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m livro sobre pessoas cujos nomes.

IE: geralmente conhecidos apenas.


pelos parentes e vizinhos, É assim mes-
mo, de forma aparentemente pouco con-
vidativa, que Hobsbawm define Pasoas
extraordinárias. Afinal, quem estaria inte.
ressado na história do sapateiro John
Adams, figura muito popular em Kent nos
idos de 1830, ou, ainda, em Ned Luda,
operário cuja especialidade era destruir
máquinas industriais no século XVIII?
Certamente, eles eram tão conhecidos
quanto Herbert Smith, cuja maior proeza
foi chegar à prefeito de Barnsley-sem nunca
ter tirado seu boné de mineiro da cabeça,
ou quanto Marie Deschamps, camponesa
inilitanteda Comuna de Paris que só ficaria.
mais famosa por ser retratada na Liberdade
de Delacroix.
Seria este, então, mais um daqueles
livros sobre as famosas “histórias humanas
de gente simples”? Não exatamente. Tais
personagens estão aqui compondo um
novo parâmetro para a história do pro-
letariado e de sua formação, Pois através
da redescoberta da realidade concreta do
passado, Hobsbawm expõe a emergência
de uma classe que se descobre portadora
de uma identidade singular. Chamando a
coisa pelo nome, trata-se de narraro apa-
recimento da Famosa consciência de clave
através da recuperação das revoltas co-
tídianas das chamadas “pessoas comuns”.
Mas, aqui, entra a ressalva: “comuns” como
indivíduos mas “extraordinárias” como
agentes de uma ação coletiva. Se, por um
lado, seus nomes designam pessoas con-
cretas, por outro indicam personificações
de impasses, contradições e esperanças de
“momentos históricos cruciais.
Mas o livro não é só sobre proletários
anônimos. Bandidos, músicos, estudantes,
cantoras de jazz e até mesmo um “pai
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS
Resistência, Rebelião e Jazz
Eric Hobsbawm

PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS
Resistência, Rebelião e Jazz

Tradução de
Irene Hirsch
Lólio Lourenço de Oliveira

D
PAZE TERRA
OE.) Hobsbawm
“Traduzido do original: Uncommon people

CIP-Brasil. Catalogação Na-Fonte


(Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil)
Hobsbawm. E. J. (Eric ].), 1917-
Pessoas extraordinárias: resistência, rebeliãoe jars/ Eric Hobsbavem; tradução de Irene
Hirsch, Lólio Lourenço de Oliveira. - São Paulo: Paz e Terra, 1998.
ISBN 85-219-0319-7
H599p
1. História. 2, Movimentos sociais, 3, Personalidades.
1 Tírulo.
98-1827 CDD.909
CDU

Trechos extraídos de:


Os Trabalhadores— ad. Marina Íeão Teixeira V. de Medeiros
“Micndos do Trabalho — Trad. Waldea Barcellos e Sandra Bedran
Os Revolucionárias — Trad, João cartas Vitor Garcia « Adelângela Saggioro Garcia
História do Marxismo — Trad. Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho
História Social do faze— Trad. Angela Notanha

EDITORA PAZE TERRA SA


Rua do 'lriunfo, 177
01212010 — São Paulo-SP
Jel.: (011) 223-6522
Rua Dias Ferreira n.º 417 — Loja Parte
22431-050 — Rio de Janeiro-RJ
Tel: (021) 259-6946

1998
Impresso no Brasil! Printed in Brasil
SUMÁRIO

PREFÁCIO.

A TRADIÇÃO RADI!

1. THOMAS PAINE o .
2.08 DESIRULDORES DE MÁQUINAS. 11.1.
3. SAPALEIROS POLITIZADOS
(em cosantoria com Juan W Score), ,
4.TRADIÇÕES OPERÁRIAS ess
O FAZER-SE
DA CLASSE OPERÁRIA
1870 - 1914. ...iccsocooo
6. VALORES VITORIANOS. ..... ce... ns
HOMEM E MULHER: IMAGENS DA ESQUERDA. . 143
8, O NASCIMENTO DE UM FERIADO: O PRIMEIRO DE MAIO. 169
9.0 SOCIALISMO E À VANGUARDA, 1880-1914 191
10. O MEGAFONE DA ESQUERDA 207

CAMPONESES

11.05 CAMPONESES E A POLÍTICA. als


12, OCUPAÇÕES DE TERRA POR CAMPONESES 241
13,0 BANDIDO GIULIANO 27
6 ERIC HOBSBAWM

HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA

14.0 VIETNÃ E A DINÂMICA DA GUERRA DE GUERRILHAS 289


15. MATO DE 1968 305
16. AS REGRAS DA VIOLÊNG
17. REVOLUÇÃO E SEXO 325
18. EPPLÁFIO PARA UM VILÃO: ROY COHN. . FEM

JAZ

19. O CARUSO DO JAZZ


20. COUNT BASIE
21.0 DUKE
22.O JAZZ VAI À EUROPA
23.0 SWING POPULAR
24.0 JAZZ A PARTIR DE 1960
25. BILLIE HOLIDAY
26.0 VELHO MUNDO E O NOVO: QUINTHENTOS ANOS DE
COLOMBO
ÍNDICE REMISSIVO
PREFÁCIO

Este livro é quase inteiramente sobre a espécie de pessoas cujos nomes


são usualmente desconhecidos de todos excero de sua família, seus vizinhos
e, nos Estados modernos, as repartições que registram nascimentos, casa-
mentos é mortes. Ocasionalmente essas pessoas são conhecidas tunbém pela
polícia e por jornalistas em busca de uma “história humana”. Em alguns
casos, seus nomes são inteiramente desconhecidos e impossíveis de conhe-
cer, como os dos homens e mulheres que mudaram o mundo com o cultivo
de safras no recém-descoberto Novo Mundo, importadas arravés da Europa
« África. Alguns desempenharam um papel em pequenas, ou regionais, ce-
nas públicas: a rua, a aldeia, à capela, a seção do sindicato, o conselho
municipal. Na cra dos modernos media, a música e o esporte conferiram
notoriedade pessoal a uns poucos deles que. em épocas anteriores, teriam
permanecido anônimos,
Essas pessoas constituem a maioria da raça humana. As discussões en-
tre os historiadores sobre o quão importante são na história os indivíduos e
suas decisões não dizem respeito a clas. Os escritos sobre tais indivíduos
ausentes na história deixaram traços pouco significativos na narrativa macro-
histórica,
A questão de mcu livro não é exatamente se essas pessoas devem ser
retiradas do esquecimento ou daquilo que E. P Thompson chamou, em sua
frase memorável, “a enorme condescendência da posteridade”. Naturalmente
que devem, e espero que alguns capítulos — por exemplo, “Sapateiros poli-
tizados” e “Ocupações de terra por camponeses” — tenham ajudado a fazê-lo.
Do mesmo modo o velho Joseph Mitchell, do New Yorker, escreveu em
protesto contra aqueles que se referiam, embora de modo simpático, à “arraia-
miúda”. “Eles são tão grandes quanto você e eu.” Suas vidas têm tanto
interesse quanto a sua ou à minha, mesmo que ninguém tenha escrito sobre
clas. Minha questão diz respeito, antes, à que, coletivamente, se não como
indivíduos, esses homens é mulheres são os principais atores da história. O
que realizam e pensam faz a diferença. Pode mudar, e mudou, à cultura c o
8 ERIC HORSBAWM

perfil da história, é mais do que nunca no século Xx, Essa é a razão por que
dei o título a um livro sobre essas pessoas, tradicionalmente conhecidas
como “pessoas comuns”, de Pessoas extemordinárias.
Elas não são “desprovidas de personalidade e banais”, como os crimes
com os quais Sherlock Holmes encontra uma inusual dificuldade cm lidar.
Como são moldadas por seu passado « presente, qual a racionalidade de
suas crenças e ações, como, por sua vez, modelam suas sociedades c his-
tória: esses são os interesses centrais de meu livro. E espero que lhe dêem
uma unidade temática básica.
rés das seções do livro tratam de grupos sociais parsiculares ou milicus:
“A tradição radical” (capítulos 1-10), com a classe operária e as ideologias
associadas a esse movimento; “Camponeses” (capítulos 11-13), com a tra-
dicional classe agrária: c o “Jaz=” (capítulos 19-25), como um dos poucos
desdobramentos no âmbito das artes maiores totalmente originado no co-
tidiano das pessoas pobres. Uma quarta seção, “História contemporânea”
(capítulos 14-18), é relevante para meu tema visto que trata principalmente
de situações nas quais as intenções humanas conscientes c decisões têm for-
te peso, posto que são convencionalmente discutidas nesses termos. Entre-
tanto, não posso negar que me deu prazer reimprimir por fim um bem-
sucedido exercício de análise contemporânca. Tampouco resisti a incluir uma
breve coda sobre o injustamente esquecido vilão dos Estados Unidos na
estranha cra da Guerra Fria, publicada na série “Heróis c vilãos” do jovem
jormal Badependen. Ela é, naturalmente, baseada no inatacável Cidadão Colm: a
vida e à época de Roy Cobn (Nova York, 1988), de Nicholas von Hoffmann.
De uma mancira ou de outra, como o demonstram os presentes en-
saios, essas questões têm-me preocupado ao longo de toda minha carreira
como historiador. Elas seguem as linhas de pesquisa perseguidas em meus
primeiros estudos sobre os trabalhadores e em meus primeiros livros, publi-
cados quase quarenta anos atrás, Rebeldes primitivos « História social do jazz.
Pessoas extraordinárias reúne um número de estudos realizados entre o co-
meço da década de 50 « meados da década de 90. Onze dos 26 ensaios
apareceram previamente em livros anteriores; Os imabalhadores, Revolucionários
e Mundosdo trabalho; os demais não foram previamente publicados em livro
sob meu nome, ao menos não na Grá-Bretanha.
Detalhes adicionais são fornecidos ao início de cada capítulo.
Londres, 1998
Eric Hobsbarom
Capítulo 1

THOMAS PAINE

Este capítulo foi publicado oniginariamente como resenha de uma biografia de


Tom Paine, em 1961, no New Statesman. Após essa data, outras biografias de
Puine foram escritas, algumas melhores, como a de Jolm Keane (Londres,
1995), mas que inspéram as mesmas refleãos

Uma revolução moderada é uma contradição em termos, embora um


“putsch, golpe ou pronunciamento moderados não o sejam. Por mais lim
tados que sejam os objetivos de uma revolução, à luz da Nova Jerusalém.
deve brilhar através das rachaduras de alvenaria do Estabelecimento cterno
que ela abre, Quando a Bastilha caí, os critérios normais do que é possível
sobre a terra são suspensos, « homens é mulheres naturalmente dançam nas
ruas antecipando a utopia. Os revolucionários, em consequência, são cer-
cados por um halo milenar, por mais tcimosas ou por mais modestas que
possam ser suas verdadeiras propostas.
Tom Paine refleriu esta luz de arco-íris de uma era “na qual tudo pode
ser procurado”, Ele viu diante de si “uma cena tão nova € transcendental-
mente inigualada por qualquer coisa no mundo europeu, que o nome de
revolução é diminutivo do seu caráter, e ergue-se numa regeneração do ho-
men”. “A era atual”, sustentava cle, “mereccrá doravante scr chamada a Era
da Razão, e a geração arual aparecerá ao futuro como o Adão do novo
mundo”, A América havia se tornado independente, a Bastilha havia caído, e
ele era a voz destes dois acontecimentos maravilhosos. “ Participar em duas
revoluções”. escreveu ele para Washington, “é viver para algum propósito”.
E apesar disso, as verdadeiras propostas políticas deste homem pro-
funda é instintivamente revolucionário foram quase ridiculamente mode-
radas, Seu objetivo, “a paz universal, a civilização e o comércio”, era o da
10 ERIC HOBSBAWM

maioria dos livre-cambistas vitorianos. Ele negou deliberadamente qualquer


intenção de “mera reforma teórica” em assuntos econômicos, A iniciativa
privada era suficientemente boa para ele e “o processo mais eficiente é o de
melhorar as condições do homem através de seus interesses”. Sua análise
dos males da sociedade, nomeadamente de que à guerra c os impostos altos
estavam do fundo de todos eles, ainda é doutrina bem fundada no cinturão
dos executivos do Sussex, exceto nas ocasiões em que os lucros dos arma-
mentos e o medo do comunismo superem o horror dos altos gastos do
governo. À incursão mais radical de Paine no processo econômico foi um
imposto de herança de dez por cento, proposto para financiar as pensões dos
idosos. Quando veio para à França, cle — como outros “jacobinos” ingleses
— juntou-se à Gironda, e foi um moderado mesmo nesse grupo.
Que ele tenha sido, não obstante, um revolucionário, não é surpreen-
dente, Houve, afinal das contas, uma ocasião em que os industriais csta-
belecidos estavam preparados para levantar barricadas (ou mais precisamente,
para apoiar o seu levantamento) contra as forças da iniqiidade que im-
pediam “a felicidade geral da qual à civilização é capaz”, preferindo reis e
duques à homens de negócio. O que surpreende é o sucesso extraordinário
de Paine, e provavelmente sem paralelo, como porta-voz da revolta. Isto é
que o transforma num problema histórico.
Outros panfletários têm algumas vezes conseguido dar o golpe que
justifica a vida do agitador e que O transforma por um momento na voz do
homem comum. Paine fez isso trés vezes, Em 1776, Common Sense cristalizou
as aspirações semiformuladas pela independência americana. Em 1791, sua
defesa da Revolução Francesa, 7he Rights of Man, disse quase tudo O que os
radicais ingleses gostariam de alguma vez ter dito sobre esse assunto, Diz-se
que vendeu 200 mil exemplares em alguns meses, numa ocasião em que
toda a população da Inglaterra, inclusive crianças e outros analfabetos, era
menor do que a da Grande Londres de hoje, Em 1794, Age of Reason tor-
nou-se o primeiro livro à dizer positivamente, em linguagem compreensível
às pessoas comuns, que à Bíblia não era a palavra de Deus. Isso permaneceu
como a afirmação clássica do racionalismo da classe operária desde então.
Evidentemente um triunfo triplo como esse não é devido a acidente.
É devido em parte ao fato de que Paine era O povo para quem es-
creveu, os homens gue se fizeram por si mesmos, auto-educados, autocon-
fiantes, ainda não inteiramente divididos em patrões e assalariados. O homem
que foi sucessivamente aprendiz de fabricante de cabos, professor, suboficial,
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS n

negociante de fumo, jornalista e “uma pessoa engenhosa, esperando intro-


dluzir suas invenções mecânicas na Inglaterra”, podia falar por todos eles. De
modo incidental, ele tinha a mesma afinidade misteriosa com o público
“como inventor é como jornalista. A mais popular estrurura isolada da revol
são industrial, à julgar por suas inumeráveis reproduções nos jarros, é a ponte
de ferro sobre o Wear, construída segundo o projeto pioneiro de Paine,
embora — caracteristicamente — sem lucros para cle. A descoberta da re-
volução como um fato deu-lhe, como à seus leitores, à enorme confiança
num futuro que cra o deles.
Na verdade, a descoberta o fez. A não ser pela luta na América, em
1776, ele podia ter se tornado uma figura literária de segunda ordem, ou
mais provavelmente um inventor € industrial fracassado, porque à ciência
aplicada permancecu a sua primeira e última paixão. Scus amigos — mas
poucos outros — teriam-no admirado como um espirituoso e encantador
astro da socicdade de uma cidade pequena, um esportista e um bom par-
ceiro no xadrez ou no piguer*. Teriam deplorado com condescendência seu
gosto pelo conhaque, e casualmente poderiam; comentar a ausência de vida
sexual em alguém aparentemente tão sensível aos encantos da beleza. Se cle
não tivesse emigrado para a América com uma recomendação do astuto
Franklin, scria esquecido. Se não tivesse renascido na Revolução, seria lem-
brado apenas numa rara tese de PhD.
Mas ele é inesquecível é, bastante tipicamente, não no mundo do libe-
ralismo ortodoxo, mas no universo sectário da rebelião política e teológica;
e isto apesar do seu homogêneo fracasso político, exceto como jornalista, «
da sua falta de extremismo. (Ele foi o único membro da Convenção Fran-
cesa à lutar abertamente contra a sentença de morte de Luís xvI, embora
tenha sido o primeiro a clamar pela república) A maior parte de suas bio-
grafias são de esquerdistas; um comunista publicou suas obras completas,
Por quê? Porque para a maioria dos leitores de Painc a salvação pela
iniciativa privada não era a resposta, o que quer que cle ou eles possam ter
pensado, À oposição ostensiva dele e deles era contra o “privilégio” que
impedia o caminho da “liberdade”; mas na verdade eca também contra as
novas é não-reconhecidas forças que impeliam homens tais como eles mes-
mos para a pobreza. Eram bastante independentes — como artesãos hábeis,
NT —Jogo de 2 a é pessoas cum 32 cartas.
2 ERIC HORSBAWM

pequenos negociantes ou fazendeiros — para verem à si mesmos como o


futuro, não porque o próprio grau de sua opressão (como o proletariado
marxista) os destinasse à revolução, mas porque era ridículo e irracional que
homens independentes não devessem triunfar. Por outros 25 anos os ar-
tesãos racionalistas do tipo de Paine não procuraram sua salvação por meio da
“união geral” e de uma comunidade cooperativa. Mas a pobreza para eles já
era um fato coletivo, a scr solucionado e não simplesmente evitado.
Por estes e para estes pobres aucoconfiantes Painc falou. Sua análise
porta menos do que sua dedicação inabalável é arrogante a eles, expressa
com aquela “razão e energia profundas” que Condorcet tanto admirou. Quan-
do falava da felicidade humana, era o fim da pobreza c da desigualdade que
tinha em mente. A grande questão da Revolução, apesar de sua devoção aos
impostos baixos « à livre iniciativa, foi “se o homem deve herdar seus dirci-
tos e ter lugar a civilização universal. Se os frutos do seu trabalho devem ser
gozados por ele mesmo ... Se o roubo deve ser banido dos tribunais e à
miséria dos paísts”. Isso porque “nos paíscs que chamamos de civilizados
vemos à velhice indo para os asilos é a mocidade para a forca”. Isso porque
a aristocracia dominava “aquela classe de pessoas pobres é miscráveis que
estão tão numerosamente dispersas por toda à Inglaterra, que devem ser
avisadas por uma proclamação de que são felizes”.
Mas Paine não só disse aos seus leitores que a pobreza era incom-
patível com a felicidade e a civilização. Disse-lhes que à luz da razão havia
raiado em homens como cles para terminar com à pobreza, e que a Re-
volução mostrou como a razão deve triunfar. Ele foi o menos romântico
dos rebeldes. O senso comum auto-evidente e prático do artesão transfor-
maria o mundo. Mas a simples descoberta de que a razão pode cortar como
um machado através da vegeração rasteira do costume que mantinha os
homens escravizados e ignorantes — isso foi uma revelação.
Em todas as páginas de Age 0f Reason, como através de gerações de
grupos de discussão da classe operária, fulge a exaltação da descoberta de
como isso é fácil, uma vez que se tenha resolvido a ver claramente, a desco-
brir que aquilo que os padres dizem sobre a Bíblia, ou os ticos sobre à
sociedade, está errado. Por todo The Rights of Man, brilha a evidência da
grande verdade. Para Burke esta razão revolucionária significava que “toda
roupagem decente da vida deve ser arrancada violentamente” para deixar
“nossa natureza nua, trémula” revelada em todos os seus defeitos. Painc não
SSOAS EXTRAORDINÁRIAS 3

tinha medo de uma nudez que revelasse 0 homem, feito por si mesmo, na
glória de suas infinitas possibilidades. Sua humanidade permanecia nua, co-
mo Os atletas gregos, porque estava em posição para à luta e o triunfo.
Mesmo agora, quando lemos essas frases simples e claras nas quais o senso
comum eleva-se a heroísmo, « uma ponte de ferro fundido cobre à distância
entre “Therford e a Nova Jerusalém, ficamos eufóricos « comovidos. E se
acreditamos no homem, mesmo agora, como podemos deixar de animá-lo?
Capítulo 2

OS DESTRUIDORES DE MÁQUINAS

O propósico desto artigo está claramente expresso em sua primeira página:


defender 0s movimentos apenários britânicos comera o que E. P Thompson pos-
teriormente chamaria de “a enorme condescendência da posteridade” — «
também, pode-se acrescentas, contra as idcalisas le nossa época. Koi publicado
pela primeira vez em 1952, no primeiro número da revista histórica Past &e
Present, que havia sido recóm-fiundada pelo autor é sem grupo de amigos, a
qual ainda prospera,

“talvez scja hora de reconsiderar o problema da quebra de máquinas no


começo da história industrial da Inglaterra e de outros países. Muitos, mes-
mo historiadores especializados, ainda sustentam inúmeros equívocos acerca
dessa forma de luta da classe operária em seus princípios. Assim, um ex-
celente trabalho publicado em 1950, póde ainda descrever o luddismo” sim-
plesmente como uma “Jaquerie** industrial sem propósitos « frenética”, e
uma eminente autoridade, que contribuiu mais do que à maioria para o nosso
conhecimento acerca disso, passa sobre os tumultos endêmicos do século
XVIII considerando que estes cram o transbordamento da excitação e dos
ânimos cxaltados.! Tais equívocos são, acho cu, devido à persistência das opi-
niões sobre a introdução de maquinaria claborada no começo do século xx,
é às opiniões quanto ao operariado e à história do sindicalismo formuladas
no tim do século XIX, principalmente por Webbs « seus seguidores Fabianos.
Talvez devamos distinguir as opiniões « as presunções, Em grande parte das
* NT — Adjaivo derivado de Ned udd, sugerido em 1779, quando este operário semi-idio-
ta do Leicestershire quebrou máquinas que econumizavam mão-de-obra
** NT— Revolta camponesa na França em 1358.
16 ERIC HOBSBAWM

discussões sobre a quebra de máquinas ainda sc pode detectar a presunção


dos apologistas económicos da classe média do século x1x, de que se devia
ensinar aos operários a não baterem com a cabeça contra a verdade eco-
nômica, por mais intragável que fosse: dos Fabianos e liberais, de que méto-
dos com emprego de força na ação trabalhista são menos eficazes do que
negociações pacíficas: de ambos, de que nos primeiros tempos o movimento
operário não sabia o que estava fazendo, mas simplesmente reagia, cega-
mente € às apalpadelas, à pressão da miséria, como os animais no labo-
ratório reagem às correntes elétricas. As opiniões conscientes da maioria dos
estudiosos podem ser resumidas como sc segue: o triunfo da mecanização
cra inevitável; podemos compreender e simpatizar com a longa ação de
retaguarda que todos, exceruando uma minoria de trabalhadores favorcci
dos, empreenderam contra o novo Sistema; mas devemos accitar sua falta de
propósitos e sua inevitável derrota
As presunções tácitas são inteiramente discuríveis. Nas opiniões conscien-
tes há evidentemente uma boa dose de verdade. Ambas, contudo, obscure-
cem uma boa parte da história. Assim, tornam impossível qualquer estudo
verdadeiro dos métodos de lura da classe operária no período pré-industrial.
Um olhar apressado sobre o movimento trabalhista do século XVTI e começo
do XIX mostra como é perigoso projetar longe demais no passado o quadro
da revolta desesperada e retirada, tão familiar, de 1815 a 1848, Dentro dos
seus limites — que cram, em termos intelectuais e organizacionais, muito
estreitos —, os movimentos do longo surto econômico que terminou com as
guerras napoleônicas não foram nem desprezíveis nem completamente mal-
sucedidos. Grande parte deste sucesso foi obscurecido pelas derrotas subse-
qientes: a forte organização da indústria de lá do Oeste da Ingglarerra decaiu
completamente, para só reviver na ascensão dos sindicatos gerais durante à
Primeira Grande Guerra; as corporações de ofícios dos trabalhadores belgas
de lã, suficientemente fortes para vencer virtuais acordos coletivos na década
de 1760, decaíram após 1790 c, em sermos práticos, até os primeiros anos
de 1900 o sindicalismo esteve morto.?
Contudo não há realmente nenhuma desculpa para ignorar a força destes
primeiros movimentos, pelo menos na Inglaterra; e à não scr que perce-
bamos que a base da força residia na quebra das máquinas, nas arruaças e na
destruição das propriedades em geral (ou, em termos modernos, na sabo-
tagem e na ação direta), não veremos sentido nelas.
Para muitos não-especialisras, os termas “destruidor de máquinas” e
“Juddita” são intercambiáveis. Isto é natural apenas porque as insurreições
de 1811-1813, é de alguns anos após Waterloo neste período, atraíram mais
a atenção pública de que quaisquer outras, e acreditava-se que exigiam mais
força militar para a sua supressão. Os 12. mil soldados empregados contra os
ludditas excederam grandemente em número o exército que Wellington le-
vou para à Península em 1808.º Contudo, a preocupação natural que se tem
com os ludditas tende a atrapalhar a discussão da quebra de máquinas em
geral, à qual começa como um fenômeno sério (se se pode dizer propria-
mente ter tido um começo) em algum momento do século XvTT é continua
até mais ou menos 1830, De faro, à série de revoltas dos trabalhadores
rurais que os Hammond barizaram de “última insurreição de trabalhadores”,
em 1830, foi essencialmente uma das principais ofensivas contra a maqui-
naria agrícola, embora também destruísse acidentalmente uma quantidade
razoável de equipamento industrial Em primeiro lugar, o luddismo, tra
tado como um fenômeno isolado para fins administrativos, abrangia vários
tipos diferentes de quebra de máquinas, que na maior parte existiram inde-
pendentemente uns dos outros, exceto antes e depois. Em segundo lugar, à
rápida derrota do luddismo levou a uma crença gencralizada de que a que-
bra de máquinas nunca era bem-sucedida.
Vamos considerar o primeiro ponto. Há pelo menos dois tipos de
quebra de máquinas, bastante diferentes da quebra acidental em distúrbios
comuns contra os altos preços ou outras causas de descontentamento — por
exemplo, parte da destruição de Lancashire em 1811, e de Wiltshire em
1826 O primeiro tipo não implica nenhuma hostilidade especial contra as
máquinas como tal, mas é, sob certas condições, um meio normal de fazer
pressão contra os empregadores ou os trabalhadores extra. Como se notou
corretamente, os ludditas de Nottinghamshirc, Leicestershire e Derbyshire
“usaram Os ataques contra à maquinaria, nova ou velha, como meio de
forçar seus empregadores a fazer-lhes concessões com relação a salários e
outras questões” * Este tipo de destruição fazia parte, tradicional e rotinei-
ramente, do conflito industrial no período do sistema doméstico de fabri-
cação, e nas primeiras fases das fábricas e das minas, Não era dirigido ape-
nas contra as máquinas, mas também contra as matérias-primas, produtos
acabados, ou mesmo a propriedade privada dos empregadores, dependendo
do tipo de danos à que estes cram mais sensíveis, Assim, em três meses de
agitação no ano de 1802, os tosquiadores de Wiltshire queimaram montes
as ERIC HORSBAWM

de feno, celeiros é tendas de impopulares negociantes de tecidos, abateram


suas árvores é destruíram carregamentos de pano, além de atacar é destruir
suas manufaruras.?
A prevalência desta “negociação coletiva através da arruaça” é bem de-
monstrada. Assim — para tomar somente os ofícios têxteis do Oeste da
Inglaterra — os negociantes de tecidos queixaram-se ao Parlamento em 1718 e
1724 de que os tecelócs “ameaçaram demolir suas casas e queimar seu tra-
balho, a menos que concordassem com suas condições”. As disputas de
1726-7 foram travadas tanto em Somerset, Wiltshire e Gloucestershire co-
mo em Devon, por tecelões “invadindo as casas (dos patrões e furadores de
greve), estragando a lã e cortando c destruindo as peças nos teares e os
utensílios do ofício” Terminaram com algo parecido a um contrato co-
letivo. O grande tumulto dos trabalhadores têxteis em Melksham em 1738
começou com os trabalhadores “cortando todas as correntes dos teares per-
tencentes ao sr. Coulthurst . por ele ter baixado os preços”;!“ e, três anos
mais tarde, empregadores ansiosos da mesma área escreviam para Londres
pedindo proteção contra as exigências dos homens de que nenhum estranho
ao local fosse empregado, sob pena de destruição da lá." E assim por diante,
durante todo o século.
Novamente, quando os mineiros de carvão chegaram ao ponto de di-
rigir suas exigências contra os empregadores de mão-de-obra, usaram a té
nica da destruição. (Na maior parte, é claro, as insurrcições dos mineiros
aínda eram dirigidas contra os altos preços dos alimentos, e os exploradores
acreditavam ser responsabilidade deles.) Assim, no campo de carvão de North-
umberland, incêndio da maquinaria na boca do poço foi parte dos gran-
des tumultos da década de 1740, que deu aos homens um aumento de
salários bastante significarivo.!? Uma vez mais, as máquinas foram despe-
daçadas e o carvão incendiado nos tumultos de 1765, o que deu aos minciros a
liberdade de escolherem seus empregadores no fim do contrato anual.* Du-
rante a última parte do século, leis do Parlamento foram baixadas à inter-
valos contra O incêndio de poços.!* Contudo, ainda em 1831, os grevistas
em Bedlington (Durham) destruíam mecanismos de içamento.!s
A história da destruição de fórmas no ofício de malharia em East Mid-
lands é por demais conhecida para ser contada de novo.! Certamente, à
destruição das máquinas foi a arma mais importante usada nos famosos
tumultos de 1778 (os ancestrais do luddismo), os quais foram parte essen-
cial de um movimento para resistir às reduções de salários.
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS. 19

Em nenhum destes casos — e outros podem ser mencionados — a


questão era de hostilidade às máquinas como tais. A destruição era simples-
mente uma técnica sindicalista no período anterior e durante as primeiras fases
da revolução industrial, (O fato de dificilmente existirem sindicatos organi-
zados nos ofícios envolvidos não afeta grandemente O argumento. Nem
tampouco o faro de, com a chegada da revolução industrial, a destruição ad-
quirir novas funções.) Era mais útil em casos em que era necessária uma
pressão intermitente sobre os patrões, do que quando tinha de ser mantida
pressão constante; quando os salários e as condições mudavam subitamente,
como entre os trabalhadores têxteis, ou quando os contratos anuais vinham para
renoxação simultânea, como entre os mineiros e marinheiros, mais do que
quando, digamos, a entrada no mercado tinha de ser firmemente cestrin-
gida. Póde ser usada por todos os tipos de pessoas, desde os pequenos
produtores independentes, por meio das formas intermediárias tão típicas
do sistema de produção doméstica, até os assalariados mais ou menos plena-
mente capacitados. Contudo dizia respeito mais às disputas que surgiam do
típico relacionamento social da produção capitalista, do que entre empresários
empregadores « homens que dependiam, direta ou indiretamente, da venda da
sua força de trabalho aos mesmos; embora, é cerro, este relacionamento exis-
tisse ainda em formas primitivas € estivesse confundido com as relações da
pequena produção independente. Vale à pena notar que os distúrbios e des-
truições deste tipo parecem mais fregiientes na Inglaterra do século xvitt, com
a sua revolução “burguesa” por trás, do que na França do século XVII!” (Com
certeza, os movimentos dos tecelões « minciros ingleses apenas superficialmen-
te se assemelham às atividades dos sindicatos das associações de assalariados
em árcas continentais muito mais conscrvadoras,*)
O valor desta técnica era evidente, tanto como meio de fazer pressão nos
empregadores, como de garantir a solidariedade essencial dos trabalhadores.
O primeiro ponto é admiravelmente apresentado numa carta do se-
cretário da câmara municipal de Nottingham em 1814,ºº Os fabricantes de
malha, comunicava ele, estavam agora em greve contra a firma de J. e George
Ray. Uma vez que esta firma empregava principalmente homens que pos-
suíam seus próprios teares, eram vulneráveis a uma simples suspensão das
encomendas. A maior parte das firmas, contudo, alugavam os teares aos
fabricantes de malha “e através deles adquiriam controle total dos trabalha-
dores. Talvez a maneira mais cficaz pela qual a combinação pudesse coagi-los
fosse o seu meio anterior de levar a guerra destruindo scus bastidores”,
2” ERIC HORSBAWM

Num sistema doméstico de indústria, onde pequenos grupos de homens ou


homens isolados trabalham espalhados em numerosas aldeias é pequenas casas
de campo, não é fícil de qualquer mancira conceber um outro método que
possa garantir uma parada cficaz. Além do mais, contra empregadores locais
comparativamente pequenos, a destruição de propricdades — ou a ameaça
constante de destruição — seria bastante cficaz. Onde, como na indústria de
roupas, tanto a matéria-prima como o artigo acabado são caros, a destrui-
ção de lã ou da roupa pode ser preferível à dos tearcs:2? mas mas indústrias
semi-rurais, o incêndio das medas, celeiros e casas dos empregadores pode
afetar scriamente sua conta de lucros e perdas.
Mas a técnica tinha outra vantagem. O hábito da solidariedade, que é
O fundamento do sindicalismo eficaz, leva tempo para ser aprendido —
mesmo onde, como nas minas de carvão, cle é sugerido naturalmente. Leva
mais tempo ainda para ser integrado ao código de ética inconteste da classe
operária. O fato de os fabricantes de malhas espalhados no East Midlands
poderem organizar greves eficazes contra as firmas empregadoras, por exem-
plo, atesta um alto nívcl de “moral sindical”; mais alto do que normalmente
se poderia esperar nesse período da industrialização. Além disso, entre ho-
mens e mulheres mal pagos, sem fundos de greve, o perigo de furadores de
greves é sempre agudo. A quebra de máquinas foi um dos métodos de
contra-atacar estas fraquezas. Desde que o equipamento de içamento de um
poço de mina de Northumberland fosse quebrado, ou o alto-forno de uma
fundição galesa fosse posto fora de serviço, havia uma garantia temporária
de que afábrica não iria funcionar?! Este era apenas um dos métodos c não
aplicável em toda parte, Mas o conjunto de atividades a que os administra-
dores do século XVII! « começos do XIX chamavam de “tumulto” visavam ao
mesmo propósito. Todos estão familiarizados com os bandos de militantes
ou grevistas de uma fábrica ou localidade, percorrendo toda a região, convo-
cando aldeias, oficinas c fábricas por uma mistura de apelos e força (embora
poucos trabalhadores precisassem de muita persuasão nas primeiras fases da
lura).? Mesmo muito mais tarde, as demonstrações e reuniões de massa cons-
titufam uma parte essencial das disputas trabalhistas — não só para intimi
dar os empregadores, como para manter os homens juntos c animados. Os
tumultos periódicos dos marinheiros do Nordeste, no tempo em que os
contratos de trabalho eram fixos, são um bom exemplo:** as greves dos mo-
dernos porniários, outro. Evidentemente a técnica Iuddista estava bem adap-
tada para esta fase da guerra industrial. Se os tecelões ingleses do século xvitt
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 2

(ou os madeireiros americanos do século XX) foram um grupo de homens.


proverbialmente desordeiros, havia sólidas razões técnicas para serem o que
eram.
Quanto à esse ponto tumbém temos alguma confirmação de um mo-
derno líder sindical que, quando criança, viveu a rransição de uma indústria
de li doméstica para o sistema de fábrica. “É necessário lembrar” escreve
Rinaldo Rigola (um conservador extremo entre os líderes sindicais)º “que
naquela época pré-socialista a classe trabalhadora era uma turba, não um
exército. Às greves esclarecidas, ordeiras e burocráticas eram impossíveis Os
trabalhadores só podiam lutar por mcio de demonstrações, gritaria, inci-
tação e vaias, intimidação « violência. O luddismo « a sabotagem, embora
não elevados à categoria de doutrinas, tinham apesar de tudo de fazer parte
dos métodos de luta.”
Devemos agora nos voltar para o segundo método de destruição, que
é geralmente considerado como à expressão da hostilidade da classe operária
às novas máquinas da revolução industrial, especialmente as que economiza-
vam mão-de-obra, Naturalmente, não pode haver nenhuma dúvida do grande
sentimento de oposição às novas máquinas; um sencimento bem fundado,
na opinião de nada menos que uma autoridade como o grande Ricardo?
Contudo, três observações devem ser feitas. Primeiro, esta hostilidade não
era nem tão indiscriminada nem tão específica como se tem presumido
muitas vezes. Segundo, com exceções locais ou regionais, cla foi surpreen-
dentemente fraca na prática, Finalmente, de mancira alguma ela se restringiu
aos operários, mas foi partilhada pela grande massa da opinião pública,
inclusive muitos proprietários de mamufituras,
1. O primeiro ponto ficará claro se considerarmos o problema tal co-
mo se apresentava ao próprio trabalhador. Ele estava preocupado não com
O progresso técnico abstratamente, mas com o duplo problema prático de
impedir o desemprego e manter o padrão de vida habitual, o que incluía
fatores não-monetários como a liberdade « a dignidade, bem como os sa-
lários. Assim, não era às máquinas como tal que ele visava, mas qualquer
amcaça àqueles =- acima de tudo à mudança total nas relações sociais da
produção que o ameaçavam. Se esta ameaça vinha da máquina, ou de al-
guma outra parte, dependia das circunstâncias. Os tecelões de Spitalficids
insurgiram-sc em 1675 contra as máquinas pelas quais “um homem pode
produzir tanto ... como quase vinte sem clas*; em 1719, contra os usuários
de chita estampada; em 1736, contra os imigrantes que trabalhavam abaixo
2 ERIC HOBSEAVM

do preço: e, na década de 1760, destruíram teares contra o corte de sa-


lários:” mas o objetivo estratégico desses movimentos era o mesmo. Por
volta de 1800 os tecelões do Oeste e os tosquiadores entraram simulta-
neamente em ação; os primeiros se organizaram contra à inundação do me
cado de trabalho por trabalhadores extras, os últimos contra as máquinas.**
Contudo, o objetivo deles — o controle do mercado de trabalho — cra o
mesmo. Inversamente, quando à mudança não trazia desvantagem aos trabalha-
dores, não encontramos qualquer hostilidade especial contra as máquinas. En-
tre os tipógrafos, a adoção de prensas movidas a motor após 1815 parece
haver causado pouca perturbação. Foi a revolução posterior na composição
de tipos, ameaçando um rebaixamento por atacado, o que provocou a luta.”
Entre 0 começo do século xvi!l e a metade do XIX, a mecanização e os
novos implementos aumentaram grandemente à produtividade do minciro
de carvão: como a introdução, por exemplo, das explosões de dinamite,
Porém, como deixavam a posição do cortador intocada, não ouvimos falar
de nenhum movimento importante para resistir às mudanças técnicas, em-
bora os mineiros fossem proverbialmente ultraconservadores e arruaceiros,
A restrição da produção praticada pelos trabalhadores sob a iniciativa privada é
uma questão totalmente diferente. Pode ocorrer é ocorre em indústrias com-
pleramente não-mecanizadas — por exemplo, na indústria de construção; e
não depende de movimentos ostensivos, organizações ou insurreições.
Em alguns casos, na verdade, a resistência à máquina foi com bastante
consciência uma resistência à máquina nas mãos do capitalista. Os destrui-
dores de máquinas de 1778-90 em Lancashire distinguiram claramente entre
máquinas de fiar de 24 fusos ou menos, as quais eles pouparam, c as grandes,
adequadas apenas para uso em fábricas, as quais destruíram.*º Sem dúvida, na
Inglaterra, que estava mais familiarizada com as relações sociais de produção
que anteciparam as do capitalismo industrial, este tipo de comportamento é
menos inesperado do que cm outros lugares. Nem podemos ler muito à
respeito. Os homens de 1760 estavam longe de compreender a natureza do
sistema econômico que em breve enfrentariam. Apesar de tado, é evidente
que a luta deles não foi uma simples luta contra o progresso técnico como tal,
Nem há, na maior parte, qualquer diferença fundamental na atitude
dos operários em relação às máquinas, tomada como um problema isolado,
nas primeiras c nas últimas fases da industrialização. É verdade que em
muitas indústrias o objetivo de impedir à introdução de máquinas indese-
jáveis havia cedido lugar, com o advento da mecanização completa, ao plano
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 28

de “capturá-las” para os trabalhadores que gozavam de padrões « condições


sindicais, enquanto tomavam todas as medidas praticáveis para minimizar o
desemprego tecnológico. Esta política parece ter sido adotada improvisa-
damente após a década de 1840"! e durante a Grande Depressão, mais gene-
ricamente após meados da década de 1890.ºº Entretanto, há muitos exem-
plos de oposição direta às máquinas que ameaçam criar o desemprego ou
rebaixar o trabalhador, mesmo hoje em dia.*º No funcionamento normal da
economia da iniciativa privada, os motivos que levaram os trabalhadores a
não confiar nas novas máquinas na década de 1810 continuam convincentes
na década de 1960
2. O argumento até agora pode ajudar à explicar por que, afinal de
contas, a resistência às máquinas foi tão pequena. O fato não é geralmente
reconhecido porque a mitologia da era pioncira do industrialismo, que ho-
mens como Baines é Samuel Smiles refletiram, exageraram os tumultos que
de fato ocorreram. Os homens de Manchester gostam de pensar em si mes-
mos não só como monumentos da iniciativa é da sabedoria econômica,
como também — uma tarcfa mais difícil — como heróis. Wadsworth e
Mana reduziram os tumultos de Lancashire no século XVI à proporções
mais modestas.'t Na verdade, temos registro apenas de alguns movimentos
de destruição realmente generalizados: os dos trabalhadores rurais, que pro-
vavelmente destruíram a maioria das debulhadoras nas áreas afetadas; as com-
panhias especializadas de pequenos grupos de tosquiadores, na Inglaterra e em
outros lugares:'* e talvez os tumultos contra os teares movidos a motor em
1826, As destruições de Lancashire de 1778-80 e de 1971 restringiram-se
a áreas limitadas e limitado número de manufatura, (Os grandes movimen-
tos de 1811-12 em East Midlands não foram, como vimos, absolutamente
dirigidos contra a nova maquinaria.) Isto não se deve apenas ao fito de que
um pouco de mecanização era considerada inofensiva. Como foi acentuado?*
à tendência à introduzir a maior parte das máquinas ocorria em ocasiões de
prosperidade crescente, quando 0 nível de empregos estava melhorando c à
oposição, não totalmente mobilizada, podia ser dissipada por algum tempo.
Quando as dificuldades voltavam, o momento estratégico para se opor aos
novos implementos havia passado. Novos trabalhadores para operá-los já
haviam sido recrutados, os operários antigos ficavam de fora, capazes ape-
nas de destruições ao sabor da vontade de seus competidores, incapazes de
se impor sobre a máquina. (A menos, naturalmente, que tivessem bastante
sorte de possuir um mercado especializado que não fosse afetado pela pro-
x ERIC HORSRAWM

dução à máquina, como o dos fabricantes de sapatos à mão e o dos alfiates,


nas décadas de 1870 e 80.) Um motivo pclo qual à destruição pelos tos-
quiadores era muito mais persistente e séria do que a de outros foi que estes
homens-chaves altamente especializados e organizados mantiveram controle
sobre o mercado de trabalho, mesmo após a mecanização parcial.”
3. A mitologia dos industriais pionciros obscureccu também a avas-
saladora solidariedade para com os destruidores de máquinas em todos os
segmentos da população. Em Nottinghamshire não foi denunciado um úni-
«o Iuddita, embora muitos dos pequenos patrões devessem conhecer perfei-
tamente bem quem quebrou seus bastidores.” Em Wiltshire — onde os
intermediários que terminavam as roupas € Os pequenos patrões cram co-
nhecidos por simpatizar com os tosquiadores?! — os verdadeiros terroristas
de 1802 não puderam ser descobertos. Foram os próprios negociantes e
fabricantes de lá de Rossendale os que baixaram resoluções contra teares
movidos à motor, alguns anos antes de os homens destruí-los.*? Durante a
insurreição dos trabalhadores de 1830, o cscrivão dos magistrados de Hin-
don, no Wiltshire, relatou que “onde a turba não destruiu a maquinaria, os
fazendeiros a expuseram a fim de ser destruída”, e lorde Melbourne teve
que enviar uma circular em termos incisivos aos magistrados que haviam
“em muitos casos recomendado a paralisação do emprego de máquinas,
usadas para debulhar milho e outros fins”. “As máquinas,” alegou ele. “têm
tanto direito à proteção da Li como qualquer outro tipo de propriedade”
Nem isto é de surpreender, Os empresários capitalistas plenamente de-
senvolvidos formavam uma pequena minoria, mesmo entre aqueles cuja po-
sição era tecnicamente a de auferidores de lucros. O pequeno lojista ou o
patrão local não queria uma economia de expansão ilimitada, acumulação é
revolução técnica, a selvagem briga de foice que condenava os fracos à fa-
lência e ao status de assalariado. Scu ideal era o sonho secular de todos os
“pequenos homens”, que encontrou expressão periódica em Leveller, no
radicalismo jeffersoniano ou jacobino, uma sociedade em pequena escala de
proprietários modestos e de assalariados em condições confortáveis, sem
grandes distinções de riqueza ou poder; embora, sem dúvida, em sua ma-
neira discreta, ficando mais ricos c mais confortáveis o tempo todo. Esse cra
um ideal irrealizável, c mais ainda na evolução cada vez mais rápida das
sociedades. Lembremo-nos, contudo. de que aqueles a quem isso se referia
na Europa do começo do século xIX constituíam a maioria da população e,
fora de indústrias como a do algodão, da classe empregadora* Mas inclu-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS »

sive o empresário capitalista genuíno podia pensar de duas maneiras quanto


às máquinas, À crença de que ele devia favorecer inevitavelmente o pro-
gresso técnico como uma questão de interesse próprio não tem fundamento,
mesmo considerando que a experiência do capitalismo francês e do capitalis-
mo inglés posteriores não estivessem presentes. Bastante longe da alterna-
tiva de ganhar mais dinheiro sem máquinas do que com elas (em mercados
protegidos erc.), só raramente as novas máquinas eram propostas lucrativas
mediatas e óbvias
Há, na história de qualquer implemento técnico, um “limiar de lucro”
que é ultrapassado bastante tarde — quanto maior o capital a ser enterrado
numa máquina, mais tarde. Daí, talvez, à proverbial falta de sucesso comercial
dos inventores, que enterram o seu próprio dinheiro, « o de outras pessoas, em
projetos, enquanto cles ainda são inevitavelmente imperfeitos e sem nenhu-
ma evidência de que serão superiores aos seus rivais não-mecanizados7 A
economia de livre iniciativa, é claro, pode superar estes obstáculos. O que
foi descrito como o “vasto surto do século” de 1775 a 1875 criou situações,
aqui « ali, que forneceram aos empresários de algumas indústrias — a do
algodão por exemplo — o ímpeto para saltar além do “limiar” * O próprio
mecanismo de acumulação do capital numa sociedade passando por uma
revolução forneceu outros. Desde que houvesse concorrência, os progressos
técnicos da seção pioneira cspalhavam-se sobre um campo bastante largo.
Contudo, não devemos esquecer de que os pioneiros cram minoria. A maior
parte dos capitalistas tomaram a nova máquina, no primeiro caso, não como
uma arma ofensiva para obter maiores lucros, mas como uma arma defen-
siva para se proteger contra a filência que ameaçava o competidor retarda-
tário, Não ficamos surpresos ao ver E. C. Tufnell em 1834 acusando “mui-
tos patrões do comércio de algodão . do comportamento vergonhoso de
incitar os trabalhadores a se revoltarem contra os donos de manufaruras que
primeiro expandiram suas máquinas de fiar”*º Os pequenos produtores e
os empresários médios estavam numa posição ambígua, mas sem força in-
ciependente para mudé-la. Podiam antipatizar com a necessidade de novas má-
quinas, quer por altcrarem sua maneira de viver, quer porque, sob qualquer
consideração racional, não cram realmente um bom negócio no momento.
De qualquer maneira, viam-nas como reforçando a posição do grande em-
presário modernizado, o principal rival. As revoltas da classe operária contra
as máquinas deram a esses homens sua oportunidade; muitas vezes eles a
aproveitaram. Pode-se concordar razoavelmente com o estudante de quebra
26 ERIC HOBSBAWM

de máquinas na França, quando observa que “algumas vezes o estudo deta-


lhado de um incidente local revela o movimento luddita menos como uma
agitação do trabalhador, do que como um aspecto da competição entre o
proprictário lojista atrasado e O progressista”?
Se o empresário inovador tinha o grosso da opinião pública contra ele,
como conseguiu se impor? Por meio do Estado. Tem sido bem comentado
o fato de que na Inglaterra a Revolução de 1640-60 marca o momento
decisivo na atitude do Estado em relação à maquinaria. Após 1660, a hostili-
dade tradicional aos equipamentos que tomam o pão da boca dos homens
honestos deu lugar ao encorajamento da iniciativa em busca de lucros, qual-
quer que fosse o custo social.*: Este é um dos fatos que justifica considerar-
mos à revolução do século xvIt! como o verdadeiro começo político do
moderno capitalismo inglês, Durante todo o período subsegiente, a ten-
dência do aparelho central do Estado foi estar, se não adiante da opinião
pública em questões econômicas, pelo menos mais disposta a considerar as
reivindicações do empresário totalmente capitalista — excero, é claro, quan-
do se chocavam com interesses mais antigos « maiores. Os proprietários ru-
rais do Oeste. em alguns condados, podiam ainda brindar a sombra de uma
hierarquia feudal desaparecida numa sociedade imutável: de qualquer maneira
não havia traço significativo de política feudal nos governos Whigs, após
1688. A solidaricdade de Londres iria provar ser de incstimável valor para
os novos industriais, quando sua ascensão meteórica começou, no último
terço do século. Em questões de política agrária, comercial ou financeira,
Lancashire podia estar em conflito com Londres, mas não na supremacia
fundamental do empregador em busca de lucros. Foi o Parlamento não
reformado no seu período mais ferozmente conservador que introduziu o
Iaisses-faire pleno nas relações entre empregador e trabalhador. A economia
da livre iniciativa clássica dominava os debates. Londres tampouco hesitava
em bater nos representantes locais mais antiquados e sentimentais, se eles
deixavam “de manter e apoiar os direitos da propriedade de qualquer tipo.
contra a violência e a agressão”2
No entanto, até os últimos anos do século xvim, o apoio do Estado ao
empresário inovador não cra irrestrito. O sistema político da Inglaterra de
1660 até 1832 era destinado a servir aos fabricantes apenas na medida em
que abrissem caminho para dentro do círculo dos interesses adquiridos de
um tipo mais antigo — proprictários com mentalidade comercial, comer-
ciantes, financistas, ricaços etc. Na melhor das hipóteses, eles podiam es-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS

perar uma porção do barril de carne de porco, proporcional à pressão que


fizessem, « no começo do século XVII os donos de manufiruras “modernos”
eram somente grupos ocasionais de provincianos. Daí, em certas ocasiões, uma
certa neutralidade do Estado nas questões trabalhistas, em todo o caso até a
metade do século xvi11.3 Os fabricantes de roupas do Oeste se queixavam
amargamente de que a maioria dos juízes de Paz locais estavam predispostos
contra eles.* A atirude do governo nacional nos tumultos dos tecelões de
1726:7 contrasta surpreendentemente com à da Home Office da década de
1790 em diante. Londres lamentou que os fabricantes locais de roupas hos-
tilizassem sem necessidade os homens, prendendo os arruaceiros; ridiculari-
zava as sugestões de que cles eram sediciosos; sugeriu que ambas as partes,
se reunissem amigavelmente, de forma que uma petição apropriada pudesse
ser redigida e o Parlamento pudesse agir Quando isso foi feito, o Parla-
mento sancionou um acordo coletivo que deu aos homens grande parte do
que desejavam, a título de uma perfunctória “desculpa pelos tumultos passa-
los”5 Novamente, à frequência da legislação ad ho: no século XVITI” tende
a mostrar que nenhuma tentativa sistemática, consistente e geral foi feita
para obrigar o seu cumprimento, À medida que o século avançava, a voz do
industrial se tornou cada vez mais à voz do governo nestes assuntos; mas,
anteriormente, ainda cra possível aos homens lutar ocasionalmente com gru-
pos de patrões em termos mais ou menos justos,
Chegamos agora ao último e mais complexo problema: qual a eficácia
da destruição de máquinas? Penso que é justo afirmar que à negociação
coletiva mediante o tumulto foi pelo menos tão eficiente como qualquer
outro meio de exercer pressão sindical, c provavelmente mais eficiente do
que qualquer outro meio disponível antes da era dos sindicatos nacionais,
para grupos como os de tecclões, marinheiros e mineiros. Tsso não é afirmar
muito. Os homens que não gozavam da proteção natural dos pequenos
números e escassas habilidades de aprendiz — a qual podia ser salvaguar-
dada pela entrada restrita no mercado e monopólios de contratação das
firmas — estavam normalmente obrigados a ficar na defensiva. O sucesso
deles, portanto, devia ser medido pela capacidade de manter as condições
estáveis — por exemplo, níveis de salários estáveis — contra o descjo per
pétuo « bem anunciado dos patrões de reduzi-los ao nível da fome. Isso
exigiu uma luta incessante e eficiente. Pode-se alegar que a estabilidade no
papel era minada constantemente pela lenta inflação do sévulo Xv, que frau-
28 ERIC HOBSBAWM

dava com firmeza o jogo contra os assalariados,” mas seria pedir demais
das atividades do século XVII enfrentar isso, Dentro dos seus limites, dificil-
mente se pode negar que os tumultos dos tecelões de seda de Spitalfields
lhes trouxeram bencfícios.e As disputas dos barqueiros, marinheiros e mi-
neiros no Nordeste, das quais temos registros, não raro terminaram com a
vitória, ou com um compromisso aceitável. Além disso, o que quer que
acontecesse nos confrontos individuais, o tumulto c a destruição de máquinas
proporcionavam aos operários reservas valiosas em todas as ocasiões, Perma-
nentemente, o patrão do século XVII estava consciente de que uma exigência
intolerável produziria, não uma perda de lucros temporários, mas a des-
truição de equipamento capital. Em 1829, a Comissão dos Lordes pergun-
tou a um preeminente gerente de minas de carvão se à redução dos salários
nas minas de Tyne é de Wearside podia “ser eferuada sem perigo para à
tranquilidade do distrito, ou risco de destruição de todas as minas, com
toda a maquinaria e o valioso capital nelas investido”. Ele achou que não.*!
Inevitavelmente, o empregador que se defrontava com esses riscos fazia uma
pausa antes de provocá-los, com medo de que, em consequência, “sua pro-
priedade e talvez sua vida (pudessem) correr perigo”? Com injustificada
surpresa, sir John Clapham notou que “muito mais patrões do que se podia
esperar* apoiaram a manutenção das Leis dos Tecelóes de Sede de Spitalficids,
porque em sua vigência, alegavam cles, “o distrito viveu num estado de
quictude e repouso”
Podem o tumulto e à quebra de máquinas, contudo, deter 0 avanço do
progresso técnico? É patente que não se pode deter o triunfo do capitalismo
industrial como um todo. Numa escala menor, no entanto, eles não são de
mancira alguma à arma desesperadamente ineficiente que se tem feito pare-
cer, Assim, supõe-se que o medo dos tecelóes de Norwich impediu ali à
introdução de máquinas.* O luddismo dos tosquiadores do Wiltshire em
1802 certamente adiou que a mecanização se generalizasse; uma petição de
1816 nota que no tempo da guerra não havia nenhuma percha* nem basti-
dores em Trowbridge, mas é lamentável relatar que agora estão aumentando
à cada dia”. Por paradoxal que pareça, a destruição feita pelos indefesos
trabalhadores rurais em 1830 parece que foi a mais eficiente de todas: ape-
— Máquina compostade vários tambores gusrnecidos de corda para tornar paralelo o
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 29

sar de as concessões salariais terem sido logo perdidas, as máquinas de de-


bulhar jamais voltaram na velha escala.* Quanto desse sucesso foi devido
aos homens, quando ao luddismo Iarente ou passivo dos próprios emprega-
dores, não podemos, contudo, determinar. Entretanto, qualquer que seja a
verdade na questão, a iniciativa vem dos homens, é nisso cles podem reivin-
dicar uma parcela importante, em todos esses sucessos.

Notas

1.) H. Phumb, England in she Pigbscento Consury, Harmondsworth, 1950, p. 150; E


S. Ashton, The Indussrial Revoluzion, Londres, 1948, p. 154
2.1 Dechesne, LiAvêmement dis Régime Sydical à Verviers, Pacis, 1908, p. 51-64 passim
3E O Dara, pular Disturbance an Public Order in Regency England. Londres,
1934,p.1
A, Por exemplo, máquinas de fabricar lã e seda em Wiltshire, máquinas de fabricar papel
em Buckinghamshire, máquinas de fabricar ferro em Berlshire (Public Record OF-
fice, Home Office Papers, HO 13/57, p. 68-9, 107, 177; sessões 25/21 pass); JL
< B. Hammond, The Village Labourer (várias edições) é o relato mais acessivel; ver
também duas teses não publicadas: N. Gas. The Rural Unres im England im 1830
(Oxtord Examination Schools) e Alice Colson. The Revolr 0f he Hempubire Agricul-
Zura! Labourers (Biblioteca da Universidade de Londres).
Para à discussão dos tumultos pela alta de preços, ver TS. Ashton e J. Syles, The
Coal Industry of the Eigbtcensh Cemzumry, Manchester, 1929, cap. 8;
e A P Wadswonhe
deL Mann, The Cotton Irado and Indussrial Lancashire, Manchester, 1931,p. 355 cs.
6 Darvall, Popular Disturbance, cap. 8 pass.
7. Bonner e Middleton's rito Journal, 31/7/1802. Alguns destes deveram-se a disputas
trabalhistas comuns, alguns à oposição às novas máquinas. Ver, L, é B. Hammond
The Sie Labeurer; para um relato do movimento, há alguns documentos em 4.
“Aspinall fed), Lhe Earky Ens Trade Unions, Londres, 1949, p. 41-69.
8. House of Commons Journals, XT, p. US (1718): p. 268 (1724)
9. House 0f Commons Journals, XX, pp. 598-9 (1726): Salisbury Assize Records pergunta
no Wrilthire Times de 25/1/1919 (Wiltshire Notes & Queries)
10. Genzieman's Magazine (1738), p. 658.
11, Public Record Office, State Papers Domestic Geo. 2 (1741), pp. 56, 82-3.
12. E. Welboume, The Minor's Unions of Norsiumberiand and Durham, Cambridge.
1923,p. 21.
13, Ashtone Sykes, Coal Industry, pp. 89-91
ERIC HOBSBAWM

14.10 Geo. 2,c. 32, 17 Geu. 2,40, 24 Gen. 2, 57, 31 Geo. 2,€. 42; ver ER.
Turner, “Lhe English Coal Industry in the Seventeenth and Eigheeenth Centuries”,
“American Historical Revue 27, p. 14. Turner parece haver negligenciado 13 Geo. 2, c
21,9 Gen, 3, €. 29, 39 e 40 Geo, 3, € 7, 56 Geo, 3, c. 125 que são também
dirigidos contra a destruição das minas. Ver Arm Justice of the Pence (ed, Chico
1837), vol. 3, pp. 6435
15. Welbourne, Minersº Unions,p. 31
16, À principal autoridadeé W Felkin, A Flizory of eh Macine-rouaht Husery anil Late
Mamufctures, Londres, 1867.
17. Para as minas francesas cf. M. Row; Les mínes de charbom en Erance as xy sele,
Paes, 1922.
18. E. M. Saint-Léon, Le Compagmonnage, Paris, 1901, vol. 1, cap. 5
19. Aspinall. Eariy Emplid Trade Unions, p. 175,
20. Os homens de Bolton foram acusados em 1826 de haver plancjado à destruição de
todos os fios de algodão embalados para exportação, bem como das máquinas (Pubiic
Record Office, Home Office Papers HO 40/19, Fletcher para Hobhouse, 20/4/1826]
21. E A discussão destes problemas em E. Ponger, Le Saborage, Paris. s. plõess
22. Por exemplo, os metalúngicos galeses em 1816 (The Times, 26/10/1816), à greve
geral de 1842 (E Peel, be Risings of she Ladies, Chartistes ama Pludraners, Flock
mondwike, 1888, pp. 341-7), e os mineiros alemães em 1889 (T' Grebe, “Bismarck
Sturz ud. Bergarbiterseik vom Mai 1889”, Histoiche Zeitschriê 157, p. 91)
28. Aspinal, Early Engl, Trade Unions, p. 196: “Não posso deixar de pensar que às
reuniões matinaise as listas de chamada são atualmente o faço de união.”
24H. Smithe V. Nash, The Story of she Deckers'Siribe, Londres, 1889, pasim.
25.R. Rigula, Itinaldo Rógoia e il Movimento Operaio nel Bilkse, Bari, 1930. p. 19. Rigola
não relata nenhuma destruição verdadeira pelos vozelões, apenas pelos chapeleios
26. Ver o capítulo sobre “Maquinaria” em seus Principls. Sobre este, inserido apenas na
terceira edição, ver P Sraffa e M. H.. Dobb, Inks and Comespondence of David RF.
savdo, Cambridge, 1951, vol. p.tste1x
27.M, D. George, London Life in the Fipitcenth Compury, Londees, 1925, pp. 180, 1878.
28, Pal, Enpers LUZ, Relatório da Comissão sobre a Petição dos Fabricantes de Roupas
de Lã, p. 247, 249, 254-5. Rules and Articles of. . The Wiolen-Clrh Weaver Scisy
1802, British Mus. 906,k, 14 (1)
29.E. Howe c H. Waite, The London Compositor, Londres, 1948, pp. 226-33
30, Waidsworl e Mann, The Corsom Trade, pp: 499.500.
31.8 e B Webb, Indusmial Democracy, Londres, 1898, cap. 8: “New Processes and
Machinery
32. Para à mudança política dos compositores de tipos cf. Howe c Waite, Tie Lendo
Compositor: engenheiros, J. B. Jefierys, The History of the Engineers, Londres, 1945,
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS a

PP. 142:3, 156-7; trabalhadores em chapas de estanho.7. HL. Jones, The Tnplate
Indusery, Londres, 1914. pp. 183.4, cap. 9.
Para a longa luta dos tipógrafos americanos contra à revolução técnica nã década de
1940, ver |, Lofis, The Printing Trades, Nena lorque. 1942,
Wadsweorth e Mann, The Cotum Trade, p. 412. Ver também a análise detalhada da
sorte de Hargreaves, pp. 476e se
Secr Comte om Agriculture, 1833, 64 estimativas -- sem dúvida com algum exa-
gero — de que apenas 1 cm 100 das máquinas de debulhar que existiam antes de
1830 estão agora em uso em Wiltshire e Berkstire
Sobre a agitação dos tosquiadores estrangeiros, ver E R: Manuel, “Lhe Luddire Mo-
vement in Fran”, Journai of Maderm History, 1938, pp. 180 e ss; idem, “E intro-
ductiom des machines en Erance ct les ouveiers”, Revue dbHiguire Maderne, 18, pp.
2425. O verdadeiro Inddismo na França parece ter sido virtualmente limitado aos
tosquiadores, com menos sucesso do que na Inglaterra, embora intenções Inddicas
fossem algumas vezes expressas por outros. Ver 0s documentos em G. e H. Bourgin,
Te Itégime de Pinduserieou Eranc de 1830à 1840, Paris, 1912-4], 3 vols
3 Hammond. Skiled Laiourer. p. 127.
38 Manuel, *[he Luddite Movement in France”, p. 187: Davall, assim. Ver também a
nota em E, €. 'lifnell, Character, Objects and Leis of Trade Unims (1834), po 17,
sobre a relutância dos homens que operavam realmente às máquinas cm aderir à
greve contra eles. Mas Tufnell admite que aderiram. ameaçados ou persuadidos por
seus colegas desempregadas
39, Os tosquiadores (tosadores) crpueram à felpa do tecido acabado é rasparam-na com
pesadas tosquiadeiras de ferro. Eles tinham que scr não só muito fonis como muito
hábeis
Darvall. Popular Diurbante, p. 207.
Aspinall, Darty Engl trade Unions p. 578,
“Lhomas Heller, executado ccnmo tal em 1803, é geralmente considerado inocente,
G. FL Iupling, Fomomic Einory nf Rosendale, Manchester 1927, p. 214
MS. Correspondência de M. Cobb, empregado dos Juízes ce Salisbury na Bibioteca
de Witshire Archacol. & Nat, Hist. Soc., Devizes: 26/11,830.
Circular Impressa de 8/12/1830. Esta é mencionada em Hammond, Vilage abourer
[Guild Books ed vol 2, pp-71:2,
Ver à brilhante análise do “pequen burguês democrata” no discurso de Marx ao
Cunselho Central da Liga Comunista, in K. Marx e F Engels, Collcred Méris, vol.
10, pp: 160-1
47 À expressão “miar do lucro” é de G. Gilfillan, “Invention as a Factor in Economic
History”, Supp. to Joual
of Economi Hist, dez. 1945
a ERIC HOBSEAWM

48, Eles fora ajudados pelo baixo preço das novas máquinas, Um fabricante ocidental
de roupas instalou máquinas de far com 70-90 fusos, por 9 libras cada, em 1804.
Daí à possibilidade da mecanização peça a peça
49, Tune, Trade Uni, p. 18
50, Manuel, “Ludite Movement”, p, 186.
51. E. Lipson, Economic Hinory of England, 4 ed. vol. 2, pp. Cxmxvt e vol. &, pp.
300-13, 324-8. Sir Jubm Clapham. Concis. Economic History of Arituim, p: 301, nota
corretamente a “trago extra de dureza que parece ter feio parte da vida pública na Era
da Restauração”
Ver nota 45
Para à “mudança revolucionária” neste periodo ver S. e B, Webb, History af Trade
Umioniom (1894), p. 44 e ss. Mas as atas parlamentares podem dara impressão er
rada, O curso noemal dos acontecimentos foi que o lussez-fáire progrediu calma-
mente, com a legislação contrária caindo cm obsolescência. a menos que ocorresse
uma campanha ativa e eficiente dos trabalhadores. CF. a recisão das cláusulas de salá-
rio no Estatuto dos Arrífices de 1813 em W Smart, Economic Ana: of she Nineseenti
Century, 1801-20, p. 368.
54 Philalethes, e Case as ár nono scams Descon the Claisiers, Weavers and arher Manige-
ares si read o he date Rios, im she Counry of Vis, Londres, 1739 (Cambridge
Unie Lib, Acton d. 25.1005), p. 7: De qualquer mancira até 17 Geo, 3, c. 55 us
chapeleiros obriveram uma lei proibindo qualquer parrão de sentar no banco numa
disputa que lhes dissesse respeito — o que é mais du que os trabalhadores agrícolas
puderam conseguir.
55, Public Recon! Office, State Papers Domestic Geo T, 63, pp. 72, 82, 93-& 64, pp.
1-6,9-10, especialmente, p, 2-4
56. House of Commons Jornal X%, p. 747.
57. Bion Justice of he Peace, 6 ct, vol. 3, pp. 64355; vol. 5, pp. 485 55.552 ss, dá
um quadro revoltante dessa massa de legislação intermitente não coordenada
58. Ver WE Sombart, Der Moderno Kapizalimus, vol 1, 1, p. 803 para uma bibliografia,
acerca disso; K. Marx, Capital, vol. 1 (1938 ed.), pp. 259-63. Philalethes, 1he Case as
de nov stands... pp. 29, 41, dá argumentos típicos.
59.E. J. Hamilton, “The Prof Inflation and the Industrial Revolution, 1751-1800,
Quariey Journal of Beonomics, 56 (1942), pp. 256
60, Hammond, Shslled Labourer, A obscevação de M. D. George (p. 190) de que a cle-
vação dos preços dos tecidos pelas lis não cra comparável ao de outros oficios du-
ramre o periodo pode ser verdadeira. Mais importanse é o culapsa drástico dus preços
após a recisão das leis (ibid, p. 374)
6). Hammond, Slilitd Laboure, p. 26.
62. William Stark sobre os motivus por que a maquinaria não fui adotada no comércio.
de Li perecada de Norwich e as reduções de salários foram comibatidas e as reduções
PE: JOAS EXTRAORDINÁRIAS 3

de salários foram combaridas (Handlootm Wesveis/Comnission, 1838 Ass, Commrs


Repor TT)
63.) H Clapham. “The Spi ds Acts, 1773 I8ZAS, Hicomemaie Joermal, 26. pp. 4634
64 Hammond. Skild Labourer,p. 142. 7. E. Claphans, “The Tansiceeace of the Wor-
sicd Industry drum Norfolk to the West Ridingº, Ftonomis Jornal, 20, discure à
questão com grande detalhe.
65. Hammond, Stiled Labowrer, p. 188,
66. Clutterbuck. The Agriculvure
of Beishire, Londios e Oxiotd, 1861, pp.41-2.
Capítulo 3

SAPATEIROS POLITIZADOS*
(em co-autoria com Joan W. Scott)

Os membros de algumas ocupações e professões são rradicionalmense vistos como


tendo cavacteréricas comuns, mas, do observar esse faro, os historiadores mavas
vezes se ocuparam do motivo. Esta é uma tentariva de explicar o proverbial
radicalismo dos sapateiros. Os dois assores descobriram som interesse commom
pelo assunto nas maravilhosas mesas-redondas internacionais em Flistória So-
cial, organizadas por Clemens Heller da Maison des Sciences de PHomme,
nas anos de 1970. Tal esforço de cooperação foi publicado em 1980 na Past &
Present, n.º 89, é é reimpressa aqui com a permissão de Joan Waliaci Score

Ele se aprofundara no arminianismo e na política mais do que qualquer


um de seus colegas. Seu irmão enviava-lhe semanalmente o Merodisz
Magazine e o Weekly Disparch, Como sapateiro, sempre teve muito ser-
viço e era mais independente do que os lavradores ou camponeses. Cos-
tumava fazer observações irreverentes sobre os proprietários de terras €
sobre a Câmara dos Lordes, a Câmara dos Comuns, à nova li dos pobres,
bispos, párocos, leis do cereal, a igecja e a legislação da classe.
É muito curioso que para cada tipo de ofício surja, nos artífices que o
exercem, um caráter específico, um temperamento especial. O açouguei-
to geralmente é sério e cônscio de sua própria importância, o pintor de
paredes é descuidado e devasso, o alfaiate é sensual, O quitandeiro, curto
de inteligência, o porteiro, curioso e tagarcla, o sapateiro e O remendão,
finalmente, são alegres, por vezes até mesmo animados, sempre com
uma canção nos lábios . . Apesar da simplicidade de suas preferências, os
que fazem ou consertam sapatos novos ou velhos sempre se distinguem
* Gostriamos de agradecer a William Sewell Je, E, P Thompson é Alfted Young por seus
valiosos comentários
E ERIC HOBSBAWM

pelo espírito irequicto, por vezes agressivo, « por uma enorme tendén-
cia à loguacidade, Ocorre uma revolta? Surge da multidão um orador?
Sem dúvida é um sapateiro que veio proferir um discurso ao povo.?

O radicalismo político dos sapateiros do século XIX é conhecido. Histo-


riadores sociais das mais diversas convicções ideológicas descreverem o fe-
nômeno e consideraram que ele não precisava de explicação. Um historiador
da revolução alemã de 1848, por exemplo, concluiu que não foi “por acaso”
que os sapateiros “desempenharam um papel predominante nas atividades do
povo”. Historiadores das revoltas de Swing na Inglaterra fizeram referência
ao “notório radicalismo” dos sapateiros, e Jacques Rougerie explicou o des-
taque dos sapateiros no Comuna de Paris referindo-se a sua “tradicional
militância”. Mesmo um escritor tão heterodoxo quanto Theodore Zeldin
aceita a opinião geral sobre este ponto O presente ensaio tenta explicar à
notável reputação dos sapateiros como políticos radicais.
Afirmar que os sapateiros ou os integrantes de qualquer outro ofício têm
uma reputação ligada ao radicalismo pode, naturalmente, ter um significado
ou mais, entre trés diferentes: uma reputação ligada à ação militante em
movimentos de protesto social, confinada ou não ao ofício pertinente; uma
reputação ligada aos movimentos políticos de esquerda, seja por simpatia,
associação ou parricipação ariva neles: e uma reputação com o que se po-
deria chamar de ideólogos do povo. Embora esses significados possam facil
mente estar associados, não são a mesma coisa. Os aprendizes e os artífices
remuncrados solteiros nos oficios tradicionais organizados podiam ser mobili-
zados com facilidade, sem qualquer ligação necessária com o que na época
fosses considerado radicalismo político. Os professores universitários fran-
cescs, pelo menos desde o período de Dreyfus, tiveram uma reputação de
posicionamento mais à esquerda do que a de seus alunos. Isto não implicou
necessariamente, embora também não excluísse, uma ação coletiva militante
Geralmente não se considera que os tosquiadores da Austrália são muito
interessados em ideologia,” apesar de com frequência serem milicantes asso-
O já falecido prof: Tam Turner da Auseralian National Univers; Canberra, citou o caso de
“am grande número destes homens, os quais foram deridos após à Revolução de Oumubr
por realizarem suma assembisia em apoio à insurreição e aos sovietes. Uma cuidadosa busca
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS ar

ciados à esquerda; pelo contrário, pensa-se geralmente que os professores da


aldeia o são.
No século XIX, os sapareiros, como ofício, tinham uma reputação de
radicalismo em todos os três sentidos. Eram militantes tanto nos assuntos
que diziam respeito a seu ofício, quanto em movimentos mais amplos de
protesto social. Embora os sindicatos de sapatciros se limitassem a derermi-
nados setores e localidades dentro de um universo muito extenso, é embora
fossem eficazes somente de forma intermitente, bem cedo se organizaram
em cscala nacional tanto na França quanto na Suíça; isto para não men-
cionar à Inglaterra, onde O sindicaro londrino, fundado em 1792, teria por-
te nacional já em 1804, Os sapateiros e carpinteiros foram os primeiros
integrantes da Federação de Trabalhadores da Região da Argentina (1890
que constituiu à primeira tentativa de formação de um sindicaro nacional
naquele país Eles ocasionalmente entraram em greve em grande escala e,
durante a Monarquia de Julho na França, estavam entre os ofícios mais
propensos à greve. Também sobressaiam nas multidões revolucionárias. En-
fim, seu papel como ativistas políticos pode ser amplamente documentado.
Dos integrantes ativos do movimento cartista cujas ocupações são conheci-
das, os sapateiros foram o maior grupo isolado a seguir aos tecelões e aos
trabalhadores” de ocupação não-especializada: mais do que o dobro do nú-
mero de trabalhadores na construção civil, c mais de 10% de todos os mili-
tantes de ocupação conhecida. Na Tomada da Bastilha, ou pelo menos em
meio aos detidos por esta razão, a representação dos sapareiros, em número
de 28, somente foi superada pela dos marceneiros e serralheiros; já nas revoltas.
do Campo de Marte e em agosto de 1792, sua representação não foi su-
perada por nenhum outro ofício.* Entre os detidos em Paris por se oporem
ao coup d'état de 1851, os sapateiros eram o contingente mais numeroso.*
Em 1871, entre os trabalhadores que se envolveram na Comuna de Paris, os
que foram atingidos com a maior percentagem de deportações após a der-
rota, como Jacques Rougerie observa, “foram nararalmente os sapateiros,
como sempre”.* Quando eclodiu à rebelião na cidade alemã de Konstanz
em abril de 1848, os sapateiros constiruíam de longe o maior grupo homo-
em sa liceracara subversiva não descobriu nenhum po de material impresso, exceto um
folheto que alguns levavam no bolso, e que dizia: “Se a áipua estraga suas botas, o que
não fará em seu estômago?”
as ERIC HOBSBAWM

gêneo de rebeldes, quase cquivalendo ao total da soma dos alfaiates c mar-


ceneiros, os dois ofícios mais rebeldes que sc seguiam.” Do outro lado do
mundo, o primeiro anarquista de que se tem notícia foi registrado em 1897,
numa cidade provinciana no estado do Rio Grande do Sul. Brasil: cra um
sapateiro italiano; do mesmo modo, o único sindicato do qual se sabe ter
participado do primeiro Congresso dos Trabalhadores de Curitiba (Brasil),
de inspiração anarquista, foi a Associação dos Sapateiros*
Entretanto, não é apenas a militância « o ativismo de esquerda que
distinguem os sapateiros enquanto grupo de alguns outros arrífices, os quais
foram em determinadas épocas pelo menos tão destacados como eles sob
esses aspectos. Enere as vítimas da revolução de março de 1848 em Berlim, os
marcenciros representavam o dobro do número de sapateiros, e os alfaiares
eram nitidamente mais numerosos do que estes, embora os ofícios fossem
comparáveis em dimensão.” Durante a Monarquia de Julho, os carpinteiros.
e os alfaiates foram tão “propensos à greve” quanto os saparciros. As mul-
tidões revolucionárias francesas tinham proporcionalmente mais tipógratos,
marceneiros, serralheiros « operários de construção civil do que havia na
população parisiense. Se o maior grupo dentre os 43 anarquistas presos em
Lyon em 1892 era constituído de onze sapateiros, o grupo de operários da
construção civil não ficava muito atrás.!? Os alfaiates c os sapateiros são
associados como ativistas típicos na Revolução de 1848 na Alemanha e,
mesmo que os dois grupos se sobressaíssem entre os artífices ambulantes
alemães que formavam o maior grupo dentro da Liga Comunista (“o clube
dos trabalhadores é pequeno e consiste apenas em sapatciros € alfaiates”,
escrevia Weydemeyer para Marx em 1850), parece claro que os alfaiares
cram mais importantes. Na verdade, o número aparentemente grande de
ativistas sapareiros pode por vezes apenas refletir o tamanho de seu ofici
que, na Alemanha e na Grã-Bretanha, consistia no maior grupo ocupacional
de artífices.'? As ações coletivas do grupo, portanto, não explicam a repu-
tação dos sapateiros como radicais.
'o entanto, não existe a menor dúvida de que, enquanto intelcctuais-
operários e ideólogos, os sapareiros eram excepcionais, Mais uma vez, ob-
viamente, não eram os únicos, embora, como veremos, nas aldeias rurais e
nas pequenas cidades mercantis houvesse menor concorrência de outros ar-
tífices estabelecidos. O certo é que seu papel como porta-vozes e organi-
zadores do povo na Inglarerra do século XIX é evidente em qualquer estudo
das revoltas de Swing, de 1830, ou do radicalismo político rural. Hobsbawm
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS a

e Rudé relatam que em 1830 os distritos rebeldes em média possuíam sa-


patciros cm número de duas a quatro vezes superior ao dos distritos tran-
gilos.!s Citando Cobberr,'* o sapateiro local — John Adams em Kent, Wi-
liam Winkwordth em Hampshire — é uma figura familiar. Era notório o
caráter “político explosivo” desse ofício, No centro de sapatarias de North-
ampton, os dias de cleição eram celebrados como “festas tradicionais”, da
mesma forma que as corridas de cavalo da primavera e do outono. Em
todo o caso, extraordinária é à conexão com a política e a clogiência: quem
diz sapateiro, com uma fregiência surpreendente está dizendo jornalista e
versejador, pregador e conferencista, escritor e cditor. Esta impressão não é
fácil de ser quantificada, embora os sapateiros formem O maior grupo —
três — numa amostragem de dezenove “poetas-trabalhadores” franceses do
período anterior a 1850, todos de opinião radical:'é Sylvain Lapointe de
Yonne, que se candidatou à eleição de 1848; Hippolyte Tampucci, ediror de
Le Grapilleur; « Gonalle de Rheims, editor de Le Rápublicain.!” Seria Fácil
alongar a lista — ocorre-nos o nome de Faustin Bonnefoi, editor do jornal
fourierista na Marselha do período de Luis Telipe,* o de “Eftahem”, auto-
didara que escrevia panfletos promovendo “uma associação dos trabalha-
dores de todos os corps dérar?? e o do cidadão Villy, um fabricante de
boras que discursou no primeiro Banquete Comunista em 1840 e que pu-
blicou um panfleto sobre a abolição da pobreza”
Naturalmente, ninguém irá alegar que todos, ou mesmo a maioria,
entre os sapateiros ativistas fossem artesãos intelectuais. Na realidade, temos
exemplos de sapateiros militantes que visivelmente não eram grandes lei-
tores, pelo menos em seu tempo de ativistas, como George Hewes, o últi-
mo sobrevivente do Boston Tea Party: Embora, como um todo, os sapatei-
ros pareçam ter sido mais alfabetizados do que a média, uma percentagem
razoável de maus leitores não seria de estranhar num ofício tão numeroso e
que continha tantos homens proverbialmente pobres.” O sapateiro menos Ie-
trado pode aré ter se tornado mais comum à medida que o ofício se ex-
pandia durante o século XIX. E no entanto a existência extraordinária, talvez,
única, de um grande número de intelectuais sapateiros não pode ser negada,
mesmo supondo que estas pessoas atraíram atenção especial por si mesmas
em uma sociedade cuja maioria cra não-lerrada. Quando a ideologia assu-
miu uma forma fundamentalmente religiosa, eles examinaram as Escrituras,
chegando por vezes a conclusões não-ortodoxas: foram eles que trouxeram
o cakvinismo para a região de Cévennes,* que profetizaram, pregaram (e
E ERIC HORSRAWM

escreveram) o messianismo, o misticismo e a heresia. ** No período secular, a


maior parte dos conspiradores de Cato Strcer (cm grande parte comunistas
seguidores de Spencer) eram sapateiros, e sua atração pelo anarquismo tor-
nou-se famosa. O Le Pire Peinard, de Emile Pouger, trazia simbolicamente
na Capa a imagem de um sapateiro em sua oficina. Em geral, tanto quanto
temos conhecimento é pelo menos em inglês, existe uma literatura substan-
cial sobre a biografia coletiva do sapateiro na século XTX como nenhum
outro vfício apresenta.” A grande maioria dos homens que inspiraram estas
biografias é clogiada por suas realizações no plano intelectual. Seu sucesso
neste campo pode explicar o surgimento destes compéndios na era da auto-
realização.
É possível inclusive argumentar que provérbios como Shoemaker stick to
vomr last (“Sapateiro, não se meta onde não for chamado”), encontrados em
muitos países desde a Antigúidade até a Revolução Industrial, indiquem
exatamente esta tendência dos sapateiros a expressar opiniões sobre assuntos
que deveriam ser discuridos pelos reconhecidamente eruditos: “Que o sapa-
teiro cuide do seu oficio e que os eruditos escrevam os livros”; “Sapateiros
que pregam sermões fazem maus sapatos”, são outros do gênero. Sem dú-
vida, provérbios semelhantes são decididamente menos frequentes com re-
lação à outros ofícios.”
Mesmo se ignorarmos estas provas indiretas, o número de sapateiros
inrelectuais é impressionante. Eles não cram necessariamente radicais, em-
bora seus panegiristas dos séculos XVII e XTX preferissem acentuar suas reali-
zações nos campos que impressionassem os leitores de nível social superior
— a instrução, a literatura c a religião —, embora sem omitir sua reputação
como políticos populares. Contudo, os historiadores não deixarão de obser-
var que a religião na qual os sapateiros sobressaíam, quando não associados
ao anticlericalismo e ao ateísmo.” era com fregiência hererodoxa « radical
para os critérios da época. Lembramo-nos de Jakob Boehme, o místico,
perseguido pela igreja luterana de sua cidade, e de George Fox, o quacre
Observa-se também a combinação de radicalismo com atividades literárias,
como no caso de Thomas Holerofr, o dramaturgo e jacobino inglês que
havia sido sapateiro, ou de Pricdrich Sander, o fundador do Sindicato dos
Trabalhadores de Viena cm 1848, que também escrevia poemas,* e do anar-
quista Jean Grave, sapateiro que se tornou tipógrafo é editor de revistas
com fortes tendências artísrico-lirerárias
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS a

Não podemos, é claro, atribuir aos sapateiros um monopólio das acivi-


dades intelectuais plebéias. Samuel Smiles, à eterno apóstolo do espírito de
iniciativa, num ensaio sobre “Astrônomos e estudantes de vida humilde: um
novo capítulo na Busca do conhecimento sob condições dificeis”, também re-
aciona exemplos de outros ofícios.*! Entretanto, o fato de que, “no interior,
é muito corriqueiro que a função de sacristão seja exercida por um sapa-
teiro”, sugere um grau incomum de preparo? De qualquer modo, o in-
telectualismo dos sapatciros como grupo impressionou mais de um obser-
vador e não pode ser prontamente explicado. Tanto W. E. Winks como as
Crisgim Anecdotes admitiam sua perplexidade frente a este fato, embora con-
cordando “que um maior número de pensadores pudesse scr encontrado
entre os sapateiros, como corporação, do que na maioria das outras pro-
fissões”.3º Em sua autobiografia, o sapateiro radical John Brown comenta
que: “As pessoas que gozam das vantagens de uma educação intelectual
mais refinada dificilmente imaginariam o volume de conhecimento e de
cultura livresca que pode scr encontrado enrre os membros de meu venc-
rável oficio”, Na França, dicia-se que os sapateiros cram “pensadores
(que) pensam sobre o que viram ou ouviram . . aprofundam-se mais do que
à maioria nos assuntos que dizem respeito aos trabalhadores” Na Ingla-
terra, uma trova do século XVTIT registrava que:
A cobbler once in days of vore
Sar musing at his corcage door.
Te liked to rcad old books, he said.
And then to ponder, what he'd read *++

Na Rússia, um personagem de Máximo Górki é descrito como “pare-


cido a tantos outros sapateiros, logo fascinado por um livro”.*”
A reputação do sapateiro como filósofo popular e político é anterior à
época do capitalismo industrial e se estende bastante além dos países típicos
da economia capitalista. Na verdade tem-se a impressão de que os sapateiros
radicais do século XIX estavam cumprindo um papel há muito associado aos
membros de scu ofício. Os santos padrociros do ofício, Crispim e Crispinia-
no, foram martirizados porque pregavam a hererodoxia a seus fregueses na
oficina de Soissons — crata-se do cristianismo no tempo do imperador pa-
Um cemmendão nos dias de outrora / sentado pensando à porta de sua cabana / dizia que
gostava de ler livros ancigos / e então meditar sabre o que havia lido.
“2 ERIC HORSBAWM

gão Dioclcciano.** No Aro | do Julius Caesar de Shakespeare, um sapateiro


lidera um grupo que protesta pelas ruas. Em Shoemaker Holiday, de Dekker
fum exercício elisaberano de relações públicas em nome do “nobre ofício”
de Londres), os artífices aparecem caracteristicamente como militantes: amca-
gam abandonar o patrão sc este não der emprego a um artífice itincrante.
Quase contemporânea a estas alusões literárias, encontramos a seguinte re-
ferência ao sapateiro Robert Hvde e a uma certa Loja de Sherborne:
E ele acrescenta que pouco antes do Natal um certo Robert TIvde, sa-
pateiro de Sherborme, ao ver este depoente passar por sua casa, chamou-
o € pediu para ter uma conversa com ele e, após algumas palavras,
iniciou um discurso, “Sr. Scarler, o senhor pregou para nós que existe
um Deus, um céu, um inferno e uma ressurreição após esta vida, « que
nós teremos de prestar contas de nossas obras, e que à alma é imortal:
mas agora há um grupo de pessoas nesta cidade e eles dizem que o
inferno não é senão a pobreza c a penúria neste mundo; é que o paraíso
não é senão ser rico, e gozar Os prazeres; « que nós morremos com
animais, e que depois que nós formos não há mais lembranças de nós
ex”, e assim por diante. Mas este inquiridor nem perguntou quem cs
eram; sem deu quaisquer informações sobre si mesmo. E cle acrescentou
que éde conhecimento geral de quase todos cm Sherborme que o men-
cionado Alken € seu empregado já citado são ateus. E ele também dir: que
há uma Loja de sapateiros em Sherhome considerada areísra *º
Sob a forma do que o poeta Gray chamou de “Llampden de aldeia”, o
sapateiro é celebrado numa gravura de Timothy Bennett (falecido cm 1756)
de Hampton Wick, Middlesex. Ele desafiou a decisão real de fechamento de
uma passagem pública através do Bushy Park, ameaçando instaurar um pro-
cesso — e teve sucesso. A gravura representa-o com “aspecto firme e com-
placente, sentado, em posição de conversa ..” com lorde Halifax, o encarre-
gado do parque real, simbolizando uma confrontação democrática com o
privilégio, e a vitória sobre este.”? Uma outra fonte descreve um sapateiro
caminhando “de uma aldeia para outra com suas ferramentas na cesta às
costas. Ao conseguir um serviço, ele se instalava no degrau da porta e,
durante O trabalho, ele c scu freguês entoavam uma canção, ou falavam de
política”.+! A notoriedade dos sapateiros como líderes levou sir Robert Pecl
a perguntar, a alguns que à ele tinham recorrido para reforçar as exigências
de sua associação pré-sindical: “Como pode ser . que vocês sejam os pri-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS ss

meiros em todos os movimentos? . . Sempre que há uma conspiração ou


um movimento político, eu encontro um de vocês envolvido”.*? E. P Thomp-
son cita à descrição de um “político de aldeia” feira em 1849 por um sa-
sírico de Yorkshire:
É, em geral, um sapateiro, um velho € o sábio de sua aldeia industrial:
=Ele tem uma biblioteca da qual se orgulha bastante. É uma coleção
estranha ... Possui Eear! of Greas Price e Cobbete tivopenmy Trash... The
Wins of Labor é The Regis of Mat, The History of she Prenclo Revolution e
Holy Wir, de Bunyan . Seu velho coração se aquece como um litro de
cerveja quente quando ele ouve falar de uma revolução bem-sucedida
— um trono derrubado, teis pelos arcs, € príncipes espalhados pelos
sete ventos".
E mais, OS ingleses acreditavam que os sapaeiros franceses apresen-
tavam os mesmos traços. Mais de um relato da Revolução Francesa des-
creveu “Sapateiros ... perorando sob as cúpulas esplêndidas dos Capetos « dos
Valois” e depois encabeçando as multidões para torturar « assassinar 0 rei.
Na França como na Inglaterra, O sapateiro cra conhecido por seu amor à
liberdade e seu papel como político de aldeia. Os sapateiros cram admirados
pela “independência de suas opiniões” e “a liberdade do povo”, disse um
escritor, “é expressa através de suas atitudes”. + A revolta dos Maillotins, em
1380, teria sido detonada por um sapateiro cujo discurso apaixonado in-
flamou a multidão. E a queda do estadista italiano Concini, em 1617,
teria sido assegurada por um certo Picard, sapateiro e orador popular que
insultou o almirante em vida e o profanou após a morte, ao assar € comer
seu coração.” A antropofagia não é uma característica normalmente associada
ãos sapateiros, ao contrário da preferência por bebidas fortes, mas a reputação
de radicalismo dos sapateiros fui merecida« não limitada à França.

Até que ponto o sapateiro era, enquanto filósofo e político, um pro-


duro de Seu ofício? Parece haver dois aspectos nesta pergunta: um ligado à
instrução, outro ligado à independência.
É difícil explicar à questão da instrução c da notória preferência dos
sapateiros por livros e pela leitura, visto que não há nada na natureza do
* ERICHORSBAWM

ofício que possa sugerir uma ligação ocupacional com a palavra impressa —
como entre os tipógrafos. As suposições extremas de que sua habilidade
com o couro s levasse a ser chamados para encadermar ou conservar livros,
e de que ocasionalmente suas bancas fossem adjacentes às dos vendedores
de livros, não parece ter qualquer base de comprovação real.** Além disso,
tanto quanto pudemos observar, não existe nada nos costumes « tradições
nos artesãos do ofício que acentac ou mesmo que implique um interesse cs-
pecial pela leitura; e, embora Hans Sachs de Nuremberg fosse o mais famoso
dos Meistersinger, como sabem todos os amantes de ópera, não há nenhuma
evidência de que os sapateiros estivessem desproporcionalmente represen-
tados entre estes poéticos artesãos. O laço entre os sapateiros e os livros não
podia ter sido estabelecido antes da invenção c da popularização da im-
prensa, visto que até então os pobres praticamente não tinham acesso direto
à palavra escrita. Mas O caráter geral dos costumes dos artífices sapareiros su-
gere que estes costumes já se encontravam formados nesta época. *º Pode-se
argumentar naturalmente que, com a disponibilidade de livros, estes vieram
a atrair uma profissão cujos membros eram inclinados à especulação e à
discussão. Contudo, a questão permanece em aberto.
É possível que a divisão de trabalho relativamente primitiva na con-
fecção de calçados tenha permitido ou impelido grandes contingentes de
sapateiros a trabalhar em completo isolamento. Sem dúvida Mayhew conje-
rarou que “o isolamento do trabalho deles, desenvolvendo seus recursos
interiores”, explicava o fato de os sapateiros constiruírem “uma raça austera,
intransigente « ponderada”*? Remendões de calçados itinerantes cram, obvia-
mente, trabalhadores isolados: mas, mesmo cm sua oficina, era comum o
sapateiro solitário. Na Alemanha, em 1882, dois terços deles não empre-
gavam nenhum tipo de auxiliar.
Entretanto, mesmo o remendão de calçados solitário não estava isolado
culturalmente. Ele podia ser treinado em um pequeno estabelecimento. O
mestre, uns poucos artífices assalariados, é um ou dois aprendizes, bem
como a esposa do mestre, parecem ter constituído o estabelecimento típico
ideal do ofício. Nas regiões mais tradicionais da Alemanha do século XIX.
havia cm média apenas 2.4 ou 2.6 artesãos assalariados por aprendiz”! A
rápida rotatividade dos artífices, contudo. viria a ampliar os horizontes tanto
dos mestres como dos aprendizes, e os artífices assalariados eram famosos
por suas viagens prolongadas, Um sapateiro rural da Suábia descreve à im-
pressão que os arrífices assalariados lhe causaram quando aprendiz: “entre
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS as

os artífices assalariados havia muitos inteligentes e viajados. E assim eu ouvi


e aprendi muito”. E ele, por sua vez, trabalhou em 17 estabelecimentos em
quinze locais diferentes durante O período compreendido entre o final de
sua aprendizagem e seu estabelecimento como pequeno mestre e ativista
social-democrata? Se, como era o caso em Jena, Os artífices permaneces-
sem em média apenas seis mcses numa oficina, o aprendiz típico, no decorrer
de trás anos, teria contato próximo com talvez quinze homens viajados, e o
artífice itinerante típico com muito mais.
Os artífices se encontrariam não só nas oficinas, mas na estrada e nas
estalagens que funcionavam como casas de convívio, onde os empregos e à
assistência eram solicitados e recebidos de forma altamente ritualizada.** Não
faltava ocasião para discutir os problemas do ofício, as notícias do dia e a
difusão de informação em geral. Em cidades maiores, os saparciros, como à
maioria dos outros homens de ofício, podiam viver c crabalhar em ruas ou
carreiras de casas exclusivamente de sapateiros. Em mercados de vendas de
sapatos, urbanos ou rurais, não faltava companheiros de ofício e, como o
serviço ocupava pouco espaço, muitos dos que exccuravam serviços para
tcreciros e os mestres autônomos podiam dividir um oficina entre si. Mes-
mo O sapateiro mais isolado teria provavelmente se socializado na cultura
do “nobre ofício” em alguma época da vida.
Essa “cultura de sapateiro”, que Peter Burke recentemente descreveu
como mais forte do que a cultura de qualquer outro ofício, com exceção dos
tecelões,º* cra extraordinariamente marcada e persistente. Na Escócia, por
exemplo, seu santo padrociro sobreviveu à reforma calvinista sob a forma de
“Rei Crispim”, Na Inglaterra. até bem avançado o século XTx, o dia de São
Crispim cra celebrado como um feriado dos sapateiros, fregiientemente com
procissões dos membros do ofício; também foi revitalizado pelos artífices
com objetivos políticos, como em Norwich em 1813, e, no final do século,
aínda cra uma tradição viva e lembrada em áreas estritamente rurais. O
declínio prematuro das guildas e corporações organizadas na Inglaterra tor-
na mais impressionante esta permanência.
Contudo, nada nas tradições formais ou informais no ofício parece
ligar os sapateiros especificamente ao intelectualismo, ou mesmo ao radicalis-
mo. Estas tradições enfatizavam o orgulho pelo ofício, bascado em grande
parte em seu caráter indispensável para ricos e pobres, jovens e velhos, Este
é o tema mais comum das canções dos sapateiros artesãos.º* Elas acentua-
vam a independência, especialmente à independência do arífice assalariado,
E ERIC HOBSBAWM

comprovada pelo controle por parte do sapateiro sobre seu tempo de tra-
balho e de lazer —- sua possibilidade de destrutar o Saint Monday é outros
feriados como lhe aprouvesse 5” Uma vez que lazer social « bebida eram in-
separáveis, as canções também ressaltavam O ato de beber (atividade pela
qual os sapateiros se celebrizaram), c aquele outro subproduto da cultura de
bar: resolver as dispuras na briga. “A melhor cerveja encontra-se onde os
carroceiros e os sapateiros bebem”, diz um peovérbio polonés. A comédia de
Johann Nestory, Lumpasipagabunduis (1836), que acompanha as peripécias
de três artífices típicos ideais, apresenta seu sapateiro como um astrônomo
amador (cujo interesse por comeras pode ter sido inspirado pela leitura de
almanaques) e bébado escandaloso e brigão. Mas estas não são associações
particularmente intelectuais.
Talvez à explicação mais plausível do intelectualismo do oficio derive
do fito de o serviço de sapateiro ser sedentário « pouco exigente do ponto
de vista físico. Talvez fosse o trabalho masculino que menos sobrecarregasse
fisicamente o homem na zona rural, Conscgiientemente, rapazes pequenos,
fracos ou com alguma deficiência física eram habitualmente destinados a cste
ofício. Foi o caso de Jakob Boehme, à místico; de Robert Bloomficld,
autor de The Earmer's Boy;*º de William Gifford, futuro editor do Quarterty
Review, que foi “posto a trabalhar com o arado”, mas “logo se descobriu que
era fraco demais para trabalho tão pesado”; de John Pounds, pioneiro das
Ragged Schools,"" que se tornou sapateiro após um acidente que o mu
tilou e o excluiu do seu ofício original como mestre de estalciro;*? de John
Lobb, fundador de uma firma famosa em St, James, que ainda existe, e
de um grande número de outros, quase com certeza. Em Loitz, na Po-
merânia, “praticamente as únicas pessoas que se dedicam à este ofício são
aleijadas, ou inadequadas para o trabalho agricola ou industrial”. Daí à ten-
dência dos sapareiros de aldeia, impossibilitados de mantersse com os ganhos
de seu ofício, a assumir (como na cidade de Heide, Schleswig) empregos
secundários como vigias-noturnos, porteiros de escolas, mensageiros, gar-
qons, arautos da cidade, assistentes de pastor ou de carteiros « varredores de
rua? A regulamentação para o recrutamento naval norte-americano em 1813
insistia no recrutamento “somente de homens fortes, saudáveis e capaze
= O costume de não trabalhar nas segundas-feiras. (NR)
** Insútuições de caridade pública para inscrução, abrigo « auxílio aos pobres e aos órfius.
ST)
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS a?

Os homens de terra podem se inscrever como marujos comuns .. mas sob


nenhum pretexto podem ser accitos alfaiates, sapateiros ou negros (sic), pois
estes, devido a suas ocupações costumeiras, raramente possuem força física”.'º
A quantidade de sapateiros e alfaiares deformados (“curvados, corcun-
das, mancos”) nos cortejos profissionais destes ofícios foi observada por
Ramazzini na Itália St Ao contrário dos alfáiates, entretanto, os sapateiros não
cram notoriamente associados à fragilidade física, uma observação que pode
ser corroborada pelas estatísticas do século XIX sobre a mortalidade britânica
segundo a ocupação. Por sua vez, o sapateiro manco já aparece registrado
pelo dramaturgo latino Plauto. Talvez fosse relevante aqui saber a fregitência
de sapareiros rurais que combinavam seu ofício com atividades agrícolas
No entanto, pelo menos até certo ponto, o ofício era escolhido por moços
incapazes de competir com outros trabalhadores agrícolas de sua idade nas
atividades físicas convencionalmente valorizadas. Este faro pode ter incenti-
vado a aquisição de outras formas de prestígio €, neste ponto, a natureza
semi-rorineira de grande parte de seu trabalho, o qual podia facilmente co-
existir com a meditação, à observação é a conversa, pode ter sugerido alrer-
nativas intelectuais. Ao trabalharem reunidos em oficinas maiores, os sa-
pateiros estavam entre os artesãos (como os alfaiates e os charuteiros) que
desenvolveram a instituição do “leitor” — um deles, por rodízio, lia jornais
ou livros em voz alta, ou um velho soldado cra contratado para ler, ou o
aprendiz mais jovem tinha à obrigação de ir buscar o jornal e ler as notícias.
George Bloomficld, um poeta-sapatciro menor, sugeriu, c não sem razão,
que “aqueles que dizem que “os sapateiros são políticos” poderiam encontrar
aqui a solução para seu espanto”. Nas cidades existiam outras ocupações
trangúilas e pouco exigentes, mas nas aldeias é difícil pensar em outras —
com certeza, não a dos ferreiros nem à dos fabricantes de rodas.”
O trabalho de sapateiro, portanto, permitia pensar e discutir durante
sua execução; seu freguente isolamento durante as horas de trabalho faziam-
no recorrer a seus próprios recursos intelectuais; cle cra recrutado seleei-
vamente dentre os rapazes como um provável incentivo para compensar
suas deficiências fisicas; o treinamento de aprendizes e os artífices itinerantes
espunham-no à cultura do ofício e à cultura e à política de um universo mais
amplo. Podemos talvez acrescentar que a leveza de sua caixa de ferramentas
tornasse mais fácil do que no caso de outros ofícios que ele carregasse livros
consigo — fato para o qual também existe alguma comprovação. Se tudo
as ERIC HOBSBAWM

isto fornece uma explicação adequada, ou ao menos uma explicação veri-


ficável, não podemos ter certeza. Entretanto, três fatos estão claros.
Primeiro, os sapareiros de ofício mais letrados, como examinaremos
em breve, distinguiam-se pelo fato de se distribuírem por ambientes pre-
dominantemente incultos, em áreas rurais cm pequenas cidades, onde po-
diam se tomar religiosos extra-oficiais, ou intelectuais dos trabalhadores; à
concorrência era pouca. Em segundo lugar, uma vez que à imagem popular
do sapateiro como intelecrual e radical existia (inegavelmente), ela deve ter
afetado a realidade de diversas formas. Cada vez que um sapateiro se ajus-
tasse ao papel, ele confirmava a expectativa popular. Conscquientemente, o
comportamento dos sapareiros neste papel era provavelmente obscrvado, re-
gistrado e comentado com maior frequência. A imagem popular pode ter
atraído jovens com preferências literárias ou filosóficas e interesses políticos;
ou inversamente, os rapazes, tendo entrado em contato com sapateiros filó-
sofos « radicais, podiam adquirir interesse por estes assuntos. Finalmente, a
cultura do ofício podia desenvolver alguns desses traços entre os profis-
sionais que o exerciam, não só porque as condições materiais o propicias-
sem, mas porque os costumes do ofício não os impediam. Em muitas ocu-
pações, um “homem que lia” acabaria perdendo este gosto devido à chacotas
ou a críticas; entre os sapateiros, cle seria aceito com maior facilidade. como
uma versão de comportamento compatível com as normas do grupo.
A independência do sapateiro estava claramente ligada às condições
materiais do seu ofício, é dela originou-se sua capacidade de tormar-se um
político de aldeia. Além disso, à condição social humilde do ofício e a rela-
tiva pobreza de seus integrantes, pelo menos no século XIX, ajudam a expli-
car seu radicalismo.
As duas características estão entrelaçadas. O ofício bascava-se essencial-
mente no couro, cuja preparação (esfolar, limpar, cartir etc.) é barulhenta e
suja, e, portanto, muitas vezes restrito a pessoas de baixa condição social ou
párias (como na Índia e no Japão). Em suas origens, os sapatciros e os
curtidores estavam intimamente ligados, pois os sapateiros com frequência
curtiam seu próprio couro, como ainda o faziam até meados do século XTX na
comunidade de Loitz, na Pomerânia.” Em Leipag, os curtidores e os sa-
páteiros originariamente pertenciam à mesma guilda.” O baixo status dos
sapateiros e o desprezo que lhes era dirigido na Antigiidade — ao menos
pelos escritores”? — pode ser devido em parre à associação com à “sujeira”
ou a lembrança dela. Além disso, não é absurdo supor que o ofício, enfiri-
PUSSOAS EXTRAORDINARIAS as

zando sua indispensabilidade e sua nobreza, se inclinasse ao radicalismo por


ressentimento. Sem dúvida um elemento do baixo status parece ter persis-
tido, possivelmente tunbém influenciado pela reputação de desleixo físico
dos sapateiros, cujo baixo status por sua vez era possivelmente uma razão
para esta reputação. Ainda no final do século 1x, um autor pôde escrever
sobre O ofício em sua forma tradicional (pré-fabril): “Como classe . . os
sapateiros comuns não eram nem limpos, e nem arrumados quanto a suas
pessoas e seus hábitos, e esta vocação cra desprezada como sendo de um
baixo nível social: um emprego adequado para colocar como aprendizes jo-
vens internos de casas de trabalho”,” Acrescente-se que, como os custos de
aprendizado eram mínimos, as famílias que não podiam sustentar à ins-
trução de seus filhos em um ofício mais próspero e mais exclusivo (e mais
caro) podiam dar um jeito de arrumar à quantia necessária para que ele
aprendesse o ofício de sapateiro. De tato, a associação do ofício com a
pobreza também era proverbial.” “Todos os sapateiros andam descalços”, diz
um provérbio iídiche. “O sapateiro sempre usa sapatos furados” Na região de
Hamburgo, uma miscura de sobras de comida era conhecida como “torta de
sapateiro” >
À coexistência de independência e pobreza no ofício é devida em paree
à sua peculiar onipresença. Ele se organizou bastante cedo, tanto na cidade
quanto no campo, pelo menos nas zonas temperadas, onde de longa data se
reconheceu que “não há nada como o couro” para fazer calçados resistentes
ao trabalho ao ar livre, Os sapateiros, cles próprios frequentemente de ori-
gem humilde, serviam à uma clientela que incluía grande quantidade de
pessoas humildes. À fabricação e o conserto de calçados de couro exige
especialistas de algum tipo, ao contrário de tantas outras atividades de fabri-
cação e conserto. No final do século xIx, ainda havia sapateiros que se espe-
cializavam em percorrer as fazendas dos Alpes austríacos (Stórchbuster) para
fazer e consertar os calçados do ano inteiro usando as peles e couros formecidos
pelos fizendeiros.”* Os sapareiros que faziam sapatos bem como os remendões
eram, portanto, não somente um ofício organizado já em data extraordina-
riamente remota (estão entre as primeiras guildas de ofício documentados
tanto na Inglaterra quanto na Alemanha),* mas também um dos ofícios
mais numerosos e mais amplamente distribuídos no campo e na cidade. Na
Sevilha do século XVII como na Valparaíso do século XIX, eles excediam em,
número à todos os outros ofícios:”* isto também ocorria na Prússia em
1800 (seguidos pelos alfaiates « ferreiros). Na Baviera, em 1771, eles so-
so ERICHORSRAWM

mente eram ultrapassados em quantidade pelos tecelões, mas nas aldcias mer-
cantis eram os primeiros, seguidos dos cervejeiros « dos tecelões.” Na Frísia
rural, em 1749, havia 5,79 sapateiros por mil habitantes, cm comparação
com 4,53 tecelões, 4.48 carpinteiros, 3,70 padeiros, 2.08 ferreiros, 1,76
religiosos, 1,51 estalajadeiros « 1,45 alfaiates; dentre todos os estabelecimen-
tos comerciais, 54% cram de Sapateiros, 52% de carpinteiros, 40% de terreiros,
e 32% de estalajadeirosº Parece claro que as pessoas encontravam maior di-
ficuldade em se arranjar sem sapateiros especializados à distância conveniente
do que sem outros tipos de artífices ou serviços especializados.
O ofício de sapateiro, embora se estendesse a várias habilidades técni-
cas e de especialização, manteve-se suficientemente primitivo quanto à tec-
nologia e à divisão do trabalho, é com um produto suficientemente ho-
mogêneo para continuar em essência como um ofício único. Não é possível
traçar nenhum paralelo entre ele e a fragmentação crescente do setor me-
talúrgico em ofícios especializados isolados, como a que se encontra tão
fregixentemente na economia medicval de guildas. Gencralizando, assim que
o ofício se separou dos curtidores, vendedores de couro é outros produtores
e fornecedores de matéria-prima, suas principais fissuras incernas foram co-
merciais — entre sapateiros e vendedores de sapatos (estes podendo ou não
também fabricar sapatos). Havia também uma divisão, definida nos termos,
entre Os que faziam sapatos (cordimainers) e os que simplesmente os conscr-
tavam (cobblers) — savaticrs, Elickshuster, cinbarrino —, embora deva ser ob-
servado que os comerciantes se desenvolveram essencialmente a partir dos.
fabricantes, A separação entre os fabricantes e os remendos foi por vezes
instirucionalizada em guildas separadas, embora as guildas dos remendões
tivessem dificuldade para se emancipar completamente do controle dos fa-
bricantes, ou mesmo subsistir
O conserto cra nitidamente o ramo inferior do ofício, e o termo cobblina
em inglés é usado para designar qualquer serviço de baixa qualidade. Entre-
tanto, a linha divisória entre os dois ramos era imprecisa, e tinha de o ser,
especialmente em épocas ou regiões (como na Alemanha no século xvm) em
que a procura razoavelmente estática defrontou-se com à oferta crescente
nas cidades.” Viver somente de fizer calçados cra praticamente impossível
para a maioria; na verdade, subentendia-se que os fabricantes fizessem con-
sertos. Desta forma, para atingir uma renda “decente” (91 florins por ano),
alegava-se, sem dúvida retoricamente, que um mestre “teria de produzir um
par de sapatos novos ou trés pares de solas ou consertos por dia, e além disso
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 51

confiar em que Os fregueses pagassem”, Não é portanto surpreendente que


nos séculos XVIII e XIX os termos pareçam ter-se tornado intercambiáveis
em inglês,“ enquanto em francês a palavra cordonnier veio a significar tanto
o fabricante quanto o remendão, como Schuster em alemão popular, apesar
da tendência do termo mais elitista Schslymacher ganhar terreno à custa do
termo mais popular! E, na realidade, fora das cidades firmemente con-
troladas por guildas, as quais estavam se tornando mais fracas, como cra
possível manter à fabricação e o conscrro estritamente separados?
A procura muito difundida por sapateiros especializados (fabricantes
remendões) impossibilitou o monopólio do ofício nas cidades organizadas.
O conserto de sapatos na aldeia dificilmente poderia ser proibido e, embora
esse tipo de conserto rural fosse (sem dúvida inevitavelmente) isento dos
controles e qualificações das guildas, quase sempre tinha de ser aprendido de
algum sapateiro. Não havia maneira de evitar que o remendão do lugarejo
também suprisse à demanda local de sapatos, especialmente os do tipo gros-
seiro, até a ascensão da produção e distribuição em grande escala. Assim,
artífices com poucas chances de se tornarem mestres no ofício controlado
na cidade podiam preferir instalar-se indcpendentemente em alguma aldeia
ou cidadezinha no campo. Esta foi a tendência crescente observada na Ale-
manha ainda no século x1x. Quando, em 1840, aboliu-se finalmente no
interior da Saxônia a proibição a sapateiros rurais (em oposição aos re-
mendões), sendo permitido daí em diante um único mestre por aldeia (sem
aprendizes), um número considerável de sapareiros rurais imediatamente sur-
giu.ºº É bastante razoável imaginar que muitos deles simplesmente muda-
ram sua denominação oficial.
Por outro lado, se não havia nenhuma linha nítida distinguindo o sa-
pateiro melhor e mais especializado do remendão mais modesto, as enormes
dimensões do ofício sugerem que geralmente cle incluía uma porção imensa
de figuras marginais, que não podiam viver somente de seu ofício; especial-
mente porque O conserto de sapatos — atividade na qual os remendões de
aldeia na Alemanha podiam talvez obter metade de sua renda — era noto-
riamente mal pago, É difícil encontrar dados anteriores à era industrial, mas.
o cálculo de uma aldeia na Suábia no século XTX sugere que, devido à pro-
cura insuficiente, um saparciro ali, em média, não poderia ter feito mais do
que sete pares de calçados em um ano;º* desta forma, para a maior parte
deles o ofício não passava de uma fonte de ganhos suplementares, possivel”
mente já adotado por essa razão. A reputação de pobreza do ofício tinha,
52 ERIC TIOBSBAWM

portanto, uma base sólida, embora as razões para sua superlotação não este-
jam totalmente claras. Talvez isso se deva em parte ao baixo custo do equi
pamento básico e à possibilidade de exercer à atividade em casas talvez tam-
bém à possibilidade de recrutamento externo, fora das fileiras dos artífices
profissionais é de suas famílias. Os tipógrafos e os vidraceiros restringiam o
acesso ao ofício a seus filhos, parentes e uns poucos privilegiados de fora: os
sapateiros raramente podiam fazero mesmo.” Em consequência, os saparei-
ros não controlavam nem o acesso nem o número de integrantes do seu
ofício, e daí à superlotação.
O oficio era, portanto, muiro ponco homogêneo. Contudo, na medida
em que permanecia um ofício de caráter essencialmente manual — c até à
década de 1850 nem mesmo a máquina de costurar doméstica havia sido
incorporada —, suas divisões internas eram vagas € instáveis, Por esta razão,
embora existissem “aristocratas” ou setores favorecidos cntré os sapateiros, co-
mo havia entre os alfiiates (por exemplo, na elite das encomendas sob medida
nas cidades), nenhum dos dois ofícios como um todo tinha posição alta na
hierarquia social, como observou o artesão comunista Wilhelm Weitling +
Pois ambos, em particular os sapareiros, eram cxtraordinariamente nume-
rosos € continham, portanto, uma proporção muitíssimo alta de clementos
menos favorecidos e marginalizados, Dentre as centenas de artífices assa-
lariados que se dirigiam em bloco para Viena (em processo de induscriali-
zação, na década de 1840). € solicitaram permissão para aí permanecer. nada
menos que 14,7% (17% destes provenientes da Boémia) eram sapateiros,
seguidos à alguma distância pelos alfxiares, 10% (14,6% dos quais eram
boêmios) « pelos marceneiros, 8,3% (9,1% de boêmios).
O sapateiro de aldeia era autónomo. Sua atividade exigia pouco capi-
tal, o equipamento era barato, leve e portátil, e ele necessitava apenas de um
telhado sobre à cabeça para trabalhar « viver, no pior dos casos no mesmo
cômodo. Embora este fato lhe proporcionasse uma mobilidade incomum,
não o distinguia de uma série de outros ofícios. O que realmente o distinguia
era seu contato com um grande número de pessoas humildes e sua inde-
pendência com relação aos proterores, clientes abastados e empregados, Os
lavradores dependiam dos senhores de terra; os fabricantes de rodas c os
construtores contavam com à encomenda dos lavradores e de pessoas de
* Temos conhecimento, no emtamo, de que a continuidade hereditária entre os sapareiros
londeinos era extraordinariamente alta
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS s3

serviam aos ricos, pois os pobres faziam suas pró-


prias roupas. O sapateiro também servia aos ricos, porque precisavam dele,
mas sta freguesia principal, na maior parte dos casos, devia estar entre os
pobres, pois estes também não podiam passar sem cle, Este fato é inegável,
mesmo que saibamos menos do que poderíamos à respeito do verdadeiro
uso de caçados de couro entre os pobres, o qual naturalmente devia ser mais
restrito do que em nossa próspera época. Na rtalidade, existe evidência de
que, à medida que os aldcões mais ricos do final do século xx passaram a
comprar sapatos fabricados em outros lugares, vendidos em lojas (quando
não passavam a comprar sapatos sob medida de primeira qualidade). o sa-
pateiro da aldeia ficou cada vez mais dependente das compras daqueles que
precisavam de calçados fortes para o trabalho ao ar livre.
Ele podia, portanto, expressar suas opiniões sem correr o risco de per-
der seu emprego ou seus fregueses — se fosse realmente bom, nem mesmo
perderia seus clientes respeitávcis.s E mais, ele estava intimamente ligado à
seus clientes por laços de confiança. Em parte porque é provável que ti-
vessem algum débito pendente com cle, pois os empregados rurais, é talvez
os camponeses, apenas podiam quitar seus débitos após longos intervalos,
quando recebiam quantias significativas: por exemplo, após à colheita — o
dia de pagamento na Pomerânia era o dia de São Crispim, 25 de ourubro** —
ou entre à Páscoa « Pentecostes, quando cram renovados os contratos de tra-
balhos anuais. Ele tinha de confiar em seus clientes, mas eles não tinham
razão para desconfiar dele. Ao contrário de tantos outros que tinham con-
tato com os pobres — o moleiro, o padeiro, ou mesmo o taberneiro, que
podiam roubar no peso e na medida —, O sapateiro produzia sapatos novos
ou consertados que podiam ser facilmente julgados no ato da entrega, e as
variações na qualidade provavelmente refletiriam não o descjo de enganar, e
sim variações na habilidade técnica.” O sapateiro tinha, por conseguinte,
liberdade de exprimir suas opiniões, das quais não havia razões para desconfiar.
Não deveria causar surpresa que estas opiniões fossem hercrodoxas e
democráticas. A vida do sapateiro de aldeia tinha afinidade com a vida dos
pobres e não com a dos ricos e poderosos. Ele via pouca utilidade na hicrar-
* É necessário maior pesquisa especialmente sobre a difusto da prática de andar descalço
muito comum entre mulheres e crianças) e sobre 1 uso de calçados alternativos —
tamancos, botas e saputos de feltro ou fibra vegetal e similares
** EEistirá uma conexão crer esse rismo agricola e 0 dia de São Crispim (25 de outubro?
ERIC HOBSBAWM

guia e na organização formal. O pouco que havia cm scu ofício já era sufi-
ciente, e em muitos casos cle encontrava serviços fora de regulamento da
guilda ou do ofício, e apesar deles. Conhecia o valor da independência e
tinha ampla oportunidade de comparar sua relativa autonomia com a de
seus clientes, Por ser difícil ou impossível compilar uma amostragem repre-
sentativa dos radicais no ofício, não se pode determinar até que ponto esta
capacidade de expressar pontos de vista independentes estava confinada à
minoria de artífices relativamente bem-sucedidos, não disseminada entre a
maioria (presumível) de sapareiros remendões marginais, de trabalho avulso.
A pergunta permanece sem resposta. Entretanto, no contexto específico do
final do século XVII e início do século xix, é natural encontrar sapaeiros
radicais lendo Cobbert, que clamava contra a climinação de todos os pe-
quenos artífices « denunciava um sistema que substituía “senhores e homens
cada um em seu lugar c todos livres” por “senhores e escravos”. Nem é
surpreendente encontrá-los nas fileiras dos sans-culorres e mais tarde nas dos
anarquistas. Em todas as circunstâncias, a insistência sobre os meios modestos,
o trabalho duro e a independência como soluções para os problemas da in-
justiça é da pobreza estava dentro da experiência dos sapareiros de aldeia
Grande parte dessa argumentação poderia também aplicar-se a outros
artífices de aldeia. Mas enquanto a oficina do ferreiro, por exemplo, cra
barulhenta, e seu trabalho dificultava à possibilidade de conversa, O sapa-
teiro estava estrategicamente bem instalado para fazer passar as idéias da
cidade c para mobilizar a ação, Sua oficina de aldcia fornecia um cenário
ideal para esta finalidade; e homens bem-articulados, que trabalhavam sós à
maior parte do tempo, quando tinham com quem conversar podiam sc tor-
nar extremamente falantes, mesmo durante o trabalho. O sapateiro rural es-
tava sempre presente, de olhos ma rua, e sabia o que estava acontecendo na
comunidade. mesmo se não tinha também a função de sacristão da pa-
róquia, ou alguma outra posição municipal ou comunitária. Além diss
sas tranqilas oficinas nas aldeias e nas pequenas cidades eram centros sociais,
perdendo apenas para a taberna, mas abertos e preparados para o convívio
durante todo o dia. Não surpreende que no interior da França em 1793-1794,
Os sapateiros, juntamente com os taberneiros, “pareciam ter uma verdadeira
vocação para a revolução”. Richard Cobb ressalta que
O papel dos sapateiros, aqueles revolucionários de aldeia que se insta-
laram como prefeitos após o surro revolucionário do verão de 1793, ou
PESSOAS EXIRAORDINÁRIAS 55

que presidiam os comitês de vigilância, cncabeçaram as minorias de sas-


culettes contra les gras . Nas listas do “terroristas a serem desarmados
elaboradas para a zona rural nó ano 1tt, eles foram a maioria. Temos aí
um inegável fenômeno social º
Naturalmente à oficina do sapateiro e a taberna, enquanto locais de
reunião, diferiam cm um aspecto importante. Para beber, os homens se re-
uniam em grupos, mas nas oficinas de sapatciros chegavam individualmente
ou àos pares. Às tabernas eram domínio exclusivo dos homens adultos, mas
o intelectual da aldeia tinha contato com as mulheres, ou, mais provavel:
mente, com as crianças. Em que quantidade de aldeias c pequenas cidades o
sapateiro não exerceu o papel de educador! Ássim, o Every-Day Book de
Hone relembra “um velho honesto que remendava meus sapatos é minha
mente, quando cu cra menino ... meu amigo e sapateiro, que, embora não
fosse nenhum metafísico, gostava de ruminar sobre a cansaço”. Ele empres-
tava ao garoto livros “que guardava na gaveta de seu banco, junto ... aos
instrumentos do seu nobre oficio” E ainda na década de 1940, um futuro
ilustre historiador do movimento operário de formação marxista foi apre-
sentado à política em suas conversas de menino numa oficina de sapateiro
de uma pequena cidade na sua Roménia natal!
O sapateiro era, portanto, uma figura-chave na vida intelectual e po-
lítica da zona rutal: instruído, eloquente, relativamente bem informado, in-
dependente do ponto de vista intelectual e, por vezes, econômico, pelo me-
nos dentro de sua comunidade aldeã. Ele estava constantemente presente
nos locais em que era de se esperar que ocorresse mobilização popular: nas
ruas da aldeia, nos mercados, feiras e festividades, Não está claro sc esta é
uma explicação suficiente para seu papel fregiicntemente reconhecido como
líder de massas. Sob tais condições, entreranto, mal ficamos surpresos em
encontrá-lo às vezes cumprindo este papel

HI

Ensre Os historiadores sociais, a reputação dos sapateiros como radicais


está associada principalmente ao final do século XVII é início do século x1x,
período de transição para o industrialismo. Não nos é possível medir sc
honve ou não um aumento no número de sapateiros militantes, mas nos
parece provável que dois desdobramentos estimularam a intensificação do
se ERIC HOBSBANM

radicalismo. O primeiro originou-se do lento declinio do ofício de sapateiro


como ocupação essencialmente artesanal e de um consegiente período de
tensão exacerbada interna à profissão. Os problemas específicos variavam de
um local pará outro (as relações entre mestres é artífices assalariados eram
diferentes em Northampton « em Londres), mas é inegável que o ofício
como um todo era politizado, Assim, um jovem artífice tinha experiências
de greves e participava em discussões sobre sistemas econômicos e políticos
alternativos, à medida que adquiria conhecimento técnico. Aqueles que aca-
bavam se instalando em oficinas de alácias pequenas sabiam o que era jaco-
binismo « veiculavam as idéias radicais das grandes cidades para as peque-
nas, O segundo desdobramento ligava-se ao descontentamento crescente
das populações aldcãs à medida que enfrentavam as consequências do cre
cimento do capitalismo agrícola. Os aldedes tornavam-se cada vez mais re-
ceptivos a formulações ideológicas para suas queixas, formulações estas que
Os sapateiros estavam em condições de fornecer. A combinação das circuns-
âncias da aldeia com as do ofítio facilmente transformou o filósofo de
aldeia em político de aldeia, como sem a menor dúvida ocorreu durante as
revoltas de Swing.
Que mudanças afetaram o ofício do sapateiro durante o período que
se estende, aproximadamente, de 1770 à 1880?
O primeiro ponto a lembrar é simplesmente a quantidade de integrantes
do ofício que, até a transformação provocada pela mecanização e pela pro-
dução fabril, crescia acompanhando a urbanização e a população. O múmero
de trabalhadores no ofício de sapateiro em Viena (onde o número de tábri-
cas era mínimo) mais do que triplicou entre 1855 e 1890, sendo que à
maior parte deste incremento ocorreu antes dos primeiros anos da década
de 1870. Na Grá-Bretanha, o número de homens adultos no ofício au-
mentou de 133 mil para 243 mil entre 1841 e 1851, quando houve mais
sapareiros do que mineiros no país.” Durante os anos de 1835 e 1850,
entraram por ano entre 250 a 400 sapateiros em Leipzig e, como a cidade
estava em crescimento, uma quantidade pouco menor saiu dela anualmente.
Durante este período de quinze anos, houve no mínimo 3.750 chegadas e 3 mil
partidas +
O segundo ponto a observar é à disseminação da fabricação para o
mercado em oposição à fabricação para clientes individuais € o onipresente
serviço de conserto. O “sapateiro do mercado”, produzindo calçados gros-
seiros para venda nos mercados locais e regionais, podia em muitos lugares
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 57

ainda manter uma relação tão próxima a seus clientes quanto a do sapateiro
que trabalhava com encomendas sob medida, já que ele podia ser regular-
mente encontrado em sua banca nos dias de feira por homens « mulheres
que 0 conheciam bem e à quem ele conhecia Sua relação com os clientes
era provavelmente mais próxima do que a do seu rival cada vez mais amea-
cador, o sapateiro ambulante, que ia de casa em casa” No entanto, estas
duas formas de organização se prestavam a diversos sistemas de subcontraro
— daí o desenvolvimento de comunidades de sapateiros, tanto rurais quanto
urbanas. Estas podiam abranger desde aglomerações de oficinas tradicionais
com ménima divisão de trabalho, até centros maiores que consistiam na
realidade em fábricas não-mecanizadas, funcionando com operários confi-
nados à processos especiais, e que eram complementados com trabalha-
dores de fora, da cidade ou da aldeia, com sua própria subdivisão do tra-
balho.” Aqui se produzia em larga escala para o exército e à marinha ou
para a exportação. É possível que muitos desses trabalhadores manuais semi-
especializados chegassem ao ofício sem o treinamento é sem a socialização
típicos, particularmente quando provinham da agricultura” Neste período,
& recrutamento de aprendizes pode bem ter ocorrido sobretudo entre os
pobres do meio rural. Na Europa, entretanto, o múcleo de sapateiros for-
mados por aprendizagem, em torno do qual esta força de trabalho semi-
especializada se desenvolveu, era significativo. Isto é sugerido até para ope-
rários fabris, no manual de fabricação de calçados de ]. B. Leno (um radical); e
com certeza em Erfurt, um dos principais centros alemães de produção fa-
beil mecanizada, um terço de uma amostragem de 193 trabalhadores tinha
aprendido o ofício, é a metade desses consistia em filhos de sapateiros.” Isto
não é surpreendente, uma vez que, exccruando-se os Estados Unidos, e a
Grã-Bretanha um pouco mais tarde, nenhuma inovação récnica significativa,
além da pequena máquina de costura (que se disseminou entre meados da
década de 1850 e início da de 1870), ocorreu até o final do século x1x:”
O terceiro ponto é que a pressão dos números € a proliferação da
mánufarura subcontrolada (à qual os artífices respeitáveis se referiam como
trabalho “vil” ou “lixo”) solapavam a independência do ofício e também
xavam os preços, Uma investigação sobre o emprego em Marselha na
década de 1840 revelou que os sapateiros eram o maior grupo ocupacional,
mas também o mais mal pago. Eles ganhavam por dia em média apenas três
francos, e na média anual seiscentos francos, O que os situava quanto a
ss ERIC HOBSBAWM

salários em posição inferior a muitos trabalhadores não-qualificados.'º O poe-


ta-trabalhador Charles Poncy protestou em 1850 a São Crispim:

A fome nos atrela a sua negra carroça: pois nossos ganhos são tão redu-
zidos. Em troca de pão efarrapos trabalhamos até altas horas da noite.
Os meus filhos, amontoados a esmo em lençóis gastíssimos, exauriram
o seio esquelético de sua mãe, Comemos à semente do cereal que de-
veria produzir o alimento para os mais novos. 0
O sapateiro inglês John Brant atribuía sua participação na conspiração
de Cato Street aos baixos salários e à consegiente perda de independência.
Sua declaração sugere que cle tentou atingir de volta os que estavam no
poder, afirmando sua capacidade de pensar e agir com independência:
Por seu esforço, cle tinha sido capaz de ganhar por volta de 3 ou 4 libras
por semana, e, enquanto esses ganhos foram possíveis, ele nunca se
envolveu com a política; mas quando percebeu que sua renda mensal
estava reduzida a 10 shilings, começou a olhar em volta ... E o que cle
viu? Ora, homens no poder, que se reuniam para deliberar como po-
deriam esfaimar e saquear o pais ... Ele sc uniu à conspiração pelo bem
público. 1º?

