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PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS
Resistência, Rebelião e Jazz
Tradução de
Irene Hirsch
Lólio Lourenço de Oliveira
D
PAZE TERRA
OE.) Hobsbawm
“Traduzido do original: Uncommon people
1998
Impresso no Brasil! Printed in Brasil
SUMÁRIO
PREFÁCIO.
A TRADIÇÃO RADI!
1. THOMAS PAINE o .
2.08 DESIRULDORES DE MÁQUINAS. 11.1.
3. SAPALEIROS POLITIZADOS
(em cosantoria com Juan W Score), ,
4.TRADIÇÕES OPERÁRIAS ess
O FAZER-SE
DA CLASSE OPERÁRIA
1870 - 1914. ...iccsocooo
6. VALORES VITORIANOS. ..... ce... ns
HOMEM E MULHER: IMAGENS DA ESQUERDA. . 143
8, O NASCIMENTO DE UM FERIADO: O PRIMEIRO DE MAIO. 169
9.0 SOCIALISMO E À VANGUARDA, 1880-1914 191
10. O MEGAFONE DA ESQUERDA 207
CAMPONESES
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA
JAZ
perfil da história, é mais do que nunca no século Xx, Essa é a razão por que
dei o título a um livro sobre essas pessoas, tradicionalmente conhecidas
como “pessoas comuns”, de Pessoas extemordinárias.
Elas não são “desprovidas de personalidade e banais”, como os crimes
com os quais Sherlock Holmes encontra uma inusual dificuldade cm lidar.
Como são moldadas por seu passado « presente, qual a racionalidade de
suas crenças e ações, como, por sua vez, modelam suas sociedades c his-
tória: esses são os interesses centrais de meu livro. E espero que lhe dêem
uma unidade temática básica.
rés das seções do livro tratam de grupos sociais parsiculares ou milicus:
“A tradição radical” (capítulos 1-10), com a classe operária e as ideologias
associadas a esse movimento; “Camponeses” (capítulos 11-13), com a tra-
dicional classe agrária: c o “Jaz=” (capítulos 19-25), como um dos poucos
desdobramentos no âmbito das artes maiores totalmente originado no co-
tidiano das pessoas pobres. Uma quarta seção, “História contemporânea”
(capítulos 14-18), é relevante para meu tema visto que trata principalmente
de situações nas quais as intenções humanas conscientes c decisões têm for-
te peso, posto que são convencionalmente discutidas nesses termos. Entre-
tanto, não posso negar que me deu prazer reimprimir por fim um bem-
sucedido exercício de análise contemporânca. Tampouco resisti a incluir uma
breve coda sobre o injustamente esquecido vilão dos Estados Unidos na
estranha cra da Guerra Fria, publicada na série “Heróis c vilãos” do jovem
jormal Badependen. Ela é, naturalmente, baseada no inatacável Cidadão Colm: a
vida e à época de Roy Cobn (Nova York, 1988), de Nicholas von Hoffmann.
De uma mancira ou de outra, como o demonstram os presentes en-
saios, essas questões têm-me preocupado ao longo de toda minha carreira
como historiador. Elas seguem as linhas de pesquisa perseguidas em meus
primeiros estudos sobre os trabalhadores e em meus primeiros livros, publi-
cados quase quarenta anos atrás, Rebeldes primitivos « História social do jazz.
Pessoas extraordinárias reúne um número de estudos realizados entre o co-
meço da década de 50 « meados da década de 90. Onze dos 26 ensaios
apareceram previamente em livros anteriores; Os imabalhadores, Revolucionários
e Mundosdo trabalho; os demais não foram previamente publicados em livro
sob meu nome, ao menos não na Grá-Bretanha.
Detalhes adicionais são fornecidos ao início de cada capítulo.
Londres, 1998
Eric Hobsbarom
Capítulo 1
THOMAS PAINE
tinha medo de uma nudez que revelasse 0 homem, feito por si mesmo, na
glória de suas infinitas possibilidades. Sua humanidade permanecia nua, co-
mo Os atletas gregos, porque estava em posição para à luta e o triunfo.
Mesmo agora, quando lemos essas frases simples e claras nas quais o senso
comum eleva-se a heroísmo, « uma ponte de ferro fundido cobre à distância
entre “Therford e a Nova Jerusalém, ficamos eufóricos « comovidos. E se
acreditamos no homem, mesmo agora, como podemos deixar de animá-lo?
Capítulo 2
OS DESTRUIDORES DE MÁQUINAS
dava com firmeza o jogo contra os assalariados,” mas seria pedir demais
das atividades do século XVII enfrentar isso, Dentro dos seus limites, dificil-
mente se pode negar que os tumultos dos tecelões de seda de Spitalfields
lhes trouxeram bencfícios.e As disputas dos barqueiros, marinheiros e mi-
neiros no Nordeste, das quais temos registros, não raro terminaram com a
vitória, ou com um compromisso aceitável. Além disso, o que quer que
acontecesse nos confrontos individuais, o tumulto c a destruição de máquinas
proporcionavam aos operários reservas valiosas em todas as ocasiões, Perma-
nentemente, o patrão do século XVII estava consciente de que uma exigência
intolerável produziria, não uma perda de lucros temporários, mas a des-
truição de equipamento capital. Em 1829, a Comissão dos Lordes pergun-
tou a um preeminente gerente de minas de carvão se à redução dos salários
nas minas de Tyne é de Wearside podia “ser eferuada sem perigo para à
tranquilidade do distrito, ou risco de destruição de todas as minas, com
toda a maquinaria e o valioso capital nelas investido”. Ele achou que não.*!
Inevitavelmente, o empregador que se defrontava com esses riscos fazia uma
pausa antes de provocá-los, com medo de que, em consequência, “sua pro-
priedade e talvez sua vida (pudessem) correr perigo”? Com injustificada
surpresa, sir John Clapham notou que “muito mais patrões do que se podia
esperar* apoiaram a manutenção das Leis dos Tecelóes de Sede de Spitalficids,
porque em sua vigência, alegavam cles, “o distrito viveu num estado de
quictude e repouso”
Podem o tumulto e à quebra de máquinas, contudo, deter 0 avanço do
progresso técnico? É patente que não se pode deter o triunfo do capitalismo
industrial como um todo. Numa escala menor, no entanto, eles não são de
mancira alguma à arma desesperadamente ineficiente que se tem feito pare-
cer, Assim, supõe-se que o medo dos tecelóes de Norwich impediu ali à
introdução de máquinas.* O luddismo dos tosquiadores do Wiltshire em
1802 certamente adiou que a mecanização se generalizasse; uma petição de
1816 nota que no tempo da guerra não havia nenhuma percha* nem basti-
dores em Trowbridge, mas é lamentável relatar que agora estão aumentando
à cada dia”. Por paradoxal que pareça, a destruição feita pelos indefesos
trabalhadores rurais em 1830 parece que foi a mais eficiente de todas: ape-
— Máquina compostade vários tambores gusrnecidos de corda para tornar paralelo o
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 29
Notas
14.10 Geo. 2,c. 32, 17 Geu. 2,40, 24 Gen. 2, 57, 31 Geo. 2,€. 42; ver ER.
Turner, “Lhe English Coal Industry in the Seventeenth and Eigheeenth Centuries”,
“American Historical Revue 27, p. 14. Turner parece haver negligenciado 13 Geo. 2, c
21,9 Gen, 3, €. 29, 39 e 40 Geo, 3, € 7, 56 Geo, 3, c. 125 que são também
dirigidos contra a destruição das minas. Ver Arm Justice of the Pence (ed, Chico
1837), vol. 3, pp. 6435
15. Welbourne, Minersº Unions,p. 31
16, À principal autoridadeé W Felkin, A Flizory of eh Macine-rouaht Husery anil Late
Mamufctures, Londres, 1867.
17. Para as minas francesas cf. M. Row; Les mínes de charbom en Erance as xy sele,
Paes, 1922.
18. E. M. Saint-Léon, Le Compagmonnage, Paris, 1901, vol. 1, cap. 5
19. Aspinall. Eariy Emplid Trade Unions, p. 175,
20. Os homens de Bolton foram acusados em 1826 de haver plancjado à destruição de
todos os fios de algodão embalados para exportação, bem como das máquinas (Pubiic
Record Office, Home Office Papers HO 40/19, Fletcher para Hobhouse, 20/4/1826]
21. E A discussão destes problemas em E. Ponger, Le Saborage, Paris. s. plõess
22. Por exemplo, os metalúngicos galeses em 1816 (The Times, 26/10/1816), à greve
geral de 1842 (E Peel, be Risings of she Ladies, Chartistes ama Pludraners, Flock
mondwike, 1888, pp. 341-7), e os mineiros alemães em 1889 (T' Grebe, “Bismarck
Sturz ud. Bergarbiterseik vom Mai 1889”, Histoiche Zeitschriê 157, p. 91)
28. Aspinal, Early Engl, Trade Unions, p. 196: “Não posso deixar de pensar que às
reuniões matinaise as listas de chamada são atualmente o faço de união.”
24H. Smithe V. Nash, The Story of she Deckers'Siribe, Londres, 1889, pasim.
25.R. Rigula, Itinaldo Rógoia e il Movimento Operaio nel Bilkse, Bari, 1930. p. 19. Rigola
não relata nenhuma destruição verdadeira pelos vozelões, apenas pelos chapeleios
26. Ver o capítulo sobre “Maquinaria” em seus Principls. Sobre este, inserido apenas na
terceira edição, ver P Sraffa e M. H.. Dobb, Inks and Comespondence of David RF.
savdo, Cambridge, 1951, vol. p.tste1x
27.M, D. George, London Life in the Fipitcenth Compury, Londees, 1925, pp. 180, 1878.
28, Pal, Enpers LUZ, Relatório da Comissão sobre a Petição dos Fabricantes de Roupas
de Lã, p. 247, 249, 254-5. Rules and Articles of. . The Wiolen-Clrh Weaver Scisy
1802, British Mus. 906,k, 14 (1)
29.E. Howe c H. Waite, The London Compositor, Londres, 1948, pp. 226-33
30, Waidsworl e Mann, The Corsom Trade, pp: 499.500.
31.8 e B Webb, Indusmial Democracy, Londres, 1898, cap. 8: “New Processes and
Machinery
32. Para à mudança política dos compositores de tipos cf. Howe c Waite, Tie Lendo
Compositor: engenheiros, J. B. Jefierys, The History of the Engineers, Londres, 1945,
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS a
PP. 142:3, 156-7; trabalhadores em chapas de estanho.7. HL. Jones, The Tnplate
Indusery, Londres, 1914. pp. 183.4, cap. 9.
Para a longa luta dos tipógrafos americanos contra à revolução técnica nã década de
1940, ver |, Lofis, The Printing Trades, Nena lorque. 1942,
Wadsweorth e Mann, The Cotum Trade, p. 412. Ver também a análise detalhada da
sorte de Hargreaves, pp. 476e se
Secr Comte om Agriculture, 1833, 64 estimativas -- sem dúvida com algum exa-
gero — de que apenas 1 cm 100 das máquinas de debulhar que existiam antes de
1830 estão agora em uso em Wiltshire e Berkstire
Sobre a agitação dos tosquiadores estrangeiros, ver E R: Manuel, “Lhe Luddire Mo-
vement in Fran”, Journai of Maderm History, 1938, pp. 180 e ss; idem, “E intro-
ductiom des machines en Erance ct les ouveiers”, Revue dbHiguire Maderne, 18, pp.
2425. O verdadeiro Inddismo na França parece ter sido virtualmente limitado aos
tosquiadores, com menos sucesso do que na Inglaterra, embora intenções Inddicas
fossem algumas vezes expressas por outros. Ver 0s documentos em G. e H. Bourgin,
Te Itégime de Pinduserieou Eranc de 1830à 1840, Paris, 1912-4], 3 vols
3 Hammond. Skiled Laiourer. p. 127.
38 Manuel, *[he Luddite Movement in France”, p. 187: Davall, assim. Ver também a
nota em E, €. 'lifnell, Character, Objects and Leis of Trade Unims (1834), po 17,
sobre a relutância dos homens que operavam realmente às máquinas cm aderir à
greve contra eles. Mas Tufnell admite que aderiram. ameaçados ou persuadidos por
seus colegas desempregadas
39, Os tosquiadores (tosadores) crpueram à felpa do tecido acabado é rasparam-na com
pesadas tosquiadeiras de ferro. Eles tinham que scr não só muito fonis como muito
hábeis
Darvall. Popular Diurbante, p. 207.
Aspinall, Darty Engl trade Unions p. 578,
“Lhomas Heller, executado ccnmo tal em 1803, é geralmente considerado inocente,
G. FL Iupling, Fomomic Einory nf Rosendale, Manchester 1927, p. 214
MS. Correspondência de M. Cobb, empregado dos Juízes ce Salisbury na Bibioteca
de Witshire Archacol. & Nat, Hist. Soc., Devizes: 26/11,830.
Circular Impressa de 8/12/1830. Esta é mencionada em Hammond, Vilage abourer
[Guild Books ed vol 2, pp-71:2,
Ver à brilhante análise do “pequen burguês democrata” no discurso de Marx ao
Cunselho Central da Liga Comunista, in K. Marx e F Engels, Collcred Méris, vol.
10, pp: 160-1
47 À expressão “miar do lucro” é de G. Gilfillan, “Invention as a Factor in Economic
History”, Supp. to Joual
of Economi Hist, dez. 1945
a ERIC HOBSEAWM
48, Eles fora ajudados pelo baixo preço das novas máquinas, Um fabricante ocidental
de roupas instalou máquinas de far com 70-90 fusos, por 9 libras cada, em 1804.
Daí à possibilidade da mecanização peça a peça
49, Tune, Trade Uni, p. 18
50, Manuel, “Ludite Movement”, p, 186.
51. E. Lipson, Economic Hinory of England, 4 ed. vol. 2, pp. Cxmxvt e vol. &, pp.
300-13, 324-8. Sir Jubm Clapham. Concis. Economic History of Arituim, p: 301, nota
corretamente a “trago extra de dureza que parece ter feio parte da vida pública na Era
da Restauração”
Ver nota 45
Para à “mudança revolucionária” neste periodo ver S. e B, Webb, History af Trade
Umioniom (1894), p. 44 e ss. Mas as atas parlamentares podem dara impressão er
rada, O curso noemal dos acontecimentos foi que o lussez-fáire progrediu calma-
mente, com a legislação contrária caindo cm obsolescência. a menos que ocorresse
uma campanha ativa e eficiente dos trabalhadores. CF. a recisão das cláusulas de salá-
rio no Estatuto dos Arrífices de 1813 em W Smart, Economic Ana: of she Nineseenti
Century, 1801-20, p. 368.
54 Philalethes, e Case as ár nono scams Descon the Claisiers, Weavers and arher Manige-
ares si read o he date Rios, im she Counry of Vis, Londres, 1739 (Cambridge
Unie Lib, Acton d. 25.1005), p. 7: De qualquer mancira até 17 Geo, 3, c. 55 us
chapeleiros obriveram uma lei proibindo qualquer parrão de sentar no banco numa
disputa que lhes dissesse respeito — o que é mais du que os trabalhadores agrícolas
puderam conseguir.
55, Public Recon! Office, State Papers Domestic Geo T, 63, pp. 72, 82, 93-& 64, pp.
1-6,9-10, especialmente, p, 2-4
56. House of Commons Jornal X%, p. 747.
57. Bion Justice of he Peace, 6 ct, vol. 3, pp. 64355; vol. 5, pp. 485 55.552 ss, dá
um quadro revoltante dessa massa de legislação intermitente não coordenada
58. Ver WE Sombart, Der Moderno Kapizalimus, vol 1, 1, p. 803 para uma bibliografia,
acerca disso; K. Marx, Capital, vol. 1 (1938 ed.), pp. 259-63. Philalethes, 1he Case as
de nov stands... pp. 29, 41, dá argumentos típicos.
59.E. J. Hamilton, “The Prof Inflation and the Industrial Revolution, 1751-1800,
Quariey Journal of Beonomics, 56 (1942), pp. 256
60, Hammond, Shslled Labourer, A obscevação de M. D. George (p. 190) de que a cle-
vação dos preços dos tecidos pelas lis não cra comparável ao de outros oficios du-
ramre o periodo pode ser verdadeira. Mais importanse é o culapsa drástico dus preços
após a recisão das leis (ibid, p. 374)
6). Hammond, Slilitd Laboure, p. 26.
62. William Stark sobre os motivus por que a maquinaria não fui adotada no comércio.
de Li perecada de Norwich e as reduções de salários foram comibatidas e as reduções
PE: JOAS EXTRAORDINÁRIAS 3
SAPATEIROS POLITIZADOS*
(em co-autoria com Joan W. Scott)
pelo espírito irequicto, por vezes agressivo, « por uma enorme tendén-
cia à loguacidade, Ocorre uma revolta? Surge da multidão um orador?
Sem dúvida é um sapateiro que veio proferir um discurso ao povo.?
ofício que possa sugerir uma ligação ocupacional com a palavra impressa —
como entre os tipógrafos. As suposições extremas de que sua habilidade
com o couro s levasse a ser chamados para encadermar ou conservar livros,
e de que ocasionalmente suas bancas fossem adjacentes às dos vendedores
de livros, não parece ter qualquer base de comprovação real.** Além disso,
tanto quanto pudemos observar, não existe nada nos costumes « tradições
nos artesãos do ofício que acentac ou mesmo que implique um interesse cs-
pecial pela leitura; e, embora Hans Sachs de Nuremberg fosse o mais famoso
dos Meistersinger, como sabem todos os amantes de ópera, não há nenhuma
evidência de que os sapateiros estivessem desproporcionalmente represen-
tados entre estes poéticos artesãos. O laço entre os sapateiros e os livros não
podia ter sido estabelecido antes da invenção c da popularização da im-
prensa, visto que até então os pobres praticamente não tinham acesso direto
à palavra escrita. Mas O caráter geral dos costumes dos artífices sapareiros su-
gere que estes costumes já se encontravam formados nesta época. *º Pode-se
argumentar naturalmente que, com a disponibilidade de livros, estes vieram
a atrair uma profissão cujos membros eram inclinados à especulação e à
discussão. Contudo, a questão permanece em aberto.
É possível que a divisão de trabalho relativamente primitiva na con-
fecção de calçados tenha permitido ou impelido grandes contingentes de
sapateiros a trabalhar em completo isolamento. Sem dúvida Mayhew conje-
rarou que “o isolamento do trabalho deles, desenvolvendo seus recursos
interiores”, explicava o fato de os sapateiros constiruírem “uma raça austera,
intransigente « ponderada”*? Remendões de calçados itinerantes cram, obvia-
mente, trabalhadores isolados: mas, mesmo cm sua oficina, era comum o
sapateiro solitário. Na Alemanha, em 1882, dois terços deles não empre-
gavam nenhum tipo de auxiliar.
Entretanto, mesmo o remendão de calçados solitário não estava isolado
culturalmente. Ele podia ser treinado em um pequeno estabelecimento. O
mestre, uns poucos artífices assalariados, é um ou dois aprendizes, bem
como a esposa do mestre, parecem ter constituído o estabelecimento típico
ideal do ofício. Nas regiões mais tradicionais da Alemanha do século XIX.
havia cm média apenas 2.4 ou 2.6 artesãos assalariados por aprendiz”! A
rápida rotatividade dos artífices, contudo. viria a ampliar os horizontes tanto
dos mestres como dos aprendizes, e os artífices assalariados eram famosos
por suas viagens prolongadas, Um sapateiro rural da Suábia descreve à im-
pressão que os arrífices assalariados lhe causaram quando aprendiz: “entre
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS as
comprovada pelo controle por parte do sapateiro sobre seu tempo de tra-
balho e de lazer —- sua possibilidade de destrutar o Saint Monday é outros
feriados como lhe aprouvesse 5” Uma vez que lazer social « bebida eram in-
separáveis, as canções também ressaltavam O ato de beber (atividade pela
qual os sapateiros se celebrizaram), c aquele outro subproduto da cultura de
bar: resolver as dispuras na briga. “A melhor cerveja encontra-se onde os
carroceiros e os sapateiros bebem”, diz um peovérbio polonés. A comédia de
Johann Nestory, Lumpasipagabunduis (1836), que acompanha as peripécias
de três artífices típicos ideais, apresenta seu sapateiro como um astrônomo
amador (cujo interesse por comeras pode ter sido inspirado pela leitura de
almanaques) e bébado escandaloso e brigão. Mas estas não são associações
particularmente intelectuais.
Talvez à explicação mais plausível do intelectualismo do oficio derive
do fito de o serviço de sapateiro ser sedentário « pouco exigente do ponto
de vista físico. Talvez fosse o trabalho masculino que menos sobrecarregasse
fisicamente o homem na zona rural, Conscgiientemente, rapazes pequenos,
fracos ou com alguma deficiência física eram habitualmente destinados a cste
ofício. Foi o caso de Jakob Boehme, à místico; de Robert Bloomficld,
autor de The Earmer's Boy;*º de William Gifford, futuro editor do Quarterty
Review, que foi “posto a trabalhar com o arado”, mas “logo se descobriu que
era fraco demais para trabalho tão pesado”; de John Pounds, pioneiro das
Ragged Schools,"" que se tornou sapateiro após um acidente que o mu
tilou e o excluiu do seu ofício original como mestre de estalciro;*? de John
Lobb, fundador de uma firma famosa em St, James, que ainda existe, e
de um grande número de outros, quase com certeza. Em Loitz, na Po-
merânia, “praticamente as únicas pessoas que se dedicam à este ofício são
aleijadas, ou inadequadas para o trabalho agricola ou industrial”. Daí à ten-
dência dos sapareiros de aldeia, impossibilitados de mantersse com os ganhos
de seu ofício, a assumir (como na cidade de Heide, Schleswig) empregos
secundários como vigias-noturnos, porteiros de escolas, mensageiros, gar-
qons, arautos da cidade, assistentes de pastor ou de carteiros « varredores de
rua? A regulamentação para o recrutamento naval norte-americano em 1813
insistia no recrutamento “somente de homens fortes, saudáveis e capaze
= O costume de não trabalhar nas segundas-feiras. (NR)
** Insútuições de caridade pública para inscrução, abrigo « auxílio aos pobres e aos órfius.
ST)
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS a?
mente eram ultrapassados em quantidade pelos tecelões, mas nas aldcias mer-
cantis eram os primeiros, seguidos dos cervejeiros « dos tecelões.” Na Frísia
rural, em 1749, havia 5,79 sapateiros por mil habitantes, cm comparação
com 4,53 tecelões, 4.48 carpinteiros, 3,70 padeiros, 2.08 ferreiros, 1,76
religiosos, 1,51 estalajadeiros « 1,45 alfaiates; dentre todos os estabelecimen-
tos comerciais, 54% cram de Sapateiros, 52% de carpinteiros, 40% de terreiros,
e 32% de estalajadeirosº Parece claro que as pessoas encontravam maior di-
ficuldade em se arranjar sem sapateiros especializados à distância conveniente
do que sem outros tipos de artífices ou serviços especializados.
O ofício de sapateiro, embora se estendesse a várias habilidades técni-
cas e de especialização, manteve-se suficientemente primitivo quanto à tec-
nologia e à divisão do trabalho, é com um produto suficientemente ho-
mogêneo para continuar em essência como um ofício único. Não é possível
traçar nenhum paralelo entre ele e a fragmentação crescente do setor me-
talúrgico em ofícios especializados isolados, como a que se encontra tão
fregixentemente na economia medicval de guildas. Gencralizando, assim que
o ofício se separou dos curtidores, vendedores de couro é outros produtores
e fornecedores de matéria-prima, suas principais fissuras incernas foram co-
merciais — entre sapateiros e vendedores de sapatos (estes podendo ou não
também fabricar sapatos). Havia também uma divisão, definida nos termos,
entre Os que faziam sapatos (cordimainers) e os que simplesmente os conscr-
tavam (cobblers) — savaticrs, Elickshuster, cinbarrino —, embora deva ser ob-
servado que os comerciantes se desenvolveram essencialmente a partir dos.
fabricantes, A separação entre os fabricantes e os remendos foi por vezes
instirucionalizada em guildas separadas, embora as guildas dos remendões
tivessem dificuldade para se emancipar completamente do controle dos fa-
bricantes, ou mesmo subsistir
O conserto cra nitidamente o ramo inferior do ofício, e o termo cobblina
em inglés é usado para designar qualquer serviço de baixa qualidade. Entre-
tanto, a linha divisória entre os dois ramos era imprecisa, e tinha de o ser,
especialmente em épocas ou regiões (como na Alemanha no século xvm) em
que a procura razoavelmente estática defrontou-se com à oferta crescente
nas cidades.” Viver somente de fizer calçados cra praticamente impossível
para a maioria; na verdade, subentendia-se que os fabricantes fizessem con-
sertos. Desta forma, para atingir uma renda “decente” (91 florins por ano),
alegava-se, sem dúvida retoricamente, que um mestre “teria de produzir um
par de sapatos novos ou trés pares de solas ou consertos por dia, e além disso
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 51
portanto, uma base sólida, embora as razões para sua superlotação não este-
jam totalmente claras. Talvez isso se deva em parte ao baixo custo do equi
pamento básico e à possibilidade de exercer à atividade em casas talvez tam-
bém à possibilidade de recrutamento externo, fora das fileiras dos artífices
profissionais é de suas famílias. Os tipógrafos e os vidraceiros restringiam o
acesso ao ofício a seus filhos, parentes e uns poucos privilegiados de fora: os
sapateiros raramente podiam fazero mesmo.” Em consequência, os saparei-
ros não controlavam nem o acesso nem o número de integrantes do seu
ofício, e daí à superlotação.
O oficio era, portanto, muiro ponco homogêneo. Contudo, na medida
em que permanecia um ofício de caráter essencialmente manual — c até à
década de 1850 nem mesmo a máquina de costurar doméstica havia sido
incorporada —, suas divisões internas eram vagas € instáveis, Por esta razão,
embora existissem “aristocratas” ou setores favorecidos cntré os sapateiros, co-
mo havia entre os alfiiates (por exemplo, na elite das encomendas sob medida
nas cidades), nenhum dos dois ofícios como um todo tinha posição alta na
hierarquia social, como observou o artesão comunista Wilhelm Weitling +
Pois ambos, em particular os sapareiros, eram cxtraordinariamente nume-
rosos € continham, portanto, uma proporção muitíssimo alta de clementos
menos favorecidos e marginalizados, Dentre as centenas de artífices assa-
lariados que se dirigiam em bloco para Viena (em processo de induscriali-
zação, na década de 1840). € solicitaram permissão para aí permanecer. nada
menos que 14,7% (17% destes provenientes da Boémia) eram sapateiros,
seguidos à alguma distância pelos alfxiares, 10% (14,6% dos quais eram
boêmios) « pelos marceneiros, 8,3% (9,1% de boêmios).
O sapateiro de aldeia era autónomo. Sua atividade exigia pouco capi-
tal, o equipamento era barato, leve e portátil, e ele necessitava apenas de um
telhado sobre à cabeça para trabalhar « viver, no pior dos casos no mesmo
cômodo. Embora este fato lhe proporcionasse uma mobilidade incomum,
não o distinguia de uma série de outros ofícios. O que realmente o distinguia
era seu contato com um grande número de pessoas humildes e sua inde-
pendência com relação aos proterores, clientes abastados e empregados, Os
lavradores dependiam dos senhores de terra; os fabricantes de rodas c os
construtores contavam com à encomenda dos lavradores e de pessoas de
* Temos conhecimento, no emtamo, de que a continuidade hereditária entre os sapareiros
londeinos era extraordinariamente alta
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS s3
guia e na organização formal. O pouco que havia cm scu ofício já era sufi-
ciente, e em muitos casos cle encontrava serviços fora de regulamento da
guilda ou do ofício, e apesar deles. Conhecia o valor da independência e
tinha ampla oportunidade de comparar sua relativa autonomia com a de
seus clientes, Por ser difícil ou impossível compilar uma amostragem repre-
sentativa dos radicais no ofício, não se pode determinar até que ponto esta
capacidade de expressar pontos de vista independentes estava confinada à
minoria de artífices relativamente bem-sucedidos, não disseminada entre a
maioria (presumível) de sapareiros remendões marginais, de trabalho avulso.
A pergunta permanece sem resposta. Entretanto, no contexto específico do
final do século XVII e início do século xix, é natural encontrar sapaeiros
radicais lendo Cobbert, que clamava contra a climinação de todos os pe-
quenos artífices « denunciava um sistema que substituía “senhores e homens
cada um em seu lugar c todos livres” por “senhores e escravos”. Nem é
surpreendente encontrá-los nas fileiras dos sans-culorres e mais tarde nas dos
anarquistas. Em todas as circunstâncias, a insistência sobre os meios modestos,
o trabalho duro e a independência como soluções para os problemas da in-
justiça é da pobreza estava dentro da experiência dos sapareiros de aldeia
Grande parte dessa argumentação poderia também aplicar-se a outros
artífices de aldeia. Mas enquanto a oficina do ferreiro, por exemplo, cra
barulhenta, e seu trabalho dificultava à possibilidade de conversa, O sapa-
teiro estava estrategicamente bem instalado para fazer passar as idéias da
cidade c para mobilizar a ação, Sua oficina de aldcia fornecia um cenário
ideal para esta finalidade; e homens bem-articulados, que trabalhavam sós à
maior parte do tempo, quando tinham com quem conversar podiam sc tor-
nar extremamente falantes, mesmo durante o trabalho. O sapateiro rural es-
tava sempre presente, de olhos ma rua, e sabia o que estava acontecendo na
comunidade. mesmo se não tinha também a função de sacristão da pa-
róquia, ou alguma outra posição municipal ou comunitária. Além diss
sas tranqilas oficinas nas aldeias e nas pequenas cidades eram centros sociais,
perdendo apenas para a taberna, mas abertos e preparados para o convívio
durante todo o dia. Não surpreende que no interior da França em 1793-1794,
Os sapateiros, juntamente com os taberneiros, “pareciam ter uma verdadeira
vocação para a revolução”. Richard Cobb ressalta que
O papel dos sapateiros, aqueles revolucionários de aldeia que se insta-
laram como prefeitos após o surro revolucionário do verão de 1793, ou
PESSOAS EXIRAORDINÁRIAS 55
HI
ainda manter uma relação tão próxima a seus clientes quanto a do sapateiro
que trabalhava com encomendas sob medida, já que ele podia ser regular-
mente encontrado em sua banca nos dias de feira por homens « mulheres
que 0 conheciam bem e à quem ele conhecia Sua relação com os clientes
era provavelmente mais próxima do que a do seu rival cada vez mais amea-
cador, o sapateiro ambulante, que ia de casa em casa” No entanto, estas
duas formas de organização se prestavam a diversos sistemas de subcontraro
— daí o desenvolvimento de comunidades de sapateiros, tanto rurais quanto
urbanas. Estas podiam abranger desde aglomerações de oficinas tradicionais
com ménima divisão de trabalho, até centros maiores que consistiam na
realidade em fábricas não-mecanizadas, funcionando com operários confi-
nados à processos especiais, e que eram complementados com trabalha-
dores de fora, da cidade ou da aldeia, com sua própria subdivisão do tra-
balho.” Aqui se produzia em larga escala para o exército e à marinha ou
para a exportação. É possível que muitos desses trabalhadores manuais semi-
especializados chegassem ao ofício sem o treinamento é sem a socialização
típicos, particularmente quando provinham da agricultura” Neste período,
& recrutamento de aprendizes pode bem ter ocorrido sobretudo entre os
pobres do meio rural. Na Europa, entretanto, o múcleo de sapateiros for-
mados por aprendizagem, em torno do qual esta força de trabalho semi-
especializada se desenvolveu, era significativo. Isto é sugerido até para ope-
rários fabris, no manual de fabricação de calçados de ]. B. Leno (um radical); e
com certeza em Erfurt, um dos principais centros alemães de produção fa-
beil mecanizada, um terço de uma amostragem de 193 trabalhadores tinha
aprendido o ofício, é a metade desses consistia em filhos de sapateiros.” Isto
não é surpreendente, uma vez que, exccruando-se os Estados Unidos, e a
Grã-Bretanha um pouco mais tarde, nenhuma inovação récnica significativa,
além da pequena máquina de costura (que se disseminou entre meados da
década de 1850 e início da de 1870), ocorreu até o final do século x1x:”
O terceiro ponto é que a pressão dos números € a proliferação da
mánufarura subcontrolada (à qual os artífices respeitáveis se referiam como
trabalho “vil” ou “lixo”) solapavam a independência do ofício e também
xavam os preços, Uma investigação sobre o emprego em Marselha na
década de 1840 revelou que os sapateiros eram o maior grupo ocupacional,
mas também o mais mal pago. Eles ganhavam por dia em média apenas três
francos, e na média anual seiscentos francos, O que os situava quanto a
ss ERIC HOBSBAWM
A fome nos atrela a sua negra carroça: pois nossos ganhos são tão redu-
zidos. Em troca de pão efarrapos trabalhamos até altas horas da noite.
Os meus filhos, amontoados a esmo em lençóis gastíssimos, exauriram
o seio esquelético de sua mãe, Comemos à semente do cereal que de-
veria produzir o alimento para os mais novos. 0
O sapateiro inglês John Brant atribuía sua participação na conspiração
de Cato Street aos baixos salários e à consegiente perda de independência.
Sua declaração sugere que cle tentou atingir de volta os que estavam no
poder, afirmando sua capacidade de pensar e agir com independência:
Por seu esforço, cle tinha sido capaz de ganhar por volta de 3 ou 4 libras
por semana, e, enquanto esses ganhos foram possíveis, ele nunca se
envolveu com a política; mas quando percebeu que sua renda mensal
estava reduzida a 10 shilings, começou a olhar em volta ... E o que cle
viu? Ora, homens no poder, que se reuniam para deliberar como po-
deriam esfaimar e saquear o pais ... Ele sc uniu à conspiração pelo bem
público. 1º?
bros, (Ver quadro.) O sindicato dos sapateiros, apesar de como sempre ter
iniciado sua organização muito cedo, foi declinando na classificação segun-
do o tamanho, de oitavo em 1892, para nono em 1899 « décimo-segundo
no período de 1905-1912. No Partido Comunista Alemão, sua represen-
tação após 1918 era desprezível, pois, entre 504 dirigentes, somente sete
eram sapateiros formados por aprendizagem, Entre os 107 ofícios especiali-
zados (com à omissão dos ofícios metalúrgicos, que predominavam de lon-
ge), estavam muito atrás dos tipógrafos (17) e dos madeireiros (29), em-
hora no mesmo nível que os alfaiates (7), os pedreiros (7) e os encanadores
(8). Com exceção de Willi Múnzenberg, O grande propagandista, trabal-
hador não-qualificado e sem aprendizagem numa fábrica de sapatos, o Par-
tido Comunista Alemão não tinha nenhum sapateiro eminente1º”
Eleição de 1912 para o Reichstag: grupos profissionais com
percentagem de candidatos c de deputados”
|Grupo profissional o Candidatos | Deputados
Metalúrgicos E as
Trabalhadores de madei E E
rabalhadores de construção 128 36
ipógratos 68 z3
Sapateiros E + 1
Tumageiros A 4
Alfaiates 27 +
Trabalhadores céxceis os
* Nora fônce; W H. Sehróder, Die Soialsrukrur der sozialdemokracischen Reichsag-
skandidaten, 1898-1912”, in Herkunft und Mandar: Heicrige cur Eubrungsproblemacik im der
Arbeierbemegnen, Erankfr Colônia, 1976, pp. 72:96. Ladosos valores são percentuais,
Na França, Os sapateiros eram visivelmente super-representados no Par-
tido Operário Francês na década de 1890, em comparação com sua partici-
pação na população ativa (3,6%), com 5,3% dos membros do partido e
7,7% dos candidatos (de 1894 a 1897), mas dados locais não demonstram
que eles tivessem predomínio desmedido a não ser em umas poucas locali-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS os
Notas
e George Rudé, Captain Swing, Londres, 1969,p. 181. (Trad. port., Capisão Swing,
Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1982]; Jacques Rougerie, “Composition d'une popuia-
tion insurgée: Pevemple de la Comunne”, Le Moaement Social, n.º 48, 1964, p. 42:
Theodore Zeldin, France, 1848-1945, 2 vos, Oxford, 1973, vol. 1, p. 214.
4. Jean-Pierre Ager, Les Greer sn la one de Jul, 1830-1847, Genebra, 1954:
David Pinkney, “The Crowd in the French Revolution of 18307, American Historical
Review. n.º 70, 1968, pp. 117; David Jones, Chartim and the Charrits, Londres,
1975, pp. 30:2; D. J. Goodway; Londom Chartim 1838-1848, Cambridge, 1982, em
que O autor demonstra que a participação proporcional dos sapateiros no cartismo
londrino foi maior do que a de qualquer outra ocupação de porte (com mais de três
mil membros), excetuando os pedreiros; e George Rudé, The Cri in te French
Revulution, Oxford, 1959. Apêndice4.
5. Georges Duveaa, La Vi onriêrr em France ss le Sezond Empire. 7 ed, 1946, p. 75.
6. Jacques Rougerie, Bar libr, Pats, 1971,p. 263.
7. Reinhold Reith. Zur biggrapisichen Dimension vom “Hocivemar und Aufrubr: Versuch
imer hitomischen Protentamalyse am eipil des Aprilauszanas L$48 im Konstane” p. 33 €
58. p. dtess, (Tese de mestrado, Universidade de Konstana, 1981)
8. Edgard Rodrigues, Sacilimo e sindicalismo no Bnusil, 1675-1913, Rio de Janeiro, 1969.
pp: 73,208
9.R, Hoppe é J. Kuczynski, “Eine Berufs-bzw, auch Klassen-und Schichrenanalyse der
Maregetallenen 1848 in Berlin”, Jabrbuch fr Wirtschaftgese, 1964/TV, pp. 20-76.
10. Yves Lequin, Les Ouniers de la régio Ivommais, 1848-1014, 2 vols., Ton, 1977, vol
2,p.281
11. Karl Obeemann, Zur Geschichre des Bundes der Kommuniten, Berlim Oriental, 1955,
ps.
