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Sandra C. A. Pelegriní
Pedro Paulo A. Funarí
O QUE É PATRIMÔNIO
CULTURAL IMATERIAL
I '
São Poulo
editora brasiliense
Copyright © Sandra C. t\. Pelegrini ••
c Pedro Paulo A hmari, 2008
Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada,
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armazenada em sistemas elelri"micos. fowcopiada.
reproduzida por meios mecànicos ou outros quai�quer
sem autorizaçiio prévia da editora.
INTRODUÇÃO
pesquisas sistemáticas sobre o tema, que, em última instância, Se a apreensão dos bens culturais imateriais como
visam contribuir para o levantamento, a catalogação e o regis expressões máximas da "alma dos povos" conjuga memórias
tro de vivências coletivas que envolvem as diversas faces da e sentidos de pertencimento de indivíduos e grupos, eviden
vida social desde os tempos mais remotos até a atualidade. temente fortalecem os seus vínculos identitários. Entremen
A relevância dessa entusiasmada disposição se justifica tes, as contínuas intimidações às tradições culturais e a vio
pela dimensão que os bens imateriais ou intangíveis assumem lência imposta ao meio ambiente, tão prosaicas na contempo
na compreensão da natureza e das visões de mundo das raneidade, têm sinalizado a necessidade dos cidadãos de
sociedades humanas no presente, no passado e no futuro. Ao exercerem seus direitos e se mobilizarem em favor da prote
usufruirmos formas singulares de celebração e conhecimento ção das tradições populares e dos múltiplos e plurais bens cul
nós retomamos parte de nossas identidades comuns. A trans turais de toda a humanidade. Vestígios arqueológicos, obras
de arte, monumentos e expressões da oralidade popular têm
missão de saberes às novas gerações e a perspectiva de valo
sido alvo de vândalos e do descaso dos conglomerados capi
rizá-los tendem a contribuir para a elevação de nossa auto
talistas que tendem a homogeneizar as paisagens culturais e a
estima e para a retomada de tradições milenares.
massificar os costumes no mundo todo. Na tentativa de
No caso brasileiro, a fruição dos bens imateriais revela o '
difundir a riqueza do patrimônio imaterial, esse volume apre-
prazer da retomada dos bailados e das cantigas, da alegria de ..
senta inicialmente uma detida discussão sobre o conceito de
ritmos como o samba de roda, o frevo, o maracatu, o tam
cultura e de patrimônio, retoma as recomendações da
bor, entre tantas outras formas de expressão e musicalidade. Unesco e entidades afins devotados à salvaguarda da cultura
O ato de recitarmos versos, participarmos das festas do popular e da oralidade. Em seguida, privilegia a discussão das
Divino, das folias de Reis e dos festejos carnavalescos consti matrizes que informaram as práticas preservacionistas e as
tuem práticas incorporadas à nossa cultura. convenções que se ocuparam exclusivamente da proteção
Nossas celebrações, bem como os lugares que elegemos dos bens intangíveis e suas repercussões no âmbito da imple
como sagrados, inserem-se num campo mais amplo de práti mentação de políticas culturais no Brasil.
cas coletivas que envolvem o sacro e o profano, o secular e o Trata-se de um projeto ambicioso que, sem dúvida, pro
imediato. Essa amálgama de manifestações culturais cujas põe indagações que deverão ser retomadas em outras opor
origens remontam aos períodos anteriores e posteriores à ..
e esclarecedora.
SOBRE A CULTURA E O PATRIMÔNIO
CULTURA: UM CONCEITO-CHAVE
Em latim, essa terminação - ura - era usada para a do). Um contemporâneo de Cícero, Salústio, lem
criação de substantivos a partir de um verbo de brava que os antigos ao verem estátuas de cera de
ação. Temos ainda este processo de formação de seus antepassados eram levados a segui-las como
palavras ainda muito ativo em nossa própria língua. exemplos. Como em tantas outras esferas, após
Do verbo "desenvolver", surge o substantivo estabelecido um conceito, ele se metamorfoseia e se
·�desenvoltura" , que designa não uma única ação, transforma. Às vezes, nem percebemos suas on
mas uma série delas. Isso significa que, na origem gens, como no caso da cultura.
da cultura, não havia apenas uma única ação con
creta, mas várias. Embora sejam ações práticas,
elas se revestem, desde o início, de um caráter sub A CULTURA MODERNA
jetivo: colere significava cultivar, mas também cul A partir de meados do século XIX, o termo
tuar (os deuses). Não por acaso, a raiz da palavra é cultura volta a aparecer no vocabulário. Antes dis
a mesma do nosso "colo" : algo circular (como o so, já se desenvolvia a noção de civilização, o ápice
pescoço, colo), que tudo pode englobar (por ser cir da vida refinada. Eram civilizados os europeus, por
cular), e que nos toca os sentimentos, por meio de oposição aos bárbaros, os incivilizados em relação
ações ftsicas concretas. ao resto do mundo. A civilização dependia da eru
Foi o pensador romano Cícero (século I a.C.) dição, do trabalho de polimento, derivado da leitu
que cunhou o mais antigo conceito da nossa cultura, ra, apanágio de poucos mesmo no mundo civiliza
ao mencionar a cultura animi, literalmente, a cultu do. Por isso, os próprios pobres eram iletrados e,
ra, o cultivo ou culto do próprio espírito OLI da alma. daí, incivilizados. É nesse contexto que a antiga
Formulado desta maneira, este termo implicava palavra cultura foi reabilitada e adquiriu foros de
uma ação interior e/ou exterior. Por um lado, a preo filosofia, ao ser adotada na língua alemã como
cupação do indivíduo consigo mesmo é que o levava Kultur. Ao contrário de outras línguas derivadas do
a cultivar-se a si mesmo, como se fosse um campo a latim, como o francês e o português, em alemão
ser trabalhado. Para que isso fosse possível, era Kultur não significa nada em si: não lembra o culti
necessária uma ação exterior: a leitura dos livros, vo da terra, nem o culto religioso. Tornou-se, por
mas também o aprendizado oral, e pela imitação dos isso mesmo, uma palavra eruditíssima voltada para
grandes gestos e ações (no sentido literal e figura- descrever, não se sabia bem o quê. Como afirmava
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14 Sandra C. A. Pelegrini &-Pedro Paulo A. Funari O que é Patrimônio Cultural Imaterial 15
Herder, ao final do século XVIII, "nada é mais inde criar os italianos (Massimo D 'Azeglio: fatta /'/ta/ia,
terminado do que a palavra cultura". Herder dife facciamo gli italiani).
renciou a civilização das elites da cultura, que seria Para isso, era necessário difundir, por meio da
espontânea, dotada de simplicidade natural, aven escola, valores como a língua nacional e as supostas
tando a possibilidade de interpretação para o que origens comuns. Aí, reaparece a cultura. Por um
viria a ser reconhecido como folclore. Estava aber lado, o termo era reservado ao sentido nobre, para se
to o caminho para a miríade de sentidos que se referir ao mundo das letras. Por outro, havia que se
desenvolveram nos últimos dois séculos. Em um forjar o que seriam os costumes ancestrais de um
caso muito sintomático, o italiano adotou duas gra povo, dos analfabetos camponeses. Os ingleses, para
fias para se referir ao cultivo (coltura) e ao estudo não empobrecer a palavra culture, recorreram ao ter
(cultura): era o esforço para diferenciar o aspecto mo !ore para criar o folklore: literalmente, os costu
fisico, material e tradicional, do novo conceito, eno mes das pessoas (este é o sentido de folk, em inglês,
brecido por sua adoção em alemão. uma palavra bem pedestre e um pouco depreciativa).
O século XIX foi o grande propulsor do nacio Já os alemães preferiram manter a palavra cultura e
nalismo e não se pode separar a cultura da constru diferenciar a '�lta" da "Baixa" cultura: aquela erudi
ção dos estados nacionais. A partir da Revolução ta e resultado do estudo, esta analfabeta e quotidia
Francesa, no final do século XVIII, os antigos orde na. Essa dicotomia entre alta e baixa cultura, inicia
namentos de origem feudal entram em crise. Os da nesse momento, está na raiz das disputas ainda
estados, baseados na fidelidade ao rei de direito divi em pleno século XXI, como veremos mais adiante.
no, são superados por um novo tipo de. formação Está na raiz daquilo que os alemães chamaram de
estatal: a nação. Sem rei para unificar os súditos, Ku lturkampf (guerra cultural ou, mais especificamen
partia-se do compartilhamento de um território, lín te, a luta pela definição do que seja cultura).
gua e origem étnica. Nada disso havia. Era necessá
rio criar tais unidades territoriais, lingüísticas e étni
EM CENA: A ANTROPOLOGIA
cas. Houve casos extremos. A Itália fora criada
como nação sem que seus habitantes soubessem a Cultura, do ponto de vista da organização das
língua italiana (conhecida por 5% da população). ciências, é um conceito antropológico, antes de ser
Como se disse à época: criaêla a Itália, é necessário histórico, filosófico ou lingüístico. E a única discipli-
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16 Sandro C. A. Pelegrini &- Pedro Paulo A. Funari O que é Patrimônio Cultural Imaterial 17
na acadêmica que assim se define: "A Antropologia to das nossas sociedades, a Antropologia surgiu para
quer ser a ciência das culturas de toda a Humani estudar o outro: a cultura dos outros. O contato ínti
dade", como definia Jean-Marie Auzias na década mo com a diferença explica o interesse em entender
de 1970. Hoje, Marc Auge e Jean-Paul Collegyn como as pessoas agem em diversos lugares e perío
confirmam e acrescentam algo: "Quando se fala em dos. O que diferencia o homem de animais aparenta
Antropologia, entende-se a disciplina que trata da dos, como os símios? Roque de Barros Laraia descre
diversidade contemporânea das culturas humanas". ve bem essa questão:
A incorporação da cultura por outras disciplinas,
cof)1o a História, passou pela Antropologia (a
Acompanhando o desenvolvimento de uma crian
História Antropológica, tal como propugnada pelo
ça humana e de uma criança chimpanzé até o pri
historiador Peter Burke). Antropológica porque bus
meiro ano de vida, não se nota muita diferença:
ca incorporar "o conjunto das representações cole
ambas são capazes de aprender, mais ou menos,
tivas de uma sociedade" (Pascal Ory). A própria
Convenção da Unesco subentende uma preocupa as mesmas coisas. Mas quando a criança começa
ção antropológica pela cultura. Examinemos, pois, a a aprender a falar, coisa que o chimpanzé não
contribuição da Antropologia para a conceituação consegue, a distância torna-se imensa. Através da
de cultura. comunicação oral a criança vai recebendo infor
mações sobre todo o conhecimento acumulado
Paralelamente ao nacionalismo que visava à for
mação de futuros cidadãos, expandia-se a ação pela cultura em que vive. Não falta ao chimpanzé
imperialista dessas mesmas sociedades industriais. A a mesma capacidade de observação e de inven
conguista do mundo, por meio das armas na África e ção, faltando-lhe, porém, a possibilidade de co
na Asia, ou por intermédio do domínio econõmico, municação. Assim sendo, cada observação reali
no caso da América Latina, ocasionaria o desenvol zada por um indivíduo chimpanzé não beneficia a
vimento de uma nova disciplina que pudesse enten sua espécie, pois nasce e acaba com ele. No caso
der (e dominar) esses outros povos. Enquanto a humano, ocorre exatamente o contrário: toda
História estudava o passado de nós mesmos (os con experiência de um indivíduo é transmitida aos
quistadores europeus e americanos) e a nascente demais, criando assim um interminável processo
Sociologia voltava-se para o estudo do funcionamen- de acumulação (2006, p. 51-52) .
