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proibido comercialização

Heloísa Helena Pimenta Rocha


Inés Dussel
André Luiz Paulilo
(Organizadores)

Práticas culturais, práticas escolares:


miradas históricas e novas
problematizações

E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


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Heloísa Helena Pimenta Rocha
Inés Dussel
André Luiz Paulilo
(Organizadores)

Práticas culturais, práticas escolares:


miradas históricas e novas
problematizações

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Todos os direitos reservados à Fino Traço Editora Ltda.
© Heloísa Helena Pimenta Rocha, Inés Dussel, André Luiz Paulilo
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer
meio sem a autorização da editora.
As ideias contidas neste livro são de responsabilidade de seus organizadores
e autores e não expressam necessariamente a posição da editora.

CIP-Brasil. Catalogação na Publicação | Sindicato Nacional dos Editores de Livros, rj


P925
Práticas culturais, práticas escolares : miradas históricas e novas problematizações /
organizadores Heloísa Helena Pimenta Rocha, Inés Dussel, André Luiz Paulilo. - Ebook -
Belo Horizonte [MG] : Fino Traço, 2022.

303 p.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-8054-518-0

1. Educação - História. I. Rocha, Heloísa Helena Pimenta. II. Dussel, Inés. III. Paulilo,
André Luiz.
22-77110 CDD: 370.9 CDU: 37(09)

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439

Conselho Editorial Coleção EDVCERE


Alfredo Macedo Gomes | UFPE
Álvaro Luiz Moreira Hypolito | UFPEL O presente trabalho foi realizado
com apoio da Coordenação de
Dagmar Elizabeth Estermann Meyer | UFRS Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Dalila Andrade Oliveira | UFMG Superior - Brasil (CAPES) - Código de
Diana Gonçalves Vidal | USP Financiamento 001.
Elizeu Clementino de Souza | UNEB
Luiz Fernandes Dourado | UFG
Wivian Weller | UNB

Fino Traço Editora ltda.


finotracoeditora.com.br

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SUMÁRIO

Prefácio
Ver, praticar, reinventar: práticas culturais e escolares na mira
de enxergadores de tudo..............................................................6
Maria Teresa Santos Cunha

Miradas sobre as práticas educativas....................................... 10


Heloísa Helena Pimenta Rocha
Inés Dussel
André Luiz Paulilo
Parte I - Formar e praticar

Elogio del maestro artesano: arte y oficio de enseñar.............. 28


Agustín Escolano Benito

A formação de professores primários na França, em uma


perspectiva de longa duração ................................................... 47
Anne-Marie Chartier

Entre voces y textos: controversias en torno al uso de manuales


en escuelas tlaxcaltecas a inicios del siglo XX.......................... 61
Elsie Rockwell

Prácticas de consumo de los alumnos en clases de ciencias de


educación primaria................................................................... 85
Antonia Candela

Parte II - Praticar, registrar e dar a ver

As imagens podem ter a última palavra?


Imagens e narrativas de crianças brincando na Argentina do
final do século XIX...................................................................116
Inés Dussel

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Práticas escolares e representação fotográfica:
os centros de interesse no Álbum do Jardim de Infância
(São Paulo, 1931).......................................................................145
Diana Vidal
Rachel Duarte Abdala

As exposições escolares no Paraná: primeiras iniciativas ......167


Fátima Branco Godinho de Castro
Gizele de Souza

Entre conceitos e práticas: direito ao passado e educação em


museus..................................................................................... 189
Patrícia Cristina da Cruz Sá
Maria Angela Borges Salvadori

Parte III - Renovar a educação e reinventar as práticas

Serviços escolares auxiliares e suas práticas........................... 225


André Luiz Paulilo

Preparando as meninas para a “idade maternal”


(São Paulo, década de 1920)................................................... 243
Heloísa Helena Pimenta Rocha
Márcia Guedes Soares

Os esportes, as juventudes e suas práticas em uma imprensa


alternativa (1969-1980)........................................................... 274
Edivaldo Góis Junior

Sobre os autores e as autoras.................................................. 299

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PREFÁCIO
Ver, praticar, reinventar: práticas culturais e
escolares na mira de enxergadores de tudo

...imagens de um passado se presentificavam aos olhos


de Ponciá Vicêncio... ia contemplando a vida refeita pelo
movimento das lembranças [...] tinha o olhar vivo enxergador
de tudo. (EVARISTO, 2017, p. 52)

Escrever um prefácio para um novo livro envolve, além do privilégio


da leitura em primeira mão, estar diante de escritos de outros e produzir
sentidos sobre o lido. Ler para prefaciar requer transmitir sentimentos e,
pelo mergulho na escrita alheia, refinar significados aos assuntos para que
a leitura se torne convidativa aos futuros leitores e leitoras. No caso deste
livro, a importância de prefaciar é muito maior do que isso. Infinitamente
maior, pois envolve encantamento, esta emoção que propicia uma atenção
exaltada (GREENBLATT, 1991, p. 250).
Encantada, apresento este livro que dá a ver uma experiência de
organização compartilhada por três docentes e acadêmicos, André Luiz
Paulilo e Heloísa Helena Pimenta Rocha, da Unicamp (SP) e Inés Dussel,
argentina que trabalha no CINVESTAV/México. Este trio de organizadores,
com competência estilística, sensibilidade aguçada e precisão teórico-
metodológica traz autores conceituados que exploram com outros olhares
e novas problematizações, as possibilidades de estudo das práticas culturais
que ressoam em práticas escolares. O livro apresenta-se dividido em três
partes, nas quais 15 autores – provenientes de instituições nacionais e
internacionais – exercem, em suma, um olhar vivo sobre o tema, um olhar
que metaforicamente pode ser considerado como enxergador de tudo.

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Na Parte I intitulada Formar e praticar, quatro autores de procedência
de outros países apresentam seus resultados de pesquisa, Agustín Escolano
Benito (Espanha) abre o livro e, em diálogo com bibliografia reconhecida e
experiências exitosas, aborda, com sabedoria, práticas que constituem a arte
de ensinar e acompanham o ofício de professores e professoras. Anne-Marie
Chartier (França) analisa, em longa duração, a formação dos professores
primários em seu país, com riqueza de detalhes e ampliação de perspectivas
para novas abordagens. Por sua vez, Elsie Rockwell (CINVESTAV/México)
busca, em traços indiciais, debater sobre as práticas de leitura em escolas
rurais do México, em princípios do século XX. Igualmente, do CINVESTAV/
México, Antonia Candela interpreta as práticas escolares realizadas nas aulas
experimentais de ciências da escola primária, a partir da década de 1970,
relacionando-as com formas de participação dos discentes. Este primeiro
conjunto de artigos permite aprofundar a compreensão das práticas culturais
e escolares pela atualidade de suas formulações.
Na Parte II intitulada Praticar, registrar e dar a ver, quatro artigos
abordam, principalmente, os estudos sobre imagens. Inés Dussel (CINVESTAV/
México), uma das organizadoras deste livro, transita competentemente entre
imagens e narrativas de brincadeiras infantis na Argentina do final do século
XIX, analisando as mídias que as produziram e as fizeram circular. Diana
Vidal, da USP (SP), e Rachel Duarte Abdalla, da UNITAU (SP), nos brindam
com o estudo das práticas escolares e representações fotográficas, por meio
do enfoque nos centros de interesse presentes nos álbuns do Jardim de
Infância do Colégio Caetano de Campos, em São Paulo, em 1931. O artigo
destaca, também, o protagonismo da professora Alice Meirelles dos Reis
sobre o trabalho realizado naquele colégio nas décadas de 1920 e 1930,
ao mesmo tempo que incentiva novos estudos sobre sua atuação. Fátima
Branco Godinho de Castro e Gizele de Souza, ambas na UFPR (PR) narram,
delicada e articuladamente, as primeiras iniciativas das exposições escolares
no Paraná, enfatizando que tais exposições contribuíram para o processo
de consolidação da escolarização primária republicana, abrindo certeiras
iniciativas de futuros estudos nesta temática, para além do estado do Paraná.
Fechando a Parte II, Patrícia Cristina da Cruz Sá e Maria Angela Borges

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Salvadori, da USP (SP), refletem acerca das ações educativas realizadas
em museus e, simultaneamente, sobre os conceitos e metodologias que
perpassam os campos da educação, da história e do patrimônio, com base
em um olhar para o Serviço Educativo do Museu de Antropologia do Vale do
Paraíba/Jacareí (SP). Este conjunto de artigos tece substanciosas articulações
nacionais e internacionais que ampliam o horizonte de possibilidades para
outras pesquisas em torno dos temas tratados.
Na Parte III intitulada Renovar a educação e reinventar as práticas,
André Luiz Paulilo apresenta e reflete sobre as práticas constitutivas dos
chamados serviços escolares auxiliares (caixa escolar, pelotão de saúde, museus
e bibliotecas escolares, por exemplo) e traça, com pesquisa criteriosa, seguras
probabilidades para um entendimento de tais associações que propiciaram um
alargamento institucional das funções da escola. Nesta parte, encontra-se o
artigo de Heloísa Helena Pimenta Rocha e Márcia Guedes Soares, que analisa,
primorosamente, a preparação de meninas/alunas, na década de 1920, para
a função maternal, por meio da oferta de cursos em grupos escolares de São
Paulo, preparando-as para assumirem futuramente tais funções. A temática
e as evidências apresentadas autorizam a pensar em como se “inventa uma
tradição” para o gênero feminino. Fechando o livro, no tom e no tema, o
artigo de Edivaldo Góis Júnior, da Unicamp (SP), busca, por meio de fontes
jornalísticas, interpretar como práticas esportivas eram mobilizadas para a
formação da juventude entre 1969 e 1980, notadamente no Rio de Janeiro e
em São Paulo, neste período conturbado da vida nacional. São, enfim, três
artigos que aguçam sentidos e sensibilidades, pois são escritos devidamente
contextualizados e que fazem justiça ao legado de um pensamento de alto
teor crítico.
Sem julgamentos e sem propor soluções definitivas, os textos aqui
reunidos realçam um repertório de práticas culturais que cruzam os
espaços educativos e indicam uma somatória de ações que ecoam nas
práticas escolares. Os artigos exibem seriedade acadêmica e, ao mesmo
tempo, traduzem a abertura e o alargamento dos temas disponíveis para os
historiadores da educação. Trazem, sem dúvida, novas miradas e promissoras
problematizações à temática.

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Ao fim e ao cabo, é necessário registrar que temos aqui um livro que
presentifica passados, desperta encantamento pleno e exercita o olhar de
todos nós – leitores e leitoras – que, como enxergadores de tudo, leem palavras
e imagens com o que elas têm de mais extraordinário: ir do ontem ao muito
além.
Boa leitura, com atenção exaltada, ou seja, movida pelo encantamento!

Referências
EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Rio de Janeiro: Pallas, 2017.
GREENBLATT, Stephen. O novo historicismo: ressonância e encantamento.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 4, p. 244-261, 1991.

Maria Teresa Santos Cunha


Universidade do Estado de Santa Catarina/UDESC
Florianópolis/Verão 2022

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Miradas sobre as práticas educativas

Heloísa Helena Pimenta Rocha


Inés Dussel
André Luiz Paulilo

Fazer das práticas cotidianas um objeto de estudo tem se configurado


em um grande desafio para a recente historiografia. O practice turn da
teoria social, de que falam Schatzki (2001) e Burke (2005), respondeu pelo
deslocamento de uma parte da pesquisa da história da teologia para a das
práticas religiosas; da história da linguística para a da fala; da história das
teorias científicas para a do experimento (BURKE, 2005, p. 78); e da história da
pedagogia para a das práticas escolares. Neste último caso, duas dimensões de
um mesmo esforço de compreensão já podem ser identificadas com bastante
nitidez. Por um lado, a história das práticas de leitura, das práticas esportivas e,
entre tantas outras práticas culturais, daquelas ligadas à observação tornou-se
um desafio para a compreensão das práticas educativas. A ênfase no estudo das
práticas culturais transformou os modos de analisar as aprendizagens que, ao
mesmo tempo em que codificam e regulam o conhecimento, operam sobre os
corpos. Passou-se a valorizar, como elementos importantes na compreensão
da história da educação, os usos e as apropriações, as interações entre as
práticas dos sujeitos, como também as relações das estruturas objetivas dos
campos sociais com as estruturas incorporadas pelo indivíduo, que Bourdieu
(2011, p. 10) denominava habitus.

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Por outro lado, o desafio de transformar e renovar uma instituição
como a escola, cuja cultura mostrou-se perene em seu modelo e em sua
forma, encontrou, no estudo das práticas educativas, um ponto de inflexão
particular. Interrogar o lugar das práticas e da experiência nos processos
educativos formais significou compreender que a escola foi uma construção
trabalhosa, difícil e cheia de tensões, sendo muitos os processos educativos
que a precederam e a extrapolam/superam/vão além dela. Desse modo, em
vez do resultado de avanços progressivos ou de uma progressão contínua,
a escola ostenta uma história de disputas e apropriações das demandas
político-administrativas e de incessante constituição de fazeres ordinários.
A atenção aos artifícios e às múltiplas iniciativas, que fizeram dela o
lugar de uma tenaz reinvenção das práticas, já reúne muitos estudos e modos
variados de análise. De modo mais específico, aqueles e aquelas que, como
muitos dos autores que participam deste livro, pensaram a cultura escolar em
suas interações com outras culturas têm contribuído para a compreensão da
escola como um entreposto de trocas culturais.1 Essa perspectiva animou a
organização desta obra coletiva, que reúne estudos voltados para diferentes
aspectos dessas trocas, com base em uma mirada histórica sobre a educação.
Josefina Granja (2007, p. 2) dizia que pensar historicamente a educação
traz “perspectivas de longo prazo que permitem o reconhecimento da
multiplicidade de tempos, espaços e processos que se condensam e se
sedimentam nas práticas educativas em sentido amplo”. Nessa reflexão
histórica, “[a] mudança é analisada como condição estruturante do processo e
não como distância ou interface entre etapas de estabilidade” (GRANJA, 2007,
p. 7). Talvez seja necessário abandonar, de uma vez por todas, as categorias
mudança e continuidade, para assumir que o que estamos estudando são
entidades em movimento, com estabilidades temporárias, que, à medida
que se movem, vão se transformando.

1. As análises nessa direção contam com as contribuições pioneiras de Julia (2001); Vincent,
Lahire e Thin (2001); Viñao Frago (1995); Chervel (1990, 1998); Chartier (2000). No caso
brasileiro, os estudos de Faria Filho, Gonçalves, Vidal e Paulilo (2004); Vidal (2005, 2006,
2010); Vidal e Paulilo (2018); Vidal e Schwartz (2010); Souza (1998); Souza e Valdemarin
(2005); Paulilo (2003, 2013); Rocha (2010), entre outros, mobilizaram esses referenciais
para compreender diferentes aspectos da interação da cultura escolar com outras culturas.

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Talvez esse pensamento histórico deva se concentrar em complicar a
noção de tempo linear e homogêneo, interrompendo esse presentismo do
aqui e agora, abrindo conexões (trans)temporais-espaciais e insistindo na
ideia de que é necessário escavar ali “onde aparecem as memórias”, aquelas
camadas que organizam nosso vínculo com o passado (BENJAMIN, 2010).
Assim, pensar historicamente as mudanças materiais e pedagógicas
do trabalho escolar requer atenção aos vínculos das práticas atuais com
os registros do passado, bem como com a longa duração dos espaços e
artefatos da escola. Sob esse aspecto, o estudo das práticas é um desafio
tão presente hoje quanto o foi no passado. As contribuições de Michel de
Certeau (1994) para o estudo das práticas cotidianas beneficiaram a pesquisa
em história da educação ao propor a compreensão das práticas como artes
de “fazer com”. De fato, a investigação das práticas cotidianas, “desprovidas
de copyright tecnológico” e que se dão “à margem ou no interstício das
ortopraxias científicas ou culturais” (CERTEAU, 1994, p. 142), renovou o
estudo da história da educação. Não só por adicionar a preocupação com
um saber-fazer específico ou com práticas não-discursivas, ainda impensadas
pela história das ideias pedagógicas ou por perspectivas demasiadamente
voltadas para os dispositivos de controle e disciplina, mas também por
permitir distinguir maneiras de ler, de escrever, de aprender, de ensinar,
enfim, de “fazer com”. As “operações de emprego”, as “maneiras de fazer”,
as apropriações, de que fala Certeau (1994), são indissociáveis dos objetos e
materiais aos quais se combinam para expressar um uso, uma ação inventiva,
sob o poder dominador da produção.
As contribuições da etnografia educacional latino-americana também
têm fornecido numerosos exemplos das margens de autonomia variável
das instituições e dos diferentes atores para configurar suas práticas. Assim,
por exemplo, os professores não são mais vistos como meros transmissores
neutros da voz do Estado, mas como atores e leitores ativos, seletivos e
críticos das políticas e recursos, bem como negociadores habilidosos com
as estruturas normativas das escolas (CARVALHO, 1997, 1998; EZPELETA,
1987; ROCKWELL, 2007; VIDAL, 2001).

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Nesse sentido, a aula mostra-se um exemplo extraordinário. Os objetos
e materiais têm certas funções que conectam o que é feito em sala de aula
e se materializa em certas práticas concretas com outras dinâmicas mais
gerais, como as que se ligam às práticas curriculares. Mas a ideia de conexão
também aponta em outra direção. Como mostram as operações realizadas (e
as que não o são) com os materiais educativos, as interações e a dinâmica da
sala de aula excedem o que acontece dentro do espaço físico delimitado por
suas paredes. Nesse sentido, embora seja importante considerar a dimensão
físico-territorial da sala de aula, não devemos deixar de considerar como
ela é atravessada por dinâmicas que não necessariamente lhe são próprias,
podendo ser tanto as mais amplas da instituição escolar (com suas relações
de saber-poder) quanto as de âmbito familiar-doméstico, cultural, social.
Em termos mais amplos, os estudos que apresentamos dialogam com
o practice turn da teoria social, que sublinha as disposições, know-how,
entendimentos tácitos e ações dos atores como elementos centrais para a
compreensão das práticas (SCHATZKI, 2001, p. 7), ressaltando a importância
da materialidade das práticas e da mediação dos objetos (INGOLD, 2012).
Com base em uma perspectiva relacional e pluralista, a consideração das
práticas contrapõe-se tanto ao determinismo tecnológico ou objetal quanto
à noção liberal do sujeito soberano, cuja vontade define o curso das ações.
Antes de tudo, o que importa analisar são as interações e conexões, não apenas
entre atores humanos, mas também desses com os suportes e artefatos. Por
exemplo, na análise dos livros escolares, pode-se perceber que esses suportes,
“longe de padronizar o ensino como uns esperavam e outros objetavam,
fomentaram práticas muito diferentes em torno do texto” (ROCKWELL,
2007, p. 205), as quais têm a ver com o que os livros propunham, mas também
com as tradições pedagógicas, a formação de cada professor e a situação
particular em que se inscreviam.
A esse respeito, é correta a definição do antropólogo Jan Nespor que
considera as escolas e salas de aula como espaços porosos e precários, “como
uma intersecção em um espaço social, um nó de uma rede de práticas que se
estendem em sistemas complexos que começam e terminam fora da escola”
(NESPOR, 1996, p. XIII). Para o autor, que estuda a ligação entre as mídias
(especialmente a cultura que vem da televisão) e a educação, embora não

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“tragam” consigo um aparelho de televisão, as crianças trazem referências,
linguagens, estéticas que organizam sua forma de ver o mundo e de pensar
sobre si mesmas. Por outro lado, a escola não começa e termina no edifício
ou com o horário, mas – como a televisão – acompanha as disciplinas, como
um “modo escolar”, uma mente escolarizada ou um habitus escolarizado.
À aula se levam e se trazem coisas de casa e de fora; na sala de aula,
certas coisas tornam-se “próximas” (história, outras linguagens), e outras
se tornam mais distantes (a experiência cotidiana, a cultura familiar, que
passa a ser vista de outra perspectiva). É essa operação de distanciamento e
aproximação que permite construir outros saberes, abordar novas linguagens
e assumir diferentes perspectivas em relação ao conhecimento. Refletir sobre
as formas de usar, em vez de contabilizar o que foi usado, como fez Certeau,
permite apreender que “não se pode ler diretamente a alteridade cultural
na especificidade profusa dos objetos a ela destinados, mas sim no uso que
se faz deles” (CHARTIER; HEBRARD, 1998, p. 30).
Nesta reflexão, é importante considerar a historicidade de nossas formas
de estudar as práticas, de nossas metodologias e visões. Nos últimos anos,
vários trabalhos sobre a história da ciência têm mostrado que a observação,
como ação do conhecimento, variou muito ao longo dos séculos: os sentidos
foram treinados e ampliados para observar fenômenos naturais, sociais ou
psicológicos. As práticas de registro, correlação e visualização de dados
também mudaram muito (DASTON; LUNBECK, 2011, p. 2). Conforme
pensamos hoje, a observação não é natural, mas é “uma forma altamente
artificial e disciplinada de experiência que requer o treinamento do corpo e
da mente, suportes materiais, técnicas de descrição e visualização, redes de
comunicação e transmissão, cânones de evidências e formas especializadas de
raciocínio” (DASTON; LUNBECK, 2011, p. 3). Seguindo esses historiadores
da ciência, pode-se afirmar que, nos últimos dois séculos, a observação e a
experimentação foram colocadas em polos opostos na pesquisa científica:
construiu-se uma dualidade em que a observação parecia passiva e a
experimentação era o polo ativo; sugeriu-se que a observação é apenas o
registro de dados, descobertos e discriminados, e que os experimentos, ao
contrário, são aquilo que deve provar, testar, criar hipóteses e inventar ideias.

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No entanto, é importante ter em conta que a observação envolve
“uma fusão de percepção, julgamento, memória e raciocínio” (DASTON;
LUNBECK, 2011, p. 5); está mais perto da possibilidade de criar ou testar
hipóteses do que se acredita; mas também de inventar e gerar ideias ou
linguagens. Não há observação sem alguma produção de juízo, de ação da
memória, de categorização da percepção. Não é verdade que ela é o polo
passivo: quando observamos, estamos ativamente nos engajando com o
mundo.
“Ver” não é apenas olhar, como um ato fisiológico, mas apreender
significados e dar sentido ao mundo. Qualquer olhar (por exemplo, da arte,
da rua ou da escola) dialoga com as “instituições do olhar”, que organizam
o que vemos e os significados que construímos em relação ao que vemos,
mesmo quando não temos plena consciência disso (DUSSEL; GUTIÉRREZ,
2006). Na arte, por exemplo, operamos com categorias do que é arte e do
que não é, do que é belo ou emocionante e do que não é. Essas categorias
podem ter vindo da escola, de nossas famílias ou do que ouvimos ou lemos
na mídia de massa ou nas redes sociais. Faz sentido dizer que não há olhares
desprovidos de alguma “instituição do olhar”, que, desde a infância, nos
dizem “olha isso/aquilo”, ou “o que você vê é lindo/feio/bom/mau/excitante/
assustador”, estabilizando e associando certas percepções a certos julgamentos,
sentimentos, raciocínios. Por isso, é importante reconhecer que existe uma
configuração ética e estética, como também uma dimensão política, no ato
de observar e dar sentido ao mundo.
Complementar a essas considerações, Daston e Lunbeck argumentam
que a observação também é uma educação dos sentidos: é preciso calibrar
o olho do astrônomo, a língua do botânico (que experimenta os sabores das
plantas) ou o nariz do químico, para que eles possam associar corretamente
percepção e julgamento (DASTON; LUNBECK, 2011, p. 5). “Calibrar” significa
treinar, formar, educar, associar certos odores a certos fenômenos químicos,
que são nomeados com uma linguagem específica. Pode-se dizer que, no
caso das ciências sociais e da pedagogia, a calibragem é dos olhos e dos
ouvidos, do olhar e do ouvir, embora a importância dos cheiros e da textura
na experiência escolar também deva ser considerada de modos que nem
sempre são levadas em conta na pesquisa educacional. E, no entanto, faz parte

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da história da educação ver como funciona esse esforço empírico da escola.
Sobretudo por isso, não parece despropositado afirmar que a observação
não é apenas visual, mas multissensorial, exigindo que se considere outras
dimensões da experiência e, ao mesmo tempo, que se pense sobre o seu
registro.
Outra parte do esforço escolar foi produzir efeitos de visibilidade das
suas melhores práticas. Em trabalho recente e sugestivo, Escolano (2017, p.
91) lembra que as cenografias da escola não só “mostraram as representações
ideais ou reais” do ritualismo pedagógico, mas algumas delas constituem-se em
“verdadeiras montagens compatíveis com o pictorialismo fotográfico; fictícias,
em várias ocasiões”. A análise histórica dessas cenografias contribuiu para a
compreensão do que esse autor define como “caráter cultural das coreografias
e dos conteúdos selecionados que nelas se representam” (ESCOLANO, 2017,
p. 91). De todo modo, as imagens da educação comunicam a cultura empírica
da experiência escolar. Já a educação pela imagem propicia experiências
que, da fruição cultural à apropriação, extrapolam a escola, encontrando
nos museus outro espaço de aprendizagem, outro registro de observação.
Também aí, no entanto, a observação não prescinde do seu repertório escolar,
da calibragem que lhe foi conferida para perceber, ajuizar e apreender.
Pelos recursos críticos que reúne, pensar historicamente as mudanças
materiais e pedagógicas do trabalho escolar contribui para nos prevenir contra
as certezas fáceis, a superficialidade das soluções de ocasião, o pensamento
puramente instrumental ou a naturalização dos atuais processos educativos.
Com um repertório metodológico mais amplo que o da história das ideias
e das reformas educativas, as investigações sobre a mudança e a renovação
da educação e das práticas educativas alcança outras frentes de disputas
que não só a política.
O enfoque histórico, beneficiado sobretudo pela noção de poder
formulada por Foucault, percebe a mudança educacional por meio das
relações institucionais com o conhecimento como prática social. Conforme
explica Popkewitz (1997, p. 38), o modo como Foucault reverteu a crença de
que conhecimento é poder e redefiniu a relação entre poder e saber suscitou
análises acerca das “formas como o conhecimento promove certas verdades,
à medida que elas estão inseridas nos problemas, questões e respostas que

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asseguram e reforçam a vida social e o seu bem-estar”. Assim, o poder é
visto mais como algo que se exerce do que algo que se tem, e, desse modo,
é entendido por meio das técnicas operatórias e da espécie de “politeísmo
de práticas disseminadas” (CERTEAU, 1994, p. 115) que é capaz de pôr em
relação e articular.
As análises sobre a renovação escolar beneficiaram-se de muitas maneiras
dos novos conjuntos de relações entre saber e poder sugeridas por Foucault.
A atenção aos dispositivos disciplinares, às tecnologias de controle e às
possibilidades de supervisão, observação e administração do indivíduo,
que a escola ostenta, ampliou a série de aspectos relacionados à mudança:
os espaços, os tempos, as práticas sobre o corpo, os saberes escolares, a
inspeção e administração do trabalho educativo, os movimentos em direção
à padronização e ao controle dos resultados, por exemplo. Para além disso,
tal perspectiva de análise possibilitou, também, considerar como práticas
acumuladas o que antes era visto como relações estruturais de poder e,
assim, perceber seus efeitos sobre a cultura, a forma ou a gramática escolar.
Mesmo levando em conta o acúmulo de estudos e pesquisas resultante
dessa perspectiva, o que pode ser visto em relação às práticas escolares é
apenas parte de muitas outras séries. Conforme adverte Certeau (1994, p. 115):
Uma sociedade seria composta de certas práticas exorbitantes,
organizadoras de suas instituições normativas, e de outras práticas,
sem-número, que ficaram como menores, sempre no entanto presentes,
embora não organizadoras de um discurso e conservando as primícias
ou os restos de hipóteses (institucionais, científicas), diferentes para
esta sociedade ou para outras. É nesta múltipla e silenciosa reserva de
procedimentos que as práticas consumidoras deveriam ser procuradas,
com a dupla característica, detectada por Foucault, de poder, segundo
modos ora minúsculos, ora majoritários, organizar ao mesmo tempo
espaços e linguagens.

Entre as práticas “exorbitantes” e “organizadoras” das instituições e


aquelas ordinárias do sujeito, o inventário de “fazeres com” ainda se mostra
profícuo para a análise. As práticas que proliferam na e pela escolarização

17 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


animam investigações, interessadas, sobretudo, na cultura empírica da
educação, baseada na experiência, como aponta Escolano (2017, p. 92).
Resultado das ações do projeto Práticas educativas, aprendizagens e
formação de professores em diferentes contextos e linguagens, financiado
pelo Programa de Internacionalização da CAPES (PrInt) e com apoio do
Programa de Pós-Graduação em Educação da Unicamp2 e do CINVESTAV
(México), o conjunto de estudos que reunimos aqui combina diferentes
esforços de compreensão das práticas educativas. Em comum, as análises
ocupam-se de experiências práticas. Formativas e escolares, como aquelas
estudadas nos textos da primeira parte desta obra, que contribuem para
análises acerca do trabalho educativo de docentes e discentes. Já quando
voltadas para a fabricação visual do registro escolar e cultural, conforme
sugerem os estudos da segunda parte, permitem explorar as relações entre
a educação, a cultura e as suas instituições. Também as experiências que, na
escola ou fora dela, exigem o engajamento institucional ou pessoal com o
outro, como evidenciam as práticas da assistência, do cuidado e do esporte
analisadas na terceira parte, mostram-se temas férteis para a pesquisa das
mudanças na sociabilidade contemporânea.
Assim, a proposta desta publicação é contribuir com o aprofundamento
das reflexões sobre os processos educativos, sejam aqueles que têm lugar
na escola, sejam os que ocorrem em outros espaços, ampliando, por essa
via, a nossa visada sobre o passado educacional. Sem a necessidade de uma
determinada entrada no texto ou um sentido de leitura obrigatório, as três
partes em que os capítulos estão organizados sugerem possibilidades de
articulação entre diferentes práticas de formação. Desse modo, inicialmente,
as interfaces das práticas escolares com as práticas culturais aproximaram
as preocupações de Agustín Escolano, Anne-Marie Chartier, Elsie Rockwell
e Antonia Candela.
Agustín Escolano, no capítulo 1, postula que a história da educação
busque se aproximar, cada vez mais, da experiência de aprender e ensinar,
do mundo da ação ou, em outros termos, das práticas que orientaram a

2. O presente livro conta com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de


Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001, em conformidade com
a Portaria CAPES n. 206, de 4 de setembro de 2018.

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construção da cultura empírica da escola. Tal dimensão, como assinala,
não necessariamente se confunde com o que propuseram os teóricos da
pedagogia ou o que desejaram os ideólogos ou os burocratas. Nesse sentido,
o autor conclama os historiadores da educação a uma imersão na realidade,
com vistas a capturar a dimensão prática da educação escolar, advertindo
que, na base do ofício docente, reside a experiência. Suas reflexões chamam
atenção para a relevância do estudo da “arte de ensinar”, sua constituição
histórica, suas regras, focando na figura do professor e nas formas artesanais
que configuram o ofício docente.
Já no capítulo 2, Anne-Marie Chartier indaga-se sobre as exigências a que
deve responder a formação dos professores no século XXI, num momento
em que novos requisitos se impõem para a inserção no mercado de trabalho e
as ferramentas digitais invadem as culturas infantis e juvenis. Para lidar com
essa indagação, a autora se volta para o estudo de duas tradições presentes
na história da profissionalização docente na França: a formação prática
do professor primário e a formação acadêmica do professor do ensino
secundário. Sem perder de vista as recentes reformas que parecem borrar
as fronteiras entre essas duas tradições, suas análises põem em cena, dentre
outros aspectos, as disputas entre instâncias de poder, as tensões em torno
dos intentos de seleção dos melhores e do desenho curricular, os impactos
das crises econômicas.
No capítulo 3, Elsie Rockwell se propõe ao desafio de lançar um olhar
para além da imagem da escola que emerge dos planos, programas, tratados
pedagógicos e livros escolares, buscando dar conta da complexa história das
práticas cotidianas que se efetivam nas salas de aula. Para tanto, examina as
práticas de leitura em escolas rurais do México, nas décadas iniciais do século
XX, num contexto marcado por intensas disputas políticas e pedagógicas.
De discursos pedagógicos, testemunhos orais, conhecimento etnográfico do
entorno cultural e imaginação histórica se tecem os fios da narrativa sobre as
práticas escolares de leitura pretéritas, em que se pode ter acesso aos modos
como se formavam e atuavam os professores que deveriam se encarregar
dessa tarefa, em uma região marcada pela coexistência do espanhol e do
“mexicano”, termo utilizado para se referir à língua local náhuatl.

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Fechando essa primeira parte, no capítulo 4, Antonia Candela, por sua
vez, interroga o exercício do ofício docente por meio do exame da dimensão
do consumo do discurso do professor por estudantes das escolas primárias
do México. Analisando as atividades experimentais introduzidas nas aulas
de ciências naturais, a partir dos anos 1970, empreende uma investigação
etnográfica, atenta às modificações históricas do currículo e das práticas
escolares, que tem na apropriação e na utilização dos enunciados pelos alunos
o seu eixo central. Para além da formação docente, a docência como prática,
como “arte de fazer”, emerge em suas reflexões nas relações inventivas dos
sujeitos da escolarização com os conteúdos de ensino, contribuindo para
lançar luzes sobre as práticas escolares como práticas de consumo, espaço
de negociações entre a “lógica dos consumidores” e o discurso do professor.
Na segunda parte, que reúne as reflexões propostas por Inés Dussel,
Diana Vidal e Rachel Abdala, Fátima Castro e Gizele de Souza, Patrícia Cruz
Sá e Maria Angela Salvadori, o foco da discussão sobre as práticas se desloca
para o registro e a exposição. É assim que Inés Dussel, no capítulo 5, se lança
à busca do que denomina “traços de experiências passadas”. Examinando
imagens de jogos e brincadeiras infantis, a autora procura compreender o
espaço por elas ocupado nos imaginários populares sobre a infância, num
momento em que a brincadeira passa a ser vista como atividade formativa,
tanto dentro como fora da escola. Suas análises tomam como foco um álbum
amador de fotografias de jogos infantis, produzido na Argentina no final
do século XIX, e a circulação de algumas dessas imagens em duas revistas
ilustradas, buscando indagar sobre os sentidos dos jogos e brincadeiras
produzidos nessas “viagens transmídia”. Para além da reflexão sobre as práticas
infantis, a autora indaga sobre as práticas de pesquisa dos historiadores da
educação, em suas relações com os arquivos digitais.
No capítulo 6, Diana Vidal e Rachel Abdala voltam-se para o estudo
do registro fotográfico de práticas escolares inovadoras. Interessadas na
representação dos centros de interesse, as pesquisadoras tomam como fonte
o Álbum do Jardim de Infância da Escola Caetano de Campos de 1931.
As práticas e representações que emergem do exame das fotografias são
interrogadas em uma perspectiva transnacional da história da educação, que
convoca a buscar compreendê-las no âmbito do movimento internacional

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da educação nova. As soluções engendradas para lidar com os desafios
cotidianos da classe, inseridas em uma vertente mais prática e instrumental
do ofício docente, configuram-se como elemento central nas análises das
autoras acerca da apropriação dos centros de interesse em São Paulo. A
ênfase na ação e nos resultados das atividades representadas por meio da
fotografia pode ser observada, como sublinham as autoras, tanto no exame
das imagens como das legendas.
Já no capítulo 7, Fátima Castro e Gizele de Souza propõem uma
imersão no universo das festas escolares para descortinar os meandros das
exposições escolares, práticas realizadas, em geral, como parte dos rituais
de encerramento do ano letivo. Ao mesmo tempo em que davam a ver o
trabalho desenvolvido no interior da escola, evidenciando o valor atribuído
ao trabalho manual na formação das crianças, essas práticas participavam da
reafirmação da importância da instrução pública na instauração do regime
republicano. As autoras examinam as exposições realizadas nas escolas
primárias do Paraná entre o final século XIX e o início do século XX, com
foco na cultura material, detendo-se nos artefatos produzidos nas aulas de
trabalhos manuais, trabalhos de agulha e desenho. As análises chamam
atenção para as formas distintas como são tratados os trabalhos produzidos
por meninos e meninas, além de realçarem a dimensão econômica assumida
por essas exposições.
Propondo uma reflexão sobre as práticas educativas realizadas em
museus, Patrícia Cruz Sá e Maria Angela Salvadori examinam, no capítulo 8¸
com o qual se encerra a segunda parte desta obra, o trabalho desenvolvido pelo
Museu de Antropologia do Vale do Paraíba entre os anos de 1995 e 1996, com
foco nas ações do Serviço Educativo dessa instituição criada nos anos 1980,
num contexto marcado pelas discussões em torno do papel dos museus na
democratização do acesso aos registros do passado. Examinando os registros
das exposições e do conjunto de atividades direcionadas ao público infantil
e, em particular, ao público escolar, as autoras problematizam os vínculos
entre a educação em museus e as dinâmicas escolares, seus currículos e
práticas. Atentas às disputas em torno das narrativas sobre o passado, as
reflexões propostas se articulam ao propósito de defesa da preservação e

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valorização do patrimônio histórico-cultural, bem como da garantia do
direito ao passado como direito de cidadania.
A renovação e a reinvenção das práticas é o mote em torno do qual
se articulam os textos que compõem a terceira parte desta obra, na qual se
articulam as reflexões propostas por André Paulilo, Heloísa Rocha e Márcia
Guedes Soares, e Edivaldo Góis Júnior. Assim, no capítulo 9, André Paulilo
examina as reformas da instrução pública promovidas nas décadas de 1920
e 1930, em diferentes estados do Brasil e no Distrito Federal, interrogando
a articulação de todo um conjunto de serviços educacionais denominados
instituições auxiliares de ensino; medida essa que teve como objetivo
melhorar as condições de frequência escolar da população pobre, deter
a evasão e aumentar o rendimento escolar. No horizonte das iniciativas
que responderam pela articulação desses serviços, em seus vínculos com o
movimento de renovação escolar, o autor identifica os intentos de ampliação
das finalidades sociais da escola pública, na confluência entre os anseios de
uma geração de educadores e a vontade política de agentes envolvidos em
projetos de regeneração social. Ao mesmo tempo, o investimento analítico
procura atentar para as práticas por meio das quais se organizaram as ações
de assistência social, médica e de auxílio pedagógico implementadas por
essas instituições.
No capítulo 10, Heloísa Rocha e Márcia Soares examinam as iniciativas da
Inspetoria de Educação Sanitária e Centros de Saúde de São Paulo, instituída
pela reforma sanitária de 1925, detendo-se nos cursos de puericultura
oferecidos nos centros de saúde para alunas do 4º ano dos grupos escolares.
Nomeados como “escolas de mãezinhas”, tais cursos, ministrados entre as
décadas de 1920 e 1930, visavam preparar as meninas, por meio de um “ensino
prático”, para compartilhar as responsabilidades pela criação dos irmãos e
para assumir, no futuro, os cuidados com a criação dos filhos. No exame dos
meandros do projeto de difusão da puericultura em São Paulo, as autoras
interrogam os conteúdos abordados nesses cursos; as práticas em torno das
quais se organizavam, em seu parentesco com as práticas escolares; o lugar
conferido a essas práticas na formação das meninas; bem como os indícios
das apropriações que elas fizeram das noções que lhes foram ensinadas.

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Finalizando a terceira parte, no capítulo 11, Edivaldo Góis Junior propõe
uma imersão nas práticas esportivas entre as décadas de 1960 e 1980, com
o propósito de interrogar as associações entre essas práticas, as diferentes
representações de juventude e os distintos projetos de educação dos jovens,
no âmbito das disputas políticas que marcaram a sociedade brasileira no
período da Ditadura Civil-Militar. A imprensa alternativa, em sua posição
de resistência e de defesa da redemocratização, é a fonte escolhida pelo autor
para a imersão proposta. É no âmbito desses veículos que se identifica o
incentivo a práticas esportivas populares, menos valorizadas pelo discurso
governamental e mais distantes do espetáculo esportivo promovido pelas
redes de televisão, de que é exemplo a prática do futebol amador nos bairros
ou mesmo de outras práticas populares quase invisíveis, quando comparadas
ao futebol.
No tratamento conferido a essa gama de objetos sobre os quais incide o
olhar do conjunto de historiadores e historiadoras da educação reunidos nesta
obra, vale lembrar que, em suas reflexões acerca dos modos de investigação
das “práticas ordinárias”, Certeau propõe a possibilidade de pensar a pesquisa
como a combinação de dois movimentos articulados entre si: em uma
dimensão, aquele que permite destacar tais práticas, isolá-las; em outra, o
que consiste em virá-las do avesso, invertê-las por meio de uma operação
linguística. O estudo das práticas é, assim, pensado como uma “dança sobre
a corda”, arte de pensar marcada pela inventividade, pelo equilíbrio entre a
imaginação e a compreensão:
Dançar sobre a corda é de momento em momento manter um equilíbrio,
recriando-o a cada passo graças a novas intervenções; significa conservar
uma relação nunca de todo adquirida e que por uma incessante invenção
se renova com a aparência de “conservá-la”. A arte de fazer fica assim
admiravelmente definida, ainda mais que efetivamente o próprio
praticante faz parte do equilíbrio que ele modifica sem comprometê-lo.
Por essa capacidade de fazer um conjunto novo a partir de um acordo
preexistente e de manter uma relação formal malgrado a variação dos
elementos, tem muita afinidade com a produção artística. Seria uma
inventividade incessante de um gosto na experiência prática. (CERTEAU,
1994, p. 146)

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Esta obra coletiva inscreve-se, assim, no desafio de “dançar sobre a
corda” proposto por Certeau, convidando os seus leitores a ler as práticas
educativas escolares e não escolares concebidas como práticas culturais, em
suas relações com os currículos, as disciplinas, os discursos sobre a educação,
em sentido mais amplo, e a escolarização. O conjunto de reflexões propostas
por pesquisadores e pesquisadoras de instituições nacionais e estrangeiras
visa fazer avançar a compreensão dos modos como historicamente têm
sido construídas formas de educar as novas gerações e, ao mesmo tempo,
contribuir para a invenção de outras possibilidades de pensar a educação,
com base na reflexão sobre a diversidade de experiências vivenciadas no
Brasil e em outros países.

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Parte I
Formar e praticar

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Elogio del maestro artesano:
arte y oficio de enseñar

Agustín Escolano Benito

Una nueva razón práctica


El reclamo de una nueva historia de la experiencia en educación, una
orientación que venimos postulando desde hace ya algunos años, supone en
parte fundar una nueva razón práctica que adopte la empireia como referente
fenomenológico ordenado a comprender y explicar, en la perspectiva de
una historia intelectual en clave hermenéutica, no como descripción de una
practicidad primaria sin discurso, sino como modo de construcción de una
cultura empírica de la escuela que ha de ser creada, analizada y debatida en
comunidad interpretativa y en un marco pluritópico.
La historia pragmática de la educación se abre ante nosotros como
necesidad y como posibilidad cuando se empieza a considerar que enseñar
es ante todo una acción conformada a determinadas prácticas, las que
constituyen el arte de la educación y que acompañan el oficio de maestro,
y cuando se asume que el conocimiento de estos códigos es imprescindible
para entender el mundo de la escuela como construcción sociohistórica en
el contexto general de una historia de las facticidades. Bajo esta perspectiva,
la práctica y el arte pueden ser vistas, como parece sugerir Michel de Certeau
en el texto que motiva esta obra colectiva, de forma sinérgica, como en

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un bucle que fusiona la experiencia y la estética. Estas artes están además
avaladas por su historicidad, toda vez que han sido creadas y difundidas en
el seno de la escuela por la corporación de enseñantes a lo largo de varias
generaciones. La tradición acreditada es una marca de calidad que invita
además al elogio del maestro que la ha creado.
Las reglas a que aludimos se generan y difunden a través de los procesos
en que se organiza la experiencia del aprender y enseñar. En ocasiones se
operan fenómenos de fusión que interrelacionan los hechos observables con
los saberes que transmiten las instituciones de formación de profesores y
con las normas que emanan de los dispositivos de gobierno que, desde el
exterior, se proponen para ordenar la vida interna de las escuelas. Pero, aun
en este caso, es la instancia práctica la que en definitiva legitima los modelos
pedagógicos en el plano de lo real o se apropia de los conocimientos y códigos
regulatorios, operando en la experiencia una especie de alquimia que instituye
lo factual como cultura, en la acción y en su definición discursiva post facto.
La anterior proposición puede ser extendida al plano del aprender, que es
correlativo al del enseñar. Analizar los procesos de subjetivación que la escuela
promueve en los alumnos remite al estudio de las prácticas que configuran los
modos de aprendizaje. Por medio de estas acciones, los individuos desarrollan
su esquema psicofísico o corporal, sienten las emociones que la sociabilidad
promueve en la acción relacional y se apropian de las disciplinas curriculares
que la educación formal transmite. En esto consiste justamente la educación.
La formación es una Bildung o construcción que se opera en el mundo de la
experiencia, aunque en ella intervengan otras instancias externas como son
las propuestas pedagógicas de la Academia o las reglas burocráticas de la
Administración. Enseñar y aprender son pues dos dimensiones del arte de
la educación y de la aventura humana del aprendizaje, que tienen su anclaje
obligadamente en el mundo de la práctica.
Empecemos por tomar en cuenta lo anterior interpretando las confesiones
de un experimentado profesor al final de su ejercicio profesional y vital. Él es
Frank McCourt, autor de la conocida novela El profesor, en cuya narración
explica precisamente las respuestas que hubo de dar en el plano de la acción a
las diversas demandas con que hubo de enfrentarse (MCCOURT, 2006, p. 81).

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El camino de la pedagogía es largo. Soy un profesor nuevo y estoy
aprendiendo con la práctica. Jugueteo con los instrumentos de mi
nuevo oficio.

Según mis cálculos, unos doce mil chicos y chicas se han sentado en
pupitres, y me han oído explicar, cantar, animar, divagar, declamar,
recitar, predicar… Impartí al menos treinta y tres mil clases. Treinta y
tres mil en treinta años.

En la universidad había asignaturas que trataban de cómo enseñar,


impartidas por catedráticos que no sabían enseñar. Hablaban de teorías
y filosofías de la educación, de imperativos morales y éticos, de la
gestalt… Yo aprendí por prueba y error.

Me sentía incómodo con los burócratas, que habían huido de las aulas.
Nunca quise ceñirme a sus programas y a sus planes.

Por ensayo y error, jugando en la práctica con las herramientas materiales


del oficio de enseñante y con las retóricas comunicativas de la cultura empírica
de la escuela, rehusando o adaptando a sus propias necesidades y expectativas
las teorías de los académicos y las normas de los burócratas, forjó el profesor
Frank McCourt el arte y la profesión de enseñante. Y así también – siguiendo
la lógica de la racionalidad práctica de la que habló el sociólogo Pierre
Bourdieu –, la mayor parte de los profesores fueron construyendo las reglas
del arte de enseñar en las que forjaron su habitus profesional y con las que
guiaron, con rigor y método, la larga aventura del aprendizaje de los alumnos
(BOURDIEU, 2007, p. 129).
Llama la atención que a este acervo experiencial le haya sido negado el
estatuto no ya de ciencia sino incluso de sabiduría pragmática, o de tékhne.
Tal exclusión se acentuó, a partir de que el positivismo, desde finales del
siglo XIX, que trató de legitimar y de imponer las nuevas reglas de verdad
de una pretendida ciencia de la educación, y de dar por supuesto que ésta,
la educación, sólo debería ser gestionada mediante las pautas que procedían
de la racionalidad científica en la que el nuevo orden venía a sustentarse.
Esta exclusión operó una especie de escisión entre los discursos pedagógicos

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y las prácticas de la escuela, desplazando a éstas a un proceso de constante
depreciación cultural, cuyo resultado ha producido – como sugiere Antonio
Nóvoa – algo similar a lo que Anthony Giddens denominó el “secuestro de
la experiencia” (NÓVOA, 1997, p. 36). La práctica, desde esta nueva episteme
de la ciencia positivista, sería para los académicos formados en su filosofía
no sólo acientífica, sino un conocimiento ingenuo, espontáneo, grosero y,
en definitiva, sin valor. Y ello era así aunque la investigación experimental
tuviera que sustentarse, en otro nivel de la empireia, en el estudio del mundo
controlado de los hechos.
Tal sentencia ha terminado por reducir la identidad de los docentes a
la de meros ejecutores de programas dictados desde el exterior, o a generar
en el interior de la corporación de los enseñantes modos relativamente
autónomos de resistencia y apropiación, así como respuestas creativas de
comportamientos propios o de grupo, si bien tales contribuciones hayan sido
ignoradas o devaluadas por los gendarmes del sistema y por los especuladores
que idearon modelos pedagógicos. Ambos, los académicos y los políticos,
encontraron a veces espacios en los que se operaban lo que Jürgen Schriewer
(2000, p. 252) llamó “coaliciones de discursos”, interacciones que trataron
de salvar y de legitimar el enriquecimiento transaccional de las acciones,
de los conocimientos y de las normas, gestadas cada una de estas esferas
en círculos bastante diferenciados y en cierto modo autónomos aunque
también necesariamente interdependientes.
Aplicar la reflexividad en torno a estos procesos históricos, ya de larga
duración, y contribuir a la puesta en valor de la cultura empírica de la escuela
y de los saberes que pertenecen al patrimonio de los enseñantes, es algo que
compete a los historiadores de la educación. Esta tarea es la que permitirá
entender e interpretar los modos de la cultura escolar efectiva, la tradición
disponible y otras variables explicativas de cómo la escuela ha ido generando
sus propias respuestas para atender a las necesidades y expectativas del
cotidiano, y también ayudará a explicar por qué la pragmática educativa
institucional se ha comportado históricamente con reservas y resistencias
críticas en relación a la pedagogía sustentada por los académicos y por las
reformas políticas.

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Una historia pragmática de la educación ha de insertarse, en un sentido
contextualizado, en una historia general de la experiencia, y ha de poner en
valor y recuperar los hallazgos derivados de la razón práctica, esto es, los
testimonios que revelan el mundo de la acción y los resultados de la historia
efectual, la que en verdad ha sucedido, que no es – ni tiene por qué ser – la
que postularon los teóricos de la pedagogía ni tampoco la que desearon los
ideólogos o los burócratas del sistema.

El arte de enseñar como cultura


En los últimos años, la historiografía viene llamando reiteradamente
la atención sobre la necesidad de desvelar los códigos, a menudo invisibles,
que subyacen en la cultura de la escuela. En estas instituciones se ponen
a diario en acción prácticas, discursivas o aparentemente no discursivas,
que regulan, a modo de reglas de gobernanza subyacentes, la vida de los
establecimientos que se encargan de la sociabilidad formativa de los menores.
Por fin, los historiadores, que siempre se habían detenido en el umbral que
antecede a las aulas, han decidido acercarse a la fenomenología de las cosas.
Cansados en parte de las derivas del posmodernismo y de ciertas retrotopías
anacrónicas, los investigadores han intuido que una buena higiene intelectual
ha de empezar por la saludable inmersión en la realidad. Antes de poner
palabras a las cosas hay que entrar en ellas, por procedimientos etnológicos
o través de los signos e indicios que las positividades materiales observables
nos ofrecen como testigos de la historia efectual acaecida en la realidad.
Unos han llamado a estas claves implícitas en la praxis educativa,
verificable en los acervos de memoria histórica, “gramática” de la escolarización
(TYACK-CUBAN, 2000); otros han hablado de la “caja negra” (black box)
en la que se cobija y oculta la verdadera cultura escolar (DEPAEPE-SIMON,
1995, p. 10); los hay quienes en la reivindicación del campo de la empireia han
querido ver un intento de aplicar una cierta “endoscopia” a la fenomenología
del mundo de la escuela, operación orientada a la búsqueda de los códigos
subyacentes (CUESTA, 2007, p. 119-126); y algunos han propuesto denominar
sin más a este conjunto de reglas de ordenamiento y de gobernabilidad
pedagógica “cultura escolar”, dando a este constructo una significación más
holística y comprensiva (JULIA, 1995, p. 356).

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Marc Depaepe, en el coloquio mantenido con él sobre el tema durante
su estancia en el Centro Internacional de la Cultura Escolar (CEINCE),
sostuvo que en realidad se puede afirmar que coexisten dos “gramáticas” en
el seno del universo de las instituciones educativas. Una, la que él denominó
“pedagógica”, correspondería a la que ha sido sobre todo destacada por la
visión más tecnológica de los círculos universitarios de Harvard y Stanford,
que residiría en los comportamientos más relacionados con lo instrumental.
Otra, la llamada gramática “moral”, recogida sobre todo por la historiografía
centroeuropea, afectaría más a las interacciones éticas y sociales que se
operan en el desarrollo del currículum y en las relaciones entre los actores
que cohabitan en la vida de las escuelas. Ambas lógicas – entiende el autor
belga – son interdependientes en el juego que se opera entre la atención a las
metas competenciales de la educación y la mirada individual y colectiva a
los sujetos en formación (DEPAEPE, 2010, p. 3). Una de ellas determina las
performances que promueve la escuela, y otra inspira el ethos que gobierna la
convivencia. Las dos son inescindibles en algún modo. No se puede separar,
salvo a efectos analíticos, las estrategias que conducen a los logros o resultados
del clima moral y emocional que las implementa.
En cualquier caso, en todas estas llamadas de atención se hace presente
aquella invitación que Harold Silver (1992, p. 97-108) hizo, hace ya casi
tres décadas, para desmutizar los “silencios” de la historia de la educación,
cuyos contenidos y significados ocultos importaban a una disciplina que
empezaba a acusar el cansancio de sus abusos retóricos y del excesivo peso
de las ideologías utopizantes, tanto las de cuño neoidealista como las que se
autoproclamaron emancipadoras. En el giro adoptado bajo el nuevo leitmotiv
de bucear con realismo antropológico y cultural en la realidad de las escuelas –
en un intento de promover una interpretación si se quiere más laica de la
historia – se hacía patente un intento nuevo de comprensión realista del
pasado y de reconstrucción de la pragmática de la escuela.
También subyacía en estas nuevas propuestas historiográficas, como ha
subrayado Antonio Viñao, la afirmación que Seymour B. Sarason hizo en
1976 al definir la cultura de la escuela como aquella que afectaba a todo lo
que la institución no pone en cuestión, o a lo que un hipotético observador
externo podría ver, si aterrizara sobre los centros en los que esa cultura

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se practica, en su intento por buscar una explicación genealógica que le
permitiera comprender cómo las cosas han llegado a ser lo que realmente
son en la realidad y no como lo que eventualmente hubiéramos deseado tal
vez que fueran (VIÑAO, 2008, p. 93).
Bajo los anteriores supuestos nos acercaremos a mostrar en qué consiste
el arte de enseñar, cómo se ha construido históricamente y cuáles son sus
reglas – las reglas artesanas de las que habló Antonio Santoni (1993) o las del
sentido práctico que analizó Pierre Bourdieu (2007) – a que ha dado lugar.
Después de todo, el arte de la enseñanza tiene una dimensión técnica, moral
y estética, esto es, pragmática. También pueden elucidar esta cultura de la
razón práctica las invariantes observables en el modo de ejercer el oficio de la
enseñanza, así como las metamorfosis que sufre en función de los tiempos y
las diversidades culturales, y las apropiaciones de estas reglas en espacios y por
actores distintos. La operación historiográfica está en disposición de explicar
asimismo cómo se ha ido conformando históricamente el habitus del viejo
oficio de profesor, maestro o enseñante, constituido por todo un conjunto de
dispositivos prácticos y sociomorales, como los que se perfilan en la figura
del artesano, como sugieren los análisis y las propuestas interpretativas que
ha planteado la sociología crítica de Richard Sennett (2009).

Elogio del maestro artesano


En estos tiempos de pandemia he tenido la oportunidad de leer y glosar
cuatro libros de colegas españoles que trabajan en el área de la teoría de la
educación, que totalizan en conjunto cerca de dos mil páginas y que versan
sobre la figura del maestro o profesor. Los cuatro textos sitúan sobre la mesa
la actualidad de las pedagogías que ponen énfasis en la acción y en los sujetos
que dinamizan la pragmática escolar.
Estos libros, publicados en los tres últimos años, provienen de un
gremio con el que cohabitamos a diario en las universidades, el formado
por los que en España denominamos teóricos de la educación, aunque se
ocupen de reflexionar acerca de la práctica. Son obras que tal vez no llegan
con facilidad a los historiadores de la educación, dada la fragmentación de
gremios académicos en que se ha disuelto la vieja armonía de los saberes

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pedagógicos. Sin embargo, sus planteamientos y sus contenidos no solo
están repletos de referencias historiográficas, sino que se construyen desde
supuestos asociados a las condiciones de la historicidad de los temas que
abordan, en los discursos en que se originan y sustentan y en los materiales
de que se sirven para argumentar e implementar los narratorios.
Sus dos autores, Fernando Bárcena y Jorge Larrosa, colegas ambos, el
uno de la Universidad Complutense de Madrid y el otro de la Universidad
de Barcelona, que se pueden adscribir a un mismo “colegio invisible”, para
decirlo en la terminología de Solla Price, que no sabría yo nominar, aunque
haya compartido con ellos, de manera intermitente pero desde hace ya
cierto tiempo, algunas sesiones de análisis y debate sobre estas y otras
cuestiones conexas en el marco de la Red Internacional de Hermenéutica
Educativa (RIHE), constituida en el CEINCE en 2008, de la que forman
parte historiadores y filósofos de España, Italia y México, con participación
en ocasiones de profesores de otros países.
Aunque las publicaciones a que nos referimos se adscriben al campo
intelectual de la filosofía de la educación, en realidad, versan sobre las prácticas
que se atribuyen al oficio de enseñante, una dimensión artesanal que se
considera esencial en el desempeño de las tareas docentes. A la vez, los
textos comentados constituyen una apología del maestro o profesor, y por
eso los incluimos en el título con el lema “elogio del maestro” que, junto al
“elogio de la escuela”, dan nombre al “colegio invisible”, pero internacional,
que lidera Jorge M. Larrosa desde hace años y que se propone salvar una
institución y un actor que durante siglos han cumplido con sus artes empíricas
con la labor civilizatoria de formar a los menores del tejido social en las
comunidades letradas.
El libro de Fernando Bárcena adopta el estilo de ensayo y está escrito
en registros que combinan en buena armonía la filosofía con la literatura, se
nuclea en torno al análisis de las prácticas que se entablan en las relaciones
maestro-discípulo y trata de plantear esta cuestión, a la altura de nuestro
tiempo, desde la lógica de la legitimación que planteara en el siglo pasado, a
comienzos de la década de los sesenta, la conocida obra de George Gusdorf
Para qué los profesores? con la que el autor entabla dialogo en varios pasajes
del texto (BÁRCENA, 2020; GUSDORF, 1975). El ensayo de Gusdorf se

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publicó cuando la revolución tecnológica del audiovisual parecía amenazar
o trastocar el rol tradicional de los enseñantes. La obra que comentamos
entra en escena cuando la revolución de lo digital pretende servir de panacea
que podría instrumentar un gran dispositivo tecnológico, que cubriría las
expectativas globales del sistema de enseñanza/aprendizaje, incluso en las
crisis que desafiaban a los modelos modernos, como parece incoarse en las
respuestas dadas recientemente por muchas organizaciones a las necesidades
derivadas del impacto de la pandemia de covid en las esferas que afectan
a de la gobernanza de la escuela y a la gestión de la educación no formal.
Hace ahora diez años que Antonio Nóvoa, en la conferencia de clausura
del XI Coloquio Nacional de Historia de la Educación, celebrado en El Burgo
de Osma (Soria), en 2011, evento que versó precisamente sobre el tema Arte y
oficio de enseñar, habló de una nueva “vuelta de los profesores”. Los profesores
siempre vuelven. Según él, tras el relativo fracaso de las reformas tecnológicas,
curriculares y burocráticas emprendidas por diversos gobiernos durante las
últimas décadas, los reformadores actuales de la educación escolar giraban su
mirada otra vez hacia los docentes. A la pregunta que le formulamos acerca
de la cuestión, el conocido historiador respondía como sigue.
En 1986 defendí en la Universidad de Ginebra mi tesis doctoral que
luego se publicó con el título Le Temps des Professeurs. Argumenté
entonces que los años veinte del siglo último, los del desarrollo de la
llamada Educación Nueva, constituyeron también los de afirmación y
consolidación de la profesión docente.

