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E59 Ensino da história e memória coletiva [recurso eletrônico] / Mario Carretero,

Alberto Rosa e Maria Fernanda González (organizadores) ; tradução


Valério Campos. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre: Artmed, 2007.

Editado também como livro impresso em 2007.


ISBN 978-85-363-1170-8

1. Educação – Fundamentos. 2. História. I. Carretero, Mario.


II. Rosa, Alberto. III. Gonzáles, Maria Fernanda.

CDU 37.01:930

Catalogação na publicação: Juliana Lagôas Coelho – CRB 10/1798


Ensino da história e memória coletiva 187

10
A trama reformista: sobre o valor
civilizatório da história e de outras histórias
Jorge Castro
Florentino Blanco

INTRODUÇÃO: HISTÓRIA, IDENTIDADE E NAÇÃO

Este capítulo é uma tentativa de pensar na possibilidade de se continuar a


fazer história reconstrutiva sem assumir, como parecem exigir os tempos, que sua
função básica seja administrar identidades, uma questão que, em nossa opinião, é
prévia a qualquer consideração sobre o valor formativo ou educativo da história
ou sobre a maneira como devemos abordar seu ensino. Utilizaremos como motivo
para avançar nesta reflexão uma análise superficial das tramas históricas que os
reformistas inventaram para contar a história da Espanha no contexto da “crise de
98” e, secundariamente, um comentário sobre a idéia da história oficial da Espanha
que, durante boa parte da ditadura franquista, foi transmitida pela Enciclopédia
Alvarez. O interessante desse assunto para uma reflexão de fundo sobre o ensino
da história é que, como logo veremos, os reformistas e os pedagogos franquistas
buscaram novas tramas para reconstruir o sentido histórico do país e, ao mesmo
tempo, refletiram sobre a necessidade de tornar essas novas tramas o fundamento,
supostamente educativo, de uma nova identidade. Isto é, os reformistas que usa-
mos como pretexto para a nossa reflexão aparecem, surpreendidos e atribulados,
na mesma encruzilhada epistemológica em que estamos agora como autores deste
modesto ensaio. A situação é claramente recursiva: faremos algo de história para
mostrar como a história põe-se a serviço da identidade ou, se assim o desejarmos,
da própria história, agora já material, de um país.
Entre os próprios reformistas, o debate sobre a função da história estava
colocado e as posições, razoavelmente definidas. Mesmo que ninguém se atreves-
se a confirmar o fim da história, a maior parte dos reformistas tinha consciência
da capacidade executiva ou performativa do discurso histórico, da dificuldade em
definir a priori os limites entre uma história “científica” (assim chamada pelo
reformista e historiador Rafael Altamira), neutra e desinteressada, e a história
188 Mario Carretero, Alberto Rosa, María Fernanda González & cols.

informal, literária, imaginada e submetida ao exercício de interesses políticos ou


valores particulares. Em boa medida, os reformistas também tinham consciência
de que o valor educativo de uma história nacional não dependia de sua fidelidade
aos fatos, mas de sua capacidade de mobilizar o sentido de propriedade, definin-
do mitos de origem, horizontes e inimigos comuns, e assim sucessivamente.
Em nossa opinião, o debate não avançou substancialmente desde então. Houve
quem se atrevesse a transcender o debate sobre o valor epistemológico da histó-
ria, atentando sua morte. As perguntas acumulam-se a propósito dessa incerta
morte. Um tanto perturbados pela notícia, perguntamo-nos quando e por que co-
meçou a agonia, o que acontecerá se realmente a história morrer e ao que nos
dedicaremos depois. Também nos fazemos uma pergunta ainda mais estimulante,
visto que prematura: como saberemos que a história morreu? Não esteve, de fato,
sempre agonizando? E quem atestará sua morte? Talvez um historiador, órfão de
sabedoria, cego de solipsismo ou interesses arbitrários, abandonado à intempérie
de seu próprio ponto de vista, saturado de si mesmo, ele mesmo agonizante?
Perguntamo-nos sobretudo se os agourentos não estarão se precipitando. Tal-
vez o diagnóstico deva ser menos dramático, talvez o que acontece é que a história
vai ficando maior e lhe custa se reconhecer no que vê quando olha para trás. A
história amadureceu e já não acredita em contos de fadas. Talvez esteja se trans-
formando em outra coisa. Talvez a agonia seja um prelúdio de uma metamorfose
em que teríamos de procurar uma palavra nova, talvez “genealogia”. Talvez cres-
çam na história asas de mariposas e acabe provocando cataclismas, ferozes tem-
pestades nos corações mais remotos. Como acontece com a crisálida, talvez a úni-
ca forma de a história cumprir seu papel seja se convertendo em outra coisa. Em
todo caso, ninguém sabe exatamente em quê.
O que sabemos é que, se perdemos o olhar histórico, perdemos o tempo e a
vida, ou pelo menos a biografia, porque a história, ou melhor, as histórias são
nossa forma mais primária de encarar e fazer frente ao tempo (Ricoeur, 1984),
olhá-lo cara a cara e prosseguir com o que estávamos fazendo, de encontrar uma
ordem que aparece apenas quando se exerce, quando a variação infinita dos tem-
pos individuais e das formas de vida se abriga na estranha taxonomia comum dos
tempos verbais, das anáforas e dos acontecimentos compartilhados ou dos inven-
tados para ser compartilhados. Fora dessa forma de racionalidade primária que
nos permite coordenar nossos tempos, vive o cego dos topos, cujo mundo termina
justamente diante de seu nariz. Deixará, ou deixou, de haver história quando o
limite do mundo for a ponta do nosso nariz.
Esta necessidade de colocar nossa vida em um lugar do tempo onde os de-
mais possam ver é, parece-nos, irrenunciável, até o ponto de que tenhamos dele-
gado a tarefa aos historiadores, que cumprem uma função tão primária como os
agricultores ou os médicos. Temos historiadores para cultivar o tempo e agriculto-
res para cultivar a terra. Porém, o cultivo do tempo é uma tarefa muito delicada.
Enquanto os agricultores servem à função digestiva, os historiadores servem à
função da identidade, que é aparentemente mais complexa. O sentido do cultivo
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do tempo, da história, é inventar maneiras de enfrentar o futuro sem ter sempre


