é muito mal compreendido. No pensa ­
mento popular, é amiúde considerado uma espécie de novo imposto ou
de arma sinistra da conjura da fome . O Courrier de Versailles, de Gorsas,
relata uma conversa imaginária sobre o assunto entre dois camponeses.
O mais bem informado pergunta ao companheiro, "Sabes o que é o veto?";
e depois : "Eu explico-te. Tens uma tigela cheia de sopa e o rei diz-te:
'Abana a tigela' - e tu tens de abanar e entornas a sopa. O veto é isto" .
Dado este grau d e suspeição popular, era provável a existência d e um
público que respondesse positivamente aos apelos de Marat, no seu L'Ami
du Peuple, para que fossem separados os vilões dos virtuosos. "Abri os
olhos", ordenou ele aos leitores, "saí da vossa letargia, purgai os vossos
comités, preservai apenas os membros sãos, varrei os corruptos, os pensio­
nistas e os aristocratas manhosos, os intriguistas e os falsos patriotas. Não
tendes nada a esperar deles excepto servidão, pobreza e desolação."
As piores suspeitas vêem-se reforçadas quando, apesar da derrota das
suas propostas, Mounier é eleito para a presidência da Assembleia, e
quando Saint-Pierre, o ministro da Guerra, decide chamar a Versalhes o
Regimento da Flandres. Não se trata de nada minimamente comparável à
ofensiva militar de Julho; o regimento é mobilizado como medida de pre ­
caução para proteger o governo e a casa real na eventualidade de uma
nova marcha sobre Versalhes. Porém, escusado será dizer, a chamada do
regimento provoca precisamente o evento que pretendia evitar.
Os demónios soltam-se no dia 2 de Outubro. O jornal de Loustalot
noticia um banquete oferecido na véspera ao Regimento da Flandres pela
guarda real. Os banquetes de boas -vindas são uma tradição militar mas
este foi numa escala pródiga, no espaço enorme da ópera do palácio.
A ocasião, j á de si uma manifesta falta de tacto numa altura de privações
visíveis, transforma-se numa demonstração de lealdade à Coroa. Tocam­
-se árias da popular ópera de Grétry sobre o encarceramento de Ricardo,
S imon S chama 1 CIDADÃOS

Coração de Leão, depois da cruzada - entre elas, " O Richard mon roi, l 'univers
t 'abandonné" e a família real é persuadida a aparecer brevemente, o que
-

é invulgar naquelas ocasiões. A rainha passeia pelas mesas com o delfim,


de quatro anos de idade, ao colo, para os soldados o admirarem. B ebe-se
à saúde da família real e, depois da sua partida, a frequência e o calor dos
brindes aumentam a olhos vistos. C om os presentes cada vez mais bêbe­
dos e desinibidos, algumas mulheres da corte começam a distribuir coca­
res pretos (a cor da rainha) e brancos ( a cor do rei ) .
No dia seguinte, no j ornal d e Loustalot, n o L'Ami du Peuple d e Marat e
no Les Révolutions de France et de Brabant de Desmoulins, esta celebração de
lealdade relativamente inócua adquire foros de "orgia", um termo que,
dada a nova safra de libelos sexuais sobre a rainha, conj ura cenas de debo­
che, gula e traição. Mas o momento mais infame não foi sexual nem gas­
tronómico: o cocar patriótico foi pisado e espezinhado . Trata-se do relato
exagerado de um acontecimento verdadeiro ( cuidadosamente noticiado no
Courrier de Versailles de Gorsas ) que ocorreu quando um oficial exclamou :
"Abaixo o cocar colorido ! Que todos ponham o preto, que é o melhor! "
Mas a história surte o efeito previsível de provocar um clamor imenso em
Paris, onde o desrespeito pelo cocar equivale a profanar a hóstia . Além do
mais, segundo se diz, o incidente mereceu a aprovação da rainha, e
quando se sabe que durante uma recepção a uma delegação da Guarda
Nacional ela expressou o seu " encanto" com o banquete pressupõe-se
logo que ela teve a intenção de insultar a patrie.
A fome e a fúria voltam a combinar-se no dia 5 de Outubro, com o
mote a ser dado pelas mulheres. Na véspera, algumas mulheres do distrito
de Saint-Eustache arrastaram até à Câmara Municipal um padeiro acu­
sado de roubar na pesagem, que escapou por pouco a ser linchado. Numa
arenga a uma multidão, uma vendedora culpa a rainha pela fome e exorta
quem a ouve a marchar sobre Versalhes para exigir pão. Na madrugada
de 5, repicam os sinos da Igrej a de Sainte -Marguerite . Forma-se uma mar­
cha, liderada por uma mulher que toca um tambor, e a multidão começa
a cantar o título do panfleto mais recente, Quando teremos pão? Pelo cami­
nho, a turba vai recrutando mulheres de outros distritos, muitas delas
armadas com mocas, paus e facas, e quando as manifestantes chegam à
Câmara Municipal j á são seis ou sete mil.
Além de exigirem pão, querem que a insolente guarda real sej a punida
dado que, depois do banquete em Versalhes, começaram a ver-se muitos
cocares pretos e brancos nas ruas de Paris, dando origem a zaragatas.
A situação ameaça descontrolar-se. Inexplicavelmente, Lafayette deixou
menos de um batalhão distrital de guarda na Place de Greve . A multidão
é confrontada pelo número dois de Lafayette, o maj or Hermigny, mas os
soldados deixam bem claro que não vão disparar sobre as vendedoras.
Segue-se uma pilhagem que rende cerca de setecentos rifles e mosquetes
397

e dois canhões destinados à defesa da Câmara Municipal. Finalmente, a


turba, reforçada por alguns homens dos distritos vizinhos, ameaça
saquear o edifício de alto a baixo e queimar todos os documentos e arqui­
vos. Os revoltosos só são dissuadidos de o fazer graças à intervenção do
capitão de um destacamento dos Voluntários da Bastilha, Stanislas
Maillard. Ao contrário dos seus homens, Maillard é um dos vainqueurs e
tornou-se célebre ao apresentar-se como o homem que atravessou a pran­
cha colocada sobre o fosso para recolher a missiva de de Launay solicitando
a capitulação (mas o mais provável é que tenha sido o modesto Hulin) .
Esta fama torna Maillard uma figura de confiança para as mulheres -
Lafayette deixou de o ser, pois ouvem-se vários murmúrios e gritos que se
o general se recusar a aceder às suas exigências também será pendurado
numa lanterne. Maillard corta a corda onde estava pendurado o infeliz
abade Lefrvre, pronto para ser "candeeirizado" por se ter negado a entre ­
gar armas às mulheres, e promete liderar a marcha até Versalhes. Esta
extraordinária procissão, ataviada não com ramos de flores mas com
canhões, piques e mosquetes, parte para o palácio real debaixo de uma
chuva torrencial. Enquanto percorrem os cais, os populares cantam e gri­
tam que vão buscar "le bon papa Louis" e era da natureza do poissard que
-

a fronteira entre o insulto afectuoso e a ofensa mortífera nunca fosse clara.


No centro da cidade, as multidões são tão densas que Lafayette demora
duas horas para chegar à Câmara Municipal. Quando lá chega, por volta das
onze da manhã, inteira-se de que as mulheres já vão a caminho e que há
um movimento sério no seio da Guarda Nacional no sentido de os guardas
empreenderem a sua própria marcha sobre Versalhes. Uma das razões
declaradas é o desejo dos que tinham sido Cardes Françaises de retomarem a
sua antiga missão de guardarem o rei, e o famigerado banquete parece-lhes
um motivo adicional para substituírem a guarda real. Lafayette compreende
de imediato que uma marcha de guardas nacionais configura algo de muito
mais grave do que a das poissardes, pois será inevitavelmente retratada como
um acto de coerção de Paris sobre o rei, sobre os seus ministros e sobre a
Assembleia Nacional. O marquês não se poupa a esforços para dissuadir os
granadeiros mas depois de muitas horas de argumentação infrutífera e de
lhes recordar em vão o j uramento de lealdade que recentemente fizeram
nas igrejas dos batalhões, fica patente que os soldados estão decididos a ir,
se necessário sem o seu consentimento . Está à vista o colapso total da disci­
plina na Guarda Nacional, que fará em cacos a imagem de pacificação
ordeira e responsável que Lafayette vem procurando construir desde Julho.
Pior ainda, Lafayette é ameaçado por alguns dos seus homens. Torna-se
cada vez mais óbvio que se não aceder ao que lhe pedem abandoná-lo-ão
e, com toda a probabilidade, assassiná-lo-ão também.
Independentemente dos seus muitos defeitos, Lafayette não é um
cobarde. A sua segurança pessoal é uma consideração menos importante
S imon S chama 1 CIDADÃOS

do que a necessidade de preservar pelo menos uma aparência de ordem


na Guarda . Além do mais, Lafayette calculou correctamente que só acom­
panhando a marcha poderá tentar que os seus soldados aj am em prol e
não contra a segurança da família real e da Assembleia. Cedendo ao ine ­
vitável, procura dar à marcha uma aparência de legalidade, solicitando
"autorização" às autoridades da cidade de Paris - que é prontamente dada .
De seguida: Lafayette envia um mensageiro rápido para alertar a
Assembleia e o governo. Por volta das quatro da tarde, cerca de quinze mil
guardas - uma enorme brigada - partem para o palácio debaixo de chuva
e vento fortes. Lafayette, montado no seu cavalo branco, lidera a coluna
- "como prisioneiro das suas próprias tropas", diria uma testemunha.
Quando a Guarda chega aos arredores de Paris, a procissão das mulhe­
res, com duas delas escarranchadas em cima dos canhões, j á está em
Versalhes. Os populares encontraram pelo caminho alguns dragões do
Regimento da Flandres, em honra do qual foi organizada a "orgia da
Guarda " . Quando esperavam ser mandados parar, Maillard e as mulheres
ficaram atónitos ao ouvirem gritos de "Estamos convosco ! " e promessas
de confraternização. Em Versalhes, j untam-se-lhes mais mulheres, entre
as quais uma figura extraordinária, montada num cavalo negro como
breu. Está ataviada com um chapéu emplumado e um casaco de montar
cor de sangue, um par de pistolas e um sabre . Trata-se de Théroigne de
Méricourt, cuj a aparência se destina obviamente a atrair as atenções. Os
escritores do século XIX desenvolveram uma fixação por ela como "ama­
zona " da Revolução, uma mulher sexual e politicamente emancipada .
Contudo, apesar de ser, segundo todos os relatos fidedignos, muitíssimo
bela, Théroigne só foi importante no 5 de Outubro pela sua aparência de
símbolo da Revolução como mulher omnipotente: um protótipo de
"Marianne " . A sua história futura, como veremos, será eloquentemente
emblemática de um tipo particular de carreira revolucionária patética, e ela
terá a honra dúbia de ser diagnosticada por um médico prisional austríaco
como padecendo de um mal moderno, a "febre revolucionária" . Mas por
baixo das plumas vistosas há uma história banal. Théroigne, a Amazona,
chama-se Anne -Joseph Méricourt. A família, gente abastada de Liege, caiu
em tempos difíceis e obrigou-a a viver do seu engenho e do corpo. Em
Paris, foi amante do marquês de Persan e amiga do castrato Tenducci. Viveu
uma ligação amorosa em Génova e depois regressou a Paris. Em 1 789, à
semelhança de muitas outras pessoas, mudou de personalidade. De cortesã
de vinte e sete anos de idade transformou-se numa presença política inte ­
ligente e, para muita gente, ameaçadora. A mantida tornou-se uma pessoa
livre, e era manifesto que adorava dar nas vistas com o seu aspecto espam­
panante. Em Versalhes, é vista a falar com a guarda do palácio quando as
poissardes - que serão a sua ruína -, depois de seis horas de viagem, entram
na cidade sujas de lama, famintas e furiosas.
399

Um acolhimento cordial, com discursos e vinho, embota -lhes a raiva.


São recebidas pelo comandante da Guarda Nacional de Versalhes e por
representantes do município e do governo. No entanto, quando tentam
entrar no recinto do palácio, vêem o caminho barrado pelos portões de
ferro e por destacamentos do Regimento da Flandres e dos guardas suíços,
postados à frente e atrás dos portões. Na Assembleia Nacional, as coisas
correm de forma mais propícia. Mounier autoriza Maillard a entrar para
explicar o propósito da marcha, o que ele faz citando do panfleto Quando
teremos pão ? "Os aristocratas", diz ele, "querem-nos matar à fome . "
Naquele mesmo dia, contaram-lhe que u m moleiro foi subornado com
duzentas libras para não produzir farinha. "O nome dele ! ", gritam os
deputados, mas antes que Maillard possa continuar com o seu arrazoado,
a Salle des Menus Plaisirs é invadido por centenas de mulheres que exer­
cem literalmente o direito recomendado por Rousseau de "revogar" os
seus deputados. Vestidos lustrosos, húmidos e a cheirar a lama e a chuva,
plantam-se ao lado das casacas e calças elegantes. Facas e mocas são pou­
sadas em cima de cadeiras vazias e pingam para cima de papéis impressos
com os temas do debate legislativo. Algumas mulheres, ao verem o arce­
bispo de Paris, gritam as palavras de ordem anticlericais que se tornaram
populares em Paris e acusam-no de ser um dos principais instigadores da
"conj ura da fome" . Numa tentativa mal calculada para as acalmar, um
deputado do clero comete o erro de tentar beijar a mão de uma das acusa­
doras. Ela afasta-o, dizendo, "Não fui feita para beijar a pata a um cão. "
Mounier tenta tranquilizar a s mulheres garantindo-lhes que o rei e o
governo estão a fazer tudo ao seu alcance para garantir o abastecimento
de Paris, mas depressa se torna evidente que elas querem perguntar ao rei
em pessoa. Quando a notícia da marcha chegou a Versalhes, o rei, que
estava a caçar em Meudon, regressou a toda a pressa e chegou ao palácio
pouco antes do aparecimento da coluna. Dando mostras de alguma cora ­
gem, Luís XVI aceita receber uma pequena delegação. Para porta -voz é
escolhida Pierrette C habry, uma florista de dezassete anos de idade conhe ­
cida pelo seu discurso polido e pela sua aparência virtuosa. Contudo, no
momento da verdade, falham-lhe os nervos e ela desmaia aos pés do sobe ­
rano. Simpatizando certamente com alguém que partilha da sua dificul­
dade para falar em público, o rei manda trazer-lhe sais e aj uda-a a
levantar-se. De seguida, explica que deu ordens explícitas para que todo
o cereal retido nas estradas que conduzem a Paris sej a entregue de ime ­
diato . Quando a pequena delegação regressa para j unto das outras mulhe ­
res, a suspeição contra a corte era tanta que Chabry é imediatamente
acusada de ter sido subornada pelo rei. No entanto, a aura de majestade
paternal ainda não se perdeu por completo, pois o encontro directo com
o rei, combinado com a fadiga, fez desaparecer muita da fúria com que a
marcha começou .
S imon Schama 1 CIDADÃOS

Mas o perigo não desapareceu. O mensageiro de Lafayette chega e


informa a Assembleia de que há um pequeno exército em marcha sobre
Versalhes. São muito poucos os deputados que acolhem a notícia com
entusiasmo mas alguns, entre os quais Barnave, que já tinham recomen­
dado que o rei residisse em Paris, sentem a sua presciência confirmada. Ao
dar as más notícias a Mounier, Mirabeau fica admirado com a sua reacção
algo j ovial face ao que estava a acontecer, como se já se tivesse resignado
ao fim do seu papel na Revolução.
Por volta das seis da tarde, o rei concorda aceitar sem delongas nem
reservas a Declaração dos D ireitos do Homem e os decretos de Agosto.
De seguida, consulta os ministros sobre o melhor rumo de acção a
tomar. S aint- Priest é pela fuga ou pela resistência; Necker opõe -se, argu ­
mentando que quer uma, quer outra darão razão àqueles que dizem que
o rei está a fazer guerra à Revolução em vez de a sancionar. Luís XVI
está dividido entre o receio pela segurança da família e o não querer dar
a sensação de que se está a furtar ao dever. Decide ficar quieto.
A Guarda Nacional entra em Versalhes pouco antes da meia-noite,
formada em coluna com seis homens de frente. Os soldados são tantos
que mesmo em passo rápido demoram uma hora a passar. Enquanto a
ideia só ocorreu às vendedoras depois de chegaram a Versalhes, os guar­
das j á decidiram que irão regressar a Paris com a família real e que a
manterão lá. Está tudo a postos para uma violenta luta de tracção entre
a guarda real e a Guarda Nacional. Entre ambas está a Guarda Nacional
de Versalhes, que recebeu ordens para cooperar com a sua homóloga
parisiense. Os guardas reais percebem que vão ser alvo de uma vingança
e preparam-se para resistir. Por volta das nove, ouvem-se disparos espo ­
rádicos mas os guardas reais, preocupados com a segurança do rei e da
rainha, retiram-se para posições no interior do perímetro do pátio e den­
tro do próprio palácio.
À meia -noite, Lafayette diz à Assembleia Nacional que a expedição da
Guarda Nacional não tem nenhum propósito coercivo e confessa pratica­
mente que não teve alternativa senão conduzi-la a Versalhes. Será possível
restaurar a calma se o rei mandar embora o Regimento da Flandres, se os
guardas franceses substituírem a guarda real e se Sua Majestade se con­
vencer a fazer um gesto simpático com o cocar nacional. Os oficiais e os sol­
dados não querem deixar Lafayette entrar sozinho no palácio, com receio
de que possa ser capturado, mas o rei impõe esta condição para o receber.
Ao dirigir-se aos aposentos reais, Lafayette é alvo de olhares e comentários
hostis. Na escadaria, dá com o seu próprio sogro, o duque d' Ayen, que
enquanto capitão da guarda real não terá dúvidas em disparar sobre o
genro se o monarca assim lho ordenar. Ao seguir o seu caminho, Lafayette
ouve um cortesão dizer, tapando a boca com a mão, "Lá vai o Cromwell" .
Lafayette retorque-lhe : " O Cromwell não teria vindo desarmado. "
40 1

Dramaticamente suj o de lama, o Herói dos D ois Mundos apresenta -se


ao rei com uma frase obviamente ensaiada durante a marcha: "Vim mor­
rer aos pés de Vossa Maj estade . " No entanto, acrescenta, baixando o
nível de dramatismo, será possível evitar tais extremos se o rei permitir
que os Gardes Françaises "protej am a sua pessoa sagrada ", garantir o apro­
visionamento de Paris e consentir residir na capital, "no palácio dos seus
antepassados, o Louvre " . O soberano acede aos dois primeiros pedidos e
promete ponderar o último, dando a entender que terá de consultar a
família. Lafayette transmite a conversa à Assembleia Nacional e aos seus
oficiais e soldados. Muitas histórias subsequentes queixam-se de que os
acontecimentos que se seguiram ocorreram porque Lafayette adorme ­
ceu, mas a verdade é que ele se manteve bem acordado até às cinco da
manhã, garantindo que a ameaça de uma batalha entre as duas guardas
não se tornava realidade. O S ol, que não dera sinais de vida na véspera,
ergueu -se finalmente num céu límpido e o marquês caiu de sono num
sofá, em casa do avô.
É acordado por um pesadelo . Por volta das cinco e meia da manhã,
uma multidão armada consegue penetrar no recinto do palácio . Por qual­
quer razão que se desconhece - talvez por causa do aparecimento imi­
nente de bandidos -, o comandante da guarda real enviou um grande
destacamento para a outra extremidade do parque, na zona do Grande
Trianon, deixando o Pátio dos Ministros relativamente pouco patrulhado.
Introduzida provavelmente por um dos soldados, a multidão penetra no
Cour de Marbre e sobe a escadaria de acesso aos aposentos reais. Um
guarda dirá posteriormente ter ouvido uma mulher a gritar que deviam
"arrancar o coração da coquine [Maria Antonieta] , cortar-lhe a cabeça e
fazer um fricassé com o fígado, e mesmo assim não será tudo " . Um guarda
dispara sobre a turba; um homem cai, o soldado é morto em dois tempos.
Miomandre de Sainte-Marie, um guarda postado do lado de fora dos apo ­
sentos da rainha, tenta levar os populares à razão mas, não o conse ­
guindo, grita para o interior que a vida da rainha corre perigo . É morto,
mas o seu aviso chegou a tempo. Aterrorizada pelos disparos e pela grita­
ria, Maria Antonieta, de chinelos na mão, foge a correr, aos gritos : "Meus
amigos, meus amigos, salvem-me e aos meus filhos." Uma passagem leva­
-a aos aposentos do rei mas Luís XVI não está lá, foi à procura das crian­
ças . Durante mais de dez minutos, a rainha bate desesperadamente na
porta trancada enquanto a turba enraivecida avança pelo Salão dos
Espelhos em perseguição da "puta austríaca"; os guardas reais, em infe ­
rioridade numérica, vão retirando de salão em salão. Por fim, alguém
ouve os gritos e os murros frenéticos de Maria Antonieta e a família
reúne -se no Salon de l'Oeil de Boeuf. O delfim e a irmã choram e os pais
tentam confortá-los o melhor que podem. Se Greuze os tivesse pintado
naquele momento, teria sido o leão do S alon.
S imon Schama 1 CIDADÃOS

Antes de lhes acontecer algum mal, as primeiras companhias da


Guarda Nacional, comandadas por Lazare Hoche - será um dos generais
mais formidáveis da República - avançam sobre a multidão e retiram a
família real de perigo . No exterior, são passeadas as cabeças dos dois
guardas reais chacinados, espetadas em piques. A cabeça de Miomandre
de Sainte -Marie é exibida por um modelo artístico chamado Nicolas, ves ­
tido n o s traj os pseudo -romanos q u e u s a n o estúdio . Ouvem-se risos, acla ­
mações e aplausos. Os dois troféus serão levados para o Palais -Royal e
exibidos no jardim como as obras de cera do Cidadão C urtius.
Confrontado com o desastre, Lafayette, sem esperar que lhe selem um
cavalo, corre para o palácio . Pelo caminho, dá com uma multidão armada
que caiu em cima dos guardas reais que encontrou e que se prepara para
os linchar. Quando Lafayette manda parar os populares, um homem vira­
-se para os guardas nacionais e diz-lhes para o matarem. Num acesso de
raiva, Lafayette agarra- o com a intenção de o prender mas vê-se distraído
pela necessidade de convencer os seus guardas a libertarem os guardas
reais, declarando que prometeu ao rei que nada lhes aconteceria .
Quando chega ao Salon de l' Oeil de Boeuf, Lafayette encontra a famí­
lia real muito abalada . Têm a noção de que estiveram literalmente às por­
tas da morte. Depois de se recompor, o rei explica calmamente - e desta
vez, sem pausas estranhas - aos guardas de Paris, na sua maioria Gardes
Françaises, que a guarda real está inocente das ofensas que lhe atribuem.
A resposta é imprevisível: os guardas j uram- lhe lealdade . Parado­
xalmente, o seu desej o de regressarem a Versalhes quase causou o fim da
monarquia. Encoraj ado pelo momento, o rei aceita aparecer na varanda
com a família e diz à multidão plantada no C our de Marbre que irá para
Paris, pondo -se nas mãos "do amor dos meus bons e fiéis súbditos " . Finda
a grande ovação, o rei explica que a sua guarda foi alvo de uma injustiça .
Mas é Lafayette, com o seu talento inato para o teatro político, que coroa
o momento : abraça um sargento da guarda real e espeta-lhe um cocar tri­
color no chapéu. Com aquele gesto, Lafayette acaba de devolver a guarda
real à Nação.
Mas há outra pessoa "estrangeira" para legitimar. Será o momento mais
difícil de todos. Lafayette pede à rainha para aparecer na varanda sozinha .
Compreensivelmente, depois do que passou, Maria Antonieta não tem ilu ­
sões sobre a sua popularidade e tenta furtar-se ao pedido . "Não vedes o
gestos que me fazem?", pergunta ela. "Vi, Madame", responde Lafayette.
" Venez. " Ganhando coragem, Maria Antonieta surge na varanda com os
filhos, mas a multidão saúda -a com um clamor: " S em as crianças ! " A famí­
lia de Greuze perdeu o seu poder de encantar. Mas Lafayette não . A rainha
levou os meninos para dentro e reaparece sozinha para enfrentar a multi­
dão. Lafayette junta- se-lhe e, num momento que dirá mais tarde ter sido
de pura intuição, curva-se profundamente e beija-lhe a mão.
403

O efeito poderia ter sido catastrófico, ridículo, a confirmação de que ele


não passava de um lacaio da corte a fingir-se de Patriota . Mas dá-se um
milagre . Às aclamações dirigidas ao comandante, j untam-se gritos de
"Vive la reine ! ", gritos que não se ouviam desde o Caso do Colar.
Três horas mais tarde, um imenso cortej o parte de Versalhes, calculado
por Lafayette em sessenta mil pessoas. Na vanguarda e na retaguarda, a
Guarda Nacional; no meio, a carruagem real, escoltada por Lafayette e
seguida de ministros do governo de Necker, de deputados da Assembleia
Nacional e do resto da corte de França . Na cauda, um comboio de carro­
ças e carroções carregados de farinha obtida nos celeiros do palácio. Os
soldados e as mulheres espetaram pães nos piques e nas baionetas e can­
tam que levam para Paris "o padeiro, a mulher e o filho " .
Nas portas d a cidade, B ailly oferece d e novo a s chaves a Luís XVI.
A família real dirige-se à Câmara Municipal, onde foi instalado um trono.
Depois de algumas aparições à varanda, a família chega finalmente à sua
nova residência, nas Tulherias, às oito da noite - o delfim acha o seu
quarto muito feio. No dia seguinte, a rainha escreve a Mercy d' Argenteau,
o embaixador austríaco :

Tranquilizai-vos, estou bem. Se nos esquecermos de onde estamos e de


como viemos cá parar, temos de nos dar por felizes com a disposição do
povo, especialmente esta manhã, se não faltar o pão . . . Falo com as pessoas;
com os milicianos e com as vendedoras dos mercados, todos me estendem
a mão e eu dou-lhes a minha . Fui muito bem recebida na cidade. Esta
manhã, o povo pediu -nos que ficássemos. Eu disse-lhes que no que tocava
ao Rei e a mim, era deles que dependia se nós ficávamos ou não, dado que
apenas pedíamos o fim do ódio e que o menor derramamento de sangue
nos faria fugir horrorizados .

C antavam as poissardes:

A Versai! ' comme des fanfarons


J 'avions amené nos canons
Falloit voir, quoi qu ' j 'étions qu ' des femmes
Un courage qui n ' faut pas qu ' on blâme

Naus n 'irons plus si loin, ma foi


Quand naus voudrons voir notre Roi
J' l 'aimons d 'une amour sans égale
Puisqu ' il d 'meur dans notre ' Capita/e

A Versalhes, como fanfarrões


Levámos os nossos canhões
S imon S chama 1 CIDADÃOS

Só visto ! Nós, simples mulheres,


Não nos faltou a coragem

Agora, não teremos de ir tão longe


Quando quisermos ver o nosso Rei
Amamo-lo com um amor sem igual
Porque reside na nossa C apital

No mesmo dia, a Assembleia Nacional aceitou a proposta de Target no


sentido de o título constitucional de Luís XVI ser roi des Français em vez de
roi de France et de Navare. Nunca mais estaria implícito, de forma nenhuma,
que o reino era uma espécie de propriedade privada. Mas para Target,
a nova designação também traduzia um j ogo de palavras académico .
Luís XVI seria a reencarnação do Rex Francorum medievo, o chefe territo ­
rial dos Francos cuj o próprio nome proclamava a sua liberdade. Mas não
escaparia ao rei que a condição na qual seria aclamado Rei dos Livres era
praticamente uma prisão.
A vinte quilómetros de distância, o grande palácio de Luís XIV é
fechado sob a supervisão de Madame de La Tour du Pin. Os portões são
trancados com enormes cadeados de ferro para desencorajar os saquea­
dores e deixam-se alguns guardas de sentinela nos pátios silenciosos.
O Apolo de Le B run continua a conduzir o seu carro sobre os arrivistas
holandeses no tecto da Sala dos Espelhos, mas as paredes da escadaria de
mármore ficaram marcadas de balas. Versalhes já se tornou um museu.
12

Actos de fé
Outubro de 1 789-Julho de 1 790

1 HISTÓRIA VIVA

No dia 2 3 de Outubro de 1 789, a Assembleia Nacional conheceu o


homem mais velho do mundo . C hamava-se Jean Jacob e foi conduzido à
presença dos deputados agarrado ao seu certificado de baptismo, assinado
no ano de 1 66 9 - o que lhe dava cento e vinte anos de idade . Os especia ­
listas em improbabilidades disseram que existia um sobrevivente ainda
mais antigo, um caseiro escocês chamado John Melville que era bebé na
altura em que cortaram a cabeça a C arlos 1, em 1 649. No entanto, as cãs
lãzudas e os olhos pálidos de Jean Jacob foram prova suficiente da sua
honestidade para que a Assembleia o declarasse oficialmente "decano da
raça humana " . Com o rosto sulcado de rugas, Jean Jacob parecia perten­
cer a uma idade geológica. Tinha nascido no ano em que se iniciara a
construção do palácio de Versalhes para o j ovem Rei Sol e vivera tempo
suficiente para o ver tornar-se redundante - mas não demolido. Isolado
numa montanha estéril no Jura, a sua existência social fora preservada
pelas neves e ficara congelada nas normas feudais do século anterior. Os
dep1;1tados bem podiam saudá-lo como um fóssil vivo - "O servo das mon­
tanhas do Jura " . Mas agora, anunciou ele com um grunhido surpreen­
dentemente audível, tinha -se deslocado a Paris para dar graças por se ter
tornado um homem livre . Apesar de antigo como a própria França, a
Revolução tinha-lhe dado uma segunda vida. Jean Jacob tinha - para usar
uma das palavras-chave de 1 789 - experimentado a bênção da regenera­
ção. Cada deputado subscreveu pelo menos três libras francesas em honra
do seu continuado vigor.
Outros cidadãos idosos, meros adolescentes ao pé de Jean Jacob, tam­
bém afirmaram sentir a Revolução como um sangue novo que lhes corria
nas veias. O conde de Luc, um verdadeiro nobre enragé, j urou que a
Revolução o tinha curado do reumatismo. O chevalier de Callieres, um
septuagenário, ficou tão rejuvenescido que se tornou um compositor pro­
lífico de canções patrióticas ( incluindo uma que dizia, de forma algo
banal, que a liberdade "é-me cem vezes mais querida do que o amor" ) .
S imon S chama 1 CIDADÃOS

O zelo de de Callieres levou -o a formar um Batalhão de Veteranos da


Guarda Nacional que não admitia ninguém com menos de sessenta anos
de idade e no qual o uso de barba era obrigatório (houve quem pusesse
uma barba postiça para garantir a admissão, mas foram apanhados ) . Nas
festividades e cerimónias revolucionárias eram reservados lugares espe­
ciais para os patriotas venerandos, amiúde j unto de crianças, numa
expressão simbólica do passado "gótico " do qual a França se libertara e do
futuro inocente para o qual tinha renascido. Quando um garoto de onze
anos apareceu na Assembleia a oferecer as suas fivelas de prata e a sua
taça de baptismo a título de "dádiva patriótica" e pediu para assistir aos
trabalhos, o seu pedido foi acedido e ele recebeu o elogio de que a sua
generosidade era prova de que ele aproveitara a excelente educação de
cidadão que lhe fora dada pelos pais .
Durante o seu primeiro ano de vida, a Assembleia Nacional acolheu
toda a espécie de demonstrações de devoção patriótica. De facto, embora
estivesse empenhada no trabalho prático de dar à França novas institui­
ções de governação e representação, também actuou como teatro político,
como lugar onde a oratória e o gesto e até, em algumas ocasiões, a poesia
e a música, dramatizavam os princípios que a Revolução supostamente
defendia . E dado que a Assembleia tinha repudiado a historicidade e o
precedente, estes princípios legitimadores tinham necessariamente de
possuir uma validade universal. Algumas das aparições perante a tribuna
da C onstituinte ( como se autodenominava agora a Assembleia ) reflecti­
ram devidamente esta universalidade . Por exemplo, no princípio de Julho
de 1 7 90, dois condenados às galés oriundos do cantão suíço de Friburgo
apareceram formalmente na Assembleia . A França usava as suas galés não
só para os seus criminosos mas também, mediante contratos lucrativos,
para os de outros Estados europeus que necessitavam de um sítio para
despejar os seus indesejáveis . A Assembleia ainda não tinha abolido as
condenações às galés para a população nativa ( nas zonas dos depósitos
mediterrânicos e atlânticos existia um receio genuíno de que os galeotes
iam ser libertos ) , mas apressou -se a declarar que não continuaria a ser o
instrumento da " escravatura " ignóbil dos " despotismos" europeus .
Ovacionados pelos deputados e abraçados pelo presidente, os condenados
suíços, um dos quais, por uma sorte incrível, se chamava Huguenote,
foram passeados como heróis e as suas grilhetas acabaram penduradas nas
traves do tecto da Igrej a dos Premonstratenses à guisa de inspiração e
aviso. Nessa noite, foi representada em sua honra no Théâtre -Français
uma peça intitulada O Criminoso Honesto.
Estes espectáculos eram mais do que actos de um circo revolucionário.
Mantinham a crença dos deputados em si próprios e garantiam-lhes que
a nação, afinal, não estava sozinha no mundo : fazia parte de uma família
maior, de uma família infinitamente alargada de "oprimidos" que podiam
407

agora procurar a sua libertação na França . No dia 1 9 de Junho de 1 790,


uma delegação de representantes das "nações oprimidas do universo",
chefiada pelo autodesignado "Orador da Raça Humana ", Anacharsis
Cloots, apresentou -se nos devidos traj es nacionais - alemães, holandeses,
suíços e até indianos, turcos e persas, todos eles envoltos numa faixa tri­
color. Os delegados felicitaram a Assembleia por ter " restaurado a primi­
tiva igualdade entre os homens" e prometeram que, " encoraj ados pelo
exemplo glorioso dos Franceses, todos os povos do universo que suspiram
igualmente pela liberdade se libertariam do j ugo dos tiranos que os opri­
mem " . Em resposta, Menou, o presidente, disse-lhes habilmente para se
porem a andar mas em termos elogiosos e não de rej eição. Nas suas pala­
vras, eles deveriam tornar- se os arautos de uma nova época . Quando
regressassem às suas terras nativas, deveriam solicitar audiências com os
seus governantes e instrui-los a emularem o grande e bom exemplo do
Restaurador da Liberdade, Luís XVI.
Os cépticos acharam tudo aquilo hilariante . Ferrieres, numa carta à
mulher, disse que o grupo heterogéneo de delegados tinha certamente
alugado as farpelas na Ó pera . Todavia, por muito apatetadas que fossem,
estas ocasiões correspondiam à religião igualmente sentenciosa da liber­
dade e amizade universais que era pregada em discurso e texto, princi­
palmente por Claude Fauchet. Nas suas homilias, todas elas impressas no
Bouche de Per de Nicolas de B onneville, Fauchet, um clérigo de Caen, pre­
gava uma espécie de universalismo cristão rousseauniano que era o prin­
cípio constitutivo do seu " C írculo S ocial" - não um clube, como ele
sublinhava, mas uma associação de cidadãos dispersos pela superfície do
globo. Antes da Revolução, o mundo tinha sido governado por leis de
ascendência que procuravam dividir os homens. Agora, os homens
podiam associar- se ao mais básico de todos os preceitos cristãos, o do amor
universal, e encontrar a verdadeira liberdade na fraternidade . Segundo a
explicação de Fauchet, o próprio emblema do círculo fora escolhido pelo
seu poder unificador. O meio através do qual este grande "pacto familiar"
seria concretizado era a regeneração moral da Verdade aliada à Razão.
Outros oradores e autores em voga, tais como o vegetariano ecuménico
Robert Pigott ( que estendeu a mensagem da fraternidade ao reino animal)
e o quacre David Williams, dois peregrinos ingleses na terra santa da
Liberdade, fizeram eco do sentimentalismo cívico de Fauchet.
C ontudo, para a maioria dos deputados, o reino milenarista de amor
e fraternidade de Fauchet não passava de um balão utópico, impelido
pelo seu ar quente retórico a pairar sobre a paisagem revolucionária. Na
sua óptica, a obra que estavam a desenvolver era estritamente terrena.
No entanto, os homens que integravam os comités da C onstituinte - os
verdadeiros motores da mudança institucional - guiavam-se por princí­
pios que, em bastantes aspectos, não eram muito menos abstractos ou
S imon Schama 1 CIDADÃOS

optimistas. Se é certo que não conseguiam subscrever uma religião uni­


versal que apresentava todos os homens como irmãos à espera do abraço
fraterno, não deixa de ser verdade que pressupunham que os Franceses -
pelo menos - podiam ser tratados de maneira uniforme porque eram
movidos pelos mesmos anseios de satisfação material ou mental .
Condorcet, por exemplo, fazia eco do axioma básico de Rousseau de que
todos os homens nasciam iguais e só eram afastados da igualdade natural
por instituições sociais arbitrárias investidas de força ilegítima. Esta visão
tardo -iluminista exigia que se despissem dos acrescentos "góticos" da his ­
tória - divisões arbitrárias do costume, do hábito e da jurisdição que eram
produtos de conquistas antigas. Seriam substituídas por instituições racio­
nais e igualitárias que colocariam os homens em relações mútuas como
cidadãos, obrigados pelas mesmas leis e suj eitos à mesma soberania: a sua.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão j á expressava a
essência desta visão, em especial o sexto princípio, de Talleyrand, que
estabelecia a igualdade perante a lei e o direito de todo o cidadão a ocu -
par qualquer cargo para o qual os seus dotes o qualificassem. Na prática,
obrigava a Assembleia a rasgar a complexa tapeçaria de jurisdições sobre ­
postas que caracterizara o Antigo Regime e a cobrir a França com um
único manto de governação uniforme . Ninguém era mais entusiasta
acerca desta obra do que Sieyes e Talleyrand, os dois clérigos arqui-racio­
nalistas. Foi Talleyrand quem propôs a normalização dos pesos e das
medidas, e Sieyes quem esteve por trás da espantosa proposta de substi­
tuir as províncias de França por uma grelha de oitenta quadrados idênti­
cos que seriam conhecidos por " departamentos " .
Apresentada à Assembleia por Thouret, ex-parlamentar d e Rouen, esta
obra inflexível de aritmética política tinha como premissa que a divisão da
França em j urisdições diferentes e caprichosamente sobrepostas - fiscais
(Fermes), eclesiásticas ( dioceses ) , de comando militar (généralités) e de jus­
tiça ( bailliages) - era incompatível com um "governo representativo" .
A França devia ser racionalizada; o "hexágono" devia ser transformado em
cubo. A raiz quadrada de 3 parece ter sido uma obsessão dos legisladores
revolucionários, provavelmente por influência dos axiomas maçónicos.
Segundo o plano de Thouret, existiriam oitenta e um departamentos ( a adi­
ção à grelha era Paris ) , medindo cada um 324 léguas quadradas. Cada
departamento seria convenientemente dividido em nove distritos e depois
novamente por nove, em comunas. C ada unidade disporia de uma assem­
bleia representativa que elegeria os órgãos de governação locais.
Apesar de radical, esta medida representou o culminar de muitos pla­
nos visionários delineados durante o Antigo Regime . O primeiro a usar o
termo départements fora d'Argenson, no reinado de Luís XV, e a combina­
ção de uniformidade rígida com a devolução governamental era desde há
muito acarinhada pelos fisiocratas como Du Pont de Nemours . Tratada de
409

forma racional, a França seria finalmente governada segundo de práticas


científicas em vez de através de uma molhada disparatada de "preconcei­
tos" herdados.
Mas esta visão de uma França normalizada segmentada em unidades
idênticas não agradava a toda a gente. Mirabeau, cuj o instinto era tão
romântico como racional, acusou o comité redactor de excesso de "geo­
metrismo " e de " apriorismo", e argumentou que a unidade de medida mais
sensível seria a população e não a simples extensão geográfica. Deste
modo, seria possível ter em linha de conta a topografia local, os rios, as
montanhas, os vales e as florestas que davam a uma área particular a sua
identidade. Rapidamente ficou demonstrado que a maioria dos deputados
preferia muito mais esta alternativa, a qual, no entanto, os envolveu em
inúmeras discussões comezinhas sobre fronteiras departamentais que
teriam sido obviadas pela opção da grelha. B esançon foi um caso típico na
sua insatisfação por ser despromovida de sede do Parlamento soberano do
Franco- C ondado para simples chef-lieu1 do Departamento do Doubs.
A cidade enviou à constituinte o abade Millot e o advogado Bouvenot
como delegados especiais para se queixarem que enquanto os departa­
mentos vizinhos como o Alto Sona tinham recebido terras baixas e férteis,
o Doubs era dominado por montanhas e terras altas e rochosas. E stava
Besançon condenada a definhar para o nível de burgos arrivistas como
Lons-le - S aunier, "com as suas casas e edifícios desertos e transformados em
pardieiros miseráveis, e as suas ruas e praças cheias de ervas daninhas?".
Este tipo de queixas repetiu -se por toda a França . Porém, sob a orien­
tação do astrónomo e cartógrafo conde de Cassini, e depois de muitos
meses de debate, cada um dos oitenta e três (um número felizmente indi­
visível por três) departamentos da França ganhou forma, abençoado por
um nome derivado da sua geografia. Da Normandia, da Provença e da
B retanha nasceram respectivamente a Mancha, o Calvados e as B ocas do
Sena, o Gard, o Var e as Bocas do Ródano, e o Morbihan e a Finisterra . A
nomenclatura foi e continua a ser uma espécie de poesia burocrática, de
racionalismo reformado pela sensibilidade.
Houve outros exercícios simbólicos importantes para aplanar as dife ­
renças exteriores que separavam os cidadãos. Em Outubro de 1 789, os
deputados aboliram formalmente os traj es cerimoniais das respectivas
ordens, e no dia 1 9 de Junho de 1 790 deram o passo mais dramático de
erradicar todos os títulos de nobreza hereditária . Aquando da eliminação
de muitas formas de direitos senhoriais ao trabalho dos camponeses, em
Agosto de 1 789, partira-se do princípio de que algumas formas de nobreza
permaneceriam como estatuto honorífico . Todavia, a C onstituinte decla­
rou-as incompatíveis com a igualdade jurídica da cidadania. Foram

1 Em francês no original: prefeitura . ( N. da R. )


Simon Schama 1 CIDADÃOS

OCEANO

ATLÂNTICO

França: Departamentos Revolucionários


e as Suas Capitais

100 Km MAR MEDITERRÂNEO


411

expressamente banidas todas as insígnias de superioridade social: os bra­


sões nas casas e nas carruagens; as librés dos serviçais ou j óqueis ( uma
questão importante para a elite do Ancien Régime ) ; os bancos brasonados
nas igrej as e os cata-ventos senhoriais. Nenhum cidadão poderia usar um
nome que traduzisse o seu domínio ou posse de um lugar. O seu único
emblema identitário herdado passava a ser o apelido do pai.
O que estas transformações têm de mais notável é o facto de terem sido
- mais uma vez e na sua esmagadora maioria - obra de aristocratas, de
nobres ci-devants. Apesar de os aristocratas não dominarem numerica ­
mente a Assembleia, os comités de trabalho que redigiram a constituição
e deram à França as suas novas instituições foram monopolizados por
uma elite intelectual relativamente pequena; muitos dos seus membros j á
se conheciam antes d a Revolução e eram bastantes os q u e tinham servido
a antiga monarquia no exército, na justiça, no governo ou na Igrej a .
A única coisa que a Assembleia Constituinte manifestamente não foi, foi
bourgeois.
Até se encontravam deputados de origem aristocrática entre os eleitos
pelo Terceiro Estado, não só pessoas famosas como Mirabeau mas também
Edmond Dubois de C rancé, senhor de Balans e oficial do exército eleito
por Vitry-le-François, Louis Laborde de Méréville, pertencente à grande
dinastia financeira homónima, eleito pelo Terceiro E stado de Etampes,
Jean Mougins de Roquefort, eleito por D raguignan, na Provença, e Louis
de Naurissart, senhor de B rignan, eleito por Limoges. E os deputados
incluíam nada menos de trinta e oito membros dos Parlamentos, entre os
quais três presidentes, todos eles desej osos de assestar o golpe de miseri ­
córdia às suas antigas instituições. Os oficiais do exército também se
encontravam na Assembleia em grande número, muitos obviamente
como deputados pela nobreza . Na sua esmagadora maioria, os homens
que criaram a nova França tinham sido funcionários do Antigo Regime .
Torna- se, pois, evidente que a solidariedade gerada entre estes
homens pela sua dramática experiência em Versalhes, na Primavera e no
Verão de 1 789, se impôs à importância das suas origens sociais . E stavam
unidos pela sua história recente partilhada, mas talvez também por hábi­
tos culturais. Tinham lido os mesmos livros, ainda que discordassem
quanto à importância que lhes era atribuída. Por exemplo, era bastante
natural, durante os debates sobre os poderes a conferir ou a negar à
monarquia, citar Montesquieu, tal como acontecera com as remonstrân -
cias parlamentares. Cada uma das suas diversas formas de retórica - j urí­
dica, teatral, clerical, literária - tinha o seu público . As referências a
Plutarco ou a C ícero eram imediatamente entendidas . Os seus interesses
legislativos parecem a agenda de uma academia de província : reforma da
j ustiça; desmantelamento selectivo da economia corporativa; esquemas
educativos abrangentes; uma França governada pela utilidade social e não
S imon Schama 1 CIDADÃOS

pelos preconceitos herdados. Todos eles eram devotos da Razão e partidá ­


rios da Virtude. Acima de tudo, todos eles se viam a si próprios como
patriotas. Pode inclusivamente dizer-se que constituíram uma nova aris­
tocracia, uma aristocracia cuj a credencial soberana era a posse de lingua ­
gem política e cuja característica mais notória era uma guerra simbólica
contra a própria casta de onde tantos eram originários.
Mas nenhuma destas afinidades era garante de harmonia política .
A segunda metade de 1 7 89 e todo o ano de 1 7 90 assistiram ao agudizar
das divisões entre homens de antecedentes semelhantes e amigos de
longa data, agora em posições políticas opostas. Adrien D uport, que tinha
sido cansei/ler do Parlamento de Paris, e Michel Lepeletier ( ci-devant "de
Saint-Fargeau " ) , ex-presidente da mesma instituição, eram ambos violen­
tamente antimonárquicos; Ferrieres rotula-os " da esquerda " - é a pri­
meira utilização deste termo na história da Europa. Tinham a companhia
dos irmãos de Lameth, aristocratas impecáveis que haviam servido com
Lafayette na América, mas que nutriam as maiores reservas em relação ao
seu comando do exército de cidadãos .
Este grupo, q u e tinha em Barnave o s e u orador mais impressionante e
implacável, dominava as sessões da S ociedade dos Amigos da
Constituição, que no seguimento da transferência da Assembleia para
Paris se passou a reunir no antigo mosteiro dos jacobinos, na Rue Saint­
-Honoré . Todavia, vários dos seus antigos colegas da Sociedade dos Trinta
e do " C lube B retão " de Versalhes constituíram-se numa associação rival,
o Clube de 1 789, cuj os membros contavam com, entre outros, Mirabeau,
Sieyes e Talleyrand. Enquanto os jacobinos procuravam activamente
construir uma base de seguidores e admitiam não deputados, os " 1 7 8 9 "
eram intencionalmente mais exclusivos, vendo a s u a sociedade como uma
continuação dos j antares de debate e dos pequenos-almoços políticos que
no Inverno passado tinham criado a soberania do Terceiro Estado . Agora
as suas preocupações eram de ordem mais pragmática, ou antes, pren­
diam-se mais com os problemas da criação de um E stado viável. Enquanto
Barnave e os De Lameth viam o perigo principal para a Revolução na
conspiração monárquica e na diminuição da democracia, Mirabeau e
Talleyrand viam-na mais ameaçada pela anarquia e pela bancarrota.
A liderança jacobina acusava os " 1 78 9 " de serem intriguistas elitistas, os
seus adversários devolviam-lhes o cumprimento retratando os De
Lameths e Barnave como fala-baratos irresponsáveis e hipócritas.
O que estava em j ogo era mais do que as diferenças de personalidade
política, apesar de serem já muito pronunciadas - e continuarão a sê-lo
durante a Revolução ( ignorar estes conflitos de personalidades como um
aspecto sério da política revolucionária tem sido uma das omissões mais
notórias da moderna historiografia) . O que estava em causa eram as prio­
ridades da Revolução, a sua razão para ter acontecido. Para os j acobinos
413

de 1 78 9 e 1 790, tudo se resumia a garantir uma representação livre e res­


ponsabilizável, a subordinação do Estado ao cidadão. Para os seus adver­
sários, que eram mais moderados - muitos dos quais, como D u Pont de
Nemours e Talleyrand, tinham pertencido aos governos reformistas da
monarquia -, o objectivo da Revolução era a criação de uma França mais
poderosa e dinâmica. Os cidadãos sentir- se-iam gratificados na mesma
medida em que o Estado no qual estavam representados se reforçasse.
Nada do que aconteceu nos anos revolucionários seguintes contribuiu
para eliminar este debate fundamental.
E o debate foi agravado pelo carácter cada vez mais anómalo do
governo em funções. Não obstante todas as esperanças que nele tinham
sido depositadas, era mais do que óbvio que Necker não conseguiria
garantir o tipo de autoridade constitucional tendente a sanar a continuada
crise financeira da França . A Declaração dos D ireitos do Homem não
tinha, mediante uma qualquer alquimia política, eliminado a ameaça de
bancarrota. Em Agosto, Necker apresentou-se na Assembleia necessitado
de um empréstimo de oitenta milhões para fazer face às despesas até ao
fim do ano e foi autorizado a contrai-lo. C ontudo, em finais de Setembro,
a situação permanecia perigosa e ele regressou à C onstituinte com uma
proposta de aplicação de um imposto extraordinário equivalente a um
quarto dos rendimentos anuais . Os cidadãos que ganhassem menos de
quatrocentas libras por ano ficariam isentos; o imposto seria pagável em
quatro anos e deveria ser considerado formalmente um empréstimo, a
pagar pelo governo à medida que as suas circunstâncias fiscais lho fossem
permitindo.
C omo seria de esperar, a proposta desencadeou um clamor na
Assembleia . Mirabeau, que continuava a detestar Necker e que, até a
Constituinte proibir formalmente os deputados de se tornarem ministros,
esperava substitui-lo à frente de um Mini�tério de Talentos, regozijou-se
com o manifesto desconforto do genebrino. Mirabeau escreveu aos seus
constituintes, em Aix, dizendo que a bancarrota estava a ser usada como
ameaça para intimidar a Assembleia e forçá -la a aceitar um imposto que
seria um ónus muito pesado para o cidadão comum. "Dado que uma ban­
carrota só afectará os grandes capitalistas de Paris e de outras cidades que
estão a arruinar o E stado com as taxas de juro excessivamente elevadas
que praticam, não vej o que sej a um grande mal . "
Decorridas poucas semanas, muda d e ideias. Apesar d e continuar cép­
tico em relação ao plano de Necker, Mirabeau passa a retratar a bancarrota
como uma catástrofe horrível que atingirá a viúva indefesa e o artesão
honesto . "O que é a bancarrota senão o mais cruel, o mais iníquo, o mais
desigual e o mais desastroso de todos os impostos?" Apelando a meios para
a evitar e propondo um esquema alternativo, nomeadamente um emprés­
timo obrigatório mais selectivo a incidir sobre as grandes fortunas,
S imon Schama 1 CIDADÃOS

Mirabeau brande a sua retórica mais combativa para confrontar a


Assembleia com as deficiências da sua ingenuidade colectiva. É um
desempenho fenomenal, a ferver de humilhação, de raiva, de impaciên­
cia turbulenta . E embora Mirabeau fale do sacrifício de dinheiro e não de
vidas, o seu modo acusatório à romana antecipa precisamente uma hipér­
bole que será mais sinistra . Robespierre é um dos deputados que ouve
Mirabeau exortar à punição selectiva e avisar que quem não a aplicar será
por sua vez responsabilizado:

E scolhei ! Não será deveras necessário que poucos pereçam para que a
massa do povo se salve? . . . Atacai, destruí sem piedade estas miseráveis víti­
mas, lançai-as ao abismo . . . O quê? O horror faz-vos recuar? Homens
inconsequentes, homens pusilânimes...
Contempladores estóicos dos males que esta catástrofe vomitará sobre a
França; egoístas impassíveis que j ulgam que as convulsões do desespero e
da miséria passarão como tantas outras... tendes assim tanta certeza de que
tantos homens sem pão vos deixarão em paz para saboreares pratos dos
quais não haveis reduzido o número nem a delicadeza? Não, perecereis e
na conflagração universal que não temeis atear a perda da vossa "honra "
não poupará um único dos vossos detestáveis prazeres.

Se os deputados, conclui Mirabeau, com os seus primeiros actos,


"ultrapassarem as torpezas dos governos mais corruptos", deixarão de
poder reclamar a confiança do povo e ficará demonstrado que todas as
promessas de liberdades constitucionais foram assentes na areia.
· A verdade contida em grande parte da argumentação de Mirabeau era
incontestável. A menos que as necessidades do E stado sej am supridas de
forma coraj osa e expedita, o novo regime continuará a ser uma revolução
de papel. Mas os deputados não estão para ser denunciados como cobar­
des e " egoístas", um termo de infâmia tirado do vocabulário rousseau ­
niano que entrou no léxico da acusação política e que será usado de forma
mortífera durante o Terror. Além do mais, desconfiam que Mirabeau j oga
com a indignação do público para promover a sua popularidade pessoal,
ao mesmo tempo que pisca o olho à corte .
E são suspeitas fundamentadas. Tal como confirmaram a sua oposição
a um veto restrito e o seu apoio ao controlo régio das decisões sobre
guerra e paz, Mirabeau permanece um monárquico convicto, não vendo
nenhuma contradição entre esta posição e a sua adopção das preocupa­
ções do povo, pois o que j ulga ser mais adequado para a França é uma
"monarquia populista" . C ontudo, na prática, estas posições levam-no a
uma conduta que depois da sua morte será denunciada como hipocrisia
maquiavélica . No princípio de Outubro, através de um intermediário,
Mirabeau apresenta -se como a melhor esperança do rei para restaurar a
415

autoridade régia . Os meios que usará para o conseguir são chocantes .


Mirabeau recomenda a transferência abrupta d a corte para Rouen, onde
ficará fora do alcance da intimidação parisiense e de onde emitirá uma
proclamação declarando que a medida não se destinou a sabotar a
Revolução mas a reafirmá-la.
É uma fantasia perigosa e quimérica mas foi sonhada não só para pro­
mover a carreira de Mirabeau ( importante para ele, sem dúvida ) , mas
também para investir o lado executivo da Revolução de algum poder sig­
nificativo. Caso contrário, como ele sabe, a Revolução irá por água abaixo,
empurrada por tempestades de retórica oca, flutuando entre a anarquia e
o despotismo .

II APOSTASIA

Quem poderia aj udar Mirabeau no seu plano sem pés nem cabeça?
Mirabeau virou-se naturalmente para os seus colegas do Clube de 1 789
para depor Necker e formar um governo alternativo de salvação nacional.
Porém, as suas escolhas - Dupont de Nemours, Ségur, Panchaud, Talleyrand
- pareciam uma reunião da "liga dos j ovens cérebros de Calonne" . A única
excepção era Lafayette. Quanto mais o general se tornava uma figura de
culto popular, menos Mirabeau gostava dele, e chamava-lhe ironicamente
" Gilles César" .' Contudo, era obrigado a reconhecer que o assentimento de
Lafayette seria indispensável para a legitimação do "golpe" que estava a pla­
near. Aliás, diga-se de passagem, a escolha mais surpreendente de Mirabeau
foi a de Talleyrand para ministro das Finanças .
Possivelmente só u m endividado crónico como Mirabeau teria consi ­
derado esta pasta adequada, m a s Talleyrand, não obstante os s e u s gostos
dispendiosos, não era um inocente no tocante ao dinheiro . C onstruíra
uma reputação pública como gestor e contabilista dos bens da Igrej a, e foi
este conhecimento directo e profundo do capital eclesiástico que o levou
a conceber uma solução audaciosa para financiar a Revolução . À seme­
lhança de Mirabeau, Talleyrand reconhecia plenamente a necessidade de
dar força a um E stado executivo viável para a nova França não se tornar
uma criatura impotente do capricho legislativo . O seu instinto e a sua for­
mação eram burocráticos, racionais e voltaireanos . Mais do que uma
nação de cidadãos virtuosos unidos num abraço fraterno, Talleyrand que­
ria uma nação- estado rej uvenescida, um império da razão onde quem
mandava era o senso e não a sensibilidade . Mas Talleyrand também com­
preendia que os próprios poderes que tornavam Mirabeau admirável o
destituíam amiúde de senso comum. Tal como o seu amigo, Talleyrand

2 Além de foneticamente parecido com "Jules", gilles significa "pateta ", "tanso". ( N. do T )
S imon Schama 1 CIDADÃOS

gostava de apostar mas, dentro do humanamente possível, só pela certa.


Onde se poderia fazer tal aposta?
Na primeira semana de Outubro de 1 789, enquanto Mirabeau piscava
o olho à corte, Talleyrand reflectia na fortuna da Igreja. Ainda era bispo
de Autun mas despira - se literalmente do seu estatuto, deixando apenas à
vista um elegante peitilho que aludia ao seu cargo episcopal. Quando os
amigos lhe chamavam "o Bispo", faziam-no geralmente com um sorriso,
como que a gozarem uma piada inocente . Embora Talleyrand não fosse
tão cínico como muitos deles j ulgavam, tratavam-no como uma espécie
de Voltaire de mitra . S ej a como for, na sua qualidade de aristocratas após­
tatas, não ficaram surpreendidos quando Talleyrand aplicou à Igreja o
princípio de se fazer guerra à própria ordem.
No dia 1 0 de Outubro, durante mais um debate sobre finanças,
Talleyrand declara que encontrando-se o Estado ameaçado de um desas­
tre financeiro, "os grandes males exigem grandes remédio s " . A resposta
está ao alcance da mão: são os imensos recursos constituídos pelos bens
da Igrej a . Recuperados "para a nação ", poderão ser usados como garantia
para um novo empréstimo ou mesmo vendidos para atender às necessi­
dades mais prementes do E stado . O que mais enfurece os seus colegas do
clero é a descontracção com que Talleyrand larga a bomba. Pondo o seu
ar mais agradável, Talleyrand declara que a questão nem sequer merece
discussão, dado que "é evidente que o clero não é um proprietário no sen­
tido em que as outras ordens são: os bens de que os clérigos usufruem não
podem ser livremente alienados e foram-lhes dados não para seu benefí­
cio pessoal mas para o exercício de um cargo ou função" .
A intervenção d e Talleyrand foi ainda mais notável p o r não ter nece s ­
sitado de recorrer ao anticlericalismo primário. Talleyrand será denun­
ciado no púlpito como j udas, sacerdote de satã e besta do Anticristo
( entre outras coisas ) , mas não era um bispo anticlerical. As suas tendên­
cias eram pragmáticas e utilitárias, e nessa óptica a Igrej a tinha um papel
social específico : ministrava às necessidades dos crédulos, oferecia -lhes
apoio espiritual e mantinha-os numa relação ordeira com o Estado. Por
esta obra, como Talleyrand deixou claro no seu discurso do dia 1 O de
Outubro, o E stado garantiria aos sacerdotes um salário decente, substan­
cialmente acima do usufruído pelos curas rurais: tornar- se- iam funcio­
nários morais.
O ar de doce razoabilidade com que Talleyrand pareceu dizer, " É algo
com que todos os homens de boa vontade e bom senso não deixarão cer­
tamente de concordar", não foi tão escandaloso como os seus muitos ini­
migos o retrataram. A sua visão da Igrej a acompanhava uma tendência
pronunciada do pensamento político do Iluminismo tardio. Não obstante
o seu deísmo, Voltaire sempre considerara a religião, privada do seu poder
legalmente coercivo, indispensável para a moralidade pública . Para
417

Rousseau, a veneração do " S er Supremo " reconhecia a fonte das virtudes


naturais e conferia ao Estado e ao legislador uma personalidade essencial­
mente moral. Todavia, para estes dois pensadores, os mistérios sacerdotais
e as doutrinas teológicas que afastavam a Igrej a institucionalizada dos
cidadãos eram fraudes perigosas. Em vez de uma ordem autónoma com
jurisdição própria, eles concebiam uma Igrej a dissolvida nos propósitos
gerais do reino público, uma instituição útil em vez de inefável. O abade
Raynal disse-o de forma bastante sucinta : " Quer-me parecer que o Estado
não é feito para a religião, mas que a religião é que é feita para o Estado . "
N o estrangeiro tivera lugar pelo menos uma tentativa d e implementa­
ção desta visão de um catolicismo prático . Na década de 80, século XVIII
o extraordinário irmão de Maria Antonieta, José II, o imperador austríaco,
lançou-se num programa sistemático de abolição dos mosteiros e conven­
tos das ordens mendicantes e contemplativas com o intuito de converter
os seus residentes em " cidadãos úteis" . Tal como Talleyrand, ele era da
opinião de que o clero devia ser recrutado para um sistema nacional de
ensino básico destinado a alfabetizar as massas sem doutrinação teológica,
mas não controlado por ele; e também como Talleyrand, ele concebia os
bens eclesiásticos como um fundo geral, controlado pelo E stado e utilizá­
vel em operações caritativas, tais como a aj uda aos pobres, a educação dos
órfãos e o pagamento dos custos associados aos hospitais e manicómios.
O clero assalariado poderia continuar a administrar estes fundos mas na
estrita condição de reconhecer que os seus membros eram funcionários
públicos.
Escusado será dizer, estas políticas resultaram num choque imediato
com o Papado, mas o imperador conseguiu aproveitar o conflito para
sublinhar o carácter patriótico das suas reformas do clero . Do mesmo
modo, na França revolucionária, aqueles que pretendiam integrar o clero
no corpo político apresentaram a sua política como uma extensão natural
da soberania nacional. Em Agosto de 1 789, a Assembleia Nacional supri­
miu as anatas - as rendas pagas ao papa pelas peregrinações anuais a
Roma - com a j ustificação de que violavam a soberania nacional, e ao
declararem os bens da Igrej a ao dispor da nação Talleyrand e Mirabeau
( que no dia 1 3 de Outubro apresentou à Assembleia uma resolução
sucinta neste sentido ) tinham na mira apelar ao sentimento "galicano"
que resultara na expulsão dos j esuítas, em 1 76 5 . Eles sabiam que conta­
vam com alguns aliados no seio da Igreja, homens como o abade Grégoire,
que via a redução dos bens eclesiásticos não como uma roubalheira mas
como uma oportunidade para reorientar uma instituição corrupta para os
fins puramente evangélicos para os quais fora criada. Além disso, existia
um considerável corpo de literatura, alguma jansenista, alguma richerista,
que advogava um catolicismo mais austero, purificado das impurezas
mundanas e capaz inclusivamente de coexistir com outras religiões. Era o
S imon Schama 1 CIDADÃOS

tipo de v1sao expressado em publicações pré-revolucionárias como


L 'Ecclésiastique-Citoyen, de 1 787, que caracterizava a vida dos monges como

unne bonne vie bourgeoise, uma mesa excelente; todos os prazeres permitidos
aos homens do mundo; todas as guloseimas permitidas pela opulência . . .
dão-se com as melhores companhias; recebem um grande círculo de ami­
gos em residências imensas e aposentos soberbos; vestem-se à moda,
mesmo por debaixo do hábito; têm belos livros e quadros . . . caçam, j ogam
a dinheiro e usufruem de todo o tipo de luxo e entretenimento; hoj e em
dia, os pretensos pobres de Cristo são exclusivamente conhecidos como os
queridos da riqueza e da fortuna .

Em contraste, prosseguia o autor, a pobreza, a solidão e o cansaço deri­


vado do trabalho sentidos pelos curas tornava - os, de forma muito mais
autêntica, os sucessores apostólicos dos primeiros cristãos. Era subli­
nhando os potenciais ganhos materiais para o clero rural que Talleyrand
o contava recrutar como aliado contra os cleros diocesano e monástico,
que ele sabia serem os seus maiores inimigos . Pelo menos um padre,
Dominique Dillon, cura de Vieux-Pouzanges, eleito pelo Terceiro Estado e
não pelo clero de Poitiers, concordou que "se nestes tempos difíceis o
sacrifício dos bens do clero pode obviar novos impostos para o povo ",
deveria ser feito sem mais demoras.
Se Talleyrand estava realmente a contar com o apoio quase unânime
da Igreja, sofreu uma grande desilusão. Muitos curas que contribuíram
para a vitória do Terceiro E stado em Junho tinham ficado furiosos com a
ligeireza com que a Assembleia abolira as dízimas, a 4 de Agosto, não
obstante ter determinado a continuação da sua cobrança até à imple ­
mentação de outros esquemas d e apoio financeiro . A verdade é que,
como eles bem sabiam, a mera notícia da abolição da dízima tornara -a
incobrável. Mas verificou-se outro tipo de oposição, esta mais imprevista .
O abade Sieyes, que durante muito tempo demonstrara menos tendên­
cias eclesiásticas do que o seu velho amigo Talleyrand, pronunciou-se
contra a resolução de Mirabeau no dia 2 de Novembro, não por questões
de piedade mas porque, insistiu, violava o compromisso, vertido na
Declaração dos D ireitos do Homem, com a inviolabilidade da proprie­
dade . " Haveis declarado que a propriedade dita da Igrej a passou a per­
tencer à nação, mas o que eu sei é que isto é declarar algo que de facto
não é verdadeiro . . . Não estou a ver como é que uma simples declaração
pode alterar a natureza de um direito . . . Porque permitis que estas pai­
xões mesquinhas e odiosas sitiem a vossa alma e maculem com imorali­
dade e inj ustiça a melhor de todas as Revoluções? Porque quereis
afastar-vos do papel de legisladores e para quê? Para vos tornares anti­
clericais?"
419

O pouco habitual tom apaixonado que marcou o discurso de Sieyes é


indicativo da turbulência emocional suscitada pela proposta de Talleyrand
e Mirabeau, uma turbulência agravada pelo facto de muitos clérigos paro­
quiais que tinham apoiado calorosamente a Revolução se sentirem agora
traídos e inj ustamente vitimados. Tal como os seus oradores declararam,
a sua oposição ao programa da Assembleia não era uma mera defesa de
interesses velados. Decorria de convicções genuínas acerca da natureza do
seu papel pastoral e do ressentimento por serem despromovidos para uma
espécie de departamento estatal. Embora reconhecessem prontamente
que a sua condição material poderia ser melhorada, a cedência da sua
autonomia a uma espécie de superintendência nacional parecia um preço
demasiado elevado a pagar, e estavam ainda mais receosos de que a posi­
ção especial historicamente usufruída pela Igrej a Católica fosse posta em
causa com a tolerância do protestantismo. Os meses que se seguiram à
aceitação da resolução de Mirabeau pela Assembleia, no dia 2 de
Novembro, por 5 1 O votos contra 346, assistiram a uma série de disputas
acesas sobre a "nacionalização" da Igrej a .
Figuras como B oisgelin, arcebispo de Aix, q u e fora d o s entusiastas
mais fervorosos da Revolução, transformaram-se em apoiantes bastante
tépidas. Uma táctica de resistência inicial foi invocar o princípio da repre ­
sentação em nome do clero, argumentando que os decretos deveriam ser
submetidos a um sínodo nacional convocado para o efeito . Rej eitada esta
proposta como uma violação da soberania da nação corporizada na
Assembleia, Boisgelin tornou -se mais veemente. " Quereis ferir os minis­
tros do altar com a espada?", perguntou ele num poderoso discurso à
Assembleia, a 1 4 de Abril de 1 79 0 . "Declaramos de forma absoluta que
não podemos nem devemos aderir ao decreto que ireis promulgar e que
nos reservamos o direito de apelar a todos os direitos e prerrogativas que
são nossos por lei, por tradição e pelo estabelecimento da igrej a galicana"
( mas o arcebispo seria um dos que aconselhariam o rei a assinar a consti­
tuição civil ) .
Por seu lado, o s reformadores viram-se apoiados precisamente pelo
tipo de anticlericalismo parisiense pugnaz que tinham esperado evitar. No
dia da votação sobre a "propriedade nacional", os deputados eclesiásticos
conhecidos pela sua oposição foram apupados e apedrej ados no exterior
da Assembleia . C aricaturas, canções e poemas em poissard, bebendo num
filão rico e antigo de sátira contra os monges, papas e bispos, ganharam
uma nova vida . Uma paródia popular da invocação O Filii dizia:

Notre Saint Pere est un dindon


Le calotin est un fripon
Notre Archevêque est un scélérat
Alleluia
S imon Schama 1 CIDADÃOS

O nosso Santo Padre é um tolo


O beato é um velhaco
O nosso Arcebispo é um celerado
Aleluia

Outra canção sugeria que estes clérigos avaros e sexualmente rapaces


se iam armar e massacrar os cidadãos num novo São B artolomeu, um
tema muito repetido e que devia a sua voga a Carlos IX, uma peça imen­
samente popular de Marie -Joseph Chénier. Neste drama, cardeais e bispos
são vistos a conspirar e a rezar pelo extermínio dos bons cidadãos, e
Chénier não se poupou a esforços para tornar bastante explícitos os para­
lelos com a Revolução. O melhor actor de França, Talma, interpretava o
rei como uma espécie de pateta demoníaco no qual uma amoralidade
repugnante e um espírito conspirador e maléfico estavam concentrados
num grau invulgarmente abominável. Uma delegação especial de deputa­
dos clericais e bispos peticionou ao governo e ao rei a retirada da peça de
cena por causa da sua qualidade vil e grosseira e - caso raro em 1 78 9 - o
pedido foi atendido . C ontudo, mesmo depois de baixar o pano, permane­
ceu muito forte na mente popular parisiense a identificação do clero com
a anticidadania.
Ao encontrarem uma resistência obstinada por parte do clero, os
defensores da " igrej a nacional", para a levarem de vencida, sentiram-se
tentados a recorrer simultaneamente a propaganda elevada e baixa. No
dia 1 9 de D ezembro, foi decidido vender em hasta pública bens eclesiásti­
cos no valor de quatrocentos milhões de libras francesas através do muni­
cípio de Paris. E sta operação permitiria ao governo lançar um importante
empréstimo contra as receitas da venda e foi, para todos os efeitos, o prin­
cípio da expropriação dos bens da Igrej a pelo Estado . C uras e bispos
denunciaram a medida do púlpito, ameaçando excomungar os compra ­
dores e avisando que as santas riquezas poderiam cair nas mãos de pro­
testantes ou até - Virgem Maria ! - de j udeus. Em resposta, os panfletos de
apoio à venda recordaram o público de que os responsáveis pela escassez
de moeda eram os " aristocratas" clericais e laicos. Era o equivalente à con­
jura da fome : os emigrantes e os abades exportavam ou escondiam quan­
tidades astronómicas de lingotes e moeda para privarem a economia da
sua circulação.
Uma guerra idêntica de orações contra panfletos eclodiu a propósito da
decisão momentosa tomada pela C onstituinte, a 1 3 de Fevereiro de 1 790,
de anular o reconhecimento dos votos monásticos. Finalmente, disseram
os reformadores, os exércitos de monges e freiras indolentes seriam trans­
formados em cidadãos úteis . Os claustros seriam abertos para permitir aos
residentes a entrada no reino público. Todavia, a resposta de ambos os
sexos a esta súbita oportunidade foi muito diferente . Foram muito poucas
421

a freiras que desej aram partir, com a excepção das do C onvento de Sainte ­
-Madeleine, em Paris, onde algumas organizaram um protesto formal
contra o " despotismo " da abadessa, uma Montmorency-Laval. Uma res­
posta muito mais típica foi a declaração das carmelitas de Paris, que pro ­
testaram que "se existe felicidade na terra, gozamo-la no abrigo do
santuário " . C om os monges aconteceu a mesma coisa, nem todos estavam
desej osos de fugir. Em Setembro de 1 789, os beneditinos de Saint-Martin­
-des - C hamps tinham votado abrir mão dos seus bens em troca de pensões
pagas pelo E stado, mas em 1 790 decidiram manter os seus votos monás­
ticos. No entanto, o espectáculo mais dramático teve lugar no coração da
renovação monástica do século XII, as grandes abadias cistercienses de
Clairvaux, Cluny e Cí:teaux. Dos imensos e belos refeitórios, bibliotecas e
dormitórios góticos, criados como uma barreira auto-sustentável contra as
corrupções do mundo, saiu um grande êxodo de cidadãos tonsurados de
regresso ao seio dos seus irmãos mortais.
A invasão da autonomia do clero pelo Estado foi sentida em todos os
aspectos da vida eclesiástica. Antes das primeiras vendas de bens, em
Dezembro, foram enviados comissários às casas dos capítulos diocesanas para
inspeccionar e selar os documentos referentes aos títulos para não serem
substituídos por papéis falsos nem transferidos clandestinamente para tercei­
ros. Em Março e Abril de 1 790, chegaram aos conventos e mosteiros mais
homens de faixa tricolor para garantir que os decretos da Assembleia eram
comunicados e respeitados pelos abades e madres superioras.
Em Fevereiro, a Revolução recrutou o próprio púlpito. No dia 9, o
abade Grégoire, cura da Lorena e advogado da emancipação dos Negros e
dos Judeus, deu conta da ocorrência de tumultos generalizados nos cam­
pos do Sudoeste, uma região muito acidentada e cortada por rios. No
Quercy, no Rouergue e no Tarn, os camponeses estavam a cometer actos
de violência porque pressupunham que os decretos de 4 de Agosto
tinham abolido todos os direitos e taxas pagáveis ao senhor, em vez de
terem em conta as importantes e complexas distinções cuidadosamente
feitas pela Assembleia entre serviços pessoais e obrigações transformadas
em rendas . Grégoire disse que uma grande parte desta confusão advinha
da ignorância da língua francesa numa região onde se falavam um calão
local e dialectos da Zangue d 'oc. C ontudo, em Sarlat, na arborizada
Dordonha, o bispo tinha dado um bom exemplo ao publicar uma circular
pessoal explicativa dos decretos e aproveitando os sermões para esclarecer
quaisquer mal- entendidos - tudo de um modo muito pastoral.
As conclusões de Grégoire foram, primeiro, que um dos deveres pri­
mários da Revolução deveria ser a unificação da nação através de uma
campanha agressiva de ensino da língua francesa, apoiada pela propa­
ganda - uma campanha que ele liderará . Mas para já, o clero tinha de ser
recrutado para aj udar o povo, especialmente no campo, a compreender
S imon Schama 1 CIDADÃOS

a legislação revolucionária . No dia seguinte, Talleyrand disse que a


melhor maneira de o fazer seria lendo os decretos no púlpito e aprovei ­
tando a ocasião para desmentir os boatos falsos . Foi uma proposta menos
chocante do que a pintaram, dado que Luís XIV e muitos dos seus ante ­
cessores tinham amiúde determinado que este ou aquele decreto real
fossem lidos pelo clero ao rebanho . Afinal de contas, a missa dominical
era uma das poucas ocasiões que garantia a presença de camponeses de
quintas muito distantes debaixo do mesmo tecto. No entanto, o recurso
ocasional à Igrej a para dar a conhecer declarações de guerra ou a estig­
matização dos hereges não era a mesma coisa do que transformar o púl­
pito num quadro de parede revolucionário. Até o Rei Sol admitira que
não podia obrigar o clero a publicar decretos.
Ao ameaçar os sacerdotes de os transferir das suas paróquias e de lhes
negar o seu direito de voto enquanto " cidadãos activos", a Revolução
estava a ir muito mais longe do que a monarquia na anexação da Igrej a
como u m departamento de instrução pública . Com efeito, estava a imple­
mentar a exigência do abade Raynal no sentido de o Estado agir como
árbitro final da moralidade pública, determinando se a Igrej a estava ou
não a actuar contra os seus interesses. "O clero só existe por causa da
nação", declarou Barnave, "pelo que a nação [se assim o entender] pode
destrui-lo . " As publicações clericais desencadearam uma vigorosa campa­
nha de contra-propaganda de ataque a esta relação de subalternização e
aos actos de intimidação política que a reforçavam. Jornais como o cató­
lico-monárquico Actes des Apôtres e o Journal Ecclésiastique do abade B arruel
negaram ao E stado o direito de legislar em matéria de ensinamentos,
ritual ou liturgia cristãos, e em resposta à exigência oficial de que a Igrej a
se diluísse n o s obj ectivos gerais d a nação reiteraram obstinadamente a
natureza especial e separada da sua autoridade sagrada.
O jornal de B arruel era particularmente eficaz porque, além das tira­
das eloquentes do abade contra a legislação revolucionária, incluía cartas
de curas da província, algumas das quais com o selo da autenticidade,
queixando-se amargamente da intimidação levada a cabo pelo Estado.
Um cura escreveu, "A minha casa, disse Jesus C risto, é uma casa de ora­
ção . . . os nossos templos não são lugares públicos nem câmaras munici ­
pais"; Barruel respondeu que "os discípulos de C risto não são os homens
de César; se existem verdades para publicar na igrej a, são as verdades das
leis de C risto e os preceitos dos Evangelho s " .
A disputa e r a obviamente o assalto mais recente do antigo ciclo de hos­
tilidades entre a Igrej a C atólica Romana e os Estados europeus. Quer no
seu oportunismo pragmático, quer na sua versão da obediência da Igrej a
a estatutos laicos, Talleyrand n ã o estava muito à frente de Thomas
C romwell, o gestor da Reforma de Henrique VIII. Remsseau substituiu
Lutero como autoridade alternativa sobre a redundância da autonomia
423

sacerdotal. Todavia, em França, a situação complicou-se com a manifesta


relutância, mesmo entre a maioria da Assembleia, em abandonar o cato ­
licismo como religião favorecida. Só quando os deputados foram encosta­
dos à parede, como aconteceu no dia 1 O de Abril, quando Dom Gerle'
insistiu que a Assembleia declarasse a Igrej a Romana a única religião de
Estado em França, é que as posições se polarizaram perigosamente . Mas
os legisladores também contavam que o Papado assumisse um papel pas­
sivo - ainda que não de assentimento -, até porque o seu enclave de
Avinhão estava sob ameaça de "reunião" ( anexação) com a França.
No entanto, durante a Primavera e o Verão de 1 790, começou a sen­
tir- se em todos os níveis da Igrej a um sentimento crescente de alienação
de Paris e da brutalidade secular da Revolução . A geografia da insatisfa ­
ção, investigada por Timothy Tackett, é bastante distinta . A resistência era
mais marcada no Oeste, no Sudoeste e no Leste de França, dos Vosges à
Flandres e à Picardia, passando pela Alsácia e pela Lorena. O vale do
Ródano e o Midi parecem ter sido marcados por anticlericalismo e catoli­
cismo militante, e a realidade revolucionária era mais aceite no vale do
Sena, na região de Paris e nas zonas mais pobres da França central, onde
a atracção de um melhor estipêndio para os curas poderá ter sido o factor
decisivo . Em algumas áreas específicas, existiam discrepâncias marcadas
de lealdade entre o campo e a cidade. Na cidade normanda de Bayeux,
por exemplo, Olwen Hufton encontrou um grau elevado de rej eição entre
o clero e reparou que os seus homólogos do campo eram tendencialmente
mais pragmáticos .
O próprio capítulo d e Talleyrand, e m Autun ( que não lhe punha a
vista em cima desde a sua ordenação) foi inequívoco em relação à sua opi­
nião e começou a levantar a voz ao seu bispo. Os sacerdotes estavam par­
ticularmente zangados com ele por ter proposto à Assembleia, em Janeiro
- juntamente com Mirabeau, esse notório pecador - a emancipação dos
judeus espanhóis e portugueses. Tudo aquilo parecia um acto calculado de
traição, um bispo feito com usurários assassinos de Cristo e outros capita ­
listas igualmente detestáveis para espoliar a Igrej a dos seus bens e pro ­
mover os seus próprios interesses. Era assim que ele cumpria a sua jura
sagrada, feita no altar da catedral, de "defender com a vida a propriedade
da sua noiva, a igrej a de Autun"? C artas enviadas à imprensa local cha ­
maram-lhe j udas, apóstata, assassino dos Evangelhos. Talleyrand meteu a
cruz que tinha no peitoral debaixo do colete .
Por seu lado, os legisladores deram-se conta de que os curés-citoyens nos
quais tinham depositado as suas esperanças - homens de boa vontade
pública, capazes de conciliar a sua vocação cristã com o seu dever cívico -
eram aves muito raras. Era possível identificar alguns, por exemplo, um

' Antoine C hristophe Gerle ( 1 7 3 6- 1 80 1 ) , cartuxo, revolucionário e místico. ( N. do T. )


S imon Schama 1 CIDADÃOS

certo Pupunat que, da sua paróquia de É tables, no departamento oriental


do Ain, perto de Nantua, escreveu à Assembleia a informar que os fun­
cionários locais se tinham negado a fornecer-lhe o texto dos decretos para
ele os ler e que sempre sentira como "seu dever mais religioso unir inse ­
paravelmente o ensinamento dos decretos da augusta Assembleia
Nacional com os do dogma da moralidade cristã " .
A percepção crescente d e que o s Pupunats eram poucos e dispersos
deitou por terra o conveniente pressuposto da Assembleia de que um
corpo fiável de cidadãos-sacerdotes surgiria por geração espontânea. Para
preencher este vácuo, a Assembleia moveu-se em duas direcções .
Primeiro, decidiu nomear leitores d e decretos que seriam o s comunicado­
res oficiais da Assembleia e que poderiam - mas não obrigatoriamente -
fazer os seus anúncios do púlpito. Em segundo lugar, apesar de escusados
deste serviço, os clérigos ficariam obrigados a uma fidelidade estrita atra­
vés de um juramento de lealdade à nação e às suas leis . Era quase idên ­
tico ao juramento feito por todos os funcionários públicos e pelos soldados
para que a sua lealdade não pudesse ser condicional, mas para a Igrej a
representou a subordinação final à autoridade profana. Existem indícios
de que quando a C onstituição C ivil do Clero foi apresentada à Assembleia,
em Julho de 1 790, foi vista pela maioria dos legisladores como uma sim­
ples integração final na nova nação revolucionária do seu pessoal assala­
riado, certificado e inspeccionado. Afinal de contas, Mirabeau dissera que
"pertencendo a religião a toda a gente", era lógico que os seus sacerdotes
fossem funcionários públicos, como os soldados e os magistrados. Os curés
e os bispos passariam a ser eleitos como os novos juízos de paz e tribunais
distritais, e as dioceses seriam idênticas às fronteiras departamentais.
O abade Montesquiou, que era suficientemente respeitado para ser o
presidente da Constituinte, não viu nada disto como uma reforma, mas sim
como uma aniquilação. Ia a constituição, perguntou ele em Abril, "ser um
daqueles cultos pagãos que exigem sacrifícios humanos"? Ia sacrificar o
santo clero? Ia "o anj o exterminador passar sobre o rosto da Assembleia"?
A C onstituição C ivil não foi apenas mais uma legislação institucional.
Foi o princípio de uma guerra santa .

III ACTORES E CIDAD Ã O S

E m 1 790, por toda a França, surgiram árvores d a liberdade nos jardins


das aldeias ou nas praças públicas em frente das câmaras municipais. Por
vezes, eram de verdade, mais sauvages, árvores j ovens podadas e trans­
plantadas. Mas, na maior parte dos casos, as folhas murchavam e os ramos
pendiam, estragando o efeito pretendido de rej uvenescimento vernal.
Quando assim acontecia, eram substituídas por mastros riscados, mais
425

parecidos com os mastros enfeitados em torno dos quais se dançava anti­


gamente no primeiro dia de Maio e que eram o seu antecedente simbó­
lico imediato . D ecorado generosamente com fitas tricolores, o mastro
tornou -se o ponto focal da fidelidade da aldeia à Revolução, a declaração
simbólica de que o lugar já não era uma propriedade senhorial e de que
as suas gentes já não eram dependentes .
A s árvores eram dedicadas em cerimónias especiais à causa d a liber­
dade constitucional: o presidente da câmara fazia um juramento que era
repetido pelo destacamento local da Guarda Nacional e as árvores eram
benzidas por um padre e festej adas com música e poemas ditos por cole ­
giais e pelo bardo do sítio, que no mínimo seria membro correspondente
da academia de letras da província. Dançava -se à roda do mastro, com as
pessoas dos diferentes estatutos e ordens de mãos dadas na união fraterna
estabelecida pela nova ordem.
As árvores da liberdade celebravam o mito da harmonia que os políti­
cos revolucionários de Paris tinham decretado no seu estilo mais maçónico.
A devoção à pátria seria supostamente tão grande que deitaria por terra as
antigas lealdades - à guilda, à província, à ordem ou à religião - no seio de
uma família política nova e indefinidamente alargada. Todavia, para defi ­
nir os s e u s limites e dar a o s seus membros um sentimento d o s laços q u e o s
uniam, esta inclusão militante requeria p o r definição estranhos. Por con­
seguinte, todas as imagens de incorporação pressupunham contra-imagens
de negação: os anticidadãos obstinados que, ao negarem-se a diluir as suas
diferenças na comunidade revolucionária, tinham de ser extrudados.
O pintor Jacques-Louis David ofereceu pelo menos duas destas imagens: o
deputado Martin d' Auch, que se negou a fazer o juramento da sala de j ogo
da péla, miseravelmente sentado com as mãos cruZ:adas sobre o peito
enquanto todos os outros estendem as suas para jurar, e ainda mais alar­
mantes são os cadáveres dos filhos de Bruto, de pés para o espectador, exe ­
cutados às ordens do pai por terem virado as costas à Roma republicana.
Os estranhos foram sendo cada vez mais identificados pelo traiçoeiro
epíteto de "aristocratas", mesmo quando eram comuns ou quando os acu­
sadores eram eles próprios de nascimento nobre . Assim sendo, era conce ­
bível um patriota nobre ci-devant acusar um humilde intermediário de ser
"aristocrata" só por - digamos - ter trabalhado para a Ferme Général.
Estas ironias sociais deram origem a confrontos bizarros . No dia 2 7 de
Abril de 1 790, o Courrier de Versailles noticiou uma zaragata pública entre
dois ci-devants, o notoriamente militante marquês de S aint-Huruge e o che­
valier de Ladavese, perto da Rue Saint-Honoré . "A l 'aristocrate!", gritou
Saint-Huruge ao avistar o seu adversário. "Démagogue!", berrou o cava­
leiro em resposta. S aint-Huruge, que envergava o uniforme de capitão da
Guarda Nacional, desembainhou o sabre, o cavaleiro puxou da sua
espada -bengala, e teriam chegado a vias de facto não fosse terem sido
S imon Schama 1 CIDADÃOS

separados por um terceiro ci-devant, o conde de Luc, o septuagenário cujo


reumatismo fora proscrito por uma dose de Igualdade. É completamente
típico do espírito de 1 790 que o conde tenha conseguido impor a sua
autoridade aos combatentes em virtude de duas insígnias heróicas: o seu
uniforme de cidadão - soldado do distrito do Oratoire e a cruz de São Luís,
que ainda usava por debaixo da faixa tricolor.
Estes recontros em que cada lado procurava afirmar- se como repre­
sentante do verdadeiro patriotismo revolucionário e estigmatizar o adver­
sário como "aristocrata" reproduziram-se em todos os meios sociais. Os
irmãos - por exemplo, os irmãos Mirabeau - acusavam-se mutuamente
de fanatismo ou de indecisão traiçoeira . As disputas pessoais tornavam-se
causas políticas. Jacques -Louis David, cuj o zelo político se confinara pra ­
ticamente a o s espaços demarcados pelas molduras, considerou o facto d e
a Academia se recusar a conceder honras póstumas ao s e u pupilo Drouais
não só uma afronta pessoal mas também um sintoma da sua podridão e
teimosia aristocráticas. Ter sido preterido para director da Escola Francesa
de Roma veio agravar ainda mais as coisas. A Revolução ofereceu a David
um vocabulário para articular estas queixas como questões públicas, pelo
que as suas duas linguagens - pictórica e verbal - passaram a comple ­
mentar- se mutuamente. O artista e a arte politizaram -se.
Este processo através do qual os assuntos pessoais e profissionais foram
engolidos pela retórica política reproduziu -se na carreira de um amigo de
David, o actor Talma . Talma revelara-se um patriota convicto na prima ­
vera dos Estados Gerais, ao aproveitar o tradicional compliment - uma alo ­
cução na ribalta por um dos membros do Théâtre -Français no princípio e
no fim de cada temporada - para pregar as virtudes da Revolução com um
discurso inflamado escrito por Marie -Joseph C hénier. "Meus inimigos",
perorara Talma, " são todos aqueles que devem a vida ao preconceito e que
lamentam o fim da servidão . . . meus amigos são todos quantos amam a
patrie, todos os verdadeiros Franceses . . . Os restos da estrutura feudal não
tardarão a ruir sob os esforços da augusta Assembleia que vos representa " .
Para Talma, não eram apenas o s teatros oficialmente instituídos que
tinham passado a ser do Ancien Régime, mas toda a sua arte: abafada, arti­
ficial, académica, absurdamente elitista, dedicada às frivolidades e longe
das potentes verdades universais que podiam e deviam ser transmitidas
pelo teatro . Não admira que Jean-Jacques considerasse o teatro incompa ­
tível com uma sociedade virtuosa; não admira que os actores continuas ­
sem sem direito de voto !
Por conseguinte, Talma levou os quadros "romano s " de D avid para o
palco numa representação de Bruto, de Voltaire, na qual, interpretando
a personagem do tribuno Próculo, tinha apenas dezassete linhas de
texto para dizer. Inspirando -se na colecção de moedas e antiguidades de
D avid, Talma envergou uma toga até aos pés, cortou o cabelo muito
427

curto e penteou-o para a frente, à maneira do B ruto C apitolino reprodu­


zido no quadro do seu amigo. "Ui, que feio que está", comentou
Mademoiselle C ontat, a sua colega (a S usana de B eaumarchai s ) , ao ver
Talma romanizado; "parece uma estátua antiga " . Assim transformado,
Talma subiu ao palco, embaraçando intencionalmente os principais acto­
res da companhia, que continuavam a vestir- se no estilo da época de
Corneille e Racine, com perucas e de calça j usta . Num contraste total,
Talma calçava sandálias e deixava as coxas nuas.
A sua aparência causou precisamente a sensação desej ada: apresentar
e expor os membros mais importantes da trupe como aristocratas teatrais.
No Outono, a oportunidade de encenar Carlos IX aprofundou as diferen­
ças existentes no seio da companhia. No clima de finais de 1 789, ninguém
estava interessado em desempenhar o papel de um rei idiota e assassino.
Quando lhe ofereceram o papel depois de a primeira escolha ter decli­
nado, Talma procurou entrar na personagem à maneira romântica do sha ­
kespeariano Kean,• recorrendo à maquilhagem para modificar por
completo o seu aspecto facial. O seu C arlos IX tinha lábios finos e olhos
rasgados, quase mongolóides. David ficou entusiasmado e disse a Talma
que ele parecia exactamente um retrato de Fouquet existente no Louvre .
No clímax da peça, Talma fez o rei murchar de remorsos como um insecto
moribundo :

Traí a pátria e a honra das leis


O Céu tem de fazer de mim um exemplo para os reis.

Apesar de os bispos terem conseguido retirar a peça de cena depois de


trinta e três representações esgotadas, Carlos IX transformou Talma numa
celebridade revolucionária. Talma passou a dar-se com alguns dos protago­
nistas do teatro político, em particular com Mirabeau, um consumado
actor amador. No primeiro aniversário da tomada da Bastilha, Talma com­
pletou a sua conversão política representando numa peça no papel do fan­
tasma de Jean-Jacques Rousseau, traj ado precisamente como nos retratos
memoriais. Mas foi uma semana depois, a 2 1 de Julho, que teatro e polí­
tica se fundiram numa representação. Nessa noite, uma claque de proven­
çais organizada por Mirabeau pediu aos gritos a representação de Carlos IX.
O director da companhia, Naudet, apareceu na ribalta e disse que era
impossível porque a protagonista estava doente e outros actores cruciais
sofriam de uma indisposição. A explicação foi saudada com uma tempes­
tade de apupos e gritos . Nesse momento, Talma emergiu dos bastidores
para anunciar que o estado da garganta de Madame Vestris lhe permitiria
actuar e que se fosse necessário os outros papéis poderiam ser lidos. A peça

' O actor inglês Edmund Kean ( 1 7 89- 1 8 3 3 ) . (N. do T. )


S imon Schama 1 CIDADÃOS

foi representada no dia seguinte, para uma casa cheia de guardas nacionais
ruidosamente entusiásticos.
Mas o drama não chegara ao fim. Em Setembro de 1 790, não obstante
a sua enorme popularidade dentro e fora dos palcos, Talma foi suspenso
do Théâtre de la Nation por indisciplina . No entanto, o número dois da
facção patriota da companhia, D ugazon, aproveitou de novo a ribalta
para proferir um discurso político no qual defendeu Talma como um
cidadão -actor exemplar. O público ovacionou -o, cantou canções revolu ­
cionárias, destruiu cadeiras, empilhou-as e subiu por cima delas para o
palco e para os camarotes . D ugazon e a mulher j untaram-se a Talma num
breve exílio heróico do teatro, até que foram readmitidos por imposição
de Bailly, o presidente da C âmara Municipal. No dia 28 de S etembro de
1 790, Carlos IX subiu novamente à cena .
Ao mobilizarem o público como tropa para os ajudar a travar as suas
batalhas de bastidores, Talma e os D ugazons romperam a linha do proscé­
nio que dividia o teatro da política. Tal como David acabou por ver os seus
quadros, de alguma forma, como participantes na Revolução, Talma via a
sua retórica como instrumento de galvanização das virtudes públicas e de
dissolução das barreiras que separavam os líderes dos liderados. A partir
dessa altura, os actores vão ser participantes regulares nas cerimónias
revolucionárias e as ruas serão o cenário do teatro político . Por exemplo,
quando Dugazon se quer manifestar contra os privilégios continuados da
Comédie -Française, veste oito actores de lictores, enche quatro grandes
cestos com os adereços de Talma - capacetes, togas, couraças - e conduz
o seu exército romano numa lenta procissão até ao Palais-Royal, onde ful­
mina contra os patrícios.
Em Paris, pelo menos, os limites da participação política estavam em
franca expansão, pressionando não só as convenções do Antigo Regime
como também as que o novo regime de 1 7 89 tinha estabelecido para sua
própria segurança . Este processo foi encorajado pela retórica da liderança
revolucionária, que tinha falado da nação, da patrie e da cidadania em ter­
mos indefinidamente inclusivos, como se cada francês e cada francesa
tivessem um interesse directo nessa família política alargada. Agora, os
jornais repetiram estas receitas universais não só na linguagem dos cultos
mas também na fala das ruas, dos mercados e dos cabarets. Por conse­
guinte, as expectativas populares traduziram-se nas múltiplas utopias que
eclodiram nas cidades e nos campos: quintas sem rendas; igrejas sem bis­
pos nem monges; exército sem recrutadores; E stado sem impostos. E a
verdade é que o estado curiosamente transitivo do país, em processo de
constituição pela Assembleia, reforçou estas expectativas irrealistas .
N ã o tardou q u e as contradições profundamente enraizadas n a perso­
nalidade da Revolução Francesa se transformassem em hostilidades
declaradas. D e facto, enquanto as expectativas de um milénio de cidadãos
429

decorriam do impulso antimodernista que mobilizara as multidões nas


ruas, aqueles que tinham beneficiado com a sua violência pretendiam
algo de muito diferente para a França. Queriam um E stado moderno, fun­
cional e poderoso, uma monarquia constitucional com um sotaque gálico;
não queriam uma democracia populista.
C om este intuito, introduziram todo o tipo de limitações, distinções e
restrições à participação política que colidiam directamente com os mitos
unificadores que eles próprios tinham alimentado. Por exemplo, a
Declaração dos Direitos do Homem e do C idadão parecia falar com todos
os franceses. E, em 1 79 1 , a actriz Olympe de Gouges alargou de forma
natural este raciocínio numa Déclaration des Droits de la Femme et de la
Citoyenne, um documento obj ecto de chacota na altura e desde então, mas
que, na verdade, constitui um apelo revelador e comovente à inclusão das
mulheres nas promessas totalizadoras da Revolução . Além de não estar
obviamente disposta a contemplar as mulheres como parte do processo
político activo, a C onstituinte também rej eitou outros candidatos à cida­
dania. Os deputados das Antilhas francesas que invocaram os princípios
dos Direitos do Homem para defender a sua libertação da regulamentação
comercial colonial negaram peremptoriamente os mesmos direitos aos
escravos negros. Albert de B eaumetz, um dos maiores defensores da ele­
gibilidade dos Protestantes para a ocupação de cargos públicos, deixou
bem claro, no dia 24 de Dezembro, que os mesmos direitos não poderiam
de modo nenhum ser alargados aos Judeus pois estes estavam " sob uma
maldição política e religiosa " .
O desvio mais clamoroso d a promessa d e direitos universais ficou con­
tido nos limites que a C onstituinte impôs à participação política . Depois de
criar e consagrar um conceito de cidadania absolutamente abrangente na
Declaração dos Direitos do Homem, os deputados decidiram que alguns
eram mais iguais do que outros. Só os cidadãos franceses do sexo mascu ­
lino, com mais de vinte e cinco anos de idade e com residência fixa há
mais de um ano, que não fossem serviçais domésticos nem dependentes
de nenhum tipo e que pagassem o equivalente a três dias de trabalho em
impostos poderiam votar nas assembleias eleitorais primárias. Nos níveis
superiores da hierarquia eleitoral, estes limites tornavam-se mais restriti­
vos. A pertença a uma assembleia eleitoral requeria o pagamento de
impostos no valor de dez dias de trabalho, e a elegibilidade como depu -
tado para a legislatura exigia a quantia substancial de um marco de prata,
o equivalente a cinquenta dias de trabalho.
Estes limites barraram o voto a grandes segmentos da população: todos
os j ornaleiros rurais e trabalhadores manuais, servos domésticos e muitos
artesãos jornaleiros, todos eles constituintes que se tinham empenhado de
forma crucial na agitação revolucionária de 1 7 8 8 - 1 78 9 e que esperavam
grandes coisas da sua libertação política . Mesmo assim, o eleitorado criado
S imon Schama 1 CIDADÃOS

foi de muito mais de quatro milhões de pessoas, na experiência mais ampla


em matéria de governo representativo até então tentada na história da
Europa. Mas para os defensores de uma democracia mais pura, que eram
uma minoria eloquente na Assembleia, as restrições eram pusilânimes e
cobardes. Representavam, disse Maximilien Robespierre, deputado pelo
Artois, "a destruição da igualdade" . Desmoulins repetiu a acusação no seu
jornal, Les Révolutions de France et de Brabant: " Quem são os verdadeiros cida­
dãos activos?", perguntou ele retoricamente. " São aqueles que tomaram a
Bastilha e que trabalham nos campos, enquanto os madraços da corte e do
clero, não obstante a imensidão dos seus domínios, não passam de vegetais . "
Desmoulins adaptou a simpática maneira rousseauniana d e se dirigir aos
leitores como se fossem seus amigos pessoais "mes chers souscripteurs" , e
- -

procurou transmitir-lhes nas suas páginas a sensação de como poderia ser a


perfeita aldeia urbana revolucionária: o incomparable distrito dos Cordeliers,
onde ele dizia conhecer todos os cidadãos, terre de la liberté, por vezes carac­
terizada como "pequena Esparta" ou "pequena Roma", povoada de
Patriotas incansáveis prontos para debaterem as questões públicas pela
noite dentro e para saltarem em defesa dos seus amigos e irmãos contra as
maquinações dos tiranos da Câmara Municipal. "Não consigo passar por
esta zona", escreveu ele em Janeiro de 1 790, "sem um sentimento religioso,
ao pensar na inviolabilidade que ela garantiu aos homens honestos . " Os
"homens honestos" a quem se referia eram evidentemente os j ornalistas,
um grupo restrito que além de Desmoulins incluía Marat, Loustalot, Fréron
e Hébert, bem como o poderoso impressor e editor Momoro e o dramaturgo
Fabre d'Eglantine . Mas a sua personalidade dominante era o advogado
Georges Danton, que em Janeiro de 1 790 propôs a criação de um comité de
cinco " Conservadores da Liberdade" (nos quais se incluiu) sem cuja contra­
assinatura nenhuma detenção seria válida.
Mas foi Marat, o vituperativo médico e inventor tornado jornalista,
que no seu j ornal L'Ami du Peuple testou os limites da liberdade de
expressão ao denunciar repetidamente Necker, Lafayette e B ailly como
"inimigos públicos " . No dia 2 2 de Janeiro, as autoridades tentam detê - lo,
com o apoio de duas companhias de hussardos e centenas de guardas
nacionais que fecham as ruas perto do Théâtre -Français, onde Marat
reside e trabalha . Danton mobiliza a assembleia distrital e fala de uma
"invasão" do "nosso território", mas aconselha a resistência não violenta.
Ao descobrir que o mandato é em nome do C hâtelet, uma j urisdição em
processo de extinção por via das reformas, decide recorrer para a
Assembleia Nacional. Enquanto o recurso é ouvido e rej eitado, Marat
consegue escapulir- se, mas não sem antes publicar um panfleto extraor­
dinário ridicularizando o trabalho ao qual se deram as autoridades da
cidade para o apanhar. S egundo o panfleto, vinte mil soldados armados
com oitenta canhões e trinta morteiros foram prender o amigo do povo,
43 1

bombardearam a assembleia distrital e postaram sapadores nos telhados


para furarem qualquer balão com que Marat ( que era um entusiástico
aeronauta ) pudesse tentar fugir da rede .
Para grande tristeza de Desmoulins, a carreira breve mas espectacular
da república popular dos C ordeliers foi terminada pela reorganização
administrativa de Paris - de sessenta distritos para quarenta e oito secções.
" O h ! Meus queridos C ordeliers", lamentou-se ele, "adeus ao vosso sino;
adeus à vossa cadeira da presidência, adeus à vossa tribuna, onde ecoaram
os discursos de tantos ilustres oradores . " Mas a sua dor foi prematura, pois
embora o seu "território" tenha sido repartido por várias secções, princi­
palmente as do Théâtre -Français e de Saint-André -des-Arts, os "cordeliers"
sobreviveram como o clube político mais importante da margem
esquerda. Em troca de uma subscrição mínima, os cordeliers procuraram
recrutar no seio da população trabalhadora para darem alguma credibili­
dade às suas ruidosas declarações de que eram os representantes do povo
contra os opressores do governo municipal.
Falava-se muito de unidade e de indivisibilidade, mas a verdade é que
as necessidades do E stado - como a venda de bens da Igrej a - geraram
divisões e conflitos. O princípio electivo introduzido no governo munici­
pal e departamental agravou esta situação, pois permitiu a gerações suces­
sivas de políticos locais acusar os incumbentes de prej udicarem os
interesses da terra em benefício do domínio ganancioso do centro.
Enquanto as instituições representativas sobrevivessem, continuaria a
existir este problema. Na sua forma mais aguda, degenerou numa guerra
civil entre Paris e as províncias mais contestatárias . Surgiram sinais das
coisas terríveis que estavam para acontecer nos graves confrontos ocorri­
dos no S ul, onde os protestantes que se tinham alistado em massa na
Guarda Nacional foram atacados por turbas católicas incitadas pelos
padres e pelas administrações locais recalcitrantes. No pior destes con ­
frontos, em Montauban, cinco guardas foram mortos e mais de cinquenta
ficaram gravemente feridos.
Foi contra este localismo truculento que os impecáveis cidadãos da
Guarda Nacional determinaram unir forças por todo o país numa
demonstração de lealdade fraterna. Envolvendo -se na tricolor e compro ­
metendo-se mutuamente com j uras solenes, eles constituiriam a falange
invencível do patriotismo .

IV E S PAÇ O S SAGRAD O S

A França revolucionária não podia ser a o mesmo tempo uma grande


potência europeia rej uvenescida e uma confederação de quarenta mil
comunas eleitas. A dada altura, os seus líderes teriam de decidir se o país
S imon Schama 1 CIDADÃOS

deveria aproximar- se mais do modelo da Grã - B retanha imperial, onde a


devolução constitucional era estritamente restringida nos interesses do
poder do Estado, ou da América republicana, onde o governo nacional
era apenas, pelo menos em teoria, o agente dos eleitores provinciais . No
entanto, em 1 7 90, durante algum tempo, pareceu que seria possível
preservar a ficção feliz de uma concórdia na qual as preocupações locais
e nacionais estavam inocentemente fundidas . As manifestações de fra ­
ternidade que atingiram o auge na grande Festa da Federação, em Paris,
no primeiro aniversário da Tomada da B astilha, aludiram à união das
vontades individuais num novo sentimento de comunidade. B raços
direitos estendidos na direcção de um mesmo centro; milhares de vozes
harmonizadas em j u ramentos de fidelidade à constituição; diferenças
religiosas dissolvidas na mutualidade revolucionária . Tal como o orador
da Loja da União Perfeita tinha recomendado, a Revolução tornar- se-ia
"uma vasta loj a na qual todos os bons Franceses serão verdadeiramente
irmãos " .
A s manifestações d a nova religião revolucionária - o culto da
Federação - eram teatrais e necessariamente efémeras mas isso não as tor­
nava menos importantes . No clima emotivo de 1 790, causaram certa­
mente mais impacto através dos seus espectáculos cativantes do que as
complicadas alterações institucionais em que os historiadores se concen­
traram até há bem pouco tempo, e seria um erro crasso vê-las como uma
palhaçada orquestrada, encenada por políticos defensivos para disfarça­
rem a fragilidade da sua legitimidade. As provas esmagadoras provenien­
tes das muitas regiões de França sugerem não só que muitas das
"federações" de 1 790 foram espontâneas, mas também que envolveram
um número enorme de pessoas na dramatização de um entusiasmo
patriótico comum . Independentemente de as forças organizadoras serem
sempre os guardas nacionais, que nesta altura eram os " cidadãos activos "
mais prósperos, o número d o s participantes e d o s espectadores é um fac­
tor de peso para considerar a revolução de 1 790 uma revolução mais
"popular" do que o jacobinismo coercivo de 1 79 3 - 1 794, ao qual o termo
tem sido aplicado com maior frequência.
O movimento federativo nasceu da obsessão revolucionária com os jura­
mentos de fidelidade. O momento em que Luís XVI pareceu finalmente
converter-se num cidadão-rei foi o dia 4 de Fevereiro, quando apareceu
perante a Assembleia Nacional num simples fato preto para jurar, "defen­
derei e manterei a liberdade constitucional, cujos princípios foram sancio­
nados pela vontade geral, de acordo com a minha " . Ao mesmo tempo, o rei
prometeu educar o delfim como um "verdadeiro monarca constitucional" .
Bailly respondeu a o juramento asseverando a o rei que "a partir d e agora,
sereis Luís, o Justo, Luís, o Bom, Luís, o Sábio, sereis verdadeiramente Luís,
!e Grand" . Depois do acontecimento, Lafayette, que presidira a cerimónias
43 3

similares no Outono, propôs a renovação dos juramentos patrióticos dos


guardas em defesa da Lei, da Nação, do Rei e da Liberdade.
Por muito repetitivas e redundantes que fossem as cerimónias, os cida­
dãos conscienciosas não pareciam fartar-se de emular os Horácios de
David, com os braços tensamente estendidos e as identidades fundidas
numa única vontade patriótica. Derivavam uma satisfação particular da
celebração da união das lealdades que, segundo se dizia, o Antigo Regime
mantivera artificialmente divididas . A primeira das grandes cerimónias
teve lugar no dia 29 de Novembro de 1 789, nas margens do Ródano, com
doze mil guardas nacionais do Delfinado e do Vivarais a jurarem, "com o
Céu como testemunha, com os corações e os braços", que nem o rio nem
outra coisa nenhuma os demoveria do seu obj ectivo comum de defesa da
liberdade constitucional. C enas semelhantes de alegria histriónica tiveram
lugar na Primavera, em Marselha, Lyon, La Rochelle e Troyes. No dia 2 0
d e Março d e 1 7 90, nas margens d o Loire, guardas d e Anjou e da
B retanha, abraçados em " sagrada fraternidade", juraram abj urar as suas
antigas rivalidades provinciais, "deixando de ser angevinos ou bretões
para serem Franceses e cidadãos do mesmo império " .
E m Estrasburgo, a Federação d o Reno reuniu cinquenta mil guardas
vindos de toda a França Oriental, do Alto Mame ao Jura . Milhares de civis
foram usados como figurantes, todos vestidos com o guarda-roupa da reli­
giosidade revolucionária. Quatrocentas adolescentes trajando de branco
virginal sulcaram o rio Ill numa flotilha de barcos tricolores, após o que se
dirigiram a um enorme "altar patriótico " erguido na planície dos
Bouchers . Duzentas criancinhas foram ritualmente adaptadas por guardas
nacionais como "o futuro da pátria " . Os pescadores dedicaram o Reno e
os seus peixes à causa da liberdade . No desfile, os agricultores patrióticos
foram precedidos de arados puxados por grupos de crianças e velhos equi­
pados com foices e gadanhas. Mas o simbolismo mais importante foi o da
unidade religiosa, com dois pequenotes, um protestante, o outro católico
(numa cidade com uma forte presença protestante ) a serem sujeitados a
um baptismo ecuménico com padrinhos comuns de ambas as fés .
Receberam os nomes d e "Fédéré " e " C ivique " .
E m Lyon, a encenação para a festa d a federação foi mais complexa,
mais neoclássica . Na margem esquerda do Ródano, foi erguido um templo
da Concórdia com colunas dóricas com vinte e cinco metros de altura. Por
cima, foi colocada uma montanha de gesso com quinze metros de altura,
por sua vez encimada com uma estátua da Liberdade colossal com um
pique numa mão e na outra o barrete frígio que era dada aos escravos
libertados na Roma Antiga, fielmente copiada de moedas antigas . A ceri­
mónia propriamente dita teve lugar no dia 30 de Maio mas durante dois
dias a cidade encheu - se com as delegações de outras regiões - Bretanha,
Lorena, Macônnais e Provença -, cada uma nos seus trajos distintos mas
Simon Schama 1 CIDADÃOS

exibindo a sua fraternidade através de enormes faixas tricolores . No dia


do evento, ao som do canhão e da música, cinquenta mil pessoas congre ­
garam-se nas margens do rio para ver mais de quatrocentas bandeiras de
regimentos da Guarda Nacional saudar a Revolução e para entoar em coro
o juramento, que ecoou através da chuva .
É difícil, no século XX, simpatizar com estas demonstrações de massas
de união fraterné!- . Já assistimos a demasiados acenares de bandeira orques­
trados - extensos campos de braços plantados em extática solidariedade -
e já ouvimos demasiados cânticos uníssonos para evitarmos o cinismo ou
a desconfiança . Mas por muito insípida que a experiência tenha sido, é
inquestionável que foi intensamente sentida pelos participantes como uma
maneira de transformar receios interiores em exaltação exterior, de cobrir
a chocante sensação de irresponsabilidade suscitada pela novidade revolu­
cionária com um grande manto de solidariedade . C omo melhor se sentir
encoraj ado do que ao lado de milhares de estranhos aos quais se podia,
pelo menos durante uma manhã chuvosa, chamar irmãos?
O passo lógico seguinte foi passar dos dias da federação provincianos
para um ambicioso evento parisiense que ligaria os cidadãos- soldados de
toda a França aos poderes organizativos da Revolução . A sugestão de uma
"federação geral" parece ter surgido espontaneamente das companhias da
Guarda Nacional do distrito de Saint-Eustache. Os representantes dos
guardas fariam um j uramento de fidelidade na presença dos legisladores e
do "melhor dos reis " . Sylvain Bailly, que gostava muito de gestos gran­
diosos, tornou a decisão oficial e no dia 7 de Junho Talleyrand informou
a Constituinte sobre os planos. Talleyrand não perdera nenhum do seu
cepticismo em relação àquele tipo de ocasiões mas era suficientemente
astuto para reconhecer a sua potência psicológica. Na sua óptica, a ceri­
mónia deveria ser solene e gloriosa mas não ruinosamente cara ( custou
cerca de trezentas mil libras francesas ) .
O local escolhido foi o Campo de Marte, um grande espaço aberto
usado para manobras e paradas dos cadetes da Escola Militar (e onde
exactamente um ano antes tinham estado acampadas as tropas de D e
Broglie ) . Em conformidade com o fetichismo romano d a Revolução, o
espaço seria convertido num circo ou anfiteatro gigantesco. Teria trinta
níveis e a entrada seria assinalada por um grandioso Arco Triunfal triplo.
Ao centro ficaria o já habitual "Altar da Pátria", no qual seria realizado o
j uramento sagrado . Era mais difícil determinar a colocação do "melhor
dos reis" . Não podia ser colocado no altar - seria dar-lhe demasiada
importância -, pelo que se optou por um pavilhão que acomodaria o
grupo real ( o executivo ) e os deputados da Assembleia ( o legislativo ) ,
numa simbologia d e associação e interdependência.
Estes planos só mereceram a aprovação da C onstituinte no dia 2 1 de
Junho, pelo que restavam apenas três semanas para a imensa tarefa de
43 5

preparação do local. O vasto espaço destinado a acomodar nada menos


de quatrocentas mil pessoas estava cheio de pedras que teriam de ser
retiradas antes de se aplanar o solo, que era bastante denso. A maior parte
do campo seria escavada até uma profundidade de metro e meio para que
a zona do altar, ao centro, se erguesse na mesma medida, mas não havia
valas de drenagem e as chuvadas que caíram em finais de Junho trans­
formaram a zona do anfiteatro num pantanal, em especial j unto dos arcos
triunfais. Foram necessárias quantidades enormes de areia e cascalho para
dar firmeza à superfície. Outros trabalhos preliminares bastante árduos
também tiveram que ser concluídos a toda a pressa. A Rue de Marigny e
outras tiveram de ser alargadas para permitirem a passagem de três car­
ruagens, e foi necessário encher generosamente com areia a rota do des­
file dos fédérés.
Era uma tarefa assustadora, mas para a qual o carácter febril do entu ­
siasmo revolucionário podia ser utilmente dirigido . Num piscar de olhos,
as partes central e ocidental de Paris transformaram-se num gigantesco
formigueiro de trabalho organizado. Os relatos contemporâneos - textuais
ou icónicos - sublinham unanimemente a natureza socialmente reden­
tora e igualitária do trabalho, com monges e mulheres de alta condição,
com os cabelos apanhados e metidos em grandes boinas, a trabalharem ao
lado de operários e soldados. Para Mercier, é o quadro de uma Paris total­
mente diferente da estrumeira de abominações que ele dissecou de forma
tão memorável; é a pocilga tornada angélica, um grande festival de huma­
nidade moralmente purificada pelo seu labor comunal.

F o i a l i [ n o Campo d e Marte] q u e v i cento e cinquenta mil cidadãos de todas


as classes, idades e sexos a darem a mais soberba imagem de concórdia,
labor, movimento e alegria alguma vez testemunhada . . . Que belos homens
e cidadãos de Paris, que conseguiram transformar oito dias de trabalho no
festival mais comovente, inesperado e novo que alguma vez existiu . É um
espectáculo tão original que nem o mais indiferente dos homens deixa de
se emocionar.

Neste grande exército de trabalhadores patrióticos, os poderosos mis­


turam-se com os modestos. A duquesa de Luynes permite que o carro de
mão que mandou fazer em acaj u sej a empurrado pelas j ovens floristas que
são suas companheiras de trabalho . No meio de um grupo de freiras e
monges atarefados, Mercier vê Kersaint, o herói naval, " com a fisionomia
radiante da liberdade", a empurrar um carro de mão com a mesma alegria
que mostrou no Belle-Poule quando partiu a combater os inimigos da
pátria. Segundo o relato extático de Mercier, longe de fatigar os trabalha­
dores ( que fazem turno s ) , a labuta é tão plena de amor que os revigora ao
ponto de os aguadeiros, os vendedores ambulantes e os carregadores dos
Simon Schama 1 CIDADÃOS

mercados competirem entre si para ver quem consegue trabalhar durante


mais tempo e os veteranos provam "que os seus braços podiam ser vigo ­
rosos desde que as almas fossem coraj osas " . Muitas das profissões presen­
tes ostentam atributos identificativos, com os tipógrafos a usarem nos
chapéus cocares com a inscrição "Imprensa, a primeira bandeira da liber­
dade ", e os talhantes, mais ameaçadoramente, "Tremei, aristocratas, estão
aqui os magarefe s " .
O local de trabalho também é apresentado como u m idílio familiar.
Numa cena de feliz divisão do trabalho, o pai brande a picareta, a mãe
enche o carro de mão e o pequenote de quatro anos está ao colo do avô
( com noventa e trê s ) , que canta " Ç a ira " ' para entreter a família . A paz
social e o altruísmo exemplar imperam ao ponto de naquela multidão
enorme não haver notícia de nenhum incidente de violência ou crime.
Mercier afirma ter visto um j ovem chegar para o trabalho, despir o casaco
e pôr-lhe os seus dois relógios em cima. Quando alguém lhe chama a
atenção, ele responde com uma piedade digna de Rousseau: "Não pode­
mos desconfiar dos nossos irmãos . " E quando chegam os cabarés portáteis
com o vinho ou a cervej a grátis, os barris ostentam um slogan similar­
mente optimista: "Irmãos, não bebais a menos que estej ais verdadeira­
mente sedento s . "
Até a família real é atacada pela epidemia de b o a vontade. Uma
semana antes dos festej os, Luís XVI abre a biblioteca real e os j ardins botâ­
nicos aos guardas, que continuam a chegar. Quando se desloca ao local
para inspeccionar os trabalhos, é recebido por uma guarda de honra que
forma um arco com as picaretas . Durante uma recepção para as delega­
ções provinciais, o soberano refere que gostaria de dizer a toda a França
que "o rei é seu pai, seu irmão e seu amigo; que fica feliz com o seu bem­
-estar e doente com os seus males", um sentimento que pede aos fédérés
para que transmitam às mais humildes "moradas e cabana s " .
O tempo q u e f a z no grande d i a n ã o é auspicioso. Alguns cidadãos acu ­
sam-no de tendências obstrucionistas aristocráticas . De madrugada, reú ­
nem-se na avenida do Templo cinquenta mil guardas nacionais, os
eleitores de Paris de 1 7 89, os representantes da C omuna, um batalhão de
crianças ostentando um cartaz que as declara a "Esperança da Pátria", os
veteranos barbudos do chevalier de Callieres, companhias de soldados
regulares e de marinheiros e, por fim, os delegados dos departamentos,
incluindo guardas de Lyon, que trouxeram um estandarte romano.
A honra de levar a bandeira departamental é atribuída ao guarda mais

5 Canção emblemática da Revolução Francesa que se tornou popular em Maio de


1 7 9 0 . Não obstante as várias alterações em termos de letra, o título e o refrão ( " Ah! Ça
ira " ) mantiveram-se inalterados . Inspiraram-se em B enj amin Franklin, que quando lhe
perguntavam como estava a correr a Gue rra da Independência Americana respondia, " Ça
ira, ça ira " . ( N. do T. )
43 7

velho de cada regimento . A chuva não pára de cair e às oito, quando ini­
ciam o desfile numa coluna com oito homens de frente, é j á torrencial.
Indiferentes aos uniformes encharcados e aos esguichos das botas, os
federados marcham para oeste, pela Rue de Saint-Denis e depois pela de
Saint-Honoré, ao som de salvas de artilharia e de bandas militares. Apesar
do tempo miserável, as multidões são enormes e atiram flores aos solda­
dos. As mulheres e as crianças oferecem-lhes carnes fumadas e tartes e
cantam-lhes " Ç a ira".
Na Praça Luís XV, j untam - s e - lhes os deputados da Assembleia
Nacional. A procissão, imensamente longa, chega ao C ampo de Marte por
volta da uma da tarde. O arco triplo ergue-se vinte e cinco metros acima
do anfiteatro, encimado por uma plataforma perigosamente pej ada de
espectadores . A chegada da coluna é saudada pelo clamor de quatrocen­
tas mil pessoas, num crescendo que provoca certamente um arrepio na
espinha aos loj istas, advogados ou farmacêuticos de província encharca­
dos mas resplandecentes nos seus uniformes azuis e brancos da Guarda.
No centro do campo, vê-se o "Altar da Pátria", acabado em falso mármore
e decorado com símbolos edificantes . Num lado, uma mulher simboliza a
constituição; no outro, os guerreiros que representam a pátria surgem de
braço estendida, na pose revolucionária aprovada. Palavras de ordem
anunciam que "todos os mortais são iguais; distinguem-se pela virtude,
não pelo nascimento / Em todos os E stados, a Lei deve ser universal e os
mortais, sejam eles quem forem, iguais perante ela" . No lado oposto, a
imagem da Fama declara imortais os decretos da Assembleia e pede às
pessoas que pensem nas três "palavras sagradas que as protegem" :

Nação, Lei, Rei,


A Nação, sois vós
A Lei, também sois vós
O Rei é o guardião da Lei

À s três e meia, Talleyrand dá início à cerimónia da missa e da bênção.


Coube-lhe a responsabilidade de encontrar uma fórmula que combinasse
piedade com patriotismo, e embora a solução encontrada varie necessaria­
mente das fórmulas litúrgicas normais é suficientemente ortodoxa para o
deixar nervoso . Enquanto bispo de Autun, Talleyrand dera nas vistas por
se enganar com o ritual . Por conseguinte, na noite anterior, ensaiou em
casa de um amigo, De Sousseval, vestido a rigor com os traj es episcopais e
utilizando a lareira como altar. Mirabeau, demasiado conhecedor para o
gosto de Talleyrand, cantou com entusiasmo as partes do coro e interrom­
peu o amigo sempre que ele se enganou. Segundo uma história apócrifa
que foi contada durante muito tempo, Talleyrand terá implorado a
Lafayette, que se lhe j untou no altar do Campo de Marte, que não o fizesse
S imon Schama 1 CIDADÃOS

rir, mas a verdade é que todas as indicações são de que ambos levaram a
ocasião bastante a sério. A Constituição C ivil do Clero fora promulgada
pela Assembleia Nacional apenas dois dias antes, a 1 2 de Julho, e
Talleyrand, na qualidade de seu maior defensor, estava ciente da necessi­
dade de proporcionar uma espécie de religião revolucionária inspiradora
que libertasse as paixões emotivas e até místicas de que a Igreja C atólica
dependia para ligar os fiéis à Revolução. E enquanto Talleyrand era
ensaiado por sua eminência Mirabeau, uma cantata extraordinária, meio
sagrada, meio profana, chamada Prise de la Bastille, era executada em Notre
Dame. Integrava actores da trupe Montansier, cantores da Ó pera e do tea­
tro italiano e até artistas dos teatros de variedades Nicolet e Ambigu­
-Comique, recrutados para os papéis de patriotas beligerantes . A par de um
genuíno coro religioso, fazia uso de uma orquestra militar, de canhões e de
excertos do Livro de Judite gritados por cima da barulheira. Era o tipo de
coisa que Talleyrand considerava boa para moralizar as gentes.
Mas Talleyrand, encharcado que nem um pinto, está a ter dificuldades
para preservar a dignidade da ocasião. O vento apaga constantemente os
queimadores de incenso e os seus paramentos ensopados pesam uma
tonelada. Por baixo da mitra que escorre água para o seu elegante nariz,
o pontífice da Federação observa sombriamente a interminável fila de
guardas que continua a entrar na arena . "Mas será que estes gajos nunca
mais acabam de chegar? " ) , diz ele para o seu acólito, o abade Louis, que
virá a renunciar aos seus votos e será ministro das Finanças no Império e
na Restauração. Por fim, tudo está a postos e Talleyrand prossegue com a
missa e com a bênção das bandeiras, erguendo benignamente os braços
sobre os estandartes ondulantes . " Cantai e chorai de alegria", diz ele ao
seu rebanho, "a França renasce hoje . "
O resto d o dia pertence a Lafayette . Afinal d e contas, é para ele que o
país inteiro se vira como corporização do cidadão - soldado, não só como
seu comandante mas também como o seu heróico exemplar. Além do
mais, Lafayette, na qualidade de agente de uma espécie de consenso cons­
pícuo, sabe muito bem que a viabilidade da monarquia constitucional
requer manifestações teatrais da vontade patriótica . Em finais de Outubro
de 1 789, insistiu na imposição da lei marcial em Paris para evitar injusti­
ças como o linchamento sumário de um padeiro erroneamente acusado
de enganar na pesagem, mas transformou a ocasião numa cerimónia
especial, conseguindo que o rei fosse o padrinho das crianças órfãs numa
demonstração literal da sua benevolência paternal. Em Abril, Lafayette
levou o herói da independência da C órsega ( aniquilada pela França em
1 7 6 9 ) , o general Paoli, a Paris para lhe mostrar que os seus conterrâneos
nada tinham a recear dos " irmãos" da nova França . Visitaram juntos o
local onde se erguia a Bastilha e passaram em revista um desfile de guar­
das nacionais numa demonstração de fraternidade.
439

Mas nem toda a gente vê em Lafayette o herói do momento . Os j or­


nais de D esmoulins e Loustalot dão a entender que a Festa da Federação
foi concebida como um exercício de auto-glorificação. No entanto, não há
indícios de que estas críticas tenham conseguido diminuir a grande popu­
laridade de Lafayette j unto da Guarda Nacional provincial . À s cinco da
tarde do dia 1 4 de Julho de 1 790, ele é o centro de todas as atenções.
Depois de descer do altar, monta no seu cavalo branco e dirige-se ao pavi­
lhão real por entre as fileiras de guardas que se abriram para formar uma
avenida. Junto do pavilhão, desmonta e recebe do rei autorização para
administrar o juramento aos fédérés reunidos. Regressado ao altar,
Lafayette, no seu estilo mais "talmesco", ergue os braços ao céu num gesto
apropriadamente sacerdotal e depois, com a mão direita, coloca a espada
no altar, imitando o voto dos antigos cruzados. Sendo a sua voz obvia -
mente inaudível para todos quantos não estão ao pé de si, deutero ­
-Lafayettes lêem o juramento às respectivas companhias e no fim ouve -se
um estrondoso "Je !e jure!" . Uma descarga de artilharia ecoa de um
extremo ao outro do campo. De seguida, Luís XVI usa o seu novo título
pela primeira vez e declara que como "Rei dos Franceses" jura "fazer uso
de todos os poderes em mim delegados pela constituição para defender os
decretos da Assembleia Nacional" . A rainha, com as plumas de avestruz
do chapéu inclinadas devido à chuva, ergue o delfim, vestido de guarda
nacional, e a multidão rej ubila .
Um retrato deste momento alto, preservado no Museu Carnavalet, não
faz jus ao poder da ocasião mas pelo menos, além de retratar os protago­
nistas - Talleyrand, com a sua mitra demasiado grande; Lafayette, unifor­
mizado de comandante-em-chefe; os vainqueurs de la Bastille, em baixo, à
esquerda, com os seus capacetes e traj es romanos oficialmente prescritos
- capta o ambiente da cena . Em conformidade com o axioma romântico
de que os próprios elementos são acompanhantes políticos do aconteci­
mento, o pintor perfurou as nuvens negras de chuva com um raio de luz
providencial no momento exacto em que a espada de Lafayette toca o
altar. Ê o equivalente visual de uma canção em poissard que se tornou
popular depois da festa :

Ça m 'caule au dos, caule au dos, caule au dos


En revenant du Champ de Mars . . .
Qu 'qu ça m 'fait à moi d 'êt mouillé
Quand c 'est pour la liberté

Escorre-me pelas costas, pelas costas, pelas costas


De regresso do Campo de Marte . . .
Porque me queixo de estar molhado
Se é pela liberdade?
S imon S chama 1 CIDADÃOS

As festividades prosseguem durante uma semana. Os guardas nacio­


nais das províncias começam a abusar da recepção cordial que receberam
em Paris, bebem de mais e estão sempre à espera de comer de graça. Na
noite de 1 4, muitos deles foram ao grande "Baile da B astilha", onde Palloy
decorou o local com lanternas, bandeiras e oitenta e três árvores, uma por
cada departamento da França. Nos dias seguintes, os guardas assistem a
concertos adicionais da cantata Prise de la Bastille, de D ésaugiers, ou assis­
tem na Place Dauphine à cerimónia especial que homenageia, pela ené ­
sima vez, o espírito de Henrique IV. Finalmente, no dia 1 8, tem lugar um
esplêndido festival aquático no Sena, com barcas musicais e justas, um
programa idêntico ao usado tradicionalmente para saudar a chegada de
um príncipe estrangeiro de visita - só que agora o príncipe é o povo .
Os estrangeiros que se deslocam a Paris para beber na fonte da liber­
dade convencem-se de que estão a testemunhar o advento de um milénio
fraterno. Ouvem os deputados anunciar na Assembleia uma "Declaração
de Paz ao Mundo" e prometer que a França não mais voltará a ser um
agressor militar. " C omo posso descrever todos aqueles rostos iluminados
de orgulho?", escreve o pedagogo Joachim Heinrich Campe. " Quis abra ­
çar as primeiras pessoas que encontrei . . . já não éramos B runsviqueses ou
Brandeburgueses . . . todas as diferenças nacionais e todos os preconceitos
tinham desaparecido . " William Wordsworth, que desembarca em Calais
no dia da Festa da Liberdade, sente a mesma coisa. Ao passar debaixo dos
arcos triunfais engalanados com flores, sente a alegria difundir-se por todo
o lado, como um perfume da Primavera .
Para a j ovem Helen Maria Williams, que vê os guardas desfilarem pelas
ruas molhadas de Paris, o 14 de Julho é " um espectáculo sublime" e ela
não acredita que volte a ver algo igual. É a verdadeira fé, revelada na sua
forma mais extática . "Viam-se velhotes ajoelhados nas ruas, abençoando
Deus por terem vivido para assistir àquele feliz momento . As pessoas
saíam a correr das suas casas carregadas com refrescos que ofereciam às
tropas, multidões de mulheres rodeavam os soldados e, com os filhos ao
colo, prometiam incutir-lhe desde a mais tenra idade um apego inviolável
aos princípios da nova constituição . "
Se tudo aquilo era uma tontice, pelo menos era uma tontice desculpá ­
vel, e outras culturas, noutras alturas, foram afectadas por ondas de
comunhão tão sentimentais como as da Festa da Federação. Mas havia
cabeças frias que compreendiam o valor da ocasião sem não acreditarem
no seu poder para criar uma unidade duradoura a partir de um entu -
siasmo temporário. Talleyrand, por exemplo, que congeminara o evento,
era um homem que jogava nos dois lados. Na noite de 1 4, pôde final­
mente tirar a sotaina encharcada e secar-se. Chamou uma carruagem para
o levar a casa da viscondessa de Lavai, onde se jogava às cartas com apos ­
tas altas. Talleyrand tossiu educadamente, tomou o seu lugar e começou
441

a ganhar. E steve toda a noite a ganhar, levou a banca à glória e foi-se


embora " com mais dinheiro do que me cabia nos bolsos ou nas bolsa s " .
Talvez fosse um b o m presságio, a providência a abençoar o papa da
Federação. E se todas as bênçãos e juramentos se revelassem vãos, pelo
menos lá estava o ouro - Talleyrand nunca acreditou muito no papel­
-moeda.
13

Partidas
Agosto de 1 790-Julho de 1 791

I AS MAGNITUDE S DA MUDANÇA

Na manhã de 30 de Setembro de 1 790, em Grenoble, uma pequena


procissão dirigiu-se solenemente ao Palácio da Justiça . À frente seguia o
presidente eleito da câmara, Barra!, que colocou nas grandes portas de
madeira de carvalho cadeados de ferro com selos oficiais. De seguida, foi
pregado na porta um aviso reproduzindo o decreto da C onstituinte que
abolia os antigos tribunais soberanos de França e os substituía por juízes
e tribunais eleitos. O Parlamento de Grenoble, que fora suspenso por
tempo indefinido, passou a estar oficialmente morto .
Surpreendentemente, o homem que lhe assestou o golpe de miseri­
córdia - pelo menos oficialmente - tinha sido um conseiller de Parlement.
O cidadão Barra! era mais conhecido pelos grenoblenses como marquês
de Barra! de Montferrat. Tornara-se presidente da Câmara depois de um
dos seus colegas parlamentares, o marquês de Franquieres, ter declinado
a eleição por motivos de saúde. Não era invulgar os notáveis alegarem
problemas de saúde para se furtarem à popularidade revolucionária mas
no caso de De Franquieres a desculpa era genuína - ele faleceu passados
alguns meses. B arra! sucedeu ao cargo e colocou -se à frente dos Patriotas
locais, que estavam decididos a impedir Mounier, regressado à sua cidade
natal, de fazer de Grenoble o centro da oposição à Assembleia
Constituinte . Barra! foi subsequentemente eleito para a administração do
Departamento do Isere e para a presidência do novo tribunal distrital que
assentou arraiais nas câmaras onde o Parlamento reunira o seu tribunal
superior. Barrai tinha como colegas no tribunal, como j uízes, outros qua­
tro ex-advogados do Parlamento: D uport ( o mais velho ) , Génissieu,
Lemaitre e Génevou. O presidente da administração do Departamento do
Isere era Aubert-D ubayet, um oficial do exército ci-devant.
Ou sej a : o rompimento revolucionário com o passado não implicou
necessariamente uma mudança completa de pessoal. Embora a sua exis­
tência colectiva tivesse sido terminada pela Revolução, muitos indivíduos
que tinham ocupado cargos no tempo da monarquia trocaram facilmente
443

a sua identidade corporativa pela de cidadãos-servidores da pátria . Na ver­


dade, muitos deles foram dos mais fervorosos acusadores dos seus antigos
colegas . No Verão de 1 792, foi a ex-marquesa de Montferrat, tomada
cidadã B arraL que proferiu perante o conselho municipal de Grenoble um
discurso apaixonado apelando ao encarceramento de Maria Antonieta e à
nomeação de um "tutor patriótico " para o delfim.
Dada esta mistura de continuidade e descontinuidade, bem como o
papel de relevo desempenhado pela nobreza do Delfinado na aceleração
do fim do Antigo Regime, não admira que o epitáfio do Parlamento de
Grenoble publicado por um j ornal local, o Courrier Patriotique, combinasse
desdém oficial e respeito contrariado.

Acabaram-se aqueles órgãos altivos, aqueles colossos cuj a incompreensível


existência não servia o monarca nem o súbdito e cuj a organização bizarra
e monstruosa só poderia ter funcionado num Estado onde todos os princí­
pios [da governação] eram confusos ou mal compreendidos . Vi encerrar o
palácio onde, como uma fortaleza, eles tantas vezes enfrentaram a fúria
dos reis; o palácio onde a liberdade dos Franceses . . . encontrou asilo .

E sta mistura do velho com o novo repetiu -se por toda a França . No
papel, a transformação não poderia ter sido mais abrupta nem mais abran­
gente . Enquanto órgãos corporativos, os Parlamentos foram pura e sim­
plesmente substituídos pelos decretos legislativos da Assembleia
C onstituinte, e a antiga jurisdição dos bailiados pelas dos j uízes de paz e
dos tribunais distritais e departamentais, todos eles eleitos. Do mesmo
modo, a natureza remendada e complexa da governação, com fronteiras
sobrepostas que diferiam da administração civil, para os governos milita­
res e destes para as dioceses eclesiásticas, foi engolida por uma unidade
aglutinadora: o departamento . Ainda mais espantosa foi a eliminação das
hierarquias de funcionários régios nomeados - dos conselheiros munici­
pais ou " cônsules" aos intendentes e procuradores - em benefício de fun­
cionários eleitos. Na verdade, o " cidadão activo " consciencioso de 1 790 foi
bombardeado com eleições, sendo instado a escolher sucessivamente o
presidente da câmara e os conselheiros municipais, os funcionários dos
conselhos distritais e departamentais, os juízes de paz e dos tribunais e
finalmente, no fim do ano, um bispo constitucional e o cura local.
O aparecimento dos " homens novos " - médicos, engenheiros e advo­
gados em grande número e um ou outro comerciante ou artesão - na pri­
meira vaga de instituições criadas pela Revolução deveu -se parcialmente
à enorme expansão dos cargos electivos. Pelo menos nesta resposta aos
apelos dos cadernos - mais e não menos governo -, os notáveis revolu­
cionários cumpriram plenamente o seu dever. C ontudo, tal como aconte ­
ceu em Grenoble, esta expansão súbita da procura de funcionários
Simon Schama 1 CIDADÃOS

experientes significou que por todo o país muitos dos que se apresentaram
para preencher as vagas eram ex-funcionários do Antigo Regime . Não era
frequente constituírem uma maioria mas ocuparam amiúde os cargos mais
influentes, tais como presidente da câmara ou do directório municipal, e
um número considerável eram nobres ci-devants. As listas de ocupações que
os historiadores costumam apresentar quando indagam sobre as profissões
dos homens de 1 790 e 1 79 1 ignoram frequentemente este facto porque
"aristocrata" ou "nobre " já se tinham tornado sinónimos de "traidor" e
muitos ex-conselheiros dos Parlamentos apresentaram-se simplesmente
como " advogados " - que o eram. Em muitos casos, promulgada a lei de
abolição dos títulos hereditários, tinham obviamente descartado as suas
nomenclaturas aristocratas: D 'Eprémesnil tornou-se simplesmente o
Monsieur Duval e o seu adversário à esquerda, "Huguet de Sémonville,
passou a ser o Monsieur (barão com Napoleão) Sémonville.
Uma inspecção mais minuciosa dos novos regimes em muitas cidades
de província, grandes e pequenas, revela que muitas destas relíquias do
Antigo Regime estavam estrategicamente colocadas. Em Toulouse, por
exemplo, a reputação notoriamente inflexível da aristocracia local - os
capitouls1 não impediu alguns de aderir ao novo regime . O funcionário
-

eleito que representava localmente o rei, o procurador-geral-síndico, era


Michel-Athanaze Malpel, que além de ex-capitoul era um dos mais ricos,
tendo adquirido uma fortuna de mais de oitenta mil libras por matrimónio.
O novo município que sucedeu ao capitoulat abolido incluía outro oligarca,
Pierre Dupuy, e o presidente do tribunal distrital era Etienne-François
Arbanere, antigo procureur du Parlement. Na outra extremidade da França,
no porto de Calais, no C anal da Mancha, Nicolas B lanquart des Salines e
Pierre de Carpentier, dois procureurs du roi veteranos, foram respectiva­
mente eleitos para o tribunal distrital e para presidente da câmara.
Quando Carpentier foi eleito para o tribunal, sucedeu-lhe o formidável
Jacques- Gaspard Leveux, filho de um recebedor-geral do almirantado,
um dos postos mais lucrativos que o Antigo Regime tinha para oferecer.
Leveux, além de ser continuamente eleito presidente da câmara, conse­
guiu, através da sua defesa determinada dos interesses da terra, sobrevi­
ver ao Terror, a o Directório, ao C onsulado e ao Império, e morreu
membro da Legião de Honra no reinado de Luís XVIII.
Estes casos não são excepcionais . Em Paris, nada menos de 2 0 % dos
trezentos representantes municipais eleitos eram ex-parlamentares . Só
no distrito das Filles de S aint-Thomas, o editor do Patriote Français,
B rissot, partilhava a delegação com os conseillers Lacretelle e S émonville,

1Os representantes eleitos pelos diversos bairros de Toulouse para integrarem o conse ­
lho municipal. Os candidatos tinham de ser do sexo masculino, ter mais de vinte e cinco
anos de idade, ser casados e católicos, possuir uma casa na cidade e exercer uma profissão
honrosa (advogado, procurador, comerciante ou estribeiro ) . ( N. do T. )
445

o ex-funcionário das Finanças Mollien e Trudaine des Ormes, um ex-alto


funcionário da Ferme Général. Em Lyon, um ex-nobre liberal, Palerne de
Savy, substituiu outro, Imbert - Colomes, à frente da administração da
cidade . Foram ambos atacados por um terceiro grupo de Patriotas liderado
por Roland de La Platiere, oriundo de uma família de magistrados nobres
com domínios perto de Amiens e que tinham uma propriedade em Thizy,
no B eauj olais, e uma residência urbana num cais j unto ao Ródano .
Pouca coisa distinguia socialmente estes homens, em especial num
grande centro comercial como Lyon, onde as fronteiras entre a nobreza e
os plebeus ricos eram há muito indistintas . Além do mais, pertenciam
todos ao mesmo meio cultural, o mundo das academias e das loj as maçó­
nicas. Todos subscreviam o proj ecto optimista do Iluminismo tardio que
via as ciências conduzindo obrigatoriamente a uma maior prosperidade e
a uma governação mais perfeita, e também neste aspecto eles represen­
tam uma continuidade e não uma ruptura com o clima cultural do Ancien
Régime. Afinal de contas, Roland fora um promotor profissional das bên­
çãos da tecnologia na sua qualidade de inspector-geral das manufacturas .
O seu perene entusiasmo pelos processos inventivos levou-o inclusiva­
mente - sem um pingo de embaraço mórbido - a promover a ideia de
fabricar sabão com a gordura de cadáveres humanos. Os seus colegas,
rivais e inimigos na vida pública lionesa incluíam o deputado Pressavin,
cuj a fama se alicerçava em pesados tomos dedicados às doenças venéreas,
o seu amigo Lanthénas, que em 1 7 84 publicara uma obra típica do
Iluminismo, "L'Éducation [a falta dela ] , Cause É loignée et Souvent Même Cause
Prochaine de Toutes les Maladies", e outro médico, o D r. Vitet, que dirigia a
escola para parteiras e que aj udara a promover em Lyon o fundo insti­
tuído por B eaumarchais em prol do aleitamento materno. Tal como
Roland, Vitet era um revolucionário mais fervoroso do que Palerne de
Savy, que substituiu como presidente da Câmara, mas Palerne também
era presidente da Academia de Lyon, e Imbert - C olomes, que o antecedeu,
era mais conhecido por botânico e reitor do Hospital Geral dos pobres.
Obviamente, esta irmandade cultural não impediu a existência de
uma enorme hostilidade política. Aliás, poderá mesmo ter-lhe acrescen­
tado o veneno próprio das guerras dos sábios (e académicos ) , mas
importa não esquecer que as sociétés de pensée, as academias e os musées
proporcionavam os conhecimentos através dos quais indivíduos de dife ­
rentes antecedentes sociais se podiam desafiar mutuamente e declarar a
sua pertença ao mesmo império da razão. Além do mais, a notoriedade
dos sábios e dos filósofos provinciais entre os homens de 1 790 e 1 7 9 1 é
testemunha da sua convicção geral de que a Revolução estava, em mui­
tos aspectos, a continuar e consumar o processo de modernização
empreendido - com resultados desiguais - no reinado de Luís XVI. Os
representantes dos distritos de Paris incluíam o arquitecto e escritor
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Quatremere de Quincy e cientistas filósofos como Jussieu, C ondorcet e o


conde de C assini, o astrónomo e cartógrafo que tivera uma influência
importante na determinação das fronteiras dos departamentos . E que
melhor deputado de Calais à Assembleia Nacional haveria do que Pierre ­
Joseph des Androuins, o nobre amateur dos voos tripulados que fora o pri­
meiro a oferecer a hospitalidade do seu solar aos aeronautas B lanchard e
Jeffries depois da sua travessia do canal em balão?
Não pretendo minimizar o impacto da primeira fase da Revolução na
vida e nas instituições francesas. Algumas instituições importantes,
nomeadamente a Igreja e o corpo de oficiais do exército real, foram par­
tidas ao meio pelas suas exigências . No entanto, não existe praticamente
nenhuma prova convincente de terem sido socialmente determinados os
critérios pelos quais muitos oficiais, padres, ex-funcionários e até notários
e advogados decidiram apoiar ou opor- se à Revolução, tornar- se Patriotas
ou emigrados.
Em grande medida, isto aconteceu porque as consequências da
Revolução, de 1 7 8 9 ao Terror, foram, na sua maioria, socialmente con­
servadoras. O s efeitos de muita legislação deste período responderam
directamente aos interesses de grupos que se tinham saído bastante bem
em finais do Antigo Regime ( ainda que talvez temporariamente prejudi­
cados pela depressão de 1 78 7 - 1 7 8 9 ) e que tiveram oportunidades para se
saírem ainda melhor. Foram aqueles que já tinham definido os seus inte ­
resses económicos em termos de propriedade e capital e não de privilé­
gios, e os muitos mais que foram convertidos por esta visão, que
encontraram bastas oportunidades para prosperar na Revolução . Isto não
é o mesmo que dizer que a Revolução foi necessária para a sua prosperi­
dade, e muito menos para o avanço do capitalismo. Porém, nos dois pri­
meiros anos - talvez somente nos dois primeiros anos -, a Revolução
pouco fez para impedir ou inverter os desenvolvimentos das últimas
décadas.
Por conseguinte, foram precisamente aqueles dos quais os cahiers
rurais se queixaram tão amargamente - os camponeses abastados e aqui­
sitivos ( " coqs de village" ) e outros proprietá rios ( alguns deles nobres ) - que
.
devoraram as propriedades da Igreja quando elas chegaram ao mercado.
A Constituinte garantiu que os lotes iam para os maiores licitadores, de
modo que os camponeses só conseguiram adquirir terra quando se uni­
ram num sindicato comprador ( como aconteceu em algumas zonas do
Norte ) . Em Pulsieux-Pontoise, no Sena e Oise, por exemplo, a terra ará ­
vel era dominada pelas propriedades do marquês de Girardin, amigo de
Rousseau, e pela Abadia de Saint-Martin. Quando esta chegou ao mer­
cado, foi o rendeiro mais agressivo de Girardin, Thomassin, que conseguiu
abarbatar-se a cinquenta e cinco hectares da melhor terra pela quantia
substancial de 69 5 0 0 libras francesas. Outros lotes consideráveis foram
447

adquiridos por rendeiros similarmente abastados das aldeias vizinhas e


por um comerciante de aves de Pulsieux. O próprio Girardin, que se tor­
nara previsivelmente um apoiante fervoroso da Revolução e cuj o filho,
Stanislas, chefiava a administração departamental, adquiriu uma proprie­
dade de quinze hectares em parceria com outro lavrador rendeiro .
A abolição do regime senhorial também não foi tão simples como pare­
cera na estonteante noite de 4 de Agosto de 1 78 9 . Depois de as cabeças
frias se imporem, os especialistas em matéria de direito feudal - eram às
carradas - foram convocados para fazerem distinções legais reveladoras
entre os direitos considerados "pessoais" ( como a mão-morta) , que foram
abolidos de imediato, e os considerados "contratuais" (a esmagadora maio­
ria ) . E scusado será dizer que, estes, ao serem definidos como uma espécie
de propriedade legítima, poderiam ser remidos - por acordo entre as par­
tes -, frequentemente por uma soma equivalente a vinte e cinco vezes o
seu valor anual, o que impedia toda a gente a não ser os camponeses mais
abastados de aproveitar a lei. Dadas as circunstâncias, o que aconteceu foi
que os senhores completaram a sua transformação para senhorios, um
processo que já estava bastante adiantado na última parte do século .
De modo igualmente previsível, a estrutura do poder nas aldeias
mudou muito pouco. Na comuna de Les Authieux- sur-le -Port - Saint­
-Ouen, na Normandia, a reunião eleitoral local de quarenta aldeãos ele­
geu o cura para chefe da aldeia, com um conselho partilhado entre
lavradores rendeiros, profissionais como o estalaj adeiro e pequenos fun­
cionários como o procurador.
Quanto aos efeitos da Revolução sobre a França urbana, é o mesmo
padrão que emerge . Muita da legislação da Constituinte com incidência
sobre a França urbana destinou-se a retomar políticas lançadas por Turgot
e C alonne, empurrando ainda mais a França para uma expansão capita ­
lista . No princípio de 1 79 1 , a malograda reforma das guildas de Turgot foi
ressuscitada sob a forma de uma abolição pura e simples. C ontudo,
quando a alegria manifesta com que os artesãos j ornaleiros saudaram a
sua libertação das restrições corporativas se transformou numa série de
greves - principalmente dos carpinteiros, ferradores e chapeleiros -, a
Assembleia respondeu com a Lei Le Chapelier, proibindo todo e qualquer
tipo de coligação ou assembleia de trabalhadores. Tal como indica a rela ­
tiva ausência de discursos e artigos sobre a matéria na época, a Lei Le
Chapelier foi promulgada menos por uma fixação ideológica com o
comércio livre e mais pelo desej o de proteger os interesses comuns dos
cidadãos - corporizados nas instituições nacionais - contra os particularis­
mos que se considerava serem representados pelas greves .
D o mesmo modo, muitas d a s incertezas e diferenças de opinião quanto
à via mais rápida para a modernização económica articuladas nas últimas
décadas do Antigo Regime foram simplesmente reproduzidas na
S imon Schama 1 CIDADÃOS

Revolução. Na C onstituinte, existiu provavelmente um consenso para a


preservação da liberdade interna para o comércio de cereais mas também
a determinação, igualmente forte, de impedir as exportações. As cidades
"têxteis" da Normandia, que andavam a levar uma tareia às mãos da con­
corrência britânica desde o tratado comercial de 1 786, fizeram uma
enorme pressão para a sua anulação (na verdade, para que fossem proibi­
dos todos os bens importados ) , enquanto os entrepostos comerciais como
Bordéus, cuj o comércio vinícola com a Inglaterra estava a florescer, traba­
lharam com igual afinco para a manutenção do tratado. No entanto, em
matéria de comércio colonial, os mercadores de B ordéus, tais como os de
Nantes e Rouen, deixaram subitamente de defender o comércio livre e
apelaram ( contra os plantadores das Antilhas) à manutenção das leis que
obrigavam os produtos coloniais a ser negociados exclusivamente através
da França. Escusado será dizer que todas estas facções recorreram à lin­
guagem da política para j ustificar as suas posições contraditórias, mas a
verdade é que os argumentos em nome da "liberdade" ou do "patriotismo"
eram um verniz muito fino sobre a defesa tenaz dos interesses locais.
Entre 1 78 9 e 1 792, com a excepção momentosa da expropriação da
Igreja, a Revolução não deu origem a nenhuma transferência significativa
de poder social, apenas acelerou tendências que se vinham verificando há
muito mais tempo. A substituição dos cargos de nomeação pelos electivos
alargou a inclusividade da governação ao trazer para a política homens
que lhe estavam a bater à porta . Mas, mesmo antes da Revolução, a porta
raramente foi a barreira trancada a sete chaves que a retórica subsequente
a quis fazer parecer. Quanto à elite - nobre e eclesiástica -, dividiu -se em
função das convicções políticas e da solidariedade regional e não em fun­
ção do estatuto social. Aqueles que se agarraram a um estatuto anacró ­
nico que só podia ser preservado com uma sociedade corporativa foram
correspondentemente penalizados - 'estigmatizados como anticidadãos,
empurrados para a emigração ou para a rebelião armada . Por outro lado,
aqueles que se conseguiram remodelar como cidadãos -tribunos e servido ­
res do E stado e ver as suas fortunas em termos de propriedade e não de
privilégio, puderam levar a cabo a metamorfose crucial de nobres para
notáveis. Na qualidade de proprietários de terras, funcionários do E stado,
administradores departamentais, j uízes, médicos, banqueiros e indus­
triais, constituíram uma rede de influências e poder que dominaria a
sociedade francesa durante o século seguinte .

II POL É MICAS INC ONTINENTE S

Mas isto não é afirmar que nada de importante mudou como resultado
directo da primeira fase da Revolução Francesa. As liberdades consagradas
449

na Declaração dos Direitos do Homem para protecção das liberdades de


expressão, de imprensa e de associação deram origem a uma cultura polí­
tica na qual a liberdade do desrespeito não conheceu limites . Esta foi, de
longe, a criação mais dramática da Revolução. Embora o seu estilo vitu ­
perativo e as suas concepções tivessem visto a luz no Antigo Regime, pela
pena de escritores e jornalistas como Linguet e Mercier, a eliminação da
censura e das acções j udiciais possibilitaram que o debate político che­
gasse a um público mais vasto do que nunca.
O resultado foi a incontinência polémica a nível nacional. C om as notí­
cias de Paris a chegarem aos limites oriental e sul do país em três ou qua­
tro dias, a Revolução nacionalizou a informação ao ponto de alguém que
quisesse escapar ao toque omnipresente da política ter de fugir para muito
longe. Das guarnições do exército, onde os soldados exigiam o direito de
confraternizar com os civis e até assistiam às reuniões dos clubes, pas­
sando pelas igrej as das aldeias, cujas portas eram utilizadas para afixar
boletins e onde o púlpito se transformou num campo de batalha entre
ortodoxias rivais, até aos balcões dos teatros de variedades, de onde mul­
tidões de j ornaleiros bombardeavam os actores com insultos j oviais e can­
ções patrióticas, nada escapava ao braço comprido e à voz tonitruante da
arenga política .
Este nível de mobilização não respeitava os limites da privacidade. Na
verdade, a privacidade era suspeita, estava demasiado próxima das estra­
tégias de dissimulação que se dizia estarem no cerne da cultura aristocrá ­
tica . Assim sendo, os testes da virtude patriótica não paravam à porta do
quarto . Jornais como L 'Orateur du Peuple, de Fréron, gostavam de noticiar
( ou inventar) histórias de Lisístratas revolucionárias que interrompiam o
coito em momentos críticos para castigarem os maridos por terem j urado
lealdade a Lafayette. "Parai, parai, parai j á ! ", exclama uma das resolutas
cidadãs na Rue Saint-Martin, em Paris; "só voltareis a deleitar-vos com as
ternas carícias que tantas vezes desperdicei convosco quando abandonar­
des o vosso namoro com o C orruptor". Em contraste, os casamentos
patrióticos eram aclamados como o rochedo sobre o qual uma patrie ver­
dadeiramente patriótica seria construída. Em Dezembro de 1 7 90, B rissot
felicitou ironicamente C amille Desmoulins pelo seu casamento, expres ­
sando a esperança de q u e " a o tornar- se feliz, o s e u amigo n ã o fosse menos
persistente como defensor do interesse público " . Num estágio mais avan­
çado do ciclo conj ugal dos patriotas, as mães prolíficas eram especial­
mente honradas pelo seu contributo para a pátria. Um prodígio que disse
ter dado à luz nada menos de vinte e cinco filhos teve a honra de levar a
bandeira nacional numa cerimónia especial na Catedral de Notre Dame,
em Rouen, em Maio de 1 79 1 .
As crianças também foram recrutadas para este mundo de demons ­
trações incessantes das virtudes públicas. Os jacobinos encorajaram a
S imon Schama 1 CIDADÃOS

formação de filiais de j ovens, os Jovens Amigos da C onstituição, e permi­


tiam ocasionalmente aos seus membros assistir às sessões do "clube -mãe",
em Paris. Por toda a França, "Batalhões da E sperança ", compostos por
garotos dos sete aos doze anos de idade, foram ensinados a manobrar, a
recitar excertos da Declaração dos Direitos do Homem e do C idadão e a
desfilar perante os seus cidadãos-pais babados traj ando ver:sões em minia ­
tura do uniforme da Guarda Nacional. Em Lille, por exemplo, o ex- senhor
de Boisragon, um soldado veterano que se passara a chamar Monsieur
Chevallau, deu instrução a um grupo de oitenta rapazes - que à seme ­
lhança de outros grupos semelhantes foi alcunhado, numa paródia ao
nome dos Bourbons reais, de " Bombons reais " . Coadj uvado pelo cura,
Chevallau organizou uma "fédération " de crianças, com a bênção da ban­
deira e j uramentos . "Viveremos para a pátria ", prometeram C ésar
Lachapelle, de oito anos de idade, e Narcise Labussiere, de nove, " e para
ela será o nosso último suspiro " . Aos augustos deputados da Assembleia
Nacional, protestaram: "Quando os nossos pais e os nossos professores
elogiam sem cessar os vossos decretos e quando de todas as partes da
França nos chegam aplausos pela vossa obra imortal, como podem os nos­
sos corações permanecer insensíveis? . . . Não, senhores, o reconhecimento
e o respeito não têm idade . "
Este tipo d e declarações inspiradoras não s e confinou aos discursos, às
cerimónias e à palavra escrita . Transbordou para o mundo dos obj ectos,
cobrindo pratos de cerâmica, chávenas de café e canecas de estanho de
emblemas patrióticos como a Bastilha meio demolida e encimada pelo
galo francês saudando o alvorecer da liberdade, as bandeiras da Guarda
Nacional e a trindade consagrada: "La Loi, le Roi et la Constitution" . A fábrica
de algodão estampado de Oberkampf, em Jouy, que começara por produ ­
zir tecidos com desenhos alusivos à guerra americana, virou-se para os
dias épicos de 1 78 9 - a avalanche de propaganda política teve tanto a ver
com a imagem como com o texto. Os gravadores da Rue Saint-Jacques,
que antes da Revolução tinham produzido imagens de santos, heróis fol­
clóricos e soldados, passaram a ocupar-se quase a tempo inteiro na pro ­
dução de quantidades imensas de gravuras com temas assumidamente
políticos . As colecções da B iblioteca Nacional contêm dezenas de milhar
destas gravuras, que além de documentarem os eventos da Revolução
para os analfabetos e os comunicarem aos provinciais estabeleceram este­
reótipos cruciais de heróis e vilões. É quase possível acompanhar de perto
a ascensão e a queda de figuras como Necker, Lafayette e Mirabeau atra ­
vés do ritmo de produção e dos diversos tons das gravuras com estas per­
sonalidades.
Outras formas de literatura ilustrada familiar foram usadas de modos
semelhantes para inculcar as virtudes advogadas pelas facções revolucio­
nárias rivais. Os almanaques eram um meio predilecto . Sylvain MaréchaL
45 1

por exemplo, que estivera encarcerado antes da Revolução por publicar o


Almanach des Honnêtes Gens, pôde voltar a publicá-lo, e com Dame Nature à
la Barre de l 'Assemblée Nationale repetiu a sua combinação de informação
utilitária e igualitarismo social utópico . O Almanach du Fere Gérard, do
dramaturgo e actor Collot d'Herbois, ganhou um prémio especial dos
jacobinos ( atribuído por um comité que incluiu C ondorcet e Grégoire ) por
ser uma obra que combinava a missão apostólica da educação política com
um estilo intencionalmente simples para agradar aos camponeses, que
eram o seu público-alvo. O "Pere Gérard" era um deputado da C onsti­
tuinte, eleito por Rennes, que se tornara célebre ao sentar-se nos Estados
Gerais traj ando um rústico casaco castanho e que era aparentemente um
exemplo da simplicidade bucólica promovida no código rousseauniano de
moralidade social. C ollot conseguiu imprimir à sua publicação um tom
que exsudava bonomia rústica, explicando o significado do termo consti­
tuição através de uma comparação com o corpo são de um robusto garoto
camponês chamado Nicolas, "cuj o saudável apetite, a cabeça sã e os bra ­
ç o s fortes s ã o a imagem d a constituição " .
O popular teatro d e variedades, que combinava canções, danças,
palhaçadas e humor, também foi transformado numa arma da propa­
ganda patriótica. A primeira temporada de Nicodeme dans la L une, ou
La Révolution Pacifique bateu todos os recordes com noventa representa­
ções no Théâtre - Français, para um público genuinamente misto.
Empregava todos os truques da avenida do Templo e do Palais-Royal e
explorou a moda dos balões enviando o herói, o camponês Nicodemo -
uma combinação de simplicidade e matreirice peculiarmente gaulesa, à la
BourviF - rumo à Lua. Na Lua, Nicodemo encontra um rei amistoso mas
desamparado, intimidado por uma mulher difícil e falsa. Nicodemo pinta
a França como um paraíso terrestre onde o soberano, ao aceitar livre ­
mente uma revolução, tornou toda a nação feliz.
Até os penteados foram investidos de eloquência política. Em Outubro
de 1 790, por exemplo, o Patriote Français de B rissot publicou uma extensa
carta que advogava o cabelo curto, direito e sem polvilho como o pen­
teado patriótico apropriado. A razão dada era o facto de ter sido o pen­
teado preferido dos virtuosos " cabeças redondas" ingleses, tal como as
madeixas encaracoladas e compridas tinham sido um sinal exterior dos
vãos, corruptos e aristocráticos cavaliers. Quanto aos Romanos, o autor
partia do princípio de que os tiranos decadentes como C ésar e Marco
António se entretinham com os seus ferros de frisar enquanto Cássio e
Marco B ruto, " cuj as almas eram orgulhosas e que encheram de terror o
coração do ditador", cortavam o cabelo curto e o penteavam para a frente,

' André B ourvil ( 1 9 1 7 - 1 97 0 ) , actor e cantor francês especializado em papéis cómicos.


(N. do T. )
Simon Schama 1 CIDADÃOS

como se via nas personagens de Talma nos palcos. "Este penteado", insis­
tia o autor, " é o único adequado aos republicanos: é simples, económico
e requer pouco tempo e cuidados, o que garante a independência das pes­
soas; é um testemunho de uma mente dada à reflexão e suficientemente
coraj osa para desafiar a moda . "
O jornal d e B rissot não era o único a procurar reforçar a s notícias com
editoriais, sermões políticos e episódios exemplares destinados a criar lei­
tores não só curiosos como também moralmente alerta . De todos os meios
de comunicação social através dos quais se constituiu um novo público
político, a imprensa terá sido o mais poderoso. A magnitude da sua
expansão pós- 1 78 9 foi verdadeiramente espantosa. Antes da Revolução,
existiam em França cerca de sessenta jornais - sendo que, como subli­
nhou Jeremy Popkin, as gazetas estrangeiras francófonas constituíam um
complemento importante . Em Agosto de 1 792, só em Paris, havia quase
quinhentos j ornais. É claro que nem todos eram importantes ou se
podiam gabar de sustentabilidade ou de uma circulação mais do que
modesta mas os grandes sucessos, tais como os Annales Patriotiques de
Carra, tinham tiragens de oito mil exemplares, e a imensamente popular
Feuille Villageoise do abade Cérruti, que se pretendia um manual político
para o campesinato, chegava a um público muito maior. Segundo Jacques
Godechot, o jornal de Cérruti, através das muitas assinaturas subscritas
pelos clubes políticos, poderá mesmo ter tido duzentos mil leitores - um
número que pertence ao reino da optimização editorial.
O que a explosão da imprensa política teve de impressionante não foi
o aumento enorme da circulação, mas sim a gigantesca gama de estilos,
tons e formatos adaptados, das entediantes e dignas reportagens da
Constituinte no Patriote Français de B rissot ao grosseiramente sumarento
e muito mais legível L 'Orateur du Peuple. Alguns j ornais, como o de Marat,
capturavam as atenções através de ferocidade implacável das suas diatri­
bes e das ondas de indignação e pânico que eram capazes de desencadear
apontando para ninhos de traidores e conspiradores, quais vedares políti­
cos armados de varinhas acusatórias. Outros, ainda mais experimentais,
como o Fere Duchesne de Hébert, e publicações efémeras como o apopléc­
tico Tailleur Patriotique, procuravam reproduzir a voz autêntica do bon bou­
gre - o homem desbocado das tabernas e dos mercados, com a cabeça
envolvida pelos fumos do álcool e do tabaco e a língua a ferver com exple­
tivos dirigidos à Autri- C hienne ( à puta austríaca, ou seja, à rainha ) . O seu
atractivo era a violência verbal; por exemplo, o Alfaiate Patriótico descrevia
habitualmente os clientes que lhe apareciam para tirar as medidas como
aristocrates à pendre ( aristocratas para enforcar) .
Os j ornais de maior sucesso procuravam também ser instrumentos para
converter, eliminar as dúvidas dos indecisos, pregar aos não iluminados e
informar aqueles que tinham dificuldade em compreender os decretos da
453

Assembleia ou a diferença entre patriotas "honestos" e "fingido s " . A Feuille


Villageoise de Cérruti era um manual para o Camponês Patriótico : oferecia
conselhos sobre como combater as moléstias igualmente perniciosas do
míldio e dos padres não aj uramentados no púlpito, e reproduziu, com
uma fervorosa recomendação do autor para a sua utilização generalizada,
a Oração Patriótica de Lequinio: " Ó D eus da Justiça e da Igualdade, j á que
quisestes que o nosso Bom Povo recuperasse todos os seus direitos, fazei
com que sejam preservados apesar da obra dos loucos e dos fanáticos, e
com que irmão não lute contra irmão para não serem todos vencidos
pelos Inimigos da nossa Família. " C érruti publicava também relatos dos
longínquos missionários da fé revolucionária, atarefados na propagação
do evangelho, amiúde - e literalmente - no seu próprio quintal. Numa
destas cartas, um mestre - escola dá conta de que

todos os domingos, na nossa aldeia, reunimo-nos num pequeno j ardim


adjacente à minha casa e é lá que, sentado num monte de terra, leio a
Feuille Villageoise aos nossos camponeses congregados à minha volta .
Ouvem com tanta atenção que me obrigam a repetir toda e qualquer pala­
vra que não compreendem . Explico-lhes tudo o que sei mas dou-me fre ­
quentemente conta de que há coisas das quais pouco sei ou que
compreendo de forma errada.