A disseminação da manufatura para um mercado longínquo em vez de


para chentes conhecidos afetou o ofício de formas diferentes. Num extremo,
isso poderia, pelo menos temporariamente, conduzir a uma reafirmação dos
valores e reivindicações do ofício como tal, compartilhada por mestres e
artífices assalariados, contra o trabalho desleixado ou “vil” em nível local ou
em centros manufatureiros de grande escala, como Northampton. No outro
extremo, os artífices assalariados ou os pequenos mestres prolecarizados, per-
cebendo que tinham se transformado em assalariados permanentes, pode-
riam procurar o caminho da sindicalização e o conflito com os emprega-
dores, afiando o gume do radicalismo dos sapateiros. Assim, o sapateiro
parisiense “Etrahem” falou do dia em que “tendo sido dado o sinal, todos
os trabalhadores abandonarão simultaneamente suas vficinas e deixarão o
trabalho, com o propósito de obter um aumento nas listas de preços que
exigirão de scus patrões”. 103
Como foi observado, os sapateiros rapidamente aderiram à formação de
sindicatos militantes e, pelo menos na Gri-Bretanha, as raízes do movi-
PESSOAS EXTRAORDINÁIAS so

mento sindical eram profundas. James Hawker — que ocupa um modesto


lugar na história como aldeão radical e notável caçador em áreas proibidas
no Leicestershire por consciência política —, era filho de um alfaiate pobre,
que foi aprendiz de sapateiro em Northampton. Exceruando o período em
que se alistou é depois desertou do exército, circulou por todos os empregos
que havia na região leste dos condados centrais. No entanto, afiliava-se a
um sindicato, onde quer que existisse um; “Eu corria para casa o mais rá-
pído que podia « buscava meu passaporte. Pois nesta época eu era um sindi-
calista — quase antes de saber o que isto significava .. Não foss eu sin-
dicalizado, poderia ter sido forçado a mendigar ou a roubar”.
A linha divisória entre o trabalho como ofício e o trabalho assalariado,
entre a militância econômica e a política, cra até então vaga o suficiente
para desencorajar um excesso de classificação. Somente após 1874 os sapa-
teiros tradicionais e os operários fabris divergiram o bastante para que os
últimos formassem um dissidência separada da Associação Unida dos Mestres-
Sapateiros, dando origem ao Sindicato Nacional dos Montadores é Arrema-
tadores de Botas é Sapatos — o futuro Sindicato Nacional dos Artífices de
Botas e Sapatos. O sindicato de 1820 contribuiu para a causa dos réus na
conspiração de Cato Street, E os sindicatos nos centros manufitureiros e nos
de subcontratação valiam-se da antiga tradição do ofício em seus protestos.
Em Nantwich, Cheshire, por exemplo, um desses fortes sindicatos celebrou
o dia de São Crispim em 1833 com:
um grande cortejo — o Rei Crispim montado a cavalo em paramentos
teais .. acompanhado de pajens que seguravam à borda de seu manto,
trajados caracteristicamente. Os membros do oficio portavam vestimen-
tas adequadas à seu nível é Carregavam à Licença, a Bíblia, um grande
par de globos « também belos exemplares de sapatos e botas de luxo
Seguiam a procissão cerca de quinhentos sapareiros, cada um usando
um avental branco caprichosamente decorado. O cortejo era encerrado
por um companheiro de nficina vestido à maneira de arrífice itinerante.
com seu estojo de ferramentas às costas e cajado na mão. 105
O estandarte do sindicato, “emblema de nosso ofício, com o lema Que as
confecções dos filhos de Crispime sejam pisada em todo o mando . ” foi muito
admirado !9 Um cortejo de guilda não teria sido muito diferente.
Entretanto, os caminhos que levaram aos nossos radicais de aldeia no
final do século XIX têm sua origem mais fregiiente em contextos como Lon-
E ERIC HORSBAWM

res, onde mestres e artífices remunerados compartilhavam posições jacobi-


nas, Por exemplo, aquelas compartilhadas pela Sociedade Londrina de Cor-
respondéência e pelos membros da conspiração de Cato Street; ou Paris,
onde os sapateiros estavam entre os seguidores mais numerosos de Etienne
Caber, O sapateiro de aldeia participava, em conjunto com os respeitáveis
sapateiros urbanos, da causa do pequeno artífice independente, Na defesa
desta causa cles lançaram à economia e ao governo uma crítica que podia
realçar os problemas de outros trabalhadores « impeli-los à ação. O apelo à
ação baseava-se na hipótese de que homens como eles mesmos eram capazes
de agir; na verdade este apelo supunha que pequenos grupos de “cidadãos”
inteligentes podiam agir no sentido de corrigir a injustiça de forma inde-
pendente — isto é, sem a liderança de homens mais instruídos ou sem o
apoio de organizações formais centralizadas
Não obstante, se mudanças no próprio ofício intensificavam a cons-
cientização de seus membros quanto às injustiças da sociedade, não pode-
mos simplesmente afirmar que « radicalismo dos sapateiros surgiu no final
do século XVTTT como resposta ao início do capitalismo industrial. Como
tentamos demonstrar, o sapateiro enquanto intelectual do homem teabalha-
dor e filósofo hererodoxo, enquanto porta-voz do povo, e enquanto mi-
litante do seu ofício, é muito anterior à Revolução Industrial — pelo menos
se a argumentação deste ensaio for aceita. O que os primeiros estágios da
industrialização ou da pré-industrialização fizeram foi ampliar a base de radi-
calismo dos sapateiros pelo aumento de quantidades de sapateiros e remen-
dôes e pela criação de um grande grupo de trabalhadores subcontratados
semiproletários e, pelo menos intermitentemente, pauperizados. Muitos arrí-
fices remunerados foram forçados a deixar a tradicional estrutura de arivi-
dades é expectativas da corporação do ofício, passando para uma militância
sindical de trabalhadores especializados
Mas, principalmente, o que este período proporcionou foi uma enor-
ime expansão das ferramentas do radicalismo político é de scu repertório de
idéias, reivindicações e programas. deologias de crítica social e política —
demoerático-seculares, jacobinas, republicanas, anticlericais, cooperativistas,
socialistas, comunistas é anarquistas — proliferaram e complementaram ou
substituíram as ideologias de religião heterodoxa que anteriormente tinham
sido o principal vocabulário do pensamento popular, Algumas eram mais
atraentes do que outras, mas certos aspectos de todas elas diziam respeito às
experiências dos sapateiros, novos ou velhos. Os meios para a agitação po-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS e

pular € o debare também se multiplicaram: jornais panfletos que ofere-


ciam maior campo para a produção escrita de trabalhadores intelectuais po-
diam ser lidos e discutidos na oficina do sapateiro. E à medida que o sapateiro
filósofo ou herético se transformava num sapateiro politicamente radical, a
emergência de movimentos de protestos e de liberação social, de um mundo
virado pelo avesso por grandes revoluções tentadas, realizadas e antecipadas,
tudo isso lhe trazia um público extremamente mais disposto a ouvi-lo, e talvez
a segui-lo, na cidade e na aldeia. Não é de surpreender que o século que se
iniciou com a revolução norte-americana tenha sido a idade de ouro do
radicalismo dos sapateiro

Há uma última pergunta à ser examinada. Afinal, O que acontecco


com o radicalismo do nobre ofício? "Temos nos preocupado predominante-
mente com o período anterior à transformação da fabricação de calçados
numa indústria fabril totalmente mecanizada, e anterior à ascensão dos mo-
vimentos modernos da classe trabalhadora de tendências socialista c comu-
mista. Durante este extenso período, os sapareiros estiveram associados à
praticamente todo e qualquer movimento de protesto social. Podemos en-
contrá-los em situação destacada entre os pregadores c os sectários religio-
sos, nos movimentos republicanos, radicais, jacobinos « sans-culottes, nos
grupos socialistas, comunistas c de cooperativas de artífices, entre os anti-
clericais ateus, e, não menos, entre os anarquistas. Na nova cra, será que cl
foram igualmente destacados entre os movimentos socialistas?
A resposta é não. Na Alemanha, cles estavam sem dúvida entre os
grupos de trabalhos qualificados que forneceram no mínimo dois terços dos
candidaros trabalhadores social-demoeratas para as eleições do Reichstag até
1914: juntamente com os madeireiros, os metalúrgicos, os tipógrafos, os cha-
ruteiros, e, mais tarde, os trabalhadores da construção civil. Entretanto, já
em 1912, eles se situavam em posição bastante inferior a todos eles (com
exceção dos da construção civil) quanto ao número de candidatos eleitos.
Quanto à apresentação de candidatos, estavam muito atrás dos metalúrgi-
cas, dos trabalhadores da construção civil e madeireiros, embora nivelados
com os tipógrafos, cujos números eram muito menores, c à frente dos fabri-
cantes de charutos, que também apresentavam menor quantidade de mem-
e ERIC HOBSBAWM

bros, (Ver quadro.) O sindicato dos sapateiros, apesar de como sempre ter
iniciado sua organização muito cedo, foi declinando na classificação segun-
do o tamanho, de oitavo em 1892, para nono em 1899 « décimo-segundo
no período de 1905-1912. No Partido Comunista Alemão, sua represen-
tação após 1918 era desprezível, pois, entre 504 dirigentes, somente sete
eram sapateiros formados por aprendizagem, Entre os 107 ofícios especiali-
zados (com à omissão dos ofícios metalúrgicos, que predominavam de lon-
ge), estavam muito atrás dos tipógrafos (17) e dos madeireiros (29), em-
hora no mesmo nível que os alfaiates (7), os pedreiros (7) e os encanadores
(8). Com exceção de Willi Múnzenberg, O grande propagandista, trabal-
hador não-qualificado e sem aprendizagem numa fábrica de sapatos, o Par-
tido Comunista Alemão não tinha nenhum sapateiro eminente1º”
Eleição de 1912 para o Reichstag: grupos profissionais com
percentagem de candidatos c de deputados”
|Grupo profissional o Candidatos | Deputados
Metalúrgicos E as
Trabalhadores de madei E E
rabalhadores de construção 128 36
ipógratos 68 z3
Sapateiros E + 1
Tumageiros A 4
Alfaiates 27 +
Trabalhadores céxceis os
* Nora fônce; W H. Sehróder, Die Soialsrukrur der sozialdemokracischen Reichsag-
skandidaten, 1898-1912”, in Herkunft und Mandar: Heicrige cur Eubrungsproblemacik im der
Arbeierbemegnen, Erankfr Colônia, 1976, pp. 72:96. Ladosos valores são percentuais,
Na França, Os sapateiros eram visivelmente super-representados no Par-
tido Operário Francês na década de 1890, em comparação com sua partici-
pação na população ativa (3,6%), com 5,3% dos membros do partido e
7,7% dos candidatos (de 1894 a 1897), mas dados locais não demonstram
que eles tivessem predomínio desmedido a não ser em umas poucas locali-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS os

dades. 1º Ninguém os teria escolhido, como parecia razoável aos anarquistas,


para simbolizar a militância do movimento socialista. De fato, os sapateiros
de esquerda mais importantes foram naturalmente Jean Grave, O anarquista, e
Victor Griffuelhes, o sindicalista revolucionário, ambos dotados pelo ofício
para escrever sobre política. Não existe muita dúvida sobre o faro de que o
papel desempenhado pelo sapateiro foi se reduzindo à medida que o centro
de gravidade do movimento transferiu-se para as indústrias de grande escala
€ o emprego no setor público. Embora entre os comunistas mais importan-
tes em 1945 houvesse dois antigos marceneiros e um antigo pasteleiro, os
sapateiros estavam ausentes da lista, cujo centro de gravidade se encontrava
agora na indústria metalúrgica e nas ferrovias. Dentre os 51 ex-artífices clei-
tos para a câmara francesa em 1951, somente um cra sapateiro (socialista).1”
Se houve alguma ocupação típica dos arivistas do Partido Socialista
austríaco, esta foi a dos serralheiros-mecânicos e a dos tipógrafos."º É difícil
encontrar sapateiros de importância neste partido. E, embora o Partido So-
ialista espanhol tivesse um sapateiro, Francisco Mora, que foi seu secretário
por algum tempo e que acabou (caracteristicamente) sendo seu historiador,
a ocupação que predominava naquele grupo de trabalhadores cra o de tipó-
grafo. Podemos sem dúvida descobrir alguns sapateiros preeminentes cm par-
tidos socialistas menos importantes, como no húngaro, onde dois deles, como
cra de se esperar, tornaram-se diretores de seus jornais; c também na Social-
Democracia (marxista) do Reino da Polônia e da Lituânia, onde os sapateiros
“mantiveram-se, por toda sua história, como o principal baluarte de sua
sustentação”!!! Mas as únicas variedades de comunismo e socialismo mo-
demo em que O sapateiro radical parece ter tido importância genuína foram
aquelas que evidentemente falharam em se tornar partido de massa, ou mes-
mo partidos típicos da classe operária industrial. O secretário-geral do dimi-
nuto Partido Comunista Austríaco « seu candidato presidencial (simbólico)
foram ambos ex-artífices sapateiros da província de Carínria e Boémia, res-
pectivamente. E o mais eminente sapateiro radical do século xx é sem dú-
vida o presidente Ceausescu da Roménia. cujo partido, na época em que se
filiou, provavelmente continha somente um punhado de indivíduos etmica-
mente romenos.
Na Grá-Bretanha industrializada, os sapateiros — tão destacados du-
rante O período compreendido entre o tempo da Sociedade Londrina de
Correspondência « a eleição do radical ateu Charles Bradlaugh pelo distrito
eleitoral de Northampton em 1880 — não desempenharam nenhum papel
o ERICHORSBAWM

marcante na era do Partido Trabalhista, a não ser em seu próprio sindicato.


Quase não tiveram representação entre os parlamentares do Partido Traba-
Ihista, nem foram. por outros modos, especialmente visíveis. O único ho-
mem com alguma experiência no oficio de sapateiro (não-especializado) —
e no início de sua oscilante carreira — que de alguma forma se destacou foi
o líder dos trabalhadores do transporte, Bill Tillerr.”2
Não parece haver quase nenhuma dúvida de que, no rodo, o papel do
sapateiro radical deixara de ser importante na época dos movimentos ope-
rários de massa, de tendência socialista. Com certeza, isto se deve parcial-
mente à transformação da fabricação de calçados de um ofício artesanal ou
semi-artesanal, numericamente grande, numa indústria numericamente muito
menor, distribuindo seus produros por lojas. Já não havia aquela quantidade
de membros do mais característico “daqueles oficios sedentários que per-
mitem que a pessoa filisofe enquanto executa tarefas familiares”, entre os
quais os anarquistas encontraram tantos de seus parridários."!3 Cada vez mais,
a maior parte dos homens e mulheres que produzem calçados sc transformou
numa subespécie do operariado fabril, ou um subcontratado do industrialis-
mo desenvolvido; e a maior parte dos que vendem sapatos não tem nenhuma
ligação com sua produção. O sapateiro radical como um tipo pertence a uma
cra anterior
Seu período de glória sima-se entre a revolução norte-americana e a
ascensão dos partidos socialistas de massa da classe trabalhadora, qualquer
que fosse o país em que esta ascensão ocorresse (caso ocorresse). Durante
esse período, sua inclinação para o pensamento, a discussão e à pregação
democrática e autoconfiante, aré então expressa principalmente através do
radicalismo e da heterodoxia religiosa, encontrou formulações tcóricas em
ideologias revolucionárias seculares e igualitárias, e sua militância prática
nos movimentos de massa de protesto social e esperança. À associação com
tais ideologias especificamente políticas do radicalismo transformou 0 tradi-
cional “sapateiro-filósofo” no “sapateiro-radica”” — o pobre intelecrual de
aldeia no sans-culotte de aldeia, republicano ou anarquista.
A combinação da ubigiidade com grandes concentrações ocasionais de
artífices semiproletarizados permitiu ao sapateiro seu papel universal e mar-
cante como líder, porta-voz « advogado do pobre. Como indivíduo, rara-
mente ele era visto na linha de frente de movimentos nacionais: mesmo
entre os trabalhadores manuais que ganharam a reputação de teóricos e
idedlogos, mais do que qualquer sapateiro provavelmente serão lembrados
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS os

homens como Tom Painc, o fabricante de estais: Weitling, o alfaiate; Proudhon


« Bray, os tipógrafos: Bebel, o marceneiro: Dictrgen, o curtidor de couros
erc, Sua força repousava nas raízes. Para cada Thomas Hardy ou Mora ou
Griffuelhes, houve centenas de outros, que mesmo o especialista na história
dos movimentos operários é radicais tem dificuldade em resgatar do anoni-
mato do militante localizado, pois pouco se sabe à respeito deles exceto que
falaram é lutaram em nível local por outros homens pobres: John Adams, o
sapateiro de Maidstone nas revoltas dos trabalhadores agrícolas de 1830;
Thomas Dunning, cuja determinação c engenho salvaram ao sapateiros de
Nantwich do que bem poderia ter sido o destino dos trabalhadores de Dor-
chester; O solitário sapateiro anarquista italiano que trouxe suas idéias para
uma cidadezinha de interior no Brasil. Seu meio era o da política face-a-
face, da Gemeinschafe (comunidade) em lugar da Gesellschafi (sociedade). Ele
pertence historicamente à era da oficina, da pequena cidade, da vizinhança,
e sobretudo da aldeia, em lugar da fábrica c da metrópole.
Ele não desaparcecu por completo. Um dos autores deste ensaio ainda
recorda que, quando estudante, assistiu a aulas sobre o marxistno dadas por
um membro desta espécie, um admirável escocês, e o que primeiro atraiu
sua atenção foi o problema do radicalismo do sapateiro numa oficina de um
remendão calabrés nos anos de 1950. Ainda existem, sem dúvida, lugares
onde ele sobrevive, inspirando jovens a seguir 0s ideais da liberdade, igual-
dade c fraternidade, como o tio de Lloyd George, um sapateiro, que ensi-
mou a seu sobrinho os elementos da política radical numa aldeia galesa na
década de 1880, Mesmo que não seja mais um fenômeno significativo na
política do povo, o sapateiro o serviu bem. E, do ponto de vista coletivo «
por meio de uma quantidade surpreendente de indivíduos, deixou sua mar-
ca na história.

Notas

1.).€. Buckmaster (org),A Village IMlisician:The Lif- to Of Job Buckley, Londres,


1897, p. 41
2. M. Sensfelder,Histoire dk la condommerie, Pais, 1856, apud Juscpih Barberct, Le trail
em Erance: monograpbis profesomalis, 7 vols. Pais, 1886-1890, val. 5, pp. 63-4
3. Rudolf Stadelmmann, *“Soziale Ursachen der Revolution von 18487, in Hans- Ulrich
Weber (org), Maderme deutscho Secialgeschichte, Reslim, 1970, p. 140;E. . Lobsbawm
ERIC HORSBAWM

e George Rudé, Captain Swing, Londres, 1969,p. 181. (Trad. port., Capisão Swing,
Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1982]; Jacques Rougerie, “Composition d'une popuia-
tion insurgée: Pevemple de la Comunne”, Le Moaement Social, n.º 48, 1964, p. 42:
Theodore Zeldin, France, 1848-1945, 2 vos, Oxford, 1973, vol. 1, p. 214.
4. Jean-Pierre Ager, Les Greer sn la one de Jul, 1830-1847, Genebra, 1954:
David Pinkney, “The Crowd in the French Revolution of 18307, American Historical
Review. n.º 70, 1968, pp. 117; David Jones, Chartim and the Charrits, Londres,
1975, pp. 30:2; D. J. Goodway; Londom Chartim 1838-1848, Cambridge, 1982, em
que O autor demonstra que a participação proporcional dos sapateiros no cartismo
londrino foi maior do que a de qualquer outra ocupação de porte (com mais de três
mil membros), excetuando os pedreiros; e George Rudé, The Cri in te French
Revulution, Oxford, 1959. Apêndice4.
5. Georges Duveaa, La Vi onriêrr em France ss le Sezond Empire. 7 ed, 1946, p. 75.
6. Jacques Rougerie, Bar libr, Pats, 1971,p. 263.
7. Reinhold Reith. Zur biggrapisichen Dimension vom “Hocivemar und Aufrubr: Versuch
imer hitomischen Protentamalyse am eipil des Aprilauszanas L$48 im Konstane” p. 33 €
58. p. dtess, (Tese de mestrado, Universidade de Konstana, 1981)
8. Edgard Rodrigues, Sacilimo e sindicalismo no Bnusil, 1675-1913, Rio de Janeiro, 1969.
pp: 73,208
9.R, Hoppe é J. Kuczynski, “Eine Berufs-bzw, auch Klassen-und Schichrenanalyse der
Maregetallenen 1848 in Berlin”, Jabrbuch fr Wirtschaftgese, 1964/TV, pp. 20-76.
10. Yves Lequin, Les Ouniers de la régio Ivommais, 1848-1014, 2 vols., Ton, 1977, vol
2,p.281
11. Karl Obeemann, Zur Geschichre des Bundes der Kommuniten, Berlim Oriental, 1955,
ps.
12. Paul Voige, “Das devsche Handiwcre nach den Beruiizihlungen von 1882 und 1895”,
in Untermchnongen úber dic Lage des Hanabverks in Deutschland, vol. 9 (Schriften des
Vereins fit Socialpolitk, n.º 70, Leipcig. 1897); ]. H. Clapham, Economic History of
“Modera Britain, 3 vols, Cambridge. 1952, vol. 2,p. 43,
13, Hobsbawm Rude, Capraim Siving. pp. 181-2
14. Thid,, pp. 218, 246
15, Keith Brooker, “Lhe Northampton Shoemakers” Reaction to Industriaisarion: Some
Thoughss”, Noribamptonshire Past and Present, n.º 6, 1980, p. 155,
16. Amostragem realizada na Librairie A. Faure, 15 rue du Val du Grace, catálogo 5,
Livros antigos € modernos. items 262-224; verificada com Jean Maitron (org), 1
Hair Wma plbigue die moncemenz emeier fremímis Pr. À, 1789-1864; 3 vols, Pari
1964-1966,
17. David M. Gordon, Merchants and Capitalóm: Indusrrializarion and Provêncial Iobirs
at Reims and Ss. Etienne under the Seconã Republic and Second Empire (resc de dou-
torado, Universidade de Brown, 1978), p. 67.
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 7

18; Wiliam Sewel Jc, The Seructur of she Working Class of Marseille in she Middle of she
Nineteenths Century (tese de doutorado, Universidade da Califórnia, Berkeley 1971),
p-299,
19. “De Passociation des ourriêres de tuas kes corps détar”, reimpresso em Alain Faure e
Jacques Ranciêre (orgs.), La Itarole onoizre, 1830-1851, Paris, 1976, pp. 159-68,
20. Gian Maria Bravo, Les Socinhises avant Mar, 2 vols, Paris, 1970, vol. 2, p. 221
21. Alfred E Young, “George Rober livelves Hewes, 1742-1840: À Boston Shoemaker
and the Memory of the American Revotucion”, Wiliam and Mary Quarteriy.
22. Maurice Garden, Lyom er des Iyomnais au xxrê sto, Paris, 1970. pp, 244 € 86, Um
indice de alfabetização acima da média é observado entre os sapatciros rurais em
David Cressy; Literacy ami the Social Onder: Rendo and Wing in Tador and Sruave
England, Cambridge, 1981, pp. 130-6; porém, indices médios ou abaixo da média
classificam os “sapateiros” como inferiores tanto em Londres quanto no campo. Por
várias razões, os indicadores londrino de Cressy sã mais problemáticus que os uris
28, immanuel Le Roy Ladurie, Les Payeans di Languedoc, 2 vols. Paris, 1966, vol 1, pp.
349.51
24, Peter Burke, Pipular Culrure im Earfy Mader Esopo, Londres, 1978, pp. 38-9,
25, Jean Maitron, Le Monenemens anarchiste em Erance, 2 vols. Paris, 19) ol 1, p; 137
26. Por exemplo, Anónimo, Cri Ameidotes: Compriina Interesting Notices of Shwemakess
mo have been Distinguished for Genius, Envecpeise or Ecoenrriciy, ShefTicid e Londres,
1827; John Prince. Wivath jor Sr. Crispin: Being Shecls of Eminent Sboemakers, Bos-
ton, Mass, 1848; Anônimo, Cripin: The Deliglfid, Princely anel Ensevcainin Hisory
af the Genele Craft, Londres. 1750 Willian Edvard Winks. Lives of Ilustrious Shoe-
makers, Londres, 1883; Thomas Wright. The Romance of she Shoe, Londres, 19225
Anônimo, Lives 9º Disxingusied Shoemakers, Portland, Maine, 1849: Joseph Sparkes
Hall The Book of the Eee, Nova York, 1847.
27. “Ne leistem, drãt und pech dor Schumacher sol bicibem und die jeleirten leut lssen
die búicher schreiben”, “predigender Schuster macht schelechre Schuhe”: Deutiches
Spmelmôrter-] exicom. 5 vols. Aakem, 1963, vol. 4, cols. 398.9. À injustiça de tais
pronérbios indignou a nal pomio us compiladores desta enciclopédia do século 1x,
que acrescentaram uma nota de pe de página citando dois sapareiros altamente in-
telectualizados que também manufaruravam excelentes sapatos (col, 399)
28; Charles Bradiaugi, O pionciro do ateísmo, foi eleito para o Parlamento britânico por
Northampoon, um eleitorado de sapteiros. Para v “Schasterkomplore” dos sapareiros.
de Viena acusados de ateísmo em 1794, ver E. Wanigermann, “Jasepihinismus und
Katholischer Glaube”, in E. Kovaes (org. 1. Kasbolsche cufklamng so Josepbinimus
Viena, 1979, pp. 339-40. Um dos acusados, inspirado pelos serinões de um pregador
pela refurma católica, numa tipica atitude da sapateiro, “comprou uma Bíblia velha,
Jeura para mim. comparou às ... passagens citadas nos sermões de Wiser ... com o
próprio texto da Bíblia, e daí eu comecei a duvidar de minha religião”.
es ERIC HOBSBAWM

2” Karl Flanner,
Die Revolution von 1848 in Wiener Neustads, Viena, 1978, p. 181
30, Eugenia W Herbert, The Artis and Social Reform: France amd Belgium, 1885-1898,
New Haven, Conn., 1961, pp. 14 € 5%; para à vingança do sapateiro contra Apekes,
que foi o primeiro a sugerir 40 sapateiro que se limitasse à seu ofício e se abstivesse
de fazer crítica de arte, cf. a enorme influência (por Grave) do anarquismo nos pin-
tores pós-impressionistas: ibid. pp: 184 es
al Samuel Smiles, Mem ofImvention ana Industry, Londres, 1884. cap. 12,
32 Ver Anônimo. Cripin Anecdote, p. 144; cf. também Hobsbawm e Rudé, Caprain
Soing, pp. 63-70.
Crispin Amectads, p, 43; Winks, Lives of Tussratios Shoemakers p 232,
John Brown, Sig Tears? Glemnings fom Lifºs Harem: A Genuine Aurobiograpão,
Cambridge, 1858, p. 239, apud Nicholas Mansfield. “Joba Brown: A Shoemaker
Place in London”, Himory Mbrksbop, nº 8, 1979, p, 135
Rarberer, Le Tremailen France, vols, pp. 62:3,
Wright, Romance of Shoe. p. 219.
Ibid,, p. 307
Paul Lacroix, Alphonse Duchesne e Ferdinand Seré, Histose des condomniers es des
artisams domla profisiom se vattncheà la cordonmenie, Paris, 1852, pp. 116-7,
Shakespeare, Julius Caesar, L à; Dekker, bt Shoemaker; Holiday, vol. 4. 48-76 A
citação pertence à Inquirição do Abade Cerne de 1594 (Brit. Tib. Harician ms. 6849,
fol. 183.90), em G. B. Harrison (org), Wilobi His Avisa, Londres, 1926, apêndice
3. p. 264. Somos gratos a Michacl Hunter por este tão antigo exemplo de sapateiros.
radicais ingleses.
Crispim Ameztades, p, 150,
Weight, Romance of the Shoe, p. 109,
Toid.,po 4
E E Thompson, Tr Making of the English Working Class, Londres, 1963, pp. 183-4.
[Trad. pore,A firmação da clase operária inglesa, Rio de Janeiro, Paz € Terra, 1987.)
Crispim Amecdore, p. 126,
[aeroix, Diuchesne e Ser, Elioire des Condonnios, pp. 206-7.
Ibid..p; 188.
Barteret, Le sravail em Trance, vol. 5, pp. 645,
Wighe, Romance of he Shoe, p. 46: Hall. Bos of the Fer, pp: 196-7. Apesar da suposição
destes autores, não ficou estabelecida nenhuma associação entre o oficio de sapateiro
ca de encadernador. Em Londres, filhos de sapateiros podem estar sub-representados
no oficio no período entre 1600 c 1815. Embora à encadernação fosse não raras
vezes combinada à alguma outra ocupação — como a do alfiate-comerciante, comer-
ciame de tecidos, byrbeiro, pedreiro, vidraceiro, tecelão, tintureiro, agulheteiro « fas
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS “9

bricante de rodas — em nenhum caso apareceu combinada ao oficio do sapateiro.


Cálculo com base em Elie Howe,A Lisr of London Bookbindors, 1648-1815, Londres,
1950
“ CE o papel desempenhado por um cerco Far von Sagan nas tradições dos saparciros
alemães: cle conquistou a boa vontade do imperador « obteve para su ofício o
direito de incluir a águia imperial em seu brásão, pela intervenção que os sapareiros.
tiveram auma batalha do século Xv. A relativa escassez de costumes formalizados
neste aficio foi observada em Rudolf Wisscll, Der alten Handiverts Recbr und Gerob-
nheit, organizado por Konrad Hahm, 2 vols. Berlim, 1929. vol. 2, p. 91: Andreas
Griessinger, Dar spmboliche Kapisal der bre: Sireitebrmegungen und kolletives
Bewustcin deuscber Handimenksgeselen im 18. Jabrisendert, Erankéiare, Berlim « Vicua,
1987 Agradecemos sinceramente a Andreas Griessinger, da Universidade de Kon-
stan, por ter colaborado pondoà nossa disposição seu manuscrito ane de se publicado.
Eileen Yeo€ E. P Thompson (ong), The Unknown Maybew, Londres, 1971, p. 279.
Ver também “Mental Character of thx Cobblers”, citado em he Mar, n.º 9, abril de
1834, Nova York, p. 168: “Iodo o dia sentado num banco baixo. pressionando à
fôrma ou o couro renitenes . ou martelando saltos e biqueiras com muita mono-
tonia — a mente do sapateiro, independentemente do provérbio, vagueia por regiões.
metafiicas, políticas e teológicas; « dos homens deste ofício brotaram muitos fun-
dadores de seitas, reformadores religiosos, políticas melancólicos: “poetas, sofistas,
estadistas e outras “figuras rrequietas”, incluindo um sem-aúmero de hipocondríacos,
O aspecto sombrio + pensativo dos sapateires é em geral de tácil observação. Con-
tudo, não é mais du que fazer-lhes justiça afiemar que sua aquisição de conhecimento
e scus hábitos de selexão chegam frequentemente a ponto de despertar admiração”.
Richard Warreroth, “Die Frfuner Schuuharbeiterschaft”, im Aus und Ampassang der
Anbeiterselafim dor Schuindustrie son eimem oberschleisichon Walemente, Munique e
Leipzig, 1915, p. 6. (cul, Schriften des Vercins tir Soxialpolicik, nº 153.)
Calculado com base em Joscph Bell, Die Rot Betápus snrerm Saciahisengisets, Bonn,
1978, pp. 54-94, cuja referência agradecemos à Rainer Wirtz. Julius Pierstorf.“Drei
Tenaer Handwwerke”, in Untersuclmngen úber die Lage des Hanabverks in Deutschland,
nº 9, Leipaig, 1897. p. 36 (col, Schriften des Vereins far Sozialpoliik n.º 52) ob-
serva que os artífices itinerantes permaneciam na mesma oficina no máximo seis
meses.
Griessinger. Das sonholiche Kapital der Ebre, pp. 1027, descreve com perfeição esses.
rituais na Alemanha do século xvu
Burke, Popular Culture in Early Modern Europe, pp 38-9,
Rober Chambers, The Book of Das, 2 vols, Lndres e Edinburgh, 1862-1864. vol
Do po 4924: Ro Wrighe, Dri Calendar Csostoms: England, T E. Lones (ed.) 3 vols,
Lundies é Glasgow, 1936-1940, vol. 3. pp. 102-4 (col. Fulk-Lore Soc, 97, 102,
106). Na Inglaterra (porém não na Escócia), a sobrevivência do costume pode ter
sido auiiada pela associação do dia de São Crispim com o nacionalismo, pois esta
ERIC HOBSBAW

era à data da batalha de Aggincuure contra os franceses, como os leitores do Henry Fº


de Shakespeare recordarão.
56. Como examinado em Gricssinger, Das sombyolische Kagital der Flre, pp. 1303
57. Brooker, “The Northampton Shoemakers" Reaction to Industrialisation”. passos, so-
bre conflicos surgidos desta relação durante a induscrilização. Ver também Mansfcid,
“John Brown: A Shoemaker's Place in London”, pasim,
58. Aligemeine Deutsche Bingraphie, vol. 3, verbete Jakob Bóhme”
59. Dictionary f National Biography, vol. 5
60. Winks, Lives of Museus Shoemakers, pp. 81, 180.
61. Brian Dobbs, The Lasr Shall Be Eira: The Colourjil Story of Jobn Lobi he S%, James
Bostmaker, Londres, 1972, pp. 27-8.
62. B. Acberr, “Die Schuhumachesci in Loitr”, in Unsermuebyonger iber dic Lage des Hand.
xeris im Deutichland, vol. 1 (col. Schrifien des Vercins fir Sozialpolitk, nº 62),
Leipaig, 1895, pp. 39, 49; Siegfried Heckscher, “Uber dic Lage des Schumacher-
gewerbes in Altona, Elmshorn, Heide, Prectz und Barmstedt”. in ibid.,p- 2
68. TIS National Archives RG 217, Fourh Auditor Accounes, Numecical Series, 1141
“Devemos esta referência à Cristopher McKee
64. Bernardino Ramaz2ini, Healeh Preserne, im Tiro Treat, 2. cd, Londres, 1750, p. 215
65. Jobm Thhomas Arlidge, The Hygiene, Discases amd. Mortaliry of Occupasions, Londres,
1892, p. 216, citando dados de William Parr de 1875 — mortalidade abaixo da
média em todas as faixas etárias exceto entre os 20 e 25 anos, em comparação com o
índice de mortalidade muito mais alto entre 0s alfsiates — Rarclife, analista de
mortalidade dos membros das associações de sulidariedade, cuja “vitalidade” ele con-
siderava inferior comente à dos lavradores e carpimciros
66. Crispin Anecdoos, p. 126.
67. “Observou-se fregitentemente à ocorrência do talento literário entre os sapateiros
Sua ocupação, por ser sedentária« comparativamente silenciosa, pode ser considerada
mais favorável à meditação do que outras; mas talvez sua capacidade de produção
Jirerária cenha surgido da circustância de ser um oficio de trabalho Jeve, e, portanto,
procurado com preferência sobre a maioria dos outros vícios por aquelas pessoas de
vida humilde que têm consciência de possuírem um talento mental superior à sua
força fisica”; Hall, Rook ofthe Feet, p. 4. Apesar de cr uso do martelo por vezes excluir
o oficio do sapateiro de certus locais, sob a alegação de ser um “uticio ruidoso iarmendes
Hand, — E W] Shródes, Arteitegaeciicive und Arteilerbenemong: Indicoricarôeir
amá Organiasiomoerialtonin 19, send 20, Jabinendors, Vrankfire € Nova Yoék, 1978, p. 91
— o ruído É raramente mencionado na Eteramara sobre as intelexauai sapuriros
68. Achere, “Die Schubmacherci in Loic,p. 38
69. Nicolaus Geissenberger, “Die Schubimacherei in Leipzig und Umgegend”, m Unrer
suchnungen uber dic Lago des Handmenksim Devasbland, vol. 2, Leiprig, 1895, p. 169
(col, Schriften des Vercins fár Socialpoliik, n.º 63)
PESSO! n

70. PaulyAVissowa, Real-enoyelopadie der clssischen Altorbumisenschafe, 2º série, iv (1),


cols. 989:994, no verbere “suror, O baixo staras da otica fica também demonstrado
do ponto de vista lingiístico: na França savatior era um termo de cscírmio; na In-
glaterra, um cobbler (Sapateiro) também siguificava fotcher (remendão) uu indicava
um trabalhador não-cspecializado, Ver Lacroix, Duchesne e Será, Histoire des cordon
er po 179.
71. Artidge, Higiene, Discases and Morality of Occupation, p. 216.
72.W H. Schrintes, Arbeitergesbicite, p, 98.
73. Quanto à tas referênciasa sapateiros, vez Crispin Amecrades, p. 102: Desemebes Sprch-
mórter Lexikom, vol. 4, cols. 398-401; English Dialecr Dictimary, vol. 1, no verbete
“cobbler: Clobber's dinner: breadl amd bread 19 it (“jantar de sapateiro: pão « mais
pão”). A impressão popular desde a América colonial até a Europa era que o sa-
Pateiro, U que quer que fosse, raramente cra próspero, A pobreza e à inclinação à
filosofar não eram nem um pouco contraditórias; na verdade, podem ajudar a expli-
car à duradoura reputação dos sapateiros como radicais. Seres pensantes entre os.
pobres tinham grande probabilidade de se tornarem radicais políticos ou ideológicos.
A recordação de John Brown dos “grandes oradores do uficio” descrevia “homens em
roupas csfarrapadas e de aparência esquálida” que “derramam scus apelos em lin-
gagem tocante e cloquente”: Mansticid, SJohm Brown: A Shoemaker's Place in Lon
don”, p.131
74. Max von Tayenthal, “Die Sehuhwarenindustrie Osterreich”. Sacinle Rounalchase n.º 2
pe. 1 (1901),p. 764 (Acbeirsstatistisches Ame im kuk. Handelminiterium).
75. George Unwin, The Gilês and Companies of London, Londres, 1908, p. 82; Geissem-
berger, “Die Schuhmacherei in Leipeig und Umpegend”, p. 169; Warreroth, “Die
Erfçer Schuharbeiterschafe”, p. 15
76. Nas províncias de Santiago € de Valparaiso, em 1854, havia 5.865 deles, em com
paração «um 3.720 carpinteiros, 1615 alfxiates, 1,287 pedreiros e assentadores de
tjolos e 1.088 ferreiros e ferradores: T. A. Romero, La Socicdad de la Igualdad: los
areesanos de Santiago de Chiley sus primeras experiencias políticas, 1820-1851, Buenos
Aires, 1978, p. 14. Ver tunbém A. Bernal, A. Collances-de “eram e A, Garcia
Baquero, “Sevila: de los gremios a la industialización”, Estudios de Historia Social,
Madrid, n.º 5-6, 1978, pp.7-310, especialmente Quadro 8,
77. Geiessinges, Das onbulische Kapiral der Eve, pp. 87-90.
78.). A. Faber, Drie Leven Ericiand, 2 vois., Wageningen, 1972, vol. 2, tabelas 111.8
LL, pp. 4447 (col4. A.G. Bijdragen, nº 17)
79. Griessinges, Das sprbolische Kapial der Eve, pp. 90-5
BO. Assim, Winks discute o problema da distinção intelectual dos sapareiros sob o título
“Uma constelação de sapateiros célebres”: Winks, Léves of Hlussrizus Shoemabers, pp.
229 ess. Quanto à permurabilidade, ver também Scerrish National Dicrionary, vecbere
ERIC HOBSBAWM

at CS, Tr de la Lamggue Française, Paris, 1978, verbete “ordene: Grimm Wórer-


bue, verbete Schuster
ua Geissenherger, “Dic Schubmacherei in Leipzig und Umgegend”, p. 175. Na Ale-
manha de 1882, 46,3% de todos os sapateirus independemes viviam em aldeias de
menos 2 mil habitantes (dis tergos dos quais possuiam alguma outra ocupação pa
ralela), Dois terços de todos os sapateiors independentes encontravam-se em centros.
com menos de 5 mil habitantes (Srasisik des Deutschen Reiches NE B$4. 1-2, p. 1.194
ENFRA Ip 104e ss)
sa Ut Jaeggle, Kiebingon: Eine Heimatgesichte, Libingen, 1977, p. 249, Praticamente
“nenhum dos sapateiros locais pertencia à camada social superior da aldeia, e à maioria
nem mesmo à camada média. “Mesmo hoje os sapateiros são o mesmo que nada na
aldeia”: ibid. Agradecemos a Rainer Wizz por esta ref ncia.
Wilhelm Woiling, Gamanicn der Harmonie und Ereibeis, Berlim, 1995, p- 289.
Flanner, Die Revolution von 1848 é Wiener Nescsade, pp, 26-7. Como à cidade espe-
ciaizon-se nas indúserias meralisgicas é nas têxici, os metalúrgicos (embora menos
mumerosos do que os saparciros) estão omitidos possivelmente por terem tido um
extesso de representação.
86. CE o sapateiro calabrés citado em E J, Hobsbawm, Primitive Rebels, Manchestes,
1959 [trad. port, Rebeldes primitivos, Rio de Janeiro. Zahar, 1978], apêndice 1%, que.
se orgullava de trabalhar até mesmo para ds carabinicri
87. Devemos esta observação ao de. Mikulás “ich, que cita um provérbio da Checos-
ováquia, seu país natal: “Onde houver o que cortar, o que pesar e o que servir, haverá
dinheiro à ser ganho”.
ss Raymond Wiliams. Culsure and Socey, ava York, 1960, p: 16, citando o Pufiical
Registe, de 14 de abril de 1821
so Richard Cobb, Les Armés resolutionmaires, 2 vols., Paris é The Hague, 1961-1963,
vol 2, pp-4867,
90 Crispim Anecdotes, pp. 154-5
9 Dale Tomich e Anson G: Rabinbach, “Georges Laupt, 1928-1978”, German Cri-
sigue n.º 14, 1978, p. 3.
Richard Schiller, “Die Selhulimacherei in Wien”, im Undersuckungen áer diz Lage des
Handoverks in Omereich, Leiprig, 1896, pp. 49-50 (cul. Schifien des Vereins tar
Soiialpolitik, nº 71
J:H. Clapham, Economie History of Mader Britain, 2. e. Cambridge, 1930, p. 169.
Geissenberger, “Die Schubmacherei ia Leipzig und Umgegend”, p. 190.
5: Tayenthal, “Die Schuhwazenindustrie Osterreichs” pp, 974: Hectscher, "Uler die
Lage des Sehuhmachergewerbes in Altona, Elmshom, Heide, Preetz und Rarmsicdl”,
pp-4,6
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS B

96. P It. Mounicld, “Lhe Eoonwcar Industry of the Fast Midlands”, East Midlande Geo-
urapher, a 22, 1965, pp. 293-306.
97. Para à simiação em Lima, Massachusetts, ver Alan Davele: Clas ama Communin The
Industrial Revolution im Lym, Cambridge, Mass., 1976.
98, James Devtio, Tie Guide to Trade: The Shoemaker, 2 vols. Londres, 1839, é a melhor
manual sobre as técnicas de fabricação de sapatos antes da mecanização. O autor, um
radical ativista efigura literária sem importância (contribuiu para o Lomalom Journalde
Leigh Hume), era0 melhor artífice de seu oficio em Londres: Goodwas: London Char-
tim, p. 282. Para o final de século XIX, ver John Bedford Leno, The Art af Boo: ant
Shoe-makim vit à Description of the Mou Approven Machinery Emploved, Landes,
1885. Leno, embora fosse tipógrafo por ofício é poetastro-declamador como pas.
satempe, esteve durante um lungo período associado ao ofício por ser propriciário
do
periódico SF. Grim; ver seu The Afiermarh: With Autobiograpio of the Aushor, Lon-
dres, 1892. Para um enfoque mais recente, ver R, A. Church, “Labour Supply and
Innovation, 1800-1860: The Boer and Shoe Industry”, Business Fito, n.º 12,
1970. Para Erfun, ver Warteroch, “Die Erturtor Schuharbeiterschaft”, especialmente
ppiI3s,
99. Barber, Le Thai on Erancr, vol. 5, pp- 71, 85, 116, 163; mile Levassens, Histoire
de classes oseoiêres orde Pindustre om France de 1789 à 1870, 2 vol, Paris, 1940, vol. 2,
p. 567; Cristopher Jobuson. “Comnunism and the Working Class befre Marx: “The
Iarian Experience”. American Histoncal Review, n.º 76, 1971, p. 66: David Landes,
The Unhonend Promenhcus, Londres, 1969, pp. 294-6; Direetiun du cravail, Les Asocia-
tioms professionelies osoriêres, 4 vol, Paris, 1894-1904, vol. 2, pp. 11-87; Yeo and
Thompson (org), The Unknoen Mabe, pp. 28-79,
100, Sewel, he Shoomaters of Manile, p. 217.
101. Charles Pony “Ta Chanson du cordonnier”, in La Clans de chaque métier, Paris,
1850, pp: S0-
102, Lhompson, Zhr Making of ab English Wirkina Class, p. 704 [Trad port. A formação
da clase operária inglesa, Rã de Janeiro, Paz é Terra, 1987.
103. Citado em Faure e Ranciére,La Parole otemiêre. 1830-1851, p. 161
104. Garth Christian (org), James Hawber' Journal: A Victorian Poacher, Ontord. 1978,
pp: 15.6. Ver também Mansfield, “Toha Rrawn: À Shoemaker's Place is London”,
que cita as palavras de John Browa em 1811: Assim que me estabeleci num local
regular de trabalho, foi necessário que eu me associasse ao sindicato ou à assembléia
de oficina. que é um acurdo para à manutençãode pregos”. pp. 130-1
105. “The Reminiscences of Thomas Dunning (1813-1894) and the Nanrwich Shocma
Ker's Case of 1834", in WE HE. Chalomem (org) fhauns. Lanes. and Cheshire Anrig Soc,
nº'59, 1947, p. 98,
106. Ibid.
z ERIC HORSBAWM

107. Com base nos dados biográficos de Hermann Weber, Die Handlung des deutschen
Komemunims, 2 vois., Frankfurt, 1969, vol. 2,
108. Claude Willard, Le Momement socialize em France, 1893-1905: les Guesdises, Paris,
1965, especialmenae pp. 385-7. Ver também “Lony Jud, Soiadims im Limence, 1871-1914,
Cambridge, 1979. pp. 73, 112.
109, Parei Communiste Hrançais, Des Français em qui la France peu avoir confiance, 2. cá,
Paris, 1945; Maurice Diuvenger (org; Paris polciguas es classes sociales em France, Paris,
1955, pp 3024.
110. Com base nos dados de Jean Maitron e Georges Haupe (org |, Dicrionmaire bggra-
pbgue de moserement oscrierinvermational: 'Autrche. Paris, 1971
111. Tnformação pesscalde colegas húngaros. Ver M. K. Driewanowski, “Social Demo-
crats Versus “Social Patriots”; “The Origins of he Splic in the Marxist Movement in
Poland”, Americam Slavi ana East European Revic, n.º 10, 1951,p. 18.
112. Com base em Joyce M. Bellamy e John Saville (orgs 1, Dicrionary uf Labour Biograpiy,
9 vols, Londres, 1994
113. Maitron, Le Moncemont amarei em Eramie, vo 1, p 131.
Capítulo 4
TRADIÇÕES OPERÁRIAS

Este arvigo invesriga a contribuição de histórias sunciomais específicas às cnpao-


senricas dos movimentos operários. Embora só tenba sido publicado em 1964,
baseia-se em uma palestra de sem curso sobre “Comparação entre as movímen-
tos openários britânico e francês”, em Cambridge, 1951. Os chamados fellowes
como eu era então) tinham a direito de ofevecor cursos com palestras, mesma
quando lhes vecusavam trabalho (como aconteceu comigo) nas faculdades de
Economia e Hlissória da universidade.

Qual à parte que o costume, a tradição € a experiência histórica cs-


pecífica de um país desempenham em seus movimentos políticos? Até ago-
ra, no que diz respeito ao movimento operário, o problema tem sido discu-
tido mais frequentemente pelos políticos (Mars versus Wesley) do que pelos
historiadores, Proponho-me neste ensaio a ilustrá-lo com uma comparação
da experiência da França e da Inglaterra, países cuja história de movimentos
operários é a mais longa.
O movimento operário, quer política quer industrialmente considerado
é, evidentemente, um fenômeno novo na história. Haja ou não continui-
dade entre as associações de artesãos assalariados e os primeiros sindicatos,
constitui simples arqueologia pensar no movimento da década de 1870 ou
mesmo na de 1830 em termos, digamos, das primeiras sociedades de arte-
sãos chapeleiros ou surradores de couro. No entanto, historicamente fa-
lando, o processo de organizar novas instituições, novas idéias, novas teorias «
táticas raramente começa como uma tarefa deliberada de engenharia social
Os homens vivem cercados por uma vasta acumulação de mecanismos pas-
sados, e é natural recolher os mais adequados e adaptá-los para os seus
próprios (ou novos) fins. O historiador que registra estes processos, é claro,
76 IC HOBSRAWM

não deve se esquecer da função específica que as novas instituições esperam


preencher; nem deve o analista funcional se esquecer de que o cenário his-
tórico específico deve colori-las (c talvez ajudá-las, embaraçá-las ou desviá-las).
“Tomemos alguns exemplos extremos. Em 1855 os pedreiros de ardósia
de Trelazé, descontentes com suas condições econômicas, resolveram entrar
em ação: marcharam sobre Angers e proclamaram uma Comuna insurrecta,!
presumivelmente tendo a Comuna de 1792 em suas mentes. Nove anos
mais tarde, os mineiros de carvão de Ebbw Vale igualmente se agitaram. As
cabanas das aldeias do vale marcharam para as montanhas, puxadas por ban-
dos, Discursou-se, a cabana de Ebbsw Vale forneceu chá a 6 pence por ca-
beça, e a reunião terminou com o canto da Doxologia.” Tanto os pedreiros
galeses como os mineiros bretões estavam engajados em agitações econômi-
cas bastante semelhantes, Evidentemente diferiam, porque as histórias dos
seus respectivos países diferiam. A acumulação da experiência passada, na
qual se inspiraram quando aprenderam como se organizar, para qué se organi-
zat, onde recolher o seu quadro de líderes, e a ideologia que esses líderes pcr-
sonificavam, pelo menos em parte eram clementos específicos franceses e ing]
ses: falando de uma maneira geral, podemos dizer que, no primeiro caso, cram.
as tradições revolucionárias e, no último, as radicais não-conformistas.
Uma vez. mais, as ilustrações concretas podem ser úteis. Os tecelóes
subempreiteiros de Lyon, desejando organizar um sindicato em 1828, or-
ganizaram naturalmente sua sociedade de “murualistas” pelo modelo revo-
Incionário. Assim, designaram o ano de sua fundação como o “Ano Um da
Regeneração”, um eco óbvio de jacobinismo, se organizaram cm peque-
nos grupos conspiratórios, que parecem dever alguma coisa aos mecanis-
mos babouvistas,** embora talvez também aos velhos Compangnonages.* e à
necessidade prática de evitar a Lei Chapelier. Outra vez, sob o Segundo
Império, o programa operário foi de forma patente retirado da doutrina
clássica jacobina radical; os esquerdistas simplesmente recorreram à Robe-
spierre « Saint-Just, se não a Hébert € Jacques Roux para inspiração, en-
quanto os liberais procuraram a sua na direita. No fim da década de 1890,
Emile Pouger, o anarquista e mais tarde líder da CG (Confédération Générale
du Travail), modelou o seu jornal Le Pêre Peinard, em título e em estilo, no
Pêre Duchéne de Hébert. Além do mais, foi a ideologia revolucionária que se
* François- Emile Babeuf, demagoga francês que conspirou contra à Diretório e foi conde-
nado à more. Sua doutrina, que é uma espécie de comunismo, chama-se Bndovémo. (N.
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 7

recomendou por si mesma automaticamente aos operários e intelectuais pro-


gressistas que formaram o núcleo da liderança do movimento. Os fazedores
de porcelana de Limoges eram republicanos, e facilmente mudaram os mé-
todos sindicalistas por políticos; daí que quando o sindicato deles foi sus-
penso, prontamente organizaram uma comuna insurrecta A ala esquerda
do departamento de Nievre opôs-se ao coup &'étas de Luís Napoleão, « se
organizou numa sociedade secrera conhecida como à “Jcune Montagne”.*
Na Inglaterra a situação é mais complexa, porque a original tradição
radical-democrata havia desenvolvido duas alas, sendo a linha entre elas, de
modo geral (estou supersimplificando), aquela entre os artesãos « artífices.
sindicalistas das cidades mais antigas, € os novos centros fabris e de mine-
ração: radicais-secularistas de um lado, dissidentes-metodistas do outro. Em
Londres, por exemplo, a tradição não-conformista nunca criou raiz, de fato,
como sendo uma de esquerda; o que pode explicar a influência relativa-
mente maior do marxismo aqui cm épocas posteriores. Mesmo um operário
naturalmente religioso como George Lansbury esteve na Federação Social
Democrática Marxista no princípio da sua carreira política e nunca foi atraído
para os templos dissidentes, mas para a Igrcja da Inglaterra — um estado de
coisas muito fora do comum. Nas províncias, o caminho levava muito mais
naturalmente para o Partido Trabalhista Independente, ou o púlpito-lcigo
metodista. Temos, na verdade, duas linhas de descenso intelectual, Uma vai
de homens como Tom Paine, através de homens como os radicais ateus do
período de Owen-Carlile, até os secularistas de meados da cra vitoriana
como Holyoake e Bradlaugh e, depois de 1880, os marxistas. Desta tradi-
ção o movimento operário inglês retirou alguns dos scus mecanismos orga-
nizacionais mais importantes: a “Sociedade de Correspondência” da década de
1790, o panfleto, o jornal da classe operária, à petição ao parlamento, a reunião
e o debate públicos etc. e também, é claro, o seu pouco interesse pela teoria
Num certo sentido, esta primcira tradição remonta àquela filial dos
dissidentes do século XVII que, no XVIII, evoluíram no sentido do deísmo e,
mais tarde, do agnosticismo. Parte da outra tradição — em particular na
Escócia calvinista — remonta diretamente à revolução do século XvT!, que
ainda se travava em termos de ideologia religiosa. Mesmo na Inglaterra, o
secrário independente persistiu como um tipo puro — por exemplo, no
Zechariah Coleman de Mark Rutherford.” Em sua essência, contudo, a tra-
dição operária do dissidente deriva do renascimento metodista: mais especi-
ficamente, da série de desvios de rumo após 1810, dos quais o Metodista
7 ERIC HOBSBAWM

Primitivo é o mais conhecido, Foi nesta escola que os novos proletários


fabris, trabalhadores rurais, minciros e outros do tipo aprenderam como
dirigir um sindicato, tomando como modelo para si mesmos templo e cir-
cuito. Basta que se leia o relatório distrital de um sindicato de trabalhadores
agricolas de East-Anglia* para ver o quanto eles deviam à isso. Como o dr,
Wiearmouth mostrou, também dos-metodistas vicram mecanismos impor-
tantes de agitação de massas e propaganda: a reunião no campo, a reunião
de classe € outros. Acima de tudo, no entanto, a dissidência forneceu o
terreno ideológico de reunião para à liderança do movimento, especialmen-
te nas áreas de mineração. Quando lorde Londonderry expulsou os líderes
da agitação dos minciros de Durham em 1843, dois terços do circuito Me
todista Primitivo local se viram vitimizados,? e quando, na década de 1870,
um sindicato de trabalhadores agrícolas do Lincolnshire encontrou-se em
dificuldades, considerou a possibilidade de se fundir com os Metodistas P
mútivos. Claramente, esta seita cra para os mineiros de Durham na década de
1840, bem como para os operários de Lincolnshire em 1870, o que 0 Partido
Comunista foi para os operários franceses por cinquenta anos: o quadro de
liderança.
Esse fenómeno religioso não é desconhecido na França. Em certas par-
tes do Sul à minoria huguenore sempre foi, por razões óbvias, inclinada ao
anticonservadorismo, « forneceu portanto um número desproporcional de
líderes de esquerda, Mas de um modo geral isto não é de grande importân-
cia para o movimento operário francês. É fácil explicar os diferentes graus
de radicalismo político na Inglaterra e na França por essa diferença de tra-
dição. Mas a explicação é verdadeira?
Uma tradição revolucionária pode ser politicamente moderada; uma
religiosa não precisa ser. Quando os partidários mais importantes da Co-
muna de Paris voltaram do exílio em 1880 se viram na maior parte”? na
extrema direita de um movimento que estava caindo rapidamente sob a
influência socialista, Uma disposição de erguer barricadas não indica neces-
sariamente um programa extremista. Durante a maior parte do século xIx à
tradição revolucionária francesa foi simplesmente um aspecto do radicalis-
mo-liberal francês, cujos partidários estavam ideologicamente em igualdade
com respeitáveis republicanos secularistas ingleses, como George Odger. É
significativo que a forma moderna de revolucionarismo, o Partido Comu
nista, constitui de certo modo um rompimento tão grande com as tradições
francesas como com as inglesas, embora de outro cle continue ambas.
SOAS EXTRAORDINÁRIAS 2

O destino daquela que é ostensivamente uma das tendências mais vio-


lentas do operariado francés, a anarquista, ilustra a questão. Em geral, os
pequenos artífices e artesãos que constituíam o principal sustentáculo do
anarquismo francês eram extremamente militantes. (Contudo, Proudhon,
seu pai espiritual, era notadamente pacífico.) Eles lutaram, muitas vezes,
sem nenhum ponto de apoio — como fizeram seus equivalentes nos pe-
quenos ofícios metalúrgicos de Sheffield — é atraíram facilmente intelec-
cuais radicais. Mas, da mesma forma como os terroristas de Sheffield eram
extremamente moderados em suas políticas,!! também os anarquistas fran-
«ceses estavam essencialmente na ala moderada do seu movimento. O maior
triunfo deles, a CGT, passou do ultra-revolucionarismo aparente para uma
social-democracia cuidadosa, com uma velocidade notável após o irrupção
da Primeira Guerra Mundial. Além do mais, essa seção do socialismo fran-
cês, que mais tarde foi a que sustentou a política de pacificação com mais
ardor e colaborou com Pétain — Dumoulin, Belin e outros — retirou sua
força em grande parte da ala anarquista do movimento pré-1914. No todo,
o sistema político francês aprendera há muito tempo a enfrentar estas for-
mas de revolucionarismo mais antigas e, muitas vezes, intrinsecamente mo-
deradas. Quando o Partido Comunista Francês se formou, em 1920, grande
número de figuras respeitáveis da classe média se juntaram imediatamente a
cle, porque “a tradição de que o filho de família começa a sua carreira na
extrema-esquerda, sob o olhar indulgente do clá, para terminá-la na mais
respeitável das posições”!? estava bem estabelccida. Com efeito, um grupo
de ferroviários revolucionários que iria fornecer vários líderes do novo par-
tido (Sémard, Monmousscau, Midol) à princípio recusou se juntar a ele por
este motivo. Até alguns anos mais tarde, o partido não era “bolchevique”.*
Uma tradição religiosa, por outro lado, pode ser muito radical, É ver-
dade que certas formas de religião servem para aliviar a dor de tensões sociais
intoleráveis « fornecer uma alternativa à revolta. Algumas, como o wesleyanis-
mo, podem fazer isso deliberadamente. Contudo, na medida em que a religião
é a língua c a estrutura de toda a ação geral nas sociedades subdesenvolvidas —
é também, em grande medida, entre as pessoas comuns da Inglaterra pré-in-
dustrial — as ideologias da revolta também serão religiosas.
Dois fatores ajudaram a manter a religião como uma força potencial-
mente radical na Inglaterra do século XIX. Primeiro, o acontecimento po-
lítico decisivo da nossa história, a revolução do século XVII, fora travada
numa ocasião em que a língua secular moderna da política ainda não havia
so ERIC HOBSBAWM

sido adotada pelas pessoas comuns: foi uma revolução puritana. Ao con-
trário da França, portanto, a religião não estava identificada principalmente
com o status quo. Além do mais, os hábitos custam a morrer, Na década de
1890, encontramos um exemplo quase puro do enfoque medieval ou puri-
tano as Igrejas Operárias. John Trevor, que as fundon, cra um desajustado
surgido de uma daquelas seitas pequenas e superpicdosas da classe operária
“ou dos puritanos rancorosos da classe média inferior, que estavam sempre se
separando para organizar comunidades mais devotas. Como outros movi-
mentos intelecruais de meados da era vitoriana, a dissidência estava rachan-
do lentamente sob o impacto das mudanças políticas « sociais após 1870, e,
durante à Grande Depressão, Trevor foi atraído para o movimento operário,
após várias crises de consciência e uma carreira espiritual um tanto cheia de
vicissitudes. Incapaz de conceber um novo movimento político que não
tivesse também sua expressão religiosa, cle transformou o movimento ope
rário numa religião. Ele não cra um socialista cristão; acreditava que o mo-
vimento operário fosse Deus e constituiu o seu aparelho de igrejas, escolas
dominicais, hinos ctc. em torno disso. É claro que os sombrios artesãos
dissidentes de Yorkshire e Lancashire não seguiram a sua teologia peculiar,
que pode ser melhor descrita como um verdadeiro unitarismo etéreo. Con-
tudo, eles tinham sido criados num ambiente no qual o templo cra o centro
da sua vida social « espiritual, A Grande Depressão (e coisas tais como a
tarifa McKinley de 1891) tornara-os cada vez. mais conscientes da divisão
dos interesses dentro dos templos entre irmãos patrões c operários; e nada
cra mais natural do que supor que a divisão política devesse tomar a forma
de uma secessão no templo, da mesma forma como antes a divisão entre
wesleyanos e metodistas primitivos havia sido entre grupos politicamente
radicais e conservadores. Assim, as Igrejas Operárias, com sua parafernália
familiar de hinos, escolas dominicais, bandas e coros do templo, clubes dor-
cas* exe, surgiram no Norte, Na verdade, cles estavam a meio caminho
entre o liberal-radicalismo político ortodoxo e o Partido Trabalhista Inde-
pendente, com o qual as igrejas logo se fundiram.!* É evidente que cste
fenômeno teria sido impossível num país em que tradições pré-seculares da
política não houvessem criado raízes particularmente profundas.
* De Porca. mulher que passava à vida fazendo roupas para os pobres Ldros das Apóstolos 1x,
40); sociedade de mulheres que se reúnem com o mesmo objetivo. N.E
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS sm

O segundo fator foi a extraordinária tensão psicológica do começo do


industrialismo no país industrial pionciro— a rápida transformação de uma
sociedade tradicional, bascada no costume, o horror, o arrancamento súbito
de raízes, Incvitavelmente, as massas dos desarraigados e a nova classe ope-
rária procuraram uma expressão emocional dos seus desajustes, alguma coisa
para substituir a velha estrutura de vida. Da mesma forma como hoje os
mineiros de cobre da Rodésia do Norte se congregam nas Testemunhas de
Jeová, e entre os Basutos o caraclismo da mudança social encontra expressão
num renascimento de cultos de magia e feitiçaria, assim também por toda à
Europa 0 começo do século XIX foi uma cra de atmosfera religiosa carre-
gada, intensa c muitas vezes apocalíprica, que se expressava em campanhas
evangelizadoras em áreas de mineração, assembléias gigantes no campo, con-
versões cc. Agora, onde quer que estivesse à religião organizada, que de
modo geral é uma força extremamente conservadora — como era a Igreja
Católica Romana —, o movimento operário ativo se desenvolvia necessaria-
mente distante dela, Na França, além disso, a grande experiência emocional
da Revolução havia gerado, do combustível puramente secular, seu próprio
fogo emocional para aquecer a vida fria dos operários. Lembremo-nos do
ancião da década de 1840, morrendo com as palavras: “Oh sol de 1793,
quando o verei erguer-se novamentez"A grande imagem da república jaco-
bina acenava, e era em torno da república personificada que as emoções dos
homens e mulheres luradores se reuniam com maior facilidade, da mesma
forma como mais tarde, na Alemanha e na Áustria, reuniam-se em torno da
personificação de suas próprias lutas, os partidos marxistas e seus líderes.
Na Inglaterra não havia nenhuma experiência viva dessas; mas houve os con-
ventículos c seitas dissidentes, independentes do Estado, comparativamente
democrático e vivo. Daí aquela experiência, que é tão típica do movimento
operário inglês, do jovem trabalhador “vendo à luz”, muitas vezes como um
metodista primitivo, e traduzindo seus objetivos políticos em termos da
Nova Jerusalém.iº
Isto não O torna necessariamente menos consciente da classe ou mili-
tante. Evidências da natureza fortemente militante dos metodistas primi-
tivos abundam em algumas regiões; c, ocasionalmente — como no longin-
quo Dorset — até os wesleyanos conservadores puderam estar no ponto de
encontro dos líderes operários locais. Tampouco esta tradição impediu os
homens de fazerem mais tarde progressos políticos. Em nossa própria época,
s ERIC HORSRAWM

Arthur Horner (uma rapaz evangelista) e William Gallacher (cuja primeira


experiência política foi naquele subproduto da dissidência, o movimento
dos abstêmios) tornaram-se ambos comunistas.
Devemos então considerar as nossas duas tradições como tantas mas-
sas informes de material plástico, a serem modeladas para se adaptarem à
fôrma de seus movimentos de alma e situação prática? Nenhuma teoria
pode ser menos adequada à conversão numa doutrina da “inevitabilidade do
gradualismo” do que a de Marx; apesar disso, entre o fim da Grande De-
pressão e a Primeira Guerra Mundial, isto foi feito num certo número de
paíscs, tacitamente ou por atos surpreendentes de acrobacia exegética. À
Igreja Católica Romana tem insistido em umas poucas máximas de política
social, mais firmemente do que na ausência de desejo de organizar distin-
tamente patrões e empregados, Contudo, sem exceções importantes, as or-
ganizações conjuntas que cla tem patrocinado nos países industriais foram
impelidas para fora do movimento operário ou — após algumas lutas -
transformaram-se em sindicatos comuns.* As idéias, na verdade, são mais
clásticas do que os fatos. No entanto, uma tradição política ou ideológica,
especialmente se cla resume padrões genuínos de atividade prática no pas-
sado, ou se é incorporada em instituições estáveis, tem vida e força inde-
pendente, e deve influir no comportamento dos movimentos políticos. A
teoria do material plástico é evidentemente uma supersimplificação.
Quando, contudo, tentamos estimar O papel real que estas instituições
desempenham, enfrentamos uma das tarefas mais difíceis do historiador
Alguns pontos, no entanto, podem ser sugeridos legitimamente. Assim, cm
primeiro lugar, à tradição da dissidência, sendo politicamente bastante im-
precisa, cra muito mais maleável do que à revolucionária. Por trás dela não
havia nenhuma experiência histórica específica, como a Revolução Francesa,
“com os seus programas, lições, táticas e palavras de ordem políticas, embora
inadequadas. Foi extremamente dificil afastar-se do fato de que à tradição
revolucionária glorificava a revolta armada “do povo” contra “os ricos”: ou
dos métodos consagrados dessa revolta — comunas insurrectas, ditaduras
revolucionárias etc. Se cla fosse transformada no seu oposto, uma teoria de
gradualismo e colaboração social, por exemplo, isto só poderia ser feito de
modo indireto: por exemplo, usando os seus aspecros radicais-liberais con-
tra Os comunistas, como a €GT do entre-gucrras e a Igreja Católica pós-1945
tentaram fazer idealizando suas tradições proudhonianas em contraposição
às babouvistas e blanquistas; ou — como fez Gambetta!” — acentuando o
PESSOAS EXTRAORDIN: ss

interesse comum de todas as classes “do povo” contra algum inimigo co-
mum externo, como a “Reação” ou o “Clericalismo”, Mas o próprio pro-
cesso de aparar suas arestas só podia scr conseguido na prática glorificando
a Revolução em teoria, O conservador genuíno tinha, mais cedo ou mais
tarde, que romper completamente com ele. Mas a tradição de dissidência,
uma vez que cra religiosa, não estava ligada a qualquer programa ou regis-
tro especial, embora associada há muito tempo a exigências políticas par-
ticulares. A falácia da afirmação moderna de que o “socialismo inglés deriva
de Wesley « não de Mart” está precisamente nisto. Desde que o socialismo
(ou, quanto à isso, O liberalismo radical) fosse uma crítica específica à um
sistema económico particular, e um conjunto de propostas de mudança, cle
provinha das mesmas fontes seculares que 6 marxismo. E desde que fosse
simplesmente uma maneira apaixonada de apresentar os fatos da pobreza,
não tinha nenhuma ligação intrínseca com qualquer doutrina política par-
ticular. Em qualquer caso, cra necessária apenas uma pequena mudança de
ênfase reológica para transformar o dissidente ativamente revolucionário num.
quietista (tanto os anabatistas como os quacres tinham feito isso no pas-
sado), ou permitir que o esquerdista militante se transformasse num mode-
rado, A diferença entre à elasticidade das duas tradições pode ser ilustrada
pelos casos individuais: a mudança de John Burns de agitador revolucionário
para ministro liberal significa inevitavelmente um rompimento com as suas
crenças marxistas anteriores. Por outro lado, o sr. Love, dono da mina de
Brancepeth, um homem de sindicato em sua juventude, que destruiu a Asso-
cação de Mineiros de Durham em 1863-4, póde terminar sua vida como tinha
começado, isto é, como um metodista primitivo ativo« picdoso.!s
Um segundo ponto segue-se ao primeiro. Uma tradição revolucionária
é, por sua própria existência, um constante chamado para a ação, ou de
simpatia para com a ação. O Levante de Newport de 1839 foi, numcri-
camente falando, um caso muito mais sério do que o Levante da Páscoa de
Dublin de 1916, embora dirigido de maneira muito pior: contudo o seu
efeito nos dez anos seguintes foi muito menor do que o da aventura irlan-
desa, é o seu impacto na tradição popular inglesa, ou mesmo galesa, incom-
paravelmente menor. Um ajustou-se num quadro no qual o orgulho do
lugar tinha sido reservado há muito tempo para “o rebelde”, o outro não.
Portanto, um transformou-se facilmente em inspiração ou mito, o ou-
tro simplesmente em um obscuro incidente histórico. A diferença é de im-
portância considerável, porque não é a disposição de usar a violência, mas
” ERIC HOBSBAWM

um certo modo político de usar ou amcaçar com violência, que torna os


movimentos revolucionários. Nenhum outro país europeu tem uma tradi-
ção de tumulto tão forte como a Inglaterra, à qual persistiu ainda bem
depois da metade do século xIx. O mmulto como parte normal da nego-
ciação coletiva estava bem estabelecido no século XVTIT.!S A coação c a in-
timidação foram vitais nas primeiras fases do sindicalismo. quando a imora-
lidade de furar as greves ainda não tinha se tornado parte do código de ética
do movimento operário organizado. Seria tolice afirmar que, se a Inglaterra
possuísse uma tradição revolucionária, teria tido consegiientemente uma re-
volução: Contudo, é razoável afirmar que episódios como os levantes do
Derbyshire e de Newport bem podiam ter ocorrido com mais fregiiência, e
que situações extremamente tensas, como a de Glasgow em 1919, não te-
riam sido resolvidas com tanta facilidade >!
É bem verdade que no trabalho diário normal do movimento operário, a
presença ou ausência de uma tradição revolucionária não é de importância
imediata. Do ponto de vista da obtenção de salários mais altos e melhores
condições, à disposição dos pedreiros de Trelazé de num piscar de olhos
proclamarem a república social não era mais nem menos do que uma forma
de demonstração de massa especialmente militante, Pode até nem scr a ma-
ncira mais eficiente de alcançar suas exigências econômicas imediaras, Ou
então, pode ser simplesmente útil, porque ao organizar operários fracos e
desorganizados contra uma oposição furre, as táticas agressivas c brilhantes
são sempre as mais cficazes. (Daí os revolucionários políticos sempre terem
constituído uma parte desproporcionalmente grande dessa organização, quer
nos movimento ingleses “neo-sindicalistas” de 1889 e 1911, os enlatadores
de sardinha de Douarnenez, a maquinaria leve inglesa da década de 1930,
quer até mesmo os sindicatos americanos e canadenses da mesma década.)
Em épocas de mudança política rápida e grande tensão, contudo, sua pre-
sença ou ausência pode bem ser um sério fator independente: por exemplo,
na Alemanha após 1918.
A tradição revolucionária, então, era por sua própria natureza política:
a tradição de dissidência muito menos diretamente. O quanto esse fato con-
tribuiu para o caráter muito mais político do movimento operário francês
não é fácil dizer. Os movimentos sindicais fracos geralmente tendem a tirar
força adicional das campanhas políticas, ao passo que os fortes tendem a
não se preocupar com isso; e os sindicatos franceses durante todo o século
XIX e XX foram muito mais fracos do que os ingleses. Apesar de tudo, isto
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS ss

não explica totalmente dois fenômenos surpreendentes: a velocidade muito


imaior com que a opinião da classe operária francesase tornou socialista, e o
intercâmbio também muito maior entre a agitação política e industrial
Assim, na França, O movimento operário é socialista começou a ganhar
as municipalidades cerca de vinte anos antes do que na Inglaterra. O primeiro
distrito inglês a ter uma maioria irlandesa radical-operíria foi West Ham em
1898. Contudo desde 1881 0 Parti Ouvrier Français ganhou sua primeira
maioria em Commentry Em 1892, quando os conselheiros socialistas (muitas
vezes não eleitos como tais) ainda cram excessivamente raros na Inglaterra, só
os marxistas revolucionários — sem contar os possibilistas, alemanistas e os
vários outros corpos que exibiam o rótulo socialista — dominaram mais de
doze municipalidades, entre clas lugares como Marselha, Toulon e Roubaix. A
disparidade ainda é mais marcante nas eleições parlamentares.
Uma vez mais, as atividades políticas dos sindicatos ingleses sempre
foram extremamente limitadas, embora isto tenha sido obscurecido pelo
fato de que aqueles que tomaram parte nelas fossem também muitas vezes
sindicalistas. Eles financiam o Partido Trabalhista, embora esteja longe de
ser claro (exceto em certos casos bastante especiais) se os sindicalistas votam
no movimento operário porgue os seus sindicatos apóiam o partido, ou se
eles são tanto sindicalistas como votantes do movimento operário porque
são “pessoas da classe operária”. Com certeza, candidatos sindicais puros
raramente foram bem-sucedidos. Na Londres das décadas de 1870 e 1880,
os candidatos apresentados pelo Conselho de Ofícios de Londres tiveram
votação notadamente piores do que os apresentados pelas organizações po-
líticas como a Sociedade Nacional Secular?! c, na década de 1950, 0 convo-
cador dos empregados de lojas (comunista) eleito numa grande fúbrica de
motores podia ter uma votação ridícula numa zona cheia de homens que,
em suas fábricas, votaram nele é — o que é ainda mais importante — o
seguiram. A agudeza da distinção é especialmente clara no caso de um in-
dividuo como Arthur Horner, que foi tanto uma figura política como um
sindicalista — uma combinação muito rara. (Ancurin Bevan, por exemplo,
foi uma figura política de grande importância, mas nunca desempenhou um
papcl de qualquer grande consequência no sindicato dos mineiros.) A car-
rcira de Horner recai cm dois segmentos distintos: o período inicial, quan-
do era principalmente um líder político com uma poderosa base local em
Macrdy, é o final — após sua expulsão das posições de liderança do Partido
Comunista — quando se concentrou em seu trabalho sindical. Mas o H
só ERIC HOBSBAWM

ner que se tornou o líder mais capaz que os mineiros ingleses jamais ti
veram, embora fosse um ornamento do seu partido, não era em qualquer
sentido significativo um líder dele =?
Da mesma forma, é difícil pensar em qualquer política bem-sucedida
ou sequer seriamente tentada na Inglaterra, embora sejam Comuns às greves
de apoio e solidariedade (que entram nos termos mais estreitos de referên-
cia do sindicalismo). A Greve Geral de 1926 pertence a esta classe, É difícil
conceber um equivalente inglês para as greves gerais a favor da reforma
eleitoral que os movimentos dirigidos pelos marxistas lideraram no conti-
mente, entre 1890 e 1914, muitas vezes com bastante sucesso, como na
Bélgica e na Suécia. As greves políticas não são inconcebíveis na Inglaterra,
especialmente em épocas de excitação intensa e quase revolucionária, como
em 1920, quando se tentou uma contra à intervenção inglesa na guerra russo-
polonesa. Contudo, à existência de uma tradição política quase certamente as
favorece mais, apesar de o objetivo delas (excero durante épocas de revolução)
ser sempre mais limitado do que seus defensores têm suposto muitas vezes.
Terceiro, e mais importante, uma tradição revolucionária tem por de-
finição a transferência do poder. Ela pode fizer isso com tanta ineficiência,
como entre os anarquistas, que não precisa ser levada a sério. Mas sua possi-
bilidade é sempre explícita. O historiador do cartismo, por exemplo, mal
pode deixar de ficar triste pela tibieza extraordinária deste que é o maior de
tados os movimentos de massa do operariado inglés; e, o que é mais, pela
equanimidade com que a classe dominante inglesa o considerou, sempre
que não estava assustada pela revolução estrangeira. Esta cquanimidade era
justificada. Os cartistas não tinham a menor idéia do que fazer se a cam-
panha deles de recolher assinaturas para uma petição não conseguisse con-
vencer o Parlamento, como inevitavelmente não o conseguiria. Porque até à
proposta de uma greve geral (“més sagrado”), como seus adversários apon-
taram, foi simplesmente uma outra maneira de expressar a incapacidade de
pensar em alguma coisa a fazer: “Será que vamos soltar centenas de milhares
de homens desesperados e esfomeados sobre a sociedade sem ter qualquer
objetivo específico em vista ou qualquer plano de ação estabelecido, mas
confiando num capítulo de acidentes quanto a quais serão as consegiiências?
Oponho-me a fixar um dia para O feriado até que tenhamos melhor
evidência, primeiro quanto à praticabilidade da coisa, ou à probabilidade
dela scr levada a efeito; e em seguida quanto à mancira pcla qual cla irá ser
empregada”. *
Além do mais, quando algo como uma greve geral espontânea ocorreu
no verão de 1842, Os cartistas foram incapazes de fazer qualquer uso dela, a
qual foi menos efetiva do que o tumulto espontâneo dos trabalhadores agri-
colas em 1830, que, de fato, em seu objetivo limitado de deter o progresso
de mecanização nas fazendas, foi em grande parte bem-sucedido. E o mo-
tivo para à ineficácia do cartismo, pelo menos em parte, foi devido à pouca
familiaridade dos ingleses com à própria idéia da insurreição, da organi-
zação necessária para à insurreição e da transferência do poder.
Inversamente, o movimento francês de Resistência durante à Segunda
Guerra Mundial não foi deliberadamente uma tentativa de tomar o poder,
em todo O caso por parte dos comunistas que, como de hábito, consti-
ruíram de longe o seu contingente mais importante « ativo. O argumento
de que assim cra, apresentado como uma desculpa para fins de propaganda
após 1945 é durante a guerra fria, é uma mentira jornalística e tem sido
conclusivamente refutado.? Nunca houve qualquer plausibilidade ou cvi-
dência de apoiá-lo, exceto concebivelmente as atividades independentes de
alguns grupos locais que ou foram contra a política central, ou não tinham
consciência dela, Contudo, à questão é que nas condições do movimento
francês era necessário um esforço especial para impedir à Resistência de fazer
o que poderia ter parecido ser a forma lógica (embora não necessariamente
à mais aconselhável) de um lance para tomar o poder; estes grupos de Re-
sistência, deixados aos seus próprios mecanismos, bem podiam ter seguido
scus narizes nas tentativas locais de assumir o poder2º É extremamente im-
provável que qualquer movimento inglês, embora militante e radical, fizesse
isso espontaneamente
Até que ponto essas diferenças de tradição são importantes na prática,
isso deve permanecer umã especulação. Evidentemente elas não são decisi-
vas. Afetam mais 0esto das atividades de um movimento do que a natureza
delas ou dele, Apesar disso, o estilo pode ser de interesse mais do que super-
ficial, e pode bem haver ocasiões em que cle é o homem; ou melhor, o
movimento. Obviamente raras vezes isto será assim quando — por exemplo
— os movimentos se conformam com padrões rigidamente determinados
de organização, ideologia e comportamento, como entre os partidos comu-
nistas. No entanto, todos aqueles com conhecimento dos movimentos co-
munistas sabem que à extrema uniformidade internacional que lhes foi im-
posta desde meados da década de 1920 em diante (“bolchevização”) não
impediu as diferenças surpreendentes na atmosfera e estilo nacional dos co-
ss ERIC HOBSRAWM

munistas, tanto quanto à uniformidade do sacerdócio católico não torna a


igreja irlandesa idêntica à italiana ou holandesa, Quando as forças conscien-
tes que modelam o movimento são menos fortes, os efeitos estilíticos da
tradição podem até ser mais óbvios.
Um exemplo instrutivo é o do “movimento pela paz”, que sempre foi
anormalmente forte na Inglaterra, € relativamente fraco na França. (Não
deve ser confundido com o movimento antimilicarista, que algumas vezes
corre paralelamente a ele.) Desde os jacobinos, um patriotismo agressivo e
algumas vezes militante foi profundamente entranhado na extrema-esquerda
francesa, é na verdade dominou-a exceto em certos períodos históricos (por
exemplo, de cerca de 1880 até 1934) quando outras mãos seguraram à
bandeira tricolor. Pode-se inclusive propor que os períodos de unidade e
poder máximo do movimento operário francês foram aqueles em que pôde
cstigmatizar as classes dominantes não simplesmente como exploradoras,
mas também como traidoras: como durante a Comuna de Paris, durante o
período da Frente Popular, c especialmente durante à Resistência. (Num
certo sentido, isso é simplesmente outra expressão da aspiração interna ao
poder numa tradição revolucionária: os jacobinos e seus herdeiros sempre
se consideraram porencialmente ou verdadeiramente como uma força de
governo, ou que carregava o Estado”) Por outro lado, uma aversão moral
pela agressão e pela guerra como tal sempre esteve profundamente entra-
nhada no movimento operário inglés, e este é claramente um dos elementos
mais importantes da sua herança radical-liberal — e muitas vezes, especifi-
camente, da sua herança dissidente. Não foi por acidente que em 1914 o
Partido Trabalhista Independente foi o único partido socialista não revolu-
cionário num país beligerante — c na verdade quase o único partido socia-
lista em qualquer país — que como um corpo se recusou a apoiar a guerra:
mas então a Inglaterra era o único país beligerante no qual dois ministros
— ambos liberais — renunciaram ao gabinere pelo mesmo motivo. Vezes
sem conta a oposição à agressão c à guerra tem sido o método mais eferivo
de unificar ou dinamizar a esquerda inglesa: no fim da década de 1870, por
ocasião da Guerra dos Boers, durante a década de 1930, e novamente no
fim da década de 1950.
O contraste entre os movimentos pacifistas da França c da Inglaterra
após 1945 é particularmente esclarecedor, porque é difícil encontrar quais-
quer fatores outros além daqueles da tradição para explicá-lo. A França não
teve nenhum movimento de massa pacifista espontâneo, mas apenas uma
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS so

fase em que o Partido Comunista pôs suas energias por trás de um apelo
antinuclear, é portanto recolheu um grande número de assinaturas. Os in-
gleses não tiveram nenhuma organização política importante disposta ou
capaz de mobilizar à opinião pública contra a guerra nuclear. (A ligação
intima entre o “Movimento pela Paz Mundial” e os comunistas provavel-
mente adiou à emergência de um movimento pacifista de massa de base
ampla na Inglaterra até o fim da pior histeria da guerra fria.) Por outro
lado, um grupo não oficial de pessoas póde improvisar a implicitamente
pacifista Campanha pelo Desarmamento Nuclcar, que se tornou não so-
mente o movimento antinuclear mais maciço do mundo, com a possível
exceção daquele dos japoneses, e um modelo (menos bem-sucedido) para os
imitadores estrangeiros, como uma força importante na política inglesa fora
dos seus termos estreitos de referência. Porque foi em grande parte visando
à “paz” que a esquerda dentro do movimento operário sé reuniu para der-
rubar 0 longo domínio de uma liderança de direita do partido.

Notas
G. Duveau, La Fio uoribre vm Eranco seus e Second Empire, Paris, 1946, po 5
Ness Edwards, 1be History ofthe Sons Wales Mincrs, Londres, 1926, p. 3º.
3. E. Labrousse, Le Mouvemens omvrior et des idécs sociales em Eranco de 18] da fi de cr
sibee, Les Cones de la Sorbonne, 1949, fasc. TIT, pp R-4
4 WE Lexis, Gemerkoereine u. Unserneimererimende in Erankreich, cipeig; 1879, pp.
123.4,
Ibid, pp. 183-4.
6 Diiveau, La Vie outro, pp. 89-91
Mark Rucherfbrd, The Revolution à Timer Lú. Londres, 1887.
8 Reeditado em E. ]. Hobsbasem (ed). Labegr Timing Poins 1880-1900, Londres
1948,p. 89.
9.R. E Wearmouth, Some Winking-lass Movements of be Ninetcenah Century, Londres,
1948,p, 305
10.4 Zévaês. De PInrducrio du marsismeem Frames, Paris, 1947, pp. 116 € ss
11. Para à combinação da ação direta e da moderação extrema em Sheficld, 8, Poliard,
A Hisony of Labowr im Sheffield, Liverpool, 1959,
2. A. Rossi, Pliolugie di parsi compnise franvais, Paris, 1948, p. 317,
ERIC HORSBAWM

13. Sobre a crise no Partido Comunista francês, cf. L. Trotsky The Firsr Five Yeavs of che
Comiterm, Nova York, 1953, vol. 2, quase passe, mas especialmente pp. 153.5, 281-
2,321
1 CE K S Inglis, “The Labour Church Movement”, International Revic of Social
History 3 (195
15. Para esta € às passagens seguintes, ver 0 capírulo sobre as “Seitas Operárias” em meu
Primitive Rebels, Manchester, 1959.
16. CE R. Goer-Girey, La Ponséesrndicalefrançaie, Paris, 1948, pp. 96 ess
17. CE especialmente o “Discours prononcé le 12 aodr 1881 à la réunion électorale du
XXême arrondissement”, im Discos... de Léon Gambrira, ed. J. Reinach, Paris, 1895.
18.E. Walbourne, The Miner” Unims Of Novshumberiand and Durham, Cambridge,
1923, p: 115
19. Halév E, History of The English Prople im The Ninescenths Century, Londres, 1961,
vol. 1, pp. 148 s , Para a negociação coletiva pelo tumulto, ver acima, capítulo 2.
20. W Gallacher, Revolr um the Chle, Londres, 1936, cap. VO, para um relato autoerítico
por um dos “lideres da greve, nada mais; esquecemo-nos de que éramos lideres
revolucionários”.
21, Sesi nas eltições de 1882 da Junta Escolar de Londres, os candidatos sindicalistas
fexcexo quanto à um membro que já participava, tiveram um péssimo desempenho:
enquanto Helem Iavlor é Aveling, cujas ligações cram principalmente políticas ou
ideológicas, forum eleitos
22. Inversimente, na França, Pierre Semard, um puro sindicalista de origem, foi por
algum tempo secretário geral do Partido Comunista, é T.ton Mauvais (secretário da
tart em 1983) tornou-se secretário organizador do Tartido Comunista em 1947.
Chasles “illon, também com antecedentes principalmente sindicalistas na Grá-Bre-
tanha — mas combinado com a política municipal — toemonr-se à principal organizador
militar da Resistência comunista « ministro no gavemo de De Gaulle; como fez Lu-
cien Midol. Àlista pode ser prolongada.
23. CE EC. Mares. Publ Order in the Ape of rt Chareiss, Manchester, 1960.
24 William Carpenter em 1%e Carter, 21 jul. 1839.
25.4 ) Ricber Stalin and the French Communiso Paroy, 1941 > Nova York e Londres,
1962, pp. 142.55, discute a questão extensivamente.
26. Tdem, pp. 150-1
27. O exemplo aparente mais Óbvio do contrário, o caso Dreyfus, prova a questão. Seu
feito dentro do movimento operário foi dividir e não unir; porque contra a “reunião
dos políticos sucialisras em torno da causa da República ameaçada e um rappreche-
ment entre à maioria dos grupos socialistas” deve ser estabelecido o reforço de um
sindicalismo antipolítico (ver G. D. H. Cole, History of Socialist Theugit, Londres,
1956, vol. 3, p. 3431, para não mencionar a divisão causada pela aceitação de cargo
no gabinete por Millerand
Capítulo 5

O FAZER-SE DA CLASSE OPERÁRIA


1870 — 1914

Este artigo foi originariamente uma palestra feita para a Universidade de


Oxford, em 1981, e publicon-se pela primeira vez em 1984. É uma investi-
“ação sobre as relarivamente recentes origens históricas do modo de vida cha-
mado “tradicional” da classe trabalhadora britânica, da primeira metade do
século XX

Sc intitulei este capítulo de “O fazer-se da classe operária”*não é por-


que pretenda sugerir que a formação desta ou de qualquer outra classe seja
um processo com início, meio e fim, como à construção de uma casa. As
classes nunca estão prontas no sentido de estarem concluídas, ou de terem
adquirido sua feição definitiva. Elas continuam a mudar, Entretanto, como
a classe operária toricamente uma classe nova — não reconhecida
como um coletivo social ou institucional, interna ou externamente, até um
momento específico —, fiz sentido delincar sua emergência enquanto gru-
po social durante um certo período. Foi isso que E. P Thompson pretendeu
fazer num livro que imediata e justificadamente se tornou um clássico! Por
outro lado, a classe operária das décadas de 1820 e 1830 — supondo-se que
já fosse possível aplicar-Jhe este nome — cra obviamente muito diferente da
chamada classe trabalhadora “tradicional”, sobre a qual observadores cul-
turais, alguns de origem proletária como Richard Hoggart, começaram a
escrever elegias agridoces na década de 1950. Os famosos jalecos de fustão
do cartismo ainda estavam muito distantes de “Andy Capp” (Zé do Boné),
O autor refere-se à obra de E. E Thompson, The Mubing of the Eng Working Class,
traduzida para o português como A formação da classe operária inglsa, Nesta tradução,
manteve o sentido original de mating como “fazer-se”, (N. R.
2 ERIC HORSBAWM

A emergência da classe operária de “Andy Capp” é o tema deste estudo: o


proletariado britânico tornou-se identificável não só pelo que usava na ca-
beça (sobre o que terci algo a dizer), mas tunbém pelo ambiente físico no
qual vivia, por um cstilo de vida e de lazer, por uma certa consciência de
classe que cada vez mais se expressou numa tendência secular a afiliar-se à
sindicatos « à identificar-se com um partido da classe, o Trabalhista. Esta é à
classe operária das decisões de campeonato, das lanchonetes de peixe c fri-
tas, dos palais-de-danse « do Trabalhismo com “T maiúsculo. Desde a década
de 1950 esta classe não só contraiu-se como sofreu mudanças, embora os
teóricos desta década, ao falar da “ausência de sentido de classe” e do <abur-
guesamento”, estivessem errados ao predizer sua dissolução. Uma grande
parte dela ainda está aí. Contudo, é cerro que as transformações desde a
década de 1950 foram profiandas. Este desenvolvimento recente da e dentro
da classe trabalhadora, entretanto, não faz parte do meu tema aqui: associe
me a uma série de pessoas do movimento operário para, em outros estudos,
discutir a natureza e as implicações destas mudanças?
Meu título, porém, representa tanto um tributo como uma crítica ao
extraordinário livro de E, P Thompson. Em certo sentido, Thompson acer-
tou ao datar a emergência da classe operária na sociedade britânica no início
do século xTx; de fato, já na época do cartismo estava formulada a imagem
da sociedade britânica expressa na “linguagem de classe” de Asa Briggs, e
formulada como uma imagem trinitária de proprietários, burguesia e traba-
lhadores. Esta imagem implicava a absorção conceprual dentro da classe
operária de todos os tipos de camadas sociais que ainda existiam efetiva-
mente, mas que de certo modo se tomavam invisíveis socialmente. O con-
siderável grupo de pessoas que desempenhou papéis tão amplos, « com fre-
aliência tão conscientes, no cenário social de outros países, sob a denominação
de campcsinato, pequena-burguesia, pequenos artífices etc, parece não exisi
na Grã-Bretanha, Já no tempo do cartismo, termos como “artesão”, “oficial,
“artífice”, e praticamente todos os outros termos associados à antiga realidade
de pequenos produtores independentes e suas organizações, denotam algo que
se poderia chamar de assalariado especializado, em vez de produtor indepen-
dente; por outro lado, o termo “bricante”, que anteriormente se referia de
forma vaga à força trabalhadora, acabou sendo monopolizado pelo empre-
gador industrial. À polarização da terminologia indica transformações econô-
micas, Se as palavras tmde e tradesman, quando usadas pelos trabalhadores,
vicram a significar basicamente a modalidade industrial, os mesmos termos,
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS o

usados pelas classes média e alta, vieram a designar exclusivamente a função


do comércio. Os clássicos Handierter, artisan ou artigiano, que tanto pro-
duziam como vendiam, desapareceram no vácuo que se constituiu.
Porém, se O período que Thompson estudou é, neste e em outros
aspectos, crucial para a emergência, para o “fazer-se” da classe operária in-
glesa, Thompson me parece estar errado ao sugerir — pois ele não vai além.
disso -— que as classes trabalhadoras do período anterior ao cartismo, ou
mesmo durante cste movimento, eram a classe trabalhadora como cla iria se
desenvolver mais tarde, Apesar da continuidade surpreendente e, pelos pa-
drões internacionais, bastante excepcional, do movimento sindical com seu
passado artesanal pré-industrial, a maior parte das investigações desde o
tempo de Thompson tem demonstrado como é perigoso projetar o prole
tariado, os movimentos operários e as ideologias de nosso século para as
décadas pós-napoleónicas, Na verdade, a falta de continuidade entre os mo-
vimentos operários pré e pós-cartismo, o abismo entre as gerações do socia-
lismo de Owen e do renascimento socialista da década de 1880, são tão
óbvios que os historiadores ainda contimuam a tentar lhes dar uma expli-
cação. Algumas de nossas organizações podem ser muito antigas c um cven-
tual bocado de folelore pode ter sobrevivido, mas à verdade é que a história
contínua dos movimentos operários britânicos, incluindo sua memória his-
tórica, só se inicia muito depois dos cartistas. Se a tradição viva do mo-
vimento remonta a antes desse período, isso acontece porque os historia-
dores do trabalho desenterram o passado mais remoto e introduzem-no no
movimento, onde ele tem se tornado parte da bagagem intelectual dos ati-
vistas. O owenismo, o cartismo e outros, « as classes trabalhadoras daquele
período remoto, são sem dúvida os ancestrais da classe operária britânica
mais recente é de scus movimentos; mas são, sob aspectos cruciais, fenó-
menos diferentes. Nesse sentido, a classe operária não estará “feita” até mui-
to depois do fim do livro de Thompson.

Quase não chega a ser surpreendente que a classe operária do último


período da poderosa e bem fundada economia vitoriana fosse muito dife-
rente das classes trabalhadoras do período anterior à construção da rede
ferroviária. Não precisamos perder tempo em estabelecer um ponto tão ób-
oa ERIC HORSRAWM

vio. Em 1851 havia mais sapareiros do que mineiros de carvão, havia duas
vezes e méia mais alfaiates do que ferroviários, e mais trabalhadores na in-
dústria de seda do que empregados no comércio! A oficina do mundo ain-
da não era o que Clapham chamou de “o Estado-indústria”, fosse na escala,
padrão ou tecnologia e organização industrial. Se o Lancashire havia encon-
trado o seu padrão industrial, Birmingham, Shefficld, Tneside e South Wales
apenas começavam, ou estavam a ponto de encontrá-lo. Na verdade, a questão
está mais cm como 6 desenvolvimento e a expansão da nova economia
industrial afetou a classe operária — pois à afetaram, de várias maneiras
Em primeiro lugar, a classe operária aumentou muito em tamanho
absoluto e em concentração. Se a percentagem total dos empregados em
manufáruras, mineração e indústria quase não aumentou entre 1851 e 1911, €
praticamente nada até a década de 1890 — exceto a dos transportes —, ela
agora formava uma massa muito maior e mais concentrada * Em 1911,
havia 36 cidades com mais de 100 mil habitantes na Grá-Bretanha (que
abrangiam 44% da população tonal), ao passo que em 1851 havia dez (abran-
gendo 25%). Entre 1871 € 1911, a região ao longo do Mersey aumentou
em aproximadamente 75%, e a região ao longo do Tyne quase triplicou em
população. O tamanho médio dos estabelecimentos em que as pessoas tra-
balhavam também aumentou, embora talvez. não tenha sido alterado o pa-
drão geral de porte das indústrias, as quais haviam estabelecido seu padrão
antes. Sc, numa mina do Yorkshire e de Glamorgan-Monmouth, em 1912,
os 400 mineiros que formavam a força de trabalho média não represen-
tavam um número mais alto do que anteriormente, tornara-se porém co-
mum haver minas de tal porte; € os 220 operários do cotonifício médio de
1906, embora um número maior em 25% do que em 1871, quase não
transformaram à natureza desses estabelecimentos >
Por outro lado, não podemos deixar de nos surpreender com o surgi-
mento de grandes concentrações industriais onde antes não havia nenhuma.
Antes da década de 1850, não há nada que se possa comparar com a região
ao longo do “ye na época vitoriana, onde, já na década de 1860, se encon-
travam talvez uns doze estaleiros, cada um empregando um mínimo de
1500 homens. O Armstrongs já empregava de 6 a 7 mil nas suas instalações
de Elswick; mas, em 1914, este número chegaria a 20 mil, ou seja, aproxi-
madamente o triplo. O mesmo aconteceria com a Great Western Railway,
cm Swindon, que triplicou sua força de trabalho de 1875, atingindo, em
1914, 14 mil. Há uma diferença qualitativa entre a Barrow-in-Furness em
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 95

1871-1872, quando era o maior estaleiro da cidade e suas oficinas de cons-


trução de máquinas empregavam cada umá 600 homens, é à Barrow da
Primeira Guerra Mundial, em que Vickers empregava 27 mil mecânicos
especializados e 6 mil operários de construção naval.
Em segundo lugar, a composição ocupacional das classes operárias mu-
dou substancialmente, como testemunham o aumento do número de fer-
roviários (de menos de 100 mil em 1871, para 400 mil em 1911) é de
minciros (os quais passaram de meio milhão para 1 milhão « 200 mil no
mesmo período), enquanto a população masculina da Inglaterra, Escócia e
País de Gales juntos crescia a uma taxa de apenas 60%. E, da mesma forma,
mudou sua composição etária e por sexo, com a diminuição do emprego de
crianças em idade escolar de 30% do total de crianças em 1851, para 14%
em 19147 e com a penetração modesta, porém inovadora, das mulheres em
indústrias fabris além do ramo têxtil. As alterações nas habilidades manuais
dos trabalhadores são menos óbvias, e ainda são assunto de muito debate.
Contudo, é inegável que, em 1875, os maiores sindicatos eram, de longe, o
dos Mecânicos Especializados Unidos e o dos Arrífices Pedreiros, seguidos,
nesta ordem, pelo dos Caldeireiros, pela Sociedade de Carpinteiros c Mar-
ceneiros, pelos Alfaiates Unidos pelos Fiadores de Algodão, Após 1895, o
Congresso de Sindicatos de Irabalhadores, foi visivelmente dominado pelos
grandes contingentes do carvão — agora organizados em âmbito nacional
— e do algodão, é em 1914 pela Tríplice Aliança do Carvão, Transporte é
Ferrovias. E mais, mesmo os poderosos grupos de aristocratas do trabalho
passaram a confiar crescentemente, e por necessidade, não mais em que espe-
cialidades manuais insubstimuíveis fossem indispensáveis, mas sim que mo-
nopólios de emprego, garantidos pela força das organizações, pudess em ex-
clmr outros que facilmente executariam o mesmo trabalho. Por isto, a questão
crucial para o operariado durante à Primeira Guerra Mundial foi a “diluição”.
Em terceiro lugar, a integração nacional e a concentração cada vez
maior da economia nacional é de seus setores, bem como o crescente papel
do Estado em ambos os casos, transformaram as condições do conflito in-
dusrrial. Basta lembrar que a disputa industrial com O caráter de greve ou
Jock-out nacionais praticamente não existia antes da década de 1890; na ver-
dade, Cronin demonstrou que à própria greve somente afirmou seu poten-
cial depois de 1870. Assim, o acordo coletivo negociado para rodo à nação
não apareceu até 1890, exceto cm partes da indústria do algodão, na qual a
“nação” limitava-se a setores do Lancashire. Por volta de 1910, como Clegg,
dó ERIC HORSRAWM

Eox e "Thompson demonstraram, já havia tais acordos nas áreas de enge-


nharia mecânica, construção naval, tipografia, ferro « aço, « calçados, bem
como mecanismos equivalentes em outras áreas. Além disso, o interesse
direto e urgente do governo nas relações industriais demonstra-se não só
pela criação do Departamento do Trabalho da Junta Comercial (1893) e
pelo âmbito crescente de suas atividades, mas pela intervenção direta de
políticos de renome em disputas trabalhistas, sendo a incursão de Rosebery
no Joek-ont do carvão de 1893 0 primeiro exemplo importante. !
Em quarto lugar — e aqui saímos da economia e passamos à política —,
houve a ampliação do direito de voto e da política de massas. Daí em di-
ante, o que os cleitores proletários podiam pensar € descjar passou a ser
uma preocupação central dos políticos, é, por outro lado, tudo o que o
governo central fizesse concernia de um modo muito mais prático aos ope-
rários, embora cles tenham levado algum tempo para dar-se conta disso.
Quando os políticos — citando 6 Churchill da era eduardiana — pensavam
que o principal problema era impedir que a política partidária se transfor-
masse em política de classes, os operários também se impre ionavam mais.
facilmente com o potencial da política nacional de classes. Pertencer ao “Tra-
balhismo”, isto é, ao trabalho manual, ganhou uma dimensão política ine-
xistente desde o tempo do carrismo.
Estes desenvolvimentos são importantes, porque sem eles é difícil en-
tender como aquele agregado de microcosmos que formava o mundo do
trabalho britânico, aquela coleção de pequenos mundos tantas vezes estri-
tamente autônomos, póde se transformar em um fenômeno nacional. Vejamos
um exemplo recente e bastante extremo, o de W P Richardson (1873-1930)
Ele nasceu e viveu todo a sua vida em Usworth, condado de Durham,
trabalhou por trinta anos na mina de carvão de Usworth, casou-se com uma
filha de mineiro, presidiu o conselho da paróquia de Usworth, dirigiu o
coro da Capela Metodista Primitiva da Mina de Carvão de Usworch c cs-
creveu uma coluna sobre avicultura pará O jornal local. Pode-se dizer com
segurança que, se Manchester tivesse sido arrasada por um terremoto, isso
ão faria nenhuma diferença prática para ele, Entretanto, este homem, en-
raizado em sua aldeia como qualquer pastora de Herefordshire, ajudou a
fundar a filial local do Partido Trabalhista Independente, tomou parte na
direção do Daily Herald, tez campanha pela nacionalização das minas, e
vária tornar-se o tesoureiro nacional da Federação dos Mineiros. Este desen-
volvimento não é de forma alguma tão natural quanto pode parecer, se for
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS

visto em retrospectiva, Tara os minciros da geração de Richardson, tornou-


se mais fácil, e, sob muitos aspectos, essencial, considerar Usworth não so-
ménte como parte da jazida de carvão de Durham, mas sim de uma indús-
tria nacional do carvão: é considerar que ser mineiro implicava ser membro
de uma classe operária nacional, cujas aspirações políticas e sociais especif-
cas eram expressas num partido operário independente, com scus próprios
jornais e programas específicos. Uma figura mais velha como Henry Rust
11831-1902), nunca se conformou com o faro de os mineiros de West Brom-
wich é Darlaston terem algo à ganhar associando-se com o restante dos
mineiros dos condados cenrrais, para não falar de uma Federação dos Mi-
neiros, com âmbito nacional."
Levando tudo isto em consideração. deveríamos esperar que a própria
classe operária se transformasse. Mas de que forma e quando? Vejamos o
caso simples é aparentemente frívolo do “Andy Capp”. Quando foi este tipo
de chapéu específico — o boné chato -- tormou-se característico do pro-
lerário britânico? Sem dúvida não o era ainda na década de 1870 em Lon-
dres, pois Jules Vallês, o refugiado partidário da Comuna de Paris, reclamou
especificamente da falta de consciência de classe dos trabalhadores locais,
uma vez que estes, ao contrário dos artífices parisienses, não usavam “la
blouse et la casquerte” nas horas de lazer? As iluscrações e fotografias das
décadas de 1870 e 1880 mostram uma mistura de chapéus e de bonés — e,
por sinal, nem mesmo os bonés estavam padronizados, como o demonstra
o chapéu de caça de Keir Hardie. Contudo, em 1914, qualquer imagem das
massas operárias britânicas, em qualquer lugar, dentro ou fora do trabalho,
revela o já familiar occano de bonés com pala. A cronologia detalhada desta
transformação aguarda uma pesquisa do rico material iconográfico. Mas é
evidente que dentro de um par de décadas, os operários britânicos adotaram
o uso de um sinal que imediaramente Os identificava como membros de uma
classe. Mais do que isso, sabiam desta função. A hipótese do presente estudo
é que a chamada classe operária “tradicional”, com seus padrões de vida e
visão de mundo específicos, só emergiu perto da década de 1880, adquirin-
do suas feições na duas décadas seguintes. Deveria talvez acrescentar que
este foi também o período de surgimento da “classe média” como a conhe-
cemos, a qual é muito diferente de suas predecessoras do início e do meio
da era vitoriana, e muito diferente também da alta burguesia do establi-
siment, O surgimento repentino do boné ocorreu paralelamente ao surgi-
mento, igualmente rápido, da gravata com as cores da escola?:, e do ainda
ou ERIC HOBSBAWM

mais repentino clube de golfe: entre 1890 e 1895 havia 29 campos de golfe
no Yorkshire, mas antes de 1890 havia somente dois.'* No entanto, embora
a restruturação de cada uma das duas camadas sociais mais importantes da
Grã-Bretanha não possa ser separada uma da outra, este não é meu tema
aqui.

UI

A década de 1880 é conhecida por todos os historiadores do mo-


vimento operário como a década do chamado renascimento do socialismo
na Grá-Bretanha. Mas os fenômenos que aqui estudamos são estaticamente
mais significativos do que as mudanças ideológicas de umas poucas cen-
tenas de pessoas que, na década de 1880, constituíam as Organizações so-
cialistas britânicas e seus simpatizantes. São mais maciços até mesmo do que
os primórdios da transformação do movimento sindical nesta década, conhe-
cido como “novo” sindicalismo. Escolhi a década de 1880 porque a trans-
formação substancial das condições materiais de vida da classe operária, e
do que poderia ser chamado de norreamento social e institucional da classe
operária, de um lado a outro do território da vida nacional, eram prati-
camente invisíveis até então. Não estou afirmando que não estivessem pre-
sentes. É fácil adotar o conhecido jogo do historiador de empurrar as ori-
gens para trás, sobretudo para um período curiosamente tão carente de um
perfil definido da classe operária quanto o foram as décadas que se seguiram
ao cartismo — um período em que, com frequência, é dificil precisar se à
expressão time of" significava o fim da semana, isto é, a famosa semana inglesa
com à qual o resto da Europa sonhava, ou O tradicional Saint Monday.
Assim, usemos um conhecido ponto de referência no mapa da classe ope-
rária “tradicional”. À lanchonete de peixe e fritas se originou provavelmente
em Oldham, nos anos de 1860, e uma firma local começou a fabricar fo-
gões exclusivamente para frituras de peixes na primeira metade da década de
1870; em 1876 este negócio ainda era considerado de pequeno porte, mas
em 1914 já havia em torno de 25 mil fritadoras de peixe,1º Outras ino-
vações dos anos de 1880 podem ser detectadas desde a década de 1870: o
futebol já possuía uma modesta vida subrerrânca como esporte para O es-
pectador proletário nos últimos anos da década de 1870.º” Agentes profis-
sionais é reservas nacionais de artistas do »usiê-hall parecem ter-se desen-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 99

volvido nesta década, a qual também assistiu ao nascimento de um ramo da


imprensa profissional dirigido aos assuntos da música popular? Não é minha
intenção reclamar direitos de patente com basc na prioridade de-qualquer
década, mas simplesmente chamar à atenção para O fato de que, qualquer
que tenha sido a situação na década de 1870, 0 novo padrão surgiu no
cenário nacional nos anos de 1880 e não póde mais ser ignorado— embora
tanto observadores contemporâncos da classe média como historiadores pos-
teriores tenham conseguido ignorar este fato.
Três fatores afetaram as condições materiais de vida dos trabalhadores
após 1870: a queda dramática do custo de vida durante a chamada Grande
Depressão de 1873-1896: a descoberta do massivo mercado interno (in-
cluindo os trabalhadores bem pagos em seus empregos, ou pelo menos pagos
com regularidade) para as mercadorias produzidas ou processadas indusrial-
mente; &, após 1875, a chamada Dylan Dovcing, habitação regulamentada sob
a seção 157 da Lei da Saúde Pública, que, com certeza, produziu muito do
aspecto da vida da classe operária: as filas de casas geminadas no perímetro
dos antigos centros das cidades. Os três fatores implicavam ou se baseavam.
no aperfeiçoamento modesto, irregular, porém claramente inegável, do padrão
de vida de grande parte dos operários britânicos, o que não é questionado nem
mesmo entre historiadores. O fator crucial desse aperftiçoamento não é o
simples aumento de ganho rcal é das despesas dos consumidores, mas sim,
as alterações estruturais que os mediaram. Estes são mais esperaculares no
comércio, isto é, na dimimuição relativa dos mercados de varejo é pequenas
lojas, € no surgimento, por um lado, das Co-97s, cooperativas cuja asso-
ciação cresceu de cerca de meio milhão ao final da década de 1870, para
perto de 1 milhão em 1890, e 3 milhões em 1914, é, por outró lado, das
cadeias de lojas que proporcionaram às ruas centrais britânicas sua aparência
característica entre as décadas de 1890 é o aparecimento do supermercado
moderno a partir dos anos de 1950.:º Nem deveríamos esquecer a criação
à institucionalização do sistema de compras à prazo, Que tomou possivel a
transformação interna da classe operária, Sua história foi negligenciada, em-
bora o trabalho sobre ela esteja em andamento; mas aqui também as déca-
das de 1880 é 1890 parecem ter sido cruciais. As datas dos casos exemplares,
qui esclarecem as confusões legais e financeiras subjacentes à esta prática cres-
cnte, são 1893 € 1895. Contudo, o comércio e a indústria não podem ser
separados. A produção em massa do chá em pacotes padronizados data de
18842! as novas geléias e conservas, que transformaram a dicta da classe
100 ERIC HOBSBAWM

operária, eram manufaturadas em fábricas que são conhecidas dos histo-


riadores do movimento operário principalmente por terem sido o cenário
das primeiras lutas das mulheres operárias.
Quanto à habitação, a evolução mais importante foi não somente a de
“qué casas um pouco maiores é melhores eram agora construídas, mas a de que
houve um incremento de ruas e distritos segregados de operários. Na verdade,
com 6 surgimento do transporte público de massa preço a baixo na década de
1880, criou-se especialmente alguns subúrbios segregados para a classe ope-
árias — subúrbios em sua maior parte dentro do perímetro urbano. Adiante
direi algo mais sobre o efeito dessa crescente segregação residencial. Quanto à
suburbanização da classe operária, também vale ressaltar que ela tendia a des-
gastar ou romper uma das ligações mais fortes da comunidade trabalhadora, a
que existia entre o local onde as pessoas viviam e trabalhavam, mas provavel-
mente isto só ocorreu em Londres. Em 1905 0 TCC estimava que 820 mil
indivíduos faziam longas viagens diariamente para trabalhar em Londres
A transformação mais esperacular foi sem dúvida a do padrão de lazer
é de férias da classe operária. Talvez nem fosse necessário lembrar hoje à
ascensão do futebol como esporte para espectadores e, cada vez mais, para
proletários, em âmbito nacional; nem o surgimento de uma cultura mascu-
lina do futebol, que atingiu sua consagração com à presença do rei no jogo
final do campeonato à partir de 1913; nem que o furchol se cmancipou do
patrocínio — ou melhor, contra O patrocínio — das classes média c alta na
década de 1880, com à vitória do Blackburn contra os Old Etonians; nem
que a clara profissionalização do jogo ocorreu em 1885, e que a Liga foi
formada em 1888, por sinal baseada no modelo dosistema estabelecido anterior-
mente nos Estados Unidos para o beisebol profissional? A década de 1880 foi
clara é igualmente crucial para o desenvolvimento das férias da classe operá a.
O primeiro volume do Heraparl': Railway Journal relaciona em seu índice um
“tráfego de férias”, já em 1884, e seus comentários merecem ser citados:
A cada ano que passa, 6 volume de tráfego nos feriados da Páscoa,
Pentecostes e nas férias de agosto vem crescendo em importância. Suas
dimensões ainda não adquiritam proporções tais a ponto de afetar seria-
mente os dividendos, mas é fácil imaginar que chegará uma hora cm
que isso irá acontecer ... É possível que nunca cheguemos atransformar
a Páscoa num carnaval, mas nossas massas trabalhadoras parecem deter-
minadas a transformá-la mum verdadeiro feriado. *
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS nor

O aumento das ligações entre as cidades industriais e Blackpool pode


ser traçado através de Bradshaw. Em 1865, havia somente dois trens diários
com vagões de terceira classe ligando Bolton e Blackpool; em 1870, quatro;
em 1875, doze; em 1880, treze; em 1885, catorze, e em 1890, vinte e três.
Mas há pelo menos uma forma mais geral e menos trabalhosa de estimar o
crescimento da indústria de férias, pois um relatório anual da Junta Comer-
cial num acr de 1861, permite-nos medir O volume de investimento pro-
posto em obras de pires e cais, muitos dos quais podem ser identificados
como píeres para lazer ou passcio, estruturas características das férias ingle-
sas à beira-mar?! O Quadro 1 distribui o investimento proposto no que
scria destinado a balneários primordialmeme de classe média e de classe
operária, omitindo casos duvidosos.” Este indicador, necessariamente im-
preciso, demonstra à ascensão dos balneários de classe operária a partir do
tinal da década de 1870, mas sobretudo o enorme salto no investimento
proposto na década de 1890, que, pela primeira vez, elevou os planos de
investimentos nos balncários de classe operária maciçamente acima dos des-
tinados aos balneários de classe média.
Quadro 1
Investimento projetado em píeres para lazer, 1863-1899
A] Classe média Classe operária

total médiaamial tonal média must


em mil liras em mil liras. em milliras em mil liras

1863-65 7” 30 1

1866 70 a
187175 30 6
1876-80 8 168

1881-85 o 584 U 14

1886-90

1891 172 HA 583

1896-99 158 as 48
102 ERIC HOBSBAWM

Podemos ilustrar o exposto com o clássico exemplo de Blackpoo!, on-


de os primeiros sinais reais de atividade surgiram na década de 1860, com à
construção do Pier Norte (que custou pouco mais da metade do que foi
gasto com 6 de Ventnor, na ilha de Wight), do segundo pfer e do primeiro
teatro. Durante a década de 1870, estamos nitidamente entrando em ne-
gócios substanciais: por exemplo, em 1878 iniciou-se a construção do Jar-
dim de Inverno, que viria a custar 107 mil liras. Mas a Blackpoo! que co-
nhecemos melhor é a da década de 1890: com sua Torre, à Roda-gigante, o
Pier de Vitória na Costa Sul, a expansão do passeio público, o Teatro de
Ópera (1889), o novo mercado, à biblioteca pública, a prefeirara e, para
completar, um tribunal especial de magistrados c um brasão.
Todos sabem que, ao contrário da classe média inglesa, que desen-
volveu um alto nível de padronização durante este período — especialmente
em sua fala —, os operários britânicos não perderam sua identidade re-
gional ou mesmo local, suas peculiaridades, gostos é orgulhos locais. E, no
entanto, é igualmente claro que o novo padrão de vida foi mais homogêneo
em termos naciona s do que em qualquer outro anterior lavra do car-
vão, os trabalhadores podiam até insiscir cm continuar usando as roupas de
trabalho ditadas pelo costume regional; ainda na Segunda Guerra Mundial,
a tentativa da Janta Comercial de substituí-las por uniformes-padrão causou
uma comoção considerável dos sindicatos. Entretanto, fora do trabalho. o
mineiro, como a maioria da população masculina, usava as mesmas roupas,
de Blyth até Midsomer Norton. O operário sc identificava com o seu time
local contra o resto do mundo — na verdade, em cidades suficientemente
grandes, eles se identificavam com uma das metades, City ou United, Forese
ou County: que entre si definiam o cidadão de Manchester, Nottingham ou
outro lugar qualquer. O modelo da cultura do futebol, entretanto, era o
mesmo em todos os lugares — com um pouco mais ou um pouco menos
de emoção —, e era um modelo nacional, ou, para ser mais preciso, um
modelo da nação proletária, visto que o mapa da Federação do Futebol era
praticamente idêntico ao mapa da Inglaterra industrial. Ele era nacional até
na conquista anual simbólica do espaço público da capital nacional pelos dois
exércitos proletários provincianos que invadiam Londres para o jogo de de-
cisão do campeonato. Desde O final da década de 1860, ocorreram rituais
coletivos regionais da mesma natureza, em particular as demonstrações anuais
dos mincirós, das quais sobreviveu a Festa dos Mineiros de Durham —
talvez justamente porque, em contraste com as outras, esta possuia a própria
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 103

característica de ocupação simbólica de uma capital provinciana pelos mi-


neiros, embora não ainda em nível nacional.
Um modelo nacional único, claramente padronizado da vida da classe
operária: e, ao mesmo tempo, cada vez mais específico a ela, É esta segre-
gação do universo do trabalhador manual britânico que é ão surpreendente **
Em primeiro lugar houve uma crescente segregação residencial, devido, por
um lado, ao éxodo das camadas de classe média c de baixa classe média de
áreas anteriormente mistas — este processo foi detectado na região de East
End de londres — e, por outro, à construção de novos bairros e subúrbios
exclusivamente destinados à uma classe, Alguns desses novos bairros, edificios
ou propriedades foram projetados para a classe operária: como o Queen's Park
Estate cm Paddington, em maior parte para os novos “suburbanos elegantes”,
que se identificavam (bastante adequadamente) com a nova baixa classe média
de burocratas: e a Villa Tory: espécie de gente que, segundo suposição do
Corubill Magazine de 1901, preferiria naturalmente morar, se pudesse, em
algum dos “subúrbios de funcionários” de Londres, como Clapham, Forest
Gate, Wandsworth, Walthamstow ou Kilburn.” Outras áreas não teriam
sido especificamente projetadas para uma camada social ou para o estilo de
vida de uma classe, mas acabariam por se transformar nisso, pelo fato de os
aluguéis excluírem inquilinos mais pobres ou, mais provavelmente, pelo fato
de o estilo de vida dos trabalhadores manuais e o dos empregados de paletó
é gravata, mesmo que com rendas semelhantes, divergirem cada vez mais.
No início de 1900, a segregação residencial entre os operários de melhor
salário (os “artífices?) «e à nova baixa classe média ainda não cra de modo
algum universal. Há registro de que os melhores tipos de habitação popular —
casas com cinco ou seis dependências — ainda cram habitadas indiscinta-
mente por “artífices, empregados de escritórios ou comércio, agentes de
seguros” e similares em Birkenhead, Bolton, Chester, Crewe, Crovdon, Dar-
lingron, Derby; Hull, Newcastle, Oldham, Portsmouth, Preston, Sheffield,
South Shields é Wigan; mas, numa série de lugares, observa-se espec
camente à ausência de operários neste tipo de habitação: ou descreve-se sua
ocupação “mais fregiientemente por parte de empregados de escritório, do
comércio « similares do que por pessoas geralmente incluídas no termo
“classes trabalhadoras”? Estas encontravam-se em Birmingham, Bradford,
Bristol, Burton-onslrent, Gasteshead, Grimsby, Halifax, Ilantey, Hudders-
ficld, Kidderminster, Liverpool (ou pelo menos Bootle), Manchester, Mid-
104 FRICHOBSSAWM

dlesbrough, Northampton, Nonvik, Nottingham, Plymouth, Reading,


Southampton, Stoke on Trent, Walsall, Wolverhampton e a maior parre da
periferia de Londres, Como as melhores habitações eram, em geral, as mais
recentes, podemos supor com razão que a segregação estava aumentando.
Da mesma forma, é claro, € pela mesma razão, aumentava à segregação
entre os artífices mais bem pagos e os menos bem pagos, muito embora
ainda se possa observar em diversas cidades ambas as camadas habitando o
mesmo setor — por exemplo: em Norwich, Nottingham, Preston e Stock-
por. Isto ocorria apesar de haver concentração das classes operárias dentro
do perímetro urbano e de sua relurância em mudar-se para longe do local de
trabalho -- o que é observado em diversas cidades, significando que os
cinturões da classe operária tormavam um bairro cocrente, embora residen-
cialmente estratificado. O conjunto de edifícios de Shaftesbury em Barrer-
sca, que era uma fortaleza de artífices (e do socialismo em Barrcrsea), fazia
parte, afinal, daquela área entre Lavender Hill e 0 rio, na qual “o grosso da
classe operária . reside”. *
Em segundo lugar, Os Operários eram segregados por suas expectati-
vas: Como disse Robere Roberts, antes de 1914 “os trabalhadores especiali
zados não lutavam por alcançar uma camada superior”: mas, na verdade,
mesmo a oportunidade de ascensão dentro de sua camada, isto é, abaixo da
classe média reconhecida. «ra diminuída por dois fatores: o crescente uso da
educação formal como um critério de classe (para não dizer, um mio de
sair da classe trabalhadora manual) e o declínio do caminho alternativo para
o orgulho é o amor-próprio; O treinamento e à experiência do artífice bem-
formado. Os operários eram cada vez mais definidos como aqueles que não
tinham instrução, ou que não percebiam nenhuma vantagem em tê-la: e o
contraste entre aqueles. que abandonavam à escola c os que permaneciam
nela, ou entre aqueles que conseguiam empregos com base em sua ins-
trução e aqueles para quem a instrução não fazia diferença — um contraste
ocasional entre pais e filhos, embora nem tanto entre mães é filhos (ve
D. H. Lawrence) —, este contraste intensificou as diferenças observadas
entre os trabalhadores manuais e os não-manuais. Por outro lado, a di-
minuição bastante ampla do papel da qualificação, que ocorreu durante os
trinta anos anteriores a 1914, gerou uma frustração que Askwith, o princi-
pal mediador do governo na indústria daquela época, considerou extrema-
mente importante. O jovem operário, diz cle,
PUSSOAS EXTRAORDINÁRIAS 105

não gosta de admitir para si mesmo que não extá sendo treinado para
ser um mecânico, ou um construtor de navios ou um construtor de
Casas, mas para ser um operador de máquinas. Porém, logo chega à
desilusão para à maioria; e, uma vez que 6 homem se torna desiludido,
uma consequência muito natural é o rancor e o antagonismo ao sistema,
que cle considera a causa de tudo:
Os horizontes do trabalhador qualificado cram desta forma cada vez
mais limitados pelo universo do trabalho manual, e os dos trabalhadores
menos qualificados ainda mais. Apesar de suas diferenças, eles foram em-
purrados para uma classe única mediante sua exclusão do resto da sociedade.
Em terceiro lugar, os operários eram segregados pela divergência de
estilos de vida, “o que os operários fazem” c aquilo que as outras classes
fazem. Desta forma, parece claro que à medida que o futebol ganhou o
apoio das massas, rormou-se cada vez mais uma atividade proletária, tanto
para jogadores como para torcedores. Sem dúvida, foi primordialmente uma
atividade dos trabalhadores mais especializados ou mais respeitáveis, mas na
medida em que torcer para um time unia todos os que viviam em Black-
burn, ou Bolton, ou Sunderland, e na medida em que o futebol tornou-se o
tópico principal da conversa social no bar? uma espécie de língua tranca
das relações sociais entre os homens, ele se tornou parte do universo de
sodos Os Operários. Mais uma vez, o sistema de apostas peculiar à classe
operária, que aumentou nitidamente em enormes proporções a partir da
decada de 1880, cra de natureza visivelmente proletária, Foi, conforme sugere
MeKibbin, “a forma mais bem-sucedida de independência da classe operária.
na era moderna”? uma rede ilegal, mas quase totalmente honesta, de tran-
sações financeiras, que penctrava em cada rua da classe proletária e em cada
oficina, O mesmo tipo de distinção de classe separava, cada vez mais, o
jornal de domingo (dos quais o The News of the World cormou-se o tipo ideal,
até o futuro surgimento do jornal prolerário diário), tanto na imprensa de
qualidade, quanto na imprensa dirigida à nova baixa classe média, liderada
vortheliffe. E, como foi mencionado, ainda havia o boné,
Finalmente, à classe operária não foi tanto segregada, como, na ver-
dade, alienada da classe dominante, por dois desdobramentos que, junta-
mente com a queda real dos salários, Askwvith considerou responsáveis pela
agitação operária de 1910-1914. Ele declarou confidencialmente ao Minis-
tério que estes eram: 2 ostentação do luso por parte dos ricos, especial-
mente demonstrada pelo uso do automóvel, e o crescimento dos meios de
106 ERIC HOBSBAWM

comunicação de massa, que proporcionavam uma melhor coordenação na-


cional das notícias — e da atividade.* Estou citando Askwith não como
prova de que a plutocracia — termo pertencente ao vocabulário da era cduar-
diana — ostentasse mais na belle épogue do que sob a rainha Vitória, embora
isto fosse possível; cito-o como confirmação da opinião de que a forruna dos
ricos era agora mais visível e portanto causava mais ressentimento.
A soma de tudo isso é a percepção crescente de uma classe operária
única, aglutinada através de um destino comum, sem levar em consideração
suas. diferenças internas, Uma classe no sentido social « não meramente no
sentido classificatório: um organismo dentro do qual já seria absurdo falar
da “classe dos minciros” em contraste com a “classe dos trabalhadores de
cotonifícios”, como Keir Hardi fizera ainda no início da década de 1880.
E isto realmente explica de que forma um período que forneceu um bom
número de razões para O seccionalismo crescente é para a luta interna entre
grupos de operários - - cm relação à indústria de construção naval — póde
também ser o período em que os trabalhadores cada vez mais se perecbiam
é agiam como o Irabalhismo, com T maiúsculo. A história de como esse T
se tornou maitisculo ainda está por ser escrita, da mesma forma que a his-
tória de como a classe trabalhadora passou de substantivo plural para sing
lar, mas resta pouca dúvida de que esta transformação se tornou observável
no quarto de século anterior a 1914. É, na verdade, mesmo em termos
puramente econômicos, a parrir de 1900, e até mais, a partir de 1911,
podemos observar uma convergência em vez de uma divergência entre os ní-
salariais locais, regionais, qualificados e não-qualificados. Como Hunt de-
monstrou, até 1890 os sindicatos e o ambiente geral das relações industriais na
Grã-Bretanha contribuíram para sustentar as diferenças: entre 1890 e 1910
não foi exercida influência nítida em nenhuma das duas direções, mas, em
191, eles já eram uma força que contribuia para a redução das diferenças.
Os políticos estavam cientes dessa consciência de classe — do que Cham-
berlain, em 1906, chamou de “a convicção. surgida pela primeira vez entre
as classes operárias, de que sua salvação social está em suas próprias mãos” 2
Se a política partidária não devia ser identificada com o conflito de classes,
agora deveria render homenagem à supremacia de classe ao apelar para os.
operários em prol do partido, À região de Rhondda — como proclamavam
seu parlamentar. o liberal-trabalhista Mabon € o jornal local — era “Tra-
balhista em todas as suas aspirações”, mas 0 foco principal dessa observação
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 107

cra com certeza contrapor que ela não cra somente Trabalhista: “Como os
homens não conseguem viver somente da pão, os eleitores mineiros da re-
gião de Rhondda são nacionalistas, são não-conformistas” etc. A retórica
política da era eduardiana “tinha de usar uma linguagem, e em especial à
palavra “Irabalhismo” para unir scus partidários dentro do padrão cstabe-
lecido da política”.*” do qual cles ameaçavam escapar. Nas regiões onde o
apelo à religião e à nacionalidade era suficiente, como na Irlanda do Norte é
na Liverpol de Salvidge, o conceito de classe não teve grande repercussão —
ou não obteve resultados significativos — na linguagem da política local.
Paradoxalmente, o conceito de classe entrou na política rrabalhista pela
porta dos fundos, Na medida em que se considerasse um homem como
“representante de uma classe”, cle seria, na verdade, encarado como “de fora
da arena da “política partidária”, mesmo se como indivíduo cle pudesse ser
do Partido Liberal, Tóri, ou, mais raramente, Socialista.” Isto significava
que socialistas e não-socialistas podiam muito bem colaborar no novo Par-
tido Trabalhista, ou que os mineiros, fortemente inseridos no Partido Libe-
tal, podiam se transferir para o “Irabalhista sem mudar seus pontos de vista
Também significava que trabalhadores ligados ao Partido Tóri, que não vo-
tariam em candidatos do Partido Liberal, podiam votar em candidatos tra-
balhistas. Isto foi comentado quando Will Crooks venceu a eleição em Wool-
wich em 1903, uma eleição tão desesperançosa que os liberais nem tinham
apresentado candidato para cla em 1900: € ela foi significativa no Tan
shire, onde os operários estavam politicamente divididos, muito embora, a
“política fabril* de Jovee já estivesse em rápido declínio na década de 1890
Foi à jazida de carvão do Lancashire que teve sua grande maioria afiliada ao
Partido Trabalhista c, em 1913, às sindicatos do algodão, declaradamente
não-radicais, votaram em ampla maioria a favor da coleta de uma tura po-
lítica, em todas as sedes com exceção do baluarte tóri da classe operária de
Oldham.*
Entretanto, é necessário perguntar se isto teria acontecido caso os interes-
ses comuns dos operários como classe já não parecessem, mesmo na política,
“mais importantes, ou pelo menos de maior relevância imediata, do que outras
lealdade. Isto só não ocorreu em Liverpool e Belfast. Muito em breve, uma
opção pelo Parrido Trabalhista iria se tornar uma opção contra os outros parti-
dos, é não uma forma de desvio da política partidária. Pode até ser que a
estagnação do voto trabalhista após 1906 tenha refletido a dificuldade de dar
este passo seguinte: a guerra de 1914 climinou essa dificuldade
108 ERIC HOBSRAWM

Pois este passo pressupunha a visão socialista de um partido trabalhista


independente, O que cra essencialmente diferente das primeiras lutas por
uma representação trabalhista independente no Parlamento. Esta fora basi-
camente uma exigência de que houvesse alguns operários no Parlamento,
que pudessem falar diretamente em favor dos interesses específicos do tra-
balho manual, da mesma forma que diretores de ferrovias falavam pelo in-
teresse ferroviário, ou proprietários de navios pelos interesses do transporte
marítimo. O problema com o Partido Liberal não era o faro de ele se opor a
esta representação, como partido nacional — pelo contrário —, mas o Partido
Liberal não conseguia aceitar que o novo conceito de “Trabalhismo inde-
pendente implicasse mais do que um punhado de trabalhadores com autori-
dade, ou ex-trabalhadores, como congressistas: um Joseph Arch, um Burt,
e até — por que não? — um John Burns, que falava pelo Trabalhismo como
Cobden e Bright haviam falado pelos manufaturciros de Lancashire. Isto
implicava que os operários somente deveriam votar em representantes da
classe, Como Ramsay MacDonald explanou em 1903, “assim que houver
um movimento trabalhista em política, o próprio significado da represen-
tação trabalhista deve mudar”, pois “a política trabalhista era a expressão
das necessidades da classe operária”; mas, acrescentou de maneira carac-
terística, “não como uma classe, e sim como o principal elemento constitu-
tivo da nação”? Contudo, à luta de classes não podia ser eliminada tão
facilmente da política da classe operária, muito menos numa época em que
era conduzida com animosidade crescente por ambos os lados.
E isto me leva ao último tópico: a consciência de classe, Deliberada-
mente evitei identificar os sentimentos « opiniões das massas operárias, até
onde temos conhecimentos deles, com os da vanguarda de ativistas e mifi-
tantes, porque evidentemente uns e outros não eram os mesmos. Os ativis-
tas estavam imbuídos do espírito de inconformismo, numa época em que à
dissensão estava em declínio, Desprezavam energicamente uma boa parte do
modo de vida da nova classe operária — especialmente a cultura do futebol.
Seria possível se compilar uma grande antologia com Os escritos dos so-
cialistas contemporâneos expressando horror, desprezo pela estupidez e
indolência das massas proletárias. Quaisquer que fossem as implicações da
consciência de classe para os militantes. as massas não estavam à altura das
suas expectativas. E, no entanto, é igualmente incorreto encarar à classe ope-
rária simplesmente como um submundo estóico apolítico, um gueto abran-
gendo a maior parre da nação, ou, na melhor das hipóteses, uma força que
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 209

podia ser mobilizada na defesa de seus estreitos interesses econômicos, en-


quanto sindicalizados potenciais ou reais. Eles também adquiriram uma cons-
ciência de classe, Não quero dar ênfase indevida à conversão de uma pe-
quena minoria de operários ao socialismo, embora ela não tenha sido sem
importância; nem mesmo ao sucesso surpreendente desta minoria e de suas
organizações, ao sc tornarem aceitas como quadro de líderes políticos e in-
teleccuais a partir da década de 1890. Os movimentos operários precisam de
líderes, « os lideres necessitam ser treinados, Desce o ressurgimento do socia-
lismo, às organizações da esquerda socialista forneceram mecanismos con-
sideravelmente mais cficazes tanto para reunir a elite auto-selecionada de
trabalhadores aptos, inteligentes, dinâmicos e inovadores — principalmente
juvens operários — como para lhes promover a melhor instrução. Em nosso
período, estas pessoas começaram suas carreiras como participantes da So-
cial Democracia, do Partido Trabalhista Independente ou do Movimento
Sindicalista Revolucionário, da mesma forma que no período entre-guerras
os futuros líderes do movimento sindical nacional se iniciavain no Partido
Comunista. Eles eram aceitos como líderes por pessoas que não comparti-
Ihavam de seus pontos de vista porque eram os melhores € apresentavam
idéias pertinentes, bem como algumas aparentemente não-pertinentes. Mas
é claro que há mais na transformação política do crabalhismo do que esses
fatos. O que ainda temos de explicar é a transformação dos minciros, de um
corpo notoriamente imune ao apelo dos socialistas, ao que já foi chamado
de “a guarda pretoriana de um Partido Trabalhista explicitamente socialis-
ta O que temos de explicar é não somente por que isto aconteceu em
áreas de luta exacerbada de classes, como no sul de Gales, mas também em
áreas desprovidas de militância industrial digna de nota, como no Yorkshire;
não somente nas jazidas de carvão onde os minciros viviam em condições
péssimas, como nó Lancashire, mas também cm algumas onde destrutavam
de boas condições.
Ao contrário do progresso movimento sindical em nosso período, que
dobrou em múmero e, mais tarde, após uma par de décadas, dobrou no-
vamente, até alcançar mais de 4 milhões em 1914, é praticamente impos-
sível mapear O progresso da consciência de classe. A ascensão do que, até
para nossos padrões, é considerado sindicalização em massa — é, em 1910-
1914, militância em massa —, sem duvida indica alguma transformação,
mas sta natureza exara não está esclarecida. Os indicadores eleitorais são
falhos, em parte porque outros trabalhadores não são tão facilmente identi-
no ERIC HORSBAWM

ficáveis como eleitores como os mineiros o são, mas especialmente porque


as estatísticas eleitorais do voto trabalhista independente são obscuras até
1906, « não significativas daí até 1914, É somente de 1918 em diante,
quando o Parrido Trabalhista repentinamente aparece com 24% do total de
votos, atingindo 37,5% em 1929, que o fato de votar no 'Irabalhismo pode
ser usado com razão como um Índice de conscientização política da classe
A esta altura, torna-se possível declarar que amplas massas, € cada vez maio-
res, de operários britânicos consideram o voto Trabalhista como consegiiên-
cia automática de serem trabalhadores. Até 1914, isso ainda não acontecia
Ainda em 1913, 43% dos minciros votaram contra O pagamento ao Partido
“Trabalhista de uma contribuição política ao sindicato, *
Entretanto, mesmo que o fazer-se da consciência da classe operária não
possa ser medido quantitativamente até 1914, ainda assim ela está ali. Em
1915. Beatrice Webb póde dizer que “o poder do movimento reside na
obstinação maciça das bases, cada dia mais representativas da classe ope-
rária. Sempre que este sentimento maciço puder ser dirigido contra ou em
prol de alguma medida em particular, cle se torna quase irresistível. Nossa
classe governante inglesa não ousaria desatiá-lo abertamente” Em 1880,
ninguém poderia ou teria feito tal declaração a sério. As duas nações de
Disracli não eram mais os ricos e os pobres, mas sim a classe média c a
classe operária; uma classe operária que em seu ambiente físico, suas práti-
cas e costumes é reconhecível, pelo menos nas áreas industriais, « semclhan-
te à descrição que Richard Loggart fez dela em seu livro Uses 0f Literacy,
pela experiência do período entre-guerras. Na medida em que a classe ope-
rária deixava de ser respeitosa, apolítica e apática, sua prática política não
estava mais implícita muma crença geral nos direitos do homem, onde os
operários representavam meramente um amplo setor do conceito abran-
gente de “povo”. A política do cartismo, fosse como um movimento inde-
pendente de massa ou como parte do radicalismo liberal, começa a desa-
parecer. O último movimento desse tipo foi fundado quase ao mesmo tempo
que a Comissão de Representação “trabalhista. Ele unia a esquerda de mea-
dos da era vitoriana do Remolds News, que O inspirou, poderosas figuras
liberais-trabalhistas como Howell, Fenwick « Sam Woods, com os novos
indicalistas da esquerda socialista: Tom Mann e Bob Smillie; a abençoar o
movimento, John Burns. Entretanto, esta Liga Nacional Democrática desa-
pareceu antes de 1906, após uns poucos anos de influência considerável.
Duvido que alguma história geral da Grá-Bretanha desse período sequer
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS ue

mencione scu nome. Mesmo historiadores do movimento operário não lhe


concedem pouco mais do que uma nota de rodapé. O futuro estava nas
mãos da Comissão de Representação Trabalhista é a essência de seu pro-
grama, qualquer que fosse, consistia especificamente em servir às exigências
e aspirações da classe operária.
Queria concluir com mais um mineiro. Escolhi Lerbert Smith (1862-
1938) porque ele não foi nem ativista religioso nem homem que sc pudesse
associar a alguma ideologia ou, apesar de seu entusiasmo pela instrução, à
muita leirara. Ele era provavelmente tão semelhante ao minciro médio quanto
qualquer outro líder conseguiu ser, mesmo entre mineiros, mesmo na região
sul de Yorkshire: um homem baixo, duro, confiável, mais entusiasmado com
o criquere e com o Barnsley Foorball Club, à cujos jogos assistia religio-
samente, do que com idéias; um homem que tendia mais à pedir aos opo-
nentes que saíssem da frente do que à discutir. Lerbert Smith progrediu
regularmente de controlador de pesagem até à presidência dos mineiros de
Yokshire e, finalmente, na década de 1920, a da Federação dos Minciros,
Em 1897, com a idade de 35 anos, decidiu apoiar o Partido Trabalhista
Independente. É a idade avançada desta decisão que torna sua conversão
significativa. Daí em diante, continuou a ser um socialista e, embora na
década de 1920 fosse duro com os comunistas, pelos padrões da cra eduar-
diana, era um membro da esquerda do Partido “Irabalhista Independente.
Evidentemente, não cra a ideologia que 0 atraía. Era a experiência da luta
dos mineiros, e o fato de os socialistas reivindicarem o que cle pensava da
necessidade dos minciros: uma jornada legal de oito horas, um salário mí-
nimo garantido e melhor segurança física.
Mas sua escolha também expressava uma consciência de classe visceral,
militante é profunda, que encontrava expressão visual em sua maneira de
ir. Uma de suas biografias recebeu o título de The Man in the Cap Ele
usava O boné como uma bandeira. Há uma fotografia sua em idade avan-
sada, como prefeito de Barnsley. com o lorde Lascelles na elegância alon-
gada de sua classe, de chapéu-coco « guarda-chuva fechado, e com o chefe
da polícia num uniforme com alamares. Herbert Smith, um velho atarra-
cado, gordo, usava a corrente é as insígnias de prefeito, mas acima delas
portava o seu boné. Seria possível dizer muito sobre sua carreira, nem tudo
seria clogioso, embora cu desafie qualquer um a negar compleramente ad-
miração por um homem que, em 1926, sentava-se à mesa de negociações
com o boné na cabeça, sem a dentadura, que cle colocava sobre à mesa para
n2 ERIC HOBSBAWM

sentir-se mais confortável, « que, como representante dos minciros, dizia


“não” aos donos das minas, ao governo é ao mundo. Tudo o que desejo
transmitir aqui é que o líder operário Herbert Smith e sua carreira teriam
sido impensáveis em qualquer outro periodo anterior da história do mo-
vimento operário — « talvez também em qualquer período posterior. Ele se
fez juntamente com a nova classe operária que ele ajudou a se fazer, « cuja
emergência nas décadas anteriores a 1914 eu tentei esboçar. Dentre os milhões
de homens de boné ele foi sem dúvida excepcional: mas somente foi cxccp-
cional como uma árvore especialmente majestosa o é numa grande floresta.
Houve uma série incontável de outros, menos proeminentes, menos politi-
zados, menos ativos, que se reconheceram em sua imagem, e nós deve-
ríamos reconhecê-los também.