de procurar as soluções por si mesmo. Humanizamo-nos usando e conservando
coletivamente os artefatos que nos permitem ver o mundo além do nosso nariz. A
conservação permite pensar o futuro. Mutatis mutandis, o passado somente é pos-
sível porque somos previsores. Um indivíduo sem história é puro presente, virtu-
almente um franco-atirador, um caçador solitário ou uma presa que apetece , sem
futuro.
Se esta maneira de ver o assunto não está equivocada, cabe pensar, ao con-
trário do que parece ditar o senso comum, que uma comunidade existe quando
decide o que deve conservar e, sendo assim, o que pode esperar do futuro. Não há
uma comunidade que invente sua história, mas uma história criada por sua comu-
nidade. Por isso, a comunidade, seja qual for, tem sempre um caráter mítico. Não
há comunidade fora da história.
A seguir, abordaremos os usos de identidade da história nacional a partir de
um estudo de dois “casos” extraídos do contexto espanhol. Primeiro, analisare-
mos os textos do reformismo do século XIX como exemplo de máximo nível
programático e da agenda nacionalizadora. Especificamente, nos deteremos nas
tramas históricas com as quais os reformistas tentaram reconduzir o destino apa-
rentemente trágico do país. No segundo caso, abordamos um texto educativo do
período franquista, a Enciclopédia Alvarez, exemplo das estratégias retóricas em-
pregadas para implementar uma determina identidade nacional em uma ampla
camada da população.

A MEMÓRIA REFORMISTA: HISTÓRIA E INTRA-HISTÓRIA


NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE ESPANHOLA

O nacionalismo oficial na restauração


e a resposta do reformismo do fim do século
O final do século XIX é um momento-chave da história do nacionalismo es-
panhol porque coincide com a iminente perda das últimas colônias, a tomada de
consciência do fim do império e, conseqüentemente, a percepção de uma necessi-
dade entre as elites políticas, econômicas e intelectuais de traçar um novo modelo
de convivência, um Estado-nação moderno e coerente com o resto dos países oci-
dentais (sobre essas questões, pode-se ver Tuñón, 1986, 2000; Tusell, 1998).
Desde meados do século XIX, vão se forjando dois projetos oficiais com este
fim: um republicano, iniciado em 1873 e fracassado em apenas um ano, e o
restauracionista, que conseguirá estabilizar um modelo de estado durante quase
meio século, entre 1874 e 1923. Nem mesmo a guerra de Cuba, a derrota frente
aos Estados Unidos e a chamada “crise de 98” foram capazes de mudar esse siste-
ma. O ideólogo do projeto, Cánovas, tentou conjugar chaves modernas e clássicas
na configuração do modelo de Estado. Tratava-se de lutar em várias frentes que
190 Mario Carretero, Alberto Rosa, María Fernanda González & cols.

deviam, entre outros objetivos, equilibrar as balanças econômicas e políticas entre


a velha ordem aristocrática e a nova sensibilidade liberal. O modelo de Estado-
nação criado por Cánovas se sujeita, portanto, a um emaranhado político em que
se misturam chaves liberais e reacionárias (Cánovas, 1882-1997).
Antes de sua dedicação plena à política, Cánovas foi um destacado historiador
que evoluiu em suas propostas historiográficas do liberalismo – Historia de la de-
cadência de España desde el advenimiento de Felipe III al trono hasta la muerte de
Carlos II (1854-1910) – ao conservadorismo – Estudios del reinado de Felipe IV
(1888) – para oferecer um modelo de identidade coerente com esse projeto polí-
tico. Nele, trabalhou com a idéia da origem divina da nação, a capacidade de
governar dos grandes monarcas espanhóis entorpecida por conselheiros ineptos, o
impedimento de um povo entusiasta, mas incapacitado para levar adiante empre-
sas de caráter político, militar ou econômico e a estreita ligação entre o catolicis-
mo, a monarquia e o melhor do gênio nacional. Sobretudo nesse último parâmetro
de identidade, encontrou o apoio definitivo de outro dos grandes paladinos do
catolicismo moderado espanhol: Menéndez Pelayo (1880-1882; 1998).
Já a pequena e média burguesia, integrada por pequenos comerciantes e
elites intelectuais, apenas participava do modelo canovista. Em consonância com
o nacionalismo liberal, esses setores denunciam o estancamento do Estado restau-
rado, exigindo maior circulação do capital econômico e cultural e, assim, seu pró-
prio lugar estratégico na administração desse capital. A proposta, logicamente,
torna-se efetiva por meio de um modelo alternativo de Estado-nação e ganha cor-
po em um gênero do final do século XIX: o reformismo. A lista apresentada na
Tabela 10.1, refere-se às principais obras do gênero entre 1889 e 1902.
Em todas estas obras, há múltiplas propostas econômicas e administrativas
de caráter empírico e desenvolvimentista. Aqui, de todo modo, nos interessa a
faceta relacionada à construção de uma identidade nacional alternativa e os
desencontros fundamentais com o projeto canovista que resumimos nos seguintes
quatro pontos.

