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Capítulo I
Da ecologia à crítica radical
da sociedade industrial
Capítulo II
A invasão médica
Capítulo IH
O espaço-tempo distorcido
Capítulo IV
O mundo não é o que pensávamos
;;:u. FiI. C. Humline.B UFMG I
I BIBLIOTECA I
Capítulo 1
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Piadas maldosas circulam sobre a ecologia. Uma das mais
venenosas talvez seja a seguinte: dois pilotos de caça norte-
americanos conversam. Um diz ao outro: "Você sabe o que
me informaram? É horrível. Parece que cada vez que a gente
bombardeia uma aldeia vietnamita, a gente polui o Pólo Norte!"
Receio muito que essa visão da ecologia seja das mais di-
vulgadas em um país como o Brasil. Um luxo de ricos, devem
pensar. Uma ideologia reacionária que se preocupa mais em
conservar as árvores e os passarinhos do que em pôr fim à do-
minação do homem pelo homem.
É claro que considero essa atitude completamente injusta
e injustificada. A ecologia no sentido amplo, com ou sem razão
- teremos oportunidade de discutir esse ponto - apresenta-se
como crítica global e radical do modo de produção industrial.
Enquanto tal, cúmulo da presunção, ela pretende até mesmo
substituir as ideologias dominantes nascidas no século XIX - o
século do cientismo triunfante e que ela estima ultrapassadas,
quando não as torna responsáveis pela crise atual. O marxismo
é evidentemente o primeiro visado - e isso é imperdoável!
Contudo, ao invés de defender a ecologia examinando dire-
tamente o seu conteúdo real, prefiro colocar o problema no
único nível em que deve ser: o do realismo. Com efeito, a
questão não é: devemos levar a ecologia a sério? Se alguns
progressistas atrasados, à direita ou à esquerda, ainda fazem
essa pergunta ou respondem pela negativa, o capitalismo mun-
dial já resolveu pela afirmativa. Assim sendo, a única questão
séria que deve ser levantada é: queremos um capitalismo eco-
lógico, ou aproveitaremos a crise ecológica para instaurar outra
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lógica social onde "o livre desenvolvimento de todos seria ao
mesmo tempo o fim e a condição do livre desenvolvimento de mais ricas as pessoas se tornavam, mais ricas queriam ficar.
cada um"? Ao estudarmos cuidadosamente as razões desta geração mais ou
menos espontânea da demanda, compreendemos que elas são de
duas espécies, ligadas, aliás, entre si:
- Há primeiramente a natureza dos bens colocados no
1. A ECOLOGIA DO CAPITALISMO mercado: são essencialmente bens que têm tanto mais utilidade
social quanto mais desigualmente repartidos forem; bens cujo
valor de uso diminui quando cresce o número daqueles que os
A ecologia do capitalismo é a integração dos constrangi- possuem ou consomem. É o caso dos bens "distintivos" que
mentos ecológicos na lógica capitalista. Essa integração é possível denotam um status social, uma posição na sociedade. Quando (
e está em via deconceptualização, programação e implantação. estão ao alcance de todos, perdem por isso mesmo o seu valor
Em resultado, o capitalismo será sem dúvida fortemente trans- significativo. Os que querem e podem ficar à frente da compe- .
formado, mesmo se,. ~. um nível suficientemente profundo, tição social devem então adquirir produtos mais caros. Para
houver sempre a possibilidade de detectar sua lógica destrutiva. satisfazer um mesmo valor de uso, é preciso portanto um valor
. Os economistas clássicos, de Adam Smith a Ricardo, pre- de troca mais forte. O crescimento "natural" da demanda encon-
VIam e receavam que o capitalismo, cedo ou tarde, perdesse o tra aqui um dos seus principais motores. A guerra quotidiana
fôlego ~ est~gnasse,. qU,e. as o~asiões de investir desaparecessem a que se entregam os homens, a luta derrisória por prestígio
e uma sltu~çao estacionana se instaurasse devido a uma saturação e poder, alimenta com consumidores ávidos a guerra a que se
das necessidades e ao fato de que a demanda de mercadorias entregam os capitalistas. Não insistirei mais aqui sobre esse
atingisse o seu teto. ponto, que, no entanto, é fundamental, pois terei oportunidade
. Marx e Keynes, cada um do seu modo, viram na insuficiên- de retornar a ele no capítulo lU, consagrado ao espaço e ao
era da .demanda ~ma das maiores ameaças que pesam sobre a tempo, a propósito da noção de congestionamento.
econornia d? c.rescImento. Na guerra implacável a que se entre- - Há em seguida O fenômeno característico que é a di-
gam os capitalistas, cada um tem interesse em investir em técni- minuição da duração de vida dos bens de consumo que, apesar
cas cada vez mais capitalísticas que permitem produzir mais disso, são chamados de "duráveis". O essencial da produção des-
a um menor custo. Ainda é preciso que as mercadorias produzi: ses bens serve hoje mais para satisfazer uma demanda de reno-
das encontrem compradores. Toda a sorte do capitalismo fica vamento do que para aumentar o número dos que os possuem.
pendente ao reconhecimento pelo mercado do valor social dos E é bem claro que quanto menos duram os produtos, mais
produtos que aí se apresentam - e é preciso dar a "reconhe- forte é a demanda de renovamento. Ora, a longevidade da maior
cimento", aqui, um sentido quase hegeliano. Essa evidência in- parte dos objetos que compõem o meio ambiente quotidiano
citou muitos ec?n~mistas a pensar, talvez um pouco depressa, baixou consideravelmente durante os últimos 30 anos. Os an-
que a tarefa principal do capitalismo era, ou deveria ser dora- tigos produtos foram substituídos pelos novos que quase sem-
vante, menos a de produzir mercadorias do que a de produzir pre só têm de novo o nome, mas custam mais caro e contêm
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Não é difícil. Basta consultar os famosos relatórios ao Clube 4trescimento das produções imateriais que não envenenam a
de Roma e outros documentos sobre a "nova divisão interna- atmosfera, possibilitam localizações descentralizadas e permitem
cional do trabalho" para compreender o que será o capitalismo resolver amplamente o problema do desemprego: imagina-se mal
ecológico. A ecologia, a "qualidade de vida" tornou-se um custo, que programas de fabricação de novos Concordes ou de outras
um freio ao lucro. É preciso fazer dela uma fonte de lucros, quinquilharias fedorentas e inúteis poderiam dar trabalho aos
transformá-la em mercadoria, produzi-la e vendê-la. . ~ milhões de desempregados de nossos países, mas já se conce-
de bens materiais é que levou à crise ecológica: Doravante o bem planos de uma sociedade onde cada um seria o especialista-
\'qu~'lmporta é produzir "bens íniiií:eriãís"'; A sociologia nort~: terapeuta de um "problema social" particular - e por conse-
'americana com Daniel Bell, Marshall McLuhan e outros, la guinte o assistido de todos os outros.
produziu 'a ideologia apologética dessa reconversão: é ~ tema Na realidade, a evolução técnica provável leva a pensar f
bem conhecido do advento de uma nova forma de sociedade: que esta sociedade "informacional " não será necessariamente
a sociedade pós-industrial, apresentada como um novo progresso uma sociedade de serviços, uma sociedade "terciária", como o
na libertação da humanidade em respeito às necessidades ma- çroclamam um pouco açodados os seus zelosos advogados. As
teriais. Estas últimas sendo amplamente satisfeitas para todos, novas formas de organização do trabalho tornarão, aliás, caduca
graças ao enorme aumento da pr~dutividade do trabalho, ?izem- a divisão tradicional da economia. em setores primário, secundá-
nos os homens vão poder enfim preocupar-se em satisfazer . . rio e terciário. Refiro-me aqui ao desenvolvimento do que se
necessidades mais nobres e mais etéreas. Essas necessidades chama náFtança a télématique, palavra composta a partir de
"pós-industriais", "imateriais", ~erão por. exeml?lo a saúde, a "telecomunicação" e de "informática": trata-se de todas as novas
educação, a cultura, a preservaçao do meio ambiente, o conhe- técnicas de comunicação de mensagens, de informações, de ima-
cimento de outros países e outras civilizações, a segurança, os gens, que associam computadores e redes de telecomunicações.
lazeres, as boas relações com os outros e - por que não? . - "Graças" a elas, a maior parte dos trabalhadores de escritório{
a felicidade. A economia industrial tinha como inputs essencial- poderá efetuar suas tarefas em casa, em comunicação direta com!
mente a matériae a energia, transformadas pelo trabalho huma- sua empresa. Espera-se que a crise dos transportes e do urba-
no, e como outputs bens tangíveis. A e~onomi~~~a! nismo possa assim ser superada. Tradicionalmente, os serviços
será uma economia de serviços, da quãI 'informaçao sera ao
ã põem em relação um prestador de serviços, por exemplo o mé-
mesmo tempo o principal input e o principal output, O fenô dico, e o usuário, por exemplo o doente. A "telemática" poderia'
meno bem conhecido do intumescimento do setor terciário das tornar essa relação parcialmente obsoleta e fazer de cada um
economias ocidentais, e mais ainda de terciarização dos empre- o seu próprio prestador de serviços. Ligado a um banco de dados
gos no primário e no secundário, .seria a ~anife~ta~ão da evolt:- automatizado, munido de aparelhos de autovigilância e de auto-
ção irresistível e natural das soc:eda~es mdustt1ah~ada.s em" di- diagnóstico, opaciente dos tempos futuros poderá auto-analisar-
reção a essa idade de ouro da sociedade comunicacional . se permanentemente. É a era do que Illich chama a economia da
Por trás dessa mitologia postiça, esconde-se uma reahdade masturbação.
mais severa: o redesdobramento da indústria à escala mundial. A sociedade comunicacional, ou capitalismo ecológico, re-
Falar de "novo crescimento" ou de "nova ordem econômica in- sulta de uma dupla "necessidade": a de, para os países desen-
ternacional" a idéia é a mesma: enviemos as nossas indústrias volvidos, reorientar o seu crescimento 'para produções menos
(pesadas para poluir os países do Terceiro Mundo, estragar-lhes destruidoras e a de, para o capitalismo internacional, se, "relo-'
Ias paisagens, embrutecer-lhes a mão-de-obra, estourar-lhes o es- calizar" na escala mundial. A estabilidade desse redesdobramen-
paço e o tempo - aliás, nesses países os salários e os impostos to, o relatório Meadows mostra-o bem, exige uma cartelização
são mais baixos, e eles não querem outra coisa: lembro-me de geral, uma programação planetária da repartição e da utilização
um cartaz publicitário publicado no jornal Le Monde por con~a dos recursos minerais e energéticos, uma planificação das téc-
do Governo brasileiro, que dizia: "Industriais, veriham poluir nicas e dos preços: em suma, todos os elementos de um capi-
em nosso país, pois ainda é autorizado" - e reservemo-nos o talismo não concorrencial de não-crescimento. E esse argumento
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que Michel Bosquet denominou com muita razão o argumento se mais por suas recusas do que por suas proposiçoes concretas,
do ecofascismo ou do tecnofascismo. Os progressistas de toda Suas recusas são globais e freqüentemente sem matizes: criticam
a parte que gritam ao obscurantismo e ao retorno à idade da o modo industrial de produção, e não somente as relações so-
pedra, quando ouvem falar de crescimento zero, têm razão ciais capitalistas; não se limitam a criticar o uso capitalista que
quanto a um ponto: com as regras do jogo do mundo atual, a é feito das técnicas, mas acusam as próprias técnicas. Não lhes
renúncia, desejada ou forçada, a essa "fuga para a frente" que basta reconhecer a luta de classes e denunciar a exploração do
é o crescimento só pode signifi-car miséria e desemprego para homem pelo homem: têm de revelar também a guerra de todos
a maioria, desigualdades e injustiças, e sobretudo: reforço do contra todos que se esconde por trás das "leis econômicas", e
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!t controle social e novas alienações - um mundo limitado por designar uma alienação mais radical e geral que a simples ex-
ténicos e tecnocratas, um Gulag na escala planetária. propriação da mais-valia. Aliás, para eles, o marxismo pode ser
A realidade dos constrangimentos ecológicos não é por- posto na mesma panela que o liberalismo. Vêem na utopia eco-
tanto em nada portadora de uma ética, não mais do que de uma nômica do século XVII e na útopia polítíica socialista do sé-
política. A ecologia como ciência dos equilíbrios naturais pode culo XIX duas formas de uma mesma representação da socie-
justificar o inferno cibernético do ecofascismo. Ela pode assim dade, que eles denunciam. O marxismo não é mais que uma
também servir de ponto de partida, sem contudo fundá-la, a astúcia da história, que conseguiu, nos países onde o capitalismo
uma crítica radical da sociedade industrial. É assim que proce- liberal fracassou, prosseguir a obra destrutiva deste último: o
deu o movimento dito "ecológico". nivelamento de todas as culturas pela ideologia progressista do
Ocidente industrial.
Essa atitude do movimento ecológico com respeito ao mar-
xismo é sem dúvida, em certa medida, injustificada. Mostrarei
2. A CRISE SEGUNDO OS ECOLOGISTAS mais adiante que, na realidade, muitas das posições teóricas dos
ecologistas vão ao encontro das intuições fundamentais de Marx,
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do Marx filósofo ou até do Marx economista. Mas, nos seus
li Toda a ambigüidade da ecologia já está contida na própria combates quotidianos, é com demasiada freqüência contra Ü'
I palavra, forjada por um biólogo alemão, Ernst Haeckel, no mes- conservadorismo das forças de esquerda que os ecologistas se
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mo ano em que Marx publicava o livro I de O Capital. Ecologia: chocam: portanto, contra o marxismo institucionalizado, o mar-
o lógos sobre o oikos, o discurso racional sobre o habitat, a ciên- xismo histórico, esse marxismo do qual o próprio Marx já dizia
cia de habitar. Etimologia quase idêntica à da economia, o não fazer parte. A ambigüidade da ecologia encontra aqui a am-
námos, a lei humana convencional, sendo substituído pelo lógos. bigüidade do marxismo e mesmo de Marx, ao mesmo tempo
Há portanto "ecologistas" que são cientistas que estudam, no crítico radical do capitalismo e fascinado pela "missão civili-
campo e em laboratório, pelo método experimental e pelo uso zadora" deste último. Daí um jogo de esconde-esconde no qual
de modelos matemáticos, os equilíbrios biológicos e naturais: é difícil às vezes reconhecer-se e que tentarei esclarecer.
quer dizer a forma como as diversas espécies animais e vegetais Antes de examinar mais precisamente os principais pontos da
coabitam em um mesmo meio físico num misto de luta e de crítica ecológica, vejamos algumas características do movimento
cooperação, constituindo assim "ecossistemas". Mas há também social e de sua curta história. Falarei sobretudo do movimen-
indivíduos a quem denominamos e que denominam a si mesmos to francês, porque é evidentemente o que conheço melhor, mas
ecologistas e que têm pouca coisa a ver com os primeiros: são ele é bem representativo dos diversos movimentos europeus.
ideólogos, militantes, mais freqüentemente constituídos em asso- As diversas correntes que constituem o movimento ecoló-
ciações do que em partidos, que incomodam porque não che- gico são tão disparatadas que se pôde falar da "nebulosa eco-
gamos a classificá-los nas categorias tradicionais: movimento lógica". Encontram-se aí tanto os antigos combatentes de maio
político, movimento social, corrente de idéias, eles são tudo isso de 1968 quanto os defensores da natureza e do meio ambiente,
ao mesmo tempo. Diversos nos seus engajamentos, assemelhan- fanáticos da agricultura biológica antivacinalistas ou feministas. I
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o movimento tem adeptos e encontrou eventualmente aliados ção das centrais; daí o tema 1?2!Ü.k\;): a sociedade nuclear será
políticos em certos pequenos partidos ou grupos de extremai uma sociedade ultracentralizada e policial que não poderá to-
esquerda e em certos sindicatos. Na Itália, as idéias ecológicas lerara mínima contestação. Os ecologistas europeus que, no
são defendidas por um partido, o Partido Radical. verão de 1977, se precipitam diante do sítio do breeder de
De 1969 a 1973 não se pode falar verdadeiramente de mo- Malville em gigantesca manifestação experimentam essa into-
vimento unificado. O alento contestador da "revolução cultu- lerância à sua custa: a polícia carrega brutalmente, várias de-
ral" de 1968 dá nascimento a diversas ideologias e práticas zenas de manifestantes são seriamente feridos, um rapaz pacifista
mais ou menos efêmeras. A Internacional Situacionista que teve cai morto.
um papel importante na contestação estudantil produz uma crí- O combate antinuclear tem tido o mérito de dar identidade
tica da vida quotídiana e da sociedade de consumo. "Consumi à contestação ecologista, mas ao preço sem dúvida de uma
mais, vivereis menos", escreviam nas paredes de Paris em maio polarização excessiva em torno deste único tema. A maior parte
de 1968. O movimento comunitário tenta diversas experiências dos ecologistas acha-se desamparada quando se trata de lutar
de retorno à terra e à economia autárcica que, mais ou menos em outras frentes. O desenvolvimento da "telemática" é, em
depressa, terminam em fracasso. A contracultura californiana toda a parte, nos Estados Unidos e na Europa, objeto de uma
propaga o terna das tecnologias doces. De forma completamente intensa propaganda por parte dos Governos. Instalam-se ter-
independente, as associações de proteção da natureza se orga- minais de computadores nos jardins de infância, habitantes de
nizam e aprendem a se servir das armas jurídicas. Criam-se cidades inteiras são ligados gratuitamente a bancos de dados
agrupamentos locais, que reúnem para uma ação comum aque- através de uma modificação de seus receptores de televisão,
les cujo meio ambiente quotidiano é destruído pelo mundo condiciona-se, em suma, a população a entrar na era da socie-
industrial: usuários "cativos" dos transportes coletivos, pedes- dade informacional. O risco é mais difuso, mais abstrato, mais
tres, vizinhança de aeroportos, habitantes ameaçados de expul- dissimulado que no caso do nuclear, e nem todos ouviram falar
são. Eles interpõem ações administrativas das quais algumas do Big Brother de 1984, aquele romance de George Orwell.
conseguirão impedir que uma auto-estrada urbana torne invi- Até aqui os ecologistas brilharam sobretudo por sua ausência
vível um bairro ou obrigarão uma fábrica a cessar com as suas nesse terreno onde está, contudo, em jogo o futuro das demo-
poluições. A pressão da opinião pública força o poder a criar cracias ocidentais.
um Ministério do Meio Ambiente e da Qualidade de Vida, cuja Seja como for, encorajados por seus sucessos na luta anti-
. ação legislativa será das mais tímidas. nuclear, os ecologistas europeus, a partir de 1974, e sobretudo
A grande chance do movimento ecológico, mas talvez tam- depois de 1976, decidem entrar na política. É na França, em
bém a fonte de sua atual fraqueza, foi o detonador nuclear. 1974, que pela primeira vez na história um candidato à Presi-
Após a suposta "crise" do petróleo de 1973, a maior parte dos dência da República se apresenta apenas em nome da ecologia.
países europeus resolve acelerar e intensificar seu programa René Dumont, agrônomo internacionalmente conhecido, não ti-
nuclear. Essa decisão alcança a proeza de fundir em uma mesma nha evidentemente nenhuma possibilidade de ser eleito, mas sua
contestação os diversos componentes daquilo que se começa campanha eleitoral tem o enorme mérito de revelar aos franceses
então a chamar o movimento ecológico. Aparece uma nova forma que a política pode ser outra coisa que lutas ferozes entre apa-
de militarismo. Em toda a Europa, formam-se comitês que em- relhos e debates obscuros sobre a economia: a política é também
preendem campanhas de informação junto às populações. A a discussão da forma como os homens pretendem viver em
tarefa é difícil, pois o lobby nuclear adota o mesmo comporta- comum. Em 1977 as eleições municipais oferecem um segundo
mento, e com meios publicitários aperfeiçoados. A contestacão terreno propício ao desenvolvimento das teses ecológicas. É ao
organiza-se em torno de três temas: técnico: os riscos são enor- nível do município que a maior parte dessas teses encontra a
mes, mesmo se a probabilidade de aCidente é fraca; econômico: sua dimensão ótima. O sucesso é considerável. Em Paris, os
para rentabilizar o nuclear, é preciso uma exploraçãOlilaaçã, candidatos ecologistas alcançam 10% dos sufrágios. A partir
em condições que proíbem qualquer falha, qualquer imobiliza- desse momento, os. partidos tradicionais sentir-se-ão obrigados
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se?tat~vos da crítica pós-marxista da sociedade industrial Em
a pôr um pouco de "verde" nos seus programas. Às vezes de pr~~elr<: lugar, podemos sem dúvida colocar Ivan Illich .cu' as
forma cômica: um conhecido incorporador descobrindo repen- idéias t~,:eram na. Europa um impacto considerável. Dot~do lde
tinamente em si uma inclinação irresistível pelos espaços verdes. um espmto perfeitamente independente, Illich não se reconhece
e pela pureza do ar. em ?enhuma da~ ~scolas que ele inspirou, nem certamente no
Como para o combate antinuclear, os sucessos alcançados movimento ecológico, do Iqual percebe todas as ambiziiid
A ó~ ad es.
em política tiveram imediatamente seu reverso. Até então, o P ode-se eventuaImente ve- o como um herdeiro da Esc I d
movimento ecológico era percebido pelas forças políticas insti- Fra~kfurt, ilus~rada pelos nomes de Habermas, Adorno~ ~or~
tuídas como um amável folclore. A partir do momento em que kheimer e eVld~ntemente Marcuse, e um discípulo de Paul
ele foi capaz de recolher mais de 5% de votos, os estrategistas Goodman, o pU;. do movimento radical norte-americano. Um
dos partidos passaram a levá-lo a sério. Na maior parte dos dos melhores. teoncos do socialismo, Michel Bosquet tornou-se
países europeus, a clivagem direita-esquerda reparte aproxima- na França o mtelectu.al mais in~luente do movimento' ecológico.
damente a população em duas partes iguais. A ecologia tornava-se Se:r pensamen~o realiza uma síntese brilhante de Marx e de
então o árbitro da situação. Por parte da esquerda, sobretudo, Illich, e ta~bem bebe na fonte do existencialismo sartriano.
os ecologistas foram intimados a se situar claramente no tabu- . Passa~e~ agor.a aos principais temas da contestação ecoló-
leiro político tradicional. Muitos se recusaram. A maior parte dos gica. Anahsa-Ios:el brevem~nte e em conjunto numa primeira
ecologistas têm o coração à esquerda, no sentido de que militam etapa. Nos capítulos seguintes aparecerão análises mais deta-
por uma sociedade mais justa, mais livre e mais responsável. lhadas de temas específicos.