12. Paul Voige, “Das devsche Handiwcre nach den Beruiizihlungen von 1882 und 1895”,
in Untermchnongen úber dic Lage des Hanabverks in Deutschland, vol. 9 (Schriften des
Vereins fit Socialpolitk, n.º 70, Leipcig. 1897); ]. H. Clapham, Economic History of
“Modera Britain, 3 vols, Cambridge. 1952, vol. 2,p. 43,
13, Hobsbawm Rude, Capraim Siving. pp. 181-2
14. Thid,, pp. 218, 246
15, Keith Brooker, “Lhe Northampton Shoemakers” Reaction to Industriaisarion: Some
Thoughss”, Noribamptonshire Past and Present, n.º 6, 1980, p. 155,
16. Amostragem realizada na Librairie A. Faure, 15 rue du Val du Grace, catálogo 5,
Livros antigos € modernos. items 262-224; verificada com Jean Maitron (org), 1
Hair Wma plbigue die moncemenz emeier fremímis Pr. À, 1789-1864; 3 vols, Pari
1964-1966,
17. David M. Gordon, Merchants and Capitalóm: Indusrrializarion and Provêncial Iobirs
at Reims and Ss. Etienne under the Seconã Republic and Second Empire (resc de dou-
torado, Universidade de Brown, 1978), p. 67.
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 7
18; Wiliam Sewel Jc, The Seructur of she Working Class of Marseille in she Middle of she
Nineteenths Century (tese de doutorado, Universidade da Califórnia, Berkeley 1971),
p-299,
19. “De Passociation des ourriêres de tuas kes corps détar”, reimpresso em Alain Faure e
Jacques Ranciêre (orgs.), La Itarole onoizre, 1830-1851, Paris, 1976, pp. 159-68,
20. Gian Maria Bravo, Les Socinhises avant Mar, 2 vols, Paris, 1970, vol. 2, p. 221
21. Alfred E Young, “George Rober livelves Hewes, 1742-1840: À Boston Shoemaker
and the Memory of the American Revotucion”, Wiliam and Mary Quarteriy.
22. Maurice Garden, Lyom er des Iyomnais au xxrê sto, Paris, 1970. pp, 244 € 86, Um
indice de alfabetização acima da média é observado entre os sapatciros rurais em
David Cressy; Literacy ami the Social Onder: Rendo and Wing in Tador and Sruave
England, Cambridge, 1981, pp. 130-6; porém, indices médios ou abaixo da média
classificam os “sapateiros” como inferiores tanto em Londres quanto no campo. Por
várias razões, os indicadores londrino de Cressy sã mais problemáticus que os uris
28, immanuel Le Roy Ladurie, Les Payeans di Languedoc, 2 vols. Paris, 1966, vol 1, pp.
349.51
24, Peter Burke, Pipular Culrure im Earfy Mader Esopo, Londres, 1978, pp. 38-9,
25, Jean Maitron, Le Monenemens anarchiste em Erance, 2 vols. Paris, 19) ol 1, p; 137
26. Por exemplo, Anónimo, Cri Ameidotes: Compriina Interesting Notices of Shwemakess
mo have been Distinguished for Genius, Envecpeise or Ecoenrriciy, ShefTicid e Londres,
1827; John Prince. Wivath jor Sr. Crispin: Being Shecls of Eminent Sboemakers, Bos-
ton, Mass, 1848; Anônimo, Cripin: The Deliglfid, Princely anel Ensevcainin Hisory
af the Genele Craft, Londres. 1750 Willian Edvard Winks. Lives of Ilustrious Shoe-
makers, Londres, 1883; Thomas Wright. The Romance of she Shoe, Londres, 19225
Anônimo, Lives 9º Disxingusied Shoemakers, Portland, Maine, 1849: Joseph Sparkes
Hall The Book of the Eee, Nova York, 1847.
27. “Ne leistem, drãt und pech dor Schumacher sol bicibem und die jeleirten leut lssen
die búicher schreiben”, “predigender Schuster macht schelechre Schuhe”: Deutiches
Spmelmôrter-] exicom. 5 vols. Aakem, 1963, vol. 4, cols. 398.9. À injustiça de tais
pronérbios indignou a nal pomio us compiladores desta enciclopédia do século 1x,
que acrescentaram uma nota de pe de página citando dois sapareiros altamente in-
telectualizados que também manufaruravam excelentes sapatos (col, 399)
28; Charles Bradiaugi, O pionciro do ateísmo, foi eleito para o Parlamento britânico por
Northampoon, um eleitorado de sapteiros. Para v “Schasterkomplore” dos sapareiros.
de Viena acusados de ateísmo em 1794, ver E. Wanigermann, “Jasepihinismus und
Katholischer Glaube”, in E. Kovaes (org. 1. Kasbolsche cufklamng so Josepbinimus
Viena, 1979, pp. 339-40. Um dos acusados, inspirado pelos serinões de um pregador
pela refurma católica, numa tipica atitude da sapateiro, “comprou uma Bíblia velha,
Jeura para mim. comparou às ... passagens citadas nos sermões de Wiser ... com o
próprio texto da Bíblia, e daí eu comecei a duvidar de minha religião”.
es ERIC HOBSBAWM
2” Karl Flanner,
Die Revolution von 1848 in Wiener Neustads, Viena, 1978, p. 181
30, Eugenia W Herbert, The Artis and Social Reform: France amd Belgium, 1885-1898,
New Haven, Conn., 1961, pp. 14 € 5%; para à vingança do sapateiro contra Apekes,
que foi o primeiro a sugerir 40 sapateiro que se limitasse à seu ofício e se abstivesse
de fazer crítica de arte, cf. a enorme influência (por Grave) do anarquismo nos pin-
tores pós-impressionistas: ibid. pp: 184 es
al Samuel Smiles, Mem ofImvention ana Industry, Londres, 1884. cap. 12,
32 Ver Anônimo. Cripin Anecdote, p. 144; cf. também Hobsbawm e Rudé, Caprain
Soing, pp. 63-70.
Crispin Amectads, p, 43; Winks, Lives of Tussratios Shoemakers p 232,
John Brown, Sig Tears? Glemnings fom Lifºs Harem: A Genuine Aurobiograpão,
Cambridge, 1858, p. 239, apud Nicholas Mansfield. “Joba Brown: A Shoemaker
Place in London”, Himory Mbrksbop, nº 8, 1979, p, 135
Rarberer, Le Tremailen France, vols, pp. 62:3,
Wright, Romance of Shoe. p. 219.
Ibid,, p. 307
Paul Lacroix, Alphonse Duchesne e Ferdinand Seré, Histose des condomniers es des
artisams domla profisiom se vattncheà la cordonmenie, Paris, 1852, pp. 116-7,
Shakespeare, Julius Caesar, L à; Dekker, bt Shoemaker; Holiday, vol. 4. 48-76 A
citação pertence à Inquirição do Abade Cerne de 1594 (Brit. Tib. Harician ms. 6849,
fol. 183.90), em G. B. Harrison (org), Wilobi His Avisa, Londres, 1926, apêndice
3. p. 264. Somos gratos a Michacl Hunter por este tão antigo exemplo de sapateiros.
radicais ingleses.
Crispim Ameztades, p, 150,
Weight, Romance of the Shoe, p. 109,
Toid.,po 4
E E Thompson, Tr Making of the English Working Class, Londres, 1963, pp. 183-4.
[Trad. pore,A firmação da clase operária inglesa, Rio de Janeiro, Paz € Terra, 1987.)
Crispim Amecdore, p. 126,
[aeroix, Diuchesne e Ser, Elioire des Condonnios, pp. 206-7.
Ibid..p; 188.
Barteret, Le sravail em Trance, vol. 5, pp. 645,
Wighe, Romance of he Shoe, p. 46: Hall. Bos of the Fer, pp: 196-7. Apesar da suposição
destes autores, não ficou estabelecida nenhuma associação entre o oficio de sapateiro
ca de encadernador. Em Londres, filhos de sapateiros podem estar sub-representados
no oficio no período entre 1600 c 1815. Embora à encadernação fosse não raras
vezes combinada à alguma outra ocupação — como a do alfiate-comerciante, comer-
ciame de tecidos, byrbeiro, pedreiro, vidraceiro, tecelão, tintureiro, agulheteiro « fas
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS “9
96. P It. Mounicld, “Lhe Eoonwcar Industry of the Fast Midlands”, East Midlande Geo-
urapher, a 22, 1965, pp. 293-306.
97. Para à simiação em Lima, Massachusetts, ver Alan Davele: Clas ama Communin The
Industrial Revolution im Lym, Cambridge, Mass., 1976.
98, James Devtio, Tie Guide to Trade: The Shoemaker, 2 vols. Londres, 1839, é a melhor
manual sobre as técnicas de fabricação de sapatos antes da mecanização. O autor, um
radical ativista efigura literária sem importância (contribuiu para o Lomalom Journalde
Leigh Hume), era0 melhor artífice de seu oficio em Londres: Goodwas: London Char-
tim, p. 282. Para o final de século XIX, ver John Bedford Leno, The Art af Boo: ant
Shoe-makim vit à Description of the Mou Approven Machinery Emploved, Landes,
1885. Leno, embora fosse tipógrafo por ofício é poetastro-declamador como pas.
satempe, esteve durante um lungo período associado ao ofício por ser propriciário
do
periódico SF. Grim; ver seu The Afiermarh: With Autobiograpio of the Aushor, Lon-
dres, 1892. Para um enfoque mais recente, ver R, A. Church, “Labour Supply and
Innovation, 1800-1860: The Boer and Shoe Industry”, Business Fito, n.º 12,
1970. Para Erfun, ver Warteroch, “Die Erturtor Schuharbeiterschaft”, especialmente
ppiI3s,
99. Barber, Le Thai on Erancr, vol. 5, pp- 71, 85, 116, 163; mile Levassens, Histoire
de classes oseoiêres orde Pindustre om France de 1789 à 1870, 2 vol, Paris, 1940, vol. 2,
p. 567; Cristopher Jobuson. “Comnunism and the Working Class befre Marx: “The
Iarian Experience”. American Histoncal Review, n.º 76, 1971, p. 66: David Landes,
The Unhonend Promenhcus, Londres, 1969, pp. 294-6; Direetiun du cravail, Les Asocia-
tioms professionelies osoriêres, 4 vol, Paris, 1894-1904, vol. 2, pp. 11-87; Yeo and
Thompson (org), The Unknoen Mabe, pp. 28-79,
100, Sewel, he Shoomaters of Manile, p. 217.
101. Charles Pony “Ta Chanson du cordonnier”, in La Clans de chaque métier, Paris,
1850, pp: S0-
102, Lhompson, Zhr Making of ab English Wirkina Class, p. 704 [Trad port. A formação
da clase operária inglesa, Rã de Janeiro, Paz é Terra, 1987.
103. Citado em Faure e Ranciére,La Parole otemiêre. 1830-1851, p. 161
104. Garth Christian (org), James Hawber' Journal: A Victorian Poacher, Ontord. 1978,
pp: 15.6. Ver também Mansfield, “Toha Rrawn: À Shoemaker's Place is London”,
que cita as palavras de John Browa em 1811: Assim que me estabeleci num local
regular de trabalho, foi necessário que eu me associasse ao sindicato ou à assembléia
de oficina. que é um acurdo para à manutençãode pregos”. pp. 130-1
105. “The Reminiscences of Thomas Dunning (1813-1894) and the Nanrwich Shocma
Ker's Case of 1834", in WE HE. Chalomem (org) fhauns. Lanes. and Cheshire Anrig Soc,
nº'59, 1947, p. 98,
106. Ibid.
z ERIC HORSBAWM
107. Com base nos dados biográficos de Hermann Weber, Die Handlung des deutschen
Komemunims, 2 vois., Frankfurt, 1969, vol. 2,
108. Claude Willard, Le Momement socialize em France, 1893-1905: les Guesdises, Paris,
1965, especialmenae pp. 385-7. Ver também “Lony Jud, Soiadims im Limence, 1871-1914,
Cambridge, 1979. pp. 73, 112.
109, Parei Communiste Hrançais, Des Français em qui la France peu avoir confiance, 2. cá,
Paris, 1945; Maurice Diuvenger (org; Paris polciguas es classes sociales em France, Paris,
1955, pp 3024.
110. Com base nos dados de Jean Maitron e Georges Haupe (org |, Dicrionmaire bggra-
pbgue de moserement oscrierinvermational: 'Autrche. Paris, 1971
111. Tnformação pesscalde colegas húngaros. Ver M. K. Driewanowski, “Social Demo-
crats Versus “Social Patriots”; “The Origins of he Splic in the Marxist Movement in
Poland”, Americam Slavi ana East European Revic, n.º 10, 1951,p. 18.
112. Com base em Joyce M. Bellamy e John Saville (orgs 1, Dicrionary uf Labour Biograpiy,
9 vols, Londres, 1994
113. Maitron, Le Moncemont amarei em Eramie, vo 1, p 131.
Capítulo 4
TRADIÇÕES OPERÁRIAS
sido adotada pelas pessoas comuns: foi uma revolução puritana. Ao con-
trário da França, portanto, a religião não estava identificada principalmente
com o status quo. Além do mais, os hábitos custam a morrer, Na década de
1890, encontramos um exemplo quase puro do enfoque medieval ou puri-
tano as Igrejas Operárias. John Trevor, que as fundon, cra um desajustado
surgido de uma daquelas seitas pequenas e superpicdosas da classe operária
“ou dos puritanos rancorosos da classe média inferior, que estavam sempre se
separando para organizar comunidades mais devotas. Como outros movi-
mentos intelecruais de meados da era vitoriana, a dissidência estava rachan-
do lentamente sob o impacto das mudanças políticas « sociais após 1870, e,
durante à Grande Depressão, Trevor foi atraído para o movimento operário,
após várias crises de consciência e uma carreira espiritual um tanto cheia de
vicissitudes. Incapaz de conceber um novo movimento político que não
tivesse também sua expressão religiosa, cle transformou o movimento ope
rário numa religião. Ele não cra um socialista cristão; acreditava que o mo-
vimento operário fosse Deus e constituiu o seu aparelho de igrejas, escolas
dominicais, hinos ctc. em torno disso. É claro que os sombrios artesãos
dissidentes de Yorkshire e Lancashire não seguiram a sua teologia peculiar,
que pode ser melhor descrita como um verdadeiro unitarismo etéreo. Con-
tudo, eles tinham sido criados num ambiente no qual o templo cra o centro
da sua vida social « espiritual, A Grande Depressão (e coisas tais como a
tarifa McKinley de 1891) tornara-os cada vez. mais conscientes da divisão
dos interesses dentro dos templos entre irmãos patrões c operários; e nada
cra mais natural do que supor que a divisão política devesse tomar a forma
de uma secessão no templo, da mesma forma como antes a divisão entre
wesleyanos e metodistas primitivos havia sido entre grupos politicamente
radicais e conservadores. Assim, as Igrejas Operárias, com sua parafernália
familiar de hinos, escolas dominicais, bandas e coros do templo, clubes dor-
cas* exe, surgiram no Norte, Na verdade, cles estavam a meio caminho
entre o liberal-radicalismo político ortodoxo e o Partido Trabalhista Inde-
pendente, com o qual as igrejas logo se fundiram.!* É evidente que cste
fenômeno teria sido impossível num país em que tradições pré-seculares da
política não houvessem criado raízes particularmente profundas.
* De Porca. mulher que passava à vida fazendo roupas para os pobres Ldros das Apóstolos 1x,
40); sociedade de mulheres que se reúnem com o mesmo objetivo. N.E
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS sm
interesse comum de todas as classes “do povo” contra algum inimigo co-
mum externo, como a “Reação” ou o “Clericalismo”, Mas o próprio pro-
cesso de aparar suas arestas só podia scr conseguido na prática glorificando
a Revolução em teoria, O conservador genuíno tinha, mais cedo ou mais
tarde, que romper completamente com ele. Mas a tradição de dissidência,
uma vez que cra religiosa, não estava ligada a qualquer programa ou regis-
tro especial, embora associada há muito tempo a exigências políticas par-
ticulares. A falácia da afirmação moderna de que o “socialismo inglés deriva
de Wesley « não de Mart” está precisamente nisto. Desde que o socialismo
(ou, quanto à isso, O liberalismo radical) fosse uma crítica específica à um
sistema económico particular, e um conjunto de propostas de mudança, cle
provinha das mesmas fontes seculares que 6 marxismo. E desde que fosse
simplesmente uma maneira apaixonada de apresentar os fatos da pobreza,
não tinha nenhuma ligação intrínseca com qualquer doutrina política par-
ticular. Em qualquer caso, cra necessária apenas uma pequena mudança de
ênfase reológica para transformar o dissidente ativamente revolucionário num.
quietista (tanto os anabatistas como os quacres tinham feito isso no pas-
sado), ou permitir que o esquerdista militante se transformasse num mode-
rado, A diferença entre à elasticidade das duas tradições pode ser ilustrada
pelos casos individuais: a mudança de John Burns de agitador revolucionário
para ministro liberal significa inevitavelmente um rompimento com as suas
crenças marxistas anteriores. Por outro lado, o sr. Love, dono da mina de
Brancepeth, um homem de sindicato em sua juventude, que destruiu a Asso-
cação de Mineiros de Durham em 1863-4, póde terminar sua vida como tinha
começado, isto é, como um metodista primitivo ativo« picdoso.!s
Um segundo ponto segue-se ao primeiro. Uma tradição revolucionária
é, por sua própria existência, um constante chamado para a ação, ou de
simpatia para com a ação. O Levante de Newport de 1839 foi, numcri-
camente falando, um caso muito mais sério do que o Levante da Páscoa de
Dublin de 1916, embora dirigido de maneira muito pior: contudo o seu
efeito nos dez anos seguintes foi muito menor do que o da aventura irlan-
desa, é o seu impacto na tradição popular inglesa, ou mesmo galesa, incom-
paravelmente menor. Um ajustou-se num quadro no qual o orgulho do
lugar tinha sido reservado há muito tempo para “o rebelde”, o outro não.
Portanto, um transformou-se facilmente em inspiração ou mito, o ou-
tro simplesmente em um obscuro incidente histórico. A diferença é de im-
portância considerável, porque não é a disposição de usar a violência, mas
” ERIC HOBSBAWM
ner que se tornou o líder mais capaz que os mineiros ingleses jamais ti
veram, embora fosse um ornamento do seu partido, não era em qualquer
sentido significativo um líder dele =?
Da mesma forma, é difícil pensar em qualquer política bem-sucedida
ou sequer seriamente tentada na Inglaterra, embora sejam Comuns às greves
de apoio e solidariedade (que entram nos termos mais estreitos de referên-
cia do sindicalismo). A Greve Geral de 1926 pertence a esta classe, É difícil
conceber um equivalente inglês para as greves gerais a favor da reforma
eleitoral que os movimentos dirigidos pelos marxistas lideraram no conti-
mente, entre 1890 e 1914, muitas vezes com bastante sucesso, como na
Bélgica e na Suécia. As greves políticas não são inconcebíveis na Inglaterra,
especialmente em épocas de excitação intensa e quase revolucionária, como
em 1920, quando se tentou uma contra à intervenção inglesa na guerra russo-
polonesa. Contudo, à existência de uma tradição política quase certamente as
favorece mais, apesar de o objetivo delas (excero durante épocas de revolução)
ser sempre mais limitado do que seus defensores têm suposto muitas vezes.
Terceiro, e mais importante, uma tradição revolucionária tem por de-
finição a transferência do poder. Ela pode fizer isso com tanta ineficiência,
como entre os anarquistas, que não precisa ser levada a sério. Mas sua possi-
bilidade é sempre explícita. O historiador do cartismo, por exemplo, mal
pode deixar de ficar triste pela tibieza extraordinária deste que é o maior de
tados os movimentos de massa do operariado inglés; e, o que é mais, pela
equanimidade com que a classe dominante inglesa o considerou, sempre
que não estava assustada pela revolução estrangeira. Esta cquanimidade era
justificada. Os cartistas não tinham a menor idéia do que fazer se a cam-
panha deles de recolher assinaturas para uma petição não conseguisse con-
vencer o Parlamento, como inevitavelmente não o conseguiria. Porque até à
proposta de uma greve geral (“més sagrado”), como seus adversários apon-
taram, foi simplesmente uma outra maneira de expressar a incapacidade de
pensar em alguma coisa a fazer: “Será que vamos soltar centenas de milhares
de homens desesperados e esfomeados sobre a sociedade sem ter qualquer
objetivo específico em vista ou qualquer plano de ação estabelecido, mas
confiando num capítulo de acidentes quanto a quais serão as consegiiências?
Oponho-me a fixar um dia para O feriado até que tenhamos melhor
evidência, primeiro quanto à praticabilidade da coisa, ou à probabilidade
dela scr levada a efeito; e em seguida quanto à mancira pcla qual cla irá ser
empregada”. *
Além do mais, quando algo como uma greve geral espontânea ocorreu
no verão de 1842, Os cartistas foram incapazes de fazer qualquer uso dela, a
qual foi menos efetiva do que o tumulto espontâneo dos trabalhadores agri-
colas em 1830, que, de fato, em seu objetivo limitado de deter o progresso
de mecanização nas fazendas, foi em grande parte bem-sucedido. E o mo-
tivo para à ineficácia do cartismo, pelo menos em parte, foi devido à pouca
familiaridade dos ingleses com à própria idéia da insurreição, da organi-
zação necessária para à insurreição e da transferência do poder.
Inversamente, o movimento francês de Resistência durante à Segunda
Guerra Mundial não foi deliberadamente uma tentativa de tomar o poder,
em todo O caso por parte dos comunistas que, como de hábito, consti-
ruíram de longe o seu contingente mais importante « ativo. O argumento
de que assim cra, apresentado como uma desculpa para fins de propaganda
após 1945 é durante a guerra fria, é uma mentira jornalística e tem sido
conclusivamente refutado.? Nunca houve qualquer plausibilidade ou cvi-
dência de apoiá-lo, exceto concebivelmente as atividades independentes de
alguns grupos locais que ou foram contra a política central, ou não tinham
consciência dela, Contudo, à questão é que nas condições do movimento
francês era necessário um esforço especial para impedir à Resistência de fazer
o que poderia ter parecido ser a forma lógica (embora não necessariamente
à mais aconselhável) de um lance para tomar o poder; estes grupos de Re-
sistência, deixados aos seus próprios mecanismos, bem podiam ter seguido
scus narizes nas tentativas locais de assumir o poder2º É extremamente im-
provável que qualquer movimento inglês, embora militante e radical, fizesse
isso espontaneamente
Até que ponto essas diferenças de tradição são importantes na prática,
isso deve permanecer umã especulação. Evidentemente elas não são decisi-
vas. Afetam mais 0esto das atividades de um movimento do que a natureza
delas ou dele, Apesar disso, o estilo pode ser de interesse mais do que super-
ficial, e pode bem haver ocasiões em que cle é o homem; ou melhor, o
movimento. Obviamente raras vezes isto será assim quando — por exemplo
— os movimentos se conformam com padrões rigidamente determinados
de organização, ideologia e comportamento, como entre os partidos comu-
nistas. No entanto, todos aqueles com conhecimento dos movimentos co-
munistas sabem que à extrema uniformidade internacional que lhes foi im-
posta desde meados da década de 1920 em diante (“bolchevização”) não
impediu as diferenças surpreendentes na atmosfera e estilo nacional dos co-
ss ERIC HOBSRAWM
fase em que o Partido Comunista pôs suas energias por trás de um apelo
antinuclear, é portanto recolheu um grande número de assinaturas. Os in-
gleses não tiveram nenhuma organização política importante disposta ou
capaz de mobilizar à opinião pública contra a guerra nuclear. (A ligação
intima entre o “Movimento pela Paz Mundial” e os comunistas provavel-
mente adiou à emergência de um movimento pacifista de massa de base
ampla na Inglaterra até o fim da pior histeria da guerra fria.) Por outro
lado, um grupo não oficial de pessoas póde improvisar a implicitamente
pacifista Campanha pelo Desarmamento Nuclcar, que se tornou não so-
mente o movimento antinuclear mais maciço do mundo, com a possível
exceção daquele dos japoneses, e um modelo (menos bem-sucedido) para os
imitadores estrangeiros, como uma força importante na política inglesa fora
dos seus termos estreitos de referência. Porque foi em grande parte visando
à “paz” que a esquerda dentro do movimento operário sé reuniu para der-
rubar 0 longo domínio de uma liderança de direita do partido.
Notas
G. Duveau, La Fio uoribre vm Eranco seus e Second Empire, Paris, 1946, po 5
Ness Edwards, 1be History ofthe Sons Wales Mincrs, Londres, 1926, p. 3º.
3. E. Labrousse, Le Mouvemens omvrior et des idécs sociales em Eranco de 18] da fi de cr
sibee, Les Cones de la Sorbonne, 1949, fasc. TIT, pp R-4
4 WE Lexis, Gemerkoereine u. Unserneimererimende in Erankreich, cipeig; 1879, pp.
123.4,
Ibid, pp. 183-4.
6 Diiveau, La Vie outro, pp. 89-91
Mark Rucherfbrd, The Revolution à Timer Lú. Londres, 1887.
8 Reeditado em E. ]. Hobsbasem (ed). Labegr Timing Poins 1880-1900, Londres
1948,p. 89.
9.R. E Wearmouth, Some Winking-lass Movements of be Ninetcenah Century, Londres,
1948,p, 305
10.4 Zévaês. De PInrducrio du marsismeem Frames, Paris, 1947, pp. 116 € ss
11. Para à combinação da ação direta e da moderação extrema em Sheficld, 8, Poliard,
A Hisony of Labowr im Sheffield, Liverpool, 1959,
2. A. Rossi, Pliolugie di parsi compnise franvais, Paris, 1948, p. 317,
ERIC HORSBAWM
13. Sobre a crise no Partido Comunista francês, cf. L. Trotsky The Firsr Five Yeavs of che
Comiterm, Nova York, 1953, vol. 2, quase passe, mas especialmente pp. 153.5, 281-
2,321
1 CE K S Inglis, “The Labour Church Movement”, International Revic of Social
History 3 (195
15. Para esta € às passagens seguintes, ver 0 capírulo sobre as “Seitas Operárias” em meu
Primitive Rebels, Manchester, 1959.
16. CE R. Goer-Girey, La Ponséesrndicalefrançaie, Paris, 1948, pp. 96 ess
17. CE especialmente o “Discours prononcé le 12 aodr 1881 à la réunion électorale du
XXême arrondissement”, im Discos... de Léon Gambrira, ed. J. Reinach, Paris, 1895.
18.E. Walbourne, The Miner” Unims Of Novshumberiand and Durham, Cambridge,
1923, p: 115
19. Halév E, History of The English Prople im The Ninescenths Century, Londres, 1961,
vol. 1, pp. 148 s , Para a negociação coletiva pelo tumulto, ver acima, capítulo 2.
20. W Gallacher, Revolr um the Chle, Londres, 1936, cap. VO, para um relato autoerítico
por um dos “lideres da greve, nada mais; esquecemo-nos de que éramos lideres
revolucionários”.
21, Sesi nas eltições de 1882 da Junta Escolar de Londres, os candidatos sindicalistas
fexcexo quanto à um membro que já participava, tiveram um péssimo desempenho:
enquanto Helem Iavlor é Aveling, cujas ligações cram principalmente políticas ou
ideológicas, forum eleitos
22. Inversimente, na França, Pierre Semard, um puro sindicalista de origem, foi por
algum tempo secretário geral do Partido Comunista, é T.ton Mauvais (secretário da
tart em 1983) tornou-se secretário organizador do Tartido Comunista em 1947.
Chasles “illon, também com antecedentes principalmente sindicalistas na Grá-Bre-
tanha — mas combinado com a política municipal — toemonr-se à principal organizador
militar da Resistência comunista « ministro no gavemo de De Gaulle; como fez Lu-
cien Midol. Àlista pode ser prolongada.
23. CE EC. Mares. Publ Order in the Ape of rt Chareiss, Manchester, 1960.
24 William Carpenter em 1%e Carter, 21 jul. 1839.
25.4 ) Ricber Stalin and the French Communiso Paroy, 1941 > Nova York e Londres,
1962, pp. 142.55, discute a questão extensivamente.
26. Tdem, pp. 150-1
27. O exemplo aparente mais Óbvio do contrário, o caso Dreyfus, prova a questão. Seu
feito dentro do movimento operário foi dividir e não unir; porque contra a “reunião
dos políticos sucialisras em torno da causa da República ameaçada e um rappreche-
ment entre à maioria dos grupos socialistas” deve ser estabelecido o reforço de um
sindicalismo antipolítico (ver G. D. H. Cole, History of Socialist Theugit, Londres,
1956, vol. 3, p. 3431, para não mencionar a divisão causada pela aceitação de cargo
no gabinete por Millerand
Capítulo 5
vio. Em 1851 havia mais sapareiros do que mineiros de carvão, havia duas
vezes e méia mais alfaiates do que ferroviários, e mais trabalhadores na in-
dústria de seda do que empregados no comércio! A oficina do mundo ain-
da não era o que Clapham chamou de “o Estado-indústria”, fosse na escala,
padrão ou tecnologia e organização industrial. Se o Lancashire havia encon-
trado o seu padrão industrial, Birmingham, Shefficld, Tneside e South Wales
apenas começavam, ou estavam a ponto de encontrá-lo. Na verdade, a questão
está mais cm como 6 desenvolvimento e a expansão da nova economia
industrial afetou a classe operária — pois à afetaram, de várias maneiras
Em primeiro lugar, a classe operária aumentou muito em tamanho
absoluto e em concentração. Se a percentagem total dos empregados em
manufáruras, mineração e indústria quase não aumentou entre 1851 e 1911, €
praticamente nada até a década de 1890 — exceto a dos transportes —, ela
agora formava uma massa muito maior e mais concentrada * Em 1911,
havia 36 cidades com mais de 100 mil habitantes na Grá-Bretanha (que
abrangiam 44% da população tonal), ao passo que em 1851 havia dez (abran-
gendo 25%). Entre 1871 € 1911, a região ao longo do Mersey aumentou
em aproximadamente 75%, e a região ao longo do Tyne quase triplicou em
população. O tamanho médio dos estabelecimentos em que as pessoas tra-
balhavam também aumentou, embora talvez. não tenha sido alterado o pa-
drão geral de porte das indústrias, as quais haviam estabelecido seu padrão
antes. Sc, numa mina do Yorkshire e de Glamorgan-Monmouth, em 1912,
os 400 mineiros que formavam a força de trabalho média não represen-
tavam um número mais alto do que anteriormente, tornara-se porém co-
mum haver minas de tal porte; € os 220 operários do cotonifício médio de
1906, embora um número maior em 25% do que em 1871, quase não
transformaram à natureza desses estabelecimentos >
Por outro lado, não podemos deixar de nos surpreender com o surgi-
mento de grandes concentrações industriais onde antes não havia nenhuma.
Antes da década de 1850, não há nada que se possa comparar com a região
ao longo do “ye na época vitoriana, onde, já na década de 1860, se encon-
travam talvez uns doze estaleiros, cada um empregando um mínimo de
1500 homens. O Armstrongs já empregava de 6 a 7 mil nas suas instalações
de Elswick; mas, em 1914, este número chegaria a 20 mil, ou seja, aproxi-
madamente o triplo. O mesmo aconteceria com a Great Western Railway,
cm Swindon, que triplicou sua força de trabalho de 1875, atingindo, em
1914, 14 mil. Há uma diferença qualitativa entre a Barrow-in-Furness em
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 95
mais repentino clube de golfe: entre 1890 e 1895 havia 29 campos de golfe
no Yorkshire, mas antes de 1890 havia somente dois.'* No entanto, embora
a restruturação de cada uma das duas camadas sociais mais importantes da
Grã-Bretanha não possa ser separada uma da outra, este não é meu tema
aqui.
UI
1863-65 7” 30 1
1866 70 a
187175 30 6
1876-80 8 168
1881-85 o 584 U 14
1886-90
1896-99 158 as 48
102 ERIC HOBSBAWM
não gosta de admitir para si mesmo que não extá sendo treinado para
ser um mecânico, ou um construtor de navios ou um construtor de
Casas, mas para ser um operador de máquinas. Porém, logo chega à
desilusão para à maioria; e, uma vez que 6 homem se torna desiludido,
uma consequência muito natural é o rancor e o antagonismo ao sistema,
que cle considera a causa de tudo:
Os horizontes do trabalhador qualificado cram desta forma cada vez
mais limitados pelo universo do trabalho manual, e os dos trabalhadores
menos qualificados ainda mais. Apesar de suas diferenças, eles foram em-
purrados para uma classe única mediante sua exclusão do resto da sociedade.
Em terceiro lugar, os operários eram segregados pela divergência de
estilos de vida, “o que os operários fazem” c aquilo que as outras classes
fazem. Desta forma, parece claro que à medida que o futebol ganhou o
apoio das massas, rormou-se cada vez mais uma atividade proletária, tanto
para jogadores como para torcedores. Sem dúvida, foi primordialmente uma
atividade dos trabalhadores mais especializados ou mais respeitáveis, mas na
medida em que torcer para um time unia todos os que viviam em Black-
burn, ou Bolton, ou Sunderland, e na medida em que o futebol tornou-se o
tópico principal da conversa social no bar? uma espécie de língua tranca
das relações sociais entre os homens, ele se tornou parte do universo de
sodos Os Operários. Mais uma vez, o sistema de apostas peculiar à classe
operária, que aumentou nitidamente em enormes proporções a partir da
decada de 1880, cra de natureza visivelmente proletária, Foi, conforme sugere
MeKibbin, “a forma mais bem-sucedida de independência da classe operária.
na era moderna”? uma rede ilegal, mas quase totalmente honesta, de tran-
sações financeiras, que penctrava em cada rua da classe proletária e em cada
oficina, O mesmo tipo de distinção de classe separava, cada vez mais, o
jornal de domingo (dos quais o The News of the World cormou-se o tipo ideal,
até o futuro surgimento do jornal prolerário diário), tanto na imprensa de
qualidade, quanto na imprensa dirigida à nova baixa classe média, liderada
vortheliffe. E, como foi mencionado, ainda havia o boné,
Finalmente, à classe operária não foi tanto segregada, como, na ver-
dade, alienada da classe dominante, por dois desdobramentos que, junta-
mente com a queda real dos salários, Askwvith considerou responsáveis pela
agitação operária de 1910-1914. Ele declarou confidencialmente ao Minis-
tério que estes eram: 2 ostentação do luso por parte dos ricos, especial-
mente demonstrada pelo uso do automóvel, e o crescimento dos meios de
106 ERIC HOBSBAWM
cra com certeza contrapor que ela não cra somente Trabalhista: “Como os
homens não conseguem viver somente da pão, os eleitores mineiros da re-
gião de Rhondda são nacionalistas, são não-conformistas” etc. A retórica
política da era eduardiana “tinha de usar uma linguagem, e em especial à
palavra “Irabalhismo” para unir scus partidários dentro do padrão cstabe-
lecido da política”.*” do qual cles ameaçavam escapar. Nas regiões onde o
apelo à religião e à nacionalidade era suficiente, como na Irlanda do Norte é
na Liverpol de Salvidge, o conceito de classe não teve grande repercussão —
ou não obteve resultados significativos — na linguagem da política local.
Paradoxalmente, o conceito de classe entrou na política rrabalhista pela
porta dos fundos, Na medida em que se considerasse um homem como
“representante de uma classe”, cle seria, na verdade, encarado como “de fora
da arena da “política partidária”, mesmo se como indivíduo cle pudesse ser
do Partido Liberal, Tóri, ou, mais raramente, Socialista.” Isto significava
que socialistas e não-socialistas podiam muito bem colaborar no novo Par-
tido Trabalhista, ou que os mineiros, fortemente inseridos no Partido Libe-
tal, podiam se transferir para o “Irabalhista sem mudar seus pontos de vista
Também significava que trabalhadores ligados ao Partido Tóri, que não vo-
tariam em candidatos do Partido Liberal, podiam votar em candidatos tra-
balhistas. Isto foi comentado quando Will Crooks venceu a eleição em Wool-
wich em 1903, uma eleição tão desesperançosa que os liberais nem tinham
apresentado candidato para cla em 1900: € ela foi significativa no Tan
shire, onde os operários estavam politicamente divididos, muito embora, a
“política fabril* de Jovee já estivesse em rápido declínio na década de 1890
Foi à jazida de carvão do Lancashire que teve sua grande maioria afiliada ao
Partido Trabalhista c, em 1913, às sindicatos do algodão, declaradamente
não-radicais, votaram em ampla maioria a favor da coleta de uma tura po-
lítica, em todas as sedes com exceção do baluarte tóri da classe operária de
Oldham.*
Entretanto, é necessário perguntar se isto teria acontecido caso os interes-
ses comuns dos operários como classe já não parecessem, mesmo na política,
“mais importantes, ou pelo menos de maior relevância imediata, do que outras
lealdade. Isto só não ocorreu em Liverpool e Belfast. Muito em breve, uma
opção pelo Parrido Trabalhista iria se tornar uma opção contra os outros parti-
dos, é não uma forma de desvio da política partidária. Pode até ser que a
estagnação do voto trabalhista após 1906 tenha refletido a dificuldade de dar
este passo seguinte: a guerra de 1914 climinou essa dificuldade
108 ERIC HOBSRAWM
Notas
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11. A informação solre Richardson e Rus foi olxida em Jovee Bellamy e John Savile
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23. Herapauho Raúlvay Josrmal, 19 abr. 1884. p. 441.
24, Issa ocorreu de acordo com O General Prer and Harbous Act 0º 1867. Retarórios em
Pai. Papes, Lx, 1863; 1X, 1868: 1, 1865: LN, 1866; LX, 1874; LINA, 1875; INV,
1876: Li, 1877; ENVIA, 1878: NM. 1878-9; 1xv7, 1880: Lesour, TA8T; ti
1882; tun, 1883; LAN, 1884: 1x, 18845; Ls, 1886; Luv, 1887: NC, 1888 LUIS,
1889; 1391, 1890: 107%, 1890-1: 139, 1892, [34X, 1893-4; 1997, 1894; Laxavil,
1895, Lav, 1896; 1XNNU, 1898; EXTNVIL 1899, Ver cambém: Retiers fiom the
Auchoviis of Faris. Civiny desci ofmun exccnced wish she fas rm pe,
Aliminguishina pis dock. cuca. Papers 11 de 1883)
25, Os balneários à beira-mar foram classificados segundo seu “mari social” (para usar à
expressão adequadamente vituriána de HT. J. Perkin), de acordo com o conhecimento
geral (por exemplos Torquav ou Skegmess) « com as conclusões de inúmeros pesquisa-
dores, começando com E. W. Gilber, “The Growth of Inland and Seaside Health
Resores in England”, Scott Gepgrapisical Magazine, nº 53, 1939, Para uma biblio-
grafia, ver J. Wialvin. Leisure and Sociciy, 1430-/950, Londres, 1978; cf. também 1)
ns ERIC HOBSBAWM
Perkin, “The “Social Tone ot Victorian Seaside Resords in the Northwest”, em seu
The Structured Crowd Esays im Engl Social History: J, Lowerson e T. Myerscongh.,
Timeso Spas im Victorian England, Brigiton, 1977, pp. 30-44. Neste último período,
o investimento da classe média está provavelmente supervalorizado, em parte porque.
diversos grandes projetos de empresários foram recusados, em parte porque, com o
tempo, mesmo os bancários de classe média vieram a reconhecer. por vezes com.
relutância, O potencial financeiry do mercado de massa.