1. Como no caso canovista, os reformistas defendem a identidade entre


povo e nação. Contudo, se para o artífice da Restauração entre ambas as
instâncias mediava a providência divina (as nações eram uma criação de
Deus), a maior parte dos reformistas as vinculam por meio de estruturas
raciais, fisiológicas ou psicológicas.
2. O infantilismo ou inconsciência de um povo iletrado é outro ponto de
coincidência entre Cánovas e os reformistas. Se, para o primeiro, isso su-
punha uma incapacidade das massas de se apropriar de seu destino, os
segundos interpretavam que elas apresentavam estupendas característi-
cas de identidade latentes. A decadência ou a degeneração nacional ape-
nas refletia uma apatia circunstancial que impedia momentaneamente que
o povo se apropriasse de seu destino. No reformismo, há uma promessa de
futuro para que, a longo prazo, o povo seja capaz de se autogovernar.
Ensino da história e memória coletiva 191
TABELA 10.1 Obras fundamentais do reformismo de fins do século XIX

Livro Autor Ano

Espana tal como es Valenti Almirall 1889

Los males de la patria Lucas Mallada 1890

Idearium español Angel Ganivet 1897

El desastre nacional e sus causas Damián Isern 1899

El problema nacional R. Macias Picabea 1899

Hacia otra España Ramiro de Maeztu 1899

La moral de la derrota Luis Morote 1900

Reconstitución y europeización 1898


Crisis política de España Joaquín Costa 1901
Oligarquia y caciquismo 1901

En torno al casticismo Miguel de Unamuno 1902

Psicología del pueblo español Rafael Altamira 1902

3. A estabilidade da nação não estava garantida, como pretendia Cánovas,


pela figura do monarca, mas sim por um contrato ou compromisso de
todos os segmentos sociais – no sentido econômico, profissional e ideo-
lógico. Tanto faz se fosse uma monarquia ou uma república.
4. O estado restaurado concentrava e outorgava a administração do poder
à oligarquia clássica e aos políticos profissionais. A maior parte dos re-
formistas defendia a distribuição do poder entre as classes intelectuais,
comerciantes e as células locais de poder. Exemplarmente, Joaquín Cos-
ta falava em classes neutras que deviam liderar a revolução de cima
(Costa, 1898-1981; Costa, 1901-1998). Diante delas, aparecem as
oligárquicas e corruptas que, como conseqüência de uma verdadeira se-
leção natural ao contrário, provocavam a decadência da Espanha.

Esta agenda exigia uma construção de identidade que a fundamentasse e


impulsionasse para o futuro e dividiu-se em duas frentes genealógicas comple-
mentares: a psicologia do povo espanhol e sua história ou, mais precisamente, sua
intra-história. Nos argumentos reformistas, ambas convivem em estreita dialética,
porque, se a psicologia do povo espanhol é resultado de sua história, essa história
também é um produto das potências psicológicas do coletivo. Ambas participam
192 Mario Carretero, Alberto Rosa, María Fernanda González & cols.

da elaboração de um perfil genealógico do ser e da atividade espanhola que ofere-


ça alternativas à moral da história ameaçadora do canovismo. A seguir, apresenta-
mos uma análise dos argumentos historiográficos empregados com esse fim nos
textos reformistas citados na Tabela 10.1.

A ELABORAÇÃO DE UM PERFIL HISTORIOGRÁFICO


A SERVIÇO DA AGENDA DE IDENTIDADE DO REFORMISMO

Sem dúvida, antes das propostas historiográficas do reformismo, havia estudos


do passado espanhol elaborados do ponto de vista liberal, como está demonstrado
na volumosa obra de Modesto Lafuente (ver Fox, 1997; Wulff, 2003). Também há
indícios de história da cultura espanhola, à margem dos episódios históricos que
tanto irritam o nacionalismo liberal (ver López Morillas, 1972; Varela, 1999). Mas
em nenhum desses casos as propostas historiográficas são tão ligadas a uma agen-
da política-ideológica explícita como no caso do gênero reformista. Como mostra
a seguinte lista de substantivos usada pelos pensadores espanhóis do fim do sécu-
lo, essa proposta defenderá uma história desejada frente a outra que não o é.
Como se pode inferir a partir desta tabela, os reformistas descartam todo
valor do que poderíamos chamar de consciência histórica em benefício da incons-
ciência intra-histórica. A serviço dela, revisam o passado nacional e articulam uma
narração alternativa à dos grandes homens, das façanhas e dos acontecimentos. O
título “Para outra Espanha”, usado por Maeztu (1899-1992), é paradigmático nes-
se sentido. Em vez de assegurar a competitividade narrativa, a proposta reformis-
ta se ajustará aos episódios nacionais e arquetípicos estabilizados pela história
oficial. Em boa medida, o que fazem é repensá-la, mudando seu valor, agora nega-
tivo e antinacional, e entrelaçando seu desenvolvimento com a intra-história su-
postamente autêntica. A seguinte tabela vincula genericamente os argumentos
históricos surgidos na literatura reformista à cronologia episódica mais freqüente.

TABELA 10.2 Substantivos usados em relação à história nacional na literatura reformista

Intra-história (o povo) História (os governantes)

Eternidade Esgotamento
Inconsciência Razão, consciência, reflexão
Juventude Decrepitude
Vitalidade Morte
Naturalidade Artificialismo
Popularidade Casticidade
História verdadeira Pseudo-história
Espanha real (nação) Espanha formal (estado)
Ensino da história e memória coletiva 193

Também se inclui a avaliação que cada episódio tem com relação à sua contribui-
ção para o desenvolvimento, para a expressão ou para a degeneração do caráter
nacional.
Se consideramos a valorização e os argumentos anexos a cada episódio, o
perfil histórico oferecido, genérica e implicitamente nos textos do reformismo,
ajusta-se (ao de uma saga), o que é uma trama repleta de altos e baixos de identi-
dade que, ademais, se projetam para um futuro cheio de incertezas para o ente

TABELA 10.3 Interpretação genérica dos períodos da história nacional na literatura reformista