Mas observam que a esquerda institucional, para atingir esses ,Q.primeiro tema é a questão da sobrevivência da humani-
objetivos, preconiza meios que, acreditam eles, produzirão exa- dade na es~ala planetária, "Nós temos uma Terra só" e esta-
tamente o inverso do que é almejado. Reescalada do crescimen- mos. destruindo-a e a nós também, na mesma ocasião:' tal fora
to econômico, grande consumo energético justificando o recurso o grrto lançado por milhões de jovens reunidos em Estocolmo
à energia nuclear etc . .Eles denunciam a perversão do socialismo em 1972, por o,casião ~a Primeira Conferência das Nações Uni-
em um estatismo produiívista. Deploram que os partidos de das sobre o . Meío Amble?t~. Mais precisamente: se todo o pla- ,
esquerda 'Sé-õrgãnizem como máquinas de guerra concebidas para neta se obstina a querer irrutar o modo de vida norte-americano
tomar o poder do Estado. O fato de se recusarem a situar-se ou mesmo europeu, corre p~ra a catástrofe, e mais depressa
l testemunhou certa coragem, mas teve dois inconvenientes: o ~o .q~~ pensamos. Os ecologistas sabem quanto essa evidência
movimento ecológico marginalizou-se incontestavelmente, e o e. dlf1cl~ de ser defendid~ diante dos países pobres. Nós, países
confronto com a esquerda fez com que ele se fragmentasse em rICOS, tiramos bom proveito da opulência industrial mas quando
várias tendências, tendo alguns estimado que melhor seria reti- o~, outr.?s ~edem um lugar à mesa do festim, grÚamos: "Alto
rar-se do campo político tradicional para não perturbar a luta la. vo~es vao :stragar, tudo com suas más maneiras de pobres!"
anticapitalista. Resultado: nas eleições legislativas francesas, em Os ill;meros ~ao. tern~eis: "S:0m 13% da população mundial,
1978, os ecologistas apresentaram-se com efetivos reduzidos e os países capitalistas industrializados consomem 87 % dos re-
em ordem dispersa, e obtiveram apenas resultados medíocres. c~rsos .energéticos. Apr?priam-se da 1?etade da pesca mundial,
A situação foi idêntica nas recentes eleições de sufrágio univer- nao del?,~ndo ao TerCelr? Mundo mais do que a quinta parte.
sal do Parlamento europeu. No entanto, os ecologistas recolhe- Eles utilizam, para se alimentar, 20 % das superfícies agrícolas
ram freqüentemente quase 5% dos votos, não ultrapassando, do globo além das suas próprias. Estabelecem no Sahel em
porém, o limiar iníquo de 5 %, além do qual eles poderiam plena fome, uma criação de 150.000 hectares que deve fome-
pretender cadeiras no Parlamento. O Partido Radical italiano ce~ ca~ne à Europa. Dão 2/3 da colheita mundial de soja a seus
foi o único que obteve duas cadeiras. animais, enquanto a soja é o primeiro alimento proteínico para
, O debate entre a esquerda e a ecologia teve o mérito de um bilhão de habitantes da Ásia. Afirmam que a hidrosfera e
forçar esta última a afinar suas análises e argumentos. Ela a atmosfera serão envenenadas pelos resíduos dos 8, 12 ou
buscou inspiração na leitura de certo número de autores repre-
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16 bilhões de homens do próximo século; mas os 500 milhões somente os camponeses ricos conseguiram sair-se bem. Os outros
de habitantes da Europa ocidental e da América do Norte cau- morreram de fome ou se proletarizaram. Sem falar das secas de-
sam hoje ao meio ambiente tantos estragos como o fatiam (se sastrosas que resu!tar~m do bombeamento mecânico. Resultado:
existissem) dez bilhões de indianos'". René Dumont, o candi- em dez anos,. a India não aumentou sua produção de cereais.
dato ecologista às eleições presidenciais francesas, afirmou ener- !"1a~ as leguminosas; ~ue são a principal fonte de proteína dos
gicamente: "Nós somos assassinos que tiramos as proteínas da indianos, foram sacrificadas, as terras cultivadas diminuindo de
boca das crianças pobres". Nessas condições, os ecologistas 40% e a produção de 30%.
podem compreender a reação de um Fernando Henrique Car- ~ . s~gundo grÇl11ck~e.!!HL dlLc.ontestação ecológica é a. crítica
doso: "Seria um caminho suicida imaginar que um país pode do ~~t~shIsmo das forças produtivas e a crítica da economia. Ê
.. dar aS costas, pura e simplesmente, ao desenvolvimento tecno- 'Sõbre esse ponto que é mais nítido o choque com o marxismo.
lógico mundial e escolher uma alternativa própria baseada em O qu~ s~ repr~va em .Marx, no fundo, é ter ele pensado que
seus recursos naturais. Não acredito que uma solução ingênua o capitalismo so poderia ser ultrapassado desde que, primeiro,
pudesse solucionar o desafio da dominação tecnológica mundial. ~ouvesse trlu?fado totalmen~e;.que ° comunismo só seria pos-
A ingenuidade não tem perdão em política. Este mundo é todo sível se, previarnente, o capitalismo preenchesse a sua "missão
ele dominado por relações polítícas.t'" civilizadora", histórica, desenvolvendo as forças produtivas até
Em outras palavras, não fomos nós que começamos, e esco- a abundâ~cia. Não faltam os textos que podem ser pregados
lhemos as armas do combate. Os ecologistas podem compre- no pelourinho. Como, sem dúvida, a famosa passagem da Ideo-
\
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ender essa reação e essa lógica infantil, mas, não obstante, podem
ver aí pura loucura. "Ingenuidade", pode ser, mas a alternativa
é a ingenuidade da utopia, ou então a morte. Conhecemos a si-
tuação clássica da teoria dos jogos, chamada "dilema dcprisio-
logia alemã:
2 Michel Bosquet e André Gorz. Ecologie et politique, op. cito 4 Karl Marx, A ideologia alemã, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1965
3 Intervenção no Seminário de Ciência, Tecnologia e Estratégia para a p. 31. '
Independência. Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1978, p. 82.
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o bem. Simplesmente não escolhem. A parcimônia da natureza necessidade. Ora, o que é preciso é que os homens se reconciliem
.condena-os à guerra. Ora, a raridade, que é fonte de violência, com a ?atureza e com as coisas: que eles façam delas o nicho
'é também a mãe da economia. A guerra dos homens que ela ~. harmoruoso e amado que abrigue sua história.
: engendra, produzindo a abundância, produz as condições de sua O terceiro tema é a crítica das ferramentas e do modo de
., !I, '>
· ·'·
. prod~ção industrial. É aqui que os ecologistas se fazem tratar pe-
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própria ultrapassagem e abre as portas da paz. Isso se encontra
'I tanto em Hume e Locke como em Marx." A luta de classes é jorativarnente de "rousseauístas". O que testemunha antes de
uma astúcia da história que obriga o capitalismo a desenvolver a tudo uma ignorância lamentável da obra desse admirável escri-
produtividade social, a imaginar formas de regulação que evitam tor e desse profundo pensador que foi o grande Iean-jacques.
as crises, a criar uma legislação do trabalho, em suma, a "pro- Devo portan:o r~tabelecer a v;rdade da posição ecologista. Os
duzir seu próprio coveiro" (Manifesto), a fazer a cama do so- ecologistas nao sao contra a T écnica com um T maiúsculo não
cialismo. Economistas brasileiros de renome e de esquerda, não recusam sistematicamente o que denominamos com excessiva
hesitam hoje em fazer a apologia das multinacionais. As destrui- pressa, sem espírito político, o "progresso" técnico. O que eles
ções culturais que elas produzem não são nada em vista do põem em causa é o projeto técnico que caracteriza a sociedade
que, sem o querer, elas trazem ao país: armas tecnológicas que industrial. Por projeto técnico, entendo a vontade de substituir
permitirão, um dia, expulsá-las. Eis por que os esp.íritos "escl~ o tecido social, os laços de solidariedade que constituem a trama
recidos" que acreditaram no progresso da humarudade acredi- de uma sociedade, por uma fabricação; 6 projeto demente de
taram sempre na coincidência do progresso material e do pro- produzir as relações dos homens com seus vizinhos e com seu
gresso moral, no momento mesmo em que percebiam que o mundo como se produzem automóveis ou canos de ferro fundi-
progresso material nasce da violência e da guerra. do; a invasão pela racionalidade instrumental, a lógica dos meios
Eis aí, dizem os ecologistas, uma pura loucura. Os prodí- e dos fins, de lugares onde ele nada tem a fazer, esses lugares
gios da dialética jamais farão com que o mal engendre espotânea - que os gregos chamavam de políticos> em oposição à tékhnê
e inevitavelmente o bem. O desenvolvimento das forças produ- esses lugares onde das ações autônomas dos homens e de
tivas capitalistas repousa na inveja, no ciúme, no despeito, no seus afrontamentos nasce a história, com suas surpresas felizes
ódio, atiçados pelas desigualdades. É a guerra de todos contra ou trágicas. A auto-estrada, o rim artificial e a "telemática" não
todos. O crescimento econômico só é praticamente legitimado ~ão apenas objetos ou sistemas técnicos: revelam uma relação
\ hoje em dia porque tenderia a reduzir as desigualdades. Ora, Instrumental com o espaço, a morte e o sentido. É essa rela-
como seria isso possível, visto que o crescimento é as desigual- ção instrumental, o sonho de domínio total que ele recobre, que
' dades? Os "bens" que o constituem, tanto por sua natureza
os ecologistas denunciam. Pois, dizem eles, ao quererem dominar
própria (os bens "distintivos" que evoquei acima) como por a na~ureza e a história com suas ferramentas, os homens só con-
seus efeitos deletérios sobre o meio ambiente, não podem ser seguiram tornar-se escravos de suas ferramentas. O projeto téc-
.eqüitativamente repartidos sem perder seu valor de uso e seu nico não é neutro: ao contrário do que pretendem as ideologias
.valor simbólico. Como poderia sair daí uma sociedade justa e dominantes, sejam elas de direita ou de esquerda, ele não produz
pacificada? Quanto à idéia de que os homens só poderão se co- o ~em ou o m~l segundo. as intenções daqueles que o geram.
municar na alegria e na plenitude de seu ser uma vez libertados Chirac (o prefeito de Paris ) pode prometer que fará "auto-es-
da dominância das coisas e das necessidades naturais, é uma tradas ecológicas", e os comunistas que na sociedade sem classes
idéia profundamente viciada: ela supõe que, de um lado, as todos os ex-proletários voarão de Concorde: não impedirão que
relações dos homens com a natureza e, de outro, com o meio uma sociedade organizada em torno de suas auto-estradas e dos
ambiente material que eles criaram, só podem ser relações de seus aeroportos crie mais barreiras entre os homens que os apro-
xime (cf. capítulo lII).
É naturalmente a teoria illiehiana das ferramentas que vai
l) Cf. Paul Dumouchel. "L'ambivaIence de Ia rareté", in Paul Dumou- mais longe na análise rigorosa de seus efeitos "contraproduti-
chel e Jean-Pierre Dupuy, L'enjer des choses. Seuil, 1979.
vos": esses efeitos paradoxais que revelam uma perda de con-
30
31
t
mas 'com o Marx que evidentemente já não lemos desde .que Vejamos mais de perto a sua análise 6. Consideremos por
Althusser e os estruturalistas nos proibiram de fazê-lo: designo exemplo todo esse povo das ruas que dava ao Rio, não faz ainda
naturalmente o capítulo I de O Capital, o fam?so. capítulo s~b.:e muito tempo, o seu encanto tão particular, como a outras gran-
o fetichismo da mercadoria. Para. Marx, a ptlmel~a contradição des cidades do mundo: essas pessoas que qualificamos de modo
do capitalismo, que faz dele o remo da mercad~rla, e a contra- depreciativo de "não produtivas", mas cuja presença fora do
dição entre o trabalho privado e o ~abalho social, Os homens universo dos escritórios e das fábricas faz com que a cidade,
não consomem o que produzem e nao produz~m o que conso- entre 9h da manhã e 6h da tarde, não seja um deserto comple-
mem. Produzem portanto para os outros, mas mdependenterr:en- to e que todos os bairros residenciais não sejam ainda lugares
te destes sem a menor preocupação com a sua sorte, VIsto suspeitos e zonas perigosas: o basbaque ocioso cuja presença
que produzem para o seu próprio interesse egoísta de produy~.r, sem motivo no passeio contribui para tornar a cidade segura
de forma privada. Essa contrad~çã<:, que preced: .a contradição ou a velha senhora que, sentada atrás de sua janela, deita "olhos
da divisão da sociedade em capitalistas e proletários, ~esolve-se à rua" - segundo a feliz expressão da urbanista norte-america-
na Jane Jacobs 7.
na troca e no fetichismo do valor de troca: os me~amsmo~ do
mercado aparecem aos homens como obedecendo a_leIs exteriores Todas essas pessoas, sem tê-lo planejado, mas também sem
à sua vontade e à sua consciência. Os homens nao reconhecem se sentir alheias ao resultado, produzem valores: a segurança,
nelas o resultado de seus atos. O mercado realiza portam;? uma a animação, a convivência. Ora, esses valores podem ser pro-
socialização paradoxal, pois ninguém, antes p~lo contrario, a duzidos de outra maneira: a segurança, por exemplo, nas ruas
quis, a pensou, a concebeu. A soma ?os egols~oS. produz o "sem olhos" de que fala Jacobs, por milícias privadas ou por po_
lícias burocráticas.
tecido social, como teriam podido faze-lo a solidariedade e a
benevolência. O que Adam Smith e Hegel tomavam por ~m Podemos generalizar esse exemplo: todo valor de uso pode i
prodígio será para Marx uma alienação. Conhe~emos o se~ ~ ser produzido de duas formas, implementando dois modos de
teresse pela comuna camponesa russa que realiza a associaçao produção: um modo autônomo e um modo heterônomo. Assim,
imediata dos produtores, a sua nostalgia da G~meinschaft} a sua pode-se aprender despertando para as coisas da vida num ambi- j
ente cheio de sentido; pode-se também receber educação por {
visão do comunismo como "comunidade imediata e transparen-
parte de um professor pago com esse objetivo. Podemos estar A
te" na qual os produtores associados subme,terão_os processos bem de saúde levando uma vida sã; podemos também receber
econômicos à sua vontade comum. Marx, porem, nao quer fa~er cuidados por parte de terapeutas profissionais. Podemos ter
t moral, pretende fazer obra científica. Assim, an~es de denunciar uma relação com o espaço que habitamos, baseada em desloca-
\ excessivamente a alienação dos homens a mecarusmos, ele p~efe mentos a baixa velocidade: andar a pé, bicicleta; podemos tam-
rirá mostrar que estes só podem funcionar mal e conduzir a bém ter uma relação instrumental com o espaço, com o fim de
crises. S' transpô-lo, anulá-lo, o mais rapidamente possível, transportados
A abordagem de Illich é similar até certo ponto. o que por máquinas a motor. Podemos prestar serviço a alguém que
Illich escreve no fim do século xx. O que, no tempo de Marx, pede ajuda; podemos lhe responder: há serviços para isso (hos-
era essencialmente verdadeiro para a relação de trabalho tor- pital, polícia etc.).
nou-se verdadeiro para o conjunto de relaç~es que os home~s
tecem entre si e com o mundo. Esssa relaçoes, os homens nao
as produzem mais por si próprios, de modo autônomo, ela~ lhes 6 Ela é desenvolvida no capítulo lU de: Ivan Illich. A expropnaçao
da saúde - Nêmesis da medicina. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1975.
aparecem como o produto não desejado de forças, mecanismos Nós a retomamos e desenvolvemos em Jean-Pierre Dupuy e Jean Ro-
e instituições cujo controle lhes escapa. E a esse processo de bert. La trahison de l'opulence, PUF, 1976, fruto dos seminários do CIDOC
exteriorização, a essa alienação, que Illich dá o nome de hetero- dedicados, de 1973 a 1976, à crítica da economia.
nomia. 7 Cf. o seu excelente: Deatb and Li]e 01 Great American Cities, Peno
guín, 1961.
32
«
Ao contrário do que produz o modo heterônomo de pro-
dução, o que produz o modo. autônomo em geral não pode ser co~tU?O, que, com relação à análise marxista '
medido, avaliado, comparãCtõ";'~ãaíciónado a outros valores. Os ~t1t~e~ra .parte, a propósito da "ecologia do ca~rt:l~sPres,~nteI na
valores de uso produzidos pelo modo autônomo escapam à ria illichiana vai mais longe em dois pontos e . ~o , a teo-
'1 1 ssenCIaIs' em pri
competência do economista ou do contador nacional. Alguns metro ugar, e a se aplica tanto à produção "imat "1" 1-
estariam prontos a incluir no PNB o valor dos serviços que se à produção material, à sociedade "pó s-industríal" ena, co~o
d d . d .1 b como a SOCIe
prestam mutuamente os amantes e os esposos de um país, valo- a ~ m ustnaí, e so retudo, em segundo lugar ela 1 -
rizando em cruzeiros ou em dólares esses serviços por meio do a crrse atual é bem mais profunda que uma sI.'mple reve da que
f" d ,. " sperade
preço do mercado paralelo - cálculo que pode ser afinado le- d rcacia a r:;aqUlna capItalIsta (crise de superacumulação e '
vando-se em conta, por. exemplo, o standing da parceira - , .e reproduçãoj , com a condição de se levar em conta cnse
i• i cial , ou seja, as re1açoes
- h umanas que ainda escapam o essen- '
I mas correriam o risco de parecer obscenos aos olhos de seus d d ' ao remo
I dignos e afetados colegas. a merca orta, compreende-se que afinal o efeito 'b' d
Pr o duçao
- m~rcantl'I e' destrtnr,
. e não" construir com dif o VIa a
O lll()d~) de produção heterônomo traduz uma vontade de ld d
controle sobre a natureza e a sociedade, Ele não é um mal em cada vez rnaior. I ICU a e
si, longe disso. Mas a grande questão levantada por Illich é a Existe outra diferença fundamental entre Marx 111' h
da ,"ª!~çylªç~Q entre o modo hererônomo e o modo autônomo de que se deve. as" épocas dif e
,1 erente.s .e~ que escrevem; Marx
icartee
produção. Anoto entre parênteses que é uma questão pela qual de uma socIedade. aromizada, dividida, onde os homens sã~ se-
Marx nunca se interessou. Raciocinando sobre o modo de pro- parad~s pela mediação econômica. O tecido social resulta de
dução capitalista "puro", ele nunca se perguntou, por exemplo, mecamsmos sobre os quais os homens não têm nenhum dom' .
em que medida o trabalho gratuito de produção doméstica, que
A r - M - ,
essa. a le~açao ~rx opoe o Ideal de uma sociedade perfeita-
Imo.