26. Para uma visão de um “gueto” da classe operária, ver €. E G. Mastermun, (he Hearr
of the Empire, Londres, 1901, pp. 123.
27.6. 5, Layard, “Family Budgers II”, Comil! Magazine ns 10, 1901, pp, 656 55
28. Board of Irade, Report om Cas af Living (Bart. Papers, CX. 1908), passim O trecho
citado está na p. 655
29, Ibid., po 406
30, R. Roberts, The Clasie Slem. Mnachester, 1971, p. 13.
31, G Askovith. Indusrial Problems and Disputes, Londres, 1920.p. 10.
32.8. 5 Rowneree, Pierry and Progress À Second Social Survey af Tork, Londres, 1941,
pp. 359-60
33, Ross MeKibbin “Working-Class Gambling in Britain, L880-1939º, Past and Preso
n.º 82, 1979,p. 172,
34, Citado em IL. Peling, Popular Potts amd Soiesy im Late Victirian Brisaim, Londres,
1968,p. 147.
35. Frod Reid, “Keir Iantie's Conversion to Socialism”, in Asa Briggs e Jonh Savio
(orgs), Esses és Labor History 1886-1923, Londres, 1971, p. 28.
36, Julian Amen in Janes L. Garvin (orgs, 1h L4f of oephr Chmberiain, Londres,
1932-1969. vol. 6,p. 791,
37. Stcud, “Lhe Language of Fdiwardiam Policies”, in D. Smith (org. 1, A People and a
Proletarino, Londres, 1980, p. 150.
38.P ]. Wallr, Democracy and Sestarianion: A Thltical amd Social Hissory of Livergoot
1868-1920, Liverpool, 1981, caps. 7, 13-15.
39. H. Poling e E Bealey. Lobour and Pois, 1900-1906, Londres, 1958,p. 158.
40, Ray Gregor the Miners and British Polis, 1906-1914, Londres, 1968,p. 185
“SL, Joseph L. Whie, The amis of Lie Union Milzanoy, Wesipem-Londres, 1978, pp. 1525.
42. Citado em David Marquand, Kanisty MacDomala. Londres, 1977, p. B4
43, Gregory; Miner, p. 175.
As. Tbid., p. 188.
45. Beatrice Webb, Diaries 1912-1924, Londres, 1952, p. 45
46, Jack Lawsoo, The Ma óm the Ca: The Life of Herbere Smith, Londres, 1941
Capítulo 6
VALORES VITORIANOS
Enero outras coisas, este eapúluo é soma od fiânebve no openário animal qua-
lificado. Faé apresentado omipinariamente como uma Conferência Tawnoy na
Sociedade de História Económica, em 1983, Ece 0 mutivo de, no final, conter
a referência a R. TIL Tiwncy (1880-1962), figura de importância fiunda-
mental na história econômica brizânica, no socialismo é na luta — para
mencionar o sérulo de dois de seus livres — em fimo da “Igualdade” e contra
a “Socicddade da ganância”.
tos de antigos filósofos crc. Esse desenho trazia a seguinte inscrição: “Êxito
à louvável competição” e “a prosperidade é a riqueza das nações devem-se à
ciência, à indústria e ao justo equilíbrio de todos os interesses?” Seria um
erro supor que tais sentimentos fossem incompatíveis com entrar em greve.
Vale a pena assinalar, como nos lembra Richard Price, que se 0 artesão
certamente precisava de organização coletiva, sua força coletiva não deve
ainda ser medida por sua participação em sindicatos. O pressuposto geral,
de Mayhew « outros, era de que “homens de sociedade” representavam
talvez 10% de todos os ofícios, salvo os excepcionais. As corporações po-
derosas, como a dos pedreiros, tinham talvez 15% do ofício organizado em
1871, carpinteiros e marceneiros talvez entre 11% € 12%, os estucadores
menos de 10%.* A Sociedade Unida dos Mecânicos, com talvez 40% em
1861, cra bastante excepcional. Se, ou quando, os “homens de sociedade”
em ofícios não-organizados atuaram como reguladores do progresso econó-
mico é hoje uma questão novamente em aberto. Em todo o caso, nos mo-
imentos por salário e horas de trabalho não havia uma distinção nítida
entre Os organizados é os não-organizados, visto que ambos tinham o mes-
mo interesse na restrição contra os trabalhados alheios ao ofício. Assim,
entre os pedreiros da mal organizada Portsmouth, onde não havia apren-
dizes contratados e 70% dos trabalhadores haviam acabado de “pegar” o
ofício, não havia no entanto trabalho por tarefa, e o progresso dos trabalha-
dores braçais, outrora frequente, rornara-se raro. Em Glasgow, onde os
Webbs encontraram relações insatisfatórias com os empregadores, nenhuma
regra de trabalho, nenhum limite de aprendizes « grande afastamento dos
sindicatos dominantes, não havia trabalho por tarefa e os trabalhadores bra-
çais não “se metiam”2” A verdade é que o artesanato não cra só o critério
de identidade e auto-estima de alguém, mas a garantia de sua renda. Os
melhores trabalhadores, disse um esmidante do desemprego no ramo da
construção civil de Londres, sempre conseguem trabalho. Na Sociedade
Unida dos Carpinteiros e Marceneiros tinha-se como líquido que *o éxito
da sociedade depende de que seus membros sejam invariavelmente trabalha-
dores comperentes*:2? c cles eram recrutados de acordo com isso e, de fito,
mantinham-se à altura. “Se um homem não vale 36 shillings por semana”,
disse com orgulho o Monthly Records da Sociedade Unida dos Mecânicos
(sendo em 1911, talvez já não com toda à sinceridade), “o sindicato tem
regras para lidar com a incompetência”? Do mesmo modo observou James
Iopkinson na década de 1830: “Nossa oficina cra uma oficina de operários
126 vm
nadores favorecidos. Tem-se assinalado também, quanto a isto, que era pe-
quena a atração exercida pelas funções de escritório sobre os filhos de ofi-
caais.º Isto se confirma pela análise de umas duzentas biografias do Dictionary
af Labour Biagrapln** (principalmente dos nascidos entre 1850 é 1900), o
qual mostra que 9 número de filhos de homens de ofício que se dirigiam à
funções de escritório ou semelhantes era não muito maior do que a metade
do número dos filhos de não-oficiais — embora o número de filhos de
não-oficiais não passasse de cerca de 75% do de oficiais. Em suma, o que
contava para o artesão vitoriano cra a aprendizagem na oficina mais do que na
escola, e um ofício era pelo menos tão desejável ou melhor do que qualquer
oura coisa efetivamente em oferta. De fato, o maior grupo isolado na amostra
do Dictionary (do qual excluí os mineiros, cuja auto-reprodução é avassala-
dora) consistia de cerca de 70 filhos de oficiais que ingressaram em ofícios,
a merade dos quais no mesmo ofício paterno. E sabemos que em Kentish
London (1873-5) de Crossick, 43% dos oficiais mecânicos eram filhos de
trabalhadores nesses oficios, « 64% provinham de pais qualificados em geral:
64% e 76% dos oficiais carpinteiros navais provinham, respecrivamente, de
famílias de carpinteiros navais, ou de famílias de oficiais qualificados; o
mesmo acontecia com 46% « 69%. respectivamente, dos oficiais na cons-
tração civil. Deixo em aberto à questão, como sugere Crossick, de se os
vínculos que ligam os artesãos entre si e os separam dos não-qualificados
realmente se estreiraram durante o período vitoriano.*”
Isso não significa que o ingresso nos ofícios fosse fechado. Dificil-
mente poderia ser, considerando a taxa de crescimento da força de trabalho,
para não falar nas poderosas empresas, como as ferrovias, que deliberada
mente se encarregavam do treinamento € promoção do trabalho não-qualifi-
cado, oferecendo um importante caminho para sua ascensão; este fato pode ser
bem observado na amostra do Dictimary. O que isso indica é a relativa
vantagem que O estraro dos oficiais tinha em se reproduzir, a importância,
no interior da força de trabalho qualificada, desse bloco de artesãos que se
auro-reproduziam; e, ainda, sua capacidade de assimilar ós não-artesãos que
se juntavam a suas fileiras, uma vez que o starus de artesão significava uma
longa e especializada formação de habilidades, cferuada essencialmente por
artesãos na oficina de trabalho. E, em 1906, segundo uma estimativa, cerca
de 18% dos homens com ocupação tendo por idade emtre 15 é 19 anos
ainda estavam classificados como aprendizes e alunos. Nas indústrias e
regiões dominadas pelos artesãos — a costa nordeste logo vem à mente —
E ERIC HOBSBAWM
em que os oficiais constituíam cada vez. mais uma minoria em meio à massa
dos operadores semiqualificados, E ao fazê-lo Os artesãos se tornaram mera-
mente um conjunto de operários entre muitos outros que estavam em si-
tuação de aplicar esse tipo de método, c não necessariamente os que po-
deriam realizar as melhores barganhas. Na Fleet Strect da década de 1970,
não só haviam desaparecido as diferenças qualitativas entre compositores e
“ajudantes de impressores”, mas também a associação dos tipógrafos da Asso-
ciação Nacional dos Gráficos não sc constituía necessariamente como uma
negociadora mais poderosa do que a SOGAI'82. Já não havia nada de especial
em ser um homem de ofício.
Alguns estavam evidentemente quase no fim da carreira, como os ma-
quinistas de trem do antigo sindicato de ofício ASLEt. Alguns sobreviviam,
porém num mundo que quase não compreendiam mais; que funcionava
pela quantidade de dinheiro que cra possível ganhar, c nada mais.” Esta é
uma ruptura fundamental da tradição dos ofícios, que, como tem sido atir-
imado, visavam a uma renda correspondente ao stars dos oficiais como grupo,
como ainda fazem os professores. Daí a persistente desconfiança histórica
do pagamento por peça: Um mecânico comunista, entrevistado por um
pesquisador, relembra seu espanto ao descobrir, durante à guerra em Coventry,
que os operários não apenas podiam elevar seus ganhos a níveis que pare-
ciam estratosféricos, como também que sc esperava que fizessem isso. E, de
fato, o famoso Acordo da Ferramentaria de Coventry refletiu esse curioso,
entrelaçamento de princípios antigos e novos, até sua derrocada na década
de 1970. Enquanto, no passado, os ganhos dos ferramenteiros haviam pro-
porcionado o gabarito de seu “diferencial” acima dos grupos menos favore-
cidos, esse diferencial cra dali em diante fixado em comparação com o nível
inteiramente indeterminado daquilo que os não-ferramenteiros que traba-
lhavam por tarefa podiam ganhar. O artesanato, O bom trabalho, já não era
à base essencial para se ganhar bem. Quando muito, constituía agora uma
responsabilidade, uma vez que ficava no caminho dos altíssimos salários que
podiam ser ganhos por aqueles operários que, deliberada e conscientemente,
colocavam a rapidez e o serviço “matado” à frente do trabalho perfeito.
Financeiramente, O comboy — este termo é de origem incerta, mas parece ter
surgido na construção civil durante O auge da mão-de-obra contratada por
jornada diária na década de 1960 — conseguia sair-se melhor do que o bom
oficial.
136 ERIC HORSBAWM
Notas
1.), Zeitin, “he Labor Strategies of British Engineering Ermpiovers, 1890-1922”, in
H.€. Gospel « C. Lirter (orgs), Management Strategy and Indusmrial Relatos: An
Hisuricaland Comparasive Survey (1983). Minha referênciaé à p- 20 da comunicação
ociginal à ssa Conference om Business and Labour History em 23 de março de
1981
2. Anônimo, Horking Men and Wômen bra Mónking Man, Londres, 1879, p. 102.
PESSOAS EXTRAORDINAIRIAS tg
3. Maldo R. Browne, HWhar's HWhar dy she Labor Mivemento a Dictionary of Labor Afjúios
ana Labor Terminology. Nova York, 1921, p. 497.
4 Bob Gilding, The Joumeymem Compess of Fast London, Oxford, 1971, pp. 56-7,
5.N.B. Dear, Industrial Trnininge Wich Special Refêvenco so the Condizions Pre
London, Londres, 1914, pp. 31-2.
é Tia,poa
7. Royal Comnision om Labent, Parl, Tapers, 1892 36/1 Grupei A, Q, 16064, Teste
smunho de T. Cronia, secretário da Trabalhadores de; Moinho Associados da Escócia
8. George How, “Trade Union, Appeen nricus and Techavcal Education”, Contempos
ray Revie 30, 1877, p. 854
9H. A. Clegg, À | Kilick é Res Adanis, Trade Union Ofces, Oxford, 1961,p. 30.
10.CE Alsscair Reid. “Ineoligont Arcisans ánd Arisooeraes Of Tabont: The Essavs of
Lhomas Weight”, dn Jay Winter (ong, The Hôriking Class im Mader Eri Hiro
desen in Homen (f Hevay Being, Cambridge, 183, pp. 175-6
11/05 registros dá instituição estão preservados no Birbeck College, Universidade de
Londres, do qual agradeço O acesso que me foi permitido.
12. Dearie, Industrial Training. pp. 566-7.
13 “Report of the Commiteee on the Pedition of che Wacchmakers, 18177, citado in À,
É Blade PA, Broa é RLL Eneney (orgs). Engl Ecomamic Hinor Seleer Doca
meses, Londres, 1914, pp. 588.90,
14. A. Kidd, Hist of he Vin Plate Winbiss únl Shoet Mosal Wivkeis and Brasiers Soieres.
Londres, 1949, p. 28.
15, Para uma extensa discussão a respeito, cf. Andreas Griessinger, Das sombnlicho Kapital
der Eres Sercikbewegungem und holekrives Bewusseseim desscher Frandverypeieto im
18. Jabonhundess, Berlin, 1981
16, lorwerth Prothero, cirtans and Plíico im Eariy Nonereençh Censury London: Job Gasr
amá hs Times, Folkestone, 1979, pp. 27:8,
17. Thiuinias Weight, Some 1Inbits of cho Minking Cinstes. 1867, p. 102. Ver também o
relato de FW Galton in S- é 8. Webb History vP Irado Unionimo, 1894, pp. 431-2.€,
com relação à importância dos rituais ligadas 2a local de trabalho, Jobm Dimiop,
Artificial anel Company Drinting Usages ofsbe United Kingdom, 7. cd, 1844: psi
18, Ver R, Péice, Masters, Uomions amd Men: Dirk Control àn Breldina amd the Iso of
Tabor, Cambridge, 1980, cap. 2, pára referências
19. É, pois, ntsso dever exercer 6 mesmo cunirole sobre aquilo em que remos investi
édico que deréim seu diploma. ou o autor que é protegido pelos
direi autorais”, Prefácio do Regulamento da Sociedade (vida dom Mecânicos (dom
gama Society af Eine, daqui por diante 451), 1851, citado em]. B. Jeters (org 1,
Labentr' Formaive Jeni. Londres, 1948, p. 30
20, Citado em G, Stedman Jones, Languagesaf Cambridge, 1983, pp. 1367.
ias ERIC HOBSBAWM
considered, being a bistory and vendeu of the trade senions Of Great Hritain te, 2. vd,
1890, p. 519.
39, Henry Mavhewe, The Morninig Chronície Survey of Labonr anid thê Poor: The Metripli
tam Disricos, Horsham, 1982, vol. 3, p. 225.
40, David Dougan, The Shigmeigias: The Hlisory of she Shipeonstrucsos and Shiprorigbis
Assiciatim, 1882-1963, 1968, pp. 19, 30, Ver também Reyal Commission om Labuur,
Dl, Papers, L892-4, 34 1Grupo 4), Q. 20413, 21.398
41. Mayhew, Super OfLabuur, vel 5, py 198, Dados sobre 0 custo de ferramentas es-
eraido de Regal Comnision om Labor (Grapo A), ver Par. Papers, 1892 36/2, Q
16.848, 19.466, 19:812-13, 20.367-9.
42. Mayhicos Sure of Labony, estima o custo semanal em entre 6 pemce e 2 ships; cl.
pp: 94,96, 15. 167, 214
43.8. e B. Web, Dnduorvial Democraiy (ed. de 19134, p. 313.
rt ow Vora, Harmandowoah, 1973, p. 145: “Na linha de mou
tagem cada homem é tão bom quamo 6 seguinte ... Numa situaç de trabalho
qualificado as coisas são ligeiramente diferentes .. pelo fato de que [os homens]
controlam às ferramentas, ou o conhecimento, vitais para o desempenho da função
O contramestre tem que perguntar à le”
AS. Zita, “Labor Seraregies”, pp: 21, 26
46.+0s contramestres serão os homens qualiicados para o trabalho por suas respectivas.
uficinas, Provavelmente como operários demonstraram capacidade « habilidade espe-
ciais, que levaram à sua promoção a partir dos quadros inferiores”: James Clayton.
“The Organization af ie Locemotive Deprsneat”, in Jobar Macanley (ong), Moderm
Railmay Minting: A Pracrica Trcaie by Empincoring Eprt, [9IZ-19L4, vol, 2, p. 7
47. Kenneth Hudson, Hórking do Rude: Railway Workshop Rodes A Study o Industrial Dis-
cdpline, Bach, 1970.
48. Anónimo, Horting Men and Wmen, p. 66; ast, Quarter Repurs, dez, 1893. pp 48
59); Dearie, Indusorial Tenining. p. 25.
49. CE a coletânea de “regras de trabalho” dus operários na construção civil na Webb
Collection (tSE Library, Coll EB Destas e Coil EC iavat: por exemplo, Bridg-
north 1863, Loughborough 1892, Worcester 1891 (Coll EB xxx), Shrewsbuns
(Col EC vm.
50. Gilding, Jowrnigimen Cooper, p. 56
51. Thomas Weight, The Grear Unmasied, 1968, p. 282: 05 colegas de trabalhe empres
tarão “suas melhores ferramentas” a um artesão ambulante. Charity Organization
Society, Special Committee om Uuillod Labymor; Repors and Minutes of Evidence, June
1908,p. 98: “No caso de mecânicos que estiveram desempregados por algum tempo,
em que medida carecem de ferramentas . ... Lá muita camaradagem entre cles, c
emprestam ferramentas uns aos outros. Se você olhar dentro de suas cestas, desco-
brirá que 109% deles têm insuficiência de ferramentas”. Assinale-se que a testemunha,
140 ERIC HOBSBAM
um mestre da construção civil, afirma estar simplesmente conjeturando. Ele não olha
identro des cestos dos artesãos, A respeito da penalidade pela perda de terramnetas
ou seja decair para o trabalho não-qualiicado, ver Mayhew, Survey 0f Laboner, va, 5
p 180
52. ].B. Jeflecss, Lie Stosy af ihe Enpinces, Londres, 1945, p. 58, sobe
os filhos segundo
e terceiro, filhos de pais de tura do vicio, entrando para 0 ócio.
Coll ER xexty Hull, Redeitch, Walkeicid: Coll EC vil; Bristol, Dudley; Goal,
Kidderminstes, Leicester, Rocherham, Stourbridge, Wigan
54. Keith Mel elland e Alastair Reid, “The Shipbuilding Workers, 1840-19147
náo-puiblicado!, p 18,
55. Dear, Industrial Timining, p. 241
Joyce M. Bellamy e Jolm Saville torgs-1, Dictionary of Labor Biograpipe 9 vols.. Lom
dees, 1994, vols. 1:6.
57. Geafirey Crossick, Am «teriam Elite im Victorian Societi: Kentish Loordom, 1840-1880,
Londres, 1978,p. 116
58. Chiarês Moe, St anil rhe English Wôrkina Class. Londres, 1980, p. 103, bei 5.13
59: MT Vútes, Tg and Cabos: Condiionsim Briish Emgincoving, Lemes, 1937.p, 31,
nba 6
60. Por exemplo, A. Reid The Division US Labor in the Rabi Shipiiainar Diduseos,
1880-1920 (sexe de doutorado inédica, Cambridge Universia 1980): ]. Zeta, Craf
Regulaom anal he Divisim of Lado Engineers and Compositor Bisa, 1890-1914
ftese de doutorado inééita, Warwick Universiny 1981
61.8. CM. Weckes, The Amalaamared Sociey of Engíneess, ISMLIIA A Study df trade
Union Gorerument, Boi amil Industrial Ei (tese de doutorado inédita, Warwick
Universisy. 1970, pp- 318-20, 3221. Já em 1895, quatro membros da a5F foram
candidatos ao partamento pelo Partido Trabalhisca Independente: David Howel, Dr
ih Wôrkens nd che Independent Labor Party 1888-1006, Manchester 1983, p. 88,
62. Kennech Newvtom, The Sociology of Briids Comnsunim, Londres, 1969, apêndices ue
m.
68. CE a Resolução da Hull TUC, 1934, in WE Milnc-Bailee (org, Trade Uinico Doc
mente, Londres, 1929. p. 129, relacicamente au abanduno da reforma sistemática,
ibid.. pp. 133-4
64.]. Zoitiin, “The Emesgence of Shop Steward Organisation and Job Control im the
Eres Car Instr”, Hi Hónksbop Jovemal 10, 1980, p. 129.
65, ]. Zeisia, “Labour Strategies”, pp. 30-2.
66, lim relação à está parte do artigo, estou em dívida particularmente con o isto de
Nina Estao, “he frito Comtini: Dave am sie Trade Unims 1933-1985, Alder-
shoe, 1995. Ver também R. Croucher, Engineers as Hã, 1939-1945, Londres, 1982,
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS ui
mens, é naturalmente impossível supor que os papéis sexuais que eles repre-
sentam expressem a visão da maioria das mulheres. Contudo, é possível
comparar essas imagens de papéis « relacionamentos com as realidades so-
ciais do período e com as ideologias dos movimentos revolucionários « socia-
listas mais especificamente formuladas.
A possibilidade de tal comparação é à suposição que fundamenta este
estudo, Não se propõe que as imagens aqui analisadas reflicam diretamente
realidades sociais, a não ser onde clas foram especificamente plancjadas para
fazé-lo, como nas gravuras que presendiam cer valor documental, e mesmo
assim é certo que clas claramente reflctiam não só a realidade. Minha su-
posição é apenas a de que nas imagens plancjadas para serem vistas e terem
um impacto sobre um público amplo, por exemplo, de operários, a ex-
pcriência que o público rem da realidade coloca limites no grau em que as
imagens possam divergir daquela experiência. Se o capitalista, nas carica-
turas socialistas da belle époque, não fosse habitualmente apresentado como
um homem gordo usando uma cartola e fumando um charuto, mas como
uma mulher gorda, esses limites permissíveis teriam sido superados e as
caricaturas teriam sido menos eficazes: porque a maior parte dos patrões
não apenas era imaginada como masculina, como era composta de homens
Disso não se infere que todos os capitalistas fossem gordos com cartolas e
charutos, embora estes atributos fossem, de imediato, entendidos como ir
dicativos de riqueza na sociedade burguesa e tivessem de ser compreendidos
como específicos de uma forma particular de riqueza e privilégio, em opo-
sição a outras, por exemplo, a dos nobres. “al correspondência com a reali
dade cra evidentemente menos necessária em imagens puramente simbóli-
cas é alegóricas c, entretanto, mesmo aqui elas não estavam completamente
ausentes: se a divindade da guerra fosse apresentada como uma mulher,
teria sido com a intenção de chocar, Interpretar a iconografia desta maneira,
naturalmente, não é fazer uma análise séria da imagem e do símbolo. Meu
objetivo é mais modesto.
Comecemos com aquela que talvez seja a mais famosa das pinturas
revolucionárias, embora não tenha sido criada por um revolucionário, Liberté
quidame le peuple, de Delacroix, datada de 1830, Este quadro será familiar a
muitos: uma jovem com os seios nus, com um barrete frígio c com uma
bandeira, pisando sobre pessoas caídas, seguida por homens armados, em
roupas características. As fontes da pintura têm sido muito pesquisadas?
PESSÕAS EXTRAORDINÁRIAS 145
Quaisquer que sejam, sua interpretação na época não está em questão. Con-
siderou-se a Liberdade não como uma figura alegórica, mas como uma mulher
real (inspirada sem dúvida na heróica Marie Deschamps, a cujas proezas o
quadro alude), Ela foi vista como uma mulher do povo, pertencendo ao
povo, à vontade no meio do povo:
Cost une forre fernme aux puissantos mamelles,
à la voix rauque, aux durs appas
qui
Agile et marchant à grands pas
Se plait aux cris du pesple, (
(Barbicr, La Curée
Ela tra, para Balzac, de linhagem camponesa: — “pele morena e ardente,
a verdadeira imagem do povo”. Era orgulhosa, até mesmo insolente (palavras
de Balzac) e, assim, O próprio oposto da imagem pública das mulheres na
socicdade burguesa. E, como os contemporâneos enfatizam, era sexualmente
emancipada. Barbier, cujo La Cure é certamente uma das fontes de Delacroix,
invenca-lhe uma histócia complera de emancipação é iniciativa sexual
qui ne prend ses amours que dans la populace,
que ne prére son large flanc
quá des gens forts comme elle* *
Esta enfanr de la Bastille (“fruto da Bastilha”), depois de ter espalhado
uma universal excitação sexual à sua volta, cansou-se de seus primeiros amantes é
seguiu às bandeiras de Napoleão e um capitaine de vingr ans (capitão de
vinte anos”). Agora, ela voltava,
toujours belle erzme
avec Pécharpe aux trois coulewrs, "+
para vencer as “Trois Gilorieuses” (a Revolução de Julho) para seu povo
Uma mulher forte, seios fartus/ Com voz rouca c encanto bruto/ Que anda com passos
largos confiantes: Regozijandu-se com o clamor do povo,(. +
+ Que escolhe seus amantes somente entre as massas, Que dá seu corpo forte somente a
Bomens ão fortes como ea
*** Ainda belae nua com à (aa tricolor [grifo meu
Má ERIC HORSRAWM
líder pelos homens. Todavia, o tema continua a ser popular em 1848, sem
chívida por causa da influência de Delacroix sobre outros pintores, Ela per-
mancce nua, de barrete frígio na République de Miller, mas seu contexto
agora é vago. Ela permanece uma figura de líder no esboço de Daumier de
The Uprising (“O levante”), porém, mais uma vez, seu contexto é vago. Por
outro lado, embora não haja muitas representações da Comuna e da Liber-
dade em 1871, à tendência é representá-as nuas (como no desenho de Rops
mencionado antes) ou com os seios nus.” Talvez O papel notoriamente atuante
desempenhado pelas mulheres na Comuna colabore também para a simboli-
zação desta revolução por uma mulher não-alegórica (isto é, vestida) e ob-
viamente militante, em pelo menos uma ilustração estranggcira.!º
O conceito revolucionário de república ou liberdade, assim, continua-
va a ser uma mulher nua ou, mais frequentemente, com os scios nus. A
célebre estátua da République, de Dalou, partidário da Comuna de Paris, na
Place de la Nation, ainda tem um dos seios mt, Somente uma pesquisa
poderia mostrar desde quando o seio descoberto guarda esta associação re»
belde ou, pelo menos, polémica, como talvez na caricatura do período de
Dreyfus (janciro de 1898), na qual uma Marianne jovem e virginal, com
um seio exposto, é protegida contra um monstro por uma Justiça matrona e
armada com a frase: “Justiça: Não tenha medo do monstro! Estou aqui”.”
Por outro lado, a República institacionalizada, representada por Marianne,
apesar de suas origens revolucionárias, está agora vestida em trajes normais,
embora tnues. O reino da decéncia se restabeleceu. Talvez também o reino
das mentiras, já que é característico da figura feminina alegórica da Verdade
— que ainda aparece com frequência, notadamente nas caricaturas do pe-
ríodo de Dreyfus — aparecer nua."? E, de fato, ela permanece nua mesmo
na iconografia respeitável do movimento operário britânico da Inglaterra
vitoriana, como no emblema da Sociedade Unida dos Carpinteiros e Marce-
neiros, em 1860,!º até que a moralidade do final da cra vitoriana prevaleça.
Em geral, o papel da figura feminina, nua ou vestida, diminui nitida-
mente com a transição das revoluções democráticas plebéias do século xTx
para os movimentos proletários e socialistas do século XX. Em certo sentido,
o problema principal deste estudo consiste nesta masculinização das ima-
gens do movimento operário e socialista.
Por razões óbvias, a trabalhadora proletária não é muito representada
pelos artistas, exceto nos poucos ramos industriais onde à presença feminina
era predominante. Isto, certamente, não se deve ao preconceito. Constantin.
148 ERIC HOBSBAWM
cendo mulheres humanas nessa iconografia, elas são parte de um casal idea-
lizado, com ou sem filhos; caso o homem ou a mulher esteja simbolica-
mente identificado com alguma atividade, é o homem que representa o
trabalho industrial. No casal de Crane, o homem tem a seu lado uma pi-
careta e uma pá. enquanto a mulher, carregando uma cesta de cereais c com
um ancinho a seu lado, representa a natureza, ou quando muito à agricultura
Curiosamente, à mesma divisão ocorre na famosa escultura de Mukhina do
trabalhador (homem) e da kolkhos (mulher) camponesa no Pavilhão So-
viético da Exposição Internacional de Paris de 1937: cle é o martelo, cla é a
foice.
É verdade que mulheres reais das classes operárias também aparecem
na nova “socialista, e incorporam um significado simbólico, pelo menos por
implicação. Contudo, são bastante diferentes das moças militantes da Co-
muna de Paris: são figuras de sofrimento c persistência. Meunier, o grande
pioneiro da arte proletária e do realismo socialista — tanto como realismo.
quanto como idealização — antecipa-as, como de costume. Sua Femme du
peuple, de 1893, é velha, magra, scu cabelo firmemente puxado para trás,
sugerindo pouco mais do que uma caveira, seu peito seco e murcho in-
sinuado pela própria (arípica) nudez, dos ombros.*? Scu mais conhecido Le
Grisou tem a figura feminina envolta em xale, carpindo sobre o corpo do
mineiro morto, Estas são as mães proletárias sofredoras, mais conhecidas
pelo romance de Górki ou pelos desenhos trágicos de Kaethe Kollwitz.2 E
talvez seja significativo que seus corpos se tornem invisíveis sob xales e
lenços de cabeça. A imagem típica da mulher proletária dessexualizou-se é
esconde-se atrás das roupas da pobreza. Ela é espírito, não corpo. (Na vida
real, esta imagem da esposa ou mãe sofredora que se transforma em mili-
tante talvez seja excmplificada pela eloqiiência da roupa negra de 1. Pasion-
aria, na Guerra Civil espanhola.)
Não obstante, enquanto o corpo feminino na iconografia socialista
está cada vez mais vestido, senão escondido, algo curioso acontece com o
corpo do homem. Este assume cada vez mais um sentido simbólico, A ima-
gem que cada vez mais simboliza a classe operária é a contrapartida exata da
Liberté de Delacroix, isto é, um jovem com o torso nu: a figura poderosa de
um trabalhador, brandindo o martelo ou a picareta, c nu da cintura para
cima.?* Esta imagem é não-realista em dois aspectos. Em primeiro lugar,
não era nada fácil encontrar muitos trabalhadores do século XIX, nos países
com movimentos operários sólidos, trabalhando com o torso nu. Esta, co-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 351
mo Van Gogh reconhecia, era uma das dificuldades de uma época de realis-
mo artístico. Ele gostaria de pintar os corpos nus dos camponeses, mas na
vida real eles não andavam mus.” As numerosas gravuras representando o
trabalho industrial, mesmo sob condições em que hoje pareceria racional
tirar-se à camisa, como no calor « incandescência das fundições ou das fábri-
cas de gás, quase que universalmente os mostram vestidos, embora com
roupas leves. Isto abrange não apenas o que poderia ser chamado amplas
«vocações do mundo do operariado — tais como Hork, de Madox Brow
ou Le travail, de Alfred Roll (1881), representando uma cena ao ar livre de
trabalho em construção —, mas também pinturas realistas ou reportagens
gráficas. 2 Naruralmente, trabalhadores de torso nu podiam ser vistos —
por exemplo, entre os minciros de carvão britânicos —, mas somente em
alguns casos. Nestes, os trabalhadores poderiam realisticamente scr vistos
seminus, como em Roboteuss de parquer, de G. Caillebotte”? ou na figura de
um cortador de carvão no emblema do Sindicato dos Fundidores (1857).
Na vida real, contudo, todos estes eram casos especiais. Em segundo lugar,
a imagem da nudez é não-realista porque certamente escluía o vasto grupo
de trabalhadores especializados e de trabalhadores de fábricas, que nunca
sonhariam em trabalhar sem suas camisas por um momento sequer e que,
por sinal, formavam à maior parte do movimento operário organizado.
Não se sabe 20 certo quando o trabalhador de torso nu aparece na arte
pela primeira vez. Sem dúvida, naquela que deve ser uma das primeiras
esculturas de proletários, o trabalhador de ardósia de Westmacorr, no mo-
numento de Penrhyn (Bangor), de 1821,º está vestido, enquanto à jovem
mponesa perto dele, talvez semi-alegoricamente, está com uma roupa bas-
tante decotada. Pelo menos desde os anos 1880 em diante, tal representação
esteve presente na escultura, na obra do belga Constantin Meunier, talvez o
primeiro artista a se dedicar totalmente à representação do trabalhador bra-
cal; possivelmente, também na de Dalou, partidário da Comuna de Paris,
cujo monumento inacabado ao operariado contém motivos similates, Ob-
viamente, o nu era muito mais encontrado na escultura, que tinha por longa
tradição uma tendência muito mais forte a apresentar a figura humana nua
do que a pintura. De fato, nos desenhos é pinturas de Meunier, as figuras
humanas estão, com uma fregiência muito maior, realisticamente vestidas;
e, como foi demonstrado quanto a um de seus temas, pclo menos, o dos
estivadores descarregando um navio, os homens estavam despidos apenas
no projeto em três dimensões que fez para um monumento ao opcrariado.*?
182 ERICHOBSBAWM
Talvez esta seja uma das razões por que à figura seminua soja menos pre:
dominante no período da Segunda Internacional. quando o movimento so-
cialista ainda não estava em posição de encomendar muitos monumentos
públicos, e só adquira projeção depois de 1917, na Rússia Soviética, onde já
havia tal condição. Entretanto, embora uma comparação direta entre as ima-
gens pintadas e esculpidas seja, portanto, enganadora, o torso masculino nu
pode ser encontrado aqui c ali em emblemas de duas dimensões, bandeiras
é outras gravuras do movimento operário, mesmo no século XIX. De todo o
modo. ele triunfou na escultura após 1917 na Rússia Soviética, sob títulos.
ais como: Trabalhador. As armas do proletariado, Memorial do domingo san-
agrento de 1905 cec3: O tema ainda não se cxauriu, já que uma estátua cha-
mada Amizade dos pois, dos anos 1970, ainda apresenta o familiar Hércules
de torso nu brandindo um martelo.
A pintura € as artes gráficas ainda achavam difícil romper os laços com
o realismo, Não é fácil encontrar quaisquer trabalhadores de torso nu na
idade heróica do cartaz revolucionário russo. Mesmo à pintura simbólica
Tiud apresenta um desenho de um jovem idealizado em roupas de iubulho,
cercado de ferramentas de artífice especializado,* em vez do titã musculoso
« basicamente não-especializado, muito mais comum. O poderoso trabalha-
dor brandindo o martelo, ocupado em quebrar as correntes que aprisionam
à globo (que simbolizou a Internacional Comunista nas capas de seu pe-
riódico, a partir de 1920), trazia roupas cm seu torso, embora elas fossem.
apenas esboçadas. A decoração simbólica desta revista em seus primeiros.
números não era a figura humana: cram estrelas de cinco pontas, raios,
martelos, foices, espigas de cereais, colméias, cormucópias, rosas, espinhos,
tochas cruzadas e correntes. Ainda quando as imagens eram mais modemas,
tais como a estilização art-nouveau das chaminés das fábricas com fumaça* e
driving bands e corrcias de transmissão, não havia trabalhadores de peito nu.
Fotografias de propaganda desses homens não foram comuns, se é que cxis-
tiram, antes do primeiro Plano Qiiingicnal** Não obstante, embora 0 avanço
do torso nu cm duas dimensões tenha sido mais vagaroso do que se poderia
pensar, a imagem era familiar: assim é o símbolo que decora à capa da
edição francesa do Compre rendu analytique do Quinto Congresso da Inter-
nacional Comunista (Paris, 1924).
+ Na Rússia este motivo já aparece entre 1905 « 1907.