Notas

1.E. P Thompson, Lhe Making of the Esulido Wirking Class, Lendres, 1963. TA for-
mação da ease operciri ingles. Rão de Janeiro, Paz e Tesra, 1987.]
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2,p.24
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5.H.S, Jevuns, Th Bririss Coal Irado, Londres, 1915: cor base em dados das pp. 65 €
217; Earning and Hlouos Enquiry 1: Têxtil Trndes (Parl. Papers. Lxxx1 de 1909, p.
273: 3H. Clapham, The Economie History, pp.15-7,
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Hincon, The Hist Shop Serwants" Movement, Lundres, 1973. p. 28: M, €. Reed (ong),
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Relations 1875-1914. Brigehon, 1982, cap. 4
9H. A Clegg Alan Foxe A. T Thompson, A Hisory of Briis Irde Umionssénco 1889,
Oxford, 1964, p. 471
10, Chris WWrigley, “The Government and Industrial Relations” e Roger Davidson. “Go-
vernment Administraion”, in C. 7. Weigley torg 1, op. ci, caps. 7 € 8
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS na

11. A informação solre Richardson e Rus foi olxida em Jovee Bellamy e John Savile
orgs. ), Dictionary
of Labor Biagrapby. 9 vols , Londres, 1994, vol. 2. pp. 320, 326,
12. Pau Martiez, The Erencio Communari Refigecs in Brivain 1871-1880 (rese ce dou
torádo, Universidade de Sussex, 1981), p. 341
13.C£ E], Hobsbawm e E Ranger (orgs), The Jimentim of Tradizins, Cambridge,
1983. p. 295. [Tead. por. À invenção das imadiçies, Rio de Janeiro, Paz é Terra,
1984]
1 Victoria Conniy History of Norkulire, Londres, 1914, vol. 2. pp: 543 ess.
15:E.H. Hunt, Labour Hist. pp. 77; D. À. Reid, =The Decline of Saint Monday
1766-1876, sr and Preene, n.º 71, 1976. pp. 76-10)
16.7.C. Barker, JC MeKenzie e J. Yudkin (orgs.), Osor Chmmina Pare: Tso sondred
Tears of ris EauHabit, Londres, 1966, p. LO: “Chatchup” (WE Toftas). The Fish
der ama Hi Irado: Or Elim to Eseabliso amd Cano om a Upeto-dato Eis Ervina Bus
nes, Londres, s/d. pp. 15, 23-4 Das dez firmas fabricantes de fogões para friruras
mencionadas ou anunciadas neste manual, com exceção de duas codas estão em Lan-
sashire e Yorkshire
17: Tomy Mason, Aseiacion Football and Engl Society, 1R63-1915, Brigitom, 1980.
18.C.D, Stuart & A, 7. Park, he Tier Stage, Londres, 1895; G. 7 Mellor, Zhe North
er Muse Hall, Newcastle, 1970.
19.7. B, Jeflerys, Rerail Iiading in Brain, 1850 1950, Cambridge, 1954: W Hamish
Eraser, The Coming of che Mass Marke, 1850-1914, Lunáres, 1982.
20. Cyril Ehuich, fe Piano: A History, Londres, 1976, pp: 102-3.
21-Joho Burner. Plenty amd Manto A Social Hisory 0f Dis in England from 1815 to she
Presens, Londres, 1966, po LUI
22, Geofitey Grecn, The Hisory ofthe Football Asuciatiom, Londres, 1953, p. 125.
23. Herapauho Raúlvay Josrmal, 19 abr. 1884. p. 441.
24, Issa ocorreu de acordo com O General Prer and Harbous Act 0º 1867. Retarórios em
Pai. Papes, Lx, 1863; 1X, 1868: 1, 1865: LN, 1866; LX, 1874; LINA, 1875; INV,
1876: Li, 1877; ENVIA, 1878: NM. 1878-9; 1xv7, 1880: Lesour, TA8T; ti
1882; tun, 1883; LAN, 1884: 1x, 18845; Ls, 1886; Luv, 1887: NC, 1888 LUIS,
1889; 1391, 1890: 107%, 1890-1: 139, 1892, [34X, 1893-4; 1997, 1894; Laxavil,
1895, Lav, 1896; 1XNNU, 1898; EXTNVIL 1899, Ver cambém: Retiers fiom the
Auchoviis of Faris. Civiny desci ofmun exccnced wish she fas rm pe,
Aliminguishina pis dock. cuca. Papers 11 de 1883)
25, Os balneários à beira-mar foram classificados segundo seu “mari social” (para usar à
expressão adequadamente vituriána de HT. J. Perkin), de acordo com o conhecimento
geral (por exemplos Torquav ou Skegmess) « com as conclusões de inúmeros pesquisa-
dores, começando com E. W. Gilber, “The Growth of Inland and Seaside Health
Resores in England”, Scott Gepgrapisical Magazine, nº 53, 1939, Para uma biblio-
grafia, ver J. Wialvin. Leisure and Sociciy, 1430-/950, Londres, 1978; cf. também 1)
ns ERIC HOBSBAWM

Perkin, “The “Social Tone ot Victorian Seaside Resords in the Northwest”, em seu
The Structured Crowd Esays im Engl Social History: J, Lowerson e T. Myerscongh.,
Timeso Spas im Victorian England, Brigiton, 1977, pp. 30-44. Neste último período,
o investimento da classe média está provavelmente supervalorizado, em parte porque.
diversos grandes projetos de empresários foram recusados, em parte porque, com o
tempo, mesmo os bancários de classe média vieram a reconhecer. por vezes com.
relutância, O potencial financeiry do mercado de massa.
26. Para uma visão de um “gueto” da classe operária, ver €. E G. Mastermun, (he Hearr
of the Empire, Londres, 1901, pp. 123.
27.6. 5, Layard, “Family Budgers II”, Comil! Magazine ns 10, 1901, pp, 656 55
28. Board of Irade, Report om Cas af Living (Bart. Papers, CX. 1908), passim O trecho
citado está na p. 655
29, Ibid., po 406
30, R. Roberts, The Clasie Slem. Mnachester, 1971, p. 13.
31, G Askovith. Indusrial Problems and Disputes, Londres, 1920.p. 10.
32.8. 5 Rowneree, Pierry and Progress À Second Social Survey af Tork, Londres, 1941,
pp. 359-60
33, Ross MeKibbin “Working-Class Gambling in Britain, L880-1939º, Past and Preso
n.º 82, 1979,p. 172,
34, Citado em IL. Peling, Popular Potts amd Soiesy im Late Victirian Brisaim, Londres,
1968,p. 147.
35. Frod Reid, “Keir Iantie's Conversion to Socialism”, in Asa Briggs e Jonh Savio
(orgs), Esses és Labor History 1886-1923, Londres, 1971, p. 28.
36, Julian Amen in Janes L. Garvin (orgs, 1h L4f of oephr Chmberiain, Londres,
1932-1969. vol. 6,p. 791,
37. Stcud, “Lhe Language of Fdiwardiam Policies”, in D. Smith (org. 1, A People and a
Proletarino, Londres, 1980, p. 150.
38.P ]. Wallr, Democracy and Sestarianion: A Thltical amd Social Hissory of Livergoot
1868-1920, Liverpool, 1981, caps. 7, 13-15.
39. H. Poling e E Bealey. Lobour and Pois, 1900-1906, Londres, 1958,p. 158.
40, Ray Gregor the Miners and British Polis, 1906-1914, Londres, 1968,p. 185
“SL, Joseph L. Whie, The amis of Lie Union Milzanoy, Wesipem-Londres, 1978, pp. 1525.
42. Citado em David Marquand, Kanisty MacDomala. Londres, 1977, p. B4
43, Gregory; Miner, p. 175.
As. Tbid., p. 188.
45. Beatrice Webb, Diaries 1912-1924, Londres, 1952, p. 45
46, Jack Lawsoo, The Ma óm the Ca: The Life of Herbere Smith, Londres, 1941
Capítulo 6
VALORES VITORIANOS

Enero outras coisas, este eapúluo é soma od fiânebve no openário animal qua-
lificado. Faé apresentado omipinariamente como uma Conferência Tawnoy na
Sociedade de História Económica, em 1983, Ece 0 mutivo de, no final, conter
a referência a R. TIL Tiwncy (1880-1962), figura de importância fiunda-
mental na história econômica brizânica, no socialismo é na luta — para
mencionar o sérulo de dois de seus livres — em fimo da “Igualdade” e contra
a “Socicddade da ganância”.

Este capítulo é essencialmente uma discussão à respeito dos destinos e


transformações do operário manual qualificado « assalariado na primeira
nação industrial. Suas características, valores, interesses e mecanismos de
proteção têm suas raízes no longinquo passado pré-induscrial dos “ofícios”.
Os quais forneceram o modelo até mesmo para as ocupações qualificadas
que não podiam ter existido antes da revolução industrial, tais como os
Artíficos de Máquinas a Vapor. A trabalho qualificado continuou carregando as.
marcas desse passado até anos bem avançados do século X ; sob alguns
aspectos, sobreviveu firmemente até a Segunda Grande Guerra, Hoje ad-
mite-se de mancira geral que, em seus primórdios, a economia industrial
britânica bascou-se extensamente, c muitas vezes fundamentalmente, na mão-
de-obra manual qualificada, com ou sem à ajuda de máquinas equipadas de
motor, Isso se dava por motivos de tecnologia (na medida em que a habili-
dade manual ainda não podia ser totalmente dispensada): por motivos de
organização da produção (porque a mão-de-obra qualificada suplementava
é, em parte, substiruía o projeto, o conhecimento tecnológico e a adminis-
tração); e, de modo mais fundamental, por motivos de racionalidade em-
presarial. Na medida em que esta mão-de-obra não constituía tropeço para
16 ERIC TIOBSBAWM

à realização de lucros satisfatórios, os altos custos para substituí-la, ou que


acompanhavam sua substituição, não pareciam se justificar pelas perspecti-
vas de lucros obtida sem ela, Isto não se aplicava apenas a casos especiais
como Fleet Street. Sir Andrew Noble de Armstrong's argumentava, sem
vida corretamente, que se podia ganhar mais dinheiro com a construção
de um só barco fluvial do que com a produção de 6 mil automóveis.! Dife-
rentemente do que ocorria nos Estados Unidos, não havia escassez de mão-
de-obra manual qualificada. E o maior incentivo para sua substituição, ou
seja. a produção em massa de bens padronizados, era extraordinariamente
fraca ou irregular no mercado interno britânico até as últimas décadas do
século; ao mesmo tempo, à posição de domínio das mercadorias britânicas
no mercado mundial ou, mais precisamente, nos mercados do que hoje
chamaríamos de terceiro mundo e de império branco, mantinha a viabili-
dade dos antigos métodos de produção. Além disso, pode-se aventar que.
em termos de salários cm dinheiro, o trabalho qualificado britânico prova-
velmente não era caro. Talvez tivesse custado menos do que os negócios
suportavam
O operário qualificado britânico ocupava, pois, uma posição funda-
mental de considerável força e, quanto mais a ocupasse e dela se aprovei-
tasse, mais problemático e custoso seria desalojá-lo. De fato, a qualificação
podia ter sido destruída. Os trabalhadores qualificados foram derrotados em
batalhas campais aparentemente decisivas entre o começo da década de 1830 e
o da de 50 — até mesmo os poderosos mecânicos. Contudo, o que veio à
seguir, nas décadas de 1850 e de 1860, na maioria das indústrias, foi um
sistema tácito de arranjos e acomodações entre os mestres e a mão-de-obra
qualificada, que sarisfez a ambas as partes. A posição dos trabalhadores qua-
lificados forraleceu-se a tal ponto que a tentativa posterior, muito mais siste-
mática, de substituí-los por uma mecanização nova e mais sofisticada e pela
“administração científica” foi também em grande medida um fracasso. O
areesão do século XIX estava de fato condenado. A não ser em alguns pe
quenos setores, ainda que fundamentais, da economia industrial, e na inci-
piente economia informal, ele — pois até mesmo em nossos dias raramente
é uma ela — já não vale para muita coisa. Mas então a indústria britânica
também não.
A história do artesão é, pois, um drama em cinco atos: o primeiro
coloca-o em sua herança pré-industrial, o segundo trata de suas lutas no
início do período industrial, o terceiro, de suas glórias em miados da era
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS u7

vitoriana, o quarto, de sua resistência bem-sucedida a ataques prolongados.


O último vé sua decadência « ruína, gradativa mas de nenhum modo suave
a parrir do final da expansão do pós-Primeira Grande Guerra.
Começarei com uma observação simples, Na maior parte das línguas
curopéias, a palavra artesão, ou seu equivalente, usada sem uma ressalva, é
automaticamente entendida como significando algo como um arrifice inde-
pendente ou um pequeno mestre, ou alguém que pretende vir a sé-lo. Na
Grã-Bretanha do século XIX, considera-se automaticamente que também se
efere a um operário assalariado qualificado ou, algumas vezes, no início
(como em Avtisas ana Machinery, de Gaskell), à qualquer operário assala-
riado: Em suma, as tradições e os valores do artesão se proletarizaram neste
país como em nenhum outro lugar. O próprio termo artesão talvez seja
enganoso. Pertence em grande medida ao mundo do discurso social é poli-
tico do século XIX, passando provavelmente a integrar o vocabulário público
no decorrer das malfadadas campanhas, praticamente os derradeiros esfor-
ços coletivos entre mestres de oficio e artífices — estes já amplamente pre-
dominantes — para repor as coisas de acordo com o código clizaberano do
trabalho, ao final das guerras napoleônicas, O termo parece ter sido em-
pregue raras vezes, no século XVIII, para descrição ou classificação social.
Hoje, a palavra que é empregada de maneira quase universal nos círculos da
classe operária é “comerciante”. Enquanto, no uso feito pela classe média do
século XIX, cla passou a significar, quase sem exceção, um pequeno varejista
em geral (um homem que estava “no comércio”), no seu uso pela classe
operária cla conservou, e talvez entre os mais velhos ainda conserve, o uso
do antigo ofício do homem que “tem um oficio”: neste caso, caminham
juntas à língua e a diferenciação da posição dos artífices entre aqueles que
fazem é aqueles que vendem. Observemos de passagem que enquanto “estar
no comércio” provoca conotações de desprezo ou de respeito, “ter um ofi-
cio”, pelo menos para os que o possuem, ou sc comparam aos que o pos-
suem, conserva suas conotações de satisfação própria e orgulho.
Do mesmo modo que à palavra mestre apresenta um desenvolvimento
semelhante, tornando-se, como cra usada no século XTX, Sinônimo de “em-
pregador”, assim também, inversamente, “artífice” torna-se sinônimo de tra-
balhador de ofício assalariado. De fato, no princípio da industrialização, é
por vezes usado com referência a qualquer operário assalariado. As socie-
dades de ofício e os sindicatos de ofício em que sobrevive o nome do antigo
artesanato não são hoje apenas corporações de ofícios tradicionais, tais co-
ns FRIC HOBSRAWM

mo chapeleiros ou fabricantes de escovas, mas de outros antes não existen-


tes, tais como artífices de máquinas a vapor € caldeireiros. Enquanto os
sindicatos foram gradativamente eliminando de seus títulos o termo “ar-
tifice”, a palavra como tal continuou a ser uma descrição do homem qualifi-
cado, já não em contraposição aos “mestres” de seu ofício, mas em con-
traposição aos aprendizes, cujo número buscava controlar €, especialmente,
em contraposição aos “trabalhadores braçais” ou “ajudantes gerais”, contra
Os quais defendiam o monopólio de seu cargo. Assim, a diferenciação e a
estratificação de classes no século XIX está profundamente enraizada no vo-
cabulário, « portanto nas memórias congeladas, do mundo pré-industrial
dos ofícios.
Mais ainda: O termo ofício passou a estar essencialmente identificado
com os trabalhadores qualificados que o praticam. “Os homens de cada
oficio referem-se ao próprio ofício como o oficio”? “Relativamente às ques-
tões de trabalho”, diz um dicionário do trabalho do começo do século xx,
“esse termo denota ou 1) um ofício ou ocupação específica no campo do
emprego manual, ou 2) 0 corpo coletivo de operários ocupados mum só
ofício ou ocupação específica”. De fato, anualmente, “o ofício” pode ser
sinônimo de “sindicato”. Assim, ainda na época da Segunda Grande Guer-
ra, encontramos um aprendiz de tanoeiro — chocado por ver um trabalha-
dor braçal fazer um trabalho qualificado — obrer êxito na ameaça que faz à
seu chefe de levar o assunto ao conhecimento “do ofício”, caso não o man-
dasse parar com aquilo*
Não desejo insistir sobre a questão lingúística, embora ela seja impor-
tante é compensasse uma pesquisa sistemática. Em todo o caso, está claro
que não só o vocabulário e as instituições da organização pré-industrial dos
ofícios se transferiram para a classe operária quase en blvc, mas também que
à distinção classificatória básica da era vitoriana no interior das classes traba-
lhadoras provém da tradição dos ofícios. É de conhecimento comum que à
divisão vitoriana dos operários em “artesãos” (ou algum cermo semelhante.
tal como mecânicos”) e trabalhadores braçais era irrealista c sempre fora
descritivamente inadequada. Contudo, foi aceita de maneira muito ampla, e
não só pelos operários qualificados, como representativa de uma dicotomia
autêntica; isso não ocasionou nenhum problema classificatório de importân-
cia até que se expandissem os grupos que não podiam, de mancira realista,
nem ser enquadrados num dos compartimentos, nem ser desprezados. Daí
que, a partir da década de 1890, passaram a ser conhecidos vagamente co-
PESSOAS EXIRAORDINÁRIAS un

mo “semiqualificados”* Do ponto de vista do patrão, isso representava a


diferença entre a mão-de-obra qualificada, isto é, “toda aquela que exige
longo período de serviço, quer mediante um contrato ou acordo definido, e
numa única firma, quer sem esse tipo de acordo, deslocando-se o aprendiz
de uma firma para outra”, e toda a restante mão-de-obra. Essa era também,
essencialmente, à definição dada pelos trabalhadores.”
Do ponto de vista destes, isso representava a superioridade qualirariva
do ofício assim aprendido — o profissionalismo do artesão — e simul-
taneamente de seu stazus c remunerações. O artífice que passou por apren-
dizado cra o tipo ideal do aristocrata da mão-de-obra, não só porque seu
trabalho exigia habilidade c discernimento, mas também porque um “o
cio” proporcionava uma linha de demarcação formal, idealmente insticu-
cionalizada, separando os privilegiados dos desprivilegiados, Não importava
muito que O aprendizado formal quase certamente não fosse a porta de
entrada mais importante para muitos ofícios. George Lowell estimou, em
1877, que menos de 10% dos membros do sindicato haviam passado por
um aprendizado propriamente dito? Entre estes, encontrava-se Robert Apple-
garth, secretário da Sociedade Unida dos Carpinteiros e Marceneiros c um.
firme esteio dos ofícios. O fundamental era que bons monradores —- mes-
mo bons carpinteiros c pedreiros, que cram muito mais vulncráveis a in-
tromissões — não se faziam num dia ou num més. Na medida em que à
verdadeira qualificação cra indispensável, os artesãos dessa espécie estavam
menos inseguros do que por vezes se tem sugerido: havendo trabalho dis-
ponível, jamais estariam sem trabalho. Eles tinham de se proteger não tanto
contra trabalhadores braçais ou mesmo ajudantes gerais, que podiam ime-
diatamenre assumir seus postos, como contra uma super-oferta a longo pra-
zo de oficiais treinados — e, naturalmente contra a insegurança do ciclo do
ofício e do ciclo da vida. Em muitos ofícios, por exemplo na mecânica, era
pequeno o risco de geração descontrolada de um exército de reserva, em-
bora fosse significativo em alguns dos ofícios da construção civil. devido à
grande afluência de trabalhadores do campo treinados.
São esses, pois, os artesãos de que estamos tratando. De passagem. assi-
nalo que eles não devem ser confundidos com o chamado “artesão inteligente”
dos debates da era vitoriana sobre a reforma parlamentar, ou de Thomas
Wrighr, aquele “herói das mil notas de rodapé”, para citar Alastair Reid. Os
artesãos eram, de fato, suscetíveis de ser mais bem instruídos do que a maioria
dos não-artesãos e, como demonstra à história da maioria dos movimentos
120 ERIC HOBSRAWM

operários, muito mais suscetíveis do que os demais para ocupar postos de


responsabilidade e liderança. Até mesmo na década de 1950, os operários
qualificados proporcionavam a mesma proporção de dirigentes sindicais em
tempo integral — cerca de 95% — nos antigos sindicatos de ofício com
forte acréscimo dos semiqualificados, que nos sindicatos ainda descritos co-
mo sindicatos de qualificados.” Contudo, como Thomas Wright observou
corretamente, os artesãos letrados com interesses intelectuais —— pelo menos
na Inglaterra — constituíam minoria entre seus pares, cujos gostos não cram
notavelmente diferentes dos do resto do proletariado. !! A análise de uma
amostra do que se poderia considerar por definição “artesãos inteligentes”
confirma isso. Nos ingressos na Instiruição de Mecânicos de Londres du-
rante Os primeiros trés anos, grupos como, digamos, chapeleiros, tanoeiros
€ carpinteiros navais estavam veementemente sub-representados, embora di
ficilmente se considerassem menos qualificados ou inferiores na hicrarquia
social do artesanato, do que, digamos, os ofícios ligados aos trabalhos com
madeira, algo super-representados.”! A verdade, confirmada pelas estatísticas
posteriores de fregitência a escolas noturnas,” é que alguns oficios achavam
profissionalmente mais útil fazer cálculos escritos e usar ou produzir proje-
tos do que outros e, por isso, tendiam a ser mais estudiosos. Podemos, pois,
com segurança, deixar o “artesão inteligente” de lado.
Que extracm cles da herança pré-industrial de seu ofício? Os acadêmi-
cos não devem ter dificuldade em captar os pressupostos existentes por trás
do pensamento e da ação dos ofícios corporativos, uma vez que nós mes-
mos continuamos, em grande medida, a atuar a partir daqueles pressupostos,
Um ofício consistia de todos os que houvessem adquirido as qualificações.
próprias de um trabalho mais ou menos difícil, mediante um processo es-
pecífico de educação, completado por testes e avaliações que assegurassem o
adequado conhecimento e desempenho do trabalho. Em troca, essas pessoas
contavam com o direito de dirigir seu ofício e ter 0 que considerassem um
modo de vida decente, correspondente a seu valor para a sociedade e a seu
status social, É muito fácil traduzir esta última exigência em termos de cco-
nomia de mercado é, de fato, grande parte do que os ofícios faziam servia
para limitar à entrada no ofício, para eliminar à competição por estranhos
(que tivessem ou não seus próprios ofícios) e para restringir a produção e o
suprimento de trabalho. de maneira que mantivesse a renda média no nível
exigido. Atualmente, a economia de mercado de fato tomou conta, mas os
pressupostos básicos dos ofícios possuem somente uma relação periférica
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 12

com o discurso das escolas de administração. Estas se utilizam da antiga


linguagem de uma ordem social adequadamente estruturada ou, nas pa-
lavras de E. P Thompson, de uma “economia moral”
A intenção óbvia de nossos ancestrais ao promulgar o Estamto [dos
Artífices) «. foi produzir um múmero adeguado e uma eterna sucessão
de mestres c artífices, de experiência prática, para promover, assegurar e
tornar permanente a prosperidade das artes e manufituras nacionais,
honestamente trabalhadas por sua capacidade e ralencos |grifos meus], in-
cultados por uma educação mecânica.
Isto, por sua vez, significava que eles possuíam “um direito indiscutível
. ao desfrute calmo e exclusivo de suas diversas e respectivas artes e ofícios,
que à lei já lhes outorgou como uma propriedade”. !* Aquele trabalho cra
“propriedade” do trabalhador e, ser tratado como tal, cra naturalmente um
lugar comum do debate político radical da época.
Inversamente, o dever de trabalhar de modo correto era assumido é
aceito; os membros da Sociedade dos “Irabalhadores em Estanho de Lon-
dres que abandonasse o emprego eram obrigados a voltar para completar
todo trabalho inacabado, ou pagar para que fosse completado, sob pena de
multa aplicada por sua sociedade.!* Em suma, o ofício não era tanto um
mio de ganhar dinheiro; antes, o rendimento que cle proporcionava repre-
sentava O reconhecimento, pela sociedade e por suas autoridades consti-
ruídas, do valor de um trabalho decente exccurado decentemente por corpo-
rações de homens respeitáveis, adequadamente qualificados para as tarefas
de que a sociedade necessitava. A situação ideal e, de fato, esperada cra uma
situação em que as autoridades legavam ou outorgavam esses direitos à
corporação de ofício, mas na qual o ofício assegurava coletivamente a mel-
hor maneira pela qual eles erum conduzidos « defendidos.
Nos ofícios corporativos clássicos ou, se se preferir, típico-ideais, do
pecíodo pre-industrial, tais regulamentação c salvaguarda estavam essencial-
mente nas mãos dos mestres de ofício, cujas empresas constituíam as uni-
dades básicas da coletividade, bem como de seu sistema educacional € rc-
produtivo. Claro que os interesses dos artesãos representados essencialmente
pelos operários contratados deviam ser formulados de maneira bastante di-
versa. Menos cvidente é que um “ofício” identificado como tal não fosse à
mesma coisa que um estrato auto-suficiente de artífices dentro de uma cco-
nomia de ofícios, mesmo quando organizada em guildas, fraternidades ou
1” ERIC HORSBAWM

outras associações de artífices específicos. A diferença entre este último tipo


de organização e a “sociedade de ofícios” britânica, que se desenvolveu dire
tamente como sindicato de ofícios, merece mais análise do que tem rece-
bido, ainda que alguns trabalhos recentes tenham desenvolvido significari
vamente o assunto. Tem-se sugerido que essas formas de ação coletiva de
arrífices tendiam a enfatizar a “honra” e o prestígio social do artífice para os
de fora, € muitas vezes à custa de scus interesses econômicos, frequente
mente por meio de uma espécie de hipertrofia de práticas simbólicas, tais
como os conhecidos rituais, lutas e tumultos dos artífices. O que pre-
cisamos assinalar aqui é somente que esse caminho do desenvolvimento do
artífice — que não possui um símile britânico, que eu saiba — não podia
facilmente levar em via direra ao sindicalismo.
É evidente que os interesses econômicos dos operários assalariados eram
fundamentais nas organizações de ofício de artífices, antes mesmo da re-
volução industrial. O que quer dizer que se destinavam a salvaguardá-los
contra os principais riscos de vida dos operários manuais, ou seja, os aciden-
tes, a doença e a velhice, perda de tempo, subemprego, desemprego pe-
riódico e competição de parte de um excedente de trabalhadores. "* Enquan-
to o núcleo da coletividade dos arífices na Alemanha ou na França seria
encontrado fora da oficina de trabalho -— no período instimcionalizado de
viagem, a hospedaria ou albergue em que ocorriam os riruais de iniciação
— 0 locus fundamental da socialização do aprendiz britânico nos modos de
ser do artífice era obviamente o local de trabalho. Ali cle era “ensinado,
tanto pelos preceitos quanto pelo exemplo de seus pares, à respeitar o ofício
é suas leis escritas « não-escritas e que, em qualquer assunto relativo ao
ofício, deve sacrificar 0 interesse pessoal, ou a opinião privada, àquilo que o
ofício, correta ou erroncamente, regulamentou em favor do bem comum”. !”
Assim, não havia uma distinção clara entre o “costume do ofício” como
tradição ou prática ritualizada, e a base racional da ação coletiva dos op-
erários em serviço ou a sanção de concessões por ele conquistadas, Assim,
póde-se permitir atrofiar alguns rituais formalizados, sem diminuir a força
do “costume do ofício”,
As instituições básicas de artífices, como mostra Artisan Políics, de
Prothero, eram às sociedades bencficentes de ajuda mútua, à casa de con-
vívio, o sistema ambulante — que dava aos artesãos uma dimensão nacional
-— e a aprendizagem, As pesquisas têm insistido com razão que, a estas,
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 123

deve ser acrescentado o grupo de trabalho na oficina ou no local de tra-


balho, não-organizado mas de modo algum totalmente informal !5
Elas protegiam os interesses dos empregados contratados — ainda que
não se deva nunca esquecer que isso era visto como “o ofício”, composto
essencialmente de empregados contratados, o que quer dizer um corpo és-
pecífico de homens respeitáveis « honrados que defêndiam seu “oficio”, isto
cu dircito à independência, do respeito e a um meio de vida decente que
a sociedade lhes devia em troca da execução adequada de tarefas socialmente
essenciais, que exigiam sua instrução qualificada € experiência. O “direito à
um ofício” na constituição original da Sociedade Unida dos Mecânicos era
comparado ao direito que tem o detentor de um diploma de médicoº A
qualificação para o trabalho cra idêntica ao direito de exercé-lo.
O senso de independência do artesão baseava-se, naturalmente, em
algo mais do que um imperativo moral. Baseava-se na crença justificada de
que sua habilidade era indispensável para a produção; na verdade, na crença
de que ela era o único fator de produção indispensável. Daí a oposição do
artesão ao capitalismo, o qual, no início do século XIX, negava cada vez mais
a economia moral que dá aos ofícios seu lugar modesto mas respeitado: não
tanto aos patrões trabalhadores, que cles conheciam há muito tempo. nem à
maquinaria como tal, que podia ser vista como uma extensão das ferramen-
tas manuais, imas ao capitalista, considerado um homem médio improdu-
tivo e parasita. Os patrões que perrenciam às “classes úteis”, na medida em
que — para citar Hodgskin — “são trabalhadores tanto quanto seus art
fices”, e na medida em que eram necessários “para dirigir e supervisionar o
trabalho e para distribuir sua produção”, eram bons: somente que, por
infelicidade, “são também” — novamente Hodgskin — “capitalistas ou agen-
tes dos capitalistas e, sob esse aspecto, seu interesse é decididamente oposto
aos interesses de seus trabalhadores”. Os pequenos parrões não criavam pro-
blema algum e, de faro, podiam muitas vezes ser, ou continuar sendo, mem-
bros de sindicatos. Os fundamentos teóricos do socialismo em seu início,
equivocadamente chamado de “utópico”, devem ser buscados nessa aritude.
Essencialmente, ele visava à eliminação da competição e do capitalista, por
meio da produção cooperativa por artesãos. Prothero mostrou de que modo
os artesãos que começaram simplesmente tentando defender ou restabelecer
à antiga “economia moral” foram levados, sob pressão das transformações
econômicas do início do século XIX, a considerar um modo novo é revolu-
cionário de restabelecer a ordem social moral como a viam e, ao fazê-lo,
1 ERIC HOBSBAWM

tornar-se inovadores sociais e revolucionários. E Prothero, acertadamente,


também chamou àatenção para o fato de que, sob esse aspecto, a evolução
do operário artífice britânico caminha paralelamente à do operário artesão
continental, ou melhor, francês.” Ambos rendem a se tornar politicamente
ativos como artesãos e, ao fazé-lo, a transformar-se nas “classes operárias”,
ou em setores essenciais delas.
Contudo, há uma diferença fundamental. O socialismo utópico ou,
antes, o murualismo c a cooperação de produrores, passou a ser e continuou
sendo por muito tempo o núcleo do socialismo francês, Na Grã-Bretanha,
porém, à despeito de surtos ocasionais de popularidade e de uma atração
por quadros de artífices, o socialismo cooperativo foi sempre um fenômeno
periférico, em vias de ser esquecido mesmo quando o país foi empolgado
plo cartismo — o primeiro movimento de massa da classe operária no qual
participaram os artesãos, sob pressão econômica como todos os demais, O
socialismo decaiu na Grã-Bretanha da década de 1840, ao mesmo tempo
que ascendia no continente. Sejam quais forem as razões para essa diferença
— e clas continuam não inteiramente explicadas — provavelmente deverão
ser procuradas em parte nas condições políticas do país, mas principalmente
no próprio avanço da economia capitalista britânica sobre os demais países,
a qual já então fazia com que uma economia de pequenos produtores de
bens, individuais ou coletivos, fosse algo implansível ou economicamente
marginal, Os artífices eram operários. Viviam num mundo de emprega-
dores. É característico que a única forma de cooperação que demonstrou ter
um apelo autêntico, desde o início, foi a que procurou substituir um setor
econômico de pequenos independentes, ou seja a loja da cooperariva.
Assim, os homens de ofício não tinham dificuldade em entrar em acor-
do com uma economia de capitalismo industrial, desde que ssa economia
decidisse admitir seus modestos reclamos de qualificação, respeito e relativo
privilégio, e oferecesse claramente oportunidades crescentes c bencfício ma-
terial. E foi isso claramente o que ocorreu nas décadas de 1850 « 1860, A
posição deles pode ser simbolizada no jantar de aniversário da filial de Car-
diff da Sociedade Unida dos Carpinteiros « Marceneiros em 1867, na Ma-
sons Arms, “lindamente decorada com ramos de sempre-verdes etc. e acima
da cadeira do presidente havia um desenho representando à amizade exis-
tente entre o empregador e o trabalhador, pelo cordial aperto de má
davam” 2 Esse tema iconográfico aparece muitas vezes na época.
do, representava-se o comércio entre todas as nações e no canto havia bus-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 125

tos de antigos filósofos crc. Esse desenho trazia a seguinte inscrição: “Êxito
à louvável competição” e “a prosperidade é a riqueza das nações devem-se à
ciência, à indústria e ao justo equilíbrio de todos os interesses?” Seria um
erro supor que tais sentimentos fossem incompatíveis com entrar em greve.
Vale a pena assinalar, como nos lembra Richard Price, que se 0 artesão
certamente precisava de organização coletiva, sua força coletiva não deve
ainda ser medida por sua participação em sindicatos. O pressuposto geral,
de Mayhew « outros, era de que “homens de sociedade” representavam
talvez 10% de todos os ofícios, salvo os excepcionais. As corporações po-
derosas, como a dos pedreiros, tinham talvez 15% do ofício organizado em
1871, carpinteiros e marceneiros talvez entre 11% € 12%, os estucadores
menos de 10%.* A Sociedade Unida dos Mecânicos, com talvez 40% em
1861, cra bastante excepcional. Se, ou quando, os “homens de sociedade”
em ofícios não-organizados atuaram como reguladores do progresso econó-
mico é hoje uma questão novamente em aberto. Em todo o caso, nos mo-
imentos por salário e horas de trabalho não havia uma distinção nítida
entre Os organizados é os não-organizados, visto que ambos tinham o mes-
mo interesse na restrição contra os trabalhados alheios ao ofício. Assim,
entre os pedreiros da mal organizada Portsmouth, onde não havia apren-
dizes contratados e 70% dos trabalhadores haviam acabado de “pegar” o
ofício, não havia no entanto trabalho por tarefa, e o progresso dos trabalha-
dores braçais, outrora frequente, rornara-se raro. Em Glasgow, onde os
Webbs encontraram relações insatisfatórias com os empregadores, nenhuma
regra de trabalho, nenhum limite de aprendizes « grande afastamento dos
sindicatos dominantes, não havia trabalho por tarefa e os trabalhadores bra-
çais não “se metiam”2” A verdade é que o artesanato não cra só o critério
de identidade e auto-estima de alguém, mas a garantia de sua renda. Os
melhores trabalhadores, disse um esmidante do desemprego no ramo da
construção civil de Londres, sempre conseguem trabalho. Na Sociedade
Unida dos Carpinteiros e Marceneiros tinha-se como líquido que *o éxito
da sociedade depende de que seus membros sejam invariavelmente trabalha-
dores comperentes*:2? c cles eram recrutados de acordo com isso e, de fito,
mantinham-se à altura. “Se um homem não vale 36 shillings por semana”,
disse com orgulho o Monthly Records da Sociedade Unida dos Mecânicos
(sendo em 1911, talvez já não com toda à sinceridade), “o sindicato tem
regras para lidar com a incompetência”? Do mesmo modo observou James
Iopkinson na década de 1830: “Nossa oficina cra uma oficina de operários
126 vm

sindicalizados e ali trabalhavam os melhores operários da cidade”! O pe-


queno poder de fogo com que os artesãos enfrentavam os canhões dos
empregadores extrafa sua eficiência da barricada de qualificação que os pro-
tegia, bem como da solidariedade dos hábeis atiradores.
A qualificação c a independência do artesão eram simbolizadas pela
posse de ferramentas pessoais.*? esses pequenos mas vitais meios de pro-
dução, que lhe possibilicavam exercer seu ofício em qualquer lugar. Broad-
hursr, O líder sindical e membro liberal-trabalhisra do parlamento, manteve
suas ferramentas de pedreiro embrulhadas « preparadas durante todo o tem-
po de sua carreira política: representavam seu seguro? Muitos anos mais
tarde, em 1939, quando o caldeireiro Harry Pollir foi deposto de scu cargo
no Partido Comunisra, sua mãe escreveu, orgulhosa: “Suas ferramentas de
marcar estão aqui, eu as conservei em vaselina, prontas para serem usadas à
qualquer momento”: Em um nível mais modesto, quando Jess Oakrovd, do
God Companions de J, B. Priestex, perdeu o emprego e tornou-se um ambu
ante, a coisa mais importante que trazia consigo cra seu saco de ferramentas.
Não necessariamente à qualificação mais clevada exigia um conjunto
de ferramentas mais caro ou sofisticado, embora os homens de ofício orgu-
ihosos — notadamente os que trabalhavam com madeira — gastavam mui-
to com ferramentas é com recipientes luxuosos para elas como símbolos de
sintus. Em 1886, à Socicdade Unida dos Carpinteiros e Marceneiros res-
ttingiu o benefício pela perda de uma caixa de ferramentas, com o funda-
mento de que “se um membro traz pára o trabalho uma caixa de mais valor
[do que o necessário] deve tazé-lo correndo à próprio risco”. O seguro das
ferramentas pelo sindicato era comum entre carpinteiros e marceneiros, em-
bora o fosse menos entre metalúrgicos, presumivelmente porque suas ferra-
mentas pessoais eram subsidiárias do equipamento da fábrica. O “auxílio-
ferramenta” da Sociedade Unida dos Carpinteiros e Marcenciros cra entendido
claramente como um ponto crítico de grande demanda pelo sindicato — ele
segurava contra roubo e não só contra fogo € perda — e sua importância é
sugerida pela fregiiência das resoluções do departamento e das notícias so-
bre 0 assunto.” De fato, em seus primeiros trinta anos, à valor do auxílio-
ferramenta pago por membro foi mais ou menos comparável ao auxílio-
acidente, e representava cerca de 55% do auxílio-funeral*
Contudo, o valor das ferramentas era secundário em comparação com
sua importância simbólica. As dos carpinteiros navais de Londres, que pou-
cos podiam superar em qualificação, possuíam talvez o valor de 50 shillimgs
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 27

em 1849, segundo Mayhew,” é, na década de 1880, o sindicaro pagava


50% de custos de reposição até um máximo de 5 libras.!? Mayhew estimou
o valor das ferramentas dos ebanistas entre 30 e 40 hibras, das dos marcenei-
ros em até 30 libras e das dos tanoeiros em 12 libras. Essas cifras, exceto
para os carpinteiros e marceneiros, são bastante mais altas do que as citadas.
na Comissão Real sobre o Trabalho ou das que se podem extrair das listas
de ferramentas roubadas nos relatórios de carpinteiros; e, conforme tanto
Mayhew como a probabilidade, as ferramentas eram compradas aos poucos
durante os últimos anos de aprendizagem do trabalhador e, no início, co-
mumente de segunda mão.” Mas simbolizavam a independência. Daí as
disputas à respeito do “tempo de afiar*. Como o oficial trazia para a fábrica
sua habilidade e suas ferramentas, ambas deviam estar absolutamente pre-
paradas para a ação, Ele, e somente ele, devia afiá-las — o que implicava um
gasto semanal não desprezível *º Logicamente, o momento de tazer isso era
após terminar o último serviço e ainda na jornada do empregador, que,
esperava-se, o dispusesse para isso (ou dinheiro em seu lugar) 3 Mesmo atual-
mente, como mostra Beynon em relação à Ford, as ferramentas ainda impli-
cam certa independência para o homem de oficio em comparação com os
operários da produção *
Porém, se as ferramentas pessoais simbolizavam independência para os
areesãos, inversamente O controle das ferramentas simbolizava à superio-
ridade da gerência, Sabemos que a gerência estava disposta a transformar a
organização de sua fábrica, retirando os rebolos de esmeril da oficina de
produção e não mais autorizando os operários a afiar as ferramentas a seu
modo c de acordo com suas próprias especificações: deviam fazê-lo por
ângulos determinados por outros é num recinto especial para as ferramen-
tas, a ferramentania.** Caracteristicamente, a ferramentaria iria se manter
como o último reduto do artífice nas indústrias mecânicas de produção em
série semiqualificadas do século XX. Mesmo na indústria mecânica não sin-
dicalizada do período entre-gucrras, à gerência teria de tomar cuidado com
as susceribilidades da ferramentaria e fechar os olhos ao sindicalismo dos
ferramenteiros, No século XIX, esse tipo de controle era mais visível nas
enormes companhias ferroviárias, empresas que empregavam e treinavam
numerosos artesãos; e, ainda que elas reconhecessem que seus capatazes
provinham fundamentalmente de entre eles, c, portanto, era provável que
tivessem o mesmo ponto de vista do artesão, não viam necessidade de
ma simbiose com o trabalhador parcialmente autônomo. Assim, a Great
128 ERIC HOBSBAWM

Western e a Great Eastern transformavam o orgulho do artífice em obri-


gação, obrigando os operários, no Regulamento de Trabalho imposto uni-
lateralmente, a comprar pór no seguro suas ferramentas pessoais. Os ca-
patazes cm Startfvrd deviam examinar as malas de ferramentas dos operários.
antes que eles se retirassem da fábrica e, em Derby, elas precisavam de li-
cença especial para sair” As políticas de pessoal das companhias ferroviá-
rias, que merecem ser mais estudadas do que têm sido na Grã-Bretanha, às
vezes parecem ter sido especificamente destinadas a substituir a autonomia e
o controle exclusivo dos ofícios pelo controle gerencial da admissão, treina-
mento, promoção a graus mais altos de qualificação e operações da fibrica.
Pois as ferramentas não simbolizavam apenas a relativa independência
do artesão em relação à gerência mas, ainda mais claramente, seu mono-
pólio do trabalho qualificado. As expressões padrão para aquilo que se deve
impedir a todo custo que Os operários não-qualificados ou não especifi-
camente treinados façam, isto é, “meter-se” ou “exercer o ofício”, são algu-
mas variantes da frase “pegar na ferramenta”, ou “manejar as ferramentas
do oficial”, ou “conseguir pegar as ferramentas para si”. Os ajudantes de
pedreiro, em mais de uma coletânea de regras de trabalho, são especifi-
camente proibidos de “usar a colher de pedreiro” Os ajudantes de tanoeiro
tinham permissão para visar apenas algumas ferramentas de tanociro espe-
cíficas, tais como martelos.“ Inversamente, Os artesãos reconheciam 0 starus
uns dos outros mediante o empréstimo de ferramentas entre si! Em suma,
eles podem ser definidos essencialmente como animais que usam ferramen-
tas é que monopolizam ferramentas.
O direito a um ofício não era somente um direito do oficial devida-
mente qualificado, mas também uma herança familiar? Os filhos e parentes
de homens de ofício não se tornavam oficiais somente porque, como entre
as classes médias profissionais, suas chances de fazê-lo eram notadamente
superiores às dos demais, mas também porque os pais não queriam nada
melhor para seus filhos e insistiam em lhes conseguir um acesso privile-
giado, O aprendizado graruito para pelo menos um dos filhos era uma
disposição de muitas das coletâneas de Regras de Trabalho dos Operários
da Construção Civil** A importante Sociedade dos Mecânicos de Caldeiras
a Vapor recrutava em grande medida entre filhos e parentes, e na Londres
eduardiana a sucessão hereditária era considerada comum entre caldeireiros
e mecânicos e em alguns ofícios gráficos; entre os operários da construção
civil, porém, só o era para aqueles pedreiros e estucadores e, talvez. enca-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS no

nadores favorecidos. Tem-se assinalado também, quanto a isto, que era pe-
quena a atração exercida pelas funções de escritório sobre os filhos de ofi-
caais.º Isto se confirma pela análise de umas duzentas biografias do Dictionary
af Labour Biagrapln** (principalmente dos nascidos entre 1850 é 1900), o
qual mostra que 9 número de filhos de homens de ofício que se dirigiam à
funções de escritório ou semelhantes era não muito maior do que a metade
do número dos filhos de não-oficiais — embora o número de filhos de
não-oficiais não passasse de cerca de 75% do de oficiais. Em suma, o que
contava para o artesão vitoriano cra a aprendizagem na oficina mais do que na
escola, e um ofício era pelo menos tão desejável ou melhor do que qualquer
oura coisa efetivamente em oferta. De fato, o maior grupo isolado na amostra
do Dictionary (do qual excluí os mineiros, cuja auto-reprodução é avassala-
dora) consistia de cerca de 70 filhos de oficiais que ingressaram em ofícios,
a merade dos quais no mesmo ofício paterno. E sabemos que em Kentish
London (1873-5) de Crossick, 43% dos oficiais mecânicos eram filhos de
trabalhadores nesses oficios, « 64% provinham de pais qualificados em geral:
64% e 76% dos oficiais carpinteiros navais provinham, respecrivamente, de
famílias de carpinteiros navais, ou de famílias de oficiais qualificados; o
mesmo acontecia com 46% « 69%. respectivamente, dos oficiais na cons-
tração civil. Deixo em aberto à questão, como sugere Crossick, de se os
vínculos que ligam os artesãos entre si e os separam dos não-qualificados
realmente se estreiraram durante o período vitoriano.*”
Isso não significa que o ingresso nos ofícios fosse fechado. Dificil-
mente poderia ser, considerando a taxa de crescimento da força de trabalho,
para não falar nas poderosas empresas, como as ferrovias, que deliberada
mente se encarregavam do treinamento € promoção do trabalho não-qualifi-
cado, oferecendo um importante caminho para sua ascensão; este fato pode ser
bem observado na amostra do Dictimary. O que isso indica é a relativa
vantagem que O estraro dos oficiais tinha em se reproduzir, a importância,
no interior da força de trabalho qualificada, desse bloco de artesãos que se
auro-reproduziam; e, ainda, sua capacidade de assimilar ós não-artesãos que
se juntavam a suas fileiras, uma vez que o starus de artesão significava uma
longa e especializada formação de habilidades, cferuada essencialmente por
artesãos na oficina de trabalho. E, em 1906, segundo uma estimativa, cerca
de 18% dos homens com ocupação tendo por idade emtre 15 é 19 anos
ainda estavam classificados como aprendizes e alunos. Nas indústrias e
regiões dominadas pelos artesãos — a costa nordeste logo vem à mente —
E ERIC HOBSBAWM

sua capacidade de assimilar novos ingressantes era evidentemente enorme,


Pode-se recordar que mesmo em 1914, apesar de esforços consideráveis,
60% da força de trabalho da Federação dos Empregadores de Mecânicos
ainda eram classificados como qualificados:** em tais circunstâncias, os arte-
sãos, ou o grosso deles, eram privilegiados e estavam relativamente seguros.
O ponto crucial de sua posição apoiava-se na dependência da eco-
nomia relativamente às habilidades manuais, isto é, habilidades exercidas
por trabalhadores da indústria. A verdadeira crise para o artesão instalou-se
assim que os homens de ofício passaram à ser substituíveis por operadores
de máquina semigualificados, ou por alguma outra divisão do trabalho em
tarefas especializadas e rapidamente aprendidas — falando de maneira geral,
nas duas últimas décadas do século x1x. Essa fase da história do artesão tem
sido muito intensamente investigada, pelo menos em relação à determi-
nados ramos da indústria.ºº e foi neste ponto que se concentrou o principal
ataque ao conceito de uma “aristocracia da mão-de-obra”. Sem contar com
o fato de que era uma minoria cada vez menor, a posição do oficial há
muito tempo já não cra protegida pela extensão do treinamento e da prá-
tica, pela qualificação e pela tolerância voluntária dos empregadores. Era
protegida sobretudo pelo monopólio dos cargos garantido pelos sindicatos
e pelo controle da oficina de trabalho. Contudo, os cargos então monopo-
lizados e protegidos já não eram cargos qualificados no sentido antigo, em-
bora os mais capazes em protegê-los fossem cm geral de ofícios antiga-
mente qualificados, como compositores c caldeireiros, que insistiam em que
scus membros monopolizassem os novos cargos. agora desqualificados. Mas
mesmo isso minava à posição especial do artesão. Pois, como todos sabe-
mos hoje a partir do ofício de impressor da Fleet Street, quando a qualifi-
cação e o privilégio ou os altos salários não se correlacionam mais, os artesãos
são apenas um conjunto de trabalhadores entre muitos outros que podem,
dadas as devidas circunstâncias — geralmente a ocupação de um gargalo
estratégico —, estabelecer esse tipo de forte posição de barganha.
Falando de modo geral, no final do século XIX, os ofícios se viram,
pela primeira vez desde as décadas de 1830 é 1840, ameaçados pelo capita-
lismo industrial como tal, mas sem esperança de escapar dele, Sua existência
como estrato privilegiado estava em risco, Além disso, O principal ataque
dos empregadores era contra scus privilégios de ofício. Daí porque, pela
primeira vez, seus principais setores voltaram-se contra o capitalismo. Deste
modo, diferentemente de alguns dos ofícios tradicionais, os novos ofícios
PES OAS EXTRAORDINÁRIAS 18

mecânicos da economia industrial não foram geradores de ativistas politi-


cos. Antes da década de 1890, há poucos (se é que existe algum) maquinis-
tas é mecânicos da construção naval entre os políticos liberal-trabalhistas
destacados em âmbito nacional. Contudo, quase desde o começo, os me-
cânicos destacam-se entre os socialistas. Na Reunião dos Delegados da So-
ciedade Unida dos Mecânicos, em 1912, mais da metade dos delegados
presentes parecem ter sido defensores do “coletivismo” a ser conquistado
pela guerra de classes.º! As pequenas e controvertidas seitas marxistas como
o Partido Trabalhista Socialista estavam cheias deles. Os representantes sin-
dicais dos mecânicos e o radicalismo revolucionário na Primeira Grande
Guerra caminharam juntos como goiabada « queijo, e os metalúrgicos —
geralmente operários altamente qualificados -— vieram mais tarde, prover-
bialmente, a dominar a componente proletária do Partido Comunista, se-
guidos a grande distância pelos operários da construção civil « pelos minei-
ros. A esquerda foi-lhes atraente por duas razões. Em primeiro lugar, uma
análise da luta de classes fazia sentido para operários envolvidos numa ba-
talha com empregadores organizados, à respeito do que parecia ser o setor
crucial do fronte de batalha do conflito entre as classes: e, nó mesmo sen-
tido, simplesmente não era mais sustentável a crença de que o capitalismo
queria “um justo equilíbrio de todos os interesses”. Em segundo lugar, à
esquerda radical nos sindicatos, já desde a década de 1880, especializou-se
em montar estratégias c táricas destinadas a encontrar exaramente aquelas
situações nas quais os métodos dos ofícios tradicionais pareciam insuficientes.
Não descjo subestimar essa virada à esquerda, que hoje dá ao mo-
vimento trabalhista britânico uma perspectiva política fundamentalmente
diferente da da democracia cartista, a qual ainda prevalecia entre os sóbrios
pedidos do radicalismo liberal - perspectiva política nova que, afirmarão
alguns, era de ficto mais radical do que muitos movimentos socialistas do
continente. Ao mesmo tempo, cssa virada não deve ser identificada com os
diversos tipos de ideologia socialista que então surgiram e, naturalmente,
atraíram jovens artesãos conscientes de sua nova categoria: na década de
1880, homens de entre 25 a 30 anos; na era eduandiana, talvez homens com
pouco menos de 20 anos. Para à maior parte dos que desempenhavam al-
gum ofício, a virada para o anticapitalismo começou simplesmente como
uma extensão de sua experiência como oficial. Isso significava fazer o que
sempre haviam feito: defender seus direitos, scus salários e suas condições
de trabalho agora ameaçadas; impedir a gerência de dizer aos moços como
182 ERIC HOBSBAWM

fazer o scu trabalho; confiar ma democracia dos operários do local de tra-


balho, c alinhar contra o mundo o qual, se necessário fosse, incluía seus
próprios líderes sindicais. A diferença é que agora tinham de combater à
gerência O tempo todo, porque ela estava permanentemente ameaçando re-
duzi-los a “trabalhadores braçais”, e agora dispunha dos recursos técnicos
para fazé-o,
tavam longe de ser revolucionários, mas em que esse confronto cons-
tance diferia da luta de classes que os revolucionários pregavam? Se os pa-
trões já não reconheciam os interesses dos operários qualificados, por que
os operários deveriam reconhecer os dos patrões? Não creio que muitos
oficiais fossem até então afetados pela drástica renúncia dos pressupostos do
antigo ofício sugeridos por alguns da ultra-esquerda, os quais recomenda-
vam que se lutasse contra O capitalismo com seus próprios princípios de
mercado, trabalhando o menos e o pior possível em troca de tanto dinheiro
quanto os negócios suportassem. Essas idéias foram apresentadas no pe-
ríodo sindicalista. Contudo. nessa etapa, não há qualquer sinal de que os
homens de ofício — ainda muito desconfiados do pagamento por produ-
ção, embora cada vez mais empurrados para ele — pensassem cm termos
ais, como assinalaram os Webbs, os quais minavam seu princípio básico de
orgulho no trabalho, recompensado por um salário que reconhecesse sua
posição.
Contudo, o período de 1889 a 1914 apresenta-nos uma situação do
artesão que é semelhante à da economia britânica como um todo, pois é um
dos aspectos dela. Assim como havia empresários que reconheciam a nec:
sidade de uma modernização fundamental do sistema produrivo britânico
mas não conseguiam mobilizar O apoio suficiente para alcançá-a, assim tam-
bém ocorria no campo do trabalho. A esquerda, inclusive a esquerda artesã,
sabia que o sindicalismo de ofícios do tipo da alta era vitoriana estava con-
denado. Era alvo de todas às críticas. O grosso das propostas de reforma
dos sindicatos entre 1889 e 1927 — que ia desde a tederação e a fusão até
uma remodelação do movimento sindical segundo os ramos industriais —
dlirigiam-se todas contra uma posição que era escassamente defendida em
termos teóricos. mesmo entre os líderes dos sindicatos de ofício à moda
antiga. Contudo, nenhuma reforma sindical geral e sistemática foi realizada,
embora os sindicatos de ofícios reconhecessem certa necessidade de expan-
dir, federar « aglurinar, c também accitassem que a organização de clire
devia daí por diante ser parte da sindicalização maciça de todos os crabalha-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 133

dores, e que nessa sindicalização em massa as sociedades de ofícios seriam


inevitavelmente menos predominantes, quer numérica, quer estrategicamente.
Contudo, as tentativas de reforma geral fracassaram de modo tão claro que,
após 1926, foram abandonadas de facto.
As ferrovias e a mecânica são exemplos óbvios desse fracasso, O novo
Sindicato Nacional dos Ferroviários, projetado como modelo de um sindi-
cato industrial abrangente, jamais conseguiu integrar à maioria dos maqui-
nistas e foguistas qualificados, e us mecânicos sequer o tentaram, embora
sua liderança de esquerda reiteradamente os incumbisse de ampliar seu re-
crutamento: em 1892, em 1901 « novamente em 1926. Todavia, ainda em
1931, o Sindicato dos Mecânicos Unidos disse ao dos Trabalhadores Gerais
e dos Transportes:
Com respeito às atividades de organização do Sindicato dos Mecânicos.
Unidos, embora soja verdade que os estatutos do sindicaro tenham sido
emendados para permitir que todos os níveis de operários se organizas-
sem dentro do sindicato, isso não havia produzido efeitos, tendo o Sin-
dicato dos Mecânicos Unidos limitado suas atividades de organização
àqueles setores dá indústria que sempre organizou, Não era intenção do
sindicato afastar-se dessa política”
Pois, assim como a economia industrial britânica parecia desfrutar de
sua tranquilidade eduardiana, assim também faziam os artesãos. Tinham
eles necessidade de se reformar para garantir à própria existência? A pura
stência à colaboração dentro da fábrica inverteu a vitória total da Fede-
ração dos Empregadores Mecânicos no lock-our de 1897-8, o que a pro-
pósito, levou o secretário-geral socialista do sindicato, George Barnes, ào
ostracismo. Até então, isso havia fortalecido a posição de que pagar para
livrar-se dos oficiais se tornara a tarefa mais importante da economia de
guerra de 1914, A posição deles realmente se fortalecera, porque o sistema
de pagamento por produção. que os empregadores preferiam às estratégias
tavloristas e fordistas, davam motivo a infindáveis conflitos na fábrica e,
consequentemente, ao poder do representante sindical. Além disso, durante
a guerra, à indústria foi inundada, não por operadores de máquinas semi-
qualificados passíveis de promoção, mas por 650 mil mulheres, praticamente
todas tendo desaparecido do mercado de trabalho depois de 1919, O sindi-
cato seria derrotado ainda uma vez na batalha frontal de 1922. Depois dis-
so, os sindicatos foram praticamente expulsos dos novos setores da indústria
134 ERIC HOBSBAWM

tais como o de motores e de utensílios elétricos, ainda que novamente os


empregadores em geral considerassem muito alto o custo da racionalização
sistemática da fábrica e os lucros previsíveis insuficientemente atraentes para
justificar desembolsos tão pesados.
Assim, uma vez mais Os artesãos tiveram sua chance ma década de
1930, já que à recuperação, o rearmamento e à guerra tomaram os tempos
imais propícios à organização sindical. Este foi o último triunfo dos ofícios
vitorianos. Os homens que traziam as águas do sindicalismo de volta ao
deserto das fábricas sem sindicato eram em grande parte — talvez prepon-
derantemente — homens de ofício, tais como os ferramenteiros e os ope-
rários que fizeram a indústria acronáutica nas décadas de 1930 e 1940 e
cujo papel no crescimento do sindicalismo metalúrgico de massa fo essen-
cial. Foram o primeiro núcleo do movimento renovado dos representantes
sindicais. Esses homens eram oficiais ou, pelo menos, mesmo quando en-
volvidos no que era de fato trabalho semiqualificado, oficiais por formação
e treinamento. Agora, eram também em grande parte comunistas, ou assim
se tornaram. **
Contudo, quisessem ou não, davam início à sua própria extinção en-
quanto estrato especial da classe operária. Isto em grande parte porque as
indústrias mecânicas mecanizadas que tinham organizado não se apoiavam
mais sobre a habilidade do artesão, embora ainda precisassem dela. Mas cm
parte também porque a esquerda já não tinha uma política sindical coerente.
Dado o fracasso da reforma sindical geral, faltava um “novo modelo” viável
de organização sindical. Ela se bencficiou de uma política do governo, par-
ticularmente a partir de 1940, quando Ernest Bevin assumiu o Ministério
do Trabalho, o que favoreceu o sindicalismo; mas não o controlou, muitas
vezes não O compreendeu, e cm geral não o aprovou. Sua maior arma (dei-
xando de lado o sindicalismo dos comunistas orientado para a produção, de
1941 a 1945) cra exatamente a mesma de 1889-1921: simples defesa inter-
mitente, austcra e obstinada do “costume do ofício” nas fábricas. É irrele-
vante se parte da esquerda pode ter, de certo modo, identificado isso com o
caminho para a revolução ou, pelo menos, para a radicalização política. De
facto, à esquerda não tinha qualquer estratégia sindical específica, prosse-
guindo com as antigas táticas de modo inteligente, dinâmico e eficiente,
mas numa situação completamente diferente da de 1889-1921,
O que conseguiu foi a generalização dos antigos métodos de monopó-
lio dos ofícios para todos os setores do movimento sindical, e nas indústrias
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 185

em que os oficiais constituíam cada vez. mais uma minoria em meio à massa
dos operadores semiqualificados, E ao fazê-lo Os artesãos se tornaram mera-
mente um conjunto de operários entre muitos outros que estavam em si-
tuação de aplicar esse tipo de método, c não necessariamente os que po-
deriam realizar as melhores barganhas. Na Fleet Strect da década de 1970,
não só haviam desaparecido as diferenças qualitativas entre compositores e
“ajudantes de impressores”, mas também a associação dos tipógrafos da Asso-
ciação Nacional dos Gráficos não sc constituía necessariamente como uma
negociadora mais poderosa do que a SOGAI'82. Já não havia nada de especial
em ser um homem de ofício.
Alguns estavam evidentemente quase no fim da carreira, como os ma-
quinistas de trem do antigo sindicato de ofício ASLEt. Alguns sobreviviam,
porém num mundo que quase não compreendiam mais; que funcionava
pela quantidade de dinheiro que cra possível ganhar, c nada mais.” Esta é
uma ruptura fundamental da tradição dos ofícios, que, como tem sido atir-
imado, visavam a uma renda correspondente ao stars dos oficiais como grupo,
como ainda fazem os professores. Daí a persistente desconfiança histórica
do pagamento por peça: Um mecânico comunista, entrevistado por um
pesquisador, relembra seu espanto ao descobrir, durante à guerra em Coventry,
que os operários não apenas podiam elevar seus ganhos a níveis que pare-
ciam estratosféricos, como também que sc esperava que fizessem isso. E, de
fato, o famoso Acordo da Ferramentaria de Coventry refletiu esse curioso,
entrelaçamento de princípios antigos e novos, até sua derrocada na década
de 1970. Enquanto, no passado, os ganhos dos ferramenteiros haviam pro-
porcionado o gabarito de seu “diferencial” acima dos grupos menos favore-
cidos, esse diferencial cra dali em diante fixado em comparação com o nível
inteiramente indeterminado daquilo que os não-ferramenteiros que traba-
lhavam por tarefa podiam ganhar. O artesanato, O bom trabalho, já não era
à base essencial para se ganhar bem. Quando muito, constituía agora uma
responsabilidade, uma vez que ficava no caminho dos altíssimos salários que
podiam ser ganhos por aqueles operários que, deliberada e conscientemente,
colocavam a rapidez e o serviço “matado” à frente do trabalho perfeito.
Financeiramente, O comboy — este termo é de origem incerta, mas parece ter
surgido na construção civil durante O auge da mão-de-obra contratada por
jornada diária na década de 1960 — conseguia sair-se melhor do que o bom
oficial.
136 ERIC HORSBAWM

Finalmente, a possibilidade de treinamento como oficial diminuiu. Em


1966, o número de aprendizes era somente de cerca de três quartos do que
fora sessenta anos antes, ou até 1925, e em 1973 havia caído para 25% da
cifra de 1966.º Do mesmo modo decaiu à incentivo para alguém seguir o
pai num ofício respeitável. A educação pelos livros e não mais a qualificação
é o caminho para o status e, com exceções cada vez cm menor número, até
mesmo a qualificação se deslocou para o mundo dos diplomas. E cerra-
mente à estrada para aquele mundo se alargou. Houve época em que os
mineiros podiam querer a todo custo ver os próprios filhos fora das galerias
das minas, mas os mecânicos estavam satisfeitos por oferecer a seus filhos
uma versão presumivelmente melhorada de suas próprias perspectivas. Hoje,
quantos dos filhos de ferramenreiros se satisfizem em se tornar ferramenteiros?
Os artesãos não mais se reproduzem ou à sua espécie. A geração de
homens que, nas décadas de 1930 « 1940, ficaram adultos com experiência
de artesãos e valores de artesãos ainda está viva, mas está envelhecida. Quando
os últimos homens que dirigiram e cuidaram de locomotivas à vapor se
aposentarem — o que agora não está longe — é quando houver pouca
diferença, e às vezes bastante supériluas, entre maquinistas é motoreiros de
bonde, o que irá acontecer? Como será nossa socicdade sem aquele grande
conjunto de homens que, de um modo ou outro, tinham um senso da
dignidade « do orgulho do trabalho manual dificil, bom e socialmente úsil,
que é também um senso de uma sociedade não governada pelos preços de
mercado é pelo dinheiro: uma sociedade diversa da nossa e potencialmente
melhor? Como será um país sem o caminho que o amor-próprio da habi
dade com as mãos, os olhos e o cérebro proporcionam ao homem — e à
mulher, pode-se acrescentar - -, gente que talvez aconteça de não ser boa
para ser aprovada em exames? Tawncy teria feito essas perguntas eu nada
de melhor posso fazer do que concluir deixando-as para vocês,

Notas
1.), Zeitin, “he Labor Strategies of British Engineering Ermpiovers, 1890-1922”, in
H.€. Gospel « C. Lirter (orgs), Management Strategy and Indusmrial Relatos: An
Hisuricaland Comparasive Survey (1983). Minha referênciaé à p- 20 da comunicação
ociginal à ssa Conference om Business and Labour History em 23 de março de
1981
2. Anônimo, Horking Men and Wômen bra Mónking Man, Londres, 1879, p. 102.
PESSOAS EXTRAORDINAIRIAS tg

3. Maldo R. Browne, HWhar's HWhar dy she Labor Mivemento a Dictionary of Labor Afjúios
ana Labor Terminology. Nova York, 1921, p. 497.
4 Bob Gilding, The Joumeymem Compess of Fast London, Oxford, 1971, pp. 56-7,
5.N.B. Dear, Industrial Trnininge Wich Special Refêvenco so the Condizions Pre
London, Londres, 1914, pp. 31-2.
é Tia,poa
7. Royal Comnision om Labent, Parl, Tapers, 1892 36/1 Grupei A, Q, 16064, Teste
smunho de T. Cronia, secretário da Trabalhadores de; Moinho Associados da Escócia
8. George How, “Trade Union, Appeen nricus and Techavcal Education”, Contempos
ray Revie 30, 1877, p. 854
9H. A. Clegg, À | Kilick é Res Adanis, Trade Union Ofces, Oxford, 1961,p. 30.
10.CE Alsscair Reid. “Ineoligont Arcisans ánd Arisooeraes Of Tabont: The Essavs of
Lhomas Weight”, dn Jay Winter (ong, The Hôriking Class im Mader Eri Hiro
desen in Homen (f Hevay Being, Cambridge, 183, pp. 175-6
11/05 registros dá instituição estão preservados no Birbeck College, Universidade de
Londres, do qual agradeço O acesso que me foi permitido.
12. Dearie, Industrial Training. pp. 566-7.
13 “Report of the Commiteee on the Pedition of che Wacchmakers, 18177, citado in À,
É Blade PA, Broa é RLL Eneney (orgs). Engl Ecomamic Hinor Seleer Doca
meses, Londres, 1914, pp. 588.90,
14. A. Kidd, Hist of he Vin Plate Winbiss únl Shoet Mosal Wivkeis and Brasiers Soieres.
Londres, 1949, p. 28.
15, Para uma extensa discussão a respeito, cf. Andreas Griessinger, Das sombnlicho Kapital
der Eres Sercikbewegungem und holekrives Bewusseseim desscher Frandverypeieto im
18. Jabonhundess, Berlin, 1981
16, lorwerth Prothero, cirtans and Plíico im Eariy Nonereençh Censury London: Job Gasr
amá hs Times, Folkestone, 1979, pp. 27:8,
17. Thiuinias Weight, Some 1Inbits of cho Minking Cinstes. 1867, p. 102. Ver também o
relato de FW Galton in S- é 8. Webb History vP Irado Unionimo, 1894, pp. 431-2.€,
com relação à importância dos rituais ligadas 2a local de trabalho, Jobm Dimiop,
Artificial anel Company Drinting Usages ofsbe United Kingdom, 7. cd, 1844: psi
18, Ver R, Péice, Masters, Uomions amd Men: Dirk Control àn Breldina amd the Iso of
Tabor, Cambridge, 1980, cap. 2, pára referências
19. É, pois, ntsso dever exercer 6 mesmo cunirole sobre aquilo em que remos investi
édico que deréim seu diploma. ou o autor que é protegido pelos
direi autorais”, Prefácio do Regulamento da Sociedade (vida dom Mecânicos (dom
gama Society af Eine, daqui por diante 451), 1851, citado em]. B. Jeters (org 1,
Labentr' Formaive Jeni. Londres, 1948, p. 30
20, Citado em G, Stedman Jones, Languagesaf Cambridge, 1983, pp. 1367.
ias ERIC HOBSBAWM

a. Prothero, Artisans, pp. 337-8. Relato esclarecedor encontra-se em William H Seweil


16, Mori and Revolurion in France: The Language of Laboner from the Ola! Regime vo
1848, Cambridge, 1980, p. 283.
” Sociedade Unida dos Carpinteiros e Marceneiros (Amalgamated Society of Carpenters
ad Joiner, daqui em diante. 4961), Monthly Repor, jan. 1868,p. 25
23 Vera descrição de bandeiras em WA. Moses, Lhe Banner Book, Gateshcad, 1974.
2» Price, Masters, Unione and Men, p.62.
3 M. é |. B, Jeftérys, “The Wagés. Hours and Trade Customs of the Skilled Engineer in
1861”, Economic History Revico 17. 1947, pp. 29-30; porém à inclusão de membros
de outros sindicatos de qualificados aumentaria essa percentagem.
25E Library Webb Collection, Coll. EA 31, pp. 245-9.
27. Thid., pp. 311-22.
NB, Dearde, Problems of Unempioomensin she London Building Trade, Londres, 1908,
pos
. SCI, Monty Reporr, fev. 1868, p. 63.
Asi, Momabiy Recon, jun: 1911, citado in M. Holbrook-Jones, Supremacy and Subor-
limation of Labonr, Londres. 1982, p. 78,
1: B. Goodman (org). Victorian Cabinct Maker: Lhe Memoios of James Hophinsom,
1819.1894, Londies, 1968, p. 24,
“Que sé à Associação Central de Empregadores cumprie sua ameaça de uma greve dos
parrões .. é dever dos operários .. começar a fabricar para o público ... Que como
muitos de mossos membros possuem tornos e outras ferramentas em seu poder . é
dese esperar que eles .. comunicação sua intenção de emprestar essas ferramentas cm
favor daquelas pessoas que podem ser postas fora do emprego pela greve dos pa-
trões”. Proclamação do Conselho da asE em The Operarive. 23 dez. 1851
33, Henry Broadhurst, The Story of bis LZf from Stome-mason'; Bene zo she Treasury Bench
Londres, 1901. p. 2
3 Harry Polit, Serving my Tie, Londres, cd de 1941, p. 14
asc7, Monehfy Repor, jul. 1886, pp 1378
36, Parece que os caldeireiros não tiveram dada: DC. Cummings, Elst af he United
Saciery of Noilermakos amd Iron “o Steel Ship Buúilders, Newcastle, 1905, pp. 26-7, 52.
Os Relatórios Anuais da 155 registram gastos com “perda de ferramentas pelo foge
um ixem das contas que cobrem doações variadas, do que se pode inferir sua relaciva
nificância.
37 Em consequência da pressão do departamento, relações de ferramentas roubadas de
membros foram publicadas no Monsiiy Report de outubro de 1868 em diante
Aula total por membro da sem 1860-89 inclusive: funeral, 3 libras 15 sislingr
e 8 pence; acidente, | libra 15 sbilimas 1O,5 pone; ferramentas. 1 libra 14 shilings 6,5
pence, cf. G. Howell Lhe Confio; of Capizal and Labour bisoricaly ana conomicaliy
PESSOAS EXIRAORDINALAS 139

considered, being a bistory and vendeu of the trade senions Of Great Hritain te, 2. vd,
1890, p. 519.
39, Henry Mavhewe, The Morninig Chronície Survey of Labonr anid thê Poor: The Metripli
tam Disricos, Horsham, 1982, vol. 3, p. 225.
40, David Dougan, The Shigmeigias: The Hlisory of she Shipeonstrucsos and Shiprorigbis
Assiciatim, 1882-1963, 1968, pp. 19, 30, Ver também Reyal Commission om Labuur,
Dl, Papers, L892-4, 34 1Grupo 4), Q. 20413, 21.398
41. Mayhew, Super OfLabuur, vel 5, py 198, Dados sobre 0 custo de ferramentas es-
eraido de Regal Comnision om Labor (Grapo A), ver Par. Papers, 1892 36/2, Q
16.848, 19.466, 19:812-13, 20.367-9.
42. Mayhicos Sure of Labony, estima o custo semanal em entre 6 pemce e 2 ships; cl.
pp: 94,96, 15. 167, 214
43.8. e B. Web, Dnduorvial Democraiy (ed. de 19134, p. 313.
rt ow Vora, Harmandowoah, 1973, p. 145: “Na linha de mou
tagem cada homem é tão bom quamo 6 seguinte ... Numa situaç de trabalho
qualificado as coisas são ligeiramente diferentes .. pelo fato de que [os homens]
controlam às ferramentas, ou o conhecimento, vitais para o desempenho da função
O contramestre tem que perguntar à le”
AS. Zita, “Labor Seraregies”, pp: 21, 26
46.+0s contramestres serão os homens qualiicados para o trabalho por suas respectivas.
uficinas, Provavelmente como operários demonstraram capacidade « habilidade espe-
ciais, que levaram à sua promoção a partir dos quadros inferiores”: James Clayton.
“The Organization af ie Locemotive Deprsneat”, in Jobar Macanley (ong), Moderm
Railmay Minting: A Pracrica Trcaie by Empincoring Eprt, [9IZ-19L4, vol, 2, p. 7
47. Kenneth Hudson, Hórking do Rude: Railway Workshop Rodes A Study o Industrial Dis-
cdpline, Bach, 1970.
48. Anónimo, Horting Men and Wmen, p. 66; ast, Quarter Repurs, dez, 1893. pp 48
59); Dearie, Indusorial Tenining. p. 25.
49. CE a coletânea de “regras de trabalho” dus operários na construção civil na Webb
Collection (tSE Library, Coll EB Destas e Coil EC iavat: por exemplo, Bridg-
north 1863, Loughborough 1892, Worcester 1891 (Coll EB xxx), Shrewsbuns
(Col EC vm.
50. Gilding, Jowrnigimen Cooper, p. 56
51. Thomas Weight, The Grear Unmasied, 1968, p. 282: 05 colegas de trabalhe empres
tarão “suas melhores ferramentas” a um artesão ambulante. Charity Organization
Society, Special Committee om Uuillod Labymor; Repors and Minutes of Evidence, June
1908,p. 98: “No caso de mecânicos que estiveram desempregados por algum tempo,
em que medida carecem de ferramentas . ... Lá muita camaradagem entre cles, c
emprestam ferramentas uns aos outros. Se você olhar dentro de suas cestas, desco-
brirá que 109% deles têm insuficiência de ferramentas”. Assinale-se que a testemunha,
140 ERIC HOBSBAM

um mestre da construção civil, afirma estar simplesmente conjeturando. Ele não olha
identro des cestos dos artesãos, A respeito da penalidade pela perda de terramnetas
ou seja decair para o trabalho não-qualiicado, ver Mayhew, Survey 0f Laboner, va, 5
p 180
52. ].B. Jeflecss, Lie Stosy af ihe Enpinces, Londres, 1945, p. 58, sobe
os filhos segundo
e terceiro, filhos de pais de tura do vicio, entrando para 0 ócio.
Coll ER xexty Hull, Redeitch, Walkeicid: Coll EC vil; Bristol, Dudley; Goal,
Kidderminstes, Leicester, Rocherham, Stourbridge, Wigan
54. Keith Mel elland e Alastair Reid, “The Shipbuilding Workers, 1840-19147
náo-puiblicado!, p 18,
55. Dear, Industrial Timining, p. 241
Joyce M. Bellamy e Jolm Saville torgs-1, Dictionary of Labor Biograpipe 9 vols.. Lom
dees, 1994, vols. 1:6.
57. Geafirey Crossick, Am «teriam Elite im Victorian Societi: Kentish Loordom, 1840-1880,
Londres, 1978,p. 116
58. Chiarês Moe, St anil rhe English Wôrkina Class. Londres, 1980, p. 103, bei 5.13
59: MT Vútes, Tg and Cabos: Condiionsim Briish Emgincoving, Lemes, 1937.p, 31,
nba 6
60. Por exemplo, A. Reid The Division US Labor in the Rabi Shipiiainar Diduseos,
1880-1920 (sexe de doutorado inédica, Cambridge Universia 1980): ]. Zeta, Craf
Regulaom anal he Divisim of Lado Engineers and Compositor Bisa, 1890-1914
ftese de doutorado inééita, Warwick Universiny 1981
61.8. CM. Weckes, The Amalaamared Sociey of Engíneess, ISMLIIA A Study df trade
Union Gorerument, Boi amil Industrial Ei (tese de doutorado inédita, Warwick
Universisy. 1970, pp- 318-20, 3221. Já em 1895, quatro membros da a5F foram
candidatos ao partamento pelo Partido Trabalhisca Independente: David Howel, Dr
ih Wôrkens nd che Independent Labor Party 1888-1006, Manchester 1983, p. 88,
62. Kennech Newvtom, The Sociology of Briids Comnsunim, Londres, 1969, apêndices ue
m.
68. CE a Resolução da Hull TUC, 1934, in WE Milnc-Bailee (org, Trade Uinico Doc
mente, Londres, 1929. p. 129, relacicamente au abanduno da reforma sistemática,
ibid.. pp. 133-4
64.]. Zoitiin, “The Emesgence of Shop Steward Organisation and Job Control im the
Eres Car Instr”, Hi Hónksbop Jovemal 10, 1980, p. 129.
65, ]. Zeisia, “Labour Strategies”, pp. 30-2.
66, lim relação à está parte do artigo, estou em dívida particularmente con o isto de
Nina Estao, “he frito Comtini: Dave am sie Trade Unims 1933-1985, Alder-
shoe, 1995. Ver também R. Croucher, Engineers as Hã, 1939-1945, Londres, 1982,
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS ui

especialmente pp. 168:74, « James Hincon, “Coventey Communism: A Study of


Factory oligos im the Second Wiorid War”, Elisory Hórishop Joumia! VO. 1980,
67, Beynom, Nrrking for Fon, p. 145
68. “Talver q ponto mais interessante sobre os poderes de controle do trabalha cos ope-
rários de estaleiros fusse que eles não o utilizavam para mavimizar seus ganhos ou
para criar diferenciais. Os operários de estaleiros estavam dispostos a aceitar salários
avão relacionados com O esforço ou à qualificação dos indivíduos, os quais cendiam
pata vma tasa única”; David Wilton, 4 Social Flistory 0 Momkers dm 11, M, Dechyari
during the Induserial Revulucion, Parsiculariy 1793-1815 (1ese de doutocada inédica
Warwick University, 1975, p. 188%. Com relação à insistência dos operários qualif-
cados da construção civil sobre taxá igual para produção igual, ver Charity Organiza
tiom Sociery: Repors on Unstiled Labour. Q 251-272, pp. 1045, Os Webbs atirma-
ram, assinalando cum aprovação o paralelo com o corporativismo profissional da
classe média, que “a progressiva ascensão da Regra Comum [Common Rute] pro-
movendo constantemenie a “Seleção dos Mass Apros”. causa uma especialização cres-
cente de função, criando um grupo distinto, que possui um Padrão de Vida e cradições
corporativas próprias com as quais cada recruta fica bastate alegre de concordar” (
dustral Democracy, p, 719)
69. Em números absolutos —— 1906; 343.200 More, Ski, p. 103); 1966: 271.650 (Mi
mist of Labor Gacorees jan 1967), 1974: 66 ml (Minis of Labor Gazeree, 1974,
A idade regulamentar para completar à escolaridade foi aumentada para dezesseis
anos a partir de setembro de 1972. As cifras referem-se apenas a0 sexo masculino.
dada à insignificância da aprendizagem feminina.
Capítulo 7

HOMEM E MULHER: IMAGENS DA


ESQUERDA

A importância da iconografia para o Estulo do movimiento operário foi des.


coberta na década de 1970. À presente investigação foi possivel em grande
parte pela ajuda de amigos historiadores da arze e pelo magnífico património
da biblioteca do Warburg Inscítuze. Foi publicada pela primeira vez no His-
tory Workshop Journal em 1978. Na época, foi criricada por algumas femi-
nisias é, pensando de modo menos apaixonado, possivelmente devido a bases
iconográficas euivocadas. Há aqui duas questões, mma mais leve é a onira
mais séria. Como é que ao longo de sem século dla história ds trabalndores a
figura feminina esteja. onda vez mais vestida, enquanto o homem apareça
cada ves mais de torso mu? O que podem as sestemuns das imagens, de modo
realista om simbólico, nos dizer sobre us verdadeiras relações enre homens é
mulheres nos movimentos operários?

As mulheres fregientemente salientaram que os historiadores do sexo


masculino no passado, inclusive marxistas, ignoracam grosseiramente à me-
tade feminina da raça humana. À crítica é justa: este escritor aceita que se
aplique à sua própria obra. Entretanto, se esta deficiência deve ser corrigida,
não poderá ser simplesmente pelo desenvolvimento de um ramo especiali-
zado da história que trate exclusivamente das mulheres, porque na sociedade
humana os dois sexos são inseparáveis. ! O que também precisamos estudar
são as formas em mudança das relações entre os sexos, tanto na realidade
social, quanto na imagem que cada sexo tem do outro. O presente trabalho
é uma tentativa preliminar de fazer isso relativamente aos movimentos re-
volucionários e socialistas do século XIX e do início do século Xx, por meio
da ideologia expressa nas imagens c emblemas associados a esses movimen-
tos. Visto que estes eram em proporção esmagadora desenhados por ho-
14 ERIC HOBSBAWM

mens, é naturalmente impossível supor que os papéis sexuais que eles repre-
sentam expressem a visão da maioria das mulheres. Contudo, é possível
comparar essas imagens de papéis « relacionamentos com as realidades so-
ciais do período e com as ideologias dos movimentos revolucionários « socia-
listas mais especificamente formuladas.
A possibilidade de tal comparação é à suposição que fundamenta este
estudo, Não se propõe que as imagens aqui analisadas reflicam diretamente
realidades sociais, a não ser onde clas foram especificamente plancjadas para
fazé-lo, como nas gravuras que presendiam cer valor documental, e mesmo
assim é certo que clas claramente reflctiam não só a realidade. Minha su-
posição é apenas a de que nas imagens plancjadas para serem vistas e terem
um impacto sobre um público amplo, por exemplo, de operários, a ex-
pcriência que o público rem da realidade coloca limites no grau em que as
imagens possam divergir daquela experiência. Se o capitalista, nas carica-
turas socialistas da belle époque, não fosse habitualmente apresentado como
um homem gordo usando uma cartola e fumando um charuto, mas como
uma mulher gorda, esses limites permissíveis teriam sido superados e as
caricaturas teriam sido menos eficazes: porque a maior parte dos patrões
não apenas era imaginada como masculina, como era composta de homens
Disso não se infere que todos os capitalistas fossem gordos com cartolas e
charutos, embora estes atributos fossem, de imediato, entendidos como ir
dicativos de riqueza na sociedade burguesa e tivessem de ser compreendidos
como específicos de uma forma particular de riqueza e privilégio, em opo-
sição a outras, por exemplo, a dos nobres. “al correspondência com a reali
dade cra evidentemente menos necessária em imagens puramente simbóli-
cas é alegóricas c, entretanto, mesmo aqui elas não estavam completamente
ausentes: se a divindade da guerra fosse apresentada como uma mulher,
teria sido com a intenção de chocar, Interpretar a iconografia desta maneira,
naturalmente, não é fazer uma análise séria da imagem e do símbolo. Meu
objetivo é mais modesto.
Comecemos com aquela que talvez seja a mais famosa das pinturas
revolucionárias, embora não tenha sido criada por um revolucionário, Liberté
quidame le peuple, de Delacroix, datada de 1830, Este quadro será familiar a
muitos: uma jovem com os seios nus, com um barrete frígio c com uma
bandeira, pisando sobre pessoas caídas, seguida por homens armados, em
roupas características. As fontes da pintura têm sido muito pesquisadas?
PESSÕAS EXTRAORDINÁRIAS 145

Quaisquer que sejam, sua interpretação na época não está em questão. Con-
siderou-se a Liberdade não como uma figura alegórica, mas como uma mulher
real (inspirada sem dúvida na heróica Marie Deschamps, a cujas proezas o
quadro alude), Ela foi vista como uma mulher do povo, pertencendo ao
povo, à vontade no meio do povo:
Cost une forre fernme aux puissantos mamelles,
à la voix rauque, aux durs appas
qui
Agile et marchant à grands pas
Se plait aux cris du pesple, (
(Barbicr, La Curée
Ela tra, para Balzac, de linhagem camponesa: — “pele morena e ardente,
a verdadeira imagem do povo”. Era orgulhosa, até mesmo insolente (palavras
de Balzac) e, assim, O próprio oposto da imagem pública das mulheres na
socicdade burguesa. E, como os contemporâneos enfatizam, era sexualmente
emancipada. Barbier, cujo La Cure é certamente uma das fontes de Delacroix,
invenca-lhe uma histócia complera de emancipação é iniciativa sexual
qui ne prend ses amours que dans la populace,
que ne prére son large flanc
quá des gens forts comme elle* *
Esta enfanr de la Bastille (“fruto da Bastilha”), depois de ter espalhado
uma universal excitação sexual à sua volta, cansou-se de seus primeiros amantes é
seguiu às bandeiras de Napoleão e um capitaine de vingr ans (capitão de
vinte anos”). Agora, ela voltava,
toujours belle erzme
avec Pécharpe aux trois coulewrs, "+
para vencer as “Trois Gilorieuses” (a Revolução de Julho) para seu povo
Uma mulher forte, seios fartus/ Com voz rouca c encanto bruto/ Que anda com passos
largos confiantes: Regozijandu-se com o clamor do povo,(. +
+ Que escolhe seus amantes somente entre as massas, Que dá seu corpo forte somente a
Bomens ão fortes como ea
*** Ainda belae nua com à (aa tricolor [grifo meu
Má ERIC HORSRAWM

Heine, comentando o próprio quadro, estende ainda mais a imagem


em direção à outro estereótipo ambíguo da mulher independente e sexual-
mente emancipada, a cortesã: “uma estranha mistura de Eriné, peixeira e
deusa da liberdade”.* O tema é reconhecível: Flaubert em Education senti-
mentale retorna a ele no contexto de 1848, com sua imagem da Liberdade
como uma prostituta comum nas Tulherias saqueadas (cmbora operando a
transição burguesa habitual da equação liberdade = boa, para aquela de
licenciosidade = má): “Na antecâmara, muito ereta, sobre uma pilha de
roupas, estava de pé uma mulher das ruas posando como uma estárua da
liberdade”. A mesma conotação é insinuada pelo reacionário Télicien Rops,
que tinha realmente representado “a Comuna personificada por uma mul-
her nua, com um casquete de soldado na cabeça « uma espada ao lado” —
uma imagem que não ocorreu apenas a cle. Seu poderoso Peuple é uma
jovem nua, na postura de uma prostitura, usando apenas mcias uma touca
de dormir, possivelmente insinuando o barrete frígio, as pernas abertas com
o sexo à mostra.”
A novidade da Liberré de Delacroix, portanto, reside na identificação
da figura feminina nua com uma mulher real do povo, uma mulher emanci-
pada e desempenhando um papel amante — de fato, de liderança — no
movimento dos homens. A quão longe sé pode recuar esta imagem revolu-
cionária é uma pergunta que deve ser deixada para os historiadores da arte
responderem. Aqui podemos observar apenas duas coisas. Primeiro, sua
realidade concreta a exclui do papel alegórico costumeiro das mulheres, em-
bora ela conserve a nudez de tais figuras, e sua nudez seja, de fato, enfati-
zada pelo pintor « observadores. Ela não inspira ou representa: cla age.
Segundo, cla parece claramente diferente da imagem iconográfica tradicio-
nal da mulher como lutadora atuante pela liberdade, em especial Judite.
que, com Davi, tão fregiientemente representa a luta bem-sucedida do fraco
contra o forte. Em oposição a Davi c Judite, a Liberté de Delacroix não está
sozinha, nem representa à fraqueza. Ao contrário, representa a força con-
centrada do povo invencível. Já que “o povo” consiste em um conjunto de
classes e profissões diferentes, apresentado como tal, é desejável um símbolo
geral não identificado a qualquer uma delas. Por razões iconográficas tradi-
cionais, este símbolo seria provavelmente feminino, Mas a mulher escolhida
representa “o povo”,
A Revolução de 1830 parece representar o ponto culminante desta
imagem da Liberdade como uma jovem atuante é emancipada, aceita como
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 147

líder pelos homens. Todavia, o tema continua a ser popular em 1848, sem
chívida por causa da influência de Delacroix sobre outros pintores, Ela per-
mancce nua, de barrete frígio na République de Miller, mas seu contexto
agora é vago. Ela permanece uma figura de líder no esboço de Daumier de
The Uprising (“O levante”), porém, mais uma vez, seu contexto é vago. Por
outro lado, embora não haja muitas representações da Comuna e da Liber-
dade em 1871, à tendência é representá-as nuas (como no desenho de Rops
mencionado antes) ou com os seios nus.” Talvez O papel notoriamente atuante
desempenhado pelas mulheres na Comuna colabore também para a simboli-
zação desta revolução por uma mulher não-alegórica (isto é, vestida) e ob-
viamente militante, em pelo menos uma ilustração estranggcira.!º
O conceito revolucionário de república ou liberdade, assim, continua-
va a ser uma mulher nua ou, mais frequentemente, com os scios nus. A
célebre estátua da République, de Dalou, partidário da Comuna de Paris, na
Place de la Nation, ainda tem um dos seios mt, Somente uma pesquisa
poderia mostrar desde quando o seio descoberto guarda esta associação re»
belde ou, pelo menos, polémica, como talvez na caricatura do período de
Dreyfus (janciro de 1898), na qual uma Marianne jovem e virginal, com
um seio exposto, é protegida contra um monstro por uma Justiça matrona e
armada com a frase: “Justiça: Não tenha medo do monstro! Estou aqui”.”
Por outro lado, a República institacionalizada, representada por Marianne,
apesar de suas origens revolucionárias, está agora vestida em trajes normais,
embora tnues. O reino da decéncia se restabeleceu. Talvez também o reino
das mentiras, já que é característico da figura feminina alegórica da Verdade
— que ainda aparece com frequência, notadamente nas caricaturas do pe-
ríodo de Dreyfus — aparecer nua."? E, de fato, ela permanece nua mesmo
na iconografia respeitável do movimento operário britânico da Inglaterra
vitoriana, como no emblema da Sociedade Unida dos Carpinteiros e Marce-
neiros, em 1860,!º até que a moralidade do final da cra vitoriana prevaleça.
Em geral, o papel da figura feminina, nua ou vestida, diminui nitida-
mente com a transição das revoluções democráticas plebéias do século xTx
para os movimentos proletários e socialistas do século XX. Em certo sentido,
o problema principal deste estudo consiste nesta masculinização das ima-
gens do movimento operário e socialista.
Por razões óbvias, a trabalhadora proletária não é muito representada
pelos artistas, exceto nos poucos ramos industriais onde à presença feminina
era predominante. Isto, certamente, não se deve ao preconceito. Constantin.
148 ERIC HOBSBAWM

Meunier, o pioneiro belga na idealização típica do trabalhador do sexo mas-


culino, pintou — e em menor escala esculpiu — mulheres assalariadas tanto
quanto homens. Algumas vezes, como no Le Réour des mines, de 1905,
mostrou-as trabalhando junto com homens — como as mulheres ainda o
faziam nas minas belgas * Entreranto, é provável que a imagem da mulher
como trabalhadora assalariada e participante ativa junto com os homens na
atividade política! se deva em grande parte à influência socialista. Na Grã-
Bretanha não se torna visível na iconografia sindical até que se sinta esta
influência! Nos emblemas dos sindicatos britânicos pré-socialistas, não in-
fluenciados por intelectuais, mulheres reais aparecem principalmente naque-
les pequenos cartões através dos quais os sindicatos anunciavam sua ajuda
fraterna aos associados em desgraça: benefício de doença, acidente ou fa-
nerário. Elas aparecem postadas à cabeceira do marido doente, enquantoos
colegas dele vém visitá-lo, segurando a faixa de seu sindicato; cercadas pelos
filhos, elas apertam as mãos do representante do sindicato. que lhes entrega
dinheiro depois da morte do arrimo de família.
Naturalmente, as mulheres ainda estão presentes sob a forma de sim-
bolo e de alegoria, embora na Grã-Bretanha perto do final do século XIX,
nos emblemas dos sindicatos, não se encontrem quaisquer figuras femini-
nas, especialmente em indústrias totalmente masculinas como mineração de
carvão, fundição de aço « similares.!” Contudo, as alegorias do espírito de
iniciativa liberal continuam a ser em grande parte femininas, porque assim
sempre o foram. Prudência, Indústria (= Diligência), Coragem, Temperan-
ça, Verdade e Justiça presidiam à Associação de Solidariedade dos Pedreiros
em 1868; Arte, Industria, Verdade « Justiça presidiam a dos Carpinteiros e
Marceneiros. Dos anos 1880 em diante, tem-se a impressão de que somente
Justiça é Verdade, possivelmente complementadas por Fé e Esperança, sobre-
viveram entre estas figuras tradicionais. No entanto, à medida que o socialis-
mo avança, outras figuras femininas entram na iconografia da esquerda, em-
bora, em nenhum sentido. pretendam representar mulheres reais: são deusas
ou musas.
Assim, na bandeira da ala esquerda do Sindicato dos Trabalhadores,
entre 1898 e 1929, uma jovem terna cm drapeados brancos c sandálias
aponta para um sol rajando com a legenda; “Uma vida melhor”, em prol de
uma quantidade de trabalhadores pintados rcalisticamente em roupa de tra-
balho. Ela é à Fé, como o texto abaixo do quadro deixa claro. Uma figura
militante, também em drapcados brancos c sandálias, mas com uma espada
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS ua

é um escudo gravado com “Justiça & Igualdade”, nenhum fo de cabelo


fora do lugar em seu cuidadoso penteado, está de pé diante de um trabalha-
dor musculoso com a camisa aberta, O qual evidentemente acabou de derro-
tar uma besta com a legenda “Capitalismo” que jaz morta no chão à sua
frente, A bandeira intitula-se “O Triunfo do Operariado”e representaa filial
Southend-on-Sca da Sindicato Geral Nacional de Trabalhadores, um outro
sindicato socialista. A filial de Tottenham do mesmo sindicato tem a mesma
jovem, desta vez com o cabelo esvoaçante e no vestido à legenda “Luz,
Educação, Organização Industrial, Ação Política c Internacional Verdadeira”,
apontando a terra prometida na forma de um pário de recreio de crianças
para o costumeiro grupo de trabalhadores. A terra prometida traz 0 lema
“Conquiste a Comunidade Cooperativa” c a bandeira inteira ilustra o slogan
“Produtores da Riqueza da Nação, Uni-vos! E assegurem scu quinhão no
mundo”.'*
Estas imagens são tanto mais significativas porque estão obviamente
ligadas ao novo movimento socialista, que desenvolve sua própria icono-
grafia, c porque (em oposição ao antigo vocabulário alegórico) esta nova
iconografia inspira-se parcialmente na tradição das imagens revolucionárias
francesas, das quais à Liberté de Delacroix também se origina. Estilisticamente,
na Grã-Bretanha pelo menos, esta nova iconografia pertence ao movimento
progressista Ava-anderfis (artes-e-vtícios) e sua ramificação av nonvent, que
forneceu ao socialismo britânico seus principais artistas e ilustradores, William
Morris « Walter Crane, Entretanto, à imagem amplamente popular de Wal-
ter Crane da humanidade avançando para o socialismo — um casal com
roupas de verão soltas, O homem carregando uma criança em seus ombros
—, como tantos de seus desenhos, ainda reflete a influência de 1789 na
presença do barrete frígio.'? Os primeiros emblemas do 1º de Maio dos
social-democratas austríacos torna à conexão ainda mais óbvia; apresentam
uma figura feminina com o lema: “Paternidade, Igualdade, Liberdade e Jor-
nada de Oito Horas"2º
Contudo, qual o papel das mulheres nesta nova iconografia socialista?
Elas a inspiram. O emblema do Labour Annual?: publicado a partir de
1895, é “Luze Vida” de T. A, West. Uma senhora em vestes delicadas, meio
visível atrás de um escudo, sopra uma trombeta ritual para um belo rapaz
com à camisa aberta no peito e as mangas arregaçadas até o cotovelo, carre-
gando uma cesta da qual retira a semente, presume-se, da propaganda so-
cialista; raios, estrelas é ondas formam o pano de fundo do desenho. Apare-
150 FRIC HOBSBAWM

cendo mulheres humanas nessa iconografia, elas são parte de um casal idea-
lizado, com ou sem filhos; caso o homem ou a mulher esteja simbolica-
mente identificado com alguma atividade, é o homem que representa o
trabalho industrial. No casal de Crane, o homem tem a seu lado uma pi-
careta e uma pá. enquanto a mulher, carregando uma cesta de cereais c com
um ancinho a seu lado, representa a natureza, ou quando muito à agricultura
Curiosamente, à mesma divisão ocorre na famosa escultura de Mukhina do
trabalhador (homem) e da kolkhos (mulher) camponesa no Pavilhão So-
viético da Exposição Internacional de Paris de 1937: cle é o martelo, cla é a
foice.
É verdade que mulheres reais das classes operárias também aparecem
na nova “socialista, e incorporam um significado simbólico, pelo menos por
implicação. Contudo, são bastante diferentes das moças militantes da Co-
muna de Paris: são figuras de sofrimento c persistência. Meunier, o grande
pioneiro da arte proletária e do realismo socialista — tanto como realismo.
quanto como idealização — antecipa-as, como de costume. Sua Femme du
peuple, de 1893, é velha, magra, scu cabelo firmemente puxado para trás,
sugerindo pouco mais do que uma caveira, seu peito seco e murcho in-
sinuado pela própria (arípica) nudez, dos ombros.*? Scu mais conhecido Le
Grisou tem a figura feminina envolta em xale, carpindo sobre o corpo do
mineiro morto, Estas são as mães proletárias sofredoras, mais conhecidas
pelo romance de Górki ou pelos desenhos trágicos de Kaethe Kollwitz.2 E
talvez seja significativo que seus corpos se tornem invisíveis sob xales e
lenços de cabeça. A imagem típica da mulher proletária dessexualizou-se é
esconde-se atrás das roupas da pobreza. Ela é espírito, não corpo. (Na vida
real, esta imagem da esposa ou mãe sofredora que se transforma em mili-
tante talvez seja excmplificada pela eloqiiência da roupa negra de 1. Pasion-
aria, na Guerra Civil espanhola.)
Não obstante, enquanto o corpo feminino na iconografia socialista
está cada vez mais vestido, senão escondido, algo curioso acontece com o
corpo do homem. Este assume cada vez mais um sentido simbólico, A ima-
gem que cada vez mais simboliza a classe operária é a contrapartida exata da
Liberté de Delacroix, isto é, um jovem com o torso nu: a figura poderosa de
um trabalhador, brandindo o martelo ou a picareta, c nu da cintura para
cima.?* Esta imagem é não-realista em dois aspectos. Em primeiro lugar,
não era nada fácil encontrar muitos trabalhadores do século XIX, nos países
com movimentos operários sólidos, trabalhando com o torso nu. Esta, co-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 351

mo Van Gogh reconhecia, era uma das dificuldades de uma época de realis-
mo artístico. Ele gostaria de pintar os corpos nus dos camponeses, mas na
vida real eles não andavam mus.” As numerosas gravuras representando o
trabalho industrial, mesmo sob condições em que hoje pareceria racional
tirar-se à camisa, como no calor « incandescência das fundições ou das fábri-
cas de gás, quase que universalmente os mostram vestidos, embora com
roupas leves. Isto abrange não apenas o que poderia ser chamado amplas
«vocações do mundo do operariado — tais como Hork, de Madox Brow
ou Le travail, de Alfred Roll (1881), representando uma cena ao ar livre de
trabalho em construção —, mas também pinturas realistas ou reportagens
gráficas. 2 Naruralmente, trabalhadores de torso nu podiam ser vistos —
por exemplo, entre os minciros de carvão britânicos —, mas somente em
alguns casos. Nestes, os trabalhadores poderiam realisticamente scr vistos
seminus, como em Roboteuss de parquer, de G. Caillebotte”? ou na figura de
um cortador de carvão no emblema do Sindicato dos Fundidores (1857).
Na vida real, contudo, todos estes eram casos especiais. Em segundo lugar,
a imagem da nudez é não-realista porque certamente escluía o vasto grupo
de trabalhadores especializados e de trabalhadores de fábricas, que nunca
sonhariam em trabalhar sem suas camisas por um momento sequer e que,
por sinal, formavam à maior parte do movimento operário organizado.
Não se sabe 20 certo quando o trabalhador de torso nu aparece na arte
pela primeira vez. Sem dúvida, naquela que deve ser uma das primeiras
esculturas de proletários, o trabalhador de ardósia de Westmacorr, no mo-
numento de Penrhyn (Bangor), de 1821,º está vestido, enquanto à jovem
mponesa perto dele, talvez semi-alegoricamente, está com uma roupa bas-
tante decotada. Pelo menos desde os anos 1880 em diante, tal representação
esteve presente na escultura, na obra do belga Constantin Meunier, talvez o
primeiro artista a se dedicar totalmente à representação do trabalhador bra-
cal; possivelmente, também na de Dalou, partidário da Comuna de Paris,
cujo monumento inacabado ao operariado contém motivos similates, Ob-
viamente, o nu era muito mais encontrado na escultura, que tinha por longa
tradição uma tendência muito mais forte a apresentar a figura humana nua
do que a pintura. De fato, nos desenhos é pinturas de Meunier, as figuras
humanas estão, com uma fregiência muito maior, realisticamente vestidas;
e, como foi demonstrado quanto a um de seus temas, pclo menos, o dos
estivadores descarregando um navio, os homens estavam despidos apenas
no projeto em três dimensões que fez para um monumento ao opcrariado.*?
182 ERICHOBSBAWM

Talvez esta seja uma das razões por que à figura seminua soja menos pre:
dominante no período da Segunda Internacional. quando o movimento so-
cialista ainda não estava em posição de encomendar muitos monumentos
públicos, e só adquira projeção depois de 1917, na Rússia Soviética, onde já
havia tal condição. Entretanto, embora uma comparação direta entre as ima-
gens pintadas e esculpidas seja, portanto, enganadora, o torso masculino nu
pode ser encontrado aqui c ali em emblemas de duas dimensões, bandeiras
é outras gravuras do movimento operário, mesmo no século XIX. De todo o
modo. ele triunfou na escultura após 1917 na Rússia Soviética, sob títulos.
ais como: Trabalhador. As armas do proletariado, Memorial do domingo san-
agrento de 1905 cec3: O tema ainda não se cxauriu, já que uma estátua cha-
mada Amizade dos pois, dos anos 1970, ainda apresenta o familiar Hércules
de torso nu brandindo um martelo.
A pintura € as artes gráficas ainda achavam difícil romper os laços com
o realismo, Não é fácil encontrar quaisquer trabalhadores de torso nu na
idade heróica do cartaz revolucionário russo. Mesmo à pintura simbólica
Tiud apresenta um desenho de um jovem idealizado em roupas de iubulho,
cercado de ferramentas de artífice especializado,* em vez do titã musculoso
« basicamente não-especializado, muito mais comum. O poderoso trabalha-
dor brandindo o martelo, ocupado em quebrar as correntes que aprisionam
à globo (que simbolizou a Internacional Comunista nas capas de seu pe-
riódico, a partir de 1920), trazia roupas cm seu torso, embora elas fossem.
apenas esboçadas. A decoração simbólica desta revista em seus primeiros.
números não era a figura humana: cram estrelas de cinco pontas, raios,
martelos, foices, espigas de cereais, colméias, cormucópias, rosas, espinhos,
tochas cruzadas e correntes. Ainda quando as imagens eram mais modemas,
tais como a estilização art-nouveau das chaminés das fábricas com fumaça* e
driving bands e corrcias de transmissão, não havia trabalhadores de peito nu.
Fotografias de propaganda desses homens não foram comuns, se é que cxis-
tiram, antes do primeiro Plano Qiiingicnal** Não obstante, embora 0 avanço
do torso nu cm duas dimensões tenha sido mais vagaroso do que se poderia
pensar, a imagem era familiar: assim é o símbolo que decora à capa da
edição francesa do Compre rendu analytique do Quinto Congresso da Inter-
nacional Comunista (Paris, 1924).
+ Na Rússia este motivo já aparece entre 1905 « 1907.
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 153

Por que o corpo nu? A questão só pode ser discutida em breves linhas,
mas nos leva de volta tanto à linguagem da representação idealizada e sim-
bólica, quanto à necessidade de desenvolver tal linguagem para o movi-
mento revolucionário socialista. Não há dúvida de que a teoria estética do
éculo XVTT ligava O corpo nu à idealização do ser humano, com muita
consciência geralmente, como em Winckelmanm, Uma pessoa idealizada (em
oposição a uma figura alegórica) não poderia portar trajes da vida real e —
como às estátuas nuas de Napoleão — deveria, se possível, ser apresentada sem
vestes. O realismo não tinha lugar nessa representação. Quando Stendhal criti-
cou o pintor David, porque seria um verdadeiro suicídio para seus guerrei-
ros da Antigiidade travarem uma baralha nus, armados somente com capa-
cere, espada e escudo, estava simplesmente chamando à atenção, no su
habitual papel de provocador, para à incompatibilidade na arte entre à pro-
posição simbólica e a realista. Mas o movimento socialista, apesar de sua
profunda ligação em princípio ao realismo na arte — uma ligação que re-
monta aos seguidores de Saint-Simon —, exigia uma linguagem simbólica
com que afirmasse scus ideais. Como vimos, os emblemas « bandeiras dos
sindicatos britânicos — correramente descritos por Klingender como “a
verdadeira arte folelórica da Grã-Bretanha do século x1x"** — são uma com-
binação de realismo, alegoria c simbolo. São, provavelmente, a última forma
de florescimento da linguagem alegórica e simbólica, além da esculeura mo-
numental pública. Uma representação idealizada do tema do. movimento,
ou seja, a própria luta da classe trabalhadora, precisaria mais cedo ou mais
tarde abranger 0 uso do nu — como na bandeira da Filial de Exportação do
Sindicato dos Portuários, nos anos 1890, em que um homem musculoso
nu, com um pancjamento leve sobre o sexo, ajoelha-se sobre uma rocha
lutando com uma grande serpente verde, cercada dos lemas corresponden-
res. lim suma, embora à tensão entre reslismo « simbolismo permane-
cesse, era difícil inventar um vocabulário simbólico e ideal completo sem o
nu. Por outro lado, pode-se sugerir que o nu total era mais aceitável, Não se
pode facilmente ignorar o absurdo do Grugo: Outubro, de 1927. que con-
siste em trés homens musculosos ntis, exceto pelo boné do Exército Ver-
melho usado por um deles, com martelos e outros acessórios semelhantes.
Conjeturemos que a imagem do torso nu expressasse um compromisso en-
tre o simbolismo e o realismo. Havia afinal trabalhadores rais que podiam
ser apresentados dessa forma.
154 ERICHORSBANM

Resta-nos uma pergunta final, mas crucial. Por que se simboliza a clas-
se operária em luta exclusivamente por um torso masculino? Aqui podemos
apenas especular, e sugiro duas linhas de especulação,
A primeira diz respeito às mudanças na verdadeira divisão sexual do
trabalho no período capitalista, tanto produtiva, quanto política, É um pa-
radoxo da industrialização do século XIX que ela tendesse a aumentar € aguçar
a divisão sexual do trabalho entre o trabalho doméstico (não-remunerado) e o
trabalho externo (remuncrado), na medida em que privava o produtor de con-
trolar os meios de produção. Na economia pré-industrial ou proto-industrial
(lavoura campesina, produção artesanal, pequenos comerciantes, indústrias
domésticas, trabalho subcontratado etc.), O trabalho doméstico e à produção
cram geralmente uma unidade singular ou combinada. Isto significava que,
embora a maior parte das mulheres trabalhasse excessivamente — já que faz-
iam quase todo o trabalho doméstico e participavam do resto do trabalho
não estavam confinadas a um só tipo de trabalho. De fato, na grande expansão
do “proto-industrialismo” (indústria doméstica), que recentemente foi estu-
dada, os processos producivos reais atenuavam ou mesmo aboliam as diferen-
ças no trabalho entre homens e mulheres, com efeitos de longo alcance nos
papéis sociais e sexuais e nas convenções dos sexos **
Por sua vez, a situação cada vez mais comum do operário que trabalhav:
para um empregador, em um local de trabalho pertencente à este empre-
gador, separou o lar e o trabalho. Em geral era o homem que tinha de
deixar a casa todos os dias para trabalhar por salários, não à mulher Em
geral, a mulher trabalhava fora (quando, por alguma razão, o faziam) so-
mente antes do casamento c, depois de casada, somente caso enviuvasse ou
se separasse, ou quando o marido não ganhasse o suficiente para manté-la e
à família; neste caso, provavelmente cla só trabalharia enquanto tal situação
perdurasse, Ao contrário, uma profissão em que um homem adulto não
fosse capaz de ganhar um salário que sustentasse a família cra — compreen-
sivelmente — considerada mal-remunerada. Daí o movimento operário, lo-
gicamente, desenvolver a tendência a calcular 0 salário mínimo descjável em
termos de ganhos de um único artimo de família (isto é, na prática, o
homem) e a considerar a esposa trabalhadora assalariada como sintoma de
uma situação econômica indesejável. De fato, a situação era fregientemente
indesejável, e um número expressivo de mulheres casadas eram forçadas a
trabalhar por salário ou algo que lhe equivalesse, embora, em grande pro-
porção, o fizessem em casa — isto é, fora do efetivo alcance dos movimen-
PESSOAS EXIRAORDINÁRIAS 1

tos operários.” Além disso, mesmo nas indústrias em que o trabalho de


mulheres casadas estivesse tradicionalmente enraizado — como na região
téxtil de Lancashire — sua expressividade pode ter sido exagerada: 38% das.
mulheres casadas « viúvas empregavam-se por salários em Blackburn, em
1938, mas, em Bolton, somente 15%.º
Em suma, convencionalmente, as mulheres tinham como objetivo pa-
rar de trabalhar por salários fora de casa quando se casassem. A Gri-Bre-
tanha talvez fosse um caso extremo: em 1911, somente 11% das trabalha-
doras assalariadas tinham maridos, e somente 10% das mulheres casadas
trabalhavam; mas mesmo na Alemanha, em 1907, onde 30% das trabalha-
oras assalariadas tinham maridos, a diferença de sexo cra surpreendente.
Para cada esposa em trabalho assalariado na faixa etária de 25 a 40 anos,
havia quatro maridos trabalhadores assalariados.”! Até então, a situação da
mulher casada nãosc alterou sigaificativamente pela tendência — bastante
acentuada depois de 1900 — de ingresso em grandes contigentes de mulhe-
res na indústria, e pelo desenvolvimento de várias profissões c atividades de
lazer abertas a moças solteiras.” “A tendência a um número maior de mu-
Iheres casadas ter uma profissão específica não se cstabelecera com firmeza
na virada do século” É válido enfatizar este ponto, já que algumas histo-
riadoras feministas, por razões dificeis de serem compreendidas, tentaram
negé-lo, À industrialização do século XIX (em oposição à industrialização do
século Xx) tendia a fazer do casamento « da família a carreira principal da
mulher da classe trabalhadora, desde que não fosse forçada pela total po-
breza a assumir outra atividade.** Na medida em que trabalhava por salário
somente antes do casamento, ela considerava o trabalho assalariado uma
fase temporária, embora sem dúvida desejável; uma vez casada, porém, per-
tencia ao proletariado não como trabalhadora, mas sim como esposa, mác €
dona-de-casa de trabalhadores.
Politicamente, à luta pré-industrial dos pobres não só produziu amplo
espaço para as mulheres participarem ao lado dos homens — nenhum dos
sexos tinha direitos políticos como o direito de voto —-, mas em alguns
aspectos lhes reservou um papel específico « de liderança. A forma mais
comum de luta era aquela que rcivindicava a justiça social, isto é, a ma-
nutenção do que E. P Thompson chamou “a economia moral da multi-
dão”! através da ação direta no controle dos preços. Na forma de ação, que
politicamente poderia ser decisiva — lembremo-nos da marcha das mulhe-
res sobre Versalhes em 1789 —-, as mulheres não só tomavam a liderança,
156 ERIC HOBSBAWM

mas era convenção se esperar que clas o fizessem. Como Luísa Accati corre-
tamente afirma: “em um grande número de casos (eu diria, em pratica-
mente todos os casos) as mulheres têm um papel decisivo, seja porque tomam
a iniciativa, seja porque formam uma parte muito grande na multidão”.4é
Nem precisamos considerar aqui a prática pré-industrial bem conhecida em
que homens rebeldes entram em ação distarçados de mulheres, como nos
chamados “tumultos de Rebecca” do País de Gales, de 1843.
Além disso, a revolução urbana característica do período pré-industrial
não era proletária e sim plebéia. Entre o “povo miúdo” — uma coalizão
socialmente heterogênca de indivíduos, unidos pela “pequenez” e pobreza
comuns, e não por critérios ocupacionais ou de classe —, as mulheres po-
diam desempenhar um papel político, nem que fosse só porque saiam às
ruas. Elas podiam ajudar a construir as barricadas,
e de fato o fizeram, Podiam
ajudar os que lutavam atrás delas. Podiam até mesmo lutar ou portar armas.
Mesmo à imagem da “revolução popular” moderna em uma grande me-
trópole não-industrializada as inclui, como pode comprovar qualquer pessoa
que se lembre das cenas de rua de Havana depois da vitória de Fidel Castro,
Por sua vez, a forma específica de lura do proletariado, o sindicato e à
greve, exclui em grande parte as mulheres, ou reduziu amplamente seu pa-
pel visível como participantes ativas, exceto nas poucas indústrias em que
clas se concentravam em peso. Assim, em 1896, o número total de mulhe-
res nos sindicatos britânicos (excluindo as professoras) era 142 mil ou algo
como 8%; mas 60% destas trabalhavam na indústria de algodão, que cra
extrema « fortemente sindicalizada. Por volta de 1910 era acima de 10%,
mas, embora houvesse um certo crescimento na sindicalização entre fun-
cionários de escritórios e comerciários, a maior parte da expansão ma in-
dústria ainda foi no ramo têxtil.” Em outros setores seu papel foi de fato
crucial, mas distinto, mesmo nos pequenos centros industriais e de mine-
ração, onde o lugar, o trabalho c a comunidade ram inseparáveis. Contudo,
se nesses ambientes seu papel nas greves cra público, visível e essencial, não
era, entretanto, o de grevistas em si.
Além disso, onde o trabalho dos homens e o trabalho das mulheres
não fossem tão separados e distintos que impedissem uma confusão entre
ambos, à atitude normal dos sindicalistas do sexo masculino em relação às
mulheres que procurassem ingressar em sua profissão era, nas palavras de S.
e B. Webb, de “indignação e repulsa”.* A razão era simples: como os sa-
lários das mulheres eram muito mais baixos, representavam uma ameaça aos
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 157

salários e condições dos homens. Como classe — citando novamente os


Webbs --, “elas eram os inimigos mais perigosos do padrão de vida dos
artesãos”, além de a atitude dos homens ser também -- apesar da crescente
influência da esquerda — fortemente influenciada pelo que hoje chama-
ríamos de “sexismo”:*? “o artífice respeitável tem um desagrado instintivo
pela mistura promfscua de homens e mulheres no convívio diário, seja na
oficina, seja em um clube social”.*? Consegiientemente, a política de todos
os sindicatos capazes disso cra excluir as mulheres de seu trabalho; aqueles
que cram incapazes de o fazer (por exemplo, o dos tecelões) tinham por
política separar os sexos, ou, pelo menos, evitar que mulheres c meninas
crabalhassem “em conjunto com homens, especialmente se afastadas da cons-
tante associação com outras trabalhadoras”. Assim, tanto o medo da con-
corrência econômica das trabalhadoras, quanto a manutenção da “moralidade”
se combinaram para conservar as mulheres fora ou à margem do movimento
operário — exceto no papel convencionalde membros da família.
O paradoxo do movimento operário estava em que apoiava uma ideo-
logia de igualdade e emancipação sexual, enquanto, na prática, desencora-
java a real participação conjunta de homens e mulheres no processo do
trabalho enquanto trabalhadores. Para à minoria de mulheres emancipadas
de todas as classes, inclusive as operárias, o movimento operário forneceu as
melhores oportunidades para que se desenvolvessem como seres humanos,
inclusive como líderes e figuras públicas; provavelmente, foi o único ambiente
no século XIx que lhes deu tais oportunidades. Nem deveríamos subestimar
o efeito nas mulheres comuns, mesmo nas casadas da classe trabalhadora, de
um movimento veementemente comprometido com a emancipação do sexo
feminino. Ao contrário do movimento “progressista” pequeno-burgués que,
como entre os radical-socialistas franceses, chegava quase à ostentar 0 seu
chanvinismo machista, o movimento operário socialista tentava vencer, no
interior do proletariado e em outros setores, as tendências para manter as
desigualdades entre os sexos, mesmo que não tenha realizado o quanto de-
sejava.2 Não é à toa que a principal obra do carismático líder dos socialistas
alemães, August Bebel, fosse seu Himan and Socialism — de longe, a obra
mais popular de propaganda socialista na Alemanha daquele período.** Con-
tudo, ao mesmo tempo, o movimento operário inconscientemente apertou os
Iaços que mantinham a maioria das mulheres casadas (não-ascalariadas) da classe
trabalhadora em seu papel social definido é subordinado. Quanto mais po-
deroso ele se tomava como movimento de massa, mais cficazes se tornavam
158 ERIC HOBSBAWM

estes frcios à sua própria teoria « prática emancipatória: isto ocorreu pelo
menos até que as transformações econômicas destruissem a fase industrial
da divisão sexual do trabalho do século XIX. Em certo sentido, a iconografia
do movimento reflexe esta consolidação inconsciente da divisão sexual do tra-
balho. Apesar de, e contra, as intenções conscientes do movimento, sua ima-
gem expressava a masculinidade essencial da Jura do proletariado em sua forma
elementar anterior a 1914, a luta sindical.
Poderia estar clara agora a razão pela qual, paradoxalmente, a mudança
histórica de uma era de movimentos plebeus e democráticos para uma era de
movimentos proletários e socialistas acarretou, iconograficamente, o declínio
do papel da mulher. Entretanto, outro fator pode ter reforçado esta masculini-
zação do movimento: o declínio de milenarismo pré-industrial clássico. Esta
questão é ainda mais especulativa e abordo-a com cautela c hesitação.
Como já me referi, na iconografia da esquerda, a figura feminina se
manteve mais como uma imagem de utopia: à deusa da liberdade, o sím-
bolo da vitória, a figura que apontava para a sociedade perfeita do futuro.
E, de fato, as imagens da uropia socialista cram essencialmente da natureza,
da fertilidade « do crescimento, do Aorescimento, às quais a metáfora femin-
ina se aplicava naruralmente:
Les générations écloses
Verront fluecir leurs bébés roses
Comme églantiers en Floréal
Ce sera la saison des roses.
Voilã Pavenir social.”
(E. Porter

Eugêne Pottier, o autor da Internacional, seguidor de Fourier, está


pleto de tais imagens de feminilidade, mesmo em seu sentido literal do seio
materno:
pour tes enfants longremps sevrés
reprends le róle du mamelle
(DAge EOrye*
= As gerações em botão Verão seus bebés rúsados Noresceremy Como rosas amarelas na
primaveca: Será a estação das rosas.../ Esse é o futuro social
*s para teus filhos, embora desalcirados há muito, dá uma vez: mais 0 seio (A Idade de Ouro)
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 159