Segundo a história dos jacobinos escrita por Michael Kennedy, a Feuille


Villageoise era o j ornal preferencialmente assinado nos seus clubes, espe­
cialmente na província, e não há dúvida de que foi nas sociedades popu ­
lares que a maioria dos franceses - e algumas francesas - se iniciaram na
linguagem da política revolucionária. A Sociedade dos Amigos da
Constituição, que se reunia no convento dos jacobinos, na Rue Saint­
-Honoré, não nasceu tão ambiciosa. Representava apenas uma continua ­
ção d o Clube B retão, um grupo d e deputados e m Versalhes q u e s e tinham
congregado para coordenar tácticas que garantissem a vitória na
Assembleia sobre as maquinações do governo. Ao abrir as portas ao
público e baixar a sua subscrição anual para vinte e quatro libras france­
sas, pagáveis mensalmente ou trimestralmente, os jacobinos de Paris ofe ­
receram um lugar onde os cidadãos e os seus "mandatários" podiam
debater as questões públicas num ambiente de mútuo encoraj amento. Por
conseguinte, apesar de não ser ainda o cadinho de igualitarismo militante
em que se converteria em 1 792, a sociedade gerava naturalmente críticas
ao pragmatismo ou moderantismo governamental com base naquilo que
dizia serem os princípios primeiros da Revolução.
Na Primavera de 1 790, em cidades da província como D ij on, Lille,
Estrasburgo, Grenoble e Marselha, outros Patriotas que também desej a ­
vam u m ponto d e aglutinação d e onde pudessem denunciar as intrigas
Simon Schama 1 CIDADÃOS

dos recalcitrantes do sítio ( por vezes entrincheirados nas administrações


locais) formaram as suas próprias sociedades e escreveram aos seus "ami­
gos e irmãos" de Paris a solicitarem a sua afiliação. Por sua vez, a "socie ­
dade -mãe" enviava activistas para promover o estabelecimento de células
locais no âmbito do que uma circular definiu como "uma coligação
sagrada para a manutenção da C onstituição", especialmente nas cidades
em que a sociedade considerava que "a causa" estava ameaçada . Por
vezes, estes esforços corriam mal, como aconteceu com o actor B ordier,
enforcado em Rouen por apelar a uma insurreição popular, mas na maior
parte dos casos o trabalho era levado a cabo de forma pacífica e encon­
trava uma resposta imediata em reuniões informais de zelotas - advoga­
dos, sábios, funcionários ou o inevitável ci-devant revolucionário e cura
patriótico.
Em Agosto de 1 790, os j acobinos de Paris tinham mil e duzentos mem­
bros e cento e cinquenta afiliados nas províncias, um ano depois eram
mais de quatrocentos . Este êxito fenomenal só pode ser explicado, como
Kennedy observou, pela paixão setecentista pelos clubes, o que sugere
que os jacobinos herdaram a ênfase na solidariedade e na igualdade fra­
ternas das igualmente populares lojas maçónicas, que tinham surgido
como cogumelos por toda a França na parte final do século, e também
derivaram da maçonaria o prazer pelos rituais e pelo simbolismo arcano -
transplantando as mensagens da política revolucionária para emblemas
maçónicos como o olho da vigilância e o nível do pedreiro ( denotando a
igualdade ) - e a obsessão com o triângulo . As elevadas profissões de fé na
fraternidade universal dos homens de boa vontade também foram reite ­
rações de um refrão maçónico familiar, mas com duas grandes diferenças:
a repugnância dos jacobinos face ao secretismo e a visão proselitista dos
seus clubes como escolas de moralidade pública.
Fisicamente, os clubes jacobinos eram o cruzamento de uma igrej a com
uma escola. Localizavam-se amiúde em mosteiros abandonados (e poste­
riormente expropriados ) , por vezes em instalações governamentais ou até
em pequenos teatros ou em tabernas . A disposição contemplava quase
sempre uma tribuna para o orador na parte da frente da sala, montada em
cima de uma plataforma baixa dotada de cadeiras para a liderança da socie­
dade . Os não membros podiam assistir às reuniões mas ficavam separados
por uma balaustrada baixa ou por uma corda esticada a toda a largura da
sala. O clube de Paris tinha as cadeiras dispostas ao longo das paredes da
antiga biblioteca, oferecendo uma melhor visibilidade aos oradores e ao
público. Decorando as paredes, viam-se os símbolos obrigatórios da frater­
nidade, bustos em gesso de figuras exemplares da Antiguidade como Júnio
Bruto e Catão, j untamente com heróis mais contemporâneos, Jean­
-Jacques Rousseau, Benj amin Franklin e Mirabeau ( nos clubes de provín­
cia longe de Paris; os jacobinos da capital viam-no mais com desconfiança
45 5

do que com admiração ) . Entre os bustos, era frequente verem-se cópias


emolduradas da Declaração dos D ireitos do Homem penduradas ao lado
de gravuras das grandes j ornadas revolucionárias, geralmente tiradas das
séries produzidas pelos Tableaux de la Révolution Française.
Mas o que os jacobinos tinham de mais cativante eram os sons e não as
imagens. As paredes dos seus clubes ecoavam com infindáveis discursos,
debates e leituras críticas da legislação numa oratória que emulava os vir­
tuosos do clube de Paris e da Assembleia Nacional. Todos os clubes de pro­
víncia tinham a sua vedeta que imitava, em expressões de indignação
patriótica e retórica ciceroniana, os estilos de Mirabeau (fervoroso ) ,
Barnave ( seco ) e Robespierre ( lógico-sentimental) . Foi nos grandes clubes
da província, em Bordéus e Lyon, por exemplo, que fez a sua aprendizagem
a geração seguinte de políticos revolucionários, os futuros Cíceros e Catões
da Assembleia Legislativa - Lanthénas, Isnard, Vergniaud e Gensonné.
Mesmo durante o período original, quando os seus membros incluíam
muitos "moderados" (monárquicos declarados ou anónimo s ) , os j acobi­
nos assumiram um papel de oposição às autoridades locais e nacionais
constituídas. Posicionaram-se conscientemente como guardiães morais
dos princípios revolucionários que cumpririam de forma inflexível o seu
dever patriótico, mesmo que isso significasse irem contra a maioria exis­
tente na Constituinte ou contra os funcionários locais eleitos. Todavia, a
sua militância era de um tipo puramente político e não social. Se eram
democratas, eram democratas que estavam bem na vida, compreendendo,
na sua maioria, o mesmo tipo de pessoas que eram oficiais da Guarda
Nacional: profissionais, escritores e j ornalistas, bastante mais comercian­
tes e membros de ofícios do que se encontrava nas administrações locais
e talvez 2 0 % de artesãos, quase todos mestres independentes.
A barreira mediana das vinte e quatro libras francesas deixou à
esquerda dos jacobinos um espaço que foi preenchido por clubes políticos
especificamente dirigidos aos grupos que tinham sido excluídos da pri­
meira definição de cidadania estabelecida pela Revolução . Os mais óbvios
eram as mulheres e os j ornaleiros (mas tanto quanto sei não foi fundada
nenhuma sociedade para um dos grandes grupos de excluídos, os serviçais
domésticos ) . Foi este o propósito declarado dos ressuscitados cordeliers, que
baixaram a sua j óia de admissão para apenas uma libra francesa, quatro
soldos. Segundo um observador inglês, as suas reuniões eram ajuntamen­
tos de arruaceiros "de vestuário era tão imundo e desleixado que mais
pareciam uma congregação de mendigos " . Mas dezenas de sociedades mais
pequenas seguiram a política de inclusividade dos cordeliers. As mais notá­
veis eram os Mínimos, ' a Sociedade dos Indigentes e a Sociedade Fraterna
de Patriotas de Ambos os Sexos, fundada pelo mestre - escola Claude

' Sociedade Fraterna do Palais-Cardinal, que se reunia no convento dos Mínimos. (N. do T)
S imon Schama 1 CIDADÃOS

Dansard. Todos estes clubes, com destaque para a Sociedade Fraterna,


admitiam mulheres, entre as quais Louise Robert ( filha de Kéralio, aristo­
crata bretão revolucionário e editor do Mercure National) , Pauline Léon,
filha do chocolateiro Léon, Théroigne de Méricourt e a notável Etta Palm
d' Aelders ( feminista de corpo e alma e espia por conta do governo holan­
dês ) . Estas mulheres tiveram um papel de relevo nas respectivas organiza­
ções. Foi destes clubes que emanaram propostas para a formação de
companhias de mulheres armadas - por exemplo, para guardar a família
real nas Tulherias, em 1 79 1 , e como regimento de fronteira, em 1 792 -,
bem como as reiteradas exigências de sufrágio aberto às mulheres, primei­
ramente articuladas por Olympe de Gouges e Etta Palm. Elas ofendiam-se
particularmente com a relegação das mulheres para a cozinha - típica dos
j acobinos - e com comentários como o do cervej eiro Santerre, segundo o
qual "os homens deste distrito, quando chegam do trabalho, preferem
encontrar a casa em ordem do que dar com as mulheres a regressar de uma
assembleia, de onde nem sempre saem com um espírito meigo" .
Foi nestas sociedades populares - que e m Paris, neste período, não
atraíram mais do que dois ou três mil aderentes - que os ideais do iguali­
tarismo social e da autonomia democrática foram levados ao limite e que
a retórica da conspiração e da denúncia de traidores dentro e fora do país
foi mais estridente . Os j ornais de Marat e Fréron, demasiado grosseiros
para o gosto dos jacobinos, eram lidos em voz alta e com enorme aprova ­
ção nos clubes dos cordeliers, e tal como os debates dos jacobinos deram
origem à safra de políticos revolucionários que viriam a dominar os anos
da guerra e do Terror, as sociedades populares geraram figuras ainda mais
militantes que criticariam os j acobinos pelo seu elitismo e pusilanimidade
- figuras extraordinárias como o perneta Pépin-Dégrouhette, dramaturgo
falhado, advogado e defensor dos carregadores dos mercados de Paris.
Foi igualmente nestes clubes que ficou mais à vista o carácter dicotó ­
mico da Revolução Francesa. A raiva emanada dos punhais cruzados e dos
bustos industriais de B ruto e os refrães de "Ça ira" ( "tous les aristocrates on
les pendra" ["todos os aristocratas irá travar"] ) , entoados ao som de pan­
cadas nas mesas, correspondiam exactamente à fúria anticapitalista e anti­
modernista vertida nas obras de Linguet e de Mercier anteriores à
Revolução. A retórica era Rousseau com voz grossa e dado a uma impa­
ciência sanguinária . A Revolução levara os membros dos clubes a acredi­
tar que estava à porta um mundo de justiça económica e social, mas tanto
quanto viam continuavam a pagar impostos sobre o vinho e o tabaco que
consumiam e a implorar trabalho aos patrões - um trabalho pago em
papel-moeda que depreciava vítima das depredações dos especuladores.
O governo e a C onstituinte continuavam a ser uma coutada dos les Grands,
com "financeiros gananciosos empanturrados com o sangue puro do
povo, cínicos, néscios, homens inchados de orgulho" e cuj as barreiras
457

eleitorais que tinham criado impediriam o próprio Jean-Jacques de tomar


o seu lugar entre eles.
A antítese destes " devoradores da substância do povo" era "Jacques
C ordonnier" ( sapateiro ) , uma figura inventada pelo Révolutions de Paris em
Dezembro de 1 790, "um artesão respeitável que reúne os vizinhos em sua
casa e que à luz da lamparina . . . lê os decretos da assembleia nacional,
temperando a leitura com as suas reflexões e as dos seus atentos vizi­
nho s " . Era o fervor simples dos honnêtes hommes que tornaria viável a
democracia se aqueles que detinham a autoridade política tivessem a
coragem de deixar o povo fazer as suas próprias leis, como Rousseau reco ­
mendava ( segundo diziam) . Uma das propostas mais extraordinárias neste
sentido veio de um ci-devant, o marquês de Girardin - naturalmente -, que
em Junho de 1 79 1 defendeu que todas as leis criadas pela legislatura
nacional deveriam ser submetidas a um referendo universal. Estes plebis­
citos corporizavam obviamente o encontro da história com a teoria, dado
que, na sua perspectiva, seriam simultaneamente descendentes das anti­
gas reuniões de guerreiros francos montados e o repositório da omnis ­
ciente Vontade Geral d e Rousseau. O optimismo de Girardin e m relação a
este nível de empenhamento popular no dever cívico era de tal ordem
que ele partiu do princípio de que os domingos - dedicados à oração, à
bebida ou a ambos - poderiam ser reservados para as votações populare s !
A utopia plebiscitária d e Girardin e a invenção do cidadão -trabalhador
ideal pelo Révolutions de Paris não tinham a mínima hipótese de ser insti­
tucionalizadas durante a Revolução Francesa, nem sequer no auge da
influência popular sobre a C onvenção NacionaL No entanto, a sua retó­
rica necessariamente insatisfeita e a sua obsessão crónica com a explora­
ção, a conspiração e o castigo público mobilizaram multidões poderosas e
iradas que, em momentos críticos, afectaram de forma decisiva o rumo
dos acontecimentos . E stas forças de sentido perpetuamente contrário tor­
naram a Revolução completamente inviável, pois opuseram exigências
impossíveis de pureza política às necessidades funcionais do E stado fran­
cês . Opuseram as micro -democracias locais e autónomas aos requisitos do
poder centralizado, a satisfação das necessidades materiais através da
intervenção forçada na economia à mobilização de capital para o Estado e
para o mercado, a total liberdade de expressão e de assembleia à transac­
ção regulamentada dos assuntos públicos e as punições sumárias - e
amiúde espontâneas - à aplicação ordeira da lei.
O dilema que se colocou às sucessivas gerações de políticos que passa­
ram da oratória à administração foi o facto de deverem precisamente o seu
poder ao tipo de retórica que tornava a sua governação subsequentemente
impossível. A Revolução enquanto insurreição teria sido impossível sem
explosões regulares de bílis e sangue, mas a Revolução enquanto governo
seria impossível se estas explosões não fossem geridas de modo selectivo .
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Foi a primeira vez que uma geração de políticos revolucionários des­


cobriu o desalentador dilema segundo o qual, neste sentido, a liberdade
revolucionária implicava terror revolucionário. Mas não seriam os últi­
mos a dividir-se quanto às suas consequências.

III MIRABEAU PAGA AS SUAS D ÍVIDAS

No dia 3 de Julho de 1 790, Mirabeau beijou a mão de Maria Antonieta


num recanto frondoso do parque de Saint - C loud e, qual cavaleiro
andante mal vestido, prometeu: "Madame, a monarquia está salva . " A rai­
nha, que dissera uma vez que "a nossa situação nunca chegará ao ponto
de termos de recorrer a Mirabeau ", conseguiu não estremeceu quando o
rosto marcado se curvou sobre o seu braço . Até tinha ensaiado como elo­
giar o ogre . S egundo Madame C ampan, começou por observar que "na
presença de um vulgar inimigo que tivesse j urado a destruição da monar­
quia . . . eu estaria a dar um passo muitíssimo desaconselhável, mas na pre­
sença de um Mirabeau . . . "
Por seu lado, Mirabeau sentou-se comovido pela mulher pálida e de
finos cabelos grisalhos, que não era propriamente a Messalina das sátiras
pornográficas que circulavam em Paris, e ficou impressionado com a sua
firmeza e inteligência, especialmente em contraste com a desgraçada irre ­
solução do rei. " O rei só tem um homem" com quem pode contar, comen­
tará ele depois; " . . . a mulher" . Mais tarde, ao reflectir friamente, o seu
gesto impulsivo ter-lhe -á talvez lembrado o galanteio táctico de Lafayette
na varanda de Versalhes, na sangrenta manhã de 6 de Outubro . Que
embaraçoso, ter repetido o beau geste de alguém que tanto desprezava
como um medíocre vaidoso - pior ainda, um medíocre vaidoso e burro !
Pelo menos não fora na presença de nenhuma multidão, embora ele
temesse que um par de granadeiros tivesse reconhecido os dois passean­
tes no parque .
Saint - C loud era um d o s retiros de Verão onde a família real se refu­
giava do constante escrutínio diário das Tulherias e dos insultos mordazes
da imprensa parisiense . Há dois meses que Mirabeau recebia dinheiro do
rei mas fazia- o de consciência tranquila, sem pensar que estava a ser com­
prado : era pago para aconselhar o rei sobre a forma de restabelecer a sua
autoridade, uma assessoria que Mirabeau acreditava piamente ser indis­
pensável para salvar o monarca da contra- revolução e de se tornar uma
nulidade democrática .
Os dividendos do "tratado" que tinha assinado com a corte, em Maio,
não eram de todo insignificantes. A tinta ainda não tinha secado e as suas
dívidas - 208 000 libras - j á estavam saldadas, eliminadas, apagadas. Os
459

dois pontos de referência da sua vida, o pai e os credores, deixaram de


lhe respirar no pescoço. O pai, Victor, o velho tirano apopléctico, auto­
designado "Amigo da Humanidade", morrera dois anos antes da tomada
da B astilha, ainda a zombar do filho mais velho, que tantas vezes man­
dara encarcerar e que, no leito de morte, deserdou em benefício do mais
novo, o ultra -monárquico . O gordo taralhouco era um espinho cravado
em Mirabeau . D eleitava-se com a sua notoriedade como contribuidor do
j ornal contra - revolucionário Actes des Apôtres para embaraçar ainda mais
o irmão. Era ridicularizado na imprensa patriótica com o epíteto de
"Mirabeau-Tonneau" mas o ridículo da alcunha acabava por se colar ao
cognome de Gabriel, "Mirabeau -Tonnerre " . O seu contributo para res­
taurar a ordem no exército fora roubar as bandeiras e as borlas do seu
Regimento de Touraine, aquartelado em Perpignan, quando dera com os
soldados em revolta contra os oficiais . Apanhado com os estandartes
regimentais escondidos no seu baú, foi detido e só a intervenção do
irmão, j ustificada com a imunidade de um deputado da Assembleia,
garantiu a sua libertação . A sua gratidão traduziu-se na emigração para a
Renânia, onde tentou organizar uma brigada de "Hussardos da Morte "
até que se empalou na espada de um oficial que provocou numa zaragata
de bêbedos .
C om uma mesada de seis mil libras, Mirabeau sénior podia finalmente
viver como o seu sentido de magnificência sempre exigira . Saiu do apar­
tamento alugado à actriz Julie Carreau, amiga de Talma, e mudou -se para
uma bela casa na Rue de la Chaussée d' Antin. C ontratou um chefe de
cozinha e com os seus esplendores culinários conseguiu embotar a fúria
de zelotas tão inflexíveis como Camille D esmoulins ( havia quem achasse
a comida demasiado condimentada. " Quase cuspi sangue quando j antei
com Mirabeau", recordou uma convidada, senhora de um palato dema­
siado sensível ) . Havia um criado de quarto que lhe preparava os fatos com
botões enfeitados com j óias que, para gáudio de Mirabeau, faziam levan­
tar os sobrolhos dos j acobinos . Mas o melhor de tudo era ter um secretá­
rio, pago pela corte, com o nome perfeito (para um amanuense ) de
'M onsieur C omps, que transcrevia com aplicação os seus imensos memo ­
randos e discursos. E nem que morresse iria deixar idiotas façanhudos
como os irmãos Lameth privá-lo de vaidades inocentes como vestir os
lacaios de libré e exibir o brasão da família na carruagem novinha em
folha. Finalmente, tornou -se também proprietário de terras, adquirindo
( sem no entanto pagar) em Argenteuil uma encantadora residência do
século XVII e um parque outrora pertença do filósofo Helvétius.
A improvável aproximação entre Mirabeau e a corte fora possibilitada
por um amigo seu, o conde de La Marck, um aristocrata belga que se
mudara para França, comprara terras e fora eleito para os Estados Gerais .
L a Marck insistira j unto do embaixador austríaco, Mercy d' Argenteau,
Simon Schama 1 CIDADÃOS

que era o confidente mais íntimo da rainha, que Mirabeau ansiava servir
o rei, e em Março de 1 7 90 fora dada luz verde para sondar as intenções
de Mirabeau. Em finais de Maio, Mirabeau, de contrato assinado, travou
a sua primeira batalha na C onstituinte pela preservação de um papel para
a monarquia nas decisões sobre a paz e a guerra .
E ra imprudente para Mirabeau constar da folha de salários da monar­
quia precisamente quando a publicação do Livre Rouge, expondo as pen­
sões secretas do Antigo Regime, estava a causar tanta celeuma. O seu
estilo de vida, subitamente tão melhorado, não podia escapar às atenções
gerais, em especial ao coincidir, no dia 2 1 de Maio, com um discurso apai­
xonado em prol da manutenção dos poderes régios em matéria de decla­
rações de guerra . Pouco depois, começou a circular em Paris um panfleto
escrito por Lacroix que asseverava ter descoberto a sua "Traiçã o " . A teme­
ridade e o descuido de Mirabeau só se explicam pelo facto de ele acredi­
tar que a sua conduta era pura, que estava a receber honorários por
conselhos desinteressados e em total conformidade com os princípios polí­
ticos que sempre tinha defendido .
No cerne desses princípios estava o estabelecimento de uma monar­
quia constitucional que aceitasse as conquistas de 1 789 mas sem se resig­
nar a ser um instrumento passivo da vontade de uma legislatura .
Mirabeau era, como escreveu a La Marck, a favor "do estabelecimento da
ordem, não da velha ordem" . A premissa da sua política era, pois, que a
monarquia devia pôr de lado qualquer ideia de namoro com a contra ­
-revolução e dizer adeus à hipótese de restaurar uma sociedade de ordens
com instituições corporativas como os Parlamentos. Na sua óptica, uma
justiça livre e socialmente cega e a liberdade de imprensa também eram
irreversíveis. Além disso, o povo deveria aceitar a C onstituição Civil do
Clero como a extensão lógica do galicanismo e como meio absolutamente
indispensável para evitar a bancarrota . Porém, ao mesmo tempo, teria de
existir um executivo genuíno, com liberdade para nomear os ministros -
e não obstante o decreto promulgado pela Assembleia em 7 de Novembro
de 1 789, Mirabeau continuava a defender que os ministros deveriam ser
responsáveis perante a legislatura e escolhidos no seio dos deputados para'
evitar uma luta constante entre os dois braços da constituição. A menos
que a C oroa tomasse medidas urgentes no sentido de recuperar alguns
poderes de governação com significado, a soberania quase autónoma da
legislatura tornar-se-ia um facto consumado. "O povo acabará por se acos­
tumar a outro tipo de governo e a monarquia, completamente nula, cons ­
tantemente vilipendiada e, ainda assim, muito cara, não tardará a parecer
um fantasma" .
Mirabeau gizou estas posições, bem como a s suas implicações políticas
e tácticas, em dois documentos, um em Outubro de 1 790 e o outro, um
memorando muito mais completo dirigido a Montmorin, o ministro dos
461

Negócios Estrangeiros, no dia 2 3 de Dezembro . O longo "Resumo" é uma


obra extraordinária, não pela sua grande profundidade teórica - que não
tem - mas pela sua compreensão espantosamente moderna da natureza
do poder revolucionário. Antes de Lenine, Mirabeau foi o analista mais
inteligente do mecanismo das tácticas em situações revolucionárias,
vendo com uma nitidez absoluta o que se escondia por baixo da retórica
que compunha a maior parte do discurso revolucionário. Ao abordar
aquilo a que chamou a "irritabilidade" da Assembleia Nacional - a sua
propensão para frustrar a governação decisiva através de debates faccio­
sos -, ele explica- a como um resultado natural da assunção de poses tea­
trais ( para as quais, obviamente, ele próprio contribuiu de forma
inesquecível) . "Tem os seus oradores, os seus espectadores, o seu teatro e
a sua plateia, o seu átrio e os seus balcões, aplaude o talento quando serve
os seus propósitos e humilha-o quando a contradiz . " Mirabeau refere
também a necessidade de um governo funcional e de sucesso possuir
órgãos de propaganda próprios, baratos e de grande tiragem para não
ceder o terreno às oposições perpétuas.
Mirabeau enumera os outros obstáculos à recuperação da autoridade
régia. C omeça pelas constantes indecisões do rei e prossegue com as limi­
tações colocadas à acção da rainha, a ameaça permanente de intimidação
física em Paris e a demagogia que a incita . Para levantar o rei precisa de
ministros capazes e determinados ( como ele ) e talvez de Talleyrand, Le
Chapelier, Thouret. Necker, que Mirabeau nunca conseguiu suportar, aca­
bou por se demitir em finais de Setembro, fatalmente estropiado pela sua
incapacidade de cumprir as suas promessas de magia fiscal ou de corres­
ponder à publicidade messiânica que saudara a sua recondução no cargo .
Contudo, os neckeritas como Saint-Priest e de La Tour du Pin permane­
cem em funções, pelo que Mirabeau advoga uma limpeza total. De facto,
numa j ogada audaz e astuta, Mirabeau recomenda a nomeação de minis­
tros escolhidos entre os zelotas dos jacobinos, embotando-lhes assim o fer­
rão . Estando eles no poder, garante ( com grande presciência ) , as
necessidades objectivas do Estado são de tal ordem prementes que neu­
tralizarão a sua ideologia. "Jacobinos no governo", diz, "não serão minis­
tros jacobinos. "
A outra figura importante da qual Luís XVI tem de ser salvo é o arqui­
papão de Mirabeau, o insuportável " Gilles César", Lafayette . Foi particu­
larmente irritante para Mirabeau ver a Festa de Federação encenada para
benefício exclusivo do general, com o rei intencionalmente reduzido a um
papel secundário. Se Luís XVI tivesse dirigido o juramento no altar - o
foco das cerimónias -, o acto poderia ter selado de forma simbólica a sua
aceitação da Revolução. Mas o seu papel foi tornado nebuloso e ambíguo
e não dissipou a ideia de que ele participou na cerimónia contra vontade.
Por conseguinte, a Guarda Nacional deve ser reorganizada e colocada
Simon Schama 1 CIDADÃOS

mais firmemente sob o controlo do governo para que o rei não sej a refém
de um exército parisiense.
Já que não há nada a fazer acerca da efervescência política de Paris, o
melhor é deixá-la andar. Quanto mais ofensiva se tornar e quanto maior
for o seu apetite de anarquia e militância, maior será o fosso com as pro ­
víncias que presume governar em nome da "Nação" . Com a acção do
governo paralisada por ameaças de insurreições parisienses, as províncias
persuadir- se-ão da necessidade de um poder público mais forte e verão
com ressentimento o monopólio da capital. É uma das previsões mais
prescientes de Mirabeau, ainda mais impressionante por ser feita na altura
em que a ficção soberana de uma nação unida acabou de ser consumada
no C ampo de Marte .
Para a truculência da Assembleia, a solução é similar. Deixe -se a
Assembleia descredibilizar- se a si própria com a sua polarização irreme ­
diável entre contra- revolucionários fátuos e zelotas impossíveis . Quando
a Assembleia conseguir finalmente tornar a governação impossível, o rei
poderá, numa iniciativa audaciosa, convocar eleições para uma nova
legislatura com poderes para rever uma constituição que é, para
Mirabeau, perigosamente disfuncional. Trata-se de outra j ogada táctica
arguta recomendada por Mirabeau e que não se prestará a imputações de
contra- revolução. Ele defende que os deputados à nova assembleia ape ­
nas possam ser elegíveis nos círculos eleitorais onde residem, o que na sua
óptica impedirá os militantes dos clubes de Paris de serem eleitos repre ­
sentantes de Arras ou Marselha, por exemplo. Até se mudar para outro
lugar, esta segunda assembleia deverá ser provida de uma força militar
própria para a libertar da sua dependência da Guarda Nacional de Paris.
O s proj ectos de Mirabeau encerram muita sabedoria e muita loucura .
Por um lado, a noção de um governo jacobino a propor a substituição da
Constituinte parece completamente fantasiosa; por outro, Mirabeau vê
com nítida sagacidade as questões que determinarão as lealdades numa
era revolucionária . Por exemplo, os impostos serão uma questão que "fará
cair o véu", porque

prometeram às pessoas mais do que podia ser prometido; deram-lhes espe­


ranças impossíveis de concretizar; deixaram-nas libertar-se de um j ugo que
será impossível de restaurar, e mesmo que haj a bastantes economias e pou­
panças . . . as despesas do novo regime serão na realidade mais pesadas do
que as do antigo e em última análise as pessoas j ulgarão a revolução exclu ­
sivamente por este critério - tira-lhes mais ou menos dinheiro? Vivem
i:n elhor? Têm mais trabalho? E esse trabalho é mais bem pago?

A perspicácia desta análise torna-se ainda mais impressionante por vir


de alguém que era o mestre reconhecido da retórica revolucionária mas
463

que não estava enfeitiçado pelas suas próprias hipérboles. Mirabeau


imprime uma grande paixão à sua defesa do uso obrigatório da tricolor
nos navios porque compreende que o que está em j ogo não é uma mera
"bagatela" mas sim (noutra assombrosa antecipação das preocupações do
século XX) aquilo a que chama " a linguagem dos sinais" . Esta linguagem,
insiste Mirabeau, é o código simbólico mais potente, denotando solidarie ­
dade ou conspiração, lealdade ou desafio. Se os oficiais de marinha forem
autorizados a arvorar a bandeira branca - ou sej a, a cor da contra-revolu­
ção -, isso será uma manifestação descarada do seu desdém pela
Revolução. "Acreditai no que vos digo, não vos deixeis adormecer num
perigoso sentimento de segurança", diz ele à Assembleia, "pois o vosso
despertar será terrível . " Por fim, Mirabeau prevê que a imposição de uma
definição parisiense de pureza revolucionária ao resto do país causará
fracturas profundas que, a menos que geridas por um governo solícito,
tornarão a guerra civil uma certeza .
Apesar de a sua visão de uma monarquia com ministros responsáveis
perante a legislatura parecer irremediavelmente optimista tendo em conta
a natureza dos agentes históricos de 1 79 1 , não era um cenário implausí­
vel . Com uma alternância periódica entre reis, imperadores e presidentes,
a maior parte da história de França nos dois séculos que se seguiram com­
provou plenamente a sua visão .
A perspicácia de Mirabeau falhou-lhe apenas em relação a duas ques­
tões, ambas de grande importância. Em primeiro lugar, ele convenceu-se
de que ao tornar-se dependente da corte estava também a tornar-se seu
educador político . Mirabeau não era ingénuo ao ponto de supor que
Luís XVI estava pronto a agir de acordo com as instruções extensas e sub­
tis que ia recebendo . Na verdade, nem sequer sabemos se o rei, cada vez
mais imobilizado pela impotência e pela depressão, chegou alguma vez a
lê-las. Sej a como for, Mirabeau entendia ser seu dever expor o seu plano
para a salvação do E stado e acreditava que os memorandos teriam um
efeito cumulativo, mostrando gradualmente ao soberano que existia uma
alternativa entre a capitulação e a contra- revolução. Mas a realidade da
corte era muito menos prometedora . Quanto mais Mirabeau se conven­
cia de que era o tutor da monarquia, mais o círculo da rainha se regozi­
j ava com a manietação de um oponente formidável. Quanto mais se
insurgia contra o número crescente dos seus adversários à esquerda dos
jacobinos, mais a corte o apreciava por dividir os seus inimigos.
Apesar de tudo, o sucesso na reeducação do rei não estava fora de
questão. Durante todo o ano de 1 7 90, Luís XVI permaneceu genuina­
mente indeciso quanto ao rumo político a seguir e muito menos empe­
nhado do que a rainha na intervenção contra - revolucionária. O que o
levou finalmente a desistir da ideia de gerir a Revolução segundo as linhas
recomendadas por Mirabeau foi a questão religiosa. No que toca a esta
S imon Schama 1 CIDADÃOS

importantíssima matéria, é difícil dizer se Mirabeau foi de uma incom­


preensão obtusa ou ultra-maquiavélico . Mirabeau aceitou prontamente
disparar a sua primeira salva na Assembleia, em Novembro de 1 789, em
apoio do plano de Talleyrand, e à medida que a legislação destinada a criar
uma igrej a estatal se foi tornando mais detalhada ele apoiou -a entusiasti­
camente em cada fase. Na Provença, viu a grande população protestante
- abastada, disciplinada e notória pelas suas virtudes cívicas e económicas
- como um bastião do novo regime. Nos j udeus de B ordéus e Avinhão, viu
outra cultura comercial e erudita que tornava o dogma do monopólio
católico um absurdo repreensível. O seu banqueiro predilecto em Paris,
Panchaud, parecia meio protestante e meio j udeu.
Al ê m do mais, independentemente de todas as outras questões, a
Constituição Civil era não só uma matéria de utilidade social e humani­
dade filosófica, mas também de integridade nacional. Mirabeau conside ­
rava que as instituições morais da França não deviam ser determinadas por
uma fidelidade idiota a um bispo italiano glorificado que baseava a sua
autoridade na afirmação comprovadamente risível de ser sucessor de São
Pedro . Esta questão da fidelidade agravou-se quando o arcebispo de Aix,
Boisgelin, publicou a Exposition des Principes sur la Constitution du Clergé, com
base nos quais o papa Pio VI rej eitava toda e qualquer colaboração com a
Constituição e ameaçava de excomunhão todos quantos colaborassem na
eleição de bispos e padres. As coisas agudizaram-se em Novembro de 1 790,
quando o deputado Voidel descreveu a resistência clerical à Constituição
C ivil como uma espécie de conspiração, com os padres a incitarem a tropa
a atacar os guardas nacionais e a desafiarem as autoridades locais. (Na ver­
dade, as gravuras revolucionárias dos motins ocorridos no Sul mostram
comummente padres abençoando com cruzes as multidões que atacam os
guardas nacionais, tal como o cardeal da Lorena abençoava os punhais na
peça Carlos IX, de Chénier. ) De modo a forçar a questão, Voidel propôs que
o clero fosse obrigado a jurar fidelidade absoluta à C onstituição num prazo
de oito dias. No debate do dia 26 de Novembro, o prazo foi alargado até ao
fim do ano mas a medida representou a determinação brutal do Estado a
testar os limites da imposição da sua soberania.
Mirabeau parece não ter tido dúvidas nesta matéria. D enunciou os
deputados episcopais à Assembleia ( dos quarenta e quatro, quarenta
rej eitaram a C onstituição) como hipócritas por afirmarem querer evitar
um cisma quando ao mesmo tempo incitavam os seus rebanhos a resis­
tir às leis do E stado . À insistência do abade Maury de que os bispos rece ­
biam a sua autoridade de Deus através do Seu vigário na terra, Mirabeau
retorquiu que a divisão da Igrej a em unidades como as dioceses era sim­
plesmente uma questão de "policiamento eclesiástico" e conveniência
administrativa que nada tinha de sacro . Aliás, a autoridade papal não
passava de uma j u risdição política em grande escala. Quando mais
465

devastador era o ridículo que Mirabeau lançava maiores eram os aplau­


sos, e os seus comentários coadunavam-se inteiramente com as suas con­
vicções e com as convicções dos seus concidadãos espirituais, entre os
quais os abades Grégoire e Lamourette ( que escreveu uma grande parte
do discurso ) . Mas tal como Mirabeau observou nas suas cartas a La Marck,
se o rei estava à procura de uma questão que afastasse as províncias da
Assembleia, aquela era uma oportunidade ideal.
Mas era difícil a Luís XVI aprovar o cinismo táctico de Mirabeau.
Depois de muitas angústias, o rei foi persuadido pelos bispos liberais -
Champion de Cicé, de B ordéus, e o arcebispo de Vienne - a assinar a
Constituição C ivil. C ontudo, as críticas de Roma pesavam-lhe cada vez
mais na consciência, em especial por serem defendidas com muita elo­
quência não só na Assembleia, por Maury e Boisgelin, como também em
jornais e panfletos . Luís XVI continuava a ver- se como o Rex Christia­
nissimus ungido com a santa ampola em Reims, defensor j urado da fé
apostólica . Foi, pois, com as maiores reservas que tornou lei, através da
sua assinatura, o decreto da Assembleia que deu aos clérigos da França -
talvez metade do número dos deputados e em algumas regiões, como no
Oeste, no Sudoeste e na Alsácia-Lorena, a maioria - a escolha entre tor­
narem-se rebeldes ou hereges, excluídos ou excomungados.
Foi certamente este acto que dividiu a conduta de Luís XVI entre más­
cara pública e confissão privada . Encoraj ado por Maria Antonieta, que
considerava a ordenação de bispos constitucionais (por Talleyrand, que já
se tinha demitido do seu bispado) uma farsa blasfema, Luís XVI recorreu
cada vez mais a capelães privados para se confessar. Todavia, em Fevereiro
de 1 79 1 , a questão deixou de poder continuar escondida do público
quando as suas velhas tias, Adelaide e Victoire, expressaram abertamente
a sua discordância da lei ao anunciarem a intenção de passar a Semana
Santa em Roma . Mirabeau aconselhou vivamente o rei a proibir a viagem
dado que, segundo disse, se não o fizesse, além de parecer que estava a
sancionar uma infracção das suas próprias leis, a viagem seria interpretada
como um ensaio para a sua própria emigração . Jornalistas como
Desmoulins e Fréron já estavam a insistir que as tias renunciassem ao
milhão de libras de que gozavam da lista civil• se queriam consumi-lo em
Roma . Tocou -se a rebate nas secções de Paris e convocaram-se reuniões
para debater formas de impedir, se necessário pela força, a partida das tias.
Mas o rei nada fez para impedir a viagem e as duas velhas beatas, subli­
memente indiferentes a toda aquela agitação, lá se fizeram ao caminho
acompanhadas pela sua habitual e modesta comitiva de vinte pessoas e

' D otação anual atribuída pela legislatura a Luís XVI para suprir as suas despesas pessoais
e as da sua Casa (artigo 1 0 . º da C onstituição de 3 de Setembro de 1 79 1 ) . Até Agosto de 1 792,
entraram mensalmente na lista civil mais de dois milhões de libras francesas. ( N. do T )
S imon S chama 1 CIDADÃOS

pelo comandante da Guarda Nacional de Versalhes, Berthier. O seu palá­


cio, B ellerive, foi invadido por uma multidão de poissardes enfurecidas mas
as suas carruagens só foram mandadas parar em Arnay-le-Duc, por
ordens de um presidente da câmara patriótico.
Mirabeau considerou a partida das tias uma enorme imprudência polí­
tica mas tinha a firme convicção de que a Revolução estabelecera o direito
de livre circulação absoluta ( algo que lhe fora frequentemente negado
pelas lettres de cachet do pai ) . Se as tias não tivessem infringido nenhuma
lei, não havia motivos para lhes negar a sua liberdade básica, e ele conse ­
guiu persuadir a Assembleia a aceitar esta premissa. C ontudo, a situação
agudizou -se no dia 28 de Fevereiro, quando a Assembleia discutiu uma lei
de regulação dos movimentos dos suspeitos de serem emigrados. A pro­
posta contemplava a criação de um comité de três membros nomeados
pela Assembleia que determinaria o direito de qualquer pessoa poder
entrar na ou sair da França, e que identificaria os ausentes suspeitos e
ordenaria o seu regresso sob pena de serem declarados rebeldes .
Mirabeau compreendeu intuitivamente q u e a Revolução estava
perante um momento da verdade . A sua convicção mais profunda, que
expressou à Assembleia, era de que as restrições eram irreconciliáveis com
a livre circulação garantida pela D e claração de D ireitos e pela
Constituição. Mas as suas tácticas de debate foram desastradas . Ao tentar
impedir a discussão e até a leitura da proposta, insistiu em ler uma carta
que tinha escrito ao rei da Prússia declarando que não se podia prender
os homens a um território à força porque não eram coisas - "nem cam­
pos, nem gado " . Não negava a validade de se criar uma espécie de polícia
para lidar com a questão mas insistiu peremptoriamente que as suas acti­
vidades deveriam decorrer estritamente de acordo com a lei. Qualquer
outra alternativa, profetizou, conduziria a uma ditadura. Quanto à pro ­
posta de lei, era "bárbara " .
Numa democracia representativa d o século XX, é impossível ler o dis ­
curso de Mirabeau ( e as várias interrupções através das quais tentou
dominar os trabalhos ) sem comprovar a verdade irrefutável das suas
observações e a nobreza moral com que foram expressas. E a razão estava
toda do seu lado . Foi efectivamente o ponto de viragem da Revolução
Francesa, o momento no qual, menos de dois anos depois da abertura dos
Estados Gerais, se licenciou como E stado policial. Mirabeau não era ingé­
nuo ao ponto de fechar os olhos a conspirações genuínas e conj uras con­
tra- revolucionárias, especialmente correntes no Midi. Nesse mesmo dia,
2 8 de Fevereiro, um grupo de oficiais do exército tinha sido descoberto
nos aposentos do rei, nas Tulherias, com espadas e punhais dissimulados
que serviam, segundo eles, "para proteger o rei " . Mas na óptica de
Mirabeau, nada disto j ustificava minimamente que o novo regime se
apropriasse de poderes que teriam envergonhado o antigo .
467

O debate degenerou num zaragata processual entre os apoiantes da


moção e Mirabeau, que a queria substituída por uma declaração sobre a
inconstitucionalidade de qualquer lei que restringisse a livre circulação.
A dada altura, foi acusado de ditar à Assembleia, ao que respondeu hipo­
critamente proclamando que "durante toda a minha vida lutei contra o
despotismo e continuarei a lutar até ao fim " . Quando se ouviram novos
murmúrios da esquerda, ele gritou como um mestre - escola zangado,
" Silêncio, trinta vozes ! ", uma admoestação particularmente humilhante
para Barnave e para os Lameths, que se arrogavam a representar o Povo
com uma facção minúscula.
Mirabeau não foi perdoado pelo seu ralhete público . À noite, foi - lhe
recusada a entrada em casa do duque d' Aiguillon, um velho amigo que o
convidara para j antar. Mais tarde, Adrien Duport ficou boquiaberto ao vê­
-lo entrar calmamente no clube jacobino exactamente quando se prepa­
rava para relatar à sociedade a infâmia de um dos seus membros. " O s
homens mais perigosos para a liberdade não estão longe daqui ", anunciou
ele; " aliás, estão entre nós; homens nos quais depositámos as maiores
esperanças. " Dedos apontados a Mirabeau e gritos de "traidor" . " Sim,
senhor de Mirabeau ", disse Alexandre de Lameth, louco de raiva, "não
somos os trinta desta manhã; somos cento e cinquenta que nunca serão
divididos . " Mirabeau foi acusado de querer destruir os jacobinos, aos
quais presidira em Novembro, de difamar e inj uriar os seus irmãos, de
trair a própria Revolução.
Abalado pela violência das acusações, Mirabeau defendeu-se o melhor
que pôde, acabando a professar a sua devoção aos jacobinos e à
Revolução, não obstante as suas diferenças com eles na questão em causa.
Dois anos mais tarde, este tipo de diferença publicamente expressa ( espe­
cialmente em relação a Robespierre ) , será literalmente fatal. Mas
Mirabeau, aparentemente no auge dos seus poderes, passou por cima do
sucedido. O seu elevado prestígio na Assembleia não saiu beliscado.
Mirabeau fora um presidente exemplar, em Janeiro, tendo o cuidado de
ser imparcial, e a sua intervenção contra a lei da emigração significava que
ele exercia uma influência verdadeira sobre a direita monárquica . O seu
mais recente escritor de discursos e colaborador genebrino, Solomon
Reybaz, estava a revelar-se inspirado, e Mirabeau tinha a cabeça cheia de
grandes proj ectos, o mais importante dos quais era uma ambiciosa lei
sobre educação nacional que tinha preparado com Talleyrand.
Decorrido um mês, estava morto .
Passou a noite de 2 5 de Março com duas dançarinas da Ó pera mas sej a
o q u e for q u e o atacou com violentas cãibras intestinais dois dias depois,
em Argenteuil, foi mais do que um castigo por excessos sexuais.
Deslocou -se cheio de dores a Paris para defender a concessão do seu
amigo La Marck das grandes minas de carvão de Anzin, no Pas -de-Calais,
Simon Schama 1 CIDADÃOS

contra a posição de que os direitos sobre o minério pertenciam "à nação " .
Reybaz escrevera u m panegírico extraordinário à intrepidez d o empresá­
rio industrial, cheio de túneis fumegantes e milhões afundados na terra
gananciosa. D evastado pelas dores e com um péssimo aspecto, Mirabeau
chegou a casa de La Marck e caiu . Não podeis ir, disse - lhe o amigo. Devo
ir e irei, respondeu - lhe o tribuno . Fortificado com uma garrafa de Tokaj i
Esterhazy, Mirabeau conseguiu chegar à Assembleia e proferir o seu dis­
curso. Os colegas viram um Mirabeau fantasma: pálido, a escorrer suor,
com o cabelo frisado liso e escorrido pela doença. A grande voz de barí­
tono convertera - se num grunhido peitoral abafado. "O vosso caso está
ganho ", disse ele depois a La Marck " e eu estou morto . "
Não era u m exagero . Alguns dias d e descanso em Argenteuil fizeram­
-no sentir- se suficientemente melhor para regressar a Paris, e uma noite
até tentou ouvir a diva Morichelli no teatro italiano . Saiu a meio da actua­
ção, a tremer, não quis esperar num café até se encontrar uma carruagem
e seguiu cambaleante para casa . O seu médico e amigo, C abanis, deu com
ele prostrado, a tossir sangue . O mal que o afligia foi e continua a ser
obj ecto de várias interpretações. Obviamente, Fréron e outros jornalistas
inimigos de Mirabeau insinuaram que ele fora finalmente atingido por
uma doença sexual. Realizada a autópsia para investigar se tinha sido
envenenado, a causa da morte foi atribuída a uma pericardite linfática,
complicada por inflamações do fígado, dos rins e do estômago . Mas inde ­
pendentemente da causa última, Mirabeau sabia que estava a morrer e
decidiu finar- se num estilo apropriado à sua desmesurada vida . Multidões
lastimosas aglomeraram-se j unto à sua casa enquanto os visitantes se iam
sucedendo, incluindo Talleyrand, que contava deliciado a toda a gente
que acabara de ser excomungado pelo papa . " Um digno confessor", disse
um fala-barato. C onversaram durante duas horas, com os gracej os ele­
gantes e o propósito intelectual que sempre constituíra a sintaxe da sua
peculiar amizade. " Supostamente, os doentes não devem conversar, faz­
lhes mal", disse Mirabeau, " mas pode - se viver muito bem rodeado de
amigos e até morrer de forma agradável. "
Talleyrand comentará posteriormente, d e forma pouco simpática, que
Mirabeau "tinha encenado a sua própria morte " . Talvez estivesse a recor­
dar- se do comentário do amigo ao ouvir troar o canhão : "Já estão a
começar o funeral de Aquiles ? " Mas o leito de morte era para os neo­
classicistas estóicos do século XVIII uma forma de arte exemplar, cele ­
brada nas grandes telas de D avid sobre as mortes de Séneca e de Sócrates .
Mirabeau também queria partir com os s e u s assuntos e m ordem, rodeado
de amigos e acólitos, depois das despedidas adequadas. Pediu a La Marck
que levasse consigo ou queimasse quaisquer papéis comprometedores e,
ainda endividado, deixou vinte e quatro mil libras a Coco, o filho ilegítimo
que tivera de Yet- Lie.
469

Na manhã de 2 de Abril, na sala de baixo, C omps, o secretário de


Mirabeau, acometido de um acesso de melancolia romântica, apunhalou­
-se para seguir o amo. Ignorando o que se passava, Mirabeau, recostado
em grandes almofadas e com o sol primaveril a chegar do seu pátio aj ar­
dinado, disse a Cabanis que gostaria de se barbear porque, "meu amigo, é
hoj e que morro . Chegados aqui, resta -nos perfumarmo-nos, coroarmo ­
-nos com flores, envolvermo-nos em música e esperar confortavelmente
pelo sono do qual não se acorda " .

I V RITOS DE PAS SAGEM

O cadáver de Mirabeau ainda não estava frio e já nasciam lendas em


tomo do ataúde . Dizia-se que aquando da autópsia ordenada pelo procura­
dor da sua secção, o herói defunto revelara uma erecção imponente. Foi
esta prova de "satiríase" que levou o filho a caracterizar o notório apetite
erótico de Mirabeau como "involuntário" . As suas últimas palavras tinham
sido um pedido de ópio ao Dr. Cabanis para não ter mais dores mas o
público, afligido pelo pesar, necessitava de algo mais edificante. Assim
sendo, correu a notícia de que Mirabeau tinha providenciado o seu próprio
epitáfio à maneira dos estóicos: "Levo comigo a morte da monarquia. As fac­
ções devorarão os seus restos. " Estas palavras ou suas variações apareceram
em muitas das gravuras memoriais que foram apressadamente produzidas
para consolar a desolada população de Paris. Numa delas, da autoria de
Borel, o pessimismo de Mirabeau transforma-se na determinação de "com­
bater as facções, onde quer que se encontrem", um sentimento que surge
inscrito junto da sua cama, por cima de cópias da Declaração dos Direitos do
Homem e da Constituição. Enquanto a Morte se aproxima por detrás de
uma França desolada, Mirabeau aponta para uma cortina levantada pela
Verdade que revela, em segundo plano, do lado direito, uma cena horrível
de luta, com a "facção" a lançar Coroa, clero e povo num caos bélico.
Quando a notícia chegou à Assembleia Nacional, instalou-se de ime­
diato uma sensação de perda esmagadora que envolveu inclusivamente
aqueles que, como Bamave, tinham sido dos maiores inimigos de
Mirabeau. Ouviram-se soluços . B ertrand B arere propôs que a Assembleia
em peso e não apenas uma delegação assistisse ao funeral. Talleyrand
apresentou-se como última testemunha e comunicador - o necessário
Eliseu. "Ontem fui visitar o senhor de Mirabeau; havia muita gente em
casa dele e eu fui com uma tristeza ainda maior do que a da mágoa
pública . Aquela visão de desolação enchia -nos com a imagem da morte;
estava em todo o lado, excepto no espírito daquel e que se encontrava em
maior perigo . . . " Mirabeau dera-lhe o seu último discurso, uma dádiva
roubada à ladra, a Morte, o testemunho de um homem público.
S imon Scharna 1 CIDADÃOS

Infelizmente, o que se seguiu não esteve à altura deste espantoso acto


de encenação memorial. Talleyrand leu um ensaio longo e incaracteristi­
camente monótono, escrito por S olomon Reybaz, sobre as leis da herança;
a única coisa de interesse foi o facto de o tema ter estado tão presente na
mente de Mirabeau ao aproximar-se do fim. O homem que pouco antes
de morrer tinha defendido de forma apaixonada o materialismo heróico
completou a sua carreira encomendando um argumento de sentido con­
trário: a prioridade da j ustiça fraterna ( isto é, heranças iguais e inaliená­
veis) sobre o livre - arbítrio dos legados. Estava certamente a pensar na sua
deserdação .
A título excepcional, a Assembleia reuniu -se n o d i a seguinte, um
domingo, para discutir os preparativos para o funeral de Mirabeau. Das
paixões manifestadas e do sentimento geral de perda que se vivia nas ruas
em toda a França, era evidente que a Revolução, empenhada no estabe­
lecimento de princípios abstractos, ansiava profundamente por heróis que
os corporizassem. A escrita histórica moderna ( com algumas honrosas
excepções) tem-se mostrado avessa a reconhecer este facto, como se ao
fazê -lo estivesse a reconhecer a visão do século XIX da Revolução como
um produto de Grandes Vidas. Por conseguinte, a Revolução foi apresen­
tada como o resultado de forças impessoais, das fricções das estruturas
sociais e da disfunção institucional . Todavia, para os contemporâneos, a
confluência da obsessão neoromana com as exempla virtutes e a paixão
romântica pela vontade prometeica significa que nenhum evento
momentoso como a Revolução pode ser percepcionado sem a sua incar­
nação em cultos de heróis e mártires . E não havia nenhum senão no facto
de os candidatos a estes papéis exemplares terem patenteado as suas
imperfeições; não mostrara Homero toda a fragilidade humana que exis ­
tia nos deuses e nos heróis? Por conseguinte, Mirabeau, que durante os
seus quarenta e dois anos de vida exibira todos os sinais de mortalidade
comum, foi o primeiro a ser elevado às fileiras dos modernos Imortais .
Em conformidade com o culto dos patriotas-heróis que se vinha
expandindo desde a Guerra dos Sete Anos, já fora determinado que deve ­
ria existir uma "Abadia de Westminster para os Franceses " . A ideia de um
panteão é anterior à Revolução e vários projectos da década de 70 do
século XVIII enumeravam como candidatas as mesmas luminárias que
figuravam em necrologias e histórias numismáticas: Turenne, C olbert,
Lamoignon. Este monumento aos Grands Hommes distinguir-se-ia de uma
cripta de reis ao celebrar a virtude e não a linhagem, a auto-invenção e
não a tradição. Quando o marquês de Pastoret propôs a construção de um
panteão, o seu primeiro candidato óbvio, Descartes, foi representado
como um homem perseguido por reis e forçado à vida fugitiva do filósofo
independente . A prisão e os exílios de Voltaire e Rousseau enquadravam­
-se convenientemente no mesmo padrão.
471

A bela igrej a de Sainte - Genevieve, obra inacabada de Soufflot, foi


considerada adequada porque o seu neoclassicismo austero parecia pro­
jectar as virtudes associadas aos filósofos e aos estadistas patrióticos.
O arquitecto Quatremere de Quincy, que recebeu a encomenda dos tra ­
balhos, considerou a igrej a ideal precisamente por se situar no extremo
oposto da cripta gótica dos reis, em Saint-Denis, que ainda por cima fora
povoada de forma arbitrária . Tal como observou Mona Ozouf, o espaço
designado seria desprovido de associações com a morte, dado que a sua
função era celebrar a imortalidade dos heróis . S eria um espaço triunfal e
não sepulcral.
Dados os critérios em vigor, a candidatura de Mirabeau a primeiro dos
heróis revolucionários a ser sepultado no Panteão colocava toda a espécie
de dificuldades. As virtudes exemplares dos "Grands Hommes", além de
políticas ou filosóficas, deviam ser também pessoais e familiares. C ontudo,
a grande onda de lamentações que se seguiu à sua morte abafou de tal
modo qualquer manifestação de cepticismo que até Robespierre e
Barnave, para os quais os vícios de Mirabeau eram mais do que óbvios,
deram o seu apoio à proposta .
O funeral foi, pois, concebido como uma grande demonstração de
reverência patriótica que culminaria com a chegada de Mirabeau ao
Panteão. No dia 4 de Abril, cerca das seis da tarde, uma longa procissão
militar partiu da residência de Mirabeau, liderada por companhias de
Guarda Nacional a cavalo e a pé, com a infantaria com os mosquetes com
o cano virado para baixo e os tambores abafados com crepe negro . No
centro seguia uma urna de chumbo com o coração de Mirabeau - sede
das suas virtudes decretadas e soberanas: franqueza, paixão e sinceri­
dade. Atrás dos guardas nacionais que levavam o caixão, seguiam bata ­
lhões de veteranos e de crianças ( uma característica habitual deste tipo
de evento ) , representantes do município de Paris e da administração
departamental onde que Mirabeau servira, a Assembleia praticamente
em peso e, surpreendentemente, os j acobinos em massa, os quais, não
obstante a apostasia de Mirabeau, tinham decretado uma semana de luto
pelo seu ex -presidente e decidido ler todos os anos em público, no dia 2 3
de Junho, a réplica d e Mirabeau a o marquês d e D reux - B rézé . A cauda da
procissão era uma multidão gigantesca de parisienses e dos que se
tinham deslocado à cidade para estarem com o herói morto, trezentas mil
pessoas, segundo se dizia, uma maré enorme de humanidade que fluiu
pelas ruas com tochas enquanto a noite caía sobre Paris. "Parecia", escre­
veu Nicolas Ruault ao irmão, " que estávamos a entrar com ele no mundo
dos mortos . "
A procissão parou na Igrej a d e Saint-Eustache, decorada com panos
pretos, para ouvir o abade Cérruti fazer ao finado um panegírico compa ­
tível com as crenças religiosas de Mirabeau, que não eram propriamente
Simon Schama 1 CIDADÃOS

ortodoxas. O desfile prosseguiu lentamente ao som de um requiem com­


posto especialmente por Gossec para instrumentos de sopro invulgares
que tocavam notas agudas no meio da pompa convencional. O cortej o
chegou finalmente a Sainte - Genevieve por volta da meia -noite, e o cora ­
ção do orador foi depositado num catafalco ao lado da tumba do filósofo .
Alguns relatos - em palavras e imagens - deram seguimento à viagem.
Uma peça improvisada, A Chegada de Mirabeau aos Campos Elísios, levou à
cena uma gravura de Moreau le Jeune' na qual o conde era recebido por
Rousseau, coroado por Franklin e celebrado por Voltaire, Montesquieu e
Fénelon. Noutro plano, as suas virtudes foram celebradas por antecesso ­
res oratórios como D emóstenes e C ícero . Somente B rissot, no seu j ornal,
objectou contra as incessantes alusões à virtude de Mirabeau. B rissot
conhecia demasiado bem o finado para saber que ele teria riscado a pala­
vra "virtude" dos testemunhos, para " a sua tumba não ser honrada com
uma mentira" .
Mirabeau tornou-se obj ecto d e uma veneração d e massas, não s ó em
Paris mas também nas províncias . Em Reims, realizou-se uma missa fúne ­
bre, e na igrej a de Notre Dame, em Bordéus, um sarcófago para o grande
homem, com os feitos do "Hércules heróico" gravados nos lados, foi
assente sobre quatro colunas. Além de tudo isto, num contraste dramático
com a improvável beatificação de Mirabeau assistiu-se à erosão acelerada
do respeito pelo rei. A sua conivência com a viagem das tias foi apresen­
tada na imprensa patriótica como tolerância - não simpatia - da posição
do papa, cuj a denúncia oficial da Constituição C ivil fora anunciada em
Março, e que foi queimado em efígie nas ruas de Paris. Pio VI declarara ex
cathedra que a ordenação de bispos constitucionais era um sacrilégio e exi­
gira que todo e qualquer sacerdote que tivesse feito o j uramento abj urasse
num prazo de quarenta dias, sob pena de suspensão. D urante todos estes
acontecimentos, o rei esteve incaracteristicamente doente, com febres
altas e espasmos de tosse com sangue . C ismando desalentado sobre o con­
sentimento que dera à lei que impunha o juramento, dado na véspera de
Natal de 1 7 90, Luís XVI arrependeu-se da apostasia. O seu capelão, que
tinha feito o j uramento, foi substituído pelo pio padre Hébert, e o rei deci­
diu furtar-se a receber a comunhão de um padre constitucional. C om a
Semana Santa à porta, a melhor solução parecia ser viajar para S aint­
- C loud, onde poderia fazer as suas devoções longe do furioso anticlerica­
lismo dos parisienses.
Esta opção impunha -se de sobremaneira porque na Primavera de
1 7 9 1 o ambiente que se vivia na capital não era de todo benigna.
Multidões furiosas, frequentemente mobilizadas pelas sociedades popu­
lares, protestavam contra a falta de trabalho e denunciavam traidores

5 Jean-Michel Moreau. ( N. do T. )
473

contra- revolucionários que diziam ter desmascarado. Houve ameaças


sucessivas de encerramento das obras públicas assistenciais, que pagavam
vinte soldos por dia a quase trinta mil homens e mulheres. No dia do
"caso dos punhais ", nas Tulherias, uma multidão de trabalhadores da cer­
vej aria de Santerre tentara marchar sobre o C astelo de Vincennes, que
diziam estar a ser transformado numa nova Bastilha. Vários foram detidos
e severamente punidos mas as desordens prosseguiram com uma vaga de
greves de protesto contra os baixos salários, convocadas pelos artesãos jor­
naleiros mais organizados, os ferradores, os carpinteiros e os chapeleiros.
Estes diversos sentimentos - fome, pobreza, raiva anticlerical e para­
nóia patriótica - convergiram no dia 1 8 de Abril, segunda- feira da Semana
Santa, quando correu pelas secções a notícia de que o rei e a rainha esta­
vam de partida para Saint- C loud. No dia anterior, o Clube dos Cordeliers
tinha publicado uma resolução declarando que ao desrespeitar a
Constituição C ivil o rei traíra o seu título de "Restaurador da Liberdade
Francesa" e recordando o soberano de que na sua qualidade de "primeiro
funcionário do Estado" também era o "primeiro súbdito da Lei " . Com o
seu exemplo, dizia- se, tinha autorizado a rebelião e estava "a preparar
para a nação francesa todos os horrores da discórdia e o flagelo da guerra
civil" . E na altura da doença do rei, o jornal de Fréron referira-se à expres­
são oficial de preocupação da Assembleia como "mil e duzentos legislado­
res a macularem a sua dignidade de homens e representantes da nação
francesa ao entrarem em transe durante oito dias por causa do estado da
urina e das fezes do rei, ao ponto de se prostrarem perante a sua retrete
como se fosse o mais resplandecente dos trono s " .
Quando o rei e a rainha tentaram chegar à carruagem, nas portas do
palácio, deram com o caminho bloqueado por uma multidão numerosa e
irada. Maria Antonieta propôs que utilizassem uma berlinda que podia ser
aparelhada dentro do pátio e escoltada por guardas nacionais comandados
por Lafayette. C ontudo, quando o general aceitou abrir caminho pela mul­
tidão, os seus homens negaram-se a obedecer e - a exemplo do que suce­
dera na manhã de 5 de Outubro de 1 789 -começaram a ameaçá-lo
directamente. De nada serviram as arengas. Durante quase duas horas, o rei
e a rainha ficaram sentados na carruagem, debaixo de uma chuva de insul­
tos . Para a multidão e para os soldados, não passavam do monstro híbrido
da gravura "Os dois são um", que mostrava um homem-bode cornudo ( e
encornado) num lado e uma mulher-hiena emplumada n o outro. Quando
o rei tentou proferir um pequeno discurso, expressando a sua surpresa por
"aquele que deu à nação francesa a liberdade não deve ver negada a sua",
um granadeiro da Guarda retorquiu, "Veto" . Outro disse-lhe que ele era um
porco gordo cujo apetite custava ao povo vinte e cinco milhões de libras
francesas por ano. A rainha, encostada a um dos lados da carruagem, cho ­
rava lágrimas de humilhação e medo. O terror deu gradualmente lugar à
Simon Schama 1 CIDADÃOS

dej ecção e, por fim, à resignação . Lafayette compreendeu que não havia
alternativa à humilhação. O s cavalos recuaram e Luís XVI e Maria
Antonieta regressaram aos seus aposentos no palácio, amargamente cien -
tes de que, mais do que nunca, eram cativos . No dia seguinte, o rei reite ­
rou à Assembleia Nacional a exigência de que fosse honrado o seu direito
legal a deslocar- se num raio de trinta quilómetros da capital. No mesmo
dia, o jornal de B rissot publicou uma recensão laudatória da obra de um
certo Louis La Vicomterie, intitulada Les Crimes des Rois de France depuis
Clovis jusqu 'à Louis XVI.
É esta experiência aterradora que, segundo ele próprio explicará, leva
Luís XVI a optar por um plano de fuga mais drástico . A morte de
Mirabeau eliminou a única figura cuj a capacidade de persuasão e inteli­
gência poderiam ter possibilitado uma monarquia constitucional genuína .
A consciência pesada do rei por causa da questão religiosa e os seus cres­
centes receios pela segurança física da família empurram-no para os pla ­
nos secretos de fuga que são desde há muito o meio escolhido por Maria
Antonieta para libertar a monarquia da sua situação aflitiva. Foi aconse­
lhada neste sentido por uma sucessão de pessoas, principalmente o ex­
-ministro B reteuiL refugiado na Suíça . D o seu exílio em Londres,
C alonne, que assl.).miu uma espécie de liderança activa da contra-revolu­
ção, também é da op �nião de que essa será a melhor estratégia . Mp.is
importante ainda, o primo de Lafayette, o marquês de B ouillé, coman­
dante militar de Metz, informou que numa guarnição de fronteira será
possível reunir tropas suficientes para garantir a protecção dos fugitivos.
Em Agosto, Bouillé reagiu com a máxima severidade a um motim do
Regimento S uíço de Châteauvieux, da guarnição de Nancy, a última de
uma sucessão de insurreições por causa do soldo e do direito à confrater­
nização. Dado que os soldados se encontravam sob uma jurisdição militar
especial, as sentenças foram draconianas . Um soldado sofreu o suplício da
roda, vinte foram enforcados e quarenta e um condenados perpetua ­
mente às galés. Maria Antonieta viu n o sucedido u m a prova segura de
que o marquês era de confiança .
A cidade escolhida é Montmédy, na fronteira com a Holanda aus­
tríaca, onde quatro regimentos alemães e dois suíços do exército real
garantirão a protecção adequada para o rei erguer a sua bandeira . É a
fronteira mais próxima de Paris, a quase trezentos quilómetros - talvez
dois dias de viagem a bom ritmo . No outro lado da fronteira, o irmão da
rainha, o imperador Leopoldo, poderá postar forças militares suficientes
para dissuadir qualquer tentativa de captura ou até para restaurar a auto­
ridade do rei como os granadeiros prussianos restauraram o príncipe
Guilherme V em Haia, em 1 7 8 7 . O coordenador do plano de fuga é Axel
Fersen, um oficial do regimento sueco do exército francês, devoto apai ­
xonado da rainha e cada vez mais angustiado pela situação aflitiva da
475

família real . Gastaram-se resmas e resmas de papel para descobrir se


Fersen e Maria Antonieta eram ou não amantes, provocando a lascívia
dos detractores e a indignação dos defensores da rainha . Tendo em conta
o comportamento e o aspecto dramaticamente mais sombrios da rainha
neste período e a sua suj eição a uma vigilância constante, uma ligação
sexual parece muitíssimo improvável, mas também não é esta a questão.
Em conformidade com a cultura da devoção sentimental, a paixão de
Fersen era de um tipo no qual os sentimentos cavalheirescos se sobrepu­
nham à ambição erótica . O que ele queria era liberdade e dignidade para
a mulher ferida. "Ela é um anj o e eu tento consolá-la o melhor que
posso", escreveu ele. Uma das maneiras, ao que parece, era comprando­
-lhe caixas e caixas de macias luvas suecas de pele de bezerro impregna ­
das de essência de rosas.
O sucesso da fuga exigia um planeamento cuidado e sorte. Contudo,
os planos foram mal concebidos e a Fortuna virou a cara para o lado .
Fersen aconselhou sensatamente a utilização de coches ligeiros e rápidos,
com o rei e a rainha a viaj arem separados, mas os monarcas insistiram
numa espaçosa berlinda, capaz de levar toda a família - que não fará mais
de quinze quilómetros por hora . Já que a Revolução está a reduzi-los a
cidadãos comuns, não será apropriado que viaj em trocando de papéis com
os seus serviçais? A governanta real, Madame de Tourzel, fará de "baro­
nesa Korff", nome no qual serão emitidos passaportes em Frankfurt; a rai­
nha, com um ar convincentemente empertigado no seu sóbrio casaco
preto, será a governanta das crianças (o delfim irá vestido de menina e
dará pelo nome encantador de Aglaé ) ; Madame Elisabeth, a irmã do rei,
de chapéu na cabeça, fará de enfermeira; finalmente, o rei, de chapéu
redondo, peruca e casaco modesto, será o criado " Durand " . Por volta da
meia -noite do dia 2 0 de Junho, o monarca sai do palácio e passa pelos
guardas, que o confundem com o chevalier de C oigny, que desde há algu ­
mas semanas se veste exactamente assim vem exercendo o seu direito de
entrar e sair do palácio à vontade. Maria Antonieta parte pouco depois,
por uma passagem pouco iluminada e sem guardas, mas quase que dá de
caras com Lafayette, que faz a sua ronda habitual de carruagem para veri­
ficar a segurança do palácio . A rainha vira -se rapidamente e encosta o
rosto à parede para não ser reconhecida . Depois, perde-se nas ruelas escu ­
ras em redor das Tulherias e leva meia hora para dar com a carruagem e
com os seus ansiosos passageiros.
À s duas horas, numa cooperante noite sem luar, o coche sai pela
porta de Saint -Martin e ruma a nordeste . Fora da barreira, Fersen apa­
rece com a berlinda e põe-se ao lado da carruagem, de modo que os pas­
sageiros se transfiram sem ser necessário parar os veículos. O primeiro
coche é deixado para trás e o segundo é atrelado com seis rápidos cavalos
da posta . Fersen conduz o coche durante a primeira etapa da viagem e
Simon Schama 1 CIDADÃOS

implora ao rei que o deixe continuar mas este tem pelo menos a noção de
que não seria próprio para o rei dos Franceses ser conduzido à fronteira
por um soldado estrangeiro . Fersen desaparece na noite depois de pro ­
meter encontrar-se com o grupo em B ruxelas.
De madrugada, a família começa a descontrair- se. As remontas decor­
rem conforme o previsto. As criadas da rainha j untam-se -lhe em Claye,
num pequeno cabriolé . A berlinda preta e verde com rodas amarelas, car­
regadíssima e a deslocar- se a alta velocidade, não suscita quaisquer sus­
peitas. Em Meaux, a trinta e cinco quilómetros de Paris, os viaj antes
batem-se com um pequeno-almoço de boeuf à la mode com ervilhas e
galantina de cenouras, e começam a sentir-se livres. "Assim que tiver o
traseiro sentado numa sela sentir-me-ei um homem novo ", diz o rei, reto­
mando o tom coloquial que estava habituado a usar em Versalhes, e um
sinal ainda mais óbvio do seu regresso à boa forma é o modo obsessivo
como segue a viagem num mapa preparado para o efeito. As casinhas que
se vêem na paisagem plana e pouco próspera do Mame ficam para trás.
Numa estação de posta, perto de Châlons, comem um consommé feito pela
mulher do chefe da estação; este reconhece o rei mas remete -se a um
silêncio gratificantemente devoto .
Pouco depois, quando atravessam velozes ( isto é, a uns quinze quilóme­
tros por hora ) uma ponte, uma roda bate num pilar; os tirantes partem-se
e os cavalos caem. É necessária meia hora para endireitar a carruagem, o
que, somado às demoras anteriores, deixa a berlinda muito atrasada para o
encontro com a escolta militar que deverá conduzi-la a Montmédy. B ouillé
deu instruções ao j ovem duque de Choiseul para fornecer uma escolta mili­
tar quando a carruagem chegar a Pont de Somme -Vesle; será a primeira de
uma série de escoltas que acompanhará a família real até Montmédy.
Porém, a chegada inesperada de um esquadrão a Pont de Somme-Vesle sus­
cita nos habitantes o receio de que os soldados se destinem a aj udar à
cobrança de impostos e grupos de aldeões e camponeses começam a j untar­
-se em força para resistir. Enquanto espera nervosamente por um coche que
não chega, Choiseul garante aos populares que os guardas são para escoltar
um "tesouro " para a vila de Sainte-Menehould. Às quatro e trinta da tarde,
o grupo leva já com duas horas de atraso e Choiseul acaba por se conven­
cer de que o plano se gorou. Outra figura que o acompanha na espera, apa­
rentemente indispensável para a rainha, é o cabeleireiro Léonard, um
veterano da época dourada de Madame Vigée-Lebrun e de Rose Bertin.
Choiseul dá a Léonard uma missiva para os oficiais das outras escoltas,
informando-os de que algo correu mal e de que ele vai regressar para j unto
de Bouillé. Depois de esperar mais uma hora, conduz os seus homens para
a floresta do Argonne, onde rapidamente se perdem.
A partir desta altura, a coordenação da viagem, que é crucial, vai por
água abaixo. A notícia da fuga do rei chega a Sainte -Menehould antes do
477

Montmédy
A Última Etapa da Viagem para Varennes

C H A M P A G N E

t
N
Chegada: 21 h�m

1 L O R

coche real e a Guarda Nacional local desarma à força um grupo de dragões,


desconfiando de que são cúmplices dos fugitivos. O chefe da estação de
posta, Drouet, viu a rainha quando serviu na cavalaria, e com a fuga da
família real tema de todas as conversas na vila não é preciso muito para se
convencer da identidade dos passageiros. Quando examina o rosto do
robusto "criado" sentado no canto do coche e o compara com a imagem do
rei impressa numa nota de vinte e cinco libras, fica com a certeza absoluta .
Sem nenhum dos soldados prometidos à vista e com os olhares dos
chefes das estações de posta cada vez mais interrogativos e antipáticos, o
rei lembra -se amargamente de que o dia 2 1 de Junho é o mais longo do
ano, negando aos viaj antes o anonimato da noite . Mas há mais proble ­
m a s . Em Varennes, apenas a sessenta quilómetros de Montmédy,
Rohring, o capitão da escolta militar - tinha dezoito anos de idade -, ao
ver- se confrontado com a impaciência e a frustração dos seus soldados,
dá- lhes autorização para procurarem dormida . Cerca das dez e meia,
recebe ordens para os reunir, mas revela -se impossível tirar os homens das
tabernas e casas onde procuraram dormida e outros confortos.
Quando Luís XVI chega a Varennes em busca de cavalos frescos e da
fugaz escolta, j á foi ultrapassado pelo chefe da posta, o qual, enquanto
ex- dragão, cavalgou a toda a brida por uma estrada secundária. Foi dado
o alerta geral e, na ausência do presidente da câmara, o coche é man­
dado parar pelo procureur da terra, Monsieur Sauce. O s documentos são
examinados e parecem em ordem. O que faz Sauce mudar de ideias é a
insistência de D rouet de que se trata do rei e da rainha e de que deixá-los
Simon Schama 1 CIDADÃOS

seguir viagem equivale a um acto de traição. A cidade está acordada, com


as ruas empedradas cheias de multidões com tochas e soldados com mos­
quetes . Sauce conduz os viaj antes para sua casa, onde vende velas e pro ­
visões. É -lhes dado um quarto no primeiro andar e as crianças, exaustas,
são postas a dormir. Por volta da meia-noite, é conduzido à presença do
grupo um j uiz de paz, Monsieur Destez, que outrora residiu em
Versalhes. E spantado e avassalado pela presença do rei, o velhote aj oe­
lha -se instintivamente. "Eh bien ", responde Luís XVI, "sou efectivamente
o vosso rei" .
Terá sido u m reflexo condicionado? U m súbdito - mais d o que um
cidadão - dobrou o j oelho e provocou involuntariamente as palavras
fatais.
Paris foi tomada de consternação perante a descoberta da fuga do rei e
da rainha. "Daqui a vinte e quatro horas, o reino poderá estar em chamas
e o inimigo à nossa porta", exclama Charles de Lameth. Lafayette era a
pessoa imediatamente responsável pela guarda dos monarcas e Luís XVI, a
salvo no coche, zombou da situação em que se encontraria o seu guardião .
Nos Jacobinos, Danton e Robespierre aproveitam a ocasião para responsa­
bilizar o general e insinuar que ele foi cúmplice da fuga. "Monsieur
Lafayette", ameaça Robespierre, "terá de responder com a cabeça perante
a Assembleia pelo destino do rei . "
Quando a notícia chega à Assembleia, recorre- se à ficção d e u m rapto
por indivíduos mal-intencionados para evitar uma explosão de republica­
nismo . Todavia, a imprensa afecta aos jacobinos e aos cordeliers, que desde
há alguns dias antes da fuga vem dando conta de movimentações invulga­
res de tropas e armas nas fronteiras norte e oriental, explode numa indig­
nação desdenhosa. O jornal de Fréron é típico ao ver no acontecimento a
mão de um infernal comité austríaco presidido pela rainha, com Lafayette
por cúmplice e o rei como instrumento patético dos seus desígnios.

Desapareceu este rei imbecil, este rei perj uro, esta rainha velhaca que com­
bina a luxúria de Messalina com a sanguinolência dos Médicis. Mulher
execrável, Fúria da França, tu és a alma da conspiração!

Multidões raivosas correm as ruas de Paris apagando ou destruindo


tabuletas de lojas e estalagens que ostentavam o nome do rei. Os notários
retiram apressadamente os letreiros com a flor-de-lis que anunciam a sua
profissão. Alguém coloca nos portões do Palácio das Tulherias um cartaz
que onde se lê "Maison à louer" ( Casa para arrendar) . No entanto, a reac­
ção mais reveladora é a dos políticos relativamente moderados, cuja fé
numa monarquia constitucional activa e viável se vê irremediavelmente
comprometida. C ondorcet, por exemplo, converte-se de imediato ao
republicanismo, até então a coutada dos mais fanáticos dos cordeliers, e
479

discute com B rissot e Tom Paine planos para fundar um j ornal destinado
a empreender uma campanha agressiva a favor do fim da monarquia. O
cidadão Ferrieres - que não é nenhum militante -, ao escrever à mulher,
soa pela primeira vez como um acusador revolucionário, distanciando-se
enquanto C idadão Ferrieres dos "aristocratas" .

Aqui nos trouxeram, m a bonne amie, a s intrigas e a s conspiraçõezinhas dos


irresponsáveis e culpados Aristocratas . Abusaram da fraqueza do Rei para
o aconselharem a empreender um feito tão pernicioso; em nome dos seus
interesses egoístas e da vingança do seu orgulho, não recearam expor a
pátria aos horrores de uma guerra civil assassina, o Rei que dizem amar à
perda da sua coroa e a sua família a consequências terríveis. Foram desfei­
teados, como sempre serão, e os seus esforços criminosos cair-lhes-ão sobre
a cabeça . Não me queixo, merecem o seu destino. Mas o Rei ! Que humi­
lhação! A Rainha ! A Rainha que, ao que parece, Deus, na sua fúria, deu à
França !

Maria Antonieta e o marido são efectivamente obrigados a esvaziar um


cálice amargo. C onfinados ao quarto do procurador comerciante de velas,
são confrontados, ao alvorecer, por dois correios da Assembleia Nacional
que exigem o seu regresso a Paris. A rainha considera a exigência uma
insolência, o rei anuncia: "j á não existe rei de França " . Partem de
Varennes rodeados por seis mil guardas nacionais e cidadãos armados,
suficientes para o rei descartar qualquer sugestão no sentido de as tropas
de B ouillé o libertarem pela força. Apenas se verifica um gesto patético
quando o conde du Val de Dampierre, tomado de fervor lealista, tenta
cavalgar até j unto do coche e saudar o rei. Quase sem oferecer resistên­
cia, é arrastado pela guarda e morto à machadada por uma turba de cam­
poneses dos quais fora um senhor notoriamente insensível.
Tal como as deslocações involuntárias para Paris, em Julho e Outubro
de 1 789, o abj ecto cortej o de 1 79 1 significa a aniquilação da mística real.
Em Versalhes, a hierarquia da corte definira-se através de convenções rígi­
das que regulamentavam a proximidade física com as pessoas do rei e da
rainha, aplicadas diariamente nos rituais do " lever" e do "coucher" . Estes
tabus são ignorados com indiferença em É pernay, quando dois represen­
tantes da Assembleia, Jérôme Pétion e B arnave, sobem para o coche e se
sentam, sem pedirem autorização, entre o rei e a rainha . Quando os
monarcas comem, os dois homens comem; quando Pétion precisa de se
aliviar, o coche pára. Barnave põe o delfim a mostrar que sabe ler
levando - o a repetir bem alto o lema da moda, gravado nos seus botões:
"Viver Livre ou Morrer". Pétion, na sua vaidade, até imagina (pelo menos,
assim escreverá nas suas memórias ) que Madame Elisabeth ficou tão apai­
xonada por que se encosta a ele de forma insistente . Por outro lado, o "ar
Simon Schama 1 CIDADÃOS

de simplicidade e sentimento familiar" que encontra na família real sur­


preende - o e agrada -lhe.
Enquanto o coche avança a caminho do cativeiro, as novas relativas à
fuga correm o país . D emorando as notícias três ou quatro dias a chegar
aos cantos mais longínquos da França, verificam-se casos de pânico, em
especial nas fronteiras . Em Bayonne, corre o boato de que está iminente
uma invasão espanhola; na costa bretã, postam-se homens de sentinela à
espreita de uma esquadra britânica de quarenta navios que transporta um
exército de cinco mil emigrados. Em Metz, que não ficava muito longe de
Varennes, mesmo depois de ser recebida a notícia da captura do rei, os
jacobinos emitem uma proclamação chamando os cidadãos às armas :
"D efendei os vossos lares, contai apenas com os vossos irmãos ! "
Espalham-se rumores de que Varennes foi devastada pelos soldados aus­
tríacos em retaliação pela detenção do rei.
O medo encontra escape numa explosão de gravuras satíricas desde­
nhosas, muitas das quais versam a fama de glutão do rei. Algumas mos­
tram-no a ser detido ao j antar por guardas nacionais enfurecidos . Uma das
primeiras produções nesta veia, bastante reminiscente das sátiras inglesas,
mostra o monarca a atacar um assado quando chega o decreto para a sua
detenção. " Quero lá saber disso", responde ele, "deixem-me comer em
paz" . Maria Antonieta, admirando -se ao espelho, implora ao marido,
"Meu caro Luís, não haveis já dado conta de dois perus e seis garrafas de
vinho? Sabeis que temos de j antar em Montmédy" . O delfim é felicitado
pelos seus esforços no penico e na parede vê-se uma gravura da Tomada
da Bastilha ao lado de uma proclamação real virada do avesso.
À medida que a carruagem se aproxima de Paris, o ambiente no inte ­
rior torna -se lúgubre . Nos arredores da cidade, algumas mulheres invec­
tivam a rainha . Em Paris, ao contrário das chegadas de 1 789, não há
o mínimo simulacro de que se trata de uma entrada real na cidade.
O público foi instruído pela Assembleia a demonstrar um desrespeito con­
tido. " Quem aplaudir o rei será espancado", lê -se num cartaz afixado por
toda a parte; "quem o insultar será enforcado" . Os jacobinos recomenda ­
ram aos cidadãos que, em sinal de desagrado, não tirassem os chapéus à
passagem da carruagem. Nas ruas, os guardas nacionais cruzam os mos­
quetes no ar em atitudes de desafio. Até Lafayette se vê obrigado ( tanto
para segurança do rei como sua) a admoestar publicamente o rei de que
se ele separar a sua causa da do povo a primeira lealdade de Lafayette será
para com a causa popular. " É verdade que haveis seguido os vossos prin­
cípios", responde o soberano, e confessa, com bastante embaraço, que só
com aquela viagem penitencial através da França compreendeu a enorme
aceitação que tinham esses princípios.
Devolvida a família real a Paris, a Assembleia fica sem saber como rea­
gir à tentativa de fuga. Ao ter deixado para trás uma longa declaração que
481

foi publicada em todos os j ornais, o monarca impossibilitou a manuten­


ção da história do " rapto " . O documento é uma mistura singular de inte ­
ligência e falta de tacto . A maior parte é uma crítica lúcida às restrições
impostas à monarquia pelos decretos da Assembleia, ecoando, em
grande medida, os receios de Mirabeau, que passaram a ser partilhados
por B arnave, D uport e os Lameths. Em parágrafos de um raciocínio
impressionante, o rei coloca a questão da natureza problemática do
lugar do monarca num sistema que lhe atribui um papel constitucional
mas que na realidade o priva de todo e qualquer poder. C omo se poderá
afirmar que os magistrados administram a j u stiça em nome do rei se ele
não é parte na sua nomeação ou confirmação e quando o poder régio de
comutar sentenças e conceder clemência lhe foi retirado? C omo será
possível pretender que a França é representada no estrangeiro pelos
seus servos quando ele não tem voz na confirmação dos embaixadores
nem na negociação ou conclusão dos tratados de paz? C omo poderá
haver disciplina no exército quando se deixa os clubes purgar ou apro­
var os oficiais com base num índice de ortodoxia política - como pre ­
tendem os jacobinos? C omo, de facto, é sequer possível ter um E stado
"do tamanho e com a população da França " governado com coerência
com administrações reféns da volubilidade e da histeria das opiniões da
imprensa e dos clubes?
Todas estas questões são perfeitamente legítimas e reveladoras. C omo
o próprio monarca observa, vêm ocupando de forma crescente a mente
dos "homens sábios" da Assembleia, mas ele viu esses mesmos homens
( homens como Mounier e, posteriormente, Sieyes) cair em descrédito. Os
inimigos de Mirabeau, Duport, B arnave e os Lameths - e posteriormente
até os girondinos - seguirão pelo mesmo caminho. Nada valida mais a
substância da declaração de Luís XVI do que o facto de Robespierre e o
Comité de Salvação Pública chegarem exactamente à mesma conclusão e
decidirem restabelecer a autoridade do E stado esmagando a opinião
pública e a política de clubes em finais de 1 79 3 .
Mas infelizmente, a declaração d e Luís XVI está igualmente tingida da
sua petulância característica. O rei volta a mencionar a intimidação física
que sofreu em 1 789, o que torna evidente que todas as suas garantias de
devoção ao povo de Paris apenas foram feitas por obrigação e pela neces­
sidade de salvaguardar a vida dos seus familiares. Queixa -se de que os
vinte e cinco milhões que lhe foram atribuídos através da lista civil não
são suficientes para "sustentar a honra da França " e que os aloj amentos
das Tulherias que lhe foram destinados em Outubro de 1 789 são muito
inferiores ao que a C asa real tem o direito de esperar ou daquilo a que está
acostumada. Luís XVI pergunta aos Franceses se desej am verdadeira ­
mente que "a anarquia e o despotismo dos clubes" substituam "um
governo monárquico sob o qual a França prospera há mil e quatrocentos
Simon Schama 1 CIDADÃOS

anos", mas ele próprio tornou a anarquia mais provável ao proibir os


ministros de assinarem qualquer decreto na sua ausência.
Mais do que qualquer coisa no texto da declaração, o modo como foi
dada a conhecer - por um rei ausente a caminho da fronteira - torna
impossível levá-la a sério. Mas a maioria dos deputados não sabe qual
deverá ser a resposta apropriada. No dia 22, os cordeliers emitem uma decla­
ração característica, exigindo aos seus membros que façam um voto solene
de "tiranicídio" contra quaisquer ameaças internas ou externas à liberdade,
" sej am quais forem" . D anton, que declarou que Lafayette devia ser um
traidor ou um imbecil para deixar a fuga concretizar-se, aplica os mesmos
objectivos ao rei mas colhe muito poucos apoios para a sua proposta de
substituir sumariamente o monarca por um conselho executivo escolhido
por representantes especialmente eleitos. Condorcet publica no Moniteur a
tradução de uma declaração escrita por Tom Paine argumentando que a
ausência de "Luís C apeto" já instituiu efectivamente a república mas Sieyes
refuta -a contra-argumentando que os homens são mais livres numa
monarquia porque "os reis eram necessários para nos salvar do perigo dos
amos" . Até Robespierre foge à questão declarando que a constituição já dá
à França o melhor de dois mundos, "uma República com um monarca " .
Mas mesmo neste momento, o d e maior descrédito n a carreira de
Luís XVI, a maioria dos franceses agarra -se à possibilidade de a sua deser­
ção ter sido obra de um " comité austríaco " . Quando Bouillé, do outro lado
da fronteira, emite uma proclamação ameaçando com consequências ter­
ríveis caso aconteça algum mal ao rei, parece confirmada a tese da cons­
piração. S ej a como for, tal como Marcel Reinhard demonstrou, as
exigências de uma república em petições à C onstituinte ( oriundas de todo
o país ) foram relativamente raras.
Quais são as outras opções? Talvez se possa depor o rei, em benefício
do delfim, e instaurar uma regência? Cheirando uma oportunidade, o
" S enhor Orleães", como agora gosta se ser chamado, regressa a Paris e,
assessorado pelo escritor Choderlos de Lados, procura inclusivamente
entrar para os j a cobinos para dar provas do seu fervor revolucionário.
Mas o orléanismo j á é uma coisa do passado como alternativa viável aos
Bombons. Além do mais, receia-se que a deposição de Luís XVI possa
conduzir a uma guerra com a Á ustria, algo que a maioria existente na
Assembleia ainda está desej osa de evitar. Em meados de Julho, o papel
do rei no governo é declarado " suspenso" até a Assembleia concluir os
seus trabalhos sobre a constituição . O proj ecto constitucional será
depois apresentado ao monarca para um simples sim ou não. Todavia,
enquanto elemento vivo do corpo político, Luís XVI tornou-se redun­
dante. C ondorcet, que detesta a hipocrisia de preservar uma espécie de
monarquia mumificada quando a sua verdadeira razão de ser j á não
existe, publica uma sátira mordaz na qual um rei-marioneta é construído
483

para fazer todos os gestos da realeza - vetos e outros que tais - enquanto
o verdadeiro poder está nas mãos dos que manipulam os fios .

O percurso do absolutismo sacerdotal ao descarte constitucional torna­


-se de sobremaneira enfático devido a um trajecto em sentido oposto que
tem lugar duas semanas depois do regresso da família real a Paris. Em
Novembro de 1 7 90, outro marquês revolucionário, Charles de La Villette,
em cuj a casa Voltaire falecera, proferiu um discurso nos Jacobinos defen­
dendo que os restos mortais do filósofo deviam receber um reconheci­
mento nacional. O problema era agudo porque a Abadia de Sellieres, onde
Voltaire fora sepultado, estava prestes a ir a leilão. "Ireis permitir que esta
preciosa relíquia se torne propriedade de um indivíduo?", perguntou
retoricamente La Villette . "Ireis permitir a sua venda como tantos outros
biens nationaux? " (O eufemismo de Talleyrand para os bens da Igrej a ven­
didos em benefício do E stado . )
L a Villette fora u m dos principais promotores d o projecto d o Panteão e
a Constituinte comungava do seu apreço por Voltaire - "a gloriosa
Revolução foi o fruto dos seus labore s " . Por conseguinte, a Assembleia
concordou que os restos mortais de Voltaire regressassem a Paris para
serem depositados no monumento aos "Grands Hommes". O momento é
particularmente adequado . A Primavera de 1 79 1 assistiu ao nascimento
de uma espécie de culto de Voltaire . Talma representa Bruto à maneira
antiga e até acrescenta uma cena que replica com exactidão o grande qua­
dro histórico pintado por D avid em 1 7 89, com o actor sentado a cismar à
sombra da "Mãe " Roma enquanto os cadáveres dos filhos - conspiradores
monárquicos -, executados às suas ordens, são trazidos numa liteira . No
dia 22 de Junho, nos Cordeliers, aquando do juramento de tiranicídio,
proferiram-se discursos que se referiram especificamente a um momento
anterior da história de B ruto, quando a notícia da violação de Lucrécia
pelos filhos de Tarquínio é levada ao cônsul e ele j ura "pelo casto punhal
exterminar a raça de Tarquínio " . Quando o rei ignóbil tenta regressar a
Roma, as portas fecham -se-lhe na cara . " Que grandeza, que dignidade",
comenta Fréron . "Franceses, porque não há nenhum B rut� entre vós?"
A apoteose de Voltaire, no dia 1 1 de Julho, é intencionalmente ence­
nada para sublinhar as suas virtudes " romanas" a expensas de uma
monarquia desacreditada. Fréron, cuj o pai Voltaire detestara e que mere ­
cera do filósofo o memorável comentário, "uma cobra mordeu Fréron; a
cobra morreu", permite -se uma única referência ao "filósofo irascível" e
fica encantado com a natureza complexamente antiga do memorial .
O cadáver é transportado de Romilly-sur- S eine numa simples carroça
decorada com um tecido azul e recebido, em cada etapa, por dignitários e
funcionários cívicos. É escoltado por guardas nacionais dos arredores de
Paris até às ruínas da Bastilha, onde o filósofo pode contemplar sorridente
Simon Schama 1 CIDADÃOS

a sua vitória sobre a fortaleza onde foi por duas vezes encarcerado.
Mensagem: ele perseverou enquanto as pedras caíram ! O caixão é colo­
cado atrás de uma barreira de álamos e ciprestes e fica guardado em alter­
nância por guardas nacionais e moças vestidas à ! 'antique com túnicas
brancas .
Para a procissão até ao Panteão, um pequeno comité q u e incluía
Quatremere de Quincy e Jacques- Louis D avid desenhou um carro monu ­
mental, da altura de uma casa de dois andares. As rodas foram fundidas
em bronze, de acordo com os modelos romanos . O sarcófago é de porfírio
imperial e está assente numa plataforma com três níveis. Voltaire repousa
num sofá antigo, a dormir, com a expressão benigna tornada famosa pelas
réplicas dos bustos criados por Houdon. Tem ao lado uma lira partida e
atrás do coxim a figura da Eternidade coloca -lhe uma coroa de estrelas na
cabeça . Nos cantos do catafalco vêem-se figuras sentadas, representando
génios, com expressões de luto, com as tochas viradas para baixo . Nos
quatro lados estão gravadas excertos das obras de Voltaire, incluindo uma
de Bruto: " Ó deuses, dêem-nos a morte antes que a escravatura. " O carro
é puxado por quatro cavalos brancos aj aezados com a tricolor.
O cortej o inclui os actores do costume - jacobinos, deputados, repre ­
sentantes da C omuna, guardas nacionais - mas foi tornado muito mais
interessante através da inclusão de representações das obras e da vida de
Voltaire . O vigésimo terceiro modelo da Bastilha feito por Palloy com as
suas pedras recebeu um lugar de destaque e um grupo de homens tra­
jando à romana transporta como troféus de glória edições de todas as
obras de Voltaire. Actores da trupe de Talma representam a família de
Jean C alas, o protestante executado por ter alegadamente morto o filho e
cuj a prova de inocência fora a grande cause célebre de Voltaire . Os cidadãos
do bairro de Saint-Antoine ostentam bandeiras pintadas com os rostos de
outros ilustres de calibre semelhante : Franklin, Rousseau e Mirabeau.
C omo costuma acontecer em Julho, em Paris, chove, mas cem mil pes­
soas aparecem para ver o cortej o percorrer uma série de " estações" até ao
Panteão, parando nos lugares dos triunfos de Voltaire : na Ó pera, onde
várias actrizes cantam um hino especial composto por Gossec e C hénier;
no Théâtre -Français, onde é cantada a ária de Sansão que insta as gentes :
"despertai, quebrai a s vossas grilhetas, ascendei para a vossa grandeza de
antigamente " . Voltaire demora sete horas, das três da tarde às dez da
noite, para chegar ao Panteão e tornar- se o terceiro elemento de uma
estranha trindade. No entanto, em muitos aspectos, o velho newtoniano
é um companheiro mais adequado para Mirabeau do que para Descartes .
Disse-se q u e quando a imensa procissão atravessou a Pont-Royal,
Luís XVI estava a observar furtivamente de uma j anela superior. Na
imprensa popular e, em especial, nas estampas, é feita a ligação entre a
desgraça do rei e a apoteose do filósofo. Num exemplo típico do género, a
485

figura alegórica da Fama saúda a "panteonização" de Voltaire ( em


segundo plano ) do modo habitual mas a salva para o monarca em queda
é completamente diferente : a odiosa comparação é plasmada em todos os
pormenores da gravura, com a imortalidade de Voltaire a ser contrastada
com a trôpega mortalidade do "Faux Pas" - uma referência à fuga abor­
tada para Varennes -, reforçada pelo lema, retirado de uma das peças do
filósofo, "Um rei é apenas um homem com um título augusto; primeiro
súbdito da lei, é obrigado a ser j usto . " Aos pés dos respectivos pedestais,
vêem-se uma lira e um viçoso amontoado de ervas daninhas e cardas.
Esta comparação nada lisonj eira não foi a intenção dos organizadores
da "festa de Voltaire " . E stavam mais interessados em embotar do que em
acerar a agitação em prol de uma democracia republicana que estava a
verificar-se nas sociedades populares. No dia 9 de Maio, fora promulgado
um decreto proibindo toda e qualquer petição com "assinaturas colecti­
vas " . Juntamente com a Lei Le Chapelier, aprovada em finais de Junho,
proscrevendo as "coligações" de trabalhadores, este decreto representou
um esforço concertado para impor limites severos à capacidade disruptiva
da política popular. Continuando neste tom, uma das inscrições do sarcó ­
fago de Voltaire faz referências específicas ao refrão predilecto de
Lafayette e B ailly, agora subscrito por B arnave e D uport, a necessidade de
obedecer à lei, e um dos heróis recordados nas bandeiras do cortej o foi o
soldado Désilles, morto ao tentar separar tropas reais e amotinadas em
Nancy e que foi canonizado como o mártir dos "moderados " .
A maioria das histórias é da opinião d e que estes esforços para diluir
o republicanismo nas ficções da unidade revolucionária falharam. No dia
1 6 de Julho, o C omité C entral das sociedades populares de François e
Louise Robert circula uma petição declarando que Luís XVI tinha " deser­
tado do seu posto" e que por este acto e pelo seu "perj úrio " tinha, para
todos os efeitos, abdicado. Até o resto da nação indicar uma vontade con­
trária à petição, declaram os signatários, deixarão de o reconhecer como
rei. É convocada uma manifestação para recolha de assinaturas para o dia
seguinte, no Campo de Marte, no " altar da pátria " . Na manhã de 1 7 de
Julho, dois homens descobertos escondidos debaixo do altar tornam-se
de imediato suspeitos de intenções malignas e são sumariamente enfor­
cados. Desta vez, Lafayette conseguiu persuadir B ailly a declarar a lei
marcial, e a Guarda Nacional confronta cerca de cinquenta mil manifes ­
tantes desarmados, muitos deles d o s distritos mais pobres da cidade .
Debaixo de uma chuva de pedras, os guardas abrem fogo e matam vários
populares - treze segundo as autoridades, cinquenta segundo um dos
líderes da manifestação .
Na cronologia da inevitabilidade revolucionária, este confronto no
Campo de Marte é visto não só como antecipando mas também causando
o advento do republicanismo popular de 1 792 e 1 7 9 3 . C ontudo, em
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Agosto e Setembro de 1 7 9 1 , a situação não parece evoluir nesse sentido.


Pelo contrário, as tentativas dos constitucionalistas para travarem a deriva
da revolução para o que chamam a "anarquia" parecem ter vingado. No
dia 1 8 de Abril, quando o rei fora impedido de partir para Saint-Cloud,
Lafayette quisera que B ailly declarasse a lei marcial mas ele recusara . Em
Julho, aceitou e a repressão foi tão severa como o general pretendia que
fosse. Robespierre persuadiu os jacobinos a não apoiarem a petição da
"abdicação" e eles, apesar de condenarem a violenta repressão do C ampo
de Marte, recusaram associar- se à sua causa. Porém, não obstante estas
reticências, o clube cinde -se por causa da crise . A facção mais numerosa e
mais influente são, de longe, os recém-baptizados feuillants,6 liderados por
Barnave, Duport e os Lameths. Robespierre e Pétion dão consigo na Rue
Saint- Honoré a falar para cerca de cem membros. A repressão que se
abate de seguida sobre os cordeliers e as outras sociedades populares ani­
quila-as como centros de propaganda eficazes entre os artesãos de Paris.
Madame Roland escreve que os guardas de Lafayette confiscam as cópias
do jornal de Marat aos vendedores e rasgam-nas com impunidade .
No flanco oposto, as estratégias dos monárquicos tradicionais - os Noirs
- presentes na Assembleia foram completamente confundidas pelo fiasco
da fuga do rei. Desaparecido Mirabeau e com Lafayette pouco recomendá ­
vel depois do Campo de Marte, o papel dos guardiães constitucionais fica
nas mãos dos "triúnviros", Barnave, Adrien Duport e Alexandre Lameth,
três homens que emergiram das polémicas judiciais do Antigo Regime e
que se converteram à causa da soberania nacional e não popular. Em
Setembro de 1 79 1 , têm motivos para supor que as hipóteses de estabilizar
a Revolução são melhores do que há algum tempo atrás. No dia 1 3, o rei
aceita incondicionalmente a Constituição e no dia seguinte é oficialmente
instalado na sua nulidade política como "Rei dos Franceses" .
Dois dias antes, n o Louvre, foi inaugurado o Salon. N a parte central,
três grandes telas de Jacques- Louis David parecem proclamar, com uma
eloquência inigualada por nenhum dos oradores da Assembleia, as ficções
reinantes da unidade patriótica revolucionária. Ao centro, B ruto, cis­
mando, um quadro emprestado por Luís XVI, que ainda é o seu proprie­
tário nominal e a sua principal vítima . À esquerda, os Horácios, e logo
abaixo os deputados dos Estados Gerais emulando com os braços o gesto
dos irmãos romanos no Juramento da S ala do Jogo da Péla. Esta obra
enorme ainda não passa de um desenho mas a austeridade monocromá­
tica do bistre parece apropriada para a austeridade devocional do ambiente
e acaba por reforçar a enorme atracção composicional do quadro para o
seu centro patriótico, onde a luz incide sobre a cabeça de Sylvain Bailly a
dirigir o j uramento.

' Reuniam-se num antigo mosteiro dos feuil/ants, na Rue Saint-Honoré. ( N. d o T. )


487

Mas as harmonias que o desenho celebra estão a tornar- se rapida­


mente discordantes. No centro da obra vê-se a concordância triangular
das religiões: o protestante Rabaut Saint-Etienne, o capuchinho Dom
Gerle ( que nem sequer estava na sala do j ogo da péla nesse dia ) e o patrió­
tico abade Grégoire . Mas D om Gerle tornou-se inimigo da Revolução
desde que propôs, no dia 1 0 de Abril de 1 790, que o Catolicismo fosse
declarado como única religião do E stado; há guardas protestantes e rebel­
des católicos a matarem-se uns aos outros no Midi e no Vale do Ródano;
Grégoire aderirá à C onvenção mas Rabaut j á se afastou dos excessos da
insurreição popular. Bailly, na direcção do qual todos os braços se esten­
dem, está a perder o controlo da governação de Paris. Sieyes, retratado a
uma secretária como ideólogo da soberania nacional, foi alienado pela
Constituição Civil e escreveu recentemente uma refutação do manifesto
republicano de Tom Paine. Se Barnave, representado à direita, se destaca
pela urgência do seu gesto, é pelo menos contrabalançado por Maximilien
Robespierre ( que foi completamente insignificante em Junho de 1 7 8 9 ) ,
d e braços sobre o peito n a linguagem corporal d a sinceridade e d a virtude
rousseaunianas.
Mas em nenhuma outra parte do quadro se pronuncia David de forma
mais optimista sobre a Revolução do que nos três cantos onde se vêem os
espectadores. É ali que o Povo, infinitamente conj urado pelos políticos,
aparece como público, pupilo e cidadão ideal: patriótico na sua musculo­
sidade mas nunca ameaçador na sua desordem. Na sua maioria, os espec­
tadores são emblemas da estética política j acobina: o sans-culotte de barrete
frígio na cabeça está modelado como uma estátua antiga e tem a pose de
um fresco de Miguel Ângelo . O grupo de cima, do lado direito (possivel­
mente inspirado no filhos de David ) , incorpora a inevitável aliança senti­
mental entre o venerando e o j uvenil: sofrimento passado e esperança
futura.
Os clichés são perdoáveis porque David lança na composição a força
imensa da tempestade revolucionária, que recebe uma visualização literal
através das cortinas sopradas pelo vento. As convenções e a soberania tra ­
dicional do Antigo Regime são viradas do avesso como o guarda - chuva
que se vê em cima, à esquerda . Até a expressão do seu dono regista o
momento exacto e transformador, com o relâmpago a atingir a capela
real. Esta grande tormenta política irrompe pelo espaço vazio da sala e
encontra o gesto tenso, extático e colectivo dos deputados no centro ilu­
minado da cruz ortogonal.
As figuras, disse um crítico, "exsudam amor à patrie, à virtude e à liber­
dade. Vêem-se em todo o lado Catões prontos a morrer por elas" .
A famosa dissenção d e Martin d' Auch, n o fundo, à direita, reforça ainda
mais a sensação de que o quadro é um hino à unidade revolucionária .
Mas David nunca conseguirá terminar a obra, precisamente porque
S imon Schama 1 CIDADÃOS

durante o ano seguinte essa unidade será exposta como fictícia . D epois da
revelação dos seus tratos com a corte, Mirabeau, que David colocou mais
perto do observador do que qualquer outra figura, cai numa desgraça tão
profunda que em 1 7 9 3 os seus restos mortais são retirados do Panteão e
atirados para uma vala comum. Bailly e Barnave perecerão na guilhotina,
Sieyes sobreviverá mediante grandes feitos de pragmatismo ágil. O pró­
prio David, na qualidade de membro do C omité de Segurança Geral, assi­
nará mandatos e exceder- se-á a si próprio em expressões públicas de
devoção a Robespierre e a Marat.
Os poetas da meteorologia romântica, tais como André Chénier e
William Wordsworth, que sentem o seu drama, continuam a descrever a
Revolução como uma grande perturbação ciclónica, mas é cada vez
menos a tempestade que limpa e revigora; tornou-se uma raiva elemen­
tar negra e potente, avançando e destruindo indiscriminadamente . O seu
sopro j á não é doce mas sim impuro . São ventos de guerra.
14

" A Marselhesa"
Setembro de 1 791 -Agosto de 1 792

I A S S UNTO ENCERRAD O ?

No d i a 1 8 de S etembro d e 1 79 1 , um balão d e ar quente decorado com


fitas tricolores flutuou sobre os C ampos Elísios para anunciar a aceitação
formal da constituição pelo rei. Não fora sem reservas que Luís XVI se
apresentara na Constituinte quatro dias antes para jurar "defendê -la no
país e contra ataques externos e usar todos os meios que me confere para
a executar fielmente " . A rainha dissera-lhe para indicar a aceitação de
modo seco e dignificado e ele tentara dar a entender que o seu assenti­
mento dependia da resolução da Assembleia de " restabelecer a ordem" .
Todavia, o rei sentou -se numa cadeira de braços ao nível do presidente da
Assembleia, o que escandalizou a direita monárquica. Nada menos de
cento e cinquenta dos seus deputados declararam que nunca adeririam a
um documento assinado sob pressão por um " rei prisioneiro" . Ao mesmo
tempo, a esquerda zombou da noção de que o fugitivo de Varennes
pudesse estar a agir de boa-fé.
Mas a grande maioria situava -se ao centro . Ferrieres acreditava que o
rei se tinha assustado com a sua experiência e que se agarrava à consti­
tuição como protecção contra a contra-revolução e a anarquia. D urante
algum tempo, pelo menos, as festividades inocentes abafaram o barulho
da dissidência . Foi cantado um Te Deum em Notre Dame e· quando o rei e
a rainha apareceram na Ó pera para uma representação adequadamente
penitencial de Édipo em Colona foram saudados - para variar - com uma
entusiástica aclamação. Iluminações e fogos-de-artifício iluminaram a
noite de Outono e nas danças populares bebeu-se à constituição e à nova
era que ela anunciava .
A conclusão daquilo que foi declarado o "Evangelho" da Revolução
significou o fim dos longos trabalhos da Assembleia Constituinte . Apesar
de alterado por defecções, abandonos e algumas substituições, ainda era,
na sua maioria, o mesmo grupo de homens que tinham chegado a
Versalhes como membros de três ordens, em Maio de 1 78 9 . O produto do
seu labor começava com o seguinte preâmbulo:
Simon Schama 1 CIDADÃOS

deixam de existir a nobreza, o pariado e as distinções hereditárias de


ordens, o regime feudal e a justiça patrimonial, os títulos, denominações
ou prerrogativas . . . deixam de existir a venalidade e a hereditariedade em
todos os cargos públicos, e não pode existir, nem para nenhuma secção da
nação nem para nenhum indivíduo, nenhuma isenção da lei comum dos
Franceses.

Esta transformação de um reino baseado em ordens e corporações ceri­


moniosamente definidas para a entidade uniforme da nação soberana é
uma das mudanças de personalidade colectiva mais espantosas da história
política . No entanto, o conceito que presidiu à sua criação não foi obvia­
mente inventado nos dois anos que se seguiram à convocação dos E stados
Gerais. Em muitos aspectos, a constituição foi a concretização de um pro ­
jecto do Iluminismo: o sonho de d' Argenson de uma "monarquia demo�
crática" assente na obliteração política da nobreza.
Instituída a constituição e concluídos os longos trabalhos da
Assembleia, começaram a verificar-se tentativas de proclamar que a
Revolução tinha chegado ao fim. Adrien Duport anunciou -o em Maio, Le
Chapelier fez a mesma afirmação em Setembro, ao propor a lei para a res­
trição da liberdade dos clubes, e a maioria presente na Assembleia apro ­
vou uma resolução proclamando o "termo" da Revolução. Ninguém
estava mais interessado do que Barnave em que a França emergisse de um
estado de eterno "trânsito " para uma chegada institucional. Muito antes
de se ter sentado no coche entre Luís XVI e Maria Antonieta, fazendo con­
versa educada e brincando com o delfim, Barnave já se convencera da
necessidade de fortalecer a monarquia e defender os órgãos centrais do
Estado francês contra as ameaças perpétuas de insurreição popular. De
facto, nesta matéria, o seu pensamento era muito próximo do de
Mirabeau. Mas desde as suas ferroadas no "Grand Homme" - oficialmente
designado como tal na Assembleia -, Barnave fizera carreira ultrapas­
sando Mirabeau pela esquerda . Agora, com o seu velho adversário morto,
podia adaptar muitas das ideias premonitórias dele. Lafayette também já
não era um obstáculo . Ainda antes da fuga do rei verificara -se um degelo
notório entre o general e os Lameths, e o embaraço de Lafayette, em
Junho, significava que ele se tornava mais fácil de cooptar para os planos
de Barnave de recorrer à força, se necessário, para pôr fim à fase insur­
recta da Revolução.
C om estes dois centros de poder alternativos efectivamente neutraliza ­
dos, Barnave assumiu a liderança dos interessados em tornar operacional
a monarquia constitucional. Recebeu o apoio dos que tinham sido os seus
associados mais próximos nos jacobinos - D uport, Le Chapelier e os
Lameths - e que agora dominavam os feuillants. Todos eles comungavam
da opinião de que a "nova" França não sobreviveria a uma continuada
491

intimidação física por parte das secções de Paris, às polémicas incontinen­


tes dos clubes e da imprensa e, mais importante ainda, à democratização
da disciplina no exército e na marinha. Ao mesmo tempo, entendiam que
era necessário proteger o E stado de conj uras ou incursões armadas con­
tra -revolucionárias. Além disso, a onda de greves e motins laborais da
Primavera convencera -os de que o "lado Turgot" do proj ecto de moderni­
zação da Revolução - uma ordem económica liberal - teria de ser prote ­
gido contra o colectivismo social dos operários revolucionários e dos seus
advogados dos cordeliers e do Círculo Social de Fauchet.
A estratégia de Barnave para lidar com estes desafios foi cuidadosa­
mente planeada. Depois de eliminar a ameaça de republicanismo pós­
-Varennes, negociou secretamente com a rainha, esperando que ela
estivesse suficientemente agradecida para o ouvir. B arnave aconselhou - a
a pôr d e lado, para sempre e d e boa- fé, todo e qualquer tipo d e ideias d e
u m a contra-revolução armada, a garantir q u e o imperador s e u irmão dei­
xava de apoiar os emigrados e a fazer com que o rei convencesse os irmãos
a regressar a França . Em troca, ele estava disposto a trabalhar para rever
a C onstituição de modo a reforçar o papel do executivo real. D urante
Agosto e Setembro, uma correspondência animada e regular fluiu entre
Barnave e Maria Antonieta. "A Constituição ", escreveu a rainha, "é um
tecido de absurdos impraticáveis . " "Não, não, " protestou Barnave, " é tres
manarchique", e se o rei e a rainha tentassem estabelecer "a confiança e
tornar-se amados", todos os problemas da França seriam resolvidos;
"nenhum príncipe da Europa estaria mais solidamente sentado no trono
do que o Rei de França" .
Mas o s esforços d e B arnave n a Assembleia para reforçar o executivo
não deram em nada de radical. Não conseguiu garantir a criação de um
parlamento bicameral, com ministros escolhidos no seio da Assembleia,
que seria ( agora concordava com Mirabeau ) a maneira mais provável de
fugir aos impasses entre os vários ramos da constituição. No entanto, o
seu labor também não foi completamente infrutífero . Uma nova disposi­
ção garantiu ao rei a escolha dos embaixadores e o monarca foi oficial­
mente tornado comandante supremo do exército; além disso, os ministros
ficaram autorizados a defender as suas políticas na Assembleia. Até as
emendas que pareciam mais democráticas - por exemplo, a abolição do
marco de prata ( equivalente a cinquenta dias de salário ) como critério fis ­
cal para elegibilidade para a legislatura - foram, n a verdade, uma concen­
tração de poder. A elegibilidade foi alargada para as eleições para os cargos
locais, tais como o de j uiz de paz, mas o critério para a pertença ao colé­
gio eleitoral e para a elegibilidade para a Assembleia passou a ser a pro­
priedade imobiliária. Isto traduziu -se, na prática, na criação de um
eleitorado menos numeroso nos níveis onde realmente contava - o que era
exactamente a estratégia social que reflectia as fronteiras da elite cultural
Simon Schama 1 CIDADÃOS

das décadas de 70 e 80 do século XVIII e que criou as duradouras "nota­


bilidades" da França do século XIX. Na prática, isto significava que num
departamento relativamente pobre, como por exemplo o de Aveyron, o
poder político ficava concentrado nas mãos de apenas duzentos cidadãos
que cumpriam os critérios de elegibilidade.
Este programa não foi imposto sem contestação. A 2 9 de Setembro, o
penúltimo dia da vida da Assembleia, René Le Chapelier, em nome da
comissão constitucional, tentou aprovar uma lei que teria consequências
bastante profundas para a vida política francesa. Propunha a emasculação
dos clubes políticos recambiando-os para o estatuto de associações ou
organizações privadas autorizadas a "educar" os cidadãos, do modo mais
dócil possível, acerca do conteúdo dos decretos aprovados pela legislatura.
Qualquer tipo de movimento peticionário, qualquer tipo de análise crítica
à conduta do governo e, acima de tudo, qualquer ataque aos deputados
da Assembleia seria considerado sedicioso e os infractores ver- se-iam pri­
vados dos seus direitos de cidadãos durante um período de tempo especi­
ficado. Pelas mesmas razões, as afiliações entre organizações seriam
também proibidas a título de ameaças conspiratórias às instituições legal­
mente autorizadas. Por outras palavras, a lei era uma arma crucial ( tal
como uma lei semelhante proposta por D uport para impor restrições à
imprensa ) na ofensiva dos feuillants contra as insurreições populares.
Le Chapelier justificou a sua proposta de lei com uma análise elo­
quente da Revolução, elogiando os clubes por "congregarem mentes, for­
marem centros de opinião comum" na " época das tempestades" mas
insistindo que agora, "terminada a revolução", essas " instituições espon­
tâneas" tinham de ceder o passo ao princípio crucial da soberania incon­
testada do povo, investida nos seus representantes . "O tempo da
destruição acabou", proclamou Le Chapelier, "toda a gente j urou a
Constituição; toda a gente clama por ordem e paz pública; toda a gente
deseja que a Revolução chegue ao fim: estes são agora os sinais inequívo­
cos de patriotismo " . Só os "homens perversos e ambiciosos" que preten ­
diam manipular os clubes para os seus próprios fins e fomentar
campanhas de difamação contra os cidadãos honestos poderiam objectar
contra a medida proposta.
A peroração de Le Chapelier foi interrompida pela familiar voz aguda
e metálica de um homem pequeno e ossudo com óculos de metal e o
cabelo imaculadamente encaracolado e polvilhado. Foram provavelmente
as aspersões de Le C hapelier sobre os apoiantes dos clubes políticos que
provocaram a explosão de Maximilien Robespierre, que exigiu que lhe
fosse dada a possibilidade de responder dado que estava a ser proposta
uma lei em conflito claro com os princípios da constituição. No entanto, o
longo discurso que se seguiu deixou evidente que Robespierre se prepa­
rara cuidadosamente para o confronto. Tendo em conta que fora a sua
49 3

própria eloquência que persuadira os deputados a desqualificarem-se para


reeleição para a nova legislatura, aquela seria a última ocasião de lhes
transmitir - e à nação política - a sua enfática negação de que a Revolução
estava morta e enterrada, ou sequer terminada.
Era o clímax da sua carreira política. Em 1 789, chegara aos Estados
Gerais com dois fatos pretos, um de lã, o outro de veludo; era o quinto
deputado pelo Terceiro Estado de Arras, uma pura nulidade. Desde então,
proferira mais de cento e cinquenta discursos, sessenta só nos nove meses
de 1 7 9 1 , e sobrevivera aos interrogatórios brutais na Assembleia e ao ridí­
culo devastador na imprensa conservadora para se tornar o líder mani­
.
festo da esquerda revolucionária. C onseguira- o, em grande medida,
através da sua consistência num mundo político que j á era notável pelas
mudanças de ideias e de simpatias . A convicção absoluta que ele vertia
nos seus discursos, a crença de que somente homens de integridade ina­
tacável poderiam ser responsáveis pelo bem público, provocava gargalha­
das entre os espirituosos, mas, com o passar do tempo, o riso foi -se
tornando cada vez mais desconfortável.
Robespierre aprendera estas lições de moralidade com o pai, um advo­
gado, com a sua devoção aos preceitos e à vida de Jean-Jacques Rousseau
e com a paixão pela história e pela oratória latinas que lhe valeram pré­
mios anuais no Lycée Louis-le-Grand, em Paris - e a alcunha de "Romano" .
Robespierre fora enviado para este famosíssimo colégio oratório com uma
bolsa atribuída pelo bispo de Arras, de quem era protegido, mas o seu per­
curso é mais uma história de sucesso da meritocracia característica do
Antigo Regime . Os anos que passou no colégio formaram uma personali­
dade que se dedicaria exclusivamente à política - aliás, à política intensa­
mente moral recomendada por Rousseau: o Estado reformador deve ser
uma escola de virtude, capaz de originar uma grande regeneração moral
nos indivíduos e na sua vida colectiva, sob pena de perder o direito à fide ­
lidade . Nos seus primeiros casos em tribunal, em Arras, em defesa do
pára- raios do Sr. Vissery, 1 e em 1 788, defendendo um oficial do exército
encarcerado pela família através de uma lettre de cachet, Robespierre trans ­
formou os s e u s clientes em corporizações d e princípios gerais, vítimas de
uma luta maniqueísta entre a virtude e o vício, a liberdade e a tirania. Este
tipo de indignação justa tornou-se a sua forma declarativa natural, não
menos dramática quando expressa, como frequentemente era, num tom
ameaçador e de calma deliberada, e encontrou um público fora da
Assembleia na geração de j ovens Cíceros e Catões que, tal como ele,
aguardavam o estabelecimento das virtudes republicanas . Em Agosto

1 O Sr. Vissery tinha montado um pára-raios na sua propriedade e os cidadãos, indigna­


dos com aquela interferência com os desígnios de Deus, obtiveram das autoridades uma
ordem de demolição do obj ecto. Vissery entendeu defender- se em tribunal e contratou
Robespierre para seu advogado. ( N. do T. )
Simon Scharna / CIDADÃOS

de 1 789, Robespierre recebera uma carta extática de um destes devotos


obscuros, Antoine Saint-Just:

Vós apoiais o país vacilante contra a torrente de despotismo e intriga, vós,


que eu conheço como conheço a Deus pelos vossos milagres; dirij o -me a
vós, senhor, para vos implorar que vos j unteis a mim para salvar a minha
pobre região. Não vos conheço pessoalmente mas vós sois um grande
homem. Não sois apenas o deputado de uma província, sois o represen­
tante da humanidade e da república .

Durante os dois anos da C onstituinte, Robespierre deu o seu melhor


para corresponder à sua pesada vocação falando com franqueza sobre
todos os tópicos que suscitaram o seu interesse. Quanto mais as suas opi­
niões o colocavam em minoria, mais eloquente se tornava - defendendo
a emancipação dos Judeus, a abolição da escravatura e da pena de morte,
a retirada ao monarca do poder de veto . Durante a crise de 1 79 1 , com
Danton em Inglaterra e uma grande parte de imprensa radical encerrada,
o seu papel na manutenção da confiança e, acima de tudo, na articulação
da legitimidade da revolução militante foram cruciais para a sobrevivên­
cia deste movimento . A deserção dos feuillants deu-lhe um fórum para
expor as suas opiniões sem oposição e ele aproveitou para lançar sobre os
seus inimigos a culpa pelo cisma, ciente de que a maioria dos mil clubes
afiliados das províncias desejava muito a união do clube .
Mal se pode dizer q u e Robespierre tinha u m a vida privada, tendo e m
conta o artigo de f é segundo o qual para o verdadeiro patriota as esferas
privada e pública dissolviam-se numa única existência de activismo abne ­
gado e regularidade moral. Mas a sua vida doméstica era bem conhecida
e publicitada como exemplar. A partir de meados de 1 79 1 , Robespierre
residiu com a família D uplay, na Rue Saint-Honoré . Duplay era um car­
pinteiro e marceneiro mas estava longe de ser um pobretana esmagado
pelo trabalho, pois além da sua casa possuía dois outros imóveis em Paris
e empregava uma dúzia de jornaleiros. Na verdade, Duplay era o tipo de
pequeno profissional culto glorificado nos panegíricos de Rousseau aos
ofícios e nas rapsódias de género de Greuze. Instalado num quartito pro ­
vido de escrivaninha e cadeira, Robespierre aparecia à noite para comer
uma refeição simples e ler às raparigas Corneille ou Rousseau enquanto
descascava as laranjas de que era um apreciador indiscutível.
O seu outro lar era o convento dos Jacobinos, onde se sentia a salvo,
entre amigos, um sentimento que lhe faltava na Assembleia . D epois da
cisão de Julho, o seu sentimento de posse moral tornou-se mais marcado
e ele entrava no clube com uma informalidade intencional, sentava -se na
parte de trás da sala abobadada, cruzava as pernas e ficava à espera que
surgisse algo de interesse. Os oradores que ocupavam a tribuna devem-se
495

ter sentido mais pequenos quando viam o cabelo polvilhado e o nariz


comprido e fino passar a porta.
O discurso de Robespierre refutando Le Chapelier foi um exemplo
típico de um género que ele tornara seu . A sua técnica particular era a
apresentação de princípios gerais como um relato da sua vida e da sua
posição. Esta oratória do ego também atraía críticas dos deputados dados
à ironia mas correspondia de forma brilhante ao modo confessional
inventado por Rousseau. Além disso, ao contrário do que a sua maneira
de falar intencionalmente calma e ligeiramente espalhafatosa dava a
entender, sondava directamente as emoções. As passagens eram quase
sempre interrompidas por profissões de martírio e convites à morte em
oposição à ignomínia viva do pragmatismo, que realçavam o tom dramá ­
tico do sentimento e faziam Robespierre soar como se estivesse a decla­
mar Corneille ou Racine. Robespierre adaptou do teatro o maneirismo de
fazer uma pausa longa depois de uma frase especialmente importante
para a deixar ser absorvida .
A Le Chapelier e, por extensão, a todos os moderados, Robespierre
contrapõe que o que pretendem está em conflito directo e irrefutável com
os princípios mais importantes da constituição: o direito de reunião pací­
fica, de falar livremente sobre assuntos de interesse público e de escrever
ou publicar para comunicar com outros cidadãos. Ignorando a interrup­
ção furiosa de Le Chapelier "O S r. Robespierre não conhece uma pala­
-

vra da Constituição" -, Robespierre regressa a um dos seus refrães


predilectos, com música de Jean-Jacques: o "desmascaramento" dos hipó­
critas. C omo se atreve Le Chapelier a ser paternalista para com os clubes
fingindo reconhecer os seus serviços quando o seu verdadeiro obj ectivo é
a sua destruição - aliás, a destruição de todas as liberdades constitucio ­
nais? Com que então, a Revolução está acabada? "Não percebo muito
bem o que quer dizer com esta proposição", diz Robespierre, fingindo-se
confuso, j á que acreditar que a Revolução está acabada pressupõe o esta­
belecimento firme da constituição. E para onde quer que se vire vê inimi ­
gos, dentro e fora, a concertarem a sua sabotagem. De seguida,
Robespierre constrói um crescendo tremendo recorrendo continuamente
à frase "Vej o" enquanto passa em revista os perigos que confrontam a
pátria, inclusivamente às mãos de homens que "lutam menos pela
Revolução do que pela sua própria subj ugação sob o nome do monarca " .
Segue-se a oferta habitual d o martírio salutar, uma demonstração de
paranóia patriótica na sua forma mais criativa:

Se eu for obrigado a usar outro tipo de linguagem, se tiver de deixar de


falar contra os proj ectos dos inimigos da patrie; se tiver de aplaudir a ruína
do meu país, ordenem-me que cumpra as vossas ordens; eu perecerei para
não perecer a liberdade.
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Finalmente, Robespierre transforma-se no implacável tribuno romano:

Sei que a minha franqueza é um pouco dura mas o único consolo que resta
aos bons cidadãos no perigo em que estes homens [faz um gesto de des­
prezo com a mão] colocaram o interesse público é j ulgá -los de modo
severo .

Está em curso uma guerra de claques na C onstituinte mas os feuillants


dispõem de votos suficientes para fazer aprovar a sua lei, a qual, no
entanto, nunca será promulgada. Todavia, o discurso de Robespierre asse­
gura -lhe um triunfo público . No dia seguinte, quando a Assembleia põe
fim à sua existência, ele é levado em ombros por uma enorme multidão
entusiástica, ao lado de Jérôme Pétion, o herói dos bairros dos trabalha­
dores. Na viagem de regresso ao Artois, as aclamações transformam-se em
apoteose. A carruagem de Robespierre é engolfada pelas multidões e cho ­
vem pétalas de flores sobre o seu belo penteado. Quando regressa a Paris
para fundar um jornal que, à falta do fórum parlamentar, continue a pro ­
jectar as suas opiniões, o seu título, La Défenseur de la Constitution, não
parece absurdamente grandioso.

II OS CRUZAD O S

A Assembleia Legislativa que substituiu a C onstituinte é frequente­


mente vista como uma espécie de interregno revolucionário, marcando
impotentemente o tempo entre a monarquia constitucional e o Terror
jacobino . Em comparação com a sua antecessora, os seus deputados são
considerados desconhecidos e as suas declarações e decretos como pieda -
des patrióticas banais sem os conflitos autênticos da C onstituinte nem a
militância febril da C onvenção. Nada está mais longe da verdade . Pode
afirmar-se com segurança que, em talento político e intelectual, a
Legislativa foi a mais impressionante de todas as assembleias revolucioná­
rias . A sua oratória teve uma intensidade operática que faz os discursos da
sua antecessora parecerem frouxos, e a guerra à qual conduziu a França
foi, sem sombra de dúvida, o evento mais importante da Revolução desde
a decisão de convocação dos Estados Gerais.
A Legislativa chegou a Paris eleita por uma percentagem patetica­
mente pequena dos eleitores autorizados: 1 0 % . De facto, desde as elei­
ções para os E stados Gerais, quanto mais radical a Revolução se tornou,
menor foi a sua base eleitoral, dado que a Convenção nasceria de um
número ainda mais pequeno de votos. Caracteristicamente, os deputados
à Legislativa foram os políticos das províncias que tinham construído uma
reputação na oposição aos notáveis incumbentes que ainda dominavam
497

as presidências das câmaras e as administrações departamentais. O novo


regime tinha -se despedido na Assembleia C onstituinte de todos os aris­
tocratas e clérigos que se haviam agarrado tenazmente ao seu estatuto de
deputados desde os E stados Gerais . No entanto, a Assembleia Legislativa
incluía vários aristocratas revolucionários, tais como C ondorcet, o pro­
testante chevalier de Jaucourt, o marquês de Rovere e o conde de
Kersaint, bem como bispos constitucionais como Lamourette de Lyon e
Fauchet de Caen.
D e resto, não havia muito que distinguisse os novos legisladores dos
seus antecessores, e os historiadores têm desperdiçado os seus esforços a
tentar determinar o quão burguês era cada grupo. Havia muito menos
comerciantes, industriais e financeiros na Legislativa do que na
C onstituinte mas não faz sentido dissecá -la em termos de distribuição pro ­
fissional, especialmente quando categorias como " advogados" ( que mais
uma vez a dominavam nominalmente ) disfarçam diferenças enormes em
termos de fortuna e estatuto . O que unia a assembleia era uma espécie de
comunidade cultural. Um engenheiro militar como Lazare Carnot podia
conversar facilmente sobre assuntos técnicos com matemáticos como
Monge e químicos como Guyton de Morveau, que tinha escrito bastante
sobre a utilização militar dos balões. Eram igualmente notórios outros
tipos de intelectuais: Quatremere de Quincy, árbitro do gosto patriótico e
desenhador do Panteão, Dusaulx, do departamento de inscrições do
Louvre, douto amigo do patriota Palloy, e François de Neufchâteau, que
traduziu as novelas mais choronas de Richardson. O s dois deputados de
Estrasburgo, o matemático e professor Arbogast e o historiador Koch,
eram savants e, previsivelmente, pertenciam ao círculo intelectual de
D ietrich.
Em termos políticos, cerca de metade da Assembleia mostrou o j ogo
em finais de Novembro . Havia apenas 1 3 6 afiliados dos jacobinos, contra
264 dos feuillants. Esta proporção dava a B arnave a possibilidade de pros­
seguir a operação de contenção que ele e os seus amigos tinham iniciado
na Primavera e no Verão mas não era uma maioria decisiva porque resta­
vam cerca de 40 0 deputados resolutamente afastados de ambas as facções.
O facto de os feuillants terem falhado de forma tão notória em conquistar
a sua fidelidade nos meses que se seguiram deveu-se, em grande medida,
à extraordinária influência exercida por um grupo muito pequeno reu ­
nido em torno d o j ornalista Jaques-Pierre B rissot.
O j o rnal de B rissot, o Patriote Français, era um dos mais bem sucedi­
dos de Paris ( embora às vezes, quando se lê na sua fórmula bastante
árida, sej a difícil perceber porquê ) . D epois de ser um escritor mercená ­
rio e espião por conta da polícia na década 80, século XVIII, B rissot tor­
nara - se um especialista na manipulação da opinião pública . B rissot era
filho de um pasteleiro de Chartres ( de onde conhecia Jérôme Pétion
Simon Schama 1 CIDADÃOS

desde a infância ) e, ao contrário de Robespierre, sabia o que era a pobreza


miserável e estivera encarcerado por dívidas em Londres . Enquanto ia
ganhando a vida ( mal) com a escrita, B rissot tornara-se uma espécie de
defensor profissional das causas liberais, entre as quais a libertação dos
escravos negros das Ilhas Ocidentais, e levara uma vida agitada e arriscada
de panfletista na Bélgica, na Suíça e em Boston, onde, em 1 788 j ulgara ter
finalmente descoberto "a simplicidade, a bondade e a dignidade dos
homens que é pertença dos que concretizam a sua liberdade" . Três anos
mais tarde, é um republicano convicto e tem como obj ectivo confesso
frustrar o moderantismo de B arnave apresentando constantemente à
Assembleia questões que obriguem o rei a revelar a sua verdadeira iden­
tidade de inimigo da pátria. Ao marginalizar a monarquia, ele torná -la-á
impraticável. E sta estratégia foi executada de forma implacável e com
sucesso mas B rissot não era certamente mais maquiavélico do que
Barnave, que continuava a enviar secretamente à rainha conselhos sobre
como responder da melhor forma à ofensiva dos republicanos.
Entregue a si próprio, B rissot não teria sido suficientemente persuasivo
para garantir os votos necessários à aprovação das medidas radicais desti­
nadas a embaraçar os ministros feuillants, que quando apareceram na
Legislativa se sentaram ridiculamente em pequenos banquinhos à frente
da mesa do presidente . C ontudo, B rissot contava com o apoio de uma
bateria de oradores que nunca se tinham ouvido numa mesma sala - aliás,
nem em França . C aíram no esquecimento por várias razões, nenhuma
delas boa. C omeçaram por ser vítimas da hagiografia em vários volumes
de Lamartine, poeta e político do século XIX, a Histoire des Girondins. A sua
morte na guilhotina, às mãos do Terror, foi invariavelmente apresentada
pelos historiadores antijacobinos como o destino dos republicanos liberais,
condenados a perecer às mãos de gente sem escrúpulos. Mas roubar aos
girondinos (ou "brissotins", como foram primeiro conhecidos ) a sua pró­
pria falta de escrúpulos é fazer-lhes um desfavor porque também lhes
rouba a complexidade política que tinham em abundância. Mais tarde,
quando o enfoque da história revolucionária passou da análise política
para a análise social, os girondinos voltaram a fazer sentido, dado que
eram socialmente indistintos dos j acobinos. Além disso, os girondinos
também desiludiram os analistas dos "partidos" da Revolução dado que
não eram muito mais do que um grupo de amigos que por vezes j antava
ou bebia no estabelecimento de Madame D odun, na praça Vendôme, ou
ainda com maior entusiasmo no de Madame Roland, no Hotel
B ritannique . Mas a verdade é que, em 1 792, um clube informal de j anta ­
res ou um grupo de amigos, três deles da mesma região do Sudoeste da
França - daí o nome de Gironda - era uma unidade política muito mais efi­
caz do que qualquer tipo de ( proto ) "partido" formalmente organizado.
Além do mais, Maximin Isnard ( cooptado do departamento provençal do
499

Var ) , Pierre Vergniaud, Marguerite-Elie Guadet e Armand Gensonné


reconheciam mutuamente a potência fenomenal da sua eloquência.
Enquanto Robespierre trabalhava intencionalmente sozinho, cultivando,
qual Jean-Jacques, o isolamento austero do profeta, os girondinos inter­
pretavam-se mutuamente como membros de um quarteto de cordas, com
a cadência e o ritmo da sua retórica transcendente aumentando, des­
cendo, engrossando e diminuindo com o efeito que surtiam uns nos
outros . Mais significativamente, tocavam de forma intencional para o
público do Manege, a antiga escola real de equitação, perto das Tulherias,
que agora aloj ava a Assembleia, um público constituído pelos deputados
e pelos populares que enchiam as galerias durante os grandes debates .
É difícil recuperar a música daquela oratória, perdido q u e está o seu
som para a história - mesmo para a mais imaginativa -, ainda que lê -la
nas folhas amareladas dos Archives Parlementaires possa ser uma experiên­
cia electrizante. Mas basta reconhecer um truísmo conhecido de todos os
historiadores da oratória revolucionária da viragem do século, entre os
quais Alphonse Aulard: o efeito cumulativo dos seus discursos foi decisivo
para o rumo da Revolução. Mais do que qualquer outra coisa - mais do
que os motins alimentares, os preços elevados ou a propaganda jacobina
-, fizeram com que os deputados da Legislativa se transformassem de polí­
ticos em cruzados. Quando foi declarada a guerra ao "Rei da Hungria e da
B oémia", em Abril de 1 792, uma maioria substancial dos deputados acre­
ditava que o que estava em j ogo naquilo a que chamavam a sua " cruzada"
não era apenas o futuro da França mas sim o da humanidade. A primeira
premissa da política de estabilização de B arnave - a preservação da paz -
estava em ruínas.
Mas muito antes de tudo isto, j á devia ser óbvio que o plano de
Barnave e dos dois outros "triúnviros", D uport e Alexandre Lameth,
estava em sérias dificuldades. Os peões da Legislativa não eram certa­
mente jacobinos mas demonstravam uma espécie de truculência descon­
fiada em relação à monarquia que, logo à partida, tornou muito difícil a
posição do rei e do governo. Em conformidade com toda a história da
Revolução, as questões de protocolo assumiram uma importância simbó­
lica enorme, pelo que a primeira ocasião em que Luís XVI apareceu na
Assembleia foi uma espécie de destronamento gestual. Exigiu -se que não
lhe fosse atribuído nenhum assento especial, e muito menos um trono .
Depois de insultos gratuitos e de ameaças de não comparência por parte
das Tulherias, no dia 6 de Outubro foi atribuída ao rei uma simples cadeira
pintada com flores-de-lis e conspicuamente colocada ao lado do presi­
dente . À chegada, o rei encontrou os deputados de pé e, para sua cons­
ternação, quando começou a falar, eles sentaram-se de forma
manifestamente descortês e puseram os chapéus na cabeça, levando o rei
a fazer o mesmo . Ao ver o marido, cuj a fronte fora ungida com o óleo
S imon Schama 1 CIDADÃOS

sagrado de Clóvis em Reims, sentado a ler aos deputados como um notá­


rio glorificado, Maria Antonieta sentiu -se ainda mais humilhada .
Apesar de responder de forma atenta e educada às cartas de Barnave,
a rainha não fazia tenção de aceitar o seu conselho de levar a C onstituição
a sério. Quando Barnave lhe garantiu que a paz política estava à vista se
ela apoiasse sinceramente o status quo, Maria Antonieta perguntou-lhe,
com alguma j ustificação, que força estaria disponível para a monarquia
caso essas circunstâncias ideais não se viessem a verificar. Ele pressupu­
nha o melhor, ela o pior, e foi o cenário da rainha que pareceu mais rea ­
lista quando os brissotins que conquistaram rapidamente os comités
-

cruciais da Assembleia - promoveram uma legislação agressiva concebida


para obrigar a monarquia a tornar-se impopular através do uso do veto.
Havia duas questões de grande significado e os brissotins apresentaram­
-nas como sendo de uma importância inegavelmente patriótica. A pri­
meira prendia-se com os padres refractários, os que ainda não tinham
feito o j u ramento de fidelidade exigido pela C onstituição C ivil.
Reconhecendo o potencial tragicamente disruptivo do cisma religioso que
estava a agudizar-se em grandes áreas da França, Barnave tentou relaxar
as disposições mais punitivas da legislação da Constituinte . Em resposta
aos tumultos continuados no Sul e Sudeste da França, que já se encon­
travam praticamente num estado de guerra civil, e ao estabelecimento
periódico de campos de católicos monárquicos em armas, a Legislativa
tornou a sua política religiosa mais severa. Os padres refractários viram os
seus estipêndios imediatamente cortados, o clero "legal" foi autorizado a
casar e no dia 2 9 de Novembro os sacerdotes que continuavam a desafiar
as leis do país receberam um prazo de oito dias para fazerem o j uramento,
sob pena de serem declarados conspiradores contra a patrie. Até
Robespierre empalideceu perante esta medida, compreendendo que tor­
naria inevitável a mais intransigente das guerras santas, e declarou no seu
j ornal que, afinal de contas, era necessário "tempo para amadurecer o
povo" antes que ele pudesse reagir com equanimidade à possibilidade de
padres casados. Mas foi Maximin Isnard, do agitado Departamento do Var,
que definiu o tom inquisitório da sessão ao declarar que "todos os cantos
da França estão a ser maculados pelos crimes desta casta . . . quando [um
padre] deixa de ser virtuoso, torna -se o mais iníquo dos homens" . Punir
esses padres, insistiu ele, não era persegui- los, dado que só se podia per­
seguir santos e mártires, enquanto "a maioria dos intriguistas e hipócritas
que pregam a religião só o fazem porque perderam as suas riquezas.
Castigar esta classe de homens é exercer um grande acto de justiça e vin­
gar a humanidade ultrajada " .
Escusado será dizer q u e o rei não podia sancionar esta criminalização
dos católicos leais. Em S etembro, tinha relutantemente assentido na
" reunião" ( que queria dizer "anexação" ) do enclave papal de Avinhão
5 01

com a França . O resultado fora uma pequena guerra mortífera que cul­
minara na chacina de aristocratas e notáveis moderados nas prisões de
Avinhão por um bando armado liderado por Jourdan " C oupe -tête "
( C orta - C abeças ) . Outras cidades, entre as quais Arles, estavam nas mãos
de líderes católicos e monárquicos igualmente implacáveis que instavam
o povo a cuspir na Constituição e a profanar o uniforme da Guarda
Nacional. O rei era profundamente avesso a fazer fosse o que fosse que
pudesse agravar esta trágica situação, mesmo que isso significasse fazer o
jogo dos seus inimigos. B arnave, a braços com muitas decisões difíceis, fez
com que o clero refractário de Paris enviasse uma petição ao rei com base
na protecção constitucional da liberdade de consciência. Assim que tal
aconteceu, o veto real foi prontamente aplicado, desencadeando manifes­
tações violentas em Paris e noutros centros de anticlericalismo como Lyon
e Marselha.
A segunda questão na qual a estratégia dos feuillants soçobrou foi a dos
emigrados. O ritmo da emigração tinha acelerado marcadamente desde o
regresso do rei de Varennes . Ferrieres lamentou-se à mulher de que se
tornara uma "epidemia" no exército: os regimentos tinham perdido um
terço dos oficiais . Por razões óbvias, o número de nobres e padres emi­
grados era maior nas fronteiras - na Alsácia e ao longo da fronteira orien­
tal, dos Vosges às Ardenas, no Sudoeste e no Leste, nos Pirenéus, no
Rossilhão e na Provença, e no Oeste, na B retanha. Mas estas também
eram precisamente as regiões da França onde os receios de uma invasão
estrangeira eram mais agudos e onde os deputados à Assembleia eram
mais militantes, vendo-se como patriotas cercados num mar de conspira ­
ções e intrigas. Os emigrantes eram responsabilizados pela especulação
monetária que estava a desvalorizar o papel-moeda e a fomentar a infla ­
ção - a versão mais recente da eterna " conj ura da fome " . Eram acusados,
nas suas bases de Turim e depois de C oblença, de planear invasões da
França na cauda de exércitos absolutistas que passariam à espada os bons
patriotas e as suas mulheres e filhos e arrasariam as suas cidades .
A Declaração de Pillnitz, a qual, como veremos, foi u m documento muito
contido emitido em Agosto pelo irmão da rainha, o imperador Leopoldo,
foi publicitada em França como uma ameaça directa à soberania e à segu­
rança da nação.
No dia 3 1 de Outubro, a Assembleia declarou que todos os emigrados
que até ao dia 1 de Janeiro de 1 792 não tivessem dispersado dos alegados
campos armados seriam declarados culpados de conspiração e condenados
à morte e ao confisco dos seus bens . A esta legislação draconiana seguiu­
- se, no dia 9 de Novembro, uma convocatória ao irmão do rei, o conde da
Provença, para que regressasse a França no prazo de dois meses, sob pena
de ser afastado da sucessão. Finalmente, a 2 9, no mesmo dia em que foi
aprovada a legislação religiosa mais severa, foi aprovada uma lei apelando
Simon Schama 1 CIDADÃOS

ao regresso de todos os príncipes reais e deixando claro que o confisco dos


bens dos emigrados incluiria o dos seus familiares mesmo que tivessem
permanecido em França . C onfrontado com esta ofensiva contra os princí­
pios defendidos pelo rei e contra o destino da própria família real, B arnave
insistiu num veto . Qualquer outra coisa, escreveu ele, equivaleria a uma
admissão de completa impotência e desonraria o rei aos olhos da Europa.
No entanto, o veto deveria ser acompanhado de uma carta do rei ape ­
lando ao regresso d o s príncipes e declarando q u e em circunstância
nenhuma toleraria qualquer tipo de incursão armada no território da
França em nome dos emigrados.
O conselho foi seguido à letra e o rei conseguiu surpreender a
Assembleia ao apresentar- se em pessoa, no dia 1 4 de Dezembro, para
expressar a sua indignação patriótica perante a possibilidade de qualquer
tipo de intervenção militar por parte dos monarcas europeus. O s brissotins
ficaram abalados com o seu fervor ( tal como Barnave calculara ) , mas o rei
tinha razões próprias para soar tão determinado. Orientado pelo único
ministro que merecia a sua total confiança, o ex-intendente B ertrand de
Moleville, o rei apercebera -se de que uma política de guerra poderia ser
do seu interesse. Dada a sua situação aflitiva, não tinha nada a perder (j ul­
gava ele ) . Se a guerra corresse bem, seria um meio de concentrar poder
nas suas mãos como comandante -em- chefe e poderia até dar-lhe a força
militar de que necessitava para restaurar a sua autoridade. Se corresse
mal, a França sofreria certamente uma intervenção estrangeira que, com
toda a probabilidade, o restauraria no trono . Obviamente, tudo isto pres­
supunha abandonar a estratégia de paz dos feuillants, e todos os sinais
indicam que foi esta a sua intenção em D ezembro de 1 7 9 1 , uma intenção
muito aplaudida pela rainha e ainda mais pela irmã, Madame Elisabeth.
A rainha sempre detestara a política de compromisso aconselhada pelos
feuillants e agora que estava prestas a soçobrar Maria Antonieta escreveu
uma carta zombeteira a Axel Fersen: "Parece -me que estamos prestes a
declarar guerra aos Eleitores [de Meinz e Trier] . Imbecis ! Não percebem
que isto nos serve, porque . . . se começarmos uma guerra, todas as
Potências se envolverã o . "
N o d i a 7 de Dezembro, o r e i nomeou o conde de Narbonne-Lara para
o Ministério da Guerra . Barnave vinha aconselhando esta nomeação há
algum tempo, no pressuposto de que Narbonne seria um feuillant obe ­
diente no cargo . Porém, logo que se instalou no seu posto, o novo minis ­
tro, c o m a s u a habitual perspicácia, compreendeu o verdadeiro teor d a
política da corte . Em v e z de promover a paz, começou a preparar- se acti­
vamente para a guerra . S eria, de comum acordo, uma campanha limi ­
tada contra o príncipe-bispo alemão de Trier, em cuj o território, em
Coblença, Artois e C ondé tinham estabelecido a sua corte . O tamanho do
exército emigrado - quatro mil homens - não lhe permitia levar a cabo
5 03

uma campanha sozinho mas era suficiente para servir de casus belli.
Narbonne exigiu à Legislativa um subsídio especial de vinte milhões de
libras francesas ( em numerário, não em papel-moeda) para gastar em pre­
parativos militares, e em finais do ano estabeleceu o protótipo do ministro
da Guerra popular ao deslocar- se à fronteira para inspeccionar fortificações
e munições e dirigir a saudação patriótica nos campos militares .
Se tudo isto parecia u m a encenação tirada d o manual d e Lafayette,
não era por acaso. O general não recuperara verdadeiramente a sua cre ­
dibilidade depois da fuga para Varennes e fora humilhado nas eleições
para a presidência da Câmara de Paris, em Outubro, nas quais perdera
estrondosamente para Jérôme Pétion. Tinha-se retirado para a sua pro­
priedade no Auvergne e estava a fazer pressão para que lhe fosse atribuído
um comando militar que lhe permitisse restaurar a sua reputação . Uma
guerra patriótica limitada contra o Eleitor de Trier parecia uma aposta
certa e Narbonne fez-lhe prontamente a vontade. Restava garantir a neu­
tralidade britânica na eventualidade de hostilidades, e em meados de
Janeiro Talleyrand foi enviado a Londres numa missão não oficial para
conseguir esse compromisso.
Louis de Narbonne e Talleyrand eram bons amigos desde há algum
tempo e a sua amizade não fora de todo comprometida pela substituição
do segundo pelo primeiro como amante da notável filha de Necker,
Germaine de Stael. Madame de Stael fora uma conquista invulgar para
Talleyrand . Era articulada e generosamente emocional mas também
capaz, de quando em quando, de uma ironia que igualava a dele .
Fisicamente, era uma Juno de ossos largos, muito dada aos turbantes e ao
vestuário pseudo-oriental. Durante algum tempo, os prazeres partilhados
da alegre inteligência de ambos e a natureza genuinamente afectuosa de
Germaine fê -los felizes como amantes, mas a sua relação foi mais pro­
funda e mais douradora como amigos. Na recomendação de Talleyrand
por Narbonne para a missão a Londres não parece ter existido nenhuma
estratégia romântica, mas sim um acto de boa vontade e a perspicácia de
compreender que o ex-bispo tinha mais vocação para a diplomacia do que
para o episcopado.
Esta primeira missão daquela que seria a carreira diplomática mais
espectacular da época foi também a mais fácil para Talleyrand, pois a
administração de William Pitt decidira que não seria do interesse da Grã ­
-B retanha envolver- se num conflito europeu. Todavia, isto não impediu
que Talleyrand fosse exposto à força devastadora do snobismo dos britâ­
nicos, muitos dos quais viraram as costas ao notório velhaco -bispo revo ­
lucionário e voltaireano . Tal como Mirabeau, Talleyrand convencera -se há
muito de que o entendimento anglo-francês era a condição para a sobre ­
vivência da França, mas o seu entusiasmo por este proj ecto foi testado aos
limites com a sua contundente rej eição pela sociedade culta britânica.
Simon Schama 1 CIDADÃOS

E para aumentar a sua humilhação, o seu amigo militar, B iron ( outrora


duque de Lauzun ) , foi preso ao tentar comprar cavalos para o exército e
teve de ser socorrido. Por fim, Grenville2 e Pitt encontraram-se com
Talleyrand. Pitt reuniu-se com Talleyrand em finais de Janeiro de 1 792 e
durante a entrevista invernal, Talleyrand envidou esforços para desanu ­
viar o ambiente aludindo a um encontro que tinham tido dez anos antes,
em Reims, mas não conseguiu melhorar a fria qualidade da reunião . Dado
que Talleyrand não estava devidamente acreditado, não podia esperar
nenhum compromisso nem qualquer outra coisa do governo de Sua
Majestade . Era tudo !
De qualquer dos modos, nos primeiros meses de 1 792, a situação dei­
xou de ser tão premente porque a ameaça de guerra diminuiu, mais
devido à atitude cautelosa do imperador Leopoldo do que a qualquer vira ­
gem súbita para a paz da política francesa.
S e o partido da guerra na corte e na Assembleia Legislativa estava à
procura de um adversário colaborantemente belicoso, não poderia ter
encontrado pior do que o imperador. Leopoldo era o mais novo dos filhos
dotados de Maria Teresa e herdara do irmão, José, um império em estado
de insurreição. Províncias inteiras, da Holanda à Hungria, estavam em
rebelião contra as políticas dramaticamente anti-aristocráticas e utilitárias
instituídas por José II na sua extraordinária década de reinado. No leito de
morte, tinham sido revogadas muitas das reformas, entre as quais o
imposto fundiário, mas Leopoldo necessitou de qualidades excepcionais
de tacto e de inteligência pragmática para conduzir o Império Habsburgo
pela tempestade. Além do mais, os seus principais problemas de política
externa não estavam a ocidente mas sim no Leste, na Polónia, onde a
Rússia e a Prússia estavam a afiar as facas para uma nova partilha do infe ­
liz reino, e no Levante, onde uma guerra sem sucesso contra a Turquia
estava a abrandar.
Aliás, a visão que Leopoldo tinha do mundo era, em muitos aspectos,
mais próxima da de C ondorcet do que da de Artois, o emigrado mais
agressivo na sua insistência numa guerra de restauração. Enquanto grão­
-duque da Toscana, Leopoldo fora um modelo do absolutismo esclarecido,
tendo abolido a tortura e a pena de morte e iniciado uma codificação j urí­
dica com base nos princípios recomendados pelo grande reformador mila -
nês Cesare B eccaria . Não precisava de lições dos Franceses sobre os custos
e oportunidades da criação de um E stado moderno.
Mas ao mesmo tempo não podia ignorar por completo a situação afli­
tiva da irmã e do cunhado. Não via Maria Antonieta há vinte e cinco anos,
e de qualquer dos modos fora sempre mais crítico do que José acerca da
sua futilidade . No entanto, desde o traumático Outubro de 1 789, também

2 Grenville era o secretário dos Negócios Estrangeiros . ( N. do T. )


5 05

compreendera que a rainha e a sua família poderiam, em qualquer


momento, correr perigo físico . Por outro lado, entendia que uma acção
militar da sua parte tenderia a aumentar esse perigo. Por conseguinte,
durante dois anos manteve -se cautelosamente atento, procurando conso­
lar e acalmar a irmã por intermédio do embaixador Mercy d' Argentau e
permanecendo surdo às repetidas solicitações de Artois para envolver o
Império numa campanha contra -revolucionária. Só quando recebeu a
informação incorrecta de que a fuga da família real de Paris tivera êxito e
de que a família estava a salvo é que ele escreveu ofegantemente à rainha:
"Tudo o que tenho é vosso, dinheiro, tropas, tudo. "
Quando s e tornou evidente que, longe d e terem recuperado a sua
liberdade, o rei e a rainha se encontravam numa situação ainda mais afli­
tiva e que um "comité austríaco" era culpado da fuga pela imprensa de
Paris, a atitude de Leopoldo regressou à prudência. No entanto, passou a
ser uma preocupação activa e não passiva, guiada pelo princípio de que as
potências da Europa tinham o dever de dissuadir a França de tudo o que
pudesse colocar a monarquia em perigo e conduzir a uma guerra irrevo­
gável e sangrenta. Foi este o propósito da circular de Pádua, em Julho, e
da aproximação, no mesmo mês, ao inimigo tradicional dos Habsburgos,
a Prússia Hohenzollern. Quando Leopoldo se encontrou com o rei
Frederico Guilherme nas termas de Pillnitz, na S axónia, em finais de
Agosto, Artois apareceu sem ser convidado. C ontudo, a declaração
comum que resultou da reunião foi tanto uma expressão da resistência de
ambos os soberanos aos apelos a uma guerra de intervenção como da sua
preocupação com a segurança da família real.
O texto da Declaração de Pillnitz afirmava que o destino da monarquia
francesa era de " interesse comum" para as duas potências e apelava à res­
tauração da sua plena liberdade . Caso se ignorassem os avisos para que o
rei e a rainha não fossem molestados, ficava a insinuação de que poderia
ter de ser consertada uma acção conj unta . Que a declaração foi profilác­
tica e não agressiva decorre manifestamente da ênfase colocada por
Leopoldo na indispensabilidade de um acordo colectivo de todas as gran­
des potências antes de ser contemplada qualquer acção. Sabendo-se que
a Grã-B retanha não concordaria com nenhum plano semelhante, a decla­
ração podia, ao mesmo tempo, soar honrosamente firme sem comprome ­
ter a Á ustria com plano nenhum. Todas as provas indicam que o tom
belicoso da declaração se destinou a aj udar os feuillants a estabilizar a posi­
ção da monarquia e a usar a ameaça de uma guerra europeia contra os
republicanos. Isto foi confirmado pelo facto de Leopoldo e o seu conse ­
lheiro, o octogenário Kaunitz, estarem interessados que o acordo consti­
tucional trabalhado por Barnave tivesse uma hipótese de sucesso. Se fosse
viável, escreveu Kaunitz, seria "um acto de terrível loucura" deitá -lo a
perder com uma aventura nas linhas propostas pelos emigrados. Se não
S imon Schama 1 CIDADÃOS

fosse viável, seria melhor deixá-lo ruir sozinho do que ser visto como
ameaçado pela mão escondida do " comité austríaco" .
N a sua racionalidade serpentina, não foi uma obra típica d a diploma­
cia do século XVIII ( nem de nenhum século ) . No entanto, a sua predis­
posição para fazer algo diferente do que parecia dizer coloca a Declaração
de Pillnitz no extremo oposto da expressão discursiva do mundo do
patriotismo revolucionário. Embora a linguagem diplomática, desde a
época dos arautos, recorresse habitualmente aos subterfúgios e pressu­
pusesse distinções entre intenções ostensivas e reais que seriam lidas
pelos destinatários das suas mensagens, a linguagem dos cidadãos que­
ria -se transparentemente sincera, directa e não mediada . Face à elevada
lei moral da autodeterminação abraçada pela Revolução, nem a lingua ­
g e m d o s tratados entre príncipes tinha qualquer valor. C omo podia o
papa pretender- se soberano de Avinhão ou quaisquer príncipes alemães
do Império exigir direitos de propriedade na Alsácia quando os cidadãos
desses lugares não tinham consentido na alienação do seu território?
Com este tipo de critérios morais elevados, era fácil apresentar a
Declaração de Pillnitz como uma afronta directa à soberania do povo, o
primeiro estágio de uma guerra contra -revolucionária . Estava a ser pla­
neada " uma conspiração gigantesca contra a liberdade não só da França
mas também de toda a raça humana ", disse Hérault de Séchelles, ex-par­
lamentar e jacobino confesso, mas a luz brilhante que emanava da
Revolução penetraria no véu da obscuração que os tiranos tinham lan­
çado sobre as suas maquinações.
A crise da guerra de 1 79 1 e 1 792 é frequentemente vista pelos histo ­
riadores modernos ( muitos deles pouco interessados na história diplomá ­
tica ) como uma aberração da Revolução, algo tão obviamente disparatado
que apenas é explicável no contexto das tácticas dos brissotins para rouba­
rem o poder aos feuillants. Todavia, esta visão instrumentalista da guerra
revolucionária não compreende que a guerra patriótica foi, de facto, o cul­
minar lógico de quase tudo o que a Revolução representava. Afinal de
contas, a Revolução tinha resultado dos esforços patrióticos na América e
continuava a definir-se, através das alusões a Roma, como o revigora­
mento do poder nacional através da transformação política . Desde o prin­
cípio, existia uma tendência de desafio nervoso nas declarações
revolucionárias que ao nível popular se traduzira amiúde em paranóia.
Em 1 789, tinham abundado os rumores de que os Austríacos estavam nas
fronteiras, de que os navios britânicos rumavam à B retanha e de que os
degoladores espanhóis se preparavam para invadir o Rossilhão . Pior
ainda, partira -se do princípio de que os invasores tinham colaboradores
em França que colocavam os seus interesses seccionais egoístas acima dos
da patrie. Precisamente porque o novo mundo político era definido como
"a Nação", aqueles que eram considerados seus inimigos - os aristocratas,
5 07

os padres refractários, a rainha "austríaca" - eram estigmatizados como


estrangeiros mesmo quando as suas credenciais eram tão autóctones
como as dos autodesignados "Patriotas" .
Acrescentado a tudo isto existia paradoxalmente uma espécie de uni­
versalismo filosófico que tornava ainda mais difícil a Revolução agir de
forma pragmática. A D eclaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e
as asserções dos direitos naturais nos quais a constituição se baseava eram,
por definição, universalmente aplicáveis. C omo podiam os homens nascer
para a liberdade em igualdade num canto do mundo e não noutro? Por
conseguinte, embora a Constituinte tivesse promulgado, em 1 790, uma
Declaração de Paz renunciando a toda e qualquer guerra de conquista, a
própria declaração tivera um ar de sermão sentencioso aos não ilumina­
dos. "A trombeta que tocou o despertar de um grande povo chegou aos
quatro cantos do globo", afirmou Anacharsis C loots, o grande especialista
da liberdade internacional. Durante algum tempo, este tipo de declaração
messiânica pôde ser ignorado como um delírio utópico mas quando a
situação internacional pareceu tornar- se ameaçadora, na segunda metade
de 1 79 1 , os cosmopolitas amistosos transformaram-se em cruzados. "Os
franceses tornaram-se o principal povo do universo", proclamou Isnard,
"pelo que a sua conduta tem de corresponder ao seu novo destino.
Enquanto escravos, foram ousados e grandes; agora que são livres, vão ser
tímidos e fracos?"
Antes da Revolução, B rissot tinha feito uma carreira de solidariedade
para com outros irmãos livres na sua S ociedade Galo -Americana, pelo que
uma abordagem missionária à libertação internacional era algo de natural
para ele . Do mesmo modo, o seu colega e amigo Etienne Claviere fora
proeminente entre os democratas genebrinos cuj a insurreição contra os
patrícios dessa república tinha sido suprimida por Vergennes, em 1 78 2 . Já
existiam em Paris clubes de "Alóbroges Livres" ( Suíços) e de "B atávios"
( Holandeses ) , que se viam como parte de uma liga internacional contra os
"tiranos" e que estavam desej osos de enviar legiões armadas para comba­
ter ao lado dos Franceses na libertação das suas respectivas pátrias.
No dia 14 de Outubro, B rissot, que controlava o importantíssimo
Comité Diplomático da Legislativa, versou sobre todos estes temas num
longo e poderoso discurso. Tratou -se, com efeito, de um extenso seminá­
rio sobre todos os males sofridos pelos interesses nacionais franceses às
mãos das potências absolutistas e, em particular, da Áustria, aparente
aliada da França desde o tratado de 1 7 5 6 . C onduzindo os seus ouvintes
através de um desfile de inj ustiças e indignidades, B rissot delineou os con­
tornos de u ma vasta conspiração que se estendia por toda a Europa desti­
nada a isolar e estropiar para sempre o poder francês. Através de uma
série de perguntas retóricas, B rissot foi colocando as peças no puzzle.
Porque tinha a Rússia concluído subitamente a paz com a Turquia na sua
S imon Schama 1 CIDADÃOS

fronteira oriental, a não ser para se concentrar em algo mais sinistro?


Porque tinha o rei da Suécia, que se sabia correspondente com a rainha
desde a sua visita a França, na década de 80, mobilizado os seus exérci­
tos? Aliás, porque tinham a Á ustria e a Prússia, dois arqui-inimigos, caído
nos braços uma da outra em Pillnitz? A resposta a todas estas perguntas
era um punhal apontado ao coração da única nação verdadeiramente
livre do Velho Mundo.
O discurso de B rissot teve um efeito dramático sobre a Assembleia, não
porque recorresse exclusivamente a novos conceitos de polaridade revo ­
l Ú cionária entre as nações livres e as " escravizadas", mas porque apelou a
conceitos convencionais ou mesmo tradicionais de interesse nacional, e
especialmente à "honra" e à "glória" da França, termos mais geralmente
associados a Luís XIV. E ste "novo" patriotismo foi tão irresistível e entu ­
siasmante precisamente por ser uma reformulação romântica de temas
históricos muito mais antigos - sangue, honra e solo. Quando B rissot con­
cluiu, exclamando, "Digo-vos que deveis vingar a vossa glória ou conde ­
nar-vos-eis à desonra eterna ", foi saudado com uma ovação estrondosa,
não só dos seus apoiantes mas também da esmagadora maioria dos depu­
tados não alinhados do centro .
Agora que estava comprometido com uma política de guerra ( embora
por motivos contrários aos dos brissotins) , o rei pôde responder de forma
activa a estas tentativas de substituição do monarca pelo Povo em Armas
como corporização do patriotismo francês . Foi este o significado do seu
aparecimento na Assembleia, no dia 1 4 de Dezembro, para exigir a dis­
persão do campo de emigrados de C oblença e como que para lhe fazer a
vontade, o Eleitor de Trier cumpriu prontamente o ultimato. No entanto,
este foi o sinal para uma campanha renovada de exortações patrióticas na
imprensa e na Assembleia, directamente concentrada na ameaça austríaca
que se dizia estar a ser mobilizada nas fronteiras. As provas que consubs­
tanciavam esta afirmação eram as notas agressivas enviadas de Viena rela­
tivas às propriedades principescas da Alsácia e as ordens ao comandante
austríaco da Holanda ( B élgica ) , o general Bender, para prestar assistência
ao Eleitor de Trier na eventualidade de uma invasão francesa do seu ter­
ritório. Tal como T. C. W. B lanning deixou claro no seu perceptivo traba­
lho sobre a eclosão da guerra, o tom mais abrasivo de Kaunitz baseou - se
numa leitura fatidicamente errada da política francesa. Os Austríacos
autocongratulavam-se infundadamente por terem instalado os feuillants
no poder como resultado da Declaração de Pillnitz, e pensaram que outro
gesto similarmente ameaçador salvaria o governo da belicosidade combi­
nada da facção Lafayette-Narbonne e dos brissotins. Escusado será dizer,
teve precisamente o efeito contrário.
A última semana 1 79 1 e as duas primeiras de 1 792 assistiram a uma
sucessão de extraordinários desempenhos retóricos pelos principais brissotins,
5 09

reiterados nos clubes jacobinos e impressos para distribuição pelas pro­


víncias . Ao mesmo tempo que desdenhavam do general B ender, que era
alvo de uma zombaria ultraj ante nas caricaturas populares, os discursos
jogaram com os receios populares de vingança e apelaram à constituição
de um exército de cidadãos-soldados que mostrasse ao mundo a invenci­
bilidades dos livres. No dia de Natal, Elie Guadet, incapaz de conter as suas
paixões como impõe o decoro, salta da cadeira do presidente para a tri­
buna . " S e a Revolução marcou 1 78 9 como ano primeiro da liberdade
francesa, a data de 1 de Janeiro de 1 792 marcará este ano como o ano pri­
meiro da liberdade universal. "
D ois dias depois, Pierre Vergniaud, cuj a oratória s ó podia ser desafiada
por Mirabeau como a mais poderosa e entusiasmante de todas as torren­
tes de retórica produzidas durante a Revolução, faz o discurso decisivo,
pintando um retrato assustador de emigrados assassinos abençoados por
padres fanáticos congregados nas fronteiras da patrie.

Os satélites audaciosos do despotismo, que transportam quinze séculos de


orgulho e barbárie nas suas almas feudais, exigem em todas as terras e a
todos os tronos ouro e soldados para reconquistar o ceptro da França .
Haveis renunciado às conquistas mas não prometestes sofrer estas provo­
cações insolentes. Haveis-vos libertado do j ugo dos vossos déspotas, e não
foi certamente para dobrar com ignomínia o joelho perante tiranos estran­
geiros e submeter o sistema da vossa regeneração às políticas corruptas dos
seus governos.