é essencialmente feito pela mulher, intervinha na reprodução mente lmed.lata a SI mesma, controlando totalmente as relações
de força de trabalho. Para Illich, não se trata de negar que a q,ue a constituem. Quanto a Il1ich, parte justamente de uma so-
produção heterônoma possa vivificar intensamente as capacida- cle?ade q~e p~etende, ,através de uma fabricação, consolidar um
des autônomas de produção de valores de uso. Sua hipótese é te~1do SOCIal ainda mais rasgado que o do tempo de M
s t d d ., 1 arx, ou
que essa "sinergia positiva" entre os dois modos só é possível eJ~ pr~e~ e omina- o e controlã-lo como em qualquer ope-
em certas condições bem precisas. Além de certos limiares crí- raç.ao, tec~Ica, Ora, chega-se assim ao mesmo processo de ex-
ticos de desenvolvimento, a produção heterônoma engendra tenonza~a~. Os ecologísras sabem por experiência quanto é fácil
reorganização do meio físico, institucional e simbólico, tal qual aos adrninistradores das grandes instituições heterônomas abri.
as capacidades autônomas são paralisadas. Instala-se então um g.ar-se atrás de "leis naturais" para pôr fim a toda crítica polí-
círculo vicioso que Illich chama de contraprodutividade: o em- tlC~ de seu território. Acreditando neles, as auto-estradas cres-
pobrecimento dos laços que unem os homens ao mundo e aos cerram no espaço, d~s homens como as artérias no seu corpo. O
outros torna-se um poderoso gerador de demanda de substitu-
I
bomo [aber, o técnico, o engenheiro social transforma-se mira•
.tos mercantis, que permitem sobreviver num mundo cada vez
mais alienante, no mesmo tempo em que eles reforçam as condi-
c~losamente em físico social, encarregado de fazer respeitar as
I
I ções que os tornam necessários. Resultado paradoxal: quanto leis transcendentes da Natureza. Tudo se passa como se de um
il
I
I
I mais cresce a produção heterônoma, mais ela se torna um obstá- lado, a. anarquia l.ib~r~l, e, de outro, a vontade de domínio total
i I culo à realização dos objetivos a que, segundo se cuida ela serve: do SOCIal e do histórico produzissem a mesmo heteronomia a
a medicina destrói a saúde, a escola emburrece, o transporte ~esma a1i~nação. Examinarei demoradamente essa difícil q~es.
imobiliza e as comunicações ensurdecem e emudecem, tao no capítulo IV.
Não insistirei mais nesse esquema fundamental, pois terei Passo ao q.YJ!.~tº,LÚÜ~!!10 tema da critica ecologista. Serei
ensejo de torná-lo menos abstrato nos dois capítulos seguintes, bastante b7eve, pOIS, na reãTIêlàâe, o capítulo IV será ampla.
em que trato dos casos da medicina e dos transportes, Observo, mente dedicado ,a. esse tema. T!3ta-se dacrítica do Estado e da
h~mla política. A reflexão" êcologístá não está certamente
34
~.
-Í..
tão avançada sobre esse ponto como sobre os outros. A maior
parte dos ecologistas se reconhecem na corrente política dita "au- ~en7~ma "lei" tr~nscenden~e pode portanto lhe ser oposta, fora
togestionária", cujas palavras 'de ordem são: redução drástica da as ers que ele !lxa para SI mesmo. O movimento ecológico es-
barra neste obstaculo: como situar a liberdade do homem den-
I: heterorregulação centralizada que é o poder de Estado; reforço tro da Natureza? Mas em realidade ele n-ao' rÓ» , od
lil da sociedade civil. Por sociedade civil não se deve compreender id d . ~ , e o umco: e t a
a mo d erm a e, liberalismo e marxismo incluídos d .
•! aqui, como o fizeram Adam Smith e Hegel, o conjunto das re- . dilh ' que se eixou
cair 1na arma . 1 a capítulo.
quanto a essa questão Crucl'aI . E spero escIa-
lações mercantis; tampouco devemos aceitar a acepção dada por rece- a no u'1nmo
A ,
Gramsci a esse termo: o conjunto dos aparelhos ideológicos e
culturais que organizam o consentimento social. O que os eco-
logistas querem reconstituir ou consolidar são todas as relações
fundadas na reciprocidade e no voluntariado: relações de coope-
ração e de ajuda mútua, associações voluntárias e cooperativas,
vida comunitária sobre o modelo da cidade tradicional etc.
No fundo, sobre esse ponto, os ecologistas são perfeitamen-
te marxistas. Mas é aqui que se tropeça numa ambigüidade for-
midável do marxismo. Os ecologistas estão do lado do Marx
teórico da extinção do Estado: o Marx que percebe uma aliena-
ção fundamental na separação do político como esfera autôno-
ma, que concebe a absorção do político na sociedade civil como
acompanhando a supressão das relações mercantis. Ora, esse
Marx mudou-se estranhamente em seu contrário. O marxismo
~ histórico, institucionalizado, resultou no reforço do Estado e
\ não em sua extinção. Mais uma vez os ecologistas são obrigados
1
a constatar a espantosa semelhança de destino que une o libe-
ralismo e o marxismo, O liberalismo, também ele, concebe a
auto-suficiência da sociedade civil (mercantil). E, também, ele,
se encarna historicamente no seu contrário: nada serviu melhor
à causa do Estado centralizador e forte, no século XIX, do que
,0 mercado concorrencíal organizado à escala de uma nação.
Como sair dessa cilada? Em verdade, os ecologistas não respon-
deram a essa questão.
Se fosse preciso resumir numa só palavra os valores sus-
tentados pelo movimento ecológico, essa palavra seria Autono-
mia. Mas é aí também que se resume toda a ambigüidade do
movimento. Pois como se pode lutar ao mesmo tempo em nome
do respeito aos equilíbrios naturais, e combater pela liberdade
do homem? Um dos grandes especialistas em liberdade do nosso
século, Jean-Paul Sartre, até escreveu: "O homem é o ser por
(j quem o nada vem ao mundo"; o nada, quer dizer, a negação
do que está aí, tolamente, em si: o mundo da natureza. O ho-
mem pode fazer existir o novo; o que não estava ali antes dele.
36
)7
~
Capítulo 11
A invasão médica
41
seu devido lugar. Medicina em excesso: eis o que importa de- têm um trabalho extenuante ou sem interesse, que vivem em
~ nunciar. Medicina em excesso, isso não remete a uo: progres~o alojamentos superlotados e insalubres, cuja alimentação é ínsu- \
técnico que seria julgado excessivo, a um poder de Intervde~~ao ficiente ou imprópria, são mais doentes do que os outros, e são
sobre a doença e a dor que seria considerado nefasto. Me IClt~a
em excesso, quer dizer: produção em excesso de uma mercadorz~
li mais consumidores de cuidados médicos. Mas isso não reduz
globalmente em nada sua morbidade e sua mortalidade.
Não, a medicina não é uma medicina de classe, no sentido
chamada saúde. l' A d .
Compreendo que mesmo isso possa esc~nda tzar.. s. eSI-
gualdades em matéria de saúde são sem dúvida as mais ~ntole
J
I
de que, serva do capitalismo, ela proporcionaria seus esforços
em função da capacidade produtiva do beneficiário. Os sistemas
ráveis, porque tocam a nossa relação com o corpo, ~ vida, a , médicos dos países ocidentais orgulham-se de não fazer discri-
morte. No século XVI, quando os relógios se mult1pl~ca~ e o minação por dinheiro. Sem dúvida, ao procederem assim, eles
tempo se reduz a uma duração onde a acumulação capitalista se
I não têm muito do que se orgulhar, além do mais o dinheiro não é
torna possível, a morte aparece ainda nas Da~ças macabras o único obstáculo nem mesmo o principal: ~ós fatores SÓciO-Cul-\
como uma forca da natureza igualitária, à qual ninguém escapa. rurais, as atitudes com relação ao corpo, à doença, à morte, pa-
Hoje, na França, nota-se com justa indigna~ão. que os trabalha- recem predominantes na explicação das desigualdades de acesso i.
dores não-qualificados morrem dez anos mais Jovens .do. que _os à medicina:iMas é bastante exato que na França, por exemplo, I
"patrões" da indústria e do comércio. Causa menos . indignação, os hospitais públicos, que são de qualidade incomparavelmente
é verdade, o fato de que o parisiense viv~, .em.mé?1a Cl,~ase 20 superior à das clínicas particulares, tratam dos velhos, dos apo-
anos mais do que o carioca. A esque~d.a institucional deduz sentados e dos trabalhadores portugueses com o mesmo empe-
logo disso que a medicina é uma medicina de classe, uma me- nho obstinado e gastos que dedicam aos "patrões" ou aos altos
dicina burguesa. ., .. funcionários. Essa igualdade de tratamento é mesmo um dos
Considero essa crítica completamente mJustIft<:ada, ~o caso maiores argumentos da ideologia médica. O capitalismo não se
de um país como a França, pelo menos. Contudo; ~sso nao quer felicita de sua medicina: ela lhe sai cada vez mais cara. Num
dizer que eu não tome a medicina por .uma medicina d~ classe: país como a França, onde o financiamento do sistema de saúde
mas faço-o num sentido totalmente distante. Na reahd:t.d~ a se faz não por imposto, mas por cotizações com base nos salá-
crítica "de esquerda" confunde superficialmente duas. noçoes: rios, os encargos sociais tornam-se tais que ameaçam de paralisia
a desigualdade do acesso ao sistema médico e a desigualdade as capacidades de exportação.
do estado de saúde. Escandalizamo-nos com o fato de que o A medicina não é também uma medicina de classe no sen-
bolo seja desigualmente repartido, mas ne~ chegamos a saber tido de que serviria de correia de transmissão ao poder hege-
1 e, bom , e muito menos se não estaria por acaso envene- mônico do Estado burguês. Na maior parte dos países ociden-
se e e desí ld tais, e é esse o caso da França, a relação de forças é praticamen-
nado Quero dizer com isso que nada prova que as esigua a-
des de saúde sejam o reflexo das desigualdades de consu.mos te invertida. O Estado aparece como um criado a serviço do
médicos. O estudo sério mostra que não se. trata ~e nada dISSO. complexo médico-farmacêutico. Dizendo isso, não pretendo evi-
É verdade que alguns consomem n:aIs med1camentos, ~o dentemente defender uma posição marxista ortodoxa, que veria
que outros, passam mais tempo no hospital ou no .c<;msl;lltorlo no Estado uma simples superestrutura jurídico-ideológica a ser-
médico. Devemos por isso considerá-los com~ prl~ileglados? viço do capital médico-farmacêutico. Quero assinalar simples-
Isso não testemunharia simplesmente que eles ~a~ ~aIS ~oentes, mente a autonomia do poder médico com relação aos interesses
dando a esta palavra uma acepção social e sociológica, ~h.ferente econômicos e políticos que caracterizam uma sociedade capitalista
sem dúvida do sentido biológico: é doente aquele que e Incapaz e, em particular, a impotência do Estado em exercer o menor
de assumir seu papel social na vida quotidi~na? , controle sobre esse poder".
'\'1sso começa a ser bem conhecido: as d~slgualdades de sau-
\ de são essencialmente a manifestação de desigualdades das con-
\ dições de vida, tomadas no sentido mais amplo. Aqueles que 4 O leitor poderá encontrar, para o caso francês, várias ilustrações
dessa asserção em A invasão farmacêutica, op. cito
42 43
t
Se a medicina dos países industrializados ocidentais pode co?servar ou recuperar a saúde". "Entre a higiene e a medicina
contudo ser chamada de medicina de classe, é portanto em outro existe a~eslIla dIferença que entre a cultura popular e a cul-
sentido. É que, no seu setor, a saúde, ela realiza a mesma ex- ! t~ra eru~lt.a. A tradução em higiene do saber médico útil é um
fI:n tradicI?~al dos revolucionários. Ela advém não de uma
~
propriação das capacidades autônomas que o capitalismo indus-
l' trial na produção material propriamente dita. '"l\. transformação íatitude a~tIcIe?tífica mas de uma atitude antielitista "5.
\ da saúde em mercadoria obedece à mesma lógica que a trans- \ A e~I~effilologia é uma disciplina jovem e, fora dos países,
formação da produção comunitária ou artesanal em produção; anglo-saxomcos que a desenvolveram, é ignorada e até mesmo
I capitalista. Assim como são expropriados da livre disposição de desprezada pelos médicos. Ao contrário do que a palavra su-
I
sua força de trabalho em favor de um "patrão", os indivíduos gere, . trat~-se ~pe?as secundariamente do estudo das epidemias.
~ são expropriados de sua soberania corporal para confiar seu A epidemiologia e o estudo dos fatores, médicos e não-médicos,
corpo ao sistema médico. Essas duas lógicas são parecidas, mas que. mfl;renClam a saúde das populações. É uma arma crítica
~'
não são subordinadas uma à outra; elas podem apoiar-se uma consideráve] p~r~_ tod~ :mpreendimento de desmistificação da
na outra assim como podem contradizer-se. Quando Madel T. I m~d~cma. A ~pImao pública es!á condicionada pelas declarações
Luz escreve no seu livro: As instituições médicas no Brasil públicas do npo desta afirmação feita por um importante res-
(op. cit., p. 52): "O efeito politicamente mais geral do saber ponsavel da S~úde na. França: "É graças à medicina moderna
e das práticas, médicas na nossa sociedade é, estruturalmente, O' 9ue a expec~at1Va de VIda no nascimento passou de 20 anos na
de sustentar e reproduzir as relações sociais da estrutura capi- epoca d.e Cristo a 73 anos na época atual". Afirmação grotesca
II talista de produção", devemos segui-la, mas, a meu ver, com e mentirosa, se lembrarmos que a medicina moderna não tem
uma condição: não tomar "relações sociais da estrutura capita- 3~ anos. e. que a expectativa de vida já era superior, nos países,
lista de produção" no sentido clássico .de "relações de produção" oClde?taIs. md~strializados? a 60 anos em 1945.[Mas, sobretudo,
no salariado, quer dizer, de expropriação da mais-valia; mas es- a epIdemIOlogI~ nos ens1l1~ que os progressos' da longevidade \
pecificar que as relações capitalistas de produção são bem mais humana no OCIdente nos ultimos 150 anos devem o essencial
gerais e se encontram em todos os domínios da vida quotidiana aos_progress?s .da higi~ne, eles próprios concomitantes da ele- \
fora do trabalho: trata-se de relações entre, de um lado, as ins- vaça~ _dos mveIs. de VIda: melhoramento da alimentação e das
tituições heterônomas produtivas de relações humanas feitas mer- C~~dIçoes de, alojamento, progresso da higiene pública, disponi-
cadorias e, de outro lado, aqueles que não podem, nem mesmo bIlI~ade de agua _potável, instalação de sistemas de esgoto, edu-
imaginam que poderiam produzir, por seus próprios meios, essas caçao da populaçao para as praticas de higiene pessoal. Sabe-se
relações. por e::,emplo, que a mortalidade por doença infecciosa tinh~
Precisemos isso no caso da medicina. A saúde, como todo regredido amplamente muito antes que fossem conhecidos os
"valor de uso", depende criticamente da forma pela qual o métodos de prevenção e de tratamento. Em Nova Iorque em
"modo de produção heterônomo" fecunda e vivifica as capacida- 1812, a mortalidade causada pela tuberculose era de 700' por
des de produção autônomas dos indivíduos e dos grupos. O 10~. 000. E!? ~882, ano em que Koch descobriu o seu famoso
modo de produção heterônomo é evidentemente aqui a medici- bacilo, ela ja tinha .diminuído da metade " Em 1910 na epoca '
na institucionalizada, definida como "o conjunto dos cuidados e:n que se pensava Implantar os primeiros sanatórios, ela caíra
e tratamentos codificados que são dispensados às pessoas por a~nda outro tanto, para. s~ .tornar i~fe?or a 50 em 1945, quer
um corpo de profissionais especializados". O modo de produ- dizer, antes mesmo do mICIO da qUImIOterapia.
ção autônomo é o que tradicionalmente chamamos de higiene. .1.sso não q~er ~izer evidentemente que as armas que a '
Esta palavra está significativamente desvalorizada, e devemos medicina conseguru fmalmente aperfeiçoar sejam ineficazes. Essa \
portanto lembrar que, por sua etimologia- grego: bugiéia -
significa "arte de viver" e, acrescentaremos em breve: arte de
morrer, a famosa ars moriendi. A higiene é "o conjunto jdas 5 André Gorz e Michel Bosquet. Ecologie et politique, Seuil 1978
condutas e regras que as pessoas observam por si mesmas para Excelente obra, que influenciou enormemente o pensamento do' .'
mento ecológico na França. mOVI-
44 45
--
50 51
[Nessas condições, a expansão dos serviços médicos multi- 3. A CONTRAPRODUTIVIDADE ESTRUTURAL
plica as ocasiões em que as pessoas ouvem dizer que, se elas vão DA MEDICINA
mal, é que há alguma coisa nelas de desregrado, e não porque
elas reagem "sadiamente" recusando-se a adaptar-se a um am-
biente e condições de vida intolerávei;:\ Um laboratório farma- A medicalização do mal-estar serve com toda a evidência
cêutico comercializou na França, e fez com que os médicos às relações capitalistas de exploração. A paralisia da "higiene"
receitassem, um produto apresentado como capaz de "tratar o começa logo que os produtores perdem o domínio sobre o seu
mal das favelas". Esse é apenas um exemplo entre mil. Essa tempo de trabalho e sobre as suas condições de vida. Nenhuma
medicalização da vida e da sociedade testemunha e causa ao prótese médico-farmacêutica pode então compensar essa aliena-
mesmo tempo uma perda da capacidade das pessoas de regrar ção radical, mas a invasão médica, biologizando e naturalizando
os seus problemas na rede de suas relações. Sua capacidade de as disfunções que resultam disso, evita que o intolerável seja
recusa encontra-se estiolada, sua demissão da luta social facili- denunciado e combatido no único nível onde deve sê-lo: no
tada. A .1Iledicina torna-se o álibi de U1lla sociedade. patogênica. espaço político.
