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CDU 37.01:930
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A trama reformista: sobre o valor
civilizatório da história e de outras histórias
Jorge Castro
Florentino Blanco
Eternidade Esgotamento
Inconsciência Razão, consciência, reflexão
Juventude Decrepitude
Vitalidade Morte
Naturalidade Artificialismo
Popularidade Casticidade
História verdadeira Pseudo-história
Espanha real (nação) Espanha formal (estado)
Ensino da história e memória coletiva 193
Também se inclui a avaliação que cada episódio tem com relação à sua contribui-
ção para o desenvolvimento, para a expressão ou para a degeneração do caráter
nacional.
Se consideramos a valorização e os argumentos anexos a cada episódio, o
perfil histórico oferecido, genérica e implicitamente nos textos do reformismo,
ajusta-se (ao de uma saga), o que é uma trama repleta de altos e baixos de identi-
dade que, ademais, se projetam para um futuro cheio de incertezas para o ente
TABELA 10.3 Interpretação genérica dos períodos da história nacional na literatura reformista
coletivo (para uma proposta de perfis metahistoriográficos, ver White, 1973: Rosa,
Blanco, Travieso e Huertas, 2000). Esse fundo de insegurança de identidade não
evitará o uso de argumentos historiográficos para sustentar a agenda político-
social buscada. São muitas as possibilidades e encruzilhadas discursivas desta ques-
tão, e aqui vamos destacar somente alguns dos aspectos mais relevantes a propó-
sito dos quatro pontos de desencontro entre a agenda nacionalista do reformismo
e do canovismo.
de arbitrar medidas pedagógicas para que as massas nacionais “se dessem conta”
das virtudes naturais. Havia somente uma condição: erguer o povo trabalhador em
detrimento da exaltação do passado glorioso.
Essa necessidade de promover uma memória coletiva ativamente ameaçado-
ra, capaz não apenas de assegurar a coesão nacional, como também de impulsio-
nar, orientar e dar sentido à atividade do conjunto social, defrontava-se com os
problemas estruturais na própria realidade social espanhola. Como apontou
Anderson (1983), uma condição fundamental para forjar a “comunidade imagina-
da” é a existência de redes de comunicação que conectem, material e culturalmen-
te, todo o Estado-nação, para a qual é muito importante a configuração de um
sistema de educação nacional homogêneo que devia prover as habilidades de lei-
tura e escrita e, com elas, os conteúdos necessários para configurar a memória
coletiva imaginada. Todavia, o projeto reformista enfrenta o problema endêmico
da falta de infra-estrutura, particularmente com relação à educação pública, pro-
movida e mantida pelo próprio Estado (questão bem estudada por Alvarez Junco,
2001). Salvando a educação das elites liberais na Instituição Livre de Ensino e nos
poucos institutos estaduais em mãos de professores liberais, os sinais de identida-
de mais divulgados entre a maior parte da população da Espanha no fim do século
XIX tem a ver com o proselitismo confessional católico, o que, entre outras ques-
tões, provoca o analfabetismo da maior parte dos espanhóis. Nesse sentido, a iden-
tidade imperial e católica é exitosamente divulgada por meio da educação católica
privada ou estatal, em oposição à educação para as elites oferecida pela educação
liberal privada ou pública, pelas paróquias locais, referência de identidade inevi-
tável para a condição analfabeta da maior parte da população espanhola.
Na realidade, esta última somente esteve em condições de acessar uma edu-
cação estatal em grande escala, rumo a uma memória nacionalista homogênea,
com a chegada da República, primeiro, e da ditadura franquista, mais adiante.
Obviamente, nesse último caso, expurgaram-se milhares de referências do progra-
ma liberal original, recorrendo a organizações católicas na articulação do princí-
pio de coesão nacional. O caminho estratégico para sua criação e implantação não
foi, contudo, muito diferente do apontado pelo reformismo. Ilustraremos esse apa-
rente paradoxo com um texto que será familiar a alguns leitores.
História da Espanha. História da Espanha é a narração verídica dos feitos
realizados pelos espanhóis, dos tempos mais remotos até hoje.
A Espanha é uma das nações que mais contribuiu para a civilização do mun-
do e que maior influência teve na história universal.
Para prová-lo, basta citar quatro fatos: a defesa que fez da Europa na Recon-
quista, colocando-se generosamente entre ela e a cimitarra dos árabes; o descobri-
mento, colonização e civilização da América; o heroísmo da Guerra da Indepen-
dência, que contribuiu decisivamente para a salvação da Europa do cesarismo de
Napoleão e o não menos heróico sacrifício com o Erguimento Nacional, já que, gra-
ças a ele, o comunismo não domina hoje boa parte do mundo.