De seguida, Vergniaud usa aquele que se tornará um tema-padrão da


cruzada revolucionária: o juramento de auto-imolação patriótica. " S im, os
representantes da França livre, inabalavelmente ligados à constituição,
serão sepultados sob as ruínas do seu templo antes de vos propor [ao
povo] a sua e a vossa indigna capitulação. " A sua coda é uma evocação
tipo hino da nobreza das armas francesas que antecipa os discursos de
Napoleão B onaparte em campanha, que são muito mais fracos . Aquando
da conclusão do discurso, o Manege em peso, incluindo as galerias públi­
cas, está de pé acenando com os chapéus, gritando juramentos de fideli­
dade, arrastado por uma grande maré de entusiasmo patriótico :

Liderados pelas paixões mais sublimes sob a bandeira tricolor que haveis
gloriosamente plantado nas ruínas da B astilha, que inimigo ousará atacar­
-vos? . . . segui o vosso grande destino que conduz ao castigo dos tiranos que
vos colocaram as armas na mão . . . Union et courage! A glória espera-vos. Os
reis aspiravam ao título de cidadãos romanos; está nas vossas mãos fazê-los
invej ar o título de Cidadãos de França !
Simon Schama 1 CIDADÃOS

A guerra seria, pois, para os brissotins, aquilo a que Madame Roland


chamou " uma escola de virtude", muito como fora para as viris legiões de
Roma . De entre os jacobinos, só uma voz de significado se levantou con­
tra este truísmo, a de Maximilien Robespierre . Robespierre aprovara ori­
ginalmente a retórica marcial como meio de forçar a mão do rei mas o
manifesto desej o de guerra de Narbonne fizera- o reconsiderar. Uma
guerra, argumentou ele de forma cogente, faria o j ogo da corte ou daria
origem a uma ditadura militar. Quanto ao suposto benefício para o resto
da humanidade que aguardava a Primavera da sua libertação, "Ninguém",
declarou ele profeticamente, "gosta de missionários armado s " . Mais tarde,
quando presidir à máquina mais formidável de mobilização militar vista
na Europa, renegará estas opiniões. Na verdade, elas são alguns dos sen­
timentos mais verdadeiros que ele alguma vez expressou.
No dia 25 de Janeiro de 1 792, o C omité Diplomático de B rissot con­
vence a Legislativa a enviar a Viena o que equivale praticamente a um
ultimato. Exige -se ao imperador que explique a sua conduta em relação
aos emigrados e que além de desistir de lhes prestar aj uda e apoio se com­
prometa (ao abrigo dos termos do tratado de 1 7 5 6 ) a nunca se aliar com
um inimigo da França . A resposta é igualmente incisiva. Kaunitz apega -se
erradamente à opinião de que, em última análise, os Franceses estão tão
mal preparados para a guerra que não se atreverão a fazê -la. Existe
alguma verdade no pressuposto de que o exército não está em condições
de montar uma grande campanha mas as informações prussianas nas
quais Kaunitz se baseia exa geraram o grau da desorganização. No dia 1 de
Janeiro, os príncipes emigrados são declarados traidores e perdem as suas
terras e títulos. No dia 1 7, pela primeira vez, uma nota de Viena exige,
além da devolução das terras alemãs na Alsácia e da libertação da família
real, a devolução de Avinhão e do C omtat3 ao papa . No dia 7 de Fevereiro,
a Áustria e a Prússia concluem uma aliança formal.
A data limite para a Á ustria responder às exigências francesas ao abrigo
do tratado de 1 7 5 6 é o dia 1 de Março (a questão foi praticamente tratada
como um desafio para um duelo, uma prática que ainda é comum mesmo
entre os revolucionários, que no entanto a desprezam oficialmente como
sendo uma "superstição" ) . Leopoldo morre nesse mesmo dia e sucede-lhe
o filho, Francisco, um solene peso pluma que, muito mais do que o fale­
cido imperador, está nas mãos dos seus conselheiros. Estes estão muito
mais dispostos do que o velho Kaunitz a apanhar a luva atirada pela
Legislativa, em especial porque Maria Antonieta lhes envia planos deta­
lhados dos preparativos militares franceses logo que são discutidos no
conselho real. Sej a como for, a decisão é tirada das mãos dos Austríacos
por uma crise ministerial que sobrevém em França . O ministro dos

3 Ou Condado Venaissin, a região em torno de Avinhão. ( N. do T. )


511

Negócios Estrangeiros, de Lessart, respondeu com tibieza à mais recente


missiva severa de Viena, e no dia 1 de Março a humilhante troca de cor­
respondência é lida na Assembleia, com o infeliz ministro sentado num
dos banquinhos à frente da mesa do presidente . A reacção dos brissotins é
um ataque terrível à incapacidade dos feuillants para fazerem frente à
Áustria e à Prússia, acusando não só De Lessart mas também Bertrand de
Moleville, o ministro da Marinha, de uma espécie de traição disfarçada.
Narbonne j unta-se à ofensiva e, no dia 9 de Março, é exonerado pelo rei .
Uma semana depois, Vergniaud exige a exoneração de De Lessart.
Durante cerca de uma semana, Luís XVI anda desesperado, à procura
de uma administração que possa sossegar a gritaria. Por fim, recordando­
se talvez do conselho de Mirabeau de retirar o ferrão aos adversários
cooptando- os, constitui um governo completamente aceitável para
Brissot e seus amigos: Claviere, o inventor do assignat, • vai para ministro
das Finanças, e Roland, o ex-inspector das manufacturas para ministro do
Interior; Charles D umouriez, ex-comandante de Cherburgo, a menina dos
olhos de Luís XVI, já foi nomeado ministro dos Negócios E strangeiros no
dia 1 de Março. D umouriez, que estava na casa dos cinquenta, é o único
que destoa - é mais fayettista do que brissotin - mas possui a experiência
militar e o engenho político capazes de conter a crise .
A mudança de governo é entendida em Viena como uma declaração
de guerra, até porque um emissário especial da rainha chegou recente ­
mente com más notícias . Trata-se do engenheiro Goguelat, uma das figu­
ras miseráveis que esperou pela berlinda com o duque de Choiseul na
estrada para Montmédy. Perante o conselho imperial, o engenheiro dá
como certa a iminência da guerra e transmite a convicção de Maria
Antonieta de que, com toda a probabilidade, irá ser j ulgada em tribunal .
Na segunda semana de Abril, cinquenta mil soldados austríacos são des­
locados para a fronteira belga .
No dia 2 0 de Abril, Luís XVI desloca-se à Assembleia para ouvir o
relato oficial de Dumouriez da situação que a França enfrenta . A Casa de
Áustria, diz ele aos deputados, "escravizou" a França às suas ambições
desde 1 7 5 6 . A anulação do tratado, diz Gensonné, será um acto de alegre
destruição semelhante à demolição da B astilha . Exige -se a guerra, uma
exigência apenas contestada por alguns deputados que comungam da opi­
nião de Robespierre . Um deles, Becquet, do Alto Mame, avisa que "fica­
remos com a reputação de sermos um povo agressivo e irrequieto que
perturba a paz da Europa e ignora os tratados e o direito internacional" .
Estes avisos são ignorados com uma grande aleluia d e afirmação patrió­
tica. Anacharsis Cloots está fora de si com entusiasmo messiânico :

4 Papel-moeda que começou a ser emitido depois do confisco dos bens da Igreja devido

à situação de falência em que o governo se encontrava. Surgiram como títulos mas torna­
ram-se progressivamente uma moeda . (N. do T. )
S imon Schama 1 CIDADÃOS

Eis a crise do universo. Deus desemaranhou o caos primitivo; os Franceses


desemaranharão o caos feudal . . . porque os homens livres são Deuses na
terra . . . (os reis] fazem-nos uma guerra ímpia com soldados escravos e
dinheiro extorquido; nós faremos uma guerra santa com soldados livres e
contribuições patrióticas.

O comandante- em-chefe daquilo a que B rissot chamou " uma cruzada


pela liberdade universal" na qual cada soldado dirá ao seu inimigo,
"Irmão, não vou cortar-te a garganta . . . vou mostrar-te o caminho da feli­
cidade ", não está visivelmente contente . Com uma voz mortiça e tre ­
me.nte, Luís XVI lê a declaração de guerra como se fosse uma sentença de
morte para si próprio. E é .

III "A MARSELHESA"

Cinco dias depois da declaração de guerra, a guarnição de Estrasburgo


prepara-se para a "cruzada pela liberdade universal" prometida por
Brissot. É organizado um j antar público no qual muitos dos oficiais oriun­
dos da nobreza liberal, entre os quais, de Broglie, d' Aiguillon e Kleber,
confraternizam com os notáveis patriotas da cidade, um dos · mais impor­
tantes dos quais é o barão D ietrich, ci-devant e o presidente da Câmara. Os
brindes são aos temas favoritos da guerra : morte aos déspotas, viva a patrie
da Liberdade. Alguém pergunta ao j ovem engenheiro militar Rouget de
Lisle, que construiu uma pequena reputação em Paris como compositor,
se ele não é capaz de escrever uma canção que envie os exércitos para a
fronteira com uma marcha patriótica . É que o ritmo saltitante de " Ç a ira"
não é propriamente adequado para o passo militar.
Rouget de Lisle possui alguma experiência neste domínio . Nascido no
seio de uma família da pequena nobreza rural do Franco - C ondado,
ganhou uma bolsa para a academia de engenharia militar, em Mézieres,
onde conhece Lazare Carnot e Prieur de la Côte d'Or. Apesar de compe­
tente como sapador, rouba tempo à construção de pontes e de carretas de
artilharia para compor árias no estilo airoso que vendia bem em Paris.
Depois de cinco anos de composição a tempo parcial, Rouget de Lisle
decide tentar a sorte na capital, onde se liga de amizade com Grétry. O seu
estilo torna -se mais sério : um "Hino à Liberdade " merece honras de pro ­
dução mas na grande festa de celebração da aceitação da constituição pelo
rei é interpretada a versão de Ignaz Pleyel, compositor de Estrasburgo .
Com esta banal mistura de talentos, o engenheiro musical sai-se com
o " C hant de Guerre de l'Armée du Rhin" ( C anto de Guerra do Exército
do Reno ) . Revigorado pela sensação da contenda iminente e fortificado
pelo champanhe, Rouget de Lisle trabalha durante a noite de 1 5 de Abril
513

e de manhã apresenta a partitura a Dietrich ( o presidente da câmara inter­


preta- a para si próprio três dias mais tarde, com algum enfado ) .
A canção que, sob o nome de " A Marselhesa", sobreviverá quando
todas as obras de Pleyel, Gossec, Méhul e Grétry serão esquecidas foi uma
invenção espantosa, algo como um discurso de Pierre Vergniaud musi­
cado, uma melodia e um ritmo para acelerar as pulsações e pôr o sangue
a correr mais depressa. Quando a mulher de Dietrich e Gossec lhe incluem
as harmonias para uma banda militar, floresce num grande hino avassa­
lador de comunhão patriótica. Nunca se escreveu - nem se escreverá -
nada que chegue aos calcanhares da " Marselhesa" em termos de expres­
são da camaradagem dos cidadãos em armas.
O s grandes temas emotivos da Revolução - a família, o sangue e o
solo - têm ali a sua voz. A primeira estrofe é o drama familiar. A patrie
chama os seus enfants às armas para defenderem os seus entes queridos
(vos fils, vos compagnes) das hordas de mercenários que se aproximam
apostadas na chacina. A melodia diminui brilhantemente para um mur­
múrio sinistro perante a aproximação do terror, que é repelido pelo
grande apelo "Aux armes, citoyens!", que se repete como coro a seguir a
cada estrofe . D urante toda a canção, imagens de sangue e carnificina são
usadas para assustar e inspirar. O étendard sanglant ( estandarte ensan­
guentado) foi erguido contra os enfants de la patrie; por conseguinte, o
sang impur, o sangue maculado dos tiranos, deve abreuve les sillons, irrigar
o solo da nação. Apesar de macabras, as imagens ecoavam de forma
exacta os sentimentos contemporâneos. Pouco tempo antes, um j ovem
estudante escrevera ao pai para j ustificar a sua decisão de se alistar como
voluntário declarando que "a nossa liberdade só poderá ser garantida se
tiver por leito um colchão de cadáveres . . . C onsinto tornar-me um desses
cadávere s " .
A "Marselhesa" não foi, pois, uma canção revolucionária do Sul.
O hino patriótico recebeu o seu nome quando um grupo de guardas fede­
rados de Montpellier o levou para Marselha a caminho do seu campo
militar, em Paris. Os militantes revolucionários parisienses que transfor­
maram os quinhentos soldados de Marselha em heróis idealizados da
"segunda revolução" associaram-nos ao novo hino mas a canção proveio
das fronteiras oriental e norte, não nasceu da fanfarronice jacobina, com
as suas ameaças de forca para os aristocratas como as de " Ç a ira " . Nasceu
do tenso desafio aos "tiranos" quando a Revolução se preparava, pela pri­
meira vez, para enfrentar os exércitos da monarquia absolutista .
Não sabemos se aqueles primeiros soldados saíram de Lille com destino
à cidade belga de Tournai com a canção de Roget de Lisle nos lábios, mas
se foi isso o que aconteceu, de nada lhes serviu. Num contraste embara­
çoso não só com o invencível optimismo do hino mas também com as cer­
tezas igualmente abundantes da retórica brissotin, a primeira campanha
Simon Schama 1 CIDADÃOS

das guerras que durarão vinte e três anos e causarão milhão e meio de
mortos franceses começou como um fiasco patético .
O que aconteceu foi de sobremaneira escandaloso porque os coman­
dantes nomeados para os três teatros de guerra principais eram veteranos
famosos da última campanha de sucesso da França, na América. Lafayette
recebeu a frente central, no Mame, o general Luckner a fronteira da
Alsácia e Rochambeau, o herói de Yorktown e Saratoga, a zona mais crí­
tica, a fronteira belga, a norte . As visitas de inspecção de Narbonne tinham
procurado esconder a realidade mas Rochambeau estava ciente de que em
termos de quantidade, prontidão e disciplina das tropas, os exércitos fran­
ceses estavam muito pouco preparados para enfrentar os Austríacos.
O colapso da hierarquia regimental assinalado pelo motim de Nancy, em
1 790, não fora travado pela repressão. De facto, o aumento da emigração
entre os oficiais depois de Varennes tinha convencido ainda mais a solda ­
desca de que os seus superiores hierárquicos não eram de confiança e
poderiam estar a trair a pátria disfarçados de seus comandantes.
Estas suspeitas terão consequências letais para Théobald Dillon, o
comandante das forças enviadas contra Tournai. Primo de Lucy de La Tour
du Pin, Dillon era um produto típico da nobreza liberal, patriótico, capaz
e certamente hostil aos emigrados. Mas tal como muitos outros oficiais de
carreira, simpatizava com Lafayette e desconfiava do governo brissotin .
Dillon fora incumbido por Dumouriez de entrar em acção no teatro de
operações belga, uma zona que, acreditava o ministro, estava à espera de
um sinal dos Franceses para dar início a uma grande insurreição antiaus­
tríaca. A missão de Dillon era realizar u:ina expedição modesta contra
Tournai, que se pensava estar mal defendida. Dillon dispunha de cinco mil
homens, na sua maior parte cavalaria regular, complementada com uma
força de soldados voluntários. O tamanho do contingente parecia garan­
tir de antemão o sucesso.
Mas as expectativas viram - s e desastrosamente frustrad a s . Em
Baisieux, a vanguarda da cavalaria começou a sofrer fogo de artilharia.
Num ápice, espalharam-se pelas fileiras francesas rumores de um avanço
austríaco. Uma retirada táctica - que fora pré-planeada - transformou-se
rapidamente num inglório sauve-qui-peut, liderado não pelos voluntários
mas pelos regulares da cavalaria. Apanhado na debandada, D illon refu ­
giou -se numa cabana de camponeses e cometeu o erro fatal de despir a
casaca do uniforme. Alertado pela propaganda patriótica que falava em
espiões e traidores, o lavrador convenceu-se de que tinha um em casa -
a comer-lhe o caldo - e alertou a guarnição de Douai. Levado sob escolta
para Lille, o infeliz general foi arrancado da sua carruagem por uma
turba de citadinos, soldados e guardas nacionais, golpeado no rosto e
finalmente baionetada até à morte no empedrado. O corpo de Dillon foi
pendurado num candeeiro e a perna esquerda foi cortada e passeada
5 15

como um troféu pela cidade; depois, o resto do cadáver foi atirado para
uma fogueira .
A péssima impressão transmitida pelo desastre de Tournai agravou-se
quando as forças de B iron não conseguiram atacar Mons, mas neste caso
o comandante foi preservado para perecer na guilhotina . Dado que os
Austríacos não se aproveitaram da desmoralização das tropas franceses,
pouco se perdeu estrategicamente, mas as consequências políticas do
desastre foram dramaticamente polarizadoras. À direita, muitos oficiais
superiores do exército de linha consideraram que ao menor revés se arris­
cavam a sofrer um destino idêntico ao de Dillon . Alguns demitiram- se, a
começar por Rochambeau, no vértice do comando do Norte; outros emi­
graram. Os que permaneceram nas fileiras, como o próprio Lafayette,
convenceram-se de que a pré- condição para a sobrevivência militar era a
restauração da ordem no exército e em Paris. Lafayette estava preparado
para fazer uso da força militar para impedir a ameaça de insurreição na
capital. No princípio de Maio, escreveu ao embaixador austríaco, Mercy
d'Argenteau, propondo-lhe uma suspensão das hostilidades enquanto
lidava com os militantes de Paris.
Mas os inimigos de Lafayette não eram obtusos. A interrupção dos
combates confirmou as suas suspeitas de que os comandantes presentes
no terreno estavam mais interessados em atacá -los a eles do que aos
Austríaco s . E sta impressão pareceu confirmada com a deserção en masse
massa de quase todo o Regimento Royal -Allemand, a cavalaria que
tinha carregado sobre a manifestação popular na Praça Vendôme e nas
Tulherias no dia 1 2 de Julho de 1 7 8 9 . "Não confio nos generais", disse
Robespierre nos Jacobinos; "são quase todos uns saudosistas da velha
ordem " . Este sentimento da existência de sabotagem por homens que se
tinham instalado em posições de comando estendeu -se às queixas eco­
nómicas e sociai s . A depreciação do papel-moeda, que aumentou a
inflação dos preços dos bens alimentares, foi atribuída à especulação
monetária sistemática e de motivação política . A colheita de 1 7 9 1 fora
entre mediana e medíocre mas em algumas regiões, especialmente no
Sul e no Sudeste, as carestias eram agudas. A Revolução orientava bens
alimentares para as regiões afectadas mas com a desregulação do mer­
cado de cereais que fora o legado dos fisiocratas, os fornecimentos só se
consumavam depois de retidos tempo suficiente para garantir preços
elevados. E ra exactamente isto o que os economistas liberais tinham
recomendado para garantir a acumulação de capital na agricultura mas
as teorias, por muito boas que fossem, redundavam sempre em miséria,
pânico e motins. A frequência dos ataques às carroças, às barcaças e aos
depósitos, adormecida desde 1 789, disparou assinalavelmente . C om a
premissa adicional de que a " conj ura da fome" se enquadrava numa
tentativa contra - revolucionária para obrigar o povo à capitulação pela
Simon Schama 1 CIDADÃOS

fome, os ataques a pessoas e bens tornaram - s e generalizados e desen­


freado s . Por fim, as insurreições negras nas Í ndias Ocidentais Francesas
interromperam o abastecimento de açúcar e tornaram proibitivamente
caros outros produtos - por exemplo, o café - aos quais os trabalhadores
urbanos se tinham acostumado. O resultado, na Primavera de 1 792, foi
uma série de ataques às mercearias .
A acumulação destas queixas d e u a o s líderes e tutores da política
popular a oportunidade de emergirem do silêncio submisso ao qual
tinham sido remetidos pela repressão do Verão . Na Primavera de 1 792,
com Lafayette ocupado na frente e a presidência da câmara nas mãos do
cooperante Pétion e não do irritável B ailly, a imprensa militante e os clu ­
b e s populares ressuscitaram os seus seguidores. O L'Ami d u Peuple d e
Marat e o C lube d o s Cordeliers regressaram à liça e lançaram ataques furio­
sos contra a corte e o " comité austríaco", que estavam a sabotar a guerra,
e também, de forma mais generalizada, contra os ricos - que passaram a
ser especificamente caracterizados como a "burguesia" -, que se tinham
afastado do Povo e esquecido o quanto lhe deviam como tropa de choque
da Liberdade. Além do mais, havia vozes novas e distintamente violentas
erguidas para desentocar os traidores e punir os especuladores . O j ornal
de Jacques-René Hébert, o Pere Duchesne, recorria liberalmente às obsce­
nidades das tabernas para se insurgir contra os detentores do poder e
Jacques Roux, cura de Saint-Nicolas-des - Champs, num dos bairros mais
pobres de Paris, cheio de carregadores de mercado e trabalhadores precá ­
rios, exigiu a aplicação de uma justiça punitiva sumária aos responsáveis
pela fome dos Patriotas .
Não havia nada de novo nestas polémicas igualitário-cristãs e e r a pre­
cisamente o facto de serem familiares que as tornava tão populare s .
Remontavam à retórica anticapitalista e antimodernista de Mercier, que
elogiava o ofício e detestava o capital, e que fora uma das fontes mais
potentes da fúria revolucionária. E stava à vista a fase verdadeiramente
radical da Revolução, o seu derrube violento da elite culta e dos notáveis
que tinham dominado a C onstituinte e os movimentos reformistas desde
a década de 70 do século XVIII. D esde o início, foi este código de valores
agressivamente antiliberal e antipecuniário que mobilizou a população
para pegar em armas. A própria designação de sans-culottes ( sem calças)
foi uma espécie de romantização do mundo das oficinas artesanais, ao
insistir na incompatibilidade da virtude social com as meias e calças de
seda (peças de vestuário que o próprio Robespierre nunca deixou de
usar) . Na realidade, os líderes destes militantes sem calças de 1 79 2 e 1 7 9 3
emergiram amiúde não dos meios muito pobres mas dos estratos mais
prósperos dos ofícios e profissões artesanais. D e facto, alguns deles, como
o cervej eiro Santerre, não eram abastados, eram ricos. No entanto, enco ­
raj aram activamente os seus seguidores a exigirem coisas completamente
517

opostas ao individualismo económico : a regulação governamental dos


preços dos cereais e de outros bens alimentares, a aceitação obrigatória
do papel-moeda ao seu valor nominal e punições draconianas ( incluindo
a pena de morte ) para os suspeitos de açambarcamento ou especulação,
uma categoria notoriamente difícil de definir numa economia liberali­
zada. O paternalismo republicano deste programa foi resumido numa bro­
chura produzida em Lyon, em Junho, exigindo o estabelecimento de
preços fixos para os cereais a nível nacional - intitulava- se, com uma ino­
cência desarmante, Moyens Simples et Faciles de Fixer l 'Abondance ( Meios
Simples e Fáceis de C riar Abundância ) .
O que deu às exigências dos sans-culottes uma força muito particular em
1 792 foi a dimensão acrescida de patriotismo militar. Os opositores inter­
nos deixaram de ser um inimigo de classe definido de forma abstracta para
se tornarem "Austríacos" disfarçados de Franceses. De facto, afirmava-se
explicitamente que o sinistro e ubíquo " comité austríaco " que tanto caos
e desmoralização causava na frente de combate estava também a fomen­
tar calamidades domésticas destruindo bens alimentares. Era a ânsia per­
pétua de identificar e punir a quinta coluna de pseudo-patriotas que
alimentava a obsessão com o "desmascaramento " ( uma boa fixação rous­
seauniana ) dos jacobinos e dos cordeliers. Na Primavera e no Verão de
1 792, esta necessidade de distinguir entre o patriota falso e o verdadeiro
exige a aceitação de emblemas visíveis de autenticidade patriótica.
O mais importante é o barrete vermelho, o bonnet rouge. Não foi a
Revolução Francesa que inventou o simbolismo do barrete da liberdade.
Retirado de moedas romanas que mostravam escravos a receber o "bar­
rete frígio" no momento da sua emancipação, tinha uma história nas
artes gráficas, nas medalhas e nas inscrições que remontava pelo menos
à revolta holandesa do século XVI, e foi continuamente usado nas cul­
turas popular e douta durante dois séculos, geralmente sob a forma de
um chapéu de abas largas e topo chato . Na variante mais mole - o bar­
rete -, surge com frequência nas gravuras inglesas do século XVIII como
a image � pouca lisonj eira do radical John Wilkes criada por Hogarth,
em gravuras celebrando a liberdade americana na década de 70 do
século XVIII, no movimento dos Patriotas holandeses na década
seguinte e finalmente em muitas das imagens da Federação de 1 7 90,
especialmente em Lyon. O que os desenvolvimentos de 1 7 9 2 têm de
notável é a literalização do símbolo; além de reconhecerem o emblema,
as pessoas tinham de o usar. Em 1 7 9 1 , quando D avid desenhou o seu
homem do povo idealizado na sala do j ogo da péla, a sua cobertura de
cabeça era mais um emblema do que um verdadeiro chapéu. Um ano
depois, isto deixa de ser verdade. Robespierre, obviamente, nunca se
dignou a enfiar o barrete sobre os seus caracóis polvilhados, mas o artigo
começou a aparecer nos Jacobinos, entre os membros e os espectadores,
Simon Schama 1 CIDADÃOS

e nas sociedades populares e assembleias de secção mais militantes


depressa se tornou de rigueur. Até alguns oficiais do exército exigiram o
direito de usar o barrete em vez do tricórnio regulamentar.
Não admira, pois, que o momento ritual em que o homem a quem o
Fere Duchesne passara a chamar habitualmente "Louis le Faux" ou às vezes
-

simplesmente "le Faux-Pas", em alusão à fuga para Varennes - foi desmas­


carado como um não -rei tinha sido no dia 2 0 de Junho, quando um bar­
rete vermelho lhe foi enfiado sem cerimónias na cabeça. Despromovido
para soldado raso e destituído dos últimos atributos da maj estade ( a
Legislativa debatera longamente se deveriam continuar a chamar-lhe
" Sire " ) , Luís Capeto foi obrigado a beber à saúde do verdadeiro Povo
Soberano.
O que possibilitou que tal acontecesse foi a transferência do poder
armado daqueles que os jacobinos consideravam ser a quinta coluna para
as mãos dos Patriotas " de confiança " . O presidente da câmara, Pétion,
ignorou a restrições impostas aos clubes, às petições e à imprensa intro­
duzidas por Duport e Le Chapelier nos últimos dias da C onstituinte e
encoraj ou a distribuição de armas pelas assembleias de secção, convicto de
que poderiam ser necessárias para defender os seus aliados brissotins con­
tra qualquer tentativa de golpe de Estado militar. Para começar, assistiu­
-se a outra literalização de um emblema tradicional da liberdade, o pique,
senhor de uma linhagem quase tão antiga como a do barrete . Uma secção
de Paris rebaptizou-se "Les Piques" e Hébert disse aos seus leitores, "Aos
piques, bons sans-culottes, afiai-os para exterminar os aristocratas " . Não
obstante as hipérboles, a distribuição das longas e aceradas armas de ferro
não constituiu um acrescento de somenos à capacidade de violência
popular. Todavia, em Junho, as assembleias de secção começaram a admi­
tir cidadãos "passivos" nas suas companhias da Guarda Nacional sem pro­
curarem a necessária autorização formal. O seu equipamento incluía
·
armas que nada tinham de simbólico : mosquetes, rifles e, em alguns
casos, canhões.
Ao mesmo tempo, em finais de Maio, foi exigido formalmente ao rei
que dissolvesse a sua guarda pessoal de seis mil homens, na sua maioria
estacionados nas Tulherias . Este corpo integrara -se na estratégia de
Barnave de garantir à corte que uma monarquia constitucional teria
meios para se defender contra insurreições repetidas mas ele tivera de
dizer à rainha que os uniformes azul- celeste que ela preferia em detri­
mento do azul-escuro da Guarda Nacional estigmatizariam os guardas
como mercenários estrangeiros . O rei, como era seu hábito, trocou as
suas cartas altas pelas baixas e aceitou o desarmamento oficial, principal­
mente porque pretendia vetar um decreto que permitia que os padres
refractários fossem sumariamente deportados a pedido de uns meros
vinte cidadãos . Pouco depois, vetou também uma proposta do ministro
519

da Guerra, Servan, para o estabelecimento d e u m campo armado de


vinte mil federados provincianos que chegariam a Paris para as celebra ­
ções do 1 4 de Julho e que receberiam " instrução" (por um período de
tempo indeterminado ) antes de serem enviados para a fronteira .
Ironicamente, Robespierre também se opôs ao campo dos federados,
considerando - o uma tentativa do governo para usar os guardas provin­
ciais para pôr em respeito os seus concidadãos de Paris, politicamente mais
radicais. Mas nos Cordeliers, onde a organização da insurreição voltara a
ser dirigida intensamente, a última e débil tentativa do rei para se afirmar
constitucionalmente foi saudada com um grande coro de insultos. A opo ­
sição régia aos federados foi apresentada na imprensa como prova pro­
vada de que ele estava a planear um acto de força a partir da sua
"cidadela" das Tulherias. Madame Roland, que ditou uma carta ao marido
para que ostentasse o selo oficial do ministro do Interior, deu um severo
ralhete a Luís XVI pela sua ousadia e avisou - o de que: "Não é altura de
recuos nem contemporizações. A revolução está feita na cabeça das pes­
soas; será concretizada e cimentada com sangue a menos que a sensatez
previna males que ainda é possível evitar. . . Sei que a linguagem austera
da verdade raramente é bem-vinda perto do trono mas também sei que
por ser tão raramente ouvida é que as revoluções se tornam necessárias . "
Além d e fazer pouco caso destes avisos e d e não retirar o s vetos,
Luís XVI poderá ter sido impelido pelo sermão dos Rolands a demitir o
governo brissotin dois dias depois. E sta súbita reviravolta fora ideia de
Dumouriez para melhor estabelecer o seu domínio sobre o governo .
Concretizada a medida, Dumouriez pediu também ao rei que cancelasse o
veto de forma a minimizar as causas dos distúrbios populares nas secções .
Contudo, Luís XVI era precisamente incapaz d e compreender este tipo de
desvio táctico .
No dia 2 0 de Junho, uma manifestação foi organizada nas secções
pelos líderes das sociedades populares, em particular Santerre, o talhante
Legendre, amigo de Danton, outro publicista e militante republicano de
longa data, Fournier, o Americano, o lunático ci-devant marquês de Saint­
-Huruge e Jean Varlet, o qual, à semelhança de Santerre, era um próspero
burguês ( neste caso, um escriturário dos correios) que abraçara o iguali­
tarismo social de Jacques Roux. Todos eles eram figuras de destaque dos
ressuscitados cordeliers e muitos estavam filiados noutros clubes, tais como
a Sociedade Fraterna de Patriotas de Ambos os S exos . Algumas das líde­
res do movimento republicano feminino, entre as quais Théroigne de
Méricourt, a feminista ( e espia ) holandesa Etta Palm e Pauline Léon, a
filha do chocolatier, também se envolveram na mobilização da multidão .
Tinham ganho alguma prática na Primavera, quando os jacobinos haviam
organizado um festival para celebração da libertação dos soldados encar­
cerados em 1 790 pela sua participação no motim da guarnição de Nancy
Simon Schama 1 CIDADÃOS

(a direita respondera de imediato com um contra-festival de homenagem


a Simoneau, o presidente da câmara de Etampes morto pela turba durante
um motim alimentar) .
Mas o festival dos prisioneiros de Nancy fora um evento ordeiro preci­
samente porque tivera a bênção dos j acobinos e porque os preparativos
para os desfiles, a música e os discursos habituais tiveram de ser feitos com
muita antecedência e muito rigor. No dia 20 de Junho, as coisas foram
muito diferentes . O propósito ostensivo da multidão que saiu das secções
operárias e pobres (não eram sinónimas umas das outras) era plantar uma
árvore da liberdade nas Tulherias. Seria um acto de protesto contra o afas­
tamento dos brissotins e uma espécie de bandeira de conquista ritual no
último reduto real. Dado que os seus colegas tinham sido sumariamente
corridos do governo, Pétion não estava particularmente interessado em
conter o protesto, não obstante a possibilidade de poder colocar em perigo
a segurança da família real.
Formaram-se duas multidões enormes, uma na Praça da Bastilha, a
outra na Salpêtriere, que convergiram sobre as Tulherias; eram lideradas
por Santerre, que j á era uma espécie de comandante não oficial dos sans­
-culottes armados . Por volta da uma e meia da tarde, chegaram ao Manege
e pediram autorização à Legislativa para ler a sua petição. A apresentação
de petições em armas era precisamente o tipo de coisa que a Lei Le
Chapelier se destinara a proibir mas os deputados, confrontados com a
ameaça directa de intimidação - e com girondinos como Vergniaud furio­
sos com a exoneração do governo -, não estavam dispostos a oferecer
muita resistência. Enquanto debatiam, a multidão plantou uma enorme
árvore da liberdade - um álamo - no jardim dos Capuchinhos. Por fim, os
populares foram admitidos no salão da assembleia, entoando "Ça ira " .
Mas foi o que se seguiu a este desfile turbulento e intimidador que sig­
nificou o fim do reinado de Luís XVI. A turba concentrou-se em grande
número em torno do perímetro do palácio, mas com os líderes relutantes
em prosseguir o avanço . Porém, quando os artilheiros do Regimento Val­
-de- Grâce, que tinham desfilado com os manifestantes de manhã, puse­
ram alguns canhões em posição, os portões abriram-se - tanto para evitar
que as pessoas se esmagassem como para frustrar eventuais desígnios
mais sinistros . Uma multidão gigantesca entrou no palácio indefeso e
encontrou o rei, na companhia de alguns assistentes e guardas desarma ­
dos, no Salon de l'Oeil de B oeuf.
Foi o pior e o melhor momento de Luís XVI. O monarca encostou a sua
grande forma ao vão de uma j anela e, por vezes sentado, por vezes de pé,
enfrentou os líderes da turba com uma compostura extraordinária.
Brandiram-lhe pistolas e sabres à frente da cara. Segundo alguns relatos, o
coração de um vitelo, espetado num pique, representava "o coração de um
aristocrata" . O rei tinha usado a sua própria linguagem rousseauniana "do
521

coração" quando, para demonstrar a o s seus granadeiros q u e não estava


com medo da turba que se aproximava do palácio, pegara na mão de um
deles, pusera-a sobre o peito e dissera, "Vede, não palpita" . Mas aquela
tarde foi certamente uma provação horrível . Gritos de "Abaixo o veto ! Fora
o veto ! ", foram dirigidos ao re� como se o acto e o homem fossem a mesma
coisa . Legendre, o talhante sans-culotte, terá dito ao rei, sem papas na lín­
gua: " Senhor, deveis ouvir-nos; sois um vilão. Haveis-nos enganado sem­
pre; ainda nos enganais . Atingistes os limites . O povo está farto de
encenações . "
O rei respondeu a todas a s humilhações sem cair n o ridículo. Quando
lhe deram um barrete vermelho, pô-lo na cabeça e fez votos pela saúde
do povo de Paris e da nação. Os monárquicos recordarão esta humilhação
como a coroa de espinhos de Luís XVI. C ontudo, durante a confusão, o rei
manteve -se firme na sua recusa de retirar o veto ou reconduzir os minis­
tros brissotins. E sta combinação de graciosidade e dignidade acabou por
embotar a fúria e impediu certamente a violência. Uma tarde inteira era
tempo de mais para manter viva a mais mortífera barragem de insultos .
À s seis, Pétion, q u e se mantivera desaparecido durante a maior parte d o
dia, abriu caminho até ao r e i para declarar implausivelmente q u e acabara
de tomar conhecimento " d a situação em que vos encontrais " .
"Espantoso", retorquiu o monarca, "porque isto j á dura h á algumas
hora s " . D epois de uma sucessão de longas arengas, Pétion persuadiu a
multidão a ir-se embora . À s oito, Luís XVI e Maria Antonieta reuniram-se
numa sala onde ela também fora suj e ita a uma chuva de insultos. A sua
exaustão traumática apenas era contrabalançada pelo imenso alívio de
terem ambos - e os filhos - sobrevivido. C ontudo, tornou -se igualmente
óbvio que com a humilhação de 20 de Junho tinham sido despoj ados da
aura real. A menos que se fizesse algo de drástico, já não se tratava da
sobrevivência da autoridade da monarquia, e muito menos da sua viabi­
lidade constitucional. Restava um teste de força bruta.

Mas não era um dado adquirido que tivesse de acontecer. O rei e a rai ­
nha ainda tinham os seus defensores . Quando se espalharam pela França a s
notícias dos acontecimentos d o dia 20, a Assembleia começou a receber
petições de lealistas de todo o país. Até algumas assembleias de secção repu -
diaram o sucedido. Pétion e o procurador Manuel foram suspensos dos seus
cargos pelo governo departamental por incumprimento do dever. Alguns
dos colegas de B rissot que tinham ficado em choque com a invasão do palá ­
cio deram início a negociações secretas com os monarcas. No auge do
debate sobre a retirada do delfim à família para lhe proporcionar "uma edu­
cação patriótica", Guadet fez uma visita à rainha. Ela mostrou-lhe o prín­
cipe, adormecido por detrás de uma cortina na sala adjacente, e Elie Guadet,
representante condigno de uma geração que se afectava com a inocência da
Simon Schama 1 CIDADÃOS

infância, inclinou os seus caracóis imaculados sobre o garoto, afastou-lhe o


cabelo do rosto e beijou-o na fronte . " Se quereis que ele sobreviva", disse
Guadet à rainha, "tereis de o educar no amor à liberdade . "
A s ofertas d e aj uda provenientes d e outros lados foram recebidas com
menos cordialidade . No dia 2 8, Lafayette fez a sua última tentativa para
dominar o destino político da França . Apresentou-se na Legislativa e exi­
giu a aplicação das medidas clássicas dos feuillants - o encerramento dos
clubes, a imposição de restrições à imprensa e a proibição das petições.
Os deputados não se deixaram convencer, até porque desconfiavam -
correctamente - de que se tratava do anúncio preliminar de um golpe de
Estado . Mas Lafayette não era B onaparte. Não tinha reunido de antemão
força suficiente para garantir que as suas palavras fossem acatadas. D e
facto, as suas tentativas para mobilizar a Guarda Nacional saldaram-se
por um fiasco tremendo . Quando lhe apontaram o dedo na Assembleia
por ter abandonado as suas tropas sem autorização, não deu uma res ­
posta adequada. Mais surpreendentemente, a família real - talvez con­
fiando em demasia nos seus novos contactos girondinos - não se quis
associar a Lafayette. A rainha odiava- o há muito e chegara ao ponto de
apoiar a candidatura de Pétion à C âmara Municipal de Paris só pelo pra­
zer de o ver derrotado. Nesta ocasião, ela deu -se ao trabalho de alertar
Pétion antes da parada durante a qual o general tentaria mobilizar a
Guarda a seu favor.
Rej eitado por aqueles que pretendia aj udar e alvo do ridículo e do ódio
da imprensa, Lafayette regressou ao seu posto militar na Alsácia. Depois da
queda da monarquia, no dia 1 0 de Agosto, fez uma última tentativa, con­
vocando o presidente da câmara de Sedan e os seus oficiais para a cerimó­
nia na qual tinha mais prática, o juramento constitucional. No entanto,
não conseguiu dar o passo seguinte e desencadear uma guerra civil ( que
de qualquer dos modos começará sem ele ) . Suspenso do seu posto pelas
novas autoridades de Paris, Lafayette atravessou as linhas e dirigiu-se ao
acampamento austríaco - passará os cinco anos seguintes na prisão aus­
tríaca de Olmütz. Foi um anticlímax miserável para o garoto que errou
pelos bosques para comungar com a Hiena da Liberdade mas não será o
fim da carreira de Lafayette como apóstolo da revolução liberal.
Com o general fora do caminho, a última esperança de travar as forças
que começam rapidamente a polarizar- se reside na Assembleia
Legislativa . Porém, os acontecimentos de 2 0 de Junho, longe de reforça ­
rem a sua determinação, deixaram -na abalada . Muitos deputados,
temendo pela sua própria segurança, começam a afastar-se dos debates;
no auge da insurreição de Agosto, já não estarão presentes na Assembleia
mais de um quarto dos oitocentos deputados originais. A liderança giron­
dina está dividida: deverão fazer causa comum com os militantes das sec­
ções para não cederem toda a influência aos robespierristas ou defender a
5 23

ordem legal pela força? No dia 5 de Julho, é declarado oficialmente que


a "patrie est en danger" . Todavia, os poderes de emergência concedidos
por esta suspensão dos procedimentos legais normais são um meio peri­
goso de legitimação da política do governo . Embora possam j ustificar,
como Robespierre ainda receia, um ataque aos clubes e às secções, tam ­
bém podem ser usados por esses elementos para derrubar o governo e a
Assembleia.
Certo da impossibilidade de uma reconciliação pragmática, o bispo
constitucional de Lyon, Lamourette, apela ao sentido teatral dos deputa­
dos. Dirigindo -se a todos quantos rej eitaram com igual veemência as exi­
gências da direita para o estabelecimento de um parlamento bicameral e
as da esquerda para a criação de uma república, ele pede "um juramento
de fraternidade eterna", que deverá ser selado por um abraço. Pela última
vez, os deputados levantam-se, atiram os chapéus ao ar e exclamam
"A patrie está salva ! "; caem nos braços uns dos outros, beij am-se e abra­
çam-se num grande transe de j úbilo colectivo . Talvez sej a a entrega emo ­
cional que conduz naturalmente a Assembleia ao tópico seguinte, a
possibilidade de as crianças casarem sem o consentimento dos pais .
C ontudo, o debate é bruscamente interrompido por uma irada delegação
do município que acabou de saber que as autoridades departamentais
suspenderam Pétion e Manuel por causa da sua responsabilidade nos
acontecimentos de 20 de Junho, e os delegados j uram pôr-se ao seu lado .
Os beij os dão lugar às pragas . À medida que os federados vão chegando
a Paris, as assembleias de secção às quais assistem começam a exigir o
estabelecimento de uma república . O L'Ami du Peuple, de Marat, faz ape ­
los explícitos aos pobres, perguntando -lhes "porque hão - de ser os ricos a
colher os frutos da revolução quando vós haveis ganho com a revolução
o triste direito de continuar a pagar impostos pesados e de, quais Turcos
ou Prussianos, vos suj eitar à conscrição? " . Muitos dos guardas nacionais
federados são oriundos de regiões onde os Patriotas revolucionários se
encontram acossados - a B retanha, o Midi e o Leste - e respondem pron­
tamente a este tipo de retórica inflamatória . De facto, estando muitos
deles a dormir nos Cordeliers ou sendo aloj ados pelos cordeliers j unto de
outros Patriotas extremamente militantes, estão cativos da polémica repu­
blicana inflexível. Alguns ouvem as exigências de Théroigne de Méricourt
e de Pauline Léon para a formação de um regimento de mulheres equi­
pado com piques.
Paris vai-se transformando ominosamente num campo armado. Todos
os dias há paradas de guardas nacionais nos lugares públicos; estão arma -
dos até aos dentes e cantam " Ç a ira " . O clímax, cuidadosamente prepa­
rado desde a Primavera pelo radical Charles Barbaroux, é a chegada, no
dia 30 de Julho, de quinhentos guardas de Marselha, que cantam o hino
de Rouget de Lisle, posteriormente baptizado com o seu nome . Nos
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Jacobinos, Robespierre, que parece ter-se finalmente convertido à opor­


tunidade da insurreição, estabelece um gabinete para concertar as forças
do clube. Outro comité central de insurreição é estabelecido no governo
municipal da C omuna; compreende delegados recrutados j unto das sec­
ções e inclui Fournier, Santerre e o jornalista radical C arra. O homem que
coordena muitos destes esforços para criar uma força militar popular
coesa e capaz de assestar o golpe de misericórdia é D anton, finalmente na
posição oficial que tanto almej ava. Danton ocupa um posto superior na
qualidade de vice -procurador da C omuna, uma posição estratégica vital
para dar ou reter ordens conforme a situação o exigir. Quando os federa­
dos ( em particular, os marselheses) se envolvem em brigas com unidades
leais da Guarda Nacional, praticamente nada é feito para deter os culpa­
dos, e o clima de ilegalidade e de desordem vai escalando até ao fim de
Julho .
No último dia do mês, a secção de Mauconseil publica uma declaração
aos cidadãos de Paris dizendo que " o dever mais sagrado e a lei mais que­
rida é esquecer a lei para salvar a patrie " . O inimigo aproxima-se e
Luís XVI está prestes a entregar as cidades da nação ao fogo sangrento dos
déspotas da Europa. "Um tirano desprezível brinca há demasiado tempo
com o nosso destino . . . D eixemo -nos de nos divertir com os seus erros, os
seus crimes e os seus perjúrios e ataquemos este colosso do despotismo . . .
unamo-nos para declarar a queda deste rei cruel, digamos a uma só voz
que Luís XVI já não é rei dos Franceses . " A Vontade Geral da secção deixa
de o reconhecer como soberano .
Esta declaração cria um vácuo moral e político a partir do qual, afirmam
as secções, pode ser criada toda uma nova ordem. Três dias depois, outra
proclamação, proveniente de uma fonte bastante diferente, alarga abrup­
tamente o buraco pelo qual se está a esvair a legitimidade da monarquia
constitucional. No princípio do Verão, os Prussianos entraram na guerra
como aliados do imperador e em Julho avançaram de forma inexorável.
A sua declaração de intenções é emitida em nome do comandante, o
duque de Brunswick, mas foi escrita pelo marquês de Limon, um emi­
grado . Pede ao povo francês que se erga contra os "esquemas odiosos dos
seus opressores" e ameaça com "rigores da guerra" não especificados quem
tiver a ousadia de resistir. Caso se repita qualquer assalto às Tulherias, Paris
será alvo de "um acto de vingança exemplar e inesquecível".
Escusado será dizer, a proclamação provoca precisamente a conse­
quência que pretendia evitar. D á aos organizadores da insurreição a
oportunidade de que estão à espera para aumentar a parada e elevar o
conflito político ao nível de uma guerra total. Com efeito, o que o
Manifesto de B runswick faz é dizer aos parisienses e aos seus apoiantes
provinciais entre os federados que já cometeram actos pelos quais serão
implacavelmente punidos; assim sendo, não têm nada a perder. O que
5 25

conta é impedir aqueles que os ameaçam internamente de cometerem


actos de traição. Todos os cálculos se resumem a uma determinação final
e primitiva: matar ou ser morto.
É esta percepção de uma situação extrema que altera de forma deci­
siva o equilíbrio. Em finais de Junho, tentou -se mobilizar as secções mas
a resposta foi morna . O Manifesto de B runswick vem acelerar uma grande
alteração no equilíbrio de poder militar em Paris. Os guardas nacionais
parisienses ( os quais, contrariamente ao que aconteceu em 1 790, não
ficaram especialmente contentes ao verem a sua cidade inundada pelos
federados das províncias ) , começam a desertar das suas unidades. São
absorvidos por um comando geral organizado pelo "Departamento de
Correspondência", dirigido a partir dos Jacobinos e liderado por oficiais
provincianos, em particular, o alsaciano François-Joseph Westermann.
Marat tentou retratar a rebelião de 1 O de Agosto como uma erupção
espontânea e imparável de fúria popular mas a verdade é exactamente o
contrário. Nunca uma revolução foi preparada de forma mais laboriosa
nem desencadeada de forma mais relutante . O governo do rei era um
governo de palha, falho de qualquer autoridade ou poder. O seu amo, a
Assembleia Legislativa, era uma fracção da sua força e carecia de todo e
qualquer poder para aplicar os seus decretos ou proteger a C onstituição
que tinha j urado ( muitas e muitas vezes) defender. As unidades da
Guarda Nacional, confusas, divididas e lideradas de forma indecisa, esta­
vam mais preocupadas com a protecção dos respectivos bairros da violên­
cia contra pessoas e bens do que com o desfecho de uma luta política .
Nesse caso, que obstáculos tinham os insurrectos pela frente? Era esta a
opinião da maioria dos franceses e francesas, aos quais fora dito até à
exaustão que a constituição era sacrossanta - provavelmente acreditavam
que era - mas que agora se viam representados por minorias militantes e
armadas que agiam em seu nome na capital. E o mais preocupante era
que dois mil soldados regulares, dos quais metade pertencia à guarda suíça
do rei, estavam entrincheirados nas Tulherias.
O resultado nunca esteve em dúvida. C ontudo, quando os sinos
tocaram a rebate na noite de 9 de Agosto, muitos dos homens que se
dirigiram para a C âmara Municipal estavam apreensivos . D epois do
j antar, C amille D esmoulins e a mulher deslocam- s e ao apartamento de
Danton para ganharem coragem mas dão com a mulher dele, Gabrielle,
banhada em lágrimas . Lucille, que se recordará de " rir que nem uma
louca " , leva - a a apanhar ar. Quando regressam, encontram o aparta ­
mento cheio de pessoas que tentam ultrapassar- se umas às outras com
declarações grandiloquentes supostamente apropriadas para o seu sen­
tido exaltado de que se está a fazer históri a . C ontudo, por baixo das
declarações oraculares, imperam a agitação e o medo. Quando C amille
sai para a noite de mosquete na mão e com a promessa de que ficará
Simon Schama 1 CIDADÃOS

j unto da figura tranquilizadoramente enorme de Danton, é a vez de


Lucille começar a chorar copiosamente .
Na Câmara Municipal, uma " C omuna Insurrecta " varreu a autoridade
do conselho municipal e dá ordens à Guarda Nacional. A Comuna com­
preende três delegados, em princípio enviados através de "Vontade Geral"
de cada uma das quarenta e oito secções. Na realidade, obviamente, é um
órgão constituído exclusivamente pelas secções militantes do leste da
cidade e da zona da margem esquerda central que viu nascer os antigos
cordeliers. Inclui Robespierre, o gravador Sergent, B illaud-Varenne e
François Robert. Danton é manifestamente uma figura crucial mas não a
dominante, e acaba por regressar a casa quando começam as primeiras
tentativas ( infrutíferas ) de mobilização das secções insurrectas .
A o princípio da manhã, as medidas postas em prática p e l o comandante
da Guarda Nacional leal, o marquês de Mandat, no sentido de bloquear as
pontes do Sena para impedir a j unção dos seccionistas armados de Saint­
-Marcel com os da margem direita parecem ter dado resultado. O rei
sente -se suficientemente confiante para descer ao pátio poderosamente
fortificado logo após o alvorecer e passar as suas tropas em revista . O aco­
lhimento ambivalente que recebe - aplausos leais dos guardas suíços e gri­
tos alarmantes de " Vive la Nation ! " da Guarda Nacional de Paris - deixa- o
incomodado. Prevendo um assalto ao palácio, o procureur-général do
departamento, Roederer, tenta repetidamente convencê -lo a colocar a sua
pessoa nas mãos da Assembleia Legislativa . O rei põe a espada à cinta mas
quando Roederer o informa e à rainha de que " Paris em peso" está em
marcha, a determinação régia evapora -se. Luís XVI e a família atravessam
o pátio com toda a dignidade que conseguem demonstrar, ao som de gri­
tos cada vez mais irados de " Fim ao veto ! " . "As folhas começam a cair
cedo este ano", observa o rei a Roederer, indiciando um alheamento fata­
lista ou uma queda incaracterística para a metáfora .
No Manege, onde ficou um punhado de deputados meramente para
evitar quaisquer acusações de que a Nação Soberana deixou de estar cons­
tituída, o rei é deixado à espera enquanto procuram um lugar para ele e
para a família compatível com a proibição da sua presença durante os
debates . Por fim, Luís XVI, a irmã, Elisabeth, Maria Antonieta e os filhos
são conduzidos ao exíguo espaço gradeado da logografia que é atribuído
aos repórteres durante os trabalhos. D entro do buraco abafado e com os
rostos ensombrados pela grelha, os últimos membros da monarquia fran­
cesa aguardam impotentes o seu destino.
Decorridas aproximadamente duas horas, começam os combates. Desde
o início do dia que se tornou · evidente que o sangue correrá com mais
abundância do que em qualquer outro momento da Revolução . A nova
Comuna convoca o marquês de Mandat à Câmara Municipal, ostensiva­
mente para explicar a sua recusa de retirar as posições defensivas da
5 27

Guarda . Quando Danton acaba de gritar com ele, o marquês é arrastado


para a prisão e assassinado no caminho, provavelmente por outro mem­
bro da C omuna, Antoine Rossignol. C om a autoridade a ceder no centro,
não é feita nenhuma tentativa de resistência às tropas insurrectas que
atravessam o S ena. Quando o cervej eiro Santerre, liderando os soldados
da margem esquerda, e Alexandre, no comando dos da margem direita,
chegam às Tulherias, já são mais numerosos do que os defensores.
A chacina que se segue explica-se, em grande medida, pela impressão,
tal como sucedeu no 14 de Julho de 1 789, de que foi montada uma arma ­
dilha para os atacantes . Quando a família real partiu para a Assembleia,
correra rapidamente entre a Guarda Nacional o boato de que houvera
uma capitulação . Os Suíços são instados a confraternizar e alguns deles
terão deitado fora as armas . Encoraj ada, a Guarda entra no palácio mas é
recebida com uma descarga devastadora e debanda pelo Pátio Real
debaixo de fogo. Depois de os guardas se reagruparem, Westermann e
Fournier lideram um contra- ataque furioso com os marselheses na van­
guarda. Abrem caminho a tiro e avançam sobre o palácio.
A desproporção numérica acabaria sempre por ser determinante. O rei
terá tido a noção disto e, desej ando evitar mais perdas de vidas, escrevi­
nhou um bilhete ordenando aos guardas suíços para deporem as armas .
Talvez s e tenha lembrado d o 1 4 d e Julho, quando u m sentimento d e trai­
ção encontrou escape no assassinato de uma única vítima sacrificial, o
governador de Launay.
No dia 1 0 de Agosto, a situação resolve -se de maneira diferente .
Obedientes à monarquia até ao fim, os Suíços preparam-se para retirar
para o palácio quando são atacados e chacinados brutalmente. A histeria
é de tal ordem que alguns federados de Brest - que são dos mais militan­
tes dos rebeldes - são mortos porque o seu uniforme vermelho se asse­
melha fatalmente aos dos Suíços . O s soldados que se apercebem a tempo
do que os espera fogem freneticamente, descartando o uniforme, as armas
e a bandoleira . Alguns saltam das altas j anelas do palácio para ganharem
vantagem sobre os perseguidores .
Mas ninguém lhes d á quartel nem refúgio. É meio-dia. São caçados e
implacavelmente massacrados com punhal, sabre, pedra e moca. As mulhe­
res despojam os cadáveres dos uniformes e de todos os haveres pessoais que
encontram. Os mutiladores cortam membros e genitais que lhes enfiam na
boca ou dão a comer aos cães. O que resta é atirado para as fogueiras, uma
das quais propaga as suas chamas ao palácio . Outros pedaços e bocados dos
seiscentos soldados que pereceram no massacre são levados em carroças,
atirados para valas comuns e cobertos com cal. Para Robespierre, é "a mais
bela revolução que alguma vez honrou a humanidade" .
Mas a carnificina d e 1 0 d e Agosto não foi u m momento incidental na
história da Revolução . Na realidade, foi a sua consumação lógica . A partir
Simon Schama 1 CIDADÃOS

de 1 789, talvez mesmo antes, os políticos não tiveram pej o em explorar a


ameaça ou a concretização da violência que lhes tinha dado o poder para
desafiar a autoridade constituída. O derramamento de sangue não foi um
efeito colateral infeliz da revolução, foi a fonte da sua energia. Os versos
da "Marselhesa" e os grandes discursos dos girondinos falavam da patrie
com a poesia absoluta da vida e da morte . Perversamente, só se fosse pos­
sível demonstrar que o sangue corria em sua defesa poderiam as virtudes
da Revolução revelar-se como algo pelo qual valia a pena morrer. Os
meios transformaram-se em fins.
15

S angue Impuro
Agosto de 1 792-Janeiro de 1 793

I UM "HOLO CAUSTO PELA LIBERDAD E "

N a terceira semana d e Agosto, é montada u m a guilhotina n a Praça do


Carroussel, em frente das Tulherias. A machine, como costuma ser cha ­
mada, não é propriamente uma novidade, pois vem sendo usada de forma
esporádica desde Abril de 1 792 no local tradicional das execuções públi­
cas, a Praça de Greve . Os falsificadores de papel-moeda são um alvo espe­
cial do ódio popular e a sua decapitação é sempre um acontecimento. Mas
para gente acostumada ao ritual prolongado e rico em emoções das pro­
cissões penitenciais, às confissões públicas em voz alta, ao clímax do salto
do corpo no patíbulo, à exposição do cadáver do enforcado e até, nalguns
casos raros, à longa provação do suplício da roda, a machine é uma desilu ­
são total. É demasiado expedita. Um silvo, uma pancada seca; às vezes,
nem sequer mostram a cabeça; o carrasco foi reduzido ao papel de um
simples mecânico, como um lacaio a puxar a corda de um sino .
Mas esta compressão austera do espectáculo da punição foi precisa­
mente o que os criadores da machine tiveram em mente . Em Dezembro de
1 789, o D r. Joseph-Ignace Guillotin, deputado da Assembleia Nacional,
propusera uma reforma da pena capital em conformidade com o estatuto
de igualdade conferido a todos os cidadãos pela Declaração dos Direitos do
Homem. Em lugar de práticas bárbaras que eram tão degradantes para os
espectadores como para os criminosos, deveria ser adaptado um método
de instantaneidade cirúrgica. Além de poupar sofrimento gratuito ao con­
denado, a decapitação oferecia aos criminosos de direito comum uma exe­
cução digna, até então reservada para as ordens privilegiadas. A proposta
também eliminava o estigma da culpa por associação da família do con­
denado e, mais importante ainda, protegia os seus bens do confisco deter­
minado pela prática tradicional.
Uma gravura bastante bela feita para ilustrar a humanidade do dispo­
sitivo de Guillotin sugere serenidade digna em lugar de retribuição maca­
bra . O cenário é bucólico, dado que o bom doutor pretendia que o local
das execuções fosse transferido da cidade, para longe daquilo que ele
Simon Schama 1 CIDADÃOS

considerava ser um espectáculo de sarj eta para a turba. O acto é estóico,


talvez mesmo sentimental, pois o carrasco também foi transformado de
profissional musculoso numa alma sensível que deve virar os olhos ao
cortar a corda com o sabre . O benévolo confessor saiu da Profissão de Fé
do Um Vigário Saboiano e os poucos espectadores são expressamente man­
tidos afastados da machine por uma barreira guardada por um soldado
impassível.
Nada estaria mais de acordo com o pensamento tardo-iluminista rela­
tivo à pena capital. Há deputados à C onstituinte, nomeadamente
Robespierre, que preferem pura e simplesmente a abolição, tal como reco­
menda Beccaria ( excepto em casos de regicídio ou traição ) , mas a ser
mantida, a pena capital deverá ser rápida, misericordiosa e utilitária. Em
1 777, Marat recomendou um método que combine a severidade dissua­
sora com uma eficácia indolor, e a "máquina" descrita à Assembleia pelo
Dr. Guillotin parecia cumprir estas especificações na perfeição. A sua des­
crição (tal como foi publicada no Journal des É tats-Généraux) - "O meca ­
nismo cai como um trovão; a cabeça salta, o sangue espicha, a pessoa
deixa de existir" - suscitou mais risos nervosos do que uma apreciação
sombria . As outras propostas da sua reforma foram adoptadas em 1 790
mas passar- se-iam dois anos até que a machine fosse posta a trabalhar.
No dia 3 de Junho de 1 7 9 1 , o marquês Lepeletier de Saint-Fargeau, ci­
-devant e militante jacobino, propôs que todas as pessoas condenadas à
morte sofressem a mesma punição, a decapitação. No entanto, ainda não
havia indicações de que este tratamento igual seria administrado de forma
mecânica . Foram as reservas expressas pelo carrasco público, Charles
Henri Sanson, que levaram o governo feuillant a ponderar novamente a
machine na Primavera de 1 7 92 . O receio de Sanson ( enquanto profissio­
nal orgulhoso do seu ofício) era que a decapitação se prestava muito mais
a contratempos infelizes do que o enforcamento, especialmente com um
ritmo de funcionamento pesado. As lâminas poderiam ficar embotadas; os
carrascos poderiam não ser suficientemente competentes; a ralé a decapi­
tar poderia não mostrar a compostura expectável nos cavalheiros. Tudo
isto tornaria o seu trabalho terrivelmente difícil.
Tal como observa Daniel Arasse no seu excelente estudo, o Dr. Guillotin
tinha desistido da machine, talvez magoado pelo facto de a Constituinte não
a ter levado a sério . Mas o D r. Louis, secretário vitalício da Academia dos
Cirurgiões (e autor de um artigo sobre a morte na Encyclopédie) , salva o
projecto através de um douto memorando garantindo à Legislativa que o
dispositivo assegurará instantaneidade ao cortar de forma radical os liga ­
mentos do pescoço. Em Abril, Tobias Schmidt, um fabricante de pianos ale­
mão, é encarregue de construir um protótipo. Fabrica- o numa semana, e
no dia 1 7 são realizados ensaios com cadáveres no pátio da prisão de
Bicêtre . Os resultados são satisfatórios mas pelo menos uma testemunha
531

sente que embora a j ustiça exij a semelhante solução, a humanidade não


a testemunhará sem "um arrepio " .
O Dr. Guillotin parece ter ficado magoado para sempre p o r u m apare ­
lho de tamanha impessoalidade mecânica ter sido associado ao seu nome,
mesmo que no início de carreira lhe chamassem também louison ou loui­
sette devido ao nome do seu promotor. A sua proposta, insistiu ele, fora
sempre "filantrópica" e humanitária. Mas foi certamente como expressão
de imparcialidade penal que o aparelho foi introduzido para decapitar o
primeiro criminoso, no dia 2 5 de Abril de 1 79 2 : Nicolas Pelletier, conde­
nado por ter cometido um roubo violento. D epois do derrube da monar­
quia, a guilhotina parecia às autoridades que competiam para ser as suas
beneficiárias o modo ideal de recuperarem o controlo sobre a punição vio ­
lenta. Quando foi usada, no dia 2 1 de Agosto, para decapitar Louis C ollot
d'Angremont, secretário da administração da Guarda Nacional ( acusado
de ter participado na " conspiração" régia ) , já se virara para os fins exem­
plares e espectaculares que a "filantropia" de Guillotin e o utilitarismo
cirúrgico de Louis haviam pretendido evitar. A Praça do Carroussel foi
escolhida como local para a execução precisamente porque era lá que se
dizia que o criminoso tinha perpetrado o crime. O público foi positiva ­
mente encoraj ado a testemunhar a sua expiação e a severidade rápida
com que era administrada a j ustiça da Nação.
Tudo isto destinava-se intencionalmente a contrastar com, e, se possí­
vel, a corrigir as atrocidades daquilo que se designava eufemicamente por
"j ustiça popular" ou, por outras palavras, linchamentos espontâneos e
sumários e espancamentos e apunhalamentos fatais. É claro que esta ati­
tude oficial encerrava um elemento de hipocrisia . Os primeiros tempos da
Revolução, em 1 7 89, tinham precisamente sido não só marcados mas
também empoderados por estes actos de vingança espontânea e assassí­
nios indiscriminados nas ruas. A predisposição de políticos como Barnave
para tolerarem tais comportamentos - para mais tarde se encontrarem do
lado das vítimas - perpetuou a noção de que a "j ustiça popular" era uma
parte essencial da expressão legítima do "povo soberano" . Em cada fase da
Revolução, aqueles que ocupavam posições de autoridade tentaram recu ­
perar para o Estado o monopólio da violência punitiva mas viram-se fin­
tados por opositores políticos que sancionaram e organizaram a violência
popula r para os seus próprios fins. O facto de haver armas nas mãos de
polícias não oficiais da vontade popular significava que a única maneira
de impor a autoridade do Estado era através de um confronto militar que
parecia justificar mais actos de violência nas ruas . Por conseguinte, o pro­
blema nuclear da governação revolucionária centrou-se nos esforços para
gerir a violência popular em nome do Estado e não contra ele. Isto foi algo
que os próprios jacobinos só conseguiram fazer depois de recorrerem às
formas mais extremas de controlo totalitário.
Simon Schama 1 CIDADÃOS

O problema colocou-se logo após o derrube da monarquia, no dia 1 0


de Agosto . O s deputados que restavam da Assembleia Legislativa recon­
duziram, sob a forma de um " C onselho Executivo Provisório", os minis­
tros girondinos exonerados pelo rei - Roland, Claviere e Servan - e, pelo
sim pelo não, acrescentaram-lhes dois jacobinos, o matemático Monge e,
para o ministério da Justiça, Danton. Este interviera pessoalmente para
proteger um grupo de guardas suíços de serem chacinados nas ruas, no
dia 1 1 , mas tinha a noção de que, para controlar a sede de "vingança"
popular, seria necessário um acerto de contas institucional. De qualquer
do modo, nas semanas que se seguiram à insurreição, o centro do poder
não esteve na Assembleia mas na " C omuna Insurrecta " estabelecida na
Câmara Municipal, que dava instruções aos seus funcionários, ao presi­
dente da câmara, Pétion, e ao procureur Manuel, que também reconduziu
em funções. Foi na C omuna que se ouviram as exigências mais veemen­
tes de instauração de um tribunal militar extraordinário para j ulgar os
"criminosos" de 10 de Agosto (os acontecimentos desse dia eram j á roti­
neiramente descritos como uma conspiração real ) . O tribunal foi criado
no dia 1 7, com os membros a serem nomeados pelo novo comandante da
Guarda Nacional de Paris, Santerre; os seus acórdãos e sentenças exclui­
riam expressamente qualquer espécie de recurso.
A morte de Collot d' Angremont na guilhotina foi a primeira sentença
oficial do tribunal especial a ser cumprida. Seguiram-se um jornalista
monárquico, du Rozoi, e o intendant da lista civil do rei, Arnaud de La
Porte, mas do ponto de vista de muitos militantes da C omuna, entre os
quais Marat e Robespierre, as condenações foram muito escassas. Pelo
menos, tinham exigido e obtido da Legislativa poderes policiais bastante
abrangentes para deter, interrogar e encarcerar suspeitos sem nada que se
parecesse com procedimentos legais. O órgão ao qual coube esta missão
foi o Comité de Vigilância, onde assumiram um papel particularmente
importante dois amigos de Danton dos tempos do distrito dos Cordeliers,
o gravador Sergent e o advogado Panis. Não sendo de mais sublinhar que
foi nos dias míticos da liberdade revolucionária, em 1 789, que a Cons­
tituinte criou comités executivos que retomaram muito do trabalho de
polícia e espionagem e muitos dos poderes de detenção arbitrária associa­
dos ao Antigo Regime, só em Agosto de 1 792 nasceu em Paris um verda ­
deiro Estado policial revolucionário.
Durante as duas semanas que mediaram entre o dia 17 de Agosto e os
massacres nas prisões no princípio de Setembro, são detidas mais de mil
pessoas com base em provas praticamente inexistentes . A esmagadora
maioria compõe-se de padres refractários detidos em seminários, colégios
e igrej as, por vezes até em residências privadas onde viviam escondidos
com traj es laicos. Outros alvos são quaisquer pessoas identificadas como
autoras de petições contra os manifestantes de 20 de Junho ou contra a
533

acusação oficial contra Lafayette por ter abandonado o seu posto .


A imprensa monárquica é encerrada de um dia para o outro, os seus edito­
res e impressores detidos e o equipamento destruído. Outros inimigos do
"povo soberano", estes menos obviamente ameaçadores, são os serviçais
pessoais do rei e da rainha, entre os quais a governanta, Madame de Tourzel,
que fez de "baronesa Korff" na infeliz excursão a Varennes. Mas a maior
presa da rusga à corte é a velha amiga de Maria Antonieta, a princesa de
Lamballe. Apesar de praticamente ignorada pela rainha desde a ascensão da
clique Polignac, Elisabeth permanecera-lhe comoventemente leal. Quando
as irmãs Polignac rumaram à fronteira com Artois, em 1 789, ela decidiu ficar
com a rainha e tornou -se governanta da sua Casa. As sucessivas vagas de
pornografia retratam-na geralmente como uma prostituta lésbica mas o seu
aspecto não poderia ser mais diferente. Os seus caracóis louros perderam o
brilho e o viço mas o rosto ainda possui uma qualidade extraordinariamente
angélica, como se posasse em permanência para um dos retratos inocentes
de Greuze. Na prisão do Templo, para onde a família real foi levada depois
de três dias na logografia do Manege, ela continua a servir a rainha. Os
guardas que a vão buscar e aos outros serviçais dizem-lhes que vão ser leva­
dos apenas para interrogatório mas Elisabeth e Maria Antonieta temem que
nunca mais se voltem a ver e abraçam-se com a ternura da despedida - a
imprensa difamatória apresenta-a inevitavelmente como licenciosa.
A dada altura, as detenções tornam-se absurdamente indiscriminadas.
O abade Sicard, que é um herói nos meios operários de Paris na qualidade
de pere-instituteur das crianças surdas-mudas, é detido e encarcerado na
Abadia com um grande número de padres. No dia 3 0, uma delegação da
escola apresenta-se na Assembleia para solicitar a libertação do seu "ins­
trutor, alimentador e pai, preso como se fosse um criminoso. Ele é bom,
justo e puro", prosseguem eles,

e foi ele quem nos ensinou o que sabemos; sem ele, seríamos como os ani­
mais. Desde que no-lo tiraram estamos tristes e lamentosos. Devolvei-o ao
nosso seio e fazer- nos-eis felizes.

C omovido por esta manifestação, um deputado oferece -se para trocar


de lugar com Sicard mas outro membro da Assembleia, Lequinio, invo­
cando a indivisibilidade da j ustiça revolucionária, insiste que não pode
haver excepções e a triste delegação de crianças é mandada embora. Esta
rej eição quase custará a vida a Sicard.
A acção policial também permite aj ustar contas antigas. D esde que se
enfrentaram no Caso Kornmann, com B eaumarchais a defender a repu­
tação da mulher num processo complicado e Marat a pugnar pela honra
do marido queixoso, os dois homens odeiam-se. A grande residência do
dramaturgo, no bairro de S aint-Antoine, foi ameaçada muitas vezes pelos
Simon Schama 1 CIDADÃOS

motins populares mas nunca sofreu danos graves . Todavia, Beaumarchais


é acusado pela C omuna de ter comprado uma grande quantidade de
armas para fins dúbios ( como comprou para a guerra americana ) . A casa
de Beaumarchais, infundadamente classificada de arsenal, é pilhada no
dia em que cai a monarquia, e ele é detido a 23 de Agosto . Na nairie',
constata -se que as acusações carecem de fundamento e Beaumarchais -
ao qual dizem para se passar a chamar Cidadão Caron2 - está prestes a ser
liberto quando surge a sua velha nemésis, que o despacha para a Abadia.
Beaumarchais só conseguirá escapar à morte porque é liberto quatro dias
antes do início dos massacres.
Em 2 8 de Agosto, a pedido de Danton, passam a ser autorizadas, na sua
definição educada, "visitas domiciliárias", ostensivamente em busca de
armas de fogo para defender a patrie acossada mas principalmente para pro­
curar suspeitos ou documentos incriminatórios. Segundo a proclamação,
"Tudo pertence à patrie quando a patrie está em perigo" . Caracte ­
risticamente, as visitas têm lugar pela calada da noite ou às primeiras horas
da manhã para apanhar os moradores em casa. Dez ou mais homens batem
com força à porta e enchem a residência com sabres, piques e armas de fogo.
É uma experiência obviamente aterrorizadora para a maioria das pessoas
mas há quem veja nela uma grande demonstração de vigilância patriótica.
Madame Julien de La Drôme, por exemplo, cuja oferta da espingarda de
caça do pai é educadamente declinada, escreve ao marido, "Aprovo tão for­
temente esta medida e a vigilância do Povo que gostaria de ter gritado,
'Bravo! Vive la Nation! ' " . Só os "tolos e os criminosos" podem ter medo das
visitas, declara ela. Madame Julien de La Drôme reside na Montanha
Sainte- Genevieve, uma das zonas de Paris em que foram efectuadas muitas
detenções e, depois de ter visto alguns seminaristas levados pelas ruas aos
encontrões, apupados pela multidão, bombardeados com lama ou esmurra­
dos na cara e no corpo, ela exclama com entusiasmo, " Que operação
imensa; que bem que é defendido o interesse público ameaçado ! " .
As rusgas obedecem a critérios tão ambíguos que acabam por levar os
poucos deputados da Assembleia a actuar contra a C omuna e os seus
comités policiais. No dia 30 de Agosto, é exigida a sua dissolução e subs ­
tituição por um órgão a eleger de imediato . Porém, esta atitude surte um
efeito infeliz. Embora várias das secções menos militantes estejam tam­
bém preocupadas com as buscas e as detenções arbitrárias das semanas
anteriores, este desafio directo à C omuna leva-as a porem-se ao seu lado.
Robespierre, Marat e os jacobinos radicais denunciam a atitude da
Assembleia como uma tentativa de inverter a revolução de 1 O de Agosto
e proteger criminosos e traidores das consequências das suas malfeitorias.

' Em francês no original: esquadra . ( N. da R. )


' O seu nome era Pierre -Augustin Caron. (N. do T. )
535

Dois dias depois, face a este fogo devastador - e mais particularmente, sob
ameaça de intimidações físicas por parte dos seccionistas armados -, a
Assembleia recua . Nascerá uma nova C omuna e uma C onvenção
Nacional a ser eleita (muito nas linhas propostas por Robespierre em
29 de Julho ) por sufrágio universal masculino, com o obj ectivo de criar
uma nova constituição, presumivelmente não monárquica.
Talvez a necessidade de poderes policiais de excepção não tivesse sido
aceite não fosse verificar-se ao mesmo tempo uma crise militar genuína e
potencialmente catastrófica . No dia 1 9 de Agosto, pondo em execução
uma estratégia que mereceu a concordância do seu aliado, o imperador
austríaco, os exércitos do rei da Prússia atravessam a fronteira francesa.
Quatro dias mais tarde, a importante fortaleza de Longwy é bombardeada
e capitula quase sem oferecer resistência . No dia 30, pela primeira vez mas
não pela última, o importantíssimo bastião de Verdun é cercado pelos
Prussianos . Se cair - as previsões não são as melhores -, a estrada para
Paris ficará aberta através do vale do Mame.
Nestas circunstâncias, a capital é tomada de uma mistura convulsiva de
terror e excitação marcial. O passo de caracol da campanha austríaca da
Primavera convencera os parisienses de que a "guerra patriótica" era um
conflito travado longe e principalmente em campos de linho e nabais bel­
gas . Agora, de forma repentina e avassaladora, o inimigo parece estar à
porta . Além do mais, a revolução que acabaram de consumar num claro
desafio ao Manifesto de B runswick parece expô-los a uma retribuição ter­
rível se a invasão for bem sucedida. De facto, correm já histórias de abo ­
minações teutónicas cometidas no teatro de guerra : camponesas violadas
e mutiladas, crianças espetadas nas baionetas e atiradas às fogueiras - o
pesadelo militar do costume . Em resposta, o C onselho Executivo
Provisório ordena a conscrição imediata de uma força de trinta mil volun­
tários que será enviada para a frente e a construção de novas barrieres
reforçadas nas muralhas da cidade .
C om uma proclamação de Hérault de Séchelles ( novo presidente da
Legislativa ) a declarar de novo oficialmente a " la patrie en danger", Paris
transforma-se numa cena de actividade frenética . As ruas ecoam com os
sons das botas a marchar e dos tambores que tocam a reunir. No meio de
cenas lacrimosas de despedida, os voluntários são inscritos na Pont Neuf,
em frente da estátua de Henrique IV. Quadros como A Partida do
Voluntário, de Watteau de Lille, invertem a carga moral da série do "Filhó
Pródigo" de Greuze com um j ovem a cumprir e não a negligenciar os seus
deveres partindo para a guerra . Na versão de 1 792, o lugar do sinistro sar­
gento recrutador de Greuze é tomado pelo fiável granadeiro de barretina
na cabeça, cuj a silhueta se vê recortada contra a porta .
Todo este esforço fenomenal tem orquestração de Danton. O seu espírito
destemido e a sua convicção genuína de que Paris e a França sobreviverão
Simon Schama 1 CIDADÃOS

ao teste pelo fogo é extraordinariamente contagiosa e as suas proclama­


ções de finais de Agosto em nome do C onselho Executivo poderão ter
feito a diferença entre a determinação e o pânico . Danton consegue
transformar a proximidade do inimigo num activo para a firmeza revo ­
lucionária :

Os nossos inimigos preparam -se para desferir os últimos golpes da sua


fúria. São senhores de Longwy, ameaçam Thionville [na frente austro­
-belga ] , Metz e Verdun e pretendem abrir caminho até Paris . . . Cidadãos,
nenhuma nação da terra alcançou a sua liberdade sem luta . E xistem trai­
dores entre vós; sem eles, a luta j á teria acabado há muito.

Estas alusões aos "traidores entre vós" são as mais reveladoras. A apre ­
sentação dos inimigos internos da liberdade como estrangeiros armados,
uma quinta - coluna da ímpia coligação do despotismo internacional, é
uma característica habitual do discurso revolucionário. Foi assim com a
retórica de 1 789 e com a dos Brissotins, em 1 79 1 . C om a guerra materiali­
zada, a aliança entre os "lacaios mercenários da tirania", os emigrados que
se lhes j untaram e os malévolos sabotadores à solta nas ruas de Paris, afi­
gura - se ainda mais perigosa . Tal como os "bandidos" de 1 789 foram os
sicários degoladores dos aristocratas vingativos, uma ameaça igualmente
sinistra espreita nas prisões, onde os contra-revolucionários recém-chega ­
dos - guardas suíços, padres refractários, jornalistas monárquicos - pode­
rão subornar os criminosos comuns e torná-los seus cúmplices .
É de particular urgência encontrar uma solução para este problema,
pois diz-se à boca cheia que, depois de os voluntários partirem para a
frente, os presos fugirão das cadeias . Uma cidade indefesa será consagrada
à chacina das mulheres e dos filhos dos Patriotas, tal como prometeu o
Manifesto de B runswick. Mesmo que os membros da C omuna não dêem
crédito a estas histórias, talvez j ulguem que os homens não se alistam com
receio de que elas se concretizem.
O que fazer? O Orateur du Peuple, de Fréron, não tem quaisquer
dúvidas .

A primeira batalha que iremos travar não será fora mas dentro das mura­
lhas de Paris. Os bandidos monárquicos que se aglomeram nesta infeliz
cidade perecerão no mesmo dia . Cidadãos de todos os departamentos, ten­
des [reféns] as famílias dos emigrados; nessa altura, fazei-as sentir o peso
da vingança popular; incendiai os seus solares e os seus palácios, semeai a
desolação onde quer que os traidores tenham fomentado a guerra civil . . .
as prisões estão a abarrotar de conspiradores . . . é lá que deverão ser j ulga­
dos.
537

Neste tipo de retórica, "j ulgamento" é o eufemismo habitual para "exe­


cução sumária" . Marat é absolutamente inequívoco quando exorta os
"bons cidadãos a irem à Abadia, apoderarem-se dos padres e, em especial,
dos oficiais dos guardas suíços e respectivos cúmplices e passarem-nos
pela espada " . Afirmou -se seriamente que Marat estava a falar em termos
metafóricos ou com o tipo de hipérbole punitiva que tornara uma espe­
cialidade do seu j ornal, mas é difícil perceber como iriam os seus leitores
e devotos distinguir entre figuras de estilo retóricas e instruções literais,
até porque ele tinha deixado temporariamente de publicar o Ami du Peuple
e imprimia os seus comentários em cartazes afixados pela cidade de um
modo que lhes conferia a autoridade de proclamações semi- oficiais .
Outro cartaz, intitulado "Relatório ao Povo Soberano ", anónimo mas
escrito por Fabre d'Eglantine, poeta, dramaturgo e amigo dedicado de
Danton, é claríssimo na ligação que faz entre uma guerra até à morte na
fronteira e um ataque preventivo em Paris:

Mais uma vez, cidadãos, às armas! Que a França se erice de piques, baio­
netas, canhões e punhais; que todos sejam soldados; abatamos as fileiras
destes vis escravos da tirania . Que o sangue dos traidores sej a nas cidades
o primeiro holocausto à Liberdade para que quando avançarmos contra o
inimigo comum não deixarmos nada que nos prej udique atrás de nós .

As notícias da queda de Verdun chegam prematuramente a Paris, no


dia 2 de Setembro . Nessa altura, as assembleias de secção, prevendo o
pior, j á estão a aprovar moções que exigem, como a da secção de
Popincourt, "a morte dos conspiradores antes da partida dos cidadão s " .
Outras, como a d o s Gobelins, onde Santerre é o líder d o s j acobinos, insis­
tem no internamento das famílias dos emigrados e monárquicos como
reféns para impedir a violência prussiana.
Aquilo que se segue não tem igual nas atrocidades cometidas durante
a Revolução Francesa pelas facções. Perturbados pelo seu horror e mal
apetrechados no seu discurso profissional para contemplarem o que se
passou, os historiadores tendem a virar a cara para o lado e a ignorar o
evento como incidental ou "irrelevante " para uma análise séria da dinâ ­
mica da Revolução. A tradição anglófona deste século, que em quase
todos os outros aspectos deu um contributo poderoso e prolífico para a
historiografia da Revolução, tem um cadastro particularmente egrégio de
embaraço silencioso, como o convidado para j antar que se depara com um
acidente infeliz e inexplicável à mesa do anfitrião .
Em França, até há muito pouco tempo, a literatura relativa a o s massa­
cres de Setembro era dominada pela martirologia contra - revolucionária
ou pelo maciço volume de Pierre Caron, conscientemente empenhado em
purgar o registo dos mitos hagiográficos. O argumento de Caron foi que
S imon Schama 1 CIDADÃOS

um exame minucioso das fontes contemporâneas proporcionaria um


relato mais "obj ectivo" do episódio, purgado de moralizações tendencio­
sas. O livro que daí resultou e que continua a ser citado com reverência
pelos historiadores, é um monumento de cobardia intelectual e ilusão
moral. Pretendendo avaliar os relatos testemunhais com base num
pseudo -índice de fiabilidade académico, Caron acaba por privilegiar aque ­
les que reflectem a versão revolucionária oficial e ignora as fontes ema­
nadas dos próprios presos ( como o abade S icard ) , classificando-as, por
definição, como "suspeitas" . Numa tentativa forçada de enquadrar o suce­
dido no leito procrusteano da " explicação histórica obj ectiva", C aron
argumenta que, de alguma forma, ninguém foi responsável pelos massa­
cres. Pelo contrário, os massacres foram o resultado inevitável de forças
históricas impessoais: o medo sentido pelas massas e, implica ele amiúde,
um justificável desej o de vingar as baixas sofridas a 1 O de Agosto . O efeito
global da obra pretende ser confortante para o historiador da Revolução:
é a normalização académica do mal.
É óbvio que a chacina a sangue-frio de pelo menos mil e quatrocentas
pessoas foi consequência de uma condição fóbica provocada pela crise
militar e pela retórica apocalíptica da conj ura prisional. Existiu também
um elemento de saneamento armado, a consumação lógica das j eremia­
das de Mercier contra as imundícies cloacais da metrópole . O lixo a elimi­
nar compreendia todas as suas fontes especificadas de contaminação:
aristocratas j anotas, padres venais, prostitutas doentes e lacaios da corte.
Mas a eliminação de todas estas infecções humanas não teve origem
numa mobilização de massas indiscriminada, como sugere C aron. Pelo
contrário, como argumentou François Bluche num relato coraj oso e per­
ceptivo, as matanças foram obra de agentes humanos específicos e identi­
ficáveis e não existe escassez de fontes que descrevem os actos para o
historiador, se assim o entender, nelas concentrar a sua atenção. À queles
que insistem que acusar não é tarefa de historiador, pode - se responder
que também não é tarefa de historiador praticar o esquecimento selectivo
no interesse do decoro académico .
Para começar, não é difícil descobrir aqueles que têm alguma respon­
sabilidade por terem olhado para o lado e que não fizeram mais para
impedir a matança, apesar de ocuparem incontestavelmente posições que
lho teriam permitido. O s principais são Roland, o ministro do Interior, e
Danton. É verdade que Roland ficou perturbado com os " excessos" com
que os "filhos da liberdade não se devem macular" mas só depois do dia
2 de Setembro; na altura, manteve um silêncio discreto . A impassibilidade
de Danton talvez sej a muito mais incriminadora porque ele possuía uma
influência poderosíssima nas secções e nos comités policiais. É verdade
que no dia em que começaram as matanças ele estava a fazer o discurso
da sua vida, convicto de que se não se instilasse determinação nos
539

Franceses e, mais particularmente, no povo de Paris, assistir-se-ia a uma


desintegração total. Talvez tivesse razão, até porque Roland era a favor de
transferir a sede do governo para Tours . Sej a como for, o discurso foi um
apelo às armas brilhantemente musculado, um lisonj eiro auto -retrato de
prontidão marcial e, ao mesmo tempo, um tranquilizador manifesto de
vitória:

A patrie será salva . . . Está tudo em movimento, toda a gente anseia pela
luta . . . Enquanto uma parte do povo acorre às fronteiras, outra escava as
nossas defesas e uma terceira, armada com piques, defenderá as nossas
vilas e cidades . . . Paris secundará estes esforços . . . O rebate que soará não é
um sinal de alarme mas um apelo à carga sobre os inimigos da pátria. Para
os vencermos, senhores, precisaremos de audácia e mais audácia [toujours
de l 'audace] , e a França será salva !

O efeito desta oração, declamada naquilo a que os contemporâneos cha­


mavam a imensa vox humana de Danton (não era por acaso que os seus ini­
migos o apodavam de "o Mirabeau da canaille'" ) deve ter sido electrizante .
Mas, na mesma altura, o ministro da Justiça faz vista grossa à violência que
ele sabe claramente que está para acontecer em Paris. Quando o inspector
das prisões, Grandpré, chega à Câmara Municipal, onde o ministro se
encontra reunido com a C omuna, para dar conta dos seus receios acerca da
vulnerabilidade dos presos, Danton despacha-o secamente : "Je ne fous bien
des prisioniers; qu 'ils deviennent ce qu 'ils pourront!" ( "Estou -me nas tintas para
os presos; que se desenrasquem ! " ) . No dia 3 de Setembro, segundo Brissot,
Danton afirma que "as execuções eram necessárias para apaziguar o povo
de Paris . . . um sacrifício indispensável . . . O adágio mais verdadeiro e repu­
blicano que conheço é Voz populi, vox Dei" .
Mesmo depois de se tornar evidente que estava a ter lugar um massa­
cre de proporções horríveis, primeiro na Abadia e depois nas outras pri­
sões, a única medida tomada pelas autoridades da Comuna na tarde do
dia 2 foi a nomeação de comissaires para investigar o que estava a aconte­
cer. Mas estes homens foram menos mandatados da missão de pôr cobro
à matança do que de dar à violência um verniz de respeitabilidade judi­
cial. Incluíram, notoriamente, Stanislas Maillard, o auto-proclamado
herói do fosso da Bastilha no dia 1 4 de Julho e líder das mulheres no dia
5 de Outubro de 1 78 9 . Maillard gostava de se pavonear como capitão de
um grupo paramilitar de rufiões que punha ao serviço dos sans-culottes
mais militantes. Prendera zelosamente muita gente nas rusgas e foi
incumbido de realizar os "j ulgamentos " sumários que passaram por j usti­
ficação da carnificina .

3 Em francês no original: canalha . (N. da R. )


Simon Schama 1 CIDADÃOS

A Abadia é o cenário da primeira matança . Um grupo de vinte e quatro


padres em trânsito da mairie para a prisão, sob escolta armada, escapa por
pouco à turba na rua de B uci. Porém, quando chegam à prisão, outra mul­
tidão (possivelmente o mesmo grupo que os atacou antes, engrossado
com reforço s ) , exige um "j ulgamento " sumário. D epois de um grotesco
interrogatório superficial, são empurrados escada abaixo até ao jardim,
onde os assassinos os aguardam armados de facas, machados, sabres e, no
caso do talhante Godin, uma serra de carpinteiro. Em hora e meia, deza­
nove são feitos em pedaços . Entre os cinco que sobrevivem para dar tes­
temunho da atrocidade encontra -se o abade Sicard, que só é poupado
graças à intervenção de um, ,merceeiro e guarda nacional chamado
Monnot. Monnot será condecorado na Assembleia por Hérault de
Séchelles, num acto hipócrita de condescendência, por ter salvo "alguém
tão valioso para a patrie" .
A cena sanguinária repete -se, ainda no mesmo dia, no convento car­
melita que serve de prisão a outros cento e cinquenta padre s . Reunidos
no local por Joachim C eyrat, um ex- monge transformado em jacobino,
são individualmente chamados para um brevíssimo interrogatório ao
qual se segue a "sentença " e o assassinato, executado com a habitual
variedade de armas . O s afortunados são abatidos a tiro . Numa tentativa
desesperada para escaparem do j ardim do convento, alguns sobem
a árvores e saltam por cima do muro para a rua; outros fogem para a
capela, de onde são arrastados e mortos com mocas e armas cortantes.
A meio da carnificina chega o commissaire da secção do Luxemburgo,
Jean-D enis Violette, que interrompe brevemente os trabalhos . A instau­
ração de um procedimento judicial ligeiramente mais formal resulta em
algumas " absolvições", mas ao fim do dia o saldo é de cento e quinze
pessoas suj e itadas ao hache vengeresse ( machado da vingança ) , incluindo
o arcebispo de Arles, os bispos de Saintes e B eauvais e o monárquico
Charles de Valfons .
Durante os dias seguintes, são efectuadas novas visitas à Abadia, onde
os assassinos se referem ao seu travai! ( trabalho ) - pelo qual lhes foi evi­
dentemente prometido um salário específico. Segundo Jourgniac de
Saint-Méard, um oficial do exército que consegue sobreviver e cuj a histó ­
ria daquilo a que chamará as suas "trinta e oito horas de agonia " é um dos
melhores relatos da chacina, o horror é agravado pelo " silêncio profundo
e sombrio" no qual os carrascos trabalham. São mortos cerca de dois ter­
ços dos presos da Abadia, incluindo um criado de quarto do rei,
Champlosse, o ex-ministro Montmorin e dois juízes de paz, B uob e
Bosquillon, que cometeram o "liberticídio " de tentar acusar em tribunal
os responsáveis pela invasão das Tulherias no dia 20 de Junho. Entre os
que escapam, conta -se o marquês de Marivaux, o advogado parlamentar
que em 1 77 1 se socorreu dos ditames de Rousseau sobre a soberania
541

popular para atacar o "despotismo" do chanceler Maupeou. Em 1 7 92 j á


tem manifestamente q u e chegue d a Vontade Geral.
À s duas e meia da manhã do dia 3 de Setembro, o C onselho Geral da
C omuna é informado pelo seu secretário, Tallien ( que também é um dos
commissaires) de que não obstante a emissão de salvo- condutas para pro­
teger os presos existem demasiados cidadãos em serviço militar nas bar­
reiras para garantir a sua segurança . É um exemplo notável da
conspiração de hipocrisia que permite aos poucos membros da Assembleia
ainda em funções exercer uma imparcialidade pilática enquanto prosse­
gue o massacre. Outro commissaire, Guiraut, é ainda mais auto-exonera­
tório quando afirma que "ao exercer a vingança, o povo está também a
fazer j ustiça " . À Assembleia Legislativa, diz que se verificou um motim
grave noutra prisão, Bicêtre, que teve que ser subj ugado antes que se tor­
nasse uma ameaça à segurança da cidade.
Na verdade, o que está a acontecer em B icêtre é uma chacina sistemá­
tica de adolescentes . Os detidos da Abadia, das Carmelitas e de outro
espaço prisional no Mosteiro de Saint-Firmin eram quase todos padres e
presos políticos detidos durante as suas semanas anteriores, mas os de
Bicêtre, de La Force e de Salpêtriere, cenários de carnificinas semelhantes,
são criminosos de direito comum, mendigos e pessoas detidas a pedido das
famílias ao abrigo das convenções do Antigo Regime. Quarenta e três das
cento e sessenta e duas pessoas mortas em Bicêtre são menores de dezoito
anos, incluindo treze com quinze anos, três com catorze, duas com treze
e uma com doze anos de idade . Aparentemente, o carcereiro -mor, um tal
de B oyer, participou vigorosamente na matança dos presos à sua guarda.
Em Saint-Bernard, são assassinados cerca de setenta condenados que
aguardam envio para os pontões; em Salpêtriere, mais de quarenta pros­
titutas são mortas depois de, com toda a probabilidade, sofrerem humi­
lhações físicas às mãos dos assassinos .
Em La Force, a princesa de Lamballe passa o tempo a ler manuais
religiosos e a tentar consolar as aterrorizadas damas de companhia da
rainha. É presente a um dos tribunais improvisados que são j uiz, j úri e
carrasco e perguntam-lhe se sabia das " conj uras de 1 0 de Agosto "; ela
responde coraj osamente que desconhecia a existência de quaisquer
conspirações naquele dia . Exigem-lhe que j u re fidelidade à Liberdade e
à Igualdade e ódio ao rei, à rainha e à monarquia; ela aceita o primeiro
j u ramento mas recusa o segundo. Abre -se uma porta da sala de interro ­
gatório e ela vê homens à espera com machados e piques. É empurrada
para um beco e despedaçada em poucos minutos . Tiram - lhe as roupas e
deitam-nas para a imensa pilha que será vendida em hasta pública; a
cabeça é cortada e espetada num piqu e . Alguns relatos, incluindo o de
Mercier, insistem na mutilação e exibição obscena dos seus genitais,
uma história que Caron refuta como intrinsecamente inconcebível com
Simon Schama 1 CIDADÃOS

a certeza enclausurada do arquivista . Do que não restam dúvidas é que


a cabeça dela foi levada em triunfo pelas ruas de Paris até ao Templo,
onde um popular entrou pelos aposentos do rei e exigiu que a rainha
assomasse à j anela para ver a cabeça da amiga, "para que saibais como o
povo se vinga dos tiranos " . Maria Antonieta poupou-se o tormento des­
maiando de imediato mas o criado de quarto Cléry espreitou pelas frestas
das persianas da sua j anela e viu a imagem repelente dos caracóis louros
da princesa de Lamballe sacudidos no ar.
Para Pierre Caron, estas coisas não passam dos " excessos" lamenta ­
velmente inevitáveis que são cometidos em momentos de histeria de
massa s . Ele descreve prudentemente a exibição da cabeça de Lamballe
como "o costume daqueles tempos", como se de um pitoresco passa­
tempo folclórico se tratasse, e não se poupa a esforços para descartar as
histórias de outras atrocidades como mitos óbvios e peças da martirolo­
gia monárquica. Muitas destas histórias - o molestamento sexual das
prostitutas de S alpêtriere, a mutilação da princesa de Lamballe, Madame
de S ombreuil a ser obrigada a beber um copo de sangue para salvar o pai
- poderão ser apócrifas mas a refutação de Caron baseia -se parcialmente
no facto de não estarem registadas nas fontes revolucionárias às quais ele
atribuiu uma credibilidade exclusiva, bem como na sua recusa de acre ­
ditar que seres humanos, especialmente aqueles que diziam agir em
nome do Povo Soberano, poderiam ter perpetrado algo tão obsceno.
Mas Caron escreveu em 1 9 3 5 . D e z anos mais tarde, a história europeia
desenganou -se de novo da noção de que a modernidade confere isenção
da bestialidade.
Os massacres de Setembro custaram a vida a cerca de metade da popu -
lação prisional de Paris. Nalguns lugares, como na Abadia e nas
Carmelitas, pereceram 8 0 % ou mais dos reclusos . Houve sinais de remor­
sos e mesmo de desespero entre os impotentes deputados à Legislativa e
até entre alguns membros da C omuna, entre os quais Manuel, que se
referiu a cenas a que tinha pessoalmente assistido como douloureux. Mas
a Comuna nunca puniu os assassinos e vários dos seus membros louva ­
ram os seus actos como uma purga útil de uma quinta -coluna . Os sinais
enviados aos fanáticos das províncias foram claros, dado que nas duas
semanas seguintes se verificaram vários j ulgamentos sumários e execu ­
ções nas províncias, quase todas de padres e suspeitos monárquicos. Um
grupo de cerca de quarenta presos estava em trânsito de Orleães para Paris
e a Assembleia Legislativa decidiu desviá -lo para Saumur para sua própria
segurança mas um dos seccionistas mais militantes, Fournier, o
Americano, partiu com uma companhia de homens armados para garan­
tir o cumprimento do plano inicial. Em Versalhes, o grupo, que incluía De
Lessart, o feuillant ministro dos Negócios Estrangeiros, foi massacrado de
forma que parece ter sido premeditada.
543

Durante vários dias, os locais das matanças foram cuidadosamente


esfregados e lavados com vinagre mas em algumas prisões, tais como La
Force, não se conseguiu eliminar as manchas de sangue . Um desenho da
autoria de B éricourt retrata de forma bastante vívida a banalização admi­
nistrativa do assassínio em massa. Em baixo, à direita, um funcionário
envolto numa faixa tricolor inspecciona a eliminação dos cadáveres
enquanto a figura que se encontra ao seu lado toma nota num registo .
À direita de ambos vê-se um vainqueur de la Bastille, reconhecível pelo
capacete; outra figura olha despreocupadamente para uma cabeça dece ­
pada . Na carroça, os homens estão a gostar do seu trabalho.
Nos últimos dias da Legislativa e nas primeiras semanas da C onvenção
Nacional que lhe sucedeu, os políticos girondinos - eles próprios bastante
comprometidos com o sucedido - procuraram usar as matanças como
arma para atacar os inimigos que tinham entre os j acobinos . Brissot, em
particular, acreditava com alguma j ustificação que ele e os seus amigos
também tinham sido escolhidos para exterminação e que haviam esca­
pado por um triz.
Precisamente porque os massacres se tornaram rapidamente um ele­
mento dos combates partidários da C onvenção, são frequentemente vis ­
tos como mais um episódio nas polémicas das facções. Nesta forma, ou
como aberração psicológica ligada ao pânico provocado pela guerra, o
evento foi marginalizado como algo de interesse exclusivo para a história
sensacionalista e anedótica e indigno de uma análise séria . No entanto, os
massacres de Setembro podem ser j ustificadamente vistos como o evento
que, mais do que qualquer outro, expôs uma verdade central da
Revolução Francesa : a sua dependência do assassínio organizado para a
prossecução de fins políticos. Por muito virtuosos que fossem os princípios
de uma França sem rei, a sua capacidade para fidelizar dependeu, desde o
princípio, do espectáculo da morte .
Uma testemunha contemporânea, pelo menos, reconheceu de forma
precisa a miséria moral do dilema revolucionário. Numa carta a uma
amiga, que ficará inacabada e por enviar, Claude B asire, deputado j aco­
bino e robespierrista pelos quatro costados, expressa o seu alívio porque

os vossos belos olhos não foram maculados pelas visões hediondas que tive­
mos à nossa frente nestes últimos dias . . . Mirabeau disse que não há nada mais
lamentável ou revoltante nos seus pormenores do que uma revolução, mas
que também não existe nada mais belo nas suas consequências para a rege­
neração dos impérios. É possível, mas é preciso coragem para se ser um esta­
dista e manter a cabeça fria no meio de tais tumultos e crises terríveis.
Conheceis o meu coração, avaliai a situação da minha alma e o horror da
minha posição. Um homme sensible tem de cobrir a cabeça com a capa e passar
depressa pelos cadáveres para se encerrar no templo da lei [a legislatura] .
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Tal como B luche observa, é exactamente quando Basire é forçado a sair


da sua concha de protecção oficial que o seu relato se interrompe.
Nomeado pela Assembleia um dos seis comissários enviados para devolver
a paz às prisões, ele desloca-se à Abadia "gemendo por dentro perante a
lentidão do nosso cortej o " . À frente do edifício, onde há "uma escuridão
profunda, penetrada apenas pela luz sepulcral de algumas tochas e velas",
ele pára e a sua narrativa pára também. É como se a realidade existente
no interior fosse demasiado forte para o coeur sensible: a declaração oracu -
lar da Vontade Geral expressa numa oblação de sangue e ossos.

II GOETHE EM VALMY

Que barulho faz uma bala de canhão? S egundo Goethe, é como " o
murmúrio d a s árvores, o gorgolej o d a água, o assobio d o s pássaros " .
Goethe fez estas observações experimentais n o dia 2 0 d e Setembro, nas
colinas arborizadas do Argonne, a mesma paisagem na qual um ano antes
Luís XVI deu cabo da sua fuga . O patrono de Goethe, o duque Karl­
-August de Weimar, tinha sido nomeado para o comando de um regi­
mento e quando o Exército prussiano iniciou o seu lento avanço em
França, em finais do Verão, o poeta-filósofo acompanhou as tropas, mais
por curiosidade científica do que por entusiasmo político. Goethe era tão
indiferente ao igualitarismo romântico como à legitimidade arcaica,
vendo na revolução e na contra -revolução interrupções brutais do reino
da razão, mas uma campanha de cerco e uma marcha proporcionaram­
lhe uma experiência nova e dramática à qual Goethe foi incapaz de resis­
tir. Goethe estava profundamente imerso nas reflexões que dariam
origem à sua importante obra sobre a teoria da cor, Farbenlehre, embora
Karl-August considerasse bizarro que, durante o bombardeamento de
Verdun, Goethe estivesse a observar a cena para tentar descobrir quais
eram os tons da guerra .
Em Valmy, numa colina de onde se descortina a artilharia francesa dis­
posta num arco, ele vê vermelho . C om as balas a explodirem à sua volta,
atirando pelo ar a terra e as folhas outonais fumegantes, " era como se esti­
véssemos num sítio extremamente quente e ao mesmo tempo penetrados
pelo seu calor, de modo que no sentíamos unidos com o elemento em que
estávamos. Os olhos não perderam nenhuma da sua força ou nitidez mas
era como se o mundo tivesse uma espécie de tonalidade castanho - aver­
melhada que tornava a situação e os obj ectos circundantes mais impres­
sionantes . Não consegui aperceber-me de nenhuma agitação do sangue
mas tudo parecia engolido por aquele brilho" .
N o fim d o dia, esta "febre " , como Goethe lhe chamou, arrefece e ele
regressa a cavalo às linhas prussianas. Encontra os soldados num estado
545

de colapso moral. "De manhã, só falavam em enfiar o exército francês


num espeto e devorá-lo . . . agora, queriam estar sozinhos, ninguém
,
olhava para o vizinho do lado, só para praguej ar" . Na verdade, os
Prussianos não foram propriamente derrotados e, tendo em conta uma
contagem rigorosa das baixas, pode mesmo dizer-se que levaram a melhor
pois sofreram pouco mais de cem mortos ou feridos graves contra o triplo
dos Franceses. Mas o reconhecimento geral, do alto comando de
Brunswick aos soldados rasos, de que o avanço prussiano foi ferido de
morte, está correcto. O ritmo ponderoso do exército não impediu a j un­
ção, no dia 1 9, das forças de D umouriez com as de Kellermann. As divi­
sões francesas posicionaram -se atrás do exército prussiano, de costas para
leste . Hipoteticamente, B runswick poderia ter tentado um avanço rápido
para ocidente, pelo Mame, sobre Paris, mas arriscar-se-ia a ver a sua reta ­
guarda cortada e ameaçada por uma força importante e bem posicionada .
Era, pois, vital eliminar essa ameaça antes de retomar o avanço, até por­
que o exército já estava bastante afectado pela doença e o tempo miserá­
vel de Setembro começava a reduzir a progressão a um lamacento passo
de caracol.
Para os Franceses, resistir, segundo D umouriez, nas "Termópilas" era a
única hipótese de impedir os Prussianos de chegarem a Paris. A estratégia
do general fora travar o avanço prussiano com um contra -ataque na
Holanda austríaca mas a operação fora suspensa por ordem do C onselho
Executivo até que a ameaça do exército de B runswick fosse eliminada. No
dia 20, as tropas de Kellermann, compostas essencialmente por regulares
e alguns voluntários, posicionam-se atrás de um grande moinho de vento
nas colinas de Valmy. D ebaixo de um intenso bombardeamento, não
cedem terreno e ripostam com a sua própria artilharia. Os granadeiros ini­
migos que sobem as colinas em linha, ao estilo prussiano, ouvem, por
cima dos assobios e dos estrondos do tiro da artilharia, os Franceses a can­
tar a "Ça ira " e a gritar Vive la nation.
Incapaz de desalojar a artilharia francesa das suas posições, B runswick,
avesso a tentar um ataque frontal, cancela a ofensiva. Ambos os belige ­
rantes estão a sofrer bastante com as doenças e a falta de provisões, e cada
um dos exércitos está a cortar as linhas de comunicações do outro.
Sensatamente, D umouriez manda Kellermann recuar para S ainte ­
-Menehould ( onde o rei foi reconhecido pelo chefe da posta ) e, anteci­
pando um novo avanço prussiano, ordena a destruição das estradas e que
os campos sej am devastados. Mas os Prussianos não voltarão a avançar.
C om o exército reduzido a metade pelo desgaste, B runswick opta por uma
retirada que torna completa a desmoralização das tropas. Tal como Goethe
compreende de imediato, é um ponto de viragem crítico para a guerra e
para a Revolução. À noite, Goethe senta-se num círculo de soldados desa ­
lentados que tentam avivar uma fogueira com lenha teimosamente
S imon Scharna 1 CIDADÃOS

húmida . Na qualidade de sábio residente, pedem-lhe a sua opinião sobre


os acontecimentos do dia. "Eu costumava animar e divertir os soldados
com ditos breves", recordará ele no seu diário de campanha, mas o que
lhe ocorre no momento, ainda que irrepreensivelmente imparcial, não
terá sido um grande consolo para quem o ouviu . "Hoje, aqui, começou
uma nova era da história mundial e todos vós podereis dizer que estives­
tes presentes no seu nascimento. "
Em Paris, ainda antes de se saber do resultado de Valmy, a nova era
recebe uma designação oficial. A partir de 20 de S etembro, dia inaugural
da Convenção Nacional, todos os documentos oficiais deverão ter a data
"Ano Um da Liberdade Francesa " . Por conseguinte, a República, formal­
mente proclamada no dia 2 1 , é um novo princípio de tempo histórico .
Com o rei e a família cativos na cidadela medieval do Templo, Paris obli­
tera as memórias inanimadas da monarquia. No dia seguinte à queda das
Tulherias, uma grande multidão de voluntários aj udou a derrubar a está ­
tua de Luís XIV do seu pedestal na Praça das Vitórias. Agora, decorrido um
mês, o Povo Soberano pode celebrar um feito militar próprio. Na verdade,
Valmy foi uma vitória do antigo exército real, reconstruído por Guibert e
Ségur mas reforçado com soldados alistados desde a Revolução e com um
punhado de voluntários. Porém, logo que começam a circular as histórias
dos soldados de Kellermann a cantarem a "Marselhesa" e a " Ç a ira", a
vitória é apresentada como o triunfo do cidadão - sem-armas sobre os
lacaios armados do despotismo.
Dumouriez não se deixa arrebatar pela retórica da invencibilidade. Na
verdade, a estratégia que está a executar é de um pragmatismo sensato.
Herdou dois dos objectivos tácticos de Lafayette: afastar a Prússia da coli­
gação e consolidar a força militar para utilizar, se for caso disso, contra
uma Paris insurrecta . Valmy é uma oportunidade para abordar os
Prussianos quando se encontram mais vulneráveis. C ontudo, quando a
notícia da proclamação da República chega à frente, o rei Frederico
Guilherme endurece a sua posição negocial, exigindo como pré- condição
para a paz a restauração de Luís XVI no trono até ao dia 1 0 de Agosto . O s
Franceses recusam-se a continuar as negociações enquanto os Prussianos
não abandonarem completamente o país. As negociações rompem -se
abruptamente e os Prussianos, mais seguidos do que seriamente acossa­
dos pelos Franceses, arrastam-se penosa e ingloriamente para o outro lado
da fronteira e depois para o outro lado do Reno .
E sta manobra deixa um grupo de pequenos Estado imperiais directa ­
mente expostos ao avanço do general Custine, ex-comandante de B iron,
na frente central ( Kellermann foi enviado para Metz e o exército de
D umouriez avança para norte, para a B élgica ) . Em finais de Outubro,
comboios de carruagens com as pessoas e os bens de príncipes-bispos, elei­
tores, cavaleiros imperiais e chanceleres partem das cidades da margem
547

esquerda do Reno, tais como Speyer, Worms e Mainz. Com eles partem os
camareiros, os j uízes, os mestres de orquestra, os postilhões, os couteiros­
-mores - os séquitos que sustentavam estes principadozecos no estilo
rococó a que se tinham indispensavelmente acostumado.
Os Franceses entram no território, onde são principalmente aclamados
pelo punhado de intelectuais, jornalistas e professores que são pronta­
mente instalados como guardiães da libertação. C hovem proclamações
que prometem às populações a "libertação " do " despotismo" ou da "escra­
vidão" mas o preço invariável é a imposição de requisições implacáveis e
indemnizações pesadíssimas. Será este o padrão das ocupações francesas
durante os próximos vinte anos mas a primeira vez é um choque brutal.
George Forster, bibliotecário de Mainz e outrora pró -francês, queixa-se a
Custine de que os seus compatriotas se teriam sentido menos enganados
"se lhes tivessem dito à partida: 'Viemos para levar tudo ' " .
C o m as forças francesas ao ataque, não só n a Alemanha mas também
na Sabóia, onde Chambéry e Nice são reunidas com la Nation, Dumouriez
persuade a C onvenção a avançar contra os Austríacos na Holanda, onde
espera ser apoiado por uma renovação da insurreição contra o domínio
habsburgo que, em 1 789, criou brevemente um Estado belga indepen­
dente. No entanto, o factor decisivo é menos o desej o dos indígenas de
verem os Austríacos pelas costas ( que é grande) e mais a superioridade das
forças militares que D umouriez pode empenhar. Em homens e artilharia,
dispõe de quase o dobro das forças inimigas. No dia 6 de Novembro,
Dumouriez ataca a posição austríaca nas elevações de Jemappes, a norte
da cidade de Mons, avançando numa frente larga enquanto lança outra
ofensiva pela direita para cortar a retirada ao inimigo. C ontra- atacadas
pela cavalaria austríaca, especialmente onde os voluntários tornam a
linha menos sólida, as posições francesas quase cedem por diversas vezes
mas conseguem sempre recompor- se. Quando os Austríacos se apercebem
da presença de tropas francesas na sua retaguarda ( atravessaram o rio em
barco s ) , Jemappes é evacuada. Ficam no terreno quatro mil homens mor­
tos ou gravemente feridos. Mons abre as portas aos Franceses no dia 8 de
Novembro e uma semana depois as tropas vitoriosas de D umouriez desfi­
lam na Praça Real de B ruxelas .
Em França, foi Jemappes, mais do que Valmy, que transformou a
guerra de uma agitada acção defensiva na "cruzada pela liberdade uni­
versal" prometida por B rissot. Em contraste com a reacção bastante come ­
dida à primeira batalha por parte dos produtores de gravuras, uma grande
explosão de imagens celebra a vitória sobre os Austríacos. A trupe de
Montansier, que durante o Antigo Regime actuou frequentemente em
Versalhes, especializou -se no drama patriótico, recriando cenas heróicas
da Revolução para aumentar o moral em Paris. D epois de Jemappes, a
trupe foi em digressão até ao campo de batalha para entreter as tropas
Simon Schama 1 CIDADÃOS

com uma versão dramática do combate, com canhões e soldados austría­


cos uniformizados de branco e aterrorizados a fugirem do palco . Depois de
transmitir aos soldados a noção do significado histórico do seu acto
enquadrando-o numa retórica dramática, a trupe regressa à capital para
representar A Batalha de Jemappes para multidões em delírio .
A C onvenção n ã o fica imune à intoxicante atmosfera d e invencibili­
dade . Embora Robespierre tenha sido contra a guerra e desconfie que
Dumouriez tenciona uma Bélgica independente como base para marchar
sobre Paris, não consegue prevalecer contra a grande onda de entusiasmo
marcial que se apodera dos deputados depois de Jemappes. O pequeno
principado de Zweibrücken enviou cartas solicitando a protecção da
França e em resposta, no dia 1 9 de Novembro, a C onvenção faz o gesto
dramático de prometer assistência "a todos os que desej arem recuperar a
sua liberdade " . Tal como todas as declarações emitidas pela C onvenção,
este primeiro "decreto de propaganda" funcionou a dois níveis. Em ter­
mos retóricos, foi o primeiro manifesto de guerra revolucionária da histó ­
ria da Europa, mas importa não esquecer que a Revolução Francesa foi,
em grande medida, provocada pelas feridas infligidas ao amor-próprio
nacional e pela necessidade de revigorar a tradição do patriotismo francês.
Assim, embora a presença no governo de étrangers, amis de la révolution,
como Etienne C laviere, possa traduzir um empenhamento numa guerra
de proselitismo e ideológica, esta foi quase sempre contrabalançada por
interesses de Estado definidos de forma muito mas pragmática . Quando
Brissot avisou, em 26 de Novembro, " S ó nos poderemos acalmar depois
de toda a Europa estar em chamas", o que tinha em mente era uma
expansão estratégica que desse origem a satélites aliados ou a zonas-tam­
pão atrás das quais a Revolução se poderia proteger adequadamente.
Uma Bélgica independente poderia ser uma destas zonas? Em finais de
Novembro, são vários os deputados à Convenção que receiam que a
Bélgica se converta num feudo militar de Dumouriez, que se sabe estar a
conduzir a sua própria política externa - por exemplo, prometeu proteger
os bens da Igrej a C atólica em troca de um empréstimo. Para frustrar essa
possibilidade, a C onvenção aprova, no dia 1 5 de Dezembro, um decreto
que parece à opinião pública europeia ter um significado muito mais radi­
cal, uma vez que determina que as autoridades militares francesas apli­
quem a legislação principal da Revolução - incluindo a destruição do
regime feudal - nos territórios ocupados. Tal como os "direitos do homem"
se consideram agora uma possessão universal baseada na natureza, outro
axioma da natureza é a determinação dos limites territoriais da Revolução.
Dumouriez e Danton concordam que esses limites se definem obviamente
através de barreiras geográficas: os Pirenéus, os Alpes, o Reno, o Canal da
Mancha e o Mediterrâneo. Isto significa que uma política de "libertação"
começa a diluir- se numa política de anexação - eufemicamente conhecida
5 49

por réunion em regiões como Porrentruy, na fronteira suíça, que se tor­


-

nou o departamento de Mont-Terrible, e na Nice saboiarda .


Todavia, a mera declaração de "fronteiras naturais" não implica que as
armas francesas fiquem confinadas no seu interior. Pelo contrário,
enquanto estiverem ameaçados por coligações de reis ou ( como autorizou
o decreto de propaganda ) sempre que forem chamados por povos que
gemem sob o j ugo do despotismo, os Franceses levarão o combate ao ini­
migo, onde quer que ele se encontre . E os meios desta ofensiva não serão
necessariamente ortodoxos. O marquês ci-devant de B ry oferece -se para
fundar aquela que é efectivamente a primeira organização terrorista inter­
nacional, os Tiranicidas - mil e duzentos combatentes da liberdade pron­
tos para assassinarem reis e comandantes de exércitos estrangeiros onde
quer que os consigam apanhar.
Foi, na verdade, como Goethe previra, um novo momento da história
do mundo .

III "NÃ O SE REINA INOCENTEMENTE "

Existe pelo menos uma gravura revolucionária que mostra o nasci­


mento da primeira República francesa com uma clareza assustadora . Das
saias largueironas de uma sans-culotte formidável sai um bebé que corpo­
riza, assim nos diz a legenda, o citoyen né libre ( cidadão nascido livre ) .
É enorme e inegavelmente combativo . Todavia, no princípio da história
da República também houve ocasiões em que a metáfora da infância teve
um uso mais benigno . O Departamento do Orne, por exemplo, assinalou
a eleição dos deputados departamentais à C onvenção, no dia 1 1 de
Setembro, com uma cerimónia baptismal ( tal como fez o Departamento
do Meurthe ) . A assembleia de eleitores assumiu o papel de padrinho da
bebé, filha de um j ovem voluntário, e o baptismo esteve a cargo de
Dufriche-Valazé, girondino e oficial do exército na reserva. A colecta ren­
deu trezentas libras que foram entregues à mãe, Madeleine Chuquet, que
em reconhecimento da honra recebida deu à menina o nome de Aluise
Hyacinthe Electeur.
As eleições representaram um acto semelhante de inocência política, a
devolução da soberania ao Povo para que reconstituísse as formas nas
quais era investida. Estas formas não foram um referendo sobre a suspen­
são do rei ( decretada a 1 3 de Agosto ) , pois embora alguns monárquicos
tenham participado nas assembleias eleitorais, o dia 1 0 de Agosto aniqui­
lara-os como força política a ter em conta. Não obstante as suas reservas
acerca da mobilização armada dos sans-culottes, os girondinos não estavam
dispostos a enfiar a carapuça de contra -revolucionários contestando o
veredicto da insurreição. Por conseguinte, foi um governo dominado por
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Roland e seus amigos que, envolvendo-se no manto das formas legais da


Legislativa, redigiu e enviou as complexas instruções para a convocação
das assembleias primárias e eleitorais com base no sufrágio masculino.
Os resultados não traduziram uma demonstração da democracia em
acção, longe disso . Embora sej a notoriamente difícil obter números, não é
provável que tenham votado mais de 6 % dos sete milhões de eleitores
autorizados. Por conseguinte, um regime mais radical resultou nova­
mente de um número de votos diminuto . É claro que existiam bons moti­
vos para esta relutância eleitoral. O Norte e o Leste estavam a braços com
uma grave crise militar, que obrigou duas assembleias departamentais a
transferirem-se apressadamente para fugirem ao teatro de guerra . Nas
grandes cidades, a atmosfera política era tão ameaçadora que votar era
um acto de considerável coragem. Em Paris, a assembleia eleitoral reuniu ­
- s e n o s Jacobinos - n ã o e r a o sítio mais neutral - a 2 de S etembro, o pri­
meiro dia dos massacres nas prisões. Além do mais, o método de voto na
capital e noutros dez departame ntos, ao ser através de u_m a declaração
oral pública, prestava -se obviamente à intimidação. E apesar de, como
alguém observou, os procedimentos terem sido suficientemente abertos
para se ter verificado um tumulto contínuo, não foi seguramente por
acaso que Paris elegeu uma delegação de vinte e quatro dos jacobinos
mais militantes, incluindo Robespierre, Marat, Robert, Santerre, D anton,
Fabre, Desmoulins e o actor C ollot d'Herbois . Noutros pontos da França,
a baixa afluência às urnas poderá ter tido a ver com as pressões mais
banais do calendário da safra .
Independentemente das causas, seria um erro partir do princípio de
que esta afluência reduzida significou uma rej eição tácita do 1 0 de
Agosto . O exaustivo estudo das eleições para a C onvenção levado a cabo
por Alison Patrick mostra que, surpreendentemente, houve muito
pouca interferência no processo eleitoral, quer por parte de espectado­
res tumultuosos quer - ainda menos - por turbas em armas . Além disso,
as eleições terminaram muito antes de o país ter conhecimento dos mas­
sacres de Paris ou compreender verdadeiramente a sua natureza indis­
criminada. Essencialmente, a versão oficial sobre o 1 O de Agosto, o dia
em que uma insurreição do povo de Paris frustrara um golpe de Estado
militar monárquico, foi geralmente aceite . S ó mais tarde é que o j ulga ­
mento e a execução do rei intensificaram a insatisfação de regiões intei­
ras da França ao ponto de as empurrar praticamente para a via da
rebelião.
As eleições podem também ser interpretadas como um voto a favor da
continuidade do passado recente, não de um rompimento radical. Dos
749 deputados à C onvenção, nada menos de 205 tinham sido membros
da Assembleia Legislativa e 83 da C onstituinte. A reeleição dos primeiros,
em particular, parece indicar quase uma predisposição para acreditar na
551

versão dos legisladores que tinham tido experiência directa da monarquia


constitucional e que assim podiam confirmar a sua inviabilidade nas mãos
de Luís XVI. Os restantes eram homens que se tinham destacado na polí­
tica local, geralmente através de uma oposição veemente às administra ­
ções incumbentes .
A C onvenção e r a u m órgão relativamente j ovem. A s u a coorte gera ­
cional mais numerosa, cerca de um quarto dos eleitos, estava no fim da
casa dos trinta, mas o estereótipo dos republicanos j ovens e de sangue
quente não está longe da marca, já que era na extremidade mais j ovem
do espectro que o empenhamento político era de sobremaneira vincado.
Ainda mais do que as suas antecessoras, a C onvenção era uma congrega ­
ção de advogados . 47 % dos deputados pertenciam a esta profissão, o que
se torna de significado crucial quando consideramos que o acto fundador
da C onvenção foi um j ulgamento. Outros grupos bastante representados
eram o clero, com 55 patriotas ( incluindo nove protestantes, entre os
quais Rabaut Saint-Etienne, e nada menos de dezasseis bispos constitu ­
cionais, incluindo Fauchet e Grégoire ) . Havia 5 1 funcionários públicos,
incluindo D rouet, o chefe da posta que parara o rei em Varennes, e 46
médicos. Os extremos opostos apresentavam pelo menos um camponês
pobre, Jacques Chevalier, e um ex-príncipe e proprietário do Palais -Royal,
Philippe de Orleães, agora conhecido por "Philippe-Egalité " .
Esta simples tabulação d e escalões etários, ocupações e experiência
política não conta a história toda. Muito mais significativa do que o seu
número indica foi a injecção no órgão legislativo de um grupo de jorna­
listas, escritores e panfletistas que exerciam uma influência enorme atra ­
vés das suas publicações. Por exemplo, Carra, o editor girondino dos
Annales Patriotiques, contabilizou votos suficientes para ser eleito em nada
menos de oito departamentos ( Robespierre foi eleito apenas em dois ) .
Juntamente com Fréron, Marat, Desmoulins e B rissot ( cuj a fama se
estendera obviamente muito para lá dos leitores do Patriote Français ) ,
estes autores transferiram para a câmara d o s debates o estilo histriónico
e acusatório que tinham aperfeiçoado no seu jornalismo . Quando fez
frente ao modo oratório mais luxuriante privilegiado pelos girondinos
como Vergniaud, o resultado foi uma série de dramas imprevisíveis e até
violência verbal, com Marat e Guadet, nas extremidades opostas do
salão, a ameaçarem-se de punho erguido e aos gritos para conseguirem
ser ouvidos.
Por conseguinte, as hostilidades entre uma minoria de deputados à
C onvenção conferiram desde o princípio um tom de acérrima intensi­
dade aos trabalhos . Foi entre os ex- deputados à Legislativa e, em menor
grau, à C onstituinte, que se formaram mais decisivamente os campos
opostos. O facto de estes grupos não se assemelharem minimamente aos
partidos parlamentares modernos não disfarça o verdadeiro veneno da
Simon Schama 1 CIDADÃOS

sua inimizade, especialmente no núcleo de zelotas em torno dos quais as


lealdades se polarizaram. Tal como na Legislativa, deram expressão à sua
relação beligerante sentando -se longe uns dos outros. Os aliados de
Robespierre tomaram o seu lugar nos assentos de cima, encostados à
parede, os quais, dado que o lugar do presidente fora mudado para o
outro lado da câmara, passaram a situar- se - confusamente - à sua
direita, mas que deram à facção o nome de Montanha. Os antigos luga­
res dos feuillants foram inicialmente evitados porque qualquer deputado
que os ocupasse seria rotulado de monárquico. C ontudo, pouco tempo
depois, tornaram-se a zona do Manege onde os principais girondinos
reuniram as suas forças. Mais abaixo, sentou-se a maioria dos deputados
independentes, colectivamente conhecidos por Planície . Em lugar de
votarem de acordo com um padrão coerente, alteravam a sua lealdade
individual caso a caso, em função da persuasão dos argumentos apresen­
tados. No entanto, não eram um grupo sem rosto e tíbio, pois incluíam
homens tão experientes e inteligentes como S ieyes e tão eloquentes
como o advogado Bertrand B arere, cuj a intervenção terá um efeito deci­
sivo sobre o destino do rei.
Embora não houvesse nada que, em termos de origens sociais, ocupa­
ção ou mesmo experiência política, distinguisse os jacobinos dos girondi­
nos, isto não significa que fossem grupos indiferenciados de homens que
gravitavam em torno de alguns membros nucleares reconhecíveis, como
Robespierre e B rissot. Houve alturas cruciais em que o seu desacordo
sobre a natureza da Revolução foi profundo. Um número considerável de
girondinos era oriundo de cidades marítimas e portuárias - não só de
Bordéus mas também de B rest e Marselha - e firmemente antagónico às
pretensões de Paris a ditar o rumo da Revolução. Em contraste,
Robespierre excedeu-se, quer nos Jacobinos, quer na C onvenção, em elo­
gios aos parisienses como fonte indestrutível do dinamismo revolucioná­
rio. No entanto, embora no cume, na liderança, a Montanha fosse
agressivamente metropolitana, nas faldas e no sopé havia muitos j acobi­
nos oriundos de diferentes regiões da França. Em muitos casos, quanto
mais remoto era o seu departamento, mais acossados se tinham sentido,
no seu clube jacobino afiliado, na defesa da manutenção do que conside­
ravam ser a fé revolucionária pura. Chegados a Paris, encostaram-se ao
grupo mais zeloso e solidário. Por conseguinte, ofendiam-se com as ten­
tativas dos girondinos de se apresentarem como guardiães das liberdades
provinciais. Isto veio à superfície quando os girondinos apelaram à for­
mação de uma guarda especial para proteger a Convenção contra a inti ­
midação armada e quando B arbaroux, deputado por Marselha, tentou
mobilizar os seus concidadãos para o mesmo fim.
Os girondinos também se apresentaram, com alguma hipocrisia, como
protectores da legalidade contra as brutalidades arbitrárias da turba.
553

Quando vieram à luz os pormenores hediondos dos massacres, os giron­


dinos não perderam a oportunidade para atribuírem responsabilidades à
C omuna e, por extensão, aos j acobinos. O seu domínio da presidência e
do secretariado da C onvenção durante os primeiros três meses permitiu­
-lhes determinar a ordem dos oradores e até definir a agenda dos debates .
Contudo, manipularam este poder d e forma tão descarada q u e e m vez de
conquistarem o apoio dos não -alinhados da Planície começaram a aliená­
-los . Além disso, tornou -se também evidente para muita gente que,
embora alguns militantes jacobinos pudessem ter participado nos massa­
cres, alguns girondinos, entre os quais Roland, também não tinham as
mãos limpas . C onvictos de que tinham escapado por um triz à faca dos
assassinos, deputados como Vergniaud e Gensonné consideraram-se
empenhados numa luta de vida ou de morte com os seus inimigos da
Montanha . No entanto, a veemência com que atacaram amiúde a oposi­
ção fê -los parecerem mais obcecados com recriminações pessoais do que
com os interesses da patrie.
Isto foi manifesto na desastrosa ofensiva contra Robespierre lançada
pelo editor de La Sentinelle, Louvet, no dia 29 de Outubro. Apropriando ­
-se da forma do ataque de Cícero aos C atilinas - uma referência com­
preendida de imediato pelas centenas de ex-debatedores colegiais em
latim presentes na C onvenção -, Louvet acusa Robespierre de criar um
culto da personalidade, de se colocar acima do povo e de aspirar a uma
ditadura. Robespierre contra -ataca com um discurso que, em muitos
aspectos, confirma a censura de obsessão egoísta feita por Louvet mas que
ao apelar a princípios políticos e filosóficos abstractos consegue transfor­
mar o "eu" revolucionário de um vício baixo numa virtude inatacável. Só
um oportunista desprezível que escrevinha nas polémicas da sarj eta pode
confundir a sua vaidade com ambição pessoal. Pelo contrário, nasceu da
humildade associada ao sentimento de ser um mero repositório da
Verdade Histórica (o facto de esta visão suscitar respeito e não risos iróni­
cos indica até que ponto Robespierre já venceu a batalha crucial do tom ) .
Depois de se exonerar, ele defende a Revolução das acusações de violên -
eia excessiva. Não compreendem aqueles que fazem tais acusações que
desde o princípio, desde 1 789, a Revolução foi, pelas normas convencio ­
nais, " ilegal", e que a sua sobrevivência dependeu da força que o Povo
conseguiu reunir para a sustentar? Tentar j ulgá -la segundo padrões de
moralidade anacrónicos é gratuitamente apologético . Pior, é privar a
insurreição do povo da sua legitimidade natural. E Robespierre pergunta à
C onvenção: " Q uereis uma Revolução sem uma revolução? " .
Esta disputa volta d e novo à superfície por causa d a única questão que,
depois de Valmy e Jemappes, absorve praticamente todas as energias da
C onvenção: o j ulgamento do rei. É óbvio que com o rei e a família cativos
no Templo, o status quo não pode ser indefinidamente mantido. Enquanto
S imon Schama 1 CIDADÃOS

Luís XVI não foi formalmente acusado, os actos de 1 0 de Agosto, já para


não falar na proclamação da República, em 2 1 de Setembro, foram cen­
suráveis ou, pelo menos, careceram de uma legitimação pública ade­
quada . C ontudo, os girondinos, alguns dos quais tinham feito
aproximações à corte pouco antes da insurreição, terão ficado preocupa­
dos face à perspectiva de um j ulgamento e fizeram tudo o que estava ao
seu alcance para lhe colocar obstáculos processuais no caminho. Todavia,
para os advogados presentes na C onvenção era imperativo que o repúdio
da monarquia fosse juridicamente j ustificado com provas de que o rei
tinha cometido crimes e traições terríveis ao ponto de j ustificarem a sua
eliminação do cargo e talvez até como pessoa.
Foram criadas duas comissões preliminares. A primeira, presidida por
Dufriche-Valazé, ficou incumbida de examinar a montanha de baús, cai­
xas e sacas de farinha cheias de papéis soltos retirados das Tulherias para
determinar a existência de provas suficientes para uma acusação formal.
A segunda comissão, mais expedita, presidida pelo advogado Mailhe, de
Toulouse, tratou de elaborar um parecer sobre a questão processual de
saber se o rei, cuj a imunidade fora garantida pela constituição de 1 7 9 1 ,
poderia ser j ulgado e , e m caso afirmativo, qual seria o tribunal apro­
priado. A dificuldade decorria do facto de a constituição ter também espe­
cificado os crimes pelos quais o rei poderia ser afastado - promover
rebeliões armadas, abandonar o país sem intenção de regressar, etc.
Todavia, a constituição tinha também prescrito como única penalidade a
abdicação. Dado que Luís XVI já fora suj eito a uma abdicação forçada,
uma interpretação jurídica estrita poderia argumentar ( como observarão
os seus advogados ) que o monarca apenas poderia ser j ulgado enquanto
cidadão por crimes subsequentes à abdicação. Dentro dos muros do Templo
não era possível cometer os crimes em causa .
Quando a comissão Mailhe se apresentou na C onvenção, no dia 6 de
Novembro, para apresentar o seu relatório, torneou estas questões bicu ­
das com um apelo a princípio gerais em detrimento da rectidão j urídica .
A imunidade garantida pela constituição fora uma qualidade concedida
pela Nação Soberana e podia ser facilmente retirada pela mesma mão . Por
conseguinte, o rei podia ser j ulgado, quer como funcionário público, quer
como cidadão. Pela mesma lógica, a C onvenção Nacional, enquanto repo­
sitório dessa soberania, não só podia como devia ser o tribunal apro ­
priado, dado que nem um tribunal normal nem um tribunal especial que
ela eventualmente nomeasse teriam a autoridade plenária necessária para
lidar com um caso de semelhante magnitude. Além do mais, o veredicto
deveria ser indicado através do voto de cada deputado como parte da sua
responsabilidade como membro de um órgão de soberania .
Este bizarro compromisso entre princípios abstractos e correcção j udi­
cial foi dolorosamente exposto uma semana depois, quando a C onvenção,
555

presidida pelo ex-conseiller du Parlement parlamentar Hérault de Séchelles,


começou a debater o relatório da comissão Mailhe. Uma pequena mino ­
ria de deputados, dos quais o mais articulado era Morisson, insistiu na
imunidade ( recusava -se a aceitar a posição, segundo disse, daqueles " que
rotulam de traidores os que não são da sua opinião" ) . Todavia, um grupo
maior, que incluía alguns girondinos e muitos deputados da Planície, tais
como Grégoire, era da opinião de que "a imunidade absoluta seria uma
monstruosidade pois incentivaria os homens à vilania sabendo que fica ­
riam impunes pelos seus crimes. Declarar o rei imune quando ele violou
tudo ", prosseguiu Grégoire, "e acusá-lo de observar as leis quando ele as
infringiu . . . é ultrajar a natureza e a constituição" .
Mas o ataque mais devastador a o princípio d e u m julgamento não sur­
giu da direita mas sim da esquerda, e através do discurso estreante mais
célebre da Revolução Francesa. O orador foi Louis -Antoine Saint-Just, o
orgulhoso correspondente de Robespierre em 1 789 que era, agora com
vinte e cinco anos de idade, o deputado mais j ovem da Convenção. Saint­
-Just chegara a Paris como autor de um poema interminável, " O rgant",
geralmente descrito ( mas só com a maior das generosidade s ) como por­
nográfico . Obviamente influenciado por Robespierre, Saint-Just cultivava
cuidadamente os modos de um j ovem estóico cujas concessões à moda
tornavam ainda mais inquietante a implacabilidade do seu intelecto.
C aíam-lhe nos ombros tranças de cabelo negro, ostentava uma única
argola de ouro na orelha e a expressão era uma máscara cuidada de dis­
tanciamento inabordável.
As suas observações levaram a uma conclusão arrepiante a tese de
Robespierre acerca da moralidade obj ectiva da conduta revolucionária.
C onceder ao rei um j ulgamento era pressupor a possibilidade da sua ino ­
cência . Mas nesse caso, a revolução de 1 O de Agosto seria posta em causa,
o que por sua vez era negado pela própria existência da C onvenção.
O que estava em j ogo não era a culpa ou a inocência de um cidadão, de
alguém pertencente ao corpo político, mas a incompatibilidade natural
de alguém, por definição, à margem do corpo político. Tal como Luís XVI
estava obrigado a ser um tirano porque "não se reina inocentemente ",
assim a República, cuj a própria existência tinha como predicado a des­
truição da tirania, estava obrigada a destruí-lo. Apenas faltava a proscri­
ção sumária, a remoção cirúrgica daquela excrescência do corpo da
Nação. Um rei tinha que morrer para que uma república vivesse. Nada
mais simples.
Embora as suas conclusões fossem difíceis de digerir para a maioria dos
deputados, o discurso de Saint-Just causou uma impressão profundíssima
dentro e fora da C onvenção. Pôs inegavelmente os girondinos à defesa,
dado que fazia qualquer ambiguidade adicional parecer praticamente uma
censura contra a República . Eles assumiram brevemente esta posição,
Simon Schama 1 CIDADÃOS

solicitando que o decreto que estabelecera a República fosse suj eito a um


referendo popular, mas nas últimas semanas de Novembro tornou -se evi­
dente que a única posição defensiva para a qual poderiam recuar era acei­
tar o j ulgamento e tentar influenciar a sentença ou montar uma
campanha para submeter j ulgamento e sentença ao voto popular. Esta
manobra frustraria pelo menos a posição j a cobina, reiterada por
Robespierre, de que o j ulgamento j á fora realizado pelo povo no dia 1 O de
Agosto . Só faltava o rei ouvir a sua condenação e ser eliminado de forma
expedita . Qualquer outra coisa seria, por definição, um veredicto contra a
República .
O recuo desconfortável imposto aos girondinos viu - se acelerado pelo
dramático aparecimento de Roland na C onvenção, no dia 20 de
Novembro. Com um ar de auto- satisfação que deixou muitos deputados
furiosos, ele disse que determinadas informações prestadas por um serra­
lheiro nomeado pelo rei tinham conduzido à descoberta de um armoire de
fer com uma quantidade de documentos com incidência directa nos pro ­
cedimentos. Mantendo um ar de mistério, Roland conseguiu insinuar que
os documentos comprometiam membros da Montanha . Por conseguinte,
muitos dos seus deputados, j untamente com outros tantos da Planície,
ficaram furiosos por ele se ter arrogado o direito de abrir o cofre sem a
presença de testemunhas da C onvenção. Voaram acusações de que ele
poderia ter suprimido ou falsificado provas . Porém, quando os principais
detalhes se tornaram conhecidos, ficou patente a existência de provas gra­
vemente incriminatórias em cartas escritas pelo rei a B reteuil, com refe ­
rências à constituição como " absurda e detestável" e que deixavam claro
que a sua aceitação ostensiva do documento não passava de uma táctica
hipócrita que ele fora obrigado a empregar sob pressão. Todavia, uma gra­
vura popular mostrou que o verdadeiro esqueleto no armário era o de
Mirabeau, cuj a correspondência com o soberano sobre a restauração da
autoridade régia e os pagamentos recebidos pelos seus conselhos foram
revelados. No dia 5 de Dezembro, Robespierre, cuj o talento natural para
"desmascarar" hipócritas se mostrou à altura da ocasião, exigiu que os res­
tos mortais de Mirabeau fossem retirados do Panteão e os bustos come­
morativos esmagados.
Com estas provas novas e condenatórias da duplicidade real, as exi­
gências para a realização de um j ulgamento expedito tornaram-se prati­
camente irresistíveis. Nas secções de Paris, o rei foi inclusivamente
culpado pela crise económica que estava a inflacionar rapidamente o
preço dos bens alimentares . Dizia-se que ele tinha enchido os armazéns
de Verdun e Longwy de ouro e cereais para caírem perante o avanço
prussiano . D elegações da C omuna lideradas por " Anaxágoras "
C haumette apresentaram-se n a C onvenção e declararam que a não
punição do monarca pelos seus crimes era directamente responsável pela
557

alta de preços e pela depreciação do papel-moeda . " É altura", disse o


enragé• Jacques Roux na secção pobre de Les Gravilliers, onde abundavam
os carregadores dos mercados e os vendedores de rua, " de a liberdade do
povo ser consolidada pelo derramamento do sangue impuro . " No dia 3 de
Dezembro, na C onvenção, Merlin de Thionville, furibundo com as reve ­
lações do armoire de fer e a procrastinação dos girondinos, levantou-se e
disse que tinha pena de não ter matado o rei no dia 1 O de Agosto, uma
explosão de raiva que provocou uma tentativa de censura e o caos gene ­
ralizado na câmara . Dois dias depois, foi finalmente decidido que uma
nova comissão elaboraria uma acte énonciatif uma nota de culpa que seria
comunicada ao rei - e determinaria os procedimentos para o j ulgamento .

Entretanto, o obj ecto de toda esta atenção furiosa ia existindo num


estado de calma quase meditativa. Emparedado na cidadela medieval do
Templo ( outrora pertença do seu irmão Artois ) e privado de jornais, Luís
XVI estava praticamente imune ao ódio latente da cidade. A família estava
aloj ada em dois andares, com treze serviçais e um criado de quarto gene ­
rosamente autorizado pela Assembleia Legislativa . O rei pedira que lhe
fornecessem livros - histórias romanas, manuais religiosos, a história
natural de B uffon, a poesia de Tasso e os sermões de B ossuet -, e tinha
acesso à antiga biblioteca da Ordem dos Cavaleiros de Malta, localizada na
torre .
Estes esforços consolatórios foram algo contrabalançados pelas inúme ­
ras indignidadezinhas que os guardas eram incentivados a infligir a Luís
XVI recordando -lhe que ele já não era a maj estade de ninguém. Na sua
presença, mantinham os chapéus na cabeça e os traseiros nos assentos.
O rei estava proibido de usar as suas condecorações durante o passeio da
tarde. Os abusos verbais eram habituais, o que incomodava previsivel­
mente mais a rainha e Madame Elisabeth ( que pedira para partilhar o
cativeiro ) do que o rei. Numa ocasião, um guarda que, segundo Cléry, era
professor de inglês, seguiu o monarca até à sua mesa de leitura, sentou-se
no lugar ao pé da j anela, ao lado dele, e recusou -se a ir- se embora . Os arti­
gos de costura de Maria Antonieta foram confiscados com a j ustificação de
que ela estava a bordar um código secreto para ser levado para fora da pri­
são . Para que o rei não faltasse ao seu encontro com o carrasco, a C omuna
confiscou -lhe a navalha, insistindo que ele só poderia ser barbeado por
um homem da sua confiança . Luís XVI respondeu a este acto de mesqui­
nhez deixando crescer a barba até ser de novo autorizado a barbear-se,
ainda que debaixo de uma guarda atenta . Talvez piores fossem os grafitas
garatuj ados nas paredes pelos guardas, imagens grotescas de um boneco

' Os enragés, liderados principalmente por Roux, eram um grupo radical situado à
esquerda dos j acobinos . ( N. do T. )
S imon Schama 1 CIDADÃOS

coroado pendurado numa forca com a legenda "Luís a tomar banho no


ar" ou uma figura gorda deitada numa guilhotina crachant dans le sac ( " a
cuspir n o saco " ) , como dizia uma das piadas sobre a machine.
Estas pequenas humilhações eram deflectidas pelo ambiente irreal de
serenidade burguesa que se instalou na família, comoventemente recor­
dado por Cléry. Reuniam -se todas as manhãs para o pequeno- almoço
depois de trocarem beij o s e abraços, quase numa atitude de grata cele ­
bração por terem sobrevivido mais uma noite . D epois da refeição, o rei e
a rainha passavam uma grande parte da manhã a ensinar o filho e a filha,
respectivamente . O delfim, agora conhecido por "príncipe real", lia excer­
tos e recitava Racine e Corneille, mas era naturalmente com as lições de
geografia que pai e filho mais se deleitavam, colorindo e desenhando
( com uma notável imparcialidade política ) os contornos dos oitenta e três
departamentos da nova França. Por volta do meio-dia, estavam autoriza­
dos a passear no j ardim do Templo, onde Cléry j ogava croquet e à bola com
as crianças. Às duas, serviam-lhes o j antar e enquanto comiam o coman­
dante da Guarda Nacional, Santerre fazia-lhes a busca diária aos quartos.
Às vezes, depois de um jeu de volantis' e antes da hora de dormir, o rei
lia à família de uma das histórias romanas que pedira, escolhendo amiúde
passagens com uma relevância notória e nítida para a triste situação em
que se encontravam. Nas paredes da sala principal onde se reuniam estava
afixada a Declaração dos Direitos do Homem e do C idadão . No entanto, as
lições terríveis da história recente e as notícias das exigências mais recen­
tes da sua cabeça, gritadas por um vendedor da j anela da torre, às sete
horas, eram embotadas e abafadas pelos exercícios regulares de piedade
que marcavam a rotina diária da família . Começavam e terminavam o dia
com orações; o rei observava cuidadosamente todas as festas religiosas e,
na ausência de um padre, assumiu a responsabilidade pelo bem- estar
espiritual da família. Neste seu eu interior, ele continuava a ser o Rex
Christianissimus da sua coroação, mas também estava mais dedicado do
que nunca a cumprir os seus deveres de pere de famille. Na hora do seu
mais completo ostracismo do corpo político, os membros da família real
tinham-se finalmente tornado cidadãos comuns.

IV O JULGAMENTO

No dia 1 1 de Dezembro, Malesherbes escreve ao presidente da


Convenção pedindo para assumir o papel de advogado de defesa do rei.
Fá -lo com uma mistura característica de coragem e humildade, como que
a pedir desculpa pela imodéstia de submeter o seu nome à apreciação do

' Jogo antigo semelhante ao moderno badminton . ( N. da R. )


559

monarca . Mas existe um traço de ironia na sua observação de que "Longe


de mim j ulgar que uma pessoa tão importante como vós [o presidente da
C onvenção] se digne prestar-me atenção, mas fui por duas vezes chamado
para o conselho [real] daquele que foi o meu amo quando essa posição
era universalmente desej ada . D evo -lhe idêntico serviço quando se trata
de um cargo que muitas pessoas consideram perigoso " .
Uma dessas pessoas era o homem que tinha a fama d e ser o melhor
praticante de eloquência j urídica na França do Antigo Regime: Target.
Apesar de o seu contra -ataque na defesa de D e Rohan no Caso do C olar
ter posto a monarquia a sangrar do nariz, Target sentara-se na Assembleia
Nacional como defensor leal da monarquia constitucional e concebera a
fórmula Rex Francorum ( Rei dos Franceses ) , que deveria traduzir uma
transformação pacífica. Target foi a primeira escolha do rei para a defesa
mas ao ser abordado encolheu-se como se lhe tivessem oferecido um
cálice de veneno . Disse que estava velho ( era catorze anos mais novo do
que Malesherbes ) , que estava doente, que tinha outros assuntos premen­
tes em mãos. Que lamentava muito mas que não podia. Mas um ano mais
tarde, durante o Terror, Target, o leão do Parlamento de Paris, será secre ­
tário do comité revolutionnaire da sua secção parisiense.
Esta desintegração da camaradagem intelectual foi precisamente o que
mais perturbou Malesherbes durante a Revolução . Toda a sua longa vida
ele tinha acreditado no poder eticamente purificador da razão. Por isso
fora o menos inflexível e o mais criativo de todos os Directeurs de la
Librairie, sem nunca compreender verdadeiramente que base de morali­
dade ou utilidade poderia a censura ter. Na Primavera de 1 7 89, depois de
se afastar do desastroso governo B rienne, tinha elaborado um longo
memorando sobre a liberdade de imprensa que, com toda a inocência,
enviara a d'Hemery, um dos grandes polícias culturais do Antigo Regime .
O que acontecera desde então não abalara a sua crença na importância
absoluta da liberdade de publicação mas deixara - o preocupado com os
modos moralmente torpes como se abusava dessa liberdade . E pior ainda
era a tolerância indiferente da violência que quebrara a espinha das coli­
gações liberais da década de 80 do século XVIII.
O que acontecera a todos aqueles amigos cultos e inteligentes que
j antavam j untos e iam eliminando a França antiquada com raios de ilu ­
minismo e resmas de legislação? Lafayette estava numa prisão aus­
tríaca . Mirabeau caíra em desgraça com a revelação da correspondência
da corte. Talleyrand encontrava - s e em Londres, ostensivamente em
missão diplomática por conta da República mas ninguém estava à
espera de que fosse regressar. Talleyrand e D u Pont de Nemours tinham
escapado por pouco à morte na semana dos massacres nas prisões. La
Rochefoucauld não tivera tanta sorte . Identificado como signatário de
um documento elaborado pelo departamento de Paris instando o rei a
Simon Schama 1 CIDADÃOS

vetar a lei de deportação dos padres refractários, fora brutalmente


morto p e l a turb a . Malesherbes, de forma algo inj u sta, culpou
C ondorcet pelo fim terrível de La Rochefoucauld, chegando mesmo a
atribui-la a uma quezília intelectual. De Tocqueville (pai do escritor) ,
que era casado com a filha de Malesherbes, ouviu - lhe dizer que seria
capaz de dar abrigo aos seus inimigos mas que nunca daria asilo a
Condorcet ( que em breve e staria desesperadamente necessitado ) , nem
que a vida dele corresse perigo .
Naquele poço sem fundo de mágoas e confusão, a única coisa que se
podia fazer era manter a integridade e expirar com a maior auto- estima
possível. Isto não quer dizer que Malesherbes assumiu um espírito de fata ­
lismo . Não obstante os seus setenta e um anos de idade, ainda havia muita
determinação e energia patentes num rosto nodoso que nem Robespierre
conseguia classificar de aristocrático . Além do mais, os anos pós- 1 789 não
tinham sido inteiramente estéreis e miseráveis. Uma das netas de
Malesherbes entrara por matrimónio para o grande clã bretão dos
Chateaubriands, e ele passara muitas horas felizes a planear uma expedi­
ção à Passagem do Noroeste com o j ovem escritor François-René, que
entrara em êxtase quando vira a Marinha francesa em B rest.
Debruçavam-se sobre mapas do estreito de B ering e da baía de Hudson,
sobre gravuras de morsas e baleias. " S e eu fosse mais novo, ia convosco ",
confessou o velhote .
Mas pelo menos tinha empreendido uma nova excursão botânica à
Suíça . Françoise, sua filha, e o marido tinham emigrado para a Suíça e
Malesherbes passou a Primavera de 1 79 1 com eles, aproveitando para
colher amostras da flora alpina para a sua colecção. Ironicamente, foi esta
inocentíssima estada com os " emigrados Montbossier" que serviu de pre ­
texto para o levar perante um tribunal revolucionário durante o Terror.
Em meados do Verão, Malesherbes regressou a casa, na Rue des Martyrs .
Desconhecemos o que pensou da fuga para Varennes mas ficou suficien­
temente preocupado com a situação do rei para o assistir nos levers domi­
nicais nas Tulherias, apesar " da maldita espada que se me mete à frente
das pernas " .
Malesherbes não foi a única pessoa a oferecer- se para defender o rei
perante a C onvenção. Uma voluntária muito menos provável foi a actriz
e feminista Olympe de Gouges, autora da Déclaration des Droits de la Femme
et de la Citoyenne, que, apesar de ser uma revolucionária fervorosa, sentia
que o rei era mais vítima do que tirano e que quis manifestamente
demonstrar que as mulheres eram tão capazes de "heroísmo e generosi­
dade " como os homens. O rei dispensou a oferta mas ficou contente com
a aceitação da sua escolha a seguir a Target, François-Denis Tronchet,
outro ex-magistrado do Parlamento. Tronchet resmungou que teria de
interromper a sua reforma mas que não podia negar- se a servir alguém
561

cuj o destino estava "suspenso sob a lâmina d a lei" - o eufemismo e m voga


para a guilhotina .
Luís XVI precisava de toda a aj uda possível. Apenas fora autorizado a
procurar advogado depois de ouvir a acusação, elaborada por Robert
Lindet em nome da C omité dos Vinte e Um. 6 Lindet, ex-presidente da
câmara da cidade normanda de B ernay e ex-deputado à Legislativa, fazia
geralmente eco das opiniões da Montanha mas o asilo que dera a um ofi­
cial dos guardas suíços no dia 1 0 de Agosto falava pela sua humanidade.
Durante o Terror, Lindet será um dos dois membros do C omité de
Salvação Pública a negar- se a assinar a sentença de morte de Danton. No
entanto, a acte énonciatif que redige para o rei é um documento sombrio,
uma longa história da Revolução que apresenta a conduta do soberano
como uma hipócrita acção de retaguarda, plena de logras e de intenções
de violência. Em muitos casos, dada a sua sustentação na rica documen­
tação do armoire de fer, Lindet não pode ser contradito . O rei resistiu à con­
vocação dos Estados Gerais até se ver ameaçado do mais completo
afundamento fiscal; preparou -se para usar a força contra a união das
ordens e contra as manifestações de desagrado por causa da demissão de
Necker, em Paris; tentou fugir; negociou secretamente com o intuito de
restaurar a sua autoridade, em contravenção de juramentos que fez publi­
camente . É uma crónica terrivelmente incriminatória de subterfúgios e
má fé . Mas o texto é omisso, obviamente, em relação à existência de vio ­
lência ou intimidação perpetradas pela outra parte, de modo que em vez
do verdadeiro teste de força que caracterizou a história da Revolução, a
acusação de Lindet apresenta o comportamento do rei como uma série de
crimes indiscutíveis.
Na manhã do dia 1 1 , o presidente da câmara de Paris, Chambon, vai
buscar ao Templo o homem que designa por " Luís C apeto" . "Não me
chamo Luís C apeto", replica o rei com indignação; "Os meus antepassados
tinham esse nome mas eu nunca fui chamado assim . " É um dos poucos
momentos de fúria num dia em que, apesar de acossado até mais não, ele
volta a dar mostras de um autocontrolo extraordinário. Envergando um
casaco verde -azeitona, o rei apresenta -se perante a C onvenção e as gale ­
rias pej adas de espectadores e fica à espera que o presidente, Bertrand
Barere, lhe dê autorização para se sentar. A C onvenção sabe que nada
teria simbolizado melhor a inversão do mundo de Versalhes, onde a pre­
cedência hierárquica fora precisamente indicada por convenções que
regiam a possibilidade de o súbdito se sentar na presença do soberano.
O rei ouve a leitura da nota de culpa e depois responde às perguntas
que lhe são colocadas por Barere . Nega taxativamente ter feito alguma
coisa ilegal antes ou depois de 1 79 1 e classifica de absurda a acusação de

' Rapport sur les crimes imputés à Louis Capei. ( N. do T. )


Simon Schama 1 CIDADÃOS

que a viagem abortada para Saint- Cloud foi uma tentativa de fuga. Sobre
as leis que vetou em 1 79 1 , responde que a C onstituição lhe deu o direito
de o fazer, e rej eita a caracterização do seu reforço das Tulherias como pre ­
parativos para " um ataque contra Paris " . O rei exibe a calma de um
homem absolutamente convicto de que está com a razão. Só quando
Barere afirma claramente que ele é " responsável pelo derramamento de
sangue francês" é que o rei deixa escapar uma resposta emocional e irada.
Alguns dos presentes vêem cair uma lágrima mas o rei, decidido a não dar
mostras de fraqueza perante os seus acusadores, leva rapidamente a mão
à bochecha e depois esfrega a testa como se estivesse a limpar o suor -
sua-se e sua -se bem no abafado Manege. O momento mais fraco do seu
testemunho é o modo quase descuidado com que diz não reconhecer a
sua mão em documentos tirados do armoire de fer.
Entre a nomeação dos seus advogados e o j ulgamento, em finais de
Dezembro, o rei passa os dias a preparar a sua defesa. A C omuna decidiu
feri-lo ainda mais negando-lhe o direito de ver os filhos, um decreto gra ­
tuitamente cruel que a C onvenção ameniza autorizando encontros limi­
tados. No entanto, a rotina do grupo familiar é substituída pelas idas e
vindas dos advogados. Malesherbes - cuj a oferta de serviços o rei aceitou
- e Tronchet decidiram pedir a assistência de um colega mais j ovem com
fama de praticar a eloquência poderosa e sonora que parece ser uma espe­
cialidade da barra de B ordéus: Romain de Seze. Enquanto grupo, o rei não
poderia ter pedido defensores mais formidáveis, mas não estão unidos na
sua abordagem. Malesherbes, que segundo um relato discutiu com o rei,
em 1 788, o tratamento dado por David Rume à queda de Carlos 1, quer
que o monarca conteste as credenciais do tribunal para o j ulgar e, em
especial, que ataque a assunção, pela C onvenção, dos papéis de j úri e j uiz,
em contravenção das convenções jurídicas estabelecidas pelos próprios
códigos revolucionários. Fazê -lo será obviamente contestar a legalidade
da revolução de 1 792 - exactamente como Robespierre previu - mas
Malesherbes é da opinião de que pelo menos é uma posição de maior
cogência e poder moral.
Mas o rei está teimosamente decidido a j ogar com a sua fraqueza, a
insistir na sua imunidade constitucional, para depois defender a sua con­
duta como a de um cidadão-rei consciencioso e refutar a acusação passo
a passo, à semelhança do que fez no dia 1 1 . A sua convicção de que a ver­
dadeira justiça demonstrará infalivelmente a sua inocência leva - o mesmo
a suprimir o que considera serem excessos de retórica nas alegações de De
Sere.
Na manhã a seguir ao dia de Natal, o rei é de novo conduzido à barra
da Convenção. De Seze, apesar de não dormir há quatro dias, está em
grande forma para pleitear e reitera a argumentação de que a posição atri­
buída ao monarca impede que sej a julgado em tribunal pelo que, para
563

todos os efeitos, é um ramo coevo da constituição. Também não pode ser


j ulgado por actos que j á lhe valeram a abdicação, e muito menos por um
grupo de homens que j á determinou e deu a conhecer as suas opiniões
sobre a sua culpabilidade . De seguida, De Seze passa em revista a narra ­
tiva da acusação parcial de Lindet, retratando a conduta do rei não como
uma sucessão de logras calculados e conspirações mas como a resposta da
legalidade à intimidação. Foi esta a atitude consistente do rei, diz ele, até
ao dia 1 O de Agosto . " C idadãos", começa ele a peroração,

se neste preciso momento vos dissessem que uma turba excitada e armada
estava em marcha contra vós, sem respeito pela vossa natureza de legisla ­
dores sagrados . . . o que faríeis? . . . Acusai-lo de ter derramado sangue? Ah !
Ele chora a catástrofe fatal tanto como vós . É a ferida mais profunda que
lhe foi infligida, o seu desespero mais terrível. Ele sabe bem que não foi o
autor do derramamento de sangue, embora talvez tenha sido a sua causa.
Nunca se perdoará a si próprio.

D e Seze conclui com o retrato de um j ovem rei chegado ao trono como


reformador honesto, benigno nas intenções e consciencioso na governa ­
ção . É um retrato familiar. No entanto, o advogado comete um erro grave
ao usar uma das frases predilectas de Luís XVI, nomeadamente que o rei
"deu" a liberdade aos Franceses - uma versão dos acontecimentos de 1 789
que dificilmente terá agradado aos ouvintes . As palavras finais de De Seze
são, como em quase todos os grandes discursos da Revolução, um apelo à
História: "Ponderai como irá a História j ulgar o vosso j ulgamento . "
Não é provável que serem avisados d o j uízo d a posteridade por D e Seze
tenha feito muito para modificar a convicção da maioria esmagadora dos
deputados na matéria da culpa do rei . Todavia, isto não é dizer que a
defesa do monarca, quer através da argumentação apaixonada e poderosa
dos seus advogados, quer através da sua dignidade silenciosa, não teve
efeito . Torna-se aparente, e não só por via dos esforços continuados da
Montanha para apressar a sentença, o veredicto e a execução, que a opi ­
nião pública se comoveu com as duas comparências d o rei e m tribunal. As
alegações da defesa, impressas enquanto acto oficial, são copiadas e distri­
buídas com tanta abrangência como a nota de culpa de Lindet. Existem
inclusivamente sinais de distúrbios populares em nome do rei, por exem­
plo, em Rouen, onde eclode um tumulto.
Descortinando neste indefinido movimento de opinião uma última
oportunidade para prejudicarem os seus adversários da Montanha, um
grupo de girondinos empreende uma iniciativa dramática no sentido de
transferir a sede do j ulgamento para fora da Convenção. Um " apelo ao
povo " lançado muito antes por deputados como Kersaint, declaradamente
hostis à realização do julgamento, é retomado por Vergniaud e B rissot, em
Simon Schama 1 CIDADÃOS

particular, como meio de evitar a morte inevitável do rei. Para demons­


trar que ao lançarem o apelo não são de todo monárquicos, outro giron­
dino, Buzot, renova o ataque que tinha lançado contra Philippe-Egalité,
que se senta com a Montanha . Ao exigir a pena de morte para quem pro­
puser a restauração da monarquia, ele coloca os jacobinos, incluindo
Marat, na desagradável posição de terem de defender o primo do rei, e os
g�ondinos demonstram também um domínio subtil da táctica ao apoia­
rem o apelo a uma votação popular sobre o veredicto e a sentença.
Citando Rousseau, cujos textos sagrados são rotineiramente pilhados para
apoiarem os argumentos de ambas as facções, oradores girondinos como
Vergniaud afirmam que a C onvenção carece do direito de usurpar a auto­
ridade que ainda pertence ao povo, que tem nos deputados os seus "man­
datários " . Logicamente, as quarenta e quatro mil assembleias primárias
que os elegeram deverão ser reconvocadas para determinar o destino do
rei. Só deste modo poderá a C onvenção ter a certeza de que não está a
violar a Vontade Geral. B rissot, de modo característico, acrescenta uma
dimensão estrangeira ao argumento dizendo, sem grande exagero, que a
conduta dos deputados está ser observada pela Europa inteira . Os inimi­
gos da França acusarão prontamente a C onvenção de ser um j oguete das
facções. Não será a refutação muito mais forte se ficar demonstrado, pelo
voto do povo, que agiram de comum acordo?
A contra -argumentação mais eloquente - e certamente a mais longa
- cabe a Bertrand Barere, no dia 4 de Janeiro de 1 79 3 . D eve parecer par­
ticularmente poderosa aos não-alinhados da Planície porque faz eco de
algumas das opiniões conhecidas dos principais j acobinos mas sem as
suas apoplexias facciosas. B arere devolve à Convenção uma vívida com­
preensão da sua posição enquanto órgão, a qual, por definição, é con­
cretizar o rompimento final com a monarquia . Nas suas palavras, a
C onvenção deve aceitar essa responsabilidade e não passá-la cobarde­
mente para os eleitores, até porque isso os colocará inegavelmente no
meio de um horrível conflito partidário. A escolha é entre a C onvenção
decidir agir como repositório adequado da soberania ou abdicar da res­
ponsabilidade, entregando o país à anarquia e à guerra civil. O discurso,
que não poderia estar mais longe do histerismo sanguinário de Marat,
surte um efeito profundo num grupo de homens preocupados com a sua
autoridade colectiva. Pelo simples facto de serem deputados, aceitaram o
republicanismo. C omo podem furtar- se a dar o último passo lógico que
assina e sela essa identidade?
Nada disto decidiu o destino do rei . No início da votação, no dia 4 de
Janeiro, sob a presidência de Vergniaud, são três as matérias sobre as quais
há que decidir: a culpa ou inocência do rei, a sentença e a questão, ainda
por resolver, do apelo ao povo . A ordem pela qual serão votadas revela -se
de imediato criticamente importante dado que com o rei condenado e
565

sentenciado o apelo ao povo parecerá uma tentativa desesperada de sal­


vamento e não uma consulta imparcial. O s girondinos cindem-se em rela ­
ção a esta matéria, tal como se dividiram quanto ao apelo. Alguns, entre
os quais Maximin Isnard, outrora próximos de Vergniaud e Guadet,
votam sempre com a Montanha. Depois de uma gritaria infernal e de uma
chuva de denúncias mútuas obrigar Vergniaud a suspender a sessão,
chega-se a um compromisso: a questão do appel será votada depois da do
veredicto mas antes da da sentença .
Na manhã de 1 5 de Janeiro, a votação começa com o appel nominal,
o voto oral na barra por cada um dos 749 deputados . E ste método
imensamente laborioso foi exigido por Marat como meio de expor os
"traidores" com uma veemência de tal ordem que contradizê -lo teria sido
dar-lhe razão. Apenas têm que responder sim ou não a cada pergunta .
Algumas almas coraj osas, entre as quais o bispo constitucional do Alto
Mame e o grande cientista Lalande, recusam ser colocados na posição de
j uízes. No entanto, ninguém vota declaradamente a favor da inocência do
rei e 6 9 3 deputados (alguns estão ausentes) votam a sua culpa. Tal como
observa David Jordan no seu excelente livro sobre o j ulgamento, quando
chega a segunda votação - a do apelo -, os seus defensores dão-se conta
de que as suas fileiras foram desgastadas :p elo discurso de B arere . Alguns
expressam o seu apoio continuado ao princípio mas votam contra por
causa das suas prováveis consequências . O apelo é derrotado por 424 con­
tra 2 8 3 votos.
A votação mais dramática das três é evidentemente a da sentença, que
começa no dia 16 de Janeiro. A título preliminar, o bretão Lanj uinais, que
aj udou a cavar a sepultura da monarquia ao liderar a revolta dos magis­
trados de Rennes contra os éditos de B rienne, tenta salvar a sua personi­
ficação. Uma matéria tão importante como a sentença a aplicar a um rei
só pode ser decidida por maioria de dois terços . A proposta merece uma
réplica esmagadora de Danton, regressado de uma visita ao Exército, na
Bélgica, que diz que a se C onvenção não entendeu necessária uma maio ­
ria de dois terços para a abolição da monarquia, seria transparentemente
capcioso impor essa regra agora .
Das oito da noite às nove da manhã, os deputados prosseguem a sua
procissão até à tribuna observados pelos espectadores, os quais, segundo
Mercier, bebem e consomem gelados e laranjas para aguentarem até ao
fim da longa noite invernal. Quando chega a vez de Mailhe, ele sur­
preende a C onvenção votando pela morte mas colocando logo a seguir a
questão da altura da execução da sentença. Para todos os efeitos, está a
solicitar uma votação sobre a possibilidade de uma comutação da sen­
tença, e recebe o apoio de outros deputados, incluindo Vergniaud. Mas o
facto de o girondino ter respondido pela afirmativa à pergunta da morte
teve um efeito demolidor, principalmente em Malesherbes, que fica de
Simon Schama 1 CIDADÃOS

rastos quando o ouve votar. Chegada a vez da delegação de Paris,


Robespierre, na qualidade de cabeça de lista eleitoral, é o primeiro a falar.
Diz ele: "Não reconheço uma humanidade que massacra o povo e perdoa
aos déspotas . "
O último d a lista d e Paris é Philippe-Egalité . O homem que, n a hierar­
quia do protocolo da corte, esteve autorizado a entregar a camisa ao rei na
cerimónia diária do lever vota a favor da morte do primo com a j ustificação
de que "aqueles que atacam a soberania do povo" merecem a morte.
O alvorecer anuncia a aprovação da sentença de morte . Dos 72 1 depu ­
tados presentes, 3 6 1 votaram incondicionalmente a favor da morte e 3 1 9
pelo encarceramento seguido de desterro depois da guerra . Registam-se
dois votos a favor da prisão perpétua a ferros e dois a favor da execução
depois da guerra (presumivelmente para usar o rei como refém ) . Vinte e
três votam como Mailhe, pela morte mas solicitando um debate sobre a
possibilidade de comutação da sentença, e oito a favor da morte e da
expulsão de todos os Bombons ( incluindo Egalité ) . Por conseguinte, a
maioria a favor da morte - nas diversas variações - não é de um mas de
setenta e cinco .
Depois de Vergniaud pronunciar a sentença, os advogados são intro ­
duzidos na câmara para uma alocução final à C onvenção. Negaram-lhes
assento e eles suportaram as treze horas da votação de pé. Tronchet lê
uma carta do rei, que se recusa " a aceitar um j ulgamento que me acusa
de um crime que não tenho na consciência" e que solicita a realização de
um apelo à nação com base no julgamento dos seus representantes.
O tom não é o de um suplicante que se entrega à mercê dos j uízes e a sua
contestação torna mais difícil Tronchet e De Seze reiterarem o argumento
de que o destino do rei deve ser determinado por uma maioria de dois
terços.
Exausto e desalentado, Malesherbes tenta invocar a compaixão e a
simples humanidade mas está demasiado abalado para ser coerente .
Pedindo desculpa por não conseguir improvisar um discurso, tropeça nas
palavras e é obrigado a reprimir as lágrimas: " C idadãos, perdoai-me as
minhas dificuldades . . . Tenho observações para vos fazer . . . irei sofrer o
infortúnio de as perder se não me permitirdes fazê -las . . . amanhã? "
Alguns deputados terão seguramente considerado patético o espectá ­
culo do velhote desfeito por causa de um cliente indigno e foram muitos
mais os que se comoveram com a franqueza da sua mágoa. Afinal de con­
tas, para aquela congregação de coeurs sensibles, as lágrimas são o leite da
pureza moral. Mas eles deixam-lhe a sintaxe soçobrar num silêncio que -
previsivelmente - é quebrado por Robespierre . Robespierre perdoa gene ­
rosamente a Malesherbes as lágrimas derramadas pelo destino do rei mas
rej eita que se volte a falar em apelos ao povo . E acabou-se a conversa.
567

V DUAS MORTE S

Nessa mesma manhã, Malesherbes leva a sua mágoa para o Templo.