Hoy, después de un siglo, los docentes adquieren una nueva centralidad.


Ello coincide con la renovación de las ideas y propuestas que reformulan
los principios de la modernidad pedagógica. Asistimos pues a un
nuevo tiempo de los profesores, un tiempo en el que después de ciertas
desilusiones con respecto a la ciencia de la educación, a las reformas
del currículum, a las nuevas tecnologías y a la renovada gestión de la
escuela, miramos una vez más hacia los profesores. ¿Cómo podemos
pensar este tiempo nuevo? ¿Qué consecuencias tendrá para la identidad
de la profesión docente? (NÓVOA, 2011, p. 4)

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Tornar en el tiempo no es siempre un rictus arcaizante, como pudiera
pensarse al retomar la tradición de un oficio milenario como tema de reflexión.
En la presentación online del libro del profesor Bárcena, al igual que en el
texto, se recurre reiteradas veces a los clásicos del magisterio, como Confucio,
Sócrates, Montaigne… Por su parte, los “elogios del profesor” que publicitan
las obras de Jorge Larrosa tienen también sólidos anclajes en la larga duración
del tiempo histórico, que sirve de marco para sedimentar, desde la remota
genealogía de la profesión, los códigos del viejo y siempre nuevo oficio de
maestro. Algo se está moviendo pues en este giro hermenéutico que regresa,
como los ríos lo hacen a veces a sus fuentes de origen, a repensar el poder de
influencia intelectual y moral que los maestros ejercieron y ejercen sobre sus
discípulos, el impacto de larga influencia que el educador puede desempeñar
como mediador entre la cultura y el mundo de la vida. Y este regressus es
una especie de bucle, que permite jugar al autor con varios tiempos, desde
los del remoto mundo clásico a los de la reciente posmodernidad, para ir
en busca de una nueva construcción de la subjetividad o, mejor dicho, de
las dos subjetividades, porque en este excurso se están planteando las bases
para definir la nueva condición del enseñante y la del sujeto que aprende
y se forma.
Hace ahora algo más de un año, en los días finales del mes de enero de
2020, desarrollamos en el CEINCE el último coloquio antes de entregarnos al
largo encerramiento de la crisis pandémica que se iniciaría un mes después,
sin que nadie por aquellas fechas entreviera que escuelas y profesores se iban a
ver sometidos a cambios tan impactantes y de tan larga duración. El seminario,
coordinado precisamente por el mismo profesor Jorge Larrosa, llevaba por
título Elogio de la escuela, aunque pudo haber llevado igualmente el de “Elogio
del profesor”, y trató de reconstruir, en perspectiva comparada e internacional,
las prácticas y los materiales que han llegado a configurar la cultura empírica
de la escuela y el arte de enseñar, así como su correlativo modo de aprender.
Jan Masschelein, profesor de Lovaina, planteó en su intervención el elogio de
la escuela bajo un discurso fundamentado en la misión que ésta ha venido
cumpliendo históricamente en la implantación comunitaria de la lengua,
como modo esencial de construcción de la nacionalidad de un pueblo, un
hecho de alcance civilizatorio y universal que acredita su permanencia en

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el tiempo. Profesores y profesoras de Brasil, Argentina, Bélgica y España
analizaron, en formato de workshop, los objetos o materiales (principalmente
manuales escolares e iconografías) y las prácticas que han ido configurando
el oficio docente. Ninguno de los participantes puso en cuestión esta vieja
profesión, ni advirtió siquiera que pudiera ser cuestionada o amenazada con
su desaparición. Tampoco creo que se pudiera hacer esta advertencia unos
meses después, tras los impactos recientes de la pandemia y los cambios en la
gobernanza de las instituciones, en los roles de los profesores y en las formas
de trabajo de los estudiantes. En el animado conversatorio que se suscitó
durante el coloquio no se observó elogio hagiográfico alguno, ni alusiones
que pudieran conducir a formas de sacralización de la profesión docente,
aunque el término elogio sí constituyó un leitmotiv orientador de la discusión.
Más bien, el dominante heurístico de este grupo de investigación se dirigió
al examen de las prácticas que han orientado tanto la construcción de la
cultura empírica de la escuela como las artes y el habitus de los formadores.

Con P de profesor
Empezamos por glosar la obra P de Profesor. Es este un volumen, en
forma de vocabulario o diccionario, que glosa, en dialogo de Jorge Larrosa
con su interlocutora Karen Rechia, de Florianópolis (Brasil), los términos en
que se condensan los modos de ejercer el oficio de enseñante, o las maneras
de practicar la docencia. Se trata pues de un trabajo etnográfico que traduce
en palabras la fenomenología de los hechos. De las facticidades a las palabras.
Esta es la traslación que hace la operación etnográfica. Y de las palabras a la
dialéctica en torno a cada una de ellas mediante el debate. Tal es el método
con que los dos autores se enfrentan al trabajo de campo realizado. La
presentación del libro habla de una fenomenología textual, que contendría
a la vez un discurso sobre la base de la experiencia observada. Un conjunto
de setenta y cuatro términos, dispuestos en orden alfabético, conforma
este glosario analítico de la profesión docente que va desde las categorías
alumno-aula-autoridad a las de tiempo-universidad-vejez. Veamos, a modo
de ejemplo, dos de ellas, seleccionadas entre las que más directamente afectan
a los modos pragmáticos de ejercer el oficio de profesor o enseñante: artefacto

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y oficio. Ambas tienen que ver con los términos que dan título a ese trabajo
(LARROSA; RECHIA, 2019).
Al encontrarme con el término artefacto – comenta Karen Rechia –
me he acordado de mi abuelo, un hombre de varios oficios y de muchas
herramientas, cada una de las cuales ocupaba su lugar en su taller hasta
que él mismo la buscaba para hacer alguna tarea de oficio. Cada ocupación
o modo de hacer tiene su caja de herramientas, sus artefactos. Asimismo,
el oficio docente tiene los suyos, esos que ahora denominamos a menudo
tecnologías educativas y en otras ocasiones recursos o materiales didácticos.
Artefacto-artífice-artilugio-artimaña-artesanía configuran algo así como un
convoy semántico que hace referencia a los modos de practicar las artes del
oficio de profesor. Algunos las han asociado a las prácticas de bricolaje y
otros las han definido como tecnologías vernáculas. Hoy, como es sabido, el
estudio de la cultura material de la escuela es una corriente historiográfica
en expansión, que busca el descifrado de los códigos semióticos que residen
en los artefactos que han formado parte de las artes de la enseñanza y de las
prácticas de aprendizaje.
Otro término a comentar: oficio. Es éste el modo o manera de hacer:
el conjunto de prácticas que forman el habitus, la costumbre y el ethos de
la profesión. El saber hacer es la forma, a menudo ritualizada, incluso con
códigos litúrgicos, como sugiere el filósofo Giorgio Agamben, con la que
el maestro se constituirá en el oficiante y la escuela en la oficina de trabajo.
Comenio definió el aula de la escuela, en el Orbis pictus, como officina en la que
se dispensan los saberes a los discípulos sedentes dispuestos ordenadamente
en bancos y mesas. El maestro oficia como profesor siguiendo ciertas reglas
técnicas que son en parte independientes del sujeto que las aplica, quien,
al ponerlas en práctica, las celebra en cierto modo como pautas de una
devotio, que es al tiempo manifestación de respeto por la tradición del oficio
asumido, de conformidad con el impulso en favor de las cosas bien hechas,
con acreditada maestría u oficio y con encarnación en el mismo cuerpo del
sujeto (AGAMBEN, 2017).
Todo lo anterior enlaza justamente con el segundo de los volúmenes
del profesor Larrosa (2019), que tiene un título que parece sugerir cierto
escepticismo de partida, pero que es en realidad un pretexto retórico para

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relanzar el elogio de la escuela, antesala también del consiguiente elogio del
oficio de profesor. La apología de la escuela, como entorno de la vida del
formador, es abordada desde el reconocimiento de que, aunque “los tiempos
están cambiando” (primer enunciado tomado de la conocida canción de Bob
Dylan), hay que salvar el “trabajo bien hecho” a que alude Peter Handke (1991).
Importantes intelectuales preludian la sintonía de este libro sobre la práctica
de la docencia. Es este un trabajo que merece el salvamento de las escuelas y
de los docentes que, amarrados en tradiciones centenarias, dignifican su viejo
oficio de formar, frente a las amenazas de verse engullidos por las estrategias
de los gestores que juegan a favor del capitalismo cognitivo, el desarrollo de
las competencias performativas y la gestión de las emociones. Jorge Larrosa
se debate contracorriente, tratando de afrontar el malestar de la educación
de nuestro tiempo con el elogio de la autoridad simbólica del profesor y de
la episteme praktike, en que se sustenta la dignidad y la eficiencia del buen
hacer de tan acreditado oficio. La referencia a la pragmática de la profesión
de enseñante habla bien del nuevo empirismo con que es examinada la
cultura de la escuela.
Es aconsejable analizar las señales observables de la nueva crisis de la
escuela, en la que los que la dan hospitalidad crujen, como en la canción
de Dylan antes citada, y en la que los viejos y buenos enseñantes aparecen
casi siempre como actores sospechosos, que no se pliegan a las reglas de
la performance tecnoeconómica, tal vez para impedir desde su resistencia,
instintivamente, que el mundo se deshaga, o se deconstruya hasta el punto
de no poder reconocerlo, y para reafirmar con su testimonio apoyado en
buenas tradiciones que, según advirtió Peter Handke en su conocida Historia
del lápiz, solo trasmiten cultura quienes aman la querida escuela.

Elogio del aula


La escuela, esa importante invención griega, como la democracia y como
la filosofía, se salvará si es capaz de mantenerse con cierta independencia
crítica, en sus espacios y en sus tiempos, y en parte a cierta distancia de
la familia y de la comunidad envolvente, esto es, con autonomía relativa,
como un espacio público diferenciado de las comunidades de base y del

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Estado. Jorge Larrosa dedica un capítulo al “elogio del aula”, ese lugar casi
sagrado presidido por el retablo-pizarra y algunos símbolos, en el que oficia
el maestro, conviven los pares de edad y se lleva a cabo la mediación del
educador con la nueva generación de sujetos, cada año renovada. Recuérdese
a este efecto la conocida obra de Marcelo Caruso e Inés Dussel intitulada La
invención del aula. Todo este extenso espacio textual es un rico arsenal de
ideas para salvar el escenario sagrado de la clase, al que se atribuyen muchas
dimensiones de cultura, ritualidad y sociabilidad, las llaves antropológicas
que son firmes anclajes civilizatorios, por su asentamiento histórico, y porque
sirven de soporte a los dos sujetos implícitos del escenario compartido, el
alumno y el profesor.
El libro final de la trilogía de Jorge Larrosa lleva por título El profesor
artesano. Materiales para conversar sobre el oficio (LARROSA, 2020). De nuevo
el sujeto-enseñante recupera centralidad en la escena, y lo hace acompañado
de los elementos “materiales” y simbólicos que acompañaron sus trabajos
y sus días, así como a través de un conversatorio que el autor entabla y
mantiene con los intelectuales que pueblan su memoria y su biblioteca, y con
los colegas con quienes comparte compromisos de afinidad hermenéutica.
El mentor transversal de mayor peso en el conjunto de esta obra es
probablemente Richard Sennett, un sociólogo que, desde que escribiera su
lúcida crítica a las corrosiones suscitadas por el capitalismo industrial en el
carácter de los ciudadanos y en la evolución de los modos de trabajar que
definieron las profesiones tradicionales, y aún las modernas, se ha hecho
imprescindible para la historia de los oficios y para explicar las prácticas
de sociabilidad en que estos se fundamentan. Su última trilogía traducida
hace pocos años en Anagrama (El artesano, Juntos y Construir y habitar)
son libros de cabecera de muchos para acercarse a la cultura empírica de
cualquier ámbito profesional, también del que se refiere al ejercicio de la
enseñanza (SENNETT, 2009, 2012, 2019).
Curiosa anotación: en la literatura, la figura del profesor, o del maestro,
aparece casi siempre acompañada de la de zapatero, músico, carpintero…
No solo la literatura. La antropología, el cine, la filosofía, y desde luego la
pedagogía, también la incorporan en sus textos. Roland Barthes afirmaba
que cuando las personas hablaban de su oficio, cualquiera que fuese, nunca

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se aburrían. A él le afectaba expresamente la práctica material de la escritura,
que era su oficio. Las formas de vida, apunta Giorgio Agamben, no son
maneras a priori preexistentes a la acción, sino modos operantes que se
generan viviendo. Y estas construcciones empíricas se suelen llevar a cabo
con herramientas, en el caso de la forma escolar, en el marco del aula y por
el profesor, quien con las experiencias que el tiempo acumula y condensa
perfila su oficio de enseñante. Se puede eludir el término profesión, que está
contaminado por la ideología del profesionalismo, y usar el de artesanía,
que alude a materialidad, tradición, subjetividad, corporalidad, maestría y
obra bien hecha, en el sentido que le da a esta expresión Sennett. Y a la vez
se ha de aludir a habitus, que afecta al ethos o modo de vida vigente en la
cotidianidad, ejercido por toda la corporación del oficio con cierta devotio
o respeto por las costumbres.
En la base de esta concepción del oficio docente está la experiencia, o
empiría, entendida esta como una relación pragmática con el mundo o, si
se quiere, como una visión empírica del modo de estar-en-el-mundo. La
cultura empírica de la escuela, en la que se inserta el oficio de la enseñanza,
sería en este sentido una especie de saber corporeizado, incorporado o
encarnado, es decir, un repertorio de formas prácticas de hacer que además
están estrechamente vinculadas a las materialidades del trabajo, esto es, a
los espacios y artefactos de uso escolar, muchos de ellos inventados por
los propios maestros. Todo ello demanda una aproximación etnográfica
o fenomenológica a la historia y al ejercicio del rol de profesor, así como
a las formas vernáculas de sus modos de expresión. Lo vernáculo, como
indicó Ivan Illich, se propaga en la práctica de lo cotidiano, como la lengua
materna y los modos de comunicación entre los actores que desempeñan
un oficio. Esta encarnación en el cuerpo de quienes construyen y detentan
un oficio podría enmarcarse a la vez en el cuadro teórico de los cuatro
existenciarios en que Max van Manen sitúa la escuela: la misma corporeidad
del maestro oficiante y de los cuerpos de los aprendices (los sujetos); los
espacios en que se desenvuelve su acción (el ecosistema); los tiempos o
cronogramas del cotidiano (el proceso); y la relacionalidad con los sujetos con
quienes se interacciona (sociabilidad). Este planteamiento, también de corte
hermenéutico, es una reducción fenomenológica que pudiera servir tal vez

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para estructurar los datos de la experiencia etnográfica, bajo la perspectiva
de una historiografía de clara vocación intelectual.
Jorge Larrosa se sirve, una vez más, del análisis que Richard Sennett hace
de los gestos y las acciones que comporta el oficio de panadero, un campo
que a mí personalmente me es bien conocido porque lo viví y lo practiqué,
en el seno de mi núcleo familiar, antes de su modernización tecnológica.
A esta experiencia vivida debo probablemente mi inclinación hacia los
análisis empíricos de la vida y de la cultura, como he tratado de aplicarlo,
en mis últimos trabajos, a la cultura de la escuela. Puede que muchos de
los cambios que se han operado en este sector de la elaboración del pan,
al tecnologizarse, sean extrapolables a las mudanzas observables hoy en
el trabajo de los docentes, en paralelo con la puesta en acción de nuevas
prácticas de performatividad técnica.
En efecto, la panadería ha sido un arte que cohesionó durante varias
generaciones a los artesanos que la practicaron, constituyendo una tradición
artesana. La elaboración del pan – dice Richard Sennett – era un ejercicio
coreográfico, plasmado en el bullicio de los obradores, en los olores de sus
materias primas y elaboradas, cambiantes en cada fase de la producción,
en la motricidad de las manos operarias, en la sensibilidad visual, olfativa y
táctil de los trabajadores para percibir los cambios en los estados del proceso
de manipulación de las materias primas, en el control del fuego y el calor.
Todo esto ha cambiado radicalmente en los nuevos modos de fabricación en
cadena, en los que los obreros de una panadería, sin herencia-tradición de
oficio, se limitan a seguir en pantalla las instrucciones que ordenan los iconos
que pautan el proceso de fabricación. Ello ha afectado a la identidad de los
panaderos como gremio y como sujetos artesanos, así como a la reaparición
posterior de algunas formas de producción que pueden ser comprendidas
como trabajos más conformes con los tiempos y movimientos del viejo arte
de la panadería, esto es, como salvaguardas de la mejor tradición perdida.
En el oficio docente se están dando asimismo este tipo de cambios. Los
enseñantes están cada vez más sujetos a procesos de diseño, programación
y control en el ejercicio de su actividad, a la vez que implementados, y a
veces sustituidos, por productos tecnologizados externos que no siempre
se acomodan a la marcha de la clase ni a las necesidades de los sujetos, a

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las formas artesanales de trabajo y a los modos vernáculos e informales de
comunicación. Ello lleva a una cierta mecanización técnica de la relacionalidad
entre los sujetos, y a mudanzas importantes en el uso de los espacios y los
tiempos de alumnos y docentes, que afectan incluso a la misma corporeidad
de los sujetos, y por tanto a la identificación de los enseñantes con el oficio
que desempeñan, que puede estar también amenazado por las mediaciones
de la ciberescuela. Algo de esto sucedió en la revolución del audiovisual, en
los años sesenta y siguientes, que coincidió con la emergencia de la enseñanza
programada y las máquinas de instrucción, la que suscitó la obra de Gusdorf
que motiva el trabajo de Bárcena, aunque reformas posteriores trataron de
inducir nuevas formas de humanización de un oficio que nunca podrá ser
mecanizado sin afectar al juego entre libertad y tradición.
Existen manualidades inteligentes que conectan el homo sapiens con
el homo faber (de nuevo Sennett). Este sociólogo sí que es sapiens sapiens.
Y, además, si los objetos se hacen en cooperación (Juntos es el título de
su segunda obra del sociólogo anglosajón), el oficio pasa a ser un saber
corporativo y una tradición, lo que aconseja la transmisión asegurada de
las reglas de trabajo en comunidad y una cierta continuidad histórica, al
tiempo que salvaría los muebles que recuerdan algunos de los valores de la
resistencia sin renunciar al sueño de la innovación. Numancia (la ciudad de
la resistencia) y Samarkanda (la de los sueños), como diría Peter Handke,
dos lugares que él ha conocido bien sobre el terreno, el otro interlocutor que
se relaciona incluso personalmente con Jorge Larrosa, atento y sutil visitante
de estas tierras de Celtiberia.
Quedan muchas cosas que glosar, pero quiero pensar que estas notas
serán suficientes para motivar la lectura de estos libros, de los cuatro. El
conjunto editado que suma más de mil quinientas páginas y que debería
entrar a formar parte de la biblioteca intelectual de todo enseñante y de
quienes se ocupan de historiar las viejas y siempre cuestionadas tareas de
la formación. Yo desde luego siempre los tendré a mano para volver sobre
ellos cuando las preguntas me acechen y me remitan a sus propuestas.
La lectura crítica de las fuentes glosadas en los párrafos anteriores es
el mejor ejercicio para un elogio del profesor a la altura de nuestro tiempo,
un elogio que busca su fundamento en las raíces de una tradición secular

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que no puede ser liquidada por ninguna estrategia de modernización, toda
vez que solo el juego interactivo entre lo vernáculo y lo avanzado puede
sentar las bases de los procesos de innovación que se suscitan en la sociedad
contemporánea, en el marco de esta civilización atrapada en redes y retóricas
que de nuevo amenaza con hacer peligrar a los sujetos de los actos formativos,
el aprendiz y el profesor.

Referencias
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SENNETT, Richard. El artesano. Barcelona: Anagrama, 2009.
SENNETT, Richard. Juntos. Barcelona: Anagrama, 2012.
SILVER, Harold. Knowing and not knowing in the History of Education.
History of Education, n. 21, v. 1, p. 97-108, 1992.
TYACK, David; CUBAN, Larry. En busca de la utopía. México: FCE, 2000.
VAN MANEN, El tacto en la enseñanza. Barcelona: Paidós, 1998.
VIÑAO FRAGO, Antonio. La escuela y la escolaridad como objetos históricos.
In: MAINER, Juan. Pensar críticamente la educación. Zaragoza: Prensas
Universitarias, 2008.

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A formação de professores primários na
França, em uma perspectiva de longa duração1

Anne-Marie Chartier

Como devem ser formados os professores do século XXI? O que eles


devem saber e fazer para permitir que os alunos se apropriem da cultura
escrita de ontem e de amanhã, aquela dos livros ilustrados, mas também a
das telas? Como instruir, para enfrentar a incerteza do amanhã, aqueles que
têm condições de combinar com eficácia recursos escolares e extraescolares
e, ao mesmo tempo, aqueles que não podem se beneficiar dessa situação?
A formação dos professores deve responder a exigências antigas e novas.
Hoje, como no tempo de Jules Ferry,2 o professor deve ensinar os alunos a
ler, escrever e contar, a história e a geografia do seu país e as regras de uma
vida cidadã compartilhada. Entretanto, hoje, a existência da escola obrigatória
até os 16 anos3 e a expectativa da sociedade de uma escola “democrática”
exigem que a totalidade de um determinado grupo de alunos da mesma
idade tenha sucesso. O diploma, desvalorizado, não garante mais o acesso
a um emprego, apesar de os estudos serem cada vez mais longos; neles,

1. N.T. Uma versão deste texto foi publicada, em francês, em 2016, sob o título “La formation
des maîtres d’école en France dans la longue durée”. A presente versão e sua tradução foram
feitas por Ceres Leite Prado e revistas pela autora.
2. N.T. Político francês que foi ministro da Educação Pública duas vezes. Seu nome está
relacionado às leis que tornaram o ensino gratuito, obrigatório e laico (1881 e 1882).
3. N.T. Em 1959, a escolaridade obrigatória na França passou a ser até os 16 anos.

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as ciências e as técnicas são mais valorizadas do que as humanidades e as
letras. Na medida em que as culturas juvenis são invadidas por ferramentas
digitais, alguns pensam que a fórmula “um professor/uma turma” (um local,
um grupo de alunos, um programa, um ensino coletivo), que constituía a
referência invariante da formação, já está condenada.

Duas tradições de formação na França: primário/prática e


secundário/acadêmica?4
Nessa conjuntura, marcada pela instabilidade, as polêmicas reativam
a oposição entre duas tradições de formação de professores: uma para os
que se destinavam ao primário, prática; a outra, para os que lecionariam
no secundário, acadêmica. Desde o século XIX, a formação dos futuros
professores primários, recrutados por meio de um concurso aos 15 ou 16 anos,
conjugava os saberes das disciplinas (as “matérias” que teriam que ensinar)
e uma iniciação profissional (o treinamento para dar aula). Essa ambição
modesta, que tinha objetivos pragmáticos, era sustentada por uma moral
profissional e um espírito corporativo que tornaram célebres os “hussardos
negros” da República.5 Ao contrário, na tradição do secundário, a pessoa
se tornava professor seguindo um currículo universitário especializado e
depois fazendo um concurso, que verificava o domínio desses saberes e suas
formas de apresentação (texto dissertativo, exposição oral, aula expositiva).
Em 1989, as formações para o primário e o secundário foram reunidas em
uma mesma instituição, os Instituts Universitaires de Formation des Maîtres –
IUFM (Institutos Universitários de Formação de Professores) e, a partir de
2012, depois de diversas mudanças, em “escolas profissionais” integradas às

4. N.T. O chamado ensino secundário (enseignement secondaire), na França, compreende


o que, no Brasil, desde a LDB de 1996, corresponde aos quatro últimos anos do ensino
fundamental (collège) e ao ensino médio (lycée). Em outros momentos da história da
educação brasileira, esses níveis de ensino já tiveram outras denominações, como primeiro
(fundamental) e segundo (complementar) ciclos do ensino secundário (1930), ginásio e
clássico/científico (1942), ginásio e colégio (1961), séries finais do 1º grau e 2º grau (1971). No
texto, manteremos os termos collège e lycée em francês.
5. N.T. Eram chamados hussards noirs os normalistas, depois das leis conhecidas como “leis
Jules Ferry”. A expressão foi inventada por Charles Péguy e fazia referência ao uniforme de
cor preta usado pelos normalistas, comparando-os a um exército a serviço da República.

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universidades, as Écoles supérieures du professorat et de l’éducation – ESPE
(Escolas Superiores do Professorado e da Educação).6
Esse reagrupamento das duas tradições de formação em uma mesma
instituição apagou, assim, as heranças específicas? A formação dos professores
secundários foi “primarizada”, no que ela tinha de melhor e de pior (estágios
em sala de aula, concepção profissional dos mestrados, jargão pedagógico e
didático)? Ou, ao contrário, foi imposto o modelo secundário aos professores
do primário (curso universitário específico para as diferentes disciplinas,
avaliação dos saberes acadêmicos, marginalização dos estágios práticos na
formação)?
Alguns poderiam acreditar que o debate se polarizou em torno apenas
dessa oposição entre primário/saberes práticos e secundário/saberes
acadêmicos ou enciclopédicos. Trabalhos históricos recentes, entretanto,
mostram que é frágil essa oposição, na medida em que eles desmentem a
dimensão “modesta e prática” da formação dos professores do primário.
Uma abordagem na longa duração evidencia que havia outros debates, outras
tensões: entre o poder central e a implantação local, entre nível de estudos
e formação para a profissão, entre a formação para todos e a seleção dos
melhores, entre o currículo prescrito e o currículo oculto.

O modelo de tutorado das escolas cristãs, centrado nos gestos


pedagógicos
É preciso voltar bem longe no tempo, bem antes da III República,7 para
compreender os fundamentos dessa opinião geral segundo a qual a formação
de professores primários teria sido mais prática do que acadêmica.
Durante o Antigo Regime,8 as ordens religiosas surgidas no final do
século XVI, depois do Concílio de Trento, para instruir e cristianizar o povo
das cidades, elaboraram um modelo de formação dos futuros professores, que
6. Desde julho de 2019, essas instituições foram transformadas em Institut National Supérieur
du Professorat et de l’Éducation – INSPE (Instituto Nacional Superior do Professorado e da
Educação), e tiveram o concurso de recrutamento modificado.
7. N.T. A Terceira República foi o regime republicano francês que durou de setembro de
1870 a julho de 1940.
8. N.T. O Antigo Regime (Ancien Régime, em francês) foi o regime político da França, que
durou do século XVI até a Revolução Francesa, em 1789.

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seria, durante muito tempo, a referência das escolas populares. Os professores
propunham a seus bons alunos, julgados aptos para a profissão, a segurança
de uma vida em comum e de uma carreira honrosa em escolas das quais eles
já conheciam as práticas. Esses novatos, ao mesmo tempo em que ajudavam
um professor-tutor, reviam todo o programa com os alunos, praticando de
forma intensiva todos os suportes pedagógicos editados pela ordem. Segundo
Jean-Baptiste de La Salle,9 cada futuro frère des Écoles Chrétiennes (irmão
das Escolas Cristãs) aprendia, assim, a dominar os rituais da sala de aula e
a se disciplinar. Ele revisava o programa de aprendizagem (leitura, depois
escrita e cálculo), o modo de ensino simultâneo,10 para aprender a ler em
francês, e o método concêntrico,11 para ensinar o catecismo em três anos.
Na zona rural, os professores laicos aprendiam a profissão “na prática”,
quer dizer, junto de um professor conhecido. A função, que dependia
da autoridade do pároco, era mais ou menos atrativa de acordo com os
recursos locais (salário, alojamento, pagamento em produtos in natura) e
a possibilidade de realizar outras tarefas civis (como a medição de terras)
ou paroquiais (como ser sacristão ou cantor nos serviços religiosos). Uma
banca examinava o candidato para saber se ele sabia ler, escrever, calcular e
cantar, mas a aptidão para a polivalência das funções era mais importante
do que o “saber fazer” pedagógico.
A Revolução Francesa suprimiu essas ordens de “irmãos ignorantinos”12
que não sabiam latim nem conheciam a enciclopédia. Para instruir a nação
nas ciências modernas, foi criada uma Escola Normal, na qual os futuros
professores, recrutados tanto por suas virtudes cívicas quanto por seu saber,
vinham aprender o que lhes permitiria instruir, por sua vez, outros professores.
Mas, ouvir célebres acadêmicos como Monge, Berthollet, Laplace,13 nesse

9. N.T. Jean-Baptiste de La Salle foi o criador dos Frères des Écoles Chrétiennes, religiosos
que se dedicavam à educação.
10. N.T. Modo de ensino simultâneo era o que supunha ter vários alunos aprendendo ao
mesmo tempo.
11. N.T. O método concêntrico é uma forma de organização do ensino que parte de conceitos
básicos e os vai aprofundando pouco a pouco.
12. N.T. Les frères ignorantins era o nome dado aos membros de uma ordem religiosa
fundada por São João de Deus em 1495, em Portugal. O nome se estendeu a outras ordens
religiosas, entre as quais os irmãos das Escolas Cristãs.
13. N.T. Matemáticos e químicos, eruditos que estão entre os fundadores da Escola Politécnica
e foram professores da Escola Normal.

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modelo transmissivo, não lhes permitia dominar esses saberes eruditos
demais, nem aprender a transmiti-los aos professores do interior. A utópica
Escola Normal do Ano II14 foi fechada por falta de alunos, fracasso que
marcaria as memórias e reforçaria o modelo de tutorado, que prevalecia
até essa época.
De 1814 a 1830, durante a Restauração,15 as autoridades debatiam a
respeito de dois modelos concorrentes de formação para as escolas primárias:
os cursos normais (adotados nos Países Baixos) e a escola normal (modelo
alemão). Os cursos normais, abertos por “professores de estágio”, acolhiam
em suas salas de aula, mediante pagamento, professores-aprendizes que
queriam se formar, pela observação e pela prática, no modo de ensino
mútuo, por exemplo. As autoridades poderiam, para enquadrá-los, impor-
lhes instrumentos destinados a esse fim, como manuais controlados para
difundir saberes profanos. François Guizot, ministro da Instrução Pública,
optou por privilegiar o modelo alemão da Escola Normal (EN), definindo,
até nossos dias, o futuro da formação primária desejada pelo Estado.

A Escola Normal: a escolha do ministro Guizot e a resistência do


campo
A preocupação de Guizot era dupla: por um lado, ele desejava elevar o
nível de instrução dos professores encarregados de ensinar as novas matérias
colocadas no programa: gramática, ortografia, geometria, desenho, pesos
e medidas; por outro lado, era necessário assegurar um recrutamento
qualificado em todo o país. Os normalistas, ao final do curso, passaram a
ser nomeados, de forma autoritária, para que as pequenas cidades, que não
eram muito escolhidas, não ficassem sem professor. Cada conseil général16
era obrigado a manter uma Escola Normal de rapazes (havia 11 Escolas
Normais em 1829, 74 em 1838), mas não tinha o poder de realizar sua gestão

14. N.T. Foi a primeira Escola Normal francesa, criada pela Revolução, em Paris, e durou
apenas 4 meses.
15. N.T. A Restauração (1814-1830) foi o regime político instaurado com a volta da monarquia
ao poder, na França.
16. N.T. O conseil général é equivalente às assembleias legislativas dos estados, no Brasil;
no caso da França, dos departamentos.

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pedagógica. Essa intrusão do Estado desagradou tanto as autoridades locais
quanto as congregações religiosas. Essas últimas acusariam o internato
frequentado pelos futuros professores de serem centros de agitação política
e de costumes dissolutos. Contestariam, também, o conteúdo dos estudos
em dois anos, acreditando que os programas enciclopédicos produziriam
pseudoeruditos que se sentiriam superiores aos outros professores formados
nas congregações religiosas (um terço deles) ou “na prática” (outro terço).
Em 1847, as Escolas Normais formavam no máximo a metade dos professores
laicos e muitos deles, uma vez diplomados, nunca assumiam seu cargo.
Uma questão crucial iria então se colocar: qual a razão de conservar
essas escolas, que eram tão caras? Elas não eram indispensáveis para formar
os professores, já que a explosão das editoras de livros escolares e a imprensa
pedagógica (entre as produções, estava o Manual Geral da Instrução Primária)
permitia a muitos professores obter o brevet,17 estudando sozinhos ou atuando
como professores auxiliares junto de seus antigos professores primários, na
zona rural, como mostram as respostas à enquete de Rouland,18 em 1860.
Seria, então, por motivos mais políticos do que práticos que as Escolas
Normais teriam sido mantidas, uma vez que o Estado não poderia renunciar
ao poder, conquistado em intensas lutas contra as autoridades locais, em
relação ao recrutamento e controle dos professores. Isso era possível graças
ao trabalho de inspetores e diretores das Escolas Normais, o que tem relação
direta com as políticas ministeriais que passaram a vigorar a partir de 1835.

Preparar-se para obter um diploma ou iniciar-se em uma


profissão: conflitos de prioridade
De 1879 a 1914, poder-se-ia acreditar que a questão estava resolvida:
a lei Ferry de 1881 confirmava o poder das autoridades locais (cada conseil
général devia criar uma Escola Normal para moças, onde elas ainda não

17. N.T. O brevet é um título ou diploma emitido pelo Estado, que permite ao titular o
exercício de certas funções. O brevet élémentaire (BE) permitia ensinar nas escolas primárias
e o brevet supérieur (BS) permitia ensinar, como também ser diretor. As expressões serão
mantidas em francês, no texto.
18. N.T. Gustave Rouland foi ministro da Instrução Pública no governo de Napoleão III,
quando coordenou uma enquete sobre a situação das escolas públicas francesas.

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existiam), mas retirava delas qualquer autoridade sobre os alunos-professores,
em benefício do Estado, por meio da tutela do diretor único da Escola
Normal e do inspetor, que decidia sobre as nomeações e transferências. As
Escolas Normais estavam bem no centro do dispositivo de ensino público,
principalmente porque a criação das Escolas Normais Superiores (ENS) de
Fontenay e de Saint-Cloud permitiam o recrutamento de professores para
as Escolas Normais e para as Escolas Primárias Superiores (EPS) entre os
normalistas de elite, sem recorrer aos professores das escolas secundárias
das redondezas.
A questão dos conteúdos considerados cientificamente necessários e/ou
pedagogicamente úteis continuava sendo um ponto crucial, apesar da retórica
otimista dos discursos oficiais. O fim do ensino religioso tinha deixado
tempo livre para as “ciências da educação” (psicologia da criança, sociologia
da educação, pedagogia geral). Os reitores,19 os inspetores gerais, a velha
geração de inspetores ou professores primários denunciaram rapidamente a
invasão de um jargão inútil, e era difícil incluir, na organização dos horários,
outras matérias obrigatórias (música, escrita, agricultura, educação física).
Além do mais, a formação prática parecia negligenciada. Toda a energia
dos normalistas era absorvida pela preparação para o brevet élémentaire
(BE) no primeiro ano e para o brevet supérieur (BS) nos anos seguintes.
Um estágio de 20 dias, em sala de aula, estava previsto, mas esse período
não contava para os exames e os orientadores do estágio queixavam-se da
pouca dedicação dos normalistas nas salas de aula.

Modalidades formais e informais de formação profissional


Em 1886, a lei Goblet modificou um ponto importante: o nível de diploma
exigido para a entrada na Escola Normal. Foi decidido que o concurso de
entrada seria aberto apenas aos alunos já titulares do brevet élémentaire e
que as Escolas Normais não preparariam mais para o diploma superior, o
brevet supérieur. A lei proibia, entretanto, que se pudesse tornar professor
19. N.T. Reitores são os altos funcionários responsáveis por uma Académie – instância
administrativa que gerencia, nas diferentes regiões, a política educativa definida pelo governo.
Cada académie tem sob sua responsabilidade todas as escolas de uma região, do ensino
infantil às universidades. A palavra será mantida em francês, no texto.

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sem o BS. Duas vias eram então possíveis: a Escola Normal ou a fórmula
de tutorado de aprendizagem “na prática”. Essa decisão, que perdurou até
1940, abriu imediatamente uma crise de recrutamento e, a partir de 1887, o
número de candidatos baixou. Os bons alunos dos vilarejos não podiam mais
se preparar para o BE no internato gratuito da Escola Normal e, como os
que já tinham esse diploma e eram recrutados pelos inspetores da Académie
podiam ser colocados diretamente diante dos alunos, nas salas de aula, para
que se cansar para fazer o concurso? Podemos ver, por exemplo, no Grand
Meaulnes, romance de Alain Fournier que se passa na década de 1890,
o personagem Julien Seurel, com seu BE no bolso, assumir um cargo de
professor sem passar pela Escola Normal. Ele havia aprendido a profissão
na sala de aula de seu pai, enquanto se preparava para o exame. A fórmula
de tutorado, desaparecida da instituição, permanecia, portanto, na realidade.
Em 1911, como em 1840, as Escolas Normais formavam apenas a metade
dos professores laicos em exercício. Além disso, a crise das vocações baixava
a qualidade dos candidatos que tinham sucesso no concurso. As Escolas
Normais eram também criticadas por seus programas, “uma ciência rápida de
manual, em que se chocam terrivelmente as bobagens da antiga escolástica,
as mentiras da filosofia oficial e disformes dados científicos descoordenados”,
escrevia Clemenceau em 1896, fazendo um retrato corrosivo das Escolas
Normais de Jules Ferry e de sua dogmática filosofia de Estado. A supressão
do ensino das congregações religiosas, em julho de 1904, forçou a tomada
de medidas drásticas para aumentar e melhorar o recrutamento.
A oposição “formação prática” e “formação acadêmica” se manifestou
em uma formação em dois tempos, a partir da reforma de 1905: formação
intelectual (o brevet supérieur ao final do segundo ano), às custas de uma
intensa preparação sobretudo por meio da memorização (30 horas de aulas
seguidas por um tempo dedicado aos estudos); depois, formação para a
profissão (dois meses de estágio no terceiro ano, o que levava à procura
de inúmeras escolas) e cinco horas de aulas por semana, combinadas com
trabalhos livres e leituras pessoais.

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A questão do baccalauréat: questões sociais e políticas20
Os debates sobre a formação opunham, então, aqueles que criticavam
as provas acadêmicas do BS (“A preparação profissional não deve estar
subordinada a uma prova que não tem nada de profissional”, escreveu o
sindicalista Gasquet, em 1912) e aqueles que já sonhavam em ver normalistas
com o diploma do baccalauréat, como o deputado de esquerda Massé (por que
manter as barreiras culturais e sociais entre formação primária e secundária?).
Essa posição era rejeitada pelos sindicalistas, que temiam que o espírito
burguês dos lycées corrompesse o espírito laico do primário. O período entre
as duas guerras manteve a situação da mesma forma, buscando organizar os
estágios (um estágio na zona rural era obrigatório) enquanto as professoras
(vindas principalmente das classes médias) agora, depois da Segunda Guerra,
mais numerosas que os homens, colocavam em questão as escolas mistas.
Uma outra novidade apareceu a partir dos anos 1920. Os movimentos
pedagógicos “se convidaram” a participar da formação, por meio das “obras
laicas”, apoiadas pelos inspetores e diretores das Escolas Normais, que
propunham às crianças atividades educativas na sala de aula (cooperativas
escolares), mas principalmente em horários extraturno (atividades esportivas
e artísticas, escotismo laico, centros de lazer, colônia de férias). Muitos dos
alunos das Escolas Normais descobriam nessas atividades, durante as férias,
por ocasião de estágios estimulados ou aceitos pelas autoridades, os princípios
da educação nova, os métodos ativos e locais de troca de experiências fora
da hierarquia, com militantes pedagógicos muito engajados, aos quais o
ministério de Jean Zay21 dava uma forte legitimidade. Toda a experiência
profissional desses e dessas normalistas sofreria os efeitos disso.
Após a Liberação,22 as Escolas Normais suprimidas pelo governo de Vichy
voltaram a receber alunos. A separação entre estudos e formação profissional
aumentou. A partir daí, os alunos da EN deveriam, inicialmente, obter o

20. N.T. O baccalauréat é um exame e seu respectivo diploma, que sanciona o final dos
estudos secundários, ou seja, é realizado ao término do lycée (como o ENEM no Brasil).
Foi criado em 1808. No texto, será mantido o termo em francês.
21. N.T. Jean Zay foi um político francês e ministro da Educação Nacional no governo
socialista do Front Populaire, de 1936 a 1939.
22. N.T. Período imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, com o final da ocupação
alemã e do governo de Vichy, aliado dos alemães.

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seu baccalauréat, sendo preparados para isso por professores do secundário
em dois ou três anos, de acordo com o ano – segundo ou terceiro – em que
o aluno tivesse feito o concurso. A área23 escolhida por 75% dos alunos era
a de ciências experimentais, aberta aos que não faziam o curso de latim e
aos alunos dos cursos elementares que tinham estudado apenas uma língua
estrangeira. As Escolas Normais recuperavam, assim, seu antigo papel de
promoção dos alunos dos meios populares, mas os professores encorajavam
seus melhores alunos a continuarem seus estudos, o que acabava privando
o primário dos melhores profissionais. A explosão demográfica daqueles
anos obrigaria, por causa da escassez de professores, ao envio para as salas
de aula de professores substitutos, com o baccalauréat, mas sem formação.
Dentro de pouco tempo, eles seriam a maior parte dos jovens professores.
Uma vez mais, a formação pela prática constituía uma das vias de formação
de novos professores.

A formação inicial e continuada em tempos de renovação


pedagógica
E o que acontecia com os anos de “formação profissional” (primeiro um,
depois dois) que vinham depois do baccalauréat? A partir dos anos 1960,
eles se destinavam aos normalistas que, depois da obtenção do baccalauréat
na Escola Normal, continuavam sua formação, mas também aos que, já
tendo esse diploma, faziam o concurso, tentados pelo status remunerado
de funcionário público estagiário.24 A descoberta da profissão mobilizava
a maior parte da energia desses alunos, com três estágios nas turmas de
aplicação no primeiro ano e um semestre como professor substituto, no
segundo. Além do mais, a obtenção do Certificado de Final dos Estudos
Normais (CFEN) dependia dos relatórios das observações realizadas pelos
professores de Escolas Normais, durante suas visitas aos estabelecimentos
escolares, em que, aliás, aprendiam a conhecer o “campo”, como também
dos relatórios dos inspetores, dos quais dependia o Certificado de Aptidão
23. N.T. O baccalauréat tinha três áreas, que podiam ser escolhidas pelos candidatos:
filosofia e letras, matemática e ciências experimentais.
24. N.T. Os estagiários eram considerados funcionários públicos, com salário, e o tempo
de trabalho era contado para a aposentadoria.

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Pedagógica, que deveria ser obtido no ano seguinte. As competências práticas
e profissionais dos novos professores eram, então, valorizadas.
Além dos estágios, os normalistas tinham cursos de diversas matérias
que visavam ao seu ensino em sala de aula, aulas de filosofia, além de matérias
que abordavam os fins da educação, a psicologia da criança e a sociologia
da escola. A conjuntura das reformas (matemática moderna, renovação do
francês, disciplinas de iniciação) que permitiam o crescimento das didáticas
das disciplinas introduziu também dois dados novos. O primeiro deles era a
missão de reciclagem dos professores, a quem os professores da Escola Normal
deviam apresentar os novos textos sobre as reformas e suas perspectivas de
aplicação. O segundo dado novo era a entrada da universidade na formação
inicial (duas horas de linguística e de matemática, consideradas necessárias
para a implantação dos novos programas). Quando as EN pararam de preparar
para o baccalauréat, em 1972, elas se tornaram, de fato, centros dedicados à
formação, inicial e continuada. Os professores (em torno de um terço deles)
que desejavam aproveitar o direito que tinham à formação continuada (a
qual não dava, entretanto, direito a nenhum diploma), exprimiam esse
desejo nos “menus de estágio”, que as Escolas Normais aprendiam pouco
a pouco a redigir.
Por outro lado, a entrada na formação inicial passou a exigir um nível de
diploma cada vez mais elevado. Inicialmente, foi o DEUG Diplôme d’Etudes
Universitaires Générales – DEUG (Diploma de Estudos Universitários Gerais),
obtido após dois anos de universidade); depois, o nível aumentou para a
licence (três anos de universidade, em qualquer disciplina), com os IUFM
criados em 1989. Os professores primários, chamados até então, na França,
de instituteurs, passaram a se chamar professeurs d’école (categoria A e não
mais B, na carreira do funcionalismo público), tendo assim o mesmo nível
universitário dos professores do secundário.
Finalmente, em 2008, as diretrizes europeias recomendaram para todos
os países uma formação em nível de Mestrado, com a criação das novas ESPE.
Essas Écoles Supérieures du Professorat et de l’Éducation (Escolas Superiores do
Professorado e da Educação) deveriam encontrar uma forma de articular não
mais duas, mas três modalidades ao mesmo tempo: universitária (o diploma
de mestrado profissional), administrativa (o concurso de recrutamento

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organizado pelos reitores das Académies) e pedagógica (a avaliação positiva
dos estágios em sala de aula com ou sem tutor).

Os paradoxos da formação inicial entre saberes acadêmicos e


experiência pedagógica
O que caracteriza a formação de professores desde a época de Guizot
é a prioridade dada à formação intelectual em detrimento da formação
profissional; nas escolhas do Ministério da Educação, o nível de instrução
não para de subir, por causa dos programas e exames implantados. A
profissionalização dos estudos, que era a missão específica das Escolas
Normais, nunca deixou de ser seu calcanhar de Aquiles. Entretanto, há
uma opinião generalizada de que o sucesso da instituição se deve à formação
prática. Como explicar esse paradoxo?
Por trás dos debates teóricos sobre as formas mais pertinentes de
separar/ligar “as matérias e os métodos”, de distinguir/integrar o domínio
dos saberes escolares e o dos gestos profissionais, dois fatores externos
pesam prioritariamente. O primeiro fator é a atratividade social da profissão.
As crises econômicas são períodos favoráveis para recrutar funcionários
públicos, mas os períodos de crescimento são momentos de refluxo, em
que o recurso a pessoal temporário não formado recrudesce (Monarquia de
Julho, Belle Époque, Trinta Gloriosos).25 As exigências de formação variaram,
então, de acordo com essas conjunturas de fluxos ou de refluxos. O segundo
fator é político: no século XIX, as lutas em torno do controle da formação
viram aumentar o poder central em detrimento dos poderes locais, em
que se encontram os municípios, as famílias, as Igrejas. Ora, se a formação
intelectual podia ser julgada por meio de exames clássicos, a formação prática
dependia dos recursos locais, exigia outros tipos de “profissionais” e outras
formas de avaliação. Não se aprende a dar aulas da mesma forma na cidade
ou em um vilarejo, no centro ou na periferia. Para tirar das autoridades
locais (civis e religiosas) todo o poder sobre a formação dos professores, de
modo que não ficassem fiéis a elas, e sim ao poder central, seria necessário
garantir uma formação de Estado que concedesse um título: a questão dos

25. N.T. Trata-se de três períodos em que a França teve grande crescimento econômico.

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níveis de diploma (brevet élémentaire, brevet supérieur, baccalauréat, diploma
universitário) mobilizava mais que a questão dos métodos, que durante
muito tempo não preocupou os pais de alunos.
As exigências de formação, entretanto, mudaram completamente
quando o fracasso escolar se tornou uma questão política e social. Como
a escolaridade obrigatória passou a ser até os 16 anos, o sentido da palavra
“democratização” mudou. Ela já não significava mais promover os melhores
estudantes das classes populares, mas fazer com que todos os alunos de
uma determinada faixa etária tivessem sucesso na escola. Enquanto um
professor era considerado satisfatório fazendo com que os “bons alunos”
tivessem sucesso, seu exercício profissional podia facilmente se regrar pelas
rotinas do funcionamento. Por outro lado, se todos os alunos devem saber
ler e escrever ao final do primeiro ano, as expectativas não são as mesmas.
Isso explica as queixas recorrentes dos professores iniciantes, que atribuem
suas dificuldades no trabalho a falhas da instituição formadora: “não fomos
formados para isso”.

Currículo prescrito e currículo oculto


A esses fatores externos, podemos acrescentar um outro, interno. Até
o final dos anos 1960, persistiram, em torno da Escola Normal, formações
com tutores e/ou práticas informais. No século XIX, muitos ex-alunos
trabalharam, durante um ou dois anos, como “professores-auxiliares” ou
“estagiários” na sala de aula do seu antigo professor. Temos o testemunho
disso em numerosos textos de memórias, autobiografias ou romances. A
partir dos anos 1920, os movimentos pedagógicos constituíram um outro
local de formação pelos pares. Dos anos 1950 aos anos 1970, os estágios em
espaços onde eram desenvolvidas práticas militantes da educação nova
eram obrigatórios, e a forte participação dos alunos das escolas normais no
acompanhamento, como monitores em centros de lazer, constituía um elo
importante de formação pedagógica e mesmo profissional. Esse “currículo
oculto” – ou seja, esse percurso de formação que não era nem obrigatório
nem oficial, mas utilizado pela maior parte dos futuros professores –, não
aparecia em nenhum “currículo prescrito”, aquele imposto oficialmente a

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todos. Apesar de, por essas razões, o investimento de cada futuro professor
nessas atividades se dar em diferentes graus, elas podem ser consideradas
como ligadas à instituição de formação.
Deve-se imputar o recuo ou o apagamento desses espaços informais
de formação aos estudos universitários, construídos sobre a justaposição de
saberes especializados; às mudanças no recrutamento (muito mais feminizado
e mais privilegiado socialmente), com normalistas que não trabalham mais
como monitores nos centros de lazer e, por isso mesmo, descobrem um
mundo desconhecido quando assumem seu primeiro cargo; ao crescimento
de um modelo de “escola eficaz”, que dá prioridade às avaliações de curto
prazo? Enquanto a profissão de professor primário permanecer marcada por
uma polivalência de status e de função, é pela aquisição (formal e informal)
dos gestos profissionais que a qualidade da formação inicial continuará a ser
julgada. No uso é que poderemos ver os recursos que serão propostos pelo
currículo prescrito das 15 novas ESPE26 para responder a essa exigência. Isso
não significa, no entanto, que novas modalidades informais de formação já
não estejam em curso no “currículo oculto”, graças às ferramentas digitais por
meio das quais os principiantes filmam seus gestos profissionais, discutem
com seus pares e escolhem tutores desconhecidos pela instituição.

Referências
CHARTIER, Roger; COMPÈRE, Marie-Madeleine; JULIA, Dominique.
L’éducation en France du XVIe au XVIIIe siècle. Paris: SEDES, 1976.
CONDETTE, Jean-François. Histoire de la formation des enseignants en
France (XIXe-XXe siècles). Paris: L’Harmattan, 2007.
GRANDIÈRE, Marcel. La formation des maîtres en France: 1792-1914. Paris:
INRP, 2006.
LAPRÉVOTE, Gilles. Les Écoles Normales Primaires en France (1879‐1979):
splendeurs et misère de la formation des maîtres. Lyon: PUL, 1984.
PROST, Antoine (dir.). La formation des maîtres, de 1940 à 2010. Rennes:
PUR, 2014.
TERRAL, Hervé. Profession: professeur. Paris: PUF, 1997.

26. N.T. Ver nota 6.

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Entre voces y textos: controversias en torno al uso
de manuales en escuelas tlaxcaltecas a inicios del
siglo XX1

Elsie Rockwell

Detrás de la imagen de la escuela que uno pudiera evocar al examinar


planes y programas, tratados pedagógicos y libros escolares yace una compleja
historia social de la práctica real en el aula. No es nada fácil reconstruir
prácticas docentes cotidianas del pasado a partir de documentos de archivo
(GROSVENOR; LAWN; ROUSMANIERE, 1999). Para reconstruir las
prácticas de lectura en algunas escuelas rurales de México a principios del
siglo XX, intenté evitar una transferencia fácil desde documentos oficiales
hacia prácticas cotidianas. Además de leer informes e inventarios escolares,
recurrí a testimonios orales de quienes vivieron o escucharon hablar de las
experiencias escolares del inicio del siglo XX. Además, intenté interpretar
la evidencia fragmentaria del pasado a partir del conocimiento etnográfico
de la zona, con el auxilio de la analogía y la imaginación, a veces sobre un
terreno muy frágil.

1. Una versión anterior de este texto se publicó como: ROCKWELL, Elsie. Entre la vida y
los libros: prácticas de lectura en las escuelas de La Malintzi a principios del siglo xx. In:
CASTAÑEDA, Carmen; GALVÁN, Luz Elena; MARTÍNEZ, Lucía (coords.). Lecturas y
lectores en la historia de México. México: Centro de Investigación y Estudios Superiores
en Antropología Social, 2004, p. 327-357. Esta versión es corregida y actualizada para el
presente volumen.

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Dominique Julia (2001), entre otros, ha insistido en la importancia de
estudiar no solamente la historia de programas y materiales educativos, sino
también su uso en el aula. Julia observa que los maestros poseen considerable
libertad para modificar los lineamientos mediante su práctica. Advierte
que la tarea de reconstruir la vida en el aula requiere de la descripción de
prácticas culturales que rara vez dejan huella, y además nos recuerda que
las escuelas son permeables a las prácticas culturales del entorno.
Roger Chartier da cierta guía: “los actos de lectura que le dan a los
textos sus significados plurales y móviles están situados en el límite entre
las maneras de leer [...] y los protocolos de lectura codificados en el texto”
(1993, p. 80, traducción mía).2 Reconociendo la dificultad de descubrir las
prácticas de lectura del pasado, Chartier propuso buscar pistas indirectas
en la materialidad de los soportes textuales, así como en otros documentos
e imágenes del periodo. Dadas las diferentes maneras de leer, existe una
libertad significativa en la apropiación de los protocolos ideales que los
autores plasmaron en los textos. Los avances en la comprensión de la práctica
de la lectura y la escritura en varios contextos históricos (COLLINS; BLOT,
2003; HEATH, 1981) sugieren formas de interpretar la evidencia histórica de
la lectura escolar. La discusión sobre un paulatino cambio de prácticas de
lectura intensiva (leer un texto muchas veces y vincularlo con la experiencia
personal) a lectura extensiva (leer textos diversos, sobre tópicos variados y
a menudo ajenos, como los diarios) podría ser una clave para comprender
el uso de textos en el aula (VIÑAO FRAGO, 1999).
La agenda pendiente de investigación requiere entender no solamente
cómo los diferentes discursos pedagógicos influyeron en la práctica, sino
también cómo los dispositivos mismos hacían posible el desarrollo de
ciertas prácticas. Anne-Marie Chartier (2007), notando esa posibilidad, y
siguiendo a Certeau (1996), ha encontrado indicios de estas ‘artes de hacer’
a partir de múltiples documentos, entre ellos los cuadernos escolares y
otros soportes. Esto orienta nuestra atención hacia el entorno material de
las aulas y la disponibilidad de libros y herramientas de escritura, además
de los testimonios de su uso.

2. Ver mi elaboración de estas ideas para el aula en Rockwell (2001).

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El estudio que realicé3 sobre escuelas cercanas a La Malintzi, volcán
antiguo que distingue la región indígena de Tlaxcala en México, enfrentó
además el problema de comprender cómo se leía en las aulas en una
región marcada por la coexistencia asimétrica del español dominante y el
náhuatl.4 Reuní evidencia acerca de las formas de leer que se usaron dentro
de las escuelas rurales ahí durante el período de 1910 a 1935. La selección
de este intervalo respondió a un interés mayor de explorar la cuestión de
continuidad y cambio en las culturas escolares, dada la intensidad de las
reformas educativas posrevolucionarias en México. En este capítulo, examino
el discurso pedagógico de los años previos y posteriores a la Revolución en
torno al uso de libros escolares. Reuní testimonios orales de personas que
compartieron conmigo sus recuerdos de lo relatado y lo vivido en las aulas
en aquellos años. Seguí además la recomendación de Julia de tomar en cuenta
el entorno cultural para reconstruir sentidos de los escritos presentes en
las aulas. Intento rastrear la disponibilidad de libros y las maneras de leer,
en un contexto marcado por el uso predominante del mexicano (como los
hablantes denominan el náhuatl) y además atravesado por un movimiento
armado y los sucesivos regímenes.
El movimiento revolucionario y el subsecuente proceso de formación de
un nuevo Estado federal modificaron a principios del siglo XX el paisaje social
y cultural de la región de La Malintzi. Durante la década de la Revolución
(1910-1920), muchos vecinos de esta región tomaron parte en la rebelión
armada y en los correspondientes realineamientos políticos. El uso de la
palabra escrita fue parte de este proceso. La correspondencia enlazaba fuerzas
locales con grupos rebeldes y políticos en los estados vecinos. Los documentos
conocidos incluyen correspondencia en ambas lenguas y discursos en náhuatl,
incluso por el caudillo revolucionario Emiliano Zapata. Las noticias viajaron
por los canales de la tradición oral, pero también por los nuevos medios de
la imprenta y por la lectura oral en colectivos de obreros vinculados a las
corrientes anarco-sindicales (REJÓN BAZ, 2017).