A patologia das sociedades hiperindustrializadas não é' à - Contudo Illich não parou aí - e é sem dúvida isso que os
patologia das sociedades ditas do Terceiro Mundo. Uns morrem "progressistas" não lhe perdoaram. Quando Illich afirma que
de "comilança", outros de fome. Mas, se compreendi bem o "o tratamento precoce de doenças incuráveis tem como único
livro de Madel T. Luz, a medicina tem nos dois casos o mesmo efeito agravar a condição de pacientes que, na ausência de qual-
papel deletério: quer diagnóstico e de qualquer tratamento, viveriam em boa
"A medicina é um lenitivo para a extrema carência da saúde os dois terços do tempo que lhes resta para viver", isso
população. O remédio uma alternativa para a fome. .. As ins- parece inaceitável. É que, provavelmente, como diz Michel
tituições médicas têm sido um 'santo remédio' para os males Bosquet, "tornou-se chocante afirmar que é natural morrer, que
de saúde do povo. .. quanto maior a medicalização da sociedade há e haverá sempre doenças mortais, que estas não são um
brasileira enquanto processo político-econômico substitutivo desregramento acidental e evitável, mas a forma contingente
do controle-criação da produção social, maior será o crescimen- que toma a necessidade da morte" 16.
to dos índices de doença" 14 • Vemos aparecer aqui o espinhoso problema das relações
.,-Ou ainda: "É questão de consciência médica e política entre o natural e o político. É a fronteira evanescente que separa
decidir se continuaremos a dar vitaminas às populações famin- um domIrlio do outro:que separa também a contraprodutividade
tas, tranqüilizantes aos explorados no trabalho, analgésicos, an- social da medicina da sua contraprodutividade estrutural.
tibióticos e remédios para o fígado para os sintomas e estados A saúde estrutural do homem, para Illich, é essa capacidade,
mal definidos, reidratantes venosos para os que não dispõem de puramente humana de enfrentar de forma autônoma, e conscien-
I rede de água e esgoto. .. Remédios, automóveis, nutrientes, en-
"/i
-:
latadas, vitaminas, combustíveis, tranqüilizantes ou televisores
deverão ser consumidos cada vez mais para assegurar a continui-
temente, não mais desta vez as ameaças do ambiente, mas uma
série de ameaças profundamente íntimas, que todo homem
conhece e conhecerá sempre, e que tem por nome: a dor, a do-
/ dade do 'crescimento' econômico. A qualquer preço, ainda que ença e a morte. Graças aos trabalhos consideráveis de Michel
se deteriore o nível de saúde de grupos populacionais cada vez Foucalt e de Philippe Ariês, em particular, conhecemos melhor
mais numerosos." :U5' hoje a história da dor, da doença e da imagem da morte. Sobres-
sai desses trabalhos uma verdade muito simples: o homem soube \
sempre lidar com essas ameaças dando-lhes um sentido, uma '
significação, interpretando-as no quadro do que os antropólogos
14 Madel T. Luz, op, cit., pp. 19, 20 e 277.
15 Dr. Hésio A. Cordeiro. "A política de medicamentos", in Reinaldo
Guimarães (org.), Saúde e medicina no Brasil, op. cit., pp. 264 s. 16 André Gorz e Michel Bosquet, op. cito
52 53
: chamam de uma cultura e onde o sagrado evidentemente tinha aquele que não fez o que deveria fazer, ou então o grupo social
l um papel fundamental. O Ocidente moderno nasceu sobre os dominante que reservou para si o acesso aos meios de prolongar
escombros dos sistemas simbólicos tradicionais, em que só soube a vida e de eliminar a doença e a dor etc. Toda morte torna-se
ver o irracional e o arbitrário. No seu empreendimento de des- uma eutanásia. Distingue-se tradicionalmente a eutanásia "ativa"
mistificação radical, ele não compreendeu que esses sistemas (dá-se fim ao moribundo ou ao doente incurável) e a eutanásia
implicavam que limites fossem fixados à condição humana, e "passiva" ( "desliga-se", deixa-se de fazer o que se fazia para
davam sentido a esses limites. Substituindo o sagrado pela Na- manter vivo o paciente). É preciso então acrescentar uma terceira
tureza, em seguida pela Ciência e pela Razão, ele perdeu todo categoria: a eutanásia clandestina, escondida, que resulta do que
o sentido dos limites e, em conseqüência, é o sentido que ele muitos já começam a chamar de deatb controC'Visto que postu-
sacrificou. A expansão médica vai juntamente com a de um mito lam que a sociedade detém o poder de decidir quem morre e
segundo o qual a supressão da dor, do bandicap, e o recuo inde-
finido da morte são objetivos desejáveis e realizáveis graças ao
• quem vive, é preciso admitir que os que morrem desaparecem
porque alguém o quis. Alguns falam de "eutanásia por orça-
desenvolvimento indefinido do sistema médico. A questão é: mento": o planejador, o grupo social dominante do qual ele é
como podemos dar uma significação a alguma coisa que pro- um mero escravo "teria podido", decidindo repartir os créditos
curamos apenas suprimir? de outra forma, salvar esse acidentado, esse incurável de hoje,
Para o marxismo, uma primeira fonte de alienação do mas que poderia não sê-lo e que não o será amanhã. Toda morte,
homem é o desenvolvimento insuficiente das forças produtivas. todo sofrimento têm desde então uma explicaçâo.tiu: ordem do
'Incapaz de lidar com os desafios de seu meio físico, sujeito à humano, do fazer e do não-fazer. Mas o que há de irredutível
-doença e à miséria, o homem procuraria refúgio nas superstições na finitude do homem não tem, portanto, mais sentido.
da religião. Uma segunda fonte de alienação é a exploração do Nossa época, e isso é, em princípio, um motivo de glória
homem pelo homem. O explorado, também aí, confunde os para ela, é obstinada pela questão da vítima. Cercam-se em toda
sofrimentos que lhe inflige o opressor com um veredicto de Deus, a parte os perseguidores. Perseguimos sem dúvida tanto quanto.
e, adormecido pelo ópio da religião, deixa de se revoltar. A antes; contudo já não perseguimos as vítimas perseguimos os
liberação do homem passa portanto necessariamente pela luta perseguidores. Tal como o narrador da La Chule (A Queda) de
nestas duas frentes: contra a natureza e contra a opressão: po- Albert Camus, erguemo-nos em posição de juiz dos juízes. É O'
de-se admitir isso. Mas não tem meios de evitar a questão: a amor do oprimido ou o ódio do opressor que move esses justi-
partir de que pontos críticos essa luta pela liberação vem a se ceiros infatigáveis? Ou, mais simplesmente, é o amor ou o ódio?
confundir com a recusa pueril e absurda do inevitável? Em que LA procura de uma responsabilidade humana na origem de
condições a mistificação que consiste em fazer passar por na- todo mal é sem dúvida qualquer coisa de profundamente ...
tural um mal cuja fonte é política se transforma na mistificação
\ humano, sobretudo nas sociedades de massa onde a indiferença:
~ contrária: a finitude naturalmente incontornável da condição jpara com os outros e o anonimato são a regra.' Quando todavia
humana sendo percebida como uma alienação e não como uma ela se torna uma obsessão, perde toda a sua capacidade libera-
fonte de sentido? do~a, engendra novas alienações. Pode sugeri-lo um desses acon-
Uma menina "vive" há dois anos como um legume, electro- tecímentos quotidianos onde se revela a verdade de uma socie-
encefalograma quase sem relevo. Nenhum médico pode aceitar ~ dade e de uma época.
idéia de "desligá-la". Um bebê acaba de nascer, com uma terri- Uma criança de cinco anos é gravemente ferida num aci-
vel doença dos ossos que o condena a uma vida curta, 1?~s dente de estrada. Instala-se um corre-corre terrível, onde todos
fadada a intoleráveis sofrimentos. Ninguém vai lhe permItlt se empenham para acudi-la às pressas e salvá-la, pondo dura-
'1 morrer. [Numa sociedade que se imagina poder sempre faz: r mente à prova toda a organização dos serviços de urgência.
alguma coisa para ganhar terreno sobre a dor e a morte, entao Mas tudo termina em fracasso, com a morte da criança. Abre-se
J todo sofrimento, toda morte aparece como uma demissão, como u;n processo, seguido por uma opinião pública superexcitada. O
, um fracasso, cuja responsabilidade podemos imputar a alguém: reu: o serviço de urgênca cujas providências foram julgadas
•
insuficientes. Do acidente mesmo, já não se cogita. Numa socie. i~macêutica, ? modelo de condicionamento, as indicações mé-
dade dominada pelo mito da rapidez e da mobilidade, ele cons- dicas. .. ou simplesmente o nome. Ora, podemos estimar que
titui um desses choques em paga do desenvolvimento industrial menos de 5% dos 250 produtos novos colocados no mercado
que se apresentam como fenômenos naturais. francês ca~a ano, ou .dos 500 produtos lançados no mercado
A ação que não tem autor não tem sentido, seja ela malé- norte-amerrcano, :onstltuell?- verdadeiramente inovações impor-
fica ou benéfica. A busca de sentido, de alguém a quem atribuir tantes '. O resto S?O .essencialmente vulgares "sopas", como os:
a responsabilidade da morte da criança, termina aqui paradoxal- denominam os propnos homens do marketing farmacêutico quer'
mente em aceitar como uma fatalidade o que, no entanto, pO· dizer, misturas de moléculas já conhecidas. '
deria ser perfeitamente evitado: bastaria que se reconhecessem Ess~ situação n.ão pode surpreender quem conhece o tipo
limites ao fazer humano. de pesquisa qu~ prancam os, ~aboratórios. Trata-se quase sempre
de uma pesquisa ultra-empírica que consiste em sintetizar o
maior número possível de moléculas e em testá-las sistematica-
mente, . para apreciar sua atividade segundo um processo
4. A INVASÃO FARMACÊUTICA (screening) bem longo, bastante complexo e muito custoso
Essa pesqu~sa sintomática, .aleatória e não coordenada é o oposto
do que se~la uma verdadeira pesquisa fundamental, que partiria
O medicamento adquiriu um papel de primeiro plano na ?O c~nh~clment.? ~a lesão bioquímica à origem da doença para
medicina não-hospitalar. Pode-se duvidar de que a transforma- induzir a terapêutica,
ção do médico de família de antigamente, confessor e diretor de . Só com ~ificuldade os laboratórios poderiam praticar outro
.consciêncía, em receitador mais ou menos competente em qui- npo de pesqursa, tendo em vista a necessidade em que se en-
mioterapia explica-se apenas, ou mesmo principalmente, por ra- contram de. lançar continuamente novos produtos no mercado.
zões de ordem técnica. No nosso estudo sobre a Invasão farma-
cêutica} procuramos compreender como o medicamento se insere
na relação médico-doente, como permite que essa relação se
Essa necessidade resulta da guerra de inovações que eles fazem
u~s ~os outros.' Todo laboratório sabe por experiência que, se
nao inovar, os seus produtos serão eliminados do mercado
!
.estabeleça e que os conflitos latentes não degenerem em ruptura. pelos produtos novos de seus concorrentes.
iNo âmbito dessa medicina liberal de consultório, o medicamento Todavia, é"preciso ~u: essa~ novidades encontrem compra- r
. nos apareceu como o vetor por excelência das funções sociais dores. Ora, o . mercado e aqui bastante particular, visto que
e simbólicas da prática médica que analisei precedentemente] a.quele que decide sobre o consumo, o médico receitador, é dís- \
Na França e na maior parte dos outros países industriais, tlOt~ do que cons?m;, o paciente, "Medicamento prescrito = (
a taxa de crescimento do consumo de medicamentos é uma das medIcamento, vendido , como dizem os laboratórios. Na maior
mais elevadas do setor saúde. Ora, mais da metade dessa taxa parte dos pa1se~,. a sua publicidade dirige-se portanto priorita-
rlamen~e. aos m~dlcos .. MUltas vezes, aliás, e é o caso da França,
I
\ e explica pelo fato de que novos produtos, mais caros, são
permanentemente colocados no mercado, expulsando os prece- a publicidade direta Junto à população é proibida. Ma; obser-
<lentes. Cerca da metade do volume de vendas da indústria far- vamos que,. ~esmo quando isso não ocorre, o médico continua
macêutica francesa é realizada com produtos de menos de cinco a ser o principal alvo da propaganda da indústria. Esta con-
anos. A indústria alega evidentemente que isso é conseqüência sagra em g;:ral. à propaganda duas vezes mais esforços do que
do progresso técnico, mas seria um equívoco acreditar no que ~ pesqUlsa.~S;enacontud.o urn erJ:<:><:~~t qlle() médico não passa
'I ela diz. O que ela chama de "novo" medicamento é com efeito __.~~~n.la. marI<:Jl1ete.tnanIPlllada pelos laboratórios. Se os novos
algo muito variável, visto que se pode tratar tanto de uma des- ~edIcamentõs obtêm tanto sucesso, é antes de t~o porque eles
coberta científica original que enriquece a terapêutica de uma t~m para o. médico, e secundariamente para o doente, uma uti-
nova classe de moléculas ativas, como também de um medica- lida~e . conSIderáveL_Mas essa utilidade tem pouca relação com
mento já existente do qual se modificou a dosagem, a forma a atIVIdade farmacodinâmica dos produtos. Ela está essencial-
56
57
-_.",..,.-------
mente ligada ao papel social e simbólico do medicamento na )lhe prescrevo isto, portanto sei o que você tem, parece dizer o
relação médico-doente. tlliêâico .quando' redige a receita, evitando assim' recorrer a aná-
Os próprios médicos clínicos declaram receber porcentagens. .Iises ou encaminhar o doente a um especialista, o que seria per-
consideráveis (da ordem de 60 a 90%) de pacientes que eles cebido ao contrário como um sinal de incompetência. O medica-
apontam como "psicossomáticos" ou "funcionais". O que querem mento faz mais ainda. Não somente mostra ao doente que o
dizer com isso? Não que os doentes sejam "falsos doentes", no médico sabe o que ele "tem", mas lhe comunica esse "saber"
sentido em que não teriam nada de orgânico: cada um poderá no lugar do médico, em todos os casos em que este último se
citar o tumor que ele diagnosticou no final de um longo pro- .sentiria embaraçado em estabelecer um diagnóstico etiológico e
cesso em tal doente que ele havia qualificado durante muito informar ao seu paciente. Essa função essencial de comunicação
tempo de "puro funcional". De fato, o médico fala de "Iuncio- é evidentemente a bula, freqüentemente redigida tanto para
\ nal" quando se encontra incapacitado de estabelecer um diagnós- o doente como para o médico, que a desempenha, na linguagem
tico suficientemente diferenciado segundo suas exigências: é ,.das indicações do medicamento que é também a dos sintomas
essa uma forma de remeter a responsabilidade a uma origem . observados. Já em casa, o paciente ficará sabendo ou terá a con-
\ psíquica da moléstia. , , , . ".. " J firmação de que "está sofrendo de hipertensão" ou de "um
Essa invasão dos consultórios médicos pelos funcionais I .desregramento hepatobiliário".
deve ser evidentemente relacionada com o fenômeno de medi- Os significados do medicamento são portanto múltiplos e
calização do mal-estar que analisei anteriormentelO doente "so- ,complexos:'Mas quais são os significantes? Quer dizer, quais são
\: matiza" seu pedido de ajuda e o médico entra no jogo: ele não as características do medicamento que lhe permitem preencher
tem nem tempo, nem competência, nem desejo de ir além da tão bem o seu papel social e simbólico? Fizemos um longo es-
demanda de reparação que lhe apresenta o pacienteJ Nem um tudo dessa questão na Invasão farmacêutica, para encontrar sim-
nem outro está contudo totalmente enganado quanto às condi- plesmente: a novidade, símbolo de progresso e de esperança.
ções falseadas nas quais eles se põem de acordo para uma inter- \Os laboratórios têm razão quando afirmam que, produzindo
venção técnica. É a prescrição farmacêutica que, com llleias pa· fnovidades sem cessar, apenas respondem a uma necessidade do
lavrasysubstitui todo anão-dito, e o não-feito. O ~inédico só pode i mercado. Eles renovam assim constantemente a linguagem pela
'~rejubiÍar-se com o aparecimento de térapêutic~s medicam~nt~ }qual o médico e seu doente se dão a impressão de se comunicar.
. sas cujos efeitos são descritos em termos de sl1:tomas e smais O superconsumo farmacêutico é considerável. Dos oito
clínicos facilmente observáveis e que não necessitam passar por mil medicamentos que compõem a farmacopéia francesa, no
um diagnóstico etiológico. hospital público, onde a prescrição farmacêutica não tem o mes-
Nessas condições, o dom da receita é o ritual técnico de mo papel simbólico, utilizam-se apenas algumas centenas. Sal-
.uma assistência, A prescril;lío farmacêutica aparece ao doente vador Allende propôs reduzir a farmacopéia chilena a algumas
Icómo siriâl de que o médico ouviu seu pedido de ajuda iníor-
ó dúzias de produtos. Ele foi ouvido por certos médicos, que
!mulado. O que se passaria se a consulta médica não fosse sa~ foram assassinados na semana que se seguiu ao golpe. Seria
cionada pela entrega de uma receita? - o que no ~ntanto seria um erro, entretanto, ver nesse superconsumo apenas uma fonte ~
perfeitamente justificado em numerosos cas?s, seguindo o. pre- f
de lucros para a indústria farmacêutica.iEle é, antes de tudo a' f /
vceito médico: sem diagnóstico, não há receita, O doente mter-
• manifestação da incapacidade de uma sociedade em praticar a I t
\pretaria isso como significando ao mesmo tempo: ele não s~be solidariedade humana de outra forma que através de rituais .
lo que eu tenho e não quer cuidar de mim. A atuação do médi~o, técnicos derrisórios e custosos.
fiulgada segundo o duplo critério da eficácia e da compreensao.
seria julgada com ~ito rigor e representaria provavelmente a
ruptura da relação. A. prescrição farmacêutica não é portaD:tü
'\ apenas um sinal da atenção que o médico dá ao seu doente, sig-
! nífica também a capacidade de intervenção do terapeut9 Eu
58 59
_.~----------
Capítulo III
O espaço-tempo distorcido
1
1. A CONTRAPRODUTIVIDADE DO SISTE.MA DE
lRANSPORTE 1
1 Esta parte deve o essencial ao meu amigo Jean Robert, que durante
vários anos seguidos animou os seminários do· CIDOC de Cuernavaca
dedicados aos transportes. Cf. sua obra: Le temps qu'on IWUS vole. Con-
tre la societé chronophage. Paris, Seuil, 1980.
63
-----~------------
É esse paradoxo que eu gostaria de tentar esclarecer. As
disfunções dos transportes são evidentes: todos os dias nós as I falecimentos na população civil por ocasião da Segunda Guerra
vemos ouvimos, respiramos e sofremos. Mas, surpreendente- r Mundial. Houve 20 vezes mais feridos, dos quais uma boa parte
mente' todo o mundo conclui disso que essas disfunções só foi constituída de jovens que ficaram inválidos para toda a
podem ser superadas por uma dose cada vez maior daquilo. que vida. A estrada já matou mais de dois milhões de norte-ameri-
as causa: por cada vez mais transporte. Os transportes ~e. inte- canos ou seja, mais do dobro de todos os norte-americanos
ressam também sob outro aspecto - sua contraprodutlvldade mortos na guerra desde o início de sua história. Estima-se que,
é tão visível que os administradores e os economist.as não dei. cada ano os transportes matam mais de 250 mil pessoas no
xaram de procurar explicá-la. Eles recorreram para ISSO a duas mundo e' causam mais de sete milhões e meio de feridos. Nos
noções que fazem parte da panóplia do perfeito pequeno econo- países industrializados, a metade dos jovens que morrem entre
mista: a do custo social e a do congestionamento. 15 e 24 anos morrem de acidentes em estrada. As crianças e os
Vamos avaliar sucessivamente a sua pertinência. Veremos velhos pagam também um pesado tributo aos transportes, mas,
assim que, qualquer que seja o interesse dessas abordagens, elas na maioria das vezes, como pedestres.
não examinam o essencial. O esgotamento dos recursos não-renováveis: com 6% da
populaçãolIlundial, os E~A consome~ 33% .das .fontes de
energia do mundo, dos quais um terço e absorvido diretamente
pelos transportes. Cada vez que 10Kwjh são gastos no mundo,
1. 1 . Os custos sociais dos transportes um deles serve, assim, para deslocar um norte-americano de um
ponto para outro. Para ser produzido, rodar e ser reduzido a
Os economistas definem os custos sociais - eles dizem ferro velho, um automóvel exige cerca de 100.000Kwjh: quer
rtambém "externalidades" - como custos que um indivíduo ou dizer, cerca de duas vezes a energia metabolizada por um homem
um sistema impõe ao seu meio sem que tais custos acarretem
durante toda a sua vida. A velocidade tem um custo energético
uma troca mercantil. Não pagando o preço do prejuízo, aquele
que o comete decide de forma imperfeita, não leva ~m conta o elevado: o Concorde, por exemplo, consome quase três vezes
conjunto das conseqüências dos seus atos. Q planejador ou o mais querosene por quilômetro-passageiro do que um jato
administrador. cria então para si o dever de compensar a falha comum.
do mercado, imputando um valor monetário aos custos sociai~. A destruição da ~iosfera: o mundo industrial entra em pâ-
Estes podem ser vidas humanas sacrificadas à velocidade, o SI- nico diant~di"jJeispeêtiva de esgotamento do petróleo. Por isso,
lêncio e a beleza do que se chama agora "meio ambiente" des- ele se esquece de que, além de certo ponto, a destruição da
truídos pelos motores, os equilíbrios ecológicos rom~idos de- atomosfera é uma questão muito mais crucial do que a de saber
finitivamente, o espaço vital saqueado, os tempos de VIda engo- quantos anos as reservas do Golfo Pérsico poderão alimentar o r
lidos pelos deslocamentos; não há nenhum deles, para o eco- crescimento. A obsessão da falta de combustível oculta que a
nomista, que não possa ser estimável em dólares, não há nenhum "crise energética" será provavelmente cada vez mais uma crise
deles que escape à lógica da mercadoria. do comburente,
Façamos uma breve revisão de alguns desses "custos __Os transportes são responsáveis por 60 % da poluição \
sociais'?', atmosférica global. Estima-se que no final do século, nossa
A morte brutal: desde 1950, 400 mil franceses morreram atmosfera conterá 25 % de C02 a mais com relação a 1900, dos
em ãéIdentes de estrada. Esse número é superior ao número de quais uma grande parte terá sido liberada pelos transportes. Um
automóvel que percorre 15 mil km por ano consome tanto oxi-
gênio quanto 30 adultos respirando no mesmo espaço de tempo.
2 Ver um estudo bibliográfico bastante completo sobre todos estes pon-
tos na obra de Jean Robert, Le temps qu'on nous vole. Contre la so- Globalmente, a combustão de produtos derivados do petróleo 1
cieté chronophage, op. cito con~ome cinco vezes mais oxigênio do que o metabolizado pelo
conJunto da humanidade num mesmo período de tempo.
64
]
65
\.