Ah, chassons-la. Dans hor des blés


Mêre apparais, les seins gonflées.
à nos phalanges collectives
La fille du Thermidor)*
Du sein de la nourice, il coule ce beau jour
Une inondation «existence er amour
Tout este fécundité, toue pultale cr foisomne
(Abondancey**
Nature — toi qui gontles ron sela
Pour ta fámile entiêre
(La Cremailliveyee+
Assim também, de um modo menos explicitamente físico, é Walter
Crane que, como já vimos, foi em grande parte responsável pelos temas das
imagens socialistas na Grã-Bretanha a partir dos anos 1880. Era um ima-
ginário de primavera e de flores, de colheita (como no bem-conhecido The
Trinmplo of Labour desenhado para a manifestação do 1º de Maio de 1891) e
de jovens com leves vestidos ondulantes € barretes frígios** Ceres era à
deusa do comunismo.
Não é de admirar que o período de ideologia socialista mais profunda-
mente imbuído de feminismo « mais inclinado a atribuir um papel crucial,
algumas vezes até dominante, à mulher tenha sido a cra romântico-utópica
anterior a 1848. É claro que neste período mal podemos falar de um “mo-
vimento” socialista, mas somente de grupos pequenos « atípicos. Além dis-
so, O número real « a expressividade das mulheres em posições de liderança
nesses grupos era bem menor do que nos anos não-tópicos da Segunda
Internacional. Na Grã-Bretanha do owenismo e do cartismo, não há nada
que se compare com o papel das mulheres como escritoras, oradoras e lf-
deres nos anos 1880 c 90; e isto não apenas no âmbito da classe média da
sociedade Fabiana, mas também na atmosfera muito mais operária do Par-
Ah, procuremo-lat/ Nos prados duuzados venta a nós, Mãe ; Os scios cheios para nossas
hostes coletivas (Fala de Termidor
+ Neste belo dia escorre, do seio da nuiria/ Uma enchente de vida e amor Tudo é fertil
dade, tudo pulula em abundância (Abundância
== Natureza — tu, cujo seio se encheu/ Para alimentar toda
tua família (Celebração)
160 ERIC HOBSBAWM

tido Trabalhista Independente, para não mencionar figuras tais como Elea-
nor Marx no movimento sindical. Além disso, as mulheres que então se
destacaram, como Beatrice Webb ou Rosa Luxemburgo, não fizeram repu-
tação por serem mulheres, mas porque se projetaram independentemente
do sexo. Contudo, o papel da emancipação das mulheres na ideologia socia-
lista nunca foi mais evidente « central do que no período do “socialismo
utópico”.
Isto se deveu, em parte, ao papel crucial atribuído à destruição da
família tradicional no socialismo daquele período:*” um papel que está bem
claro em O Manifesto Comunista. A família cra considerada como a prisão
domiciliar não apenas das mulheres (que em geral não cram muito parrici-
pantes na política, nem, como massa, muito entusiastas com a abolição do
casamento), mas também dos jovens, que se sentiam muito mais atraídos
por ideologias revolucionárias. Além disso, como ]. F.C. Iarrison corre-
tamente salientou, mesmo que por motivos empíricos, os novos proletários
podiam bem concluir que “a influência dos seus toscos cascbres era restrita
é circunscrita e que em comunidade encontrariam meios de escapar dessa
situação: “podemos viver em palácios tão bem quanto os ticos ... bastando
adotarmos o princípio da associação, o princípio patriarcal das grandes fa-
mílias, como aquele de Abraão”.”S8 Foi a socicdade de consumo, associada
— paradoxalmente — à substituição da ajuda mútua pela previdência social
de Estado, que enfraqueceu este argumento contra O núcleo familiar privado.
Não obstante. o socialismo utópico também atribuiu outro papel à
mulher, que era basicamente semelhante ao papel feminino nos movimentos
religiosos milenaristas com os quais os utopistas tinham muito em comum.
“Aqui as mulheres cram não apenas — talvez nem mesmo — iguais, mas
superiores. Seu papel específico era o dos profetas, como Joanna Southeorr,
fundadora de um influente movimento milenário na Inglaterra do início do
século XIX, ou à femme-mêre-messie (mulher-mãe-messias) da religião dos se-
guidores de Saint-Simon,” Este papel acabava por fornecer, em um mundo
masculino, oportunidades de uma carreira pública para um pequeno nú-
mero de mulheres. Lembremo-nos das fundadoras da Ciência Cristã e da
Teosofia. Contudo, a tendência dos movimentos sociais e trabalhistas à se
afastatem do milenarismo em direção à teoria e organização racionalistas
(“socialismo científico”) tornou este papel social das mulheres no movi-
mento cada vez mais marginal. Mulheres capazes, cujos talentos preenchiam
esses papéis, eram expulsas do centro do movimento para religiões periféri-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 161

cas que lhes proporcionavam mais campo de ação. Foi assim que atuou
Annie Besant, uma secularista e socialista, e seu papel político principal,
depois de 1890, foi como alta sacerdotisa da 'Ieosofia « — através da Teo-
sofia — uma inspiradora do movimento de libertação nacional indiano.
Tudo 6 que restou do papel utópico-messiámico das mulheres no so-
cialismo foi à imagem da mulher como inspiração « simbolo de um mundo
melhor. Mas, paradoxalmente, esta imagem por si mesma mal se distinguia
dia das exi areiblicho sácir sms inn (o exerno feminino nos eleva aos céus”),
de Goethe. Na realidade, aquilo que era de um modo na teoria da idea
o burguesa masculina da mulher, dificilmente poderia ser diferente da-
quilo que era tão compatível com sua inferioridade na prática. Quando muito,
à imagem da mulher como inspiradora se tornou a imagem de uma Joana
«Arc, facilmente reconhecível nos desenhos de Walter Crane. Joana d'Arc
foi, de fato, um icone de militância da mulher, mas não representava nem
emancipação política, nem emancipação pessoal, ou mesmo ativismo, em
qualquer sentido que pudesse se transformar em modelo para as mulheres.
reais. Mesmo sc esquecermos que à imagem de Joana «Arc exclua a maio-
ria das mulheres que não eram mais virgens - - isto é, mulheres como seres.
sexuais — em qualquer época, por definição histórica, há no mundo espaço
para apenas umas poucas Joanas d'Arc. E, por sinal, como demonstra à
adoção cada vez mais entusiasta de Joana d'Arc pela dircita francesa, sua
imagem era ideológica « politicamente indeterminada. la poderia ou não
representar à Liberdade, Poderia estar nas barricadas, mas, ao contrário da
jovem de Delacroix, não pertencia necessariamente àquele lugar.
Infelizmente, é impossível continuar a análise iconográfica do movi-
mento socialista além de um ponto da história que já é razoavelmente r
moto, Não se fala nem se entende mais à linguagem tradicional do símbolo
é da alegoria €, com seu declínio, mulheres como deusas e musas, como
personificações da virtude e ideais, mesmo como Joanas E'Arc, perderam
seu lugar específico no imaginário político. Mesmo o famoso símbolo inter-
nacional da paz nos anos 1950 não era mais uma mulher, como quase cer-
tamente teria sido no século XIX, mas a pomba de Picasso. Em relação às
imagens masculinas, provavelmente isso também é verdadeiro, embora o
Prometeu brandindo o martclo tenha sobrevivido mais tempo como per-
sonificação do movimento c da luta. Desde à Segunda Guerra Mundial à
iconografia do movimento é, por assim dizer, não-tradicional. Atualmente
não temos instrumentos analíticos para interprerá-la, isto é, fazer leituras
162 ERIC HOBSBAWM

simbólicas do principal meio iconográfico moderno, à fotografia ou o cine-


ima, que são ostensivamente naturalistas.
À iconografia do presente. portanto, não pode esclarecer as relações
entré homens e mulheres no movimento socialista na merade do século xx
da mesma maneira que para 0 século XIX. Contudo, pode trazer uma su-
gestão final quanto à imagem masculina. Esta, como já insinuamos, é em
alguns aspectos paradoxal, visto que caracteriza não tanto o trabalhador,
quanto o mero esforço muscular: não a inteligência, a habilidade e a ex-
periência, mas a força bruta: exatamente como no famoso O forjador de
ferra, de Meunier, onde o esforço físico virualmente exclui e exaure a men-
te, Pode-se ver razões artísticas para isto: como Brandt assinala, em Me-
unier “o prolerário é transtormado em um atleta grego”, e para esta forma
de idealização a expressão da inteligência não é relevante. Pode-se ver tam-
bém razões históricas: o período 1870-1914 foi, sobrerudo, à período em
que a indústria confiava em um influxo maciço de trabalhadores inexperientes,
mas fisicamente fortes, para realizar cm grande proporção tarefas relativa-
mente não-especializadas que exigiam muita mão-de-obra; período em que
um ambiente dramático de escuridão, chama « fumaça caracterizou a re-
volução na capacidade do homem em produzir mediante a induístria movida
a vapor. Até agora, como sabemos, a grande maioria dos militantes do ope-
rariado organizado neste período, se deixarmos de lado o contingente re-
conhecidamente importante de minciros, consistia essencialmente em tra-
balhadores especializados. Como será que uma imagem que omite todas as.
características dessa espécie de trabalho se estabeleceu como expressão da
classe operária?
Pode-se sugerir três explicações. A primeira, e talvez a mais convia-
cente psicologicamente, é que para a maioria dos trabalhadores, qualquer
que fosse a sua especialização, o critério de pertencer a sua classe cra preci-
samente a execução de trabalho físico braçal. O instinto dos movimentos ope-
rários genuínos era omprisriste (obreirista): uma desconfiança perante aqueles.
que não sujavam suas mãos. Isto, é certo, a imagem representava. A scgunda
é que 6 movimento descjava enfatizar precisamente seu caráter abrangente:
abrangia todos os proletários, não somente tipógrafo. mecânicos especiali-
zados e similares. A terceira, que provavelmente prevaleceu no período da
Terceira Internacional, era que, em certo sentido, o trabalhador relativa-
mente não-especializado, puramente braçal, o mineiro ou o estivador, era
considerado mais revolucionário, já que não pertencia à aristocracia do ope-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 163

rariado com seu pendor para o reformismo e a social-democracia. Ele repre-


sentava “as massas”, para as quais os revolucionários se dirigiam, mais do
que para os social-democratas. A imagem cra uma realidade, na medida em
que representava a diferença fundamental entre o trabalho braçal o tra-
balho não-braçal; uma inspiração, na medida em que implicava um pro-
grama ou uma estratégia. Quão realista era, no segundo aspecto, é uma
pergunta que não cabe no presente estudo. Contudo, não deixa de ser signi-
ficativo que, como imagem, omitisse muito do que foi o mais característico
da classe operária « de seu movimento

Notas
1, Esie ensaio originou-se de um colóquio com Pecer Hának do Instituto de História da
Academia Húngara de Ciências, a respeito de um ensaio de Etim Etkind (de Lenin-
grado, na época, atualmente de Nanterre) sobre “O ano de 1830 na possia cumpéia”,
Sob o aspecto da história da arte, recebi ajuda essencial de Georg Eisker, Praneis e
Laisa Haskell c Nick Penny Em certo sendo, este é portanto um trabalho de
cooperação, embora as interpretações e os eres sejim todos meus,
2.CE, para uma discussão € bibliogrifia completas, o catálogo da exposição La Libené
aidans le peuple de Delacroix, composto e redigido por Iélene Tonssaint, estudo do
Laboratório de Pesquisa dos Museus da França por Lola Faillant-Dumas c Jean-Paul
Riou (Paris, 1982). À cste acrescentaria HS. Tiidecke, Liggéne Delacroi sna die Pariser
Juliresoliiom (Berlim, 1965), « Efim Erkind, “1830 im der curopaischen Dichrung”.
dn R, Urbach (org), Wien sind Europe eivischen den Revolusionen- 1789-1448 (Viena-
Munique, 1978),
3.) Clark, The Aisolate Boungcvis, Londres, 1973, p, 19.
4 Edkind, “18307, pp. 150-1
Heinrich Heine, Gesammeite Ménte, Berlim, 1956-537, vol. 4, p 19.
6 1. Ramiro, Páliciem logs, Pais, 1905, pp. 80-1
7. Eduard Fuchs, Die Eras in der Karibarr, Munique, 1906, p. 484. Fuchs descreveu
Penple de forma não implausível como “Megáre Volk” vu "O povo como uma vi
rago” (Ramiro, Feicien Rops, p. 188), Uma versão menos explicita desta mesma ia:
tem, por omitir à mexade inferior do corpo da mulher esti numa ilustração em Franz
Bei, Faúicien tops (Berlim, 1921), sem número de página.
8.M. Agulhou, “Esquisse pour une archéulogie de la République: Tallégorie civique
feminine”, Annals, nº 28, 1973, pp. 5-34. Uma heroína não-rexolucionáriaé apre.
sentada quáse simultaneamente de maneira oposta à de Delacroix no Defense of
Saragoss, 1828, de David Wilkie (Wilkie Exhibition, Royal Academy, 1958). A ver
164 ERIC HORSBAWM

dadeira heroína espanhola é representada completamente vestida mas em pose ale-


gótica, enquanto um guerrilheiro está agachado à seu lado, com 6 tórso mu (Devo
esta referência ao de. N. Nennci Byrun, que discure extensamente « de forma ad-
mirável o papel das mulheres espanholas na luta pela liberdade, bem como à Virgem
de Saragoça, acemtua-he o hervismo aparentemente não feminino: “Her lover sinks
— she sheds no ilktimed tear; / Her chiet is slain — she fil his fal post: / Her
fellow fe — she check their base career; / The toe retáres — sh has the sallving
host”. Mas Byron também ressalta que ela permanece dentro dos limites do que à
superioridade masculina considera desejável nas mulheres: “Jet are Spain's maids no
race oÉ Amazonas, / Bur formed for all the witehing arts of love” Na verdade, a
ferocidade delas, em contraste com a da Libendade, é “a ferocidade da pomba” (he
ercenes ofrhe dive); ver Chitde Harald, voL 1, pp. Sc ss
9. Veja-se Jean Duche. 1700-1960: deus ses A bisoire de France par a caricature. Pais,
1961, pp. 142-3, 145
10.7. Brubas, Jean Dany e lilo Tecsen, La Conimunie de 187], Paris, 197], p. 190 —
uma imagem inglesa
11, Jean Grand-Cartere, LAfire Dreyfiset Pimage, Paris, 1898, p. 150.
12. 1bid, Mustrações 61, 67, 106 € 251
13. A. Teeson, United TE Stand Am Tlusmnted Acemonr of Trade Union Emblems, Lon-
dies, 1971, p. 26
14, Lucien Christophe, Constantin Meunier, Ancuérpia, 1947, ilustrações6-9 c 21
15. Frans Mascreel, Die Send, Munique, 1925.
16. Joha Gorman, Hatiner Brinbt: Am Tlustratel History of she Bannens afrhe Brito Trade
Union Moremens, Londres, 1973, p. 126
17 Lécson, United We Scand, pp. 60-70,
18: Gorman, Banner Hrigbr, pp. 1223.
1. WE Crane, Cartoons fo the Cause: À Seven of she Internarional Sacialir Wbrhos and
Trade Uyiom Congrés, 1886-1896, Londres, 1896
20. Da coleção do dr. Hecbert Siciner, de Vin Para a sobrevivência do tríplice lema da
Revotução Erancesa, ver Udo Achei (org), Zum Licire Empor: Mai-Ferzettungen der
Susinldemobranie, 4891-1914, Berlim-Bonn, 1980, pp 124: é DD. Fricke, Kleine
Gesebicine des Este Mai, Frankfurt, 1980, p. 61
21. Joseph Edwards (org:1, Labour Anual 1495, Manchester
22. Cheistophe, Constantin Menor, iuseração 12
23. VerE e M, Dixmies, Edite au besrre, Paris, 1974, ilusiação
24, A substituição da alegoria feminina pelo mu masculino, na iconografia socialista alemã
por xoitá de 1900, foi observada independentememe por Detlev Hoffman e Unuls
Schmidt insenhof, Unsenr Walt tros alem, Frankfurt, 1978, p. 373,
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 165

25: “Desenhar Uma imagem de camponês cm ação, repito, esta é à essência da imagem
mudema, o próprio múclea da arte moderna, que nem os gregos, nem o Reias-
cimento, hem os antigos holandeses fizeram ... Pessoas como Daumier — devemos
respeitá-las pois estão entre 05 pioneiros. À figura intciramente nua, mas moderna,
como a recriarum Hennore Lettvre, tem alt valor... Camponeses e trabalhadores,
porém, não andam nus afinal de contas. e não É necessário imagini-os em nuder.
Quanto mais ox pintures passarem à pintar trabalhadores e camponeses, mais eu vou
gostar”, Vincent Van Gogh, Lhe Complete Letrors of Vincent Vim Gogi, Londres, 1958,
vol. 2 pp: 400, 402, (Devo esta referência à Francis Haskell)
26, ED Klingender, Ar ad the Industrial Revulnsion, Londres, 1947, ilustrações 10, 47,
57, 90, 92 € 103; Paul Brand, Schafênde Ariuir und bidende Kignsr, Leipuig, 1927-
28, vol. 2.pp. 240c 8.
27. Brandk, Scbaifênde Avbei, p. 243, useração 314
28. Locson. Unirea WE Stand,p. 23
29, Nicolas Penny, Churelr Momuments in Romanti- England, New Haven e Londres.
1977, ilustração 138.
30. Brandi, Schagende Avis, p. 370.
32.1 E. Grabar, VN. Lazareve Li 8, Kumenoy, Imoria Russlugo Iisbusrioa. Moscou,
1957. vol. MI, pp. 33, 83, 359, 381 e 431
32. Tigal, Burganow Svetlov e Chêmow (orgs, Sonietkara Skuiprura, nº 74, Moscou.
1976, p.52.
33, Grabaretal, Itonyia, p. 150.
34, Num trabalho comemorativa do 15” aniversário da Revolução de Outubro, no ano
de 1982, surgiu pela primeira vez. uma fotografia deste tipo (50 homem socialista e
seat entusiasmo são o motor da construção”. Finfêeb Liseme Sebmifie: Ein Hu der
Tatsacien ams der Semjetumiom, Berlim, 1932.
35, Klingender Ars mma The Industrial Revolution. Mustração Xv.
36. “Ofender a um é ofender à todos”, “Lutaremose poderemos vir a morrer, mas não
nos renderemos”, “Esta é uma guerra santa / € ão esmureceremos / até que a misera.
a prestituiçãoe a exploração / sejam eliminadas”, Gorman, Bauer firi. p. 130.
37. Grabar ex al, Imara, ilstração“1, p 481.
38, Peter Kriedte, Hans Modick e Júrgea Sehltmbolm, Inaistriisicrana sor der Tutu.
rialisereng. Gireingen, 1977, capírulos 2 c 3
39, Pomanto, em 1906, nã França, 56% das mulheres que estavam empregadas ma in
sera trabalhavam no rama do vestuázio: o mesmo empregava cambém 50% day
mmúlheres ma indústria Dela (1890), 25% das mulheres ma indústria alemã (1907) e
36% na indústria britânica (1891). Ver Perer N, Stearns, Lives of babosa Mirk in m
Maruring Induarial Soiery, Londres, 1975, apêndice TT, p. 365
166 ERIC HOBSBAWM

40. D.C. Marsh the Chimmgina Social Structure of England and Más, 1871-1961 (edição
revisada), Londres, 1965, p. 129.
4. W Woyeinsky, Die Matei Zablem, Rertim, 1926, vol 2, p. 76: Gertraud Wolf, Der
Eranenereri é dem Houpotulrunstanten, Munique, 1916, p. 251
42, Pecer N. Stearns, in Martha J. Vic org), Sufer na Ro St Wbmen im he Vict-
viam Agr, Bloomingron-Londres, 1972, p. 118
43. Marsh, Chiang Social Siructure, p. 129.
44.0 problema aqui sugerido foi ademirivelmente apresentado por Louise À. Tilye Joan
W. Score em Women, Wirk and emily (Nova York, 1978), especialmente no capítulo
$ e pp. 228-9. Sua excelente discussão confirma esta análise, situando em particular a
ascensão daquela fase da economia na qual a nova organização da indústria manu-
favureira exigia basicamente uma força de trabalho masculina e adulta” e na qual
“durante a maior parte de sua vida de casada, a mulher servia como especialista na
educaçãode crianças c em atividades de consumo para suá Familia”, exatamente na
época em que o movimento operário de massa emergia nos países industrialmente
avançados
45.E, E Thompson, “Lhe Moral Economy of the English Crowd im the Elgheecnth
Century”, Pas amd Presene, nº 80, 1971
46.1, Levi Accat, “Vive le roi sans tale er sas gabelles une discussione sulle rivolte
contadine”, Quadermi Suomi, ser-dez. 1972, p. 1078; O comentário de Heine sobre
Delacroix ilustrao papel da feirante (“peneira”),
47 1LA Clegg, Alan Foxe À E Thompson. A History of rizis Trade Unioms ínce 1889,
Oxford. 1964, vol. 1, pp. 469:70.
48,8 e IB Webb, Hdusial Democraey, Londres, 1897, p. 496.
49. Tbid.,po 497.
50, Ibiá, p. 496-7.
51 Ibid, p 497.
52. Ver Jean Touchard, La Gauche en France depuis 1900, Paris, 1977,p. TI3,
53, O feminismo de Bebel pode estar ligado a seu entusiasmo por Fourier, sobre quem
também escrevess um livro. Deve-se mencionar também o influeme livro de Friedrich
Engels, Orixem da família
54, Eugênie Portier, Oeiras omplêts, por Pierre Brochon (org), Paris, 1966
55. Gorman, Banner Briabe, p. 126.
56. A imagem da utopia gradualmente mudou de uma urópia bascada na fertilidade
natural para uma bascada na produtividade tecnológica e científica. As duas estavam
nitidamente presentes no socialismo utópico — veja-se o poema supracitado 1º Age
Or, de Poreier: “Oh nations, plus de torpeur. / Mile réscamm vous ont nouées. /
Lectricité, la vapeur / sont vos servants dévoués” etc. (“Ó nações, despertai! Estais
ligadas à milhares de redes. A eletricidade e o vapor são vossos servos fis”) Entre-
PES OAS EXTRAORDINÁRIAS 167

tanto, do ponte de vista icunográfico, natureza fertilidade predominou subre tecnolo-


gia, indubitavelmente aré 1917.
57.]. FC. Harrison. Robert Ouven amd she Oorenives in rita ama Americas The Quest for
she New Mural Winid, Londres, 1969, pp. 58-62.
58. Ibid., pp. 60-1
59. Thid, pp. 98, 102, 121, para a fregiiência de “messias” femininos neste período.
60. Brandi, Selifênde Arbrir, p. 269.
Capítulo 8

O NASCIMENTO DE UM FERIADO: O
PRIMEIRO DE MAIO

Es arrigo foi apresentado ariginariamense em 1990, para assinalar o cen.


zenário do Primeiro de Maio socialista, no Queen Mary e Westfield College
da Universidade de Londres, como à primeira conferência S. 1º Bindof; em
memória de eminente membro do departamento de História daquela facul-
dade. Foi publicado em separata pela faculdade e, mais tarde, modificado,
como colaboração no livro de Chris Wigley e Jobm Shepherd (orgs), On the
Move: Essays in Labour and Transport I istory Presented to Philip Bag
well (Londres e Rio Granito, 1904)

Em 1990, Michael Ignaticff, escrevendo no Olserer! sobre a Páscoa,


observou que “as sociedades seculares jamais tiveram êxito na oferta de al-
ternativas aos rituais religiosos”. E assinalou que a Revolução Francesa “po-
de cer transformado súditos em cidadãos, pode ter estampado liberté, ápalizé
é fraternité na fachada de cada escola e acabado com os mosteiros, porém, a
não ser pelo 14 de Julho, nunca conseguiu conquistar um lugar no velho
calendário ceistão”. Meu tema de hoje é talvez a única conquista indiscurível
realizada por um movimento secular sobre o calendário cristão ou qualquer
outro calendário, um feriado estabelecido, não apenas cm um ou dois pai-
ses, mas oficialmente, no ano de 1990, em 107 países, Mais ainda, é uma
data que foi estabelecida, não pelo poder de governos ou de conquistadores,
mas por um movimento totalmente não-oficial de homens é mulheres po-
bres, Refiro-me ao Primeito de Maio, a festa internacional do movimento
da classe operária, cujo centenário devia ser comemorado em 1990, pois foi
instituída em 1890.
“Devia ser” é a expressão correta, pois. com exceção dos historiadores,
poucos foram os que demonstraram muito interesse nessa ocasião, inclusive
10 ERIC HOBSBAWM

naqueles partidos socialistas que são os descendentes diretos dos que, nos
congressos imaugurais do que veio a ser a Segunda Internacional, em 1889,
convocaram uma manifestação operária internacional simultânca em favor
de uma lei que limitasse o dia de trabalho a oito horas, à ser realizada no 1º
de maio de 1890. Tsso é verdade até mesmo a respeito dos partidos real-
mente representados nos congressos de 1890 « que continuam a existir
Desses partidos da Segunda Internacional, ou de seus descendentes atuais,
saem os governos ou as principais oposições ou os governos alternativos
por quase toda a Europa, a oeste daquilo que, até recentemente, constiruía a
região que se descrevia a si própria como a do “socialismo realmente exis-
tente”. Seria de esperar que mostrasse maior orgulho ou, pelo menos,
maior interesse por scu passado.
Na Grá-Bretanha. a reação política mais forte ao centenário do Pri-
meiro de Maio veio de sir John Hackerr, antigo general e, sinto dizê-lo,
antigo diretor de uma faculdade da Universidade de Londres, que pregou a
abolição do Primeiro de Maio, parecendo encará-lo como algum tipo de
invenção soviérica, Essa data, achava cle, não deveria sobreviver à queda do
comunismo internacional. Contudo, à origem do feriado de Primeiro de
Maio na primavera da Comunidade Européia opõe-se ao bolchevique ou,
até mesmo, ao social-democrata. Remonta aos políticos anti-socialistas que,
reconhecendo o quão profundas eram as raízes do Primeiro de Maio no
solo das classes operárias ocidentais, prerenderam contrapor-se ao apelo dos
movimentos operários e socialistas mediante a cooptação de sua festa e sua
transformação em outra coisa. Ciro a proposta de um parlamentar francês,
em abril de 1920, apoiado por 41 deputados aos quais nada mais unia
senão o fato de não serem socialistas:

Esse feriado não deve conter elemento algum de inveja ou de ódio [ex-
pressão código para luta de classes). Todas as classes, se ainda se pode
dizer que existam classes, e todas as forças produtivas da nação devem se
confraternizar, inspiradas pela mesma idéia e pelo mesmo ideal. 2
Aqueles que, antes da Comunidade Européia, foram mais longe na
coopração do Primeiro de Maio estavam na extrema-direita, não na esquer-
da. O governo de Hitler foi o primeiro, depois da URSS, a oficializar o Pri
meiro de Maio como um Dia Nacional do Trabalho. O governo de Vichy
do marechal Pétain declarou o Primeiro de Maio uma Festa do Trabalho e
da Concórdia e diz-se que a inspiração para fazê-lo veio do Primeiro de
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 1

Maio falangista da Espanha de Franco, onde o marechal fora um devotado


embaixador* De fito, a Comunidade Econômica Européia que fez do Pri-
meiro de Maio um feriado público constitaia um conjunto composto não
de governos socialistas. mas predominantemente anti-socialistas — em que
pesem as opiniões da senhora Thatcher sobre o assunto. Os Primeiros de
Maio oficiais no Ocidente foram o reconhecimento da necessidade de che-
gar a um acordo com a tradição dos Primeiros de Maio não-oficiais, e de
separá-los dos movimentos operários, da consciência de classe c da lura de
classes, Porém, como veio a ocorrer que essa tradição fosse tão foree que até
mesmo seus inimigos julgaram necessário apoderar-se dela, mesmo quando,
como Hitler, Franco e Pétain, destruíram 0 movimento operário socialista?
O que é extraordinário a respeito da evolução dessa instituição é que
«la não foi intencional nem planejada, Não foi tanto uma “tradição inven-
tada” quanto uma tradição que surgiu repentinamente. Não sc discute a
origem imediata do Primeiro de Maio: foi uma resolução aprovada em Pa-
ris, em julho de 1889, ano do centenário da Revolução Francesa, pelo con-
gresso marxista — um dos dois congressos rivais fundadores da Internacional.
Essa resolução convocava uma manifestação internacional dos operários em
um mesmo dia, quando apresentaram à exigência da “jornada legal de oito
horas” a suas respectivas autoridades públicas é outras. E, uma vez que a
Vederação Norte-Americana do Trabalho já havia decidido realizar mani-
festação desse tipo em 1º de maio de 1890, essa data acabou sendo escolhi-
da para a manifestação internacional. Ironicamente, nos próprios Estados
Unidos, o Primeiro de Maio jamais se estabeleceu como em outros lugares.
quando menos por já existir um feriado público do trabalho, cada vez mais
oficial; o Dia do Trabalho, na primeira segunda-feira de setembro.
Naturalmente, os estudiosos tém investigado as origens dessa reso-
lução e de que modo cla se relaciona com a história anterior da luta pela
“jornada legal de oito horas”, nos Estados Unidos e alhures; mas essas ques-
tões não nos dizem respeito neste momento. O importante para a atual
discussão é de que modo aquilo a que visava a resolução diferia do que de
faro veio a acontecer. Observemos trés fatos à respeito da proposta original
Primeiro, a convocação era simplesmente para uma única manifestação in-
ternacional. Não há indicação alguma de que devesse repesir-se, muito me-
nos tornar-se um evento anual regular. Em segundo lugar, aão havia indi-
cação alguma de que devesse ser uma ocasião particularmente festiva ou
rirual, muito embora os movimentos operários de todos os países estives-
mm ERIC HOBSBAWM

sem autorizados à “realizar «ssa manifestação da maneira que fosse nec:


sária segundo a situação nos respectivos países”. Certamente esta cra uma
saída de emergência, deixada para salvaguardar o Partido Social-Democrata
Alemão que, à época, ainda era ilegal, conforme a lei anti-socialista de Bi
marck. Em terceiro lugar, não há indícios de que essa resolução tivesse sido
considerada especialmente importante naquele momento. Ao contrário, os
noticiários da imprensa da época mal o mencionam e, quando o fazem, com
uma única exceção (muito curiosamente, um jornal burguês), deixam de
indicar a data proposta,” Até mesmo o relatório oficial do Congresso, publi-
cado pelo Partido Social-NJemocraca Alemão, simplesmente menciona os pro-
ponentes da resolução « estampa seu texto, sem fazer qualquer comentário
nem, ao que parece, demonstrar que considerava uma questão importante
Em suma, como recordou alguns anos depois lidouard Vaillant, um dos
mais eminentes e politicamente sensíveis delegados ao Congresso: “Quem.
podia ter previsto ... o rápido crescimento do Primeiro de Maio?”
Seus rápidos crescimento e insrirucionalização deveram-se certamente
ao êxito extraordinário das manifestações do Primeiro de Maio de 1890,
pelo menos na Europa à oeste do império russo « dos Báleis,” Os socialistas
haviam escolhido o momento certo para fundar ou, se se preferir, reconsti
tuir uma Internacional. O primeiro Primeiro de Maio coincidiu com um
avanço triunfante da força e da confiança operária em inúmeros países. Para
citar apenas dois exemplos bem conhecidos: a explosão do Novo Sindicalis-
mo na Grã-Bretanha, que se seguiu à Greve das Docas de 1889, c a vitória
socialista na Alemanha, onde o Reichstag, em janeiro de 1890, recusou-se a
dar continuidade à lei anti-socialista de Bismarck, do que resultou que, um
mês depois, o Partido Social-Democrata duplicasse sua votação na eleição
geral e surgisse com pouco menos de 20% do total de votos. Num mo-
mento como csse, não era dificil transformar em Cxito manifestações de
massa, pois tanto os ativistas quanto os militantes dedicavam-se a clas inten-
samente, enquanto as massas de operários juntavam-se a cles para come-
morar um sentimento de vitória, poder, reconhecimento e esperança.
Mesmo assim, a amplitude em que os operários participaram dessas
reuniões espantaram os que os haviam convocado a fazê-lo, notadamente as
300 mil pessoas que lotaram o Hyde Park cm Londres, que assim, pela
primeira e última vez, proporcionou a maior demonstração dessa data. Pois,
embora naturalmente todos os partidos e organizações socialistas tenham
organizado reuniões, foram poucos os que reconheceram o pleno potencial
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 7a

da ocasião e dedicaram todo o empenho a ela desde o início. O Partido


Social-Democrata Austríaco foi excepcional em sua percepção imediata do
clima da massa, com tal resultado que, como observou Frederick Engels
algumas semanas depois, “no continente foi a Áustria, e na Áustria, Viena,
que comemorou essa festa da maneira mais adequada c csplêndida”.*
De fato, em diversos países, longe de lançar-se de todo o coração na
preparação do Primeiro de Maio, os partidos e os movimentos locais es-
tavam, como é comum na política da esquerda, cm situação desvantajosa
devido às discussões e divisões ideológicas a respeito da forma ou formas
legítimas desse tipo de manifestações — voltaremos a elas adiante — ou por
simples cautela. Diante da reação extremamente nervosa, às vezes até his-
térica, pela perspectiva da data por parte dos governos, da opinião da classe
média e dos empregadores, os quais amcaçavam com a repressão policial,
muitas vezes os líderes socialistas responsáveis preferiram evitar formas ex-
cessivamente provocativas de confrontação. Foi esse em particular 0 caso da
Alemanha, onde o banimento do partido acabara de ser revogado após onze
anos de ilegalidade. “Temos tódas as rázões para manter as massas sob con-
trole na manifestação do Primeiro de Maio”, escreveu à Engels o líder par-
tidário August Bebel: “Devemos evitar conflitos”. Engels concordou.”
A questão fundamental em pauta era se os operários deviam ser convo-
cados a manifestar-se em dia de trabalho, ou seja, fazer greve, pois em 1890
o Primeiro de Maio caía numa quinta-fcira. Basicamente, os partidos cau-
telosos e os sindicatos fortemente constituídos — a menos que descjassem
estar ou estivessem envolvidos na ação industrial, como era o plano da Tede-
ração Norte-Americana do Trabalho — não viam por que haviam de arris-
car o próprio pescoço ou os de seus membros em nome de um gesto simbó-
lico. Por isso, tenderam a optar por uma manifestação no primeiro domingo
de maio e não no primciró dia do mês, Foi essa, « continuou sendo, a opção
britânica, razão por que o primeiro grande Primeiro de Maio teve lugar em
+ de maio. Contudo. essa foi também a preferência do partido alemão.
embora lá, diferentemente da Grã-Bretanha, o que prevaleceu na prática foi
o Primeiro de Maio. Na verdade, à questão iria ser discutida formalmente
no Congresso da Internacional Socialista de Bruxelas, em 1891, onde os
britânicos os alemães se opuseram aos franceses € austríacos a esse res-
peito, sendo derrotados na votação.” Uma vez mais essa questão, como tantos
outros aspectos do Primeiro de Maio, foi o subproduro acidental da escolha
internacional da data. A resolução original não fazia qualquer referência à
174 ERIC HORSBANM

suspensão do trabalho. O problema surgiu simplesmente porque o primeiro


Primeiro de Maio caiu num dia de semana, como todos às que planejaram à
manifestação necessariamente o descobriram, de imediato.
A cantela determinava outra coisa. Mas o que de fato fiz o Primeiro de
Maio foi precisamente a escolha do símbolo acima da razão prática. Foi o
ato de suspender simbolicamente o trabalho que transformou o Primeiro de
Maio em algo mais do que uma simples manifestação, ou de qualquer outra
ocasião comemorativa. Onde o Primeiro de Maio se tornou verdadeiramente
peça central da vida da classe operária « da identidade dos trabalhadores —
como nurica ocorreu na Grã-Bretanha, apesar de seu brilhante começo —
foi nos países ou cidades em que os partidos, aínda que contra sindicatos
vacilantes, insistiram na greve simbólica. Pois abster-se de trabalhar num dia
útil era tanto uma afirmação do poder da classe operária — na verdade, a
mais alta afirmação desse poder — quanto a essência da liberdade, ou seja,
não ser obrigada ao trabalho com o suor de seu rosto, mas escolhendo o
que fazer na companhia da família e dos amigos. Era, pois, tanto um gesto
de afirmação de classe e de luta de classe quanto um feriado: uma espécie de
railer da boa vida que viria após a emancipação do opcrariado. E, é claro.
nas circunstâncias de 1890, cra também uma comemoração de vitória, uma
volta olímpica em torno do estádio, Visto desse ângulo, o Primeiro de Maio
trazia consigo uma carga muito forte de emoção e de esperança,
Foi o que realizou Victor Adler quando, contra o conselho do Partido
Social-Democrata Alemão, insistiu em que O partido austríaco deveria provo-
car exatamente aquilo que Bebel queria evitar. Do mesmo modo que Bebel,
cle reconhecia & clima de cuforia, de conversão da massa, quase de expecta-
tiva messiânica que empolgavá tantas classes operárias naquele momento.
“As eleições transformaram a cabeça das massas politicamente menos edu-
cadas [gescbdr). Elas acreditavam que bastava quererem algo para que tudo
pudesse ser conseguido”, como disse Bebel.!! Diferentemente de Bebel, Adler
ainda precisava mobilizar esses sentimentos para construir um partido de
massa a partir de uma combinação de ativistas € de uma crescente simpatia
clãs massas, Além disso, diferentemente dos alemães, os operários austríacos.
ainda não tinham o direito de voto: Até então, portanto, a força do mo-
vimento não podia demonstrar-se clcitoralmente. Uma vez mais, os escandina-
vos compreenderam o potencial mobilizador da ação direta quando, após o
primeiro Primeiro de Maio, votaram a favor de uma repetição da máni-
festação em 1891, “especialmente se combinada com uma suspensão do
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 175

trabalho, « não apenas com simples expressão de opinião”? À própria In-


ternacional assumiu a mesma posição quando, cm 1891, votou (contra os
delegados britânicos c alemães, como já vimos manter a manifestação no
dia primeiro de maio « “suspender o trabalho onde quer que não seja im-
possível fazê-lo”.!*
Isso não quer dizer que o movimento internacional convocou uma
greve geral como tal, pois, com todas as expectativas ilimitadas do mo-
mento, na prática os operários organizados tinham consciência tanto de sua
força quanto de sua fraqueza, Se as pessoas deviam fazer greve no Primeiro
de Maio, ou se delas se esperava que cedessem o pagamento correspondente
a um dia de trabalho em favor da comemoração, essas eram questões ampla-
mente discuridas nos bares da Hamburgo proletária — segundo os policiais
à paisana enviados pelo Senado para escutar as conversas dos operários na-
quela cidade maciçamente “vermelha”. !! Sabia-se que muitos operários não
teriam condições de sair do trabalho, mesmo que quisessem. Assim, os fer-
roviários enviaram um telegrama ao primeiro Primeiro de Maio de Co-
penhague, que foi lido e aplaudido: “Uma vez que não podemos estar pre-
sentes à reunião devido à pressão exercida pelos que estão no poder, fazemos
questão de apoiar totalmente a reivindicação em favor da jornada de tra-
balho de oito horas”. Contudo, onde os empregadores sabiam que os ope-
rários cram fortes é intensamente comprometidos, iriam muitas vezes con-
cordar tacitamente que o dia fosse tirado como folga. Foi o que aconteceu
muitas vezes na Áustria. Assim, apesar da instrução clara do Ministério do
Interior de que cram proibidas as passeatas e que não se deveria permitir
que os trabalhadores tirassem folga, « apesar da decisão formal dos empre-
gadores de não considerar o Primeiro de Maio feriado — c às vezes aré de,
em substituição, dar o dia anterior ao Primeiro de Maio como feriado — a
Fábrica Estatal de Armamentos em Stevr, na Alta Áustria, fechou as portas
no Primeiro de Maio de 1890 c em todos os anos à partir de então.!* Em
todo 9 caso, número suliciente de operários saiu, em múmero suficiente de
países, para tornar plausível o movimento de suspensão do trabalho. No fim
das contas, em Copenhague, cerca de 40% dos operários da cidade estive-
ram de corpo presente à manifestação de 1890.7
Em vista do éxito notável e muitas vezes inesperado do primeiro Pri-
meiro de Maio, era natural que se exigisse à reperição da proeza. Como
vimos, os movimentos escandinavos unidos exigiram-no no verão de 1890,
como também os espanhóis. No final do ano, o grosso dos partidos eu-
w6 ERIC HOBSBAWM

ropeus havia seguido o exemplo. Que a ocasião deveria tornar-se um evento


anual regular pode ou não ter sido sugerido pela primeira vez pelos militan-
tes de “Toulouse que aprovaram uma resolução sobre isso em 1890. mas
não foi surpresa para ninguém que o Congresso da Internacional cm Bru-
xelas, em 1891, obrigasse o movimento a um Primeiro de Maio anual regu-
lar. Contudo, o Congresso também fez outras duas coisas, ao mesmo tempo
em que insistia, como já vimos, em que o Primeiro de Maio devia ser co-
memorado por uma única demonstração no primeiro dia do més, qualquer
que fosse o dia da semana, para acentuar “seu verdadeiro caráter de reivir
dicação econômica em favor da jornada de trabalho de oito horas e como
uma afirmação da luta de classes”.º Acrescentou pelo menos mais duas outras
reivindicações à da jornada de trabalho de oito horas: legislação do trabalho
é luta contra à guerra. Embora, à partir daí, O lema da paz fizesse parte
oficialmente do Primeiro de Maio, não se integrou de fato como tal na
tradição popular do Primeiro de Maio, a não ser como alguma coisa que
forralecia o caráter internacional da ocasião. Contudo, além de ampliar o
conteúdo programático da manifestação, a resolução continha outra ino-
vação, Falava de “comemorar” o Primeiro de Maio. O movimento passara à
reconhecê-lo oficialmente não só como uma atividade política, mas como
uma festa.
Uma vez mais, isso não fázia parn: do plano original. Ao contrário, a ala
militante do movimento e, não será preciso dizê-lo, os anarquistas opunham-se
violentamente à idéia de festividades, com base em argumentos ideológicos.
O Primeiro de Maio era um dia de luta. Os anarquistas teriam preferido que
cle se ampliasse de um único dia de lazer arrancado aos capitalistas para
uma grande greve geral que subvertesse todo o sistema. Como tantas vezes,
os revolucionários mais militantes tinham uma visão sombria da luta de
classes, como confirma frequentemente a iconografia de massas negras e
cinzentas apenas iluminadas pela ocasional bandeira vermelha?” Os anar-
quistas preferiam encarar o Primeiro de Maio como uma comemoração de
mártires — os mártires de 1886 em Chicago, “um dia de luto e não de co-
memoração"2! —— e, nos lugares em que tinham influência, como na Es-
panha, América do Sul e Itália, o aspecto martirológico do Primeiro de
Maio passou realmente a fazer parre da ocasião. O divertimento não fazia
parte do plano do jogo revolucionário. Na verdade, como revela estudo
recente sobre o Primeiro de Maio anarquista em Barcelona, uma de suas.
principais características, antes da República, consistia em recusar-se a tratá-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 17

la como, e sequer a chamá-la de “Festa del Traball”, festa do trabalho,? Ao


inferno com as ações simbólicas: ou a revolução mundial, ou nada. Alguns
anarquistas recusavam-se até mesmo a incitar a greve do Primeiro de Maio,
com o argumento de que nada do que não desse realmente início à re-
volução não passaria de mais um diversionismo reformista. A confederação
sindicalista revolucionária francesa, Confédérarion Générale du Travail (CGL),
não cedeu às festividades do Primeiro de Maio até depois da Primeira Gran-
de Guerra
Os líderes da Segunda Internacional podem bem ter fomentado a trans-
formação do Primeiro de Maio numa festa, uma vez que certamente dese-
javam evitar à tática de confronto dos anarquistas €, é claro, também eram
favoráveis a uma base o mais ampla possível para as comemorações. Mas à
idéia de um feriado de classe, ao mesmo tempo lura e diversão, não estava
em definitivo originalmente em suas mentes. De onde terá surgido?
No início, é quase certo que a escolha da data teve papel fundamental
No hemisfério norte temperado, os feriados da primavera têm profundas
raizes no ciclo ritual do ano «, de fato, O próprio mês de maio representa a
renovação da natureza. Na Suécia, por exemplo, o Primeiro de Maio já cra,
por antiga tradição quase um feriado público.” (A propósito, esse foi um
dos problemas com a comemoração dos Primeiros de Maio invernais na
Austrália, militante sob outros vários aspectos.) Com base na abundante
iconografia e no material literário a que temos acesso, O qual passou a estar
disponível nos últimos anos,” é bastante evidente que a narureza, as plantas
é, mais do que tudo, as flores foram, automaticamente é de maneira univer-
sal, utilizadas para simbolizar a ocasião. A mais simples das reuniões rurais,
como o encontro de 1890 numa aldeia da Estíria, não mostra bandeiras,
mas Sim cartazes com slogans enfeitados de flores, bem como músicas”
Uma atraente fotografia feita mais tarde, num Primeiro de Maio de provin-
cia, também na Áustria, mostra os operários ciclistas social-democratas, ho-
mens é mulheres, desfilando com as rodas é os guidons engalanados com
festões de flores, e uma criança enfeitada de fores numa espécie de cadeiri-
nha presa entre duas bicicletas.”
As flores surgem sem nenhum constrangimento em volta dos retratos
formais dos sete delegados austríacos ao Congresso Internacional de 1889,
distribuídos no primeiro Primeiro de Maio de Viena. Chega-se até a intro-
cuzir flores nos mitos militantes. Na França, a fisillade de Fomrmies, de 1891,
com seus dez mortos, é simbolizada na nova tradição por Maria Blondeau, de
18 ERIC HORSBAWM

dezoito anos, que dançou à frente de 200 jovens de ambos os sexos, agi-
tando um ramo florido de pilriteiro que lhe fora dado por seu noivo, até
que os soldados lançassem fogo sobre ela, matando-a. Duas tradições de
maio se fundem claramente nessa imagem, Que flores? Inicialmente, como
insinua 6 ramo de pilrieiro, cores que antes sugerem primavera do que
política, ainda que o movimento logo passe a escolher flores da cor que lhe
é própria: rosas, papoulas e sobretudo cravos vermelhos, variando porém os
estilos nacionais. Apesar disso, sempre são essenciais as flores e os demais
símbolos do desabrochar das plantas, da juventude, da renovação e da espe-
rança, à saber, as jovens mulheres. Não é por acaso que os ícones mais
universais para a ocasião, reproduzidos imámeras vezes nas mais variadas lin-
guagens, provém de Walter Crane — especialmente a famosa jovem de gorro
frígio adorado de flores. O movimento socialista britânico era pequeno c
de pouca importância e seus Primeiros de Maio, em pouco tempo depois
dos primeiros, foram insignificantes. Contudo, através de William Morris,
de Crane e do movimento artes-c-ofícios, inspiradores da mais influente
“arte nova” ou ar nowveau do período, encontrou a expressão exata para o
espítito do tempo. A influência iconográfica britânica não é a menor cvi-
dência da internacionalização do Primeiro de Maio.
Na verdade, a idéia de uma festa ou feriado público dos trabalhadores
surgiu também espontânea quase imediatamente — sem dúvida ajudada
pelo fato de, em alemão, à palavra feier poder significar tanto “não trabalhar”
quanto “comemorar formalmente”. (O emprego do termo “jogar” [plaving|
como sinônimo de “fazer greve” [sriking], comum na Inglaterra na pri-
meira parte do século, já não parece ser comum em seu final.) Em todo o
caso, pareceria lógico que, num dia em que as pessoas estavam fora do
trabalho, os encontros e passeatas políticos da manh fossem suplemen-
tados, mais tarde, por sociabilidade é diversão, ainda mais sendo tão impor-
tante para O movimento o papel das estalagens e dos restaurantes como
locais de reunião, Em mais de um país, os taberneiros os cabareriers cons-
tituíam uma porção significativa dos ativistas socialistas.
Deve-se mencionar desde já uma das mais importantes consegiiências
disso. Diferentemente da política que. naquela época. era “coisa de homem”,
os feriados incluíam as mulheres e as crianças. Tanto as fontes visuais quan-
to as literárias demonstram a presença € a participação das mulheres no
Primeiro de Maio, desde seu princípio.” O que-o tornava uma autêntica
demonstração de classe — e, a propósito, como na Espanha, atraindo cada
SOAS EXTRAORDINÁRIAS 179

vez mais operários que não estavam politicamente com os socialistas


era justamente o fato de não estar restrito aos homens, mas pertencer às
famílias, Por sua vez, através do Primeiro de Maio, as mulheres que não
estavam diretamente no mercado de trabalho como assalariadas, vale dizer,
o grosso das mulheres casadas da classe operária em inúmeros países, identi-
ficavam-se em público com o movimento € com a classe, Se a vida de tra-
balho de assalariado pertencia sobretudo aos homens, à recusa a trabalhar
por um dia unia idades é sexos na classe operária.
Praticamente todos os feriados regulares antes daquela época haviam
sido ftriados religiosos — pelo menos em toda a Europa, exceto na Grá-
Bretanha onde, tipicamente. o Primeiro de Maio da Comunidade Européia
foi assimilado a um feriado bancário. O Primeiro de Maio partilhava com os
feriados cristãos a aspiração à universalidade ou, em termos do movimento
operário, ao internacionalismo. Essa universalidade impressionava profunda-
mente os participantes « tomava maior o atrativo da data. Isso sempre foi
enfatizado pelos inúmeros volantes relativos ao Primeiro de Maio, os quais
muitas vezes eram de produção local € são tão valiosos como fonte para à
iconografia e a história cultural da época — somente da Trália pré-fascista
foram preservados 308 números diversos desse tipo de publicação cfêmera.
O primeiro jornal do Primeiro de Maio de Bolonha, em 1891, contém nada
menos do que quatro itens tratando especificamente sobre a universalidade
da data.º! E, é evidente, a analogia com a Páscoa ou o Pentecostes parecia
tão óbvia quanto aquela com as comemorações da primavera do costume
popular.
Os socialistas italianos — agudamente conscientes do apelo espontá-
neo da nova festa del lavoro pata uma população cm grande medida católica
e analfabeta — usaram a expressão “a Páscoa dos trabalhadores” pelo menos
desde 1892, c essas analogias tornaram-se corrente em âmbito internacional
na segunda metade da década de 1890? Pode-se perceber imediaramente a
razão. Era patente a semelhança entre O novo movimento socialista é os
morimentos religiosos, « até mesmo, nos primeiros estonteantes anos do
Primeiro de Maio, à um movimento de renascençaç religiosa, , com expectari-
p
vas messiânicas. Assim era também, de cerro modo, a semelhança do con-
junto dos primeiros líderes, ativistas € propagandistas com um clero, ou
pelo menos com um corpo de pregadores leigos. “Temos um folheto extraor-
dinário de 1898, de Charleroi na Bélgica, que reproduz o que só se pode
descrever como um sermão do Primeiro de Maio: nenhuma palavra faria
180 ERIC HOBSBAWM

melhor, Dez deputados e senadores do Partido Operário Belga, sem dúvida


alguma todos eles areus, sem exceção, o assinaram ou o redigiram em seu
nome, sob as epigrafes conjuntas: “Operários de todos os países, uni-vos
(Karl Mars” e “Amai-vos uns aos outros (Jesus)”, Alguns trechos permi-
tirão perceber 0 seu tom:
Esta [ele começa] é'a hora da primavera é da festividade quando à
perpérua Evolução da narureza resplandece em sua glória. Como a nam
Tera, encham-se vocês de esperança e preparem-se para A Nova Vida.
Depois de algumas passagens de instrução moral (“Demonstrem amor
próprio: evitem as bebidas que os embriagam e as paixões degradantes”, e
assim por diante) e da incitação ao socialismo, concluía com uma passagem
de esperança milenarista:
Em breve desaparecerão as fronteiras! Em breve terão fim as guerras €
os Exércitos ada vez que vocês praticarem as virtudes socialistas da
Solidariedade é do Amor, trarão esse futuro para mais perto. E, então,
na paz e na alegria, passará a existir um mundo em que o Socialismo
triunfará, assim que o dever social de todos seja corretamente entendido
como aquilo que traz 6 desenvolvimento total de cada um.
Contudo, o que chama à atenção à respeito do novo movimento ope-
tário não é que fosse uma Fé, ou que muitas vezes imitasse o tom e o cstilo
do discurso religioso, mas sim que softesse rão pouca influência do modelo
religioso, mesmo nos países em que as massas eram profundamente reli-
giosas é impregnadas dos modos de ser das igrejas * Além disso, era pe-
quena à convergência entre-a velha e à nova Fé, a não ser algumas vezes
mas não sempre) em que 6 protestantismo assumiu a forma de seitas não-
oficiais e implicitamente oposicionistas, ao invés de Igrejas, como na Ingla-
terra, O movimento operário socialista era um movimento militantemente
secular, anti-religioso, que convertiaex masse as populações piedosas, ou que
haviam sido picdosas,
Podemos compreender também porque isso se dava. O socialismo e o
movimento operário eram atrativo para homens c mulheres para quem.
como uma nova classe consciente de si mesma, não havia um lugar ade-
quado na comunidade de que as Tgrejas estabelecidas, notadamente a Igreja
Católica, constituíam a expressão tradicional. Houve de faro colônias de
PESSOAS EXTRAORD! as

“gente de fora”, pela ocupação exercida, como em aldeias minciras, proto-


industriais ou fabris: pela origem, como os albaneses daquela que sc tornou
à aldeia mais puramente “vermelha” de Piana dei Greci, na Sicília (agora
Piana degli Albancsi): ou unidos por algum outro critério que os isolava
coletivamente da sociedade mais ampla, Nesses casos, “o movimento” podia
funcionar como a comunidade e, ao fazé-lo, assumir muitas das antigas
práticas de aldeia até então monopolizadas pela religião. Contudo, isso cra
raro, Na verdade, à razão mais importante do éxito maciço do Primeiro de
Maio é que ele foi considerado como o tíico feriado associado exclusiva-
mente à classe operária como tal, não compartilhado com ninguém mais €,
além disso, um feriado que fora conseguido à força pela ação dos próprios
operários, Mais do que isso: era um dia em que os que comumente eram
invisíveis estavam expostos publicamente c. pelo menos por um dia, to-
mavam conta do espaço oficial dos governantes e dá socicdade.s Desse ponto
de vista, as festividades dos mineiros britânicos, das quais a dos mineiros de
Durham é a que sobrevive por mais tempo, anteciparam-se ao Primeiro de
Maio, com base, porém, em apcnas uma indústria, e não na classe operária
como um todos Neste sentido, a única relação entre 0 Primeiro de Maio c à
religião tradicional foi a reivindicação de direitos iguais. “Os padres têm suas.
festas”, anunciou o volante relativo ao Primeiro de Maio de 189] cm Voghera,
no vale do Pó, “os Moderados tém suas festas, Assim também os Democratas
O Primeiro de Maio é a Festa dos operários de todo o mundo”
Mas havia outra coisa que distanciava o movimento da religião. Sua
palavra chave era “novo”, como em Die Neue Zeii (Os novos tempos”)
título da revista teórica marxista de Kautsky e, como na canção operária
austriaca, ainda associada ao Primeiro de Maio, cujo refrão reza: Mir ans
aieht die neue Zeit (Os novos tempos chegam conosco”). Como demons-
tram as experiências escandinavaé austríaca, muitas vezes o socialismo che-
ga ao campo e às cidades do interior literalmente pelas estradas de ferro,
com os que as constroem e nclas trabalham, e com as novas idéias e novos
tempos que trazem consigo" Ao contrário de outros feriados públicos, entre
os quais a maioria das ocasiões rituais do movimento operário até então, o
Primeiro de Maio não comemorava coisa alguma — pelo menos fora do
âmbito da influência anarquista que, como já vimos. pretendia vinculá-lo
aos anarquistas de Chicago de 1886. Não cra sobre nada a não ser sobre o
futuro, o qual, diferentemente de um passado que nada tinha a dar ao prole-
tariado, excero más lembranças (“Du passé faisons table rase”, canta à Inter-
182 ERIC HOBSRAWM

nacional, não por acaso), oferecia a emancipação. Ao contrário da religião


tradicional, “o movimento” não oferecia recompensas para depois da morte,
mas à nova Jerusalém nesta terra.
A iconografia do Primeiro de Maio, que muito rapidamente desen-
volveu seu conjunto de imagens e seu simbolismo próprios, é toda orien-
tada para o fururo.*” De modo algum era claro o que o futuro traria, apenas.
que seria bom e que era incvitável que viesse, Felizmente, para o éxito do
Primeiro de Maio, pelo menos um caminho em direção ao futuro transfor-
mou a ocasião em algo mais do que uma manifestação ou uma festa. Em
1890, à democracia eleitoral ainda era extremamente rara na Europa e à
reivindicação de sufrágio universal foi de imediato acrescentada à da jornada
de oito horas e aos outros slogans do Primeiro de Maio. É muito curioso
que, embora se tornasse parte integrante do Primeiro de Maio na Áustria,
Bélgica, Escandinávia, Itália e em outros lugares, a reivindicação do direito
de votar, até que fosse atendida, jamais fez parte internacional ex: officio de
seu conteúdo político, como a jornada de oito horas e, mais tarde, a paz.
Não obstante, onde era aplicável, tornou-se parte integrante da data e au-
mentou em muito sua importância.
Na verdade, a prática de organizar ou ameaçar greves gerais em favor
do sufrágio universal, que se desenvolveu com algum exito na Bélgica, Sué-
cia e Áustria e ajudou a manter unidos partido e sindicatos, originou-se das
interrupções de trabalho do Primeiro de Maio. A primeira dessas greves foi
iniciada pelos mineiros belgas em 1º de maio de 1891.º! Por outro lado, os
sindicatos estavam muito mais preocupados com 0 slagan do Primeiro de
Maio sueco de “menos horas e salários maiores” do que com qualquer ou-
tro aspecto do grande dia! Houve momentos, como na Itália, em que se
concentraram nisso c deixaram até mesmo a democracia para outros. Os
grandes progressos do movimento, inclusive sua defesa efetiva da democra-
cia, não se bascava num egoísmo econômico estreito,
Claro que a democracia era essencial para os movimentos operários
socialistas. Não só era fundamental para seu progresso, como também in-
separável dele, O primeiro Primeiro de Maio na Alemanha foi comemorado
com uma placa que mostrava Karl Marx dum lado e a Estátua da Liberdade
do outro? Um impresso austríaco do Primeiro de Maio de 1891 mostra
Marx segurando Das Knpiral, apontando através do mar para uma daquelas
ilhas românticas muito conhecidas de seus contemporâneos por quadros de
caráter mediterrâneo, por trás da qual se erguia o sol do Primeiro de Maio,
TESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 183

que iria se tomar o simbolo mais duradouro é mais poderoso de futuro.


Sobre scus raios, os lemas da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade,
Fraternidade, que são encontrados em muitos dos distintivos ou lembranças
dos primeiros Primeiros de Maio* Marx está rodeado de operários, presu-
mivelmente preparado para tripular à frota de navios prontos para navegar
até a ilha, fosse ela qual fosse, tendo inscrito em suas velas: Sufrágio Uni-
versal e Direto, Jornada de Oito Horas, e Proteção aos Operários. Essa foi à
tradição original do Primeiro de Maio.
Essa tradição cresceu de maneira estraordinariamente rápida — em
dois ou trés anos — mediante curiosa simbiose entre os slogans dos líderes
socialistas « sua interpretação muitas vezes espontânea pelos militantes e
pela massa dos operários. “Tomou forma naqueles maravilhosos poucos
anos do súbito Morescimento dos movimentos « partidos operários de mas-
sa, quando cada dia trazia um visível crescimento, quando a existência mes
ma de tais movimentos, à simples atirmação da classe, pareciam garantir o
triunto futuro. Mais do que isso: parecia o sinal de iminente triunfo, quan-
do os portões do novo mundo se escancarariam para a classe operária.
Contudo, o milénio não chegou c o Primeiro de Maio, como tanta
coisa mais no movimento operário, teve que ser regularizado c instituciona-
lizado, ainda que alguma coisa do antigo forescer de esperança e de triunto
voltassem a cle em anos posteriores, após grandes luras e vitórias. Podemos ver
isso nos Primeiros de Maio loucamente futuristas do começo da Revolução
Russa, c quase por toda parte na Europa, em 1919-20, quando a reivindi-
cação original do Primeiro de Maio foi realmente atendida em muitos países
Podemos vé-lo nos Primeiros de Maio da antiga Frente Popular da França,
em 1935 e 1936, e nos países do continente, libertados da ocupação após a
derrota do fascismo. Ainda assim, na maioria dos países de movimentos
operários socialistas de massa, o Primeiro de Maio foi rotinizado um pouco
antes de 1914.
Curiosamente, foi durante esse período de rotinização que cle adquiriu
seu lado ritualista. Como disse um historiador italiano, quando deixou de
ser encarado como a antecâmara imediata da grande transformação, tornou-
se “um rito coletivo que requer suas próprias liturgias € divindades”, sen-
do as divindades comumente identificáveis como aquelas jovens de suaves
cabelos e vestes esvoaçantes que indicam o caminho tumo ao sol nascente
para multidões ou procissões de homens e mulheres, cada vez mais impre-
cisas, Seria cla a Liberdade, ou a Primavera, ou a Juventude, ou à Esperan-
184 VIIC HOBSBAWM

ça, ou a Aurora de rosados dedos, ou um pouquinho de cada uma delas?


Quem poderá dizer? Iconograficamente, não possui nenhuma característica
universal a não ser a juventude, pois mesmo o gorro frígio, extremamente
comum, ou os atributos tradicionais da Liberdade, nem sempre são encon-
trados. Podemos buscar a origem dessa ritualização da data nas flores que,
como vimos, estão presentes desde o início, mas se tornam como que ofi
cializadas por volta do tim do século. Assim, o cravo vermelho adquiriu
status oficial em terras dos Habsburgos e na Itália, a partir de cerca de 1900,
quando seu simbolismo foi especialmente esclarecido no vívido e talentoso
volante de Florença que leva scu nome. (I! Garofimo Rosso foi publicado nos
Primeiros de Maio até à Primeira Grande Guerra.) A rosa vermelha tornou-
se oficial na Suécia em 1911-12.ºº E, para mágoa dos revolucionários incor-
ruptíveis, os lírios-do-vale, totalmente apolíticos, começaram a se intiltrar
no Primeiro de Maio dos operários franceses no início dos anos de 1900,
até se tornar um dos símbolos regulares da data”
Não obstante, a grande era dos Primeiros de Maio não terminou en-
quanto continuaram a ser, ao mesmo tempo, legais — isto é, capazes de
levar às ruas grandes massas — e não-oficiais. Uma vez que se tornaram um
feriado concedido ou, pior ainda, imposto de cima para baixo, seu caráter
necessariamente se modificou. E, uma vez que a mobilização pública da
massa lhes cra essencial, não conseguiram resistir à ilegalidade — muito
embora os socialistas (depois comunistas) de Piana degli Albanesi, mesmo
nos dias negros do fascismo, se orgulhassem de, a todo Primeiro de Maio.
não deixar de mandar alguns camaradas até o desfiladeiro da montanha
onde, do alto da que ainda hoje é conhecida como à rocha do De, Barbato,
o apóstolo local do socialismo se havia dirigido a cles, em 1893. oi nesse
mesmo local que o bandido Giuliano massacrou a manifestação comunitária
do Primeiro de Maio e o piquenique das famílias. que tinham revivido de-
pois do tim do fascismo, em 1947.4º A partir de 1914, € especialmente
depois de 1945, o Primeiro de Maio cada vez mais ou se tornou ilegal, ou,
na maior parte dos casos, oficial, Somente nos raros lugares do terceiro
mundo, em que movimentos operários socialistas de massa e não-oficiais se
desenvolveram em condições que permitiram o florescimento do Primeiro
de Maio, é que existe uma verdadeira continuidade com a antiga tradição.
É claro que o Primeiro de Maio não perdeu em toda parte suas velhas
características. Não obstante, mesmo onde não está associado à queda de
velhos regimes, que outrora foram novos, como na URSS e na Europa oriental.
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 185

não scrá demais afirmar que a expressão Primeiro de Maio evoca mais o
passado do que o presente. A sociedade que deu origem ao Primeiro de
Maio mudou. Qual a importância, hoje em dia, daquelas pequenas comuni-
dades aldeis proletárias de que velhos italianos sc recordam? “A gente ca-
minhava por toda a aldeia. Depois, havia uma refeição pública, Todos os
membros do partido estavam lá e mais todo o mundo que quisesse vir". O
que aconteceu no mundo industrializado aqueles que, na década de 1890,
ainda conseguiam reconhecer-se no verso da Internacional: “De pé, ó víti-
mas da fome!"? Como disse uma velha senhora italiana em 1980, lembran-
do-se do Primeiro de Maio de 1920, quando carregou à bandeira como
operária têxtil aos doze anos de idade. mal começara a trabalhar na fábrica:
“Hoje em dia, os que vão trabalhar são todos senhoras « cavalheiros, con-
seguem tudo o que querem”! O que aconteceu ao espírito daqueles ser-
mõcs de Primeiro de Maio de confiança no futuro, de fé na marcha da razão
é do progresso? “liduquem-se! Escolas cursos, livros e jornais são instru-
mentos de liberdade! Rebam na fonte da Ciência « da Arte: então vocês
ficarão fortes o bastante para fazer com que haja justiça.'3! O que aconteceu
ao sonho coletivo de construir Jerusalém em nossa terra verde é prazerosa?
Contudo, se o Primeiro de Maio passou a ser nada mais do que um
mero feriado, um dia — cito um anúncio trancês — em que não é necessário
tomar determinado tranguilizante, porque não se precisa ir trabalhar, ainda
assim continua a ser um feriado de tipo especial. Já não pode não ser. como
diz a frase precensiosa, “um feriado fora dos calendários”, ” pois na Europa
entrou em todos os calendários. Na verdade, é considerado um dia sem
trabalho de maneira mais universal do que qualquer outro, com exceção do
25 de dezembro « do 1º de janeiro, tendo deixado muito para trás todos
os demais rivais religiosos. Mas ele veio de baixo. Foi moldado por pessoas
trabalhadoras anônimas que, por meio dele, reconheceram-se, por sobre as
fronteiras de ocupação, língua, até mesmo de nacionalidade, como uma só
classe, ao decidir, uma vez por ano, deliberadamente não trabalhar: zombar
da compulsão moral, política « económica para o trabalho. Como disse Vicror
Adler em 1893: “Este é o sentido do firiado de maio. do descanso do trabalho,
que nossos adversários temem. É isto que eles sentem que é revolucionário”.
O historiador interessa-se por este centenário por inúmeras razões. Sob
certo aspecto, é importante porque ajuda a explicar por que Marx passou à
ser tanta influência sobre os movimentos operários compostos de homens «
de mulheres que antes não tinham ouvido falar dele, mas reconheceram sua
186 ERIC HORSRAWM

convocação para que se tornassem conscientes de si próprios como classe e


como tal se organizassem. Sob outro aspecto, é importante porque demons-
tra O poder histórico do pensamento e do sentimento que vêm de baixo, €
esclarece a maneira pela qual homens e mulheres — que como indivíduos
são desarticulados, impotentes « não contam para nada — podem não 6
tante deixar sua marca na história. Mas, acima de tudo, para muitos de nós,
historiadores ou não, este é um centenário profundamente comovente, por-
que representa aquilo que o filósofo alemão Ernst Bloch chamou (e dele
tratou longamente em dois maciços volumes) de O princípio da esperança: à
esperança de um futuro melhor num mundo melhor. Se ninguém mais se
lembrou dele em 1990, coube aos historiadores que o fizessem.

Notas

Uma bibliografia completa encontra-se em À. Panactione, “1 100 ani del 1º maggio


nella storiografia", in À. Tanaccione (org, Ega e à set del 1º maggio, Veneza,
1990,
1. Michael Igmatic, “Faster Has Become Chocolate Sunday”, Olsemer, 15 abr. 1990.
2. Maurice Doiumanges, Himire du Premier Mat, Paris, 1953, pp. 350:1. O livro de
Dommanger, um dos poucos a tratar da assunto antes do final da década de 1970.
continua à ser importante. mas carece da forte orientação iconográfica da lreratua
recente.
3. CÊ Helmu Iarmwig, <Plakcutca zum 1. Mai 1934-39º, Acstheik und Kommunibagion
7, nº 26, 1976, pp. 56-9. O livro de 4. Riosa (org ), Le metamonfisi de! 1º maguio
Vencia, 1990) contém ensaios subre as tentativas italianas, nazistas « salazarisras de
«ooptar a Primeiro de Maio.
Dommanges, Hlisuire du Premier Mai, pp. 30) es
soa +

Toia,, pp. 100-1


bia, p. 102
O mais completo tratamento internacional encontra-se em Andrea Panccione (org:),
The Memory of May Day An Jeonograpisi: History of the Origin nd Implantina of a
Winker' Holiday, Veneza, 1989: Relativamente ao primeira Primoiro de Maio, ver, do
mesimo ano, Un giorno perche. Cometa de sioria intermacionale del 1º maggio, Roma
1990, cap. +
8. Karl Marxe Friedeich Engels, Hérie. Berlim, 1963, vol. 22, p. 60.
9. Dieter Erich, Kleine Gesbichce des Erszem Mai, Frankfum, 1980, pp. 301
10. Dommanges, Histoire du Premier Mai. p
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 1a”

11, Fricke, Kleine Goschicho


des Estem Mai, p. 30.
12. Dommangei, Histoire du Premier Mai, p. 136
13 Ibid..p. 156.
14.R. Evans (orgs, Kneipengeprache im Knisereich, Srimmsmasbericite der Hamburger
Politschen Polizei, 1892-1914, Reinbeck, 1989, pp. 20, 253-7.
15, Panaccione,
The Memory, p. 247,
16, Kurt Groussing torg.s, Dic Roten am Land. Apbrittoben send Arbeiterbemegans im
meslchen Osterreich, Stevr, 1989, pp. 589,
17: Caleulado a parir de Panaccione, the Memory. p. 247.
18. Dommanger, Histoire du Premier Mai. p. 135,
19. Thid, p. 156
20, CE à comparação entre a iconografia dos Primeiros de Maio social-democrata e co-
munista na Alemanha de Weimar, in W. L. Gutismam, Hôrkers” Culture im Heimar
Germany: Benoeen Tradition amd Commizment, Nova Yodk, Osford é Munique. 1990.
pp. 1989-99. O mais perfeito oxemplo desse esquema de cores que conheço é La
Manifestatom de Th. A. Stcinlen, sem data (nº 314 em Le Bei Hentage: Th À. Srein
en Retmopective, 1885-1922, Montruil, 1987), Para uma comparação, ver à man
festação em Primeiro de Maio de verdadeiros operários em época de luta revolu-
cionária, “Demonstration at the Putilovskij Factory for May Day 19067. de
Kastodicy, in Panaccione, The Memary, pp. 330'1. Embora obviamente influenciado
pela convenção eubro-negra, o pintor refleie com clareza a ampla gama de cores em
ocasiões como essa ma vida real. Outras contribuições desse artista para a iconografia
radical encontram-se em David Kinge Cathy Porter, Images of Resolutim: Grapiie Am
om 1UN5 Rusia, Nova York, 1983.
21, Lacia Rivas Lar, “EI Peer de Maigà Catalunva, 1900-1931, E Avens, maio 1988,p. 9.
O essencial deste artigo provém de Hliszoria del 1º de mayo
em Espasia: desde 1900 hasta
la > República, Madri, 1987, da mesma aumtura, que constitui o mais completo
tratamento do tema relativamente áquele pais
22, Rivas Lara. “El Primer de Maig”, pass. Ver também Lucia Rivas Lara, “Ricuali-
zación socialista del 1º de mayo. Fiesta, huclga, manifestación?”, istoria concem.
poránea, Revista del Departamento de Elistoria Contemporânea de la Universidad dei Pais
Vasco nº 3, 1990. Devo esta referência a Paulo Preston.
23. Para uma tentava anarquista (fracassada) de transformar à manifestação em sevo.
jução, ver David Balleser e Manuel Vicente, “EL Primer de Maig à Barcelona. Vult
Hores de treball, &instrucció i de descans”, Lº Avenç, maio 1990, pp, 12-17, que
constitui um estudo do Primeiro de Maio de 1890 naquela cidade. Quantu à car
francesa, ver Maxime Leroy; La Cinitume ouorire, Paris, 1913, vol 1, p. 246, o qual
observa que, assim que a CG, após 1904, tomou a data aos socialistas, “plus de fére
dntravail”, Dommanget, Histoire du Premier Mai, p. 334.
188 ERIC HOBSBAWM

24, O mais interessante reláto sobre (Ly à transferência (a0 tempo de Pedro, à Grande)
do festival ocidental da primavera para à Rússia, via subúrbio alemão de Mascou, e
(2) à fusão dessa matrka com às minúsculas manifestações de operários social
democratas da década de 1890, para à qual clas davam cobermua, encontra-se em
Vrjaceslav Kolomiez, “Dalla ssoria del 1º maggio à Mosca tra la fine del axtncento e
gi inizi del nevecento: é lunghi delke manifestacion?, in Panaccione, 1 fuogbi e à
sogett del 1º maggio, pp. 105-22, nb. pp. L10-11 relativamente ao uso da alegoria da
primavera num contexto política,
25. Nesta literatura, os seguinces títulos merecem atenção: André Rossel. Premier mai: 90
ans de lute populaire dans ie monde, Paris, 1977; Udo Achren, Hastricrte Gesisicie des
Ersten Mai. Obserhausen, 1979, e Zum Lichne Lmpor Maifstecizungem der Sozial-
demolmri, 1491-1914, Berlina e Bonn, 1980; Sven Rodin e Carl-Adam Nycop, Hórstr
Mai, 1890-1980, Listocolmo, 1980; c Lip til kamp: Social demokmains ferra majmarken,
1894-1986, Estocolmo, 1986; U. Ackwen, M. Reicheicc R. Schulez (orgs). Mein Tirer-
Jamal ir intermational. Imermationale illustrierre Gescbchte des ersten Mai vom 1886 bis
ese, Oberhansen, 1986; Fondazione Giangiacomo Eeltrinel, (2gná mn ut maggio
mono: il centenario del Prémo Maggio, Milão, 1988; Comune de Milano, Eondazione
Giagiacomo Brodolini, Zer é centiammi dela fia del lavoro, Milão, 1988: Maurizio
Anranioli e Giovanna Ginex, 1º Magia. Repertorio de mumeri smici dal 1890 al 1924,
Milão, 1988: e, sobrermdo, Panátcione. Ti Memory. Ver também, em relação à Suiça,
Bildarchiv und Dokumenraton zur Geschiche der Arbeiterbewegung. Zurich, 1
Maior mai: Mappe zur Gsechre des 1. Mai in der Seineeiz, Zurique, 1989.
26. Panaccione, Lhe Memory. pp. 856-7.
27. Greussing, Die Roten am Land, p. 168.
28. Claude Willard, Les (ouesdistes, Patis, 1964, p. 237 1.4 W 1. Guesman, The German
Social Demratiz Pare, 1875-1933, Londres, 1981,p. 160,
29. CE Renata Ameruso é Gabriela Spigarel, * 1º maggio ee done, in Pamaceione,
Tibagi é à sogpent del 1º maggio,pp. 9-104
30, Rivas Lara, “EI Primer de Maig”, pp.7-R
31, Aneonioli e Ginex, Reporri, pp: 45. Balesteré Vicente, “E Primer de Maig”. p, 13.
relativamente ao sendo iepicamente intenso de inernacionalidade da manifestação
de 1890 em Barcelona. E Giewanol, em Die Muifiabemegima. Ibme mirechafllichen
id sociolagischem Uprionge úoial Wivisimgen (Rastsrulie, 1925. pp. 90-11, entátiza a
inesperada força desse semimento intermacional revelado pelas primeiras manifeseações
32, 0 porta anarquista Pietro Guri criou seu famoso hino ao Primeiro de Maio (“Doce
Páscoa dus Operários”, para ser cantado com a música do coro de Nabuco, de Verdi,
em 1896, como parte de uma peça de um ato sore o Primeiro de Maio. E. Andreucei
e 1 Det tons.) 7 morimento opera italiono. Diziomario biggrafico, Roma, 1976, vol.
2. p. 526. Ver E]. Hobsbawm, Moriá of Laiyn. Londres, 1984, p. 77 jrrad. port
Mundos do erabalho, São Paulo, Paz e Terra, 1987]
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS ns

33, Jules Destrée e Emile Vandervelde, Le Sociiione em Belgique Paris, 1903, pp. 417:8,
Giovanoli, Die Maifierbemegama, pp. 1143, observa o clemento religioso na linguagem.
84. Ver Holbsbasem, Tb if Labor, cap. 3., “Meligion and the Rise 0é Socialism”,
35. O sentido do Primeiro de Maio como à único feriado associado exclusivamente aus
operários e seu consegjienre efeito na formação da consciência de classe foi observado
desde 0 início, “Este dia é deles. Somente deles”: ]. Diner: Denes, “Der crste Mar,
Der Kampf, Viena, 1º maio 1908. Diner-Denes observa também à conquista do és
paço público pelos operários nessa dasa
36. Hobsbawm, Ti of Labows, p. 75 é, de mancira mais geral, cap. “Lhe Transfor.
mation of Labour Ritual.
87. Antoniohi e Ginex, Rapervoio, p. 23.
38, Greuscing, Die Roten und Land, pp. 18-21
39, 4 análise mais interessante do simbolismo do Primeiro de Maio é o escrito de Gio-
vanna Gánes, “L imagine del Primo Maggio in Ttalia (1890-1945)", in Commune
di Milano, Ter à contam, pp: 37-41, e, da mestma autmrá, “Images om May Day
Single Issue Newspapers (1891-1924): Lheir Funcriun and Meanings”. im 4. Panae-
cione som, May Day Colebratim, Veneza, 1988, pp. 13-25,
40, O papel do Primeiro de Maio no avanço e na catálise da idéia da greve geral — não só
do sufrágio universal — já fo posto em releve por Gioremuli Die Masfjertemeguna,
41 Upp rilhamp,p 12
42, Panaccione, The Menu p. 223
43 Ibid.,p. 363
44 ET Hobsbawm, <I00 Years of May Day”, Liber. 8 jun, 190 (discribuido com o
Limes Literary Sugplement, pp. 10-11
45, Gino, “L immagine”,p. 40
46.O surgimento do cravo vermelho na Itália é acompanhado com mais facilidade no
livro gui amo, da Fondacione Giangiacomo Neitrinel, que inclui a coleção de di-
sões Unicas da Biblioteca Eeltrinelli (contendo, ao que parece, algumas não rei
cionadas no Repertorio) « possui imúmeras ilustrações, À primeira referência à lor de
modo “oficial” parece ser um poema numa edição de 1898 (p. 94), embora tuas
flores não desapareça até 1990. Reativamente 2 explicação de 7 Gierofimo Ru, ver
bad. pe TOS, e Reperrori,p, 130. Quanto à rosa sueca. Up titkamp,pp. 21-3
Pelo menos assim dir Dommanger, Hiroire da Premicr Mai, pp. 3613, Mas ele
Mesmo faz, remontar O uso político do liio-do vale a um impresso austríaco do ci
meço da década de 1890 pp. 175-6). isto é, à um momento em que à associação
políica era com flores da primávera, e não necessariamente vermelhas pelo simho-
lismo: Uma imagem do Primiro de Mai alemão de uma menina vendendo essas
flores, que fui adorada internacionalmente, encontra-se em On amo, p: TOO (Der
Hab Jacob. 26 abr. 898
190 ERIC HORSBAWM

48, incidente toi recapturado com grande intensidade no magnífico filme de Franco
Rossi, Salvatore Gian.
49. U altra Tralia nele budicre dei lavuraton: simboli e calma admita Tela allan-
sento de faciomo, Turim, 1980, p. 276. Esse catálogo de uma exposição de bandeiras
de operários contiscadas pelos faselris constitui magnífica contribuição à história da
ante de idenlogia popular
50. bia, p. 277.
81. Destréee Vandervelde, Le Socialôme ex Belgique, p. 418:
52, Lido all 1º Maggi 1950 (Amtunioli é Ginex, Repertonio. p. 290). Paradoxalmen-
te, isso foi ameevisto pelo burguês iweberiano de Rarcelona, em 1890, o qual previu.
desgostoso, que se os operários insistissem em fazer greve no Primeiro de Maio, isso
significaria “acrescentar mais um feriado aos muitos com que a tradição e à Igreja
sobrecarregaramq calendário”: Balester e Vicente, “El Primerde Maig”, p. 14
53, TFerenezi, “Feastdays”. Liber, 8 jun. 1990,p LL,
54. Victor Adieri Aube, Reden und Bric, Vicna, 1922, vol 1, p. 73.
Capítulo 9
O SOCIALISMO E A VANGUARDA, 1880-1914

Se 0 capísulo 8 é sobre o impacto da ascensão do movimento socialista entre os


trabalhadores, este capitulo rara do seu impacto mais comple ensve as intele-
runs e os ameistas e, incidentalmenre, das velações com as idedlogos politicos é
aristas desses muvimentos. As vangmanias
da política e da arte convergiram no
final do século XIX, diverginam bastante na primeira fse do “modernismo”
dica, mas se encomemaram novamente — ao menos por uns poucos ams
apaixonadas — sob o impacto da Primeira Guerra Mundial « da Revolução de
Outubro. Este areigo, originariamente escrizo para o segundo volume da Storia
del Marxismo da editora italiana Giulio Einamdi (liarim, 1978-82), foi
publicado pela primeira vez cm Monvemenz Social, 111, abr-jum. 1980.

O socialismo como um movimento de massa, tanto quanto à van-


guarda cultural e artística como um representante da “modernidade” e do
“progresso” no seio das artes, amplamente reconhecidos, auto-conscientes e
algumas vezes organizados separadamente, são, enquanto fenômenos curo-
peus, filhos das últimas décadas do século XIX. Neste capítulo, proponho
discutira relação entre ambos.
Entre os dois fenômenos não há nenhuma conexão necessária ou ló-
gica, no sentido em que a tese de que “aquilo que é revolucionário em arte
deve sê-lo também em política (ou em outra coisa)” se baseia numa con-
fusão semântica acerca dos vários sentidos do termo “revolucionário”, ou
termos análogos. Por outro lado há, ou havia, com freqiiência, uma relação
existencial, pois tanto os socialistas (marxistas. anarquistas ou outros tipos)
como as vanguardas artísticas e culturais se achavam de algum modo margi-
nalizados, contestando à ortodoxia burguesa ou sendo repelidos por cla
Tsso para não falar da juventude e, muito frequentemente, das condições de
12 ERIC HORSBAWM

relativa pobreza de muitos membros da vanguarda e da bobême artística. É


possível que cxagerem sura pobreza, mas à insegurança econômica dos jovens
ou dos artistas e escritores hererodoxos, pequenos produtores de mercadorias
para as quais nenhum mercado estabelecido existia, não é superestimada, mes-
mo se para muitos vanguardistas de origens burguesas cra deliberada a escolha
da insegurança em vez da segurança de uma existência burguesa
Ambos, os socialistas como os de vanguarda, eram, em certa medida,
obrigados a uma coexistência que não apreciavam, entre eles e deles com ou-
tros dissidentes da moral e do sistema de valores da sociedade burguesa. Os
movimentos políticos minoritários revolucionários ou “progressistas” atraiam
não só as habituais franjas da hererodoxia cultural e os de modos de vida
alternativos (vegerarianos, espiritualistas, teosofistas etc). como também mu-
lheres independentes « emancipadas, que desafiavam o conformismo sexual,
bem como jovens de ambos os sexos que ainda não haviam encontrado seu
caminho na sociedade burguesa, ou se sentiam excluídos dela, ou ainda se
rebelavam contra ela do modo que pensavam ser o mais ostensivo. Em
suma, as heterodoxias se superpunham. São todos ambientes familiares aos
historiadores da cultura, O pequeno movimento socialista britânico dos anos
de 1880 oferece numerosos exemplos dessa superposição. Eleanor Marx era
não só uma militante marxista como também uma mulher livre, empenhada
numa atitude profissional, que repetiu a convenção do casamento, traduziu
Ibsen é atuou como atriz diletante, Bernard Shaw cra um militante socialis-
fa de orientação marxista, escritor autodidata, feroz adversário dos confor-
mistas, crítico de música e teatro, defensor da vanguarda artista cultural
(Wagner, Ibsen). O movimento de vanguarda Avt-and-crafis (arres-c-ofícios),
entre cujos expoentes se contavam William Morris « Walter Crane, foi atraído
pelo socialismo (marxista); no mesmo ambiente se moviam as vanguardas
da liberação sexual — o homossexual Edward Carpenter e o porta-voz da
liberação sexual em geral, Havelock Ellis, limbora a ação política não fosse
o seu campo, Oscar Wilde esteve fortemente atraído pelo socialismo « es-
creveu um livro sobre o assunto.
Felizmente, para à coexistência das vanguardas com o marxismo, Marx
+ Engels haviam escrito bem pouco especificamente sobre as artes. publi-
cado ainda menos. Os primeiros marxistas, por conseguinte, não se pren-
diam em sua orientação por uma doutrina clássica. De fato, Marx c Engels
não tinham mostrado nenhuma simpatia pelas vanguardas contemporâneas
posteriores a 1840. Quão importantes e influentes permaneciam nos anos
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 193

de 1880 outras teorias socialistas acerca das artes (por exemplo, a de Saint-
Simon), esta é uma questão que requer mais pesquisa. Contudo, é impro-
vável que fossem consideradas doutrinárias nos novos movimentos socialis-
tas. A ausência nos clássicos de um corpo doutrinário estético obrigou os
social-demoeratas a criá-lo, Os critérios mais óbvios na arte de então que os
movimentos trabalhistas socialistas podiam aceitar — nunca houve divida
quanto à aceitação dos clássicos da arte c da literatura nacionais € interna-
cionais — eram a representação da realidade da sociedade capitalista de mo-
do francamente crítico, de preferência por uma ênfase nos trabalhadores e,
melhor ainda, quando cabia. à expressão da adesão às suas lutas. Isso não
implicava necessariamente uma propensão pela vanguarda. Os escritores «
pintores tradicionais consagrados podiam facilmente ampliar o campos de
seus temas ou de suas simparias sociais c, nas décadas de 1870-1890, mui-
tos pintores se voltatam para a descrição de cenas da vida industrial, de
operários e camponeses, e algumas vezes até mesmo de suas lutas trabalhis-
tas (como em Greve, de sir Hubert EHerkomcr!). Apesar disso. pelos padrões
dos salons oficiais, muitos desses artistas podiam ser vistos como moderada-
mente “progressistas” (Licbermann, por exemplo), é nem eles se viam como
artistas revolucionários.
Este tipo de estética socialista não colocava problemas especiais para as.
relações entre O marxismo e as vanguardas nas duas últimas décadas do
século xrX. Era uma época dominada, pelo menos no que concerne à litera-
tura em prosa, por escritores realistas com forres interesses sociais e políti-
cos, ou que podiam ser considerados como tais. Alguns eram cada vez mais
influenciados pela ascensão do movimento operário, interessando-se pelos
problemas específicos dos trabalhadores. Os marxistas não tiveram dificul-
dade em acolher favoravelmente, em tais bascs, os grandes romancistas rus-
sos (euja descoberta no Ocidente se devia em ampla medida aos “progressis-
tas”), os dramas de Ibsen e de outros escritores escandinavos (Hamsun e
Strindberg, embora à inclusão deste último hoje possa parecer surpreen-
dente). Mas, sobretudo, acolheram os escritores de escolas definidas como
“naturalistas” (Zola e Maupassant, aa Eranças Hauptmann e Sudermann, na
Alemanha), que se haviam ocupado abertamente daqueles aspectos da reali-
dade capitalista que Os artistas convencionais pareciam dar as costas. O fato
de que tantos “naturalistas” fossem, verdadeiramente. propagandistas políti-
cos e sociais, ou mesmo que alguns, como Hauptmann, se aproximassem da
social-demoeracia,? evidentemente facilitava a aceitação dessa “escola” pelos
194 ERIC HOBSBAWM

marxistas, É claro que os idedlogos estavam muito atentos para a distinção


entre à consciência socialista e o mero comprazimento ante à morbidez
Mehring, escrevendo sobre o naturalismo por volta de 1892-1893, acolheu-
o como um sinal de que “a arte começa à sentir o capitalismo em seu
próprio corpo”, traçando, então, entre o naturalismo e o impressionismo,
um paralelo que na época cra seguramente menos singular do que hoje
pode nos parecer:
Desse modo, com efeito, podemos facilmente explicar o prazer (de ou-
tro modo inexplicável) que os impressionistas ... e os naturalistas
extraem de todos os subprodutos mais imundos da sociedade capitalista:
eles vivem e trabalham em meio à essa imundície e, movidos por um
instinto obscuro, não poderiam exprimir um protesto mais enérgico e
mais capas de fustigar a face daqueles que os atormentam.
Mas esse — acrescentava — era no máximo o primeiro passo na di-
reção de uma “verdadeira” arte, Todavia, a revista Neue Zeit, aberta à co-
laboração dos “modemos”, resenhava ou publicava escritos de Hauprmann,
Maupassant, Korolenko, Dostoiévski, Strindberg, Hamsun, Zola. Tosen,
Bjarnson, Tolstoi e Górki, O próprio Mchring admitia que o naturalismo
alemão se orientava em direção à social-democracia, embora acredirasse que
“os naruralistas burgueses tenham uma mentalidade tão socialista como os so-
cialistas feudais tinham uma mentalidade burguesa; nem mais, nem menos”
Um segundo ponto de contato significativo era aquele que existia en-
tre o marxismo e as artes visuais. Certo número de artistas com consciência
social descobriram a classe trabalhadora como tema e foram, assim, atraídos.
pelo movimento operírio. Neste, como em outros campos da vanguarda
caltural, foi particularmente importante o papel dos Países Baixos, pela sua
situação no cruzamento de influências, francesas, inglesas e, de certo modo,
alemãs, e pela presença de uma classe operária especialmente explorada e
oprimida — no que concerne à Belgica. O papel desses países na cultura
internacional foi central nessa época, bem mais do que nos séculos prece
dentes: sem a sua contribuição, não se pode compreender nem o simbo-
lismo, nem a art notveau (ou, mais tarde, à arquiterura moderna). nem à
pintura de vanguarda que se seguiu aos impressionistas, Nos anos de 1880,
o belga Constantin Meunier (1831-1905), integrante de um grupo de arris-
tas próximo ao Partido 'Irabalhista Belga, abriu caminho para aquela que
depois se tornaria o padrão da iconografia “operária”: trabalhadores muscu-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 195

losos de peito nu, mães e mulheres proletárias marcadas pelo sofrimento.


(As explorações de Van Gogh no mundo dos pobres só foram conhecidas
mais tarde). Críticos marxistas como Plekhânov trataram com a habimual
cautela essa ampliação dos temas pictóricos ao mundo das vítimas do capi-
talismo, mesmo quando essa tendência ia além da mera documentação ou
expressão de uma comiscração social. Mas o fato é que estes artistas, intercs-
sados antes de mais nada por seus temas, construíram uma ponte entre o
mundo deles e os ambientes nos quais se discuria o marxismo.
Um vínculo mais eficaz e direto com o socialismo se estabeleceu atra-
vés das artes aplicadas e decorativas. “Iratava-se de uma ligação imediata e
consciente, sobretudo no movimento inglês Aris-and-crafis, cujo maior ex:
poente, William Morris (1834-1896), sc tornou marxista à sua maneira c
deu notável contribuição teórica c prática à transformação social das artes.
Este conjunto de tendências artísticas tomava como ponto de partida não o
artista individual e isolado, mas O artesão; c expressava scu protesto contra a
redução, pela indústria capitalista, do trabalhador-artífice criativo em mero
“operador”, Seu objetivo principal não era a produção de obras de arte
individuais, idealmente criadas para serem contempladas no isolamento, mas o
quadro inteiro da vida cotidiana, como aldeias « cidades, casas e seus inte-
riores. Acontece, porém, que por razões econômicas, o mercado principal
de scus produtos acabou por ser o da burguesia culturalmente mais curiosa
é os profissionais da classe média: um destino análogo àquele que tiveram e
continuaram a ter 0s que pretendiam um “teatro popular" Na realidade, o
movimento Aris-and-crafis e seu sucessor, a avr nouveau, abriram O caminho
para aquele que viria a tornar-se o primeiro genuinamente confortável estilo
de vida burguês do século x1x: vilas « cotages suburbanos ou semi-rurais — um
estilo que, em versões variadas, foi muito bem acolhido por comunidades
burguesas de recente extração e matrizes provincianas, descjosas de expres-
sar uma identidade cultural própria — de Bruxelas a Barcelona, de Glasgow
a Helsinque e a Praga. Também é verdade que as ambições sociais do arristas-
artífices c dos arquitetos dessa vanguarda não se limitaram a satisfazer às neces-
sidades das classes médias. Eles inauguraram a arquiterura modema e a planifi-
cação urbanística, nas quais o elemento utópico-social é evidente — e muitas
vezes esses “pionciros do movimento moderno”, como W. R. Lethaby
(1857-1931), Patrick Geddes « us criadores das cidades-jardins, provinham
dos ambientes ingleses socialistas-progressistas. "Também na Europa conti-
nental, os exponentes desse movimento eram estreitamente vinculados à
196 ERIC HOBSBAWM

social-democracia: Victor Horta (1861-1947), o grande arquiteto da art mom-


veau belga, projetou a Maison du Peuple de Bruxelas (1897), em cuja “seção
artística” H. Van de Velde — que mais tarde se tornou uma figura-chave no
desenvolvimento do movimento moderno na Alemanha — fez conferências
sobre William Morris, H. P' Berlage (1856-1934), socialista « pioneiro da
arquiterura moderna holandesa, projetou a sede do sindicato dos lapida-
dores de diamantes em Amsterdã (1899).
O fato essencial é que naquele momento a nova política c a nova arte
convergiam. Mas talvez ainda seja mais significativo o faro de que o núcleo
de artistas que deram início ao movimento (na maioria ingleses) e pro-
moveram essa revolução nas artes aplicadas não só sofreu influência direta
do marxismo, como se vé em William Morris, como — com Walter Crane
— forneceu ao movimento social-democrático boa parte do seu vocabulário
iconográfico corrente em âmbito internacional. William Morris, por sua vez,
havia elaborado uma aguda análise das relações entre arte e sociedade, de
um ângulo que certamente considerava marxista, embora possamos ver nela
as primeiras influências dos pré-rafactitas e de Ruskin. É bastante estranho,
contudo, que o pensamento ortodoxo marxista sobre à arte tenha ficado
completamente impermeável a esses desenvolvimentos. Os escritos de Wil-
liam Morris, até hoje, não conseguiram espaço nos grandes debates marxis-
tas sobre a estética, se bem que ultimamente comecem a ser melhor conhe-
cidos e a encontrar valiosos apoios de marxistas,”
Vínculos tão manifestos não existiram, nos anos de 1880 e 90, entre o
marcismo e outro importante grupo de vanguarda, a que podemos designar
aproximadamente como simbolista (ainda que muitos poetas simbolistas
tenham tido simpatias revolucionários ou socialistas). Na França do começo
dos anos 90, os simbolistas, como muitos dos novos pintores desse período,
tendiam ao anarquismo (ao passo que os impressionistas mais velhos eram
tendencialmente apolíticos, salvo exceções isoladas, como Pissaro). Presu-
mivelmente, isso não ocorria em função de qualquer objeção de princípio
contra Marx — já que Sa maior parte dos jovens poetas” que se tinham
convertido “às doutrinas da revolta, fossem elas as dc Bakunin ou de Karl
Mars * teria com certeza seguido qualquer promissora bandeira de rebelião
— mas ocorria porque os dirigentes socialistas franceses, até O aparecimento
de Jaurés, não conseguiram despertar suas simpatias. O filisteísmo pedante
dos guesdistas, em especial, dificilmente poderia té-los atraído, enquanto os
anarquistas, por sua vez, não só mostravam um interesse bem maior pela
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 197

arte, como tiveram, entre seus primeiros militantes, pintores e críticos de


valor, como Felix Fénéon.” Na Bélgica, no entanto, o Partido Operário atraiu
os simbolistas, tanto porque nele militavam também rebeldes de inclinações
anarquistas, como porque no seu grupo dirigente, proveniente da classe
média culta, se achavam homens explícita e ativamente interessados nas ar-
tes. Jules Destrée escreveu amplamente sobre o socialismo ca arte, e pub)
cou um catálogo das litografias de Odilon Redon; Vandervelde frequentava
poetas. Macterlinck permaneceu no partido até 1914, Verhacren chegou a
tornar-se quase o seu poeta oficial. Os pintores Eckhour e Khnopf' trabalha-
ram na Maison du Peuple. Na verdade, o simbolismo florescia em países
nos quais não havia teóricos marxistas (como Plekhânov) prontos a con-
dená-lo. As relações entre a revolta artística e a revolta política eram, assim,
bastantes cordiais,
Vê-se então que até o final do século houve um vasto terreno comum
entre, por um lado, as vanguardas culturais c as artes admiradas pelas mi-
norias discriminadas, c, por outro, pela social-democracia, cada vez mais
influenciada pelo marxismo, Os intelectuais socialistas que sc tornaram di
gentes dos novos pardos erwn jovens (cm sua maior parte nascidos em
torno de 1860) e se mantinham em contato com os gostos da vanguarda:
mesmos os mais velhos, como Victor Adler (1852) e Karl Kautsky (1854),
tinham menos de 40 anos em 1890. Adicr, freguentador do Café Grien-
steidl, principal centro de arristas é intelectuais em Viena, não só cultivava
apaixonadamente a literatura c a música clássica, como era grande admira-
dor de Wagncr (da mesma maneira que Plekhânov e Bernard Shaw, ele via
implicações “socialistas” c revolucionárias em Wagner, muito mais do que se
costuma ver hoje), admirava entusiasticamente seu amigo Gustav Mahler e
foi um dos primeiros a apoiar Bruckner; além disso, como quase todos os
socialistas da sua geração, admirava Ibsen é Dostoiévski e se emocionava
profundamente com Verhacren, de quem traduziu a obra poctica.º
Como vemos, boa parte dos *naruralistas”, dos simbolistas e de outras
escolas de vanguarda da época se aproximaram dos movimentos operários e
fexecutada a França) da socialidemocracia. Tais simpatias, contudo, nem
sempre duravam muito: o escritor austríaco Hermann Bahr, que assumiu a
condição de porta-voz dos “modernos”, afastou-se do marxismo no final
dos anos de 1880, ao passo que o grande “naturalista” Hauptmana evoluiu
ma direção do simbolismo, corroborando as suspeitas teóricas dos críticos
marxistas. Também a cisão entre socialistas e anarquistas produziu seus cfei-
198 ERIC HOBSBAWM

tos, já que alguns artistas (em especial no campo das artes visuais) sempre
se tinham sentido atraídos pela rebeldia purá dos anarquistas. Todavia, os “mo-
dernos” continuaram a se sentir à vontade nas vizinhanças dos movimentos
operários, e os marxistas — ao menos os que entre eles eram intelectuais
cultos —, nos ambientes dos “modernos”.
Por razões que ainda não foram suficientemente esclarecidas, esses vín-
culos a certo momento se romperam. Podemos formular algumas hipóteses
Em primeiro lugar, conforme ficou demonstrado pela “crise no marxismo”
no final da década de 1890, cra impossível manter a convicção de que o
capitalismo na Europa ocidental estivesse à beira do colapso e que o mo-
vimento socialista estivesse às vésperas do triunfo revolucionário, Intelec-
tuais € arristas que rinham sido atraídos por um movimento operário genérico,
vagamente definido pela atmosfera de grandes esperanças, de confiança e
também de expectativas utópicas, as quais ele alimentava, passaram a se
achar em face de um movimento incerto quanto às suas próprias perspecti-
vas futuras e dilacerado por contrastes internos cada vez mais marcados pelo
sectarismo. Esta fragmentação ideológica era análoga à que estava presente
na Europa oriental: uma coisa era simpatizar com um movimento no qual
todas as correntes pareciam convergir numa direção marxista geral, como
aconteceu no princípio dos anos 90, ou no socialismo polonés, antes da
divisão entre nacionalistas « anrinacionalistas; outra coisa, muito diferente,
era escolher entre grupos de revolucionários é ex-revolucionários rivais e
reciprocamente hostis
No Ocidente, além disso, os novos movimentos se tornaram cada vez
mais institucionalizados, mergulhados numa política cotidiana, bem pouco
fascinante aos olhos dos artistas dos escritores; numa política que se tra-
duzia em práticas reformistas « deixava à perspectiva da revolução furura
entregue a alguma versão da fatalidade histórica. E, com frequência, os par-
tidos de massa institucionalizados, desenvolvendo seu próprio universo cul-
tural, eram sempre menos propensos a favorecer expressões artísticas que o
público operário não compreenderia ou aprovaria. É verdade que os asso-
ciados das bibliotecas operárias alemãs tendiam cada vez mais a trocar os
livros políticos pela literatura de ficção; mas também liam menos poesia e
literarara clássica, e o escritor mais popular entre eles cra um certo Friedrich
Grrstaccker, autor de aventuras folherinescas, muito distanciado das van-
guardas.» Não surpreende que, em Vicna, Karl Kraus, que por sua própria
orientação de dissidente no plano da cultura e da política tinha se aproxi-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 199

mado inicialmente dos social-democratas, se afastassc deles na primcira dé-


cada do nosso século. Ele Os criticava por não promoverem suficientemente
uma séria clevação de nível cultural dos trabalhadores e discordou da grande
campanha pelo sufrágio universal, lançada pelo partido — que, por sinal,
teve êxito?
A esquerda revolucionária da social-democracia, que no começo era
relativamente marginal no Ocidente, e as tendências sindicalistas revolucio-
náias ou anarquistas pareciam se encontrar, então, em melhores condições
para atrair a vanguarda cultural de orientação radical. Depois de 1900, os
anarquistas, em particular, tinham sua base social (salvo em alguns países
latinos) em círculos que se compunham de boêmios e de alguns trabalha-
dores autodidatas, em áreas do subproletáriado — em suma, nas diversas
Montmartres do mundo ocidental: um ambiente que se reconhecia na sub-
cultura daqueles que recusavam, ou não tinham sido assimilados, tanto pelo
modo de vida “burguês” como pelos movimentos de massa organizados. !*
Mas essa revolta individualista e antinómica não se contrapunha à revolução
social, Fregilentemente cla só esperava uma ocasião para poder ligar-se a um
movimento insurrecional e revolucionário; e efetivamente se mobilizou em
massa, depois, contra a guerra e a favor da revolução russa. O soviete de
Munique, em 1919, foi talvez o momento de maior afirmação política para
esses grupos. No entanto, na realidade como na teoria, eles tinham dado as
costas ao marxismo: Nietzsche, um pensador que, por razões óbvias, cra
profundamente malquisto pelos marxistas é demais social-democratas (ape-
sar de seu ódio pelo “burgués”), tornou-se um guru característico dos anar-
quistas e rebeldes anárquicos, como também da dissidência cultural apolítica
da classe média.
Por sua vez, O próprio radicalismo cultural dos desenvolvimentos da
vanguarda no início do século afastava-a dos movimentos operários, cujos
membros permaneciam tradicionais em scus gostos, porquanto se apegavam
às linguagens e aos códigos simbólicos de comunicação conhecidos, que
exprimiam os conteúdos das obras de arte. As vanguardas do último quartel
do século passado ainda não tinham rompido com essas linguagens, mesmo
quando as sacudiam: com um pequeno esforço, era perfeitamente possível
“entender” Wagner, os impressionistas e até muitos simbolistas. A partir do
início do século xx, porém — e talvez o Salão de Outono de 1905 em Paris
assinale o ponto de ruprura nas artes visuais —, a situação mudou.
200 ERIC HOBSBAWM

Além disso, os dirigentes socialistas — inclusive os da geração mais


jovem, nascida depois de 1870 — não conseguiam mais manter-se em con-
tato com a vanguarda. Rosa Luxemburgo precisou se defender da acusação
de não apreciar os “escritores modernos”. Embora tivesse sido bem próxima
da vanguarda nos anos 1890 (por exemplo, dos poctas naturalistas alemães).
confessou que não compreendia Hofmannsthal c que nunca tinha ouvido
falar de Stefan George.!* Mesmo Trótski, que se orgulhava de manter-se em
íntimo contato com as novas modas culturais — em 1908 cle escreveu uma
ampla análise de Frank Wedckind para a Neue Zeir c fez resenhas de algumas
exposições de arte —, parecia não ter muita familiaridade com aquilo que os
jovens mais “avançados” considerariam vanguarda entre 1905 é 1914 —
executada, é claro, a literatura russa. Tal como Rosa Luxemburgo, cle subli-
nhava € desaprovava o extremo subjetivismo das vanguardas; sua capaci-
dade, para usar palavras de Rosa, de exprimir um “estado de alma”, mas
mada mais que isso (“e não é possível formar seres humanos com estados de
alma”). Diferentemente de Rosa Luxemburgo, no entanto, Trótski se di
pôs a claborar uma interpretação marxista das novas tendências de revolta
subjetiva e da “lógica puramente estética”, as quais “transformaram natural-
mente à revolta contra o academicismo em uma revolta da forma artística
auto-suficiente contra o conteúdo, considerado como faro indiferente”1º Trótski
atribuía o fenômeno à novidade da existência nos enormes aglomerados
urbanos modernos e, mais especificamente, à expressão dessa experiência
por parte dos intelectuais que viviam nas modernas Babilônias. Sem dúvida,
tanto Rosa Luxemburgo como Trótski pagavam tributos aos preconceitos
sociais particularmente fortes da teoria estética russa, mas em última análise
refletiam uma posição geral dos marxistas, quer ocidentais, quer orientais.
Havia socialistas que se interessavam bastante pelas artes c queriam estar a
par das tendências mais recentes, podendo inclusive, no pleno individual,
gostar de algumas dessas inovações. Porém a questão era: em que medida
tal interesse podia vincular-se às suas convicções e suas atividades socialistas?
Não cra só uma questão de idade (se bem que poucos entre os nomes
consagrados da Internacional tivessem menos de trinta anos em 1910, e
muitos eram homens de meia idade). O que os marxistas, compreensive
mente, não conseguiam apreciar era aquilo que consideravam uma fuga (e
não um avanço, como considerava a vanguarda) no experimentalismo c no
virtuosismo formal, um abandono dos conteúdos artísticos, incluindo con-
teúdos políticos « sociais claramente reconhecíveis. O que não podiam ace
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 201

tar era à escolha de um puro subjetivismo, quase de um solipsismo, como


Plekhânov apontou nos cubistas.” Nesta época, já cra desagradável, embora
explicável, o fato de que “entre os ideólogos burgueses que assumiam po-
sição ao lado do proletariado existissem tão poucos praticantes de arte?
(Kinstler); e nos anos anteriores a 1914 parecia ser em menor número
ainda que em 1900 aqueles que se sentiam atraídos pelos movimentos dos
trabalhadores. A vanguarda dos pintóres franceses “mantinha-se à margem
de qualquer agitação intelectual e social, confinada em suas diatribes técni-
cas” 18 Mais ainda: em 1912-1913, Plekhânov podia afirmar como evidente
que “a maior parte dos artistas de hoje seguem pontos de vista burgueses é
são completamente impermeáveis aos grandes ideais de liberdade do nosso
rempo?:!* Não era fácil encontrar, na massa dos artistas que se proclamavam
“antiburgueses”, uns poucos que fossem próximos dos movimentos socialis-
tas organizados; mesmo entre os anarquistas, o número de entusiastas era
pequeno, em comparação com a siuação dos anos de 1890. Era muito mais
f ci, por sua vez, encontrar artistas deplorando o filisteismo dos operários,
personagens declaradamente elitistas, como os do circulo de Stefan George,
na Alemanha, ou os acmeísras russos em busca de companhias (preferencial-
mente femininas) aristocráricas, e também — sobretudo nos meios literários
— reacionários potenciais ou eferivos. Além disso, não devemos esquecer
que as novas vanguardas experimentais se rebelavam não tanto Contra O
academicismo como contra exatamente aquelas vanguardas dos anos 1880 e
1890, que tinham estado relativamente próximas dos movimentos operário
e socialista do seu tempo.
O que poderiam os marxistas enxergar nessas novas vanguardas que
não fosse um sintoma da crise da cultura burguesa? E o que poderiam as
vanguardas enxergar no marxismo que não fosse uma prova de que O pas-
sado não podia entender o futuro? É cerro que, entreas poucas dezenas de
pessoas das quais os novos pintores dependiam financeiramente (colecio-
nadores ou comerciantes de arte) havia também simpatizantes do marxismo
(como Morosov). E era, aliás, ba tante improvável que os apreciadores da
rebelião artística nesse período fossem conservadores no plano político, Havia,
igualmente, uns poncos teóricos markistas, como Lunarchárski Bogdânov,
que procuravam teorizar suas simpatias para com os inovadores, porém sc
defrontavam com fortes oposições. O ambiente cultural dos movimentos
socialista « operário não dava espaço às novas vanguardas; e os teóricos
22 ERIC HOBSBAWM

ortodoxos da estética marxista (uma espécie que, efetivamente, existia ape-


nas na Europa central e oriental) condenavam-nas
No entanto, se alguns sctorcs das novas vanguardas permaneceram afas-
tados do socialismo e de qualquer outra idéia política, e se alguns chegaram
a se tornar depois abertamente reacionários e até fascistas, também é ver-
dade que em grande parte os artistas rebeldes esperavam apenas que se
apresentasse uma outra conjuntura histórica na qual à revolta artística e a
revolta política pudessem novamente se unir. Foi o que encontraram depois
de 1914, no movimento contra a guerra e no apoio à revolução russa. De-
pois de 1917, a convergência entre a vanguarda c o marxismo (na forma de
bolchevismo leninista), tornou à se verificar, inicialmente na Rússia c na
Alemanha. À cra a que os nazistas chamaram (e nisso não erraram) Kulti-
bulschewismus não pertence à história do marxismo no período da Segunda
Internacional; convém fazermos aqui, contudo, uma rápida menção às po-
lêmicas posteriores a 1917, pois a bifurcação da teoria estética marxista
entre “realistas” e “vanguardista” — 6 contraste entre Lukács e Brecht,
entre os admiradores de Tolstoi e os de Joyce — tem suas raízes nos anos
que precedem 1914.
Se observamos a época da Segunda Internacional no seu conjunto,
devemos concluir que as relações entre O marxismo é as artes nunca foram
fáceis, porém se tornaram cada vez mais dificeis a partir do início do século.
Os teóricos marxistas sempre tinham manifestado certo mal-estar em face
de qualquer dos movimentos “modernos” dos anos de 1880 e 90, deixando
que intelecruais situados às margens do marxismo (como na Bélgica), ou
então revolucionários é socialistas não-marxistas, se tornassem os promo-
tores entusiásticos de tais movimentos. Os maiores críticos marxistas orto-
doxos se consideravam um pouco como comentaristas ou árbitros de uma
partida de fistebol cultural; não faziam parte da torcida nem cram jogadores
Isso não impediu que suas análises históricas da evolução artística conside-
tassem as mais recentes manifestações dela como sintomas da decadência da
sociedade burguesa. Trata-se de uma análise incorreta, que surpreende pelo
fato de ser substancialmente realizada de fora da área: todos os intelectuais
marxistas se consideravam participantes da claboração filosófica ou ci =
tífica, mesmo que como diletantes; dificilmente, contudo, algum deles terá
se considerado participante da criação artística. Analisaram a relação da arre
com a sociedade e o movimento operário; e deram boas ou más notas à
determinadas escolas, determinados artistas « determinadas obras. Na melhor
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 203

das hipóteses, acolheram cordialmente os poucos artistas que ingressaram


em seus movimentos, tolerando suas extravagâncias pessoais e ideológicas,
como aliás a própria sociedade burguesa também fazia. Era razoável, por
conseguinte, que a influência do marxismo nas artes permanecesse, assim,
relativamente marginal. Mesmo o naturalismo e o simbolismo, que se apro-
ximaram dos movimentos socialistas de seu tempo, teriam trilhado o caminho
que trilharam muito mais rapidamente, se os marxistas não tivessem mos-
trado algum interesse por eles. Na realidade, os marxistas achavam difícil
discernir outra função para o artista sob o regime capitalista que não fosse a
de propagandista, “sintoma sociológico” ou “clássico”. Poderíamos inclu-
sive dizer que, de fato, o marxismo da Segunda Internacional não tinha
qualquer teoria adequada às artes; e, diferentemente da “questão nacional”,
não foi compelido pela urgência das circunstâncias políticas a reconhecer
sua insuficiência teórica.
No interior do marxismo da Segunda Internacional, contudo, houve
uma autêntica teoria das artes na sociedade, embora o corpo oficial da dou-
teina marxista não se tenha dado conta dela: trara-se da teoria desenvolvida
à fundo por William Morris. Se houve alguma influência importante e dura-
doura do marxismo sobre as artes, ela se verificou por meio dessa corrente
de pensamento, que se voltava para além da estrutura das artes na era bur-
guesa (o “artista” individual), colhendo o elemento da criação artística em
qualquer trabalho « nas artes (tradicionais) da vida popular. Indo além do
equivalente da produção de bens de consumo em arte (a “obra de arte”
individual), cla examinou os ambientes da vida coridiana. É interessante
notar que esse foi o único ramo da teoria estética marxista que deu atenção
à arquitetura, considerando-a inclusive como o ápice é coroamento de todas
as artes. 2º Se a crítica marxista desempenhou algum papel instigando o natu-
ralismo ou o “realismo”, esta teoria fez: mais: cla foi o motor do movimento
«Arts-and-erafis, cujo impacto histórico sobre a arquitetura moderna € o design
foi — e continua a ser — de importância fundamental
A teoria de Morris foi subestimada porque cle — um dos primeiros
marxistas ingleses?! — foi considerado apenas um artista famoso, mas po-
lítico de pouco peso; e também porque a tradição inglesa de teorizar as
relações entre arte e sociedade (medievalismo neo-romântico, Ruskin), que
cle fundiu ao marxismo, teve bem poucos contatos com a corrente principal
do pensamento marxista. Embora sua obra nascessc dentro do mundo da
arte, era marxista (ao menos Morris a proclamava como sendo) e chegou a
204 ERIC HORSBAWM

converter « a influenciar artistas, designers, arquitetos « urbanistas, bem co-


mo organizadores de museus « de escolas de arte, em diversos países curo-
pcus. Não é casual que essa importante influência marxista sobre a arte
venha da Inglaterra, onde o marxismo teve uma importância bastante es-
cassa: naquela época, a Inglaterra era o único país que tinha sido suficiente-
mente transtormado pelo capitalismo para que a produção industrial provocas-
se à mudança da produção artesanal. Se refletirmos, não nos surpreenderá
que o país que para Marx era o país “clássico” do desenvolvimento capitalis-
ta tenha produzido a única elaboração crítica importante dos efeitos do
capitalismo sobre arre; é também não nos surpreenderá que à elemento
marxista desse significativo movimento artístico tenha sido esquecido. O
próprio Morris era bastante realista para reconhecer que, enquanto durasse o
capitalismo, a arte não poderia tornar-se socialista. Mal O capitalismo saiu
da crise e voltou a se expandir, apropriou-se das expressões artísticas revolu-
cionárias e as absorveu. A classe média próspera e instruída e os designers
industriais assumiram O controle do movimento. A obra mais importante
do arquiteto socialista holandês H. T. Berlage não é a sede do sindicato dos
Jlapidadores de diamantes, e sim o palício da Bolsa de Amsterdã. E as obras
com as quais os urbanistas que seguiam Morris conseguiram aproximar-se
mais dos projetos de “cidades para o povo” foram os “bairros ajardinados” a
ser habitados pela classe média, e as “cidades-jardins” edificadas longe das
indústrias. Foi desse modo que as artes refletiram as esperanças e a tragédia
do socialismo da Segunda Internacional.

Notas
14 abrangente exposição de “pós impressionistas” na Real Academia
de Londres (1979-
80) demonstrou vivamente isto
2. Os dramas de Haupunata, Dir Hier (Os tecelões e Eloriam Ger eram fran-
camente engajados no plano sociopolíico e foram muito apreciados justamente por
3, Gesammelte Sebifien und Aufintee,
in E, Fuchs (ed.), Zur Lireraturgeschichre, Berlim,
1930, vol. 2,p. 107.
+ Veja-se “His wollen die Modemen, von cinem Modernen”, Neue Zeir, 1893-1894,
pp-132e5s 168 ess
5. Miehri Zum Lizerarungesciichre, vol. 2, p. 298 (publicado pela primeira vez em
1898.9)
TESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 205

6. Por idênticas razões, munca conseguiu desenvolver uma ópera “popular”, apesar de
algumas tentativas feitas nessa direção: o compusitr operíxico “revolucionário” Gus-
ta Carpentier imaginou uma hervina de Ópera perencente à clase operária (Louie,
1900) ealguns elementos de “verismo” podem ser encontrados em certas óperas
desse período, como a Camaleriarustizana iMascagai)
E. Thompson, William Morris. Romansiz to Revolurionary, Londres, 1955 (nova
edição em 1977); P. Meier, tar Pnsde uropigue de Wilinm Mor, Paris, 1972.
8 Stuart Merrill, citado em E. WE Herbert, The Artist amil Social Reform: Erance amd
Belga, 1855-1898, New Haven. 1961, p. 1001
9. Entre 06 assinantes da revista anarquista La Révolte, em 1894, encuntrâmos Alfdnse
Dauder, Anatole France, Huysmans, Lecomte de Lisle, Mallarmé, Lot é os expoei
tes do teatro de vanguarda. Antoine c Luhné-Poc. Nenhuma revista socialisra da
Epoca pode se orgulhar de ter entre seus leitores uma constelação análoga de persona-
idades, Contudo, um anarquista dos primórdios, como o pocta Gustave Kahn, era
um grande admirador de Mars, favorável à unidade de todos os homens de esquerda.
Ver Herberr, Thr Artát and Social Reform, pp: 21, L10-1
10. B: Ermers, Victor Adler, Viena, 1932, pp. 236-7.
11H]. Steinberg, Socios una desinche Socinldemokratic, Hanover, 1967, pp. 1325
12. Caroline Koln, Karl Kms, Stutigare. 1966, pp. 65-6
13. Tara 0 anarquismo auseru-alenão, Jiá-se G, Botz, G. Brandsterter é M. Póllack, Du
Seliattender Arbeitenbemegys, Viena, 1977. pp. 83-5.
18 R. Lincmburg, ais, es, je erai Conresondan. IVI4-19, Paris, 1977, pp. 306-7,
15: ldem, ibidem, p. 307.
16,1. Trótski, Literatura é revolução. Trad. Moniz Bandeira, Rio de Janeiro, Zahar 1969.
17.6. Plekhhânor, Kin ml Liseratur, Berlim, 1954, pp. 2845.
18,].€. Hull, La jeune peinture conzemporaine, Paris, 1912, pp. 14-
19, Plekhânow, Kionsr und Literatur, pp. 292 € 295,
20, WE Morris, On Avr and Socialios. Ltolbrook Jackson (cd,), Londres, 1946, p. 76
21, Morris participou pela primeira vez de uh simpósio socialista em 1883, para discutir
à construção de habitações populares,
22. “Considerando a relação existente entre o mundo moderno ea arte, nossa tarefa, hoje
é por muito tempo, será não a de tentar “produzir arte” no senndo próprio da or
pressão, mas sobretudo a de limpar o terreno de maneira a dar à arte suas oporruni-
dades”, W Morris, “The Socialist Ideal”, in On Art and Socialigm, p. 323.
Capítulo 10
O MEGAFONE DA ESQUERDA

Esta vefleão sobre à papel de Harold Laski na políica do Partido Trabalhista


das décadas de 1930 € 1940 foi publicada originariamente na London Re-
vicw of Books, 8, em julho de 1993. É também uma investigação sobre corto
eléma polórico ma esquereia mos dias de derrocada e de fascismo, que fizeram do
Joverno irabadhissa de 1945 a mais reformada ndominisoração do século

ão seria exagerado dizer”, escreveu o outrora pouco indulgente Max


(agora lorde) Belotf sobre a morte de Harold Laski em 1950, “que «. O
futuro historiador pode falar sobre o periodo entre 1920 e 1950 como a era
de Laski”. Trinta € sete anos depois, um eminente historiador do Partido
“lrabalhista observou que “a época e a reputação de Laski caiu no quase
total esquecimento”. Como pode um pensador, escritor e figura política de
tal proeminência chegar à desaparecer de maneira tão completa de nossas
vistas? “Irata-se de um problema tanto de biografia quanto de história in-
telectual, pois o impacto de Laski é inseparável de sua personalidade e de
seu estilo de apresentação pública. É curioso, depois de quarenta anos na
penumbra, ver que ele emerge agora, quas simultancamente, em duas no-
vas biografias que totalizam 1.100 página fato que sem divida haveria de
agradá-lo.
lanto Political Biography, de Michael Newman, quanto A Lif on the
Left, de Isaac Kramnick e Barry Shecrman, insistem com razão sobre a face
pública de seu biografado. Porém, até mesmo sua vida política foi peculiar,
quando menos porque esse homem profundamente político jamais se tomou
um político ou exerceu grande influência sobre as principais pessoas de seu
partido. A vitória de 1945 do Partido Trabalhista transformous us Com-
panheiros rebeldes da década de 1930, Cripps. Strauss e Bevan, nos arquite-
208 ERIC HOBSBAWM

tos da nova Grá-Breranha (eles quatro haviam sido ameaçados de expulsão


do partido por defenderem a unidade com o Partido Comunista; os outros
três foram expulsos por algum tempo), mas isso marginalizou Laski com-
pleramente. Não que não houvesse concordado em participar, Ao contrário,
queria participar e, ao mesmo tempo, estar de fora, não só na liderança do
Partido Trabalhista, quanto no padrão geral de sua vida: um revolucionário
sincero, “que se deleitava em representar o político ativo que influenciava
uma mudança marginal aqui c um maior desenvolvimento de políticas acolá”.
Ora, como dizem cruelmente Kramnick e Sheerman: “Quase tão impor-
tante quanto atacar os privilegiados cra jantar com eles”, De maneira ainda
mais óbvia, sua vida pública, sua carreira acadêmica e scu desenvolvimento
profissional foram uma série de confrontos e controvérsias, a vida: “uma
narrativa emocionante de rebelião, reconhecimento é repúdio”.
Harold Laski é, sem dúvida, um objeto compensador de análise psi-
cológica, quando não fosse devido à sua notória é, poderia pensar-se, total-
mente desnecessária mitomania. Pois ele não tinha necessidade de inventar
todos aqueles contatos íntimos com os eminentes € os poderosos, de Woo-
drow Wilson a Stálin, a cujo respeito seus amigos e inimigos faziam piadas.
Realmente conhecia aquelas pessoas: de fato, tivera o cuidado de conhecê-
as desde o início. O presidente Roosevelt pedia para vê-lo toda vez que ia
aos Estados Unidos e usava seus argumentos nas reuniões do ministério,
Das duas biografias, a de Kramnick e Sheerman é de longe a mais
perspicaz, pois se dá conta de maneira aguda tanto de que o fato de ser
judeu e sua atitude em relação à isso foram questões centrais em sua vida”,
quanto que isso fez dele uma anomalia na Grã-Bretanha de sua ápoca, de
um modo que não teria sucedido nos Estados Unidos. Era anômalo, não só
como “um dos poucos judeus no meio dos fervorosos cristãos do movi-
mento operário”, mas como um judeu indiscutivelmente da classe média
alta, de origem nem scfardim, nem alemã, que relurava tanto quanto o an-
tigo povo judeu em identificar-se com aquilo que (falando do matemático
sionista Selig Brodetskx, herói dos meninos imigrantes pobres nas bibliote-
cas públicas) considerava “o pior tipo do judeu da zona leste de Londres”
É difícil recordar o quanto era incerta a posição de uma pessoa como
essa. A rebelião de Laski contra o pai e a fé aos dezesseis anos de idade —
dramatizada por seu casamento, aos dezoito, com Frida, ideologicamente
radical, mas cristá « seis anos mais velha do que cle — deixou-o fora da
única comunidade que não tinha problema algum cm aceitar um Winderkind
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 209

intelectual que durante toda à vida teve uma saúde má € que sustentava
idéias avançadas: a comunidade dos prósperos anglo-judeus que combina-
vam religião ortodoxa c serviço comunitário com umá entusiasmada assimi-
lação cultural ao inglês, Provavelmente jamais gostou muito do anti-semi-
tismo que o rodeava e que fez com que membros do governo britânico a ele
se referissem como um “hebreu choramingas”: Hugh Dalton a chamá-lo de
“um semita anão”; e um necrológio conservador, de “uma mente alienígena,
imbuída c impregnada de uma filosofia alienígena”. Contudo, o empenho
em se fizer parecer, durante toda a vida, “um enfant terrible entre espec-
tadores admirados” (Lionel Robbins) indica uma insegurança que seus ami-
gos intelecruais judeus norte-americanos -- um Erankfurter, um Lippman
ou um Brandeis — não precisavam ter, pocque havia maior número deles.
Até que ponto isso explica o fato de a controvérsia pública ter marcado
permanentemente a carreira de Laski é impossível dizer. O padrão por si só
É óbvio. Ele ficou do lado errado das autoridades por motivos políticos em
seu primeiro cargo docente em MeGill, em Montreal. Sua saída de Harvard,
em 1920, foi submersa em um tumulto político. Depois de um começo
tranqúilo, sua carreira na Escola de Economia de Londres (onde lhe foi
atribuída a cadeira de Ciência Política, em 1927) foi tormentosa. A crise
chegou ao máximo no início de 1930, quando O então diretor Beveridge (o
do Relatório Beveridge) alegou que suas opiniões e comportamento subver-
sivos cra incompatíveis com O cargo que ocupava. Sua carreira no Partido
Trabalhista foi o contrário de tranquila c seu momento de maior vitória,
como presidente da Exccuriva Nacional do partido. no ano da vitória clei-
toral de 1945, foi também seu ano de desastre. Queimou seus cartuchos
com o Partido Trabalhista ao pedir que Arce renunciasse, tornou-se o bicho-
papão de Churchill na campanha eleitoral, e perdeu um processo impru-
dente contra um reacionário insignificante que o acusara de defender à re-
volução violenta. O problema não cram as opiniões que, acertadamente ou
não, Laski era acusado de defender, mas sim sua disposição manifesta de
provocar esse tipo de reação pública em ambos os lados do Atlântico, É
irônico que, em grande parte de sua carreira, Laski não foi uma figura espe-
cialmente radical, Sua tragédia foi ter continuado a ser o enfint terrible durante
toda a vida.
De maneira bastante estranha, um dos poucos que não só reconheceu
isso como também o pentoou por isso foi seu grande adversário nos dias glo-
riosos da Escola de Economia de Londres, Lionel Robbins, o economista que,
no FRIC HOBSBAWM

com seu colega Eriederich von Hayek, representava tudo quanto Laski abo-
minava. Robbins, intelecto verdadeiramente de primeira ordem, que se es-
tabeleccu numa carreira entre os maiores e melhores dos Grandes « Bons,
foi um dos poucos amigos de Laski entre seus colegas — e seu constante
defensor. De faro, após a morte de Laski, Robbins e algumas outras pessoas
ficaram tão ofendidos pelo péssimo trabalho feito pelo necrologista do Times,
que prepararam um segundo necrológio no qual se pretendia “transmitir as.
qualidades pessoais do falecido professor Laski que o faziam querido de
tantos amigos seus” bem como “as qualidades que lhe valeram tão notável
influência no movimento operário”. Robbins reconhecia em Laski não só
“sua personalidade quase juvenil — uma carência de equilíbrio emocional
que chega a ser dolorosa” e sua solidão, mas também sua “inteligência rá-
pida c seu senso de humor”, seu senso do absurdo — e, não menos, sua
generosidade c bondade. (A propósito, o fato de 0 Times haver publicado
esse segundo necrológio foi algo sem precedentes.)
O que na verdade Laski conscguiu realizar? Uma tolhcada nos Índices
de Citações de Ciências Sociais e Lumanidades mostra que seus 25 livros
não sobreviveram. Contudo, ele cra um homem de muitos dons. Leonard
Woolf, que sabia o que Keynes e Russell cram capazes de fazer, promoveu em
Londres um encontro de simpatizantes do Partido Trabalhista com Gandhi,
no qual ficara atônito por “uma das mais brilhantes exibições de pirotecnia
intelectual como jamais ouvira antes”:
Harold . . fez o sumário mais lúcido cperfeito das várias e complicadas
exposições de dez ou quinze pessoas a que havia escurado durante à
hora e meia anterior. Falou por cerca de vinte minutos; fez um esquema
perfeito do padrão dentro do qual os diversos pronunciamentos e opi-
niões sé harmonizavam logicamente; não hesitou uma só vez cm busca
de uma palavra ou de um pensamento e, na medida em que pude ver,
em momento algum deixou algo de lado. TTavia uma espécie de beleza
em suã exposição, uma segurança e uma simplicidade integra como as
que se pode sentir em algumas obras de arte
Era um ator sem comparação no teatro da preleção, como quem quer
que o tenha ouvido alguma vez poderá confirmar. “Sabia-se que ele estava
fazendo sua preleção quando, de poucos em poucos minutos, uma grande
explosão de riso podia ser ouvida por todo o resto do prédio . Os estudan-
tes pós-graduados de outras disciplinas . . costumavam ir às preleções de
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS m

Laski “quando queriam relaxar, quase como poderíamos ter ido ao cinema
ou ao teatro!” Era um professor genial e não consigo imaginar ninguém
melhor do que ele para estimular os estudantes, particularmente os provin-
dos dos Estados Unidos e dos lugares que, então, ainda não cram chamados
de terceiro mundo. Ninguém os estimulava mais do que ele, Exclusivamente
graças a Laski, à Escola de Economia de Londres tornou-se, nas palavras do
senador Daniel Moynihan, “a instiuição de ensino superior mais impor-
tante na Ásia e na África”. Pois para a maioria dos estudantes de além-mar
— e quando ele chegou lá, trezentos dos 2.500 alunos da Escola cram “es-
trangeiros ou das colônias? — ele era a Escola. Um idoso historiador de Bo-
gotá disse-me certa vez que fora Laski quem O inspirara para a obra de sua
vida, escrever a história da opressão dos índios desde a Conquista. Estivera na
Escola de Economia de Londres na década de 1920. “O que aconteceu com
aquela instituição?”, perguntou. “Ainda existe?”
Contudo, à fada madrinha, que derramara com abundância sobre o
pequeno Laski tantos dotes mentais, recusara-lhe dois deles, Não foi um
pensador original nem um escritor natural, e nunca se tornou um bom
escritor pois escrevia demais, depressa demais e sobre assuntos demais, sem
autocrítica nem revisão. Mesmo na época em que tinha maior influência,
não era levado muito a sério como teórico na esquerda intelectual, embora,
com Shaw, Wells, Marx, G. D. H. Cole e Tawney, estivesse entre os autores
que haviam tido maior influência sobre os membros trabalhistas no parla-
mento de 1962. Diferentemente de Tawncy, não produziu texto algum que
desse forma à visão do socialismo; diferentemente de Cole (menos emi-
nente no plano político, porém muito mais influente), não produziu história
alguma dos movimentos que todos encaravam como sucessores maturais da-
queles dos Webbs. Os académicos saudaram polidamente seus primeiros textos
pluralistas, resquícios de seu sindicalismo juvenil, sem na verdade recomen-
dá-los, (Eles podem ter uma reaparição modesta como parte da moda fa-
vorável à retórica anti-estatal pós-1989.) Sua obra máxima, 4 Grammar of
Políries (1925), mal chegou a flutuar é logo sumiu de nossas vistas.
Contudo, nada disso foi obstáculo no caminho de sua extraordinária
proeminência entre 1931 € 1945, De certo modo, como observou de modo
arguro John Strachey, “os temas não resolvidos que estão presentes em seus
livros, artigos € discursos ... [foram] sua maior força. Foi exatamente isso
que lhe permitiu dominar as mentes de toda uma geração do Movimento
Trabalhista Britânico. Afinal, as contradições estavam também em nossas
22 ERIC HOBSBAWM

mentes — no sentido que estavam na própria situação objetiva”. “No fundo,


[Laski cra] um pregador de massas e um professor público”, embora Kramnik
e Sheerman certamente estejam errados ao afirmar que cle estava disposto à
sacrificar sua reputação política e acadêmica ao “seu interesse em ensinar as
pessoas sobre o socialismo e em conduzi-as para seu interior”, O que cle
pregava e ensinava em público cra o que a maioria das pessoas inclinadas
para a esquerda na Grã-Bretanha nos anos entre 1931 e 1945 sentiam à
respéito de sua época,
Isso é 0 que torna Laski interessante como figura pública na Grá-Bre-
tanha, diferente do que ocorre nos Estados Unidos na Índia, onde atuou
essencialmente sobre é no scio da minoria que tomava as decisões. Ele per-
rence à era da Grande Derrocada e da luta contra o fascismo, e por trás da
confusa evolução de suas opiniões encontram-se os traumas do período: os.
fracassos do governo trabalhista de 1929-1931, o profundo choque da “trai-
ção” de MacDonald é o estabelecimento do governo nacional, a vitória do
nacional-socialismo na Alemanha, e a desesperançosa retirada diante da agr
são e conquista internacionais, A história da década de 1920 poderia ser
escrita sem referência a Laski pois, na época, ele mada representava a não ser
asi mesmo. Foi depois de 1931 que se tornou uma figura sintomática, uma
espécie de barômerro da esquerda britânica, dentro c fora do Partido Traba-
Ihista (não, porém, do Partido Comunista). Em 1931, foi o mais impor-
tante cabo eleitoral nas eleições para a Comissão Executiva do Partido Tra-
balhista, que passou dali em diante à ser sua “base de poder” (se é que essa
expressão não é um caso de petição de princípio).
A chave para sua posição, e a da esquerda da década de 1930, cra o
isolamento da esquerda. Exceto na Escandinávia, a esquerda não tinha res-
posta para a Grande Derrocada, a não ser em apontar para à única cco-
nomia imune a ela, à URSS, € consegiientemente apelar para o socialismo a
cem por cento. As políticas económicas para superar a derrocada vieram do
liberal Keynes, contra quem Laski, num debate na América do Norte em
1934, afirmou que somente a propriedade pública dos meios de produção
poderia salvar os Estados Unidos. (Em nada ele foi mais típico da década de
1930 britânica do que cm combinar uma auténtica admiração por Roose-
velt com uma admiração e apoio à URSS.) Politicamente, a esquerda tinha
uma política irretrucável: unidade anrifascista internamente e no exterior.
Não obstante, ninguém a escutaria a não ser os que já estivessem con-
vencidos, e nem mesmo todos estes. Exceto na Escandinávia e nos Estados
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS us

Unidos, não havia nenhum movimento público significativo para a esquer-


das em grande parte da Europa, havia acentuado movimento para à direita
— em países onde ainda se podiam realizar eleições, A vitória da Frente
Popular Francesa simplesmente demonstrou à necessidade da unidade, O
total de votos que cla recebeu foi superior em pouco mais de 1% ao total
dos votos obtidos pela esquerda em 1932. O Partido 'Irabalhista, ainda se
recuperando da perda de um quarto de scu eleitorado em 1931, não possuía
nenhuma perspectiva séria de ganhar uma eleição. O antifiscismo não am-
pliou sua base popular à não ser depois de Munique, e a radicalização da
opinião que preparou a vitória trabalhista de 1945 não era visível antes de
1941-2,
As vozes da esquerda bradavam, não exatamente no deserto, mas em
desespero: contra a recusa em unir-se contra Hitler na década de 1930,
contra a recusa em reconhecer o potencial de mudança social na guerra
popular de 1940-45. Laski foi o megafone pelo qual clas falavam. Ele sc
tornou uma potência quando parou de fiver sugestões de bastidor aos que
tomavam decisões e falou em nome da oposição permanente: como o Tony
Benn da década de 1940 (porém, é preciso dizer, em prosa de pior qualidade)
Af se encontra a força de Laski, mas também seus limites. Assim que à
esquerda alcançou à vitória, que foi levar 0 partido a romper com Churchill
ca lutar nas eleições de 1945, com basc num programa inconccbivelmente
radical pelos nossos padrões de hoje, ele nada mais tinha a dizer. Ou melhor,
havia passado o tempo para conferências c denúncias, especialmente porque
vindas de um homem que demonstrava evidente ausência de senso político. A
famosa descorresia de Clement Artlee (“um período de silêncio de sua parte
seria muito bem-vindo”) foi oportuna. Havia grande margem para uma crítica
da ala esquerda ao governo trabalhista, mas ela supunha um reconhecimento
das coerções tanto como das possibilidades de poder que Laski não possuía.
Seus últimos anos, obscurecidos pela Guerra Fria de que cle se tornou
uma vítima póstuma, foram tristes. Morreu com cinquenta c alguns anos de
excesso de trabalho e de desilusão. Para os novos homens de 1945, Laski cra
(mas palavras de Denis Haley) “um homenzinho retraído com um pequeno
bigode « olhos castanhos grandes c tristes” e “com muito ar de Charles
Chaplin”. Logo foi esquecido, a não ser por seus antigos alunos. Sua tra-
gédia foi pessoal, mas foi também a tragédia de um certo tipo de pensador
britânico de esquerda. Contudo, à maior e mais humanista administração
reformista do século teria acontecido sem cle?
Capítulo 11

OS CAMPONESES E A POLÍTICA

Os três capiruls seguintes discutem essencialmente as relações políicas dos cam-


pomises “tradicionais” com grupos e instiruições externas à sua comunidade
local: sum força e suas limizações. Tratam particularmente das situações em que
os camponesesse defrontam com movimentos é problemas políticos do século xx.
Prosseguem o estudo dos principais zemas de Primizive Rebels (1959), mas,
especialmente
nos capítulos 12 e 12, com base em alguns trabalhos de primeira
mão em diversos passes da América Lacina. Este capítulo foi publicado origi-
mariamente no primeiro número do Journal of Peasant Studies (T, 1, 1973).