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 153
Por que o corpo nu? A questão só pode ser discutida em breves linhas,
mas nos leva de volta tanto à linguagem da representação idealizada e sim-
bólica, quanto à necessidade de desenvolver tal linguagem para o movi-
mento revolucionário socialista. Não há dúvida de que a teoria estética do
éculo XVTT ligava O corpo nu à idealização do ser humano, com muita
consciência geralmente, como em Winckelmanm, Uma pessoa idealizada (em
oposição a uma figura alegórica) não poderia portar trajes da vida real e —
como às estátuas nuas de Napoleão — deveria, se possível, ser apresentada sem
vestes. O realismo não tinha lugar nessa representação. Quando Stendhal criti-
cou o pintor David, porque seria um verdadeiro suicídio para seus guerrei-
ros da Antigiidade travarem uma baralha nus, armados somente com capa-
cere, espada e escudo, estava simplesmente chamando à atenção, no su
habitual papel de provocador, para à incompatibilidade na arte entre à pro-
posição simbólica e a realista. Mas o movimento socialista, apesar de sua
profunda ligação em princípio ao realismo na arte — uma ligação que re-
monta aos seguidores de Saint-Simon —, exigia uma linguagem simbólica
com que afirmasse scus ideais. Como vimos, os emblemas « bandeiras dos
sindicatos britânicos — correramente descritos por Klingender como “a
verdadeira arte folelórica da Grã-Bretanha do século x1x"** — são uma com-
binação de realismo, alegoria c simbolo. São, provavelmente, a última forma
de florescimento da linguagem alegórica e simbólica, além da esculeura mo-
numental pública. Uma representação idealizada do tema do. movimento,
ou seja, a própria luta da classe trabalhadora, precisaria mais cedo ou mais
tarde abranger 0 uso do nu — como na bandeira da Filial de Exportação do
Sindicato dos Portuários, nos anos 1890, em que um homem musculoso
nu, com um pancjamento leve sobre o sexo, ajoelha-se sobre uma rocha
lutando com uma grande serpente verde, cercada dos lemas corresponden-
res. lim suma, embora à tensão entre reslismo « simbolismo permane-
cesse, era difícil inventar um vocabulário simbólico e ideal completo sem o
nu. Por outro lado, pode-se sugerir que o nu total era mais aceitável, Não se
pode facilmente ignorar o absurdo do Grugo: Outubro, de 1927. que con-
siste em trés homens musculosos ntis, exceto pelo boné do Exército Ver-
melho usado por um deles, com martelos e outros acessórios semelhantes.
Conjeturemos que a imagem do torso nu expressasse um compromisso en-
tre o simbolismo e o realismo. Havia afinal trabalhadores rais que podiam
ser apresentados dessa forma.
154 ERICHORSBANM
Resta-nos uma pergunta final, mas crucial. Por que se simboliza a clas-
se operária em luta exclusivamente por um torso masculino? Aqui podemos
apenas especular, e sugiro duas linhas de especulação,
A primeira diz respeito às mudanças na verdadeira divisão sexual do
trabalho no período capitalista, tanto produtiva, quanto política, É um pa-
radoxo da industrialização do século XIX que ela tendesse a aumentar € aguçar
a divisão sexual do trabalho entre o trabalho doméstico (não-remunerado) e o
trabalho externo (remuncrado), na medida em que privava o produtor de con-
trolar os meios de produção. Na economia pré-industrial ou proto-industrial
(lavoura campesina, produção artesanal, pequenos comerciantes, indústrias
domésticas, trabalho subcontratado etc.), O trabalho doméstico e à produção
cram geralmente uma unidade singular ou combinada. Isto significava que,
embora a maior parte das mulheres trabalhasse excessivamente — já que faz-
iam quase todo o trabalho doméstico e participavam do resto do trabalho
não estavam confinadas a um só tipo de trabalho. De fato, na grande expansão
do “proto-industrialismo” (indústria doméstica), que recentemente foi estu-
dada, os processos producivos reais atenuavam ou mesmo aboliam as diferen-
ças no trabalho entre homens e mulheres, com efeitos de longo alcance nos
papéis sociais e sexuais e nas convenções dos sexos **
Por sua vez, a situação cada vez mais comum do operário que trabalhav:
para um empregador, em um local de trabalho pertencente à este empre-
gador, separou o lar e o trabalho. Em geral era o homem que tinha de
deixar a casa todos os dias para trabalhar por salários, não à mulher Em
geral, a mulher trabalhava fora (quando, por alguma razão, o faziam) so-
mente antes do casamento c, depois de casada, somente caso enviuvasse ou
se separasse, ou quando o marido não ganhasse o suficiente para manté-la e
à família; neste caso, provavelmente cla só trabalharia enquanto tal situação
perdurasse, Ao contrário, uma profissão em que um homem adulto não
fosse capaz de ganhar um salário que sustentasse a família cra — compreen-
sivelmente — considerada mal-remunerada. Daí o movimento operário, lo-
gicamente, desenvolver a tendência a calcular 0 salário mínimo descjável em
termos de ganhos de um único artimo de família (isto é, na prática, o
homem) e a considerar a esposa trabalhadora assalariada como sintoma de
uma situação econômica indesejável. De fato, a situação era fregientemente
indesejável, e um número expressivo de mulheres casadas eram forçadas a
trabalhar por salário ou algo que lhe equivalesse, embora, em grande pro-
porção, o fizessem em casa — isto é, fora do efetivo alcance dos movimen-
PESSOAS EXIRAORDINÁRIAS 1
mas era convenção se esperar que clas o fizessem. Como Luísa Accati corre-
tamente afirma: “em um grande número de casos (eu diria, em pratica-
mente todos os casos) as mulheres têm um papel decisivo, seja porque tomam
a iniciativa, seja porque formam uma parte muito grande na multidão”.4é
Nem precisamos considerar aqui a prática pré-industrial bem conhecida em
que homens rebeldes entram em ação distarçados de mulheres, como nos
chamados “tumultos de Rebecca” do País de Gales, de 1843.
Além disso, a revolução urbana característica do período pré-industrial
não era proletária e sim plebéia. Entre o “povo miúdo” — uma coalizão
socialmente heterogênca de indivíduos, unidos pela “pequenez” e pobreza
comuns, e não por critérios ocupacionais ou de classe —, as mulheres po-
diam desempenhar um papel político, nem que fosse só porque saiam às
ruas. Elas podiam ajudar a construir as barricadas,
e de fato o fizeram, Podiam
ajudar os que lutavam atrás delas. Podiam até mesmo lutar ou portar armas.
Mesmo à imagem da “revolução popular” moderna em uma grande me-
trópole não-industrializada as inclui, como pode comprovar qualquer pessoa
que se lembre das cenas de rua de Havana depois da vitória de Fidel Castro,
Por sua vez, a forma específica de lura do proletariado, o sindicato e à
greve, exclui em grande parte as mulheres, ou reduziu amplamente seu pa-
pel visível como participantes ativas, exceto nas poucas indústrias em que
clas se concentravam em peso. Assim, em 1896, o número total de mulhe-
res nos sindicatos britânicos (excluindo as professoras) era 142 mil ou algo
como 8%; mas 60% destas trabalhavam na indústria de algodão, que cra
extrema « fortemente sindicalizada. Por volta de 1910 era acima de 10%,
mas, embora houvesse um certo crescimento na sindicalização entre fun-
cionários de escritórios e comerciários, a maior parte da expansão ma in-
dústria ainda foi no ramo têxtil.” Em outros setores seu papel foi de fato
crucial, mas distinto, mesmo nos pequenos centros industriais e de mine-
ração, onde o lugar, o trabalho c a comunidade ram inseparáveis. Contudo,
se nesses ambientes seu papel nas greves cra público, visível e essencial, não
era, entretanto, o de grevistas em si.
Além disso, onde o trabalho dos homens e o trabalho das mulheres
não fossem tão separados e distintos que impedissem uma confusão entre
ambos, à atitude normal dos sindicalistas do sexo masculino em relação às
mulheres que procurassem ingressar em sua profissão era, nas palavras de S.
e B. Webb, de “indignação e repulsa”.* A razão era simples: como os sa-
lários das mulheres eram muito mais baixos, representavam uma ameaça aos
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 157
estes frcios à sua própria teoria « prática emancipatória: isto ocorreu pelo
menos até que as transformações econômicas destruissem a fase industrial
da divisão sexual do trabalho do século XIX. Em certo sentido, a iconografia
do movimento reflexe esta consolidação inconsciente da divisão sexual do tra-
balho. Apesar de, e contra, as intenções conscientes do movimento, sua ima-
gem expressava a masculinidade essencial da Jura do proletariado em sua forma
elementar anterior a 1914, a luta sindical.
Poderia estar clara agora a razão pela qual, paradoxalmente, a mudança
histórica de uma era de movimentos plebeus e democráticos para uma era de
movimentos proletários e socialistas acarretou, iconograficamente, o declínio
do papel da mulher. Entretanto, outro fator pode ter reforçado esta masculini-
zação do movimento: o declínio de milenarismo pré-industrial clássico. Esta
questão é ainda mais especulativa e abordo-a com cautela c hesitação.
Como já me referi, na iconografia da esquerda, a figura feminina se
manteve mais como uma imagem de utopia: à deusa da liberdade, o sím-
bolo da vitória, a figura que apontava para a sociedade perfeita do futuro.
E, de fato, as imagens da uropia socialista cram essencialmente da natureza,
da fertilidade « do crescimento, do Aorescimento, às quais a metáfora femin-
ina se aplicava naruralmente:
Les générations écloses
Verront fluecir leurs bébés roses
Comme églantiers en Floréal
Ce sera la saison des roses.
Voilã Pavenir social.”
(E. Porter
tido Trabalhista Independente, para não mencionar figuras tais como Elea-
nor Marx no movimento sindical. Além disso, as mulheres que então se
destacaram, como Beatrice Webb ou Rosa Luxemburgo, não fizeram repu-
tação por serem mulheres, mas porque se projetaram independentemente
do sexo. Contudo, o papel da emancipação das mulheres na ideologia socia-
lista nunca foi mais evidente « central do que no período do “socialismo
utópico”.
Isto se deveu, em parte, ao papel crucial atribuído à destruição da
família tradicional no socialismo daquele período:*” um papel que está bem
claro em O Manifesto Comunista. A família cra considerada como a prisão
domiciliar não apenas das mulheres (que em geral não cram muito parrici-
pantes na política, nem, como massa, muito entusiastas com a abolição do
casamento), mas também dos jovens, que se sentiam muito mais atraídos
por ideologias revolucionárias. Além disso, como ]. F.C. Iarrison corre-
tamente salientou, mesmo que por motivos empíricos, os novos proletários
podiam bem concluir que “a influência dos seus toscos cascbres era restrita
é circunscrita e que em comunidade encontrariam meios de escapar dessa
situação: “podemos viver em palácios tão bem quanto os ticos ... bastando
adotarmos o princípio da associação, o princípio patriarcal das grandes fa-
mílias, como aquele de Abraão”.”S8 Foi a socicdade de consumo, associada
— paradoxalmente — à substituição da ajuda mútua pela previdência social
de Estado, que enfraqueceu este argumento contra O núcleo familiar privado.
Não obstante. o socialismo utópico também atribuiu outro papel à
mulher, que era basicamente semelhante ao papel feminino nos movimentos
religiosos milenaristas com os quais os utopistas tinham muito em comum.
“Aqui as mulheres cram não apenas — talvez nem mesmo — iguais, mas
superiores. Seu papel específico era o dos profetas, como Joanna Southeorr,
fundadora de um influente movimento milenário na Inglaterra do início do
século XIX, ou à femme-mêre-messie (mulher-mãe-messias) da religião dos se-
guidores de Saint-Simon,” Este papel acabava por fornecer, em um mundo
masculino, oportunidades de uma carreira pública para um pequeno nú-
mero de mulheres. Lembremo-nos das fundadoras da Ciência Cristã e da
Teosofia. Contudo, a tendência dos movimentos sociais e trabalhistas à se
afastatem do milenarismo em direção à teoria e organização racionalistas
(“socialismo científico”) tornou este papel social das mulheres no movi-
mento cada vez mais marginal. Mulheres capazes, cujos talentos preenchiam
esses papéis, eram expulsas do centro do movimento para religiões periféri-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 161
cas que lhes proporcionavam mais campo de ação. Foi assim que atuou
Annie Besant, uma secularista e socialista, e seu papel político principal,
depois de 1890, foi como alta sacerdotisa da 'Ieosofia « — através da Teo-
sofia — uma inspiradora do movimento de libertação nacional indiano.
Tudo 6 que restou do papel utópico-messiámico das mulheres no so-
cialismo foi à imagem da mulher como inspiração « simbolo de um mundo
melhor. Mas, paradoxalmente, esta imagem por si mesma mal se distinguia
dia das exi areiblicho sácir sms inn (o exerno feminino nos eleva aos céus”),
de Goethe. Na realidade, aquilo que era de um modo na teoria da idea
o burguesa masculina da mulher, dificilmente poderia ser diferente da-
quilo que era tão compatível com sua inferioridade na prática. Quando muito,
à imagem da mulher como inspiradora se tornou a imagem de uma Joana
«Arc, facilmente reconhecível nos desenhos de Walter Crane. Joana d'Arc
foi, de fato, um icone de militância da mulher, mas não representava nem
emancipação política, nem emancipação pessoal, ou mesmo ativismo, em
qualquer sentido que pudesse se transformar em modelo para as mulheres.
reais. Mesmo sc esquecermos que à imagem de Joana «Arc exclua a maio-
ria das mulheres que não eram mais virgens - - isto é, mulheres como seres.
sexuais — em qualquer época, por definição histórica, há no mundo espaço
para apenas umas poucas Joanas d'Arc. E, por sinal, como demonstra à
adoção cada vez mais entusiasta de Joana d'Arc pela dircita francesa, sua
imagem era ideológica « politicamente indeterminada. la poderia ou não
representar à Liberdade, Poderia estar nas barricadas, mas, ao contrário da
jovem de Delacroix, não pertencia necessariamente àquele lugar.
Infelizmente, é impossível continuar a análise iconográfica do movi-
mento socialista além de um ponto da história que já é razoavelmente r
moto, Não se fala nem se entende mais à linguagem tradicional do símbolo
é da alegoria €, com seu declínio, mulheres como deusas e musas, como
personificações da virtude e ideais, mesmo como Joanas E'Arc, perderam
seu lugar específico no imaginário político. Mesmo o famoso símbolo inter-
nacional da paz nos anos 1950 não era mais uma mulher, como quase cer-
tamente teria sido no século XIX, mas a pomba de Picasso. Em relação às
imagens masculinas, provavelmente isso também é verdadeiro, embora o
Prometeu brandindo o martclo tenha sobrevivido mais tempo como per-
sonificação do movimento c da luta. Desde à Segunda Guerra Mundial à
iconografia do movimento é, por assim dizer, não-tradicional. Atualmente
não temos instrumentos analíticos para interprerá-la, isto é, fazer leituras
162 ERIC HOBSBAWM
Notas
1, Esie ensaio originou-se de um colóquio com Pecer Hának do Instituto de História da
Academia Húngara de Ciências, a respeito de um ensaio de Etim Etkind (de Lenin-
grado, na época, atualmente de Nanterre) sobre “O ano de 1830 na possia cumpéia”,
Sob o aspecto da história da arte, recebi ajuda essencial de Georg Eisker, Praneis e
Laisa Haskell c Nick Penny Em certo sendo, este é portanto um trabalho de
cooperação, embora as interpretações e os eres sejim todos meus,
2.CE, para uma discussão € bibliogrifia completas, o catálogo da exposição La Libené
aidans le peuple de Delacroix, composto e redigido por Iélene Tonssaint, estudo do
Laboratório de Pesquisa dos Museus da França por Lola Faillant-Dumas c Jean-Paul
Riou (Paris, 1982). À cste acrescentaria HS. Tiidecke, Liggéne Delacroi sna die Pariser
Juliresoliiom (Berlim, 1965), « Efim Erkind, “1830 im der curopaischen Dichrung”.
dn R, Urbach (org), Wien sind Europe eivischen den Revolusionen- 1789-1448 (Viena-
Munique, 1978),
3.) Clark, The Aisolate Boungcvis, Londres, 1973, p, 19.
4 Edkind, “18307, pp. 150-1
Heinrich Heine, Gesammeite Ménte, Berlim, 1956-537, vol. 4, p 19.
6 1. Ramiro, Páliciem logs, Pais, 1905, pp. 80-1
7. Eduard Fuchs, Die Eras in der Karibarr, Munique, 1906, p. 484. Fuchs descreveu
Penple de forma não implausível como “Megáre Volk” vu "O povo como uma vi
rago” (Ramiro, Feicien Rops, p. 188), Uma versão menos explicita desta mesma ia:
tem, por omitir à mexade inferior do corpo da mulher esti numa ilustração em Franz
Bei, Faúicien tops (Berlim, 1921), sem número de página.
8.M. Agulhou, “Esquisse pour une archéulogie de la République: Tallégorie civique
feminine”, Annals, nº 28, 1973, pp. 5-34. Uma heroína não-rexolucionáriaé apre.
sentada quáse simultaneamente de maneira oposta à de Delacroix no Defense of
Saragoss, 1828, de David Wilkie (Wilkie Exhibition, Royal Academy, 1958). A ver
164 ERIC HORSBAWM
25: “Desenhar Uma imagem de camponês cm ação, repito, esta é à essência da imagem
mudema, o próprio múclea da arte moderna, que nem os gregos, nem o Reias-
cimento, hem os antigos holandeses fizeram ... Pessoas como Daumier — devemos
respeitá-las pois estão entre 05 pioneiros. À figura intciramente nua, mas moderna,
como a recriarum Hennore Lettvre, tem alt valor... Camponeses e trabalhadores,
porém, não andam nus afinal de contas. e não É necessário imagini-os em nuder.
Quanto mais ox pintures passarem à pintar trabalhadores e camponeses, mais eu vou
gostar”, Vincent Van Gogh, Lhe Complete Letrors of Vincent Vim Gogi, Londres, 1958,
vol. 2 pp: 400, 402, (Devo esta referência à Francis Haskell)
26, ED Klingender, Ar ad the Industrial Revulnsion, Londres, 1947, ilustrações 10, 47,
57, 90, 92 € 103; Paul Brand, Schafênde Ariuir und bidende Kignsr, Leipuig, 1927-
28, vol. 2.pp. 240c 8.
27. Brandk, Scbaifênde Avbei, p. 243, useração 314
28. Locson. Unirea WE Stand,p. 23
29, Nicolas Penny, Churelr Momuments in Romanti- England, New Haven e Londres.
1977, ilustração 138.
30. Brandi, Schagende Avis, p. 370.
32.1 E. Grabar, VN. Lazareve Li 8, Kumenoy, Imoria Russlugo Iisbusrioa. Moscou,
1957. vol. MI, pp. 33, 83, 359, 381 e 431
32. Tigal, Burganow Svetlov e Chêmow (orgs, Sonietkara Skuiprura, nº 74, Moscou.
1976, p.52.
33, Grabaretal, Itonyia, p. 150.
34, Num trabalho comemorativa do 15” aniversário da Revolução de Outubro, no ano
de 1982, surgiu pela primeira vez. uma fotografia deste tipo (50 homem socialista e
seat entusiasmo são o motor da construção”. Finfêeb Liseme Sebmifie: Ein Hu der
Tatsacien ams der Semjetumiom, Berlim, 1932.
35, Klingender Ars mma The Industrial Revolution. Mustração Xv.
36. “Ofender a um é ofender à todos”, “Lutaremose poderemos vir a morrer, mas não
nos renderemos”, “Esta é uma guerra santa / € ão esmureceremos / até que a misera.
a prestituiçãoe a exploração / sejam eliminadas”, Gorman, Bauer firi. p. 130.
37. Grabar ex al, Imara, ilstração“1, p 481.
38, Peter Kriedte, Hans Modick e Júrgea Sehltmbolm, Inaistriisicrana sor der Tutu.
rialisereng. Gireingen, 1977, capírulos 2 c 3
39, Pomanto, em 1906, nã França, 56% das mulheres que estavam empregadas ma in
sera trabalhavam no rama do vestuázio: o mesmo empregava cambém 50% day
mmúlheres ma indústria Dela (1890), 25% das mulheres ma indústria alemã (1907) e
36% na indústria britânica (1891). Ver Perer N, Stearns, Lives of babosa Mirk in m
Maruring Induarial Soiery, Londres, 1975, apêndice TT, p. 365
166 ERIC HOBSBAWM
40. D.C. Marsh the Chimmgina Social Structure of England and Más, 1871-1961 (edição
revisada), Londres, 1965, p. 129.
4. W Woyeinsky, Die Matei Zablem, Rertim, 1926, vol 2, p. 76: Gertraud Wolf, Der
Eranenereri é dem Houpotulrunstanten, Munique, 1916, p. 251
42, Pecer N. Stearns, in Martha J. Vic org), Sufer na Ro St Wbmen im he Vict-
viam Agr, Bloomingron-Londres, 1972, p. 118
43. Marsh, Chiang Social Siructure, p. 129.
44.0 problema aqui sugerido foi ademirivelmente apresentado por Louise À. Tilye Joan
W. Score em Women, Wirk and emily (Nova York, 1978), especialmente no capítulo
$ e pp. 228-9. Sua excelente discussão confirma esta análise, situando em particular a
ascensão daquela fase da economia na qual a nova organização da indústria manu-
favureira exigia basicamente uma força de trabalho masculina e adulta” e na qual
“durante a maior parte de sua vida de casada, a mulher servia como especialista na
educaçãode crianças c em atividades de consumo para suá Familia”, exatamente na
época em que o movimento operário de massa emergia nos países industrialmente
avançados
45.E, E Thompson, “Lhe Moral Economy of the English Crowd im the Elgheecnth
Century”, Pas amd Presene, nº 80, 1971
46.1, Levi Accat, “Vive le roi sans tale er sas gabelles une discussione sulle rivolte
contadine”, Quadermi Suomi, ser-dez. 1972, p. 1078; O comentário de Heine sobre
Delacroix ilustrao papel da feirante (“peneira”),
47 1LA Clegg, Alan Foxe À E Thompson. A History of rizis Trade Unioms ínce 1889,
Oxford. 1964, vol. 1, pp. 469:70.
48,8 e IB Webb, Hdusial Democraey, Londres, 1897, p. 496.
49. Tbid.,po 497.
50, Ibiá, p. 496-7.
51 Ibid, p 497.
52. Ver Jean Touchard, La Gauche en France depuis 1900, Paris, 1977,p. TI3,
53, O feminismo de Bebel pode estar ligado a seu entusiasmo por Fourier, sobre quem
também escrevess um livro. Deve-se mencionar também o influeme livro de Friedrich
Engels, Orixem da família
54, Eugênie Portier, Oeiras omplêts, por Pierre Brochon (org), Paris, 1966
55. Gorman, Banner Briabe, p. 126.
56. A imagem da utopia gradualmente mudou de uma urópia bascada na fertilidade
natural para uma bascada na produtividade tecnológica e científica. As duas estavam
nitidamente presentes no socialismo utópico — veja-se o poema supracitado 1º Age
Or, de Poreier: “Oh nations, plus de torpeur. / Mile réscamm vous ont nouées. /
Lectricité, la vapeur / sont vos servants dévoués” etc. (“Ó nações, despertai! Estais
ligadas à milhares de redes. A eletricidade e o vapor são vossos servos fis”) Entre-
PES OAS EXTRAORDINÁRIAS 167
O NASCIMENTO DE UM FERIADO: O
PRIMEIRO DE MAIO
naqueles partidos socialistas que são os descendentes diretos dos que, nos
congressos imaugurais do que veio a ser a Segunda Internacional, em 1889,
convocaram uma manifestação operária internacional simultânca em favor
de uma lei que limitasse o dia de trabalho a oito horas, à ser realizada no 1º
de maio de 1890. Tsso é verdade até mesmo a respeito dos partidos real-
mente representados nos congressos de 1890 « que continuam a existir
Desses partidos da Segunda Internacional, ou de seus descendentes atuais,
saem os governos ou as principais oposições ou os governos alternativos
por quase toda a Europa, a oeste daquilo que, até recentemente, constiruía a
região que se descrevia a si própria como a do “socialismo realmente exis-
tente”. Seria de esperar que mostrasse maior orgulho ou, pelo menos,
maior interesse por scu passado.
Na Grá-Bretanha. a reação política mais forte ao centenário do Pri-
meiro de Maio veio de sir John Hackerr, antigo general e, sinto dizê-lo,
antigo diretor de uma faculdade da Universidade de Londres, que pregou a
abolição do Primeiro de Maio, parecendo encará-lo como algum tipo de
invenção soviérica, Essa data, achava cle, não deveria sobreviver à queda do
comunismo internacional. Contudo, à origem do feriado de Primeiro de
Maio na primavera da Comunidade Européia opõe-se ao bolchevique ou,
até mesmo, ao social-democrata. Remonta aos políticos anti-socialistas que,
reconhecendo o quão profundas eram as raízes do Primeiro de Maio no
solo das classes operárias ocidentais, prerenderam contrapor-se ao apelo dos
movimentos operários e socialistas mediante a cooptação de sua festa e sua
transformação em outra coisa. Ciro a proposta de um parlamentar francês,
em abril de 1920, apoiado por 41 deputados aos quais nada mais unia
senão o fato de não serem socialistas:
Esse feriado não deve conter elemento algum de inveja ou de ódio [ex-
pressão código para luta de classes). Todas as classes, se ainda se pode
dizer que existam classes, e todas as forças produtivas da nação devem se
confraternizar, inspiradas pela mesma idéia e pelo mesmo ideal. 2
Aqueles que, antes da Comunidade Européia, foram mais longe na
coopração do Primeiro de Maio estavam na extrema-direita, não na esquer-
da. O governo de Hitler foi o primeiro, depois da URSS, a oficializar o Pri
meiro de Maio como um Dia Nacional do Trabalho. O governo de Vichy
do marechal Pétain declarou o Primeiro de Maio uma Festa do Trabalho e
da Concórdia e diz-se que a inspiração para fazê-lo veio do Primeiro de
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 1
dezoito anos, que dançou à frente de 200 jovens de ambos os sexos, agi-
tando um ramo florido de pilriteiro que lhe fora dado por seu noivo, até
que os soldados lançassem fogo sobre ela, matando-a. Duas tradições de
maio se fundem claramente nessa imagem, Que flores? Inicialmente, como
insinua 6 ramo de pilrieiro, cores que antes sugerem primavera do que
política, ainda que o movimento logo passe a escolher flores da cor que lhe
é própria: rosas, papoulas e sobretudo cravos vermelhos, variando porém os
estilos nacionais. Apesar disso, sempre são essenciais as flores e os demais
símbolos do desabrochar das plantas, da juventude, da renovação e da espe-
rança, à saber, as jovens mulheres. Não é por acaso que os ícones mais
universais para a ocasião, reproduzidos imámeras vezes nas mais variadas lin-
guagens, provém de Walter Crane — especialmente a famosa jovem de gorro
frígio adorado de flores. O movimento socialista britânico era pequeno c
de pouca importância e seus Primeiros de Maio, em pouco tempo depois
dos primeiros, foram insignificantes. Contudo, através de William Morris,
de Crane e do movimento artes-c-ofícios, inspiradores da mais influente
“arte nova” ou ar nowveau do período, encontrou a expressão exata para o
espítito do tempo. A influência iconográfica britânica não é a menor cvi-
dência da internacionalização do Primeiro de Maio.
Na verdade, a idéia de uma festa ou feriado público dos trabalhadores
surgiu também espontânea quase imediatamente — sem dúvida ajudada
pelo fato de, em alemão, à palavra feier poder significar tanto “não trabalhar”
quanto “comemorar formalmente”. (O emprego do termo “jogar” [plaving|
como sinônimo de “fazer greve” [sriking], comum na Inglaterra na pri-
meira parte do século, já não parece ser comum em seu final.) Em todo o
caso, pareceria lógico que, num dia em que as pessoas estavam fora do
trabalho, os encontros e passeatas políticos da manh fossem suplemen-
tados, mais tarde, por sociabilidade é diversão, ainda mais sendo tão impor-
tante para O movimento o papel das estalagens e dos restaurantes como
locais de reunião, Em mais de um país, os taberneiros os cabareriers cons-
tituíam uma porção significativa dos ativistas socialistas.
Deve-se mencionar desde já uma das mais importantes consegiiências
disso. Diferentemente da política que. naquela época. era “coisa de homem”,
os feriados incluíam as mulheres e as crianças. Tanto as fontes visuais quan-
to as literárias demonstram a presença € a participação das mulheres no
Primeiro de Maio, desde seu princípio.” O que-o tornava uma autêntica
demonstração de classe — e, a propósito, como na Espanha, atraindo cada
SOAS EXTRAORDINÁRIAS 179
não scrá demais afirmar que a expressão Primeiro de Maio evoca mais o
passado do que o presente. A sociedade que deu origem ao Primeiro de
Maio mudou. Qual a importância, hoje em dia, daquelas pequenas comuni-
dades aldeis proletárias de que velhos italianos sc recordam? “A gente ca-
minhava por toda a aldeia. Depois, havia uma refeição pública, Todos os
membros do partido estavam lá e mais todo o mundo que quisesse vir". O
que aconteceu no mundo industrializado aqueles que, na década de 1890,
ainda conseguiam reconhecer-se no verso da Internacional: “De pé, ó víti-
mas da fome!"? Como disse uma velha senhora italiana em 1980, lembran-
do-se do Primeiro de Maio de 1920, quando carregou à bandeira como
operária têxtil aos doze anos de idade. mal começara a trabalhar na fábrica:
“Hoje em dia, os que vão trabalhar são todos senhoras « cavalheiros, con-
seguem tudo o que querem”! O que aconteceu ao espírito daqueles ser-
mõcs de Primeiro de Maio de confiança no futuro, de fé na marcha da razão
é do progresso? “liduquem-se! Escolas cursos, livros e jornais são instru-
mentos de liberdade! Rebam na fonte da Ciência « da Arte: então vocês
ficarão fortes o bastante para fazer com que haja justiça.'3! O que aconteceu
ao sonho coletivo de construir Jerusalém em nossa terra verde é prazerosa?
Contudo, se o Primeiro de Maio passou a ser nada mais do que um
mero feriado, um dia — cito um anúncio trancês — em que não é necessário
tomar determinado tranguilizante, porque não se precisa ir trabalhar, ainda
assim continua a ser um feriado de tipo especial. Já não pode não ser. como
diz a frase precensiosa, “um feriado fora dos calendários”, ” pois na Europa
entrou em todos os calendários. Na verdade, é considerado um dia sem
trabalho de maneira mais universal do que qualquer outro, com exceção do
25 de dezembro « do 1º de janeiro, tendo deixado muito para trás todos
os demais rivais religiosos. Mas ele veio de baixo. Foi moldado por pessoas
trabalhadoras anônimas que, por meio dele, reconheceram-se, por sobre as
fronteiras de ocupação, língua, até mesmo de nacionalidade, como uma só
classe, ao decidir, uma vez por ano, deliberadamente não trabalhar: zombar
da compulsão moral, política « económica para o trabalho. Como disse Vicror
Adler em 1893: “Este é o sentido do firiado de maio. do descanso do trabalho,
que nossos adversários temem. É isto que eles sentem que é revolucionário”.
O historiador interessa-se por este centenário por inúmeras razões. Sob
certo aspecto, é importante porque ajuda a explicar por que Marx passou à
ser tanta influência sobre os movimentos operários compostos de homens «
de mulheres que antes não tinham ouvido falar dele, mas reconheceram sua
186 ERIC HORSRAWM
Notas
24, O mais interessante reláto sobre (Ly à transferência (a0 tempo de Pedro, à Grande)
do festival ocidental da primavera para à Rússia, via subúrbio alemão de Mascou, e
(2) à fusão dessa matrka com às minúsculas manifestações de operários social
democratas da década de 1890, para à qual clas davam cobermua, encontra-se em
Vrjaceslav Kolomiez, “Dalla ssoria del 1º maggio à Mosca tra la fine del axtncento e
gi inizi del nevecento: é lunghi delke manifestacion?, in Panaccione, 1 fuogbi e à
sogett del 1º maggio, pp. 105-22, nb. pp. L10-11 relativamente ao uso da alegoria da
primavera num contexto política,
25. Nesta literatura, os seguinces títulos merecem atenção: André Rossel. Premier mai: 90
ans de lute populaire dans ie monde, Paris, 1977; Udo Achren, Hastricrte Gesisicie des
Ersten Mai. Obserhausen, 1979, e Zum Lichne Lmpor Maifstecizungem der Sozial-
demolmri, 1491-1914, Berlina e Bonn, 1980; Sven Rodin e Carl-Adam Nycop, Hórstr
Mai, 1890-1980, Listocolmo, 1980; c Lip til kamp: Social demokmains ferra majmarken,
1894-1986, Estocolmo, 1986; U. Ackwen, M. Reicheicc R. Schulez (orgs). Mein Tirer-
Jamal ir intermational. Imermationale illustrierre Gescbchte des ersten Mai vom 1886 bis
ese, Oberhansen, 1986; Fondazione Giangiacomo Eeltrinel, (2gná mn ut maggio
mono: il centenario del Prémo Maggio, Milão, 1988; Comune de Milano, Eondazione
Giagiacomo Brodolini, Zer é centiammi dela fia del lavoro, Milão, 1988: Maurizio
Anranioli e Giovanna Ginex, 1º Magia. Repertorio de mumeri smici dal 1890 al 1924,
Milão, 1988: e, sobrermdo, Panátcione. Ti Memory. Ver também, em relação à Suiça,
Bildarchiv und Dokumenraton zur Geschiche der Arbeiterbewegung. Zurich, 1
Maior mai: Mappe zur Gsechre des 1. Mai in der Seineeiz, Zurique, 1989.
26. Panaccione, Lhe Memory. pp. 856-7.
27. Greussing, Die Roten am Land, p. 168.
28. Claude Willard, Les (ouesdistes, Patis, 1964, p. 237 1.4 W 1. Guesman, The German
Social Demratiz Pare, 1875-1933, Londres, 1981,p. 160,
29. CE Renata Ameruso é Gabriela Spigarel, * 1º maggio ee done, in Pamaceione,
Tibagi é à sogpent del 1º maggio,pp. 9-104
30, Rivas Lara, “EI Primer de Maig”, pp.7-R
31, Aneonioli e Ginex, Reporri, pp: 45. Balesteré Vicente, “E Primer de Maig”. p, 13.
relativamente ao sendo iepicamente intenso de inernacionalidade da manifestação
de 1890 em Barcelona. E Giewanol, em Die Muifiabemegima. Ibme mirechafllichen
id sociolagischem Uprionge úoial Wivisimgen (Rastsrulie, 1925. pp. 90-11, entátiza a
inesperada força desse semimento intermacional revelado pelas primeiras manifeseações
32, 0 porta anarquista Pietro Guri criou seu famoso hino ao Primeiro de Maio (“Doce
Páscoa dus Operários”, para ser cantado com a música do coro de Nabuco, de Verdi,
em 1896, como parte de uma peça de um ato sore o Primeiro de Maio. E. Andreucei
e 1 Det tons.) 7 morimento opera italiono. Diziomario biggrafico, Roma, 1976, vol.
2. p. 526. Ver E]. Hobsbawm, Moriá of Laiyn. Londres, 1984, p. 77 jrrad. port
Mundos do erabalho, São Paulo, Paz e Terra, 1987]
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS ns
33, Jules Destrée e Emile Vandervelde, Le Sociiione em Belgique Paris, 1903, pp. 417:8,
Giovanoli, Die Maifierbemegama, pp. 1143, observa o clemento religioso na linguagem.
84. Ver Holbsbasem, Tb if Labor, cap. 3., “Meligion and the Rise 0é Socialism”,
35. O sentido do Primeiro de Maio como à único feriado associado exclusivamente aus
operários e seu consegjienre efeito na formação da consciência de classe foi observado
desde 0 início, “Este dia é deles. Somente deles”: ]. Diner: Denes, “Der crste Mar,
Der Kampf, Viena, 1º maio 1908. Diner-Denes observa também à conquista do és
paço público pelos operários nessa dasa
36. Hobsbawm, Ti of Labows, p. 75 é, de mancira mais geral, cap. “Lhe Transfor.
mation of Labour Ritual.
87. Antoniohi e Ginex, Rapervoio, p. 23.
38, Greuscing, Die Roten und Land, pp. 18-21
39, 4 análise mais interessante do simbolismo do Primeiro de Maio é o escrito de Gio-
vanna Gánes, “L imagine del Primo Maggio in Ttalia (1890-1945)", in Commune
di Milano, Ter à contam, pp: 37-41, e, da mestma autmrá, “Images om May Day
Single Issue Newspapers (1891-1924): Lheir Funcriun and Meanings”. im 4. Panae-
cione som, May Day Colebratim, Veneza, 1988, pp. 13-25,
40, O papel do Primeiro de Maio no avanço e na catálise da idéia da greve geral — não só
do sufrágio universal — já fo posto em releve por Gioremuli Die Masfjertemeguna,
41 Upp rilhamp,p 12
42, Panaccione, The Menu p. 223
43 Ibid.,p. 363
44 ET Hobsbawm, <I00 Years of May Day”, Liber. 8 jun, 190 (discribuido com o
Limes Literary Sugplement, pp. 10-11
45, Gino, “L immagine”,p. 40
46.O surgimento do cravo vermelho na Itália é acompanhado com mais facilidade no
livro gui amo, da Fondacione Giangiacomo Neitrinel, que inclui a coleção de di-
sões Unicas da Biblioteca Eeltrinelli (contendo, ao que parece, algumas não rei
cionadas no Repertorio) « possui imúmeras ilustrações, À primeira referência à lor de
modo “oficial” parece ser um poema numa edição de 1898 (p. 94), embora tuas
flores não desapareça até 1990. Reativamente 2 explicação de 7 Gierofimo Ru, ver
bad. pe TOS, e Reperrori,p, 130. Quanto à rosa sueca. Up titkamp,pp. 21-3
Pelo menos assim dir Dommanger, Hiroire da Premicr Mai, pp. 3613, Mas ele
Mesmo faz, remontar O uso político do liio-do vale a um impresso austríaco do ci
meço da década de 1890 pp. 175-6). isto é, à um momento em que à associação
políica era com flores da primávera, e não necessariamente vermelhas pelo simho-
lismo: Uma imagem do Primiro de Mai alemão de uma menina vendendo essas
flores, que fui adorada internacionalmente, encontra-se em On amo, p: TOO (Der
Hab Jacob. 26 abr. 898
190 ERIC HORSBAWM
48, incidente toi recapturado com grande intensidade no magnífico filme de Franco
Rossi, Salvatore Gian.
49. U altra Tralia nele budicre dei lavuraton: simboli e calma admita Tela allan-
sento de faciomo, Turim, 1980, p. 276. Esse catálogo de uma exposição de bandeiras
de operários contiscadas pelos faselris constitui magnífica contribuição à história da
ante de idenlogia popular
50. bia, p. 277.