Anos Período Valor Argumento de identidade usual

[...] Pré-história +/- Ambigüidade na contribuição


racial do iberismo

II a.C.-VI Romanização + Iberização do Império Romano

VI-VIII Visigodos - Reação ibérica ao sangue visigodo

VIII-IX Árabes + Afinidade arábica do caráter


ibérico: o fanatismo nacional

[VII-IX] Reconquista + Origem do sentimento de


igualdade nacional

XV-XVI Reis Católicos + Formação definitiva da


nação espanhola

XV-[XIX] Descobrimento da América +/- Apoteose da raça e origens


perniciosas do Império

XVI-XVII Áustrias - Início da decadência: raízes,


centralização e inquisição

XVIII-XIX Bourbons - Esperança frustrada de


ressurgimento nacional

[XIX] Guerra da independência + Despertar do povo

XIX Liberalismo +/- Oportunidade perdida

XIX Seis anos revolucionários - Pessimismo

Fim de século Restauração - Conseqüências


desnacionalizadoras

Fim de século Crise de 98 - Tomada de consciência


do problema nacional

Fim de século Momento contemporâneo +/- Incerteza


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coletivo (para uma proposta de perfis metahistoriográficos, ver White, 1973: Rosa,
Blanco, Travieso e Huertas, 2000). Esse fundo de insegurança de identidade não
evitará o uso de argumentos historiográficos para sustentar a agenda político-
social buscada. São muitas as possibilidades e encruzilhadas discursivas desta ques-
tão, e aqui vamos destacar somente alguns dos aspectos mais relevantes a propó-
sito dos quatro pontos de desencontro entre a agenda nacionalista do reformismo
e do canovismo.

1. Identidade entre povo e nação. Conforme mostramos, a aposta genealógica


do reformismo é a elaboração de uma alternativa à História com maiús-
cula – a história pura dos grandes homens ou dos acontecimentos; uma
proposta que devia levar ao povo o protagonismo histórico da nacionali-
dade. Não se trata de algo simples, pelo menos até o ponto em que os
Reis Católicos, os reformistas, como Macías (1899-1992), Morote (1900)
ou Costa (1901-1981), tratam do mito originário de um povo hispânico
pré-romano – trabalhador, independente, individualista e voluntarioso –
acossado por sucessivas invasões. Frente a essa caracterização primitiva,
era preciso colocar um povo que, contemporâneo ao reformismo, apare-
cesse apático, ignorante e servil. Há explicações que buscam os motivos
originais desse estado final no independentismo do povo da Celtibéria
ou da fantasia, rapidez e volubilidade da mestiçagem resultante das di-
versas invasões peninsulares. Mas, como veremos, é em determinadas
circunstâncias históricas que os reformistas colocarão o desvio de identi-
dade, a contaminação das virtudes raciais originárias e a gestação do
povo esgotado do fim do século.
À margem de tais controvérsias psico-históricas, todos os reformistas
aceitarão que a origem da nação espanhola no sentido moderno deve
localizar-se no liberalismo das cortes de Cádiz, tanto no sentido negati-
vo quanto no positivo. Para Altamira (1902-1997), surge no período o
sentimento de solidariedade espanhola, pois antes, ainda no século XVIII,
as regiões eram isoladas. Em contrapartida, outros autores, como Morote
(1900), por exemplo, localizam-na na reação absolutista posterior a ori-
gem – premonitória e arquetípica – de duas “raças” espanholas condena-
das ao desencontro: a tradicionalista e a progressista. Em grande medida,
a energia necessária para mover a história espanhola dos últimos cem
anos gerava-se no enfrentamento entre estas duas Espanhas, mesmo que
os reformistas localizassem sua origem no passado remoto do coletivo.
2. Inconsciência e potencial do povo. Se vir mesmo das profundezas do povo,
a verdadeira história da nação será uma história inconsciente, nas pa-
lavras de Unamuno, intra-histórica. À margem dos diversos cenários his-
tóricos, a indubitável qualidade das potências da raça teria sempre per-
manecido oculta, latente. As forças adormecidas podiam despertar em
momentos de verdadeira necessidade nacional, como na Guerra da
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Independência. Contudo, também era de lamentar pelo menos duas cir-


cunstâncias prejudiciais, mesmo que não-constitutivas, ligadas ao fato
de que o povo permanecia, cíclica ou eternamente, preso em sua ativida-
de e vida cotidiana. Ficar, mesmo que inconscientemente, fora das con-
vulsões históricas, mostrava a carência de uma instância diretiva capaz
de orientar a atividade histórica do coletivo. Estreitamente ligado a tal
circunstância, estava o fato de ficar exposto a aderências históricas fal-
sas ou alheias à raça, as mesmas que definirão a apatia e a decadência
histórica de um povo caracterizado no passado por seu individualismo e
voluntarismo.
3. Compromisso de todos os setores nacionais. Os reformistas reconhecem
que a desintegração da sociedade do final do século é, em muitos pla-
nos, um problema endêmico da nacionalidade: as guerras carlistas do
século XIX, a independência colonial e os regionalismos são apenas a
ponta de um iceberg histórico. Autores como Ganivet (1897-1996) ou
Morote (1900) oferecem uma fundamentação ao destacar o inveterado
individualismo dos considerados primeiros espanhóis. Há inúmeras oca-
siões históricas em que, para o bem ou para o mal, se manifestou essa
característica individualista do espanhol: belicosidade entre regiões, re-
sistência à conquista romana ou à reconquista. Contudo, os reformistas
também concordavam que, com os Reis Católicos, se conseguiu articular
a convivência harmônica e orgânica entre todos os segmentos, classes
sociais e até regiões, tudo sem atentar contra sua autonomia funcional.
Na ótica dos reformistas, este momento coincide com a forja da naciona-
lidade, tanto no sentido territorial quanto no espiritual. Mais ainda, é
nesse período que reformistas como Morote (1900) ou Macías Picavea
(1899-1992) localizam o momento de máxima expressão de outro traço
tipicamente espanhol: a capacidade de trabalho, que remonta a tempos
muito antigos, mesmo que posteriormente tenha sido ocultada por sécu-
los de decadência. Portanto, não é de estranhar que o reinado dos Reis
Católicos se tornasse modelo fundamental da regeneração – voltar a ge-
rar o que já foi – para a maior parte de nossos autores. Recorrem a ele
Costa (1898-1881) ou Macías Picavea (1899-1992) para justificar um
modelo de ação estatal fundamentado no diálogo entre os profissionais
de diversos setores; na verdade, um eco dos grêmios medievais banca-
dos pelos Reis Católicos. Contudo, faltava elucidar por que essa Idade de
Ouro havia se desintegrado.
4. Protagonismo diretivo de elites intelectuais e industriais. Os reformistas
tentaram elaborar uma história alternativa inspirada nas conquistas mi-
litares dos grandes gênios nacionais (Don Pelayo, Felipe II, O Grande
Capitão, Hernán Cortés, etc.). Suas concepções meta-historiográficas afas-
taram-se do sentido individualista do Grande Homem defendido por
Carlyle ou Nietzsche, mas preservaram a idéia hegeliana de um líder
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capaz de encarnar as potências espirituais, psicológicas ou raciais carac-