3. Esta investigación fue respaldada con fondos del Conacyt (proyecto 211-085-5-1377) y del
Conaculta. El trabajo fue presentado en el congreso del ISCHE (Alcalá, 2000).
4. Tlaxcala fue instaurada como “República de Indios” desde la Conquista y gozaba de
cierta autonomía. En el período que abordo, la población cercana al volcán de La Malintzi
era considerada, según el censo, como “netamente indígena”.

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A partir de 1921, los presidentes Obregón y Calles le apostaron a un
programa de escuelas rurales federales como medio para responder a una
demanda campesina y al mismo tiempo empezar a estructurar un nuevo
aparato de Estado que controlara a la población ‘rebelde’ (ROCKWELL, 2007).
La recién fundada Secretaría de Educación Pública envió a sus inspectores
y misioneros a establecer escuelas rurales y formar maestros. La expansión
escolar iba de la mano de la incipiente reforma agraria y la reorganización
política del campo, que vincularon a las comunidades con la estructura
corporativa del Estado. En los años 1930, emergieron nuevos asentamientos
y fuentes de subsistencia y los habitantes conocieron los primeros pasos
de una expansión industrial y urbana que transformaría a la región. Estos
cambios introdujeron un mayor acercamiento a la palabra escrita.
Ciertamente, las prácticas escolares suelen ser distintas a los usos
cotidianos y oficiales de la lengua escrita. No obstante, dado que tanto
maestros como alumnos recurren a conocimientos y recursos locales, los
usos escolares pueden reflejar los cambios que ocurren en el entorno. Se
encuentran así tanto contrastes como convergencias entre los usos locales
de la lengua escrita y las prácticas escolares.

Herencias pedagógicas del siglo XIX


Al revisar las fuentes oficiales sobre la educación en México durante el
siglo XIX, encontramos una profunda división entre la enseñanza de la lectura
y de la escritura. Como en otras partes del mundo, los alumnos ingresaban
primero a un grupo de ‘lectura’. Leer se consideraba como una habilidad
distinta a la de escribir y se suponía de adquisición más fácil y de mayor
valor universal.5 Por otra parte, durante la reforma liberal de mediados del
siglo, se decretó la libertad de credo y la separación entre Estado e Iglesia,
y leyes de 1857 reemplazaron la enseñanza religiosa con la promoción de la
moral y la urbanidad. No obstante, entre los métodos más utilizados para
enseñar a leer a partir de ese tiempo se encontraba el Silabario de San Miguel,
una cartilla con un catecismo católico simple, cuya reimpresión continuó
incluso hasta mediados del siglo XX.

5. Esta división se refleja todavía en el censo de 1910, en que se contaban aparte los que “solo
sabían leer” de los que sabían “leer y escribir”.

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En la región de La Malintzi es probable que algunos maestros de
primaria usaran la lengua náhuatl por lo menos oralmente. Circulaban en
el siglo XIX catecismos y silabarios publicados en náhuatl, sugiriendo que
la enseñanza de la lengua se hacía parcialmente en la lengua indígena. No
está claro en qué medida los alumnos podían comprender estos textos, ya
que muchos estaban escritos en un náhuatl antiguo que no correspondía
con la variedad utilizada en los pueblos (TANCK DE ESTRADA, 1999, p.
407-411). A veces se mencionaban en los inventarios escolares a inicios del
siglo XX6 y seguramente se usaban para enseñar la doctrina.
Al principio del siglo XX, la documentación sugiere que habían ocurrido
algunos cambios en la enseñanza cotidiana. Las reformas liberales del siglo
XIX habían logrado parcialmente sus metas de castellanizar y prohibir la
enseñanza religiosa, por lo menos en lo reportado a las autoridades. En
escuelas urbanas, la práctica de limitar la enseñanza inicial a la lectura
había cedido su lugar a la instrucción simultánea de la lectura y la escritura.
Muchos maestros habían adoptado los textos para enseñar la lectura y
escritura por métodos fonéticos o palabras normales publicados por autores
nacionales, como Torres Quintero y Rebsamen. Sus manuales introducían
progresivamente el trazo de letras y copia de palabras, a veces acompañadas
de pequeños textos morales o cívicos de dificultad creciente. Estos métodos
fueron diseminados a través de las escuelas normales establecidas en las
grandes ciudades a finales del siglo XIX. En Tlaxcala, dos niños escogidos
de cada municipio recibían beca cada año para estudiar la primaria superior
(quinto y sexto grado) en el Instituto Científico y Literario y para tomar el
curso de pedagogía requerido para ser maestro en las escuelas elementales
de los pueblos. Su formación reflejaba una mezcla entre el acercamiento
tradicional a la lectura y las tendencias modernas introducidas en la época.
En esas escuelas, mientras que la enseñanza de la lectura llegaba a
muchos, pocos alumnos pasaban al tercer grado donde se les enseñaba a
escribir. Aprender a escribir como los escribanos en ese tiempo requería una
dedicación especial para poder manejar la pluma y el tintero y dominar la
letra manuscrita. Si juzgamos por las constantes quejas, muchos padres rurales
6. En un inventario de la región encontré, por ejemplo, Clara y sucinta exposición del
pequeño catecismo, impreso en el idioma mexicano... (1819).

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quizá preferían ahorrarles a sus hijos los castigos asociados a esa diciplina
y prepararlos para otras ocupaciones vitales. En ese tiempo, todavía era
posible llegar a ser obrero textil o bien dedicarse a otro oficio sin necesidad
de tener un certificado escolar; se ingresaba en calidad de aprendiz y se
adquiría experiencia en la práctica, e incluso en el taller o la fábrica se
aprendía a leer textos necesarios para el trabajo. Desde el punto de vista
de los pueblos indígenas, asistir a la escuela más allá de los primeros dos
grados tenía sentido sólo para llegar a ser seminarista, preceptor o juez de
paz local. Esta perspectiva contrastaba con la doctrina de la alfabetización
universal que pronto se difundiría en la región.
A pesar de este uso selectivo de la escolaridad, las comunidades rurales
de La Malintzi demandaban y valoraban tener escuela. La habilidad de leer
contribuía a la continuidad de las celebraciones religiosas en comunidades
que carecían de un cura residente. Además, era importante que algunos niños
aprendieran a escribir. Tener una cantidad mínima de adultos letrados era
un requisito legal para lograr el estatus de pueblo autónomo y tratar con
autoridades gubernamentales (ACEVEDO-RODRIGO, 2008). Los vecinos
versados en la escritura ocupaban el puesto de secretario o actuaban como
intermediarios entre los cuerpos gobernantes y las asambleas comunitarias
(ROCKWELL, 2012). Esta tendencia a valorar una alfabetización selectiva
en español continuó a inicios del siglo XX, aunque muchas comunidades
preferían a maestros que se comunicaran oralmente en la lengua local
(CASTILLO MOLINA, 2017).

Debates sobre los libros de textos antes y después de la


revolución
En México, antes del movimiento revolucionario, se dio un intenso
debate entre educadores que defendían o bien que se oponían al uso de libros
de texto, que continuó durante el nuevo régimen. El surgimiento de una
industria del libro de texto a finales de siglo XIX proveyó nuevas herramientas
para la enseñanza y amplió el currículum elemental. Los argumentos en
contra de su uso tenían raíces en las enseñanzas de los pedagogos del siglo
XIX. Carlos A. Carrillo (1964), por ejemplo, se oponía al uso exclusivo de

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libros de texto, recomendando que los maestros estudiaran los temas, pero
luego basaran sus clases en el conocimiento de sus alumnos, adaptando su
lenguaje a cada grupo. Esta postura se unió con otra corriente, la ‘pedagogía
objetiva’, que promovía la enseñanza de la ciencia a través de la experiencia
directa y recomendaba dar ‘lecciones de cosas’, en lugar de recurrir a los
textos. Paradójicamente, muchos libros comerciales titulados lecciones de cosas
solían ser de formato pequeño con textos densos ilustrados con grabados
alusivos. Después de la Revolución, el director de Educación de Tlaxcala,
Aguillón de los Ríos, agrónomo conocido por la extensa biblioteca que
había adquirido, también aconsejaba no enseñar por medio de los textos.
En 1921, cuando el régimen posrevolucionario fundó la Secretaría de
Educación Pública, la federación se propuso llevar la educación elemental a
todas las áreas rurales. Vasconcelos favoreció la promoción de bibliotecas y
mandó imprimir millares de ejemplares de lecturas clásicas en formato rústico,
para romper con el uso tradicional del libro de texto. Bajo la orientación de
educadores formados en las escuelas normales del periodo prerrevolucionario,
como Rafael Ramírez y Moisés Sáenz, se diseñaron programas para la
nueva “escuela rural mexicana”. El discurso posrevolucionario rechazaba
explícitamente el aprendizaje ‘libresco’ y promovía el ‘aprendizaje para la vida’.
En Tlaxcala, las Misiones Culturales formaban a los maestros en servicio
para que realizaran actividades prácticas que dependían poco de la palabra
escrita. También se estableció una Normal Rural en Xocoyucan para formar
en esta mística a los nuevos maestros federales. En 1926, el congreso local
emitió una nueva ley instalando “la escuela de la acción”.7 Esta reforma
reforzó la corriente de opinión en contra del uso de libros de texto.
La pedagogía innovadora de este periodo también enfrentó críticas.
Hacia 1928, los educadores nacionales, reconociendo la necesidad de atender
habilidades básicas, iniciaron campañas pro-lengua nacional y pro-cálculo.
En la Asamblea Nacional de Educación de 1930 se discutió la conveniencia
de establecer programas únicos para todas las escuelas del país. Después
de unos años, incluso quienes habían criticado el uso de libros de texto,
como Rafael Ramírez (1937, p. 129-130), argumentaban que este recurso
podría mejorar la calidad de la enseñanza en las escuelas rurales. De ahí
7. MÉXICO. Ley de Educación Pública, Gobierno del Estado de Tlaxcala, 1926.

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que durante los años treinta se empezaran a publicar y a distribuir nuevos
libros de lectura, hechos por autores nacionales, para las escuelas.
Durante estos años había una clara tensión entre las innovaciones y las
normas tradicionales de enseñanza en las escuelas. Si bien ambas corrientes
rechazaban el uso de libros de texto, lo hacían por razones diferentes. La
perspectiva heredada basaba su oposición en el valor de la transmisión
oral del contenido por un profesor erudito, así como en el uso de ejemplos
y objetos. La nueva pedagogía promovía la necesidad de ‘enseñar para la
vida’, a través de actividades culturales y proyectos comunitarios. En el largo
plazo, ambas tendencias tuvieron que ceder ante la introducción gradual de
una enseñanza basada en textos.

La disponibilidad de libros en las escuelas rurales


La evidencia documental de la presencia real de libros en las escuelas de
la zona de La Malintzi da una base material para la discusión sobre su uso.
Al principio del siglo, ciertas casas editoriales extranjeras, como Appleton
y Vellvé, dominaban el mercado de libros de texto en México. Promovían la
venta de textos para varias materias y grados, en español. Paulatinamente se
favoreció la producción de libros de texto de autores nacionales, lo cual marcó
un ligero cambio en los títulos que se encuentran en las listas. El gobierno de
Tlaxcala compraba periódicamente algunos libros de texto para cada escuela.
Después del movimiento revolucionario, las autoridades estatales intentaron
reconstruir el sistema escolar que había sido devastado por las batallas y la
falta de recursos. Entre otras cosas, volvieron a distribuir textos producidos
durante los años previos a la Revolución, como los métodos de Rébsamen
y Torres Quintero. Sin embargo, no se garantizaba un libro para cada niño.
Los inventarios escolares contenían una lista detallada, que generalmente
incluía varios ejemplares de diversos libros de lecturas, antologías de versos
o de fábulas, textos de historia patria, geografía o lecciones de cosas.
A raíz del programa de Vasconcelos, secretario de Educación Pública
Federal, algunas escuelas habían recibido una docena de las lecturas clásicas
publicadas por la SEP. A veces estos volúmenes eran resguardados por los
directores, y tenían poco uso público. La escuela urbana de Zacatelco, en

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Tlaxcala, recibió una colección de libros clásicos en 1926.8 Esta biblioteca
contenía diversos libros de historia, obras literarias como las tragedias
de Eurípides y Don Quijote de la Mancha, así como el popular Corazón,
de Amicis. También tenía obras sobre anatomía, aritmética y geografía,
y manuales prácticos de dibujo, artesanías y actividades agrícolas. Dos
categorías sobresalientes eran las lecturas para mujeres (economía doméstica,
artes decorativas) y algunos tratados sobre políticas posrevolucionarias, como
el fomento de cooperativas y del sindicalismo. Sin embargo, la situación era
diferente en las escuelas rurales. La lista de libros que presentaron las escuelas
rurales en la exposición estatal de 1925 incluía viejos catones, antologías de
fábulas y versos corales, así como textos prerrevolucionarios de historia
patria.9 Los inventarios muestran cómo se sobreponían las generaciones
de libros de lectura, y el hecho de que nunca hubo suficientes ejemplares
de un mismo título para repartir a todos los alumnos. Dada esta situación,
los maestros pedían a los padres que compraran textos para sus hijos. Sin
embargo, pocos padres los podían adquirir por su costo. Por otra parre,
los libros vendidos localmente probablemente eran los viejos silabarios y
cartillas de primeras letras.
Con el aumento de escuelas rurales federales, surgió una nueva tensión
entre el impulso hacia los proyectos sociales (higiene, sobriedad, deportes y
campañas de reforestación, e industrias rurales tales como costura, textiles
y carpintería, hortalizas y pequeñas granjas) y el suministro de materiales
de lectura para escuelas rurales. El formato impreso para ser llenado por los
inspectores detallaba las actividades que se esperaban de las nuevas escuelas
rurales; incluía una larga lista de “anexos” – talleres, museos, gabinetes,
huertos y gallineros, así como un teatro al aire libre y un campo deportivo.
Estos requerimientos tenían mucho mayor peso que aquellos relacionados
con la enseñanza de la escritura. Sin embargo, la lista incluía una biblioteca
y un escritorio público, lo cual reflejaba una orientación hacia los usos
prácticos de la escritura.10 Esta imagen ideal de la escuela rural correspondía
poco a las condiciones reales, reportadas en esos formatos. En la mayoría de
8. AHETSEP, 1926, exp. 162/4/40, Informe, escuela de Zacatelco.
9. AHSEP. DGEPET, 1925, exp. 794.4, Informes del director federal A. Alaniz.
10. Circular 18, IV-7-34, publicado en Memoria relativa al estado que guarda el Ramo de
Educación Pública. II, Documentos, Talleres Gráficos de la Nación, México, 1934, p. 95-97;

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las comunidades los maestros trabajaban en aulas improvisadas, con poco
espacio para guardar sus pertenencias. A pesar de que pocas comunidades
cumplían con el requisito de construir todos estos anexos, ciertas actividades
tuvieron un efecto duradero en las culturas locales, notablemente la parcela, el
teatro y los deportes. La mayoría de las escuelas rurales carecía de bibliotecas
hasta bien entrados los años treinta.
Los inspectores de estas escuelas federales centraban sus informes en
las actividades sociales y productivas, aunque ocasionalmente anotaban
algo sobre lectura. Algunos se asombraron ante la carencia de libros: en
1925 el inspector Villeda reportó haber visto “escasísimos libros de lectura
en las escuelas”. El director federal de educación de Tlaxcala, el profesor
Alaniz, reportó solo cinco bibliotecas en unas 30 escuelas rurales del estado
en 1925, agregando que contenían libros que estaban “más allá del nivel
cultural de los habitantes”. El municipio de San Pablo del Monte tenía una
buena biblioteca, pero “el problema es que no estaba abierta al público o
a los estudiantes”. Alaniz consideró necesario recuperar 75 volúmenes que
encontró en ese pueblo, para utilizarlos en la capacitación de maestros.11 De
hecho, los profesores tenían poco acceso a libros para su propio trabajo y
tenían que copiar los programas a mano durante las reuniones regionales.
Hacia finales de los años veinte y en los treinta, la Secretaría de Educación
publicó libros de texto escritos por una nueva generación de autores
nacionales. Estos manuales adecuaron la enseñanza inicial de la escritura a
la ideología posrevolucionaria. Generalmente empleaban el método ‘natural’
que promovían algunos educadores de esos años; cada lección partía de
un texto corto sobre un tema patriótico para introducir ciertas palabras o
sílabas clave. Muchos de estos libros estaban ilustrados con grabados en
madera realizados por artistas del Taller de Artes Gráficas, como parte del
programa cultural del régimen. Textos como Simiente, que fueron producidos
específicamente para las escuelas rurales, representaban a niños campesinos
y reafirmaban la promesa de mejorar la vida rural mediante los programas

Archivo General del Estado de Tlaxcala (AHET), Educación Pública (EP), 1933, expediente
369-15, Informe del Inspector G. Pérez.
11. Archivo Histórico de la Secretaría de Educación Pública (AHSEP), Dirección General
de Educación Primaria en los Estados y Territorios (DGEPET), 1925, expediente 794.4,
informe del director federal A. Alaniz.

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revolucionarios, incluyendo la escuela. Los autores intentaban cerrar la brecha
entre las imágenes urbanas de los textos prerrevolucionarios y la realidad
de la vida rural. Sin embargo, no siempre eran libros gratuitos; más bien,
las ediciones se ofrecían a precio bajo a los gobiernos locales.
En Tlaxcala, pocos de estos libros llegaron a las escuelas rurales. En esta
región, las reformas del principio de los años treinta continuaban favoreciendo
los proyectos sociales. En 1933, el inspector Rivera reportó que la escuela de
Xaltipan, recién asignada al sistema federal, carecía de biblioteca, así como de
muchos otros anexos requeridos por el nuevo programa. Los vecinos habían
construido un teatro al aire libre donde realizaban la celebración anual del
día de la Independencia, de acuerdo con la tradición. Tres años después, el
pueblo inauguró su nueva escuela de piedra y participaba activamente en
los proyectos agrícolas. Sin embargo, aún no tenía biblioteca y reportaba
muy pocos textos en su inventario.12 En general, durante estos años tanto
las autoridades estatales como las federales al parecer carecían de fondos
para distribuir libros de texto masivamente en las escuelas. Por ejemplo,
en 1922, el director estatal, profesor Pérez, le envió al nuevo director de la
escuela estatal de Ixcotla diez cuadernos y ocho pizarras, gises, lápices y
plumas, junto con ocho libros diversos de lectura de primero, nueve libros
de diferentes grados, cuatro títulos para el grupo avanzado y un libro de
Lecturas Instructivas.13 Hacia 1933, el inventario de la misma escuela ya no
mostraba ningún libro, de tal forma que los maestros deben haber recurrido
nuevamente a las familias.

Ventanas hacia prácticas escolares en el contexto de bilingüismo


Una entrevista con la familia Calderón (2000) ofreció pistas sobre la
práctica docente en la escuela para niñas del pueblo nahua de Contla durante
este periodo (1900-1920). En la reunión estaban presentes Cleotilde, la
anciana viuda de Juan Calderón, dos de sus hijas y un sobrino. Recrearon una
narrativa familiar en respuesta a mis preguntas sobre su experiencia escolar.
12. AHSEP, DGEPET, 1926-1930, exp. IV/161 (IV-14)21145, escuela rural federal, Xaltipan,
Contla, Tlaxcala (1930-1965).
13. AHET, Fondo de la Revolución y Régimen Obregonista (FRRO), 1922, exp. 369/2/194.
Informe de la escuela mixta de Ixcotla, Chiauhtempan.

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Cleotilde se había criado con su abuelo, un litigante autodidacta que
defendía casos locales en el tribunal estatal. Ella no recordaba haber visto
libros en su casa cuando era niña, aunque su abuelo sí la había enviado a
la escuela. Había terminado el tercer grado bajo la instrucción de María
Calderón, la hermana mayor de su futuro marido. La vida algo excepcional
de María fue un tema importante de la conversación. El padre de María,
un mestizo del cercano pueblo cabecera de San Pablo Apetatitlán, había
sido músico en la banda del estado, uno de los gremios más letrados de
ese tiempo (THOMSON, 1989, p. 31-68). Contra la voluntad de su madre,
él se había casado con Sotera, una mujer indígena. Años después, envió a
María, la hija mayor, a estudiar en el Instituto Científico y Literario, con el
fin de alejarla de la influencia de su madre. Bajo la guía de su padre, María
había desarrollado habilidades musicales y literarias; tocaba la mandolina
y escribía poesía y obras de teatro. Como muchas maestras de su tiempo,
permaneció soltera y por muchos años fue directora de la escuela de niñas
de la cabecera de Contla, y única maestra de todas las alumnas. La tía María
había iniciado tanto a Cleotilde como a otros miembros de la familia en la
lectura y la escritura.
Al principio de los años 1930, cuando las autoridades educativas
mandataban que las escuelas fueran mixtas, María, “una maestra por
vocación”, abandonó su trabajo y abrió su propia escuela para niñas. También
colaboró con el cura del pueblo escribiendo minutas y registros con su
intachable caligrafía.
Siguiendo las reminiscencias de la familia, la práctica docente de María
combinaba la tradición centrada en la doctrina católica con los nuevos
métodos de enseñanza. Cleotilde describió el uso de pizarras para aprender
a escribir, y recordó que poseía algunos libros de lectura, aunque no relató
cómo se utilizaban en clase. María no permitía a las niñas hablar náhuatl
en clase, y además las regañaba si hablaban español con un acento que las
identificara como ‘indias’. Sin embargo, continuaba conversando en mexicano
con su madre, Sotera, quien hablaba muy poco español, así como con el
cura local, quien también era bilingüe. Es posible que María usara la lengua
indígena para comunicarse con algunas alumnas, aunque desalentaba su uso
durante las clases formales. Probablemente le daba poco valor a los libros de

72 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


texto, ya que prestaba mucha atención a los trabajos manuales, la urbanidad
y la caligrafía. De cualquier forma, María logró iniciar a muchas mujeres
en un aprendizaje duradero de la lengua escrita. A pesar de la escasez de
materiales impresos en sus días de infancia, a Cleotilde – ya entrada en los
noventa años cuando hablé con ella – aún le gustaba leer el diario local.
La influencia de María continuó en la siguiente generación de la familia
Calderón. Las hijas de Cleotilde comentaron que su padre, Juan Calderón, al
principio no había querido enviarlas a la escuela. Esto fue en los años treinta,
cuando el gobierno federal promovía la educación socialista, desalentando
toda mención de la doctrina religiosa en las escuelas y promoviendo la
coeducación. Con todo, las hijas crecieron en un ambiente bilingüe en que
se leía bastante. Juan, zapatero de oficio, solía leer las hojas de periódico
utilizadas para envolver todo lo que compraban en el pueblo. Les transmitía
las anécdotas a los hijos oralmente, una práctica que los mantenía informados
de lo que sucedía fuera de su comunidad. A diferencia de su hermana María,
Juan había cultivado el uso de la lengua mexicana, buscando las antiguas
doctrinas en náhuatl y escribiendo discursos políticos en esta lengua. Sin
embargo, María estaba a cargo de la educación de las niñas. Una de ellas
recordó cómo la tía María les hacía trazar sus primeras letras sobre el piso
de tierra húmeda. Después de recolectar y rayar cuidadosamente pedazos
de papel de envoltura, la tía las ponía a practicar las letras, exigiendo que
escribieran siempre sobre las líneas. Por la tarde, las llamaba a rezar, una
práctica en que la memorización oral precedía la familiaridad con el texto
escrito. Después de algunos años, Juan finalmente aceptó enviarlas a la
escuela pública; para entonces, ellas habían aprendido lo suficiente en casa
para ingresar directamente al segundo grado. Terminaron el tercero, donde
aprendieron a escribir en cuaderno y leer algunas lecciones de libros de texto.
En toda esta historia, aprender a trazar letras y formar palabras al parecer
tuvo un impacto mayor en la memoria que aprender a leer. Aparentemente
al principio del siglo XX, aun los profesores conservadores habían roto con
la noción de que la lectura debería preceder a la escritura. Tal vez hubo otras
razones para favorecer la enseñanza de la escritura sobre la de la lectura en
este contexto. Escribir, en el sentido de trazar las letras y formar las primeras
palabras, podía ser practicado con un mínimo de recursos; se improvisaban

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útiles, aun cuando las plumas y los cuadernos fueran escasos. En cambio, la
lectura requería de libros de texto que eran relativamente escasos y caros.
Además, aprender a leer requería una mayor comprensión del español. Las
condiciones materiales y culturales de estas comunidades facilitaban la
introducción de la escritura antes de la lectura, opuesto al orden tradicional.
Aprender a leer sin duda era un proceso lento en este contexto, vinculado
estrechamente al aprendizaje de la lengua española utilizada en el aula.
Es en esta esfera que uno puede intuir un cambio en las maneras de leer.
Los niños que no hablaban español podían haber memorizado la doctrina
religiosa oralmente en casa, como fue el caso de las alumnas de María,
aun sin el apoyo de un catecismo, para rezar durante las misas o rosarios.
Esta práctica les aseguraba familiaridad con algunos géneros escritos en la
lengua dominante, incluso antes de que conocieran efectivamente los textos
impresos. Esta preparación podría haber ayudado a los niños a encontrar
algún sentido, no necesariamente religioso, en los silabarios católicos que
se usaban todavía para enseñar a leer en clase. El hecho de que estos textos
orales tenían presencia en la vida cotidiana posiblemente ayudó al proceso
inicial de alfabetización escolar. Los niños que recitaban de memoria las
palabras de esos textos, empezaban reconocerlos en la versión impresa y
así aprendían a descifrar otros textos. Este proceso se ha documentado en
la actualidad por Anne-Marie Chartier (2007), quien sostiene que leer un
texto ya memorizado en lo oral ha sido una vía factible de alfabetizar en la
Europa medieval y en las escuelas coránicas.
La lectura de otro tipo de textos presentaba nuevos retos. Cuando
los niños tenían poca noción del contenido, las dificultades para entender
el español escrito probablemente eran considerables. Los libros de texto
comerciales para segundo y tercer grado del principio del siglo XX, por
ejemplo de Delgadillo, estaban saturados de información, con terminología
especializada. Sus protocolos implícitos presumían cierta familiaridad con las
concepciones científicas y cívicas que los informaban, lo que actualmente se
conoce como el “conocimiento del dominio” necesario para la comprensión
lectora. Requerían la mediación y explicación oral de maestros que los
hubieran estudiado.

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Salvar la distancia entre las cartillas y estos textos requería nuevas
estrategias. Los niños y niñas de los pueblos nahua dependían del apoyo de
su maestro para empezar a comprender lo que leían. Ante las dificultades, los
maestros tendían a enfatizar la lectura en voz alta y a seleccionar conocimientos
precisos para memorizar, que fueran susceptibles de examen oral o escrito.
Los niños con poco manejo del español probablemente recurrían a la
decodificación silábica para leer en voz alta, con poca preocupación por la
comprensión (ACEVEDO-RODRIGO, 2008). No obstante, los mayores que
entrevisté valoraban esa capacidad, de “leer como licenciados”, como el inicio
de una posterior comprensión de los textos en la medida que aprendieran
español en la vida (ROCKWELL, 2008).
Hubo casos excepcionales de niños monolingües en mexicano que
lograron leer bien al terminar un año escolar. En Cuauhtenco, Don
Concepción contó que a los diez años tuvo la suerte, al ingresar a la escuela
unitaria, de sentarse junto a dos niñas mayores de una familia bilingüe,
quienes lo ayudaron a descifrar los libros de los tres grados disponibles.
Ese año ganó un concurso regional de lectura y recibió como premio el
nuevo texto de Historia de México, de Teja Zabre. Abandonó la escuela el
segundo año, porque no aprendía nada del nuevo maestro, pero memorizó
por su cuenta ese libro y se convirtió en el mayor conocedor y archivista de
la historia de su pueblo.
Estas prácticas son inteligibles solo si tomamos en cuenta el contexto
lingüístico de Contla en ese tiempo. Los hijos de matrimonios como los de la
familia Calderón, con un padre bilingüe, tenían cierta ventaja para aprender
a leer en español. Este no era el caso de familias de los pueblos o barrios más
alejados del centro, donde el mexicano aún era la lengua dominante. Por lo
tanto, tenemos que imaginarnos cómo intentaban aprender español los niños
de estos pueblos, al encontrarse inmersos en actividades escolares conducidas
en la lengua oficial. Los maestros que hablaban fluidamente la lengua local
pueden haberla usado para traducir o explicar partes de los textos leídos
en clase, aunque hay poca evidencia de ello. De cualquier forma, incluso
ellos tendían a prohibir el uso del mexicano en las actividades formales de
aprendizaje. En este contexto, pedir a los niños que leyeran los textos en
voz alta los enfrentaba con la tarea de pronunciar el español descifrando las

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palabras correctamente, pero sin mucha atención a su significado. En algunos
casos la ayuda de compañeros bilingües les permitía empezar a comprender
lo que leían y avanzar más rápido. Pero una mayor comprensión del español
oral generalmente se obtenía mucho después mediante la práctica en ámbitos
extraescolares, como contaban varias personas mayores.
En este contexto lingüístico, el uso de libros de texto con contenidos
informativos más amplios imponía demandas a la enseñanza que no se podían
cumplir fácilmente. Enfrentarse con libros escritos en un registro escolar
que tenía poco precedente en la vida cotidiana era una tarea bien diferente
a la de leer textos, como los religiosos, que se recitaban en la comunidad.
De hecho, aprender a leer textos que formaban parte de la práctica religiosa
o cívica era una manera de ‘aprender para la vida’. La tradición duradera de
enseñar a leer con este tipo de textos, en un ambiente cultural arraigado aún
en el náhuatl, explica en parte la resistencia al uso de otros libros de texto
que se encuentran en aquellos años.

Indicios de prácticas de lectura escolares dadas las condiciones


materiales
Cuando los inspectores federales de Tlaxcala reportaban mensualmente
acerca de las escuelas de sus zonas, hacían pocos comentarios sobre los
usos de los libros en el aula y menos aún sobre el predominio del náhuatl.
Sobresale a lo largo del periodo la queja común de que los profesores carecían
de suficientes libros iguales para todos los alumnos, por lo que no podían
pedir que el grupo entero siguiera una lección simultáneamente.
Ante esta situación, los profesores tal vez usaban los pizarrones para
escribir textos que todos los estudiantes pudieran leer o copiar. Posiblemente
agrupaban a los niños para que compartieran los pocos libros disponibles,
aunque la formación de grupos por nivel de lectura no fue una práctica común
en las escuelas mexicanas, como lo ha sido en otros países. Seguramente
los maestros pedían a los alumnos de segundo y tercer grado que copiaran
lecciones de algún libro o que tomaran dictado, ya que estas prácticas no
requerían que todos tuvieran el mismo libro. Con los pocos alumnos mayores,
probablemente trabajaban individualmente, escuchando leer a cada uno

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en el libro que tuviera o prestándoles uno en el momento. Estos alumnos
también ayudaban a sus compañeros menores. Para las ceremonias cívicas,
aprendían a recitar poemas tomados de las antologías o a actuar en pequeñas
obras escritas por los profesores, prácticas que animaban a las celebraciones
periódicas y eran muy apreciadas por los vecinos. Esta situación, junto
con el incipiente dominio del español, ayuda a explicar la preponderancia
de los ejercicios de caligrafía y recitación sobre la práctica de la lectura de
libros de texto.
Siguiendo los lineamientos de la época, los inspectores destacaban las
actividades prácticas y daban poca atención a las clases tradicionales. En 1925,
el director federal, profesor Alaniz, además de notar la carencia de libros,
desacreditó la persistencia de la pedagogía centrada en “leer, escribir y contar”.
Prohibió en sus escuelas el uso de la “repetición mnemónica” y recomendó
nuevos procedimientos “derivados de la naturaleza del conocimiento útil para
los habitantes de la región”. En este reporte, Alaniz afirmó que sus inspectores
estaban convenciendo a los padres de “la inconveniencia y estrechez de su
criterio de pretender que el progreso solo viene por aprender a ‘leer, escribir y
contar’, a la exclusión de todas las demás actividades”. Instruyó a los maestros
a realizar proyectos comunitarios y les pidió a las autoridades enviarles
libros de agricultura, industrias rurales y artes prácticas, así como tratados
modernos de educación.14 Alaniz insistió en que la lectura debía servir a
las necesidades prácticas de los maestros y los adultos de la comunidad.
Le interesaba poco la recitación de textos para cultivar el patriotismo. Sin
embargo, su estilo iba a contracorriente de las formas locales.
La campaña para abolir la “antigua trilogía” se enfrentó a cierta resistencia
en las comunidades rurales. Los padres alegaban que sus hijos ya sabían
cultivar, y solo necesitaban aprender a hablar español, a leer y a escribir.
Ciertamente, algunos pueblos prefirieron permanecer con el sistema estatal,
en el que podían seleccionar profesores locales, a menudo bilingües, que aún
enseñaban de la manera conocida. Por ejemplo, el barrio de Ixcotla solicitó
a Andrés Lima, un maestro mayor, conocido por su habilidad para enseñar
a leer, quien además podía comunicarse en mexicano con los padres de
14. AHSEP, DGEPET, 1925, expediente 794.4, Informes del diretor federal A. Alaniz, para
esta y las siguientes referencias a Alaniz.

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familias indígenas. Lima había estudiado solamente hasta el sexto año; en
sus palabras, recurría a “sus cuarenta años de experiencia” para resolver los
problemas con sus alumnos.15 En 1933, Lima inscribió a 130 estudiantes en
primer año y reportó que 41 habían aprendido a leer bajo su estricta guía,
mientras que el resto sería retenido otro año, en parte por no dominar el
español. No instaló una biblioteca escolar y mencionó pocos textos en el
inventario; es probable que tuviera su propio método para enseñar a leer.16
De cualquier forma, parece que él mismo era un lector ávido, ya que reportó
haber consultado a más de una docena de libros de historia, gramática,
ciencia y aritmética para preparar sus clases, “tomando de varios autores
lo que es apropiado para los niños”. Esta posición refleja la concepción del
maestro como traductor oral de obras escritas que continuó influyendo en
la práctica años después de la Revolución.
Los inspectores federales depositaban sus esperanzas en los maestros
más jóvenes reclutados por el nuevo programa. En 1925, Alaniz había enviado
a las escuelas un modelo de horario que concedía un periodo diario de
lectura de treinta minutos, y otra media hora para ejercitar la composición,
gramática, conversación y recitación. Recomendaba, quizá por haber visto
lo contrario en las aulas, la enseñanza simultánea de lectura y escritura y
el uso del sistema mutuo, aunque estos cambios habían sido promovidos
desde el siglo XIX. Los resultados reportados eran irregulares. El inspector
Villeda encontró a una profesora que había limitado sus clases a “tomar la
lección”, queriendo decir probablemente que los estudiantes leían con voz
alta o recitaban partes del texto. Le aconsejó que “derivara y relacionara
los contenidos de las actividades prácticas”.17 Villeda también reportó que
trabajó con alumnos de tercer grado en Texcacoac, un barrio cercano al
centro obrero Santa Ana Chiautempan, para revisar su progreso; observó que
“podían leer con cierta corrección y eran capaces de comentar las lecciones
de su libro de texto”. Sin embargo, no habían hecho prácticas agrícolas, de
tal forma que concluyó: “Es la única escuela que no cumple con el plan”.

15. AHET, EP, 1918, expediente 27/58/3, que contiene las respuestas a una encuesta.
16. AHET, EP, 1929, expediente 234/6/20; AHET, EP, 1933, expediente sin número. Escuela
de Ixcotla.
17. AHSEP, DGEPET, 1925, exp. 794.4 Informes del director federal A. Alaniz, Informes
del inspector Villeda.

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Una década de formación docente empezaría a cambiar la vida cotidiana
en las escuelas. A la mitad de los años treinta, más maestros reportaban
trabajo en hortalizas e industrias rurales y solicitaban manuales prácticos,
además de libros de lectura. Sin embargo, el asunto de la lectura continuaba
emergiendo en los documentos administrativos. Una nueva ola de concursos
entre escuelas reforzó las prácticas tradicionales, al convocar a los estudiantes a
participar en competencias de recitación y dictado. En 1935, el inspector Nava,
al supervisar la habilidad de leer de algunos alumnos, recomendó lectura en
silencio.18 Ciertas pistas en sus informes acerca de la “lectura comentada”
y la “lectura en silencio” sugieren que los inspectores también promovían
la comprensión de múltiples textos de tipo informativo, al mismo tiempo
que fomentaban la pedagogía de la acción y los proyectos comunitarios.
Esta tendencia señala un paulatino cambio hacia de lectura extensiva que
acompañaba la retórica de aprender para la vida.
No obstante, la práctica real dependía en gran medida de las relaciones
establecidas entre maestros y comunidades. El desempeño de cada escuela
mejoraba o empeoraba cada año, según los inspectores, quienes reportaban
los distintos niveles de compromiso de los vecinos y los esfuerzos de los
profesores para cumplir sus órdenes. Mientras que en una escuela un inspector
había visto una biblioteca y un juego completo de libros para estudiantes, en
otra cercana observó que los niños “ni siquiera habían aprendido a cantar
una canción”. Un cambio de personal podía significar que los anteriores
esfuerzos por equipar una escuela se perdieran. Así, algunas escuelas que
tenían bibliotecas en 1933, ya no las reportaron en 1935 o 1937. Las precarias
condiciones de las escuelas rurales actuaban en contra de la supuesta
permanencia de la letra impresa. Al no contar con libros, muchos maestros
recurrían nuevamente a prácticas que no dependieran del texto escrito.
El contexto lingüístico de las escuelas de La Malintzi recibió poca
atención en los informes. Ocasionalmente los inspectores comentaban las
dificultades encontradas debido a que los estudiantes no hablaban español.
En 1925, Villeda reportó una visita a Ayometitla, remarcando que “la pobre
gente [...] era completamente retrógrada, ya que ni siquiera hablaban español”.
18. AHET, EP, inventario 1935, legajo 9. Informe que rinde Inspector de la primera zona,
26 de junio de 1935, prof. Esteban Nava.

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Pocos niños iban a la escuela, de tal modo que juzgó conveniente que el
maestro se concentrara en enseñar la lengua. En 1931, el inspector Rivera
informó de una visita al barrio de Xaltipan: “Les di clases de lectura, escritura
y aritmética a los niños. Cantaron y recitaron. Hablé con ellos con cierta
dificultad, ya que apenas entienden español”. Anotó en su informe que
solo 25 de los 84 niños hablaban español y podían leer y escribir, y solo dos
contestaban preguntas sobre héroes nacionales.19 Nuevamente, es necesario
imaginar cómo el ambiente sociolingüístico influyó en la práctica de la
lectura en estas escuelas. Muchos niños eran casi monolingües, y tenían
poca familiaridad previa con la palabra impresa que se encontraba en el
aula. Los pocos textos disponibles, aun aquellos que se referían a la vida
rural, eran distantes de las formas genéricas del español escrito conocidas
en las comunidades. Las prácticas de enseñar a leer y a escribir antecedían
el dominio del español oral, por lo cual se realizaban con poca comprensión
por parte de muchos alumnos.
Los padres veían la adquisición del español casi como la principal razón
para enviar a sus hijos a la escuela. Sin embargo, los maestros contaban con
pocos recursos para enseñarlo, aparte de conducir las clases en español,
pidiendo a los niños que leyeran en voz alta y corrigiendo su pronunciación
mientras leían. De hecho, este método fue recomendado por Rafael Ramírez,
defensor de la política de llevar la lengua nacional a todos los niños del país.
Las actividades prácticas pueden haber agregado nuevos contextos para que
los niños aprendieran a comunicarse en español, pero no encontré pistas
acerca del uso del español o del mexicano durante estas actividades. Como
la asistencia era irregular, es posible que muchos niños y niñas abandonaran
la escuela con poco conocimiento del español, aunque quizás habiendo
logrado otras habilidades útiles. Por ejemplo, Paula, una mujer de Xaltipan
que asistió a la escuela en los años treinta, me contó cómo había improvisado
usando papel de desecho para practicar la escritura. También había buscado
unas varitas rectas y había hecho cordón de maguey para aprender a tejer
con su maestra. Los libros de texto eran una referencia distante en sus
recuerdos de la escuela. Decía que no había aprendido a hablar español
19. AHSEP, DGEPET, 1926-1930, exp. IV/161 (IV-14) 21145, Escuela Rural Federal, Xaltipan,
Contla, Tlaxcala, 1930-1965.

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en ese tiempo, sino mucho después, cuando sus propios hijos asistieron
a la escuela (GALICIA, 1993). A la larga, el dominio del español en estas
comunidades tal vez dependió más de los cambios económicos que apenas
empezaban a ocurrir en ese tiempo, que de la propia escuela.
El panorama cultural de la región de Malintzi empezó a transformarse
durante los años treinta. Las comunidades se fueron incorporando
gradualmente a una red de organizaciones promovidas por el nuevo Estado
federal. La movilidad social aumentó cuando las carreteras y los autobuses
conectaron los poblados rurales con los nuevos centros industriales. Este
cambio alteró la relación local con la cultura escrita. En los archivos uno
puede rastrear en los expedientes de los pueblos la aparición gradual de
documentos mecanografiados, formatos impresos y cartas de los pueblos
con una cantidad creciente de firmas. Las fuerzas externas a la escuela
eventualmente influyeron en la experiencia local y en las expectativas escolares
en torno a la letra impresa.

Reflexiones finales: prácticas escolares y ambientes culturales


Algunas apreciaciones de las escuelas rurales subrayan la profunda
división entre una cultura escolar ajena y la vida cotidiana de los niños. En
este caso, la discontinuidad entre el ambiente bilingüe y el uso casi exclusivo
del español en la educación formal apoyaría esta postura. Sin embargo, son
interesantes las formas en que las culturas locales también lograron penetrar
en la vida cotidiana de estas escuelas. Los maestros llevaban al aula las
maneras de leer que ellos habían aprendido en sus propias trayectorias de
vida. La persistencia de prácticas escolares como trazar las letras, recitar de
memoria, copiar y leer en voz alta, adquiere un significado diferente a la luz
de la costumbre local y del lugar del español en la vida local. Estas prácticas
apoyaban y reflejaban las formas locales de leer y escribir, particularmente
textos religiosos y cívicos.
Al mismo tiempo, también estaban ocurriendo cambios en el entorno
social y cultural, al adoptarse mayor uso del español en los ámbitos del trabajo
y vida política de las comunidades. Cuando los educadores posrevolucionarios
promovieron la doctrina de ‘aprender para la vida’, por lo general tenían en

81 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


mente actividades prácticas y productivas que contribuyeran al bienestar
material y social del medio rural. También alteraban la relación tradicional
con la palabra escrita, al patrocinar bibliotecas y promover prácticas como
la lectura en silencio y las preguntas de comprensión de textos extensos.
Los libros no entraron fácilmente a la realidad del aula, ni antes ni después
de la Revolución. En parte esto se debía al costo de los libros, así como a la
dificultad de conservarlos. Impresos en español, presentaban problemas para
niños cuya lengua materna seguía siendo el mexicano. Además, el discurso
pedagógico a menudo se oponía al uso de los libros de texto y favorecía la
enseñanza por otros medios. Los pocos libros disponibles probablemente
servían para seleccionar extractos que se dictaban o se copiaban por los
alumnos, y cuyo contenido se explicaba oralmente por los maestros.
A principios del siglo, los pequeños textos religiosos y morales utilizados
para iniciar la enseñanza de la lectura resonaban con los usos rituales del
español, que eran familiares a los niños de los pueblos. Los libros de texto
diseñados para los grados superiores eran muy distintos. Sus contenidos,
aun cuando se refirieran al mundo rural, distaban mucho de los referentes
impresos locales y los nuevos géneros escritos no concordaban con aquellos
encontrados en el medio. Sabemos poco acerca de cómo los niños de los
pueblos rurales se relacionaban con el lenguaje utilizado en estos libros, o
incluso cómo habrán leído los nuevos textos que intentaban reflejar la vida
rural, si llegaban a sus manos.
En algún momento, hacia mediados del siglo XX posiblemente, la
práctica de una lectura intensiva de textos familiares se fue transformando en
acercamientos que permitieron una lectura extensiva de textos informativos.
Sin embargo, actualmente en la región, como en otras seguramente, se
encuentran huellas de la relación anterior con la letra impresa. La valoración
del maestro como poseedor de un conocimiento que debe transmitir
oralmente, en lugar de repetir las lecciones de los libros, ha persistido a
través de los años. La insistencia en ‘aprender para la vida’ ha validado la
inclusión de temas que no se encuentran en los programas. Ambas tendencias
contribuyeron a la prolongada desconfianza en ‘el conocimiento libresco’
presente en el discurso y en la práctica escolar local.

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Referencias
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Prácticas de consumo de los alumnos en clases de
ciencias de educación primaria

Antonia Candela

En este artículo interesa analizar los “procedimientos de consumo”


(CERTEAU, 1994) del discurso docente por los alumnos de escuelas
primarias de México. Las tácticas que utilizan los alumnos frente a las
prácticas docentes nos permiten estudiar cómo “se valen” de los enunciados
docentes para construir y defender puntos de vista alternativos. Se estudian
las prácticas escolares en clases de ciencias especialmente cuando se realizan
actividades experimentales. En este trabajo etnográfico se describen algunas
modificaciones históricas de las prácticas escolares que aquí se estudian en
su dimensión discursiva. Con sustento en los recursos analíticos del análisis
conversacional (ATKINSON; HERITAGE, 1984; SACKS; SCHEGLOFF;
JEFFERSON, 1974) se encuentra que los alumnos hacen “uso” de la ambigüedad
que existe en algunos enunciados docentes, generalmente preguntas, para
producir respuestas con significados diferentes, sin romper las reglas de la
secuencialidad entre turnos y el sentido de lo solicitado. Este fenómeno,
que puede denominarse “escuchar lo que interesa escuchar”, es interesante
para estudiar cómo cambia en el tiempo la competencia discursiva de los
alumnos para defender sus ideas manteniendo la estructura del discurso
escolar (IRE). Los estudiantes también se apropian y utilizan en su beneficio
algunos de los recursos discursivos docentes como es el de parafrasear

85 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


una respuesta previa o valerse de la estructura preferencial para rechazar
respuestas previas incluso del docente, y así consumir el discurso escolar
incorporándole distintos contenidos.

Introducción
Este trabajo etnográfico tiene por objeto analizar la contribución de
alumnos de escuelas primarias públicas de México, a las prácticas educativas
escolares a través de estudiar sus “procedimientos de consumo” (CERTEAU,
1994), del discurso docente en las aulas. Las prácticas educativas aquí se
estudian en su dimensión discursiva.
Interesa documentar algunas características del consumo de los alumnos
de los temas escolares en torno a actividades experimentales en clases de
ciencias naturales. Ubico el estudio en el contexto de un proceso histórico de
modificaciones curriculares1 de la enseñanza de ciencias naturales desde los
años 70 del siglo pasado, en el que se ha venido avanzando hacia perspectivas
constructivistas de enseñanza y a la inclusión de actividades experimentales
con el propósito de que la participación de los alumnos en los procesos
educativos sea progresivamente más significativa.
El estudio de las prácticas de “consumo” y el “uso” que hacen los alumnos
del contenido educativo presentado en el discurso docente, es necesario para
poder hablar de su aprendizaje. Estas prácticas de “consumo” forman parte
de lo que, articulado con las prácticas docentes, podríamos llamar “práctica
educativa”, esto es, la forma como se producen, consumen y por tanto se
reconstruyen las actividades y discursos en las aulas escolares.
Me aproximo al estudio de las prácticas educativas escolares desde
una perspectiva sociocultural de investigación cualitativa de la interacción
discursiva en las aulas, y retomo los aportes del análisis conversacional
(ATKINSON, 1988) para poder estudiar los detalles del “consumo” del
discurso docente por parte de los alumnos.

1. En México existen libros de texto oficiales y gratuitos que se distribuyen a todos los
alumnos de educación primaria. Estos textos y los programas educativos correspondientes
se han modificado en los últimos 50 años al menos en cinco grandes reformas educativas
(1970, 1982, 1993, 2006, 2014).

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La contribución de los alumnos a los procesos educativos escolares
ha sido el último factor históricamente tomado en cuenta en los procesos
educativos escolares, por las dificultades de observar y analizar la lógica de
sus contribuciones, en parte, por poner el foco de las investigaciones en el
papel central que tienen los docentes en las aulas (CANDELA; ROCKWELL;
COLL, 2004). Sin embargo, en este trabajo considero que no se pueden
comprender las prácticas escolares a profundidad sin estudiar el consumo y
las contribuciones de los alumnos al discurso y a las acciones en ese contexto,
aunque sean parciales y fragmentarias.
En el artículo se incluye el análisis de lo que podríamos llamar la
“estrategia” de enseñanza, que sería la utilizada por los docentes orientados por
el currículo oficial, pero se estudian especialmente las “tácticas” empleadas por
los alumnos para “coger al vuelo” (CERTEAU, 1994) los espacios abiertos en
el discurso docente y así estudiar las características que tiene su participación
en la práctica escolar.
Considero que la posibilidad de estudiar, desde una perspectiva histórica,
la contribución de los alumnos a las prácticas educativas no sólo depende
de las características cambiantes de los desarrollos curriculares y de las
prácticas docentes en las aulas, sino también de los avances históricos que
ha tenido la teoría sociocultural y los diferentes enfoques sociolingüísticos y
etnometodológicos, que permite visibilizar los detalles finos de la interacción
social.
Este trabajo inicia con descripciones de investigaciones realizadas en
aulas de educación primaria en México, en los años 1970 y 1980 pero se
aborda con mayor detalle el estudio de prácticas educativas desarrolladas
en épocas más recientes (desde finales del siglo XX) en las que, entre otros
cambios educativos y sociales, también se afinaron los recursos teóricos para
poder distinguir las formas de participación de los alumnos, previamente
oscuras a otras teorías y consideraciones.

Referentes teórico-metodológicos
La participación de los alumnos en las aulas escolares ha sido relativamente
poco estudiada y frecuentemente asumida como marginal, enfatizando el

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papel de ellos como receptores pasivos o repetidores de los textos escolares
y del discurso docente, como el dominante a nivel institucional. Si bien,
en la escuela primaria las maestras y maestros son los que proponen los
temas a estudiar, las actividades a realizar, los tiempos que deben emplearse
y frecuentemente las conclusiones a las que hay que llegar, en este trabajo
interesa indagar las formas de “consumir” el discurso docente, los “usos”
alternativos que los alumnos pueden hacer de él y cómo aprovechan los
espacios que pudieran abrirse en el mismo.
Estos usos y prácticas de consumo (CERTEAU, 1994) de los estudiantes
son poco evidentes en una primera mirada a la compleja trama de la
interacción discursiva del aula. Frecuentemente han sido descritos como ruido
o distracción de las tareas escolares e incluso como resistencia a aprender
(WILLIS, 1976).
Para poder estudiar los procedimientos y recursos discursivos que
los alumnos ponen en juego frente al discurso docente, utilizo un enfoque
etnográfico (ROCKWELL, 2009), enriquecido por la maquinaria teórico-
metodológica que aporta el análisis conversacional (EDWARDS; POTTER,
1992; GARFINKEL, 1967; SACKS; SCHEGLOFF; JEFFERSON, 1984) en el
estudio de la secuencialidad de los turnos de intervención discursiva. En
las investigaciones etnográficas se estudian los significados locales de las
acciones desde el punto de vista de los actores (ERICKSON, 1989, p. 196), lo
cual es central para poder analizar las intervenciones de los alumnos desde
su propia perspectiva.
En análisis conversacional la interpretación de un enunciado se decide
en la secuencia del turno siguiente, esto es, por lo que los participantes hacen
con él. Tomo en cuenta que el significado de un enunciado en el aula, incluye
tanto su contenido académico como los actos de habla, o sea, las acciones que
realiza el discurso de los participantes, a saber: argumentar, describir, culpar,
defender, convencer, imponer, rechazar, apoyar, evaluar, compartir, validar,
legitimar, cuestionar, ejemplificar y otras muchas (AUSTIN, 1962). Así, el
sentido de cada intervención se decide por la manera como la interpretan
y actúan frente a ella los participantes, considerando el habla como acción
situada en contexto discursivo (EDWARDS; POTTER, 1992).

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En este sentido es particularmente productivo el análisis de las secuencias
atendiendo a la organización preferencial de acuerdos y desacuerdos con
los turnos previos (POMERANTZ, 1984). Anita Pomerantz (1984) analiza
un tipo de propiedades de la estructura preferencial como son las diferentes
maneras como los segundos turnos de habla acuerdan o desacuerdan con
el turno previo (pares adyacentes). Ella encuentra varias reglas particulares
sobre cómo actúan la primera y la segunda afirmación (assessment), que es
la que se realiza después de un primero enunciado. En este trabajo hago
referencia a la propiedad de la estructura preferencial de que si la segunda
afirmación no actúa como una aceptación inmediata (sin pausa de por
medio) del turno previo, su función es la de rechazo del mismo.
Por otro lado, considero que el discurso escolar, así como el cotidiano
y el de la ciencia, tiene una organización retórica o argumentativa (BILLIG,
1987), y por eso el estudio retórico del discurso contribuye a comprender
la lógica de los “consumidores” (CERTEAU, 1994). También asumo que
la enseñanza es retórica ya que, para que ésta ocurra, el maestro requiere
ganar el consentimiento y la participación activa de los alumnos a través de
la persuasión (CANDELA, 1998; ERICKSON, 1989, p. 240).
Retomo también las definiciones de “estrategia” y de “táctica” que utiliza
Certeau (1994) para distinguir entre lo que serían las intervenciones docentes
(estratégicas) como las dominantes en las aulas por ser las que conducen
la interacción y representan al poder institucional, de las de los alumnos
(tácticas) por ser, lo que podríamos considerar, los “consumidores” del
discurso docente y de las actividades educativas. Certeau (1994, p. XLIX)
considera como “estrategia, al cálculo de relaciones de fuerza que se vuelve
posible a partir del momento en que un sujeto de voluntad y de poder es
susceptible de aislarse de un ‘ambiente’”. Si bien las relaciones de fuerza para
Certeau pueden considerarse como las que ejercen los docentes cuando
definen su práctica desde un “lugar propio” para manejar la racionalidad
institucional y científica en el aula, esta racionalidad solo es relativamente
posible de aislarse del ambiente en las prácticas educativas, porque aunque
el docente la haya definido previamente en aislamiento, en el aula la tiene
que adecuar a las condiciones cambiantes del contexto físico y las que se
producen por las intervenciones de los alumnos.

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En cuanto a la “táctica”, se puede decir que corresponde a la utilizada
discursivamente por los alumnos en el aula ya que, como plantea Certeau
(1994), ésta no tiene un lugar propio, no tiene más lugar que el del otro que
en este caso sería el del maestro que orienta el camino a seguir. Al no tener
un lugar propio los alumnos tienen que aprovechar los espacios abiertos en
la práctica y el discurso docente para tratar de introducir sus puntos de vista,
aunque sea de manera fraccionaria y utilizando los recursos disponibles.
Las situaciones que Alan Grimshaw (1990) define como “habla
conflictiva” son especialmente interesantes para encontrar momentos en
los que aparecen malentendidos o interpretaciones alternativas que los
alumnos expresan en la interacción y por tanto la parte explícita del uso
que ellos hacen del discurso y práctica docente. Así, me propongo estudiar
el arte de “valerse de”, que los alumnos ponen en juego para defender sus
interpretaciones del discurso docente y de las actividades que se realizan.
Para estudiar las tácticas utilizadas por los alumnos en escuelas primarias
oficiales de la Ciudad de México desde una perspectiva histórica, analizo un
trabajo estadístico y otro etnográfico basado en registros de clases de ciencias
naturales, ambos realizados a finales de los años 1970. Posteriormente se
analizan transcripciones especializadas de grabaciones de audio y video de
diferentes extractos de observación realizados desde finales del siglo pasado
en los cuales se identificó habla conflictiva, para distinguir los detalles del
discurso de los niños. El manejo discursivo que los participantes hacen de
las contradicciones, de los malentendidos y de las diferencias de opinión,
pone en evidencia las tácticas de “consumo” de los alumnos del discurso
docente, así como el lugar que ellos establecen interactivamente en esta
situación social.
Centraré el trabajo en el estudio de la competencia que los niños
despliegan para aprovechar la ambigüedad inherente en algunos enunciados
docentes y así posicionarse para negociar sus puntos de vista. El estudio de
la manera como los alumnos aprovechan la ambigüedad lingüística implícita
en algunos enunciados es tan solo uno de los recursos que ellos usan para
“valerse de” esos espacios abiertos en el discurso docente. Pongo el foco en
la categoría de “ambigüedad” por aparecer como una característica de los
enunciados que los alumnos “usan” frecuentemente y, además, porque ha

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sido poco abordada de manera sistemática en este campo de investigación.
Sin embargo, en los análisis realizados también encuentro otros recursos
usados por los niños, como el parafraseo y la argumentación para tratar de
convencer a otros de la validez de sus versiones, así como su competencia
para construir consensos alternativos al del docente.

Uso de la ambigüedad discursiva por los alumnos en las aulas


Schegloff (1984, p. 51) analiza el problema de la ambigüedad planteando
que “el descubrimiento de que la ‘misma frase’ o el ‘mismo componente’
puede tener ‘diferentes significados’ en un rango imaginado de escenarios
es el núcleo del problema de la ambigüedad” y añade que “la mayor parte
de las ambigüedades teóricas y heurísticas nunca aparecen debido a que
determinados participantes en determinada conversación no encuentran
los enunciados como oraciones aisladas”. También menciona que en una
conversación natural el problema de la ambigüedad puede ser visto como
un “problema del escucha” o como una consecuencia natural de la búsqueda
de la “racionalidad” del discurso.
Harvey Sacks (1992, p. 671-672) aclara que existen ambigüedades en el
discurso cuando una frase o una palabra puede ser interpretada de diferente
manera, como son las ambigüedades a las que se refiere Shegloff, pero añade
que también hay lo que él llama “ambigüedades en la secuencialidad”. Estas
últimas se refieren a la posibilidad de turnos secuenciales de diferente
orientación, que se sustentan en la multifuncionalidad de los enunciados por
las diferentes acciones que un acto de habla puede realizar simultáneamente
(AUSTIN, 1962) y que se realizan sin romper las reglas de la secuencialidad.
Desde el punto de vista de la pragmática, la ambigüedad en los actos de
habla depende del contexto de la enunciación, esto es del sentido que los
participantes asignan a los turnos previos. Por tanto, según estos autores,
hay una ambigüedad que se refiere a la interpretación del contenido de un
enunciado y otra que se refiere a las diferentes acciones simultáneas que un
enunciado realiza.
En el habla entre múltiples sujetos como es la de un aula escolar, el
fenómeno de la ambigüedad puede manifestarse en ambos sentidos, por lo

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que interesa estudiar tanto el significado que los alumnos otorgan al contenido
de un enunciado docente como al uso que hacen de la multifuncionalidad
de dicho enunciado.
En particular resulta interesante estudiar las “preguntas” en el aula como
aquellas expresiones en las que se pueden estudiar los “pares adyacentes”.
Las preguntas son también parte central de la estructura del discurso en las
aulas escolares (IRE=Pregunta/Respuesta/Evaluación) como fue establecido
inicialmente por Sinclair e Coulthard (1975) para posteriormente formar parte
de un consenso entre los investigadores del discurso escolar (CANDELA,
1998; HICKS, 1996).