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18 Sandra C. A. Pelegrin i & Pedro Paulo A. Funari O que é Patrimônio Cultural Imaterial 19
Quais processos históricos levaram a essa Veremos, mais adiante, a importância disso para
conclusão, aparentemente inesperada? Podemos a vitalidade do patrimônio cultural imaterial.
remontar aos movimentos sociais resultantes do
período pós-guerra, a partir do fim da década de
DIVERSIDADE E IDENTIDADES
1940. Explodiram movimentos, tanto no interior
das sociedades ocidentais como no exterior. As A valorização da diversidade humana não pode
mulheres emergiram como sujeitos, assim como ser desvencilhada da eclosão das reivindicações do
grupos étnicos antes discriminados. As reivindi reconhecimento do valor de identidades sociais e,
cações de direitos de expressão de sexualidades portanto, da contestação dos conceitos de cultura
seguiram, nas décadas sucessivas, assim como monolítica e homogênea. Partindo do pressuposto
os contrastes religiosos e políticos. No âmbito de que as pessoas de um mesmo grupo comparti
externo, os colonizados se revoltaram contra os lham valores, de que se sentem partícipes, formulou
colonizadores. A diversidade surgiu como uma se o conceito normativo de "pertencimento" (belon
categoria para explicar essas divergências, de ging). Essas abordagens foram chamadas de norma
caráter a um só tempo cultural e político. Nesse tivas por pressuporem que as pessoas aceitam nor
contexto, as forças que supostamente levariam à mas de conduta do grupo humano do qual fazem
homogeneização cultural da humanidade servi parte. O desrespeito às normas é considerado, em
ram, a seu modo, para demarcar as diferenças. geral, desvio de comportamento, punido pelo coleti
O caso da televisão é claro: por um lado, seria vo. Essa coletividade pode ser ampla ou restrita, mas
dos americanos que passam em todo o mundo e o princípio normativo é sempre o mesmo. Vejamos
difundem certos valores "universais" ; por outro, dois exemplos extremos.
um potente difusor das particularidades. Em Os alemães são ordeiros e gostam de batatas,
meio a tantos programas importados, nunca assim como os argentinos são orgulhosos de sua
houve tantos programas locais. Isso não signifi nação e adoram carne. Os alemães que são desorga
ca que a diversidade não seja afetada pela homo nizados e não comem batatas representam desvios,
geneização, mas a variedade cultural humana como os argentinos que não valorizam seu país e são
mostrou-se muito mais poderosa e importante vegetarianos. Voltemo-nos, agora, para coletivos
do que muitos estudiosos haviam pensado. reduzidos. Os palmeirenses são descendentes de ita-
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lianos e sabem o hino do clube de cor. Os ecologistas pos humanos não são unidades biológicas. As dife
não fumam e só falam em ecologia. Em todos estes renças genéticas são tão grandes de uma tribo a
casos, os modelos normativos consideram as miría outra quanto de uma aldeia a outra de uma mesma
des de exemplos que contradizem os enunciados tribo. A luta contra o racismo e todo tipo de discrimi
como falha de pertencimento e, portanto, como des nação foi combatida a partir da valorização da diver
vios que apenas confirmam a regra.
sidade biológica. Não à toa, Claude Lévi-Strauss,
Nas últimas décadas, tais modelos normativos encarregado pela Unesco de escrever um documen
foram muito criticados, tanto do ponto de vista to para essa entidade internacional sobre "raça",
empírico como teórico. Em termos práticos, as pes
propugnou pela preservação dessa variabilidade:
soas não deixam de ser palmeirenses por não serem
descendentes de italianos, nem se não souberem o
hino do time, nem se pode afirmar que tais caracte Não se pode dissimular que, a despeito de sua
rísticas sejam sequer majoritárias. Por outro lado, as urgente necessidade prática e dos objetivos
normas que definem o pertencimento não foram morais elevados que ela se impõe, a luta contra
estabelecidas por pesquisadores após um estudo de todas as formas de discriminação participa desse
todos os membros de uma coletividade. Além disso, mesmo movimento que leva a humanidade em
todo grupo humano está em constante mudança. O direção a uma civilização mundial, destruidora
questionamento mais profundo, porém, veio dos dos velhos particularismos aos quais recai a hon
pressupostos teóricos desses modelos normativos. ra de haver criado os valores estéticos e espiri
As pessoas possuem múltiplas auto-representações, tuais que dão seu valor à vida e que nós recolhe
elas se comportam de diferentes maneiras em diver mos, preciosamente, nas bibliotecas e museus,
sos contextos, em constante mutação. As noções de pois nos sentimos cada vez menos capazes de
norma e desvio variam em um mesmo grupo huma produzi-lo (1983, p. 47).
no e até para o mesmo indivíduo. Os pertencimentos
são múltiplos também.
A diversidade cultural não pode ser desvencilha Voltaremos a essas questões quando tratar
da também da noção de diversidade da vida. A gené mos da preservação do patrimônio cultural ima
tica das populações humanas descobriu que os gru- terial em detalhe.
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CULTURA MATERIAL E IMATERIAL Dessa forma, fica claro que mesmo a "nature
za" é o resultado do trabalho humano e apresenta
A disjunção entre a matéria e o espírito tem raí
se como cultura material. O que seria, então, o ima
zes profundas, como já vimos, pois Cícero já separa
terial? A expressão inglesa ajuda-nos a compre
va a cultura do solo da cultura da alma. Seria apenas
ender o que se quer dizer com isso: intangível (intan
!llodernamente, contudo, que surgiria essa contrapo gibfe). Usaram-se, anteriormente, expressões que
sição entre materialidade e imaterialidade, assim podiam gerar discussões até mesmo de caráter reli
como suas definições. A noção de matéria na base gioso, como no caso de cultura espiritual, originária
dessa contraposição está na palavra latina materies ou da expressão alemã Geistkultur. Essa mesma ambi
matéria: trata-se da substantivação da mãe (mater). güidade estava na definição de Cícero: cultura ani
Passou a designar algo bem concreto: a madeira (que mi, cultura da alma. Alma e espírito levam-nos para
a tudo alimenta, como a mãe) e, daí, todo tipo de coi um âmbito controverso das definições até mesmo
sa. A junção desse termo com cultura - que se refere teológicas. De maneira mais prosaica, a imaterialida
ao humano - resultou no conceito de cultura material de foi resumida à impossibilidade de tocar (mas não
como a totalidade do mundo flsico apropriado pelas de ser percebida, claro). Assim, podemos tocar nos
sociedades humanas. Estão incluídos não apenas o instrumentos musicais, nas pessoas e nas roupas,
que o ser humano produz, na forma de artefatos, mas uma dança popular não pode, enquanto conjun
como tudo o que ele transforma no decorrer do tem to da representação, ser "tocada". Aí está a imate
po. Como já observara Karl Marx: rialidade: o todo compreende a cultura material,
mas é maior do que a soma dessas materialidades.
tos do trabalho - talvez do trabalho do ano ante Patrimônio, em nosso quotidiano, surge como
rior- mas, igualmente, na sua forma atual, pro os bens de valor, aquilo que temos e que declara
dutos de uma transformação contínua, sob o mos no imposto de renda. Desse sentido material,
controle humano e por meio do seu trabalho, por chegamos ao figurado: aquilo que é de valor para
muitas gerações (apud Funari, 2003, p. 14). nós, mesmo que não tenha um preço: "O maior
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28 Sandra C. A. Pelegrini &-Pedro Paulo A. Funari O que é Patrimônio Cultural lmoteriol 29
patrimônio é a honestidade", como diz o ditado. reunir os objetos antigos que mostrariam as preten
Em outras línguas essa diferença está no próprio sões de supremacia nacional do Estado de São
vocabulário, que diferencia os bens de valor mone Paulo. Daí o lema: non ducor, duco (não sou condu
tário (property, assets, em inglês) do patrimônio afe zido, conduzo).
tivo e simbólico (heritage). Essa ambigüidade não A Unesco e os estados nacionais expressaram
deixa de reiterar-se pela existência de bens simbóli a predileção pelo caráter excepcional de obras-pri
cos e vendáveis ao mesmo tempo: um relógio de mas, da humanidade ou da nação, como dignos de
ouro do vovô tem um valor de mercado e um valor
preservação e posteridade. Com as críticas ao
afetivo. O relógio pode ser, simultaneamente, um
nacionalismo e às visões normativas da sociedade,
patrimônio monetário e cultural.
surgiram os apelos pelo patrimônio da humanidade,
O conceito de patrimônio cultural, na verdade, considerado não uma abstração monolítica e homo
está imbricado com as identidades sociais e resulta, gênea - que não existe -, mas na concretude da
primeiro das políticas do estado nacional e, em diversidade. Esse movimento de valorização das
seguida, do seu questionamento no quadro da defe culturas, iniciado com os aspectos materiais, em
sa da diversidade. Patrimônio cultural associou-se, geral produzido pelas elites, passou aos poucos a se
nos séculos XVIII e XIX com a nação, com a escolha expandir para as manifestações intangíveis e dos
daquilo que representaria a nacionalidade, na forma grupos sociais em geral, não apenas, pelos domi
de monumentos, edifícios ou outras formas de nantes. Tolina Loulanski ressaltou, em artigo da
expressão. Podiam ser objetos antigos, como cons
segunda metade da década de 2000, que houve
truções modernas ou, mais provavelmente, uma
uma passagem dos monumentos para as pessoas:
mescla nova de ambos. Assim, surgiram os Museus
de Antiguidades, com peças antigas, mas reunidas
em honra de uma nação. Esse é o modelo de museu Com a democratização da cultura e sua definição
com ambições imperiais e universalistas como o sócio-antropológica expandida (segundo a qual
Britânico, em Londres, ou o Louvre, em Paris. quase qualquer atividade humana pode ser igual
Outros podiam ter ambições mais nacionalistas ou mente cultura, e onde todo produto humano pode
regionalistas do que imperiais, como é o caso do ser, da mesma maneira digno de preservação), a
,
Museu Paulista (Museu do lpiranga), voltado para distância entre o patrimônio cultural como monu-
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30 Sandra C. A. Pelegrini &- Pedro Paulo A. Funari
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mentos e as pessoas como suas criadoras, guardiãs
e usuárias foi muito reduzida (2006, p. 213).
do alguns estudiosos preocupados com o crescimen Mundial (1939-1945). Em 1972, a Unesco conse
to urbano se deram conta da urgência de refletirem guiu mobilizar cerca de 148 países em torno de um
com profundidade sobre as reformas que se intensi abrangente pacto em prol dos bens culturais e
ficavam em várias partes do mundo e, como tal, tra naturais da humanidade - " Convenção d o
ziam à tona tanto a questão da necessidade de se Patrimônio Mundial".