O tema deste artigo é vasto e, antes de mais nada, implica alguma


definição tanto de 'camponcses" quanto de “política”. Boa parte do esforço
de definição é, naturalmente. importante para fins teóricos, não para fins
práticos. Para um zoólogo, pode ser questão muito complexa definir um
cavalo, mas normalmente isso não significa que haja qualquer dificuldade
em reconhecer um desses animais. Vou supor, assim, que a maioria de nós,
durante à maior parte do tempo, sabe a que se referem as palavras “cam-
poneses* e “política”
Não obstante, alguns esclarecimentos iniciais serão úteis. A política
com que estamos preocupados neste artigo é aquela em que os camponeses
estão envolvidos com as sociedades mais amplas de que fazem parte. Ou
scja, as relações de camponeses com outros grupos sociais, tanto os que são
seus “superiores” ou exploradores econômicos, sociais e políticos, quanto
aqueles que não O são, os operários, por exemplo, ou outros setores do
campesinato, e com instituições ou unidades sociais mais abrangentes — o
governo, o Estado nacional. Não me ocuparei do tipo de micropolítica que
preenche tão grande parte do horizonte dos aldcões, assim como o dos
216 ERIC HOBSBAWM

estudantes, professores « outros habitantes de pequenos mundos fechados


ou parcialmente fechados. Na prática, não é fácil estabelecer a distinção
entre micropolítica e macropolítica nas comunidades camponesas, pois am-
bas se sobrepõem de maneira muito considerável; não obstante, ela pode
ser feita adequadamente.
Quanto aos camponeses, descjo simplesmente sugerir — ou melhor,
relembrar — dois pontos: primeiro, que há diferenças profundas entre di-
versas formas de produção agrária de base familiar, as quais toda gencrali-
zação corre o risco de subestimar — por exemplo, entre economias de pas-
toreio é de agricultura — e segundo que, além de determinado ponto da
diferenciação sócio-econômica da população agrária, O termo “campesinato”
deixa de ser aplicável. É difícil estabelecer exatamente onde se sirua esse
ponto, mas é evidente, por exemplo, que nem os fazendeiros comerciais da
Inglaterra do século XIX, nem os proletários rurais de algumas economias de
plantação em larga escala nos trópicos se enquadram no “problema do cam-
ponés”, embora por certo constituam parte do “problema agrário”,
Gostaria, porém, de insistir em uma distinção que se aplica, de diferen-
tes modos, tanto à camponeses quanto a política, e que divide a vida em
antes e depois da “Grande 'Iransformação” que, na Europa, ocorre com o
triunfo da sociedade burguesa e do capitalismo industrial. Quero deixar bem
claro que isto não implica a aceitação da dicotomia grosseira a-histórica
entre sociedade “tradicional” « “moderna”. A história não consiste de uma
única ctapa. As sociedades “tradicionais ;” não são estática s é imutáveis, ima-
nes à mudança c à evolução históricas, nem existe um único modelo de
“modernização” que derermina sua transformação. Porém, rejeitar os pri-
marismos de certas ciências sociais não nos deve levar a subestimar à pro-
fundidade e a diferença qualitativa, a partir de desenvolvimentos iniciais, da
transformação que para à maior parte dos países resultou do triunfo do
capitalismo industrial. O simples faro de o camponeses deixarem de consti-
tuir atualmente a maioria da população em muitas partes do mundo, e de,
para fins práticos, ter deixado de existir em algumas delas, a começar pela
Inglaterra capitalista, c de seu desaparecimento como classe ser hoje perfei-
tamente concebível em muitos países desenvolvidos, separa o período ini-
ciado no século XVII de toda a história anterior desde o desenvolvimento
da agricultura.
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 27

Podemos situar os camponeses em algum ponto de um contínuo entre


dois tipos ideais extremos, O primeiro representado por algo como à cam-
pesinaro comunal da Rússia central, cm meados do século x1X, levando o
tipo de vida bem descrito por Dobrowolski para a Polônia,! e o segundo
representado por algo como o modelo do campesinato francês de meados
do século x1x de O Dezoito Brumário, de Marx.? que opera dentro de um
quadro de inseituições e legislação burguesas, especialmente legislação sobre
propriedade, mais geralmente como produtores individuais de mercadorias;
disto se segue que, com muita probabilidade, se transformem aos poucos
cm fazendeiros comerciais, formando assim um agregado de pequenas em-
presas individuais sem quaisquer relações fortes entre si — o “saco de baratas”
de Marx. De um modo geral, a característica dos camponeses tradicionaisé
um grau muito mais alto de coletividade formal ou informal (na maior
parte localizada), que tende ao mesmo tempo à inibir a diferenciação social
permanente no interior do campesinaro e a facilitar, ou mesmo impor, à
ação comunal? Não precisamos considerar aqui se essa coletividade se deve
a fatores econômicos — talvez a necessidade de cooperação no processo de
trabalho ou na administração de recursos para uso comum -— ou a outros
fatores. Ela não implica igualitarismo, ainda que provavelmente (talvez em
combinação com instituições como as do senhorio feudal) implique algum
mecanismo inibidor da acumulação irrestrita de recursos por cada uma das
famílias camponesas. A força da “comunidade” pode variar enormemente.
Não obstante, a não ser em determinadas situações muito especiais, é dificil
conceber um campesinato “tradicional” sem esse elemento coletivo. Na me-
dida em que possa haver regiões em que ele esteja ausente, é evidente que a
essas não se aplica à discussão a seguir. Aqui nos ocuparemos primordial-
mente dos camponeses “tradicionais” ou daqueles em processo de transfor-
mação, isto é, em processo de diferenciação social e econômica de classe.
Falando de mancira geral, a “Grande Transformação” também trans-
forma a política, inclusive a política das massas populares, visto que o “Esta-
do nacional” territorial soberano, com instituições específicas que incluem,
com fregiiência cada vez maior, eleições de âmbito nacional, torna-se o qua-
dro padrão para à ação política, na medida em que se desenvolvem novas
formas de organização política e de movimentos com ideologias específicas,
ns ERIC HOBSBAWM

“cada vez mais seculares, é assim por diante. É preciso acentuar que a diferença
não é entre sociedades “tradicionais”, sem política, e sociedades “modernas”,
com política. Política existe em ambas. Também não há diferença entre uma
cra em que a política é à proteção das classes superiores é outra em que as
pessoas comuns, inclusive os camponeses, tornam-se fatores permanente-
mente ativos na política. Não obstante, na Europa, a política do período
anterior e posterior à Revolução Francesa são distintos em seus procedi-
mentos e em sua orientação. À maior parte da história é a de camponeses
tradicionais em política tradicional, mas este artigo preocupa-se sobretudo
com O que sucede quando os camponeses tradicionais se vécm envolvidos
na política moderna: situação de transição, mas que, em muitas partes do
mundo, tem interesse prático € não meramente histórico.
Tratemos à seguir da questão que é básica para o problema dos cam-
ponéses na política: em que medida podemos falar do campesinato como
classe? Claro que objetivamente ele pode ser definido como uma classe “em
si” no sentido clássico, ou seja, um conjunto de pessoas que mantém o
mesmo tipo de relação com os meios de produção, bem como outras carae-
terísticas econômicas é sociais comuns. Porém, como observou acertada-
mente Shanin, entre as classes desse tipo o campesinato é “uma classe com
escasso caráter de classe”,* em comparação, digamos, com a classe operária
industrial, classe com “caráter de classe” muito elevado, no sentido em que
grande parte de sua política pode ser diretamente derivada de suas relações
específicas com os meios de produção.
Mas cm que medida cla é uma “classe para si” — uma classe consciente
de si mesma como tal? Nas sociedades tradicionais e, portanto, para a maior
parte da história, os camponeses encaravam-se, e de fato eram, o tipo básico
da humanidade, uma vez que certamente constiruíam a grande maioria de
rodas as pessoas que viviam no mundo que conheciam, ou aliás em qual-
quer parte do mundo. Em certo sentido, as pessoas ou seres humanos cram
pois tipicamente camponeses, e o resto eram minorias atípicas. Em segundo
lugar, os camponeses tinham consciência muito clara de que cram diferentes
das minorias não-camponesas « que quase sempre eram subordinados « opri-
midos por elas, das quais não gostavam e nas quais não confiavam. Isso se
aplica não só à pequena nobreza e aos senhores (onde existe senhorio), mas
também aos comerciantes e à gente das cidades, exceto, talvez, os parentes
de camponeses que ficavam por algum tempo em cidades, sem realmente se
tornarem gente da cidade. Claro que no século XX essa situação mudou é à
ÁRIAS 2

distinção bem marcada entre cidade é campo já não se pode manter, dada a
Landflucly cm massa dos camponeses. Ainda assim, os camponeses tradi-
cionais tendiam à desconfiar e a não gostar de ninguém que não fosse cam-
ponês, porque a maioria das demais pessoas pareciam participar de uma
conspiração para roubá-los e oprimi-los, sempre estavam acima deles, fos-
se qual fosse a hicrarquia social estabelecida.
Leonardo Seiascia, escritor siciliano, publicou uma canção de colheita
descoberta num certo obscuro jornal local de 1876, na qual os campones
enquanto faziam a colheita, entoavam uma ladainha de ódio contra todo
aquele que não fosse camponês de foice na mão, uma canção de ódio —
mas também de ódio a si mesmo e de desesperança, porque o camponês
está acorrentado à ordem social da qual seus exploradores fazem parte? É a
voz daqueles sobre quem La Bruyêre escreveu na França de Luís XIV:
Espalhados por todo 9 interior, pode-se observar certos animais selva-
gens, machos e fêmeas, sombrios, pálidos e tostados pelo sol, presos à
terra que cavam é revolvem com obstinação insuperável. Contudo, pos-
suem algo como uma fala articulada « quando se crguem deixam ver um
rosto humano, De fato, são seres humanos... Graças à cles, os demais
Seres humanos não precisam semear, cultivar € colher para viver, Por isso
é que àeles não deve faltar O pão que semearam.º
Explosões de ódio como esta podem ser raras — embora não sur-
preendam na Sicília do século xIx — mas não é excepcional o sentimento
subjacente de distanciamento e rancor dos que alimentam os outros, mas
são por eles olhados como sub-humanos. De fato, a gente do campo é
muitas vezes fisicamente diferente da gente da cidade, mesmo quando não
há diferença alguma de raça, cor, língua ou religião. Seu comportamento,
seus costumes são diferentes. Na Sicília, os “gorros” (os que usam o gorro
de meia velha ou o capuz frígio da Revolução Francesa) são os inimigos de
classe dos “chapéus”, Na Bolívia, nas poucas ocasiões em que os campone-
ses se afirmaram coletivamente contra os da cidade, como no levante de
18997 agrediram todos os “que usavam calças” e impuseram aos citadinos
à costume dos camponeses (ou seja, a roupa indígena)
O sentimento de um distanciamento comum em relação aos não-cam-
poneses pode haver produzido uma vaga “consciência camponesa”, permi-
tindo que até mesmo camponeses de regiões diferentes, com dialetos, roupas e
costumes diferentes, se reconhecessem uns aus outros como “camponeses”,
20 ERIC HOBSBAWM

pelo menos nas relações pessoais. Do mesmo modo que entre os “trabalha
dores pobres” em geral se encontra um sentimento de que “eles são pobres
diabos como nós”, ou de que “quem ajuda o pobre é o pobre”, assim tam-
bém acontece entre os camponeses tradicionais. Os guerrilheiros do Partido
Comunista em Marquetalia (Colômbia), movimento puramente camponês.
ao perambularem após serem expulsos de suas bases em 1964-5, gozavam
dessa espécie de reconhecimento € apoio espontâneo entre a gente do campo
de um modo que estudantes guerrilheiros não conscguiziam automaticamente:
Seus líderes tinham grande prestígio entre os camponeses, mesmo nas
áreas conservadoras . . Os camponeses acreditavam que eles possuíam
poderes mágicos que os tornavam invulneráveis, mas em caso algum
pareciam ver neles um meio de romar o poder, nem mesmo de ocupar à
terra. Antes, pareciam ser outros camponeses pobes, injustamente per-
seguidos pelos poderosos, pelos interesses urbanos, e à quem era ne-
cessário prestar a solidariedade dos desamparados.*
Essa vaga consciência da “camponesice” como uma subvariedade espe-
cial da subalternidade, da pobreza, da exploração e da opressão, não tem
limites geográficos, uma vez que repousa sobre o reconhecimento mútuo,
pelos camponeses, da semelhança de sua relação com a natureza, com à
produção e com os não-camponeses, Idealmente, à humanidade é 0 limite
dessa consciência, e a ação política que a cla corresponde é o breve porém vasto
movimento ou vagalhão milenarista que, pelo menos em teoria, abrange todo
o mundo. Tais movimentos, porém, são necessariamente tão breves, quanto
ecuménicos em seu alcance, precisamente porque sc baseiam no reconhe-
cimento de semelhança ou identidade, mais do que sobre a base mais firme
de um sistema concreto de inter-relações econômicas e sociais. Entre cam-
poneses tradicionais, a unidade dessas inter-relações é muito menor e mais
restrita — a “comunidade” ou, de modo mais geral, o “pequeno mundo”,
dentro do qual as transações entre as pessoas são sistemáticos. Onde os
vagalhões milenaristas são autenticamente cspontâncos, se espalham de mo-
do característico por “contágio” de uma comunidade paraa seguinte, a cur-
va de sua difusão sendo semelhante à de uma epidemia.
O apequeno mundo” pode, de fato, variar consideravelmente de ta-
manho, população c complexidade. A unidade básica da vida camponesa
tradicional, a comunidade, constitui apenas uma de suas partes. Dentro des-
sa área — pequena ou grande, mais ou menos complexa — as pessoas sa-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS E

bem umas das outras é são visíveis a divisão social do trabalho e o sistema
de exploração c estratificação. Neste caso, uma plena “consciência de classe”
camponesa é concebível, na medida em que a diferenciação dentro do cam-
pesinato é secundária em relação às características comuns à todos os cam-
poneses e aos scus interesses comuns contra outros grupos, e na medida em
que a distinção entre eles e outros grupos scja suficientemente claça. E isso
pode de fato acontecer: a solidariedade de todos os camponeses contra ter-
cciros pode contrabalançar os conflitos internos entre cles.? Nos vales de La
Convención e Lares (Peru), durante os primeiros anos da década de 1960,
desenvolveu-se um movimento camponês unificado contra os senhores neo-
feudais, embora houvesse, entre seus participantes, grupos camponeses que
se exploravam uns aos outros.!º Por outro lado, tanto as divisões laterais
dentro de uma área como essa — por exemplo, entre comunidades cam-
ponesas — quanto a personalização das relações sociais — por exemplo,
mediante o clientelismo ou o parentesco artificial (compadrasgo) — inibem
uma consciência de classe permanente. O comerciante ou o recrutador de
mão-de-obra não é meramente um tipo, mas uma pessoa, parente ou compa-
“re daqueles com quem negocia e à quem explora. A comunidade pode
estar em litígio não só com a grande propricdade que se apossou de sua
terra comum, mas também com outras comunidades limítrofes, e por vezes
poderá ser politicamente oportuno aliar-se à grande propriedade contra seus
vizinhos,
Não obstante, seja qual for 6 tamanho c a complexidade do “pequeno
mundo”, sempre se sabe não apenas que ele é limítrofe dé outros “pe-
quenos mundos” análogos ou à eles se sobrepõe, mas também que faz
parte de um mundo muito mais amplo. Problema fandamental para a polí-
tica dos camponeses tradicionais é a relação entre 6 microcosmo «o macro-
cosmo, Por si sós, não conseguem resolver esse problema, uma vez que sua
unidade de ação política é ou a região (na prática), ou a raça humana (con-
ceirualmente): a paróquia ou o universo. Na verdade, porém, a árca dos
desenvolvimentos c decisões mais importantes encontra-se em algum ponto
entre es es extremos, € nem suas fronteiras, nem suas estruturas são deter-
múnadas pela economia ou pela sociedade do microcosmo camponês.
Nem são clas realmente conhecidas a não ser, por assim dizer, de ou-
vido. Isso é óbvio para o ccúmeno. Aos jornalistas que perguntaram a cam-
poneses peruanos organizados sob slagans castristas onde ficava Cuba, cles
responderam que ficava “em outro departamento do Peru”. Um camponês
22 ERIC TOBSBAWM

recentemente chegado à Cuautla (México), vindo de uma aldeia de Oaxaca,


sua térra natal, ao me interrogar a respeito de meu país, considerou im-
possível situar a “Grã-Bretanha” em qualquer sentido geográfico. Era na
Europa — mas O que era c onde era a Europa? Era do outro lado do
oceano. Mas o que era oceano e o gue significava essa distância? Só con-
seguiu ter uma idéia sobre cla como sendo “perto da Rússia” — país do
qual tinha ouvido falar. É menos evidente, mas igualmente verdadeiro, scr
provável que o conhecimento do camponês acerca da nação ou do Estado
sob o qual vive scja quase igualmente tão incerto « fragmentado: uma questão
de indagações c familiaridades pessoais. Conhecimento do próprio país:
Aqui neste curso aprendi a falar com os companheiros da costae com os
das montanhas. Bem, até agora, os da costa ainda não me disseram
nada. Por outro lado, os de Cafiar falaram comigo e me contaram quais
são seus problemas, e isso é uma coisa que fazem os bons camaradas, c
os de Chimborazo também falaram. Mas os companheiros da costa não
me contaram nada sobre sua terra ... À gente sai da igreja em Quito e os
da costa ficam juntos e o mesmo fazem os de Cafiar com outros de
Caniar . nenhum deles me disse “venha conosco à algum lugar”. Então,
tenho que pedir para me explicarem as coisas. Pedi a um companheiro
de Caiar que me contasse o que estava acontecendo em sua terra e ele
contou. Mas agora os técnicos explicaram coisas, e estou satisfeito, por-
que desse modo posso acompanhar melhor sobre o qué é este curso. !
Conhecimento das instituições do país:
Eu é um outro camarada resolvemos descobrir e fomos até a província
de Chimborazo para perguntar às comunidades que pertencem à Paró-
quia de San Juan, El Guabo e Chogol, porque acho que eles também
tém problemas ... Então, depois, fomos a Riobamba, ao CEDOC, e con-
tamos a eles à que o pessoal tinha nos contado em Guabo, e pergunta-
mos se eles podiam tratar do nosso problema, Eles disseram, bem, cam-
bém estavam falando com o senador Chamara. Fles telefonaram para ele €
a moça secreária atendeu e disse que não estava, que tinha ido a Guavaquil
Vai voltar amanhã muito tarde, talvez amanhã ele atenda. Então fiquei
lá em Riobamba numa hospedaria . !2
As citações acima provêm de um pequeno país de talvez 5 milhões de
habitantes e são de 1969. À fortiori, o clemento de pura ignorância e desam-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 23

paro dos camponcses fora dos limites de sua região será ainda mais impor-
tante para a compreensão de sua política em períodos mais antigos da his-
tória e em países maiores.

Com isso em mente, consideremos se pode existir alguma coisa como


um movimento camponés nacional, ou uma revolução ou rebelião cam-
ponesa nacional. Duvido muito disso. A ação local « regional, que é a nor-
ma, Só se transforma em ação mais ampla mediante força externa — natural,
econômica, política ou ideológica — e somente quando um múmero muito
grande de comunidades ou de aldeias se deslocam ao mesmo tempo exa-
tamente na mesma direção. Porém, até quando ocorre uma ação geral dis-
seminada desse tipo, ela raramente coincide com a área do país (como vimos
acima), mesmo em paísts bastante pequenos, e será menos um movimento
geral único do que um conglomerado de movimentos locais c regionais,
cuja unidade é momentânea € frágil. Os homens da costa e os homens da
montanha podem ser bastante diferentes uns dos outros para que se reúnam
no mesmo terreno mais do que por um breve período.
Os maiores movimentos camponeses parecem, todos eles, ser regionais,
ou coalizões de movimentos regionais. Numa alternativa, se movimentos
camponeses se desenvolverem por todo o território do país, a não ser quando
patrocinados « organizados pelas autoridades do Estado, será pouco pro-
vel que sejam simultâncos ou tenham as mesmas características ou reivin-
dicações políticas. Na pior das hipóteses, essa composição de grandes mor
mentos camponeses à partir de um mosaico de pequenos movimentos pode
criar simplesmente uma série de enclaves espalhados que não afetam o resto
do país. Foi assim na Colômbia, onde movimentos agrários bastante pode-
rosas, em sua maioria organizados pelo Partido Comunista, desenvolveram-
se nas décadas de 1920 e de 1930 em determinados ripos de zonas -— nas
regiões cafeciras, nas árcas indígenas que possuíam problemas específicos,
nas áreas de fronteira ou de povoamento recente, entre posseiros e colonos,
€assim por diante, Nem mesmo a coordenação nacional do Partido Comu-
nista produziu um movimento camponês único, mas apenas áreas camponesas
“vermelhas” espalhadas, muitas vezes bem distantes umas das outras; e nem
se desenvolveu um movimento de âmbito nacional a partir dessas árcas dis-
24 ERIC HORSBAWM

persas, embora algumas delas tenham se mostrado capazes de disseminar


sua influência em âmbito regional. Naturalmente, quadros nacionais políti-
cos e de guerrilha podem cmergir desses pequenos múcleos isolados e mui-
tas vezes duradouros, mas essa é uma outra questão,
Na melhor das hipóreses, esses movimentos camponeses podem ocor-
rer em uma ou duas regiões estrategicamente localizadas, onde é crucial seu
efeito sobre a política nacional, ou em áreas capazes de produzir forças
militares móveis poderosas. Hoi bem esse 0 caso da Revolução Mexicana, O
grosso dos camponeses daquele país não esteve muito envolvido na Re-
volução de 1910-20, embora, em consciência da vitória da Revolução,
diversas áreas tenham começado a se organizar, Ainda assim, a maior mobi-
lização do campesinato mexicano ligado à Revolução foi, quase certamente.
como que o contrário disso — o movimento dos Cristeros na década de
1920, que se ergucu por Cristo Rei contra os Agraristas seculares. Subjeti-
vamente, essa foi sem dúvida alguma uma revolução camponesa, muito em-
bora tanto o momento em que se deu, quanto sua idcologia à transforma-
ram, objetivamente, em contra-revolucionária."* Não obstante, entre 1910 €
1920, duas regiões exerceram enorme influência política. Uma foi a região
de fronteira do Norte, com seus homens armados independentes — vaquei-
ros, garimpeiros, bandidos etc. — que deram origem ao exército de Pancho
la com sua mobilidade « capacidade de percorrer amplos espaços: um
equivalente mexicano dos cossacos. A outra foi a revolução comunal de
Emiliano Zapata, em Morelos, muito mais solidamente fundamentada, cujos
horizontes eram meramente locais, mas tinha a enorme vantagem de ser
vizinha da capital do México. A influência política do programa agrário de
Zapata provém do fato de que suas tropas de camponeses estavam próximas
o bastante para ocupar a capital. Os governos de países grandes « adminis-
trados com frouxidão, tais como as repúblicas da América Latina no início
do século xx, de tempos em tempos estão fadados a perder O controle de
províncias distantes para dissidentes ou insurretos locais. O que na verdade
os preocupa éa insurreição dentro da capital ou em seus arredores.
Onde as revoluções camponesas não tém essa vantagem, suas limi-
tações são muito mais óbvias. O grande movimento camponés do Peru na
década de 1960 é um bom exemplo, pois foi provavelmente à maior mobili-
zação cspontânca desse tipo na América Latina durante aquela década, Na-
queie período, havia uma intranqiilidade em âmbito nacional, inclusive en-
tre os operários « os estudantes. O movimento agrário estava ativo, tanto
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 2s

nos altiplanos camponeses quanto nas plantações da zona costeira — que


não podem scr classificadas como pertencentes à economia camponcsa, mas
são melhor designadas pelo nome local de “complexos agro-industriais”,
Nos altiplanos havia movimentos muito amplos, seja nos altiplanos do Sul
seja nos do Centro e, por toda parte, insurreições variadas de ocupação de
terras, greves, organização de sindicatos camponeses etc. Ainda não foi es-
ceito um relaro adequado desse movimento, Contudo, pode-se observar duas
caracrerísticas. Primeiro, embora mais ou menos simultancamente — o mo-
vimento estava no auge em 1962-4 € atingiu O ponto mais alto no final de
1963, no Centro, e um pouco mais tarde, no Sul — os movimentos regionais
não estavam de fato ligados entre si, ou de modo cferivo com os movimen-
tos não-camponeses. Segundo, houve lacunas curiosas. Assim, à área tradi-
cional de “revoltas indígenas” no sul, o Departamento de Puno, esteve vi-
sivelmente inativo. O tipo tradicional de movimento já não cra essencial ou
relevante, embora no período entre 1910 é 1921 ainda houvesse estado de
fato muito ativo, Em Puno, O movimento camponês assumiu a forma de
estabelecimento de uma máquina política pelos kulaks e negociantes locais.
que pouco depois demonstraram força política notável.!* Nesse ínterim, ime-
diatamente ao Norte, no Departamento de Cuzco, desenvolvia-se em escala
maciça a ação direta de camponcses, organizando sindicatos e ocupando
terras, inspirada pelo êxito do campesinaro de fronteira em La Convención,
embora os homens de La Convención, tendo já atingido seus principais
objetivos, milirassem sobretudo na defesa de suas conquistas. O movimento
camponês peruano amplamente disseminado produziu mais intrangjilidade
do que revolução.
Por isso, inclino-me a pensar que a idéia de um movimento camponês
“geral, à menos que estimulado de fora para dentro ou, melhor ainda, de
cima para baixo, é bastante irrealista.!5 Constitui um mito, tanto revolu-
cionário como contra-revolucionário. Pois os conservadores também possuem
esse mito, como O prova 6 pavor de uma nova “Pugachevshchina” — uma
insurreição camponesa geral, segundo o modelo do levante de Pugachev na
década de 1770 — que desempenhou tão grande papel no pensamento dos
governantes e reacionários da Rússia antes da emancipação dos servos. Tal-
vez houvesse mais fundamento para esses temores na Rússia porque, cm
1905-7, o movimento camponês russo estava com certeza extremamente
disseminado, afetando entre 80% e 100% de todos os distritos das seis
regiões russas. Mesmo assim, as variações inter-regionais cram consideráveis
2% ERIC HOBSBAWM

nas restantes seis regiões (sem contar as províncias do Báltico c a Trans-


caucásia); as percurbações variavam entre 38% (Urais) e 74% (Lituânia) '*
A propósito, o movimento original de Pugachev tinha antes base regional
do que nacional e sua força consistia mais na ameaça potencial a Moscou do
que em sua extensão geográfica.
Não se quer com isto subestimar à força desse tipo de movimento
conglomerado. Se forem unificados por alguma força externa — uma crise e
derrocada nacional, um governo reformista ou revolucionário indulgente,
ou um só partido ou organização eficicnte estruturado em ámbito nacional
— poderão fazer a diferença entre, de um lado, O êxito € Ofracasso, e de
outro, revoluções mais importantes. Até mesmo por si sós, podem tornar
inviável um sistema agrário ou a estrutura de controle no campo, como fez
o “Grande Medo” de 1789 na França”, e o fez à onda peruana de ocu-
pações de terra em 1962-4. Há fortes indícios de que em algum momento
entre junho de 1963 c fevereiro ou março de 1964, à maioria absoluta dos
grandes proprietários de terras « senhores nos altiplanos do Centro e do Sul
do país, diante da mobilização camponesa geral, decidiram abandonar seus
empreendimentos e, começando a liquidar seus ativos, chegaram à pensar
em termos de compensação por desapropriação, dentro de algum tipo de
reforma agrária. Isso não tornou automática à reforma agrária. Foram pre-
cisos mais cinco anos « um golpe militar para que fosse imposta: mas cla
apenas enterrou o cadáver de uma economia senhorial do altiplano que já
havia sido efetivamente morta pelo movimento camponês.

HI
É enorme o poder potencial de um campesinato tradicional, mas seu
poder e influência reais são muito mais limitados. A primeira razão impor-
tante para isso é seu sentimento constante, e em geral bastante realista, da
própria fraqueza c inferioridade. A inferioridade é social e cultural, por exem-
plo como a de analfabetos frente aos “instruídos”: daí a importância, para
os movimentos camponeses, de amigos intelectuais residentes no local, so-
bretudo o mais admirável dos intelecruais de aldeia, o professor primário.
Sua fraqueza baseia-se também não só na inferioridade social é na falta de
uma força armada eficiente, mas na natureza da economia camponesa. Por
exemplo, as agitações camponesas têm de ser interrompidas para a colheita.
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS =”

Por mais militantes que sejam os camponeses, o ciclo de sua labuta os acor-
renta à seu destino. Vale a pena especular se a economia da batara — cultura
que requer pequeno trabalho regular — desempenhou na Irlanda o papel de
tornar possível a notória frequência da “agitação agrária” naquele país du-
rante 0 século XIX, Mas, no fundo, os camponeses são e se sentem subalter-
nos, Com raras exceções, visam à um ajustamento na pirâmide social e não
à sua destruição, embora seja fácil conceber a sua destruição. O anarquismo,
isto é, o desmantelamento da superestrutura de domínio e exploração, per-
mite à aldeia tradicional ser uma economia « sociedade viável. São poucos,
porém, os momentos em que es a utopia pode ser imaginada e menos ainda
realizada.
Claro que, na prática, não faz grande diferença se os camponeses lutam
por uma sociedade diferente e nova por completo, ou se pelo ajustamento
da antiga: normalmente isso significa ou à defesa da sociedade tradicional
contra alguma ameaça, ou à restauração de antigos modos de vida os quais,
se estiverem suficientemente afastados no passado, podem simplesmente
dundar numa formulação tradicionalista de aspirações revolucionárias. Re-
voluções podem ser feitas de facto por camponeses que não negam à legiti-
midade da estrutura de poder, da legislação, do Estado e até mesmo dos
grandes proprietários de terra existentes. Temos exemplos de campesinaros
que parecem negar totalmente à legitimidade das grandes propriedades, na
Rússia cragista por exemplo, mas não a legitimidade dos direitos supremos
do governante sobre todas as propricdades, É cvidente que não sabemos,
precisamente, o que implica essa negativa na teoria, ou o que significa na
prática. Que diferença cxiste entre Os servos russos que sustentavam per-
tencerem aos senhores, mas que a terra era deles e não da pequena nobreza,
e os índios andinos que acreditavam ser legítima a prestação de serviços de
mão-de-obra aos governantes incas e aos espanhóis, mas queixavam-se do
pagamento do arrendamento em dinheiro ou espécie, « cujos descendentes
parecem não ter contestado a existência de vastas propriedades rurais como
tais? Podemos somente especular a respeito. Um movimento que reivindica
apenas à “recuperação” de terras comunais ilegalmente alienadas pode ser
tão revolucionário na prática, quanto teoricamente Iegalista. Também não é
fácil traçar a linha divisória entre legalista € revolucionário O movimento
zapatista em Morelos começou opondo-se não a rodas as haciendas, mas
simplesmente às novas que haviam sido introduzidas ao tempo de Porfírio
Diaz; é isso porque os anos do marco geodésico eram usados para definir os
E ERIC HOBSRAWM

velhos tempos bons e legítimos, o que incluía o fato de os proprietários


serem superiores aos camponeses. O movimento não se manteve dentro
desses limites.
A maior diferença encontra-se não nas aspirações teóricas dos cam-
poneses, mas sim na conjuntura política prática em que clas funcionam. É à
diferença entre à desconfiança e a esperança. Pois à estratégia normal dos
camponeses é a passividade, Não é uma estratégia ineficiente, pois explora
os mais importantes trunfos do campesinato — seus grandes contingentes e
a impossibilidade de obrigí-lo a fazer certas coisas à força por qualquer
período de tempo — e utiliza também uma situação tática favorável, que se
apóia no fito de que não é a qualquer mudança que se ajusta melhor o
campesinato tradicional. Um campesinaro tradicional organizado de forma
comunitária, fortalecido por uma obrusidade, impenetrabilidade e estupidez
funcionalmente úteis — sejam aparentes ou reais —, constitui uma força
incrível. A recusa a compreendê-lo é uma forma de lura de classes, e os
observadores, tanto dos rasos do século XIX, quanto dos peruanos do sé-
culo Xx, deserevem-no de maneira semelhante.!” Ser subalterno não é ser
impotente. O campcsinato mais submisso é capaz não só de “trabalhar o
sistema” em vantagem própria — ou melhor, por um mínimo de desvan-
tagem — mas também de resistir «, quando oportuno, de contra-atacar, O
estereótipo do jk nas mentes dos russos instruídos, que é muito seme-
Ihante ao estereótipo do “índio” nas mentes dos brancos dos Andes, é em
grande medida uma reformulação de algo que as classes superiores não con-
seguem entender porque não podem controlar: “crédulo, devotado ao czar
e propenso (apesar de naruralmente submisso) à violência irracional”>º
verdade, existe um sistema nesse comportamento,
A passividade não é, por certo, universal. Em áreas em que não há
senhores nem leis, ou em zonas de fronteira onde todos os homens andam
armados, a atitude dos camponeses pode ser muito diferente. Podem, então,
chegar de fato às raias da insubmissão. Contudo, para a maioria dos cam-
poneses presos à terra, o problema não é se devem scr normalmente pas-
sivos ou ativos, mas sim quando passar de um estado para o outro. Isso
dependo de uma avaliação da situação política. De mancira geral, à passivi-
dade é aconselhável quando a estrutura de poder — local ou nacional — é
firme, estável e “fechada”, c a atividade quando ela parece estar, em certo
sentido, em mudança, oscilante ou “aberta”,
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 229

Os camponeses são perfeitamente capazes de julgar a siruação política


local, mas sua verdadeira dificuldade está em discernir os movimentos mais
amplos da política que podem dererminá-la. Que sabem eles sobre esses
movimentos? Normalmente, têm consciência de pertencer a alguma organi-
zação política mais ampla -— um reino, um império, uma república. De faro,
o conhecido mito camponês do rei ou imperador longínquo que, se sou-
besse, endircitaria as coisas e estabeleceria ou restabeleceria a justiça, reflete
€ ao mesmo tempo cria, em certa medida, um quadro mais amplo de ação
política. Ao mesmo tempo reflete o quão remoto é o governo nacional em
relação à estrurura política local, a qual, seja qual for em teoria, consiste na
prática no poder e na legislação do Estado exercidos pelos homens de poder
do lugar e com cles identificados: seus parentes, clientes, ou aqueles a quem
podem subornar e intimidar. O que podem saber mais do que isso varia
amplamente conforme o sistema político real. Assim, se existem tribunais
nacionais, O que nem sempre ocorre, os litígios podem levar até mesmo
remotas comunidades a ter certa relação com o centro nacional, sem dúvida
alguma através de uma cadeia de advogados urbanos intermediários, Dificil-
mente haverá uma comunidade fisicamente mais remora do que a comuni-
dade peruana de Huasicancha. a cerca de 4.000 metros sobre as montanhas
— mas desde que obreve na corte da vice-rcaleza de Lima, em 1607, seu
primeiro julgamento contra um espanhol usurpador, nunca mais deixou de
ter consciência de pelo menos algumas dimensões da organização política
mais ampla da qual constitui uma parte longíngua
À medida que nos aproximamos do presente, os pormenores da po-
lítica nacional tornam-se cada vez mais importantes e conhecidos — por
exemplo, quando entram em cena as eleições e os partidos, ou quando a
intervenção direta do Estado nos assuntos das localidades ou dos indivíduos
exige algum conhecimento de suas instituições e respectivo funcionamento.
Além disso, com a migração em massa, é provável que a aldeia possua vin-
culos diretos com o centro. sob a forma de colônias de sua própria gente
estabelecida na capital ou em outra parte, que conhece as manciras de ser da
cidade. Porém, muito antes que isso aconteça, os camponeses têm consciên-
cia de mudanças dentro do sistema, ainda que não sejam capazes de des-
crevê-las ou compreendé-las precisamente. A guerra, a guerra civil, a derrota
c a conquista podem envolver diretamente us camponeses c abrir novas
possibilidades quando ameaçam os dirigentes nacionais e mudam os dirigentes
locais. Mesmo acontecimentos menos importantes na política da classe do-
230 ERIC TIOBSBAWM

minante, tais como eleições « comp d'tat, que mal os afetam diretamente,
podem ser interpretados de forma correta como animadores ou desanima-
dores, Podem não saber exatamente 0 que está acontecendo na capital, mas
se o senador local deixa de scr da família “A”, enquanto a família “B”, sua
rival, parece estar por cima, haverá importantes reavaliações locais, sem d
vida primeiro entre Os habitantes das cidades, mas no tim também entre os
habitantes das aldeias. A Revolução Mexicana — mesmo na Morelos de
Zapata — começou não tanto como uma revolução, mas como uma ruprura
do equilíbrio político local há muito existente, o qual, por sua vez, dependia
do funcionamento tranquilo « da permanência do sistema de governo na-
cional de Don Porfirio.
Se qualquer mudança nacional mais importante pode abrir novas pos-
sibilidades locais, ou fechar outras, antigas, então a firtiomi notícias de re-
forma ou de mudanças de algum modo favoráveis mobilizam os camponeses.
Assim, quando um governo reformista apoiado pelo partido APRA (Aliança
Popular Revolucionária Americana) chegou ao poder cm Lima, em 1945,
as comunidades que vinham funcionando de acordo com o pressuposto da
estabilidade mudaram prontamente sua tática, Santa Rosa, que vinha nego-
ciando tratados de divisas com as propriedades vizinhas, anunciou que “agora,
com o novo governo, podemos fizer o que quisermos « denunciamos os
atuais tratados com a Ganadera” (Sociedad Ganadera del Centro)! Marc
Ferro assinala que às resoluções enviadas pelos camponeses, imediatamente
após a Revolução de fevereiro na Rússia, e sem dúvida redigidas pela inteili-
“gemasia das alácias, ao contrário das dos operários, “exigiam” muito mais
frequentemente do que “se queixavam” ou “solicitavam”, c também que
“expressavam mais fregilentemente do que os operários o desejo de punir os
senhores do antigo regime”. É como se as aldeias, sempre conscientes da
força potencial existente no próprio interior de sua subalrernidade, apenas
exigissem, por parte das autoridades superiores, a segurança da boa-von-
tade, ou mesmo da mera tolerância, para crguerem a cabeça. Inversamente,
é claro, qualquer indício de que o poder, uma vez mais, irá reprimi-los faz
com que se recolham às suas conchas. Assim como o governo reformista de
1945 produziu uma onda de desassossego c de organização agrárias, a im-
posição do governo militar de 1948 fez com que as invasões de terra e os
sindicatos de camponeses se derivessem subitamente — até que, sob um
novo governo após 1956, os camponeses àos poucos se dessem conta de
que a situação estava novamente mais aberta
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 231

Esse sentimento de constante confronto de força, potencial ou real,


talvez provenha exatamente da exclusão do campesinato tradicional dos me-
canismos oficiais da política ou mesmo da legislação. As relações de força —
quer experiências reais de força, quer experiências ritualizadas — substituem
as relações institucionalizadas. A relutância do sehor Fernandini em expulsar
uma comunidade indígena invasora contígua à sua fazenda é interpretada
pelos camponcses como medo: “Não há nenhum índio em toda esta região
que não diga que pode tirar toda vantagem que quiser do taita Eulogio,
porque o taita Eulogio está com medo deles” Por outro lado, como ad-
mite Daniel Field,** com razão, se os camponeses quisessem chamar à atcn-
ção das autoridades não tinham nenhum modo eficiente de fazê-lo senão
desafiando a autoridade pela ação direta, uma vez que não havia qualquer
mecanismo político para que se fizessem ouvir. Isso cra arriscado, uma vcz
que normalmente se poderia ter certeza de que haveria punições — embora
Os camponeses, certamente, € provavelmente até mesmo os senhores e o
governo, calculassem a dose de violência a ser aplicada. Nas invasões de
1947, foram as comunidades inexperientes que permaneceram no lugar «
foram massacradas quando os soldados chegaram. Os de Huasicancha, com
séculos de experiência da alternância entre litígio e ação direta, abandona-
ram mansamente à terra ocupada à chegada das tropas c com O tempo
conseguitam o que de melhor podiam segundo a lei
Assim, O confronto pode ser bastante não-revolucionário: é um erro
pensar em cada incidente de contestação camponesa pela força como um
“levante” ou uma “insurreição”, Mas cle pode também, devido exatamente à
ca, prestar-se à revolução. E se
parecer que o fim definitivo da dominação pelos proprietários está próxi-
mo? À essa altura, estamos no limite entre os territórios da avaliação política
fria e da esperança apocalíptica. Poucos camponeses esperariam que sua re-
gião ou aldeia pudesse sozinha conseguir libertação permanente. Sabiam
muito sobre isso. Mas, e se todo o reino ou o mundo todo estiver mu-
dando? O vasto movimento do triênio bulehevista na Espanha (1918-20)
deveu-se ao duplo impacto das notícias sobre os sucessivos colapsos de im-
périos — o russo e, à seguir, outros da Europa central — e de uma ver-
dadeira revolução camponesa. “Mas como”, perguntou Diaz del Moral, “vo-
«ê pode acreditar que vai vencer? E o governo e o exército espanhóis?” e lhe
responderam: “Mas, sefiorito, se a própria Alemanha esboroou, o que pode
232 ERIC HOBSBAWM

O burguês esperar deste governo espanhol, que de todo o modo não vale
muita coisa?”.:s E contudo, quanto mais longe estejam os centros de de-
cisão da estrutura conhecida « compreendida do poder local, mais inde-
finida será a linha divisória entre juízo verdadeiro, esperança e mito (tanto
no sentido coloquial como no de Sorel). Os sinais pelos quais os homens
previam a chegada do milênio cram, em certo sentido, empíricos — como
aqueles pelos quais previam O tempo — mas, em outro sentido, eram ex-
pressões de seus sentimentos. Quem poderia dizer se na realidade havia
“uma nova lei” ou um cavaleiro trazendo à proclamação do czar em lerras
douradas doando as terras aos lavradores, ou se simplesmente deveria ser
assim?
Pode-se levar um passo adiante a hipótese e supor, de modo inverso,
que a decepção da esperança dentro de uma situação concretamente ava-
liável seria menos duradoura do que aquela de esperanças globais ou apo-
calípticas. Quando as tropas chegam c expulsam a comunidade das terras
que ocupa, cla não ficará desmoralizada, mas aguardará o próximo mo-
mento adequado pará à ação. Mas quando a revolução esperada fracassa,
levará muito mais tempo para restabelecer o moral dos camponeses, Assim,
Malcfakis?* sugeriu que parte da tragédia da Segunda República cspanhola
de 1931-1939 está no fito de que 0 movimento camponês de base não se
deu conta de que uma nova era de possibilidades se iniciara, até 1933 —
quando os melhores momentos para forçar o governo republicano à re-
forma agrária já haviam sido perdidos. Após o fracasso do rrienio bolchevista
foi preciso mais do que a queda de um rci para fizer renascer sua esperança.

Iv

Até aqui, temos considerado à estrutura política mais ampla simples-


mente como algo que afeta favorável ou desfavoravelmente a ação dos cam-
poneses. Contudo, sobrerudo durante a transição para a política moderna, à
fluência dos próprios camponeses sobre ela deve também ser rapidamente
considerada. No período anterior ao século xvt!l, na Europa — talvez na
maior parte do mundo —, fal influência é normalmente desprezível, exceto
em épocas de revolução geral, quando pode tornar-se decisiva, quer para a
vitória, quer para a derrota da revolução. Os camponeses parecem fazer
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 233

parte da história econômica é social, mas raramente da história política,


uma vez que os governantes raras vezes precisam incomodar-se por mais de
um momento com O que acontece nas aldeias. A China pode ser a grande
exceção, pois na política tradicional daquele país as rebeliões camponesas
desempenham um papel aceito e esperado no final de uma dinastia c na sua
substituição por outra. Mas na transição para a política moderna da Europa,
O campo só se toma importante quando há frequência de revoluções ou de
ameaças revolucionárias e então, com o desenvolvimento de sistemas de
política de massas, eleitorais ou outros, sua atitude faz parte dos cálculos
permanentes dos políticos.
Os camponeses tradicionais estão integrados no sistema político domi-
nante por meio de três principais mecanismos ideológicos: o “rei”, a “igreja”
(om outras estruturas religiosas) e aquilo que, com hesitação « consciência
do perigo de anacronismo, deve ser chamado de “protonacionalismo”. Em
termos políticos, os três são ambíguos. O “rei” é ao mesmo tempo a base da
estrurura social estável que se apóia sobre os ombros de um campesinato
leal e conformado e a remota fonte de justiça que pode ser chamada para
combater os verdadeiros governantes, os proprietários. A “igreja” possui
uma dualidade semelhante, embora talvez um pouco mais marcadamente
distinta: nas regiões cristãs, o bispo pode pertencer a “eles”, mas os santos
sempre pertencem a “nós”. O protonacionalismo é muitas vezes indistin-
guível da religião (como ainda se pode verificar no movimento nacional
itlandês. no qual o catolicismo é um critério de nacionalidade pelo menos
tão fundamental quanto a emicidade) c é menos regularmente identificado
com a integração política: mas onde coincide com o rei ou a igreja, ou com
ambos, à associação é poderosa, como Napoleão descobriu, tanto na Rús-
sia, quanto na Espanha. Por outro lado, quando não é assim, raramente
possui implicações políticas em escala nacional, pelo menos na Europa antes
do século xx.
Durante à transição para à moderna política européia, inicialmente (com
a exceção parcial do protonacionalismo) essa ideologia mobiliza o campesi-
nato para à direita política, ou deixa de molbilizi-lo para a esquerda política,
mesmo quando, segundo nossos padrões, suas aspirações são revolucioná-
rias, A política moderna (por exemplo, o liberalismo) pertencia às cidades
aos ricos e era ou irrelevante ou hostil aos camponeses; a defesa dos antigos
modos de vida contra os novos, por sua vez, implicava a espécie de tradi-
234 FRIC HOBSRAWM.

cionalismo revolucionário que os Bourbons empregaram com bons resul-


tados no sul da Itália, embora não na Sicília, onde eles próprios eram “es-
trangeiros”. A pergunta interessante é: quando, como e em que circunstán-
cias os movimentos camponeses passam à estar sob a liderança da esquerda
ou, de modo mais geral, passam a ser expressos numa linguagem política
nova? Assim, é evidente que na década de 1870 0s camponeses russos, para
tristeza dos Narodniks, ainda eram bastante inacessíveis tanto a eles, como
não-camponeses, quanto ao seu idioma; no início do século XX, porém,
estavam muito mais receptivos a novas idéias e métodos, Em uma muito
grande medida, mudanças econômicas, urbanização, migração etc. são, ob-
viamente, responsáveis por tais transformações. Como diz um levantamento
de 1908 em russo:
O “fermento” ou “cérebro” no movimento . foram os camponeses com
salários inferiores nas fábricas, nas minas « nas cidades. Como pessoas
mais desenvolvidas, tornaram-se naturalmente os líderes do movimento:
em alguns casos, trouxeram para o campo — juntamente com os jornais
= as notícias sobre os movimentos agrário « operário em outras partes
é, inconscientemente, propagaram a idéia do movimento agrário”
nda assim, temos evidentes exemplos de camponeses tradicionais que
aceitaram a liderança da esquerda política (na Sicília e no sul da Irália de
Garibaldi, por exemplo; muito antes que a industrialização € à urbanização
os tivesse aferado seriamente. A respeito dessa questão, permanecemos mui-
to no escuro € é preciso mais pesquisa. Claro que isso não deve ser con-
fundido com o apelo imediato que à hererodoxia (inclusive à dos revolu-
cionários políticos seculares) possa ter, a partir de uma ctapa inicial, para
grupos minoritários descontentes, tais como os colonos albaneses no sul da
Itália, ou os tribais na Índia moderna.
No entanto, uma coisa pode ser sugerida. Contrariamente ao que
poderia supor, é provável que a agitação nacionalista moderna direta con-
quiste os camponeses mais cedo do que a agitação social, pelo menos sob à
forma de simples xenofobia que, de maneira igualmente fácil, pode voltar-se
contra grupos estranhos pertencentes à mesma “nação”, Assim, os homens
do Tipperary, na primeira parte do século XTX, exerceram seu notório “ter-
rorismo agrário” não só contra os proprietários fundiários ingleses protes-
tantes, mas também contra os Connaughemen e os Kerrymen que com eles
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 235

competiam por terra trabalho. E o exemplo mais evidente de um mo-


vimento nacional de base popular no século XTX, os fenianos irlandeses, não
conseguiu ter uma base camponesa realmente sólida, superando a poderosa
hostilidade da Igreja, até que à depressão agrária c a Liga da Terra lhes
tivesse fornecido um programa social e também naciona
Liste artigo tratou amplamente da política dos camponeses tradicionais
em situações tradicionais e de transição. Pode-se concluir com trés breves
proposições a respeito dos camponeses em situações políticas modermas. Deixo
de mencionar o papel dos camponeses nos países socialistas, pois nestes
(com a possível exceção da China), uma vez mais. os camponeses se tor-
naram uma força recessiva e relativamente passiva: apesar disso, à eficiência
de sua recusa em fazer dererminadas coisas demonstra que os Estados c as
economias modernos podem , pelo menos, mais sensíveis ao jeito tra-
dlicional de finca-pé em que os camponeses têm tanta experiência,
A primeira proposição « que, em algum momento da diferenciação
econômica, “o campesinato” como conceito político desaparece, porque os
conflicos no seio do setor rural passam à contrabalançar o que todos os
camponeses têm em comum contra os de fora. Esse desenvolvimento foi às
vezes descjado por revolucionários (por exemplo, os bolcheviques russos).
mas quando ocorre, pelo menos antes das revoluções, é normalmente em
prejuizo delas. A dificuldade encontrada hoje pelos comunistas indianos em
seu atual trabalho no campo é que podem de faro apelar para alguns, mas
não para todos os estratos rurais é, ao apelar para um dos grupos, tendem
automaticamente a ficar contra os outros, Contudo, a desintegração política
do campesinato é adiada ou dissimulada pela persistência de diferenças tra-
dicionais entre cidade e campo, e de interesses políticos específicos que uma
grande gama de pessoas ocupadas na agricultura pode ter em comum: por
exemplo, uma política estatal de preços altos € protegidos para produtos
agrícolas, « de instituições e práticas tradicionais. Assim a “comunidade cam-
ponesa” da década de 1970 pode, na verdade, representar os interesses de
um grupo de kulaks ou da classe média rural em seu interior, « não os de
todos os seus membros que, por sua vez, podem agora constituir apenas
uma pequena percentagem dos habitantes locais. Não obstante, funcionará
como uma comunidade e será em certa medida representada por seus mem-
bros como tal. Os pobres da aldeia ou os sem-terra podem continuar a
submeter-se a seus irmãos mais ricos, embora a política « a organização
236 FRICHOBSBAWM

modernas pudessem torná-los, como grupo, mais cficientes do que cram


antes, Considerando que é assim que ocorre na realidade, is o sugere que à
política “camponesa” é mais provavelmente a política dos agricultores ricos,
A segunda proposição é que a política cleitoral democrática não fun-
ciona em favor dos camponeses como classe. Diferentemente do “partido da
classe operária”, o “partido camponés” não é a projeção fiel da consciência
de classe na política, mas sim um fenômeno histórico raro € inesperado,
continado, para fins práticos, à partes da Europa do Leste, do Sudeste c do
Centro, no período entre as duas grandes guerras. E mesmo esses “partidos
camponeses” não foram necessariamente muito diferentes de outros parri-
dos cuja clientela era predominantemente camponesa, mas que não basca-
vam oficialmente scu apelo na classe, Dos 2.836 prefeitos rurais radicais da
França no início da década de 1950, não menos de 2.600 eram agricultores
camponeses.'S Há países que nunca desenvolveram partidos camponeses es-
pecíficos, países em que, de fato. não há “correlação global entre à percenta-
gem da população ativa engajada na agricultura c o comportamento político
dessa área”. Assim, em 1951, os cinco departamentos mais rurais da Fran-
ça deram seus maiores lotes de votos respectivamente aos comunistas, a
uma aliança de democratas cristãos e radicais, aos gaullistas c aos demo-
cratas cristãos, Além disso, mesmo quando determinados partidos obtêm
apoio majoritário entre os camponeses, scus quadros dificilmente são de
origem camponesa. Os legisladores democratas cristãos italianos de 1963. em-
bora cleitos por 44% dos camponeses, eram em sua esmagadora maioria de
origem não-camponcsa. Apenas 4,5% de seus país haviam sido proprie-
tários camponeses — e, muito curiosamente, quasc à dobro dessa percenta-
gem era de pais que haviam sido operários.'º (Como comparação, quase um
terço dos deputados comunistas italianos cm 1963 possuía pais da classe
operária, enquanto 40% dos deputados comunistas franceses do início da
década de 1950 tinham realmente, cles próprios, começado a vida como
operários manuais) Em termos da política nacional dos Estados burgueses-
democráticos, os camponeses tendem a ser mera “forragem” eleitoral, a não
ser quando reivindicam ou inibem determinadas medidas políticas cspeciali-
zadas. Naturalmente, cm termos de política local, são muito mais importan-
tes. Contudo, não se deve desprezar O número reduzido de camponeses
eleitores, nem a persistente sobre-representação do eleitorado rural.
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 27

A terceira proposição é uma que Marx propós em O Dezoito Brumário.*!


Afirma cle que, devido a suas peculiaridades como classe, os camponeses
são
incapazes de impor seu interesse de classe em seu próprio nome . Não
conseguem representar à si mesmos: precisam ser representados, O re-
presentante deve ao mesmo tempo parecer scu patrão, ou uma auro-
ridade superior à cles, como um poder governamental ilimitado que os
protege contra outras classes e lhes envia do alto a chuva ea luz do sol.
Por isso, a influência política do pequeno proprietário camponés en-
contra sua expressão final nos poderes executivos que subordinam a so-
ciedade a si mesma.
Não é preciso discutir aqui se esse argumento se aplica apenas aos
camponeses ou se val também para outras classes « cstratos incapazes de se
organizar como classe (por exemplo, as classes médias baixas, no sentido
europeu do termo). Pode-se também argumentar que, em muitos casos, a
atitude aparentemente passiva dos camponeses em relação ao governo cen-
tral dissimula hierarquias complexas de relações clientelistas, bascadas em
barganhas tácitas ou declaradas, que se estendem desde as localidades até o
ápice do poder do Estado. Pode-se também sustentar que o enorme “po-
der de veto” de facto que possui a recusa dos camponcses a agir torna essa
relação menos passiva do que à primeira vista parece. Não obstante, o argu-
mento de Marx provavelmente explica algo mais do que a natureza do bo-
napartismo de meados do século x1x. Este não pres levar a uma ditadura
de dircita, embora, em certo sentido, o surgimento do Partido Nazista na
Alemanha entre 1928 e 1933 tenha sido o último movimento autêntico de
massa de camponcses, pelo menos nos setores protestantes da Alemanha,
Não obstante, vale a pena investigar a importância da figura política parerna
ou materna, ou do Estado benfeitor, na política dos países camponeses de
hoje, tendo em mente a observação de Marx.
Contudo, 0 fato fundamental da política camponesa atual é o declínio
do campesinato tradicional c, de fato, cada vez mais, o declínio numérico
relativo de qualquer espécie de campesinato. Grande parte do que foi discu-
tido neste artigo já é de interesse mais histórico do que atual. No entanto,
uma vez. que cm muitas partes do mundo à massa de migrantes rumo às
cidades consiste de homens « mulheres de origem camponesa tradicional,
288 ERIC HOBSRAWM

que trazem para seu novo mundo os modos de agir e de pensar de seu
antigo mundo, à história continua a ser uma força política atual. Não seria
prudente desprezar esse fato.

Notas
1 Kaziimier, Dobrowulsk “Peasanr Traditional Culture”, in Teodor Shanin (org
Pensants and Pensant Socicries. Lundres, 197].
2. Karl Mars. he Eipieenti Mramaire of Lonis Bonaparte, 1852.
3: CÊ um comentárioda época subre um conflito entre estratos rurais na Alemanha do
século vt: “É curioso que us súditos do Senhorio de Mesekirch devam ter se rede.
lado conera seu senhor, Guríricd Werner, porque não puderam oferecer qualquer
ravão válida ou urgente para sua ação. Simplesmenre reclamam que, nas aldeias, fo-
ram passados para tis pelos Javeadores e diaristas que queriam usar a terra de pas-
tagene, é que els não podiam viver em suas fazendas à mancirá de antigamente, Mas,
na verdade, a maioria dos trabalhadores compunha-se dos filhos, genros ou parentes
próximos dos agricultores”: David Sabean, *Famil renure paysanne: aux origines de
la guerre des pavsans en Alemagne”, Anales. Lcomomies, Soidrá, Ciniliatims
jul-out. 1972, p. 904.
4 Teodor Shanin, “The Peasantry as à Pobitical Facto”, in Shanin, Praca
5. Leonardo Seiascia. La conta pasca: srttori e oe della Siilia. Tucim, 1970, pp: B0-3.
6. Jeat de la Bruere, tas Caraetérs, Paris, LEGO, pp. 292-3
7. Ramiro Codarco Morales, Zarate, E! “Jirvile” TWilka Iisoria de Ja reli iniguma
de 1899 La Paz, 1965.p: 290.
8. Pierre Gilhodis. "Agrarian Struggles ia Columbia”, in R. Savenhagen (org): Agrariam
Problems amd Prasame Movements in Latin America, Nova York, 1970, p. 445
9. Teodor Shanin, The Ariniand Clas: Iniical Saia of Pracameryé à Develging Sociore
Rusia, 1910-1925, Londres, 1972,p. 161
10. Wesley Craig, “Peru: the peasant movement in La Convención”, in FL Landsberger
org), Larin American Pratant Movements, Tehaca, 1969: E. J. Hobsbawm,
=Problêmes agraires à La Convención (Pérou”. in Les Probiêmes agraires des Améri-
ques Latines, Paris, 1967, pp. 385-94; E. J. Hobsbuwm, “S Case of Neo-feudalism:
Li Convencióry”, Journal of atin Amerizan Studies, 1/1, 1970.
21, John C. Hammock e Jefirey A. Aste (orgs ). Hlabiam líderes compesinos, Quito, 1970.
pp. 19-20.
12. 1bid. p. 13
13. Jean À. Meyer Lu Crisriada, dl Estadoy el pueblo en la Revolución mexicana (1926-
1929), 3 vols., México, 1973.
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 239

14. Edward Dew, Polis i she Alriplano: The Dimas of Change im Roiral Peru, Austin e
Londres, 1969.
15. Hanva Alavi, Peasanes and Revolutioa”, in R, Mibband é J. Savile torgs.) The
Socialist Regier, Londres, 1965, pp. 241-77; Eric Wolf, Prasans His afshe Tventic
Gentisry, Nova Yorke 1 ondres, 1971
16. Maureen Perri, “The Russian Peasant Movemenir 0É 1905-7: Its Social Composition.
and Revolucionary Significance”. Pasr and Presenr 5 Doe, 972, pp. 12355,
17. Georges Lefebvre, The Great Ecar of 1789: Rural Panic in Revolutionary Hrance, Lon-
dres, 1973
18; Nathan Wachuel, La Vision des vmôncas, Pais. 1971
19, Daniel Held, resenha de S, B. Okune K, Y.Sivkav (orgs), Krestianske Dvizheniev
Rossiv 1857-mac 1961 gg”, Koirita 3/3, primavera de 1967, pp. 34-55; Tuan Mar-
tinez Alice, “Peasants and Labourers in Southern Spain, Cuba, and Llighland Peru”,
Juma! of Deasams Studics, 1:2. 974,
20, Field, resenha de Okun é Sivkos; p. 49, Eicld sugere que mesmoo monarquismo dos
camponeses russos era cm grande medida um truque defensivo: eles já tinham pro-
blemas demais sem se sobrecarregar com uma reputação de deskekdade ao Estado
pp. 49:50), Provavelmente, isso é levar longe demais à pragmatismo dos campome-
ses, mas há algu de verdadeiro nessa opinião.
21, E. J, Hobsbawam. <Peasant and Land Invasions”, Pasr and Preenr, 62, 1974.
22, Mare Ferro, La Resolution Rate de 1917; la chute de rsariome ex les origies Octobre
Toris, 1967, p. 186.
23, Martinez Alier, “Peasants and Labourers”
24, Vickd. resenha de Okun e Sivtos, p. 54
25. Juan Diaz del Moral. Fito de is aglaciones campinas Anealuzas, Madi, 1967, p. 468
26. Edward E. Malefákis, Agranian Reform and Prasanr Resolution in Spain: Origins ofihe
Chvit Hr, New Haven é Londres, 1970,
27. Perrie, “Russian Peasait Movement”, p. 136
28. Maurice Dvenger org), Pare golitigues cs class oialesem Frame, Dáris, 1955. p. 235.
29. Ibid, p 157.
30. Sidney G. Tarrow, Prasmnr Communion is Southern Lab New Haven e Londres,
1967, pp. 134c 144.
81, Mar, Elgbeoenth Brumaire
32. John Diunican Powel, “Peasait Society aud Cliemelist Poliri ' Americam Potvical
Seience Review 64.2 jun. 1970, pp. 41-25.
Capítulo 12
OCUPAÇÕES DE TERRA POR CAMPONESES

Coma as virôrias que se conta sob Bandidos, 1 procelâmensos de ocupação de


cerva pelos camponeses — a fôrma mais fundamental de ação coletina mos cam-
pesinatos tradicionais, mas não necessariamente revolucionária — são natavel.
mente seniores por toda uma ampla gama de culturas. Este capéslo é sena
rensaciva de analisá-hs, em parricular mma região — os Andes peruanos — e
mm dado momento bitórico de mobilização camponesa, quando é pose desco
dir o que eles queriam alcança; o que conseguiram e no que fracassaram. Esse
aveigo foi publicado originariamente em Past and Presenr, 62, 1974.

Qualquer um que estude os movimentos camponeses conhece bem o


fenómeno da invasão ou ocupação em massa de terras. Este artigo procura
analisar cssa forma de militância coletiva camponesa, sobrerado à luz de
testemunhos fornecidos pelo Peru, embora também com alguma referência
a outros países.! Scu objetivo, contudo, não é estudar um fenómeno especi-
ficamente peruano, € sim, por meio das ações dos camponeses, atingir os
pressupostos sociais « políticos e o pensamento estratégico subjacentes à
elas. A finalidade dest artigo é lançar luz sobre a questão da atividade
camponesa revolucionária. Consideraremos, também, de passagem, até que
ponto a situação histárica específica do Peru e de países comparáveis deter-
mina a narureza e a forma das invasões de terra neles ocorridas.

Há três tipos possíveis de ocupação de terra, no Peru como em outras


partes, dependendo da siruação legal da terra a ser ocupada, tanto em ter-
22 ERIC HORSBAWM

mos do sistema oficial legal vigente, quanto das normas legais realmente
aceitas pelos camponeses. Essas duas coisas não coincidem necessariamente
A terra a ser ocupada pode pertencer aos camponeses mas ter sido alienada,
legalmente ou não, de um modo que eles não reconheça como válido, Por-
tanto, à invasão da terra corresponde à recuperação de sua própria terra
Assim É que os camponeses de Oyon (nos Andes, a nordeste de Lima)
negaram haver invadido as terras da Sociedad Agrícola y Ganadera Algolan,
em agosto de 1963, uma vez que as terras em litígio — algumas pastagens a
cerca de 5.000 metros de altitude — eram e sempre haviam sido deles.? Em
segundo lugar, à terra ocupada pode não pertencer a ninguém ou, em ter-
mos legais, perrencer ao governo como terra pública. Neste caso, o processo
de colonização ou grilagem pelos camponeses somente se torna uma “in-
vasão” quando há alguma disputa à respeito do título legal. O caso mais
comum é aquele em que essa terra é reivindicada simultaneamente pelos
camponeses e pelos grandes proprictários de terra, nenhum dos quais pode
ter, nem teria, na maioria dos casos, direito de propriedade válido perante a
legislação oficial, Essa situação é comum nas regiões de fronteira não colo-
nizadas de diversos países sul-americanos, embora não ocorra com frequén-
cia no Peru, exceto nas encostas subtropicais amazônicas dos Andes e, às
vezes, em extremos remotos dos vastos trechos não cultivados das terras
pertencentes a alguma grande fazenda, que tendem a ser consideradas pelos
camponeses como terra-de-ninguém, como é compreensível.
Neste caso, o argumento legal é diferente, uma vez que não se pode
recorrer a títulos, nem mesmo a costume e prescrição. Antes se trata de que
a terra pertence à quem a cultiva por meio de seu trabalho. Esse argumento
era aceito pela legislação colonial espanhola, que adjudicava as terras de-
socupadas (rierras baldias) a quem as limpasse, semeasse ou de alguma outra
forma as cultivasse dentro de um dado limite de tempo, fixando o tamanho
da propriedade segundo a capacidade de cultivá-la de quem a detinha O
Código Civil da Colômbia, por exemplo, reconhecia esse modo de posse
entre outros, c a Lei 200, de 1936, aprovada em consegiiência de uma
agitação agrária em larga escala, fez dele o principal critério de propriedade
das terras desocupadas. Neste caso, recorre-se não à um título legal ou seu
equivalente (por exemplo, o dircito prescritivo). mas sim a um princípio
geral. Assim, em 1963, 350 possciros organizados numa Asociación de Nue-
vos Colonos ocuparam duas propriedades na zona subtropical de Tingo
PESSOAS EXIRAORDINÁRIAS 248

María, com o argumento de que “como estão improdutivas, temos direito à


elas?
Em terceiro lugar, à terra pode pertencer indiscutivelmente a alguma
outra pessoa que não os invasores, até mesmo pelas doutrinas e documentos
legais que eles próprios aceitam, como quando os camponeses expropriam
donos de terras de suas propriedades. Deve-se distinguir com clareza esta
situação daquela em que camponeses arrendatários, que pagam o arrenda-
mento em trabalho, dinheiro ou espécie, afirmam seu direito de propriedade
como donos absolutos da terra que efetivamente ocupam c cultivam, pois
isso, por si só, não contesta o direito do proprietário das terras à terra que
cultiva diretamente ou com mão-de-obra contratada, Também não constitui
uma “invasão”, uma vez que os camponeses já se encontram sobre à pro-
priedade cujo título legal desejam alterar. É claro que a expropriação é a
forma revolucionária mais consciente de ocupação de terras. No Peru, e de
maneira mais geral na América Latina, é também a mais rara (com exceção,
é evidente, da forma historicamente comum da expropriação dos fracos pe-
los fortes). Falando de modo mais preciso, parece que ocorre, quando mui-
to, umas raras vezes no seio de movimentos camponeses que não estão
diretamente influenciados por ideologias políticas modernas.
Este artigo tratará principalmente das invasões de terra do primeiro
tipo, que constituem à esmagadora massa das invasões de que se tem notícia
no Peru do século XX O movimento característico desse tipo é a recu-
peração, por comunidades camponesas, de terras comuns perdidas. O fun-
damento para esse ripo de reivindicação, na medida em gue conseguimos
acompanhar o raciocinio da jurisprudência camponesa, é triplo, embora não
se possa dizer (a não ser no caso da terra-de-ninguém) se dois dos três
elementos da reivindicação de posse são essenciais e qual à importância que
cada um deles tem na mente dos que reivindicam. Como diz o dr. Sarumino
Paredes, argumentando contra alguns membros diversionistas do pequeno
Partido Comunista Peruano (maoísta), do qual cra então secretário-geral:
No Peru, 6 fato é que 0 campesinato que vive em comunidades ... está
convencido de que as terras ora de posse dos latifundiários pertencem aos
camponeses, porque cles à trabalharam, e porque, em alguns casos, pos-
siuem ítulos delas e. em outros, devido ao direito de posse imemorialé
O direito pelo trabalho está claramente implícito em todas as demais
reivindicações de posse, embora (exceto no caso de terra recém-povoada)
24 ERIC HOBSRAWM

não se distinga do dircito por posse imemorial, uma vez que isso significa
simplesmente que incontáveis gerações de camponeses têm cultivado deter-
minada porção de terra, ou têm nele pastoreado scus animais. Daí, talvez, o
faro de jamais me haver deparado com uma invasão que se justificasse pura-
mente pelo slogan “a terra para O lavrador”, a não ser quando ideologias
políticas modernas entram no assunto. Isso não quer dizer que seja insigni-
ficante. Em Cilento (sul da Irália), antes da Revolução de 1848, “todos os
dias de Natal os camponeses se dirigiam até as terras que reivindicavam,
realizando ali trabalhos agrícolas, procurando, desse modo, manter 0 prin-
cípio ideal de posse de seus direitos?” Durante a Revolução de 1848, na
mesma região, 800 camponeses, tendo derrubado os muros e as cercas em
antigas terras comuns usurpadas, voltaram à marchar no dia scguinte, “a
maioria deles portando pás, picaretas e bastões, apenas cinco ou scis deles.
com armas, manifestando-se com os gritos de “Longa vida ao Rei é à Cons-
tituição! Queremos cavar a terra. Estamos morrendo de fome. Queremos
ter de volta nossos antigos direitos perdidos”” Na Sila calabresa, 400 ho-
mens com tambores € a bandeira nacional, em parte armados, foram vistos
cavocando o chão e, quando indagados por que o faziam, alguns respon-
deram: “Eles pretendem conseguir seus antigos direitos, e isso preparando
suas terras comuns para o alqueive e pagando uma medida local de tomolo
para cada romolaza de terra”. Em 1873, em Pozoblanco é nas comunas
vizinhas, na Andaluzia, os camponeses reivindicaram o retorno é a divisão
de algumas terras comuns, com o fundamento de que os que labutavam
tinham mais direito a elas do que aqueles que pagavam salários miseráveis à
empregados, com dinheiro mal ganho. É conhecida a importância do “prin-
cípio do trabalho” na teoria camponesa russa. Em suma, para os campone-
ses, a posse sem trabalho é impensável, uma vez que toda a terra que tenham,
deve ser utilizada,
Porém, se a posse imemorial é título suficiente, tal posse validada por
documentos verdadeiros é ainda melhor. Dada à natureza do sistema colo-
nial espanhol, há muitas comunidades indígenas que possuem esses docu-
mentos, € eles são mencionados tipicamente para legitimar a invasão de
terras. Assim, a comunidade de Tusi citou títulos que vinham de 1716,
tendo sido “expedidos em Roma e no Egito”, segundo seu porta-voz;!" os
invasores de cinco grandes propriedades no departamento de Huancavelica
as reivindicavam baseados em títulos da mesma data; a comunidade de Huay-
lacucho (Luancavelica) apresentou títulos que remontavam a 1746: e assim
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 245

por diante.!! Os jovens sectários do Partido Comunista Maoísta encaravam


isso como uma aberração pequeno-burgucsa, afirmando que a única coisa à
fazer com títulos de terras do período feudal ou burgués, tosse quem fosse
o favorecido por eles, era queimá-los: porém, como o dr, Paredes assinalava,
de maneira defensável e falando a partir de larga experiência: “Tudo isso
revela que os liquidatários oportunistas de esquerda não têm experiência
alguma do movimento camponês e nunca tiveram coisa alguma a ver com
qualquer comunidade [camponesa)”.!º O arraigado Iegalismo das invasões
de terras pelos camponeses é um fato que tanto O estudioso quanto o agi-
tador desprezam por sua própria conta. Possuir papelitos é muito importante
para uma comunidade camponesa latino-americana. Scjam verdadeiros ou
forjados, eles são tratados com carinho, preservados, escondidos de pos-
síveis ladrões, porque perdé-los afetaria de algum modo os direitos de seu
possuidor, embora dificilmente se poderá dizer que enfraqueceria su senti-
mento de que eles existem. John Womack fez um relato comovente da pre-
servação dos títulos de terra de Anenecuilco, o pueblo do grande Emiliano
Zapata, desde o tempo de seus pais até os dias de hoje.!* Live notícia de que
há casos de aldeias bolivianas que, tendo recebido terras pela reforma agrá-
ria, dirigiram-se a seu antigo dono pedindo-lhe um documento de trans-
ferência para tornar rudo legal. Como veremos, o legalismo não impede que
esses camponeses façam revoluções. Em primeiro lugar, cles tendem a rejei-
tar como moralmente inválidas e “contra a natureza” as leis que, embora
constitucionalmente corretas, tomam terras comuns.
A esta altura, devem ser mencionadas as peculiaridades da situação
latino-americana, uma vez que elas transformam o legalismo em seu sentido
mais estrito em poderosa força social entre os camponeses, ainda que tam-
bém limitada. A conquista espanhola garantiu reconhecimento legal e terras
comunais às comunidades indígenas, sob controle da burocracia real, pro-
curando simultaneamente manter rigido controle sobre os colonos conguis-
tadores, ainda que com pouco êxito. A hacienda, a grande propriedade cujos
donos se tornaram de ficto detentores do poder, desenvolveu-se assim, lado
a lado com as comunidades camponesas, sendo sua expansão territorial le-
galmente limitada pelos direitos tanto da coroa quanto dos índios — limites
legais que não foram inteiramente abolidos no período da independência,
embora se tenham tornado praticamente inoperantes. Em conseguência, sua
expansão teve lugar em grande medida por apropriações juridicamente não
confirmadas, sobretudo no final do século XIX e no século Xx, quando gran-
E ERIC HOBSBAWM

des extensões de terra, antes sem muito valor económico, tornaram-se ao


mesmo tempo potencialmente rentáveis e acessíveis aos mercados. A grande
Incienda típica da América Latina baseia-se, pois, não num título de pro-
pricdade legal (graças a uma “ei nova” em oposição a uma “lei antiga”),
mas simplesmente no fato de que o poder do grande proprietário de terras.
era maior do que o poder do Estado, quando não coincidiam ambos numa
só pessoa. Um velho advogado « ex-político do altiplano central do Peru
chegou ao ponto de afirmar que a reforma agrária fora desnecessária, uma
vez que para garantir uma redistribuição efetiva da terra bastaria exigir aos
proprictários de terra — tudos os proprietários — que mostrassem o título
de suas propricdades: é que depois devolvessem a terra de que estivessem de
posse sem um bom título aos camponeses, de quem haviam sido original-
mente tomadas./* Arroubos forenses não devem ser levados demasiado a
sério, mas este apóia-se numa boa base de verdade.
Assim, na Colômbia, em consegiência de uma agitação rural, os ríru-
los dos três latifúndios pertencentes a J, Otero Torres, que se estendiam por
algo como 300 mil hectares, foram investigados oficialmente. O título ori-
ginal da propriedade, de 1823, referia-se a 426 hectares.” No altiplano central
do Peru, em 1887, à Hacienda Tucle detinha título de uns 12 mil hectares,
embora mesmo isso não fosse indiscurível. Mas de alguma forma, em 1915,
ela se tornara dona de 103 mil hectares.'” Como? Alguns exemplos podem
ilustrar a desfaçatez do procedimento. Em 1870, o Estado levou a leilão
terras desocupadas no pampa de Chimbote (Peru), parte das quais perrenciam
a uma comunidade. Sobre essas terras sc estabelecera a Hacienda Tambo
Real “que não deixou de se expandir um só dia à custa da terra comunal”, á
Em 1926, a Hacienda Tucle adquiriu da Igreja a propriedade do Rio de la
Virgen (reivindicada integralmente por uma comunidade vizinha), cuja posse
desde tempo imemorial a paróquia de Hancavo rcivindicava. Infelizmente, a
Tereja admitia que. no correr do tempo imemorial, todos os títulos verda-
deiros se haviam perdido. Além disso, a Igreja não havia feito um levan-
tamento da área que estava vendendo e, por isso, não sabia quais eram de
fato suas dimensões, nem quais cram suas divisas.! Como os proprictários
que assim adquiriam propriedade roubada faziam-no de forma legalmente
correta, esperavam, e em geral conseguiam, a proteção dos tribunais; c se ao
tim de tudo não possuíam titulo algum, sua capacidade de intimidar os
indios e sua influência política sobre os juízes e os policiais locais era nor-
malmente o quanto bastava para se resguardarem de contestações.
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 7

É claro que isso é uma supersimplificação de uma situação complexa.


As haciendas podem possuir títulos legais relativos à enormes territórios,
mas na verdade só sc utilizam de pequena parte deles, abandonando o resto
para ninguém, ou para a ocupação de facro dos camponeses — os quais,
naturalmente, hão de supor que trabalhar de fato a terra lhes dá o direito de
posse ou propriedade, em todo caso mais direito do que aos proprictários
rurais inativos. As comunidades podem reforçar sua reivindicação moral da
terra forjando ou ampliando títulos antigos. Alm disso, como veremos, as
reivindicações legais de terra em conflito colocam não só camponeses contra
baciendas, mas também comunidades contra outras comunidades, sobrerado
quando — como aconteceu no decorrer do tempo — grupos de camponeses
abandonam o povoado original para estabelecer-se em outro lugar no terri-
túrio comunal (normalmente, no Peru, pelo deslocamento para outro nicho
ecológico mais acima ou mais abaixo nas encostas dos Andes, os quais se
estendem desde a tundra, no alto, até o subtrópico « trópico, na parte baixa).
Procuram então formar comunidades separadas cultivando suas próprias terras
comunais, cujas divisas estavam em litígio com o povoamento-mãe.
Não obstante, a América Latina em geral c as áreas de sólido po-
voamento indígena em particular proporcionam um número invulgarmente
grande de comunidades camponesas com documentos legais de propriedade
comunal de terras, alicnadas por roubo não confirmado legalmente, ou mal
disfarçado. Desse ponto de vista, o problema de legitimar os direitos dos
camponeses é, em teoria, extraordinariamente simples. Por outro lado, é
muito frequente que a demanda pela terra, ainda que objetivamente revolu-
cionária, não requeira qualquer contestação ideológica da legalidade existente.

Big

Vejamos agora algumas invasões reais de terras, Uma invasão de terras


é normalmente uma questão bastante padronizada, decidida e levada a cabo
por toda a comunidade como entidade coletiva, Isso significa que de modo
geral é discutida com antecedência. Assim, na região de Cuzco, essas in-
vasões, em sua maioria, “são anunciadas de antemão”, muitas vezes com
pormenores. Antes das invasões, “os camponeses faziam reuniões que se
realizavam na língua quichua”.º Portanto, à intenção de invadir é normal-
mente conhecida dos proprictários rurais c das autoridades, que tém con-
248 ERIC HOBSBAWM

dlições de romar medidas defensivas se podem enviar a polícia, os soldados


ou os homens armados do proprietário para a divisa em lirígio. a qual,
naturalmente, é possível que seja bastante remota e inacessível.” Os organi-
zadores de Cuzco nas invasões de 1960 a 1964, com sofisticada política,
utilizavam-se disso para um jogo de gato e raro, fizendo com que as limi-
tadas forças das autoridades se deslocassem de uma a outra ncienda ameaçada
na zona do Pampa de Anta, em geral afastada; mas isso não é característico das
invasões tradicionais oriundas da base, cujo pensamento estratégico e tático
é menos complexo.
A invasão propriamente dita é uma ocasião cerimonial importante, Tais
eventos “tém lugar em meio a grande alarido. Os líderes aparecem a cavalo
tocando corneras” (Cuzco, 1964), “ao som de cometas é tambores” (Cuzco),
“com acompanhamento de hurras e cornetas” (Anta, Cuzco), “cantando e
dançando ao som de músicas regionais” (Paruro, Cuzco), “tocando cornetas
é soltando foguetes” (Potaca, Junin)2: Nos últimos anos, parecem cer sido
acompanhadas por grande número de bandeiras. De fato, a ausência de
bandeiras normalmente indica que a invasão não está a pleno vapor: “De-
talhe significativo: numa invasão há muitas bandeiras, mas essa rurba [um
reconhecimento?) tinha apenas uma”.2? As bandeiras peruanas eram univer-
sais na década de 1960, mas no departamento de Cuzco, politicamente radi-
calizado, elas eram acompanhadas de slogans castristas — *lerra o Muerte”,
“Venceremos” etc. Nesse período, raramente se mencionam bandeiras ver-
melhas, embora haja registro de uma invasão com bandeiras vermelhas durante
a primeira fase de agitação agrária politicamente consciente, em 1930-2.3 A
bandeira nacional tornou-se, sem dúvida, um símbolo das ambições agrá-
rias: no departamento de Piura, ao Norte, “muitos camponeses da região
estão confeccionando bandeiras peruanas para fins de invasão”. Em Junin
(Yantac, Qero, San Pedro de Cajas), Mocquegua (Mauca Llacta), Cuzco
(Chumbivilcas), Ancash (Recuay) e noutros lugares, registrou-se especifi-
camente que usavam as cores vermelha-e-branca.?* Não há testemunhos dessa
prática mas invasões do período 1946-8 ou antes, pelo menos no altiplano
central, Como em todos os grandes cerimoniais coletivos, não é de rodo
improvável que muitas vezes os participantes estejam um pouco bébados,
apesar de as testemunhas — provindas esmagadoramente dos proprietários
rurais ou de funcionários do governo — tenderem a dar demasiada ênfase à
isso.
ÁRIAS E

A mobilização para uma invasão normalmente tem lugar à noite, e a


operação conereca, conforme princípios militares ortodoxos, ao amanhecer.
embora isso não seja invariável. Uma massa mais ou menos grande de ho-
mens, mulheres e crianças — em múmero de centenas, ou mesmo milhares
= acompanhados de animais de criação, implementos e materiais de cons-
trução, ocupa o território em litígio, derrubando cercas, muros é outros
marcos de divisa, e imediatamente passam a erguer cabanas simples ou ou-
tras estraruras, geralmente ao longo da linha de divisa reivindicada como
legítima. As famílias ali sc instalam, sem demora, começam a pastorcar seus
rebanhos (quando necessário expulsando os animais dos proprietários ru-
fais), e a arar e semear a terra. Em alguns casos, age-se com mais prudên-
cia, entrando primeiro um grupo de reconhecimento que, se não houver
sinal de oposição maciça, é seguido da ocupação em massa, Assinale-se de
passagem que (pelo menos no Peru) este fenômeno característico dos túlti-
mos anos, à invasão de terras urbanas (ou ocupação em massa) procede em
linhas gerais de maneira exatamente similar. Um grupo de famílias invade
um lote de terreno baldio, constroem de imediato com a ajuda dos vizinhos
um conjunto de pequenos barracos — geralmente uma estrutura rudimen-
tar com paredes e tero de cstciras de palha — onde sc alojam preliminar-
mente à construção de residências mais permanentes, desafiando as autori-
dades à expulsá-los. Como em diversos outros aspectos. favelas desse tipo
constituem adaptações urbanas dos modos de vida comunais da aldeia 2“
Deve-se, porém, assinalar uma importante distinção entre a clássica
invasão comunal de terras é as ocupações de terra organizadas por mo-
vimentos políticos mais modernos. A estratégia e a tática das ocupações
modernas, quer de terra, quer de locais de trabalho (sir-ins ou worik-ins), são
encaradas pelos participantes como manifestações ou meios de exercer pres-
são sobre as autoridades, ou seja, como um meio para atingir à um fim.
Assim — tomando o exemplo de um movimento camponés organizado —
o movimento liderado por Jacinto López no estado de Sinaloa (México), na
década de 1950, utilizava à invasão de terras desse modo restrito. O con-
gresso camponês de 1.os Mochis, Sinaloa, em 1957, ameaçou com invasões
caso não fossem logo cumpridas as promessas de oferecer uma solução legal
para Os problemas dos requerentes. Como mada aconteceu, as ocupações de
terra tiveram lugar em início de 1958, mas a invasão dos 20 mil hectares de
terra irrigada por 3 mil camponeses foi simbólica. “Nas partes cultivadas,
ela consistia em fincar a bandeira nacional no mcio daquelas terras, en-
250 ERIC HORSRAWM

quanto o grosso dos camponeses ficava em pé ou sentado nas estradas ao


longo daqueles campos... Quando chegaram unidades do exército para dis-
solver as ocupações, os camponeses, que estavam desarmados de propósito,
saíram pacificamente”.27 As ocupações maciças de terra organizadas na pri-
mavera de 1971 pela Asociación de Usuarios da Colômbia também foram
deliberadamente ctêmeras. Em suma, a menos que scja parte de uma ver-
dadeira revolução ou insurreição agrária. a ocupação de terras nos moder-
nos movimentos camponeses politicamente organizados é um incidente nu-
ma campanha à longo prazo. Mas para o movimento comunal clássico, ela é
a campanha, a batalha e, com sorte, à vitória final. Ela não é meio, mas o
próprio fim. No que diz respeito aos invasores, tudo estaria bem se os pro-
prietários rurais, o Estado ou outras forças externas se retirassem c deixassem à
comunidade viver e trabalhar na terra que agora haviam com justiça recu-
perado. Realistas que são, os camponeses podem saber que isso é impro-
vável, embora (como veremos) tendam a realizar as invasões de terra apenas
quando a situação parece favorável. Contudo, mesmo que sejam expulsos
novamente pelo senhor ou pelo governo, terão pelo menos reafirmado seu
direito à posse pelo trabalho e sua capacidade de trabalhar a terra que rei
vindicam como sua — ponto este importante, uma vez que sua capacidade
de fazê-lo pode ser contestada.” Mas o objeto da operação não é tático, É
tomar a terra de volta e aí permanecer.
Já terá sido observado que à invasão de terra clássica não é especifi-
camenre peruana, nem indígena. Há de faro grande número de equivalentes
perfeitos em outras partes da América Latina. No Chile, rodas as invasões de
terra (romas de fundos) por pequenos agricultores até 1968 cram recupe-
rações, pelos índios Mapuche, de terras comuns alienadas.: Contudo, em
outras partes clas foram realizadas por camponeses não-índios, como na
Venezuela, onde houve cerca de 500 casos de invasões de terras expropriá-
veis no início do processo de reforma agrária, no final da década de 1950 e
começo da de 1960. As terras invadidas eram frequentemente aquelas que
haviam sido anteriormente tomadas dos camponeses. 2º Mas também se en-
contram símiles curopeus. Os camponeses calabreses puseram-se em marcha
em 1848 para ocupar terras, com bandeiras e bandas.º! Os camponeses de
Salemo do século xx efetuaram à conhecida associação entre reivindicações
de terra, garantidas pelo que consideravam serem títulos legais válidos, e
invasões de terra “conduzidas por massas de pessoas de maneira absolu-
tamente ordeira. “Carregavam bandeiras, iam de casa em casa para mobilizar
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 21

todas as pessoas e reuniam-se ao som de cornetas, avançando sobre as terras


a serem ocupadas! quando à aurora começava à iluminar o topo dos mon-
tes”? Bandeiras, tambores e cornetas constituíam o acompanhamento ceri-
monial habirual das invasões de 1848. Como assinalou com sagacidade um
observador, os trabalhadores sem terra “abandonavam scus barracos e ca-
banas assim que osriam O som selvagem da tofr que, nos tempos de paz, era
à música que alegrava a labuca no campo e acompanhava as alegrias da
colheita da uva, mas que, em 1848, tornara-se o chamado para a união « a
revolta?** As ocupações de terra na Itália após a Primeira Grande Guerra,
em grande medida independentes da organização socialista, continuaram
segundo as antigas orientações. Assim, o movimento no Lácio, que deu
início a uma onda nacional de invasões de terra em 1919, proclamava “de-
fender à terra para aqueles que reivindicam dircitos legais contra os usur-
padores”. O Oserratore Romano descreveu as invasões simultâneas em 40
municipalidades da seguinte maneira: “Ao amanhecer . caravanas impro-
visadas de camponeses, ao som de música com bandeiras, marchavam
sobre os latifúndios da região € proclamavam sua ocupação, assinalando
com marcos especiais as divisas das áreas que ocupavam”. E as grandes.
ocupações de terra de março de 1936 na Espanha, que se seguiram à vitória
da Frente Popular, começaram como recuperação de terras perdidas e, a
propósiro, também foram desencadeadas ao amanhecer, como se poderia
esperar3º Esses exemplos dispersos são suficientes para mostrar ao menos
que se pode encontrar algo muito parecido com a clássica invasão de terras
comunais em circunstâncias muito diferentes das dos altiplanos peruanos
Elas não pertencem à história dos índios peruanos ou da América Latina,
mas à história das comunidades camponesas

ni

Para compreender a maturtza dessas invasões « o papel que desempenham


na ação camponesa, será conveniente acompanhar um desses movimentos
através de pelo menos algunas de suas ramificações: O da comunidade de
Huasicancha, pequeno povoado indígena, predominantemente pastoril, do
altiplano central do Peru, situado próximo do ponto em que se encontram
os departamentos de Junin, Lima e Huancavelica. Por felicidade, temos con-
dições de recuperar a luta dessa comunidade por uma determinada área de
252 ERIC HOBSRAWM

pastagens desde o século xvI, exemplo auspiciosamente raro de documen-


tação continuada.é Sendo os dados estatísticos do Peru como são, tudo o
que podemos realmente dizer a respeito de Huasicancha, apesar do grande
número de censos e de outros inquéritos nominalmente quanticativos, é
que, em 1930, tornou-se grande ou perceprível o bastante para se constiruir
como “distrito” — a menor unidade administrativa do Peru rural — que se
compunha de não mais do que algumas centenas de almas no século pas-
sado é que parece te, e provavelmente ter tido, uma quantidade relaciva-
mente grande de criação. Em 1970, entre 32 comunidades, estava classifi-
cada em quinto lugar na criação em geral é na criação de carneiros, e em
segundo lugar na criação de bovinos.
Em algum lugar da alta una — a uma altirude de 4.000 metros ou
mais — Huasicancha sempre possuíra grande extensão de pastagens comu
nais “pertencentes ao rei inca”. Estas, aparentemente, foram usurpadas por
um certo Juan Iparraguirre, contra o qual a comunidade conseguiu no ano
de 1607 um expediente de uma autoridade, descrita por seus representante:
na década de 1960 como “o vice-rei da República residente em Lima”,
segundo o qual podemos inferir que-o litígio começara algumas décadas
antes, As divisas daquele trecho de terreno são definidas nesse documento e
continuaram a ser as que a comunidade reivindicava na década de 1960,
sendo conferidas naquela data por um juiz de inspeção, mediante inspeção
ocular, toponímia e outros métodos adequados. O litígio, que se arrastou ao
longo dos séculos, instalou-se como um conflito com a Hacienda “lucle, à
qual parece ter-se formado pelos fins do século xv1 e se expandido no correr
dos séculos para uma enorme fazenda de pecuária. Como a maioria das
bnciendas desse tipo, a Tucle vivia em relação de conflito « simbiose com as
comunidades que a rodeavam, cujas terras ela havia tomado?” e cujos mem-
bros à supriam de mão-de-obra. A situação típica do altiplano nessa parte
do Peru era aquela em que um bloco de haciendas cra circundado por co-
munidades de pouco vulto. Na década de 1960, à Tucle formava um bloco
desse tipo com Laíve e Antapongo, cada uma delas, apesar das rivalidades,
procurando harmonizar suas políticas relativas ao campesinato, havendo as
duas primeiras absorvido outras haciendas (Rio de la Virgen e Ingahuasi,
respectivamente). Essas haciendas faziam limite com 3 comunidades, três
das quais tinham divisa com mais de uma das haciendas. Por sua vez, as
comunidades, apesar das rivalidades entre si, tinham algum interesse em
harmonizar sua estratégia relativamente às grandes propriedades.
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS ass

Durante o período colonial, Huasicancha conseguiu julgamentos con-


tra a 'lele nos séculos XVII é XVI, presumivelmente com pequeno resul-
tado prático. A república pôs fim à legislação protetora da colônia €, até
1920, ao reconhecimento das comunidades indígenas como tais, mas não à
determinação de Huasicancha de reivindicar suas pastagens. A guerra do
Incífico (1879-1884) proporcionou à comunidade de Huasicancha sua opor-
tunidade, Nessa época, a Tucle era propriedade de uma temível dama, Ber-
narda Piélago, cujo testamento, datado de 1887, observa um pouco amar-
gamente que a hncienda havia sido reduzida a 3 mil carneiros, uma vez que
40 mil ou mais haviam sido levados naquele ano pelos pueblos vizinhos a
pretexto da guerra nacional, “Por essa usurpação e roubo, dei início a um
processo legal perante o governo supremo”. O que acontecera é que na-
quela parte do Peru, como alhures, os índios haviam sido armados como
guerrilheiros contra os vitoriosos chilenos, e imediatamente haviam entrado
na única guerra que fazia sentido para cles: ocupar suas terras alicnadas, O
professor Henri Favre informou-me que o líder dessa montonera ou bando
armado local era um homem de Iuasicancha, que acabou caindo numa
emboscada sendo morto. A lenda do lugar, à sua costumeira mancira
sincrética, confunde-o com o grande índio rebelde Tupac Amaru c afirma
que ele foi levado c esquartejado em Huancayo.
Huasicancha parece ter logo perdido novamente suas terras. Nenhum
período foi menos favorável às comunidades indígenas do que as décadas
civilistas posteriores à de 1880, embora a comunidade procurasse mais de
uma vez confirmar alguns de seus direitos, cm 1889 e em 1902, De 1919
em diante, porém, a situação tornou-se um pouco mais favorável. A era do
presidente Leguía (1919:30) melhorou a situação dos índios, pelo menos
teoricamente, tanto por proporcionar o reconhecimento legal às comuni-
dades, como, talvez mais ainda, estabelecendo um Departamento de Assun-
tos Nativos. Daí para a frente, os proprietários de terra tenderam a colocar a
culpa pelos distúrbios, não tanto na natural obstinação dos índios, nem
mesmo nas maquinações dos tinterillos — advogados provinciais que, qual-
quer que fosse sua posição política, dificilmente poderiam deixar de com-
petir por essa mina potencialmente tão lucrativa como um litígio de terras
camponesas (inclusive, é claro, as comunais) — quanto sobretudo no estí-
mulo dado aos camponeses pelo Departamento de Assuntos Nativos, A
acusação não era nada justa. Porém, devido ao surgimento simultâneo de
agitação política que chegava ao interior, primeiro pelos indigenistas filan-
po ERIC HOBSSAWM

trópicos,” depois, pelos mais temíveis movimentos políticos do Partido Co-


munista Peruano (1930) e sobretudo da APRA (Alianza Popular Revolu-
cionaria Americana, oficialmente fundada em 1924), 0 Assuntos Nativos
dificilmente teria estado em relação pior com os grandes proprictários de
terras (supondo que estes estavam politicamente à “direita”) do que outros
setores do serviço público peruano. Há reclamações de agitação comunista e
relatórios (quase certamente errôneos) de uma manifestação de três comu-
itidades com bandeiras vermelhas em 1931, sendo o chefe de uma delas
acusado de fizer “discursos abertamente comunistas”. Mas, se havia uma pre-
sença comunista nessa região, ela era evidentemente muito mais vaga do
que a da APRA, pois este partido — cujo secretário-geral subsequente, sr
Ramiro Prialé, era oriundo de Huancavo — estabeleceu forte base no alti-
plano central. E a disposição do campesinato foi, por sua vez, afetada não
só pela maior abertura das comunicações, fortalecida pelas políicas moderni-
zantes de T.eguía, mas também pelos desenvolvimentos econômicos.
Uma vez que ainda não se fez uma pesquisa adequada acerca dess s
desenvolvimentos, eles só podem ser esboçados de modo provisório c es-
ploratório. Ao que parece, dois foram principais. Nas pastagens do alti-
plano, a expansão do mercado para a lã (e a carne, para finalidades mais
locais) favoreceu o estabelecimento de uma grande economia de fazendas,
tanto pela expansão das antigas, quanto pela formação de novas haciendas
(tais como o complexo da Sociedad Ganadera del Centro, formada origi-
nariamente em 1910). Ao mesmo tempo, é provável que tenha introduzido
uma economia de vendas a dinheiro para o mercado nas comunidades de
criação de animais do altiplano, a qual suplementou ou substituiu o es-
cambo com as comunidades nas diferentes zonas climático-ecológicas mais
abaixo nas encostas. Enquanto isso, no amplo vale de Mantaro (onde, a
propósito, o comércio ao longo das novas ferrovias rodovias substituíram
o antigo sistema “vertical” de trocas), entrou em decadência a antiga cco-
momia de safras místas dos proprietários de terra não-índios, e parece haver
ocorrido, nas décadas de 1920 e 1930, um processo bastante substancial de
venda por cles (c também pela Igreja) — principalmente aos alde s in-
dígenas mais ricos. Desenvolveu-se assim uma crescente polarização entre,
de um lado, os latifúndios do planalto e, de outro, a economia camponesa e
os minifúndios do vale, com as comunidades do planalto ocupando uma
posição delicada entre eles. A queda do preço da lá no pós-guerra (1921) e
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS

a crise mundial alguns anos depois tornaram ainda mais delicada essa po-
sição da zona de criação.
Nessa época, Huasicancha, muito reduzida, parece ter sido menos mi-
litante na questão de suas pastagens perdidas do que uma ou duas outras
comunidades, notadamente Yanacancha « Chongos Bajo — cuja sucessora,
Chongos Alto, iria constituir com Huasicancha uma aliança ofensiva em
1945, À siruação de Yanacancha cra complexa.*! Essa comunidade do alto
da montanha, que se tornou independente de Ahuac em 1928, estava rão
preocupada com a ameaça de Ahuac quanto com as pastagens disputadas
com a hnciendo; e, na verdade, tunbém estava disposta a aceitar temporaria-
mente 6 apoio de Laive contra à comunidade rival, à qual, por sua vez,
pressionava Yanacancha à levar avante as reivindicações das várias comuni-
dades contra a grande propricdade. Sua militância cra, pois, relutante, c cla
preferiu (com a boa-vontade da Ganadera del Centro, cuja diplomacia para
com as comunidades foi sempre inteligente c sofisticada) fazer um acordo
de compromisso, em consegiência do qual seu líder passou por dificul-
dades, como veremos adiante, Chongos era menos dócil. Foi o povo dessa
comunidade “que tomou posse de uma grande área de pastagem” perten-
cente à Hacienda Laive, na década de 1920. (“A Sociedade impediu-os ener-
gicamente de usurpar mais terras, « ofereceu-se para negociar um acordo de
divisas”. 2) Ambas continuaram a preocupar as grandes propriedades até os
primeiros anos da década de 1930, por sua relutância em assinar acordos,
apesar de considerável pressão.*3 Chongos parece ter continuado a ser a
comunidade mais inilitante durante o resto da década. Porém, por volta da
metade da década de 1930, as comunidades da área — um pouco depois do
que ocorreu com as do outro lado do vale do rio Mantaro — despertaram
para as possíveis vantagens de se registrarem oficialmente como “comuni-
dades reconhecidas”, e neste caso, Huasicancha, talvez por sua longa cx
periência em litígios, parece ter sido mais rápida do que a maioria delas,
registrando-se em 1936, logo seguida de Chongos, em 1937. Entre 1935
é 1939, dezesseis das 25 comunidades reconhecidas adquiriram seu novo
stars legal.
A decisão de adquirir o reconhecimento legal marca cvidentemente
uma etapa no desenvolvimento da consciência política comunal, sendo que
as regiões mais adiantadas do Norte e do Centro do Peru foram em geral
mais rápidas em fazê-lo do que as do Sul. No altiplano central, os anos
entre 1935 e 1945 constituem claramente a fase crucial desse processo. O
256 ERIC TORSBAWM

reconhecimento afetou a agitação comunal de trés manciras. Atribuía uma


posição mais formal aos funcionários eleitos pela comunidade de facto — até
1963, a comunidad indígena cra a única unidade oficial administrativa de
governo em que a cleição local dos funcionários cra sancionada e permi-
tidafs — porém, o que é mais importante, implicava também a formulação
de reivindicações específicas da comunidade de seu parrimônio coletivo e,
portanto, sua definição. Assim, o pedido de registro fregientemente se ori-
ginava de reivindicações de terra comunal. Em casos extremos, podia signi-
ficar uma declaração de independência de um coletivo de camponeses contra as
grandes propriedades ou, conforme o caso, contra comunidades maiores de
que fossem consideradas meramente anexos, Finalmente, O processo de re-
gistro era complexo e dispendioso e, por isso, ajudava a organização política
da comunidade, uma vez que precisava tanto da formação de um quadro de
líderes ativos (extraídos dentre os comuneros residentes e emigrantes) quanto
de um mecanismo de levantamento de recursos.
Luasicancha, sempre rápida em usar a lei para o que fosse vantajoso,
por muito pouco passara à frente da Hacienda “Tucle para registrar seus
títulos mais indiscutíveis nos Registros Públicos no início do novo período
(20 de novembro de 1919). Tão logo foi “reconhecida”, começou o proces-
so de reclamar formalmente toda à sua herança perdida, exigindo algo que
importava em metade da Tucle, todo o Rio de la Virgen, grande parte de
Antapongo, possivelmente até alguma coisa de Laive, bem como o povoado
icasero) de Palaco e parte de Chongos Alto, projeto esse descrito pelo corres-
pondente de Lave como “sem fundamento e absurdo”, mas que 0 Assun-
tos Nativos levou suficientemente a sério para, pouco tempo depois, c
de que se firmasse um acordo privado de divisas entre Huasicancha e Palaco.*
Se em algum momento a reivindicação contra as grandes propricdades vies-
se a se tornar mais do que acadêmica, as consegjiências seriam dramáticas.
Foi O que aconteceu, nos anos de 1945 à 1948, quando um governo
reformista comandado pelo presidente Bustamante assumiu o poder com o
apoio da APRA, À vida camponesa é um drama levado à cena sobre um
palco puramente local ou regional, uma pequena árca iluminada atrás da
qual tudo parece escuro e desconhecido. Mas à experiência peruana demonstra,
ca experiência em outros lugares o confirma, que apesar de os camponeses
não possuírem muito conhecimento concreto a respeito do quadro mais
geral que circunda seus pequenos mundos, tém no entanto consciência mui-
to clara das mudanças naquele quadro mais geral que parecem afetar sua
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS

indestrusibilidade. Se à estrutura de poder é firme « fechada, eles se retiram


para sua posição habitual de espera. Se começa a se abrir ou à se abalar, pre-
param-se para a açã o. Foi o que sucedeu entre 1945 é 1948, até que à vitória
da ditadura militar sob o comando do general Odria (1948-56) mais uma vez
fez cair sobre o campo, durante alguns anos, o costumeiro peso da força
repressiva. Não para sempre, porém. O grande despertar rural de 1945-48 —
não menos importante pelo faro de quase não ter sido registrado pelos histo-
riadorest — simplesmente foi interrompido pela ditadura e recomeçou al-
guns anos depois, produzindo a onda ainda maior de invasões de terra do
início da década de 1960
Irês coisas caracterizaram o novo período, que iria comprovar o co-
meço do tim do regime latifundiário no altiplano central. Em primeiro lu-
gar, por essa época o processo de migração em massa para as cidades -
função ao mesmo tempo da pressão demográfica c da modernização — se
tornara visível. Em 1963, a Sociedad Ganadera del Centro assinalou num
memorando que “a intranquilidade nesta zona deve-se sobrerado à pressão
demográfica”? Ao mesmo tempo, já haviam surgido comunidades de co-
muneros migrantes em Lima com núclcos organizados, know-how político é.
sobretudo, dinheiro disponível. Parece ter sido entre esses exilados, grupo
notoriamente empreendedor e bem-sucedido, que se arrecadou o dinheiro
para à reivindicação legal de Huasicancha*º
Em segundo lugar, agora se dispunha tanto de ativistas políticos quan-
to de apoio político. O militante mais eminente de Huasicancha era Elias
Tacunan Cahuana (um indivíduo da família Cahuana aparece como persone-
ra, ou porta-voz legal da comunidade em 1940 e de novo em 1967), mem-
bro da APRA a partir de 1930, mais tarde sindicalista nas minas, e, depois de
1958, fundador e dirigente da poderosa Fedecoj (Federación Departamental
de Comunidades de Junin), por ele construída cm 1958, tendo como bases, no
início, Huasicancha, Chongos e mais algumas comunidades vizinhas! É
significativo que, depois que Tacunan e seu movimento romperam com a
APRA, cm 1959, decopcionados com sua traição ao movimento camponés,
fundando um mal-sucedido “Partido Comunal”, o secretário da federação cam-
ponesa da APRA (FENCAP) fosse também um homem de I luasicancha — Elias
Yaurivilca —, confirmando assim a reputação de nossa comunidade como
uma sementeira de militância ativa.
ERIC HOBSSAWM

Os membros e políticos mais altos do “partido do povo” já eram de


faro acessíveis às tentações é aos argumentos dos homens do poder, como à
correspondência confidencial das grandes propricdades torna farramente evi-
dente. Já em outubro de 1945, o administrador de Laive assinalou que o
prefeito do departamento (da APRA) “é um perfeito cavalheiro e ofereceu
todo o apoio que estiver a seu alcance”, embora:
com tato característico, não tenha querido lidar com a situação dire-
camente, mas deixou que as comunidades acreditassem que o propósito
de sua visita era ouvir reclamações, indicar autoridades locais exe. En-
quanto isso, o dr. Campos [Alkalde Provincial de Huancayo, da APRA);
na qualidade de delegado político, promoveu reuniões indicando ao po-
xo a necessidade de manter à ordem para seu próprio bencfício, uma vez
que nem o governo, nem O Partido do Povo tolerariam qualquer mo-
vimento das comunidades em detrimento das haciendas 2
Da perspectiva dos ativistas comunais, O Partido do Povo ainda tinha
uma aparência de diferente. Acreditavam em sua retórica revolucionária e sa-
biam que a situação lhes cra favorável além de qualquer precedente recente
Parece que Chongos e Huasicancha, os dois centros ativistas, reuni-
ram-se mais ou menos por essa época para reivindicar terras — ou, nos
termos de um memorando confidencial, “para assaltar as haciendas de Tucle
€ Antapongo, tomá-las e forçar uma revisão de títulos agrários”, instigados,
não é preciso dizer, “por dois ou três agitadores apristas”.5º Eles estavam
agindo simplesmente baseados em pressupostos expressos no mesmo tempo
pelos camameras de Santa Rosa, que mandaram um comunicado à Hacienda
Laive, com a qual tinham um antigo litígio, dizendo que “agora com o
novo governo podemos fazer o que quisermos, e denunciamos os atuais
tratados com à Ganadera”** As grandes propricdades evitaram um con-
fronto em 1945, enquanto se preparavam para à resistência armada, mas
não escaparam dele no final de 1946. No dia de Natal daquele ano, uma
mulridão de homens, mulheres c crianças de Huasicancha, com todos os
scus animais, invadiram Tucle, destruíram os muros de divisa e recusaram-se
à abandonar parte da terra. Togo a seguir veio o resto das comunidades, até
que à 23 de janeiro inúmeros camponeses foram massacrados pelo 43º Ba-
talhão de Infantaria, após o que as invasões amainaram.
Huasicancha que casualmente parece ter escapado ao massacre medi-
ante uma retirada a tempo, ganhou grande parte do Pampa de Tucle com
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 259

essa invasão, pois os proprietários venderam-no à comunidade, bascados na


impressão equivocada de que, assim fazendo, ela desistiria de suas outras
reivindicações, o preço da venda consistindo na construção de um fosso
como divisa % “Tucle, como muitas vezes as grandes propriedades suas vizinhas
foram obrigadas a reconhecer, era algo deficiente em diplomacia, perspicácia
legal e boa administração, deficiências que a longo prazo não foram com-
pensadas pelo fato de O senior Pilago ser senador, com todo seu prestígio
de senador.
A ditadura do general Odría (1948-56) adiou a erapa seguinte da cam-
panha — as comunidades sabiam quando era prudente manter-se de cabeça
baixa —, mas quando à grande onda de inquietação agrária, iniciada no
final dos anos de 1950, atingiu 6 altiplano central em 1963, Huasicancha
estava novamente de prontidão. As invasões nessa área começaram no verão
daquele ano e chegaram ao climax no início de novembro, quando até mes-
mo à cautelosa Ganadera del Centro, que se vangloriava de sua imunidade
enquanto à sua volta toda os camponeses estavam adentrando, viu final-
mente seu elaborado conjunto de acordos de divisas negociadas entrar em
colapso sob o peso das incursões comunais.” Iluasicancha continuava à
preferir a lc e naquele més mais uma vez apresentou uma reivindicação
contra “Íucle, Quando, porém, à lei pareceu novamente falhar para eles, in-
vadiram cerca de 3 mil hectares com 4 mil animais, acabando por ocupar
uns 15 mil hectares. Desta vcz, o poder político das grandes propriedades,
já abalado, foi insuficiente para desalojá-los e, apesar de julgamentos con-
trários a eles, ali permaneceram até que a reforma agrária fosse declarada,
em 1969: Finalmente, em 1970, receberam do novo Tribunal Agrário um
julgamento favorável a suas históricas reivindicações“? Talvez valha a pena
aerescentar que, posteriormente, recusaram-se à ingressar nia gigantesca coope-
rativa agrária (SAIS Cahuide) que se constituiu das grandes propriedades de
Ganadera del Centro, Tucle e Antapongo c 29 comunidades adjacentes. De
faro, no verão de 1971, continuavam a invadir, desta vez as terras da nova
cooperativa
Vários pontos de interésse emergem dessa história de quatro séculos
de lura pelas pastagens de Huasicancha. Como é que uma comunidade de
analfabetos mantém a memória exata das terras que reivindicava, de mancira
tão precisa que a “inspeção visual” de 1963 confirmou em cada detalhe os
títulos de 16072 Pois, embora rivessem documentos, pela maior parte de
sua história dl evidentemente não eram capazes de os ler; na verdade, até
260 ERIC HOBSBAWM

mesmo os advogados brancos, cujo trabalho era esse, tiveram às vezes de


contratar paleógrafos para esse fim. Na década de 1960, uma testemunha
analfabeta da comunidade, um certo Julian Paucarchuco Samanicgo, de 59
anos, respondeu a essa pergunta dizendo que conhecia as divisas desde 1922,
porque “quando era menino, seu pai levou-o e lhe mostrou as divisas, « é
essa a razão por que cle as conhece”. É de sc presumir que, a cada geração,
desde o século XVI, os pais tinham desse mesmo modo levado seus filhos
até as altas pastagens para manter viva a memória das terras perdidas.
Em segundo lugar, é talvez mais importante, à saga de Huasicancha
mostra como é equivocado o estereótipo do indígena passivo e submisso,
Durante quatro séculos, Huasicancha, pequena, remota, isolada c teimosa,
jamais deixou de lutar por seus direiros. Não sendo nem os estudantes insur-
retos nem os liberais do Ocidente, os camponeses se eximiram inteiramente de
fazer uma opção em princípio entre métodos pacíficos e violentos, legais e
não-legais, força “fisica” « Smoral”, empregando uns ou outros à medida que a
oxasião parecia exigit. Mas jamais abandonaram svas reivindicações
Em terceiro lugar, é evidente que à crença em que o horizonte do
camponês está totalmente circunscrito por fatores locais é equivocada. Hua-
sicancha pode ter sabido pouca coisa de Lima e nada de Madri, Roma ou
Egito, mas era sensível o bastante a mudanças que, no mundo mais amplo,
parecessem abalar os fundamentos da estrutura de poder local. Não obs-
fante, o horizonte era local, na medida em que a unidade de sua ação cra à
comunidade, e seu cenário, o sistema interligado de grandes propriedades e
comunidades em seu setor do altiplano. Como vimos, eles se mobilizavam
politicamente em termos nacionais e produziam quadros para os mor
mentos nacionais. Contudo, parece que, para a comunidade, isso ou era
secundário em relação a suas próprias lutas, ou um subproduto de seu
desenvolvimento num dado contexto histórico. (Assim em Yanacancha que,
na década de 1920, antes que a APRA se tornasse importante, mobilizou os
vínculos políticos com a Asociación Pro-Indígena, de Leguía.) No gue se
refere a Huasicancha, à APRA veio e'se foi, mas não envolveu à comunidade
Sem dúvida, cles tinham orgulho de filhos seus, como Elias Tacunan, mas (a
não ser nos períodos em que as atividades dele centravam-se nos scus assun-
tos) a carreira dele c à luta da comunidade não eram a mesma coisa, A
ambição da comunidade não era tanto mudar O sistema quanto extrair o
melhor dele, quando ele fosse forte, e rechaçá-lo, quando parecia complacente.
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 261

Iv

Não obstante, a ação dos camponeses e à mudança política interagiam


de maneiras complexas. Quem organizava e liderava as invasões de terra?
Uma vez que era assunto da comunidade como um todo, devemos supor
que, na forma clássica, eram lideradas por seus líderes « dirigentes, cuja
liderança muito frequentemente (como na obshchina russa) exigia à capaci-
dade de identificar e expressar o consenso “do povo”, embora, inversamen-
te, a disposição do povo a escurar os homens de sabedoria « discernimento
ma comunidade era um clemento poderoso na formulação desse consenso.
Devemos recordar que a democracia comunal procede segundo “o sentido
da reunião” e não pelo voto da maioria. Mas, no período em que nossa
documentação é melhor, à decisão da comunidade era um assunto mais
complexo do que no exemplo descrito no prólogo do brilhante livro de
John Womack sobre Zapata.
Em primeiro lugar, a própria “comunidade” não pode scr sempre en-
carada como antiga « tradicional, Na maioria das vezes, cla cra nova em
dois sentidos: porque havia rompido com uma comunidade mais antiga.
por razões demográficas ou outras, e porque utilizava um dispositivo jur
dico específico que podia, cle próprio, ser uma novidade € que se mostrava
vantajoso — por exemplo, a partir da década de 1920, o procedimento do
“reconhecimento”! Não há dúvida de que os modos pelos quais os con-
juntos de novos colonos se organizavam e tomavam decisões coletivas eram
os modos tradicionais dos camponeses com a antiga experiência da ação
comunal, mas não se deve desprezar o clemento de novidade.
Em segundo lugar, cada comunidade peruana estava sendo transfor-
mada por um processo de diferenciação interna por classes c cada vez mais,
também, por aquilo que se pode chamar de diferenciação externa, ou seja, à
formação, na cidade ou cidades, de um grupo de migrantes (relativamente
mais prósperos), grupo esse do qual hoje em dia são fregiientemente esco-
lhidos os bomens cujas opiniões têm peso — também devido a seu suposto
knoy-lop político, Paradoxalmente, a emigração desse tipo de notável local,
cuja família utilizava para monopolizar os cargos da aldeia, pode deixar o
caminho da liderança política da aldcia aberto a outros, até mesmo a recém-
chegados.” O progresso irregular da educação também introduziu um novo
elemento na política da aldeia. Em suma, à modernização trouxe consigo
262 ERIC HOBSBAWM

maiores contatos com o mundo exterior, inicialmente para alguns, e cada


vez mais para muitos.
Bom exemplo disso é o caso de Yanacancha, já mencionado no curso
desta exposição. Ali, no início da década de 1920, quando a comunidade
estava empenhada em seu conflito duplo, com a comunidade-mãe de Ahuac
é com à Hacienda Laive, um dos conmuneros mais ticos convenceu um certo
Yauri a assumir a liderança da campanha, uma vez que este, embora de
família pobre, possuía alguma educação secundária (incompleta) e era pro-
fessor primário numa aldeia próxima, bem como possuía um irmão que já
vivia em Lima. Yauti (a quem se juntou um antigo colega de escola, um
certo Camayo) tornou-se de fato muito ativo na campanha, Isso 0 levou a
ter contato muito mais próximo com Lima, para onde teve que viajar com
frequência nos anos seguintes — tanto que, nos anos de 1930 e 1931,
estava ciente das agitações estudantis na Universidad de San Marcos. Seu
novo papel pode tê-lo ajudado também a casar-se numa família mais rica
(em 1931) e a desenvolver-se como intermediário e subempreiteiro na cons-
trução de estradas, suprimento de mão-de-obra etc., isto é, como membro
da nova burguesia da aldeia, que, possuindo quantidade considerável de
gado, obtinha um benefício desproporcional da extensão das terras comunais
Temos assim clementos diversos entre os ativistas. Há Os da classe
média comunal. Há aqueles que, segundo um relato hostil mas realista, “são
recrutados entre os elementos que detêm vínculos familiares e sociais com à
massa nativa, mas que, por circunstâncias independentes de sua vontade,
abandonaram a comunidade e sua atmosfera”. Com o tempo, há também
os imigrantes vindos de fora, que assumem um papcl político, notadamente
um estudante ou excestudante. Manuel Grijalba, líder do movimento na
Hacienda Tingo (Jauja, Departamento de Junin) associa todas essas carac-
serísticas: de origem camponesa, migrou para as minas de La Orova. econo-
mizou dinheiro, matriculou-se como estudante de medicina na Universidad
de San Marcos em Lima, não conseguiu se graduar (possivelmente por ser
ativo na APRA), e foi para a aldcia em 1945, onde ainda tinha amigos é à
seguir se casou, tornando-se ali fundador da escola local e líder político.**
Tanto à nova elite da aldeia quanto o corpo mais amplo e miscelânco
de homens de ligação entre à comunidade é o mundo exterior tém um
papel a desempenhar na nova estrurura da política da aldeia, Inicialmente, o
segundo grupo parece ter consistido de migrantes sazonais retornados ou
migrantes visitantes permanentes, de ex-recruras do exército, aparentemente
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 263

importantes nas áreas mais tradicionais é menos migratórias,“ e, no alti-


plano central, especialmente de mineiros, ocupação recrurada quase que ex-
clusivamente nas comunidades e que, paradoxalmente, prepara tanto ho-
mens com confiança e experiência de lutas opcrárias organizadas, quanto
membros potenciais da classe média rural, devido à possibilidade que ela dá
de acumular dinheiro. Finalmente, os muitos homens cujo próprio trabalho
na aldeia os mantém em contato regular com o mundo exterior, como por
exemplo os motoristas de caminhão é os empreiteiros de transportes. O
novo grupo da elite da aldcia provavelmente teve seu impacto inicial por
meio das comunidades de migrantes, que constituíam na cidade grandes
associações da cidade natal. Dentre os migrantes de Huasicancha, foram
estes que se tornaram os primeiros financiadores da campanha pela recu-
peração da terra. Mas também neste caso a siruação vai se tornando cada
vez mais complexa, “Temos casos de líderes locais, como Abel Quiroz de
Ovon (empresário de minas em pequena escala), que podem ter sido mi-
grantes « em todo O caso certamente não viviam regularmente na comuni-
dade, mas que “são apoiados por três ou quatro dos comueneros mais ricos”.
Havia um corpo cada vez maior de kaaks locais modernizadores, alfaberi-
zados, entusiastas da educação, que em geral ganhavam a vida cm empreen-
dimentos de transporte local ou algo semelhante, enquanto suas esposas se
dedicavam ao pequeno comércio, e (como em Pucará) “muito conscientes
de si mesmos como grupo”, mas mantendo boas relações com os comuneros
mais tradicionais. Os filhos deles viriam à ser csradantes maoístas na década
de 1960, voltando para casa nas férias com novas idéias políticas que, em
certas áreas como Ayacucho — mas não sabemos quantas —, aferaram a
política local
Obviamente, os movimentos políticos do país operavam mediante ho-
mens como esses, quer eles tivessem ou não cargos oficiais na comunidade:
e, inversamente, a modernização acarretou contaros mais estreitos com esses.
movimentos, Sua forma mais óbvia foi a ajuda oferecida pela organização
sindical c política nas cidades locais (como Cuzco) ou por intelecruais locais
politicamente comprometidos —— estudantes é advogados — quer por sua
própria iniciativa, quer pela dos camponeses, cônscios de que podiam dis-
por dessa ajuda. Conhece-se muito pouco sobre a micro-história política das
comunidades para generalizar; e até mesmo a disseminação mais pronta-
mente documentada de sindicatos camponeses e de federações de comuni-
dades, que durante algum tempo foram poderosos no altiplano central, só
264 ERIC HOBSBAWM.

se conhece de mancira bastante fragmentária. Contudo, é evidente que o


papel dos movimentos políticos — a APRA antes de sua transformação e
depois os diversos movimentos marxistas — é importante como mobi
zadores dos quadros locais, como catalisadores da atividade camponesa e,
talvez acima de tudo, como forças que transformavam agitações locais iso-
ladas cm um movimento mais amplo.
Menos óbvio, mas igualmente importante, é o colapso da crença na
permanência da estrutura de poder dominante, o que liberou os campone-
ses ativistas, que antes haviam optado por servir aos senhores, para novas
posições como líderes populares. Como assinalou um observador hostil em
1963 — e há evidências semelhantes para o período após 1945 — os novos
militantes eram frequentemente antigos “feitorcs das grandes propricdades
[mandones e caparaces] que ontem obedeciam ao hacendado c exploravam sua
própria raça”.É provável que suas conversões scjam verdadeiramente au-
tênticas. Os chefes comunais podem, em período de poder senhorial estável,
apoiar a hacienda, não só por serem subsidiados em segredo pelo senhor
(fato de que há bons indícios), mas também porque, quando não há outra
alternativa, o passo mais vantajoso para a comunidade pode bem ser aceitar
a ajuda modesta que a hacienda pode e está disposta a oferecer ao preço de
se manter atenuado o descontentamento do campesinato. Porém, quer as
antigas autoridades mudem ou não mudem scu modo de pensar, na nova
situação devem mudar suas ações. Assim, em 1931, trés comunidades ata-
caram a comunidade de Yanacancha, maltratando e fazendo prisioneiro seu
alalde, à quem acusavam — aparentemente com grande apoio local — de
ser um traidor que vendera terras de pastagens à grande propricdade7º Em
1945, o aleaide de Chongos Alto, um certo Orihucla, opós-se aos planos da
comunidade para uma invasão e por causa disso foi atacado, espancado é
destituído de seu posto”:
A típica invasão de terra dos anos mais recentes anos foi, por isso, um
assunto bastante complexo. Os representantes ofiçiais da comunidade esta-
vam quase sempre presentes, como tinham que estar; mas a seu lado, muito
fregiientemente, havia “instigadores” ou “agitadores” > Na aldeia, as novas
e velhas estruturas sociais « de poder se entrelaçam, os papéis se transtor-
mam. Esse caráter misto da liderança pode ser ilustrado por um dos raros
estudos detalhados sobre o ativismo nas aldcias. Em Marcantuna (Vale do
Mantaro), em meados da década de 1960, entre os catorze homens escolhi
dos como líderes comunais havia dois na casa dos vinte anos (um estudante
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 265

é um guarda-livros), um na casa dos erinta (agricultor « comerciante), qua-


tro pelos quarenta (empregado administrativo, agricultor é motorista de cami-
nhão, agricultor/trabalhador, agricultor), cinco na casa dos cingilenta (três
agricultores e artesãos, dois agricultores) e dois com mais de sessenta anos
fambos agricultores). Sete desses homens possuiam cducação primária com-
pleta ou incompleta: cinco, educação secundária parcial; é um, educação
superior, sendo desconhecida a situação educacional de um deles? Infe-
lizmente, não podemos confiar nas indicações sobre sua posição política.
uma vez que O noticiário dos jornais tende a apresentar todos os ativistas
uniformemente como bolcheviques.”*
v

Para finalizar, que luz as invasões lançam sobre a questão do revolu-


cionatismo camponês? Parece evidente que, objerivamente, um processo de
invasão de terras em massa pode ter conscgiências revolucionárias, inde-
pendentemente das intenções subjetivas dos invasores, isso caso a proporção
de terra usurpada das grandes propriedades scja suficientemente grande, e à
população das comunidades que recuperam suas antigas terras, suficiente-
mente numerosa. Algo assim ocorreu em grandes setores do Peru no início
da década de 1960. À narueza das estarísticas do Peru torna as cifras pouco
mais do que figuras de retórica, indicativas de ordens gerais de grandeza
Mas não parece improvável que, em 1961, houvesse (segundo o censo) algo
como 4.500 “comunidades parcializadas o avllus”, isto é, comunidades cam-
poncsas, das quais, em 1969, 2.327 haviam sido oficialmente “reconheci
das”, O total de seus membros em 1961 pode ter consistido de digamos
400 mil chefes de família, ou seja dois milhões de indivíduos de uma popu-
lação rural total, no altiplano peruano, de cerca de quatro milhões.* De
preferência, deve-se utilizar essas cifras, que são mais modestas, do que as
estimativas de entre 2,5 à 4 milhões do Relatório da CIDA! Em certas
árcas, tais como o altiplano central, o grosso da população rural é organi-
zado em comunidades. Assim o Vale do Mantaro, com cerca de 150 mil
habitantes em 1969, possuía 36 baciendas « 234 comunidades legalmente
reconhecidas, ou provavelmente algo em torno de 400 comunidades de facro.”
Dessas comunidades, pelo menos metade tem litígios a respeito de
divisas — cifra essa bascada numa séric de amostras e de levantamentos
266 ERIC HOBSBAWM

regionais! — e é grande a certeza de que essa cifra seja um mínimo abso-


luto. Assim, 73,3% das respostas ao questionário do Instituto Indigenista
Peruano relata a existência de “controvérsia” a respeito de divisas com pro-
prietários privados vizinhos.”? Para a área de fazendas de carneiros do alti-
plano central, de que nos temos ocupado, as cifras são ainda mais conclusivas.
Das quinze comunidades que acabaram por se fundir com a divisão agrícola
da Corporação Cerro de Pasco para formar à Sáis (Sociedad Agrícola de
Interés Social, uma forma de cooperativa agrícola) Tupac Amaru T, não
menos de treze tinham reivindicações contra à fazenda em virtude de “posse
imemorial” (seis) ou títulos agrários coloniais (sete) º Temos registros de
23 comunidades que, num momento ou outro desde à década de 1920,
tiveram litígios de divisas com a Hacienda Laive, e de apenas uma que pode
não ter tido. E óbvio que, quando todas ou à maioria dessas comunidades.
teivindicassem simultancamente seus direitos, à estrutura do sistema lati-
fundiário local entraria em colapso de modo automático (a menos que fosse
restaurado pela força militar). Falando de maneira geral, foi o que aconte-
ceu no altiplano central na segunda metade de 1963. Humpty Dumpty caiu
de cima do muro: após 1963, ninguém mais conseguiu consertá-lo de novo
cas administrações das trés grandes propriedades — a Ganadera del Centro,
a División Ganadera da Companhia Cerro de Pasco, Algolan, Corpacancha
é as demais — estavam perfeitamente cônscias disso, Do mesmo modo, um
ano antes, a estrutura do sistema latifundiário nos vales de La Convención e
Lares havia entrado em colapso diante da recusa em massa — que acabou
sendo permanente — dos servos-arrendatários de prestar seus serviços de
mão-de-obra. Por essa época (por razões que nos levariam além do pro-
pósito deste arrigo) a força militar não foi empregada para restabelecer à
velha ordem.
Ao mesmo tempo, devemos nos perguntar se, subjerizamente, esse pro-
cesso importa em uma revolução camponesa. Isso é muito menos certo.
Falando em termos gerais, normalmente se consegue, em rebeliões primiti-
vas, distinguir os movimentos “revolucionários” e os “reformistas”, ainda
que não necessariamente pelo montante de violência utilizado em cada um
deles. O primeiro deles possui subjerivamente ambições muito maiores, ex-
pressas quer em termos milenaristas ou, talvez, na tentativa de restabelecer
alguma idade de ouro perdida no passado, ou seja, no Peru, o império inca.
Henri Favre distingue com perspicácia — a propósito dos maias do alri-
plano de Chiapas, no México — entre os dois tipos do que cle chama de
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 267

“rebelião” é “insurreição”: o primeiro, localizado « limitado em seus ob-


jetivos à restauração do equilíbrio habitual, temporariamente perturbado; o
último, uma tentativa de reestruturação total da situação colonial.8 O pri-
meiro não implica renovação ideológica. O último — pelo menos em Clia-
pas, como em 1712 e 1869 — “surge primeiro como uma reforma religiosa
que, a seguir, gradativamente, acarreta a completa reorganização das rela-
qões sociais, tanto internas como externas”.** Com certeza, não há razão
alguma por que, no século XX, esse tipo de inovação ideológica não devesse
assumir umia forma secular moderna. O ponto básico é a completa negação
da dominação da estrutura de classes (ou racial) dominante
Há movimentos camponeses que, com muita evidência, contestam não
só 6 abuso do domínio dos senhores, como também o fato mesmo desse
domínio, por exemplo as jacgueries sicilianas do século XIX, o movimento
camponês russo do início do século Xx, e talvez também do século xTX:
recordamos os camponeses da área de Karkov, que acreditavam que o czar
havia ordenado a divisão de todas as terras. Os senhores “podem conservar
para si um pedacinho de terra para alimentar suas famílias, mas não mais do
que isso”, embora às camponeses certamente os ajudassem caso não con-
seguissem eles próprios arar a terra. Ou os de Nadezhdino (Saratov) que
afirmavam que “a comuna não se opõe à que à senhor conserve sua man-
são, mas se pode conservar seu jardim precisa ser discurido”.* Por outro
lado, há pouca evidência a não ser casos de liderança comunista ou trotskista
conhecidos) de camponeses peruanos contestando o dominio dos senhores
como nal, por exemplo a propriedade de terras, embora houvesse uma reação
crescente e cfetiva contra à prestação de serviços de mão-de-obra. A tradi-
cional relação patrono-cliente entre os senhores que “se consideram prore-
tores dos índios a quem chamam de filhos (hijizos)” continua ainda válida
cm muitos lugares, estando os senhores provavelmente mais conscientes do que
os camponeses das mudanças iminentes.”” Os clássicos incêndios de mansões,
assassinaros de senhores etc. estão quase ausentes das agitações de 1958-64,
que são particularmente pacíficas, O que temos neste caso não é a tradi-
cional sublevaciór indígena em grande escala, mas uma afirmação espontânea
de direitos legais pela massa, estimulada por uma ideologia revolucionária
moderna, aliás antiga, mas aparentemente — exceto em algumas áreas —
não imbuída dela. Não há qualquer sinal de nenhuma conversão em massa à
alguma forma de comunismo, nem mesmo em Cuzco. O marxismo con-
tinuou a ser a ideologia dos quadros, ainda que cada vez mais dos quadros
268 ERIC HOBSBAWM

camponeses, do mesmo modo que era à APRA, em todo caso fora do “Norte
sólido”, onde aquele partido se estabeleceu como movimento de massa.'f
Como já foi assinalado, isso não é incompatível com fazer-se o que
importa numa revolução social, nem mesmo com uma sensação vaga, ainda
que crescente, de que os velhos tempos estão se aproximando do fim e
devem chegar ao fim. Em teoria, isso também não é incompatível com a
evolução desse tipo de movimentos camponeses para uma revolução cam-
poncsa consciente numa situação revolucionária em termos nacionais. Por
outro lado, deve-se assinalar que, cm mtas regiões da América Latina, o
próprio sistema de grandes propricdades é uma entidade Auruante. No de-
correr da história pós-colonial, baciendas se formaram, expandiram-se, frag-
mentaram-se e reformaram-se dependendo de mudanças políticas e da con-
juntura econômica. Provavelmente, as comunidades nunca se bencficiaram
dessas flutuações de maneira permanente, mas sua pressão constante, que se
tornava relativamente mais eficiente nos períodos de recessão para as gran-
des propriedades, não deve implicar a crença de que qualquer uma dessas
recessões marca a extinção final de todas as hnciendas, Em suma, devemos
ter em mente tanto a força quanto as limitações dos movimentos campone-
ses tradicionais.
Estes se tornam revoluções camponesas, quando O agregado dos “pe
quenos mundos” é posto em movimento simultaneamente, quase sempre
por algum evento ou desenvolvimento no “grande mundo”, sobre o qual os
camponeses não têm controle algum, mas que os póe em ação. (Não cabe,
aqui, discueir quais os fatores responsáveis por essa mobilização no Peru de
1958-64.) Tornam-se revoluções camponesas eficientes, ou quando unificados
e mobilizados por uma organização € liderança moderna, provavelmente
revolucionária, em número suficientemente grande de árcas cruciais no âm-
bito político, ou quando a estrutura e a crise nacionais são tais que mo-
vimentos camponeses regionais estrategicamente localizados podem desem-
penhar papel decisivo em seus assuntos. Foi o que aconteceu no México de
1910-20 com os nortistas de Pancho Villa, devido à sua mobilidade armada, e
com os seguidores de Zapata, o “galo do Sul”, em Morelos, por ser aquele
estado vizinho da capital. Nenhuma dessas coisas aconteceu no Peru, à não
ser levemente na década de 1880, quando Caceres — que buscava o apoio
dos índios que organizara em guerrilhas antichilenas durante a guerra do
Pacífico — fez marcharem seus homens do altiplano central para a capital,
mas dificilmente como líder revolucionário e certamente sem consegiiências
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 269

social-revolucionárias. NO inicio da década de 1960, as invasões de terra


foram de faro suficientemente avassaladoras no altiplano central c em Cuzco,
suficientemente graves em outras partes do altiplano, para ocasionar 6 co-
lapso do sistema de haciendas*? Porém, de maneira diferente da do prole-
tariado de Marx, a força espontânca do campesinato, embora capaz de matar o
sistema das grandes propriedades rurais, foi incapaz de cavar sua sepultura
Ela tornou inevitável a reforma agrária. Mas ainda foi preciso um golpe do
exército, depois de vários anos de vais-e-véns, para sepultar o cadáver das
baciendas do altiplano.