Ao anunciar a sentença da C onvenção, que diz ter sido por uma maioria
de apenas cinco votos, vai-se outra vez abaixo e cai aos pés do rei . O sobe­
rano, que parece mais preocupado com a condição do velhote do que com
a sua, levanta-o carinhosamente e abraça -o. Malesherbes informa deta ­
lhadamente o rei sobre a votação e só quando chega ao voto de Orleães é
que o monarca parece trair alguma amargura. O rei e o ministro vêem-se
pela última vez nessa tarde. Segundo um relato, Luís XVI diz-lhe:
"Reunir-nos-emos num mundo melhor. Mas custa -me deixar para trás
um amigo como vós . " Esta história é provavelmente apócrifa porque,
segundo Cléry, o rei contava rever Malesherbes e nos dias que se segui­
ram foi ficando cada vez mais incomodado com a sua ausência . Na ver­
dade, o velho tentou por diversas vezes ver o rei mas foi-lhe sempre
negado o acesso por ordens expressas da C omuna e da C onvenção. Outra
pequena crueldade .
Muito antes do julgamento, o rei resignara -se a esperar o pior. A sua
preocupação principal não era salvar a vida mas sim exonerar-se das acu ­
sações, e estava muitíssimo apreensivo ( e com razão) pela segurança da
família. E star separado dos seus familiares desde o dia 1 1 de Dezembro
tornou os seus receios ainda mais dramáticos e as angústias vieram ao de
cima no testamento ditado na presença de Malesherbes, decerto não por
acaso, no dia de Natal. Não é, de todo, um documento político, embora
insista na sua inocência e perdoe aos seus inimigos e "àqueles que possa
ter ofendido por inadvertência (não me recordo de ter alguma vez ofen­
dido intencionalmente alguém ) " . Uma grande parte do testamento é de
natureza piedosa, reafirmando a sua fé no credo sagrado e na autoridade
da Igrej a e recomendando a alma à clemência do Todo -Poderoso . Mas
outra parte considerável tem como destinatária a família; Luís XVI pede
perdão a Maria Antonieta por quaisquer mágoas e problemas que lhe
possa ter causado. C omo que respondendo galantemente às calúnias gro ­
tescas que continuam a sair na imprensa popular, Luís XVI declara expres­
samente que "nunca duvidei da sua ternura de mãe" e pede-lhe perdão
"por quaisquer vexações que lhe possa ter causado durante a nossa
união " .
Sobre o filho, Luís, escreve que s e "tiver o infortúnio d e vir a ser rei",
deverá " reflectir que é seu dever dedicar- se inteiramente à felicidade dos
seus concidadãos; que deve esquecer todo o ódio e ressentimento, em
particular no que toca às desgraças e vexames que eu sofri; que só pode
promover a felicidade de uma nação se reinar de acordo com as leis; mas
ao mesmo tempo que um rei só pode impor essas leis e fazer o bem que
'
o seu coração lhe dita se estiver possuído da autoridade necessária; caso
Simon Schama 1 CIDADÃOS

contrário, ao estar manietado nas suas operações e não inspirar respeito,


é mais prej udicial do que útil" .
Trata- se, finalmente, d a compreensão clara d o dilema e m que ele esteve
empalado do princípio ao fim do seu reinado. Como fazer o bem sem ceder
autoridade; como fazer um povo feliz quando o povo queria ser livre?
Nada do que a Revolução fizer, e muito menos matando Luís Capeto, tor­
nará mais óbvia a resposta para este problema, o mais mortífero dos lega­
dos de Rousseau . Talvez a sua insolubilidade intrínseca se tenha marcado
no rosto do rei ao aproximar-se o fim da sua vida, conferindo -lhe uma
expressão de dolorosa gravidade que foi capturada pelo meio perfil que
Joseph Ducreux desenhou no Templo.
Na Convenção, entre os dias 1 8 e 2 0 de Janeiro, há esforços de última
hora para garantir a comutação da sentença . Tom Paine, eleito deputado
com base na sua reputação de némesis de Edmund Burke e que chegou a
Paris embevecido pela Revolução - e quase sem falar francês -, sugere
através de um intérprete, Banca!, que o rei sej a enviado para os E stados
Unidos, onde poderá ser reabilitado e tornar- se um cidadão decente . Os
deputados da Montanha, que tinham ficado entusiasmados com a che­
gada de Paine mas que desconfiavam da sua amizade com os girondinos
(provavelmente determinada pelo facto de eles falarem inglês melhor) ,
ficaram escandalizados com a s u a intervenção . Marat gritou que Paine
não tinha o direito de se pronunciar porque pertencia à seita dos quacres,
que eram notórios pela sua oposição à pena de morte . Todavia, a proposta
foi levada mais a sério do que o ataque longo, denso e beccariano de
Condorcet à pena capital. A emenda de Mailhe7 vai a votos pela última
vez e perde mas por muito pouco: 3 8 0 votos contra 3 1 0 .
Mas não h á mais voltas a dar. N a tarde d o dia 20, uma delegação
da Convenção, liderada por Grouvelle, desloca -se ao Templo para ler a
Luís XVI as determinações finais da assembleia. O rei pede um adiamento
de três dias para se preparar melhor para a execução, um confessor da sua
escolha - indica o padre irlandês E dgeworth de Firmont - e autorização
para ver a família. O primeiro pedido é recusado, os outros dois atendidos.
A família reúne -se por volta das oito e trinta da noite. Ninguém os infor­
mou sobre o destino do rei e, por detrás de uma porta envidraçada, Cléry
vê as mulheres e as crianças balançarem-se desgraçadamente para a frente
e para trás quando ele lhes dá a notícia . Estão j untos durante uma hora e
três quartos, chorando, beij ando-se e consolando -se o melhor que
podiam, com o menino agarrado aos j oelhos do pai. Quando chega a
altura, nenhum deles consegue suportar o peso brutal da última despe­
dida. O rei promete que voltará a vê-los a todos às oito da manhã. "Porque

1 Sobre a altura de execução da sentença, que poderia abrir a porta a uma comutação.
( N. do T. )
569

não às sete?", diz a rainha. " C laro que sim, porque não? À s sete . " Quando
vão a sair, a princesa real lança- se ao pai e cai inanimada . Despertá-la é o
último abraço da família.

A guilhotina foi montada na praça rebaptizada Praça da Revolução


(hoj e Praça da C oncórdia ) . A grande estátua equestre de Luís XV que deu
ao lugar o seu nome original foi derrubada no dia em que Luís XIV foi
retirado da Praça das Vitórias. De cima da plataforma que se ergue dois
metros acima da multidão e dos soldados, Sanson vê o pedestal truncado.
Preparada para enfrentar qualquer tipo de manifestação de simpatia,
armada ou não, a C omuna transformou Paris numa imensa guarnição. As
portas da cidade foram fechadas, foi destacada uma escolta especial de mil
e duzentos guardas para acompanhar o coche do rei até ao patíbulo e as
ruas têm um cordão de soldados a quatro fileiras de profundidade .
Santerre, que comanda todas estas operações, foi ao ponto de postar
canhões em lugares estratégicos ao longo do caminho e noutros pontos da
cidade.
O rei é acordado na noite invernal por C léry e por volta das seis recebe
a comunhão de E dgeworth. Veste -se com simplicidade mas é óbvio que
não voltará a ver a família, pois pede ao criado que entregue a aliança de
casamento à rainha, j untamente com um embrulho com madeixas de
cabelo de toda a família. Um selo real, tirado do relógio, é para entregar
ao filho como sinal de sucessão . Quando chegam os representantes da
C omuna, o rei pergunta-lhes se Cléry lhe pode cortar o cabelo para lhe ser
poupada a indignidade de lho cortarem no cadafalso . E scusado será dizer,
o pedido é recusado . No que toca ao carrasco, a cabeça dele é apenas mais
uma . Santerre chega por volta das oito e põe -se a andar nervosamente de
um lado para o outro até que o rei lhe tira o peso de cima com uma
ordem: "Partons" . O traj ecto demora duas horas. As ruas de Paris estão
envoltas num nevoeiro húmido. O sentimento de um manto de silêncio é
reforçado pelas persianas e j anelas fechadas por ordem da C omuna e pela
peculiar animação suspensa de uma turba que noutras ocasiões foi pró­
diga em aclamações e insultos.
Pouco tempo depois do início do traj ecto, uma patética tentativa de
salvamento é levada a cabo pelo barão de Batz e quatro seguidores; Batz
grita, "A mim todos os que querem salvar o rei ! " . São imediatamente ata­
cados, bem como um dos antigos secretários da rainha, que tenta abrir
caminho até ao coche. O cortej o chega ao patíbulo às dez. D ebaixo da pla­
taforma, Sanson e o seu assistente preparam-se para despir o rei e atar-lhe
as mãos mas o preso diz-lhes que quer ficar com o casaco e com as mãos
livres. O rei parece disposto a lutar para garantir esta última vontade, e só
quando Edgeworth compara a sua provação com a do Salvador é que ele
se resigna a qualquer humilhação que lhe possam ainda impor.
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Os degraus são tão altos que o rei é obrigado a apoiar-se no padre para
subir. C ortam-lhe o cabelo com a desenvoltura profissional que tornou
célebre a família Sanson. Por fim, o rei tenta dirigir- se ao mar de vinte mil
rostos que enche a praça. "Morro inocente de todos os crimes de que fui
acusado . Perdoo aos que provocaram a minha morte e peço a Deus que o
sangue que ides agora derramar nunca sej a exigido da França . . . " . Nesse
momento, Santerre manda rufar os tambores, abafando qualquer outra
coisa que o rei tivesse para dizer. O rei é atado a uma prancha que depois
de empurrada para frente lhe enfia a cabeça no buraco . Sanson puxa a
corda e a lâmina de 3 0 cm cai, assobiando pelas calhas até ao alvo. C omo
é costume, o carrasco tira a cabeça do cesto e mostra-a, a pingar sangue,
ao povo .
É a normalidade inexorável em torno do espectáculo que choca as tes­
temunhas como verdadeiramente insuportável. Quando Lucy de La Tour
du Pin e o marido ouvem as portas de Paris fecharem-se muito cedo, com­
preendem que a esperança acabou . Põem-se à escuta, à espera de tiros de
mosquete que possam prometer um caos redentor, mas os únicos sons que
chegam do nevoeiro pegaj oso são os do silêncio. À s dez e trinta, ouvem as
portas abrir- se " e a vida da cidade retomou o seu rumo, inalterada" .
Mercier também assistiu . Talvez fosse d e esperar que ele sentisse uma
espécie de vitória, pois profetizara com muita frequência e veemência o
apocalipse destruidor de reis que estava a abater- se sobre a França. Mas
não sentiu nada de semelhante . Apesar de toda a sua violência literária,
está a ficar cada vez mais enoj ado com o que vê à sua volta . Nunca teve a
mínima ilusão em relação à boa fé do rei durante a Revolução mas votou
contra a morte na C onvenção, não só por compaixão mas também por­
que acredita - de novo, profeticamente - que a morte de Luís XVI tornará
inevitável na Europa uma guerra de uma escala inédita . Por conseguinte,
fica espantado ao ver as festividades brutais que parecem saudar a execu ­
ção passado o choque imediato.

O sang ue dele correu e os meus ouvidos foram atingidos pelos gritos de ale­
gria de oitenta mil homens armados . . . Vi os colegiais do Quatro Nações•
atirarem os chapéus ao ar; o sangue dele correu e alguns molharam nele
os dedos, uma pena, um pedaço de papel; um provou -o e disse, 'Il est bou­
grement salé' [uma alusão ao gado que era engordado nos pântanos salga ­
dos (pré-salé) ] . Nas escadas do patíbulo, um dos carrascos vendeu e
distribuiu saquinhos de cabelo e a fita que o atava; cada um tinha um
pedaço da sua roupa ou um vestígio sangrento daquela cena trágica. Vi pes­
soas a passar de braço dado, a rir, a conversar familiarmente como se esti­
vessem numa festa .

' Um dos colégios da Universidade de Paris. (N. do T. )


57 1

Dando o desconto à predilecção de Mercier pelo bizarro, uma grande


parte do seu relato soa a verdadeira . C omo parte das suas alcavalas, Sanson
tinha o direito de vender artigos de vestuário e recordações da execução .
A documentação é menos fiável no que toca aos relatos de espectadores a
empaparem os lenços no sangue real, mas é consonante com outras mor­
tes sacrificiais que aconteceram em momentos de crises históricas. Se isto
de facto sucedeu, terá sido, como sugere Daniel Arasse, uma espécie de rito
baptismal invertido? Ou foi antes o desej o de comungar colectivamente de
uma espécie de sacrifício expiatório, uma morte que depois de partilhada
por todos não poderia ser atribuída a nenhum indivíduo?
Mas não foi a única morte em Paris. No dia anterior, enquanto Luís XVI
se prepara para o seu fim, um dos deputados regicidas é apunhalado de
morte num café do Palais-Royal. A vítima, Michel Lepeletier, não é um
dos rostos anónimos da C onvenção. A sua conversão ao jacobinismo mili­
tante, muito mais do que o oportunismo rasq:1 de Philippe de Orleães, tra ­
duz a medida em que o Ancien Régime foi destruído pelos seus próprios
beneficiários. Lepeletier pertencia à nata da aristocracia judiciária e fora
conseiller e président do Parlamento de Paris. Amigo íntimo de Hérault de
Séchelles, tinha sido um dos reformadores mais activos da Assembleia
Constituinte, com especial proeminência no C omité do Ensino Público,
que elaborara um proj ecto ambicioso de escolaridade primária obrigatória
e gratuita . Lepeletier contribuíra também com os seus conhecimentos
jurídicos para a reforma do código penal e propusera uma tabela de penas
cuidadosamente graduada, à maneira beccariana, de modo a correspon­
der aos diferentes crimes. Por exemplo, reservar a pena capital para os
assassínios premeditados deveria torná -la suficientemente assustadora
para dissuadir o vilão.
E ste tipo de considerações não pesa muito na mente do assassino de
Lepeletier, um ex-membro da guarda real chamado Pâris. Aproxima-se
amistosamente de Lepeletier no café iluminado pelas velas e puxa de um
facalhão que espeta várias vezes no deputado, abrindo-lhe um buraco
enorme no peito.
O cadáver do mártir fica exposto durante quatro dias num catafalco
inscrito com as palavras que se dizem ter sido as suas últimas: "Morro
contente porque o tirano já não existe " ( embora não se soubesse se o rei
o tinha efectivamente antecedido ) . Jacques-Louis David faz um desenho
baseado numa pietá renascentista no qual expõe o ferimento de Lepeletier
como um rasgão sagrado e suspende um punhal sobre o torso. A cabeça -
que na realidade era memoravelmente feia, com um grande nariz encur­
vado e olhos exoftálmicos - está transformada num busto romano de
beleza exemplar. Durante o funeral, organizado por David, o corpo é dei­
tado sobre o pedestal vazio da Praça Vendôme de onde foi removida uma
estátua de Luís XIV. David mandou construir uma grande escadaria com
Simon Schama 1 CIDADÃOS

uma pequena plataforma em cima para que, antes das cerimónias, os


pesarosos patrióticos possam subir ao ataúde, passar por entre duas enor­
mes urnas fumegantes e contemplar o Patriota no seu leito de morte
romano . A seus pés, envolvendo um pique como uma bandeira ensan­
guentada, está a camisa que ele trazia vestida quando fora assassinado,
tornada preto-acastanhada pela luz de Janeiro . "Estou feliz por ter vertido
o meu sangue pelo meu país ", anuncia em baixo uma placa, "espero que
sirva para consolidar a liberdade e a igualdade . . . " .
D epois dos panegíricos, nos quais Robespierre é particularmente
sonoro, o cadáver é levado pelas ruas numa procissão encabeçada pela
santa camisa. C om o irmão de Lepeletier, Félix, à frente, o cortej o dirige­
-se à Convenção e de lá para os Jacobinos, onde a filha de Lepeletier é
declarada "adaptada pela nação" - embora não precise, diz-nos Mercier,
já que a herança deixada pelo pai ascende a cerca de meio milhão de libras
francesas. Esta fille de la nation tornar- se-á uma fervorosa monárquica .
Mais atormentada pela memória de um pai regicida do que pela sua
morte, ela esconde - e é possível que tenha destruído - o quadro de D avid
e mutila a chapa gravada feita com base no quadro. Sobreviveu uma
única cópia que tem a marca do golpe de misericórdia que a filha infligiu
à imagem do pai ferido.
Enquanto a República beatifica o seu primeiro mártir, o cadáver do rei
é transformado em nada. A imortalidade teórica pela qual, quando um rei
morria, a monarquia vivia - Le roi est mort; vive !e roi - inverteu -se.
O C idadão tornou-se o imortal heróico; a morte do rei destinou-se a matar
a monarquia . A intenção era obliterar de tal forma os restos de Luís
Capeto que nada pudesse sobreviver a não ser a suj idade moral. Depois da
execução, a cabeça foi colocada entre as suas pernas, num cesto, e o cadá­
ver levado para o cemitério da Madeleine. Meteram-no num caixão sim­
ples de madeira, dos que se usam para os enterros mais pobres, e
cobriram-no com cal. Segundo o que se dizia, a cova tinha três metros de
profundidade . Oito meses depois, receando um negócio de relíquias, a
Comuna ordena que toda e qualquer peça de vestuário ou obj ecto tirado
do Templo sej am queimados numa imolação pública .
O Rex Christianissimus, incarnação do Sol, tornou-se sucessivamente
Restaurador da Liberdade Francesa, Rei dos Franceses, Porco de Varennes,
tirano Capeto e, por fim, uma nulidade em dissolução no solo de Paris.
Aqueles que o obliteraram pretenderam garantir uma desmistificação
irreversível, algo que tornasse o acto de regicídio quase prosaico . Passado
pouco tempo, este processo já ia tão avançado que se compravam cháve ­
nas de Sevres com o desenho de D uplessis representando Sanson a segu­
rar na cabeça de Luís XVI numa graciosa tinta dourada. O s bons
republicanos podiam bebericar o seu café e, ao mesmo tempo, demonstrar
a sua normalidade humana e a sua singularidade política .
573

A verdade é que, não obstante todas as tentativas de restauração no


século XIX, a monarquia francesa morreu com o rei, mas o conflito fun­
damental que conduziu a este desfecho não terminou no dia 2 1 de
Janeiro . O sucessor designado da autoridade real - o Povo Soberano -
revelou -se tão incapaz como Luís XVI de conciliar a liberdade com o
poder.
PA R T E Q U AT R O

Virtude e Morte
16

Inimigos do Povo?
Inverno-Primavera de 1 793

I CIRCUNSTÂNCIAS DIFÍ CEIS

O que tinha Talleyrand que levava as pessoas, especialmente os britâ­


nicos, a equipará-lo às formas de vida mais baixas? Ao inteirar-se de que
ele tinha chegado a Inglaterra, em S etembro de 1 7 92, o velho Horace
Walpole, ' escrevendo de Strawberry Hill,2 referiu-se-lhe como "víbora que
largou a pele " . Quando soube que Talleyrand tinha sido visto na compa­
nhia de Madame de Genlis, descreveu o par como "Eva e a serpente" -
desconfiando, no entanto, que houvesse "muita gente interessada em
provar as suas maçãs podres" .
Talvez fosse a autoconfiança sardónica d e Talleyrand que irritava as
pessoas, mas nenhum dos seus detractores britânicos foi alguma vez tão
longe como Napoleão, o qual, enfurecido pelo seu aprumo, lhe chamou
"monte de merda com meias de seda " . A notoriedade de Talleyrand como
clérigo apóstata, cínico político e libertino amoral precedeu-o nos salões
da sociedade culta britânica mas não era de todo assim que ele se via a si
próprio, nem na época, nem subsequentemente. Os actos pelos quais mais
o censuravam - o seu papel na criação de uma monarquia constitucional
- eram para Talleyrand a expressão de convicções consistentes e genuínas,
e ele considerava que a incompreensão da sua política era ainda mais
lamentável porque no princípio do Outono de 1 792 ele ainda esperava
contribuir para impedir uma guerra entre a Grã-Bretanha e a França.
Pelo menos, foi este o pretexto que o levou a solicitar um passaporte
diplomático para Londres depois da revolução de 1 O de Agosto . Segundo
declarou ao C onselho Executivo, iria renovar os seus esforços, iniciados
na Primavera, para manter os britânicos neutrais. C om a França confron­
tada com a hostilidade da Prússia e da Á ustria, isto parecia mais do que
nunca indispensável para a sua sobrevivência. Todavia, as memórias de
Talleyrand deixam claro que a violência do 1 O de Agosto o convenceu de

1Horatio Walpole ( 1 7 1 7 - 1 7 9 7 ) , conde de Orford, historiador, homem de letras, anti­


quário e político britânico . (N. do T. )
2 A residência "gótica" d e Walpole, e m Londres. ( N. do T. )
Simon Schama 1 CIDADÃOS

que os cidadãos-nobres associados à revolução constitucional, além de


politicamente redundantes, corriam perigo de vida.
Nos dias que se seguem ao derrube da monarquia, muitos dos amigos
de Talleyrand transformam-se em fugitivos . Ao regressar a casa, que
encontra saqueada por causa de uma busca de um mítico arsenal,
Stanislas Clermont-Tonnerre é perseguido pela turba até ao quarto andar
da residência de Madame de B rissac, onde o abatem a tiro e atiram o
corpo pela j anela, para a rua. Louis de La Rochefoucauld, detido em
Forges-les-Eaux, é arrastado da sua carruagem em Gisors, apedrej ado à
frente da mulher e da mãe e feito numa polpa sangrenta com sabres e
machado s . O primo, De La Rochefoucauld-Liancourt, comandante da
guarnição de Rouen, tentou colocar as suas tropas ao lado do rei .
C onfrontado c o m gritos hostis de " Vive la nation!", fugiu da Normandia
num barquito " requisitado" em Abbeville. Escondido com o criado
debaixo das redes e de molhos de madeira e com uma pistola apontada
ao relutante pescador, Liancourt interna -se no nevoeiro pegaj oso,
rumando à direcção aproximada da costa inglesa . Há alturas em que se
sentem tão perdidos que o criado se convence de que estão a derivar para
França . Os dois homens desembarcam perto de Hastings, dirigem-se a
uma taberna e pedem duas canecas de cervej a . Por via da bebida e da
exaustão, Liancourt perde os sentidos. Acorda num quarto sombrio e por
instantes, tomado de pânico, crê -se efectivamente em França, até que se
recompõe. Passados alguns dias, encontra -se na Ânglia Oriental, onde
Arthur Young paga a hospitalidade que recebeu do duque com um ser­
mão sobre a irresponsabilidade que o conduziu àquela situação aflitiva .
Fanny B urney vê nele um romântico caído, "envolt o em nuvens de tris­
teza e morosidade", obrigando-se, em nome da cortesia, a narrar aos
autarcas de B ury St. Edmunds a repetidíssima história de como em Julho
de 1 789 anunciou a Luís XVI que o monarca estava confrontado com
uma revolução .
Fiel a si próprio, Talleyrand mantém o sangue -frio enquanto se
esforça por encontrar uma saída segura e rápida . No dia 3 1 de Agosto,
Danton convoca - o ao Ministério da Justiça, na rebaptizada Praça dos
Piques, ' para receber o passaporte. Barere encontra - o no ministério, à
noite, tentando parecer desinteressado, de calças, botas e rabo - d e ­
-cavalo, como q u e preparado p a r a u m a dura cavalgada. M a s o gabinete
de Danton não emite nenhum passaporte naquela noite nem nas que se
seguem. Talleyrand passa a semana das matanças nas prisões com medo
de que algum idiota - por brincadeira ou maldade - o cumprimente em
público por " B ispo " . Por fim, no dia 7, chega o precioso documento . Nos
portos do C anal, Talleyrand abre caminho por multidões de padres

' Ex- Praça Vendôme. ( N. do T. )


579

assustados que procuram conseguir passagens para a Inglaterra ou para a


Irlanda . Só nesse mês, partem setecentos de Dieppe e Le Havre .
Embora Talleyrand estej a em segurança em Woodstock Street, em
Kensington, a sua posição oficial mantém-se precária. As credenciais da
embaixada francesa para a corte britânica perderam a sua validade por
causa da transformação do país em república, pelo que o acolhimento
dado a Talleyrand por funcionários como Grenville, o secretário dos
Negócios E strangeiros, é ainda menos cordial do que na Primavera . Além
do mais, ·a postura pragmática e defensiva que ele assume num memo­
rando para Paris, escrito no princípio de Outubro, não é consonante com
o tom cada vez mais messiânico da C onvenção Nacional. "Aprendemos",
escreve ele com optimismo, "que a única política adequada para homens
livres e esclarecidos é serem soberanos sobre os seus assuntos e não terem
a pretensão ridícula de os imporem aos outros. O reinado das ilusões"
( uma alusão à ânsia real de conquista ) "acabou para a França . "
A verdade é que está precisamente a iniciar- se uma nova era d e ilu­
sões, indistinta da antiga na agressividade. Para a sua retórica clamorosa,
a moderação pragmática de Talleyrand é necessariamente suspeita. No dia
5 de Dezembro, é anunciado na C onvenção que foram descobertos no
armoire de fer documentos comprometedores que o ligam ao funcionário
real da lista civil, La f orte . Dando mostras de extrema coragem, o seu
antigo assistente, Desrenaudes, publica um memorando negando que
Talleyrand tenha alguma vez comunicado com a corte - as provas são
efectivamente equívocas . Mesmo assim, Talleyrand é colocado na lista dos
emigrados proscritos. São publicados mandatos de detenção, incluindo
uma descrição que solicita aos cidadãos que estej am atentos a um homem
que manca "do pé esquerdo ou do direito" .
Talleyrand, o eterno marginal, vê-se sem E stado e sem amigos. Apesar
de ostracizado pela sociedade conservadora de Londres, ele irradia uma
espécie de encanto perigoso que agrada à ala radical dos whigs, tenaz­
mente apegados ao seu entusiasmo pela revolução constitucional .
Talleyrand é " adoptado" por C harles James Fox, pelo dramaturgo
Sheridan e pelos membros da Sociedade Revolucionária de Londres
( assim nomeada em honra das comemorações de 1 68 8 ) . À mesa de j an­
tar de Fox, Talleyrand fica espantado com a eloquência do orador britâ­
nico quando o vê conversar em linguagem gestual com o seu filho
ilegítimo, que é surdo .
É uma época extraordinária para se chegar a Inglaterra, pois o país está
em alvoroço político. Na E scócia e na Irlanda, clubes e sociedades com sim­
patias declaradas pela Revolução tornaram-se contestatários e reúnem-se
em convenções. Em cidades de província como Sheffield e Manchester, há
reuniões semanais para exigir reformas constitucionais e ler a segunda
parte dos Direitos do Homem de Tom Paine, com a sua espantosa exigência
Simon Schama 1 CIDADÃOS

da introdução de um Estado social - a tiragem do panfleto terá atingido as


centenas de milhar de cópias . A Sociedade de Correspondência de
Londres enviou saudações à barra da C onvenção, em Paris. Em resposta a
esta onda de perigosa insatisfação, a Associação para a Preservação da
Liberdade e da Propriedade treina milícias voluntárias nos condados.
Talleyrand considera provavelmente os dois extremos de opinião tão
pouco apetecíveis como são em França . A sua visão dos acontecimen­
tos não está longe da do inspirado caricaturista James Gillray, cuj a s
denúncias visuais da j acobinofobia britânica e d a s atrocidades dos sans­
-culottes são de uma imparcialidade selvagem. A estampa "O Zénite da
Liberdade Frances a " , publicada na altura da execução de Luís XVI, com
um sans-culotte literalmente sem calças sentado em cima de um can­
deeiro de onde pendem dois padres, coaduna -se com a apreciação cada
vez mais hostil que Talleyrand faz do rumo da Revolução . Ao seu velho
amigo, Shelburne, entretanto elevado a marquês de Lansdowne e que
continua a ser o grande patrono e amigo dos cidadã o s - nobres franceses
no exílio, Talleyrand faz um relato condenatório dos acontecimentos
recentes .

Numa altura e m que tudo foi desfigurado e pervertido, o s homens que per­
manecem fiéis à liberdade, apesar da máscara de san_g ue e imundície com
que as atrocidades a cobriram, são muitíssimo poucos. Encurralados vai
para dois anos entre o terror e a contestação, os Franceses habituaram-se à
escravidão e apenas dizem o que pode ser dito sem perigo. Os clubes e os
piques, abafando toda a livre iniciativa, acostumaram as pessoas à dissi­
mulação e à vileza, e se se deixar as pessoas adquirir estes tristes hábitos
apenas terão a felicidade de trocarem de tirano. Dado que os líderes dos
j acobinos, até ao mais honesto dos cidadãos, fazem a vontade aos cortado ­
res de cabeças, tudo o que existe hoj e resume-se a uma corrente de vilania
e mentiras que tem o primeiro elo enterrado na imundície .

A única coisa que lhe alivia a tristeza é o tédio. Em Woodstock Street,


rodeado pela biblioteca que prudentemente enviou à sua frente para
Inglaterra e confortado por Adelaide de Flahaut, Talleyrand instala -se no
seu ramerrame. De manhã, trabalha numa biografia do duque de Orleães
ou, mais agradavelmente, nas suas memórias . Adelaide terminou o seu
romance, Adele de Senange, e ele aj uda-a a rever as provas . À tarde,
desloca-se a Half-Moon Street para visitar Madame de Genlis e a filha de
Orleães, de dezasseis anos de idade - também se chama Adelaide -, que
vivem em circunstâncias tão modestas que se sustentam a fazer chapéus
de palha do tipo tornado moda pelos retratos de Elisabeth Vigée - Lebrun.
Este exílio monótono apenas tem um ponto alto . D e tempos a tempos,
Talleyrand apanha uma diligência que mete pela estrada de Worthing e
581

viaj a para sul, até aos Downs . A uns oito quilómetros a norte d e Dorking,
perto da aldeia de Mickleham, Germaine de Stael alugou uma casa de
estilo jorgiano conhecida por Juniper Hall como local de reunião para os
sobreviventes do Clube de 1 789 e, em especial, para o seu inconstante
amante, Narbonne . Apesar de ela só ter chegado a Inglaterra em Janeiro
de 1 79 3 , a casa está aberta para qualquer um dos seus amigos de Paris e
para muitos deles Juniper Hall torna-se um refúgio abençoado da pobreza
e do tédio . Entre os hóspedes regulares contam-se Lally-Tollendal,
Mathieu de Montmorency, B eaumetz, Jaucourt e a amante, a belíssima
viscondessa de Châtre, Stanislas Girardin ( que naturalmente pediu que
lhe mostrassem o único lugar da região associado à memória de
Rousseau) e o vice -comandante de Lafayette em 1 789, o general d'Arblay.
A sociedade do Surrey, de Leatherhead a Reigate, divide -se profunda ­
mente entre escandalizados e fascinados. Se há resmoneios em Fetcham e
West Humble, em Mickleham os Lockes de Norbury Park recebem com
frequência a colónia francesa . É aqui que os exilados conhecem S usanna
Phillips, filha do musicólogo Dr. Charles Burney.
Em Novembro, a irmã da Mrs. Philips, Fanny, de quarenta anos de
idade, irresistivelmente atraída para um grupo que exibe um enorme exo­
tismo social e cultural, faz-lhes a primeira visita. "Não é possível imaginar
nada mais encantador e fascinante do que esta colónia", escreve ela ao
pai, desnecessariamente preocupado com o efeito na moral da filha da sua
exposição aos costumes franceses. À semelhança de quase todas as pes­
soas fora do círculo de Lansdowne, ela antipatiza de imediato com
Talleyrand mas não tarda a cair sob o feitiço do seu considerável encanto.
"É inconcebível como o Monsieur de Talleyrand me converteu. Passei a
considerá -lo um dos melhores e mais encantadores membros desta nota­
bilíssima companhia. As suas capacidades de entretenimento são espanto ­
sas, quer em termos de informação, quer na mofa . " Fanny fica bastante
impressionada com a manifesta indiferença do grupo aos prazeres gros­
seiros da aristocracia rural do Surrey e com a vivacidade modesta com que
se lançam em todo o tipo de discussões - sobre história ( especialmente a
francesa ) , teatro, poesia e filosofia .
Ainda mais espantoso é o modo como todos eles seguem a liderança
de Germaine de Stael nos seus j ogos intelectuais. Ouvem-na ler excertos
da sua Apologie de Rousseau e do seu dramático ensaio em defesa do suicí­
dio, De l 'Infiuence des Passions sur le Bonheur des Individus et des Nations.
Tipicamente, Talleyrand elogia a obra mas critica o modo como de Stael
a lê, num estilo cantarolado, como se fossem, diz ele desagradavelmente,
versos. Mais penosa para Fanny é a récita que Lally oferece do seu drama
histórico A Morte de Strafford. Ela vê-o murmurar os versos ao j antar para
os conseguir recitar de cor. A declamação está prestes a começar quando
é notada a ausência de D' Arblay. Passado algum tempo, Germaine quer
Simon Schama 1 CIDADÃOS

começar mas Talleyrand protesta que " cela !ui fera de la peine" ( ele vai ficar
com pena ) e sai a mancar em busca do ausente.
Na inocência com que vê o grupo de exilados, Fanny j ulga que
Talleyrand está a ser bondoso ao suj eitar d' Arblay ( que quase de certeza
se escondeu algures com uma garrafa de Porto ) à actuação de Lally. Os
"berros e o ribombar alternados da sua voz . . . fatigaram-me excessiva­
mente ", admite ela, sem no entanto lhe ocorrer que Talleyrand foi
matreiro ao desentocar o soldado. Fanny fica demasiado comovida com a
profunda melancolia que se apodera do grupo perante a notícia da exe­
cução do rei para se aperceber das estratégias subtis das suas políticas
sexuais . Jaucourt e a viscondessa de Châtre e Narbonne e Germaine
vivem j untos às claras. Aos vinte e sete anos de idade, Germaine, não
sendo uma beldade clássica, floresceu para uma mulher madura que exala
a sua personalidade como se fosse um aroma fortíssimo . Aliás, esta perso­
nalidade parece ser demasiado vincada para o gosto de Narbonne ( ela
deu -lhe um filho em Novembro, em Genebra ) , que detesta a chantagem
moral de Germaine, com ameaças de suicídio se ele ceder à sua fantasia
trágica de se deslocar a Paris para testemunhar em nome do rei . C om
Narbonne cada vez mais distante, ela volta a cultivar Talleyrand, tanto
para provocar Narbonne ( sem sucesso ) como para o libertar de Adelaide
de Flahaut, com quem evidentemente antipatiza .
Na memorável caracterização de D uff Cooper• ( e ele saberia) , é como
se As Ligações Perigosas tivessem sido transportadas para a paisagem de
Sensibilidade e Bom Senso. Durante muito tempo, Fanny, apaixonada pelo
galante d' Arblay, está sublimemente a leste de todas aquelas intrigas.
A outra abanadela do dedo admoestador do D r. B urnay, ela responde
indignada: "Penso que não conseguiríeis passar um dia com eles e que não
vedes que o seu comércio é de amizade pura mas exaltada e elegante . "
Mas quando finalmente s e apercebe d o que s e passa, ela censura
Germaine - que a acolheu sob a sua espaçosa asa - com uma frieza cho­
cada . Quanto a d' Arblay, é salvo do antro de iniquidade desposando a vir­
tuosa Fanny e iniciando uma vida como uma curiosidade encantadora
entre a aristocracia rural inglesa.
Talvez houvesse destinos piores do que desposar Fanny Burney. Em
Março, a situação de Talleyrand agrava-se consideravelmente . Gasto o
dinheiro, vê-se obrigado a pôr a biblioteca à venda, o que lhe rende umas
míseras 7 5 0 libras. Talleyrand muda-se da casinha de Woodstock Street
para aposentos mais diminutos em Kensington Square . No dia 30, é ofi­
cialmente proscrito em França, o que significa que os seus bens e os da sua
família passam a pertencer à República . Finalmente, em Maio, ao abrigo

• Alfred D uff C ooper ( 1 8 90- 1 9 54 ) , diplomata e político britânico, autor de uma biogra­
fia de Talleyrand e que manteve inúmeras relações amorosas extra-conj ugais. ( N. do T. )
583

da Lei dos Estrangeiros, que concede ao governo britânico poderes sumá­


rios de deportação, Talleyrand é informado de que, enquanto indesejável
político, deverá abandonar a Grã-B retanha . Germaine regressou à Suíça
para j unto do filho, Albert, que deixou com cinco semanas para se j untar
a Narbonne no Surrey. Enquanto Germaine lhe procura residência nas
imediações, Talleyrand é subtilmente informado de que a sua presença
não será bem-vinda em Genebra nem em Florença - também tinha pen­
sado mudar- se para esta cidade. Resta a América . Munido de cartas de
apresentação de Lansdowne para George Washington e Alexander
Hamilton, ' Talleyrand embarca no William Penn . Pouco depois de zarpar,
o navio quase soçobra numa violenta tempestade no Solent, 6 e Talleyrand
teme ir dar à costa francesa . Mas a embarcação consegue perseverar e,
antes de retomar a viagem, acosta em Falmouth para reparações. Em
Falmouth, Talleyra ri d entabula conversa com outro herói caído em des­
graça, e os dois trocam queixas sobre a ingratidão e a incompreensão de
um mundo ignorante . Por fim, ex-bispo Maurice de Talleyrand despede ­
se do ex-general B enedict Arnold1 e ruma à América .

Não é provável que j ulgasse a sua carreira acabada aos trinta e nove
anos de idade . Talleyrand garantiu a Adelaide de Flahaut que voltaria e
disse a Germaine para continuar à procura de uma casa j unto ao Lago
Genebra, mas para já ele é inegavelmente uma baixa da guerra com a
Grã -B retanha que sempre considerou desastrosa para os interesses fran­
ceses. A sua única esperança é que Dumouriez herde a estratégia de
Lafayette de usar a popularidade militar na frente contra os jacobinos de
Paris. E sta é efectivamente a estratégia do general mas no Inverno de
1 79 2 - 1 7 9 3 a sua concretização torna -se cada vez mais difícil. O seu plano,
a seguir a Jemappes, foi criar uma república belga independente que
negasse o Sul da Holanda aos Austríacos sem levar os britânicos a entra ­
rem na guerra . Isto implicou apoiar o mais conservador dos dois grupos
políticos belgas com aspirações, os " estatistas", contra os republicanos
democráticos. Foi uma decisão calculada de cooptar a elite belga que lide ­
rou a revolta contra os Austríacos e de evitar alienar a maioria da popu -
lação estendendo o anticlericalismo francês a um dos países católicos mais
pios da Europa.
Era efectivamente a única política com alguma hipótese de garantir a
lealdade da B élgica à França, uma vez que, como Dumouriez compreen­
deu, a rebelião contra a Á ustria decorreu da determinação das províncias
de protegerem as instituições tradicionais contra as reformas imperiais . No

' Respectivamente, presidente e secretário de Estado do Tesouro. ( N. do T. )


' Estreito que separa a Ilha d e Wight d e Inglaterra . ( N. do T. )
' General americano que desertou para o s britânicos durante a Guerra d a Independência
Americana. (N. do T. )
S imon Schama 1 CIDADÃOS

entanto, para os militantes da C onvenção, tudo aquilo cheira a compro­


misso feuillant com a contra- revolução. D umouriez é acusado de preten­
der criar uma base de poder militar e político para benefício próprio
vendendo a "libertação" da Bélgica, de repudiar os verdadeiros revolucio ­
nários indígenas e de intrigar com os aristocratas, os padres e os fornece ­
dores do exército . Por exemplo, a sua proposta de criação de um exército
belga será financiada através de um empréstimo do clero em troca da
garantia de não ser suj eito à legislação religiosa francesa. Para D umouriez,
é um compromisso sensato; para C ambonª e para os seus críticos da
Convenção, é uma prova evidente de uma conspiração cesarista.
O decreto de 1 5 de D ezembro destina-se expressamente a frustrar as
políticas autónomas de Dumouriez suj eitando a sua autoridade aos repre ­
sentantes da C onvenção. Os decretos revolucionários, incluindo os relati­
vos à Igreja, serão impostos com todo o seu rigor às províncias belgas. Em
finais de Março de 1 79 3 , com a sua estratégia militar e política em cacos,
Dumouriez queixa-se amargamente à Convenção de que foi a sua indife­
rença às susceptibilidades locais que arruinou a campanha belga. Segundo
ele, o povo belga está a ser "suj eito a todo o tipo de vexames; aquilo que
na sua óptica eram direitos sagrados de liberdade estava a ser violado, com
os seus sentimentos religiosos a serem impudentemente insultados" .
A anexação da província de Hainaut foi j ustificada por uma espúria
" Convenção" que, na realidade, segundo Dumouriez, não passa de vinte
indivíduos que se autorizam a si próprios em B ruxelas. Depois levaram os
paramentos das igrej as para pagar a "libertação" . "Passastes a considerar
os Belgas como Franceses mas mesmo que o fossem deveria ter- se espe ­
rado que tivessem dado a prata como um sacrifício voluntário. Sem isso,
o seu confisco pela força não passou, aos seus olhos, de um sacrilégio . "
É claro que a condenação d a política francesa n a B élgica por
Dumouriez também é feita por despeito. A C onvenção sabotou os seus
planos de criar uma base de poder na Holanda e a derrota militar9 pôs-lhes
definitivamente fim. Todavia, não obstante os seus preconceitos, o retrato
que Dumouriez pinta do princípio do imperialismo revolucionário está
absolutamente conecto .
Sej a como for, o que é certo é que a nova política de anexações e
expansionismo revolucionário agressivo aproximaram decisivamente a
Grã-B retanha da entrada na guerra. A política de estrita neutralidade
defendida por Pitt e Grenville sobreviveu ao derrube da monarquia fran­
cesa e em finais de Outubro eles continuam sem ver nenhuma razão de
força maior para alterar a sua posição. Porém, a decisão francesa de abrir

' Deputado, especialista em finanças e autor do " Decreto sobre a administração revolu­
cionária francesa dos países conquistados", aprovado pela C onvenção. ( N. do T )
' Em Neerwinden, a 1 8 d e Março d e 1 79 3 . ( N. do T )
585

o rio Escalda à navegação, em 1 6 de Novembro, num claro desafio a o


Tratado d e Vestefália, concluído em 1 648, confronta -os com uma provo­
cação muito maior. O rio foi encerrado no fim da longa guerra de inde­
pendência dos Holandeses contra a Espanha, atendendo ao desej o da
Holanda de impedir o renascimento económico ou estratégico da cidade
portuária de Antuérpia. D esde que Holandeses e B ritânicos se aliaram
contra Luís XIV, em finais do século XVII, a manutenção do encerramento
do rio é um artigo de fé no seu sistema de contenção do expansionismo
francês na Holanda. A revogação unilateral do tratado (e o envio de uma
canhoeira francesa rio abaixo ) afigura -se um teste inequívoco aos com­
promissos assumidos pela Grã-Bretanha com um aliado e à sua determi­
nação de preservar o status quo. Além disso, há outras indicações de que a
"lei natural" e as " fronteiras naturais" passarão a sobrepor-se às conven­
ções diplomáticas tradicionais . No dia 27 de Novembro, a Sabóia, que está
ocupada pelas tropas de Montesquieu desde meados de Outubro, é for­
malmente anexada depois de uma " Convenção dos Alóbroges" votar a
deposição do rei da Sardenha e a "reunião" da província com a França . No
dia seguinte, o presidente da C onvenção, Grégoire, acolhe as saudações
fraternas enviadas de Londres com o anúncio de que " está próximo o
momento em que os Franceses darão as suas felicitações à C onvenção
Nacional da Grã-Bretanha" .
N o dia 1 d e Dezembro, o governo d e Pitt aprova a mobilização d a milí­
cia, quer para fazer face à ameaça de desordens internas, quer como preli­
minar das hostilidades com a França . No entanto, a sua preocupação mais
urgente não é uma revolução na Grã-Bretanha, mas sim na República
Holandesa . Face ao êxito do recrutamento da milícia lealista, o governo
acredita que conseguirá conter a onda de entusiasmo revolucionário em
Inglaterra (as certezas j á não são tantas em relação à Escócia e à Irlanda ) ,
mas teme que o regime d o Stadthouder, restaurado pelas tropas prussianas
em 1 787, estej a prestes a desmoronar-se. O ressurgimento da política dos
Patriotas na Holanda ofereceria aos Franceses um alvo de oportunidade
irresistível. As "fronteiras naturais" seriam estendidas para norte, para
além do Mosa, ou D umouriez conseguiria concretizar o seu sonho de reu -
nião das antigas dezassete províncias da Grande Holanda . Em qualquer um
destes cenários, o compromisso da Grã -Bretanha com a manutenção do
governo do príncipe de Orange seria exposto como um embuste .
Por conseguinte, o governo britânico não pende para a guerra por
desej ar intervir na política francesa, por muito desagradável que sej a a
República . De facto, na véspera de Jemappes, Grenville estava inteligen­
temente convencido de que a pior coisa que os opositores do republica ­
nismo poderiam fazer seria promover uma guerra de intervenção que
daria infalivelmente azo a uma nova ronda de messianismo patriótico .
"Acredito sinceramente que o restabelecimento da ordem em França,
Simon Schama 1 CIDADÃOS

independentemente da forma que assumir, só poderá ser o culminar de


um longo percurso de lutas intestinas. " No entanto, para a manutenção
do equilíbrio de poder e da estabilidade da Europa, é imperativo que a
potência explosiva da desordem revolucionária sej a confinada à França.
Espantosamente, Jorge III parece ser da mesma opinião, tendo comentado
ao seu secretário dos Negócios Estrangeiros que "só a paz poderá conferir
permanência à Revolução Francesa, pois assim todos os E stados europeus
terão de reconhecer a nova República" . Em D ezembro, Grenville convida
a imperatriz russa, C atarina, a j untar- se -lhe na exigência da " retirada das
suas armas [francesas] para os limites do território francês, do abandono
das suas conquistas, da rescisão de quaisquer actos prej udiciais para outras
nações e da garantia pública e inequívoca da sua intenção de não mais
fomentarem problemas e agitação contra os Governos destas naçõe s " .
Dadas essas garantias, acrescenta ele, as potências "poderão comprome­
ter- se a abandonar medidas ou opiniões hostis à França" .
Todavia, n o dia 1 d e Janeiro, u m discurso beligerante proferido por
Kersaint, o herói naval da guerra americana, dá a entender que a
Convenção, longe de aceitar este tipo de pragmatismo defensivo, j á con­
sidera um conflito com o Império B ritânico desej ável e inevitável. O dis­
curso de Kersaint abunda em ilusões de fraternidade, imaginando os
"sans-culottes" irlandeses e ingleses à beira de uma insurreição. Tal como
B rissot insistiu um ano antes que os despotismos podres da Á ustria e da
Prússia seriam presa fácil, Kersaint diz à C onvenção que o poderio apa­
rente do Império B ritânico assenta nos alicerces frágeis e instáveis da
dívida pública e da colaboração de um punhado de banqueiros. A Grã­
-Bretanha é vulnerável no Sul da Índia e nas Caraíbas; o Parlamento é
capcioso, o primeiro-ministro é malvado, o rei é louco . Uma invasão cui­
dadosamente planeada será indubitavelmente acolhida com o entusiasmo
popular generalizado dos cidadãos britânicos, e "por cima das ruínas da
Torre de Londres [manifestamente considerada a Bastilha londrina] . . . a
França concluirá com o povo inglês libertado o Tratado que orientará o
desenvolvimento futuro das nações e estabelecerá a liberdade do mundo " .
Mas nem esta recriação messiânica d o tradicional patriotismo angló­
fobo francês é uma demonstração conclusiva para o governo britânico da
impossibilidade de manter negociações razoáveis com a França revolu­
cionária. Todavia, a execução de Luís XVI choca profundamente Londres.
Pitt chama - lhe " o acto mais vil e mais atroz a que o mundo alguma vez
assistiu " e Grenville escreve ao embaixador britânico na Haia dizendo­
-lhe que ao correr a notícia o público dos teatros exigiu a descida do
pano. Mais do que a repugnância moral sentida pela maioria da elite bri­
tânica, o que demonstra a inutilidade de toda e qualquer conversação é
o governo sentir que está a lidar com um fenómeno de incontida barbá­
rie e irracionalidade.
587

Resta uma única possibilidade, como Talleyrand observou a Grenville,


no dia 28 de Janeiro: que D umouriez conduza a sua própria política
externa, de forma independente, se necessário, da C onvenção. De facto,
D umouriez parece ter um apoiante no ministro dos Negócios
Estrangeiros, Lebrun. O embaixador francês em Londres, Chauvelin,
recebe instruções para dizer a Grenville e a Pitt que a promessa de "liber­
tação" contida no decreto aprovado pela C onvenção no dia 1 9 de
Novembro não é uma carta branca para insurreições. Apenas indica que
depois de se libertarem pelos seus próprios meios, esses "povos" poderão
razoavelmente esperar que a França vá em sua defesa. C ontudo, a ques­
tão aparentemente comezinha do Escalda torna-se o símbolo da intransi­
gência de ambas as partes . Os Franceses justificam a sua abertura à livre
navegação como um " direito da natureza" inegociável, os Britânicos vêem
no seu encerramento uma questão de cumprimento dos tratados interna­
cionais. E se os Franceses começam a modificá-los a seu bel-prazer, a
armarem-se em árbitros do que é ou não é permissível nas relações entre
E stados? Quando Hugues Maret chega a Londres com propostas de
D umouriez para uma pacificação negociada, Grenville entende que se
trata de uma táctica dilatória. No dia 1 de Fevereiro, antes de o enviado
conseguir explicar o plano, a Convenção declara guerra à Grã-Bretanha e
à República Holandesa.
Não é preciso muito tempo para se perceber a enormidade do erro . Na
eventualidade de uma guerra, D umouriez pretendia evitar a todo o custo
uma operação anfíbia complicada na Zelândia mas a sua rota preferida,
mais a sul, pelo B rabante holandês, é quase tão difícil, pois implica sitiar
as praças-fortes de Maastricht, Geetruidenberg e B reda antes de atraves ­
s a r os rios e entrar no Sul d a Holanda. Pior ainda, o dispositivo francês j á
se encontra sob grande tensão antes d a invasão d a Holanda . Os voluntá­
rios que responderam aos apelos patrióticos do Outono de 1 792 regressa­
ram a casa a seguir a Jemappes, reduzindo para metade a força efectiva do
exército. Explorando a pouca densidade das posições avançadas francesas,
os Austríacos e os Prussianos conseguiram cravar uma cunha entre os
exércitos do Mosela e do Reno, na Alemanha, e as forças principais de
Dumouriez, na B élgica.
C om Mainz sitiada, há demasiados imponderáveis (e demasiados aus­
tríacos e prussianos) para um avanço sistemático contra a República
Holandesa. No dia 2 6 de Fevereiro, enquanto D umouriez planta uma
árvore da liberdade na praça principal de B reda, depois de uma semana
de assédio, o general Miranda, a sul, foi travado frente a Maastricht, pode­
rosamente reforçada pelos Prussianos . No dia 1 de Março, Miranda é
informado de que um exército de quarenta mil homens - quase o dobro
do seu - atravessou o rio Roer, nas suas costas. Miranda levanta de ime­
diato o cerco a Maastricht e recua apressadamente . No dia seguinte, num
Simon Schama 1 CIDADÃOS

combate desorganizado, os seus voluntários são feitos em pedaços pelas


cargas da cavalaria austríaca . Os Franceses sofrem mais de três mil baixas,
entre mortos e feridos, os Austríacos quarenta .
Durante a semana seguinte, Dumouriez tenta reparar o que descreve
à Convenção com o eufemismo de un échec'º. Deixando a sua força expe ­
dicionária na Holanda, concentra-se em reforçar a posição defensiva de
Miranda e em tomar medidas drásticas para apaziguar os B elgas. Encerra
os clubes j acobinos, revoga os decretos revolucionários e escreve à
C onvenção uma carta plena de reclamações fulminantes. É o ensaio do
bonapartismo, mas é demasiado cedo para a França e demasiado tarde
para a B élgica. Tal como o bonapartismo, as políticas de contenção de
nada serviam sem sucesso militar. No dia 1 8, em Neerwinden, o exército
de Dumouriez não consegue desalojar os Austríacos das suas posições e
depois cede perante o seu contra-ataque. C om a força expedicionária a
tentar desesperadamente sair da Holanda, a posição francesa na Holanda,
a sul e a norte, desmorona-se em poucos dias .
No dia 2 3, Dumouriez enceta negociações com C oburgo para evacuar
a Bélgica na condição de o seu exército não ser atacado. O comandante
austríaco concorda com estes termos porque é evidente que Dumouriez
tenciona usar as suas tropas contra a C onvenção. No dia seguinte, com
poucos lamentos por parte da população nativa, os Franceses saem de
Bruxelas, e no último dia do mês atravessam a fronteira. Mas o pior ainda
está para acontecer. O general Beurnonville, o ministro da Guerra, que foi
enviado para a frente para investigar a conduta de Dumouriez, é detido
com os seus colegas comissários e entregue aos Austríacos. Nos primeiros
dias de Abril, Dumouriez tenta persuadir as suas tropas a passarem-se
para os Aliados e marcharem com eles sobre Paris. Os regulares podem
desconfiar da C onvenção e estar insatisfeitos mas não são traidores. No dia
5 de Abril, D umouriez, seguindo o exemplo de Lafayette, dirige -se a
cavalo para as linhas austríacas acompanhado por um punhado de oficiais
superiores, entre os quais o filho de Philippe-Egalité, o duque de Chartres,
futuro Louis -Philippe.
Quando a notícia da traição chega a Paris, parece confirmar as versões
mais exageradas da teoria da conspiração. Os jacobinos convencem-se de
que a expedição à Holanda foi concebida por D umouriez para entregar o
exército à Á ustria. Tal como sucedeu com a espúria bandeira branca has ­
teada nas torres da B astilha ou a pausa no tiroteio do Palácio das
Tulherias, verificou-se uma tentativa calculada de atrair os Patriotas para
a desgraça . Numa cultura revolucionária em que a própria aristocracia foi
estigmatizada pelo vício dos estratagemas e embustes, esta traição recente
parece uma sabotagem da quinta -coluna do Antigo Regime.

'º Em francês no original: um contratempo. ( N. d a R. )


589

Para os cépticos acerca do patriotismo de D umouriez, não const1tm


surpresa constatar que ele foi o responsável pela defesa militar da França
ocidental. É que na semana em que a tricolor cai na lama flamenga de
Neerwinden, o Departamento da Vendeia levanta -se numa insurreição
sangrenta contra a República.

II C O RAÇ Õ E S SAGRAD O S : A SUBLEVAÇ Ã O DA VENDEIA

A pequena cidade de Machecoul, com o seu mercado de cereais, situa­


-se a vinte quilómetros do Atlântico . No dia 1 1 de Março 1 7 9 3 , pouco
depois do alvorecer, Germain Bethuis, de sete anos de idade, é acordado
por um barulho seco e ribombante, como o som do mar enfurecido. Mas
o barulho não parece vir de oeste e sim de norte, da aldeia de Saint­
-Philibert. O som torna-se mais alto e ele fica assustado. Nos serões das
mulheres e das crianças que aj udam a passar as longas noites invernais,
algumas das aldeãs mais velhas fizeram profecias alarmantes de batalhas
e sangue que seriam anunciadas por nuvens agrupadas em formas sinis­
tras e tintas de tons sobrenaturais. Ao escru�inar as brumas matinais,
Germain j ulga ver uma dessas aparições, mais escura do que o nevoeiro e
avançando lentamente pelos campos em direcção da cidade . O pai, um
notário de trinta e dois anos e membro da administração distrital, ainda
está na cama quando o filho corre a despertá -lo. "Vem ali uma nuvem
preta e barulhenta, papá, vem na direcção da cidade ", diz ele. O sol quei­
mou o nevoeiro para revelar um enxame compacto de milhares de cam­
poneses armados com forquilhas, facalhões de esfolar, podões, foices e
muitas armas de caça. Nas palavras de Germain, "os seus gritos eram sufi ­
cientes para espalhar o terror" .
O pai corre a j untar-se a o punhado de guardas nacionais que s e reuni­
ram à pressa na rua principal e confrontam os três mil camponeses. Os guar­
das são quase todos homens mais velhos e rapazes, pois Machecoul
contribuiu com a sua quota-parte da conscrição militar exigida no âmbito
do plano da C onvenção, decretado no dia 24 de Fevereiro, de constituir um
exército de trezentos mil homens. A batida efectuada pelos recrutadores nas
aldeias do Sul do Anj ou desencadeou sublevações espontâneas por toda a
região. Em Machecoul, cabe ao idoso presidente da administração distrital e
director do colégio local, o Dr. Gaschinard, confrontar a assustadora multi­
dão. Pondo ao seu ar mais reitoral, ele profere, nas palavras de B ethuis, "um
discurso patético" ( " un discours pathétique" ) contra a violência. Diz que dará
aos camponeses, conforme lhe pediram, as chaves do campanário da igreja,
se eles prometerem não fazer mal aos habitantes da vila.
Porém, quando os sinos começam a tocar, a promessa torna-se impos­
sível de cumprir. O alerta trouxe a Machecoul camponeses das aldeias
Simon Schama 1 CIDADÃOS

X Principais batalhas
181 Campos vendeianos em Maio de 1 793

�O Km

vizinhas que transform.am a multidão numa turba tumultuosa.


Maupassant, o oficial que chegou a Machecoul para supervisionar o sor­
teio dos recrutas, diz aos guardas para se manterem firmes mas a maioria
debanda . Quando tenta trazer à razão os líderes da turba, é morto com um
golpe de pique no coração. A desordem torna -se incontrolável. As casas
de toda e qualquer pessoa identificada com a administração local são
saqueadas. Os homens encontrados no interior são arrastados para a rua
e severamente espancados ao som hallali! o grito dos caçadores quando
" ",

perseguem a presa . O padre constitucional Le Tort é arrastado da igreja e


golpeado na face com uma baioneta durante dez minutos antes de ser
morto . Mais de quarenta homens chacinados nas ruas e quatrocentos
levados para o convento calvariano como prisioneiros.
Durante algum tempo, o pai de B ethuis consegue fugir à multidão
escondendo-se em casa de um amigo, nos subúrbios. Aconselhado a fugir,
recusa a abandonar a família e quando adoece regressa a casa e mete -se
na cama . Pouco depois, j unta-se aos outros prisioneiros no cárcere impro ­
visado de onde são regularmente levados homens para j ulgamento e exe­
cução sumários . Formam-nos em cadeias com cordas que lhes passam por
baixos dos braços - os infames " rosários" -, arrastam-nos para os campos,
obrigam-nos a abrir uma vala e depois abatem-nos a tiro e eles caem
impecavelmente na sepultura. O médico Musset é colocado por duas
vezes na linha e por duas vezes perdoado, para ser executado num último
rosário. Desesperado com o seu destino, B ethuis atira-se da j anela de um
segundo andar e parte uma perna . A mulher implora ao comandante ven­
deiano, Charette, que deixe o marido ser visto por um médico - talvez
591

Musset. N o entanto, apesar d e Charette ter chegado a Machecoul para


impor alguma ordem nas brutalidades indiscriminadas que estão a ter
lugar, ele responde -lhe que " um homem destinado a morrer daqui a horas
não precisa de médico " .
B ethuis e mais d e quinhentos cidadãos de Machecoul perecem nos
massacres mais sangrentos perpetrados pelos rebeldes da Vendeia.
O nome da vila tornar- se-á sinónimo, na retórica republicana, da selvaj a ­
ria e desumanidade dos rebeldes, e a história d a Vendeia continua a pola­
rizar os historiadores e os leitores franceses de forma mais implacável do
que quase qualquer outro acontecimento da Revolução. O que chama
imediatamente a atenção do historiador não francês é a semelhança dos
horríveis acontecimentos de Machecoul com os actos de vingança vio­
lenta cometidos pelos republicanos . Tal como os massacres de S etembro,
as matanças começam com uma necessidade espontânea e incontrolável
de infligir um castigo público e brutal aos homens que simbolizam males
intoleráveis e ameaças imediatas, os estrangeiros no seio da cultura do lar
e da pátria. Tal como os massacres de S etembro, a erupção da fúria popu -
lar é rapidamente orientada, controlada e até enquadrada numa forma
jurídica espúria. Em Machecoul, o homólogo de Maillard é o procurador
Souchu, que preside à condenação à morte dos prisioneiros . A posição de
Charette é semelhante à de D anton: é o senhor da guerra/j uiz possuído de
autoridade para pôr fim aos assassínios mas pouco inclinado a fazê-lo - e
depois ser-lhe- á impossível.
A brutalidade da sublevação da Vendeia e da sua repressão resultou da
linguagem maniqueísta da guerra revolucionária. O "discurso patético" do
Dr. Gaschinard foi uma tentativa de fazer ambos os lados reconhecerem a
sua fraternidade enquanto Franceses. Todavia, eles j á estavam tão acostu ­
mados aos estereótipos de monstros e incarnações do mal que a razão per­
deu fatalmente para estas demonologias mútuas. Um mês antes da
sublevação, o tapeceiro Laparra, presidente do clube revolucionário local,
a Sociedade dos Amigos da Liberdade e Igualdade de Fontenay-le - C omte,
descreveu os padres refractários e os aristocratas como

um monstro de várias cabeças que assola a França . O golpe terrível que


haveis assestado [a execução do rei] eliminou a principal cabeça mas este
monstro que devora todo o universo ainda não morreu.

Instando a C onvenção a novas execuções exemplares, Laparra começa


a aquecer: " Desferi, desferi grandes golpes contra estas cabeças infames
que rasgam sem piedade o peito da própria mãe [a França] . . . deixai cair
sobre elas o machado vingador para que a morte destes antropófagos sej a
u m exemplo terrível para os seus cúmplices imbecis . . . atirai-os, atirai-os
do alto da Rocha Tarpeia . " Na sua óptica, um bom começo seria executar
S imon Schama 1 CIDADÃOS

dois dos comedores de homens na capital de cada departamento da


República.
De modo semelhante, os rebeldes da aldeia de Doulon anatematizam
os republicanos: "Mataram o nosso rei; expulsaram os nossos padres; ven­
deram os bens da nossa igrej a; comeram tudo o que tínhamos e agora
querem levar os nossos corpos . . . Não, não os terão . "
Quer na desumanização retórica d o inimigo, quer n a extrema feroci­
dade com que a guerra é travada, a Vendeia antecipa um ciclo de revoltas
camponesas . Sempre que os exércitos e comissários civis da Revolução
enfrentam um campesinato devoto e liderado por padres locais e prelados
poderosos, deparam-se com a mesma resistência obstinada. O que começa
na França ocidental em 1 7 9 3 repetir- se-á nos motins do movimento "Viva
Maria", no norte de Itália, nos sanfedisti calabreses e nas revoltas campe­
sinas belgas, todos em 1 799, e em E spanha, em 1 80 8 . Em todos estes
casos a autoridade do governo republicano está corporizada nos citadinos,
frequentemente praticantes de ofícios, e num minoria de políticos fervo ­
rosos cuj a retórica é duplamente estridente por se encontrarem isolados
em regiões hostis à sua doutrina .
No seu trabalho clássico sobre o pays des mauges, a sub - região dividida
pelo rio Layon, Charles Tilly viu o rio como uma fronteira topográfica mas
também social. A norte e a leste localiza-se o Val- Saumurois, uma região
próspera e de alguma densidade populacional, onde os agricultores e os
citadinos estão ambos interessados em aproveitar a legislação revolucio­
nária sobre a venda dos bens eclesiásticos. As taxas de alfabetismo são
mais altas e as práticas devocionais mais moderadas. A sobreposição de
campo e cidade é menos abrasiva . Num contraste agudo, a oeste e a sul,
as Mauges constituem um campo menos povoado, mais silencioso, com
arroios lamacentos e trilhos de carroças que abrem caminho pelas sebes e
matas densas. Nas poucas cidades da região, tais como Cholet e Chemillé,
os empresários têxteis exploram a necessidade de trabalho adicional dos
camponeses empregando -os como tecelões - os salários são baixos e as
condições de trabalho duras. Mais do que citadinos são, com efeito, cam­
poneses urbanos . Por conseguinte, em contraste com o Val - Saumurois, a
população rural das Mauges vê a cidade como exploradora e inimiga .
Inversamente, enquanto na região onde existe mais comércio os agri­
cultores e os burgueses fazem causa comum contra os nobres e a Igrej a,
que é riquíssima, nas Mauges e noutras sub- regiões da Vendeia propria­
mente dita, entre as quais o bocage arborizado e o Gâtiné, as linhas dese­
nham-se verticalmente e não horizontalmente, pondo em choque uma
cultura rural internamente coesa e um mundo urbano e externo, inves­
tido pela Revolução dos poderes do E stado. Neste mundo rural, a
nobreza local parece ter estado mais presente e sido menos detestada do
que noutras partes da França . Em 1 789, os tumultos violentos foram
593

pouco numerosos e dispersos. Dado o relativo isolamento das aldeias


umas das outras, a Igrej a e os seus curas exercem um papel despropor­
cionadamente mais influente . B aptizam, casam e sepultam, ensinam as
crianças, aj udam os enfermos e os pobres, e ao domingo oferecem o único
lugar onde os habitantes se podem reconhecer como comunidade.
Tal como Jean - Clément Martin sublinhou no mais recente e equili­
brado relato da revolta, houve outras partes de França onde a rej eição da
C onstituição C ivil foi tão veemente e generalizada como no Sul do Anjou
e na Vendeia . No entanto, em nenhuma destas regiões se combinaram do
mesmo modo os vários componentes que deram origem a uma subleva­
ção súbita e violenta . Na Flandres, na Picardia e em partes da Normandia,
por exemplo, as taxas de refracção foram muito elevadas. ( Nos oito distri­
tos do D epartamento do Norte, por exemplo, 1 90 clérigos fizeram o j ura­
mento e 1 0 5 7 recusaram -se . ) Paradoxalmente, as taxas de recusa foram
muitas vezes mais elevadas nas cidades do que no campo, onde os curas
congruentes eram mais prósperos com a Revolução do que com o Antigo
Regime. O mesmo se aplica ao Midi, onde as taxas de aceitação da
C onstituição C ivil eram de cerca de 8 0 % nas aldeias da Provença,
enquanto cidades inteiras como Arles permaneceram monárquicas e cató­
licas e só foram dominadas pela força militar. Na Alsácia e na Lorena, bem
como na Flandres e na Picardia, era também muito elevada a hostilidade
aos clérigos constitucionais, mas tratava-se de zonas de guerra, onde havia
grandes guarnições que puderam concentrar rapidamente forças suficien­
tes para impedirem os motins de se converterem em insurreições genera ­
lizadas. Mesmo na B retanha, onde as condições eram mais similares às da
Vendeia, a conj ura monárquica do marquês de La Rouerie foi cortada pela
raiz através da eliminação dos líderes e da utilização do poder punitivo
necessário para dissuadir quaisquer manifestações populares.
Pelo contrário, na Vendeia, os representantes urbanos da República e
do patriotismo jacobino viram-se à deriva num grande oceano de devoção
camponesa . Além do mais, tal como Dumouriez tentara dizer ao governo
em 1 792, a região estava muito mal defendida e seria vulnerável caso
ocorresse algum movimento de protesto importante . E sta complacência
torna -se ainda mais espantosa dado o facto de a região já ter dado indica ­
ções de insatisfação com distúrbios graves em C hallans e Cholet, em 1 79 1
e, em especial, em Châtillon e B ressuire, em Agosto de 1 79 2 . Mas existem
indicações de que as autoridades classificaram estes acontecimentos como
incidentes isolados, similares aos muitos tumultos rurais que eclodiram
em áreas da França onde a Revolução frustrou as expectativas de 1 78 9 .
N o Verão de 1 7 92, verificara -se uma nova onda d e revoltas camponesas
na Alta B retanha, em Quercy, no Sudoeste do Maciço C entral, e no inte ­
rior da Provença . Em todas estas regiões, o descontentamento fora provo­
cado pela incapacidade de os camponeses mais pobres aproveitarem a
S imon Schama 1 CIDADÃOS

venda de bens eclesiásticos. Em algumas zonas, foram derrubadas as


vedações que fechavam as terras comuns onde os animais pastavam, mas
noutras houve exigências de partilha das terras comuns pelas famílias
mais pobres da aldeia .
Mas estas queixas eram endémicas da vida rural do pays des petites cul­
tures. A elaboração dos cahiers, em 1 789, levara os agricultores mais
pobres, reunidos nas igrejas a ouvir os seus curas, a acreditar que as suas
vidas estavam prestes a ser transformadas por um acto mágico de j ustiça
social. Mas o que na realidade acontecera fora que a Revolução não só
invertera como também intensificara as diferenças entre as populações
rurais relativamente abastadas e as empobrecidas . A reacção oficial ao
aumento da fúria e da violência em 1 792 foi uma combinação típica de
concessões jurídicas simbólicas e repressão selectiva. Depois do derrube da
monarquia, a Assembleia Legislativa, nas suas últimas semanas de vida,
eliminou o programa complexo de pagamentos de compensação pelos
direitos senhoriais, estabelecido em 1 789, e aboliu os direitos . No entanto,
uma vez que os camponeses já tinham deixado de os pagar, a medida não
teve nenhum impacto nas rendas mais elevadas, com os quais os proprie­
tários continuaram a compensar-se. As desordens foram suprimidas por
companhias de guardas nacionais e pequenas unidades de regulares.
Nenhum destes distúrbios ameaçou evoluir para o tipo de insurreição
consertada que consumiu a Vendeia na Primavera de 1 79 3 . E sta região
também tinha a sua subclasse rural, mas os historiadores como Marcel
Faucheux tiveram de trabalhar no duro para fazer das queixas sociais o
factor determinante da adesão à revolta ( e Martin observou que muitos
dos tecelões explorados de Cholet se alistaram sob as cores republicanas e
não vendeianas) . Um dos aspectos mais notórios da rebelião foi a inclusi­
vidade social e os laços que uniram pessoas de grupos económicos muito
afastados. O Grande Exército C atólico e Real não foi exclusivamente cons­
tituído por camponeses que praticavam uma agricultura de subsistência,
contando também nas suas fileiras com lavradores e criadores de gado
abastados e com uma forte concentração dos tipos de aldeões - estalaj a ­
deiros, moleiros, carreteiros, ferreiros, etc. - , supostamente os represen­
tantes da Revolução no campo. O exército incluiu profissionais ligados às
comunidades locais, como os pescadores das aldeias perto de Paimboeuf
mas também barqueiros que sulcavam os pequenos rios e canais do paul
vendeiano . Carreteiros como o general vendeiano C athelineau e os
comerciantes itinerantes eram conhecidos em diversas comunidades. As
Mauges não eram conhecidas pelo seu isolamento atrasado, mas sim pelas
manadas de gado gordo que eram as preferidas do mercado de carne de
Paris, em S ceaux, e cuj os vaqueiros conheciam como as próprias mãos as
estradas principais e secundárias que conduziam a nordeste, ao Loire .
E houve nobres de ambos os lados da guerra. Embora os comandantes
595

nobres d o exército vendeiano, tais como d'Elbée e d e L a Rochejaquelein


sej am mais conhecidos, o comandante da Guarda Nacional de Mortagne
era o ci-devant sire Drouhet, um cavaleiro de São Luís que tinha comba­
tido na América com Lafayette . Em Sables-d' Olonne, o comandante mili­
tar das tropas republicanas era Beaufranchet d' Ayat, filho bastardo de
Luís XV e de Madame O 'Murphy, a modelo nua favorita de B oucher.
Em vez de procurar um padrão coerente de questões sociais que
"expliquem" uma revolta religiosa como sendo outra coisa qualquer, faz
mais sentido levar a sério o comentário do general Turreau: "É uma ver­
dadeira cruzada . " O clero de Anj ou e da Baixa Bretanha, no olho da tem­
pestade, era, como demonstraram as recentes investigações de Timothy
Tackett e outros, um dos menos pobres de França. Os curas congruentes
(assalariados) e os clérigos que viviam das dízimas eram mais abastados do
que os seus irmãos de muitas outras zonas da França. Um número signi­
ficativo possuía terras que lhes davam para produzir os seus alimentos e
uma modesta receita pecuniária, e o clero secular das vilas beneficiava
indirectamente das prósperas doações que tornavam as dioceses do Oeste,
em Luçon, Angers e Nantes, das mais ricas de França . Além disso, o facto
de a região de La Rochelle ter sido um dos últimos bastiões do protestan -
tismo independente do século XVII tornara -a alvo de intensas missões de
pregação católica . Por exemplo, os Missionários do Espírito Santo, funda­
dos por Louis Grignion de Monfort, no princípio do século XVIII, conse­
guiram implantar um ministério genuinamente popular e enérgico no
Oeste . Não admira, pois, que existisse um grau invulgar de solidariedade
transversal a toda a hierarquia da igrej a e um número muito inferior dos
curas rurais alienados que no Midi e nos campos normandos constituíram
candidatos naturais ao clero constitucional.
Também é de enorme significado o facto de uma percentagem muito
elevada do clero da França ocidental ser originária do campo. Dados o
estatuto elevado e a vida próspera da Igrej a, uma carreira eclesiástica
constituía uma ambição natural para qualquer garoto inteligente de ori­
gem camponesa . Muitos dos que eram ordenados depois de uma educa ­
ção seminarista nas cidades regressavam às suas aldeias ou, pelo menos, à
localidade onde tinham nascido, onde além de ministrarem às necessida­
des espirituais do seu rebanho, constituíam um pessoal indispensável para
as escolas e colégios e para o auxílio aos pobres e doentes . Por conse­
guinte, mais do que em muitas outras regiões, os padres da Vendeia
podiam declarar-se filhos da terra . Isto fez com que os clérigos constitu ­
cionais que os substituíram parecessem ainda mais estrangeiros. Eram
universalmente descritos na região como "intrusos" ou, de forma mais
coloquial, como "trutas" ou "trutões " . Na sua paixão pela defesa da terra
e do lar (e por tantas outras coisa s ) , os rebeldes vendeianos eram imagens
espelhadas dos sans-culottes que foram combatê -los. O problema é que
Simon Schama 1 CIDADÃOS

ambos os lados tinham uma opinião exactamente oposta de quem eram


os verdadeiros estrangeiros, sendo a sua eliminação a pré -condição para a
paz e para a liberdade.
A aplicação da legislação revolucionária sobre a Igrej a foi, pois, vista no
Sul de Anj ou, quase desde o princípio, como uma invasão. Muitos padres
que, em obediência aos princípios papais publicados por B oisgelin, se
negaram a fazer o juramento constitucional, quiseram abandonar os seus
postos. Muitos seguiram os seus bispos emigrando para E spanha ou para
mais longe, para a Irlanda e para a Inglaterra. A diminuição do número
de religiosos foi tão grande e tão rápida que algumas autoridades depar­
tamentais, por exemplo, no Maine e Loire, em Julho de 1 79 1 , pediram
aos padres refractários para se manterem nas paróquias caso não fossem
substituídos . C ontudo, este tipo de compromisso pragmático enfureceu
ainda mais os militantes jacobinos do lugar, que enviaram à legislatura,
em Paris, petições de denúncia de conj uras clericais e de exigência de que
fossem combatidas com medidas draconianas. O conflito agravou-se com
os decretos de deportação dos refractários, promulgados em 1 79 2 . Foi
autorizada a caça ao padre, com a Guarda Nacional autorizada a quebrar
fechaduras, a arrombar portas e a não deixar nenhuma peça de mobiliá­
rio de pé ( ou intacta ) . Os lares onde era efectuada uma captura eram obri­
gados a pagar os salários e as despesas dos executantes da busca . Escusado
será dizer, isto teve um efeito dramaticamente alienador numa população
que já estava enfurecida . No entanto, apesar das ameaças, muitos padres
foram escondidos em celeiros e palheiros ou em cabanas primitivas e até
em grutas nas profundezas dos bosques, onde os paroquianos lhes leva­
vam comida.
A par dos esforços para abrigar e esconder os padres refractários das
autoridades revolucionárias, muito se fez para tornar miserável a vida dos
"intrusos " . Em algumas paróquias, o novo cura chegava ao pórtico da
igrej a para ver o seu rival refractário de saída, traj ado com as vestes sacer­
dotais e levando consigo as pratas da igrej a e a congregação . Não era
invulgar que a resistência fosse liderada pelo presidente da comuna, um
homem que devia defender a lei. Muitos fingiam ter perdido as chaves da
igreja quando o novo cura chegava . As toalhas dos altares desapareciam
misteriosamente e o cura só conseguia obter toalhas limpas quando as
lavava ele próprio. Quando o relógio do campanário se avariava (e às
vezes os camponeses garantiam que tal acontecia ) não se encontrava nin­
guém para o reparar. O padre prestes a j urar necessitava frequentemente
do apoio de um pelotão de guardas nacionais que tinham de abrir cami­
nho por uma multidão que gritava "Ne jurez pas, ne vous damnez pas" (Não
façais o j uramento, não vos amaldiçoeis a vós mesmos . )
Depois de o s guardas s e irem embora, o " intruso" ficava sozinho e
tinha de suportar, o melhor que conseguia, os constantes tormentos, para
597

não falar no embaraço de uma igrej a vazia. O padre constitucional de


Melay é um certo Thubert, filho do presidente da câmara, um republi­
cano. Sempre que aparece em público, assobiam-no, apupam-no e dão­
-lhe pontapés. Pior ainda, queixa -se ele, o sacristão, além de se ausentar
da missa, subiu ao campanário para lhe atirar pedras . Toda a panóplia dos
ritos carnavalescos das aldeias, incluindo o enforcamento em efígie, é apli­
cada ao infeliz "trutão" . Numa destas representações, em Saint-Aubin, o
cura é retratado com cornos, como aj udante do diabo e corno da Igrej a .
Thubert passa as noites a ouvir pancadas n a porta, e noutras paróquias
uma música de latas e assobios estridentes garante a insónia do padre . As
igrej as ocupadas pelos intrusos são ritualmente profanadas com lixo no
interior ou com excrementos ou cadáveres depositados à porta . Em alter­
nativa, as mulheres podem assumir a liderança com actos ostentosos de
limpeza da poluição. Por exemplo, quando o parisiense Peyre é instalado
como cura em May- sur-Evre, surpreende -se ao ver as mulheres entrar na
igrej a atrás dele, limpando as pegadas. Noutras aldeias, as pias baptismais
são esvaziadas e enchidas de novo para não serem contaminadas pelas
mãos do infiel.
Finalmente, há a estratégia da recusa. A Revolução tornou o casa­
mento um acto civil mas, tal como sucede com os baptizados e os fune­
rais, existem formas religiosas que podem complementar o registo .
O clero refractário deixa bem claro que nenhuma destas cerimónias " cívi­
cas " tem validade para a verdadeira fé . Por conseguinte, os casais que se
submetem a um casamento cívico e a uma cerimónia abençoada por um
padre constitucional são considerados pela Igrej a como vivendo em
pecado . Do mesmo modo, a extrema -unção dada por estes homens é
declarada inválida como forma de absolvição. Nestas circunstâncias, a
recusa dos paroquianos a participarem nestes actos, além de uma
demonstração de ostracismo, prende -se também com a salvação das suas
almas. É frequente os padres refractários deixarem-lhes instruções preci­
sas sobre o que fazer na sua ausência. Os enterros deverão ter lugar nos
campos da aldeia, segundo as formas apropriadas. Se o padre constitucio­
nal descobrir a cerimónia, deverá ser fisicamente impedido de participar.
Alguns padres até deixam instruções para continuar a missa como se esti­
vessem presentes . Por exemplo, no seu último sermão antes de partir de
Saint-Hilaire -de-Mortagne, Mathieu Paunaud promete ao seu rebanho
que "rezarei convosco onde quer que a Providência me leve " . Mesmo que
a congregação se vej a privada de um "bom padre ", deverão reunir-se às
dez horas, como de costume, e dizer as suas falas na certeza de que, à
mesma hora, ele estará a orar com eles. São improvisadas capelas para a
missa nos esconderij os dos padres refractários ou em quintas isoladas,
com as j anelas cobertas com tecido, às quais os padres são cuidadosa­
mente escoltados.
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Dado este historial de resistência tenaz, não foi obviamente preciso


muito para que a Vendeia se inclinasse para uma violência mais concer­
tada. Em Janeiro de 1 79 3 , B iret, o procurador-síndico de Sables-d' Olonne,
no distrito marítimo, escreve aos administradores departamentais que
"quanto à moral, creio que a maior parte do povo, de longe . . . está cor-
rompida pelo fanatismo e pelos esforços dos inimigos internos . . . quanto à
política, estes indivíduos são igualmente incapazes de raciocinar. Para eles,
a Revolução não passa de uma longa sequência de inj ustiças das quais se
queixam sem saberem exactamente porquê". Naturalmente, a situação
agravou-se com a execução do rei. B iret informa que num aj untamento
em Sables, "Algumas pessoas atreveram-se a chamar 'bandidos' e 'patifes'
aos legisladores que condenaram o rei à morte" . Durante o mês de
Fevereiro, vão-se acumulando os relatórios dando conta de atitudes mais
descaradas: gritos de "Vivam os padres, a religião e o rei [agora, como é evi­
dente, o menino Luís XVII] ; morte aos Patriotas ! " .
O anúncio d o recrutamento transforma a fúria e o ressentimento
latentes em revolta declarada . É interessante descobrir, com Reynald
Sécher, que a Vendeia forneceu a sua quota -parte de recrutas a partir das
pequenas cidades . Talvez aqueles que, por ofício ou inclinação, já estavam
comprometidos com a República quisessem garantir que estavam arma­
dos para se defender ou, sensatamente, afastar- se para longe da região.
Sej a como for, a força simbólica do recrutamento - que ainda não era uma
conscrição mas um apelo aos voluntários, complementado com um sor­
teio caso necessário - é suficiente para gerar violência, uma situação agra­
vada na véspera, dia 6 de Março de 1 7 9 3 , pela decisão de encerrar todas
as igrejas que careçam de um padre constitucional.
A primeira fase da insurreição ocorre entre 1 0 e 12 de Março, com
multidões espontaneamente reunidas nas aldeias e nos burgos a atacarem
os gabinetes e residências de presidentes de câmara, j uízes de paz e pro­
curadores, bem como unidades isoladas da Guarda Nacional. O motim de
Machecoul repete-se, com consequências menos mortíferas, em Saint­
-Florent-le-Vieil, Sainte -Pazanne, Saint-Hilaire - de - C haléons e Clisson.
Muitos dos líderes que emergem nesta primeira onda de violência são, à
semelhança do couteiro e ex-soldado Stofflet, homens identificados há
muito nas suas localidades com a resistência às autoridades revolucioná ­
rias. Depois de expulsarem os seus inimigos e de se apoderarem das suas
armas, as multidões j untam-se umas às outras e avançam sobre as povoa­
ções maiores, engrossando ao longo das estradas.
Nesta altura, os motins da Vendeia não parecem diferentes dos outros
motins anti- recrutamento que estão a ocorrer em muitas outras partes da
França, do Calvados, na Normandia, à C ôte d'Or, na B orgonha, e a Puy­
-de-Dôme, na parte sul do Maciço C entral. Alguns dos piores tumultos
ocorrem a norte de Loire, na B retanha, mas nestes lugares o governo está
599

tão obcecado com a possibilidade de conspirações contra-revolucionárias


que dispõe de forças suficientes para actuar de forma rápida e decisiva
contra os centros de resistência. Em contraste, a Vendeia encontra -se peri­
gosamente desprovida de tropas. E m Challans, por exemplo, no dia 1 2 de
Março, há apenas duzentos guardas para fazer frente a mais de mil insur­
rectos . Quando chegam os reforços, os vários motins já se fundiram numa
insurreição geral. Além do mais, dos cinquenta mil soldados republicanos
que se concentram na Vendeia na terceira semana de Março, somente
uma pequena percentagem - talvez menos de dois mil - se compõe de
veteranos da "linha", o antigo exército real. Os outros são voluntários
inexperientes, deficientemente alimentados e equipados e muito receosos
dos rebeldes, o que é bastante grave na situação que enfrentam. Na
Primavera e no Verão de 1 79 3 , nenhum dos exércitos franceses mostra
tanta propensão para entrar em pânico e debandar como os " bleus" da
Vendeia. Talvez temam o destino dos republicados de Machecoul. A ver­
dade é que muitos deles estão dispersos em pequenas unidades de cin­
quenta ou de algumas centenas de efectivos, suficientemente grandes
para servirem de alvo aos rebeldes enfurecidos mas não suficientemente
substanciais para os aterrorizar.
Quando a República compreende a gravidade da situação, os rebeldes
já se apoderaram de muitos dos grandes centros urbanos, nomeadamente
Cholet, Chemillé e Fontenay-le - C omte . No dia 1 4 de Março, Stofflet j unta
forças com outro couteiro, Tonnelet, e com os homens que seguem o car­
roceiro/vendedor C athelineau. Não tendo conseguido persuadir as tropas
republicanas comandadas pelo cidadão-marquês de Beauveau a depor as
armas, os rebeldes subj ugam os "bleus" com uma grande barragem de
fogo, ferindo mortalmente De B eauveau .
Apesar deste sucesso inicial, afigura-se importante recrutar figuras de
autoridade da nobreza local, cuj a adesão aj udará a recrutar mais tropas
para a causa . Não se trata apenas de uma questão de estatuto, dado que
todos os que são abordados possuem uma experiência militar considerá­
vel que pode ser posta em prática à medida que o teatro de operações se
expandir. São enviadas delegações aos castelos e solares, onde têm com
frequência de ultrapassar os sentimentos ambivalentes da aristocracia
local face à possibilidade de êxito da revolta. De facto, o que é notável em
relação a muitos a ristocratas rurais ( exceptuando Henry de La
Rochejaquelein, de vinte e um anos de idade ) não é a sua paixão monár­
quica mas a sua moderação. Aqueles que conheceram os círculos emigra­
dos de C oblença regressaram enoj ados com o que viram. Outros, como
por exemplo, d'Elbée, foram partidários da Revolução e eleitores e depu­
tados pelo Terceiro E stado de B eaupréau e votaram pelo bispo constitu­
cional Pelletier, tendo sido apenas alienados pela legislação brutal sobre a
deportação. B onchamp, o outro comandante nobre importante, vai ao
Simon Schama 1 CIDADÃOS

ponto de dar um sermão aos rebeldes sobre a gravidade da sua conduta :


"Não sentis o horror da nossa posição? O que estamos a fazer? Guerra
civil. C ontra quem combatemos? Contra a nação da qual somos parte . "
O que motiva a aristocracia rural d a Vendeia é inquestionavelmente um
sentimento de patriotismo local, uma compressão dos sentimentos do pays
e da patrie. Aos seus olhos, os invasores são os emigrados e os "bleus". Para
a França se redimir, terá de o fazer através dos heróis locais, empenhados
na protecção do seu território contra os despoj adores. E ste entendimento
confere uma qualidade pessoal e paroquial ao seu comando . Idolatrados
pelas tropas, líderes como Charette, Sapinaud de La Verrie e d'Elbée são,
na realidade, patriarcalistas romantizados, uma versão setecentista dos
senhores da guerra baroniais. Cada um deles recruta os seus homens
numa região específica : B onchamp em Saint-Florent, Charette em
Machecoul e na região nantesa, a norte, d'Elbée na região de Mortagne e
La Rochej aquelein em B ressuire e Châtillon . Cultivam um sentimento de
clã que garante uma grande lealdade mas que funciona contra a coesão
necessária para que o exército vendeiano sej a mais do que uma confede­
ração efémera de bandos de resistentes .
Durante todo o conflito, ao contrário do q u e supõe a tradição histórica,
os padres não estiveram muito em evidência no campo de batalha. Estas
surpreendentes reticências tiveram excepções. As forças que tomaram
Cholet estavam sob o comando de Stofflet e do abade B arbotin. Outros
religiosos, tais como o abade B e rnier, Rousseau de Trémentines,
Chamuau de La Jubaudiere e Gruget de Saint-Florent tornaram-se figu­
ras importantes na conquista dos camponeses para a causa vendeiana, e a
natureza de cruzada da luta foi decerto realçada publicamente em todas
as oportunidades. Depois da conquista de Chemillé, B arbotin torna -se
"Esmoleiro do Exército C atólico" e passa a dar a absolvição em massa
antes dos combates. Os vendeianos cantam hinos e cânticos durante a
marcha, ostentam estanda rtes com a Virgem Maria à frente dos seus regi­
mentos e usam como emblema o Sagrado Coração encimado pela cruz.
Em finais de Março, é composta para as tropas uma contra- "Marselhesa",
que começa da seguinte forma:

Allons armées catholiques, le jour de gloire est arrivé


Contre naus de la République,
L'étendard sanglant est levé. . .
Aux armes poitevins, formez vos bataillons
Marchez, marchez, !e sang aux bleus,
Rougira nos sillons

Mas seria um erro imaginar o exército vendeiano como uma espécie de


horda religiosa primitiva. Algumas das conquistas dos primeiros centros
60 1

urbanos importantes, tais como C holet, foram efectivamente conduzidas


sem tácticas sofisticadas, com um grande número de infantes avançando
em ordem aberta entre colunas de atiradores especiais, com uma cavala ­
ria rudimentar e um ou dois canhões atrás. No entanto, no fim da pri­
meira semana de hostilidades, j á nasceu algo semelhante a um exército a
sério, dotado de munições deixadas nos depósitos pelos republicanos em
fuga . Alguns dos canhões maiores são baptizados, sendo o mais famoso o
Marie-Jeanne (os nomes das filhas do artilheiro que o operava ) , uma peça
temível cuj o efeito sobre o inimigo advém exclusivamente do barulho e
do fumo decorrentes das suas ocasionais detonações. Uma cavalaria de
mil e quinhentos a dois mil homens, mais calçada com tamancos do que
com botas, monta animais de todas as formas e tamanhos.
O maior trunfo dos vendeianos é o conhecimento que têm do seu
território. As suas tácticas são impressionantemente adaptadas ao ter­
reno no qual combatem . No B aixo Loire, por exemplo, usam barcos
patrulha armados para interceptar as munições e provisões enviadas às
guarnições republicanas. O s moinhos das colinas do bocage são usados
para transmitir mensagens a outras unidades movimentando as velas de
acordo com um código de comunicações. Por toda a região, os não com­
batentes, incluindo as mulheres e as crianças, participam no esforço
bélico mantendo as quintas a funcionar e fornecendo alimentos e ves ­
tuários aos soldados.
É um tipo de guerra que hoj e conhecemos bem mas para a qual o exér­
cito da República, especialmente as tropas retiradas dos campos de bata­
lha da B élgica ou do cerco de Mainz, não está minimamente preparado.
As tropas, uniformizadas e treinadas para operar em formações discipli­
nadas, ficam presas em guarnições isoladas a partir das quais podem con -
trolar as grandes cidades do perímetro da zona de guerra, mas são
incapazes de patrulhar o interior - onde cada bosque pode esconder uma
emboscada mortífera - ou distinguir nas aldeias quem é civil e quem é
combatente . Quinze anos depois, quando os generais franceses que com­
bateram na Vendeia descobrem, para sua consternação, as mesmas condi­
ções na guerra peninsular, em E spanha, referem-se-lhe como " la petite
guerre", que em espanhol se tornou guerrilla.
No entanto, não é este tipo de combate irregular que dá a entender à
C onvenção, em Paris, que está a braços com uma guerra interna. Os com­
bates de Cholet e Fontenay-le - C omte travaram-se em terreno aberto ou
nos campos e os vendeianos foram superiores em número e, frequente­
mente, em poder de fogo. Nas noites de 1 9 e 2 0, uma força de mais de
dois mil soldados, comandados pelo general Marcé, trava uma batalha de
seis horas nas margens do Grand Lay, a norte de C hantonnay. Ao ouvir
entoar a "Marselhesa", Marcé j ulga que está prestes a ser reforçado mas
trata-se de uma coluna rebelde que canta "Allons armées catholiques . . . .
"
Simon Schama 1 CIDADÃOS

O combate torna -se desigual e degenera numa debandada com os "bleus"


a fugirem em pânico para sul, para Sainte -Hermine e Saint-Hermand.
Toda a região da planície do Sul e dos pântanos vendeianos cai nas mãos
dos rebeldes, incluindo as cidades de Luçon, Fontenay e Saint-Hermand.
No dia 22, o desastre repete-se na extremidade norte da região, em
Chalonnes, quando trezentos "bleus" enfrentam quase vinte mil vendeia­
nos; debandam e deixam aos rebeldes a maior parte do seu equipamento
e dezoito canhões.
No princípio de Abril, quase toda a Vendeia, com a excepção da área
costeira do Norte mas incluindo a ilha de Noirmoutier, está nas mãos dos
rebeldes . Por conselho de Sapinaud de La Verrie, ex- oficial da guarda real,
é estabelecido um comando unificado e são eleitos comités de paróquia
para organizar a recolha de armas e vitualhas para as tropas. É impresso
papel-moeda com a imagem de Luís XVII, o menino - rei, em cuj o nome o
Grande C onselho da Vendeia publica éditos e decretos. Os rebeldes dis­
põem inclusivamente de um serviço primitivo de hospitais de campanha,
com farmácias e irmãs enfermeiras.
C omo sempre acontece com todos os exércitos irregulares e recruta ­
dos de forma espontânea, o problema mais difícil do exército vendeiano
é a manutenção da coesão, especialmente depois de atingido o obj ectivo
inicial de expulsar a autoridade republicana da Vendeia. Os comandan -
tes reconhecem que esta vitória será temporária se a sua base não for
reforçada com a conquista dos grandes centros urbanos e, em última
análise, com o derrube da República . A sua campanha pode ter come ­
çado como uma libertação da terra natal, mas depois de empenhados
numa guerra civil não há como evitar este obj ectivo estratégico mais
amplo. Porém, seguindo a mesma lógica, quanto mais se afastarem da
base, mais provável será que percam as vantagens especiais que ela lhes
conferiu. Inicialmente, em meados de Abril, sofrem alguns reveses sérios,
mas no princípio de Maio a capitulação forçada da guarnição de Thouars
entrega -lhes uma quantidade enorme de mantimentos e provisões.
Fontenay-le - C omte cai no fim de Maio e no dia 9 de Junho dá-se a
espectacular queda de S aumur. C ontudo, em vez de atacar para leste,
Charette concentra -se num cerco infrutífero a Nantes, no outro lado do
Loire .
Em finais de Maio, a posição dos rebeldes ainda parece formidável .
Derrotaram decisivamente os exércitos republicanos enviados contra
eles e implementaram os rudimentos de um E stado dentro do Estado.
Qual órgão de um potentado dirigindo -se aos lacaios de uma potência
estrangeira, o Grande C onselho publica uma " Mensagem aos
Franceses", escrita pelo abade Bemier. É ao mesmo tempo um manifesto
e um relato da Revolução notável pela sua eloquência e pelo modo
revelador com que vira contra a República a retórica revolucionária da
603

liberdade . Mais do que qualquer outro documento, consegue expressar


a profundidade e a simplicidade das convicções que desencadearam a
rebelião.

O Céu declarou-se pela mais sagrada e j usta d a s causas. O nosso sinal é o


sinal sagrado da cruz de Jesus C risto. C onhecemos o verdadeiro desej o da
França, é o nosso. É recuperar e preservar para sempre a nossa religião
santa apostólica e católica romana. É ter um Rei que sej a pai dentro e pro ­
tector fora . . .
Patriotas, nossos inimigos, acusais-nos de derrubar a patrie pela rebelião
mas fostes vós que, subvertendo todos os princípios da ordem religiosa e
política, primeiro proclamastes a insurreição como o mais sagrado dos
deveres. Haveis introduzido o ateísmo no lugar da religião, a anarquia no
lugar das leis, tiranos no lugar do Rei, que era nosso pai. C ensurais-nos o
fanatismo religioso mas as vossas pretensões à liberdade levaram aos casti­
gos mais extremos.

Na C onvenção Nacional, no meio da raiva e da consternação, B ertrand


B arere encolhe os ombros face à conduta daquela a que chama "l 'inexpli­
cable Vendée".

III "RELES MERCAD ORIAS",


MARÇ O-JUNHO

A segunda metade de Março assola a França republicana com uma


vaga de calamidades. Na mesma semana, a C onvenção recebe as notícias
de Neerwinden, de outro colapso militar perto de Lovaina, da abrupta
retirada de Custine para a Renânia e da sublevação da Vendeia . Relatório
após relatório falam em exércitos republicanos que se dissolvem ao con­
tacto com o inimigo (especialmente na Vendeia ) , em voluntários desmo ­
ralizados e desordeiros que des ertam ou debandam, na tricolor
espezinhada na lama . Quando Delacroix regressa da frente belga, traz
consigo um pessimismo tão profundo e negro como o das semanas que
antecederam Valmy. As tropas francesas recuaram para Valenciennes e se
a fortaleza cair, avisa ele, não haverá nada entre os exércitos aliados e
Paris. Para muitos deputados, não apenas para os da Montanha, só pode
haver uma explicação para a miserável sucessão de desastres: a conspira­
ção . Os comissários presentes no exército derrotado do general Marcé, na
Vendeia, acusam-no da "inaptidão cobarde" ou, pior ainda, de "traição
cobarde " . O filho, o seu número dois, Verteuil, e outro Verteuil que se pre­
sume ser o seu filho (mas que é um parente distante ) são presos por esta ­
rem "em contacto traiçoeiro com o inimigo " . B arere, que detecta os sinais
Simon Schama 1 CIDADÃOS

inconfundíveis de uma vasta conj ura contra-revolucionária, quer Marcé


julgado por tribunal marcial em La Rochelle. Lanj uinais, o qual, à seme ­
lhança de Rabaut Saint-Etienne, é um sobrevivente dos Estados Gerais
convertido em republicano, exige que os aristocratas e refractários que
estão a contaminar a patrie sej am implacavelmente desentocados.
C onfrontada com este desmoronamento militar, a C onvenção, com
muito poucas excepções, reconhece que tem de reforçar os poderes do
Estado . Sem um executivo eficaz e uma cadeia de comando coerente, a
França será despedaçada por forças centrífugas. Pela primeira vez desde o
princípio da Revolução, a legislatura prepara -se para criar órgãos fortes de
autoridade central, autorizados a trabalhar pela República sem as inter­
mináveis consultas ao "órgão soberano" . No dia 6 de Março, a Convenção
envia oitenta deputados ( conhecidos, a partir de Abril, por "representan­
tes em missão " ) aos departamentos para garantir o cumprimento da von­
tade do governo central. Eles são a versão revolucionária dos antigos
intendants reais, corporizações itinerantes da soberania. Uma grande parte
do seu trabalho prende -se com questões judiciais e punitivas . No dia 1 1
de Março é estabelecido, em Paris, um Tribunal Revolucionário especial
para j ulgar os suspeitos de actividades contra -revolucionárias. Em 20 de
Março, a pensar nas rebeliões da Vendeia e da B retanha, a C onvenção
aprova a proposta de C ambacéres de conceder aos tribunais militares
jurisdição sobre toda a qualquer pessoa que desempenhe funções públicas
( incluindo o clero e os nobres ) que seja descoberta com o cocar branco
monárquico ou a fomentar a rebelião . Caso sej am culpadas, deverão ser
fuziladas em vinte e quatro horas. D ecorrido um dia, todas as comunas do
país estão equipadas com comités de vigilância e todos os cidadãos são
encorajados a denunciar quaisquer suspeitos de lealdades incertas . C omo
seria de esperar, a lei torna-se rapidamente carta branca para inúmeras
vinganças pessoais .
Finalmente, no dia 6 de Abril, é decidido substituir o C omité de D efesa
Geral, um órgão de vinte e cinco membros formado em Janeiro para
coordenar os trabalhos dos vários comités da C onvenção. S erá substituído
por um comité de apenas nove membros, com o nome de C omité de
Salvação Pública . E ste comité, que será, como sabemos, o órgão crucial do
Terror não é proposto por nenhum jacobino mas sim por Isnard, e muitos
girondinos aceitam a sua indispensabilidade ( mas não Vergniaud, que o
compara desfavoravelmente com a Inquisição veneziana ) . Porém, no
princípio, tanto o C omité como o Tribunal Revolucionário merecem a
desconfiança de Robespierre como instrumentos burocráticos de uma
ofensiva girondina contra a Montanha.
" S ej amos terríveis para que o povo não tenha de ser", diz Danton à
C onvenção ao defender o estabelecimento do Tribunal Revolucionário.
Com a memória dos massacres de Setembro ainda fresca, o argumento é
605

poderoso . A República tenta conseguir algo que fugiu a todos os regimes


anteriores desde que B rienne não conseguiu implementar as suas refor­
mas: a reconquista, pelo Estado, do monopólio da violência autorizada .
Para tal, é necessário fazer várias coisas. Primeiro, como Danton reco­
nhece, é essencial que o Estado tome em mãos os poderes punitivos
necessários para saciar a sede generalizada de símbolos de conspiração.
D eve estar preparado para fazer uso desses poderes, em público e de
forma inequívoca, se se quiser negar presas às turbas linchadoras e aos
bandos de assassinos improvisados. Em segundo lugar, é preciso pôr fim
ao facciosismo interminável que possibilitou por diversas vezes que o
governo fosse ultrapassado por um grupo insatisfeito que apelou à rua e
às secções. Ao regressar da frente, em Março, Danton tem a coragem de
defender Dumouriez do seu número crescente de detractores e de apelar
à Convenção a que evite uma guerra interna entre os girondinos e a
Montanha, que resultaria inevitavelmente na diminuição do seu próprio
poder.
Esta reorientação das energias revolucionárias é de sobremaneira
urgente porque no Inverno e no início da Primavera de 1 79 3 , a República,
além de reveses militares, enfrenta outra ameaça disruptiva sob a forma
de uma aguda crise fiscal e económica. D esta vez, não foi provocada pelas
condições meteorológicas. Pelo contrário, a República vê-se confrontada
com uma verdade perturbadora . A Revolução começou com uma crise de
incapacidade fiscal mas o novo regime não está mais próximo de resolver
os seus problemas do que o antigo; talvez estej a até mais longe, por causa
da sedução dos paliativas a que recorreu. A venda dos bens da igrej a
começou a ficar suj eita à l e i d o s rendimentos decrescentes, principal­
mente porque a emissão de papel-moeda que tornou possível se revela
tanto uma bênção como uma maldição. A verdadeira crise de 1 79 3 é um
fenómeno para o qual a época ainda não tem um termo descritivo : infla­
ção. A substituição dos antigos impostos directos da monarquia por um
imposto único sobre a propriedade, o impôt foncier, resultou em perdas
enormes para o Tesouro . Além disso, os sucessivos governos revolucioná­
rios negaram-se o tipo de procura dedicada de receitas que tornara tão
infames os rendeiros fiscais, e as " contribuições patrióticas" nunca estive ­
ram perto de compensar os défices e dívidas em atraso que são constan­
temente reportados nas receitas públicas.
Por conseguinte, a única possibilidade de financiar a guerra foi através
de uma expansão dramática das emissões de assignats. Dado que os forne­
cedores militares e alguns regimentos só aceitavam pagamentos em moeda
metálica, o desgaste das reservas tornou -se enorme, levando ao aumento
do ritmo de emissão de papel-moeda para compensar a quebra. Por sua
vez, isto surtiu um efeito adverso na economia doméstica porque com a
queda do valor nominal do papel-moeda, os fornecedores de produtos e
Simon Schama 1 CIDADÃOS

serviços ( tais como os lavradores) tornaram-se relutantes em transaccio­


nar os seus activos por dinheiro depreciado. Por sua vez, a diminuição da
oferta fez disparar o preço dos produtos. No princípio de 1 7 9 3 , as barras
de sabão, que custavam doze soldos em 1 790, vendem-se por vinte e três
ou vinte e oito soldos . Não admira que a C onvenção receba uma delega­
ção de furiosas lavadeiras (um grupo poderoso em Pari s ) , no dia 23 de
Fevereiro, que exige o estabelecimento de preços oficiais. Mais preocu ­
pante ainda é o que se passa com os comestíveis, as velas e a lenha. O açú ­
car não refinado, que custava doze soldos por libra em 1 790, sobe para
mais do triplo; o preço do café subiu de acerca de trinta soldos para qua­
renta. No dia 25 de Fevereiro, as mercearias e drogarias de Paris sofrem
uma invasão de multidões enfurecidas, que começa em algumas das sec­
ções mais pobres, tais como Gravilliers e Lombards, mas que rapidamente
se estende a quase todas as partes da capital. De acordo com as práticas
tradicionais destas taxations populaires, as multidões não saqueiam as lojas
mas impõem aos retalhistas o que consideram ser preços j ustos, geral­
mente cerca de 40 % do valor de mercado. C ontudo, uma vez que tiveram
de pagar preços inflacionados aos grossistas e distribuidores, são os loj is ­
t a s que suportam as perdas, c o m o eloquentemente informam a
C onvenção.
Os motins das mercearias são veementemente denunciados por todos
os partidos da C onvenção. Marat considera a sua concentração no que
descreve como "bens de luxo" - o café e o açúcar - como prova de uma
conj ura aristocrática . Robespierre censura os amotinados por rebaixarem
o valor sagrado da insurreição orientando -a para "reles mercadorias" . Mas
embora alguns dos seus membros, tais como Saint-Just, compreendam as
causas inflacionárias das desordens, a C onvenção parece impotente para
as corrigir. A Revolução mudou a França muito menos do que frequente ­
mente supomos, e uma das esferas nas quais não fez melhor do que a
monarquia foi o modo no qual as exigências de curto prazo controlaram
a racionalidade fiscal de longo prazo. A crise de subsistência obriga o
governo a financiar toda a espécie de subsídios, desde o preço do pão em
Paris (meio milhão de francos por dia no princípio de 1 79 3 ) aos progra ­
mas de assistência pública herdados do "campo dos federados" de 1 79 2 .
Para cobrir estes custos, a Caisse d'Escompte " empresta" espuriamente ao
governo fundos que, na verdade, são fruto de novas emissões de papel­
-moeda, o que vem agravar o problema.
Estes problemas vêem-se agudizados pelo súbito colapso do esforço de
guerra . Ao ocupar a B élgica e a Renânia, o governo revolucionário
encontrara finalmente a maneira de financiar a política militar: a extor­
são. Não era muito revolucionário e contradizia as abundantes promes ­
s a s de liberdade e felicidade levadas às nações escravas p e l o Povo e m
Armas . P o r outro lado, dizia -se, porque n ã o deveriam os libertados pagar
607

a sua própria emancipação, garantida com o sangue e as armas franceses?


Foram impostas "indemnizações" gigantescas a todos os territórios con­
quistados a título de preço da libertação, e aceites pelos governos revolu ­
cionários "livres" instalados depois da ocupação. No princípio de 1 79 3 , esta
expansão que se autofinancia - e que será a regra durante os vinte anos
seguintes - parece oferecer uma saída dos constrangimentos perenes da
política externa francesa. De facto, se a expedição de Dumouriez ao Norte
da Holanda pareceu uma ideia tão boa foi por causa da interessante pers­
pectiva de ordenhar a supergorda economia holandesa. Robespierre - que
sempre desconfiara da aventura - fixou o preço de uma revolução holan­
desa no simpático número redondo de cem milhões de libras francesas.
Todas estas alegres expectativas vão desastrosamente por água abaixo
quando a expansão da frente entra em marcha -atrás. Em vez de acumular
activos, a República vê-se de súbito confrontada, no interior das suas pró­
prias fronteiras, com uma emergência militar que só pode ser financiada a
partir de recursos domésticos . Naturalmente, a reacção imediata é uma
nova e gigantesca emissão de papel. Além dos quatrocentos milhões de
assignats já impressos desde Outubro, são autorizados oitocentos milhões.
Além disso, o tecto de circulação é aumentado para três mil e cem milhões .
É claro q u e esta medida surte o efeito previsível d e acelerar a depreciação,
pelo que na altura dos motins de Fevereiro o papel-moeda já perdeu 5 0 %
d o s e u valor nominal. Os fornecedores ficam ainda mais relutantes em
vender os seus produtos e a espiral inflacionária ameaça descontrolar-se.
E sta possibilidade constitui um perigo inequívoco para a estabilidade
da nova República . Verificam-se desordens graves no campo, entre os
pobres que nada ganharam com a legislação revolucionária . No B eauce e
na B orgonha, as barcaças e as carroças carregadas de cereais são assalta ­
das. Nas cidades, os consumidores assistem a aumentos dramáticos dos
preços dos produtos alimentares básicos. Em finais de 1 792, em resposta
à ameaça de desordens numa escala inédita desde 1 789, a C onvenção
debate a possibilidade de regressar às políticas de regulação económica de
curto prazo praticadas pela monarquia. Alguns argumentam que a dou­
trina do comércio livre de cereais poderá ter de ser modificada para garan­
tir uma oferta fiável e a preços que não provocassem tumultos . Porém,
Roland, o ministro do Interior, opõe-se peremptoriamente a toda e qual­
quer interferência no mercado, sej a qual for o custo, preferindo aplicar a
força repressiva do governo a quem se atrever a desorganizar ou contro­
lar os mercados através da violência . Esta posição merece o apoio de uma
sucessão de oradores girondinos e de Saint-Just, que a 29 de Novembro
profere um discurso caracteristicamente perspicaz sobre a relação entre a
disponibilidade de dinheiro e o aumento dos preços . " O comércio livre",
reitera ele, é a "mãe da abundância", mas avisa que a misere, tal como
pariu a Revolução, também a pode destruir.
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Saint-Just e Robespierre estão plenamente de acordo neste último


ponto mas diferem consideravelmente na resposta a dar à crise . O j ovem
político ( cuj as declarações sobre economia demonstram um entendi­
mento dos seus mecanismos muito mais impressionante do que algo que
o seu mentor alguma vez disse ) está primeiramente interessado em res­
tringir a oferta de dinheiro . Robespierre está empenhado em comprome­
ter a República com uma forma de igualitarismo social que sej a o
equivalente económico do reinado da virtude que ele pretende criar na
política. No dia 2 de Dezembro, Robespierre delineia as bases de um
" direito de subsistência" que assume rapidamente o estatuto de doutrina
na retórica j acobina . Na sua opinião, os direitos de propriedade não são
ilimitados. De facto, só o excedente da subsistência total necessária a toda
a sociedade pode ser legitimamente dedicado ao comércio. Quanto aos
que abusam deste axioma ganhando dinheiro com a exploração directa da
subsistência, estão a cometer um crime . "Porque é que as leis não travam
a mão homicida do monopolista como a do vulgar assassino?", pergunta
Robespierre .
Mas os j acobinos ainda não estão preparados para converter este igua­
litarismo punitivo em doutrina oficial. No leilão do apoio popular de
Paris, perdem a licitação para um grupo de oradores e políticos conhecido
por enragés, um termo que apenas denota zelo revolucionário. Duas figu­
ras deste grupo são de particular importância: Jacques Roux e Jean
Varlet. Roux é o vigário da paróquia de Saint-Nicolas -des - Champs, uma
das mais pobres de Paris, um aglomerado de prédios e de apartamentos
águas-furtadas onde, no Inverno de 1 79 3 , os carregadores dos mercados,
os aguadeiros e os trabalhadores da construção desempregados procuram
sobreviver a uma fome gélida . Em Maio de 1 7 9 2 , Roux publicou um
sermão intitulado " O s meios para salvar a França e a liberdade " no qual
uma forte dose de igualitarismo social e de ataques aos ricos egoístas se
combinou com exigências firmes de punição dos traidores . Talvez tenha
sido o seu zelo nesta última causa que o levou, enquanto representante
da Comuna durante os últimos dias de Luís XVI, a ter as atitudes muito
pouco cristãs de negar ao rei um dentista para tratar de uma dor de den­
tes, e de recusar entregar o seu testamento à família .
Suspeito, mesmo entre as figuras mais militantes da C omuna, tais
como Chaumette e Hébert, de ser um fala-barato, Roux transmite uma
mensagem de grande simplicidade . A Revolução foi explorada pelos espe­
culadores para os seus fins egoístas e o povo tem tanta fome como teve no
antigo regime . Chegou a altura de declarar guerra a estes traidores eco­
nómicos . Os monopolistas, os açambarcadores e os especuladores devem
ser punidos com a morte, e se o governo se negar a instituir estas penas,
o povo deverá desencadear uma nova ronda de massacres contra as "san­
guessugas" . Em termos mais positivos, o governo deve, como parte das
609

suas actividades de rotina, cumprir a sua obrigação de fornecer trabalho e


subsistência a preços que o povo possa pagar.
Esta mensagem é praticamente a de Jean Varlet. Tal como os historia ­
dores nunca se cansam de observar, este auto-intitulado amigo dos pobres
é um j ovem abastado que vive de uma herança . No entanto, o radicalismo
raramente é determinado pela origem social. Em 1 7 9 3 , a maioria dos mili­
tantes das secções de Paris não se compõe de operários mas sim de mem­
bros dos ofícios e de - alargando caridosamente o termo - intelectuais:
advogados, artistas, impressores, dramaturgos, actores e j ornalistas .
Porém, o facto d e não serem necessitados não obsta ( embora não garanta )
à sinceridade das suas convicções. No caso de Varlet, estas são especial­
mente coléricas. O que eles querem é essencialmente sangue e pão; o pri­
meiro deverá garantir o segundo, tal como em 1 78 9 se acreditou que a
liberdade melhoraria as hipóteses de não se passar fome .
Negando tanto os Jacobinos, onde não é bem-vindo, como a
C onvenção como fóruns para os seus apelos à insurreição contra os ricos,
Varlet leva uma tribuna portátil para o Terrasse des Feuillants, mesmo ao
lado da C onvenção . À medida que sobem os preços nas loj as, o seu
público torna-se maior, dado que ele se especializa em contrastes invej o ­
s o s entre os "egoístas ricos", cujos lucros especulativos lhes permitem
nadar no luxo, e o bom sans-culotte, que vive do suor do seu rosto . No
evangelho social de Jacques Roux, o sans-culotte assume uma santidade
quase apostólica na qual a humildade e a compaixão se aliam ao espírito
público e à firmeza. Enquanto o capitalista e o grande negociante estão,
por definição, sempre à beira da traição ou são culpados dela, o artesão
modesto é epítome do patriotismo abnegado. Em pelo menos uma gra­
vura anónima que santifica o sans-culotte ( inspirando -se na tradição icó­
nica de São Jerónimo ) , o trabalhador partilha a refeição frugal com os
seus animais de estimação enquanto o seu pique permanece pronto para
a acção encostado à parede atrás dele . Outras estampas glorificam a devo­
ção do sans-culotte à sua família, retratando o lar na harmonia da mesa ou
lendo uma edificação política, preferivelmente de Rousseau.
Os historiadores têm frequentemente classificado os enragés como fala­
-barato e pesos pluma cujas ideias só ganharam substância quando foram
finalmente adoptadas pelos j acobinos no Verão de 1 79 3 . Mas embora Roux
e Varlet e os restantes enragés não possam propriamente ser qualificados de
pensadores políticos profundos e muito menos como tácticos revolucioná­
rios de sucesso, os seus preconceitos correspondiam estreitamente a mui­
tas das razões pelas quais o povo comum abraçara a Revolução . Queriam
paternalismo em vez de liberalismo económico, regulação dos preços em
vez de mercado livre e, acima de tudo, o castigo público dos exploradores.
No dia 1 1 de Fevereiro, uma delegação de sociedades populares exige uma
sentença de seis anos a ferros para quem tentar vender um saco de trigo
Simon Schama 1 CIDADÃOS

de 1 2 0 quilos por mais de vinte e cinco francos e a pena de morte em caso


de reincidência. Este tipo de castigo draconiano para a exploração agra ­
dava enormemente aos sans-culottes.
E os enragés não estão dispostos a ficar- se por acusações generalistas.
Pelo contrário, patrocinam nos clubes e assembleias das secções um
movimento para incriminar os girondinos como responsáveis por todos
os males que afligem a República. Os girondinos estão por detrás das
conspirações que levaram à derrota militar; são os patronos de
Dumouriez, que está a vender a patrie; negam -se teimosamente a con­
templar quaisquer medidas de intervenção, tais como um maximum para
os preços que possa aliviar o sofrimento dos pobres. Tentaram proteger o
traidor C apeto para cobrirem os vestígios dos seus míseros conluios com
ele antes de 1 0 de Agosto . Frustrados no seu hipócrita " apelo ao povo "
na matéria da sentença, continuam a conspirar para entregar a
Revolução a uma confederação de generais aristocratas . S endo assim,
a primeira condição para um verdadeiro reinado dos j ustos e dos virtuo­
sos é a excisão dos girondinos do corpo político. E Varlet tem uma lista,
que é subscrita por algumas das secções mais militantes de Paris - tais
como Gravilliers ( na paróquia de Roux) e Mauconseil -, de vinte e dois
membros da C onvenção cuj a detenção ele declara ser uma questão da
mais elevada emergência pública .
Sozinhos, os enragés teriam sido impotentes para fazer mais do que
insurgirem-se contra os seus inimigos. No entanto, em Março de 1 79 3 ,
eles j á conseguiram influenciar os seccionistas mais militantes, os quais
têm vindo a estabelecer um centro de poder concorrente na C omuna.
A Revolução demonstrou, em Paris, uma capacidade aparentemente
imparável para gerar estes centros alternativos de organização insurrecta
logo que os anteriores são cooptados para as instituições de governo local.
Tal como a Comuna Revolucionária foi organizada contra as autoridades
oficiais da Câmara Municipal, em 1 792, e as substituiu pela força, os líde­
res das sociedades populares e das secções começam a reunir-se no
Arcebispado - o antigo palácio do arcebispo de Paris, próximo de Notre
Dame. De reuniões informais, estas sessões evoluem para uma ligação
regularizada de delegados das zonas mais militantes de Paris - Quinze ­
-Vingts, Popincourt, D roits de l'Homme . Enquanto a crise económica per­
manecer aguda e a guerra correr mal, existe sempre a possibilidade de
mobilizar homens armados suficientes para ditar condições a uma legisla­
tura indefesa.
Mas primeiro é necessário persuadir as tropas de choque de que neces­
sitam de outra "j ornada" e de que os seus interesses vitais estão a ser
ameaçados pelos conspiradores, e a relutância da Montanha em apoiar
qualquer ameaça à " representação nacional " também tem de ser ultra ­
passada . Varlet e o comité do Arcebispado acreditam prematuramente que
61 1

estas condições estão reunidas em meados de Março . Nos dias 9 e 1 0, ten­


tam organizar um movimento armado que esmorece depois de destruir as
prensas dos dois j ornais girondinos mais importantes, o Patriote Français de
B rissot e o Annales Patriotiques de Carra (um feito que não deixa de ser
alarmante) mas o movimento falha em dois obj ectivos cruciais . A imposi­
ção da purga dos vinte e dois appelants (os que pediram que a sentença do
rei fosse submetida ao voto popular) e a libertação dos detidos pelos
motins das mercearias de Fevereiro . No entanto, tem êxito em pelo menos
um aspecto : polariza de tal forma a C onvenção entre girondinos e
Montanha que os apelos de D anton à unidade face ao perigo comum para
a patrie são inevitavelmente ignorados.

IV SATURNO E O S SEUS FILHOS

No dia 1 9 de Março, Pierre Vergniaud dirige -se à tribuna e profere um


discurso que, mesmo pelos seus padrões, é notável pelo seu poder retó ­
rico e coragem política . D epois das denúncias da praxe sobre maquina­
ções aristocráticas através das quais a anarquia está a trabalhar por conta
da contra- revolução, ele deplora o facto de os condenados pela violência
nos motins de Fevereiro terem sido amnistiados. Quando as leis são des­
cartadas por medo da intimidação, " é um grande feito para os inimigos da
República terem assim pervertido a razão e desprezado todas as ideias de
moralidade " . D e seguida, Vergniaud faz uma célebre e terrível profecia.
"Por conseguinte, cidadãos, é de recear que a Revolução, qual Saturno
devorando os filhos, acabe por gerar somente despotismo com as calami­
dades que o acompanham. "
A C onvenção, diz ele, está brutalmente dividida entre dois partidos
com visões antagónicas para a França . " Uma parte dos seus membros viu
a Revolução terminada no momento em que a França foi constituída
como República . A partir daí, entendeu que o movimento revolucionário
devia ser travado para dar ao povo tranquilidade e fazer leis que permi­
tissem a Revolução vingar. Outros membros, pelo contrário, alarmados
com os perigos com que a coligação dos tiranos nos ameaça, acreditaram
ser importante para a energia da nossa defesa manter toda a efervescên­
cia da Revolução . "
Vergniaud fala durante algum tempo como s e visse o s méritos de
ambos os pontos de vista mas está apenas a construir uma denúncia tre ­
menda da violência sectionnaire e, em particular, do vandalismo de 1 O de
Março . C ontinuando com o tema girondino dos punhais apontados à
" representação nacional" pela ilegalidade incontida das turbas de Paris,
ele caracteriza os seguidores das secções como " ociosos, homens sem tra­
balho, desconhecidos, muitas vezes estranhos à secção ou mesmo à
Simon Schama 1 CIDADÃOS

cidade . . . ignorantes, grandes proponentes de moções" apaixonados com o


som da sua voz, homens facilmente corrompidos para más causas. Quanto
ao comité revolucionário central que organizaram, " que revolução pre ­
tende fazer, agora que já não existe despotismo? . . . Quer derrubar a pró­
pria representação naciona l " . Vergniaud vai ao ponto de nomear
especificamente alguns indivíduos: o polaco Lazowski, cuj o nome con­
funde para o tornar ainda mais estrangeiro, e Desfieux, a quem acusa de
ser bem conhecido na sua cidade de Bordéus por "todo o tipo de vigarices
e falência s " .
Durante o discurso, muitas vezes interrompido p o r gritos d e " Calúnia ! "
por parte da Montanha, torna -se claro que o que enfureceu verdadeira ­
mente Vergniaud foi a destruição das imprensas girondinas e as tentativas
continuadas de amordaçar as opiniões que dissentem dos j acobinos ou das
sociedades populares. Vergniaud compara a turba que esmagou as
imprensas com os fanáticos muçulmanos que incendiaram a biblioteca de
Alexandria, j ustificando a sua proeza com o argumento de que os livros
só podiam ser sobre o Alcorão ou sobre outra coisa qualquer: no primeiro
caso, eram redundantes; no segundo, eram perigosos. O tipo de liberdade
que estava a ser imposto na República era a tirania da bandalheira, a liber­
dade da força bruta. Quanto aos gritos de igualdade, lembram-lhe, diz
Vergniaud, "o tirano da Antiguidade [Procrustes] , em cuja cama de ferro
as vítimas eram mutiladas quando demasiado grandes para as suas medi­
ções". Debaixo de uma tempestade de apupos e assobios, Vergniaud acres­
centa que " este tirano também amava a igualdade, e é esta a igualdade dos
patifes que vos despedaçarão com a sua fúria" .
" Cidadãos", conclui Vergniaud, " aproveitemos a s lições d a experiência.
Podemos derrubar impérios com vitórias mas só podemos fazer revolu ­
ções para outros povos com o espectáculo da nossa felicidade . Aspiramos
a derrubar tronos . Provemos que sabemos ser felizes com uma República " .
C itei demoradamente Vergniaud porque o seu discurso representa
uma tentativa rara de distanciamento da refrega para observação da pai­
sagem revolucionária. É claro que o seu propósito era partidário. C iente
de que ele e os seus amigos estavam a ser acossados pelos militantes das
secções, Vergniaud tentou recuperar a iniciativa política. No entanto, o
facto de pregar a bandeira dos girondinos ao mastro com tamanho tom de
desafio não diminui a força do que foi dito. Outras considerações à parte,
Vergniaud tentou defender a legislatura dos ataques repetidos à sua inte ­
gridade e soberania .
E também foi uma tentativa transparente de apelar à República pas­
sando por cima dos parisienses . Ciente da agitação que se verifica em cen­
tros provincianos como Marselha e a sua própria cidade, B ordéus, que
estão a entregar o poder aos adversários dos j acobinos, Vergniaud e a
Gironda piscam o olho a este incipiente federalismo. S ugeriram que a
613

C onvenção fosse protegida por uma guarda recrutada nas províncias e em


Maio ressuscitariam o plano de Mirabeau de transferir a assembleia para
a cidade de Bourges na eventualidade de a sua segurança ser ameaçada.
Para a Montanha, tudo aquilo soa inequivocamente a uma declaração
de guerra à sua base de poder. D epois de se terem mantido durante bas­
tante tempo à margem do comité revolucionário do Arcebispado,
Robespierre e os principais j acobinos são empurrados para a cooperação
pela ofensiva girondina . Além do mais, a sua preocupação em não deixa­
rem os enragés nem os militantes da C omuna como Hébert, Chaumette e
Hanriot controlar o calendário e a magnitude da insurreição dita uma
política mais activista, e também não é impossível que os líderes jacobinos
acreditassem na teoria da conspiração que associava os girondinos à derrota
militar, à especulação financeira e aos contactos traiçoeiros com o inimigo.
Eles tinham a certeza absoluta de que depois de Neerwinden a França
estivera à beira de um golpe militar montado por Dumouriez e apoiado
pela Gironda .
Por conseguinte, na primeira metade de Abril é proferida uma série de
declarações, quer na C onvenção, quer nos Jacobinos, nas quais a
Montanha abraça o igualitarismo social como um obj ectivo adequado para
a revolução patriótica . Danton ( cujas tentativas privadas de aproximação
foram rej eitadas pelos girondinos ) , declara o seu apoio ao princípio dos
empréstimos obrigatórios impostos aos ricos para subsidiar o preço do pão .
Outros pontos do programa dos enragés que recebem uma atenção favorá ­
vel são a taxa de câmbio definida para o papel-moeda e os programas de
obras públicas a financiar através de colectas aos ricos. No dia 1 0 de Abril,
Robespierre dá a conhecer a sua conversão ao axioma enragé de que o povo
tem o direito de exercer a democracia directa através da " revogação dos
mandatários infiéis" sempre que a Vontade Geral assim o exigir.
Torna-se evidente que está prestes a acontecer um teste de força na
C onvenção. Os girondinos decidem experimentar o seu poder com um
ataque ao mais imoderado e incansável dos seus antagonistas, Jean-Paul
Marat, que ainda por cima sucedeu à presidência dos j acobinos . Marat
aproveita todas as oportunidades para os recriminar do alto do seu ninho
de águia na Montanha, de onde desce ocasionalmente para trocar insul­
tos e socos na barra da tribuna . " Sapo coaxante ! ", chama -lhe Guadet
durante uma discussão acesa; "Ave de mau agoiro ! ", riposta Marat. Outro
deputado exige que a tribuna sej a desinfectada depois de cada discurso do
Amigo do Povo, e Marat devolve o cumprimento caracterizando os seus
inimigos como "Isnard, o charlatão, Buzot, o hipócrita, Lasource, o
maníaco e Vergniaud, o bufo " .
Os girondinos aproveitam a ausência dos deputados e n mission nos
departamentos e recolhem provas nos escritos de Marat que demonstram
que ele violou a integridade da C onvenção ao apelar a ataques violentos
S imon Schama 1 CIDADÃOS

contra os seus membros . Dado o tom geral do seu jornalismo, não é difí­
cil. O Tribunal Revolucionário elabora uma nota de culpa com dezanove
páginas, citando excertos do Journal de la République, no qual Marat canta
as virtudes de uma ditadura revolucionária e lamenta que se tenham pou­
pado umas centenas de cabeças para se preservar centenas de milhar de
inocentes. Marat denunciou repetidamente os associados de Roland - que
incluem Claviere, B rissot e a maioria dos líderes girondinos - como "esta­
distas" ( um termo profundamente insultuoso no vocabulário de Marat) ,
"cúmplices criminosos d a realeza ", "inimigos d e toda a liberdade e igual­
dade ", "charlatães", "homens atrozes que tentam diariamente enterrar­
-nos ainda mais na anarquia e que procuram acender as chamas da guerra
civil" . Recorrendo ao voto oral, no qual o próprio Marat insistiu aquando
do j ulgamento do rei, a C onvenção confirma a acusação com 22 1 votos
contra 93, sendo que se encontram 1 2 8 deputados em missão e 2 3 8 estão
ausentes.
Os acontecimentos que se seguem transformam-se num fiasco peri­
goso para os girondinos . Depois de fugir à polícia durante três dias, Marat
acaba por se entregar e fica detido numa sala espaçosa da C onciergerie,
onde recebe delegações de funcionários da C omuna e outros cidadãos,
todos eles desej osos de j urar fidelidade ao Amigo do Povo perseguido . No
dia 24, ao entrar no tribunal, é saudado por uma gigantesca aclamação
que se vai repetindo até que o próprio Marat se vê obrigado a pedir silên­
cio aos seus apoiantes . Marat defende -se com grande agilidade e convic­
ção, declarando, com alguma hipocrisia, que muitas das passagens
aparentemente incriminatórias foram tiradas do contexto, que nunca pre­
gou "assassínios nem pilhagens" - pelo contrário, defendeu a implemen­
tação de medidas enérgicas para evitar precisamente esses males -, que
nunca apelou à dissolução da C onvenção - o que disse foi que a assem­
bleia perseveraria ou cairia em função dos seus actos e declarações. Os j uí­
zes, apesar de aprovados em Março pelos girondinos, demonstram
simpatia pelo réu e o acusador público, Fouquier-Tinville, parente de
Camille Desmoulins, é menos que rigoroso no interrogatório. Além disso,
todos eles aceitam o argumento de Marat de que as suas denúncias foram
j ustas, patrióticas e apontaram a alvos generalizados.
A absolvição transforma-se num espectacular triunfo pessoal. Lançam­
-lhe coroas de louros; o seu "largo rosto amarelo ", como descreve
Michelet, ri de prazer enquanto Marat é levado em ombros até à
C onvenção. A multidão, em delírio, desfila a cantar pelas coxias da assem­
bleia. No dia 26 de Abril, os jacobinos dão uma jête especial em sua honra;
a multidão que se j unta para celebrar o seu herói é tão grande que uma
das bancadas se desmorona sob o peso dos espectadores .
Dizer q u e o j ulgamento de Marat foi u m desastre para os girondinos
seria pecar por defeito. O s girondinos tinham levantado a imunidade de
615

um deputado da Convenção, convictos d e que s e poderia demonstrar que


ele tinha abusado deste privilégio . De facto, com base nas muitas vezes
que Marat fulminara contra o s traidores " existentes no seio da
Convenção ", eles estavam confiantes na confirmação da acusação.
C onsumada a derrota, o levantamento da imunidade virar-se-á contra
eles. As petições e as delegações das secções mais militantes, tais como a
.
C ité, D roits de l'Homme, cuj o presidente é Varlet, e B on - Conseil, exigindo
a exclusão dos "Vinte e dois" ( este número tornara -se praticamente um
símbolo de infâmia para os sans-culottes ) , que já choviam antes do j ulga­
mento, começam a bater mais insistentemente à porta da C onvenção.
No princípio de Maio, os girondinos metem-se ainda mais num beco
sem saída ao obj ectarem vigorosamente contra a imposição de um preço
maximum dos cereais. C harles Barbaroux, em particular, insiste que inde ­
pendentemente do valor em que se cifre, o preço máximo irá agravar e
não facilitar os fornecimentos. Se for demasiado elevado, nenhum agri­
cultor venderá os seus produtos abaixo desse preço; se for demasiado
baixo, ninguém venderá e o mais provável é que os consumidores corram
às loj as, originando uma escassez imediata. E como deverá ser o meca ­
nismo dos preços para as diferentes regiões? Se for uniforme, nenhum
produtor estará interessado em assumir o transporte dos produtos a
expensas próprias; se for variável, promoverá o contrabando numa escala
que fará a fuga à antiga gabela parecer uma brincadeira de crianças. Aliás,
como seria possível garantir a aplicação de tal sistema sem recorrer aos
regimentos dos rendeiros fiscais? "Pretendeis implementar buscas domici­
liárias nas cidades e nos campos para descobrir os sesteiros de trigo como
outrora se fazia com o tabaco e o sal? Quereis armar os Franceses uns con­
tra os outros e fazer com que um grupo saia vencedor sobre o outro na
guerra da comida? "
A s obj e cções de B arbaroux s ã o uma previsão exacta dos problemas que
o maximum vai encontrar pela frente mas a sua introdução tornou -se um
grito de guerra dos sans-culottes. No dia 1 de Maio, apresenta-se na
C onvenção uma delegação do bairro de Saint-Antoine que exige a sua
imposição, bem como a criação imediata de um fundo de assistência aos
pobres financiado através de uma colecta de metade de todos os rendi­
mentos superiores a duas mil libras francesas e a conscrição para o exér­
cito de todos quantos forem considerados " ricos" . A delegação apoia as
suas exigências com ameaças de uma insurreição imediata caso não sejam
atendidas . No dia seguinte, a C onvenção vota o princípio da regulação do
comércio de cereais e no dia 4 promulga decretos que regressam ao pater­
nalismo do Antigo Regime. Os preços máximos serão definidos pelas
autoridades departamentais com base na média dos preços dos primeiros
quatro meses do ano . As imprensas provinciais começam a imprimir os
antigos formulários para requisições, confiscas e licenças de venda e de
S imon Schama 1 CIDADÃOS

moagem, que não vêem a luz do dia desde o princípio da década de 80 do


século XVIII. É um exemplo clássico da ânsia de segurança da Revolução
Francesa a impor-se à ânsia de liberdade, da sobreposição dos valores do
paternalismo aos do individualismo.
Em meados de Maio, recomeça de forma acérrima a luta pela sobrevi­
vência entre a Montanha e a Gironda. C om os desastres militares a acu­
mularem-se, muitos dos deputados não alinhados da Planície começam a
derivar para os jacobinos, tal como fizeram na questão do j ulgamento e da
sentença do rei. A pressão das manifestações de sans-culottes armados e o
seu sentimento de que os girondinos são o grupo que mantém a disputa
acesa, leva muitos deles a esta conclusão. No entanto, até finais de Maio,
o equilíbrio de forças na Convenção não pende decisivamente para
nenhum dos lados . Isnard é eleito presidente no dia 1 6 e dois dias depois
Guadet alega que está em curso uma conspiração para dissolver a
C onvenção. Há que reunir uma nova assembleia, em B ourges, desmante ­
lar a C omuna e expor e prender os líderes da conj ura nas secções. Para
evitar este tipo de acção drástica, é instituído o C omité dos D oze, com
poderes para investigar a ameaça à legislatura nacional colocada pelas
sociedades populares e pelos comités de secção. O comité transforma-se
rapidamente num órgão de perseguição aos principais enragés, tais como
Varlet e C laude -Emmanuel Dobsen. Porém, ao alargarem a j urisdição do
comité a Jacques-René Hébert ( cuj as denúncias dos girondinos no Fere
Duchesne fazem as de Marat parecer moderada s ) , os girondinos tornam a
Comuna e o Arcebispado aliados em vez de rivais . Hébert, horrorizado,
vê-se obrigado a partilhar a cela com o desprezível e irritante Varlet.
Quando a C omuna protesta j unto da C onvenção, Isnard explode num
tom que o faz parecer o duque de B runswick: "Digo-vos, em nome da
França, que se estas intermináveis insurreições causarem algum mal ao
parlamento da nação, Paris será aniquilada e terão de se procurar nas
margens do Sena os vestígios da cidad e " .
A libertação da fornada de "mártires " mais recente torna-se um grito
de guerra nas assembleias gerais das secções . Tal como Richard C obb
memoravelmente observou, os historiadores dos sans-culottes eram muito
dados a descrevê-los como se eles se movimentassem em blocos e bata ­
lhões maciços, como regimentos de trabalhadores que eram postados aqui
e ali quais marionetas . O que hoj e sabemos acerca do número dos seus
activistas sugere uma participação muito mais modesta. Com toda a pro­
babilidade, não terão participado mais de 1 0 % da população masculina
adulta nas "assembleias gerais" das secções, e embora as assembleias pos­
sam ter contado com cem ou duzentos participantes em momentos de
crise, a participação baixaria para cerca de cinquenta logo a seguir. No seu
auge, em Paris, o " movimento" sans-culotte não contou com mais de dois
a três mil revolucionários zelosos . Eram sempre as mesmas pessoas que
617

aderiam à s sociedades populares, elaboravam petições, apareciam com


piques à porta da C onvenção e " confraternizavam" umas com as outras
aparecendo em força quando outros militantes eram ameaçados na sua
secção por uma maioria hostil ou "moderada" . Além do mais, em Paris
propriamente dita, não dominavam a totalidade das quarenta e oito sec­
ções. O movimento popular contava com apoios sólidos em apenas vinte
a trinta secções, numa cintura que ia da Poissonniere e do bairro de Saint­
-Denis, a norte, para leste, descendendo às secções ultra-militantes do
Templo, Popincourt, Montreuil e Quinze -Vingts, passava pelo centro da
cidade e chegava às secções de S aint - Marcel, a sul, Gobelins e
Observatoire .
O s seus líderes, mesmo fora do círculo imediato dos enragés, rara -
mente são artesãos e muito menos assalariados. Claude- Emmanuel
D obsen, que desempenhará um papel crucial na insurreição contra os
girondinos, foi advogado e juiz-presidente de um dos tribunais de Paris,
é um mação fervoroso e, desde 1 7 90, oficial da Guarda Nacional. J . - B .
Loys é u m advogado e mercador marselhês que denunciou os seus dois
irmãos como monárquicos e que foi honrosamente ferido no ataque às
Tulherias. D ois dos militantes mais proeminentes têm origens nobres:
Rousselin, o qual, à semelhança de Varlet, frequentou o colégio para
j ovens aristocratas onde Talleyrand estudou, o C ollege d'Harcourt, e
Louis-Henri " Cipião" D uroure, uma ovelha negra patriota que se virou
para a política revolucionária depois de ter feito um filho à criada inglesa
da família e que continua a viver de rendimentos de mais de vinte mil
libras por ano.
Mas seria errado imaginar estes homens como sans-culottes estroinas.
Residem nos bairros que representam, amiúde em aposentos indistintos
dos ocupados pelos operários. Por conseguinte, muitos deles estão bas­
tante mais próximos do "povo" do que Robespierre, que tão livremente o
invoca do salão dos Duplays . Embora sejam seguramente uma minoria na
constância das suas convicções revolucionárias, os militantes são capazes,
em alturas de crise, de mobilizar dezenas de milhar de cidadãos armados.
Todavia, o sucesso no lançamento de uma insurreição carece da concor­
dância - não da participação - da liderança revolucionária . Para recrutar
multidões muito mais numerosas do que o núcleo dos fanáticos, são
necessários os apelos das figuras principais da C omuna, tais como Hébert,
os discursos de D anton e Robespierre e os artigos do jornal de Marat.
Outra coisa necessária para desencadear uma journée decisiva é a per­
cepção de um sentimento de perigo. Depois da ameaça de Isnard de suble­
var os departamentos contra Paris, verifica - se, no dia 2 7, uma invasão
tumultuosa da C onvenção pelos sans-culottes, que conseguem levar os
deputados a abolir o C omité dos D oze. C ontudo, no dia seguinte, a deci­
são é anulada quando os girondinos exigem uma nova votação, alegando
Simon Schama 1 CIDADÃOS

que alguns espectadores se misturaram com os deputados e votaram ile ­


galmente . No entanto, Hébert e Varlet vêem a sua libertação confirmada.
Mais importante ainda, Robespierre, que ainda em finais de Março insis­
tiu na inviolabilidade da C onvenção, parece ter dado luz verde à subleva­
ção . No dia 26, falando nos Jacobinos, convida "o povo a insurgir- se
contra os deputados corruptos", e na mesma semana fala várias vezes na
necessidade de uma "insurreição moral" .
Não se percebe b e m o q u e distingue uma insurreição moral de qual­
quer outro tipo de insurreição, mas o que Robespierre manifestamente
pretendia era evitar as sangrias indiscriminadas do Outono anterior.
Depois de iniciado por D obsen, por Varlet e pelo comité revolucionário
central instalado no Arcebispado, o movimento adquire um ímpeto pró­
prio. S ob a orientação de François Hanriot, um antigo funcionário alfan­
degário que acaba de ser nomeado comandante da Guarda Nacional em
substituição de S anterre, que serve na Vendeia, guardas sans-culottes
acompanham os líderes do comité do Arcebispado à C omuna . Os tam­
bores e os guardas entram no salão do C onselho Geral e informam-no
de que o seu mandato foi revogado pelo "povo soberano " . D epois de o
C onselho Geral aceitar os pontos essenciais do programa revolucionário
- aplicação de um imposto sobre os ricos; detenção dos girondinos e de
ex-ministros como Roland, C laviere e Lebrun; criação de um exército
sans-culotte para garantir a aplicação e o cumprimento da legislação revo ­
lucionária nos departamentos, incluindo o maximum; pagamento de qua­
renta soldos por dia aos cidadãos trabalhadores em armas -, a C omuna é
reconduzida em funções.
Estas exigências são depois apresentadas à C onvenção com a j ustifica­
ção de que o comité do Arcebispado descobriu uma conspiração contra a
liberdade e a igualdade que exigiu uma nova sublevação para salvar a
Revolução. Isto é mais ou menos o que Robespierre disse nos Jacobinos
mas a C onvenção e, em especial, os deputados da Planície, não estão para
receber ordens daquela maneira . Na madrugada do dia 3 1 , ao saberem da
insurreição, os líderes da Gironda marcados para expulsão e detenção
armaram-se mas não conseguiram aceitar o conselho de Louvet de aban­
donarem Paris e erguerem o estandarte da revolta antijacobina nas pro­
víncias. Não querem ser responsáveis por uma guerra civil e talvez
acreditem, com base na experiência da sublevação fracassada de 1 O de
Março, que ainda vão prevalecer na C onvenção. Sej a como for, é lá que
decidem resistir; acusam Hanriot de praticas intimidadoras e solicitam
protecção armada para os deputados. Durante a comoção, com os solda­
dos sans-culottes nas coxias, brandindo piques e mosquetes e expressando ­
- s e com clamores ou olhares ameaçadores, Vergniaud torna - s e
curiosamente subj ugado . P o r fim, interrompe a longa arenga acusatória
de Robespierre com um "Terminai" . "Terminarei", replica Robespierre, "e
619

contra vós . " N o fim, decide -se que a s exigências serão submetidas à apre­
ciação do C omité de Salvação Pública.
É óbvio que as coisas não vão ficar assim. D ois dias depois, a 2 de
Junho, um domingo, com as pessoas dos bairros e das aldeias vizinhas
congregadas na cidade, uma imensa mole humana cerca a C onvenção.
A maioria das estimativas coloca o número dos manifestantes em oitenta
mil, quase todos armados. Juntaram-se para ouvir o relatório do C omité
de Salvação Pública e a resposta dos deputados, e deixam claro que se as
suas exigências não forem satisfeitas o preço a pagar será elevado. No dia
29 chegaram a Paris as notícias de uma rebelião contra o município j aco­
bino de Lyon, o que confere credibilidade à declaração do comité revolu ­
cionário de que está em marcha uma conspiração contra -revolucionária .
Cedo se torna evidente que a C onvenção está disposta - embora não
propriamente desej osa - a aceitar as exigências de forma a evitar um mas­
sacre generalizado ou a cedência de todo o poder efectivo ao comité revo ­
lucionário. Em nome do C omité de Salvação Pública, Delacroix aceita a
formação de um exército revolucionário pago a quarenta soldos por dia,
mas B arere propõe que os girondinos em causa sej am suspensos em vez
de detidos, e mesmo assim por um período de tempo determinado.
A proposta não vai ao encontro das aspirações dos sans-culottes, que
começam a ficar mais furiosos com o avanço dos trabalhos. Alguns depu­
tados levam abanões e empurrões; o lenço elegante de B oissy d' Anglais
é - lhe arrancado do pescoço; Grégoire é acompanhado por quatro guardas
até à retrete. Quando Hanriot, no comando dos guardas postados no exte ­
rior da câmara, recebe uma mensagem do presidente, Hérault de
Séchelles, para pôr cobro à intimidação, ele retorque : "Dizei ao cabrão do
vosso Presidente que ele e a sua Assembleia se podem ir foder; e se daqui
a uma hora não nos entregarem os Vinte e Dois, mandamo-los a todos
pelo ar. " Para dar a entender que não está a brincar, Hanriot manda des­
locar canhões para j unto das portas do Manege.
Desesperado para encontrar uma maneira de afirmar a sua autoridade
ou pelo menos de dar um ar de livre -arbítrio político, B arere sugere que
os deputados abandonem em massa a câmara e saiam a confraternizar
com os homens armados. Na sua óptica, o gesto eliminará a perigosa pola­
rização entre soldados e políticos. Cerca de cem saem atrás de Hérault de
Séchelles como colegiais temerosos. A luz brilhante do sol revela-lhes
Hanriot, a cavalo, postado à frente de fileiras e fileiras de guardas bigodu ­
dos e imponentes que brandem as armas com um ar de manifesta irrita ­
ção . Hérault pede a Hanriot que respeite a obrigação de libertar as
entradas e as saídas do Manege . O comandante responde garantindo -lhe
que ninguém tem dúvidas quanto ao patriotismo dele mas pede -lhe que
prometa "pela sua cabeça" que os vinte e dois vilãos serão entregues no
prazo de vinte e quatro horas. Hérault não está preparado para prometer
Simon Schama 1 CIDADÃOS

tal coisa ( especialmente tendo em conta o preço ) , pelo que os canhões são
carregados e apontados à câmara . A coluna patética de deputados, sob os
olhares ameaçadores dos soldados, dá a volta ao perímetro do j ardim em
busca de uma saída mas todas as portas estão bloqueadas por guardas. Por
fim, regressam à câmara e dão com ainda mais seccionistas sentados j unto
dos deputados da Montanha.
Chegou o momento crucial. A C onvenção é tomada de um silêncio
surdo de culpa, medo e vergonha . O primeiro a falar é o deficiente
Georges C outhon, na sua cadeira de rodas, que diz que uma vez que os
deputados, ao confraternizarem com os guardas, ficaram a saber que esta­
vam "livres" e que o bom povo apenas queria a eliminação dos malfeito­
res, podem seguramente prosseguir com a sua acusação. De seguida, lê o
documento acusatório contra Claviere, Lebrun e vinte e nove deputados,
dez dos quais pertencem ao Comité dos D oze . Terminada a votação,
Vergniaud, numa atitude de desafio sarcástico, ergu e - se e oferece à
Convenção um copo de sangue para saciar a sede.
Tudo isto acontece com Hérault de Séchelles na cadeira da presidência,
o que dá uma ideia de como a Revolução se recordou de que se trata do
mesmo j ovem presidente do Parlamento de Paris que, na década de 80 do
século XVIII, foi glorificado como o modelo da eloquência j urídica. Tal
como Lepeletier, o seu amigo morto, ele converteu - se num j acobino
capaz, sempre que necessário, de fazer as denúncias da praxe da malevo­
lência da sua própria classe aristocrática. Nada disto foi com má fé . Todos
os indícios são de que Hérault de Séchelles conseguiu substituir o seu sen­
timento aristocrático de elite pelo da tribuna do cidadão. Mas o que ele
abandona no dia 2 de Junho de 1 79 3 é o último vestígio da pretensão de
que a Revolução se baseia na legalidade ou mesmo na representação - as
questões que, conforme ele mesmo disse em 1 789, definiriam a vida ou a
morte da França.
Talvez a sentença proferida naquele dia tenha sido toldada pelas pai­
xões partidárias nas quais os anos centenários da Revolução dividiram os
historiadores entre novos girondinos e j acobinos . Os historiadores român­
ticos como Lamartine viram na Gironda os seus antepassados políticos;
Lamartine acendeu a sua prosa na pira funerária da sua extinção política .
Os historiadores marxistas da geração seguinte consideraram este senti­
mentalismo típico da pieguice burguesa dos estômagos fracos e do patrio­
tismo flácido. O relato mais recente e excelente da insurreição ecoa a
imitação do marxista Albert S oboul da denúncia robespierrista, que diz
que os girondinos mais do que mereceram perecer porque " denunciaram
o rei mas furtaram-se à sua condenação; procuraram o apoio do povo
contra a monarquia mas recusaram governar com ele " .
Não é preciso subscrever o "mito neoliberal d a Gironda" para des­
montar esta horrível casualidade . A preferência por uma república não
62 1

implicava necessariamente entusiasmo pela execução do rei, pois era isso


e não a convicção o que estava em causa . E muito menos necessitava a
criação de uma nova representação nacional que os seus deputados acei­
tassem aquilo a que Morris Slavin chama eufemicamente " democracia
participativa" quando esta decidiu exercer os seus direitos à bala. O pró­
prio Robespierre, apesar de indubitavelmente satisfeito com os resultados
da sublevação, quer na eliminação dos seus inimigos, quer na ausência de
massacres e caos político, era hostil à destabilização crónica do governo
que teria decorrido de a populaça exercer o seu direito rousseauniano de
"revogar os seus mandatários" sempre que as secções assim o decidissem.
Diz-se também frequentemente que a situação em que França se
encontrava era tão aflitiva que para preservar a Revolução era necessária
uma purga . A República não poderia ter sobrevivido aos reveses no
campo de batalha e às intermináveis disputas na C onvenção. Foi precisa ­
mente esta a argumentação de Danton, apesar de ele ter anunciado que
se sentia "escandalizado" pela violação da assembleia no dia 2 de Junho.
Mas que tipo de revolução merecia ser preservado? Uma revolução na
qual o direito se prostrara perante as formas mais grosseiras de intimida­
ção? Uma revolução na qual os representantes eleitos da nação podiam
ser humilhados pela minoria armada de uma parte do povo de Paris?
Mas este episódio desgraçado de ameaça e capitulação encerrava uma
verdade sombria. A partir de 1 788, a Revolução Francesa foi possibilitada
pela força das armas, pela violência e pelos tumultos. Em cada etapa do
seu caminho, os que se aproveitaram da sua força procuraram desarmar
aqueles que os tinham posto no poder, tornando-se por sua vez prisionei ­
ros e não beneficiários. E ste estado de coisas continuaria enquanto o povo
de Paris pudesse continuar a recorrer caoticamente às armas, e talvez não
sej a exagero dizer que a partir do dia 2 de Junho os jacobinos começaram
a planear pôr cobro a esta perigosa situação. Ao contrário de todos os seus
antecessores, não hesitarão em regressar ao estado de violência revolu ­
cionária libertada em 1 78 9 . A democracia revolucionária será guilhoti­
nada em nome da governação revolucionária.
17

" O Terror E stá na Ordem do D ia"


Junho de 1 793-Frimário do Ano II (Dezembro de 1 793)

1 O SANGUE D O M ÁRTIR

Depois da sua expulsão da C onvenção, os líderes girondinos são colo­


cados em prisão domiciliária, em Paris. Muitos decidem ficar onde estão e
desafiam o seu ostracismo do corpo político, outros tentam fugir. Jérôme
Pétion e o bretão Kervélegan conseguem escapar aos guardas, este último
atirando -se da j anela do segundo andar de sua casa. Um grupo maior, que
se preparara para o pior depois da insurreição de 3 1 de Maio, tinha par­
tido de Paris com a intenção de concretizar a sua ameaça de sublevação
das províncias contra a capital.
Na primeira semana de Junho de 1 7 9 3 , parece que vão conseguir.
Enquanto a maioria das secções parisienses são militantemente monta­
nhesas, em algumas das cidades de província mais importantes verifica-se
o contrário. Em B ordéus, Lucy de La Tour du Pin vê mil j ovens receberem
instrução nas encostas do Château Trompette . Encoraj ados por deputados
como Boyer-Fonfrede e Roger Ducos e pagos pelo município girondino,
deverão formar o núcleo de um exército "federalista" mobilizado para
resistir à ditadura de Paris. Lucy teme que a barulheira que fazem com os
canhões e nos teatros não sej a um sinal tranquilizador da sua firmeza
debaixo de fogo. Também em Marselha, em Maio, as secções desencadea­
ram uma revolta contra o militante município j acobino . Foi instalado um
novo regime, dominado pelos apoiantes dos principais girondinos marse­
lheses, Barbaroux e Rebecquy, muitos dos quais são originários da elite
mercantil e comercial desta cidade portuária, como acontece em B ordéus.
Os clubes j acobinos são encerrados, o seu comité central dissolvido e os
principais membros detidos.
Embora as causas imediatas destas revoltas urbanas decorram da
intensidade da política local, a motivação dos insurrectos é praticamente
a mesma em B ordéus, Marselha, Toulon, Montbrison e Lyon, cidade onde
no dia 29 de Maio se verifica a sublevação mais grave . Em todos estes
casos, os homens que se consideram a si próprios os líderes políticos e cul­
turais "naturais" da cidade - advogados, mercadores, funcionários, a elite
académica, os irmãos das loj as maçónicas, os oficiais da Guarda Nacional
- foram expulsos do governo autárquico a seguir à queda da monarquia,
623

muitas vezes no seguimento de eleições descaradamente manipuladas ou


intimidadas. De seguida, os regimes jacobinos locais, contra a resistência
das autoridades departamentais e apoiados pelos representantes da
C onvenção "em missão", instituíram pequenos Terrores sob a forma de
buscas domiciliárias, empréstimos obrigatórios, encerramento dos jornais
e das sociedades da oposição e detenções selectivas.
Em Lyon, esta ofensiva militante foi dirigida por Joseph Chalier, cuj a
histrionia não foi ultrapassada por nenhum político da Revolução
Francesa. Quando levou para a cidade uma das pedras da Bastilha, orga ­
nizou uma cerimónia na qual cada um dos devotos se aj oelhou para bei­
jar a pedra sagrada . Numa veia mais sinistra, Chalier ameaçou com a
guilhotina os comerciantes de seda que explicaram com a depressão a
recusa de darem trabalho aos seus empregados. No princípio de Fevereiro,
Chalier convocou uma assembleia geral dos clubes que foi iniciada com
um juramento obrigatório, sob pena de morte, de respeitar as decisões
que iriam ser tomadas na reunião . De seguida, anunciou o estabeleci ­
mento de um tribunal revolucionário em Lyon e que "novecentas vítimas
são necessárias para a patrie en danger. Seriam executadas na ponte
Morand e os corpos atirados para o Ródano " .
A s bizarrias d e Chalier conseguem alienar aqueles que s e considera ­
vam j acobinos ortodoxos. Julgando -se incluídos numa potencial lista de
"moderados" proscritos, fazem causa comum com a oposição existente
nas secções, incluindo, de modo crucial, os guardas nacionais que os
representantes em missão, Albitte e Dubois - C rancé, tentaram desarmar.
No dia 29 de Maio, os seccionistas moderados e os guardas tomam a
câmara municipal de assalto e prendem Chalier e os autarcas . O que a
insurreição federalista de Lyon tem de notável, tal como sucede noutros
lugares, é que embora tenha sido liderada pelas elites comerciais e profis­
sionais da cidade, a partir dos seus postos de comando nas secções, não
teria havido sucesso sem o apoio armado de muitos dos cidadãos mais
humildes, que os j acobinos j ulgavam ter do seu lado . Os tecelões j orna ­
leiros ter- se-ão mantido à margem mas muitos mestres de pequenas ofi ­
cinas participaram na rebelião e serviram no exército federalista . Em
Marselha e Toulon, a revolta foi apoiada pelos estivadores e pelos traba­
lhadores do arsenal . Não se tratou, pois, da simples luta de classes da his ­
toriografia j acobina . Paradoxalmente, a mesma retórica que em Paris
culpara os governos moderados pela continuação da crise económica -
desemprego, depreciação do papel-moeda, carências alimentares e
aumentos dos preços - pôde ser virada contra os municípios j acobinos das
províncias. Por exemplo, em Toulon, em Julho, um homem foi preso por
ter dito que "precisamos de um rei porque no tempo da monarquia o pão
custava quatro soldos [por quilo] " . Os trabalhadores do arsenal enviaram
à C onvenção Nacional uma petição no mesmo tom, exigindo "paz nas
Simon Schama 1 CIDADÃOS

nossas cidades e pão para as nossas famílias. Um papel-moeda em depre ­


ciação e as vossas terríveis quezílias políticas indiciam que não vamos ter
uma coisa nem outra " .
O fenómeno d o apoio popular aos moderado abastados apenas é intri­
gante se partirmos do princípio de que os artesãos e os loj istas estavam
mesmo convencidos de que os médicos, mestres - escolas e escritores mer­
cenários que se diziam sans-culottes estavam mais próximos dos seus inte ­
resses do que os comerciantes e advogados da elite estabelecida. Não
existe nenhuma j ustificação para acreditar na retórica jacobina que fez
esta afirmação . Mas mesmo que fosse verdade, esta solidariedade imposta
teria obviamente perdido para as intensas lealdades locais e a profunda
antipatia ao imperialismo parisiense . Nada era menos abonatório para
homens como Chalier do que serem estigmatizados como étrangers, espe­
cialmente quando o seu poder se sustentava nos representantes da
Convenção. Neste sentido, as grandes forças centrífugas libertadas pela
revolução de 1 78 9 - 1 79 1 só poderiam ser invertidas através da aplicação
da força militar.
A revolta de Lyon tem lugar no dia da purga dos girondinos em Paris .
As notícias do sucedido alimentam o ímpeto da resistência à Montanha, e
não apenas no Sul de França. Rennes, na B retanha, é um centro impor­
tante de insatisfação e parece que algumas das principais cidades da
Normandia estão prestes a j untar-se ao movimento . No dia 1 O de Junho,
o grupo mais influente de girondinos fugitivos aparece numa destas cida­
des, Caen, no departamento do Calvados. Escolheram certamente este
lugar para resistir devido à sua proximidade com Paris e talvez porque um
dos seus, B uzot, é normando. B uzot é amante de Madame Roland e chega
à cidade com um saco cheio das suas cartas, de madeixas do seu cabelo,
de miniaturas do seu rosto - e com a sua desgraçada mulher a reboque.
Com ele chegam outras figuras importantes, tais como C harles B arbaroux,
Guadet, os j ornalistas Gorsas e Louvet, o médico Salle, Lanj uinais e os dois
fugitivos, Pétion e Kervélegan . Na mesma semana, j unta- se -lhes um ter­
ceiro grupo de deputados, e é criada uma base política na Intendência, no
centro de Caen.
O seu obj ectivo imediato é a criação de uma força federalista nortenha,
sob o comando do general de Wimpffen, que foi um dos deputados da
cidade à C onstituinte. Uma marcha sobre Paris será coordenada com
mobilizações similares n·o utros centros federalistas que resistam e derru­
bem o domínio jacobino . Embora os federalistas sej am explicitamente
antimonárquicos, consideram que a incapacidade dos exércitos republica­
nos para suprimir a rebelião da Vendeia é um elemento a seu favor.
A capital e seus satélites serão acometidos a partir do perímetro insurrecto
da França, num círculo que se estende para oeste, a partir da Normandia
e da Bretanha, pela Vendeia, até à Gironda e ao S ul da Provença, e
62 5

subindo o Vale do Ródano, até Lyon e ao Franco - Condado, onde B esançon


também se inclina para o federalismo . Gradualmente, esperam eles, este
anel apertar-se-á como um nó em torno do pescoço da Montanha.
Em C aen, as perspectivas para esta ambiciosa cruzada antijacobina
parecem favoráveis. No dia 1 5 , os girondinos e as autoridades departa ­
mentais publicam um manifesto que denuncia "a comuna conspirativa
[Paris] , empanturrada com sangue e ouro, que mantém os nossos repre ­
sentantes cativos. Ousa ditar a sua vontade à baioneta . A representação
nacional j á não existe . Franceses ! O lar da nossa liberdade foi violado. Os
homens livres da Nêustria [o nome franco para o Norte da França] não
permitirão este ultraj e . Os bandidos serão punidos ou morreremos todo s " .
No d i a 22, u m a assembleia geral representativa de u m a maioria substan­
cial das secções de Caen adapta uma moção contra a continuação da
"anarquia" . Chamado pela Convenção à capital, de Wimpffen responde
que irá a Paris à frente de sessenta mil homens para repor a j ustiça e a
liberdade.
No entanto, para já, as forças de que dispõe são modestas. Em 7 de
Julho, no Grande C our de C aen, tem lugar uma parada militar com ape ­
nas dois mil e quinhentos soldados federalistas : oitocentos do Eure e do
Calvados, quinhentos do departamento vizinho de Ile e Vilaine, oitocen­
tos dos departamentos bretões da Finisterra e do Morbihan e os restantes
da Mancha e de Mayenne. As tropas, desfilando ao som das bandas mili­
tares, proporcionam um bom espectáculo na tarde estival mas não são
suficientes para uma guerra civil. Os girondinos contavam que a exibição
gerasse uma torrente de voluntários espontâneos, mas a tarde rende ape ­
nas a magra colheita de cento e trinta.
O desfile é observado por uma mulher belíssima, de vinte e cinco anos
de idade, chamada Charlotte Corday d' Armont. A casa onde reside situa -
-se a poucos metros da Intendência, onde os girondinos estabeleceram o
seu quartel-general. Desde essa altura, eles exercitam frequentemente na
varanda a sua oratória para benefício dos seus simpatizantes, e ela j á os
ouviu muitas vezes. No dia 20, conseguiu ser apresentada ao eloquente e
belo provençal Charles B arbaroux . Mas Charlotte Corday não precisa de
ser convertida, pois j á está consumida por um ódio intenso e quase febril
aos jacobinos, cuj a conduta em 3 1 de Maio e 2 de Junho, na sua opinião,
atirou a República para o nível mais baixo de degradação.
É uma república que ela desej a ver florescer. Charlotte nasceu no solar
de madeira de uma família da pequena nobreza rural normanda mas não
é monárquica. Pelo contrário, tal como Madame Roland ( que muito
admirará a sua intervenção abrupta na história da Revolução ) , ela leu avi­
damente Rousseau e as histórias romanas e imagina a Revolução dedicada
a suscitar uma transformação moral exaltada . Charlotte não se tornará
uma assassina para vingar Luís XVI - aliás, durante o seu interrogatório,
Simon Schama 1 CIDADÃOS

ela repudiará explicitamente qualquer comparação com Pâris, o guarda


real que assassinou Lepeletier -, mas para aj udar a causa girondina e fede ­
ralista . O seu feito, escreverá ela a Barbaroux da prisão, fez seguramente
mais para aj udar o general de Wimpffen do que qualquer batalha .
Charlotte foi violentamente alienada da Revolução por um aconteci­
mento específico . O abade Gombault, curé de Saint- Gilles, em C aen, dera
a extrema- unção à mãe de Charlotte, que morrera no parto em 1 782 . Na
qualidade de padre refractário, tinha sido sucessivamente privado de
meios de subsistência e ameaçado com a deportação, e em Abril de 1 79 3
escondera-se nos bosques d e L a Delivrande, nos arredores d a cidade,
para evitar a detenção. Fora caçado por um grupo auxiliado por cães pis­
teiros e, no dia 5 de Abril, executado na praça do Pilori, tornando-se a
primeira pessoa a ser guilhotinada em Caen. Mais tarde, ainda em Abril,
o departamento do C alvados enviara a primeira de muitas cartas à
Convenção queixando -se da tirania de uma pequena camarilha de j aco­
binos. "As vossas divisões são a fonte de todos os nossos problemas .
Preocupais-vos e s o i s incitados por um Marat, um Robespierre, u m
Danton e esqueceis -vos de q u e todo um povo está a sofrer . . . " . E stes ata ­
ques à Montanha foram publicados e afixa dos em C aen, e é provável que
Charlotte os tenha lido . Um ataque ao " sanguinário" mais notório,
Marat, da autoria de Pézenas, um deputado do Hérault, que circulou em
Caen, tê-la-á surpreendido como particularmente cativante, principal­
mente pelo modo como virava contra Marat a sua obsessão com a eco­
nomia política da decapitação.

Caia a cabeça de Marat e a República está salva . . . Purgue-se a França deste


homem sanguinário . . . Marat só vê a Salvação Pública num rio de sangue;
que corra o dele, a sua cabeça tem que cair para salvar duzentas mil.

Charlotte Corday chega à conclusão de que esta tarefa é a sua vocação.


Descendente directa do dramaturgo Pierre Corneille, ela parece assumir
um dos papéis trágicos clássicos por ele criados. Vai assumir a missão de
uma mártir patriótica, de uma mulher disposta a morrer no cumprimento
do acto sagrado de libertar a patrie de um monstro. No dia 9 de Julho,
numa tarde quente e abafada, ela envia uma carta ao pai, em Argentan,
pedindo-lhe perdão por deixar C aen sem a sua autorização, e embarca na
diligência para Paris.