,
, ,i
Q ruído: na França, mais de 20% dos habitantes das cio los assalariados mais pobres. Os planejadores dos transportes Oi
dades ~ãõSubmetidos durante o dia a níveis de ruído em faixas chamam de "cativos". Quanto a Illich, prefere falar de "pobreza
superiores a 60 decibéis. Ora, os técnicos estimam que, a partir modernizada" .
de 55 decibéis, o_tY..ídºSlQ.. trânsito perturba a comunicação Em 1970, pensou-se em construir na Grã-Bretanha um
verbal e diminui a capacidade de trabalho. O ruído noturno não terceiro aeroporto internacional para servir Londres. Espera-
émen()sassustador. A duração média do que chamam a "treva vam-se importantes lucros econômicos, pois o aeroporto teria
noturna" - período de silêncio relativo - diminui de ano consolidado a posição da capital britânica como plataforma gira-
para ano. Ela é de menos de cinco horas e meia em Londres. tória do capitalismo mundial. Mas os custos sociais e ecológicos
A destruição do espaço vital: nas grandes cidades norte- pareciam importantes e uma comissão denominada Roskill (em
americanãs;~õ -espaço necessário para fazer circular, estacionar, homenagem ao seu presidente) foi encarregada de estabelecer o
vender, consertar e manter os automóveis representa entre 40 balanço dos custos e dos benefícios. Naturalmente, o instru-
e 60% da superfície do solo. Em toda a parte, nas grandes me- mento de medida escolhido foi a libra esterlina. Isto é, avalia-
trópoles do mundo, as rodovias engolem pouco a pouco o tecido ram-se os efeitos dos bangues supersônicos sobre o sono da
urbano; as calçadas, as praças e os espaços verdes tornam-se vizinhança através da soma que esta estaria pronta a pagar para
áreas de estacionamento; o espaço público é assim cada vez mais .1 insonorizar, bem ou mal, na medida do possível, as suas habi-
objeto de uma apropriação privada e anárquica, o que contribui l tações. Estimaram-se os ganhos de tempo que a auto-estrada
para tornar a cidade cada vez menos segura. que serviria o aeroporto traria aos passageiros, assim como as
4j;,bsorçãodotempoAe vida: a amplitude dos desloca- perdas de tempo que causaria à vizinhança, cujos itinerários
mentos domicílio-trabalho e o tempo que eles representam ten- quotidianos passariam a ser mais longos, dada a necessidade de
dem a aumentar em todos os países industrializados. Por volta contornar as pistas. O tempo, como todas as coisas, tem um
de 1840, Marx indignava-se diante do fato de que metade dos valor. Muito logicamente, os "economistas" estimam o valor do
operários que habitavam o Strand, em Londres, tivessem de tempo de um indivíduo pela sua contribuição horária à riqueza
percorrer duas milhas para chegar às fábricas onde trabalhavam. nacional, ou seja, pelo seu salário. Em conseqüência, levando-se
Hoje, não é raro que os habitantes dos subúrbios das grandes em conta as suas respectivas categorias sociais, à hora do pas-
metrópoles tenham de gastar quatro horas por dia para ir e sageiro aéreo foi atribuído um peso cinco vezes superior à hora
voltar do trabalho, tomando, algumas vezes sucessivamente, o da mãe de família que tinha o infortúnio de viver lá onde os
trem, o ônibus e o metrô. jatos, um dia, deveriam pousar. Também não se esqueceu de
Aproduçãodé' dependências: num espaço e num tempo levar em conta os acidentes; 10 mil dólares por vida humana
estruturados em torno do sistema de transportes, aqueles que extinta, tal foi a avaliação retida, incluindo "tudo", desde as
não têm acesso a este último sofrem de um isolamento e de um lágrimas das famílias até o prejuízo causado à economia nacional.
confinamento desconhecidos do aldeão tradicional. O homem Todos os cálculos feitos, a Comissão Roskill remeteu em
pré-industrial podia atingir a maior parte de suas destinações 1971 um relatório favorável à construção do aeroporto. Infe-
a pé. Hoje, o operário da região parisiense que, em geral, mora lizmente para ela, a chamada crise do petróleo de 1973 deveria
em um subúrbio e trabalha em outro não poderia sequer deslo- levar os ingleses a terem mais bom senso, e não se cogita mais,
car-se para a sua fábrica se não dispusesse de um carro. Este por enquanto, de terceiro aeroporto] .
pode devorar até um terço do seu magro orçamento. As classes É fácil zombar dessa contabili~~de macabra. Cumpre, no
privilegiadas, essas, trabalham no centro e moram no centro I entanto, não esquecer que e"ssà i@uçao de todos-os aspectos
ou nos subúrbios diretamente ligados ao centro por transportes da vida à lógica dos valores de troca nada mais faz do que I
coletivos eficientes (exemplo: RER). O exemplo de Paris é inte- ~efletir de forma ingênua uma uni,dimensionalidade que está J
ressante: ao contrário do que se admite, ele mostra que aqueles I inscrita na nossa realidade quotidiana. Outra atitude é possível:
que se locomovem na cidade de carro e, mais precisamente: encarar com seriedade esta lógica, mas levando-a às últimas
aqueles que não têm outra alternativa figuram em geral entre conseqüências, de forma que se revele o seu absurdo. Assim,
66 67
---~--------------
LÍJlm economista inglês calculou que, se o passageiro aéreo inter- amortecimento dos gastos da compra até os gastos de estaciona-
1nalizasse efetivamente todas as "externalidades" provocadas por mento e multas. Os deslocamentos que levei em conta são todos
i seu deslocamento - ou seja, em, lingu~e:n ordinária, se. pagasse aqueles efetuados durante o ano, tanto os trajetos domicílio-
,efetivamente tudo o que custa a coletividade - o ~u bilhete trabalho como os deslocamentos para férias, os trajetos na estra-
de avião lhe sairia pelo menos cinco vezes mais caro. 'Isso sig. da, assim como os trajetos na cidade nas horas de tráfego inten-
I nifica que, se tomássemos os economistas ao pé da letrã, quando so. Eis os resultados'':
eles se declaram partidários de uma política de verdade dos
preços e de transparência dos custos, os aviões voariam vazios. VELOCIDADES GENERALIZADAS EM km/h
É nesse mesmo espírito que Illich e eu propusemos o se-
guinte cálculo. Os economistas definem o "custo generalizado"
, de um deslocamento como a soma de seu custo .monetário.e do CATEGORIA SOCIAL Modelo
1 tempo que ele toma, este último sendo convertido em unidade
I monetária mediante o famoso "valor do tempo" Essa noção Baixa Média Alta
serve para comprar a utilidade de dois modos de transporte: Bicicleta Potência Potência Potência
um pode ser mais rápido, porém mais custos~ do que o outro,
e o custo generalizado é uma síntese desses. ~OIS_aspe~t?s. Intro-
duzimos nesse cálculo a seguinte leve modificação: dividamos o Executivo
custo generalizado pelo valor do tempo (lembrei acima que este (Paris) 14 14 14 12
último é tido como igual ao salário). O que obteremos? Um Empregado (cida-
tempo que é a soma do tempo que passamos efetivamente a nos de tamanho mé-
deslocar e de um tempo que podemos interpretar como o tempo dio) 13 12 10 8
que passamos trabalhando para obter os recursos necessários à
locomoção. Nós, naturalmente, chamamos esse tempo de tempo Operário não-qua-
lificado (cidade
generalizado do deslocame?-to. Ele .te~ .evidentement~ .0. mesmo tamanho médio) 13 10 8 6
status que o custo generalizado, pois e Igual a este dividido pela
renda horária. A única diferença é a apresentação. A escala que Assalariado agrí-
permite a "unidimensionalização" é exprimida em horas ~m cola (meio rural) 12 8 6 4
vez de francos ou cruzeiros. Os resultados tornam-se aSSIm
mais impressionantes, pois perder uma hora de vida não tem,
sem dúvida, o mesmo peso vivido do que perder 30 fr~ncos, Observamos, pelo quadro acima, que, quanto mais subimos
mesmo se a renda horária é de 30 francos. Além do mais, se na hierarquia social, mais forte é a velocidade generalizada. Há \
\ dividirmos o número de quilômetros percorridos pelo tempo duas razões para isso: o aumento da quilometragem anual, que
1 generalizado do deslocamento, obterem?s .uma grandeza bas.tante diminui a importância por quilômetro das cargas fixas, e sobre- !
interessante, que tem todas as caractertsticas ~e uma velocidade tudo a elevação da renda, que diminui o tempo de trabalho
e a que damos o nome de velocidade ge~eraltzada. .. necessário para obter determinados recursos. Além disso,
Calculei, então, a velocidade generalizada do automobilista qualquer que seja a categoria social, o modelo de carro mais
francês, para diferentes casos-tipos, caracterizados por sua cate- rápido em termos de velocidade generalizada é sempre o de
goria social, o tamanho da cidade onde mora, o modelo de ,s~u
veículo. Para este último, considerei um modelo de alta,. ?ledia
e baixa potência, e calculei também os desempenhos da bicicleta. 3 Os dados são relativos ao ano de 1967, portanto antes do aumento
segundo o mesmo princípio, é claro. Levei em c~nta todas as do preço da gasolina e na ausência de qualquer limitação de velocidade.
despesas ligadas à posse e ao uso de um automovel, desde o
68 69
\ baixa potência, que é, ele mesmo, sistematicamente ultrapassado sua legitimidade na necessidade de tratá-los. Os transportes
I pela bicicleta (exceto para as categorias mais favorecidas, para alimentam os hospitais com "casos médicos" interessantes, o
as quais há equivalência). Enfim, o automóvel aparece como urbanismo concentracionista fornece aos transportes a sua
um monstro cronófago: o francês-médio que percorre 15.500 quantia diária de "cativos", a escola produz suficientemente ina-
km por ano com seu Peugeot a uma velocidade generalizada daptados e drop-out para dar emprego às diversas espécies de
de 10 km/hora dedica ao seu automóvel 1.550 horas por ano, "readaptadores sociais" etc. etc.
ou seja, mais de quatro horas por dia, em média. Se fosse pre-
ciso acrescentar o tempo generalizado dos seus outros desloca-
,mentos - transportes coletivos, táxis, caminhada a pé entre o I,.,'
, 'Pode acontecer, contudo, que um sistema industrial seja
atingido de constipação e que corra o risco de ser sufocado pelos
seus próprios lixos. Os. transportes são visivelmente atingidos I
iponto de estacionamento e o lugar de destinação etc. - ultra- •••••• desse mal incômodo. E o que designamos congestionamento.
II passaríamos certamente cinco horas por dia, ou seja, quase um
terço do tempo em que permanecemos acordados! • Temos a impressão de saber o que é o congestionamento, pois
trata-se de algo que vemos todos os dias: veículos demais para
O resultado surpreendente a que chegamos é o seguinte: um espaço reduzido. A raridade causaria o congestionamento.
suponhamos que façamos de bicicleta todos os deslocamentos Ao menos uma vez, os economistas foram mais sutis do que o
que fazemos atualmente de carro: levaríamos evidentemente' senso comum. Eles compreenderam que é preciso inverter o
muito mais tempo, mas não tendo mais, por hipótese, necessi- sentido da causalidade: é o congestionamento que é a causa da
dade de carro, poderíamos trabalhar menos. O cálculo mostra raridade, ou mais precisamente ainda: o congestionamento é
que, no total, ganharíamos com isso. Haverá protestos: mas uma forma de raridade-:\.
é absurdo; é difícil imaginar uma sociedade onde cada um seria A definição precisa é a seguinte: há congestionamento
obrigado a andar de bicicleta mais de três horas por dia em quando o valor de uso de um produto diminui à medida que
média no ano! É perfeitamente justo, mas esse absurdo tem a quantidade produzida aumenta.rQ!J::lndo produzimos mais,
seu equivalente exato, mesmo se é menos visível no mundo começamos por desvalorizar as unidades já produzidâS.' É corno
atual; nele trabalhamos uma boa parte de tempo para poder seâvançássemósnumtapête 'falante que nos puxa para trás.
pagar os deslocamentos domicílio-trabalho. Os economistas falam também de "bens de qualidade variável".
Na realidade, esse pequeno exercício nos fornece um pre- Tais, bens apresentam vantagens somente quando são reservados
cioso ensinamento. Ele nos permite compreender que o prin- à uma -'minoria. É perfeitamente demagógico pretender que a
cipal efeito dos transportes industriais é substituir o tempo de mãssa tem direito a eles e que outro regime social e econômico
deslocamento efetivo por tempo de trabalho, sem que, no total, ! poderia distribuí-los eqüitativamente a todos. Se assim fosse,
resulte um ganho sequer. Nesse sentido, os transportes ocultam esses bens desapareceriam imediatamente em fumaça! O grau
"a nocividade e o absurdo de uma organização de espaço-tempo de iniqüidade de uma sociedade pode ser melhor avaliado através
social que obriga os homens a dedicar mais tempo aos seus des- da importância que ela atribui a tais bens, mais ainda do que
locamentos do que a permanecer em lugares agradáveis. Eles através da desigualdade na partilha de recursos, que podem,
têm aqui um papel perfeitamente comparável com o da medi- efetivamente ser divididos. Exemplos: os anos de ensino, na]
cina, considerada como um "álibi de uma sociedade patogênica". medida em que têm por efe'ito estratificar a população em ca.!
madas de instrução desigual, que não podem aspirar por isso j
mesmo a empregos iguais'. Se um diploma se torna acessível a
1 . 2. A contraprodutividade por congestionamento todos, perde o seu valor de uso - e, correlativamente, o seu
valor mercantil. Os consumos distintivos que denotam um lugar
Os sistemas industriais só podem funcionar porque na sociedade, um status} poder, prestígio. É aqui o lugar da
evacuam os seus lixos - os seus "custos sociais" - para fora novidade, e da moda, que permite sempre renovar os signos f
de si mesmos. Essa lei geral tem, aliás, o seu corolário: cada de distinção, à medida que os signos precedentes se desvalori-
zam, tornando-se acessíveis a todos.
sistema industrial nutre-se dos resíduos dos outros, encontra
70 71
Os tranportes obedecem à mesma lógica, e mais particular. faz mais do que compensar o aumento de velocidade e, final-
mente os veículos particulares. Os engenheiros conhecem bem o mente, seguindo uma lei inexorável que encontramos verificada
diagrama seguinte. Para uma artéria rodoviária dada, estudamos tanto na Park Avenue em Nova Iorque como na Avenida Atlân-
como evolui o débito da via em função da velocidade dos tica em Copacabana, ~débito diminui quando a. velocidade
aumenta. Também inexoraveltiiente;ãêontece que o débIto atin-
veículos que nela circulam. O gráfico tem o seguinte COIU-
'ge-seu máximo para uma velocidade de 5km/hora. No momento
portamento: em que a maioria tem acesso ao transporte motorizado, este
último perde todo o seu interesse, pois torna-se então mais
eficaz e mais cômodo deslocar-se a pé.
Velocidade A situação de débito máximo (ponto A do diagrama) ofe-
B .--_ _
rece outra particularidade interessante. Ê um ponto de "insta-
I bilidade estrutural", como dizem os matemáticos, basta um nada,
I
I um obstáculo insignificante, para que o tráfego se solidifique
I
i e se imobilize completamente (ponto O do diagrama). Nada
I
I está mais próximo do ponto de débito máximo do que o ponto
I
I .<Ie débito. nulo. Pudemos estimar que nas grandes cidades fran- I
I cesas, durante as horas de tráfego intenso, os automobilistas J
I
I passam 4.0% de seu tempo total de deslocamento, parados. Ai
5 km/h A regularidade, aqui também, é notável, mas cada um de nós já ex-
perimentou isso, a "congelação" do tráfego parece sempre um
----- - - - - - - - - - - - II
o~-~~"-="=='=~--'-------------'--- acontecimento excepcional: procuramos sua causa: deve ter ha-
Débito Débito vido um acidente aí! E é verdade que cada vez existe uma causa
máximo
particular, mas não é menos verdade que essa "causa" não ex-
plica nada, pois qualquer outra causa teria produzido o mesmo
efeito. A única causa verdadeira, se é preciso realmente passar
Quando a velocidade aumenta, se os veículos pudessem por esse conceito que aqui não é pertinente, é a totalização não
rolar pára-choque contra pára-choque, é evidente que o débito desejada e implacável de comportamentos individuais que tanto
aumentaria. Mas a circulação automobilística é uma perfeita ima- são uma réplica uns dos outros que resultam de uma vontade
gem da sociedade em geral; é a guerra de todos contra todos, cada de se distinguir e de uma procura de diferença. Temos aí um belo
um procura se afirmar à custa dos outros, mas isso sem violên- modelo reduzido da sociedade global!
cia aberta, cada um sendo na aparência completamente indife- Na maior parte das cidades do mundo, a velocidade de cir-
rente aos outros.TOs outros não são globalmente percebidos a culação se estabelece a um nível de equilíbrio um pouco su-
72 73
~velocidade, ou melhor, de lentidão, cada automobilista, sim- ricanos denominam o "teorema do turnpike))); mas, como todos
plesmente por sua presença no tráfego, faz pesar sobre os Outros agem assim, voltam a ficar uns ao lado dos outros e a se arrastar
um custo bastante superior ao que ele próprio experimenta. na mesma velocidade, deslocando-se em distâncias aumentadas.
A 8km/hora por exemplo, pela redução de velocidade geral que Meçam num mapa o quociente entre a distância efetiva que
~
ele provoca, todo carro suplementar impõe ao conjunto dos ou- vocês percorrem nos seus trajetos quotidianos e a distância em
r'
tros veículos uma perda de tempo igual a dez vezes o seu próprio linha reta do ponto de origem ao de destinação: esse quociente
tempo de deslocamento. Trata-se, se assim o quiserem, de uma pode, em muitos casos, ser 2 ou 3. Estudos feitos nos EUA
"externalidade", mas ela permanece desta vez interior ao sistema c';
.demonstram que ele é tanto mais forte em média quanto mais
de transportes, e é ela que provoca o seu "entupimento". avançada for a hierarquia das vias na cidade. Resultado: 'ª ve-
I to congestionamento é um mal inexorável, ligado à própria locidade porta a portaelil linha reta nas grandes cidades do
" naturezaªa mercadoria "transporte", mas nunca é interpretado
t como tal:j interpretam-no sempre, à direita como à esquerda, .. mtffidoraramente é superior a 7km/h.