Notas
As principais fores unilizadas, além da imprensa e de número considerável de publi:
cações oficiais é semi-oficiais pertanas, são os documentos mantidos pela Zona X da
Refurma Agraria (Escritório de Luancayo) « pelo “Juzgado de Tierras”. Luancayo, «
os arquivos de diversas antigas propricdades, especialmente à antiga Sociodad Ganadera
del Centro, Sociedad Ganadera Tucle e Compantã Ganadera Antapongo. Todas essas
propriedades se localizam no altiplano central peruano.
2. La Prensa (Lima), 7 ago: 1963, Para istvasões aniteribres (1924-6), ver CDA, “In
“ventario de Ins Fondos de la Sociedad Ganadera Algolam”, 1/5. pp. 45-61
A. Aguilera Camacho, Derecho Agrario Colomibiana, Bogotá, 1962.
Prensa, 27 ago. 1963.
Foram noticiadas na imprensa de Lima, entre 1959 c 1966, 103 invasões, das quais
77 no periodo de maior intrangjitidade agrária, agosto-setembro de 1963, sendo que
a maioria esmagadora delas era de recuperações de terra. O noticiário é, porém,
extremamente deficiente, À única lista completa que conheço é a oferecida pela Guar-
da Civil do Departamento de Cure relaria à 11 de abril de 1963, antes que as
nvasiones naquele departamento houvessem atingido seu ponto mais alto. Ela arrola
7U casos, mas detalhes subre os invasores são dados em apenás 24 deles, us restantes
identificando somente à propriedade invadida. Destes
Comunidades invadindo propriedades 14
Comunidades invadindo comunidades 4
“Arrendarários invadindo propriedades
“Camponeses da localidade” invadindo
Legislatura Ordinaria, Diario de o ais, Senado, 1963, vol pp. 481-5
6. En lona a la Práctica Revolucimaria y la Lucha Interno IE Plena del Comiré “emiral del
Partido Comunista Peruano. Infimme Púlsico, Lima, Ediciones Bandera Roja, 1970
20 ERIC HOBSBAI M

(mimo), p, 12. 1 Paredes é um advogado vom larga experiência de trabalho com


camipemeses,
Perro Laveglia. “Totte per la terra e prime tentativi d'organizzazione contadina in
a

provincia de Salerno”, Morimento Operario.u, 3-4, maio-ago. 1955, p. 599.


A. Basie, “1 motocuatadino nel Napoletano e il minister del 3 apeile 1848”, Rôvixa
Srorica del Socialimo, x: (1960), pp. 795, 799.
. Diaz del Moral, Historia ale las agitaciomes campesinas Andaluzas, Madri, cd. de
1967, pp. 856
10 Prensa, 19 ago. 1963,
n Prensa, 2 set. 1963 € 6 set. 1963. Fiamanmarca e Yanacachireferiame-se à vtlos de
1825 em 1930: ver (D.A. “Inventário... Algolan”,p. 73
u Paredes, tax Tornoa a Prácrica Revolucionaia, p. 12.
13 Jd NWiomack, Zapata al se Mim Renolatim, Nova York, 1969, cphogo, pp. 371 es.
14, Entrevista com à sr. Oscar Bermuy Gomez, Huancayo, junho de 1971
15 for de da Comi que investi ls ssa sengrintos de Pout ., Bengo, 1932, p. 9,
16, Juegado de Ticrras, Huancavo: Expediente 70/1385/2 €, fls. 468, 469.
17 Carlos Alberto Izajguirre, “LA transferencia de bienes comunales”, Pira Indlgena, 17,
mo A-15, 1957, pp. HO-15,
18 Jugado de 'Lierras, Hluancao,lc ci,É. LOS: os titulos estabelecendo esses faros se
estraviaram”.
19, Prensa, 10e 1 fev. 1964,
20. CE O relavório de um plano para invadir às encostas da Hacienda Runarulo: CDA,
Arquivos Ganadera del Cemtro,. Documentos da Hacienda Acopalka, Arquivo
“Rumatullo”, 27 jan. 1958,
a Prensa, 1 fev 1964, 12 nos 1963 € 30 now. 1963: CD.A., Arquivos Garadera del
Cenero, Documentosde Acopalea: “Informe sobre los sucesas ocurridos en las Fidas
Jude, Antapongo y Taive . ”, do engenheiro Alberto Chaparro (Correspondencia
Contidencia, 25 jan. 1947)
Hugo Neira, Cueen, Tica p Mutrte. Lima, 1964, p. 22
CD.A, Arquivos Ganadera del Centro, Documentos de Laive: Laive a Lima, 9 de
ago. 1931
Prensa, 19 set. 1963, 1º set. 1963, 19 ser 1963, 30 jul. 1963, 19 ago. 1963, 17 out
1963 € 21 our. 1963,
Por exemplo, Prensa, IS nos. 1963 (Hacienda Inapi, Anta-Ciraco); 3 baciondas em
Paruro-Cuexo, 30 nox. 1963: Hacienda Mapi Hlorencia, Anta, 4 dez. 1963; Distrito
1uacondo, 16 dez. 1963.
26. As Eeorias que justificam ésse tipo de invasão urbana não são evidentemene cquiva-
lentes às que justificam à recuperação de terras comuns pendidas, mas não estamos
PESSOAS EXTRAORDI m

aqui preocupados com as modificações dá jurisprudência camponesa entre os migran:


tes rurais para as cidades.
27, Gerrit Huizer, Report om uhy Study of he Role of Peasame Organizations in the Doces of
Agprariam Reform in Latin America, Genebra, Tlo-cida, 1969 (mimeo), pp. 241, 243.
28. Como se deu no caso dos argumentos a respeito da reivindicação camponesa na
Comarca Laguncra (México), que girava em torno da questão de se os reivindican-
tes eram capazes de cultivar à terra em lcígio. CY: “ isturcal resumé .. write in
1936 by): Cru Chacun Sifuencce”, Apend. La Henry Landsbergere Cnehia Hewirr de
Alcantara, Prasant Organization in La Laguna, Mexico, cida Rescarch Papess 17, UAS,
Washingeon, 1970, p. 129
29.4, Afionsa, S. Gómez. É, Kicin, P Ramírez, Merimienro Ciompeso Chileno, Santiago,
1970, 1, pp. 127 ess, Mas a organização política e sindical estava presente em todos
os casos,
30, Gerrir Huizec. Om Prasamr Uirsr iu Latim America, cida, Washingeon, 1967. pp: 217
ess
31.4, Ta Câva, “La rivolta calabrese del 1848", Ar. Stor delle Provincie Napoletane,
nova série, KU, 1947.9, pp, 445 ess, 540.
32, Laveglia, ver nota 7 acima, p. 601
83. Basile, ver mota8 acima. p. 795
34 Citado in Renzo del Carta, Pole senca Risouciome, Milão, 1970, vol 2, pp. 78:91
35. E Malefatis, Amariam Refori and Prascime Revoturion im Spai, New Haven é Lon-
dies, 1970, especialmente pp. 368-9,
36. Tso consta subresudo dos arquivos do Juzgado de Tierras, Huancaya, onde consultei
os volumosos Expedientes 69:831 e 70/1385/2€ — os registros do Tgio entre a
comunidade é a Macienda Tucle, « a Subdieccign de Reforma Agraria 74% Huam-
cayo, Expediente de Afectación, Hacienda Iucle é Expediente, Comunidad Huasi-
cancha. Juan Martínez Alle fvi muito gentil em consultá-s, Relato completo tanto
sobe a comunidade quanto sua campanha por terra encontra-se em Gavin Smith.
Livelitond and Resistance, Berkeley, 1989. ste excelente livro amplia e corrige meu
próprio relato amerior.
37.0 Expediente de Afectación para Tucle relaciona 13 comunidades além da FIvasi-
cancha, todas as quais fizeram reivindicações contra a bacionda e regiscraram livígio
contra ela
38 Juzgado de Tierra, Huancayo, Exp. 70/1385/2 Cf, 1755
39, Suas energias foram parcialmente conquistadas pelo governo mediante o Patronato
Central de la Raza Indigena” (1922); mas o “Comité Pro Derecho Indígena Tahuan-
tinsuyo” (1920), mais radical, foi dissolvido pelas autoridades em 1927. Sobe iso,
ver W Kapsoli c W Reategui, E! Campesinato Peruano 1919-1930, Tima, 1972
(mimo), cap. *. O Patronato assumi diversas causas relativas a comunidades de
nossa área em titigão com as Hacicndas Tucie, Ancapongoé Laive-Ingabuasi
2 ERIC HOBSBAWM

40.0 dr. Carlos Samaniego, que entrevistou militantes du período nessa região, asse-
guroume que a bandeira era uma bandeira nacional do Peru (vermelha e branca).
sendo chefe da comunidade em questão (Ahuac) um policial licenciado que, poste-
riormente, foi promovidoau posto de sargento. O relatório encontra-se em CDA,
“Arquivos Ganadera del Centro, Documentosde Laive: Laive à Lima, 9 ago. 1931
41.0 que vem a seguir bascia-se na obra do dr Caos Samaniego e seus alunos da
Universidad Agraria, Lima, cm Yanacancha.
42, Sociedad Gamadera del Centro, Dados Lstadísricos, Lima. 1929, p. 13. Essa publicação
anual demonstra à constâme preocupação das grandes propriedades com cs iígios de
divisas
43, “Na entrevista com o Subprefeito da Província concordou-se em deter os principais
líderes desse movimento, duis indivíduos chamados Orellana é Sesa, que devem ter
sido transportados para Lima, uma vez que se encontraram documentos comunistas
em seu poder. Agora à situação parece ter-se acalmado . .”, Arquivo Laíve, Laíve à
Lima, 12 jun. 198]. “No dia 19. 85 homens do 5º de Infantaria chegaram a Ian.
cayo e seguiram imediatamente para Chongos Bajo, onde permancecram desde então.
tentando descobrir 0s acusados .. Enrique Liaca, alcaide da aldcia, que era o porta-
voy oficial (apodorado) da Cominidade e assinou o Acordo no Ministério do Ho-
mento, Julio Muniba e 9 Governador Melehiades Garcia e um 1a! de Guerro, estes
quarro individuos parirão amanhã com os soldados para Lima”: Laive à Lima, 25
set. 1931. O pon de Chongos recusou-se a construir uma cerca de demarcação «
escondeu as marcos.
44, Data de reconhecimento oficial de comunidades no vale Mantaro inferior (margem
direita

1928 2 1939 3
1935 2 1940 1
1936 1 194150 5
1937 2 19560 0
1938 8 196169 O
em processo de )
reconhecimentu
rã reconhecidas 4
Fome: Propeto Social Ciamadera de Conor, Datos para Afuicaçi, pp. 7-7,
Ni imagem esquerda, seis comunidades foram registradas antes de 1930, apenas seis
na década de 1930, dez na década de 1940, uma na década de 1950 « uma na década
de 1960.
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 23

45. Doughey, Paul L. Huayias Am Andean Disrcr in Seareis 0f Progress, Tibaca, À ova
York, 1968, p. 143.
46. CDA, Arquivos Ganadera del Centro: Documentos de Laive, Arquivo | Comuni-
dades, Carmarena a Fernándes, Lá jul. 1937, O projeto “fi concebido, disseram-me,
por um cenio Sabini, ou Sabino Román, que costumava crabalhar em Ingabuasi e que
recentemente tormou-se chef (alcalde)”
47, Balesim de la Direción de Asuntos Indígenas, 1940, p. 353. Tocle considerou também
ser prudente acertar algumas disputas de divisa com Huasicancha: Juzgado de Tier
ras, Huancayo, Exp. 69.831, 197.
48 No altiplano central, ele foi suficientemente poxderuso para obrigar grandes proprie-
dades — Taive, Maco, Queta, San Francisco de Apicancha, Antapongo « sem dúvida
“cutras — à assinar realmente Contratos coletivos de curto prazo com sindicatos re-
cétm-formados de trabalhadores em grandes propriciades D.A, Arquivos Ganadera
del Centro, Documenris de Laive, Arch. Soc. Ganadera Maco S.A.
49 CDA, Arquivos Ganadera del Centro, Documentos de Laive: Arquivo “Comuni
dades”, Memorando, “Comunidades colindantes com la Hacienda” (jan. 1963).
50. Entrevista com o sr. Oscar Bernuy: Gomez. consulior legal de Hizasicancha nesse
periodo. CÊ também Paul L, Doughry Hiurylas, pp. 144-5, a respeito de cartas “de
uma pessoa que reside em Callao” (porto maritimo de Lima). apoiando o requer.
mento de Lluaylas para registro de reconhecimento como comunidade
SL Ver Tullis, Hloyd La Mond, Lord and Peasane in Pers: A Parmigm of Ptirical and
Social Change, Cambridge, Mass, 1970, pp. 63-6, em que faz um esboço de sua
biogratia. Obrive minha informação em entrevistas com à prof Jesus Veliz Lizirraga.
de Prancayo, que esteve ligado à Tacunan ma Federação e em outras atividades co-
mnais e políticas
52. CDA, Arquivos Ganadera del Centro. Documentosde Laive: Laive a Lima, 16 our
1945,
53, bd, memorando sem dara “Sobre os pianos subversicos das Distritos de Chongos
Alto € Hluasicancha”, dirigida ao Gerente-Geral em Lima, provavelmente escrito to-
tre agosto c auubro de 1945,
54. Ibid.
85.C.D.A., Arquivos Ganadera del Comro: Documentos de Acopalca: “Informe sobre
Jos sucesos ocurridos en las Haciendas Tue, Antapongo y Laive desde e] 23 del mes
de Diciembre 1946”, por Alberto Chaparro, 25 jam. 1947.
56. A hacienida teve enormes problemas para tornar vinculada essa escritura de venda,
condicionando-a não só a que se completas a vala de demarcação, mas também à
concurdância pessoal, atestada por assinatura ou marca, de tudos os membros adultos
da comunidade: Juzgado de Tierras Huancayo, Exp. 69.831, fis. 39 € s . A comuni
dade devia comprometer, sob pera de pesadas multas, a não se engajar em outros
“actos pertubatorias”, ou fizer outras reivindicações. O sr. Bernuy Gomez, na época
2a ERIC HOBSBAWM

consultor legal da comunidade, informow-me que seus clientes só assinaram depuis de


ele lhes gacamir que, por motivos legais um pouco complexos, isso na ventade não
prejudicava suas outras reivindicações contra Tucle, que eram muito grandes,
57.CD.A,, Arquivos Ganadera del Centro, Escritório Central de Lima: Aras da Direto-
ria, jun.-now 1963,
58. Expediente de Aftctacióm de Tucle (Suboficina Regional de Reforma Agraria, Zax
Huancavo)
59. Juzgado de Tierras |uancavo, Exp. 70/1385/2.C, fl. 468.
60. Ibid, Exp. 69.831,fl 35
61. Como para ds camponeses esses dispositivos não possuíam conexão orgánica com a
“comunidade “real”, mas pertenciam ao mundo do Estado, da legislação do Estado «
da política, podiam ser tratados bem pragmaticamente. Assim, no momento mais
alto da agitação social do início da década de 1960, muitas comunidades organi-
zaramse coma sindicatos porque isso parecia vantajoso para suas lutas, Soube que
atualmente (1973) há no Peru Central algumas comunidades que requerem o smarus
de pubos jóvenes | Sascontamentos jovens”, criado pelo governo milicar para as favelas
trbamas, porque isso acena com vantagens na obtenção de acesso à eletricidade, vias.
públicas cre
62. Istituto Indigenista Peruano, Subprovecro... Mantaru 2 A, Disrito Iucari, Lima,
1968, pp. 58-62.
68. Uma vez mais, sou grato ao di. Samaniego pela informação que se segue
64. C, Guillaguiros, “Radiografia de Las invasiones”, Prensa, 11-13 fev 1964
65. Tuls, Floyd La Mond Lori and Prasont in Ieru, pp. 945.
66. Sobre Anta (Cuzco) ver Prensa. 5 dez. 1963,
67. Prensa, 8 out. 1963.
os LLE Subproyecto ... Manaro 2 A, Disvito Pucará, pp. 58-62.
ES Guuillaguiros, ver nota 64 acima.
”. CDA, Arquivos Ganadera de! Comer, Documentos de Taive: Laivea Tima, 9 ago. 1931
TLD. Arquivos Ganadera del Centro, Documentos de Acopalca: Informe . A,
Chaparro, 25 jan. 1947, p 2
72. Sobre as invasões de Corpacancha, a que estavam presentes estudantes, ver Prensa, 19
ago. 1963: sobre uma invasão por Yanacancha, ver Fiz de Huancayo, O fev 1961
“chefiada por suas autoridades e um provocador”)
73. Zamalloa, Adriel Osorio, 1a comonidad campesina, msel micro-ecomômico de desarvollo
regional, Vac. de Ciencias Económicas y Comerciaks, Univ. Nacional del Gemro de
Peru, Luancayo, 1966 (mimeu), pp: 279 ess,
74. Esta mescla é bem ilustrada pela suposta liderança de uma invasão das haciendas do
Cerro de Pasco (Prensa, 18 ago. 1963, 21 ago. 1963). Dizia-se que o líder cra um
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 25

certo Sergio Berrospi. próspero mineiro tou talvez um pequeno empresário de múne-
ração) apoiado por Claro Huallaniuay; alenbte de Pallanchacra, Juan Soro. sub-aleatde,
Pedro Becruspi (parente de Sergio?) € o estudante Zenon Najara, que no ano anterior
havia sido candidato da Frente de Libertação Nacional
Montoya R., Rodrigo. A Prpúito dei Camcter Predominantemente Capiralista de la
Economia Perunna Actual, Lima, 1970, pp 10-11
ctDa; Tenenciade Tierra -- Peru, Washingron, 1966, p. 123
. Oficina Nacional del Desarrollo Comunal: Comité Zona! 7x€ 1, Sissema dê Orgami-
sacióm Campesina para c! Desaruilo de! Valle del Mantars, Huancayo, 1969 (mimeo)
caDa Peru, ver nota 76 acima, p. 134, eicomira metade de sum amostra com litígios
Henry: E Dobyas, Comnidads Ciampeinas del Pere, Lima. 1970, pp. 57:8, registra
44% de uma amostra de 50 comunidades estudadas monograficamente, mas 64% das
640 comunidades pesquisadas pelo peojexo Peru-Cosmell sobre litígios. Duis levan-
tamentos de rodas as comunidades muma região mostram 50% em Chucuito, Puno
com 46 das 58 que responderam « 61,7% em Bolognési, Ancash, com 14,7% que
negam à existência de litígios e 23.5% sem resposta: acerca dessas províncias, Datas
Ricos, Lima, 1970, pp. 19 e 29, respectivamente.
”, Dobrns, Comunidades Camperinas dei Peru, p. 58, Da amostra de Dobyns, 54,4%
tiveram litígios com grande proprietários, 40.9% cum outras comunidades, 4,5%
com ambos. Da amostra Peru-Cormel, 64% estavam em ligo com grandes pro-
prictáeios, 60% com outras comunidades, 6% dentro da comunidade.
so Min. Agric. Dirección General de Reforma Agraria y Asentamiento Rural, Las Cy-
munidos Integrante de ia sais Tipac Amara, Lima, 1971, p. 21
8 Min, Agric, Dirección de Comunidades Campesinas, AC Mantaro 1, Prpecta So-
ciednd Ganadera del Conero. Dasos parar Aibjudicacións € CDA, "Inventário de los
Fundos Socicdad Ganadera del Centro, Tac y Autipongo” (ms, novembro de 1971
Deve-se assinalar que a lista de comunidades com lirgios que pode ser compilada
com base nos arquivos das grandes propriedades é muito mais longa da que a das.
comunidades descritas no levantamento uticial de 1970 cumo tendo divisas comuns
com à grande propriedade.
az Insureições locais para restaurar 0 regime inca ou expressando apoio especíico ans
áncas não são incomuns no Peru dos séculos XIX no século XX até a década de 1930.
Sobre o mito inca, ver Flores Galindo, A, Juscando su Inca: Identidady Utopia en los
«Andes, Havana, 1986.
E Favre, Henri, Clumygement r contimuit he es Mas de Mexáue, Dis, 1971, pp. 269:€5,
8 Sobre à levante de 1712, ver Klein, Herbert S., “Peasant communities in revole: the
Teektal republic of 1712”, Bife Hi. Rev, sxxv (19661, pp 247€ 55
ss Morta, R (Org), estas dos pasa libera sorgo, Pari Haguc. 1963, pp: 248, 263
86 Min. de Trabajo, Instituto Indigenista Peruano, Serie Monográfica 17, Sociedad y
culsua em LO areas Andino-Peruanas, Lima, 1966, pp. 13, 36-8, sobre Andahuavlas.
2%6 ERIC HOBSBAWM.

87. Tbid , pp. 36:7, sobre Chuyas e LItavchao, em Ancash.


88 A natureza e à extensão do apoio de massa da apita fora da classe Operária continua
obscuro. Hoje em dia concorda-se em geral que nos últimos vinse anos ou mais seu
apoio aos camponeses indios é seu interesse por eles foi bem menor do que procia
mava à mitologia do partido. Em 1965, à FENCAP, organização camponesa do par-
tido, organizou cxatamente 13 comunidades, 6 delas no departamento de Lima é
Callao. Ver Hiliker, Grane, The Potes of Reform im Pera, Baltimore « Londres, 1971,
pe 98. Mas a história da APRA junta às Bases durante o periodo em que eia era, ou era
onniderada, um movimento revolucionário, ainda está pará ser pesquisada seriamente
89. Favre, Henei, ºeholuriom es la siruation des haciendas dans la régio de Huancmelica,
Paris, 1965 tmimeo
90. As exceções que exigem pesquisa são certos serores do Norte (Cajamarca, Ancash e
1uanaco) e o centro tradicional do “surgimento nativo”, Puno, ao Sul.
Capítulo 13
O BANDIDO GIULIANO

Eme avtigo, publicado originariamente como senha na New York Review of


Books, de 14 de fevereiro de 1085, volta nos temas discunidos em maior detalhe
num capésuio de Primitive Rebels e cm Bandits (edição revista, Nova York,
1981) e em outros textos sobre o bandizismo como fenómeno social. A ascensão
e queda do bandido Giuliano é encarada como parte de uma história maior
da política nacional é internacional, a qual, diferentemente do que fiz com a
máfia, não púde nem compreender nem chegar a relacimar-se com figuras
como le

Com a publicação de The Godfirher (O poderoso chefão”) de Mario


Puzo, em 1969, à permanente paixão do público norte-americano pela má-
fia finalmente deixou de ser segredo. Durante muito tempo, na prática, ela
fora aceita, mas como parte menos importante da vida e dos negócios ur-
banos norte-americanos, à cujo respeito ninguém se entusiasmava muito,
mas, em teoria, representava O crime organizado, o pecado e o tubarão
devorador de homens e, como tal, devia ser execrada em público. J. Edgar
Hoover, com seu faro habitual para os verdadeiros sentimentos do norte-
americano médio, teve a caurela de evitar escolhé-la como alvo e, de fato,
recusou-se à admitir sua existência até que o envolvimento da máfia com o
tráfico de heroína tornou-a, pelo menos durante algum tempo, autentica-
mente impopular. Os “inimigos públicos” de Hoover em geral desafiavam
os valores da sociedade empresarial, pelo menos simbolicamente. A máfia,
longe de contestar os valores do “americanismo”, incorporava-os,
Afinal de contas, o que poderia ser mais norte-americano do que as
histórias do éxito de meninos imigrantes sem um tostão que abrem ca-
minho para à riqueza é a respeitabilidade por meio da empresa privada?
2a ERIC HOBSBAWM

Qual o legítimo magnata norte-americano que alguma vez objetou a que o


chamassem de “grosseiro”, ou que lhe atribuíssem (como ao bom boxea-
dor) o “instinto assassino”, ou o princípio de que “os espertos duram mais”?
Os mafiosos eram tão circunspectos quanto os delegados da fronteira norte
americana dos filmes de farveste, ou quanto Calvin Coolidge, Não pos-
suíam — e este é outro traço que facilitava a empatia — nenhuma tendência
intelectual. A substituição que faziam da autoridade do Estado pela violên-
cia privada era algo tão norte-americano quanto a torta de maçã,
Mais ainda, 1he Gudfizher podia ser considerado representativo não só
de alguns dos princípios permanentes do modo de vida norte-amcricano,
como também dos ideais ancestrais que, de maneira algo inexplicável, se
haviam perdido pelo caminho. No mundo de Don Corleone, os chefes cram
respeitados « amados por seus subordinados como pais substitutos. Os ho-
mens eram homens, e as mulheres eram felizes com isso. A moralidade
dominava sem contestação, e o crime, em sua maior parte, era mantido fora
das ruas. As famílias mantinham-se coesas sob o controle patriarcal. Os filhos
obedeciam os pais e as mulheres virtuosas não temiam perder seu lugar para
as amantes, nem sonhavam em processar seus cônjuges por pensão alimen-
tícia. Não é de admirar que a revista New York tenha cxclamado (segundo à
nota publicitária da edição em brochura): “Você achará dificil parar de sonhar
com ele”.
Os leitores « espectadores de cinema norte-americanos podiam pois
desfrutar de The Godfarher sem se incomodar com a ilha extraordinária de
onde supostamente os Corleone tinham vindo, do mesmo modo que os que
acompanharam a saga (real ou mitificada) dos Kennedys não precisavam
saber nada à respeito do condado de Wexford. Ambas as histórias são pura-
mente sobre os Estados Unidos. Porém, que poderão eles fazer com “The
Sicilian, O novo livro do sr. Puzo, cuja ação tem lugar inteiramente no pas-
sado siciliano, é que pretende ser um relato muito pouco ficcionalizado da
verdadeira história de vida do bandido Salvatore Giuliano (1922-1950),
personagem nitidamente não norte-americana? Para fins comerciais, sua his-
tória é ali frousamente vinculada aos primeiros episódios da épica de Corleone.
A literatura sobre Giuliano, à qual o livro do sr. Puzo nada acrescenta
de interessante, é provavelmente maior do que à que existe sobre qualquer
outro verdadeiro criminoso curopeu da história. São três as razões para isso.
Em primeiro lugar, cle se tornou assunto importante na política italiana e,
por isso, tema de muita publicidade e documentação. A comissão parlamen-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 2

do início da década de 1970, dedicou à assuntos


relativos à ele perro de oitocentas páginas de seu relatório, o que representa
quase uma terça parte do mesmo. Em segundo lugar, foi o primeiro ban-
dido curopeu a viver sob o foco dos meios de comunicação de massa, que
com muito prazer lhe proporcionaram uma exibição nacional « global, Ele
foi tema da revista Life em 1947.
Mas em terceiro lugar, e igualmente importante, é o fato de que cle foi
o último membro, na vida real, de uma antiga espécie com cuja extinção as
pessoas ainda não se conformaram: o “bandido popular”, Na grande no-
vela, os pobres e fracos continuam a sonhar com a desigualdade humana c à
injustiça, é ali sempre existiu c ainda existe um papel para Robin [lood.
Triddu Giuliano foi a última pessoa de verdade de que se tem registro
moldada para isso.
Não há dúvida alguma de que cle próprio se via nesse papel, tanto
quanto qualquer bandoleiro o tenha feito, e que grande número de sici-
lianos pobres o aceitaram como tal. Constitui mero sentimentalismo holly-
woodiano de Puzo fazé-lo prometer que daria metade dos ganhos de seu
bando aos necessitados; porém, um dos poucos policiais honestos à per-
segui-lo, o obstinado Lo Bianco, atesta que por “mais de uma vez” ele dis-
tribuiu milhares de liras a pessoas em dificuldades. “Para essa gente, Giuliano
era um deus,”? E, pode-se acrescentar, também 6 cra para muitos outros
sicilianos que ouviram falar desses incidentes.
Se Giuliano possuía alguma política instintiva, esta era populista, Os
comunistas, a quem massacrou a partir de 1º de maio de 1947, ficaram
espantados quando ele se voltou contra eles, pois embora desde 1945 hou-
vesse sido aliado dos políticos feudais, “durante todo o período da agitação
agrária aguda”, para citar o líder regional deles, “jamais interferiu com os
camponeses”? Há até um autor sério que afirmou que, em seus primeiros
tempos — antes que o poder da mátia se houvesse restabelecido plenamente
no interior —, Giuliano demonstrara sinais de opor-se à máfia por prin-
ípio.* Em suma, como disse um jornalista norte-americano que o entrevis-
tou, cle era um Robin Hood — bom rapaz, tapaz sincero, que só tinha uma
coisa errada (que combina mal com o estereótipo do “bandido nobre”):
gostava de matar pessoas. Para ser preciso, 430 delas, durante sua carreira.
Como todos conhecemos bem o mito de Robin Hood, Mario Puzo
teve pouco problema para inventar uma versão máscula de um romance
romântico c melodrama de costumes mediterrâneos, que certamente dará
280 ERTC HOBSBAWM

um filme agradável quando se encontrar O jovem protagonista masculino


adequado. O herói é belo como um deus grego. Tem um companheiro que
vai traí-lo, uma mama que o instala com uma mulher madura, cuja lamen-
tável morte deixa-o livre para casar-se secreramente com uma adolescente
empolgante, adorável e esguia que cl manda em segurança para os Estados
Unidos. (Na verdade, não há qualquer evidência de algum envolvimento
sério de Giuliano com mulheres, depois de uma primeira namorada em sua
cidade natal, que partiu para os Estados Unidos.) Ele se move mum ambiente
de agência de viagens, reconstruído com perfeição pelo artista que ilustrou o
anúncio do romance na revista Playboy: mar, raios de sol, muito verde, colinas
com ruínas de templos gregos « mesas fartas de coisas que por certo os cam-
poneses sicilianos não conseguirão reconhecer como sua comida habitual. (O
estilo do autor anima-se acenmuadamente quando se põe a descrever a comida.)
Ali se desenrola a tragédia desse jovem predestinado, criminoso desde
os vinte anos, em 1943, O poderoso chefão na vida real da Sicília, Don
Calogero Vizzini (1887-1954), num disfarce diáfano, admira-o c, como lhe
falta um filho que o satisfaça, quer que ele assuma os negócios, Mas 0 nobre
bandido diz (estou citando): “Agora estou comprometido em libertar os
pobres da Sicília e não acredito que os Amigos tenham o mesmo objetivo.
les são servidores dos ricos e dos políticos de Roma é estes são meus inimigos
malditos”. Assim, é uma guerra sem tréguas entre O pai desapontado e o filho
rebelde e, por mais sensacional que seja O jovem herói (“Ele é astuto demais
para suta idade e talvez tão valente quanto muitos de nós”), só pode haver um
fimal para essa dispura desigual. Prometem ao herói uma viagem scgura para os
Estados Unidos, depois o traem e matam da mancira habitual da máfia
Toda essa bobajada é uma leitura bastante boa para uma viagem de
avião e mais divertida que a Bíblia de Gedeão. Mas o que tem ela a ver com
a estranha ilha cujos próprios habitantes acham dificil de compreender, em-
bora, vivendo nela, não creiam ter de fazê-lo? Mas, para o estrangeiro que lê
sobre à Sicília, é essencial compreender O aparentemente incompreensível.
Escritores sicilianos que são pessoas prudentes — Verga, Pirandello, Vitro-
rini, Tomasi di Lampedusa, Sciascia — consideram sua ilha um assunto tão
obsessivamente essencial, muitas vezes seu único assunto, exatamente por-
que sabem como é vital lidar com aquela estranheza que, por sua vez, reflete
— na famosa frase de Lampedusa — “uma aterrorizante insularidade da
mente”. Se esses artistas brilhantes e sutis têm dificuldade com o caráter
siciliano, que se pode esperar de Puzo?
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 281

Nada — a não ser pela curiosa insistência sua de que escreve não so-
mente como um contador de histórias, mas como um historiador ligeira-
mente disfarçado. São verdadeiros os cventos, datas € pessoas que men-
ciona, os nomes destas imediatamente reconhecíveis. É evidente que 0 autor
é muito cauteloso quanto à fidedignidade de seu documentário e, embora
não recorra à notas de rodapé, quem quer que tenha familiaridade com o
assunto reconhecerá a pesquisa por trás do texto e quanto dele constitui faro
verificável, Infelizmente, para seu status como historiador — sem dúvida de
olho em outro filme vitorioso — cle optou por uma narrativa não facrual
nem ficcional, mas por algo entre as duas coisas, à maneira de algum pro-
dutor de cinema de quem um filme biográfico sobre Becthoven tivesse co-
mo clímax a apresentação pública, por aquele compositor, de sua última
obra, a valsa Danúbio Azul. O sr. Puzo, talvez estimulado pclos teóricos que
afirmam que roda realidade é um constructo mental, não parece avaliar sufi-
cientemente que basta uma ou duas mudanças insignificantes e dramati-
camente vantajosas de um fato documentado para destruir por complero à
credibilidade de alguém na condição de repórter. testemunha num tribunal
ou historiador. Mas essa é uma outra questão.
Porém, à historiador, é sobretudo o estrangeiro, pode dar uma con-
tribuição para a compreensão da história siciliana, especialmente desde que
as muitas incertezas, mentiras c confusões da documentação proporcioncim
pontos de apoio sobre as superfícies de rochas lisas e esboroadas da reali-
dade siciliana. Por isso é que as melhores maneiras de tratar a história de
Giuliano provém de pessoas de fora que obedecem os métodos do pesquisa-
dor perplexo: de Gavin Maxwell, à biografia, e de Francesco Rosi, o ma-
ravilhoso filme de 1961, Selsatore Giuliano. Mas fazer isso exige, no mí-
nimo, um conhecimento da Sicília, da Ttália « do mundo entre 1943 e 1950, e
de política — coisa de que Puzo não mostra sinal algum. Assim, ele é quase
obrigado a transformar seu herói de carne-e-osso num clichê.
Pois é de política que até mesmo os Robin Hoods vivem, especial-
mente se permanecem durante sete anos num país ocidental moderno. O
fato crucial a respeito da carreira de Giuliano, não mencionado em The
Sicilian, é que, pouco antes do final da guerra, o Partido Separatista Si-
ciliano dos proprietários de terras, que desejavam a independência da ilha
ou sua possível anexação como um estado dos Estados Unidos, precisava de
uma força armada e recrutou o bando de Giuliano como tal, atribuindo-lhe
o posto de coronel
282 ERIC HOBSBAWM

Isso foi crucial de duas maneiras. Pela primeira vez, deu a Giufiano
prestígio, apoio importante, publicidade c força.” Fez dele algo mais do que
uma figura puramente local. Mas, acima de tudo, transtornou a cabeça de
um menino ignorante do isiterior portador de ideais vagos, ainda que sin-
ceros. Nas palavras do nada sentimental Lo Bianco: “Os separatistas indi-
caram-no como líder « Giuliano incbriou-se com a idéia de ser realmente
um líder. Pensou que se tornara de fato um mandachuva e ficou maluco. Eu
o chamei de louco porque é isso o que cle era”. Pode ser que não tenha sido
clinicamente insano. embora até mesmo Puzo aluda à um elemento de dese-
quilíbrio mental. Mas para os sicilianos intransigentes já era bastante hu-
nático alguém que seriamente se considerasse libertador da Sicília ou força
política na ilha, ou realmente imaginasse que um criminoso pudesse sobre-
viver contra a máfia. Eles sabiam que, na política, não basta ter uma bando-
leira, ser fotogênico e comandar algumas dezenas de brigões da cidade natal.
Na verdade, à tragédia de Giuliano foi que à mesma situação que per-
amitia à um jovem matador local valente, sinceramente rebelde e talvez caris-
mático, representar, entre outras coisas, a fantasia de libertador dos pobres
da Sicília (“Como poderia jamais um Giuliano, que ama os pobres « odeia
os ricos, voltar-se contra as massas dos trabalhadores?”), essa mesma si-
tuação O tornasse pistoleiro dos sicilianos ricos c, finalmente, sua vítima
Foi no vácuo político deixado pela invasão dos Aliados, que arrasou com os
fascistas, em 1943, que ele despontou. Ninguém sabia como as coisas iriam
ficar, Tudo parecia possível. E quando todo o mundo sabia qual seria o
aspecro do fururo — autonomia regional da Sicília numa Itália governada
pelos demoristãos — cle morreu.
A história de Giuliano é a desse intervalo, durante o qual, fora os
comunistas, só quem possuía uma idéia clara do que queriam na política
eram os mafiosos, os quais queriam simplesmente apoiar o lado vitorioso,
uma vez que 0 negócio deles são os negócios e scus lucros estão onde o
poder está. A questão é que, após 1943, não era nada claro quem iria ven-
cer, A máfia chegou até a tentar algumas apostas sem muito entusiasmo nos
comunistas. Também não devemos esquecer — embora pareça que Puzo
esqueceu, deixando-se seduzir por seu próprio mito do poder de Don Cor-
Jeone — que em 1943, quinze anos depois de ter sido destruída por Mus-
solini, a máfia estava fraca e precisava ser reconstruída. O apoio norre-ame-
ricano era sem dúvida um trunfo enorme € provavelmente decisivo, e à
ocupação militar uma grande operação lucrativa; mas a máfia mal acabara
SSOAS EXTRAORDINÁRIAS 283

de entrar nas grandes cidades graças aos norte-americanos e, graças à agitação


camponcsa e aos bandidos, não se havia restabelecido plenamente em suas.
antigas bases no interior. Seus principais chefes continuavam a envelhecer co-
mo facinoras rurais, oriundos dos mais remotos cantos dos trigais do interior.
Entre 1943 e 1946, as classes dominantes sicilianas, ou secorcs impor-
tantes delas, investiram scu dinheiro no separatismo, ou na monarquia — e
perderam. O separatismo nunca decolou em termos cleitorais, exceto quan-
do ajudado pla força: o candidato de Giuliano cm sua cidade natal, e seu
advogado pessoal, venceu Montelepre com facilidade até ser abandonado
pelo bandido, depois do que conseguiu exatamente 26 votos. A autonomia
regional tornou desnecessária a independência. A monarquia teve grande
votação siciliana — dois terços — mas O referendo nacional instituiu à re-
pública, Em 1946, ambas as causas, a da independência e a da monarquia,
estavam mortas.
Sem contar com uma perspectiva clara. os sicilianos conservadores apoia-
ram variamente monarquistas, separatistas, neofascistas ou o antigo Partido
Liberal pré-fascista, de acordo com o que a tradição « as estimativas dos
chefes locais indicavam, Cada vez mais foram também arrastados, por ra-
zões óbvias, para o partido com patrocínio governamental em Roma, ou
seja, os democristãos, de início algo desconfiados devido às origens populis-
tas deste, O verdadeiro Don de Corleone, o sanguinário dr. Navarra, co-
meçou com os separatistas. passou-se para os Liberais e finalmente ofereceu
seu apoio aos democristãos. Nes situação de incerteza, à esquerda unida
tinha espaço de manobra, Nas primeiras eleições regionais de 1947, sustentada
por um importante movimento agrário camponês, conquistou uma vitória
enorme e inesperada contra uma direita dividida. Teve quase 40% da votação.
Giuliano havia ficado muito exposto pelo colapso do separatismo. Para
qualquer outro regime siciliano ou italiano não passava de um criminoso
com algumas dezenas de homens. Continuava solto porque a situação po-
lítica era confusa, porque tinha o apoio da máfia, e porque, conforme a
clássica exposição amena do relatório da Comissão Anti-máfia, SOs órgãos
policiais em funcionamento ao tempo do bando de Giuliano comportavam-
se de maneita nem sempre plausível”. O máximo que se poderia esperar cra
ser-lhe permitido voltar à vida civil, isto é, à impunidade, ou então levar seu
bando para algum refúgio no exterior. (Ele tinha ofertas.) Mesmo para isso,
porém, necessitava demonstrar muito bem que cra politicamente indispen-
sável, ou pelo menos útil, às pessoas em posição de retribuir favores
E ERIC HOBSBAWM

Giuliano, ou seus conselheiros, foram suficientemente vivos para saber


que no ano de 1947 o melhor modo de um bandido conquistar amigos e
influenciar pessoas era o anticomunismo — de que, anteriormente, ele não
demonstrara sinal algum. E a vitória da esquerda siciliana nas eleições de
abril ofereceu-lhe à oportunidade óbvia de explorar a situação.
O bando tornou-se, assim, um esquadrão de choque anti-vermelhos
para fins de autopreservação. Sc Giuliano realmente pretendia matar e ferir
quarenta manifestantes das aldeias vermelhas em 1º de maio de 1947 —
esse “massacre da Portella della Ginestra” é reconstituído de maneira ad-
mirável no filme de Rosi — e quem realmente sugeriu tal ato de terror são
questões ainda cm aberto, Mas não há dúvida alguma de que o bandido
proclamou-se inimigo visceral dos vermelhos (não menos do que muma car-
ta ao presidente “Iruman) é atacou sedes de sindicaros e escritórios do par-
tido naquela área. Quem O levou à isso? Nunca saberemos ao certo e não
importa. O que sabemos é que, nos poucos dias que se passaram entre as
eleições, quando ainda apoiava os separatistas, e o 1º de maio, Giuliano
esteve negociando desesperadamente com outras pessoas que lhe pudessem
dar apoio, com base na prestação de favores em troca da imunidade.
A estratégia fracassou. Ninguém cra contra aterrorizar os eleitores para
pó-los na linha, e de fato isso foi feiro no decorrer daquele ano (498 pessoas
foram assassinadas em 1948). Em 1948, os democristãos triunfaram, dupli-
cando sua votação, « sem dever muito à Giuliano, um cão de caça útil em
âmbito local, mas que complicava às coisas regionalmente. (Por razões dra-
máricas, Puzo concentra as duas eleições e o massacre cm umas poucas se-
manas de 1948.) Ninguém queria ter nada a ver com O assassino de Portella
della Ginestra, porque esse massacre tornou-se grande escândalo nacional, au-
mentado pelo compreensível clamor do Partido Comunista em Roma, O gover-
no foi forçado a agir. Em poucos meses, metade dos homens posteriormente
processados pelo crime estavam presos, c as defecções do bando começaram.
Giuliano tinha que sumir. Sempre estivera metido cm complicações —
muito inclinado, em primeiro lugar, a matar carabinieri ao gosto da máfia, que
continuava preferindo desviar-se das estruturas do poder e da lei do que de-
safiá-las, Agora ele se tornava um perigo triplo: porque não era possível aten-
der a suas exigências, porque, desesperado, começou realmente à matar po-
líricos e mafiosos que “não haviam mantido suas promessas” (para não falar no
grande número de policiais), « porque sua própria sobrevivência representava
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 285

uma permanente censura ao govemo de Roma € impedia que respeitáveis


cidadãos sicilianos continuassem tranquilamente com scus assassinaros,
Não obstante tudo isso, por que ele sobreviveu? Não precisamos acci
tar a teoria operística (uma versão que é seguida por Puzo), segundo a qual
cle esteve seguro enquanto seus amigos tinham um documento escrito que
relacionava nomes, notadamente os que haviam estado por trás do massa-
cre, e que foi morro assim que perdeu O controle desse documento. É uma
boa história é pode até scr verdadeira, embora (nas melhores fontes) ela
dependesse de um certo Pasquale Sciortino que, supõe-se, havia levado o
documento para os Estados Unidos — homem tão notoriamente indigno
de confiança que dificilmente se pode imaginar que Giuliano confiasse sua
vida a ele. (O bandido acabara de obrigé-lo a se casar à força com sua irmã.
Além disso, em negócios italianos tenebrosos, desaparecem documentos de-
pois da morte, tanto quanto antes.
Mas quem precisa de um melodrama desse tipo? Giuliano não cra um
marginal caipira tal como os que à máfia agora entregava em grande nú-
mero, vivos ou mortos, às autoridades democristãs agradecidas, mas sim
um homem mergulhado na alta política siciliana e nacional desde 1945. Era
preciso tempo e cuidado para que todos os envolvidos se desvencilhassem
dele. Além do mais, sem contar sua força local, ele tinha uma autêntica base
política independente como herói popular. Sua climinação precisava ser pon-
derada de mancira muito cautelosa, De todo modo, o suborno, a politicagem e
a tivalidade no interior das diversas forças policiais encarregadas de prendê-lo,
centre elas mesmas, lhe deram, mesmo no final, algum tempo à mais
Foi um tempo tomado de empréstimo, Como a Sicília e a Trália esta-
vam politicamente cstabilizadas, não havia mais espaço para alguém como
le, O que fez durante seus últimos dois anos não representou qualquer
diferença importante, embora com certeza não tenha se tornado, como quer
o romance de Puzo, um paladino da reforma agrária contra os senhores
feudais e a máfia. Na verdade, a esta altura, desde que Puzo vé seu herói
derrubando seis velhas peszi di novanta, cavalgando como um samurai para
inrimidar os camponeses, enquanto um príncipe observa de seu castelo, cv
dentemente a antevisão do autor sobre 0 filme que seria feito a partir do
livro levou a melhor sobre ele. Em todo caso; Giuliano foi morto pela má-
fia, embora a gente fique pensando por que Puzo deixou passar uma ligação
óbvia com o mundo de Don Corleone: pois o homem que se diz ter sido
286 ERIC HOBSBAWM

incumbido da operação foi um ex-membro de quadrilha norte-americano de


Partinico, Frank Coppola”
Giuliano foi encontrado morto, na posição fotografada na época e des-
crita com precisão por Puzo, num pátio em Castelvetrano. Praticamente
todos ox que podiam falar morreram de súbito a partir de então. Até mesmo à
Comissão Anti-máfia, vinte anos mais tarde, deixou na escuridão diversos
aspectos de sua carreira.
Todos os julgamentos sicilianos sobre é homem morto concordam em
que ele era inevitavelmente um fracassado. Para o poderoso chefão de Puzo,
isso se deu porque ele deixava que o sentimento atrapalhasse os cálculos de
negócios. Seus inimigos políticos da esquerda, e vítimas suas, foram mais
gencrosos, ainda que previssem corretamente seu fim inevicável.!? Para eles
era óbvio « inevitável que bandidos sociais sem noções políticas de bom
senso, objetivos ou conselhos tormam-se joguetes ou vitimas das classes do-
minântes, “winda que sejam amados pclo povo e rodeados de simpatia, ad-
miração, respeito « temor”, Contudo, um fim como esse foi “indigno de um
antêntico filho do povo laborioso da Sicilia”
Há uma terceira, e não-siciliana, reação à morte de Giuliano: a de
Michael Corlcone (e talvez a de Puzo). No romance, o filho aprende a lição
do pai de que os chefes vivos da máfia são melhores do que os heróis mortos
por eles traídos, “mas isso o deixava infeliz”. De certo modo, ele “inveja” o
bandido morro, assim como a morsa de Lewis Carroll chora pelas ostras
que se propõe comer.” A maioria dos sicilianos leriam isso como um ele-
mento normal da hipocrisia retórica para consumo público, mas Puzo pre-
tende que sua personagem esteja sendo sincera. Ele pertence a uma cultura
em que se costuma acreditar, pelo menos pela metade, nas próprias menti-
ras. O sentimentalismo, que Puzo despejou sobre seu herói como calda de
chocolate, não é um bom guia para o mundo em que Giuliano viveu é
morreu. Esse romance é uma comemoração indigna de uma pequena figura
da história, que merecia mais do que isso. Felizmente, existem outros, como
Francesco Rosi. que fizeram mais justiça a ele « seu mundo.

Notas

1. Relacione dela compisine partamentare dimiesta ul fenomeno dela uai, esto inte
“ral, Roma, 1973. 0.2, p. 1635.
JAS as

2. GirolamoLi Cases é la sua acóone política in Siilia: serirt, ricondi e testimoniance


a cura
“li Eraneo Grass, Valermo, 1966, p. 150.
3. Michele Pantalcone, Mafia é polca, Turim, 1962, p. 159.
4 Gavin Mawell, Randir (publicado na Inglaterra como God Proscr Me from my
Friend, Londres, 1956 reeditado em 1972 pela Pan Mooks
5. Na verdade, O coronel da polícia que comandava o grupo que o perseguia também.
era separatista. Relacsone. vol. 2, p. 1700.
6. Tbid, p. 1658, e novamente ha p. 1665. Ver também O testemunho de um outro
policial (honesto), o general Paolantonio. ibid., pp: 1700-1
De ima carta du Tice di Sic, 20 set, 1947, defendenda-se finsinceramente) contra à
acusação de haver perpetrado tum massacre contra uma manifestação comunista. Ci-
tado em Li Cass, p. 147.
8 Relacimie, vol. 1, pp. 1112.
9: Segundoo bem informado Gaia Servadio, Mafisco, Tondiss, 1976, p. 130.
10, Assim, em 1947: “Você está acabado, Giuliana, sua vida chegou ao fim. Ou você será
morta por traição da mafia... ou numa luta com a policia, ou será preso”; Lá Cam,
p 152
1 orep for poe”, te Wars said: / “I decply gompariize”. / Wiz sois ami ses be sont
out| Those of the lampes size. (“Choro por tb, disse a morsa: / “São minhas às tuas
dores / E emite suluços e Ligrimas, / Hoi escolhendo as maiores.)
Capítulo 14

O VIETNÃ E A DINÂMICA DA GUERRA DE


GUERRILHAS

Este artigo fá originariamente publicado no “The Nation (New Tork), em


1965, após os Escadas Unidos terem decidido numentar sua intervenção no
Viena, mas antes de sº lançar integralmente na guerra. Seus argumentos
permanecem válidos embora não exisza mais o perigo da megalomania de
Uashingtom de abrir caminho para uma guerra nuclear. Tombém não ha,
exeero em circunstâncias muito ram, a posiilidade de as guerrilhas ven-
serem guervas travadas contra Estudos. No encanto, permanece à assimetria
de podes, como se demonstrou recentemente com o Iraque. As superporências «
seus aliados podem vencer rodas as baralhas, mas não podem conquistar e
ocupar países insubordinadios exceto à tem custo político (para não dizer eco-
númico) desporporcional e, na maioria dos casos, proibitivo. Davi minda pode
riunfar sobre Golias. Além diva, Golias ainda sofre da “conhecida doença das
ramdes poderes infmris, sm sonho de onipotência”,

“rés fatores ganharam às guerras convencionais neste século: maiores


reservas de efetivo humano, maior potencial industrial é um sistema de ad-
ministração civil racionalmente funcional. A estratégia dos Estados Unidos
nas duas últimas décadas se baseou na esperança de que o segundo desses
fatores (no qual eles são superiores) compensasse o primeiro, no qual se
acreditava que à URSS tivesse uma peguena vantagem. Esta teoria fundava-
se num cálculo errônco da época, desde que à única guerra previsível era
contra a Rússia, uma vez que as potências do Pacto de Varsóvia não têm
população maior que as da OTAN. Simplesmente, ocorria que o Ocidente
estava mais relutante cm mobilizar seu efetivo nas formas convencionais.
Entretanto, no presente, O argumento é provavelmente mais válido, porque
alguns dos Estados ocidentais (como à França) quase certamente se man-
290 ERIC HOBSBAWM

terão neutros em qualquer guerra mundial que venha a ocorrer, e a China,


por si só, possui mais homens do que todas às potências ocidenrais passíveis
de lutar juntas, De qualquer modo. scjam os argumentos certos ou crrados,
desde 1945 os Estados Unidos têm apostado inteiramente na superioridade
de seu poderio industrial e na sua capacidade de usar numa guerra mais
máquinas e mais explosivos do que qualquer outro país.
Consegiientemente, ficaram gravemente abalados ao descobrirem que
um novo método de ganhar guerras foi desenvolvido em nossa época. que
este método supera a organização e o poder industrial das operações mili-
tares convencionais, Trara-se da guerra de guerrilhas, e o número de Golias
que têm sido derrubados pelos estilingues dos Davis já é impressionante; os
japoneses na China, os alemães na Iugoslávia na época da guerra, os ingl
ses em Isradl, os franceses ná Indochina e Argélia. Atualmente, os próprios
Estados Unidos estão sendo submetidos ao mesmo tratamento no Vietnã
do Sul, Daí as angustiadas tentativas de lançar bombas e mais bombas con-
tra homens pequenos, escondidos atrás de árvores. ou de descobrir a mágica
(por certo deve haver uma...!) que permite aus poucos milhares de cam-
poneses mal armados conter o maior poderio militar da terra. Daí também:
a simples recusa em acreditar que possa ser assim. Sc os Estados Unidos
estão frustrados, seguramente a causa deve residir em alguma outra razão
mensurável e bombardeável: os agressivos norre-vicmamitas, que verdadeira-
mente simpatizam com seus irmãos do Sul e contrabandeiam gora a gota
suprimento para eles: os terríveis chineses, que têm a ousadia de possuir
uma fronteira comum com o Vicimã do Norte; e sem dúvida, os russos
finalmente. Antes que o bom senso desapareça por completo (pela jancla),
vale à pena portanto examinar à narureza da guerra de guerrilhas moderna
As operações do tipo guerrilha não são um fenômeno novo, Qualquer
sociedade camponesa tem seu bandido “generoso” ou Robin Hood, que
“toma dos ticos para dar aos pobres” e escapa a todas as grossciras ciladas
de soldados e policiais até ser traído. Porque enquanto nenhum camponês o
demunciar € enquanto o mantiverem plenamente informado sobre o mo-
vimento de seus inimigos, ele é realmente tão imane às armas e tão invisível
aos olhos hostis quanto apregoam invariavelmente as lendas é canções a seu
respeito,
Tanto a realidade como a lenda existem em nossos dias, da China ao
Peru, literalmente. Assim como os recursos militares dos bandidos, os dos
guerrilheiros são os óbvios: armamentos clementares reforçados por um
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 22

conhecimento detalhado do terreno dificil e inacessível, mobilidade, resistência


física superior à de seus perscguidores, mas acima de tudo uma recusa em
lutar nos termos do inimigo, isto é, com força concentrada e frente a frente.
Mas o principal recurso da guerrilha não é militar c sem cle torna-se inde-
fesa; deve ter à simpatia € O apoio, ativo e passivo, da população local.
Qualquer Robin Lood que 05 perca está morto, e assim também qualquer
guerrilheiro. Todo livro-testo sobre guerra de guerrilha começa assinalando
isto — que é algo que a instrução militar “contra-insurrecional” não pode
ensinar.
A principal diferença entre a forma antiga — que na maioria das so-
ciedades camponeses é uma forma endémica de banditismo — e a guerrilha
moderna consiste em que o bandido social do tipo Robin Hood tem ob-
jerivos militares extremamente modestos c limitados (é geralmente apenas
uma força muito pequena « localizada). A prova de fogo de um grupo
guerrilheiro surge quando ele se propõe à tarefas ambiciosas como a der-
rubada de um regime político ou a expulsão de uma força regular de ocu-
pação, € especialmente quando se dispõe a fazê-lo não em algum canto
remoto do país (a “zona liberta”), mas em todo um território nacional. Acé
princípios do século XX, dificilmente quaisquer movimentos guerrilheiros
enfrentaram esta prova; operavam em regiões extremamente inacessíveis e
marginais — o exemplo mais comum são as regiões montanhosas — ou se
opunham a governos nacionais ou estrangeiros relativamente primitivos ou
ineficientes. As ações guertilheiras desempenharam, algumas vezes, signifi-
cativo papel em guerras modernas de envergadura, seja como um fator ex-
clusivo em condições excepcionalmente favoráveis, como no caso dos tirole
ses coritra os franceses em 1809, ou mais comumente como auxiliares de
forças regulares — durante as guerras napoleônicas, por exemplo, ou, em
nosso século, na Espanha e na Rússia. Entretanto, por si mesmas é durante
muito tempo, clas quase certamente fizeram pouco mais do que molestar o
inimigo, como no sul da Itália, onde os franceses de Napoleão nunca foram
seriamente perturbados, Esta pode ser uma das razões de elas não preocu-
parem muito os pensadores militares até o século YX, Uma outra razão, que
pode explicar porque até mesmo os combatentes revolucionários não as le-
vavam muito em consideração, é que praticamente todas as guerrilhas exis-
tentes foram ideologicamente conservadoras, ainda que socialmente rebel-
des. Poucos camponeses haviam sido convertidos à posições políticas de
esquerda ou seguiram líderes políticos da mesma rendêne
22 ERIC HOBSBAWM

A novidade da moderna guerra de guerrilhas, portanto, não é tanto de


natureza militar. Os guerrilheiros de hoje podem ter à sua disposição equi-
pamento muito melhor do que tiveram seus predecessores, mas ainda são
invariavelmente menos bem armados do que seus oponentes: uma grande
parse de scu armamento — a major parre, com certeza, nos estágios iniciais
— deriva do que podem capturar, comprar ou roubar de seus adversários, e
não, como o folclore do Pentágono proclama, de fornecimento estrangeiro.
Até a fase final da guerra de guerrilhas, quando as forças guerrilheiras con-
vertem-se em um exército « podem efetivamente enfrentar c derrotar seus
adversários em batalha aberta, como em Dienbienphu, não há nada nas
páginas puramente militares de Mao, Vo Nguven Giap, Che Guevara ou em
outros manuais de guerrilha que um guerrillero tradicional ou um chefe de
bando visse como algo além do simples senso comum.
A novidade é política, e de duas espécies. Primeiro, são mais comuns
hoje as situações em que as forças guerrilheiras podem contar com o apoio
de massas em áreas amplamente diferenciadas de seu país, Assim o faz,
apelando em parte para 0 interesse comum dos pobres contra os ricos, dos.
oprimidos contra o governo e, em parte, explorando o nacionalismo ou o
Ódio aos invasores estrangeiros (fregiientemente de uma outra cor). É, uma
vez mais, apenas folclore dos especialistas militares dizer que “o único de-
sejo dos camponeses é que os deixem em paz”. Não é verdade. Quando não
têm pão, querem pão: quando não têm terra, querem terra: quando são
enganados pelos funcionários de uma remota capital, querem se ver livres
deles. Mas, acima de tudo, querem gozar de seus direitos como seres huma-
nos «, quando dominados por estrangeiros, querem se livrar deles. Deve-se
acrescentar que uma guerra de gucrrilhas cficiente só é possível em países
em que tais apelos podem scr feitos com bom éxito a uma alta percentagem
da população rural, numa grande proporção territorial do país. Uma das
principais razões para a derrota da guerrilha na Malásia e no Quênia foi a
inexistência destas condições: os guerrilheiros foram quase inteiramente re-
crutados entre os chineses ou os kikuvo, enquanto os malaios (que consti-
tuíam a maioria da população rural) e o resto da população de Quênia
permaneciam em grande parto à margem do movimento.
A segunda inovação política é a ampliação, não apenas do apoio aos
guerrilheiros, mas da própria força guerrilheira, por partidos e movimentos
de âmbito nacional «, às vezes internacional. A unidade guerrilheira não é
mais um produto puramente local: é um corpo de quadros permanentes é
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 293

móveis em torno do qual se articula a força local, Estes quadros a unem a


outras unidades até formar um “exército guerrilheiro” capaz de desenvolver
uma estratégia de âmbito nacional e de se transformar em um autêntico
“exército”. Também a vinculam geralmente com o movimento nacional não
envolvido de maneira direta na luta armada, e em particular com as cidades
politicamente decisivas. Isto implica uma mudança fundamental no caráter
de tais forças: signífica que os exércitos guerrilheiros já não são compostos
só de núcleos de revolucionários radicais vindos de fora e infiltrados no
território. Por numerosos e enmusiastas que sejam os voluntários, o recra-
tamento exterior de guerrilheiros é limitado seja por considerações técnicas
seja porque muitos recrutas em potencial, especialmente intelectuais e tra-
balhadores das cidades, simplesmente não são qualificados para esta luta —
não possuem O tipo de experiência necessária que somente a ação guerrilheira
ou à vida camponesa podem dar. As guerrilhas podem scr iniciadas por um
núcico de quadros, mas mesmo uma força totalmente exterior, tal como as
unidades comunistas que se mantiveram por alguns anos depois de 1945
em Aragão (Espanha), cedo têm que começar um sistemático recrutamento
entre a população local. Para alcançar êxito, a maior parte de qualquer força
guerrilheira deve ser recrutada entre a população local, ou entre combaten-
tes profissionais que foram, por sua vez, recrutados dentre a população lo-
cal, As vantagens militares disto são imensas — como Che Guevara obser-
vou — porque o homem que procede da população local Stem ali seus
amigos, a quem pode fazer um pedido de ajuda pessoal; conhece à terreno
« provavelmente tudo o que acontece na região; contará também com o
entusiasmo adicional do homem que está defendendo sua própria casa”.
Mas se à força guerrilheira for um amálgama de quadros externos é
recrutas locais, ela sc transformará por completo. Terá não apenas cocsão,
disciplina e moral sem precedentes, desenvolvidos por uma educação sis-
temática (em leitura e escrita, bem como em técnicas militares) « formação
política, como também mobilidade jamais vista sobre o terreno, A “Longa
marcha” levou o Exército Vermelho de Mao de uma ponta a outra da China
cos gucrrilheiros de Tito eitruaram migrações semelhantes depois de derro-
tas semelhantes. E onde quer gue o exército guerrilheiro vá, aplicará os
princípios essenciais da guerra de guerrilhas que, quase por definição, são
inaplicáveis pelas forças convencionais: 1. pagar por tudo o que é fornecido
pela população local; 2. não violentar as mulheres da região; 3. dar terra,
204 ERIC HORSBAWM

justiça e escola onde quer que vá; é 4. nunca viver de modo melhor ou
diferente dos habitantes locais.
Tais forças, operando como parté de um movimento político de âm-
bito nacional c com à apoio popular, provaram ser extraordinariamente po-
derosas. Quando em sua forma plena, elas simplesmente não podem ser
derrotadas por operações militares convencionais. Mas mesmo quando es-
tão em condições menos favoráveis, somente podem ser derrotadas — de
acordo com cálculos dos especialistas ingleses em contra-insurreição, na Ma-
lásia e em outros lugares -— por um minimum de dez homens no terreno para
cada guerrilheiro; isto equivale a dizer, no Viemã do Sul, por um minimum
de cerca de um milhão de americanos e fantoches norre-viermamitas. (Na
verdade, os 8 mil guerrilheiros malaios mantiveram 140 mil soldados « po-
liciais mobilizados.) Como os Estados Unidos estão agora descobrindo, os
métodos militares ortodoxos são bastante irrelevantes; as bombas não fun-
cionam exceto quando há alguma coisa além de arrozais para fazer crateras
As forças “oficiais” ou estrangeiras logo percebem que a única forma de
combater os guerrilheiros é atacando suas bases, isto é, à população civil
Foram propostos vários méios de fazê-lo, desde o antiquado método nazista
de tratar todos os civis como guerrilheiros em potencial, pelo massacre e
tortura seletivos, até o estratagema hoje em dia popular de segúestrar popu-
lações inteiras e concentrá-as em locais fortificados nas aldeias, na esper-
ança de privar os guerrilheiros de sua fonte indispensável de suprimento é
informação. As forças americanas, com sua inclinação habitual para resolver
os problemas sociais por meios tecnológicos, parecem ter uma preferência
por destruir tudo o que houver em amplas áreas, presumivelmente na esper-
ança de que todos os guerrilheiros da zona sejam mortos junto com 0 re-
stante da vida humana, animal e vegetal: ou que, de algum modo, todas
aquelas árvores e arbustos desapareçam, deixando os guerrilheiros sem pro-
teção, de modo que possam ser bombardeados como verdadeiros soldados.
O plano de Barry Goldwater de desfolhar as florestas vicinamitas com bom-
bas nucleares não foi mais grotesco do que o que está sendo de fato exccu-
tado segundo esses critérios,
A dificuldade de tais métodos consiste em que cles simplesmente racifi-
cam 6 apoio da população local aos guerrilheiros e fornecem a estes um
suprimento constante de recrutas. Daí os planos antiguerrilha, tramados
para combater o inimigo mediante a melhoria das condições sociais « eco-
nômicas da população local, à maneira do rei Frederico Guilherme 1, da
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 295

Prússia, de quem se diz rer perseguido seus súditos em Berlim, golpeando-


os com seu cetro e gritando: “Quero que gostem de mim!”. Mas não é fácil
convencer as pessoas de que suas condições de vida estão sendo melhoradas
quando suas mulheres e crianças são vítimas de bombas incendiárias, sobre-
tudo quando os incendiários vivem (pelo padrão vietnamita) como principes
Os governos antiguerrilha são mais aptos à falar, digamos, sobre dis-
tribuição de terras para os camponeses do que realmente a fizé-lo; e mesmo
quando realizam uma série de reformas desse tipo, não ganham necessaria-
mente a gratidão dos camponeses, Os povos oprimidos não descjam apenas
melhorias econômicas. Os movimentos insurrecionais de maior enverga-
dura (destacando-se o viemamita) são aqueles que combinam elementos
sociais é nacionais. Um povo que deseja pão e também independência não
pode ser contentado com uma mera distribuição de pão mais generosa. Os
ingleses enfrentaram, com algum éxito, a agitação revolucionária dos irlan-
deses sob Pamnell e Davitt na década de 1880, combinando coerção c refor-
mas econômicas; mas isto não impediu que o movimento revolucionário
irlandês os expulsasse em 1916-1922.
Entretanto há limitações para a capacidade de um exército guerrilheiro
ganhar uma guerra, embora em geral tenha mcios eficazes para evitar perdê-
la. Em primeiro lugar, à estratégia de guerrilhas não é, de nenhum modo,
aplicável à todos os lugares em escala nacional: por causa disso, fracassou
inteira ou parcialmente em vários países, como na Malásia e na Birmánia.
Também as divisões c as hostilidades internas — racial, religiosa ou outra —
no interior de um país ou de uma região podem limitar as bases da guer-
ilha à uma parte do povo, fornecendo automaticamente uma base porencial
para a ação antiguerrilheira em outra. Para exemplificar com um caso evi-
dente; à revolução irlandesa de 1916-1922, basicamente uma operação de
guerrilha, teve éxito em 26 condados, mas não ná Irlanda do Norte, a des-
peito de uma fronteira comum e da ajuda passiva ou ativa do Sul. (O gover-
no inglés, a propósito, nunca fez desta simpatia uma desculpa para bom-
bardear a barragem de Shannon, à fim de forçar o governo de Dublin à
parar com sua agressão contra o mundo livre.)
Por outro lado, pode haver povos tão inexperientes ou tão carentes de
quadros adequados que permita à uma guerrilha numerosa e amplamente
implantada ser liquidada, pelo menos por algum tempo. Este talvez seja o
caso de Angola. Ou a geografia de um país pode facilitar a ação guerrilheira
localizada, tornando a eclosão de uma guerra de guerrilhas coordenada bas-
296 ERIC HOBSBAWM

tante difícil (como talvez em alguns países latino-americanos). Ou o povo


pode simplesmente scr demasiado pequeno para conquistar sua indepen-
dência pela ação direta, se não contar com uma ajuda exterior importante
frente à uma aliança de países ocupantes determinados a eliminá-lo. Este
pode ser o caso dos curdos, combatentes guerrilheiros do tipo tradicional
orgulhosos c tenazes, que jamais alcançaram sua independência.
Além destes obstáculos, que variam de país para país, há o problema
das cidades. Por maior que scja o apoio das cidades ao movimento insurre-
cional, é ainda que seja urbana a origem de seus líderes, as cidades e cm
particular as capitais são o último reduto que um exército guerrilheiro irá
conquistar ou atacar, a menos que scja muito mal assessorado. A rota dos
comunistas chineses para Xangai c Cantão passava por Yenan. A Resistência
italiana € a francesa programaram suas insurreições urbanas (Paris, 1944:
Milão c Turim, 1945) para os últimos momentos antes da chegada das
forças aliadas, e os poloneses que não o fizeram (Varsóvia, 1943) foram
derrotados. O poder da indústria, dos transportes « da administração mo-
dernos pode ser neutralizado por um período de tempo significativo apenas
onde sua densidade é pequena, As hostilidades em pequena escala, como à
interrupção de uma ou duas estradas é ferrovias, podem desarricularos mo-
vimentos milicares e a administração em zonas rurais de dificil acesso, mas
não na cidade grande. A ação guerrilheira ou seu equivalente é inteiramente
possível na cidade — afinal, muitos assaltantes de bancos nunca são presos
em Londres — e há exemplos recentes, como em Barcelona no final da
década de 1940 e cm várias cidades da América Latina. Mas sua eficácia vai
pouco além de uma simples perturbação e serve apenas para criar uma atmos-
fera geral de falta de confiança na eficiência do regime, ou para imobilizar as
forças armadas e a polícia, que poderiam scr melhor utilizadas em outros
assuntos
Finalmente, à limitação mais decisiva da guerra de guerrilhas é que cla
não pode vencer até que se converta em guerra regular, caso em que deve
enfrentar scus inimigos no campo em que são mais fortes. É comparati-
vamente fácil para um movimento guerrilheiro que seja amplamente apoiado
eliminar o poder oficial da zona rural, exceto naqueles pontos mais fortes
que forem de fato ocupados fisicamente por forças armadas; ou conseguir
deixar sob o controle do governo ou das forças de ocupação apenas as
cidades e às guarnições isoladas e ligadas entre si por umas poucas estradas €
ferrovias (c apenas durante o dia) e por avião ou rádio. O verdadeiro pro-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS

blema é ultrapassar este ponto. Os manuais dedicam bastante atenção a csta


fase final da guerra de guerrilhas, que os chineses e vicnamitas desenvolveram
com sucesso contra Chiang Kai-Shek e os franceses, Entretanto, estes éxitos
não devem levar a generalizações equivocadas. A verdadeira força dos exérciros
guerrilheiros não reside em uma habilidade de se transformar em exércitos re-
gulares, capazes de derrotar outras forças convencionais, mas em sua força
política. A retirada total do apoio popular pode produzir um colapso nos
governos locais, frequentemente precedido por deserções em massa — co-
mo na China e no Vietnã — que passam a engrossar as forças guerrilheiras;
uma vitória militar decisiva dos guerrilheiros pode precipitar este colapso.
O exército rebelde de Fidel Castro não conquistou Havana: mas quando
demonstrou que poderia controlar não apenas Sicrra Maestra, mas também
tomar a capital da província de Santiago, o aparato do governo de Batista
ruiu.
É provável que forças invasoras estrangeiras sejam menos vulneráveis «
mais eficientes. Entretanto, até elas podem ser convencidas de que sc en-
volveram numa guerra que não podem ganhar e de que seu domínio pr
cário só pode ser mantido a um custo bastante desproporcional. A decisão
de suspender o jogo devastador é naturalmente humilhante, e há sempre
boas razões para adiá-la porque raras vezes aconteceu que forças estrangeiras
softessem uma derrota decisiva, mesmo em ações locais como em Dienbien-
phu. Os americanos ainda estão em Saigon, bebendo seu bourbon em um
aparente clima de paz, excero talvez pela eventual explosão de uma bomba
mum bar, Suas colunas ainda atravessam o país em todas as direções, aparen-
temente à vontade, e suas baixas não são muito superiores às que ocorrem
nos acidentes de trânsito em scu país. Seus aviões atiram bombas onde
querem c ainda há alguém que pode ser chamado de primeiro-ministro de
um Vierná “livre”, embora seja difícil prever de um dia para outro quem o
será.
Desta maneira, sempre se pode sustentar que apenas mais um esforço
fará pender a balança: mais tropas, mais bombas, mais massacres c torruras,
mais “missões sociais”, À este respeito, a história da guerra argelina antecipa
a do Viemã. Quando cla terminou, mcio milhão de franceses uniformizados
estavam lá (frente à uma população de 9 milhões de muçulmanos, isto é,
um soldado para cada 18 habitantes, sem contar a população branca local
pró-França) e o exército ainda pedia mais, inclusive a destruição da Re-
pública Francesa.
298 ERIC NOBSBAWM

É dificil, em tais circunstâncias, pôr fim às próprias perdas, mas há


ocasiões em que nenhuma outra decisão faz. sentido. Alguns governos po-
dem tomá-la mais cedo do que outros. Os ingleses deixaram a Irlanda e
Israel antes que sua posição militar se tornasse insustentável. Os franceses
permaneceram por nove anos no Viemá e por sete anos na Argélia, mas,
afinal, saíram. De faro, qual é a alternativa? As ações gucrrilheiras locais ou
marginais ao velho estilo, com as incursões fronteiriças de membros de tri-
bos, podiam ser isoladas ou contidas por meio de vários ardis relativamente
baratos que não interferiam na vida diária de um país ou de seus habitantes,
Algumas poucas esquadrilhas de aviões podiam ocasionalmente bombardear
aldeias (método favorito dos ingleses no Oriente Médio entre as duas guer-
ras), uma zona fronteiriça militar podia ser estabelecida (como na antiga
fronteira noroeste da Índia), e, em casos extremos, o governo tacitamente
abandonava algumas regiões remotas e agitadas à sua própria sorte, durante
um certo tempo, cuidando apenas para que a agitação não sc espalhasse
Mas numa situação como à do Vicmã, hoje, ou da Argélia no fim da década
de 1950, tais procedimentos simplesmente não teriam o efeito previsto. Se
um povo não deseja ser governado mais ao velho estilo, não há muito o que
fazer. É claro que sc as eleições tivessem sido realizadas no Vietnã do Sul
em 1956, como previsto no acordo de Genebra, as opiniões de seu povo
poderiam ter sido conhecidas a um custo consideravelmente menor.
O que resta, em tal caso, aos contra-insurgentes? Seria absurdo pre-
tender que a guerra de guerrilhas seja uma receita infalível para o triunfo
revolucionário ou que suas esperanças de éxito, como agora, são realistas
para mais do que um número limitado de paíscs relativamente subdescn-
volvidos. Os teóricos da “contra-insurreição”, portanto, podem se consolar
com a convieção de que não estão sempre destinados a perder. Mas este não
é o caso. Quando, por uma razão ou outra, uma guerra de guerrilhas chega
a ser genuinamente nacional em caráter e em alcance territorial, e expulsa à
administração oficial de amplas extensões da zona rural, as chances de der-
rotá-la são nulas. O faro de os mau-mau terem sido vencidos no Quénia não
é um consolo para os americanos no Vietnã: muito menos ainda quando
lembramos que o Quénia é agora independente e que os mau-mau são con-
siderados os pioneiros e heróis da lura nacional. O faro de o governo
manés nunca ter sido derrubado pelos guerrilheiros não foi, tampouco, um
consolo para os franceses na Argélia, O problema do presidente Johnson é o
Vietnã, não as Filipinas, « a situação no Viemã está perdida.
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 299

O que permanece em tais situações são ilusões e terror. As racionali-


rações da política atual de Washington foram todas antecipadas na Argélia.
Fomos informados pelos porta-vozes oficiais franceses de que o argelino
comum estava do lado da França, ou que, se não o estava explicitamente,
apenas descjava paz c tranguilidade, é que à Frente de Libertação Nacional
O aterrorizava. Fomos informados, quase uma vez por semana, de que a
situação tinha melhorado, que já estava estabilizada, que no més seguinte
veríamos as forças da ordem reromarem a iniciativa, que tudo o de que se
precisava cra alguns milhares a mais de soldados e alguns milhões a mais de
francos. Fomos informados de que à rebelião em breve acabaria, logo que
fosse privada de seus santuários estrangeiros e de suas fontes de suprimen-
tos. Estes santuários (a Tunísia) foram bombardeados c a fronteira hermeti-
camente fechada. Fomos informados de que bastava a eliminação do grande
centro de subversão muçulmana no Cairo, que tudo estaria bem. Os france-
ses, portanto declararam gucrra ao Egito. Nos últimos tempos, fomos in-
formados de que poderia haver pessoas que realmente queriam livrar-se dos
franceses, mas, uma vez que a Frente de Libertação Nacional não repre-
sentava de modo algum o povo argelino, sendo apenas uma quadrilha de
infiltrados ideológicos, constituiria uma deslealdade infame para com os
argelinos negociar com ela. Fomos informados sobre as minorias que de-
viam ser protegidas contra o terror. A única coisa que não nos disseram foi
que a França usaria, se necessário, armas nucleares, porque nesta época os
franceses ainda não as tinham, E qual foi o resultado de tudo isto? A Ar-
gélia é hoje governada pela Frente de Libertação Nacional.
O meio pelo qual as ilusões tornam-se reais é o terror, sobretudo o que
se exerce — dada a natureza dos fatos — contra a população não-combaten-
te. Lá 0 tertor de longas eras exercido contra os civis por soldados me-
drosos € desmoralizados porque, neste tipo de guerra, qualquer civil pode
ser um combatente inimigo: € este terror culmina nas infames represálias
em massa, como a destruição das aldeias de Lídice é Oradou pelos nazistas
A antiguerrilha inteligente desaconsclhará este tipo de ação, uma vez que cla
é capaz de tornar a população local totalmente hostil. Entretanto, terror e
represálias acontecerão. Além disso, haverá a tortura mais seletiva de pri-
sioneiros para a obtenção de informação. No passado, pode ter havido al-
guma limitação moral a este tipo de tortura, mas não em nossos dias. A
verdade é que fomos tão longe no esquecimento dos reflexos elementares de
300 ERIC HOBSBAWM

humanismo que chegamos ao ponto de, no Vicená, fotografarmos tortura-


dores é vítimas e publicarmos as fotografias na imprensa,
Uma segunda espécie de terror é aquele que está na base de todas as
guerras modernas, cujos alvos hoje são essencialmente mais os civis do que
os combatentes. (Ninguém teria desenvolvido armas nuclcares para qual-
quer outro propósito.) Segundo a ortodoxia bélica, a finalidade da destrui-
ção indiscriminada em massa é abater o moral da população « do governo, e
destruir as bases industriais e administrativas sobre as quais todos os es-
forços de guerra ortodoxa devem se apoiar. Nenhuma destas tarcfas é tão
fácil numa guerra de guerrilhas, porque dificilmente há cidades, fíbricas,
meios de comunicação ou outras instalações para destruir, e não há nada
semelhante a uma vulnerável máquina administrativa central de um Estado
avançado. Por outro lado, êxitos mais modestos podem valer a pena. Se o
terror chegar à convencer mesmo uma única área a retirar seu apoio aos
guerrilheiros e, portanto, empurrá-los para outras áreas, isto é um ganho
líquido para a ação antiguerrilheira. Assim, a tentação de prosseguir bom-
bardeando é queimando ao acaso é irresistível, especialmente para países
como os Estados Unidos, que poderiam tirar à vida de toda a superfície do
Vicená sem consumir em demasia suas reservas de armamento ou de dinheiro.
Finalmente, há aquela forma mais inútil e desesperada de terror que os
Estados Unidos estão hoje aplicando: a ameaça de estender a guerra a ou-
tras nações, a menos que clas possam, de alguma forma, deter a ação guer-
rilheira. Isto não tem qualquer justificativa racional. Se a guerra vienamita
fosse realmente o que o Departamento de Estado imagina, a saber, uma
agressão externa “indireta” sem “uma rebelião espontânca e local”, então
nenhum bombardeio seria necessário no Viemã do Norte. O viercongue
não teria na história uma importância maior do que as tentativas de organi-
zação de guerrilhas na Espanha depois de 1945, que desapareceram deixan-
do poucos vestígios, exceto algumas histórias nos jornais locais « umas pou-
cas divulgações de policiais espanhóis. o contrário, se o povo do Victnã do
Sul apoiasse de fato o gencral do momento que pretende encabeçar seu
governo, ou se simplesmente descjasse ser deixado em paz, não haveria na-
quele país mais distúrbios do que nos scus vizinhos Cambodia c Birmánia,
sendo que ambos tiveram ou ainda têm movimentos guerrilheiros,
Mas está claro, neste momento, € deveria ter estado sempre, que o
vicecongue não irá embora calmamente e nenhum milagre transformará o
Viemã do Sul cm uma república anticomunista estável em um futuro pre-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 301

visível. Como à maior parte dos governos do mundo sabe (embora um ou


dois, como o inglês, seja dependente demais de Washington para admiti-lo
abertamente), não pode haver qualquer solução militar no Vicmã sem, pelo
menos, uma importante guerra terrestre convencional no Extremo Oriente,
a qual provavelmente culminaria numa guerra mundial, quando, mais cedo
ou mais tarde, os Estados Unidos descobrissem que não poderiam tam-
pouco ganhar esta guerra convencional. E nela combateriam várias centenas
de milhares de soldados americanos — porque os aliados dos Estados Uni-
dos, embora sem dúvida dispostos a enviar um batalhão ou uma unidade de
ambulâncias como prova de boa vontade, não são tão insensatos a ponto de
se envolverem seriamente num conflito dessa natureza. A pressão para au-
mentar à escalada da guerra crescerá um pouco mais, e assim também a
crença do Pentágono na mais suicida de todas as numerosas ilusões viema-
mitas: a de que, na luta final, os norte-vicinamitas e os chineses podem ser
derrotados ou levados a uma retirada mediante O terror provocado pela
perspectiva de uma guerra nuclear.
Isto não acontecerá por três razões. Primeiro, porque (não importa o
que os computadores digam) ninguém acredita que um governo dos Esta-
dos Unidos, sinceramente interessado num mundo estável e pacífico, desen-
cadeie de fato uma guerra nuclear no Vietnã. O Vietnã do Sul é uma ques-
tão de vital importância para Hanói c Pequim, do mesmo modo que a
retirada dos mísseis soviéticos do Caribe foi considerada uma questão vital
em Washington; por outro lado, os vietcongues são para os Estados Unidos
“um mero pretexto para salvar as aparências, assim como as bascs cubanas de
mísseis não cram mais do que uma questão marginal para Khruschev. Os
russos recuaram no caso de Cuba porque não valia a pena para cles qualquer
espécie de guerra mundial, fosse muclear ou convencional. Pela mesma ra-
zão, pode-se esperar que os Estados Unidos se retirem do Vietnã do Sul,
desde que estejam interessados na paz mundial € que alguma outra fórmula
para salvar as aparências possa ser encontrada,
Segundo, e na suposição de que os Estados Unidos realmente não
estejam preparados para qualquer acordo realista no Vicmã do Sul, sua ameaça
nuclcar não funcionará, afinal de contas, porque o Viená do Norte, a China
e muitos outros países concluirão que nada se pode esperar das concessões
feitas, exceto exigências adicionais por parte dos Estados Unidos. Fala-se
tanto de “Munique” em Washington, no momento, que frequentemente se
esquece o quanto a situação deve ser semelhante a Munique para o outro
302 ERIC HOBSBAWM

fado. Um governo que se considera livre para bombardear um país com o


qual não está em guerra dificilmente pode se surpreender se à China ou o
Vicmá do Norte se recusarem a acreditar que esta seja a última concessão
que serão solicitados a fazer. Como o governo dos Estados Unidos está
ciente, há hoje situações em que alguns países estão dispostos a enfrentar os
riscos de uma guerra mundial, até mesmo de uma guerra nuclear. Para a
China e o Viemã do Norte, o Viemã do Sul é uma dessas situações, e os
chineses já o deixaram claro. É uma ilusão perigosa pensar de outra forma.
Terceiro e último: a amcaça de uma guerra nuclear contra à China e o
Viemá do Norte é relativamente ineficaz. porque se trata de uma ameaça
que pesa mais contra países beligerantes industrializados, Ela pressupõe que.
nas guerras modernas, há um momento em que um país ou um povo deve
ceder porque sua espinha dorsal está destruída. Este é o resultado certo da
guerra nuclcar para os Estados industriais pequenos e médios e um resul-
tado provável para os grandes (inclusive os Estados Unidos): mas não o
resultado necessário para um Estado relativamente não-desenvolvido, espe-
cialmente um tão gigantesco quanto a China. É verdade, com certeza, que a
China (sem a URSS) não tem qualquer possibilidade de derrotar os Estados
Unidos; a força de sua posição consiste em que tampouco cla pode ser
derrotada em qualquer sentido realista. Suas bombas nucleares, mais sim-
búlicas do que reais, podem ser deseruídas assim como suas indústrias, ci-
dades e muitos dos seus 700 milhões de cidadãos. Mas tudo isto não faria
mais do que retroceder o país ao nível em que estava na época da guerra da
Coréia. Simplesmente, não há americanos suficientes para conquistar e ocu-
paro país,
É importante que os gencrais americanos — e qualquer pessoa que
elabore previsões sobre à guerra, partindo de suposições derivadas de so-
ciedades industriais — percebam que os chineses considerarão uma ameaça
nuclear como inverossímil ou como inevitável, mas não como decisiva. Não
funcionará, portanto, como mma ameaça, ainda que, sem dúvida, os chineses.
não se lancem facilmente numa guerra importante, sobretudo numa muclcar,
mesmo que acreditem não poder evitá-la. Como na Coréia, é provável que
cles não entrem na guerra até serem agredidos ou ameaçados diretamente.
O dilema da política americana, portanto, permanece. Ter trés vezes mais
bombas nucleares do que o resto do mundo impressiona muito, mas não
impede os povos de fazer revoluções que o sr. MeGeorge Bundy desaprova.
Bombas nucleares não podem ganhar uma guerra de guerrilhas como a que
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 303

os viermamitas estão agora conduzindo, c sem tais armas é improvável que


mesmo guerras convencionais possam ser ganhas naquela região. (A guerra
da Coréia foi, no melhor dos casos, um empate.) Bombas nucleares não
podem ser usadas como uma ameaça para ganhar uma guerra pequena que
está perdida, ou mesmo uma guerra de tamanho médio, porque, embora as
massas possam ser dizimadas, o inimigo não pode ser levado a se render. Sc
os Estados Unidos puderem admitir a realidade do Sudeste Asiático. cles se
encontrarão exatamente onde se encontravam antes, isto é, a potência mais
formidável do mundo, cuja posição e influência ninguém quer disputar, ain-
da que seja apenas porque ninguém pode, mas que, como todas as demais
potências do passado e do presente, deve viver num mundo que não é
plenamente de seu agrado. Se não puderem admitir, mais cedo ou mais
tarde farão explodir os seus mísseis. O risco é que os Estados Unidos, afe-
tados pela conhecida doença dos grandes poderes infantis — um sonho de
onipotência —, se deixem arrastar para à guerra nuclcar em vez de enfrentar
a realidade
Capítulo 15

MAIO DE 1968

Este artigo fi originariamente publicado vio New York Review of Books em


1969. Momentos milenares raramente são observados de perto. O ano de 1968
em Pais foi um deles. Assim como nos movimentos dos camponeses (ver capétu-
dos 11 e 12), 05 estudantes de 68 eram anônimos e poderosos, tinham porsa-
voces em ves de líderes, é basicamente não estavam preocupados com a política
dos Estudos em que viviam e que podiam: abalar. Diferentemente dos campone-
ses, era dificil entender o que queriam e o que lhes concernia. Este capítulo
mostra aré que ponto obserondores inteligentes da épuca conseguiram, ow não,
envender esses movimentos. (Ver rambém capítulo 17.) Contudo, ao escrever
em 1968, subestimei os efeitos a longo prazo do choque de 68 no sistema
político
da Erança e de oczros países afezados,

De tudos os acontecimentos inesperados dos últimos anos da década


de 60, um período notavelmente ruim para os profetas, o movimento de
maio de 1968 na Erança foi, sem dúvida, o mais surpreendente — e, para os
intelectuais de esquerda, é provável que tenha sido o mais empolgante. Pareceu
demonstrar O que praticamente nenhum revolucionário acima de 25 anos,
incluindo Mao-Bé Tung € Fidel Castro, acreditava, ou seja, que cra possível
fazer revolução em um país industrial avançado em condições de paz, pros-
peridade e aparente estabilidade política. A revolução não triunfou €, como
veremos, há muita discussão sobre se teria ou não havido mais do que uma
tênue possibilidade de êxito. Não obstante, 0 regime político mais orgulho-
so e autoconfiante da Europa chegou à beira do colapso. Houve um dia em
que a maioria do Gabinete de De Gaulle, e muito possivelmente o próprio
gencral, consideraram a derrora inevitável. Isto foi alcançado por um mo-
vimento popular de base, sem qualquer ajuda dentro da estrutura de poder.
306 ERIC HOBSBAWM

E foram os estudantes que iniciaram e inspiraram esse movimento e em


momentos cruciais foram verdadeiramente seus porra-vozes.
Provavelmente, jamais houve outro movimento revolucionário com maior
percentagem de pessoas que liam e escreviam livros: por conseguinte, não é
de surpreender que a indústria editorial francesa tivesse corrido para satis-
fazer uma demanda aparentemente ilimitada. No fim de 1968, pelo menos
52 livros sobre os acontecimentos de maio haviam sido lançados e o luxo
continua, Todos são trabalhos apressados, alguns não mais do que breves
artigos, suplementados com rcimpressões de antigos escritos, entrevistas à
imprensa, discursos gravados e assim por diante,
Não há razão, contudo, para que reportagens apressadas não possam
ser valiosas se forem feitas por pessoas inteligentes, e o Quarticr Latin de
Patis provavelmente as tem por metro quadrado mais do que qualquer ou-
tro ponto da terra. De qualquer modo, as revoluções e contra-revoluções da
França têm estimulado, em seu momento, alguns dos trabalhos circunstan-
ciais mais notáveis, principalmente O Decoito Brumário de Luis Bonaparte, de
Karl Mars. Além disso, os intelectuais franceses não são apenas numerosos «
clogientes, mas acostumados à escrita rápida e abundante, faculdade desen-
volvida durante anos de noites em claro escrevendo artigos « outros trabalhos
para editores não menos generosos. Acrescente-se aos livros as críticas de
revistas € jornais, encabeçados pelo majestoso e indispensável Le Monde, e
o(a) tpico(a) revolucionário(a) parisiense provavelmente terá reunido o equi-
valente à vários milhares de páginas a respeito de sua experiência própria;
ou, pelo menos, fala como se assim fora.
O que podemos descobrir nessa vasta lireratura? Sem dúvida, a maior
parte tenta explicar o movimento, analisar a matureza é suas possíveis con-
tribuições para a mudança social. Uma proporção razoável tenta adequá-lo
à uma ou outra das categorias analíticas de seus simpatizantes — que são a
esmagadora maioria dos autores — com uma razoável originalidade e argu-
mentações especiais. Isto é narural. Entretanto, não nos proporciona um
outro Desairo Brumário — quer dizer, um estudo da política de Maio de
1968. Indubitavelmente, os eventos estão gravados de forma tão vivida nas
mentes da maior parte dos intelectuais franceses, que cles pensam já saber
tudo a seu respeito. Não é acidental que o que mais sc aproxima de uma
narrativa analítica coerente da crise proceda de dois jornalistas ingleses. Scale e
McConville, Embora não seja um trabalho excepcional, é competente, sim-
pático ao movimento e inestimável para os não-franceses, até pelo simples
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 307

fato de explicar cuidadosamente o que pretendiam todas as desoricntadoras


siglas dos diversos grupos ideológicos do Quarter Latin.
Todavia, se Maio de 1968 foi uma revolução que só fracassou em
derrubar De Gaulle, merece ser analisada a situação que permitiu àqueles
que, algumas semanas antes, faziam parte de um conjunto de facções uni-
versitárias rivais entre si levar à cabo esta tentativa. Do mesmo modo, di
vem ser analisadas as razões do fracasso destas faeções. Por isso, pode ser
útil deixar de lado a narureza € a novidade das forças revolucionárias «
tentar esclarecer a questão menos empolgante de seu éxito inicial e de seu
relativamente rápido fracasso final.
Houve, isto está claro, dois estágios na mobilização das forças revolu-
cionárias, ambos totalmente inesperados pelo governo, pela oposição oficial
e, inclusive, pela oposição não-oficial, apesar de reconhecida, constituída
por importantes intelectuais e escritores da esquerda de Paris. (A intelligont-
sia consagrada da esquerda não desempenhou papel significativo nos even-
tos de maio; Jean-Paul Sartre, com grande habilidade e intuição, reconheceu
isto colocando-se em segundo plano frente a Daniel Cohn-Bendit, diante de
queim atuou simplesmente como um entrevistador) No primeiro cstágio,
aproximadamente entre 3 e U de maio, os estudantes se mobilizaram. Gra-
gas à falta de previsão, complacência e estupidez do governo, um movimento
de ativistas de um campus de subúrbio se transformou em um movimento de
massas que incluía praticamente todos os estudantes de Paris, desfrutando
de amplo apoio da opinião pública — nesse estágio, 61% dos parisienses
foram a favor dos estudantes e somente 16% eram claramente hostis — ese
tornando daí em diante em uma espécie de insurreição simbólica do Quarter
Latin. O governo recuou perante cles e, assim agindo, estendeu o movi-
mento às províncias e especialmente aos operários.
A scgunda fasc da mobilização, de 14 a 27 de maio, consistiu essen-
cialmente na propagação de uma greve geral espontânea, a maior da história
da França e talvez do mundo, e culminou com a rejeição por parte dos
grevistas do acordo negociado em seu nome pelos líderes oficiais dos sindi-
catos e o governo. Durante este período, até 29 de maio, o movimento
popular manteve a iniciativa: o governo. apanhado desprevenido desde o
começo e incapaz de se recuperar, foi-se desmoralizando cada vez mais. O
mesmo ocorreu com a opinião conservadora e moderada, que até então se
mantivera passiva ou mesmo estática, À siruação mudou rapidamente quan-
do De Gaulle, finalmente, tomou a iniciativa, em 29 de maio.
E ERIC HOBSBAWM

O que de início se observa é que somente a segunda fase criou possi-


bilidades revolucionárias (ow, para dizé-lo de outra forma, criou para o gover-
no à necessidade de empreender uma ação contra-revolucionária). O movi-
mento estudantil, por si só, era um transtorno, mas não um perigo político,
As autoridades O subestimaram completamente, e isto se deve em grande
parte a que estavam preocupadas com outros assuntos, inclusive outros pro-
blemas universitários e discussões burocráticas entre vários departamentos
governamentais, os quais lhe pareciam mais importantes. Touraine, o autor
do livro mais esclarecedor publicado imediatamente após os eventos de maio,
disse com razão que O que estava errado no sistema francês não era que
fosse por demais mapolcônico, mas sim que se assemclhasse tanto ao regime
de Luís Felipe, cujo governo também tora apanhado desprevenido pelos
tumultos de 1848 que, consequentemente, se transformaram em revolução.
Contudo, o paradoxal é que à própria falta de importância do mo-
vimento estudantil tenha-o transformado no mais cfctivo detonador da mo-
bilização operária. Tendo-o subestimado e negligenciado, o governo tentou
dispersá-lo pela força. E quando os estudantes se recusaram a ir para casa, a
túnica alternativa foi atirar ou aceitar uma retirada pública c humilhante
Mas como poderiam ter optado por atirar? O massacre é um dos últimos
recursos do governo em sociedades industriais estáveis (a menos que seja
dirigido contra marginais e/ou estranhos), já que destrói a impressão de
consenso popular sobre a qual se apoiam. Uma vez que a luva de pelica
tenha sido colocada em um punho de ferro, é politicamente muito arriscado
tirá-la. Massacrar estudantes, que são os filhos da respeitável classe média,
para não mencionar de ministros, é ainda menos atraente em termos políti-
cos do que matar operários e camponeses. Justamente por serem os es-
tudantes tão só um punhado de jovens desarmados que não colocavam em.
risco O regime, o governo não teve outra opção senão recuar perante eles
Mas, assim agindo, criou a própria situação que queria evitar: pareceu mos-
trar sua impotência e deu aos estudantes uma vitória barata. O chefe de
polícia de Paris, pessoa inteligente, disse mais ou menos a seu ministro que
convinha evitar um blefe, que virtualmente teria de ser dado. O fato de os
estudantes não acreditarem que se tratava de um blefe não muda a realidade
da situação.
De modo inverso, a mobilização dos operários colocou o regime em
uma posição arriscada, razão pela qual De Gaulle finalmente se dispós a
usar o derradeiro recurso, ao convocar o exército, a guerra civil. E não o fez
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 309

porque à insurreição fosse um sério objetivo para alguém, já que nem os


tudantes, que podiam té-la desejado, nem os operários, que com certeza
não à desejaram, pensaram ou agiram cm termos políticos desta natureza
De Gaulle o fez porque a progressiva deterioração da autoridade governa-
mental deixava um vazio, e porque à única alternativa viável de governo cra
uma frente popular dominada inevitavelmente pelo Partido Comunista. Os
estudantes revolucionários podem não ter considerado isto uma mudança
política particularmente significativa, € a maior parte dos franceses quase
certamente a aceitaria mais ou menos de bua vontade.
De faro, houve um momento em que até mesmo as duas instituições
hobbesianas — a polícia francesa e o exército, há muito acostumadas à ava-
liar o exato momento em que O antigo regime deve ser abandonado « o novo
aceito — deixaram claro que não consideraciam como uma insurreição, a qual
fossem obrigadas a combater, um governo de frente popular legalmente consti-
ruído, A insurreição, por si só, não teria sido revolucionária (exceto em sua
maneira de chegar ao poder) e não teria sido considerada como tal. Por outro
lado, é difícil imaginar qualquer outra saída política positiva da crise, inclusive
tendo em conta as expectativas dos revolucionários,
Mas a Frente Popular não estava preparada para ocupar O vazio dei-
sado pela desintegração do gaullismo. Os não-comunistas da cventual alian-
ça foram propositadamente morosos, já que a crise demonstrou que não
representavam ninguém salvo alguns poucos políticos, enquanto o Partido
Comunista, mediante seu controle sobre a confederação sindical mais po-
derosa, era naquele momento a única força civil de real importância «, por-
tanto, inevitavelmente dominaria O novo governo. A crise eliminou a falsa
política de cálculos eleitorais « deixou visível somente a política real dos
poderes efetivos. Mas os comunistas, por sua vez, não tinham íméios para
precipitar o momento de sua união forçada com os demais grupos da oposi-
ção, pois eles mesmos tinham participado do jogo eleitoral. Não haviam
mobilizado às massas, cuja ação empurrou-os para o vértice do poder, e
nem haviam pensado em utilizar aquela ação para forçar a ajuda de seus
aliados. Ao contrário, se é correto o que disse Philippe Alexandre, parece
que consideraram a greve como algo que podia lhes impedir de dedicarem-
se à tarefa realmente importante de manter scus aliados sob controle.
De Gaulle, político extraordinariamente brilhante. percebeu tanto o
momento em que seus opositores perdiam a oportunidade, como a sua
própria chance de recuperar à iniciativa. Com a aparente iminência de uma
10 ERIC HORSBAWM

Ecente Popular liderada pelos comunistas, um regime conservador podia,


pelo menos, jogar seu principal trunfo; o medo à revolução. Foi, tatica-
mente falando, uma esplêndida jogada bem calculada, De Gaulle nem se-
quer teve que abrir fogo. Na verdade, um aspecto que não é o menos curio-
so de toda a crise de maio é que todo o processo construiu apenas uma
prova de força simbólica, parecida às manobras dos proverbiais generais
chineses de tempos remotos. Ninguém tentou seriamente matar alguém. Ao
todo, parece, cinco pessoas foram efetivamente mortas, embora um número
considerável tenha sido ferido.
De qualquer forma, gaullistas e revolucionários coincidiram em atar o
Partido Comunista Francis. seja por planejar a revolução, seja por sabotá-la
Nenhum dos argumentos é demasiado significativo, exceto como indicação
do papel crucial do PC nos fatos de maio. Foi, claramente, a única organi-
zação civil « certamente à única facção da oposição política que conservou
sua força e sua calma. Tsto não é realmente surpresa para ninguém, a menos
que se suponha que os operários eram revolucionários do mesmo modo
que os estudantes, ou que estavam tão desiludidos como eles com o Partido
Comunista
Porém, embora os operários fossem bem mais avançados do gue seus
dirigentes — como, por exemplo, em sua presteza para levantar questões
como o controle social na indústria, a respeito do qual a Confederação Geral
do Trabalho simplesmente não estava preocupada —, as divergências entre
dirigentes e seguidores nos fatos de maio foram mais potenciais do que
efetivas. As propostas políticas do Partido Comunista quase certamente re-
fctiam o que a maioria dos operários desejava e, com absoluta certeza,
refleriam o modo de pensar tradicional da esquerda francesa (“defesa da
república”, “união de roda a esquerda”, “governo popular”, “abaixo o poder
pessoal? etc.) Com respeito à greve geral, os sindicatos assumiram-na quase
imediatamente. Scus dirigentes negociaram com 0 governo e os patrões, «
até regressarem com acordos insatisfatórios, não houve razão alguma para
esperar qualquer revolta importante contra eles. Em suma, enquanto os
estudantes começavam sua rebelião com igual hostilidade a De Gaulle « ao
PG (do qual à maior parte de seus dirigentes havia sc separado ou sido
expulsa), o mesmo não ocorreu com os operários.
O Partido Comunista se encontrava, portanto, em condições de agir.
Sua direção se reunia diariamente para avaliar a situação. Acreditava saber o
que devia fazer. Mas o que fez? Sem dúvida, não tentou salvar 0 gaullismo,
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS an

fosse por razões da política exterior soviética ou qualquer outra. Tão logo à
derrota de De Gaulle pareceu impossível, isto é, nos três ou quatro dias
após a propagação das assembléias espontâneas, formalmente apresentou
sua imediata reivindicação para si e para a Frente Popular de subir ao poder.
Por outro lado, coerentemente recusou todo passível envolvimento numa
convocação de insurreição, com base em que isto favoreceria De Gaulle
isso tinha razão. A crise de maio não era uma situação revolucionária
clássica, embora as condições para ral situação pudessem ter se desenvolvido
muito rapidamente como consegiência de uma raprura repentina e ines-
perada em um regime que se mostrava ser muito mais frágil do que qual-
quer um previra. As forças do governo « a ampla base política em que se
apoiava não estavam, de modo algum, divididas c desintegradas, mas ap-
emas desorientadas e temporariamente paralisadas. As forças da revolução
eram débeis, salvo em tomar à iniciativa. À parte os estudantes, os opcrários
organizados e alguns simpatizantes entre os estratos profissionais de for-
mação universitária, sua base de apoio consistia não tanto em aliados como
na disposição de uma grande massa de cidadãos sem filiação determinada
é até mesmo hostis em abandonar toda esperança no gaullismo c em aceitar
passivamente a única alternativa viável. À medida que a crise avançava, à
opinião pública em Paris tornou-se muito menos favorável ao gaullismo c
algo mais favorável à velha esquerda, mas das pesquisas de opinião não
surgia uma preponderância nítida por uma ou outra opção. Se a Frente
Popular tivesse se concretizado, teria vencido as eleições subsegiientes, exa-
tamente como De Gaulle venceu as suas: vitória é um fator importante para
decidir lealdades.
melhor mancira de derrubar o gaullismo era, pois, deixar que se
destruísse a si mesmo. Em um determinado momento — entre 27 e 29 de
maio —, sua credibilidade havia se desintegrado a ponto de mesmo seus
funcionários € seguidores poderem tê-lo considerado perdido, A pior polf-
tica teria sido a de dar ao gaullismo à possibilidade de reagrupar scus par-
ridários, O aparato estatal c a massa indefinida frente a uma minoria clara-
mente definida c militarmente impotente de operários é estudantes. Apesar
de que desejarem expulsar pela força os operários grevistas das fábricas,
podia-se confiar no exército e na polícia em caso de uma revolta. Assim
disseram cles. E, de fato, De Gaulle recuperou-se precisamente porque trans-
formou a situação em uma defesa da “ordem” contra “a revolução vermelha”.
Que o Partido Comunista não estivesse interessado em “revolução verme-
32 ERIC; HORSBAWM

ha” é outra história, Sua estratégia geral estava correta para todos, inclusive
para Os revolucionários, que inesperadamente descobriram uma oporrani-
dade de derrubar O regime em uma situação basicamente não revolucio-
nária. Supondo, naturalmente, que desejassem tomar o poder.
Os verdadeiros erros dos comunistas foram outros. A prova de fogo de
um movimento revolucionário não é sua disposição para crguer barricadas
em qualquer oportunidade, mas sua presteza em reconhecer quando as con-
dições mormais da rotina política deixam de funcionar, e em adaptar seu
comportamento à nova situação. O Partido Comunista Francês falhou nes
tas duas provas e, em consegiiência, não só foi incapaz de derrubar 0 capi
talismo (coisa que não queria fazer naquele momento exato), mas também
de instalar a Erente Popular (coisa que descjava). Como observou Touraine,
de forma sarcástica, scu verdadeiro fracasso não foi como partido revolucio-
nário, mas como partido reformista. Manteve-se consistentemente atrelado
poe trás das massas, sendo incapaz de reconhecer a seriedade do movimento
estudantil até que as barricadas foram crguidas; e incapaz de reconhecer a
disposição dos operários para uma greve geral indefinida até que as ocu-
pações espontáneas forçaram a mão de seus líderes sindicais, apanhados de
surpresa uma vez mais, quando os operários rejeitaram os termos do acordo
para pór tim à greve.
Ao contrário da esquerda não-comunista, o PC não foi marginalizado,
já que contava com a organização e o apoio das massas. Continuou a fazer
o jogo da política rotincira e do sindicalismo rotineiro. lixplorou uma situa-
ção que não havia criado, mas não a liderou nem a compreendeu sequer,
salvo, talvez. no que representava de ameaça à sua própria posição dentro
do movimento operário por parte da ultra-esquerda amargamente hostil.
Tivesse O Partido Comunista reconhecido à existência « o alcance do mo-
vimento popular, e agido adequadamente, poderia ter ganho suficiente im-
pulso para forçar scus aliados indecisos da esquerda tradicional a seguir sua
linha. Não se pode dizer muito mais do que isto, pois as perspectivas de
derrubar o gaullismo, embora reais por uns dias, nunca significaram mais
do que uma razoável possibilidade. Nestas circunstâncias, condenou-se a si
mesmo, durante os dias cruciais de 27 a 29 de maio, esperando e lançando
apelos. Mas, em tais ocasiões, à espera é fatal, Os que perdem a iniciativa
perdem o jogo.
As probabilidades de derrubar o regime diminuíram não só pelo fra-
casso dos comunistas, mas pelo caráter do movimento de massas. Não tinha
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 313

por si mesmo objetivos políticos, embora usasse uma fraseologia política.


Sem profundos descontentamentos sociais e culturais prontos à cmergir ao
menor estímulo, não pode haver revolução social importante. Mas sem uma
erra concentração sobre objetivos concretos, embora periféricos em relação
a seu propósito principal, à força de tais energias revolucionárias se dispersa.
Uma determinada crise política ou econômica, uma dada situação, podem
proporcionar automaticamente este tipo de inimigos c de objetivos; uma
guerra que sc deva pór fim, um ocupante estrangeiro que deva ser expulso,
uma rupeura na estrutura política impondo opções específicas e limitadas —
tais como apoiar ou não o governo espanhol de 1936 contra o levante dos.
gencrais. A situação francesa não proporcionava esses objetivos de unifi-
cação automáticos.
Ao contrário, a própria profundidade da crítica social contida implici-
tamente ou formulada pelo movimento popular deiou-o sem objetivos con-
eretos. Seu inimigo era “o sistema”, Para citar Touraine: “O inimigo já não
É uma pessoa ou categoria social, o monarca ou a burguesia. É a totalidade
dos modos de ação do poder sócio-econômico. despersonalizado, “racionali-
zado”, burocratizado”. O inimigo, por definição, não tem rosto e nem se-
quer é uma coisa ou uma instituição, mas um programa de relações hu-
manas, um processo de despersonalização; não é a exploração, a qual envolve
exploradores, mas a alienação. É significativo que a maior parte dos pró-
prios estudantes (diferentemente dos operários, menos revolucionários) não
estava preocupada com De Gaulle, excero na medida em que o objetivo real,
a sociedade, estava ofuscada pelo fenômeno puramente político do gaul-
lismo. O movimento popular foi, portanto, subpolítico ou antipolítico. A
longo prazo, isto não diminui sua importância ou influência histórica, À
curto prazo, porém, foi fatal. Como diz Touraine, Maio de 1968 é menos
importante, mesmo na história das revoluções, do que à Comuna de Paris.
Provou não que as revoluções podem triunfar hoje nos países ocidentais,
mas apenas que podem irromper,
Vários dos livros à respeito dos eventos de Maio podem ser sumaria-
mente descartados. Entretanto, o de Alain 'Touraine merece uma conside-
ração à parte.1 Q autor é um estudioso de sociologia industrial de procedência
marxista, o professor de Daniel Cohn-Bendit em Nanterre, o foco originário
da revolta estudantil; cle esteve profundamente envolvido nela em seus pri-
meiros estágios, Até certo ponto, sua análise reflete tudo isto. Seu valor
teside não tanto em sua originalidade — quando se escreveu tanto, a maio-
as ERIC HOBSBAWM

ria das idéias já foram sugeridas e contestadas em algum lugar — como na


lucidez do autor € em seu senso histórico, sua ausência de ilusões, seu conhe-
cimento dos movimentos operários, bem como a contribuição incidental de
sua experiência em primeira mão. Por exemplo, cle escreveu a melhor análise
da greve geral, fenômeno insuficientemente noticiado e analisado, se com-
parado à quantidade de literatura sobre o Quarrier Latin. (Não sabemos prati-
camente nada do que aconteceu naquelas fábricas e escritórios, que afinal
produziram dez milhões de grevistas, a maioria dos quais sem contato com
os estudantes e jornalistas.) Para os leitores estrangeiros, cle tem a vantagem
adicional de proporcionar um conhecimento de primeira mão de outras.
partes do mundo, principalmente dos Estados Unidos e da América Latina,
o que ajuda a corrigir 0 congênito provincianismo francês,
O argumento de Tourainc é elaborado é complexo, mas alguns de seus
pontos podem ser assinalados. O que está acontecendo hoje é a “grande
imutação” de uma velha sociedade burguesa para uma nova sociedade tecno-
crata, e isto, como mostra o movimento de Maio, cria conflicos e dissiden-
cias não só em sua periferia, mas também em seu próprio centro. A linha
divisória da “Jura de classes” que a revela passa pelo centro das “classes
médias”, entre os “tecnoburocraras” de um lado e os “profissionais” de ou-
tro. Estes últimos, embora em nenhum sentido sejam vítimas evidentes da
opressão, representam na economia teenológica moderna algo como à clite
dos trabalhadores qualificados de uma economia industrial anterior, e por
razões análogas cristalizam a nova fase da consciência de classe:
O principal protagonista do movimento de Maio não foi à clase ope
rária, mas a totalidade dos que podemos chamar profissionais . e, entre
cles, os mais ativos foram os mais independentes das grandes organi-
zações, para as quais, direei ou indiretamente, trabalham tal tipo de pes-
soa: estudantes, gente de rádio e televisão, técnicos de escritório de
plancjamento, pesquisadores dos setores público e privado, professores cre
Foram eles « não as antigas coletividades operárias de mineiros, esti-
vadores ou ferroviários os que deram à greve geral seu caráter específico.
Seu núcleo, incidentalmente, se situa nas novas indústrias: o complexo au-
tomobilístico-elerrônico-químico.
De acordo com “Louraine, um novo movimento social adaptado à nova
economia está surgindo, mas se trata de um movimento curiosamente con-
traditório. Em um sentido, é uma rebelião primitiva de pessoas que depen-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS.

dem de experiências mais antigas para enfrentar uma nova situação. Isto
pode produzir um renascimento de antigos padrões de militância ou, entre
os novos recrutas do movimento social que não tenham tal experiência mili-
tante, algo análogo aos movimentos populares dos países subdesenvolvidos,
ou, mais precisamente, 40 movimento operário do princípio do século xx.
Este movimento é importante não pela luta que está cmpreendendo agora,
segundo as antigas orientações políticas, mas pelo que revela a respeito do
futuro: por sua visão, mais do que pela sua realização, necessariamente fra-
ca. Pois a força desta visão de futuro, o “comunismo utópico” que ela criou
em 1968, como o jovem proletariado a criou antes de 1848, depende de
sua impotência prática. Por outro lado, este movimento social também in-
clui ou implica um tipo de reformismo atualizado, uma força que pode
servir para modificar as estruraras rígidas e obsoletas da sociedade: o sis-
tema educacional, as relações industriais, a gerência, o governo. Os futuros
dilemas dos revolucionários residem nisto.
Deixando de lado sua formulação “revolucionária” de uma “contra
uropia” de comunismo libertário para encontrar a “utopia dominante” dos
sociólogos acadêmicos é dos cientistas políticos, foi “revolucionário” este
novo movimento social de Maio? Na França, argumenta Louraine, o novo
movimento produziu uma crise genuinamente revolucionária, embora fosse
improvável que chegasse à revolução porque, por razões históricas, se com-
binaram nela a luta social, a política e uma “revolução cultural” contra todas
as formas de manipulação e integração do comportamento individual. Não
pode haver movimento social hoje que não combine estes trés elementos,
devido ao “desaparecimento progressivo do divórcio entre Estado é socie-
dade civil”. Mas, ao mesmo tempo, isto torna extremamente difícil a con-
centração da luta é o desenvolvimento de instrumentos eficazes para a ação,
como os partidos do tipo bolchevisra
Nos Estados Unidos, por contraste — talvez devido à ausência de
centralização estatal ou de uma tradição de revoluções proletárias que sirva
de referência — não tem havido tal combinação de forças. Os fenômenos de
rebelião cultural, que são mais sintomáricos que operacionais, são os mais
visíveis. “Enquanto na França”, escreve Touraine, “a luta social estava no
centro do movimento e à rebelião cultural era, por assim dizer, um subpro-
duto da crise de mudança social, nos Estados Unidos a rebelião cultural se
situa no centro”, Este é um sintoma de debilidade.
E ERIC HORSBAWM

O propósito de Touraine não é tanto proferir julgamentos ou profecias


— e na medida em que O fizer, será criticado —, mas demonstrar que o
movimento de Maio não foi nem um episódio nem uma simples continua-
ção de movimentos sociais anteriores. Demonstrou que “um novo período
da história social” está começando ou já começou, mas também que a aná-
lise de seu caráter não pode derivar das palavras dos próprios revolucio!
rios de Maio. Touraine provavelmente tem razão em ambas as considerações.

Nota
1. Alain Touraine, Le Mesorement de mai on le comuminismo itapigue, Paris, 1969.
Capítulo 16

AS REGRAS DA VIOLÊNCIA

A primeira vista o presente capésulo, escrito em 1969, pareçe ultrapassado.


Não é mais verdade que “a maioria jilas pesvas], a não ser que deliberada-
mente a procure, pode passar. zoda sua vida adulta sem experiência direta”
com a iolência, mesmo se deisarmos de lado a Irlanda do Norte. O crescente
Stuxo de violência no papel e ma tela mostra a realidade, Meu artigo an-
recapom esses desenvolvimentos e por essa razão permanece relevante o pedido
que aqui se fas de regras é convenções contra o mergulho na barbárie. O
aersigo foi originariamente publicado em Nexw Society
em 1969.