O obj ecto da sua atenção está em casa, na rua dos Cordeliers, adoen­
tado . Marat, que nunca foi particularmente saudável, desenvolveu recen­
temente um devastador distúrbio dermatológico que irrompe
periodicamente e lhe transforma a pele numa massa de escamas e chagas.
O único alívio para a sua psoríase artrítica é a imersão num banho frio.
627

Quando é acometido pela doença, Marat retira -se para a casa de banho e
continua a trabalhar numa pequena mesa improvisada a partir de uma
caixa de madeira virada ao contrário que tem ao lado da banheira . O calor
tórrido de meados do Verão terá provavelmente piorado o estado de
Marat, que está ausente da C onvenção há bastante tempo. A 1 2 de Julho,
um dia depois da chegada de Charlotte C orday a Paris, dois deputados
visitam-no para inquirir sobre a sua saúde. Um deles é o pintor Jacques­
-Louis David, que o encontra "a escrever os seus pensamentos para a
segurança da patrie" ao seu modo incansável, com o braço direito fora do
banho. As paredes ostentam um mapa dos departamentos da República,
emblemas da Revolução e um par de pistolas cruzadas por baixo do qual
se vê a legenda "La Mort" . Possivelmente chocado com este assustador
lema, David desej a ao Amigo do Povo uma recuperação rápida, ao que o
outro replica, "Dez anos a mais ou a menos na duração da minha vida não
me preocupam minimamente; o meu único desej o é poder dizer, com o
meu último alento, 'alegro-me porque a pátria está salva ' " . Charlotte
Corday não teria dito melhor.
Apesar de deitado, Jean-Paul Marat está no topo dos seus poderes e da
sua influência . D esde a tentativa frustrada dos girondinos para o conde ­
nar, em Abril, tudo correu a seu favor. No dia da sua absolvição pelo
Tribunal Revolucionário, uma mulher colocou-lhe uma coroa de rosas na
fronte . Um mês depois, a vitória tornou-se ainda mais perfumada quando
viu os seus piores inimigos proscritos e expulsos da C onvenção. O apare ­
lho institucional da ditadura revolucionária que advogou foi implemen­
tado, pelo que as brutalidades caóticas da rua serão substituídas pelo
aparelho sistemático da repressão estatal. Os enragés, que ele detesta quase
tanto como os girondinos, não conseguiram tirar vantagem do 2 de Junho
e o próprio Varlet foi excluído dos j acobinos . Marat é ouvido na
C onvenção, respeitado na C omuna e cumulado de lisonjas nas secções.
Parece ter-se tornado um com a pessoa que criou : Amigo do Povo, orá ­
culo d a Revolução, desmascarador de conspirações, mortificador dos
hipócritas.
Marat fez um longo percurso desde os seus tempos de homem de
letras, médico e cientista, quando viaj ou por toda a Europa em busca de
reconhecimento para as suas teorias sobre óptica, aeronáutica e terapia
eléctrica. A sua vida política, tal como a de Jacques-Louis David, foi fruto
de uma amarga rej eição pessoal. No caso de David, a recusa da Academia
de expor as obras do seu aluno predilecto (e prodigiosamente dotado ) ,
D rouais, persuadiu - o d e que a instituição estava nas mãos d e uma cama ­
rilha aristocrática . Desta convicção foi um pequeno passo até defender a
sua destruição por incompatibilidade com a liberdade revolucionária, e a
um compromisso político que fez do pintor deputado à C onvenção e
membro do Comité de Segurança Geral. A incapacidade de Marat de obter
S imon Schama 1 CIDADÃOS

reconhecimento da Academia Real das C iências para as suas teorias sobre


os fluidos ígneos que ele considerava serem a propriedade essencial da
electricidade foi muito mais alienadora, dado que, ao contrário do que
aconteceu com David, lhe prej udicou a carreira. Até esta crise, em 1 780,
ele fora, pelo menos nominalmente, médico de Artois, e o seu consultó­
rio de electroterapia era muito procurado. A clientela desapareceu
quando ele foi acusado de charlatanice, um desastre pelo qual um prémio
atribuído pela Academia de Rouen não chegou para o compensar.
Ferido pela afronta, Marat recriou a sua identidade. Em vez de cultivar
a aristocracia, deu em morder-lhe os calcanhares . Em vez de andar atrás
da publicidade, criou a sua instalando-se na zona dos Cordeliers, onde
tinha acesso fácil aos impressores. Durante a sua estada em Inglaterra, a
carreira de John Wilkes mostrara -lhe como um jornalismo irónico e com­
bativo, nos limites do decoro convencional, podia criar um novo público
político. No entanto, o que Marat construiu a partir de outros elementos
da cultura metropolitana era distintamente francês . Foi buscar a Linguet
e a Mercier o tom apocalíptico e as polémicas verbalmente violentas que
expunham os vícios da moda política . É fácil ver que as peculiares origens
familiares da Marat, combinando o j esuitismo sarda com o calvinismo
genebrino (pelo lado da mãe ) , foram um treino perfeito para este tipo de
messianismo admoestador. A Rousseau, foi buscar a polémica da para­
nóia. Estas características concentraram o seu ataque contra a auto - satis­
fação liberal e garantiram que quando os contra- ataques surgissem (por
exemplo, de Lafayette ) ele conseguiria converter essa "perseguição" num
triunfo político . Incitando à acção os adversários que retratava como trai­
dores, conspiradores, tiranos ou poltrões, ele poderia retratar-se como o
paladino da liberdade de imprensa. "A liberdade de dizer sej a o que for",
observou ele memoravelmente, "só tem inimigos entre aqueles que pre ­
tendem reservar para si próprios o direito de fazerem sej a o que for. "
Por conseguinte, o papel que ele escolheu foi o do marginal - o
homem que renegara o espírito, a elegância e a obsessão com a beleza em
prol dos imperativos da verdade e da virtude . A própria razão era suspeita,
dado que, como ele escreveu em Junho de 1 7 9 3 , a Revolução quase fora
abortada por homens que preferiam vê -la guiada pela filosofia e não pelas
paixões. Os modos educados eram, como Rousseau bem vira, uma sim­
ples forma de corrupção praticada por " charlatães " . "Pretender agradar a
toda a gente é uma loucura", escreveu ele em 1 79 3 , "mas pretender agra­
dar a toda a gente numa altura de revolução é traição . " Pela mesma
lógica, desagradar ao maior número possível de pessoas era representado
como um sinal da sua integridade . Marat transformou em arte este tipo
de fealdade confrontacionaL para a qual a sua aparência pessoal era ideal­
mente adequada . Os olhos não estavam bem alinhados e cintilavam,
negros, num rosto amplo e chato. Os contemporâneos, que eram muito
629

dados a analogias zoomórficas, dividiram-se sobre a espécie de ave com a


qual Marat mais se assemelhava. O s amigos e admiradores comparavam­
-no com uma águia, os inimigos com um corvo comedor de restos. Para
proj ectar a sua imagem, Marat trocou as vestes perfeitamente convencio­
nais por uma aparência de simplicidade ostentosa: garganta destapada; o
cabelo negro descuidado; ocasionalmente, uma velha écharpe de arminho
aos ombros . Não era a vestimenta de um verdadeiro sans-culotte mas era
adequadamente teatral para um Amigo do Povo. Adorava ser malcriado .
Em Outubro de 1 792, em Paris, quando andava à caça de Dumouriez, que
queria confrontar, Marat irrompeu num j antar oferecido pelo actor Talma
e invectivou o general à mesa. Procuraria a verdade; nada lhe escaparia.
Os seus olhos eram os olhos da vigilância; a sua voz erguia-se para des­
pertar o povo do seu sono letal.
Para a sua adopção da personalidade do Jeremias revolucionário -
sonhador, profeta e arauto da condenação -, era essencial o desafio do
martírio . Tal como Robespierre e muitos outros jacobinos, ele oferecia-se
constantemente à morte para não comprometer os seus princípios, ofere­
cia -se para sacrificar a sua pessoa à vingança dos "liberticida s " . O facto de
Marat empreender frequentemente a fuga perante a aproximação do
perigo não parece ter maculado esta imagem de auto-imolação declarada.
Marat costumava levar uma pistola para a C onvenção, talvez menos para
se defender do que como adereço cénico . Durante um discurso, quando
os girondinos estavam a acusá-lo, ele encostou a pistola à têmpora e
declarou que "se, na fúria que foi demonstrada contra mim, o decreto de
acusação for aprovado, darei um tiro na cabeça " . Noutras ocasiões decla­
rou que ele, a "voz do povo ", estava a ser " abafada", " estrangulada" ou
( mais frequentemente ) "assassinada" .
N o dia 1 3 d e Julho, à s oito d a manhã, Charlotte Corday sai dos seus
aposentos, perto da Rue des Victoires, e dirige -se ao Palais-Royal. É sábado
e os jardins e galerias estão cheios com as pessoas das aldeias vizinhas que
vieram para as celebrações da adesão de Paris à nova constituição, uma
cerimónia intencionalmente agendada para o dia 14 de Julho . Charlotte
caminha por entre colunas decoradas com fitas tricolores e emblemas da
nova república; o nível do carpinteiro, símbolo da igualdade, e o ubíquo
barrete da liberdade . O céu está límpido e as pessoas bebericam limonada
para se fortificarem contra o calor sufocante que parece pairar sobre a
cidade. Charlotte compra um jornal que noticia a exigência de Léonard
B ourdon na Convenção da aplicação da pena de morte aos girondinos .
Numa loj a d a s arcadas, substitui a s u a caennaise branca p o r um chapéu
preto mais airoso decorado com fitas verdes. Cometido o acto, todas as
testemunhas se recordarão deste chapéu verde. Tê -lo-á ela escolhido
como sendo a cor da liberdade, como Camille Desmoulins, em 1 789?
Charlotte Corday transformá-la-á na cor da contra -revolução, que será
Simon Schama 1 CIDADÃOS

proibida, para ruína dos estofadores e retroseiros, de todo e qualquer ves­


tuário público. Numa cutelaria perto do Café Février, C harlotte compra
uma faca de cozinha com uma lâmina de doze centímetros e um cabo de
madeira, e esconde - a debaixo do vestido .
C harlotte ficara desapontada ao saber da doença de Marat, pois pla­
neara matá -lo no seio da C onvenção, à vista dos "representantes da
Nação " . Todavia, consta que o Amigo do Povo mantém a porta aberta para
todos quantos necessitam da sua aj uda ou pretendem fazer uma denún­
cia e ela decide cometer o acto em casa dele . Charlotte terá vagueado
pelas ruas antes de apanhar uma carruagem, dado que quando chega a
casa de Marat são quase onze e meia. No fundo da escadaria que conduz
ao apartamento, C atherine Evrard, irmã da noiva de Marat, Simone,
manda -a embora, dizendo que ele está demasiado doente para receber
visitas e que ela terá de esperar até ele estar recuperado. Frustrada,
Charlotte escreve -lhe uma carta calculada para despertar a sua curiosi­
dade, dando-lhe a entender que poderá informá-lo sobre as conj uras dos
girondinos fugidos em Caen. Pede -lhe uma resposta mas, no seu nervo ­
sismo, esquece -se de escrever a morada.
Charlotte regressa à casa de Marat às sete da tarde, armada com a faca
e com outra carta implorando-lhe que a receba. A sua chegada coincide
com a entrega do pão e dos jornais do dia, e ela já vai a meio das escadas
quando é parada por Simone, desconfiada da insistência de Charlotte em
ver Marat. Ao discutirem, C harlotte levanta a voz para Marat saber que
ela pretende dar-lhe informações especiais sobre os traidores da
Normandia . Ele diz, "Deixa - a entrar". Ela encontra- o no banho, com o
habitual pano húmido atado na cabeça e um braço fora da banheira .
Durante quinze minutos, falam sobre a situação em Caen, na presença de
Simone, até que Marat pede a Simone que vá buscar mais solução de cau ­
lino para a água. Para demonstrar o s e u impecável jacobinismo, C harlotte,
em resposta ao pedido de Marat para que nomeie os conspiradores, enu ­
mera uma lista abrangente . " Ó ptimo", diz Marat, " daqui a uns dias
mando-os guilhotinar a todos . "
Charlotte está sentada numa cadeira mesmo a o lado d a banheira.
Basta-lhe levantar-se, inclinar-se sobre o homem, puxar a faca da parte de
cima do vestido e golpear para baixo e depressa. S ó há tempo para um
golpe, abaixo da clavícula direita . Marat grita, "A moi, ma chere amie!", e
afunda-se na banheira . Quando Simone Evrard entra no quarto a correr,
aos gritos de, "Meu D eus, foi assassinado ! ", um j acto de sangue espicha do
ferimento onde a carótida foi aberta . Simone apenas consegue dizer à
assassina " O que fizeste, malheureuse? " . Laurent Bas, que trabalha para
Marat a distribuir-lhe o jornal, entra na sala a correr, atira uma cadeira a
Charlotte, falha mas consegue prendê- la, como dirá ao tribunal, " agar­
rando -lhe os seios " .
63 1

A tarde está quente e as j anelas estão abertas. O grito de Marat chegou


à rua . Ao ouvi-lo e aos gritos seguintes, Clair D elafonde, um dentista que
vive no prédio oposto, larga o que está a fazer, atravessa a correr o
pequeno pátio e sobe as escadas. Levantando Marat da banheira, tenta
estancar o sangue com toalhas e folhas de papel. Poucos minutos depois,
j unta-se-lhe Philippe Pelletan, um cirurgião militar que também mora
perto. C ontudo, nada do que os dois homens façam consegue parar o san­
gue de correr através das compressas improvisadas . O vocabulário polé­
mico de Marat abundara em imagens sanguinárias. "Devemos cimentar a
liberdade com o sangue do déspota", dissera ele frequentemente . Agora,
o sangue de Marat anuncia um começo, não da liberdade mas do Terror.
Quando chega, o comissaire de polícia local, Guellard, segue o rasto de san­
gue até à casa de banho e depois ao quarto vizinho, onde vê Pelletan de
pé j unto ao corpo. Dizem-lhe que o Amigo do Povo está morto .
C onsumado o acto, C harlotte aguarda impassivelmente o seu destino .
Apanhada praticamente em flagrante, não desej a furtar-se às conse­
quências, mas sim explicar com clareza e frieza os seus motivos.
Autorizam -na . Ela explica calmamente a Guellard que "tendo visto a
guerra civil à beira de eclodir por toda a França e convencida de que
Marat era o principal autor deste desastre, quis sacrificar a vida pelo seu
país " . Uma comissão de seis funcionários, incluindo D rouet, o chefe de
posta que reconheceu Luís XVI em Saint-Menehould, prossegue o inter­
rogatório no apartamento de Marat, enquanto bebem refre s c o s .
Charlotte C orday confessa ter- se deslocado de C aen a Paris com a inten -
ção premeditada de matar Marat mas insiste (para manifesta desilusão
dos investigadores ) que o desígnio foi só seu.
C om as notícias a correrem rapidamente pelo bairro de Saint­
- Germain, j untam-se multidões enraivecidas e angustiadas que querem
fazer a assassina em pedaços . Uma mulher diz que quer desmembrar o
monstro e comer-lhe o corpo aos bocados. D rouet só consegue dissuadi­
-los dizendo-lhes que se matarem o principal criminoso no local, perde ­
rão "os elos da conj ura " . Na prisão da Abadia - cenário dos primeiros
massacres de Setembro -, Charlotte é levada para uma pequena cela que
j á aloj ou B rissot e Madame Roland. S enta -se num colchão de palha e,
enquanto faz festas a um gato preto, escreve uma carta ao C omité de
Segurança Geral (o comité policial da C onvenção ) . C omo se quisesse
garantir que é a única responsável, Charlotte protesta contra a alegada
detenção, por cumplicidade, de Claude Fauchet, deputado girondino e
bispo constitucional de Caen. Além de ter congeminado o plano, insiste
ela, não estimava nem respeitava o homem, que sempre considerou um
fanático frívolo e sem " firmeza de carácter " . Em contraste, em muitas
alturas da sua investigação, Charlotte sublinha a sua determinação e
acredita que teve do seu lado a ilusão de que as mulheres são incapazes
Simon Schama 1 CIDADÃOS

de tais actos. É manifestamente um ponto de honra para ela - repudiando


intencionalmente os estereótipos revolucionários dos géneros - afirmar
que o seu sexo é física e moralmente mais do que forte para cometer actos
de violência patriótica .
Este facto emerge notavelmente dos seus três interrogatórios, dois pelo
presidente do Tribunal Revolucionário, Montané, e um pelo acusador
principal do tribunal, Fouquier-Tinville . Ambos tentam extorquir-lhe
informações que provem a existência de uma grande conspiração giron­
dina para matar Marat. Notam-se sinais de medo sexual da fúria vinga ­
dora de olhos cinzentos, tão evidentemente resoluta . Não terá ela sido
convencida a perpetrar o crime por uma mão masculina controladora?
"Foi matematicamente demonstrado", afirma Jorge C o uthon, nos
Jacobinos, "que este monstro ao qual a natureza deu forma de mulher é
um enviado de B uzot, B arbaroux, Salle e dos outros conspiradores de
Caen . " Todas as linhas de interrogatório se deparam com as mesmas nega­
ções, que são consistentes porque são verdadeiras. No dia 1 7, numa
última conversa com Montané, ela confessa finalmente ser leitora de j or­
nais girondinos mas aproveita para transformar a admissão noutra decla­
ração de indignação j usta.

MONTANÉ : Foi daqueles j ornais que soubestes que Marat era um anar­
quista?
C ORDAY: Sim. Soube que ele estava a perverter a França . Matei um
homem para salvar cem mil . Além do mais, era um açambarcador; em
Caen prenderam um homem que comprava mercadorias para ele . Eu j á era
republicana muito antes da Revolução e nunca me faltou energia.
MONTANÉ : O que quereis dizer com "energia" ?
CORDAY: Refiro-me àqueles q u e põem os s e u s interesses d e lado e sabem
como se sacrificar pela pátria.
MONTANÉ : Não haveis praticado, antes de golpear Marat?
C ORDAY: Oh! O monstro [Montané] toma -me por uma assassina ! ( Neste
momento [lê-se no registo do tribunal] , a testemunha parece violenta­
mente emocionada ) .
MONTANÉ : Mas o relatório médico provou que se tivésseis desferido o
golpe deste modo ( demonstra com um movimento largo ) , não o teríeis
morto .
C ORDAY: Golpeei-o como haveis descoberto . Foi sorte .
MONTANÉ : Quem foram as pessoas que vos aconselharam a cometer este
assassínio?
C ORDAY: Eu nunca teria desferido semelhante ataque a conselho de ter­
ceiros. E u fui a única que concebeu e executou o plano.
MONTANÉ: Mas como quereis que acreditemos que não fostes aconse­
lhada a fazer isto quando nos dizeis que considerais Marat a causa de todos
633

os males da França, um homem que nunca deixou de desmascarar traido­


res e conspiradores?
C ORDAY: Só e m Paris têm as pessoas olhos para Marat. N o s outros depar­
tamentos é considerado um monstro .
MONTANÉ : C omo podeis olhar para Marat como um monstro quando ele
só vos permitiu o acesso através de um acto de humanidade porque lhe
tínheis escrito a dizer que vos perseguiam?
C ORDAY: Que diferença faz que ele se tenha mostrado humano para mim
se era um monstro para os outros?
MONTANÉ : Julgais que haveis matado todos os Marats?
C O RDAY: Com este morto, talvez os outros tenham medo .

D evidamente condenada e sentenciada à morte, Charlotte aguarda a


execução na C onciergerie, para onde foi transferida da Abadia. Em ambas
as prisões foi autorizada a escrever cartas, provavelmente na esperança de
que incriminem terceiros na "conspiração girondina " que as autoridades
acreditam que orientou o assassínio. No dia anterior ao seu j ulgamento,
ela escrevera duas cartas, cada uma num tom diferente. Na carta ao pai,
regressou ao papel convencional da filha obediente, implorando-lhe per­
dão por "ter descartado a minha existência sem a vossa permissão " . Não
havia desonra no que tinha feito, porque "vinguei muitas vítimas inocen­
tes e [mais ingenuamente] impedi muitos outros desastres . . . Adeus, meu
querido pai, peço-vos que me esqueçais ou que vos regozij ais com o meu
destino. A causa é boa " . Ela concluiu retratando-se como uma das heroí­
nas trágicas do seu antepassado, Corneille, morrendo virtuosa. Todavia, a
linha que cita para seu epitáfio não é, infelizmente, de Pierre, o grande
dramaturgo, mas do irmão, Thomas, um autor de segunda categoria:

Le crime fait la honte et non pas ! 'échafaud.


( O que envergonha não é o cadafalso, mas sim o crime . )

A outra carta foi para Charles B arbaroux. Começou-a n a Abadia, retra­


tando -se como uma impenitente Judite normanda mas abençoada com o
seu devido quinhão de sensibilité. "Nunca odiei um único ser humano . . . e
espero que aqueles que lamentarem o meu desaparecimento considerem
que um dia se alegrarão ao verem-me gozar o repouso dos C ampos Elísios
com B ruto e os antigos. Quanto aos modernos, são muito poucos os
patriotas que sabem morrer pelo seu país; tudo é egoísmo; que miserável
povo para fundar uma República . " Na manhã seguinte, durante o j ulga­
mento, ela mostrará aos j uízes e ao j úri "o valor do povo do C alvados, pois
[eles verão que] até as mulheres daquela região são capazes de firmeza " .
Num último e extraordinário acto d e autodramatização, C harlotte per­
gunta ao tribunal se pode mandar pintar o seu retrato antes da execução.
S imon Schama 1 CIDADÃOS

Durante o j ulgamento, ela reparara num oficial da Guarda Nacional que


a desenhava . Sendo um cidadão apreciado na secção (Théâtre -Français ) ,
o oficial, Hauer, é autorizado a regressar à C onciergerie com ela para
transformar o esboço num quadro. São necessárias duas horas, durante as
quais ela lhe sugere alterações. Finalmente, quando são interrompidos
por Sanson, o carrasco, ela tira-lhe a tesoura da mão, corta uma madeixa
de cabelo e oferece - a ao pintor como " uma recordação de uma pobre
mulher que vai morrer" .
A o cair d a noite, Charlotte sobe para o carro que a conduzirá à gui­
lhotina. Recusou os serviços de um padre constitucional e um assento; vai
de pé, e para manter o equilíbrio por causa dos solavancos do empedrado,
encosta os j oelhos à parte detrás do carro . Uma grande multidão de curio­
sos acorre à Rue de Saint-Honoré para ver passar a fúria que perpetrou
tamanho crime. A casa de Pierre Notelet dá para a rua e ele repara que, à
passagem da condenada, o céu escurece subitamente e uma tempestade
estival larga grossas gotas de chuva sobre a poeira. Ela fica encharcada em
segundos, com a camisa escarlate que vestem os assassinos dos "represen­
tantes do povo" colada ao corpo. "O seu belo rosto estava tão calmo", escre ­
verá ele, "que ela parecia uma estátua. Atrás dela, as meninas dançavam de
mãos dadas. Durante oito dias, estive apaixonado por Charlotte Corday. "

A paixão pela assassina podia ser perigosa. Um patriota alemão que


fugira do desastre de Mainz, Adam Lux, teve a ousadia de publicar um
poema comparando Charlotte C orday a B ruto . Em Novembro, depois de
algum debate para determinar se ele era lunático, Lux foi parar à guilho­
tina. Pelo contrário, Marat tornou -se o obj ecto imediato de um culto de
veneração. Depois de Charlotte ter sido levada para a Abadia, foi afixado
um aviso na porta da casa de Marat informando, em versos trágicos, o que
tinha aconteceu:

Povo, Marat está morto: o amante da pátria


Vosso amigo, vosso socorro, esperança dos aflitos
Caiu sob os golpes da horda mirrada [os gírondinos}
Chorai mas lembrai-vos que ele tem que ser vingado

De quando em quando, um sans-culotte de pique na mão lê a declara­


ção à multidão no seu estilo mais grandiloquente .
Na manhã seguinte à morte de Marat, na C onvenção, o drama estóico
torna-se ainda mais refinado. D epois de o presidente, Jeanbon Saint­
-André, ter feito o anúncio da morte de Marat, um representante da sec­
ção Contrat- S ocial, Guiraut, transforma o momento numa representação
teatral:
635

Onde está ele? Uma mão parricida levou-o de nós.


Povo! Marat morreu.

Virando-se para o retrato de Lepeletier pendurando no salão, Guiraut


exclama : " David, onde estás? Pega no teu pincel, tens mais um quadro
para pintar. "
Naturalmente, David mostrou -se à altura da ocasião. Além de criar
uma imagem perene do mártir revolucionário, lançou -se à tarefa de con­
ceber os ritos fúnebres como uma grande demonstração de devoção
patriótica . Seguindo o precedente de Lepeletier, o corpo será embalsa­
mado e exibido ao público durante três dias, após o que se realizará uma
solene e complexa procissão fúnebre . O desafio que se colocou ao artista
foi limpar suficientemente o cadáver de Marat para representar a figura
idealizada e santificada que tinha em mente, deixando provas suficientes
da violência para indicar o sangue derramado pelo herói em nome da
Revolução. Veremos que ele conseguirá esta invocação simultânea de
mortalidade e imortalidade no seu quadro através de artifícios formais bri­
lhantemente inventivas . Todavia, os ritos colocavam alguns problemas
técnicos sérios . O corpo de Lepeletier fora exposto em meados de Janeiro,
com o tempo a contribuir para prolongar o seu período de preservação
natural. Pelo contrário, sob o intenso calor estival, o cadáver de Marat
começou a apodrecer quase de imediato .
Por sete mil e quinhentas libras francesas (materiais incluídos), David
contrata Louis Deschamps, consensualmente considerado o génio da sua
arte, para embalsamar o cadáver. Deschamps e os seus cinco assistentes tra­
balham depressa mas a tarefa é complicada pelas exigentes especificações de
David. O pintor tem em mente uma cena inspiradora específica: o mártir
apresentado em repouso num leito romano, com o rosto numa atitude de
paz sublime . A parte superior do torso será exposta para mostrar o feri­
mento e o braço direito será estendido, com a mão a segurar a pena de ferro
que simboliza a sua incansável devoção ao povo . É um conceito potente
mas significa o pesadelo de qualquer embalsamador. A terrível doença de
pele de Marat tem que ser cuidadosamente disfarçada com cosméticos e o
ferimento, que começou a abrir, cosido para proporcionar o grau adequado
de choque. Dado que a cabeça vai ficar recostada numa almofada, o liga­
mento da língua tem que ser cortado para evitar que ela penda de um modo
impróprio dos mártires. Pior ainda, o braço terá ficado muito deslocado .
O marquês de Créqui, um ci-devant ( que não foi um observador simpático
da cena) , disse que para resolver o problema foi usado o braço de um cadá­
ver diferente mas que uma noite, para consternação dos devotos, o mem­
bro se separou do corpo e caiu ao chão ainda agarrado à pena.
Um quadro anónimo indica o sucesso da exposição na igreja dos
Cordeliers. A cama está enquadrada por panejamentos tricolores desenhados
Simon Schama 1 CIDADÃOS

e fornecidos pelo Patriota Palloy, que também forneceu duas pedras da


Bastilha gravadas, respectivamente, com o nome de Marat e "Ami du
Peuple" . Na fronte de Marat foi colocada uma coroa de folhas de carvalho,
símbolo do seu génio imortal, e o ataúde está coberto de flores . Muito
mais abaixo (a plataforma do ataúde era muito mais alta do que o quadro
sugere ) estão os atributos do martírio: o banho de porfírio, o roupão
ensanguentado, a caixa-escrivaninha com tinteiro e papel. D ispersos pela
capela vêem-se os escritos de Marat.
No dia 1 5 e na manhã do dia 16 de Julho aglomera-se tanta gente na
igrej a que a exposição poderia ter continuado durante muitos mais dias.
Todavia, o processo de decomposição está a acelerar- se. Vinagre e perfume
são periodicamente aspergidos no corpo na tentativa de disfarçar o odor
crescentemente intenso. Nestas circunstâncias, o funeral é adiantado para
a tarde do dia 1 6 . Talvez por causa da pressa com que o evento foi orga­
nizado, verifica -se uma ausência notória de representações formais da
Convenção e dos seus comités. O funeral é praticamente exclusivo do
Clube dos Cordeliers, das outras sociedades populares e das secções .
Numa procissão à l u z d a s velas, com música e canções de Gluck, quatro
mulheres transportam a banheira e outra a camisa ensanguentada na
ponta de um pique. À passagem pelas ruas, as mulheres lançam flores
sobre o rosto pálido de Marat, mas a relíquia principal é a urna de ágata
que contém o coração do herói. Embalsamado separadamente por
Deschamps, é declarado "propriedade natural dos cordeliers" e suspenso da
abóbadado do seu salão de reuniões, onde ficará a balouçar para sempre
sobre as cabeças dos tribunos. O cadáver fica em repouso numa gruta,
rapidamente improvisada pelo arquitecto Martin, no j ardim do clube.
Tal como Jean Guilhaumou realçou, o funeral foi orquestrado em
torno da imperecibilidade do mártir. A imortalidade das suas palavras e
princípios garantia que enquanto a República vivesse, assim viveria
Marat. O seu sangue, copiosamente derramado, não escorreria da pátria,
alimentaria a sua vitalidade - criador de vida em vez de morte . " Que o
sangue de Marat se torne a semente dos republicanos intrépidos", procla­
mou um orador, aspergindo de um cálice um líquido não identificado.
Esta negação da morte não poderia ter sido afirmada de forma mais cate­
górica do que por Jacques Roux ( um dos sucessores do manto de Marat)
no seu j ornal, o Puhliciste de la République Française. "MARAT N'EST POINT
MORT", insiste ele. "A sua alma, libertada do seu invólucro terreno, flui
por todas as partes da República, ainda mais capaz de se introduzir nos
conselhos dos federalistas e tiranos. " Marat, a águia, é liberto para voar
sobre uma França acossada, mergulhando do alto para flagelar os seus ini ­
migos ou espiar invisivelmente as suas maquinações. E stranhamente, esta
versão aérea do Patriota omnisciente alude a muitos dos temas que o pró ­
prio Marat previu nas suas visões da política dos balões .
637

Ascendendo assim d a tumba, Marat recorda naturalmente a o s hagió­


grafos outra ressurreição. Prostrando-se perante a urna de ágata, o corde­
lier Morei entoa:

Oh, coração de Jesus, oh, coração de Marat . . . tendes o mesmo direito à


nossa homenagem. Oh, coração de Marat, sacré coeur . podem as obras e a
. .

benevolência do filho de Maria ser comparadas com as do Amigo do Povo,


e os seus apóstolos aos j acobinos da nossa santa Montanha? . . . O seu Jesus
não passava de um falso profeta, Marat é um deus. Longa vida ao coração
de Marat. . . Como Jesus, Marat amava ardentemente o povo . . . C omo
Jesus, Marat detestava os nobres, os padres, os ricos, os patifes. C omo
Jesus, levou uma vida pobre e frugal . . .

Não obstante este exemplo extremo, a sacralização de Marat torna-se


um instrumento poderoso da propaganda revolucionária . De facto, Marat
morto foi provavelmente mais útil para os jacobinos do que o imprevisí­
vel e colérico político . Simone Evrard foi mobilizada em seu nome para
atacar os enragés quando chegou a altura da sua eliminação política . Para
defender Paris e a França das "conj uras" que o tinham destruído, a dita ­
dura revolucionária que ele recomendara tem de ser rapidamente imple ­
mentada. A identificação c o m Marat torna - s e rapidamente u m
testemunho d e pureza revolucionária. O s nomes d e muitos lugares são
alterados: Montmartre torna -se Mont-Marat; a Rue des Cordeliers passa a
ser Rue Marat; por toda a República, mais de trinta comunas incorporam
o mártir no seu novo nome . Um busto do grande homem substitui a está­
tua da Virgem na Rue aux Ours, e na Rue de Saint-Honoré abre um res ­
taurante chamado Grand Marat. C anções como "La Mort du Patriot
Marat" tornam-se imediatamente populares e no Théâtre de la C ité, uma
peça dramatizando a sua morte torna -se um sucesso imediato . Em
Setembro, dois padres casados baptizam um bebé, " em nome da Elevada
Liberdade ", B ruto-Marat-Lepeletier. Até o j ovem soldado Joachim Murat,
que será o mais espampanante dos marechais de Napoleão e rei de
Nápoles, adere ao culto substituindo no seu nome o u pelo a .
Gravuras representando o herói e o modo como morrera circulam em
quantidades enormes por toda a França, muitas delas distribuídas pelos
clubes jacobinos, mas são ofuscadas pela obra -prima de D avid, terminada
em Outubro . O estúdio de David abre as portas ao público, a secção do
Muséum dá uma grande festa de celebração e o quadro - bastante alar­
mantemente - é levado em triunfo, j untamente com o Lepeletier de
David, para o Louvre, onde ocupa um lugar de destaque no primeiro
Salon da República.
Todas as gerações têm visto este quadro como uma transfiguração, um
relato espantosamente realista do assassínio e, ao mesmo tempo, uma
Simon Schama 1 CIDADÃOS

pietà revolucionária . O sangue do mártir surge em abundância, retratado


com uma nitidez chocante . Marat banha-se no seu sangue . O vermelho­
-escuro e o branco da morte estão j untos e são omnipresentes : o sangue
macula a pureza da folha. Mancha a carta de Corday; empapa a faca, cuj o
cabo David alterou de madeira para marfim, para melhor manter o con­
traste . Ao pé da mão de Marat, vêem-se os documentos irrespondíveis da
sua santidade. E stão sobrepostos num claro contraste moral. A carta hipó­
crita da assassina implora, "basta que eu estej a infeliz para ter direito à
vossa benevolência ", enquanto os papéis em cima da secretária de Marat
o revelam como o verdadeiro Amigo do Povo. Ao lado de um papel­
-moeda, David colocou uma nota na mão de Marat com instruções para
que sej a dado a uma viúva com cinco filhos cuj o "marido morreu pela
patrie". No coração moral do quadro existe, assim, uma morte dentro de
uma morte, iluminada pela luz constante e fria da imolação.

II "O TERROR ESTÁ NA ORDEM D O DIA"

Quando o sol de Agosto se ergue sobre o lugar da Bastilha, um coro de


raparigas vestidas de branco saúda - o com o Hino à Natureza de Gossec.
O espaço foi redesenhado de modo a que árvores e arbustos dêem teste ­
munho da vitória da Natureza benigna sobre as pedras mortas do despo­
tismo ( estas evidentemente fornecidas por Palloy ) . Neste local,
rebaptizado C ampo de Reunião, uma multidão enorme assiste aos ritos do
druidismo revolucionário . Terminada a cantata baseada no panteísmo
extático do Vigário de Rousseau, o presidente da C onvenção, Hérault de
Séchelles, sobe lentamente uma escadaria branca . S entada no topo, vê-se
uma estátua de estilo egípcio, entronada entre leões. As mãos tapam pei­
tos de onde j orra água para um pequeno tanque. Saudando a estátua e a
multidão, o orador dirige -se-lhe como à incarnação da Natureza, cuj a
fecundidade abençoa a Revolução e, em particular, aquele dia - "o mais
belo que o Sol alguma vez iluminou desde que foi suspenso na imensidão
do espaço " .
Apontando com cuidado, e l e estende u m cálice antigo para apanhar o
fluido milagroso e verte - o no solo, rebaptizando - o em nome da Liberdade.
Depois de beber uma segunda taça, é imitado no ritual por oitenta e seis
idosos, cada um dos quais representa um departamento da França.
Avançam ao som do rufar dos tambores e das fanfarras, faz-se silêncio
enquanto bebem e depois o canhão acompanha o beij o fraterno.
Esta cerimónia extraordinária foi concebida por D avid com uma
equipa de colaboradores que incluiu Gossec e Marie-Joseph C hénier, para
consumar a aceitação formal da nova constituição. Foi concebida para
recriar a história da Revolução num desfile alegórico, deslocando uma
639

grande multidão de lugar em lugar e culminando no Campo de Marte,


onde as "tábuas" da constituição forma colocadas no altar da patrie. Este
Festival da Unidade e da Indivisibilidade tem lugar no dia 1 0 de Agosto, o
primeiro aniversário do derrube da monarquia, e é um evento suprema ­
mente parisiense. Como que reafirmando que Paris foi a Revolução, usa a
topografia da cidade como uma série de cenários teatrais, cada um dos
quais se refere a um momento do passado recente, do presente transfor­
mador e do futuro indeterminado mas benigno.
Segundo Mona Ozouf, a historiadora dos festivais revolucionários, o
festival também é uma alternativa cuidadosamente planeada às desordens
e actos de violência espontâneos que a liderança jacobina considera cada
vez mais desagradáveis mesmo quando beneficia com eles. O povo caótico
deve ser intimidado (logo, anulado ) por estátuas colossais que represen­
tam, entre outras coisas, o Povo, por música expansiva composta para
coros enormes ( Gossec compôs cinco cantatas para esse dia ) e por uma
oratória e uma pirotecnia imponentes . Jacques -Louis David honra o povo
com a sua própria importância seguramente aprisionada no universo
calmo e adamantino dos símbolos.
Por conseguinte, a segunda " estação" das cerimónias é um arco triun­
fal erigido na avenida dos Italianos . Num repúdio deliberado das vitórias
césaro-monárquicas, os guerreiros celebrados são as mulheres de 5 de
Outubro de 1 7 89, que levaram o rei de Versalhes para Paris. No entanto,
a imagem perturbantemente potente das beligerantes poissardes escarran­
chadas nos seus canhões foi cuidadosamente neutralizada em conformi­
dade çom a doutrina rousseauana -jacobina do papel de mulher-mãe que
cabe às mulheres patriotas. As mulheres autênticas de Outubro foram
substituídas por actrizes alindadas de frontes coroadas com louros, que
lhes dizem: "Mulhere s ! A liberdade atacada pelos tiranos precisa de heróis
para a defender. Cabe-vos gerá-los. Deixai as virtudes marciais e genero­
sas fluir no vosso leite materno e no coração das mulheres carinhosas da
França" .
O momento mais espectacular d o dia ocorre na " estação" seguinte, na
Praça da Revolução. O pedestal que outrora sustentou a estátua de Luís
XV foi ocupado pela figura da Liberdade entronizada. Tem aos seus pés
uma colecção de atributos da realeza: ceptros, coroas, orbes e até bustos,
um dos quais se assemelha ao j ovem Luís XIV. Tal como as pseudo-pois­
sardes, a maioria é falsa, oriunda dos armazéns de adereços dos teatros de
Paris e transportada num imenso caixão da B astilha até à estátua. A um
dado sinal, é lançada uma tocha para a pilha e quando as chamas come­
çam a emergir do fumo, é libertada para o céu uma grande nuvem de três
mil pombas brancas. As pombas são um coup de théâtre espantoso, tradu­
zindo a libertação da França da monarquia, ascendendo num límpido céu
azul como emblemas de paz cristã e liberdade republicana .
Simon Schama 1 CIDADÃOS

O dia foi obviamente uma fantasia construída com complexidade e


executada de forma operática . Até os observadores cépticos que consi­
deraram tudo aquilo um disparate, tais como o artista Georges Wille, se
confessaram emocionados e entusiasmados com os rituais, e as multi­
dões sentiram certamente o mesmo . Porém, não obstante a bravura da
ocasião, as cerimónias tiveram algo de ligeiramente desesperado e
defensivo, pois foram construídas sobre a negação sistemática das reali­
dades revolucionárias. A constituição, rescrita por Hérault de Séchelles
a partir do desacreditado proj e cto de C ondorcet, apresentado em
Fevereiro, oferece o sufrágio universal masculino, eleições directas e até
o compromisso do Estado com um " direito de subsistênci a " . Todavia, o
milhão de eleitores que a ratificou é insignificante ao lado dos seis
milhões que se abstiveram - por confusão ou prudência -, e logo que foi
aceite foi tornada insignificante, primeiro pela própria C onvenção,
incumbida de se autodissolver aquando da conclusão do documento, e
depois pela construção das instituições funcionais do Terror, que se
impuseram a todas as suas disposições.
O mais desafiante e optimista de todos os monumentos de David seria
provavelmente nos Inválidos, onde ele construiu um Hércules gigantesco
representando o povo francês a esmagar o federalismo. Hércules era fami­
liar como um dos atributos normais dos príncipes da renascença, e com
Henrique IV fora apropriado como "Hércules Gálico " . Na versão de David,
um braço prepara-se para golpear o mostro do federalismo que estrebu­
cha aos seus pés e o outro envolve os fachos do lictor romano, represen­
tando a unidade dos departamentos da França.
Contudo, em meados do Verão de 1 79 3 , este desfecho feliz de um Povo
omnipotente e unido vencendo os seus inimigos não está garantido. Há
algumas notícias boas. No dia 1 3 de Julho, o modesto "exército" nor­
mando comandado por de Puisaye encontra uma força republicana em
Pacy- sur-Eure. Ambos os lados debandam quando ouvem os primeiros
tiros de canhão mas os federalistas fogem mais depressa e para mais longe,
o que os deixa mais desmoralizados. Dado que partes significativas da
Normandia não se j untaram à causa, este acontecimento significou o fim
da tentativa de criar um arco federalista do Pas - de - C alais à Alta B retanha.
No Sul, em 2 7 de Julho, o general Carteaux reconquistou Avinhão à
pequena força expedicionária de Marselha, impedindo uma junção entre
os federalistas do Midi e os de Lião .
Todavia, estas vitórias cruciais são contrabalançadas por uma série
alarmante de desastres . Durante as duas últimas semanas de Julho, as for­
talezas fronteiriças de C ondé e Valenciennes caem perante o exército aus­
tríaco de C oburgo, que depois sitia Maubeuge. Se este último bastião cair,
o vale do Mame ficará aberto para um avanço sobre Paris. No Reno, o
general Custine decide evacuar Mainz e deixá-la nas mãos dos Prussianos
641

( é prontamente declarado traidor em Paris ) . No Nordeste, na Holanda, o


exército do duque de York avança sobre Dunquerque, e no Sudoeste, os
E spanhóis ameaçam Perpignan. Na Vendeia, os pequenos sucessos não
compensaram duas grandes derrotas, em Châtillon e Vihiers . Os generais
sans-culottes, tais como Ronsin e Rossignol, envolvem-se em quezílias com
ci-devants como Biron, o velho camarada de armas de Lafayette, e Barere
compara o exército republicano ao trem de bagagem do rei da Pérsia:
arrasta 1 2 0 carroções atrás de si, ao passo que os "bandidos" marcham
com uma côdea de pão nas sacolas. As cidades federalistas foram separa­
das mas não derrotadas. Sabe -se que Marselha e Toulon estão a negociar
o abastecimento de provisões pela esquadra britânica e os lioneses res ­
pondem à proscrição d a s u a rebelião pela C onvenção executando C halier
no dia em que C harlotte Corday morre na guilhotina.
O que agrava esta alarmante situação são as profundas divisões ( não
obstante o culto da unidade ) existentes no seio das várias autoridades e
facções revolucionárias quanto à melhor maneira de fazer face à crise. Até
ao dia 1 0 de Julho, a presença dominante no C omité de Salvação Pública
foi Danton. Mas Danton vê-se confrontado com o mesmo dilema que
sabotou os governos dos girondinos, dos feuillants e do rei: como criar um
Estado viável no meio do caos político? A sua resposta, semelhante às de
todos os seus antecessores - exceptuando o rei - é pragmática e não dog­
mática. No entanto, Danton é suficientemente astuto para dissimular o
pragmatismo com veemência retórica . Na tribuna, ignora as críticas atra­
vés da sua violência oratória. Ao contrário de Robespierre, cuj a retórica é
relativamente monótona e académica e que depende, para persuadir, de
argumentos cuidadosamente construídos e de confissões de integridade
pessoal, Danton desenvolveu um estilo improvisado e imprevisível .
À semelhança de Mirabeau ( com o qual muito se parece ) , ele usa com o
máximo efeito a sua cabeça grande e sólida, que os contemporâneos com­
param amiúde à de um touro, rosnando aos inimigos e ribombando com
a voz até a C onvenção lhe dar o seu assentimento .
No Verão de 1 7 9 3 , os conselhos de D anton denotam contenção e cep­
ticismo. B randindo a moca do ridículo, ele ataca Anacharsis Cloots, em
particular, pelo seu messianismo revolucionário, que pretende levar a
revolução em armas cada vez mais longe das fronteiras da França, até à
formação de uma república universal. Não disse inclusivamente Cloots
que não descansaria até haver uma república na Lua? Para já, observa
D anton aos deputados, basta salvar a França . Para o fazer, ele está disposto
a empreender iniciativas que condenou violentamente um ano antes,
quando a República se viu confrontada com uma situação semelhante. Tal
como D umouriez, Danton pretende afastar os Prussianos da coligação.
Não é provável que o imperador austríaco se sente à mesa das negocia­
ções - a sua posição militar parece poderosa - mas Danton acredita que a
Simon Schama 1 CIDADÃOS

segurança de Maria Antonieta pode ser usada como trunfo diplomático e


resiste à exigência da C onvenção de a j ulgar em tribunal.
Ao mesmo tempo, oferece termos relativamente magnânimos ao Isere
e a outros departamentos que se inclinaram para o federalismo mas que,
dando mostras de prudência, não se comprometeram militarmente.
Danton vai ao ponto de abordar Montpellier com o obj ectivo de desviar
as tropas federalistas de Paris e lançá -las sobre Lyon. Na Vendeia, B iron foi
incumbido de sondar a possibilidade de um acordo político, e o general
Westermann, outro aliado de Danton, procura impor a disciplina do
antigo exército de linha aos generais sans-culottes. Finalmente, em Paris,
Danton opõe -se às propostas para a imposição de um Terror económico -
controlo alargado dos preços, assistência aos pobres financiada por
empréstimos obrigatórios draconianos e impostos sobre os ricos - que sur­
gem dos enragés e da C omuna .
No dia 2 5 de Junho, o aparecimento espantoso de Jacques Roux na
Convenção parece ir ao encontro do pragmatismo de D anton. Roux vem
acompanhado por um grupo de sans-culottes e pede para ler uma declara­
ção aprovada pelas secções de Gravilliers e Bonnes-Nouvelles e pelo Clube
dos Cordeliers . Trata- se, na verdade, de uma diatribe contra os deputados.
"Legisladores", grita ele, "não haveis feito nada em prol da felicidade do
povo . Há quatro anos que só os ricos beneficiam com a Revolução . "
A "aristocracia comercial, ainda mais terrível d o que a nobreza, j oga um
jogo cruel com . . . o tesouro da República" . E o que foi feito para extermi­
nar estes "vampiros " ? Nada . Foi promulgada a pena de morte contra o
açambarcamento? Foi o povo protegido contra os brutais aumentos de
preços causados pelos especuladores?
Enquanto Roux fala, os deputados, irritados, mexem-se nas cadeiras,
tossem concertadamente, fingem suspiros e olham para o tecto. É o tipo
de coisa, pensa Barere, que eles têm de aturar para fazer a vontade aos
sans-culottes. No entanto, cinco minutos depois do início do discurso, uma
observação do orador põe-nos a todos direitos nos lugares ou de pé, indig­
nados, aos gritos e brandindo papéis face ao atrevimento do homem. Disse
ele: é "a vergonha do século XVIII . . . que os representantes do povo
tenham declarado guerra aos tiranos externos mas sido demasiado cobar­
des para esmagar os de França [os ricos] . O Antigo Regime nunca teria auto­
rizado que os bens de primeira necessidade fossem vendidos pelo triplo do preço" (a
ênfase é minha ) . A nova constituição nada fará para remediar as desgra­
ças e a C onvenção continua a cometer o crime de lesa-nação ao permitir
a depreciação do papel-moeda e abrir a porta à bancarrota.
A imputação de que a República é mais dura para o povo comum do
que a Monarquia é tão chocante que alguns dos inimigos de Roux ( são
muitos e há-os em quase todas as facções da C onvenção) insinuam que
ele está a fazer um frete aos contra- revolucionários . Roux vai parar à
643

cadeia e o Comité de Segurança Geral levou a cabo uma campanha agres ­


siva e m Gravilliers q u e força as autoridades d a secção a distanciarem-se
dele . A verdade é que com a sua sinceridade tosca, Roux proclamou uma
verdade essencial. Muitos daqueles cuj a violência, em 1 788 e 1 789, tor­
nou Paris ingovernável, possibilitando assim o êxito da Revolução, nunca
foram grandes entusiastas do liberalismo ou do individualismo económi­
cos . Muita da sua fúria fora uma reacção contra o funcionamento impre ­
visível e impessoal do mercado . Agarraram-se à mentalidade tradicional
que vê no aumento dos preços e nas carestias a mão de uma "conj ura da
fome", pelo que, longe de quererem desmantelar as protecções habituais,
pretendem uma política mais intervencionista . Não são apenas indiferen­
tes, são hostis a uma grande parte das iniciativas modernizadoras e refor­
mistas levadas a cabo pela Monarquia e pelos sucessivos regimes
sucessores.
Isto colocou-os em choque com a elite revolucionária, incluindo a
maioria da liderança jacobina . Ainda em Fevereiro de 1 79 3 , os motins das
mercearias provocaram denúncias contra a fixação dos preços pelos popu­
lares através da ameaça ou da concretização da violência. Porém, no
Verão, o pão está a ser vendido a 1 2 soldos o quilo e uma grande parte do
programa dos enragés - a pena capital para os açambarcadores e especula­
dores, tectos para os preços e aceitação obrigatória do papel-moeda - tor­
nam - se artigos de fé não apenas nos Cordeliers mas também na C omuna .
O discurso de Robespierre, no Outono, declarando que os direitos de pro ­
priedade não são absolutos e que estão limitados pela responsabilidade de
não prej udicar a subsistência de terceiros, abriu caminho para uma séria
mudança de atitude de uma parte dos próprios j acobinos. Tornam-se
comuns os ataques aos riches égo"istes e às " sanguessugas ", bem como as
propostas de aplicação de impostos progressivos e de colectas forçadas aos
ricos para subsidiar as obras públicas assistenciais, e de fixação de tectos
para os preços.
O ponto de viragem crucial dá-se em meados de Julho. Minada pela
sucessão de reveses e pelo aumento do caos, a posição dantonista cai por
terra. Westermann é chamado a Paris, possivelmente para enfrentar o
Tribunal Revolucionário, e a forma negligente como Danton se defende a si
próprio e aos seus aliados nos Jacobinos também não aj uda. Quando, no dia
1 0 de Julho, em novas eleições, a Convenção não reconduz Danton nem o
seu colega Lacroix no C omité de Salvação Pública, ele não parece muito
preocupado. Pelo contrário, dá mostras de um alívio visível por recuperar a
sua liberdade de acção fora do governo. Possivelmente, calculou que a posi­
ção em que a República se encontra é tão grave que nenhum governo revo­
lucionário poderá sobreviver sem um novo sobressalto de caos.
Mas estes cálculos revelam-se completamente errados. Depois da morte
de Marat, o C omité de Salvação Pública, reduzido e depois reconstruído,
Simon Schama 1 CIDADÃOS

converte-se rapidamente no aparelho de E stado mais concentrado que até


então existiu em França, dedicando-se à espinhosa governação revolucio­
nária com uma determinação que escapou a todos os seus predecessores.
Pela primeira vez desde B rienne ou mesmo do chanceler Maupeou, os
interesses do Estado -guerreiro recebem prioridade absoluta sobre os da
expressão política . O Terror representa, pois, a liquidação do sonho inicial
da Revolução, o sonho de que a liberdade e o poder patriótico, além de
conciliáveis, eram mutuamente dependentes. Por conseguinte, o aspecto
aparentemente mais irreprimível da Revolução Francesa - a sua eferves ­
cência política - viu -se fechado n a garrafa da ditadura nacional. A política
tinha de acabar para que o patriotismo vingasse. Será este o credo funda ­
dor do bonapartismo .
E ste novo E stado revolucionário vai ter quatro vertentes : o regresso
à regulação económica tradicional, a mobilização maciça dos recursos
militares, a reabsorção pelo Estado dos poderes de violência punitiva e
a substituição da política espontânea por um programa de ideologia ofi ­
cial ( dá que pensar constatar que os quatro elementos desta lista pode­
riam descrever igualmente a França de Luís XIV ) . O s homens que se
dedicam a estas missões estão, finalmente, equipados de forma ideal
para o desempenho da tarefa. Robespierre, S aint-Just e Georges
C outhon são ideólogos que representam com eloquência o C omité j unto
da C onvenção e orquestram cuidadosamente o calendário e a intensi­
dade das ofensivas j u diciais destinadas a impedir movimentos de flanco
contra o C omité, quer dos apoiantes de D anton, pela direita, quer dos
de Hébert, pela esquerda. Enquanto Robespierre e Saint-Just oferecem
uma retórica acusatória exaltada contra as " conspirações estrangeiras",
Bertrand Barere e Hérault de S é chelles organizam os deputados da
Planície, sem cuj o assentimento a ditadura não será sustentável. Outro
grupo de membros do C omité vê -se como burocratas de guerra, gesto ­
res logístico s . Lazare C arnot e Prieur de la C ôte d ' O r, ambos engenhei­
ros, tomam a seu cargo o aprovisionamento do Exército, Jeanbon de
Saint-André o da Marinha. O ex-padre Robert Lindet torna - se chefe da
C omissão das Subsistências, que desloca quantidades gigantescas de ali­
mentos para o Exército e para os ,grandes centros populacionais. Um ano
mais tarde, estas duas visões diferentes de uma França temperada no
fogo da guerra despedaçarão o C omité de S alvação Pública . Para os
burocratas e engenheiros - herdeiros da paixão da monarquia pela
governação tecnológica -, o conceito rousseauniano de Robespierre da
República como uma empresa imensa de instrução moral parecerá não
só rebuscado como até subversivo . No entanto, durante os próximos
nove meses, enquanto a República vence inexoravelmente os seus ini ­
migos, a divisão do trabalho dos homens que regem o Terror funciona
com muito poucas fricções.
645

A primeira prioridade é a neutralização dos centros de oposição. As


disposições eleitorais da nova constituição, que são bastante democráticas,
podem conduzir a uma descentralização de poder ainda maior. Por con­
seguinte, a 1 1 de Agosto, um dia depois da festa que celebrava a sua acei­
tação, é rej eitada com indignação uma proposta de dissolução da
C onvenção e de realização de novas eleições. Além do mais, tendo em
conta que os sucessivos governos revolucionários caíram perante grupos
insatisfeitos preparados para patrocinar ou legitimar insurreições popula­
res, os candidatos em presença - os apoiantes de Hébert na C omuna - têm
que ser isolados dos seus peões das secções. Tal como Hébert e Chaumette
fizeram sua a doutrina enragé ( descartando os enragés ) , os jacobinos estão
preparados para atacar preventivamente os hébertistas . Não se trata ape­
nas de tácticas políticas . Em finais de Julho, um número decisivo de mem­
bros do C omité e da C onvenção está convencido de que as medidas às
quais tanto tempo resistiram são agora indispensáveis para a sobrevivên­
cia da República.
No dia 26, por exemplo, a C onvenção aprova finalmente a proposta de
C ollot d'Herbois de instituição da pena de morte para os açambarcadores.
A mesma lei enumera uma longa lista de "bens de primeira necessidade "
que, além do pão, do sal e do vinho, incluem a manteiga, a carne, os legu -
mes, o sabão, o açúcar, o cânhamo, a lã, o azeite e o vinagre . Qualquer
pessoa na posse de produtos deste cabaz fica obrigada a informar as auto ­
ridades no prazo de oito dias. C om esta informação, os municípios podem
obrigar os grossistas ou os retalhistas a colocar os seus produtos no mer­
cado, sob pena de serem declarados "açambarcadores". No dia 9 de
Agosto, é dado outro passo de gigante para trás - para a prática pré-Luís
XVI - quando, a instâncias de Léonard B ourdon ( deputado por Gravilliers,
logo, especialmente interessado em frustrar as manobras de Jacques
Roux) , são estabelecidos por todo o país "greniers d 'abondance" ( silos para
armazenamento de cereais) . Em alturas de boas colheitas, o cereal exce­
dentário será armazenado para fazer frente aos anos magros, quando
poderá ser colocado no mercado para baixar os preços. Este acto " revolu­
cionário" é mais ou menos idêntico a uma das instituições reguladoras do
Antigo Regime, sendo a única diferença que com a monarquia as provín­
cias tinham mais autonomia para actuar do que a que lhes é concedida
pelo paternalista Terror económico .
Estas medidas pressupõem obviamente a existência de uma grande
rede de informações sobre as culturas e as colheitas, o que, por sua vez,
implica uma intrusão inédita do Estado burocrático na economia rural.
Nem o Terror dispõe de recursos adequados para este gigantesco exercício
de bisbilhotice, e a situação degenera com frequência em armées révolu­
tionnaires de sans-culottes, enviados para impor o Terror económico, a
saquear as aldeias em busca de sacas de trigo ou a guardar os campos para
S imon Schama 1 CIDADÃOS

impedir os camponeses de fazerem a safra com o cereal ainda verde em


vez de o entregarem aos preços ditados.
Nas mesmas linhas, a resposta de C ambon à depreciação do papel­
-moeda é desmonetarizá -lo, desassociando- o dos valores nominais defini­
dos pela antiga moeda metálica real. E sta medida é tomada parcialmente
em deferência às obj ecções contra o facto de o dinheiro ainda ter a ima­
gem do rei. No entanto, espera -se que através deste truque de ilusionismo
os produtores deixem de tratar o papel-moeda como uma fracção do
dinheiro "verdadeiro" e se abstenham dos inevitáveis aj ustamentos para
cima dos seus preços. Em consonância com este ingénuo exercício de
ideologia financeira, a B olsa é encerrada, atirando oficialmente para o
desemprego os "vis especuladores" que infestam o mercado financeiro e
criando de imediato um mercado negro de moeda metálica. Ao mesmo
tempo, o E stado decide restaurar o segredo nas decisões relativas à emis­
são de dinheiro.
Quando se verifica a esperada journée revolucionária seguinte, nos dias
4 e 5 de S etembro, os oradores da C omuna que exigem a protecção eco­
nómica e a punição agressiva dos malfeitores dão consigo a bater a uma
porta aberta . D e facto, um grupo importante de jacobinos incitou à insur­
reição com uma manifestação de massas perante a C onvenção, no dia 2 3
de Agosto, durante a qual foi exigida uma purga dos nobres d o exército,
uma política mais inclusiva em relação aos suspeitos e a constituição de
um "exército revolucionário" de sans-culottes para velar pela aplicação da
legislação revolucionária nos departamentos. No dia 28, os jacobinos
foram ao ponto de " convidar" as secções de Paris a expressar estas exi­
gências através de uma petição ao governo. Todas as provas apontam,
pois, não para um movimento anónimo e espontâneo dos militantes e dos
pobres, mas para uma estratégia cuidadosamente trabalhada. No dia 2 de
Setembro, Hébert apela especificamente às secções para que se j untem à
Comuna na petição a enviar à C onvenção, mas parece ser apanhado de
surpresa dois dias mais tarde, quando multidões de trabalhadores desem­
pregados, maioritariamente oriundos da secção do Templo, entram à força
na Câmara Municipal.
Mas os líderes da Comuna viram a situação a seu favor. No C onselho
Geral, Chaumette sobe para cima de uma mesa e declara que "temos
guerra aberta entre ricos e pobres" e exige que o armée revolutionnaire sej a
imediatamente mobilizado e enviado para o campo para descobrir a s
maquinações d o s malveillants e d o s riches égoistes, libertar a comida das suas
garras e entregá-los ao castigo republicano. Para agilizar as coisas, Hébert
sugere que cada batalhão leve consigo uma guilhotina móvel. Esta exigên­
cia, diz ele, deverá ser apresentada à C onvenção no dia seguinte .
Tendo ordenado também o encerramento das oficinas, a Comuna
garante que a C onvenção é cercada por uma grande multidão, como
647

aconteceu no dia 3 1 de Maio . Embora Robespierre, em particular, não


queira partilhar o seu assento com o "Povo" que, no entanto, abraça reto­
ricamente na tribuna, os acontecimentos do dia não devem ser lidos como
uma imposição do " sans -culottismo" a uma Convenção relutante e ame ­
drontada . De facto, a ocasião não é dominada pela crise económica mas
pelas notícias catastróficas de que Toulou abriu o porto à esquadra britâ ­
nica do almirante Hood. Instala-se uma atmosfera de emergência patrió ­
tica na qual Danton e B arere estão como peixe na água . Não se torna,
pois, difícil decretar que "o terror estará na ordem do dia ", dado que a
C onvenção e o C omité de Salvação Pública têm praticamente a certeza de
que vão ser os seus carrascos .
Na forma em que a sua criação é promulgada, no dia 5 de Setembro,
o armée revolutionnaire está muito longe de ser uma massa de esquadrões
de vingança republicana. Em vez do grande exército sans-culotte de cem
mil homens imaginado nas petições ou dos trinta mil efectivos exigidos
pela C omuna, a Convenção autoriza uma força de apenas seis mil infan­
tes e mil e duzentos cavaleiros, para operarem na região de Paris ( con­
tudo, até ao fim do ano, a criação de exércitos departamentais aumentará
o número total de efectivos para quarenta mil, dispersos por todo o país ) ,
e também não lhe são concedidos o s poderes punitivos sumários previs­
tos por Hébert. Para os jacobinos, trata-se menos de lançar uma missão
republicana do que exportar alguns dos militantes mais irrequietos para o
campo e de aplicar força na questão crucial do abastecimento alimentar
da capital. C om a mesma cajadada, eliminam dois dos seus problemas
mais intratáveis.
Seguindo a mesma orientação táctica, D anton surge com o esquema
particularmente inspirado que parece uma abdicação face aos militantes
mas que, na realidade, constitui o primeiro passo decisivo para minar a sua
base de poder. Danton compreendeu, talvez nos seus primeiros tempos da
"república dos C ordeliers ", que aqueles que se auto-intitulam sans-culottes
e que dizem pertencer à arraia-miúda não são, nem de perto nem de longe,
os pobres assalariados. Na verdade, muitos dos principais seccionistas -
nunca mais de 1 0 % da população adulta masculina dos respectivos bairros
- nem sequer são mestres-artesãos. São predominantemente membros de
ofícios, comerciantes, intelectuais de segunda e j ornalistas, e garantiram a
sua ascendência nas secções pela sua incansável assiduidade nas socieda­
des populares e nas assembleias de secção, e entrando para os quadros das
instituições locais, tais como os comités revolucionários de vigilância.
Atacando-os com a sua própria retórica, Danton propõe acabar com a "per­
manência" das assembleias de secção e limitar as reuniões a duas por
semana, com os sans-culottes a serem pagos quarenta soldos por presença .
Esta proposta, envolta em imperativos patrióticos, parece uma forma de
subsidiar a participação do povo comum na política democrática mas o que
Simon Schama 1 CIDADÃOS

os jacobinos têm em mente é exactamente o oposto: o cultivo de uma


base de poder j unto dos pobres que sej a menos e não mais susceptível ao
controlo da C omuna. Sabem o que estão fazer. Mais dinheiro e menos
política é precisamente o que o desgraçado assalariado quer ouvir, e se de
vez em quando receber um pequeno bónus por baixo da mesa - para
espiar em nome do Comité de Segurança Geral ou promover a desorga­
nização das secções onde os hébertistas são fortes - melhor. Todas estas
medidas podem ser reforçadas com a decisão (tomada em nome da con­
tenção da " anarquia" ) de substituir os comités revolucionários locais por
órgãos devidamente nomeados e responsáveis perante os comités execu ­
tivos da C onvenção.
Longe de ser o ponto alto da democracia popular, o 5 de Setembro é o
princípio do fim da insurreição revolucionária em Paris, e é também o fim
da inocência revolucionária . Em vez de ser constantemente apanhada de
surpresa pelas contingências e pelas circunstâncias imprevistas das suas
acções, a elite jacobina aprendeu a manipular a linguagem e as tácticas da
mobilização popular para o reforço - e não para a subversão - do poder
do E stado . É um momento faustiano .
C om o 5 de Setembro para trás, o C omité de Salvação Pública e a
C onvenção podem ignorar sem problemas algumas das exigências mais
excessivas da C omuna . Não haverá nenhuma purga dos oficiais do exér­
cito aristocráticos; o armée revolutionnaire não terá poderes sumários de
vigilância, julgamento e punição, devendo limitar- se à aplicação das leis
da C onvenção. A 1 1 de Setembro é aplicado um maximum aos cereais, e
no dia 2 9 os preços de quarenta produtos de mercearia e domésticos são
fixados no máximo de um terço acima do seu preço em 1 7 9 0 . C ontudo,
ao mesmo tempo, o governo também se reserva o direito de fixar um
maximum para os salários. Previsivelmente, os resultados imediatos desta
ambiciosa regulação são desastrosos. Logo que os preços tabelados são
anunciados, as loj as são esvaziadas por milhares de pessoas, o que cria
uma carestia imediata. Esgotadas as existências, os produtores recusam-se
a fornecer novos produtos - empregam- se trabalhadores famintos como
vérificateurs para procurar em loj as, caves e sótãos barras de sabão ou sacos
de açúcar escondidos.
Em última análise, o maximum, o subsídio de quarenta soldos e o armée
revolutionnaire devem ser vistos como modos improvisados através dos
quais o C omité de Salvação Pública conteve as consequências políticas da
fome . Todavia, nenhum deles resolve a questão crítica da mobilização mili­
tar. Afinal de contas, a Revolução começou como uma discussão patriótica
sobre as deficiências do Estado francês, e os seus mais recentes guardiães
dependerão do veredicto do combate. Embora gerações posteriores se
tenham autocongratulado imaginando que os Franceses criaram um
grande "império do direito" na Europa que dominaram durante as duas
649

décadas seguintes, Gabriel Hanotaux, historiador do século XIX, descre ­


veu - o com precisão como um " império do recrutamento". Para bem ou
para o maL foi como bandeira militar que a tricolor apareceu de Lisboa ao
C airo .
Por conseguinte, de todas as inovações de 1 79 3 , a levée en masse - a
criação de um exército nacional de conscritos - é de longe a mais impor­
tante . O seu êxito possibilitará à República reconquistar Lyon e a Vendeia
e impedir os rebeldes franceses de se unirem aos exércitos estrangeiros.
A levée en masse oferece também outro exemplo de uma instituição criada
num acesso de entusiasmo romântico que evolui para um braço do Estado
profissionalmente organizado e altamente disciplinado. Nasce do deses­
pero, da tentativa de mobilizar a população de zonas directamente amea­
çadas de invasão. Por exemplo, em Lille, em Julho, é proposta a
conscrição geral para que os cidadãos - soldados "caiam em massa, como os
Gauleses, sobre as hordas de bandidos" . Em Agosto, o répresentant-en-mis­
sion e soldado de carreira Milhaud, memoravelmente pintado por David,
manda tocar a rebate na zona de Wissemburgo, no Mosela. Os campone ­
ses são rudimentarmente instruídos e armados (por vezes com as próprias
forquilhas e facalhões de caça ) para atacarem os Austríacos. " S ó um deles
matou dezassete", diz-se depois da escaramuça, " e as mulheres entraram
em combate armadas com mosquetes . "
O u seja, na sua encarnação original, a levée destinava -se a ser uma
explosão espontânea de entusiasmo marcial envolvendo um grande
número de homens mal organizados e separados do exército profissional.
Escusado será dizer, esta versão de beligerância arcaica não se recomen­
dava aos engenheiros e tecnólogos do C omité de Salvação Pública . No
entanto, é Danton, que não pertence ao Comité, que na terceira semana
de Agosto tenta recuperar o conceito de um exército de conscritos tor­
nando a sua expansão estritamente proporcional à quantidade de muni­
ções, vestuário e alimentos com que pode ser abastecido . A retórica
inspiradora do decreto promulgado pela C onvenção a 2 3 de Agosto é
menos uma prescrição para um descoordenado apelo às armas do que
uma visão de uma comunidade militarizada na qual todas as alavancas e
polés funcionam com uma articulação mecânica perfeita. A linguagem é
a da história romana mas a visão é a da guerra total de Guibert.

A partir de agora, até que o inimigo sej a escorraçado do território da


República, todos os franceses estão permanentemente requisitados para
serviço nos exércitos . Os j ovens irão para o combate; os homens casados
forj arão armas e transportarão alimentos; as mulheres farão tendas e uni­
formes e servirão nos hospitais; as crianças farão ligaduras com roupas
velhas; os velhos apresentar- se-ão nos lugares públicos para excitar a cora ­
gem dos guerreiros, para pregar o ódio aos reis e a unidade da República .
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Todos os solteiros e viúvos sem filhos entre os dezoito e os vinte e cinco


anos de idade são conscritos . Não existem requisitos mínimos de altura,
embora deficiências e doenças graves isentem os recrutas do serviço ( o
decreto provoca naturalmente uma epidemia imediata de mutilações ) .
Não são oficialmente permitidos substitutos, embora n a prática irmãos ou
amigos com mais de vinte e cinco anos sej am frequentemente autorizados
a servir em lugar de um recruta que é necessário para trabalhar na quinta .
Neste Ano II (aliás, durante toda a Revolução ) , o musical mais popular do
teatro parisiense é o melodrama Au Retour. O herói, Justin, está a três dias
do seu vigésimo quinto aniversário - após o que ficará isento da conscri­
ção - mas nega-se a esperar. "É hoj e que devo obedecer", diz ele à noiva,
Lucette, chorosa mas admirativa. Justin declina a oferta de um rapazote,
que ainda não tem dezoito anos, de o substituir, e lá parte para a guerra,
trocando de cocar com Lucette como recordação . "Mantê-los- emos nos
nossos corações dia e noite", cantarolam eles. Neste clímax de ir às lágri­
mas, descem duas telas laterais com a letra da canção de sucesso e o
público levanta- se para dizer adeus ao conscrito num coro de "Au
Retour" . Não obstante esta louvável abnegação, a isenção dos homens
casados gera uma corrida ao matrimónio em muitos departamentos . As
autoridades locais têm de decidir se o casamento depois do decreto deve
ser incluído nas isenções. Geralmente é, bem como o casamento com uma
noiva grávida, mesmo que a concepção tenha sido posterior ao decreto .
Em conformidade com a doutrina rousseauniana da natureza sagrada da
família, "Não é o estado legal mas sim o acto de paternidade que constitui
o casamento" .
A esmagadora maioria dos recrutas compõe-se naturalmente d e cam­
poneses, e é com este facto em mente que a Convenção, em Julho, abole
finalmente e sem indemnizações os últimos vestígios do regime senhorial .
A propaganda oficial tenta minorar a grave perda de mão -de-obra que a
conscrição representa para as quintas explicando que os exércitos da
República defendem os interesses dos camponeses. Se perderem a guerra,
podem ter a certeza do regresso do regime senhorial, das dízimas e de todo
o tipo de impostos que foram abolidos pela Revolução, para não falar nos
bailios e mordamos parasitas que tabelam os seus serviços e expulsam os
delinquentes . Pior ainda, os "antropófagos" (um sinónimo predilecto de
contra -revolucionários no Ano II) vingar-se-ão de forma terrível, apode ­
rando -se dos bens dos camponeses, escravizando ou raptando as suas
mulheres e filhas, cortando as mãos a quem tiver plantado uma árvore da
liberdade, esventrando as grávidas .
Este retrato sombrio d a s penalidades associadas à derrota impressio­
nou certamente muitas das populações rurais às quais se dirigiu . D e facto,
enquanto se verificaram motins anticonscrição na Finisterra, nos Vosges,
no Tarn e no Ariege, nenhum ameaçou evoluir para uma "pequena
65 1

Vendeia" . O historiador mais recente da levée, J.P. Berthaud, alerta para a


dificuldade de tentar sequer adivinhar as taxas de deserção e não compa­
rência, mas a sua estimativa é que estas primeiras vagas de conscrição
terão rendido à República cerca de trezentos mil homens . E ste número é
consideravelmente inferior ao meio milhão requerido pelo C omité de
Salvação Pública mas não deixa de ser um feito extraordinário. No
Outono de 1 7 9 3 , as aldeias e vilas de toda a França assistiram às mesmas
cerimónias tristes de partida. Dois ou três dias depois de a proclamação da
C onvenção ser publicamente lida e afixada, uma comissão local publica
uma lista com os homens chamados e com os que ficam isentos. As armas
são requisitadas e apressadamente adaptadas para levar uma baioneta e a
pequena tropa parte sob o comando de um oficial temporário, ao som do
tambor, do choro das mulheres e do canto da "Marselhesa" . As crianças
correm ao lado dos homens, que vão sem uniforme, acenando bandeiri­
nhas tricolores até que os recrutas desaparecem do outro lado da colina a
caminho da cidade, onde se j untarão a outros destacamentos destinados
às brigadas.
No acampamento, são suj eitos às influências concorrentes da amalgame
profissional, destinada a integrá-los nas tropas regulares, e dos oficiais
sans-culottes, que querem mantê -los politicamente puros. Este objectivo é
aj udado pelo facto de o ministério da Guerra permanecer um feudo
hébertista até finais de 1 79 3 , arrogando -se inclusivamente o direito de
gastar mais de quatrocentas mil libras francesas para distribuir gratuita­
mente exemplares do Fere Duchesne aos soldados. Algumas unidades, em
particular as que servem na Vendeia, onde os comandantes hébertistas são
poderosos, são inclusivamente suj eitas a palestras políticas ou autorizadas
a ter tempo livre para assistirem às reuniões dos clubes jacobinos, eventos
dos quais muitos se escapulem decerto para a estalagem mais próxima.
Alguns comandantes, entre os quais o general Houchard, insistem em
usar os seus barretes frígios nos conselhos de guerra (um gesto que não
salvará Houchard da guilhotina ) e durante algum tempo assiste -se a um
movimento em prol da eleição de oficiais a partir das fileiras, para perío ­
dos de comando específicos e rotativos. C aso os cidadãos- soldados dese­
jem escrever aos oficiais, podem iniciar as cartas com "Salut et fraternité, do
vosso igual em direito s " .
Esta situação não poderia continuar. A amalgame, q u e combina qua­
renta companhias de conscritos com vinte companhias de linha numa
única meia brigada, exerce gradualmente a sua influência na profissiona­
lização dos recrutas. A disciplina militar também é progressivamente res ­
taurada pela intervenção dos représentants-en-mission e d e membros do
C omité de Salvação Pública como Prieur de La Mame e C arnot, os quais
demonstram uma compreensão notável dos elementos da estratégia .
O j ovem Saint-Just, que se desloca várias vezes à frente belga, é capaz de
Simon Schama 1 CIDADÃOS

actos de punição draconianos quando descobre pilhagens ou outras atitu­


des de desordem militar que ofendem a sua mente organizada . Mais de
uma vez, manda despromover oficiais delinquentes, que são depois fuzi­
lados à frente das próprias tropas, pour encourager les autres.
Todos estes esforços teriam sido vãos se o governo não tivesse con -
seguido prover o seu acrescido efectivo com armas, alimentos e ves ­
tuário. Não obstante os avisos sensatos de D anton, parece que o
recrutamento ultrapassou efectivamente as provisões disponíveis. Na
Vendeia, em particular, é frequente os bleus estarem muito menos bem
equipados do que o inimigo, que vem das quintas e carece das necessi­
dades mais básicas - em especial, de sapatos decentes ( para não falar
em botas ) . No entanto, em meados do Outono, o E stado revolucioná ­
rio está empenhado numa mobilização total de recursos que só voltará
a ser vista na Europa no século XX. Formam- se comités de aconselha ­
mento com os químicos, engenheiros e matemáticos que são, como
Monge, B e rthollet e C haptal, revolucionários fervorosos. As grandes
fábricas metalúrgicas de Le C reusot e Charleville, nos Vosges, entre
outras, são transformadas em empresas estatais que produzem canhões,
mosquetes, granadas e balas segundo especificações e contratos gover­
namentais. Por toda a França, os sinos das igrej as são levados para as
fundições; alguns acabam nas forj a s a céu abert ó , instaladas nos par­
ques públicos de Paris, nos Invalides e nos j a rdins das Tulherias e do
Luxemburgo . Na Primavera de 1 7 94, três mil trabalhadores fabricam
setecentos canhões por dia e, segundo B e rtrand B arere, há seis mil ofi­
cinas a produzir pólvora .
Finalmente, a agência de aprovisionamento de Robert Lindet, a
Comissão das S ubsistências, com o seu numerosíssimo pessoal para a
época (mais de quinhentas pessoas ) , usa a autoridade e a força necessá­
rias para alimentar os exércitos . Também aqui é de regra a propaganda
inspiradora, com parte das Tulherias a ser entregue ao cultivo de batatas.
Em teoria, os soldados da República têm direito a uma ração diária de 7 5 0
gramas d e pão, algumas onças d e carne, feij ões o u outro legume seco e
vinho ou cervej a . Com sorte, toca-lhes uma cebola e uma fatia de queijo,
e quando o dia não começa com brandy, gin ou tabaco, os oficiais podem
contar com sarilhos .
N o Outono d e 1 794, esta máquina _militar enorme m a s ainda desarti­
culada começa a fazer sentir o seu peso nas várias frentes . O general
Carteaux derrota o exército marselhês no dia 25 de Agosto e entra na
cidade; os líderes federalistas que conseguem escapar a tempo fogem para
Toulon . O cerco de Lyon foi iniciado no princípio de Agosto mas são
necessários dois meses até que obrigue à capitulação da cidade pela fome,
a 9 de Outubro. Nas frentes do Norte, o avanço britânico é travado em
Hondschoote, a 8 de S etembro, e o austríaco em Wattignies, no dia 1 6 de
653

Outubro. N o entanto, o evento mais importante é a pesada derrota infli­


gida aos exércitos vendeianos, no dia 1 7 de Outubro, em Cholet.
A recuperação é suficientemente substancial para persuadir a
C onvenção e os seus comités de que a República passou com distinção o
teste do baptismo de fogo . Alguns jacobinos, nomeadamente Danton e
Desmoulins, não vêem motivos para que não se abrande um pouco a
coacção institucional do Terror. Recorrendo ao jornalismo e à oratória,
criam uma política "indulgente " destinada a impedir os j ulgamentos tea­
trais de Maria Antonieta e dos girondinos, e trabalham em prol de uma
nova legislatura e de uma paz negociada com as potências da Coligação,
com base nas fronteiras de 1 7 92 .
No entanto, depois de algum êxito inicial, são esmagados por uma
sólida falange de oponentes . Os seus adversários mais implacáveis são
Hébert, Chaumette, Hanriot e os líderes da C omuna, j untamente com os
seus apoiantes das sociedades populares e das secções. No C omité de
Salvação Pública, a política " indulgente " merece a oposição não só dos
seus dois membros mais fanaticamente punitivos - C ollot d'Herbois e
B illaud-Varennes, cooptado em 5 de Setembro -, mas também dos
homens de tendências mais burocráticas, tais como Carnot e os Prieurs,
que consideram perigosamente imprudente relaxar o Terror no momento
em parece ter salvo a República do desastre.
No dia 1 0 de Outubro, Saint-Just apresenta- se na C onvenção para dar
conta de um relatório, em nome do C omité de Salvação Pública, sobre os
"problemas que afectam o E stado " . Saint-Just assume um tom de j usta
autocrítica, declarando que o povo tem apenas um inimigo, nomeada ­
mente, o próprio governo, que está infectado com toda a espécie de cria ­
turas cobardes, corruptas e comprometidas do Antigo Regime. O remédio
é uma atitude inflexivelmente austera, o castigo implacável dos traidores
e hipócritas. Há que aplicar com o máximo rigor a carta do Terror: a Lei
dos Suspeitos, promulgada a 1 7 de Setembro, que atribuiu ao C omité e
aos seus representantes poderes alargados de detenção e punição sobre
categorias de pessoas extraordinariamente abrangentes definidas como
possuidoras de desígnios contra -revolucionários. "Entre o povo e os seus
inimigos não pode haver nada de comum, excepto a espada; temos de
governar pelo ferro aqueles que não podem ser governados pela justiça;
devemos oprimir o tirano . . . A execução das leis revolucionárias é impos­
sível se o próprio governo não for verdadeiramente revolucionári o . "
É necessária um nova Esparta. O s cidadãos devem s e r eternamente
vigilantes; os representantes em missão devem ser os "pais e amigos do
soldado ", dormir na mesma tenda e partilhar a sua comida, devem ser fru ­
gais e inflexíveis. Para prevalecer, a República tem de ser terrível e os
governantes não podem nunca baixar a guarda. "Aqueles que querem
fazer revoluções no mundo ", diz Saint-Just, o barro do qual será feito o
Simon Schama 1 CIDADÃOS

leninismo, "aqueles que querem fazer o bem neste mundo só podem dor­
mir no túmulo . "

III OBLITERAÇ Õ E S

A República jacobina tem duas expressões: o esgar intimidador d o ter­


roriste, e o semblante sereno dos seus ícones oficiais . Nas partes de França
afectadas pelo federalismo ou relutantes em ceder o seu cereal às cidades,
o Terror impõe -se como uma presença disruptiva e brutal. Um représen ­
tant-en-mission como Claude Javogues, que opera no Loire, é capaz de
actos súbitos de violência, por exemplo, de esmurrar na cara pessoas de
quem desconfia ou com quem simplesmente antipatiza . Irritado, embria­
gado ou em ambos os estados, ele usa os seus poderes incontestados no
departamento para organizar humilhações sofisticadas ou suj eitar os fun­
cionários locais a torrentes de insultos. Quando alguns lavradores apre ­
sentam uma petição que incorre no seu desagrado, Javogues rasga-a em
pedaços e espezinha- a com o cavalo, e investe contra os camponeses com
o seu sabre . D epois de manter uma linha de prisioneiros de Montbrison
( rebaptizada, depois da sua conquista pela República, Montbrisé) à espera
duas horas na neve, Javogues diz ao j uiz do Tribunal Revolucionário,
"Vai-me dar gozo guilhotinar estes paneleiros". Na própria Montbrison,
ele diz: "Um dia o sangue correrá como água nas ruas como depois de
uma grande chuvada . "
E m Saint-Etienne, Javogues preside a uma sessão pública d o municí­
pio, convocada para impor "impostos revolucionários" aos cidadãos mais
abastados, enquanto se entretém com as raparigas bonitas que estão ao
seu lado e dá conta de trinta garrafas de cervej a e vinho . Quando um dos
visados faz um comentário sobre a natureza arbitrária dos impostos,
Javogues diz ao oficial da guarda: "Sacré mil/e foutre ! Prende -me aquele
paneleiro para eu o mandar fuzilar ! " Uma mulher - descrita no escanda ­
lizado relatório como " une vieille filie" - que protesta que terá que pagar
mais do que toda a sua fortuna, é alvo de uma tirada obscena : " É s uma
cabra, uma puta, fodeste com mais padres do que os cabelos que eu tenho
na cabeça; tens uma cona tão larga que eu cabia lá dentro ", e assim por
diante .
O comportamento de Javogues é excessivo, mesmo pelos padrões do
período anárquico do Terror, de Setembro a Dezembro de 1 7 9 3 , e aos
aprumados jacobinos que acabarão por provocar a sua queda parece espe­
cialmente escandaloso porque ele não cresceu propriamente na sarj eta.
O pai era advogado e conseiller du roi em Montbrison, e possuía uma casa
num dos bairros mais ricos da cidade . À semelhança de tantos outros indi­
víduos aos quais foi entregue um poder súbito no Outono do Ano II,
655

Javogues gosta manifestamente d e desempenhar o papel d e anj o vingador


na sua terra natal, onde atira imundícies à cara dos bourgeois e dos cam­
poneses. Outros, oriundos de meios verdadeiramente pobres, usam a sua
nova posição para se vingarem especificamente daqueles que consideram
ter sido os causadores da sua miséria durante o Antigo Regime . Por exem­
plo, Nicolas Guénot, que exercia a terrível ocupação de condutor de toros
flutuantes pelo Yonne até às docas e serrações de Paris, torna -se agente do
órgão policial da C onvenção, o C omité de Segurança Geral, e leva a tri­
bunal vários comerciantes abastados do seu antigo bairro de Paris, até ser
ele próprio detido.
Muitos destes homens ladram mais do que mordem mas o modo tem­
peramental e arbitrário como exercem a sua jurisdição é considerado
escandaloso pelos políticos parisienses, que têm da República j acobina
uma imagem intensamente moral. Para puritanos como Robespierre e
Saint-Just, as devastações embriagadas de homens como Javogues des­
graçam tão profundamente a autoridade revolucionária que eles ficam
convencidos de que os visados trabalham para a contra- revolução.
A situação é particularmente chocante dado que, enquanto Javogues tem
as mãos debaixo das camisas das cidadãs (por vezes em público ) , os guar­
diães do jacobinismo oficial estão a tentar transformar o peito republicano
num ícone: fecundo, inocente e generoso . Por exemplo, La France
Républicaine de Boizot, é uma reconstrução secular de imagens tradicio­
nais da Virgem Maria nas quais a exposição do peito significa a sua inter­
cessão j unto de C risto em nome dos pecadores. Na versão j acobina, esta
exibição é um emblema de inclusividade igualitária. A igualdade de "todos
os franceses", regenerados pelos seios nutrientes da República, é simboli­
zada pelo nível do carpinteiro, estrategicamente pendurado, enquanto
que o alvorecer da liberdade é representado por outro emblema tradicio­
nal gaulês, o galo .
A iconografia jacobina retoma todos os temas da sensibilité pré - revolu­
cionária: a domesticidade, a pureza do labor rústico, a mútua benevolên­
cia da liberdade e da prosperidade. Numa versão típica deste idílio, uma
família sans-culotte idealizada, com a charrua ao lado, j unta - se a duas
encarnaçtJes da França . Por baixo da luz benigna do ubíquo olho da vigi­
lância, a indústria, simbolizada pela colmeia, surge como fonte de uma
cornucópia que derrama os seus frutos no solo, e a República segura nos
emblemas da liberdade e da igualdade e nos Direitos do Homem.
Por muito gastas e repetitivas que sejam estas imagens, representam
uma tentativa sistemática por parte dos propagandistas da cultura jacobina
de construir uma moralidade pública purificada. A nação só ficará verda­
deiramente segura depois de aqueles que compreende interiorizarem os
valores com base nos quais foi reconstruída. Herdando de Rousseau (ainda
que numa forma confusa) a doutrina de que a governação é uma espécie
Simon Schama 1 CIDADÃOS

de acto educativo, os guardiães da Revolução propõem-se usar todos os


meios possíveis para devolver a uma nação corrompida pelo mundo
moderno a inocência redentora da criança pré- social. Das ruínas da
monarquia, da aristocracia e do catolicismo romano brotará uma nova reli­
gião natural - cívica, doméstica e patriótica . As canções e os festivais públi­
cos, necessariamente realizados ao ar livre, reunirão os cidadãos em
comunidades de harmonia . O teatro tornar-se-á mais participativo,
atraindo o público para as suas histórias inspiradoras. No entanto, é às ima­
gens, no seu sentido mais lato, que os evangelistas j acobinos prestam espe ­
cial atenção. Por exemplo, Fabre d'Eglantine, o poeta amigo de Danton
(e seu cúmplice no peculato ) utiliza a teoria da impressão dos sentidos do
Iluminismo para convencer a C onvenção de que "não concebemos nada a
não ser por imagens : as análises mais abstractas ou as formulações mais
metafísicas só podem concretizar-se através de imagens" .
Por conseguinte, existe o desígnio organizado d e substituir os pontos
de referência visuais da antiga França por um mundo completamente
novo de imagens moralmente limpas. O S alon de 1 79 3 , por exemplo,
exibe, além das duas martirologias de D avid, inúmeros quadros nos quais
se fundem as virtudes domésticas e patrióticas. Por exemplo, a "Mulher
da Vendeia", em muitas versões, prefere mandar- se a si própria e à famí­
lia pelos ares do que entregar a pólvora aos "bandidos" . As crianças como
heróis tornam-se importantes, entre as quais o "j ovem Darruder", que
pegou na arma do pai no campo de batalha e carregou sobre o inimigo.
Ao nível da arte popular, os membros dos ofícios são encoraj ados a exibir
o seu patriotismo substituindo os tradicionais letreiros das lojas por "tabu -
letas cívica s " . Até as cartas de j ogar são purgadas: a rainha de copas trans­
forma -se na " Liberdade das Artes" e o rei em general sans-culotte.
A tentativa mais séria de criação de um novo " império de imagens",
para usar o termo espantosamente m oderno de Fabre, é a invenção do
calendário revolucionário, que é também uma tentativa de reconstrução
do tempo mediante uma cosmologia republicana . A comissão especial
nomeada para fazer recomendações é uma mistura peculiar de homens de
letras, tais como Fabre, Romme e Marie -Joseph C hénier, e de cientistas
como Monge e Fourcroy. Uns e outros vêem na reforma do calendário a
oportunidade de afastar os republicanos das superstições que consideram
estar corporizadas no calendário gregoriano. Os seus esforços dirigem-se
especialmente ao mundo rural, ao qual ainda pertence a esmagadora
maioria dos franceses. Em conformidade com o culto da natureza, os doze
meses serão chamados não apenas em função da meteorologia ( que tem
particular incidência no Norte e centro da França ) , mas também de evo­
cações poéticas do ano agrícola . O primeiro mês ( que começa necessaria­
mente com a fundação da República, em finais de Setembro ) é o tempo
das vindimas, pelo que recebe o nome de Vindimário . Para a comissão, as
657

encarnações voluptuosas d a s ilustrações de Salvatore Tresca para o calen -


dário são mais interessantes do que São Marcos, o patrono das vinhas.
Fabre é explícito na sua intenção de afastar o cultivador das superstições
que o levam a procurar a bênção dos padres para as plantações e para o
gado. Acabar- se-ão os disparates da Igreja, que diz: "É através de nós que
os vossos celeiros se enchem; acreditai em nós, obedecei e sereis ricos.
Desobedecei e os vossos campos serão enegrecidos pelo gelo, pelo granizo
e pelo trovão. " O frontispício do Annuaire Républicain de Millin torna
explícita a vitória da simplicidade rural sobre as antigas tiranias gregoria­
nas.
Fabre e a comissão não se contentam com a criação de uma nova
nomenclatura . C ada um dos doze meses - por exemplo, o B rumário, o
mês das brumas, ou o Primário, o mês do frio - é dividido em três unida­
des de dez dias, as décadis, sendo cada dia também rebaptizado. Em lugar
das associações diárias do antigo calendário sagrado, o almanaque de
Millin oferece obj ectos de virtude bucólica para contemplação quotidiana:
cereais, legumes, frutos e flores para os dias da semana, uma alfaia agrí­
cola para a décadi e um animal do campo para cada quinto dia . Por exem­
plo, para a terceira décade do Frutidor - a transição entre o Verão e o
Outono -, o calendário prescreve :

rosa rubiginosa
avelã
lúpulo
sorgo
CARANGUEJO ( quinto dia )
laranj a amarga
solidago
milho
castanha
CE STO

Cada objecto listado nesta veneração calendária da natureza é, diz


Fabre, "mais precioso aos olhos da razão do que os esqueletos das cata­
cumbas de Roma" .
Depois dos doze meses, cada u m com trinta dias, restam cinco dias no
ano e Fabre baptiza-os de sans-culottides, e para não parecer demasiado
deferente aos militantes das secções oferece uma justificação implausivel­
mente erudita. A antiga Gália, diz ele, estava dividida em Gallia braccata -

a metade com calças, que era ( evidentemente ) a região em torno de Lyon,


e em Gália " sem calças" que era o resto da antiga França. Quis a sorte his­
tórica que os Francos, homens livres, j á fossem, de alguma forma sans­
-culottes. Os cinco dias são, pois, dedicados a festivais do talento, da
Simon Schama 1 CIDADÃOS

indústria, dos feitos heróicos e das ideias. Esta reestruturação do tempo


republicano fica completa, de quatro em quatro anos, com uma grande
ocasião de j ogos e atletismo patrióticos a ter lugar no " dia da Revolução"
(presumivelmente a 1 0 de Agosto ) .
Não é provável que os camponeses tenham apreciado a substituição do
domingo e da "segunda -feira santa" pelas décadi, especialmente por acon­
tecer a cada dez dias e não a sete, mas o calendário revolucionário foi um
dos elementos mais perenes da cultura republicana, tendo sobrevivido
doze anos à queda dos j acobinos . Todavia, apesar de ter sido aceite como
um elemento bastante inócuo da nova França, a sua introdução foi uma
parte integral de um programa de iconoclasmo muito mais agressivo . Três
dias depois de o calendário ser votado na C onvenção, Thuriot diz aos j aco­
binos: "Dado que j á chegámos ao topo dos princípios de uma grande revo­
lução, é altura de revelar a verdade acerca de todos os tipos de religiões.
As religiões são meras convenções. Os legisladores criam-nas para se ade­
quarem ao povo que governam . . . O que agora temos de pregar é a ordem
moral da República, da Revolução, que nos tornará um povo de irmãos,
um povo de filósofos . "
Contudo, n a prática, a descristianização deve menos a estes princípios
elevados e mais ao anticlericalismo, especialmente violento em Paris e no
Midi, que desempenhou um papel crucial na radicalização da política da
Revolução. É levado aos departamentos pelos agentes do Terror no Outono
do Ano II, com a missão de pregarem a ortodoxia às regiões problemáticas
da França. Têm o apoio dos militantes j acobinos locais que foram acossa­
dos durante a ascendência federalista ou que simplesmente gostam de exi­
bir o seu zelo anticlerical. C omo seria de esperar, os armées revolutionnaires
são os agentes do ataque mais caótico e brutal à cultura clerical. O seu
quartel-general, em Paris, na Rue ChoiseuL é dominado por gente do tea­
tro, actores como Grammont e dramaturgos como Ronsin, que levam com
eles praticamente toda a trupe do Montansier. Têm uma longa tradição de
desprezo pela Igrej a, que interferiu constantemente no palco e que eles se
deliciam a ridicularizar desde 1 78 9 .
N o entanto, as manifestações mais desordeiras do zelo descristianiza ­
dor acontecem provavelmente de forma mais ou menos espontânea. Por
exemplo, quando um regimento de dois mil homens com destino a Lyon
chega a Auxerre, os artilheiros destroem as portas das igrej as e mutilam
as imagens e as estátuas dos santos. Um crucifixo é retirado da capela de
Maria e passeado pelas ruas virado ao contrário para os cidadãos lhe cus ­
pirem em cima . Quando um pedreiro se recusa a fazê -lo, um dos soldados
corta -lhe uma parte do nariz com o sabre . Ao chegarem a Clermont­
-Ferrand, um grupo de soldados, muitos deles metalúrgicos da secção do
Luxemburgo, aos quais o oficial chama os seus "Vulcões", dirige -se direc­
tamente à catedral e
659

com golpes terríveis e vigorosos atacaram S ã o Pedro, destruíram os santos


Paulo, Lucas e Mateus . . . todos os anj o s e o arcanj o Rafael, ave alada do
bando celestial, e a bela Maria, que teve três filhos permanecendo vir­
gem . . .

Formas de descristianização mais ordeiras são oferecidas por représen­


tants-en-mission como Fouché, o ex-padre oratório que empreende uma
campanha particularmente entusiástica no Nievre, onde desnuda os cemi­
térios de todos os símbolos religiosos e afixa nos portões o seu famoso
ditado, "A morte é apenas um sono eterno" . Estas campanhas iniciam-se
amiúde com as demissões formais do clero constitucional, acompanhadas
de declarações públicas da sua "fraude" e loucura . No Hérault, por exem­
plo, Jean Radier, curé de Lansargue, anuncia que agora que sabe que "a
ocupação de padre é contrária à felicidade do povo, atrasa o progresso do
conhecimento e impede a marcha da Revolução, abdico e lanço -me nos
braços da sociedade " . A par destas renúncias formais, decorrem com fre ­
quência cerimónias matrimoniais de ex-padres (por vezes, involuntárias)
e, especialmente no Midi e no Vale do Ródano, charivaris burlescos com
burros ajaezados com os paramentos e a mitra dos bispos a serem passea ­
dos pelas ruas. Por vezes, depois de uma destas cerimónias de ridículo, são
queimados bonecos representando o papa . Como tantas outras coisas na
violenta política popular da Revolução, estes ritos de inversão não são
invenções novas mas sim práticas tradicionais toscamente modernizadas
para os propósitos do momento .
As próprias igrejas são frequentemente despoj adas de todos os obj ec­
tos sacerdotais . Aliás, existem razões práticas urgentes para esta espolia -
ção . Os sinos são necessários para as fundições de armamento e o ouro e
a prata para o tesouro da República ( uma grande parte deve ter ido parar
aos bolsos dos descristianizadores) . Mas assiste -se também a vandalismo
puro em grande escala . O s altares são destruídos, os vitrais partidos . Em
Amplepuis, no Alto Beauj olais, uma árvore da liberdade substitui o cruci­
fixo no transepto da igreja. Em muitos outros lugares, os manuais devo ­
cionais e os missais são queimados em grandes fogueiras com os santos de
gesso e madeira que se encontram em todos os cruzamentos, crepitando
e derretendo- se nas chamas como vítimas inanimadas de um auto da fé.
O clímax desta extraordinária ofensiva contra a prática cristã tem lugar
na segunda semana de Novembro . Uma delegação que integra Anacharsis
Cloots e Léonard B ourdon aparece em casa de Gobel, o bispo constitucio­
nal de Paris, tira-o da cama e obriga- o a abdicar no dia seguinte, 7 de
Novembro, na Convenção. São lidas cartas, incluindo uma do curé de
Boissise-la-B ertrand, no Sena e Mame, que começa com: " Sou um padre,
um curé, isto é, um charlatão; até hoje, um charlatão de boa fé, pois nunca
enganei ninguém, só me enganei a mim próprio . " De seguida, Gobel
Simon Schama 1 CIDADÃOS

anuncia que "não deve existir nenhum culto público a não ser o da liber­
dade e da santa igualdade", e demite- se, seguido por Julien, um pastor
protestante de Toulouse, que declara que " o mesmo destino espera todo o
homem virtuoso, quer adore o Deus de Genebra, Roma, Maomé ou
Confúcio " .
Três dias mais tarde, realiza -se u m festival e m Notre Dame, "desbapti­
zada " para Templo da Razão. No interior, por baixo das abóbadas góticas,
foi erigida uma vistosa estrutura greco- romana . Numa montanha de teci­
dos de linho pintados e pasta de papel, construída no fim da nave, a
Liberdade ( representada por uma cantora da Ó pera ) , vestida de branco,
de barrete frígio e pique na mão, curva -se perante a chama da Razão e
senta -se numa cama de flores e plantas. Mercier assiste a várias cerimó­
nias similares organizadas pela C omuna, em Saint- Gervais, onde a igreja
"cheirava a arenque", e em Saint-Eustache, onde as actrizes caminham
sobre pranchas chiantes em cenários com cabanas em bosques e escarpas
rochosas . Mercier horroriza- se ao ver, em redor do coro, "garrafas, salsi­
chas, paios, pâtés e outras carne s " .
E m Paris, os jacobinos estão divididos e m relação à descristianização.
Os apoiantes de Hébert são entusiastas, em especial Momoro, o auto ­
designado "impressor da liberdade " . Danton queixa -se dos excessos retó­
ricos mas depois, no fim de Outubro, pede à Convenção autorização para
se retirar para a sua casa, em Areis . Porém, alguns dos seus aliados, tais
como Thuriot, são descristianizadores confessos, possivelmente para com­
bater as acusações de que estão a "amolecer" . Robespierre, por outro lado,
fica profundamente chocado com o que considera ser a imoralidade de
uma ofensiva que se tentou fazer passar por "filosofia " . Na sua opinião, os
festivais da Razão são "farsas ridículas", encenadas por "homens sem
honra nem religião" . Ao aviso que Fouché coloca nos cemitérios, ele con ­
trapõe que a morte não é um "sono eterno", mas sim "o princípio da
imortalidade " . É provavelmente a sua influência que impede a
Convenção de aceitar o convite de assistir em peso ao espectáculo em
Notre Dame.
Mas em Lyon, a autoridade de Fouché para realizar cerimónias de
descristianização mantém-se incontestada. Na qualidade de représentants­
-en-mission na cidade reconquistada aos federalistas no princípio de
Outubro, são - lhe concedidos poderes quase ditatoriais. Fouché começa
por remover todos os vestígios de iconografia cristã da torre de relógio
medieval de Saint - Cyr, substituindo -os pelo calendário revolucionário.
No dia 10 de Novembro, os restos mortais de Chalier são conduzidos em
triunfo pelas ruas ( a cabeça será posteriormente enviada para Paris para
receber as honras do Panteão, como aconteceu com a de Marat ) . Um
asno com as vestes e a mitra de Lamourette, o bispo constitucional (que
orquestrou o "beij o fraterno" na Legislativa de 1 7 92 ) e com uma Bíblia e
661

um missal atados à cauda, é seguido por carros carregados de recipientes


litúrgicos que, no fim da procissão, são solenemente esmagados sobre o
túmulo de Chalier. B ebendo de um cálice enorme, Grandmaison, um dos
mais incontroláveis dos anos exterminadores jacobinos, mofa da liturgiá
da comunhão: "Em verdade vos digo, irmãos, que este é o sangue de reis,
a verdadeira substância da comunhão republicana; tomai e bebei este pre ­
cioso líquido. "
Três semanas depois, realiza-se na Catedral d e Saint-Jean uma fête de
Raison na qual os funcionários republicanos se curvam perante uma está ­
tua da Liberdade e cantam um anti- hino com letra de Fouché que celebra
" a Razão como o Ser S upremo " .
Mas Lyon perdeu mais d o que a sua igrej a . Depois d e u m cerco pro­
longado durante o qual as cidades satélites, tais como Saint-Etienne,
foram evacuadas, a cidade, faminta e atordoada pelos bombardeamentos,
capitulou no dia 9 de Outubro perante os exércitos republicanos sitiantes .
Os muscadins1 d e Lyon, tal como os seus homólogos d e Marselha e Toulon
e ao contrário dos rebeldes da Vendeia, não se tinham declarado pela
monarquia, mas sim pela constituição de 1 7 9 1 . D e facto, a dada altura, o
seu comandante, de Précy, dissera ao município federalista que desej ava
apoiar " uma República, una e indivisível" . No entanto, a sua reputação
em Paris era a de um aristocrata que combatera do lado errado nas
Tulherias, em 1 0 de Agosto de 1 7 9 2 . Por conseguinte, a cidade foi suj eita
a uma espécie de ocupação colonial. À s sugestões de que Lyon fosse tra­
tada de forma tão leniente como B ordéus, Robespierre fulminou: "Não, a
memória deles [de Chalier e dos que tinham sido detidos com ele] deve
ser vingada e esses monstros desmascarados e exterminados", acrescen­
tando, como de costume, " caso contrário, eu próprio perecerei. "
O deficiente Georges Couthon, amigo e leal apoiante d e Robespierre,
e dois colegas, Châteauneuf-Randon e D elaporte, são os primeiros res­
ponsáveis pela " rej acobinização " da cidade rebelde. No dia 1 3 de Outubro,
Couthon escreve a Saint-Just para o informar de que se impõe uma rege­
neração total e absoluta. As pessoas têm de aprender outra vez o " alfa­
beto " mas não vai ser fácil porque a população local "é de temperamento
estúpido porque as neblinas do Ródano e do Sona enchem a atmosfera de
um nevoeiro que confunde as ideias " . Há que lhes ministrar uma dose
forte do remédio republicano: "um purgante, um vomitório e um clister" .
Couthon é lesto a aplicar o tratamento. D epois de reconduzir os autar­
cas afastados a 29 de Maio e de reabrir os clubes populares, publica o pri­
meiro decreto, no dia 1 2 de Outubro, no qual anuncia a política da

' "Janotas", designação dos jovens elegantes e ociosos que, organizados em bandos
armados, se rebelaram contra os sans-culottes e os jacobinos em 1793-1795, integrando o
'
"Terror Branco". (N. do T.)
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Convenção: apagar Lyon do mapa da República. A cidade passará a ser


conhecida por "Ville-Afranchie " ( C idade Libertada ) . As casas dos ricos e
de qualquer pessoa associada ao crime de rebelião serão demolidas,
ficando apenas as dos pobres. Sobre as ruínas, será erigida uma coluna
com a legenda

Lyon fit la guerre à la liberté


Lyon n'est plus

Lyon fez a guerra à liberdade


Lyon já não existe

No dia 2 6 de Outubro, Couthon é levado na sua cadeirinha, aos


ombros de quatro sans-culottes, à Praça B ellecour, a parada mais famosa e
elegante de casas do século XVIII, construídas no início do reinado de Luís
XVI. Com uma voz surpreendentemente poderosa que não denota a sua
deficiência, Couthon declara à multidão que as casas foram condenadas à
morte " como habitações de crime onde a magnificência real é uma afronta
para a miséria do povo e para a simplicidade dos modos republicanos . Que
este exemplo terrível infunda de medo as gerações futuras e ensine ao
universo que tal como a nação francesa, sempre grande e j usta, sabe
recompensar a virtude, também sabe abominar o crime e punir a rebe­
lião " . De seguida, ergue um malho de prata - feito para a ocasião - e bate
três vezes numa parede, pausando solenemente entre golpes, como as
grandes pancadas no chão que anunciam o princípio da representação nos
teatros franceses. Centenas de trabalhadores, incluindo mulheres e crian­
ças, muitos deles da indústria da seda (há muito em depressão ) , lançam­
-se em frente com malhos e picaretas para inaugurarem a demolição.
Serão empregues quinze mil pessoas nos trabalhos, pagos por um imposto
de seis milhões de libras francesas aplicado aos rico s . São demolidas mil e
seiscentas casas, incluindo muitas no bairro de Bourgneuf, através do qual
está a ser construída uma estrada para Paris. Mais importante ainda para
a República, as fortificações que tão bem serviram os federalistas são arra­
sadas, incluindo a antiga cidadela romano -medieval de Pierre - S cize .
Quando a Convenção é informada das demolições, nem todos os depu -
tados ficam agradados com a política seguida. A maioria dos membros da
Montanha tem um respeito profundo pela propriedade e um deles, o
comerciante de sedas Cusset, que nasceu em Lyon, pergunta: "Deitar
casas abaixo é republicano ? " É que não foram as casas que lutaram con­
tra a República, foram os homens. Não seria muito melhor seguir o pre­
cedente dos Romanos, que quando entravam nas cidades conquistadas
não completavam a sua destruição, restaurando -as para uma nova gran­
deza e prosperidade?
663

Mas o sentimento vigente em Paris não está muito inclinado para a


magnanimidade . Em finais de Outubro, C outhon é chamado a Paris e
Fouché e C ollot d'Herbois, que lhe sucedem, substituem a sua violência
contra a propriedade e não contra as pessoas por formas de retribuição
muito mais directas. Para Collot, actor, encenador e autor de Lucie, ou les
Parents lmprudents, é o regresso a um cenário que lhe provoca sentimentos
de ambivalência. Em 1 782, foi recebido no Théâtre des Terreaux ( que dá
para a praça onde está montada a guilhotina ) pelo intendent de Flesselles.
Contudo, as suas relações com a direcção do teatro, com a crítica local e
com o público não foram calorosas . Uma boa parte deles vai descobrir qual
é o castigo para os aplausos tépidos. A visão que Collot tem da j ustiça repu­
blicana resume-se assustadoramente na sua observação: "Os direitos do
homem não se aplicam aos contra - revolucionários, só aos sans-culottes."
Fouché e Collot entendem que a abordagem de Couthon foi dema­
siado fastidiosa. Apenas vinte ou trinta execuções, em Outubro, a maioria
de oficiais do exército federalista e dos membros mais destacados do
município. A situação vai ser dramaticamente alterada. É constituída uma
Comissão Temporária para reforçar os agentes locais da j ustiça revolucio­
nária, cuj a leniência os torna suspeitos. A figura principal é Mathieu
Parein, advogado ( filho de um mestre seleiro ) , amigo de Ronsin e, tal
como ele, promovido com improvável rapidez a general de brigada do
armée revolutionnaire. Chega a Lyon proveniente da Vendeia, onde presidiu
ao Tribunal Revolucionário instalado em Angers . A declaração publicada
pela Comissão tem a marca do seu temperamento férreo (e do de Fouché,
com quem se dá naturalmente muito bem) e anuncia um regime de cas ­
tigo rápido e generalizado, o encoraj amento da denúncia (parcialmente
através de uma tarifa de recompensas com bónus especiais para aristocra ­
tas e padres) e um ataque directo e implacável aos ricos, através de colec­
tas forçadas. Por exemplo, as pessoas com rendimentos de trinta mil libras
ou mais são obrigadas a pagar de imediato uma soma de trinta mil libras.
Todos os vestígios da religião organizada serão obliterados, dado que "a
única dignidade do republicano é a sua patrie".
O Terror entra em acção com uma eficiência burocrática impressio­
nante. As buscas domiciliárias, geralmente conduzidas de noite, são
extensas e implacáveis . Todos os cidadãos são obrigados a afixar à porta de
casa um aviso indicando todos os residentes . Acolher qualquer pessoa que
não conste da lista, nem que sej a por uma noite, é um crime grave .
Chovem denúncias sobre a Comissão. Há pessoas acusadas de difamar
Chalier, de atacar a árvore da liberdade, de esconder padres ou emigrados,
de fazer fortuna com a especulação e - num dos crimes "padrão" do Ano
II de escrever ou dizer "merde à la republique!". A partir do princípio de
-

2 O quarto mês do calendário republicano (21/23 de Dezembro-19/21 de Janeiro). (N. do T.)


Simon Schama 1 CIDADÃOS

Dezembro, a guilhotina começa a funcionar em ritmo muito mais acele ­


rado. Tal como em Paris, a sua eficiência mecânica é motivo de orgulho.
No 1 1 do Nivoso, 2 segundo os rigorosos registos mantidos, são cortadas
trinta e duas cabeças em vinte e cinco minutos; uma semana depois, doze
em apenas cinco minutos .
N o entanto, para os terroristas mais fervorosos, este método continua
a ser um modo suj o e inconveniente para eliminar o lixo político. Os cida ­
dãos que residem nas ruas em torno do Praça dos Terreaux, na rua Lafont,
por exemplo, queixam-se de que o sangue transborda da vala de drena ­
gem que sai de debaixo do patíbulo . Muitos condenados passam a ser exe­
cutados em fuzilamentos em massa na Planície des B rotteaux, o campo
adj acente ao Ródano, onde Montgolfier realizou a sua ascensão. Outro
ex-actor, D orfeuille, preside a algumas destas mitraillades, nas quais ses­
senta prisioneiros são atados em linha e abatidos a tiro de canhão. Os que
não morrem imediatamente são acabados com sabres, baionetas e mos­
quetes. No dia 4 de Dezembro, D orfeuille escreve ao presidente da
Convenção informando - o de que cento e treze habitantes " desta nova
Sodoma" foram executados naquele dia e que nos que se seguem ele está
a contar que outros quatrocentos a quinhentos "espiem os seus crimes
com fogo e bala " . Três dias depois, o cirurgião-barbeiro Achard escreve
encantado ao irmão, em Paris: "Todos os dias saltam cabeças e mais cabe­
ças ! Que gozo te teria dado se tivesses visto, anteontem, a justiça nacional
a ser administrada a duzentos e nove vilões . Que majestade ! Que tom
imponente ! Que edificante . Quantos daqueles tipos grandiosos comeram
ontem o pó [à letra : on nordu la poussiere] na arena dos B rotteaux. Que
cimento para a República. " "P. S . ", acrescenta ele j ovialmente, "dá cum­
primentos meus a Robespierre, Duplay e Nicola s . "
Quando terminam as matanças n a " Cidade Libertada", o saldo apurado
é de mil e novecentas e cinco pessoas mortas . Incluíram, obviamente,
muitos dos notáveis lioneses, entre os quais Albanette de Cessieux, de
setenta e cinco anos de idade, Laurent Basset, tenente da antiga
Sénéchaussée real de Lyon, e C harles Clermont-Tonnerre . Os oficiais do
exército aristocráticos, os membros do departamento rebelde do Ródano
e Loire, os magistrados federalistas e os padres estavam bem colocados na
lista, bem como toda e qualquer pessoa que pudesse ser associada à ampla
categoria de " ricos", com os "mercadores" ou com quaisquer membros dos
ofícios ou fabricantes acusados de crimes económicos pelos sans-culottes.
Mas muitos condenados eram pessoas bastante vulgares, presumivel­
mente os seccionistas que apoiaram os girondinos contra Chalier mas que
eram originários de meios idênticos aos dos seus homólogos jacobinos de
Paris ( embora os abastados tenham estado desproporcionalmente bem
representados nas listas da morte, a noção de que em Lyon os ricos foram
executados pelos pobres não parece ser mais do que um puro e simples
665

mito ) . Se houve muitos fabricantes de seda entre os executados, também


morreram nada menos de quarenta tecelões jornaleiros. Os ofícios que
forneciam os militantes pró-j acobinos de Paris - chapeleiros, marceneiras,
alfaiates e merceeiros - forneceram os soldados antijacobinos em Lyon.
O utras ocupações representadas foram os serralheiros, sapateiros, estala­
jadeiros, proprietários de cafés, criados, cervej eiros ( algo numerosos ) , pro­
dutores de vinagre, vendedores de limonada, contabilistas, arquitectos,
chocolateiras, talhantes, padeiras e fabricantes de velas, médicos, o direc­
tor do gabinete das amas -de-leite, cocheiros, serviçais domésticos, tintu­
reiros, camiseiras, trabalhadores da confecção de musselina, dois
tambores, dois outros "músicos", três actores (esperamos que não tenha
sido por terem irritado Collot nos camarins ) , peruqueiros, capelistas, cos­
tureiras, pintores, duas cabeleireiras, um ervanário, um barqueiro, tipó­
grafos, um estudante de matemática com vinte anos de idade, um mineiro
de carvão, a peixeira Pierrette B utin, um pasteleiro, um escrivão público,
notários, advogados, vários j ovens registados como "desempregados" e
Jacqueline C hataignier, de quarenta e quatro anos de idade, que foi clas­
sificada, de forma simples mas adequada para os propósitos do tribunal,
de fanatique. A última fornada de condenados incluiu o carrasco Jean
Ripet e o seu assistente, cuj a dura labuta nos últimos meses não conse­
guiu poupá-los. Para executar a tarefa foi chamado um colega seu de
Clermont-Ferrand.
Dado que tinham morrido também muitos lioneses durante o bom­
bardeamento de saturação do cerco, foi aniquilado todo um microcosmos
da sociedade de Lyon. O trauma deixou cicatrizes que levaram várias
gerações a sarar e que ainda hoj e fazem com que os seus lioneses sej am
muito pouco entusiastas acerca de Paris e dos parisienses. Todavia, devido
à importância de longo prazo da grande fábrica de seda e à enorme expan­
são dos mercados provocada pelo Império Napoleónico, Lyon conseguirá
recuperar parcialmente a sua vitalidade económica . Em alguns aspectos,
o destino económico das cidades portuárias federalistas de Marselha,
Bordéus e Toulon, apesar de terem escapado a execuções em massa à
escala das de Lyon, estropiou-as de modo mais permanente .
Na "Ville- Sans-Nom", como passou a ser chamada Marselha, os repré­
sentants-en-mission B arras e Fréron parecem tão decididos a uma purga
indiscriminada como Fouché e Collot. "Marselha", escreveram, " é a
causa original e primordial de quase todos os males que afligiram a
patrie". E tal como C outhon, foram buscar a Montesquieu uma teoria
geográfica para explicar a sua recalcitrância da cidade . "Devido à sua pró­
pria natureza ", Marselha considera - se à parte . "As montanhas e os rios
que a separam do resto da França e a sua língua alimentam o federa ­
lismo . . . querem leis só para eles; só vêem Marselha; Marselha é o seu
país; a França não é nada . " A conclusão que tiram é idêntica à de
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Couthon. Há que desenraizar o obstinado localismo destruindo a elite


comercial que está no cerne da prosperidade e do orgulho da cidade. No
entanto, o Tribunal Revolucionário que cumpre esta missão presta muito
mais atenção às formas jurídicas do que o de Lyon. Dos 9 7 5 presos que
comparecem perante o tribunal, quase metade é liberta . Entre os 4 1 2
condenados à morte encontra-se a nata da sociedade local, homens cuj o
estatuto e fortunas abrangeram a nobreza e a burguesia do modo tão
característico do capitalismo do Ancien Régime. Incluem, por exemplo,
Joseph-Marie Rostan, nobre de nascimento mas que se descreve como
commerçant, que reside na elegante Rue S ólon e que é proprietário de duas
fábricas de sabão, de armazéns e de habitações, e que negoceia em lã do
Mar Negro e em açúcar e café das colónias. "Não sei se sou nobre ", diz ele
ao tribunal. " O rgulho-me de ser comerciante . " O seu espanto pelo facto
de ser estigmatizado socialmente constitui um testemunho eloquente do
anticapitalismo da revolução j acobina . Rostan supõe que ao assumir- se
como commerçant diluirá a acusação de nobreza, quando aos olhos dos
seus acusadores essa profissão agrava- a . Muitos outros como ele,
incluindo Antoine Chegarry, Jean-Joachim D ragon e Honoré -Philippe
Magnon, os magistrados do antigo tribunal do comércio, caem sob a
mesma condenação.
Nem toda a França sofre deste modo. Há trinta e cinco anos, D onald
Greer mostrou que 9 0 % das execuções realizadas durante o Terror tive­
ram lugar em apenas vinte dos oitenta e seis departamentos . Todas estas
áreas, excluindo Paris, que mereceu um estatuto especial, eram zonas de
guerra : o teatro do combate contra a Coligação, os bastiões federalistas do
Midi ou do Vale do Ródano e a insurreição ocidental, com o seu núcleo
na Vendeia. Em trinta departamentos, registaram-se menos de dez exe­
cuções . D urante o inferno do Terror em Lyon e Nantes, houve grandes
cidades francesas, como Grenoble e B esançon, que, devido ao pragma -
tismo cuidadoso dos seus guardiães públicos e à simples sorte de se
encontrarem fora de uma zona de guerra, escaparam a muita da violên­
cia interna do Ano II. O utras cidades da órbita federalista, mais peque­
nas, permaneceram notoriamente obedientes à República - em parte
porque a relação que tinham com Lyon ou B ordéus era tão venenosa
como o sentimento das grandes cidades em relação a Paris. A ameaça
imediata às suas reservas alimentares não advinha de Paris nem dos
exércitos mas das suas grandes vizinhas. Por conseguinte, com base no
princípio de que o inimigo do inimigo era seu amigo, cidades como
Clermont-Ferrand e Le Puy foram um terreno fértil para o recrutamento
dos bleus que caíram sobre Lyon.
Em inúmeros outros lugares, o Terror mal esteve à altura do seu nome .
Os trabalhos do Tribunal Revolucionário do Meurthe, por exemplo, o qual,
segundo Greer, registou entre dez e cinquenta execuções, não oferecem
667

uma leitura sensacional. Saint-Just e Lebas, seu colega en mission, instala­


ram uma comissão especial para impor empréstimos obrigatórios aos ricos
em Nancy, mas no resto do departamento o Terror degenerou em insigni­
ficâncias. Um ex-postilhão de vinte anos de idade que serve nos hussar­
dos é j ulgado em tribunal marcial por ter beijado a flor-de-lis do seu antigo
uniforme. Três camponeses são acusados de desviar um carregamento de
aveia que deveriam ter entregado ao exército e de estragar outro mistu ­
rando-lhe palha e estrume mas são absolvidos por falta de provas decisivas.
Um pescador é j ulgado em Dezembro de 1 79 3 por ter gritado, "Viva
Luís XVI ! ", mas como também gritou, "O Diabo carregue a religião cató­
lica, tragam o maometanismo para França ! ", conclui-se que estava bêbedo,
que era maluco ou as duas coisas. Em Janeiro, um soldado com vinte e dois
anos de idade chamado Vattel afirma em público: " Quando servia o rei,
tinha dinheiro, agora sirvo a nação e nunca me pagam, estou na miséria . "
Mas estraga esta inegável - mas perigosa - verdade acrescentando : "Assim
sendo, cago na nação . . . não sou um cidadão e morrerei pelo meu rei . "
Uma ambição que é prontamente aj udado a concretizar. Mas por cada
Vattel existe o seu oposto nestes dramas de aldeia - por exemplo, Nicolas
Tronquart, um mestre -escola de Lunéville que é preso não por ser monár­
quico mas por ser utópico ( especificamente, por pregar a "lei agrária", a
divisão de todas as terras agrícolas pelos camponeses ) .
O Terror foi, pois, extremamente selectivo n a sua geografia . A dureza
do seu impacto dependeu criticamente do zelo ou do laxismo dos repré­
sentants-en-mission, da seriedade com que os comités revolucionários
locais cumpriam o seu dever, da militância das sociedades populares, de
a cidade se encontrar ou não na rota dos armée revolutionnaies e do tempo
que eles permaneciam na região. Mas se é importante não generalizar a
partir da experiência de Lyon e Marselha, importa não relativizar o
Terror, deixando que se torne um simples conj unto de anedotas maca ­
bras, marginais para a história da cidade "média " . De facto, se o Terror
operou com um efeito esmagador nas zonas que eram efectivamente cen­
tros de guerra ou de revolta, estas mesmas zonas localizavam-se precisa ­
mente na periferia económica dinâmica da França . Embora os jacobinos,
como todas as histórias incansavelmente observam, fossem grandes res­
peitadores da propriedade, a sua guerra foi uma guerra contra o capita ­
lismo comercial. Poderão não a ter desej ado no princípio mas a sua
retórica incessante contra os " ricos egoístas" e a incriminação das elites
comerciais e financeiras no federalismo significou que, na prática, a
empresa mercantil e comercial foi ela própria atacada - a menos que
tivesse sido colocada ao serviço dos militares . Não admira, pois, que tenha
sido nas grandes áreas de crescimento da França do século XVIII - os por­
tos atlânticos e mediterrânicos, as cidades têxteis do Norte e do Leste e a
grande metrópole de Lyon - que houve as maiores baixas da Revolução .
Simon Schama 1 CIDADÃOS

A "burguesia" que a história marxista j ulgou durante muito tempo ter


sido a principal beneficiária da Revolução foi, na verdade, a sua principal
vítima .
Além do mais, a visão académica de um Terror limitado não sobre­
vive ao escrutínio da enormidade mais terrível do Ano II: a destruição
indiscriminada de uma região inteira da França . Em nenhum outro lado
como na Vendeia - incluindo nos departamentos vizinhos do Loire
Inferior e do Maine e Loire - cumpriu o Terror tão plenamente o ditado
de Saint-Just de que "a república consiste no extermínio de tudo o que se
lhe opõe " .
O ponto d e viragem n a guerra dá-se quando Charette não consegue
tomar Nantes. No fim do Verão, os exércitos republicanos são reforçados
com os regimentos libertados da defesa de Mainz e com o primeiro grande
contingente proporcionado pela levée en masse. Em C holet, no dia 1 7 de
Outubro, os rebeldes perdem uma batalha decisiva e uma liderança mili­
tar coerente. O exército de Charette fica separado do Grande Exército, o
qual, após a morte de Cathelineau frente a Nantes, ficou sob o comando
do j ovem La Rochej aquelein. Contando provavelmente efectuar uma jun­
ção com um desembarque britânico ( que nunca acontecerá ) , o Grande
Exército atravessa o Loire no dia 1 9 de Outubro. Arrastando atrás de si
cerca de vinte mil não- combatentes (mulheres, crianças, padres, etc. ) , este
grande exército nómada vagueia durante três meses pela B retanha e pela
Normandia, acossado por exércitos republicanos cada vez maiores e tra ­
vando alguns combates nos quais pouco mais faz do que não ceder ter­
reno. Perde outra batalha importante em Angers, e no dia 23 de
Dezembro, em Savenay, o que resta do exército é posto em debandada; La
Rochej aquelein foge para um bosque disfarçado de camponê s .
Westermann, que assim s e reabilitou, escreve ao Comité d e Salvação
Pública: "A Vendeia deixou de existir, cidadãos, pereceu sob a nossa
espada livre, j untamente com as suas mulheres e crianças. Acabei de a
enterrar nos pântanos e na lama de Savenay. No cumprimento das vossas
ordens, esmaguei crianças com os cascos dos cavalos, massacrei mulheres
que assim . . . não gerarão mais bandidos. Não tenho prisioneiros que me
pesem na consciência . "
É possível que Westermann, n o verdadeiro estilo terrorista, tenha exa­
gerado para demonstrar o seu zelo, mas a verdade é que pouco depois foi
implementada (se não fora já) uma política de extermínio na Vendeia .
Tinha sido anunciada muito antes, no Verão, quando o general B eyssier
decidira que uma vez que a República se via obrigada a travar uma guerra
de bandidos, mas valia fazê -lo com a implacabilidade dos bandidos. Nos
centros urbanos, em Dezembro, isto traduz-se por um terrorismo de
excepcional brutalidade. Em Angers, só em Dezembro, são executados
duzentos prisioneiros, dois mil em Saint- Florent. Outros são retirados das
669

prisões sobrelotadas de Nantes e Angers e enviados para lugares como


Pont-de - C é e Avrillé, onde entre três e quatro mil são fuzilados numa pro ­
longada chacina.
Os massacres mais notórios registam-se em Nantes, onde o représentant­
en-mission, Jean-Baptiste Carrier, complementa a guilhotina com o que
designa por "deportações verticais" no rio Loire. Abrem buracos em barca­
ças, abaixo da linha de água, e pregam-lhes pranchas em cima para manter
as embarcações temporariamente à superfície . Os prisioneiros são colocados
a bordo, de pés e mãos atados, e as barcaças empurradas para o centro do
rio, para apanharem a corrente. Os barqueiros-carrascos partem ou retiram
as pranchas e saltam para dentro de barcos encostados às barcaças,
enquanto as vítimas impotentes ficam a ver a água subir à sua volta. Os que
tentam pôr-se a salvo saltando borda fora são mortos à sabrada na água. No
princípio, este tipo de execução é reservado aos padres e tem lugar pela
calada da noite, como que com um sentimento de culpa. Mas depois, aquilo
a que os sans-culottes da "companhia Marat", que demonstram um zelo
especial na repressão, chama com humor "baptismo republicano " ou
"banho nacional", torna- se rotina e passa a ter lugar em pleno dia. Alguns
condenados sobrevivem e descrevem as execuções. Nalguns casos, os pri­
sioneiros são desnudados e privados dos seus haveres ( o que constitui sem­
pre uma fonte importante de benesses para os soldados ) , o que dá origem a
relatos de "casamentos republicanos " : homens e mulheres atados nus, jun­
tos, nos barcos. As estimativas acerca dos que pereceram deste modo são
muito variadas mas não terão certamente sido menos de dois mil, e é muito
possível que tenham chegado aos quatro mil e oitocentos.
O que tem lugar na Vendeia nos primeiros dois meses de 1 7 94 não
denota mais misericórdia . A estratégia republicana para a reconquista foi
decidida no Verão e marcou um rompimento radical com as convenções
prevalecentes das " regras da guerra " . S endo o maior activo dos vendeia ­
nos a força da sua base doméstica, os seus opositores tinham decidido
destruí-la. Além dos alvos militares habituais - acampamentos, guarni­
ções e arsenais -, toda a infra-estrutura social e económica da região será
destruída até que os que nela estivessem escondidos fiquem expostos ao
fogo. As plantações serão queimadas, os animais das quintas chacinados
ou capturados, os celeiros e as casas arrasados, as matas incendiadas . Pior
ainda, a distinção entre os segmentos combatente e não combatente da
população será muito ténue . É sabido que as mulheres e as crianças dão
apoio aos rebeldes, que por vezes até combatem com eles. Pois muito
bem, também elas cairão sob a inj unção de "extermíni o " . Qualquer vila
ou aldeia que se saiba ter acolhido tropas rebeldes será automaticamente
arrasada . Ronsin, o comandante mais graduado na Vendeia, chega a pro ­
por um despovoamento sistemático, com os "bandidos" a serem deporta ­
dos e dispersos pela França ou enviados para Madagáscar. No seu lugar,
Simon Schama 1 CIDADÃOS

legiões de colonos franceses "puros" povoarão a região e criarão famílias


imaculadas pelo crime vendeiano . Mas há outras antecipações sinistras
das matanças tecnológicas do século XX. Carrier sugere que se deite arsé­
nico nos poços . Westermann propõe o envio de um barril de brandy
envenenado aos vendeianos ( o seu único receio é que os seus soldados o
bebam por engano ) . Rossignol pede ao eminente químico Fourcroy que
estude a possibilidade de usar "minas, fumigações ou outros meios que
destruam, adormeçam ou asfixiem o inimigo" .
A produção e m série d a morte através d o casamento d a tecnologia com
a burocracia terá de esperar ainda século e meio mas o que acontece em
Fevereiro e Março é mesmo assim pavoroso. Com a rebelião militar mais
ou menos extinta, os exércitos republicanos embarcam numa marcha de
"pacificação " pela região. As doze " colunas infernais" do general Turreau
são encorajadas (se é que não receberam ordens directas) a massacrar pra­
ticamente todas as pessoas que encontrem pelo caminho . Esta carnificina
indiscriminada inclui inevitavelmente alguns alvos errados. A família de
Honoré Plantin, lavrador abastado e patriota republicano impecável que
vive nos arredores de Machecoul sobreviveu ao massacre perpetrado na
cidade pelos vendeianos mas acaba por sucumbir às colunas infernais. Na
primeira visita, os republicanos matam- lhe três filhos e um genro; na
segunda, são chacinados a mulher, o último filho e a filha, de quinze anos
de idade . Todas as atrocidades imagináveis na época são cometidas sobre
a população indefesa. As mulheres são invariavelmente violadas e as
crianças assassinadas, e umas e outras sofrem mutilações . Para poupar
pólvora, o general Cordellier ordena aos seus homens que matem à
sabrada . No dia 2 3 de Janeiro, em Gonnord, a coluna do general C rouzat
obriga duzentos idosos, mães e crianças a aj oelhar à beira da vala que
abriram e são depois mortos a tiro . Os que tentam fugir são mortos à mar­
telada por um pedreiro patriota local . Quando a vala é coberta, trinta
crianças e duas mulheres são enterradas vivas.
Em todos os lugares em que estes horrores são perpetrados, há repu­
blicanos que ficam com o estômago às voltas com o que vêem e que vive ­
rão atormentados pelos massacres durante muitos e muitos anos.
Beaudesson, um agente importante do aprovisionamento militar, escreve:
"Encontrei pais, mães e crianças de todas as idades e de ambos os sexos a
nadar no seu próprio sangue, nus e em posições que a alma mais feroz
não seria capaz de imaginar sem um arrepio . "
E m meados d e Abril d e 1 794, a pacificação militar d a Vendeia está
mais ou menos concluída. O s únicos combatentes sobreviventes do
outrora imponente Grande Exército Real e C atólico são Sofflet e
Charette . Dedicam-se ambos a uma petite guerre, com emboscadas e
incursões e ataques de surpresa, furtando -se às batalhas e à captura .
Mas tal como os generais republicanos prometeram, a sua pátria é um
671

deserto, com as quintas e plantações incineradas, as enormes manadas


de gado chacinadas, as aldeias arrasadas e despovoadas. À semelhança
dos outros centros de insurreição, perdeu o nome : chama -se agora
"Vengé".
Os académicos têm-se mostrado cépticos acerca das estimativas avan­
çadas para as perdas populacionais pelos historiadores pró-vendeianos, e
o número apontado por Donald Greer - quarenta mil mortos durante
todo o período do Terror, em todos os departamentos - tem sido aceite
como plausível. Mas não é necessário aceitar a caracterização de Reynald
S écher dos massacres como "genocídio" para perceber que no Ano II ocor­
reu na Vendeia uma catástrofe humana de proporções colossais e que
exige uma substancial revisão em alta das estimativas . Jean - Clément
Martin, cuj o livro sobre esta temática é um modelo de investigação argu­
mentada, avança para as perdas totais para a Vendeia, o Loire Inferior e o
Maine e Loire um número muito próximo das 2 5 0 000 pessoas, ou seja,
um terço da população da região - não inclui as dezenas de milhar de sol­
dados republicanos que perderam a vida na guerra .
Confrontados com as provas de um apocalipse, não fica bem aos his­
toriadores olhar para o lado em nome da obj ectividade académica . É ver­
dade que os acontecimentos da Vendeia decorreram de uma guerra
( embora as piores chacinas tenham ocorrido findos os combates) e que os
rebeldes cometeram a sua quota-parte de massacres nas fases iniciais da
sublevação . Todavia, por muita simpatia que os historiadores possam ter
pelas pretensões de virtude política da Revolução Francesa, nenhuma jus­
tifica, sej a em que medida for, o insensível morticínio do Inverno do Ano
II, e é ainda menos conecto remeter a história da Vendeia para uma cate ­
goria especial de obras afastada do resto da história da Revolução, como
se fosse uma aberração. O extermínio praticado na Vendeia foi o resultado
lógico de uma ideologia que desumanizou progressivamente os seus
adversários e que se tornou incapaz de descortinar uma via média entre o
triunfo total o eclipse absoluto. Num comentário sobre a revolução de 1 0
de Agosto, Robespierre regozij ou-se porque "um rio de sangue passava a
dividir a França dos seus inimigos". O rio está prestes a transbordar; a tor­
rente é rápida mas só os íntimos do Incorruptível sabem para onde vai
levar a República.
18

A Política da Torpeza

I LOBAS E OUTROS PERIGOS

"Não conheço nada que sej a tão cruel como acordar numa cela, num
lugar onde o pesadelo mais horrível é menos horrível do que a realidade . "
Na sua eminência d e ministro d o Império Napoleónico, Jacques- Claude
Beugnot recorda com horror e repugnância os meses que passou na
Conciergerie, em finais de 1 7 9 3 , e espanta-se por ter sobrevivido quando
tantos outros - centenas -, detidos sob o mais ténue pretexto, saíram de
carroça para um encontro com a guilhotina .
Durante o Terror, funcionam em Paris mais de cinquenta prisões. A Lei
dos Suspeitos, de 1 7 de Setembro, tornou os critérios para detenção tão
elásticos que engrossou a população prisional para cerca de sete mil reclu­
sos no princípio de Dezembro. Têm de ser encontrados novos espaços.
Alguns, como o antigo quartel-general dos rendeiros fiscais ( um grupo deles
será guilhotinado na Primavera ) e o esplêndido Palácio do Luxemburgo
terão sido requisitados com alguma justiça poética, mas o critério principal
é o espaço disponível; casernas, conventos, escolas e os célebres seminário
e biblioteca jansenista de Port-Royal (rebaptizado Port-Libre ) são converti­
dos em locais de encarceramento.
De todas estas prisões, a Conciergerie, na Ilha da C idade, é a que tem
a reputação mais sinistra ( com a húmida e insalubre Sainte -Pélagie logo a
seguir) . Beugnot chama -lhe "uma vasta antecâmara da morte ", pois além
de centro de detenção antes da comparência dos detidos perante o tribu ­
nal e cárcere de criminosos de direito comum, alberga também aqueles
que aguardam a execução depois de sentenciados . B eugnot passa muitas
noites em claro, a ouvir os soluços e os gemidos que chegam indistinta ­
mente dos doentes e dos aterrorizados, enquanto os inúmeros cães da pri­
são ladram ao sinistro badalar das horas no relógio da torre .
Mesmo pelos padrões da época, a Conciergerie é um lugar desgraçado,
um lugar que consegue engendrar uma miséria fenomenal dentro de um
espaço arquitecturalmente grandioso (também foi residência de prínci ­
pes ) . Tal como relata outro dos residentes que sobreviveu para contar a
673

sua história, o jornalista Claude - François B eaulieu, muitos prisioneiros


comparavam-na com um dos círculos mais baixos do Inferno de Dante,
uma casa de vermes, a cheirar a doença e a imundícies. Ao ser admitido,
Beugnot partilha a sua cela de 4, 5 m1 ( uma das mais espaçosas ) com um
homem de quarenta anos acusado de ter assassinado a mãe ( Beugnot
desconfia que se trata de um lunático ) e com um falsário j ovem e amis­
toso pertencente à "aristocracia do crime " . Mas nem todos estão tão mal.
O s presos mais ricos ( como Maria Antonieta) estão aloj ados à la pistole,
isto é, podem pagar uma cama, que custa vinte e sete libras francesas
( doze soldos pelo primeiro mês ) . S endo esta soma paga à cabeça, o
grande número de entradas e saídas determinadas pelo Tribunal
Revolucionário torna este esquema uma importante fonte de receitas
para as prisões . Em S ainte -Pélagie, a primeira pergunta feita aos detidos
é : "As-tu de la sonnette?" ( tens pilim? ) . Os que não têm ( a esmagadora
maioria ) dormem à la paille, em cachots' exíguos, sem água nem ar, sem
terem onde se aliviar a não ser no chão. Passado algum tempo, deixam
de se importar, dormem ao pé e em cima dos próprios excrementos,
cobertos de piolhos e de chagas . Para variar a rotina, podem passear sob
as abóbadas ogivais do longo e sombrio corredor conhecido por "Rue de
Paris", ver as ratazanas andarem de um lado para o outro e trocar rumo ­
res sobre as admissões mais recentes .
M a s o dia tem um momento q u e é ansiado p o r todos os reclusos mas ­
culinos . Por volta do meio-dia, as mulheres descem da zona à la pistole, no
segundo andar, para um pátio a céu aberto onde se lavam e às suas rou ­
p a s o melhor q u e podem. Através de uma grade, os homens podem con­
versar com as mulheres, admirar-lhes o aspecto - elas fazem tudo para se
manterem compostas - e até namorar um pouco. De seguida, à refeição,
os homens sentam -se em bancos colocados ao lado dos das mulheres, ape­
nas com as grades a separá-los, e assim, pelo menos durante algum
tempo, têm a ilusão da companhia . É numa destas alturas que B eugnot
descobre "Eglé" . Ela está a ralhar com o duque du C hâtelet, de sessenta e
seis anos de idade, ex- comandante dos gardes française, que se descontro­
lou, e diz-lhe, em termos bastante firmes, que continuar a comportar-se
daquela maneira é indigno de um duque. O facto de ela desaprovar a
perda de dignidade do nobre indica a B eugnot que deve ter pertencido à
alta sociedade.
Na verdade, Eglé é uma prostituta . Residiu nos últimos dois anos na
Rue Fromenteaux. O negócio terá sofrido com a Revolução e, nas ruas
que batia, ela não perdia uma oportunidade de proclamar o seu desagrado
com a nova ordem. Por causa das suas tiradas, foi denunciada, detida j un­
tamente com uma colega e levada para a Conciergerie. A sua dedicação

' Em francês no original: calabouços. (N. da R.)


Simon Schama 1 CIDADÃOS

primitiva à monarquia é tão apaixonada e expressa-se de forma tão enér­


gica que, segundo B eugnot, levou Chaumette a sair- se com a ideia inspi­
rada de j ulgar as duas raparigas ao mesmo tempo que Maria Antonieta .
Para o procureur da C omuna, o espectáculo de três prostitutas na mesma
carroça com destino à guilhotina será uma declaração simbólica eloquente
da opinião sans-culotte sobre a ex-rainha. É claro que a ideia foi conside­
rada demasiado escandalosa para o Tribunal Revolucionário, mas, apesar
de não partilharem o mesmo carro, os destinos da rainha e da prostituta
cruzar-se-ão: três meses depois da decapitação de Maria Antonieta,
quando a acusação de Eglé é lida, contém um artigo que a acusa de "rela ­
ções conspiratórias " com a rainha . Eglé confessa alegremente a sua sim­
patia impenitente pela monarquia mas, segundo B eugnot, quando o
interrogador chega à " conjura", ela encolhe os ombros e responde com
ironia : " C omo quiserem. Vocês têm uma grande lata . Eu, cúmplice da pes­
soa a quem vocês chamam viúva C apeto e que era a rainha; eu, que
ganhava a vida nas esquinas e que nem para a mais humilde criada da sua
cozinha teria servido . Isto só podia ser inventado por uns patifes e imbe­
cis como vocês . " Estranhamente, a audácia da explosão leva um dos j ura­
dos a declarar que ela deve estar bêbeda . A amiga agarra -se com unhas e
dentes à sua única hipótese de merecer clemência e confessa-se grávida
(logo, protegida da guilhotina ) . Mas Eglé insiste que não está embriagada
nem grávida e que não volta atrás em nada do que disse. É prontamente
condenada à morte, mas não sem antes chamar ladrão ao j uiz que orde ­
nou o confisco dos seus bens. C hegado o momento, "ela saltou para a car­
roça ", diz Beugnot com um romantismo galante, " como um pássaro " .
Talvez s e tratasse d a "prostituta Catherine Albourg", mencionada n a lista
oficial dos sentenciados a serem guilhotinados no dia 1 2 de Dezembro .
Não há maneira de comprovar o que B eugnot diz acerca da ideia de
Chaumette mas dada a violência do sentimento existente contra a rainha
em Paris, não parece muito rebuscado. Tendo o C omité de Salvação
Pública - controlado pelos dantonistas - demonstrado alguma relutância
em levá-la a tribunal, na Primavera e no Verão, Hébert usa a questão para
castigar o comité por modérantism, o pecado mais recente do catecismo
revolucionário. Em Julho, com a mudança de política e de pessoal, tem
início um processo sistemático de degradação e desumanização. Dadas as
fugas de informação que davam conta da ternura de Maria Antonieta para
com os filhos, ambos frequentemente doentes e que ela trata com grande
dedicação, o conectivo é separá-la de Louis - Charles, de sete anos de
idade, que é colocado à guarda da República . D epois de uma hora de cho ­
ros e súplicas de desespero, o garoto é levado para um quarto por baixo
do da rainha, onde ela ouve soluçar dias a fio . A educação do garoto, na
qual, seguindo o exemplo do rei, ela se esmerara, é entregue aos cuidados
de um sapateiro semi-analfabeto chamado Simon, que será mais tarde
675

guilhotinado . Doente e, como sucedeu com o irmão mais velho, possivel­


mente afligido de tuberculose, o pequeno, depois da morte da mãe e da
tia, será tratado como um animal enjaulado e viverá na escuridão e na
imundície até à sua morte, em 1 79 5 .
Para impedir qualquer possibilidade d e fuga e manter a intensidade da
sua humilhação, Maria Antonieta é separada do resto da família . A 2 de
Agosto, é acordada a meio da noite e levada do Templo para a
C onciergerie, onde passa a ocupar um quarto com 6 m1 que dá para o cor­
redor principal do rés - do - chão e adjacente aos dois gendarmes incumbi­
dos de a guardarem vinte e quatro horas por dia . No fim do mês, tem
lugar uma tíbia tentativa de salvamento, abortada quando um dos guar­
das entra em pânico e a conduz de volta à cela. No dia 12 de Outubro,
emaciada e debilitada, é levada ao tribunal para ser interrogada. Hébert
preparou a opinião pública incrementando as suas invectivas no Pere
Duchesne. Maria Antonieta é frequentemente referida como fera voraz -
" loba austríaca " ou " arquitigreza ", um "monstro que necessitava de saciar
a sede com o sangue dos Franceses . . . [que] queria assar vivos os pari­
sienses . . . que provocou o massacre, em Nancy, dos primeiros soldados da
liberdade " e assim por diante . Mesmo que ela não tenha cometido todas
aquelas atrocidades, escreve Hébert ( fazendo eco do comentário de Saint­
-Just, "Não se reina inocentemente" ) , o facto de ter sido rainha basta para
a condenar porque aqueles que reinam são os inimigos mais mortíferos da
humanidade. Sendo essas criaturas, pela sua própria natureza, biologica­
mente perigosas, "é dever de todo o homem livre matar um rei ou aque­
les que estão destinados a ser reis ou que participaram nos crimes da
realeza" . Hébert limita -se a papaguear a visão dos " ultras", expressa, por
exemplo, no drama apocalíptico de Sylvain Maréchal, Le Dernier Jugement
des Rois, onde "monstros coroados" ( um dos eufemismos em voga ) , nas
pessoas de Catarina, a Grande, do imperador Francisco II, do papa, "Jorge
Papalvo"2 da Grã-B retanha e os seus irmãos de Espanha, de Nápoles, da
Sardenha e da Prússia são levados pelos sans-culottes para uma ilha vulcâ­
nica onde, no último acto, são satisfatoriamente consumidos numa erup­
ção fervente .
A peça de Maréchal coloca uma grande ênfase não apenas no despo­
tismo mas também na corrupção moral dos príncipes. "Existiu alguma
nação que tivesse ao mesmo tempo rei e moralidade?", pergunta o seu
sans-culotte. Antes da explosão, os monarcas perdem a sua aparência de
orgulho e soçobram nos seus vícios característicos, digladiando -se com
ceptros e cruzes, enquanto a libidinosa Catarina convida quem estiver
interes S' ado a acompanhá-la a uma gruta. Tudo isto contrasta directa­
mente com o sans-culotte, o qual, conforme é explicado a um velho que foi

2 O rei Jorge III. (N. do T.)


Simon Schama 1 CIDADÃOS

exilado para a ilha, "é um homem livre, um patriota par excelence . . . são
cidadãos puros . . . que comem o pão que ganham com o suor da sua
fronte; que amam o trabalho, que são bons filhos, bons pais, bons mari­
dos, bons parentes, bons amigos e bons vizinhos . . . " .
A acusação que é feita a Maria Antonieta ( e a todos quantos a segui­
ram para a guilhotina durante o Terror) é praticamente a mesma .
Essencialmente, ela é impura no corpo, no pensamento e na acção . As
suas conspirações decorrem axiomaticamente desta torpeza moral. No
interrogatório inicial, conduzido pelo presidente do tribunal, Herman, ela
é retratada como uma mulher ingovernável que forçou o rei, por exem­
plo, a vetar a legislação anticlerical e a organizar a fuga para Varennes .
Como todas as mulheres incontroláveis, é simultaneamente ávida de
dinheiro e pródiga a gastá -lo, "passando o ouro dos patriotas para fora do
país " . A "orgia" infame dos guardas suíços em Versalhes, em 1 789, é outro
exemplo da sua sede de domínio. Uma das quarenta e uma testemunhas
de acusação diz ter visto garrafas debaixo da cama dela, o que o conven­
ceu de que ela queria embebedar os soldados .
Os testemunhos sobre o carácter imoral de Maria Antonieta culmi ­
nam com a notória intervenção de Hébert e a declaração que ele induziu
Louis - Charles a assinar, confessando que a mãe e a tia o ensinaram a
masturbar- se e que o obrigaram a cometer incesto. Alguns desses esfor­
ços tinham-no inclusivamente ferido, e só quando foi subtraído à pre­
sença maculadora delas, afirma Hébert ( contradizendo claramente a
verdade ) , é que a sua saúde melhoro u . E houve outros actos através dos
quais ela perdeu o direito de ser considerada uma boa mãe . Em vez de
educar o filho como um republicano virtuoso, tentou doutriná -lo com
crenças monárquicas. A prova está no facto condenador de ele ser o pri­
meiro a ser servido às refeições por via dos seus direitos soberanos
enquanto "Luís XVII" . Um Coração S agrado, trespassado por uma flecha
( uma dádiva de Madame Elisabeth, diz a rainha - para mal da cunhada,
infelizmente ) , o famigerado totem dos bandidos vendeianos, foi desco­
berto entre os haveres do garoto, o que indica que ele estava a ser edu ­
cado para mascote daquela horda bárbara . Não se contentando com a
destruição de um dos C apetos masculinos, ela estava determinada a fazer
o pior com o outro . Tudo aquilo são provas conclusivas do seu carácter
"antinatural", apenas "féconde" ( uma palavra que não foi certamente
escolhida ao acaso ) em intrigas.
Mais concretas são as cartas, apresentadas por Fouquier-Tinville, o
procurador público, que revelam a rainha envolvida numa correspondên­
cia traiçoeira com a corte austríaca quando ambos os países se estavam a
preparar para a guerra . No entanto, estas provas, que são verdadeira ­
mente incriminatórias, acabam algo abafadas pelo assassínio de carácter.
É dito ao j úri que a mulher mirrada e de cabelos brancos que têm à frente
677

era uma furie, alguém que, no 1 O de Agosto, mordeu os cartuchos dos


guardas suíços para eles não perderem tempo enquanto assassinavam o
maior número de patriotas possível. Para aquele tipo de animais, só o
extermínio imediato .
Depois da inevitável sentença, Maria Antonieta é recambiada para a
C onciergerie . Chora e escreve uma última carta à cunhada, confiando -lhe
os filhos. Depois, veste um vestido branco, põe uma boina simples e calça
os sapatos cor de ameixa e de saltos que conseguiu levar para a prisão.
Preparada para a morte, com o cabelo cortado, hesita quando vê a carroça
aberta, pois estava a contar ( ou pelo menos, com a esperança ) de fazer o
traj ecto na carruagem fechada que levou o rei até à Praça da Revolução,
o que lhe pouparia os insultos da multidão. S entada erecta e desolada
enquanto a levam pelas ruas, é desenhada por Jacques-Louis D avid como
um obj ecto de curiosidade . S ó treme no último minuto, já no patíbulo.
Ora isto não basta para o Pere Duchesne, que gostaria de lhe ver o terror
estampado no rosto - o terror que será exibido por Hébert quando chegar
a vez dele . "A cabra foi atrevida e insolente até ao fim. Mas as pernas
falharam-lhe quando a inclinaram para jouer la main chaud o termo favo ­
-

rito de Hébert para a guilhotina na altura . Mesmo assim, como anunciou


na primeira página, "foi a maior das alegrias para o Pere Duchesne, ter
visto com os seus próprios olhos a cabeça do veto feminino separada do
pescoço da pega " .
Maria Antonieta não foi a única mulher incriminada nesta altura por
conspirar contra a ideologia jacobina da esposa-mãe obediente . A desgra ­
çada Madame du Barry, última amante de Luís XVI, fora absurdamente
imprudente ao realizar várias viagens a Londres, onde combinara esque ­
mas sofisticados com, entre outros, o ex-ministro Bertrand de Moleville,
para tirar as suas j óias de França . No entanto, mesmo que ela tivesse sido
mais cuidadosa, o mais provável é que a sua reputação acabasse por apa­
nhá-la. Quando foi interrogada, o tribunal estava a pensar nas espúrias
Mémoires du Du Barry, da condessa Pidanzat de Mairobert, nas quais ela
esbanj a o dinheiro do país em j óias, casas e favoritos, conluiada com o
abade Terray de má memória. Uma polémica especialmente venenosa
chamou - lhe "barril de infecções; esgoto de iniquidade; cloaca impura que,
não se contentando com devorar as finanças de França, se alimentou de
carne humana, como fazem os antropófagos " .
Madame Roland não foi suj eita a este grau d e patofobia sexual mas,
mesmo assim, depois de testemunhar no j ulgamento dos girondinos,
regressou a Sainte - Pélagie chocada com "perguntas que ultraj aram a sua
honra " . Dado que o seu admirador, B uzot, fora um dos cabecilhas da ten­
tativa de lançar uma rebelião federalista no Calvados, é muito provável
que ela tenha sido questionada sobre as suas relações com ele. Quando foi
julgada, no dia 8 de Novembro, Fouquier-Tinville associou - a facilmente
Simon Schama 1 CIDADÃOS

aos girondinos, condenados e executados dez dias antes. Mas também foi
retratada como uma esposa antinatural, como alguém que transformara o
seu lar - um lugar que, à luz da ortodoxia j acobina, era a sede da domes ­
ticidade patriótica - n u m ninho de conspirações. Tinha demasiado ar de
salão, uma instituição que sabia a nepotismo e adulações aristocráticas.
De facto, o período em que decorreram estes julgamentos marca a
fase mais tempestuosa da política sexual da Revolução. Registam-se zara ­
gatas entre as feministas da Sociedade das Mulheres Republicanas e as
poissardes por causa de saber se é ou não é apropriado as mulheres usa­
rem o cocar e o bonnet rouge. Claire Lacombe e outras militantes são da
opinião de que as mulheres não só devem ser autorizadas como obriga­
das a fazê -lo, e até tentam alistar-se na Guarda Nacional. Em finais de
Setembro, a C onvenção acede a algumas das exigências mais radicais em
termos de vestuário mas no dia 28 de Outubro dá-se um encontro vio ­
lento entre os dois grupos, que acaba com as feministas a serem feroz­
mente espancadas . A C onvenção volta atrás e no dia 5 de Dezembro
ordena o encerramento de todos os clubes revolucionários femininos de
Paris. O decreto é promulgado três dias antes do julgamento e execução
de Madame Roland e dois dias depois dos de Olympe de Gouges . A actriz
teve a desfaçatez de se oferecer como defensora de Luís XVI e agravou o
pecado ao advogar abertamente soluções federalistas e referendos popu -
lares para determinar a forma de governo. Mesmo depois da sua deten ­
ção, em 20 de Julho, tentou publicitar os seus ataques directos a
Robespierre e Fouquier-Tinville através de amigos que os afixaram nos
lugares públicos de Paris.
Tendo em conta os esforços dispendidos para retratar estas mulheres
como desviantes perigosas das normas domésticas prescritas, é notável
que praticamente todas elas ( exceptuando Jeanne Du Barry) se tenham
revelado, nas suas cartas de despedida, modelos de maternidade terna e
conscienciosa. Na sua defesa apaixonada da rainha, Germaine de Stael
sublinhou a sua devoção abnegada aos filhos doentes e apelou às mulhe­
res de França, em nome da " maternidade sacrificada", que exigissem que
a deixassem reunir- se com o filho. Olympe de Gouges escreveu ao filho,
que servia no exército, dizendo - lhe para transmitir a sua opinião acerca
da perversão inj u sta da Revolução . Manon Roland, na comovente carta
que escreveu à filha de doze anos de idade, Eudora, recordou-lhe os laços
mais profundos que as uniam:

Não sei, minha amiguinha, se poderei alguma vez voltar a ver-vos ou a


escrever-vos. Lembrai-vos da vossa mãe. Estas poucas palavras contêm
o melhor que vos posso dizer . . . Sede digna de vossos pais, eles deixam­
-vos grandes exemplos e se os aproveitardes a vossa existência não será
sem valor. Adeus, querida filha, que alimentei com o meu leite e a quem
679

gostaria de transmitir todos os meus sentimentos. Chegará a altura em que


podereis compreender o esforço que estou a fazer para não enfraquecer [ao
pensar] no vosso rosto doce . Aperto-vos contra o meu peito . Adieu, minha
Eudora .

Os maridos, mesmo aqueles cuj as mulheres tinham um amante, eram


igualmente capazes de demonstrações dramáticas de sensibilité. Na altura
da fuga dos girondinos para norte, Roland de La Platiere não foi para C aen
mas para Rouen, onde passou o Verão e o Outono como fugitivo. Quando
soube da execução dos girondinos e depois, no dia 10 de Novembro, da
morte da mulher, decidiu suicidar- se. A alguns quilómetros de Rouen, na
estrada de Paris, sentou -se no chão, encostado a uma árvore, e inclinou ­
se com força sobre a s u a bengala -espada. O transeunte q u e o encontrou
no dia seguinte j ulgou que ele estava a dormir, até que deu com um
bilhete ao lado dele, que terminava com as palavras: "D eixei o meu refú ­
gio logo que soube que a minha mulher foi assassinada . Não desej o con­
tinuar num mundo coberto pelo crime . "
O s seus aliados, o s girondinos, passam por u m processo judicial longo
e particularmente distorcido que culmina nos esforços notórios de
Fouquier-Tinville para abreviar os trabalhos . Sempre que as suas acusa­
ções, subtilmente organizadas, parecem abrandar indevidamente ou
quando a defesa começa a convencer o júri, ele pergunta aos j urados se
"j á ouviram o suficiente para ficarem iluminados" em relação aos factos
do caso e para pronunciarem um veredicto . É particularmente urgente
que tal aconteça no caso dos girondinos, pois B rissot e Vergniaud, em par­
ticular, fazem um relato poderoso da sua conduta, refutando ponto por
ponto a acusação inicial contida num relatório apresentado à Convenção
por Saint-Just e posteriormente alargada por Amar para um dos principais
membros do Comité de Segurança Geral. O seu teor é que os acusados,
não obstante o que diziam da boca para fora, tinham sido sempre dedica­
dos à monarquia e feito os impossíveis para a preservar.
A figura chave é B rissot, pelo que há que retratar o seu carácter como
extremamente duvidoso. É denunciado como espião da polícia, o que ele
nega mas que era verdade - antes da Revolução. É descrito como falsá ­
rio, tendo -se deslocado à Suíça para obter um passaporte falso. Com estas
provas de uma vida dupla na década de 80 do século XVIII, é construído
um caso de acordo com o qual toda a sua carreira revolucionária foi uma
mentira, um estratagema de autopromoção; enquanto professava ser, no
título do seu j ornal, o Patriote Français, na realidade, segundo a acusação,
nunca deixara de ser um agente inimigo. D e facto, na altura exacta em
que dissera ser um republicano fervoroso, estava a conspirar para colo ­
car o duque de York no trono de França . E mesmo que B rissot não se
tivesse por vezes dado conta, ele fora sempre uma criatura devotada da
Simon Schama 1 CIDADÃOS

estratégia de William Pitt. "Pitt queria aviltar e dissolver a Convenção, eles


[os "brissotins", como são chamados durante todo o julgamento] trabalha ­
ram para dissolver a Convenção; Pitt quis assassinar os fiéis representan­
tes do povo, eles assassinaram Marat e Lepeletier. " Até a apaixonada
defesa de uma guerra por B rissot foi interpretada através da obsessão
revolucionária com a emboscada, como um modo de atrair a França pre­
matura e gratuitamente para um conflito com a C oligação para melhor
destruir a unidade francesa. Os britânicos olharam cobiçosos para o impé­
rio francês, B rissot deu -lhes a oportunidade de o tomarem; Pitt quis des­
truir Paris, "eles fizeram tudo o que puderam para destruir Paris" .
A mentalidade d a acusação jacobina ( como a s d e todas a s outras dita ­
duras revolucionárias ) era necessariamente holística . Os acidentes, as
contingências e as mudanças de ideias e planos eram por definição impos­
síveis, eram truques para distrair o inquisidor de compreender a verda­
deira coerência, a interligação necessária dos pensamentos e actos do seu
inimigo . Tal como o revolucionário puro era uno com a revolução, com a
sua orientação moral definida cedo na vida e seguida de forma inabalável,
o contra- revolucionário, por muito que tentasse apresentar a sua conduta
como eventualmente casual ou acidental, também era uno com a contra­
revolução . Bastava expor, como que abrindo a parte de trás de um reló ­
gio, o movimento essencial da máquina. No caso dos brissotins, foi fácil: o
seu motivo era o egoísmo partilhado. A sua estigmatização como "facção"
sugeria que toda a sua conduta revolucionária podia ser explicada como
uma apropriação de poder pessoal. A imoralidade egoísta das suas carrei­
ras era o oposto exacto do verdadeiro patriotismo, definido como abnega­
ção, e os meios através dos quais eles procuravam a riqueza, a vaidade e
o poder tinham sido primeiramente a criação de uma dinastia fantoche e
depois, eliminada esta alternativa, o desmembramento da França em feu ­
dos . Depois de a defesa dos brissotins ter sido interrompida pela sugestão
de Fouquier aos j urados de que talvez já tivessem ouvido o suficiente, o
veredicto e a sentença estavam decididos. Mesmo assim, o anúncio formal
do j úri deu origem a um momento extraordinariamente dramático .
Brissot inclinou tristemente a cabeça para a frente e, segundo um dos
j urados, Camille Desmoulins, deu um salto e gritou: "Meu Deus, peço
desculpa por isto . " Enquanto Boileau continuava a protestar a sua ino­
cência, Dufriche-Valazé caiu subitamente do banco para trás. Um dos seus
amigos j ulgou que era da emoção mas constatou -se em segundos que ele
se tinha apunhalado com uma faca escondida nos seus papéis . Morreu em
poucos minutos, esvaindo - se em sangue para o chão do tribunal. Irritado
por ter sido privado de uma execução, Fouquier-Tinville exigiu que o
cadáver fosse guilhotinado com os outros condenados, e assim aconteceu.
Embora se tenha verificado uma espécie de epidemia de suicídios entre
os revolucionários caídos, os girondinos parecem ter sido especialmente
681

susceptíveis à poesia da autodestruição. Claviere também se suicidou e


mais tarde, como veremos, C ondorcet poderá ter tomado veneno para
evitar a humilhação do Tribunal Revolucionário . Vergniaud também
escondeu veneno mas segundo Riouffe, que o viu na Conciergerie na
última noite da sua vida, decidiu partilhar o destino dos amigos . Na
manhã de 3 1 de Outubro, subiram os degraus da carroça a cantar a
"Marselhesa" . Foi o seu último gesto de fraternité. No patíbulo, Sanson
demorou apenas trinta e seis minutos para cortar vinte e duas cabeças,
tendo ficado bastante agradado com aquela prova adicional da eficiência
da rasoir national.

II O FIM DA INDULG Ê NCIA

Este processo de limpeza da casa republicana através do assassínio judi­


cial foi continuado com a escolha de outras figuras cruciais que represen­
tavam o passado impuro . Tristemente para o Tribunal Revolucionário,
vários dos candidatos mais óbvios à retribuição expiatória estavam fora do
seu alcance : Dumouriez no exílio, Lafayette numa prisão austríaca,
Mirabeau no Panteão (mas não por muito mais tempo ) . Barnave e B ailly
teriam de servir, e pagaram efectivamente pelas suas tentativas de conten­
ção revolucionária. No dia 7 de Novembro, Philippe-Egalité, duque de
Orleães, teve o seu encontro com a morte na companhia de um serralheiro
condenado por ter insultado a bandeira republicana . O duque terá alega ­
damente feito uma declaração pública de pesar pela sua responsabilidade
no derramamento do sangue de um inocente (presumivelmente o primo ) .
A pureza transformou - se num fetiche político . No seguimento de uma
proposta de Merlin de Thionville, os jacobinos deram início a um labo­
rioso processo de autocrítica no qual cada membro respondia às seguintes
perguntas: " Q uanto valias em 1 789? Quanto vales agora? Se vales mais
agora, porquê? " . Em finais de Novembro, quando este scrutin épuratoire se
iniciou, parecia que os principais beneficiários deste inexorável processo
de auto -redução seriam Hébert e os seus aliados . Hébert pertencia ao
comité de purga do clube. Bouchotte e Vincent, no Ministério da Guerra,
controlavam recursos enormes em termos de clientelas; Ronsin estava fir­
memente entrincheirado como comandante supremo dos armées revolu­
tionnaires. Em Paris, a parceria entre Hanriot, o comandante da Guarda
Nacional, C haumette, o procureur da Comuna, e Pache, o presidente da
câmara ( que passara de girondino a montanhês a hébertista ) , parecia
garantir a este grupo a possibilidade de ligar e desligar a violência popular
a seu bel-prazer.
O "hébertismo" dispunha de homens, dinheiro e autoridade e come ­
çava a usá-los de forma poderosa. Na qualidade de ministro da Guerra,
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Bouchotte apropriara -se de vastas somas para distribuir gratuitamente o


Fere Duchesne pelo exército. Menos clara é a posição destes homens - além
do seu brutal estilo acusatório -, dado que se definiam mais em termos
daquilo que eram contra do que a favor. Eram contra os "fanáticos " do
cristianismo, contra toda e qualquer misericórdia para os "bandidos" e
"monstros " derrotados do federalismo e da contra - revolução, e contra os
ricos e os beaux esprits os intelectuais que presumiam falar de cima para
-

baixo com o Povo . Se eram a favor de alguma coisa, era de uma noção
anárquica de governo popular, sempre armado para impor a vontade do
povo aos seus mandatários. Também apoiavam a extensão do poder do
Estado à economia . No número 2 7 3 do Fere Duchesne, Hébert argumenta
que "a terra foi feita para todas as criaturas vivas, e da formiga ao altivo
insecto chamado homem, todos têm que encontrar a subsistência na pro ­
dução desta mãe comum . . . O comerciante deve viver da sua indústria, é
certo, mas não deve engordar com o sangue do pobre . A propriedade é
[simplesmente] existência e é preciso comer, sej a qual for o preço " . Em
consonância com este conceito do Estado como protector da subsistência
mínima ( uma visão mais ou menos partilhada por Robespierre e Saint­
Just ) , Hébert pretendia uma política mais agressiva de requisições para
responder às crises locais . A título de expediente temporário, para garan­
tir o abastecimento adequado e preços baixos, toda a produção de vinho
e cereais deveria ser obrigatoriamente comprada pelo Estado ( indemni­
zando os produtores) . Num discurso à Comuna, a 14 de Outubro,
Chaumette propôs mesmo que o Estado se reapoderasse das oficinas e
manufacturas encerradas ou abandonadas pelos empresários emigrados
( um esquema que será levado a sério oitenta anos mais tarde, pela
Comuna de Paris, em 1 87 1 ) .
Mas acima de tudo, os hébertistas eram a favor de uma incansável vigi­
lância, denúncia, acusação, humilhação e morte . A imagem que o Fere
Duchesne tinha da República era uma espécie de igualitarismo de balneá­
rio em que os bons bougres' não têm nada a esconder uns dos outros e se
abraçam numa fraternidade musculada . Hébert gostava muito de dizer
que "o homme pur diz sempre o que pensa, chama os bois pelos nomes,
nunca manipula as pessoas e se na sua fúria fere um qualquer desgraçado
por engano, pede -lhe desculpa e levando - o à taberna mais próxima para
beber uns copos " . (O francês é muito melhor: étouffer une demi-douzaine
d'enfants de choeur. )
Mas a ascendência hébertista encontrou resistência. Não obstante a
aparência de capitulação perante a intervenção popular, o controlo j aco­
bino da j ornada de 5 de S etembro implicou a resolução da Montanha de
não ficar a mercê da Comuna. Por conseguinte, a maioria dos membros

' Em francês no original: bons rapazes . (N. da R.)