Primeros estudios sobre la interacción en clases de ciencias


realizados en México
Los primeros trabajos en los que se puede rastrear la contribución de los
alumnos a las prácticas educativas en clases de ciencias de escuelas primarias
en México son los que se realizaron en el Departamento de Investigaciones
Educativas del DIE en los últimos años de la década de los 1970 y después
de una reforma educativa realizada entre 1972 y 1976 (CANDELA, 1989).
Un primer estudio de observación de prácticas en clases de ciencias
naturales (GUTIÉRREZ-VÁZQUEZ; NÚÑEZ, 1980) se realizó para evaluar
si se seguían las orientaciones de los libros de texto de esta reforma. Con una
aproximación estadística y funcionalista, característica de los años 1970 y
1980, pero aún presente en nuestros días, se pretendía estudiar la enseñanza
para clasificarla en base a categorías como si es pasiva o activa. Se observaron
88 clases de ciencias y se cuantificaron 7 tipos de actividades en aulas de 30
maestros en 5 escuelas de la Ciudad de México.
Como Certeau (1994) plantea, las investigaciones estadísticas extraen los
procedimientos de su contexto histórico y local e ignoran las operaciones de
los participantes; ven el material de las prácticas pero no su forma, por lo que
no pueden estudiar la práctica educativa desde la perspectiva de los actores.
Esta investigación clasificó las prácticas docentes cotidianas, pero aislándolas
del contexto. Sin embargo, algunos resultados de este estudio son interesantes
para nuestro propósito. Se observaron 93 actividades experimentales, 70%

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de las cuales fueron realizadas en el aula, 13% de tarea y 9% fueron solo
leídas. De éstas actividades, solamente en 40 casos los alumnos manipularon
objetos, en las demás situaciones ellos sólo observaron el trabajo realizado
por el docente. Además, los resultados de las actividades solo se discutieron
en dos ocasiones.
Esta situación, en cierto sentido, refleja una primera aproximación
docente a las prácticas experimentales que dominaban en la propuesta de
esa reforma y las cuales no tenían claros antecedentes en la formación de
profesores de la época. Se podría interpretar que realizar las actividades
experimentales frente al grupo para que los alumnos las observen es una
manera de asegurarse una adecuada realización de los experimentos cuando
no se está seguro de sus resultados ni se tiene la experiencia necesaria
para su manejo pedagógico. El que no se discutan los resultados de estas
actividades también podría ser un reflejo de la inseguridad de los docentes
para incorporar los experimentos a sus prácticas, posiblemente debido a
las preguntas o interpretaciones inesperadas que estas actividades pueden
sugerir a los alumnos. Pero también puede representar la reproducción de
una práctica cotidiana orientada a la imposición de contenidos científicos,
tal como aparecían literalmente en los libros de texto. En este trabajo no
tenemos datos que permitan analizar los usos que los alumnos hacían del
discurso docente.
A diferencia del estudio estadístico anterior, y por la misma época,
el trabajo de Rockwell y Gálvez (1982) es una investigación cualitativa de
la práctica educativa en las aulas escolares que abre un campo de estudio
pionero en América Latina, para acercarse a la comprensión de la trama de
relaciones sociales que delimitan el conocimiento que es posible construir,
a partir de la configuración de estas prácticas en las aulas. Este trabajo tiene
su foco en la presentación y conformación del conocimiento científico
realizada por la práctica docente. Se abordan elementos como: presentación
del conocimiento, estructura de la clase, organización de la misma, actividad
de los alumnos, pautas de interrogación e integración del conocimiento; lo
cual incluye a los alumnos como uno de los elementos de la trama entre
ellos, los docentes y el contenido.

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En esta investigación se afirma que: “El texto escrito, es el principal
apoyo material de la clase… y que, si bien la dinámica de la clase asigna al
texto distintos usos y funciones, éstos suelen ser simple vehículo del ritual de
comprensión de lectura que se da entre docentes y alumnos” (ROCKWELL;
GÁLVEZ, 1982, p. 129). También se reconoce que “la relación entre enseñanza
y construcción del conocimiento a partir de una clase, se complica al tratar
de establecer relaciones entre las formas de trasmisión y los procesos de
razonamiento” (ROCKWELL; GÁLVEZ, 1982, p. 131) de los alumnos. Pero
lo más significativo para el estudio que pretendo abordar, es que el análisis
basado en registros etnográficos de la interacción en el aula ya permite aportar
algunas consideraciones fundamentales para que en trabajos posteriores
se pudiera estudiar en detalle la manera como los alumnos “consumen” o
comprenden las lecturas y el discurso docente. Me refiero, por ejemplo, a la
idea de que los alumnos atienden simultáneamente a la lógica del contenido
educativo y a la lógica de la interacción social.
A continuación, describiré parte de una clase sobre “La combustión”
en la que Rockwell y Gálvez (1982) estudian las prácticas educativas en las
aulas. El tema es una lección del libro de texto de Ciencias Naturales de 5º
grado de primaria (ROCKWELL; GÁLVEZ, 1982, p. 67-72) de la reforma de
los 1970. La clase se desarrolla en torno a la lectura en silencio del libro de
texto y a la solicitud de la maestra de que los niños expliquen lo que leyeron.
Algunos experimentos se intercalan e integran a la actividad fundamental
de lectura del texto; planteando en el aula algunas de las preguntas que se
incluyen en el mismo.
Al tener que comentar estas preguntas con la maestra, en el artículo
se plantea que “generalmente los alumnos buscan, con impresionante
habilidad, la respuesta aceptable en el texto escrito, disociando así su propia
confrontación con el fenómeno de la interacción sobre el tema que exige el
rito escolar” (ROCKWELL; GÁLVEZ, 1982, p. 132). Esta afirmación muestra
que los niños tienden a apoyar sus intervenciones en un consumo textual
del libro de texto, o al menos que, por los datos recogidos en ese momento
y por el propósito del trabajo, no es posible analizar otras formas como los
alumnos “consumen” el proceso de enseñanza.

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Aunque el artículo no contiene mucha información sobre diálogos,
hay algunos fragmentos que permiten analizar las intervenciones de los
alumnos y por tanto su consumo del texto escrito y del discurso docente.
Por ejemplo, después de leer en el libro de texto: “sólo el oxígeno del aire
participa en la combustión”, algunos alumnos hacen comentarios que no
aparecen en el texto:
Fragmento 1.
Ao: Que si quemarnos carbón en una hornilla se va a necesitar
un abanico o un soplador.
Aa: Que el aire mantiene la combustión.
Ma: ¿Quién favorece que se queme el carbón?
As: El oxígeno (a coro).

El primer enunciado de un alumno muestra su comprensión del


contenido del texto al incorporar la manera como esta necesidad de oxígeno
se manifiesta en una posible experiencia cotidiana de este niño, como la de
quemar carbón. La siguiente intervención de una niña parece querer reforzar
esta idea, pero menciona “el aire” como el que mantiene la combustión. La
pregunta secuencial de la maestra es recibida por el resto de los alumnos como
un rechazo al aire mencionado previamente porque no es una aceptación
explícita (POMERANTZ, 1984), ya que responden a coro que es el oxígeno
el que favorece la combustión. Esta pregunta parece actuar también como
una demanda de que se incorpore el contenido leído. Este caso pone en
evidencia la competencia de los niños para comprender el texto leído, pero
también su manejo de las reglas de comunicación en el aula, atendiendo al
sentido implícito de la intervención docente con la pregunta/rechazo, por
lo que ignoran el aire e incorporan el oxígeno en referencia al contenido
del libro de texto.
Más adelante, y a propósito de otra pregunta de la maestra sobre una vela
encendida que se tapa con un frasco y se apaga después de unos segundos,
se da el siguiente intercambio:

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Fragmento 2.
Ma: ¿Qué más se ve en una combustión?
Ao: Luz y humo.
Ma: ¿Se producirá algo más que luz y calor?
Ao: Humo.
Ma: Bióxido de carbono, anoten.

En esta situación y frente a la pregunta de la maestra sobre lo que “se ve”


en una combustión, los alumnos incluyen a la luz y al humo, posiblemente
en relación a lo que observan en la actividad. Sin embargo, en el enunciado
posterior de la docente, en forma de pregunta (“¿Se producirá algo más que luz
y calor?”) ella parafrasea esta respuesta incluyendo a la “luz” pero omitiendo
“el humo” e introduciendo el “calor”, como producto de la combustión. Esta
nueva pregunta abre un espacio que es aprovechado por otro niño para
reintroducir el humo. Pero la docente lo rechaza directamente al ignorarlo
y mencionar el bióxido de carbono.
Si analizamos estas intervenciones docentes podemos ver algunas
estrategias que frecuentemente son utilizados en la práctica educativa para
orientar a los alumnos hacia un resultado sin plantearlo abiertamente y sin
analizar las respuestas alternativas. Una es el parafraseo donde se omiten
elementos del turno previo y se incluyen otros adicionales con lo que se
acepta parte de la respuesta previa y se rechaza otra parte. La segunda es la
introducción de preguntas que juegan un papel ambiguo porque actúan al
mismo tiempo como rechazo a parte o al total de las intervenciones previas,
y también como demanda de nuevas respuestas. Otro recurso que vemos en
este fragmento es el de ignorar una respuesta, con lo que implícitamente se
rechaza, como ocurre después del segundo enunciado a favor del humo. En
este caso, ella incluye directamente la respuesta que ella esperaba (“bióxido
de carbono”), que es lo que se indica en el libro de texto, reforzándola con
un “anoten” para legitimarla y que quede formalmente registrada.
Si atendemos a las respuestas de los alumnos, vemos que inicialmente
aportan su opinión, pero, frente al rechazo parcial de la maestra a uno de
elementos (el humo), un niño parece aprovechar la ambigüedad inherente en

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la intervención docente – que rechaza el humo pero que también pregunta si
se produce algo más que luz y calor –, para volver a defender al humo como
producto de la combustión. La respuesta de este niño puede interpretarse
como una incapacidad de distinguir que la maestra acaba de rechazar al
humo como producto de la combustión o como que, aun entendiendo este
rechazo (POMERANZ, 1984), él tácticamente aprovecha la pregunta docente
para volver a plantear su punto de vista, en lo que podríamos denominar
“escuchar lo que se quiere escuchar”, pues toma en cuenta que en la pregunta se
demanda si se “producirá algo más”. Cualquiera que fuera la situación, estamos
empezando a ver una forma de “consumo” de los enunciados docentes en la
que los alumnos “se valen de” las características lingüísticas de los mismos,
como es la ambigüedad secuencial por la multifuncionalidad de las acciones
de los enunciados, como táctica para manifestar puntos de vista propios.
Estos dos ejemplos ya indican algunas prácticas de consumo del
discurso docente por parte de los alumnos, pero también indican una fuerte
dependencia tanto de la maestra como de los alumnos del libro de texto, ya
que estas prácticas escolares parecen orientadas a la reproducción textual de
lo planteado en este, sin que quede claro si los alumnos están convencidos
de lo que se plantea.

Trabajos posteriores sobre interacción discursiva en el aula


El siguiente extracto proviene de una investigación etnográfica realizada
al final de los años 1990 (CANDELA, 1999) en el que también se estudia
la participación de los alumnos en clases de ciencias. El fragmento que se
analiza a continuación muestra una interacción natural durante una actividad
en un grupo de quinto grado de primaria, en una escuela de una zona
marginal de la Ciudad de México, veinte años después de las situaciones antes
analizadas. Tanto la trascripción de la secuencia con notación especializada2
como el análisis que se realiza están orientados por los recursos del análisis
conversacional.
La actividad es retomada del libro de texto oficial de ciencias naturales,
alrededor del tema de la gravedad. Consiste en que los estudiantes hagan

2. Anexo 1.

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una lista de diez sustancias que ellos quieran y las ordenen en una tabla,
de la más densa a la menos densa. En esta propuesta no se pretendía que
los alumnos sacaran conclusiones de algún experimento propuesto en el
texto, sino que expresaran sus ideas sobre el tema de las densidades relativas
de los materiales. La selección de esta propuesta ya indica una confianza
mayor de los docentes para realizar actividades que no tienen una respuesta
preestablecida en el libro de ciencias naturales. El extracto muestra la dinámica
en el grupo para elaborar una lista única a partir de lo realizado por cada
alumno. Es parte del debate para decidir la posición que deben ocupar en la
lista colectiva el plomo y el acero, que casi todos los niños incluyeron en los
primeros lugares de su lista. La maestra acaba de decir: “Tenemos una bolsita
del mismo tamaño con cada uno de los materiales, para que podamos hablar
del mismo volumen, ahora ¿cuál va a ser más pesado?”. A continuación la
interacción discursiva con las respuestas de los alumnos:
Fragmento 3.
147 Ao26: el plomo
148 Ma: ^el plomo es más pesado:? (.2) por qué:?
149 Ao: ay no:: ((por el tono parece como que se retracta))
150 Ao26: porque tiene más materia::
151 Ma: [Si:::?
152 Aa: [más materia
153 Ao29: no:: (.) el plomo casi no pesa (.) maestra
154 Ma: >el plomo no pesa mu:cho<
155 ((la maestra lo dice en tono de confirmación mirando a Ao26))
156 Aos: ja ja ja ja ja::: ((mirando a Ao26))
157 ** Ao4: TAMPOCO EL ACERO.

En la línea 148 la intervención de la docente responde a la afirmación de


uno de los niños acerca de que plomo es el más denso, con una pregunta.
148 Ma: ^el plomo es más pesado:? (.2) por qué:?

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Los siguientes turnos secuenciales clarifican la interpretación que los
participantes otorgan a la intervención de la maestra.
149 Ao: ay no:: ((por el tono parece una retracción))
150 Ao26: porque tiene más mate::ria

Los alumnos ofrecen dos respuestas diferentes que dan distintos


significados al turno 148. El turno 149 parece ser una retracción que indica
que el niño interpreta el turno docente como una acción de rechazo de la
afirmación sobre el plomo, dado que la maestra no realiza una aceptación
explícita de lo que Ao26 dijo (POMERANTZ, 1984) y él modifica su opinión
atendiendo a lo sugerido (ay no::). Pero, en el turno 150, Ao26 aporta una
justificación explicando que el plomo es más pesado que el acero “porque
tiene más materia”. De manera que Ao26 está tomando la enunciación de la
docente como una demanda de argumentos que sustenten por qué el plomo
es el material más pesado, y él aporta una posible explicación.
La diferencia entre estas respuestas secuenciales parece tener origen en
la ambigüedad funcional de la enunciación de la docente (rechazo/demanda
de justificación). Esta ambigüedad producida por la organización secuencial
de los turnos y su multifuncionalidad, abre espacios que tácticamente los
alumnos usan para defender puntos de vista alternativos sin romper con
las demandas de la maestra.
En respuesta a la nueva intervención de Ao26, la docente vuelve a
producir otra pregunta multifuncional:
151 Ma: [Si:::?

Superpuesta con la intervención docente, una niña repite “más materia”


como confirmando el argumento aportado por Ao26 previamente.
152 Aa: [más materia

Pero inmediatamente después Ao19 plantea:


153 Ao19: no:: (.) el plomo no pesa mucho (.) maestra

La pregunta docente (línea 151) vuelve a ser ambigua al ofrecer a los


niños dos opciones, ya sea retractarse o mantenerse firmes y argumentar

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a favor del plomo. La primera respuesta de una niña (línea 152) refuerza la
intervención de Ao26 al repetir “más materia”, mientras que Ao19 (línea 153)
parece responder al rechazo de la maestra a la respuesta de Ao26, aportando
un argumento contrario al de sus compañeros. De manera que esta respuesta
de Ao19 no solo cuestiona la versión del plomo sino que ofrece un argumento
para refutarla (“el plomo no pesa mucho”).
Sin ninguna pausa de por medio, la maestra retoma la respuesta de Ao19
y la acepta repitiéndola lentamente, como para que la escuchen bien todos.
154 Ma: >el plomo no pesa < mu::cho

Repetir una afirmación es una forma de mostrar acuerdo con ella


(POMERANTZ, 1984). Además, esta afirmación de la docente es la primera
ocasión en la que ella manifiesta abiertamente su punto de vista, el cual devela
desacuerdo con la intervención de las líneas 147 y 150, en discrepancia con
la opción del plomo sostenida por Ao26.
Esta interpretación del rechazo a la versión de Ao26 se sostiene por
la mirada que la docente le dirige a este niño mientras dice que el plomo
no pesa tanto (línea 154). La dirección de su mirada, especialmente en una
interacción con muchas personas (33 en este caso), es una forma de indicar
a quién, especialmente, se dirige el enunciado.
La manifestación de la opinión explícita de la maestra, a pesar de ser
ella la que representa la autoridad institucional en el aula, vuelve a producir
dos formas distintas de consumirla por parte de los alumnos. Por un lado,
parece haber un reconocimiento de que la maestra tiene razón al rechazar el
plomo porque muchos niños se ríen mientras miran a Ao26, un poco como
burlándose de él y posicionándose en acuerdo con la maestra. Pero, por
otro lado, en la línea 157, otro niño, que no había participado en el debate,
interviene en voz alta con una afirmación contra la postura docente, que
parece contundente, porque es realizada levantando el volumen de voz.
157 ** Ao4: TAMPOCO EL ACERO

Los alumnos (línea 149 y 153) aceptan la intervención de la maestra e


incluso dan argumentos (línea 153) a su favor, pero la intervención de Ao4
es de un fuerte rechazo a ella, al negar implícitamente que el acero pese más

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que el plomo. Esto es una manifestación diferente a la de “valerse de” la
ambigüedad pues representa un “consumo” en abierto rechazo al contenido
afirmado en el enunciado docente y su papel de autoridad para legitimar el
contenido en el aula. Pero también es interesante notar que el procedimiento
para manifestar la versión contraria a la de la maestra “usa” el recurso de
parafrasear el enunciado de ella. Aplica al acero la afirmación de que “no
pesa” en vez de al plomo para reorientar el argumento del peso contra lo
que él considera una versión incorrecta.
En este fragmento de apenas diez turnos y que ocurre en solo unos
segundos, podemos distinguir, gracias a los detalles del discurso que detectamos
con los recursos del análisis conversacional, varias manifestaciones de cómo
“consumen” los alumnos, tanto las intervenciones como las actividades que
proponen los docentes. Mientras que la maestra propone hacer una lista
de los materiales de los más densos a los menos densos (concepto que en
el curso de la interacción se modifica por el de más o menos peso) y busca
orientar las versiones que los alumnos van proponiendo, este intercambio
se convierte en un debate o argumentación entre la versión que defiende la
maestra y la que defienden varios alumnos. El uso que hacen los niños de la
ambigüedad de los enunciados de los profesores así como el abierto rechazo
a la versión de la maestra parafraseando la postura de ella.
En estos ejemplos los niños no consumen pasivamente las orientaciones
docentes, sino que utilizan varios recursos, o lo que Certeau (1994) llama
“tácticas”, para defender puntos de vista distintos a los de la autoridad
institucional y lo hacen sin romper las reglas de la secuencialidad. Los
alumnos se “valen tácticamente de” la ambigüedad de las preguntas, y se
apropian del recurso de parafrasear los enunciados docentes para revertirlos
a favor de sus propias versiones.
El debate sobre los materiales que deben aparecer en la lista, según
sea su densidad, continua. Después de varios turnos en donde los alumnos
seguían proponiendo el plomo para los siguientes lugares en la lista y la
maestra lograba incluir a otros materiales antes del plomo, en medio de mucha
discusión entre todos los niños, la maestra pregunta sobre el material que
ocuparía el quinto lugar de la lista. Los niños vuelven a defender abiertamente
la inclusión del plomo en la lista de la siguiente manera:

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Fragmento 4.
395 ** Ao8: ^ AHORA SI maestra
396** Aa: EL [PLOMO
397** Ao: [plomo

La intervención de Ao8 y la de la niña (línea 396), realizadas en voz


alta para que no haya duda, muestran una clara demanda insatisfecha en
turnos previos.
Sin embargo, la maestra nuevamente logra introducir un debate entre
el plomo y otro material que en este caso es el vidrio, para disputar el quinto
lugar.
Fragmento 5.
403 * Ao8: ^en quinto lugar el ^ plomo (.) maestra
404 * Ma: dicen por acá que el plomo (.)
405 * y por acá que e:l vi::dri:o
406 * Aa16: /no::::: (.) el plomo ((decepcionada))
407 * Ao10: el [vidrio

Esto nuevamente produce dos respuestas: mientras que la niña Aa16


se decepciona de la repetida estrategia docente para desplazar al plomo, e
insiste en el plomo, Ao10 acepta la sugerencia de la maestra y propone el
vidrio para el quinto lugar. A diferencia de la estrategia que veíamos en el
trabajo de Rockwell y Gálvez (1982), en el que la maestra, sin argumentación
alguna simplemente planteaba cuál era la respuesta “correcta” (bióxido
de carbono), en este caso la docente parece verse obligada a justificar su
alternativa tomando en cuenta lo que piensan los niños. Esto lo hace a
través del recurso de poner a votación la respuesta, que ella sugiere que es
el vidrio, por la forma en que lo prioriza en la pregunta:
Fragmento 6.
423 Ma: y quién dice que el vi:drio pesa má:s que el
424 plo::mo:?
425 ((ninguno levanta la mano))
426 ** As: ^^HA:: HA:: HA:: ((risa generalizada))
427 ** As: SH::: SH:: ((chiflidos))
428 ** As: yu:ju:: yu:ju:::

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Pero, a pesar de la orientación sugerida, ningún niño vota por el vidrio
(línea 425) lo que implica que todos están a favor de que el plomo ocupe el
quinto lugar de la lista, además, a continuación, se generalizan las expresiones
de triunfo entre los alumnos.
En este ejemplo destaca el papel que van teniendo las intervenciones
de los estudiantes para llegar, incluso, a construir un consenso alternativo
en el aula, donde todos los niños terminan votando contra la postura de
la maestra que intenta rechazar el plomo de varios lugares en la lista. En
entrevista colectiva posterior con varios niños, ellos aseguran que han visto
que se usa el plomo para la plomada que utilizan los albañiles para comprobar
la vertical de paredes, por lo que su consumo crítico parece partir de una
experiencia de su vida cotidiana.
Podemos ver que, en este caso, el poder institucional de la docente
como la “fuerte” o la que tiene la “legitimidad institucional” para orientar la
dinámica interactiva hacia las respuestas “correctas” en el aula, se revierte, para
revertir coyunturalmente la correlación de fuerzas a favor de los alumnos,
por su capacidad de orientar las conclusiones que se van construyendo, aún
en contra de la postura docente. En este caso, los alumnos parecen aliarse
para defender su versión frente a la de la maestra, a través de “valerse del”
recurso de la votación. De esta manera parecen transformar la estrategia
docente de la votación en una táctica en su beneficio.
Este caso muestra que las prácticas educativas parecen ir cambiando
históricamente abriendo la posibilidad de que en el aula se produzcan
alineaciones diversas, en ocasiones aceptando la versión del que
institucionalmente parece tener el poder y en otras apoyando versiones
de pares, llegando incluso a construir consensos en contra de la autoridad
docente.
La realización de la misma actividad en un salón de clase de otra escuela
primaria muestra que los alumnos pueden ir más allá de “valerse de” la
votación en beneficio de la versión del contenido que prefieren. En el siguiente
fragmento se trascribe una discusión sobre el lugar que pueden ocupar la
madera y el hierro en la lista de densidades.

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Fragmento 7.
46 Mo: SI HIJO (.) DIME ((en voz alta frente a la insistencia
del niño en participar))
47 Ao1: que <a veces> (0.2) la madera es más pesada
48 que’l:::: hierro
49 Mo: ¿seguro?
50 As: sí:::
51 Ao1: sí porque (.) a ver, cárguese un árbol a ver si no
52 ** está pesado
53 ** ((hay muchos comentarios de unos niños con otros. El
54 ** maestro se sonrie))
55 * Mo: bueno (0.2) pongamos el fierro (.) por mayoría de
56 opiniones, luego vamos a hacer una lista=
57 Ao: =¿cómo vamos a saber si ya está:: bien?
58 Mo: A ver (0.2) tú Rubén tú pasas (.) a poner la
59 segunda?

Este es un ejemplo en el que los alumnos ya no producen respuestas


con diferente orientación ante una pregunta del maestro (¿seguro?) que
conversacionalmente actúa como una refutación del turno previo. La
intervención de Ao1, después de que había estado insistiendo en participar,
parece convencer a sus compañeros que producen un “si:::” colectivo apoyando
su versión a favor de la madera y rechazando la refutación al hierro, implícita
en la pregunta del maestro.
Resulta interesante que aquí los niños ignoran el rechazo que implica
la pregunta docente y aprovechan la enunciación de Ao1 para construir
un consenso alrededor de él, ya que no aparece ningún alumno apoyando
una opción diferente. La intervención inmediata de Ao1 produciendo un
argumento de por qué la madera es más pesada que el hierro, parece responder
a una interpretación de este niño de que la situación momentánea lo favorece,
pues toma la palabra y refuerza su posición aportando un ejemplo a manera
de argumento a favor de la madera.
Después del argumento empírico de Ao1 (línea 51), se escucha un fuerte
rumor de los niños comentando unos con otros. Al mismo tiempo el maestro

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se sonríe. La sonrisa sin aportar ningún cuestionamiento al argumento de
Ao1 puede interpretarse como un reconocimiento del ingenio de Ao1 para
defender su punto de vista.
El “si:::” colectivo y la sonrisa del docente parecen producir un efecto de
apoyo a la versión de Ao1. Se modifica el contexto y se pasa a una situación
en la que el murmullo parece reforzar un consenso de cuestionamiento de la
posición jerárquica del docente como el que sabe más. Esta transformación
local de la posición de poder del maestro en el aula se puede interpretar
porque se deja de respetar el silencio que se requiere para escuchar su palabra,
además de que el mismo maestro se sonríe ante esta intervención.
El cambio de situación que estas intervenciones parecen producir y lo
que podríamos llamar las “jugarretas”, que los alumnos utilizan en el aula
para defender sus puntos de vista, parecen dejar al maestro sin argumentos.
El siguiente turno que él produce lo lleva a dejar el debate en el que trataba de
conducir a los alumnos a una posición, para emitir un enunciado a favor del
hierro, después de un lapso de dos segundos en el que parece estar pensando
qué va a decir. Sin embargo, sustenta esta afirmación con el argumento de
“mayoría de opiniones” de los alumnos, reconociendo implícitamente que
su punto de vista no es suficiente para ser aceptado por ellos.
Su estrategia sería equivalente a la de la maestra que plantea el bióxido
de carbono, pero en este caso el docente si aporta un argumento, que
“aparentemente” toma en cuenta las ideas de los alumnos, al plantear que
la mayoría de ellos se alineaban a favor de la misma. Lo que resulta más
interesante es que en este caso la estrategia de “mayoría de opiniones”, que
utiliza el docente para defender su postura a favor del hierro, ya no es aceptada
por todos los alumnos, como sí ocurrió aparentemente en la situación
mostrada en los fragmentos 4, 5 y 6. Un alumno (línea 57) la recibe como
una opción que no ha producido una prueba convincente (“¿cómo vamos
a saber si ya está:: bien?”). Esta pregunta no solo cuestiona como válida la
opción que parece defender el maestro sino el procedimiento para validarla.
En estos análisis vemos que los alumnos de primaria en México no
siempre consumen pasivamente el discurso escolar impartido por los
docentes, sino que lo consumen críticamente desde lo aprendido escolarmente
y en la vida cotidiana.

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Conclusiones
Los análisis realizados de la interacción discursiva en las aulas, no
incluyen un debate sobre la validez científica de los puntos de vista expresados
en las prácticas educativas, ya que el interés del trabajo es describir estas
prácticas y no el de evaluar su contenido científico, aunque reconozco que
algunas de las situaciones presentadas pueden ser producto de confusiones
conceptuales como la que hay entre peso y densidad. Tampoco estoy
incluyendo una reflexión sobre la pertinencia didáctica de los recursos
que utilizan los docentes, como puede ser el argumento de la “mayoría
de opiniones” para reforzar una versión sobre el material más denso. En
el trabajo etnográfico se busca describir las prácticas desde la perspectiva
de los participantes para tratar de comprender las lógicas y sentidos desde
donde se construyen, más que evaluar su pertinencia. Aclaro también que
las prácticas que se muestran en estos ejemplos evidencian la posibilidad
de que ocurran y no tanto su frecuencia en el quehacer educativo cotidiano.
Interesó contribuir al análisis del inmenso campo de un arte de hacer,
diferente de los modelos que operan de arriba hacia abajo en la cultura
habilitada por la enseñanza, pero en la que, gracias a tácticas como el
“escamoteo” y otras “jugarretas” (CERTEAU, 1994), se pudo dar cuenta
también de las prácticas de consumo de los alumnos y por tanto de su
participación en las prácticas escolares frente al poder institucional expresado
en la palabra docente y el texto de los materiales curriculares.
A continuación resumo algunos elementos interesantes que, desde una
perspectiva histórica, se mostraron en las prácticas educativas analizadas,
en clases de ciencias.
Sobre la participación docente, los primeros fragmentos, que representan
observaciones de finales de los años 1970, muestran participaciones poco
seguras de los maestros frente al trabajo experimental. Los maestros tienden a
realizar las actividades ellos mismos frente al salón de clase, a pesar de que en
los libros de texto se argumentaba sobre la conveniencia didáctica de que los
alumnos hagan las actividades en equipos y que se discutan los resultados en
el grupo. Por otro lado, y aunque los maestros hacen preguntas a los alumnos
sobre los resultados de dichas actividades, no permiten debates cuando

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sus respuestas son diferentes a las esperadas y frecuentemente imponen la
respuesta “correcta” cuando los alumnos no la proporcionan a pesar de las
pistas que ellos les dan.
En el análisis detallado de las interacciones más recientes, presentadas
en los fragmentos 3, 4, 5, 6 y 7, muestro que los docentes no solo permiten
que sean los alumnos los que realicen las actividades, sino que incorporan
sus puntos de vista en los debates colectivos y procuran no imponer lo que
sería, según ellos, la versión “correcta” del contenido. Para eso, además
de pistas implícitas en preguntas, recurren a estrategias como la votación
entre versiones alternativas. Sin embargo, en los casos analizados, la versión
docente no siempre es aceptada por los alumnos como la versión “verdadera”,
pues ellos la construyen, en la dinámica discursiva, como una alternativa
también debatible, incluso cuando se trata de legitimar como la versión
mayoritaria (fragmento 7).
La apropiación por parte del profesorado de los principios del
constructivismo, incluyendo las versiones piagetianas extremas que
afirman que los sujetos solo aprenden cuando construyen por si mismos
las representaciones del contenido, los lleva a tratar de evitar la imposición
de lo que para ellos y/o para los textos escolares son las versiones correctas
del conocimiento científico (en este caso). Esta situación abre espacios a
la participación constructiva de los alumnos, pero también somete a los
docentes a contradicciones y dilemas difíciles de resolver (BILLIG, 1988).
Estos dilemas aparecen especialmente cuando se realizan actividades que
requieren de una interpretación de los alumnos y son los siguientes: a)
permitir que en la clase se mantengan las conclusiones elaboradas por los
niños aunque estén alejadas de las científicas, o b) dirigir y orientar estas
interpretaciones para que se acerquen lo más posible a las científicas, lo que
no siempre logran, o c) propiciar que se especifiquen y mantengan en paralelo
y para diferentes usos, concepciones como las cotidianas, las científicas y las
provenientes de diferentes culturas y cosmovisiones (CANDELA; NARANJO;
DE LA RIVA, 2014).
En cuanto a la participación de los alumnos en las prácticas cotidianas
de interacción social en aulas escolares, en estos casos, encontramos variadas
manifestaciones multiformes de como ellos “utilizan” el discurso docente,

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el texto de los materiales didácticos o las actividades empíricas (escolares o
extraescolares), para negociar, cuestionar, resistir, o incluso imponer ideas
y concepciones alternativas a las de los maestros, sobre los temas escolares.
Ellos desarrollan tácticas y jugarretas diversas que modifican las prácticas
docentes al obligarlos a complejizar sus estrategias para que sean convincentes.
En relación a estas tácticas de “consumo” de los alumnos en clases de
ciencias, desde los primeros trabajos aquí reportados hasta los últimos, se
encuentra que ellos se “valen de” la ambigüedad inherente en las preguntas de
los maestros para negociar opiniones diversas a las que los docentes solicitan.
Esto significa que “escuchan lo que quieren escuchar” para sus propios
propósitos y utilizan la ambigüedad del discurso del profesor para defender
su interpretación del contenido, sin romper las reglas conversacionales, ni la
estructura del discurso escolar (IRE). Así pueden simultáneamente responder
a las preguntas docentes y defender alternativas divergentes. La ambigüedad
en los casos estudiados no aparece en relación con el significado que otorgan
los alumnos a los enunciados docentes, sino más bien en la multifuncionalidad
de las preguntas que hacen los maestros. Los alumnos interpretan y “usan”
las preguntas docentes, como rechazos al turno previo o como demanda de
argumentos, dependiendo de la versión que les interesa defender.
En los estudios de los años 1970 encontramos que cuando los maestros no
aceptan un enunciado de los estudiantes y postulan el contenido considerado
como “correcto” científicamente, los alumnos dejan de opinar y parecen
aceptar la palabra docente. Sin embargo, veinte años después, la participación
de los alumnos en las prácticas educativas parece ser más significativa pues
ellos no solo aprovechan la ambigüedad de las preguntas para plantear sus
versiones sino que, en ocasiones, ya defienden estas versiones abiertamente en
contra de la posición que, sin ambigüedades, postula una docente. Incluso se
apropian del recurso frecuentemente utilizado por los maestros al consumir
los enunciados previos parafraseándolos para invertirles el significado a
favor de versiones que los convencen más.
En los casos analizados, los alumnos en ocasiones también se apropian
del mecanismo de estructura preferencial de acuerdos y desacuerdos
(POMERANTZ, 1984), para evaluar y rechazar el contenido del discurso
docente, a través de preguntas. Pero además, en un caso (“¿cómo vamos a

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saber si ya está:: bien?”), el alumno también se cuestiona el procedimiento
con el que el docente legitimó el contenido, que era el de “mayoría de
opiniones”. Esta pregunta está demandando implícitamente una estrategia
que convenza, más allá de la opinión del grupo, esto es posiblemente, de una
prueba que no dependa de los sujetos sino de “evidencia”, lo que pudiera
ser más cercano a los procedimientos utilizados en la ciencia. La pregunta
de este alumno refleja indirectamente que en el aula ya parecen estar
presentes las estrategias empíricas, como las que provienen de realización
de actividades experimentales. En las aulas escolares de México hemos
visto (CANDELA; NARANJO; DE LA RIVA, 2014) que cada vez son más
frecuentes las actividades experimentales, y pareciera que, al menos este
alumno, se ha apropiado del procedimiento de aportar pruebas convincentes
sobre la validez de una interpretación.
Resulta interesante, como se muestra en el ejemplo del plomo, que aun
cuando los niños aceptan en ciertos momentos las orientaciones docentes,
son capaces de posponer sus puntos de vista para plantearlos en situaciones
posteriores más favorables, incluso construyendo consensos alternativos
contra la versión docente a través de utilizar en su favor el recurso de la
votación.
Por todo esto, encuentro que las orientaciones docentes no determinan
totalmente las respuestas de los niños. Ellos consumen críticamente el discurso
docente a diferencia de quienes postulan que los alumnos en las aulas solo
son receptores o seguidores de las pistas que aportan los docentes.
Pero en estos análisis detallados, encontramos que los alumnos, en
ocasiones históricamente más recientes, no solo consumen críticamente
el discurso docente sino que pueden controlar la dinámica discursiva
tomando la posición del que hace las preguntas, del que evalúa, o del que
responde reorientando los contenidos temáticos sobre los que se trabaja e
incluso demandando que los procedimientos con los que se legitimen sean
convincentes.
Es necesario aclarar que esto no ocurre siempre sino que se presenta
particularmente cuando el contenido que se aborda tiene sentido para los
alumnos porque se relaciona con sus saberes. Se muestra el valor constructivo
de la relación entre pares y la autonomía que los alumnos pueden adquirir

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de la orientación de los docentes cuando la interacción se centra en un
problema significativo. En estos casos se asumen como conocedores y además
asumen el derecho a defender sus versiones. De esta manera influyen sobre el
contenido y orientación de los siguientes turnos, haciendo del trabajo docente
una tarea cada vez más compleja. Los usos, procedimientos y posibilidades
de esta “actividad de hormigas” permite invertir el lugar de los alumnos
como consumidores acríticos a productores de conocimiento, aunque sea
momentánea, fragmentaria y coyunturalmente.
Todo esto parece indicar un avance histórico en el proceso educativo
a través de una modificación de las prácticas docentes que promueven la
participación crítica y el razonamiento de los alumnos. El debate es posible, en
parte, porque los maestros no siempre descartan las explicaciones estudiantiles
dando su opinión, sino que las mantienen como opciones posibles. Parece
que actualmente los docentes permiten participaciones más abiertas de los
alumnos y toman más en cuenta sus ideas, evitando imponer un contenido del
conocimiento y además parece que cada vez les resulta más difícil convencer
a sus alumnos.
Los alumnos manifiestan mayor competencia, no solo para consumir
críticamente el discurso docente sino para defender sus interpretaciones
del contenido que se aborda, haciendo uso de tácticas diversas, incluso
algunas apropiadas de las estrategias que utilizan los maestros. Vemos así
una escuela donde las prácticas educativas son cada vez más participativas y
convincentes. Y esto ocurre en un contexto socioeconómico de poblaciones
marginales de bajos recursos, con lo que podríamos suponer que en contextos
más favorecidos estas competencias se podrían manifestar más claramente.
En síntesis, estos ejemplos muestran que las prácticas educativas en
clases de ciencias naturales de la escuela primaria se han modificado en los
últimos decenios, en la medida en que los docentes adquieren confianza en
su capacidad de manejar las actividades experimentales y otras situaciones
abiertas al debate con los alumnos y a la incorporación de sus saberes e
interpretaciones. Esta es una situación particular en la que se ha podido
hacer un recuento de algunos “procedimientos de consumo” (CERTEAU,
1994) de los alumnos y de cómo el análisis detallado de los mismos en el
estudio de la interacción en las aulas escolares permite estudiar la forma

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en que infiltran el discurso docente a través de sus “maneras de hacer” y
de comprender el contenido temático y los procedimientos de construirlo.
Sin embargo, en atención al rigor investigativo, es necesario tomar
en cuenta que estos resultados pueden depender, en cierto sentido, de la
aproximación teórico-metodológica de las investigaciones sobre las prácticas
educativas como las del análisis conversacional que permite apreciar detalles
finos de la interacción discursiva y que pueden dar cuenta con mayor precisión
de las prácticas educativas y de la competencia comunicativa de los estudiantes
para mostrar un “consumo” crítico del discurso docente.

Referencias
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Peter; HAMMERSLEY, Martyn (eds.). The process of schooling. Londres: The
Open University Press, 1976.

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ANEXO
Notacion especializada utilizada en las
transcripciones
Ma: Maestra
Mo: Maestro
Aa: Alumna
Ao: Alumno
As: Varios alumnos simultáneamente
^ indica elevación de la entonación
/ indica caída de la entonación
=> indica frase significativa para el análisis
°° indica un pasaje de habla más bajo en intensidad que el
habla adyacente
MAYUS indica un pasaje de habla con mayor intensidad que el
habla adyacente
* indica ruido de fondo no distinguible de los niños
hablando entre ellos
** indica ruido de fondo de mayor intensidad
>< indica un pasaje de habla más rápido que el circundante
<> indica un pasaje de habla más lento que el circundante
[ indica habla sobrepuesta
:::: indica elongación del énfasis en una letra
subr indica énfasis especial dentro de la frase
(it)) comentarios del trascriptor, generalmente
observaciones sobre el contexto de habla
(3) pausa medida en segundos, tres segundos, en este caso
(.) pausa perceptible pero muy corta para medirse segundos
= habla ligada a la anterior sin pausa de por medio
,?. indican pausas de tiempo o entonación al final de
las preguntas más que signos de puntuación

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Parte II
Praticar, registrar e dar a ver

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As imagens podem ter a última palavra?
Imagens e narrativas de crianças brincando na
Argentina do final do século XIX1

Inés Dussel

Une image n’a jamais le dernier mot


(pas plus qu’un mot, d’ailleurs).
(DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 93)

Introdução
Imagens de crianças brincando se tornaram comuns a partir da
Revolução Industrial. Desde então se tem testemunhado a proliferação
e a especificação crescente de tempos, espaços e objetos para crianças, ao
menos no mundo ocidental (CROSS, 2012, p. 267-282; SCHORSCH, 1979).
No entanto, apenas no fim do século XIX, a brincadeira foi considerada o
equivalente da “verdadeira essência” da criança. A partir daquele momento, a
brincadeira não foi mais vista como uma perda de tempo ou como moralmente
perigosa, mas como uma atividade formativa, e se tornou o “‘trabalho da
infância’ – o equivalente moral do labor”, como apontado pelo historiador
Stephen Kline (1998, p. 100).

1. Tradução de Rafaela Silva Rabelo.


Uma versão anterior deste texto foi publicada em: ALLENDER, Tim; DUSSEL, Inés;
GROSVENOR, Ian; PRIEM, Karin (comps.). Appearances Matter. The visual in educational
history. Berlin: De Gruyter Oldenbourg, 2021.

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Como essa mudança aconteceu? Que papel as imagens e palavras
desempenharam para moldar esse novo imaginário sobre as crianças e
a brincadeira? Como os discursos pedagógicos se moveram para e por
intermédio de diferentes modos de expressão e mídias? Neste capítulo,
discutirei estas questões por meio de uma abordagem ontológica do material,
com vistas a analisar as mídias em que algumas dessas imagens foram
produzidas e circularam, observando especificamente as fotografias e os
relatos narrativos das brincadeiras infantis em revistas ilustradas e seus
contextos de produção (DUSSEL, 2020). Estou interessada em examinar
como as imagens das brincadeiras infantis ganharam espaço nos imaginários
populares e como resultaram em novos significados, por meio da interação
entre imagens e textos na mídia impressa, prestando atenção em particular
às novas ecologias das mídias, que transformaram os regimes afetivos
e epistêmicos da infância, ao introduzirem novas práticas de leitura e
pedagogias públicas.
Para tanto, focarei em um álbum de fotografias amadoras de jogos
infantis da Argentina, produzido em torno de 1895/96 por pelo menos
um, mas provavelmente vários fotógrafos, que eram membros de uma
sociedade de fotógrafos amadores. Sigo as viagens transmídia de algumas
dessas imagens em duas revistas ilustradas, Buenos Aires (1895-1899) e
Caras y Caretas (1898-1939), que as incluíram em vários artigos entre 1897
e 1903.2 Esses dois periódicos publicaram 30 fotografias desse álbum, na
maioria dos casos acompanhadas ou ilustrando ensaios sobre jogos infantis.
Dessas fotografias, 12 foram publicadas por ambas as revistas, mas os textos
construíram narrativas diferentes, por vezes contrastantes.
Essas divergências entre imagens e textos foram examinadas em dois
estudos recentes que analisaram as tensões entre fotografias e suas legendas.
Noah Sobe e Peter Cunningham notaram os sentidos contraditórios atribuídos
a fotos de educação progressiva incluídas em Schools of To-morrow (1915), de
John e Evelyn Dewey, e outros livros (CUNNINGHAM, 2019; SOBE, 2018).
Apesar de as legendas terem o objetivo de guiar as percepções do leitor e
2. Este texto é parte de um estudo mais amplo sobre essa série de fotografias: DUSSEL,
Inés. Photos found in the archive: an approximation to the work with images based on
an amateur album on children’s games (Argentina, late 19th century). Revista Historia y
Memoria de la Educación, Madri, n. 10, p. 51–129, 2019.

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estabilizar o sentido por elas atribuídos às imagens, o fato de as imagens
terem circulado com textos diferentes mostra que essa estabilização nunca
foi completa. O trabalho de Sobe, em particular, usa essas tensões para ter
acesso às experiências afetivas da educação progressiva e, portanto, vai além
dos estudos representacionais. A partir de sua compreensão, minha pesquisa
busca apresentar outro exemplo de como imagens e suas descrições foram
empregadas para produzir emoções específicas sobre crianças, com atenção
particular às ausências e divergências entre elas, e aos limites difusos que
definem as vidas e mundos das crianças.
Por último, também gostaria de usar esta pesquisa como um exemplo
para refletir sobre os efeitos dos arquivos digitais em nossas próprias práticas
como historiadores da educação. Inicialmente, consegui acesso a essas
imagens no formato digital, por meio de um repositório de acesso local
(intranet) no Arquivo Nacional da Argentina. Lá pude trabalhar com as
imagens exibidas nas telas e copiar seus arquivos, mas não pude ver o álbum
real ou a maioria de suas descrições. Portanto, questões sobre a fragmentação
e descontextualização ficaram evidentes desde o começo (RUBINSTEIN,
2020). Ao buscar identificar como essas imagens circularam em diferentes
publicações, encontrei Caras y Caretas, um periódico argentino inovador bem
conhecido, que está disponível online no website da Biblioteca Nacional da
Espanha.3 Dois anos depois, por meio de pistas em fontes secundárias, descobri
que essas fotografias foram publicadas primeiro na revista ilustrada Buenos
Aires. Para confirmar as pistas, precisei viajar até essa biblioteca, que, até onde
sei, possui a única coleção completa da revista. Essa disponibilidade desigual
explica em parte porque há vários estudos sobre a Caras y Caretas, enquanto
a Buenos Aires tem sido geralmente negligenciada pelos pesquisadores. A
historiadora Argentina Lila Caimari (2017, p. 80) afirma que, no futuro,
“o que puder ser consultado com dois ou três cliques do mouse a partir de
nosso notebook terá muito mais proeminência do que aquilo que estiver
restrito ao papel”. Esse futuro já chegou, e está aqui já há algum tempo;
portanto é da maior importância que os historiadores insistam em discutir
as lacunas e limitações dos arquivos, incluindo arquivos virtuais gigantescos,
como também que nos eduquemos e à próxima geração de historiadores a
3. http://hemerotecadigital.bne.es/results.vm?q=parent%3A0004080157&s=0&lang=es.

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manter um olhar atento às promessas arrogantes da digitalização para não
reproduzir seus silêncios.
Este capítulo é organizado da seguinte forma: na primeira seção,
apresentarei as imagens do álbum amador sobre jogos infantis e proporei
algumas reflexões sobre o papel da fotografia em moldar imaginários sobre a
infância. Na segunda seção, discutirei a publicação de algumas dessas imagens
nas revistas Buenos Aires e Caras y Caretas, analisando a(s) relação(ões)
entre palavras e imagens e as narrativas visuais e verbais construídas pelos
periódicos. Na seção final, refletirei sobre o que esses exemplos nos dizem
acerca das relações midiatizadas complexas entre palavras e imagens e o
papel dos discursos pedagógicos em estabilizar alguns sentidos em torno
da criança e da brincadeira.

Crianças e fotografia: fotos amadoras e a produção de novos


imaginários sobre a infância

[P]hotographs as historical sources are subject to the familiar


cultural processes of othering: typifying, fetishising, normalizing and
pathologizing.
They are dynamic, difficult, slippery, ambiguous, incongruous and
contradictory. (EDWARDS, 2018, p. 25)

Anne Higonnet (2012), uma historiadora visual proeminente, argumenta


que a fotografia, desde sua emergência, ganhou domínio sobre as imagens
da infância. Para Higonnet, a fotografia era o meio mais adequado para
capturar o ideal romântico da infância, tanto por compartilhar o valor da
naturalidade quanto por transmitir um senso de evanescência fugaz. Portanto,
essa tecnologia visual parecia perfeitamente equipada para capturar a natureza
efêmera da vida das crianças, assim como cenas cotidianas e mundanas
mais apropriadas para representação nas arts moyens que nas belas-artes.
As interconexões entre fotografia e noções modernas de infância também
são evidentes na observação de Elizabeth Edwards de que a história e a
fotografia pertencem ao mesmo projeto epistêmico: história rankeana, que
visa capturar o passado como ele era. O apelo sedutor das fotografias reside

119 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


em sua promessa de fornecer evidências de eventos passados e acesso direto
à experiência histórica, fragmentando o tempo em momentos concretos
e, desta forma, deslocando a atenção dos grandes eventos para os de
curta duração. Para resistir a essas seduções, os historiadores precisam
interrogar criticamente seus entendimentos e definições de evento, contexto,
distanciamento temporal e presença, sem perder de vista que as fotografias
são, de fato, traços de experiências passadas.4
Como, então, os historiadores podem trabalhar com fotografias de
crianças que carregam esse duplo fardo, de apresentarem-se como evidência
incontestável, tanto da criança natural quanto de um passado reificado?
Um caminho é compreendê-las como objetos a partir dos quais refletir,
produzidos por meio de tecnologias específicas de representação e regimes
de visibilidade (DUSSEL; PRIEM, 2017). Observá-las como objetos, por meio
de suas diferentes manifestações na mídia, que busca promover e estabilizar
alguns sentidos sobre outros, e indicar suas incongruências e contradições
pode ajudar a problematizar sua sedução como registros não mediados de
experiências passadas das crianças.
Lidar com o problema da sedução das fotografias é particularmente
importante no caso do corpus analisado neste capítulo. A série de fotografias
amadoras de crianças brincando é uma pequena joia, tanto por sua qualidade
fotográfica quanto por sua riqueza semântica. Composta por, pelo menos,
77 imagens – o código do catálogo apresenta uma lacuna de 20 números,
sugerindo que a série original seria maior – o álbum de jogos infantis
(juegos infantiles) retrata vários grupos, meninos e meninas afro-argentinos,
brincando em diferentes espaços: casas, escolas, parques ou terrenos baldios.
Há pouca informação sobre o álbum. Datar as imagens e identificar a autoria
tem sido um trabalho de detetive que tem me levado a lidar com diferentes
arquivos e materiais.5 Os códigos no catálogo possibilitam determinar que
o álbum foi produzido pela Sociedad Fotográfica Argentina de Aficionados

4. Edwards (2018, p. 28), por exemplo, analisa o efeito que categorias como “fotografia
colonial” têm na interpretação de fotografias, ao tornar cada registro fotográfico em um
contexto (colonialismo) estável, claro e autossuficiente que explica o seu significado. O que se
perde são as ambivalências, contradições, possibilidades alternativas contidas nesses registros.
5. Para maiores informações sobre o álbum e a Sociedad Fotográfica Argentina de Aficionados
(SFAdeA), ver Dussel (2019).

120 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


(SFAdeA, Sociedade Fotográfica Argentina de Amadores), que se manteve
ativa entre 1889 e 1925. As fotos de jogos infantis foram provavelmente
feitas entre 1889 e 1896, considerando que as imagens foram publicadas pela
primeira vez em janeiro de 1897.
Assim como outras sociedades amadoras daquele tempo, a SFAdeA era
um clube de “cavalheiros fotógrafos” (TELL, 2017), composta por homens
ricos que abraçaram a fotografia amadora como parte da renovação social
e política do país. As fotos da sociedade eram projetadas para celebrar
não apenas o que era percebido como modernização da Argentina, mas
também o próprio meio fotográfico, o qual se popularizou cada vez mais
graças às mudanças tecnológicas e culturais. O foco temático das fotos dessa
sociedade se expandiu das paisagens e costumes, para incluir também tópicos
sociais mais amplos; registrar a pobreza e os diferentes tipos sociais. Eles
tomavam emprestado de e pagavam tributo ao documentário social, assim
como ao pictorialismo, alinhado com outros movimentos internacionais
na fotografia.6 A sociedade amadora produziu e vendeu álbuns temáticos,
dos quais 46 sobreviveram; o álbum de jogos infantis é o número 30 dessa
coleção. O estatuto da sociedade excluía fotógrafos profissionais; os membros
se comprometiam com a autoria coletiva e não eram autorizados a assinar
suas fotografias ou manter os negativos. As exceções se restringiam às que
eram publicadas em jornais ou revistas. Graças à sua publicação nas revistas
Buenos Aires e Caras y Caretas, sabemos o nome de pelo menos um dos
fotógrafos, Juan M. Gutiérrez, na época secretário da sociedade.
O fato de o álbum de jogos infantis formar um grupo coerente de fotos
possibilita uma análise serial, conectando as cenas retratadas, os atores e
a escolha de locações. Uma característica notável do álbum é que as cenas
deveriam ser casuais e espontâneas, em oposição às fotos feitas em estúdios,
e, portanto, mais próximas do fotojornalismo e de sua busca por organizar
cenas coletivas (FREUND, 1981, p. 95). No entanto, nas tomadas repetidas de
um jogo usando o mesmo cenário e o mesmo grupo de crianças, é possível

6. O pictorialismo foi uma estética artística que opunha a fotografia direta (realista) à
fotografia pura (artística), compreendida como aquela em que a câmera era usada para
“registrar sentimentos íntimos e reações” em “imagens evocativas e misteriosas”.

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ver o arranjo da cena pelo fotógrafo; é a encenação que ajuda a explorar
como essa nova iconografia da criança natural estava sendo produzida.
As fotos nesse álbum são diferentes de fotos de família mais formais,
mostrando adultos e crianças compartilhando atividades como brincar,
conversar ou ler livros (SCHORSCH, 1979, p. 87). No álbum, apenas cinco
fotos retratam adultos, geralmente nas margens da cena; as fotos parecem
retratar, e criar, um mundo de crianças onde adultos são periféricos. Isto
é consistente com os achados de vários estudiosos das fotografias no
movimento da Escola Nova (BRASTER; POZO ANDRÉS, 2018; BURKE;
GROSVENOR, 2007), mas é preciso destacar que as fotos da sociedade
amadora argentina foram tiradas pelo menos 20 anos antes. O retrato era
geralmente reservado para as pessoas ricas e “importantes”, para as quais
tanto o retrato individual quanto do grupo familiar eram a norma. Mas os
álbuns infantis documentavam cenas mundanas e banais, buscando registrar
o ambiente natural das brincadeiras infantis. A fotografia, contemporânea
da emergência do cinema, compartilhava com o novo meio o valor do
movimento e da espontaneidade, da captura tanto do momento quanto
da sequência. Das 77 fotos, 53 mostram crianças brincando em grupos de
idade variada e 28 exibem jogos ao ar livre com crianças de origens sociais
diversas. As escolas aparecem com destaque em cenas internas. Também é
interessante notar que, nessas fotografias, a câmera é colocada no mesmo
nível das crianças; a maioria das fotos usa um ângulo amplo para mostrar a
cena do jogo dentro de um quadro ou contexto mais abrangente.
Não há fotos com ângulos altos ou close-ups; algumas cenas panorâmicas
ao ar livre são de qualidade inferior, levantando dúvidas quanto ao
pertencimento a essa mesma série ou ao fato de terem sido tiradas pelo
mesmo fotógrafo. No geral, as crianças são retratadas com diferentes gestos, às
vezes em movimento e às vezes sentadas ou quietas. Desta forma, as imagens
criam “pequenas narrativas” (EDWARDS, 2014, p. 189), que conectam pessoas
e lugares; um grande número dessas cenas (24) mostra crianças observando
outras crianças brincando (e sendo fotografadas), sem que elas estejam
envolvidas nas ações. Mas vamos dar uma olhada no contexto no qual as
imagens foram publicadas e nos textos que as acompanhavam. Como as
imagens eram afetadas pelas suas recontextualizações em diferentes mídias?

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Em que consistiam os textos que as acompanhavam, em que medida esses
textos nos auxiliam a ver as imagens de forma diferente? Como os sentidos
sobre as brincadeiras infantis foram produzidos por meio dessas viagens
transmídia?

Imagens rodeadas por palavras: fotografias em revistas


ilustradas

The illiterates of the future will be those unable to decipher a photograph,


not writing. But shouldn’t the photographer who cannot read his own
images count as no less an illiterate? Is the caption not destined to
become the essential component of the shot? (BENJAMIN, 2015, p. 93)

Como mencionado anteriormente, 30 das 77 fotografias do álbum de


jogos infantis foram publicadas em duas revistas ilustradas de Buenos Aires,
12 das quais foram publicadas em ambas revistas.7 Essas duas revistas, Caras
y Caretas e Buenos Aires, são importantes fontes para rastrear as mudanças
nas relações entre imagens e palavras, junto com as transformações das
ecologias midiáticas, particularmente, devido ao progresso das tecnologias
visuais e de impressão (MALOSETTI COSTA; GENÉ, 2009; SZIR, 2016).
Nenhum desses periódicos foi concebido como uma revista infantil, mas
ambos incluíam artigos sobre atividades infantis, tais como: festivais escolares,
exames, ou passeios em parques ou espaços públicos.
A maioria (24) das fotos do álbum publicadas foram impressas entre
1902 e 1903, no âmbito de artigos sobre jogos infantis (em uma seção
denominada Páginas Infantiles) da Caras y Caretas, um semanário ilustrado
que foi pioneiro na inclusão de fotografias na mídia impressa na Argentina.
Combinando as tradições da imprensa satírica e das revistas ilustradas, o
primeiro número do periódico apareceu em 1898. Inicialmente, ele incluiu
entre 10 e 15 fotografias por número; em 1910, cada número continha mais

7. Apesar de extrapolar o foco deste capítulo, é importante mencionar que as imagens que
não foram publicadas incluem cenas notáveis de meninas e meninos assistindo uma briga
de galo, meninos em uma luta de boxe, meninos imitando “gauchos” (trabalhadores rurais)
e lutando com facones (facões) imaginários, meninos de rua usando estilingue, e meninos
vendendo jornais na rua.