81. Destréee Vandervelde, Le Socialôme ex Belgique, p. 418:
52, Lido all 1º Maggi 1950 (Amtunioli é Ginex, Repertonio. p. 290). Paradoxalmen-
te, isso foi ameevisto pelo burguês iweberiano de Rarcelona, em 1890, o qual previu.
desgostoso, que se os operários insistissem em fazer greve no Primeiro de Maio, isso
significaria “acrescentar mais um feriado aos muitos com que a tradição e à Igreja
sobrecarregaramq calendário”: Balester e Vicente, “El Primerde Maig”, p. 14
53, TFerenezi, “Feastdays”. Liber, 8 jun. 1990,p LL,
54. Victor Adieri Aube, Reden und Bric, Vicna, 1922, vol 1, p. 73.
Capítulo 9
O SOCIALISMO E A VANGUARDA, 1880-1914
de 1880 outras teorias socialistas acerca das artes (por exemplo, a de Saint-
Simon), esta é uma questão que requer mais pesquisa. Contudo, é impro-
vável que fossem consideradas doutrinárias nos novos movimentos socialis-
tas. A ausência nos clássicos de um corpo doutrinário estético obrigou os
social-demoeratas a criá-lo, Os critérios mais óbvios na arte de então que os
movimentos trabalhistas socialistas podiam aceitar — nunca houve divida
quanto à aceitação dos clássicos da arte c da literatura nacionais € interna-
cionais — eram a representação da realidade da sociedade capitalista de mo-
do francamente crítico, de preferência por uma ênfase nos trabalhadores e,
melhor ainda, quando cabia. à expressão da adesão às suas lutas. Isso não
implicava necessariamente uma propensão pela vanguarda. Os escritores «
pintores tradicionais consagrados podiam facilmente ampliar o campos de
seus temas ou de suas simparias sociais c, nas décadas de 1870-1890, mui-
tos pintores se voltatam para a descrição de cenas da vida industrial, de
operários e camponeses, e algumas vezes até mesmo de suas lutas trabalhis-
tas (como em Greve, de sir Hubert EHerkomcr!). Apesar disso. pelos padrões
dos salons oficiais, muitos desses artistas podiam ser vistos como moderada-
mente “progressistas” (Licbermann, por exemplo), é nem eles se viam como
artistas revolucionários.
Este tipo de estética socialista não colocava problemas especiais para as.
relações entre O marxismo e as vanguardas nas duas últimas décadas do
século xrX. Era uma época dominada, pelo menos no que concerne à litera-
tura em prosa, por escritores realistas com forres interesses sociais e políti-
cos, ou que podiam ser considerados como tais. Alguns eram cada vez mais
influenciados pela ascensão do movimento operário, interessando-se pelos
problemas específicos dos trabalhadores. Os marxistas não tiveram dificul-
dade em acolher favoravelmente, em tais bascs, os grandes romancistas rus-
sos (euja descoberta no Ocidente se devia em ampla medida aos “progressis-
tas”), os dramas de Ibsen e de outros escritores escandinavos (Hamsun e
Strindberg, embora à inclusão deste último hoje possa parecer surpreen-
dente). Mas, sobretudo, acolheram os escritores de escolas definidas como
“naturalistas” (Zola e Maupassant, aa Eranças Hauptmann e Sudermann, na
Alemanha), que se haviam ocupado abertamente daqueles aspectos da reali-
dade capitalista que Os artistas convencionais pareciam dar as costas. O fato
de que tantos “naturalistas” fossem, verdadeiramente. propagandistas políti-
cos e sociais, ou mesmo que alguns, como Hauptmann, se aproximassem da
social-demoeracia,? evidentemente facilitava a aceitação dessa “escola” pelos
194 ERIC HOBSBAWM
tos, já que alguns artistas (em especial no campo das artes visuais) sempre
se tinham sentido atraídos pela rebeldia purá dos anarquistas. Todavia, os “mo-
dernos” continuaram a se sentir à vontade nas vizinhanças dos movimentos
operários, e os marxistas — ao menos os que entre eles eram intelectuais
cultos —, nos ambientes dos “modernos”.
Por razões que ainda não foram suficientemente esclarecidas, esses vín-
culos a certo momento se romperam. Podemos formular algumas hipóteses
Em primeiro lugar, conforme ficou demonstrado pela “crise no marxismo”
no final da década de 1890, cra impossível manter a convicção de que o
capitalismo na Europa ocidental estivesse à beira do colapso e que o mo-
vimento socialista estivesse às vésperas do triunfo revolucionário, Intelec-
tuais € arristas que rinham sido atraídos por um movimento operário genérico,
vagamente definido pela atmosfera de grandes esperanças, de confiança e
também de expectativas utópicas, as quais ele alimentava, passaram a se
achar em face de um movimento incerto quanto às suas próprias perspecti-
vas futuras e dilacerado por contrastes internos cada vez mais marcados pelo
sectarismo. Esta fragmentação ideológica era análoga à que estava presente
na Europa oriental: uma coisa era simpatizar com um movimento no qual
todas as correntes pareciam convergir numa direção marxista geral, como
aconteceu no princípio dos anos 90, ou no socialismo polonés, antes da
divisão entre nacionalistas « anrinacionalistas; outra coisa, muito diferente,
era escolher entre grupos de revolucionários é ex-revolucionários rivais e
reciprocamente hostis
No Ocidente, além disso, os novos movimentos se tornaram cada vez
mais institucionalizados, mergulhados numa política cotidiana, bem pouco
fascinante aos olhos dos artistas dos escritores; numa política que se tra-
duzia em práticas reformistas « deixava à perspectiva da revolução furura
entregue a alguma versão da fatalidade histórica. E, com frequência, os par-
tidos de massa institucionalizados, desenvolvendo seu próprio universo cul-
tural, eram sempre menos propensos a favorecer expressões artísticas que o
público operário não compreenderia ou aprovaria. É verdade que os asso-
ciados das bibliotecas operárias alemãs tendiam cada vez mais a trocar os
livros políticos pela literatura de ficção; mas também liam menos poesia e
literarara clássica, e o escritor mais popular entre eles cra um certo Friedrich
Grrstaccker, autor de aventuras folherinescas, muito distanciado das van-
guardas.» Não surpreende que, em Vicna, Karl Kraus, que por sua própria
orientação de dissidente no plano da cultura e da política tinha se aproxi-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 199
Notas
14 abrangente exposição de “pós impressionistas” na Real Academia
de Londres (1979-
80) demonstrou vivamente isto
2. Os dramas de Haupunata, Dir Hier (Os tecelões e Eloriam Ger eram fran-
camente engajados no plano sociopolíico e foram muito apreciados justamente por
3, Gesammelte Sebifien und Aufintee,
in E, Fuchs (ed.), Zur Lireraturgeschichre, Berlim,
1930, vol. 2,p. 107.
+ Veja-se “His wollen die Modemen, von cinem Modernen”, Neue Zeir, 1893-1894,
pp-132e5s 168 ess
5. Miehri Zum Lizerarungesciichre, vol. 2, p. 298 (publicado pela primeira vez em
1898.9)
TESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 205
6. Por idênticas razões, munca conseguiu desenvolver uma ópera “popular”, apesar de
algumas tentativas feitas nessa direção: o compusitr operíxico “revolucionário” Gus-
ta Carpentier imaginou uma hervina de Ópera perencente à clase operária (Louie,
1900) ealguns elementos de “verismo” podem ser encontrados em certas óperas
desse período, como a Camaleriarustizana iMascagai)
E. Thompson, William Morris. Romansiz to Revolurionary, Londres, 1955 (nova
edição em 1977); P. Meier, tar Pnsde uropigue de Wilinm Mor, Paris, 1972.
8 Stuart Merrill, citado em E. WE Herbert, The Artist amil Social Reform: Erance amd
Belga, 1855-1898, New Haven. 1961, p. 1001
9. Entre 06 assinantes da revista anarquista La Révolte, em 1894, encuntrâmos Alfdnse
Dauder, Anatole France, Huysmans, Lecomte de Lisle, Mallarmé, Lot é os expoei
tes do teatro de vanguarda. Antoine c Luhné-Poc. Nenhuma revista socialisra da
Epoca pode se orgulhar de ter entre seus leitores uma constelação análoga de persona-
idades, Contudo, um anarquista dos primórdios, como o pocta Gustave Kahn, era
um grande admirador de Mars, favorável à unidade de todos os homens de esquerda.
Ver Herberr, Thr Artát and Social Reform, pp: 21, L10-1
10. B: Ermers, Victor Adler, Viena, 1932, pp. 236-7.
11H]. Steinberg, Socios una desinche Socinldemokratic, Hanover, 1967, pp. 1325
12. Caroline Koln, Karl Kms, Stutigare. 1966, pp. 65-6
13. Tara 0 anarquismo auseru-alenão, Jiá-se G, Botz, G. Brandsterter é M. Póllack, Du
Seliattender Arbeitenbemegys, Viena, 1977. pp. 83-5.
18 R. Lincmburg, ais, es, je erai Conresondan. IVI4-19, Paris, 1977, pp. 306-7,
15: ldem, ibidem, p. 307.
16,1. Trótski, Literatura é revolução. Trad. Moniz Bandeira, Rio de Janeiro, Zahar 1969.
17.6. Plekhhânor, Kin ml Liseratur, Berlim, 1954, pp. 2845.
18,].€. Hull, La jeune peinture conzemporaine, Paris, 1912, pp. 14-
19, Plekhânow, Kionsr und Literatur, pp. 292 € 295,
20, WE Morris, On Avr and Socialios. Ltolbrook Jackson (cd,), Londres, 1946, p. 76
21, Morris participou pela primeira vez de uh simpósio socialista em 1883, para discutir
à construção de habitações populares,
22. “Considerando a relação existente entre o mundo moderno ea arte, nossa tarefa, hoje
é por muito tempo, será não a de tentar “produzir arte” no senndo próprio da or
pressão, mas sobretudo a de limpar o terreno de maneira a dar à arte suas oporruni-
dades”, W Morris, “The Socialist Ideal”, in On Art and Socialigm, p. 323.
Capítulo 10
O MEGAFONE DA ESQUERDA
intelectual que durante toda à vida teve uma saúde má € que sustentava
idéias avançadas: a comunidade dos prósperos anglo-judeus que combina-
vam religião ortodoxa c serviço comunitário com umá entusiasmada assimi-
lação cultural ao inglês, Provavelmente jamais gostou muito do anti-semi-
tismo que o rodeava e que fez com que membros do governo britânico a ele
se referissem como um “hebreu choramingas”: Hugh Dalton a chamá-lo de
“um semita anão”; e um necrológio conservador, de “uma mente alienígena,
imbuída c impregnada de uma filosofia alienígena”. Contudo, o empenho
em se fizer parecer, durante toda a vida, “um enfant terrible entre espec-
tadores admirados” (Lionel Robbins) indica uma insegurança que seus ami-
gos intelecruais judeus norte-americanos -- um Erankfurter, um Lippman
ou um Brandeis — não precisavam ter, pocque havia maior número deles.
Até que ponto isso explica o fato de a controvérsia pública ter marcado
permanentemente a carreira de Laski é impossível dizer. O padrão por si só
É óbvio. Ele ficou do lado errado das autoridades por motivos políticos em
seu primeiro cargo docente em MeGill, em Montreal. Sua saída de Harvard,
em 1920, foi submersa em um tumulto político. Depois de um começo
tranqúilo, sua carreira na Escola de Economia de Londres (onde lhe foi
atribuída a cadeira de Ciência Política, em 1927) foi tormentosa. A crise
chegou ao máximo no início de 1930, quando O então diretor Beveridge (o
do Relatório Beveridge) alegou que suas opiniões e comportamento subver-
sivos cra incompatíveis com O cargo que ocupava. Sua carreira no Partido
Trabalhista foi o contrário de tranquila c seu momento de maior vitória,
como presidente da Exccuriva Nacional do partido. no ano da vitória clei-
toral de 1945, foi também seu ano de desastre. Queimou seus cartuchos
com o Partido Trabalhista ao pedir que Arce renunciasse, tornou-se o bicho-
papão de Churchill na campanha eleitoral, e perdeu um processo impru-
dente contra um reacionário insignificante que o acusara de defender à re-
volução violenta. O problema não cram as opiniões que, acertadamente ou
não, Laski era acusado de defender, mas sim sua disposição manifesta de
provocar esse tipo de reação pública em ambos os lados do Atlântico, É
irônico que, em grande parte de sua carreira, Laski não foi uma figura espe-
cialmente radical, Sua tragédia foi ter continuado a ser o enfint terrible durante
toda a vida.
De maneira bastante estranha, um dos poucos que não só reconheceu
isso como também o pentoou por isso foi seu grande adversário nos dias glo-
riosos da Escola de Economia de Londres, Lionel Robbins, o economista que,
no FRIC HOBSBAWM
com seu colega Eriederich von Hayek, representava tudo quanto Laski abo-
minava. Robbins, intelecto verdadeiramente de primeira ordem, que se es-
tabeleccu numa carreira entre os maiores e melhores dos Grandes « Bons,
foi um dos poucos amigos de Laski entre seus colegas — e seu constante
defensor. De faro, após a morte de Laski, Robbins e algumas outras pessoas
ficaram tão ofendidos pelo péssimo trabalho feito pelo necrologista do Times,
que prepararam um segundo necrológio no qual se pretendia “transmitir as.
qualidades pessoais do falecido professor Laski que o faziam querido de
tantos amigos seus” bem como “as qualidades que lhe valeram tão notável
influência no movimento operário”. Robbins reconhecia em Laski não só
“sua personalidade quase juvenil — uma carência de equilíbrio emocional
que chega a ser dolorosa” e sua solidão, mas também sua “inteligência rá-
pida c seu senso de humor”, seu senso do absurdo — e, não menos, sua
generosidade c bondade. (A propósito, o fato de 0 Times haver publicado
esse segundo necrológio foi algo sem precedentes.)
O que na verdade Laski conscguiu realizar? Uma tolhcada nos Índices
de Citações de Ciências Sociais e Lumanidades mostra que seus 25 livros
não sobreviveram. Contudo, ele cra um homem de muitos dons. Leonard
Woolf, que sabia o que Keynes e Russell cram capazes de fazer, promoveu em
Londres um encontro de simpatizantes do Partido Trabalhista com Gandhi,
no qual ficara atônito por “uma das mais brilhantes exibições de pirotecnia
intelectual como jamais ouvira antes”:
Harold . . fez o sumário mais lúcido cperfeito das várias e complicadas
exposições de dez ou quinze pessoas a que havia escurado durante à
hora e meia anterior. Falou por cerca de vinte minutos; fez um esquema
perfeito do padrão dentro do qual os diversos pronunciamentos e opi-
niões sé harmonizavam logicamente; não hesitou uma só vez cm busca
de uma palavra ou de um pensamento e, na medida em que pude ver,
em momento algum deixou algo de lado. TTavia uma espécie de beleza
em suã exposição, uma segurança e uma simplicidade integra como as
que se pode sentir em algumas obras de arte
Era um ator sem comparação no teatro da preleção, como quem quer
que o tenha ouvido alguma vez poderá confirmar. “Sabia-se que ele estava
fazendo sua preleção quando, de poucos em poucos minutos, uma grande
explosão de riso podia ser ouvida por todo o resto do prédio . Os estudan-
tes pós-graduados de outras disciplinas . . costumavam ir às preleções de
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS m
Laski “quando queriam relaxar, quase como poderíamos ter ido ao cinema
ou ao teatro!” Era um professor genial e não consigo imaginar ninguém
melhor do que ele para estimular os estudantes, particularmente os provin-
dos dos Estados Unidos e dos lugares que, então, ainda não cram chamados
de terceiro mundo. Ninguém os estimulava mais do que ele, Exclusivamente
graças a Laski, à Escola de Economia de Londres tornou-se, nas palavras do
senador Daniel Moynihan, “a instiuição de ensino superior mais impor-
tante na Ásia e na África”. Pois para a maioria dos estudantes de além-mar
— e quando ele chegou lá, trezentos dos 2.500 alunos da Escola cram “es-
trangeiros ou das colônias? — ele era a Escola. Um idoso historiador de Bo-
gotá disse-me certa vez que fora Laski quem O inspirara para a obra de sua
vida, escrever a história da opressão dos índios desde a Conquista. Estivera na
Escola de Economia de Londres na década de 1920. “O que aconteceu com
aquela instituição?”, perguntou. “Ainda existe?”
Contudo, à fada madrinha, que derramara com abundância sobre o
pequeno Laski tantos dotes mentais, recusara-lhe dois deles, Não foi um
pensador original nem um escritor natural, e nunca se tornou um bom
escritor pois escrevia demais, depressa demais e sobre assuntos demais, sem
autocrítica nem revisão. Mesmo na época em que tinha maior influência,
não era levado muito a sério como teórico na esquerda intelectual, embora,
com Shaw, Wells, Marx, G. D. H. Cole e Tawney, estivesse entre os autores
que haviam tido maior influência sobre os membros trabalhistas no parla-
mento de 1962. Diferentemente de Tawncy, não produziu texto algum que
desse forma à visão do socialismo; diferentemente de Cole (menos emi-
nente no plano político, porém muito mais influente), não produziu história
alguma dos movimentos que todos encaravam como sucessores maturais da-
queles dos Webbs. Os académicos saudaram polidamente seus primeiros textos
pluralistas, resquícios de seu sindicalismo juvenil, sem na verdade recomen-
dá-los, (Eles podem ter uma reaparição modesta como parte da moda fa-
vorável à retórica anti-estatal pós-1989.) Sua obra máxima, 4 Grammar of
Políries (1925), mal chegou a flutuar é logo sumiu de nossas vistas.
Contudo, nada disso foi obstáculo no caminho de sua extraordinária
proeminência entre 1931 € 1945, De certo modo, como observou de modo
arguro John Strachey, “os temas não resolvidos que estão presentes em seus
livros, artigos € discursos ... [foram] sua maior força. Foi exatamente isso
que lhe permitiu dominar as mentes de toda uma geração do Movimento
Trabalhista Britânico. Afinal, as contradições estavam também em nossas
22 ERIC HOBSBAWM
OS CAMPONESES E A POLÍTICA
“cada vez mais seculares, é assim por diante. É preciso acentuar que a diferença
não é entre sociedades “tradicionais”, sem política, e sociedades “modernas”,
com política. Política existe em ambas. Também não há diferença entre uma
cra em que a política é à proteção das classes superiores é outra em que as
pessoas comuns, inclusive os camponeses, tornam-se fatores permanente-
mente ativos na política. Não obstante, na Europa, a política do período
anterior e posterior à Revolução Francesa são distintos em seus procedi-
mentos e em sua orientação. À maior parte da história é a de camponeses
tradicionais em política tradicional, mas este artigo preocupa-se sobretudo
com O que sucede quando os camponeses tradicionais se vécm envolvidos
na política moderna: situação de transição, mas que, em muitas partes do
mundo, tem interesse prático € não meramente histórico.
Tratemos à seguir da questão que é básica para o problema dos cam-
ponéses na política: em que medida podemos falar do campesinato como
classe? Claro que objetivamente ele pode ser definido como uma classe “em
si” no sentido clássico, ou seja, um conjunto de pessoas que mantém o
mesmo tipo de relação com os meios de produção, bem como outras carae-
terísticas econômicas é sociais comuns. Porém, como observou acertada-
mente Shanin, entre as classes desse tipo o campesinato é “uma classe com
escasso caráter de classe”,* em comparação, digamos, com a classe operária
industrial, classe com “caráter de classe” muito elevado, no sentido em que
grande parte de sua política pode ser diretamente derivada de suas relações
específicas com os meios de produção.
Mas cm que medida cla é uma “classe para si” — uma classe consciente
de si mesma como tal? Nas sociedades tradicionais e, portanto, para a maior
parte da história, os camponeses encaravam-se, e de fato eram, o tipo básico
da humanidade, uma vez que certamente constiruíam a grande maioria de
rodas as pessoas que viviam no mundo que conheciam, ou aliás em qual-
quer parte do mundo. Em certo sentido, as pessoas ou seres humanos cram
pois tipicamente camponeses, e o resto eram minorias atípicas. Em segundo
lugar, os camponeses tinham consciência muito clara de que cram diferentes
das minorias não-camponesas « que quase sempre eram subordinados « opri-
midos por elas, das quais não gostavam e nas quais não confiavam. Isso se
aplica não só à pequena nobreza e aos senhores (onde existe senhorio), mas
também aos comerciantes e à gente das cidades, exceto, talvez, os parentes
de camponeses que ficavam por algum tempo em cidades, sem realmente se
tornarem gente da cidade. Claro que no século XX essa situação mudou é à
ÁRIAS 2
distinção bem marcada entre cidade é campo já não se pode manter, dada a
Landflucly cm massa dos camponeses. Ainda assim, os camponeses tradi-
cionais tendiam à desconfiar e a não gostar de ninguém que não fosse cam-
ponês, porque a maioria das demais pessoas pareciam participar de uma
conspiração para roubá-los e oprimi-los, sempre estavam acima deles, fos-
se qual fosse a hicrarquia social estabelecida.
Leonardo Seiascia, escritor siciliano, publicou uma canção de colheita
descoberta num certo obscuro jornal local de 1876, na qual os campones
enquanto faziam a colheita, entoavam uma ladainha de ódio contra todo
aquele que não fosse camponês de foice na mão, uma canção de ódio —
mas também de ódio a si mesmo e de desesperança, porque o camponês
está acorrentado à ordem social da qual seus exploradores fazem parte? É a
voz daqueles sobre quem La Bruyêre escreveu na França de Luís XIV:
Espalhados por todo 9 interior, pode-se observar certos animais selva-
gens, machos e fêmeas, sombrios, pálidos e tostados pelo sol, presos à
terra que cavam é revolvem com obstinação insuperável. Contudo, pos-
suem algo como uma fala articulada « quando se crguem deixam ver um
rosto humano, De fato, são seres humanos... Graças à cles, os demais
Seres humanos não precisam semear, cultivar € colher para viver, Por isso
é que àeles não deve faltar O pão que semearam.º
Explosões de ódio como esta podem ser raras — embora não sur-
preendam na Sicília do século xIx — mas não é excepcional o sentimento
subjacente de distanciamento e rancor dos que alimentam os outros, mas
são por eles olhados como sub-humanos. De fato, a gente do campo é
muitas vezes fisicamente diferente da gente da cidade, mesmo quando não
há diferença alguma de raça, cor, língua ou religião. Seu comportamento,
seus costumes são diferentes. Na Sicília, os “gorros” (os que usam o gorro
de meia velha ou o capuz frígio da Revolução Francesa) são os inimigos de
classe dos “chapéus”, Na Bolívia, nas poucas ocasiões em que os campone-
ses se afirmaram coletivamente contra os da cidade, como no levante de
18997 agrediram todos os “que usavam calças” e impuseram aos citadinos
à costume dos camponeses (ou seja, a roupa indígena)
O sentimento de um distanciamento comum em relação aos não-cam-
poneses pode haver produzido uma vaga “consciência camponesa”, permi-
tindo que até mesmo camponeses de regiões diferentes, com dialetos, roupas e
costumes diferentes, se reconhecessem uns aus outros como “camponeses”,
20 ERIC HOBSBAWM
pelo menos nas relações pessoais. Do mesmo modo que entre os “trabalha
dores pobres” em geral se encontra um sentimento de que “eles são pobres
diabos como nós”, ou de que “quem ajuda o pobre é o pobre”, assim tam-
bém acontece entre os camponeses tradicionais. Os guerrilheiros do Partido
Comunista em Marquetalia (Colômbia), movimento puramente camponês.
ao perambularem após serem expulsos de suas bases em 1964-5, gozavam
dessa espécie de reconhecimento € apoio espontâneo entre a gente do campo
de um modo que estudantes guerrilheiros não conscguiziam automaticamente:
Seus líderes tinham grande prestígio entre os camponeses, mesmo nas
áreas conservadoras . . Os camponeses acreditavam que eles possuíam
poderes mágicos que os tornavam invulneráveis, mas em caso algum
pareciam ver neles um meio de romar o poder, nem mesmo de ocupar à
terra. Antes, pareciam ser outros camponeses pobes, injustamente per-
seguidos pelos poderosos, pelos interesses urbanos, e à quem era ne-
cessário prestar a solidariedade dos desamparados.*
Essa vaga consciência da “camponesice” como uma subvariedade espe-
cial da subalternidade, da pobreza, da exploração e da opressão, não tem
limites geográficos, uma vez que repousa sobre o reconhecimento mútuo,
pelos camponeses, da semelhança de sua relação com a natureza, com à
produção e com os não-camponeses, Idealmente, à humanidade é 0 limite
dessa consciência, e a ação política que a cla corresponde é o breve porém vasto
movimento ou vagalhão milenarista que, pelo menos em teoria, abrange todo
o mundo. Tais movimentos, porém, são necessariamente tão breves, quanto
ecuménicos em seu alcance, precisamente porque sc baseiam no reconhe-
cimento de semelhança ou identidade, mais do que sobre a base mais firme
de um sistema concreto de inter-relações econômicas e sociais. Entre cam-
poneses tradicionais, a unidade dessas inter-relações é muito menor e mais
restrita — a “comunidade” ou, de modo mais geral, o “pequeno mundo”,
dentro do qual as transações entre as pessoas são sistemáticos. Onde os
vagalhões milenaristas são autenticamente cspontâncos, se espalham de mo-
do característico por “contágio” de uma comunidade paraa seguinte, a cur-
va de sua difusão sendo semelhante à de uma epidemia.
O apequeno mundo” pode, de fato, variar consideravelmente de ta-
manho, população c complexidade. A unidade básica da vida camponesa
tradicional, a comunidade, constitui apenas uma de suas partes. Dentro des-
sa área — pequena ou grande, mais ou menos complexa — as pessoas sa-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS E
bem umas das outras é são visíveis a divisão social do trabalho e o sistema
de exploração c estratificação. Neste caso, uma plena “consciência de classe”
camponesa é concebível, na medida em que a diferenciação dentro do cam-
pesinato é secundária em relação às características comuns à todos os cam-
poneses e aos scus interesses comuns contra outros grupos, e na medida em
que a distinção entre eles e outros grupos scja suficientemente claça. E isso
pode de fato acontecer: a solidariedade de todos os camponeses contra ter-
cciros pode contrabalançar os conflitos internos entre cles.? Nos vales de La
Convención e Lares (Peru), durante os primeiros anos da década de 1960,
desenvolveu-se um movimento camponês unificado contra os senhores neo-
feudais, embora houvesse, entre seus participantes, grupos camponeses que
se exploravam uns aos outros.!º Por outro lado, tanto as divisões laterais
dentro de uma área como essa — por exemplo, entre comunidades cam-
ponesas — quanto a personalização das relações sociais — por exemplo,
mediante o clientelismo ou o parentesco artificial (compadrasgo) — inibem
uma consciência de classe permanente. O comerciante ou o recrutador de
mão-de-obra não é meramente um tipo, mas uma pessoa, parente ou compa-
“re daqueles com quem negocia e à quem explora. A comunidade pode
estar em litígio não só com a grande propricdade que se apossou de sua
terra comum, mas também com outras comunidades limítrofes, e por vezes
poderá ser politicamente oportuno aliar-se à grande propriedade contra seus
vizinhos,
Não obstante, seja qual for 6 tamanho c a complexidade do “pequeno
mundo”, sempre se sabe não apenas que ele é limítrofe dé outros “pe-
quenos mundos” análogos ou à eles se sobrepõe, mas também que faz
parte de um mundo muito mais amplo. Problema fandamental para a polí-
tica dos camponeses tradicionais é a relação entre 6 microcosmo «o macro-
cosmo, Por si sós, não conseguem resolver esse problema, uma vez que sua
unidade de ação política é ou a região (na prática), ou a raça humana (con-
ceirualmente): a paróquia ou o universo. Na verdade, porém, a árca dos
desenvolvimentos c decisões mais importantes encontra-se em algum ponto
entre es es extremos, € nem suas fronteiras, nem suas estruturas são deter-
múnadas pela economia ou pela sociedade do microcosmo camponês.
Nem são clas realmente conhecidas a não ser, por assim dizer, de ou-
vido. Isso é óbvio para o ccúmeno. Aos jornalistas que perguntaram a cam-
poneses peruanos organizados sob slagans castristas onde ficava Cuba, cles
responderam que ficava “em outro departamento do Peru”. Um camponês
22 ERIC TOBSBAWM
paro dos camponcses fora dos limites de sua região será ainda mais impor-
tante para a compreensão de sua política em períodos mais antigos da his-
tória e em países maiores.
HI
É enorme o poder potencial de um campesinato tradicional, mas seu
poder e influência reais são muito mais limitados. A primeira razão impor-
tante para isso é seu sentimento constante, e em geral bastante realista, da
própria fraqueza c inferioridade. A inferioridade é social e cultural, por exem-
plo como a de analfabetos frente aos “instruídos”: daí a importância, para
os movimentos camponeses, de amigos intelectuais residentes no local, so-
bretudo o mais admirável dos intelecruais de aldeia, o professor primário.
Sua fraqueza baseia-se também não só na inferioridade social é na falta de
uma força armada eficiente, mas na natureza da economia camponesa. Por
exemplo, as agitações camponesas têm de ser interrompidas para a colheita.
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS =”
Por mais militantes que sejam os camponeses, o ciclo de sua labuta os acor-
renta à seu destino. Vale a pena especular se a economia da batara — cultura
que requer pequeno trabalho regular — desempenhou na Irlanda o papel de
tornar possível a notória frequência da “agitação agrária” naquele país du-
rante 0 século XIX, Mas, no fundo, os camponeses são e se sentem subalter-
nos, Com raras exceções, visam à um ajustamento na pirâmide social e não
à sua destruição, embora seja fácil conceber a sua destruição. O anarquismo,
isto é, o desmantelamento da superestrutura de domínio e exploração, per-
mite à aldeia tradicional ser uma economia « sociedade viável. São poucos,
porém, os momentos em que es a utopia pode ser imaginada e menos ainda
realizada.
Claro que, na prática, não faz grande diferença se os camponeses lutam
por uma sociedade diferente e nova por completo, ou se pelo ajustamento
da antiga: normalmente isso significa ou à defesa da sociedade tradicional
contra alguma ameaça, ou à restauração de antigos modos de vida os quais,
se estiverem suficientemente afastados no passado, podem simplesmente
dundar numa formulação tradicionalista de aspirações revolucionárias. Re-
voluções podem ser feitas de facto por camponeses que não negam à legiti-
midade da estrutura de poder, da legislação, do Estado e até mesmo dos
grandes proprietários de terra existentes. Temos exemplos de campesinaros
que parecem negar totalmente à legitimidade das grandes propriedades, na
Rússia cragista por exemplo, mas não a legitimidade dos direitos supremos
do governante sobre todas as propricdades, É cvidente que não sabemos,
precisamente, o que implica essa negativa na teoria, ou o que significa na
prática. Que diferença cxiste entre Os servos russos que sustentavam per-
tencerem aos senhores, mas que a terra era deles e não da pequena nobreza,
e os índios andinos que acreditavam ser legítima a prestação de serviços de
mão-de-obra aos governantes incas e aos espanhóis, mas queixavam-se do
pagamento do arrendamento em dinheiro ou espécie, « cujos descendentes
parecem não ter contestado a existência de vastas propriedades rurais como
tais? Podemos somente especular a respeito. Um movimento que reivindica
apenas à “recuperação” de terras comunais ilegalmente alienadas pode ser
tão revolucionário na prática, quanto teoricamente Iegalista. Também não é
fácil traçar a linha divisória entre legalista € revolucionário O movimento
zapatista em Morelos começou opondo-se não a rodas as haciendas, mas
simplesmente às novas que haviam sido introduzidas ao tempo de Porfírio
Diaz; é isso porque os anos do marco geodésico eram usados para definir os
E ERIC HOBSRAWM
minante, tais como eleições « comp d'tat, que mal os afetam diretamente,
podem ser interpretados de forma correta como animadores ou desanima-
dores, Podem não saber exatamente 0 que está acontecendo na capital, mas
se o senador local deixa de scr da família “A”, enquanto a família “B”, sua
rival, parece estar por cima, haverá importantes reavaliações locais, sem d
vida primeiro entre Os habitantes das cidades, mas no tim também entre os
habitantes das aldeias. A Revolução Mexicana — mesmo na Morelos de
Zapata — começou não tanto como uma revolução, mas como uma ruprura
do equilíbrio político local há muito existente, o qual, por sua vez, dependia
do funcionamento tranquilo « da permanência do sistema de governo na-
cional de Don Porfirio.
Se qualquer mudança nacional mais importante pode abrir novas pos-
sibilidades locais, ou fechar outras, antigas, então a firtiomi notícias de re-
forma ou de mudanças de algum modo favoráveis mobilizam os camponeses.
Assim, quando um governo reformista apoiado pelo partido APRA (Aliança
Popular Revolucionária Americana) chegou ao poder cm Lima, em 1945,
as comunidades que vinham funcionando de acordo com o pressuposto da
estabilidade mudaram prontamente sua tática, Santa Rosa, que vinha nego-
ciando tratados de divisas com as propriedades vizinhas, anunciou que “agora,
com o novo governo, podemos fizer o que quisermos « denunciamos os
atuais tratados com a Ganadera” (Sociedad Ganadera del Centro)! Marc
Ferro assinala que às resoluções enviadas pelos camponeses, imediatamente
após a Revolução de fevereiro na Rússia, e sem dúvida redigidas pela inteili-
“gemasia das alácias, ao contrário das dos operários, “exigiam” muito mais
frequentemente do que “se queixavam” ou “solicitavam”, c também que
“expressavam mais fregilentemente do que os operários o desejo de punir os
senhores do antigo regime”. É como se as aldeias, sempre conscientes da
força potencial existente no próprio interior de sua subalrernidade, apenas
exigissem, por parte das autoridades superiores, a segurança da boa-von-
tade, ou mesmo da mera tolerância, para crguerem a cabeça. Inversamente,
é claro, qualquer indício de que o poder, uma vez mais, irá reprimi-los faz
com que se recolham às suas conchas. Assim como o governo reformista de
1945 produziu uma onda de desassossego c de organização agrárias, a im-
posição do governo militar de 1948 fez com que as invasões de terra e os
sindicatos de camponeses se derivessem subitamente — até que, sob um
novo governo após 1956, os camponeses àos poucos se dessem conta de
que a situação estava novamente mais aberta
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 231
O burguês esperar deste governo espanhol, que de todo o modo não vale
muita coisa?”.:s E contudo, quanto mais longe estejam os centros de de-
cisão da estrutura conhecida « compreendida do poder local, mais inde-
finida será a linha divisória entre juízo verdadeiro, esperança e mito (tanto
no sentido coloquial como no de Sorel). Os sinais pelos quais os homens
previam a chegada do milênio cram, em certo sentido, empíricos — como
aqueles pelos quais previam O tempo — mas, em outro sentido, eram ex-
pressões de seus sentimentos. Quem poderia dizer se na realidade havia
“uma nova lei” ou um cavaleiro trazendo à proclamação do czar em lerras
douradas doando as terras aos lavradores, ou se simplesmente deveria ser
assim?
Pode-se levar um passo adiante a hipótese e supor, de modo inverso,
que a decepção da esperança dentro de uma situação concretamente ava-
liável seria menos duradoura do que aquela de esperanças globais ou apo-
calípticas. Quando as tropas chegam c expulsam a comunidade das terras
que ocupa, cla não ficará desmoralizada, mas aguardará o próximo mo-
mento adequado pará à ação. Mas quando a revolução esperada fracassa,
levará muito mais tempo para restabelecer o moral dos camponeses, Assim,
Malcfakis?* sugeriu que parte da tragédia da Segunda República cspanhola
de 1931-1939 está no fito de que 0 movimento camponês de base não se
deu conta de que uma nova era de possibilidades se iniciara, até 1933 —
quando os melhores momentos para forçar o governo republicano à re-
forma agrária já haviam sido perdidos. Após o fracasso do rrienio bolchevista
foi preciso mais do que a queda de um rci para fizer renascer sua esperança.
Iv
que trazem para seu novo mundo os modos de agir e de pensar de seu
antigo mundo, à história continua a ser uma força política atual. Não seria
prudente desprezar esse fato.
Notas
1 Kaziimier, Dobrowulsk “Peasanr Traditional Culture”, in Teodor Shanin (org
Pensants and Pensant Socicries. Lundres, 197].
2. Karl Mars. he Eipieenti Mramaire of Lonis Bonaparte, 1852.
3: CÊ um comentárioda época subre um conflito entre estratos rurais na Alemanha do
século vt: “É curioso que us súditos do Senhorio de Mesekirch devam ter se rede.
lado conera seu senhor, Guríricd Werner, porque não puderam oferecer qualquer
ravão válida ou urgente para sua ação. Simplesmenre reclamam que, nas aldeias, fo-
ram passados para tis pelos Javeadores e diaristas que queriam usar a terra de pas-
tagene, é que els não podiam viver em suas fazendas à mancirá de antigamente, Mas,
na verdade, a maioria dos trabalhadores compunha-se dos filhos, genros ou parentes
próximos dos agricultores”: David Sabean, *Famil renure paysanne: aux origines de
la guerre des pavsans en Alemagne”, Anales. Lcomomies, Soidrá, Ciniliatims
jul-out. 1972, p. 904.
4 Teodor Shanin, “The Peasantry as à Pobitical Facto”, in Shanin, Praca
5. Leonardo Seiascia. La conta pasca: srttori e oe della Siilia. Tucim, 1970, pp: B0-3.
6. Jeat de la Bruere, tas Caraetérs, Paris, LEGO, pp. 292-3
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de 1899 La Paz, 1965.p: 290.
8. Pierre Gilhodis. "Agrarian Struggles ia Columbia”, in R. Savenhagen (org): Agrariam
Problems amd Prasame Movements in Latin America, Nova York, 1970, p. 445
9. Teodor Shanin, The Ariniand Clas: Iniical Saia of Pracameryé à Develging Sociore
Rusia, 1910-1925, Londres, 1972,p. 161
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=Problêmes agraires à La Convención (Pérou”. in Les Probiêmes agraires des Améri-
ques Latines, Paris, 1967, pp. 385-94; E. J. Hobsbuwm, “S Case of Neo-feudalism:
Li Convencióry”, Journal of atin Amerizan Studies, 1/1, 1970.
21, John C. Hammock e Jefirey A. Aste (orgs ). Hlabiam líderes compesinos, Quito, 1970.
pp. 19-20.
12. 1bid. p. 13
13. Jean À. Meyer Lu Crisriada, dl Estadoy el pueblo en la Revolución mexicana (1926-
1929), 3 vols., México, 1973.