~Õ ~óngestionamento' é~"no início, uma perda de valor de
em Londres como em Moscou, em termos de carência: as infra- uso de cada minuto passado nos transportes por terem sido estes
estruturas são insuficientes, é preciso construir sempre mais estendidos a todos. Graças aos urbanistas e aos engenheiros,
estradas. A saturação das vias de comunicação revela uma de- ele se torna também uma perda de valor de uso de cada quilô-
manda potencial de deslocamentos que espera somente novas metro percorrido no ritual quotidiano das lentas migrações
capacidades para se concretizar, afirma-se. Assim legitimados, os alternantes motorizadas.
urbanistas "mandam brasa". A técnica que lhes é favorita é a
auto-estrada urbana, circular e radial. Para limitar ao máximo
a travessia do centro, obrigam-se os automobilistas a dar voltas 1 .3. A contraprodutioidade estrutural dos transportes
numa via circular contornando a zona central, a partir da qual
eles selecionam a radial que lhes permite chegar em linha reta Os discursos públicos sobre os transportes, que tentam
ao seu destino. O que diferencia de fato a cidade industrial da legitimar as extorsões de fundos, sempre crescentes, a que são
cidade tradicional não é a velocidade de circulação média, que submetidos os usuários-contribuintes, prestam generosamente a
não fez praticamente nenhum progresso - no tempo de Augusto,
essa indústria três vantagens principais:
em Roma, quase um milhão de habitantes se deslocavam porta
a porta por volta de 4km/hora, a pé ou em liteira, A? 1) os transportes reduzem as desigualdades entre os homens;
diferença é a existência, na cidade moderna, de uma gama ex-; 2) os transportes fazem ganhar tempo;
tensa de velocidades possíveis, que correspondem a uma hierar- i 3) os transportes, como dizia uma publicidade inspirada, can-
quia das vias, desde a auto-estrada até a pequena rua do centro, tando os méritos do Concorde, "aproximam os seres que
ao passo que, na cidade tradicional, tudo circula misturado, pra- se amam"; em outros termos, eles produzem o acesso ao
ticamente na mesma velocidade. A existência de vias rápidas na { mundo e aos outros.
cidade industrial dá a ilusão de que o obstáculo do congestiona- \'
menta foi vencido, enquanto na realidade ele é assim progres- Para provar que os transportes produzem o contrário do
sivamente exportado ao conjunto da cidade. Um maior débito, que pretendem com relação aos pontos 1 e 2, bastam, como ten-
certamente, é oferecido, mas todos continuam a se locomover tei mostrá-lo, as noções de custos sociais e de congestionamento.
na mesma velocidade de equilíbrio, apenas superior à velocidade Quer dizer que permanecemos no terreno da economia e do
intolerável de débito máximo. Na realidade, asitQaç}íü piorou. valor de troca. Para compreender a contraprodutividade dos
Cada um, para se deslocar de tim ponto a outró, tem 'lnteresse, transportes sobre o acesso ao mundo, é preciso sair radicalmente
a um dado comportamento dos outros, de tomar o desvio pelas do campo da economia. A capacidade autônoma de acesso ao
vias de circulação "rápidas" (é o que os urbanistas norte-ame- mundo e aos outros não é uma mercadoria e sua paralisia oca-
74 75
quaisquer desse espaço podem sempre ser ligados por um cami-
sionada pelo desenvolvimento da mobilidade heteronômica não nho contínuo sem que tenhamos de sair do espaço. A sociedade
pode em nenhum caso ser compensada por uma mercadoria. "O
homemyhabita enquanto poeta", dizia Heideszer citando Hõl-
"derlin. A infelicidade de viver num lug~r .i~abi;;vel jamais poderá
! ser .compe~sada pelo aumento ':ias possibilidades de fugir a ele o
I capitalista é a primeira a quebrar essa conexidade. O espaço
pessoal de cada um estourou, fragmentando-se em centros dis-
tintos, distanciados uns dos outros: a casa, o lugar de trabalho.
alguns lugares simbólicos da cidade, os comércios e o mítico
f mais frequentemente possível. \ "Os usuários" escreve Illich alhures dos lazeres e da evasão. Entre esses centros, desertos de
r"rebentarão as correntes do transporte super;oderoso quand~
: ~e puserel? a a~ar de novo como um território a sua pequena
I Ilha de circulação, e a temer distanciar-se dela com demasiada
t, sentidos, desertos estéticos, simbólicos, que procuramos transpor
o mais rapidamente possível, entregando-nos ao sistema de trans-
portes. Pensem, por exemplo, no espaço da auto-estrada, do qual
;f:.eqüênda 4." _A alternativa radical aos transportes atuais não a gente se protege nessa bolha metálica que se transforma al-
sao transportes menos poluentes, menos barulhentos e mais rá- gumas vezes em caixão; e, mais ainda, pensem no espaço onde
pidos, mas sim uma redução drástica de sua influência sobre evolui o jato em que viajamos. Fato muito conhecido e que se
nossa ~i.da quotidiana.. Mas, para isso, é preciso quebrar o cír- reproduz periodicamente é aquele em que dezenas de automo-
culo .v~ClOSO. pelo qual uma indústria contribui para reforçar as !. bilistas passam sem parar sobre o corpo de um ferido que ago-
condições que a tornam necessária; círculo pelo qual os trans- niza na auto-estrada. São uns monstros, diremos. Alguns estudos
portes criam distâncias e obstáculos à comunicação, que somente foram feitos, e concluem diferentemente. Para o automobilista
eles pretendem poder superar. essas imagens que lhe vêm do exterior de seu veículo são sinais
A contraprodutividade, como sabemos é além de certos que basta uma aceleração súbita para serem apagados, da mes-
pontos críticos de heteronomia, a transformação do meio hu- ma forma que o telespectador se desfaz das atrocidades da guerra
mano nas suas dimensões físicas, sociais e simbólicas de forma girando um botão. Essa comparação não é fortuita. As percepções
que as capacidades de autonomia são progressivamente atrofia- do mundo próprias ao transporte e ao telespectador têm isto de
das. A autonomia é aqui uma relação ao espaço baseado nos comum: são "falsas", não porque feitas de informações necessa-
desloc~mentos não-motorizados, à baixa velocidade, utilizando riamente mentirosas, mas porque colocam o telespectador numa
esse~C1almente a e~e:gia metabólica daquele que se locomove: a situação ilusória de "onipotência" diante de uma representação
cam~nhada ou a bicicleta, !t não ser que sejamos forçados, só do mundo que aparece ou se desvanece segundo as suas velei-
.eaminhamos nos lugares que-ãmamos. A velocidade motorizada dades.
somente. te;n .interess~ se se trata de lugares dos quais fugimos A dimensão simbólica da contraprodutividade dos trans-
ou de dlstan.clas sentidas como obstáculos que procuramos ven- portes nasce, como no caso da medicina dos mitos que eles pro-
cer..~ submissão jo homem industrial aos veículos revela que pagam e que, em troca, legitimam sua extensão indefinida. O
ele nao se sente em casa" em parte alguma, ou quase. Os mito dos transportes enxerta-se na estruturação particular do
~ransportes favor~cem u?Ja relação ao espaço de tipo puramente espaço que acabo de descrever. Esse mito é o da fusão do re-
Instrumental. Vejamos ISSO de mais perto, pois temos aí uma t?rno à vizinhança tradicional pela anulação desses esp~ços va-
das chaves da contraprodutividade estrutural dos transportes 1>. ZIOS de sentidos, desses espaços mortos que só servem para serem
. O antropólogo Leroi-Gourhan mostrou que, em todas as superados. Uma companhia de aviação helvética reserva regu-
sO:ledades arcaicas e tradicionais, o espaço vivido possui a pro- larmente duas páginas dos principais semanários europeus para
príedade de conexidade: isso equivale a dizer que dois pontos estamp~r o desenho de uma cidade tradicional, à primeira vista
ma?mftca, com monumentos, praças, canais, rios. Mas, olhando r
~aIs de perto, vai-se percebendo que essa cidade é um monstro:
4 Energie et equité. Seuil, 1975.
I> Para as outras dimensões da contraprodutividade estrutural o leitor ~1 se encontram contíguos, justapostos, os mais belos bairros \
poderá consultar Ivan Illich, Energie et equité, op. cit.;Jea~ Robert- as mais belas cidades da Europa: a Praça Vermelha é sepa-
Le temp.s qu'on nous vole, op, cit., e Jean-Pierre Dupuy e Jean Robert,
J rada da Praça da Concórdia apenas pelo leito de um rio e a Via \
La trahison de l'opulence, op. cito
77
76
---_.~------------
\ Veneta desemboca diretamente em Picadilly Circus. Legenda:
Graças à Swissair, a Europa é reduzida às dimensões de uma ()\. sua casa e, até ~esmo,. com~ uma espécie de cordão umbilical que
cidade, os liga, porencíal e simbolicamente, aos lugares onde gostariam
É verdade que, em certa medida, para os membros do "Jet de estar, e que não são nunca os lugares onde estão.
Set ", o mundo inteiro está presente em toda a parte onde exis- Compreende-se então o círculo vicioso da contraprodutivi-
tem um aeroporto e tropas de escravos que, para deixá-los passar, Idade. Para viver no espaço e no tempo da sociedade industrial, é
perdem o seu próprio tempo no dédalo das lentas procissões e :necessário aceder a essa prótese que é o transporte, com o mito
dos engarrafamentos urbanos. Mas, para a maioria dos homens, , que ele veicula e que esconde a penosa realidade. A existência
essa conexidade reencontrada da "aldeia global" é de trama de- dessa prótese suprime os freios que se poderiam opor ao livre
masiado grosseira: eles passam entre as malhas ou ficam presos jogo das forças que modelam o espaço e o tempo. Essas "forças",
1 aos nós. Para eles, a cidade aparece fragmentada, inacessível, e a que aludi apenas discretamente, pois, quer se trate da lógica
as estradas separam mais homens - no sentido transversal - dos valores prediais, da especulação imobiliária, das determina-
do que ligam - no sentido longitudinal. ções da dimensão ou da localização das atividades econômicas e
Os antropólogos que estudam os mitos das sociedades pri- sociais, os estudos abundam, mesmo se as interpretações diver-
mitivas mostram que a estabilidade desses mitos provém de sua gem. O que esses estudos escondem na maior parte do tempo
capacidade de ocultar a discordância entre a realidade e o que é o efeito de doping dos instrumentos da velocidade sobre os
eles dizem - discordância que os antropólogos denominam, processos de desintegração e totalização do espaço.
quando ela é percebida, uma "dissonância cognitiva". Para com- Esta última observação lembra-nos que "jamais devemos
preendermos a espantosa alienação do homem industrial aos colocar o problema do transporte isoladamente, que devemos
transportes e a sua aceitação do absurdo e do intolerável, temos sempre ligá-lo ao problema da cidade, da divisão social do traba-
f'de entender como o mito da anulação dos espaços mortos chega lho e da compartimentação que esta última introduziu entre as
Ia dissimular a evidência, a saber, que esses espaços mortos ten- diversas dimensões da existência. .. A disposição do espaço con-
;dem a ocupar todo o espaço disponível - e podemos dizer a tinua a desintegração do homem começada pela divisão do tra-
. mesma coisa dos espaços de tempo correspondentes. Lembro- balho na fábrica. Ela corta o indivíduo em rodelas, corta o seu
~ lhes: 40 a 60% do espaço, e um terço do tempo de vida que tempo, a sua vida, em fatias bem separadas a fim de que, em
passamos acordados. Não pretendo aqui fazer essa análise; con- cada uma delas, você seja um consumidor passivo entregue sem
tento-me em ponderar que as diversas formas de deslocamentos defesa aos 'mercadores', para que nunca lhe venha à idéia que
têm aptidões bem diferentes para a redução da dissonância cog- trabalho, cultura, comunicação, prazer, satisfação das necessi-
nitiva. Numa extremidade encontramos evidentemente a cami- dades e vida pessoal podem e devem ser uma só e a mesma
nhada a pé e a bicicleta, formas de deslocamento abertas à rique- coisa: a unidade de uma vida, tendo como suporte o tecido
za simbólica do espaço circunvizinho e que só têm sentido se social da comunidade 6. "
essa riqueza existe. Na outra extremidade, o automóvel particular
parece bater todos os recordes, muito à frente dos transportes
coletivos, no papel de "álibi" de uma sociedade destruidora de
seu espaço e de seu tempo. Campeã da mentira e da cegueira, 2. O TEMPO POLUíDO
ela conseguiu dar uma imagem de si mesma em todos os pontos
contrária à realidade: imagem de mobilidade, de autonomia, de
independência; realidade de congestionamento e de dependência . Sobre a distorção da nossa relação com o tempo, serei bem
~ radical com relação às servidões da estrada e dos comportamen- mais breve. Não porque o problema seja mais simples: ele é,
tos dos outros. De modo significativo, os automobilistas des- pelo .contrário, muito mais complexo. A física einsteiniana é
crevem freqüentemente sua máquina como uma pequena bolha perfeItamente retrógrada quando se trata de negócios humanos,
78
que os isola do espaço exterior e hostil, como uma extensão de
79
I
--_.~------------
t'
I
I
8 Trabalho' dt latO T' l' .
cas n' t ' rrn ripa tum, mstrumento de tortura de três esta-
7 Jean-Pierre Dupuy e 1ean Robert. La trahison de l'opulence, op. cit. orj~em. In ereSiante notar que o inglês travel, "viagem", tem a mesma
80
81
------...,,-----
•
sobre o qual repousam nossas sociedades fosse um cálculo de
logrados. Esse cálculo tem como postulado de base que exis- ':Çrata:se de The Harried Leisu~e Class, de Staffan B. Línder\1.
E evidente que os norte-ametlcanos que
tiriam dois grandes tipos de atividades, sendo que o tempo total . , nessa mesma época
'
compravam b est-se11ers do npo: "Como educar seus filho
se repartiria em um tempo constrangido e um tempo livre. Du-
rante o tempo constrangido, os homens trabalham, deslocam-se casa em. suas h or~s. vagas " heceram-se nessa análisesem
! recon de
para ir ao trabalho, comem e repousam para ~econstIt.Ulr a sua sua ~ea?dade quotidiana, Ainda que escrita em estilo bastante
acadêmico, achei a obra extremamente cômica _ um COAlDl'
força de trabalho: essas atividades não são um Í1~. em SI mesm~~,
e;11identemente. comp.l 'mvo Iuntário. Encontramos aí efe-
eramenre co,
têm como única utilidade obter recursos matenais que permin.
tivamente a ingenuidade costumeira dos economistas angl _ _
rão acredita-se usufruir melhor o tempo livre. Ora, esse cálculo, di b o sa
xonicos que o~sa.m ssecar a ertamente, levando-os bem a sério
A •
"
conforme eu ia dizendo, afigura-se a muitos cadaa vez mais
mai como
o~ a~pectos sor?ldos de uma ~o:iedade materialista que a ten:
um cálculo de logrados, pois: 1) nenhum tempo livre, por mais dência geral serra antes para diSSImular. Vejamos alguns I •
:ricamente empregado que seja, não pode compensar a perda tos da argumentação - de L'Inder, e emen
consumo
eva tempo e,. como um número cada vez maior de bens dis-
no "enchimento" de seu tempo livre; 2) o tempo livre reduz-se
putam entre SI um tempo de não-trabalho constante, o tempo
paradoxalmente à medida que aumenta a produtividad~ do tra-
torna-se um bem raro com relação às coisas. Seu valor aumenta
I balho pois os tempos de trabalho permanecem sensivelmente ~~~~to, na razão direta do aumento da produtividade do tra~
os mesmos e os tempos anexos mostram uma nítida ten-
dência a aumentar. . Ora, cada uma das atividades que compõem um modo de
Ainda segundo Bertrand Russell, nossa sociedade é aquela vida. consome recursos materiais e tempo. Algumas consomem
onde aprendemos a fazer duas vezes mais alfinetes num tempo relatIvame~te muito mais tempo do que recursos (bronzear-se
\ dado em vez de fazermos uma quantidade de alfinetes em duas numa praía ) , .q~anto a outras, dá-se o inverso (o giro pelas
vezes menos tempo. Em outros termos, os ganhos de produti- ~ates). As" atIVIdades são, assim, relativamente mais ou menos
vidade são convertidos em recursos materiais em vez de o serem cronofagas . Podemos prever que são as mais cronófagas den-
em recursos temporais: é esse evidentemente o fundamento do tre elas que mais padecerão de um aumento da escassez do
crescimento econômico. A partir disso, é possível interpretar, at.é tempo.
certo ponto pelo menos, o mal de que sofrem as classes domi-
nantes e todos aqueles que as imitam, e que tem um nome: o . T?~emos como exemplo o problema da manutenção do
congestionamento do tempo. Como a t~berculose em ou~ras patrlmOD1o. ~m princípio, três formas podem ser consideradas:
I épocas, esse mal é aliás procurado, e o smtoma tornou-se sinal
mantermos nos mesmos os nossos bens d ediicando o nosso propno' .
,I de poder e de prestígio. O homem moderno, o homem super- ~po, recorrermos aos serviços de empresas especializadas (quer
ativo, vai depressa, faz tudo depressa, procura em. todas as mo~\c~mprarm<:.s o tempo dos outros) e enfim. " renunciar-
ocasiões ganhar tempo. Que a busca de tempo para VIver,nada d anutençao e optarmos pela solução da substituição ou
tem a ver com o negócio é evidente. Já no começo do seculo, úl~enovimento.
a Com o aumento do valor do tempo é esta
o filósofo Alain comentava que aqueles que" ganham 15 minutos" ,
autom OVeIs nunc 1 leva
so.ução que a melhor. Roupas sujas e ama;rotadas
d . d '
indo de Paris ao Havre utilizam esses 15 minutos se vanglo- são a sor ~ .ava os nem revisa os, casas mal conservadas,
riando de tê-lo feito. ,,~
te quotidIana de uma sociedade apressada. Com o re-
Um economista liberal escreveu recentemente, sobre esse ;---
mal do século, um livro que obteve grande sucesso nos EVA. Columbia University Press, 1970.
82
8.3
------__FdIIIaz _
sultado paradoxal de que uma sociedade onde se dá tanta impor.
tância ao nível global de consumo é também aquela onde nos
T
I
.
De fato, a explicação de Linder vai dar
mterna, que ana lirsei. 1ongamente em outr em b r_auma
10'
.
contradição
desinteressamos mais por cada consumo em particular. falha lógica que podemos reencontrar a aq o t d' E por essa
I A manutenção do corpo, a preocupação com a saúde não I . ues ao o conge 1:1'
nament~ ta como a analisei a propósito do es a . s o-
escapam à regra. O tempo de sono é considerado um desperdício. tem razao, e se as vantagens diretas tiradas d p ço. » d LInder
Desodorantes, perfumes, águas de colônia substituem vantajosa- d e VI'd a matena. I - . o aumento o nível
' ir 1 sao, acrma de certo pont ' . " ul
[ , 1 mente uma higiene pessoal dispendiosa demais em tempo. O d ' o crItICO, ja trapas
, ' I sa o nos EU~, mais que compensados pelas infeli .d d -
1'I tempo consagrado às refeições e às atividades físicas é reduzido rantes da raridade crescente do tempo C _ CI a es resul-
,
ao mínimo estrito. mos, dentro do seu pr6prio sistema ,en ao nao compreende_
O tempo dedicado a se ocupar dos outros é também cada faz através de uma redução da dura'çapord que a regulação não se
vez mais substituído pela utilização de recursos materiais e . ". o o trabalho Todo o
raClOCI1l10, -gostana de lembrá-lo , tem por b ase o d'ad o d seu
objetos custosos. O dirigente exausto que não tem tempo de essa d uraçao permanece constante. e que
falar com seus filhos lhes oferece em compensação presentes Dentro de um contexto marxista id
caríssimos; os velhos não encontram mais lugar nas famílias e parecerá ingênua. Se a duração do ~r:baIhntemente, tal questão
são encurralados nos asilos onde o tempo de atenção ao é que o patronato não tem interesse o perm~nece grande
outro é melhor "rentabílizado ". O médico pode expedir a con- tívidade dada, a mais-valia e portant na sfa reduçao. A produ-
sulta em cinco minutos com a condição de prescrever muitos Mas essa interpretação é ;ápida dem:s~ ;cro, cresce com ela.
medicamentos. em certos ramos de indústria pel or bem lado, porque
Quanto às atividades "nobres", do tipo meditação, reflexão de certas durações de trabalh o menos, sa, :se que, acima
pessoal, prática das artes, enriquecimento do espírito ou sim- diminuir rapidamente, Por outro l;doa pr?dut~vIdade p~ssa a
plesmente "[ar-niente", não há por que se espantar se sua im- operário francês demonstra clarament~ ~:st?~~ do rovImento
portância regride à medida que a riqueza material aumenta,
contrariamente a todas as expectativas: trata-se de atividades
os trabalhadores não têm influência sob
Assim que eles quiseram ue essa
e de :0 a irmar que
r: a . u~aça? do trabalho.
,particularmente cronófagas. Não há dúvida de que, cada vez lutar duramente E pode q . duraçao dimInUlsse, souberam
. -se estimar que p úl .
mais, um maior número de livros, discos etc. são consumidos; com exceção talvez do perí d . ' ara os nmos 30 anos,
mas a maior parte do tempo eles ficam nas prateleiras da biblio- aparecimento de reivindicaç~eso d~:IS ~ece1~e, ,que" assistiu ao
teca ou da discoteca, como objetos de coleção. estagnação da duração do t b lh s qua rtatrvas , a quase-
um "consens " ra a o que observamos resulta de
Enfim, como o tempo se torna caro, um número cada vez ~ no qual os trabalhadores tiveram a sua parte
maior de consumidores acha "rentável" utilizar meios custosos O creSCImento econômi ' .
que se supõe fazem "ganhar tempo": escovas de dentes elétricas te" pela qual o ca itali co e certamente a "fuga para a fren-
,I tradições. Mas a tta jmo1compet~Ivo tenta escapar às suas con-
j e outros Concordes. O resultado disso é que as pessoas passam cruel e mort'f e c as~es ~ao deve ocultar a guerra mais
I cada vez mais tempo tentando ganhá-lo. Paralelamente, uma nova homens se i:;.rea , Pd~rq?e mais disfarçada e dissimulada que os
, ' I tarefa se apresenta aos tecnocratas: o "planejamento" e a "or- m ranamenre uns a . ' ,
I ao mesmo tem d ',. os outros, e CUJO caráter
la
I
denação" de um tempo que se tornou a fonte rara por excelência Hegel: a lut ernsono e catast!ófico foi mostrado por
e que, se seu emprego fosse deixado à anarquia dos comporta- - a e morte pelo reconheCImento 11, quer dizer, nas
mentos individuais, poderia bloquear a máquina econômica e
10 J
'Social. . P. Dupuy Vale .
Aí está! Acho que é um erro em geral criticar as teorias ~~ CNRs, 1975,' ur soclale et encombrement du temps, Editíons
'econômicas em razão das suas evidentes disfunções. Muito mais O desejo hegelia d .
lIJo ultrapassado Ve~Oto% reco~heclmento pelo outro deve ser ele mes-
inquietante a meu ver é a maneira segundo a qual elas se amol- ~ Jean-Pierre D~pu L' a a o ra de René Girard, e Paul Dumouchel
dam quase perfeitamente a uma realidade privada de sentido. e l'économie, SeuiL' 19';~fer des choses - René Girard et la logique
84
85
-_ .. _---_.... _-._~
nossas sociedades, a luta pelo que chamamos prestígio, status,
poder e competição pelos bens distintivos que denotam os su-
cessos alcançados nestas justas dos tempos modernos. São esses
bens cujo valor de uso - que é aqui quase totalmente um valor
de signo - se desvanece assim que todos tomam posse deles.