-preservar ou não determinados monumentos como A cada dois anos, a Unesco realiza uma
a de retirá-los de seu local de origem de modo a não Conferência Geral com o objetivo de debater e deli
obstruir vias de acesso de grandes metrópoles e esti berar sobre temas internacionais candentes. Para
mular o desenvolvimento de áreas da cidade que tanto, mobiliza especialistas nas áreas de conheci
precisavam sofrer intervenções. mento que são de sua competência, desenvolve pes
Arqueólogos, historiadores e arquitetos, entre quisas e procura estabelecer contato com autorida
outros profissionais, passaram então a realizar sim des políticas de todo o planeta. O principal intuito
pósios para chamar a atenção de todo o mundo para está centralizado na tentativa de se antecipar dian
a importância do legado histórico que os monumen te dos problemas capitais em relação às sociedades
tos arquitetônicos e as obras de arte representavam humanas. Até o início do século XXI, o órgão con
para a humanidade. A partir de novembro de 1945, seguiu a adesão de 190 países - um número expres
a Organização das Nações Unidas para a Educação, sivo de signatários.
a Ciência e a Cultura (Unesco) engajou-se nesse Sem dúvida, devemos reconhecer que a atua
campo e passou a promover reflexões sobre estraté ção da Unesco e os documentos resultantes das
gias pacíficas de desenvolvimento, em particular, conferências realizadas por ela vêm se convertendo
nas áreas das Ciências Naturais, Humanas e em instrumentos normativos que têm influenciado a
Sociais, da Cultura, da Comunicação, da Educação legislação, as políticas públicas de cultura e as medi
e da Informação. das concretas adotadas por vários países. Nesses
Mas nem todos os países do mundo aderiram termos, podemos afirmar que a "Carta de Haia",
às proposições da Unesco. Desde a sua criação até assinada em maio de 1954, representa um marco na
a atualidade, a organização reuniu vários estados trajetória desse órgão, uma vez que propôs medidas
visando a intermediar conflitos e evitar confrontos para proteção de bens culturais em caso de conflito
bélicos tão impactantes quanto a Segunda Guerra armado, num período muito conturbado das rela-
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34 Sandra C. A. Pe/egrini & Pedro Poulo A. Funari O que é Patrimônio Cultural Imaterial 35
ções internacionais e conhecido como "Guerra ram várias áreas do conhecimento a também repen
Fria". A contraposição entre o mundo capitalista sarem seus paradigmas.
ocidental, a União Soviética e os países da Europa A contestação de toda e qualquer forma de
Oriental viria a afetar as discussões sobre o patrimô autoridade, as utopias por uma sociedade mais
nio, no cenário internacional. Contudo, a proteção humana, a revisão de arquétipos de comportamen
.aos bens culturais ainda manteve-se circunscrita ao to e a emergência de novas sensibilidades levou à
patrimônio natural, aos "bens de cal e pedra" e às percepção dos bens culturais como testemunhos do
obras de arte no continente europeu (ou relaciona quotidiano e da concretização do insólito, do imate
das a ele). rial. Nessa direção, os fundamentos que norteavam
A intensa busca de aceitação por parte dos a seleção dos bens e o sentido da preservação pro
diversos agentes sociais suscitou, ao longo da segun pugnada pela Unesco ampliaram-se alcançando não
da metade do século XX, um amplo questionamen somente monumentos suntuosos representativos
to de padrões de conduta e conceitos cristalizados do ponto de vista dos poderes hegemônicos. mas
pela própria Unesco, ocasionando, como já explici também construções mais simples e integradas ao
tamos, uma ampliação da acepção de patrimônio, dia-a-dia das populações (como estações de trem ou
outrora restrito às interfaces da "memória históri mercados públicos) e, mais recentemente, os bens
ca", aos "caprichos" da natureza e à "providência culturais de natureza intangível (como expressões,
divina" supostamente inspiradora das obras-primas conhecimentos, práticas e técnicas populares).
da humanidade. No entanto, as recomendações contidas nas
Essa revisão epistemológica do termo, embasa cartas patrimoniais resultantes das conferências
da nos novos paradigmas das ciências humanas, em internacionais realizadas nas décadas de 1960 e
particular, da História e da Antropologia, viabilizou 1970, em especial na "Carta de Veneza" (1964), na
uma expansão dos bens culturais a serem reconhe "Declaração de Amsterdã" (1975) e na "Declaração
cidos. Contudo, o questionamento das formas de do México" (1982) que fixaram novos padrões para
poder emergente nos anos de 1960 abriu brechas a apreciação dos bens culturais. Primeiro, porque
para a manifestação de valores identitários, antes expandiram a concepção de monumento e de cul
subjugados, e trouxe à tona referenciais culturais tura. Segundo. porque redefiniram os critérios para
anteriormente incógnitos. Ta·is indagações compeli- a definição do rol de bens a serem protegidos.
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36 Sandra C. A Pelegrini & Pedro Paulo A Funari
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A concretização das proposições da Unesco e
demais organizações envolvidas com a defesa do
patrimônio cultural foi possível em função da ampli
tude adquirida pela "Convenção do Patrimônio
Mundial", celebrada em 1972. Esse pacto interna As IDENTIDADES E AS POLÍTI CAS
Gional impulsionou a mobilização de alguns países PRESERVACION ISTAS
signatários da convenção, em particular, da Bolívia,
que reivindicava maior atenção às manifestações
relativas à "cultura tradicional e popular". Tal exi
gência suscitou, na década de 1980, investimentos
O tratamento dispensado à questão da identi
em soluções jurídicas com vistas à proteção da cul
dade no documento síntese da "Conferência
tura e de suas práticas, por meio de documentos
Mundial sobre as Políticas Culturais" (1982), organi
reconhecidos internacionalmente. Entre eles, tal
zado pelo Conselho Internacional de Monumentos e
vez, o mais importante tenha resultado da "Confe .
Sítios (lcomos), foi singular, pois sugeriu outra possi
rência Mundial sobre as Políticas Culturais", realiza
bilidade de interpretação das políticas de salvaguar
da em Mondiacult (México), em 1982, dada a rele
da e destacou que "todas as culturas" integravam o
vância atribuída às relações entre a cultura e a iden
"patrimônio comum da humanidade" e se locupleta
tidade dos povos.
vam mutuamente. Ademais, definia a "identidade
cultural" nos seguintes termos:
proficua reAexão sobre o próprio conceito de cultu em listas de registros regionais ou mundiais, bem
ra, sua aproximação dos estudos antropológicos e como o desenvolvimento de estudos capazes de
dos direitos culturais, haja vista que suas proposi catalisar sistemas de registro, utilizados pelas referi
ções embasaram-se na seguinte conceituação: das instituições, como catálogos ou guias de compi
lação, visando garantir sistemas coordenados de
classificação e a criação de tipologias normativas
A cultura tradicional e popular é o conjunto de sobre a cultura tradicional. Além disso, sugeria a
criações que emanam de uma comunidade cultural confecção de projetos piloto nesse campo.
fundadas na tradição, expressadas por um grupo
As recomendações já adiantavam que a conser
ou por indivíduos e que reconhecidamente cor
vação da documentação relativa às tradições da cul
respondem às expectativas da comunidade como
tura tradicional e popular devia privilegiar a percep
expressão de sua identidade cultural e social; as
ção, se tais práticas continuavam ou não sendo utili
normas e os valores se transmitem oralmente,
zadas ou se haviam passado por transformações.
por repetição ou de outras maneiras. Suas formas
Em outros termos, esse cuidado implicava o registro
compreendem, entre outras, a língua, a literatu
de dados que poderiam estar disponíveis tanto a
ra, a música, a dança, os jogos, a mitologia, os
futuros pesquisadores quanto aos próprios portado
rituais, os costumes, o artesanato, a arquitetura e
res de tradições, para que ambos pudessem com
outras artes (Recomendação sobre a
preender o processo de modificação dos seus pró
Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular,
prios referenciais culturais, uma vez que a cultura
1989, p. I) - grifos nossos.
tradicional e popular mantinha-se viva e, do ponto
de vista dos conferencistas, possuía um "caráter
Em termos metodológicos, o documento suge evolutivo" que nem sempre permitia uma proteção
ria que a identificação da cultura tradicional e popu "direta" e "eficaz".
lar se processasse mediante as pesquisas realizadas De pronto, observamos que o equívoco de se
pelos Estados membros em diferentes níveis, ou pensar a cultura em termos "evolutivos" já implica
seja, nacional, regional e internacional. Nessa linha, va uma hierarquização das culturas que tomavam
indicava a execução de inventários nacionais de ins como referência a cultura ocidental. De certo modo,
tituições interessadas nessa temática e sua inclusão esse documento antecipava as celeumas que as
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42 Sandra C. A Pelegrini & Pedro Paulo A Funari O que é Patrimônio Cultural Imaterial 43
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)
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objetos, artefatos � lugares1 �utturais q��)h�� �ão, :· 9p ,P�tri�ônio ltural devem ser r �.? r:hectdo� .. No
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associa:dos - que ·ás • comunidâdes: · os 'grupos e·; .