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 239
14. Edward Dew, Polis i she Alriplano: The Dimas of Change im Roiral Peru, Austin e
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15. Hanva Alavi, Peasanes and Revolutioa”, in R, Mibband é J. Savile torgs.) The
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16. Maureen Perri, “The Russian Peasant Movemenir 0É 1905-7: Its Social Composition.
and Revolucionary Significance”. Pasr and Presenr 5 Doe, 972, pp. 12355,
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19, Daniel Held, resenha de S, B. Okune K, Y.Sivkav (orgs), Krestianske Dvizheniev
Rossiv 1857-mac 1961 gg”, Koirita 3/3, primavera de 1967, pp. 34-55; Tuan Mar-
tinez Alice, “Peasants and Labourers in Southern Spain, Cuba, and Llighland Peru”,
Juma! of Deasams Studics, 1:2. 974,
20, Field, resenha de Okun é Sivkos; p. 49, Eicld sugere que mesmoo monarquismo dos
camponeses russos era cm grande medida um truque defensivo: eles já tinham pro-
blemas demais sem se sobrecarregar com uma reputação de deskekdade ao Estado
pp. 49:50), Provavelmente, isso é levar longe demais à pragmatismo dos campome-
ses, mas há algu de verdadeiro nessa opinião.
21, E. J, Hobsbawam. <Peasant and Land Invasions”, Pasr and Preenr, 62, 1974.
22, Mare Ferro, La Resolution Rate de 1917; la chute de rsariome ex les origies Octobre
Toris, 1967, p. 186.
23, Martinez Alier, “Peasants and Labourers”
24, Vickd. resenha de Okun e Sivtos, p. 54
25. Juan Diaz del Moral. Fito de is aglaciones campinas Anealuzas, Madi, 1967, p. 468
26. Edward E. Malefákis, Agranian Reform and Prasanr Resolution in Spain: Origins ofihe
Chvit Hr, New Haven é Londres, 1970,
27. Perrie, “Russian Peasait Movement”, p. 136
28. Maurice Dvenger org), Pare golitigues cs class oialesem Frame, Dáris, 1955. p. 235.
29. Ibid, p 157.
30. Sidney G. Tarrow, Prasmnr Communion is Southern Lab New Haven e Londres,
1967, pp. 134c 144.
81, Mar, Elgbeoenth Brumaire
32. John Diunican Powel, “Peasait Society aud Cliemelist Poliri ' Americam Potvical
Seience Review 64.2 jun. 1970, pp. 41-25.
Capítulo 12
OCUPAÇÕES DE TERRA POR CAMPONESES
mos do sistema oficial legal vigente, quanto das normas legais realmente
aceitas pelos camponeses. Essas duas coisas não coincidem necessariamente
A terra a ser ocupada pode pertencer aos camponeses mas ter sido alienada,
legalmente ou não, de um modo que eles não reconheça como válido, Por-
tanto, à invasão da terra corresponde à recuperação de sua própria terra
Assim É que os camponeses de Oyon (nos Andes, a nordeste de Lima)
negaram haver invadido as terras da Sociedad Agrícola y Ganadera Algolan,
em agosto de 1963, uma vez que as terras em litígio — algumas pastagens a
cerca de 5.000 metros de altitude — eram e sempre haviam sido deles.? Em
segundo lugar, à terra ocupada pode não pertencer a ninguém ou, em ter-
mos legais, perrencer ao governo como terra pública. Neste caso, o processo
de colonização ou grilagem pelos camponeses somente se torna uma “in-
vasão” quando há alguma disputa à respeito do título legal. O caso mais
comum é aquele em que essa terra é reivindicada simultaneamente pelos
camponeses e pelos grandes proprictários de terra, nenhum dos quais pode
ter, nem teria, na maioria dos casos, direito de propriedade válido perante a
legislação oficial, Essa situação é comum nas regiões de fronteira não colo-
nizadas de diversos países sul-americanos, embora não ocorra com frequén-
cia no Peru, exceto nas encostas subtropicais amazônicas dos Andes e, às
vezes, em extremos remotos dos vastos trechos não cultivados das terras
pertencentes a alguma grande fazenda, que tendem a ser consideradas pelos
camponeses como terra-de-ninguém, como é compreensível.
Neste caso, o argumento legal é diferente, uma vez que não se pode
recorrer a títulos, nem mesmo a costume e prescrição. Antes se trata de que
a terra pertence à quem a cultiva por meio de seu trabalho. Esse argumento
era aceito pela legislação colonial espanhola, que adjudicava as terras de-
socupadas (rierras baldias) a quem as limpasse, semeasse ou de alguma outra
forma as cultivasse dentro de um dado limite de tempo, fixando o tamanho
da propriedade segundo a capacidade de cultivá-la de quem a detinha O
Código Civil da Colômbia, por exemplo, reconhecia esse modo de posse
entre outros, c a Lei 200, de 1936, aprovada em consegiiência de uma
agitação agrária em larga escala, fez dele o principal critério de propriedade
das terras desocupadas. Neste caso, recorre-se não à um título legal ou seu
equivalente (por exemplo, o dircito prescritivo). mas sim a um princípio
geral. Assim, em 1963, 350 possciros organizados numa Asociación de Nue-
vos Colonos ocuparam duas propriedades na zona subtropical de Tingo
PESSOAS EXIRAORDINÁRIAS 248
não se distinga do dircito por posse imemorial, uma vez que isso significa
simplesmente que incontáveis gerações de camponeses têm cultivado deter-
minada porção de terra, ou têm nele pastoreado scus animais. Daí, talvez, o
faro de jamais me haver deparado com uma invasão que se justificasse pura-
mente pelo slogan “a terra para O lavrador”, a não ser quando ideologias
políticas modernas entram no assunto. Isso não quer dizer que seja insigni-
ficante. Em Cilento (sul da Irália), antes da Revolução de 1848, “todos os
dias de Natal os camponeses se dirigiam até as terras que reivindicavam,
realizando ali trabalhos agrícolas, procurando, desse modo, manter 0 prin-
cípio ideal de posse de seus direitos?” Durante a Revolução de 1848, na
mesma região, 800 camponeses, tendo derrubado os muros e as cercas em
antigas terras comuns usurpadas, voltaram à marchar no dia scguinte, “a
maioria deles portando pás, picaretas e bastões, apenas cinco ou scis deles.
com armas, manifestando-se com os gritos de “Longa vida ao Rei é à Cons-
tituição! Queremos cavar a terra. Estamos morrendo de fome. Queremos
ter de volta nossos antigos direitos perdidos”” Na Sila calabresa, 400 ho-
mens com tambores € a bandeira nacional, em parte armados, foram vistos
cavocando o chão e, quando indagados por que o faziam, alguns respon-
deram: “Eles pretendem conseguir seus antigos direitos, e isso preparando
suas terras comuns para o alqueive e pagando uma medida local de tomolo
para cada romolaza de terra”. Em 1873, em Pozoblanco é nas comunas
vizinhas, na Andaluzia, os camponeses reivindicaram o retorno é a divisão
de algumas terras comuns, com o fundamento de que os que labutavam
tinham mais direito a elas do que aqueles que pagavam salários miseráveis à
empregados, com dinheiro mal ganho. É conhecida a importância do “prin-
cípio do trabalho” na teoria camponesa russa. Em suma, para os campone-
ses, a posse sem trabalho é impensável, uma vez que toda a terra que tenham,
deve ser utilizada,
Porém, se a posse imemorial é título suficiente, tal posse validada por
documentos verdadeiros é ainda melhor. Dada à natureza do sistema colo-
nial espanhol, há muitas comunidades indígenas que possuem esses docu-
mentos, € eles são mencionados tipicamente para legitimar a invasão de
terras. Assim, a comunidade de Tusi citou títulos que vinham de 1716,
tendo sido “expedidos em Roma e no Egito”, segundo seu porta-voz;!" os
invasores de cinco grandes propriedades no departamento de Huancavelica
as reivindicavam baseados em títulos da mesma data; a comunidade de Huay-
lacucho (Luancavelica) apresentou títulos que remontavam a 1746: e assim
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 245
Big
ni
a crise mundial alguns anos depois tornaram ainda mais delicada essa po-
sição da zona de criação.
Nessa época, Huasicancha, muito reduzida, parece ter sido menos mi-
litante na questão de suas pastagens perdidas do que uma ou duas outras
comunidades, notadamente Yanacancha « Chongos Bajo — cuja sucessora,
Chongos Alto, iria constituir com Huasicancha uma aliança ofensiva em
1945, À siruação de Yanacancha cra complexa.*! Essa comunidade do alto
da montanha, que se tornou independente de Ahuac em 1928, estava rão
preocupada com a ameaça de Ahuac quanto com as pastagens disputadas
com a hnciendo; e, na verdade, tunbém estava disposta a aceitar temporaria-
mente 6 apoio de Laive contra à comunidade rival, à qual, por sua vez,
pressionava Yanacancha à levar avante as reivindicações das várias comuni-
dades contra a grande propricdade. Sua militância cra, pois, relutante, c cla
preferiu (com a boa-vontade da Ganadera del Centro, cuja diplomacia para
com as comunidades foi sempre inteligente c sofisticada) fazer um acordo
de compromisso, em consegiência do qual seu líder passou por dificul-
dades, como veremos adiante, Chongos era menos dócil. Foi o povo dessa
comunidade “que tomou posse de uma grande área de pastagem” perten-
cente à Hacienda Laive, na década de 1920. (“A Sociedade impediu-os ener-
gicamente de usurpar mais terras, « ofereceu-se para negociar um acordo de
divisas”. 2) Ambas continuaram a preocupar as grandes propriedades até os
primeiros anos da década de 1930, por sua relutância em assinar acordos,
apesar de considerável pressão.*3 Chongos parece ter continuado a ser a
comunidade mais inilitante durante o resto da década. Porém, por volta da
metade da década de 1930, as comunidades da área — um pouco depois do
que ocorreu com as do outro lado do vale do rio Mantaro — despertaram
para as possíveis vantagens de se registrarem oficialmente como “comuni-
dades reconhecidas”, e neste caso, Huasicancha, talvez por sua longa cx
periência em litígios, parece ter sido mais rápida do que a maioria delas,
registrando-se em 1936, logo seguida de Chongos, em 1937. Entre 1935
é 1939, dezesseis das 25 comunidades reconhecidas adquiriram seu novo
stars legal.
A decisão de adquirir o reconhecimento legal marca cvidentemente
uma etapa no desenvolvimento da consciência política comunal, sendo que
as regiões mais adiantadas do Norte e do Centro do Peru foram em geral
mais rápidas em fazê-lo do que as do Sul. No altiplano central, os anos
entre 1935 e 1945 constituem claramente a fase crucial desse processo. O
256 ERIC TORSBAWM
Iv
camponeses, do mesmo modo que era à APRA, em todo caso fora do “Norte
sólido”, onde aquele partido se estabeleceu como movimento de massa.'f
Como já foi assinalado, isso não é incompatível com fazer-se o que
importa numa revolução social, nem mesmo com uma sensação vaga, ainda
que crescente, de que os velhos tempos estão se aproximando do fim e
devem chegar ao fim. Em teoria, isso também não é incompatível com a
evolução desse tipo de movimentos camponeses para uma revolução cam-
poncsa consciente numa situação revolucionária em termos nacionais. Por
outro lado, deve-se assinalar que, cm mtas regiões da América Latina, o
próprio sistema de grandes propricdades é uma entidade Auruante. No de-
correr da história pós-colonial, baciendas se formaram, expandiram-se, frag-
mentaram-se e reformaram-se dependendo de mudanças políticas e da con-
juntura econômica. Provavelmente, as comunidades nunca se bencficiaram
dessas flutuações de maneira permanente, mas sua pressão constante, que se
tornava relativamente mais eficiente nos períodos de recessão para as gran-
des propriedades, não deve implicar a crença de que qualquer uma dessas
recessões marca a extinção final de todas as hnciendas, Em suma, devemos
ter em mente tanto a força quanto as limitações dos movimentos campone-
ses tradicionais.
Estes se tornam revoluções camponesas, quando O agregado dos “pe
quenos mundos” é posto em movimento simultaneamente, quase sempre
por algum evento ou desenvolvimento no “grande mundo”, sobre o qual os
camponeses não têm controle algum, mas que os póe em ação. (Não cabe,
aqui, discueir quais os fatores responsáveis por essa mobilização no Peru de
1958-64.) Tornam-se revoluções camponesas eficientes, ou quando unificados
e mobilizados por uma organização € liderança moderna, provavelmente
revolucionária, em número suficientemente grande de árcas cruciais no âm-
bito político, ou quando a estrutura e a crise nacionais são tais que mo-
vimentos camponeses regionais estrategicamente localizados podem desem-
penhar papel decisivo em seus assuntos. Foi o que aconteceu no México de
1910-20 com os nortistas de Pancho Villa, devido à sua mobilidade armada, e
com os seguidores de Zapata, o “galo do Sul”, em Morelos, por ser aquele
estado vizinho da capital. Nenhuma dessas coisas aconteceu no Peru, à não
ser levemente na década de 1880, quando Caceres — que buscava o apoio
dos índios que organizara em guerrilhas antichilenas durante a guerra do
Pacífico — fez marcharem seus homens do altiplano central para a capital,
mas dificilmente como líder revolucionário e certamente sem consegiiências
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 269
Notas
As principais fores unilizadas, além da imprensa e de número considerável de publi:
cações oficiais é semi-oficiais pertanas, são os documentos mantidos pela Zona X da
Refurma Agraria (Escritório de Luancayo) « pelo “Juzgado de Tierras”. Luancayo, «
os arquivos de diversas antigas propricdades, especialmente à antiga Sociodad Ganadera
del Centro, Sociedad Ganadera Tucle e Compantã Ganadera Antapongo. Todas essas
propriedades se localizam no altiplano central peruano.
2. La Prensa (Lima), 7 ago: 1963, Para istvasões aniteribres (1924-6), ver CDA, “In
“ventario de Ins Fondos de la Sociedad Ganadera Algolam”, 1/5. pp. 45-61
A. Aguilera Camacho, Derecho Agrario Colomibiana, Bogotá, 1962.
Prensa, 27 ago. 1963.
Foram noticiadas na imprensa de Lima, entre 1959 c 1966, 103 invasões, das quais
77 no periodo de maior intrangjitidade agrária, agosto-setembro de 1963, sendo que
a maioria esmagadora delas era de recuperações de terra. O noticiário é, porém,
extremamente deficiente, À única lista completa que conheço é a oferecida pela Guar-
da Civil do Departamento de Cure relaria à 11 de abril de 1963, antes que as
nvasiones naquele departamento houvessem atingido seu ponto mais alto. Ela arrola
7U casos, mas detalhes subre os invasores são dados em apenás 24 deles, us restantes
identificando somente à propriedade invadida. Destes
Comunidades invadindo propriedades 14
Comunidades invadindo comunidades 4
“Arrendarários invadindo propriedades
“Camponeses da localidade” invadindo
Legislatura Ordinaria, Diario de o ais, Senado, 1963, vol pp. 481-5
6. En lona a la Práctica Revolucimaria y la Lucha Interno IE Plena del Comiré “emiral del
Partido Comunista Peruano. Infimme Púlsico, Lima, Ediciones Bandera Roja, 1970
20 ERIC HOBSBAI M
40.0 dr. Carlos Samaniego, que entrevistou militantes du período nessa região, asse-
guroume que a bandeira era uma bandeira nacional do Peru (vermelha e branca).
sendo chefe da comunidade em questão (Ahuac) um policial licenciado que, poste-
riormente, foi promovidoau posto de sargento. O relatório encontra-se em CDA,
“Arquivos Ganadera del Centro, Documentosde Laive: Laive à Lima, 9 ago. 1931
41.0 que vem a seguir bascia-se na obra do dr Caos Samaniego e seus alunos da
Universidad Agraria, Lima, cm Yanacancha.
42, Sociedad Gamadera del Centro, Dados Lstadísricos, Lima. 1929, p. 13. Essa publicação
anual demonstra à constâme preocupação das grandes propriedades com cs iígios de
divisas
43, “Na entrevista com o Subprefeito da Província concordou-se em deter os principais
líderes desse movimento, duis indivíduos chamados Orellana é Sesa, que devem ter
sido transportados para Lima, uma vez que se encontraram documentos comunistas
em seu poder. Agora à situação parece ter-se acalmado . .”, Arquivo Laíve, Laíve à
Lima, 12 jun. 198]. “No dia 19. 85 homens do 5º de Infantaria chegaram a Ian.
cayo e seguiram imediatamente para Chongos Bajo, onde permancecram desde então.
tentando descobrir 0s acusados .. Enrique Liaca, alcaide da aldcia, que era o porta-
voy oficial (apodorado) da Cominidade e assinou o Acordo no Ministério do Ho-
mento, Julio Muniba e 9 Governador Melehiades Garcia e um 1a! de Guerro, estes
quarro individuos parirão amanhã com os soldados para Lima”: Laive à Lima, 25
set. 1931. O pon de Chongos recusou-se a construir uma cerca de demarcação «
escondeu as marcos.
44, Data de reconhecimento oficial de comunidades no vale Mantaro inferior (margem
direita
1928 2 1939 3
1935 2 1940 1
1936 1 194150 5
1937 2 19560 0
1938 8 196169 O
em processo de )
reconhecimentu
rã reconhecidas 4
Fome: Propeto Social Ciamadera de Conor, Datos para Afuicaçi, pp. 7-7,
Ni imagem esquerda, seis comunidades foram registradas antes de 1930, apenas seis
na década de 1930, dez na década de 1940, uma na década de 1950 « uma na década
de 1960.
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 23
45. Doughey, Paul L. Huayias Am Andean Disrcr in Seareis 0f Progress, Tibaca, À ova
York, 1968, p. 143.
46. CDA, Arquivos Ganadera del Centro: Documentos de Laive, Arquivo | Comuni-
dades, Carmarena a Fernándes, Lá jul. 1937, O projeto “fi concebido, disseram-me,
por um cenio Sabini, ou Sabino Román, que costumava crabalhar em Ingabuasi e que
recentemente tormou-se chef (alcalde)”
47, Balesim de la Direción de Asuntos Indígenas, 1940, p. 353. Tocle considerou também
ser prudente acertar algumas disputas de divisa com Huasicancha: Juzgado de Tier
ras, Huancayo, Exp. 69.831, 197.
48 No altiplano central, ele foi suficientemente poxderuso para obrigar grandes proprie-
dades — Taive, Maco, Queta, San Francisco de Apicancha, Antapongo « sem dúvida
“cutras — à assinar realmente Contratos coletivos de curto prazo com sindicatos re-
cétm-formados de trabalhadores em grandes propriciades D.A, Arquivos Ganadera
del Centro, Documenris de Laive, Arch. Soc. Ganadera Maco S.A.
49 CDA, Arquivos Ganadera del Centro, Documentos de Laive: Arquivo “Comuni
dades”, Memorando, “Comunidades colindantes com la Hacienda” (jan. 1963).
50. Entrevista com o sr. Oscar Bernuy: Gomez. consulior legal de Hizasicancha nesse
periodo. CÊ também Paul L, Doughry Hiurylas, pp. 144-5, a respeito de cartas “de
uma pessoa que reside em Callao” (porto maritimo de Lima). apoiando o requer.
mento de Lluaylas para registro de reconhecimento como comunidade
SL Ver Tullis, Hloyd La Mond, Lord and Peasane in Pers: A Parmigm of Ptirical and
Social Change, Cambridge, Mass, 1970, pp. 63-6, em que faz um esboço de sua
biogratia. Obrive minha informação em entrevistas com à prof Jesus Veliz Lizirraga.
de Prancayo, que esteve ligado à Tacunan ma Federação e em outras atividades co-
mnais e políticas
52. CDA, Arquivos Ganadera del Centro. Documentosde Laive: Laive a Lima, 16 our
1945,
53, bd, memorando sem dara “Sobre os pianos subversicos das Distritos de Chongos
Alto € Hluasicancha”, dirigida ao Gerente-Geral em Lima, provavelmente escrito to-
tre agosto c auubro de 1945,
54. Ibid.
85.C.D.A., Arquivos Ganadera del Comro: Documentos de Acopalca: “Informe sobre
Jos sucesos ocurridos en las Haciendas Tue, Antapongo y Laive desde e] 23 del mes
de Diciembre 1946”, por Alberto Chaparro, 25 jam. 1947.
56. A hacienida teve enormes problemas para tornar vinculada essa escritura de venda,
condicionando-a não só a que se completas a vala de demarcação, mas também à
concurdância pessoal, atestada por assinatura ou marca, de tudos os membros adultos
da comunidade: Juzgado de Tierras Huancayo, Exp. 69.831, fis. 39 € s . A comuni
dade devia comprometer, sob pera de pesadas multas, a não se engajar em outros
“actos pertubatorias”, ou fizer outras reivindicações. O sr. Bernuy Gomez, na época
2a ERIC HOBSBAWM
certo Sergio Berrospi. próspero mineiro tou talvez um pequeno empresário de múne-
ração) apoiado por Claro Huallaniuay; alenbte de Pallanchacra, Juan Soro. sub-aleatde,
Pedro Becruspi (parente de Sergio?) € o estudante Zenon Najara, que no ano anterior
havia sido candidato da Frente de Libertação Nacional
Montoya R., Rodrigo. A Prpúito dei Camcter Predominantemente Capiralista de la
Economia Perunna Actual, Lima, 1970, pp 10-11
ctDa; Tenenciade Tierra -- Peru, Washingron, 1966, p. 123
. Oficina Nacional del Desarrollo Comunal: Comité Zona! 7x€ 1, Sissema dê Orgami-
sacióm Campesina para c! Desaruilo de! Valle del Mantars, Huancayo, 1969 (mimeo)
caDa Peru, ver nota 76 acima, p. 134, eicomira metade de sum amostra com litígios
Henry: E Dobyas, Comnidads Ciampeinas del Pere, Lima. 1970, pp. 57:8, registra
44% de uma amostra de 50 comunidades estudadas monograficamente, mas 64% das
640 comunidades pesquisadas pelo peojexo Peru-Cosmell sobre litígios. Duis levan-
tamentos de rodas as comunidades muma região mostram 50% em Chucuito, Puno
com 46 das 58 que responderam « 61,7% em Bolognési, Ancash, com 14,7% que
negam à existência de litígios e 23.5% sem resposta: acerca dessas províncias, Datas
Ricos, Lima, 1970, pp. 19 e 29, respectivamente.
”, Dobrns, Comunidades Camperinas dei Peru, p. 58, Da amostra de Dobyns, 54,4%
tiveram litígios com grande proprietários, 40.9% cum outras comunidades, 4,5%
com ambos. Da amostra Peru-Cormel, 64% estavam em ligo com grandes pro-
prictáeios, 60% com outras comunidades, 6% dentro da comunidade.
so Min. Agric. Dirección General de Reforma Agraria y Asentamiento Rural, Las Cy-
munidos Integrante de ia sais Tipac Amara, Lima, 1971, p. 21
8 Min, Agric, Dirección de Comunidades Campesinas, AC Mantaro 1, Prpecta So-
ciednd Ganadera del Conero. Dasos parar Aibjudicacións € CDA, "Inventário de los
Fundos Socicdad Ganadera del Centro, Tac y Autipongo” (ms, novembro de 1971
Deve-se assinalar que a lista de comunidades com lirgios que pode ser compilada
com base nos arquivos das grandes propriedades é muito mais longa da que a das.
comunidades descritas no levantamento uticial de 1970 cumo tendo divisas comuns
com à grande propriedade.
az Insureições locais para restaurar 0 regime inca ou expressando apoio especíico ans
áncas não são incomuns no Peru dos séculos XIX no século XX até a década de 1930.
Sobre o mito inca, ver Flores Galindo, A, Juscando su Inca: Identidady Utopia en los
«Andes, Havana, 1986.
E Favre, Henri, Clumygement r contimuit he es Mas de Mexáue, Dis, 1971, pp. 269:€5,
8 Sobre à levante de 1712, ver Klein, Herbert S., “Peasant communities in revole: the
Teektal republic of 1712”, Bife Hi. Rev, sxxv (19661, pp 247€ 55
ss Morta, R (Org), estas dos pasa libera sorgo, Pari Haguc. 1963, pp: 248, 263
86 Min. de Trabajo, Instituto Indigenista Peruano, Serie Monográfica 17, Sociedad y
culsua em LO areas Andino-Peruanas, Lima, 1966, pp. 13, 36-8, sobre Andahuavlas.
2%6 ERIC HOBSBAWM.
Nada — a não ser pela curiosa insistência sua de que escreve não so-
mente como um contador de histórias, mas como um historiador ligeira-
mente disfarçado. São verdadeiros os cventos, datas € pessoas que men-
ciona, os nomes destas imediatamente reconhecíveis. É evidente que 0 autor
é muito cauteloso quanto à fidedignidade de seu documentário e, embora
não recorra à notas de rodapé, quem quer que tenha familiaridade com o
assunto reconhecerá a pesquisa por trás do texto e quanto dele constitui faro
verificável, Infelizmente, para seu status como historiador — sem dúvida de
olho em outro filme vitorioso — cle optou por uma narrativa não facrual
nem ficcional, mas por algo entre as duas coisas, à maneira de algum pro-
dutor de cinema de quem um filme biográfico sobre Becthoven tivesse co-
mo clímax a apresentação pública, por aquele compositor, de sua última
obra, a valsa Danúbio Azul. O sr. Puzo, talvez estimulado pclos teóricos que
afirmam que roda realidade é um constructo mental, não parece avaliar sufi-
cientemente que basta uma ou duas mudanças insignificantes e dramati-
camente vantajosas de um fato documentado para destruir por complero à
credibilidade de alguém na condição de repórter. testemunha num tribunal
ou historiador. Mas essa é uma outra questão.
Porém, à historiador, é sobretudo o estrangeiro, pode dar uma con-
tribuição para a compreensão da história siciliana, especialmente desde que
as muitas incertezas, mentiras c confusões da documentação proporcioncim
pontos de apoio sobre as superfícies de rochas lisas e esboroadas da reali-
dade siciliana. Por isso é que as melhores maneiras de tratar a história de
Giuliano provém de pessoas de fora que obedecem os métodos do pesquisa-
dor perplexo: de Gavin Maxwell, à biografia, e de Francesco Rosi, o ma-
ravilhoso filme de 1961, Selsatore Giuliano. Mas fazer isso exige, no mí-
nimo, um conhecimento da Sicília, da Ttália « do mundo entre 1943 e 1950, e
de política — coisa de que Puzo não mostra sinal algum. Assim, ele é quase
obrigado a transformar seu herói de carne-e-osso num clichê.
Pois é de política que até mesmo os Robin Hoods vivem, especial-
mente se permanecem durante sete anos num país ocidental moderno. O
fato crucial a respeito da carreira de Giuliano, não mencionado em The
Sicilian, é que, pouco antes do final da guerra, o Partido Separatista Si-
ciliano dos proprietários de terras, que desejavam a independência da ilha
ou sua possível anexação como um estado dos Estados Unidos, precisava de
uma força armada e recrutou o bando de Giuliano como tal, atribuindo-lhe
o posto de coronel
282 ERIC HOBSBAWM
Isso foi crucial de duas maneiras. Pela primeira vez, deu a Giufiano
prestígio, apoio importante, publicidade c força.” Fez dele algo mais do que
uma figura puramente local. Mas, acima de tudo, transtornou a cabeça de
um menino ignorante do isiterior portador de ideais vagos, ainda que sin-
ceros. Nas palavras do nada sentimental Lo Bianco: “Os separatistas indi-
caram-no como líder « Giuliano incbriou-se com a idéia de ser realmente
um líder. Pensou que se tornara de fato um mandachuva e ficou maluco. Eu
o chamei de louco porque é isso o que cle era”. Pode ser que não tenha sido
clinicamente insano. embora até mesmo Puzo aluda à um elemento de dese-
quilíbrio mental. Mas para os sicilianos intransigentes já era bastante hu-
nático alguém que seriamente se considerasse libertador da Sicília ou força
política na ilha, ou realmente imaginasse que um criminoso pudesse sobre-
viver contra a máfia. Eles sabiam que, na política, não basta ter uma bando-
leira, ser fotogênico e comandar algumas dezenas de brigões da cidade natal.
Na verdade, à tragédia de Giuliano foi que à mesma situação que per-
amitia à um jovem matador local valente, sinceramente rebelde e talvez caris-
mático, representar, entre outras coisas, a fantasia de libertador dos pobres
da Sicília (“Como poderia jamais um Giuliano, que ama os pobres « odeia
os ricos, voltar-se contra as massas dos trabalhadores?”), essa mesma si-
tuação O tornasse pistoleiro dos sicilianos ricos c, finalmente, sua vítima
Foi no vácuo político deixado pela invasão dos Aliados, que arrasou com os
fascistas, em 1943, que ele despontou. Ninguém sabia como as coisas iriam
ficar, Tudo parecia possível. E quando todo o mundo sabia qual seria o
aspecro do fururo — autonomia regional da Sicília numa Itália governada
pelos demoristãos — cle morreu.
A história de Giuliano é a desse intervalo, durante o qual, fora os
comunistas, só quem possuía uma idéia clara do que queriam na política
eram os mafiosos, os quais queriam simplesmente apoiar o lado vitorioso,
uma vez que 0 negócio deles são os negócios e scus lucros estão onde o
poder está. A questão é que, após 1943, não era nada claro quem iria ven-
cer, A máfia chegou até a tentar algumas apostas sem muito entusiasmo nos
comunistas. Também não devemos esquecer — embora pareça que Puzo
esqueceu, deixando-se seduzir por seu próprio mito do poder de Don Cor-
Jeone — que em 1943, quinze anos depois de ter sido destruída por Mus-
solini, a máfia estava fraca e precisava ser reconstruída. O apoio norre-ame-
ricano era sem dúvida um trunfo enorme € provavelmente decisivo, e à
ocupação militar uma grande operação lucrativa; mas a máfia mal acabara
SSOAS EXTRAORDINÁRIAS 283
Notas
1. Relacione dela compisine partamentare dimiesta ul fenomeno dela uai, esto inte
“ral, Roma, 1973. 0.2, p. 1635.
JAS as
justiça e escola onde quer que vá; é 4. nunca viver de modo melhor ou
diferente dos habitantes locais.
Tais forças, operando como parté de um movimento político de âm-
bito nacional c com à apoio popular, provaram ser extraordinariamente po-
derosas. Quando em sua forma plena, elas simplesmente não podem ser
derrotadas por operações militares convencionais. Mas mesmo quando es-
tão em condições menos favoráveis, somente podem ser derrotadas — de
acordo com cálculos dos especialistas ingleses em contra-insurreição, na Ma-
lásia e em outros lugares -— por um minimum de dez homens no terreno para
cada guerrilheiro; isto equivale a dizer, no Viemã do Sul, por um minimum
de cerca de um milhão de americanos e fantoches norre-viermamitas. (Na
verdade, os 8 mil guerrilheiros malaios mantiveram 140 mil soldados « po-
liciais mobilizados.) Como os Estados Unidos estão agora descobrindo, os
métodos militares ortodoxos são bastante irrelevantes; as bombas não fun-
cionam exceto quando há alguma coisa além de arrozais para fazer crateras
As forças “oficiais” ou estrangeiras logo percebem que a única forma de
combater os guerrilheiros é atacando suas bases, isto é, à população civil
Foram propostos vários méios de fazê-lo, desde o antiquado método nazista
de tratar todos os civis como guerrilheiros em potencial, pelo massacre e
tortura seletivos, até o estratagema hoje em dia popular de segúestrar popu-
lações inteiras e concentrá-as em locais fortificados nas aldeias, na esper-
ança de privar os guerrilheiros de sua fonte indispensável de suprimento é
informação. As forças americanas, com sua inclinação habitual para resolver
os problemas sociais por meios tecnológicos, parecem ter uma preferência
por destruir tudo o que houver em amplas áreas, presumivelmente na esper-
ança de que todos os guerrilheiros da zona sejam mortos junto com 0 re-
stante da vida humana, animal e vegetal: ou que, de algum modo, todas
aquelas árvores e arbustos desapareçam, deixando os guerrilheiros sem pro-
teção, de modo que possam ser bombardeados como verdadeiros soldados.
O plano de Barry Goldwater de desfolhar as florestas vicinamitas com bom-
bas nucleares não foi mais grotesco do que o que está sendo de fato exccu-
tado segundo esses critérios,
A dificuldade de tais métodos consiste em que cles simplesmente racifi-
cam 6 apoio da população local aos guerrilheiros e fornecem a estes um
suprimento constante de recrutas. Daí os planos antiguerrilha, tramados
para combater o inimigo mediante a melhoria das condições sociais « eco-
nômicas da população local, à maneira do rei Frederico Guilherme 1, da
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 295
MAIO DE 1968
fosse por razões da política exterior soviética ou qualquer outra. Tão logo à
derrota de De Gaulle pareceu impossível, isto é, nos três ou quatro dias
após a propagação das assembléias espontâneas, formalmente apresentou
sua imediata reivindicação para si e para a Frente Popular de subir ao poder.
Por outro lado, coerentemente recusou todo passível envolvimento numa
convocação de insurreição, com base em que isto favoreceria De Gaulle
isso tinha razão. A crise de maio não era uma situação revolucionária
clássica, embora as condições para ral situação pudessem ter se desenvolvido
muito rapidamente como consegiência de uma raprura repentina e ines-
perada em um regime que se mostrava ser muito mais frágil do que qual-
quer um previra. As forças do governo « a ampla base política em que se
apoiava não estavam, de modo algum, divididas c desintegradas, mas ap-
emas desorientadas e temporariamente paralisadas. As forças da revolução
eram débeis, salvo em tomar à iniciativa. À parte os estudantes, os opcrários
organizados e alguns simpatizantes entre os estratos profissionais de for-
mação universitária, sua base de apoio consistia não tanto em aliados como
na disposição de uma grande massa de cidadãos sem filiação determinada
é até mesmo hostis em abandonar toda esperança no gaullismo c em aceitar
passivamente a única alternativa viável. À medida que a crise avançava, à
opinião pública em Paris tornou-se muito menos favorável ao gaullismo c
algo mais favorável à velha esquerda, mas das pesquisas de opinião não
surgia uma preponderância nítida por uma ou outra opção. Se a Frente
Popular tivesse se concretizado, teria vencido as eleições subsegiientes, exa-
tamente como De Gaulle venceu as suas: vitória é um fator importante para
decidir lealdades.
melhor mancira de derrubar o gaullismo era, pois, deixar que se
destruísse a si mesmo. Em um determinado momento — entre 27 e 29 de
maio —, sua credibilidade havia se desintegrado a ponto de mesmo seus
funcionários € seguidores poderem tê-lo considerado perdido, A pior polf-
tica teria sido a de dar ao gaullismo à possibilidade de reagrupar scus par-
ridários, O aparato estatal c a massa indefinida frente a uma minoria clara-
mente definida c militarmente impotente de operários é estudantes. Apesar
de que desejarem expulsar pela força os operários grevistas das fábricas,
podia-se confiar no exército e na polícia em caso de uma revolta. Assim
disseram cles. E, de fato, De Gaulle recuperou-se precisamente porque trans-
formou a situação em uma defesa da “ordem” contra “a revolução vermelha”.
Que o Partido Comunista não estivesse interessado em “revolução verme-
32 ERIC; HORSBAWM
ha” é outra história, Sua estratégia geral estava correta para todos, inclusive
para Os revolucionários, que inesperadamente descobriram uma oporrani-
dade de derrubar O regime em uma situação basicamente não revolucio-
nária. Supondo, naturalmente, que desejassem tomar o poder.
Os verdadeiros erros dos comunistas foram outros. A prova de fogo de
um movimento revolucionário não é sua disposição para crguer barricadas
em qualquer oportunidade, mas sua presteza em reconhecer quando as con-
dições mormais da rotina política deixam de funcionar, e em adaptar seu
comportamento à nova situação. O Partido Comunista Francês falhou nes
tas duas provas e, em consegiiência, não só foi incapaz de derrubar 0 capi
talismo (coisa que não queria fazer naquele momento exato), mas também
de instalar a Erente Popular (coisa que descjava). Como observou Touraine,
de forma sarcástica, scu verdadeiro fracasso não foi como partido revolucio-
nário, mas como partido reformista. Manteve-se consistentemente atrelado
poe trás das massas, sendo incapaz de reconhecer a seriedade do movimento
estudantil até que as barricadas foram crguidas; e incapaz de reconhecer a
disposição dos operários para uma greve geral indefinida até que as ocu-
pações espontáneas forçaram a mão de seus líderes sindicais, apanhados de
surpresa uma vez mais, quando os operários rejeitaram os termos do acordo
para pór tim à greve.
Ao contrário da esquerda não-comunista, o PC não foi marginalizado,
já que contava com a organização e o apoio das massas. Continuou a fazer
o jogo da política rotincira e do sindicalismo rotineiro. lixplorou uma situa-
ção que não havia criado, mas não a liderou nem a compreendeu sequer,
salvo, talvez. no que representava de ameaça à sua própria posição dentro
do movimento operário por parte da ultra-esquerda amargamente hostil.
Tivesse O Partido Comunista reconhecido à existência « o alcance do mo-
vimento popular, e agido adequadamente, poderia ter ganho suficiente im-
pulso para forçar scus aliados indecisos da esquerda tradicional a seguir sua
linha. Não se pode dizer muito mais do que isto, pois as perspectivas de
derrubar o gaullismo, embora reais por uns dias, nunca significaram mais
do que uma razoável possibilidade. Nestas circunstâncias, condenou-se a si
mesmo, durante os dias cruciais de 27 a 29 de maio, esperando e lançando
apelos. Mas, em tais ocasiões, à espera é fatal, Os que perdem a iniciativa
perdem o jogo.
As probabilidades de derrubar o regime diminuíram não só pelo fra-
casso dos comunistas, mas pelo caráter do movimento de massas. Não tinha
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 313
dem de experiências mais antigas para enfrentar uma nova situação. Isto
pode produzir um renascimento de antigos padrões de militância ou, entre
os novos recrutas do movimento social que não tenham tal experiência mili-
tante, algo análogo aos movimentos populares dos países subdesenvolvidos,
ou, mais precisamente, 40 movimento operário do princípio do século xx.