terísticas do coletivo. Ainda no caso das grandes individualidades perni-
ciosas para a história nacional, definiram-se como representações de
espíritos estrangeiros irreconciliáveis com a identidade espanhola. Não
há lugar para ambições pessoais ou megalomanias. O caso mais eviden-
te é o “austrismo” centralizador e intransigente que Macías Picavea (1899-
1992) detecta nos imperadores Carlos I e Felipe II e, mais levemente,
nos Bourbon. Praticamente todos os reformistas responsabilizam as
Áustrias pela decadência coletiva por conduzir o povo espanhol em uma
empresa imperialista desmedida na América e na Europa, que interpre-
tam como a decisão lógica de um espírito que, diferentemente daquele
dos Reis Católicos, fora incapaz de reconhecer as necessidades da alma
espanhola. Nesse sentido, Carlos I e Felipe II não hesitam em sacrificar
as energias de uma nação alheia ao sangue austríaco. Evidentemente,
aqui se inaugura a “lenda negra” da nação espanhola: um caminho em
que se produz a transformação do individualismo em hipertrofia milita-
rista, em detrimento do espírito empreendedor; da fantasia em apatia,
em detrimento do voluntarismo; o do purismo em totalitarismo e
centralismo, em detrimento da independência. A idéia final é que o
modelo da Restauração pode estar indicado no reinado dos Áustrias.

Contudo, há dois motivos mais importantes para preservar a ação destes


personalistas, como representantes e orientadores do potencial da raça, na histó-
ria nacional. O primeiro, ligado à necessidade de elaborar uma narração alternati-
va à oficial, tem a ver com a presença de contrafiguras arquetípicas às das histó-
rias conservadoras: Sêneca frente ao império romano, Frei Luis de León frente aos
inquisidores ou a oposição observada por Costa (1901-1981) entre o Cid militaris-
ta e a versão diplomática do mesmo Cid. Essa última operação é um exemplo
perfeito para entender como os reformistas reorientam imagens gravadas a fogo
na memória coletiva e as convertem em pontas de lança do novo programa
nacionalizador.
O segundo motivo para preservar o personalismo histórico tem a ver com os
precursores dos próprios reformistas: são as classes intelectuais e comerciais que
foram exiladas e perseguidas no tempo do totalitarismo. Paradoxalmente, tal ten-
dência começaria com a conquista americana e com a limpeza de sangue iniciada
pelos Reis Católicos. A primeira provocará a emigração em massa do povo mais
simples e a segunda, a expulsão de árabes, judeus e protestantes, ou seja, a escas-
sez crônica dos elementos que formavam a base da classe produtora. Conforme a
tese da seleção ao contrário, autores como Costa (1898-1981) pensavam que os
melhores tinham sido excluídos da luta pela sobrevivência durante os processos
inquisitoriais. A ausência desses grupos privilegiados impedia necessariamente o
desenvolvimento material e moral dos coletivos nacionais, os condenava à estag-
nação e à morte. Segundo Macías (1899-1992), a situação repetira-se com os exi-
Ensino da história e memória coletiva 197

lados de 1812, europeizados no estrangeiro e impedidos pelo absolutismo


fernandino de liderar uma renovação política e cultural na Espanha. Para Almirall
(1889-1983), Mallada (1890-1989) ou Costa (1898-1981), tal estado de coisas se
reproduzia exatamente na situação de oligarquia e coronelismo dos finais do sécu-
lo XIX, e apenas as classes neutras estavam em condições de liderar as mudanças.
Assim, os reformistas encaixaram seus argumentos historiográficos para des-
tacar os quatros pontos centrais em que fundamentaram seu projeto nacional frente
ao canovismo. Contudo, sua articulação programática sofreu um grave problema
em outra frente estratégica. Os textos com a proposta eram dirigidos ao consumo
entre sua própria classe social e no máximo aproximavam-se do status quo manti-
do pelas classes políticas e oligárquicas. Porém, ficou desatendido o objetivo pri-
mordial da ferramenta histórica que, conforme eles mesmos perceberam, seria
instalar os valores de nacionalização – ou seja, submissão ao projeto coletivo – e
operosidade – disposição, autonomia e formação profissional – nas massas.

A refiguração improvável de uma nova memória coletiva


Certamente, os reformistas nunca criaram identificação em nível popular,
mesmo que, em sua linha programática, fossem muito conscientes tanto dos múl-
tiplos horizontes desarticuladores que a necessitavam como da estratégia de im-
plantação a seguir. Entre os primeiros, destacam-se o perigo separatista das histó-
rias regionalistas, apontado por Morote (1900); o ambíguo efeito psicológico tan-
to das histórias heróicas quanto da lenda negra, preocupação de Altamira (1902-
1997), Unamuno, Morote (1900), Isern (1899) e Macías Picavea (1899-1992) e,
inclusive, a influência perniciosa do exitoso jornalismo sensacionalista, destacado
por Isern (1899) e Maeztu (1890-1989). Conscientes da estratégia a seguir frente
a esses horizontes, boa parte dos reformistas clamou por uma revisão dos conteú-
dos históricos dos ensinos fundamental e médio, e não apenas pela necessidade de
ensinar, como propunha Altamira (1902-1997), a verdadeira história, a história
“científica” do povo espanhol.
Aparecia, sobretudo, a revelação do suposto papel empreendedor do espanhol
e a necessidade de reencontrar a unidade coletiva nele. À primeira vista, tal interes-
se poderia parecer paradoxal ou pelo menos redundante – por que se deve promo-
ver o que é assim? – porque, à margem das hipóteses substancialistas, os reformistas
são muito conscientes do poder performático da memória. O papel estratégico desse
conselho revela-se plenamente quando autores como Morote (1900) recomendam,
na melhor linha da psicologia de massas francesa, manipular as paixões coletivas e,
com elas, a alma das multidões. Ao lado das erudições históricas e “científicas”,
inclusive do perfil historiográfico elaborado nos próprios textos do reformismo, é
lícito mudar as lembranças e as evocações do passado e oferecer ao povo modelos
patrióticos, incluindo os presentes em fábulas e lendas nacionais. Sem chegar a esse
extremo, inclusive um purista como Altamira (1902-1997) tinha clara a necessidade
198 Mario Carretero, Alberto Rosa, María Fernanda González & cols.