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de 100 fotografias.8 Esse número impressionante de fotografias foi possível
graças a avanços tecnológicos, que foram também uma das razões do sucesso
instantâneo da revista. Caras y Caretas modernizou o processo de gravura,
antes feito manualmente, desenhando-se imagens em painéis de metal ou
madeira, e introduziu a gravura mecânica ou técnicas de meio-tom. Ela
também impôs cânones modernos para o uso de fotografias com textos;
jornalistas e fotógrafos trabalhavam juntos para cobrir uma ampla variedade
de tópicos: de crimes a questões sociais. Em relação à fotografia, a revista
incorporou técnicas novas e variadas que incluíam não apenas fotos diretas,
mas também fotomontagens e reconstrução de cenas (PRIAMO, 1999, p. 208).
A historiadora Sandra Szir (2012) pesquisou os primeiros anos da Caras
y Caretas em relação a imagens da/sobre infância, afirmando que as imagens
na revista estavam competindo com as palavras sobre quem determinava
o processo de constituição de sentido. Szir identificou dois tipos principais
de imagens de crianças: imagens ‘escolarizadas’ de crianças, relacionadas
a discursos oficiais do Estado sobre educação, valores hierárquicos e bom
comportamento; e imagens ‘consumistas’ de crianças, inclinadas para o
humor, brincadeira e tempo livre. Apesar de suas diferenças, ambos os tipos de
imagens provinham do mesmo universo industrial de produção, partilhavam
valores visuais similares, e contribuíram para moldar as preferências padrão da
classe urbana argentina. Elas também promoveram uma imagem hegemônica
de uma criança branca europeizada (el niño) contida entre a escola e a família,
oposta à noção legal do menor (el menor), que moldava as vidas de crianças
não escolarizadas, trabalhadoras ou institucionalizadas (SZIR, 2012, p. 146-
147). De acordo com Szir, Caras y Caretas foi uma força modernizadora, pois
promoveu tanto o consumo quanto os ideais pedagógicos sobre a infância
ao usar mecanismos de inclusão e exclusão.
Apesar de Caras y Caretas ser geralmente considerada a força motriz por
traz da introdução de fotos na imprensa periódica, as fotos do álbum amador,
de fato, foram publicadas na revista semanal Buenos Aires. A revista, que

8. A revista foi fundada por Eustaquio Pellicer (1859-1937), um intelectual uruguaio, e


Bartolomé Mitre (1821-1906), presidente da Argentina entre 1862 e 1868 e proprietário
do jornal La Nación (fundado em 1870 e ainda em circulação). Caras y Caretas começou
imprimindo 15.000 cópias e atingiu 110.700 em 1910 (GAMARNIK, 2018).

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pertencia à família Mitre, começou a ser publicada em abril de 1895, como
um desdobramento do jornal La Nación. Antecipando Caras y Caretas em
cerca de três anos, a revista Buenos Aires começou a incluir fotografias em
seu número publicado em 27 de junho de 1895. Notavelmente, a revista não
apenas usou fotografias como ilustrações, mas também produziu matérias
sobre a prática da fotografia e, particularmente, sobre a sociedade amadora
SFAdeA. Buenos Aires tinha orgulho de ser o primeiro periódico a empregar
o procedimento fotográfico que permitia “reproduzir nos mínimos detalhes
e com grande realismo várias cenas e situações” (BRETON, 1896). Em
agosto de 1895, o vice editor-chefe, Gabriel Cantilo, escreveu um editorial
respondendo explicitamente a críticas à inclusão de fotografias como algo
infantil, afeminado ou trivial; sua resposta foi de que a revista queria estar
aberta a todos os públicos (CANTILO, 1895).
A inclusão de fotografias coloca a revista Buenos Aires na vanguarda das
mudanças nas indústrias gráficas. Em 1895, algumas legendas incluíam os
nomes tanto do fotógrafo quanto do fotogravador.9 As habilidades técnicas
do fotógrafo-chefe da revista, o peruano Salomón Vargas Machuca, foram
enfatizadas por suas fotos noturnas no teatro;10 a revista também incluiu
matérias sobre “fotos do invisível”, similares a raios-x, imagens telescópicas
do sol e fotografias amadoras de uma criança sendo jogada para o alto (EL
DR. LUIS..., 1896; PHOTOGRAPHS OF..., 1896; PREMIOS EN LA..., 1896).
A revista Buenos Aires publicou 18 imagens do álbum, todas, com
exceção de três, acompanhadas de texto. Todos os textos foram assinados
por “Henrique Herrero”, referindo-se, possivelmente, a Enrique Herrero
Ducloux (1877-1962).11 Apesar de não ser possível determinar com certeza
sua identidade, a hipótese parece bastante plausível. Tendo imigrado da
Espanha muito jovem, Herrero Ducloux estudou em uma Escola Normal na
província de Santa Fé e trabalhou como professor primário de 1893 a 1896;
em 1901, ele obteve o título de Doutor em Química pela Universidade de

9. A revista incluía pequenos textos, geralmente no fim do volume, que traziam informações
sobre os procedimentos técnicos e os nomes dos envolvidos. Também imprimia anúncios
de gravadores e ateliês fotográficos. Portanto, as revistas ilustradas também contribuíram
para a profissionalização dos trabalhadores gráficos (SZIR, 2016).
10. Salomón Vargas logo se mudou para a Caras y Caretas, onde atuou como organizador
e chefe da Seção de Fotografia, entre 1898 e 1922.
11. Gostaria de agradecer a Darío Pulfer por sua ajuda em rastrear Enrique Herrero.

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Buenos Aires e se tornou parte da elite intelectual e cultural de Buenos Aires.
Como veremos na sequência, o autor dos artigos afirmava ser professor e
ter conhecimento profundo sobre crianças. Condizente com a formação
do autor em química, os textos de Herrero para a revista incluíam muitas
referências a termos científicos (HERRERO, 1897b). Além disso, era comum
naquele tempo que jovens cientistas e intelectuais tivessem trabalhos de meio-
período em revistas como uma forma de se sustentarem (ALTAMIRANO;
SARLO, 1997).
Temos menos informações sobre o autor dos textos de Caras y Caretas.
Seis dos nove artigos nos quais as fotos do álbum apareceram foram assinados
por Figarillo, um pseudônimo comum no jornalismo argentino cunhado
por um dos intelectuais mais proeminentes do século XIX, Juan Bautista
Alberdi. Alguns estudiosos afirmam que Figarillo era Jorge Mitre (1884-?),
um jornalista e parente próximo do fundador da Buenos Aires (ROGERS,
2004), mas a historiadora cultural Sandra Szir argumenta que Figarillo era
José S. Álvarez, também conhecido como Fray Mocho (1858-1903), um
escritor e jornalista que foi o primeiro editor-chefe da Caras y Caretas.
Independentemente de o nome Figarillo ser assinado por um ou vários
escritores, sabemos que ele era usado em artigos que versavam sobre questões
sociais e vida pública, desde eventos em mercados públicos até entrevistas
com mulheres afro-argentinas e jogos infantis.
O layout das páginas das duas revistas era bem diferente. As 16 páginas
em tamanho carta da Buenos Aires tinham uma aparência limpa e elegante,
com duas colunas e margens amplas;12 o papel era brilhante e as fotos bem
definidas. A revista era vendida a 0.50 pesos. Cada artigo tinha de duas a
três páginas e incluía uma ou duas fotografias por página (Fig. 1).

12. Inicialmente, o layout consistia em três colunas e texto impresso de forma compacta;
em dezembro de 1895, passou a ser publicado em duas colunas (ver Fig. 1).

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Fig. 1 – Layout da página “Juegos infantiles: Las plumas”.

Fonte: Herrero (1897a).

Já Caras y Caretas era uma revista popular; com 24 páginas, ela custava
0.25 pesos em 1898, metade do preço da Buenos Aires. Em 1902, a revista tinha
64 páginas, um terço das quais eram ocupadas por propaganda. Suas páginas
eram abarrotadas de textos e fotos, quase sem margens. A revista, destinada
a um público mais amplo, incluía uma seção, Páginas Infantiles, devotada às
crianças, que continha histórias, regras de jogos, rimas e enigmas. É nessa

127 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


seção que as fotos dos jogos infantis foram publicadas em nove artigos,
entre fevereiro de 1902 e janeiro de 1903. Cada um dos artigos incluía três
imagens altamente granuladas (Fig. 2).
Fig. 2 – Layout da página “Páginas infantiles”.

Fonte: Figarillo (1902).

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Como as imagens se relacionavam com as palavras que as circundavam?
Os artigos reproduzidos nas Fig. 1 e 2 referem-se ao mesmo jogo, “Las
plumas” (As canetas), todavia as narrativas contidas nas duas revistas eram
bem diferentes. Em Caras y Caretas, o texto explicava o jogo ao leitor e o
recomendava como uma boa pausa após “um exercício intenso” (FIGARILLO,
1902, p. 62). A foto servia como um recurso para explorar as regras do
jogo, incluindo truques para vencer; o texto advertia sobre sua dificuldade,
visto que o jovem jogador precisava aprender a empregar a pressão correta
na caneta para atingir a distância correta, não tão perto nem tão longe.
A escrita de Figarillo era seca, descritiva e destituída de qualquer afeto
pelas crianças. Ele terminava o artigo dizendo que as crianças nas escolas
eram apaixonadas por esse jogo e que os colegas de classe geralmente se
amontoavam em torno dos jogadores nos pátios das escolas. Nesse e em
outros artigos, Caras y Caretas reconhecia o valor dos jogos nas escolas
como atividades educacionais e legítimas.
A estratégia de Enrique Herrero na Buenos Aires era surpreendentemente
diferente. O seu artigo se assemelha ao uso de fotografias em livros didáticos,
como “pequenas narrativas”, deixando claro que o texto existe em razão da
fotografia. Na verdade, o início do texto se refere à foto e seu produtor: o grupo
de crianças, escreveu Herrero, não poderia ter sido representado de forma
mais artística. Era tão natural, revelava tanta verdade, possuía um charme tão
peculiar, que não era possível decidir entre sucumbir à delicada maestria ou
aplaudir os três meninos por suas faces tão apropriadas, tão adequadas, tão
expressivas (HERRERO, 1897a). Esse elogio ao fotógrafo-artista e às crianças
pela encenação para a fotografia contrasta fortemente com a reivindicação da
verdade das fotos como representação da brincadeira natural das crianças.
“Alguns educadores sábios dizem que as crianças mostram seu verdadeiro eu
quando estão brincando”, assinalou Herrero; observar as crianças brincando
e fazê-lo por meio da fotografia era um presente duplo que Herrero nunca
deixou de elogiar. No entanto, parece que Herrero estava dividido entre
elogiar o pictorialismo de fotógrafos amadores e aplaudir suas ambições
documentais, uma tensão que ele resolveu em favor do valor artístico das
imagens.

129 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


Enquanto Figarillo usou uma linguagem seca para falar das regras
e truques dos jogos, Herrero mergulhou no sensório e sensual. Ele criou
uma história em torno de uma foto, situando a cena antes do início do dia
escolar, em um jardim arejado com aroma de jasmim, lírios e magnólias,
com ladrilhos de pedra e uma videira. Herrero deu nomes aos três meninos:
Martín, Julio e Ramón. Por meio da linguagem, ele dava closes nos rostos e
vidas dos meninos, de uma forma que o fotógrafo e as lentes da câmera não
faziam. Martín, o jogador, era esperto, mas também um pouco negligente,
como é possível perceber por suas botas arranhadas; Julio era mais do tipo
observador, mas Ramón, o juiz, tinha uma verdadeira seriedade que cativava
o observador. Herrero escreveu sobre a beleza e o charme dos três meninos,
o delicioso retrato em grupo que eles compunham. A consciência do meio
permanece presente ao longo do texto, o que cria uma atmosfera sensual
não desprovida de carga erótica. É importante observar as conexões entre o
meio fotográfico e os discursos pedagógicos sobre a liberdade e a natureza
da criança, um bom exemplo do argumento de Anne Higonnet (2012) sobre
a fotografia, que ganhava espaço na produção da imagem das crianças, e
seu alinhamento com ideais românticos de infância.
No entanto, as visões pedagógicas de Herrero não eram tão deterministas
quanto esses ideais românticos, e enfatizavam a liberdade como um valor
pedagógico; ele apelava à reforma social e denunciava a pobreza e exclusão.
Isso fica evidente em um artigo que ele escreveu sobre vadiagem, “Los
raboneros”, baseado em uma foto que, no Arquivo Nacional Argentino, traz
o título “Contando cuentos” (contando histórias, Fig. 3), a qual retrata um
grupo de 15 meninos, no que parece ser um túnel parcialmente desabado.
O título pode estar relacionado com os dois meninos segurando livros
abertos, em uma cena rara, muito distante das representações burguesas
de leituras silenciosas em ambientes fechados com crianças bem-vestidas
(SCHORSCH, 1979, p. 87). Na foto amadora, dois meninos estão fumando;
outro está segurando uma pequena bolsa. Alguns deles vestem ternos de
marinheiro, enquanto outros parecem vestir trajes mais humildes. Há meninos
que parecem envolvidos em interações reais; outros parecem entediados
ou desinteressados. Sabemos que a foto foi encenada pelo fotógrafo, visto
que os meninos também aparecem em outras imagens da série (ver Fig. 5).

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Fig. 3 – “Contando cuentos”.

Fonte: Argentina, Archivo General de la Nación, Departamento de Fotografía, AR_


AGN_DDF/ Consulta _INV:214.940.

Esta foto não foi incluída em Caras y Caretas, talvez porque fosse muito
transgressiva para uma narrativa sobre os jogos edificantes, geralmente
destacados nas seções infantis da revista. A Buenos Aires, no entanto,
imprimiu-a junto com o texto de Enrique Herrero (Fig. 4). Desta vez,
Herrero situou a cena após o sino da escola tocar, quando os gazeteiros
decidiam arriscar tudo para aproveitar um dia de liberdade. Herrero evocou
os sons do pátio escolar e a visão de bons alunos que obedecem às regras
e entram no prédio. Em contraponto, para alguns meninos, a sala de aula
parecia uma prisão. Jogando com as palavras “aula” (sala de aula) e “jaula”
(gaiola), Herrero notou que gazeteiros eram pássaros que queriam voar livres
e escapar da gaiola que era a escola. Ele chamou os vadios pelo sobrenome
(Murúa, Zárate, Curti, sinalizando origens espanholas e italianas). O apelo à
linguagem administrativa tinha como efeito de aumentar a distância para o

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leitor, e reafirmar a criança branca, do norte da Europa, como a norma. Na
fuga, os travessos carregavam laranjas, queijo, pães, biscoitos e os cigarros
que os faziam sentir-se como soldados bigodudos ou importantes homens
de negócios. Eles foram para um rio e uma ravina. Herrero imaginou-os
contando piadas sujas e histórias picantes, caçando pássaros com estilingues,
nadando no rio, fumando e, finalmente, descansando e conversando na
entrada do túnel desabado. Herrero viu essa contravenção como a semente da
futura perversão, tratando esse ato de vadiagem como um crime equivalente
a abandonar o exército. No fim, no entanto, esse tipo de comportamento
nunca desapareceria, ele escreveu, porque pássaros sempre fugiriam de suas
gaiolas para buscar a liberdade.

Fig. 4 – Layout da página “Juegos infantiles: Los raboneros. Haciendo


cunas”.

Fonte: Herrero (1897d).

132 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


A linguagem e os temas são muito semelhantes à cena imaginada em
“Las plumas”. As descrições de Herrero são repletas de imagens sensuais. As
metáforas continuam a ser as mesmas: crianças, mesmo as vadias, são como
pássaros inocentes; a escola é muito rigorosa, muito séria. Mas esses meninos
mais velhos provocam outros afetos. A masculinidade real é desenvolvida
ao ar livre, por meio de brincadeiras violentas e de transgressões, em uma
camaradagem que exclui os adultos. A cena transpira erotismo. Mas, ao
comparar a imagem e as palavras ao seu redor, há um silêncio sintomático:
a presença dos livros – detalhe marcante, considerando os discursos visuais
dominantes sobre a leitura silenciosa e solitária em ambientes fechados –
foi ignorada por Herrero. Como professor, ele certamente teria notado os
livros, celebrando o progresso da alfabetização que eles representavam. Os
livros nessa cena eram implausíveis? Deveriam permanecer invisíveis, pois
contradiziam a sua visão de escolas como gaiolas? A dimensão moral da
história dos meninos vadios exigia que os empréstimos e conexões entre
crianças em idade escolar e “desertores” fossem negados, escondidos,
excluídos da foto?
Essa construção da infância entre meninos também pode ser vista no
último conjunto de imagens e artigos que gostaria de destacar, as quais estão
relacionadas a uma cena de luta. A foto retrata o mesmo grupo de meninos,
que podemos ver em “Contando cuentos” (Fig. 3), em meio a uma paisagem
igualmente arruinada; um prédio imponente pode ser visto ao fundo, talvez
uma das “escolas palacianas” construídas na época (GREMENTIERI;
SCHMIDT, 2020). O grupo está formando um semicírculo em torno de dois
meninos envolvidos em uma disputa de luta livre (Fig. 5). Vemos mochilas
escolares bem como ternos de marinheiro, chapéus e boinas; é claramente
um grupo socialmente misto, e o fato de os meninos estarem de pé e de
frente para a câmera evidencia as diferenças sociais marcadas pelas roupas.

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Fig. 5 – “Lucha”.

Fonte: Argentina, Archivo General de la Nación, Departamento de Fotografía, AR_


AGN_DDF/ Consulta _INV:214.901.

A foto evocou narrativas opostas nas revistas Buenos Aires e Caras y


Caretas. Sob o título “Juegos Infantiles” (jogos infantis), Enrique Herrero
criou outra de suas histórias impressionantes. Como antes, ele deu nomes aos
principais personagens. Ambas são crianças da classe trabalhadora: a mãe
de Ramón é uma lavadeira e o pai de Jaime é um ferreiro inglês. Ele começa
com uma confissão: “Eu conheço todos eles. Eles foram meus alunos; eles
passaram as melhores horas de seus dias comigo e eu os estudei como meu
próprio problema. São os mesmos alunos? Sei os seus nomes? Não, mas isso
não importa: as pessoas são homogêneas” (HERRERO, 1897c, p. 14). Seu artigo

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é paternalista, mas tem um tom inflamado, quando trata das condições de
vida da classe trabalhadora, imersas em escuridão e monotonia, destituídas
de sol e alegria. Seus filhos vão à escola de forma irregular e, sem a atenção
dos professores, eles são como plantas sem cuidado, ásperas e brutas. Lutar
é sua força e seu prazer. Se um policial ou um professor aparecesse, todos
eles fugiriam e manteriam segredo. A luta seria a conversa e risada do dia; “é
assim que nossos queridos meninos, os filhos dos pobres, obtêm seu prazer”
(HERRERO, 1897c, p. 15).
A visão de Figarillo sobre a luta na Caras y Caretas foi despojada de
qualquer comentário relacionado a classes, focando, ao invés disso, em
questões ligadas à masculinidade (Fig. 6). Intitulado “Lucha Romana” (luta
romana), o texto celebrava a luta como um exercício útil para os meninos,
ainda melhor que exercícios atléticos no trapézio ou nas barras paralelas.
Essa “luta é a síntese de uma boa educação em ginástica e os meninos não
deveriam ser autorizados a começar sem uma preparação apropriada”; eles
deveriam ser ensinados a rejeitar “quaisquer recursos não clássicos”. Esse tipo
de luta exigia reflexão; força corporal não era suficiente. Novamente, Figarillo
ressaltou que as lutas tinham regras ou “princípios invariáveis que causarão
a derrota fatal daqueles que não os observam” (FIGARILLO, 1903. p. 62).

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Fig. 6 – Layout da página “Páginas infantiles: El Uñate – Carrera con Aros –
Lucha Romana”.

Fonte: Figarillo (1903).

As imagens dos meninos brincando violentamente são similares a outras


imagens – por exemplo, aquelas dos moleques de rua –, o que contribuiu para
a construção de uma sensibilidade burguesa no século XIX. A historiadora
da arte Marilyn Brown (2017, p. 30) afirma que a imagem do “gamin de
Paris” se tornou icônica, por meio da pintura de Eugène Delacroix La Liberté
guidant le peuple (A liberdade guiando o povo, 1830), a qual retrata um
rapaz jovem, marchando ao lado da encarnação feminina da liberdade e
brandindo duas pistolas, enquanto outro menino segurava um mosquete

136 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


e vários paralelepípedos. Na interpretação de Brown, os meninos foram
ostensivamente politizados, condensando imagens de liberdade e revolução,
e sua representação mostra até que ponto os meninos desempenharam um
papel central na produção dos imaginários de “povo” e “nação” na França.
Ao longo do século XIX, todavia, essa imagem da criança revolucionária
foi gradualmente domesticada, mudando para visões sentimentalistas da
infância. Os meninos indisciplinados não carregavam mais “a bolsa de
munição” da pintura de Delacroix, mas a mochila escolar (BROWN, 2017,
p. 103). Nas fotos e textos argentinos, os meninos não são associados com
nenhuma ação política.
Como comentário final, e sugerindo um problema que merece ser mais
pesquisado, deve-se destacar que meninas, apesar de não estarem ausentes
nas fotos impressas, tendem a ocupar um lugar marginal como espectadoras
(a exemplo da primeira foto na Fig. 6) ou aparecem como “objetos de olhares
de admiração de adultos” passivos, brincando de gangorra, com casas de
boneca ou de faz-de-conta a embalar garotinhas (HIGONNET, 2012, p. 298).
Enquanto meninos jogavam jogos que os ensinavam como se controlar e
vencer outros, meninas eram retratadas contando histórias e cuidando de
outras pessoas.

Considerações finais
Neste capítulo, segui algumas imagens de jogos infantis em suas viagens
de um álbum amador a duas revistas ilustradas, que foram pioneiras na
introdução de fotografias na imprensa periódica no final do século XIX e
início do século XX na Argentina. Ambas as revistas foram importantes
para legitimar o valor da brincadeira como experiência formativa dentro e
fora das escolas; elas fizeram isso tanto por meio de palavras quanto fotos.
Como vimos, no entanto, mesmo que as fotos fossem as mesmas, elas
operaram de forma bem diferente, dependendo da copresença de diferentes
tecnologias de impressão, discursos pedagógicos e estilos de narrativa.
Revendo o estudo de Sandra Szir sobre as imagens das crianças “escolarizadas”
e “consumistas” nos primeiros anos da Caras y Caretas, minha própria
análise constatou que as fronteiras entre esses tipos de imagens estavam

137 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


misturadas. Apesar de Caras y Caretas ter sido uma revista popular e voltada
para o consumidor, ela era próxima da “versão escolarizada” da infância –
por exemplo, em sua insistência nas regras para um jogo adequado e nos
papeis fixos de gênero.
À primeira vista, poderia parecer que as imagens foram mais importantes
e proeminentes na Caras y Caretas, revista na qual era possível imprimir até
três fotografias na mesma página. No entanto, como exemplos diferentes
mostraram, as fotos pareciam secundárias em relação às manchetes e
palavras ao redor. As imagens eram usadas como ilustrações dos textos,
sem problematização, e as palavras raramente se referiam a elas. Os textos
acompanhando as fotos tendiam a privilegiar uma noção de crianças ansiosas
para aprender e jogando segundo as regras. A brincadeira era normalizada;
apenas raramente a revista Caras y Caretas incluiu imagens transgressoras
ou ambivalentes, que desafiavam os limites de gênero e sociais estabelecidos.
Em vários de seus artigos, Figarillo afirmou que a brincadeira “normal” era
um sinal de saúde, devendo os pais permanecer vigilantes sobre quaisquer
desvios. As regras eram fixadas, sendo as palavras usadas para estabilizar
os sentidos potencialmente múltiplos das imagens.
Os artigos de Enrique Herrero na Buenos Aires parecem muito mais
cientes dos poderes sedutores da fotografia, dos quais o próprio autor foi
vítima. Herrero criou pequenas histórias em torno das fotos, colocando
as cenas em movimento, adicionando cheiros, cores, sensações táteis e
dando nomes aos personagens. Suas narrativas, escritas entre 1896 e 1897,
já parecem ser cinemáticas, provavelmente devido à sua familiaridade com
inovações fotográficas e experimentos com tecnologias visuais frequentemente
reportadas na revista. Ainda, os escritos de Herrero mostram que havia mais
de uma versão da criança escolarizada e da brincalhona. Herrero, que era
provavelmente um professor e estudante universitário quando escreveu esses
artigos, articulou um discurso crítico em relação à escolarização, comparando
escolas com gaiolas ou prisões. Não se podia esperar que alunos – os quais ele
via ora como pequenos patifes, ora como pássaros, ou plantas que precisavam
de bom cuidado – ficassem parados.

138 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


Diferente de Figarillo, Herrero promoveu discursos pedagógicos
valorizando liberdade e exploração, que então estavam emergindo ao redor do
mundo.13 A brincadeira era vista como parte da natureza infantil e, portanto,
sustentava um ideal romântico de uma infância inocente e pura, manchada
apenas pela pobreza e exploração. Mesmo vadiagem e lutas de meninos eram
consideradas uma parte normal da busca das crianças (do sexo masculino)
por liberdade e autonomia. Como Marilyn Brown argumenta em referência
ao “gamin de Paris”, essas imagens de meninos eram despolitizadas, mas
ainda assim eram chamadas a desempenhar um papel central na construção
da nação. Szir está certa em sua observação de que revistas como Caras
y Caretas privilegiavam crianças brancas europeizadas, mas os textos de
Herrero na Buenos Aires eram mais inclusivos quanto a diferentes origens
étnicas e sociais, mesmo que subordinadas às mesmas hierarquias raciais.
Mas isso não é tudo. A linguagem de Herrero é poética e complexa, cheia de
referências afetivas que também são fortemente paternalistas. A narrativa da
Caras y Caretas é mais seca, descritiva, direta. Direcionada para todos os tipos
de público, a revista teve muito mais sucesso que a Buenos Aires em atingir
os seus leitores, incluindo as crianças. O fato de os seus leitores pretendidos
e presumidos incluírem crianças é importante na discussão das pedagogias
públicas dessas revistas. Crianças teriam se interessado em saber as regras e
truques dos jogos, ou os diálogos exatos a seguir, a fim de se envolverem em
novas formas de brincar. A inclusão de fotografias forneceria uma imagem
concreta da situação, arranjos corporais e movimentos implícitos nos jogos.
Fotografias poderiam ser informativas e complementar o texto, tornando
explícito tudo que não era dito nos artigos. Logo, é claro que as revistas
funcionavam de formas diferentes, mas eu argumentaria, ainda, que elas
não podem ser classificadas puramente como progressistas (galhofeira) ou
regressivas (escolarizada). Novamente, com base em Elizabeth Edwards, é
útil sair dessas categorias, prestar atenção às incongruências e ambivalências
inerentes à mídia, e perguntar que tipos de experiências e pontos de vista
elas proporcionavam aos seus leitores.

13. Ver o estudo de Adriana Puiggrós (1990) sobre a corrente educacional democrática
radical no final do século XIX na Argentina.

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Por último, gostaria de concluir com algumas considerações gerais
sobre trabalhar com imagens em tempos digitais. Como mencionado antes,
as lacunas dos arquivos digitais trazem novos desafios que os historiadores
devem confrontar. Se considerarmos apenas o que está disponível online,
baseado nas decisões dos curadores sobre o que é mais popular e/ou efetivo
em certos momentos, nosso trabalho histórico será fortemente empobrecido.
A digitalização torna mais fácil descontextualizar imagens e separá-las de
séries maiores e contextos que podem fornecer pistas mais robustas sobre
nosso passado. Em minha pesquisa sobre esse álbum de fotografia, tentei
tomar medidas concretas para desfragmentar a imagem digital, tentando
reinscrever fotos inicialmente encontradas como arquivos digitais dentro
das copresenças materiais, mídia tecnológica e redes de sentidos às quais
elas estavam originalmente atreladas. Ao fazer isso, não estava buscando por
nenhum significado original e “verdadeiro” das imagens; ao contrário, estava
tentando compreender a multiplicidade que elas carregam e as histórias
complexas e contestadas por meio das quais elas chegaram até nós. Com
Didi-Huberman, acredito que imagens, mesmo que sejam belas, raras e
prometam acesso aos mundos das crianças, não têm a última palavra; de
fato, elas demandam novas palavras.

Periódicos
BRETÓN. La Dolores. Buenos Aires: Revista Semanal Ilustrada, 2 feb. 1896, p. 2.
CANTILO. Para empezar. Buenos Aires: Revista Semanal Ilustrada, 11 ago.
1895, p. 1.
EL DR. LUIS Harperath. Buenos Aires: Revista Semanal Ilustrada, 12 abr.
1896, p. 6.
FIGARILLO. Páginas infantiles: El Uñate – Carreras con Aros – Lucha
Romana. Caras y Caretas, 10 ene. 1903, p. 62. Coleção Digital da Biblioteca
Nacional da Espanha.
FIGARILLO. Páginas infantiles: La payana – El rescate – Las plumas. Caras
y Caretas: Semanario Festivo, Literario, Artístico y de Actualidades, 23 ago.
1902, p. 62. Coleção Digital da Biblioteca Nacional da Espanha.

140 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


HERRERO, Henrique. Juegos infantiles: Las plumas. Buenos Aires: Revista
Semanal Ilustrada, 31 ene. 1897a, p. 12. Coleção da Biblioteca Nacional da
Espanha.
HERRERO, Henrique. Juegos infantiles: Los raboneros. Haciendo cunas.
Buenos Aires: Revista Semanal Ilustrada, 21 mar. 1897d, p. 12. Coleção da
Biblioteca Nacional da Espanha.
HERRERO, Henrique. Juegos Infantiles: Tres en línea, Hilos de oro, hilos de
plata. Buenos Aires: Revista Semanal Ilustrada, 14 feb. 1897b, p. 13. Coleção
Digital da Biblioteca Nacional da Espanha.
HERRERO, Henrique. Juegos infantiles: Un concurso y un jurado. Buenos
Aires: Revista Semanal Ilustrada, 28 feb. 1897c, p. 14-15. Coleção Digital da
Biblioteca Nacional da Espanha.
PHOTOGRAPHS of the Sun. Buenos Aires: Revista Semanal Ilustrada, 19
abr. 1896, p. 11. Coleção Digital da Biblioteca Nacional da Espanha.
PREMIOS EN LA Sociedad Fotográfica de Londres. Buenos Aires: Revista
Semanal Ilustrada, 6 sept. 1896, p. 12. Coleção Digital da Biblioteca Nacional
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144 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


Práticas escolares e representação fotográfica:
os centros de interesse no Álbum do Jardim de
Infância (São Paulo, 1931)1

Diana Vidal
Rachel Duarte Abdala

Os centros de interesse, prática pedagógica introduzida no Jardim de


Infância da Escola Caetano de Campos, e sua representação por meio das
fotografias reunidas no Álbum do Jardim de Infância de 1931 constituem o
objeto de análise deste texto. A emersão em uma problemática enraizada
na dimensão local, entretanto, serve de mote a uma abordagem ancorada
na história transnacional da educação, suscitando o necessário exercício de
mudança de escalas que a perspectiva historiográfica emula. O procedimento
tem ao menos duas implicações de natureza teórica que devem ser enfatizadas.
A primeira remete à combinação de enfoques macro e micro na
construção de histórias múltiplas, com ênfase no “caráter crucial, por vezes
determinante, que as iniciativas locais e particulares” assumem, como diria
Sanjay Subrahmanyam (1994, p. 153). A passagem de um nível ao outro de
interpretação significa, para Paul Ricoeur (2007, p. 221), “uma mudança do

1. As reflexões aqui propostas integram a investigação do Projeto Temático Saberes e práticas


em fronteiras: por uma história transnacional da educação (1810-...) (processo FAPESP n.
2018/26699-4), liderado por Diana Vidal, no qual Rachel Abdala atua como pesquisadora
associada.

145 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


nível de informação em função do nível de organização”, com impactos sobre
a proporcionalidade das dimensões e a heterogeneidade da informação. Traz
como desafio, portanto, a articulação entre os fatos miúdos do cotidiano e
o cenário no qual se desenrolam, respeitando as questões específicas que
cada enquadramento promove ao se alterarem as lentes de interpretação.
A segunda implicação teórica refere-se à recusa dos modelos analíticos
que se organizam em torno das relações centro-periferia, matizando a
importância dos processos de difusão de conhecimento (BURKE, 2003)
ou, mesmo, recusando as noções de transferência, em favor da percepção
de hibridações. As fronteiras físicas e epistemológicas são consideradas
como porosas, acolhendo fluxos de passagem, além de regras de contenção.
Nesse sentido, tanto se colocam em suspenso os estudos que, enraizados nas
histórias nacionais, confinam as análises aos contornos das Nações, Estados,
Impérios ou regiões, quanto se valorizam as mediações efetuadas pelos
sujeitos no trânsito entre e dentro dos espaços, suas agências na elaboração de
experiências e na apropriação dos conhecimentos em circulação na sociedade.
Neste texto, portanto, os centros de interesse implantados na Escola
Caetano de Campos, assim como os registros fotográficos deles efetuados, são
concebidos como integrantes dessa dinâmica de apropriação que embaralha
circuitos de produção e consumo de saberes e práticas. Dois movimentos
conformam a reflexão aqui proposta e se expressam em suas subdivisões. Na
primeira, os centros de interesse são tematizados no âmbito do movimento
internacional da educação nova, entretecendo a narrativa construída por Alice
Meirelles Reis sobre o trabalho realizado no Jardim de Infância, nas décadas
de 1920 e 1930, com a produção acadêmica nacional e internacional sobre
o método. Na segunda parte, o álbum fotográfico assume a centralidade da
análise, escrutinado como artefato de memória, modelo de ensino infantil
e produto de um tipo específico de registro imagético. As considerações
finais enfeixam a escrita.

Centros de interesse: um método sem autor


Na literatura pedagógica, o método de centros de interesse é relacionado
diretamente a Ovide Decroly, identificado como seu autor. No entanto,

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para María del Mar Pozo Andrés (2007, p. 144) nem sempre foi assim. De
acordo com a autora, o caso serve de ilustração de como o movimento da
Escola Nova construiu suas glórias e produziu seus mitos. O argumento
rastreia a genealogia do método. Inicialmente credita a Herbart a ideia
de “concentración de los contenidos escolares, para evitar la tradicional
atomización o dispersión del conocimiento y estimular los intereses infantiles”.
Afirma que, desenvolvida por Ziller, entre 1862 e 1882, a proposta passou aos
Estados Unidos da América “y allí se reconvirtió en actividades prácticas,
se operativizó en realidades educativas y se implantó en la cultura escolar,
conociéndose con el vocablo ‘centro de interés’” (POZO ANDRÉS, 2007,
p. 144). A notícia sobre o método chegou a Decroly apenas em 1908, ano
em que foi publicado o livro Méthodes américaines d’éducation générale et
technique, de Omer Buyse, para o qual redigiu um comentário, registrado
no informe da reunião da Sociedade Belga de Paidotecnia, em 21 de maio
de 1908 (POZO ANDRÉS, 2007, p. 145).
De fato, não é nova a revelação feita por Pozo Andrés. Em artigo datado de
1958, Tobie Jonckheere traçava outra trajetória para as origens do método, mas
igualmente negava a Decroly a autoria. Tributava a John Dewey a elaboração
dos princípios psicológicos do método e a Königbauer o programa prático de
distribuição dos conteúdos. Concluía que, se Decroly talvez não conhecesse o
autor alemão, seguramente estava ciente da contribuição do educador norte-
americano (JONCKHEERE, 1958 apud HAI et al., 2016, p. 810). Apesar de
reconhecerem que Tobie Jonckheere, diretor da Escola Normal de Bruxelas,
não era muito apreciado nos círculos próximos a Decroly, Alessandra Hai,
Frank Simon e Marc Depaepe (2016, p. 810) reiteram a dissociação entre
o surgimento dos centros de interesse e a criação do educador belga, por
concordarem que o termo era “tautologicamente utilizado”, concebendo que
Decroly parecia funcionar apenas como um rótulo.
As interpretações confluem a outras análises sobre métodos pedagógicos
associados ao movimento internacional de renovação educacional do
entreguerras. Daniel Hameline (1996), ao discorrer sobre o trabalho de
Mina Audemars e Louise Lafendel na Maison des Petits, associada ao Instituto
Jean-Jacques Rousseau, destacou que as educadoras genebrinas pautavam
as estratégias pedagógicas, que vinham elaborando desde 1910, por quatro

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princípios básicos: 1. não hesitar em bricolar o material educativo; 2. manter
a propriedade onde ela se encontra; 3. colocar ideias e instrumentos à prova
de uma prática ao mesmo tempo engenhosa e refletida; 4. dispor de uma
concepção geral da infância que sirva de credo sem engendrar rigidez
dogmática. Nesse sentido, entreteceram Froebel, Montessori, Dewey e
Decroly, aderindo ao método experimental, sem se subordinarem ao prestígio
de uma personalidade, e construindo um discurso praticante, constituído com
base na observação, sistematização e diálogo com a literatura pedagógica.
É novamente Hameline (1995) que narra a genealogia do termo escola
ativa, dissociando-o da autoria de Adolphe Ferrière. Identifica que a
terminologia apareceu pela primeira vez em 1917, na revista L’intermédiaire des
educateurs, do Instituto Jean-Jacques Rousseau, numa resenha não assinada
sobre o livro do pedagogo italiano Maurilio Salvoni, Una macchia sul muro
e altre lezione, publicado em Milão naquele mesmo ano. Possivelmente o
autor da resenha era Pierre Bovet que, então, assumia o cargo de redator
do periódico. O termo foi grafado entre aspas, talvez indiciando que no
microcosmo do instituto era uma expressão familiar, uma maneira de falar
adotada pelo grupo. Provavelmente a fonte imediata da referência era a
arbeitsschule, expressão conhecida no panorama educacional genebrino desde
1914, quando os organizadores da Exposição Nacional da Suíça pediram que os
professores enviassem as melhores produções de seus alunos, recomendando
que se inspirassem na arbeitsprinzip, traduzida nas circulares e projetos
por princípio energético. Remetia à escola do trabalho, na qual a atividade
manual era constantemente utilizada em auxílio ao exercício mental. A
despeito de a proposta da arbeitsschule ser considerada pertinente pelos
educadores genebrinos, a expressão parecia-lhes desafiadora, na medida em
que propiciava a associação com o universo do trabalho produtivo.
No entanto, se em 1914, ao publicar o artigo “Les fondement
psychologiques de l´école du travail”, na Revue Psychologique, Ferrière havia
se apropriado da ideia de arbeitsschule, de Kerschensteiner, traduzida como
escola do trabalho, oito anos depois o artigo seria incluído como prefácio
ao livro L´école active, mantendo praticamente a mesma estrutura, a não
ser pela substituição de “escola do trabalho” pela expressão escola ativa.
Apesar da descoberta, Hameline destaca que a história da fórmula não é uma

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história de uma doutrina, um pensamento elaborado por Ferrière desde 1914,
que se consolidou em 1922, mas de uma etiqueta que o educador passou a
difundir na década de 1920. Descarta, por fim, a relação entre ensino ativo
e escola ativa. O primeiro emergiu no contexto francês do século XIX e
referia-se à questão dos métodos, culminando na escola primária com o
ensino por aspectos ou lição de coisas. Procurava incentivar a participação
das crianças, tanto aumentando a margem de iniciativa infantil, quanto
oferecendo oportunidade para domá-la, na defesa da formação liberal do
homem livre e responsável. O segundo surgiu em Genebra, esquecendo-se
ou fazendo-se esquecer da doutrina francesa, principalmente em razão de
os educadores do Instituto Jean-Jacques Rousseau preferirem dialogar com
a pedagogia e a psicologia alemãs.
Outros exemplos podem ser ainda evocados, como a genealogia do
método de projetos, também investigada por Maria del Mar Pozo Andrés
(2020). Servem ao propósito de evidenciar três dimensões da discussão sobre
métodos pedagógicos na sua relação com o movimento internacional da
educação nova. A primeira revela-se na imagem do bricoleur, concernente
à atuação de Mina Audemars e Louise Lafendel na Maison des Petits,
mas que pode ser estendida a todos que, na situação prática da sala de
aula, experimentavam possibilidades e construíam soluções originais em
resposta às urgências da classe. A segunda emerge na percepção de que, na
medida em que o movimento pela educação nova crescia em repercussão
internacional, educadores buscavam projeção nas disputas entabuladas
no campo educacional (este também em construção) por meio de uma
intensa produção editorial, bem como de um trânsito transnacional sem
precedentes. A terceira e talvez mais sugestiva é que os termos, capturados
por educadores que pretenderam atribuir-lhe autoria, surgiram no âmbito
da cultura escolar, como resultado de transformações gestadas por sujeitos
anônimos no interior das escolas, fruto da agência de professores e professoras
e da capilaridade do trabalho docente.
Nesse cenário, torna-se pertinente retornar à experiência de Alice
Meirelles Reis no Jardim de Infância, no que ela pode nos trazer de informação
sobre a apropriação dos centros de interesse em São Paulo. Neste primeiro
apartado, é à sua produção escrita que recorreremos, em particular ao Livro I,

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doado pela educadora ao Museu da Educação e do Brinquedo da Faculdade
de Educação da USP, em que ela expõe sua compreensão sobre os centros
de interesse, e a um artigo publicado na revista Educação, em 1928, em
que discorre sobre jogos educativos. No próximo apartado, essas questões
reaparecem por meio dos registros fotográficos constantes do álbum de 1931.
Cópia carbonada de texto datilografado, formato A4, e não publicado, o
Livro I não apresenta identificação de data. Como inclui fotografias, encartadas
nas páginas a propósito de ilustração, especialmente no Livro II, datadas de
1934, estimamos que a obra tenha sido composta nesse período. A referência
aos centros de interesse vem antecedida por uma imagem de Decroly; na
legenda, além do nome do educador belga, há menção aos anos de seu
nascimento (1871) e morte (1932).
Fig. 1 – Retrato de Decroly no Livro 1 [1935].

Fonte: Acervo do Museu da Educação e do Brinquedo da Faculdade de Educação-USP.

Na sequência, sob o título “Programa da Escola Decroly”, Alice Meirelles


ressalta que o princípio psicológico é a base do interesse da criança e destaca
importância de orientá-la no conhecimento de sua própria pessoa e do
meio em que vive. Para o estudo da criança devem-se considerar quatro

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pontos que correspondem a quatro necessidades primordiais do indivíduo: 1.
Necessidade de alimentar-se; 2. Necessidade de lutar contra as intempéries;
3. Necessidade de defender-se contra o perigo e os inimigos; 4. Necessidade
de agir, de trabalhar, de cooperar, de recrear-se, de repousar. O estudo do
meio, por sua vez, subdivide-se em duas partes: 1. A criança e os homens;
2. A criança e a natureza. Uma segunda imagem é colada nas páginas no
Livro I, reforçando a relação do educador belga com as crianças e a natureza,
o que pode ter a função de sintetizar visualmente os preceitos enunciados
anteriormente.
Fig. 2 – Decroly com crianças. Imagem do Livro 1 [1935].

Fonte: Acervo do Museu da Educação e do Brinquedo da Faculdade de Educação-USP.

Sob o título “Centros de interesse”, Meirelles discorre acerca das três


etapas do trabalho psíquico: observação, associação e expressão. Dá destaque
à propriedade do método de estabelecer ligação entre todas as matérias a
serem ensinadas, considerando-o um “programa de ideias associadas”. E
ressalta que, ao concentrar todas as atividades em torno de um tema, tem-se
a vantagem de evitar a dispersão comum às crianças. Passa, então, a abordar
a “Aplicação dos ‘centros de interesse’ nos graus”, detalhando as características

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das crianças no Jardim de infância e nas etapas posteriores da escolarização,
com base na segmentação por faixas etárias: de 6 a 8, de 8 a 14 e de 14 a 18
anos de idade. Explora, ainda, três aspectos do método: globalização (o
ensino deve partir do todo para as partes); disciplina (individual, conquistada
pela liberdade do aluno e da classe, pela autogestão); trabalho individual
(associado à iniciativa individual e aos jogos educativos).
Este último ponto, os jogos educativos, é o que retém a atenção de
Alice Meirelles, que discorre sobre eles nas páginas seguintes, apresentando
exemplos para sua utilização em classe. Retoma, no Livro I, argumentos que já
estavam presentes no artigo “Material para Jardim de Infância”, publicado na
revista Educação, em 1928, como a comparação entre os métodos Montessori
e Decroly, o segundo considerado como aquele que proporciona maior
engajamento infantil. Mas a escrita revela distintos interlocutores visados.
No caso do Livro I, Meirelles vale-se de um discurso científico, possivelmente
endereçado ao uso em escolas de formação para o magistério. Já o artigo
dirige-se francamente a docentes na ativa, sendo construído sob forma
de diálogo com pares a partir da experiência pessoal da autora. Enquanto
no Livro I apresenta modelos impressos na Suíça e França e adaptados no
Rio de Janeiro, no artigo ensina, passo a passo, as professoras do Jardim de
Infância a criarem jogos educativos de encaixar e ajustar, utilizando-se de
materiais simples, como papelão, canivete, tesoura, lixa e papéis coloridos.
A pergunta sobre de onde Alice Meirelles teria recortado as imagens que
ilustram o Livro I poderia indiciar os textos frequentados pela autora, uma
vez que o livro não apresenta referências bibliográficas. Se a suposição de
que foi escrito em 1935 está correta, e tendo a foto de Decroly uma legenda
em que se informa o ano do seu falecimento, 1932, talvez os recortes fossem
provenientes de uma publicação que circulou no Brasil entre 1932 e 1935.
Novamente, os artigos assinados por Alessandra Hai, Frank Simon e Marc
Depaepe (2015, 2016) podem nos servir de guia.
Sobre as traduções e adaptações de obras ao português, os autores
relacionam as seguintes:

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– Dr Decroly and Mlle Monchamp, Iniciação à actividade intellectual
e motora pelos jogos educativos, tradução e adaptação brasileira de
Nair Pires Ferreira, 1929.
– Amélie Hamaïde, O Methodo Decroly, tradução e adaptação brasileira
de D. Alcina Tavares Guerra, 1929.
– M. & E. Goué, Como fazer observar nossos alunnos, tradução e
adaptação brasileira de D. Rita Amil de Rialva, 1929.
– Mme Kergomard and Mlle Brés, A criança de 2 a 6 annos (notas de
pedagogia pratica para os jardins de infância), tradução e adaptação
brasileira de Alcina Tavares Guerra, professora do ensino publico
primário no Distrito Federal, 1930.
– Uma experiência de escola ativa numa classe de primeiro ano (prática
pedagógica) – de Nair Pires Ferreira, professora do Grupo Escolar
Basílio da Gama, Rio de Janeiro, (?)
– Ovidio Decroly and R. Buyse, Prática dos Testes Mentaes, tradução
de Nair Pires Ferreira, 1931.
– Nair Pires Ferreira, Methodo Decroly (adaptação brasileira)
acondicionado em caixa de papelão de 42 por 26 centímetros.
– Nair Pires Ferreira, Calculo e associação de ideas por meio de gravuras,
serie de 8 jogos seguintes: O Pequeno Pescador, as estrellas, a chuva,
o outomno, a montanha, o palhaço ao luar, o inverno, o banho de sol.
(HAI et al., 2015, p. 749)

Esclarecem que todas saíram na Coleção Pedagógica, organizada por


Paulo Maranhão, inspetor escolar no Distrito Federal, para a F. Briguiet e Cia.
Pelas datas de publicação, nenhuma dessas obras teria sido fonte das imagens,
posto que publicadas antes de 1932. No entanto, o mero acompanhar de títulos
e tradutores/autores nos faz retornar ao Livro I. Esclarecem-se as menções
vagas a modelos de jogos educativos impressos no Rio de Janeiro. Parecem ser
referências diretas aos trabalhos de autoria de Nair Pires Ferreira. Entretanto,
a remissão a Mlle. Monchamp indicia também a leitura do primeiro item da
lista anterior, mas não necessariamente do seguinte, de autoria de Amélie
Hamaïde, uma vez que, de acordo com Alessandra Hai, Frank Simon e Marc

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Depaepe (2015, p. 716), as páginas em que Hamaïde apresentava o trabalho
de Mlle. Monchamp foram deixadas de fora da tradução brasileira.
De fato, quando discorrem sobre o livro O methodo Decroly, de Amélie
Hamaïde, os autores trazem duas apreciações complementares. A edição de
1929 teve não só várias passagens em que se suprimiu o texto original, como
também notas de rodapé foram retiradas e viu-se reduzida a quantidade de
imagens. Entretanto, a segunda edição, publicada em 1934, após a morte de
Decroly, continha todas as ilustrações, exemplos práticos e testes que haviam
sido excluídos na primeira edição (HAI et al., 2015, p. 763). Teria sido essa
a fonte das imagens utilizadas por Meirelles no Livro I?
É importante considerar, ainda, que as propostas de Decroly não
circularam no Brasil apenas no suporte livros. Artigos em revistas sobre o
educador belga ou sobre centros de interesse também podem ser encontrados.
Com foco apenas no período 1927-1931, Alessandra Hai, Frank Simon e Marc
Depaepe (2016, p. 796) identificam seis publicações na revista Educação, em
São Paulo, e acrescentam um livro à lista anterior. Trata-se de Os centros de
interesse na escola – Suggestões para lições globalizadas, Segundo o systema
Decroly, como contribuição a uma escola brasileira renovada, de autoria de
Abner de Moura, para a Bibliotheca de Educação (Companhia Melhoramentos
de São Paulo, 1931). Nele, encontram-se menções ao trabalho de Hamaïde
e de Monchamp, outra provável fonte utilizada por Alice Meirelles Reis.
Os artigos são os seguintes: Paulo Maranhão, Escola activa, Educação
4, n. 1 e 2, p. 167-172, 1928; Julio de Oliveira, Uma base para a difusão dos
processos de escola activa no estado de Minas, Educação 5, n. 1, p. 81-83,
1928; Luiz Galhanone, O methodo Decroly – apontamentos tomados do livro
de L. Dalhem, Educação 3, n. 1 e 2, p. 183-186, 1929; Luiz Gonzaga Fleury,
Noções sobre a pedagogia de Decroly, Educação 10, n. 1, ano III, p. 11-21,
1930; O Methodo Decroly, Educação 5, p. 86-90, 1931; e Ovide Decroly, A
seleção dos super-dotados, Educação 9, n. 8 e 9, p. 171–207, 1932.
Os títulos indiciam a penetração das ideias de Decroly no Rio de Janeiro,
São Paulo e Minas Gerais, e possivelmente eram de conhecimento de Alice
Meirelles, posto que ela mesma publicara, em 1928, um artigo na mesma
revista. A profusão das publicações informa sobre a atenção que os educadores
brasileiros conferiram ao método de centros de interesse, expressão que,

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como afiançam Alessandra Hai, Frank Simon e Marc Depaepe (2016, p.
810), era já conhecida no Brasil antes de 1924, por meio do livro de Omer
Buyse, e foi evocada por Carneiro Leão na reforma da instrução pública que
realizou no Rio de Janeiro em 1926 (PAULILO, 2015).
Na interpretação brasileira, a associação entre Decroly e centros de
interesse, entretanto, deu-se em um movimento de redução das ideias do
educador belga às necessidades de classe, o que permitiu a acomodação de
uma terminologia conhecida e relacionada ao ensino de lições de coisas a um
conjunto de modelos práticos a serem utilizados na inovação das atividades
de aula, sob o rótulo de Decroly (HAI et al., 2016, p. 811). Não foi diferente
a apropriação efetuada por Alice Meirelles Reis. Tanto no Livro I, quanto
no artigo saído na Educação, imperam os conselhos práticos e a tradução
do programa ao cotidiano da classe. Nesse sentido, a análise do álbum de
fotografias de 1931 pode ser, ainda, sugestiva.

O Álbum Fotográfico de 1931: condições de produção e narrativa


O Álbum Fotográfico do Jardim de Infância de 1931 integra o acervo
da Escola Caetano de Campos. No conjunto, o Acervo da Escola Caetano
de Campos (AECC) é composto por 24 álbuns fotográficos identificados
em dois grandes conjuntos, de acordo com suas condições de produção.
Desse modo, há uma série de álbuns produzidos profissionalmente por
fotógrafos e estúdios fotográficos, e há outra de álbuns compostos de modo
artesanal no âmbito da própria escola, provavelmente por docentes e pela
Bibliotecária Iracema da Silveira. Kishimoto (1914) menciona a existência
de cinco outros álbuns fotográficos no acervo do Museu da Educação e do
Brinquedo da Faculdade de Educação da USP, compostos pela professora
Alice Meirelles Reis com fotografias das práticas educacionais inovadoras
implementadas por ela.
Como instituição modelar da educação paulistana e ocupando um
lugar de destaque na ampliação do cenário urbano da cidade de São Paulo
no período pós-Proclamação da República, a Escola Caetano de Campos
suscitou a realização de muitas pesquisas na área de História da Educação,
tendo sido, portanto, o foco temático de amplo rol de produção acadêmica que

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engloba a história da instituição e das práticas escolares por ela promovidas.
Construído em 1894, o novo prédio da escola constituiu-se em palco dessas
práticas, projetadas também pela visibilidade dessa iniciativa educacional
na capital do Estado de São Paulo, com a localização do prédio na recém-
criada Praça da República.
No que se refere em particular aos álbuns fotográficos da Escola Caetano
de Campos, há apenas três trabalhos de pesquisa centrados nesse objeto. O
mais recente é a tese de Rachel Duarte Abdala, recentemente publicada em
livro (ABDALA, 2020). Nessa investigação, a pesquisadora realizou uma
análise dos álbuns fotográficos produzidos por iniciativa da Escola Caetano
de Campos, tendo como temática a própria escola e suas práticas. Os outros
dois trabalhos são de autoria de Mirtes Cristina Marins de Oliveira, em seu
mestrado e doutorado, respectivamente, de 1997 e 2002. Centram-se na análise
dos álbuns fotográficos de 1895 e de 1908, compostos de modo profissional
com uma intencionalidade de utilizá-los como peças de propaganda dos
ideários republicanos na capital paulista.
O Álbum do Jardim de Infância de 1931 é aqui concebido como fonte
para a investigação e compreensão da realização de atividades relacionadas
à perspectiva dos centros de interesse, praticadas na Escola Caetano de
Campos. Para tanto, utilizamos as análises iconográfica e iconológica que
compreendem, de acordo com Boris Kossoy (1999, p. 58), perspectivas
que permitem decifrar informações implícitas e explícitas no documento
fotográfico. A análise iconográfica refere-se à descrição dos elementos
visíveis que compõem a fotografia, enquanto a iconológica ocupa-se das
informações codificadas (invisíveis) da fotografia. Para Kossoy (2001), a
análise iconográfica corresponde à investigação da “realidade exterior”, ou
seja, da segunda realidade – do documento – criada pelo registro fotográfico.
Já para a realização da análise iconológica, é necessária a contextualização
do documento fotográfico, incluindo suas condições e os objetivos que
orientaram sua produção.
Com relação aos aspectos materiais, o Álbum do Jardim de Infância é
composto por 31 páginas com arranjos de fotografias fixadas com cantoneiras
de papel e com as legendas escritas à mão. Tematicamente, as fotografias
retratam as práticas escolares do Jardim de Infância. Iconograficamente,

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observa-se que as fotografias não são posadas, com exceção de duas no final
do álbum. Embora os retratados pudessem ter consciência de que estavam
sendo fotografados, as crianças parecem estar mais interessadas em suas
atividades. Na maioria das fotografias os registros apresentam as crianças
concentradas em seus fazeres, muitas vezes inclusive de costas para as lentes.
Esse aspecto destaca-se no conjunto das fotografias do álbum, constituindo-
se como uma característica marcante da série.
Fig. 3 – “Fervendo o leite. Sacudindo a nata. (c. int. - Leite)”.

Fonte: Escola Caetano de Campos (1931).

Na fotografia acima, podemos observar a concentração das crianças e


o foco na atividade que, embora estivesse sendo realizada por apenas uma
das alunas, no centro da composição fotográfica, catalisa a atenção de todos.
O registro refere-se a uma das etapas, o processo de produção do queijo, do
centro de interesse intitulado Leite.
No que diz respeito a uma dimensão técnica, de modo recorrente, em
algumas fotografias, as crianças aparecem borradas devido ao fato de estarem
em movimento e, portanto, não se manterem paradas o tempo suficiente
para a captação nítida do registro fotográfico. Walter Benjamin, em sua
Pequena história da fotografia, denomina “imperativos técnicos” as condições

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técnicas de captação e fixação de imagens pelas câmeras fotográficas: “A fraca
sensibilidade luminosa das primeiras chapas exigia uma longa exposição
ao ar livre” (BENJAMIN, 1994, p. 96). Com o passar do tempo, mesmo
com o desenvolvimento da técnica e dos recursos fotográficos, ainda na
década de 1930, quando foram feitos os registros aqui analisados, embora o
tempo necessário tivesse diminuído muito, ainda era necessária uma certa
imobilidade para a captação do registro.
Fig. 4 – “Construindo a fazenda”.

Fonte: Escola Caetano de Campos (1931).

Mais uma vez é possível perceber a concentração das crianças no


desenvolvimento da atividade proposta. Todas as crianças estão em atividade,
de modo colaborativo ou individual, atuando com o mesmo objetivo:
construir a maquete de uma fazenda de café. Novamente, percebemos que
a imagem da terceira criança, da esquerda para a direita, aparece borrada,
devido ao movimento.
O outro aspecto é relativo à análise iconográfica. Apenas em algumas
fotografias há crianças olhando para o fotógrafo, o que denota que percebiam
a sua presença. Pode-se também supor que os registros fotográficos tenham
sido realizados pela própria professora, excluindo-se assim o estranhamento

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das crianças, que poderia acontecer pela inserção de uma pessoa alheia ao
contexto escolar, caso os registros tivessem sido realizados por um fotógrafo
profissional, contratado para esse trabalho. A professora Alice Meirelles Reis
aparece em duas fotografias do álbum: uma em atividade, tocando piano
com as crianças à sua volta, o que é indicado na legenda como “uma lição
de canto”. A outra é uma das duas únicas fotografias posadas do álbum,
na qual ela aparece com as crianças que, na sequência, na outra fotografia,
posam sem a professora.
Fig. 5 – Professora Alice Meirelles Reis com crianças.

Fonte: Escola Caetano de Campos (1931).