683

do C omité de Salvação Pública, especialmente depois da declaração de


Saint-Just, a 1 0 de Outubro, de que o governo seria "revolucionário [isto
é, ditatorial] até à paz", estavam decididos a fazer uso do poder do Estado
para neutralizar a ameaça de insurreição. Porém, em Novembro e
Dezembro, a própria Montanha esteve dividida. Várias figuras importan­
tes, incluindo Robespierre e C outhon, eram hostis à descristianização e
estavam receptivas às queixas acerca dos excessos punitivos cometidos
por représentants-en-mission militantes como Javogues, Carrier e Fouché .
Por outro lado, continuavam obcecados pelo Santo Graal da pureza repu ­
blicana . Já que esta estaria, por definição, eternamente inalcançável, os
seus paladinos ver-se-iam constantemente confrontados pelos soldados
impuros da escuridão e do crime postados entre eles e o seu objectivo e
que tinham de ser abatidos para se concretizar o Reinado da Virtude .
Nestas circunstâncias, o maior desafio aos hébertistas teve de surgir de um
grupo diferente de jacobinos, mais preocupados com a estabilização prag­
mática da França do que com a sua devoção à República Ideal. A grande
figura deste grupo é Danton. Joseph Garat, seu sucessor no ministério da
Justiça e, até Agosto, ministro do Interior, escreverá mais tarde que em
finais de 1 79 3 Danton o sondou em várias conversas privadas . Garat
estava sob suspeita de ser demasiado próximo dos girondinos, pelo que
era natural D anton confessar-lhe as suas mágoas: ao rejeitarem as suas
propostas para uma trégua, B rissot e os seus amigos tinham deixado a
República à mercê de Hébert e dos terroristas mais fanáticos. Ironi­
camente, foi Danton que criou o lema "O terror está na ordem do dia ", no
dia 5 de Setembro, ao socorrer a C onvenção. No entanto, na sua maneira
de ver, o governo revolucionário estava associado ao desespero militar, e
as vitórias de Hondschoote e Wattignies tinham eliminado esses imperati­
vos terroristas. Danton confidenciou a Garat a estratégia para corrigir o
rumo. S eria montada uma campanha de imprensa a favor da clemência e
contra a Comuna hébertista. Robespierre, que ainda confiava nele, e
B arere, que ele também considerava ser um pragmático, seriam cortej a ­
dos dentro d o Comité, resultando n o isolamento d o s militantes como
Collot e Billaud-Varennes e, por fim, numa mudança total dos incum­
bentes. O terror económico seria desmantelado e a França encetaria nego­
ciações de paz com a C oligação, mantendo - se mobilizada caso a
diplomacia falhasse .
O plano foi outra tentativa de devolução do génio revolucionário à
garrafa do poder estatal. Intrínseco à sua concretização era o uso cínico
das paranóias conspirativas contra os seus habituais praticantes . É prová­
vel que Danton tenha aprovado a revelação de uma " conj ura estrangeira"
por Fabre d'Eglantine, em meados de Outubro, segundo a qual amigos e
apoiantes de Hébert estavam implicados num esquema para subornar a
Convenção e derrubar os comités . Por outras palavras, aqueles que se
Simon Schama 1 CIDADÃOS

diziam mais truculentamente patrióticos eram na verdade agentes


estrangeiros . Esta táctica pareceu dar frutos durante algum tempo.
Stanislas Maillard, Anacharsis Cloots (para cuj o nascimento "prussiano"
os dantonistas chamaram diversas vezes a atenção) e o belga Van den
Ij ver foram detidos. Fabre foi ainda mais longe no rufar do tambor
patriótico, exigindo que quaisquer súbditos britânicos que permaneces­
sem em França fossem detidos e os seus bens confiscados. Fabre alargou
a rede da " conj ura estrangeira" a outros dois colegas de Hébert, Desfieux
e Dubuisson, ao ex- capuchinho Chabot, que se tornara membro, por
casamento, de uma família de banqueiros j udaicos da Morávia, aos
democratas belgas Proly e Walckiers e até a Hérault de Séchelles, que foi
acusado de proteger os interesses da banca estrangeira no C omité de
Salvação Pública .
A denúncia é suficientemente lunática para ser credível para
Robespierre, especialmente por associar homens da direita ( relativamente
falando ) , como Hérault, cuj o nascimento aristocrático e modos intelec­
tuais o tornavam suspeito, com lunáticos e rufiões da esquerda, tais como
Maillard e C loots, que ele considera simplesmente repelentes. Tal como
num círculo conspirativo, les extrêmes se touchent. Tudo faz sentido. No dia
1 6 de Outubro, Saint-Just denuncia os corruptos e os " homens ávidos de
cargos", uma observação obviamente dirigida à C omuna, e Robespierre,
numa das suas palestras universitárias disfarçadas de discurso político,
avança uma nova geografia da intriga contra-revolucionária . Existe apa­
rentemente um ramo " anglo -prussiano ", associado ao desej o de Brissot de
colocar no trono o duque de York ou o duque de B runswick, e existe o
ramo "austríaco ", que se estende do governo de Viena ( dizia -se que um
dos acusados, Proly, era filho bastardo do chanceler Kaunitz ) aos ban­
queiros e fornecedores militares belgas amigalhaços de Dumouriez, e aos
seus lacaios e agentes infiltrados em Paris e na própria Convenção.
Está tudo a correr bem. C ontudo, em meados de Novembro, surgem
sinais de um desastre . No dia 1 0, C habot e o seu amigo Claude B asire,
que estão sob suspeita, defendem na C onvenção a limitação dos poderes
dos comités para deterem deputado s . Antes de qualquer deputado com­
parecer perante o Tribunal Revolucionário, deverá ter o direito de se
defender perante a C onvenção. E sta argumentação faz eco da posição
indulgent assumida pelo próprio Danton, pelo que, previsivelmente, ape ­
sar de aprovada e tornada lei, conta com a oposição dos terroristas mili­
tantes da C onvenção e do C omité de Salvação Pública, entre eles,
B illaud-Varennes, que insiste : "Não, não daremos um passo atrás, o
nosso zelo só será subj ugado na tumba; ou a revolução triunfa ou mor­
remos todos. " B arere é ainda mais crítico, com a j ustificação de que a lei
distingue entre os deputados e os outros cidadãos. A lei, que foi promul­
gada na véspera, é revogada.
685

Mas esta não é a raiz da questão. Chabot e Basire não propuseram a


medida de forma desinteressada . Abusaram da sua posição de liquidatá­
rios do monopólio comercial colonial, a C ompanhia das Índias, para espe­
cular escandalosamente com as acções e extorquir secretamente dinheiro
aos directores a troco de clemência oficial. Esta roubalheira miserável
implicou subornos em larga escala e a falsificação de contas e do decreto
de liquidação. E o descaramento é maior pelo facto de C habot e Basire,
j untamente com dois outros colegas da Convenção, Delaunay e Julien de
Toulouse, se terem dado a imagem, no Verão, de flagelos implacáveis do
capitalismo corrupto. Denunciando os bancos, os especuladores da Bolsa
e os monopolistas do comércio, tinham garantido para si próprios posições
estratégicas perfeitas para maximizar as suas pilhagens a salvo das inves ­
tigações oficiais.
Nada disto teria necessariamente ameaçado a ofensiva de Danton
contra Hébert não fosse o envolvimento de Fabre d'Eglantine. Fabre não
foi o instigador da fraude mas recebeu um generoso suborno para ser
cúmplice e é a sua assinatura que consta do decreto de liquidação falso.
No entanto, isto não o impediu de incluir C habot na " conj ura estran­
geira " para desviar Robespierre e os jacobinos da sua pista . Além disso, o
casamento de Chabot com Léopoldine Frey, filha de uma família que se
chamara sucessivamente D obrusska e Von S chõnfeld, constituía uma
prova material perfeita para a " conj ura estrangeira" concebida para o
retratar como superpatriota . Chabot não poderá contra - denunciá -lo sem
se incriminar.
Mas a situação começa a descontrolar-se em meados de Novembro .
Danton vê-se obrigado a partir a toda a pressa para Paris, deixando para
trás a sua pequena propriedade em Arcis - sur-Aube, onde durante um
mês levou uma vida alegre de gentil-homem rural e gozou os prazeres
domésticos com a sua segunda mulher. No seguimento da derrota da sua
proposta de lei, Chabot e Basire têm sido incessantemente acossados pelo
Fere Duchesne e pelos fanáticos dos Jacobinos e dos C ordeliers .
C onvencido de que está prestes a ser exposto, C habot tenta minorar os
danos através de uma denúncia preventiva . Na manhã de 14 de
Novembro, vai a casa de Robespierre e tira - o da cama para o elucidar
sobre uma conspiração chocante, manifestamente obra da contra- revolu ­
ção, com o intuito de roubar à nação os fundos de que tanto necessita .
Chabot nomeia Delaunay e Julien mas garante a Robespierre que embora
ele próprio tenha alinhado em parte da conspiração o fez a título de infil­
tração patriótica para melhor apanhar os criminosos envolvidos. Tem na
sua posse, informa, provas materiais sob a forma de um suborno de cem
mil libras francesas que entregará ao Comité de Segurança Geral, j unta ­
mente com os nomes dos conspiradores, se lhe for garantido que não será
implicado. Abalado pelas notícias, Robespierre encoraj a - o a proceder com
Simon Schama 1 CIDADÃOS

esse entendimento . Porém, decorridos poucos dias, serão detidos os de­


nunciados e o denunciador.
Fabre consegue escapar ao escrutínio e distanciar-se dos peculadores
denunciando novamente Chabot. Traição gera traição. Tal como Chabot
apontou o dedo a Delaunay e a Julien para salvar o pescoço, Fabre vende
Chabot para salvar o seu. A sua táctica funciona durante algum tempo.
Robespierre parece confiar suficientemente em Fabre para o envolver na
investigação oficial, na qual Fabre consegue evidentemente fabricar pro­
vas adicionais e tenta implicar os principais hébertistas, incluindo
Chaumette .
Mas Danton não era nenhum tolo e também não era virgem em ter­
mos de dinheiros adquiridos de forma criativa . Fabre era um velho amigo
dos tempos dos Cordeliers, em 1 789, seu protegido no clube e na assem­
bleia distrital. D anton gosta do seu espírito e finge gostar das suas peças
de teatro mas não tem ilusões quanto à sua virtude. Sej a como for,
Danton antipatiza com a arrogância moral da Montanha e com a postura
dos hébertistas, e considera a questão da corrupção muito menos urgente
do que praticamente todos os outros problemas que confrontam a
República . É sabido que ele próprio meteu ocasionalmente a mão na
massa, concordando certamente com Mirabeau na opinião de que para a
governação funcionar são necessárias guloseimas. A sua filosofia nesta
matéria é bem caracterizada como "tardo-otomana" . Dada a obsessão
jacobina com a probidade e a mania que Robespierre tem da política ima ­
culada e transparente, o desfecho do enredo ameaça ricochetear desastro­
samente contra a campanha de D anton para pôr fim ao Terror.
Sendo assim, a melhor defesa será um ataque agressivo . Fabre já o
desencadeou ao lançar suspeitas precisamente sobre aqueles que se pre ­
paravam para atacar, os hébertistas . No entanto, a verdadeira ofensiva vai
ser desencadeada por alguém que conta com o afecto de Robespierre e
que não está envolvido em nada : C amille D e smoulin s . Q u ando
Desmoulins lança o Vieux Cordelier, no princípio de Dezembro, Danton não
faz ideia do efeito extraordinário que o jornal vai ter nem do modo bri­
lhante como Desmoulins enfrentará a crise . O título do jornal, que é
publicado de cinco em cinco dias, deveria ter-lhe dado uma pista, pois tra­
duz uma tentativa de distinguir os "veteranos" da liberdade, dos homens
que foram democratas em 1 789, e dos demagogos arrivistes como Hébert.
O j ornal de D esmoulins tira completamente o tapete ao Fere Duchesne.
Tornara- se habitual, na imprensa militante, passar em revista a história da
Revolução como uma evolução da impureza e dos compromissos macula­
dos para estágios superiores de pureza e democracia popular. Desmoulins
tem a coragem de interromper este movimento oficial romantizando as
virtudes da revolução fundadora, pelo menos como foi defendida nas ruas
e nos bairros em 1 78 9 . Desmoulins gosta de evocar (muitas vezes) o seu
687

papel no desencadear da insurreição parisiense de 12 de Julho, que con­


trasta com a ocupação de Hébert na época - de vendedor de bilhetes no
Teatro de Variedades . Os "novos cordeliers" são, pois, atacados por terem
usurpado um título precioso para os veteranos revolucionários, sem os
quais não teriam feito carreira nem teriam liberdade para publicar as suas
imundas calúnias (Desmoulins não se esquece de recordar aos leitores o
papel heróico de Loustalot na criação de um jornalismo verdadeiramente
popular) . Desmoulins zomba das pretensões de Hébert a ser "do povo " .
A escolha d a linguagem para o contra- ataque é intencional. Ele regressa
a um tom lúcido, elegante e irónico, sem os resmoneios de Marat, para
melhor contrastar a integridade da sua personalidade com a impostura de
Hébert. O modo como escrevo traduz o que sou, implica o seu estilo .
Hébert dá-vos "a linguagem do matadouro", como se a virtude e a fran­
queza da sua prosa se possam medir pelo número de foutres e bougres• num
parágrafo . À acusação de Hébert de que desposou uma rapariga rica,
Desmoulins responde num gesto de especial franqueza concebido para
merecer os aplausos de Robespierre, declarando que a "fortuna" que a
mulher lhe deu foram precisamente quatro mil libras francesas. O seu
inimigo, que se faz de pobre, usou os seus conhecimentos com Bouchotte
e Vincent para garantir 1 2 0 000 libras francesas para distribuir o seu pas­
quim, como se fosse o jornal oficial do exército ! D esmoulins anexa ao seu
jornal a factura de Hébert para mostrar quanto foi alegadamente parar aos
bolsos do velho Pere Duchesne .
Mas Hébert não é o único alvo de Desmoulins, que pretende proteger
Danton dos ataques dos terroristas que se sentem ameaçados pelo pro­
grama "indulgente " . De facto, Desmoulins defende o seu herói melhor que
Danton conseguiu fazer nos Jacobinos, no dia 1 de Dezembro. Desmoulins
aponta à j ugular: celebra o ataque a Danton como a melhor proeza de
William Pitt ( " Ó , Pitt, rendo homenagem ao vosso génio ! " ) , alimentando a
convicção de Robespierre de que os ultras são na realidade paus-mandados
da contra- revolução. Nos números seguintes, Desmoulins ataca outros
papões favoritos de Danton e Robespierre: os descristianizadores. "A liber­
dade", recorda Desmoulins aos leitores, "não é uma ninfa da Ó pera, não é
um bonnet rouge nem uma camisa suj a . . . a liberdade é felicidade, razão e
igualdade. " A partir daqui, Desmoulins confronta as próprias instituições
do Terror, a começar pela Lei dos Suspeitos . Se o governo lhe pede que dê
o seu sangue pela liberdade, tem de honrar os seus compromissos com esse
princípio abrindo as prisões e libertando as duzentas mil pessoas "a que
chamais suspeitos, dado na Declaração dos Direitos não existirem 'casas de
suspeição' " . Esta medida seria "a mais revolucionária que alguma vez tereis
tomado" . Até porque qual é a alternativa?

4 Em francês no original: foda-se e paneleiro. (N. da R.)


Simon Schama 1 CIDADÃOS

Pretendeis exterminar todos os vossos inimigos na guilhotina? Seria a


maior loucura . Podeis destruir um único no patíbulo sem criar dez inimi­
gos entre a sua família e amigos? Acreditais verdadeiramente que o perigo
vem das mulheres, dos velhos, dos fracos, dos "egoístas"? Dos vossos ver­
dadeiros inimigos, só restam os cobardes e os doentes,

e esses, tal como os rentiers e os loj istas que enchem as prisões, não valem
a fúria que lhes descarregam em cima .
No número quatro, Desmoulins sugere uma reforma específica ime ­
diata : a criação de um " comité de clemência", funcionando independen­
temente dos comités de Segurança Geral e de Salvação Pública, para
rever casos de acusações ou condenações duvidosas . Trata-se obviamente
de um desafio directo ao Tribunal Revolucionário, que é dominado pela
Comuna. O comité poderá funcionar como uma salvaguarda contra as
denúncias maliciosas e corrigir farsas j udiciais tão clamorosas como a
detenção de um amigo de Desmoulins, que foi acusado de ter oferecido
um j antar a alguém que veio a ser considerado um indesej ável político.
Numa revolução é preciso ser-se cuidadoso, escreve D esmoulins, sem ter
medo de citar Mirabeau ( ainda que em termos menos terra - a - terra do
que o orador) : "A Liberdade é uma cadela que gosta de se deitar num
colchão de cadávere s . "
O Vieux Cordelier faz sensação e torna -se a arma mais potente d o arse ­
nal dos Indulgents. O seu tom calculado destina- s e intencionalmente à
elite revolucionária, não apenas à da C onvenção mas também às das
secções ocidentais e centrais de Paris, que estão fartas de ser pressiona -
das pela C omuna e que aplaudem a pergunta retórica de Desmoulins:
"Mas será que existe alguma coisa mais noj enta e porca [ordurier] do que
o Pere Duchesne? ". E o j ornal destina -se ainda mais especificamente à
única pessoa da qual, como D anton e Desmoulins bem sabem, depende
o êxito ou o fracasso da sua campanha : Maximilien Robespierre . No
número quatro, D e smoulins vai ao ponto de evocar o facto de terem
andado os dois no Lycée Louis - l e - Grand, um apelo explícito a
Robespierre para que considere as virtudes da humanidade como sendo
consistentes com o patriotismo .
Robespierre é extremamente receptivo ao apelo. Está farto dos des­
cristianizadores, que no dia 1 1 de Novembro se atreveram a levar carra­
das de obj ectos sacerdotais para a C onvenção para os despej arem sem
cerimónias no chão da assembleia - as gravuras mostram guardas sans­
-culottes adornados com mitras e sotainas. Robespierre interveio pessoal­
mente para impedir a detenção dos setenta e três deputados que em
Junho tinham assinado uma petição contra a expulsão dos girondinos . De
forma ainda mais surpreendente, tendo em conta o que vai acontecer três
meses mais tarde, Robespierre continua dedicado a Danton e, no dia 3 de
689

Dezembro, defende -o com firmeza das críticas que lhe são feitas nos
Jacobinos, insinuando mesmo que o simples facto de duvidar do patrio ­
tismo de D anton é fazer o trabalho suj o de William Pitt, que quer ver os
bons patriotas atacarem-se uns aos outros.
Com Robespierre aparentemente inclinado para os Indulgents, estes
atacam com renovado vigor. O utro aliado de D anton na Convenção,
Philippeaux, apresenta um relatório devastador sobre a brutalidade e a
corrupção alegadamente perpetradas por Ronsin e pelos armées révolution­
naires em Lyon. Ronsin e Vincent são detidos e é estabelecido o comité de
clemência proposto por Desmoulins. Durante um momento, dá a sensa­
ção de que o Terror vai começar a ser desmantelado. Até a famigerada lei
de 14 do Frimário (4 de Dezembro ) , amiúde chamada erroneamente
" constituição do Terror", é promulgada contra aqueles que exerceram vin­
ganças brutais em nome da ortodoxia republicana. Embora subordine
" todas as autoridades constituídas" ao Comité de Salvação Pública, põe
cobro ao processo anárquico através do qual os zelotas podiam fazer lei
pelas próprias mãos. Os comités revolucionários locais passam a ter que
enviar um relatório à administração distrital de dez em dez dias; nenhum
funcionário público (incluindo os représentants-en-mission) está autorizado
a expandir ou aumentar leis promulgadas pela Convenção nem a impor
empréstimos forçados ou impostos improvisados. É claro que muito
depende do temperamento do Comité de Salvação Pública mas quando
chegam as notícias da reconquista de Toulon, no dia 1 5 de Dezembro (gra ­
ças ao general Bonaparte ) , e uma semana depois da decisiva e última
batalha contra os vendeianos, em Savenay, há motivos para os "indul­
gentes" esperarem que uma situação militar melhorada reforce os apelos
a uma governação mais relaxada .
Vão ser duramente desenganados. No dia 2 1 de Dezembro, C ollot
d'Herbois, regressado de Lyon, aparece nos Jacobinos, onde ataca os res ­
ponsáveis ( em especial, Fabre ) pela detenção de Ronsin e admoesta o s
membros d o clube pela s u a pusilanimidade. Falando com a autoridade
espúria de um homem que, depois de combater na frente, regressa para
encontrar a guarda doméstica "amolecida", Collot declara: "Há dois
meses, quando vos deixei, ardíeis com sede de vingança contra os infames
conspiradores da cidade de Lyon . Agora, mal reconheço a opinião pública;
se eu tivesse chegado dois dias mais tarde, se calhar era acusado de
alguma coisa. " E conclui perguntando: " Quem são estes homens que
reservam a sua sensibilité para os contra- revolucionários, que evocam tão
pesarosamente as sombras dos assassinos dos nossos irmãos, que têm tan­
tas lágrimas para derramar sobre os cadáveres dos inimigos da liberdade
quando o coração da patrie está dilacerado . . ? "
.

É u m dos melhores desempenhos d o actor Collot e marca o ponto


exacto em que a campanha dos Indulgents é remetida para a defensiva.
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Hébert não fez cerimoma para responder à pergunta de C ollot:


Desmoulins, Fabre, Philippeaux, Bourdon de L'Oise. Apesar de a sua colu­
são na fraude da Companhia das Índias permanecer em segredo, Fabre
começa a ser alvo de ataques cada vez mais duros, incluindo numa petição
do Clube dos Cordeliers à Convenção. Mas a mudança decisiva acontece
no Comité de Salvação Pública. Collot tem um aliado de confiança em
Billaud-Varennes, e Saint-Just, que ainda se encontra em missão, talvez dê
o seu apoio numa crise . O Comité de Segurança Geral ainda é mais hostil
aos Indulgents. Um dos seus terroristas mais entusiásticos, Vadier, diz que
quer "estripar o Danton, esse rodovalho gordo ", ao que Danton terá res­
pondido que se Vadier se atrever a tocar-lhe com um dedo lhe comerá os
miolos e lhe cagará no crânio .
Para Robespierre, o que está em j ogo é a instituição " ordeira " do
governo revolucionário na forma definida pela lei de 1 4 de Primário.
A coesão do Comité de Salvação Pública não pode permitir- se um cisma
provocado pelas influências concorrentes dos dantonistas e dos hébertis­
tas. É essencial, para a sua autoridade executiva, que sej a visto acima " das
facções", aliás, que sej a visto a atacá -las com imparcialidade . Além do
mais, a dada altura, em finais de Janeiro ou talvez no princípio de
Fevereiro, chegam ao conhecimento de Robespierre provas esmagadoras
das acções criminosas de Fabre - talvez a própria assinatura . Não há nada
que Robespierre mais odeie do que o crime disfarçado de patriotismo, e
também não gostou nada de ter feito figura de parvo . Ainda por cima, foi
atacado por Billaud-Varennes por ter aceitado o estabelecimento do
comité de clemência, e teve de se defender com a j ustificação tíbia de que
não decidiu sobre a sua composição. Torna -se mais do que evidente que
Fabre o manipulou a seu bel-prazer, ao ponto de ele ter autorizado Fabre
a investigar uma fraude da qual Fabre era cúmplice ! Face a esta injúria,
Robespierre vê a campanha dos Indulgents como um escandaloso exercí­
cio de hipocrisia destinado a cobrir as acções de gente criminosa - em par­
ticular, de Fabre . Ele ainda acredita e quer continuar a acreditar que
Danton não está implicado e, ao saber da morte da sua mulher, no prin­
cípio de Fevereiro, escreve - lhe uma carta comovente e em termos bas­
tante calorosos, apelando à sua velha amizade. O que pede a Danton é,
com efeito, que abandone os seus amigos corruptos e respeite a autori­
dade do Comité . Obviamente, isto significa, na prática, que a dada altura
será pedido a D anton que incrimine Fabre e talvez até D esmoulins, e
Danton nega- se peremptoriamente a fazê -lo. Talvez tenha sido esta devo ­
ção inconsciente de Danton aos amigos, mesmo depois de terem sido
expostos como vigaristas, e não aos sacrifícios " obj ectivos " que havia que
fazer pela patrie, que Robespierre, em última análise, terá considerado tão
imperdoável. Se Danton não consegue agir como B ruto, merece perecer
como os filhos de B ruto.
691

Mas Robespierre também não tenciona deixar que a acusação dos


Indulgents se converta na vitória dos ultras. Não perdoou a Hébert pela des­
cristianização, apesar de ele ter diminuído temporariamente o seu vigor -
por razões tácticas . A última coisa que Robespierre quer é a renovação das
políticas insurrectas da Comuna contra os comités, e a libertação de
Ronsin e Vincent, no meio de cenas de j úbilo dos sans-culottes, parece
torná-las prováveis. Reconhecendo que o Terror económico gerou mais e
não menos dificuldades e inflação ( exactamente como B arbaroux pre ­
vira ) , o Comité está também a ponderar a modificação do maximum para
incluir os custos de transporte, dando assim aos produtores algum incen­
tivo para movimentarem os seus produtos do lugar de origem. Para pre ­
venir o s inevitáveis protestos d e q u e s e está d e novo a ignorar o dever do
governo de cuidar dos pobres, Saint-Just avança com os decretos radicais
de Ventôse ( 2 6 de Fevereiro e 3 de Março ) . Estes contemplam a distribui­
ção, aos necessitados, de bens confiscados aos emigrados, mas pressupõem
também que os necessitados se declarem como tal numa altura em que há
gente, na C onvenção, que propõe o envio dos vagabundos para
Madagáscar. Sej a como for, os decretos permanecem letra morta, em parte
porque são muito poucos os membros do Comité que terão sabido deles
( Robespierre está doente desde o princípio de Fevereiro ) , e também por­
que se impõem decisões políticas muito mais urgentes .
U m dia depois d a apresentação d o segundo decreto d e Saint-Just,
Hébert e Carrier ( regressados dos afogamentos de padres em Nantes )
velam o busto da Liberdade rtos Cordeliers, um ritual que significa um
apelo à insurreição. Contudo, descobrem que o aparelho da mobilização
popular foi fatalmente sabotado pelo governo, que o controla desde 14 de
Primário. Os comités revolucionários estão infestados de espiões governa ­
mentais que conhecem os movimentos da "insurreição" melhor que os
seus líderes. A Comuna, agora mais desej osa de agradar aos comités do
que a Hébert, recusa convocar as suas tropas e a sublevação dilui-se. Cinco
dias depois, S aint-Just lança um ataque devastador contra o facciosismo
como "inimigo da soberania" e instrumento da contra - revolução, e nos
dias que se seguem são detidos praticamente todos os principais apoiantes
de Hébert, incluindo os nomeados por Fabre na "conj ura estrangeira" .
Entre eles, encontra-se o bizarro Anacharsis Cloots, o auto - designado
" O rador da Raça Humana ", que tentou exonerar-se confessando patetica­
mente na imprensa que "se pequei, foi por excesso de franqueza e inge ­
nuidade . Marat costumava dizer-me: 'Cloots, tu es une foutue bête'." Pelo
menos aqui o Amigo do Povo não se enganou .
N o dia 24 d e Março, Hébert e dezanove dos seus amigos vão (entre
outros eufemismos cómicos tão ao gosto do Fere Duchesne) "j ogar à cabra­
-cega", " espreitar pela j anela republicana", "ser barbeados pela navalha
nacional" . A turba delicia-se por ver o homem que tanto cantou as loas
Simon Schama 1 CIDADÃOS

da guilhotina encolher- se perante a sua própria destruição . O trajecto dos


hébertistas até à Praça da Revolução é saudado por multidões enormes e
turbulentas que não lhes poupam apupos nem zombarias . "Morreram
como cobardes sem tomates", diz um homem ouvido por um agente
governamental. "Julgávamos que o Hébert era mais coraj oso, mas morreu
como um badamerdas fodido", diz outro, denotando um apurado sentido
de justiça poética .
Uma semana depois, Danton e algum dos seus amigos mais próximos,
incluindo Desmoulins, Lacroix, Philippeau e ( num dia diferente) Hérault
de Séchelles são por sua vez detidos . A morte dos hébertistas implicara
sempre o fim dos Indulgents, pois ter atacado uns e não os outros teria sido
alienar fatalmente os Terroristas da linha dura presentes nos dois comités .
N o dia 2 9 d e Março, h á um último encontro entre os gigantes . Danton
tenta persuadir Robespierre de que a sua amizade foi intencionalmente
destruída por Collot e Billaud, que semearam a discórdia entre eles para
se exonerarem dos excessos terroristas . Mas Robespierre não está a ouvir.
Exige que Danton sacrifique os corruptos para se salvar a si próprio . É um
diálogo de surdos. Segundo uma versão convincente da noite da deten­
ção, Albertine, irmã de Marat, avisa Danton e insta - o a apresentar- se na
Convenção para denunciar o Comité. Ele começa por demonstrar alguma
relutância - fazê -lo significará a proscrição de Robespierre - mas depois,
convencido de que não lhe restam alternativas, acede. Ao chegar à assem­
bleia, Danton vê Robespierre numa conversa tão amistosa com Camille
Desmoulins que baixa a guarda e vai-se embora para casa . É detido nessa
mesma noite .
Os caçadores sabiam que não ia ser fácil . Hébert fora uma fuinha ( mas
com dentes afiados ) . Danton será um leão ferido cujos rugidos beligeran­
tes poderão ecoar por toda a cidade de Paris. Na noite de 2 5 de Março, os
dois comités consideraram em sessão conj unta a táctica a utilizar. Saint­
-Just levou a acusação - da qual injustificadamente se orgulhava - e disse
que a leria na Convenção no dia seguinte, após o que poderiam prender
Danton e os amigos. Vadier e Amar olharam para ele como se não esti­
vesse bom da cabeça . Primeiro, havia que prender D anton, depois logo se
denunciaria. Qualquer outra táctica seria potencialmente desastrosa. Face
à ofensa aos seus poderes de persuasão, para não falar da comparação
negativa da sua virilidade com a de Danton, S aint-Just ficou incaracteris­
ticamente colérico mas os polícias da Segurança Geral impuseram o seu
método.
A acusação contra D anton, corrigida para a sua forma final por
Robespierre, é - mesmo pelos padrões do Tribunal Revolucionário - um
documento incrivelmente fraco. As acusações contra Hérault de
Séchelles são ainda mais capciosas . Acusado de ser um aristocrata, ele
invoca a memória do seu melhor amigo, Michel Lepeletier, um ci-devant
693

de linhagem ainda mais ilustre . Mas Danton é acusado de toda a espécie


de perfídias: de conspirar para colocar o duque de Orleães no trono, de
salvar pessoas, incluindo B rissot, dos massacres de Setembro, de se rir
sempre que é mencionada a palavra "virtude " . Em suma, é má rês . O
Comité espera obviamente que enquadrando Danton e D esmoulins nos
vigaristas da fraude da Companhia das Í ndias, incluindo toda uma gama
de estrangeiros diversos - os irmãos Frey, o espanhol Guzmán, o dina ­
marquês Friedrichsen, o belga Simon -, a culpa da vigarice se cole ao seu
principal adversário, embora não disponham da mínima prova que o ligue
ao esquema .
No dia 2 de Abril, o tribunal enche -se com uma multidão enorme -
Danton tem um número de seguidores formidável. Fouquier-Tinville ten­
tou conter o interesse popular até ao último minuto antes de anunciar o
j ulgamento mas vê -se a braços com um tribunal tumultuoso que ofende
profundamente a sua noção de procedimentos ordeiros. Até o número
dos réus parece não bater certo : Westermann, velho camarada de Danton,
insiste em ser acusado com o amigo. Quando o presidente do tribunal lhe
garante que isso é " apenas uma formalidade", Danton comenta : "A nossa
presença aqui é apenas uma formalidade . " Sucedem-se as interrupções e
as confusões, revelando o sentido assustadoramente poderoso que
Danton tem do teatro público. Ao não conseguir interromper uma das
tiradas tonitruantes de Danton, o presidente, Herman, pergunta-lhe: "Não
ouvistes a sineta ? " Danton replica: "A voz de um homem que está a
defender a vida e a honra tem de se impor ao som do vosso sininho . "
Danton está efectivamente decidido a explorar a vantagem que tem sobre
os j uízes em termos de volume, ciente de que uma voz sonora e profunda,
além de fazer os seus interrogadores parecerem ridículos, dá testemunho
dos recursos de poder viril que a cultura republicana associa à virtude .
Trovej ar é ser patriótico. No dia seguinte, no princípio da defesa, diri­
gindo-se mais ao público do que aos juízes ou ao j úri, Danton declara :
"Povo, julgar-me-eis depois de me ouvires; a minha voz será ouvida por
vós e em toda a França . "
É exactamente isto que o tribunal teme, e não está disposto a deixar
Danton dirigir o j ulgamento. Desdenha da sua exigência de convocar uma
longa lista de testemunhas, incluindo membros do Comité de Salvação
Pública como o próprio Robespierre e Robert Lindet, o único dos colegas de
Danton que se negou a assinar o mandato de detenção. Não sobreviveu
nenhum registo completo dos trabalhos mas ao que parece Danton falou
quase o dia inteiro e com um efeito tremendo, sacudindo as acusações como
se estivesse a sacudir insectos do casaco. " S erá que os cobardes que me estão
a caluniar se atrevem a atacar-me cara a cara?", exige ele, e numa veia mais
estóico-romântica: "O meu domicílio será em breve no esquecimento, com
o meu nome no Panteão . . . Eis a minha cabeça para responder por tudo . "
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Danton parece querer elevar a miséria moral da ocasião ao nível da retórica


trágica, transformando o seu fim em algo tão importante e memorável
como o de um herói homérico, um patriota dos anais de Roma.

Durante os últimos dois dias, o tribunal ficou a conhecer Danton. Amanhã,


ele conta dormir no seio da glória . Nunca pediu perdão e vê-lo - eis subir
para o patíbulo com a sua serenidade habitual e a calma de uma consciên -
eia limpa .

Durante o seu período de detenção e julgamento, os dantonistas estão


encarcerados no Luxemburgo. É talvez a menos miserável de todas as pri­
sões do Terror, e aqueles que os lá vêem recordarão Danton e Philippeaux
afectando uma espécie de alegria forçada. Danton, em particular, parece
resignado a separar- se da sua segunda mulher, Louise, uma rapariga de
apenas dezasseis anos. Camille Desmoulins, no entnto, cai no mais pro­
fundo desalento ao ter de se separar de Lucile, da qual continua muito
apaixonado. Ela visita - o sempre que pode, mantendo -se de pé, à distân­
cia prescrita, o que causa ao marido um intenso prazer mas também um
terrível tormento emocional. Na sua última carta, escrita antes da execu­
ção, Danton diz a Lucile que ao vê- la e à mãe dela se atirou desesperado
contra as grades. É uma carta espantosa, o j orro de um homem comple­
tamente desfeito pela tristeza e pelo remorso, caído nas profundezas de
uma espécie de fantasmagoria romântica e que desej a renunciar a toda a
sua vida pública para poder ter uma vida privada de paz.

Minha Lucile, ma poule, apesar do meu tormento acredito na existência de


um Deus; o meu sangue lavará as minhas falhas; voltarei a ver-te um dia,
minha Lucile . . . a morte que me vai libertar do espectáculo de tantos cri­
mes é uma desgraça? Adeus, Lulu, adeus, minha vida, minha alma, minha
divindade na terra . . . Sinto as margens do rio da vida ficar para trás, vej o ­
- t e d e novo, Lucile, vej o os meus braços à tua volta, as minhas mãos ata­
das a abraçarem-te, a minha cabeça cortada apoiada em ti. Vou morrer. . .

Lutador até ao fim, D anton continua a exigir o direito de convocar tes­


temunhas. A sua insistência é tão veemente e o público é -lhe tão simpá­
tico que Saint-Just, temendo o colapso do julgamento, se apresenta na
Convenção e diz que os detidos estão a fomentar uma insurreição contra
o tribunal e que a mulher de Desmoulins está envolvida numa conspira­
ção para assassinar membros do Comité de Salvação Pública . São afirma­
ções absurdas mas dão ao Comité a autoridade suficiente para regressar ao
tribunal e instruir Fouquier a empregar o seu habitual " atalho" de per­
guntar ao j úri se j á foi suficientemente "iluminado" . Foi. Ao saber que
perdeu um último recurso, D anton resigna -se. Na prisão, segundo
695

Riouffe, que dirá que o ouviu através da parede, ele lamenta-se por dei­
xar a República em tão mau estado, governada por homens que não
fazem a mínima ideia do que é governar. " S e eu pudesse deixar os toma­
tes ao Robespierre e as pernas ao C outhon, o Comité talvez durasse mais
algum tempo . "
N o dia 5 d e Abril, D anton, Hérault, D esmoulins e o s outros vão ao
encontro da morte . Observados por uma enorme multidão praticamente
silenciosa, comportam-se com grande dignidade e compostura. Danton
está decidido a mostrar afecto e amizade. Ele e Hérault de S échelles, o
prodígio do Parlamento tornado jacobino regicida, tentam abraçar-se mas
são bruscamente separados pelo carrasco, Sanson. "Não impedirão as
nossas cabeças de se encontrarem no cesto ", terá dito Danton. Mas o seu
último comentário é o melhor. Ao colocar-se à frente da prancha, com a
camisa manchada com o sangue dos seus melhores amigos, Danton diz a
Sanson: "Não te esqueças de mostrar a minha cabeça ao povo . Olha que
vale a pena . "
19

Quiliasmo
Abril-Julho de 1 794

1 A MORTE DE UMA FAMÍLIA

Malesherbes não estava preocupado consigo próprio, mas com a sua


família . Durante o j ulgamento do rei, num momento perigoso, um depu­
tado perguntara - lhe, "E o que vos torna tão ousado?", ao que ele res­
pondera, "O desprezo pela vida " . E era verdade. O Terror não tinha poder
·para assustar um velho de setenta e dois anos. Dado que os comités pare ­
ciam decididos a reescrever a história francesa exterminando todos quan ­
tos tivessem contribuído para a fazer, ele calculava que mais tarde ou
mais cedo chegaria a sua vez. Afinal de contas, a sua sobrevivência era
uma afronta, pois ele encerrava a possibilidade de transmitir uma histó­
ria das reformas iniciadas antes da Revolução, e o facto de ainda ser
popularmente conhecido por "Virtuoso Malesherbes" só piorava as coi­
sas. Significava que o Terror o via como um desafio ao axioma segundo
o qual qualquer pessoa cuj a carreira englobasse dois reinados tinha
necessariamente de estar imbuído da corrupção e da tirania associadas
aos " Capetos" .
Sej a como for, a única coisa que havia a fazer era esperar para ver
como se desenrolariam os acontecimentos . D epois da execução do rei,
Malesherbes regressara ao seu solar perto de Pithiviers, no D epartamento
do Loiret, e congregara a família à sua volta como se eles pudessem reti­
rar força e confiança da sua união. A única ausente era a filha mais nova,
Françoise -Pauline, que vivia em Londres com o marido, Montboissier, e
que lhe escrevia cartas assustadas e raladas . Eram missivas particular­
mente pungentes porque ela era duas vezes emigrada - partira para a
Suíça em 1 789, regressara a França na Primavera de 1 7 92 e a seguir aos
massacres de S etembro decidira partir para Inglaterra na grande vaga de
emigração de O utubro . Malesherbes desaprovava a emigração por princí­
pio mas, certo de que a vida dela corria perigo, instara -a a partir. Agora,
os seus sentimentos estavam de novo divididos. A certeza quase absoluta
de que nunca mais a veria apenas era suportável pelo alívio de pelo
menos parte da família se encontrar a salvo .
697

A filha mais velha, Marguerite, tinha levado os filhos para o solar.


Com trinta e oito anos de idade, era casada com um ci-devant e ex-presi­
dente do Parlamento de Paris, Lepeletier de Rosanbo. A sua carreira fazia
dele um homem marcado, e não era provável que o seu remoto paren -
tesco com Lepeletier - honrado como o primeiro mártir da República -
contasse muito a seu favor. Além do mais, duas das suas três filhas
tinham casado com membros dos clãs ilustres da nobreza de toga: Aline­
-Thérese com o mais velho dos C hateaubriands, Jean - B aptiste, e
Guillemette com um Lepeletier d'Aulnay. Realizou-se um último casa­
mento no solar de Malesherbes no dia 12 de Março de 1 79 3 , quando a
mais nova, Louise, desposou Hervé Clérel de Tocqueville, pertencente a
uma antiga família castrense normanda .
No princípio de Setembro, tal como fizera com o rei, Malesherbes ofe­
receu-se para defender Maria Antonieta . A oferta foi declinada, mas o
simples facto de ele a ter feito indica o pouco preocupado que estava com
a sua segurança . De facto, quem corria mais perigo era Rosanbo. Em
1 790, tinha sido presidente da Câmara Judicial do Parlamento de Paris,
que se mantivera em funções depois de o tribunal ser suspenso. Nessa
qualidade e à semelhança de muitos dos seus homólogos dos outros tri­
bunais soberanos, Rosanbo escrevera um protesto formal contra o decreto
da C onstituinte que abolia os Parlamentos . Esta acção deixara - o vulnerá ­
vel à acusação habitual de " conspirar contra a liberdade e a soberania do
povo francê s " . No dia 1 6 de Dezembro de 1 7 9 3 , o j antar da família é inter­
rompido por um grupo de guardas nacionais na posse de um mandato em
nome do comité revolucionário da secção de Bondy, onde se localiza a
residência urbana de Rosanbo. Uma busca revela uma cópia do docu ­
mento incriminatório . Na manhã seguinte, a biblioteca é revistada à
frente de Rosanbo e Marguerite e são descobertas as muitas cartas que a
irmã lhe escreve de Londres .
N o dia seguinte, o marido é levado para Paris e encarcerado n a nova
prisão de Port-Libre. No dia 1 9, a família tenta decidir o que fazer.
O marido de Guillemette já se foi embora ( será detido em Maio, no
Nievre ) . Quem parece correr mais perigo é o marido de Aline,
Chateaubriand - é um ex-emigrado. Malesherbes aconselha -o a fugir, mas,
depois de passar algum tempo escondido numa quintarola, Chateaubriand
decide que não é capaz de deixar a mulher sozinha com os filhos - de cinco
e três anos de idade - e regressa ao solar para ficar com eles. Uma busca
aos papéis de Malesherbes não revela nada de incriminatório mas é óbvio
que já foi tomada a decisão de acrescentar os nomes dele e dos filhos ao
decreto de detenção de Rosanbo. Caçar famílias inteiras do Antigo Regime
começa a ser um ponto de honra para os comités e tribunais revolucioná­
rios, como se o futuro da República dependesse da extirpação da capaci­
dade de reprodução da antiga classe governante. Por exemplo, aquando da
Simon Schama 1 CIDADÃOS

detenção de Loménie de B rienne, são levados quatro de B riennes de


várias gerações, que morrem executados; o mesmo acontece aos Du
Plessis e aos Gouvernet de La Tour du Pin que são apanhados. No dia 2 0
d e Dezembro, duas carruagens com u m a escolta armada levam a família
Malesherbes-Rosanbo para Paris .
Chegados à capital, são conduzidos para prisões diferentes : Madame de
Rosanbo para o C onvento das Inglesas; os seus dois genros, Tocqueville e
Chateaubriand, para La Force; Malesherbes e o neto, Louis, de dezasseis
anos, para as Madelonnettes; as três raparigas para outro convento que
ainda não foi convertido em prisão, no Marais. Passados alguns dias, o
Comité de S egurança Geral responde favoravelmente ao pedido do genro
no sentido de a família ser reunida, e eles são conduzidos para Port- Libre .
Para os presos do Terror, há lugares muito piores . Os j ansenistas eram
célebres pela sua austeridade mas há luz e ar em quantidade - parece um
luxo a quem chega de Sainte - Pélagie ou La Force . Entre os seiscentos
reclusos, destacam-se grupos de financiers e funcionários do Ancien Régime,
apanhados às pazadas pelos comités revolucionários e mantidos juntos
como se estivessem em exposição num museu temporário da sociedade
corporativa . Emparedados em Port-Libre, há vinte e sete rendeiros fiscais,
incluindo Lavoisier, um grande grupo de fermiers généraux, ex-ministros e
intendants entre os quais, Saint-Priest -, e vários parlamentares que, tal
-

como Rosanbo, serão pouco depois transferidos para as Madelonnettes


para aí aguardarem j ulgamento . Com tantas luminárias do antigo mundo
cultural de Paris reunidas, é inevitável que recriem uma espécie de salão
na prisão. À noite, ouvem Vigée (o irmão da pintora ) recitar os seus poe­
mas mais recentes ou actores como Fleury e D evienne declamar linhas
que conheciam de cor, ou escutam as melodias tristes e profundas da
viola-de-amor de Witterbach ecoar pelas celas abobadadas.
Neste tipo de companhia, é inevitável a prevalência de um forte senti­
mento de honra . Ficam horrorizados ao saber que foi um j ovem aparen­
temente pertencente a uma família ilustre chamada D uviviers que roubou
o relógio de Madame D ebar. A amante, uma actriz da Ó pera, saiu da pri ­
s ã o com o relógio escondido numa trouxa d e roupa suj a e instruções para
o vender pelo que conseguisse. Porém, o potencial comprador disse que
só se separará de quinhentas libras em troca de uma declaração de pro ­
priedade - por escrito . A rapariga admite que o relógio não é seu e escreve
uma carta ao namorado a queixar- se da dificuldade da missão . A carta é
interceptada por um dos carcereiros e o ladrão confessa o crime . Até à sua
transferência para uma prisão menos confortável, é ostracizado pelo resto
dos reclusos como se fosse uma fonte de infecções. Em Março, j untam-se­
- lhes alguns dos seus perseguidores mais implacáveis: os hébertistas.
Poucos ci-devants se dão ao trabalho de esconder o gozo que lhes dá verem
os seus arqui-inimigos derrubados e regozijam-se com o terror óbvio de
699

Hébert face ao seu destino iminente . Fazem a vida negra à mulher do


impressor Mamara, da qual se diz que fez de "Razão" na fete de descris­
tianização de Notre Dame. Um oficial do armée revolutionnaire parisiense,
o gravador Bertaux, apesar de exibir a bigodaça da praxe e de se dar ares
de mau, é desprezado por " chorar como um bebé" ( foi aparentemente
encarcerado por falta de militância e por ter apoiado Lafayette ) . O seu
comandante, Ronsin, recebe uma nota alta por pelo menos afectar indife­
rença - ao melhor estilo aristocrático.
Tratado por todos com respeito e deferência, Malesherbes gosta de
falar ocasionalmente na sua história política e na da monarquia. A Hué,
ex-criado de quarto do delfim, confessa ter aprendido que "para dar bons
ministros, os conhecimentos e a probidade não chegam. Turgot e eu
somos prova disso; a nossa ciência era toda dos livros, não compreendía­
mos os homens" . Mas Malesherbes regressa sempre à patética tragédia do
rei e do seu julgamento : um homem confuso pela posição em que se
encontrava e que, na opinião de Malesherbes, tinha pago com o seu san­
gue por não ter querido derramar o dos outro s .
N o dia 1 8 Abril, verifica -se uma súbita aceleração no caso d a família .
Rosanbo é levado para a Conciergerie, onde fica a aguardar j ulgamento, e
Malesherbes decide tentar pela última vez elaborar um argumento bem
fundamentado. D ita um memorando sobre o genro, destinado a
Fouquier-Tinville, e anexa -lhe uma carta implorando-lhe que o leia para
que o caso sej a devidamente analisado. D ando mostras de considerável
argúcia, Malesherbes invoca Saint-Just, que durante o processo de
Danton referiu ter existido, em 1 7 90, uma conspiração orleanista contra
a monarquia constitucional. Ao apoiar o trono tão vigorosamente, diz
Malesherbes, Rosanbo foi um bom patriota . Além do mais, naqueles tem -
pos, era habitual redigir aquele tipo de petições e protestos sem pensar em
conspirações. Malesherbes conclui retratando Rosanbo ( tal como ele pró­
prio fora certificado pelo município de Malesherbes) como um cidadão
verdadeiro e virtuoso "avant la lettre".

Segundo todos quantos o conheceram, ninguém terá sido mais escrupuloso


ou desinteressado na administração da j u stiça, mais solícito nos seus modos
ou mais honnête homme nos seus procedimentos. Muito antes da revolução
já ele praticava essas virtudes privadas, o amor à humanidade, a conside­
ração pelos seus semelhantes, essa rara e preciosa fraternidade com os seus
concidadãos que é um dos maiores benefícios da nossa regeneração.

Uma cópia do memorando ( o qual, escusado será dizer, não aqueceu


nem arrefeceu o procurador) , foi enviada a Rosanbo, j unto com algumas
linhas escritas pelo filho, de dezasseis anos de idade, que depois de um
princípio valente dera em chorar muito à noite, e uma última carta da
Simon Schama 1 CIDADÃOS

mulher. É típica daquele tipo de mensagens de despedida, colorida pela


ternura doméstica que, segundo o cânone jacobino, os aristocratas eram
incapazes de sentir.

Sabeis que viver ao vosso lado, cuidar da vossa saúde e rodearmo-nos dos
nossos filhos e cuidar da velhice de meu pai sempre foi a minha única
preocupação . . . estaremos j untos em breve, oui mon bon ami, assim o espero .
A dieu, bom e terno amigo, pensai num ser que vive apenas para vós e que
vos ama de todo o coração. O meu pai, a tia e as crianças aqui à minha
volta partilham estes sentimentos . . .

No primeiro dia de Floreal, 1 o dia do carvalho, segundo o novo calen­


dário de Fabre, Rosanbo é guilhotinado. Na noite seguinte, Malesherbes é
levado para interrogatório. Nega as acusações de "conspiração contra a
liberdade do povo francês " e de ter dito que " deveria usar todos os meios
para derrubar a República" . A filha é acusada de se ter correspondido trai­
çoeiramente com "os inimigos internos e externos da República" . As úni­
cas provas contra Malesherbes provêem de alguém que disse a um comité
revolucionário que quando a irmã de Malesherbes, a condessa de
Senozan, lhe tinha dito que as vinhas da sua propriedade estavam gela­
das, ele respondera que ainda bem porque assim os camponeses ficavam
sem vinho e que se não estivessem bêbedos não teria havido revolução
nenhuma. A natureza manifestamente ridícula da prova não impede
Fouquier-Tinville de afirmar que "Lamoignon-Malesherbes apresenta
todas as características do contra-revolucionário " . Os seus escritos falam
constantemente na ordem antiga das coisas e ele é o centro de um grupo
de conspiradores, muitos dos quais já foram j ulgados pela "lâmina da lei " .
A s u a oferta para defender o rei deve s e r lida à l u z da s u a continuada liga ­
ção com um notório genro emigrado, tornando óbvio que foi Pitt quem o
convenceu a tal coisa. Quanto à filha, tanto ela como o marido sempre
foram inimigos da Revolução . . . e assim por diante.
Nessa noite, Louis e as suas três irmãs desfazem-se em lágrimas.
A mãe, que se tem mantido firme, parece desorientada e perdida. De
manhã, surge recomposta e observa a Madame de Sombreuil (filha do
antigo comandante dos Invalides, e da qual se diz que bebeu a célebre taça
de sangue para poupar o pai aquando dos massacres de Setembro ) que
"tivestes a honra de salvar vosso pai; pelo menos, eu poderei morrer com
o meu " . Na carroça seguem também a princesa de Lubomirski," a duquesa
du Châtelet, de Grammont e três ex-deputados à Constituinte, Huel,
Thouret - o criador, juntamente com Mirabeau, do mapa dos departa­
mentos - e Jean-Jacques d'Eprémesnil. Esta última e famosíssima figura

' 20 de Abril . (N. do T.)


70 1

foi o maior espinho cravado no pé de B rienne quando Malesherbes foi um


dos seus ministros. Na Primavera de 1 794, é comum os veteranos de políti­
cas completamente diferentes e até hostis partilharem o cadafalso. A econo­
mia burocrática da guilhotina era totalmente indiferente a essas picuinhices.
O velhote é o último da família a ser guilhotinado. Vê morrer a filha,
uma neta e o marido, Chateaubriand. Os outros netos serão libertos
depois do Termidor, mas Fouquier-Tinville ainda guilhotina a irmã de
Malesherbes, de setenta e seis anos de idade, e os seus dois secretários, um
dos quais por ter sido encontrado entre os seus haveres um busto de
Henrique IV (o ídolo de 1 78 9 ) .
D e todas as crueldades impostas a o velhote, a mais dolorosa terá sido
a reflexão de que ao não aceitar o conselho da filha mais nova para emi­
grar tinha atraído as atenções do tribunal e destruído a sua família . E será
que ponderou que se Luís XVI tivesse dado ouvidos aos seus conselhos e
descartado os Estados Gerais a favor de uma constituição inteiramente
nova que evitasse a polarização das ordens, poderiam ter sido obviadas as
piores calamidades da Revolução? D e qualquer dos modos, Malesherbes
sabia que a sua tendência para a razão não o levaria muito longe depois
de o sangue começar a correr e as cabeças começarem a rolar com a retó­
rica patriótica . Em 1 790, ao escrever a outro parlamentar, Rolland, obser­
vara que "em tempos de paixões violentas, não se pode falar com razão.
[Caso contrário] , corremos o risco de prej u dicar a razão, pois os entusias­
tas excitarão as pessoas contra as verdades que, noutras alturas, são aco­
lhidas com a aprovação geral".

II A E S C OLA DA VIRTUDE

Os mestres de Robespierre no Lycée Louis -le- Grand, devem ter sido


importantes para a sua educação política dado que, no fim, ele viu-se
como um mestre -escola messiânico, com um grande ponteiro na mão
para inculcar a virtude. Robespierre acabou por conceber a Revolução
como uma escola, mas uma escola na qual o conhecimento seria sempre
aumentado pela moralidade. Além do mais, dependiam ambas da disci­
plina . O terror e a virtude, gostava ele de dizer, faziam parte do mesmo
exercício de automelhoramento : "sem virtude, o terror é nocivo; sem ter­
ror, a virtude é impotente " . Eliminado o elemento criminoso, moral e
politicamente falando - os libertinos, os ateus, os pródigos -, seria possí­
vel matricular uma nação inteira na escola da virtude.
Por conseguinte, para Robespierre, em alguns aspectos, o comité mais
importante da Convenção não era o da salvação pública nem o da segu­
rança geral (que ele acabou por considerar feudo de polícias sem nível
como Vadier e Amar) , mas o do ensino público . Além do mais, era uma
Simon Schama 1 CIDADÃOS

instituição que tinha acompanhado a Revolução desde o princípio, quando


Talleyrand e Sieyes haviam sido membros importantes, até ao Terror,
gerando planos enormemente longos e ambiciosos que cobriam a educação,
do ensino básico aos novos colégios técnicos que produziriam uma elite de
engenheiros esclarecidos. Aquando da sua morte, Michel Lepeletier, o da
santa memória, estava a trabalhar precisamente num desses planos para
criar "casas de educação nacional" ao nível do ensino básico, e foi este plano
grandioso que Robespierre expandiu. A sua essência era j untar os dois pila­
res da república moralizada : a escola e a família. Talvez este plano só
pudesse ter sido criado por colegiais aristocráticos como Lepeletier, cujos
pais os entregavam habitualmente, ainda em tenra idade, à mercê dos som­
brios j esuítas, dado que o obj ectivo principal do plano era trazer as mães e
os pais de volta à "casa da instrução". O tamanho de cada escola não seria
determinado por decisão arbitrária, mas através de uma especificação para
o número ideal de famílias que englobava, que foi fixado em cinquenta.
Durante uma década do ano, cada mãe e cada pai viveriam na escola como
pais residentes, administrando as severidades paternais e as ternuras mater­
nais que as crianças eventualmente requeressem. Deste modo, a aquisição
de conhecimentos seria reforçada pela virtude doméstica. Haveria j ogos
espartanos, discursos romanos e muita botânica.
Escusado será dizer, estes esquemas não deram em nada, principal­
mente porque, como os comités de instrução pública pós-j acobinos des­
cobriram, ao dizimar o clero, o Terror destruíra a única fonte fiável
(e barata ) de pessoal pedagógico disponível para o ensino básico . Mas a
paixão pelo Melhoramento que inflamou Robespierre nos últimos meses
do Terror impregnou todas as suas políticas e discursos até que, no fim, a
política pareceu um passatempo miserável quando comparada com a
vocação transcendente do Missionário da Virtude .
Para os jacobinos que comungavam da visão de Robespierre, esta
empresa de regeneração moral tinha duas fases. Primeiro, a horrível anar­
quia cultural desencadeada pelos descristianizadores e pelos hébertistas
tinha de ser travada; segundo, tinha de dar lugar a um programa impo­
nente e ordeiro de edificação republicana . E ste programa tocaria em todos
os aspectos da vida do cidadão . Usaria música, desfiles ao ar livre e teatro,
monumentos públicos colossais, bibliotecas, exposições e até competições
desportivas para estimular as grandes virtudes republicanas : o patriotismo
e a fraternidade . A exaltação da vida colectiva contrastaria, o mais possí­
vel, com os actos de destruição indiscriminada característicos da fase
extrema do Terror.
Um dos devotos mais entusiásticos desta revolução cultural rousseau­
niana, Henri Grégoire, ex-bispo constitucional de Biais, tinha cunhado o
termo vandalismo ao denunciar os ataques mais indiscriminados a está­
tuas, quadros e edifícios condenados como parte do passado eclesiástico,
703

feudal e real. Um dos casos mais chocantes fora a destruição dos túmulos
reais da capela de Saint-Denis. Apesar de as histórias termidorianas de
sans-cullotes a j ogar à laranjinha com os ossos dos Valois e dos Bombons
serem provavelmente apócrifas, um quadro de Hubert Robert, o especia­
lista em ruínas, mostra inequivocamente caixões a serem retirados das
sepulturas e lápides a serem derribadas e removidas . Grégoire tinha de ser
cuidadoso nas suas críticas porque a pilhagem de Saint-Denis fora autori­
zada por decreto da Convenção, no dia 1 de Agosto de 1 79 3 , e além disso
ele não queria repudiar o ataque oficial aos tótemes do passado . Nenhum
jacobino, nem mesmo naquela fase "instrutória " do Terror, se teria atre­
vido a sugerir a reposição das estátuas de Luís XIV e Luís XV nos seus
pedestais em Paris. Mas a partir do Germinal, Grégoire pressionou o
Comité do Ensino Público com um programa activista que afastaria as
hordas vândalas das portas da nova Roma e começaria a "fazer as paredes
falar" a língua dignificada do republicanismo .
No dia 20 de Germinal,2 Grégoire virou a sua atenção para outro
grupo de vândalos, tão perigosos como os iconoclastas: os bibliófagos .
Estes homens, em nome de um republicanismo desorientado, queriam
incendiar bibliotecas, destruindo na totalidade a sabedoria acumulada
antes da Revolução, talvez com algumas honrosas excepções, tais como
as obras do regicida inglês Algernon Sidney e de Jean-Jacques Rousseau.
Estes bárbaros estavam, disse Grégoire, a fazer a obra dos inimigos da
França ao despoj arem-na do seu património cultural; com toda a proba ­
bilidade, tal como os piores hébertistas, eram agentes do estrangeiro .
O contra - ataque proposto por Grégoire foi a criação de uma grande
bibliografia nacional - a bibliographie française - que compilaria um
registo dos acervos das bibliotecas privadas, que depois poderiam ser dis­
ponibilizadas à nação. O registo poderia ser alagado para incluir objectos
conexos de interesse - medalhas e retratos, colecções de instrumentos
científicos e, mais importante ainda, mapas. Só nos ministérios de
Versalhes, informou ele a Convenção, existiam doze mil mapas à espera
de serem catalogados . O Departamento de Paris estava ainda mais
" empanturrado" com activos patrióticos : cerca de 1 8 00 000 volumes, que
constituíram o acervo fundador da biblioteque nationale. D evidamente
organizados para a promoção da virtude republicana, as bibliotecas e os
museus seriam, disse ele, "oficinas da mente humana " , especialmente
concebidas para afastar os j ovens das frivolidades próprias da idade e
conduzi-los a lugares onde poderiam " comungar com os grandes homens
de todos os países e de todos os tempos " .
A outra grande figura deste programa d e instrução republicana foi
Jacques-Louis David. Tinha assumido a liderança da comissão incumbida

' 9 de Abril. (N. do T.)


Simon Schama 1 CIDADÃOS

da criação de monumentos permanentes a partir de algumas das estátuas


usadas na Festa da Unidade: por exemplo, um Hércules colossal repre ­
sentando o povo francês seria erguido na Pont- Neuf. Juntamente com o
cunhado, o arquitecto Hubert, David estava a elaborar um plano para
redesenhar os Campos Elísios como um gigantesco Jardim Nacional, que
teria no centro um enorme anfiteatro dotado de uma cúpula e coroado
com uma estátua da Liberdade, adequado para os espectáculos de massas
e j ogos patrióticos de que Robespierre tanto gostava. (Ou sej a, Albert
Speer não foi o primeiro a planear uma ideologia arquitectónica em torno
deste tipo de colectivismo colossal. ) Ao mesmo tempo, David estava a
desenhar "vestes nacionais" que exprimiriam a dignidade apropriada dos
verdadeiros republicanos - e que se destinavam claramente a corrigir a
exibição agressiva dos bonnets rouges e calças às riscas que tinham sido a
imagem de marca do sans-culotte militante . E como se tudo isto não bas­
tasse, David produziu um dos seus desenhos mais grandiosos para o pano
de uma produção compósita da Ó pera chamada A Inauguração da República
Francesa, na qual o habitual drama didáctico pesadão era animado com
canções, discursos, poemas, marchas militares e um ocasional tiro de
canhão destinado a acordar os espectadores atordoados pela incansável
ofensiva da virtude republicana .
Enquanto exemplar da abordagem tipo "rolo compressor" à cultura
j acobina, o pano de D avid é deveras impressionante. Nitidamente inspi­
rado em relevos antigos, retrata de perfil um desfile de modelos republi­
canos no centro do qual se vê um carro triunfal que rola sobre os
destroços da realeza e do episcopado . Em frente do carro, patriotas mus­
culosos preparam-se para mergulhar as suas espadas em monarcas caídos .
A acção decorre sob o olhar do impassível gigante Hércules, q u e tem a o
colo as figuras femininas miniaturizadas d a Liberdade e d a Igualdade. Ao
lado e atrás do carro, vêem - se exemplos das virtudes: C ornélia e os Gracos
( retirados do desenho final de David ) , B ruto, Guilherme Tell ( que estava
a tornar- se um herói de culto em Paris) e um grupo de mártires, incluindo
Marat e os seus estigmas, Lepeletier e as mais recentes entradas para o
Panteão, dois patriotas enforcados pelos britânicos em Toulon.
Todas estas técnicas culturais foram reunidas por David e Robespierre
no seu espectáculo político mais ambicioso: o Festival do Ser Supremo, rea ­
lizado a 8 d e Junho ( 2 0 de Pradial ) . Robespierre anunciara o estabeleci­
mento do credo um mês antes, em 7 de Maio ( 1 8 de Floreal) , num discurso
cuidadosamente elaborado sobre "as relações entre as ideias morais e reli­
giosas e os princípios republicanos " . " O verdadeiro sacerdote do Ser
Supremo", declarou Robespierre aos atónitos e confusos deputados, "é a
própria Natureza; o seu templo é o universo; a sua religião, a virtude; os
seus festivais, a alegria de um grande povo reunido sob os seus olhos para
atar o doce nó da fraternidade universal e para lhe apresentar [à Natureza]
705

a homenagem dos corações puros e sensíveis . " No fim deste sermão


deísta, a Convenção decretou que "o povo francês reconhece a existência
do Ser Supremo [ao qual deveria estar, presume - se, devidamente grato) e
a imortalidade da alma " .
Não é preciso explicar que o decreto sobre o S e r S upremo foi u m ata­
que frontal aos descristianizadores, muitos dos quais, como Fouché, ainda
eram deputados importantes na Convenção. O festival, anunciado ao
mesmo tempo que o decreto, seria a ocasião em que a ascendência moral
e política do Ser Supremo sobre os infiéis se tornaria irreversível. Desta vez,
nenhum Hérault de Séchelles (um notório descrente ) roubaria o triunfo a
Robespierre . Robespierre foi eleito presidente quatro dias antes do festival
para garantir que nele desempenharia, ex officio, um papel central.
Talvez o tempo que fez no dia 8 de Junho - o dia do Pentecostes no
antigo calendário gregoriano - tenha convencido os cépticos de que exis­
tia mesmo um Ser Supremo e que Robespierre era o seu profeta. Um sol
radioso iluminou as Tulherias, onde milhares de parisienses se reuniram
para as cerimónias da manhã . Observando de uma j anela os tapetes de
rosas dispostos pela equipa de floristas de D avid e os regimentos de rapa­
rigas vestidas de túnicas brancas com os seus cestos com frutos,
Robespierre, como que num ensaio para o discurso, comentou ao seu
companheiro, Vilate : "Vede a parte mais interessante da humanidade aqui
reunida . " Com base na sua parceria habitual de compositor e letrista,
Gossec e Marie -Joseph Chénier, David concebera o evento como um
vasto oratório revolucionário . Havia um coro enorme, composto por dois
mil e quatrocentos delegados das secções de Paris e dividido em grupos de
velhos, mães, raparigas, rapazes e crianças ( mais uma vez, parece não ter
havido lugar para as velhas no universo da cultura j acobina ) . Em diversos
momentos, cada um destes grupos cantaria coros apropriados ao seu papel
na nova França, sendo imitados pelos seus homólogos presentes no
público. Nos momentos de máximo dramatismo - como os primeiros e os
últimos versos da "Marselhesa" e um novo "Hino ao Ser Supremo " -, os
dois mil e quatrocentos cantariam j untos, e as suas vozes dissolver-se-iam
num imenso cântico do povo que ecoaria pelo anfiteatro construído por
Hubert para a ocasião . Para Robespierre, o novo hino seria o hino da sua
religião republicana, e quando os versos de C hénier lhe desagradaram ele
despediu- o irritadamente da produção, substituindo -o pelo poeta Théodor
Désorgues. Gossec e David estavam tão preocupados com a pouca fami­
liaridade do público com o hino que durante as semanas que antecederam
o festival puseram equipas de professores de música do Instituto Nacional
a ensinar a melodia e a letra aos patriotas das secções.
Terminada a interpretação do hino, Robespierre apareceu para o seu
discurso matinal. Estava elegantemente vestido com um casaco azul,
uma faixa tricolor e um chapéu emplumado, mas no seu nervosismo
Simon Schama 1 CIDADÃOS

esquecera-se do ramo de flores que uma das raparigas D uplay fizera


especialmente para ele . ( C ada deputado da Convenção levava espigas de
trigo e ramos de flores - custa a acreditar que alguns, por exemplo, Barras,
tenham conseguido não se rir) . "Republicanos franceses", declamou
Robespierre, como se fosse anunciar o regresso da Idade de Ouro ovi­
diana, "cabe -vos a vós purificar a terra que foi maculada e devolver à terra
a Justiça que dela foi banida . A liberdade e a virtude têm ambas a sua ori­
gem no peito da divindade - uma não pode viver sem a outra" . Concluída
a oração, Robespierre pegou numa tocha e, numa das metamorfoses
visuais de David, queimou a efígie do ateísmo, da qual emergiu a imagem
da Sabedoria ( alva como a pureza, segundo alguns, ligeiramente enegre ­
cida, disseram outros ) . "Ele regressou ao nada", entoou o Incorruptível,
"este monstro que o génio dos Reis vomitou sobre a França " .
A tarde, a multidão, numa longa procissão, mudou -se para o Campo de
Marte . No centro da parada estava um carro triunfal (semelhante ao dese­
nhado para o pano da Ó pera ) , tirado por oito bois com os cornos pintados
de dourado . O carro transportava um prelo e um arado, símbolos de tipos
diferentes do trabalho oficialmente aprovado. Mais à frente, um carro onde
crianças cegas cantavam um "Hino à Divindade ", seguido por coluna de
mães com rosas e de pais que conduziam os filhos, armados com espadas à
maneira dos Horácios de David. No centro do rebaptizado Campo da
Reunião, onde deste 1 79 0 estivera o altar da patrie, David construíra, com
espantosa rapidez, uma enorme montanha de gesso e cartão (inspirada na
que ele usara em Lyon, para a Fête de la Fédération) . No topo, em cima de
uma coluna com quinze metros de altura, via -se um Hércules colossal com
a figura cada vez mais pequena ( esta era praticamente uma figurinha ) da
Liberdade na mão. A Liberdade não fora banida do mundo do Ser
Supremo, pois estava representada, também no cimo da montanha, por
uma árvore enorme . A sua presença era uma resposta a outra disquisição
de Grégoire, na qual ele procurava ressuscitar o culto da árvore da liber­
dade de 1 79 1 - 1 792 e até declarara que a espécime mais apropriada para
celebrar a ressurreição da liberdade primitiva era o carvalho, "o mais belo
de todos os vegetais da Europa" . Era, disse ele, a árvore genealógica da
Grande Família dos Livres que um dia povoaria o universo. Dado que vive­
ria durante muitas gerações, as crianças que existiam aquando da sua plan­
tação poderiam um dia reunir os seus rebentos sob os . seus ramos e
falar-lhes sobre os tempos heróicos da fundação da liberdade .
Para a música da tarde, os frutados e floreados deputados da Convenção
subiram ao cimo da montanha e olharam para os dois mil e quatrocentos
coristas postados nos caminhos, nas encostas e nos terraços abertos na ele­
vação. Num momento crucial, silenciados os cânticos e o estrépito marcial
dos instrumentos de sopro, Robespierre desceu da montanha como um
Moisés j acobino, separando as águas de patriotas tricoloridos, e recebeu
707

graciosamente uma erupção orquestrada de aplausos. Nem os sons de gar­


galhadas de desrespeito ou de hostilidade que se ouviram ali e acolá con­
seguiram estragar a apoteose. "Oh! Dia para sempre abençoado", exclamou
Robespierre na Convenção, em 26 de Julho (8 de Termidor) . " Ser dos
Seres! Será que o dia da Criação - o dia em que o mundo emergiu das tuas
mãos omnipotentes - brilhou com uma luz mais agradável à tua vista do
que o dia em que, quebrando o j ugo do crime e do erro, esta nação apare­
ceu aos teus olhos numa atitude digna da tua consideração e dos seus des­
tinos?" Tratou -se, obviamente, de uma pergunta retórica .

III TERMID OR

Enquanto tapetes de rosas perfumam o ar numa ponta de Paris, poças


de sangue contaminam a outra . A guilhotina não tem lugar na mise en
scene do Ser Supremo e Robespierre baniu-a da Praça da Revolução para
o espaço aberto no fim da Rue Saint-Antoine que se tornará a Praça da
Bastilha. É lá que continua a sua macabra operação, para cima e para
baixo, durante três dias, até que os moradores se queixam tão furiosa­
mente do sangue que corre pelas ruas e dos perigosos " odores mefíticos"
exalados pelos corpos debaixo do calor de Junho que a "máquina" acaba
por ser de novo transferida, cada vez mais para oriente, para a barreira do
Trono, que agora se chama obviamente "praça do trono derrubado" .
É aqui que Fouquier-Tinville e o s Sansons vão elevar a sua produtivi­
dade a níveis industriais. Dois dias depois do Festival do Ser S upremo, a
Convenção aprovou um decreto que constitui a carta fundadora da justiça
totalitária. Foi promulgado após duas tentativas de assassínio malogradas,
uma contra Collot d'Herbois, a 23 de Maio, a outra contra Robespierre, no
dia 2 5 . Nesta última, uma rapariga de nome Cécile Renault quis saber
"como é um tirano " . Não se esforçou muito, mas não foi preciso recordar
a ninguém o exemplo de Charlotte C orday. Ao apresentar o decreto de 2 2
d e Pradial, Couthon argumentou q u e os crimes políticos eram muito pio­
res do que os crimes comuns porque, nos segundos, "só são feridos indi­
víduos", enquanto nos primeiros " é ameaçada a existência de uma
sociedade livre " ( este tipo de argumento antecipou a observação de
Robespierre, a 8 de Termidor, de que o ateísmo era muito pior do que a
fome porque embora "nós" consigamos suportar a fome, ninguém conse­
gue suportar o "crime " ) .
Dadas a s circunstâncias, prossegue Couthon, estando a República
ameaçada pelas conspirações, "a indulgência é uma atrocidade . . . a cle ­
mência é parricídio " . Terão de ser feitos alguns aj ustamentos aos critérios
que definem os conspiradores e no modo como são tratados . A partir de
agora, todos aqueles que forem denunciados por "difamar o patriotismo ",
Simon Schama 1 CIDADÃOS

"inspirar desânimo ", " difundir notícias falsas" ou mesmo " depravar a
moral, corromper a consciência pública e prej udicar a pureza e a energia
do governo revolucionário " poderão ser levados perante o Tribunal
Revolucionário. O tribunal poderá pronunciar apenas uma de duas sen­
tenças: absolvição ou morte. Para acelerar a marcha da j ustiça revolucio ­
nária, não será chamada nenhuma testemunha nem os acusados terão
direito a advogado . Afinal de contas, não são os jurados bons cidadãos,
capazes de chegar sozinhos a um veredicto j usto e imparcial?
Na Convenção, nem todos ficam encantados com estas medidas.
O deputado Rouamps solicita o adiamento da votação ameaçando dar um
tiro na cabeça caso a sua moção não sej a atendida . É claro que
Robespierre consegue insinuar que quem tem obj ecções à proposta de lei
tem algo a esconder e declara que "não há aqui ninguém que não sej a
capaz d e decidir sobre esta l e i tão facilmente como decidiu sobre tantas
outras de maior importância . . . " Robespierre insiste que sej a debatida
ponto por ponto e depois votada, uma moção que é aprovada num
ambiente de nervosa resignação.
A lei de Pradial tem um efeito imediato no ritmo das execuções, que j á
tinham sido aceleradas n a s semanas q u e a antecederam. Com o encerra ­
mento dos tribunais revolucionários provinciais, excepto um ramo no Sul,
em Orange, que lida brutalmente com os culpados de Toulon, os suspei­
tos dos departamentos passaram a ser j ulgados em Paris. Os terríveis
resultados foram os seguintes:

Execuções A bsolvições
Germinal 155 59
Floreal 3 54 1 59
Pradial 509 1 64
Messidor 796 208
Termidor ( 1 - 9 ) 342 84

De uma média de cinco execuções diárias em Germinal, passou -se para


dezassete em Pradial e vinte e seis em Messidor.
Esta intensificação do que virá a ser chamado " Grande Terror" é de
sobremaneira enfática porque tem lugar numa altura em que a sorte das
armas franceses regista uma franca melhoria . A levée en masse colocou mais
de três quartos de milhão de homens em armas e a " amálgama" sobrevi­
veu ao período mais caótico de integração dos voluntários nas tropas de
linha . Através dos prodigiosos esforços logísticos e estratégicos de Carnot,
Prieur de la C ôte d'Or e Jeanbon Saint-André, a profecia aterradora da
guerra total do conde de Guibert está prestes a cumprir-se. S ó nas fábri­
cas de Grenelle, são produzidas .diariamente quinze toneladas de pólvora,
e uma grande parte explodirá não tarda na cara da C oligação. No dia 2 5
709

de Junho, em Fleurus, o general Jourdan, que a dada altura sobe num


balão de ar quente para observar a batalha, derrota decisivamente o prin­
cipal exército austríaco, comandado por Coburgo . O inimigo deixa oito
mil mortos no campo de batalha, incluindo, para gáudio dos poetas j aco­
binos, alguns granadeiros britânicos . Valenciennes e Condé, tão dificil­
mente tomadas pelos Aliados, são reconquistadas pelos Franceses, que
avançam até Bruxelas e Antuérpia. A Holanda parece de novo indefesa.
Com a crise militar praticamente debelada, os dois engenheiros do
Comité de Salvação Pública, Camot e Prieur de la Côte d'Or, têm dificul­
dade em perceber o que quis Robespierre dizer quando se referiu a uma
conspiração ubíqua e enorme . Certamente que Cécile Renault não cons­
tituiu uma ameaça suficiente para a aprovação da Lei de Pradial, e eles
estão particularmente preocupados com a eliminação total da imunidade
dos deputados da C onvenção. Camot detesta a postura intocável e justi­
ceira do culto do Ser S upremo e, com a sua maneira de ser franca e
directa, disse - o sem rodeios na cara de Robespierre .
Há outras fracturas a formar- se na elite j a cobina . Em Abril,
Robespierre e Saint-Just criaram uma polícia especial, o bureau de surveil­
lance, que reporta directamente ao Comité de Salvação Pública e assim se
imiscui na jurisdição do Comité de S egurança Geral. Os homens mais
poderosos desta instituição são Vadier e Amar, os quais, enquanto terro­
ristas e descristianizadores entusiásticos, se sentem os alvos principais das
religiosidades de Robespierre . Além disso, dispõem de aliados no próprio
C omité de Salvação Pública, homens cuj a crescente oposição à Ditadura
da Virtude não é alimentada pelo leite da caridade humana mas por um
agudo sentimento de autopreservação . Afinal de contas, Collot d'Herbois
e Billaud-Varennes foram sempre um caso algo à parte no Comité, tendo
sido essencialmente promovidos para agradar à insurreição seccionista de
5 de Setembro de 1 7 9 3 , uma ameaça que deixou praticamente de existir.
C ollot foi obrigado a defender a sua conduta enquanto representant-en-mis­
sion em Lyon, e existem outros colegas que se sentem inj ustamente
empurrados para a defensiva por terem aplicado políticas que até há pou ­
cos meses eram a ortodoxia j acobina. Por exemplo, Javogues passou por
um "escrutínio purificante " particularmente difícil nos Jacobinos, e no dia
1 1 de Julho ( 2 3 de Messidor) Robespierre atacou violentamente Fouché,
exigindo a sua expulsão do clube. ( S ensatamente, Fouché negou-se a
obedecer à ordem de Robespierre para que se apresentasse no clube para
defender os seus actos e tratou de não dar nas vistas durante algum
tempo, não indo a casa e andando com um par de pistolas. )
Foi uma das aparições cada vez mais raras nos Jacobinos, e ainda era
mais raramente visto na Convenção e não punha os pés no Comité de
Salvação Pública . Tinha evidentemente decidido, depois de uma confli­
tuosa e bizarra reunião entre este comité e o Comité de S egurança Geral,
Simon Schama 1 CIDADÃOS

em finais de Junho, que estava farto da Constituição na sua forma pre­


sente . Vadier descobrira uma velhota maravilhosamente excêntrica cha­
mada Catherine Théot, residente na Rue Contrescarpe, que dizia ser a mãe
de um novo Messias e proclamara Robespierre como arauto dos Últimos
Dias, o profeta do Novo Alvorecer. Quando a polícia chegou à sua residên­
cia, encontrou também Dom Gerle, o monge cartuxo que fora deputado à
Constituinte. Embaraçosamente para David, que entrara para o Comité de
Segurança Geral, Gerle figurava de forma destacada no triângulo sagrado
dos clérigos patrióticos do Juramento da Sala do Jogo da Pé/a. ( Rabaut Saint­
-Etienne tinha sido guilhotinado e Grégoire estava vivo e bem vivo e bem
de saúde . ) Vadier aproveitou a situação como uma oportunidade preciosa
para ridicularizar as pretensões messiânicas de Robespierre e o seu adver­
sário percebeu que a descoberta da "conspiração" era um pretexto para um
ataque voltaireano ao Ser Supremo. Depois de uma discussão furiosa e
venenosa, Robespierre conseguiu pôr termo ao processo mas a solidarie ­
dade dos comités ficou irreparavelmente danificada .
Gradualmente, nas últimas semanas de Julho, as peças da coligação
anti -Robespierre começam a encaixar. Aqueles que, como Fouché, foram
publicamente ameaçados como "criminosos" e os outros que, como Collot
e Billaud, sentem que estão a seguir na lista, começam a ficar apreensivos
com a possibilidade de uma nova insurreição. O desmantelamento parcial
dos controlos económicos, a par da liquidação dos armées revolutionnaires,
resultou numa nova erosão do papel-moeda, que se afundou para 3 6 %
d o seu valor facial. A s carestias alimentares e o aumento d o preço d o pão
estão a provocar uma grave agitação j unto dos operários e dos jornaleiros,
e em finais de Junho e em Julho assiste -se a uma onda grevista . Se o des­
contentamento for manipulado com perícia, poderá verificar-se num
ápice uma situação muito perigosa . Enquanto autor dos decretos do
Ventoso, Saint-Just tem fama de campeão da igualdade social. Se ele se
aliar a Hanriot, que ainda é o comandante da Guarda Nacional, e convo ­
car as tropas das secções militantes, os comités e a Convenção ficarão
debaixo de cerco até serem obrigados a purgar- se como aconteceu em
Junho do ano anterior. Só que desta vez, as vítimas serão os j acobinos .
Barere n ã o q u e r q u e nada disto aconteça . Em termos dogmáticos, não
está alinhado com o grupo de Robespierre nem com os seus oponentes, e
prevê correctamente que a quebra da unidade do governo revolucionário
será o prelúdio do seu fim . No dia 22 de Julho (4 de Termidor ) , B arere
tenta pôr de pé um compromisso que preserve a solidariedade dos comi­
tés e, mais importante ainda, anuncie essa coesão à C onvenção. O plano
é cortej ar Saint-Just e Robespierre com a aplicação dos decretos de
Ventoso em troca de serem abandonados quaisquer planos de purga.
O esquema parece funcionar, pois merece o apoio, com reservas, de Saint­
-Just e Couthon, mas desmorona-se no dia seguinte, quando Robespierre
711

aparece, passadas três semanas, noutra reumao conj unta dos comités.
Robespierre tem muito menos fé do que Saint-Just no tipo de engenharia
social implícito nos decretos de Ventoso e nas Institutions Républicaines do
seu amigo. Como sempre, a virtude e o terror é que lhe ocupam a mente,
e em vez de alinhar no compromisso deixa perfeitamente clara a sua
intenção de perseguir incansavelmente os vilãos presentes em ambos os
comités.
Robespierre parece ficar isolado, pois B arere persuade Saint-Just, não
obstante a intratabilidade de Robespierre, a fazer um relatório à
Convenção dando conta da unidade do governo e com poucas ou nenhu ­
mas referências ao Ser Supremo . Além disso, Saint-Just assina uma
ordem - talvez fatalmente para ele - de envio de unidades de artilharia de
Paris para o Exército do Norte. Contudo, apesar de parecer que está a ficar
sem aliados, Robespierre prepara um dos seus grandes apelos maniqueís ­
tas que distinguem entre as forças da luz e da escuridão. Em último
recurso, ele recusa-se a acreditar que Saint-Just abandone o homem sobre
o qual escreveu com tanta adoração em 1 78 9 .
N o dia 2 6 de Julho ( 8 d e Termidor ) , Robespierre faz a s u a longa ora ­
ção de duas horas perante a Convenção. Começa de forma bastante inó ­
cua, declarando que "a Revolução Francesa foi a primeira fundada nos
direitos da humanidade e nos princípios da j ustiça. As outras revoluções
apenas requereram ambição; a nossa requer virtude". Mas de seguida, pri­
meiro de forma opaca e depois com total transparência, avisa a assembleia
de que está em marcha uma conspiração que ameaça arruinar a
República. Defendendo -se das acusações de ditadura e tirania, ele leva os
deputados a construir gradualmente a imagem daqueles que tem em
mente quando alude aos "monstros" que "mergulharam patriotas nas
masmorras e levaram o terror a todas as classes e condições". Esses é que
são os verdadeiros opressores e tiranos. S ustentando -se nas doutrinas
básicas da sensibilité revolucionária, declara: "Apenas conheço dois parti­
dos, o dos bons cidadãos e o dos maus cidadãos. Acredito que o patrio ­
tismo não é uma questão de partido, mas sim do coração." No fim do
discurso, embora não tenham sido pronunciados nomes ( com a estranha
excepção de Cambon, o chefe do Comité de Finanças ) , as alusões aos her­
deiros de C habot, Chaumette e Fabre deixaram claro para todos quem são
os autores da conspiração "vulcânica ".
O discurso parece ser bem acolhido, mas, para espanto manifesto de
Robespierre, segue-se um caloroso debate sobre se deverá ou não ser
impresso, como é costume da câmara sempre que uma é feita uma grande
oração. Com a discussão a aquecer, Vadier ataca Robespierre por ridicula ­
rizar a importância da " conj u ra Théot" e Cambon defende -se mas o seu
inimigo classifica as suas observações de "tão ininteligíveis como extraor­
dinárias". Desafiado por outro deputado a pôr nomes naqueles que acusa,
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Robespierre nega-se e Amar ataca-o por acusar membros do Comité em


bloco sem lhes dar a possibilidade de falarem. Vendo a sessão a descam­
bar para hostilidades, Barere tenta acalmar o debate, o qual, segundo diz,
"só beneficiará Pitt e o duque de York " . ( Se tivesse alguma vez lido as
actas da C onvenção, o duque teria ficado espantado ao descobrir o papel
importante que desempenhara nos seus debates. )
Nessa noite, Robespierre faz o mesmo discurso nos Jacobinos, onde
recebe uma tremenda ovação. Collot d'Herbois, que preside à sessão, e
Billaud-Varennes, tentam defender-se e contra- atacar mas vêem-se isola ­
dos e são abafados por gritos que apelam à sua expulsão e, pior ainda, de
"à la guillotine!". Robespierre incluíra no discurso a sua táctica retórica
habitual de oferecer o seu sacrifício pessoal para bem da pátria, e da pró­
xima vez eles vão aceitá-lo.
No dia seguinte, 2 7 de Julho ( 9 de Termidor ) , de manhã, Saint-Just,
conforme o combinado, inicia um discurso que deverá incidir sobre a
situação política que confronta o governo. Porém, desde a altura em que
Barere o persuadiu a versar sobre esse tema, o clima político mudou de
forma abrupta . Carnot e B illaud, que o viram trabalhar noite dentro no
discurso num dos gabinetes do Comité, sabem que longe de uma afirma­
ção anódina de unidade, podem contar com uma tirada de denúncias
perigosas. Quando Saint-Just chega à primeira referência obrigatória à
Rocha Tarpeia, é interrompido, conforme foi previamente combinado, por
Tallien, que condena Robespierre por se ter desviado da liderança colec­
tiva para proferir um discurso "em nome próprio " . Billaud-Varennes
secunda-o com uma denúncia ainda mais grave, nomeadamente de que
Robespierre ameaçou membros dos comités e da Convenção. Espan -
tosamente, Saint-Just, em vez de lançar um dos contra- ataques pelos
quais é tão temido, parece ter perdido a eloquência. Senta -se no seu lugar,
pálido, enquanto se vão acumulando as acusações . Vendo a sua defesa
desmoronar-se, Robespierre tenta garantir a palavra na tribuna mas é aba­
fado pelos gritos que lhe são dirigidos . O momento de colapso total não
terá sido quando um deputado obscuro exige a sua detenção, mas quando
Vadier ridiculariza os artifícios habituais da sua retórica: " Ouvindo-se
Robespierre, ele é o único defensor da liberdade; está a dá-la por perdida;
é um homem de rara modéstia e está sempre com a mesma cantiga : 'estou
oprimido; não me dão a palavra'; e é o único que tem alguma coisa de útil
para dizer, porque a vontade dele é sempre cumprida. Ele diz, 'fulano e
beltrano conspiram contra mim, que sou o melhor amigo da República';
Esta é novidade . " Robespierre é então atingido pela única arma contra a
qual é impotente: o riso. E quando fica sem palavras, um deputado grita:
"Está engasgado com o sangue de Danton ! "
Mas a vitória ainda não está garantida. Prudentemente, os termidoria ­
nos decidiram deter não só Robespierre, Couthon, Saint-Just e Le B as,
713

mas também Hanriot, o comandante d a Guarda . Porém, quando a


C omuna se inteira do que está a acontecer, recusa-se a recebê-los nas
suas prisões e começa - bastante tardiamente - a mobilizar o aparelho da
insurreição popular. O problema é que o Terror danificou a máquina ao
executar os seus principais operadores e ao infestar as secções com
espiões e homens de confiança, pelo que o aparelho j á quase não fun­
ciona . Das quarenta e oito secções, só vinte e quatro pedem à C omuna
instruções e apenas treze enviam tropas quando toca a rebate. No
entanto, os soldados são suficientes para libertar os cinco homens e para
o general Coffinhal marchar com um número substancial de efectivos
sobre a própria Convenção. Alguns deputados crêem-se perdidos e pre­
param-se para ser alvejados. Todavia, a unidade dos anti- robespierristas
mantém - se, quase de certeza porque, pela primeira vez, eles sabem que
podem mobilizar forças das secções centrais e ocidentais contra a
C omuna . Nomeiam B arras comandante das suas forças e declaram
Robespierre e os seus associados fora - da -lei, o que significa que podem
ser detidos mediante a simples verificação de identidade e sumariamente
executados em vinte e quatro horas.
É o ponto de viragem. Perturbadas por terem pela frente uma
Convenção unida e claramente intimidadas pela assustadora declaração
que colocou os cinco homens à margem da lei, as tropas que se encon -
tram na Convenção começam a ficar inquietas. Não chegam ordens da
Comuna e Hanriot decide retirar o que resta das suas forças para uma
posição frente à Câmara Municipal. Mas quando os seus homens se eva­
poram, por volta das duas da manhã, os soldados sob o comando de
Barras tomam o seu lugar e avançam para deter os deputados proscritos,
que se refugiaram no edifício . Um corpo cai de uma j anela aos pés dos ofi­
ciais. É Augustin Robespierre, irmão mais novo de Maximilien. No inte­
rior, encontram Couthon prostrado, caiu escada abaixo . No salão do
Grande Conselho, encontram Le B as, que se suicidou a tiro . O rosto e o
corpo de Robespierre estão cobertos de sangue; tem o queixo estraça­
lhado, presumivelmente de uma tentativa de suicídio fracassada. Saint­
-Just, com um ar tranquilo e quase indiferente, levanta - s e para
cumprimentar os seus captores .
Quando os parisienses acordam, na manhã seguinte, constatam q u e a
guilhotina foi devolvida à Praça da Revolução. Depois de sumariamente
identificados pelo tribunal, dezassete robespierristas são guilhotinados.
Nos dois dias seguintes, é a vez de oitenta e três membros da Comuna e
da Câmara Municipal - para já, o partido vitorioso parece concordar com
a afirmação de C outhon de que "clemência é parricídio" . O fim dos arqui­
tectos do Grande Terror é particularmente macabro, como um exorcismo
louco de horror. C outhon, o deficiente, é amarrado à prancha cheio de
dores horríveis - esmagou as pernas ao cair pelas escadas. Saint-Just
Simon Schama 1 CIDADÃOS

enfrenta a morte como um estóico romano, um papel que manifesta­


mente assumira . Robespierre passou a noite impotente, à mesa do C omité
de Salvação Pública, na qual tantas vezes presidiu com gélida disciplina.
O fastidioso profeta da Virtude é empurrado para a prancha por Sanson,
com o sangue a manchar-lhe o casaco e a as calças de nanquim. Para que
a lâmina caia sem nenhuma obstrução, o carrasco arranca a ligadura que
lhe mantém o queixo no lugar. Os gritos de dor animalescos são silencia­
dos pela lâmina.

Os dias e semanas seguintes assistem a um tráfego nos dois sentidos


nas prisões de Paris. Jacques -Louis David, quando viu Robespierre sob
ataque no dia 8 de Termidor, quis que a vida imitasse a arte . ( especifica­
mente a sua arte ) e foi buscar à sua Morte de Sócrates a frase, " Robespierre,
se beberes cicuta, seguir-te -ei" . Não faz nada disso, obviamente, e trata de
não dar nas vistas até que acaba por ser encarcerado na prisão do
Luxemburgo . B em se pode dar por feliz por os numerosos artistas cuj os
mandatos de detenção assinou, incluindo Hubert Robert e Joseph B oze,
não lhe quererem muito mal. Durante a sua estadia na prisão, David pinta
um auto- retrato atormentado e confuso e uma lírica paisagem terapêutica
do parque que vê da j anela da cela.
No dia 24 de O utubro, Hervé de Tocqueville emerge das
Madelonnettes . Tem apenas vinte e quatro anos de idade mas o cabelo
tornou -se branco como a neve . Quando se reúne com a neta de
Malesherbes, Louise, descobre -a desfeita pela destruição da sua família.
Nunca recuperará; até ao fim dos seus dias, sofrerá ataques de dej ecção e
melancolia. Em Malesherbes, Hervé consegue encontrar os seus dois
sobrinhitos, Christian e Louis Chateaubriand. Têm cinco e três anos de
idade e são órfãos; Hervé toma- os como seus. Onze anos mais tarde, j un­
tar-se -lhes-á um novo bebé, o seu primo Alexis .
Houve um último sobrevivente do Terror que, felizmente, ficou atrás
das grades . No Jardim das Plantas, semimorto, vive um velho leão . Foi
levado para Paris quando a Revolução irrompeu pelo j ardim zoológico
real de Versalhes e depois da morte do seu tratador - apropriadamente
chamado Leroy -, em 1 78 9 . No auge da Revolução, teve de suportar pan­
cadas, gargalhadas e cuspidelas por ser, além de uma " criatura da realeza ",
o "Rei dos Animais " . Está maltratado e descarnado; a sarna deu -lhe cabo
do pelo e a carne exposta apresenta chagas e bolhas . Mas pelo menos está
vivo e prepara -se para gozar os frutos da reabilitação do conhecimento -
que afinal é patriótico - apregoada por Grégoire, incluindo no domínio da
zoologia. Entretanto, vai olhando para o " espião inglês" que escreve sobre
ele (e que talvez simpatize com a sua realeza heráldica caída) com olhos
amarelentos e sapientes .
Epílogo

Quem pode culpar os termidorianos por retratarem a França como uma


hecatombe? É certo que era do seu interesse retratar as atrocidades do
Terror como sendo da responsabilidade especial de Robespierre e dos seus
apaniguados, já que as mãos de Collot d'Herbois, Tallien e Fouché não esta­
vam, de todo, limpas. O seu melhor bode expiatório foi o procurador do
Tribunal Revolucionário, Fouquier-Tinville . Quatro dias depois da execução
de Robespierre, Fréron ( que fora um dos entusiastas da Lei de Pradial) exi­
giu na Convenção que Fouquier "expie no Inferno o sangue que derra­
mou" . Depois da sua detenção, Fouquier foi levado para a Conciergerie,
onde, ao inteirarem-se da identidade do novo recluso, até os jacobinos mais
empedernidos começaram a bater nas paredes e a invectivar o "monstro " .
Durante o julgamento, Fouquier desiludiu aqueles que estavam à espera de
ver a encarnação do mal dissolver-se em vergonha e medo à frente dos j uí­
zes. No entanto, os leitores actuais reconhecerão um instrumento ideal para
o assassínio em série neste pai de família de modos suaves que disse que
apenas e sempre obedecera à lei e cumprira o seu dever. Foi para o cada­
falso em Maio de 1 79 5 , receoso de que a mulher e os filhos, pelos quais tra­
balhara horas e horas a fim, se vissem ameaçados pela pobreza e pelo
ostracismo . A sua última carta replica fielmente muitas das dos seus prisio­
neiros: "Dizei às crianças que o pai morreu infeliz mas inocente. "
Mesmo descontando o cinismo e hipocrisia dos termidorianos que pro ­
moveram a sua produção, não há dúvida de que a explosão de gravuras
anti-Terror foi uma genuína expressão de alívio . Em algumas das mais
alarmantes, Robespierre, vestido como se apresentou no Festival do Ser
Supremo, guilhotina o guilhotinador " depois de ter guilhotinado a França
inteira" . Cada uma das guilhotinas que se estende atrás dele como uma
floresta monstruosa está rotulada com uma categoria das suas vítimas: "L:
Hébertistas; O : Velhos, Mulheres e C rianças; P: Soldados e Generais ", e
assim por diante . No topo do obelisco com a legenda, "Aqui Jaz a França",
um barrete da liberdade invertido foi trespassado e convertido numa cha ­
miné de cremação.
É uma imagem horrível e perturbadora, e houve muitas mais : pirâmi­
des de crânios encimadas pela máscara fúnebre de Robespierre que sorri
Simon Schama 1 CIDADÃOS

para o espectador; Marat dançando no Inferno, rodeado de serpentes que


se contorcem; a dance macabre de uma França vendada provocada pelo sal­
titante esqueleto da Morte. Todas estas imagens comungam de um senti­
mento poderoso de recuo da beira do apocalipse .
Mas a violência não termina com o Terror. Richard Cobb escreveu com
eloquência sobre as vagas do Contra -Terror, especialmente brutais no
Midi e no Vale do Ródano, e sobre os bandos de assassinos anárquicos que
seleccionavam os seus alvos entre os implicados no jacobinismo .
Funcionários republicanos, oficiais do exército, membros das administra ­
ções departamentais, militantes destacados das sociedades populares e, no
Sul, os agricultores e comerciantes protestantes tornam-se vítimas dos
"sabreurs" do Ano III. Os cadáveres são deixados à frente dos cafés e das
estalagens, no Midi, ou atirados ao Ródano ou ao Sona. Em muitas
regiões, os Contra-Terroristas j untam-se nas estalagens como se fossem à
caça e depois saem em busca das presas .
O Inverno de 1 7 94- 1 79 5 é quase tão mortífero, atirando para a misé ­
ria muitos dos que j á estavam a braços como uma colheita desgraçada pela
seca e com preços elevados. Com a destruição da Igrej a e a lenta recupe­
ração das suas funções pastorais, muitos dos recursos tradicionais para
socorro dos necessitados desapareceram. No auge do frio, no Nivoso do
Ano III, o governo descarta finalmente o que resta do maximum e da regu­
lação. Os resultados são o desespero e taxas de mortalidade anormal­
mente elevadas, não só nas regiões mais pobres mas também nas zonas
costeiras da Normandia, onde gelo acumulado nos portos impede a
importação de emergência de cereais. Nas cidades, famintas, voltam a
verificar- se lutas por causa do pão e da lenha . O carvão tornou-se um luxo
e os homens passam muito tempo nas filas à espera de um número que
dá direito a uma ração para a família . Em Paris, bandos de homens,
mulheres e crianças abastecem-se de lenha no B osque de B olonha ou nas
florestas de Vincennes ou Meudon. Com as fontes de água municipais
geladas, os aguadeiros têm de se abastecer mais longe e quando regressam
a Paris pagam taxas alfandegárias pesadas que procuram passar aos clien­
tes. A fome e o frio são tão extremos que as raposas e os lobos começam
a aparecer perto das cidades à procura de alimento . Não admira que no
Inverno de "nonante-cinq" os operários comecem a recordar o Terror com
nostalgia, " quando o sangue corria e havia pão", nas palavras de um dos
amotinados de Germinal do Ano III.
Estas desgraças são de curta duração. Muito mais profundos são os
danos infligidos pela Revolução. Áreas consideráveis do país - o Midi e o
Vale do Ródano, a B retanha e o Oeste da Normandia - permanecem pra­
ticamente em estado de guerra civil, embora a violência sej a aleatória,
mais à base de incursões e ataques rápidos do que através de insurreições
organizadas. Os grandes motores da prosperidade capitalista da França de
717

finais d o século XVIII, o s portos atlânticos e mediterrânicos, foram esma­


gados pela repressão antifederalista e pelo bloqueio naval britânico.
Quando Samuel Romilly regressa a B ordéus, durante a paz de 1 802, fica
chocado ao encontrar as docas silenciosas e fantasmagóricas e as ervas
daninhas a florescerem no empedrado do Quai des Chartrons . 1 Marselha
e Lyon só começam a recuperar quando a Revolução recua e a reorien­
tação do E stado bonapartista para Itália oferece novos mercados e rotas
comerciais.
Nas cidades têxteis, tais como Lille, muitas profissões entram em declí­
nio acentuado. Por razões óbvias, todas as pessoas empregadas nos métiers
de luxe - peruqueiros, alfaiates, mestres de dança, professores, músicos e
reloj oeiros - viram a sua clientela desaparecer. No entanto, as investiga­
ções de C obb mostram que muitas profissões mais populares, tais como a
de sapateiro, também sofreram bastante, com a excepção dos poucos afor­
tunados que conseguem contratos para fornecer o Exército do Norte. Nas
indústrias têxteis, os fabricantes foram arruinados pelo maximum, que os
obrigou a vender a preços muito inferiores ao que pagaram pelas maté­
rias-primas antes da imposição dos controlos, e dada a dependência dos
tecelões do trabalho à peça os problemas económicos terão afectado trans­
versalmente o sector. Para que serve a liberdade do mercado laboral que
lhes foi disponibilizado com a abolição das guildas se a procura caiu a
pique? Aliás, não é certo que todos os artesãos tenham ficado entusias­
mados com a sua liberdade, dado que chegou acompanhada da proibição
estrita da criação de toda e qualquer organização laboral que restrinj a a
concorrência. Também neste domínio, pelo menos em alguns sectores, se
verifica a tendência de retroceder para os padrões de solidariedade e orga ­
nização colectivas das antigas compagnonnages, apesar de proibidas por lei.
Nas indústrias pesadas, tais como a metalurgia, as oportunidades especta­
culares geradas pela constante expansão da guerra voltam a acelerar e
reforçar as concentraçõe� de capital e de mão-de-obra e as economias de
escala possibilitadas pela tecnologia que j á eram aparentes antes da
Revolução. De Wendel e os outros grandes barões da metalurgia - não é
demais repeti-lo - são subprodutos da monarquia, não da revolução.
Para contrabalançar estas penalidades, quais foram as realizações da
Revolução? As suas duas grandes alterações sociais - o fim do regime
senhorial e a abolição das corporações - prometeram mais do que cum­
priram. Muitos artesãos congratularam-se por se verem libertos da hie ­
rarquia das corporações, que lhes limita o trabalho e os seus ganhos, mas
a verdade é que ficaram mais expostos às iniquidades económicas que
continuaram a persistir entre mestres e jornaleiros. Do mesmo modo, a
abolição do feudalismo foi uma mudança mais jurídica do que social e

1 Rua que ligava as docas e as zonas comerciais à cidade. (N. do T.)


Simon Schama 1 CIDADÃOS

apenas completou a evolução dos nobres de senhores para senhorios que


j á estava adiantada no Antigo Regime . É inquestionável que os campone ­
ses agradeceram o fim das exacções senhoriais que tinham imposto um
ónus esmagador aos rendimentos rurais fixos e que decidiram impedir a
sua reposição a todo o custo . Todavia, é difícil dizer se a esmagadora maio­
ria da população rural estava comprovadamente melhor em 1 7 99 do que
em 1 78 9 . Embora a tarifa de indemnização dos direitos feudais tenha sido
abolida em 1 7 9 3 , os proprietários compensaram-se através de várias
estratégias de rendas que aprofundaram a dívida dos rendeiros. Além do
mais, os impostos exigidos pela República - entre eles, o imposto fundiá ­
rio único, o impôt foncier - não eram certamente mais baixos do que os
cobrados pelo rei. Pouco depois, o C onsulado e o Império ver- se-iam obri­
gados a regressar aos impostos indirectos numa escala pelo menos tão
onerosa como a do Antigo Regime. Apenas foram poupadas aos cidadãos
as taxas alfandegárias, incluindo as antigas capitation e vingtieme, mas este
alívio deve u - se exclusivamente ao constante alargamento das fronteiras
militares . Os impostos foram tirados dos ombros dos Franceses e coloca ­
dos nos dos Italianos, Alemães e Holandeses. Em 1 8 1 4, com o recuo
súbito das fronteiras militares para os limites da antiga patrie hexagonal,
os Franceses ficaram com a conta na mão. Ao recusarem-se a pagar, como
tinham feito em 1 789, selaram o destino do Império.
Seria o mundo aldeão de 1 79 9 muito diferente do de 1 789? Em regiões
específicas da França, palcos de muita emigração e repressão, a vida rural
foi efectivamente esvaziada do domínio dos nobres. No entanto, esta rup ­
tura óbvia disfarça uma continuidade de alguma importância. Foram pre­
cisamente os segmentos da população que vinham acumulando ganhos
económicos no Antigo Regime que mais se aproveitaram da venda das
terras da nobreza e do clero . As vendas foram declaradas irreversíveis,
pelo que houve efectivamente uma transferência substancial de riqueza .
Contudo, uma grande parte desta transferência verificou - se dentro das
classes proprietárias de terras, desde os agricultores abastados aos nobres
"patrióticos " que conseguiram não arredar pé e beneficiaram dos confis­
cos. Quem se enchia continuou a encher- se. Em Pulsieux-Pontoise, no
Sena e Oise, o maior rendeiro e vizinho do marquês de Girardin, Charles­
-Antoine Thomassin, estava bem posicionado para se abarbatar aos lotes
disponíveis e fê -lo tão bem que entrou em concorrência com o seu antigo
senhorio pelas parcelas remanescentes . É claro que em muitas regiões a
nobreza, enquanto grupo, perdeu uma parte considerável da sua fortuna,
mas noutras - no Oeste, no centro e no Sul -, como demonstrou Jean
Tulard, muitas terras que ficaram por vender foram recuperadas pelas
famílias, as quais, depois de 1 7 96, começaram a regressar em número
substancial. Por conseguinte, enquanto muitas das principais figuras desta
história acabaram a vida na guilhotina, muitas outras fizeram por não dar
719

nas vistas e reemergiram como notáveis dos seus departamentos. O jovem


e irresponsável maitre de cérémonies que no dia 23 de Junho de 1 7 89 se
encolheu perante a fúria de Mirabeau, o marquês de Dreux-Brézé, conti­
nuou a ser o quarto homem mais rico do Departamento do Sarthe
durante o Consulado e o Império . B arrai de Montferrat, o ex-presidente
do Parlamento do D elfinado e que se tornou presidente da câmara de
Grenoble durante a Revolução, ainda era um dos grandes potentados do
Isere no século XIX. No Eure e Loire, a família Noailles continuou a ser a
grande dinastia de latifundiários. No Oise, os Rochefoucauld-Liancourts
continuaram a ser dos maiores proprietários, não obstante os desastres
que se abateram sobre os cidadãos-nobres do clã .
Em contraste, os pobres rurais ganharam muitíssimo pouco com a
Revolução . As leis de Ventoso de Saint-Just permaneceram letra morta e
tornou-se mais difícil do que nunca apascentar o gado nas terras comuns
ou obter combustível nos bosques. Em todos estes aspectos, a Revolução
foi apenas um interlúdio na inexorável modernização dos direitos de pro­
priedade que já estava bastante avançada antes de 1 78 9 . Nenhum
governo - e o dos jacobinos tão pouco como o do rei - respondeu verda­
deiramente aos gritos de socorro que ecoaram nos cahiers de doléances
rurais de 1 7 8 9 .
D o mesmo modo, a ruptura brutal d a s continuidades religiosas pelo
Terror foi apenas um fenómeno passageiro - mas que as aldeias nunca
esqueceram. Os barretes da liberdade que tinham substituído as cruzes
nos campanários e nas torres foram abruptamente retirados e destruídos
no Ano III. O culto do Ser S upremo deu gradualmente lugar às antigas
práticas religiosas, muitas vezes a instâncias das mulheres, as quais, em
muitas partes da França, empreenderam uma agressiva campanha de
reconsagração, obrigando os padres constitucionais a raspar a língua de
todas as pessoas que tinham sido poluídas pela comunhão constitucional.
Os sinos recomeçaram a repicar sobre os campos e as aldeias e os festivais
tradicionais foram restaurados, apesar de terem de ser celebrados no
Nivoso e no Germinal em vez de em Dezembro e Abril.
Mas terá pelo menos a Revolução criado instituições do Estado que
tenham resolvido os problemas que fizeram cair a monarquia? Também
aqui, como sublinhou Tocqueville, é mais fácil discernir continuidades,
em especial, de centralização, do que qualquer mudança assinalável. Nas
finanças públicas, a criação de uma moeda em papel acabou por ser reco ­
nhecida como uma catástrofe ao lado da qual as insolvências do Antigo
Regime pareciam quase uma ninharia . O Consulado bonapartista ( cujas
finanças foram quase por inteiro administradas por burocratas do Antigo
Regime) regressou a um sistema metálico baseado na importante reforma
monetária de Calonne de 1 78 5 , que fixara o rácio prata/ouro . Em termos
fiscais, a França pós-jacobina também regressou inexoravelmente à antiga
Simon Schama 1 CIDADÃOS

combinação de empréstimos e impostos indirectos e directos . A República


e o Império não financiaram melhor um grande exército e uma grande
marinha com estas fontes domésticas do que a monarquia e dependeram
crucialmente da extorsão institucionalizada nos países ocupados para
manterem a bomba militar a funcionar.
Os prefeitos napoleónicas foram sempre reconhecidos como os herdei­
ros dos intendants reais (e dos représentants-en-mission revolucionários ) ,
mediando a administração entre as necessidades d o governo central e o s
interesses dos notáveis locais. É inquestionável que estes notáveis sofreram
um choque violento durante o auge do Terror j acobino, especialmente nas
grandes cidades provinciais, onde, depois da revolta federalista, foram pra­
ticamente exterminados. Todavia, a constituição do Ano III, com a reintro­
dução de qualificações fiscais para as assembleias eleitorais, devolveu
autoridade àqueles que, em muitos lugares, a tinham exercitado continua­
mente entre meados da década de 80 do século XVIII e 1 792. Como vimos,
nalgumas cidades de menores dimensões, tais como Calais, onde presiden -
tes da câmara hábeis fingiram alinhar com os sucessivos regimes, existiu
uma continuidade ininterrupta dos incumbentes de 1 789 até à Restauração.
Olhando para o Departamento do Orne, Louis Bergeron descobriu um grau
extraordinário de continuidade nos notáveis, quer seja medido por rendi­
mentos quer sej a medido por estatuto ou cargo . Por exemplo, Goupil de
Prefeln foi conseiller du Parlement de Rouen e deputado à Constituinte, e tor­
nou-se procureur-général do tribunal napoleónico de Caen, em 1 8 1 2 .
Descorches de Sainte-Croix, que fora marechal de campo do antigo exército
real, tornou-se prefeito e barão do Império. Para estes homens e muitos
outros como eles, a Revolução não passou de uma interrupção brutal mas
misericordiosamente efémera do seu poder social e institucional.
A Ditadura da Virtude também ameaçou a crescente ortodoxia do rei­
nado de Luís XVI, segundo a qual os funcionários públicos deviam possuir
um módico de experiência profissional e nos níveis elevados deviam fazer
uso das profissões modernas : engenharia, química, matemática. O grande
proponente de um Estado no qual a ciência e a virtude se deveriam refor­
çar mutuamente, o marquês de Condorcet, morreu numa derrota abj ecta .
Escapou da prisão domiciliária em Paris, em 1 794, e foi a pé até Clamart
mas suscitou suspeitas numa estalagem quando pediu uma omeleta.
" Quantos ovos?", perguntou a patroa. "Doze", respondeu Condorcet, indi­
ciando um perigoso desconhecimento da culinária do homem comum. Foi
detido para comparecer perante o Tribunal Revolucionário mas antes de
ser levado para Paris deram com ele morto na cela. Existem várias histó­
rias para explicar o desastre: esgotamento provocado pela fome ou um fim
espectacular com o veneno tirado de um anel. Se esta versão é a verda -
deira, coadunou-se com a epidemia de suicídios que varreu os girondinos
depois da sua proscrição.
721

Apesar de o autor do Esquisse du Progres Humain ter perecido,2 a elite


intelectual das academias prosseguiu a colonização do governo que tinha
iniciado no reinado de Luís XVI. As grandes reformas da educação supe­
rior que corporizaram o pensamento de finais do Iluminismo tiveram
lugar durante o Directório, com a criação das écoles centrales, e o mundo
dos museus e das academias, em Paris e nas províncias, readquiriu a sua
energia intelectual livre da intimidação policial na década de 90 ( mas con­
tinuaram as quezílias internas - assim é a natureza das feras ) . Os conce ­
lhos de Estado e os ministérios do Consulado e do Império encheram-se
com as eminências intelectuais da década de 80. Alguns tinham sido, pelo
caminho, revolucionários fervorosos, outros não. Chaptal, inspector real
das minas e professor de química, enobrecido por Luís XVI em 1 7 88 na
habitual escada meritocrática, tornou -se ministro do Interior napoleónico .
Charles Gaudin, ministro das Finanças, era filho da um advogado parla­
mentar que tinha trabalhado na administração da vintena antes de 1 7 8 9 .
Dois ministros d a Justiça, Abrial e Régnier, foram parlamentares antes d a
Revolução, sobreviveram ao Terror e adquiriram mais poder e estatuto no
Directório e no Consulado .
O que matou a monarquia foi a sua incapacidade para criar instituições
representativas através das quais o Estado pudesse executar o seu pro­
grama de reformas. Terá a Revolução feito melhor? A um nível, a suces­
são de legislaturas eleitas, dos Estados Gerais à C onvenção Nacional, foi
uma das inovações mais impressionantes da Revolução. Transferiram o
debate intenso sobre a forma das instituições governativas da França, que
vinha decorrendo há pelo menos meio século, para a arena da própria
representação e articularam os seus princípios com uma eloquência
impar. Contudo, não obstante todas as suas virtudes como teatros de
debate, nenhuma das legislaturas conseguiu resolver a questão que tinha
atormentado o Antigo Regime : como criar uma parceria viável e funcio ­
nal entre o executivo e a legislatura? D epois de a C onstituinte ter rej ei ­
tado as propostas "britânicas" d e Mounier e Mirabeau d e retirar o s
ministros da assembleia, passou a olhar para o executivo n ã o como a
administração do país mas como uma quinta - coluna apostada na subver­
são da soberania nacional. Com este começo condenado à partida, o exe­
cutivo e a legislatura da constituição de 1 79 1 limitaram-se a intensificar a
guerra entre si até à sua mútua destruição, em 1 79 2 . O Terror inverteu a
situação colocando a Convenção sob o j ugo dos comités mas continuou a
impedir mudanças de governo a não ser pela violência .
Os construtores da constituição do Ano III ( 1 7 9 5 ) aprenderam obvia­
mente alguma coisa com estas infelizes experiências . Foi introduzida
uma legislatura bicameral, eleita indirectamente por colégios nos quais a

2 Condorcet. (N. do T.)


Simon Schama 1 CIDADÃOS

propriedade era o critério de admissão. Um conselho governativo era, em


teoria, responsável perante a legislatura ( como tinham sido os comités ) .
Porém, na prática, a experiência permaneceu ensombrada pela própria
Revolução, pelo que acaba ram por se cristalizar facções, não em torno de
questões específicas da governação mas de planos para o derrube do
Estado congeminados pelos monárquicos ou pelos neojacobinos. Com os
órgãos da constituição num conflito paralisante, a violência continuou a
determinar a orientação política do Estado muito mais do que as eleições .
Mas a partir d o Ano III, a violência não surgiu das ruas nem das sec­
ções, mas do exército. Se fosse preciso procurar uma história incontestá­
vel de transformação na Revolução Francesa, seria a criação da pessoa
jurídica do cidadão. C ontudo, inventada esta pessoa hipoteticamente
livre, as suas liberdades foram de imediato circunscritas pelo poder poli­
cial do Estado . Isto foi sempre feito em nome do patriotismo republicano
mas as limitações não foram menos opressivas por causa disso. Tal como
Mirabeau - e o Robespierre de 1 79 1 - temiam, as liberdades ficaram
reféns da autoridade do Estado guerreiro . Esta conclusão poderá ser depri­
mente mas não é surpreendente . Afinal de contas, a Revolução começou
como resposta a um patriotismo ferido pelas humilhações da Guerra dos
Sete Anos. Foi a decisão de Vergennes de promover ao mesmo tempo o
imperialismo marítimo e o poder militar continental que gerou o senti­
mento de pânico fiscal que se apoderou dos últimos dias da monarquia.
Um elemento crucial - talvez o elemento crucial - das pretensões dos
revolucionários de 1 7 89 foi que regenerariam a patrie melhor do que os
nomeados pelo rei . Por conseguinte, desde o início, a grande tendência de
militância foi patriótica . O nacionalismo militarizado não foi uma conse ­
quência acidental e indesej ada da Revolução Francesa: foi o seu coração e
a sua alma. É perfeitamente lógico que os herdeiros multimilionários do
poder revolucionário - a verdadeira "nova classe" deste período da histó­
ria francesa - não tenham sido uma "burguesia conquistadora " mas sim
os conquistadores verdadeiros: os marechais de Napoleão, cuj as fortunas
fizeram parecer mesquinhas as dos dinastas nobres sobreviventes .
Para o b e m ou para o mal, os "homens modernos" q u e pareciam pres­
tes a apoderar-se do governo de Luís XVI - engenheiros, industriais nobres,
cientistas, burocratas e generais - retomaram a sua marcha em direcção ao
poder depois de ultrapassadas as irritações da política revolucionária .
"A tragédia, agora, é a política", afirmou Napoleão, que depois do golpe de
Estado que o levou ao poder, em 1 799, declarou o que tantos governos
optimistas tinham declarado antes dele: "a Revolução chegou ao fim " .
Mas houve alturas em q u e ele n ã o teve tanta certeza . Napoleão com ­
preendeu que a última realização da Revolução fora a criação de um
Estado militar-tecnocrático de imenso poder e solidariedade emocional,
mas também percebeu que a sua outra principal invenção tinha sido uma
723

cultura política que desafiava perene e directamente esse mesmo Estado.


O que aconteceu entre 1 789 e 1 79 3 foi uma explosão inédita da política
- no discurso, na imprensa, na imagem e até na música - que derrubou
todas as barreiras que a tinham tradicionalmente circunscrito.
Inicialmente, esta explosão foi gerada pela própria monarquia, pois foi nas
dezenas de milhar das pequenas reuniões convocadas para elaborar os
cahiers e eleger os deputados para os Estados Gerais que os homens da
França (e ocasionalmente, as mulheres) encontraram a sua voz, tor­
nando -se parte de um processo que ligou a satisfação das suas necessida ­
des imediatas à redefinição da soberania .
Foi uma oportunidade e um problema . Subitamente, é dito aos súbdi­
tos que passaram a ser Cidadãos; um agregado de súbditos dominados
pela inj ustiça e pela intimidação tornou-se uma Nação. Desta nova coisa,
desta Nação de Cidadãos, esperam-se - aliás, exigem-se - justiça, liber­
dade e abundância. Pela mesma lógica, caso não se materializem, os res­
ponsáveis exclusivos serão aqueles que rej eitaram a sua cidadania ou que,
por via do seu nascimento ou das suas convicções impenitentes, são inca­
pazes de a exercer. Por conseguinte, para a promessa de 1 78 9 se poder
concretizar, era necessário desenraizar os Não - cidadãos .
Assim começou o ciclo de violência que terminou no obelisco fume ­
gante e na floresta de guilhotinas . Por muito que o historiador, num ano
comemorativo, possa ser tentado a ver essa violência como um "aspecto"
desagradável da Revolução que não nos deve distrair das suas realizações,
seria improdutivo fazê-lo. Desde o princípio - desde o Verão de 1 789 , a -

violência foi o motor da Revolução . A conhecida exploração, pelo j orna­


lista Loustalot, do assassínio e da mutilação punitivos de Foulon e B ertier
de Sauvigny não fica atrás, na sua ferocidade calculada, das arengas mais
extremistas de Marat e Hébert. "Il faut du sang pour cimenter la révolution"
(É necessário sangue para cimentar a revoluçã o ) , disse Madame Roland,
que pereceria na aplicação lógica do seu entusiasmo . Seria grotesco impli­
car a geração de 1 789 nas atrocidades hediondas perpetradas pelo Terror
mas seria igualmente ingénuo não reconhecer que essa geração tornou
possível essas atrocidades. Os j ornais, os festivais revolucionários, os pires
pintados, as canções e o teatro de rua, os regimentos de rapazitos de braço
direito estendido a fazer juramentos patrióticos com as suas vozinhas
esganiçadas, todas estas características daquilo que os historiadores desig­
nam por "cultura política da Revolução" foram produtos da mesma preo­
cupação mórbida com o massacre j usto e a morte heróica.
Os historiadores também são muito dados a distinguir entre a violên ­
cia "verbal" e a física . O pressuposto parece s e r q u e homens como
Javogues e Marat, que eram dados a gritar com as pessoas, a apelar à
morte, a rej ubilar com o espectáculo das cabeças espetadas em piques ou
das procissões de homens com as mãos atadas atrás das costas a subir os
Simon Schama 1 CIDADÃOS

degraus da "navalha nacional" apenas estavam a dar azo a uma retórica


brutal. Os gritantes não deviam ser comparados com os calmos burocra ­
tas da morte, tais como Fouquier-Tinville, que cumpriram as suas tarefas
com uma eficiência impassível e silenciosa. Mas a história da "Ville ­
-Affranchie " , da "Vendée-Vengé" ou dos massacres de S etembro sugere
uma ligação directa entre as exigências gritadas - orquestradas ou espon­
tâneas - ao sangue e ao seu derramamento copioso. Contribuiu grande ­
mente para a desumanização completa daqueles que se tornaram vítimas .
N a qualidade d e "bandidos " , d e "puta austríaca" o u d e "fanáticos", torna­
ram -se nulidades na Nação de C idadãos e para que esta sobrevivesse não
só podiam como deviam ser eliminados. A humilhação e o abuso não
foram brincadeiras jacobinas; foram o prólogo da matança .
Porque foi a Revolução Francesa assim? Porque é que, desde o princí­
pio, foi movida pela brutalidade? Pode parecer uma pergunta circular,
dado que se a única coisa que faltasse fossem as reformas nem sequer teria
havido a Revolução. Mas a pergunta não deixa de ser importante se qui­
sermos compreender porque é que gerações sucessivas dos que tentaram
estabilizar o seu rumo - Mirabeau, B arnave, Danton - se depararam com
o fracasso. Terá sido porque a cultura popular francesa já estava brutali­
zada antes da Revolução e respondeu ao espectáculo dos terríveis castigos
públicos administrados pela j ustiça real com as suas próprias formas de
retribuição sanguinária espontânea? Os revolucionários, ingénuos, limita­
ram-se a dar ao povo a possibilidade de exercer essa vingança e a torná­
-la parte da condução regular da política? Tudo isto pode ser parte da
explicação mas basta um olhar superficial para fora das fronteiras france­
sas, em especial, para o outro lado do Canal, para a Grã -B retanha, para
não ver a França particularmente afectada, quer por um fosso maior entre
ricos e pobres, quer até por taxas mais elevadas de criminalidade violenta
popular, do que outros lugares que evitaram revoluções violentas.
A violência revolucionária popular não foi uma espécie de lava borbu­
lhante que abriu caminho até à superfície da política francesa e escaldou
todos quantos lhe puseram o pé em cima . Talvez sej a melhor pensar na
elite revolucionária como um grupo de geólogos temerários a abrirem
grandes buracos na crusta do discurso político para depois canalizarem
para o exterior a matéria irada através dos canos da sua retórica. Os vul­
cões e os géisers não parecem metáforas inapropriadas, dado que os con­
temporâneos estavam sempre a invocá-los. Muitos daqueles que iriam
patrocinar ou ser apanhados pela mudança violenta fascinavam-se com a
violência sísmica, com as grandes erupções primordiais que os geólogos
diziam não ser parte da Criação, acontecendo periodicamente no tempo
geológico . Estes eventos eram, nas palavras de Burke, ao mesmo tempo
sublimes e terríveis, e quiçá foi o romantismo, com o seu vício do
Absoluto e do Ideal, o seu gosto pelo vertiginoso e pelo macabro, o seu
72 5

conceito da energia política como, acima de tudo, eléctrica, a sua obsessão


com o coração, a sua preferência pela paixão em detrimento da razão e
pela virtude em detrimento da paz, que forneceu o ingrediente crucial da
mentalidade da elite revolucionária: a sua associação da liberdade ao
estado selvagem . O que começou com a paixão de Lafayette pela hiena de
Gévaudan terminou nas cerimónias das cabeças espetadas nos piques.
E houve outra obsessão que convergiu com esta romantização da vio­
lência: a fixação neoclássica com a morte patriótica . Os anais de Roma ( e
ocasionalmente as batalhas entre Atenas e Esparta) foram os espelhos nos
quais os revolucionários se olharam em permanente busca do auto - reco­
nhecimento . A sua França seria Roma renascida mas purificada pela bên­
ção do coração sensível. Pela mesma lógica, para que tal Nação nascesse,
muitos teriam de morrer, e o nascimento e a morte seriam simultanea­
mente belos .

REUNIÕE S

Num dia fresco de fins de Setembro, em 1 794, no Vale do Hudson,


uma mulher j ovem está sentada a porta da sua cabana de madeira a
desossar uma perna de borrego. As folhas dos carvalhos transformaram­
-se em tons de vermelho e dourado de uma intensidade que ela nunca viu
em França . Está na América há menos de um ano mas j á parece uma
modesta mulher de lavrador, com o cabelo curto enfiado numa touca
branca e a saia coberta com um avental. É o tipo de vestimenta que as
raparigas francesas, cultivadas na sensibilité rústica, tinham tentado repro ­
duzir por volta de 1 78 0 . Agora, para ela, como diria Jean-Jacques, é natu­
ral. Aparada e desossada a perna, ela prepara- se para a enfiar no espeto
ao ar livre onde vai assar durante uma ou duas horas, à maneira francesa
(para choque dos seus vizinhos holandeses ) , até estar pronta . Quando
enfia a perna no espeto, uma voz sonora, vinda de trás dela, assusto - a .
On ne peut embrocher un gigot avec plus de majesté. ( Ninguém enfia uma
perna de borrego no espeto com tanta maj estade. ) Lucy de La Tour du Pin
volta-se e dá de caras com o célebre sorriso de Talleyrand, satisfeito com
a sua graça espirituosa, que não parece ter sofrido muito com a mudança
para o Novo Mundo .
C omo tantos outros - como Fanny B urney, por exemplo -, ela queria
antipatizar com Talleyrand. Aliás, era da opinião de que a decência pública
exigia que o desprezasse, mas não era capaz. Ele conhecia- a desde criança
e "falava comigo com uma bondade quase paterna que era encantadora.
Podíamos", confessou ela, "lamentar, no íntimo, ter tantos motivos para
não o respeitar mas as memórias das suas malfeitorias desapareciam sem­
pre depois de uma hora da conversa dele . " Vê-lo e ao seu amigo
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Beaumetz naquele O utono americano não foi uma surpresa total para
Lucy porque ele lhe escrevera de Filadélfia a inquirir onde poderia encon­
trá-la depois de uma das suas expedições ao interior em busca de terras
para vender aos emigrados franceses. Mas Lucy não estava à espera de o
ver em tão boa forma . A preocupação de Talleyrand em não invadir o
recato dela (ou pelo menos para oferecer desculpas sorridentes quando
invadia ) era quase uma versão exagerada da educação elegante de que ela
se lembrava de ter existido em França, como que uma insistência de que
a América não podia, no que ele designava por sua "velhice " ( quarenta
anos ) refazer Talleyrand. Além do mais, o cumprimento sobre o borrego
traía uma certa sinceridade esfomeada, e ela pediu -lhe para regressar no
dia seguinte para jantar com o marido .
Talleyrand estava em Albany por apenas dois dias, com um amigo
inglês chamado Thomas Law que fora alguém de peso na Índia britânica
e com quem Talleyrand estava a organizar uma empresa comercial entre
Calcutá e Filadélfia . Se há que viaj ar, porque não fazê-lo globalmente?
O mentor dela, o general S chuyler, de Albany, dissera -lhe onde a encon­
trar e incumbira Talleyrand de pedir aos de La Tour du Pin para j antarem
com ele no dia seguinte . Dado que Talleyrand aceitara o convite e que
Lucy, não obstante as suas reservas, ainda estava manifestamente desej osa
da sua companhia, decidiram seguir j untos para Albany, deixando as
crianças com a criada. Talleyrand e B eaumetz tinham vindo de Niagara .
Embora afectasse indiferença aos esplendores brutais da paisagem ameri­
cana, Talleyrand confessaria nas suas memórias a excitação emocional
que lhe causavam aquelas terras selvagens e virgens . Porém, na estrada
para Albany, o que ele e Lucy queriam era falar da França e da interliga­
ção das suas histórias pessoais e públicas.
Eram histórias que valia a pena contar, plenas de perigo e tristeza. Lucy
e o marido tinham-se visto encurralados em Bordéus, em Setembro de
1 79 3 , e assistido ao Terror antifederalista. Não sendo tão terrível como os
acontecimentos de Lyon e Marselha, a guilhotina montada na Praça
Dauphiné continuava atarefada, e dado que marido e mulher pertenciam
a famílias da nobreza castrense tinham todos os motivos para se sentirem
assustados. Muitas vezes suportaram as longas filas para o pão e para a
carne enquanto viam os moços de recados levar as melhores carnes e o
melhor pão para os representantes em missão . Lucy afixava obediente­
mente na porta os nomes dos residentes da sua casa, escrevendo, como
toda a gente, o mais ilegivelmente possível e esperando que chovesse.
O marido era filho de um ministro da Guerra em 1 790, pelo que o nome
de de La Tour du Pin era bastante conhecido e as autoridades revolucioná­
rias começaram a dar sinais ominosos . Quase no termo da gravidez, Lucy
encontrou abrigo em Canole, em casa do seu médico, o Dr. B rouquens, e
o marido passou à clandestinidade. Escondeu-se primeiro num quartito,
727

pouco maior do que um armário, pertencente a um ferreiro que era


parente de um dos seus criados. Quando o homem entrou compreensivel­
mente em pânico face ao destino reservado àqueles que eram apanhados
a esconder homens procurados, de La Tour du Pin foi-se embora. Rumou
à sua residência rural, em Tesson, que fora fechada, e entrou em casa por
uma j anela das traseiras. Quase foi descoberto quando um grupo de oficiais
e soldados revolucionários apareceu para inventariar a propriedade.
O casal salvou-se através de uma combinação de valentia e corrupção.
Um dos dois representantes em missão era Tallien, o outro, o mais severo
e sinistro, era o ex-capuchinho Ysabeau. A amante de Tallien era Theresa
Cabarrus, célebre pela sua beleza espectacular, que se divorciara logo que
a legislação revolucionária o permitira e que exercia uma influência con­
siderável sobre o seu apaixonado de vinte e seis anos de idade . Ela só vira
os de La Tour du Pin uma vez, no teatro, mas estava preocupada com a
sua sorte e convenceu Tallien a conceder-lhes um salvo- conduto a pre­
texto de eles irem visitar as suas propriedades na Martinica ( isto aconte ­
ceu dias antes de Tallien ser chamado a Paris para responder às acusações
de leniência inapropriada feitas por Ysabeau ) .
D e La Tour du Pin abandonou o seu esconderij o, desceu pelo rio - uma
viagem de pôr os cabelos em pé - e reuniu -se com a mulher em casa de
um mercador e cônsul comercial holandês chamado Meyer. No dia
seguinte, Teresa Cabarrus despediu -se deles no Quai des C hartrons, "com
o seu belo rosto inundado de lágrimas".

Quando o capitão se sentou ao leme e gritou "Emp urra ! " , senti u m a felici ­
dade inexprimível. S entada à frente do meu marido, cuj a vida estava a sal­
var, com os meus dois filhos sentados nos j oelhos, nada parecia impossível.
Pobreza, trabalho, miséria, nada era difícil para mim. Não há dúvida de que
o movimento do remo com que o marinheiro nos afastou da costa foi o
momento mais feliz da minha vida .

C om destino a Bóston, a bordo do Diana, que evitou os navios de


guerra franceses com a aj uda do nevoeiro, Lucy realizou a sua própria
revolução . Um dia, ao cuidar do cabelo, pareceu -lhe absurdo ter que pas­
sar por toda aquela complicação de cremes e caracóis. Pegou numa
tesoura e cortou-o, "antecipando a moda 'à Tito' . O meu marido ficou
muito zangado. Deitei o cabelo borda fora e com ele todas as ideias frívo ­
las que os meus bonitos caracóis louros tinham encoraj ado " . Os ritos de
passagem prosseguiram com ela sentada na cozinha semicoberta a cozer
ervilhas enquanto procurava aprender com o cozinheiro do navio sobre a
natureza da terra para onde ia.
Desde o primeiro momento em que lhe pôs a vista em cima, a América
pareceu-lhe um refúgio abençoado da tempestade negra da Revolução.
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Humbert, o seu filho com quatro anos de idade, compreendia o suficiente


acerca do que estava a acontecer em França para saber que a família tinha
fugido porque homens com barretes vermelhos queriam matar o pai. No
navio, chorou muito, "mas quando, do canal estreito que íamos a sulcar
[o porto de B ó ston] viu os prados verdes, as árvores em flor e toda a
beleza de uma vegetação luxuriante, ficou louco de contentamento " . Para
Lucy, a Nova Inglaterra e Nova Iorque foram mais do que um simples
asilo . Na afabilidade e simplicidade das pessoas que encontrou, viu todas
as virtudes que tinha sido ensinada a admirar: franqueza, honestidade,
poupança e indústria. Era como se numa revolução num lado do atlântico
a cultura da sensibilité tivesse sido transformada numa caricatura grotesca
da doce moral que deveria corporizar, enquanto noutro fora milagrosa­
mente preservada. Sem a afectar, a América ainda possuía a inocência e a
frescura espontânea que em França tinham de ser legisladas. Para os seus
olhos gratos, o país era um desfile de idílios que nem as suas reais dificul­
dades materiais conseguiram estragar. Em Wrentham, no Massachusetts,
ficou na casa de um plantador das Índias Ocidentais, onde "havia lagos
com pequenas ilhotas arborizadas que pareciam jardins flutuantes " .
Numa quinta perto d e Albany, j antaram com três gerações d e uma famí­
lia que evidentemente devia ter posado para Greuze : o avô, de cabelos
brancos, marido e mulher, "ambos notáveis pela sua força e beleza ", e os
filhos, que eram a coisa mais parecida que havia na terra com as criações
de Rafael e Rubens . Terminada a refeição, o patriarca levantou-se, tirou o
chapéu e anunciou que os presentes "vão beber à saúde do nosso amado
presidente " .
A inevitável notícia d a execução d o pai tornou Madame d e L a Tour du
Pin ainda mais determinada em garantir a sobrevivência da sua família.
Enquanto esperavam, primeiro, para comprar uma pequena quinta e
depois para se poderem mudar, ela lançou-se na rotina de uma mulher do
campo, levantando-se de madrugada para dar de comer aos animais ou
ordenhar as vacas, cozinhar ou ler às crianças. Lucy transformou uma casa
arruinada num formigueiro de actividade e tinha muito orgulho nas oito
vacas que produziam uma manteiga "muito procurada na localidade" . Os
de La Tour du Pin, outrora uma família senhorial, pagavam renda, em
alqueires de milho, ao patroon holandês Rensselaer. Lucy vestia as saias de
lã com riscas azuis e pretas e os corpetes de algodão estampado das agri­
cultoras holandesas do Hudson - chocou La Rochefoucauld-Liancourt
quando ele chegou para lhe apresentar os seus cumprimentos, mas depois
de Lucy mudar de roupa para ir à cidade foi ela que ficou preocupada com
as calças de nanquim dele, tantas vezes remendadas.
De quando em quando, chegavam pacotes de Talleyrand, provas das
suas peregrinações: do Maine, da Pensilvânia, de Nova Iorque. Todos eram
dádivas de Deus: um gordo e cremoso queij o Stilton para impressionar os
729

vizinhos; uma sela e um xairel de senhora, ambos espectaculares; uma


caixa de quinino quando ele ouviu dizer, através da rota sinuosa do cir­
cuito de rumores dos emigrados, que ela estava outra vez de cama com
febre terçã; e a dádiva mais preciosa de todas, a informação de que o ban -
queira americano do marido estava prestes a ir à falência . Uma visita ime ­
diata de Talleyrand, com cara de poucos amigos ( e a ameaça de
publicidade ) extraiu ao devedor holandês as letras que constituíam as
poupanças dos de La Tour du Pin. Quando o marido de Lucy se deslocou
a Filadélfia para fechar o negócio, ela acompanhou- o até Nova Iorque,
onde voltou a j untar-se a Talleyrand em casa de Law, o amigo anglo-índo
do ex-bispo.
Foi lá que encontrou Alexander Hamilton, que conhecera em Albany.
Ele acabara de se demitir do Tesouro para recuperar solidez financeira da
família dedicando -se à advocacia. Talleyrand ficou horrorizado com a
ideia de que servir no governo, fosse em que país fosse, significasse empo­
brecer alguém, mas de imediato atraído pela viva inteligência inquisitória
de Hamilton para longas conversas sobre os vícios e virtudes das duas
revoluções . Foi servido chá na varanda e Lucy ficou na companhia de
Law, Talleyrand, B eaumetz e outros que foram aparecendo, entre os
quais, Emmery, outro ex- deputado à Constituinte, a conversar sobre polí­
tica e história, sobre os caprichos da Fortuna e as loucuras dos homens,
até as estrelas acenderam o céu de Junho de Manhattan.
O encanto da América desapareceu de forma abrupta e cruel quando
Séraphine, com dois anos de idade, nascida em B ordéus, no auge do
Terror, morreu de uma febre intestinal. Lucy e o marido tentaram distrair­
-se com novos proj ectos para a quinta, tais como usar o seu grande pomar
para produzir sidra envelhecida em barris de Médoc. No entanto, as notí­
cias das mudanças políticas que estavam a ocorrer em França começaram
a abrir a possibilidade de um regresso. Muitos dos seus amigos refugiados,
incluindo Talleyrand, já tinham decidido partir mas Lucy via o regresso
com ambivalência. "A França apenas me tinha deixado recordações de
horror. Fora lá que eu perdera a minha j uventude, espremida do meu ser
por inúmeros terrores inesquecíveis . " Mas ela também sentia que não
podia contrariar o óbvio desej o de regresso do marido. Para se armar con­
tra o que temia que fosse um novo capítulo de ansiedades, Lucy decidiu
fazer um acto público, um acto de libertação imaculado pelo terror revo­
lucionário . Numa cerimónia pública, libertou os seus quatro serviçais
negros, para grande desagrado do mordomo do patroon. Em Maio de
1 7 96, a família embarcou para França e Madame de La Tour du Pin viu o
porto de Nova Iorque ficar para trás, com tristeza e saudades da sua
pequena parcela de liberdade no Vale do Hudson.

* * *
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Talleyrand estava desejoso de regressar. C omo sempre, Germaine de


Stael tinha preparado tudo de forma milagrosa. C om a sua incansável
pressão, persuadira B oissy d' Anglais a fazer um discurso no Corpo
Legislativo declarando que Talleyrand fora inj ustamente proscrito porque
em 1 792 não tinha emigrado mas sim sido enviado em missão oficial.
Aliás, havia que distinguir devidamente os fugitivos dos massacres de
Setembro dos cobardes lacaios da monarquia que em 1 78 9 tinham fugido,
com o rabo entre as pernas, para C oblença ou Turim. Marie-Joseph
Chénier, o velho e fiel mercenário, também usara o que lhe restava do seu
sentido de teatro para fazer um apelo ainda mais apaixonado em nome do
patriota injustiçado, segundo o qual a França aguardava Talleyrand:
Citoyen, La France t'ouvre ses bras. ( Cidadão, a França abre -te os braços. )
Talleyrand nunca fora de rej eitar um abraço oferecido .
Para Talleyrand, a América fora principalmente uma questão imobi­
liária. Talleyrand valorizara o refúgio que ela lhe oferecera e habituara -se
a gostar do modo como os estranhos eram capazes de se comportar com
ele com uma cordialidade perturbadora, como se o conhecessem de sem­
pre . De quando em quando, pensava que deviam ter sido educados pelo
tutor de Emílio. Ao contrário de Lucy de La Tour du Pin, ele nunca con­
siderara a franqueza, a naturalidade e a simplicidade muito altas na escala
das qualidades que faziam a vida valer a pena . Por isso afectara um
grande enfado ao chegar a Filadélfia. " C heguei cheio de indiferença
perante as novidades que costumavam interessar aos viaj antes . " E ficara
também deprimido com os notáveis da sociedade local, que viravam as
costas ao libertino sacrílego como tinha acontecido em Londres. O embai­
xador francês do Terror, Fauchet, tornara - o persona non grata. Quanto aos
quacres da cidade de William Penn, Talleyrand via que eram honrados,
do modo como o Bonhomme Richard era honrado, mas por detrás daquela
máscara de virtude estava Benj amin Franklin, o que era mais do que se
podia dizer acerca de muitos dos seus concidadãos. Por isso, Talleyrand
gostava de os chocar, passeando -se na Market Street com o seu coxear e
de braço dado com a sua amante negra e o canito atrás. Mas a sua amante
era mais do que alguém para escandalizar os burgueses. A casa dela, na
North Third Street, era um dos dois lugares aos quais ele podia chamar
lar no seu exílio americano.
O outro era uma livraria na First Street, propriedade do seu velho
amigo da Sociedade dos Trinta e da Constituinte, Moreau de Saint-Méry.
A partir da sala das traseiras, Moreau editava uma publicação modesta
para a comunidade dos emigrados chamada Le Courrier de la France et des
Colonies, uma espécie de correio jornalístico que informava a comunidade
do paradeiro dos seus errantes e das perspectivas de regresso e lhes ofere ­
cia a possibilidade de se regozijar com as notícias do eclipse dos seus ini­
migos, especialmente depois do 9 de Termidor. Na casa de Moreau,
73 1

Talleyrand encontrou-se com muitos dos seus antigos companheiros:


Noailles, quase o único dos veteranos da guerra americana que conseguira
voltar à América, Omer Talon, bispo constitucional de Chartres, o mar­
quês de B lacon e o ubíquo La Rochefoucauld-Liancourt. Nos seus encon­
tros, descartavam o seu inglês manco e bizarro e lançavam-se no francês
gárrulo e efervescente dos salões . B ebiam e falavam alto noite dentro até
que a mulher de Moreau descia do primeiro andar e se queixava de que
eles podiam ficar no regabofe até às quinhentas mas que havia gente que
tinha de se levantar cedo . Talleyrand costumava passar a noite em casa de
Moreau, rodeado dos seus livros e do cheiro da imprensa, sentindo-se feliz
como nunca atendendo a que estava exilado.
Mas houve alguns aspectos da América que lhe agradaram de ime ­
diato, em especial o potencial para fazer uma grande fortuna em pouco
tempo. No Novo Mundo, Talleyrand admirou-se constantemente com a
grande importância que sociedade atribuía à riqueza, e embora para ele o
dinheiro fosse apenas o meio para se libertar de uma dependência humi­
lhante ou gozar os prazeres da generosidade, havia razões de sobra para
se dedicar a construir a sua própria fortuna americana . Não é que, ao con­
trário da sua pequena agricultora, Lucy de La Tour du Pin, desse impor­
tância ao caminho aprovado da indústria e da perseverança . Gostava mais
do estilo americano - igualmente autêntico - da aventura especulativa.
" Uma das características especiais das revoluções deste século, quer sejam
pela quer sejam contra a liberdade ", escreveu ele, " é aprisionar o capital. "
C om Panchaud, e m Paris, Talleyrand aprendera a importância d a sua
libertação, e um dos aspectos do jacobinismo que ele mais detestava era o
seu ódio irracional ao mercado financeiro . Era típico, pensava ele, das
suas utopias, do seu irremediável antimodernismo, das suas simplicidades
dogmáticas, e ele não ficara surpreendido ao saber que a prescrição de
Cambon para travar a inflação fora encerrar a B olsa.
Em contraste, ele libertaria capital de risco, pô-lo-ia a trabalhar em prol
de si próprio e dos interesses do seu novo país (ao qual j urara fidelidade
perante um magistrado, num tribunal de B óston ) . C omeçou por tentar
colocar títulos da banca e do governo americanos no mercado de Londres
mas apesar dos esforços do seu amigo Hamilton as condições vigentes no
Novo Mundo ainda não eram suficientemente seguras para atrair os
investidores do Velho no número necessário para tornar atractiva a
empresa . Depois, tentou comprar cereais no primitivo mercado de futu­
ros, quase como num desafio às moralidades económicas ordenadas pelo
Terror. No entanto, o mercado imobiliário pareceu mais prometedor por­
que o Norte da Nova Inglaterra e Nova Iorque dispunham de milhares de
hectares que poderiam atrair capital para investimento no seu desenvol­
vimento . Talleyrand cobrava uma comissão aos grandes vendedores -
entre eles, o general Knox, o secretário de Guerra, que possuía extensas
Simon Schama 1 CIDADÃOS

propriedades no Maine - e lucrava com as transferências especulativas


através de empresas como a Holland Land Company, sedeada em
Amesterdão mas com escritório em Filadélfia. Através de Thomas Law,
Talleyrand teve a ideia original de vender terras americanas na Índia aos
grandes saqueadores endinheirados da Companhia das Í ndias britânica,
que adquiririam investimentos atractivos furtando -se ao escrutínio (e aos
impostos ) quando enviavam os pagamentos para Londres .
O historiador em busca do capitalismo francês encontra - o n o
Talleyrand de 1 794- 1 79 5 . Educado p o r um banqueiro suíço p o r volta
de 1 7 80, frustrado pelo dogma reaccionário de regulação económica pro­
fessado pela Revolução e libertado na América para j ogar com títulos,
futuros, terra e propriedades imobiliárias - dependendo do que lhe apa ­
recesse à frente -, Talleyrand, o nobre, o bispo, o constitucionalista, o
diplomata, foi também o capitalista - o arauto do mundo moderno.
Por ironia - uma ironia que ele muito apreciava -, a concretização do
seu sonho de dinheiro fácil implicou a sua transformação em explorador.
No Outono de 1 7 94, antes das neves, Talleyrand, acompanhado pelo seu
criado, Courtiade, e por B eaumetz, realizou duas viagens de levanta­
mento e exploração. Uma levou-o a subir a costa do Maine, passando por
Portland, até à Ile des Monts Deserts de Champlain. As extensas notas que
tomou restringem-se praticamente a explicações detalhaçlas das oportuni­
dades económicas para a agricultura, à descrição da excelência dos portos
naturais que se encontram no estuário do Kennebec e ao relato desde­
nhoso dos pescadores que censurou pela sua falta de iniciativa: mal se
afastam duas milhas da costa e "limitam-se a pendurar um braço fora do
barco" . Em vez de pequenos aglomerados de casebres agarrados às rochas
e varridos pelo vento, Talleyrand via um grande interior agrícola, rico em
pastagens e plantações, capaz de se alimentar a si próprio e às regiões mais
densamente povoadas do Massachusetts .
As rochas nuas e as florestas densas provocaram em Talleyrand uma res­
posta racionalista, não romântica. Onde a sensibilidade revolucionária se
teria possivelmente encantado ao ver-se envolvida pela terra virgem e selva­
gem, meditado sombriamente nas origens da liberdade nos bosques prime­
vos ou contemplado em transe as cataratas, o empreendedor moderno que
era Talleyrand cismava sobre o que poderia ser feito com toda aquela terra.
Mesmo quando se permitiu render-se à beleza da paisagem, os seus pensa­
mentos nunca se afastaram muito dos projectos para a domesticar. "Florestas
velhas como o mundo; tapetes de erva verde e luxuriante nas margens dos
rios; grandes prados naturais; flores estranhas e delicadas, completamente
novas para mim . . . face àquelas imensas solidões, demos asas à nossa imagi­
nação. As nossas mentes construíram cidades, vilas, aldeias . . .
"

Mas em certas alturas, a civilização que Talleyrand tinha na cabeça e à


qual ansiava regressar pareceu engolida pela selvaj aria americana. No
733

entanto, sempre que se via confrontado com o fantasma de Jean-Jacques,


combatia -o com o contra-espírito de Voltaire . Uma vez, perdeu o criado de
vista na escuridão da floresta e teve de gritar: " Courtiade, estás aí? " A res­
posta foi: " S im, monsenhor, estou . . . infelizmente . " O facto de Courtiade
se lhe ter dirigido pelo seu título eclesiástico pareceu aos dois homens tão
cómico que o seu riso abriu caminho pelas densidades arbóreas como o
machado de Talleyrand.
Um ano mais tarde, estava pronto para regressar a Paris. Em Maio
de 1 7 9 5 , uma grande parte dos seus bens tinham sido leiloados para o sus­
tentar em Filadélfia. S otainas violetas, punhos de renda, mobílias espec­
taculares, quadros e desenhos foram vendidos por ninharias com as quais
Talleyrand, um consumado especulador, muito se ofendeu. O artigo que
pareceu confirmar a sua reputação era um guarda -roupa enorme cheio de
belíssimas roupas de mulher - sedas, tafetás, musselinas, roupões, cha ­
péus e até meias. Teriam pertencido a Adelaide de Flahaut? Ou eram sim­
plesmente a expressão do excessivo sentido de hospitalidade de
Talleyrand? O sentimento de perda pessoal que ele terá sentido pelo desa­
parecimento das suas coisas terá sido mais agudo porque ele tinha, por
pura sorte, devolvido um tesouro precioso a Lucy de La Tour du Pin. Uma
mulher que ele conhecia em Filadélfia mostrara -lhe um medalhão com a
imagem de Maria Antonieta, interessada em saber se o retrato era fiel.
Talleyrand reconheceu de imediato a peça como pertencente ao amigo .
Fora "confiada " pelos agentes holandeses da família a um j ovem diplo­
mata americano para salvaguarda mas o homem ficara com ela .
Talleyrand apoderou -se da peça e enviou -a ao seu grato proprietário.
Talvez tenha sido esta assombrosa coincidência que o deixou mais
desej oso de regressar a casa. Ao receber a notícia da sua exoneração,
Talleyrand escreveu uma carta de sinceros agradecimentos a Germaine de
Stael e preparou- se, sem grandes pressas, para partir na Primavera . Em
Junho de 1 796, passeou nas muralhas da B ateria, em Manhattan, com o
seu velho amigo B eaumetz, tentando suavizar o golpe desferido pela sua
partida e pela sabotagem dos planos cuidadosos que tinham gizado para
fazerem fortuna na Índia. Quando o seu companheiro caiu num estranho
silêncio romântico, Talleyrand teve o súbito pressentimento de que
Beaumetz estava prestes a fazer algo de violento, algo de revolucionário:
matá-lo, suicidar- se ou matá -lo e suicidar-se a seguir. Disse-lhe o que
estava a pensar e o desgraçado Beaumetz caiu-lhe nos braços em lágrimas.
Foi patético mas as paixões não podiam pôr-se no caminho dos assun­
tos sérios . O seu navio holandês, o Den Ny Proeve, aguardava- o - o nome,
algo assustador, significava "A Nova Provação " . Mas Talleyrand embarcou
plenamente convicto de que já passara por provações suficientes . Que ter­
rores poderia o oceano Atlântico encerrar para um sobrevivente dos mas­
sacres de Setembro?
Simon Schama 1 CIDADÃOS

* * *

Enquanto Talleyrand saboreava a liberdade na América, o francês mais


honrado pelo Novo Mundo apodrecia numa prisão austríaca . A geração
de 1 77 6 sofreu desastrosamente às mãos do Terror. Kersaint e d'Estaing,
os ídolos da marinha de Luís XVI, foram guilhotinados. Rochambeau
estava para subir para a carroça com destino à guilhotina logo a seguir a
Malesherbes mas esqueceram-se dele e passou o resto do Terror na prisão,
de onde foi liberto pelo Termidor. B iron (ex-duque de Lauzun ) , ex­
- camarada de armas de Lafayette, caiu na ofensiva hébertista contra os
generais nobres na Vendeia e perdeu a cabeça na Praça da Revolução.
Embora Lafayette e os amigos que em 1 7 92 o tinham acompanhado
para as linhas austríacas - entre os quais, os constitucionalistas B ureau de
Pusy e a velha némesis de Mirabeau, Alexandre de Lameth - estivessem
vivos, a sua situação não deixava de ser difícil e, caracteristicamente, era
agravada pela inflexibilidade de Lafayette . Ao contrário do pragmático
Talleyrand, Lafayette acreditava que tudo o que fazia tinha de estar estri­
tamente conforme determinados princípios. Quando desertara do "seu"
exército, dissera a si próprio que não estava a fugir à França mas aos dego­
ladores que lha tinham roubado. Por isso era um patriota, não era um
traidor. Por conseguinte, quando os Austríacos e depois os Prussianos lhe
perguntaram se tinha trazido o " tesouro" com ele, Lafayette riu- se, incré ­
dulo, por também eles acreditarem na caricatura do emigrado, segundo a
qual toda a gente que abandonava a França o fazia por razões desonestas.
Depois perguntaram-lhe se estaria disposto a fornecer-lhes pormenores
sobre a estratégia militar francesa, uma sugestão que Lafayette acolheu
com indignação.
Dado que Lafayette parecia apostado em comportar-se como um repu­
blicano, os Austríacos pensaram que mais valia tratarem-no como tal.
Uma declaração oficial proclamou que "a existência de Lafayette é incom­
patível com a segurança dos governos da Europa" . Os Prussianos toma­
ram-no a seu cargo e levaram-no para a prisão de Magdeburgo, onde o
meteram numa cela húmida e abafada com cinco passos e meio quadra­
dos. Lafayette permaneceu intratável, chegando ao ponto de não aceder
aos pedidos pessoais do rei Frederico Guilherme da Prússia, pelo que em
Janeiro de 1 794 foi transferido para a fortaleza de Neisse, onde desde há
alguns meses os prisioneiros franceses eram autorizados o luxo de estarem
j untos e até de receberem de vez em quando uma carta.
Todavia, perto do fim do ano, Lafayette foi devolvido aos Austríacos
como um embrulho que ninguém queria, dado que a sua situação come ­
çava a gerar críticas hostis na América e nos círculos whigs da Grã ­
-B retanha . Foi levado para o Castelo de Õlmutz, uma cidadela sombria e
dotada de fossos. Todas as pretensões a um tratamento especial foram
735

postas de lado . Retiraram-lhe todos os haveres pessoais, excepto um reló ­


gio e uma muda de roupa . Proibiram-no de receber visitas, de comunicar
com o mundo exterior ou com os outros reclusos e de receber quaisquer
notícias sobre a evolução da Revolução ou da guerra, e muito menos da
família, que estava encurralada em França . Os carcereiros foram inclusi­
vamente proibidos de usar o seu nome . Seria uma Não-pessoa, sepultada
viva como nos escritos de Linguet sobre a Bastilha .
A dada altura, quase de certeza em resposta à publicidade hostil com
origem no embaixador americano em Viena, John Jay, a sua rotina
mudou. A u torizaram-lhe passeios diários nos campos e nos bosques, com
escolta armada, e foi durante este pequeno relaxamento na sua detenção
que teve lugar uma tentativa de fuga . O autor foi um j ovem médico ale­
mão, Justus Bollmann, que visitara Juniper Hall e ficara embevecido com
Germaine de Stael, de Talleyrand, de Narbonne e os outros. Decidido a
salvar Lafayette, fez-se amigo do médico da prisão e conseguiu passar car­
tas ao prisioneiro, que respondia com papel esburacado com palitos ou
escrito numa tinta invisível feita com limão, água e fuligem. No dia com­
binado, Bollmann ficou à espera com cavalos perto da zona de passeio de
Lafayette . Contudo, quando o prisioneiro fingiu admirar o sabre do
guarda e lhe pediu para o ver, o soldado desconfiou. Seguiu -se uma luta
na qual Lafayette conseguiu fugir mas só depois de o guarda - um tipo
manifestamente carecido de desportivismo - lhe arrancar um bocado do
dedo à dentada. Com dores e em pânico, Lafayette ouviu B ollmann gri­
tar, "Hoff", e j ulgou tratar- se, no inglês macarrónico que ambos falavam,
de " Get off" ou "Fuj a " . Mas B ollmann referia- se à aldeia de Hoff, onde os
aguardavam montadas frescas e auxílio . Lafayette meteu pela estrada
errada e três quilómetros depois, na aldeia de Sternberg, foi apanhado,
sendo depois recambiado para Õlmutz.
C omeçou a fase de maior desespero do seu cativeiro : solitária, rações
de fome, nem um único livro . Estava sempre doente, perdeu muito
cabelo, emagreceu e envelheceu . A escuridão parecia estar a apoderar- se
da sua vida.
Numa manhã de Outubro de 1 79 5 , sem qualquer aviso, as portas da
cela abriram- se. Com a luz que inundou subitamente o cárcere, ele viu a
mulher, Adrienne, e as filhas, Virginie e Anastasie. Não era um truque da
sua imaginação. Estavam fantasticamente à sua frente . A alegria da reu ­
nião apenas foi estragada pelo s e u aspecto espectral, u m esqueleto esfar­
rapado mais morto do que vivo, preso a uma tosse constante .
A determinação de Adrienne de se deslocar à Áustria em busca do marido
ultrapassou, na sua coragem e dedicação, tudo o que poderia ter sido con­
j urado pelos novelistas da sensibilité. Primeiro, teve de sobreviver ao Terror
- esteve presa durante algum tempo em Paris e foi o Termidor que a sal­
vou da guilhotina . Todavia, só foi liberta em Janeiro de 1 7 9 5 , com a aj uda
Simon Schama 1 CIDADÃOS

do embaixador americano em Paris, James Monroe. Adrienne mudou-se


para casa dele e, novamente graças aos seus bons ofícios, conseguiu obter
um visto para si e para as filhas . Viaj ou até Viena e conseguiu uma entre­
vista com o imperador Francisco II. Foi, pois, por vontade imperial que ela
garantiu o direito a partilhar o cativeiro do marido .
Durante q u a s e um ano e meio, viveram u m a vida bizarra, simulta­
neamente desgraçada e consoladora . Adrienne e Gilbert partilhavam
uma cela miserável, as raparigas, de treze e dezoito anos de idade,
outra . O único membro da família ausente era o irmão, George
Washington Lafayette, que estava a salvo, em Mount Vernon, ao cui­
dado do seu ilustre padrinho. Era praticamente impossível recriar em
Õlmutz o idílio doméstico - a obsessão dos cidadão s - nobres do século
XVIII - mas as três mulheres não se pouparam a esforços . A família
comia j u nta as suas horríveis refeições com tigelas de madeira não lava ­
das, mas até estes pequenos rituais eram brutalmente interrompidos
pelos guardas, que mandavam as raparigas embora depois de pouco
mais de dez minuto s . Enquanto a saúde de Lafayette ia melhorando, a
de Adrienne começou a piorar. Finalmente, em Maio de 1 7 9 6 , George
Washington, que se mantivera à margem da questão devido à necessi ­
dade de preservar a neutralidade americana, escreveu uma carta p e s ­
s o a l ao imperador:

Permiti-me apenas que submeta à consideração de Vossa Maj estade se o


longo encarceramento [de Lafayette] , o confisco dos seus Bens e a
Indigência e dispersão da sua família - e as dolorosas ansiedades decorren -
tes de todas estas circunstâncias não constituem um conj unto de sofri­
mentos que o encomendam à mediação da Humanidade?

Não poderá ser autorizado a vir para a América?


Mas os apelos à consciência humana tiveram pouco efeito sobre a
Razão de Estado. A condição de Lafayette só se tornou objecto de nego ­
ciação na Primavera seguinte, depois de os seus exércitos terem sido tão
decisivamente demolidos por Napoleão B onaparte em Itália que os
Austríacos pediram a paz. Em 1 7 97, Talleyrand estava de novo em
França - no cerne da política . Sieyes e outros homens de 1 78 9 ocupavam
novamente posições de poder e influência e o nome de Lafayette já não
era uma abominação. C ontudo, o Directório, acossado pelos monárqui­
cos e pelos neoj acobinos, não tinha a certeza de querer correr o risco de
o trazer para casa. A sua libertação, juntamente com a de Latour­
-Marbourg e B ureau de Pusy, foi exigida no pressuposto de que ele iria
para a América sem passar por França . O chanceler austríaco, Thugut,
começou por recusar, e a libertação só foi garantida perante a insistência
de B onaparte.
737

Porém, conforme informou o nervoso cônsul francês em Hamburgo


( onde tinham chegado os Lafayettes ) ao novo ministro dos Negócios
Estrangeiros, Talleyrand, o marquês, à beira da liberdade, tinha levantado
uma questão de princípio . O s Austríacos tinham consentido na sua liber­
tação na condição de ele assinar um documento prometendo não voltar a
pôr os pés nos domínios do imperador. Lafayette negou- se, pois só havia
um país que tinha " direitos sagrados" sobre ele e ele teria de ir para onde
esse país lhe ordenasse. Porém, não obstante este último disparate, a sua
libertação continuou a ser tratada. Isso não era importante para Lafayette.
Tinha permanecido fiel ao seu único credo: patriotismo e liberdade.
Estava decidido a manter-se fiel a estes princípios, mesmo quando a
França os traía . De facto, não obstante as muitas vezes que os trairia, quer
na revolução, quer na reacção, a França encontraria sempre Lafayette leal
ao espírito de 1 790 o homem montado no cavalo branco e envolto na
-

tricolor.

Para Lafayette, durante toda a sua vida, as memórias revolucionárias


foram uma libertação; para Théroigne de Méricourt, foram uma prisão.
Na Primavera de 1 7 9 3 , quando arengava no Terrasse des Feuillants em
nome da Sociedade das Mulheres Republicanas, ela foi violentamente
atacada pelas vendedoras do mercado que apoiavam a Montanha.
Estavam fartas de ouvir sermões sobre os deveres das cidadãs e detesta ­
vam as suas tentativas para defender os girondinos. Desnudada e sovada
até ficar sem sentidos, ela foi salva, diziam alguns, por Marat.
Independentemente da veracidade desta história, Théroigne recuperou os
sentidos mas não a sanidade. Foi levada para um hospital para pobres e
lunáticos, no bairro de Saint-Marceau. Ficou fechada para o resto da vida
- vinte e três anos -, transferida de hospital para hospital, até que foi parar
a La Salpêtriere, que era mais uma prisão do que um asilo, onde morreu,
em 1 8 1 7 .
Théroigne já tinha estado presa. Durante uma deslocação imprudente
à sua Liege nativa, em 1 79 1 , fora detida pelos Austríacos e tratada como
se fosse uma espia importante. Depois de interrogada na Bélgica, foi trans­
ferida para o Castelo de Kufstein, no Tirol ( onde dois anos depois foi
encarcerado B lanchard, no seguimento de uma queda do seu balão nas
montanhas, também no pressuposto de que era um espião ) . Os Austríacos
não conseguiram obter nada de Théroigne durante os seus interrogatórios
intensivos e tiveram de se contentar com o diagnóstico do médico da pri­
são: ela padecia de "febre revolucionária" .
Fendido o crânio, a febre regressa com a força d e u m delírio impará ­
vel. Théroigne fica sentada na cela, de cabelo curto, a olhar para as pare ­
des. De quando em quando, o silêncio negro que se apodera dela é
interrompido por uma torrente de denúncias em frases revolucionárias
Simon Schama 1 CIDADÃOS

semi-inteligíveis: "comité de salut publique", "liberté", "coquins". Durante os


paroxismos mais agudos da sua demência, insurge-se contra os "modera ­
dos " . N u m período de relativa lucidez, p o r volta de 1 808, alguém q u e s e
lembra da belle liegeoise de 1 789 pede para a v e r e é de imediato acusado
de "trair a causa do povo " . Ele vai-se embora sem saber ao certo até que
ponto ela está louca .
Para alguns, Théroigne torna-se uma fonte de divertimento; para
outros, uma espécie bizarra de museu vivo de palavras de ordem meio
esquecidas e embaraçantes . De tempos a tempos, funcionários bem inten­
cionados tentam encontrar a sua família e escrevem ao prefeito do Ourthe
a pedir informações. Esquirol, médico e especialista em doentes mentais
que está a escrever um tratado intitulado Les Ma/adies Mentales, classifica­
-a como lipemaníaca ou padecendo de uma forma de depressão maníaca .
A autópsia que realiza convence - o de que a causa foi o alinhamento irre ­
gular do cólon de Théroigne .
Em 1 8 1 0, Théroigne j á desapareceu da terra dos vivos excepto na sua
forma biológica . As roupas tornaram-se-lhe abomináveis e ela senta-se
nua na cela, recusando furiosamente um simples vestido de lã para a pro­
teger do frio invernal. Nas raras ocasiões em que emerge para apanhar ar
ou beber nas poças imundas que se formam no pátio, consente, por vezes
e só, usar uma camisa. Todos os dias deita água fria na palha da cama - às
vezes parte o gelo do pátio para o fazer -, como se só uma saturação gla ­
cial possa arrefecer o calor da sua demência. E continua a invectivar trai ­
dores à Revolução.
Absorta de todos aqueles que, preocupados ou indiferentes, a visitam,
Théroigne vive dentro da Revolução e a Revolução vive dentro dela .
A simpatia parece deslocada, pois de alguma forma a demência de
Théroigne de Méricourt foi o destino lógico das compulsões do Idealismo
revolucionário . Ao descobrir finalmente uma pessoa de uma transparên­
cia e de uma inocência pré - social quase sublimes, uma pessoa nua e puri­
ficada com água gelada, a Revolução encheu-a como um recipiente. Na
sua pequena cela de La Salpêtriere, havia pelo menos um lugar onde a
memória revolucionária podia persistir, imperturbada pela confusão quo­
tidiana da condição humana.
Fontes e B ibliografia

Índice
Fontes e Bibliografia

PR Ó LOGO:
O PODER DA MEM Ó RIA - QUARENTA ANOS DEPOIS

A história do elefante da Bastilha encontra-se em Marie Biver, Le Paris de


Napoléon (Paris, 1 96 3 ) . Sobre Talleyrand em 1 8 3 0, vej am-se Georges Lacour­
Gayet, Talleyrand (vol. III, Paris, 1 9 1 3 ) , e a sardónica biografia moderna de Jean
Orieux, Talleyrand ou le Sphinx Incompris ( Paris, 1 970, pp . 73 7- 7 44) . As Mémoires de
Talleyrand (vols . III e IV, ed. do duque de B roglie, Paris, 1 892 ) . são, mesmo pelos
padrões do próprio, excessivamente lacónicas acerca do seu papel na Revolução
de 1 8 3 0 . M . C olmache, Revelations of the Life of Prince Talleyrand ( Londres, 1 8 5 0 ) é
muito mais franco e tem um toque de autenticidade . O egocentrismo da memória
de Lafayette em relação a 1 8 30 é por demais óbvia quando se lêem as suas
Mémoires, Correspondences et Man uscrits ( Paris, 1 8 3 7 - 1 8 3 8, vol . VI, pp . 3 8 6 -4 1 5 ) e o
relato do seu secretário à época, B . Sarrans, Memoirs of General Lafayette and of the
French Revolution of 1 83 0 (2 vols., Londres, 1 8 3 0 ) . O melhor relato dos aconteci­
mentos de Julho de 1 8 3 0 em Paris é, de longe, David Pinkey, The French Revolution
of 1 83 0 ( Princeton, 1 9 72 ) , com uma narrativa esplêndida da digressão triunfal de
Lafayette pelos Estados Unidos, em 1 82 5 . Um relatório espantoso do tumeur mons­
trueux de C harles D elacroix e da sua excisão cirúrgica encontra-se no Moniteur de
24 do Germinal, ano VI ( 1 3 de Abril de 1 7 9 8 ) .

1 HOMENS NOVOS

1 PAIS E FILHOS

S obre a visita de Talleyrand a Voltaire, vej a - se C olmache (pp. 8 2 - 86 ) . Os últi­


mos meses de Voltaire em Paris são vividamente recordados no N . º 2 7 6 do deli­
ciosamente boateiro L'Espion Anglais ou Correspondance Secrete entre Milord All Eye et
Milord All Bar, de Pidanzat de Mairobert, publicado em Londres mas disponível em
Paris. A expedição de Lafayette à América é tratada em pormenor nos dois pri­
meiros volumes da biografia monumental de Louis Gottschalk, Lafayette Comes to
America ( Chicago, 1 9 3 5 ) e Lafayette Joins the American A rmy ( Chicago, 1 9 3 7 ) . As
citações das cartas que escreveu à mulher provêm do segundo volume . Stanley J.
Idzerda, num artigo extremamente convincente e importante, "When and Why
Lafayette B ecame a Revolutionary", in Morris Slavin e Agnes M. Smith (eds . ) ,
Bourgeois, Sansculottes and Other Frenchmen: Essays o n the French Revolution in Honor
of John Hall Stewart (Waterloo, Ontário, 1 98 1 , pp. 7 - 2 4 ) , ataca a ênfase de
Gottschalk no aventureirismo temerário e no interesse pessoal e reafirma as raí­
zes ideológicas e psicológicas do empenhamento de Lafayette. A carta a
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Vergennes, na p. 20, é citada em Gilbert Bodinier, Les Officiers de l 'Armée Royale


Combattants de la G uerre de l 'Indépendance des États- Units de Yorktown à l 'A n II
( Vincennes, 1 98 3 , p. 2 8 5 ) . A dedicação de Lafayette a Washington ler-se-á prova­
velmente melhor na correspondência entre ambos, editada por Louis Gottschalk,
The Letters of Lafayette to George Washington 1 777- 1 779 ( Nova Iorque, 1 944) . Para
uma visão adicional da camaradagem entre a j ovem nobreza liberal, vej a -se Lettres
Inédites du Général Lafayette au Vicomte de Noailles 1 780- 1 781 ( Paris, 1 924) .