:> · ' 1 : •1 • · : �"'- · entanto, -;ho' · pt�â�bulo da Conve ao de 2903, a
� I em alguns casos, os indivíduos reconhecem c�mo
. •
Ainda que e se documento não tenha explici bens intangíveis e sugeria que a transmissão desses .
tado claramente os critérios para o reconhecimen bens ocorresse "essencialmente por meio da educa
to do patrimôni imaterial , apontou indíc.i os no ção formal e não-formal " .
sentido de o aca telamento de bens dessa nature - Com vistas à obtenção de maior eficácia das
za tornar-se " c mpatível com os instrumentos ações em prol do patrimônio imaterial , essa conven
internacionais d direitos humanos existentes e ção aconselhou a formação de um " Com itê
com os imperati os de respe ito mútuo entre comu lntergovernamental para a Salvaguarda do Patri
nidades, grupos indivíduos, e do desenvolvimen mônio Cultural Imaterial " , constituído por Estados
to sustentável " . Propôs, no parágrafo segundo, do membros da Unesco, eleitos em Assembléia Geral
artigo segundo, que o patrimônio intangível se da organização:- Mohamed Bedjaui , da Argélia, foi o
manifestava, em particular, nos seguintes campos : primeiro presidente desse comitê que contou com a
colaboração de O. Faruk Logoglu , da Turquia, e
a) tradições e xpressões orais, incluindo o idioma
quatro vice-presidentes oriundos do Brasil , Etiópia,
como veículo o patrimônio cultural imaterial;
Índia e Romênia. Entre os demais países que inte
gram o comitê, constavam representantes da Bél
b) expressões rtísticas;
gica, Bulgária, China, Emirados Árabes Unidos,
c) práticas so iais, rituais e atos festivos; Estônia, Gabão, Hungria, Japão, México, Nigéria,
d) conhecime tos e práticas relacionados à natu Peru, Senegal , Vietnã, Madagáscar, Albânia, Zâm
reza e ao umv rso; bia, Armênia, Zimbábue , Camboja, Macedônia,
e) técnicas tesanais tradicionais (Convenção Marrocos, França e Costa do Marfim.
para a Salva uarda · do Patrimônio Imaterial , Por seu turno, a "Convenção do Patrimônio"
2003, p. 1 ) . -
( 1 972) prescreveu sem subterfúgios e de forma dire
ta os principais critérios norteadores da seleção dos
Por essa via recomendava a adoção de medi bens culturais e naturais na Lista do Patrimônio
das aplicadas à investigação, identificação, docu Mundial . Entre os quesitos necessários à inclusão
mentação, prote ão, valorização, revitalização dos nessa lista, destacou a excepcionalidade, a antigui-
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�
50 Sandra C. A . Pelegrini &- Pedro Paulo A . Funari O q u e é Pa trim ô n i o C u l t u ra l / a te ri a l 51
dade do bem e sua característica como " obra notá de preservação. Para manter o c ntrole sobre as
vel do gênio criativo humano " . A convenção tam condições dos sítios protegidos, o referido docu
bém determinou que esses bens deviam mento ainda reafirmava a necessid de da apresen
tação periódica de informes dos E s ados membros
f
da convenção sobre a situação dos sítios e centros 1
[ ] constituir ( . . . ) manifestação de um intercâm
. . .
hi stóricos, bem como a divulgação das medidas ado
bio considerável de valores humanos durante um tadas para preservá-los e a impleme tação de ações
determinado período ou em uma área cultural voltadas a despertar o interes se pú lico em relação
específica ou; contribuir com "um testemunho ao patrimônio cultural .
Por certo, ao definir que o bem ultural para ser
único ou pelo menos excepcional de uma tradi
digno da li sta do patrimônio mundial da humanidade
ção cultural ou de uma civilização existente ou já
devia "estar associado direta ou ind retamente com
extinta" ou; " ser exemplo destacado de um tipo
acontecimentos ou tradições vivas, com idéias ou
de construção, ou de conjunto arquitetônico,
crenças, ou com obras artísticas u literárias" , a
tecnológico ou paisagístico que ilustre uma ou
Convenção de 1 972 parecia avanç no sentido da
mais etapas significativas da história da humani
compreensão do próprio conceito e cultura . N o
dade" ou; constituir exemplo destacado de habi
entanto, ao enfatizar a neces sidade d o seu " excep
tat, estabelecimento humano tradicional ou de
cional valor universal " , impunha nã somente juízos
uso na região, que seja representativo de uma ou
mais culturas ( . ) ou ; estar associado direta ou
de valor sobre os bens culturai s , c nsiderando sua
. .
Se cotejarmos a lista dos bens materiais inicial expressõe s fundamen tais na identi tcação cultural
mente tomados como obras-primas da humanidade, dos povos se tornaram alvo de reverencia, discussão
talvez possamos levantar indícios sobre a proemi e proteção a partir de meados dos nos oitenta do r
nência dos referenciais culturais ocidentais na elei século XX, os apontamen tos decor entes dos sim [
ção do patrimônio mundial . De pronto, a observa pósios � d � � convenções firmados d E1 sde a década de
ção atenta dessa lista aponta a significativa impor 1 990 vtabtltzaram o levantamen to de uma listagem
tância atribuída aos bens materiais radicados na do primeiro " lote " de bens imateri � is proclamado s
Europa, no decorrer do século XX, uma vez que pela Unesco, em 2 0 0 1 . Contudo, e J se arrolamento
mais de S O<ro dos bens reconhecidos pela Unesco se visou apenas a estimular a candid tura dos bens �
encontram no continente europeu e 60% do total de imateriais espalhados pelo � undo. Efetivamente, l
bens listados se situam na E uropa e na América do apenas no ano de 2003 , medtante a romulgação da
Norte . Além disso, as noções de civilidade e cultura " Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio
que regem os bens tombados na América Central e Cultural lm_aterial " , a Unesco con eguiu imprimir
do Sul, e nos continentes Asiático e Africano tam algumas diretrizes internacionais pa a o inventário e
bém apresentam traços nítidos dos "valores cultu acautelamento dos bens intangíveis.
rais introduzidos pelos europeus " nessas regiões. Essa·s normativas se assentararp nos princípios
Aliás, esse assunto foi introduzido em nosso livro norteadores das Cartas lnternaciorhais, referenda
patrimônio histórico e cu ltural (2006 , p. 2 7) . das como pre scrições imperativ s do Dire ito
Curiosamente, essa estatística se inverte quan I nternacional , quais sejam a " Decla ação Universal
do observamos os registros dos bens imateriais dos Dire itos H umano s " ( 1 94 ) , o " Pacto
e ntre 2 0 0 1 e 2 00 5 . Seria um mero acaso o fato de I nternacional de Direitos Econôm 'cos, Sociais e
que o reconhecimento dos bens imateriais pareça Culturai s " ( 1 966) e o " Pacto I n e rnacional de
privilegiar as culturas distintas das ocidentais? Seria 9
Direitos Civis e Políticos ( 1 9 6 6) " , c nforme explici
coincidência a expansão do processo de patrimoni tado no preâm bulo da " Co fvenção para
zação dos bens dos povos latino-americanos, caribe Salvaguarda do Patrimônio Cult � ral I material " ,
nhos, africanos e asiáticos no limiar do século XX I ? celebrada na Cidade Luz (Paris - Fr nça) , em 1 7 de
outubro de 2003 .
S e , como afirmamos anteriormente, a oralida
de e os conhecimentos tradicionais tomados como
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As OBRAS MESTRAS D O
PAT R I M Ô N I O O R A L E I M AT E R I A L
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58 Sandra C. A . Pelegrini &- Pedro Paulo A Funari O q u e é Pa t r i m ô n io C u l t u ra / Im a t e r i a l 59
Situação semelhante pôde ser percebida três 1 3 . O espaço cultural da região de Boysun (U zbe-
anos antes, quando em 1 8 de maio de 200 1 , a quistão) ;
Unesco proclamou as primeiras 1 9 " Obras Mestras 14. A praça de F na Djamaa (Marro os) ;
do Patrimônio Oral e Imaterial da H umanidade " .
N essa lista, constavam os seguintes bens:
15. O Mistério de Elche ( E spanha) 7
16. Os cantos polifônicos georgian s (Geórgia) ; 1
1 . A língua, as danças e a música de Gafuna
(BeliZe) ;
17. A ópera de marionetes da Sicíl t ( I tália) ;
18. A fabricação artesanal de cru c i 1xos e seu sim
2 . O carnaval Oruro ( Bolívia) ; bolismo na Lituânia (Lituânia) ;
3 . O espaço cultural da Fraternidade do E spírito 1 9 . O espaço cultural e a cultura oral da Rússia
Santo de Congos de Villa Mella ( República (Rússia) .
Dominicana) ;
4 . O patrimônio oral e as manifestações culturais Chama-nos a atenção o fato de que entre
do povo Zapara (Equador e Peru) ; esses bens imateriais apenas 1 5 , 7 % correspon
5 . O patrimônio oral de Gelede (Benin) ; dam ao território europe u . Contud , não podemos
afirmar que os bens regi strados est 1 jam vinculados
6 . A música de trombetas transversais da co
apenas às "tradiçõe s populares" ou ' s práticas res
munidade Tagbana (Costa do Marfim) ;
tritas ao "povo" . O acautelamento e algumas téc
7 . O espaço cultural de Sosso Bala em N iagassola nicas orientais no feitio de obj etos como espadas)
(Guiné) ; não se restringe aos segmentos pop lares ou às co
8 . A ópera Kunqu (China) ; munidades menos favorecidas .
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60 Sandra C. . Pelegrini & Pedro Paulo A. Funari O q u e é Pa tri m ô n io C u l t u r a / Im a t e ri a l 61
intangível . Qual explicação para esse desintere sse 5 . Dança teatral Rabinal Achi (Guatemala) ;
J�
dos estaduniden · es em relação aos seus possíveis 6 . 200 1 : " La lengua, la danza y la música de los
bens imateriais? As teorias da Antropologia e da garifunas " (Guatemala) ;
Sociologia dão c nta de explicar a excessiva valori
7 . E l Güegüense (Nicarágua) ;
zação da cultur material e da massificação dos
gostos e valores . O predomínio dos continentes 8 . Arte têxtil Taquile (Peru) .
periféricos na lu a pela valori zação do patrimônio
r
imaterial pode se e ntendido, provavelmente , como Como podemos notar no mapeamento realiza
'J
revelador de u a disj unção, como vimos antes, do pela própria Unesco, a maioria dos bens intangí
entre alta e baix cultura . A cultura arquitetônica e veis reconhecidos na listagem efetuada no ano de
,
artística predo i nante no patrimônio cu ltural
í 2005 remonta ao continente africano e asiático :
material associa se às elite s ; a " civilização " está
sobre-represent da nos tombamentos da Unesco.