Este movimento é importante não pela luta que está cmpreendendo agora,
segundo as antigas orientações políticas, mas pelo que revela a respeito do
futuro: por sua visão, mais do que pela sua realização, necessariamente fra-
ca. Pois a força desta visão de futuro, o “comunismo utópico” que ela criou
em 1968, como o jovem proletariado a criou antes de 1848, depende de
sua impotência prática. Por outro lado, este movimento social também in-
clui ou implica um tipo de reformismo atualizado, uma força que pode
servir para modificar as estruraras rígidas e obsoletas da sociedade: o sis-
tema educacional, as relações industriais, a gerência, o governo. Os futuros
dilemas dos revolucionários residem nisto.
Deixando de lado sua formulação “revolucionária” de uma “contra
uropia” de comunismo libertário para encontrar a “utopia dominante” dos
sociólogos acadêmicos é dos cientistas políticos, foi “revolucionário” este
novo movimento social de Maio? Na França, argumenta Louraine, o novo
movimento produziu uma crise genuinamente revolucionária, embora fosse
improvável que chegasse à revolução porque, por razões históricas, se com-
binaram nela a luta social, a política e uma “revolução cultural” contra todas
as formas de manipulação e integração do comportamento individual. Não
pode haver movimento social hoje que não combine estes trés elementos,
devido ao “desaparecimento progressivo do divórcio entre Estado é socie-
dade civil”. Mas, ao mesmo tempo, isto torna extremamente difícil a con-
centração da luta é o desenvolvimento de instrumentos eficazes para a ação,
como os partidos do tipo bolchevisra
Nos Estados Unidos, por contraste — talvez devido à ausência de
centralização estatal ou de uma tradição de revoluções proletárias que sirva
de referência — não tem havido tal combinação de forças. Os fenômenos de
rebelião cultural, que são mais sintomáricos que operacionais, são os mais
visíveis. “Enquanto na França”, escreve Touraine, “a luta social estava no
centro do movimento e à rebelião cultural era, por assim dizer, um subpro-
duto da crise de mudança social, nos Estados Unidos a rebelião cultural se
situa no centro”, Este é um sintoma de debilidade.
E ERIC HORSBAWM
Nota
1. Alain Touraine, Le Mesorement de mai on le comuminismo itapigue, Paris, 1969.
Capítulo 16
AS REGRAS DA VIOLÊNCIA
a força física deve scr empregada na medida em que não há outros métodos
disponíveis ou cficazes e, consegiientemente, que as ações violentas tém
normalmente uma finalidade específica e identificável, sendo o uso da força
proporcional à mesma. Mas grande parte da violência privada contempo-
rânca pode se permitir ser — e de fato é — não-operacional, de modo que à
violência pública é consequentemente atraída para a ação indiscriminada.
A violência privada não atinge nem pode atingir muito os detentores
realmente importantes e institucionalizados da força, mantenham eles ou
não sua violência em reserva. Onde ela ocorre. tende, portanto, a transfor-
mar à ação em um sucedânco desta. As insígnias € as cruzes de ferro do
exército nazista tinham um objetivo prático. embora não o aprovemos. Os
mesmos simbolos, no caso dos Helfs Angels « grupos semelhantes, tém
apenas uma justificação: O desejo de certos jovens, de outro modo fracos e
desamparados, de compensar suas frustrações com atos « símbolos de vio-
lência. Algumas formas nominalmente políticas de violência (como os s
questros e alguns atentados à bomba neo-anarquistas) são igualmente irra-
cionais, já que na maior parté dos casos seu cttito político é insignificante
ou, o que é mais comum, contra-producente
Os ataques violentos às cegas não são necessariamente mais perigosos
para a vida é a integridade física (em termos estatísticos) do que a violência
das sociedades tradicionalmente “sem lei”, embora seja provável que causem
mais danos a coisas, ou melhor. às suas companhias seguradoras. Contudo,
tais atos talvez scjam justificadamente mais ameaçadores porque, ão mesmo
tempo, são fortuitos « cruéis, na medida em que scu fim não é outro senão
a própria violência. Como o caso do assassinato dos Moors mostrou, o
terrível da fascinação pela indumentária nazista que hoje empolga vários
submundos « subeulruras do Ocidente não é simplesmente uma nostalgia
pelos Himmlers é Eichmanns, burocratas de um aparato cujos propósitos
eram insanos. É o fato de que, para os marginalizados sem orientação, para
os pobres fracos é abandonados, à violência e a crueldade — às vezes sob a
mais personalizada forma sexual e ineficaz socialmente — são os substitutos
do êxito pessoal « do poder social.
O que é assustador nas grandes cidades americanas modernas acom-
binação de antigas formas renascidas e formas emergentes de violência em
situações de tensão e crise social. E estas são as situações que a sabedoria
convencional das idéias liberais é incapaz de enfrentar, mesmo que concep-
tualmente; daf à tendência a recair em uma reação conservadora instintiva,
E) ERIC HOBSBAWM
que é pouco mais do que uma imagem refletida da desordem gue cla pro-
cura controlar, Para dar o exemplo mais simples possível: a tolerância e a
liberdade de expressão do liberalismo contribuem para saturar à atmosfera
com aquelas imagens de sangue e tortura que são tão incompatíveis com o
ideal liberal de uma sociedade baseada no consenso e na força moral.
Estamos, provavelmente, uma vez mais, entrando em uma era de vio-
Iência no interior das socicdades, o que não deve ser confundido com o
crescimento dos conflitos destrutivos entre socicdades, Por isso, é melhor
que entendamos os empregos sociais da violência aprendendo, uma vez mais, a
distinguir entre os diferentes tipos de ação violenta e, acima de tudo, à cons-
truir ou reconstruir regras sistemáticas para a mesma. E nada é mais dificil
para um povo cducado numa cultura liberal, com sua crença de que qual-
quer manifestação de violência é pior do que a não-violência. supondo-se que
os demais farores não varicm (coisa que não ocorre) . É claro que é pior,
mas infelizmente tal gencralização moral abstrata não proporciona orientação
para os problemas práticos da violência em nossa sociedade. O que uma vez
foi um princípio útil de aperfeiçoamento dos hábitos sociais (“resolver os
conflitos pacificamente e não através de lutas”, “auto-respeito não requerer
derramamento de sangue” etc.) transforma-se em mera retórica e contra-
retórica. Deixa sem regras O crescente âmbito da vida humana em que a
violência ocorre c, paradoxalmente, deixa-a também sem quaisquer prin-
cípios morais aplicáveis na prática: seu testemunho é O renascimento uni-
versal da prática da tortura pelas forças do Estado. A abolição da tortura é
uma das poucas realizações do liberalismo que pode ser exaltada sem qual-
quer restrição; todavia hoje a tortura é, uma vez mais, quase que universal-
mente praticada, aceita pelos governos e difundida pelos meios de comuni-
cação de massa
Os que acreditam que toda violência é má por princípio não podem
fazer qualquer distinção sistemática entre os diferentes tipos de violência na
prática, nem perceber seus efeitos tanto naquele que a sofre como naquele
que a emprega. O mais provável é que esses que assim acreditam mera-
mente acabem por provocar, por reação, homens e mulheres para quem
toda forma de violência é boa, seja do ponto de vista conservador ou revo-
Iucionário; ou seja, homens c mulheres que apenas reconhecem o alívio
psicológico subjetivo proporcionado pela violência, sem ter em conta sua
cficácia. Nesse sentido, os reacionários que exigem o retorno dos disparos,
açoites e execuções indiscriminados se assemelham àqueles (cujos sentimen-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS E
tos foram sistematizados por Fanon e outros) para quem a ação com armas
ou bombas é, ipso facto, preferível à ação não-violenta.* O liberalismo não
estabelece distinção entre ensinar as formas mais amenas de judô e as for-
mas potencialmente mais assassinas de caraté, enquanto a tradição japonesa
é perfeitamente consciente de que estas só devem ser aprendidas por aqueles
que tenham suficiente formação e julgamento moral para usar o seu poder
de matar de maneira responsável,
Há indícios de que tais distinções estão sendo aprendidas uma vez
mais, lenta e empiricamente, mas numa atmosfera geral de desorientação e
histeria que dificulta o uso racional é limitado da violência. É tempo de
colocarmos este processo de aprendizagem em bases mais sistemáticas me-
diante à compreensão dos usos sociais da violência, Supondo-se que os de-
mais fatores não variem, podemos pensar que qualquer violência é pior do
que a não-violência. Mas a pior violência é a que escapa 20 controle de
todos.
Notas
1/CE A Pigliaro, La sendeita borbaricina come ordinameno giridico, Milão, 1959.
2. No período do catre-guerras, à Real Evíça Aérea da Inglaterra resistiu à todos os
pianos para utilizá-la na manutenção da ordem pública, bascando-se no fatu de que
Suas armas eram por demais indiscriminadas e que, por isso, estaria sujeita a ser
processada confbime o direito consueradinário.Esce angumento aão foi aplicado quando
bumbarcicaram as aldeias tribais na Índia e no Oriente Médio
3: O argumento de que não se pode provar que escas imagens afete a ação de alguém
são é mais do que um mera intento de racionalizar esta contradição, e não resiste a
um exanme criterioso. Tamponsco valem os argumentos de que 2 cultura popular sem-
pre se divertiu com imagens violentas, ou que tais imagens atuam como uma espécie
de substiruição para o real.
4, Os revolucionários racdonais sempre media a violência inteiramente em funição de
seus fins e resultados prováveis. Quando Lênin soube, em 1916, que o secretário da
social-democracia austríaca havia assassinado à primeiro-ministro austríaco como um
esto de protesto contra à guerra, limitow-se a perguntar porque um homem em sia
posição não tomara uma decisão mens dramática, & ainda assim mais cíetiva, de
difundir pelos arivisas do partido um apelo contra a gucrra, Era evidente para cle que
ut ação enfadonha, mas não-violenta é eficaz, era preferível a uma outra românica,
porém inclicaz. Apesar disto, não se absteve de recomendar a insurreição armada
quando necessária,
Capítulo 17
REVOLUÇÃO E SEXO
(no qual acreditavam apaixonadamente) significava não beber, não usar dro-
gas € praticar a monogamia sem um casamento formal.
O componente libertário, ou mais exatamente, antinomiano* dos mo-
vimentos revolucionários, embora às vezes poderoso e dominante no mo-
mento mesmo da liberação, nunca foi capaz de resistir ao puritano. Os Ro-
bespierres sempre acabam vencendo os Dantons. Os revolucionários para
quem a absoluta liberdade sexual ou cultural, que neste caso significam a
mesma coisa, são realmente questões centrais da revolução, mais cedo ou
mais tarde são marginalizados por ela. Wilhelm Reich, o apóstolo do 'or-
gasmo, começou realmente — como à “nova esquerda” nos faz lembrar —
como um revolucionário marxista-freudiano muito talentoso, à julgar por
sua obra Psicologia de massas do fascimo (que tinha por subtítulo “A eco-
nomia sexual da reação política € a política sexual proletária”). Mas pode
mos realmente nos surpreender com o faro de tal homem terminar concen-
trando sua atenção no orgasmo e não na organização? Nem os 5 alinistas
nem os trorskistas sentiram qualquer entusiasmo pelos surrealistas revolu-
cionários que batiam às suas portas pedindo para serem admitidos. Os que
sobreviveram em política não o tizeram como surrealistas
Por que as coisas sc passam deste modo é uma pergunta obscura c
importante, que não pode ser respondida aqui. Saber se é ou não neces-
sariamente assim é uma questão ainda mais importante - - pelo menos para
os revolucionários que consideram o puritanismo oficial dos regimes revo-
lucionários excessivo e fregiientemente fora de propósito. Mas dificilmente
se pode negar que as grandes revoluções do nosso século não se entregaram
à permissividade sexual. Fizeram avançar a liberdade sexual (o fundamental-
mente) não pela abolição das proibições sexuais, mas por um ato maior de
emancipação social: a liberação das mulheres de sua opressão. E que os
movimentos revolucionários consideraram a liberalização pessoal completa
um inconveniente também está fora de questão. Entre os jovens rebeldes,
aqueles que mais se aproximam do espírito e das aspirações da revolução
social ao estilo antigo (maoistas, trotskistas e comunistas) também tendem
a ser os mais hostis ao consumo de drogas, ao anúncio indiscriminado de
sexo, ou outros estilos e símbolos de dissidência pessoal. As razões invo-
cadas são, fregientemente, que “os trabalhadores” não entendem nem sim-
= Referência às doutrinas luteranas de |, Schniceer (1492-1566), que afizmava ser a dé,
e não
dos atos, aúnica condição da salvação (N. T)
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 329
patizam com tal comportamento. Seja ou não assim, o que não se pode
negar é que um comportamento como aquele consome tempo é energia e
dificilmente é compatível com organização e cficiência.
O assunto como um todo é, na realidade, parte integrante de uma
questão muito mais ampla: qual o papel que desempenha na revolução ou
em qualquer mudança social esta revolução cultural que hoje constitui uma
vertente tão visível da “nova esquerda” e que, em alguns países, como os
Estados Unidos, é seu aspecto dominante? Não há revolução social impor-
tante que não se combine, ao menos perifericamente, com tal dissidência cul-
tural. Talvez hoje, no Ocidente, onde a força-morriz básica da rebeldia é a
“alienação” mais que a pobreza, nenhum movimento que não ataque também
o sistema de relações pessoais c de satisfações privadas pode ser revolucionário.
Mas, em si mesmas, à rebelião cultural e a dissidência cultural são sintomas,
não forças revolucionárias. Politicamente não são muito imporranres,
A Revolução Russa de 1917 reduziu a arant-gavde contemporânea e
Os rebeldes culturais — muitos dos quais simpatizavam com ela —- as suas
respectivas proporções políticas e sociais. Quando os franceses entraram em
greve geral, em maio de 1968, os happenivyis no Teatro Odeon « aqueles
maravilhosos grafites (“É proibido proibir”, “Quando faço revolução, é co-
mo se fizesse amor” etc.) poderiam ser vistos como forma menores de lite-
ratura e teatro, marginais aos eventos principais. Quanto mais visíveis estes
fenômenos, mais certeza podemos ter de que os acontecimentos realmente
decisivos não estão ocorrendo. Chocar o burgués, infelizmente, é mais fácil
do que derroti-lo,
Capítulo 18
EPITÁFIO PARA UM VILÃO: ROY COHN
Esta nota de rodapé à cultura dos Estados Unidos durante à Guerra Fria
publicada em 28 de ontubro de 1989. Foi escrizaem Nova Tork para a sé
“Heróis e Vilões* publicada no “The Independent Magazine nos primeirose
premisares anos desse perisico
São poucos os vilões que iniciam sua carteira como motivo de pilhéria
internacional, mas isso aconteceu ao meu escolhido, cm seus dias de jovem
caçador de bruxas. Na verdade, seu início não foi bem esse. Roy Cohn
(1927-1986) já havia fugido do serviço militar, tentado subornar seu pro-
fessor Lionel Trilling, perseguido o eminente especialista em assuntos da
Ásia Central, Owen Lattimore, c ajudado a condenar à morte os Rosen-
bergs, como espiões russos, antes que cle c scu comparsa David Schine,
dois jovens com menos de trinta anos, que pareciam um mau espetáculo de
teatro de revista, visitassem a Europa em 1953, a fim de investigar a Cons-
piração Comunista Mundial para O senador McCarthy. O que lhes interes-
sava na Conspiração cra o fracasso das bibliotecas do Serviço de Informa-
ções dos Estados Unidos (USIS) no exterior em banir as obras de Dashiell
Hammett, e 0 insuficiente anticomunismo da BIC.
Cohn e Schinc ofereceram maravilhosa desculpa para a demonstração
do anti-macartismo europeu, para não falar do esnobismo cultural, é foram
arasados pela imprensa por toda à parte em que estiveram. Vendo-se diante
de uns sessenta repórteres em Heathrow, mudaram os planos e tomaram o
caminho de casa. Depois disso, a maioria dos curopeus esqueceu-se deles.
Contudo, se Schine não sobreviveu à sua curta notoricdade — ele con-
tinua vivo por aí — Roy Cohn tornou a surgir como advogado chicanista
bem relacionado em Nova York, vivendo, nas palavras de seu biógrato, “den-
as ERIC HOBSBAWM
O CARUSO DO JAZZ
pavio curto necessariamente não justificaria o uso desse adjetivo. Ele podia
ser um “demônio”, como admite seu biógrafo, “Uma pessoa muito dificil
de se trabalhar, autocentrada e sem consideração pelos outros, jamais dis-
posta a dividir um holofote”, disse um de seus vários empresários. Até mes-
mo seu aluno é admirador Bob Wilber admite que “cle podia ser mau e. não
é uma palavra forte demais, paranóide (sic)”. Queros estavam constante-
mente conspirando contra ele — em pelo menos uma ocasião, cle esteve
convencido disso —, usando bruxaria, contra a qual reagiu apropriadamente,
musicando O Salmo 23. Ficou tão preocupado que fez isso sem pagamento.
Em poucas palavras, como na piada de Cocteau sobre Victor Hugo,
Sidney Becher estava muito perto de ser um louco que imaginava ser Sidney
Becher. Nos dois casos, a ilusão era justificada pelos incgáveis talentos do
homem, Além disso, nos dois casos, a ilusão se tomou realidade. Os france-
ses reabriram o Panteão para o falecido Hugo e crgucram uma cstárua para
o falecido Becher, que deu isso por certo. “Minha Iembrança mais cons-
tante”, escreveu um músico do show semanal, “é ver Sidney sentado nos
bastidores, como se fosse um rei em um trono. Ele recebia seus leais súditos,
é alguos vinham com agradecimentos efusivos. Alfred Lion, dos discos Blue
Note, veio e festejou com champanhe, que Sidney aceitou com uma re-
verência egocêntrica, mas real”.
Essas características provavelmente são suficientes para explicar o seu
isolamento musical. De modo geral, nas oncrosas formas estruturadas do
entretenimento, no palco e na tela, os excessos de solipeismo eram (até à
ascensão do rocknvroll; mantidos sob controle. O jazz é uma arte demo-
crática, moldada pelos que tocam juntos, O que impõe limites a todos os
participantes: nenhum patinador, por mais brilhante que seja, tem muitas
oportunidades de fazer exibições pessoais em um jogo de háquei, a não ser
numa patinação solo.
Mas Becher, embora reconhecesse, evidentemente, a natureza coletiva
de sua música, parece ter se ressentido de todas as versões de jazz que não
construíssem O coletivo em torno de sua voz central e dominante, ou que,
pelo menos, lhe permitissem fazer regularmente um virtuoso mostruário
cela, Na verdade, cle trocou seu instrumento original, a clarinera, pelo sax
soprano, no qual quase ninguém havia se especializado durante 0 seu tempo
de vida, certamente devido à sua maior capacidade de liderar, ou de se im-
por, em um grupo. Bechcr não suportava instrumentistas que tomavam à
liderança, que convencionalmente pertenciam a scus instrumentos, especial-
3as ERIC HOBSBAWM
mente aqueles como Louis Armstrong, que poderiam ofuscar o seu brilho e
dos quais ele sentia uma profunda inveja. Ele trabalhava melhor com parcei-
tos bons e de temperamento fácil, que não competiam pelo primeiro lugar,
como o trompetista Tommy Ladnier e o cornetista Muggsy Spanier, com os.
quais produziu discos maravilhosos. Nesses casos, reservou um espaço ade-
quado para seus solos. Ficava ainda mais à vontade com instrumentos que
complementavam o seu, como o piano de Earl Hines, no famoso Blues in
tido,
No entanto, ele tinha essencialmente os instintos, mas não os talentos,
de um oficial comandante ou, talvez, do antiquado ator-empresário que se
assegurava de que os seus esperículos seriam sobre si mesmo. Foi por isso
que, anos mais tarde, sentiu-se bem com os músicos franceses, menos talen-
tosos e experientes, para os quais ele cra o honorável sensei ou mestre, mes-
mo quando roubava os solos daqueles que olhavam para as garotas das
quais cle gostava.
Bill Coleman, o delicado trompenista expatriado, foi injusto ao acusar
Becher de “ser feliz somente quando pode vociferar ordens para amadores”.
O máximo que se pode dizer é que cle precisava de mais controle do que
gostava, ou do que geralmente tinha. Seu melhor trabalho foi feito em
Pequenos grupos de músicos que tinham certeza de seu próprio talento c,
acima de tudo, de seu profissionalismo. Ele gravou músicas maravilhosas
com o baterista bop Kenny Clarke, em 1949, embora nenhum dos dois
tivesse muita simpatia ou sentisse emoção pela música do outro. Ele cra ainda
melhor quando compartilhava com seus parceiros as idéias básicas sobre o
formato e o procedimento, como um antigo acompanhante scu lembrou:
Becher « Braud [o contrabaixista Wellman) chegaram com grandes casa-
cos € chapéus velhos; acho que Becher usava uma boina. Senraram-se
tente a frente c fizeram gracejos. Era como um ritual antigo entre che-
fes. Muggsy [panier] juntou-se a cles enquanto fazia aquecimento — o
mesmo tipo de abordagem. Acostumado ao razzmarmzs [das prepara-
ções de sua banda de swing], fiquei imaginando 6 que aconteceria: um,
dois, rés, quatro, e já! À música explode em volta de mim.
Contudo, o isolamento de Becher não cra só pessoal, mas também
geográfico. O jaz é, entre outras coisas, a música da diáspora. Sua história
é parte da migração em massa do Sul antigo, e, por razões econômicas (e
fregilentemente psicológicas), é feita por pessoas desimpedidas que passam
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 339
O pequeno mas seleto grupo de amantes cultos do jazz não tinha pro-
blemas para reconhecer sua qualidade, contudo, outros poucos escuravam
grupos fugazes como os New Orleans Feerwarmers, de 1932-1933, e a meia
dúzia de lados de discos que gravaram. Depois que o mercado para o jazz sc
reaqueceu de novo, em meados da década de 30, os aficionados consegui-
ram algumas pequenas sessões em grupo para Becher, que o puseram diante
de um público de jazz importante e lhe asseguram a reputação: as seguên-
cias de 1937 com o selo Variety (iniciada por Helen Oakley, apoiada pelos
antigos admiradores de Becher, Ellington « Hodges), os discos clássicos de
Bechet & Ladnicr de 1938, produzidos pelo crítico pioneiro francês Hugues
Panassié, e, é claro, John Hammond e o famoso New masses, base do show
Frota Spirizuals to Swing, no Carnegie Hall cm 1938. Eles inspiraram as
gravações de 1939 de Bechet, feitas por um recente entusiasta do jazz re-
fugiado de Berlim, Alfred Lion, que promoveu o sucesso de seu novo selo
Blue Note, assim como confirmou o de Becher
Embora os resgatadores curo-americanos de Becher apreciassem a tra-
dição de Nova Orleans — como poderia um amante do jazz não à apreciar?
— é estivessem ansiosos para trazer de volta artistas injustamente esqueci-
dos, cles não eram aficionados dos New Orleans. Mesmo as sessões de Becher
& Ladnier, que, como se reivindicava, “tinham mais a ver com 0 revival do
Dixieland do que quaisquer outras”, distinguiam-se mais pelo talento ar-
tístico do que pela autenticidade. No entanto. por trás deles surgia uma
maré de nostalgia, especialmente entre os jovens brancos de classe média, da
pura, maravilhosa « verdadeiramente única música de jazz, que de alguma
ma havia sido traída quando o Storville fechou e os instrumentistas
subiram o Mississipi; embora o fato de os sobreviventes da década de 20
fazerem suas próprias coisas fosse melhor do que nada, sobrerudo se fossem
negros.
O vevival do Dixicland ou dos New Orleans foi um fenômeno essen-
cialmente não-musical, não obstante capacitasse um grande número de ama-
dores a se divertir tocando “Muskar ramble” « múmeros semelhantes. Per-
tence à história cultural e intelectual, e é por isso que merece a investigação
séria que ainda não recebeu. Foi um movimento basicamente branco, em-
bora naturalmente bem recebido pelos músicos crioulos maduros, em par-
ticular os necessitados de dinheiro. Nova Orleans tomou-se um mito e um
símbolo múltiplo: anticomercial, anti-racista, prolerário-populista, radical do New
Deal, ou apenas anti-respeitável ou antipatemal, dependendo do gosto.
E) ERIC HOBSBAWM
nos shows, embora não seja claro até que ponto isso cra meramente comer-
cial. (No entanto, apesar das sugestões de sua simpatia para com os comu-
nistas e de suas lembranças indubitavelmente afetuosas da Rússia, é difícil
ver Becher como uma figura política, ainda mais como um vermelho entre
os músicos negros de jazz.) Quanto ao revival dos New Orleans, ele reco-
nheceu seu potencial para um membro da Crescent City. Sejam quais foram
os motivos, em 1945, a sociedade com Bunk Johnson, um antigo trom-
petista desenterrado pelos puristas « transformado em Ícone da aurentici-
dade, mostrou sua posição aos fis. Mas como aconteceu em sociedades an-
teriores, esta também terminou mal.
Entretanto, nenhum desses trabalhos lhe proporcionou uma renda ade-
quada, no nível que Bechet considerava conveniente à sua posição, embora
no final da década de 40 ele dispusesse de uma parcela considerável de
direitos autorais em discos. O convite para ir à França em 1949 foi o que
finalmente resolveu seus problemas. Nesse país onde o jazz tinha enorme
prestígio cultural e intelectual, além de associações com a Resistência, ele
encontrou o que tinha sempre sonhado: um grande público para o qual o
homem com nome francés « apoiado por críticos franceses era um gênio
consagrado do jazz, e uma comunidade de fis formada por jovens músicos,
cujos corações batiam mais rápido só de pensar que cle os honraria ao en-
trar em seus porões. A França se tornou seu lar permanente, Ele passou a
ser um mascote cultural, como Josephine Baker O fora antes, Sua música
não foi assim rão boa, mas isso não o prejudicou financeiramente. Livrou-se
dos atritos pessoais c empresariais que sempre complicaram sua vida nos
Estados Unidos. Viveu a vida como um exilado feliz
O homem que surge das admiráveis pesquisas de Chilton cra um pro-
duto típico de Nova Orleans «, ao mesmo tempo, um personagem peculiar.
Como membro dos crioulos de cor, os membros da (francófona) classe média
baixa e artesãos mulatos livres, pressionados em direção aos negros pela
segregação pós-Guerra Civil, ele adquiriu as habilidades musicais e profis-
sionais de sua comunidade, Ao longo de sua vida aprendeu a costurar c
cozinhar, embora se recusasse a ser aprendiz de artesão, como foi a maioria
dos músicos crioulos. E também, o que é mais surpreendente, recusou-se à
aprender a ler música, sem dúvida porque, no início, isso parecia desne-
cessário a um músico naturalmente tão brilhante, mais tarde por revolta ,
no final, talvez por orgulho defensivo.
se ERIC HOBSRAWM
Notas
1. Sidney Bechhe, Trsãr de Gens: Au Auobsigrapi, Lundres, 1960. Eoi publicada após
uma trajetória atribulada de edirores, advogados e colaboradores como John Card
2. Paul Oliver, Max Harrisome William Bolcom, The Ni Grove: Gospel, Blues ama Jaco,
Nora Yock, 1987, p. 292.
à Gomtudo, à opinião negativa de Anscrmet, trinta amos mais tarde (“Os dias do jazz
acabaram, Ele fez sua contribuição à música, Agora. cm si mesma é apenas mo-
nótem”), não foi difundida pelos amantes do jazz ox f3s de Bechet, embora Chilton
a regis,p. 207.
Capítulo 20
COUNT BASIE
negras estáveis”, nas palavras de Gene Ramey, cujo esboço do clima de Kan-
sas City na valiosa colerânea de entrevistas de Stanley Dance, é um dos melhores:
Eles jam direto aos caferões e às prostitutas, e ficavam com cles. Essas
pessoas faziam uma grande publicidade para Basie. Eles não curriam
Andy Kirk. Diziam que ele era muito orgulhoso. Mas Basie estava lá,
deitado na sarjeta, se embebedando com eles. Tinha remendos na calça,
coisas desse tipo. À banda inteira era assim.
Essa não é à imagem enfatizada em Goo Morninyy Blues, uma obra
bastante reticente em vários sentidos, embora, de fato, a atração do meio
pelo jogo, divertimento, mulheres — e, não menos, pelo uísque — trans-
pareça constantemente nas brechas da fachada autobiográfica dos estadistas
mais velhos do jazz. Seu livro mostra, talvez de maneira mais clara do que
qualquer outro relato, quão atraente e importante para o desenvolvimento
da música cra aquela comunidade nômade c flutuante de músicos negros
profissionais, que viviam em pequenas ilhas independentes e auto-suficien-
tes de anfitriões populares e gente da noite — uma rua ou duas onde estava
a ação, casas de cômodos, bares, clubes —, que se espalhavam nos Estados
Unidos como um arquipélago da Micronésia.
Foi lá que os músicos encontratam um meio que aceitava à invasora
importância do profissionalismo, do acertar a música, do estranho casamen-
to entre à cooperação do grupo e a competição feroz dos indivíduos, que é
análoga ao meio daquela outra criação da cultura da classe trabalhadora, o
esporte profissional. Mais uma vez, a narração incompleta é a modéstia
excepcional de Basie — na verdade, excessiva para um autobiógrafo — aba-
fam o seu relato. O máximo que se permite dizer no sentido da auto-pro-
moção é; “Não é para me animar, mas aquela banda estava ficando muito
convencida, convencida mesmo”. Ele tende muito mais a r
siões em que sofreu uma derrota do que aquelas em que triunfou sobre o
público. O verdadeiro som do triunfo da banda se ouviu cm outra parte:
Nós éramos apenas a banda de Counr Basie, e safamos de um ómibus
scarigalhado, mas quando chegivamos naquele palco começávamos à
pular « levávamos uma saraivada -. Demos prejuízo naquela noite e
tiramos Lunceford do salão de baile
(Do trompetista Harry “Swects” Edison, citado em
The Vivid of Conmz Basie, de Stanley Dance,
3so ERIC HOBSBAWM
Em suma: no papel, ele não tinha qualificações para nada, exceto para
ser um músico de jaz aceitável. Com a modéstia, ou a honestidade, que lhe
eram características, ele diz muito em seu triburo a Joha Hammond, que
ouviu à transmissão do Reno Club no rádio de ondas curtas de seu carro,
em 1935, quando atravessava o Meio-Oeste, € ficou estarrecido, transtor-
mando Basie cm um personagem nacional: “Sem ele provavelmente cu ain-
da estaria em Kansas City; se ainda estivesse vivo. Ou teria voltado a Nova
York ... tentando entrar na banda de alguém, e preocupado em não ser
despedido”.
Mas o que Hammond, e posteriormente o resto do mundo, viu em
Basie? Mais uma vez, às melhores descrições são dos outros
Ele era e é [diz Harry “Sweers” Edison) o maior na marcação do tempo,
batendo à pé com firmeza. Beincava no piano até acertar. Como se você
mikturasse malte € levedo para fazer uísque, € ficasse experimentando e
tomandoà experimentar. Freddie Green e Jo Jones 0 acompanhavam até
que cle chegasse ao tempo certo, e quando ele começava eles o sustentavam.
Esse “tempo” era o mistério de Basie, o Guod Morning Blues começa
com a descoberta de todos os lugares, Tulsa, Oklahoma, o que Albert Mur-
ray chama em outro livro de “aquele sempre firme, no entanto, sempre
flexível impulso transcontincntal, tipo locomotiva de Kansas City 4/477 €
isso nos Blue Devils de Walter Page, junto de quem cle é, de comum acor-
do, um dos pioneiros daquele ritmo adorável, fácil € melodioso e ao mesmo
tempo propulsor é relaxante. Esse seria o núcleo de sua banda inicial,
Tendo estabelecido o tempo, Basie, em seguida,
estabelecia primeiro o ritmo para os saxofones ., então fixava um para
Os ossos, e nós o pegivamos. Agora é o nosso ritmo contra o deles. O
terceiro ritmo seria para os trompetes ... (Os solos aconteciam entre as
harmonias, mas é assim que a música começava, é como Basie juntava
suas melodias.
(De Dicky wells, trombonista, citado em The Trid of
Count Basie.)
As grandes ondas de frascados harmônicos, que atingiam o público
como as ondas do Atlântico, não cram portanto — não no início, pelo
menos — truques estilísticos ou fins em si mesmo. Eram o maremoto es-
ass ERIC HORSBAWM
Notas
1.=Ele é demais”, escreve Basic sobre o seu descobridor John Ilarimond. “Nunca pe-
dliu um cenravo meu ou dos orueros pelos quais tato fez, E. não foram poucos. Tado
o que ele queria era ver 0 resultado do que devia estar acontecendo.”
2. Albere Murray, Sromping the Bites, Nova York, 1982, p. 166,
Capítulo 21
O DUKE
registros de sua obra, não porque não tivesse o som c a forma em sua
cabeça, mas porque a seu ver as músicas so faziam sentido se tocadas ao
vivo, e, como em todo jazz, o variava de acordo com os músicos, à oca-
sião e a disposição.» ão havia uma versão definitiva, apenas uma preferida e
provisória. Constant Lambert, um antigo admirador do clássico, se cquivo-
cou ao afirmar que o disco de Ellington era o equivalente da partitura do
compositor metódico”
É evidente que as obras criadas dessa forma não se encaixam na care-
goria convencional de “artista” como o criador individual e único autor,
mass Esse padrão convencional nunca se aplicou às formas coletivas ou coope-
rativas de criação que povoam nossos palcos e telas. sendo mais caractenísti-
cas das artes do século XX do que um indivíduo em seu escritório ou sen-
tado à escrivaninha. O problema de situar Ellington como um “artista” não
é diferente, em princípio, do problema de descrever os grandes corcógratos,
diretores ou outros que imprimiram sua personalidade como indivíduos em
produtos de equipe, É apenas pouco comum na composição musical
Sem dúvida, esse fato levanta sérias questões sobre a definição aceita
ou a descrição da arte e da criação artística. É claro que o termo compositor
se aplica tão mal a Ellington como o termo autor 208 direrores de Holly
«wood, como queriam os críticos franceses com sua inclinação nacional para
o reducionismo carcesiano e burguês. Ellington, porém. produziu obras coo-
perativas de arte séria que também eram suas, assim como os diretores de
cinema e teatro podem fazer, só que, de mancira inversa à dos megaloma-
níscos, ele sabia que estava envolvido numa criação genuinamente coletiva.
Collier faz essas perguntas, mas é desviado pela convicção de que Elling-
ton permitiu que seus talentos fossem afastados daquilo que ele fazia de
melhor, à tim de realizar “uma música que competia com modelos do pas-
sado, que em vários casos ele não entendeu”, e que não era muiro boa. Não
é certo que esse fato “o renha impedido de desenvolver à forma com a qual
estava familiarizado”. Afinal, pela estimativa do livro, ele produziu mais de
120 horas de jazz gravado, o que é um corpas grande o suficiente para à
maioria dos compositores; além disso, ele se desenvolveu e inovou até o fim
da vida, Se produziu poucas obras-primas após os cinquenta anos, isso se
deu menos por culpa do empurrão do Carnegie Hall do que pelos proble-
mas de negócios que atingiram o seu instrumento, abig band.
366 ERIC HOBSBAWM
Não basta dizer, como Collier, que quando o jaz, se confunde com à
arte, sai a paixão c entra a pretensão”, O jazz é importante não por ser
apaixonado e despretensioso; a maior parte da fieção romântica, sim. Não é
que, de maneira diferente à arte que Collier desgosra, “milhões de pessoas
gostam dela”, É, e sempre será, uma arte de minoria, mesmo pelos padrões
da música clássica e da literatura séria, sem falar no verdadeiro público de
milhões. Certamente não é uma arte de massa nos Estados Unidos, onde os
clubes de jazz nova-iorquinos (como os administradores de teatro britâni-
cos) contam com o turismo e também com 6 público local de jazz:
O jazz é importante na história das artes modernas porque desenvol-
vcu uma maneira alternativa de criar arte, em relação à vanguarda da alta
cultura, cuja exaustão legou muitas artes convencionais e “sérias” a pro-
gramas optativos no ensino das universidades, assim como a investimentos
de capital especulativo ou filantropia. É por isso que se deve deplorar a
tendência do jazz a se tornar uma outra vanguarda.
Mais do que qualquer outra pessoa, Ellington representou essa habili-
dade do jazz em transformar pessoas que não se preocupavam com a “cul-
rara”, perseguindo a seu modo suas paixões, ambiçães € interesses, no sentido
da criação de uma grande arte séria e em escala pequena. Ele demonstrou
isso por meio de sua própria evolução ao tomar-se compositor, é também
pelas obras de arte integradas que criou com sua banda, que tinha menos
talentos individuais brilhantes do que as outras — até o final da década de
1930 apenas um, talvez: Hodges —, mas na qual o desempenho individual
extraordinário foi à base de uma conquista coletiva, Não há outro fluxo de
criação musical em nenhum grupo que se compare. Certamente ele (ou
eles) atingiu diretamente os sentimentos dos ouvintes, mas esse fato em si
não explica o motivo, como observa Colher, pelo qual sua música cra tão
mais complexa que a de outros grupos. Em suma: O autor às vezes se sente
tentado pela teoria populista da arte, pela qual o artista não apenas “se
alegra em concordar com o leitor comum?” (para usar a frase do dr. Jobnson),
mas usa as preferências do leitor comum como um guia. Vê-se que a teoria
é inadequada, entre outros exemplos, ao se comparar as fases americanas e
alemãs de George Grosz e Kurt Weil.
No entanto, Collier está cera ao acreditar que as grandes conquistas
do jazz, das quais à música de Ellington é de certa forma a mais impres-
sionante, foram feitas em um território diferente daquele que produziu a
arte clevada. Era uma música de profissionais com expectativas modestas,
E ERIC HORSBAWM
feita por uma comunidade de pessoas da noite com raízes populares. Não
cra para ser uma “arte” como a música de câmaras não se beneficiava do
fato de ser tratada como “arte” e tinha tendência a se perder como as artes
elevadas, quando seus praticantes se voltavam para uma nova vanguarda.