de arbitrar medidas pedagógicas para que as massas nacionais “se dessem conta”
das virtudes naturais. Havia somente uma condição: erguer o povo trabalhador em
detrimento da exaltação do passado glorioso.
Essa necessidade de promover uma memória coletiva ativamente ameaçado-
ra, capaz não apenas de assegurar a coesão nacional, como também de impulsio-
nar, orientar e dar sentido à atividade do conjunto social, defrontava-se com os
problemas estruturais na própria realidade social espanhola. Como apontou
Anderson (1983), uma condição fundamental para forjar a “comunidade imagina-
da” é a existência de redes de comunicação que conectem, material e culturalmen-
te, todo o Estado-nação, para a qual é muito importante a configuração de um
sistema de educação nacional homogêneo que devia prover as habilidades de lei-
tura e escrita e, com elas, os conteúdos necessários para configurar a memória
coletiva imaginada. Todavia, o projeto reformista enfrenta o problema endêmico
da falta de infra-estrutura, particularmente com relação à educação pública, pro-
movida e mantida pelo próprio Estado (questão bem estudada por Alvarez Junco,
2001). Salvando a educação das elites liberais na Instituição Livre de Ensino e nos
poucos institutos estaduais em mãos de professores liberais, os sinais de identida-
de mais divulgados entre a maior parte da população da Espanha no fim do século
XIX tem a ver com o proselitismo confessional católico, o que, entre outras ques-
tões, provoca o analfabetismo da maior parte dos espanhóis. Nesse sentido, a iden-
tidade imperial e católica é exitosamente divulgada por meio da educação católica
privada ou estatal, em oposição à educação para as elites oferecida pela educação
liberal privada ou pública, pelas paróquias locais, referência de identidade inevi-
tável para a condição analfabeta da maior parte da população espanhola.
Na realidade, esta última somente esteve em condições de acessar uma edu-
cação estatal em grande escala, rumo a uma memória nacionalista homogênea,
com a chegada da República, primeiro, e da ditadura franquista, mais adiante.
Obviamente, nesse último caso, expurgaram-se milhares de referências do progra-
ma liberal original, recorrendo a organizações católicas na articulação do princí-
pio de coesão nacional. O caminho estratégico para sua criação e implantação não
foi, contudo, muito diferente do apontado pelo reformismo. Ilustraremos esse apa-
rente paradoxo com um texto que será familiar a alguns leitores.
História da Espanha. História da Espanha é a narração verídica dos feitos
realizados pelos espanhóis, dos tempos mais remotos até hoje.
A Espanha é uma das nações que mais contribuiu para a civilização do mun-
do e que maior influência teve na história universal.
Para prová-lo, basta citar quatro fatos: a defesa que fez da Europa na Recon-
quista, colocando-se generosamente entre ela e a cimitarra dos árabes; o descobri-
mento, colonização e civilização da América; o heroísmo da Guerra da Indepen-
dência, que contribuiu decisivamente para a salvação da Europa do cesarismo de
Napoleão e o não menos heróico sacrifício com o Erguimento Nacional, já que, gra-
ças a ele, o comunismo não domina hoje boa parte do mundo.
Ensino da história e memória coletiva 199

Além disso, a Espanha deu a Roma seus gênios e imperadores mais notáveis;
defendeu como ninguém a religião cristã; deu ao mundo os conquistadores, os
navegantes e os missionários mais famosos; produziu escritores e artistas tão ex-
traordinários, que podem ser comparados aos melhores de todos os tempos.
Esta Espanha é tua Pátria. Conhece tua história. Toma dela os exemplos virtuosos
e heróicos que teus antepassados te oferecem a cada passo em suas páginas e procura
ser, em todas as ocasiões, digno seguidor deles, mantendo uma conduta exemplar.

A MEMÓRIA FRANQUISTA: A ENCICLOPEDIA ÁLVAREZ E A


HISTORIZAÇÃO DE UMA IDENTIDADE NACIONAL-CATOLICISTA

O fragmento citado anteriormente é o texto introdutório ao programa de


História da Espanha da Enciclopedia Álvarez de Iniciação Profissional. Em seus
diferentes formatos e em suas diferentes edições, a Enciclopedia Álvarez foi, du-
rante muitos anos, uma peça-chave na normalização do sistema educativo espa-
nhol depois da Guerra Civil. Estima-se que a enciclopédia foi lida por oito milhões
de jovens (80% do mercado) entre 1954 e 1966. Contribuiu, à sua maneira, para
a reabilitação de um espírito nacional comum quando o país – o que restou e o que
se foi – defendia-se mais uma vez, com unhas e dentes, da fome, da dor, da renún-
cia ao progresso, de sua incapacidade para resolver civilizadamente as diferenças.
O texto que acabamos de mostrar tinha sentido no pequeno “universo
Álvarez”, de recursos docentes com soluções para todos os níveis educativos, com
exceção dos estudos superiores, que delineava com clareza e precisão as condi-
ções básicas da nova forma de vida que abria caminho manu militari na pós-
guerra espanhola. Essas condições básicas apareciam inscritas, com a candura
iconográfica própria das estéticas totalitaristas, na capa das diferentes versões da
enciclopédia e até mesmo nos cadernos de exercícios (ver Figura 10.1).
Se nos concentramos no volume dedicado à formação profissional, verifica-
mos que sua estrutura constitui uma condensação da estrutura mínima dessa nova
forma de vida. A religião é, de fato, a matéria de que trata a primeira parte da
enciclopédia e, dela, se diz que “é necessária para viver bem, porque nos ensina qual
é o nosso fim (o céu) e os meios para consegui-lo (cumprimento dos mandamentos).
Ensina também o que é bom e o que é mau; o que é justo ou injusto; o prêmio ou o
castigo que merecem nossas ações...”. O que a religião “verdadeira” (o cristianismo)
nos ensina não pode ser aprendido de qualquer maneira; exige uma disposição
particular:

precisamos ser humildes e puros... Ao estudar as verdades religiosas, muitas ve-


zes, deve dizer-se “creio” em vez de “compreendo”. Pretender compreender com
nossa limitada inteligência certos mistérios da religião é soberba, e Deus não
abre suas portas aos que lhe chamam desse modo...
200 Mario Carretero, Alberto Rosa, María Fernanda González & cols.

FIGURA HUMANA

FIGURA 10.1

Ou seja, não há forma de conhecimento retoricamente forte que não exija, às


vezes, como garantia única, a humildade e a pureza de coração (desinteresse,
neutralidade). Mas o que realmente chama a atenção é a hipótese de que a reli-
gião católica é capaz de oferecer uma axiologia necessária para qualquer forma de
vida. A religião não apenas nos proporciona aspirações, como também deveres e
normas. Assim, os valores civis devem emanar ou ser justificados pelos valores em
que se sustenta a forma de vida transcendental, cujo limite está, em sentido estri-
to, acima da própria vida. O catolicismo constitui o núcleo de uma forma de vida
cuja máxima aspiração parece ser justamente a depuração e a preservação históri-
ca desse núcleo. O último parágrafo do capítulo de religião situa na Espanha o
coração e em Franco (caudilho), o cérebro de semelhante empreendimento:

A Espanha é a nação que defendeu com maior ardor as doutrinas patrocinadas


pela Santa Igreja Católica Apostólica e Romana. Lutou oito séculos contra os
maometanos, lutou contra os protestantes e levou o cristianismo à América. Hoje,
envia missionários para todo o mundo e, sabiamente dirigida por um cristianíssimo
caudilho, está renovando as glórias religiosas de seus melhores tempos.

A citação é interessante porque o relato citado como prova da identificação


da Espanha e de seu caudilho com a Igreja Católica constitui precisamente o cen-
tro de gravidade sobre o qual gira a dinâmica geral da história da Espanha que
tentaremos ensinar mais adiante e cuja introdução acabamos de citar. Contudo,
para ir adiantando a tarefa e seguindo a estrutura do livro, vemos que a segunda
seção da enciclopédia dedica-se à língua espanhola, da qual se diz que
Ensino da história e memória coletiva 201
oficialmente a usam todos os espanhóis... chama-se também castelhana, porque
teve sua origem em Castilla e porque essa região é considerada o núcleo da nacio-
nalidade espanhola.

Asseguradas uma moral e uma língua comuns, e um caudilho capaz de


defendê-las, já temos condições de convidar o aluno a entrar na lógica implacável
dos tempos verbais, das quatro regras, da regra de três simples e composta, dos
planetas, dos reis godos. A força da aliança chega aos limites do universo: “Univer-
so. Chama-se de Universo ao conjunto de astros criados por Deus”, uma definição de
que se deduz que deve existir uma espécie de diverso formado pelos astros que não
foram criados por Deus. A mesma disposição geográfica do país parece ser propí-
cia à aliança: “... nossa Pátria reúne, de forma admirável, todas as condições geográ-
ficas da Europa”.
Esta aliança orgânica entre a ordem moral e a ordem política tem, não
obstante, seu maior baluarte retórico na História, uma história definida prioritaria-
mente, conforme o texto anterior, como narração verídica, fiel aos fatos. Concreta-
mente, a história é entendida como a organização narrativa de feitos históricos
cuja propriedade mais importante, com relação a outras possíveis realizações, é
que são feitos por pessoas, ou seja, atos, ações, cuja trama histórica testemunha a
vontade de existir de determinado grupo tido como funcionalmente autônomo em
certo nível (político, econômico, cultural, acadêmico, etc.).
O fragmento que estamos examinando destaca que os feitos que lhe interes-
sam são precisamente os “feitos realizados pelos espanhóis”, “dos tempos mais re-
motos até nossos dias”. Tal destaque, a identificação dos protagonistas é, mesmo
que pareça óbvia e transparente, a operação mais primária e mais importante da
história como prática epistêmica geral. A identificação é de fato o resultado de
uma longa série de operações de auscultação e diagnóstico do estado de coisas
que poderia dar lugar a ela. Essa operação é crucial não apenas porque apresenta
como viável ou inclusive como é o caso, como preferível, uma forma de vida par-
ticular, mas porque especifica em que consiste essa particularidade e porque assu-
me que essa particularidade desloca-se dos tempos mais remotos. Assim, a identifi-
cação do protagonista de uma história parte do pressuposto básico da identidade,
isto é, da permanência ao longo do tempo e do espaço das propriedades que a
tornam possível.
Neste caso, a força da conjectura que leva à determinação é tanta, que sequer
parece necessário prová-la. O texto dá como certo que os espanhóis sempre foram
combativos. Mais adiante, se afirmará que, na verdade, a essência do espanhol é,
além das estruturas políticas ou geográficas materiais, uma tendência espiritual
que, mesmo sempre presente, cristaliza-se definitivamente com a aliança entre a
cultura civil hispânica e a disciplina militar dos visigodos. Por essa via, a Espanha
se converte na essência e no baluarte mais importante na experiência da civiliza-
ção ocidental, cujo atributo central é, como vimos, o cristianismo e seus inimigos
mais temíveis, a impiedade muçulmana e o comunismo, tópicos de lamentável
202 Mario Carretero, Alberto Rosa, María Fernanda González & cols.