No escopo da lógica narrativa empreendida no álbum, essas duas


únicas fotografias posadas estão colocadas quase ao final. Mesmo sendo
uma fotografia posada, há uma criança que olha para o lado, escapando do
foco do registro. Sentada no centro das crianças, a professora coloca-se na
mesma altura delas. No meio delas, com elas.
Foi possível identificar pelas legendas e pelas fotografias cinco centros
de interesse explicitamente indicados nas legendas: Bichos – Arca de Noé,

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Ovo de Páscoa, O gato, Leite, Meios de transporte. Duas outras temáticas
puderam ser identificadas, embora não estejam explicitamente indicadas
nas legendas: café e circo. No entanto, o tratamento não é equânime. Ao
contrário, houve intensificação das atividades em determinados centros de
interesse, por exemplo, o relativo ao leite, em detrimento de outros, como
foi o caso de Ovo de Páscoa, que só aparece uma vez.
Pelas fotografias, fica perceptível que as atividades eram realizadas tanto
de modo interno, em salas de aula e em outros espaços da instituição, quanto
externo, fora do âmbito escolar. No que concerne ao primeiro, Kishimoto
(2014, p. 22) afirma que “[...] o amplo espaço físico da sala impressiona pela
diversidade de materiais [...]”. No que se refere ao segundo, há evidência, em
três fotografias e em suas respectivas legendas. A primeira mostra as crianças
entrando em um carro, o que é reforçado pela legenda que a identifica, na
qual a ação está descrita exatamente desse modo. A análise do contexto
narrativo do álbum no qual essa fotografia está inserida parece indicar
que a visita foi a uma fazenda, porque na sequência há duas fotografias
que mostram as crianças observando alguém tirar leite da vaca, em um
estábulo. As legendas de duas outras fotografias reforçam a frequência a
um espaço externo à escola pelo uso, em uma delas, do termo “visita”. Essa
atividade parece estar inserida no âmbito das atividades de outro centro de
interesse, Meios de transporte, porque a visita foi à Companhia Marítima
e porque, na sequência, as crianças aparecem rodeando um homem. A
foto traz a seguinte legenda: “O gerente distribuindo retratos de vapores”.
Outro elemento indicativo de que as atividades foram realizadas em espaços
externos é o fato de as crianças aparecerem, nas três fotografias mencionadas,
portando chapéus.
O objetivo da realização das fotografias e da composição do álbum
parece ter sido orientado pelo registro das práticas escolares. A ênfase na
ação pode ser verificada nas legendas, em que se utiliza o gerúndio como
forma recorrente, indicando o movimento representado nas fotografias.
A dimensão narrativa, que caracteriza os álbuns fotográficos, é reforçada
neste álbum pela apresentação de sequências de fotografias que retratam a
sucessão das atividades. O álbum é iniciado justamente com uma sequência

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de três fotografias na mesma página, com as legendas concentradas ao
centro, embaixo das fotografias: “Tirando a água do aquario/ Carregando o
balde cheio d’agua/ Enchendo o aquario”. Além disso, em algumas páginas
apresentam-se a ação e o seu resultado, por exemplo, no contexto do que
parece ser o centro de interesse relativo ao café. Em uma única página,
encontramos duas fotografias com a seguinte legenda: “Construindo a
fazenda. A fazenda já prompta”. Assim, associada à ênfase na ação, existe
a preocupação com o registro dos resultados do trabalho, o que se verifica
ainda em fotografias nas quais há a exposição dos desenhos e maquetes
realizados pelos alunos.
As fotografias e a sua organização no álbum possibilitam acompanhar
a narrativa sobre as práticas escolares, mas também a própria narrativa
da composição desse artefato, por meio da articulação entre fotografias e
legendas, bem como da atenção às sequências que parecem corresponder
à ordem em que as atividades foram realizadas. Vale destacar que alguns
centros de interesse aparecem representados de modo intercalado.
A diversidade de atividades mobilizada na realização dos centros de
interesse pode ser estruturada nos seguintes eixos: tratar e alimentar animais,
desenhar, brincar, observar, cozinhar, fazer experiências, visitar lugares
externos à escola, construir, dramatizar, expor resultados. Na representação
do centro de interesse sobre o gato há uma fotografia cuja legenda anuncia
objetivos: “O Faisca fazendo conhecimento com o Tonico. Linguagem,
comparação, calculo. Modelando o Faisca. (c. de int. – O gato)”.

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Fig. 6 – “Os caipiras, numero do programma”.

Fonte: Escola Caetano de Campos (1931).

Na fotografia acima temos o registro de uma dramatização relacionada ao


centro de interesse Circo. As duas crianças que encenam um casal de caipiras,
fantasiadas, estão enquadradas no centro do registro fotográfico e as demais
emolduram a cena. Finalizando a composição, estão os desenhos infantis
que decoram a sala. Kishimoto (2014) e Ecar e Rabelo (2019) mencionam
as dramatizações promovidas pela professora Alice Meirelles Reis em sua
prática docente. Em geral, como apontam Ecar e Rabelo (2019), consistiam
em desdobramentos dos centros de interesse. No caso do Circo, as outras
atividades retratadas no álbum foram: a construção do circo, a venda de
entradas e outros “números do programma” que também foram dramatizados:
“Os jockeys” e “O leão e o domador”.
No álbum também figuram algumas fotografias que fazem referências a
atividades do Jardim de Infância não diretamente relacionadas aos centros de
interesse: lição de canto, hora da Biblioteca, exercícios de ginástica rítmica e
jogos educativos. No âmbito enunciativo, essas fotografias seguem o mesmo
padrão que as dos centros de interesse. Assim como aquelas, não são posadas.

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Comentários finais
Já existe uma produção acadêmica significativa sobre a relação entre
a atuação de Alice Meirelles Reis no Jardim de Infância da Escola Caetano
de Campos e a proposta dos centros de interesse. Destacam-se os trabalhos
seminais de Tizuko Kishimoto (1986), de Maria Walburga dos Santos (2005)
e, mais recentes, de Ariadne Ecar e Rafaela Rabelo (2019). Sobre os álbuns
fotográficos também há publicações. Apenas para citar dois exemplos,
referimo-nos a Kishimoto (2014) e Abdala (2020). Sobre a participação do
Brasil no circuito internacional e as apropriações das ideias de Ovide Decroly
por parte de brasileiros, em uma ótica da história transnacional da educação,
há os artigos de Alessandra Hai, Frank Simon e Marc Depaepe (2015, 2016).
No entanto, à exceção de Diana Vidal, Rafaela Rabelo, Ariadne Ecar
e Fernanda Franchini (2019) e de uma breve menção por Hai et al. (2016),
o trabalho de Alice Meirelles Reis não foi objeto de abordagem da história
transnacional da educação. Ao estabelecer estas conexões, pretendemos
lançar um olhar novo sobre o tema, constituído no diálogo com a bibliografia
existente e as fontes. O procedimento, que nos permitiu confirmar as
interpretações que perceberam na apropriação do método uma vertente
mais prática e instrumental, acomodou a familiaridade do termo centros
de interesse às necessidades cotidianas da classe. Esta síntese, no entanto,
não ocorreu apenas no Brasil, e Maria del Mar Pozo Andrés (2007) relata
expediente semelhante para o contexto espanhol.
Nesse sentido, é importante sinalizar que a produção do Álbum
Fotográfico de 1931 situou-se entre dois momentos da escrita de Meirelles Reis
analisados neste capítulo: o artigo publicado na revista Educação, em 1928, e
o Livro I, possivelmente de 1935, mas seguramente posterior a 1932. O álbum
espelha, por um lado, o interesse da educadora em registrar, não somente sua
prática educativa, mas também em ilustrar as possibilidades de trabalho em
classe mencionadas em 1928. Por outro lado, anuncia uma formulação mais
ampla, atinente à reflexão sobre sua própria atuação docente, transformada em
literatura de formação, como parece almejar o conteúdo presente no Livro I.
Nos três casos, é a associação do método a Decroly e sua dimensão prática
que emergem na apropriação feita por Alice Meirelles, tanto pelo registro

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da escrita quando pela fotografia, o que reforça a interpretação de que, na
circulação transnacional de ideias e educadores, as urgências da classe, bem
como as particularidades locais foram ingredientes potentes acionados pelos
sujeitos na seleção do quê e de como narrar suas experiências docentes.

Referências
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POZO ANDRÉS, Maria del Mar. O método de projetos na Espanha: recepção
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165 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


2005. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade de São Paulo,
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escolanovista. In: BOTO, Carlota; AQUINO, Julio Groppa (orgs.). Democracia,
escola e infância. São Paulo: FEUSP, 2019. p. 107-122.

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As exposições escolares no Paraná: primeiras
iniciativas

Fátima Branco Godinho de Castro


Gizele de Souza

Introdução

E é belo ver-se as crianças, numa azáfama ruidosa, correndo de um


lado para outro sobraçando galhardetes, arrumando flores, distribuindo
bandeiras, trabalho esse feito em uma expansão de franca e significativa
alegria, em uma manifestação sublime de patriotismo.1 (CARDIM, 1916,
p. 10)

Carlos A. Gomes Cardim,2 em seu livro As commemorações civicas


e as festas escolares, publicado em 1910, traz interessantes aspectos das
festas escolares. Algumas anunciavam o encerramento das atividades
pedagógicas e o início das férias escolares. Dentre as diversas festas escolares,
1. Optamos pela não utilização da grafia original da época.
2. “Carlos Alberto Gomes Cardim nasceu em 10 de fevereiro de 1875, na cidade de São Paulo.
Casou-se com Ignez Lacerda e teve dois filhos. Iniciou sua carreira de professor em 1895, na
cidade de São Paulo. Entre 1896 e 1902, publicou vários artigos na revista Eschola Publica
e na Revista Ensino. Em 1908, Cardim foi convidado para organizar e reformar o ensino
primário e secundário do estado do Espírito Santo, tendo exercido o cargo de secretário da
Instrução Pública. Permaneceu no cargo até 1913 e ao regressar a São Paulo, foi nomeado
lente de Psicologia e Pedagogia da Escola Normal Secundária de São Paulo. Entre 1917 e 1918,
integrou a diretoria da Associação Beneficente do Professorado Paulista. Cardim faleceu no
dia 02 de junho de 1938, aos 63 anos de idade, na cidade de São Paulo” (PASQUIM, 2015).

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as exposições escolares realizadas geralmente no final do ano letivo, traziam
esse burburinho alegre e ruidoso dos alunos e professores. As exposições
escolares se constituíam em rituais com o objetivo de reafirmar a importância
da instrução pública na instauração do processo civilizatório, colocado em
curso pelos republicanos no final dos Oitocentos e início dos Novecentos.
Faziam parte do repertório de práticas culturais e pedagógicas desenvolvidas
no interior da escola. Promoviam a identidade dos alunos, eternizando ou
perenizando algumas situações. Eram práticas escolares que expressavam
a dimensão simbólica da escola (SOUZA, 1998) e davam visibilidade às
práticas escolares. Nas palavras de Marta Carvalho (1998, p. 25), “para fazer
ver, a escola devia dar se a ver”.
O objetivo deste texto é discutir as cinco primeiras iniciativas de
exposições escolares e o universo material que delas se originavam – os
artefatos em exposição –, fruto das atividades escolares realizadas durante
o período letivo nas disciplinas Trabalhos Manuais, Trabalhos de Agulha e
Desenho das escolas primárias do Paraná. Uma pergunta orientadora nos
guia neste trabalho: como as exposições escolares foram organizadas, quais
estratégias de mobilização política e escolar foram acionadas para dar conta
dessa empreitada?
O texto se organiza em duas partes: a primeira trata da discussão das
cinco primeiras exposições escolares, que ocorreram na capital paranaense
entre os anos de 1891 e 1912, com especial destaque, para os sujeitos e as
ações envolvidas. A segunda aborda o universo material que figurava nas
exposições escolares, ou seja, os artefatos em exposição.

168 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


As primeiras exposições das escolas primárias
Em 1891, o então diretor geral da Instrução Pública do estado do Paraná,
Justiniano de Mello e Silva,3 visita as dependências do Pedagogium,4 na cidade
do Rio de Janeiro. O livro de visitas da instituição registra a presença do
ilustre paranaense; no mesmo ano, consta o relato da visita do diretor geral
da Instrução Pública do Paraná na seção “Crônica do Interior da Revista
Pedagógica”: 5
O Dr. Justiniano de Mello e Silva – Havemos tido a honra de receber
visitas do Sr. Dr. Justiniano de Mello e Silva, digno diretor da Instrução
Pública do Estado do Paraná, e que se acha nesta capital, comissionado
pelo governo desse estado, principalmente para estudar de perto a
organização deste Pedagogium, a fim de que seja dada feição semelhante
ao estabelecimento congênere ultimamente criado em Curitiba.
(CHRONICA DO INTERIOR, 1891, p. 193-194)

3. “Justiniano de Mello e Silva (1852-1940) esteve em destaque no cenário paranaense desde


que chegou da província de Sergipe, em 1876, quando então exerceu o cargo de Secretário
do Governo da província do Paraná. Foi professor de Português e de Pedagogia no Instituto
Paranaense, fundou os jornais Vinte e Cinco de Março, O Paranaense, Jornal do Comércio e
Sete de Março, escreveu para a coluna do periódico O Artista, foi deputado na Assembleia
Legislativa” (NICOLAS, 1954, p. 130). Migrou para o Paraná em 1876, “com o intuito de
secretariar a presidência da província” (BARBOSA, 2016, p. 301-302). No ano de 1874, para
tratamento médico, mudou-se para o Rio Grande do Sul. Em sua estadia em terras gaúchas
escreveu para os jornais Artista e Diário do Rio Grande, também participou das atividades
maçônicas na Loja do Grande Oriente. Em 1876, Justiniano chegou ao Paraná e ocupou o
cargo de secretário da Província do então presidente Lamenha Lins. No Paraná, exerceu
várias funções: lente, jornalista, deputado estadual e diretor da instrução pública. “Na esfera
política, iniciou sua carreira como deputado estadual no período provincial 1854-1889, e em
1878-1879 foi substituto de Lourenço T. Ribas de Andrade no vigente governo de Jesuíno
Marcondes” (PEREIRA, 2016, p. 44).
4. O Pedagogium foi instituído pelo Decreto n. 667, de 16 de agosto de 1890, e tinha por
finalidade constituir-se num centro impulsionador das reformas educacionais da Primeira
República, previstas por Benjamin Constant Botelho de Magalhaes, sendo o grande
idealizador na criação do Pedagogium.
5. A Revista Pedagógica era o periódico de divulgação das ações do Pedagogium. O Pedagogium
funcionou entre os anos de 1890 e 1919; a Revista Pedagógica, da mesma forma, circulou
até 1896. Segundo Gondra, “[...] uma série de problemas orçamentários afetaram sua
periodicidade que, prevista para ser mensal, teve uma publicação irregular em 1892 e 1893
e trimestral entre 1894 e 1896” (GONDRA, 1997, p. 380).

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O Paraná organizou sua primeira exposição escolar no ano de 1891, logo
depois dessa visita do diretor da Instrução ao Pedagogium, que era um local
de visitas de autoridades governamentais, sobretudo do âmbito educacional;
visitá-lo era, de certa forma, destino obrigatório das autoridades educacionais
no final do século XIX. De acordo com Mignot (2013), o Pegagogium deu
visibilidade às inovações pedagógicas que circulavam em outros países, bem
como serviu de modelo na construção da educação republicana. A visita do
diretor da Instrução Pública ao Pedagogium, locus para colher informações
das inovações pedagógicas desenvolvidas no Distrito Federal e nos países
da Europa, que serviriam de modelo para os demais estados brasileiros,
significava estar atrelado aos mais avançados propósitos da “Pedagogia
Moderna”, atento às mudanças. Segundo Barbosa (2016, p. 27, grifos no
original), “[...] realizar viagens pedagógicas foi uma prática constante ao
longo dos Oitocentos”.
O jornal paranaense A República menciona a primeira exposição ao
noticiar a realização da segunda exposição de trabalhos escolares, em 1904,
ressaltando que esse “é o segundo certame deste gênero levado a efeito no
Paraná, sendo o primeiro efetuado em 1891 pelo eminente Dr. Justiniano de
Mello e Silva, então diretor da instrução pública” (EXPOSIÇÃO ESCOLAR,
1904a, p. 3). No dia 05 de dezembro de 1904, após a inauguração da segunda
exposição, o jornal A República novamente faz menção à realização da
primeira e afirma:
Abriu-se ontem às 11 horas da manhã, no anfiteatro do Ginásio
Paranaense, a exposição de prendas domésticas das alunas do curso
normal e das escolas primárias desta capital. Há 13 anos assistiu a
população a idêntico certame, promovido pelo então diretor da
instrução pública, Dr. Justiniano de Mello e Silva, que viu coroado
do melhor êxito os esforços, tal o sucesso dessa primeira exposição
escolar. Modestíssimo, embora, o certame de 1891 foi para a época um
verdadeiro triunfo da competência educativa do magistério feminino,
demonstrando largamente o seu afã em elevar ao máximo e desenvolver
no espírito das infantis alunas o gosto artístico [...]. (EXPOSIÇÃO
ESCOLAR, 1904b, p. 4)

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As fontes consultadas indicam que, no intervalo de 1891 (primeira
exposição) a 1904 (segunda exposição), o Paraná possivelmente tenha
participado das exposições escolares organizadas pelo Pedagogium, no Rio
de Janeiro. Como podemos observar nos jornais do período mencionado,
vários foram os convites efetuados pelo diretor do Pedagogium e publicados
nos jornais locais da capital do estado do Paraná. Em 1896, o diretor do
Pedagogium envia correspondência ao jornal A República e o editor menciona:
Novamente o diretor do Pedagogium Brazileiro, pede-me que em nome
desse estabelecimento, talvez o mais importante desse gênero que há no
Sul d’América interceda perante os poderes públicos e a imprensa para
que o Paraná não deixe de se fazer representar na exposição escolar
que se realizará em 1896. (PEDAGOGIUM BRAZILEIRO, 1896, p. 4)

O convite não se restringe apenas à participação do Paraná no certame,


vai além. Dentre outras recomendações, registra a necessidade de o estado
adotar a obrigatoriedade da oferta da disciplina Trabalhos Manuais, pois:
“os trabalhos manuais são uma Ginástica aplicada que ao mesmo tempo
desenvolvem as faculdades físicas, intelectuais e morais dos meninos”
(PEDAGOGIUM BRAZILEIRO, 1896, p. 4). A carta convite publicada no
jornal A República, em 1896, realiza um apelo aos professores e instituições
escolares para enviarem os trabalhos dos alunos tendo em vista a participação
no certame no Rio de Janeiro. Salienta também o papel do Estado de
subsidiar os insumos necessários para a confecção dos trabalhos manuais:
“[...] é necessário que o Estado forneça às escolas primárias e secundárias a
matéria prima, fiscalize a execução e venda dos trabalhos” (PEDAGOGIUM
BRAZILEIRO, 1896, p. 4).
Treze anos depois da realização da primeira exposição escolar, no
anfiteatro do Ginásio Paranaense, foi inaugurada, em 1904, a segunda
exposição escolar. A retomada provavelmente deveu-se à reorientação dos
rumos políticos, desencadeada pelo diretor da Instrução Pública do Paraná,
Victor Ferreira do Amaral, e especialmente ao fato de o foco dos esforços
governamentais concentrarem-se, naquele momento, na implantação de
grupos escolares (a escola graduada). Esta mobilização das autoridades
paranaenses justificou viagens comissionadas a São Paulo, como ocorreu

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em 1903 com um grupo de professores, com o propósito de conhecer a
experiência paulista da escola graduada.
Assim, no ano de 1904 teremos a realização da segunda exposição
escolar, noticiada nos jornais: “[...] cerca de 1.200 pessoas. Entre os inúmeros
visitantes [...] contam-se o Sr. Dr. Presidente do estado e sua Exma. esposa,
que ficaram satisfeitíssimos com os trabalhos expostos. [...] a solenidade
será encerrada tocando a banda do Regimento de Segurança” (EXPOSIÇÃO
ESCOLAR, 1904b). Foi uma solenidade cercada de muita pompa e contou
com a presença das autoridades locais.
Nos dias que antecederam à inauguração da exposição escolar, os jornais
procuraram dar visibilidade ao evento. Deste modo, no dia 23 de novembro de
1904, o jornal A República publicou o convite do inspetor geral da Instrução
Pública, Sebastião Paraná:6
Do Sr. Dr. inspetor escolar recebemos a pôr S.S. dirigida às professoras
públicas:
Comunico as Sras. Professoras públicas da capital que fica marcado o dia
4 de dezembro do corrente ano para se realizar a exposição escolar de
prendas domésticas, a qual será em uma das salas do Ginásio Paranaense.
As professoras deverão apresentar as prendas no dia 03 de referido mês
a fim de acondicioná-las da melhor forma possível, e ir no dia 4 às 11
horas da manhã acompanhadas pelas alunas expositoras. Nos trabalhos
apresentados deverão ser mencionados o nome e a idade das respectivas
autoras. (EXPOSIÇÃO ESCOLAR, 1904b, p. 3)

Durante sete dias, permaneceu no anfiteatro do Ginásio Paranaense,


como noticiou o jornal: na “vasta sala quadrangular do Ginásio se achava
ontem atopetada de prendas domésticas, em número superior a 1500”. A nota
ainda mencionava o tipo de trabalhos expostos e as escolas participantes: “o
centro da sala era ocupado pela seção – Escola Normal – onde se achavam
expostas obras de costura, finíssimas toillets, confeccionadas pelas alunas
6. Sebastião Paraná de Sá Sottomaior (1864-1938) formou-se em Direito. Em 1905, casou-se
com Elvira da Costa Faria. Exerceu diversos cargos, dentre os quais: lente de Geografia e
História Universal no Ginásio Paranaense, professor na Escola Normal, na Universidade
Federal do Paraná e inspetor da Instrução Pública (HOERNER JR; BÓIA; VARGAS, 2001,
p. 17-19).

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desse instituto. [...] Ao redor divisava-se grande cópia de trabalhos de agulha
das alunas das escolas primárias, públicas e particulares” (EXPOSIÇÃO
ESCOLAR, 1904a, p. 3).
Também figuraram na exposição os artefatos produzidos pelas alunas
da Escola Normal. As professoras responsáveis pela disciplina Trabalhos de
Agulha eram todas mulheres: Dulce Loyola, Alexandrina Pereira, Maria da
Luz Ascenção, Josephina Rocha, Isabel Guimarães Schimidt, Maria da Luz
Miró, Itacelina Teixeira, Candida Ramos, Maria Ritta de Oliveira Pinto, Julia
Alice de Loyola, Julia Wanderley, Luiza Netto Côrrea de Freitas e Marianna
Coelho (EXPOSIÇÃO ESCOLAR, 1904b, p. 3).
A inauguração e o encerramento do certame foram cercados de rituais,
com o objetivo de enaltecer as ações desencadeadas pelo novo regime que,
nas palavras de Rosa Fátima de Souza, objetivavam “[...] celebrar a liturgia
política da República” (SOUZA, 1998, p. 241).
O encerramento da exposição foi realizado no dia 10 de dezembro de
1904 e contou com a presença do
Sr. Dr. Reinaldo Machado, digno diretor geral da Instrução Pública, será
feita, as 2 horas da tarde, a entrega de diplomas de mérito às professoras
e as alunas que exibiram melhores trabalhos no grande certame. Do
meio-dia às 3 horas da tarde tocarão ali duas bandas de música: a do
Regimento de Segurança e a 14ª Cavalaria, gentilmente cedida pelos
exmos. srs. dr. Presidente do Estado e General Comandante do distrito.
(EXPOSIÇÃO ESCOLAR, 1904b, p. 2, grifos nossos)

O jornal Diário da Tarde publicou as impressões dos visitantes.


Destacamos algumas manifestações registradas no livro de visitas da exposição
do ano de 1904:
A atual exposição de objetos de arte, de prendas que revelam o superior
desenvolvimento artístico de professoras e alunas das escolas desta
cidade, a atual exposição faz refletir sobre os seus iniciadores toda a
simpatia e admiração daqueles que desejam a vitória da Arte. Curitiba,
9 de dezembro de 1904 – Generoso Borges. (EXPOSIÇÃO ESCOLAR,
1904c, p. 1)

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Bravo a quem salva o futuro mesmo numa Exposição. Conego Evangelista
Braga. (EXPOSIÇÃO ESCOLAR, 1904c, p. 1)

Altamente credor da gratidão paranaense, o nome de Sebastião Paraná,


dr. Inspetor desta capital e zeloso promotor desta bela exposição
escolar que tão eloquente prova o amor à arte e ao trabalho, passará a
História coberto das mais afetuosas bênçãos de todos os que o sabem
compreender. (EXPOSIÇÃO ESCOLAR, 1904c, p. 1)

O trabalho enobrece. A bela festa do trabalho escolar que se realiza neste


edifício é um fato promissor que descortina novos horizontes para a
instituição de ensino público. Merecem aplausos e muitos aplausos os
esforços empregados para o brilhante êxito deste simpático certame,
sendo de inteira justiça salientar os que a dedicação, inteligência e
patriotismo do digno patrício dr. Sebastião Paraná há empregado.
Curitiba, 8 de dezembro de 1904 – Ermelino de Leão. (EXPOSIÇÃO
ESCOLAR, 1904c, p. 1, grifos nossos)

As manifestações dos visitantes corroboram com as intencionalidades


da exposição escolar de enaltecimento do trabalho manual, iniciativa do
inspetor da Instrução Pública com o ensino público e com a preparação
das futuras alunas para exercerem os papéis de mães, esposas e preceptoras.
A exposição escolar realizada no ano seguinte, no dia 04 de setembro de
1905, não foi considerada como a terceira exposição, pois não apresentou as
mesmas solenidades de inauguração e de encerramento da segunda. O que
levou as autoridades e os jornais a não considerarem como a terceira exposição
escolar? Os jornais justificaram a realização dos exames da Escola Normal.
O jornal A República, em 03 de dezembro de 1905, destaca: “infelizmente,
por motivo de força maior como seja o início, segunda-feira, dos exames da
Escola Normal, o certame encerra-se amanhã mesmo às 3 horas da tarde”
(EXPOSIÇÃO ESCOLAR, 1905, p. 3).
No ano de 1908 é publicada no jornal A Notícia a seguinte manifestação
das autoridades educacionais:

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O governo promoverá anualmente, nos centros principais do Estado,
conferências pedagógicas, exposições de trabalhos dos alunos das escolas
públicas e particulares, tais como: mapas, exercícios de composição, de
prendas domésticas, objetos de industriais e de tudo quanto tiver relação
imediata com o ensino profissional e com os progressos da educação
popular. (CONGRESSO..., 1908, p. 3, grifos nossos)

Desta forma, em 1908, ocorre a quarta exposição. É preciso assinalar que


somente neste ano ocorre a manifestação governamental de normatização
das exposições escolares no Paraná.
Sebastião Paraná esteve à frente na organização de cinco exposições
escolares no período de 1904 a 1908, mas, como mencionamos anteriormente,
a do ano de 1905, não foi oficialmente considerada como uma exposição.
Sebastião Paraná teve o mérito de retomar a prática dessas exposições depois
de um intervalo de 13 anos, além de promovê-las durante o período em que
ocupou o cargo de diretor da Instrução Pública. Ao deixar o cargo, mais uma
vez ocorrerá uma interrupção. Somente no ano de 1912, ou seja, depois de
quatro anos, a capital paranaense será o palco da quinta exposição escolar,
que ocorreu em 15 de novembro de 1912. Em 05 de novembro de 1912, o
jornal A República, menciona:
Após uma interrupção de 4 ou 5 anos, vamos apreciar de novo os
certames anuais de trabalhos das alunas das escolas públicas do Estado.
Desnecessário encarecer o valor, a utilidade mesmo para o ensino, das
exposições escolares, bastando lembrar que o estímulo resultante d’elas
muito atuará no espírito da infância que aprende, induzindo-a ao trabalho
e ao estudo e assim facilitando muito a árdua missão do professor.
Instalando-se a 15 de novembro próximo, a exposição escolar será, sem
dúvida alguma, o clou das festas com que anualmente a nossa capital
comemorará o advento do regime republicano no Brasil. (EXPOSIÇÃO
ESCOLAR, 1912a, p. 1, grifos nossos)

A escolha da data para a retomada das exposições escolares não foi


aleatória, muito pelo contrário, tinha um sentido explícito de associação com
a data alusiva à Proclamação da República. De acordo com Marta Carvalho

175 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


(1997, p. 128), “a República brasileira, à diferença de seu modelo francês,
e do modelo americano, não possuía suficiente densidade popular para
refazer o imaginário nacional”. Deste modo, era preciso, a todo o momento,
reafirmar os princípios republicanos; demonstrar pela via escolar aquilo que
se entendia por “progressos” empreendidos pelo novo regime. Os discursos
nos jornais destacam: “Vai ser um acontecimento digno de registro nos anais
da instrução pública do Estado a exposição escolar, sob os auspícios do sr.
dr. Claudino dos Santos,7 ilustre diretor geral do ensino” (EXPOSIÇÃO
ESCOLAR, 1912a, p. 2).
No relatório do ano de 1912, apresentado ao Sr. Dr. Marins Alves de
Camargo, secretário do Interior, Justiça e Instrução Pública, Claudino dos
Santos, explicita:
Tendo esta Diretoria resolvido levar a efeito uma exposição de prendas
domésticas e de outros quaisquer trabalhos artísticos e cartográficos,
realizados nas escolas públicas e particulares, durante o corrente ano
letivo, venho vos pedir que o estabelecimento que dirigis com tanta
solicitude concorra a esse certame, e concito-vos a que envides esforços
para que essa festa edificante do trabalho escolar seja uma prova real
de que é intenso, fervoroso e sincero o interesse que vota o digno e
zeloso professorado da Capital pela vitória da causa sagrada do ensino.
(PARANÁ, 1913, p. 18, grifos nossos)

Assim sendo, Claudino dos Santos, emitirá, em 01 de setembro, um


documento com 12 artigos no qual constam as normas para participação,
classificação e demais informações da exposição. O documento foi publicado
no jornal A República, no dia 04 de setembro de 1912, contendo informações
importantes sobre a realização do evento. A instrução também figurou no
relatório encaminhado ao secretário do Interior, Justiça e Instrução Pública
do Paraná, Marins Alves de Camargo, referente às atividades desenvolvidas
no ano de 1912, publicado em 1913. Diferentemente das exposições escolares

7. Claudino dos Santos “nasceu em Recife (PE) no ano de 1862 e faleceu na cidade do Rio de
Janeiro (RJ) no ano de 1917. Advogado, escritor, jornalista, poeta, autor de obras didáticas e
teatrais. Fundador do Colégio Paranaense, diretor da Instrução Pública do Paraná, secretário
de Estado dos Negócios, Interior, Justiça e Instrução Pública; juiz em Morretes e prefeito
de Curitiba em 1916” (CARNEIRO JUNIOR, 2014, p. 109).

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que a antecederam, a exposição de 1912 vai trazer novos elementos. As
normas apresentadas na instrução demonstram que ocorreu um conjunto de
avanços em relação aos anos anteriores, sobretudo os cuidados da Diretoria
da Instrução Pública em promover um certame mais organizado, com regras
claras e com a participação também dos alunos do sexo masculino. Outro
fato que deve ser destacado é a implantação da disciplina Trabalhos Manuais
para os alunos do sexo masculino. No que diz respeito à implementação
da disciplina, vale destacar a reportagem do Diário da Tarde, ao relatar os
trabalhos do aluno Henrique Moreira:
[...] trabalhos que, com justiça, obtiveram o 1º lugar. São eles: um mapa
do Paraná, ampliado na escala de 1.500.000; uma escultura, de 0,8
cm de comprimento, em barro, onde se vê um menino encostado a
uma cruz tendo o olhar perdido na imensidade; uma outra escultura,
representando um menino, ajoelhado, de mãos postas, e outros pequenos
trabalhos em giz. O mapa do Paraná é um trabalho de valor, impecável,
tendo sido já adquirido pelo dr. Ernesto de Oliveira, para figurar na
secretaria da agricultura. (EXPOSIÇÃO ESCOLAR, 1912f, p. 2, grifos
nossos)

É importante frisar o modo como a imprensa trata os trabalhos manuais


realizados pelos alunos, mencionando que são de grande valor artístico e,
consequentemente, enaltecendo-os e destacando-os com expressões como:
“é um trabalho de valor, impecável”. Também destaca que o secretário da
Agricultura, à época, Ernesto de Oliveira adquiriu o mapa. Ao contrário, os
artefatos produzidos pelas meninas, apesar de serem numericamente maior,
são tratados como “prendas do lar”, “adornos do lar”. Há um “apagamento” dos
artefatos produzidos pelas alunas. Em síntese, dá visibilidade a determinados
aspectos e silencia outros.
Também destacamos o cunho mercantilista das exposições escolares,
pois os artefatos produzidos pelos alunos e alunas eram comercializados.
A instrução exarada pelo diretor da Instrução Pública, apesar de conter
consideráveis avanços, não menciona a comercialização dos artefatos escolares
produzidos pelos alunos, assim como a destinação dos recursos financeiros
obtidos na comercialização. Tal prática era evidenciada pelos jornais ao

177 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


noticiarem o certame, “[...] a exposição dos trabalhos, todos expostos e à
venda onde se encontram quadros, roupas feitas, toalhas, almofadas, etc.,
por preços bastante módicos” (EXPOSIÇÃO DE TRABALHOS, 1925, p. 3).
Somente nos anos 1930 é possível identificar a destinação dos recursos, de
acordo com a notícia veiculada na edição de 08 de dezembro de 1932, do
jornal O Dia, na qual se ressalta que “os trabalhos estão à venda e o produto
reverterá como é regulamentar ao Pecúlio da Escola”8. Todavia, a chamada
“festa do trabalho” era uma festa do trabalho infantil, cujo resultado, de
certa forma, era “usurpado legalmente” pela escola.
Foram enviados à exposição escolar do ano de 1912 cerca de 960
artefatos. O certame contou com o discurso do diretor da Instrução Pública,
Claudino dos Santos, fundamentado em teóricos da Psicologia e da Pedagogia,
sobretudo norte-americanos. O discurso foi publicado na íntegra pelo jornal
A República, nos dias 18 e 19 de novembro de 1912, isto é, no terceiro e quarto
dias após a inauguração da exposição, e ocupou um lugar de destaque nas
páginas do jornal. Não vamos reproduzi-lo na íntegra, apenas os pontos
que a nosso ver merecem destaque.
Claudino dos Santos inicia o discurso realizando uma retrospectiva das
exposições escolares: “[...] é lícito relembrar idênticos certames realizados
nesta capital, pela primeira vez [...] em 19 de dezembro de 1891, pela
iniciativa de Justiniano de Melo e Silva e, nesta sala, em 1904, 1906 e 1907
[...] por Sebastião Paraná”. A exposição escolar do ano de 1912 contou com
a participação das escolas públicas e privadas da capital paranaense.
Claudino dos Santos permaneceu à frente da Diretoria Geral da Instrução
Pública apenas no ano de 1912 até meados de 1913. Em 23 de agosto de 1913 é
nomeado, pelo Decreto n. 664, para exercer o cargo de secretário de Estado
dos Negócios do Interior, Justiça e Instrução Pública (PARANÁ, 1914, p. 3).
Para ocupar o cargo de diretor geral da Instrução Pública foi nomeado, em
26 de agosto de 1913, Francisco Ribeiro de Azevedo Macedo.
Nos anos iniciais da República paranaense, três personagens que
ocuparam o cargo de diretores da Instrução Pública atuaram de diferentes

8. Apesar de a citação estar fora do recorte temporal, esta informação demonstra que houve
uma continuidade da prática de comercialização do material produzido pelos alunos das
escolas primárias.

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maneiras na prática das exposições escolares. Justiniano de Mello e Silva
promoveu a inauguração da prática no Paraná, após sua visita ao Pedagogium,
no Rio de Janeiro. Tal iniciativa colocou o estado do Paraná no mesmo
patamar de divulgação das práticas pedagógicas das escolas públicas que os
demais estados. Sebastião Paraná não só retomou, após 14 anos de interrupção,
a prática das exposições escolares, como promoveu regularmente, enquanto
esteve à frente da Diretoria da Instrução Pública, o certame ao término
do ano letivo nas escolas primárias. Claudino dos Santos teve o mérito de
normatizar as exposições escolares com a publicação da instrução normativa;
um documento com 12 artigos no qual constam as normas para participação,
classificação e demais informações para promover as exposições escolares
ao término do período letivo.

Os labores escolares: a produção dos artefatos escolares em


exposição9
Nos primeiros anos da República o currículo da escola primária sofreu
alterações em função das novas finalidades atribuídas à escola primária
pública, dentre elas a redefinição dos conteúdos. Nesse sentido, as disciplinas
Trabalhos Manuais e Trabalhos de Agulha, ou “do adestramento da mão, à
formação da alma”,10 integraram-se como parte do currículo escolar brasileiro,
a partir do período imperial, mas foi no período republicano que assumiu
relevância, introduzindo-se novas práticas e contornos diferenciados com a
criação dos grupos escolares e a reorganização do papel da escola primária
como instituição formadora (OLIVEIRA; AMARAL, 2015).
O currículo da escola primária paranaense no início do século XX
previa, na formação do aluno e da aluna, um conjunto de saberes destinado às
atividades manuais, tendo em vista desenvolver determinadas características
na formação do cidadão republicano, tais como: o gosto pelo trabalho, o
asseio e a manutenção do “lugar” destinado às mulheres na sociedade, isto
é, o lar. O “[...] desenho, trabalhos manuais eram, entre outros conteúdos,
9. Palavras do inspetor geral de Ensino, Lysimaco Ferreira da Costa (1927, p. 190): “Os
labores escolares do ano foram culminados com uma bela exposição de trabalhos manuais”.
10. O termo foi utilizado por Maria dos Anjos Flôr Dias (2009), em sua tese de doutorado
apresentada no Instituto de Estudos da Criança na Universidade do Minho.

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considerados úteis à vida moderna e a instrução popular acompanhando
um movimento internacional e ao mesmo tempo, adquirindo em cada lugar
conotações próprias, moldadas pelas diferentes realidades” (SANTOS, 2012,
p. 5).
Assim, um dos mecanismos utilizados para formar – aquilo que se
considerava – “cidadãos úteis e preparar no indivíduo as condições necessárias
a realizar a Pátria” (PARANÁ, 1908, p. 56) foi revestir as disciplinas Trabalhos
Manuais, de Agulha e Desenho, com novos rituais, conteúdos e instituir as
exposições escolares como prática escolar para demonstrar o que se fomentava
como avanços e inovações da escola republicana. O jornal A República, em
05 de setembro de 1912, emite uma nota destacando os efeitos desejados com
a introdução das disciplinas Trabalhos Manuais e de Agulha no currículo
e, consequentemente, das exposições escolares: “Desnecessário encarecer o
valor, a utilidade mesmo para o ensino, das exposições escolares, bastando
lembrar que o estímulo resultante delas muito atuará no espírito da infância
que aprende, induzindo-a ao trabalho e aos estudos [...]” (EXPOSIÇÃO
ESCOLAR, 1912b, grifos nossos). De acordo com Rosa Fátima de Souza
(2008, p. 65), “os trabalhos manuais foram inseridos nos programas do ensino
primário com uma finalidade educativa de caráter geral. Tratava-se menos
de aprender um trabalho específico e mais os princípios gerais do ofício”.
No que diz respeito às exposições escolares, segundo Gizele de Souza
(2004, p. 277), “os conteúdos e a organização das exposições escolares
realizadas no Estado do Paraná, podem enriquecer as análises sobre a
circulação dos livros e materiais de ensino utilizados nas escolas públicas
nesse período histórico”. Da mesma forma, “os objetos podem conter chaves
secretas que, como um hieróglifo, há que se decifrar. [...] A decodificação de
todas essas chaves conduz ao desvelamento das regras que governam a teoria
e a ação pedagógica como práticas culturais” (ESCOLANO, 2018, p. 110).
Na tentativa de decodificar essas “chaves”, trazemos a representação de
uma aula de Trabalhos Manuais e Trabalhos de Agulha do Grupo Escolar
Dr. Manoel Pedro.

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Fig. 1 – Uma aula de trabalhos manuais do grupo escolar Dr. Manoel
Pedro na cidade da Lapa (1920).

Fonte: Castro (2020, p. 94).

Os alunos estão divididos em três grupos: na primeira fileira, à esquerda,


as do sexo feminino; aparentemente, as alunas formam um grupo de crianças
de menor idade e realizam os chamados trabalhos de agulha; na fileira
central as meninas maiores também elaboram os trabalhos de agulha, mais
aprimorados, com o uso do bastidor, e as toalhas que têm uma dimensão
maior, como também utilizam as agulhas de tricô; os alunos da fileira à
direita confeccionam trabalhos manuais, utilizando ferramentas para o
corte da madeira, outros realizam trabalhos utilizando as próprias mãos, o
que chamamos de macramê. Para melhor compreender as várias técnicas
citadas, destacamos dois detalhes da figura acima.

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Fig. 2 – Uma aula de trabalhos manuais do Grupo Escolar Dr. Manoel
Pedro.

Fonte: Castro (2020, p. 95-96).

Evidenciamos na figura do lado esquerdo o processo de confecção dos


artefatos escolares produzidos pelos alunos, utilizando como matéria-prima
a madeira. Em destaque duas ferramentas: “a serrinha” e o “formão”. O
conteúdo programático previsto na Reforma Benjamin Constant (Decreto
n. 981/1890) estabelecia o ensino dos seguintes conteúdos na Escola Primária
(7 a 13 anos):
Trabalhos manuais – Trabalhos de madeira. Estudo dos principais
utensílios empregados nos trabalhos em madeira. Aplainar, serrar, juntar
por todos os processos. Trabalhos de madeira. Esboço dos contornos de
objetos que se tem de executar; construção destes objetos. Torneados:
maçanetas, rolos, cabos de instrumentos. Recortes: molduras, caixas, etc.
Conhecimento e uso dos principais utensílios empregados no trabalho
do ferro. (BRASIL, 1890)

A introdução e utilização desse conjunto de ferramentas “não é neutra e


sua incorporação à prática escolar carrega sempre valores culturais agregados
à sua materialidade física e funcional, definindo os modos pedagógicos de
conceber o ensino” (ESCOLANO, 2018, p. 105).
Na figura do lado direito, evidenciamos a confecção do bordado. Os
bordados à mão eram produzidos tanto com o auxílio do bastidor como sem
ele. Os bordados confeccionados com a máquina de costura obrigatoriamente

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deveriam utilizar o bastidor. Os conteúdos que figuravam na Reforma
Benjamin Constant previam para o ensino dos trabalhos de agulha na escola
primária (7 a 13 anos) os seguintes conteúdos: “Trabalhos de agulha-elementos
de costura, ponto adiante, ponto atrás, ponto de marca. Tricot em linha”.
Não é nossa pretensão realizar um debate aprofundado sobre as
disciplinas Trabalhos Manuais e Trabalhos de Agulha, trata-se de destacar a
importância destas disciplinas na constituição das exposições escolares. Deste
modo, os artefatos produzidos pelos alunos e alunas das escolas primárias no
início do século XX eram variados, quais sejam: roupas, almofadas, toalhas
de mesa, biombos em madeira, porta-retratos, variados bibelôs, desenhos,
mapas, abajures, entre outros.
O jornal O Dia, de 08 de junho de 1928, menciona os artefatos da
exposição dos trabalhos escolares do Grupo Escolar Manoel Euphrasio:
[...] a das alunas – figuravam: vinte e uma almofadas, de diversos
tamanhos, confeccionados em cetim, linho, brim e étamine, com variados
desenhos e pontos diversos; toalhas “centros de mesa” à Richelieu,
bordados cheios, pontos em cruz; toalhas em aplicação sobre linho e
talagarça; fronhas, toalhas de rosto e de louça, cozinheiras; jogos para a
sala de jantar, variados, com bainhas e bordados diversos acompanhadas
dos respectivos guardanapos; um lote de costuras à mão composto de
vestidos para meninas e crianças de colo, combinações, camisolinhas,
vestidinhos para bonecas, porta-camisolas, etc. (O ENCERRAMENTO...,
1928, p. 4)

Nas palavras de Rosa Fátima de Souza (2007, p. 169): “É preciso ter em


vista que os artefatos são produtos do trabalho humano. [...] que os artefatos
são indicadores de relações sociais e como parte da cultura material atuam
como direcionadores e mediadores das atividades humanas, o que confere
aos objetos um significado humano”.
No processo de produção dos artefatos escolares estão implícitas
concepções pedagógicas, práticas culturais e saberes profissionais. Esses
saberes profissionais, no ensino primário, objetivavam a formação integral
do aluno.

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A figura 3 representa a exposição dos artefatos escolares elaborados
nas disciplinas Trabalhos Manuais e Trabalhos de Agulha e como, em sua
maioria, compunham as exposições escolares.
Figura 3 – Exposição escolar: Grupo Escolar do Paraná.

Fonte: Museu Paranaense – Grupo Escolar do Paraná (s. d.).

Na esteira de implantação das “inovações” republicanas, as exposições


escolares irão produzir efeitos de visibilidade na perspectiva do papel da
escola naquele determinado momento histórico. No conjunto de práticas
pedagógicas, destacamos a reformulação curricular das disciplinas Trabalhos
Manuais e Trabalhos de Agulha, a preparação para um determinado ofício
e a introdução de hábitos citadinos de consumo, uma vez que os artefatos
em exposição eram comercializados.

Considerações finais
Foi no ano de 1891 que ocorreu a primeira exposição escolar organizada
por Justiniano de Mello e Silva, então diretor da Instrução Pública do Paraná.
Com os olhos voltados para a experiência do Pedagogium, no Rio de Janeiro,
as autoridades educacionais realizam as primeiras exposições escolares

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paranaenses, nos anos iniciais da República. Um longo período de interrupção
das exposições escolares foi alterado quando Sebastião Paraná esteve à frente
da Diretoria da Instrução Pública nos anos de 1904 a 1908; nesse período
ocorreram exposições escolares regulares. Em 1912, Claudino dos Santos,
não só retoma a prática das exposições escolares como, de forma inovadora,
publica um documento de normatização das exposições escolares.
A prática das exposições escolares tornou-se um dos elementos
fundamentais no processo de consolidação da escolarização primária
republicana. Era preciso, nas palavras de Marta Carvalho (1998, p. 25),
“para fazer ver, a escola devia dar-se a ver”. A escola primária, deste modo,
vai “dar a ver” os resultados escolares obtidos nas disciplinas Trabalhos
Manuais e Trabalhos de Agulha. As práticas pedagógicas desenvolvidas nas
disciplinas resultaram na elaboração de inúmeros artefatos escolares que
eram expostos, geralmente ao final do ano, para que o público avaliasse a
escola, isto é, avaliasse o “novo” projeto educacional republicano. Também é
preciso destacar que, no processo de produção dos artefatos escolares, estão
implícitas concepções pedagógicas, práticas culturais e saberes profissionais.
Esses saberes profissionais, no ensino primário, objetivavam mais a formação
integral do aluno, do que o preparo para o exercício de determinados ofícios
manufatureiros.

Fontes
BRASIL. Decreto n. 981 de 8 de novembro de 1890 – Benjamin Constant.
Approva o Regulamento da Instrucção Primaria e Secundaria do Districto
Federal. Disponível em: http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/
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Victor Ferreira do Amaral. Curitiba, 1908. Acervo do DEAP-PR.

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PARANÁ. Relatório apresentado ao secretario de Estado dos Negócios do
Interior, Justiça e Instrução Publica, pelo diretor da Instrução Publica Dr.
Claudino Rogoberto Ferreira dos Santos. Curitiba, 1913. Acervo do DEAP-PR.
PARANÁ. Relatório apresentado ao secretario de Estado dos Negócios do
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Claudino Rogoberto Ferreira dos Santos. Curitiba, 1914. Acervo do DEAP-PR.
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OLIVEIRA, Marcus Aurélio Taborda de. O ethos do trabalho nas páginas
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Entre conceitos e práticas: direito ao passado e
educação em museus

Patrícia Cristina da Cruz Sá


Maria Angela Borges Salvadori

O reconhecimento do direito ao passado está, portanto, ligado


intrinsecamente ao significado presente da generalização da cidadania
por uma sociedade que evitou até agora fazer emergir o conflito e a
criatividade como critérios para a consciência de um passado comum.
Reconhecimento que aceita os riscos da diversidade, da ambiguidade
das lembranças e esquecimentos, e mesmo das deformações variadas
das demandas unilaterais. Arrisca-se a encontrar as solicitações por uma
memória social que venham baseadas em seu valor simbólico, mesmo
que sejam locais, pequenos, quase familiares. Não teme restaurar e
preservar o patrimônio edificado sem pretender conservar o “antigo”
ou fixar o “moderno”. Orienta-se pela produção de uma cultura que não
repudie sua própria historicidade, mas que possa dar-se conta dela pela
participação nos valores simbólicos da cidade, como o sentimento de
“fazer parte” de sua feitura múltipla. Por isto, inventa novos meios de
operar e de se produzir como espaço público, onde possam estar inscritas
todas as significações de que é feita uma cidade. (PAOLI, 1992, p. 27-28)

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Este capítulo propõe uma reflexão acerca das ações educativas realizadas
em museus e, simultaneamente, sobre os conceitos e metodologias que
perpassam os campos da educação, da história e do patrimônio. Para isto,
em perspectiva macro, traz uma discussão sobre as noções de “educação
patrimonial” (HORTA, 1999), “educação para o patrimônio” (GRINSPUM,
2002) e “educação museal”, defendida pelo Instituto Brasileiro de Museus
(IBRAM), a partir da Política Nacional de Educação Museal (PNEM), de
2017. Num segundo momento, numa abordagem mais local, observamos o
trabalho no Museu de Antropologia do Vale do Paraíba (MAV), considerando
seis relatórios produzidos pelo Setor Educativo da instituição, entre agosto
de 1995 e novembro de 1996, período no qual se nota uma preocupação
maior com a realização de práticas educativas. Essa dupla mirada permite
pensar tanto sobre as atividades pontuais do MAV quanto, em termos mais
amplos, discutir o tema da educação em museus e sua ligação mais ou menos
vigorosa com protocolos escolares, seus currículos e práticas.
A compreensão desse campo conceitual e das ações realizadas exige
uma atenção especial ao contexto mais amplo de mudanças educacionais, às
políticas de preservação do patrimônio histórico-cultural e ao modo como
tais elementos são apropriados pelos sujeitos envolvidos nas atividades
educativas realizadas em museus, considerando a singularidade de suas
trajetórias e das próprias instituições.
Os objetivos relacionam-se, sobretudo, à defesa do patrimônio e da
preservação de registros do passado – garantia de acesso e sua democratização
–, entendidos como direito social, ligado às lutas identitárias e às distintas
possibilidades de compreensão dos tempos pretéritos em seus engajamentos
com os tempos presentes. E à defesa, é claro, de uma educação em museus
capaz de promover estes ideais.

Introdução
Educar foi uma tarefa colocada para os museus desde suas origens.
Guardar registros do passado, preservá-los para as gerações futuras, evitar
o esquecimento são objetivos intrínsecos aos museus, sejam públicos
ou privados, e guardam uma perspectiva de formação e orientação. Tais

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propósitos educativos, evidentemente, não são neutros e estão ligados aos
interesses do Estado, em suas diferentes esferas públicas de atuação, ou de
particulares, igualmente engajados em narrar seu passado. Os sentidos desse
educar nos museus também têm variado ao longo do tempo e das disputas
internas entre gestores, curadores e educadores; no primeiro caso, podemos
citar a tensão entre contemplação, engrandecimento pessoal, espírito cívico,
visões do progresso e civilização, aprimoramento estético; no segundo, as
acusações recíprocas de que os museus seriam instituições elitistas à espera de
visitantes passivos ou locais a serem conduzidos por meio dessa participação
e suas demandas (NEWSON; SILVER, 1978, p. 15-16).
Essa preocupação educativa se intensifica a partir das primeiras décadas
do século XX e, em particular, já na segunda metade dos Novecentos. Não
poucas mudanças ajudam a compreendê-la. Ao final da Segunda Guerra
Mundial, a luta contra o nazifascismo, as sequelas evidentes do imperialismo,
o aumento das desigualdades no então chamado Terceiro Mundo, convocaram
a repensar os caminhos que, até então, foram trilhados no sentido da educação
e da cultura. Mas havia mais; para além desse corolário entre as nações, entre
Ocidente e Oriente, Primeiro Mundo e Terceiro Mundo, no interior de cada
país, assistia-se à agitação dos movimentos sociais: negros em busca de direitos
civis, mulheres em busca de igualdade de gênero, lutas contra a ditadura,
guerras civis, movimentos estudantis, enfim, um mundo em efervescência
(VIDAL; SALVADORI; COSTA, 2019). As ciências humanas não ficaram
imunes a essas mudanças e, de acordo com o historiador Robert Slenes
(2010), houve um descentramento do universo acadêmico; as perspectivas
europeia e norte-americana já não serviam mais como parâmetros exclusivos
e outros sujeitos emergiam. Na história, em particular, há uma virada em
direção aos “de baixo” e alterações profundas no pensamento estruturalista
mais ortodoxo que levam ao que conhecemos como estudos culturais. Stuart
Hall (2005, p. 12-13) afirma que os antigos padrões de identidade – baseados
na supremacia do sujeito iluminista ou, século à frente, na ideia da interação
harmoniosa entre o eu e a sociedade – dão lugar a uma experiência que não é
fixa nem permanente, identidades voláteis e multiplicadas, históricas, sempre.
Nessa realidade convulsionada, não foram poucos os esforços para superar
também uma leitura determinista e buscar uma relação com a teoria, em

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especial com o marxismo, à luz dos sujeitos e não mais das estruturas. As
ciências foram – e continuam a ser – questionadas por esses novos sujeitos.
Essa mudança de paradigma pode ser vista também nos campos tanto
da educação quanto da museologia. A avaliação, em especial a partir dos anos
1980, não era mais pensada apenas em termos de rendimento individual e sim
como ferramenta para a investigação do trabalho escolar como um todo; o
livro didático não era mais aceito como guia do trabalho docente; a exclusão
escolar deixava de ser vista pelo prisma da meritocracia para encontrar seus
motivos nas profundas desigualdades sociais e educacionais e nos confrontos
entre a cultura do professor e as culturas dos alunos (BARRETO; MITRULIS,
2001). Novas teorias mostravam que os processos de aprendizagem eram
mais complexos e interativos e que envolviam também o que se passava fora
da escola. Era preciso atentar para “os de baixo”, ou seja, para os discentes.
Na museologia também apareciam novas questões. A discussão sobre
o estatuto científico do campo e sobre seu objeto específico de estudo – os
museus ou as pessoas? – foi cedendo lugar, nos anos 1970, a uma crítica
sobre o papel dos museus tradicionais que, no âmbito internacional, levou
à chamada Nova Museologia, mais preocupada com questões sociais e com
o caráter interdisciplinar dos museus. Dessa abordagem resultaram, por
exemplo, museus específicos – um deles é o Anacostia Community Museum,
extensão da Smithsonian Institution – e uma preocupação crescente com a
participação de amplos setores sociais nas atividades realizadas em museus,
inclusive em sua crítica (KINARD; NIGHBERT, 1972).
Foi nesse contexto que a capital chilena sediou a Mesa de Santiago,
promovida pelo International Council of Museums (ICOM) em 1972. Esta
ação, numa América Latina varrida por ditaduras – também naquele país,
a partir de 1973, com o golpe que depôs Allende –, violência e pobreza,
sinalizava a urgência de um novo papel para os museus. Vale lembrar, para
os propósitos deste capítulo, a vivência de Paulo Freire naquele país, entre
1964 e 1969. O educador foi convidado pelo então presidente do ICOM,
Hugues de Varine, a presidir o evento, de modo que a museologia se
aproximasse de suas ideias e de suas propostas educativas.1 Não obstante,
1. Atentamos para o fato de que a obra Educação como prática da liberdade foi escrita por
Paulo Freire durante seu exílio no Chile.

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esta participação foi vetada pelo governo militar brasileiro; mas suas ideias
e ideais foram mesmo assim considerados (ALVES, 2013). Na abertura do
evento, Varine (2012, p. 114) afirmou que “a educação, por outro lado, deve
significar libertação: o aluno não deve ser objeto de ensino, mas o sujeito
da construção de novos valores para o homem”. Mais de duas décadas à
frente, em entrevista concedida a Mário Chagas (2006), reiterou a influência
freiriana sobre seu trabalho, especialmente no que se refere à museologia
comunitária. Os museus passavam a se preocupar mais com os conteúdos
de suas exposições, com as relações entre passado e presente, com o entorno
da instituição e com a sociedade na qual estavam inseridos (NASCIMENTO
JR.; TRAMPE; SANTOS, 2012).
O Museu de Antropologia do Vale do Paraíba (MAV), cujas práticas
educativas serão analisadas adiante, foi criado neste contexto, em 1980, sob
orientação da museóloga Waldisa Russio Guarnieri, profissional empenhada
nessa Nova Museologia. Formada originalmente em Direito, Waldisa tornou-
se funcionária pública do Estado de São Paulo na década de 1950 e passou a
trabalhar com temas e questões culturais, envolvendo museus e sua gestão.
Também é um nome ligado ao ensino e à profissionalização da museologia,
criando o primeiro curso de pós na área, em 1978, junto à Fundação Escola
de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). Representa ainda, no Brasil,
o empenho em consolidar as perspectivas da Mesa de Santiago nos serviços
educativos em museus, tal como indica um de seus textos, publicado durante
o Seminário do Museu da Casa Brasileira, em 1974:
Parece-me que o ponto nodal de todas as discussões é um só: se a
educação é um processo contínuo de humanização, como utilizar o
museu dentro desse processo? Como ensinar a criança, o adulto, o
cientista e o iletrado a lerem na peça exposta o momento histórico, social,
artístico e humanístico que ela representa e ela é? (RUSSIO, 1974, p. 54)

Ainda que não citado nominalmente, Paulo Freire e seu corolário


estão presentes nas ideias da educação como processo de humanização, na
importância da educação de todos, incluindo adultos, no esforço para que a
leitura do objeto museológico seja também uma leitura do mundo (FREIRE,
1969). Na forma de nomear o MAV, categorizando-o como um Museu de

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Antropologia e de caráter regional – paisagem, composição social, cultura –,
Waldisa Russio marca as preocupações daqueles tempos. O objetivo era a
constituição de um museu de antropologia que não olhasse para o passado
de forma saudosista ou enaltecedora e que fosse capaz de dialogar com a
realidade presente da sociedade em que estava inserido. Em entrevista ao
jornal Folha de S. Paulo, Waldisa Russio (1980, p. 56) assim definiu o projeto:
O museu de antropologia do Vale do Paraíba é um projeto ambicioso,
como ambicioso é o sonho de nossa juventude. A administração
municipal está empenhada neste projeto porque acredita que assim estará
cumprindo seu dever em preservar os bens culturais que não pertencem
apenas aos que vivem, mas sobretudo, aos nossos antepassados.