Sua contribuição mais importante à música foi feita num ambiente que já
não existe mais, É dificil imaginar que um dos grandes músicos do fururo
diga o que disse um dos mais importantes solistas de Ellington: “Eu só
queria ser um alcoviteiro bem-sucedido, mas descobri que sabia tocar trompa”:
O jazz de hoje, tocado em larga escala por músicos com formação,
amiúde clássica, essencialmente para um público ouvinte, por uma geração
cujos laços como os blues são mediados em geral pelo rock e por um gospel
musicalmente empobrecido, terá que encontrar outro caminho se puder,
para deixar uma marca tão forte quanto a do jazz dos que nasceram na
primeira metade do século. Mas todos os músicos, sem exceção, continua-
rão à ouvir os discos de Ellington, sobre quem Collier escreveu o melhor
livro que temos: econômico, lúcido e perspicaz a respeito do homem: boa
crítica e história bem-feita.
Notas
1915. O jazz mal tinha sido batizado nos Estados Unidos quando grupos
com esse nome já faziam rurnés pela Europa, em meados de 1917. Con-
Segiientemente, 6s obstáculos à rápida difusão do jazz não eram & nicos,
mas sociais « culturais.
No entanto, o mais interessante sobre essa difusão é o que estava sen-
do difundido. Era um dos vários tipos de novidade cultural e de criação
artística que emergiram no final do século XTX em um meio plebeu, sobre-
tudo urbano, da sociedade industrial ocidental, provavelmente no ambiente
especializado do lumpemprolerariado dos bairros de lazer das grandes ci-
dades, com suas subculturas cspecíficas, estercóripos masculinos e femini-
nos, figurinos — e música. O tango de Bucnos Aires, que assegurou à
música latino-americana um lugar permanente, embora não muito impor-
tante, nas pistas de dança internacionais, na mesma poca que à jazz, é um
exemplo. À música cubana é outro. Que o jazz fosse ao mesmo tempo uma
novidade e, originariamente, uma arte pertencente a uma subcultura auró-
noma é um faro significativo por duas razões. Primeiro, porque a engrena-
gem da difusão comercial o alcançou quando estava de partida, no caminho
entre à sua formação e a sua evolução. À recepção do jazz era o oposto de
fenômenos como q “revival da música folkê” que desenterrou fásseis musicais
em Somerset ou em Appalachia. Ao mesmo tempo, à rápida evolução da
música gerou o gosto pela nostalgia e pela arqueologia musical no público
secundário do jazz. Serviu para gerar um jazz “tradicional” ou um revival
(Dixicland); acima de tudo, o jazz não foi recebido simplesmente como
uma Gebranchsmasik, como outro tipo de som que acompanhava a dança ou
a cerveja, mas como algo simbólico e significativo em si. Esse é um ele-
mento importante da recepção do jazz na Europa
Resta dinda uma pergunta importante: por que. entre todas as artes
urbanas plebéias contemporâneas absorvidas por um público secundário, a
música negra norte-americana teve uma capacidade tão maior que as outras
de conquistar o mundo ocidental? Não foi de modo algum à primeira arte
desse tipo a ser absorvida pelos intelectuais, aristocratas é artistas letrados,
socialmente superiores; na verdade, devido à ausência de aristocraras e in-
telectuais do tipo europeu nos Estados Unidos, foi uma das últimas. Antes
da década de 1930, ou melhot, na de 20, não havia equivalente na história
do jazz à cultura do cante bondo da Andaluzia nos anos 1880, da História do
“fado de Pinto de Carvalho, de 1903, dos Max Beerbohms « dos Toulousc-
Lautrecs que louvavam os artistas dos salões de música dos anos 1890, ou
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS am
mesmo das campanhas feitas por dedicados aficionados, que criaram à mo-
da do tango na Europa nos anos de 1900. Os primeiros livros sérios sobre
jazz foram escritos na Europa, ou em outros lugares, em 1926; 0s primeiros
livros que mostraram tipo de conhecimento de arristas c da música dos
escritores ibéricos do final do século XIX não datam de antes de meados e
fins da década de 1930,
A resposta a essa questão deve permanecer em aberto, mas quero con-
tsibuir com um elemento. A música negra norte-americana bencficiou-se de
ser noree-americana. Foi recebida não apenas como exótica, primitiva ou
nã o-burguesa, mas como moderna. As bandas de jazz vieram do mesmo
país que Henty Ford. Os intelectuais é artistas que tocaram jazz imedia-
tamente após à Primeira Guerra Mundial no continente curopeu quase in-
variavelmento incluíram a modernidade em suas atrações. Veio daí à moda
absurda de ligar essa música de alguma forma obscura com a civilização da
máquina, com à qual (exceto pela locómotiva) ela não reve nenhuma afini-
dade, À propósito, os intelectuais ou artistas britânicos de 1918 não de-
.monstraram nenhum interesse evidente pelo jazz dos vanguardista do con-
tinente — Cocteau, Milhaud e o resto —- na mesnia época.
No entanto, um terceiro elemento na recepção da música negra é mui-
to relevante, O jazz abriu caminho e triunfou, não como uma música para
infeleceuais, imas como uma música para dançar, e especificamente para uma
dança social transformada é alterada pelas classes média « alta britânicas,
mas também, e quase simultaneamente, a dança da classe trabalhadora bri-
tânica, Durante Os anos de 1900 a dança mais ousada foi transformada de
dois modos, (Um especialista contemporâneo que testemunhou isso locali-
zou a mudança principal exatamente na temporada de 1910-1911.) Em
primeiro lugar, a dança urbana já havia deixado de ser uma ocupação sa-
zonal ligada a ocasiões especiais, « estava sendo praticada durante o ano
todo como atividade social e de lazer regular. Até certo ponto era praticada
em âmbito privado, mas logo surgiram clubes especiais de dança — havia
arés apenas na Hampstcad cduardiana —, e ela acontecia também em hotéis
é lugares que ainda não sc chamavam “boates”. A dança do chá c à dança do
restaurante apareceram em uma escala modesta. Em segundo lugar, a dança
perdeu a formalidade e passou a requerer uma sucessora, Tornou-se ao mes-
mo tempo mais simples, mais fácil de aprender « menos exigente é exaus-
tiva, A mudança crucial, aqui, foi da dança de giro (por exemplo, a valsa)
para a dança andante, como a de Boston, uma espécie de valsa retilínea, no
início dos anos de 1900. Parece claro que esses desenvolvimentos refletiram
um aftouxamento substancial das convenções aristocráticas e da classe mé-
dia, sendo um sintoma surpreendente e negligenciado da notável emanci-
pação das mulheres dessas classes antes de 1914. O elo entre a revolução na
dança, até mesmo especificamente entre a nova primazia do riimo em dan-
ças sociais, e a emancipação das mulheres não passou desapercebido. Foi
observado em um dos primeiros livros mais inteligentes sobre o jazz, Jazs:
Eine musikalische Zeitfrage, de Paul Bernhard (1927). Bernhard enfatizou
que esse desenvolvimento chegou ao continente vindo dos países anglo-saxões,
Não há necessidade de Falar muito sobre à cronologia da recepção do
jazz. Podemos, rapidamente, distinguir uma era paleolítica, antes de 0 jazz.
se tornar conhecido por esse nome. El assistiu à introdução de elementos
negros norte-americanos na elegante música dançante britânica, na qual se
tornaram dominantes por volta de 1912, quando à sincopação se transfor-
mou num elemento essencial. Houve uma revolução neolítica após 1917,
quando o jazz irrompeu na consciência européia como um barulho alto é
estridente, como um símbolo do que jornalistas, pregadores incelcerais
escolheram denunciar ou elogiar, c finalmente como nome e instrumen-
tação da música que acompanhou uma nova cpidemia de dança social de
massa, Na abrangente área de música dançante e de entretenimento inorte-
americana), um pequeno público de fis apaixonados e instruídos na década
de 1920 escolheu um campo específico do hor jazz como uma música de
arte a ser admirada. Na década de 30, que é o periodo seguinte na história
da recepção do jazz, o público curopeu específico de jazz torno!
mais Organizado, especialmente em clubes de jazz, e os colecionadores co-
meçaram à invadir o rádio, a nova mídia. Os europeus começaram até a
gerar, de maneira modesta, músicos de jazz nativos de seus países, No en-
tanto, a partir do final da década de 1930, um público secundário essencial-
mente branco, tanto nos Estados Unidos como na Europa, desenvolveu um
próspero corpo de músicos amadores e uma reação tradicionalista ou con-
servadora específica contra a evolução do jazz, com um movimento de re-
vival dos New Orleans, ou do Dixieland. Na Europa, « certamente na
Bretanha, essa se tornou “a música social básica para muitos jovens” (para
itar Lincoln Collicr) durante a Scgunda Guerra Mundial. Assim permane-
ceu até o surgimento do rocên'rol.
O surgimento de uma música jovem amplamente popular, a partir de
uma pequena minoria exclusiva de aficionados eruditos do jazz, é significa-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS as
Europa Central, más, como nos lembra Michacl Kater, sobretudo para Eckarr
Kehr, um jovem € brilhante historiador. As fluruações desse público foram
menos notadas, embora aparentemente à paixão pelo jazz como música do
futuro houvesse diminuído um pouco no final da década de 1920, uma
situação bem recebida pelos oponentes tanto da direita como da esquerda
da Escola de Frankfurt. Michael Kater recentemente descreveu o destino do
jazz sob os regimes nazista « soviético, mas não há até agora, que cu saiba,
nenhum tratamento com o mesmo peso que teve sob o fascismo na Itália
Finalmente, a última pergunta é: o que essa música significou para os
que à receberam? Para o público comum significou, além de uma música
para dançar, um certo tipo de ritmo e um barulho sonoro não convencionais
(Sama música barulhenta, às vezes ensurdecedora, criada por vários instru-
mentos de percussão é outros”, para citar um manual de dança alemão de
1922): possivelmente, uma música executada com um abandono selvagem.
Por ser, na expressão francesa, “uma certa barbárie que se tomou lícita” (une
certaine bararie devense licite), serviu aos rebeides contra as convenções e as
gerações mais velhas. Na década de 20, como vimos, associava-se imedia-
tamente à ser “moderno” ou “contemporâneo”. Em 1925, o Paris-Midi as-
sociava a banda de jazz com carros pequenos, lâminas Gillere e cabelos
curtos para mulheres. Após 1920, a música negra perdeu a conotação de
símbolo da modernidade, mas sobretudo após à Segunda Guerra Mundial
tornou-se cada vez mais um símbolo de afirmação de uma geração; Sob a
forma de rock, tornou-se à expressão internacional mais importante da cul
tura de um grupo etário da juventude
Podemos deixar de lado a reação da alta sociedade e dos intelectuais a
cla associados. Esse fato não foi de grande importância na Grã-Bretanha.
embora, sem dúvida nenhuma, tenha agradado à Duke Ellington ver o fu-
ruro rei Eduardo VIT comparecer com os seus tambores em uma festa para
a sua banda em Londres, Muito mais importante, como foi sugerido, foi o
caráter democrático « popular da música, que fez com que o Melody Maker
afirmasse clogiosamente: “Atrai não apenas à platéia, mas também as gale-
rias. Não há distinção de classes”. Na Grã-Bretanha — e somente aí —
podemos negligenciar a criativa vanguarda que, convencida da exaustão da
música fora de moda, em outros lugares procurou o circo, o music hall, os
músicos de rua e o jazz para regenerá-la, ou ainda os bolcheviques culturais
da Europa Central que deram um passo adiante € associaram o jazz ao
proletariado e à revolução. A Grã-Bretanha escapou dessa fase. No entanto,
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS
Pelos meus cálculos, feitos no final dos anos 50, o público principal do jazz
britânico daquela década era composto de cerca de 25 mil pessoas, que
compravam revistas especializadas em jazz, como à Jazs News, c de 115 mil
que compravam a revista semanal tradicional dos amantes do jazz, a Melody
Maker. O público nacional total para uma turné importante de uma banda
norte-americana famosa podia ser estimado em cerca de 100 mil pessoas, O
setor intelectual era muito menor. Os livros sobre o jazz tinham uma expec-
tativa de venda de 8 mil exemplares. Contudo, não há dúvida de que entre
1945 e 1955 O jaz7 se estabeleceu na Grã-Bretanha como uma parte recon-
hecida e aceita da cultura erudita, como não o havia sido até à guerra.
Surgiu da guerra na França, talvez devido às associações antifascistas de
uma música anti-racista, não tanto como pilar principal da cultura francesa,
mas como algo pelo qual os pilares da cultura deviam mostrar respeito: o Le
“Mende fez uma resenha, porque o Le Temps não sonharia em fazé-lo: Jean-
Paul Sartre admitiu esse fito. No entanto, sua posição na música oficial
permaneceu de certa forma marginal até muito mais tarde.
A recepção do jazz na Europa consiste, portanto, em dois fenômenos
bastante diversos. A recepção das formas de música popular baseadas e in-
fluenciadas pelo jazz foi virtualmente universal, A recepção do jazz como
uma forma missical de arte culta gerada popularmente ficou confinada a
uma minoria, é permanece confinada, embora um certo conhecimento do
jazz tenha se tornado uma parte aceita da cultura crudita, Durante um lon-
go período, o público curopeu de jazz, embora pequeno, desempenhou um
papel importante na história do jazz porque constimuin um apoio muito
mais estável do que o volátil público norte-americano. Essa fato seria im-
portante nas décadas de 60 « 70, quando a onda do rock quase tirou o jazz
de cena nos Estados Unidos, e os músicos norte-americanos, que com fre-
quência iam morar na Europa, começaram a depender em grande escala de
concertos é festivais europeus, como ainda acontece a muitos. Mas esse faro
necessariamente não indica uma expansão significativa do público europeu
de jazz. Contudo, os desenvolvimentos do pós-guerra não pertencem a esta
pesquisa. O público de jazz era, e permanece sendo, uma minoria muito
inferior à do público de música clássica, a julgar pela venda de discos e pela
quantidade de tempo que as rádios lhe dedicam. À recepção do jazz (em seu
sentido mais estrito) deve ser julgada não pelo número de seus convertidos,
mas pelos méritos da música « pelo extraordinário interesse, para o histo-
tiador cultural e social, do próprio processo de transferência transarlânti
Capítulo 23
O SWING POPULAR
Este capítulo é baseado nos rextos introdutórios do meu livro História social
do jazz, nas edições de 1089 € 1992.
mais existia. Voltar à Nova York em 1963 cra uma experiência dolorosa
para o amante de jazz que visitara a cidade em 1960.
Isso não significa que 6 jazz tenha desaparecido, mas apenas que tanto
os músicos como o público ficaram mais velhos, e novos adeptos não ha-
viam surgido. Naturalmente, fora dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha.
que eram os principais centros « fontes do rock, o público jovem do jazz,
embora mais seleto em termos intelectuais e sociais, de alto nível e elevado
poder aquisitivo, continuou à ser expressivo e nada desprezível comercial-
mente, Por isso, não foram poucos os músicos de jazz americanos que acha-
ram melhor emigrar para a Europa naquelas décadas. Em países como Fran-
ça; Itália, Alemanha, Brasil e Japão, além da Escandinávia e — embora
menos relevante em termos comerciais — do Leste curopeu, o jazz con-
tinuou viável. Nos Estados Unidos c na Grã-Bretanha, O público se res-
tringia à homens e mulheres de meia-idade, jovens nas décadas de 20 30
ou, no máximo, na de 50. Como disse um famoso saxofonista em 1976:
“Não acho que possa ganhar o suficiente neste país. Não acho que alguém
possa ... Não há gente em número bastante, não há dinheiro bastante,
Mais ou menos nos últimos dois anos, a banda fez mais apresentações na
Alemanha do que aqui”.!
Era essa à realidade do jazz nos anos 60 e na maior parte da década de
1970, ao menos no mundo anglo-saxão. Não havia mercado para cle. De
acordo com a Billboard International Music Industry Directory, de 1972,
apenas 1,3% dos discos e fitas vendidos nos Estados Unidos eram de jazz,
contra 6,1% de música clássica c 75% de rock e gêneros semelhantes. Os
clubes de jazz começaram a fechar, os recitais diminuíram em número, mú-
sicos de vanguarda tocavam uns para os outros em apartamentos particu-
lares, é o reconhecimento cada vez maior de que 0 jazz era algo que fazia
parte da cultura oficial americana, ainda que produzindo subsídios interes-
santes para músicos não-comerciais por meio de escolas, faculdades é outras
instituições, reforçou a convicção dos jovens de que O jazz fazia parte do
mundo dos adultos. Ao contrário do rock, o jazz não cra a música deles.
Somente quando houve alguma exaustão do impulso musical por trás do
rock, que sc tornou cvidente no final dos anos 70, abriu-se espaço para o
renascimento do interesse pelo jazz como algo diferente do rock. (Alguns
músicos de jazz tinham, é claro, desenvolvido um gêncro chamado “fusion”,
uma fisão de jazz e rock, para horror dos puristas, principalmente os de van-
guarda, é foi provavelmente através dessa mistura que O jazz conseguiu manter
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS as9
uma certa presença junto ao público nesses anos de isolamento, com Miles
Davis, Chick Corea, Herbie Hancock, o guitarrista inglês John MeLoughlin
é a combinação austro-americana de Joe Zawinul e Wayne Shorer no Wea-
ther Report.)
Por que motivo o rock teria enterrado o jazz durante quase vinte anos?
Ambos tinham sua origem na música dos negros norte-americanos, e foi
através dos músicos e fãs de jazz que o blues negro passou a merecer a
atenção de um público mais amplo do que o meramente restrito aos estados
do Sul dos Estados Unidos « dos guetos negros. Como eles figuravam entre
os poucos brancos familiarizados com artistas « repertórios dos catálogos
dos ditos race records (diplomaticamente rebatizados de riyrbme'n'blues no
final dos anos 40), os brancos amantes de jazz é blues foram de imporrância
crucial para O lançamento do rock. Ahmer Ertegun, que fundou a Atlantic
Records, que por sua vez veio à se tornar uma das principais gravadoras de
jazz, era um dos dois irmãos que durante muito tempo integraram a comu-
nidade internacional de especialistas e colecionadores de disco de jazz. John
Hammond, cujo papel importantíssimo na evolução do jazz nos anos 30 já
foi mencionado, também impulsionou as carreiras de Bob Dylan, Aretha
Franklin é, mais tarde, de Bruce Springsteen. Onde estaria O rock britânico
sem a influência dos poucos entusiastas locais de blues, como o falecido
Alexis Korner, que inspirou os Rolling Stones, ou os entusiastas do jazz
tradicional (apelidado “trad”) que, do interior c das cidades grandes, impor-
tavam cantores de blues como Muddy Waters e os tornavam famosos em
Lancashire e Lanark muito antes que fossem conhecidos por pouco mais de
meia dúzia de americanos fora dos guctos negros?
No início, parecia não haver hostilidade ou incompatibilidade entre o
jazz e o rock, ainda que os leitores atentos de História social do jacs possam
constatar a atitude de condescendente superioridade com que os críicos e,
acima de tudo, os músicos profissionais de jazz tratavam os primeiros triun-
fos do rockn'roll, cujo público parecia incapaz de distinguir entre um Bill
Haley (“Rock around the clock”) e um Chuck Berry, Uma diferença básica
entre O jazz e o rock é que 0 rock nunca foi música de minoria. O riythmr”.
s”bles, tal como foi desenvolvido depois da Segunda Guerra Mundial, era à
música folk dos negros urbanos na década de 1940, quando 1,5 milhão de
negros deixaram o Sul em direção ao Norte e os guetos do Oeste, Eles for-
mavam um novo mercado, que então passou à ser suprido por pequenas
gravadoras independentes, como a Chess Records, Esta, fundada em Chicago
390 ERIC HOBSBAWM
velhas big bands de jazz, os grupos de rock eram pequenos. Eles produziam
um “grande som” (que não significa necessariamente um grande volume de
som, embora o rock costume dar preferência à amplificação máxima) com
um múmero mínimo de integrantes. Isso ajudou a trazer os pequenos gru-
pos de jazz de volta a algo que se perdera de vista na época da sucessão de
solos da era bebop, ou seja, a possibilidade da improvisação coletiva « da
textura de grupos pequenos. Arranjos sofisticados de rock — como o de
Sergeant Pepper, dos Beatles, que foi rotulado, não sem razão, de “rock sin-
tônico” — não podiam deixar de dar aos músicos de jazz algumas idéias
O terceiro elemento de interesse no rock era o ritmo insistente « palpi-
tante. Embora inicialmente muito menos elaborado do que o ritmo do jazz,
a combinação dos vários instrumentos rítmicos que formavam o conjunto
de rock — teclados, guitarras e percussão pertenciam, em geral, às seções
rítmicas dos conjuntos de jazz — produzia suas próprias complexidades
potenciais, que os músicos de jazz podiam transformar em ostinaros cambi-
antes e contraponto rítmicos.
Mesmo assim, como vimos, alguns músicos de jazz muito talentosos
desenvolveram uma fusão de jazz e rock (“fusion”) nos anos 70 — Aitches
Brew de Miles Davis, estabeleceu o ritmo em 1969 —, mas esse estilo híbrido
não chegou a determinar a forma do jazz de máncira permanente, tam-
pouco as injeções de elementos jazzísticos propiciaram uma contínua trans-
fusão de sangue para o rock. O que parece ter acontecido foi uma exaustão
musical cada vez maior do rock ao longo dos anos 70. que pode ou não
estar ligada à retirada da grande onda de rebelião jovem que atingiu o pico
no final dos anos 60 e início dos 70. De certa mancira, muito gradual-
mente, O espaço para O jaz parece ter se tornado menos congestionado.
Começou a perecber que os jovens estudantes mais inteligentes c infor-
mados à respeito da moda voltavam a tratar com respeito os pais de scus
amigos que tinham em casa discos de Miles Davis.
No final da década de 1970 e início da de 80, havia sinais claros de um
o revival do jazz, embora àquela altura grande parte do reperrário clás-
sico de jazz estivesse congelada numa imobilidade permanente devido à morte
de tantas grandes figuras que o formaram: o estilo de vida do jazz não
favorecia à longevidade. Em 1980, até mesmo algumas estrelas do desen-
volvimento da “nova música” já tinham desaparecido: John, Coltrane, Al-
bert Ayler, Eric Dolphy, por exemplo, Muito do jazz que os novos fis apren-
deram a apreciar era portanto incapaz de modificações c desenvolvimentos
396 ERIC HORSBAWM
ulteriores, pois era uma música de gente morta, uma situação que iria dar
ensejo a uma estranha forma de ressurgimento, em que os músicos repro-
duzem sons do passado, algo semelhante ao que ocorreu quando um con-
junto sob a direção de Bob Wilber reconstituiu a música e o som da banda
de Ellington dos primeiros tempos para o filme Corrom Club. Além disso,
grande parte dos músicos de jazz que podiam scr ouvidos ao vivo pelos
novos fãs era de meia-idade ou bastante idosa, Assim, quando escrevi uma
introdução semelhante a esta para uma reedição italiana da História social do
jazs, publicada em 1982, os amantes do jazz em Londres podiam escolher
entre uma variedade de veteranos: Harry “Swects” Edison, Joc Newman,
Buddy Tate e Frank Foster, que haviam pertencido à banda de Basic muito
tempo atrás; Nate Pierce, que cra conhecido desde à época de Woody Her-
man: Shelly Manne e Art Pepper, desde a era do col nos anos 50: Al Grey,
que voltou para as bandas de swing dos anos 30; Irummy Young, da ge-
ração de 1912, que tinha tocado com Louis Armstrong durante muitos
anos, além de outros representantes da velha guarda. Na verdade, entre os
músicos importantes que cstavam se apresentando naquela semana, prova-
velmente à único que não seria de imediato reconhecível para à maioria dos
amantes de jazz dos anos 60 era MeCoy Trner (nascido em 1938), que
ficou conhecido por sua aruação junto a Coltrane na década de 1960,
O revival do jazz continuou à partir de então. E favoreceu, torçosa-
mente, o grupo cada vez menor de sobreviventes, alguns dos quais voltaram
de seu exílio na Europa ou saíram do anonimato da televisão, do cinema, ou
dos estúdios de gravação e passaram a reconstituir grupos que haviam
separado havia muito tempo, ao menos para algumas turnés é ocasiões es-
peciais, como é o casa do Modern Jazz Quarter, ou do Art Farmer-Benny
Gilson Jazzret. Ele se mostrou especialmente favorável aos sobreviventes da
primeira revolução do jazz, pois foi o bebop que surgiu, ou ressurgiu, como
principal estilo de jazz dos anos 80, « modelo básico para os jovens músi-
cos. Por outro lado, o novo reviral deixou de fora o antigo retorno à tra-
dição daqueles que desejavam recaprurar a música de Nova Orleans c dos
anos 20. “Trad”, “Dixieland” ou qualquer que seja o scu nome, é o cstilo
mais antigo de jazz, aquele que, graças à nostalgia dos amadores de classe
média branca. cada vez mais de meia-idade, melhor resistiu aos ataques do
rock; mas também aquele que, como foi dito, nada criou de valor musical,
não sentiu os novos ventos soprando em suas velas.
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 27
tral no desenvolvimento do jazz desde o início dos anos 50, foram am-
bíguos no que dizia respeito a seus últimos vinte anos, preferiram nem
comentar os últimos dez. Isso convinha aos cidadãos mais velhos, que lem-
bram sem dificuldade as maravilhas do primeiro quinteto, de Miles ahead €
Kind of blue — mas será que o conflito de gerações deveria ter uma visão
assim estreita? Tradição agora é uma palavra-chave, um termo que se ouve
com mais frequência entre os fis de jazz, que deploram o fim do Dixicland
c de sua juventude, do que entre os músicos. No entanto, há o saxofonista
de 25 anos (“de Parker c Adderley”), que observou recentemente: “Bird é a
influência principal porque cobre muitas eras e estilos com a sua música. Ele
mantinha a tradição, e achei que se eu o estadasse o suficiente, conseguiria
entendê-la”, Será que Bird se via dessa maneira quando tinha 25 anos?
Na verdade, à mode retro data de um período muito anterior aos bop-
pers originais. Houve um retorno às baladas padrão, ainda que hoje sejam
tocadas com florcios de vanguarda por homens que voltaram à corrente
principal de fronteiras. mais inacessíveis, como Archie Shepp, o terror dos
anos 60, Há até mesmo sinais da redescoberta negra da tradição original de
Nova Orleans, que previ cm História social do jaz, admitida por Wynton
Marsalis, que é um homem de Nova Orleans tanto como a favor das tradi-
gões. Acima de tudo, houve uma volta extraordinária 0 blues, O relan-
çamento do ano passado de Robert Johnson vendeu 500 mil cópias. Ben-
son and Hedges patrocinou um festival de blucs em Nova York. Salões de
blues não param de abrir em Chicago, para o merecido benefício de velhos
que se viram com pouco dinheiro e que, enquanto escrevo, estão sendo
importados para um novo clube de Nova York, que anuncia apresentar nada
além dos blues de Chicago.
Tudo isso é confortante e familiar aos veteranos, embora seja impos-
sível sentir hoje o que sentimos no final da década de 1950 « nos anos entre
1936 e 1942, mas estamos vivendo de novo uma idade de ouro do jazz. Há
muito jazz. para se ouvir, e não há falta (pelo menos na região de Nova
York: de nistas ao mesmo tempo ousados e acessíveis: Mas isso também
é um sinal de perigo. O jazz não pode sobreviver como a música barroca,
como uma forma de pastiche ou de arqueologia para o público culto, mes-
mo entre os negros. E esse é exatamente O perigo que o ameaça. Hoje os
jovens negros não cantam o blues. Na melhor das hipóteses, artistas mais
velhos tocam blues para públicos mais velhos da vizinhança: na pior (como
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 399
Notas
Skidmore, em faze No, Londres, 1976, p. 76
itado em S. Chapplee R. Garofo, Rocks! Ie Here
to 1, Chicago. p, 144
3 Whitney Ballicer, Neie Jonk Nates: A Jóual of Jaes ns gh Seventis, Nova York, 1977,
pos.
Valerie Wilmer, As Seriousae Jour Live: The Story af she New Jaze, Londres, 1977 (2
ed. 1987), p.27.
Je também consegui, aliás, o virtual monopólio de conjuntos de cantores até então
pouco comuns em jazz e blues, e de jovens rapazes — apesar da grande superioridade
feminina nos blues e vocais, nas canções de gospel e no jazz.
O pai deles. bllis Marsalis, pianista de Nova Orleans € fã apaixonado de Once
Coleman e da vanguarda, conseguiu criá-los trabalhando no comércio. Em Nova
Orleans à música ainda é uma tradição familiar, como O era na família de Bach,
Capítulo 25
BILLIE HOLIDAY
Billie Holiday morreu há poucas semanas. Até agora não conscgui es-
crever nada, mas já que ela vai sobreviver à muitos que receberam obituários.
mais longos, um pequeno atraso numa apreciação não irá prejudicá-la, nem
a nós. Quando ela morreu, nós — músicos, críticos e todos os que ficavam.
paralisados com a voz que mais partia corações na geração passada — sofre-
mos amargamente. Não havia motivo. Poucas pessoas foram em busca da
autodestruição de maneira mais convicta do que ela, e quando essa busca
acabou, aos 42 anos de idade, Billie havia se arruinado física e artistica-
mente. Alguns de nós tentaram fingir O contrário com elegância, procu-
rando conforto nos momentos ocasionais cm que cla ainda parecia um eco
arruinado de sua grandeza. Outros não tinham mais coragem de vê-la nem
de ouvi-la. Preferíamos ficar em casa, se fóssemos suficientemente velhos ou
sormidos para ter Os incomparáveis discos de scu apogeu, entre 1937 e 1946,
muitos dos quais não estão disponíveis em LPs britânicos, e assim recriar os
barulhos insuportavelmente tristes, sensuais, sinuosos e de textura áspera
que lhe garantiram a imortalidade, Sua morte fisica trouxe alívio, em vez de
tristeza. Que espécie de meia-idade ela teria enfrentado, sem voz para ganhar
dinheiro para seus drinques e drogas, sem à aparência — ela que foi obsessi-
“02 ERIC TOBSBAWM
vamente linda em sua época — para atrair os homens de que precisava, sem
tino para os negócios, sem mada a não scr a vencração desinteressada de
homens que envelheciam e que a ouviram e viram em sua glória
No entanto, por mais irracional que fosse, nossa tristeza expressou a
arte de Billie Holidas, à de uma mulher por quem se sente tristeza, As
grandes cantoras de blues, a quem é justo compará-la, faziam seus jogos
pela força. .eoas, embora às vezes feridas ou na defensiva (Bessie Smith
não se autodenominou “um tigre pronto para dar o bote”?), seus equivalen-
tes trágicos eram Cleópatra e Fedra, ao passo que Billie era uma Ofélia
amargurada. Foi à heroína de Puccini entre as cantoras de blues, ou melhor,
entre os cantores de jazz, porque embora cantasse uma versão de cabaré de
blues incomparáveis, seu idioma narural era a música popular. Sua con-
quista exclusiva foi ter transformado isso em uma expressão genuína de
paixões importantes, menosprezando as melodias açucaradas, ou, na ver-
dade, qualquer melodia além de suas poucas notas delicadamente alongadas,
expressas como uma Bessic Smith ou um Louis Armstrong de burel, can-
tadas com uma voz tênue, corajosa « obsessiva, cuja disposição nararal era
de uma recepção inconformada e voluptuosa para as dores do amor. Nin-
guém jamais cantou, ou cantará, as canções de Bess do Porgy como ela. Era
uma combinação de amargura com submissão física, como de alguém que
estivesse deitado vendo suas pernas serem amputadas, o que dava essa quali-
dade de horror ao seu Strange fiuir, o poema antilinchamento que cla trans-
formou numa música de arte inesquecível. Sua profissão era sofrer, só que
cla nunca aceitou isso.
Há pouco a dizer sobre sua vida horrível, que ela descreveu com uma
verdade emocionante, embora pouco factual, em sua autobiografia Lady Sings
the Blues, Após uma adolescência na qual O auto-respeito era medido pela
insistência de uma menina para que apanhasse com suas próprias mãos as
moedas jogadas pelos clientes, não havia mais ajuda possível para cla, Billie
não precisava de ajuda porque contava com o faro « a honestidade escrupu-
losa de John Hammond para lançá-la; com os melhores músicos da década
de 1930 para acompanhá-la (cm especial Teddy Wilson, Frankie Newton e
Lester Young): com a devoção ilimitada de todos os connaisseus sérios, €
com muito sucesso junto ao público. Era tarde demais para deter uma car-
reira de sistemático auto-sacrifício amargurado. Ter nascido bela e ao mes-
mo tempo com auto-respeito, no gueto negro de Baltimore em 1915, já cra
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS sos
desvantagem demais, mesmo sem o estupro aos dez anos de idade e sem as.
drogas na adolescência. Mas enquanto ia se destruindo, ela cantava. forte,
profunda e pungentemente. É impossível não chorar por cla, ou não odiar o
mundo que a fez ser como ela foi.
Capítulo 26
O VELHO MUNDO E O NOVO:
QUINHENTOS ANOS DE COLOMBO
Este capítulo, que foi concebido originariamente. como palestra para am se-
minário sobre o quinto centenário, ocorrido em Sevilha em 1992, versa sobre-
tudo acerca do impacto do Novo Mundo sobre o Velho, demonstrando que ele
fe eriado não pelos conquiszadores mas pelos conguiszados, não pelos dirigentes.
mas pelos povos, Publicou-se pela primeira vez na London Revicw of Books,
em 9 de julho de 1992.
Que os dois lados tenham sido transformados é um fato que foi mas-
carado, em primeiro lugar, pela própria conquista e por um poder incrivel-
mente superior. Somente na periferia da colonização, é em geral depois da
asserção inicial do poder europeu, os europeus e os americanos nativos pur
deram se encontrar cm alguma coisa como termos iguais: uma igualdade
reforçada, nas fronteiras do Norte e do Sul, durante um ou dois séculos,
pela “revolução do cavalo”, que transformou os simples índios dos desertos.
é pradarias norte-americanos e do Gone Sul em formidávcis cavaleiros. Aqui e
nas fronteiras da floresta amazônica, assim como nas esparsas colônias de
escravos negros das plantações, encontramos uma duradoura resistência à
conquista e à colonização — e apenas aí. As civilizações americanas estal
lecidas, especialmente na América Central, sucumbiram rapidamente. Nes-
sas circunstâncias, não se pode falar em um “choque” de culturas, dada a
virtualidade de uma dominação absoluta de um dos lados.
Essa dominação foi reforçada pela combinação de cristandade e con-
quista bárbara que, como Edward Gibbon observou no caso do império
romano, é uma combinação muito eficaz em destruir culturas. Com todo o
respeito por Las Casas e pelos escrúpulos morais da coroa espanhola, com
toda à admiração pela proteção dos jesuítas aos índios, não devemos esque-
cer que o objetivo da conquista cra a destruição da cultura pagã, a ser subs-
tituída pela verdadeira fé, Em Córdoba, assim como no México, vemos os
conquistadores destruir certo tipo de local sagrado para construir igrejas em
seu lugar. A destruição inicial cra tão sistemática que — apesar de algumas
tentativas tardias de resgate — hoje subsistem apenas trés dos códices maias
escritos, cujos caracteres só parcialmente foram decifrados. De fato, pode-se
ler em maior número antigas tábuas com cuneiformes e hicróglifos do que
registros das civilizações pré-colombianas. A arte é os artefatos des as civili-
zações foram para a Europa, tendo sido admiradas por especialistas como
Albrecht Diúrer por sua beleza e habilidade récnica, mas é possível dizer que
não se tornaram objeto de interesse artístico sério até o século Xx. Muitos
de seus monumentos mais importantes, que se tornaram centros do turismo
global, como os lugares maias c Machupicchu, não cram conhecidos, nem
tampouco haviam sído restaurados até então.
Em suma: seja o que for que os conquistadores e os colonizadores
esperassem obter do Novo Mundo, não achavam que pudessem aprender
com seus habitantes alguma coisa que tivesse valor para o Velho. O que
havia de mais interessante c instrurivo era a novidade; a descoberta de ou-
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS “07
continua ainda hoje. À esse respeito, posso acrescentar que o Velho Mundo
deve mais ao Novo do que as Américas devem à Europa
O que quero enfatizar é que esses produtos não foram simplesmente
“descobertos” pelos europeus, « menos ainda procurados deliberadamente
da mancira como os conquistadores procuravam ouro e prata. Eram pro-
duros conhecidos, colecionados e sistematicamente cultivados e processados
pelas sociedades indígenas. Os conquistadores e os colonos aprenderam à
prepará-los e a usá-los nessas sociedades locais. Na verdade, se os colonos
não tivessem aprendido com os nativos, teria sido difícil, ou talvez impos-
sível, sobreviver. Até hoje a grande festa simbólica, o dia de Ação de Graças,
registra uma dívida dos primeiros colonos para com os índios, os quais à
civilização branca subsequente se encarregou, em troca, de expulsar. O dia
de Ação de Graças é comemorado com uma refeição preparada basicamente
com alimentos do Novo Mundo, que os colonos aprenderam a manuscar
com os indios, culminando, como sabemos, no peru.
Meu argumento é que à verdadeiro significado e natureza do encontro
de culruras, inaugurado quando Colombo aportou nas primeiras ilhas do
Caribe, não pode ser entendido somente em termos de história conven-
cional. Se perguntarmos o que a Europa consegui com à conquista do
Novo Mundo, a resposta óbvia é a expansão de alguns países no lado oci-
dental do continente, por meio do governo imperial, da riqueza extraída do
trabalho dos índios e dos africanos, c do povoamento de migrantes e co-
lonos provenientes de países da Europa. As Américas foram as primeiras
regiões fora da Europa nas quais impérios foram derrubados por soldados
europeus, onde colonos europeus estabeleceram novas Castelas, novos Por-
tugais e, mais tarde, novas Inglaterras. Por um período de mil anos antes de
1492, a conquista e a colonização tinham ido por outro caminho: da Ásia e
da África para a Europa. Por isso é significativo que a data da descoberta da
América por Colombo seja rambém a dara da conquista de Granada « da
expulsão dos judeus da Espanha: os três fatos são simbolos dessa revira-
volta. O ano de 1492 marca o início da história mundial curocêntrica, da
convicção de que uns poucos países europeus centrais e ocidentais estavam
destinados a conquistar e governar 0 globo, a euro-megalomania.
Mas isso é história passada. Há muito que Espanha, Portugal, Grã
Bretanha, França c outros países deixaram de governar as Américas. Esses
países decaíram de potências mundiais, mesmo de “grandes potências” no
contexto europeu, para Estados que por si sós não exercem muita influéên-
E ERIC HOBSBAWM
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