1
Como contrapo to, o caráter periférico, popular e
simples, por assim dizer, da cultura imaterial favore
ce o predomínio �o mundo periférico.
\
N e sse cont xto, pode-se e ntender o empe
nho latino-amer cano na valorização do seu patri
mônio. Cabe-no salientar que e ntre os bens pro
c lamados em 2 0 5 , na " Lista das Obras-Me stras
do Patrimônio ral e I m aterial da Humanidade " ,
Disponível em www. unesco.org.br
foram arro lado oito pertencentes à América
Latina e ao Car ' be :
1 . O samba de roda do Recôncavo Baiano (Brasil) ; A África, os países árabes, a Ásia e os países do
Pacífico reúnem maior número de trad ições e
2 . O espaço c ltural de San Basílio (Colômbia) ;
expre ssões, artes tradicionai s , práticas sociais,
3 . Tradições p stori s e carros de boi (Costa Rica) ;
rituais, festivai s, espaços culturais e saberes de arti s
4 . Dança tradic onal Cocolo (República Dominicana) ; tas tradicionais reconhecidos internacionalmente.
·
- -- -
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62 Sandra C. A . Pelegrini &- Pedro Paulo A. Funari O q u e é Pa t r i m ô n io C u l t u ra l f 63
Entre esses conhecimentos, se destacam a "Arte de truídos social e historicamen te. Se o indivíduo no
fazer roupa com cortiça ou casca de árvore " decorrer de sua vida pas sa por tran formações bio
(Uganda) e "O conhecimento, o ritual e a prática lógicas , culturais e sociais que o lev m a vincular-se
social tradicionais dos Kri s" ( I ndonésia) . O exame a grupos com diferentes faixas e árias , di stintas
dos registros nos livros de tombo, no futuro, certa categorias profissionais ou díspares opçõe s religio
mente poderá embasar pesquisas capazes de apon sas ; de fato, as coletividades conviv m com perma
tar as transformações e alteridades culturais ao lon nentes processos de interação e udança. E ssa
go dos séculos. diversidade resulta numa multiplic dade de pontos
a
A despeito da análise dos avanços e retrocessos de vista, de interesses e de ações o mundo" que ,
por sua vez , influencia os valores que definem sua
no processo de reconhecimento da pluralidade cul
relação com o patrimônio e o senti o de pertenci:...
tural , nunca é demais lembrar que a acepção do
menta de uns agentes sociai s e relação ao s
patrimônio intangível assentou-se na idéia de que
outros, sejam eles homens ou mulh
esse patrimônio se constitui de um conjunto de for
adultos, j ovens ou idosos.
mas de q..t ltura tradicional e popular ou folclórica, ou
seja, as " obras coletivas" que emanam de uma cul
tura e se fundamentam nas tradições transmitidas
oralmente ou a partir de expressões gestuais que
podem sofrer modificações no decorrer do tempo
por meio de processos de recriação coletiva . Mesmo
assim , não raro, a preservação do patrimônio se
mantém articulada às memórias e identidades das
elites dominantes, de modo que· os bens reconheci
dos como tal representam apenas os interesses e os
jogos de poder desses segmentos .
Além disso, como alertamos no volume " Patri
mônio H istórico e Cultural " (2006, p. 1 0) , os valo
res patrimoniai s e os juízos de preservação se alte
ram com o passar do tempo, poi s ambos são cons-
• •
• •• •
C U LT U R A , E D U C A Ç Ã O
E C I DA DA N IA
ponsável pelo " Plano Nacional de Cultura" , garanti leiro, no que se referem aos "be s de natureza
da pela Emenda Constitucional nº 48 (2005) , segun material e imaterial , tomados indi idualmente ou
do a qual deve ser privilegiada a "integração das em conjunto, portadores de referên ia à identidade,
�
ações do poder público" em "defesa e valorização do à ação, à memória dos diferentes gr pos formadores �
patrimônio cultural brasileiro" ; a "produção, promo da sociedade brasileira" . Mas em ermos práticos, J
ção e difusão de bens culturais" ; o respeito à "diver quais as medidas acionadas pelo E tado para fazer
sidade étnica e regional " ; a "formação de pessoal valerem essas disposições constitue onais?
qualificado para a gestão da cultura em suas múlti
plas dimensões; enfim , a "democratização do aces À União, aos Estados e munic'pios é atribuído
so aos bens de cultura" . pela Constituição da República Fed � rativa do Brasil
o dever de proteger o patrimônio c tural brasileiro, �
Com efeito, no artigo 2 3 , a União já tomava
por intermédio de inventários, regi tros, vigilância,
tt
para si a responsabilidade de, junto aos poderes
estaduais, federais e municipais, "proteger os docu tombamento e desapropriação, e d outras formas
mentos, as obras e outros bens de valor histórico, de acautelamento e preservação" e U e punir aqueles �
artístico e cultural , os monumentos, as paisagens que cometerem "danos e ameaça ao patrimônio
naturais notáveis e os sítios arqueológicos" ; e ainda cultural " . Todas essas tarefas fora atribuídas ao
" impedir a evasão, a destruição e a descaracteriza (lphan) , criado na segunda metad da década de
ção de obras de arte e de outros bens de valor histó 1 930 , no governo Vargas.
rico, artístico ou cultural" e "proporcionar os meios A estrutura administrativa dess órgão, ora vin
de acesso à cultura, à educação e à ciência" . Nesse culado ao Mini stério da E duca ão, ora ao de
sentido, o texto explicitava que cabia aos municípios Cultura , sofreu uma série de r· e struturações.
(artigo 30) legislar em favor dos "programas de edu Entretanto, ele continua atendend 1 às disposições
cação infantil e de ensino fundamental" (cf Emenda constitucionais e às recomendações pertinentes aos
Constitucional nº 5 3 , de 2006) e "promover a pro compromissos firmados entre os p íses signatários
teção do patrimônio histórico-cultural local , obser das convenções do patrimônio, lideradas pela
vada a legislação e a ação fiscalizadora federal e Unesco e pelos órgãos afins. E sses pactos contem
estadual" . Por fim , o artigo 2 1 6 ampliou o conceito plados n3.S disposições da Consti ruição brasileira
e os meios de proteção ao patrimônio cultural brasi- regem as ações do lphan e norteiam as intervenções
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68 Sandra C. A . Pelegrini &- Pedro Paulo A. Funari O q u e é Pa trimônio C u ltural /m a terial 69
do instituto, qu está organizado em secretarias, mas culturais a serem desenvolvidos ou não pelas
superintendênci s e escritórios regionais. autoridades locais.
�
Não obs te, o lphan enfrenta dificuldades Em consonância com as discussões internacio
impostas pela in uficiência de contingentes profis nais e a Constituição do Brasil, o lphan vem atuando
sionais capazes e agilizar os pedidos de acautela mediante a distinção e preservação dos bens cultu
mento dos ben dispostos no imenso território rais brasileiros. Oito livros de tombo se ocupam do
nacional e pelos limitados recursos financeiros que registrÔ de bens tangíveis e intangíveis. Os de natu
recebe, embora a Emenda Constitucional n° 42 reza material são classificados nos livros de Tombo .
(2003) tenha b scado amenizar essa situação por Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico; de Tombo
meio da propos de criação de fundos estaduais de Histórico; de Tombo das Belas Artes e das Artes
"fomento à cult ra até cinco décimos por cento de Aplicadas. Os de natureza imaterial são registrados
sua receita tribu ária líquida, para o financiamento nos livros de Registro dos Saberes; das Formas de
de programas e rojetos culturais " . Expressão; das Celebrações e dos Lu.gares.
Ademais, realização de inventários deman E sses quatro últimos livros foram criados
da mão-de-obra especializada e a concretização de recentemente visando a atender, como já explicita
planos de salva uarda e tombamento e, não raro, mos antes, às disposições do artigo 2 1 6 da Cons
depara-se com i teresses políticos e econômicos, tituição de 1 988, cujo intuito distinguiu como patri
em especial os imobiliários. Se, por um lado, o mônío cultural as formas de expressão e os modos
l phan assume u papel primordial nos processos de criar, fazer e viver, além das criações científicas,
de preservação o patrimônio, uma vez que esta artísticas e tecnológicas e das obras, objetos, docu
belece, com bas nos documentos internacionais e
· mentos e edificações destinados a manifestações
nacionais, baliz s e padrões normativos para tais artístico-culturais ou resultado delas. Essa defini
encaminhament s, por outro, confronta-se com ção, somada ao estabelecido no artigo 2 1 5 da mes
questões especí cas contempladas pela implemen ma Constituição, apontou garantias no sentido do
tação de legisla ão complementar (municipais ou u pleno exercício dos direitos culturais" e do acesso u
estaduais) que iVisa à resolução de impasses e às fontes da cultura nacional" . Apesar de tão belas
empenhos parti ulares atinentes a instâncias deci palavras não deixarem dúvida quanto ao papel do
sórias de poder ue definem os projetos e progra- Estado na esfera cultural e da iniciativa de grupos
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70 Sandra C. A . Pelegrini &- Pedro Paulo A. Funari O que é Pa trim ô n io Cultural ! a terial 71
organizados da sociedade trabalharem em prol des anos 1960/70, e que encontrou s a expr�ssão
se reconhecimento, as questões culturais no século maior no Manifesto de Amsterdã, e 1975; A do
XXI ainda continuam sendo tratadas de modo desenvolvimento sustentável, elab rada a partir
secundário pelas políticas públicas. dos preceitos apresentados pel Comissão
Há pouca clareza sobre as contribuições que a Mundial sobre Meio Ambiente b Desenvol
conservação integrada e o desenvolvimento susten vimento e que levou à Agenda 2 1 e I seus desdo
tável podem suscitar no âmbito social e econômico. bramentos urbanos (cf. Jokilehto, 2 02, p. 2) .
Estados Unidos e França) e possuem um selo de ma! de uma entida�e que represenfe os artesãos e
. a auto-gestao dos seus projetos. Somadas a
factltte
controle de qualidade.
Como podemos observar, a APG atua como essas medidas, .ainda observamos 1 difusão de sua
uma espécie de cooperativa e assiste juridicamente musicalidade por meio de "gravaçõ s" e do agencia
às paneleiras de modo a otimizar os negócios e mento de apresentações dos grup s de samba de
orientar a comercialização dos produtos artesanais. roda, entre outras atividades de divL igação.