'Cada um deve portanto desdobrar sempre mais esforços e ener-
gia, em detrimento de sua disponibilidade de espírito e de tempo,
para reganhar contra os outros o reconhecimento de um mundo
indiferente. Quando todos agem dessa mesma forma, ninguém
ganha em média no que diz respeito ao objeto da competição
e todos perdem pelos sacrifícios consentidos à competição. Ex-
plica-se assim o paradoxo do c.ongestionam.ento do tempo: numa Capítulo IV
I sociedade faminta de tempo, o aumento da produtividade do
trabalho é o "bem" procurado por excelência. Mas esse bem
. converte-se logo em mal e não faz outra coisa senão agravar a sua
febre. Longe de lhes permitir respirar enfim, o desenvolvimento
o mundo não é o que pensávamos
das forças produtivas dá aos homens novas munições para es-
tender sempre o terreno de suas lutas derrisórias e mortíferas.
Entendam-me bem: não quero transformar o oprimido em
cúmplice do opressor, nem o pobre em culpado pela miséria do
mundo. Não é de cumplicidade que se trata, mas de guerra.
O que geralmente não se vê é que a guerra age estranhamente
7/ como uma colaboração negativa: procurando se distinguir, e
/ portanto negar os outros, os homens produzem juntos totalidades
nas quais não reconhecem o produto de suas próprias ações.
"\.
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.'
86
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89
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nueI Levinas, de André Glucksman, e não de Cornelius Casto- - crise da fé, crise das Ciências - para que o homem recupere
riadis, de jacques Attali e não de Louis Dumont. Suponho essa liberdad~ criadora que Descartes colocou em Deus e para
também que, se felizmente Michel Foucault, Nicos Poulantzas que se suspeite dessa verdade, base essencial do humanismo: o
e Jacques Monod são conhecidos aqui, ainda se está l?nge de homem é o ser cuja aparição faz com que exista um mundo".
ouvir falar de René Girard, Pierre Rosanvallon e Henrí Atlan. , . Além das suas. divergências aparentes, os grandes sistemas
Minha única ambição é transmitir aqui um pouco do pensa- teóricos da m~ermdade compartilham a mesma ambição: fazer
mento desses pioneiros ainda tão pouco conhecidos. 'Com qu; a s~cIedade ~u~ana esc~l?e à lógica do sagrado. O sa-
grado e o Sistema teórico e pranco pelo qual uma sociedade
situa a fonte de seu sentido fora de si mesma. O sistema do
sagrado é portanto o modelo de todas as divisões da sociedade
1. A UTOPIA DA TRANSPARENCIA SOCIAL o paradigma de todas as heteronomias. É exatamente esse sis~
tema que Marx censura a Hegel ter reconstituído teorizando li
!I I separação entre a sociedade civil e o Estado. As teorias da mo-
i li Compreende-se hoje cada vez melhor que a modernidade derni~ade, visando eman.cipar a ordem s?Cial da lógica do sagra-
resulta de um esforço desesperado para emancipar a ordem social do, Visam portanto o Ideal da comumdade imediata e trans-
da lei divina. A modernidade é este período da história humana parente. Convém lembrar que é assim que Marx define o co-
que ainda não chegou ao fim, e que nasce na Europa na Idade munismo.
Média, a partir do século XIII, com a passagem da uniuersitas Essa profunda unidade da forma pela qual a modernidade
à societas, ou seja, com a emergência de uma representação in- representa a si m:sma é evidentemente ocultada pelas peripé-
I
-I
dividualista da sociedade na qual o indivíduo como sujeito se
distingue do corpo social., Esse movimento que é também movi-
mento de emancipação da política com relação à religião ace-
lera-se no século XVI e sobretudo no XVII. A grande questão
Cl.as de uma emanclpaçã~ e de uma laicização progressivas, cujas
diversas fases se contradizem e se opõem. Esquematizando con-
sideravelmente, distinguirei três delas: as filosofias do contrato
90 91
escapa a todo controle: o poder e sua coerção. De un: l~do, um descrita uma colmeia próspera e poderosa na q 1
. ali id d
b Ih
ua as a e as
contrato de associação, do outro, um pacto de submissão. Es~e nv zavam em VaI ' , a e, cobiça, inveja" orgulho gananela. em
A' •
segundo pólo é evidentemente o mais cômodo .de conceber, POlS suma, t odos os V1ClOS que, no mundo dos homens di id
- S ' teo
logo que tenta moralizar esse ' v d em e
resolve a questão política que nasce da plurahd~de dos homens opoem.
'Ih'
urge um
mun o ma-
da maneira mais expeditiva, vendo na ordem social um artefato, 'J ravi oso e prega as virtudes tradicionais de bondade
id d e, h umiildad e e canidad e. Logo, a ~olmeia s~ põe a ,genero-
ou seja, a fabricação de um único, rei-filósofo ou déspota ~sc1a Sl.a peric1itar
recido. Mas a crítica do despotismo que prevalece no seculo e instalam-se a pobreza, a desordem, a impotência e a indi A i
XVIII repõe em evidência o primeiro pólo e a t~rríve1 questão O pan fleto causou escan da1o. Sua moralidade expressa
A 1 gene a.
clara-
que ele levanta: a da obrigação. O que é q,:e obng~ os .h?mens mente em seu subtítulo: "Vícios privados ben~fícios públi "
I . ficá . 1d ' cos ,
a se associarem? A resposta de Rousseau e a 1?a1s otlg1~al ,e a .sah er, a rne
!
I icacía SOC1a a moral tradicional, era ainda inad-
I prepara o terreno para a resposta ,ec~nô~ica. E a ~0~sclenc1a t;I1ssível por um. vas~o público. Mas Mandeville é um precursor,
,I que os homens têm de que seu propno mteresse ~Olnclde com e um ~utor muito 1mpor.tan~e a quem seus ilustres sucessores
" ,I o interesse coletivo que os faz se comprometer livremente na prestarao homenagem. Primeiramente Smith de quem conhe e-
• obrigação do pacto s~cia1. Como o ~iz Pie~re Ro~anv:ülo?, nes~a mos o c~l~bre aforismo: "~ão é da benevolência do açouguei~o,
óptica, tão característica da modernidade, a obr~gaçao e a ma1,s do ce.rve]e1rO ou do pade1ro que esperamos nosso jantar, mas
elevada afirmação da liberdade: não há contradição entre a lt- do cuidado que e~es tem quanto ao seu próprio interesse". Lorde
herdade e a necessidade". Keynes, em seguida, que, ao sair da grande crise, não hesitou
É no momento em que a filosofia moral e política se es- e:u escrever, fazendo referência direta a Mandeville "que um
gota sobre esta questão d?s ~undamentos do ~o?trato soci~l que dia ~odo ~ mundo ser!a rico e que, mais uma vez, c~locaríamos
surge o pensamento economico, O grande menta de LOU1S Du- os fins acima dos me10S e preferiríamos o bem ao útil". Mas
mont e de Pierre Rosanvallon é ter mostrado que nos engana- atenção, acrescentava e~e: "Ainda não chegamos lá". "E, pel;
mos profundamente ao ler Adam Smith co.mo _um teórico da menos por cem anos ainda, temos de nos persuadir nós e os
economia que formula problemas de determinação do. valor . ou ~~tros, de que o bem é o mal e o mal é o bem; pois o mal é
de regulação pelo sistema de preço. A tarefa que se Iixa Smith, útil e o bem não."
e todo o pensamento econômico que nasce com ele, é ,antes de ,Já indiquei no primeiro capítulo o que fundamenta essa
tudo uma tarefa filosófica. Trata-se de pensar o laço social tendo confiança na transmutação paradoxal e automática do mal em
em vista o insucesso da filosofia moral e política em fazê-lo; bem. O mal, ou seja, a violência dos homens nasce da raridade
I!
portanto, tirando definitivamente essa questã~ do d~mínio ético das coisas necessárias e desejadas. Ora, é esse mesmo mal essa
I
II e político. É o conceito de mercado, e mais precísamente de guerra a que se entregam os homens na sociedade de mercado
"sociedade de mercado", que resolve a quadratura do circulo, que produz a abundância, e por conseguinte as condições da
fazendo entrar o laço social na ordem da natureza, do mecânico paz. Os espíritos do século XVIII estavam familiarizados com
e da "evidência". Diríamos hoje que a sociedade de mercado é essé tipo de paradoxo, ao qual eles davam o nome de "paradoxo
uma totalidade sem sujeito: uma ordem que ninguém quis e de composição": é, com efeito, porque meus atos individuais
menos ainda fabricou, que emerge no entanto da composição se compõem, entram em interação com os dos outros que os
das ações humanas, e na qual o interesse egoísta de cada um resultados coleti.vos,. sociais desses atos podem ser opostos a
se funde com o interesse de todos. seus resultados imediatos. Como o Mefisto de Goethe, é que-
Essa naturalização da ordem social, essa passagem das in- ren?o o mal que eu produzo o bem. Sabe-se hoje que Hegel leu
certezas da ética às regularidades tranqüilizadoras dos fenôme- mu~to a econ~mia polít~ca inglesa. (Fe:.gu~on, Hume, Steuart,
nos naturais, não ocorre sem paradoxos. Sm.lth) e que e bem mais sob sua influência que sob a da filo-
Em 1705, foi publicado em Londres ~m panfleto provoca- sofia alemã de seu tempo (Fichte e Schelling) que ele elaborou
dor intitulado a Fábula das abelhas e assinado por um certo seu sistema. A dialética e a astúcia da razão provêm diretamen-
Bernard de Mandeville, médico de profissão. Nesse panfleto era te do conceito de "mão invisível" de Smíth, Acreditaríamos ler
92 93
•
, ,
este último quando, na id d
Fenomenologia do espírito, per~orremos
m' alar acredita períeicamente,
r coisas, e a era do governo conflitual dos homens pertencerá
para sempre à pré-história da humanidade. Reconhecem aí cer-
estas
Iinhas,. "Cada enn a e s g .
to (da riqueza ), age em v s
estar agindo de fora, dess(e m)m~:s considerado também apenas
i ta
1 tamente as famosas fórmulas de Saint-Simon, mestre espiritual
dos grandes industriais do Segundo Império, em quem Marx via
"um precursor de idéias vastas e geniais".
t
de seu interesse egoísta "" tr' tal que o gozo de cada um
<10 exterior, esse momento se mos a eu trabalho cada um tra- No entanto, Marx evidentemente não fica nessa crítica da
zem e que no s ,
faz com que to d os g o ,
»
, ara si e todos para ele. mediação política, critica também radicalmente a sociedade bur-
balha tão bem para todos :o~o ~os efeitos deletérios do mer- guesa e a mediação econômica que a constitui. É o segundo
Hegel, contu.do, co~sclen:usa a concepção liberal que vê, tempo de seu método, de que já falei no primeiro capítulo, a
cado sobre o tecido social, r alízação e a ultrapassagem propósito do fetichismo da mercadoria e da aproximação entre
. mo tempo a re Marx e Illich. Por isso, na sociedade comunista, não há mais
na economia, ao mes d à procura de uma nova
1,, s essa que o con uz I' - d
da po 1tlca~ !ecu a , âo do Estado como rea izaçao a esfera econômica separada que esfera política separada. A abun-
ordem p~htlca e a co~cepÇ~e Marx intervém e repõe Hegel dância estando realizada, os indivíduos não trocam mais merca-
Razão un1vers~,,, É ent:~alidade deve-se ver nesse famoso re- dorias, comunicam livremente como seres plenamente auto-sufí-
"sobre seus pes , Na, io
di liberal acompanhada de uma cientes, cada um atingindo apenas por sua atividade o universal
tor~o ?m~ pura volta ~ trje çtrans arência social". Marx pro- do homem. É assim que cada um tem "a possibilidade de fazer
radicalização da pretensNao . .Pro tempo critica o fato de hoje tal coisa, amanhã tal outra, de caçar pela manhã, pescar à
d ' pos um pnmei ,
idade da sociedade numa lfistancl~ tarde, criar gado no final do dia, fazer a crítica depois da re-
,h •
94 95
social e histórico exige certa heteronomia, Reencontramos aqui rios, Mas é 'a sociedade e a hl'stóorla ' que entã d . .'
com .eI_e, P OIS, como escreveu G auchet '" ' travéao, esap.arecenam
,
o equivalente da idéia fundamental de Illich sobre a sinergia oposrçao de seus membros" , .e a raves da irredutível
positiva entre autonomia e heteronomia, ,d d que a sOCled d
SOCle a e, O efeito implícito do conflirto a: na se engendra
bid como.
A nova filosofia política - seria melhor dizer: a reabili-
mo negado pelos homens e'" f h' o perce 1 o e mes-
tação da filosofia política e a crítica das pretensões de fundar daa orzani
organização social só pode ,aZerestar recon d ecer que o verdadeiro
uma ciência da história conforme o modelo das ciências da na- ser negócio de todos" Quanto a' hi e~ ' ebate, e por conseguinte
tureza _ tem portanto uma difícil tarefa. Pregando os valores , , storra é d h d -
confi,ltantes que ela nasce, como lu ar d' I o ;: ,oque as açoes
de autonomia e de harmonia relativa da sociedade humana, ela
do Imprevisto, do improvável. og totalit:~atot1o, ~a surpresa,
deve sobretudo reabilitar a heteronomia - quer dizer, a opa- aparece como uma tentativa d f' smo, diante disso
cidade social - e a política como lugar onde emerge e se de- ' " e ixar para sempr 'd'
.! I senvolve o conflito humano, O diálogo com o marxismo é aqui h istona, e portanto o tempo ' O ra, o tempo hume o senti ' Io da.
do surto da alteridade radical do n _ "ano e o ugar
Castoriadís, dois pontos situ~dos nOvo nao ttl':,lal, ~o,mo mostra
extremamente confuso. Paradoxalmente, Marx é, com efeito,
aquele que mais insistiu sobre o papel fundador da luta de rentes, em razão de alguma c i o esPIaço s:o distintos, dífe-
classes e do conflito na produção da sociedade e da história. O' o sa que e es nao são" I
Ele pôs em pedaços a ideologia burguesa e sua representação de tempo e, ao contrário, o que altera o ser " seu ugar,
o que era e o que é não há relação d d eÍ ça0, o~ seja, qu~ entre
de, d:terminação: nem causalisrno ner: f~~
uma sociedade unificada e harmoniosa, funcionando segundo
um modo cibernético. Mas tudo isso para chegar a uma utopia I dOe derIvação;
crzaçao T d fil f' , a ismo. tempo e
onde a fase conflitante da "pré-história" humana seria ultra- " o as as 1 oso tas deterministas da histó . d
do fixar o tempo, ~ó podem assim negá-lo, ona, preten en-
passada para sempre.~ essa superação, essa visão de uma socie-
dade sem divisão, que a nova filosofia política recusa como ideal Por ,essas considerações teóricas, vê-se que é a q e C d
democracia que é colocada De f . ' u s ao a
irrealizável e malsão.] com a lógica política d " orma ~e~feita~ente coerente
Os trabalhos a -que me refiro - penso sobretudo nas obras " , , o marxismo, um Lênin pode pensar ue
de Cornelius Castoriadis", de Hannah Arendt", de Pierre Rosan- so o comunrsrno é capaz de realizar uma democracia verd d 9
mente completa; e quanto mais co I f , . a eira-
vallon", de Marcel Gauchet" - insistem portanto em dois pon- se tornará supérflua e se extingUirámi:o:t~i e;;:es:" m(aezms dOePEressa
tos fundamentais: a necessária instituição de um espaço político o e a Revolu - ) E
dque ' _ sta-
e a impossibilidade de ultrapassar a questão do poder. Reconhe- çao i. ~ oposiçao, a nova cultura política afirma
cer a necessidade do espaço político - que os gregos chamavam econ Am~smo numa SOCIedade que teria eliminado a exploração
de pólis - é reconhecer a irredutibilidade do conflito humano t d o~lca, a questão da democracia deveria sempre ser levan-
a a, e outro modo que a "ultrapassando" ' "
e o seu papel fundador. Marx viu apenas o lado negativo do nos entulhos da história Pois o c fI' h' ou seja,)em J~ga:Ia
conflito, o que nega a existência ou a liberdade do Outro. Mas , . 1 - A" on ItO umano nao se limita
o conflito é também a manifestação insuperável da pluralidade a exp orakao economrca, e é inútil querer acabar com ele Como
das liberdades e das autonomias, Ele só pode desaparecer com ;~~~v:m ~~:ballon, é, preciso "compreender a de~ocrada
difie Id d ate qU jamais chegara a terminar com as suas
essa pluralidade, num utópico "todos por um e todos em um"
que é de fato a palavra de ordem de todos os regimes totalitá- b
ria t: a es e o seu .o)eto, e não como uma realidade transitó-
i!u~C:; sob
.
;Fd a condição q~e poderemos cessar de ser órfãos de
s per 1 as para continuar a lutar dia após dia por um
.2 Cornelius Castoriadis. L'institution imaginaire de la societé. Seuil,
presente q ue nao - seja, mars, somente espera e prepa.ração . de um
gran d e
épre edid d'sonh o certosh' como o l?oeta, e que a nossa herança não.
. d
1975,
8 Hannah Arendt. The Human Condition. The University of Chicago c 1 a e nen um testamento"
t,
Press, 1958,
I '
políti sS,o no leva _ao segundo tema central dessa nova filosofia
4 Pierre Rosanvallon, op. cit.
II MareeI Gauchet. "L'experience totalitaire et la pensêe de Ia politi-
ica: a a rrmaçao de que a questão do poder não ode ser
que", in Esprit, julho-agosto de 1976, ultrapassada, É chique hoje,depoís de Cramsci, de Foucault e
96 97
outros, caçar os poderes e o Poder em todo.s os reca~tos d~ vida inteligível como conjunto, num mundo feito da mesma carne em
privada, social e pública. Todo poder s~t1a a manifestação .de ~od~s, as suas partes, independentemente da diversidade dos
um mal fundamental que deveria ser extirpado do corpo SOCIal. indivíduos. "
Não é difícil descobrir a natureza desse mal: é ainda e sempre . V?cês , reconheceram certamente a lógica que é descrita
a divisão da sociedade com ela mesma. Divisão no interior dela ~qUl: e ~ ,loglca do sagrado. E a questão se coloca, lancinante:
mesma primeiramente entre dominantes e dominados, explora- e essa lógica ultrapassável? A nova filosofia política é obrigada
dores ~ explorados. Mas sobretudo divisão entre a socied~de e a respo?der com bastante prudência, pois lê toda a história da
a fonte de seu sentido. Sejam elas funcionalistas, hegelianas, moderrudade como o imenso fracasso de uma tentativa deses-
marxistas vulgares, gramscianas, ou "poulantzianas", e _veja~ perada ~~ superação, A~ueles qu~ queriam acabar com o sa-
elas no Estado um centro cibernético, a encarnação da razao um- grado divino so c0,!1segu!ram sacralizar a Natureza relojoeira do
versal o instrumento da classe dominante, o lugar de produção século XVIII, a Razao universal e a Ciência da História no século
do consentimento social ou uma instância "relativamente autô- XI~ ~, com o capitalismo da Qualidade de vida, a Natureza eco-
noma" com relação aos conflitos de classe - as teorias do poder Iogicízada neste final do século xx. Mas o fracasso mais trágico
que existem sobre o mercado das ideologias ~ei:,am todas elas e eVIdenteme~te a experiência totalitária que, nessa perspectiva,
de explicitar um ponto fundamental, quando e Justament~ esse pode. se analls~r como a tentativa de trazer a fonte da Lei ao
ponto que elas ressentem, confusamente, co~o .0 lugar da en- rntenor da SOCIedade, de ocupar o lugar exterior onde a socie-
carnação do mal. E que todo poder, por ess~ncla, aponta p~ra dade ~ncontra o seu s~entido. Ora, "quando o poder se apodera
um exterior que ele não é, como lugar a partir do qual a SOCle- da LeI, quer ser a ,Le~,., não há mais Lei: é a conclusão sobre a
dade pode ser totalmente conhecida e controlada. Mareei Gau- qual se encerra slgillt1cativamente o arquipélago do Gulag"
chet o disse com palavras esplêndidas: "O poder, se aponta em (Marcel Gauchet ).
direção a um exterior que dá sentido ao ser social, não é ele Não se t~a,ta evidentemente de reconstituir artificialmente
mesmo esse exterior. Ele só é eficaz precisamente para apontá- um sagrado ?lvlllo.Mas a tarefa mais urgente do pensamento
lo na medida em que frisa bem que não o ocupa. Ele está do democra~lco e a de pensar as mediações que possam convir a
seu lado sem ter passado aí pura e simplesmente. Está do lado Uma sOCledade moderna. Toda mediação é necessariamente fonte
da legiti~idade sem ser a Lei. Fala em nome da Lei, mas nã? de opacidade e de heteronomia nas relações humanas. Mas não
se diz a Lei e é por esse distanciamento que ela permanece LeI. nos esqueçamos de que a mesa reúne os convivas ao mesmo
É preciso que ela esteja além de seu representante ou ~e~~o de
tem~o em que os separa: Sem heteronomia, não há autonomia
possível, Essa heteronomia necessária e fundadora é, por exem-
sua encarnação no mundo social para permanecer o significante
plo, o te~ido ~em totalmente transparente nem totalmente opaco
de uma ordem que engloba o todo social. Eis o que faz discer-
nir a necessidade profunda que comanda a existência de um
D~d~ se unprrrnern os valores, as tradições, os pontos de refe-
r:ncIa qU,e c:s homens se dão para orientar sua ação e que só
poder: a sociedade humana se define como espaço mesmo se re- sao referenClas enquanto gozam de uma relativa "objetividade",
ferindo a um ponto ausente. Ela pensa seu sentido COm relação enquanto escapam parcislmenn, ao domínio dos homens, mesmo
a um lugar do qual ela se separa até se impedir de ir um dia se, n~turalmente, elas são apenas a reificação, a coisificação, de
ao seu encontro: é porque a Lei escapa a todos que ela vale para r~laç~es human~s. V:r ~esse pr.oces~o de exteriorização, de obje-
todos. É porque há um além da comunidade humana que há t:vaçao, uma alienação e puro idealismo - mesmo se esse idea-
comunidade humana. Ela se divide para se fazer. Se há poder, Iísmo se enfeita COm o título rebuscado de materialismo.