Em Jacareí, a participação de Waldisa Russio no projeto do MAV deu-


se juntamente à sua proposta de criação do Museu da Indústria, que teria
uma de suas sedes no município, no prédio da antiga Manufatura de Tapetes
Santa Helena. Nesse contexto, uma primeira dificuldade foi, exatamente, a
definição da tipologia do museu, tal como conta Osmar de Almeida, primeiro
diretor do Setor de Pesquisa e Documentação (SEPEDOC) do museu: “Nós
queríamos um museu diferente, um museu que contasse a história do homem
do Vale do Paraíba. Um museu fora dos padrões tradicionais, não um museu
histórico e pedagógico” (ALMEIDA, 2017).2 Embora tenha encontrado
resistência, esse desejo se consolidou em 1980, dois anos após o tombamento
da antiga residência da família Leitão, proeminente cafeicultor local que,
posteriormente, por décadas, abrigou o primeiro grupo escolar da cidade. A
insistência em fazer aparecer no nome da instituição a palavra “antropologia”
comprova a intenção de um museu diferente, mais próximo da cultura
regional e seus sujeitos; mais distante dos heróis e celebridades; mais ligado
ao cotidiano e mais afastado das efemérides. A preferência da Antropologia
como uma tipologia para o museu de Jacareí estabelece uma alteração em
relação aos museus tradicionais, adotando uma perspectiva que considerava
as pessoas comuns com a mesma importância que os nomes da tradição até

2. Osmar de Almeida foi gerente do SEPEDOC até 1984, presidente do Conselho do Museu
entre 1987 e 1992; e atuou como assistente de fomento e investimentos do museu entre 2018
e 2019.

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então construída. A busca de uma orientação mais profissional e o esforço
de democratização do espaço foram escolhas vistas com estranhamento e
receio, já que as ideias de garantir voz, passado e história às pessoas ordinárias
seguiam na contramão dos procedimentos adotados por parte considerável
dos museus municipais.
Se, no passado, a aproximação entre museu e escola contribuiu para
que muitas instituições superassem certo ostracismo, colocando-se como
auxiliares ao ensino, alinhadas aos conteúdos escolares, os novos tempos
traziam novas demandas. Era preciso “desescolarizar” os museus, sem deixar
de atender a professores e alunos, mas atraindo também outros setores
sociais (LOPES, 1991). O papel dos serviços educativos em museus foi se
reconfigurando e novos conceitos e propostas surgiram.

Conceitos e propostas para a educação em museus: educação


patrimonial, educação para o patrimônio, educação museal
No Brasil, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN), órgão criado em 1937, foi, ao longo de décadas, responsável por
emanar diretrizes tanto para a preservação do patrimônio quanto para
sua divulgação. Cabe recordar que, em 1936, o escritor Mário de Andrade,
conhecido por suas incursões nos temas da cultura brasileira, foi convidado
pelo então ministro Eduardo Capanema a redigir o anteprojeto para a criação
do instituto. Neste documento, uma nova visão acerca dos museus e seus
acervos bem como uma compreensão desses espaços como instâncias
educativas já estava esboçada:
[...] o verdadeiro museu não ensina a repetir o passado, porém a tirar dele
tudo quanto ele nos dá dinamicamente para avançar em cultura dentro
de nós, e em transformação dentro do progresso social. (ANDRADE
apud LOURENÇO, 2002, p. 188).

Em que pesem as boas intenções, a história da educação em museus no


Brasil foi secundarizada, ao menos até os anos 1960, pelos esforços para a
preservação – por meio dos processos de tombamento, criação de instituições
museológicas e incentivo às exposições, tarefas igualmente relevantes e

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urgentes. Somente em meados da década de 1970, seja pela conjuntura
do país, seja pelos contextos mais amplos citados no início deste texto, as
aproximações entre o IPHAN e a educação foram retomadas de modo mais
contundente. Todavia, um outro aspecto precisa ser levado em conta: quando
se analisam os dados acerca da criação de museus no Brasil, especialmente
museus de cidades e museus regionais, observa-se um crescimento acentuado
durante os anos da ditadura. Entre 1971 e 1980, surgiram 297 novas instituições
(BRASIL, 2010, p. 20) e há de se perguntar sobre os motivos para seu
aparecimento. No contexto das reformas educacionais e em conformidade
com o ideário daqueles governos, os museus locais deveriam servir como
guardiões da tradição, produzir uma narrativa sobre o passado comprometida
com aspectos cívicos, ordem social e suposta harmonia. Parte significativa
dessas instituições nasce ligada às Secretarias Municipais de Educação,
incorporando as diretrizes dessa pasta e, geralmente, foram orientados
por um “corpo de notáveis” socialmente reconhecidos no município como
depositários ou defensores da memória local. Essa conjuntura certamente
ajuda a compreender as ambiguidades que se fazem presentes nas ações dessas
instituições, envolvidas pela tensão entre as novas propostas museológicas
e os interesses de um governo autoritário.
Em 1983, o IPHAN apresentou, durante o 1º Seminário sobre o uso
educacional de Museus e Monumentos, o conceito de educação patrimonial,
traduzido do termo heritage education, desenvolvido na Inglaterra na década
de 1960. O evento, ocorrido no Museu Imperial, em Petrópolis, foi coordenado
por Maria de Lourdes Pereira Horta e representou um marco importante no
que tange à sistematização das ações de educação com foco no patrimônio
cultural, indicando uma “alfabetização cultural” com base no uso do bem
cultural como recurso didático de ensino (HORTA et al., 1999). Daí em
diante, e especialmente com a publicação, em 1999, do Guia de Educação
Patrimonial pelo IPHAN, produzido por Maria de Lourdes, Evelina Grunberg
e Adriane Queiroz Monteiro, a metodologia educação patrimonial passou
a ser oferecida como recurso a ser utilizado por museus e instituições que
lidam com bens culturais. Nos princípios estabelecidos para o trabalho de
educação para a preservação do patrimônio, o guia afirma:

196 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


Trata-se de um processo permanente e sistemático de trabalho
educacional centrado no Patrimônio Cultural como fonte primária
de conhecimento e enriquecimento individual e coletivo. A partir da
experiência e do contato direto com as evidências e manifestações da
cultura, em todos os seus múltiplos aspectos, sentidos e significados,
o trabalho da Educação Patrimonial busca levar as crianças e adultos
a um processo ativo de conhecimento, apropriação e valorização de
sua herança cultural, capacitando-os para um melhor usufruto destes
bens, e propiciando a geração e a produção de novos conhecimentos,
num processo contínuo de criação cultural. (HORTA et al., 1999, p. 6)

Entre o evento de Petrópolis e a publicação do guia, foram lançados os


Parâmetros Curriculares Nacionais (1996), documento que, em seu tempo,
passou a funcionar como diretriz básica para o ensino fundamental e seus
componentes curriculares, na confluência com a implantação da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9394/96.3 Galian observa que,
embora apresentados como documentos auxiliares, flexíveis, passíveis de
desejáveis adaptações conforme os diferentes projetos pedagógicos das
unidades escolares, e em que pesem as críticas posteriores, estes documentos
impactaram fortemente as escolas, “servindo de guia para a concepção e o
desenvolvimento da maioria das propostas curriculares brasileiras” (GALIAN,
2014, p. 4). Mesmo os apontamentos sobre o caráter prescritivo, a adesão
ao ideário neoliberal e, para alguns, um viés psicologizante, não evitaram
que, para parte significativa dos organizadores de currículo, os PCNs fossem
transformados quase que em cartilhas (GALIAN, 2014).
O material do guia adotava proposta semelhante. Compartilhava com os
PCNs a vontade de superar tanto as oposições entre “educação tradicional”
e “educação renovada”, próprias à história da educação brasileira desde ao
menos a década de 1920, quanto a vertente tecnicista imposta durante a
ditadura. Nos anos 1970 e início da década de 1980, novas propostas foram
sendo produzidas e, a partir daí, amalgamando diversas perspectivas, a ideia

3. Os PCNs tiveram uma versão preliminar em 1995. A intenção, bem sucedida, era a de
que chegassem a todos os professores do país. Foram divulgados durante a gestão do então
ministro Paulo Renato Souza, que ocupou o cargo entre 1995 e 2002, no primeiro mandato
do presidente Fernando Henrique Cardoso.

197 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


de que os alunos eram sujeitos ativos do ensino, a preocupação com uma
formação comprometida com a sociedade e a realidade e o reconhecimento
da falácia da meritocracia pareciam consensuais. Os PCNs, bem como o
guia, enfatizam esses elementos.
A publicação do Guia de Educação Patrimonial pelo IPHAN, naquele
contexto, foi um marco importante no que tange à sistematização das ações
de educação com foco no patrimônio cultural. A metodologia educação
patrimonial passou a ser oferecida como principal recurso a ser utilizado
por museus e instituições que lidam com bens culturais e com o público
infantil. Segundo Horta,
A metodologia específica da Educação Patrimonial pode ser aplicada
a qualquer evidência material ou manifestação da cultura, seja um
objeto ou conjunto de bens, um monumento ou um sítio histórico
ou arqueológico, uma paisagem natural, um parque ou uma área de
proteção ambiental, um centro histórico urbano ou uma comunidade
da área rural, uma manifestação popular de caráter folclórico ou ritual,
um processo de produção industrial ou artesanal, tecnologias e saberes
populares, e qualquer outra expressão resultante da relação entre os
indivíduos e seu meio ambiente. (HORTA et al., 1999, p. 6)

Seu impacto no cotidiano tanto dos professores quanto dos trabalhadores


de museus foi significativo; para os primeiros, tratava-se de um norte,
considerando a pouca presença do tema do patrimônio e sua preservação
em seu processo formativo; para os segundos, os trabalhadores de museus ou
outros engajados diretamente com o patrimônio, oferecia novas possibilidades
de atividades junto aos visitantes, mais comprometidas com as noções de
identidade, cidadania e cultura. A ideia era que as visitas, especialmente as
escolares, pudessem ser mais que contemplação do material exposto. No
mesmo ano da publicação do guia, a educadora do Museu de Arqueologia
e Etnografia (MAE /USP), Judith Elazari (1999, p. 292) argumentou que:
Até hoje não havia sido elaborado material didático especialmente
sistematizado, com teoria e práticas, dentro desta concepção de
“compreensão, entendimento e valorização” dos bens culturais de
uma povo, ao alcance de uma clientela bem específica: professores,

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educadores de museus e outros profissionais que trabalhem com esta
temática cultural na qual se dá importância a um “processo contínuo de
experimentação e descoberta” [...] Ter em mãos este tipo de recurso
didático é de grande utilidade para quem trabalha em museus,
principalmente, com o público escolar (professores e alunos) e
públicos especiais, pois melhor esclarecer e fundamentar o trabalho
de “conhecimento, apropriação e valorização de diferentes culturas,
em diferentes lugares e épocas”.

O guia chegou aos museus intencionando apresentar o patrimônio


aos visitantes de forma didática. Em especial para os museus de pequeno
porte, a exemplo do MAV, a publicação ofereceu uma metodologia a ser
seguida, agregada à ecleticidade dos sujeitos, acervos e práticas de cada
instituição. Todavia, a proposta, nascida de ações pensadas para grandes
museus nacionais, detentores de acervos de maior expressão e pessoal técnico
especializado, esbarrava nas especificidades e fragilidades de muitos museus
de pequeno porte: precariedade infraestrutural, acervos erraticamente
constituídos, ausência de verbas, ausência de pessoal com formação na
área ou afins, diversidade do público e singularidades locais e o fato de
que, majoritariamente, os diretores de pequenos museus municipais são
nomeados como cargos de comissão, colocando as instituições ao sabor
das disputas partidárias.
Uma série de apreciações foram tecidas acerca dos usos conferidos ao
guia. Átila Tolentino, que atua no núcleo paraibano do IPHAN, em artigo
intitulado “O que não é educação patrimonial: cinco falácias sobre seu
conceito e sua prática”, aponta como principal problema do Guia de Educação
Patrimonial a ideia da “alfabetização cultural”:
[...] a concepção de educação patrimonial adotada no referido Guia
apresenta-se como instrutivista, isto é, a educação é considerada apenas
como “transmissão de conhecimento”. Parte de um patrimônio cultural
dado, fetichizado, e não concebe o patrimônio como uma construção e
apropriação social, com seus consensos e conflitos. Nesse sentido, utiliza-
se de conceitos controversos, como o de alfabetização cultural, que vai
de encontro ao conceito antropológico de cultura. Ao afirmar que é

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necessário alfabetizar o outro culturalmente, não reconhecemos o outro
como produtor e protagonista de sua própria cultura e colocamos uma
cultura (a minha) como superior à outra (a do outro). Não se considera,
desta forma, o conhecimento como uma ação mediadora a partir de
uma construção coletiva e dialógica. (TOLENTINO, 2016, p. 40-41)

Tolentino indica a inadequação entre o uso dos termos “alfabetização


cultural”, “conscientização”, “valorização do patrimônio” e uma proposta
mais participativa, dinâmica e dialógica nas reflexões acerca da temática.
Tais termos se chocam com o reconhecimento dos saberes-fazeres populares
e da própria noção antropológica de cultura que se pretendia adotar.
Embora não seja possível negar o impacto da proposta, que teve como
laboratório o Museu Imperial de Petrópolis, então pertencente ao IPHAN,
é preciso reconhecer seus limites e a ausência dos sujeitos da aprendizagem
nessa equação. Não basta apresentar o patrimônio, mesmo que de forma
didaticamente mais planejada; é preciso também questioná-lo, submetê-lo
à crítica, entendê-lo como uma arena de conflitos:
Nas práticas educativas que se pretendem dialógicas e democráticas,
o patrimônio cultural concebido como um elemento social implica
reconhecer o jogo de forças existentes no seu processo seletivo e até
mesmo de sua apropriação, em que estão imbricados os conflitos e as
divergências na permanente luta entre a memória e o esquecimento.
(TOLENTINO, 2016, p. 47)

Tratando do conceito de educação patrimonial, o museólogo Mário


Chagas (2006, p. 4) igualmente alerta acerca de seus limites e contradições:
Importa registrar, no entanto, que a educação é uma prática sociocultural.
Neste sentido é que se pode falar no caráter indissociável da educação
e da cultura ou ainda na inseparabilidade entre educação e patrimônio.
Não há hipótese de se pensar e de se praticar a educação fora do campo
do patrimônio ou pelo menos de um determinado entendimento de
patrimônio. Por este prisma, a expressão “educação patrimonial”
constitui uma redundância, seria o mesmo que falar em “educação
educacional” ou “educação cultural”.

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Tanto o guia quanto o conceito de “educação patrimonial” trazem as
incongruências de seu tempo e exigem ser compreendidos naquele contexto.
É preciso considerar também o fato de que o material foi produto de uma
instituição governamental que buscava se fixar no campo da preservação
do patrimônio cultural. Com o objetivo de fortalecer o uso e a prática da
educação patrimonial, o IPHAN estruturou em três eixos de atuação a
política da educação patrimonial: inserção do tema patrimônio cultural na
educação formal; gestão compartilhada das ações educativas; instituição de
marcos programáticos no campo da educação patrimonial (POSSAMAI,
2014). Ainda assim, são necessários não apenas debates sobre questões
de identidade, cultura e patrimônio, mas um aprofundamento acerca das
práticas educativas relativas à sua preservação.
Em 2014, a instituição lançou outra publicação, como uma revisão do
termo. Apoiada em Paulo Freire e Lev Vygotsky, a educação patrimonial
passava a ser tratada como mediação, “entendida como um processo de
desenvolvimento e de aprendizagem humana, como incorporação da cultura,
como domínio de modos culturais de agir e pensar, de se relacionar com
outros e consigo mesmo” (FLORÊNCIO et al., 2014, p. 22). Reconhecia-se,
assim, tanto a necessidade de considerar o outro como possuidor de cultura
quanto as especificidades pertinentes ao processo de aprendizagem, entendida
sempre como relacional e sócio culturalmente construída. Essas duas
inspirações – Freire e Vygotsky – também compartilhavam o engajamento
social e a crítica às mazelas enfrentadas pelos pobres, tomando a educação
como ferramenta de inclusão (GEHLEN; MALDANER; DELIZOICOV,
2010), pensada como leitura do mundo. Na direção desta aproximação, o
recente artigo das pesquisadoras Moreira e Paulino (2021) ressalta a presença
da relação entre educação, liberdade e política no pensamento dos dois
autores, destacando um sentido de liberdade histórico, que lhes é próximo;
a liberdade entendida como autonomia e emancipação social.
Alguns anos antes, em 2000, Denise Grinspum defendia sua tese junto
ao Programa de Pós-Graduação em Educação da USP, sugerindo o termo
“educação para o patrimônio” como alternativa à “educação patrimonial”. Seu
trabalho, com maior foco nos museus, considera um princípio de mediação:

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Para contemplar as práticas educacionais de museus de quaisquer
natureza, poderíamos pensar no conceito de “Educação para o
Patrimônio”, que pode ser entendido como formas de mediação que
propiciam aos diversos públicos a possibilidade de interpretar objetos
de coleções dos museus, do ambiente natural ou edificado, atribuindo-
lhes os mais diversos sentidos, estimulando-os a exercer a cidadania
e a responsabilidade social de compartilhar, preservar e valorizar
patrimônios com excelência e igualdade. (GRINSPUM, 2000, p. 20)

Embora o novo termo absorvesse elementos das propostas anteriores,


é preciso pontuar algumas distinções: a preocupação em abarcar diferentes
públicos, a valorização do visitante como sujeito, a inclusão do ambiente
natural como patrimônio e a defesa da necessidade de reconhecer, com
“excelência e igualdade”, a diversidade desses patrimônios. Em sua pesquisa,
Grinspum trabalhou com museus de arte, especificamente o Museu Lasar
Segall, experiência com base na qual defendeu não apenas a fruição, mas
também a compreensão e a criação como tarefas educativas do museu.
Ivo Mattozzi, historiador italiano, professor da Universidade de Bolonha
e especialista em metodologia e ensino de história, opera também com o
conceito de “educação para o patrimônio”, interrogando-o a partir de sua área
de atuação. Para ele, a questão fundamental é a de aproximar os vestígios –
em quaisquer de seus suportes – à atividade historiográfica, evitando tanto
o fetiche em relação aos objetos quanto uma visão de história desprovida
do trabalho interpretativo que é feito com esses objetos. Reconhecendo que
esta educação implica em valoração dos bens culturais e em compromissos
sociais, estabelece algumas etapas:
A primeira condição é que as experiências de aprendizagem se
desenvolvam com a utilização dos bens culturais originais: monumentos,
arquiteturas, fontes de arquivo, peças de museus, sítios arqueológicos,
quadros autênticos, etc. A segunda condição é que sejam objeto de
observação e de uso para produzir informações. A terceira condição é que
esses sejam colocados em relação com o contexto e com a instituição que
os tutela. A quarta condição é que se promova a tomada de consciência
de que são a minúscula parte de um conjunto muito mais amplo que

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permite o conhecimento do passado e do mundo, o prazer de conhecer,
a fruição estética. As últimas duas condições requerem que se generalize
a descoberta do valor dos bens culturais usados e das instituições e
dos sujeitos que os tutelam e os estudam. Por isso, podemos pensar
na educação para o patrimônio como uma ascensão de valor. Mas a
condição principal e primordial é que os alunos se conscientizem de que
estão ganhando conhecimentos significativos graças à presença dos bens
culturais e do seu uso. Os conhecimentos devem ser plenos de sentido
e devem ser relativos, primordialmente, ao território. (MATTOZI,
2008, p. 137)

Mattozzi também fixa procedimentos e princípios para a valorização


do patrimônio, mas no caso de sua proposta, como acontece em Grinspum,
estão presentes as noções de sujeito, de uso e apropriação dos bens, e a
dimensão política na menção do território, ampliando o uso instrumental
do patrimônio para o seu uso político. A ideia da conscientização, em ambos,
ultrapassa a dimensão da valoração do patrimônio constituído para encontrar
sua crítica e apropriação.
Por fim, no âmbito desta discussão conceitual, cumpre tratar da noção
de “educação museal”, observando, de início, que ela se volta, de modo mais
restrito, para as instituições museais. Sua sistematização foi realizada pelo
Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), criado em janeiro de 2009 como
autarquia, voltada aos museus federais que, a partir de então, saíram da órbita
do IPHAN. O órgão é responsável pela Política Nacional de Museus (PNM)
e, em seu sítio na internet, se coloca a serviço da gestão das instituições
museológicas, do aumento da visitação e arrecadação dos museus e do
“fomento de políticas de aquisição e preservação de acervos” (IBRAM, 2021).
No campo da educação, sua primeira atuação foi em 2010, com a realização
do I Encontro de Educadores do IBRAM; em 2018, era publicado o Caderno
da Política Nacional de Educação Museal (IBRAM, 2018).
Em publicação comemorativa aos 60 anos do Seminário Regional da
UNESCO sobre a função educativa dos museus, a pedagoga e museóloga
Magaly Cabral (2018) tratou do surgimento do conceito de educação museal
e da trajetória de discussões no campo da museologia que levou à Política

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Nacional de Educação Museal. Para a pesquisadora, o documento é um
importante instrumento para reforçar o papel tanto social quanto educacional
dos museus. O caderno da PNEM4 atribui o aparecimento do conceito de
educação museal ao Seminário Regional sobre o Papel Educacional dos
Museus, ocorrido em 1958, e à atuação do Comitê de Educação e Ação
Cultural (CECA-Brasil). O CECA foi estruturado em 1963 dentro do ICOM
em razão de uma preocupação com a função educativa dos museus, tendo
como princípio o intercâmbio entre teorias e práticas educativas. O CECA-
Brasil realiza uma série de seminários e debates anualmente; em 2004, a
então coordenadora, Denise Studart, publicou um balanço sobre a atuação
do comitê, ressaltando seu empenho em buscar que a “educação em museus
seja levada em conta nas políticas, nas decisões e nos programas do ICOM,
além de advogar pelo papel educativo dos museus, em níveis local e mundial”
(STUDART, 2004, p. 13).
A PNEM estruturou cinco princípios da educação museal:

1- Estabelecer a educação museal como função dos museus reconhecida


nas leis e explicitada nos documentos norteadores, juntamente com a
preservação, comunicação e pesquisa;
2 - A educação museal compreende um processo de múltiplas dimensões
de ordem teórica, prática e de planejamento, em permanente diálogo
com o museu e a sociedade.
3 - Garantir que cada instituição possua setor de educação museal,
composto por uma equipe qualificada e multidisciplinar, com a mesma
equivalência apontada no organograma para os demais setores técnicos
do museu, prevendo dotação orçamentária e participação nas esferas
decisórias do museu;
4 - Cada museu deverá construir e atualizar sistematicamente o Programa
Educativo e Cultural, entendido como uma Política Educacional, em
consonância ao Plano Museológico, levando em consideração as
características institucionais e dos seus diferentes públicos, explicitando

4. Para conhecer o Caderno da PNEM, ver: https://www.museus.gov.br/wp-content/


uploads/2018/06/Caderno-da-PNEM.pdf.

204 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


os conceitos e referenciais teóricos e metodológicos que embasam o
desenvolvimento das ações educativas.
5 - Assegurar, a partir do conceito de Patrimônio Integral, que os museus
sejam espaços de educação, de promoção da cidadania e colaborem
para o desenvolvimento regional e local, de forma integrada com seus
diversos setores. (IBRAM, 2018, p. 4, grifo nosso)

O conceito de educação museal, tal como os anteriores, é também


fruto da sua época. É certo que os museus já realizavam práticas educativas,
possuíam serviços específicos e atendiam já a escolas, professores, alunos
e público em geral antes da concepção desta terminologia; como prática,
a educação em museus já estava presente. Todavia, a promoção do termo
“educação museal” e sua conceituação, e da PNEM, estão inseridas em um
contexto político-social em que se discute a participação das comunidades
nas ações de instituições culturais e de memória.
Podemos inferir, pelo destaque no excerto, que o conceito de educação
museal está atrelado não somente às ações educativas e culturais, mas também
se relaciona com todas as ações do museu, incluindo a pesquisa, a preservação
e a comunicação, características do processo museológico (SANTOS, 2001).
De acordo com Santos (2001, p. 8):
Assim como na educação, o processo museológico é compreendido
como ação que se transforma, que é resultado da ação e da reflexão dos
sujeitos sociais, em determinado contexto, passível de ser repensado,
modificado e adaptado em interação, contribuindo para a construção
e reconstrução do mundo.

Trata-se, então, de perceber que a educação é intrínseca aos museus e


deve estar presente na variedade de ações e tarefas que lhes são cotidianas.
Ao debatermos acerca do processo educativo nos museus, não estamos
relacionando-o diretamente à educação escolar, mas sim ao fato de que o
museu pode caminhar ao lado desta, propondo experiências e vivências
diferentes, sem deixar, contudo, de contemplar outros modos de educar
não escolares e outros públicos. Em entrevista concedida a Elison Paim,
em 2007, Magali Cabral destacou a importância de se repensar a relação

205 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


entre museu e escola, não subordinando o primeiro à segunda. Para ela, o
museu não deve ser um complemento da escola ou um substituto desta; sem
desconsiderar a importância da parceria entre as duas instituições – parceria
que deve ser pautada pela horizontalidade das relações – e o fato de que as
primeiras visitas de estudantes a museus ocorrem, geralmente, por meio
de uma iniciativa escolar, Cabral enfatiza as especificidades da instituição
museológica, a começar pela presença dos objetos, materialização de práticas,
saberes e sentidos historicamente constituídos (PAIM, 2007).
É preciso ter em vista, ainda, que o IBRAM é uma instituição relativamente
recente, criada a partir do Departamento de Museus do IPHAN, durante
um governo que demonstrava preocupação com as temáticas sociais, tendo
Gilberto Gil à frente do Ministério da Cultura.5 O instituto assumiu a gestão
dos museus que estavam sob tutela do IPHAN, a exemplo do Museu Imperial
e do Museu Lasar Segall, processo não isento de conflitos e interesses. Ao
buscar a construção de bases conceituais, o Instituto Brasileiro de Museus
tenta se consolidar como referência na área museológica, além de buscar
o fortalecimento do papel do educador de museu, profissional responsável
por elaborar e realizar as ações educativas. Como exposto no eixo dois do
PNEM, objetiva “potencializar o conhecimento específico da Educação
Museal [...]” (IBRAM, 2018, p. 50).
Este conjunto de conceitos, em seus processos dinâmicos de constituição,
revela tensões tanto sociais quanto institucionais e profissionais. É certo
que há aspectos corporativos em jogo; é igualmente certo que, por envolver
instituições de Estado, estes órgãos estão vulneráveis às trocas de governo e
às diferenças entre seus projetos políticos e culturais, quando existem. Mas
eles demonstram um impulso original, vinculado à defesa da apropriação
do bem cultural por parte do sujeito. As disputas entre os termos não devem
fazer desaparecer um sentido de cultura, patrimônio e preservação que é
novo e socialmente comprometido, que interroga os critérios de atribuição
de valor aos bens, investiga as escolhas, abre-se à crítica (POSSAMAI, 2014,
p. 23). Campo de tensões e disputas, a relação entre museu e educação, entre
patrimônio, preservação e educação deve considerar, em primeiro lugar,

5. O IBRAM foi criado no segundo mandato do presidente Luís Inácio Lula da Silva.

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o direito ao passado como um direito de cidadania, ligado aos processos
de formação de identidades individuais e coletivas e aos compromissos
do presente com o passado. Em síntese, mais que definições formais ou
metodologias específicas, a educação em museus, como toda educação, é
política e importa zelar pelos usos do passado por parte dos sujeitos.

Entre conceitos, singularidades e práticas: um olhar para


o Serviço Educativo do Museu de Antropologia do Vale do
Paraíba
O Museu de Antropologia do Vale do Paraíba está localizado no centro
do município de Jacareí, interior do estado de São Paulo. A instituição ocupa,
desde 1980, o espaço que sediou, por 85 anos, a Escola Coronel Carlos Porto,
primeiro Grupo Escolar da cidade, inaugurado em 1895. Mesmo não se
inserindo formalmente na tipologia “museu escolar”, a história do MAV está
atrelada à memória da escola e à história da educação de Jacareí. Parte de seu
acervo, aliás, inclui registros escolares e objetos da cultura material escolar.
Na instituição, foram localizados seis relatórios do serviço educativo
do museu referentes a ações realizadas entre agosto de 1995 e novembro de
1996. Os relatórios são compostos por resumos das exposições então em
curso, orientações sobre como deveriam ser apresentadas ao público infantil,
síntese de atividades a serem desenvolvidas e avaliação dos professores e
dos monitores. Como se vê, as ações tinham como público-alvo as escolas
e seus alunos. A escolha por analisar estes relatórios deve-se ao fato de que
indicam a existência de preocupação com as práticas educativas no/do
museu, hipótese que é reforçada pela constatação de que, a partir de 1997,
não se encontram mais registros relativos à atuação de um setor educativo
em sentido stricto; os documentos posteriores informam mais sobre ações
isoladas, eventos, atividades do Núcleo de Arqueologia – posteriormente
desvinculado do museu –, e exposições. Essa mudança pode ter sido
decorrente da transferência da equipe para outros setores da Fundação
Cultural, criada por meio da lei 2.034 de 14 de setembro de 1981, cujas
atribuições envolviam o museu e a gestão do patrimônio cultural da cidade
como um todo (JACAREÍ, 1981).

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O Serviço Educativo do MAV foi criado em 1995 e realizava atendimento
às escolas, cursos e palestras. Em entrevista, Silvia Bigarelli (2018),6 então
responsável pela coordenação do serviço educativo, contou que as atividades
eram pensadas com base nas exposições, como uma forma de explicar o
que estava sendo exposto ao público infantil. A preocupação do museu em
criar um setor educativo demonstra que havia uma premência para que
a instituição estivesse alinhada às diretrizes internacionais do ICOM e às
políticas nacionais acerca da educação e cultura. A ideia do museu como
espaço de educação não formal havia se popularizado, bem como a criação
dos setores educativos, e o MAV precisava se adequar aos novos tempos.
Todavia, seguia ainda a tendência de outros museus históricos municipais
ou regionais de agir em conformidade com as escolas.
Fig. 1 – Capa dos relatórios do serviço educativo do MAV.

Fonte: MAV (1995-1997).

6. Bigarelli é produtora cultural e foi assistente cultural no Museu de Antropologia entre


1994 e 2002. Quando assumiu o setor educativo da instituição, era especialista em Arte
Educação (ECA/USP) e bacharel em Pintura (Faculdade de Belas Artes de São Paulo).

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A idade do público atendido variava entre crianças de três anos e
universitários; para os primeiros, atividades mais lúdicas; para os segundos,
palestras e workshops com temáticas relacionadas às exposições. Em um dos
relatórios é narrada uma atividade realizada durante o mês de dezembro de
1995, em duas exposições, uma de presépios e outra de cartões natalinos. A
atividade foi feita com crianças de três a cinco anos, alunos da Escola Municipal
de Educação Infantil Parque Santo Antônio, que foram recebidos por um
boneco de manipulação em formato de jacaré chamado “Jacarehyto”, usado
para contar a história do prédio e explicar as exposições, numa referência
ao animal do qual, de acordo com a lenda, teria derivado o nome da cidade.
Os relatórios apontam que, para cada tipo de público, eram preparadas
ações diferentes, tanto em sua acolhida na chegada à instituição quanto
na explicação das exposições. As atividades tinham como foco os objetos
expostos e, após a observação do material, a criança era convidada a
reproduzi-lo, por meio de um desenho ou movimento físico. No caso do
primeiro relatório, que data de setembro de 1995, relativo à exposição O
caipira do Vale, encontram-se detalhes do funcionamento da instituição,
que abria ao público de quarta a domingo, no período da tarde; as crianças
estudantes do período matutino não eram atendidas pelo museu... Para a
exposição sobre os modos de vida do caipira do Vale do Paraíba, o serviço
educativo preparou uma série de atividades que tinham como objetivo
integrar os visitantes à exposição. Intentavam, ainda:
Difundir o acervo do Museu de Antropologia do Vale do Paraíba; Mostrar
aspectos da cultura do homem valeparaibano, em suas manifestações
cotidianas, através dos objetos; Realizar integração público/exposição;
Realizar atividades paralelas, complementando a exposição. (MAV, 1995)

As atividades paralelas citadas foram uma “apresentação da Orquestra de


Violeiros de São José dos Campos [na noite de abertura], visitas monitoradas,
noite de ‘causos’ e exibição de filmes” (MAV, 1995). A noite de causos foi
conduzida por Ruth Guimarães, reconhecida por seu trabalho como
escritora, professora de português, jornalista e teatróloga. Ruth foi uma
das primeiras escritoras negras nacionalmente reconhecidas e destacou-se
pelos estudos da chamada cultura popular e do folclore que, segundo ela,

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lhe foi apresentado por Mário de Andrade. Nascida no interior do estado,
em Cachoeira Paulista, cidade também localizada no Vale do Paraíba, Ruth
assim se definia: “mulher, negra, pobre e caipira – eis minhas credenciais”
(GUIMARÃES apud BOTELHO, 2020). Conhecida como excelente contadora
de estórias, a presença da escritora no evento reforçava o intento de ligação
com a realidade local e com o universo cultural das pessoas comuns.
A definição do público-alvo – os estudantes –, de acordo com o relatório,
se deu pela existência de uma demanda por exposições com a temática do
folclore:
Conforme o projeto, a exposição foi dirigida ao público estudantil,
atendendo à procura em torno da temática do Folclore. A visita
monitorada teve como diretriz conduzir a leitura através da apreciação
dos objetos, explorando seus aspectos formais, funcionais, culturais e
imaginários. Num curto período de tempo, a exposição recebeu, através
de visitas orientadas, grupos de estudantes da Escola Estadual Adélia
Monteiro e da Escola Antônio Afonso, todos pertencentes às séries
ginasiais. (MAV, 1995-1997)

É necessário refletir sobre o tratamento conferido à cultura do campo


nesta exposição e no próprio museu, interrogando suas origens e significados.
A exposição apresentava o “caipira” como o sujeito que morava na roça,
realizava trabalhos manuais, com um vocabulário diferente e um modo de
viver peculiar. A valorização de traços identitários regionais, não obstante as
boas intenções, acabava por condenar a cultura caipira a um tempo, o passado,
e a uma condição, o folclore. A cultura caipira aparece como patrimônio,
forjando uma comunidade histórica e geográfica, mas está frequentemente
associada à infância do povo, a um passado belo, mas sem lugar no presente.
O gesto que a instaura é também o gesto que a mutila (CERTEAU, 1995,
p. 64-65). Por outro lado, como demonstrou E. P. Thompson, o trabalho
dos chamados folcloristas contribui para o estudo das tradições populares
uma vez que, ainda que mais preocupados com taxonomias e ausentes as
necessárias contextualizações, encontramos em suas obras ricas descrições
de manifestações das culturas populares. A partir da análise desse tipo
de fonte, Thompson (2001) trabalhou com a categoria do costume, que

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se reinventa em meio a novos contextos, desafios e conflitos, uma arena
dinâmica de tensões sociais.
As observações de Michel de Certeau e E. P. Thompson ajudam a
refletir sobre as atividades do Serviço Educativo do MAV, sinalizando sobre
o equívoco de tomá-las apenas como reiteração nostálgica do passado.
Havia, de certo, um compromisso com o “homem comum” e mesmo uma
tentativa de valorização dessa tradição condenada como “atrasada” pelos
processos de modernização. Além disso, como demonstrou magistralmente
Antônio Cândido (2001), a cultura caipira – ou “cultura rústica” – não se
define por uma limitação espacial – o campo, o rural – e sim pela presença
de valores e práticas que, mesmo em territórios urbanizados, se reformulam
e se fazem presentes.
Essas ambiguidades permitem um outro olhar sobre as visitas
monitoradas organizadas durante a exposição. Essas visitas, que ocorriam
com agendamento prévio, tinham como objetivo “principal a integração
entre público e exposição [...] a proposta da ação educacional é trabalhar com
a leitura dos objetos, onde a relação ocorra de forma participativa” (MAV,
1995-1997). Nota-se um interesse em tornar a visita e o conhecimento dos
objetos expostos uma experiência mais dinâmica e menos contemplativa. Os
roteiros para a condução das visitas, encontrados nos relatórios, reforçam
esta hipótese:
Iniciamos no hall de entrada com uma conversa, para depois visitarmos a
“sala do caipira”. Falamos sobre a história do museu: construção do prédio,
a implantação do grupo escolar, a criação do Museu. Alguns conceitos
museológicos foram colocados também nesse momento (preservação,
coleção, acervo, exposição). Explicamos que na exposição havia objetos
pertencentes ao acervo do museu e peças emprestadas, necessárias para
complementação da mostra. Sobre a temática da exposição, refletimos
sobre a palavra “caipira”. As crianças colocaram que o caipira é “burro”,
que não tem estudo. Conversamos então sobre algumas profissões, e
sua importância no funcionamento da nossa sociedade. Enfatizamos
que a função do lavrador, do camponês, é essencial, tanto quanto a de
uma pessoa que trabalha com um computador, e que essas pessoas

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possuem “culturas diferentes”, mas que estas não são melhores ou piores
devido à formação institucionalizada. Conversamos também sobre
algumas figuras “caipiras”. Todas as crianças estavam familiarizadas
com o “Jeca”, conheciam o Mazzaropi. Algumas já tinham visto filmes, e
então lembramos daquele “caipira”, que aparentemente “burro”, sempre
leva “a melhor”, no final. São muitas as piadas que mostram o homem
da cidade tentando “passar a perna” no caipira, que ele julga burro, e
acaba sendo enganado pelo caipira [...]. (MAV, 1995-1997)

O roteiro mostra uma preocupação em combater tanto os estereótipos


em relação ao homem do campo quanto a hierarquia entre cidade e campo,
processos que conduzem à cristalização de sua cultura. Ainda que se utilize
de uma outra representação estereotipada do caipira – Mazzaropi – procura
valorizar suas táticas e, para isso, escolhe o caipira esperto consagrado nas
telas do cinema e não, por exemplo, o caipira inculto, atrasado e doente, tal
como sugere o texto “Urupês” de Monteiro Lobato (1918). Por fim, é preciso
reconhecer que o estereótipo é, simultaneamente, fonte de preconceito, mas
também de coesão social (NASCIMENTO, 2017). A referência a Mazzaropi
ajudava na aproximação entre a experiência da criança e a exposição e trazia
à tona saberes e práticas socialmente compartilhadas.
Outro aspecto relevante no roteiro é a menção ao Grupo Escolar. Embora
a exposição não tratasse do edifício ou de sua história, o fato de que o MAV
abrigara, no passado, o “Grupão” e de ser socialmente reconhecido como tal,
levava o serviço educativo a apresentar o espaço, tanto para o conhecimento
quanto para a valorização desse patrimônio.
Os materiais produzidos pelo serviço educativo do MAV são uma
proposta de veiculação, um meio para traduzir a exposição. A título de
exemplo, consideremos o caderno de atividades produzido pelo setor,
especialmente para o público espontâneo da exposição sobre o caipira.
De acordo com o relatório, o caderno serviria para auxiliar na leitura da
exposição:
A confecção do “caderninho” teve por objetivo auxiliar o público infantil
na leitura da exposição, principalmente em visitas não monitoradas.
No primeiro dia aberto à visitação, 11/08/95, compareceram algumas

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crianças; o “caderninho” foi distribuído e a atividade foi proposta. Eram
quatro alunas da Escola “Cel. Carlos Porto”, vizinha do MAV. Num
primeiro instante, elas observaram a sala sozinhas; depois, me aproximei,
observei e conversamos sobre os exercícios. As crianças fizeram algumas
perguntas e depois observaram a exposição atentamente, enquanto, em
conjunto, iam trabalhando nos exercícios. Uma outra menina, da 7ª
série da Escola Estadual Lamartine Delamare, chegou sozinha. Pegou o
“caderninho” e fez uma observação muito boa da exposição. Na página
9 do caderno, o exercício pede a escolha de dois objetos que tenham
de algum modo despertado particularmente a atenção e a utilização
destes na criação de uma “pequena história”. Essa garota, escolheu a
roca e a viola, e escreveu: “Enquanto a mulher ficava tecendo em sua
roca, cantava melodias, e seu marido tocava a viola. E os dois juntos
combinavam o som numa bonita harmonia”. (MAV, 1995-1997)

A diversidade de tipologias de material presente no acervo do MAV,


bem como as especificidades de cada coleção levam a diferentes propostas
de interação com o público. No caso da exposição Mãos que esculpem, mãos
que oram – que abordava aspectos da técnica utilizadas por “santeiros” e
também a vida de Eduardo Etzel, colecionador de Paulistinhas –,7 a equipe do
serviço educativo preparou um quebra-cabeça. Uma imagem de um oratório
foi recortada em pequenos losangos para ser remontada e um desenho de
uma Paulistinha deixado para pintura parcial. O relatório também mostra
a presença de um jogo da memória com detalhes de uma escultura sacra e
outra atividade na qual as crianças deveriam cobrir Nossa Senhora com seu
manto (MAV, 1995-1997). Havia, certamente, uma intenção de fomentar a
participação do público infantil pela utilização de recursos de caráter lúdico.
Enquanto visitavam a exposição, os alunos respondiam, por meio de
um questionário, sobre a autoria das obras, cor, material e finalidade. O
objetivo era direcionar o olhar da criança para detalhes que talvez não

7. De acordo com o sítio do Museu de Arte Sacra de São Paulo (2020), as “Paulistinhas”
são um gênero de escultura sacra típico do Vale do Paraíba: “São imagens devocionais
de santos católicos, com formas simplificadas, interior oco, base redonda ou facetada, de
pequenas dimensões, e confeccionadas, em sua maioria, em barro cozido [...] produzidas
por santeiros que visavam atender à demanda do crescimento na região, especialmente
por conta da cafeicultura”.

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fossem percebidos em uma visita não mediada. Explorar o formato das
esculturas sacras era um modo de mostrar as diferenças na técnica de fazer
uma “Paulistinha” e outras técnicas para a produção de imagens sacras.
Todavia, o relatório não traz detalhes acerca de como eram feitas essas
perguntas e como se dava a interação dos alunos.
Fig. 2 – Imagens das páginas do relatório da exposição Mãos que
esculpem, mãos que oram.

Fonte: MAV (1995-1997).

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Como foi observado em cinco relatórios do serviço educativo do museu,
uma atividade muito presente era o desenho. As crianças eram convidadas
a realizar um desenho de observação de uma peça em exposição, por sua
livre escolha:
Outra atividade prática realizada foi o desenho de observação. Os alunos
procuram e escolheram um objeto para a realização do exercício. A
escolha não foi dirigida, sendo que alguns escolheram pela forma ou
pelo interesse curioso ou ainda pela facilidade de desenhar. Porém foi
explicado o objetivo do desenho, que não buscava uma cópia da peça e
sim um entender plástico da forma, das linhas, da estrutura, da função
do objeto estudado. (MAV, 1995-1997)

Esse tipo de ação, certamente, se liga à formação da então responsável pelo


serviço educativo do MAV que, licenciada em Artes Plásticas, especificamente
em pintura, tinha o ensino de arte como parte de sua bagagem. É possível
afirmar, considerando tanto a discussão conceitual em curso na época acerca
dos museus e patrimônios, quanto as orientações dos PCNs, que Bigarelli
procurava um caminho para romper com as práticas contemplativas mais
tradicionais em museus. No volume dedicado ao ensino de artes, em especial
as artes visuais, os PCNs sugerem procedimentos e atividades que envolvam
aspectos ligados à comunicação e expressão, à apreciação significativa e ao
reconhecimento da arte como produto cultural e histórico (BRASIL, 1997).
As atividades propostas se relacionam, portanto, a conteúdos presentes no
currículo de artes daquele tempo.
Tal como no caso da exposição sobre os caipiras do Vale, reencontramos
aqui uma proposta que, ambiguamente, mantém uma tendência à escolarização
dos procedimentos museais mas, acompanhando as mudanças que se davam
em contexto mais ampliado, tanto na defesa do lúdico para a educação quanto
em novas metodologias para o ensino de artes, procurava também tornar a
visita ao museu e à exposição mais agradável para as crianças, respeitando
seus ritmos e modos de produção de conhecimento e sentido. Tais atividades,
certamente, contribuíram para que o público infantil deixasse de associar
o museu exclusivamente a um lugar de guarda de acervos, para colocá-lo
também como lugar de ação. Além disso, há intencionalidades e referências

215 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


teóricas nem sempre explicitadas, mas passíveis de identificação. O uso do
desenho como estratégia privilegiada, investigando elementos tais como
profundidade, cores e especificidades artísticas das obras, remonta à chamada
Proposta Triangular, concebida por Ana Mae Barbosa, que une história da
arte, leitura da obra e o fazer artístico e foi sistematizada durante sua gestão
como diretora do Museu de Arte Contemporânea da USP, entre 1987 e 1993:
Uma das funções da arte-educação é fazer a mediação entre a arte
e o público. Museus e centros culturais deveriam ser os líderes na
preparação do público para o entendimento do trabalho artístico.
Todos os museus e centros culturais no Brasil falam de Educação e se
demonstram interessados em educar mas poucos dão real importância
à educação. (BARBOSA, 2004, s. p.)

As recomendações de Ana Mae Barbosa foram disseminadas também


por meio da publicação A imagem no ensino da arte: anos oitenta, a Proposta
Triangular (1991), na qual a autora discute, ainda, a situação nacional do
ensino das artes nas escolas durante a década de 1980. A abordagem envolvia,
portanto, contextualização, apreciação e prática e parece ter sido incorporada
às atividades do Serviço Educativo do MAV por ocasião da exposição das
imagens sacras. Seu impacto foi bastante grande, tendo sido utilizada em
outros museus, não formalmente categorizados como “museus de artes”.
Barbosa foi aluna de Paulo Freire em Recife, igualmente referência para
Waldisa Russio, consultora durante o projeto de criação do MAV. Em ambas,
e também em Bigarelli, identificamos essa preocupação em considerar o
contexto do educando em relação ao conteúdo ensinado e o dialogismo
como método. Mesmo os PCNs, no volume sobre o ensino de artes, trazem
nuances dessa proposta de Barbosa, embora nunca de modo explicitado.8
Maria Luiza Porto, então diretora do MAV, destacou a importância
do trabalho de Silvia Bugarelli no esforço para a ampliação do público do

8. Para mais informações sobre Ana Mae Barbosa e a importância de seu trabalho
com arte educação, sugerimos a entrevista que foi concedida para o projeto Memórias,
ECA 50 anos, na comemoração do aniversário da Escola de Comunicação e Artes da
USP, onde atuou como docente por décadas. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=GEyFkpAWoa0&t=84s. Acesso em: 11 out. 2021.

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museu, uma vez que o aumento das demandas por visitas evidenciava um
interesse maior pelas exposições e pelo próprio patrimônio:
Antes da Silvia começar com este trabalho era muito difícil trazer as
escolas, só as particulares visitavam o museu e de vez em quando. Nós
queríamos que as pessoas valorizassem o museu, a história do lugar e o
acervo, e nós conseguimos isso, a Silvia atendia escolas todos os dias nos
últimos anos que fiquei no museu. As escolas municipais descobriram
que eram bem vindas e vinham mesmo. (PORTO, 2019)9

As experiências do Setor Educativo do Museu de Antropologia do Vale


do Paraíba abrem um caleidoscópio de possibilidades de interpretação:
representam as escolhas dos curadores e gestores baseadas em suas trajetórias
pessoais e profissionais; representam também as tensões entre práticas
museológicas mais conservadoras e impulsos de mudança, democratização,
inclusão. Embora ainda ligadas majoritariamente à escola e seus alunos,
repensam conteúdos curriculares e práticas pedagógicas. Entre a “beleza do
morto” (CERTEAU, 1995) e o costume no sentido thompsoniano do termo
(THOMPSON, 2001), a singularidade dos sujeitos – sua formação, vontade,
necessidade – e seus contextos, na defesa de que os museus sejam mais que
um espaço para a fetichização de objetos.

3. Para além dos serviços educativos, campos disciplinares e


interesses corporativos: a educação em museus, como toda
educação, é política
Os processos e disputas entre setores vinculados à museologia – conceitos
e práticas – bem como entre aqueles vinculados à educação – diretrizes
curriculares, metodologias – não devem encobrir o fato de que o museu é,
em si, um lugar de educação e todas as atividades a ele pertinentes – guarda
de acervos, pesquisa, gestão, exposições e atendimento à população – são
educativas.

9. Maria Luiza Porto é formada em arquitetura e especialista em arquitetura religiosa.


Projetou seminários, conventos, capelas e igrejas. Foi diretora do MAV entre 1993 e 1996.

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Ao final deste texto, queremos destacar que, do nosso ponto de vista, a
busca pela exata conceituação ou por um protocolo definitivo e homogêneo
de atividades a serem realizadas, com finalidade educativa, em museus
esbarra em limites teóricos e na impossibilidade de adoção de um caminho
único, dada a diversidade dos sujeitos e de sua historicidade. Consideramos
que não há um conceito exclusivo, uma metodologia exclusiva, pois o bom
trabalho do museu exige a atenção à singularidade, às demandas sociais, à
escuta diligente do outro. Isto é tanto mais importante quanto mais atentamos
para as lutas sociais em torno das narrativas sobre o passado.
Nesta direção da cultura e do patrimônio, importa compreender
seu caráter histórico e, portanto, mutável e reconhecer que as narrativas
apresentadas pelos museus, são uma dentre outras possíveis:
Nessa perspectiva, ao propor uma determinada forma de relação com
os bens culturais, advinda da seleção de determinadas coisas para serem
perpetuadas no tempo, o museu educa, propondo uma mirada específica
aos objetos e às possibilidades infinitas de sua significação nas exposições
ou outros meios de extroversão. Como a escola, o cinema, o livro, a
família, o museu é lugar do educar, pois constitui-se em espaço de
criação de representações sobre o mundo e as coisas, propondo visões
de mundo, versões da história. (POSSAMAI, 2015, p. 24)

Preservar o patrimônio histórico-cultural e garantir o amplo acesso dos


cidadãos a esse patrimônio deve estar no cerne da educação em museus.
Isto implica no direito à fruição cultural e à criação cultural, à apropriação
do que existe e à produção do novo, à participação igualitária nas políticas
de preservação do passado organizadas pelos diferentes entes federativos e
mesmo pelo setor privado. As práticas educacionais em museus precisam,
portanto, comportar a dimensão da cultura não apenas como “bem” mas
também como “trabalho” e assumir a ligação intrínseca entre política
cultural e cultura política, considerando limites historicamente colocados
e possibilidades de futuro (CHAUI, 1992). A educação para a preservação dos
registros do passado, em suas distintas materialidades e suportes, deve voltar-
se, necessariamente, para o futuro e para a consolidação de sociedades mais
democráticas, inclusivas e justas; em outras palavras, deve estar submetida

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aos interesses públicos. Aos trabalhadores em museus, independentemente
de sua formação, cabe a tarefa de ajudar a preparar esse futuro.

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Parte III
Renovar a educação e
reinventar as práticas

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Serviços escolares auxiliares e suas práticas

André Luiz Paulilo

Sob a denominação instituições auxiliares de ensino, as reformas da


instrução pública de diferentes estados do Brasil e do Distrito Federal,
entre as décadas de 1920 e 1930, articularam todo um conjunto de serviços
educacionais visando deter a evasão e qualificar o rendimento escolar.
Não se tratava de instituições novas. As caixas escolares, por exemplo, são
mencionadas em diferentes relatórios de governo ainda no século XIX.
Também desde esse período, a associação entre biblioteca e escola e a criação
de museus pedagógicos foram práticas, em alguma medida, disseminadas no
país. Os serviços médico-escolares foram criados no interior das diretorias de
instrução pública desde, ao menos, a década de 1910. Entretanto, resultado das
inovações técnicas da época, o emprego do cinema educativo e da radiodifusão
começou a ser pensado e experimentado a partir do advento reformista dos
anos 1920 e 1930.
O propósito deste estudo é refletir sobre a articulação que o advento
reformista dos anos 1920 conferiu às instituições auxiliares do ensino.
Assim, detém-se não na criação dessas instituições, mas nas inventivas
administrativas para articulá-las sob uma mesma política de renovação do
ensino. A hipótese que orienta o argumento, já conhecida da historiografia,
percebe na criação de serviços educacionais auxiliares e complementares ao
ensino um esforço para popularizar a escola, após a mudança para o regime

225 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


republicano. Especialmente os anos 1920, por conta das seguidas reformas da
instrução, ocupa um capítulo importante desta obra de expansão da escola,
uma vez que soluções administrativas mais sistemáticas foram organizadas
para institucionalizar e articular diferentes tarefas de assistência social e
médica e de auxílio pedagógico, com a finalidade de melhorar as condições
de frequência escolar da população pobre.
Foi por um duplo movimento de classificação que então se pôde
articular serviços tão diferentes e autônomos em uma só e mesma ideia de
finalidade social. Por um lado, os regulamentos de reforma da instrução,
como os de Minas Gerais (1927), do Distrito Federal (1928) e de São Paulo
(1933), reuniam-lhes em um título, seção ou artigo da legislação. Por outro,
a estatística ratifica esse domínio de serviços criados pela legislação com
categorias passíveis de quantificação e demonstráveis por meio de quadros
comparativos. A legislação e a estatística, de diferentes modos, organizaram
e registraram práticas que ocorriam de forma heterogênea nas escolas do
país, mas sob uma perspectiva comum de ampliação das finalidades sociais
da educação escolar.
Assim, para pensar as relações que as instituições auxiliares do ensino
mantiveram com o movimento de renovação escolar no Brasil, trato, primeiro,
do modo como a legislação e a estatística definiram e classificaram os serviços
educacionais complementares. Depois, com uma reflexão acerca das práticas
por meio das quais se organizaram atividades de assistência social e médica,
e de auxílio pedagógico procuro discutir a criação dos serviços auxiliares e
complementares à escola como iniciativas de contenção do fracasso escolar.
A expressão que o advento reformista da educação pública no Brasil conferiu
aos serviços escolares auxiliares e complementares foi pensada neste texto
com base no pressuposto de que existiu uma articulação entre as ambições
intelectuais de uma geração de educadores, a vontade política de lideranças
envolvidas com projetos de regeneração social e o aparecimento de formas
populistas de exercício do poder. Entretanto, aqui, apenas exploro essa
aproximação da perspectiva das ambições intelectuais manifestadas pelas
sucessivas reformas educacionais dos anos 1920 e 1930, tema da seção
conclusiva deste capítulo.

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Auxiliar a educação pública
Com o propósito de investigar a ampliação dos serviços escolares entre
as décadas de 1920 e 1930, pesquisei a legislação das reformas do ensino
dirigidas por signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova em
1932. Nesse sentido, o levantamento da legislação de reforma do ensino do
período entre 1920 e 1935, nos estados de São Paulo, Minas Gerais, Bahia,
Ceará, Espírito Santo e no Distrito Federal, mostra uma relativa concomitância
na organização das iniciativas de assistência escolar.
Em São Paulo, a reforma do ensino conseguida por Sampaio Dória previu
inspeção médico-escolar (Art. 7º da Lei 1.750, de 08 dez. 1920) e estabeleceu
a assistência escolar, por meio da criação de uma caixa escolar na sede de
cada município (Art. 22, § 2° da Lei 1.750, de 08 dez. 1920). Encontram-se
dispositivos semelhantes nas leis de reforma do Ceará (1922), Bahia (1924),
Minas Gerais (1927), Distrito Federal (1928) e Espírito Santo (1928). No
Ceará, a Lei 1.953, de 02 de agosto de 1922, cria o serviço médico-escolar
na Diretoria de Instrução (Art. 5º). Na Bahia, a Lei 1.846, de 14 de agosto
de 1925 confiava esse serviço ao Departamento da Saúde Pública, que, no
entanto, atuaria em colaboração com a Diretoria Geral de Instrução Pública.
O mesmo arranjo pode ser encontrado na legislação do ensino do Espírito
Santo (Lei 1.693, de 29 dez. 1928, Art. 4º). Em 1927, a Lei 7.970-A, de 15 de
outubro, criou, em Minas Gerais, a Inspetoria de Higiene Escolar e organizou
a inspeção médica dos alunos no estado e a assistência dentária escolar. No
Distrito Federal, o Decreto 3.281, de 23 de janeiro de 1928, reorganizou o
serviço de inspeção médico-escolar, criando-lhe uma chefia geral. Também
no Espírito Santo, havia medidas similares.
O regulamento da reforma do ensino no Ceará reunia, no seu título IV,
aquilo que compreendia como instituições auxiliares do ensino: caixa escolar
(Capítulo I), escotismo (Capítulo II), curso de férias e reuniões pedagógicas
(Capítulo III), bibliotecas e museus escolares (Capítulo IV) e festa das árvores
(Capítulo V). Do mesmo modo, a legislação de reforma da Bahia reunia, no
capítulo VII da Lei 1.846, as mesmas instituições consideradas auxiliares do
ensino na reforma do Ceará: caixa escolar (Art. 106-108), escotismo (Art.
109), biblioteca e museu escolar (Art. 110-111). Em Minas Gerais, a parte VI

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da Lei 7.970-A tratava das instituições complementares e auxiliares da escola
no aperfeiçoamento do meio escolar e social da localidade (Art. 196). Por
um lado, instituiu na escola os clubes de leitura (Capítulo I), o Auditorium
(Capítulo II), o pelotão de saúde (Capítulo III), o escoteirismo (Capítulo
IV). Por outro, considerava as associações das mães de família, os conselhos
escolares municipais, as caixas escolares e o fundo escolar, associações
complementares e auxiliares da escola. No Distrito Federal, a legislação de
reforma do ensino, aprovada em 1928, também era composta por um título
dedicado às instituições auxiliares de ensino. Previa bibliotecas e museus
escolares em cada escola pública (Art. 204) e, naquelas que funcionavam em
prédio próprio, determinava destinar salas para a instalação de aparelhos de
projeção e de radiotelefonia e alto-falantes (Art. 296); organizava o Boletim
de Educação Pública (Art. 288); e criava também a Associação Escolar de
Escoteiros (Art. 298). No fim do mesmo ano, no Espírito Santo, por meio
da Lei 1.693, de 29 de dezembro de 1928, o executivo obtém autorização do
legislativo do estado para a organização da assistência social e de instituições
complementares e auxiliares da escola.
A variedade de iniciativas e de arranjos dos serviços escolares voltados
para conferir finalidades sociais à escola foi reunida na legislação de ensino
dos anos 1920, sob a designação instituições complementares e auxiliares de
ensino. Essa fórmula, então, alcançou quatro conjuntos de serviços específicos
e complementares. Por um lado, a preocupação com as condições materiais
do ensino teve na criação das caixas econômicas escolares e de fundos
escolares uma ação que foi se ampliando e generalizando ao longo dos anos
1920-30. Por outro lado, a realização de festividades com caráter cívico e a
incorporação de práticas como o escoteirismo visavam mais que interessar a
população pela educação, corroborar a formação cívico-patriótica na escola.
Por outro, ainda, havia os serviços de assistência social e a distribuição de
alimentos e medicamento na escola. Por fim, à época, trabalhou-se, também,
para a criação de instituições auxiliares de ensino de modo a fomentar a
criação de bibliotecas e museus escolares, bem como o uso do cinema e do
rádio como instrumentos de educação.