II HER Ó IS PARA OS TEMPOS

A história do patriotismo francês anterior à Revolução permanece um tópico


muitíssimo pouco investigado. A título de esboços gerais, vej am-se Jean
Lestocquoy, Histoire du Patriotisme en France ( Paris, 1 96 8 ) , e Marie -Madeleine
Martin, Histoire de l ' Unité Française: L'Idée de la Patrie en France des Origines à Nos
Jou rs ( Paris, 1 949 ) . Um estudo mais específico que documenta a ascensão de um
patriotismo agressivo a seguir à Guerra dos S ete Anos é Frances Acomb,
Anglophobia in France 1 763 - 1 789 (Durham, C. N., 1 9 5 0 ) . Uma obra contemporânea
fundamental é J. Rossel, Histoire du Patriotisme Français ( Paris, 1 76 9 ) . Para outro
discurso poderosamente romântico sobre a paixão pela patrie, vej a -se "Discours
sur les É venements de l'Année 1 7 76", in Le Courrier d 'Avignon ( 1 7 77: 6 ) . Gilbert
Chinard oferece uma introdução útil à sua edição da obra de B illardon de
Sauvigny, Vashington ( Princeton, 1 94 1 ), que também descreve a história da sua
peça Hirza ou les Illinois. A história das representações de Siege de Calais, de Belloy,
encontra -se na edição de 1 78 7 da referida peça; vej am-se também Acomb,
Anglophobia (pp. 5 8 - 5 9 ) , e John Lough, Paris Theatre A udiences in the 1 7th and 1 8th
Centu ries ( Oxford, 1 9 5 7 ) . O melhor relato do combate de de C oedic e do seu culto
encontra -se em Georges Lacour- Gayet, La Marine Militaire de la France sous le Regne
de Louis XVI ( Paris, 1 90 1 , pp. 2 9 7 - 2 9 8 ) , e sobre a decisão de exibir quadros alusi­
vos nas academias navais, ibid. (p. 5 7 5 ) . S obre o culto similar da Belle-Poule, vej a ­
-se L'Espion anglais ( 1 778, vol. IX, p p . 1 46 - 1 47 ) . Vej a - se também Brest et
l 'Indépendance Américaine ( B rest, 1 97 6 ) , Lee Kennett, The French Forces in America
1 780- 1 783 ( Westport, Conn., e Londres, 1 97 7 ) , e Jonathan R . Dull, The French Navy
and American Independence ( Princeton, 1 97 5 ) . S obre representações de temas ame ­
ricanos na literatura de viagens francesa, nas artes decorativas e na gravura,
vej am-se o catálogo de B etty B right P. Low da exposição France Views America
(Eleutherian Mills Historical Library, Wilmington, Dei. ) , e Les Français dans la
G uerre d 'Indépendance Américaine ( Musée de Rennes, 1 97 6 ) . A obra Mirage in the
West: A History of the French lmage of American Society to 1 8 1 5 ( Princeton, 1 9 5 6 ) , de
Durand E cheverria, foi um estudo pioneiro neste domínio. Sobre a recepção de
Lafayette em França e o culto de Franklin na corte, vej a - se Madame de C ampan,
Mémoires sur la vie de Marie-Antoinette ( Paris, 1 899, pp. 1 7 7 - 1 7 9 ) . E xiste uma abun­
dante literatura sobre a " franklinomania" em França . Vejam-se, em particular, o
fascinante artigo de James Leith, "Le C ulte de Franklin avant et pendam la
Révolution Française" in Annales Historiques de la Révolution Française ( 1 976,
pp. 543 - 5 7 2 ) , o catálogo de Louise Todd Ambler da exposição Benjamin Franklin:
A Perspective ( Fogg Museum of Art, Cambridge, Mass . , 1 97 5 ) , Gilbert Chinard,
"The Apotheosis of Benj amin Franklin" , in Proceedings of the American Academy of
A rts and Sciences ( 1 9 5 5 ) , Jonathan R . Dull, " Franklin in France : A Reappraisal", in
Proceedings of the Annual Meeting of the Western Society for French History (n.º 4, 1 97 6 ) ,
e Kenneth M . McKee, "The Popularity o f the 'American' on the French Stage in
743

the French Revolution", in Proceedings of the American Philosophical Society (vol.


LXXXIII, n . º 3 , 1 940 ) . Uma grande parte deste material foi compilado por Philip
Katz, The Image of Benjamin Franklin in the Politics of the French Revolution 1 776- 1 794
( Harvard University Program for Social Studies Dissertation, 1 98 6 ) . O relato das
celebrações do " 1 3 " em Marselha encontra-se em L'Espion anglais ( 1 778, vol. IX,
pp. 7 5 - 7 6 ) . Os comentários do abade Robin sobre os Americanos são citados por
Gilbert B o dinier, Les Officiers de l 'A rm ée Royale Combatta n ts de la Guerre
d 'Indépendance des États- Unis de Yorktown à l 'An II ( Vincennes, 1 98 3, p. 345 ) . Sobre
a política americana de Vergennes, vej a - se Orville T. Murphy, Charles Gravier, Comte
de Vergennes: French Diplomacy in the Age of Revolution 1 71 9- 1 78 7 (Albany, 1 982 ) ; a
sua comparação entre a política genebrina e a americana encontra -se na p. 400.

2 HORIZONTE S AZUIS E TINTA VERMELHA

1 LE S BEAUX JOURS

Sobre a coroação de Luís XVI, vejam-se H . Weber, "Le Sacre de Louis XVI", in
Actes du Colloque International de Soreze, Le Regne de Louis XVI ( 1 976, pp. 1 1 - 2 2 ) ,
idem, "Das Sacre Ludwigs XVI vom 1 1 Juin 1 7 7 5 und die Krise des Ancien
Régime ", in E rnst Hinrichs, E. S chmitt e R. Vierhaus (eds . ) , Vom Ancien Régime zur
Franzi:isischen Revolution: Forschungen und Perspektiven ( Gõttingen, 1 97 8 ) , e ainda o
excelente ensaio ( que é praticamente um pequeno livro ) de Jacques Le Goff,
" Reims, Ville du Sacre", in Pierre Nora ( ed . ) , Les Lieux de Mémoire, vol. II, La Nation
( Paris, 1 9 68, parte 1, pp. 1 6 1 - 1 6 5 ) . As queixas de Turgot acerca das despesas da
coroação e os pormenores das decorações foram registados por Pidanzat de
Mairobert em L'Espion anglais ( 1 77 5 , pp. 3 2 0 - 3 2 7 ) .
A educação de Luís XVI é descrita por P. Girault de Coursac em L'Education d ' Un
Roi: Louis XVI ( Paris, 1 972 ) , e uma grande parte do diário do rei foi publicada por
L. Nicolardot, Journal de Louis XVI ( 1 87 3 ) . Sobre a visita real a Cherburgo, em Junho
de 1 786, vejam-se Histoire Sommaire de Cherbourg avec le Journal de Tout Ce Qui s 'est Passé
au Mais de Juin de 1 786 ( Cherburgo, 1 78 6 ) , Voyage de Louis XVI dans la Province de
Normandie ( "Philadelphie" [Paris], 1 786), Gazette de France (4 de Julho de 1 78 6 ) , J.M.
Gaudillot, Le Voyage de Louis XVI en Normandie ( Caen, 1 96 7 ) , e Georges Lacour-Gayet,
"Voyage de Louis XVI à Cherbourg", in Revue des Études Historiques ( 1 906) . Sobre a
familiaridade do rei com a cultura náutica, vej a-se Louis-Petit de Bachaumont,
Mémoires Secrets pour Servir à l 'Histoire de la République des Lettres ( 3 6 vols., Londres,
1 78 1 - 1 789, 2, 3 e 9 de Julho de 1 786 ) .
Sobre a paixão de Luís XVI pela caça ( e para a melhor panorâmica geral do seu rei­
nado) , veja-se François Bluche, La Vie Quotidienne au Temps de Louis XVI (Paris, 1 980 ) .

II U M MAR D E D ÍVIDAS

A passagem de C hateaubriand provém das suas Mémoires d 'Outre- Tombe ( Paris,


1 849, vol. 1, p . 9 1 ) . Os números relativos ao custo da Marinha francesa foram
tirados de Dull, French Navy and American Independence; a construção naval surge
utilmente tabulada in T. Le Goff e J. Meyer, "Les Constructions Navales en
France" , in Annales: Économies, Sociétés, Civilisations ( 1 97 1 , p. 1 7 3 sqq . ) .
Os dois artigos que, e m conj unto, impõem d e forma praticamente inapelável
a revisão dos pressupostos tradicionais acerca da incidência e do fardo da carga
Simon Schama 1 CIDADÃOS

fiscal francesa são Peter Mathias e Patrick O ' B rien, "Taxation in B ritain and France
1 7 1 5 - 1 8 1 0 ", in Journal of European Economic History ( 1 796, pp. 60 1 - 6 5 0 ) , e Michel
Morineau, "Budgets de l' É tat et Gestion des Finances Royales au 1 8e Siecle", in
Revue Historique ( 1 980, pp. 2 8 9 - 3 3 6 ) . Outros estudos importantes sobre finanças
são J. F. B osher, French Government Finance 1 770- 1 795 ( Cambridge, 1 97 0 ) , e C. B .
A . B ehrens, Society, Government and Enlightenment: The Experience of Eighteenth­
-Century France and Prussia ( Nova Iorque, 1 98 5 , especialmente o capítulo 3 ) . No
entanto, a ênfase destes trabalhos nos bloqueios estruturais e institucionais à sol­
vência é seriamente posta em causa pela obra poderosa mas bastante técnica de
James Riley, The Seven Years War and the Old Regime in France: The Economic and
Financial To!! ( Princeton, 1 98 6 ) . François Hincker, Les Français Devant l 'lmpôt sous
l 'Ancien Régime ( Paris, 1 97 1 ), oferece uma panorâmica clara e útil do problema .
A história institucional tradicional, algo datada, é Marcel Marion, Histoire
Financiere de la France Depuis 1 71 5 ( Paris, 1 92 1 ) . Sobre a venalidade como fonte de
receitas antes da Revolução, vej a - se o importante contributo de David D . B ien,
"Offices, C orps, and a System of State C redit: The Uses of Privilege under the
Ancien Régime ", in Keith Michael B aker ( ed . ) , The Political Culture ofthe Old Regime
( O xford, 1 987, pp. 8 9 - 1 1 4 ) .

III ARRENDAMENTO FIS C AL E GUERRAS DO SAL

Sobre os fermiers généraux, vej am-se George Matthews, The Royal General Farms
in 18th -Century France (Nova Iorque, 1 9 5 8 ) , Yves Durand, Les Fermiers Généraux au
XVIIIe Siecle ( Paris, 1 97 1 ), e Jean Pasquier, L'Impôt des Gabelles en France aux XVII et
XVIIIe Siecles ( Paris, 1 90 5 ) . Sobre os contrabandistas de sal, vej a-se o relato mara ­
vilhosamente evocador em Olwen Hufton, The Poor of Eighteenth-Century France
( O xford, 1 974) . Sobre os estereótipos dos "financiers", vej am-se H. Thirion, La Vie
Privée des Financers au XVIIIe Siecle ( Paris, 1 89 5 ) , e Jean-B aptiste Darigrand, L'Anti­
-Financier ( Amesterdão, 1 76 3 ) .

I V A Ú LTIMA E SPERANÇA: O C O C HEIRO

Existem dois relatos excelentes da carreira de Turgot: Douglas Dakin, Turgot and
the Ancien Régime in France ( Londres, 1 9 3 9 ) , e Edgar Fauré, La Disgrâce de Turgot (Paris,
1 96 1 ) . Para uma abordagem muito mais hostil (e bastante convincente em algumas
passagens) , veja-se Lucien Langier, Turgot ou la Mythe des Réformes (Paris, 1 979) .
Algumas das acusações de Langier sustentam-se em R. P. Shepherd, Turgot and the Six
Edicts (Nova Iorque, 1 90 3 ) . Sobre os efeitos da reforma fisiocrática no comércio dos
cereais, vej a-se S. L. Kaplan, Bread, Politics and Political Economy in the Reign of Louis XV
(2 vols., Haia, 1 976 ) . Sobre a teoria fisiocrática, vej am-se G. Weulersse, Le Mouvement
Physiocratique en France 1 756- 1 770 (2 vols., Paris, 1 9 1 0) , e a importante história inte­
lectual de Elizabeth Fox-Genovese, The Origins of Physiocracy ( Ithaca, N. l., 1 97 6 ) , e
Ronald L. Meek ( ed. ) , Turgot on Progress, Sociology and Economics ( Cambridge, 1 973 ) .

V A Ú LTIMA E SPERANÇA: O BANQUEIRO

Duas obras contribuíram para uma importante reavaliação da administração


de Necker: Jean Egret, Necker: Ministre de Louis XVI ( Paris, 1 97 5 ) , e R. D. Harris,
745

Necker, Reform Statesman of the Old Regime (Berkeley, 1 9 7 9 ) , esta última baseada na
nova investigação documental de C oppet sustentando muitas das afirmações
constantes da Conclusão. Vej a - se também H. Grange, Les Idées de Necker ( Paris,
1 9 74) , e Edouard C hapuisat, Necker 1 732- 1 804 ( Paris, 1 9 3 8 ) .

3 O AB S O LUTISMO ATACADO

I AS AVENTURAS DE MONSIEUR DE GUILLAUME

A biografia canónica de Malesherbes continua a ser a excelente obra de Pierre


Grosclaude, Malesherbes, Témoin et Interprete de son Temps ( Paris, 1 96 1 ) . Sobre o
desenvolvimento da sua ideologia política, vej a -se a excelente antologia e intro ­
dução crítica de Elizabeth Badinter, Les Rémonstrances de Malesherbes 1 771 - 1 775
( Paris, 1 98 5 ) . E xistem pelo menos duas outras obra que vale a pena consultar:
J. M . Allison, Malesherbes ( New Haven, 1 9 3 8 ) , e a do seu primeiro biógrafo, B oissy
d' Anglas, Essai sur la Vie, les Écrits et les Opinions de M. de Malesherbes (Paris, 1 8 1 9 ) .

I I A SOBERANIA REDEFINIDA: O DESAFIO


DOS PARLAMENTO S

Vários ensaios sobre a importante obra editada por Keith Michael Baker, The
Política! Culture of the Old Regime ( Oxford, 1 98 7 ) , abordam este tema, em particular
os de Dale van Kley e William Doyle. Baker publicou também um ensaio impor­
tante sobre a mutação da ideologia da oposição, "French Political Thought at the
Accession of Louis XVI", in Journal ofModern History (Junho de 1 978, pp. 2 7 9 - 3 0 3 ) .
O s axiomas d o absolutismo real na sua reafirmação por Luís XV são examinados
no ensaio de Michel Antoine, "La Monarchie Absolue", no mesmo volume .
A abordagem fundamental ao desenvolvimento do vocabulário e da ideologia
oposicionistas no discurso parlamentar continua a ser uma obra notável, muito à
frente do seu tempo: E . C arcassonne, Montesquieu et le Débat sur la Constituition
Française (Paris, 1 92 7 ) . S obre a difusão e a popularização das ideias de
Montesquieu, vej a -se Franco Venturi, Utopia and Reform in the Enlightenment
( Cambridge, 1 97 1 ) . A única omissão importante de C arcassonne é o contributo da
retórica j ansenista na altura do ataque aos jesuítas, um tema coberto pela obra
notável de Dale van Kley, The Jansenists and the Expulsion of the Jesuits from France
1 75 7- 1 765 ( New Haven e Londres, 1 97 5 ) . Vej a - s e também, do mesmo autor, The
Damiens Affair and the Unravelling of the Ancien Regime 1 750-1 770 ( Princeton, 1 984) .
J . Flammermont publicou o s textos integrais das Rémonstrances du Parlement de
Paris au XVIIIe Siecle ( 3 vols . , Paris, 1 88 8 - 1 889 ) . O trabalho do mesmo autor sobre
a crise de Maupeou foi ultrapassado por D urand E cheverria, The Maupeou
Revolution: A Study in the History of Libertarianism: France 1 770- 1 774 ( Baton Rouge,
La., 1 98 5 ) . Vej am-se também Jean Egret, Louis XV et l'Opposition Parlementaire
( Paris, 1 97 0 ) , e William D oyle, "The Parlements of France and the Breakdown of
the Old Regime 1 77 1 - 1 788", in French Historical Studies ( 1 970, p . 42 9 ) . E m defesa
da monarquia na crise, veja-se David Hudson, "ln Defense of Reform", in French
Historical Studies ( 1 97 3 , pp. 5 1 - 7 6 ) . Relatos das cerimónias relativas ao regresso dos
Parlamentos em Metz e Pau encontram-se em Pidanzat de Mairobert, L'Espion
anglais ( 1 77 5 , vol. II, p. 2 0 0 ) ; vej a -se também H. C arré, " Les Fêtes d'une Réaction
Parlementaire", in La Révolution Française ( 1 8 92 ) .
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Existe uma abundância de estudos de qualidade que tratam os Parlamentos


enquanto instituições sociais e políticas . Os pioneiros foram Franklin Ford, Robe
and Sword: The Regrouping ofthe French Aristocracy after Louis XIV ( Cambridge, Mass . ,
1 9 5 3 ) , e François Bluche, Les Magistrats du Parlement de Paris 1 71 5 - 1 771 ( Paris,
1 96 0 ) , que continua a ser uma das obras-primas do género mas que, infelizmente,
cobre apenas o período até à crise de Maupeou . O excelente The Parlement of Paris
1 774- 1 789 ( C hapei Hill, C . N . , 1 98 1 ) , de Bailey Stone, continua a história até à
Revolução e mostra exactamente como a nobreza de toga se dividiu em relação
até que ponto, no tom e na substância, deveria impor a sua redefinição de sobe­
rania. O soberbo The Parlement of Bordeaux and the End of the Old Regime 1 771 - 1 790
(Nova Iorque, 1 97 4 ) , de William Doyle, analisa um dos tribunais soberanos mais
eloquentes mas também mostra a hesitação dos seus funcionários aquando da
crise de Maupeou. O texto mais importante e influente produzido por um magis­
trado de B ordéus é Catéchisme du Citoyen (Bordéus, 1 77 5 , reimpresso em 1 78 8 ) , de
Joseph Saige . Outros estudos locais importantes são M. Cubells, La Provence des
Lumieres: Les Parlementaires d 'Aix au XVIIIe Siecle (Paris, 1 984) , e A. Colombet, Les
Parlementaires Bourguignones à la Fin du XVIIIe Siecle (Dij on, 1 9 3 7 ) , entretanto ultra ­
passados por B rian Dooley, Noble Causes: Philantropy Among the Parlementaires in
18th -Centu ry Dijon ( dissertação na Universidade de Harvard, 1 987 ) .

III NOBLE S S E OBLIGE?

Não existe nenhum estudo moderno de qualidade sobre d' Argenson mas, em
qualquer dos casos, esta figura extraordinária estuda-se melhor através dos seus
próprios escritos, especialmente as Considérations sur le Gouvernement de la France,
publicadas trinta anos depois da sua escrita ( Amesterdão, 1 7 64) .
Existe uma literatura abundante sobre as questões da mobilidade social e dos
privilégios . D ois pontos de partida deverão ser C olin Lucas, "Nobles, B ourgeois
and the Origins of the French Revolution", in Past and Present (n.º 60, Agosto de
1 97 3 , pp. 84- 1 2 6 ) , e o importante trabalho revisionista de Guy Chaussinand­
- Nogaret, The French Nobility in the Eighteenth Century: From Feudalism to
Enlightenment ( trad. William D oyle, C ambridge, 1 9 8 5 ) , cuj a posição sobre a
noblesse commerçante acompanho de muito perto . A Biblioteca Kress da Harvard
Business School possui contratos dos sindicatos do comércio e da indústria de
finais do século XVIII que tornam dramaticamente evidente a participação activa
da nobreza . Ainda em relação a esta matéria, vej a -se o abade C oyer, Développement
et Défense du Systeme de la Noblesse Commerçante ( Amesterdão, 1 7 5 7 ) . O importante
trabalho Class Ideology and the Rights of Nobles During the French Revolution ( O xford,
1 9 8 1 ), de Patrice Higonnet, começa com uma discussão do grau de separação e da
fusão da burguesia e da nobreza e contesta alguns dos pressupostos revisionistas .
Outros estudos importantres s ã o D avid Bien, " L a Réaction Aristocratique avant
1 789", in Annales: Économies, Sociétés, Civilisations ( 1 9 7 4 ), Alfred C obban, The Social
Interpretation of the French Revolution ( Cambridge, 1 964 ) , R. Forster, The Nobility of
Toulouse in the 18th Century ( Baltimore, 1 96 0 ) The House of Saulx-Tavannes, Versailles
and Burgundy 1 700- 1830 ( Baltimore e Londres, 1 9 7 1 ) , e ainda "The Provincial
Nobles: A Reappraisal", in American Historical Review ( 1 9 6 3 ), J. Meyer, La Noblesse
Bretonne au XVIIIe Siecle ( Paris, 1 972 ) , e G. V. Taylor, "Non - Capitalist Wealth and
the Origins of the French Revolution", in American Historical Review ( 1 967 ) . Gail
B ossenga alargou os métodos de David Bien e criou uma abordagem fresca e
excepcionalmente iluminadora à história social e política das instituições deste
747

período. Vej a - se, em particular, " From C orps to Citizenship : The Bureaux des
Finances B efore de French Revolution", in Journal of Modern History ( S et e mbro de
1 986, pp . 6 1 0 - 642 ) , onde mostra os detentores privilegiados de cargos a desen­
volverem paradoxalmente teorias de solidariedade e de cidadania para se defen­
derem contra as medidas reformistas da Coroa na sua corporação .
O ataque d e Grouvelle a Montesquieu é citado p o r C arcassonne, Montesquieu
et le Débat, p. 620.

4 A CONSTRUÇ Ã O CULTURAL DE UM CIDAD Ã O

1 EM B U S C A DE UM P Ú BLICO

Robert Darnton foi o primeiro a chamar a atenção para o balão como uma das
novidades científicas que provocaram uma espécie de hipérbole social generali­
zada, in Mesmerism and the End of the Enlightenment ( Cambridge, Mass . , 1 96 8 ) .
Sobre a ascenção do balão em Versalhes, vejam-se L'Art de Voyager dans l 'Air (Paris,
1 784, pp. 68 sqq . ) e [Rivaroli] Lettre à M. le Président xxx sur le Globe Airostatique
( Londres, 1 8 7 3 ); comentários mais irónicos s urgem em François Métra,
Correspondance Secrete Politique et Littéraire . . . ( Londres, 1 5 de Fevereiro de 1 784) ; a
descrição heróica do Montgolfier surge em Pigeron, L'Art de Paire Soi-Même les
Ballons (Paris, 1 7 84, p. 1 5 ) . Uma das muitas odes extáticas ao Montgolfier, Le Globe
Montgolfier ( 1 784), de Le Roy, compara -o a uma águia :

Quel volume! Quel poids! Quel vol majestueux


Que/ pompeux appareil dans les airs se deploie
Paris, j 'entends ses cris de surpris & joie . . .

Que volume ! Que peso! Que voo maj estoso


Que aparelho se eleva nos ares pomposo
Ouço os gritos de surpresa e alegria de Paris . . .

Os comentários irónicos sobre o caos social provocado pelos balões pertencem à


Lettre de Rivarol (pp. 1 2 - 1 3 ) . Sobre Pilâtre de Rozier, vejam-se Vie et Mémoires de Pilâtre
de Rozier ( Paris, 1 78 6 ) e Léon Babinet, "Notice sur Pilâtre de Rozier", in Mémoires de
l 'Académie de Metz ( 1 86 5 ) . O diário Journal de Paris ( 1 78 2 ) noticia as palestras de
Pilâtre de Rozier (Electricité et Aimant) no museu, bem como outras conferências sobre
física e química; o número de 1 1 de Fevereiro de 1 782 oferece demonstrações da sua
túnica impermeável. A reacção do público à ascensão realizada em Saint-Cloud é des­
crita por Linguet nos seus Annales Politiques (Londres, vol. XI, pp. 2 9 6 - 3 0 3 ). A ascen­
são de Lyon encontra-se vividamente descrita no suplemento à segunda edição de
L'Art de Voyager dans l 'Air; o voo de Blanchard na Normandia consta do Journal de
Paris de 1 8 de Julho de 1 784 (pp. 893-896); vej a-se também a gravura pormenori­
zada no mesmo j ornal ( 2 8 de Julho de 1 784, p. 968 ) . A morte de Pilâtre é descrita
[por J.P. Marat] nas Lettres de L'Observateur Bons-Sens [sic] (Londres, 1 78 5 ) . As instru­
ções sobre o fabrico doméstico de balões surgem em Pingeron.
A descrição feita por Pidanzat de Mairobert do Salão surge em L'Espion anglais
( vol. VII, p. 72 ) . A obra Painters and Public Life in Eighteenth-Century Paris (New
Haven, 1 98 6 ) , de Thomas C row, é abordagem mais importante do público e dos
críticos do Salon. O público dos teatros de variedades encontra-se brilhantemente
tratado em Robert M . Isherwood, Farce and Fantasy: Popular Entertainment in
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Eighteenth-Century Paris ( Nova Iorque e Oxford, 1 98 6 ) , bem como noutro exce­


lente estudo, Michele Root-Bernstein, Boulevard Theater and Revolution in 1 8th­
-Centu ry Paris (Ann Arbor, 1 984 ) , que aborda algum material idêntico ao de
Isherwood mas é mais ambicioso ao atribuir-lhe implicações políticas . A autora
oferece também (p. 80) uma sensação esplêndida do meio físico dos pequenos tea­
tros do B oulevard du Temple . Os Annales Politiques de Linguet referentes a 1 779
(p. 2 3 6 ) contêm um panegírico ao teatro L'Ambigu C omique de Audinot e, em
especial, da utilização de mimos e actores infantis, " que provocam lágrimas nos
olhos, inspiram terror e admiração e provocam todos os efeitos amiúde ausentes
dos grandes teatros e das melhores peças . . . " ( Linguet também exorta a uma revo­
lução no ballet, segundo a qual os bailarinos se tornariam verdadeiros actores e as
suas danças narrativas e não " uma sucessão de piruetas ridículas sem propósito
nem desígnio" ) .
S obre o s antecedentes teatrais d e Ronsin e Grammont, vej a - s e Richard C obb,
The People 's Armies (Les Armées Révolutionnaires) ( trad. Marianne E lliott, New
Haven e Londres, 1 9 8 7 , pp . 6 8 - 6 9 ) . S obre o público do Palais- Royal, vej a - s e
François e - Marie Mayeur d e S aint-Paul, Tableau d u Nouveau Palais-Royal ( 2 vols .,
Paris, 1 7 8 8 ) ; vej am-se também Isherwood, Farce and Fantasy (pp. 248-2 5 0 ) , e
Louis - S ébastien Mercier, Le Tableau de Paris ( 1 2 vols ., Paris, 1 782 - 1 788, vol. X,
p. 242 ) . O comentário de Marmontel sobre o público está citado no útil traba ­
lho de John Lough, Paris Theater Audiences in the 1 7th and 1 8th Centuries ( Oxford,
1 9 5 7 , p . 2 1 1 ) . O relato da disputa no seio da C omédie - Française provém de
Bailey Stone, The Parlement of Paris (p. 1 02 sqq . ) ; as Mémoires de Madame de
C ampans (pp. 2 0 1 - 2 04 ) oferecem um relato da leitura de Fígaro perante o rei;
as Mémoires de la Baronne d 'Oberkirch ( nova edição, Paris, 1 9 70, pp. 3 0 3 - 3 0 4 ) ,
contêm u m relato vívido do ambiente em torno da representação de Fígaro e da
reacção da baronesa .

II A ATRIBUIÇ Ã O D O S PAP É I S : OS FILHOS DA NATUREZA

Sobre o esquema de aleitamento materno de Beaumarchais, veja-se Nancy


Senior, Eighteenth-Century Studies ( 1 98 3 , pp . 36 7 - 3 88 ) . O trabalho-padrão sobre
esta temática era Marie-Angélique Rebours, Avis aux Meres qui Veulent Nourrir . . .

( Paris, 1 7 6 7 ) . A influência de Rousseau sobre os hábitos de aleitamento materno


e na filosofia moral da natureza são tratados na obra magistral de Carol Bium,
Jean-Jacques Rousseau and the Republic of Virtue ( Ithaca, N. 1., 1 98 6 ) , e vej a -se Joel
Schwartz, The Sexual Politics of Jean-Jacques Rousseau ( C hicago, 1 984) . Em relação ao
tratamento das mulheres por Rousseau, veja-se também Susan Okin, Women in
Western Political Thought ( Princeton, 1 979, pp. 9 9 - 1 96 ) . A peça La Vraie Mere, de
Moissy, é citada em Anita B rookner, Greuze, the Rise and Fali of an Eighteenth-Century
Phenomenon ( Greenwhich, Conn ., 1 972 ) , que também oferece uma panorâmica
excelente do culto da "sensibilité" . O catálogo da exposição Jean-Baptiste Greuze
1 782- 1 805 (Wadsworth Atheneum, Hartford, C onn ., 1 97 7 ) , da autoria de Edgar
Munhall, inclui textos excelentes sobre os quadros ( entre outros ) L'Oiseau mort e
L'Accordée de village; vej a - se, do mesmo autor, " Greuze and the Protestant Spirit" ,
in Art Quarterly (Primavera de 1 964, pp . 1 -2 1 ) . Os comentários de Charles Mathon
de La Cour sobre L'Oiseau mort de Greuze constam das suas Lettres à Monsieur xxx
sur les Peintures et les Sculptures et les Gravures Exposées dans le sallon [sic] du Louvre en
1 765 ( Paris, 1 76 5 , pp. 5 1 - 5 2 ) . Michael Fried, Theatricality and Absorption: Painting
and Beholder in the Age of Diderot ( Chicago, 1 98 0 ) , é um trabalho importante sobre
749

as técnicas formais da absorção moral e dramática na obra de Greuze . A observa­


ção de Mercier sobre o coração virtuoso encontra-se nas suas Notions Claires sur les
Gouvernements (Paris, 1 78 7 ) e é citada por Norman Hampson, Will and Circumstance:
Montesquieu, Rousseau and the French Revolution ( Londres, 1 98 3 , p. 77 ) . O famoso
comentário de Diderot sobre a "Mere Bien-Aimée" encontra -se em J. Seznec, The
Salons of Denis Diderot ( O xford, 1 97 5 , vol. II, p . 1 5 5 ) . Guias para a "paisagem mora­
lizada " foram oferecidos não só no Promenade de Girardin ( 1 78 8 ) , mas também,
numa versão resumida, no importante Almanach des Voyageurs ( 1 7 8 5 ) e no Cuide
des Amateurs ( 1 78 8 ) , ambos de Luc-Vincent Thiéry. Os tributos póstumos a
Rousseau e as suas peças e memórias encontram-se descritos em P. -P. Plan, Jean­
-Jacques Rousseau Raconté par les Gazettes de San Temps ( Paris, 1 9 1 2 ) . Robert Darnton,
" Readers Respond to Rousseau", in The Great Cat Massacre, transmite a poderosa
sensação de identificação pessoal dos leitores com o autor. D. G. Charlton, New
lmages of the Natural in France ( Cambridge, 1 984) , é um excelente estudo de mui­
tas das implicações do culto romântico da natureza, incluindo as relacionadas com
o género e a criação das crianças. Outros trabalhos úteis sobre temas conexos são
D. Mornet, Le Sentiment de la Nature en France de J. -J. Rousseau à Bernardin de Saint­
-Pierre ( Paris, 1 90 7 ) , e Paul van Tighem, Le Sentiment de la Nature dans !e pré-
-Romantisme Européen ( Bruxelas, 1 9 1 2 ) .

III PROJE CTAND O A VOZ: O E C O DA ANTIGUIDADE

A informação sobre o discurso de Hérault de Séchelles surge no Journal de


Paris de 7 de Agosto de 1 78 5 ( p . 8 97 ) ; para os pormenores relativos à sua carreira
e primeiros trabalhos, incluindo o relato da viagem para se avistar com Buffon,
vej a - s e Hubert Juin ( ed . ) , Oeuvres Littéraires et Politiques de Jean-Marie Hérault de
Séchelles ( E dmonton, Alberta, 1 97 6 ) ; vej a -se também Hérault de Séchelles,
Oeuvres Littéraires (ed. Emile Dard, Paris, 1 9 0 7 ) . Jean Starobinski publicou recen­
temente dois artigos importantes, " Eloquence Antique, Eloquence Future :
Aspects d'un Lieu C ommun d' Ancien Régime", in B aker ( ed . ) , Política! Culture
( p . 3 1 1 - 3 2 7 ) e, com mais desenvolvimento, "La Chaire, la Tribune, le B arreau",
in Pierre Nora ( ed. ) , Les Lieux de Mémoire, vol. II, La Nation ( Paris, 1 986, Parte 3,
pp. 42 5 -48 5 ) . Sobre a continuada tradição de eloquência humanista, vej a -s e o
esplêndido trabalho de Marc Fumaroli, L'Age de l 'Eloquence: Rhétoriques et Res
Literaria de la Renaissance au Seuil de l 'Epoque Classique ( Paris, 1 98 0 ) (agradeço sin­
ceramente a Natasha Staller por me ter dado a conhecer esta importante obra ) .
A obra canónica sobre a eloquência pré-revolucionária é P. -L . Gin, De l 'Eloquence
du Barreau ( Paris, 1 76 8 ) . Sobre a eloquência e a retórica revolucionárias, vejam­
-se Hans Ulrich Gumbrecht, Funktionen der Parlamentarischen Rhetorik in der
Franziizische Revolution ( Munique, 1 9 7 8 ) , Simon S chama, "The S elf- C onsciousness
of Revolutionary Elites", in Consortium on Revolutionary Europe ( C harleston, C. S . ,
1 97 8 ) , Lynn Hunt, "The Rhetoric o f Revolution ", no s e u Palites, Culture a n d Class
in the French Revolution ( B erkeley e Los Angeles, 1 984) . A antologia canónica de
eloquência revolucionária continua a ser François-Alphonse Aulard, Les Orateurs
de la Révolution Française (2 vols . , Paris, 1 90 5 , 1 90 6 - 1 907 ) . François Furet e Ran
Halevi estão a preparar compilações de oratória revolucionária, cuj o primeiro
volume deverá ser publicado em Maio de 1 98 9 . Sobre a turbulenta carreira de
Linguet na barra, veja-se a excelente biografia da autoria de Darline Gay Levy, The
Ideas and Career of Simon-Nicho/as-Henry Linguet ( Urbana, Ill . , 1 98 0 ) ; as suas ideias
acerca da relação entre a virtude e a oratória antigas surgem nas pp. 1 7 - 2 1 . Sobre
Simon Schama 1 CIDADÃOS

os discursos e panegíricos na Academia, vej a -se o Recuei! des Harangues Prononcées


par les Messieurs de l 'Académie Française ( 1 760- 1 789 ) .
Sobre a educação na oratória em latim, a leitura de Salústio e a imitação de
C ícero, vej a -se Harold T. Parker, The Cult of Antiquity and the French Revolution
( C hicago, 1 9 3 7 ) , um livro bastante avançado para o seu tempo. S obre o pro­
grama neoclássico de virtudes exemplares nas artes, vej a - s e Robert Rosenblum,
Transformations in Late Eighteenth- Century Art ( Princeton, 1 96 7 ) , e Hugh Honour,
Neo-Classicism ( Londres e Nova Iorque, 1 97 7 ) . S obre o j u ramento dos Horácios,
em particular, vej am-se C row, Painters, e Norman B ryson, Word and Image: French
Painting ofthe Ancien Régime ( C ambridge, 1 98 1 ) . A notícia do Journal de Paris sobre
os Horaces surge em 1 7 de Setembro de 1 78 5 (p. 1 092 ) . Sobre o programa refor­
mista do conde d' Angiviller, vej a -se a dissertação não publicada de Ba rthélemy
Jobert, da É cole des Hautes É tudes en S ciences Sociales ( Paris ) . A reinterpreta ­
ção crucial das virtudes romanas por David é discutida em Robert Herbert, David,
Voltaire, Brutus and the French Revolution ( Nova Iorque, 1 97 3 ) e no trabalho sobre
David e a Revolução por Warren Roberts ( C hapel Hill, C. N., 1 98 9 ) , a publicar
brevemente.

IV DIFUNDIND O A PALAVRA

O trabalho de Robert Darnton transformou os modos como os historiadores


compreendem a censura, o comércio de livros proibidos e a esfera crucial da lei­
tura "indelicada "; vej a -se, em particular, The Literary Underground of the Old Regime
( Cambridge, Mass., 1 982 ) ; o seu relato extraordinário da feitura e distribuição da
edição in-quarto da Enciclopédie encontra-se em The Business of the Enlightenment:
A Publishing History of the Encyclopédie, 1 775- 1 800 ( Cambridge, Mass . , 1 979 ) . Em
relação aos livros proibidos, ainda se obtêm alguns pormenores em J . - P. B elin, Le
Commerce des Livres Prohibés à Paris de 1 750-1 789 ( Paris, 1 9 1 2 ) . S obre as gazetas
holandesas, vej a -se Jeremy Popkin, "The Gazette de Leyde in the Reign of Louis
XVI", in Jack C enser e Jeremy Popkin (eds . ) , The Press and Politics in Pre­
-Revolutionary France (Berkeley, 1 98 7 ) ; vej a - s e também, especialmente em relação
a Linguet, idem, "The Prerevolutionary Origins of Popular Journalism", in B aker
(ed. ) , Political Culture. Sobre o importantíssimo contributo de Panckouke, vej a -s e
Suzanne Tuco o- Chala, Charles-Joseph Panckouke ( Pau, 1 97 7 ) . Sobre taxas de anal­
fabetismo, vej a - s e Daniel Roche, Le Peuple de Paris ( Paris, 1 98 1 , pp. 208-209 e,
mais geralmente, o capítulo 7 ) ; sobre as academias provinciais, vej a - se a obra clás­
sica do mesmo autor, Le Siecle des Lumieres en Province ( 2 vols., Paris, 1 97 8 ) . A difu­
são da cultura na província pode ser também compreendida através do estudo
clássico de Daniel Mornet, baseado nas bibliotecas, Les Origines Intellectuelles de la
Révolution Française ( Paris, 1 9 1 0 ) .

5 O S CUSTOS D A MODERNIDADE

Fernand B raudel, em L'Identité de la France, vol. II, Les Hommes et les Choses ( Paris,
1 986, especialmente pp. 267-306), destaca a importância do crescimento industrial
pré-revolucionário em França, bem como (pp. 2 3 8 - 2 3 9 ) ao rápido crescimento do
potencial do mercado devido à transformação das comunicações entre as décadas
de 60 e 80 do século XVIII. Para mais pormenores sobre a mudança comercial e
industrial no Antigo Regime, vej a - se Ernest Labrousse et al., Histoire Economique et
75 1

Sociale de la France (vai. II, 1 660- 1 78 9 ) , em especial, os contributos de Pierre


Léon, " L' É lan Industiel et C ommercial" (pp. 499- 5 2 8 ) . Sobre o comércio atlân­
tico francês, vej a - s e Paul B utel, "Le C ommerce Atlantique Français sous !e Regne
de Louis XVI", in Le Regne de Louis XVI ( Actes de C olloque International de
S oreze, 1 976, pp. 6 3 -84) . S obre a aplicação da ciência à indústria, vej a-se o
ensaio de D . J. Sturdy no mesmo volume. Acerca de outros aspectos, vej am-se
C . B allot, L'Introduction du Machinisme à / 'Industrie Française 1 780- 1 8 1 5 ( Paris,
1 92 3 ) , G . Chaussinaud-Nogaret, " C apitalisme et Structure S ociale", in Annales:
ESC ( 1 97 0 ) , e R. Sedillot, Les de Wendel et / 'Industrie Lorraine ( 1 9 5 8 ) . Para provas
de como o ethos empresarial da França pré - revolucionária e o apelo específico à
mobilidade comercial, vej am - se, por exemplo, [L. H. Dudevant] , L'Apologie du
Commerce ( 1 77 7 ) , e Exposition des Mines ( 1 77 2 ) uma descrição minuciosa e fasci­
nante das minas de carvão e ferro, muitas das quais, incluindo as minas de car­
vão de Anzin, eram pertença de nobres . O documento mais importante que
demonstra o interesse das elites pela tecnologia industrial (bem como pela meca­
nização de ofícios mais antigos e do comércio de artigos de luxo) é o multi­
volume Description des Arts et Métiers ( Académie Royale des S ciences, Paris,
1 76 1 - 1 788) por exemplo, L'Art du Fabricant de Velours de Coton, encomendado
-

pela Academia das C iências em 1 779 a pensar especificamente na concorrência


britânica e na exportação do algodão em bruto de Guadalupe, Santo D omingo e
Caiena, nas Í ndias Ocidentais francesas.
Sobre os intendants, vej a -se Vivian Gruder, The Royal Provincial Intendants
( Ithaca, N. I . , 1 98 6 ) ; sobre os pormenores práticos da sua administração, vej a -s e a
magnífica compilação de documentos e correspondência publicada por R .
Ardascheff sob o título de Pieces Justificatives, em especial, o volume III desta obra
monumental, Les Intendants de Province sous Louis XVI ( Paris, 1 900- 1 907 ) , de onde
retirei o material sobre Saint - Sauveur, no Rossilhão.
Sobre a escola para cegos, vej a -se Valentin Haüy, Essai sur l 'Education des
Aveugles ( Paris, 1 78 6 ) , que inclui uma descrição da visita régia de 2 6 de Dezembro .
O retrato emblemático da França do século XVIII encontra-se no volume II
(p. 68 sqq . ) de L'An 2440 ( 3 vais ., edição de 1 78 6 ) , de L. S . Mercier. Vej a - se tam­
bém Henry Maj ewski, The Pre-Romantic Imagination of Louis-Sébastian Mercier ( Nova
Iorque, 1 97 1 ) . Mercier também é tratado de forma interessante por Norman
Hampson, Will and Circumstance. Os escritos de Linguet sobre mudança económica,
que são mais optimistas, encontram-se nas suas Mémoires sur un Objet Intéressant
pour la Province de Picardie ( Haia, 1 764), e os seus comentários analíticos sobre a
industrialização estão citados em Levy, Ideas and Career (pp. 86-87 ) . Os seus
Annales Politiques referentes a 1 777 (pp. 83 -84) contêm um relato maravilhosa­
mente evocativo dos extremos de pobreza e riqueza provocados pela aceleração
económica da França .

6 A POLÍTICA DO C O RPO

I FURORES UTERINOS E OB STRUÇ Õ E S DIN Á STICAS

A piada obscena sobre o colar de diamantes surge em [Pierre Jean-Baptiste


Nougaret] , Spectacle et Tableau Mouvant de Paris (vai. III , 1 787, p. 77) . Esta publicação
é uma fonte maravilhosa de informação miscelânea, rumores e escândalos relati­
vos a Paris no fim do Antigo Regime . O meu relato do Caso do C olar foi construído
a partir de fontes primárias impressas, em particular, as memórias j ustificativas
Simon Schama 1 CIDADÃOS

compiladas sob o título Recuei! des Mémoires sur l 'Affaire du Collier ( Paris, 1 7 87 ) . Está
apenas a começar a investigação séria dos libelos pornográficos contra a rainha,
mas vej a - s e Hector Fleischmann, Les Pamphlets Libertins Contre Marie-Antoinette
( Paris, 1 908 ) . Robert D arnton discute a importância política dos libelos em "The
High Enlightenment and the Low Life of Literature", in Literary Underground.
O importante ensaio de C hantal Thomas, "L'Hérolne du C rime: Marie-Antoinette
dans les Pamphlets", in J . - C . B onnet et al. ( eds . ) , La Carmagnole des Muses ( Paris,
1 98 8 ) , surgiu infelizmente demasiado tarde para que eu pudesse ter em conta a
sua discussão das provas. Os documentos principais aqui considerados são as mui­
tas edições do Essai Historique sur la Vie de Marie-Antoinette, Reine de France. La Vie
d 'Antoinette, Les Amusements d 'Antoinette e Les Passe-temps d 'Antoinette são ligeiras
variações do Essai. A obra The Memoirs of Antonina Queen d 'Abo ( Londres, 1 79 1 ) é a
versão inglesa de outra variação que apareceu pouco antes da Revolução. O utros
textos do cânone são a história apócrifa Les Amours d 'Anne d 'A utriche
( " A C ologne" , 1 7 8 3 ), Anandria (possivelmente da autoria de Pizandat de
Mairobert, 1 7 8 8 ) , Les Amours de Charlot et Toinette ( 1 78 9 ) , Le Bordel Royal, Suivi
d 'Entretien Secret entre la Reine et le Cardinal de Rohan ( 1 78 9 ) , Le Cadran des Plaisirs de
la Cour ou les Aventures de Petit Page Chérubin ( 1 789 ) . A informação sobre as novas
edições de La Nymphomanie ou Traité sur la Fureur Uterine ( Amesterdão, 1 77 8 ) , de
Bienville, provém do catálogo impresso do livreiro Théophile B arrois le Jeune,
que vendia numa loj a no Quai des Augustins e que se especializava evidente­
mente em obras de cariz sexual e obstétrico, dado que também publicitou o texto
de Tissot contra a masturbação, Onanie, do trabalho de Angélique Rebours sobre
o aleitamento, do tratado de Vacher sobre tumores na mama e de inúmeros livros
sobre doenças venéreas. O registo do j ulgamento da rainha no Tribunal
Revolucionário foi publicado sob o título Acte d 'Accusation et Interrogatoire Complet et
Jugement de Marie-Antoinette ( Paris, 1 79 3 ) .
A s Mémoires d e E lisabeth Vigée-Lebrun, não sendo desinteressantes, estão
longe de ser um modelo de tacto e discrição. A melhor fonte sobre a carreira da
artista é o magnífico catálogo da exposição Elisabeth Vigée-Lebrun ( Kimball
Museum, Fort Worth, 1 982 ) , da autoria de Joseph Baillio, de onde tirei o comen­
tário sobre ela nas Mémoires Secretes. Vej a - se também Anne Passez, Adelaide Labille­
-Guiard ( Paris, 1 97 1 ) . C ontudo, ainda há muita investigação a fazer sobre as
mulheres artistas das décadas de 80 e 90 do século XVIII. A correspondência de
Maria Antonieta com a mãe e o irmão foi traduzida e publicada por Olivier
Bernier com o título de The Secrets of Marie-Antoinette ( Nova Iorque, 1 98 5 ) .

II O RETRATO D E CALONNE

Sobre a obra de Talleyrand enquando agente -geral do clero, vej a -se Louis S .
Greenbaum, Talleyrand, Statesman-Priest: The Agen t-General of the Clergy and the
Church at the End of the Old Regime ( Washington, 1 97 0 ) . A melhor biografia
moderna de C alonne é Robert Lacour- Gayet, Calonne ( Paris, 1 9 6 3 ), mas a obra
muito mais antiga de G . Susane, La Politique Financiere de Calonne ( Paris, 1 9 0 1 ) ,
continua a ser um estudo importante d a sua administração. Wilma J . Pugh,
" C alonne's New Deal", in Journal of Modern History ( 1 9 3 9 , pp. 2 8 9 - 3 1 2 ) , oferece
uma panorâmica generosa das suas reformas . A perspectiva oposta acerca da
responsabilidade de Calonne na crise financeira é apresentada em R . D. Harris,
"French Finances and the American War 1 77 7 - 1 7 8 3 ", in Journal of Modern History
(Junho de 1 9 7 6 ) . O importante artigo de James Riley, "Life Annuity B ased Loans
753

o n the Amsterdam Capital Market Toward the E n d o f the Eighteenth C entury", in


Economisch-en-Sociaal Historisch Jaarboek (vol. XXXVI, pp. 1 02 - 1 3 0 ) , é o melhor
relato dos esforços franceses para constituir fundos de obrigações no mercado
financeiro holandês e do modo como C alonne torpedeou esta iniciativa em 1 786-
- 1 7 8 7 . As minhas conclusões derivam, em parte, de uma série notável de tabelas
manuscritas com as receitas e despesas ordinárias do reino, de 1 786 a 1 789, a pri­
meira das quais parece provir do C ontrôle de C alonne e poderá ter sido elaborada
para a Assembleia de Notáveis. Estes documentos estão preservados na Biblioteca
Kress da Harvard Business School.

III EXCEPÇ Õ E S NOTÁVEIS

O estudo mais importante sobre a Assembleia de Notáveis é, de longe, Vivian


Gruder, " C lass and Politics in the Pre-Revolution: The Assembly of Notables of
1 787", in E rnst Hinrichs et al., Vom Ancien Régime. Veja-se também A. Goodwin,
"Calonne, the Assembly of French Notables of 1 787 and the Origins of the Révolte
Nobiliaire", in English Historical Review ( 1 946 ) . Vej a-se também Jean Egret, The French
Pre-Revolution (trad. W. D . Camp, C hicago, 1 977, capítulos 1 e 2 ) . P. Chevalier (ed. )
publicou o Journal de l 'Assemblée des Notables (Paris, 1 960) mantido pelos Briennes.

7 SUIC Í DIOS

I REVOLUÇ Ã O NA PORTA AO LAD O

S obre a Revolução dos Patriotas Holandeses de 1 78 3 - 1 787, vej a - se Simon


Schama, Patriots and Liberators: Revolution in the Netherlands 1 780- 1 8 1 3 ( Londres e
Nova Iorque, 1 977, capítulo 4 ) . Vej am-se também, idem, "The Past and the Future
in the Patriotic Rhetoric", Jeremy Popkin, "Print C ulture in the Netherlands on
the Eve of Revolution", e Nicolaas C. F. van Sas, "The Patriotic Revolution : New
Perspectives", todos in Margaret Jacob (ed. ) , Enlightenment and Decline: The Dutch
Republic in the Eighteenth Century (a publicar) .

II O Ú LTIMO GOVERNO DO ANTIGO REGIME

O relato mais abrangente e equilibrado da administração Brienne é Egret, Pre­


-Revolution . Guibert estuda-se provavelmente melhor a partir do seu Essai sur la
Tactique (Paris, 1 774) . Vej a - se também Guibert, Écrits Militaires 1 772 - 1 790 (ed. L.
Menard, Paris, 1 97 7 ) e, para uma discussão das suas implicações, Geoffrey B est,
War and Revolutionary Europe 1 770- 1 8 70 ( Londres, 1 982, pp. 5 6 - 5 8 ) . Sobre
Malesherbes e a emancipação dos protestantes, vej a-se Grosclaude, Malesherbes
(pp. 5 5 9-602 ) .

III O CANTO D O C ISNE D O S PARLAMENTOS

Sobre o conflito político, veja-se Egret, Pre-Revolution . Sobre a literatura panfle­


tária, vej a-se B oyd C. Shafer, "B ourgeois Nationalism in Pamphlets on the Eve of
the French Revolution", in Journal of Modern History ( 1 9 38, pp . 3 1 - 5 0 ) . As citações
Simon Schama 1 CIDADÃOS

de Pasquier e d'Eprémesnil provêm de Stone, Parlement of Paris (pp . 1 5 8 e 1 7 1 ) .


O discurso de D e la Galaizere e os comentários de Bertier de Sauvigny e C ordier de
Launay estão publicados em Ardascheff, Intendants (vai. III, 1 87 sqq. ) . Sobre o dis­
curso de Lamoignon, vej a - se Egret, Pre-Revolution (p. 1 68 ) . O panfleto anti-B rienne
é o Dialogue entre M. l 'Archevêque de Sens et M. le Carde des Sceaux ( 1 788 ) . Sobre outro
ataque violento às reformas de Lamoignon, vej a -se H. M. N. Duveyner, La Cour
Pléniere ( 1 78 8 ) , um panfleto que foi rasgado e queimado pelo carrasco público.
A história da estátua a sangrar provém de Oscar B rowning (ed. ) , Despatches from
Paris 1 784- 1 790 (Londres, 1 909- 1 9 1 0, vol. II, p. 72 ) .

IV A JORNADA DAS TELHAS

O relato de Stendhal consta de The Life of Henry Brulard ( trad. B. C. J. G.


Knight, Londres, 1 9 5 8, p . 7 6 ) . Vej a - se também C harles Dufayard, "La Journée des
Tuiles", in Revue Historique ( vai. XXXVIII, pp. 3 0 5 - 34 5 ) . Sobre Grenoble neste
período, vej am-se Vital Chamei ( ed . ) , Histoire de Grenoble ( Grenoble, 1 97 6 ) , e Paul
Dreyfus, Grenoble de César à l 'Olympe ( Genoble, 1 9 67 ) . Kathryn Norberg, Rich and
Poor in Grenoble 1 600- 1 81 4 ( B e rkeley, 1 9 8 5 ) , é uma importante história social da
cidade. A política encontra -se coberta em Egret, Pre-Revolution, e a parte de
Mounier em Egret, La Révolution des Notables: Mounier et les Monarchiens ( Paris,
1 9 5 0 ) . Vej a - se também F. Vermale, "Les Années de Jeunesse de Mounier 1 7 5 8 -
- 1 787", in Annales Historiques de la Révolution Française (Janeiro-Fevereiro d e 1 9 3 9 ) .
Sobre a assembleia d e Vizille, vej am-se C harles B ellet, Les Evénements de 1 788 en
Dauphiné, e C hampollion-Figéac, Chroniques Dauphinoises.

8 QUEIXAS

II A GRANDE DIVIS Ã O

A noite passada com Malesherbes encontra -se descrita em Samuel Romilly,


Memoirs ( Londres, 1 84 1 , vol. I, pp. 7 1 - 7 2 ) ; sobre o memorando de Malesherbes,
vej a - s e Grosclaude, Malesherbes (pp. 6 5 5 - 6 6 3 ) . S obre a literatura panfletária radi­
cal no Outono de 1 7 88, vej am - se, em especial, Carcassonne, Montesquieu et le
Débat, o excelente e sub- utilizado estudo de Mitchell B . Garrett, The Estates­
-General of 1 789 ( Nova Iorque e Londres, 1 9 3 5 ) , Shafer, "B ourgeois Nationalism",
e vários estudos importantes constantes de B aker ( ed . ) , Political Culture, especial­
mente os de Keith Baker, François Furet, Ran Halevi e Lynn Hunt, todos eles cen­
trados na questão crucial da repres entaçã o . Sobre d' Antraigues, vej a - s e
Carcassonne, Montesquieu e t ! e Débat ( p p . 6 1 4- 6 1 5 ) , e a s u a importante Mémoire sur
les États-Généraux ( 1 7 88 ) . Sobre o historial da dupla representação, vej a -se
George Gordon Andrews, "D ouble Representation and Vote by Head B efore the
French Revolution", in South Atlantic Quarterly (vol. XXVI, Outubro de 1 92 7,
pp. 3 74- 3 9 1 ) . O memorando do p a i de Mirabeau sobre a dupla representação nas
assembleias provinciais foi publicado com o título Précis de l 'Organisation ou
Mémoire sur les États Provinciaux ( 1 7 5 8 ) . O comentário de C ondorcet sobre
Lafayette consta de Louis Gottschalk, Lafayette Between the American and the French
Revolutions ( C hicago, 1 9 5 0, p. 4 1 6 ) . Sobre a oposição da nobreza, vej am-se Daniel
Wick, "The Court Nobility and the French Revolutuion: The Example of the
Society of Thirty", in Eighteenth -Century Studies ( 1 9 80, pp. 2 6 3 - 2 8 4 ) , e Elizabeth
755

Eisenstein, "Who Intervened in 1 788?", in American Historical Review ( 1 96 5 , pp. 7 7 -


- 1 0 3 ) . A descrição feita por Arthur Young d o ambiente e m Nantes e m finais de
1 788 consta do seu Traveis in France in the Years 1 788 and 1 789 ( ed. Constantia
Maxwell, Caambridge, 1 929, p. 1 1 7 ) . O comentário de Volney está citado em
Garrett, Estates-General (p. 1 2 7 ) , o de Lanj uinais em ibid. (p. 1 3 9 ) . O texto do arrêt
do Parlamento de Paris do dia 5 de Dezembro é dado em J. M. Roberts (ed. ) , French
Revolution Documents ( O xford, 1 966, vol. I, pp. 3 9 -42 ) , e o do Memorando dos
Príncipes Reais em ibid. (pp. 46-49 ) . Sobre Sieyes, Qu 'est ce que le Tiers État?, vej am­
-se Paul Bastid, Sieyes et sa Pensée ( Paris, 1 970, pp . 344-349 ) , e o texto de Roberto
Zapperi na sua edição ( Genebra, 1 97 0 ) . Vej a - se também Lynn Hunt, "The National
Assembly", e Pierre Rosenvallon, "L'Utilitarisme Français et les Ambiguités de la
C ulture Politique Prerévolutionnaire", que declara Sieyes devedor de Helvétius
quanto à sua teoria de representação baseada na utilidade social; estes dois ensaios
encontram-se em B aker (ed. ) , Política/ Culture. Sobre a polémica em rápida expan­
são contra a "inutilidade " da nobreza, vej a -se, por exemplo, a peça Triomphe du Tiers
État ou les Ridicules de la Noblesse ( datando provavelmente do princípio de 1 78 9 ) , na
qual as opiniões do nobre que descreve o povo como "insectos aglomerados aos
nossos pés" são refutadas pelo mestre- escola da aldeia, que insiste que "somos
todos iguais porque somos todos irmãos . . . " e que conclui com o seu discurso decla­
rando (p. 2 1 ) que " nasci livre e racional, são estas as minhas prerrogativas" . A peti­
ção de Guillotin é tratada em C . L . Chassin, Les Elections et les Cahiers de Paris en 1 789
( Paris, 1 888, vol. I, p. 3 7 ) .

III FOME E F Ú RIA

Sobre a deslocação de Mirabeau à Provença, no Inverno de 1 7 89, e a sua car­


reira no período em causa, vej a -se a excelente biografia de Guy C haussinand­
- Nogaret, Mirabeau ( Paris, 1 9 82 ) . Arthur Young, Traveis, contém relatos vívidos
da aflição resultante das más colheitas e do terrível Inverno de 1 7 8 8 - 1 7 8 9 .
A introdução canónica a o s vinte e cinco m i l cahiers d e doléances é B eatrice Hyslop,
Cuide to the General Cahiers of 1 789 ( Nova Iorque, 1 9 3 6 ) , embora as categorias da
sua classificação e a interpretação que delas faz tornem a sua análise especifica ­
mente preconceituosa . Uma pequena amostra, útil e bastante representativa,
pode estudar-se em Roberts, Documents ( pp . 5 5 - 9 5 ) . No ano centenário de 1 8 8 8 -
- 1 889, comissões de todos os departamentos de França embarcaram na empresa
enorme da publicação de todos os cahiers dos três estados. As minhas leituras
basearam- s e nesses registos, em especial, nos relativos a O rleães, Loiret e B eauce
( ed . C amille Bloch ) , B lois e Loir- et- Cher (ed. D. F. Lesueur e A . Cauchie, B lois,
1 9 0 7 ) , Mancha e C otentin ( e d . Emile B ridrey ) , Le Havre ( e d . E. Le Parquier, Le
Havre, 1 92 9 ) , Montauban ( e d . V. Malrieu ) , bailiado de Mirecourt, na Lorena
( e d . E. Martin, É pinal, 1 92 8 ) , Riviêre - Verdun, no Tarn - e t - Garonne ( e d . D .
Ligou ) e Q uercy ( V. Fourastié, C ahors, 1 90 8 ) , n a tese d e licenciatura na
Universidade de Harvard ( não publicada) de B rian Dooley sobre a C ôte d ' O r, e
em especial na espectacular obra de a rquivo de C . L . C hassin sobre Paris e o
campo hors des murs. A citação de Ducastelier está publicada em C hassin (vol. IV,
p . 3 1 ) ; sobre o panfleto de d'Argis, vej a - se Cahier d 'un Magistrat sur les Justices
Seigneuriales ( 1 78 9 ) .
Simon Schama 1 CIDADÃOS

IV C OELHOS MORTOS E PAPEL DE PAREDE RAS GAD O

Sobre os motins da Primavera de 1 7 89, vej a - se Jean Egret, "The Pre ­


Revolution in Provence", in J. Kaplow (ed. ) , New Perspectives on the French
Revolution ( Nova Iorque, 1 96 5 ) , e "Les Origines de la Révolution en B retagne "
( 1 788- 1 78 9 ) , in Revue Historique ( 1 9 5 5, p. 2 1 3 ) . Sobre os motins da caça, vej a - se
Georges Lefebvre, The Great Fear of 1 789: Rural Panic in Revolutionary France ( trad.
Joan White, Princeton, 1 97 3 , capítulo 4, em especial, p . 44 sqq . ) ; vej a -se ainda, do
mesmo autor, Paysans du Nord Pendant la Révolution Française ( Paris e Lille, 1 924) .
A melhor maneira de seguir os motins do Ano Novo é através dos documentos
publicados por Chassin (vol. IV, em especial, pp. 5 7 9 - 5 86 ) . Sobre a política orlea­
nista na Primavera de 1 7 89, vej a - se G . A. Kelly, "The Machine of the Duc
d'Orléans and the New Politics", in Journal of Modern History ( 1 979, pp. 66 7 - 684) .

9 IMPROVISANDO UMA NAÇ Ã O

As passagens de Ferrieres provêm de Henri C arré (ed. ) , Correspondance Inédite,


1 789, 1 7 90, 1 7 9 1 ( Paris, 1 9 3 2 ) . Para detalhes do papel de Mirabeau nos Estados­
- Gerais, vej a - se Chaussinand- Nogaret, Mirabeau, e sobre os motins da Provença,
em 1 789, vej a - se Egret, "Pre- Revolution in Provence ", in Kaplow (ed. ) , New
Perspectives. A biografia popular de Antonia Vallentin, Mirabeau ( trad. E . W. Dickes,
Londres, 1 948 ) , permanece um relato válido e interessante da sua vida e da sua
política . Sobre a nobreza nos Estados- Gerais, vej a - se J . Murphy e P. Higonnet, "Les
Deputés de la Noblesse aux É tats - Généraux de 1 7 89", in Revue d 'Histoire Moderne
et Contemporaine ( 1 97 3 ) . Sobre o clero, vej am-se R. F. Necheles, "The Curés in the
Estates General of 1 7 89", in Journal of Modern History ( 1 974), M. G. Hutt, "The
C urés and the Third Estate: The Ideas of Reform in the Period 1 787-89", in Journal
of Ecclesiastical History ( 1 9 5 5 e 1 9 5 7 ) , Pierre Pierrard, Histoire des Curés de Campagne
de 1 789 à Nos Jours ( Paris, 1 986, em especial, pp. 1 5 - 3 0 ) , e em particular, o mag­
nífico trabalho de Timothy Tackett, Priest and Parish in Eighteenth-Century France:
A Social and Political Study of the Curés in a Diocese of Dauphiné 1 750-91 ( Princeton,
1 977 ) . Vej a - se também C. Langlois e T. Tackett, "Ecclesiastical Structures and
Clerical Geography on the Eve of the French Revolution", in French Historical
Studies ( 1 980, pp. 3 5 2 - 3 7 0 ) .
Sobre o ambiente em Paris durante Maio e Junho, veja-se Young, Traveis in
France. O trabalho de Robert D . Harris, Necker and the Revolution of 1 789 (Lanham,
Nova Iorque e Londres, 1 986), pondera cuidadosamente o papel de Necker nestes
meses e corrige a sabedoria convencional relativa à sua alegada passividade. Este por­
menorizadíssimo estudo contesta também de forma bastante convincente a inevita­
bilidade (e o interesse) da soberania do Terceiro Estado . É um livro de leitura
indispensável para uma análise equilibrada da política de 1 789. O texto integral do
discurso real de 2 3 de Junho encontra-se em Roberts, Documents (vol. I, pp. 1 1 5 - 1 2 3 ) .

1 O A BASTILHA

I DOIS TIPO S DE PAL Á CIO

Para a história do Palais-Royal, vej a-se Isherwood, Farce and Fantasy (capítulo 8 ) ,
e W. Chabrol, Histoire e t Description du Palais-Royal e t d u Théâtre Français (Paris, 1 88 3 ) .
757

O livro The Taking of the Bastille ( trad. Jean Stewart, Londres, 1 97 0 ) , de Jacques
Godechot, é uma narrativa magnífica do evento e tem anexados vários relatos de
testemunhas oculares . Sobre a segurança militar da capital, existem duas obras
essenciais : Samuel F. Scott, The Response of the Royal Army to the French Revolution:
The Role and Development of the Line Army ( Oxford, 1 978, em especial, pp. 46 - 7 0 ) , e
a monografia definitiva de Jean C hagniot, Paris et l 'Armée au XVIIIe Siecle ( Paris,
1 98 5 ) , a qual, entre outras coisas, revê completamente muitos dos lugares­
comuns acerca dos Cardes Françaises. Sobre outros problemas relacionados com a
ordem, vej a -se Alan Williams, The Police of Paris 1 71 8- 1 789 ( B aton Rouge, La ., e
Londres, 1 97 9 ) . Sobre a turba revolucionária, vej a -se George Rudé, The Crowd in
the French Revolution 1 789- 1 794 ( Oxford, 1 9 5 9 ) ; vej a -se também a obra muito inte­
ressante de R . B. Rose, The Making of the Sans-Culottes: Democratic Ideas and
Institutions in Paris 1 789- 1 792 (Manchester, 1 983 ) . Vej a - se ainda Jeffrey Kaplow,
The Names ofKings: The Parisian Laboring Poor in the Eighteenth Century ( Nova Iorque,
1 972, em especial, o capítulo 7 ) . O melhor trabalho sobre a anatomia social do
bairro mais revolucionário é Raymonde Monnier, Le Faubourg Saint-Antoine 1 789-
- 1 8 1 5 ( Paris, 1 98 1 ) , que também é importante para a compreensão dos motins do
Ano Novo.

II E SPECTÁ C ULO S : A C ONQUISTA DE PARIS

Sobre C urtius, vej a - se Mayeur de Saint-Paul, Le Désoeuvré ou l 'Espion du


Boulevard du Temple ( Londres, 1 78 1 ), e Tableau du Nouveau Palais-Royal ( 1 788 ) .
Sobre D esmoulins, vej a - se R . Farge, " C amille Desmoulins a u Jardin du Palais ­
-Royal", in Annales Révolutionnaires ( 1 9 1 4, pp. 446-474) .

III ENTERRAD O S VIVO S? MITO S E REALIDADE S DA BASTILHA

Tirei os meus relatos das histórias de Linguet e Latude das suas memórias,
reimpressas por J . F. B arriere, Mémoires de Linguet et de Latude ( Paris, 1 88 6 ) ; as
memórias de Latude foram originalmente publicadas com o título Le Despotisme
Dévoilé ou Mémoires de Henri Masers de Latude. Embora os historiadores se mos­
trem compreensivelmente cépticos acerca dos comentários excessivamente
optimistas de F. Funck-B rentano sobre as condições prevalecentes na B astilha,
as investigações meticulosas de Monique C ottret, La Bastille à Prendre ( Paris,
1 9 8 6 ) , confirmam a opinião de que, no reinado de Luís XVI, a B astilha se
estava a tornar rapidamente redundante e as condições em que se encontrava
a maioria dos detidos eram muito melhores do que noutros cárceres. C ottret
aborda também de forma importante os vários elementos da mitologia da
B astilha . Vej a - se também H . J . Lüsebrink, "La B astille dans l 'Imaginaire S ocial
de la France à la Fin du XVIIIe S iecle ( 1 7 74- 1 7 9 9 ) ", in Revue d 'Histoire Moderne
et Contemporaine ( 1 9 8 3 ) . S obre a importância das Mémoires de Linguet, vej a - s e
Levy, Ideas a n d Career.
Sobre os acontecimentos do 14 de Julho, segui principalmente Godechot, The
Taking of the Bastille; vej a - se também Jean D ussaulx, De l 'Insurrection Parisienne et de
la Prise de la Bastille ( Paris, 1 970 ) .
Simon Schama 1 CIDADÃOS

VI A VIDA DA BASTILHA DEPOIS DA SUA TOMADA:


O PATRIOTA PALLOY E O NOVO EVANGELHO

Sobre Palloy, vej am-se H. Lemoine, Le Démolisseur de la Bastille ( Paris, 1 92 9 ) ,


V. Fournel, L e Patriote Palloy e t l 'Exploitation de la Bastille ( Paris, 1 892 ) , e Romi, L e Livre
de Raison du Patriote Palloy (Paris, 1 9 5 6 ) , um documento fascinante e subutilizado.
As canções populares de celebração da Tomada da Bastilha estão compiladas e
analisadas no valiosíssimo The Spirit of Revolution in 1 789 ( Princeton, 1 94 9 ) , de
Cornwell P. Rogers .

1 1 C O M E SEM RAZ Ã O

O trabalho de Georges Lefebvre, The Great Fear of 1 789, continua a ser uma
obra-prima e o melhor dos seus livros (o episódio em Rochechouart consta da
p. 1 48 ) , e pode ser complementado com o seu Les Paysans du Nord Pendant la
Révolution Française ( Paris e Lille, 1 924, vol. 1, pp. 3 5 6 - 3 74 ) . Sobre as raízes cultu ­
rais e psicológicas do medo dos "bandidos" e a tortuosidade da classificação oficial
dos pobres sem-abrigo, vej a - se Olwen Hufton, The Poor of Eighteenth-Century France
(pp. 2 2 0 - 244 ) , e Michel Vovelle, "From B eggary to B rigandage ", in Kaplow ( ed . ) ,
New Perspectives. A s experiências d e Madame d e L a Tour d u Pin são descritas nas
suas Memoirs (ed. e trad. F. Harcourt, do Journal d 'une Femme de Cinquante Ans,
Londres e Toronto, 1 969, pp. 1 1 1 - 1 1 4 ) . Sobre a destruição de solares na
Borgonha, vej a - se Joachim Durandeau, Les Châteaux Brulés (Dij on, 1 89 5 ) .
Tirei o meu relato d a noite d e 4 d e Agosto principalmente dos Archives
Parlementaires e de relatos de imprensa contemporâneos, em particular do Point du
Jour ( 1 7 89, p. 2 3 1 sqq. ) . Sobre a noite de 4 de Agosto, vej a -se P. Kessell, La Nuit
du 4 Aout ( Paris, 1 9 69 ) . Sobre os debates constitucionais do Outono de 1 789, vej a ­
- s e Jean Egret, L a Révolution des Notables: Mounier e t les Monarchiens ( Paris, 1 9 5 0 ) , e
Paul Bastid, Sieyes et sa Pensée. Uma fonte extremamente útil para a política da
Constituinte são os boletins escritos pelo deputado Poncet-D elpech para os seus
constituintes do Quercy; vej a - se Daniel Ligou, La Premiere Année de la Révolution
Vue par un Témoin ( Paris, 1 96 1 ) . S obre a conduta de Mirabeau durante este
período, vej a - se E. D umont, Souvenirs sur Mirabeau et sur les Deux Premieres
Assemblées Legislatives (ed. M. D uval, Paris, 1 8 3 2 ) .
Sobre Lafayette, o s problemas d a violência e a Guarda Nacional, vej a - se Louis
Gottschalk e Margaret Maddox, Lafayette in the French Revolution Through the October
Days ( C hicago e Londres, 1 969, capítulos 8- 1 2 ) . Sobre as cerimónias de bênção da
bandeira, veja-se J. Tiersot, Les Fêtes et les Chants de la Révolution Française (Paris,
1 908, pp . 1 4- 1 6 ) , e Rogers, Spirit of Revolution (pp. 1 34- 1 5 9 ) . Para outra perspectiva
eloquente do problema da violência e da legitimidade, vej a -se o abade Morellet,
Mémoires ( Paris, 1 822, p. 3 62 ) . O jornalismo extraordinário de Loustalot e a sua
exploração da violência devem ser estudados através dos textos originais. No
número de 2 - 8 de Agosto, por exemplo, ele noticia que as autoridades parisienses
receberam uma arca com seis cabeças provenientes de várias partes da França :
Provença, Flandres, etc. Vej a - se também Jack Censer, Prelude to Power: The Parisian
Radical Press 1 789- 1 79 1 , uma análise importante destas influentes publicações.
Sobre Outubro, vej a -se Albert Mathiez, " É tude C ritique sur les Journées des 5
et 6 Octobre 1 7 89", in Revue Historique ( 1 898, pp . 24 1 -2 8 1 ) ; os vols. LXVII ( 1 899,
pp. 2 5 8-294) e LXIX ( 1 899, pp. 4 1 - 6 6 ) também são importantes. Vejam-se tam­
bém Gottschalk e Maddox, Lafayette in the French Revolution ( capítulos 14 e 1 5 ) ,
759

Henri Leclerq, Les Journées d 'Octobre e t la Fin de l 'Année 1 789 ( Paris, 1 924), Harris,
Necker and the Revolution of 1 789 ( capítulo 1 8 ) , e Rudé, The Crowd ( capítulo 5 ) .
Sobre o papel das mulheres e m O utubro de 1 789, vej am-se Jeanne B ouvier, Les
Femmes Pendant la Révolution de 1 789 ( Paris, 1 9 3 1 ) , Olwen Hufton, "Women and
Revolution ", in Douglas Johnson ( ed . ) , French Society and the Revolution ( Nova
Iorque e Cambridge, 1 976, pp. 1 48 - 1 66 ), Adrien Lasserre, La Participation Collective
des Femmes à la Révolution Française: Les Antécédents du Féminisme ( Paris, 1 90 6 ) , e
Dominique Godineau, Citoyennes Tricoteuses: Les Femmes du Peuple à Paris Pendant la
Révolution Française ( Aix -en-Provence, 1 988 ) .

1 2 ACTOS D E F É

S obre Jacob, vej a -se, por exemplo, o relato constante de Révolutions de France
et de Brabant ( 1 2 de Dezembro de 1 78 9 ) , de Desmoulins, que publicita gravuras do
acontecimento a 30 soldos ( 3 libras francesas se coloridas à mão ) . Sobre os ante ­
cedentes e as consequências da C onstituição Civil do clero, vej a -se J. McManners,
The French Revolution and the Church ( Londres, 1 96 9 ) . Timothy Tackett, Religion,
Revolution and Regional Culture in Eighteenth-Century France: The Ecclesiastical Oath of
1 79 1 ( Princeton, 1 98 6 ) , é um estudo magnífico que coloca uma grande ênfase
numa geografia religiosa francesa claramente definida; o ignorado La Révolution et
l 'Église ( Paris, 1 9 1 0 ) , de Albert Mathiez, inclui um ensaio interessante sobre a
campanha de politização do púlpito . Para um exemplo da ideologia clerical janse­
nista e " reformista" pré- revolucionária, vej am-se L'Ecclésiastique Citoyen ( 1 78 7 ) e
Ruth Necheles, The Abbé Grégoire 1 78 7- 1 83 1 : The Odyssey of an Egalitarian ( Westport,
Conn., 1 9 7 1 ) . Sobre as canções anticlericais em Paris, vej a - se Rogers, Spirit of
Revolution ( p . 200 sqq . ) .
Sobre Talma, vej a - se F. H . Collins, Talma: Biography of an Actor ( Londres, 1 964) .
O estudo mais pormenorizado e interessante sobre Charles IX é A. Liéby, Étude dans
le Théâtre de Marie-Joseph Chénier ( Paris, 1 90 1 ) . Sobre a política dos cordeliers, vejam­
-se Norman Hampson, Danton ( Londres, 1 978, capítulo 2), e R. B . Rose, The Making
ofthe Sans-culottes. Sobre a Fête de la Fédération, vejam-se Mona Ozouf, Festivais and
the French Revolution ( trad. Alan Sheridan, Cambridge, Mass., 1 98 8 ) , Tiersot, Les
Fêtes et les Chants (pp . 1 7 -46 ) , e Marie -Louise Biver, Fêtes Révolutionnaires à Paris
( Paris, 1 97 9 ) . Sobre a festa de Estrasburgo, veja-se Eugene Seinguerlet, L'Alsace
Française: Strasbourg Pendant la Révolution ( Paris, 1 88 1 ) . Vej a -se também Albert
Mathiez, Les Origines des Cultes Révolutionnaires 1 789- 1 792 ( Paris e Caen, 1 904) .

13 PARTIDAS

Para a obtenção de relatos das mudanças de pessoal (ou ausência de mudan­


ças ) nas revoluções municipais de 1 7 8 9 - 1 790, algumas das histórias locais mais
antigas são bastante úteis . Vej am - se, em particular, A. Prudhomme, Histoire de
Grenoble ( Grenoble, 1 88 8 ) , e Victor Dérode, Histoire de Lille ( Lille, 1 868 ) . Sobre o
epitáfio do Parlamento, veja-se o Courrier Patriotique du Grenoble (2 de Outubro de
1 79 0 ) . A história comparada moderna mais importante é, de longe, Lynn Hunt,
Revolution and Politics in Provincial France: Troyes and Reims 1 786- 1 790; vej a - se tam­
bém, idem, Politics, Culture and Class ( capítulo 5 ) , embora a autora trace linhas mais
definidas entre a antiga e a nova classe política do que me parece ser evidente nos
primeiros estágios da Revolução. Outros estudos locais importantes nos quais me
Simon Schama 1 CIDADÃOS

baseei são J. S entou, Fortunes et Groupes Sociaux à Toulouse sous la Révolution


(Toulouse, 1 96 9 ) , Louis Trénard, Lyon de l 'Encyclopédie au Préromantisme ( Paris,
1 9 58, vol. II, pp. 228 sqq . ) , o agressivamente antiparisiense Albert Champdor,
Lyon Pendant la Révolution ( Lião, 1 9 8 3 ) , e Claude Fohlen, Histoire de Besançon
( B e sançon, 1 9 67, pp. 2 2 9 sqq . ) . S obre E strasburgo, vejam-se S einguerlet,
Strasbourg Pendant la Révolution (pp. 3 5 2 sqq . ) , e Gabriel G. Ramon, Frédéric de
Dietrich, Premier Maire de Strasbourg sous la Révolution ( Paris e E strasburgo, 1 9 1 9 ) .
Sobre a história da aldeia d e Puiseux-Pontoise, vej a -se o ensaio extremamente
interessante de Albert Soboul no seu Problemes Paysans de la Révolution Française
( Paris, 1 9 76, p. 2 5 4 ) . Patrice Higonnet, em Pont-de-Monvert: Social Structure and
Politics in a French Village ( Cambridge, Mass . , 1 9 7 1 ), descobriu a mesma combina­
ção de espírito revolucionário elevado com o previsível oportunismo na aquisi­
ção de "bens nacionais " .
Sobre a imprensa, vej a - s e C enser, Prelude to Power. O relato d o L'Orateur du
Peuple sobre as políticas conj ugais data de 1 7 9 1 ( p . 48 1 ) . As felicitações sardónicas
de B rissot e Desmoulins encontram-se no Patriote Français de 3 0 de Dezembro de
1 7 90. Os "Batalhões da Esperança " de Lille são mencionados em Dérode, Histoire
de Lille (p. 47 ) . Sobre os almanaques, vej am-se Henri Welschinger, Les Almanachs
de la Révolution ( Paris, 1 884), e G. Gobel e A. Soboul, "Almanachs", in Annales
Historiques de la Révolution Française ( O utubro -Dezembro de 1 97 8 ) . S obre a com­
petição j acobina de 1 7 9 1 , vej a-se Gobel e Soboul (p. 6 1 5 sqq . ) . S obre a corres­
pondência relativa ao "penteado à B ruto", vej a -se o Patriote Français de 3 1 de
Outubro de 1 79 1 . A oração de Lequino foi publicada na Feuille Villageoise ( 1 7 de
Novembro de 1 7 9 1 , p. 1 84 ) , bem como a carta do mestre -escola ( Setembro de
1 79 1 , p . 5 1 ) .
Sobre a fundação dos jacobinos, Michael L. Kennedy, The Jacobin Clubs in the
French Revolution: The First Years ( Princeton, 1 9 82 ) , é um trabalho extremamente
importante . Sobre as sociedades populares de Paris, veja-se R . B. Rose, The Making
of the Sans-culottes ( capítulo 6 ) ; o comentário de Santerre é citado na p. 1 1 4. Rose
apresenta também (p. 1 04 ) o texto da petição da Société Fraternelle . Vej a -se,
ainda, o trabalho de Isabelle Bourdin, Les Sociétés Populaires à Paris Pendant la
Révolution Française (Paris, 1 9 3 7 ) . A utopia plebiscitária de Girardin está delineada
no seu Discours sur la Ratification de la Loi par la Voix Générale ( Paris, 1 79 1 ) . Sobre os
antecedentes da agitação laboral de 1 7 9 1 , vej a - s e Michael S onenscher,
"Journeymen, Courts and French Trades, 1 78 1 - 1 79 1 ", Past and Present ( Fevereiro
de 1 9 87, pp. 7 7 - 1 07 ) .
A correspondência de Mirabeau com a corte e a sua estratégia para revigorar
a monarquia constitucional é apresentada de forma completa em Guy
Chaussinand-Nogaret (ed. ) , Mirabeau entre le Roí et la Révolution (Paris, 1 986 ) . Os
seus últimos dias são descritos em Mirabeau, do mesmo autor. Sobre a procissão
fúnebre e, em especial, a música composta por Gossec para a ocasião, vej a - se
Tiersot, Les Fêtes et les Chants (pp. 5 1 sqq. ) . O comentário de Ruault é citado em
Biver, Fêtes Révolutionnaires ( p . 3 5 ) . Sobre a fundação do Panteão, vej a - se Mona
Ozouf, "Le Panthéon", in Nora ( ed . ) , Les Lieux de Mémoire, vol. 1, La République
( Paris, 1 984, p . 1 5 1 ) . A resposta tranquila de B rissot foi dada no Patriote Français
de 5 de Abril de 1 7 9 1 .
A petição dos cordeliers contra a tentativa de deslocação da corte a Saint -Cloud
para passar a Semana Santa de 1 79 1 é dada em Roberts, Documents (vol. 1, pp. 2 9 2 -
- 2 9 3 ) . O desprezo d e Fréron pela expressão d e preocupação com a saúde d o rei por
parte da Constituinte consta do L'Orateur ( 1 79 1 , 2 1 5 ) . O melhor relato do impacto
da fuga para Varennes consta da parte 1 da superlativa história de 1 7 9 1 e 1 792 da
761

autoria de Marcel Reinhard, La Chute de la Royauté ( Paris, 1 96 9 ) , e vejam-se os


apêndices documentais sobre o período da fuga e a campanha dos cordeliers que
conduziu ao massacre no C ampo de Marte . Sobre a reacção jacobina, veja-se
Kennedy, The Jacobin Clubs ( capítulo 1 4 ) . A denúncia do rei por Fréron consta do
L'Orateur ( 1 79 1 , 370 ) . A carta de Ferrieres sobre a fuga à mulher encontra-se em
Carré (ed. ) , Correspondance ( vol. !, p . 363, 23 de Junho de 1 79 1 ) . Sobre os cultos
de Voltaire e B ruto, vej a -se Robert Herbert, David, Voltaire, Brutus, e o excelente
estudo de Warren Roberts sobre Jacques-Louis David. S obre a Festa de Voltaire,
vejam-se Nicolas Ruault, Gazette d 'un Parisien sous la Révolution ( 1 5 de Julho de
1 7 9 1 ), e B iver, Fêtes Révolutionnaires (pp. 3 8 - 42 ) .
Sobre o massacre do C ampo d e Marte, vej am-se Rudé, The C rowd (pp. 80-94),
e G . A. Kelly, "Bailly and the C hamp de Mars Massacre", in Journal of Modern
History ( 1 980 ) . A história completa do Juramento da Sala do Jogo da Pé/a de David é
dada por uma monografia excelente, Philippe B ordes, Le Serment du leu de Paume
de Jacques-Louis David ( Paris, 1 98 3 ) .

1 4 "A MARSELHE SA"

Os elementos principais da constituição de 1 79 1 estão publicados em Roberts,


Documents ( vol. !, pp. 347 - 3 6 6 ) , bem como o debate sobre os clubes políticos na
C onstituinte, com o discurso de Robespierre (pp. 3 6 6 - 3 76 ) . Sobre a tentativa dos
Feuillants para estabilizarem a monarquia constitucional, vej a - s e Marcel
Reinhard, 10 Aoút 1 792 : La Chute de la Royauté ( Paris, 1 969, capítulo 8 ) .
Robespierre tem sido, naturalmente, obj ecto d e inúmeras biografias. Entre os
estudos mais recentes contam-se Norman Hampson, The Life and Opinions of
Maximilien Robespierre ( Londres, 1 974) , uma tentativa interessante de escrever a
biografia sob a forma de um debate histórico entre vários participantes (pró e con­
tra ) , cada um dos quais procura fazer valer os seus pontos de vista - j untamente
com um "indeciso" simbólico. George Rudé é mais ortodoxo e simpático em
Robespierre: Portrait of a Revolutionary Democrat ( Nova Iorque, 1 98 5 ) . David Jordan,
com The Revolutionary Career of Maximilien Robespierre ( Nova Iorque, 1 98 5 ) , é quem
mais se aproxima de expor a psicologia política e a intensa consciência histórica
pessoal de Robespierre, mas deve ser lido em conj unto com o excelente estudo de
C arol Bium sobre Rousseau e a linguagem revolucionária, Jean-Jacques Rousseau
and the Republic of Virtue. Alfred C obban, Aspects of the French Revolution ( Londres,
1 96 8 ) , também inclui um excelente ensaio sobre a aplicação dos ideais e da lin­
guagem de Rousseau por Robespierre . A edição enorme das Oeuvres Completes de
Robespierre, ed. Eugene Déprez et al. ( 1 0 vols ., Paris, 1 9 1 0- 1 96 8 ) , foi completada
em 1 96 8 .
Para um b o m exemplo d a intensificação d a guerra d a Revolução à Igrej a tra­
dicional, vej a - se Y. G . Paillard, "Fanatiques et Patriotes dans !e Puy-de-Dôme", in
Annales Historiques de la Révolution Française ( Abril -Junho de 1 9 7 0 ) . Sobre as altu ­
ras e a geografia das vagas de emigração, vej a - se Donald Greer, The Incidence of the
Emigration During the French Revolution ( Cambridge, Mass . , 1 9 5 1 ) . Sobre a violên­
cia no Midi, vej am-se Hubert Johnson, The Midi in Revolution: A Study of Regional
Political Diversity 1 789- 1 793 (Princeton, 1 98 6 ) , e os primeiros capítulos de Gwynne
Lewis, The Second Vendée: The Continuity of Counterrevolution in the Department of the
Gard 1 789- 1 8 1 5 ( Oxford, 1 97 8 ) , e um artigo estimulante e importante de Colin
Lucas, "The Problem of the Midi in the French Revolution ", in Transactions of the
Royal Historical Society ( 1 978, pp. 1 -2 5 ) .
Simon Schama 1 CIDADÃOS

As origens da guerra de 1 792 são discutidas no magnífico livro de T. C . W.


Blanning, The Origins of the French Revolutionary Wars ( Londres, 1 98 6 ) . Sobre os
clubes e as legiões estrangeiros, vejam-se Albert Mathiez, La Révolution Française
et les Étrangers ( Paris, 1 9 1 9 ) , Jacques Godechot, La Grande Nation: L'Expansion
Révolutionnaire de la France dans le Monde 1 789- 1 799 ( Paris, 1 9 5 6, vol. I ) , e S chama,
Patriots and Liberators ( introdução e capítulo 4 ) . S obre o princípio da carreira de
B rissot, vej a -se Robert Darnton, " A Spy in Grub Street", in Literary Underground
(pp. 4 1 - 7 0 ) , que decide a questão da dupla fidelidade pré- revolucionária de
B rissot mas que talvez subvalorize o poder da sua retórica patriótica no crucial
Inverno de 1 7 9 1 - 1 7 9 2 . Vej a -se também Eloise Ellery, Brissot de Warville: A Study
in the History of the French Revolution ( B óston e Nova Iorque, 1 9 1 5 ) . S obre
Vergniaud, vej a -se C laude B owers, Pierre Vergniaud: Voice of the French Revolution
( Nova Iorque, 1 9 5 0 ) .
A melhor maneira d e estudar a extraordinária oratória patriótica deste período
é lê-la, não editada, nos Archives Parlementaires ou no Moniteur, onde ganha vida
com um vigor e uma ressonância espantosos. Os historiadores redescobriram
recentemente a importância da retórica na Revolução, mas uma geração muito
anterior de académicos estava bem ciente dela. Vej a - se, por exemplo, a obra canó­
nica de Alphonse Aulard, L'Eloquence Parlementaire Pendant la Révolution Française,
vol. 1, Les Orateurs de l 'Assemblée Constituante ( Paris, 1 882 ) , e sobre os grandes ora­
dores da Assembleia o vol. II, Les Orateurs de la Législatif et de la Convention ( Paris,
1 886 ) . Existe uma útil introdução na excelente compilação de discursos publicada
por H . Morse Stephen, The Principal Speeches of the French Revolution 1 789- 1 795
(2 vols . , Oxford, 1 982 ) . Para abordagens mais recentes, vej am-se Lynn Hunt, "The
Rhetoric of Revolution", in Politics, Culture and Class (pp. 1 9 - 5 1 ), Gumbrecht,
Funktionen der Parliamentarischen Rhetorik, S chama, "The Self- C onsciousness of
Revolutionary Elites", in Consortium on the French Revolution, e Starobinski,
"La Chaire, Ia Tribune, !e B arreau", in Nora (ed. ) , Les Lieux de Mémoire, vol. II,
La Nation. Pierre Trahard, numa obra introdutória indevidamente ignorada, La
Sensibilité Révolutionnaire ( Paris, 1 9 3 6 ) , também tem muitas coisas de interesse a
dizer sobre este tópico .
Sobre a história da "Marselhesa", vej am-se o esplêndido ensaio de Michel
Vovelle, "La Marsellaise: La Guerre ou Ia Paix ", in Nora (ed. ) , Les Lieux de Mémoire,
vol . 1, La République (pp. 8 5 - 1 3 6 ) , e Julien Tiersot, Rouget de Lisle ( Paris, 1 9 1 6 ) .
Sobre o efeito da política n o exército no princípio da guerra, vej a -se Scott, The
Response of the Royal Army ( capítulos 3 - 5 ) .
Sobre a crise económica d a Primavera e d o Verão de 1 792, o livro excepcio­
nalmente claro e útil de Florin Aftalion, L'Économie de la Révolution Française ( Paris,
1 987, capítulos 4 - 6 ) , é um guia indispensável e demonstra as consequências
desastrosamente inflacionárias da política monetária da C onstituinte e da
Legislativa . Vej a - se também S. E. Harris, The Assignats ( Cambridge, Mass. , 1 9 3 0 ) .
Sobre o desenvolvimento da consciência sans culotte, vej a-se R. B . Rose, The Making
of the Sans-culottes (capítulos 8 e 9 ) ; sobre o culto do barrete vermelho, veja-se Jennifer
Harris, "The Red Cap of Liberty: A Study of Dress Wom by French Revolutionary
Partisans 1 789- 1 794", in Eighteenth-Century Studies ( 1 98 1 , pp. 2 8 3 - 3 1 2 ) .
Reinhard é particularmente bom sobre a preparação d a revolução d e 1 O de
Agosto e os pormenores do dia . A obra principal e gigantescamente detalhada
sobre a organização da Comuna insurrecta (mas não sobre os acontecimentos do
próprio dia ) continua a ser Fritz B raesch, La Commune de Dix Aout, 1 792 : Étude sur
l 'Histoire de Paris de 2 0 Juin au 2 Décembre 1 792 ( Paris, 1 9 1 1 ). Morris S lavin pôs
em causa a classificação de B raesch da compleição política das secções de Paris;
763

vej a -se o seu " Section Roi-de- Sicile and the Fali of the Monarchy", in Slavin e
Smith ( eds. ) , Bourgeois, Sans-culottes and Other Frenchmen (pp. 5 9 - 74) . Outro micro­
- estudo fascinante de Slavin é The French Revolution in Miniature: Section Droits de
l 'Homme 1 789- 1 795 ( Princeton, 1 984) .

1 5 SANGUE IMPURO

S obre a invenção e politização da guilhotina, vej a -se o brilhante trabalho de


Daniel Arasse, La Guillotine et L'Imaginaire de la Terreur ( Paris, 1 987 ) . Sobre a cam­
panha de repressão levada a cabo pela C omuna e as suas relações combativas com
a Assembleia Legislativa, vej a - se B raesch (pp. 3 34- 3 6 1 ) .
O trabalho canónico sobre os assassinatos nas prisões é Pierre Caron, Les
Massacres de Septembre ( Paris, 1 9 3 5 ) . Apesar de a interpretação que faz das provas
me parecer, em última análise, tendenciosa, é uma obra que continua a ser útil
devido à sua enorme pesquisa nos arquivos. S ubscrevo uma grande parte das crí­
ticas que Frédéric B luche faz em Septembre 1 792 : Logiques d 'un Massacre ( Paris,
1 9 86 ) . Apesar de não centrar a sua história nos massacres de Paris, B raesch é
mais directo na atribuição das responsabilidades pelas lideranças das secções
(pp. 464 sqq . ) e conclui que houve a "complicité d 'une grande partie de la population
parisienne avec les massacreurs" ( p . 490 ) . Sobre Danton como ministro da Justiça,
vej a -se Hampson (pp. 6 7 - 84 ) .
Alison Patrick, The Men of the First French Republic ( Baltimore, 1 972 ) , continua
a ser a análise canónica dos homens da Convenção e é especialmente valiosa por
não emparelhar convicções políticas com ocupações profissionais . Além disso, cor­
rige o excessivamente céptico The Girondins ( Londres, 1 96 1 ), de M. J. Sydenham,
que argumenta peculiarmente que dado não se poder provar que os girondinos
eram um "partido" coeso no sentido moderno, o seu agrupamento na Convenção
foi essencialmente uma questão de associações casuais e afinidades pessoais. Não
há dúvida de que as amizades e as afinidades pessoais davam origem a fortes liga ­
ções numa geração romântica para a qual o culto da amizade era um índice de
pureza ideológica . Contudo, a falta de coesão dos girondinos e a tendência de
alguns dos seus membros (por exemplo, de Isnard) para votarem de forma inde­
pendente não significava que lhes faltava o sentido de solidariedade face à
Montanha. Albert S oboul (ed. ) , Actes du Colloque " Girondins et Montagnards"
( Paris, 1 98 0 ) , vai talvez demasiado na direcção oposta quando tenta atribuir aos
girondinos um ethos de classe específico, mas o volume contém contributos inte ­
ressantes de Alan Forrest sobre os federalistas de B ordéus e de Marcel Dorigny
sobre as ideias económicas de alguns dos principais girondinos .
Sobre o j ulgamento de Luís XVI, o melhor relato é D avid Jordan, The King 's
Triai ( B e rkeley e Los Angeles, 1 9 7 9 ) . A edição de Michael Walzaer de alguns dos
principais discursos, Regicide and Revolution ( C ambridge, 1 9 74 ) , é útil pela sua
documentação mas defende de forma inquietante o julgamento e da execução
como "nada mais do que o derrube j urídico do direito divino da monarquia ",
parecendo ignorar o facto inequívoco de que o rei foi j ulgado por crimes cometi­
dos enquanto monarca constitucional e que o j u lgamento não incidiu minima ­
mente sobre as teorias de soberania mutuamente exclusivas baseadas na
soberania popular e no direito divino . Patrick, The Men of the First Republic, é
muito bom sobre a política do j ulgamento . S obre o cativeiro e os últimos dias do
rei, vej am-se J . B . Cléry, A Journal of the Terror (ed. Sidney S cott, Londres, 1 9 5 5 ) ,
e Gaston d e B eaucourt, Captivité e t Derniers Moments de Louis XVI: Récits Originaux
Simon Schama 1 CIDADÃOS

et Documents Officiels ( Paris, 1 892 ) , em especial, o vol. II, que contém as declara ­
ções oficiais e os trabalhos da C omuna, bem como relatos do abade E dgeworth e
o texto do testamento de Luís XVI . S obre a defesa levada a cabo por Malesherbes,
vej a - se Grosclaude, Malesherbes (pp. 7 0 3 - 7 1 6 ) .

1 6 INIMIG O S D O POVO?

Sobre Talleyrand em Londres, vej a -se O rieux, Talleyrand (pp. 1 92 - 2 09 ) ; o


encontro de Fanny Burney com Madame de Stael e os "j unipereanos" consta de
Joyce Hemlow ( ed. ) , The Journals and Letters of Fanny Burney (vol. III, Oxford,
1 972 ) . Sobre o clima da política britânica em finais de 1 7 92 e princípios de 1 7 9 3 ,
vej a - se Albert Goodwin, The Friends of Liberty: The English Movement i n the Age of
the French Revolution ( Londres, 1 979, em especial, o capítulo 7 ) . Os antecedentes
e o aproximar da guerra contra a Inglaterra, a E spanha e a Holanda são aborda­
dos em T. C. W. B lanning, Origins. Para o discurso de Kersaint, vej a - se o Moniteur
de 3 de Janeiro de 1 7 9 3 . Vej a - s e também J. Holland Rose, William Pitt and the
Great War ( Londres, 1 9 1 1 ) . Existem documentos sobre o Escalda e a defesa da
Holanda em H . T. C olenbrander, Gedenkstukken der Algemeene Geschiedenis van
Nederland van 1 789 tot 1 840 ( Gravenhage, 1 9 0 5 , vol. 1, p. 2 8 5 , de Grenville para
Auckland, e p. 2 9 1 , de Talleyrand para Grenville ) . Vej a -se também S chama,
Patriots and Liberators (pp. 1 5 3 - 1 6 3 ), sobre a campanha de Dumouriez. O texto
integral da carta de Dumouriez à C onvenção consta do j ornal parisiense Le Batave
de 2 5 de Março de 1 7 9 3 .
Existe uma literatura abundante sobre a s origens e o curso d a rebelião da
Vendeia. Outra obra -prima de investigação e edição de material de arquivo,
datada de finais do século XIX, da autoria do incansável C .L . Chassin, La
Préparation de la Guerre de Vendée 1 789- 1 793 (3 vols ., Paris, 1 892 ) , é o lugar por
onde se deve começar a compreender plenamente a colisão entre o republica ­
nismo e a Igrej a naquela região. O relato de Berthuis da sua experiência infantil
aquando do massacre de Machecoul provém de C hassin (vol. III, pp. 3 3 7 sqq. ) .
A arenga de Laparre em Fontenay encontra -se em ibid ( p . 2 2 0 ) , bem como os
relatórios de B iret (pp. 2 1 3 - 2 78 ) . A outra grande compilação documental de
Chassin relativa a este tema é La Vendée Patriote 1 793 - 1 800 ( 4 vols . , Paris, 1 89 3 -
- 1 8 9 5 ) . Embora The Vendée ( Cambridge, Mass . , 1 9 64) , d e Charles Tilly, não se
ocupe de toda a "Vendeia militar" mas apenas da região dividida pelo Layon - um
facto que os historiadores franceses são sempre lestos a assinalar -, não deixa de
ser de grande importância e valor pela sua descrição da geografia social das fide­
lidades. A outra obra principal sobre esta temática, escrita num estilo semelhante
mas com uma extraordinária riqueza descritiva, é Paul B ois, Les Paysans de l 'Ouest
( Paris, 1 96 0 ) . Todavia, dois trabalhos recentes, ainda que em estilos muito dife ­
rentes transformaram a historiografia. Jean - Clément Martin, La Vendée et la France
( Paris, 1 98 7 ) , principalmente baseado em fontes impressas de Chassin, é um
modelo de empatia e sensibilidade histórica . A sua tentativa de ver os dois lados
do conflito torna as suas terríveis conclusões ainda mais arrepiantes e o livro deve
pôr fim, de uma vez por todas, ao cepticismo relativo à escala da perda popula -
cional e da destruição na região A obra de Reynald Sécher, Le Génocide Franco­
-Français: La Vendée-Vengé ( Paris, 1 9 8 6 ) , é confessadamente mais polémico mas,
decorrendo de uma investigação profunda de arquivos departamentais e nacio­
nais, é bastante convincente . Os seus argumentos estão imbuídos de uma inten­
sidade trágica que faz os apelos académicos à "ausência de paixão" parecerem
765

comicamente amorais . No extremo oposto do temperamento histórico, o solida ­


mente sociológico Marcel Faucheux, L'lnsurrection Vendéenne de 1 793 (Paris, 1 9 64),
esforça -se por explicar tudo em termos de estruturas socioeconómicas - e falha
quase sempre. Sobre o curso da guerra, P. Doré- Graslin, Itinéraire de la Vendée
Militaire ( Angers, 1 97 9 ) , é uma evocação assombrosa, através de documentos e
mapas contemporâneos e de fotografias modernas, dos locais dos combates e das
destruições. Jean- Clément Martin contribuiu também com um ensaio maravi­
lhoso sobre o eco da Guerra da Vendeia em períodos posteriores, "La Vendée,
Région-Mémoire, Bleus et B lancs", in Nora ( ed . ) , Les Lieux de Mémoire, vol. I, La
République (pp . 5 9 5 - 6 1 7 ) . Sobre a revolta relacionada mas distinta na B retanha,
veja-se Donald Sutherland, The Chouans: The Social Origins of Popular Counter­
-Revolution in Upper Brittany 1 770- 1 796 ( O xford, 1 982 ) , e T. J. A. Le Goff e D. M. G.
Sutherland, "The Social Origins of Counter-Revolution in Western France ", Past
and Present ( 1 9 8 3 ) .
S obre a crise económica d e 1 7 9 3 e a conversão dos j acobinos à regulação eco­
nómica, vej a -se Aftalion, L'Économie de la Révolution ( capítulos 7 e 8 ) . Sobre os
princípios dos enragés, vej a - s e R . B. Rose, The Enragés: Socialists of the French
Revolution? ( Melbourne, 1 96 5 ) . Vej a -se também Walter Markov ( ed . ) , Jacques
Roux: Scripta et Acta ( B e rlim, 1 9 6 9 ) . S obre os motins alimentares de Fevereiro,
vej am-se George Rudé, "Les É meutes des 2 5 , 26 Février 1 7 9 3 ", in Annales
Historiques de la Révolution Française ( 1 9 5 3, pp. 3 3 - 5 7 ) , e Albert Mathiez, La Vie
Chere et Mouvement Social sous la Terreur ( 2 vol s . , Paris, 1 92 7 ) . Sobre a base social
e a organização dos sans-culottes, vej am - se Albert S oboul, The Parisian Sans-culot­
tes and the French Revolution ( O xford, 1 96 4 ) , e o excelente estudo comparado com
os trabalhadores ingleses de Gwynn Williams, Artisans and Sans-culottes ( Londres,
1 9 68 ) . A premissa clássica de S oboul, a existência de uma clivagem entre os
j a cobinos ( "burgueses " ) e os sans-culottes ( artesãos ) não tem resistido bem às aná ­
lises mais pormenorizadas ao nível das secções, onde se descobre que os sans­
culottes se compunham amiúde dos mesmos grupos sociais que as bases j a cobinas
- artesãos, intelectuais frequentadores das loj a s de vinhos, advogados, funcioná­
rios e profissionais liberais, e ocasionalmente trabalhadores por conta de outrem.
Para uma análise ainda mais válida da composiçao dos j a cobinos, vej a - s e o mag­
nífico trabalho de C rane B rinton, The Jacobins ( Nova Iorque, 1 9 3 0 ) . O ataque
mais poderoso ao conceito de "movimento " sans-culotte provém da obra extraor­
dinária de Richard C obb, The Police and the People: French Popular Protest 1 789- 1 82 0
( Oxford, 1 97 0 ) , e foi renovado no seu Reactions to the French Revolution ( Oxford,
1 972 ) . Michel Vovelle tenta responder à pergunta "O que era um sans-culotte?"
em La Mentalité Révolutionnaire: Société et Mentalités sous la Révolution Française
( Paris, 1 9 8 5 , pp. 1 09 - 1 2 3 ) . Para uma perspectiva muito original e importante,
vej a - s e R . M . Andrews, "The Justices of the Peace of Revolutionary Paris,
September 1 7 92 -November 1 794", in D ouglas Johnson, French Society and the
Revolution, (pp. 1 6 7 - 2 1 6 ) . Sobre os tumultos antigirondinos de 1 0 de Março,
vej a -se A . M . Boursier, "L' É meute Parisienne du 1 0 Mars 1 7 9 5 ", in Annales
Historiques de la Révolution Française ( Abril-Junho de 1 9 72 ) . S obre o combate de
Marat com os girondinos e o seu j u lgamento e absolvição, vej a - s e a sua biogra ­
fia estranhamente pouco sanguinária, Marat ( Nova Iorque, 1 92 7 , pp. 1 3 9 - 1 6 8 ) ,
por Louis Gottschalk. Sobre a expulsão dos girondinos e a s políticas j a cobinas
que a provocaram, vej a - s e a acessível e pormenorizada narrativa de Morris
Slavin, The Making of an lnsurrection: Parisian Sections and the Ciranda ( Cambridge,
Mass . . 1 9 86 ) .
Simon Schama 1 CIDADÃOS

1 7 " O TERROR ESTÁ NA ORDEM DO DIA"

Sobre os girondinos na Normandia, vej a-se Albert Goodwin, "The Federalist


Movement in Caen During the French Revolution", in Bulletin of the John Rylands
Library ( 1 9 5 9 - 1 960, pp. 3 1 3 - 344) . Sobre outros centros mais importantes de resis­
tência federalista, vej am-se Alan Forrest, Society and Politics in Revolutionary
Bordeaux ( Oxford, 1 9 7 5 ) , W. H. S cott, Terror and Repression in Revolutionary
Marseilles ( Londres, 1 97 3 ), Hubert Johnson, The Midi in Revolution ( capítulo 7 ) ,
M. C rook, "Federalism and the French Revolution : The Revolt of Toulon i n 1 79 3 " ,
History ( 1 980, p p . 3 8 3 - 3 9 7 ) , D . Stone, " L a Révolte Fédéraliste à Rennes", Annales
Historiques de la Révolution Française (Julho- S etembro de 1 97 1 ) , e sobre o mais
importante de todos, Lyon, vej a - se C. Riffaterre, Le Mouvement Anti-Jacobin et Anti­
-Parisien de Lyon et dans le Rhône-et-Loire en 1 793 (2 vais . , Lião, 1 9 1 2 - 1 92 8 ) . Para
uma análise da força regional do federalismo no Loire e das suas bases urbanas,
vej a -se C olin Lucas, The Structure of the Terror: The Case of Javogues and the Loire
( Oxford, 1 9 7 3 , pp. 3 5 - 60 ) .
O assassinato, o funeral e o culto d e Marat foram obj ecto d e uma fascinante
colecção de ensaios editada por Jean - C laude B onnet, La Mort de Marat ( Paris,
1 98 6 ) . Vej am - se, em particular, os contributos de J . Guilhaumou, J . C. B onnet
( sobre o j ornalismo de Marat) e C hantal Thomas sobre a imagem de Charlotte
C orday. Muito surpreendentemente, talvez, o interesse moderno pelo culto de
Marat, pela exploração da imagem do sangue e pela invenção, por D avid, de
uma martirologia republicana, foi antecipado na excelente obra de E ugene
Defrance, Charlotte Corday et la Mort de Marat ( Paris, 1 9 0 9 ) , da qual tirei muitos
dos exemplos mais extremos da "maratologia " . Vej a - se também F. B. B owman,
"Le Sacré Coeur de Marat", Annales Historiques de la Révolution Française (Julho­
- S etembro de 1 9 7 5 ) . A viagem, o acto e o j ulgamento de Charlotte Corday
podem ser seguidos com todos os detalhes no algo hagiográfico ( mas muitíssimo
cativante ) Jean Epois, L'Affaire Corday-Marat: Prélude à la Terreur ( Les Sables ­
- d ' O lonne, 1 9 80 ) .
Sobre a Festa da Unidade e outros festivais revolucionários em geral, a obra
crucial é Ozouf, Festivais and the French Revolution. Ozoul é particularmente elo­
quente em relação às tentativas oficiais para moldar o sentido do espaço e do
tempo dos cidadãos através dos festivais. Sobre as imagens de Hércules, bem como
outras questões relacionadas com as práticas simbólicas do discurso revolucioná­
rio, veja-se Hunt, Politics, Culture and Class. Vários outros trabalhos abordam o
papel de David na montagem dos grandes festivais, em particular, D . L. D owd,
Pageant-Master of the Republic: Jacques-Louis David and the French Revolution ( Lincoln,
Neb ., 1 948 ) ; vej a - se também, idem, "Jacobinism and the Fine Arts ", in Art
Quarterly ( 1 9 5 3, n . º 3 ) . Sobre David, vej a - s e também Anita B rookner, David (Nova
Iorque, 1 9 8 0 ) , e o excelente estudo de Warren Roberts sobre o pintor, a publicar.
O artista Georges Wille deixou uma descrição vívida da festa de 1 O de Agosto de
1 79 3 , Mémoires et Journal (ed. G. D uplessis, Paris, 1 8 5 7 ) .
Sobre a primeira fase do C omité de Salvação Pública e o papel de Danton nele,
vej a -se Hampson, Danton (pp. 1 1 7 - 1 3 6 ) . Sobre a intervenção crucial mas pessoal­
mente desastrosa de Jacques Roux no dia 25 de Junho, vej a-se Markov, Jacques
Roux (pp . 480-486 sqq. ) . Sobre os alicerces e o funcionamento do Terror econó ­
mico, veja-se Aftalion, L'Économie de la Révolution, e H. C alvet, L'Accaparement à
Paris sous la Terreur: Essai sur l 'Application de la Loi de 26 Juillet 1 793 ( Paris, 1 9 3 3 ) .
Sobre o significado da aplicação d o maximum a o nível d a aldeia, vej a -se Richard
C obb, The Police and the People, e a sua obra clássica . The People 's Armies.
767

Sobre a levée en masse, a obra que ultrapassa todas as outras é J.P. Berthaud, La
Révolution Armée: Les Soldats-Citoyens et la Révolution Française (Paris, 1 97 9 ) . Baseio­
-me bastante neste livro magnífico para o meu relato da mobilização. R . R . Palmer,
Tu!elve Who Ruled: The Year of the Terror in the French Revolution ( Princeton, 1 94 1 ) ,
continua a ser u m relato excepcionalmente legível ainda que algo idealizado do
governo revolucionário.
Sobre a mentalidade, as instituições e as práticas do Terror, The Structure of the
Terror, de C olin Lucas, é uma monografia brilhante, persuasiva na sua descrição
das complicações das fidelidades locais e assustadoramente vívida no seu retrato
de Javogues . Vej a -se também Lucas, " La B reve C arriere du Terroriste Jean-Marie
Lapalus", in Annales Historiques de la Révolution Française ( Outubro -D ezembro de
1 96 8 ) . E xistem outros estudos locais excelentes, em particular, Martyn Lyons,
"The Jacobin Elite of Toulouse", in European Studies Review ( 1 97 7 ) . Vej a - se tam­
bém o relato de Richard C obb da carreira de Nicolas Guénot e de outros terroris­
tas no seu Reactions to the French Revolution . A caracterização mais brilhante da
"mentalidade revolucionária " partilhada por terroristas e sans-culottes é o ensaio
de C obb, " Quelques Aspects de la Mentalité Révolutionnaire Avril 1 79 3 -
-Thermidor A n II" n o seu Terreur e t Subsistances 1 793-95 ( Paris, 1 9 64 ) , uma versão
abreviada da qual consta do seu livro A Second Identity ( Oxford, 1 9 72 ) . Sobre a
estrutura legal da repressão, vej a - s e John B lack Sirich, The Revolutionary
Committees in the Department of France 1 793-94 ( Nova Iorque, 1 9 7 1 ) . Num colóquio
do C entro de Estudos Europeus da Universidade de Harvard, Richard Andrews
leu uma comunicação extraordinariamente importante e provocadora que
demonstrou que a base jurídica da definição revolucionária de crimes políticos
não foi estabelecida em 1 7 9 5 , pela Lei dos Suspeitos (que no entanto a amplio u ) ,
mas pelo Código Penal de 1 79 1 . Finalmente, u m a obra importante, cuj a s con­
clusões essenciais correlacionando o Terror com os departamentos na guerra civil
não foram muito afectadas pelas críticas ao uso de estatísticas por parte do autor,
é D . Greer, The Incidence of the Terror During the French Revolution: A Statistical
Interpretation ( C ambridge, Mass . , 1 9 3 5 ) .
Sobre a s repressões federalistas, vej a -se, e m relação a Lyon, Edouard Herriot,
Lyon n 'est Plus (4 vols., Lyon, 1 9 3 7 - 1 940 ) . O barão Raverat, Lyon sous la Révolution
( Lyon, 1 88 3 ) é previsivelmente (e por boas razões ) hostil aos j acobinos mas con­
tém muito material interessante . Vej am-se também M. Seve, " S ur la Pratique
Jacobine: La Mission de C outhon à Lyon", in Annales Historiques de la Révolution
Française ( Abril-Julho de 1 98 3 ), Richard C obb, "La C ommission Temporaire de
C ommune Affranchie", in Terreur et Subsistances (pp. 5 5 - 94) , e o excelente livro de
William S cott, Terror and Repression in Revolutionary Marseilles ( Londres, 1 97 3 ) .
Sobre a s " colunas infernais'', a devastação d a Vendeia e o s afogamentos em
Nantes, vej a - se Sécher, J . - C . Martin e Gaston Martin, C arrier et sa Mission à
Nantes ( Pa ris, 1 924) .
S obre a descristianização, a obra essencial é Michele Vovelle, Religion et
Révolution, la Déchristianisation de l 'An II ( Paris, 1 976 ) . Sobre o calendário revolu­
cionário, vej a -se B ronislaw B aczko, "Le Calendrier Républicain", in Nora (ed. ) , Les
Lieux de Mémoire, vai. I, La République (pp. 3 8 - 82 ) ; vej am-se também James
Friguglietti, The Social and Religious Consequences of the French Revolutionary Calendar
( dissertação para tese de licenciatura da Universidade Harvard, 1 96 6 ) , e Louis
Jacob, Fabre d 'Églantine: Chef des Fripons (Paris, 1 946 ) .
Simon Schama 1 CIDADÃOS

1 8 A POLÍTICA DA TORPEZA

O relato de Beugnot da sua estadia na C onciergerie e do seu encontro com


"Eglé" encontra -se em C. A . Dauban, "Les Prisons de Paris sous la Révolution
(Paris, 1 87 0 ) , que é uma mina de informações sobre as prisões do Terror, incluindo
as esplêndidas "Mémoires d'un D étenu ", de Riouffe, originalmente publicadas sob
o regime termidoriano do Ano III, uma data que não considero que a desqualifique
de uma atenção séria . Olivier Blanc, La Derriere Lettre: Prisons et Condamnés 1 793 -94
(Paris, 1 984), também é um guia para as condições vigentes nas várias prisões e
reproduz um dossiê com algumas das cartas mais comoventes e aflitivas escritas
pelos condenados. Veja-se também A. de Maricourt, Prisonniers et Prisons de Paris
Pendant la Terreur ( Paris, 1 92 7 ) , e a parte I de Cobb, The Police and the People.
Sobre a prisão e j ulgamento de Maria Antonieta, o leitor pode escolher entre
a hagiografia e a demonologia . G . Lenôtre, La Captivité et la Mort de Marie-Antoinette
( Paris, 1 89 7 ) , e E. C ampardon, Marie-Antoinette à la Conciergerie ( Paris, 1 86 3 ) , são
ambos simpáticos; Gérard Walter, Marie-Antoinette ( Paris, 1 894) é hostil. Os tra ­
balhos do tribunal foram publicados na Acte d 'Accusation e no Bulletin do Tribunal
Revolucionário . O período que se seguiu à morte de Luís XVI assistiu a uma nova
explosão de pornografia violenta baseada em publicaçõs anteriores como
L'Autrichienne en Goguettes ou l 'Orgie Royale ou apresentando-se como obras novas,
tais como La Journée Amoureuse ou les Derniers Plaisirs de Marie-Antoinette, na qual
Lamballe oferece à rainha toda a espécie de prazer sexual enquanto ela masturba
um Luís enfraquecido . Estas obras pornográficas estimularam por sua vez um
género de literatura de ódio da qual o Nre Duchesne não é, nem de perto nem de
longe, a mais vitriólica . Para uma das mais violentas, vej a - se, por exemplo,
J'Attends le ?roces de Marie-Antoinette, na qual a guilhotina zomba do destino da rai­
nha : "Já estais na cela; dai mais um passo, espero -vos; uma cabeça bonita como a
vossa dá um belo ornamento para a minha máquina . " O texto Grande Motion des
Citoyennes de Divers Marches é outro coro a favor da morte da "bougresse" mas
advoga que ela sej a chicoteada e queimada antes da decapitação.
Sobre outras mulheres notáveis que foram vitima das, vej a m - s e Guy
Chaussinand-Nogaret, Madame Roland ( Paris, 1 98 5 ) , e Olivier B lanc, Olympe de
Gouges ( Paris, 1 98 1 ) . Darline Gay Levy, Harriet Branson Applewhite e Mary
Durham Johnson, em Women in Revolutionary Paris ( Urbana, Ill. , 1 97 9 ) , abordam a
atitude dos jacobinos face às sociedades e clubes políticos das mulheres e a res­
posta destas. Vej a - s e também Dominique Godineau, Citoyennes Tricoteuses.
Sobre a utilização da guilhotina como teatro político e a mecanização da
morte, vej a - se Arasse, La Guillotine et l 'Imaginaire (pp. 97- 1 64 ) . Sobre Fouquier­
-Tinville e a rotina do Tribunal, vej a - se Albert C roquez e Georges Loubie,
Fouquier- Tinville: L'Accusateur Public (Paris, 1 94 5 ) .
Sobre a complicadíssima vigarice dos "Pourris", vej a - se Norman Hampson,
" François C habot and his Plot", in Transactions of the Royal Historical Society ( 1 9 7 6,
pp. 1 - 1 4 ) ; vej a - s e também Louis Jacob, Fabre d' É glantine (pp. 1 6 8 - 2 7 4 ) . Albert
Mathiez publicou um grande número de artigos atacando Danton por corrupção
e Alphonse Aulard defende u - o com igual paixão. Muita desta literatura foi
obj e cto de recensão num ensaio essencialmente simpático à visão de Mathiez
mas mais aberto ao debate, por George Lefebvre, " S ur D anton " , reimpresso nos
seus Études sur la Révolution Française ( Paris, 1 9 6 3 ) . Para tratamentos mais equi­
librados do fim da carreira de Danton, vejam-se a excelente biografia de Norman
Hampson e o retrato vívido e cativante de Frédéric B luche, Danton ( Paris, 1 9 68 ) .
Desmoulins ainda carece de uma biografia moderna . Vej a -se J . Claretie, Camille
769

Desmoulins, Lucile Desmoulins, Étude sur les Dantonistes ( Paris, 1 8 7 5 ) . O brilhan­


tismo da estratégia j o rnalística do " Vieux Cordelier" foi finalmente reconhecida
num artigo importante de Georges B enrekassa, " C amille Desmoulins, É crivain
Révolutionnaire : 'Le Vieux C ordelier' " , in B onnet et a!. ( e ds . ) , La Carmagnole des
Muses (pp. 2 2 3 - 24 1 ) .

1 9 QUILIASMO

Sobre a destruição da família de Malesherbes, vej a - se Grosclaude, Malesherbes


( capítulos 1 6 e 1 7 ) . Vej am-se também as Mémoires de Hervé de Tocqueville, utili­
zadas por André Jardin, Tocqueville: A Biography (trad. Lydia Davis e Robert
Hemenway, Nova Iorque, 1 98 8 ) , e R . R. Palmer ( ed . ) , The TWo Tocquevilles, Father
and Son: Hervé and Alexis de Tocqueville on the Coming of the French Revolution
( Princeton, 1 987 ) .
Sobre o ataque a o "vandalismo", vej a - se o excelente ensaio de Anthony Vidler,
" Grégoire, Lenoir et les 'Monuments Parlants" ' , in B onnet et ai. (eds . ) , La
Carmagnole des Muses (pp. 1 3 1 - 1 5 1 ) . Sobre a Festa do Ser S upremo, vej am-se
Ozouf, Festivais, Biver, Fêtes, e em especial, Julien Tiersot, Les Fêtes, pp. 1 2 2 - 1 68,
que explica mais plenamente do que outros relatos a concepção essencialmente
musical das reuniões matinais e vespertinas . Sobre o papel de David, vej am-se
Dowd, Pageant-Master of the Republic, e o estudo a publicar por Warren Roberts .
Sobre a promoção abrupta de Désorgues, vej a - se Michel Vovelle, Théodore
Désorgues ou la Désorganisation, Aix-Paris 1 763 - 1 808 (Paris, 1 9 8 5 ) .
Greer, The Incidence of the Terror, oferece números de execuções durante o
Grande Terror. Richard T. B ienvenu, The Ninth Thermidor: The Fall of Robespierre
( Nova Iorque, Londres e Toronto, 1 9 6 8 ) , é uma antologia útil de documentos
editados com um guia pormenorizado e crítico para os acontecimentos, que
também podem ser seguidos nas biografias recentes, nomeadamente as de
Jordan e Hampson. Um dos relatos mais vívidos encontra -se na biografia mais
antiga de J . M . Thompson, Robespierre ( 2 vols . , Oxford, 1 9 3 5 ) . Para uma visão
ja cobina ortodoxa, vej a -se Gérard Walter, La Conjuration du Neuf Thermidor
( Paris, 1 974) .
O sobrevivente leonino da colecção de animais real é descrito por Raul Hesdin em
The Journal ofa Spy in Paris During the Reign ofTerror (Nova Iorque, 1 896, pp. 2 0 1 -202 ) .

EP ÍLOGO

Não tentei passar em revista as consequências da Revolução; procurei sumariar


o destino de algumas das principais empresas narradas no livro, em particular, a
tentativa condenada de reconciliação da liberdade política com um Estado
patriota. No entanto, existem vários trabalhos importantes que tratam o período
entre o Termidor e o B rumário, que foi, por direito próprio, um capítulo impor­
tante da Revolução Francesa. Vejam-se, em particular, Martyn Lyons, France Under
the Directory ( Londres, 1 97 5 ) , M. J. Sydenham, The First French Republic 1 792 - 1 804
( Londres, 1 9 74), e Denis Woronoff, The Thermidorean Regime and the Directory 1 794-
- 1 799 ( Londres, 1 984) . Sobre o destino das políticas revolucionárias neste período,
vejam-se Isser Woloch, Jacobin Legacy: The Democratic Movement Under the Directory
(Princeton, 1 97 0 ) , e R. B . Rose, Gracchus Babeuf: The First Revolutionary Communist
( Londres, 1 9 78 ) .
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Todavia, ultrapassando todos estes, vej a - se a notável síntese de D . M. G.


Sutherland, France 1 789- 1 8 1 5 : Revolution and Counterrevolution ( Londres, 1 98 5 ) .
( Ver abaixo . )
Sobre o s resultados sociais d a revolução j acobina, vej a -se Richard C obb,
" Quelques C onséquences Sociales de la Révolution dans un Milieu Urbain", no
seu Terreur et Subsistances, no qual concluiu que para a maioria dos habitantes de
Lille o Ano II não foi uma experiência feliz. C obb escreveu também comovente­
mente na mesma obra, em The Police and the People e em Reactions to the French
Revolution, acerca dos problemas de carestias que afectaram muitas partes da
França no Ano III, bem como sobre o C ontra -Terror em Lyon e no Midi. Veja-se
também o ensaio de C olin Lucas, "Themes in Southern Violence after 9
Thermidor", in Lucas e Gwynn Lewis, Beyond the Terror: Essays in French Regional
and Social History ( C ambridge, 1 98 3 ) .
Robert Forster argumenta d e forma convincente que a nobreza foi radical­
mente destruída pela Revolução; vej a - se o seu "The Survival of the French
Nobility During the French Revolution", in Past and Present ( 1 96 7 ) . Em relação a
este e outros aspectos da tentativa de restruturação das relações sociais, inclino­
- m e para a visão mais equilibrada e conservadora do excelente trabalho de Louis
B ergeron, France under Napoleon (trad. R . R . Palmer, Princeton, 1 98 1 ) .
Sobre Talleyrand na América, vej am-se Michel Poniatowski, Talleyrand aux
.É tats-Unis 1 7 94- 1 7 96 ( Paris, 1 96 7 ) , e Hans Ruth e Wilma J . Pugh, Talleyrand in
America as a Financial Promoter: Unpublished Letters and Memoirs ( Washington,
1 942 ) . Sobre Lafayette na prisão, vej a -se Peter B uckman, Lafayette: A Biography
(Nova Iorque e Londres, 1 977, pp. 2 1 7 - 2 34) . A estada de Madame de La Tour du
Pin na América está comovetemente descrita no seu Journal. Sobre a loucura de
Théroigne de Méricourt, vej a - se J . F. E squirol, Les Ma/adies Mentales ( 2 vols ., Paris,
1 8 38, vol. I, pp. 44 5 -4 5 1 ) .
Existem vários trabalhos generalistas de grande interesse para qualquer estu­
dante da Revolução Francesa. Em relação ao colapso da monarquia, William
Doyle, Origins of the French Revolution ( Oxford, 1 98 0 ) , é uma análise brilhante e
uma narrativa sucinta dos acontecimentos que conduziram a 1 789, e tem uma
introdução excelente sobre os debates historiográficos ( que eu, de um modo geral,
optei por evitar) . Outro relato excelente das interpretações contraditórias encon­
tra-se em J . M . Roberts, The French Revolution ( Oxford, 1 978 ) .
A obra France 1 789- 1 8 1 5 : Revolution and Counterrevolution, de D . M . G . Sutherland,
é uma das histórias mais notáveis que apareceram nos últimos tempos pela subtileza
de grande parte da sua argumentação, pela riqueza do pormenor e pelo seu extenso
âmbito cronológico (talvez 1 774 a 1 8 1 5 fosse pedir de mais ) . .É muito mais uma his­
tória social do que política ou cultural, pelo que oferece uma interpretação implícita
do significado da Revolução. A minha ênfase é manifestamente de sentido oposto,
e em muitos aspectos segue o caminho trilhado de forma pioneira por Alfred
Cobban, cujo ensaio "Myth of the French Revolution" foi em tempos considerado
tão escandaloso e cujo livro Social Interpretation of the French Revolution ( Cambridge,
1 964), se tornou um clássico de interpretação histórica . Uma grande parte da escrita
extraordinária de Richard Cobb reconstrói as vidas de muitos que sobreviveram e
resistiram à Revolução sem serem por ela atirados para a ribalta. Ao defender a "irre ­
levância" da Revolução para aqueles que experimentaram oscilações de abundância
e carestia, crime e desespero, C obb coloca necessariamente a pergunta : "Se a
Revolução não foi uma transformação social, então o que foi?"
A resposta tem vindo cada vez mais a ser encontrada no reino da cultura polí­
tica, e François Furet, em Penser la Révolution (Paris, 1 97 8 ) , traduzido com o título
77 1

de Jnterpreting the French Revolution, foi de importância fundamental ao redireccio­


nar a história da Revolução de novo para a política . Os livros de Lynn Hunt e
Mona Ozouf alicerçam esta insistência imaginativa no poder dos fenómenos cul­
turais - imagens e ícones, discursos, festivais (e poderíamos acrescentar j ornais e
canções) - para remodelarem as lealdades. Em última análise, a Revolução deu
origem a uma nova espécie de comunidade política, mais alicerçada na adrenalina
retórica do que em instituições organizadas . Por conseguinte, devido às exagera ­
das expectativas que gerou, estava destinada a autodestruir-se. Afinal, Rousseau
tinha avisado (mais ou menos) que seria utópico esperar a instituição de uma
República da Virtude num Grande Estado.
Índice Remissivo

A la Nation Provençal ( Mirabea u ) , 2 9 0 Albitte, Antoine, 6 2 3


Abadia, prisão d a , 3 2 1 , 5 3 3, 5 34, 5 3 7, Albourg, C atherine, 674
5 3 9, 5 40, 542, 5 44, 6 3 1 , 6 3 3 , 6 3 4 aleitamento materno, 1 2 5 - 7
Abbeville, 1 6 7 Alemanha: Império e , 7 1 8; Napoleão
Abria!, André, conde d', 72 1 na, 1 1 ; teoria da administração na,
Academia das Ciências, 1 5 7, 1 6 3 87
Academia de Lyon, 445 Alembert, Jean Le Rond d', 5 7, 69, 85
Academia de Medicina, 1 5 7, 1 5 8 Alexandre, C harles Alexis, 527
Academia de Música, 1 60 Aligre, Etienne-François, marquês d',
Academia dos Cirurgiões, 5 3 0 97, 2 1 9, 2 2 3
Academia Real das Ciências, 1 5 7 , 1 6 3 , Allaneau, viúva, 1 5 1
628 Almanach des Honnêtes Gens
Academia Real de Arquitectura, 344 ( Maréchal ) , 4 5 0
Academia Real de Pintura, 1 44, 379, Almanach des Muses, 2 3 1
62 5 Almanach du Pere Gérard ( C ollot
academias dissidentes, 2 5 1 d'Herbois ) , 4 5 0
Académie Française ( Academia almanaques, 1 5 3
Francesa ) , 29, 88, 1 1 5, 1 3 1 , 1 3 7, Alsácia: anti-semitismo na, 2 70;
1 5 7, 1 9 1 , 2 1 6, 343; oratória e, 42 9 assembleias provinciais de, 2 2 3 -4;
Achard de B onvouloir, 2 6 6 clero na, 422, 464; colheitas
Achard, 664 destruídas na, 2 5 9; emigrados na,
acte énonciatif, 5 5 7, 5 6 1 5 0 1 ; fim dos privilégios na, 377;
Actes des Apôtres, 42 1 , 4 5 8 Grande Medo, o, 369, 372, 3 74- 5;
Acton, John Emerich Edward na guerra, 5 1 3 , 5 2 2 ; reclamações
Dalberg-Acton, barão, XVII alemãs na, 5 06, 508
Adams, John, 3 5 Alta Guiana, assembleias provinciais
Adete de Senange ( Flahaut ) , 5 8 0 na, 72, 79
Affiches de Grenoble, Les, 2 3 1 Alto Sona, departamento de, 409
Aguesseau, Henri E rançois d', 2 7 amalgame, 6 5 1
Aiguillon, Armand de Vignerot du Amar, André, 679, 70 1 , 709, 7 1 2,
Plessis de Richelieu, duque d', 3 7 5 , Ambigu C omique, 1 1 6, 4 3 7
3 7 6 , 467,489 Ambly, Chevalier d', 3 7 5
Aiguillon, Emmanuel-Armand, duque América : Convenção C onstitucional,
d', 1 7 9, 3 1 6 306; emigrantes na, 72 5 - 34
Ain, Departmento de, 42 3 Amesterdão, 7 3 2 ; Câmara Municipal
Aix, 2 3 9, 4 1 2; cahier de, 262; Mirabeau de, 1 4 5; carregamento de cereais de,
em, 2 94, 2 9 5 ; Parlamentos de, 9 3 , 322; empréstimos de, 1 98, 2 1 O;
2 3 0; procissão d o s E stados e m , 2 94; insegurança política em, 208, 2 09,
tumulto em, 2 9 6 - 7 2 1 O; j ornais de, 1 49;
Albanette de C essieux, 664 Ami des Lois, L' ( Marivaux ) , 9 5
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Ami du Peuple, L', 3 8 3 , 3 94, 3 9 5 -6, Arblay, Alexandre Jean-Baptists,


4 3 0, 5 1 6, 523, 5 3 7 General d', 5 8 1 -2
Amiens, 1 67; desemprego em, 2 6 1 ; Arbogast, Louis François Antoine, 497
gardes françaises de, 3 2 5 ; transporte Archives Parlementaires, 499
para, 1 6 1 ; Arcq, Chevalier d', 1 06
Amours de Charlot et Toinette, 1 88 Ardeche, fome em, 2 60
Ana da Á ustria ( esposa de Luís XIII) , Arethusa ( fragata ) , 3 1
1 84, 3 1 9 Aretino, Pietro, 1 79
Anandria, 1 4 7 Argenson, René-Louis de Voyer,
Ancien Régime et la Révolution L', (de marquês d', 82, 9 8 - 9, 1 00 - 1 , 1 07,
Tocqueville ) , xxv 2 00, 299, 408, 490
Androuins, Pierre -Joseph de, 44 5 Arlandes, François Laurent, marquês
Angers : clero de, 5 9 5 , contrabando de d', 1 1 1
sal em, 62; Terror em, 669 Arles, 1 5 1 ; clero em, 5 0 1 , 5 9 3
Angiviller, C harles Claude, conde d', armas, manufactura de, 6 5 2
1 44, 1 88 - 9 armée revolutionnaire, 6 4 5 , 646, 648,
Angoulême, 1 06, 370 66� 68 1 , 689, 69� 7 1 �
Anjou: movimento federativo em, descristianização e , 6 5 8 - 9
432; padres refractários no, 5 9 6 ; armoire de fer, 5 5 6, 5 6 1 , 5 7 9
sublevação no 5 8 9, 5 9 3 , 5 9 5 Arnold, B enedict, 5 8 3
Annales Patriotiques, 45 1 , 5 5 1 , 6 1 1 Arthur, Lucile, 3 7 8
Annales Politiques et Littéraires, 1 5 0, Artois, Charles Philippe, conde d'
1 5 1 , 338 ( depois Carlos X), 7 - 9, 1 2, 4 5 , 1 0 5 ,
Annuaire Républicain, 6 5 7 1 1 6, 1 46 - 7 , 2 2 3 , 3 34, 3 6 1 ; 5 5 7;
anticlericalismo em, 5 0 1 ; contrabando Assembleia Nacional e, 309, 3 1 0,
de livros em, 1 5 1 , 1 5 3; 3 1 4- 5 , 360; como emigrante, 3 7 5 ,
contribuições patriotas em, 379; 5 0 2 , 5 0 5 , 5 3 3; d'Eprémesnil e, 2 2 5 ;
desemprego em, 2 6 1 ; fim de Ferrieres e , 3 0 5 ; Marat e , 628;
privilégios em, 378; funcionários Maria Antonieta e, 1 82 - 3 , 1 88, 1 89;
municipais de, 444 - 5 ; Grande Medo na Assembleia de Notáveis, 2 0 1 -2,
em, 370; indústria têxtil em, 1 67; 205; Necker e, 297, 309, 3 1 2 , 3 1 3,
motins em, 3 2 1 ; movimento da 3 2 3 , 347; regimento de suecos sob,
federação em, 4 3 3 , 706; reconquista 368
de, 649, 660; recuperação Artois : fim d o s privilégios em, 378;
económica de, 7 1 7; revolta em, 6 1 8, Robespierre em, 496
6 2 2 - 3 , 624, 640; souvenirs da árvores da liberdade, 424- 5 , 706; nos
B astilha em, 3 5 6; Terror em, 6 6 0 - 5 , jardins das Tulherias, 5 2 0; Vida de
6 8 9 , 7 1 1 , / 3 0; tribunal regional em, Henri Brulard, ( Stendhal ) , 2 3 1
2 3 8; voos de balão em, 1 1 2 Asgill, C apitão Charles, 2 5
Anti-Financier, L' (Darigrand ) , 5 9 Assembleia C onstituinte, 40 3, 424,
Antiguidade: fascínio com, 1 42 - 7; 486-88, 496, 5 5 0, 697, 70 1 , 72 1 ,
oratória e noções de, 1 40, 1 42 - 3 729, 7 30; comités executivos da,
Antraigues, Emmanuel Henri Louis 5 32; crianças e, 4 5 0; crise financeira
Alexandre de Launay, conde d', e, 4 1 3 - 1 4; Departamentos formados
1 07, 246, 2 5 6, 3 0 1 - 2 , 3 74 por, 408-9; e deserção da família
Antuérpia, 1 8 6, 708; Latude em, 342 real, 478, 479, 480, 48 1 -82, 486; e
Anzin, mina de carvão em, 1 62 , 468 movimento federal, 434, 437, 439,
Apologie de Rousseau ( de Stael ) , 5 8 1 440; economia e, 4 1 3, 447 -48;
appel nominal (voto oral ) , 5 6 5 , 6 1 4 Ferrieres na, 288; Igreja e, 4 1 9 - 2 1 ,
Arasse, Daniel, 5 3 0, 5 7 1 422 -24, 446; Jacobinos e , 4 5 5 ;
Arbanere, Etienne -François, 443 Lepeletier na, 5 7 1 ; Luís XVI e ,
775

432 - 3 3, 474, 489; Mirabeau e, 460- Aulard, Alphonse, 499


-67, 469- 70; mulheres e, 42 9; Aumont, Louis Marie Céleste, duque
oposição a, 442; Parlamentos d', 1 0 5
abolidos pela, 442, 443; pena capital Á ustria, 1 86; e a conj ura estrangeira,
e, 5 3 0; política de paz da, 507; 6 84; guerra com, 5 0 2 - 1 7, 5 3 5 , 546-
Robespierre na, 492 -96; sábios e - 7 , 5 77, 583, 5 8 6 - � 64� 642, 6 5 �
filósofos na, 445 -46; substituída pela 6 7 6 - 7 , 708, 7 3 6 - 7; Lafayette
Assembleia Legislativa, 496; títulos prisioneiro na, 5 60, 68 1 , 7 34- 7;
de nobreza abolidos pela, 409, 4 1 1 ; Théroigne presa em, 7 3 7 - 8
Voltaire e , 484 Austríaca, Guerra d a Sucessão, 2 7 , 5 2 -
Assembleia de Notáveis, 1 90, 1 92, - 3, 3 4 1
1 99 - 2 0 1 , 2 1 3, 2 1 8; convocada por Autun, clero de, 3 0 3 , 424
Necker, 2 5 7 Auvergne,20, 2 1 ; assembleia do, 2 2 7-
Assembleia Geral d o Clero, 1 92 8; migração d o, 372
Assembleia Legislativa, 4 5 5 , 496-7, Auxerre, descristianização d e, 6 5 8
5 2 � 5 2 1 , 54� 5 5 0, 5 94; Avinhão: enclave papal, 5 0 0 - 5 0 1 ;
aprisionamento da família real, 5 5 7; j ornais de, 1 49, 1 5 1 ; Judeus de, 464
C omité Diplomático e, 507, 5 1 0; Avis aux Méres Qui Veulent Nourrir leurs
detenções e, 5 3 3 -4; e a Comuna Enfants (Le Rebours ) , 1 2 7
Insurrecta, 5 32 -4; e os massacres de Ayen, Louis, duque d',
S etembro, 542, 543, 5 44, 5 5 0; Azincourt, Joseph Jean-Baptiste
guerra e, 5 04, 5 0 7 - 1 2, 5 3 5 Lafayette Albouy, chamado d', 1 22
e, 5 2 2 ; poderes de emergência, 5 2 3 -
-4; rebelião d e Agosto, 5 2 5 -6, Bacante ( Vigée-Lebrun ) , 1 86
5 3 2; Bachaumont, Louis Petit de, 1 09
Assembleia Nacional, 2 3 6, 308 - 3 1 3, B aillet, cahier of, 272
3 2 � 349, 3 5 8, 38� 3 84, 3 8 � 3 8 � bailliages, 2 6 3
399; B astilha e, 3 5 6; C omités, 387; Bailly, Sylvain, 24 7, 2 80, 3 00, 3 1 O,
constituição adaptada por, 3 94; e 3 1 1 , 3 1 4, 3 1 5, 3 1 7, 3 5 6, 3 6 0, 362,
Declaração dos Direitos do Homem 386, 388, 48 5 , 487, 5 1 6; actores e,
408; e marcha para Versalhes, 392, 428; declaração da lei marcial, 48 5 ;
3 94, 395, 3 96 - 7; fome e, 3 2 1 - 2 3 , denunciado p o r Marat, 4 3 0 ; e o
326; formação d a , 3 0 8 , 3 0 9 , 3 1 0; movimento federativo, 434; e o
gardes françaises e, 3 1 8; Grande regresso de Luís XVI a Paris, 403;
Medo, 3 70; Guilhotina em, 5 2 9; execução de, 488, 68 1 ; Lafayette e,
Igrej a e, 4 1 5 , 4 1 5 - 1 6; invocações do 389; 3 90; 392
augusto, 3 74, 379; Juramento da balonismo, 1 08 - 1 4, 4 8 9
Sala do Jogo da Péla, 3 1 2; militar, Banca!, Jean-Henri, 5 6 8
3 2 3 ; nobreza e, 3 1 5 - 3 1 6; retirada B anco d e França, 5 2
das tropas do centro de Paris, 3 5 9, Banco d e Inglaterra, 1 9 3
3 60; séance royale e, 3 1 0 - 1 7; banco protestante, 7 4
símbolos emotivos, 3 90; Target na, banqueiros Hope, 3 2 2 , 3 2 7
5 59 B ara, Joseph, 9
Associação para a Preservação da Barbaroux, Charles Jean-Marie, 5 2 3 ,
Liberdade e da Propriedade, 5 8 0 5 5 2 , 6 1 5 , 6 2 2 , 624, 6 2 5 , 6 2 6 , 6 3 2 ,
Au Retour, 6 5 0 6 3 3, 6 9 1
Aubert-Dubayet, Jean-Baptiste Barbeiro de Sevilha, O , 1 2 1 , 1 8 3
Annibal, 442 Barbotin, abade, 600
Auberteuil, Hilliard d', 34 Barentin, François de, 298, 3 1 2
Auch, Martin d', 3 1 1 , 42 5 , 487 Barere, Bertrand, 469, 5 5 2 , 5 6 1 -2,
Audinot, Nicolas Médard, 1 1 6 5 64, 565, 578, 6 0 3 -4, 6 1 9, 64 1 ,
Simon Schama 1 CIDADÃOS

642, 644, 647, 6 5 2 , 6 8 3 , 684, 7 1 0, Beaudrap de Sotteville, 266


71 1, 712 B eaufranchet d' Ayat, Louis Charles
Barnave, Antoine, 2 3 1 , 2 34, 2 3 5 , 2 3 7, Antoine, 5 9 5
247, 30� 30� 3 1 1 , 34� 382, 40� B eauharnais, Alexandre, visconde de
4 1 2 , 4 5 5 , 467; como j a cobino, 4 1 2; de, 3 7 7
e a crise de guerra, 5 0 2 - 3 ; e a B eaulieu, Claude - François, 6 7 3
Declaração dos Direitos do Homem, B eaumarchais, Pierre Augustin
400; e a Igrej a, 422; e a marcha C aronde, 1 2 0 - 1 27, 1 8 3, 3 3 3, 3 5 3,
sobre Versailhes, 400; e a fuga da 427, 44 5 ; detenção de, 5 34
família real, 479-480; e o fim da B eaumetz, Bon-Albert B riois, chevalier
Assembleia Constituinte, 490- 1 ; de, 5 8 1 , 7 2 5 , 72 9, 7 3 2 , 7 3 3
execução de, 488, 68 1 ; Feuillants e, B eauvais, abade de, 4 1
490- 1 ; Mirabeau e, 469, 47 1 , 48 1 ; B eauveau, Charles-Juste, marquês de,
na Assembleia Legislativa, 497, 498, 599
499, 502; oratória de, 4 5 5 Beccaria, C esare, 5 04, 5 30
Barrai d e Montferrat, Marie-Joseph, Becquet, 5 1 1
marquês de, 442 , 7 1 9 B élgica, 5 8 3 -4, 587, 588, 606, 7 3 7 ;
Barras, Paul, visconde de, 6 6 5 , 706, 7 1 3 B rissot n a , 4 9 8 ; e a conj ura
barrette vermelho, 5 1 7, 5 1 8, 5 2 1 , 6 1 8 estrangeira, 6 8 5 ; revoltas
Barruel, abade Augustin, 422 camponesas, 5 9 2
Banhes, Dr., 1 9 1 Belisário (Marmontel ) , 1 1 8
Bas, Laurent, 6 3 0 Belisário, ( David ) , 2 5
Basire, Claude, 543 -4, 684 - 5 B elle- Chasse, priorado de, 3 7 9
Bassenge, Paul, 1 7 3 Belle-Poule ( navio ) , 3 1 , 4 3 5
Basset, Laurent, 664 B elloy, Pierre d e , 2 8 - 3 0
Bastilha, 8, 1 47, 2 84, 3 3 5 - 4 1 , 7 3 5 ; B ender, general, Blasius Kolumban,
artefactos com imagens da, 4 5 0; barão, 5 0 8
Cagliostro na, 1 78; cerimónia no B eneditinos, 42 1
local da, 6 3 8 - 9; de Rohan na, 1 76 - B equard, 348
- 7; demolição da, 3 3 6, 343 -4, 3 5 1 -4; Bergasse, Nicolas, 222
depois da tomada, 349- 5 1 ; elefante B ergeras, Titon, 3 5 6
de gesso no local da, 3 - 5 , 7-8; B ergeron, Louis, 777
escritores na, 1 2 5 ; Latude na, 34 1 - 3; Béricourt, Etienne, 543
Linguet na, 1 3 9, 1 5 0, 3 3 9 -40; Berlim, Mirabeau em, 1 92, 293
Malesherbes visita a, 88; modelos Bernier, abade Etienne Alexandre
da, 48 3; opositores de Turgot na, 72; Jean B aptists, 600, 602
pânico decorrente da tomada da, Berri, assebleia provincial de, 72, 79
3 6 7 - 7 5 ; promoção do culto da, 3 4 5 - Berryer, 345
- 6 , 349 - 5 3; queima de livros, 1 88; B ertaux,, 699
ruínas da, 483 -4; tomada da, 1 1 , 36, Berthaud, J.P. , 6 5 1
3 24, 3 2 9, 344- � 3 5 9 Berthier, Louis Alexandre, 466
Bastilha, Voluntários d a ver Berthollet, Claude Louis, conde de,
Voluntários da Bastilha 652
Batalha de Jemappes, A, 548 B ertier d e Sauvigny, Louis Jean, 2 24,
Batalhões da Esperança, 4 5 0 349, 3 8 5 -6, 349, 72 3
Battus, Les (Dorvigny ) , 1 1 6 Bertin, Rose, 1 3 1 , 1 84, 476
Batz, Jean, Baron de, 5 6 9 Bérulle, Albert de, 2 3 2 , 2 3 3
Bayard, Pierre du Terrail, chevalier, 2 9 B erzcheny, regimento de, 3 3 1
B éarn, Parlamento d e , 90 Besançon: espectáculos de balonismo
B eauce : destruição das colheitas, 2 5 9; em, 1 1 2; Grande Medo em, 3 74;
sublevação de, 607 motins dos cereais, 279; Parlamento
777

de, 9 1 , 2 3 0, 408; sublevação em, B oissy d ' Anglais, François Antoine,


624- 5 conde de, 6 1 9, 7 3 0
Besenval de B ronstadt, Pierre Victor, B oizot, 6 5 5
barão de, 1 8 3, 3 3 1 , 3 3 2, 3 3 3, 3 34, B ollman, Justus, 7 3 5
345 B olsa d e Sceaux e Poissy, 70
B ethuis, Germain, 589 Bolsa, 2 0 5 -6, 240, 6 8 5 ; encerramento
Beugnot, Jacques - C laude, 672-4 da, 646, 7 3 1
Beurnonville, Pierre de Riel, marquês B ombelles, Marc Marie, visconde de,
de, 5 8 8 1 39
B eyle, Cherubin, 2 3 0 B ombons Reais, 4 5 0
B eyle, Henri, ver Stendhal B onaparte, Napoleão, ver Napoleão 1
B eyssier, general Jean-Michel, 668 B onapartismo, 299, 3 04, 588, 644,
bibliographie française, 703 7 1 7, 7 3 6
Biblioteca Azul, 1 5 3 B oncerf, Pierre François, 2 7 3
Biblioteca Nacional, 449, 4 5 0, 7 0 3 Bonchamp, Chalres Artus, marquês
Bicêtre, prisão de 8 5 , 88, 1 69, 2 5 1 , de, 5 9 9
3 3 7, 343, 5 3 0, 5 4 1 bonnet rouge ver barrette vermelho
Bien, David D . , 5 7 B onneville, Nicolas de, 407
Bienville, Jacques, 1 8 8 B ordéus: cahier de, 2 66; comércio com
Billardon de Sauvigny, Louis Edmé, as Í ndias Ocidentais, 50, 1 62 , 448;
2 3, 2 5 , 2 6 contrabando de livros em, 1 5 1 , 1 5 4;
Billaud-Varenne, Jacques-Nicolas, deslocações para, 1 6 1 ; durante o
5 2 6 , 6 5 3 , 6 8 3 , 684, 689, 690, 709, Terror, 66 1 , 6 6 5 , 660, 726, 729; fim
712 dos privilégios, 378; Girondinos de,
Biret, A . C . , 5 9 8 5 5 2 ; Judeus de, 464; Parlamento de,
Birmingham, Sociedade Lunar de ver 9 1 , 9 3 , 1 02 , 2 3 0; sarcófago de
Sociedade Lunar de Birmingham Mirabeau em, 472; sublevação em,
Biron, Armand Louis, duque de, ver 622; teatro em, 1 2 0
Lauzun, duque de B ordier, 4 54
Blacon, marquês de, 377, 7 3 1 B orel, Antoine, 4 69
Blaikie, Thomas, 2 5 9 B orgonha : cahiers d e, 2 7 1 , 2 73;
Blanchard, François, 1 1 2, 1 1 3, 446, 7 3 7 Estado d a , 49; feudalismo n a , 376;
B lanning, T. C . W. , 5 08 fim dos privilégios na in, 378;
B lanquart des Salines, Nicolas, 444 Grande Medo, 3 6 9, 372, 3 7 5 ;
B ligh, capitão William, 44 motins na, 5 9 8 , 607; souvenirs da
Blois, 267; cahier de, 266; inundações, Bastilha em, 3 5 6 - 7 ; Terceiro Estado,
260 266; vinhas destruídas na, 2 5 9
Blondel, 1 2 0, 1 77 B osquillon, 540
Bluche, François, 43, 5 3 8, 544 B ossuet, Jacques B énigne, 5 5 7
Bocas do Ródano, Departamento de, B oston, B rissot em, 498
409 B ouban, condessa de, 1 1 2
B ocas do Sena, Departamento de, 409 Bouche de Per, 407
Bodas de Fígaro, As, 1 1 5 , 1 2 0, 1 2 1 , Boucher d'Argis, André -Jean,
1 2 2 - 2 6, 1 5 0 270- 1
B óhmer, C harles, 1 7 3 - 1 74, 1 76 B oucher, François, 1 8 5 , 1 97, 5 9 5
B oileau, 680 Boucher, Toussaint, 2 74
B oisgelin de C ercé, abade Raymond B ouchotte, Jean Baptiste Noel, 68 1 ,
de, 1 42 - 1 43, 4 1 9, 464, 496 687
B oisragon, Sieur de, ver Chevallau B ougainville, Louis Antoine de, 3 3 8
Boisse, cahier de, 2 7 0 B ouillé, François Claude, marquês de,
Boissieux, tenente - coronel, 2 3 3 474, 476, 479, 482
Simon Schama 1 CIDADÃOS

B oulonnais, mineração de, 1 O 5 guerra, 5 0 7 -9, 5 1 0 - 1 2 , 547, 586; e o


Boulton, Matthew, 1 96 j ulgamento de Luís XVI, 5 6 3 -4; e os
Bourbon, Louis- Henri-Joseph de massacres nas prisões, 5 3 9, 543;
Condé, duque de, 1 99, 2 2 3 enragés e, 6 1 0 - 1 ; j u lgamento de,
Bombons, 4 , 7 , 2 7 , 4 1 , 4 5 , 9 7 , 1 0 1 , 6 7 9 - 8 1 ; Marat e, 6 1 4; na
327, 3 60, 7 0 3 ; cores dos, 3 9 1 ; D e Convenção, 5 5 1 -2
Rohans e, 1 74 - 5 ; e os Estados d a B rissotins, 498, 5 00, 502, 506, 508,
B retanha, 4 8 ; e os prisioneiros d a 5 1 0, 5 1 1 , 5 1 8, 520, 5 2 1 , 5 3 6, 679,
Bastilha, 3 3 6 - 3 3 7 ; espanhóis, 38; 680; dissolução dos, 5 1 9, 5 2 1 ; ver
êxito reprodutivo, 1 80, 1 8 1 ; também girondinos
expulsão dos, 5 6 6; notáveis e , 1 0 3 ; B roglie, marechal, 3 32 , 3 60, 434, 5 1 2
parlamentos e, 97; B rogniard, 344
Bourdon, Léonard, 6 1 , 445 , 629, 6 5 9 B rossard, marquesa de, 1 1 2
B ourdon, Pierre François, 689 B rouquens, D r., 72 6
Bouvard de Fourqueux, 2 1 3 B roussonnet, 2 9 9
Bouvenot, 409 B runswick, duque d e , 2 1 2, 5 24, 545,
Boyer, 5 4 1 616
Boyer-Fonfrede, Jean B aptiste, 622 Bruto ( Voltaire ) , 42 6 - 7
Boze, Joseph, 7 1 4 B ruto, Júnio, xxviii, 1 44 - 5 , 4 54
B randywine, batalha de, 2 3 B ruxelas: tropas francesas em , 547,
Bréauté, 302 5 88, 709; Necker em, 3 3 0
B reda, cerco de, 587 B ry, marquês de, 549
Brémont-Julien, 2 9 5 B uffon, George Louis Leclerc, conde
Brenet, Nicola s - Guy, 1 1 5 de, 8 3 , 1 3 7, 1 49, 5 5 7
Bressuire, sublevação, 5 9 3 , 600 B uob, 540
B rest, 30, 3 1 , 48, 5 1 , 560; Château de, Bureau de Pusy, Jean-Xavier, 7 34, 7 3 6
48; girondinos de, 5 5 2 burguesia, xviii; aparência da, como
Bretanha, 409; cahiers na, 270; centros nova classe política, 246; ataques à,
parlamentares na, 228; C ontra ­ 5 1 6; Terror e, 6 6 5 - 6, 6 6 7 - 8
-Terror na, 7 1 6 - 7; E stados da, 3 1 , Burke, Edmund, 3 3 6, 568, 724
48, 49, 2 3 8; feudalismo na, 3 7 6; Burney, Charles, 5 8 1
Imigrados na, 5 0 1 ; intendente Burne� Fann� 5 7 8, 58 2 , 7 2 5 , 769
da, 1 00; motim dos cereais na , 2 7 9 ; B utin, Pierrette, 665
Movimentos federalistas n a , 4 3 3 -4; Butterbrodt, Paul, 1 1 7, 3 2 8
na guerra, 506; nobres na, 1 04; B uzot, François, 5 64, 6 1 3, 624, 6 3 2 ,
padres da, 307; Patriotas 677
revolucionários, 5 2 3 ; produção de
sal na, 60, 62; sublevação na, 5 9 3 -4, Ça Ira, 4 5 6, 5 1 2, 5 1 3, 520, 523, 545
5 9 5 , 5 99 - 60, 604, 524- 5 , 668; C abanis, Dr., Pierre Jean Georges,
Terceiro E stado na, 2 5 6, 2 6 6; viúvas 468 - 9
de marinheiros, 1 92 Cabarrus, Theresa, 727
B reteuil, Louis Auguste Le Tonnelier, Cabrerets, cahier de, 2 6 9
Baron de, 206, 3 2 3 , 3 2 5 , 3 2 7 , 344, C aen, 2 2 4 ; gardes françaises d e , 324;
3 5 9, 3 6 1 , 474, 5 5 6 rebelião em, 624-26, 6 3 0- 3 1 , 6 3 2 ;
B retonniere, De, 44 tribunal napoleónico e m , 7 2 0
B rissac, madame de de, 5 7 8 C affieri, Jean-Jacques, 1 8
B rissot d e Warville, Jacques-Pierre, Cagliostro, Joseph B alsamo, 1 77 - 7 8
1 40 - 1 , 1 42, 3 60, 389, 444, 449, cahiers de doléances, 5 9, 2 5 6, 2 5 8 - 9,
45 1 , 452, 472 , , 474, 479, 497-8, 2 6 2 - 67, 2 6 8 - 74, 2 7 8, 2 80, 289, 297,
5 0 7 -8, 5 1 0, 5 1 1 , 5 1 2, 5 2 1 , 6 1 1 , 3 0 1 , 3 0 3 , 309, 3 1 7, 3 74, 446, 5 94,
6 7 9 - 80, 692; C alonne e , 1 97; e a 7 1 9, 72 3
779

Cahiers du Quatrieme Ordre (Dufourny C arlos X, ver Artois, Charles Philippe,


de Villiers ) , 28 1 conde de
Cahies des Pauvres, 2 8 1 Carlyle, Thomas, 69
Caisse d ' Amortissement, 1 97 Carmanhola, 1 54- 5 5
C aisse d'Escompte, 1 9 3, 240-4 1 , 606 carne, desregulação do comércio de,
Calais, 720; cerco de, 2 8 - 30; oficiais 70- 1
do município de, 444 Carnot, Lazare, 497, 5 1 2, 644, 6 5 1 ,
Calas, Jean, 484 6 5 3 , 708, 709, 7 1 2
calendário revolucionário, 6 5 6 - 5 8 Carolingians, 1 79, 2 5 5
C allieres d'Estang, chevalier de, 40 5 - 6, Caron, Pierre -Augustin, 1 2 1 , 5 34,
436 5 3 7 - 38, 5 4 1 -42
C alonne, C harles Alexandre d e , 78, 7 9 , Carpentier, Pierre de, 444
1 90 - 2 00, 2 1 3, 2 1 5 , 2 1 8, 2 2 5 , 2 3 9, Carr, David, xviii
246, 2 5 5 , 4 1 5 , 7 1 9; e os Notáveis, Carra, Jean Louis, 222, 4 5 2 , 5 24, 5 5 1 ,
1 90, 1 9 3, 1 99 - 2 07; e Talleyrand, 61 1
3 0 3 ; exílio de, 2 0 6 - 7 , 2 2 2 , 243, 474 C arreau, Julie, 4 5 9
Calvados: destruição das colheitas, Carrier, Jean-Baptists, 6 6 9 , 6 7 0 , 6 8 3 ,
2 5 9; Departamento de, 409, 626; 69 1
motins em, 598; rebelião em, 677 Carteaux, Jean François, 640, 6 5 2
Câmara do C omércio, 282 C asanova, Giovanni Jacopo, 2 9 3
Câmara Municipal ( Paris ) , 1 80, 3 00, C a s o d o C olar, 1 74-80, 1 86, 1 98, 200,
30� 3 2 1 , 34� 34� 3 5 5 , 3 8 � 4 3 � 40 3, 5 5 9
armas guardadas n a , 3 34; Caso Kornmann, 5 3 3
assembleia de eleitores na, 360; Cassier, abade, 302
C omité Permanente na, 3 5 3 ; C assini, Jacques D ominique, conde
C omuna na, ver C omuna; D e de, 409, 446
Launay conduzido até, 348; Castelo de Kufstein, 7 3 7
Luís XVI na, 362, 403; C astelo d e Õ lmutz, 7 34 - 5
manifestações de mulheres na, 3 94, Castries, Charles d e l a C roix, marquês
3 9 6 - 7; na Revolução de 1 8 30, 8 - 9, de, 44, 45, 79, 1 94, 2 1 1 , 2 1 4
1 O, 1 1 ; reunião de 1 2 de Julho, 3 3 0; C atão, xviiL 1 4 5 , 454
Terror, 647 C atarina, imperatriz da Rússia, 5 8 6
C ambacéres, Jean-Jacques Régis Catechisme du Citoyen ( Saige ) , 208, 22 1
de, 604 Cathelineau, Jacques, 5 94, 668
C ambon, Joseph, 5 84, 646, 7 1 1 , C athol, Jean-Joseph, 3 2 5
731 C atólicos, ver Igrej a
Campan, Jeanne Louise Genêt, 3 2 , 34, C avaleiros de Malta, Ordem dos, 5 5 7
36, 1 76, 4 5 8 Caze d e L a Bove, 1 00, 2 3 3
C ampe, Joachim Heinrich, 440 Ce Que Personne n 'a Encare Dit ( La
C anadá, 2 3 Haie ) , 2 8 5
canhão Gribeauval, 1 5 8 cegos, escola para, 1 60
capitation ( capitação ) , imposto de, 5 6 , C em Suíços, 2 90
718 cemitério Pere Lachaise, 1 5 9
cargos venais, 5 7 , 76, 96, 1 0 1 , 1 66, C eres, condessa de, 1 98
2 6 5 , 266, 378 C érruti, abade Joseph Antoine
Carlos I, rei da Inglaterra, 405 Joachim, 4 5 2 - 5 3, 472
Carlos IX ( Marie-Joseph Chénie r ) , 3 3 0, C essart, Louis Alexandre, de, 44- 5
420, 427, 428, 464 C eyrat, Joachim, 540
C arlos IX, 362 C habot, François, 684- 5 , 7 1 1
Carlos Magno, 2 5 5 , 3 6 2 C habry, Pierrette, 3 9 9
C arlos VI, 3 3 6 Chagniot, Jean, 3 2 4
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Chalier, Joseph, 6 2 3 , 624, 64 1 , 660, Chemillé: distúrbios em, 5 99, 600;


66 1 , 663, 664 indústria têxtil em, 592
Challans, distúrbios em, 593, 5 9 9 Chénier, André, 1 42 , 488
Chalonnes, distúrbios em, 602 Chénier, Marie-Joseph, 1 42, 3 3 0, 420,
Chambon Aubin -Bigore, 5 6 1 426, 464, 484, 488 638, 656, 705, 730
C hamfort, Sébastien Roch Nicolas, 1 8 - Cherburgo, 5 1 1 ; distúrbios em, 3 7 3 ;
1 9, 1 2 3 , 1 42 proj ecto d o porto de, 79; visita de
Champagne: Grande Medo em, 369, Luís XVI a, 40, 44, 4 5 -48, 1 60
3 70; indústria têxtil em, 1 6 3 Chevalier, Jacques, 5 5 1
Champion d e Cicé, Jérôme Marie, C hevallau, 4 5 0
2 0 1 , 300, 3 8 1 , 4 6 5 C hevert, François d e , 27, 2 8
Champlosse, 5 4 0 C hoderlos d e Lados, Pierre, 2 2 6
Chamuau of La Jubaudiere, 6 0 0 Choiseul, Etienne François, duque de,
Chapeau Blanc, Le ( Greuze ) , 1 2 8 476, 5 1 1
chapéus, emblemas, 5 1 7 - 8 C hoiseul-Gouffier, Marie Gabriel
Chaptal, Jean Antione, conde d e Florent Auguste, 1 9 1
Chanteloup, 367, 6 5 2 , 72 3 ( no Cholat, Claude, 345
epílogo) Cholet: distúrbios em, 593, 595, 600,
Charette de la C ontrie, François 60 l; indústria têxtil em, 592, 5 94;
Athanase, 5 9 0 - 9 1 , 600, 602, 668, recuperação de, 6 5 3 , 668
670 Chu En-lai, xxv
Charles, Jacques, 1 1 0, 1 1 3 Cícero, xviii, 1 42 , 1 43, 329, 4 1 1 , 472,
Charton, 2 8 2 - 8 3 553
Chartres, Louis Philippe d'Orléans, cidadania, xvii, 306, 3 1 1 , 7 2 2 - 3;
duque de, 5 8 8 indivisibilidade da, 306, 3 1 6
Chataignier, Jacqueline, 6 6 5 ci-devants, 4 1 1 , 42 5 - 26, 442, 444, 454,
Chateaubriand, Aline-Thérese, 6 9 7 4 5 7, 5 1 2, 5 1 9, 549, 5 9 5 , 6 3 5 , 64 1 ;
Chateaubriand, Christian, 7 1 4 durante o Terror, 692, 697, 698
Chateaubriand, François -René, Cipião, 1 4 5
visconde de, 47, 5 6 0 circular d e Pádua, 5 0 5
Chateaubriand, Jean-Baptiste, 6 9 7 , 700 Círculo Social, 407, 49 1
Chateaubriand, Louis, 7 1 4 C lairon, Claire Josephe Hippolyte
Châteauneuf-Randon, 6 6 1 Leyris de Latude, 1 3 6, 1 42
Châtelet, cahiers de, 2 7 0 - 7 1 Clamart, 1 69
Châtelet, duquesa de, 700 Claviere, Etienne, 1 3 3, 2 54, 502, 5 1 1 ,
Châtelet, Florent-Louis-Marie, duque 5 32 , 548, 6 1 4, 6 1 8, 62 0, 680
du, 32 1 , 37� 377, 6 7 3 C lerget, abade Pierre François, 2 7 3
Châtenay, cahier d e , 2 7 2 C lermont-Tonnerre, Stanislas: duque
Châtillon, distúrbios e m , 5 9 3 , de, 2 32 , 2 3 1 , 2 3 3 , 2 3 5, 300, 3 1 6,
600, 6 3 8, 64 1 376; e a Declaração dos Direitos do
Châtre, viscondessa de, 5 8 1 , 5 82 , 5 7 8 Homem, 3 8 1 ; morte de, 5 78, 664
Chaumette, Pierre Gaspard clero, 267; Assembleia Geral do, 2 3 9;
( 'Anaxágoras' ) , 5 5 6, 608, 6 1 3 , 645, ataques ao, 270; como professores,
646, 6 5 3 , 673, 674, 6 8 1 , 682, 686, 70 1 - 2 ; emigrados, 5 0 1 ; e mulheres
71 1 manifestantes, 3 9 8 - 99; homicídio
Chaussinand-Nogaret, Guy, 1 02, 1 0 3, do, 540; na Assembleia Nacional,
105 3 1 3, 3 1 5 ; na C onvenção, 5 5 1 ; na
Chauvelin, François Bernard, 5 8 7 Provença, 2 94; nos Estados Gerais,
Chegada de Mirabeau aos Campos Elísios, 300, 3 0 1 - 5 , 3 07; refractário, 5 0 0 - 1 ,
A, 472 507, 5 1 8, 5 32 , 5 3 6, 5 60, 5 9 1 , 5 9 6 -
Chegarry, Antoine, 666 -97, 604, 6 2 6 ; séance royale, 3 1 O
781