De todas as palavras em voga nos últimos anos da década de 60, a


palavra “violência” é provavelmente a mais corrente c a mais carente de
significado, “Todos falam a su respeito, mas ninguém reflete sobre cla. Con-
forme assinala o relatório recém-publicado da Comissão Nacional de Causas
e Prevenção da Violência dos Estados Unidos, a Internacional Encyclopedia of.
she Social Sciences, publicada em 1968, não tem verbete sob este título.
Tanto a moda quanto a imprecisão são significativas, porque provavel-
mente à maior parte das pessoas que lêem livros intitulados 7he Age of Violence
(não precisamente a respeito de poesia simbolista) ou Children of Violence
íque trata de vidas fisicamente mais tranquilas; está consciente da violência
mundial, mas sua relação com ela é inédita e enigmática. A maioria, a não
ser que deliberadamente a procure, pode passar toda sua vida adulta sem
experiência direta com o “comportamento destinado a causar dano físico à
pessoa ou prejuizo à propriedade” (para usar a definição da mencionada
comissão americana) ou mesmo com a “força”, definida como “emprego
cfetivo ou simples amcaça de violência para compelir outros a fazer 0 que,
em outras condições, não fariam”.
318 ERIC HOBSBANM

Normalmente, a violência física impõe-se às pessoas por uma mancira


direta e por trés maneiras indiretas. De modo direto, ela está onipresente na
forma de acidente de trânsito — casual, involuntário, imprevisível e incon-
trolável para muitas de suas vítimas e que, praticamente, constitui a única
contingência em tempo de paz que leva à maioria das pessoas que trabalham
em casa e escritórios a ter contato cfetivo com sangue é mutilação. De
modo indireto, está onipresente nos meios de comunicação « nos esperícu-
los. Provavelmente não há um dia sequer sem que espectadores e leitores se
deparem com a imagem de um cadáver, cena das mais raras na vida real
inglesa: Mesmo de uma mancita mais remota, estamos informados da e
tência, em nossa época, de fenômenos de vasta destruição de massas, con-
cretamente inimagináveis, para os quais há símbolos adequados (“a bomba”,
“Auschwit7” e outros); como também da existência de setores « situações da
sociedade em que à violência física é fato comum « que é provável estar
crescendo. Tranquilidade e violência, portanto, coexistem,
Estas são experiências curiosamente irreais e, por isso, torna-se muito
dificil compreender à violência como um fenómeno histórico ou social, co-
mo o evidencia a extraordinária desvalorização de termos como “agressão”
na linguagem psicossociológica popular, ou da palavra “genocídio” em po-
lítica. As idéias predominantes do pensamento liberal não tornam as coisas
mais fáceis, já que adotam uma dicotomia totalmente irreal entre “violé
cia” ou “força física” (má c retrógrada) e “não-violência” ou “força moral”
(boa e resultado do progresso). Evidentemente, há quem simpatize com
esta é outras implicações pedagógicas, na medida em que desencorajam as
pessoas a agredir umas às outras, coisa que todas as pessoas sãs c civilizadas
aprovam. Porém, como ocorre com aquele outro produto da moralidade libe-
ral, a afirmação de que “a força nunca resolve nada”, há um momento em que
o estímulo para O bem se torna incompatível com a compreensão da realidade
— isto é, com a construção de sólidos alicerces para o estímulo à bondade.
Isto porque o essenciala respeito da violência, como fenômeno social,
é que cla somente existe sob uma grande variedade de formas. Há ações de
diversos graus de violência que supõem diferentes manifestações qualitativas
da mesma. Todos os movimentos camponeses são manifestações de pura
força física, embora alguns sejam excepcionalmente parcimoniosos no der-
ramamento de sangue « outros degencrem em verdadeiros massacres, por-
que seu caráter e objetivos diferem. Os camponcses ingleses no princípio do
século XIX consideravam legítima a violência contra a propriedade, assim
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 319

como justificável à violência moderada contra pessoas em certas circunstân-


cias, mas sistematicamente se abstinham de matar, embora, em cireunstân-
cias particulares (como nas rixas entre caçadores ilegais e os guardas-fores-
tais), Os mesmos homens não hesitassem em lutar até a morte, É de todo
inútil tratar estes vários tipos « graus de ação violenta como indistincos em
essência — exceto como uma justificativa legal para a repressão, ou como
um ponto de controvérsia sobre o tema “jamais ceder à força”. Além disso,
ações com o mesmo grau de violência podem diferir fortemente em sua
legitimidade ou justificativa. pelo menos frente à opinião pública, O grande
bandido calabrês Musolino, quando solicitado a defimir à palavra “mau”,
disse que significava “matar cristãos sem uma razão muito profunda!
As verdadeiras sociedades violentas são sempre conscientes destas “re-
gras” e de modo acurado. E isro porque a violência privada é essencial ao
funcionamento de sua vida diária, mesmo que possam não ser tão perccp-
tíveis para nós, por parecer-nos intolerável em tais sociedades à alta quanti-
dade de derramamento de sangue em condições normais. Nos países onde
os incidentes fatais em cada campanha eleitoral se contam às centenas —
como nas Filipinas —, parece pouco relevante que, pelos padrões filipinos,
alguns desses incidentes sejam mais sujeitos a condenações do que outros.
Porém, há regras. Nas montanhas da Sardenha, clas constimem um ver-
dadeiro código de direito consuerudinário, que foi descrito formalmente em
termos jurídicos por observadores externos.! Por exemplo, o furto de uma
cabra não é um “delito”, salvo se o leite da cabra for consumido pela família
do ladrão, ou se houver intenção clara de “ofender” ou magoar a vítima.
Neste caso, a represália é progressivamente mais séria, até à morte,
Por mais obrigatório que seja o dever de matar, os membros de fa-
mílias rivais engajadas num massacre múruo ficarão sinceramente conster-
nados se, por algum infortúnio, um espectador ou uma pessoa alheia à rixa
for morta. As situações de violência em que à natureza desta violência pode
causar danos a terceiros tendem a ser claramente censuradas, pelo menos
em teoria, como na pergunta proverbial do irlandês: “essa é uma briga par-
ticular ou qualquer um pode entrar?”. De modo que o risco eferivo para es-
tranhos, embora sem dúvida maior do que em nossas sociedades, é cal-
culável. É provável que os únicos usos de força inconroláveis sejam os
daqueles de posição social superior contra seus inferiores sociais (os quais,
quase por definição, não têm dircitos contra os primeiros), e mesmo neste
caso possivelmente há algumas regras.
320 ERIC HOBSBAWM

Na realidade, algumas regras sobre a violência são familiares também a


nós. Por que, por exemplo, os abolicionistas da pena de morte, que presu-
mivclmente têm objeção contra todas as execuções, basciam uma parte im-
portante de sua campanha no argumento de que às vezes a pera capital tira
à vida de inocentes? Porque, para muitos de nós, incluindo provavelmente a
maior parte dos abolicionistas, a morte do “inocente” evoca uma resposta
qualitativamente diferente daquela do “culpado”
Um dos maiores perigos das sociedades em que a violência direta não
mais desempenha papel relevante para regular as relações cotidianas entre
pessoas « grupos, ou nas quais à violência tem se tornado despersonalizada,
é que elas perdem o sentido de tais distinções. Ocorrendo isto, tambés
desmantelam certos mecanismos sociais de controle do emprego da força
física. Isto não teve grande importância na época em que as formas tradi-
cionais de violência na relações sociais, ou pelo menos as mais perigosas,
estavam diminuindo visível é rapidamente, Mas hoje pode ser que estejam
mais uma vez em ascensão, enquanto novas formas de violência social vi
adquirindo maior importância.
As formas mais antigas de violência podem estar aumentando porque
os sistemas vigentes para a manutenção da ordem pública, criados na era
liberal, estão cada vez mais sob tensão e porque formas de violência política,
como ação física direta, terrorismo etc., são mais comuns do que no pas-
sado. O nervosismo « a perturbação das autoridades públicas, o ressurgi-
mento dos guardas de segurança das empresas privadas é os movimentos de
defesa civil são evidências suficientes. Em certo sentido, as autoridades já
redescobriram determinadas formas de violência controlada, como O retor-
no de tantas forças policiais
a um curioso medievalismo (capacetes, escudos,
armaduras e todo O resto) e o desenvolvimento de vários gases que provo-
cam incapacidade temporária, balas de borracha crc., refletindo a sensata
opinião de que há vários graus de violência necessária ou desejada numa
sociedade — opinião que o antigo direito consucradinário da Inglaterra
jamais abandonou. Por outro lado, as próprias autoridades públicas se acos-
Tumaram à usar certas formas horripilantes de violência, notadamente à tor-
tura, a qual, até algumas décadas atrás, era considerada bárbara e totalmente
inaceitável nas sociedades civilizadas, enquanto uma “respeitável” opinião
pública exige, histericamente, a aplicação de um terror indiscriminado.
Isto é parte de uma nova espécie de violência, que hoje emerge. A vio-
lência mais tradicional (inclusive formas suas que ressurgem) pressupõe que
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS E

a força física deve scr empregada na medida em que não há outros métodos
disponíveis ou cficazes e, consegiientemente, que as ações violentas tém
normalmente uma finalidade específica e identificável, sendo o uso da força
proporcional à mesma. Mas grande parte da violência privada contempo-
rânca pode se permitir ser — e de fato é — não-operacional, de modo que à
violência pública é consequentemente atraída para a ação indiscriminada.
A violência privada não atinge nem pode atingir muito os detentores
realmente importantes e institucionalizados da força, mantenham eles ou
não sua violência em reserva. Onde ela ocorre. tende, portanto, a transfor-
mar à ação em um sucedânco desta. As insígnias € as cruzes de ferro do
exército nazista tinham um objetivo prático. embora não o aprovemos. Os
mesmos simbolos, no caso dos Helfs Angels « grupos semelhantes, tém
apenas uma justificação: O desejo de certos jovens, de outro modo fracos e
desamparados, de compensar suas frustrações com atos « símbolos de vio-
lência. Algumas formas nominalmente políticas de violência (como os s
questros e alguns atentados à bomba neo-anarquistas) são igualmente irra-
cionais, já que na maior parté dos casos seu cttito político é insignificante
ou, o que é mais comum, contra-producente
Os ataques violentos às cegas não são necessariamente mais perigosos
para a vida é a integridade física (em termos estatísticos) do que a violência
das sociedades tradicionalmente “sem lei”, embora seja provável que causem
mais danos a coisas, ou melhor. às suas companhias seguradoras. Contudo,
tais atos talvez scjam justificadamente mais ameaçadores porque, ão mesmo
tempo, são fortuitos « cruéis, na medida em que scu fim não é outro senão
a própria violência. Como o caso do assassinato dos Moors mostrou, o
terrível da fascinação pela indumentária nazista que hoje empolga vários
submundos « subeulruras do Ocidente não é simplesmente uma nostalgia
pelos Himmlers é Eichmanns, burocratas de um aparato cujos propósitos
eram insanos. É o fato de que, para os marginalizados sem orientação, para
os pobres fracos é abandonados, à violência e a crueldade — às vezes sob a
mais personalizada forma sexual e ineficaz socialmente — são os substitutos
do êxito pessoal « do poder social.
O que é assustador nas grandes cidades americanas modernas acom-
binação de antigas formas renascidas e formas emergentes de violência em
situações de tensão e crise social. E estas são as situações que a sabedoria
convencional das idéias liberais é incapaz de enfrentar, mesmo que concep-
tualmente; daf à tendência a recair em uma reação conservadora instintiva,
E) ERIC HOBSBAWM

que é pouco mais do que uma imagem refletida da desordem gue cla pro-
cura controlar, Para dar o exemplo mais simples possível: a tolerância e a
liberdade de expressão do liberalismo contribuem para saturar à atmosfera
com aquelas imagens de sangue e tortura que são tão incompatíveis com o
ideal liberal de uma sociedade baseada no consenso e na força moral.
Estamos, provavelmente, uma vez mais, entrando em uma era de vio-
Iência no interior das socicdades, o que não deve ser confundido com o
crescimento dos conflitos destrutivos entre socicdades, Por isso, é melhor
que entendamos os empregos sociais da violência aprendendo, uma vez mais, a
distinguir entre os diferentes tipos de ação violenta e, acima de tudo, à cons-
truir ou reconstruir regras sistemáticas para a mesma. E nada é mais dificil
para um povo cducado numa cultura liberal, com sua crença de que qual-
quer manifestação de violência é pior do que a não-violência. supondo-se que
os demais farores não varicm (coisa que não ocorre) . É claro que é pior,
mas infelizmente tal gencralização moral abstrata não proporciona orientação
para os problemas práticos da violência em nossa sociedade. O que uma vez
foi um princípio útil de aperfeiçoamento dos hábitos sociais (“resolver os
conflitos pacificamente e não através de lutas”, “auto-respeito não requerer
derramamento de sangue” etc.) transforma-se em mera retórica e contra-
retórica. Deixa sem regras O crescente âmbito da vida humana em que a
violência ocorre c, paradoxalmente, deixa-a também sem quaisquer prin-
cípios morais aplicáveis na prática: seu testemunho é O renascimento uni-
versal da prática da tortura pelas forças do Estado. A abolição da tortura é
uma das poucas realizações do liberalismo que pode ser exaltada sem qual-
quer restrição; todavia hoje a tortura é, uma vez mais, quase que universal-
mente praticada, aceita pelos governos e difundida pelos meios de comuni-
cação de massa
Os que acreditam que toda violência é má por princípio não podem
fazer qualquer distinção sistemática entre os diferentes tipos de violência na
prática, nem perceber seus efeitos tanto naquele que a sofre como naquele
que a emprega. O mais provável é que esses que assim acreditam mera-
mente acabem por provocar, por reação, homens e mulheres para quem
toda forma de violência é boa, seja do ponto de vista conservador ou revo-
Iucionário; ou seja, homens c mulheres que apenas reconhecem o alívio
psicológico subjetivo proporcionado pela violência, sem ter em conta sua
cficácia. Nesse sentido, os reacionários que exigem o retorno dos disparos,
açoites e execuções indiscriminados se assemelham àqueles (cujos sentimen-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS E

tos foram sistematizados por Fanon e outros) para quem a ação com armas
ou bombas é, ipso facto, preferível à ação não-violenta.* O liberalismo não
estabelece distinção entre ensinar as formas mais amenas de judô e as for-
mas potencialmente mais assassinas de caraté, enquanto a tradição japonesa
é perfeitamente consciente de que estas só devem ser aprendidas por aqueles
que tenham suficiente formação e julgamento moral para usar o seu poder
de matar de maneira responsável,
Há indícios de que tais distinções estão sendo aprendidas uma vez
mais, lenta e empiricamente, mas numa atmosfera geral de desorientação e
histeria que dificulta o uso racional é limitado da violência. É tempo de
colocarmos este processo de aprendizagem em bases mais sistemáticas me-
diante à compreensão dos usos sociais da violência, Supondo-se que os de-
mais fatores não variem, podemos pensar que qualquer violência é pior do
que a não-violência. Mas a pior violência é a que escapa 20 controle de
todos.

Notas
1/CE A Pigliaro, La sendeita borbaricina come ordinameno giridico, Milão, 1959.
2. No período do catre-guerras, à Real Evíça Aérea da Inglaterra resistiu à todos os
pianos para utilizá-la na manutenção da ordem pública, bascando-se no fatu de que
Suas armas eram por demais indiscriminadas e que, por isso, estaria sujeita a ser
processada confbime o direito consueradinário.Esce angumento aão foi aplicado quando
bumbarcicaram as aldeias tribais na Índia e no Oriente Médio
3: O argumento de que não se pode provar que escas imagens afete a ação de alguém
são é mais do que um mera intento de racionalizar esta contradição, e não resiste a
um exanme criterioso. Tamponsco valem os argumentos de que 2 cultura popular sem-
pre se divertiu com imagens violentas, ou que tais imagens atuam como uma espécie
de substiruição para o real.
4, Os revolucionários racdonais sempre media a violência inteiramente em funição de
seus fins e resultados prováveis. Quando Lênin soube, em 1916, que o secretário da
social-democracia austríaca havia assassinado à primeiro-ministro austríaco como um
esto de protesto contra à guerra, limitow-se a perguntar porque um homem em sia
posição não tomara uma decisão mens dramática, & ainda assim mais cíetiva, de
difundir pelos arivisas do partido um apelo contra a gucrra, Era evidente para cle que
ut ação enfadonha, mas não-violenta é eficaz, era preferível a uma outra românica,
porém inclicaz. Apesar disto, não se absteve de recomendar a insurreição armada
quando necessária,
Capítulo 17

REVOLUÇÃO E SEXO

Ese capérulo sobre a “revolução culural” ocidental contemporânea comple-


menta o capítulo 15, que traia basicamente da polírica de 1968. Assim como
o capítulo Tó, foi publicado em 1969 na New Society, editada por Paul
Barker o qual fez com que essa revista fosse ralvcz 0 semanário mais brilhanze
da época.

O finado Che Guevara ficaria surpreso e profundamente irritado se


soubesse que sua fotografia é agora capa do Evergreen Review, que sua per-
sonalidade é tema de um artigo na revista Tógue e que seu nome é uma
escusa ostensiva para certo exibicionismo homossexual em um teatro de
Nova York (ver o Observer de 8 de maio de 1969). Podemos deixar a Vigue
de lado. Sua finalidade é dizer às mulheres o que está na moda para vestir,
conhecer e conversar; scu interesse por Che Guevara não tem mais implicações
políticas do que as do editor de Who Who. Os outros dois, entretanto, re-
fctem uma crença amplamente difundida de que existe uma espécie de relação
entre os movimentos revolucionários sociais c a permissividade nó compor-
tamento sextal público, ou quaisquer outras formas de comportamento pes-
soal, Já é tempo de se assinalar que não há bases firmes para tal crença.
Em primeiro lugar, hoje já deveria ser evidente que as convenções so-
bre o comportamento sexual permitido em público não tém quaisquer co-
nexões específicas com os sistemas de poder político ou de exploração social
« econômica, (Uma exceçãoé a dominação dos homens sobre as mulheres c
a sua exploração pelos homens, o que, supõe-se, implica limitações mai ou
menos rígidas para o comportamento público do sexo inferior.) “Liberação”
sexual tem relações apenas indireras com qualquer outra espécie de libera-
326 ERIC HOBSBAWM

ção. Os sistemas de dominação e exploração de classes podem impor severas


convenções de comportamento pessoal (por exemplo, sexual) em público
ou na vida privada, mas também podem não o fazer. A sociedade hindu não
era, em nenhum sentido, mais livre ou igualitária do que a comunidade
não-conformista inglesa, pelo simples fato de que a primeira utilizava os
templos para demonstrar uma grande variedade de atividades sexuais da
maneira mais atracnte possível, enquanto a segunda impunha restrições rígi
das a seus membros, pclo menos em teoria. Tudo O que se pode deduzir
desta diferença cultural específica é que os devotos hindus que quisessem
variar sua rotina sexual podiam aprender à tizê-lo muito mais facilmente do
que os devotos galeses,
Sem dúvida, se é possível alguma generalização simplista sobre à re-
lação entre domínio de classe e liberdade sexual, é à de que os dominadores
consideram conveniente estimular à permissividade ou a lassidão sexuais
entre seus súditos, nem que seja apenas para conservar scu pensamento
afastado do estado de sujeição em que se encontram. Ninguém jamais im-
pós puritanismo sexual à escravos — muito pelo contrário. As sociedades
em que os pobres são rigorosamente mantidos em seu lugar estão acostu-
madas à certas explosões populares regulares c institucionalizadas de sexo
livre, como os carnavais. De fato, como o sexo é a forma mais barata de
divertimento, bem como à mais intensa (como dizem os napolitanos, a
cama é à ópera do pobre), torna-se politicamente muito vantajoso. supon-
do-se que os demais fatores não variem, levar o povo a praricá-lo tanto
quanto possível.
Em outras palavras, não há conexão necessária entre à censura social
ou política e a censura moral, embora frequentemente se suponha que haja.
xigir que algumas formas de comportamento não permitidas sejam publ
camente admitidas só é um ato político se implicar uma mudança nas re-
lações políticas. Conquistar O direito de fazer amor entre brancos e negros
na África do Sul seria um ato político, não porque amplie o âmbito do que
é permitido sexualmente, mas porque ataca à opressão racial, Conquistar o
dircito de publicar Lady Chatterty não traz tais implicações, embora possa
ser bem aceito por outras razões.
Isto deveria ser óbvio em função da nossa própria experiência. Nos
últimos anos, as proibições oficiais ou convencionais sobre o que pode ser
dito, ouvido, feito e mostrado em público— como também na vida privada —
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS a”

a respeito do sexo têm sido virtualmente abolidas em vários países ociden-


tais. À crença de que uma moralidade sexual rígida é um baluarte essencial
do sistema capitalista já não é mais sustentável, assim como também não o é
a crença de que a luta contra tal moralidade é premente. Há ainda alguns
poucos que se lançam em Cruzadas anacrônicas, imaginando-se vigorosos
combatentes contra uma fortaleza puritana — mas a realidade é que suas
muralhas já foram praticamente demolidas.
Não há duvida de que ainda existem coisas que não podem ser publi-
cadas ou mostradas, mas estas são cada vez mais difíceis de encontrar « de
escandalizar alguém. A abolição da censura é uma atividade unidimensional,
como a ousadia dos decotes « o comprimento das saias das mulheres, e se
essa ousadia é excessiva e esse comprimento vai demasiado longe em uma
única direção, a gratificação revolucionária dos cruzados diminui conside-
ravelmente, O direito dos atores de manter relações sexuais em pleno palco
é concretamente um avanço menos importante, mesmo cm termos de eman-
cipação pessoal, do que representou o direito das jovens da época vitoriana
e andar de bicicleta. Até movimentar campanhas contra à obscenidade, nas
quais os editores e produtores se apoiaram por tanto tempo para obter
publicidade gratuita, torna-se hoje bastante dificil
Para fins práticos, a batalha pelo caráter público do sexo já foi ganha.
Mas isto trouxe à revolução social para mais perto, ou mesmo acarretou
qualquer mudança (mudança que pode ou não ser desejável), fora da cama,
da página impressa e do divertimento público? Não há qualquer sinal disso.
ludo o que trouxe, obviamente, foi uma porção de manifestações públicas
de sexo, em uma ordem social que em outros aspectos permaneceu inalrcrada.
Mas, embora não haja conexão intrínseca entre permissividade sexual é
organização social, há, em troca — e o devo dizer com um certo pesar
uma persistente afinidade entre revolução e puritanismo. Não conheço qual-
quer movimento ou regime revolucionário sólido e organizado que não
tenha desenvolvido acentuadas tendências puritanas — incluindo os mo-
vimentos ou regimes marxistas, cujos fundadores elaboraram uma doutrina
nada puritana (ou, no caso de Engels, ativamente antipuritana); incluindo
aqueles em países como Cuba cuja tradição nativa é o oposto do puritanis-
mo; € incluindo a maior parte daqueles oficialmente anarquistas-libertários.
Qualquer um que acredite que a moralidade dos antigos militantes ana
quistas era livre « fácil não sabe do que ele ou cla está falando. O amor livre
as ERIC HOBSBAWM

(no qual acreditavam apaixonadamente) significava não beber, não usar dro-
gas € praticar a monogamia sem um casamento formal.
O componente libertário, ou mais exatamente, antinomiano* dos mo-
vimentos revolucionários, embora às vezes poderoso e dominante no mo-
mento mesmo da liberação, nunca foi capaz de resistir ao puritano. Os Ro-
bespierres sempre acabam vencendo os Dantons. Os revolucionários para
quem a absoluta liberdade sexual ou cultural, que neste caso significam a
mesma coisa, são realmente questões centrais da revolução, mais cedo ou
mais tarde são marginalizados por ela. Wilhelm Reich, o apóstolo do 'or-
gasmo, começou realmente — como à “nova esquerda” nos faz lembrar —
como um revolucionário marxista-freudiano muito talentoso, à julgar por
sua obra Psicologia de massas do fascimo (que tinha por subtítulo “A eco-
nomia sexual da reação política € a política sexual proletária”). Mas pode
mos realmente nos surpreender com o faro de tal homem terminar concen-
trando sua atenção no orgasmo e não na organização? Nem os 5 alinistas
nem os trorskistas sentiram qualquer entusiasmo pelos surrealistas revolu-
cionários que batiam às suas portas pedindo para serem admitidos. Os que
sobreviveram em política não o tizeram como surrealistas
Por que as coisas sc passam deste modo é uma pergunta obscura c
importante, que não pode ser respondida aqui. Saber se é ou não neces-
sariamente assim é uma questão ainda mais importante - - pelo menos para
os revolucionários que consideram o puritanismo oficial dos regimes revo-
lucionários excessivo e fregiientemente fora de propósito. Mas dificilmente
se pode negar que as grandes revoluções do nosso século não se entregaram
à permissividade sexual. Fizeram avançar a liberdade sexual (o fundamental-
mente) não pela abolição das proibições sexuais, mas por um ato maior de
emancipação social: a liberação das mulheres de sua opressão. E que os
movimentos revolucionários consideraram a liberalização pessoal completa
um inconveniente também está fora de questão. Entre os jovens rebeldes,
aqueles que mais se aproximam do espírito e das aspirações da revolução
social ao estilo antigo (maoistas, trotskistas e comunistas) também tendem
a ser os mais hostis ao consumo de drogas, ao anúncio indiscriminado de
sexo, ou outros estilos e símbolos de dissidência pessoal. As razões invo-
cadas são, fregientemente, que “os trabalhadores” não entendem nem sim-
= Referência às doutrinas luteranas de |, Schniceer (1492-1566), que afizmava ser a dé,
e não
dos atos, aúnica condição da salvação (N. T)
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 329

patizam com tal comportamento. Seja ou não assim, o que não se pode
negar é que um comportamento como aquele consome tempo é energia e
dificilmente é compatível com organização e cficiência.
O assunto como um todo é, na realidade, parte integrante de uma
questão muito mais ampla: qual o papel que desempenha na revolução ou
em qualquer mudança social esta revolução cultural que hoje constitui uma
vertente tão visível da “nova esquerda” e que, em alguns países, como os
Estados Unidos, é seu aspecto dominante? Não há revolução social impor-
tante que não se combine, ao menos perifericamente, com tal dissidência cul-
tural. Talvez hoje, no Ocidente, onde a força-morriz básica da rebeldia é a
“alienação” mais que a pobreza, nenhum movimento que não ataque também
o sistema de relações pessoais c de satisfações privadas pode ser revolucionário.
Mas, em si mesmas, à rebelião cultural e a dissidência cultural são sintomas,
não forças revolucionárias. Politicamente não são muito imporranres,
A Revolução Russa de 1917 reduziu a arant-gavde contemporânea e
Os rebeldes culturais — muitos dos quais simpatizavam com ela —- as suas
respectivas proporções políticas e sociais. Quando os franceses entraram em
greve geral, em maio de 1968, os happenivyis no Teatro Odeon « aqueles
maravilhosos grafites (“É proibido proibir”, “Quando faço revolução, é co-
mo se fizesse amor” etc.) poderiam ser vistos como forma menores de lite-
ratura e teatro, marginais aos eventos principais. Quanto mais visíveis estes
fenômenos, mais certeza podemos ter de que os acontecimentos realmente
decisivos não estão ocorrendo. Chocar o burgués, infelizmente, é mais fácil
do que derroti-lo,
Capítulo 18
EPITÁFIO PARA UM VILÃO: ROY COHN

Esta nota de rodapé à cultura dos Estados Unidos durante à Guerra Fria
publicada em 28 de ontubro de 1989. Foi escrizaem Nova Tork para a sé
“Heróis e Vilões* publicada no “The Independent Magazine nos primeirose
premisares anos desse perisico

São poucos os vilões que iniciam sua carteira como motivo de pilhéria
internacional, mas isso aconteceu ao meu escolhido, cm seus dias de jovem
caçador de bruxas. Na verdade, seu início não foi bem esse. Roy Cohn
(1927-1986) já havia fugido do serviço militar, tentado subornar seu pro-
fessor Lionel Trilling, perseguido o eminente especialista em assuntos da
Ásia Central, Owen Lattimore, c ajudado a condenar à morte os Rosen-
bergs, como espiões russos, antes que cle c scu comparsa David Schine,
dois jovens com menos de trinta anos, que pareciam um mau espetáculo de
teatro de revista, visitassem a Europa em 1953, a fim de investigar a Cons-
piração Comunista Mundial para O senador McCarthy. O que lhes interes-
sava na Conspiração cra o fracasso das bibliotecas do Serviço de Informa-
ções dos Estados Unidos (USIS) no exterior em banir as obras de Dashiell
Hammett, e 0 insuficiente anticomunismo da BIC.
Cohn e Schinc ofereceram maravilhosa desculpa para a demonstração
do anti-macartismo europeu, para não falar do esnobismo cultural, é foram
arasados pela imprensa por toda à parte em que estiveram. Vendo-se diante
de uns sessenta repórteres em Heathrow, mudaram os planos e tomaram o
caminho de casa. Depois disso, a maioria dos curopeus esqueceu-se deles.
Contudo, se Schine não sobreviveu à sua curta notoricdade — ele con-
tinua vivo por aí — Roy Cohn tornou a surgir como advogado chicanista
bem relacionado em Nova York, vivendo, nas palavras de seu biógrato, “den-
as ERIC HOBSBAWM

tro de uma matriz de crime c conduta antiética”. Na década de 1970, tor-


nou-se importante celebridade nova-iorquina e, nos anos de 1980, amigo
dos Reagans (é preciso mais?). Acé mesmo antigos liberais reconciliaram-se
com o homem que podia introduzi-los no paraíso da cocaína da boate Stu-
dio 54, na qual tinha participação. Não foi famoso somente à maneira de
Warhol, mas famoso como um influente e, sobretudo, perigoso interme-
diário entre a política c o crime, aplicador de golpes e extorsões. Quando
em 1986, morrendo de aids (de que ele negava sofrer), foi finalmente ex-
pulso da classe dos advogados de Nova York, cujos princípios éticos. ainda
que flexíveis, conseguira forçar em demasia, não houve necrológios polidos.
muito menos compaixão, Até mesmo os ateus da Big Apple, segundo me
disse um deles, acharam que a justiça divina havia atingido Cohn.
É difícil encontrar vilões verdadeiros, mas Roy Cohn cra provavel
mente um autêntico príncipe das trevas. Foi criado por uma mãe judia de
caricatura, à cujos olhos. é claro, nada do que fazia estava errado. Fez car-
reira jurídica e política num meio onde o dinheiro e o poder passam por
cima das regras e das leis — de fato, um meio onde a capacidade de roubar
é ficar impune, que cidadãos menos importantes não possuem, é a prova de
que se pertence à uma elite. O que tornava Cohn imoral, e não amoral, era
uma certa obstinação intrínseca, o mefistofélico “espírito que sempre diz
não”, Democrata a vida toda, vangloriava-se de haver prejudicado a cam-
panha presidencial de scu partido em 1972. Judeu, juntou-se aos anti-semi-
tas; homossexual aliciador por demais notário, levava scus namorados à
reuniões em que se pregava contra os direitos dos homossexuais. Até mes-
mo seu anticomunismo que, ao contrário do do senador McCarthy; parece
ter sido autêntico, ajusta-se a esse padrão, uma vez que seu ambiente judeu
liberal-rooscveltiano de Nova York abominava a intolerância « a caça às
bruxas,
Como advogado (Pouco me importa qual é a lei, diga-me quem é o
juiz”), preferia claramente clientes de reputação duvidosa e bandidos, e não
só achava conveniente como também tinha prazer em dar a entender que
podia fazer matar pessoas. Mais relevante, pois isso finalmente o fez afun-
dar, zombava não só dos deveres de rotina, como também dos deveres não
expressos do profissionalismo. Fraudou não só comerciantes, como também
o ghosrwriter de seus livros — qualquer um que imaginasse não poder lhe
causar algum mal. rafa scus clientes sem hesitação. Durante as décadas em
que era muito fácil a um advogado brilhante e bem relacionado ganhar
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS

milhões de dólares legalmente na Big Apple, ele era um escroque porque


gostava de o ser,
Não tinha conviações nem ambições. As grandes experiências da época
em que viveu passaram despercebidas para ele: a Grande Guerra, Os direitos
civis, o Vicimá, Israel e à causa das minorias. Não se deixou tentar nem por
cargos, nem pela excitação da acumulação de capital, que motivavam tantos
dos homens com quem se associava, os Faustos unidimensionais para quem
cle representava Mefisto, o facilitador. Nada possuía, nada colecionava, nada
o preocupava.
O quê desejava ele realmente, se não abrir o próprio caminho em
tudo, evitando pensamentos incômodos c desfrurando do poder nos basti-
dores, ter à capacidade de fazer favores e de executar ameaças, ser reconhe-
cido por quem lhe interessava e pela mídia, graças à qual ele sempre viveu?
Tarde demais para saber, Exceto alguns poucos favores pessoais sem contrapar-
tida a amigos e amantes, € a capacidade de ser divernido, nada fez de bom à
ninguém e trouse a desgraça a muitos — não só às vítimas de McCarthy mas,
por sua irresponsabilidade, ao próprio senador, Morreu como havia vivido,
furando a fila de outras vítimas de aids. O melhor que se pode dizer a seu
respeito é que, se tivesse nascido em qualquer outro país, não se teria tor-
nado o que foi. Em nenhum outro país teria recebido no hospital um ele-
grama do Presidente (“Nancy e eu temos você em nossos pensamentos e
orações”). Quando morreu, porém, até mesmo à Casa Branca de Reagan
manteve-se em silêncio.
Capítulo 19

O CARUSO DO JAZZ

Ee ensaio foi publicado origimariamense no New Yock Review of Books,


em 12 de maio de 1988, como resenha dos vmos Sidnes Bechet: The Wizard
of Jazz de John Chilton (Nova York, 1988), é Jazz Odissey: The Autobio-
graphy é Joe Darensbourg, narrada por Perer Vacher (Baton Rope, 1988).

Ele foi o primeiro músico do recém-batizado “jazz” a ser identificado


como um “artista de talento”, Poucos músicos de jazz são tão conhecidos
como Sidney Becher, especialmente entre pessoas que não estão particular-
mente tamiliarizadas com esse tipo de música. Ninguém tem voz tão fácil c
imediatamente reconhecível. Poucos mescs após sua morte, em 1959, cr-
gueram uma cstárua dele na Riviera francesa €, graças ao trabalho de seu
biógrafo, sabemos que o rosto dele figura nos selos postais das repúblicas
do Chade e do Gabão. A seu respeito, o pocta Philip Larkin escreveu:
Sobre mim sua vor cal como dizem que 9 amor deveria,
Como um enorme sim.

Também é relevante que, na década de 1920, Becher tenha sido admi-


rado por outros músicos, inclusive por homens de respeitável discernimento
como Duke Ellington e Benny Carter, Não é de surpreender. Afinal, ele foi
um dos primeiros, se não O primeiro, a transformar o saxofone em um
importante instrumento do jazz.
Por que então a carreira de Sidney Joscph Bechet (1897-1959) é, ou
melhor, tornou-se periférica à corrente principal do desenvolvimento do jazz?
Ele estava estrategicamente colocado, e tinha originalidade e talento mais
do que suficientes para se tornar modelo e inspiração para outros músicos, e
336 ERIC HORSRAWM

até um modelo permanente para aqueles que tocavam o mesmo instrumen-


to, como Louis Armstrong, Coleman Hawkins, Django Reinhardr, Charlie
Parker, Charlie Christian e Jobn Coltrane, No entanto, embora tenha inspi
rado Johnny Hodges, integrante da banda de Ellington, é difícil entender
de outro modo o impacto que causou em vida, a não ser pelos discípulos
brancos do Dixieland. Quando os admiradores brancos lançaram a “moda
Bechet”, no final da década de 1930, ele não cra nem mesmo muito conhe-
cido no meio musical,
O livro de John Chilton — um desses consagrados monumentos aca-
dêmicos de informação especializada que o jazz tantas vezes inspirou entre
seus seguidores — provavelmente oferece tanto material quanto foi possível
obter para à compreensão do isolamento de Bechet, Certamente cle substi-
tuí os romances que foram entendidos como autobiografias de Becher.”
uma base indispensável para a exploração subsequente de uma vida extraor-
dinária que, mais cedo ou mais tarde, há de trilhar os caminhos do cinema
ou da televisão, Porque, quantos homens reivindicam ter sido expulsos da
Grá-Bretanha e da França (no primeiro caso, após uma detenção por estu-
pro; no último, devido a uma briga em Montmartre), ter tido longos casos
com Bessic Smith e Josephine Baker, c um relacionamento longo, apaixo-
nado mas periódico, com Tallulah Bankhead, e também ter sido o bebum de
Moscou em meados da década de 1920, depois de ensinar clarincta ao ho-
mem que supostamente cra o “M” original de James Bond? Posteriormente,
ele tocou também em algumas temporadas numa colônia comunista de v
rancio em Berkshires, desatento aos avisos de Will “The Lion” Smith, de
que não conseguia aturar aquele lugar por mais de uma semana. justifi-
cando que cra “o lugar mais cheio de mistura que eu já vi ou de que ouvi
falar — as raças, os sexos, as religiões, estava tudo misturado”.
Diferentemente de outros músicos de jazz de sua geração, Sidney Becher
foi em essência um solitário. Na opinião dos que faziam negócios com ele,
que quase invariavelmente terminavam em briga, cra um homem a ser tra-
ado com muito cuidado. No aspecto mais cgomaníaco do ramo de entre-
tenimento, no qual há vários músicos de jazz, aqueles que negociam com os
artistas tendem a vé-los (no plano pessoal) como monstros em vez de seres
humanos, mas o consenso crítico sobre as dificuldades da vida com Becher
superam as reclamações dos empresários e gerentes.
“Ele era perigoso, se achasse que você não gostava dele”, disse o texano
Sammy Price, pianista de blues, que vinha de um meio em que um mero
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS

pavio curto necessariamente não justificaria o uso desse adjetivo. Ele podia
ser um “demônio”, como admite seu biógrafo, “Uma pessoa muito dificil
de se trabalhar, autocentrada e sem consideração pelos outros, jamais dis-
posta a dividir um holofote”, disse um de seus vários empresários. Até mes-
mo seu aluno é admirador Bob Wilber admite que “cle podia ser mau e. não
é uma palavra forte demais, paranóide (sic)”. Queros estavam constante-
mente conspirando contra ele — em pelo menos uma ocasião, cle esteve
convencido disso —, usando bruxaria, contra a qual reagiu apropriadamente,
musicando O Salmo 23. Ficou tão preocupado que fez isso sem pagamento.
Em poucas palavras, como na piada de Cocteau sobre Victor Hugo,
Sidney Becher estava muito perto de ser um louco que imaginava ser Sidney
Becher. Nos dois casos, a ilusão era justificada pelos incgáveis talentos do
homem, Além disso, nos dois casos, a ilusão se tomou realidade. Os france-
ses reabriram o Panteão para o falecido Hugo e crgucram uma cstárua para
o falecido Becher, que deu isso por certo. “Minha Iembrança mais cons-
tante”, escreveu um músico do show semanal, “é ver Sidney sentado nos
bastidores, como se fosse um rei em um trono. Ele recebia seus leais súditos,
é alguos vinham com agradecimentos efusivos. Alfred Lion, dos discos Blue
Note, veio e festejou com champanhe, que Sidney aceitou com uma re-
verência egocêntrica, mas real”.
Essas características provavelmente são suficientes para explicar o seu
isolamento musical. De modo geral, nas oncrosas formas estruturadas do
entretenimento, no palco e na tela, os excessos de solipeismo eram (até à
ascensão do rocknvroll; mantidos sob controle. O jazz é uma arte demo-
crática, moldada pelos que tocam juntos, O que impõe limites a todos os
participantes: nenhum patinador, por mais brilhante que seja, tem muitas
oportunidades de fazer exibições pessoais em um jogo de háquei, a não ser
numa patinação solo.
Mas Becher, embora reconhecesse, evidentemente, a natureza coletiva
de sua música, parece ter se ressentido de todas as versões de jazz que não
construíssem O coletivo em torno de sua voz central e dominante, ou que,
pelo menos, lhe permitissem fazer regularmente um virtuoso mostruário
cela, Na verdade, cle trocou seu instrumento original, a clarinera, pelo sax
soprano, no qual quase ninguém havia se especializado durante 0 seu tempo
de vida, certamente devido à sua maior capacidade de liderar, ou de se im-
por, em um grupo. Bechcr não suportava instrumentistas que tomavam à
liderança, que convencionalmente pertenciam a scus instrumentos, especial-
3as ERIC HOBSBAWM

mente aqueles como Louis Armstrong, que poderiam ofuscar o seu brilho e
dos quais ele sentia uma profunda inveja. Ele trabalhava melhor com parcei-
tos bons e de temperamento fácil, que não competiam pelo primeiro lugar,
como o trompetista Tommy Ladnier e o cornetista Muggsy Spanier, com os.
quais produziu discos maravilhosos. Nesses casos, reservou um espaço ade-
quado para seus solos. Ficava ainda mais à vontade com instrumentos que
complementavam o seu, como o piano de Earl Hines, no famoso Blues in
tido,
No entanto, ele tinha essencialmente os instintos, mas não os talentos,
de um oficial comandante ou, talvez, do antiquado ator-empresário que se
assegurava de que os seus esperículos seriam sobre si mesmo. Foi por isso
que, anos mais tarde, sentiu-se bem com os músicos franceses, menos talen-
tosos e experientes, para os quais ele cra o honorável sensei ou mestre, mes-
mo quando roubava os solos daqueles que olhavam para as garotas das
quais cle gostava.
Bill Coleman, o delicado trompenista expatriado, foi injusto ao acusar
Becher de “ser feliz somente quando pode vociferar ordens para amadores”.
O máximo que se pode dizer é que cle precisava de mais controle do que
gostava, ou do que geralmente tinha. Seu melhor trabalho foi feito em
Pequenos grupos de músicos que tinham certeza de seu próprio talento c,
acima de tudo, de seu profissionalismo. Ele gravou músicas maravilhosas
com o baterista bop Kenny Clarke, em 1949, embora nenhum dos dois
tivesse muita simpatia ou sentisse emoção pela música do outro. Ele cra ainda
melhor quando compartilhava com seus parceiros as idéias básicas sobre o
formato e o procedimento, como um antigo acompanhante scu lembrou:
Becher « Braud [o contrabaixista Wellman) chegaram com grandes casa-
cos € chapéus velhos; acho que Becher usava uma boina. Senraram-se
tente a frente c fizeram gracejos. Era como um ritual antigo entre che-
fes. Muggsy [panier] juntou-se a cles enquanto fazia aquecimento — o
mesmo tipo de abordagem. Acostumado ao razzmarmzs [das prepara-
ções de sua banda de swing], fiquei imaginando 6 que aconteceria: um,
dois, rés, quatro, e já! À música explode em volta de mim.
Contudo, o isolamento de Becher não cra só pessoal, mas também
geográfico. O jaz é, entre outras coisas, a música da diáspora. Sua história
é parte da migração em massa do Sul antigo, e, por razões econômicas (e
fregilentemente psicológicas), é feita por pessoas desimpedidas que passam
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 339

grande parte do tempo na estrada. Certamente não teria se tornado tão


cedo a música nacional norte-americana, sé homens com trompetes não a
tivessem levado a lugares onde não era conhecida. A autobiografia de Joc
Darensbourg, Jazz Odyssey, ilustra essa difusão da excelência do jazz de Nova
Oricans, e ao fazé-lo lança uma luz sobre à geração pioncira à qual Becher
pertence, Transporra o scu herói da década de 20, do Baton Rouge, via Los
Angeles, Mississippi, Tennessee, St. Louis e Harrisburg, Illinois, de volta
para a costa oeste e acima, para o noroeste do Pacífico, que ele ajudou à
abrir para O jazz. Na história dessa música, cidades como Scartlle, Portland
e Spokane não tiveram muita importância, mas Darensbourg, demonstra
que os historiadores sociais do jazz deveriam ao menos levar o Norveste à
sério. (“Entre os músicos, espalhava-se o comentário de que se podia fazer
dinheiro em Seattle. lira uma cidade de dinheiro”, diz Darensbourg.)
Não obstante, a maioria dos músicos migrantes de jazz ficou nos Es-
tados Unidos, que de qualquer modo era o lugar onde estava a ação, Becher
pertencia à minoria que desde 0 início voltou-se para o mercado global de
artistas negros: mulheres como Josephine Baker, descoberta em Paris, e ho-
mens como o pianista Teddy Weatherford trabalhavam sobrerado nas gr pe
des cidades portuárias asiáticas, como Xangai é Calcutá. em meados da década
de 20; é o caso também do trompetista Bill Coleman, que viveu principal-
mente na França a partir do início da década de 30. O próprio Becher
passou apenas trés anos da década de 20 nos Estados Unidos (1922-1925)
é o resto na Inglaterra, França. Alemanha, Rússia c outros países menores
da Europa, o que explica por que ele gravou muito menos nessa década do
que os músicos com menos talento, e por que, quando voltou aos Estados
Unidos, em 1931, os músicos mais jovens o consideravam ultrapassado em
relação a saxofonistas importantes como Hawkins c Benny Carter, Muita
coisa havia acontecido aquela música que evoluíra rapidamente nos quase seis
anos decorridos desde a sua partida. Provavelmente, vários músicos. mais
jovens da era do swing continuavam à considerá-lo um instrumentista só-
lido mas antiquado, se é que pensavam nele.
Na verdade, a posição de Becher era tão marginal que cle e Tommy
Ladnier deixaram de dedicar tempo integral à musica para abrir uma loja de
conserto e lavagem de roupas no Harlem, cm 1933 (sem sucesso, como
todos os projetos comerciais de Becher, que se considerava crroneamente
um empreendedor); depois, em 1939, ele cogitou abandonar a música de
novo para abrir uma hash house na Filadélfia. im suma: o homem que havia
so ERICHOBSBAWM

sido uma pessoa e uma referência importante no início da década de 1920,


aos 42 anos mostrava um talento exaurido, uma impressão reforçada pelo
fato de parecer mais velho do que de fato era.
É certo que voltou aos Estados Unidos numa época ruim para o jazz.
Não que a queda da bolsa tivesse destruido o mercado de discos de jazz, que
não eram máquinas de fazer dinheiro para os acompanhantes, como o hot
jazz, de algum modo atado ao espírito dos exuberantes anos 20, mas ele se
tornou uma vítima da atmosfera depressiva, assim como dos problemas de
dinheiro dos anos da queda. A mudança do gosto do público para longe do
rápido e do sonoro em direção à terra de sonhos — que não foi suficiente-
mente analisada pelos historiadores do jazz — foi internacional no início da
década de 1930. Os críticos da música alemã observaram esse faro com
muita satisfação, no período entre 1931 e 1933. Chilton demonstra que
isso também fui observado no Harlem. Em 1932. Rudy Vallee atraía dois
mil fregueses por noite na sala principal, e Ellington, apenas um quarto
disso; Guy Lombardo, 2200. mas Cab Calloway, quinhentos; Ben Bernie,
dois mil, ào passo que Louis Armstrong, 350. Becher não era o único mú-
sico para quem os tempos não estavam muito bons no início da década de
30, mas deve ter sido especialmente difícil para um homem tão consciente
de scus talentos sentir a falra de dinheiro e da fama entre os seus pares.
O que o salvou foi o estranho e incsperado fenômeno do antiquarismo
do jazz, ta forma de uma busca pela verdadeira música de Nova Orleans,
obra dos apaixonados grupos de fis formados por jovens brancos, para os
quais o jazz não era apenas música, mas um símbolo e uma causa. O revival
do Dixieland, que nasceu dessa busca, foi descartado (no The Nor Grove)
como “o movimento de mais longa duração no jazz. mas . o único a ter
produzido uma música sem valor”? Contudo, se cle tivesse apenas recuperado
Becher para a tradição principal do jazz, já teria justificado sua existência.
Becher sempre atraiu os conhecedores de música. Emest Ansermet es-
creveu seu panegírico universalmente citado em 1919, quando Edward J.
Dent, 6 campeão da ópera de Mozart, também o escolheu favoravelmente
dentre o resto da Southern Syncopared Orchestra, que considerava “entre-
tenimento de pesadelo”. O esquecido clogio de Ansermet (“Gostaria de
anotar o nome desse artista de talento; quanto à mim, jamais o esquecerei, é
Sidney Bechet”) circulou depois de 1938, quando foi republicado no Le
Jasz Hot (francês) e no Melody Maker (inglés).
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 34

O pequeno mas seleto grupo de amantes cultos do jazz não tinha pro-
blemas para reconhecer sua qualidade, contudo, outros poucos escuravam
grupos fugazes como os New Orleans Feerwarmers, de 1932-1933, e a meia
dúzia de lados de discos que gravaram. Depois que o mercado para o jazz sc
reaqueceu de novo, em meados da década de 30, os aficionados consegui-
ram algumas pequenas sessões em grupo para Becher, que o puseram diante
de um público de jazz importante e lhe asseguram a reputação: as seguên-
cias de 1937 com o selo Variety (iniciada por Helen Oakley, apoiada pelos
antigos admiradores de Becher, Ellington « Hodges), os discos clássicos de
Bechet & Ladnicr de 1938, produzidos pelo crítico pioneiro francês Hugues
Panassié, e, é claro, John Hammond e o famoso New masses, base do show
Frota Spirizuals to Swing, no Carnegie Hall cm 1938. Eles inspiraram as
gravações de 1939 de Bechet, feitas por um recente entusiasta do jazz re-
fugiado de Berlim, Alfred Lion, que promoveu o sucesso de seu novo selo
Blue Note, assim como confirmou o de Becher
Embora os resgatadores curo-americanos de Becher apreciassem a tra-
dição de Nova Orleans — como poderia um amante do jazz não à apreciar?
— é estivessem ansiosos para trazer de volta artistas injustamente esqueci-
dos, cles não eram aficionados dos New Orleans. Mesmo as sessões de Becher
& Ladnier, que, como se reivindicava, “tinham mais a ver com 0 revival do
Dixieland do que quaisquer outras”, distinguiam-se mais pelo talento ar-
tístico do que pela autenticidade. No entanto. por trás deles surgia uma
maré de nostalgia, especialmente entre os jovens brancos de classe média, da
pura, maravilhosa « verdadeiramente única música de jazz, que de alguma
ma havia sido traída quando o Storville fechou e os instrumentistas
subiram o Mississipi; embora o fato de os sobreviventes da década de 20
fazerem suas próprias coisas fosse melhor do que nada, sobrerudo se fossem
negros.
O vevival do Dixicland ou dos New Orleans foi um fenômeno essen-
cialmente não-musical, não obstante capacitasse um grande número de ama-
dores a se divertir tocando “Muskar ramble” « múmeros semelhantes. Per-
tence à história cultural e intelectual, e é por isso que merece a investigação
séria que ainda não recebeu. Foi um movimento basicamente branco, em-
bora naturalmente bem recebido pelos músicos crioulos maduros, em par-
ticular os necessitados de dinheiro. Nova Orleans tomou-se um mito e um
símbolo múltiplo: anticomercial, anti-racista, prolerário-populista, radical do New
Deal, ou apenas anti-respeitável ou antipatemal, dependendo do gosto.
E) ERIC HOBSBAWM

Nos Estados Unidos é em outros países anglófones, o seu centro ideo-


lógico situava-se sem dúvida na fronteira entre o New Deal e o Partido
Comunista, embora para a maioria dos jovens fis fosse algo que podia falar
diretamente ao coração dos mais desinformados. O importante livro inter-
nacional Jazemen, de 1939, a primeira história da música americana bascada
em pesquisa, que estabeleceu a versão do “rio acima de Storyville” em sua
forma mais pura, foi co-editada por um crítico de música no Daily Worker.
A mania de revival ligou a causa dos negros ao gosto (da minoria) por jazz,
com canções e música folk, antiga e moderna, que foram, e continuaram a
ser durante muito tempo, os pilares centrais da subculrura de esquerda que
emergiu na cultura do New Deal.
Devido a isso, Bechet, “um homem de gosto musical católico”, achou
que “tinha sido de alguma forma arrastado para o mundo do Dixieland”. A
seu ver, O Dixieland era em primeiro lugar a chave para o reconhecimento.
As gravações de 1940, que dividiu com Louis Armstrong, provaram que cle
havia vencido (considerando-se o seu recomeço tardio), com uma veloei-
dade impressionante, A partir desse momento, nenhuma lista de “os gran-
des do jazz” o deixaria de fora, Em segundo lugar, 6 movimento do Dixicland
permitiu-lhe continuar a fazer o que ele vinha fazendo desde que dissera à
Ansermer, em 1919, que seguia “o seu próprio caminho”, sem se preocupar
muito com os outros. A idade O tornou inegavelmente um dos patriarcas
fundadores do jazz de Nova Orleans, e o seu estilo era, ipso fícto, além da
crítica, Na verdade, Becher sentia-se em casa no limitado formato do Dixie-
land, porque era basicamente um improvisador e melodista lincar, que não
e interessava muito por jogos de harmonia enquanto tais. De qualquer
mode, ficava muito satisfeito com que as fortes, fluentes e pulsantes cordas
de som maravilhoso (Armstrong chamava sua melodia de “um pote de mel
dourado”) estivessem facilmente acessíveis mesmo aos não-musicais, exceto
para aqueles — e eles sempre existiram — que achavam intolerável o seu
notável ibrato. Ele não foi, nem tinha que ser, um purista, mas também
não teve que ser arualizado; isso aão o impediu de tocar esplendidamente com
qualquer músico de primeira linha, não importando o estilo,
Até onde o Dixieland garantiu-lhe o sustento? Essa questão sem dú-
vida O preocupava, É certo que contava muito com o público do pequeno
grupo de músicos de jazz redescoberto da década de 1920, que encontrou
uma casa no Greenwich Village, junto com Nick e o seu relações públicas,
Eddie Condon. É certo que contava a presença de seus contatos de esquerda
TESSOAS EXTRAORDINÁRIAS. aa

nos shows, embora não seja claro até que ponto isso cra meramente comer-
cial. (No entanto, apesar das sugestões de sua simpatia para com os comu-
nistas e de suas lembranças indubitavelmente afetuosas da Rússia, é difícil
ver Becher como uma figura política, ainda mais como um vermelho entre
os músicos negros de jazz.) Quanto ao revival dos New Orleans, ele reco-
nheceu seu potencial para um membro da Crescent City. Sejam quais foram
os motivos, em 1945, a sociedade com Bunk Johnson, um antigo trom-
petista desenterrado pelos puristas « transformado em Ícone da aurentici-
dade, mostrou sua posição aos fis. Mas como aconteceu em sociedades an-
teriores, esta também terminou mal.
Entretanto, nenhum desses trabalhos lhe proporcionou uma renda ade-
quada, no nível que Bechet considerava conveniente à sua posição, embora
no final da década de 40 ele dispusesse de uma parcela considerável de
direitos autorais em discos. O convite para ir à França em 1949 foi o que
finalmente resolveu seus problemas. Nesse país onde o jazz tinha enorme
prestígio cultural e intelectual, além de associações com a Resistência, ele
encontrou o que tinha sempre sonhado: um grande público para o qual o
homem com nome francés « apoiado por críticos franceses era um gênio
consagrado do jazz, e uma comunidade de fis formada por jovens músicos,
cujos corações batiam mais rápido só de pensar que cle os honraria ao en-
trar em seus porões. A França se tornou seu lar permanente, Ele passou a
ser um mascote cultural, como Josephine Baker O fora antes, Sua música
não foi assim rão boa, mas isso não o prejudicou financeiramente. Livrou-se
dos atritos pessoais c empresariais que sempre complicaram sua vida nos
Estados Unidos. Viveu a vida como um exilado feliz
O homem que surge das admiráveis pesquisas de Chilton cra um pro-
duto típico de Nova Orleans «, ao mesmo tempo, um personagem peculiar.
Como membro dos crioulos de cor, os membros da (francófona) classe média
baixa e artesãos mulatos livres, pressionados em direção aos negros pela
segregação pós-Guerra Civil, ele adquiriu as habilidades musicais e profis-
sionais de sua comunidade, Ao longo de sua vida aprendeu a costurar c
cozinhar, embora se recusasse a ser aprendiz de artesão, como foi a maioria
dos músicos crioulos. E também, o que é mais surpreendente, recusou-se à
aprender a ler música, sem dúvida porque, no início, isso parecia desne-
cessário a um músico naturalmente tão brilhante, mais tarde por revolta ,
no final, talvez por orgulho defensivo.
se ERIC HOBSRAWM

Compartilhava as convenções sociais dos crioulos de Nova Orleans, o


seu gosto por se vestir bem, o seu orgulho justificado pela tradição musical
da cidade e, talvez, a incomum falta de interesse pelas relações raciais, que
parece ter sido característica dos músicos de Nova Orleans. Na autobio-
grafia de Joc Darensbourg, é impossível descobrir se ele era branco ou pre-
to. O próprio Becher disse várias vezes que estava mais interessado no ta-
lento musical de um homem do que na cor de sua pele, afirmando também,
a propósito de Mezz Mezzrow, um campeão branco de superioridade negra,
que “a raça não importa: o que conta é acertar as notas!
“Talvez o profundo interesse pela música clássica, que teve a chance de
desenvolver em Moscou - - nos dias livres ia regularmente a concertos sin-
tônicos antes de dirigir-se às boates —, fosse bascado na cultura musical
pré-1914, que as famílias crioulas de classe média baixa de Louisiana com-
partilhavam com seus cquivalentes na Dublim de James Joyce, Caruso, de
quem Becher dizia ter tirado seu ribrato, era parte de ambos. De qualquer
modo, Becher, um grande homem para o espressivo, incluía num solo uma
citação do Igliacei tão rapidamente quanto colocava um retrato de Becchoven
na parede
Não se pode negar que esse homem encontrava-se num ângulo bas-
tante agudo de seu próprio universo. Os músicos de jazz são mais tolerantes
para com as extravagâncias do comportamento humano do que qualquer
outro grupo de pessoas; embora ninguém que tenha tocado com Bechet
deixasse de admirar sua admirável musicalidade, nas cochias a visão geral que
sc tinha dele era nitidamente pouco entusiasmada, estivesse cle com ou sem 6
cachorro e a faca que frequentemente O acompanhavam, Mesmo Ellington, o
fá que considerou seriamente trazê-lo de volta à banda em 1932, no final
optou pelo não. Ele deve ter sido um homem difícil de se relacionar, du-
rante poucoe muito tempo, embora lhe foss manter a fala macia e o
charme cordial de Nova Orleans com as mulheres.
Permanece como uma figura extraordinária do jazz: um artista que
não sabia escolher seus papéis, um homem que vivia sempre num mundo
de fantasia, um viajante estrangeiro que entrava e saía da cidade, que não se
sentia em casa, a não ser no trono que julgava seu de direito, ficl a ninguém
a não ser a si mesmo, Mas ele também foi um artista notável, inesquecível,
absolutamente original, apesar de permanecer firme numa tradição em ob-
solescência. Após à morte, adquiriu fama até mesmo entre os modernistas,
como se vé pela expansão do sax soprano entre eles. Este fora virtualmente
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS aus

monopólio de Bechet. Coltrane o resgatou em 1961. Tornou-se um clássico


póstumo.
Ainda assim, se não fosse pelos poucos intelectuais do jazz que o recu-
peraram, pelos pequenos selos do jazz no final da década de 30, pelos garo-
tos brancos dos clubes de porão, pelos franceses que tornaram seu sonho
realidade, o que teria acontecido com cle? Ele não teria cabido nas grandes
bandas de swing. Teria ficado por aí, mas por que motivo os músicos mais
jovens abririam espaço para um homem velho, com uma voz do passado,
que parecia não ter interesse por idéias novas e tinha fama de ser filho da
puta, egoísta, truculento e sovina? Talvez depois de sua morte alguns músi-
cos pudessem, por acidente, ter descoberto os seis lados de disco, esqueci-
dos desde 1932, e, ao escurar o estupendo “Maple leaf rag”, ter sentido o
mesmo que Coltrane disse a respeito dessas sessões: “Será que todos os caras
velhos tinham um swing como esse: mas Bechet tinha.
Graças aos brancos de classe média não precisamos tirar do rámulo os
poucos e velhos 78 rpm. Tivemos a sorté de recuperar um clássico enquanto
cle ainda estava vivo. Afinal, há uma justificativa para os fãs do jazz, mesmo
para os que não o conhecem muito bem. Quando escutam não tém tra-
balho para reconhecer a eloguência, a paixão lírica, a alegria rítmica « os
blues que saíam do sax de Bechet quando cle o soprava. Fãs nem sempre se
apaixonam pelo melhor das artes, mas desta ve otizeram,

Notas
1. Sidney Bechhe, Trsãr de Gens: Au Auobsigrapi, Lundres, 1960. Eoi publicada após
uma trajetória atribulada de edirores, advogados e colaboradores como John Card
2. Paul Oliver, Max Harrisome William Bolcom, The Ni Grove: Gospel, Blues ama Jaco,
Nora Yock, 1987, p. 292.
à Gomtudo, à opinião negativa de Anscrmet, trinta amos mais tarde (“Os dias do jazz
acabaram, Ele fez sua contribuição à música, Agora. cm si mesma é apenas mo-
nótem”), não foi difundida pelos amantes do jazz ox f3s de Bechet, embora Chilton
a regis,p. 207.
Capítulo 20
COUNT BASIE

Este artigo apareceu originalmente no Nexe York Review of Books, em 16


de janeiro de 1986, como resenha dos lime Good Morning Blues: The
Autobiography of Count Basie, narrada a Albert Murray (Nova Tork,
1986, é The World of Count Basie, de Stanley Dante (Nova Tork, 1985).

Em algum momento da década de 1950, à música popular norte-ame-


ricana cometeu um parricídio. O rock assassinou o jazz, Em sua autobio-
grafia, Count Basie desereve um momento desse assassinato. Havia
uma coisa infernal acontecendo em um teatro em algum lugar da rua
14. Costumávamos ir pára lá por volta das onze horas, mas ninguém
conseguia chegar perto por causa da multidão ... Lembro-me disso €
também de como as coisas eram. Os primeiros grupos a se apresentar
continuavam à tocar, e os garotos ficavam apertados lá no baile, aplau-
dindo e assobiando, Então, quando chegava a nossa hora, quase todos
se levantavam, saíam, compravam pipoca, sorvete e tudo o mais, e nós
tocávamos para uma casa quase vazia. Quando terminávamos a nossa
parte, eles entravam novamente, É sério.
Então descíamos, ficávamos jogando póquer até que chegasse a nossa
hora de tocar de novo. Era assim mesmo que as coisas aconteciam. Aque-
es garotos não ligavam à mínima para o jazz. Alguns ficavam, vinham
para a frente, ali, em pé, escutavam a gente é tentavam ouvir o máximo
que conseguiam, e à gente alrernava, rápido, lento, mas não fazia dife-
rença. Não era isso O que tinham vindo ouvir. Para cles, nós apresen-
távamos um número durante o intervalo. Era isso, Não significava mais
mada, Vocé tinha de aceitar.
us ERIC HOBSBAWM

Se alguém quisesse transformar 0 Good Morning Blues numa peça, essa


imagem do bandieader envelhecido aceitando à maneira estóica uma derrota
profundamente ressentida seria um belo momento. Mas a carreira de Basic
continuou por mais trinta anos, embora sua memória corra através deles.
Ele não viu a atual ressurreição do jazz como música clássica norte-ameri-
cana dos profissionais de classe média, nem como música que anima jan-
tares nos restaurantes vuppies do baixo Manhattan.
As últimas décadas anteriores à sua morte, em 1984, não foram as
mais iluseres na carreira daquela que foi não a maior big band do jazz — o
próprio Basic enfítiza constantemente a supremacia de Ellington —, entre-
tanto foi, de diversas maneiras, a expressão mais pura do populismo no
jazz: que é ainda visto como a contribuição musical mais importante dos
Estados Unidos à cultura mundial. Basic é uma figura central, tanto na cra
dourada da música, que coincidiu com os anos do New Deal, como na
descoberta do jazz, até então uma música de negros pobres pouco respei-
táveis e dançarinos brancos bebedores de gargalo, mas que passou a ser uma
arte considerada da maior seriedade, um terreno fértil para grandes artistas.
Em grande parte, a descoberta do jazz se deu junto com a dos radicais políicos
que se dedicaram de maneira apaixonada « altruísta à causa conjunta dos ne-
gros « de sua música, sem os explorar, como ressalta Basic.! Nas discussões
sobre a história da esquerda norte-americana no período de Roosevelt, que
agora estão em voga, essa conquista na música dos vermelhos e dos com-
panheiros de viagem da época não foi suficientemente apreciada.
Enquanto não se perde nos detalhes repetitivos sobre as excursões e as
mudanças de pessoal, Good Morning Blues é de considerável interesse para
quem quer entender a evolução de uma das poucas artes do século xx que
não deve nada à cultura da classe média. A banda original de Basie, rec
nhecida como à expressão mais pura do swing das big bands, assim que
bramiu cm Kansas Cirv já devia menos à classe média e aos intelectuais do
que qualquer outra banda — exceto, é claro, pelo fato de ter sido descoberta
é pelo treinamento que recebeu para a fama.
Não era uma banda de muita “leitura”. No período de apogeu, usou
poucos recursos além dos arranjos memorizados. “Acho que não tínhamos mais
do que quatro ou cinco folhas de música naquela época”, lembra Basic, Não
era uma banda respeitável, nem mesmo para o padrão do jazz. O arranjador
Eddie Durham, acostumado com os universitários da banda Lunceford, achou
o grupo de Basie demais para ce. Eles “não acreditavam em sair com pessoas
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 349

negras estáveis”, nas palavras de Gene Ramey, cujo esboço do clima de Kan-
sas City na valiosa colerânea de entrevistas de Stanley Dance, é um dos melhores:
Eles jam direto aos caferões e às prostitutas, e ficavam com cles. Essas
pessoas faziam uma grande publicidade para Basie. Eles não curriam
Andy Kirk. Diziam que ele era muito orgulhoso. Mas Basie estava lá,
deitado na sarjeta, se embebedando com eles. Tinha remendos na calça,
coisas desse tipo. À banda inteira era assim.
Essa não é à imagem enfatizada em Goo Morninyy Blues, uma obra
bastante reticente em vários sentidos, embora, de fato, a atração do meio
pelo jogo, divertimento, mulheres — e, não menos, pelo uísque — trans-
pareça constantemente nas brechas da fachada autobiográfica dos estadistas
mais velhos do jazz. Seu livro mostra, talvez de maneira mais clara do que
qualquer outro relato, quão atraente e importante para o desenvolvimento
da música cra aquela comunidade nômade c flutuante de músicos negros
profissionais, que viviam em pequenas ilhas independentes e auto-suficien-
tes de anfitriões populares e gente da noite — uma rua ou duas onde estava
a ação, casas de cômodos, bares, clubes —, que se espalhavam nos Estados
Unidos como um arquipélago da Micronésia.
Foi lá que os músicos encontratam um meio que aceitava à invasora
importância do profissionalismo, do acertar a música, do estranho casamen-
to entre à cooperação do grupo e a competição feroz dos indivíduos, que é
análoga ao meio daquela outra criação da cultura da classe trabalhadora, o
esporte profissional. Mais uma vez, a narração incompleta é a modéstia
excepcional de Basie — na verdade, excessiva para um autobiógrafo — aba-
fam o seu relato. O máximo que se permite dizer no sentido da auto-pro-
moção é; “Não é para me animar, mas aquela banda estava ficando muito
convencida, convencida mesmo”. Ele tende muito mais a r
siões em que sofreu uma derrota do que aquelas em que triunfou sobre o
público. O verdadeiro som do triunfo da banda se ouviu cm outra parte:
Nós éramos apenas a banda de Counr Basie, e safamos de um ómibus
scarigalhado, mas quando chegivamos naquele palco começávamos à
pular « levávamos uma saraivada -. Demos prejuízo naquela noite e
tiramos Lunceford do salão de baile
(Do trompetista Harry “Swects” Edison, citado em
The Vivid of Conmz Basie, de Stanley Dance,
3so ERIC HOBSBAWM

A convicção da primeira banda de Basie estava em sua capacidade de


se divertir. Para o músico profissional da época de Basic, como ele diz,
“tocar nunca foi um trabalho de verdade”, Era antes de tudo um meio de
divertimento, assim como o esporte é, para um atleta, um modo contínuo
de se afirmar como ser humano, como um agente do mundo, não como
objeto das ações dos outros, uma espécie de disciplina da alma, um teste
diário, uma expressão de valor e de sentido da vida, um caminho para a
perfeição. Os atletas não podem usar suas vozes para dizer isso, mas os
músicos podem, sem ter que formular em palavras, Assim, a convicção de
um atleta da classe trabalhadora produziu uma grande arte na forma do
jazz, que, graças ao fonógrafo, tornou-se uma arte permanente.
À força de Basic como bandleader residia em sua capacidade de desti-
lar à essência do jazz, tal como os músicos negros a sentiam. É por isso que
esse egresso desarriculado de Nova Jersey teve a dupla sorte de se estar
encalhado em Kansas Ciry, cm meados da década de 1920. Primeiro, por-
que isso lhe permitiu reconhecer a sua vocação. Até então tinha sido apenas
um jovem negro pobre que gostava de tocar piano « escolher à única forma
de liberdade disponível para o seu tipo, à vida cigana do show business. A
liberação, e não o dinheiro, era o objeto visado (“Creio que jamais entrei
em contato com músicos ricos quando cresci”), e ele não ganhou nem guar-
dou dinheiro. “Eu gostava de tocar música c gostava da vida.” Good Mom-
ing Blues evoca csplendidamente o lado inferior do show business negro da
década de 1920 — shows do tipo burlesco, como Hippiy-Hop, almejando
alguma ação no deserto de Omaha, Gonzelle White e seu Big Jazz Jambo-
rec sc afundando lentamente enquanto navegavam pelo circuito toba de
teatros negros de vaudeville, para finalmente se afundar em Kansas City.
“Após o desastre, Basie dedicou-se ao jazz em período integral, “sem estar bem
consciente da grande mudança que cu estava fazendo”, Foi o seu primeiro
lance de sorte.
O segundo foi estar em Kansas City, a capital daquele aparente deserto
cultural ao sudoeste do Missouri, que até os negros evitavam ao percorrer o
caminho do Delta ramo às luzes brilhantes de Chicago e Detroit, e que até
mesmo o circuito do vaudeville negro anulou. Durante muito tempo, Kan-
sas City foi o ponto mais a Oeste, € por isso é que shows como o de
Gonzelle White se dispersavam por lá, isso quando não voltavam, mudavam
de rota ou de formação, Kansas e Oklahoma não eram mecas do show
business, Exceto Kansas City e Texas, o Sudeste inteiro tinha uma popu-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 3s1

lação negra pequena e esparsa, A primeira turnê da recém-formada banda


de Basie foi uma série de apresentações de uma noite em lugares como
Tulsa, Muskogee, Okmulgee, Oklahoma Citw « Wichita.
No entanto, foi nessa região que se produziram dois importantes de-
senvolvimentos do jazz: à fusão do blues local com à música popular dan-
gante é a apresentação de arranjos preparados junto com jam sessions, crian-
do a banda clássica de swing e o mais poderoso laboratório experimental do
jazz, Kansas City produziu não apenas Count Basie, mas também Charlie
Parker
Muito se escreveu a respeito desse aparente paradoxo. A maior parte se
concentrou no caráter peculiar de Kansas City (Missouri), nos dias de aber-
tura c despesas livres de Boss Pendergast, cujo keyncsianismo municipal di-
rigido pelas gangues noturnas fazia de Kansas City um oásis durante a De-
pressão, onde os imúsicos negros pelo menos podiam comer. (Seria exagero
chamar de próspera a vida dos músicos movidos à cachorros-quentes, pra-
tos de feijão, litros de uísque, € talvez com o pequeno subsídio de uma
garota.) Mas na verdade, embora Good Morning Blues não dê muita im-
portância a isso, o trabalho regular era escasso cm Kansas City. Como disse
um dos pioneiros de Basie, “o trabalho estava aí, à caminho”: em Kansas.
City havia grande quantidade de shows ocasionais, mal pagos com gorjetas,
e mais ainda de jammings não pagas.
A maior parte dos talentos parece ter vindo desse território, sendo
relativamente pequeno o número de músicos recrutados direramente no ex-
tremo Sul, e menor ainda no Leste. Os Blue Devils de Walter Page, base e
inspiração do grupo de Basie, eram uma banda do território trabalhando
em Oklahoma, É os blues locais que Kansas City integrou na banda de jazz
não eram produto da cidade grande; nessa altura, nem os gritos masculinos
dos blues tocados nas bandas, que se tornaram à marca registrada
de Basie,
tinham interesse para o público branco.
Em resumo: os músicos de Kansas City tocavam o que era natural para
às negros do Sudeste e, quase sempre, o que o público segregado queria. Os
blues focam impostos pelo guero. Independentemente, Basie « Jimmy Rushing
dizem um sobre o outro que, em meados da década de 1920, Basic “não
podia tocar blues”, e que Rushing, que podia, “não cra realmente um cantor
de blues naquela época”. Dez anos depois, eles não cantavam nem tocavam
outra coisa.
3s2 ERIC HOBSBAWM

As gemas garimpadas nos salões de baile, em lugares como Muskogec,


eram talhadas e polidas nas inúmeras boates e sessões da madrugada de
Kansas Citv por uma comunidade de músicos profissionais especialmente
grande. Mas apesar do mito de Kansas City, que insiste em batalhas ganhas
com astros visitantes e com a admiração de forasteiros, essa comunidade
encontrava-se de uma certa mancira desamparas
Nos estávamos verdadeiramente por crás da Cortina de Ferro. Não havia
chance para nós. Por isso não havia nada que pudéssemos fazes, a não
ser tocar para nós mesmos,
(Do grande baterista Jones, JoJo Jones, citado em
The Wirldof Count Basie.
Isso poderia ter sido dito acerca do cenário de Kansas City como um
todo. Mas foi dito a respeito de scu produto mais característico, a banda de
Basie.
À primeira vista, O próprio Basie tinha poucas qualificações para se
sobressair. Segundo os padrões do jazz, ele não era um pianista de primeira
linha, especialmente quando comparado aos gigantes do piano de Nova
York, no cstilo em que cle se formara, e com os quais ele constantemente
media — para sua desvantagem. Como disse um de seus arranjadores: “Ele
sabia que não podia desafiar Fats Waller ou Earl Hines. Não tinha o mesmo
talento que eles”
Também não cra um músico especialmente errado, diferentemente da
maioria dos líderes das big bands, cuja tendência era provir de um ambiente
negro instruído. Seu grande momento chegou quando ele tinha uns poucos
arranjos memorizados e alguns blues, não só porque liderava uma banda
que não lia música, mas porque ele mesmo não escrevia nem arranjava, no
sentido estrito desses termos. Até as suas idéias tinham fólego curto: “Ele só
tinha quatro medidas”, diz o arranjador Eddie Durham. Sua ignorância pro-
vinciana era esrupenda, até mesmo para os limites da música dançante co-
mercial. Em 1936, cancelou a reserva de um grande salão de Nova York
porque, segundo ele, “Não acho que eu soubesse o que cra o maldito do
tango”. Não havia nada de original no formato de sua banda, excero talvez
o uso de dois saxofones em dispura. Os leitores de suas memórias se per-
guntarão como esse homem calmo, frequentemente bebado, e de poucas
palavras, conseguiu manter o seu grupo unido.
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS asa

Em suma: no papel, ele não tinha qualificações para nada, exceto para
ser um músico de jaz aceitável. Com a modéstia, ou a honestidade, que lhe
eram características, ele diz muito em seu triburo a Joha Hammond, que
ouviu à transmissão do Reno Club no rádio de ondas curtas de seu carro,
em 1935, quando atravessava o Meio-Oeste, € ficou estarrecido, transtor-
mando Basie cm um personagem nacional: “Sem ele provavelmente cu ain-
da estaria em Kansas City; se ainda estivesse vivo. Ou teria voltado a Nova
York ... tentando entrar na banda de alguém, e preocupado em não ser
despedido”.
Mas o que Hammond, e posteriormente o resto do mundo, viu em
Basie? Mais uma vez, às melhores descrições são dos outros
Ele era e é [diz Harry “Sweers” Edison) o maior na marcação do tempo,
batendo à pé com firmeza. Beincava no piano até acertar. Como se você
mikturasse malte € levedo para fazer uísque, € ficasse experimentando e
tomandoà experimentar. Freddie Green e Jo Jones 0 acompanhavam até
que cle chegasse ao tempo certo, e quando ele começava eles o sustentavam.
Esse “tempo” era o mistério de Basie, o Guod Morning Blues começa
com a descoberta de todos os lugares, Tulsa, Oklahoma, o que Albert Mur-
ray chama em outro livro de “aquele sempre firme, no entanto, sempre
flexível impulso transcontincntal, tipo locomotiva de Kansas City 4/477 €
isso nos Blue Devils de Walter Page, junto de quem cle é, de comum acor-
do, um dos pioneiros daquele ritmo adorável, fácil € melodioso e ao mesmo
tempo propulsor é relaxante. Esse seria o núcleo de sua banda inicial,
Tendo estabelecido o tempo, Basie, em seguida,
estabelecia primeiro o ritmo para os saxofones ., então fixava um para
Os ossos, e nós o pegivamos. Agora é o nosso ritmo contra o deles. O
terceiro ritmo seria para os trompetes ... (Os solos aconteciam entre as
harmonias, mas é assim que a música começava, é como Basie juntava
suas melodias.
(De Dicky wells, trombonista, citado em The Trid of
Count Basie.)
As grandes ondas de frascados harmônicos, que atingiam o público
como as ondas do Atlântico, não cram portanto — não no início, pelo
menos — truques estilísticos ou fins em si mesmo. Eram o maremoto es-
ass ERIC HORSBAWM

sencial da música, o estabelecimento do que os próprios músicos, nos gran-


des dias, viam não como uma banda harmônica, mas (exceto os membros
que se apagavam na esupenda sessão de ritmo) como uma companhia de
solistas criativos. Infelizmente, no final decaiu para uma banda harmônica
como resposta ao público, Esse apagamento também era o segredo dos
arranjos minimalistas de Basie e de suas cada vez mais esparsas intervenções
ao piano. cujo propósito cra tão-só manter a música cm movimento.
Qualquer que fosse a origem de um arranjo, na versão de Basie ele era
seccionado com um corte c uma seleção implacáveis. Basic, que “nunca
escreveu nada no papel”, compunha edirando, cm outras palavras, adaptando
os compassos a seus músicos. Difrentemente de Ellington, que tinha idéias
musicais precisas € escolhia músicos que se adaprassem a elas — aínda que
algumas tivessem sido originalmente sugeridas ao ouvir outros músicos —, o
menos articulado Basie cra basicamente um selecionador. O que ele ouv
em sua cabeça eram as formas e os padrões dos compassos, o risno e a
dinâmica, a mecânica do palco e os efeitos, em vez de a trama ou as palavras
da música. (“Eu tenho minhas próprias ideiazinhas de como colocar certos
caras em certos compassos « de como tirá-los.”) Mas nada disso se tornava
real enquanto ele não ouvisse os músicos tocar e reconhecesse 0 som que
tinha em mente, Escutar cra o seu talento essencial. Foi assim que, nó início
— entre 1936 é 1950 —, a banda de Basie se juntou c tomou forma. por
recrutamento c execução aparentemente fortuitos.
Nesse período, a única vez que Basie titubeou € mostrou incerteza foi
quando chegou o grande momento e seu empresário, o dedicado Willard
Alexander, lhe disse que por razões comerciais ele teria que dobrar o ta-
imanho da banda, Ele se atrapalhou e quase falhou, Felizmente, seus backers
e outros músicos (Fletcher Henderson generosamente lhe deu seus próprios
arranjos) estavam tão convencidos dos méritos da banda que ele teve tempo
de fazer os ajustes.
Conseqiientemente, à banda de Basie era uma combinação maravilho-
sa de criação de solo c alegria coletiva. Atraía e mantinha uma coleção no-
tável de talentos individuais. A imensa satisfação de estar na banda de Basie,
uma banda de irmãos, transparece nas reminiscências de profissionais obsti-
nados e ciumentos. Parte dessa satisfação devia-se ao temperamento e ao
tato do líder que, como o chefe de uma comunidade cm algum vilarejo
tradicional da Rússia, dirigia com consenso articulado e cristalizado. Devia-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS ass

se ainda mais ao sentimento de igualdade, de fraternidade, e acima de tudo


de liberdade para criar, controlado apenas pelo sentimento coletivo do que
parecia “certo”, No final de seus dias, Basic gostava de se apresentar não
como líder ou regente, mas como o esteio de sua banda, o pequeno centro
fixo: Fique de olho no sujeito ao piano. O pardal. Ele não sabe de nada,
mas fique de olho nele é vamos saber o que está indo mal”, E isso não era
Sinal de aferação.
Os que cram jovens na década de 1930 « foram os primeiros à ouvir o
som sem respostas da banda inicial de Basie rolar através do continente c
dos oceanos são tentados, como Tears com o Easter Rising, à fazer a cha
mada dos heróis: Basie, Kansas City Page, Jones, Jojones e Green, !Herschel
Evans e Lester Young, Buck Clayton e Harry Edison, Benny Morton, Dicky
Wells e Jimmy Rushing cantando blues, Mas, retrospectivamente, esses ho-
mens não só produziram uma música notável « ajudaram a criar o que é de
fato a música clássica dos Estados Unidos, mas O fizeram de uma mancirá
extraordinária e sem precedentes. (Good Marning Blues e The World cf Comnt
Basie não são obras de sociologia cultural. (Talvez por sorte: Adorno escre-
veu algumas das páginas mais estúpidas jamais escritas sobre 0 jazz.) Não
obstante, elas devem ser lidas por todos que querem explorar a zona obs-
cura que une a sociedade à criação da arte,
O livro de Stanley Dance é uma coletânea de entrevistas feiras por um
dos mais antigos « instruídos amantes de jazz no mundo, Good Morning
Blues é mais do que uma autobiografia bos. Albert Murray, um importante
scritor negro, que trabalhou com Basie no livro durante anos e o sustentou
— toda boa história oral deve ser sustentada —- com uma pesquisa bem
mais extensa do que as entrevistas, merece crédito por essa conquista nos
tável, Ele sé apagou, como q seu objeto, para deixar o outro falar à vontade,
mas que sem a sua ajuda não teria conseguido dizer nada. Ele respeitou à
reticência de Basic, c não escondeu nem disfisçou às limitações desse ho-
mem de grande talento, mas muito relutante em se comprometer publi-
camente, o que é esperado de um músico negro que cresceu numa época
em que Os negros cram chamados de “sépia”. O homem que surge é um
homem a se respeitar. Basie sempre foi bom para encontrar outros que
dessem voz às suas idéias. Good Morning Blues é seu último sucesso nesse
sentido.
3s6 ERIC HOBSBAWM

Notas
1.=Ele é demais”, escreve Basic sobre o seu descobridor John Ilarimond. “Nunca pe-
dliu um cenravo meu ou dos orueros pelos quais tato fez, E. não foram poucos. Tado
o que ele queria era ver 0 resultado do que devia estar acontecendo.”
2. Albere Murray, Sromping the Bites, Nova York, 1982, p. 166,
Capítulo 21

O DUKE

Este artigo fié publicado oviinariamente no New: York Review of Books,


em 19 de novembro de 1987, como resenha do livro Duke Ellingeon, de
James Lincolm Cóllier (Nova York, 1987

Dos grandes personagens da cultura do século xx, Edward Kennedy


Ellington é um dos mais misteriosos. De acordo com o testemunho do
excelente livro de James Lincoln Collicr, ele cambém deve ter sido um dos
menos agradáveis — frio com o filho, implacável nos relacionamentos com
as mulheres e inescrupuloso no uso do trabalho de outros músicos. Mas não
se pode negar o extraordinário fascínio que excrecu diretamente sobre as
pessoas, às quais destratava ao mesmo tempo em que lhes era ficl, inclusive
às que permitiam que ele exercesse poder sobre elas, ou seja, a maior parte
de seus colegas e amantes.
Nada era mais gritante do que o choque que, com scu péssimo com-
portamento, causava até nos observadores mais imparciais. Ele era o oposto
dos briguentos de pavio curto que naquele tempo passavam brevemente por
tantas bandas, inclusive a dele, embora o hábito de roubar as melodias de
seus músicos, e ocasionalmente suas mulheres, deva ter enraivecido até o
mais pacato deles. No entanto, as únticas pessoas que lhe apontaram uma
arma ou uma faca, de acordo com os registros, foram as esposas legais ou de
facto, provocadas além da conta.
Na verdade, nada sobre o homem Duke Ellington cra óbvio, exceto à
máscara que invariavelmente usava em público, c sob a qual sua personali-
dade se tornava invisível: a de homem bonito, afável « sedutor, cuja comu-
nicação verbal com o público, € provavelmente com as espantosamente nu-
merosas conquistas femininas, consistia em frases insípidas de adulação e de
ass ERIC HOBSBAWM

afeto (“Te amo loucamente”). A autobiografia que escreveu pouco antes de


morrer, Music is My Mistress! é um documento especialmente pouco infor-
mativo, além de ter um título equivocado. Afinal, ainda que desprezasse e
tentasse subjugar suas amantes — na verdade todas as mulheres exceto sua
mãe e sua irmã, as quais idealizava e via como assexuadas, pelo menos na
visão de seu filho humilhado? —, seu relacionamento com à música cra
totalmente diferente. Mesmo assim, a nmúsica não era sua amante no sentido
próprio, ou seja, de alguém que domiria. Ellington gostava de manter o
controle.
Aqui se encontra, de fato, O núcleo do mistério que James Lincoln
Collier tentou elucidar em seu livro. Porque Ellington, que junto com Charles
Ives foi chamado de à pessoa mais importante da música norte-americana?
à consegue de mancira alguma ser adaptado aos critérios da idéia convea-
cional de “artista”, assim como suas produções improvisadas não se ajustam
à idéia convencional de “obra de arte”, Aconrece que, diversamente da maioria
de seus contemporâncos no jazz, Ellington se via como um “artista” nesse
sentido, é compós “obras” para concertos, que eram tocadas periodicamente.
No méio de classe média negra dos Ellingtons, que Collier corretamente
afirma ser importante, à concepção de “grande artista” cra familiar, ao passo
que não se aplicava à pessoas como Louis Armstrong, que vinham de um
mundo menos autoconsciente e totalmente não-burgués
Quando Ellington, em sua triunfante visita à Inglaterra, em 1933, des-
cobriu que para os intelectuais britânicos ele era não apenas o bandleader,
mas um artista como Ravel ou Delius, assumiu o papcl de “compositor” ral
como o concebia. No entanto, quase ninguém diz que sua fama se bascia
nas trinta bizarras é mal organizadas minissuítes de música programática, é
menos ainda nos “concertos sagrados” aos quais dedicou grande parte de
scus últimos anos. Como compositor ortodoxo, Ellington simplesmente não é
de alta qualidade.
No entanto, não há dúvida de que o copas de sua obra em jazz, que, nas
pala ras de Colicr, “inclui centenas de composições completas, muitas delas
quase sem erros”, é uma das maiores conquistas na música — qualquer música
norte-americana — de sua época (1899-1974). Não fosse por Ellington, essa
música não existiria, embora quase todas as páginas do livro de Collicr. que
o admira mas também o desmistifica, tragam testemunhos sobre suas defi-
ciências musicais. Ellington era um bom pianista, embora não fosse brilhante.
Faltava-lhe o conhecimento técnico da música e auto-disciplina para ad-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 3so

quiri-la. Tinha dificuldade em ler música no papel, e ainda mais em parri-


turas muito elaboradas. Após 1939, ele se apoiava bastante em Billy Stray-
hora para arranjos e conselhos musicais, o qual agia como seu alter ego na
liderança da banda, de modo que se tornou uma espécie de filho adotivo.
Strayhom, que era sofisticado e bem formado musicalmente, sabia julgar
melhor como soaria a música de uma partitura.
Exceto por algumas dicas informais de profissionais negros da música
que tiveram treinamento formal, como Will Vodery diretor musical de Zieg-
feld na década de 1920, cle pouco aprendeu, à não ser pelo processo de
fazer experiências práticas. Era preguiçoso e talvez não fosse suficientemente
intelecrualizado para ler muito; além disso, não escutava a música dos ou-
tros com atenção. Segundo Collier, Duke não fazia nenhum esforço para
encontrar o tipo certo de músicos para a sua banda, mas aceitava os primei-
tos que se mostravam razoavelmente adequados às vagas — embora isso
não valha para os maravilhosos alinhamentos de metais e palhetas da banda de
Ellington, entre o final da decada de 20 e o início da de 40, Certamente ele
não foi um grande escritor de música, se considerarmos a demonstração de
Collier; “De todas as músicas sobre as quais se baseou a fama de Ellington
como escritor de músicas — e também os seus direitos autorais ASCAr —,
somente “Solitude” parece ter sido inteiramente sua, Nas demais cl cra, na
melhor das hipóteses, um colaborador, e na pior. apenas o arranjador de
uma versão de alguma melodia da banda”, Pelo menos um de seus acompa-
nihantes lhe disse, em um momento significativo de irritação mútua: “Não o
considero um compositor. Você é um compilador”.
A observação mais prejudicial de todas é, talvez, a de Collier, para
quem ele não tinha sequer o talento, o “dom natural”, de outros grandes
músicos do jazz, tampouco “fora atraído, ou melhor, dirigido por um senti-
mento intenso pela música”. Diversamente de muitos outros grandes músi-
cos de jazz, ele parecia pouco promissor antes de complerar trinta anos,
tendo começado o melhor de seu trabalho só depois dos quarenta.
Aqui se encontra O principal interesse do livro de Collier. Em linhas
gerais, suas opiniões não são novas. Há muito se aceita que Ellington foi
essencialmente um improvisador, cujo “instrumento era uma banda inteira”,
« que cle não conseguia pensar em sua música, a não ser considerando as
vozes particulares de cada um dos integrantes. Era óbvio que tinha pouco
fólego musical, e por isso foi incapaz de desenvolver uma idéia musical em
profundidade, mas também já se sabia em 1933 que nenhum outro com-
360 FRIC HOBSEAWM

positor, clássico ou não, o vencia na duração de um disco de 78 rpm — ou


seja, três minutos. Um crítico de jazz e de imúsica clássica o chamou de “o
maior miniaturista da arte”. Os comentários de Collier sobre as obras par-
riculares e as fases da obra de Ellington são, como sempre, eruditas, perspi-
cazes é iluminadoras, mas nó todo o seu julgamento dificilmente difere
daquilo que é tido como consenso.
Somente no jazz um homem com às evidentes limitações de Ellington
poderia ter feito uma contribuição importante para a música do século xx.
Somente um negro norte-americano, e provavelmente um negro da classe
média norte-americana da geração de Ellington, teria tentado fazê-la como
bandieader. Somente uma pessoa com o caráter peculiar de Ellington teria
verdadeiramente obtido esse resultado. O mérito do livro de Collier está em
mostrar O quanto a música deve ao homem, mas a sua novidade está em ver
o homem como foi tormado por seu meio musical e social.
As peculiaridades da personalidade de Ellington fregidentemente foram
descritas com graus variados de indulgência. Ele se via, com convicção total
« não forçada, como “excepcionalmente dotado por Deus, excepcionalmen-
te guiado pela vida por uma luz misteriosa, excepcionalmente dirigido pelo
divino, para tomar certas decisões em certos momentos de sua vida” e, em
consegilência, com direito ao poder total. O crítico Alexander Coleman tentou
resumir os pensamentos secretos de Ellington da seguinte mancira: “Sou
capaz de dar e de tomar, Mando nó mundo porque sempre tenho sorte, sou
cuidadoso demais, a raposa mais astuta de todas as raposas deste mundo” *
Basicamente, essa é também a leitura que Collier faz do homem, em-
bora seu livro insista menos do que poderia nos imperativos da sobrevivên-
cia do malandro de rua c do sucesso que Duke — o apelido lhe foi dado nó
início da vida — adquiriu quando cra um pacato jovem negro cheio de
energia: O desgarramento, a recusa em dar algo de si, as poderosas estra-
tégias de manipulação, a insistência, tipo chefão, no “respeito às ordens”.
Nesse aspecto, à memória de Mercer Ellington da vida com o seu pai pode
ser um complemento útil ao livro de Collicr.
Em suma: Ellington, como cle próprio reconhecia, foi uma criança
mimada que conseguiu manter algo do sentimento infântil de onipotência
durante toda a sua vida. Em Washington, DC, seu pai trabalhava para ascen-
der de cocheiro à mordomo, a serviço do dr. M. E Curhburr, “supostamente
um médico da sociedade que cuidava dos Morgenthaus c dos Du Ponts”,
segundo Collier. Nesse ambiente familiar c dc número relativamente grande
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 361

de negros politicamente protegidos ou educados em universidades, que cle


conheceu no meio de seus pais em Washington, Ellington adquiriu o auto-
respeito, a segurança e o force orgulho de sua raça, somados a um senti-
mento de superioridade. “Não sei quantas castas de negros havia na cidade
ma época”, disse cm certa ocasião, “mas sei que se você decidir misturar
aleatoriamente um com o outro, lhe dirão que esse tipo de coisa não se faz”.
Ele preferia não ter uma banda com mistura racial, mesmo quando isso era
possível, O carisma que o envolvia derivava em grande parte do conse-
gitente e impressionante ar de grand seignenr que esperava deferências, uma
impressão reforçada pelo charme, pela boa aparência c por uma indefinível
qualidade magnética.
Entretanto, o menino mimado começou como um preguiçoso e igno-
rante fracasso ma escola, pois só queria se divertir, sem jamais conseguir
achar um jeito de aprender, trabalhar ou se disciplinar, mas sem deixar de
lado o senso de status ou a ambição. A música, que aparentemente cle via
no início como um complemento da diversão, comou-se um meio fácil
ábvio de ganhar a vida, devido à enorme demanda da cra do jazz c à quanti-
cade de negros nas bandas de baile, que ainda era grande, apesar do influxo
dos brancos. Se negros instruídos e com formação universitária se tornavam
músicos — tornando-se amiúde bandicaders ou arranjadores, como aconte-
ceu com Fletcher Henderson c Don Redman —, seria ainda mais natural
que um indivíduo de classe média que não fazia às coisas direito, nem tinha
qualificações, se tornasse também — especialmente se esse indivíduo e:
tivesse sendo pressionado a se casar. No início da década de 1920, cra pos-
sível ganhar um bom dinheiro com música, provavelmente em menos tem-
po do que com as artes do comércio, para as quais o jovem Ellington parece
ter mostrado algum talento.
A grande sorte de Ellington foi ter entrado no jazz no momento em
que à música estava sendo descoberta, e ele foi capaz de se descobrir à
medida que crescia nela, Não há sinal de que ele quisesse muito compor, até
que associou-se a Irving Mills, que na qualidade de produtor musical conhe-
cia o valor comercial das músicas no mundo do show business, Não há sinal
de que Ellington quisesse ser mais do que um bandleader bem-sucedido.
Sua banda passou da rude e pronta música sincopada, tocada por um
exército de jovens grupos indefinidos, para o hot jazz em meados da década
de 1920, porque essa cra a tendência geral. Na verdade, o estilo típico de
Ellington pode ter sido trabalhado por motivos comerciais mediante a “jun-
362 ERIC HORSBAWM

gle music” que se encaixava nas expectativas da clientela do Cotron Club.


“Durante um período”, disse Ellingron, “deu-se muita atenção no Coon
Club aos números com ambientação africana, e para acompanhá-los desen-
volvemos o que foi chamado de “estilo jungle” de jazz”. Isso lhe deu a van-
tagem de se formar com os talentos de alguns membros preciosos da banda,
imprimindo a ela um “som”, ou marca, imediatamente reconhecível,
Collier também argumenta que o tamanho e a instrumentação da ban-
da cresceram porque os concorrentes de Ellington tinham mais merais do
que ele, Os modelos das big bands cram brancos. Os arranjos musicais que
cles usavam se formavam em volta do que Colier chama de “coro de saxo-
fones”, uma seção coordenada de palhetas, inaugurada por Art Hickman
Ferde Grofé por volta de 1914, e desenvolvida por Grofé e o “rei do jazz”
Paul Whiteman na década de 1920. Fletcher Henderson e Don Redman
criaram uma versão negra utilizando uma interação complexa de solistas e
seções da banda.
Dessa forma, Ellington se tornou um “compositor”, porque o fararo
de bandas bem-sucedidas dos anos 20 não cstava em improvisações de pe-
quenos grupos de sopro, mas em bandas maiores que tocassem arranjos
musicais. Ele não estava em condição de imitar Henderson, a quem ádmi-
rava e de quem, argumenta Collier, tomou 0 “sistema de pontuar, respon-
der, sustentar tudo com alguma coisa”, pois era incapaz de escrever músicas
mais complicadas é seus homens não sabiam ler tormas complexas de or-
questração. Por outro lado, a combinação dos ritmos de jazz com recursos
harmônicos tirados ou semelhantes à música clássica, que Wihiteman havia
usado pioneiramente, era mais fácil de seguir e tlufa naturalmente para um
homem que vivia e respirava a amosfera do show business de Nova York, e
que, na verdade, não gostava muito de ser chamado de músico de jazz
Como Collicr corretamente observa, o verdadeiro triunfo do “jazz sinfó-
nico” não é a Rhapsody ix blue de Gershwin (encomendada por Whiremam),
mas à música de banda de Duke Ellingron.
Quando Ellington se viu responsável pelo repertório de sua própria
banda, foi forçado a se descobrir como músico. Seu método pessoal de criar
composições é bem descrito por Collicr
Ele começava trazendo para o estádio de gravação, ou sala de ensaios,
algumas idéias musicais — ucchos de melodias, harmonias e sequências
de cordas geralmente revestidas do som produzido por certos instru-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 363

mentistas da banda. Na hora ele sentava-se ao piano € rapidamente es-


boçava uma seção - - quarro, oito, dezesseis compassos. À banda tocava:
Duke repetia; à banda tocava de novo, até que todos pegassem o som.
Anos mais tarde, o pianista Timmy Jones dis e: “O que cle taz é uma
reação em cadeia. Uma seção aqui, uma seção ali, outra aqui, é nó meio
ele começa a colocar os elos de ligação. É surpreendente como Ellington
consegue pensar tão rápido na hora e criar tão depressa”, Nesse ínterim,
os membros da banda faziam sugestões ... Quando uma peça estava se
desenvolvendo, frequentemente cabia aos homens das seções trabalhar à
harmonia, em geral com os acordes que Duke providenciava. Quando à
trombonista Lawrence Brown veio para à banda ... para ser 0 terceiro
trombone, esperava-se que fizesse para si a terceira parre de udo. “Eu
precisava compor minhas próprias partes . você simplesmente acom-
panhava, « quando ouvia algo faltando era aí que você entrava”
É óbvio que Ellingron contribuiu com alguma coisa para esse modo
de fazer música, além de sua costumeira aversão ao plancjamento e à prepa-
ração. Contribuiu com o fascínio natural c crescente para a mistura de dife-
rentes sons e timbres, um entusiasmo cada vez maior para levar a harmonia
ao limite da dissonância, uma tendência a quebrar regras « muita confiança
em Suas heterodosias, se lhe “soassem bem”. Ele também contribuiu com
um senso tonal que geralmente é comparado — também por Collicr —- às
cores do pintor, mas que se compreende melhor como um sentimento pelos
efeitos do show business. Ellingron, um compositor ousado de música pro-
gramática, parece não ter pensado em cores, que raras vezes aparecem nos
títulos de seus discos (exceto os não-pictóricos “preto” e “azul”, mas parece
ter recorrido a “uma experiência sensorial, uma memória fisica”, como em
“Harlem airshafé” ou “Daybreak express”; um tom, como cm "Mood indigo”
ou “Solitude”; ou histórias sentimentais tais como eram escolhidas por coreó
grafos tradicionais, como em “Black and tan fantasy” ou muitas de suas
composições mais extensas,
Nada disso teria frutificado se não fosse por um grupo de músicos
criativos, com personalidades independentes « vozes identificáveis: resumin-
do, os de jazz. Sem dúvida, todas as partes da música de Ellingron eram, ou
são, inconfundivelmente de Duke, a despeito de qual fosse a composição de
sua banda naquele momento. Na verdade, ele conseguiu os mesmos efeitos,
ou efeitos semelhantes, por mcio de combinações muito diferentes de músi-
cos, embora a banda se beneficiasse das duradouras presenças de algumas
E ERIC HOBSBAWM

vozes que foram a quintessência musical de Ellington: Cootie Williams,


Johnny Hodges, Joe Nanton, Barney Bigard e Harry Carney: (Embora eles
tenham desenvolvido seus estilos a partir do que Duke ouviu deles.) Além
disso, é inegável que o impressionismo musical, familiar aos ouvintes de
Debussy com formação clássica, e a forma brilhante das peças de três mi-
mutos que a banda gravou — com uma duração maior, a tendência seria
fraquejar ou cair — eram só de Ellington.
Não obstante, sua música é importante principalmente devido à ma-
néita pela qual foi feita, Duke, o manipulador desgarrado, sabia que cada
músico da banda tinha que fazer com que à música se tornasse dele, Poderia
consegui-lo se ficasse deliberadamente sem instruções, descobrindo sozinho
qual era a intenção de Ellington — como ocorreu a Cootie Williams, que de
repente se viu sucessor do trompete “rosnante” de Bubber Miley. Ou po-
deria ser espicaçado pelos insultos propositais de Duke, para que mostrasse
o que realmente sabia fazer. Havia um método por trás da indisciplina caó-
tica da banda,
De maneira contrária, Ellington se mutria de seus músicos, não só por-
que recorria a suas idéias e melodias, mas porque as vozes deles lhe davam à
sua própria, Ele teve muita sorte em seu tempo, é claro. Por não terem
recebido treinamento « serem extremamente competitivos, os músicos de-
senvolveram vozes individuais, o que possibilitou as combinações mais ori-
ginais e emocionantes. Collier e quase todo mundo concorda que a des-
coberta de uma dessas vozes, a de Bubber Miley, deu início à transformação
da banda de Ellington, permitindo que Duke fizesse aquelas intermináveis
ligações variadas entre o agitado € o suave, O cru e o cozido, que são carae-
tcrísticas suas, Felizmente, os mestres do novo hot jazz vinham de Nova
Orleans com fregiência — o próprio Sidney Becher esteve na banda por
um curto período, antes que cla se tornasse oficialmente de Ellington, É
quase certo que esse faro fez com que Ellingron gostasse das palhetas suaves
é Sinuosas, como as que produziram os sons do saxofonista Johnny Hodges
e do clarinerista Barney Bigard.
A dependência de Ellington em relação à seus músicos é demonstrada
de mancira mais convincente pelo fato de que manteve a banda até o fim de
sua vida, embora tenha perdido dinheiro. Não ficou claro se, com uma
administração melhor, cla poderia ter pago seus custos, mas não há dúvidas
de que Duke usou seus próprios direitos autorais para manté-la ativa, Foi a
sua voz. Ellington não demonstrou nenhum interesse em fazer ou manter
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 365

registros de sua obra, não porque não tivesse o som c a forma em sua
cabeça, mas porque a seu ver as músicas so faziam sentido se tocadas ao
vivo, e, como em todo jazz, o variava de acordo com os músicos, à oca-
sião e a disposição.» ão havia uma versão definitiva, apenas uma preferida e
provisória. Constant Lambert, um antigo admirador do clássico, se cquivo-
cou ao afirmar que o disco de Ellington era o equivalente da partitura do
compositor metódico”
É evidente que as obras criadas dessa forma não se encaixam na care-
goria convencional de “artista” como o criador individual e único autor,
mass Esse padrão convencional nunca se aplicou às formas coletivas ou coope-
rativas de criação que povoam nossos palcos e telas. sendo mais caractenísti-
cas das artes do século XX do que um indivíduo em seu escritório ou sen-
tado à escrivaninha. O problema de situar Ellington como um “artista” não
é diferente, em princípio, do problema de descrever os grandes corcógratos,
diretores ou outros que imprimiram sua personalidade como indivíduos em
produtos de equipe, É apenas pouco comum na composição musical
Sem dúvida, esse fato levanta sérias questões sobre a definição aceita
ou a descrição da arte e da criação artística. É claro que o termo compositor
se aplica tão mal a Ellington como o termo autor 208 direrores de Holly
«wood, como queriam os críticos franceses com sua inclinação nacional para
o reducionismo carcesiano e burguês. Ellington, porém. produziu obras coo-
perativas de arte séria que também eram suas, assim como os diretores de
cinema e teatro podem fazer, só que, de mancira inversa à dos megaloma-
níscos, ele sabia que estava envolvido numa criação genuinamente coletiva.
Collier faz essas perguntas, mas é desviado pela convicção de que Elling-
ton permitiu que seus talentos fossem afastados daquilo que ele fazia de
melhor, à tim de realizar “uma música que competia com modelos do pas-
sado, que em vários casos ele não entendeu”, e que não era muiro boa. Não
é certo que esse fato “o renha impedido de desenvolver à forma com a qual
estava familiarizado”. Afinal, pela estimativa do livro, ele produziu mais de
120 horas de jazz gravado, o que é um corpas grande o suficiente para à
maioria dos compositores; além disso, ele se desenvolveu e inovou até o fim
da vida, Se produziu poucas obras-primas após os cinquenta anos, isso se
deu menos por culpa do empurrão do Carnegie Hall do que pelos proble-
mas de negócios que atingiram o seu instrumento, abig band.
366 ERIC HOBSBAWM

Mesmo assim, Ellington viverá por causa de músicas como “Ko-ko”,


não devido à composições como “Liberian suite”. Colier certamente se equi-
vocou ao contrastar o jazz, visto como uma espécie de Gebrauchsmusik “para
acompanhar a dança, apoiar músicos ou dançarinos, ou ainda inflamar e
divertir O público”, com “a arte entendida como uma prática especial com
princípios próprios que existem abstratamente, apartados do público”, em
vez de “criada por um desejo de agit direta e imediatamente sobre os senti
mentos reais das pessoas”, Seja qual for a relação entre artes convencional
mente aceitas e seu público, que sem dúvida em sido dificil para os artistas de
vanguarda desde O início do século, essa é uma simplificação exagerada da
relação entre músicos de jazz e scu público, mesmo se deixando de lado os
músicos que, desde o surgimento do bebop, desafiaram o público a segui-los.
Embora seja verdade que as melhores obras de Ellington tenham sido
criadas para cabarés « salões de baile, para os propósitos de grande parte do
público uma música de má qualidade teria servido tão bem ou melhor; de
fato, esse mesmo público se satisfazia com bandas de rerecira categoria. De
maneira semelhante à maior parte das organizações de jazz de sua geração, à
banda de Ellington ganhava dinheiro tocando danças, e não tocando para
dançarinos. Os membros da banda tocavam uns para os outros. Sem dú-
vida, o público ideal aceitava seu tipo de música é se entusiasmava com ela,
mas acima de tudo não atrapalhava.
O crítico que ora escreve, quando tinha dezesseis anos, apaixonou-se
perdidamente pela banda de Ellington numa régia sessão apelidada de “breal-
fast dance”, que ocorreu num salão de festas no subúrbio de Londres para
um público que não entendia nada e seria totalmente irrelevante para a
banda, a não ser por uma fluruante massa de dançarinos que tinha diante de
si, Quem áunca ouviu Elingron tocar em um baile ou, melhor, em uma sala de
jantar cheia de pessoas sofisticadas da noite, onde o verdadeiro aplauso consistia
nó absoluta silêncio das conversas nas mesas, não pode saber como era à maior
banda da história do jazz, tocando à vontade em seu ambiente,
Por outro lado, as pessoas que esperavam que Ellington Sagisse direta
imediatamente sobre os sentimentos verdadeiros” o atrapalhavam. Em seus
últimos anos, a maioria dos americanos e estrangeiros só ouvia Ellington ao
vivo em rarnés. Os salões silenciosos, ou com aplausos, repletos de fãs es-
perando por uma revelação, raramente despertavam o que havia de melhor na
banda, Despertavam somente aquele Ellington que sabia que com bastante
barulho (especialmente de Paul Gonsalves) seria ovacionado.
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 367

Não basta dizer, como Collier, que quando o jaz, se confunde com à
arte, sai a paixão c entra a pretensão”, O jazz é importante não por ser
apaixonado e despretensioso; a maior parte da fieção romântica, sim. Não é
que, de maneira diferente à arte que Collier desgosra, “milhões de pessoas
gostam dela”, É, e sempre será, uma arte de minoria, mesmo pelos padrões
da música clássica e da literatura séria, sem falar no verdadeiro público de
milhões. Certamente não é uma arte de massa nos Estados Unidos, onde os
clubes de jazz nova-iorquinos (como os administradores de teatro britâni-
cos) contam com o turismo e também com 6 público local de jazz:
O jazz é importante na história das artes modernas porque desenvol-
vcu uma maneira alternativa de criar arte, em relação à vanguarda da alta
cultura, cuja exaustão legou muitas artes convencionais e “sérias” a pro-
gramas optativos no ensino das universidades, assim como a investimentos
de capital especulativo ou filantropia. É por isso que se deve deplorar a
tendência do jazz a se tornar uma outra vanguarda.
Mais do que qualquer outra pessoa, Ellington representou essa habili-
dade do jazz em transformar pessoas que não se preocupavam com a “cul-
rara”, perseguindo a seu modo suas paixões, ambiçães € interesses, no sentido
da criação de uma grande arte séria e em escala pequena. Ele demonstrou
isso por meio de sua própria evolução ao tomar-se compositor, é também
pelas obras de arte integradas que criou com sua banda, que tinha menos
talentos individuais brilhantes do que as outras — até o final da década de
1930 apenas um, talvez: Hodges —, mas na qual o desempenho individual
extraordinário foi à base de uma conquista coletiva, Não há outro fluxo de
criação musical em nenhum grupo que se compare. Certamente ele (ou
eles) atingiu diretamente os sentimentos dos ouvintes, mas esse fato em si
não explica o motivo, como observa Colher, pelo qual sua música cra tão
mais complexa que a de outros grupos. Em suma: O autor às vezes se sente
tentado pela teoria populista da arte, pela qual o artista não apenas “se
alegra em concordar com o leitor comum?” (para usar a frase do dr. Jobnson),
mas usa as preferências do leitor comum como um guia. Vê-se que a teoria
é inadequada, entre outros exemplos, ao se comparar as fases americanas e
alemãs de George Grosz e Kurt Weil.
No entanto, Collier está cera ao acreditar que as grandes conquistas
do jazz, das quais à música de Ellington é de certa forma a mais impres-
sionante, foram feitas em um território diferente daquele que produziu a
arte clevada. Era uma música de profissionais com expectativas modestas,
E ERIC HORSBAWM

feita por uma comunidade de pessoas da noite com raízes populares. Não
cra para ser uma “arte” como a música de câmaras não se beneficiava do
fato de ser tratada como “arte” e tinha tendência a se perder como as artes
elevadas, quando seus praticantes se voltavam para uma nova vanguarda.
Sua contribuição mais importante à música foi feita num ambiente que já
não existe mais, É dificil imaginar que um dos grandes músicos do fururo
diga o que disse um dos mais importantes solistas de Ellington: “Eu só
queria ser um alcoviteiro bem-sucedido, mas descobri que sabia tocar trompa”:
O jazz de hoje, tocado em larga escala por músicos com formação,
amiúde clássica, essencialmente para um público ouvinte, por uma geração
cujos laços como os blues são mediados em geral pelo rock e por um gospel
musicalmente empobrecido, terá que encontrar outro caminho se puder,
para deixar uma marca tão forte quanto a do jazz dos que nasceram na
primeira metade do século. Mas todos os músicos, sem exceção, continua-
rão à ouvir os discos de Ellington, sobre quem Collier escreveu o melhor
livro que temos: econômico, lúcido e perspicaz a respeito do homem: boa
crítica e história bem-feita.

Notas

1. Nova York, 1973


2: Mercer Elingron à anley Dam Date Eligto iu Poson, Boston, 19 o telato
“e Mercer, Duke Elingron foi gentil com ele enquanto queria fazer convitese qjudá
lo com a banda. Mas quando o filho tentou acertar sozinho como músico, Dake, ele
escreve, “fez cudoo que póde para desencorajá-lo”
B. Martin Williams, 1he jase Inudizim, edição nova e revisada, Oxford, 1983, p. 102.
4, Mas Harrison. À Jas Itetrapeit, Nova York, 1976, p. 128.
5, Alexander Coleman, “The Duke and his Only Son”, New Bosrom Review. dez, 1978.
Gosinsicis Ay M ess, pot
Surpeendentemente. Collier não evita à mesina armadilha em seu elogio das peças de
rés minutos de Ellington. O disco de 78 rpm, que nos oferece tameas de suas obras.
primas sobreviventes. não deserminarum 4 estrurura das composições de Ellington.
mas apertas da imúsica produzida em esmúdio, como demonstra à gravação informal de
seu trabalho nos salões de dança.
Capítulo 22

O JAZZ VAI À EUROPA

Originariamente publicado como “Sobe a recepção do jazz na Europa”, em


Jazz und Socialgeschichre (Zurique, 1904), de Theo Manst (org)

A discussão sobré jazz deve começar, como toda análise histórica da


sociedade do capitalismo moderno, com a tecnologia e os negócios. Neste
caso, negócios voltados para supeir as crescentes massas urbanas das classes
média e baixa com lazer € entretenimento. A tecnologia, até à Primeira
Guerra Mundial, na forma do rádio e do fonógrafo, que foram cruciais para
a difusão da música negra à partir da decada de 1920, ainda não era signifi-
cativa. No entanto, no final do século 1X, o show business é a indústria de
música popular já estavam suficientemente desenvolvidos para gerar redes
nacionais e até transatlânticas — agências, circuitos teatrais, cadeias e outros
—, sem mencionar a publicação e a distribuição de uma oferta em constante
muração de números de música popular.
Tecnicamente, esses negócios eram antigos, ao contrário da outra grande
arte de nosso século, o cinema. Permaneciam confinados pela necessidade
de comunicação cara-a-cara ou boca-a-ouvido, Sofreram uma revolução em
apenas um aspecto, fundamental. À velocidade do transporte transatlântico
éra tão grande que as idéias, as notas e as pessoas podiam atravessar O
oceano muito depressa. A revista musical de Will Marion Cook, Clorisrdy
The Origin of she Cakemalk — posteriormente Cook traria Sidney Becher
para a Inglaterra — foi exccurada em 1898, em Nova York e em Londres ao
mesmo tempo. O foxtrote, a dança básica rotineiramente associada ao jazz,
apareceu pela primeira vez na Grã-Bretanha no verão de 1914, poucos me-
ses após sua primeira apresentação nos Estados Unidos, é na Belgica, em
370 ERIC HORSEAWIM

1915. O jazz mal tinha sido batizado nos Estados Unidos quando grupos
com esse nome já faziam rurnés pela Europa, em meados de 1917. Con-
Segiientemente, 6s obstáculos à rápida difusão do jazz não eram & nicos,
mas sociais « culturais.
No entanto, o mais interessante sobre essa difusão é o que estava sen-
do difundido. Era um dos vários tipos de novidade cultural e de criação
artística que emergiram no final do século XTX em um meio plebeu, sobre-
tudo urbano, da sociedade industrial ocidental, provavelmente no ambiente
especializado do lumpemprolerariado dos bairros de lazer das grandes ci-
dades, com suas subculturas cspecíficas, estercóripos masculinos e femini-
nos, figurinos — e música. O tango de Bucnos Aires, que assegurou à
música latino-americana um lugar permanente, embora não muito impor-
tante, nas pistas de dança internacionais, na mesma poca que à jazz, é um
exemplo. À música cubana é outro. Que o jazz fosse ao mesmo tempo uma
novidade e, originariamente, uma arte pertencente a uma subcultura auró-
noma é um faro significativo por duas razões. Primeiro, porque a engrena-
gem da difusão comercial o alcançou quando estava de partida, no caminho
entre à sua formação e a sua evolução. À recepção do jazz era o oposto de
fenômenos como q “revival da música folkê” que desenterrou fásseis musicais
em Somerset ou em Appalachia. Ao mesmo tempo, à rápida evolução da
música gerou o gosto pela nostalgia e pela arqueologia musical no público
secundário do jazz. Serviu para gerar um jazz “tradicional” ou um revival
(Dixicland); acima de tudo, o jazz não foi recebido simplesmente como
uma Gebranchsmasik, como outro tipo de som que acompanhava a dança ou
a cerveja, mas como algo simbólico e significativo em si. Esse é um ele-
mento importante da recepção do jazz na Europa
Resta dinda uma pergunta importante: por que. entre todas as artes
urbanas plebéias contemporâneas absorvidas por um público secundário, a
música negra norte-americana teve uma capacidade tão maior que as outras
de conquistar o mundo ocidental? Não foi de modo algum à primeira arte
desse tipo a ser absorvida pelos intelectuais, aristocratas é artistas letrados,
socialmente superiores; na verdade, devido à ausência de aristocraras e in-
telectuais do tipo europeu nos Estados Unidos, foi uma das últimas. Antes
da década de 1930, ou melhot, na de 20, não havia equivalente na história
do jazz à cultura do cante bondo da Andaluzia nos anos 1880, da História do
“fado de Pinto de Carvalho, de 1903, dos Max Beerbohms « dos Toulousc-
Lautrecs que louvavam os artistas dos salões de música dos anos 1890, ou
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS am

mesmo das campanhas feitas por dedicados aficionados, que criaram à mo-
da do tango na Europa nos anos de 1900. Os primeiros livros sérios sobre
jazz foram escritos na Europa, ou em outros lugares, em 1926; 0s primeiros
livros que mostraram tipo de conhecimento de arristas c da música dos
escritores ibéricos do final do século XIX não datam de antes de meados e
fins da década de 1930,
A resposta a essa questão deve permanecer em aberto, mas quero con-
tsibuir com um elemento. A música negra norte-americana bencficiou-se de
ser noree-americana. Foi recebida não apenas como exótica, primitiva ou
nã o-burguesa, mas como moderna. As bandas de jazz vieram do mesmo
país que Henty Ford. Os intelectuais é artistas que tocaram jazz imedia-
tamente após à Primeira Guerra Mundial no continente curopeu quase in-
variavelmento incluíram a modernidade em suas atrações. Veio daí à moda
absurda de ligar essa música de alguma forma obscura com a civilização da
máquina, com à qual (exceto pela locómotiva) ela não reve nenhuma afini-
dade, À propósito, os intelectuais ou artistas britânicos de 1918 não de-
.monstraram nenhum interesse evidente pelo jazz dos vanguardista do con-
tinente — Cocteau, Milhaud e o resto —- na mesnia época.
No entanto, um terceiro elemento na recepção da música negra é mui-
to relevante, O jazz abriu caminho e triunfou, não como uma música para
infeleceuais, imas como uma música para dançar, e especificamente para uma
dança social transformada é alterada pelas classes média « alta britânicas,
mas também, e quase simultaneamente, a dança da classe trabalhadora bri-
tânica, Durante Os anos de 1900 a dança mais ousada foi transformada de
dois modos, (Um especialista contemporâneo que testemunhou isso locali-
zou a mudança principal exatamente na temporada de 1910-1911.) Em
primeiro lugar, a dança urbana já havia deixado de ser uma ocupação sa-
zonal ligada a ocasiões especiais, « estava sendo praticada durante o ano
todo como atividade social e de lazer regular. Até certo ponto era praticada
em âmbito privado, mas logo surgiram clubes especiais de dança — havia
arés apenas na Hampstcad cduardiana —, e ela acontecia também em hotéis
é lugares que ainda não sc chamavam “boates”. A dança do chá c à dança do
restaurante apareceram em uma escala modesta. Em segundo lugar, a dança
perdeu a formalidade e passou a requerer uma sucessora, Tornou-se ao mes-
mo tempo mais simples, mais fácil de aprender « menos exigente é exaus-
tiva, A mudança crucial, aqui, foi da dança de giro (por exemplo, a valsa)
para a dança andante, como a de Boston, uma espécie de valsa retilínea, no
início dos anos de 1900. Parece claro que esses desenvolvimentos refletiram
um aftouxamento substancial das convenções aristocráticas e da classe mé-
dia, sendo um sintoma surpreendente e negligenciado da notável emanci-
pação das mulheres dessas classes antes de 1914. O elo entre a revolução na
dança, até mesmo especificamente entre a nova primazia do riimo em dan-
ças sociais, e a emancipação das mulheres não passou desapercebido. Foi
observado em um dos primeiros livros mais inteligentes sobre o jazz, Jazs:
Eine musikalische Zeitfrage, de Paul Bernhard (1927). Bernhard enfatizou
que esse desenvolvimento chegou ao continente vindo dos países anglo-saxões,
Não há necessidade de Falar muito sobre à cronologia da recepção do
jazz. Podemos, rapidamente, distinguir uma era paleolítica, antes de 0 jazz.
se tornar conhecido por esse nome. El assistiu à introdução de elementos
negros norte-americanos na elegante música dançante britânica, na qual se
tornaram dominantes por volta de 1912, quando à sincopação se transfor-
mou num elemento essencial. Houve uma revolução neolítica após 1917,
quando o jazz irrompeu na consciência européia como um barulho alto é
estridente, como um símbolo do que jornalistas, pregadores incelcerais
escolheram denunciar ou elogiar, c finalmente como nome e instrumen-
tação da música que acompanhou uma nova cpidemia de dança social de
massa, Na abrangente área de música dançante e de entretenimento inorte-
americana), um pequeno público de fis apaixonados e instruídos na década
de 1920 escolheu um campo específico do hor jazz como uma música de
arte a ser admirada. Na década de 30, que é o periodo seguinte na história
da recepção do jazz, o público curopeu específico de jazz torno!
mais Organizado, especialmente em clubes de jazz, e os colecionadores co-
meçaram à invadir o rádio, a nova mídia. Os europeus começaram até a
gerar, de maneira modesta, músicos de jazz nativos de seus países, No en-
tanto, a partir do final da década de 1930, um público secundário essencial-
mente branco, tanto nos Estados Unidos como na Europa, desenvolveu um
próspero corpo de músicos amadores e uma reação tradicionalista ou con-
servadora específica contra a evolução do jazz, com um movimento de re-
vival dos New Orleans, ou do Dixieland. Na Europa, « certamente na
Bretanha, essa se tornou “a música social básica para muitos jovens” (para
itar Lincoln Collicr) durante a Scgunda Guerra Mundial. Assim permane-
ceu até o surgimento do rocên'rol.
O surgimento de uma música jovem amplamente popular, a partir de
uma pequena minoria exclusiva de aficionados eruditos do jazz, é significa-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS as

tivo em dois aspectos. Demonstra à caráter quase totalmente secundário da


naruralização da música negra na Europa. Esse faro bascou-se principal-
mente nos rapazes que escutavam, colecionavam e discutiam os discos dos
norte-americanos. À centralidade dos discos c- dos artistas inspirados nas
gravações é indicada pela insignificância das visitas ao vivo dos músicos
americanos. Na Grá-Bretanha, assim como na Alemanha e na União So-
viética por outros motivos. as tumês de grupos norte-americanos foram
banidas por longos períodos. Novamente, a formação do gosto do novo
público, feita por uma minoria de acadêmicos do jazz, frequentemente cso-
téricos, permitiu que a Europa se familiarizasse com elementos da tradição
negra, Os quais à simples evolução comercial do gosto não teria trazido à
tona. Um exemplo óbvio é o blucs negro. para o qual mesmo nos Estados
Unidos o mercado branco cra insignificante. Esse fato seria erucial para a
naturalização do rock'm'roll na Grã-Bretanha e pode explicar por que 0 rock,
em sua forma britânica naruralizada, tornou-se a primeira versão europe
zada da música negra norte-americana que invadiu os Estados Unidos na
década de 1960. O elo é bastante claro no caso dos Rolling Stones, forte-
mente influenciados por um pequeno grupo de académicos britânicos apaixo-
nados, no qual se encontrava o falecido Alexis Komer, No entanto, de modo
geral, cm meados da década de 50, os adolescentes típicos de Birmingham
provavelmente estavam mais familiarizados com os artistas dos salões de blues
de Chicago, como Muddy Waters, do que 6s adolescentes de Indiana.
Após esse breve lembrete de periodização consideremos dois aspectos
particulares da recepção do jazz: quem se sentia atraído pelo jazz € o que o
público lia na cartilha do jazz.
Lá nesse ponto uma diferença marcante entre a Grã-Bretanha c o resto
da Europa, pelo menos no que diz respeito à primeira pergunta. A recepção
da música se fortaleceu mais na Grá-Bretanha do que em qualquer outro
lugar, c foi aí mais prontamente naturalizada e assimilada porque a Grá-Bre-
tanha já fazia parte de uma zona linguística e musical unificada de cultura
popular com os Estados Unidos. Por consequência. tornou-se uma ponte
entre os Estados Unidos e o resto da Europa. Não poucas vezes os conti-
mentais tiveram suas primciras experiências com o jazz norte-americano em
Londres. O conhecido tributo de Ansermer a Bechet, em 1919, foi inspi
tado em Londres. Na década de 1920, as bandas britânicas não só faziam
turnês no continente — o que lembra, com certa relutância, a orquestra de
jazz de senhoras britânicas que tocava o Tabarin em Viena —, mas os discos
ERIC HOBSBAWM

de Jack Hylton eram provavelmente mais conhecidos do que os americanos


é virtualmente representavam o jazz para muitos continentais. Hylton, um
jovem da classe trabalhadora que apoiava o Partido Trabalhista, suficiente-
mente astuto para ficar milionário mais tarde, reconheceu o potencial do
ragtime no início de 1913, quando trabalhava como músico de uma banda
de baile no London Savoy Hotel, Em 1921, estava firme no jazz, Até mes-
mo o elegante grupo britânico era mais próximo dos Estados Unidos do
que O café society de outras partes, pelas mesmas razões. Clubes como o
Embassy é hotéis como o Savoy agiam como marcapasso antes mesmo de
1914 em 1928, o Savov contratou uma banda de hot jazz genuinamente
indígena, tendo à sua frente um jovem cavalheiro de posses das Filipinas,
Frederico ou Fred Elizalde. o qual havia mergulhado no jazz em Cambrid-
ge. Mais tarde, na década de 1960, somente os grupos de rock britânicos,
entre os europeus, estabeleceram a reputação das bandas norte-americanas
O jazz britânico tinha uma ampla base popular porque à classe traba
lhadora desenvolvera um estilo de vida não-tradicional, urbanizado e tacil-
mente reconhecível na Europa. Enormes salóes populares de dança já ha-
viam sido construídos antes de 1914, para atender à demanda de estâncias
do litoral especificamente prolerárias como Blackpool, Morccambe, Mar-
gate c Douglas, na ilha de Man. A mania de dançar do pós-guerra foi con-
templada pela nova instituição do chamado palais de danse; o Hammersmith
Palais, o primeiro, tornou-se imediatamente um local de jazz ao contratar à
Original Dixicland Jazz Band em 1919. Não há dúvida de que a música que
os plebeus dançaram não seria hoje considerada jazz. Na verdade, a tradição
central da massa dançante britânica saiu do jazz em direção a um fenómeno
curioso chamado de dança “strict tempo”, que se tornaria um esporte de
competição na televisão britânica. Não obstante, o jazz deixou sua marca
como um nome, uma idéia, um som novo é popular.
A mania coletiva de dançar produziu um corpo de músicos de bandas
de baile muito grande, principalmente de origem proletária, ou pelo menos
criados no ambiente do movimento da banda de metais, muito apreciada
nas áreas industriais. Eles constituíam O âmago do público de jazz. Nos
exuberantes anos 20, o número de músicos aumentou em 50%; entre 1901
é 1911 havia crescido apenas 10%. Em 1931, havia cerca de 30 mil, o que
incluía, deve-se admitir, uma grande parcela de músicos de cinema, cujo
interesse pelo jazz não cra tão grande, Eles precisavam aprender os truques.
da música — grande parte da literatura sobre o jaz? nessa década era instru-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS as

tiva — e tendiam a desenvolver um interesse pelo jazz, ainda que motivados


pelo tédio de suas atividades rotineiras. A revista comercial da profissão, à
“Melody Maker, fundada em 1926, tornou-se quase imediatamente o veículo
principal do jazz para os fis da Europa
Socialmente, os músicos das bandas de baile, que fizeram mais sucesso
na década de 1920 do que na depressiva década de 30, estavam no limite
entre à mão-de-obra especializada e a classe média baixa, Ira nas partes
mais elevadas dessa faixa que se encontrava, antes de 1945, à maioria dos
evangelistas britânicos do jazz. Eram Os típicos intelectuais selfade. Em
Londres há os “rhythm clubs” (surgiram 98 deles na Grã-Bretanha, no pe-
ríodo entre 1933 c 1935), que não se encontram em bairros da classe média
como Chelsca, Kensington ou Hampstead, mas nos bairros mais afastados
como Crovdon, Forest Gate, Barking ou Edmonton. Os estudantes, em-
bora não estivessem ausentes, não se tornaram muito visíveis, e muito me-
nos dominantes, a não ser muito mais tarde. O jazz certamente conscrvou
sua ligação com a alta sociedade, mas não há praticamente nenhum sinal
dessa atração pela cultura, pelo esnobismo cultura! € pela vanguarda, que é
tão marcante no continente, exceto à margem do balé de vanguarda, com
Frederick Ashton é o maestro compositor Constant Lambert, é entre alguns
jovens seguidores do não muito importante movimento surrealista britá-
nico, As personalidades estabelecidas da cultura, até as promissoras, € suas
críticas não se sentiam obrigadas à prestar homenagem ao jazz, Os escri-
tores que propagaram o gosto pelo jazz na década de 1950 (Amis, Larkin,
John Osborne; o fizeram porque 0 jazz era o símbolo do provinciano e do
marginal, À imprensa intelectual não lhe deu um lugar até meados da mes-
ma década. “Ialvez tenha sido por essa à razão que o pertil dos fis de jazz da
classe média britânica da década de 1930 — geralmente pessoas com quinze
ou dezesseis anos de idáde, não antes de 1933-1935 —- seja comparati-
vamente baixo. À existência de um sndesgromui do jazz entre os acadêmicos
da safra do final dos anos 30 sugere que, ainda que calados, pelo menos
alguns futuros intelecmais ouviam jazz. A guerra expandiu enormemente o
público de jazz nã Grã-Bretanha é em outros lugares
O forte componente popular e vulgar do público britânico de jazz o
diferenciava dos públicos continentais, que em sua maioria eram compostos
por membros das classes médias estabelecidas ou universitários. Esse é um.
ambiente familiar para os estudantes do Jodimgeschichte. “O jazz toi a mú
sica da década”, não apenas na opinião de vários músicos modernistas da
E ERIC HOBSBAWM

Europa Central, más, como nos lembra Michacl Kater, sobretudo para Eckarr
Kehr, um jovem € brilhante historiador. As fluruações desse público foram
menos notadas, embora aparentemente à paixão pelo jazz como música do
futuro houvesse diminuído um pouco no final da década de 1920, uma
situação bem recebida pelos oponentes tanto da direita como da esquerda
da Escola de Frankfurt. Michael Kater recentemente descreveu o destino do
jazz sob os regimes nazista « soviético, mas não há até agora, que cu saiba,
nenhum tratamento com o mesmo peso que teve sob o fascismo na Itália
Finalmente, a última pergunta é: o que essa música significou para os
que à receberam? Para o público comum significou, além de uma música
para dançar, um certo tipo de ritmo e um barulho sonoro não convencionais
(Sama música barulhenta, às vezes ensurdecedora, criada por vários instru-
mentos de percussão é outros”, para citar um manual de dança alemão de
1922): possivelmente, uma música executada com um abandono selvagem.
Por ser, na expressão francesa, “uma certa barbárie que se tomou lícita” (une
certaine bararie devense licite), serviu aos rebeides contra as convenções e as
gerações mais velhas. Na década de 20, como vimos, associava-se imedia-
tamente à ser “moderno” ou “contemporâneo”. Em 1925, o Paris-Midi as-
sociava a banda de jazz com carros pequenos, lâminas Gillere e cabelos
curtos para mulheres. Após 1920, a música negra perdeu a conotação de
símbolo da modernidade, mas sobretudo após à Segunda Guerra Mundial
tornou-se cada vez mais um símbolo de afirmação de uma geração; Sob a
forma de rock, tornou-se à expressão internacional mais importante da cul
tura de um grupo etário da juventude
Podemos deixar de lado a reação da alta sociedade e dos intelectuais a
cla associados. Esse fato não foi de grande importância na Grã-Bretanha.
embora, sem dúvida nenhuma, tenha agradado à Duke Ellington ver o fu-
ruro rei Eduardo VIT comparecer com os seus tambores em uma festa para
a sua banda em Londres, Muito mais importante, como foi sugerido, foi o
caráter democrático « popular da música, que fez com que o Melody Maker
afirmasse clogiosamente: “Atrai não apenas à platéia, mas também as gale-
rias. Não há distinção de classes”. Na Grã-Bretanha — e somente aí —
podemos negligenciar a criativa vanguarda que, convencida da exaustão da
música fora de moda, em outros lugares procurou o circo, o music hall, os
músicos de rua e o jazz para regenerá-la, ou ainda os bolcheviques culturais
da Europa Central que deram um passo adiante € associaram o jazz ao
proletariado e à revolução. A Grã-Bretanha escapou dessa fase. No entanto,
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS

desenvolveu, provavelmente numa associação muito próxima do radicalis-


mo do Ney Deal norte-americano, uma ligação poderosa entre jazz, blues,
folk c extrema-esquerda, basicamente comunista mas também, periferica-
mente, anarquista. O jazz é O blues eram para essas pessoas essencialmente
a música do povo”, em três sentidos: uma música com raízes folelóricas
capaz de atrair as massas, uma música de amadores que podias 1 praticada
por pessoas comuns, diferente das que exigiam treinamento técnico, e, en-
fim, uma música de protesto, de demonstração e celebração coletivas, O
jazz verivalisr, ou Dixieland, servia excepcionalmente bem à esses propósi-
tos, Tanto que em scu auge, na década de 1950, quase chegou a transtormar
O jazz de uma arte de um grupo seleto em uma música de massas, mais do
que em qualquer outro lugar, a não ser talvez por um momento, o boom do
swing no final dos anos 30 nos Estados Unidos, Não é por acaso que o
hino típico dos fãs do jazz tradicional também tenha se tornado a música
típica dos fis de futebol nas arquibancadas: “When the saints go marching
in”, Contudo, deve-se observar que ainda que 6 jazz revivalist tenha se tor-
nado de fato à música de uma faixa erária, da qual estudantes, sobretudo de
arte, tornaram-se proeminentes pela primeira vez, não cra uma nrúsica de jo-
vens, nem conscientemente, nem como militância. Nisso diferia do rockn'roll,
O seu sucessor, Os heróis do jazz tradicional eram anciões desenterrados dos
salões de blues e do imerior do sulista americano. Os seus mentores intelec-
tuais é organizadores, c aré mesmo alguns de seus líderes, estavam ficando
velhos. Alguns tinham idade suficiente para ter passado pela guerra. (Dos
quinze líderes dos grupos tradicionais britânicos da década de 50, am havia
nascido em 1917, três em 1920-1921, dois em 1926, nove em 1928-1932,
e os seis últimos em 1928-1929.) O boom do jazz tradicional preparou o
triunfo do rock, mas apenas O rock se tornou um manifesto consciente de
imaturidade.
A grande maioria do público de jazz (cm particular) da primeira
geração de evangelistas e críticos do jazz ficou fiel à “velha” música quando
a revolução do bebop chegou atravessando à Atlântico, depois da Segunda
Guerra Mundial. De mantira geral, até o finalzinho da década de 50, quan-
do Miles Davis começou a causar impacto, o jazz “moderno” atraía apenas
uma minoria de jovens músicos de bandas profissionais, então dizimados
pelo declínio da big band, e que em breve seriam aisida mais marginalizados
pelo surgimento da discoteca. Demorava um tempo para que qualquer tipo de
público se formasse, A comunidade de jazz majoritária era bastante pequena.
ERIC HORSRAWM

Pelos meus cálculos, feitos no final dos anos 50, o público principal do jazz
britânico daquela década era composto de cerca de 25 mil pessoas, que
compravam revistas especializadas em jazz, como à Jazs News, c de 115 mil
que compravam a revista semanal tradicional dos amantes do jazz, a Melody
Maker. O público nacional total para uma turné importante de uma banda
norte-americana famosa podia ser estimado em cerca de 100 mil pessoas, O
setor intelectual era muito menor. Os livros sobre o jazz tinham uma expec-
tativa de venda de 8 mil exemplares. Contudo, não há dúvida de que entre
1945 e 1955 O jaz7 se estabeleceu na Grã-Bretanha como uma parte recon-
hecida e aceita da cultura erudita, como não o havia sido até à guerra.
Surgiu da guerra na França, talvez devido às associações antifascistas de
uma música anti-racista, não tanto como pilar principal da cultura francesa,
mas como algo pelo qual os pilares da cultura deviam mostrar respeito: o Le
“Mende fez uma resenha, porque o Le Temps não sonharia em fazé-lo: Jean-
Paul Sartre admitiu esse fito. No entanto, sua posição na música oficial
permaneceu de certa forma marginal até muito mais tarde.
A recepção do jazz na Europa consiste, portanto, em dois fenômenos
bastante diversos. A recepção das formas de música popular baseadas e in-
fluenciadas pelo jazz foi virtualmente universal, A recepção do jazz como
uma forma missical de arte culta gerada popularmente ficou confinada a
uma minoria, é permanece confinada, embora um certo conhecimento do
jazz tenha se tornado uma parte aceita da cultura crudita, Durante um lon-
go período, o público curopeu de jazz, embora pequeno, desempenhou um
papel importante na história do jazz porque constimuin um apoio muito
mais estável do que o volátil público norte-americano. Essa fato seria im-
portante nas décadas de 60 « 70, quando a onda do rock quase tirou o jazz
de cena nos Estados Unidos, e os músicos norte-americanos, que com fre-
quência iam morar na Europa, começaram a depender em grande escala de
concertos é festivais europeus, como ainda acontece a muitos. Mas esse faro
necessariamente não indica uma expansão significativa do público europeu
de jazz. Contudo, os desenvolvimentos do pós-guerra não pertencem a esta
pesquisa. O público de jazz era, e permanece sendo, uma minoria muito
inferior à do público de música clássica, a julgar pela venda de discos e pela
quantidade de tempo que as rádios lhe dedicam. À recepção do jazz (em seu
sentido mais estrito) deve ser julgada não pelo número de seus convertidos,
mas pelos méritos da música « pelo extraordinário interesse, para o histo-
tiador cultural e social, do próprio processo de transferência transarlânti
Capítulo 23

O SWING POPULAR

Publicado originariamente na London Review of Books de 24 de novem-


bo de 1994, como resenha dos livros The Duke Ellington Reader, organi-
cado por Mark Tucker (Oxford, 1993) e Swing Changes: Big Band Jazz in
New: Deal America, de David

Nas minoritárias artes de elite do século XX, o componente norte-ame-


ricano é um dentre muitos, e não é de maneira alguma o mais importante.
Por outro lado, ele penetra na cultura popular do globo, e chega até à domi-
ná-la, sendo o esporte a única exceção, pois ainda ecoa a hegemonia britã-
tica durante a cra da burguesia é da primeira revolução industrial do século
xx, por meio do tênis, da golfe e, acima de tudo, do futebol. Portanto, não
surpreende que aquilo que geralmente é visto como uma das contribuições
norte-americanas mais importantes para a alta cultura do nosso século renha
stas origens no entretenimento popular e — sendo os Estados Unidos o
que são — comercial: o cinema e à música moldada pelo jazz.
No entanto, há uma grande diferença entre Hollywood e a ma 42
Hollywood, assim como Henry Ford, conquistou o mundo pela produ
em massa: no caso, de sonhos. Sua preocupação fundamental era o máximo
de felicidade para o maior número de pessoas, o que se media pelo retorno
das bilheterias. O análogo musical de Llollywood foi fortemente imbuído
da influência da música negra, e mais ainda a partir da ascensão do rockerrroll
em meados da década de 1950. Na verdade, desde os dias do ragtime, os
negócios da música popular não existiriam sem essa contínua infusão, O
jazz, que foi descoberto como uma arte importante no final da década de
1920 por grupos pequenos de aficionados apaixonados, mal se encontrava
no veículo de entretenimento musical comercial
380 ERIC HOBSRAWM

Sua personalidade mais importante, que foi devidamente homenagea-


da nas 536 páginas de Duke Ellington Reader, de Mark “Tucker, uma “fonte
dos escritos sobre Ellington”, viveu e morreu como um bandleader viajante.
Não porque precisasse — em seus últimos anos, financiou à banda com seus
direitos autorais —, mas porque não conseguia conceber a criação de sua
música a não ser nesse ambiente específico. Não obstante, o jazz era uma
arte de minoria, praticada por uma minoria, e atraía um público muito
menor que o público de música clássica. Nos primeiros tempos de sua re»
cepção. o problema principal dos entusiastas do gênero era descobrir as
poucas agulhas de hot jazz no cnorme palheiro da música dançante va-
gamente rítmica, descobrir maneiras de definir o que distinguia o próprio
jazz das amenidades circundantes ou dos refugos sincopados, e de defenda
lo dos filisteus que não sabiam distinguir um do outro.
A natureza do meio no qual a estraordinária arte do blues e do jazz foi
incubada é bastante conhecida hoje, graças à ampla literarara, cada vez mais
acadêmica. Há também um pequeno trabalho feito sobre a natureza do
público, embora (nos Estados Unidos) tenda à ser inflamada pelo amour
propre nacional, Para os escritores norte-americanos é mais difícil que para
os curopeus aceitar que uma glória dos Estados Unidos tenha sido levada à
sério pela primeira vez em outro lugar, De acordo com Tucker. foi no início
da década de 1930 que Ellington conheceu “os esboços da atenção da crí-
tica (principalmente do exterior)”. Podemos ver um de seus primeiros de-
fensores tentando, em 1913, tomá-lo aceitável aos leitores da Fortune, com
citações de seus triunfos recentes na Europa, “que é muito mais crítica e
minuciosa em relação a todos 6s tipos de música do que os Estados Uni-
dos* — embora, deva-se dizer, não mais crudita,
Por poucos anos, de meados da década de 30 à meados da de 40, o
hot jazz, sob o nome comercial de swing e por meio do veículo da big
band, tornou-se O principal idioma — ou um dos principais — da música
popular comercial Após essa data voltou ao gueto numericamente mais
restrito, mas musicalmente mais ambicioso. Do ponto de vista cronológico,
o swing coincidiu mais ou menos com a era de Franklin Roosevelt. Outros
fizeram referências ou especulações sobre as ligações entre a história política
é cultural dos Estados Unidos desse período, mas David Stowe, professor
do curso sobre pensamento e linguagem norte-americanos na Michigan State
University, é, a meu ver, O primeiro autor a tentar fazer uma história sis-
temática do relacionamento entre o jazz e à América do New Deal
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 381

O impacto mais imediato da América de Roosevelt sobre o jazz veio


da esquerda política, que concentrava desde entusiastas do New Deal no
sentido de uma cultura popular democrática até o partido comunista, que
levou o jazz a seu meio em 1935. (Os intelecruais trotskistas de Nova York
não parecem ter demonstrado muito interesse pela música, embora o seu
maior defensor tivesse, certa vez, assinado uma carta de protesto no New
Masses, com Edmund Wilson, Meyer Schapiro e The Trillings, grupo que
dificilmente se imagina acompanhando Count Basic.) A contribuição da
esquerda não cra apenas descobrir talentos. embora ninguém mais se inte-
ressasse de fato pelos obscuros — e mais importante, não-comerciais —
cantores de blues do Sul, Empresários musicais — como Moe Gale, o pro-
prictário (branco) do Savoy Ballroom no Harlem —, podiam ser perspicazes
para julgar um talento fururo, quando este lhes atravessava o caminho; era o
caso de John Hammond, o maior descobridor de talentos da década, mas
de todo o modo homens como ele não cram muito numerosos. A esquerda
trouxe — de propósito e com sucesso -— a música negra para fora do gueto,
mobilizando uma curiosa combinação de judeus radicais c de abonados pro-
testantes liberais, ou seja, o establishment de Nova York.
John Hammond Jr. (1910-1987), a quem Stowe (corretamente) de-
dica mais espaço do que a qualquer outro exceto Duke Ellington, é um
exemplo dessa combinação. Por absurdo que seja, Hammond, que era um
Vanderbilt, foi praticamente um típico produto da Ivy League, além de (em
seus últimos anos) membro dedicado do Century, um clube de público re-
quintado de Nova York. Ao mesmo tempo, foi ao longo da vida um mili-
tante apaixonado pela causa da igualdade racial, « por isso esteve próximo
dos comunistas durante muitos anos. Embora não fosse do partido — até o
EI se convenceu disso depois de anos de investigações —, ele foi, no en-
tanto (para citar minhas próprias lembranças dele), muito mais do que um
representante do “progressivismo” genérico do New Deal, papcl à que Stowe
tenta reduzi-o,
Os registros de Hammond como descobridor e desenvolvedor de ta-
lentos, de 1933 até a sua morte, não teve paralelos, Apoiava-se não só em
tum juízo e um conhecimento notáveis, mas também em sua habilidade para
mobilizar os trés componentes cruciais do sucesso em Nova York, e por-
tanto nacional: as relações pessoais, um público mctropolitano que sc or-
gulha da combinação do Nem Yorker de liberalismo e sofisticação, e uma
comunidade do show business dererminada a explorar esse mercado. Holly-
E ERIC HOBSBAWM

wood desmoronaria antes do macartismo; à Broadway balançou, mas sc


manteve de pé. O New» Jorker continuou fiel ao jazz desde a década de 30, é
The Duke Ellington Reader vale o scu preço pelo magnífico perfil que Richard
Boyer traça do grande homem (o “hot Bach”) que lá apareceu pela primeira
vez em 1944. Pode-se afirmar com segurança que, na época, em nenhuma
outra cidade americana que não fosse Nova York, boates como o Café So-
ciety— militante dedicada da mixagem social c da música de negros e brancos,
administrada pelo irmão de um empresário do Comintern (c parcialmente fi-
nanciada por Hammond) — teriam se tornado o brinde da cidade.
O que importa, no entanto, é que O sucesso em Nova York não era
algo simplesmente local, porque a cidade estava para o rádio e os discos,
que eram os fundamentos do sucesso da música popular, assim como Hol-
Iyiwood estava para O cinema. Benny Goodman tornou-se O “rei do swing”
porque Hammond convenceu esse homem talentoso, então um músico de
estúdio desencantado, a formar uma banda: Goodman empregou um dos
melhores ex-líderes de banda negros para ser scu atranjador, imaginou um
jazz diferente da rotina comercial da música de baile é ainda misturou músi-
cos negros e brancos. Graças aos contatos de Iammond, fez gravações e
fechou contratos, o que implicava vender transmissões para rádios de todo
o país. Como qualquer amante de jazz sabe, quando uma banda desencora-
jada chegava à Califórnia após uma turmé pelo país, em 1935, cla já criava
fama entre os universitários que haviam escutado os programas de fim de
noite do Leste, Ler% Dance, que chegavam rapidamente ao Pacífico. Com à
Columbia Records, a MCA c as rádios a esquerda de Nova York, o swing foi
nacionalizado.
A iniciativa dessa minoria foi crucial, pois não há evidências de que o
público de música popular dançante ou de que os músicos de jazz tenham
mudado muito — embora à maioria dos entusiastas de jazz houvesse cres-
cido substancialmente. O público (sobretudo juvenil ou estudantil, cujo po-
tencial econômico fora descoberto pela indústria popular, por meio do swing)
viu-se simplesmente exposto a um novo som, do qual gostou. As múltiplas
bandas rivais atravessavam o país, em seu próprio bencfício e no da indús-
tria de discos, cujas vendas aumentaram com a popularidade delas, em grande
parte graças à moda das juke-baves que, cm 1940, consumiam quase metade
de todos os discos produzidos. As vendas de discos subiram de 10 milhões
no começo da Depressão. para 130 milhões em 1941 — que foi o melhor
ano para a indústria desde 1921,
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS as:

Quanto aos músicos, eram exatamente os mesmos profissionais que


tocavam sopro « piano, gerando o ritmo de antes. É dificil estabelecer até
que ponto foram afetados pelas convieções políticas da época e das de seus
patronos, embora se possa dizer que os artistas negros compartilhavam a
conversão em massa de sua raça aó Partido Democrata de Roosevelt, que
também era o lar dos trabalhadores érnicos e dos judeus que não se posi-
cionavam mais à esquerda. À política não era um assunto que preocupasse
muito às pessoas cuja vida era a música: Para os artistas negros, a discrimi-
nação racial selvagem e difusa cra um fato da vida do qual se ressentiam
muito, mas praticamente a maioria deles duvidava de que a política pudesse
fazer alguma coisa
Os intelectuais negros, por ourro lado, eram marcadamente politiza-
dos, e sentiram-se atraídos pela paixão genuína dos comunistas pela inte-
gração racial e pela promoção da cultura negra. (O Daily Hórker publicou
três colunas de desculpas por “erros” de um crítico de música purista, que
havia escrito um texto ponco respeitoso sobre um show de svwing negro no
Carnegie Hall.) Mesmo Ellington, que não demonstrava nenhuma simpatia
pelos partidários brancos — todos sabiam do atrito que havia entre cle e
Hammond —, apoiou várias cansas vermelhas é com tanta frequência que
chamou a atenção do +BI, um fará observado por Stowe, que pesquisou os
arquivos, mas que não é mencionado no Reader de Tucker. O trompetista
Res Stewart diz ter lido Marx e Spengler, mas à maioria dos músicos de jazz
da época não se via como intelecrual.
Não é improvável que os músicos, que tocavam as danças em Camp
Units um retiro do Partido Comunista na seção vermelha de Borscht Beit,
tivessem improvisado uma ou duas idéias entre os números, embora a maioria
deles se lembrasse — na época era virmalmente desconhecido — do estí-
mulo público ao sexo interracial. (Contudo, a tradição do aparzheid era tão
forte que músicos mais velhos, como Sidney Becher, proibiram seus acom-
panhantes de confraternizar com mulheres brancas mesmo em Camp Unity
com medo de que isso ameaçasse o contrato.) “Acho que queriam provar
que eram igualitários”, considerou o incomum Dizzy Gillespie, que de fato
obteve um cartão do partido, talvez não só porque isso lhe garantiria mais
shows, como afirmou mais tarde, Count Basic era um caso mais típico,
Gravou uma sátira política sobre a pobreza é o racismo do Sul com relutân-
cia, por se sentir em dívida para com o scu descobridor, Hammond, que o
pressionou.
38s ERIC HORSBAWM

Há muito se sabe o quanto o jazz da cra de Rooscvelt deve à esquerda.