Ensino da história e memória coletiva 199
Além disso, a Espanha deu a Roma seus gênios e imperadores mais notáveis;
defendeu como ninguém a religião cristã; deu ao mundo os conquistadores, os
navegantes e os missionários mais famosos; produziu escritores e artistas tão ex-
traordinários, que podem ser comparados aos melhores de todos os tempos.
Esta Espanha é tua Pátria. Conhece tua história. Toma dela os exemplos virtuosos
e heróicos que teus antepassados te oferecem a cada passo em suas páginas e procura
ser, em todas as ocasiões, digno seguidor deles, mantendo uma conduta exemplar.
FIGURA HUMANA
FIGURA 10.1
atualidade no contexto do debate sobre as fronteiras da nova Europa. Por essa via,
a espanholidade realiza-se historicamente no próprio relato por uma seleção de
acontecimentos históricos que, logicamente, é condicionada pela força e pela dire-
ção da hipótese: a Reconquista, o Descobrimento da América, a Guerra da Indepen-
dência e o Glorioso Erguimento Nacional.
Como vemos, parece claro que as histórias oficiais são instrumentos funda-
mentais para a normalização da identidade, ou seja, para que os membros de uma
comunidade se reconheçam como tais, assumindo como própria a situação que a
história legitima e tomando como modelos a seguir no ajuste moral de sua própria
ação seus protagonistas. Na verdade, quando uma história acadêmica (como até
certo ponto é o que estamos comentando) expõe abertamente seus conteúdos
morais, o faz com consciência de que é a única história possível para sua audiência,
de que não há histórias alternativas, mesmo que a história seja pouco verossímil.
Nesses casos, a lição de moral que fecha o texto é o que chamamos de palavreado.
A importância e a presença dos palavreados são, talvez, inversamente proporcio-
nais ao nível de auto-estima e/ou estabilidade de identidade de um coletivo. Se a
história de um coletivo é o testemunho de sua vontade de ser, a moral dessa histó-
ria é o testemunho de sua vontade de ser de uma maneira particular. Ao contrário,
a hipertrofia moral ou normativa de um grupo e sua expressão reiterada em histó-
rias oficiais de caráter mítico e essencialista é um indício da escassa solidez ou
estabilidade real da forma particular de vida que sustenta.
A capacidade de ajuste moral da história em comparação com outras matérias
incluídas no mesmo volume manifesta-se justamente no palavreado final em que,
literalmente, se exige do aluno recordar seu passado. O historiador deixa explícito,
no caso, o sentido de seu trabalho. Nenhuma outra matéria serve para isso e
nenhuma começa seu trajeto com propósitos semelhantes. A história é uma práti-
ca de recordação obrigatória, inclusive moralmente. Obriga-se o aluno a lembrar
de seu passado e a ter como guia para sua conduta futura os modelos de ação que
propõe o relato. O perfil moral dos personagens também resulta vagamente fami-
liar: “por sua grande lealdade e grandes virtudes, o Cid Campeador é considerado
modelo de cavalheiro cristão”, “dotado de grande corpulência e beleza física, impe-
tuoso e valente, [Jaime I] submeteu em pouco tempo os nobres rebeldes e depois
entregou-se à luta contra os infiéis”.
O desenho foi sempre utilizado como uma forma de convencionar narrativa-
mente modelos de ação. Pensemos, por exemplo, no tremendo peso didático da
pintura sagrada medieval e indiretamente em sua capacidade de homogeneizar a
paróquia ideológica e culturalmente. As crianças que aparecem na capa do volu-
me que estamos analisando representam idealmente o modelo de futuro que pro-
jeta essa trama histórica e que, de certo modo, também reprime (ver Figura 10.2).
A distribuição dos elementos gráficos é, nesse caso, muito clara. O esquematismo,
a ordem e a simetria da composição permitem uma leitura rápida e intuitiva, mes-
mo que não necessariamente clara, do modelo proposto.
Ensino da história e memória coletiva 203
FIGURA 10.2
FIGURA 10.3
trabalho; ou seja, se tal história tem a capacidade de nos ensinar algo novo ou se
podemos aproveitar apenas – como nos testes projetivos ou de análise fatorial – o
que já sabíamos. Nossa hipótese a esse respeito é clara: se alguma história teve
alguma vez a capacidade de nos tirar da estupidez, da preguiça, da dor ou da
crueldade, foi porque competia com outras histórias alternativas que alguém nos
contara. As feridas que nos causam as histórias somente podem ser curadas com
outras histórias.
Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para
esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual
da Instituição, você encontra a obra na íntegra.