atualidade no contexto do debate sobre as fronteiras da nova Europa. Por essa via,
a espanholidade realiza-se historicamente no próprio relato por uma seleção de
acontecimentos históricos que, logicamente, é condicionada pela força e pela dire-
ção da hipótese: a Reconquista, o Descobrimento da América, a Guerra da Indepen-
dência e o Glorioso Erguimento Nacional.
Como vemos, parece claro que as histórias oficiais são instrumentos funda-
mentais para a normalização da identidade, ou seja, para que os membros de uma
comunidade se reconheçam como tais, assumindo como própria a situação que a
história legitima e tomando como modelos a seguir no ajuste moral de sua própria
ação seus protagonistas. Na verdade, quando uma história acadêmica (como até
certo ponto é o que estamos comentando) expõe abertamente seus conteúdos
morais, o faz com consciência de que é a única história possível para sua audiência,
de que não há histórias alternativas, mesmo que a história seja pouco verossímil.
Nesses casos, a lição de moral que fecha o texto é o que chamamos de palavreado.
A importância e a presença dos palavreados são, talvez, inversamente proporcio-
nais ao nível de auto-estima e/ou estabilidade de identidade de um coletivo. Se a
história de um coletivo é o testemunho de sua vontade de ser, a moral dessa histó-
ria é o testemunho de sua vontade de ser de uma maneira particular. Ao contrário,
a hipertrofia moral ou normativa de um grupo e sua expressão reiterada em histó-
rias oficiais de caráter mítico e essencialista é um indício da escassa solidez ou
estabilidade real da forma particular de vida que sustenta.
A capacidade de ajuste moral da história em comparação com outras matérias
incluídas no mesmo volume manifesta-se justamente no palavreado final em que,
literalmente, se exige do aluno recordar seu passado. O historiador deixa explícito,
no caso, o sentido de seu trabalho. Nenhuma outra matéria serve para isso e
nenhuma começa seu trajeto com propósitos semelhantes. A história é uma práti-
ca de recordação obrigatória, inclusive moralmente. Obriga-se o aluno a lembrar
de seu passado e a ter como guia para sua conduta futura os modelos de ação que
propõe o relato. O perfil moral dos personagens também resulta vagamente fami-
liar: “por sua grande lealdade e grandes virtudes, o Cid Campeador é considerado
modelo de cavalheiro cristão”, “dotado de grande corpulência e beleza física, impe-
tuoso e valente, [Jaime I] submeteu em pouco tempo os nobres rebeldes e depois
entregou-se à luta contra os infiéis”.
O desenho foi sempre utilizado como uma forma de convencionar narrativa-
mente modelos de ação. Pensemos, por exemplo, no tremendo peso didático da
pintura sagrada medieval e indiretamente em sua capacidade de homogeneizar a
paróquia ideológica e culturalmente. As crianças que aparecem na capa do volu-
me que estamos analisando representam idealmente o modelo de futuro que pro-
jeta essa trama histórica e que, de certo modo, também reprime (ver Figura 10.2).
A distribuição dos elementos gráficos é, nesse caso, muito clara. O esquematismo,
a ordem e a simetria da composição permitem uma leitura rápida e intuitiva, mes-
mo que não necessariamente clara, do modelo proposto.
Ensino da história e memória coletiva 203

FIGURA 10.2

Um uso rigoroso e sistemático da perspectiva cônica permite organizar os ele-


mentos gráficos em dois planos muito fáceis de distinguir: (1) o plano do presente,
em que se localizam um menino e uma menina, cujo aspecto oferece-nos indícios
interessantes; o menino é ligeiramente mais alto que a menina e parece olhá-la de
soslaio, ambos são loiros e caminham sobre um livro aberto, que poderia simbolizar
a idéia de que a educação é crucial no caminho para a maturidade e para a produti-
vidade. (2) A linha do horizonte assinala o plano do futuro e o divide, ao mesmo
tempo, em dois momentos, que correspondem a outros dois planos do desenho: (a)
adiante da linha do horizonte, situam-se, à direita, uma casa, que representa o lar e,
à esquerda, um trator que representa o trabalho, a produtividade, o sacrifício. Am-
bos são valores realistas, que podem ser alcançados por meio da educação; de qual-
quer forma, possivelmente não por acaso, o lar está do lado da menina e o trabalho
(o trator), do lado do menino. (b) Ao fundo, além da linha do horizonte, recortando
seu perfil de chaminés e fios contra um sol exagerado, eleva-se o que parece uma
fábrica, que nos aproxima da idéia do processo como fim último.
Naturalmente, o exercício recomendado ao final da lição é: “Reproduzir o
desenho da lição, retendo perfeitamente na memória seu conteúdo” (ver Figura 10.3).
Nesse caso, a obrigação de recordar transforma-se em ferramenta didática. Afinal,
as histórias de que mais gostávamos sempre terminavam como uma pergunta
inquietante: “E agora, que lição você tira da história?”.
A questão final, é claro, é se podemos seguir pensando em “tirar” alguma
lição de proveito da história em geral e das duas histórias que contamos neste
204 Mario Carretero, Alberto Rosa, María Fernanda González & cols.

FIGURA 10.3

trabalho; ou seja, se tal história tem a capacidade de nos ensinar algo novo ou se
podemos aproveitar apenas – como nos testes projetivos ou de análise fatorial – o
que já sabíamos. Nossa hipótese a esse respeito é clara: se alguma história teve
alguma vez a capacidade de nos tirar da estupidez, da preguiça, da dor ou da
crueldade, foi porque competia com outras histórias alternativas que alguém nos
contara. As feridas que nos causam as histórias somente podem ser curadas com
outras histórias.
Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para
esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual
da Instituição, você encontra a obra na íntegra.

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