Ainda que O relato de Stowe traga muita informação desconhecida, traz
pouca inesperada. Sua tentativa de estabelecer relações mais gerais entre o
swing e O ethos da América do New Deal é a maior novidade. Bascia-se, em
parte, em uma análise perspicaz da Downbear de Chicago (fundada em 1934),
no uso que o fenômeno do swing fez do centro da América em vez de Nova
York. Na mistura inconsistente dos conteúdos dessa revista, percebeu-se uma
“ideologia do swing”, que “mostrava deferência por celebradas idéias norte-
americanas, como liberdade, democracia, tolerância « igualdade, ao mesmo
tempo em que se mantinha firme na convicção de que à experiência do
swing era o sinal e o motor de uma sociedade americana fundamentalmente
racional, em busca do progresso”. Sua convicção era anti-racista, defenden-
do a crença de que “não há linhas de cor na música”; expressava dúvidas
acerca das big bands, mas não excluía a crença hipócrita na superioridade
norte-americana € à hostilidade aos “ideais não-americanos”, seguidos por
“grupos de pessoas não assimiladas . que alimentam ódios entre si « desres-
peito pelas instituições americanas” — ou seja, os nazistas é os comunistas.
Além disso, como Stowe observa a esse respeito, na “ideologia do swing”
não havia muito lugar para as mulheres, Quaisquer que scjam as característi-
cas, Roosevelt foi suficientemente astuto em sentir-se atraído pelo swing:
Eleanor foi a um show de gospel no Café Society « convidou os músicos à
Casa Branca, enquanto seu filho, Franklin Jre., “ouvia extasiado” o quarteto
(integrado) de Benny Goodman em Boston.
Talvez à parte mais interessante do livro de Stowe seja sobre o swing
durante à gucrra. Ao contrário da Primeira Guerra Mundial, como obser-
vadores reclamaram com persistência, a Segunda Guerra não produziu má-
sicas de guerra universalmente populares, e decerto não produziu nenhuma
marcha. AS cxplicações variam, mas O fato é indiscutível. Tin Pan Alley
compôs canções patrióricas, mas ninguém as aceitou. Stowe sugere que “nessa
guerra, o moral estaria mais bem protegido não se criando um tipo de
orgulho associado com canções patrióticas, mas apelando-se para uma no-
ção exclusiva particular de experiência estética”. Os Estados Unidos “eram
incapazes de determinar” obrigações desinteressadas ao Estado. Em seu lu-
gar, havia as obrigações particulares “para com os amigos, a família, a femi-
nilidade norte-americana c 0 american way oflif”.
Aí há alguma coisa. É duvidoso que a guerra britânica ou soviética
produzisse um romance como Catch-22, de Feller, Mas isso não explica
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS ass

rado, porque as canções que agradavam aos outros exércitos — o óbvio


caso em questão é “Lili Marlene” — também tinham pouco a ver com
patriotismo ou com a esfera pública. Seria possível que o enorme sucesso
das grandes bandas de swing anulassem o que a maior parte dos nativos
brancos e trabalhadores norte-americanos realmente queria escutar — a saber,
as canções sentimentais e extremamente pessoais do que veio a ser chamado
“country music”, quando surgiu como um setor importante da indústria
popular após 1950? A banda de Glenn Miller era a face pública da cultura
popular durante à guerra, mas o swing não foi designado para a face par-
ticular, exceto talvez, no final, por meio dos vocalistas gerados pelas big
bands (Frank Sinatra, por exemplo). que sobreviveram ao colapso mudan-
do de sentimento. Infelizmente, contudo, Stowe não investiga outras áreas
da música popular até depois da guerra, quando começou o dramático de-
clinio do swing
Esse declínio repentino é nítido em 1946-1947. O público diminuiu
imuito, causando estragos econômicos nas big bands, sempre oncrosas mas
com os custos aumentados pelos anos de expansão ininterrupta e inflação de
guerra, No inverno de 1946-1947, Goodman, Woody Herman, Artic Shaw
Tommy Dorsey, Les Brown, Harry James, Jack Teagarden « Benny Carter
desfizeram suas bandas. A big band munca mais se recuperou. Mesmo as
bandas “swect”, rivais tradicionais do swing, sofreram com a decadência das
danças públicas,
Não há uma explicação adequada — pelo menos no livro não há ne-
nhuma — sobre esse colapso súbito, que implicou o retomo do jazz ao
guero. O fumro da música popular, quando tomou forma duradoura do
pós-guerra, nos anos 50, se apoiaria em dreas até então negligenciadas pela
indústria nacional de entretenimento: a música country e, acima de tudo, o
thvehmnlues (rock'n'roll), que continham uma dose ainda maior de in-
fluéncia musical negra que o swing. O componente do jazz que sobreviveu
ao swing — o bcbop — não tinha interesse em ganhar um grande público:
foi, na verdade, designado para antagonizi-lo. Hammond não gostava da
nova vanguarda. Após um período inférril, cle voltou a descobrir e pro-
mover talentos — Bob Dylan, Arctha Franklin, Bruce Springsteen — mas,
ao inverso da história do jazz na década de 1930, a história da música
popular a partir do rock precisa fazer referências a ele, Os velhos de «:
querda, deprimidos com o bebop, concentraram-se no que, para a maioria
deles, sempre havia sido a sua música do coração, as canções folk.
386 ERIC HOBSBAWM

Nesse ponto, a tentativa de Stowe de unir os destinos do swing com o


New Deal se rompe. É aceitável traçar um paralelo com a fragmentação da
“coalizão de Roosevelt com trabalhadores, éticos urbanos, afro-americanos,
fazendeiros e intelectuais”, que se rompeu em 1948, mas sc se pode propor
um mecanismo político ou quase político para a ascensão do swing, esse
mecanismo não é sugerido para explicar o seu declínio. Seria surpreendente
se não houvesse nenhuma ligação entre o declínio do swing e o fim da era
do New Deal, mas é preciso demonstrar como e por qué, Essa é a parte
mais fraca de um livro interessante. Talvez o verdadeiro mistério não seja
por que o swing decaiu, mas por que, como observou um escritor da Down-
beat em 1949, na década de 30 o público em geral (deve-se dizer, apoiado
pela indústria da música popular) aceitou as preferências musicais dos músi-
cos de jazz e de seus receptores, basicamente adolescentes e estudante:
“Apenas um monumento ficou de pé em mcio às ruínas — até Count
Basie havia recentemente reduzido sua banda a um grupo pequeno. Ellington
havia chegado lá antes do swing. Embora a frase “não significa nada sc não
tiver swing” fosse sua, cle não pertenceu à moda do swing, Recusou-se
mesmo à aceitar o rótulo exclusivo de jazz para sua música, Ele continuou lá
depois do swing, e, é quase certo, como a maior personalidade da música
norte-americana do século XX. Todos os seus admiradores vão querer ter
The Duke Ellington Reader, admiravelmente selecionado e organizado por
um professor de música da Columbia Universit
Capítulo 24
O JAZZ A PARTIR DE 1960

Este capítulo é baseado nos rextos introdutórios do meu livro História social
do jazz, nas edições de 1089 € 1992.

Assim como à música clássica, o jazz sempre foi um interesse de mi-


norias; contudo, diversamente da música clássica, esse interesse não cra es-
tável, O interesse pelo jazz passou por diferentes fases, havendo momentos
de desânimo. O final da década de 1930 « os anos 50 foram períodos em
que O jazz se expandiu de mancira notável, mas nos anos da depressão de
1929 (nos Estados Unidos, pelo menos), até o Harlem preferiu música
suave à meia-luz em vez de Ellington ou Armstrong. Os períodos em que o
interesse pelo jazz cresceu, ou foi reavivado, também foram, por ra s
óbvias para os produtores, períodos em que novas gerações de tis quiscram
conhecê-lo melhor.
A década de 1950 foi um desses períodos. A idade de ouro dos anos
50 terminou de repente, deixando O jazz em um isolamento rancoroso e
pobre por cerca de vinte anos, O que tornou essa geração de solidão tão
melancólica é paradoxal foi que a música que quase matou o jazz tinha à
mesma origem que aquela que havia gerado o jazz: O rock'n'roll cra, e ob-
viamente é, uma derivação do blues norte-americano. Os jovens, sem os
quais o jazz não pode existir — quase nenhum fi de jazz se converteu
depois dos vinte anos —, o abandonaram com uma rapidez extraordinária.
Trés anos depois de 1960, quando a era de ouro estava no auge, no ano do
sucesso dos Beatles no mundo inteiro, o jazz estava nocauteado. “Bird lives”
[Bird está vivo] era uma pichação que ainda se via em um ou outro muro,
mas O evento nova-iorquino de jazz que levava seu nome, Birdland, não
ass FRIC HORSBAWM

mais existia. Voltar à Nova York em 1963 cra uma experiência dolorosa
para o amante de jazz que visitara a cidade em 1960.
Isso não significa que 6 jazz tenha desaparecido, mas apenas que tanto
os músicos como o público ficaram mais velhos, e novos adeptos não ha-
viam surgido. Naturalmente, fora dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha.
que eram os principais centros « fontes do rock, o público jovem do jazz,
embora mais seleto em termos intelectuais e sociais, de alto nível e elevado
poder aquisitivo, continuou à ser expressivo e nada desprezível comercial-
mente, Por isso, não foram poucos os músicos de jazz americanos que acha-
ram melhor emigrar para a Europa naquelas décadas. Em países como Fran-
ça; Itália, Alemanha, Brasil e Japão, além da Escandinávia e — embora
menos relevante em termos comerciais — do Leste curopeu, o jazz con-
tinuou viável. Nos Estados Unidos c na Grã-Bretanha, O público se res-
tringia à homens e mulheres de meia-idade, jovens nas décadas de 20 30
ou, no máximo, na de 50. Como disse um famoso saxofonista em 1976:
“Não acho que possa ganhar o suficiente neste país. Não acho que alguém
possa ... Não há gente em número bastante, não há dinheiro bastante,
Mais ou menos nos últimos dois anos, a banda fez mais apresentações na
Alemanha do que aqui”.!
Era essa à realidade do jazz nos anos 60 e na maior parte da década de
1970, ao menos no mundo anglo-saxão. Não havia mercado para cle. De
acordo com a Billboard International Music Industry Directory, de 1972,
apenas 1,3% dos discos e fitas vendidos nos Estados Unidos eram de jazz,
contra 6,1% de música clássica c 75% de rock e gêneros semelhantes. Os
clubes de jazz começaram a fechar, os recitais diminuíram em número, mú-
sicos de vanguarda tocavam uns para os outros em apartamentos particu-
lares, é o reconhecimento cada vez maior de que 0 jazz era algo que fazia
parte da cultura oficial americana, ainda que produzindo subsídios interes-
santes para músicos não-comerciais por meio de escolas, faculdades é outras
instituições, reforçou a convicção dos jovens de que O jazz fazia parte do
mundo dos adultos. Ao contrário do rock, o jazz não cra a música deles.
Somente quando houve alguma exaustão do impulso musical por trás do
rock, que sc tornou cvidente no final dos anos 70, abriu-se espaço para o
renascimento do interesse pelo jazz como algo diferente do rock. (Alguns
músicos de jazz tinham, é claro, desenvolvido um gêncro chamado “fusion”,
uma fisão de jazz e rock, para horror dos puristas, principalmente os de van-
guarda, é foi provavelmente através dessa mistura que O jazz conseguiu manter
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS as9

uma certa presença junto ao público nesses anos de isolamento, com Miles
Davis, Chick Corea, Herbie Hancock, o guitarrista inglês John MeLoughlin
é a combinação austro-americana de Joe Zawinul e Wayne Shorer no Wea-
ther Report.)
Por que motivo o rock teria enterrado o jazz durante quase vinte anos?
Ambos tinham sua origem na música dos negros norte-americanos, e foi
através dos músicos e fãs de jazz que o blues negro passou a merecer a
atenção de um público mais amplo do que o meramente restrito aos estados
do Sul dos Estados Unidos « dos guetos negros. Como eles figuravam entre
os poucos brancos familiarizados com artistas « repertórios dos catálogos
dos ditos race records (diplomaticamente rebatizados de riyrbme'n'blues no
final dos anos 40), os brancos amantes de jazz é blues foram de imporrância
crucial para O lançamento do rock. Ahmer Ertegun, que fundou a Atlantic
Records, que por sua vez veio à se tornar uma das principais gravadoras de
jazz, era um dos dois irmãos que durante muito tempo integraram a comu-
nidade internacional de especialistas e colecionadores de disco de jazz. John
Hammond, cujo papel importantíssimo na evolução do jazz nos anos 30 já
foi mencionado, também impulsionou as carreiras de Bob Dylan, Aretha
Franklin é, mais tarde, de Bruce Springsteen. Onde estaria O rock britânico
sem a influência dos poucos entusiastas locais de blues, como o falecido
Alexis Korner, que inspirou os Rolling Stones, ou os entusiastas do jazz
tradicional (apelidado “trad”) que, do interior c das cidades grandes, impor-
tavam cantores de blues como Muddy Waters e os tornavam famosos em
Lancashire e Lanark muito antes que fossem conhecidos por pouco mais de
meia dúzia de americanos fora dos guctos negros?
No início, parecia não haver hostilidade ou incompatibilidade entre o
jazz e o rock, ainda que os leitores atentos de História social do jacs possam
constatar a atitude de condescendente superioridade com que os críicos e,
acima de tudo, os músicos profissionais de jazz tratavam os primeiros triun-
fos do rockn'roll, cujo público parecia incapaz de distinguir entre um Bill
Haley (“Rock around the clock”) e um Chuck Berry, Uma diferença básica
entre O jazz e o rock é que 0 rock nunca foi música de minoria. O riythmr”.
s”bles, tal como foi desenvolvido depois da Segunda Guerra Mundial, era à
música folk dos negros urbanos na década de 1940, quando 1,5 milhão de
negros deixaram o Sul em direção ao Norte e os guetos do Oeste, Eles for-
mavam um novo mercado, que então passou à ser suprido por pequenas
gravadoras independentes, como a Chess Records, Esta, fundada em Chicago
390 ERIC HOBSBAWM

em 1949 por dois imigrantes poloneses ligados ao circuito de casas norur-


mas, € especializados no estilo conhecido como Chicago blues (Muddy Waters,
Havlin” Wolf, Sonny Boy Williamson), gravou, entre outros, Chuck Berry,
provavelmente o nome mais influente — ao lado do de Elvis Presley — no
rockenrroll dos anos 50, Os adolescentes brancos começaram a comprar dis-
cos de rhythmnblves (r&b) no início dos anos 50, tendo descoberto essa
música nas estações de rádio locais e especializadas que se multiplicavam
naqueles anos, à medida que a massa de adultos voltava suas atenções para à
televisão. À primeira vista, eles pareciam ser a pequena e atípica minoria que
ainda pode ser vista nos lugares onde há entretenimento promovido por
negros, do mesmo: modo como os visitantes brancos que frequentavam os
clubes de blues dos guetos de Chicago. No entanto, assim que a indústria
da música percebeu o potencial do mercado de brancos, tornou-se evidente
que o rock era o oposto do gosto de minoria. Era a música de uma faixa
crária,
É quase certo que esse resultado tenha sido produzido pelo “milagre
econômico” dos anos 50, que não só criou um mundo ocidental de pleno
emprego, mas também, provavelmente pela primeira vez, ofereceu trabalho
de remuneração adequada à massa de adolescentes, « portanto dinheiro no
bolso, constituindo uma parcela até então incdita da prosperidade de que
gozavam os adultos de classe média. Foi esse mercado de crianças e adoles-
centes que transformou à indústria da música. De 1955, quando nasceu o
rock'n'roll, a 1959, as vendas de discos norte-americanas cresceram 36% ao
ano: Após uma pequena pausa, a invasão britânica de 1963, liderada pelos
Beatles, iniciou um crescimento ainda mais espetacular: às vendas de discos
nos Estados Unidos, que tinham aumentado de US$ 227 milhões em 1955
para USS 600 milhões em 1959, ultrapassaram a casa dos US$ 2 bilhões
em 1973 (incluindo agora as fitas). Cerca de 75 à 80% dessas vendas repre-
sentavam gravações de rock e gêneros afins. As fortunas comerciais da in-
dústria de discos nunca haviam dependido tanto de um só gêncro musical,
dirigido a uma faixa etária tão restrita. A correlação entre vendas de discos,
desenvolvimento económico e aumento de renda era óbvia. Em 1973, os
maiores gastos per capita com discos ocorreram nos Estados Unidos, segui-
dos (em ordem de classificação) pela Suécia, Alemanha Ocidental, Holanda
e Grá-Bretanha. Todos esses países gastaram entre USS 7 e USS 10. No mes-
mo ano, italianos, espanhóis « mesicanos gastaram entre US$ 1 e USS 1,40
per capita, e os brasileiros, uns USS 0,66.
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS E]

Quase instantancamente, portanto, o rock se tomou um meio univer-


sal de expressão de desejos, instintos, sentimentos e aspirações do público
entre a adolescência e aquele momento em que as pessoas se estabelecem
em termos convencionais dentro da sociedade, da família ou da carreira: a
voz ea linguagem de uma “juventude” e de uma “cultura jovem” consciente
de su lugar nas sociedades industriais modernas. Nessa faixa crária, ele
poderia expressar qualquer coisa, ou tudo ao mesmo tempo, mas embora o
rock tenha desenvolvido nítidas variantes regionais, nacionais, de classes ou
mesmo político-ideológicas, sua linguagem básica, assim como a vestimenta
vulgar-populista associada à juventude (principalmente 0 jeans), atravessou
fronteiras de países, classes « ideologias. A exemplo do que ocorre na vida
dos integrantes desses grupos etários, na música rock o público € o privado,
O sentimento e a convicção, o amor, a rebeldia e à arte, a dramaticidade c à
postura assumida no palco não são discerníveis entre si. Observadores de
mais idade, por exemplo, acostumados a manter a revolução separada da
música e a julgar essas coisas por seus próprios critérios, devem ter ficado
perplexos com a retórica apocalíprica que podia envolver 0 rock no auge da
rebelião da juventude, quando a revista Rolling Stone escreveu, a respeito de
um concerto de rock em 1969:
Um exéreito de guerilheiros da paz fandou uma cidade de grandes pro-
porções, maior do que Rochester no estado de Nova York, e e mostrou
imediatamente pronto para voltar-se contra a cidade já devastada e [seus]
estilos de vida inoperantes, imineneemente preparados para avançar pe-
los campos cobertos de neblina e pelos bosques frios e silenciosos. E eles
O farão novamente. À ameaça da dissidência jovem será feita em Paris,
Praga, Fort Lauderdale, Berkeley, Chicago e Londres, em um zigue-
7ague que nos roma cada vez mais próximos, até que o mapa do mundo
em que vivemos seja viável € visível para todos os que dele participam e
rodos os que nele estão enterrados.”
Woodstock foi sem dúvida uma experiência maravilhosa para todos os
participantes, mas o seu significado político e o interesse estritamente musi-
cal de muitos de seus números, mesmo naquela época, não eram assim tão
óbvios.
Uma linguagem cultural universal não pode ser julgada pelos mesmos
critérios que um tipo especial de música crudira, e não havia nem há motivo
para se julgar o rock pelos padrões do bom jazz. No entanto, o rock privou
a ERIC HOBSBAWM

O jazz da maioria de seus ouvintes em potencial, pois os jovens que, aos


bandos, se sentiam atraídos por ele encontravam nessa música, ainda que de
maneira simplificada « embrurecida, muito, se não tudo, do que fazia com
que os mais velhos fossem atraídos pelo jazz: ritmo, voz ou som imedia-
tamente identificáveis, espontaneidade rcal (ou fingida) e vitalidade, e uma
maneira de transferir emoções humanas diretamente para a música. Além
disso, eles descobriram tudo isso cm uma música aparentada com O jazz.
Por que precisariam do jazz? Com raras exceções, os jovens que haviam se
convertido ao jazz agora tinham uma alternativa.
O que tomava essa alternativa cada vez mais atraente, ajudando mais
ainda a reduzir 0 espaço de um jazz ameaçado e isolado, era a sua própria
transformação. Quando os revolucionários do bebopse juntaram à corrente
principal do jazz, na segunda metade da década de 50, os novos músicos de
vanguarda ou partidários do free-jazz, avançando em direção ao atonalismo
e rompendo com tudo o que até então havia dado ao jazz uma estrutura —
incluindo o ritmo em torno do qual ele se organizava —, alargaram ainda
mais adistância entre a música € seu público, inclusive o público de jazz, E
não era de surpreender que à vanguarda reagisse à deserção do público
assumindo uma postura ainda mais radical c acuada, No início da nova
revolução era muito fácil reconhecer, no saxofone de Ornerre Coleman por
exemplo, o sentimento do blues de scu Texas natal; a tradição dos instru-
mentistas de sopro do passado era óbvia em Coltrane. No entanto, não
eram essas as coisas que os inovadores queriam que o público notasse neles.
Nas décadas negras, porém, a situação da nova vanguarda era para-
doxal. O afrouxamento da estrutura tradicional do jazz e seu movimento
cada vez mais voltado para algo próximo da música clássica de vanguarda o
expuseram a todos os tipos de influência não-jazzística vindos da Europa,
da África, do mundo islâmico, da América Latina e, principalmente. da
Índia. Nos anos 60, ele passou por uma variedade de exotismos. Em outras
palavras, o jazz ficou menos americano do que antes, Talvez pelo fato de o
público americano de jazz ter diminuido relativamente de importância, tal-
vez por outras razões, depois de 1962 o free-jazz se tornou o primeiro estilo
de jazz cuja história não pode ser escrita sem que se considere os importan-
tes desenvolvimentos que teve na Europa c. podemos acrescentar, os músi-
cos europeus.
Ao mesmo tempo — € paradoxalmente também — a nova vanguarda
que rompeu com a tradição do jazz estava muito ansiosa para reforçar suas
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS E

ligações com essa mesma tradição, inclusive em relação a aspectos a


bem pouco observados. Quando Coltrane (1926-1967), por exemplo, pas-
sou à tocar sax soprano em 1961, até então um monopólio virtual do recém-
falecido Sidney Becher, ele foi seguido por vários savofonistas de vanguarda.
“Avé esse momento, Becher tinha sido um nome musicalmente pouco mais
que irrelevante para a maioria dos músicos da geração de Coltrane. A reafir-
mação da tradição era política, mais que musical. Pois — e este é o terceiro
aspecto do paradoxo — o jazz de vanguarda dos anos 60 era consciente e
politicamente negro, como nenhuma outra geração de músicos de jazz havia
sido antes, embora cm História social do jazz eu já tenha observado algumas
ligações entre as novas experiências em jazz€ a conscientização negra. Co-
mo Whitney Ballierr disse nos anos 70: “O frce-jazz é realmente o jazz mais
negro que há”. Politicamente negro « radical, Assim, o LP Charlie Haden:
liberatiom music orchestra (1969) continha quatro canções da Guerra Civil
Espanhola, inspirando-se nas manifestações de 1968 da Convenção Demo-
crática de Chicago: uma homenagem à Che Guevara, e uma versão de “We
shall overcome”. Archie Shepp (sax soprano c tenor), uma das maiores figuras
da vanguarda, criou uma homenagem musical à Malcolm X e também At-
tica blues, inspirado no famoso levante da prisão negra. À conscientização
política continuou a manter uma ligação entre à vanguarda e a massa de
negros norte-americanos e suas tradições, gerando, portanto, a possibilidade
de retorno à corrente principal do jazz. À curto prazo, porém, esse isola-
mento da vanguarda relativamente a um público negro de jazz, que não à
compreendia, era particularmente frustrante.
A rejeição do sucesso (a não ser nos termos absolutamente descom-
prometidos propostos por aquele artista) é característica das vanguardas, c
no jazz, que sempre existiu em função do público pagante, as concessões
feitas às vendas pareciam muito perigosas ao músico que desejava alcançar o
status de “artista”, Como fazer concessões ao rock? ("Lá uma certa posição
política envolvida na escolha daqueles que raramente se remetem aos ritmos
do rock, mais fáceis de assimilar”.*) E ainda assim. por trés motivos, o rock
ária influenciar o jazz.
O primciro deles é que os músicos americanos (e ingleses) de jazz,
nascidos depois de 1940, cresceram numa atmosfera permeada pelo rock,
ou seu equivalente encontrado nos guetos, « por isso não podiam deixar de
assimilar parte dele. O segundo motivo é que o rock, arte de amadores
pessoas musical ou até mesmo formalmente analfaberas, precisava — e de-
394 ERIC HORSBAWM

vido à sua grande riqueza podia se valer — da competência técnica e musi-


cal dos profissionais de jazz, de modo que os músicos de jazz não podem
ser recriminados por descjarem algumas delgadas fatias de um bolo tão
grande e doce, Em terceiro lugar, e mais importante, o rock era inovador em
termos musicais. Como muitas vezes acontece na história das artes, as prin-
ipais revoluções artísticas não surgem a parti dos que se intitulam revolucio-
nários, e sim dos que empregam as novidades com propósitos comerciais.
Assim como os primeiros filmes foram eferivamente mais revolucionários
que o cubismo. os empresários do rock transformaram o cenário musical
mais profundamente que as vanguardas ditas clássicas ou que o frec-jazz.
A principal inovação do rock foi tecnológica. Foi isso que possibi ou
o grande avanço da música eletrônica. Os pedantes poderão dizer que no
jazz surgiram os pioneiros na eletrificação de instrumentos (Charlie Chris-
tian revolucionou a guitarra, da mesma forma que Billie Holiday transfor-
mou o uso da voz humana associando-a ao microfone pessoal) e que as
formas revolucionárias de gerar som, como sintetizadores, já tinham sido
utilizadas em shows musicais de vanguarda. Não se pode negar, no entanto,
que o rock foi a primeira música a usar sistematicamente instrumentos elé-
tricos em vez de acústicos e a utilizar a tecnologia eletrônica não apenas
para efeitos especiais, mas para O repertório normal aceito pelo público de
massa. Foi O primeiro tipo de música a fazer dos técnicos de som e prof
sionais de estúdio parceiros igualitários na criação de um número musical,
sobretudo porque à incompetência-dos artistas de rock era geralmente de
proporções tamanhas que cles não poderiam fazer gravações nem apresen-
tações sem à ajuda deles. É claro que essas inovações iriam influenciar músi-
cos de ralento e originalidade genuínos.
A segunda inovação do rock diz. respeito ao conceito de conjunto. O
conjunto de rock não só desenvolveu uma instrumentação original por trás
da voz ou das vozes (basicamente, percussão« vários tipos de guitarra, o
baixo elétrico substituindo o contrabaixo), mas se constituía essencialmente
“de uma unidade coletiva, em vez de um pequeno grupo de virmoses ten-
tando demonstrar as suas habilidades” É claro que, ao contrário do que
acontecia nos grupos de jazz, cram raríssimos os casos de integrantes de
conjuntos de rock com alguma habilidade individual à mostrar. Além disso,
o conjunto deveria idealmente ser caracterizado por um “som” incontun-
dível, uma marca sonora através da qual ele — ou melhor, os técnicos de
estúdio — tentavam estabelecer a sua individualidade. E ao contrário das
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 395

velhas big bands de jazz, os grupos de rock eram pequenos. Eles produziam
um “grande som” (que não significa necessariamente um grande volume de
som, embora o rock costume dar preferência à amplificação máxima) com
um múmero mínimo de integrantes. Isso ajudou a trazer os pequenos gru-
pos de jazz de volta a algo que se perdera de vista na época da sucessão de
solos da era bebop, ou seja, a possibilidade da improvisação coletiva « da
textura de grupos pequenos. Arranjos sofisticados de rock — como o de
Sergeant Pepper, dos Beatles, que foi rotulado, não sem razão, de “rock sin-
tônico” — não podiam deixar de dar aos músicos de jazz algumas idéias
O terceiro elemento de interesse no rock era o ritmo insistente « palpi-
tante. Embora inicialmente muito menos elaborado do que o ritmo do jazz,
a combinação dos vários instrumentos rítmicos que formavam o conjunto
de rock — teclados, guitarras e percussão pertenciam, em geral, às seções
rítmicas dos conjuntos de jazz — produzia suas próprias complexidades
potenciais, que os músicos de jazz podiam transformar em ostinaros cambi-
antes e contraponto rítmicos.
Mesmo assim, como vimos, alguns músicos de jazz muito talentosos
desenvolveram uma fusão de jazz e rock (“fusion”) nos anos 70 — Aitches
Brew de Miles Davis, estabeleceu o ritmo em 1969 —, mas esse estilo híbrido
não chegou a determinar a forma do jazz de máncira permanente, tam-
pouco as injeções de elementos jazzísticos propiciaram uma contínua trans-
fusão de sangue para o rock. O que parece ter acontecido foi uma exaustão
musical cada vez maior do rock ao longo dos anos 70. que pode ou não
estar ligada à retirada da grande onda de rebelião jovem que atingiu o pico
no final dos anos 60 e início dos 70. De certa mancira, muito gradual-
mente, O espaço para O jaz parece ter se tornado menos congestionado.
Começou a perecber que os jovens estudantes mais inteligentes c infor-
mados à respeito da moda voltavam a tratar com respeito os pais de scus
amigos que tinham em casa discos de Miles Davis.
No final da década de 1970 e início da de 80, havia sinais claros de um
o revival do jazz, embora àquela altura grande parte do reperrário clás-
sico de jazz estivesse congelada numa imobilidade permanente devido à morte
de tantas grandes figuras que o formaram: o estilo de vida do jazz não
favorecia à longevidade. Em 1980, até mesmo algumas estrelas do desen-
volvimento da “nova música” já tinham desaparecido: John, Coltrane, Al-
bert Ayler, Eric Dolphy, por exemplo, Muito do jazz que os novos fis apren-
deram a apreciar era portanto incapaz de modificações c desenvolvimentos
396 ERIC HORSBAWM

ulteriores, pois era uma música de gente morta, uma situação que iria dar
ensejo a uma estranha forma de ressurgimento, em que os músicos repro-
duzem sons do passado, algo semelhante ao que ocorreu quando um con-
junto sob a direção de Bob Wilber reconstituiu a música e o som da banda
de Ellington dos primeiros tempos para o filme Corrom Club. Além disso,
grande parte dos músicos de jazz que podiam scr ouvidos ao vivo pelos
novos fãs era de meia-idade ou bastante idosa, Assim, quando escrevi uma
introdução semelhante a esta para uma reedição italiana da História social do
jazs, publicada em 1982, os amantes do jazz em Londres podiam escolher
entre uma variedade de veteranos: Harry “Swects” Edison, Joc Newman,
Buddy Tate e Frank Foster, que haviam pertencido à banda de Basic muito
tempo atrás; Nate Pierce, que cra conhecido desde à época de Woody Her-
man: Shelly Manne e Art Pepper, desde a era do col nos anos 50: Al Grey,
que voltou para as bandas de swing dos anos 30; Irummy Young, da ge-
ração de 1912, que tinha tocado com Louis Armstrong durante muitos
anos, além de outros representantes da velha guarda. Na verdade, entre os
músicos importantes que cstavam se apresentando naquela semana, prova-
velmente à único que não seria de imediato reconhecível para à maioria dos
amantes de jazz dos anos 60 era MeCoy Trner (nascido em 1938), que
ficou conhecido por sua aruação junto a Coltrane na década de 1960,
O revival do jazz continuou à partir de então. E favoreceu, torçosa-
mente, o grupo cada vez menor de sobreviventes, alguns dos quais voltaram
de seu exílio na Europa ou saíram do anonimato da televisão, do cinema, ou
dos estúdios de gravação e passaram a reconstituir grupos que haviam
separado havia muito tempo, ao menos para algumas turnés é ocasiões es-
peciais, como é o casa do Modern Jazz Quarter, ou do Art Farmer-Benny
Gilson Jazzret. Ele se mostrou especialmente favorável aos sobreviventes da
primeira revolução do jazz, pois foi o bebop que surgiu, ou ressurgiu, como
principal estilo de jazz dos anos 80, « modelo básico para os jovens músi-
cos. Por outro lado, o novo reviral deixou de fora o antigo retorno à tra-
dição daqueles que desejavam recaprurar a música de Nova Orleans c dos
anos 20. “Trad”, “Dixieland” ou qualquer que seja o scu nome, é o cstilo
mais antigo de jazz, aquele que, graças à nostalgia dos amadores de classe
média branca. cada vez mais de meia-idade, melhor resistiu aos ataques do
rock; mas também aquele que, como foi dito, nada criou de valor musical,
não sentiu os novos ventos soprando em suas velas.
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 27

Os músicos que talvez mais tenham se beneficiado disso foram os de


maior talento, que defenderam O jazz nos dias dificeis da vanguarda, nas
décadas de 60 e 70, e que se sentiram tentados a voltar à corrente principal
do jazz com a reaparecimento do público ao vivo. Esses músicos não eram
jovens, pelos padrões dos tempos em que Armstrong, na casa dos vinte
anos, ficou mundialmente famoso; Charlie Parker havia morrido aos trinta e
cinco, e ninguém se espantava com o fato de a guitarra de jazz ter sido
revolucionada por um músico (Charlie Christian) que era pouco mais do
que um adolescente. Dessa mancira, os integrantes do influente conjunto
World Saxophone Quarter, que tizeram reputação nos anos 80 (Hamicrr
Bluicrr, Julius Hemphill, Oliver Lake, David Murray) tinham nascido, res-
pectivamente, em 1938, 1940, 1942 e 1955 — quer dizer, na época da
redação deste texto (1988), todos, menos um, estavam com quase cinquen-
ta anos. Quando encontramos novas estrelas de jazz já com alguma repu-
tação é na casa dos vinte anos, eles são quase sempre músicos de segunda
geração, como os irmãos Marsalis (Winton, trompete clássico e de jazz,
nascido em 1960; Branford, saxofonista, nascido cm 1961). Mais recente-
mente, surgiram de faro músicos jovens de primeira geração e de grande
destaque. Mas mesmo assim há algo estranho em relação a esse renal, embora
ral estranheza o torne mais familiar a velhos amantes do jazz, como o autor
deste texto. O jazz do início da década de 90 volta-se para o passado.
Considere-se o Downbeat Critics Pull de 1991, que fez uma lista dos
“Artistas de jazz do ano” com Wynton Marsalis, Benny Carter, Sonny Rollins,
Jackie McLean, Dizzy Gillespic, Cecil Taylor, Henry “Threadgill e David
Murray: Cinco desses oito nomes eram familiares em 1961, dois apareceram
nos anos difíceis do exílio do jazz e agora estão na meia-idade, e apenas
Wynton Macsalis (um jazzista da segunda geração) pertence à década de 80
O Readers Poll (de dezembro de 1990; não é muito dirigido ao futuro,
embora dé mais espaço para os talentos de meia-idade que cumpriram suas
obrigações nos anos sombrios (Jack de Johnerre, Marcus Roberts, Phil Woods,
Pat Metheny).
Vejamos o que eles tocam. A base do que se toca hoje é essencialmente
o que se tocava nas décadas de 40 é 50. Todos são boppers. Não que não
tenha acontecido nada no jazz desde então, mas as inovações dos últimos
trinta anos, do frce-jazz ao fusion, foram silenciosamente marginalizadas,
Mesmo os obituários mais entusiasmados de Miles Davis, uma figura cen-
E ERIC HOBSRAWM

tral no desenvolvimento do jazz desde o início dos anos 50, foram am-
bíguos no que dizia respeito a seus últimos vinte anos, preferiram nem
comentar os últimos dez. Isso convinha aos cidadãos mais velhos, que lem-
bram sem dificuldade as maravilhas do primeiro quinteto, de Miles ahead €
Kind of blue — mas será que o conflito de gerações deveria ter uma visão
assim estreita? Tradição agora é uma palavra-chave, um termo que se ouve
com mais frequência entre os fis de jazz, que deploram o fim do Dixicland
c de sua juventude, do que entre os músicos. No entanto, há o saxofonista
de 25 anos (“de Parker c Adderley”), que observou recentemente: “Bird é a
influência principal porque cobre muitas eras e estilos com a sua música. Ele
mantinha a tradição, e achei que se eu o estadasse o suficiente, conseguiria
entendê-la”, Será que Bird se via dessa maneira quando tinha 25 anos?
Na verdade, à mode retro data de um período muito anterior aos bop-
pers originais. Houve um retorno às baladas padrão, ainda que hoje sejam
tocadas com florcios de vanguarda por homens que voltaram à corrente
principal de fronteiras. mais inacessíveis, como Archie Shepp, o terror dos
anos 60, Há até mesmo sinais da redescoberta negra da tradição original de
Nova Orleans, que previ cm História social do jaz, admitida por Wynton
Marsalis, que é um homem de Nova Orleans tanto como a favor das tradi-
gões. Acima de tudo, houve uma volta extraordinária 0 blues, O relan-
çamento do ano passado de Robert Johnson vendeu 500 mil cópias. Ben-
son and Hedges patrocinou um festival de blucs em Nova York. Salões de
blues não param de abrir em Chicago, para o merecido benefício de velhos
que se viram com pouco dinheiro e que, enquanto escrevo, estão sendo
importados para um novo clube de Nova York, que anuncia apresentar nada
além dos blues de Chicago.
Tudo isso é confortante e familiar aos veteranos, embora seja impos-
sível sentir hoje o que sentimos no final da década de 1950 « nos anos entre
1936 e 1942, mas estamos vivendo de novo uma idade de ouro do jazz. Há
muito jazz. para se ouvir, e não há falta (pelo menos na região de Nova
York: de nistas ao mesmo tempo ousados e acessíveis: Mas isso também
é um sinal de perigo. O jazz não pode sobreviver como a música barroca,
como uma forma de pastiche ou de arqueologia para o público culto, mes-
mo entre os negros. E esse é exatamente O perigo que o ameaça. Hoje os
jovens negros não cantam o blues. Na melhor das hipóteses, artistas mais
velhos tocam blues para públicos mais velhos da vizinhança: na pior (como
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 399

em muitos dos novos salões de blues de Chicago), os mesmos cabelos bran-


cos tocam em vizinhanças brancas, para estudantes brancos. Os jovens ne-
gros não sonham em tocar trompete (exceto, paradoxalmente, os jovens
caribenhos na Gri-Bretanha, que não têm uma tradição de jaz? nativa), mas
sonham em participar de grupos de rap, uma forma de arte que, na minha
opinião, é musicalmente desinteressante c literariamente burlesca. Na ver-
dade, é o oposto da arte grande e profunda do blues. Há boas razões para
isso (o que é um saxofone comparado com a explosão do gucto?), mas ao
preço da ruptura com as raízes do jazz. O florescente cenário da mídia e arte
negras — que pode ser chamado de cinturão Spike Lee — está impregnado
de jazz e, obviamente, também o estão os músicos negros ou brancos. Mas
o jazz sempre viveu não pela modernidade de seu público (que, com raríssi
mas exceções sempre oi minoritário), e sim pelo que Cornel West chama de
uma “rede de aprendizagens”, a “transmissão de habilidades e sensibilidades
ãos novos praticantes”. As cordas dessa rede estão se desgastando. Algumas
se parriram.
Estaria então o jazz sendo transformando sem redenção cm uma outra
versão de música clássica: um tesouro cultural aceito, consistindo em um
repertório formado em grande parte por estilos mortos, tocados ao vivo por
artistas — alguns deles jovens — para um público de mcia-idade e de classe
média, financeiramente bem estabelecido, negro e branco, e também para o
turista japonés? Será cle mais uma vez acessível à maioria de seus constituin-
tes em potencial apenas pelo rádio e pelos discos, como foi para minha
geração européia há meio século? Ouvir a maioria das estações de jazz hoje
é voltar ao mundo esotérico dos que têm uma fé autêntica, quando trés dias
dedicados exclusivamente às gravações de Clifford Brown, por exemplo, são
três dias bem empregados.
O jazz estaria sendo terminalmente fossilizado? Não é impossível. Se
esse for o destino dele, não servirá de muito consolo o fato de Clint East-
wood ter enterrado Bird em um mausoléu de celulóide c de que todos os
cabeleireiros e lojas de cosméticos toquem fitas de Billie Holiday. No en-
tanto, O jazz demonstrou poderes extraordinários de sobrevivência e de auto-
renovação numa sociedade que não foi designada para ele c não o merece. É
cedo demais para achar que seu potencial acabou. Além disso, o que há de
ettado em apenas ouvir e deixar que o futuro se encarregue do resto:
ERIC HORSBAWM

Notas
Skidmore, em faze No, Londres, 1976, p. 76
itado em S. Chapplee R. Garofo, Rocks! Ie Here
to 1, Chicago. p, 144
3 Whitney Ballicer, Neie Jonk Nates: A Jóual of Jaes ns gh Seventis, Nova York, 1977,
pos.
Valerie Wilmer, As Seriousae Jour Live: The Story af she New Jaze, Londres, 1977 (2
ed. 1987), p.27.
Je também consegui, aliás, o virtual monopólio de conjuntos de cantores até então
pouco comuns em jazz e blues, e de jovens rapazes — apesar da grande superioridade
feminina nos blues e vocais, nas canções de gospel e no jazz.
O pai deles. bllis Marsalis, pianista de Nova Orleans € fã apaixonado de Once
Coleman e da vanguarda, conseguiu criá-los trabalhando no comércio. Em Nova
Orleans à música ainda é uma tradição familiar, como O era na família de Bach,
Capítulo 25

BILLIE HOLIDAY

Este breve obituário foi publicado originariamente em 1959, na coluna que


em então escrevia (sob O nome de Francis Newiom) no The New Staresman
and Nation. Estou reimprimindo-a, entre outros motivos, em memória de
meu amigo Jolm Hammond Jr (ver capítulo 23), a quem pergunte, em seus
síltimos momentos dé vida, do que se orgulhava mais. Ele respondeu que fo ter
descoberto Billie Holiday

Billie Holiday morreu há poucas semanas. Até agora não conscgui es-
crever nada, mas já que ela vai sobreviver à muitos que receberam obituários.
mais longos, um pequeno atraso numa apreciação não irá prejudicá-la, nem
a nós. Quando ela morreu, nós — músicos, críticos e todos os que ficavam.
paralisados com a voz que mais partia corações na geração passada — sofre-
mos amargamente. Não havia motivo. Poucas pessoas foram em busca da
autodestruição de maneira mais convicta do que ela, e quando essa busca
acabou, aos 42 anos de idade, Billie havia se arruinado física e artistica-
mente. Alguns de nós tentaram fingir O contrário com elegância, procu-
rando conforto nos momentos ocasionais cm que cla ainda parecia um eco
arruinado de sua grandeza. Outros não tinham mais coragem de vê-la nem
de ouvi-la. Preferíamos ficar em casa, se fóssemos suficientemente velhos ou
sormidos para ter Os incomparáveis discos de scu apogeu, entre 1937 e 1946,
muitos dos quais não estão disponíveis em LPs britânicos, e assim recriar os
barulhos insuportavelmente tristes, sensuais, sinuosos e de textura áspera
que lhe garantiram a imortalidade, Sua morte fisica trouxe alívio, em vez de
tristeza. Que espécie de meia-idade ela teria enfrentado, sem voz para ganhar
dinheiro para seus drinques e drogas, sem à aparência — ela que foi obsessi-
“02 ERIC TOBSBAWM

vamente linda em sua época — para atrair os homens de que precisava, sem
tino para os negócios, sem mada a não scr a vencração desinteressada de
homens que envelheciam e que a ouviram e viram em sua glória
No entanto, por mais irracional que fosse, nossa tristeza expressou a
arte de Billie Holidas, à de uma mulher por quem se sente tristeza, As
grandes cantoras de blues, a quem é justo compará-la, faziam seus jogos
pela força. .eoas, embora às vezes feridas ou na defensiva (Bessie Smith
não se autodenominou “um tigre pronto para dar o bote”?), seus equivalen-
tes trágicos eram Cleópatra e Fedra, ao passo que Billie era uma Ofélia
amargurada. Foi à heroína de Puccini entre as cantoras de blues, ou melhor,
entre os cantores de jazz, porque embora cantasse uma versão de cabaré de
blues incomparáveis, seu idioma narural era a música popular. Sua con-
quista exclusiva foi ter transformado isso em uma expressão genuína de
paixões importantes, menosprezando as melodias açucaradas, ou, na ver-
dade, qualquer melodia além de suas poucas notas delicadamente alongadas,
expressas como uma Bessic Smith ou um Louis Armstrong de burel, can-
tadas com uma voz tênue, corajosa « obsessiva, cuja disposição nararal era
de uma recepção inconformada e voluptuosa para as dores do amor. Nin-
guém jamais cantou, ou cantará, as canções de Bess do Porgy como ela. Era
uma combinação de amargura com submissão física, como de alguém que
estivesse deitado vendo suas pernas serem amputadas, o que dava essa quali-
dade de horror ao seu Strange fiuir, o poema antilinchamento que cla trans-
formou numa música de arte inesquecível. Sua profissão era sofrer, só que
cla nunca aceitou isso.
Há pouco a dizer sobre sua vida horrível, que ela descreveu com uma
verdade emocionante, embora pouco factual, em sua autobiografia Lady Sings
the Blues, Após uma adolescência na qual O auto-respeito era medido pela
insistência de uma menina para que apanhasse com suas próprias mãos as
moedas jogadas pelos clientes, não havia mais ajuda possível para cla, Billie
não precisava de ajuda porque contava com o faro « a honestidade escrupu-
losa de John Hammond para lançá-la; com os melhores músicos da década
de 1930 para acompanhá-la (cm especial Teddy Wilson, Frankie Newton e
Lester Young): com a devoção ilimitada de todos os connaisseus sérios, €
com muito sucesso junto ao público. Era tarde demais para deter uma car-
reira de sistemático auto-sacrifício amargurado. Ter nascido bela e ao mes-
mo tempo com auto-respeito, no gueto negro de Baltimore em 1915, já cra
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS sos

desvantagem demais, mesmo sem o estupro aos dez anos de idade e sem as.
drogas na adolescência. Mas enquanto ia se destruindo, ela cantava. forte,
profunda e pungentemente. É impossível não chorar por cla, ou não odiar o
mundo que a fez ser como ela foi.
Capítulo 26
O VELHO MUNDO E O NOVO:
QUINHENTOS ANOS DE COLOMBO

Este capítulo, que foi concebido originariamente. como palestra para am se-
minário sobre o quinto centenário, ocorrido em Sevilha em 1992, versa sobre-
tudo acerca do impacto do Novo Mundo sobre o Velho, demonstrando que ele
fe eriado não pelos conquiszadores mas pelos conguiszados, não pelos dirigentes.
mas pelos povos, Publicou-se pela primeira vez na London Revicw of Books,
em 9 de julho de 1992.

No início de 1992, pediram-me no México para assinar um protesto


contra Cristóvão Colombo, em nome das populações nativas originais das
ilhas e dos continentes americanos, ou melhor, de scus descendentes. Com-
preendo os sentimentos que inspiram tais gestos, e sou solidário, mas pare-
ceu-me, e parece-me, que o único objetivo de protestar contra algo que
aconteceu há meio milênio é conseguir um pouco de publicidade para a
causa de 1992, em vez de para a de 1492, As consequências das viagens de
Colombo e de seus sucessores são irreversíveis. Os sofrimentos impostos
aos americanos nativos ou aos africanos importados, scja pela ação humana
premeditada seja pelos efeitos inesperados da conquista e da exploração, são
inegáveis € não podem ser anulados em retrospecto. Não se pode negar,
nem negligenciar, que o impacto da conquista « das explorações sobre essas
populações foi catastrófico, e não só durante os 150 primeiros anos de con-
quista européia, Não obstante, não podemos anular à história, mas apenas
lembrá-la, esquecê-la ou inventá-la. Todos os que vivem nas Américas hoje,
tanto os descendentes da população indígena como dos colonizadores vo-
luntários ou involuntários, foram moldados pelos quinhentos anos que de-
correram desde a viagem de Colombo. Mas também o foram todos os do
Velho Mundo, embora de mancira raras vezes consciente,
406 ERIG HOBSBAWM

Que os dois lados tenham sido transformados é um fato que foi mas-
carado, em primeiro lugar, pela própria conquista e por um poder incrivel-
mente superior. Somente na periferia da colonização, é em geral depois da
asserção inicial do poder europeu, os europeus e os americanos nativos pur
deram se encontrar cm alguma coisa como termos iguais: uma igualdade
reforçada, nas fronteiras do Norte e do Sul, durante um ou dois séculos,
pela “revolução do cavalo”, que transformou os simples índios dos desertos.
é pradarias norte-americanos e do Gone Sul em formidávcis cavaleiros. Aqui e
nas fronteiras da floresta amazônica, assim como nas esparsas colônias de
escravos negros das plantações, encontramos uma duradoura resistência à
conquista e à colonização — e apenas aí. As civilizações americanas estal
lecidas, especialmente na América Central, sucumbiram rapidamente. Nes-
sas circunstâncias, não se pode falar em um “choque” de culturas, dada a
virtualidade de uma dominação absoluta de um dos lados.
Essa dominação foi reforçada pela combinação de cristandade e con-
quista bárbara que, como Edward Gibbon observou no caso do império
romano, é uma combinação muito eficaz em destruir culturas. Com todo o
respeito por Las Casas e pelos escrúpulos morais da coroa espanhola, com
toda à admiração pela proteção dos jesuítas aos índios, não devemos esque-
cer que o objetivo da conquista cra a destruição da cultura pagã, a ser subs-
tituída pela verdadeira fé, Em Córdoba, assim como no México, vemos os
conquistadores destruir certo tipo de local sagrado para construir igrejas em
seu lugar. A destruição inicial cra tão sistemática que — apesar de algumas
tentativas tardias de resgate — hoje subsistem apenas trés dos códices maias
escritos, cujos caracteres só parcialmente foram decifrados. De fato, pode-se
ler em maior número antigas tábuas com cuneiformes e hicróglifos do que
registros das civilizações pré-colombianas. A arte é os artefatos des as civili-
zações foram para a Europa, tendo sido admiradas por especialistas como
Albrecht Diúrer por sua beleza e habilidade récnica, mas é possível dizer que
não se tornaram objeto de interesse artístico sério até o século Xx. Muitos
de seus monumentos mais importantes, que se tornaram centros do turismo
global, como os lugares maias c Machupicchu, não cram conhecidos, nem
tampouco haviam sído restaurados até então.
Em suma: seja o que for que os conquistadores e os colonizadores
esperassem obter do Novo Mundo, não achavam que pudessem aprender
com seus habitantes alguma coisa que tivesse valor para o Velho. O que
havia de mais interessante c instrurivo era a novidade; a descoberta de ou-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS “07

tras sociedades humanas, desconhecidas e não mediadas pela história, litera-


tura e tradição oral; a descoberta de territórios com uma estrutura gco-
lógica e climárica diferente da Europa, com flora e fauna incrivelmente es-
tranhas c ricas, mas desconhecidas — em alguns lugares, parecia o Paraíso
antes da queda, Durante muito tempo, esse confronto com à novidade foi o
impacto americano causado na cultura curopéia. Argumentou-se que tenha
precipitado o conceito europeu de sociedade ideal, ou de utopia. Não é
preciso lembrar que o descobridor da Utopia, no livro de Thomas More,
teria sido supostamente um portugués de nascimento que navegara com Am
rico Vespúcio para Nova Castela, mas ficara por lá quando Vespúcio voltou
para explorar melhor o Novo Mundo. Da mesma mancira, e ralvez de maior
importância, foi a novidade das Américas como um estímulo para se repen-
sar 0 nosso quadro científico do mundo. Afinal, foram as experiências na
América do Sul do século XIX que levaram Charles Darwin e Russell Wal-
ace a formular à teoria da evolução. O próprio Darwin afirmou isso nas.
primeiras frases da Origem das espécie.
No campo da política, das instituições e da alta cultura é seguro afir-
mar que os eutopeus não achavam que tivessem algo à aprender com o
Novo Mundo até a época da independência norte-americana. Suas insti-
tuições derivavam das do Velho Mundo. Sua cultura « arte eram versões
provincianas remotas de modelos metropolitanos. Politicamente, isso mu-
dou muito com a revolta das colônias americanas, porque depois o Novo
Mundo se tornou um modelo de inovação política, numa época de revo-
lução metropolitana incompleta é sem sucesso, Era um continente de re-
públicas num mundo de monarquias, e os Estados Unidos foram a democracia
política pioneira. Ainda assim, o Velho Mundo não perdeu à hegemonia,
nem mesmo política. A Revolução Francesa era um modelo mais universal
do que a revolução das colônias americanas, e até na América Latina o
tricolor era o padrão dominante nas bandeiras nacionais. No entanto, o
Novo Mundo permanccia dependente do Velho na vida intelectual e nas
artes, e pouicos americanos ricos ou instruídos negaram esse fato até o final
do século xix.
Se a massa das populações americanas — nativos, escravos ou colonos
— sabia alguma coisa acerca da Europa, sabia que estava vivendo não em
uma versão inferior da metrópole. Os erioulos e os colonos foram talvez os
primeiros “americanos” conscientes, e está claro para nós que, com pou-
quíssimas exceções, as populações indígenas c mestiças viviam em uma cul-
sos ERIC HORSBAWM

tura sincrética que fundia elementos autóctones e europeus. A versão colono-


crioula da cultura do Novo Mundo combinou-se com as versões indígenas em
graus variados. Em um extremo encontramos regiões com uma forte colo-
nização européia — urbana ou rural — c uma população indígena com-
parativamente fraca, além de regiões que os colonos puderam virtualmente
tratar como uma terra de ninguém, e da qual simplesmente climinaram os
índios. Por motivos práticos, os americanos nativos nos Estados Unidos
não deixaram vestígios significativos na cultura norte-americana depois de
seu contato inicial com os primeiros colonos, a não ser por algo que lhes era
exterior, No outro extremo, encontramos pequenas ou pionciras populações
de colonos em fronteiras pioneiras ou em meios indígenas, que podem ser
fortemente “narivizadas”. No caso particular do Paraguai e regiões fronteiras
que hoje fizem parte do Brasil e da Argentina, desenvolveu-se uma língua
nativa, O guarani, que na verdade tornou-se um importance meio de comu-
nicação com os colonos brancos locais, mas esse foi um fato excepcional.
Como é de se supor, a influência cultural e intelectual européia ascendeu à
medida que ia dos menos aos mais instruídos, e encontrava seu grau mais
baixo junto aos analfabetos. Não obstante, a maior parte dos habitantes do
hemistério ocidental — antes da era da emigração em massa da Europa para
o Norte e para o Cone Sul da América — vivia em algo como uma cultura
sinerética do Novo Mundo, que fundia elementos de ambos os mundos.
O impacto que as Américas tiveram sobre a cultura do Velho Mundo
foi especificamente o da cultura do Novo Mundo. Aqui precisamos distin-
guir entre O impacto da América Latina e do Caribe, e o da América do
Norte, particularmente os Estados Unidos, por dois motivos, Os listados
Unidos cresceram demais por sua transformação em uma das maiores eco-
nomias industriais do século XX e em modelo de riqueza e de progresso
tecnológico; posteriormente, por sua transformação em superpotência. Quase
tado o que vem de lá tem um “efeito de demonstração” « tende a ser imi-
tado. Se quisermos avaliar a força desse cfeito, basta compararmos a i
fluência dos Estados Unidos com a do Canadá na Grá-Bretanha e na Fran-
ça. O Canadá, afinal de contas, é uma das sere economias mais importantes
do mundo. Mas ao contrário dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha ou da
França, o Canadá permanece culturalmente provinciano, embora pessoas e
coisas interessantes ocasionalmente apareçam por lá. Desde o final do século
xvrm, Os Estados Unidos são um modelo político para o resto do mundo,
embora não seja efetivamente um modelo muito imitado. No início não
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 409

havia nada de especificamente americano nesse modelo, exceto o fato de


que idéias comuns à intelectuais progressistas de todos os lugares da Europa
dirigiam-se em primeiro lugar à transformação política do outro lado do
Atlântico. Mais tarde, a crescente força dos Estados Unidos reforçou seu
impacto uma vez mais. O New Deal de Roosevelt foi um fenômeno de
interesse mundial, mas à era contemporânea de Cardenas, no México, era vista
como de interesse apenas regional. Em termos específicos, situação é semel-
hante no campo cultural. Todo mundo conhece os caubóis do Velho Oeste
americano. Os vagueros mexicanos que deram origem às suas roupas, a seu
equipamento « até à seu vocabulário não são conhecidos no mundo todo.
Não há dúvida de que se Hollywood estivesse siruada no México cm vez de
na panhee Los Angeles, os épicos do Oeste selvagem teriam prestado mais
atenção à América Latina.
Pode-se argumentar, é claro, que de algum modo os Estados Unidos
representam uma civilização, uma economia, um Estado mais completa-
mente “novo mundo” do que qualquer outro na América, porque promo-
veu uma ruptura mais radical com as instituições do Velho Mundo do que
qualquer outro grupo de colônias européias transatlânticas. É o que se ob-
serva ainda hoje, quando visitantes europeus acham que os Estados Unidos
são em alguns aspectos uma sociedade mais estranha e com hábitos mais
difíceis de entender do que os de países da América Latina, Em alguns
aspectos, a ascensão dos Estados Unidos à sua posição de super-economia e
superpotência mundial se deve em grande parte à sua posição no Novo
Mundo — por exemplo, ao potencial para expansão territorial transconti-
mental —, entretanto prefiro não exagerar a importância desses fatores, Mas,
se à ascensão dos Estados Unidos for explicada por ser um país novo em
um mundo novo, como explicar a ascensão do Japão?
Não quero destacar as repercussões dos Estados Unidos no mundo
europeu, embora seja isso que vem à mente quando a maioria de nós pensa
sobre a influência americana na Europa. Em vez disso, gostaria de conside-
rar as repercussões da América como um todo, as quais não devem nada de
sua importância ao tamanho, riqueza e poder de scus países de origem. Para
tomar O caso extremo de Rubén Dario na literatura, sua importância na
história da pocsia moderna espanhola é do tamanho da imporrância de seu
país, à Nicarágua, que no início do século XX era negligenciável,
Se fizermos um balanço dos elementos europeus e do Novo Mundo
em nossa cultura, torna-se aparente um contraste interessante entre cultura
E ERIC HOBSBAWM

de clite, ou alta cultura, é cultura popular No campo da alta cultura, à


balança ainda favorecia o Velho Mundo até bem adiantado o século xx,
apesar do enorme prestígio, recursos e encrgia criativa dos Estados Unidos.
As Américas ainda são grandes importadoras de talento e idéias, sobretudo
os Estados Unidos, e até mesmo na pesquisa científica, que é a área de seu
maior triunfo intelecrual. No resto das Américas, a contínua hegemonia do
Velho Mundo mantém-se entre os intelectuais, embora algumas pátriasamães
tenham percebido que sua superioridade cultural sobre as antigas colônias
desapareceu
Não obstante, até nos campos da alta cultura o Velho Mundo tem se
interessado cada vez mais pelo Novo, embora oficialmente com atraso. O
Prêmio Nobel não foi dado a escritores norte-americanos a não ser depois
de 1930, e, para escritores latino-americanos, só depois do final da década
de 60. Apesar disso, a literatura dos Estados Unidos foi aceita como um
componente sério e independente da literatura mundial por pelo menos
150 anos. À escrita latino-americana teve dificuldade em causar impacto
fora da zona das línguas ibéricas, mas fez sua ruptura na segunda metade
deste século, sendo hoje, em alguns aspectos, mais influente internacional-
mente do que a dos Estados Unidos. Não há dúvida de que isso foi devido
em grande parte à revolução cubana, que, apesar de ter sido um evento local
latino-americano, pequeno em relação aos padrões internacionais, foi o pri-
meiro, desde à execução de Maximiliano, à ser visto como um evento glo-
bal. A scu tempo, à revolução mexicana, que foi muito maior, ficou obs-
curecida pelos eventos na Rússia, embora também tenha alcançado uma
rapeura cultural significativa com a pintura revolucionária do país — a pri-
meira representação modernista reconhecida originária das Américas. A re-
volução foi, na verdade, a arma secreta da alta cultura da América Latina no
exterior, estimulada pela moda do turismo revolucionário naquela parte do
mundo àpartir de 1959, sobretudo entre os intelecruais, que achavam que
o espanhol e o português eram máis fáceis de aprender do que o árabe ou as
línguas do Sudeste astático. Além disso, até hoje as esperanças da revolução
têm sobrevivido melhor aí do que em qualquer outro lugar do mundo,
assim como a imagem positiva da revolução, como no México. A América
Latina é o último bastião da esquerda no mundo. Por essa razão, sua litera-
tura até agora escapou das piores conseguências da privatização da imagi-
nação, Mas por quanto tempo?
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS am

No entanto, comparadas com as fortunas mistas das altas culturas ame-


ricanas, as culturas populares americanas a partir da metade ou, no mais
tarda, do final do século X1x demostraram um poder notável de penetrar
no Velho Mundo. Mais uma vez, essa é uma realização típica de uma cultura
mista — no caso, uma cultura euro-americana revitalizada por elementos
africanos. Tanto a dança como à música popular norte-americana, caribenha
« sul-americana conquistaram a Europa nos primeiros anos do século xx, e
até hoje continuaram a avançar com O tango, O maxixe e o ragtime. A
música popular de massa da sociedade industrial atualmente provém, basi-
camente, do hemisfério ocidental, enquanto a música transatlântica de alta
cultura ainda depende da Europa, desde o Colon de Buenos Aires ao Lin-
coln Centre de Nova York, Não descartemos essas repercussões culturais do
Novo Mundo. A cultura popular é a cultura universal do nosso século. É
compartilhada por todos, inclusive pelo mais descomprometido dos intelec-
tuais. A alta cultura pertence às minorias, que às vezes são mesmo muito
pequenas. Ao dizer isso não estou emitindo um juízo de valor. Por outro
lado, estou sugerindo um “choque de culturas”. De faro, se há um choque de
culturas genuíno entre o Novo e o Velho Mundo, está aqui, entre um Novo
Mundo cuja força principal e motor dinâmico é popular e um Velho Mundo
cujo impacto cultural no Novo foi esmagadoramente dirigido pelas elites e
governantes,
Esse contraste leva-me à minha afirmação principal. O modo mais sig-
nificativo pelo qual a descoberta do Novo Mundo afetou o Velho foi o
processo quase inteiramente anônimo de conguista em massa iniciada no
Ocidente. A contribuição mais importante das Américas ao Velho Mundo
foi distribuir pelo globo uma cormucópia de produtos selvagens e cultiva-
dos, especialmente plantas, sem as quais o mundo moderno tal como o
conhecemos não seria concebível, Pode-se argumentar que isso não tem
nada à ver com cultura. Mas o que cultivamos e comemos, sobretudo quan-
do há um novo tipo de víveres desconhecido em nosso cotidiano, ou mes-
mo uma forma compleramente nova de consumo, deve influenciar, pode até
transformar, não só O nosso consumo, mas o modo como vivenciamos ou-
tros assuntos, Considere-se apenas os víveres básicos. Quatro dos sete pro-
dutos agrícolas mais importantes no mundo de hoje são de origem ameri-
cana: à batata, o milho, à mandioca « à batata doce. (Os outros trés são o
trigo, à cevada e o arroz.) À obra clássica sobre “a história e a influência
social da batata” foi escrita por Redeliffe Salaman já em 1949. La historia de
E ERIC HOBSBAWM

um bastardo: mayz e capitalismo, de Arturo Warman, foi publicado em 1988.


Esses dois excelentes trabalhos demonstram o quão além da simples comida a
história social dessas colheitas nos leva. Mas, e os produtos do Novo Mundo
que não foram meros substitutos de coisas já consumidas no Velho Mundo,
mas abriram novas dimensões, novos estilos sociais? Chocolate, tabaco, co-
caína? Ou que se tornaram ingredientes básicos de novidades como o chi-
clete, a Coca-Cola (mesmo que tenha perdido a cocaína de sua composição
original) e a tônica do gim-tônica? E as significativas contribuições à farma-
copéia médica do mundo, como o quinino, durante muito tempo a única
droga capaz de controlar a malária? E os girassóis que Rembrandt e Van
Gogh pintaram, os amendoins sem os quais a sociabilidade ocidental mo-
derna seria incompleta — para não mencionar seu uso mais prático como
fonte importante de óleos vegetais?
O que estou dizendo é que à adoção de novos produtos, ou até, nas
sociedades componesas tradicionais, a mudança de um tipo básico de co-
mida para outro é muito mais do que uma simples mudança na escolha do
consumidor. A batata e o milho podiam alimentar muito mais pessoas por
unidade de área cultivada do que as antigas colheitas. Sabemos o que acon-
teceu quando populações em rápida expansão se tornaram dependentes de
um só tipo de colheita — a história da Irlanda é um exemplo trágico. Mas
quem dirá que à transformação da Irlanda, baseada na batata, à grande
fome que se seguiu e a maciça hemorragia de população que o país sofreu
desde então não acarretam repercussões culturais, para não mencionar as
políticas, nos dois lados do Atlântico? Sem Pizarro isso não poderia ter
acontecido. Tudo sobre o uso do tabaco, que era desconhecido fora das
Américas antes da conquista, tem implicações culturais, como não precisei
dizer à ninguém em Sevilha, onde Carmen encontrou Don José na cele-
brada Real Fabrica de Tabacos. Tudo sobre o uso do tabaco está ligado a
emoções, idéias, esperanças c medos humanos: do último cigarro oferecido
ao condenado antes da execução ao fumante que procura automaticamente
um cigarro após uma relação sexual; mesmo a campanha para acabar com o
cigarro. que é mais bem-sucedida em países anglo-saxões do que em outros,
nos diz mais sobre as erenças do final do século XX, no que se refere a como
a vida deve ser vivida, do que sobre os cteitos médicos da nicotina. Em
suma: estamos falando de produtos do Novo Mundo que eram desconheci-
dos « impossíveis de se conhecer antes da conquista das Américas, mas que
transformaram o Velho Mundo de mancira imprevisível « profunda, e que
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS E

continua ainda hoje. À esse respeito, posso acrescentar que o Velho Mundo
deve mais ao Novo do que as Américas devem à Europa
O que quero enfatizar é que esses produtos não foram simplesmente
“descobertos” pelos europeus, « menos ainda procurados deliberadamente
da mancira como os conquistadores procuravam ouro e prata. Eram pro-
duros conhecidos, colecionados e sistematicamente cultivados e processados
pelas sociedades indígenas. Os conquistadores e os colonos aprenderam à
prepará-los e a usá-los nessas sociedades locais. Na verdade, se os colonos
não tivessem aprendido com os nativos, teria sido difícil, ou talvez impos-
sível, sobreviver. Até hoje a grande festa simbólica, o dia de Ação de Graças,
registra uma dívida dos primeiros colonos para com os índios, os quais à
civilização branca subsequente se encarregou, em troca, de expulsar. O dia
de Ação de Graças é comemorado com uma refeição preparada basicamente
com alimentos do Novo Mundo, que os colonos aprenderam a manuscar
com os indios, culminando, como sabemos, no peru.
Meu argumento é que à verdadeiro significado e natureza do encontro
de culruras, inaugurado quando Colombo aportou nas primeiras ilhas do
Caribe, não pode ser entendido somente em termos de história conven-
cional. Se perguntarmos o que a Europa consegui com à conquista do
Novo Mundo, a resposta óbvia é a expansão de alguns países no lado oci-
dental do continente, por meio do governo imperial, da riqueza extraída do
trabalho dos índios e dos africanos, c do povoamento de migrantes e co-
lonos provenientes de países da Europa. As Américas foram as primeiras
regiões fora da Europa nas quais impérios foram derrubados por soldados
europeus, onde colonos europeus estabeleceram novas Castelas, novos Por-
tugais e, mais tarde, novas Inglaterras. Por um período de mil anos antes de
1492, a conquista e a colonização tinham ido por outro caminho: da Ásia e
da África para a Europa. Por isso é significativo que a data da descoberta da
América por Colombo seja rambém a dara da conquista de Granada « da
expulsão dos judeus da Espanha: os três fatos são simbolos dessa revira-
volta. O ano de 1492 marca o início da história mundial curocêntrica, da
convicção de que uns poucos países europeus centrais e ocidentais estavam
destinados a conquistar e governar 0 globo, a euro-megalomania.
Mas isso é história passada. Há muito que Espanha, Portugal, Grã
Bretanha, França c outros países deixaram de governar as Américas. Esses
países decaíram de potências mundiais, mesmo de “grandes potências” no
contexto europeu, para Estados que por si sós não exercem muita influéên-
E ERIC HOBSBAWM

cia, mas são importantes apenas no sentido coletivo devido à Comunidade


Européia. No máximo, a Espanha é à Grã-Bretanha se beneficiam do fato
de que suas línguas se tornaram mundiais, graças às conquistas passadas nas.
Américas. Há muito que os países das Américas pararam de ser extensões
transaclânticas da Espanha, Portugal e Inglaterra, mesmo para as elites lo-
cais. A era da “expansão da Europa”, um tema sobre o qual os alunos de
História na minha juventude eram orgulhosamente examinados, acabou.
Mas outras consequências diretas da conquista e da colonização das
“Américas ainda estão conosco, Não pertencem a homens famosos nem a
governos. Mas transformaram o tecido da vida curopéia para sempre. E
também a de outros continentes. Quando a história econômica, social e
culrural do mundo moderno for escrita em termos realistas, a conquista do
Sul da Europa feita pelo milho, do Norte é Leste da Europa pela batata, e
das duas regiões pelo tabaco, e mais recentemente pela Coca-Cola, parecerá
mais proeminente do que o ouro é a prata em nome dos quais as Américas
foram subjugadas.
ÍNDICE REMISSIVO

A Amis, (sit) Kingade, 375


anabavistas, 83
Abraham, William (“Mabon”), 106 anarquismo
Aceati, Luísá, 156 ea ane progress, 197.9
Acordo da Ferramentaria de Coventry ea ecumumia de aldeia, 227
(194), 135 co Primeim de mui, 175: 181
Adams, John, 39, 65 ma França, 79
Adiderley, Julian (“Cannonball”), 398 perito, 3278
Adler, Victor, 174, 185, 197 Angola, 295
Adorno, Theodor W, 3 Ansermet, Eme, 340, 342, 378
agricultura aperta, 105
é queira de múquinas. 23,28 Appleganh, Robert. 119
Ahuac, Pera, 255, 262 aprendizagens, 119, 122, 1289
Alemanha Arch, Joseph, 108
decor popular na, 198.9 Argélia, 290, 297:9
Esimuiro de maio a, 182 Argentina
Alexander, Wild, 354 sndicatos na,
Alexandre, Philippe, 309 Armstrong, Louis, 336, 338, 340, 342,
“Alianza Popular Revolucionaria Americana 358, 387. 396-7, 402
(ABRA, Perui, 230, 254. 256-6+, 268 ane
América do Sul ver América Latina agende mulheres e homens nã, 143:51,
América Latina 1536, 158.01, 163, 1945
camponeses na, 218:21,224-5, 229.30 certame vasesndo
cd na Foropa, 408 amesãos (oficio), 118-20
mpucro da colonização européia arviseso polia, 130-2
assentumeneo nã, 405.8 comia na famae ervrada para, 12830
ansuência da Revolnção Francesa a, 407 cmecsaização, 120-4
hirecaura da, 409: crearmament, 134
mica da 371
ocupações de terra pelos camponeses ei-
indicações na, 241-3, 245-8, 250 uaiicações € atua, LL6 26
nevoliçõesa. 410 ves tambem als (ofícios
Américas (Novo Mundo) artífices, 121-4
conquisr e colonização, 405-8, +13 6 er também sapatos
culturas aborígenes, 405-8 Aran: Cris ver monimento artes-<-ofícios
infnênciasobre o Velho Mundo, 405, 411.
4134, Ashton, (si Frederick, 375
novos vives e bs, 4114 Askwith, G. 106
16 ERIC NOBSBAWM

assenrâmentos Beloff, Mas, barão, 207


e serra: ocupações de camponeses Ben, Ivon; 213
“Associação de Mineiros de Durham. 83 Bennet, Timothy 42
Atlandie Records, 289 Berlage, Hendrik Perus, 196, 204
Arica blues, 393 Berlim
“Axelee, Clement (ais save, 1º Conde Resclsção de 1848, 38
209.213 Bernhard, Paul
Auserália nes: Eme muciatcio Zetpage 37
Primelto de maio na Nermie, Ben, 340
sosquiadons, 30 Berry, Chuck, 389-90
Austria Besant, Annie, 161
celebrações da Primeiro de maio, 173, Beva, Ancurin. 85, 207
ts. 177.182 Beveridge, Wiliam, barão, 209
Ayer, Albert, 395 Bevia, Emest, 134
B Beynoo, Hum, 127
Biblia, 59, 280
Bah, Herman. secos de Pine, 10, 12
Raines, sir Edward, 23 Bigara, Barney, 364
Baker, Tosephune, 336, 339, 343 pillhoará Internacional Music Indusery
Bakeanin, Mikhail, 196 Director; 388
Ballier, Whitney 393 Biniland (vinda do jávz à Nova York). 387
Balzac, Honoré de, 145. Bismarck, principe Oxo von, 172
Eankcad, Tallulah. 236 jórmson, Bjornsgleme, 194
Basbier, Henri Auguste Blackpool, 1012, 374
La Crê, 14 Bloch, Emst, 186
Barker, Paul. 325 Slondeau, Maria, 177
Barnes, George, 133 Bloomfield, George, 47
Basie, Counr Bicurnficla, Roberr, 46
polca, 383
vida o mica 24 as, 386, 396 blues (música), 273, 380, 389, 398, 402,
+03
Escismg Bluúere, Hamier, 397
Reale (grupo de música pop). 387, 390, Boehime, Jakub, 40, 46
395 Boémia
Bebel, August, 173-4
Ma and Sit. 15
bebop imúsica), 366.377, 385, 392, 395.6 Bonnefoi, Faustin, 39
Becher, Sidney,335-45, 364, 369, 373, Boyer, Richard, 382
383, 398 Iradiaugh, Charles, 63, 77
Redlingeon (Durham, 18 Brandi, Paul, 162
Beezbodhm, sr Max, 370 Brame, John, 8
Brasil
moxiinenro operário o. 38,65
classe operiria explorada, 194 Hraud, Wellman, 338
Helin, René, 79 Bras, John rancis, 65
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS a

Brecht, Berolt, 202 ponto conheci o emo sai amplo,


rig, Asa, barão. 92 202
Brighs, John. 108 rerbas hoc e regionais. 2234, 22432, 265.9
Broadhurst, Henry 126 Campos, dr. (de Huancayo, Peru), 25%
Brodecsky, Selig, 208 Camadé. 408
Beowen, Clifford, 399 capitalismo
Brown, Ford Madox e mecanicação 2
Hit pica). 151 em reação au fic dos ars, 123, 129 38
Brown, Job (sapateiro), 41 previsão de colapso, 198
Carney, Harry 364
Rrown. Lawrence, 363 Carpenter, Edward, 192
Brown, Les, 385 Canter Benny 335, 339, 385, 397
Bruckner, Anton, 197 cartismo, 86, 91-3, 96,98, 110, 124, 131,
Brunulas, er Congresso Socialista 159
Internacional (1891) reembis sapateiro, 37
Bundy: MeGeorge, 302 Cansso, Enrico, 344
burguesia Carvalho, Pinto de.
ca are progeessista, 201 seria df, 370
esti devida. 195, 199 casamento, 155. 160
Burke, Peter, 45 Cast, Fidel, 156, 297, 305
Burns, John, 83, 108, 110 Cato Street, conspiração de, 40, 58-9
Burr, Thomas, 108 Cexsescu, Nicole, 63
Bustamante Rivero, José Tuis, 256 Chambeciain, Josept. 106.
c Chackeroi (Belgica), 179
Caber, Etienne, 60 Curie Eden: Liberarion Mie Orchestra,
393
Caceres, general Andrés Avelino, 268 Chess Records, 389
Calsuana, Elias Tacunan er Tacunan Chiang Kai-Shek, 297
Cahuana, Elas Chicago
Caillebore, Gustave Miu, 239829
Rode de parque (pipa, 181 Convenção Democrática de, 398
Callosçay, Cab, 340 mânites, 176.281
Camaro (lider camponês peruano), 262 cite
Camp Unity (Estados Unidos), 383 maçãs campenesasde tura, 250
Campanha pelo Desarmamento Nuclear, 89 Chilton, John, 335-6, 340, 343
camponeses Sis Babe he Wa
cj é reconbcimessde case, 21822 China, 235
ein numérica, 237 e pucrra do Viauia à01.2
emacicualomo, 233-4 guerra de gtentlha na, 243, 2967
o polrcas modernas 235 8 Jeane camponeses ra, 233, 235
estestgia passia, 226-8 Chongus (Peru, 255-8, 264
Gagilidado, 2267 scan, Chaglie. 336, 294, 397
vasões e ocupações de or, 247, 3413, Churehil. sir) Winston S., 96, 209, 213
245, 247, 249, 251, 253, 255.66, 2089
lides e arisas, 26 cidades
posição soa, 215-20,232 tamanhoé cncimento 94.5
ais ERIC HOBSBAWM

Cilento (Itália), 244 Conini, Concino, Conde dela Parma, 43


Clapham, sir John, 28, 94, 103 Condom, Eddie, 342
Clarke, Kenny, 338 Condorcer, M.].A.N. marquês de
classe (social) Caritat, 12
condenaçãode Iuine, 12. Confederação Geral do Trabalho (CGI
consciênciade, 108, 218-21 francesa), 76,79, 82, 177, 310
e politica, 106 Congresso da Internacional Socialista
rerum iuris: camponeses: classe (Bruxelas, 1891), 173, 176
operária Congresso de Sindicatos de Trabalhadores
classe média (Trade Union Congress — TUC), 95
aparecimento, 97 Congressode Trabalhadores de Curitiba
versam bungucsia (Brasil. 38
classe uperária Cunselho de Ofitios de Londres, 85
liizenciação por quaicações, 120
e quebra de máquinas, 16-30 conservadorismo
iconografia da, 147-52 eresolução, R1-2
padrão de sida 90 Cook, Will Marion. 107
aje e boné, 105, 111 Cori: The Orig of he Cinto
er té rahalhadores periódica), 369
Cliyron, Buck, 355 Coolidge, Calvin, 278
Clegy, FA, Alan Forc À E Thompson, Coppoia,. Frank, 286
95.6 Corea. Chick, 389
Clericalismo. 83 Combi! Magazine, 103
clubes de golfe, 98 Corton Club (Nova York), 362
Cobo, Itichard, 54 Coston Club (times, 396
Cobbert, Wiliam, 39, 54 “ountry musi, 385]
Cobxlen, Richaru, 108. rane, Waher, 149-50, 159, 161, 178,
Cocteau, Jean, 337, 371 192, 196
Cohn, Roy 331-3 crivulos, 345
Cobn-Bendit, Daniel, 307, 313 Ceipps. sir Stafford, 207
Gole, GD. H, 2 Crispim (saxo), 41. 45, 53, 58:9
Coleman, Alexander, 360 Crispim Anedatos, 41
Coleman Bi, 338-9 Cronin. James E. 95
Coleman, Ormen, 392 Crvots, Will 107
Collier, James Táincoim, 372 Crussidk, Geoffrey
Luke Elimgron, 357 Konei Tandan, 129
Colômbia Cuba, 297
catigoness nd, 220, 250 música 370
dliritos da term na, 242 3, 246, 250 curdos. 296
Colombo, Cristóvão, 405, 413. Curhburr, de M. E, 360
Coltrane, Joha, 336, 345, 392:3, 395-6 Cure (Peru), 225, 247-8, 263, 267, 269
Cmissão de Representação Iralhisca, 110-1 D
Comunade Paris (1871), 37, 78, 88, 150
comunismo Daily Wirker (jornal), 342, 383
e radicalismo religiosa, 78-80 Daloa, Jules, 147, 151
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS ao

Dalton, Hugh, 209 Dorsey, Tommy: 385


dança, 370-2, 374 Dostuiévshi, Fodor, 194, 197
Dance, Stanley 347, 349 Dopnitar (diário norte-americano), 384,
Th Uria f Cone Bass E
Dimenbias Critics Poll (1991), 397
Danton, Georges Jacques, 324 Dumoulin de la Barthête, E, 79
Darensbeurg, Joe Diming, Thomas, 65
utobiográri, 3 ão, 44 Diúrer, Albrechr, 406
Darío, Rubén, 409 Duzham. Eddie, 348, 352
Darwin, Charles, 407 1), Bob, 385, 380
Daumier, Honoré E
The Lei 147
David, facques Louis, 153 Enstivood, Clirr, 399
Davis, Mile, 377, 389, 295, 397 Ebbre Nil, 76
Davicr, Michael, 295 Edlison, Hary Swects”), 349, 353, 355,
De Gaule. Charies 396
“eventos de maio de 1968, 305713 Exdiardo VT, ei (apare, Disque de
De Jolnere, Jack, 397 Windsor), 376
Dele tomas educação
ato Heat, 42 deperiios, 109, 198.9
Delacroix. Eugêne, 144-7 de visar 40, 434, 46-8
eia de peupe “pintura 144 6, Ecklhour, Jokob Joseph, 197
GL Elrabem, Zac, 39, 58
Dem, Edward. 340 Eichmann, Adolf, 327
Derbyshire, levante de (1817), 17, Rá Himauei, Giulio (casa editorial, 191
Deschamps, Marie, 145 Elizalde, Vedorioy (Fredi, 37:
desemprego Elingron, Due (Edvard Kennedy
cquebea de maquinas, 21 Ellington), 335.6, 340.1, 357-64, 387
Destrée, Jules, 197 adiiraçs de Be
ia de trabalho »er jornada de oito horas eatime Cinto
Dia do Trabalho (Estados Unidos), 171 Edinrdo Ve
Diaz del Moral, Juan, 23] “gi de Eai, 348
Diaz, Porfirio, 227 interesses picos 283
Dictionary of abume Biography (ed. Josco Mie My Mrs, 358
M. Bellamy e John Savile), 129 emúnica, 357.02, 3648, 370:80, 286
Dicnbienphu, 292. Ellingrom, Mercer 360
Disraeli, Benjamin, 110 Ellis, Lenry Havelock, 192
dissidentes (não-conformistas) Engel, Frederick, 173, 192, 327
S eradição trabalhista, 7 .9 Err
Dixicland jazz, 340- 370, 872, 377, 306,
398 Ertegun. Ahmet, 389
Dobrosvolski, Kazimicrz, 217 Escandinávia,
Dolphy; Eric, 395 Primdeeimaio rona, 174, 177,
ecinação para 4 csquerda, 212 2
20 ERICHOBSRAWM

Federação Norte-Americana do lrabaV7& lho


Escócia Lmerican Fedenacion of Labor ), 17),
sagareivos na. 45
erudição operária 77] Féncon, Félix, 197
Estola de Economiade Londres (London femianos irlandeses, 235
Selo of Ecomonsies — SE), 209, 2 Femwick. Charles, 110
spanha feriad os
e lazer
assados de gateri lha o pós classe operária, 1002
298, 300 amém Peimei ro de maio
celebrações do Teinii ra dé mo na. 176, 78 ferra menta s (dos home ns de oficio), 42.
cae tan o na Améri ca Larina. 245. 405-6 47. 59-60, 123, 126-8 , 152
declínio da, 413 ferr amen eiro s, 127, 1346
inquietação dos camponeses na, 231-2, 244 Ferro, Mare. 230
ocupáções de serra por camponeses nã Ferrovias.
Estados Unidos da América, 212. 28990, e cisseminação do sacia181 120, 136
408.413 e eabalhadores qualificados, 128,
Ca guerra da Vieenã, 290-308 festas dos mineiros de Durham, 102, 181
caia, 2778, 283. Ficlá, Daníel, 231
carevolra cura, 315, 326 Filipinas, 319
festa de Ação de Graças 413 fim de semana. 98
infivéncia sobre à Europa, 408-9
Laskinos, 212 Flaubers. Gustave
liecarura 410 [E
oa Segunda Ciuerra Mundial, 384 Hord. Lenny 271, 379
Ni ea. 379 80, 84, 386, 409 Foster, Erank, 396
)sime nos, 9,11 Eos, George, 40
pudor industrial, 290. 405 França
iolência social nos, 317, 321-2 ascensão do capitalismo na. 25
Europa Becturma, 343-5
impacto do Novo Mundo sobre dec coco poder, 413
siga dersuta na Tudochina, 297
recepção joe a 369-70. celebrações do Peimeiro de maio
Evans, Herschel, 355 186
Evergreen Rever, 325 angelina, 208.9
78
E politicas curapomesas na. 236
soxialismo utópico, 124
Família adição operária na, 78, 84, 88
ataques soliliseas 2, 160 samguarda na, 196-202
Eanon, Franz, 323 scr samba Paio,
Farmer Arc. 296 Franco, gencral Hrancisco, 171
iavre, Henri, 253, 266. Franklin, Azetha, 385, 389
Federação de Trabalhadores da Região da Franklin, Benjamin, 1
Acgensina, Frederico Guilherme, rei da Prássia, 294
Federação dos Empregadores de Frente Popular
Mecânicos (Jngicerina Eplmors” na trança, 88
Federarion — ERFI, 130, 138 futebol,98, 100. 102, 105. 108, 202, 377
Federação dos Mineiros. 97 379
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS e

G Greg AL, 296


Grifiuchles, Victor, 63, 65
Gale, Moe, 381 Geijalba, Manuel, 262
Gal acher, Wiliam,82 Grofé, Perde, 362
Gambetta, Léon, 82 Gross, George, 367
Gandhi. Mobandas Karamehand guerra coreana, 302
(Mahacma, 210 gueera de guerrilha, 289-92, 2947
Garibaldi. Giuseppe, 234 299-301, 303
Garofimo Roso, T (volante, 184 guerra nuclear
Gaskell, E posição organizado à, 89
Avrians amd Machine LL? Guevara, Che, 292-3, 325, 393
CGeddes, Patrick, 195
George, Stefan. 200-1 H
Gershwin, George Hacienda ltcle (Peru), 246,
Up ir e 362 258.9
Gerstacckes, Fricdrich, 198 Hackett, si Jul, 170
Giap, Vo Nguven, 292 Haley, Bi, 380
Giblian, Edirard, +06 Hammersmith Buais, 374
Gilicspie, Dizzy, 383, 397 1amintet, Dashict, 331
Giuliano, Salvatore 1ammond, JL. e B, 17
brogeaia, 280-6 Hammond, John Je, 341, 35 3813.
reassacre de Peimiio de mai 19 184,
279,284 285, 389, 401-3
Glasgu,125, 195 Hamsun, Knut. 193-4
agitação de 1979. 84 Hancock, Herbie, 389
Cliiord, Wiliam, 46 Iardie, Keir, 97, 106
Guenhe, J. Wi von, 161 Hardy, Thomas. 65
Guidivarer, Barry 204 Harewcood, Lenry George Charles, 6º
Goison, Bena 396 Conde de Tascelos, 11
Gonsalves, Paul, 366 Harrison,J. E €., 160
Gonzalie, Jeaa-ouis, 39 Haupemann, Gerhart, 193-4, 197
Goodman, Benny 382, 3845 Hanvkes, James, 59
Górki, Máximo, 41,150, 194 Hains, Coleman, 886, 339
Grande Depressão (1873-1896), 23, 80, 1ealex, Desvs, barão, 213
82,99 Héperr. Jacques Iené, 76
“Grande Transitrmação”, 217 Heine, Leinrich, 146
Grave, Jean, 40,63 Ileler. Clemens, 35, 384
Gras Mhomas, 42 Halle, Joseph
Green, Freddie, 353, 355 Cie 23, 284
Greve das Docas (Inglaterra, 1889), 172 Hemphil, Julius, 397
greve geral (Inglaterra, 1926). 86-7 Llenderson, Fletcher, 354, 3612
Herapasirs Raslvay Journal, 100
É ecventos de maio de 1068 em Paris, 307, Herkomey, sir Hubert
329 Sire ["Gve”, lara, 193
sa inglarer Sa 867 Herman. Woody, 385, 396
22 ERIC HORSEAWM

Hewes, George, 39 Índia


Hickman, Art, 362 camponeses na 234
Himmler, Heinrich, 321 Fomreira normeste, 298
hinduísmo, 326 indístria de algodão, 25.
Lines, Ear, 338, 352 induserialismo
Fippity-Hop (shows burdesco, 250 os psicológicos de, 80
isto Mirko Toumal, 148 eunganização do crabalho. 80, 1301
Liitier, Adolf, 170-1,213 Inglaterra
Hobsbawm, Eric e George Rindé, 38-9 Geclisia corso poder imperial, 413-4
Hobshaem. Eric Jaz na TEA
The js Scene imória meia da a Instituição de Mecânicos de Londres, 120
389, 202, 206, 398 nserução ver educaçá
Hodges, Johnny 336, 341, 364, 367 International Inowelipedia afete Social Sionçe,
Hodgskin, Thomas, 123 az
Hotimanasehal, Hugo von. 200 Iraque, 289
Hoggart, Richard, 91, LLO Irlanda
Hoeroit, Thomas. 40 agitação sevulucionária, 295
descamação inglesa, 298
Holiday, Bilic, 4012 fonese emigração, +12
obimnária AUL-3 terrorismo ago, 227, 234-5
popularidade, 209) Israel, 208
Tso pessoal da usurime, 294 Ixália
Hollywood, 365, 379. 381-2, 409 Práino de maio ma, 179
Holyoake, George Jacob. campomeses na, 234
Fone, William iaze na, 376
Edo Bo 5 , ocupações de certa por carmpemeses, 244
Hoover). Edgar. 277
Hopkinson, James, 125
Horner, Arthur, 82, 85-6
Horta, Victor, 196
Howeil, George, 110, 119 jacobinismo
Hunsicancha (Pera 229, 231, 251-60, 263 sapareirosé, 40, 56, 0-1
Hugo, Victor, 337 co sadicaa do los de Tyum, 76
huguenotes 78 ca tradição radical francesa, 81, 88
Tlumt,É... 106 James, Harry 385
Hyde, Rober. 42 Jauçês, Jean. 196
Hyton, Jack, “desde 1960, 387:95,397:4
I econsciênda polia, 39%
popularização do, 37986
Tosen, Henrik, 192, 194, 197 recepção na Euxopa, 369 70, 372-3,
lgnatiett, Michael, 169 380
Tercja Católica Romana Jaze News, 378
e movimenta operário, 82, 180 Jesus Cristo, 180
Igrejas Operárias, 80 “Jcune Montaigne” (movimento), 77
Trdependent Magazine, The, 331 Joana d'Are, 161
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS ss

Tohncre, Jack ver De Jolinete, Jack Tampedusa, Tomasi di, 280


Jolnson. Bunk, 343 Lancashire
Johnson, Lyndon, 298 queira de máquinas em, 17.223,26
Jobnson, Roberr, 398 Tansbury George, 77
Jolinson, Samuel 367 Lapointe, Sylvain, 39
Jonés, Timmy. 368 Lackin, Philip, 335, 375
Jones, o, 352-3, 355 Tas Casas, Bartolomé de, 406
jornada de oo horas, TIL, 149, 1701, Lask, Erida, 208
1756, 1823 Laski, Harold, 207-13
Journal of Peasans Studios, 218 Tamimore, Owen, 331
Joyce, James, 107, 202, 344 Lawrence,D. H.. 104
O avant de Lady Caseto, 326
Jovce, Patrick, 107 lazer feriados e lazer
Tuna Comercial Tec, Spike, 399
Deparsamento do Trabalho. d6 Leguía, Augusto B., 2534
K Lei da Saúde Pública, 99
Kansas City
Con Baier, 48:53
Karés, Michael, 376 Lemhaby, MR, 195
Kautskos Karl, 181, 197 Levante da Páscoa (Dublin, 1916), 88
Keane, John, 9 biberndade
Kehr, Eckart, 376 tnúe sobre a, 11.3
Kennedy, família, 278 Liberdade (alegoria), 145-7, 16]
Keynes, Jun Maynard, barão, 210, 212. Lichermanm, Max, 193
Khnopf;, Fernand, 197 Lie (revista), 279
Kkrusche, Nilita S., 301 Liga Comunista, 38
Kirk. Andy, 349 Liga da lerra (Irlanda, 235
Klingender, E DX, 153 Liga Nacional Democrática, 110
Kolhvit, Kacthe, 150 Limoges: trabalhadores de porcelana em,
Keonstanz (Alemanha! 37
Korner, Alexis, 373, 389 língua guarani, 408
Korolenko, Vladimir, 194 Lion, Alfred, 337, 341
Kramnick, Isaac e Barry Sheerman, 207-8, Llovd George, David fais ando, 1º
212 condei, 65
CA Laje he Le 207 Ló Bianco, Maresciálio, 279, 282
Kraus, Karl, 198 Lob, Jahn, 46
L Toitz (Pomerânia). 46, 48
Loja (ide sapanciros de Sherborne, 42
La Bruyêre, Jean de, 219 Lombardo, Guy 340
Labonr Annual, 149 London Revine 4fBooks, 207, 370. 405
Ladnier Tommy 338-9, 41 Tondonderry Charles Wiliam Stewart, 3º
Lake, Oliver, 397 marquês de, 78
Lambert, Constant, 365, 375 López, Jacinta, 249
as ERIC HORSBAWM

Love. Joseph. 83. casar, 1924, 196


ludétitas, luddismmo, 15-8, 20-1, 245, 28 co socialismo insls. 2
ver sambém queda de máquinas infancia nos partamentares rabalhastas
Tatís Napoleão (mais tan, imperador m
Napoleão TT). 77 dnvocado par 0 Pense dera, 180,
1823
Tavís XVI rei da França. 11 O Dest rei de E Bonaparo, 217.
Louis Felipe, rei da França, 39, 308 237, 306
Luikics, George. 202. marxismo
Tmatehárski, Anarol V., 201 a liberdade serial, 328.
Lunceford, Jimmie, 348-9 es ams de vanguarda, 192-3, 2004
Luxemburgo, Rosa. 160, 200 con levanes camponeses, 267
Lyon e peokeriado 12
sindicado ese, áção operária ca Inglverra, 77-80
vim Londres, 192, 203-4
M “mauemau ! Quénia). 298
Manpassam, Guy de, 193-4
“Mabun” ver Abraham, William Must, Theo (org!
MacDonald, James Rama 108, 212 Jaco von Socinpecncir, 309
Machupicetu, 406 Maximiliano, imperadordo México, +10
Macterlinck, Maurice, 197 Maveeil, Gavin, 281
máfia, 277-80, 282-6 Mayhew;, Henry; 44, 125, 127]
Male, Gustav 197 McCanhy; senador Joseph, 331-3
maias, 266, 406 MeConville, M., 306.
Malásia Mekibbin. Ross, 105
gucura de guerrilha na, 292. Mel can, Jackie, 397
Malcolm X, 393 MeLoughtin. Joln, 389
Malefais, Edvard E, 232
Mafia comunista reemiamento habilitações, 12931
ataques à Cla 160 Metring, Eranz, 194
Mann, ]. de L ver Wadsworth, A. Pe] Melbourne, Wiliam Lamb, 2º visconde. 24
de L. Mann Melksham
Mann, Tim, 10. muro de 1738, 18
Manne, Shelly 396 Melody Maker (periódico), 340, 375-8
Mao Ré Tung, 305 Mercy, Br, 397
erra de gerida, 292 Ain Mogacine 28
sobr a “Torga marcha”, 203 metodismo, 83.
Marquecalia (Colômbia), 220 as rradições caca, 77, 79
Marais, Branford, 397 Meunier, Constantin, 148, 150-1,162, 194
Marsalis, Wynton, 397-8 Mésico
Marselha camponeses mo, 222
sapaceiros
em, 39, comeu espanhola, 406
Marx, Eleanor, 160, 192. ocupações de terra nt, 249:40
Marx. Kar, 75. 82-3, 182-3, 185, 192, pona influência no além-mar 409
196, 204, 217, 237, 269, 306, 383 resoloções, 224, 227. 230, 268, 810
ea tia Comunista,38 Mezprow, Mere, 344
PESSOAS :XTRAORDINÁRIAS “25

Midol, Lucien, 79 música rocn'rull, 347, A68, 372-4,


Miley, Bubber, 364 376.9, 387.92, 303:5
Milhaud. Darius, 371 música swing. 379-86
Miller, Glen, 385 cercam jaze
Miller, Jean-Erançois Musolino. Benedeio, 319
Repubigue (pinça), 147 Mussolini, Benito, 282
Ml, Irving, 361 N
mineiros
muitos é agitação, 18-9, 22, Nanton, Joe, 364
Modern Jazz Quarter. 396 Nantich (Cheshire), 59,65
Mom, Le (jornal), 78 náo-conformismo ver dissidentes; metodismo
Monmousseau, Gastun, 7 Napoleão | (Bonaparte). imperador da
Mowrs França,145, 291
caso do asassimao do, 321
Mora, Francisco, 63, 65 xeongrafa 15
Napoleão LIT, imperadorda França ver
Luis Napoleão
Morris, William, 149, 178, 192, 195-6, Narodniks (Rússia/, 234
203-4 Nation, The (periódico), 289
Morton, Benny 355 Navarra,dr. Michele, 283
Monvement Social iperiddico), 191
movimento anes-eoficos, 178, 192, 195, 203 apoio campenes ao, 237
rersambim Morris, Wilians e mo, 206
movimento das abstémios, 81 e vanguanda, 202
movimento de cooperativas, 99 represálias em temp de gera, 299
Movimento pela [iz Mundial 87-8 Nestrons Johan
Movnihan, Daniel, 211 Lumpacasagabundua, 46
Mukhina, Vera, 150 Neue Zeit, Die (periódico), 181, 194, 200
mulheres New Masses (periódico). 381
ante pelas, 157 Nexe Orleans Fcetwcarmers, 340-1
1845, 169, 160, 179 New Sociesy periódico), 317,
esa, 157 Nei Statesmam and Narion (periódico), 401
imgens e iconoginia, 143-50, 158-9, 161 Neo Jon (revista), 278
Jeraçã ds, 226, 228 New Tork Revicw ofBooks, 277, 308, 335,
mem de sindicatos de crablhdores, 347, 357
156, 158, 160
1579 Nem Joker (revista , 3812
, 10, 133, 154 man, Jne, 396
Minzenherg, Wili, 62 Neseman, Michael
Musray, Albert Hand Eai, a Tuta Bigrpl, 207
Cod Mor Be: o Asirbigrapivor Nexeport, levante de (1839), 83-4
Ce fo Ico concada a Albee Mur News afrhe Diria, The (jornal), 105
cavi 8479, Neston, Frankie, 402
Murray, David, 397 Nicarágua, 409
música rap, 299 Nick's (Nova York, 342
26 ERIC HOBSBAWM

Nitasche, Eriedrich, 199 Partido Comunista Peruano, 243, 254


Noble, sir Andrew, 116 Partido Liberal, 107-8, 283
Northampton, 56, 58-9, 104 Tartido Operário Belga, 180, 197
sapatos em, 39,59 Partido Operário Francês, 62, 85
Vorbuifi, Alfad Harmwonh, vicunde, 105 Partido Social-Democrata Alemão, 172, 174
ornich Partido Social-Democrata Austríaco 173
cocelões, 25 Partido Socialista Austriaco, 63.
Nottingham Partido Trabalhista
uea de aqua em, 19 sonemode 1945, 207-13
Nova Orleans, 364, 396, 398 Laskee, 209-13
Nova York Partido Trabalhista Independente (ILP),
aee swingem, 888 80,88, 96, 109, LL, 15960
made (a arte, 144-54 aslheres e, 159.60
o Partido Trabalhista Socialisa, 131
partidos comunistas
Oakley Flelen, 341 artesãos de ofício cu, 1303
Olserser (jornal, 169, 325 aliferençs nacionais, 6
Odger, George 78 e Estados Unidos, 383.
Odiria, general Manel À, 257, 259 ser ambi por mes de párridos macios
ofícios rey artífices; amesãos sy E Presens (periódico),15, 35, 241
Original Dixieland Jazz Band, 374 Paucarchuco Simaniego, Julian, 260
Orihuela facaide de Chogos Alto, 264 Tecl, Rober, 42
Osborne, Jobin, 375 Pendergast, Thomas Joseph (chefão de
Obseracore Romana (jornal, 251 Kansas Cry), 351
Otero Torres, 1.246 Pepper, Art, 396
Pre Pinar, Le (periódico), 40. 76
7 Peru
camponeses nu, 2 1, 234-5, 229.31
Pacífico, guerra do, 253, 268 memode corunidades camponesas, 265
pagamento supações de rera por camponesese revi
por peçade sell 135 dlicações, 221, 224,241-4,246-7, 249 51
Page, Walter 25266, 268.0
Banda Blue Devi, 351 Pétain, marechal Philippe, 79, 170-1
Taine, Thomas, 9:12, 65, 77 Picard sapateiro),43
Panassié, Hugues, 341 Picasso, Pablo, 161
Paragui, 408 Piélago, Bernarda, 253
Paredes, Sararnino, 243, 245 Pierce, Nate, 396
Paris Pirandelio, Tuígi, 280
cento de mai de 1968, 3 6.329 Pissaro, Camil, 196
Pari Midi (jormat, 376 Pizarro, Francisco, 412
Parker, Charlie (“Bird”), 336, 351, 3 Plauto, 47
Parrell Chastes Stewart, 295 Playõoy (revista), 280
Partido Comunista Alemão, 62. Plekhinow, George V. 195, 197. 201
Partido Comunista Austríaco, 63, 173. pobreza
Partido Comunista Francês, 79, 309, 310:12 Eaine sobre a, 12
PESSOAS EXIRAORDINÁRIAS “27

Pot, Harry 126 R


Toncy; Chaves, 58 Bamanzini, Bernardino, 47
Portugal, 413-4 Ramey, Gene, 349
Ponticr, Eugêne, 15 Rag]. e George (firma de), 19
Pouger, Emile, 40, 76 Reação, 83
Pounds, Jotm, 46 Readers Pl! (1990), 397
pre-rafielitas, 196
Prémio Nobel Reagan, Ronald c Nancy 332:3
anadores nor americanos, &L0 rede ferroviária, 93
Presley Elvis, 390. Redman, Don, 361:2
Prialé, Ramiro, 254 Redon. Odilon, 197
Price, Richard, 125 Reich, Wilhelm, 328
price, Sammy, 336. Reid, Alastair 119
Priestley1. B. Reinhard, Django. 326
Ti Gil Companies, 126 ceigião
Primeiro de maio o celebrações do Primeira de enaso, 79-80
origens celebração, 169.71, 173-4, 1767 eradição radial 80
179-80, 182-4, 186 soco, 180
privilégio Rembrande van Rijo, 412
posição de Pai a UL remendos ver sapateiros
produção em massa, 1 revolta dos Mailotins (1380), 43
proletários mer classe operárias revoltas estudantis er Pai, vencos de 1968
trabalhadores revoltas de Swing (1830), 26, 38, 56
propriedade. revolução
violada, 24,26 de ssmgusáda 1912
proprietários. Paímee, 910
relações com camipogeses 218, 22 sexoe, 3359
Prochero, lorwenh Revolução de 1640-60 (Inglaterra), 26, 79
“Arne and Pl E Nimeeomh Revolução Francesa, 10,43, 82, 169. 171,
Contar Lumi, 1234 183,2189
Proudhon, Pierre Joseph, 79 imvluêucia, 407
Pugachey, Emelyan Ivanovich, 225 Revoluções de 1848.
puritanismo, 80 cm tia, 244, 250
erevolção, 32759 na Alemanha, 36 8
er tambim dissiden na França, 308
Puzo, Mario, 278-82, 284-6 Ronolds Nes, LO
“he Ciffor (1O podemsa ento. Rhonáda (região dei, 106-7
Th Sei, 278, 281 rivvehemerblucs (música), 385, 389-90
Ricardo, David, 21
Q Richardson, WE P, 96
quacres, 83 Rigola. Rinaldo, 21
quebra de máquinas, 15-29 Riu Cirande do Sul (Brasil), 38
Quénia, guerra de guerrilha no, 292. 298 Robbins, Lionel, barão, 209-10
Quiror, Abel, 263 Renberts, Marcus, 397
«28 ERIC HOBSBAWM

Roberts, Robert, 104 sapateiros


Robespierre, Mavimilien, 76, 328 caricere usadições, 35, 39,44:5
Rol, Alfred toniecimentos e inelterulidade, 38-43
Ee lava! (pincur, 151 emniimea sepreseaiode patdo, 61-4
Rolling Stone (revista), 391 mem. 94
Rolling Stones (grapo pop), 3 . 389 radicalismoe milicincia,1 4
Rollins, Sonny; 397 sindicalização, 37.61
Sardenha, 319
Roosével, Eleanor, 384 Sarre, Jean-Paul, 307, 378
Roosevelt, Franklin Delano, 208, 212, Schapiro, Meyer, 381
348, 380-1, 384, 386, 409 Schine, David, 331
Roosevelr, brankin Jr, 384 Sciastia, Leonardo, 219, 280
Rops, Félcica, 146-7 Seiorcino, Pasquale, 285
Rosenberg, Julius e Ethel, 331 Scorr, Joan Wallach, 35
Rosi, Francesco, 281, 284, 286 Segunda Guerra Mundial
Rossendale, 24 música popular na, 384-5
Rougerie, Jacques, 36.7 moviiento de Resistência na Hran, 7
Roux, Jacques, 76 Segunda Internacional, 152, 159, 170,
Rudé, George, 39 177, 2024
Rushing, Jimmy: 351, 355 é Primeiro de mui. 175, 1778
Ruskin, Joha, 196, 203 cavisão manvísta das a os, 202.4
Russell, Bertrand. 3º Conde, 210 e Dia do Trabalho, 17
Rússia (e URSS) mulheres na, 159
autmiração de Laská pela. 212 Sémard, Pere, 79
cjpee375.6 Shakespeare, Wiliam
Heomografa dos tabalhadores na, 18), 1523 Juno Caco, 42
liderança popular na, 261 Shanin, Todo, 218
manvimentoscamponses prev: Sbavs Ande, 385
cionários, 235, 238, 230, 234 Shaw; George Bernard, 192, 197, 2
reivindicações de camponeses pel terra. Sherman, Barry 207-8, 212
237,2424, 267 Shepp, Archie, 303, 298
Revoluçãode 1917, 230, Shorter. Wayne, 389
Rust, Henry 97 Sicília
Rutheford, Mark, 77 camponeses nã, 161, 184.219,23
s 267, 282
viene separe, 252
Sachs, Hans, 44 er sam Canos
Saimt-Just, Antoine Louis Téo de Sinarra, Frank. 385
Richebourg de, 76 Sindicato Naciunal dos Montadores é
Salaman. Redelite, 411 Arrematadores de Botas é Sapatos, 59
SalnatoreGiniano (filme, 281 sindicaros de operários
Salvidge, sir Archibald Tutton, 107 acordos colssvos, 95
Samanicgo, Julian Paucarchuco ver c embitaas de mulheres, 148-9
Paucarchuco Samanícgo, Julian e mecanização 130
Sander, Friedeich. 40 cofído de aresãos, 117:22, 126, 130 5
e quebra demáguama, 18
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 29

dnxória dos, 15.6 subúrbios, 103-4


imesmbros femininos, 15 Sudermann, FL, 198
ramo de membros, 125 Suécia
principio de solidariedade 20 Prirmcso de raio na. 177, 182, 184
prapostasde reforma, 132-5
Smiles, Samu, 23, 41
Smile, Bob, 110 mabaco 4124
Smith, essi, 336, 402 Tacanan Cala, Elias, 257, 260
Smith, Charles Edward e Fred Ramsey Tampucei, Hippolyte, 29
Jasemen, 342 carifa MeKinley 80
Smith, Lerbert, 111-2 1x, Buddy, 396
Smith, Wii (“The Lion”), 336 Tawency: Richard Henry 1 136, 211
socialismo taxação
desenvolvimento na Tiglacrra, 83, 124 ie bre a, 10
« espansão das fecais, 12759 133 Tagãor. Cecil, 397
e homncusde mico, 121
cotigens do Primeito de maio, 16932 Teagarden, Jack, 385
ereigão, 1812 recelões
esamguarda, 191-4 qua de máquinas e calos, 18.
iconngrfia, 149-50 Temps,e jornal, 278
mulheres c/ 150, 156.60 Teosofia, 160-1, 192
utópico, 123-4, 159-60
Sociedad Agricola de Interes Social (SAIS, cenipaçõesde camponeses, 241. 3,245, 247,
Peru), 259, 266 249, 251, 253, 255-66, 268-9
Sociedade Londrina de Correspondência, Thompson, E. P, 15. 43, 91-3, 121, 155
59,63 e movimenro operário, 15
sociedade Fabiana sobre a “economia mora”, 121, 155
cas mulheres 159.60 Ihrcadgill, Henry 397
Sociedade Nacional Secular, 85 Toller, Bill, 64
Sourheott, Joanna, 160 Times, The, 010
Southem Syneopared Orchestra, 340 sipógrafos, 38, 40, 44, 52. 614 135, 162
soviete de Munique (1919), 199 oposição à mecanização, 22
Spanier, Muggsy 338 colicios gráficos, 128, 130
Spiralficias. Tipperary; Írlanda. 234
esmo de ocoões, 20-1, 28 “Tito, marechal Josip 8r07, 203
Springsteen, Bruce, 385, 389 Tolstoi, Count Lew, 194, 202
Stilin, Josef V, 208 Tortes, ]. Otero per Otero Tories,
Stendhal (Marie-Henri Beytei, 153 aulouse-Laurree, Henri de, 370
Stewart, Rox, 383 Tonraine, Alain, 308, 312-6
Sto, David, 379.8], 383-6 trabalhadores
Sing Cons io Rana faso No Deal esquebra de umíquinas. 15-7
Amen, 279 isomopratia dns, 147:52
Sirachey Johm, 211 mulherese, 1568
Strantss, George Russel, 207 ver cam areeãos (oficio)
Stravhorn, Billy 359 Trelazé (Bretanha), 76, 84
Strindberg, August, 193-4 Trevor, Jubm, ÃO
“80 ERIC HORSBAWM

Teiling, Lionel 331 violência


Trótski Lon, 200 somo fenómeno social, 318-23,
Truman. Harry 284 experiênciada, 317:8
Tucker, Mask (org) Vitrorini. Elio, 280
The Due Elio Rar 379.63, 24
Tuínell E.€.,25 das Américas, 4114
túmultos Vizzini, Don Calogero. 280
de diputás inseri,20, 27 Vodery Will 359
clevanres na Inglazera, 83 Vigue revista, 325
eram bra de máquinas
tumultos de Rebecca (País de Gales. w
1843), 156 Wadsworth A Pe) deL Mann, 23
Tapa Amar, 253, 266 Wagner. Richard, 192, 197, 199
Tue Tan, 36 Wallace. Russell, 407
Temer, McCoy 396 Walls, Fãs, 352
u Wárman, Arturo
a bito de umria
bstando: may casam
União Européia (Comunidade; ana
eo Primeiro e mai 179 NWashingron, George, 9
Yy Waters, Muddy, 373, 389.90
Wearmouth, RE, 78
Vaciher: Perér Weatheríord, Teda; 3 0
Jaz Cio The Ausobigraio fe Webb, Beatrice, 15, 110, 125, 132, 156-7,
Dirensivara (conto curada a Patr 160,21
Vacher), 385, 339 Web, Sidney (barão Passe), 15, 125,
Vaillar, Edouard, 172 132,156:7,21
Valle, Rudy 340 Wiedeknd, Erank, 200
Valês, Jules, 97 Véhty Dispareh, 35
Van de Veide, H., 196 Weil, Ku, 367.
Van Gogh, Vincent, 151, 195, 412 Weicing, Wilhelm, 52, 64
Vaindervelde, Emile, 197 Wells, Dick, 353, 255
vanguarda Well,H.G, 217
e sociniomi, 191-4,208
Venezuela, 250 Wesley: Toha, 75, 83
Verga, Giovanni, 280 eslevanismo, 79-80
Verhacren, 197 votam meros
Nespúcio. Américo, 407 West, Cornel, 399
Viena, 1978,3 West UA.
Lab amd Le (Lo é Vida, pinus 149
co Primeirdeo Maio, 173, 137 Westmacee, sir Richard, 151
Vicimã Weydemeyes, Joscph, 38
“pri de jerlha no, 249.92, 294-7 Witigs, governos
E progresso réenico, 26
Villa Pancho, 224, 268 White, Gonzele, 250
Vil (sapateiro), 39 Wiiceman, Paul, 362
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS E

wWilber, Bob, 337, 396


Vilde, Oscar, 192
Wiltams, Cootie, 364
Williamson, Sonny Boy 390
Wikon, Edmund, 381
wilson, Teddy, 402
Wilson, Woodrow, 208
ikshire
queira de máquinas, 17:8,24,28
Winickelmanay, Johann Joachim, 153
wink, WE, 41
Winkavorth, William, 39
Wolf, Haselin, 390
Womack, John, 245, 261
woods, Phil, 397
Noods, Samuel, LO
Woodstock (Estados Unidos)
disrval de sockeom 1969, 391
Wolf; Leonard, 210
NWorld Saxuphone Quareet, 397
Weight, Thomas, 119-20
wrigles, Chris e John Shepherd forgs.)
O 2h Moe: Es alaam ro
His Presa xo Pio Bege! 169
Y
Yanacancha (Peru, 2 260. 262, 264
Van (lider camponês peruano), 262
Yaurívilca, Elas, 2
Young. Lester, 35 , 402
Young, Trummy 396
z
Zapata, Emiliano, 224, 2 , 245, 261, 268
Zaxvinal, Joe, 389
Zeldin, Lheodore, 36
Zasla, Emile, 193-4
sttea
fundador” da República norte-americana
estão aqui para compor um projeto maior.
Parafrascando Hegel de forma torta, o
que temos é a narrativada história contem-
porânea através de um Nós que é Elee de
que é Nós. Na historiografia de
Hobsbavwem, falar sobre o Bandido Giulia-
noequivale
a entrar no cerne
dos impasses.
que atravessam a política italiana pós-45. (7!
Assim como falar de Billie Holiday é uma
forma de narrar a miséria co deslocamento f| Ee
impostos à população negra norte-ame-
ricana desde sempre, O que temos é um
exemplo da difícil arte de recompor a his-
tória através da açã o corriqueira das pes-
Soas que nunca estão no centro institu-
cional do poder. Pois, mesmo que algumas
das figuras analisadas não sejam exata-
- mente desconhecidas e nem necessitem
ser salvas da “enorme condescendência
da posteridade”, elas continuam repre-
sentado pessoas “comuns” que souberam
tirar deste fato uma força extraordinária.
Elucidativo para a compreensão do
método de Hobsbawm é o capítulo sobre
ojazz. Andando na contramãoda tradição
crítica frankfurtiana, que vê no jazz uma
manifestação típica da indústria cultural
Hobsbawm prefere reconstituir a história.
social de um dos fenômenos mais signif.
cativos da cultura do século XX. Mediante
essa estratégia, é o próprio meio de origem
dessa manifestação musical que elucida
seu sentido. Redescobre-se, assim, o jazz
como linguagem de resistência, como for-
malização de uma experiência determinada
de exclus o. Um bom exemplo do que a
historiografia marxista ainda é capas.

Cara bel Cartao


Tuusrrações: Count asi por Hermenegido Sabate
acima desenho de G. Jarminh, 1981
ERR E ro
RT PURE ENE
Egas
ars SRD cafe
isto me tenha transformado em um
historiador melhor, já que a melhor
PERTO ENG TEM TA
perderam algo. Os vencedores
pensam que a história terminou
bem porque eles estavam certos,
ao passo que os perdedores per-
guntam por que tudo foi diferente,
e esta é uma questão muito mais
relevante.
Eric Hobsbawm

HI I

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