Os contornos da salvaguarda do modo de fazer Constam do Livro de Registr das Formas de �
da Viola-de-cocho igualmente registrado no Livro Expressão também as manifestações gráficas e
dos Saberes se processa de maneira similar, pois esse orais da comunidade Wajãpi do A lapá, cuja manu
instrumento musical é produzido unicamente de tenção garante a sua importância n esfera da tradi
forma artesanal, com a utilização de matérias-pri ção cultural indígena. Chama-nos atenção a sua
mas existentes na região Centro-Oeste do Brasil. A excepcionalidade estética diante d outras formas
singularidade de seu formato garante suas peculiari in�íg�nas e não-indígenas de extpressão gráfica,
dades sonoras. pnnctpalmente porque a combina�ão de cores e
Já o "Samba de Roda do Recôncavo Baiq.no" , linhas se reporta ao ciclo vital da omunidade
. e à
proclamado como bem cultural nacional (2004) e percepção de suas relações com o eio aquático e
como patrimônio imaterial reconhecido na "Lista as espécies de peixes existentes n região. A arte ·
das Obras-Mestras do Patrimônio Oral e Imaterial Kusiwa foi inclusa pela Unesco, na "Lista das Obras
da Humanidade" (2005), constitui uma das mais Mestras do Patrimônio Oral Imaterial da
.importantes formas de expressões musicais, coreo Humanidade" (2005) , sob a alegaç o de congregar
gráficas, poéticas e festivas da cultura brasileira. Os valores de afirmação identitária dos índios wajãpi.
especialistas admitem que ela influenciou o samba Curiosamente, a diversidad cultural das
carioca e configura-se como uma das referências da comunidades indígenas sobreviven es no extremo
musicalidade nacional. Suas particularidades envol norte do Brasil foi contemplada por meio da preser
vem a formulação de um plano de salvaguarda, vação da Cachoeira do lauaretê - p meiro bem ima
assentado nas ações dispostas à transmissão de terial a ser inscrito no Livro dos Lu ares, em 2006.
conhecimentos tradicionais, relativos ao saber fazer Localizada no Alto Rio Negro - unicípio de São
e-à execução do marchete, e também no arranjo for- Gabriel da Cachoeira (Amazonas) ela é avaliada
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80 O q u e é Patrimônio Cu ltura/ Im a te r i a l 81
Sandra C. A. Pe/egrini &- Pedro Paulo A. Funari
como um lugar s grado dos povos indígenas dos rios social brasileira. O acarajé, por exemplo, é um qui
Uaupés e Papuri cujas origens remontam à fixação tute servido na rua (no domínio público) e que
e à convivência ntre cerca de 14 etnias diferentes, remete aos mitos de origem de autoridades sagradas
articuladas num rede de trocas e identificadas pelo africanas as quais o prato é oferecido em rituais de
respeito às suas isões de mundo, às formas de orga Candomblé (domínio privado) . O acarajé é ampla
nização social e cultura material dela subjacente. mente reconhecido num Huniverso de representa
Não pode os negligenciar que os estudos de ções simbólicas que se manifesta nas modinhas e
sistemas culinár ·os e seus derivados integram o canções populares" (2002, p. 43) .
inventariamento de comidas típicas de determina A partir da organização de "inventários ali
das regiões do p ís. O acarajé, a tapioca, o pato no mentares" , torna-se possível evocar o conhecimen
tucupi, a farinha de mandioca, entre tantos outros to de tradições referentes aos modos de fazer e de
pratos, estão sen o alvo de pesquisadores interessa consumir determinados alimentos. O Oficio das
dos em desvelar os costumes e a culinária regional. Baianas de Acarajé, registrado no Livro de Saberes
Lamentavelmen e, os sistemas de alimentação ain em 2005, contemplou a produção da chamada
da são pouco va orizados, embora os estudiosos do H comida de baiana" , comercializada em tabuleiros.
tema como Cla de Lévi-Strauss, desde longa data, O quitute, à base de feijão fradinho moído, cebola,
tenham indicado que esses sistemas podem eviden alho e adubos especiais como camarão, é consumi
ciar elementos d s identidades nacionais, regionais, do tanto nos rituais religiosos como de modo infor-
étnicas e religios s. mal no quotidiano.
O preparo os alimentos pressupõe inter-rela Certo é que o registro dos bens não assegura a
ções entre os as �ectos culturais e simbólicos da vida transmissão dos saberes e das tradições, mas ofere
social, entre a n ureza e a cultura, entre o particu ce visibilidade para manifestações regionais. O estí
lar e o univers l, o salgado e o doce. Elizabete mulo à candidatura de outros bens materiais ou ima
Mendonça e Ma ia Dina Nogueira Pinto enfatizam teriais deve prever a implementação de planos de
que a farinha de mandioca e o acarajé apresentam salvaguarda destinados à difusão e ao incentivo às
essa ca.Ǫcterístic basal, ou seja, a mistura. Ao mis práticas culturais. Na verdade, os livros de registro
turarmo� os ali� ntos, estamos relacionando tam contemplam uma estratégia cultivada pelo poeta
bém distintas tra ições culturais que integram a vida Mário de Andrade (1 893- 1 945) , quando ele se arvo-
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86 Sandra C. A. Pelegrini & Pedro Paulo A. Funari O q u e é Patrimônio C u l t u r a l I 87
institucional. Assim, uma procissão do Senhor procissões à luz da doutrina, ou dav m continuidade
Morto é considerada parte das práticas da Igreja a rituais de oferenda ao mar que po co tinham a ver
Católica, oferendas a lemanjá seriam parte da com Maria? Apertadas tais prática ao continente
Umbanda, enquanto uma Marcha com Jesus uma sul-americano, encontraram aqui ai da outras divin
manifestação evangélica. Do ponto de vista çios dades e concepções sobre a import ncia dos espíri
organizadores dessas atividades, essas definições tos das águas. Ao lado dessas int rpretações dos
não estão incorretas. Contudo, em termos antro ameríndios vieram as práticas e os ituais africanos,
pológicos, cada uma dessas práticas tem significa� cuja relação com o mar não era me os importante.
ções muito variadas e que fogem do controle insti Divindades marítimas milenares, aria, espíritos,
tucional e dos significados teológicos das denomi lemanjá, tudo isso compõe um qua ro que foge ao
nações. Isso é importante, para podermos enten controle das teologias e das hierarq ias. As pessoas
der a dinâmica das práticas culturais imateriais reli que partic�pam das festividades nã apenas não se
giosas. Todas são produtos com origens variadas e importam com tais sutilezas, com , muitas vezes,
mescladas, em alguns aspectos institucionalizadas, percebem os usos que podem faze da diversidade
mas sempre vivas, tornadas significativas na práti de abordagens.
ca das pessoas comuns. Isso nos conduz a outro tema: s conflitos e as
Um exemplo permitirá observar essa riqueza. tensões que estão expressos nas m nifestações reli
As procissões marítimas brasileiras em honra de giosas intangíveis. Quando falamo em tradições,
Nossa Senhora, tratadas em detalhe mais adiante, logo nos ocorre a manutenção da rdem, a repro
· têm origens muito longínquas e variadas. Já há milê dução social, algo conservador. Na a está mais dis
nios, no Mediterrâneo antigo, faziam-se procissões tante da vivência efetiva. Embora s origens dessas
marítimas em honra de divindades femininas. festas se percam nos milênios, ca a uma delas só
Quando o Cristianismo dominou o cenário, as pro existe como prática no momento presente. Uma
cissões tiveram continuidade, mas já assimiladas procissão existe durante a procissã e, a cada nova
tanto à teologia como à ritualidade cristã. As divin edição é uma recriação. Não há c �nservação, mas
dades pagãs foram substituídas por Maria, Mãe de vivência, que modifica a cada insta te. Além disso,
Deus. Os oficiantes se tornaram os sacerdotes cató essas manifestações têm sempre u caráter ambi
licos. Em que medida as pessoas entendiam essas valente e sincrético. Por um lado há explicações
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Sandra C A . Pe/egrini & Pedro Paulo A. Fu
nari
rço da
o�de m . � ss o faz om que o patrimônio im aterial
re li
gt os o SeJa capaz Cle expressar a diversidade de
inte No caldeirão brasileiro, talvez a diversidade
re ss es sociais e jogo.
religiosa seja o aspecto mais significativo e que, por
isso mesmo, tem merecido atenção; quando se trata
do patrimônio cultural imaterial. Neste capítwlo, tra
taremos de duas festas ligadas ao mar, mas convém,
antes disso, recordar a significação dessa diversida
de como tesouro brasileiro. No catálogo das festivi
dades religiosas, não se pode esquecer de que comu
nidades brasileiras preservam e recriam uma infini
dade de festas que já pereceram em seus locais de
origem e que aqui se encontram vivificadas também
pelo contato com nossa diversidade. Assirn, temos
numerosíssimas comunidades libanesas, cujas festas
e tradições por vezes já não existem no Líbano. O
mesmo se pode dizer de rituais da península itálica e
da Europa Oriental praticados por um grande núme
ro de grupos étnicos dispersos peJo Brasil. Come
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90 Sandra C. A. Pelegrini &- Pedro Paulo A. Funari O que é Patrimônio Cultural / a teriaJ 91
dores que, por uma via ou outra, tendem a explicar lo XVI l i , constitui-se num ritual detalhado que
a origem e o sentido da existência humana. Não são envolve procissões terrestres e flu iais, missas de
raros os exemplos de sincretismos religiosos, tam abertura e enceramento, cumpri ento de pro
pouco os processos de apropriação de santós ou messas e, por fim, a confraterni ação dos fiéis
entidade, que produzem re-significações da relação num almoço que reúne amigos e familiares. Os
do homem com a divindade. A celebração do Círio dados, contidos no processo n2 0 1 5 0 . 0 1 . 0 1 0332-
de Nossa Senhora de Nazaré e da Festa de Nossa 2004-07 dos bens culturais imat riais (2004 , p.
Senhora dos Navegantes constituem exemplos sig 3) e na certidão conferida pelo lp an (2004 , p. 1 -
nificativos desses processos de assimilação ritual e 2 ) , atestam que a devoção à No sa Senhora de
I
de transformação que ocorrem ao longo do tempo. Nazaré remonta à região da Estr madura portu-
As duas festas apresentam similaridade$ e foram guesa, em Nazaré, ao norte de ortugal, cujas
inspiradas nas práticas de devoção à Nossa Senho origens conjugam tradições medie ais manifestas
ra� respectivamente, no século XII e no século XV. por meio de procissões e repr sentações dos
Logo, as origens das duas celebrações remetem ao embates contra os mouros. Algu s aspectos são
catolicismo português medieval e se consubstan ainda mais antigos, provenientes e cultos celtas
ciam em manifestações rituais coletivas, nas quais se e romanos, como o pagamento de promessas .