Cléry, 542, 5 5 7 - 68, 567, 5 68, 5 6 9 C omité de Segurança Geral, 488, 604,
Cloots, Anacharsis, 407, 507, 5 1 1 , 627, 6 3 1 , 643, 648, 6 5 5 , 679, 6 8 5 ,
64 1 , 6 5 9, 6 8 3 , 684, 69 1 6 8 8 , 6 9 0 , 6 9 2 , 6 9 8 , 70 1 , 7 0 9
Cloyes, cahier de, 2 7 3 Comité d o Ensino Público, 5 7 1 , 702,
Clube B retão, 3 8 2 , 4 1 2 , 4 5 3 703
Clube C onstitucional, 2 5 3, 2 5 5 C omité dos Doze, 6 1 6, 6 1 7, 620
Clube de 1 789, 4 1 2, 4 1 5 , 5 8 1 C omité dos Vinte e Um, 5 6 1
Clugny, 74, 7 5 C omité Real de Agricultura, 267, 2 9 9
Cobb, Richard, xix-xx, xxi, xxii, xxiv, Commerce de Marseille, Le (barco ) , 4 9
322, 6 1 6, 7 1 6, 7 1 7 Companhia d a s Índias britânica, 7 3 2
C oblença, emigrantes em, 5 0 1 , 5 0 2 - 3 , C ompanhia d a s Índias Orientais
5 0 8 , 5 9 9, 7 3 0 francesa, 7 5
Coburgo, Friedrich Josias, duque de, C ompanhia das Índias, 1 99, 2 0 5 , 684,
588, 640, 709 689, 692
Cocarde National, La ( Mercier) , 3 9 1 C ompanhia dos Mares do Sul, 52
Coffinhal, Jean Baptiste, 7 1 3 C omps, 4 59, 469
Coigny, Marie François Henri, duque Compte Rendu, 75, 77, 78, 80, 200
de, 76-77, 2 1 4- 1 5 , 4 7 5 C omuna, 436, 484, 68 1 ; Conselho
C olbert, Jean-Baptiste, 7 5 , 1 00, 3 1 9, Geral da, 5 4 1 ; crise económica e,
470 643; descristianização e, 660; e
Colégio Real D elfim de Grenoble, execução de Luís XVI, 5 6 9 - 7 1 ; e
235 insurreição contra a C onvenção,
C ollege d'Harcourt, 1 7, 3 5 2 6 1 7 - 1 8; e j u lgamento de Luís XVI,
C ollege Louis -le- Grand, 1 4 3 5 5 6 - 5 7 ; e j ulgamento de Maria
C ollot d' Angremont, Louis, 5 3 1 Antonieta, 64 1 -42, 6 7 3 - 74; e prisão
Collot d'Herbois, Jean-Marie, 1 42, de Luís XVI, 5 5 7 - 58, 5 62 , 5 67;
4 5 1 , 5 5 0, 645, 6 5 3, 6 6 3 , 665, 689, Girondinos e, 6 1 6 - 1 7; Hébertistas e,
692, 707, 709, 7 1 0, 7 1 2, 7 1 5 68 1 - 8 3 , 690, 69 1 ; Insurrecta, 5 2 3 -
C olónia, j ornais de, 1 49 - 24, 5 2 6 - 7 , 5 3 2, 5 34- 3 5 ; Marat e,
Comberouger, cahier de, 2 6 9 6 1 4, 627; massacres de Setembro e,
C omédie Italienne, 1 1 5 , 1 8 3 5 3 6, 5 3 9, 54 1 , 542, 543; militantes
C omédie -Française, 1 7, 2 9, l l 5 - l 6, da, 6 1 3 ; oposição dos "indulgentes"
1 1 8, 1 1 9, 1 22, 1 2 8, 1 8 3 , 428 a, 687-89; Roux na, 608; secções e,
comércio, 1 62; Assembleia Contituinte 6 1 0; Termidorianos e, 7 1 2 - 1 3;
e, 443; e crise económica, 2 5 8; e Terror e, 6 4 5 - 9 , 6 5 3
República, 607; impacto da C onciergerie, 6 3 3, 6 3 4, 672 - 7 5, 677,
Revolução no, 7 1 7; políticas de 68 1 , 699, 7 1 5
Calonne, 1 9 5 - 6; retórica C ondé, Louis Joseph, Príncipe de, 27,
revolucionária, 248 2 0 l, 226, 278; emigração de, 3 60,
Comissão das Subsistências, 644, 6 5 2 3 7 5 , 502
C omité Central, 48 5 C ondillac, Etienne B onnet de, 2 3 1
C omité da Vigilância, 5 3 2 C ondorcet, Marie Jean Antoine
Comité d e Salvação Pública, 3 8 7 , 48 1 , Nicolas Caritat, marquês de, 69,
5 6 1 , 604, 6 1 9, 626, 64 1 , 643 -44, 1 5 8, 1 6 5, 1 66, 1 67, 2 2 8, 247, 2 54,
647, 648, 649, 6 5 1 , 6 5 3, 668, 674, 2 5 6, 408, 446, 5 04, 5 60, 5 68, 640; e
682, 684, 688, 689, 690, 70 1 ; e a deserção da família real, 479, 482 -
prisão e j ulgamento de Danton, - 8 3 ; enquanto j acobino, 4 5 1 ; morte
6 9 2 - 94; Hébertistas e, 682, 684, de, 680-8 1 , 7 1 0; na Assembleia
6 8 9 - 9 3 ; Termidorianos e, 708, 709, Legislativa, 497
7 l l , 7 1 2, 7 1 3 Confissões ( Rousseau ) , 1 2 7, 1 3 1 - 3 2,
Comité de Salvação Pública, 709 1 47
S imon Schama 1 CIDADÃOS

C onselho Executivo Provisório, 5 3 2 , 6 2 7, 6 3 0; Hébertistas e, 6 8 3 - 84;


533 Hérault na, 1 3 6; "indulgentes" na,
Considérations sur le Gouvernement 687- 90; insurreição contra, 6 1 8 - 1 9;
Ancien et Présent de la France lei de Pradial na, 707;. Lepeletier na,
( d'Argenson ) , 98 5 7 1 ; membros da, 5 5 0 - 5 1 ; mulheres
Consolações pelas Mágoas da Minha Vida e, 678; Talleyrand e, 5 7 9;
(Roussea u ) , 1 32 Termidorianos na, 7 0 8 - 9, 7 1 2 - 1 3 ,
Conspiração de Catilina, A ( Salústio ) , 715
143 conventos carmelitas, 42 1 , 540, 5 4 1 ,
Constituição Civil d o Clero, 4 1 9, 424, 5 42
438, 460, 464- 6 5 , 472, 473, 487, C ook, capitão James, 3 3 8
500, 5 9 3 C ooper, Alfred Duff, 5 82
constituição, 490-92, 496; celebração copper mines, 1 6 3
de festivais, 6 3 9 , 640; debate da, Coppet, Château de, 7 5
380-82, 3 94 - 9 5 ; direitos naturais e, Corday, Charlotte, 62 5 -7, 6 2 9 - 34,
507; do ano III, 722,72 1 ; insurreição 64 1 , 707
e, 5 2 5 ; Luís XVI e, 489, 5 5 6 - 5 7, C ordeliers, 1 5 1 , 386, 430 - 3 1 , 4 5 5 ,
5 6 1 -62; Maria Antonieta e, 5 0 0 4 7 3 , 478, 479, 482, 483, 486, 49 1 ,
C onsulado, 444, 7 1 8, 7 1 9, 72 1 5 1 6, 5 1 7, 5 1 9, 5 2 3 , 5 2 6 , 5 32 , 642,
Contat, Louise, 1 2 2, 427 6 8 5 , 686, 689; e a conj ura
Conti, Louis François Joseph, Príncipe estrangeira, 686; e Hébertistas, 69 1 ;
d� 93, 2 0 1 , 22� 2 77, 3 6 0 e o funeral de Marat, 6 3 6 - 3 7
contrabando, 62, 269; de literatura Cordellier, General Etienne Jean
clandestina, 1 2 3, 1 54 François, 670
Contrato Social ( Rousseau ) , 9 5 , 1 34, C ordier de Launay, 224
1 48, 3 8 3 Cordonnier, Jacques, 4 5 7
Convenção, 3 3 0, 4 5 7 , 4 9 6 , 5 3 5 , 5 4 3 , Corneille, Pierre, 2 5 , 1 2 8, 1 46, 427,
546 - 52, 5 7 9, 70 1 , 72 1 ; calendário e , 5 5 8, 626, 6 3 3
6 5 8; comités da, ver comités em C orneille, Thomas, 6 3 3
particular; constituição e, 640; C orpo Legislativo, 7 3 0
Danton na, 642, 643, 692; David na, C orpo Livre, 208, 2 09
6 2 7 - 2 8 ; denúncia de Roux da, 642 - corporações de Paris, 240
-4 3; divisões, 6 1 1 - 1 4; e crise Correspondance Secrete, 1 09, 1 22, 145, 1 50
económica, 6 0 5 -8; e C órsega, conquista da, 4 5 , 2 9 3
descristianização, 6 5 9, 660, 703, corvée, 7 1 , 7 3 , 2 0 3 , 2 04, 2 1 4, 2 2 2 , 3 7 7
7 0 5 ; e distúrbios federalistas, 624- 5 , C ôte d'Or, revoltas na, 5 9 8
640; e execução de Luís XVI, 5 6 7, Cotentin, nobreza do, 2 6 6
5 68; e guerra, 547, 548-49, 5 84-88, C ottret, Monique, 3 3 9
604, 648; e iconografia Coudray, Madame du, 1 5 8
revolucionária, 6 5 5 - 5 6 ; e instrução Countra -Terror, 7 1 6
públic� 7 0 3 - � 7 0 5 , 706; e Courrier de la France et des Colonies, Le,
insurreição da Vendeia, 5 92, 602, 730
603; e j ulgamento de Luís XVI, 5 5 3 - Courrier de Versailles, 3 9 5 , 3 9 6 , 42 5
- 5 5 , 5 5 8 - 58, 5 6 1 -67; e j ulgamento Courrier Patriotique, 44 3
de Marat, 6 1 4- 1 5 ; e levée en masse, Courtiade, 7 3 3
649, 6 5 0; e massacres de S etembro, C outhon, Georges, 620, 6 3 2 , 644,
543; e morte de Marat, 6 34-6; e 66 1 , 662, 6 6 3 , 6 6 5 , 666, 6 8 3 , 694,
'
Terror, 644-48, 6 5 3 , 6 5 5 , 662, 664, 707, 7 1 0, 7 1 2, 7 1 3
683, 6 8 5 ; enragés e, 609; exército C oyer, abade, 1 04, 1 06
constituído pela, 5 8 9 ; expulsão dos crédito, morte do, 2 3 9 -4 1 , 244
girondinos da, 6 1 4- 1 8, 622, 624, C réqui, Marquês de, 6 3 5
783

crianças: e a Guarda Nacional, 3 9 1 , Darigrand, 6 0


4 3 3 , 436; na iconografia, 6 5 6; no Darnton, Robert, 1 34, 1 48
funeral de Mirabeau, 47 1 ; Darruder, 9
patriotismo das, 449 - 5 0 Daumier, Honoré, 9
Crimes des Rois de France depuis Clovis David, Jacques-Louis, 2 5 , 35, 64, 1 4 5 ,
jusqu 'à Louis XVI, Les ( La 42 5 , 4 2 6, 484- 6, 5 7 1 , 6 3 9 , 677;
Vicomterie ) , 474 apartamento no Louvre, 1 5 7; e
Criminoso Honesto, O, 406 Festa da Unidade, 6 3 9 -40; e morte
C rompton, William, 1 96 de Lepeletier, 5 7 1 ; encarceramento,
C romwell, Thomas, 42 2 - 2 3 7 1 4; Marat e, 627, 628, 6 3 9; Maria
C rouzat, General, 670 Antonieta desenhada por, 677; no
C roy, Emmanuel, duque de, 42 C omité de Segurança Geral, 7 1 O;
cultura popular, fusão da cultura pinturas históricas de, 1 4 5 -6, 3 1 1
erudita com, 1 1 6 - 2 5 Dax, 3 5 5 , 3 5 6
curés bénéficiés, 302 D e l 'Administration des Financesde la
curés congrués, 302 France ( Necker) , 200
C urtius, Pierre, 3 2 7 - 8, 3 3 1 , 3 3 2 , 3 34, Declaração da Independência, 2 09
357 Declaração de Paz, 507
Custine, Adam Philippe, C onde de, Declaração de Pillnitz, 5 0 1 , 5 0 5 -6, 5 0 8
546, 603, 640 Declaração d o s Direitos do Homem e
do Cidadão, 380, 3 8 5 , 3 94, 408,
Dame Nature à la Barre de l 'Assemblée 4 1 3 , 429, 449, 450, 469, 507, 529,
Nationale ( Marécha l ) , 4 5 1 558
Dampierre, Anne Elzéard du Vai, Déclaration des Droits de la Femme e t de la
C onde de, 479 Citoyenne ( de Gouges ) , 429, 5 6 0
Danger d 'Aimer Étranger, 3 3 8 decretos d e Agosto, 3 8 0 - 3 , 3 94, 400,
Dansard, Claude, 4 5 6 4 1 7, 42 1 -2
Danton, Gabrielle, 5 2 5 Défenseur de la Constitution, La, 496
Danton, Georges Jacques, xxvi, 3 84, Defer de La Nouerre, 2 7 6
5 1 9, 5 32 , 5 3 7, 6 1 7, 62 1 , 6 5 6; como Defoe, D aniel, 3 6 7
ministro da Justiça, 5 3 2, 5 34; D éj ean, Madame, 1 1 3
conj ura estrangeira, 6 8 3 , 684- 5; Delacroix, Charles, 1 4, 6 0 3 , 6 1 9
descristianização e, 660; durante a D elacroix, E ugene, 9, 1 3 - 1 4
guerra, 547; e C omité de Salvação Delafonde, Clair, 6 3 1
Pública, 64 1 , 643, 644, 647; e fuga Delaporte, 66 1
da família real, 478, 482; e D elaporte, Abade, 2 3
insurreição, 522, 524; e j ulgamento D eleyre, Alexandre, 9 3
de Luís XVI, 5 6 3 ; e levée en masse, Delfinado, 443; Confederação em,
649, 6 5 1 ; e Tribunal Revolucionário, 43 1 ; Estados do, 2 3 5 - 7, 242, 249,
604; em C onvenção, 548; em 2 5 2 , 2 5 5 , 266, 2 94, 3 77; fim dos
Inglaterra, 494; enragés e, 6 1 0; privilégios em, 378; Intendant de,
execução de, 5 6 1 , 694- 5 ; 1 00;
Girondinos e , 6 l l - 6 1 2 ; Hérault e , Denis, Marie-Louise Mignot, 1 9
1 3 6; Indulgentes campanha dos, 684- Departamento de Correspondência,
-92; j ulgamento de, 6 9 3 - 5 , 699; 525
massacres de Setembro e, 5 3 7, 5 9 1 ; departamento d e inscrições do, 497;
n a Guarda Nacional, 386, 388; no família real no, 402; Salon da
Clube dos C ordeliers, 430-43 1 ; no República no, 6 3 7
C onselho Executivo, 5 3 5 ; oratória Departamento do Norte, 5 9 3
de, 1 3 9; prisão de, 6 9 3 - 94; secções e, departamentos, 408 - 9
647; Talleyrand e, 5 7 8 Désaugiers, Marc Antoine, 440
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Descartes, René, 470, 484 Doubs, Departamento do, 409


Deschamps, Louis, 6 3 5 , 6 3 6 Doulon, revolta em, 5 9 2
descristianização, 6 5 8 - 6 1 , 6 8 3 , 690, Dragon, Jean-Joachim, 666
687, 699 Draguignan, Terceiro Estado, 4 1 1
Desfieux, François, 6 1 2, 684 Dreux - B rézé, Henri Evrard, marquês
Désilles, Antoine -Joseph, 48 5 de, 297, 3 1 4, 47 1
Desmoulins, C amille, vii, 9, 1 3 0, 1 43, Drouais, Jean Germaine, 42 6, 62 7
3 2 9 - 3 3 � 379, 3 9 � 46 5 , 6 1 4, 6 2 � Drouet, Jean-B aptiste, 477-478, 5 5 1 ,
687-92; casamento d e , 449; 631
contribuições patrióticas, 3 7 5 ; D rouhet, Sieur, 5 9 5
detenção d e , 6 9 2 ; e insurreição, Du Barry, Jeanne B écu, Madame, 1 7 3,
5 2 2 ; educação de, 1 4 3, 329; em 1 7� 1 7 � 3 5 7, 677, 678
Convenção, 548, 5 5 0; execução de, Du B ellay, Joachem, 289
694; j ulgamento de, 6 9 3 , 6 9 5 ; D u C ouedic de Kergoaler, Charles­
Mirabeau e, 4 5 8 ; na Festa da -Louis, Sieur, 30- 3 1
Federação, 439; no j ulgamento dos D u Pont de Nemours, Pierre Samuel,
Girondinos, 680; oratória de, 1 42 1 9 1 , 1 9 3, 1 9 5 , 200, 202, 2 0 3 , 2 1 2,
Desmoulins, Lucile, 5 2 5 , 694 2 5 5 , 409, 4 1 3, 5 5 9; Cahies escritos
Desnot, 348 por, 262, 2 6 3
Desórgues, Théodor, 7 0 5 D u Rozoi, 5 3 2
Despotismo Oriental, 1 40; cahier de, Dubois d e Crancé, Edmond Louis
262; destruição das colheitas à volta Alexis de, 4 1 1 , 6 2 3
de, 260; fiações em, 1 0 5 ; guardas D ubuisson, 684
voluntários de, 280; Orleães: Ducastelier, 2 7 0
Desrenaudes, Abade B orie, 579 D ucreux, Joseph, 5 6 8
Destez, Jacques, 478 Dufourny d e Villiers, 2 8 1
Devienne, 699 Dufresne, Bertrand, 8 0
Dialogue entre M. l 'Archevêque de Sens et Dufriche-Valazé, Charles -Eléonor,
M. le Carde des Sceaux, 229 549, 5 54, 680
Diderot, Denis, 25, 74, 82, 85, 9 5 , Dugazon, Jean B aptiste Henri, 428
1 2 8, 1 2 9, 1 3 0, 1 3 2 , 1 3 3 D umont, André, 3 5 4
Dietrich, Philippe Frédéric, B aron de, Dumont, Etienne, 2 5 1 , 2 5 2 , 307
3 7 3 , 497, 5 1 2 - 3 D umouriez, Charles, xxv, 4 5 , 5 1 1 ,
Dijon: Bastilha, souvenirs 3 5 6; Grande 5 1 9, 5 4 5 -48, 5 8 3 -89, 6 0 5 , 6 1 0, 6 1 3,
Medo, 3 69, 3 7 3 ; Parlamento de, 9 1 , 629, 64 1 , 68 1
9 3 , 1 02 , 1 0 5 , 2 3 0 D unquerque, 44; ataques a celeiros
Dillon, Arthur, 1 80, 1 8 1 em, 279; avanço austríaco em, 64 1 ;
Dillon, Dominique, 4 1 8 contrabando d e livros em, 1 5 1
Dillon, família, 3 6 7 Duplay, família, 494
Dillon, Théobald, 5 1 4 Duplessis, Joseph- Siffrein, 572
Dino, D orothée de, 1 2 D uport de Prelaville, Adrien, 97, 220,
Directório, 3 04, 444, 72 1 , 7 3 6 2 2 1 , 2 5 3, 2 54, 25� 30� 3 1 � 4 1 2 ,
Direitos d o Homem ( Paine ) , 5 7 9 442, 48 1 , 48 5 , 486; e Declaração
Dobsen, Claude -Emmanuel, 6 1 6, 6 1 7 dos Direitos do Homem, 380; e fuga
Dodun, Madame, 498 da família real, 477; Feuillants e,
Dorfeuille, 664 486; Mirabeau e, 467; na
Dorinville, Dorothée, 1 7 Assembleia Legislativa, 496; na
Dorvigny, 1 1 6 Assembleia Nacional, 384
Dosogne, 1 97 Dupuy, Pierre, 444
Douai: guarnição de, 5 1 4; Parlamento Duras, Emmanuel Félicité de Durfort,
de, 1 02, 2 3 0 duque de, 3 3 9
785

D uroure, Louis -Henri ' C ipião', 6 1 7 Escola Real de Minas, 1 6 3


D usaulx, Jean-Joseph, 3 5 6, 497 escravos : libertação dos, 494, 498; ver
também negros
É cole Militaire, 1 5 8, 2 1 7, 3 3 1 , 434 Espanha, 596; guerra com, 3, 592,
écoles centrales, 7 2 1 60 l ; Holanda e, 38, 5 8 5
economia: após a tomada da B astilha, Espírito das Leis, O ( Montesquie u ) , 9 3 -4
3 8 8 - 9; Assembleia Constituinte e, Esprit des Édits, L' ( Barnave ) , 2 3 1
4 1 1 , 447 -8; cahiers, 2 64- 5 ; C rises da, Esquirol, Jean Etienne Dominique,
2 3 9 -40, 244 - 5 , 2 6 1 ; da República, 738
604-7, 642 -43; e o j ulgamento de Essai Général de Tactique ( Guibert ) , 2 1 6
Luís XVI, 5 5 6 ; modernização da, Essai Historique sur la Vie de Marie­
1 6 1 - 5, 1 66 - 7, 2 76; radicalismo e, Antoinette, 1 88 - 9
5 1 6 - 1 7; sob Calonne, 1 9 3 -8, 206; Estados Gerais, xxvi, 2 7 , 1 1 9,
sob Loménie de B rienne, 2 1 3 - 1 4 1 3 8, 1 99, 2 0 1 , 2 0 5 , 2 1 3, 2 1 8, 2 2 0 - 1 ,
Terror e , 64 1 , 645; 2 2 5 - 7, 2 3 7 -8, 2 97, 426, 4 5 1 , 466,
Edgeworth de Firmont, abade Henri 490, 493, 5 6 1 , 604, 70 1 , 72 1 , 723; a
Essex, 568, 5 6 9 nação e os, 2 64; Assembleia
Édipo e m Colona ( S ófocles ) , 489 Nacional e os, 309, 3 1 2; cerimónias
É dito de Nantes, 2 1 5 de abertura dos, 2 8 9 - 92 , 2 97 -9,
Eduardo III, rei da Inglaterra, 2 9 3 04; Clube B retão e, 382;
educação: ensino básico, 70 1 ; superior constituição e, 2 3 6; D ' Antraigues
72 1 nos, 2 5 6; e a politização da crise
Egipto, Napoleão no, 1 1 financeira, 50; Ferrieres nos, 289;
Elbée, Mamice Gigot d', 5 9 5 , fim dos, 3 1 6, 3 1 7; impasse nos, 304-
5 99 - 6 0 0 - 3 08; impostos e os, 86; Lafayette
eleições: de funcionários locais, 443 - nos, 387; Loménie de Brienne e os,
-45, 49 1 - 2 ; para a Assembleia 2 1 3 ; Luís XVI e a decisão de
Legislativa, 496-7; para a convocar os, 2 3 8 -40, 248, 249;
C onvenção, 549 - 5 0; Mirabeau nos, 2 9 2 , 2 9 3 - 9 5 , 296;
Elie, Jacob, 36, 347-8, 3 5 2 natureza da representação nos, 246,
Elisabeth, Madame, 1 7 5 , 1 90, 2 3 8, 249, 2 5 3 , 2 5 7; pão e, 286;
4 7 5 , 480, 5 2 6, 5 3 3, 5 5 7, 676 Parlamentos e, 9 5 , 220, 225, 2 2 7;
Éloge de Jean-Baptiste Colbert ( Necke r ) , processo eleitoral para os , 2 6 3 , 2 6 5 -
75 - 7 , 2 7 7 ; Robespierre nos, 493;
emigrados, 5 0 1 - 2 , 5 0 5 , 508, 509, 5 1 0, solvência e os, 244; visão de
5 1 4, 5 24;na América, 72 6 - 3 5 Malesherbes dos, 224, 2 5 2
Emílio ( Roussea u ) , 1 34 Estaing, Jean-B aptiste, C omte D ', 30,
Emmery, 7 2 9 327, 7 3 4
Encyclopédie, 8 5 , 5 3 0 Estrasburgo: clero e m , 300;
enragés, 5 5 7, 608- 1 0, 6 1 3, 6 1 6 - 7, 627, contrabando de livros em, 1 5 1 ;
637, 642 - 3, 645; perseguição dos, motins em, 3 7 2 - 3 , 376; movimento
6 1 5 - 1 6; plano económico dos, 64 1 , federativo em, 432; na guerra, 5 1 2;
643; Terror e , 644 sociedades populares em, 4 5 3
É pinay, Louise Florence Pétronille Etampes: guardas voluntários de, 280;
Tardieu d'Esclavelles, Dame de La motins em, 520; o Terceiro E stado e,
Live d', 1 32 41 1
Eprémesnil, Jean-Jacques d', 97, 2 2 0 - Ethis de Corny, 346
-22, 2 2 5 , 229, 2 4 6 , 2 5 3, 444, 700; Eure e Loire, Departmento de, 7 1 9
prisão de, 2 2 9 Evrard, C atherine, 6 3 0
E rmenonville, túmulo de Rousseau Evrard, Simone, 6 3 0, 6 3 7
em, 1 3 1 - 3 Exército C ontinental, 1 9, 2 3
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Exército do Sambre e Mosa, 1 4 1 Filipa, rainha, 29


Filipe, o Belo, 92
Fabre d'Eglantine, 430, 5 3 7, 546, 6 5 5 - filósofos, 7 4, 2 3 1 ; ataque de Linguet
-7, 6 8 3 - 6, 689 - 9 1 , 699, 7 1 1 aos, 1 40; provinciais, 44 5 ; Rousseau
Fabre, Philippe, 1 42 e, 1 34
Falcoeiros Reais, 2 9 0 Fils Puni, Le (Greuze ) , 2 5 , 1 2 9
falta de comida, 2 5 9 -2 62, 3 2 1 - 2 3 , financiers, 60, 64, 74, 245; durante o
6 0 6 - 607, 7 1 0, 7 1 8; durante a Terror, 698
guerra, 5 1 5 ; na Provença, 2 94 Finisterra, Departamento da, 409;
família Grammont, 1 1 6 motins anticonscrição no, 6 5 0
Família Luzac, 1 49 fisiocratas, 6 7 , 7 3 , 74, 1 67, 1 9 1 , 1 9 5 ,
Farbenlehre ( Goethe ) , 544- 5 1 9 5 , 292, 409
Fars-Fausselandry, viscondessa de, 3 9 Flahaut, Adelaide de, 1 90, 3 0 3 -4, 5 80,
Fauchet, Claude, 1 42, 3 5 5 , 390, 407, 582, 5 8 3, 7 3 3
49 1 , 497, 5 5 1 , 6 3 1 , 7 3 0 Flanders, Regimento da, 3 9 5 -96,
Faucheux, Marcel, 5 94 398, 3 9 9, 400
fédérés, 5 1 8 - 1 9, 5 2 3 - 2 5 , 5 2 5 Flandres, 1 64, 1 9 6, 248; clero na,42 3,
Femme dans l 'Ordre Social e t dans l 'Ordre 593
de la Nature, La ( Ferrieres ) , 2 8 9 Flesselles, Jacques de, 3 34, 347, 349-
Fénelon, François d e Salignac d e L a -50
Mothe-, 3 3 7, 472 Fleurus, B atalha de, 709
Ferme, La ( navio ) , 49 Fleury, 698
fermiers généraux, 49, 6 1 - 6 5 , 76, fome, 32 1 - 2 3 ; ver também falta de
7 9 , 8 5 , 87, 1 1 6, 1 2 8, 1 2 9, 1 5 2, 1 9 5 , comida
1 9 9, 2 3 9, 245, 3 3 3, 3 52 , 42 5 , 445 , Fontainebleau, 43, 1 47; Tratado de, 38
6 0 5 , 6 1 5 ; ataque d e Linguet aos, Fonte da Regeneração' 5
1 5 2; Calonne e os, 1 9 3, 1 94, 1 98; Fontenay-le- C omte: insurreição em,
durante o Terror, 672, 698; e a 5 9 8 - 99, 60 1 - 6 0 3 ; padres refractários
morte do crédito, 2 3 9 em, 5 9 1
Ferrieres, Henriette de, 287, 288, Fontenelle, B ernard l e B ovier de, 2 7
2 8 9 , 2 90, 3 0 5 Forges, 3 6 8 - 9
Ferrieres-Marsay, Charles-Elie, Forges-les-Eaux, 5 7 8
marquês de, 2 84, 2 8 7 - 3 0 1 , 3 0 5 , Forster, George, 5 4 7
30� 3 0 � 3 1 7 - 1 8, 3 7 � 3 8 7 , 407, Fosses, cahier de, 272
479, 489, 5 0 1 Foucault, Michel, 340
Fersen, Axel, 1 8 3, 47 5 , 476, 502 Fouché, Joseph, 6 5 9 - 660, 66 1 , 6 6 3 ,
Festival da Unidade, 5 , 6 3 8 - 9, 7 0 3 -4 6 6 5 , 7 0 5 , 7 0 9 , 7 1 0, 7 1 5
Festival do Ser S upremo, 7 04, 7 0 5 - 6 Foulon, Joseph François, 349, 2 84- 5
Fête d e la Fédération, 3 5 5 , 4 3 2 , 434- Fouquet, Jean, 427
-4 1 , 46 1 Fouquier-Tinville, Antoine Quentin,
feudalismo, vestígios do, 2 7 3 , 3 7 2 , 6 1 4, 6 3 2 , 676, 677- 680, 6 9 3 , 699-
3 7 6, 377, 7 1 9 - 2 0 - 7 0 1 , 707, 7 1 5 , 724
Feuillants, 4 8 6 , 4 9 0 , 49 1 , 4 9 2 , 4 9 3 , Fourcroy, Antoine François, conde de,
5 4 2 , 5 5 1 , 5 8 3 , 642; e a crise da 3 5, 1 5 8, 6 5 6, 670
guerra, 5 0 5 , 5 0 6 , 508, 5 1 0; Fournier, C laude, 5 1 9, 5 24, 5 2 7 , 542
guilhotina e os, 549; na Assembleia Fox, Charles James, 579
Legislativa, 497, 498, 5 0 1 , 502, 5 2 2 Fragonard, Jean Honoré, 1 5 5
Feuille Villageoise, La, 4 5 2 - 3 Fragonard, Marie-Anne, 3 7 9
Fiasco dos Chapéus, 2 9 8 France Libérée, La ( Desmoulins ) , 3 2 9
Fielding, Henry, 9 8 , 4 5 2 France Républicaine, L a ( B oizot) , 6 5 5
Filadélfia: Francisco 1 , 362
787

Franco - Condado, 267, 2 7 3 ; Gentil, abade, 3 7


Feudalismo no, 3 7 6 ; Fim dos Gérard, Michel, 292
privilégios do, 376; Francisco II, Gerbier, Pierre, 1 3 6, 1 92
Imperador da Á ustria, 5 1 0, 7 3 6; Gerle, D om, 42 3, 487, 7 1 0
Grande Medo no, 369, 372, 3 7 5 ; Gévaudan, hiena de, 22, 7 2 5
Insurreição no, 6 2 5 ; Parlamento do, Gillray, James, 5 8 0
409 Gin, Pierre-Louis, 1 3 7
Franklin, Benj amin, 28, 3 3 - 6 , 45, 74, Giorgione, 1 98
84, 1 32 , 1 6 5 , 292, 4 5 5 , 472, 484, Girard, René, 3 7 4
7 3 0, 741 Girardin, René Louis, marquês de,
Franquieres, marquês de, 442 1 3 1 -2 , 1 5 1 , 446, 4 5 7, 7 1 8
Fraternidade: Fauchet sobre, 407; no Girardin, Stanislas, 447, 5 8 1
movimento da federação, 4 3 2 - 4 Girodet-Trioson, Anne-Louis, 349
Frederico o Grande, r e i da Prússia, Girondins, 498-9, 5 2 0, 522, 5 2 8, 5 32 ,
2 1 1 , 5 0 5 , 546, 7 3 4 5 4 9 , 6 1 0, 6 1 1 - 1 9, 620, 643, 68 1 ,
Fréron, Louis, 430, 449, 4 5 6, 46 5 , 6 8 3 , 7 3 7; e a crise económica, 608;
468, 4 7 3 , 478-9, 48 3 , 5 3 6, 5 5 1 , e a morte de Marat, 632; e o C omité
6 6 5 , 7 1 5, 7 6 5 de Salvação Pública, 604; e o
Frey, Léopoldine, 6 8 5 j ulgamento de Luís XVI, 5 5 3 - 5 7,
Fried, Michael, 1 2 9 5 6 3 - 64, 5 6 5 ; e o j ulgamento de
Marat, 6 1 3 - 6 1 4, 626-7, 628-9; e os
gabelle, 60, 268, 2 6 9 massacres de Setembro, 543; em
Gagnon, D r . , 2 3 1 , 2 34- 5 Lyon, 664; enragés e, 609, 6 1 0;
Gaillefontaine, 3 6 8 execução dos, 6 77 - 8 1 ; expulsão da
Gaio Fabrício, 1 4 5 C onvenção dos, 6 1 4- 1 8, 622, 624,
Gallissonniere, Augustin- Félix - 629, 688; fuga de Paris dos, 679;
-E lisabeth Barrin, conde de, 2 8 9 insurreição federalista e, 6 2 5 ;
Garat, Joseph, 6 8 3 j ulgamento dos, 6 5 3, 6 7 7 , 6 7 9 - 8 1 ;
Gard, departamento d e , 409 na C onvenção, 5 5 1 , 5 52 , 5 5 3; Paine
gardes françaises, 70, 24 1 , 2 8 3 -4, 3 1 5 , e, 5 68; suicídios dos, 68 1 , 720; ver
3 1 7 - 1 8, 3 2 1 , 324- 5 , 3 32 , 3 34, 3 4 5 , também B rissotins
3 4 7 , 390, 397, 400 -2, 6 7 3 ; n a Gloucester, duque de, 2 1
Guarda Nacional, 3 8 9 - 9 0, 3 97, 4 0 0 - Gluck, Christoph Willibald von, 1 1 3 ,
- 4 0 2 ; na revolta de Paris, 3 32, 3 34; 1 2 9, 1 8 3, 2 88, 6 3 6
na tomada da B astilha, 3 4 5 , 347; no Gobel, Jean B aptiste Joseph, 6 5 9
Palais-Royal, 3 1 5 , 3 1 8, 32 1 Godechot, Jacques, 3 3 3, 4 5 2
Gaschinard, Dr., 589, 5 9 1 Goethe, Johann Wolfgang von, 2 34,
Gaston et Bayard ( B elloy) , 2 9 5 44-45, 549
Gates, Horatio, 2 3 Goguelat, 5 1 1
Gaudin, Martin Michel Charles, Goislard, 2 2 9
duque de Gaete, 1 9 5 , 72 1 Goj ard, 2 3 9
Gazette de France, 1 48 Gombault, abade, 62 6
Gazette de Leyde, 1 49 Gorsas, Antoine -Joseph, 3 9 5 - 6, 62 4
Gazette des Tribuneaux, 1 3 8 Gossec, François-Joseph, 4 7 2 , 484,
Genebra, República de 38, 2 5 1 5 1 3, 6 3 8 - 9, 7 0 5 , 764
Génevou, 442 Gouges, Olympe de, 42 9, 4 5 6, 5 60,
Génissieu, 437 678, 7 7 5
Genlis, Félicité Stéphanie, condessa de Goupil d e Prefeln, 7 2 0
B rusbart de, 1 5 5, 2 5 4, 5 7 7 , 5 8 0 Grã -B retanha, 2 6 3 ; aristocracia da,
Gensonné, Armand, 4 5 5 , 4 9 9 , 5 1 1 , 1 02 , 1 0 3; B rissot e, 678; B urocracia
553 na, 5 5 ; comissões de dívida externa
Simon Schama 1 CIDA'DÃOS

da, 65; concorrência com a, 1 6 1 ; Grétty, André Ernest Modeste, 3 9 5 ,


C onstituição da, 3 8 2 ; coroações na, 5 12-13
2 9 1 ; dívida de guerra, 54.; e a crise Greuze, Jean-Baptiste, 2 5, 34, 1 1 5 ,
holandesa, 2 1 2 ; e a Declaração de 1 2 8- 30, 1 39, 1 54, 1 86, 494, 5 3 3 ,
Pillnitz, 5 0 1 ; e a Marinha francesa, 535
48; e os portos do Canal da Mancha, greves, 7 IO; proibição de, 448
44; emigração para a, 5 96, 696; Grignion de Montfort, Louis, 5 9 5
especulação na, 5 2 ; gastos com a Grimm, Friedrich Melchior, barão de,
monarquia, 1 94; guerras com, 20, 74, 8 1 , 1 34
2 7 , 30, 3 3, 43, 1 2 3, 1 3 6, 5 7 7 , 5 8 3 - Grotte Flamande, 1 1 7
8 7 , 640- 1 , 646, 704, 708-9, 7 1 7; Grouvelle, Philippe Antoine, 1 07, 568
Índia e, 2 5 0, 726; indústria de Gruder, Vivian, 203, 205, 752, 7 5 5
carvão na, 69; industrialização na, Gruget, 600
1 62 , 1 6 3 , 1 64; Marinha Real da, Guadet, Marguerite-Elie, 499, 509,
1 2 3 ; na Revolução Americana, 2 3 -4, 5 2 1 , 5 5 1 , 565, 6 1 3, 6 1 6, 624
38; Parlamento da, 80, 1 4 1 , 244, Guarda Nacional, 1 3 , 3 5 2 , 392, 42 5 ,
307; revolução na, 244, 246, 249; 4 5 5 , 47 1 , 5 2 7 ; árvores da liberdade,
Talleyrand na, 5 0 3 -4, 5 7 7 - 8 3 ; 424; Batalhão de Veteranos, 406;
tratado comercial com, 1 9 6-7, 1 98, durante o Terror, 698; e fuga da
248, 2 6 1 , 448 família real, 477; e insurreição à
Grammont, 6 5 8 C onvenção, 620; e movimento
Grammont, Duchesse de, 700 federativo, 432; e Revolução de
Granadeiros da França, 2 0 1 8 3 0, 1 0; em revoltas urbanas, 622;
Granchez, 1 97 guerra e, 5 1 2 ; Hanriot, parceria
Grand, Catherine, 1 86 com, 68 1 , 7 1 3; Igrej a e, 5 0 1 ;
Grande Exército C atólico e Real, 5 94, Lafayette e , 386, 5 2 2 ; lei marcial,
668, 670 48 5; marcha sobre Versalhes, 392,
Grande Javott, La, 1 5 1 3 94, 397, 398; Mirabeau e, 458,
Grande Medo, 3 7 0 - 7 3 47 1 ; mulheres e, 678; na
Grande Terror, 7 0 8 , 7 1 4 insurreição de Agosto, 5 2 2 - 2 5 ;
Grandmaison, 6 6 1 Protestantes e, 4 3 1 ; S aint-Huruge
Grandpré, 5 3 9 em, 42 5 ; Santerre como
grands bailliages, 2 2 9, 2 3 8, 2 4 1 comandante da, 5 3 2 , 5 5 8; secções e,
Grands Danseurs, 1 1 5 5 1 9; uniforme da, 4 5 0; Voltaire, 484
Gravures Historiques, 3 5 1 guardas franceses ver gardes françaises
Great B ritain, see B ritain guardas suíços, 1 09, 2 2 3 , 399, 5 2 6 ,
Grécia Antiga, 1 3 9 5 2 7 , 5 2 7 , 5 32 , 5 3 � 5 3 � 5 6 1 , 67�
Greer, Donald, 666, 67 1 na Bastilha, 348
Grégoire, abade Henri, 1 42, 307, 4 1 7, Guellard, 6 3 1
42 1 , 45 1 , 46 5 , 487, 5 5 1 , 5 8 5 , 6 1 9, Guéménée, Marie -Louise, princesa
702 - 3, 706, 7 1 0, 7 1 4 de, 1 82
Gregoriano, calendário, 6 5 6, 7 0 5 Guénot, Nicolas, 6 5 5
Grenoble, 2 3 8, 306, 7 1 9; cahier de, Guerra dos Cem Anos, 3 1 6
2 6 6 ; durante o Terror, 666; Guerra dos Sete Anos, xxvii, 20, 27,
Lafayette em, 1 0; manufactura de 30, 38, 43, 44, 48, 5 2 -4, 1 94, 470,
luvas em, 1 64; morte do bispo de, 722, 740
242; Parlamento de, 9 1 , 2 3 5 , 442 - 3 ; Guerra Peninsular, 60 1
sociedades populares em, 4 5 3 ; Guerra Russo-Turca, 2 6 1
tumultos e m , 2 3 0 - 3 5 guerras d a farinha, 66, 70, 1 09, 2 7 6
Grenville, William Wyndham, barão, Guerras Revolucionárias Francesas,
5 04, 5 7 9 , 5 84-87 5 1 2 - 1 7, 5 24, 544-49, 577, 5 8 3 -88,
789

708; contrariedades nas, 6 0 2 - 6 0 3 , Hébert, padre, 472


6 0 6 , 64 1 , 6 4 6 ; e j ulgamento d e Hébertistas, 645, 648, 6 5 1 , 68 2 - 92,
Luís XVI, 5 5 6; eleições e a s , 549; 698-9, 702 - 3, 734
eventos que conduzem às, 5 02 - 5 1 2; Helvétius, Claude Adrien, 6 3 , 459
exército revolucionário, 648 -9, 6 5 0; Hemery, Joseph d', 5 5 9
massacres de S etembro e as, 5 3 6 - 40 ; Hénault, Charles -Jean-François, 98
poderes policiais de emergência e as, Henriot, 2 8 1 , 282, 2 8 3
5 3 5 - 3 6; Terror e as, 666 Henrique II, 1 7 5 , 3 62
Guêt, 2 84, 3 3 1 Henrique IV, 22, 2 7 -8, 4 1 , 57, 97, 1 3 2,
Guibert, Jacques Antoine Hippolyte, 24 1 , 2 9 � 2 9 1 , 2 9 & 3 34, 3 5 4, 3 6 1 ,
conde de, 1 5 8, 2 1 6 - 1 8, 3 2 4, 546, 440, 5 3 5 , 640, 70 1
649, 708 Henrique VIII, rei de Inglaterra, 42 3
guildas, 70, 72 - 3 , 2 74- 5 ; abolição das, Hérault de Séchelles, Marie -Jean, 5 ,
447, 7 1 7 1 3 5 - 8, 1 42 , 220, 3 7 7 - 8 , 506, 5 3 5,
Guilhaumou, Jean, 6 3 6 540, 5 5 5, 5 7 1 , 6 1 9, 620, 6 38, 640,
Guilherme ill, rei da Inglaterra, 246, 370 644, 684, 692, 694, 7 0 5
Guilherme V, príncipe de O range, 209, Herman, Armand Martial Joseph, 676,
474 693
Guilherme, o C onquistador, 27 Hermigny, Maj or, 396
guilhotina, 5 2 9 - 3 2 , 5 6 1 , 7 1 5, 7 2 3 ; e Hespe, J . C . , 209
culto do S upremo Ser, 707; Terror e, Hiena de Gévaudan, 2 2 , 72 5
646, 6 5 4, 660, 6 6 3 -4, 667, 70 1 Hino à Natureza ( Gossec) , 6 3 8
Guillaume, M . , ver Malesherbes Hirza ou les Illinois ( Billardon d e
Guillotin, Joseph-Ignace, 2 5 8, 3 1 0, Sauvigny) , 2 3
3 5 8, 5 2 9 - 3 1 , 7 5 7 Histoire de la Pairie de France
Guiraut, 6 34 ( Laboureur ) , 92
Guyton de Morveau, Louis B ernard, Histoire des Filies Célebres, 3 3 8
barão, 497 Histoire des Girondins (Lamartine ) , 498
Histoire du Patriotisme Français, L'
Haarlem, agitação política em, 208 ( Rossel ) , 27
Haia, 2 1 2, 474, 5 86 Histoire du Siecle d 'Alexandre ( Linguet) ,
Halles, Les, 322 1 39
Hamilton, Alexander, 583, 729, 7 3 1 Histoire Philosophique et Politique des
Hanotaux, Gabriel, 649 Établissements et du Commerce des
Hanriot, François, 6 1 3, 6 1 8, 6 5 3, 6 8 1 , Européens dans les Deux Indes
7 1 0, 7 1 3 ( Raynal ) , 1 47
Hardy, Siméon, 282 History and Theory ( Carr ) , xxviii
Haren, Otto Zwier van, 2 9 3 Hoche, Lazare, 402
Hareville-sous-Montfort, cahier de, 2 5 8 Hogarth, William, 5 1 7
Harris, R . D . , 79, 306 Hohenzollerns, 5 3, 5 1 7
Hauer, Jean-Jacques, 6 3 4 Holanda : sob os Habsburgos, 5 04, 5 0 3 ;
Haüy, abade René Just, 1 5 7 - 8 guerra da independência, 5 8 5 , ver
Haüy, Valentin, 1 60 também Républica Holandesa
Hay de B onteville, bispo de Grenoble, Holland Land C ompany, 7 3 2
242 Homero, 470
Hébert, Jacques René, 1 89, 3 9 3, 4 5 2 , Hondschoote, B atalha de, 6 8 3
4 7 2 , 5 1 6, 5 1 8, 6 0 8 , 6 1 3, 6 1 6, 645, honnête, homme, 292, 296, 4 5 7, 699;
646, 647, 6 5 3, 660, 6 8 1 -4, 689-92, B eaumarchais como, 1 2 1 ; Latude
698-9, 7 2 3 ; e j ulgamento e como, 34 1 ; Malesherbes como, 84;
execução de Maria Antonieta, 6 7 3 , Necker como, 3 2 7
6 74, 6 7 5 - 6 Hood, almirante Alexander, 647
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Horaces, Les ( Corneille ) , 1 46 5 3 0; religião e, 4 1 6; Talleyrand e,


Horatio C ocles, 1 4 5 1 7, 1 9; teoria da impressão dos
Hospital das C rianças Abandonadas, sentidos do, 6 5 6; violência e, 3 8 6
1 2 6, 1 3 1 -2 Imbert C olomes, Jacques, 445
Hôtel -Dieu, 1 5 5 Império Habsburgo, 5 04
Houchard, Jean Nicolas, 6 5 1 Império, 444, 672, 7 1 8 -2 1
Houdon, Jean Antoine, 1 3 2, 484 imposto único, 67
Hubert, 704, 7 0 5 impostos sobre tabaco, 60, 62
Huddy, C aptain Joshua, 2 5 impostos, 5 2 - 3 , 5 9, 76; arrendamento
Huel, 7 0 0 de, 6 0 - 5 ; Assembleia Constituinte e,
Huet, Jean-Baptiste, 3 5 4 1 3; Assembleia Nacional e, 307-8,
Hufton, Olwen, 3 7 1 , 42 3 309, 377; C alonne, 1 9 5 , 1 99, 2 0 1 - 6 ;
Hugo, Victor, 5 colecção d e , 5 9 -60; da República,
Huguenots, 2 3 , 1 49, 2 1 5 , 2 5 1 7 1 8, 7 1 9 - 2 0; fisiocratas e os, 67;
Hulin, Pierre Augustin, 347-8, 3 9 7 isenções fiscais, 54-5, 7 1 -2, 1 02 ,
Hume, David, 3 3 7, 5 6 2 2 5 6; Loménie de B rienne, 2 1 3 -4,
Hungria, 4 9 9 22 1 -2, 2 2 3 ; Malesherbes, e o ataque
ao sistema fiscal, 86; Mirabeau,
iconografia republicana, 6 5 5 - 6 proj ectos de, 462; Necker, 77;
If, C astelo d e , 2 9 3 Parlamentos e, 89, 94; queixas por
Ifigénia e m Áulida ( Gluck ) , 1 1 3, 2 8 8 causa dos, 6 2 8 - 9, 272; séance royale e
Igrej a Reformada, 2 1 5 os, 3 1 3; sistema de gestão de, 5 3
Igrej a : " convulsionários" da, 3 3 6; impôt foncier, 60 5
divisões entre os ricos e os pobres Inauguração da República Francesa, A,
na, 3 0 2 - 6 ; durante a guerra, 5 48; e 704
a nobreza, 1 06; e a sublevação da Índia, 26, 1 99, 586; B ritânica, 726;
Vendeia, 5 9 2 - 9 3 , 5 94-98; e ataques esquadra de Suffren ao largo da, 39,
a protestantes, 43 1 ; e 48, 1 2 3, 1 94; oportunidades
descristianização, 6 5 8 - 6 1 ; e o económicas na, 1 9 9; Talleyrand e a,
movimento da Federação, 4 3 7 - 38; 732, 733
escolas promovidas pela, 1 5 3 ; Í ndias Ocidentais Francesas, 2 9 , 3 7 - 8,
expropriação da, 4 1 6-24, 446 -47; 49, 1 02, 492; insurreições negras
heresias e, 94; impacto da nas, 5 1 6
Revolução na, 446; Luís XVI e, 567; Indulgents, 68 8 - 90, 692,
Mirabeau e, 46 3 - 6 5 ; missões de indústria do algodão, 1 0 5 , 1 60, 1 62 ,
pregação evangélica, 1 42; 163
monárquicos na, 5 0 0 - 1 ; na B élgica, industrialização, 1 62 -4; impacto da
5 8 3 - 84; polarização na, 1 06; Revolução na, 7 1 7
recuperação das funções pastorais, indústrias caseiras rurais, 1 64
7 1 6; Talleyrand e, 1 7, 1 92; Voltaire Institut National, 7 0 5
e, 1 8; ver também clero Institutions Républicaines, 7 1 1
Igualdade, 408; fome e, 2 6 1 - 2 ; Instituto de Saúde Materna, 1 2 5
limitações e, 4 2 9 ; perante a lei, insurreição de Agosto, 1 0, 5 2 3 -8,
265 549
Ijver, van den, 6 8 3 insurreição federalista, 622-26, 640,
Ilíada ( Homero ) , 3 3 8 64 1 , 6 5 1 , 6 5 2 - 3; derrota de, 6 6 1 - 6 3 ,
Iluminismo, 1 9, 6 8 , 6 9 , 1 5 8, 1 60, 1 68, 665, 666
1 7 7, 1 78, 2 1 7, 2 3 1 , 247, 289, 3 6 1 , integração social, processo d e , 1 0 3
367, 4 1 6, 44 5 , 490, 5 5 9, 6 5 6, 72 1 ; intendants, 79, 99, 1 00, 1 0 1 , 1 0 3, 1 5 9,
constituição e, 490; especialistas em 1 60, 223, 224, 3 74, 443, 698, 720;
direito do, 447; pena de morte e , assembleias provinciais inauguradas
79 1

pelos, 2 2 3 -4; ataques contra os, mentalidade da acusação pelos, 679;


2 9 5 - 6 ; durante o Terror, 698; Mirabeau e os, 454, 4 5 9, 46 1 - 3,
Invalides, Hôtel des, 4, 8, 3 3 1 , 3 34, 467, 47 1 ; mulheres e os, 4 5 6 - 7 , 678;
3 3 5 , 345, 347, 6 5 2 na Assembleia Legislativa, 497; na
Irene ( Voltaire ) , 1 8 procissão de Voltaire, 48 3 -4; Orleães
Irlanda, 5 9 6 e os, 482; os B ritânicos e os, 5 80;
Isere, D epartamento d e , 442, 7 1 9 polémica e os, 4 5 0 - 1 ; programa
Isherwood, Robert, 1 1 5 económico dos, 643; queda dos,
Isnard, Henri-Maximin, 4 5 5 , 498, 6 5 8; termidorianos e os, 708- 1 2;
5 00, 507, 5 6 5 , 604, 6 1 3, 6 1 6, 6 1 7 Terror e os, 645, 646, 647, 6 5 4-6,
Itália, 5 9 2 ; B onapartismo e a, 7 1 7, 720; violência e os, 62 1
7 1 8, 7 3 6 Jaime II, rei da Inglaterra, 3 6 7
Ivry, cahier de, 2 7 5 Jallet, 3 0 7
Janinet, Jean -François, 3 5 1
Jacob, Jean, 40 5 Jansenismo, 94, 3 04, 4 1 7
Jacobinos, 5, 26, 1 1 4, 1 3 5 , 1 3 7, 1 46, Jardim das Plantas, 7 1 4
2 8 3 , 3 8 5 , 4 1 2, 432, 4 5 3 - 5 5 , 457, Jardin du Roi, 1 5 8
494, 6 1 4, 629, 664, 687, 694, 700, Jaucourt, Amai! François, marquês
7 1 9, 724, 7 3 0; anticapitalismo dos, de, 497, 5 8 1 , 582
666, 667; bonnet rouge e os, 5 1 7; Javogues, C laude, 6 5 4 - 5 , 68 3, 709,
colporteurs e os, 1 5 2 ; Corday e os, 723
6 2 5 ; C ontra -Terror e os, 7 1 6; crise Jay, John, 7 3 5
económica e os, 608 - 1 O; cultura Jefferson, Thomas, 343, 3 8 1 , 3 8 6
popular e os, 1 1 5 ; David e os, 48 3 ; Jeffries, D r . , 1 1 2
descristianização e o s , 6 5 8, 66 1 ; Jeffries, John, 446
Directório e , 7 3 6 ; e a C omuna Jemappes, Batalha de, 547-8, 5 5 3,
insurrecta, 5 3 5; e a fuga da família 5 8 3 , 58, 5 8 7
real, 478, 480, 482; e a guerra, 506, Jerónimo, S . , 60
5 08, 509, 5 1 4, 5 1 5 , 5 1 7, 5 8 3 , 5 88, Jesuítas, 94, 4 1 7, 702
708; e a insurreição contra a Jeune Fille Qui Pleure son Oiseau Mort
Convenção, 6 1 8, 620; e a morte de ( Greuze ) , 1 2 9
Marat, 6 3 2 , 6 3 6 , 6 3 7; e a petição de Joana d ' Are, 2 8
'abdicação', 48 5 ; e a pureza Jordan, David, 5 6 5
revolucionária, 680; e o C omité de Jorge III, rei d a Inglaterra, 2 1 , 5 8 6
Segurança Geral, 604; e o Jornada d a s Telhas, 1 0, 2 3 1 - 3 5 , 2 3 6,
j ulgamento de Luís XVI, 5 5 5 , 5 6 3 , 384
5 64; em C onvenção, 5 5 0, 5 5 2 ; em j ornais, 1 48 - 9 , 1 54; em Grenoble,
Lyon, 66 1 ; em Vendée, 5 9 3 , 5 9 6; 2 3 1 ; expansão dos, 4 5 2 ; holandeses,
enragés e os, 608, 609, 6 1 0, 627; 2 1 0; monarquia, 5 3 3; violência e,
ensino público e os, 702, 7 0 3 ; 383
festivais organizados pelos, 5 1 9 , José II, imperador d a Á ustria, 1 80,
6 3 8 , 6 3 9; Girondinos e o s, 4 9 8 , 499, 1 89, 1 90, 327, 4 1 7, 504
6 1 1 - 1 3, 6 1 5; guilhotina e os, 5 3 0; Jourdan, Mathieu Jouve, 5 0 1 , 709
Hébertistas e os, 648, 682, 684, 6 8 5 ; Jourgniac de Saint-Méard, François,
Iconografia dos, 6 5 5 -6; Indulgentes Chevalier de, 540
e os, 6 8 7 - 9 ; insurreição de Agosto e Journal de Bruxelles, 1 49
os, 5 2 3 , 5 2 5 ; insurreições Journal de Geneve, 1 49
federalistas contra os, 622 -24; Journal de la République, 6 1 4
j ovens afiliados dos, 449 Lepeletier Journal de Paris, 3 5 , 36, 1 1 5 , 1 2 5 , 1 32,
e os, 5 7 1 , 572; massacres de 1 3 5, 1 46, 1 5 0
Setembro e os, 5 3 7, 540, 543, 5 5 2 ; Journal des États Généraux, 3 00-3 0 1 , 530
Simon S chama 1 CIDADÃOS

Journal Ecclésiastique, 422 L'Oeuvre de Sept Jours ( Dusaulx) , 3 5 6


Journal Littéraire et Politique, 29 L a B arre, Jean François L e Fevre,
Jovens Amigos da Constituição, 4 5 0 Chevalier de, 1 3 9,
Judeus, 64, 684, 6 8 5 ; como bodes La B iache, conde de, 3 8 1
expiatórios, 3 74; direitos dos, 307; L a C halotais, Louis René d e C aradeuc
direitos iguais para os, 1 42 ; direitos de, 94
negados aos, 42 9; e a nacionalização La D rôme, Jullien de, 5 34
da Igreja, 420; emancipação dos, La Fontaine, Jean de, 1 08
42 1 , 42 3 , 494; Joly de Fleury, Jean­ La Force, prisão de, 3 5 8, 5 4 1 - 2 , 543,
- François, 78, 1 00; Mirabeau e os, 698
459; queixas anti- semitas contra La Galaiziere, marquês d e, 1 9 3 , 224- 5 ,
OS, 2 6 9 312
Jugement Dernier des Rois, Le La Raie, de, 2 8 5 - 6
( Maréchal ) , 6 7 5 - 6 L a Harpe, Jean François de, 2 9 , 1 5 0
Julien, Jean, 660, 6 8 5 La Luzerne, César-Henri de, 2 1 4, 309,
Juramento da Sala do Jogo d a Péla, 327
34- 5 , 1 44, 3 0 6 - 7, 3 5 3, 420, 482, La Marck, August Marie Raymond,
48 3, 5 1 2, 709 Príncipe d'Arenberg, conde de, 4 5 9 ,
Juramento dos Horácios, O ( D avid) , 26, 4 6 0 , 4 65 , 4 6 8
1 4 5 -6, 3 1 1 L a Motte, Jeanne d e , 1 7 5 - 9
Jussieu, Antoine Laurent, 446 L a Nymphomanie ou Traité de la Fureur
Utérine ( Bienville ) , 1 88
Kanfen, cahier de, 2 6 9 La Pérouse, Jean François de Galaup,
Kant, Emanuel, 2 34 conde de, 43
Kaunitz, conde Wenzel Anton von, La Porte, Arnaud de, 5 3 2 , 5 7 9
5 0 5 , 508, 5 1 0, 684 L a Reynie, Louis, 3 5
Kean, Edmund, 427 La Rochefoucauld Lariviere, Louis de,
Kellerman, François - Christophe, 5 4 5 , 5 5 9, 5 7 8
546 L a Rochefoucauld- Liancourt, François
Kennedy, Michael, 4 5 3 Alexandre Frédéric, duque de, 8, 2 1 ,
Kerguélen-Trémarec, Yves Joseph de, 1 0 5 , 2 54, 3 1 � 3 5 9 - 1 � 3 6 1 , 728,
30 7 3 1 ; fuga da França, 578
Kersaint, Armand, conde d e , 4 3 5 , La Rochej aquelein, Henri Duvergier,
497, 5 6 3 , 5 86, 7 3 4 conde de, 5 9 5 , 5 9 9 - 600, 668
Kervélegan, Augustin Le Goazre de, La Rochelle, 5 9 5 , 604; movimento da
622, 624 Federação em, 4 3 3
Kléber, Jean-Baptiste, 5 1 2 L a Rouerie, Charles Armand, marquês
Klinglin, François Joseph Louis, 3 7 3 de, 5 9 3 6 1 3
Knox, Henry, 7 3 1 La Tour du Pin, Henrietta-Lucy de,
Koch, C hristian- Guillaume, 497 1 84, 2 5 0, 2 99, 3 6 7 - 9, 3 7 1 , 376,
Kolman, 1 5 1 5 1 4, 5 70, 622; na América, 726 - 3 1 ,
733
L'Accordée de Village ( Greuze ) , 1 2 9, 1 3 1 L a Tour d u Pin, Hubert de, 7 2 9
L'An 2440 (Mercier) , 1 5 6, 1 68 La Tour du Pin, Jean Frédéric d e , 3 6 7 ,
L'Ecclésiastique-Citoyen, The, 4 1 8 3 6 8 , 3 6 9 , 40 3 , 46 1
l 'Éloquence du Barreau, De ( Gin) , 1 37 La Tour du Pin, Seraphine de, 729
L'Epée, abade, 1 6 1 La Vicomterie, Louis, 474
L'Espion Anglais, 1 47, 1 5 0 La Villette, cahier de, 2 7 5 - 6
L'Influence des Passions sur le Bonheur des L a Villette, C harles de, 483
Individus et des Nations, De (de Stael ) , Labille-Guiard, Adélaide, 1 84 - 5
581 Laborde de Méréville, Louis, 4 1 1
793

Laborde, Jean-B enj amin, 6 3 , 1 30 Lally-Tollendal, Thomas Arthur, conde


Laboureur, abade, 92 de, 26, 228, 300, 3 1 6, 3 67, 370; e a
Labussiere, Narcise, 4 5 0 Declaração dos Direitos do Homem,
Lachapelle, C ésar, 4 5 0 3 8 1 , 3 8 3 ; em Inglaterra, 5 8 1 -2 ; na
Lacombe, C laire, 6 7 8 Assembleia Nacional, 378
Lacretelle, Pierre Louis d e , 2 5 6, 444 Lamartine, Alphonse Marie Louis de,
Lacroix, Sébastian Marie- B runo, 460, 5 , 498, 620
692 Lamballe, Marie - Thérese Louise de
Ladavese, C hevalier de, 42 5 - 6 Savoie -Carignan, princesa de, 1 82,
Lafayette, Adrienne, 2 2 , 2 3 , 24, 3 9 1 , 5 3 3, 54 1 - 2
735-6 Lambesc, Charles Eugene, príncipe de
Lafayette, Anastasie, 3 9 1 , 7 3 5 - 6 3 3 1 , 3 32
'
Lafayette, George Washington, 3 9 1 , Lameth, Alexandre de, 3 1 6, 467, 499,
736 734
Lafayette, Marie Joseph Yves Gilbert Lameth, C harles d e , 478
du Motier, Marquês de, 27, 36, 1 3 6, Lameth, irmãos, 300, 367, 382, 3 8 3 ,
245, 2 54, 3 5 � 3 5 � 36� 377, 3 7 � 4 1 2, 4 5 9, 467, 478, 48 1 , 4 8 6 , 490
4 8 5 , 5 8 1 , 588, 64 1 , 699, 7 2 5 ; Lamoignon, Chrétien-François de, 82,
acusação d e , 5 3 2 - 3; Assembleia 2 1 4, 222, 2 2 5 , 227, 2 2 8 - 9 , 2 3 1 ,
Nacional e, 3 1 6, 360; B arnave e, 2 32 , 2 34, 2 3 5 , 2 3 � 24 1 , 242, 2 5 3 ,
48 5; como comandante da Guarda Lamoignon, família, 1 00
Nacional, 3 8 7 - 9 1 , 3 9 2 ; B enj amin Lamoignon, Guillaume de, 470
Franklin e, 3 3 ; D uport e, 2 2 0 - 1 ; e a Lamourette, Antoine Adrien, 46 5,
Assembleia Legislativa, 5 2 2 - 3 ; e a 4 9 7 , 5 2 3, 660
Declaração dos Direitos do Homem, Languedoc, 1 60; fim d os privilégios
3 8 1 , 382, 386; e a fuga da família no, 378; fome no, 260;
real, 473, 474, 4 7 5 , 478, 480, 482; e industrialização do, 1 62; Terceiro
a lei marcial, 4 8 5 ; e a marcha sobre Estado do, 2 6 6
Versalhes, 392, 400- 1 , 402, 403; e Lanj uinais, Jean Denis, conde d e , 2 5 5 -
movimento federativo, 4 3 7 - 8; e os -6, 5 6 5
Patriotas holandeses, 2 1 1 ; e política Lanj uinais, René, 604, 624
de guerra, 5 0 3 , 508; gravuras, 450; Lansdowne, William Petty Shelburne,
j u ramentos de lealdade, 449; Marquês de, 2 5 1 , 300, 5 80, 5 8 1
Luís XVI e, 32, 3 6 3 ; Malesherbes e , Lanthénas, François -Xavier, 445 , 4 5 5
2 5 0 - 2 ; Marat e, 430, 628; Mirabeau Laparra, 5 9 1 -2
e, 4 1 5 , 4 5 8, 46 1 ; na América, 1 1 , Laplace, Pierre Simon, marquês de,
1 9 -24, 3 2 - 3 , 4 1 2 , 5 9 5 ; na 1 58
assembleia de Auvergne , 2 2 7 - 8 ; na Larive, de, 1 42
Assembleia de Notáveis, 2 2 7 ; 2 0 5 , Lasource, Marc-David,
2 0 6 ; n a guerra, 5 1 4, 5 1 5 , 5 1 6, 546; Latour-Marbourg, Victor de Fay,
na prisão, 5 5 9, 68 1 , 7 34; na marquês de, 7 3 6
Revolução de 1 8 30, 1 0- 1 1 , 1 2 - 1 3 ; Latude em, 342; Mirabeau em, 2 9 3 ;
nos Estados Gerais, 3 00, 3 0 1 ; obras Latude, Chevalier, 3 4 1 -4, 3 5 0, 3 5 3,
de cera de, 402; violência e, 386; 356
Lafayette, Virginie, 7 3 5 Lauget, visconde de, 1 0 5
Lagrange, Joseph Louis, conde de, Launay, B ernard René Jordan,
1 57 marquês de, 344-6, 349, 3 5 0, 3 5 9,
Lagrenée, Jean Louis François, 1 1 5 397, 5 2 7
laisser-faire, 6 7 Lauzun, Armand Louis, duque de
Lalande, Joseph Jérôme Le François ( depois duque de Biron) , 1 8 3 - 5 , 1 9 1 ,
de, 1 5 8, 5 6 5 2 54, 5 04, 5 1 5, 546, 64 1 , 642, 734
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Lavai, viscondessa de, 440 Lequinio, Joseph-Marie, 4 5 3 , 5 3 3


Lavoisier, Antoine Laurent de, 6 1 , 64, Les Quatre Cris d 'un Patriote a la Nation,
1 99, 2 6 7 -8, 2 7 3 , 3 3 3 , 6 9 8 286
Law, John, 5 2 - 3 Lesage, Alain René, 6 0
Law, Thomas, 726, 7 3 2 lesa-maj estade, 90
Lawrence, Thomas, 2 5 1 lesa-nação, 642
Lazowski, Claude, 6 1 2 Lessart, Antoine de Valdec de, 5 1 1 ,
Le Bas, Joseph, 667, 7 1 3 542
Le Chapelier, Isaac René Guy, 382, lettres de cachet, 72, 88, 94, 1 2 3, 227,
46 1 , 490, 492, 49 5 , 5 1 8, 5 2 0 229, 2 32, 245, 466; abolição das,
L e C hapelier, l e i d e , 447, 48 1 2 6 5 , 3 1 3; Bastilha e, 3 3 6, 343
Le Devin du Vil/age ( Rousseau ) , Lettres du Comte Mirabeau à Ses
1 3 1 1 3 2, 1 8 3 Commetants, 3 0 5
Le Grand Coup de Filet des États Généraux Levasseur, 4
( Ducastelier ) , 2 7 0 levée en masse, 649 - 1 1 , 668, 708
Le Guay, Nicole, 1 7 5 , 1 77 Leveux, Jacques- Gaspard, 444
Le Guen de Kergall, 3 7 7 Lévis, duque de, 1 0 5
L e Havre,47; cahier d e , 2 7 5 ; emigração Levy, Darline Gay, 1 3 8
do clero de, 5 7 8 - 9 ; forças Lezardfrre, Pauline de, 9 3 -4
expedicionárias em, 3 3 Liberdade Guiando o Povo ( E ugene
Le Montat, cahier de, 2 7 2 D elacroix ) , 1 3
L e Paige, 9 3 , 9 5 liberdade, 3 3 ; Belloy, 29; cahiers sobre,
L e Rebours, Marie -Angélique, 1 2 7 2 64; dedicação de Lafayette à, 2 1 -2 ;
L e Tort, 5 9 0 D esmoulins, 687; estátua
Lebrun, C harles François, duque d e simbolizando a, 4 3 3 , 6 3 9, 6 6 1 ;
Plaisance, 587, 6 1 8, 620, Mirabeau, nocões de, 3 0 5 ; Palais­
Leclerc de Juigne, 266 - Royal como império da, 32 1 ;
Ledoux, Claude Nicolas, 1 99, 3 3 3 retórica da, 1 3 9; solvência e , 244- 5 ,
Lefebvre, Georges, 2 6 1 , 3 7 0 262;
Lefevre, 1 47 Lictores Devolvendo a Brutus o s Corpos dos
Lefevre, Abade, 3 9 7 Seus fi'lhos, Os ( David ) , 2 6
Legendre, Louis, 5 1 9, 5 2 1 Ligne, C harles -Joseph, príncipe de,
Legros, François-Antoine, 3 5 6 - 7 1 1 3, 1 8 3,
Legros, Madame, 343 Ligniville d' Augtricourt, condessa de,
Lei dos E strangeiros, 5 8 3 63
Lei dos Suspeitos, 6 5 3, 672 Lille, 1 49, 1 64; declínio económico,
Lemaí'tre, 442 7 1 7; durante a guerra, 5 1 3, 5 1 4;
Lemoyne, Jean B aptiste, 1 2 1 fédération de crianças, 450; gardes
Lenoir, Jean- Claude, 1 2 6, 1 5 2 françaises de, 324; motins dos cereais,
Léon, Pauline, 4 5 6, 5 1 9, 5 2 3 279; sociedades populares em, 4 5 3 -4
Léonard, 4 72 Limoges: manufactura da porcelana,
Leopold, imperador da Á ustria, 474, 69; Terceiro Estado de, 4 1 1
5 0 1 , 5 04- 5 , 5 1 0 Limon, Geoffroi, marquês de, 524
Lepeletier d' Aulnay, Guillemette, 697 Limousin, 68; fim dos privilégios em,
Lepeletier de Saint- Fargeau, Louis 378; migração, 3 7 1 ;
Michel, marquês de, 1 3 5 , 220, 4 1 2 , Lindet, Robert, 5 6 1 , 5 6 3 , 644, 6 5 2 , 6 9 3
5 3 0, 5 7 1 -2, 620, 626, 6 3 5 , 6 3 7 , Lineu, C arolus, 8 3
6 8 0 , 692, 6 9 7 , 7 0 2 , 704 Linguet, Simon, 1 3 8 - 9, 1 4 5 , 1 47, 1 49 -
Lepeletier, Félix, 5 7 2 - 5 0, 1 5 2 , 1 7 6-7, 3 3 9, 340- 1 , 449,
Lépicié, François B ernard, 2 7 4 5 6 , 628, 7 3 5 ; rej eita a
Lequesne, 1 5 0 modernidade, 1 66 - 7
795

Listenay, Madame de, 3 7 6 Luís IX, 2 7


lit d e justice, 5 4 , 72, 82, 8 7 , 2 2 2 , 2 2 5 , Luís XII, 27, 4 6, 378
229 Luís XIII, 1 84
literacia, 1 5 2 - 3 Luís XIV, 27, 40, 4 5 , 5 2 , 86, 89, 99,
literatura: anti-Bastilha, 3 3 9; 1 2 6, 1 79, 1 80, 2 60, 3 1 2, 3 1 6, 3 1 9,
clandestina, 1 47 - 8 , 1 5 0 - 1 ; polémica, 3 6 1 , 370, 404, 42 2 , 508, 546, 569,
448, 4 5 0; popular, 1 54; ver também 5 7 1 , 6 3 9, 644, 7 0 3 ; Holandeses e
pornografia Ingleses aliados contra, 5 8 5 ; pânico
Lívio, 27, 1 42, 3 2 9 durante o reinado de, 370;
Livre Rouge, 460 contribuições patrióticas de, 380;
Logografia, 526, 5 3 3 poder de, 2 1 2
Loménie d e B rienne, Etienne C harles Luís XV, 20, 26, 28, 54, 5 9 , 66, 67, 8 5 ,
de, 2 0 1 , 2 1 1 - 3, 2 1 5 , 242, 249, 2 6 1 , 8 6 , 8 7 , 8 9 , 1 0 1 , 1 7 3, 246, 3 5 7, 409,
2 7 � 3 0 3 , 3 0 9 - 1 0, 3 7 � 5 5 9, 5 6 5 , 5 69, 6 3 9, 7 0 3 ; bastardos de, 1 9 1 ,
6 0 5 , 644, 698, 70 1 ; prisão d e , 6 9 7 - 5 9 5; Beaumarchais e , 1 2 1 ;
-8; Parlamentos e , 2 1 8 - 9, 2 2 0 , 2 2 1 , controladores gerais sob, 220;
224, 2 2 5 , 227, 229, 2 3 0, 2 34, 249; deboche de, 1 7 9; impostos, 5 9 ;
queda de, 2 3 7, 2 3 8, 240-4 1 , 243, Malesherbes e, 8 5 -6; Parlamentos e ,
245; 8 9 - 9 0 - 92 , 9 5 , 2 3 8; reformas fiscais
Londres: B rissot em, 498; C alonne de, 66, 67, 68; Versalhes
em, 474; Du Barry em, 677; redesenhado por, 40
Dumouriez em, xxv; Jeanne de La Luís XVI, xxvii, 8, 1 1 , 28, 37, 40, 6 3 ,
Motte em, l 78;Malesherbes, filha 66, 8 5 , 88, 1 00, 1 44, 1 5 0, 1 54, 1 60,
de, 697; mercado financeiro de, 1 80, 2 0 1 , 245, 3 2 0, 3 5 8, 404, 407,
7 3 1 ; Mirabeau em, 2 9 3 , ; 432, 444, 484, 5 7 8, 62 5 -6, 645,
publicações d e , 1 47, 1 5 0; resposta à 677, 678, 722 - 3 , 7 34; aceitação da
execução de Luís XVI, 5 8 7 ; constituição por, 486, 489;
Talleyrand e m , 5 0 3 -4, 5 5 9, 579, Assembleia Legislativa e, 498, 499,
5 82 - 3 502; Assembleia Nacional e, 309,
Longeau d e B ruyeres, 370 3 1 2 - 3 , 3 1 5 - 6, 3 5 8 - 9 ; balões de ar
Lorena, 1 62; anti-semitismo na, 270; quente, 1 1 0; B arnave e, 49 1 ;
cahiers da, 278; clero da, 307, 42 1 , B astilha n o reinado de, 3 3 7, 3 3 8,
464; fundições na, 1 6 3 movimentos 343 -4; Beaumarchais e, 1 2 3 -4;
federativos na, 4 3 3 -4; bonnet rouge e, 5 1 7, 6 1 6; C alonne e,
Louis, D ominique, barão, ( abade 1 96 - 7 , 20� 2 0 1 , 2 0 1 , 2 0 5 ; canções
Louis ) , 1 9 5 , 2 5 5 , 4 3 8 sobre, 1 5 3 -4; caso Asgill, 2 5; Caso
Louis, D r. , 5 3 0 do C olar de Diamantes, e o, 1 7 3,
Louis, Victor, 1 1 6 - 7 1 74, 1 76, 1 78; colapso da
Loustalot, Elysée, 384- 5 , 387, 3 9 5 , autoridade, 280; C onstituição Civil,
4 3 0 , 439, 6 8 7 , 72 3 4 1 9, 5 0 0 - 5 0 1 ; Convenção e, 5 5 0- 5 1 ;
Louvet de C ouvray, Jean-Baptiste, coroação de, 40-2; culto da
5 5 3 , 6 1 8, 624 Sensibilidade, 1 3 1 ; Declaração dos
Louvre, 1 1 4, 1 5 7, 1 5 8, 1 9 1 , 3 0 3 , 3 1 9, Direitos do Homem, 3 8 0, 3 8 1 -2,
379, 486; 3 94, 400; decretos de Agosto, e
Loys, Jean- B aptiste, 6 1 7 os, 380, 3 94- 5 , 400; demonstração
Lubomirski, princesa de, 700 de força militar, 3 2 3 , 3 2 6 - 7 ; dívida
Luc, conde de, 400, 42 0 - 1 de guerra e, 49- 5 1 , 54- 5 ; Du B arry
Lucie, ou les Parents Imprudents ( Collot ) , e, 1 7 3; e a caça, 4 3; e a marcha
663 sobre Versalhes, 392 , 3 94, 397, 400-
Luckner, Nicolas, barão de, 5 1 4 -4; e os incidentes de Grenoble, 2 3 5 ;
Luís Filipe, 4, 9, 1 1 , 1 2, 1 3 éditos de, 2 9 6 ; e m Cherburgo, 40,
Simon Schama 1 CIDADÃOS

44- 5 , 46-7 ; emancipação dos Lully, Jean-Baptiste, 3 1 7


Protestantes, 2 1 5; emigrantes, Lusignan, marquês de, 3 5 3
parentes dos, 5 0 1 ; Estados do Lutero, Martinho, 42 3
D elfinado reunidos por, 2 3 7; Lux, Adam, 634
Estados Gerais e, 2 3 7 - 8 , 248, 249, Luynes, duquesa de, 4 3 5
289, 2 9 7 - 9, 3 1 7, 7 0 1 ; ethos Luynes, Louis Joseph Charles Amable,
reformador de, 247; execução de, duque de, 2 54, 3 1 6
5 5 0, 5 66 - 7, 5 72 , 5 80, 5 86, 5 9 3 , Lycée Louis-le- Grand, 3 2 9, 493,
5 9 1 , 5 9 � 608-9, 6 2 � 6 7 7 , 696; Lyon, 6 5 7
Festa da Federação, 434, 436, 438,
439, 46 1 ; Franklin e, 34; fuga para a Maastricht: cerco de, 5 8 7
fronteira de, 288, 3 5 7, 472 - 8 3 , 484- Mably, abade Gabriel B onnot d e , 2 3 1
-6, 544, 5 4 5 , 5 5 1 , 6 3 1 , 676; Grande Macdonald, Forrest. 3 6
Medo, 3 7 2 ; imprensa e, 1 5 0; Machault d' Arnouville, Jean-Baptiste
insurreição contra, 5 24-8, 549; de, 5 3
intendants sob, 1 00, 2 24; interesses Machecoul, sublevação em, 5 8 9 - 9 1 ,
nauticos de, 4 3 - 4; j ulgamento de, 5 98-600
5 5 0, 5 5 3 -4, 5 5 8-66, 6 1 4, 6 1 6, 696, Machuel, Robert, 1 47
699, 700; Junho de 1 792, Mações, 24, 37, 1 48, 1 5 3, 42 5 , 6 2 3 ;
manifestações contra, 5 2 1 -2; Jacobinos e, 5 04
Lafayette e, 3 2 , 2 0 L 393; Lally e, Mâconnais : Grande Medo em, 3 7 0,
26; liquidação da guarda pessoal de, 372; movimento da Federação em,
5 1 8 - 9 ; Loménie de B rienne e, 2 1 3; 433
Malesherbes e, 8 3 , 8 6 - 7, 2 5 2; Madelonettes, prisão de, 6 9 8 , 7 1 4
Mirabeau e, 305, 4 1 5 - 6, 458, 460, Magdeburgo, prisão de, 7 3 4 - 5
462, 46 5 , 466; modernização e, Magnon, Honoré -Philippe, 6 6 6
1 60 - 1 , 1 6 5 ; morte do delfim, 308; Mailhe, Jean-Baptiste, 5 54, 5 5 5, 5 6 5 ,
motins e, 1 09, 279; na séance royale, 566
3 1 0 - 1 1 ; Necker demitido por, 3 2 2 , Maillard, Stanislas, 397, 3 9 8 , 399,
3 2 6 - 7, 3 2 8; Parlamentos e, 9 5 , 97, 5 3 9, 68 3, 684
2 2 2 , 226-7, 2 3 0, 2 34, 2 3 7; patriotas mainmorte, 377, 447
holandeses, 2 1 O; pedidos do Mainz: cerco de, 587, 60 1 , 6 34;
estrangeiro para a restauração de, evacuação de, 640;
547; personalidade de, 1 8 1 ; política Malédiction Paternelle, La ( Greuze ) , 1 2 9
de guerra de, 5 0 2 , 5 0 5 , 508, 509, Malesherbes, Chrétien- Guillaume
5 1 1 - 2; prisão de, 545, 5 5 3, 5 5 6 - 7 ; Lamoignonde, 8 2 - 89, 9 5 , 98, 2 1 4,
prisão d o s servos d e , 5 3 3 ; queixas, 224, 242, 2 5 0- 2 , 7 3 4; durante o
aumento de, 2 6 L 262, 2 6 9 ; reforma Terror, 6 9 6 - 7 0 1 ; e o j ulgamento de
financeira sob, 66-8, 7 2 - 3 , 77; Luís XVI, 5 5 8 - 60, 5 6 1 , 5 6 5 , 5 6 6 - 7 ; e
representantes oficiais locais, 444; o testamento de Luís XVI, 5 67;
rei-cidadão, 4 3 2 ; sexualidade de, Latude e, 342; Maria Antonieta e,
1 80 - 1 , 1 88; Talleyrand e, 1 3; teatro 1 82 ;
e, 1 1 6; Terceiro Estado e, 2 56; título Malesherbes, Marie- Françoise d e , 84
constitucional oficial de, 404; Malouet, Pierre Victor, barão, 3 0 5 ,
Tomada da Bastilha, 346-7; Tomada 306, 38 1
da B astilha, depois de, 3 5 8 - 9 ; Malpel, Michel-Athanaze, 444
Tribunal Fiscal d e Apelação, 8 5 ; Mancha, departamento da, 409
venda d e cargos sob, 5 7 - 8 ; ver Mandat, Jean Antoine, marquês de,
também cahiers de doléances 526-7
Luís XVII, 5 98, 602, 676 manicómio de Charenton, 343, 344,
Luís XVIII, 4, 7, 444 3 5 0, 392
797

Manifesto de Brunswick,. 524, 5 2 5, I 82-84; figura de cera de, 327; fuga


5 3 5 , 536 para a fronteira de,. 288, 47 3-80;
Mansart, François, 326 Grande Medo e, 375; Guadet e, 52 1 ;
Manuel, Louis Pierre, 52 1 , 5 2 3,. 5 32, guerra e , 500, 5 0 5., 508, 5 09;
542 Hérault e, 1 37; insurreição contra,
Marat, Albertine, 6 92 526; j;ulgamento de, 642, 652, 6 74,
Marat, Jean-Paul, 1 1 2, 384, 3 8 7 , 395, 675, 67 6 - 7,. 698; Lafayette e, 32,
396, 452,. 4 5 6, 486, 5 1 6,. 52 3, 525, 202, 392, 5 2 2 ; Latude e, 343;
6 1 3 - 1 7, 62 6 - 3 8, 687, 7 1 6, 7 2 3, 7 37; Leopold e, 50 1 - 502; libelos contra,
B eaumarchais e, 5 3 3 ; Cloots e, 69 1 ; 1 47, 1 5 1 , 1 79, 1 87 - 9;. Loménie de
David e , 486, 704; e a pena de B rienne e, 2 1 3; Malesherbes e, 89,
morte, 5 3 0; e o julgamento de 2 1 4; militares e, 3 2 5 , 326; Mirabeau
Luís XVI, 5 64, 564; e os fermiers e, 4 5 8, 463, 46 5 ; Montgolfier e,
généraux, 60; funeral de, 6 3 5 - 7 ; 1 1 0; na Festa da Federação, 437;
julgamento d e , 6 1 3 - 6 1 4, 6 2 6 , 62 9; Necker e, 297, 3 09, 3 1 4, 32 3; prisão
Marcé, general Louis Henri de, 5 3 3, 5 5 7, 6 7 3 - 5 ; sexualidade de,
François, 60 1 ; massacres de 1 80 - 1 ; teatro e, 1 1 6, 1 2 3; Vigée­
S etembro e, 5 3 6; morte de, 6 2 5 -6, -Lebrun e, 1 84-7, 1 89
6 29 - 3 3, 6 3 5-6, 643, 660, 680; na Maria Teresa, imperatriz da Á ustria,
C omuna Insurrecta, 5 3 2, 5 34; na 1 2 1 , 1 7 3, 1 7 5 , 504
C onvenção, 5 5 0, 5 5 1 ; Paine e, 5 68; Marie-Jeanne ( canhão ) , 60 1
retrato da autoria de D avid, 6 3 5 ; Marigny, Abel François Poisson,
tentativa d e detenção de, 430; marquês de, 1 3 1 , 1 44
Marcel, 84 Marivaux, Martin de, 9 5 , 540
Maréchal, Sylvain, 1 44, 4 5 0, 675 Marlborouck S 'en Va-t-en Guerre, 1 2 3
maréchaussé, polícia, 2 7 6, 3 3 1 Marlborough, John Churchill, duque
Maret, Hugues Bernard, 1 9 5 , 5 8 7 de, 1 2 3
Maria Antonieta, 9 9 , 1 5 5, 1 5 8, 1 7 3 -6, Marly, 43, 1 96, 3 1 5 ; cahier de, 272
347, 3 6 1 , 4 1 7, 5 0 1 , 506, 7 3 3; apelo Marmont, Auguste Frédéric Louis
ao encarceramento de, 443; após a Viesse de, duque de Raguse, 8, 78
Tomada da Bastilha, 3 5 8; B amave e, Marmontel, Jean François, 1 1 8, 2 1 5 ,
49 1 , 498, 499- 5 00, 5 1 8; Calonne e, 3 3 8, 3 3 8, 3 3 9
206; canções sobre, 1 5 3; de La Tour Marseillaise, La, 8 , 1 0, 1 5 3, 489, 5 1 2,
du Pin e, 367; defesa de Stael, 678; 5 1 3, 5 2 8, 546, 600, 6 5 1 , 68 1 , 705
demonstrações de Junho de 1 792 Marselha : anticlericalismo em, 5 0 1 ;
contra, 5 2 1 ; detenção de serviçais Câmara d e Comércio, 49; comércio
de, 5 3 3 , 5 4 1 - 2 ; e a aceitação da através de, 1 6 1 , 7 1 7; contrabando
constituição, 489; e a Assembleia de livros em, 1 5 1 , 1 5 3; durante a
Nacional, 308, 3 1 4, 3 1 6; e a guerra, 5 1 3 ; fédéres de, 5 2 3 ; fim dos
C oroação de Luís XVI, 42; e a privilégios em, 378; girondinos de,
execução de Luís XVI, 568, 5 6 9; e a 5 5 2; grupo de treze em, 36; guardas
marcha em Versalhes, 392 -4, 396, voluntários de, 280; imigrantes em,
40 1 -4; e a Revolução Americana, 3 7 1 ; Mirabeau em, 2 9 5 -6; motins
37; e o caso Asgill, 2 5 ; e o Caso do em, 2 9 5 -6; movimento da
Colar de diamantes, 1 7 3 - 9; e o culto Federação em, 4 3 3 ; portagens sobre
da sensibilité, 1 3 1 , 1 32 ; e o cereais em, 70; recuperação de, 6 5 2 ;
Regimento da Flandres, 396; e o sociedades populares e m , 4 5 3 ;
testamento de Luís XVI, 5 6 7; e os sublevação em, 6 2 2 , 6 2 3 , 64 1 , 66 1 ;
E stados Gerais, 298; em Cherburgo, Terror em, 6 6 5 -6, 667, 7 2 5
45; execução de, 677; expletivos Martin, 6 3 6
dirigidas a, 452; favoritismo de, Martin, Jean - C lement, 5 9 3, 5 94, 6 7 1
S imon S chama 1 CIDADÃOS

Marx, Karl, 6 da modernidade, 1 68 - 9; símbolos


Mary, Pierre-Jean, 2 8 3 , 284 emotivos, 3 9 1
massacres da prisão, ver massacres de Mercure de France, 1 3 1 , 1 45 , 1 48, 1 5 0,
Setembro 1 97
massacres de S etembro, 5 3 7, 5 42 - 3, Mercure Nationale, 4 5 6
5 9 1 , 6 04, 6 3 1 , 692, 69� 70� 724, Mercy d' Argenteau, Florimund,
7 3 0, 7 3 3 40 3,460, 5 0 5 , 5 1 5
Massolles, marquesa de, 3 7 9 Mere Bien-Aimée, La ( Greuze ) , 1 3 0
Mathon d e L a C our, Charles, 1 2 9 - 30, Méricourt, Théroigne de, 398, 4 56,
1 65-6 5 1 9, 5 2 3, 7 3 7 - 8
Maubeuge, cerco de, 640 Merlin d e Thionville, Antoine
Mauges, 5 92, 594 C hristophe, barão, 5 5 7, 6 8 1
Maupassant, 590 Merovíngios, 92, 1 79
Maupeou, família, 1 0 1 Mesmer, Franz Anton, 7 4
Maupeou, René Nicolas de, 67, 68, metalurgia, 1 0 5, 1 62 - 6 3 , 7 1 7
72, 86, 88, 94, 1 79, 1 9 3, 220, 228, Metz, 360, 474, 480; C alonne como
24� 245, 378, 5 4 1 , 644; intendant de, 1 96; funeral de Pilâtre
Parlamentos e, 94- 5 , 97, 1 00 em, 1 02; Parlamento de, 90, 96,
Maurepas, Jean Frédéric Phélypeaux, 1 02 , 2 3 0
conde de, 32, 73, 78 Meurthe, Terror em, 666
Maury, Jean Siffrein, 464, 4 6 5 Michelet, Jules, 5 , 8, 6 1 4
Mayeur de Saint-Paul, François Marie, Midi: clérigo de, 5 9 3 , 5 9 5 ; colheitas
1 1 8, 3 2 8 destruídas em, 2 5 9; conspirações
Mazarino, cardeal, 8 4 contra - revolucionárias em, 466;
Mazzei, Philip, 2 54 C ontra-Terror em, 7 1 6;
Médel, Madame de, 3 1 7 descristianização em, 6 5 8; guerras
Médicis, C atarina de, 1 84 religiosas em, 487; Patriotas
Méhul, Etienne Nicolas, 5 1 3 acossados em, 5 2 3 ; Terror em, 666
Melville, John, 405 Milão, cerco de, 2 0
Mémoire sur L'Électricité et le Magnetisme Milhaud, E . J. B . , 649
( Pilâtre ) , 1 1 1 militares :Assembleia C onstituinte e,
Mémoires Authentiques de Latude 4 1 1 ; demonstração de força dos,
( Latude ) , 3 4 3 - 4 3 2 3 , 3 2 6 - 7 ; e a revolta de Paris,
Memoires de la Bastille ( Lingue t ) , 1 3 9, 3 3 1 -2, 3 3 3 - 4; financiamento dos,
1 47, 3 3 9 -40 720- 1 ; impacto da Revolução nos,
Mémoires Secretes, 46, 1 3 2, 1 84 446; insatisfação dos, 324-27;
Memorando dos Príncipes, 2 5 7 reforma dos, 2 1 5 - 1 7; tecnologia
Menou, Jacques François d e Boussay, para os, 1 5 7
barão de, 407 Millin, 6 5 7
Mercier, Louis - S ébastien, 60, 1 1 7, Millingen, 3 54
1 1 8, 1 2 2 , 1 3 0, 1 3 3, 1 44, 1 5 2 , 1 5 6, Millot, abade, 409
1 6 8, 1 69, 1 8 1 , 277, 3 9 1 , 4 3 5 , 436, Minden, B atalha de, 20, 1 3 6
44� 4 5 � 5 1 � 5 3 � 54 1 , 5 6 5 , 5 7 0 - mineração de carvão, 1 62 - 6 3 , 468
- 2 , 6 2 8 , 6 6 0 ; descristianização, 6 5 8; mineração, 1 60 - 1
e o j u lgamento de Luís XVI, 5 6 5 ; Mínimos, 4 5 5
execução d e Luís XVI, 5 7 0 - 1 , 5 72; Miomandre d e Sainte -Marie, François
influência sobre Marat, 628; Aime, 40 1
massacres de Setembro, 5 3 8; Mique, Richard, 1 3 1
movimento da Federação, 43 5 - 3 6 ; Mirabeau, Honoré - Gabriel Riqueti,
na Sociedade de Trinta, 2 54; n o conde de, xvi, xxvi, xxviii, 5 L 1 3 0,
·

funeral de Lepeletier, 5 7 1 ; rej eição 2 0 3 , 2 0 5 , 2 5 2 , 260, 2 9 2 - 7 , 3 1 4,


799

3 5 3, 3 5 9, 409, 4 5 8 - 72, 486, 488, monarchiens, 383, 3 94


503, 5 09, 5 1 1 , 6 1 3, 64 1 , 68 1 , 686, Monge, Gaspard, 1 5 8, 497, 5 32, 6 5 2 ,
688, 700, 7 1 9, 72 1 , 722, 724, 7 34; 656
Bastilha e, 3 5 2 - 3, 3 5 7; C alonne e, Moniteur, 482
1 97; como monárquico, 4 1 4- 5 , 4 5 8 - Monnet, Jean -Claude, 3 2 5
- 6 3, 5 5 6; conflito com o irmão, 42 6; Monnet, Marie-Victoire, 3 6 9
crise financeira, 4 1 3 -4; e o Monnier, Sophie, 2 9 3
movimento da Federação, 437, 438; Monnot, 540
em desgraça, 5 5 9; figura de cera de, Monroe, James, 7 3 6
3 2 8 ; formação de departamentos, Montané, Jacques B ernard Marie,
409; gravuras de, 450; Igrej a e, 4 1 7 - 632-3
- 1 9, 42 3, 424; Jacobinos e, 454, Montansier trupe, 1 1 6, 438, 547, 6 5 8
4 5 5 , 4 5 9, 46 1 - 3, 467, 47 1 ; marcha Montargis, fiações de, 1 0 5
em Versalhes, 400; militares e, 3 2 6; Montboissier, Françoise-Pauline, 5 60,
morte de, 467-9, 474; na 696
Assembleia Nacional, 307, 3 1 3 -4, Montbrison, 622, 6 5 4
3 5 9; na República Holandesa, 2 1 1 ; Montcalm, Louis Joseph d e Saint­
n a séance royale, 3 1 5 ; n a S ociedade -Véran, marquês de, 2 8
dos Trinta, 2 54; no Clube de 1 789, Montesquieu, Charles Louis de
4 1 2 ; nos Estados Gerais, 292, 2 9 3 -4, Secondat, barão de la Brede e de,
296, 300, 3 0 5 - 306, 3 07, 3 08; 82, 86, 9 3 , 1 07, 2 3 7, 244, 245, 382,
oratória de, 1 4 1 ; Orleães e, 2 2 6 ; 4 1 1 , 665
Talleyrand e, 1 92 ; Talma e, 427 Montesquiou-Fezensac, abade
Mirabeau, Victor Riqueti, marquês de, François de, 424
67, 292, 4 5 5 Montesquiou -Fezensac, Anne-Pierre,
Miranda, Francisco, 5 8 7 marquês de, general, 5 8 5
Miromesnil, Armand Thomas, Hue de, Montferrat, marquesa de, 443
7 1 , 80, 2 0 1 , 2 0 6 Montgolfier, Etienne, 74, 1 08, 1 09,
Missionários do Espírito Santo, 5 9 5 1 1 O, 1 1 3, 1 3 6, 664
mitraillages, 664 Montmédy, 474, 476, 477, 5 1 1
Moção das Peixeiras de La Halle, 3 9 3 Montmorency de Luxemburgo, 3 1 6
modernização, xxi, xxvi, xxvii, 1 5 9 - Montmorency, Mathieu de, 5 8 1
68, 1 66; activismo oficial e, 1 5 9 - 6 1 ; Montmorin Saint Hérem, Armand
cahiers e , 2 6 5 , 277; ciência e , 1 5 8 - 9 ; Marc, conde de, 3 09, 3 1 2 , 46 1 , 540
comercial, 1 60 - 64, 1 6 6 - 7, 2 74, 2 7 9 - Mont-Terrible, departamento de,
- 80; exponentes d a , 2 4 7 ; impacto da 549
Revolução na, 7 1 9; rej eição da, 1 68 - Moore, Alexander Parks, 3 9 3
-7 0 , 428; retórica revolucionária Morbihan, departamento de, 409
contra a, 247-8; Moreau de Saint-Méry, 7 3 0
Modinier, 1 98 Moreau, Jean Michel, 2 9 2 , 472
Moitte, Madame, 3 7 9 Morei, 6 3 7
Molé, 1 42 Morellet, abade André, 2 5 1 , 2 5 5, 3 3 8,
Moleville, Bertrand de, 1 00, 5 02 , 5 1 1 , 339
677 Moreton- C habrillant, conde de, 1 1 9
Moliere, 1 1 5 , 1 2 8, 3 1 7 Morgues, conde de, 2 3 6
Mollien, François Nicolas, conde de, Morichelli, 468
1 9 5 , 445 Morineau, Michel, 5 2 , 58
Momoro, Antoine François, 3 2 9, 379, Morisson, 5 5 5
430, 445 Morizot, Martin de, 4 1
Momoro, Madame, 699 Morris, Gouverneur, 1 9 1 , 298
monarca franco, 9 3 , 94, 1 7 9 Mortagne, rebelião em, 600
Simon Schama 1 CIDADÃOS

mortalidade infantil, 1 2 6 inviolável, 3 1 4; j u stiça da, 5 3 1 ;


Morte de Sócrates ( David ) , 2 6 , 7 1 4 nobreza e, 2 5 6; política da, 276;
Morveau, Guyton de, 1 0 5 questão da representação, 2 5 3;
Mosela: anti- semitismo em, 270; levée Racionalistas, 247; repúdio dos
en masse em, 649; nobreza de, 2 6 6 propósitos comuns da, 3 1 2; retórica
motins das mercearias, 6 0 6 - 7 , 6 1 1 , 643 revolucionária, 248; séance royale e,
motins de Réveillon, 2 8 1 - 8 3 , 2 88, 3 1 O; soberania da, 3 80; Terceiro
324, 3 2 5 , 345 Estado e, 246, 2 5 7, 298;
Mougins de Roquefort, Jean, 4 1 1 transferência da autoridade social,
Mounier, Jean-Joseph, 2 34-7, 242, 270
246, 2 5 2 , 2 5 5, 3 00, 307, 3 1 L 48 1 , Nancy: motim n a guarnição d e , 474,
72 1 ; e a Declaração dos Direitos do 5 1 4, 5 1 9; Terror em, 66 7; transporte
Homem, 3 8 1 , 382, 3 94; e a marcha para, 1 6 1
em Versalhes, 3 9 5 , 3 96; em Nantes, 1 62 ; cerco de, 602; Clero de,
Grenoble, 442 ; Hébertistas e, 682; 5 9 5 ; comércio por, 5 0, 448;
Montanha, A, 5 5 2, 5 5 3, 5 5 6, 5 6 1 , Parlamento de, 2 2 8; produção de
603, 604, 6 0 5 , 6 1 0 - 3 , 6 1 6, 682, sal, 6 1 ; retomar, 668; Terceiro
686, 7 3 7; revolta federalista contra, Estado de, 2 5 5; Terror em, 666,
624, 62 5 6 6 8 - 9, 6 9 1
Mount Vernon, 24, 3 0 1 , 7 3 6 Napoleão l, Imperador dos Franceses,
movimento federativo, 43 1 -4 1 , 5 1 7 3, 7, 1 2 , 45, 2 9 3 , 367, 6 3 7, 722,
Moyens Simples et Faciles de Fixer 7 3 6; discursos de campanha de,
l 'Abondance, 5 1 7 509; Guibert e, 2 1 6; Nobreza, 444;
Mozart, Wolfgang Amadeus, 1 2 2 Talleyrand e, 1 2, 5 7 7
mulheres: campanhas de Narbonne-Lara, Louis, C onde d e , 1 9 1 ,
reconsagração de, 7 1 9; carta ao rei 5 02 - 3 , 5 08, 5 1 0, 5 8 1 , 5 8 2
das mulheres de Dauphine, 2 3 6; Naudet, 4 2 7
como vendedoras de livros Naurissart, Louis d e, 4 1 1
clandestinos, 1 5 1 ; contribuições Necker, Jacques, 5 5 , 5 7, 58, 62, 66,
patrióticas de, 3 7 8 - 9 ; demonstrações 74-8 1 , 1 0 1 , 1 9 1 , 206, 2 1 6, 276,
de, 392 -4, 3 9 6 - 400; direitos das, 3 1 6, 320, 389, 400, 503; C alonne e,
429; e o Terror, 674, 6 7 8 - 9; em 1 9 3 , 1 94, 1 99, 202; de La Tour du
clubes políticos, 4 5 5 - 6 ; em Pin e, 367; e Assembleia
insurreição, 5 2 3 , 5 2 7 ; em levée en C onstituinte, 4 1 1 ; e Assembleia
masse, 649; em motins de cereais, Nacional, 3 0 5 , 309, 3 1 0, 3 1 3 ; e crise
279; na C onciergerie, 6 7 3 ; no económica, 2 6 1 , 297; e E stados
Festival da Unidade, 6 3 8 - 9; no Gerais, 289, 2 9 7 - 8, 309; exílio de,
mercado do trabalho em Paris, 2 7 5 ; 3 3� 343, 347, 3 5 � 3 8 1 , 5 6 1 ;
participação n a política de, 7 2 3 ; gravuras, 4 5 0; hostilidade da
republicanas, 5 1 9; violência e , 6 3 1 nobreza contra, 289; Lafayette e,
Murat, Joachim, 6 3 7 389; Malesherbes e, 84; Marat,
Musée Carnavalet, 4 3 9 denúncias de, 430; marcha sobre
Museu das Ciências, 1 1 1 Versalhes, 3 9 5 ; Mirabeau e, 3 04,
Musset, médico, 5 9 0 4 1 3 ; museu de cera, 32 8 ;
recondução d e, 360, 3 6 1 ; substitui
Nação, a, 4 3 3 ; aristocratas banidos da, B rienne, 2 3 9, 24 1 , 2 4 5 ; Terceiro
286; B astilha, libertar a, 348; Estado e, 2 5 7, 2 5 8, 267, 2 8 5 , 322;
cultura, 705; de Cidadãos, 723, 724; veto suspensivo, 383
demonstrações de devoção Necker, S uzanne, 74
patriótica, 406; Estados Gerais, 2 64; Neerwinden, B atalha de, 588, 6 0 3
guerra, 5 0 3 ; Igrej a e, 4 1 7, 422; negros: direitos negados a o s , 42 9;
80 1

emancipação dos, 42 1 ; insurreições, Olivier, 1 9 8


516 Onania (Tissot ) , 1 90
Nehra, Henriette-Amélie, 2 9 3 Onzain, cahier de, 270
Neisse, Fortaleza de, 7 3 4 Opéra C omique, 1 1 6
Nemours, cahier d e , 2 64, 2 6 5 opinião pública : B rissot e a, 497;
Nemours, Gaston d e Foix, duque de, Calonne e a, 1 9 5 , 1 99 - 2 00, 204;
29 Loménie de Brienne e a, 2 3 9;
neoclassicismo, 1 44-6 Mirabeau e a, 304- 3 0 5
Neufchâteau, François de, 497 Orateur du Peuple, 449, 452, 5 3 6 - 5 3 7
Nicodeme dans la Lune, ou La Révolution oratória, 1 3 5 - 1 4 3; antiguidade como
Pacifique, 4 5 1 inspiração para a, 1 4 1 , 1 43; de
Nicolet, Jean-B aptiste, 1 1 5 , 1 1 6, 1 1 8, Danton, 5 3 8, 64 1 ; de Hérault, 1 3 5 -
438 - 6 , 1 4 1 , 1 42 ; d e Linguet, 1 3 8-4 1 ; de
Nivernais, cahier d e , 2 7 3 Mirabeau, 296; de Target, 2 5 3 -4; de
Noailles, família, 7 1 9 Vergniaud, 509; dos girondinos,
Noailles, Louis Marie, visconde de, 2 1 , 498-9; dos j acobinos, 454- 5 ; em
1 48, 202, 2 5 4, 3 5 8, 377, 740 C onvenção, 5 5 1 ; nos Parlamentos,
Noailles, Princesa de, 1 82 22 1
nobreza, 1 02 - 1 07; cahiers da, 2 62 - 3 : Orleães, Adelaide, 5 8 0
272; como oficiais militares, 3 24; e Orleães, C a s a d e , 362,
Assembleia Nacional, 3 1 3 , 3 74- 7 5 ; Orleães, Louis Philippe, duque de,
emigrados, 5 0 1 ; erradicar títulos de 1 0 5 , 1 1 6, 1 1 7, 1 48, 1 5 2, 2 1 1
nobreza, 409; hostilidade contra Orleães, Louise Marie Adelaide,
Necker, 289; na Provença, 292; nos duquesa de, 2 84, 3 9 0
E stados Gerais, 2 6 3 -4, 297, 2 9 8 - 9 ; Orléans, Louis -Philippe -Joseph, duque
propriedades retidas pela, 7 1 8 de ( Philippe-Egalité ) , 8, 1 1 6 -7, 1 5 2,
Noirs, 486 226, 2 5 6, 260, 2 64, 3 2 0, 32 1 , 3 32,
Normandia, 409; armazenar comida, 3 9 1 , 393, 5 80, 68 1 ; e j ulgamento de
7 1 6; cahiers da, 269; clero, 5 9 5 ; Luís XVI, 5 64- 5 , 5 6 5 , 5 66, 567; e
C ontra -Terroristas, 7 1 6; desemprego motins Réveillon, 2 8 1 -2 ; e pânico
em, 2 6 1 ; destruição das colheitas, depois da Tomada da Bastilha, 389;
260; Grande Medo, 370; indústria em C onvenção, 5 5 1 , 5 7 1 ; em
têxtil, 248; Liancourt foge da, 5 7 8 ; Estados Gerais, 300, 302; execução
Luís XVI n a , 4 5 , 46-7; minas de de, 680; Guarda Nacional e, 390;
carvão, 1 0 5 ; produção de sidra, 1 5 8; j acobinos e, 482; na Assembleia
revolta em, 5 98, 623, 624, 667; Nacional, 3 1 2, 3 1 4; no Parlamento
sacrificar os privilégios, 378; de Paris, 224; trabalhos de cera,
Terceiro Estado, 266 327, 3 3 1
Notelet, Pierre, 6 34 Ormesson, d', 6 5 , 1 9 3
Notre Dame de Paris, 290, 3 60, 438, Orne, departamento de, 549, 720
489; bênção geral da Guarda Ourthe, departamento de, 738
Nacional, 390; ' C írculo Social', Ozanne, Nicolas-Marie, 4 3
reuniões na, 1 42; descristianização, Ozouf, Mona, 47 1 , 6 3 9
660, 699; Mães Lactantes, 1 2 6; na
revolução de 1 8 30, 7, 1 4 Pache de Montguyon, Jean Nicolas,
1 6 3 , 68 1
O 'Murphy, Louise, 5 9 5 Pages, Dama, 3 7 9
Oberkirch, Henriette Louise, baronesa Paine, Thomas, 479, 482, 487, 5 68, 5 7 9
de, 1 24 Palácio do Luxemburgo, 6 7 2
Oise, departmento de, 7 1 9 Palais de Justice, 9 1 , 2 2 3 , 2 2 5 , 2 2 9 ,
Oisy, conde de, 277 320; literatura radical e, 1 48
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Palais-Royal, 8, 1 1 6 - 1 7, 1 54, 1 6 9, 606, 6 1 0; durante a guerra, 5 1 3,


1 74, 1 74, 1 9 7, 2 2 3 , 226, 2 8 3 , 3 2 0 - 5 1 5, 5 1 6, 5 3 5 - 3 8, 4 5 , 546, 5 88,
2 3 , 3 2 5 , 328; assassinato d e 640-4 1 ; durante a Restauração, 4;
Lepeletier n o , 5 7 1 ; cabeças durante o Directório, 72 1 ; edição
decepadas expostas no, 402; em, 1 20 - 2 1 , 1 49, 1 5 0; eleições em,
Desmoulins no, 3 2 9 - 3 1 ; e a 5 5 0; escassez de comida em, 2 6 0,
demissão de B rienne, 24 1 ; Ferrieres 2 8 0 - 8 1 , 32 1 -2 2 , 3 94, 396, 606, 7 1 6;
no, 288, 3 1 7; figuras de cera no, esforços sanitários em, 70, 1 5 8 - 5 9 ;
328; gardes françaises no, 3 1 8, 3 2 1 , execução d e Luís XVI e m , 5 6 9 - 7 1 ; e
324; Guarda Nacional e , 390; coroação de Luís XVI, 4 1 ; família
livreiros no, 1 49, 1 5 2 ; manifestação proibida de sair de, 4 7 3 - 7 4; família
dos actores no, 428; oratória no, real trazida para, 400-4; federados
141 em, 5 1 9, 5 2 3 -24; Ferme - Générale
Palerne d e Savy, 445 em, 6 1 ; Ferrieres em, 2 8 7 -88; Festa
Palloy, Pierre -François, 349- 5 8, 440, da Federação em, 3 5 5, 432, 4 3 3 -40;
484, 497, 6 3 6 Festival do Ser S upremo em, 7 04,
Palm d' Aelders, Etta, 4 5 6 , 5 1 9 7 0 5 - 6; Festival da Unidade em, 6 3 9 -
Panchaud, Isaac, 1 9 1 , 1 9 5 , 2 54, 4 1 5 , -4 1 ; fim d o s privilégios em, 378;
464, 7 3 1 fome provincial por notícias de,
Panckoucke, Charles -Joseph, 77, 1 2 2, 370; Franklin em, 35; fuga da
1 49, 1 5 0, 1 5 2 , 1 97 família real de, 47 3 - 8 3 , 505; guilda
Panis, Etienne -Jean, 5 3 2 dos talhantes de, 2 7 5 ; homem mais
Panteão, 470 - 7 1 , 48 3, 484, 488, 497, velho do mundo em, 40 5 ;
5 5 6 , 660, 68 1 , 6 9 3 iluminação nas ruas de, 1 04;
Pantin, cahier d e , 2 7 5 imigrantes em, 3 7 1 ; " indulgentes"
Paoli, Pascal, 4 3 8 em, 688; indústria da construção
Pardeloup, 1 5 1 em, 3 52; indústria química em, 1 5 8;
Pâris, Philippe- Nicolas-Marie de, 5 7 1 insurreição de Agosto em, 5 2 2 , 5 2 5 -
Paris, xv, 3 2 , 3 3, 34, 42, 43, 96, 1 3 8, -27, 549, 5 5 0; literacia em, 1 5 2 - 5 2 ;
1 9 3 , 207, 2 5 0, 307, 3 5 8 - 6 3 , livreiros e m , 1 49, 1 5 4, 1 88; marcha
3 8 3,42 3 ; abastecimento de água de, de Versalhes vinda de, 392 -404;
2 0 5 ; amas -de-leite em, 1 2 6 - 2 7 ; massacre na prisão de, ver massacre
anticlericalismo e m , 5 0 1 ; Armée de Setembro; Mercier em, 1 68 -69;
révolutionnaire e, 645 -46, 6 5 8; Mirabeau sobre as condições
associações de debate em, 386; políticas em, 46 1 -62 ; missões de
autoridade de Lafayette em, 3 8 7 - 92; pregação evangélica em, 1 42; morte
balão em, 1 08 - 1 1 ; barreira de Marat em, 6 2 9 - 3 8; morte de
alfandegária à volta de, 6 1 , 6 3 , 1 99, Mirabeau em, 467-69; mundo
2 5 0, 267, 3 2 1 - 2 2 , 3 3 3; cahiers de, literário de, 1 34; nascimento do
266, 2 74; C lube dos Jacobinos de, delfim celebrado em, 3 08; oficiais
ver Jacobinos; C omuna de, ver de, 444, 44 5 -46; opinião dos j ornais
C omuna; com os termidorianos, sobre a expansão de, 4 5 2 - 54;
7 1 4; condições da prisão de, 83, 88; palestras sobre tópicos científicos
conquista de, 3 2 7 - 3 5 ; contribuições em, 1 1 1 ; Parlamento de, 90, 97,
patrióticas, 379; corporações de, 1 0 1 , 1 1 9, 1 3 8-42, 1 77, 1 9 3 , 2 1 4,
240; crianças como patriotas em, 2 1 9 - 2 � 2 3 0, 2 5 3, 2 54, 2 7� 3 7 �
449; demonstração de força militar 4 1 2, 5 5 � 5 7 1 , 62� 69�
em, 32 3; departamento de, 5 5 9 - 60, participação política em, 428; planos
7 0 3 ; descristianização em, 6 5 8 - 5 9; federalistas para uma marcha sobre,
distribuição de notícias de, 449, 4 5 0; 624- 2 5 ; purga de girondinos em,
distúrbios em, 70, 24 1 , 280-86, 3 2 5 , 6 1 8 -2 1 , 622, 624; regresso de
803

Talleyrand a, 7 3 3 ; restos mortais de poder armado para, 5 1 8; violência


Voltaire trazidos para, 483, 484- 8 5 ; e, 3 8 5
retirada d e tropas d e , 3 5 8 - 5 9 ; Patriote (barco ) , 46
Revolução d e 1 8 3 0 e m , 3, 7-8, 1 3; Patriote Français, 389, 444, 45 1 , 452,
Revolução de 1 848 em, 5 - 6; Rouget 497, 5 5 1 , 6 1 1 , 679
de Lisle em, 5 1 2 ; secções de, ver patriotismo, xvii, 724; casamento e,
secções; sentimento de alienação de, 449; da Guarda Nacional, 43 1 ; da
42 3; teatro em, 2 3 , 2 5 , 74, 1 1 5 -20, nobreza, 42 5 ; das crianças, 449;
1 2 2 -24, 1 3 2 , 1 4 1 -42, 6 5 0; Terceiro demontrações à Assembleia
Estado em, 2 5 3 - 54, 2 5 8, 266, 3 00; Nacional de, 40 5 - 7; e formação da
Terror em, 642 , 6 7 2 - 8 1 , 698, 7 0 3 , Assembleia Nacional, 307; e
7 0 8 , 7 3 5 - 36; transferência da hostilidade aos gens de finance, 59; e
Assembleia para, 4 1 2; transferência morte, 7 2 5 ; em Grenoble, 2 3 5 ;
da corte para Versalhes de, 3 1 9 - 2 0; guerra e , 506, 508, 5 1 7; obj ectos do,
transporte de e para, 1 6 1 -62; 450; penteados e, 4 5 1 ; retórica do,
Tratado de, 38; Tribunal dos Pares 247-49; ritual público e, 2 8 9 - 9 1 ;
em, 224; Tribunal Revolucionário "Roman", 1 44; vida familiar plena
em, 604, 6 5 4; ver também B astilha e, 1 3 0
Paris-Duverney, 1 2 1 Pau, Parlamento de, 97, 1 02, 229, 2 3 0
Parlamentos, 8 5 , 89-97, 1 00, 1 1 3 , pays de grandes cultures, 2 7 2
1 1 8, 1 47, 1 9 3, 2 1 4, 246, 276, 460; pays de petites cultures, 2 7 2 , 5 94
abolição de, 442; Assembleia Pelletan, Philippe, 6 3 1
Constituinte e, 4 1 1 ; Assembleia de Pelletier, Nicolas, 5 3 1 , 5 9 9
Notáveis e, 2 0 1 ; campanha contra, pena capital, 529, 5 30; para o s
2 1 9 - 30, 2 3 2, 2 34, 2 3 7, 2 3 8; Caso do açambarcadores, 645; ver também
C olar nos, 1 7 5 - 6; como garantes da guilhotina
ordem pública, 249; d' Argenson penteados patrióticos, 4 5 1
nos, 99; Hérault nos, 1 3 5 - 38; Penthievre, Louis Jean Marie de
Lafayette nos, 2 54; Linguet e, 1 3 9; Bourbon, duque de, 2 0 1
Malesherbes nos, 85; Necker e, 79- Pépin -Degrouhette, Pierre-Athanase­
-80; plebeus recém -enobrecidos nos, -Nicolas, 4 5 6
1 02 ; representação e, 2 5 3 - 54, 2 5 8; Pere Duchesne, Le, 1 89, 4 5 2 , 5 1 6, 5 1 8,
Target em, 2 1 5 - 1 3, 2 5 3 - 5 4; teatro e, 6 1 6, 6 5 1 , 6 7 5 , 677, 68 1 -82, 6 8 5 ,
1 1 9; Turgot e, 67, 7 0 - 7 1 686, 6 8 7 , 688, 69 1
Parmentier, Antoine Augustin, 1 5 8 Pére nourricier, 280, 282; Lafayette
Pasquier, Etienne, 2 2 1 como, 389; Necker como, 3 2 2
Pastoret, Claude Emmanuel Joseph Péreire, irmãos, 1 6 3
Pierre, Marquês de, 470 Périer, Claude, 2 3 5 , 2 3 6
Pátio de Mármore, 3 2 6 Pernot-D uplessis, 1 1 9
Patrick, Alison, 5 5 0 Perpignan, 1 5 9, 1 60; ameaça
patrie en danger, 369, 5 2 3 , 5 3 5 espanhola em, 64 1 ; Parlamento de,
Patriotas, 2 3 8, 248, 2 5 8; alemães, 6 34; 1 02
como j acobinos, 4 5 3 ; de Grenoble, Pétion, Jérôme, 479, 486, 496, 497,
242, 442 ; Desmoulins sobre, 3 2 9, 503, 5 1 � 5 1 & 52� 5 2 1 , 522, 5 2 3 ,
3 3 0; dos C ordeliers, 430; e a 5 3 2 , 6 2 2 , 624
insurreição da Vendeia, 5 98 - 9 9 ; e o Petit C hâtelet, 343
C omité de Vigilância, 387; e o culto Petit Trianon, "Aldeia Rústica ", 1 3 1
da B astilha, 3 5 1 , 3 5 3; federados e, Pétition des Citoyens Domiciliés à Paris
5 2 3 ; guerra e, 5 1 2; holandeses, 2 0 8 - ( Gillotin ) , 2 5 8
- 1 1 , 2 9 3 , 5 1 7, 5 8 5 ; Luís XVI e, 472; Petrarca, 1 3 3
no teatro, 428; transferência do Peyre, 5 9 7
Simon S chama 1 CIDADÃOS

Peyron, Madame, 3 79 1 2, 1 3; importação de cereal da, 262


Pézenas, 626 Pompadour, Jeanne Antoinette
Philipon, C harles, 9 Poisson, Marquesa de, 1 3 1 . 34 1
Philipon, Roland, 1 3 3 Pont-à-Mousson, cahier de, 2 6 6
Philippeaux, Pierre, 688, 689, 694 Ponte, Lorenzo da, 1 2 2
Philips, Major, 2 0 Poor Richard's Almanack ( Franklin}, 3 5
Phillips, S usanna, 5 8 1 Popkin, Jeremy, 1 49, 452
Picardia : andar d e balão na, 1 1 2; clero pornografia, 1 47, 1 79, 1 87 - 8 8
na, 42 3 , 5 9 3 ; contrabando de livros Porrentruy, anexação d e , 5 4 9
na, 1 5 1 ; Grande Medo na, 369, 3 7 2 ; Port-Libre, prisão, 6 7 2 , 6 9 7 , 6 9 8
produção d e algodão n a , 1 6 3 ; Portraits des Grands Hommes Illustres de
proposta de canal n a , 1 67 la France, 2 7
Piccini, Niccoló , 1 83 Post van Neder Rijn, 2 09
Pidanzat de Mairobert, Mathieu Potier de Novion, 92
François, 36, 1 1 4, 1 47, 1 7 9, 677 Poussin, Nicolas, 1 4 5
Pigott, Robert, 407 Povo : Bastilha e , 344; burguesia e ,
Pilâtre du- Rozier, Jean François, 3 5 , 5 1 6; desafio d e Maria Antonieta ao,
1 1 1 , 1 1 2 , 1 1 3 , 1 3 6, 2 8 1 3 1 5; e a Jornada das Telhas, 2 34;
pintura histórica, 1 30, 3 3 0; República Hébertistas e, 682; identificação do
Romana e, 1 4 3 - 6 Estado com, 2 5 6; Malesherbes e,
pintura : fusão d a cultura popular e 2 5 2 ; Mirabeau e, 2 94, 2 9 5 ;
erudita na, 1 1 4- 1 6; representação monárquicos e, 3 8 3 ; n o s quadros de
das emoções na, 1 2 9 - 3 1 ; David, 487; oratória e, 1 4 1 ;
revolucionária, 42 5 , 42 6 - 2 7, 428, representação do, 2 5 8;
487 -88 representação em estátua, 640;
Pio VI. papa, 464, 4 72 retórica revolucionária e, 248;
Piranesi, Giambattista, 3 3 6 S oberano, 546, 5 7 3 ; violência e, 5 5 3
Pison d e Gallon, Madame, 2 30 Pradial, lei de, 707, 708, 709, 7 1 5
Pitt, William, 5 5 , 5 0 3 , 5 04, 5 84, 5 8 5 , Praslin, duque de, 1 0 5 , 1 47
5 8 � 5 8 � 67� 68� 6 8 � 6 8 � 70� Précy, Louis François Perren, conde
712 de, 6 6 1
Planície, a , 5 5 3 , 5 5 5 , 5 5 6, 5 64, 6 1 6 Prelúdio, O ( Wordsworth ) , vii
Plantin, Honoré, 670 Prémio de Roma, 1 44
Pleyel, Ignaz, 5 1 2 Premonstratenses, Igreja dos, 406
Plutarco, 2 7 , 1 42, 1 44, 4 1 1 Presbiterianismo, 3 04
Pluvinel, 2 2 Pressavin, 445
pobreza, criminalização d a , 3 72 Prieur de la C ôte d' Or, 5 1 2, 644,
poissardes, 394- 9 5 , 3 97, 398, 40 3 , 466, 708
639, 678 Prieur de La Mame, 6 5 1
Poitiers, Terceiro Estado de, 4 1 8 prisão do Templo, 5 3 3 , 542, 546, 5 5 3,
Poitou, 9 3 ; clero do, 307; Grande 5 5 � 5 5 � 5 5 � 5 6 1 , 5 67, 5 6 8
Medo no, 369; nobreza do, 288, 2 8 9 Prise de la Bastille (Désaugiers ) , 4 3 8 ,
Poix, Louis Marc Antoine de Noailles, 440
Príncipe de, 70 privilégio, 54, 5 5 , 5 6 - 57, 5 9, 7 1 , 1 07,
polémica, 448 -49, 4 5 0 - 5 1 2 2 1 , 2 74; abolição de, 1 5 7, 2 0 5 ,
Polignac, Diane de, 34, 3 0 5 2 54, 2 5 6, 2 6 6 , 378; C alonne e , 2 0 2 -
Polignac, família, 2 1 5 , 3 0 5 , 3 6 0 , 5 3 3 - 3; e a nobreza empobrecida, 1 06;
Polignac, Yolande de, 1 82, 1 8 3 , 1 8 6, extensão de, 1 0 1 - 2; labor contra,
1 88 2 5 8; quebra de, 86
Politieke Kruijer, 2 0 9 Profissão de Fé de Um Vigário Saboiano
Polónia, 5 04; e a Revolução de 1 8 30, ( Rousseau ) , 3 04, 5 3 0, 6 3 8
805

Proly, Pierre Jean Berchtold, 684 Radier, Jean, 6 5 9


Promenade ( Girardin ) , 1 32 Rambouillet, 7 8 , 1 94
Protestantes, 4 1 , 88, 5 9 5 ; ataques Rastignac, família, 1 0 5
católicos a, 4 3 1 ; cerimónias de Raynal, abade Guillaume, 1 47, 2 9 5 ,
casamento de, 1 30; descristianização 4 1 7, 422
e, 6 5 9; e a nacionalização da Igreja, Razão: domínio da, 1 34; festividades
4 1 9; e o movimento da Federação, da, 5 7 1 - 2 , 66 1
4 3 3 ; elegibilidade para cargos Rebecquy, François-Trophime, 622
públicos e, 429; emancipação dos, rebelião da Fronda, 3 1 9
1 5 8, 2 1 5 , 2 1 7, 248, 2 5 1 , 4 1 9; Réflexions sur la Déclamation (Hérault ) ,
Mirabeau e, 464; na C onvenção, 1 38
5 5 1 ; na Provença, 2 94; Reflexions Patriotiques ( Lanjuinais ) , 2 5 5
presbiterianos, 3 04; prisão de, 3 3 6 regeneração, 40 5
Provença, 409; aceitação da régie, 5 3, 77, 1 9 3
C onstituição Civil na, 5 9 3 ; regimento do Austrásia, 2 32 , 2 3 3
emigrados n a 5 0 1 ; estados da, 2 9 3 - Régnier, Claude Ambrosie, duque de
-4; fome na, 2 6 0 ; insurreição em, Massa, 72 1
5 94, 62 5 ; Malesherbes na 8 3 ; Reims, 1 7; coroação de Ca rlos X em,
movimento d a Federação na, 4 3 1 ; o 7; coroação de Luís XVI em, 40-42,
Terceiro Estado da, 266; protestantes 3 6 1 ; missa fúnebre para Mirabeau
na, 464; souvenirs da B astilha na, em, 472
3 5 6; tumultos na, 2 9 5 - 6 Reinach, Regimento, 3 2 5
Provença, Louis - S tanislas-Xavier, Reinhard, Marcel, 482
conde da, 1 1 9, 1 82, 2 5 7, 3 1 2, 3 5 9, Rembrandt van Rign, 1 9 7
361, 501 Renault, Cécile, 707, 708
Prússia, 5 3, 5 5, 5 04, 5 0 5 , 5 08, 5 1 0; e Rennes, 2 3 8; Parlamento de, 95, 1 3 7,
agitação holandesa, 2 1 1 ; guerra com 228, 229; revolta em, 624; Terceiro
a, 522, 5 32, 5 34, 5 4 1 -4, 5 5 6, 577, E stado de, 266; tumultos em, 2 7 9
586, 587, 640, 64 1 ; impostos sobre Republica Holandesa, 38, 50, 5 3 , 1 89,
os cereais da, 2 6 1 ; Lafayette e, 7 3 3 - 4 5 1 7; Império e, 720; gazetas da,
Publiciste de la République Française, 6 3 6 1 49; Guerra com, 587, 607;
Puisaye, Joseph, conde d e , 640 Malesherbes em, 82; Mirabeau na,
Pupunat, C uré, 424 2 9 3 ; turbulência política na 2 08 - 1 0,
2 1 4, 240
Qu 'est-ce que le Tiers-Etat? ( Sieyes ) , República Romana, 27, 1 42 - 3, 727
2 59-260 República, 546, 697; calendário da,
Quacres, 568, 7 3 0 6 5 6, 6 5 7, 6 5 8; conspirações contra,
Quando Teremos Pão?, 3 9 6 707; Corday e, 629; crise económica
Quatremere d e Quincy, Antoine na, 6 0 5 -8, 642 - 3 ; declaração formal
C hrysostome, 446, 47 1 , 484, 497 da, 5 4 5 , 546; e o funeral de Marat,
Quebec ( navio ) , 3 0 6 3 6 ; e o j ulgamento de Luís XVI,
Quebeque, B atalha do, 28 5 5 5 ; enragés na, 608; exército da,
Quercy, revoltas em, 42 1 , 5 9 3 646, 648, 6 5 0; facciosismo e, 608,
Quesnay, François, 6 7 , 3 4 1 609, 6 1 0; Grã-Bretanha e, 5 8 5 ;
Quimper, Parlamento de, 2 2 8 iconografia d a , 6 5 5 - 6; impostos da,
7 1 8, 7 1 9 - 2 0; insurreição na Vendeia
Rabaut Saint-Etienne, Jean Paul, 78, contra a, 5 8 9 - 6 0 3 ; órgãos de
2 1 5, 2 5 5, 2 6 5 , 300, 379, 487, 5 5 1 , autoridade central, 604; retomada
604, 7 1 0 de Lyon para a, 66 1 , 662; Talleyrand
Racine, Jean Baptiste, 2 5 , 427, 5 5 8 e a, 5 5 9, 5 8 2 ; Terror e a, 644, 6 5 2 ;
Racionalistas, 2 47 visão hébertista d a , 68 1 -2
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Restauração, 4, 9, 1 0, 72 1 C omité de Salvação Pública, 604; e


Restif de B retonne, Nicolas E dmé, o julgamento de Luís XVI, 5 5 3 , 5 54,
1 5 3, 1 78, 1 8 1 5 6 2 , 5 64, 5 6 5 ; e petição de
retórica : da violência, 724; falada, ver 'abdicação', 4 8 5; educação de, 1 43,
oratória; revolucionária, 2 2 2 , 24 7 - 8; 3 2 9; execução de, 7 1 3 - 1 4, 7 1 7;
Reunião nos Campos Elísios, A, 1 3 5 federados e, 5 1 8; Girondinos e, 6 1 4;
Revolução Americana, 6 , 1 9 - 24, 30, Indulgentes e, 68-92; Le Chapelier
3 1 , 3 2 , 36-9, 44, 5 7 , 246, 249, 3 7 5 , refutado por, 490-4; Malesherbes e,
5 1 4 - 5 , 5 1 8, 5 9 5 ; custo da 5 5 8; Mirabeau e, 470; na
intervenção da França na, 48-9, 54- Assembleia Constituinte, 42; na
- 5 , 1 94, 1 99, 2 1 1 ; declaração de C omuna Insurrecta, 526, 5 3 2; na
direitos na, 3 7 9, 3 8 0 - 1 ; dívida Convenção, 5 5 0, 5 5 1 , 5 5 2, 5 5 3,
britânica à, 5 3 ; holandeses e, 2 1 0; 6 1 7, 6 1 8, 620; no funeral de
Necker e, 7 5 , 78, 7 9 Lepeletier, 5 7 1 ; nos Estados Gerais,
Revolução d e 1 848, 5 - 6 307; oposição à guerra por, 5 0 9 - 1 1 ;
Revolução d e Julho d e 1 8 30, 3, 5 , 7 - oratória de, 1 3 9, 4 5 5 ; queda de,
13 708- 1 2 ; Saint-Just e, 494, 5 5 5 ;
Revolução Gloriosa, 244 sobre a pena capital, 5 30; sobre o
Révolutions de France et de Brabant, Les, clero, 500; sobre os direitos de
379, 3 8 3 , 396, 4 3 0 propriedade, 643; tentativa de
Révolutions de Paris, 3 4 9 , 3 84, 4 5 7 assassinato, 706; Terror e, 644, 646,
Rey, Marc-Michel, 1 34 6 5 5;
Reybaz, Solomon, 467-8, 470 Robin, abade, 3 7
Richardson, Samuel, 1 2 8, 1 8 1 , 367 Rochambeau, Jean-B aptiste D onatien
Richelieu, Jean Armand du Plessis, de Vimeur, conde de, 509, 5 1 0, 7 3 6
cardeal e duque de, 22, 1 1 6, 3 3 6 Roche, D aniel, 1 5 2
Richerismo, 3 04, 4 1 7 Ródano e Loire, departamento do, 664
Riley, James, 54 Roederer, Pierre Louis, conde de, 5 2 6
Riom, assembleia provincial em, 22 7 - 5 Rohan, Louis, cardeal de, 1 74-9, 5 2 6
Riouffe, Honoré, 6 8 1 , 694 Rohring, capitão Léonard, 4 77
Ripet, Jean, 6 6 5 Roland de La Platiere, Jean-Marie,
Rivarol, Antoine, 1 09, 1 1 1 1 6 3, 44 5 , 5 1 1 , 5 32 , 5 3 8, 5 5 0, 5 5 3 ,
Robert, 1 1 3 5 5 6, 6 0 7 , 6 1 4, 6 1 8, 677
Robert, François, 5 2 1 , 5 5 0 Roland, Eudora, 6 7 8 - 9
Robert, Hubert, 3 3 6, 703, 7 1 4 Roland, Manon Philipon, 1 30, 1 3 3,
Robert, Louise, 4 5 6, 48 5 1 4 1 , 48� 49� 5 1 � 5 1 � 624, 6 2 5 ,
Robespierre, Augustin, 7 1 3 6 3 1 , 677, 723
Robespierre, Maximilien de, xviii, Rolland, 70 l
1 30, 3 8 3 , 388, 4 1 4, 467, 48 1 , 486, Romainville, Antoine de, 1 06
492 -9, 500, 5 1 0, 5 2 3 -4, 629, 64 1 , Romantismo, 2 5, 48, 306, 343; de
660, 67 1 , 682 - 94, 7 1 5 - 6, 722; Guibert, 2 1 6; de Mercier, 1 68 -9; de
ataques de de Gouges a, 678; D avid Robert, 3 3 6; e a levée en masse, 646;
e, 488; detenção de, 7 1 2 - 1 3; e hostilidade para com os financiers,
durante a guerra, 5 1 5 , 547, 606; e a 60; guerra e, 508; heróis e mártires
crise económica, 607; e a e, 470; história e, xv, 5 , 7;
descristianização, 660, 66 1 ; e a identidade e, 34 1 ; Lafayette e, 2 1 ;
detenção e j ulgamento de D anton, Mirabeau e, 2 9 3 ; na poesia, 488; no
69 1 - 9 3 , 694; e a fuga família real, teatro, 426; ódio a tudo o que era
478, 480; e a instrução pública, 70 1 - Novo, 1 78; oratória e, 1 4 1 ; voos de
-4, 7 0 5 , 706; e a insurreição, 5 2 3 , balão e, 1 1 2 ; ver também sensibilité
5 2 6 , 5 2 7 ; e a Lei d e Pradial, 708; e o Romilly, Samuel, 2 5 1 , 2 5 2 , 307, 7 1 7
807

Roncours, Prudent de, 1 5 1 472; Panteísmo de, 6 3 8; poissardes e,


Ronsin, C harles Philippe Henri, 1 42, 3 94; retórica da virtude de, 2 3 6 ;
64 1 , 6 5 8, 6 6 3 , 68 1 , 689- 90, 699 retórica patriótica e, 2 4 9 , 2 5 3;
Roosevelt, Franklin, 240 Retrato de Talma de, 426;
Root-B ernstein, Michele, 1 1 5 Robespierre influenciado por, 493,
Rosanbo, Lepeletier de, 6 9 7 - 9 494, 4 95 , 497; sans-culottes e, 609;
Rosanbo, Louis d e , 699 Sieyes influenciado por, 38 2 - 3;
Rosanbo, Marguerite de, 697-8, 698, sobre a cidadania, 307, 308; sobre a
6 9 9 - 700 igualdade, 408; sobre a religião,
Rossel, e. A., 2 7 4 1 6 - 7, 422; sobre a Vontade Geral,
Rossignol, Jean Antoine, 5 2 7, 670 1 5 6, 5 4 1 ; sociedades populares
Rostan, Joseph-Marie, 666 influenciadas por, 4 5 6, 4 5 7;
Rothschild, família, 244 Talleyrand influenciado por, 1 1 ;
Rouamps, Pierre - Charles, 708 Tronchin e, 1 8, 1 2 7; visão utópica
Rouen: cahier de, 266; clérigos em, de, 1 66; voos de balão e, 1 1 2, 1 1 4
302; colheitas destruídas em, 2 5 9; Rousseau, Thérese, 1 3 3, 1 34
comércio através de, 448; Rousselin, 6 1 7
contrabando de livros em, 1 5 1 , 1 5 3 ; Roussillon, 1 5 8 -9; emigrados em, 50 1 ;
desemprego e m , 2 6 1 ; minas d e carvão, 1 0 5 ; na guerra,
industrialização em, 1 64 - 5 ; 505
laminadoras d e chumbo e m , 69; Roux, Jacques, 5 1 6, 5 1 9, 5 5 7, 608-9,
mães prolíficas honradas em, 449; 6 3 6, 642 - 3
Parlamento de, 26, 89, 1 0 5 , 229, Rovere, Stanislas Joseph François
722; suicídio de Roland de La Xavier, marquês de, 497
Platiere em, 677; transporte para, Roy, abade, 2 8 9
1 6 1 ; tumultos em, 368, 4 5 2 ; voos Royal- Allemands, 3 3 1 , 5 1 5
de balão em, 1 1 2 Royale-La-Marine, regimento, 2 3 2 - 3 3
Rouget de Lisle, Claude Joseph, 5 1 2, Royau, abade, 1 43
523 Ruault, Nicolas, 4 7 1
Rousseau d e Trémentines, 600 Rumei, François-Jean, 1 6 3
Rousseau, Jean-Jacques, 8, 37, 74, Rússia, 5 04, 507; Napoleão na, 1 1 ;
1 2 6, 1 3 7, 1 48, 1 5 3, 1 54, 1 68, 247, teatro na, 1 2 3
277, 436, 484, 5 3 0, 5 6 8, 703, 72 5 , Ruyter, almirante Michiel de, 2 1 0
7 3 2 ; amas -de -leite defendidas por,
1 2 5 - 6, 1 2 7; como patriota-herói, Sabatier de Cabre, 2 5 3
470; Corday influenciado por, 626; Sabóia: anexação da Sabóia, 5 8 5 ;
d' Antraigues e, 2 5 6; d' Argenson e, guerra na, 547; migração da, 3 7 1
99; de La Tour du Pin influenciado Sade, Alphonse François, marquês de,
por, 3 6 7 ; e noções de antiguidade, 3 3 8 - � 344, 3 5 0, 392
1 43, 1 4 5 , 1 46; e o culto da Saige, Joseph, 2 08, 2 2 1 , 745
sensibilidade, 1 2 8 - 1 3 5 ; em Saint-André, Jeanbon, 644, 708
Grenoble, 2 3 1 ; figuras de cera de, Saint-B ernard, prisão, 5 4 1
3 2 8; Franklin influenciado por, 3 3 ; Saint - Cloud, 1 1 3, 1 47, 1 94, 3 3 1 , 3 5 9,
Girardin e , 1 3 1 - 3, 446, 5 8 1 ; 458, 473, 486, 5 62, 747, 7 6 5
Girondinos e , 5 6 3 ; honnête homme e, Saint- Denis, destruição da C apela de,
292, 296; Jacobinos influenciados 703
por, 454, 6 5 5 ; livros proibidos por, Sainte- Genevieve, Igrej a d e , 47 1 -2
1 47; Malesherbes e, 84; Marat Sainte -Madeleine, C onvento de, 42 1
influenciado por, 626, 627; Maria Sainte -Menehould, 476-7, 545
Antonieta como leitora de, 1 8 1 , Sainte- Pélagie, prisão de, 672, 677,
1 82 ; Mercier e , 1 68; Mirabeau e, 698
Simon Schama 1 CIDADÃOS

Saint-Etienne, 66 1 ; Terror em, 6 5 4 Indulgentes e, 688; Maria Antonieta


Saint-Eustache, Igrej a de, 47 1 - 2 , 660 e, 674; Terror e, 645, 647, 669;
Saint-Firmin, Mosteiro de, 541 vandalismo dos, 702; vestes dos,
Saint-Florent : Revolta em, 600; Terror 704
em, 668 Sanson, Charles Henri, 5 3 0, 5 6 9 - 572,
Saint- Germain, Claude Louis, conde 6 3 4 68 1 , 694, 7 1 4
'
de, 1 94 Santerre, Antoine Joseph, 345, 347,
Saint- Gervais, Igrej a de, 660 456, 5 1 6, 5 1 9 - 2 0, 5 24, 5 2 7, 5 32,
Saint-Huruge, marquês de, 392, 42 5 , 5 3 7, 6 1 8; comandante da Guarda
519 Nacional, 5 3 2, 5 5 8; e a execução de
Saint-James, Boudard de, 1 0 5 , 1 6 3 Luís XVI, 5 6 9 - 70; e prisão da família
Saint-Jean de la C andeur, 24 real, 5 5 8; na C onvenção, 5 5 0
Saint-Jean, C atedral de, 66 1 Santos, B atalha dos, 49
Saint-Just, Louis Antoine Léon de, 9, São Luís, Igrej a de, 2 90, 3 1 4, 3 5 5
494, 5 5 5 , 6 5 1 , 66 1 , 6 7 5 , 689; e a Sapinaud d e La Verrie, Charles, 600,
crise económica, 606, 607-8; e 602
j u lgamento de Danton, 692, 6 9 3 , Saratoga, batalha de, 5 1 4
699; e j ulgamento d o s girondinos, Sarthe, departamento do, 7 1 9
679; Hébertistas e, 682, 684, 6 9 1 ; Sartine, Gabriel de, 3 1 , 4 3
prisão de, 7 1 2 , 7 1 3; retórica de, Sauce, Jean -Baptiste, 4 7 7 - 8
1 4 1 ; termidorianos e, 7 0 9 - 1 2; Terror Saumur: cahier d e , 2 66, 288; revolta
e, 6 5 3, 6 5 5, 667, 668; Ventoso, em, 602
decretos de, 69 1 , 7 1 0 - 1 1 , 7 1 9 Savenay, batalha de, 689
Saint-Lazare, Mosteiro de, 1 2 5 , 3 3 3 S caevola, Múcio, 1 4 5
Saint-Martin, Abadia de, 446 S cheffer, Ary, 1 2
Saint-Pierre, Eustache de, 2 9 Schmidt, Tobias, 5 3 1
Saint-Priest, François Emman uel, Schuyler, Phi!ip John, 72 6
conde de, 309, 3 1 2, 400, 46 1 , 698 Science du Bonhomme Richard, La
Saint-Sauveur, Raymond de, 1 5 9 - 6 0 (Franklin ) , 35
Saint - Sulpice, S eminário d e , 1 7 Scott, Samuel, 324
sal, imposto sobre o, 60-62, 269, 2 7 1 ; séance royale, 225, 3 1 0, 3 1 2 - 1 7, 3 5 8
ver também gabelle secções, 5 1 9 - 2 0, 52 2 , 524-6, 5 34, 5 3 8,
Salency, Rainha das Rosas de, 2 54 5 5 6, 6 0 5 - 6, 609- 1 2, 6 1 5 - 7, 722;
Salis - S amade, regimento de, 324, 3 3 2, C onvenção denunciada por, 64 1 - 2;
345 Danton e, 648; de Caen, 6 2 5 ;
Salle, Dr., 624, 632 descristianização e , 6 5 8 -9; e o
Salm, conde de, 2 1 1 Festival do Ser S upremo, 704, 707;
Salon, 2 6 - 7 , 1 1 4, 1 2 8 - 30, 1 4 5 , 1 47, e o funeral de Marat, 6 3 3; em Lyon,
1 84, 1 86 - 7 , 320, 3 3 0, 3 5 1 , 486; da 6 1 9; enragés e, 609 - 1 O; girondinos e,
República, 6 3 7, 6 5 4 6 1 6; Marat e, 626; revoltadas
Salpêtriere, L a 1 78, 2 5 1 , 5 2 0, 54 1 , contra a C onvenção, 620, 62 1 ;
737, 738 Termidor e , 7 1 0, 7 1 4; Terror e , 645,
Salústio, 1 42 - 3 646, 6 5 3 ; violência das, 6 1 1
sanfedisti, 5 9 2 Sécher, Reynald, 598, 67 1
sans-culottes, xix, 5 1 6, 5 1 7 - 1 8, 5 3 9, Séguier, Antoine Louis, 1 0 1 , 2 1 9, 2 2 3
549, 586, 6 1 0, 6 1 5 - 1 6, 64 1 ; Séguier, família, 1 O 1
calendário e , 6 5 6; como oficiais do Segunda República, 5
exército, 6 5 1 ; C onvenção S égur, Louis Philippe, conde de, 2 0 - 1 ,
denunciada pelos, 64 1 ; e a 36, 39, 79, 2 0 1 , 2 1 1 , 2 1 7, 32 4, 4 1 5 ,
insurreição da Vendeia, 5 9 2 ; e a 546
morte de Marat, 6 34; enragés e, 609; S e i s Guildas d os Comerciantes, 2 5 8
809

S émonville, Huguet de, 2 5 3, 444 S ociedade dos Amigos da Liberdade e


Séneca, 1 45 Igualdade, 5 9 1
senhorial, regime, ver feudalismo, Sociedade dos Indigentes, 4 5 6
vestígios do Sociedade d o s Trinta, 2 5 3, 3 0 0 , 4 1 2
S enozan, condessa de, 700 Sociedade Fraterna d e Patriotas de
sensibilidade, ver sensibilité Ambos os Sexos, 4 5 5 , 5 1 9
sensibilité, 22, 2 5 , 3 1 , 1 2 7-8, 6 5 5 , 679, S ociedade Galo -Americana, 507
689, 7 3 5, 749; América e, 725, 727; Sociedade Lunar de Birmingham, 2 5 1
Antiguidade e, 1 44 - 5 ; C orday e, Sociedade Revolucionária de Londres,
6 3 3; oratória e, 1 3 6 - 7 ; pintura e, 579
1 2 8 - 30; Robespierre e, 707; sociedades populares, 4 5 3 - 56; Comité
Rousseau e, 1 3 1 - 3 5 C entral das, 48 5 - 86; repressão
Sentinelle du People, La, 2 5 5 contra, 486, 490; ver também
Sentinelle, La, 5 5 9 organizações específicas
Ser S upremo, culto do, 704, 7 0 5 - 1 0, Société des Amis des Noirs, 2 52
7 1 5, 7 1 9 sociétés de pensée, 1 54, 2 6 3 , 445
Sergent, 5 2 6, 5 32 Sócrates, 1 4 5
S érilly, 1 0 5 S olages, Gabriel, conde de, 8, 3 5 0
Servan, Joseph, 5 1 9, 5 3 2 Solar, chevalier de, 9 3
Servan-en-Brie, cahier de, 2 7 2 Sologne, 1 5 8, 2 6 7 , 2 6 3
Severo e Caracala, ( Greuze ) , 1 2 8 S ombreuil, Charles -François Virot,
Sevres, porcelana de, 5 7 2 conde de, 3 34
Sevres, retirada d e tropas para, 3 5 9, Sombreuil, Madame de, 542, 700
361 S orbonne, 1 7
Seze, Romain de, 5 6 2 - 3 , 5 6 6 Souchu, René, 5 9 1
Shakespeare, William, 1 2 8 Soufflot, Jacques Germain, 47 1
Shelburne, William Petty, lorde, ver Soules, 38 9
Lansdowne, marquês de Soussevai, d e, 437
Sheridan, Richard, 5 7 9 Speer, Albert, 704
Sicard, Abbé Roch Ambroise Staei, Germaine de, 74, 2 1 6, 292, 299,
Cucurron, 5 3 3, 5 3 8, 540 347, 503, 5 8 1 , 678, 7 3 0, 7 3 3, 7 3 5
Sidney, Algernon, 98, 7 0 3 Stendhal ( Henri B eyle ) , 2 3 0 - 1 , 2 3 3,
Siege d e Calais, L e ( B elloy ) , 2 8 2 34
Sieyes, Abbé Emmanuel Joseph, 2 5 5 , Stoff!et, Jean Nicolas, 5 9 8 - 600
2 5 9, 2 64, 300, 306-7, 3 1 1 , 3 8 2 - 3 , Stone, Lawrence, 1 02
386, 48 1 - 2, 487-8, 7 3 6; e a Suard, Jean-Baptiste-Antoine, 1 24,
Declaração dos Direitos do Homem, 1 49
3 80, 408; Igrej a e, 4 1 8; na Sucessão Polaca, Guerra da, 20, 5 2
C onvenção, 5 5 2 ; no Clube de 1 789, Suécia, 5 0 8
4 1 2 ; no C omité do Ensino Público, Suetónio, 1 79
702 - 3 S uffren de Saint-Tropez, Pierre André,
Simon, Antoine, 674 almirante, 39, 48, 1 2 3, 1 94
Simoneau, Louis, 5 2 0 S uger, abade, 1 3 7
Six Edicts, 70 Suíça : B rissot na, 497, 679; de
Slavin, Morris, 62 1 B reteuil na, 472; empréstimos da,
Smollett, Tobias, 3 3 7 1 9 5 ; filha de Malesherbes na, 696;
S oboul, Albert, 620 Malesherbes na, 89
Sociedade das Mulheres Republicanas, suicídio, 242 - 3; dos Girondinos, 680,
678, 7 3 7 720
S ociedade d e Correspondência de Surdos, escola para, 1 60 - 6 1
Londres, 5 8 0 Surveillante, La ( navio ) , 3 0
Simon Schama 1 CIDADÃOS

tabac, 6 0- 6 1 , 62 Tenducci, 3 9 8
Tableau de Paris ( Mercier ) , 1 68 - 9 Teniers, David, 1 97
Tableau de Paris, 1 7 3 teoria económica liberal, 67
Tableaux de la Révolution Française, 4 5 5 Terceiro E stado, 1 07, 246, 286, 300,
Tácito, 2 7 , 3 2 9 3 04, 368, 599; Assembleia Nacional
Tackett, Timothy, 42 3, 5 9 5 , 7 5 9, 7 6 3 formada por, 308-8, 309; at séance
taille, 5 6 , 5 9, 72, 2 0 3 royale, 3 1 0, 3 1 4, 3 1 5; cahiers de, 2 7 3 ,
Tailleur Patriotique, 4 5 2 274-7, 289; clero e, 3 04, 3 0 7 , 4 1 8;
Talleyrand e m , 72 5 - 2 7 Clube de 1 78 9 e, 4 1 5; de Paris, 2 8 1 ;
Talleyrand-Périgord, C harles Mamice, Duport e , 22 1 ; e morte d o delfim,
duque de, príncipe de B énévent, 1 3 - 308; em Grenoble, 2 3 5 ; Grande
-4, 20, 1 2 3, 1 42, 1 5 5 , 1 86, 247, 2 9 3 , Medo e, 3 7 3 ; grands bai!liages e, 2 3 8;
3 7 2 , 37� 4 1 3, 483, 6 1 � 7 3 5 , 7 3 � a identificado com o Povo, 2 5 6;
Igreja e, 4 1 5 -8, 422, 42 3; Calonne e, Luís XVI e, 2 9 7 - 8; militares e, 324;
1 90 - 1 ; como bispo de Autun, 300, Mirabeau e, 292, 2 9 3 , 2 94; motins e,
303; e a Declaração dos Direitos do 2 8 3 - 8 5 ; Necker e, 80, 2 5 7 -8, 2 64,
Homem, 382, 408; e o movimento 267, 2 8 5 , 320; Nobreza e, 4 1 1 ;
federalista, 434, 437-8, 439 -40; em pretensão d e ascendência do, 3 0 1 ;
Londres, 5 0 3 -4, 5 5 9, 5 7 7 - 8 3 , 587; representação de, 2 5 3 - 5 5 , 2 5 6 - 8,
Mirabeau e, 4 1 5, 46 1 , 464, 467, 468, 2 6 3 , 2 6 6 - 8; rituais públicos e 2 9 1 -2;
469; na América, 726, 729- 34; na Young e, 375
coroação de Luís XVI, 42; na Termidorianos, 7 1 2, 7 1 5
Revolução de 1 8 30, 1 O, 1 1 -4; Terray, abade Joseph-Marie, 6 5 , 66,
Narbonne e, 5 0 3 ; no Clube de 1 789, 68, 7 1 , 83, 1 7 7, 6 7 5
4 1 2; no Comité da Salvação Pública, Terror, o , 8 - 9 , 1 6 1 , 2 4 3 , 2 8 8 , 3 8 5 -6,
70 1 ; nos Estados Gerais, 3 00, 3 0 3 ; 387, 4 1 4, 444, 446, 4 5 6, 642 -49,
ordenação d os bispos constitucionais, 6 6 1 - 74, 7 1 6, 720, 72 1 , 723, 7 3 0,
464; Sociedade dos Trinta, 2 5 3 - 5; 7 34, 7 3 5 - 6; campanha dos
Voltaire e, 1 7 - 9 indulgentes para pôr fim ao 6 8 5 - 9 1 ;
Tallien, Jean Lambert, 54 1 , 7 1 2, 7 1 5, C omité d e Salvação Pública, 604;
727 Danton e o, 6 8 6 - 7; descristianização
Talma, François Joseph, 4 2 0 , 42 6-8, e o, 6 5 9-62, 7 1 9; e a lei do Pradial,
4 5 2 , 4 5 9 , 483, 6 2 9 708; e a morte de Marat, 6 3 0 - 1 ;
Talon, Omer, 7 3 1 económico, 642, 645, 6 8 3 , 690, 772;
Target, Guy-Jean, 1 3 8, 1 7 6 -7 , 2 1 5 - 6, em Lyon, 662 - 6; em Marselha, 6 6 5 -
247, 2 5 3 - 5 , 2 5 7, 3 00; e o -6; fase d e instrução, 70 1 -7;
j ulgamento de Luís XVI, 5 5 9 -60; Ferrieres durante o, 288;
imagem de cera de, 3 2 8 ; na funcionários locais e o, 444- 5 ;
Assembleia Nacional, 404; girondinos durante o, 498;
Tarn: fome em, 260; motins em, 42 1 , instituições funcionais do, 640;
650- 1 Lindet durante o, 5 6 1 ; Malesherbes
Tasso, 5 5 7 e o, 5 60, 696- 70 1 ; mulheres e o,
taxations populaires, 606 674, 6 7 7 - 9 ; na Vendeia, 666, 667-
teatros de variedades, 1 1 5 , 1 1 6, 1 1 7 - - 7 1 ; prisões durante o 672 - 3, 692,
1 1 8, 1 69, 277, 438, 4 5 1 692, 698; Target durante o, 5 5 9;
teatros, 1 1 5 - 2 5 ; de variedades, 1 1 7 -8, termidorianos, 708- 1 1 , 7 1 5 ;
2 77; e a revolta de paris, 3 3 0 - 1 ; Tesouro, 56, 1 0 1 , 2 3 9, 3 1 2 ; da
Maria Antonieta e , 1 82 - 3 , 1 87 - 8 ; República, 6 0 5 ; e arrendamento
oratória e, 1 4 1 , 1 42; políticas e o , fiscal, 60
42 6 - 8 ; Testament de M. Fortuné Ricard ( Mathon
tecnologia, 1 62 - 3 ; militar, 1 5 8 de La Cour ) , 1 6 5 - 6
811

Théâtre B eauj olais, 1 1 7 Tribunal Fiscal de Apelação, 8 5 -86,


Théâtre de la Cité, 6 3 7 1 49
Théâtre d e l a Nation, 428 Tribunal Revolucionário, 604, 6 1 4,
Théâtre des Terreaux, 6 6 3 627, 643, 6 54, 68 1 , 684, 688, 692,
Théâtre -Français, 1 8, 2 6 , 32, 1 24, 328, 7 1 5, 720; C orday no, 629- 30;
400, 42 6, 430, 43 1 , 4 5 1 , 484 Danton no, 692 - 3 ; e a lei de Pradial,
Theism ( Ferriere s ) , 289 707-8; em Marselha, 6 6 5 ; em
Thélusson et Cie, 7 5 , 1 6 3 Meurthe, 666; Girondinos no, 677-
Théorie des Lois Civiles ( Linguet) , 1 40 -8; Maria Antonieta no, 6 7 3 , 674- 5;
Théot, Catherine, 7 1 O Robespierristas no, 7 1 3
Thiery, Luc-Vincent, 1 3 2 , 2 5 1 Tricornot, barão, 372
Thomassin, Charles-Antoine, 446, 7 1 8 Tronchet, François-Denis, 5 60, 562,
Thouars, revolta em, 602 566
Thouret, Jacques Guillaume, 408, Tronchin, Théodore, 1 8, 1 2 7
46 1 , 700- 1 Tronquart, Nicolas, 667
Thubert, 5 9 7 Troyes: exílio de Parlamentares em,
Thugut, barão Franz de Paula von, 2 2 3 ; milícia de, 280; movimento
736 federativo em, 4 3 3
Thuriot d e L a Roziere, Jacques Alexis, Trudaine des Ormes, 445
346, 6 5 8, 660 Trumeau, Marie -Jeanne, 2 8 3 , 2 84
Tilly, C harles, 5 9 2 Tulard, Jean, 7 1 8
Tipu Sahib, sultão de Misore, 1 94, Tulherias, 4, 9 8 - 9, 1 1 6, 3 3 2, 5 1 5 , 5 24,
2 5 0, 2 5 1 5 54, 6 5 2 ; demonstrações nas, 5 1 9 -
Tiranicidas, 549 -20; durante a insurreição de, 5 2 7 ,
Tissot, Pierre -François, 1 87 5 4 6 , 6 1 7, 66 1 ; família real nas, 4 0 3 ,
Titian, 1 90 4 5 6, 4 6 6 , 473, 4 7 5 , 478-8 1 , 499,
Tocqueville, Alexis de, xviii, xxv, 6, 5 1 8, 5 60, 5 6 1 ; Festival do Ser
5 1 , 1 00, 1 48, 1 5 9, 7 1 4, 7 1 9 S upremo nas, 705; guarda real nas,
Tocqueville, Hervé Clérel de, 697, 698, 5 1 8, 5 2 5 ; guilhotina nas, 5 2 9;
714 vendedores de livros n a s , 1 5 1
Tocqueville, Louise de, 697, 7 1 4 tumultos dos cereais, 279, 3 2 2 - 2 3 ; ver
Tom Jones ( Fielding ) , 98 também guerras da farinha
Tonnelet, 599 tumultos, 2 77 -86, 2 8 8 - 9 ; caça, 2 7 7 - 9 ;
tortura, abolição da, 2 1 5 cereais, 67, 68, 70, 1 09, 2 7 9 - 80,
Toulon, 5 1 , 6 5 2 ; esquadra britânica, 3 2 1 - 2 2 ; de Julho de 1 789, 3 3 1 - 3 0 5 ;
647; recuperação, 6 6 5 , 6 8 7 - 8; depois d a resignação d e B rienne,
revoltas em, 622, 6 2 3 -4, 640, 66 1 ; 240-4 1 ; depois da tomada da
souvenirs da Bastilha em, 3 5 6 - 7; Bastilha, 3 6 1 - 7 4; do Ano III, 7 1 9;
Terror em, 666, 709; tumultos, 2 9 6 durante a Guerra com a Á ustria,
Toulouse, 1 5 1 , 243; destruição d e 5 1 5 - 6, 5 1 9; e os decretos de Agosto,
colheitas e m , 2 60; funcionários 42 1 ; em Grenoble, 2 3 0-40;
municipais em, 444; Parlamento de, mercearia, 606-8, 6 1 1 , 6 1 6, 643;
93, 229 Mirabeau e, 2 9 5 - 6 ; na Vendeia, 5 9 3 ;
Tours, 1 6 3 ; inundação d e , 2 6 0 Revéillon, 28 1 - 8 5 , 2 8 9 , 324, 3 2 6
Tourzel, Louise Elizabeth d e , 4 7 5 , 5 3 3 Turenne, Henri de la Tour
tráfico d e escravos, campanha contra d' Auvergne, visconde de, 2 7, 1 32 ,
o, 2 5 1 470
Tratado de 1 7 5 6 , 507, 5 1 0 Turgot, Anne -Robert Jacques, barão
Tresca, Salvatore, 6 5 7 de l 'Aulne, 3 5 , 4 1 , 5 5, 72, 73, 82,
Trianon, actores d a corte no, 1 1 6, 1 8 3 89, 1 0 1 , 1 5 9, 1 67, 1 9 5 , 1 96, 200,
Tribunal dos Pares, 224 2 0 3 , 206, 20� 2 1 1 , 2 1 4, 245, 2 7 3 ,
S imon S chama 1 CIDADÃOS

2 9 1 ; e a coroação de Luís XVI, 3 9 - Vergennes, C harles Gravier, conde de,


40, 4 1 ; e a Revolução Americana, 20, 2 5, 32, 38, 44, 49, 1 94, 1 9 7,
3 6 - 7; e as reformas financeiras, 6 5 , 200, 2 5 1 , 507, 722; e Patriotas
6 6 - 7 1 ; Malesherbes e , 82, 8 3 , 84, holandeses, 2 1 0; Necker e, 7 5 , 78,
87, 88; Parlamentos e, 9 6 79
Turquia, 5 0 4 Vergniaud, Pierre, xviii, 4 5 5 , 499, 509,
Turreau, Louis Marie, 5 9 5 , 6 7 0 5 1 1 , 5 1 3, 520, 5 5 1 , 5 5 3 , 6 1 1 - 1 2,
6 1 3; e Comité de S alvação Pública,
Unigenitus (bula papal ) , 9 4 604; e insurreição contra
Utreque : agitação política e m , 2 08, Convenção, 6 1 8, 620; e j u lgamento
2 1 0, 2 l l ; j ornais de, 1 49 de Luís XVI, 5 6 3 - 64, 5 6 5 , 5 6 6;
j ulgamento de, 679
Vadier, Marc Guillaume, 690, 6 9 2 , Veri, abade Joseph-Alphonse de, 8 9
70 1 , 70� 7 1 0, 7 1 1 , 7 1 2 Vermond, abade Jacques d e , 3 6 0
Val-de- Grâce, regimento, 5 2 0 Vernet, Horace, 9
Valence, tribunal regional em, 2 3 8 Vernet, Madame, 3 7 8 - 7 3
Valenciennes, 6 0 3 ; confrontos por Versalhes, 2 7 , 3 5 , 4 5 , 46-47, 1 8 1 , 3 1 9 -
causa dos cereais em, 2 79 ; queda 2 1 , 3 2 3 , 4 05 , 676; abolição da corte
de, 640; retoma de, 709 em, 3 6 3 ; Assembleia de Notáveis
Valfons, Charles de, 540 em, 2 00, 2 0 1 , 2 1 9; balão de
Valley Forg e , Lafayette em, 1 9, 2 3 Montgolfier em, 1 08 - 1 O; cargos
Valmy, B atalha de, 7 , 544-47, 5 5 3 venais em, 76; casamentos
Valais, reis, 1 74, 1 7 5 , 1 78, 362, 7 0 3 dinásticas em, 1 3 1 ; C lube B retão de,
Van Rensselaer, Stephen, 7 2 8 382, 4 1 2, 4 5 3 ; colecção de mapas
Vanves: cahier de, 2 7 5 ; indústria em, 7 0 3 ; corpo do soberano como
química de, 1 5 8 fetiche em, 1 79; corte de Luís XV
Vanzut, 1 9 7 em, 20; deboche em, 1 79;
Var, Departamento de, 409, 498-99, embaixador francês em Haia em,
500 2 1 1 ; emigração de, 36 1 ;
Varennes, fuga d a família real para, espectáculos em, 1 1 6; E stados
477, 479, 480, 4 8 5 , 489, 496, 5 0 1 , Gerais em, 2 38, 2 6 3 , 2 8 9 - 9 3 , 2 9 7 -
5 0 3 , 5 1 4, 5 1 8, 560, 676 -99, 3 0 1 , 3 0 3 -4, 4 9 0 ; Franklin em,
Variétés Amusantes, 1 1 7, 3 2 1 34; Galeria das B atalhas em, 9;
Variétés, 1 1 6 "guerra da farinha" em, 70;
Varlet, Jean, 5 1 9, 608, 609, 6 1 0, 6 1 5 , hierarquia em, 479; jardim
6 1 6, 6 1 7, 6 1 8, 6 2 7 zoológico em, 7 1 4; Jeanne de La
Vashington ( Billardon de Sauvigny) , 2 5 Motte em, 1 7 5 ; la petite Venise em,
Vattel, 6 6 7 43; livreiros em, 1 47; Malesherbes
Vaudreuil, Joseph Hyacinthe François, em, 82, 84; marcha da Guarda
conde de, 1 8 3, 3 0 5 Nacional em, 400, 402, 403;
Vaudreuil, Louis Philippe d e Rigaud, militares em, 3 2 5 -26; mulheres
marquês de, 1 2 3 manifestantes em, 3 9 6 -400;
Vaux, marechal de, 2 36, 242 redesenhado por Luís XV, 40;
Vendeia: insurreição na, 5 8 9 - 6 0 3 , 624, Regimento da Flandres em, 3 9 5 ;
64 1 , 642, 676; retoma da, 649, 6 5 1 , ritual d e , 3 1 4; Sala dos Espelhos
6 5 2 , 66 1 , 689; Terror na, 666, 6 6 8 - em, 1 87; séance royale em, 3 1 0, 3 1 2;
- 7 1 , 724, 7 3 4 S ultão de Misore at, 2 5 0, 2 5 1 ;
Ventoso, decretos do, 6 9 1 , 7 1 0, 7 1 1 , Talleyrand em, 1 90; vendedoras de
719 Paris em, 3 92 - 94
Verdadeira Mãe, A, 1 2 7 Verteuil de Malleret, M.A., barão de,
Verdun, 5 3 5 , 5 3 7, 5 44 603
81 3

Vestefália, Tratado de, 5 8 5 Vosges: armas, fabrico de, 6 5 2 ; cahiers


Vestier, Antoine, 3 5 1 de, 2 5 8; clero em, 42 3; emigração,
Vestier, Madame, 3 7 8 - 9 50 1 ; manufactura de derivados do
Vestris, Madame, 42 7 algodão, 1 62 ; migração de, 3 7 1 ;
Veto, poder de, 3 8 3 , 494 motins anticonscrição em, 6 5 0;
Victoire (navio ) , 2 1 , 2 2 Terceiro E stado em, 2 5 7
Vidéaud de La Tour, 3 1 2
Vien, Marie, 3 7 8 - 9 Walckiers, 684
Vieux Cordelier, 686, 6 8 8 Walpole, Horace, 577
Vigée-Lebrun, Elisabeth, 1 3 1 , 1 8 3 , Warens, Louise Eléonore de La Tour
1 84 - 5 , 1 98, 4 7 6 , 5 8 0 du Pi!, baronesa de, 1 2 8, 1 34
Vill a rnois, Arthur de, 2 6 6 Washington, George, 1 1 , 1 9 -20, 2 3 -6,
Villeron, cahier d e , 2 7 3 33, 3 5, 2 2 7, 30 1 , 3 8 1 , 3 9 1 , 5 8 3 , 736
Villette, Charles, Marquês d e , 1 8 Waterloo, xxv, 4, 7, 1 1
Vincennes, Castelo de, 2 9 3 , 34 1 , 343, Watt, James, 1 96
3 5 3, 47 3 Watteau, Jean Antoine, 1 97
Vincent, François Nicolas, 68 1 , 687, Wattignies, B atalha de, 6 8 3
689, 690 Weimar, Karl -August, duque de,
Vingtieme, imposto, 5 6 , 79, 86, 225 544
violência, xxii, 725; capacidade de, Wellington, Arthur Wellesley, duque
5 1 8; e Grande Medo, 3 70; Jacobinos de, 1 3
e, 62 1 ; j ornais e, 3 84; legitimidade Wendel, dinastia de, 1 0 5, 7 1 7
e, 3 8 3 ; mulheres, 6 3 1 -2 ; popular, Wertmüller, Adolf Ulrik, 1 87
5 2 9 - 3 1 ; punitiva, 5 3 1 , 604; Westermann, François -Joseph, 5 2 5 ,
Robespierre, 506; sectionnaire, 6 1 1 ; 527, 642, 6 43, 668, 670, 69 3
Vendeia, sublevação da, 5 8 9 - 90, Whigs, 2 5 1 , 299, 5 7 9 , 7 3 4
5 9 1 , 594 White, Hayden, xxviii
Violette, Jean-Denis, 540 Whyte, Major, 3 50
Vitet, D r. Louis, 445 Wilberforce, William, 2 5 1
Viva Maria, motins, 5 8 8 Wilhelmina, princesa de Orange,
Vivarais, movimento federativo em, 210
433 Wilkes, John, 5 1 7, 6 2 8
Voidel, 464 Wille, Jean-Georges, 1 3 0, 640
Voisins, Gilbert de, 90 Williams, David, 407
Volange, 1 1 6 Williams, Helen Maria, 440
Volney, C onstantin François de Wimpffen, Louis Félix de, 624-6
Chasseboeuf de, 2 5 5 Witt, Johann de, 2 1 0
Voltaire, 5 7 , 1 32 , 1 34, 1 3 6, 1 48, 244, Witterbach, 698
3 5 7, 42 6, 47 1 , 7 3 9; Beaumarchais e, Wordsworth, William, vii, 440, 488
1 2 1 - 22; d' Argenson e, 99; Lally e,
26; morte de, 483; museu de cera, York e Albany, Frederick Augustus,
327; na religião, 4 1 7; nos duque de, 64 1 , 679, 6 84, 7 1 2
Parlamentos, 9 3 , 94; Panckoucke e, Yorktown, B atalha de, 24, 48, 5 1 4
1 49; restos mortais para Paris, 483; Young, Arthur, 1 06, 2 5 5, 306, 308,
Talleyrand e, l 7 - 1 9 3 1 1 , 32 0 - 1 , 325, 3 7 5 -6, 578
Voluntários da B astilha, 3 9 7 Ysabeau, Claude-Alexandre, 72 7
Vontade Geral, 1 3 5 , 3 8 3, 4 5 7, 5 4 1 ,
5 44; das sections, 5 24, 5 2 6 ; e o Zaire ( Voltaire ) , 3 5 7
j ulgamento de Luís XVI, 5 64; enragés Zénite da Liberdade Francesa, O ( Gillray) ,
e a, 6 1 3 580

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