é porque a sociedade se constitui a partir de uma ausência que . A questão das mediações, vale dizer das instituições, é tanto
o poder é encarregado de apontar. É constitutivamente que a so- ma:s urgente que se coloca o problema dos limites.\L:omo lem-
ciedade coloca seu foco de sentido fora de si mesma. E só na brei no primeiro capítulo, a crise ecológica deixa a -escolha so-
medida em que há referência a esse além é que os indivíduos mente entre dois cenários: o ecofascismo, ou seja, limites írn-
estão seguros de se encontrar num mesmo mundo, num mundo
·98
99
---,~","",-" cànz _
r
m terarquica.
dividualismo e holismo (do o .a %::melra oposição entre in-
processos sobre os quais não têm controle, é que "as leis" às
quais eles pretendem obedecer, longe de impor limites, erigem
A sociedade tradicional se regrego. o on
. .
=
presenta como uma t l'd d
tudo, totalidade).
ntca CUJos elementos não po h ota 1 a e orgâ-
em Lei suprema a transgressão de todo limite. ~Toda sociedade 1açao- ssuem nen uma a t .
a ela. A modernidade ' . u onomia com re-
precisa de um poder sobre si mesma para se fixar marcos. Mas sua autonomia e tenta pen' ao cont~ardlo, parte do sujeito e de
a existência de um poder não é uma garantia de que marcos . -
assoclaçao dos'sujeitos _ sar
. a1 SaCIe .ade_ corno resu I tando da
serão fixados: a sociedade industrial é a viva ilustração disso. seJa.
automática ou natural Vl·m tl~' assoclaçao voluntária, forçada
Não e portanto o poder enquanto tal, mesmo se ele implica . os a las com
que contradições esse pensam'ent ' h que 1 lCU ades e com
di f ld '
uma heteronornia inevitável, que se deve incriminar: é a incapa- A o se c ceava
cidade desse poder de pensar limites e de fixá-los para si própri<g _ ntesde prosseguir, devo falar da '. -
relaçao a essa classificação f d .pOSlçao de Marx com
Todo retorno ao sagrado tradicional parece excluído, como
eu já disse. Nessas condições, radicalmente novas na história da
~arx é um pensador indi;id~al~~a e e~ltar qualquer equívoco.
E claro que mais uma vez ele ' e nao um pensador holista.
humanidade, os limites que grupos humanos responsáveis e cons- modernidade levando a I ' ~ssu~e totalmente a herança da
cientes deverão se impor a si próprios se eles querem ser, isto é, verdade foi evidentement;U~ 19I~t as suas extremidades. Essa
se querem ser diferentes, têm a propriedade paradoxal de ser estruturalista que nã d u ta a pelos esforços do marxismo
ao mesmo tempo necessários e arbitrários. Necessários, porque , ao escansou enqu t . .
morto e enterrado Tenh an o o sujerto não foi
a existência de limites é uma necessidade política se os homens miná-las com alzum 0, portanto, de retornar às fontes e exa-
não querem se deixar arrastar por forças sobre as quais eles não É to vagar.
têm o menor domínio. Arbitrários, porque nenhum especialista . claro que Marx criti . dívíd [i
preciso compreender bem ca o. m IVl ua zsmo burguês. Mas é
pode fixar esses limites como se eles procedessem de uma ne- burguês egoísta se crê aut se;tI.do e o alcance dessa crítica. O
cessidade exterior à ordem humana. seja ela natural ou divina. milia, ele se crê li r . ~~u lclente,. explica ele na Santa Fa-
Talvez pela primeira vez na história, devemos enfrentar cons- meio;; que destina : ~s~~s fi~~s '~Í fIxa. pahra si, próprio e nos
cientemente o "arbitrário", ou melhor - visto que essa palavra Um atomo ou seja um . e se me a ate se tomar por
está bastante carregada de conotações negativas - a contingên- a' , , s e r sem a menor relaç- b
51-mesmo, sem necessidades, absolutamente par' que se asta
eno, em plena
100
101
102
----_ ...._--
--------------------...........-------------
·bomens imitam com paixao os seus iguais dotando-os de um
prestígio arbitrário. Esses sentimentos modernos que são "a in- O m~~o mudou antes de for~a que de lugar. . . por mais de
veja, o ciúme, e o ódio impotente" proliferam e se espalham mocrat1co que for o estado social e a constituição política de um
como uma epidemia. PoV?, pode-se contar c~m ,q?e cada um de seus cidadãos perce-
A auto-suficiência é, na sociedade burguesa, uma máscara bera sempre perto de Sl vanos POntos que o dominam e pode-
que dissimula essa estranha mistura de ódio e atração que se se prever que ele fixará obstinadamente seus olhos ne~te único
lado. n
chama fascínio. Procurar realizá-la verdadeiramente) como se
propõe Marx, só pode levar sempre a uma submissão maior do Paradoxa~ente, é apenas na sociedade igualitarísta que o
homem ao homem. A verdadeira mediação constitutiva da so- tema das deszgualdades pode fazer a sua aparição. Só podemos
ciedade burguesa não é a mediação econômica: é a mediação do ver _com efeito desigualdade~ .onde comparamos e a comparação
Outro: o Outro como modelo que imitamos servilmente. O supoe sempre a comensurabd1dade, e por conseguinte a identi-
indivíduo burguês nunca renunciou ao universal, e hoje menos • dade de natureza ou essência. O ideal moderno da utopia igua.
que nunca: ele vai simplesmente procurá-lo lá onde menos se litária que a modernidade se deu, ao que parece é traído todos
esperava, em seu vizinho da porta ao lado. os dias, mas é porque não se percebe que, an~es de condenar
O igualitarismo, essa segunda dimensão da modernidade as desigualdades, ela nega as diferenças e, nessa empresa só
obtém sucesso. ,
segundo Louis Dumont, exerce evidentemente um papel decisivo
no encadeamento da dinâmica rnirnética. A ordem social tradi- O igualitarismo procede do mesmo movimento que a re-
cional é hierárquica, o lugar dos indivíduos é aí fixado de uma jeição da lógíea do sagrado, é importante compreender bem
vez por todas, em função de um critério de nascimento ou ~e isso. A ordem social tradicional é um sistema de diferenças es-
qualquer outro critério estável e reconhecido por todos. Os rn- táveis vividas como necessárias, pois ditadas por uma ordem
terditos de todos os tipos previnem que os desejos convirjam transcendente. Quando a modernidade Se inclina sobre essa
para os mesmos objetos e degenerem em rivalidades mortíferas. ordem tradicional, ela só sabe "desmistificá-la", mostrando 1 que
A modernidade só sabe ver nisso irracionalidade, superstições. essas diferenças são "na realidade" arbitrárias e que esse arbi-
Ela varre as barreiras que separam os homens, ela se fixa como trário é ocultado por toda uma rede de poderes,usando ao
ideal a dissolução de todas as diferenças sociais, espirituais, cul- mesmo tempo da coerção e da persuasão, de práticas repressivas
turais, geográficas, legais e políticas. Paradoxalmente, ,mas .de e hegemônicas. Assim fazendo, ela se condena a ignorar duas
forma finalmente bem compreensível, em vez de produzir assim características fundamentais da ordem tradicional. De um lado,
a paz, ela exacerba as divisões, as concorrências e os antagonis- a lógica do sagrado que funda toda prática de poder e que não
mOS. O período da Restauração, na França, é um terreno de se reduz nem à coerção nem à persuasão; de outro lado, o ca-
observação extremamente interessante a esse respeito. O sis~e ráter profundamente racional dessa ordem, se a consideramos
ma .das classes do Antigo Regime parece aí reviver com uma in- como uma proteção contra a ameaça mais terrível que seja: a
tensidade nova provocando ciúmes e rivalidades de surpreenden- indiferenciação, que precipita os homens uns sobre ''OS outros.
te violência. A burguesia nunca foi tão fascinada pelos privilé- Encontramo-nos, por conseguinte numa situação excepcio-
gios dos nobres, e estes últimos nunca tiveram tanto. apego .a nal. De um lado, sendo excluído todo retorno ao sagrado tra-
esses privilégios como no momento mesmo em que a arrstocracia dicional, é verdade que toda diferenciação social doravante só
se encontra definitivamente destronada. Nunca o desprezo pelo pode parecer arbitrária. E é verdade que hoje o recurso asagra-
povo foi tão virulento quanto depois de supostamente ter to. dos sobressalentes para justificar as diferenças qu~ se chamam
I ,lI mado o poder. O grande Alexis de Tocqueville, o observador desigualdades, quer se trate das "leis da economia" ou das' .,leis
mais lúcido desse período, observa em L'Ancien Régime et la da ecologia", esse recurso convence cada vez menos.' Mas, de
Révolutíon: "Eles destruíram os privilégios embaraçosos de Outro lado, as experiências trágicas do século xx mosi:ram"nos
alguns de seus semelhantes; encontram a concorrência de todos. l que há apenas um passo entre a incliferenciação liberal, que é
Um valor, e a indiferenciação totalitária, que é uma realidade
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abominável. A nova filosofia política encontra-se, portanto, con- Que a lei natural tenha alguma coisa a dizer sobre os ne-
frontada com uma tarefa teórica considerável: pensar um siste- gócios humanos, isso pode ser contestado. De certa maneira foi
ma de diferenças arbitrárias, contingentes, que sejam sabidas isso o que fiz ao longo destes quatro capítulos. O combate 'eco-
como tais, mas que, todavia, possuam bastante estabilidade para lógico tem de enfrentar freqüentemente o argumento do caráter
resistir a esse saber. Devemos precisar bem que estabilidade não sagrado de tal ou qual princípio natural, cada vez que se es-
significa rigidez: um tal jogo de diferenças só pode ter a fluidez força para colocar na praça pública os problemas dos transpor-
da vida, e ser sempre requestionado pelas ações dos homens. Ele tes ou da saúde. Mas ele também, com demasiada freqüência.
só pode ser concebido quando tivermos renunciado definitiva- só sabe invocar as leis da natureza para afirmar suas posições. É
mente ao fantasma da sociedade ideal, imutável no seu acaba- a lei natural do crescimento exponencial contra a lei natural dos
mento e na sua perfeição. equilíbrios ecológicos. Numa obra fundamental, o biofísico
Essa questão confunde-se, na realidade, com a da autono- Henri Atlan" lembra o quanto é antigo o sonho da humanidade
mia dos sujeitos e dos grupos e com a dos limites. É pelo con- que queria confundir a lei natural e a lei moral. Fazer com que
ceito e pelo valor da autonomia que as utopias gêmeas do indi- o verdadeiro e a vida sejam o bem, e o falso e a morte, o mal.
vidualismo edo igualitarismo poderão ser ultrapassadas. Sujei- E até mesmo com que a vida seja bela, e a morte feia. Sonho
tos e grupos realmente autônomos produzirão infalivelmente o sempre retomado e sempre contestado. Por seu lado, a ciência
sistema de diferenças que caracterizei acima. A autonomia é o moderna, que tem somente dois séculos, parece ter renunciado a
contrário da auto-suficiência e da volta para si mesmo: implica ele. Refugiada nos laboratórios, submetida ao princípio de obje-
a troca e a comunicação. Tocamos aqui numa dificuldade con- tividade, ela não tem, constitutivamente, nada a dizer sobre o
ceptual temível. O espaço de comunicação entre dois sujeitos ou modo como os homens gostariam de viver ou deveriam viver.
grupos autônomos é, com efeito, um espaço paradoxal.' Em Se os ideólogos se referem a ela para justificar suas teses, é de
minha comunicação com o Outro sei que sou para mim o centro forma completamente gratuita, e assumem toda a responsabili-
do mundo, mesmo sabendo que o Outro é e se sabe ser para ele dade.
o centro do mundo. É desse paradoxo que a epistemologia do Ora, essa ciência está hoje em crise. E profundamente, pois
Ocidente moderno não cessou de fugir, em sua busca de uma são os seus alicerces filosóficos e epistemológicos que estalam
I. sociedade unificada onde o Mesmo e o Outro seriam para sem- de todos os lados. Ela pensava poder abster-se de ontologia,
II pre confundidos. É esse paradoxo que devemos encarar, se que-
mas tinha uma, implícita, que podemos resumir por: tudo o que
remos escapar do canto das sereias do sonho totalitário.
,11
I
é real é racional, e tudo o que é, é determinado. Para onde ten-
1,1
de esse racionalismo idealista - e o fato de, em certas versões,
i , ele se chamar materialismo não faz diferença alguma. É uma
3. A CONTING~NCIA CRIADORA: ALÉM DO reabsorção total do real na atividade de conhecimento", Elimi-
ACASO E DA NECESSIDADE nar completamente toda resistência da re-<tlidade. de~co~rlndo a
totalidade de suas determinações. Esse sonho foi pnmeiramente
o da mecânica racional. Dêem-me as posições e as velocidades
Quer o lamentemos ou não, essa discussão sobre a supera- de todas as partículas do Universo, dizia Laplace, e eu calculo
ção da modernidade nos traz a problemas filosóficos fundamen- a totalidade de seu futuro. Todas as disciplinas fixaram em ~e
tais. Não há política sem metafísica. Não gostaria portanto de guida para si o mesmo ideal, até. as eiênc~as da vida, do SOCIal
encerrar este exame do movimento de idéias que nos desemba- e da história. A história da ciência aparecia como uma progres-
raça dos velhos farrapos com que ainda estamos vestidos, sem
dizer uma palavra, demasiado sucinta, sobre o papel fundamen-
tal que tem aí o renovamento da filosofia natural. 8 Entre le cristal et la iumée. Seuil, 1979.
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If
são assintótica em direção ao saber absoluto. Pouco importava ~ lei, natural nã~ é m~is o '!ue ~ra: Sa~emos agora que a
A
que não se tivesse ainda atingido a assíntota, a certeza de sua necessidade e a contingência estao ai Imbncadas inextricavel-
realidade esclarecia toda a abordagem. mente":0 grande Einstein, que resumia a sua filosofia da natu-
A matemática foi talvez a primeira a trair essa paixão pela reza afIrmando :rue Deu~ não j~ga dados com o mundo, per-
totalidade. O grande matemático francês Henri Poincaré, refle- tence a ,uma. epistemologia terminada, O princípio da causali-
tindo sobre o famoso problema dos "três corpos", descobria dad~ est~ sena~ente abal~do: as "mesmas" causas podem pro-
evoluções bem estranhas: podemos descrevê-las e prevê-las como dUZIr .efeI:os diferentes (' mesmo", aqui, sendo definido com s
evoluções deterministas, mas com a condição de conhecê-las a apr~xlmaçao de uma !~ísca) e - vimos uma ilustração disso no
todo instante com uma precisão estritamente infinita. A mínima capítulo UI a propósito do congestionamento - causas dife-
aproximação, mesmo infinitamente pequena, é fatal, pois produz rentes podem produzir o mesmo efeito.
a mesma incerteza que uma aproximação grosseira. Em outros Em que é que isso muda a questão da relação entre a lei
termos, o saber total não é aqui o limite de um progresso assin- n!tural e a !~i moral? A passagem ingênua de uma à outra é
tótico do conhecimento. Há uma descontinuidade radical entre t~o problemárica como antes, mas não se pode ficar insensível
o saber total, atributo divino por excelência, e o saber humano, diante de uma convergência perturbadora: tanto uma como a
qualquer que seja a precisão mesmo ilimitada que este pode outra devem hoje enfrentar o temível desafio da contingência.
atingir. Uma imagem ilustra o que pode parecer um paradoxo: O que reconhecemos como "ordem", tanto na Cidade como na
é a do ser natural em que vemos hoje o modelo elementar da Natureza, contém sempre uma dose irredutível de indetermina-
organização complexa: refiro-me ao turbilhão. Considerem esse ~o. No m~nimo, a nova filosofia natural e a nova filosofia polf-
I I grande turbílhão que se chama ciclone. Em seu ponto central, tica d.even~m portanto fazer frente comum diante de todas as
I
chamado olho, reina o repouso, a harmonia. Afastem-se de um rentatrvas insensatas, teóricas e práticas, de acabar de uma vez
I'
infinitamente pequeno: vocês estão na turbulência mais desen- por todas com as resistências do real.
"
I
freada. Na realidade, quanto mais vocês se aproximam do olho . Também em. biologia, foi preciso reconhecer o papel
I, pacifico, mais difícil se torna reencontrá-lo um dia, pois mais criador da contingência na emergência e no desenvolvi.
I, rodopiam, mais impotentes ficam para controlar a sua própria mento ~essas ordens naturais que chamamos de seres vivos. Ê
, corrida. Metáfora admirável - mas é sem dúvida mais que uma talvez ai que esse reconhecimento é ao mesmo tempo o mais
metáfora - desses paraísos que a modernidade não cessou de fecundo e o mais revolucionário. Durante longo tempo o de.
conceber, mas cujas aproximações humanas se assemelham aos bate biológico ficou prisioneiro da seguinte questão: o ser vivo
mais abomináveis pesadelos. sendo postulado, como todo ser, determinado, é ele determina.
Após Poincaré, descobriu-se que a natureza está repleta de do por uma causa final ou por uma causa eficiente? É a famosa
evoluções desse tipo. Os trabalhos mais eminentes a esse res- questão do finalismo, que em princípio o método científico re-
peito são os da Escola de Bruxelas sobre os fenômenos termo- jeita. Mas, no caso da vida, não é tão fácil! O desenvolvi-
dinâmicos irreversíveis que valeram em 1977 o Prêmio Nobel a mento dos organismos, a evolução das espécies, os fenômenos
, seu chefe, Prigogine. Numerosos sistemas naturais se encontram de aprendizagem apresentam dinâmicas que parecem determina-
:Ii,11
algumas vezes, freqüentemente, ou ainda para alguns quase em das pelo futuro e não pelo passado: tudo se passa como se a
permanência, em bifurcações: nessas encruzilhadas críticas, basta seta do tempo estivesse invertida!
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um nada, um sopro, uma faísca, um nariz mais curto ou mais Sabemos como a biologia molecular pensou poder resolver
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11
comprido, para decidir quanto à sua estrutura e à sua dinâmica esse paradoxo. Na experiência interior da vontade consciente
ulteriores. A posteriori, a sua evolução parece ter obedecido a do projeto, 'do desej?, da intenção; parece-nos também que ~
1
I um determinismo rigoroso, gerador de ordem e estabilidade. que fazemos se explica não por nossos condicionamentos mas
I Na realidade, essa ordem é em toda a parte o fruto da contin- pelo fim que. explicitamos, ~ para o qual tendemos. O e~uiva
gência. lente do projeto no domínio dos artefatos é o programa. Da
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____r+, _
2
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Esse sei: conceptual parece portanto capaz de autocomple-
xificação,pois ao mesmo tempo faz emergir uma ordem - a
estabilização da porcentagem, fenômeno que nada tem de banal
- e essa ordem nos comunica uma informação da qual não dis-
púnhamos no início.
A essência, se aqui há essência, é realização da existência;
não é prévia à existência.
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