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(
Senhora, comove a população local, atrai pessoas de Além disso, tornou-se um evento do chamado
várias partes do país e gera a reprodução do ritual turismo religioso que gera divisas pdra o Estado do
em escalas menores e privadas entre os paraenses p
Pará e garante a sobrevivência da opulação local
que vivem em outras localidades do país. A procis que aproveita o ensejo para se inse ir no mercado,
são nos seus primórdios realizava-se da ��cidade para comercializando toda sorte de suv nir, alimentos,
o interior, uma vez que a Belém [ . . . ] do século XVI I I , bebidas, entre outros produtos.
era ainda um �úcleo reduzido" . Com o passar dos A procissão terrestre reúne g upos de anjos,
anos, ela passou a ser efetuada no sentido contrário: motoqueiros, carros alegóricos que ludem às metá
a berlinda carregando a imagem da Santa deixa a foras do �chado da Santa e seus rodígios. Entre
Basílica de Nazaré e dirige-se para a Catedral de
Belém, e depois refaz o mesmo percurso. A popula fidalgo a receber as dádivas da San a em Portugal,
ridade da celebração aumentou de maneira inco assim como barcaças que carregar insígnias das
mensurável, independentemente das iniciativas do bênçãos alcançadas (objetos de cer como pernas,
clero ou das autoridades do Estado, e agregou novos cabeças, muletas, casas, entre outr s) . Há ainda a
elementos como o "Círio Fluvial" - inserção que berlinda que conduz a imagem da S nta.
acabou ratificando os vínculos entre a "religiosidade Em termos estruturais, o ritual ' composto por
dos povos da região amazônica" e os "modos de três segmentos principais, uma célul nuclear presti
viver da população local" . giada por autoridades eclesiásticas, políticas, civis,
militares e irmandades religiosas. E ses convidados
eram e continuam sendo mantidos mais próximos
da imagem da Santa e dentro da cor a que constitui
um dos elementos essenciais da pr cissão, e ainda
distingue-os de toda a gente. Uma ação mediado
ra reúne os fiéis que carregam a co a e "puxam" a
berlinda. Por fim, um sem-número e participantes
acompanha o cortejo. As corporaçf>es militares de
terra, céu e mar permanecem ladeando o núcleo
Círio Fluvial - Disponível em www.belem.pa.gov.br central dessa procissão.
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em Coronel Do ingos Soares, em Pato Bragado e ondas impetuosas que ameaçam -afundar minha
em ltaipulândia ( araná) , entre outras localidades. frágil embarcação no abtsmo do desânimo e do
A designação ossa Senhora dos Navegantes, desespero.
como já meneio mos, originou-se no século XV, Nossa Senhora dos Navegantes, nas horas de
f
tos náuticos do� uropeus, em espec�al dos �ortu
ânimo, a disposição de lutar e de vencer fortale
cem-me [. . . ].
gueses. A essa ep ca, a figura de Marta era, Stmbo
licamente, assoei da a uma mulher audaciosa e
Tal prece confortava os navegadores que
mestra dos viajanfes - o que a transformava num
p�diam a proteção de Nos sa Senh ora, confi?-ntes
"talismã" nas temfestades. As tradições de associar
nurri retorno tran qüilo ao loca l de onde parttram .
a deusa da água salgada, Salácia, em latim, eram Todavia ,· a interpretação da oração pode ser apli
f
muito antigas em odó ó Mediterrâneo e as antigas cad a às fase s turbulentas da vida dos fiéis que
procissões pagãs fi ram revestidas de um verniz cris nela con fiam .
tão, com a assoei ão da Virgem à antiga divindade Assim como em Belém do Pará, ·as procissões
Salácia, esposa d� d�us Netuno. Durante a Idade devotadas à Nossa Senhora dos Navegantes, orga
�
Média, na Cristan ade, o Mediterrâneo viu flores nizadas no Sul do Brasil, deslocam a Santa da Igreja
cer as procissões marítimas em honra à Madonna dei de onde ela é padroeira para depois transladá-la ao
� . ..
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98 Sandra C. A. Pelegrini &- Pedro Paulo A. Funari O que é Patrimônio Cultural lm teria! 99
. . . . .....
s�u local de origem, por meio de procissões repletas somem-se frutas como a melancia, o abacaxi e uma
de significados míticos que evocam hinos e fervoro espécie de coquinho denominado bu iá.
.sas orações. No entanto, não podemos atestar que Por certo, a teatralização das rocissões e a
haja coincidência nas datas de início da Festa de ritualização da comerísà.lidade abaliz m os ciclos de
·
Nossa Senhora dos Navegantes nas cidades acima interação social, caracterizados po atitudes ceri
citadas. Os registros referentes à festa em Porto moniais, que conjugam a adoração a s santos reve
Alegre remetem ao princípio do século XX, enquan renciados e o entretenimento satisfei o por meio do
to a celebração efetuada em Coronel ·oomingos consumo abastado de bebidas e co idas típicas, da
Soares indica como marco o ano de 1955. apresentação de folguedos e cantori s - elementos
que tradicionalmente completam um circuito recor
A despeito das difere�tes temporalidades, as rente nas festas de santo que articul m as práticas
duas procissões são realizadas na primeira quinzena do rezar"·, "comer�' e "dançar" . Es a sucessão de
H
entre outros objetos). Dessa forma, os fiéis reveren Em síntese, a coesão, e as tens-es sociais e as
ciam t?tnto à santa católica quanto a entidade afro manifestações públicas de religiosida e proclamadas
brasileira sintetizada na figura do orixá lemanjá, evi por meio da fé, do lazer e dos costum s alimentares,
denciando os traços do sincretismo religioso brasilei contribuem para ratificar tradições revigorar os
ro, talvez rl)ais explícitos no Norte e N ardeste do sentidos de pertencimento, explicit , fortalecer e
país, mas também presentes no Sul. Nesse caso, contestar hierarauias além de fortal cer as intrica-
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A BE L E ZA , A V ITA L I DADE E O
VALOR DO PATRI M ÔNIO C U LT U RAL
guas deveriam promover a "difusão" e o "incentivo" povo", temos que ter claro que para tanto se torna
de pesquisas sobre a cultura popular. fundamental o respeito à diversidade e à criação de
O discurso entusiasta de Gilberto Gil, realizado condições necessárias à transmissão dos conheci
na Casa das Minas (um dos terreiros mais antigos da mentos adquiridos e da herança cultural dos povos.
cap�tal maranhense), foi acompanhado por Luiz Num mundo globalizado que tende a homogeneizar
Fernando de Almeida (presidente do lphan), as culturas, a aproximação entre crianças, jovens,
Jackson Lago (governador do Maranhão) e Sandra adultos e anciãos detentores de saberes e práticas
Torres (prefeita em exercício de São Luís), além dos ancestrais nem sempre ocorre de forma harmonio
representantes do Conselho Consultivo do sa. As autoridades políticas, as escolas e as comuni
Patrimônio Cultural e dos brincantes que ocuparam dades locais precisam se aglutinar em torno de pro
as ruas do centro da cidade, festejando com seus gramas e projetos comuns de preservação de seus
tambores e bailados o merecido reconhecimento. bens culturais, de proteção das tradições orais e
Aclamado, o ministro enfaticamente declarou: populares. Dessa maneira, os cidadãos envolvidos
"Não é o registro que vai garantir a sobrevivência do vão se sentir valorizados por meio dos oficios arte
Tambor de Crioula, mas é a responsabilidade de sanais, das receitas culinárias, das beberagens medi
todos nós". cinais e dos saberes de suas comunidades e, com
Em contrapartida, os comentários de alguns certeza, serão motivados a transmitir esses conhe
mestres do Tambor lembraram a função social do cimentos às próximas gerações.
registro e sua importância na esfera da sustentabili Maria de Lourdes Parreiras Horta, uma expe
dade dos grupos e das comunidades. Para Q mestre riente especialista na educação patrimonial no
Amaral, esse registro "veio para melhorar as condi Brasil, avalia que essa "prática pedagógica" deve
ções do grupo e divulgar ele (sic) em todo o Brasil" , partir de alguns preceitos assentados na própria teia
complementando essa fala, o mestre Felipe, um dos histórica que envolve cada bem, artefato ou expres
mais antigos da região, salientou que o "tambor tira são cultural. E ela adverte: "[ . . . ] É preciso apreen
essas crianças da marginalidade". der a ouvir as coisas, a entender suas lições. . ."
Se considerarmos, como afirmou nessa oportu (2005, p. 223-224).
nidade a prefeita Sandra Torres, que a "cultura é o Essa valorização do patrimônio cultural, seja
viés mais forte para erguer a · auto-estima de um material ou imaterial, talvez induza as comunidades
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101 Sandra C. A Pelegrini & Pedro Paulo A Funori
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a cobrarem dos seus representantes políticos ações
em prol da preservação de suas tradições ou, pelo
menos, o reconhecimento formal delas. Todavia, um I
dos maiores desafios a ser enfrentado no campo da
pr�servação do patrimônio cultural se deve à sua
dispersão na imensidão do território brasileiro e,
principalmente, à urgente necessidade de integração
das políticas culturais às demais políticas públicas INDI CA Ç ÕES P ARA LEITURA
prioritárias do país. Estaremos satisfeitos se este
livro puder contribuir para que os leitores possam se
posicionar e participar da construção de práticas
culturais que valorizem nossa diversidade, tão bem
expressa no patrimônio imaterial brasileiro. A Convenção para a salvaguarda dos bens cultu
rais intangíveis, de 2003, está publicada no
lnternational Journal of Cultural Property , 12, 4,
2005, p. 447-465. Um apanhado da trajetória do
termo cultura encontra-se em Keywords: a
Vocabulary of Culture and Society, de Raymond
Williams (Londres: Fontana, 1988), disponível em
português, publicado pela Boitempo. Os sentidos
latinos da palavra estão esmiuçados no Dictionnaire
étymologique de la langue !atine, de A. Ernout e A.
Meillet (Paris: Klincksieck, 1967).
As definições da Antropologia estão em A an tro
pologia con temporânea, de Jean-Marie Auzias (São
Paulo: Cultrix, 1978, p. 1 1), e L 'A nthropologie, de
Marc Auge e Jean-Paul Colleyn Paris: PUF, 2004), p.
12. A citação de Pascal Ory vem de L 'Histoire
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106 Sandra C. A. Pelegrini &- Pedro Paulo A. Funari O q u e é Patrimônio Cultural Imaterial 107
Culturelle (Paris: PU F, 2004), p. 8. A diferença entre Janeiro: Paz e Terra, 2000) e A identidade cultural na
o chimpanzé e o ser humano está em Cultura, um pós-modernidade (Rio de Janeiro: DP&A, 2005). O
conceito antropológico, de Roque de Barros Laraia terna da genética das populações está desenvolvido
� em Claude Lévi-Strauss, de Catherine Clérnent
(20 . ed., Rio de Janeiro: Zahar, 2006). A citação de
Gib,erto Freyre, vem de Sociologia, tomo I , (Paris: PUF, 2002) p. 93. Claude Lévi-Strauss trata
!
Introdução ao estudo dos seus princípios, (3 . ed., Rio do valor da preservação da diversidade em Lê regard
de Janeiro: José Olympio, 1962) p. 546. A definição éloigné (Paris: Plon, 1983). A citação do Capital, de
de Christoph Brumann está em seu artigo "Writing Karl Marx ( I , v. I) foi retirada do livro Arqueologia, de
Culture: Why a Successful Concept Should not Be Pedro Paulo A Funari (São Paulo: Contexto, 2003)
Discarded", Current Anthropology, 40, Supplement, p. 14. A discussão sobre patrimônio encontra-se em
February 1999, p. S23. A historicidade das culturas Patrimônio histórico e cultural, de Pedro Paulo A
está bem tratada em A noção de cultura nas ciências Funari e Sandra Pelegrini (Rio de Janeiro: Jorge
ll
sociais, de Denys Cuche (2 . ed., Bauru: Edusc, Zahar, 2006). A citação do artigo de Tolina Loulanski
2002). A ponderação de Marc Augé fazia parte de está em "Revising the Concept for Cultural Herita
uma sua conferência em Perúgia, em parte publica ge: the Argurnent for a Functional Approach",
da no Corriere de/la Sera, 11/l/2007, p. 27, sobre lnternational Journal o/Cultural Property, 13, 2006,
"Nuove identità". A citação de Warnier está em p. 213. A citação de Edward Said vem do seu artigo
seu livro La mondialisation de la culture (Paris: La "Urnanesimo", publicado postumamente no Corriere
Découverte, 2004), p. 20. A entrevista de Marshafl del/a Sera, 7/l/2007, p. 23.
Sahlins foi publicada em Le Nouvel Observateur, 26 Vale a pena consultar as proposições de Pierre
de julho de 2007, pp. 78-81. Nora acerca da consciência do patrimônio, no artigo
As discussões sobre identidades e pertencimen "Conclusion dês entretiens", publicado ern Sience et
to estão no livro de Pedro Paulo A. Funari, Charles conscience du patrimoine: actes dês entretiens du
E. Orser Jr., Solange Nunes de Oliveira Schiavetto, patrimoine (Paris: Librairie Fayard/ É ditions du
Identidades, discurso e poder: estudos da arqueologia Patrimoine, 1997) e avaliar as hipóteses de Kawada,
contemporânea (São Paulo: Annablurne/Fapesp, La rnérnoire corporelle: le patrimoine imrnatériel,
2005); e nas obras de Manuel Castells e Stuart Hall, em Pourquoi se souvenir? (Académie Universelle des
respectivamente, O poder da· identidade (Rio de Cultures: Grasset, 1998), p. 146-50. Os conceitos
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108 Sandra C. A. Pelegrini & Pedro Paulo A. Funari O que é Patrimônio Cultural Imaterial 109
de conservação integrada e desenvolvimento sus CNFCP, 2002), editado por José Reginaldo Santos,
tentável encontram-se no livro Gestão do patrimônio no qual são apresentadas reflexões de Elizabete
cultural integrado , editado por Sílvio Mendes Mendonça e Maria Dina Nogueira Pinto sobre as
Zancheti (Recife: Ceci/Universidade Federal de relações entre o patrimônio e os sistemas culinários.
Per..nambuco, 2002). Além deles, recomendamos a Questões da educação patrimonial foram contem
leitura do artigo "Cultura e natureza: os desafios pladas em "Lições das coisas: o enigma e o desafio
das práticas preservacionistas na esfera do patrimô da educação patrimonial", texto de Maria de
nio cultural e ambiental", publicado no Dossiê Lourdes Parreiras Horta, na Revista do Patrimônio
Natureza e Cultura (julho de 2006), da Revista Histórico e Artístico Nacional (Brasília: I phan, nº 31,
Brasileira de História (São Paulo: Anpuh, 2006) e 2004). O Inventário Nacional de Referências Cul
World Heritage Sites: Types and Laws, na turais - INRC/Iphan, matérias jornalísticas da Folha
Encyclopaedia of Archaeology (Oxford: Elsevier, de S. Paulo e do noticiário do próprio lphan foram
2007), ambos de autoria de Sandra Pelegrini, cons importantes para o entendimento dos discursos e
tituem volumes pertinentes ao assunto. A acepção das repercussões relativas às questões do patrimô
de patrimônio imaterial é contemplada em três nio ima�erial.
obras bastante acessíveis: I) Os sambas, as rodas, os A abordagem sobre a religiosidade como fenô
bumbas, os meus e os bois: a trajetória da salvaguarda meno cultural e a diversidade que envolve distintos
dos bens imateriais no Brasil (1936-2006) ; 2) Samba rituais foi enfrentada por lsidoro Alves, no artigo "A
de roda do Recôncavo Baiano; 3) O registro do patri festiva devoção no Círio de Nossa Senhora de
mônio imaterial: dossiê das atividades da comissão e Nazaré" (Estudos Avançados, 2005 , v. 19, n9 54, pp.
todos
do grupo de trabalho do patrimônio imaterial, 3 15-332); Renato A Carneiro Jr., na obra Festas
publicados em Brasília: Departamento do Patrimô populares do Paraná (Curitiba: Secretaria do Estado
nio lmaterial/lphan, respectivamente nos anos da Cultura, 2005); Eidorfe Moreira, em Visão geo
2006, 2005 e 2000. Foram citados os cadernos social do Círio (Belém: Gráfica Universitária, 1971);
Registro e políticas de salvaguarda para as culturas Sandra C. A. Pelegrini, em "A diversidade e os
populares (Rio de Janeiro: lphan/CNFCP, 2005), impasses da desmaterialização do patrimônio cultu
organizado por Andréa Falcão, e também Alimen ral", integrado aos Anais - XXIV Simpósio Nacional
tação e cultura popular (Rio âe Janeiro: Funarte/ de História - História e multidisciplinaridade: territó-
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110 Sandra C. A. Pelegrini & Pedra Paulo A. Funari O que é Patrimônio Cultural Imaterial 111
rios e deslocamentos (São Leopoldo/Rio Grande do Unesco sobre a Diversidade Cultural (2001); Lista de
Sul: Anpuh - Unisinos, 2007), p. 1-8 e por Carolina Obras-Mestras do Patrimônio Oral e Imaterial da
Chagas, no livro Nossa Senhora (São Paulo: Humanidade (200 I e 2005). Além de Declaration
Publifolha, 2006). As relações entre as simbologias Concerning the lntentional Destruction of Cultural
do .poder e as procissões religiosas manifestas nas Heritage (2003); Convention on the Protection and
cerimônias públicas foram pesquisadas por Stuart Promotion of the Diversity of Cultural Expressions
B. Schwartz, no texto Ceremonies of Public (2005) e Protocolo de Kyoto (2004), todos disponí
Authority in a Colonial Capital. T he King's Pro veis em http://www.unesco.org.br.
cessions and the Hierarchies of Power in Seven
teenth Century Salvador, publicado nos Anais de
ÀGRADECIMENTOS
História de Além-Mar (Lisboa: Centro de História
de Além-Mar, 2004), p. 7-27. Agradecemos o apoio institucional do Núcleo
de Estudos Estratégicos da Unicamp, CNPq,
As citações referentes aos documentos oficiais
Fapesp e a Universidade Estadual de Maringá; o
constam da Constituição da República do Brasil
incentivo dos professores Francisco Ollero Lobato
(1988) e das emendas constitucionais acessíveis em
(Universidad Pablo de Olavide, Sevilha, Espanha) e
http:/ /www6.senado.gov.br; Decreto-lei n2 25/1937
Stuart B. Schwartz (Yale History Faculty, EUA), e
(principal instrumento jurídico utilizado pelo lphan)
ainda aos colegas do lnternational Journal of
e Decreto n9. 3551/2000 (Registro de Bens Culturais Cultural Property, assim como Thomas Patterson. A
de Natureza Imaterial) , ambos disponíveis em responsabilidade pelas idéias, naturalmente, restrin
http://www.portal .iphan.gov.br. Entre os docu ge-se aos autores.
mentos produzidos por organizações como a
Unesco e entidades afins, consultamos a Carta de
Fortaleza (1997); Carta de Haia (1954); Carta de
Veneza (1964); Declaração de Amsterdã (1975);
Declaração do México (1982 e 1985); EC0-1992;
Agenda 21; Recomendação sobre a Salvaguarda da
Cultura Tradicional e Popular (1989); Nossa
Diversidade Criativa (1996); Déclaração Universal da
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SOBRE OS A U TORES
SANDRA C. A . PELEGRINI
Sou natural de São Paulo - capital, graduei-me
em História (Unesp/ Assis, 1988), obtive o mestrado
em História e Sociedade (Unesp, 1993), doutorado
em História Social (USP/2000). Desenvolvi os estu
dos de pós-doutorado na Unicamp, entre 2005 e
2006, sob a tutela do Professor Dr. Pedro Paulo
Funari. Como docente lotada no Departamento de
História, da Universidade Estadual de Maringá
(UEM), tenho atuado desde 1991 no ensino de gra
duação em História e, a partir do ano 2000, nos cur
sos de graduação em Arquitetura e Urbanismo e de
pós-graduação em História, no Mestrado, do qual
fui coordenadora entre 2001 e 2003. Tenho traba
lhado na linha de pesquisa "Fronteiras, populações e
bens culturais", nos cursos de especialização volta
dos ao debate sobre políticas públicas, projetos e
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114 Sandra C. A. Pelegrini f:r Pedro Paulo A. Funari O que é Patrimônio Cultural Imaterial 115
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