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No fim da década de 1930, a disseminação pelo país das instituições
complementares e auxiliares de ensino foi quantificada pela estatística do
ensino publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Tratava-
se de uma separata do Anuário Estatístico do Brasil de 1938 que, publicada
em 1940, trazia dados de 1932 a 1935 com resultados consolidados do Brasil e
por região. Como o objetivo aqui não é pensar a abrangência das instituições
auxiliares de ensino, mas os modos como então se definiu uma compreensão
dos seus serviços, detenho-me nas categorias que organizaram a estatística
publicada em 1940.
Aquilo que a legislação da década de 1920 reunia na ideia de instituições
auxiliares de ensino, a estatística distinguia em duas categorias: aparelhamento
escolar e instituições escolares. O aparelhamento escolar compreendia
biblioteca (para alunos e para professores), museus, laboratórios e gabinetes,
aparelhamento especial para projeções luminosas (fixas e animadas),
trabalhos práticos de agricultura, outros trabalhos manuais e educação
física. As instituições escolares compreendiam instituições intraescolares e
periescolares. As instituições intraescolares agrupavam os clubes de leitura,
os auditórios, os pelotões de saúde, as organizações de escotismo, os clubes
desportivos e as ligas de bondade. Por outro lado, eram consideradas
instituições periescolares as associações de pais e professores, os conselhos,
as caixas e os fundos escolares.
As categorias utilizadas para quantificar a expansão das instituições
escolares complementares e auxiliares diferiam do modo como a legislação
de reforma do ensino primeiro tratou a questão. As festas e os impressos
escolares já não faziam parte desse instituto, como os regulamentos de reforma
do Ceará e Distrito Federal sugeriam em 1922 e 1928, respectivamente. As
estatísticas publicadas no âmbito do governo federal acerca das instituições
complementares e auxiliares também não abrangeram a assistência e os
serviços médico-escolares. Mesmo assim, Germano Jardim (1945, p. 248),
do Serviço de Estatística de Educação e Saúde, lembrava que a estatística
procurava fixar quesitos comuns em meio à diversidade de interesses e de
circunstâncias de cada educandário, sem deixar de prever “num ou noutro
local dos formulários” de preenchimento as “novas situações e atividades

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até certo ponto registráveis”. Embora reconhecendo que os critérios de
classificação variavam de um para outro estado, Germano Jardim (1945, p.
248) considerava “notáveis os esforços no sentido de simplificar a escrituração,
reduzindo-a sempre ao essencial”.
A comparação entre a legislação e a estatística, no que diz respeito
ao registro da presença e do tipo das instituições auxiliares, tem nuanças
importantes. Em relação ao governo federal, havia projetos divergentes que
se mantinham em São Paulo e no Distrito Federal. A historiografia já reúne
estudos capazes de mostrar que, nesses entes da federação, onde a direção
da educação ainda era organizada por signatários do Manifesto de 1932,
a legislação conservava a ideia de que as instituições escolares auxiliares
reuniam serviços de auxílio técnico e assistência social com o propósito de
atribuir finalidade social à educação e aumentar o rendimento escolar. De
fato, entre 1932 e 1933, Anísio Teixeira, no Distrito Federal, e Fernando de
Azevedo, em São Paulo, organizaram estruturas de serviços que abrangiam
domínios semelhantes da administração escolar e do trabalho educativo,
com a finalidade de auxiliar o ensino. Assim, no período, o Distrito Federal e
São Paulo possuíram serviços ou inspeções especializadas de saúde e higiene
escolar, obras sociais escolares, periescolares e pós-escolares, música e canto
coral, educação física, prédios e aparelhamentos escolares – bibliotecas e
museus escolares; rádio e cinema educativo.
Paralelamente, ao distinguir as instituições escolares do aparelhamento,
a estatística do ensino produzida pelo governo federal confere outro registro
para a estrutura que as reformas do ensino, no Distrito Federal e em São
Paulo, ainda na década de 1930, planejavam integrar à escola. O registro
estatístico reduzia a implantação dos serviços escolares ao aspecto da sua
expansão, enquanto a política educativa da qual resultaram algumas das
principais reformas do ensino das décadas de 1920 e 1930 fazia dela uma
estratégia de expansão das matrículas. Mesmo assim, o entrecruzamento de
ambas as fontes permite mapear um variado conjunto de iniciativas que, de
diferentes modos, promoviam uma maior inserção social da escola.
De fato, tanto o aparelhamento material do ensino quanto as providências
em torno da assistência social associaram à escola tarefas de auxílio e apoio

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voltadas para o enfrentamento da evasão e reprovação escolar. Por meio da
criação das instituições auxiliares de ensino, entre 1920 e 1930, a inserção
social da escola praticamente se impôs como política educativa.

Para conter a evasão escolar e aumentar o rendimento do ensino


As conexões entre escola e ambiente social foram tornadas mais explícitas
e ampliadas no discurso público dos educadores que atuaram na administração
do sistema escolar do país. Não somente as mudanças nos programas escolares
favoreceram a construção de uma linguagem nacionalista, de uma ética do
trabalho e a formação do caráter. A legitimidade que a mudança de perspectiva
conferia ao professorado foi, também, de ordem muito prática, fazendo-o
participar das iniciativas do poder público orientadas para cuidar da infância
pobre nas escolas públicas. Conforme propõe Marília Pinto de Carvalho
(1999, p. 93), as práticas de cuidado incorporadas no pensamento educacional
brasileiro, nesse período, foram associadas à disciplina e moralização dos
pobres, ao barateamento da qualidade intelectual do ensino e à presença de
mulheres no corpo docente.
De acordo com a percepção de Marta Carvalho (1989), houve, então, uma
transferência de interesse por parte das autoridades do ensino, deslocando-se
do tema político da cidadania (como ampliação do número de votantes por
meio da alfabetização) para o do significado social da educação popular.
O que também envolveu o estabelecimento de dispositivos capazes de
operacionalizar o esforço de sistematização desse tipo de educação. O
planejamento, a avaliação e os desenvolvimentos necessários a uma tarefa
assim, coletiva e cheia de propósitos, requisitaram novas soluções de
escolarização. Entre 1922 e 1938, elas foram se sucedendo no discurso de
reforma em diferentes estados do país e no Distrito Federal.
Em uma década e meia se consolidou no país uma concepção educativa
que ampliou as funções sociais da escola pública. No período, a criação das
caixas escolares, dos serviços de inspeção médico-escolar e da assistência
alimentar foram iniciativas de expressão social. Apoiadas pela imprensa, com
a divulgação periódica de boletins estatísticos do volume de atendimentos
dos serviços de inspeção médica e de distribuição de alimentos nas escolas,

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essas iniciativas generalizavam-se com as reformas do ensino que lhes faziam
repercutir. Também noticiadas pela imprensa diária, a organização do círculo
ou associação de mães, as festividades escolares, a prática do escotismo ou as
demonstrações de educação física completavam as ações, visando conferir
expressão social à escola, por meio de diferentes inventivas para interessar
a população no seu trabalho educativo.
O período foi, ainda, de organização e sistematização de serviços que
subsidiavam a docência com recursos ou conteúdos de ensino. Por um lado,
os serviços de psicologia, ao dar atenção aos processos de aprendizagem e a
determinados traços de personalidade das crianças, serviram aos propósitos
de melhorar o rendimento escolar, de homogeneização de classes e de
legitimação científica das estratégias de renovação do ensino. Por outro, a
criação de bibliotecas e museus escolares, clubes de leitura, filmotecas e, no
Distrito Federal, da rádio educativa, contribuíram com novos materiais e
recursos de ensino. De todo modo, além da presença de alimentos, fichas de
saúde, diversos objetos de higiene pessoal e demais materiais que o advento
reformista dos anos 1920-1930 favoreceu, também circularam na escola novos
livros, filmes e coleções de objetos com fins didáticos.
A obra publicada pelos reformadores e as revistas de ensino reúnem
informações importantes acerca dos artifícios políticos e das artimanhas
operacionais que envolviam a criação, implementação e administração dessas
instituições. Mas, especialmente, sugerem que o objetivo precípuo de conter
a baixa frequência e a evasão escolar, provendo de auxílio os mais pobres,
justificava politicamente a criação das caixas econômicas escolares e dos
serviços de assistência social dos alunos e técnica dos docentes. Anísio
Teixeira destaca-se entre as autoridades de ensino que circunscreveram a
organização de medidas para ampliar e estender facilidades de educação.
Em relatório publicado em 1935, Anísio Teixeira constatou que a reprovação
era índice da falha da instituição e do sistema escolar nos seguintes termos:
Não basta haver escolas para os mais capazes, é indispensável que haja
escolas para todos. Não basta haver escolas para todos, é indispensável
que todos aprendam.

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Não é difícil avaliar quanto a modificação veio influir no conceito de
rendimento da escola. Antes, dado o caráter seletivo, a reprovação era
quase o índice da qualidade do ensino. Se muitos falhassem, queria
isto dizer que os critérios de julgamento eram realmente eficientes e se
estava depurando, para a formação das elites intelectuais e profissionais,
a fina flor da população.

Se, porém, a escola tem o dever de ensinar a todos, porque todos precisam
dos elementos fundamentais da cultura para viver na sociedade moderna,
o problema se inverte. Aluno reprovado significa não já êxito do aparelho
selecionador, mas fracasso da instituição de preparo fundamental dos
cidadãos, homens e mulheres, para a vida comum. (TEIXEIRA, 1935,
p. 74)

Dessa perspectiva, Anísio Teixeira agiu para assentar a ideia de que


o aluno reprovado não significava mais, para os educadores envolvidos
na direção das reformas do ensino, êxito do aparelho selecionador que
era a escola. Em outro lugar, argumentei que, ao menos desde a reforma
da educação da capital federal, havia da sua parte “a preocupação com os
fatores intraescolares da reprovação e da evasão” (PAULILO, 2017, p. 1.260).
Entretanto, não me parece um despropósito estudar os serviços auxiliares e
complementares à escola como iniciativas de contenção do fracasso escolar.
Ou, ao menos, pode-se explorar o fato de que já havia por parte de Anísio
Teixeira a preocupação com os fatores intraescolares da reprovação e da
evasão desde os anos 1930.
Com o advento reformista dos anos 1920 e 1930, a preocupação com tais
fatores fez dos esforços para expansão do sistema educativo uma iniciativa
que visava também a contenção do fracasso escolar, por meio da ampliação
dos serviços escolares. A análise da legislação ou da estatística do período
afiança a pertinência do estudo da organização dos serviços auxiliares de
ensino para a compreensão da política de expansão do atendimento escolar
que então se consolidou. No entanto, entre a organização dos serviços e a
quantificação da sua oferta, atuaram diversos educadores comprometidos
com as reformas do ensino à época, que também auxiliam no entendimento
do lugar das instituições auxiliares do ensino na política de educação.

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Em 1930, Oscar Clark (1930) compilou em livro as conferências realizadas
para professoras do Distrito Federal, por ocasião do curso de educação
sanitária, ministrado pelos inspetores médicos e dentários do Distrito Federal;
Jonathas Serrano e Venâncio Filho publicaram o livro Cinema educativo,
depois de organizarem a 1ª Exposição de Cinematografia Educativa da
Diretoria Geral de Instrução Pública, em 1929. Do mesmo modo, Celina
Padilha (1933) tratou dos serviços de obras sociais escolares, periescolares e
pós-escolares e Espinheira (1934), da rádio educativa, em livros publicados
após atuarem na administração de Anísio Teixeira. Na década seguinte,
Venâncio Filho (1941), e Carlos Bahar e J. Pinto Lima (1943) publicaram
obras, respectivamente, sobre o aparelhamento escolar e os clubes agrícolas.
Especialmente no conjunto, essa produção sugere a variedade de
iniciativas de auxílio ao ensino e de assistência social, que envolveu a política
educativa, em diferentes estados e no Distrito Federal, como também o
objetivo comum de transformar as finalidades da escola pública. A assistência
social e médica, como medida para deter a evasão escolar, as iniciativas
associativas ou o aparelhamento do ensino, para aumentar o rendimento da
escola, em termos de promoções, tinha nesses estudos o reconhecimento dos
objetivos atribuídos pelos reformadores às suas criações. Em muitos sentidos,
tratava-se de uma bibliografia das reformas do ensino, tanto capaz de auxiliar
na organização de tais serviços quanto de afirmar o seu alcance social. Nesse
sentido, livros como os de Venâncio Filho e Jonathas Serrano (1930) e de
Celina Padilha (1933) reiteravam o caráter beneficente, a modernidade e,
sobretudo, a eficiência de resultados que as reformas do ensino atribuíam
às instituições complementares de ensino. Ações sociais ou modernidade
técnica, que eram vistas como formas de amparar as crianças pobres em suas
trajetórias na escola pública. Conforme sintetizou Anísio Teixeira (1935, p.
38-39) no relatório de gestão que publicou em 1935, tratava-se de medidas
para suplementar a educação das crianças, que, para “progredir”, só podiam
contar com a escola:
Nem livros, nem revistas, nem o exemplo da leitura, nem o que é pior, a
necessidade da leitura. Os pais vivem, rudemente, a ocupação diária: a
profissão, os hábitos de casa e de sociedade, a própria compreensão da

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vida nunca lhes fizeram ver o que havia de possibilidades de progresso
dentro da própria classe, se por acaso fossem mais instruídos, mais
educados. Sonham com instrução, mas não é para a elevação intrínseca
dos próprios hábitos de vida, senão como instrumento de passagem
para a classe privilegiada dos funcionários e doutores.

Essa criança do povo deve e precisa ter na escola mais alguma coisa do
que o ensino a toque de caixa de leitura, escrita e contas. Precisa encontrar
um ambiente civilizado, sugestões de progresso e desenvolvimento,
oportunidades para praticar nada menos do que uma vida melhor,
com mais cooperação humana, mais eficiência individual, mais clareza
de percepção e de crítica e mais tenacidade de propósitos orientados.

A historiografia consolidou outro entendimento desse esforço da época


em atribuir finalidade social à educação escolar. Carvalho (1989), Nunes (1994,
1996), Veiga (2002) e Souza (2009), por exemplo, perceberam a dimensão
disciplinar das iniciativas de assistência social e renovação do ensino. O estudo
das festas escolares, do cinema, das práticas de ensino ou de assistência social
e auxílio técnico, sob a perspectiva das estratégias de controle ou do projeto
de civilização de que resultavam, não deixou escapar das análises as manobras
e artifícios de homogeneização cultural presentes nas políticas de reforma
de então (SOUZA, 2009). Nunes (2000), acerca da reforma conduzida por
Anísio Teixeira no Distrito Federal, explora a ambiguidade desse projeto.
Conforme compreendeu, entre 1931 e 1935, a reforma conduzida por Anísio
Teixeira pressionou tanto “para uma abertura real das chances educativas”,
quanto “para a formulação de concepções autoritárias das classes populares”
(NUNES, 2000, p. 594).
Ao esforço de interpretação mais geral, seguiram-se pesquisas que se
ocupam de serviços em particular. Assim, a higiene e a inspeção médico-
escolar (ROCHA, 2005, 2015), os pelotões de saúde (CUNHA, 2013), as caixas
escolares (CARVALHO; BERNARDO, 2012; CARVALHO; VIEIRA, 2018),
as associações de pais e professores (BUENO, 1987), a alimentação escolar
(NOGUEIRA, 2016; PINHO; MARTINEZ, 2017), o escotismo (HERALD
JR., 2016; SOUZA, 2000), as bibliotecas escolares (CAMPELO, 2007; NERY,

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2013; VALIO, 1990), os museus pedagógicos (ZONIN; SILVA; PETRY, 2018),
o cinema educativo (CATELLI, 2010), a radiodifusão (COELHO, 2016;
GILIOLI, 2008) se constituíram em objeto de estudo. Desse modo, atualmente
se pode dispor de estudos de cada um dos serviços então configurados
para complementar e auxiliar o trabalho educativo nas escolas. E se,
majoritariamente, o conjunto confirma a interpretação geral acerca dos
recursos que então viabilizaram para um melhor exercício do controle das
populações urbanas, também entrevê, nas medidas para deter a evasão escolar
e aumentar o rendimento do ensino, o triunfo técnico e cívico de que fala
Julia (2001, p. 12), “fruto da imposição segura de uma pedagogia normativa”.

A escola pública e seus serviços


Um modo de refletir sobre o impacto da mudança das finalidades
da escola, reivindicada pelas reformas do ensino, foi compreendê-la pela
via da criação de serviços escolares complementares e de novas rotinas de
atividades. A instalação de bibliotecas e museus escolares, as iniciativas
para implantação do cinema e da radiofonia educativos, a organização
de associações, conselhos, ligas, clubes ou círculos de diferentes tipos nas
escolas, e as práticas de assistência alimentar e da saúde dos alunos vinham
transformando as finalidades da educação pública. Ao menos como ideal,
a escola primária cedeu espaço, como ativo político dos poderes locais, a
um aparelhamento do ensino, que, cada vez mais, dependia de órgãos de
suporte e coordenação.
No trabalho de institucionalização que acompanhava essa mudança de
concepção, superintendências, seções, divisões ou institutos foram criados
pelos estados e pelo Distrito Federal para promover tais serviços. Por meio da
estatística do ensino, o Ministério da Educação e Saúde, sobretudo, conferiu
aos esforços de contenção do abandono escolar e de melhoramento do
rendimento do aparelho de ensino público alguma visibilidade na forma
de grandezas numéricas. Sem manter ou financiar iniciativas com o mesmo
alcance dos estados e do Distrito Federal, o governo central contribuiu
para consolidar os serviços auxiliares e complementares na escola. Ao lado
do aparelhamento e do suporte administrativo que os estados e o Distrito

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Federal, em diferentes medidas, asseguravam, a visibilidade e os comparativos
então proporcionados pelo governo central, por intermédio das estatísticas,
propunham um reconhecimento da relevância dos serviços auxiliares e
complementares do ensino.
De fato, às vésperas do golpe que instituiu o Estado Novo no Brasil, a
resposta ao movimento renovador do ensino nos anos 1920 já havia resultado
num ambicioso programa escolar de regeneração social. E, assim, tanto as
medidas para deter a evasão, quanto os serviços pensados para aumentar o
rendimento escolar tinham como contraponto aquilo que Thompson (2002, p.
31) uma vez designou de “o desejo de dominar e de moldar o desenvolvimento
intelectual e cultural do povo na direção de objetivos predeterminados e
seguros”. Por um lado, o custeio da permanência dos pobres na escola, a sua
assistência médico-escolar, ou um melhor aparelhamento técnico do ensino
beneficiaram a população com políticas progressistas de educação. Já por
outro, predominaram as estratégias autoritárias de ampliação das tarefas
escolares e de imposição de novos conceitos de educação.
Ainda que fruto de uma política ambígua, a articulação dos serviços
auxiliares de educação nas décadas de 1920 e 1930 foi um momento de
ampliação da capacidade de atendimento escolar da população. Assim,
serviu de trunfo político tanto ao situacionismo do governo oligárquico
do início da República, quanto ao regime que lhe sucedeu após 1930. Em
comum, a implantação dos serviços escolares auxiliares é sistematizada e
legitimada por ações centralizadas. O reconhecimento dessas iniciativas,
por meio de políticas públicas e da especialização técnico-administrativa
dos serviços escolares, tem, na criação do Ministério da Educação e Saúde
e na organização em departamentos da administração central do ensino,
uma nova etapa.
As fontes que se puderam reunir a partir da atividade dos órgãos
centralizados deixam ver que as reformas do ensino viabilizaram
procedimentos de assistência, inspeção e formação, voltados para a solução
de problemas sociais. Também é possível perceber que os meios mobilizados
então foram o controle da prática docente, a reorganização dos serviços
escolares e a orientação vocacional desde as séries finais da escola primária.

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Toda uma série de certezas acerca do valor educativo do trabalho escolar, da
observação e da experimentação na aprendizagem amparou as discussões
em torno da implantação desses meios. Nesse sentido, a diversificação das
práticas escolares teve tanto o apoio de medidas administrativas, quanto um
arcabouço disponível de justificativas doutrinárias e teóricas. Daí a opção
pelos métodos ativos de ensino, o uso do cinema educativo, as apropriações
da psicologia experimental, o prato de sopa, o copo de leite, os pelotões de
saúde e a educação física serem tão representativos da estrutura organizacional
da escola pública desenhada naquele período.
Entre 1922 e 1938, tanto se ampliou as tarefas sociais da escola primária,
quanto se agiu sobre um conjunto de instituições que se conseguiu articular.
Cada um ao seu modo, os responsáveis pelas reformas da instrução pública
em São Paulo, no Distrito Federal, em Minas Gerais, em Pernambuco, no
Espírito Santo, na Bahia e no Ceará perceberam as múltiplas articulações
que a escola e os serviços de saúde e assistência comportariam. Articulação
foi também o que buscaram obter entre o ensino primário e o profissional.
Operando no nível dos programas ou dos quadros administrativos dessas
instituições, a ordem foi sistematizar a educação pública e “popularizá-la”.
As fronteiras que a pedagogia, a psicologia, a clínica médica e a arquitetura
respeitavam nas escolas públicas foram retraçadas, ainda, nessa mesma
perspectiva. As aproximações entre as práticas de educação, a concepção
de infância, o exame clínico e a arquitetura dos edifícios mesclaram não
apenas procedimentos, mas, sobretudo, a escola ao universo urbano das
relações sociais da capital do país. Nas reformas da instrução pública que
ocorreram entre 1922 e 1938, o poder público se serviu da escola não só como
instituição mediadora de um saber, mas, especialmente, como agência de
articulação de diferentes práticas.
Houve, no período, um encontro calculado entre aspirações políticas
e pedagógicas, e práticas efetivas de implantação. No fazer administrativo
dessas reformas, ficam as pistas de como se formularam, organizaram e
implementaram aparelhos, tecnologias e dispositivos, que não foram tão
só construções ideológicas, mas instrumentos efetivos de gestão. A eles
corresponderam não só os registros funcionais acerca do trabalho educativo,

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mas os próprios serviços de educação, saúde, assistência e orientação
profissional das escolas públicas do país de então. Entre as décadas de 1920
e 1930, a educação pública foi instrumentalizada em seus métodos de ensino
por um aparato material de conotação eminentemente técnica, nem sempre
pertencente à escola, mas que funcionava voltado para ela: os laboratórios, o
cinema educativo, os gabinetes dentários, os museus escolares e os próprios
prédios escolares. Esse desenvolvimento técnico criou uma multiplicidade
de novas estruturas profissionais, que, além do professor, passavam a agir
em função do espaço escolar: os dentistas escolares, os médicos escolares,
as enfermeiras visitadoras. Assim, foram se alargando os parâmetros
institucionais da escola. De fato, nesses anos, a escola consolidou, devido
às novas práticas educativas e ao alargamento do conceito de aprendizagem,
um deslocamento nas suas funções.

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Preparando as meninas para a “idade maternal”
(São Paulo, década de 1920)

Heloísa Helena Pimenta Rocha


Márcia Guedes Soares

Ecos de uma festa, registros de uma iniciativa

A festa que se realizou anteontem, no Centro de Saúde do Bom Retiro,


para solenizar o encerramento do curso de puericultura da “Escola de
Mãezinhas”, deixa uma margem bem larga para que um comentário
se faça em torno da patriótica jornada que vem fazendo a Inspetoria
de Educação Sanitária e Centros de Saúde, no tocante ao problema de
formação da criança, sob os métodos mais sadios de educação.

A “Escola de Mãezinhas”, frequentada por alunas do 4º ano dos grupos


escolares da capital, tem uma função altamente social. O seu programa,
abrangendo a criança em um estágio único, aquele em que tem o espírito
em caminho de uma formação, vai despertar no seu íntimo, aproveitando
as suas tendencias feminis de carinho para com as bonecas, o sentimento
protetor para com seu irmãozinho, e ao ficar sabendo do valor da
saúde, está a preparar-se naturalmente, para amanhã, quando chegar-
lhe a idade maternal, saber como criar um filho forte e sadio. (UMA
GRANDE..., 1930, p. 2)1

1. Optamos, neste texto, por atualizar a grafia das palavras.

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A matéria publicada no Correio Paulistano, em junho de 1930, sob o
título “Uma grande cruzada da Inspetoria de Educação Sanitária: o papel
que representa a Escola de Mãezinhas”, dá conta da festa de encerramento
de um curso de puericultura ministrado para alunas do 4º ano dos grupos
escolares de São Paulo no Centro de Saúde do Bom Retiro. Representado
como uma iniciativa de caráter “altamente social”, parte da “jornada patriótica”
levada a cabo por um órgão público, o curso visava ensinar às meninas o
valor da saúde e os modos de cuidar dos pequenos, preparando-as para
assumirem futuramente os cuidados com os filhos. Respondia, nesse sentido,
aos propósitos de orientá-las quanto à responsabilidade futura pela criação
de filhos fortes e sadios para a pátria, tarefa considerada eminentemente
feminina. Em consonância com as representações sobre o papel da mulher
na sociedade, em circulação no período, a iniciativa buscava, pois, lançar
mão das “tendências feminis de carinho para com as bonecas” supostamente
inerentes às meninas, para despertar o “sentimento protetor para com seu
irmãozinho” e, mais tarde, pelos filhos.
A festa constituía-se em oportunidade privilegiada para dar a ver as
políticas de higiene infantil que vinham sendo implementadas em São Paulo e,
mais especificamente, aquelas que se relacionavam à difusão da puericultura.
O foco incidia sobre a atuação da Inspetoria de Educação Sanitária e Centros
de Saúde, como se pode observar no tom celebratório da extensa matéria
veiculada pelo periódico, que vem acompanhada da transcrição das provas
finais das duas melhores alunas do curso e do texto integral de uma peça de
teatro encenada na ocasião festiva. Não é de estranhar, nesse sentido, que o
roteiro da peça, que colocava em cena o diálogo de personagens femininas
em torno de práticas de cuidado com a alimentação, o sono e a higiene das
crianças pequenas, seja construído em torno da propaganda dos centros de
saúde e da Escola de Mãezinhas, com alusões às autoridades vinculadas à
instrução pública e ao Serviço Sanitário, cujo apoio à iniciativa se procurava
exaltar.
A leitura da matéria jornalística suscita algumas indagações que se
buscará tratar neste texto: em que consistia a Escola de Mãezinhas? Quando
foi criada e a que propósitos procurava responder? A quem se destinava?

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Que conteúdos eram abordados nos cursos oferecidos para as alunas das
escolas primárias paulistas? Em torno de que práticas se organizava, com
vistas a transmitir esses conhecimentos e inculcar hábitos saudáveis? Qual
o lugar conferido a essas práticas na formação oferecida nesses cursos?
Tomando como fontes textos produzidos pela educadora sanitária Maria
Antonietta de Castro e matérias publicadas na imprensa, entre as décadas de
1920 e 1930, com destaque para as provas das melhores alunas dos cursos de
puericultura, procura-se compreender, neste texto, os modos como se deu a
difusão da puericultura, atentando-se para os conhecimentos ensinados, as
práticas por meio das quais se buscou formar as meninas para os misteres
da maternidade e as representações da mulher e do seu papel no cuidado
das crianças.

O dever de educar as futuras mãezinhas

A criancinha, desde os primeiros anos de vida já deve ir sendo habituada


ao asseio, à alimentação a horas certas, etc. Será necessário, porém,
que as mães saibam como lhes impor esses hábitos. Elas precisam ser
educadas. (CASTRO, 1927, p. 3, grifos nossos)

A afirmação da necessidade de educar as meninas para que elas pudessem


desempenhar, no futuro, seu papel como mães encontra eco na iniciativa de
criação da Escola de Mãezinhas, como parte da implementação da reforma
sanitária de 1925, capitaneada pelo médico Geraldo Horácio de Paula Souza.
Assumindo como eixo a formação da consciência sanitária da população,
a reforma teve, dentre os seus desdobramentos, a criação do curso de
educadoras sanitárias; a instalação de centros de saúde; a implementação
da Inspetoria de Educação Sanitária e Centros de Saúde; a criação do cargo
de educadora sanitária.2 A primeira turma desse curso, que visava formar
professoras primárias para difundir os preceitos higiênicos nos centros
de saúde, escolas, hospitais, fábricas e outros espaços institucionais ou

2. Sobre a reforma Paula Souza, regulamentada pelo decreto n. 3.876, de 11 de julho de 1925,
ver Ribeiro (1993), Campos (2000), Faria (2002) e Rocha (2003).

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domésticos, ingressou no Instituto de Hygiene de São Paulo em janeiro de
1925, diplomando-se em dezembro de 1927.
Em 1926, as educadoras sanitárias em formação desenvolveram
algumas atividades voltadas para o ensino de puericultura a alunas das
escolas primárias.3 Tais atividades, realizadas no Centro de Saúde Modelo, se
organizaram no formato de um curso designado como “escola de mãezinhas”.
Maria Antonietta de Castro, aluna dessa primeira turma, nomeada,
posteriormente, para o cargo de educadora-chefe da Inspetoria de Educação
Sanitária e Centros de Saúde, indicava como fonte de inspiração para a
elaboração do programa desenvolvido com as meninas dos grupos escolares
os conhecimentos adquiridos nas aulas do médico-educador Antonio de
Almeida Junior:
De fato, sob a impressão das aulas ministradas, nesse curso, pelo
Dr. Almeida Junior, insistindo sobre a necessidade de divulgação da
puericultura, lançávamos, em 1926, a ideia da realização de um curso
prático dessa disciplina, como uma das atividades da Inspetoria de
Educação Sanitária e Centros de Saúde.

Destinando-se, às alunas do Grupo Escolar “Prudente de Morais” e


“Regente Feijó”, realizava-se, em 1926, no, então, Centro Modelo, o curso
que sob o nome de “Escola de Mãezinhas”, foi considerado o início
de uma nova fase para o desenvolvimento do ensino da puericultura.
(CASTRO, 1946, s. p., grifos nossos)

A iniciativa parece ter sido bem-sucedida, como evidencia a continuidade


do projeto por parte da inspetoria até 1930, quando mudanças nas políticas

3. Vale destacar que, embora o público-alvo fossem as alunas do 4o ano dos grupos escolares,
o curso não se restringia a elas, conforme declarava Maria Antonietta de Castro, referindo-se
à experiência realizada em 1926: “O facto é que o curso se realizou, acrescida, a matrícula, de
senhoras da sociedade, e, até normalistas” (CASTRO, 1935, s. p.). Os jornais do período entre
1927 e 1930 também apontam para essa participação mais ampla, como se pode observar em
alguns anúncios: “Para assistir às aulas referidas, vão ser convidados os alunos das escolas
normais, colégios, grupos, escolas particulares, senhoras e senhoritas de todas as camadas
sociais. Todas as pessoas que se interessam pela saúde da criança, em suma, terão entrada
franca” (ESCOLA..., 1929b, p. 6).

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sanitárias responderam pela suspensão dos cursos.4 Outro indício do sucesso
alcançado pela escola de mãezinhas, nesse período inicial, pode ser lido na
expansão da sua oferta para os centros de saúde do Brás e do Bom Retiro. Com
isso, a iniciativa passava a abranger, além dos grupos escolares localizados no
entorno do Centro de Saúde Modelo, os que se situavam nas regiões adjacentes
a essas duas outras unidades.5 Os registros referentes a 1929 davam conta de
que a escola de “mãezinhas, organizada nesses três centros de saúde, contava
com uma programação que durava de 10 a 12 dias, incluindo aulas ministradas
pelas educadoras sanitárias para as alunas do 4º ano dos grupos escolares,
duas a três vezes por semana” (ESCOLA..., 1929a, p. 6; ESCOLA..., 1929b, s. p.;
NA ESCOLA..., 1929, p. 2). Tais aulas contavam com “demonstrações práticas
de puericultura” (CASTRO, 192[6], s. p.). Com vistas a tornar os resultados
do curso mais “eficientes” e o aprendizado de puericultura “interessante”
para essas meninas, com idade em torno de 12 a 14 anos (CASTRO, 1933, s.
p.), eram utilizadas as instalações dos centros de saúde, que contavam com
serviço de higiene infantil e lactário, configurando-se em um “verdadeiro
laboratório de dietética infantil”.6 Em 1930, foram oferecidos cursos para as

4. Maria Antonietta de Castro se tornou educadora chefe na Inspetoria de Educação Sanitária


e Centros de Saúde em 1927. Permaneceu no cargo de chefe das educadoras sanitárias nas
sucessivas reformas pelas quais o serviço de higiene escolar passou, até sua aposentadoria,
em 1952. Em 1930, organizou e presidiu a Associação de Educação Sanitária, na qual havia
uma comissão de combate à mortalidade infantil. Por meio desta, junto com damas da
sociedade paulista, criou a Cruzada Pró Infância, instituição filantrópica destinada aos
cuidados com a maternidade e a infância. A partir de 1934, passou a organizar anualmente
cursos de puericultura pela Cruzada Pró Infância (SOARES, 2017).
5. Como parte da reforma sanitária empreendida por Paula Souza, foram criados três centros
de saúde: o Modelo, anexo ao Instituto de Higiene, e os distritais, instalados nos bairros do
Brás e do Bom Retiro. Em contraponto às instituições tradicionalmente responsáveis pelo
tratamento das doenças, como o hospital, o ambulatório e a policlínica, os centros de saúde
foram concebidos, de acordo com Rocha (2003, p. 145), como “instituições de irradiação
de influência sanitária”, devendo abranger todo o distrito onde se achavam localizados e
atender à população pobre de seu entorno. O Centro de Saúde Modelo foi pensado para
atender à população dos bairros de Santa Ifigênia, Luz e Santana; o do Brás, à Penha, Mooca
e Belenzinho; e o do Bom Retiro, à Barra Funda e Campos Elíseos.
6. Nos primeiros anos, quando a Escola de Mãezinhas ocorria apenas no Centro de Saúde
Modelo, Maria Antonietta de Castro era responsável pelas aulas de higiene infantil, sendo
as demonstrações de dietética de responsabilidade da educadora sanitária Anna Sampaio
Alvim. A partir de 1929, quando o curso foi expandido para os centros de saúde distritais
do Brás e do Bom Retiro, as educadoras sanitárias ficaram encarregadas das aulas e das
demonstrações, sob a direção de Maria Antonietta de Castro (INSPECTORIA..., 1928, p. 5).

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alunas dos grupos escolares João Kopke, Marechal Deodoro, Conselheiro
Antônio Prado, Pereira Barreto e Amadeu Amaral, “correspondendo, ao
todo, a 10 cursos, sendo ministradas 123 aulas, com a matrícula de 2.668
alunas e distribuídos 4.110 impressos educativos” (CASTRO, 1946, s. p.).
Após a extinção da Escola de Mãezinhas, em 1930, Maria Antonietta
de Castro permaneceu defendendo a inclusão do ensino de puericultura
nas escolas primárias, o que seria instituído em 1933, quando Fernando de
Azevedo assumiu a Diretoria Geral da Instrução Pública, criando o Serviço
de Higiene e Educação Sanitária Escolar. No âmbito desse serviço, Maria
Antonietta de Castro foi chamada a assumir o cargo de chefe, respondendo
por “um corpo técnico de 30 Educadoras Sanitárias”. Distintamente da
Escola de Mãezinhas, esses cursos passaram a ser realizados nos próprios
estabelecimentos escolares (CASTRO, 1946, s. p.).7
Os motivos que justificaram a criação da Escola de Mãezinhas para
o ensino de puericultura às alunas das escolas primárias, nos centros de
saúde e não nas próprias escolas, não parecem estar ligados apenas ao fato
de que a iniciativa nascera vinculada aos órgãos de saúde pública. É possível
supor que alguns questionamentos cercassem as reflexões sobre o ensino
das temáticas abordadas nesse curso para meninas ainda tão jovens. Em
relatório encaminhado à Inspetoria de Educação Sanitária e Centros de
Saúde, Castro, à época, ainda na condição de aluna do curso de educação
sanitária, mas com formação como normalista e larga experiência como
professora, indicava que não houvera constrangimentos por parte das alunas
que frequentaram o curso, defendendo a importância de que tal conteúdo
fizesse parte do currículo escolar:
Demonstrações como tais, deveriam ser instituídas em todas as escolas,
colégios, etc, e em que pese a espíritos rotineiros que julgam que tal
ensino poderia melindrar susceptibilidades, jamais notamos no decurso
delas, a menor manifestação da qual seja possível depreender qualquer
mal-entendido, achando-as perfeitamente exequíveis em nosso meio.
(CASTRO, 192[6], s. p.)

7. Sobre as práticas de ensino de puericultura nas escolas em 1933, ver Rocha (2016).

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A que “espíritos rotineiros” se referia a educadora? Que disputas a
referência a tais “espíritos” indiciava? A alusão à possibilidade de “melindrar
susceptibilidades” e a possíveis mal-entendidos oferece indicativos do cenário
de tensões e disputas que acompanhou a iniciativa. Análises retrospectivas
também podem trazer algumas pistas sobre os possíveis rumores que cercaram
o projeto, como se pode observar no discurso proferido no encerramento
dos cursos de puericultura oferecidos nos grupos escolares, em 1933, no
qual a educadora sanitária se referia a “obstáculos oriundos da má vontade
e má compreensão de suas finalidades” (CASTRO, 1933, s. p.). No entanto,
é em um discurso de 1935 que essas questões ganham mais vulto, já que são
destacadas as dificuldades enfrentadas na implantação da Escola de Mãezinhas
e as estratégias utilizadas para atrair as alunas e obter a aprovação dos pais:
Precisamente, dez anos são decorridos, desde que, no extinto Centro
Modelo, da extinta Inspetoria de Educação Sanitária e Centros de Saúde
lançávamos, as Educadoras Sanitárias – as pregadoras de um novo Credo –
uma novidade temerária, em demasia, naquela época, mesmo para o
nosso meio: a “Escola das Mãezinhas” iniciativa, tanto mais ousada,
quanto se destinava a meninas, mais mocinhas que meninas, ainda
nos bancos escolares, e já a braços com os problemas da vida, como
auxiliares forçadas, das mães no cuidar dos irmãozinhos.

Num trabalho, persistente, de catequese, para aí, aliciávamos e


matriculávamos alunas dos 4os anos dos grupos escolares “Prudente
de Morais” e “Regente Feijó”, após carta prévia, de consulta aos
pais, e consequente autorização escrita, indispensável, quiçá, para
empreendimento de tamanho vulto... [...] Daquele primeiro curso
popular de Puericultura, até, hoje, viemos batalhando pela difusão de
cursos congêneres [...]. (CASTRO, 1935, s. p.)

“Uma novidade temerária em demasia” para a época e o meio, uma


“ousadia”, um “empreendimento de tamanho vulto” são algumas expressões
que oferecem indícios dos conflitos e disputas em torno das iniciativas voltadas
para o ensino da puericultura para as alunas das escolas primárias paulistas.
Em que consistiriam o temor e a ousadia nomeados pela educadora? Teria

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tal ousadia – de ensinar determinados conhecimentos que, no limite, se
relacionavam aos mistérios da maternidade e da reprodução a “meninas,
mais mocinhas que meninas” – alguma relação com a criação da Escola
de Mãezinhas, distante dos bancos escolares, ainda que destinada a alunas
das escolas primárias? Estaria aí o centro das disputas com os tais “espíritos
rotineiros”?

Quando ensinar conhecimentos que “nenhuma mulher, acima


de 12 anos, tem o direito de ignorar”?
Apesar das possíveis críticas à criação da Escola de Mãezinhas de que
as fontes dão algumas pistas, não é demais lembrar que a iniciativa se insere
em um contexto em que o ensino de puericultura nas escolas era defendido
por médicos e educadores em congressos nacionais e internacionais,
encontrando lugar na imprensa e em manuais escolares destinados à formação
de professores.
Nessa direção, cabe assinalar que esse foi um dos temas debatidos nas
edições do Congresso Americano da Criança, realizadas entre 1916 e 1922. Em
suas análises sobre esse evento, Cordeiro (2015) observa a proeminência do
discurso médico sobre a importância da puericultura e de sua inserção nos
programas escolares em todos os níveis, com base na crença de que a escola
poderia auxiliar, de maneira decisiva, na obra sanitária, tanto pela atuação
sobre as crianças, com vistas a preservá-las, quanto pela possibilidade de
atingir, por meio delas, suas famílias e comunidades. A autora destaca que
o ensino de puericultura, desde o ensino primário, se justificava, segundo
seus defensores, pelos efeitos profundos e duradouros que os ensinamentos
poderiam ter sobre cérebros ainda virgens e impressionáveis, como também
em função da constatação de que a maior parte das crianças das classes
trabalhadoras encerravam seus estudos no curso primário. Atuar nesse nível
de ensino se constituía, desse modo, em uma oportunidade privilegiada
para fazer chegar aos futuros artesãos, lavradores, operários, trabalhadores
braçais e futuras mães e donas de casa os rudimentos de higiene, profilaxia
e cuidados com os bebês.

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Se a tese da importância da inserção da puericultura no currículo escolar
parecia encontrar adesão dos participantes desses fóruns de discussão, não
era consensual o momento em que esse ensino deveria ser realizado, o
que possivelmente tem a ver com a natureza das temáticas abordadas. Um
exemplo disso pode ser encontrado na posição assumida por Clemente
Ferreira, diretor da Seção de Proteção à Infância do Serviço Sanitário de São
Paulo entre 1905 e 1925, no Congresso Americano da Criança, realizado em
Buenos Aires em 1916. Em sua intervenção no debate, o médico defendia o
ensino de puericultura nas escolas secundárias, lamentando que esse fosse
“um assunto, por completo, descurado no curriculum dos estudos das escolas
normais, liceus femininos, onde se instruem as progenitoras de amanhã”
(FERREIRA, 1916 apud CASTRO, 1946, s. p.).
Já no Congresso Internacional de Proteção à Infância, que teve lugar
em Bruxelas, em 1913, o médico Alfredo Ferreira de Magalhães, diretor
da filial do IPAI em Salvador, defendia o ensino dessas noções para as
meninas que frequentavam o jardim de infância, propondo que: “enquanto
os meninos se entretivessem com os jogos de construção, a boneca poderia
ser um brinquedo instrutivo, transformando-se em uma amável escola de
mamãezinhas” (KUHLMANN, 2000, p. 13).
Em manuais escolares destinados às professoras em formação, como o
Compêndio de Higiene, publicado em 1925 pelo médico e professor de Higiene
da Escola Normal do Rio de Janeiro, José Paranhos Fontenelle, a puericultura
era pensada como parte da formação das normalistas, encontrando-se, em
suas reflexões, alusão à Escola de Mãezinhas como forma de assegurar o
ensino prático das noções indispensáveis ao cuidado com os pequenos.
Segundo assinala Freire (2006, p. 164):
Dentre as atividades que envolveriam as futuras mestras no programa
escolar, estava prevista a organização das Escolas de Mãezinhas, voltadas
para o ensino prático das principais noções de puericultura às meninas
de 10 anos em diante. Sob a direção da enfermeira escolar ou da
enfermeira de saúde pública, e com a colaboração das professoras, as
alunas aprenderiam a banhar, vestir, alimentar e cuidar das crianças,
preparando-se para seu futuro papel de mães.

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O ensino de puericultura foi também tematizado no inquérito sobre a
instrução paulista realizado pelo jornal O Estado de São Paulo, em 1914. Em
sua resposta, o professor José Escobar se manifestava favorável à introdução
desse conteúdo nas escolas primárias. Coerente com essa posição, Escobar
endereçou carta ao secretário do Interior, em 1916, solicitando que fosse
implantado o ensino de puericultura nos grupos escolares, como parte das
aulas de higiene (CASTRO, 1946, s. p.). De acordo com o professor, “o amor
de mãe não confere um diploma de capacidade”. Assim, era mister que as
mães fossem educadas, já que, segundo argumentava: “o uso dos banhos,
a esterilização do leite, o emprego da balança, a noção de assepsia, etc.
constituem uma bagagem de conhecimentos elementares que, nenhuma
mulher, acima de 12 anos, tem o direito de ignorar” (ESCOBAR, 1916 apud
CASTRO, 1946, s. p.).
Para além dos argumentos que, como se observou, circulavam em fóruns
realizados no período, como o Congresso Americano da Criança, as posições
desse professor em defesa do ensino de puericultura no 4º ano das escolas
primárias introduziam um outro elemento na discussão: a plasticidade do
cérebro infantil. Argumento esse que se somava ao fato de que era a essa
instituição que acorria a maior parte da população, especialmente as crianças
pertencentes às parcelas mais empobrecidas:
Daí, a imprescindível obrigação de instruir as jovens, não tardiamente,
no momento em que vão ser mães, mas quando, ainda meninas, os
cérebros como em cera, são capazes de receber impressões indeléveis.
É no 4º ano das escolas primárias, que se deve ministrar o ensino da
higiene-cultura, a salvaguarda mais eficaz, da primeira infância. Aí, é
que passa o grosso da população, máxime, a dos pobres; e nas Normais,
poucas seriam as beneficiadas. Acresce, ainda, o fato de se tornarem
auxiliares, preciosas, para suas famílias, na criação dos irmãozinhos,
sobre o aproveitarem, elas mesmas, quando, mais tarde, forem mães.
(ESCOBAR, 1916 apud CASTRO, 1946, s. p.)

Nos discursos da educadora sanitária Maria Antonietta de Castro,


é visível a intenção de construir uma representação do pioneirismo das
educadoras sanitárias nessa matéria, como se pode observar em suas

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afirmações de que teriam sido “os primeiros agentes educativos capazes
de pôr em prática a puericultura nas escolas” (CASTRO, 1946, s. p.) ou,
ainda, de que as aulas da Escola de Mãezinhas foram “os primeiros cursos
regulares de puericultura realizados em S. Paulo” (CASTRO, 1933, s. p.). Cabe
notar, entretanto, que, mesmo antes da criação da Escola de Mãezinhas,
como parte da implementação da reforma sanitária de 1925, o ensino de
puericultura figurava no programa das escolas paulistas, como um conjunto
de conhecimentos que deveriam ser ensinados às meninas, variando a faixa
etária a que se destinavam. Nessa direção, o decreto 2.944/1918 previa que
tais conhecimentos fossem ministrados na seção feminina do 4º ano das
escolas primárias, como parte do programa da matéria Educação Doméstica
e Puericultura, que incluía:
a) Necessidade da ordem, da previdência e da economia.
b) Receita e despesa da família.
Acresce para a secção feminina:
c) Escolha de uma boa ama.
d) Cuidados com os vestuários e banhos dos recém-nascidos.
e) Regras para o aleitamento natural.
f) A sede nas crianças, regime alimentício das mesmas.
g) O sal na alimentação.
h) Escala a observar na alimentação.
i) Meios para saber se a alimentação é util.
j) Peso das crianças.
k) Dentição normal.
l) Exercícios e passeios. Repouso.
m) Moléstias da primeira idade. (SÃO PAULO, 1918)

O programa, como se pode observar, reunia às responsabilidades com


a administração da vida doméstica o cuidado com os pequenos, recobrindo
itens relacionados à alimentação, asseio, escolha da ama, exercícios e repouso,
além das enfermidades que acometiam as crianças pequenas. Ocupando
lugar de destaque estava a questão da alimentação, o que não deve parecer
estranho quando se considera que, entre as causas que respondiam pelos

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elevados índices de mortalidade infantil, destacavam-se, no período, as
doenças do trato intestinal.
Em 1920, a lei n. 1.750, que regulamentou a reforma da instrução
pública promovida por Sampaio Dória, reorganizou o currículo das escolas
profissionais, inserindo as aulas de “puericultura, prática de engomagem e
economia doméstica” no programa da sessão feminina. Essa orientação,
que tornava a puericultura parte da formação nas escolas profissionais,
foi mantida pela reforma instituída em 1925 por Pedro Voss, por meio do
decreto 3.858, que estendeu o ensino da puericultura para as escolas normais,
estabelecendo a sua exclusão do currículo das escolas primárias.
Ainda segundo afirmava a educadora sanitária, embora a puericultura
figurasse no programa do 4º ano das escolas primárias desde 1918, como
um conteúdo destinado especificamente à formação das meninas, a
prescrição legal não teria sido cumprida. Assim, afirmava ela: “continuou,
a puericultura, a ser letra morta nos programas, até que, uma reforma do
ensino, em 1925, ampliava o ensino da puericultura nas escolas normais,
suprimindo-o, porém, nas escolas primárias” (CASTRO, 1946, s. p.). Segundo
suas análises, dois motivos teriam justificado esse descompasso: o despreparo
das professoras para ministrar a disciplina e a “campanha de altos funcionários
administrativos”, que taxavam tal ensino de “imoral”. Há de se perguntar a
que “altos funcionários” se referia a educadora sanitária. Seriam os mesmos
“espíritos rotineiros”, escandalizados com a “novidade temerária”, a que ela se
referira em momentos anteriores? Em que teria consistido a “campanha” que
moveram contra o ensino desses conteúdos? Reaparecem nessas reflexões,
que explicitam o caráter de “imoralidade” atribuído à puericultura, indícios
das disputas que cercaram a sua configuração como uma disciplina escolar
destinada à formação das futuras mães, bem como os questionamentos em
relação ao momento em que ela deveria ser ensinada.
No mesmo ano em que o ensino de puericultura foi suprimido do
currículo das escolas primárias, foi criado, como já se indicou, o curso de
educadoras sanitárias, oferecido pelo Instituto de Hygiene; iniciativa para a
qual Pedro Voss contribuiu decisivamente, atuando, por exemplo, na escolha
de professoras que se dedicariam a essa formação. Um dos professores desse

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curso, o médico-educador Antonio de Almeida Junior, professor de Biologia
e Higiene na Escola Normal do Braz, a quem Maria Antonietta de Castro
atribuía a inspiração para a organização da Escola de Mãezinhas, defendia
que o ensino de puericultura fosse realizado nas escolas primárias, tendo
sido, segundo os apontamentos da educadora sanitária, o responsável pelas
primeiras experiências nessa direção, realizadas nas turmas de 4o ano da
Escola Modelo Caetano de Campos, relatadas no trabalho “O ensino de
puericultura nas escolas”, apresentado à Sociedade de Medicina e Cirurgia
de São Paulo e publicado na Revista da Sociedade de Educação em 1925
(CASTRO, 1946, s. p.).
Nas representações produzidas no âmbito desses discursos e iniciativas,
as meninas que frequentavam as escolas primárias eram concebidas como
futuras mães, sendo necessário educá-las para a maternidade, para que
soubessem criar os seus filhos segundo os ditames da maternidade científica,
incutindo-lhes hábitos saudáveis. Nesse sentido, eram recorrentes as
afirmações que atribuíam às mulheres a responsabilidade pela inculcação
desses hábitos desde a mais tenra idade: “É claro que os bons hábitos devem
ser formados o quanto mais cedo possível, desde o berço. A criancinha,
desde os primeiros anos de vida já deve ir sendo habituada ao asseio, á
alimentação a horas certas, etc.” (CASTRO, 1927, p. 3). Embora a idade
em que esse ensino deveria ser iniciado fosse objeto de discordâncias, não
pairavam dúvidas de que a escola se constituía em um campo fértil para
esse projeto que elegia como foco as meninas – futuras mães: “Torna-se
necessário, portanto, procurá-las, e é fácil encontrar nas escolas nas alunas
das classes mais adiantadas, as futuras mães, que muitas já o são de seus
irmãozinhos, pois que ajudam a criá-los, enquanto as mães se entregam às
suas tarefas caseiras” (CASTRO, 192[6] , s. p.).

“As leis do exercício e do efeito”: os conhecimentos e as práticas


de puericultura
O encerramento dos cursos organizados nos centros de saúde sob a
denominação Escola de Mãezinhas era marcado por festas, que contavam
com a presença de autoridades do Serviço Sanitário. Amplamente divulgadas

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pela imprensa, as festas constituíam-se em ocasião privilegiada para dar a ver
as políticas de higiene infantil implementadas pela Inspetoria de Educação
Sanitária e Centros de Saúde. A programação festiva incluía a premiação
das melhores alunas que concluíam o curso (UMA GRANDE..., 1930, p. 2;
NA ESCOLA..., 1929, p. 2; ESCOLAS..., 1929, s. p.). A cobertura jornalística
reservava lugar para a publicação das melhores provas finais, as quais se
constituem em fonte privilegiada para uma aproximação dos conhecimentos
ministrados às meninas, com o intento de orientá-las nas lides com as crianças
pequenas – fossem elas os próprios irmãos ou, no futuro, os filhos –, de
modo a assegurar que elas crescessem fortes e saudáveis.
O programa da Escola de Mãezinhas, elaborado em 1926 pelas educadoras
sanitárias em formação, abordava um conjunto de temas bastante próximo
daquele que figurava na legislação que previa o ensino de puericultura
nas escolas primárias. Incluía aspectos ligados aos cuidados em relação
à saúde da mãe e do recém-nascido, com vistas a prevenir as doenças e
assegurar o desenvolvimento da criança; à alimentação, com ênfase na
amamentação, desmame e alimentação artificial; temáticas cuja inclusão no
rol de conhecimentos a serem ensinados às mulheres não parece fortuito,
quando se considera a recorrente associação entre os altos índices de
mortalidade infantil e a suposta ignorância das mães, nos discursos em
circulação no período (COLANGELO, 2012; FREIRE, 2014; 2006; RIBEIRO,
1993; ROMAN, 2013). Entre os assuntos que compunham o programa, a
Escola de Mãezinhas contemplava também questões relacionadas à higiene
corporal – asseio, banho, sono, pesagem, vestuário, posição do corpo – e do
ambiente, incluindo orientações em relação à limpeza da casa e ao arejamento,
ocupando importante espaço, no conjunto das recomendações, o tema do
ar livre como meio de prevenção das doenças.
O programa incluía, ainda, informações sobre as moléstias mais comuns
na primeira infância, associadas aos cuidados com vistas à prevenção e ao
tratamento, entre os quais figuravam a pesagem, a medição da temperatura e
a verificação do pulso da criança, os banhos antitérmicos e medicamentosos,
entre outros. Cuidados que não substituíam a necessidade de ouvir
as orientações médicas e, ao mesmo tempo, de evitar os conselhos das

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“comadres” e “curandeiras”. Pautado no objetivo de ensinar às alunas os
hábitos saudáveis que deveriam assumir na condução da vida doméstica
e na criação dos pequenos, o programa do curso conferia espaço também
para o estudo dos hábitos que deveriam ser evitados, entre eles, o de beijar as
crianças, contar-lhes lendas e ensinar-lhes superstições, o recurso à bruxaria
para combater doenças e “quebrantos”, o desmazelo. Como se pode observar,
as temáticas abordadas no curso evidenciam um conjunto de representações
sobre as mulheres e suas práticas cotidianas, articuladas a representações
sobre as crianças e as formas de cuidar delas, em contraponto com as práticas
científicas em que seriam iniciadas na frequência aos cursos de puericultura.
Desenvolvidos nos centros de saúde, esses cursos aproveitavam-se
das suas dependências, como o serviço de higiene infantil e o lactário,
para as demonstrações. Essencialmente práticas, as aulas eram realizadas
“através da observação direta de determinada criança” (CASTRO, 1946, s. p.),
recorrendo-se também à utilização de bonecas para algumas dessas aulas.
Segundo afirmava Maria Antonietta de Castro, o ensino de puericultura
estava relacionado à aquisição de bons hábitos e, da mesma forma que o
ensino de higiene, deveria se dar de modo prático. Em um texto intitulado
“A educação sanitária e a educadora sanitária”, possivelmente produzido
ainda no período em que estava em formação no curso de educadoras
sanitárias,8 ela justifica o caráter prático de que deveria se revestir o ensino
de puericultura em função das “leis do exercício e do efeito”. Segundo a
educadora sanitária:
Pela lei do exercício sabe-se que um ato só se torna habitual pela sua
frequente repetição. A princípio é enfadonha para a criança porque
interrompe seus brinquedos. Torná-la atrativa, ligando o prazer ao ato,
segundo a lei de efeito, é a tarefa principal, um dos principais fatores do
ensino concreto e do resultado ativo na formação dos hábitos sadios.
(CASTRO, 192[6], s. p.)

8. O documento faz parte do álbum intitulado Hábitos Sadios, que contém textos produzidos
por Maria Antonietta de Castro no período da sua formação como educadora sanitária, o
que permite inferir a data aproximada da sua produção.

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Como observa Rocha (2016), o lugar ocupado pela prática na discussão
sobre os métodos de ensino não era uma novidade, tampouco se restringia à
discussão sobre o ensino de puericultura. Exemplo disso pode ser observado,
já no início do século XX, quando o Regimento interno dos grupos escolares
e das escholas-modelo previa que as lições fossem “mais práticas e concretas
do que teóricas e abstratas” (Art. 6º, 1904 apud ROCHA, 2016, p. 104). Em
um período mais próximo da implementação dos cursos de puericultura
nos centros de saúde, o decreto 4.101, de 14 de setembro de 1926, prescrevia
que o ensino deveria se dar “mediante a observação e a experimentação,
feitas pelos alunos e orientadas pelos professores” (Art. 109, 1926 apud
ROCHA, 2016, p. 104).
As provas realizadas pelas alunas desses cursos – e, mais especificamente,
das melhores alunas – que ocuparam as páginas dos jornais paulistas nos anos
de 1929 e 1930 podem oferecer indícios do programa da Escola de Mãezinha
e das práticas que tinham lugar nesse processo de formação das alunas do
ensino primário, nos centros de saúde da Capital de São Paulo, bem como
das formas como essas meninas se apropriaram dos conhecimentos que
lhes foram ensinados (JULIA, 2001). A realização de exames finais deixa
claro os parentescos da iniciativa com as práticas escolares. Não por acaso
denominada “escola de mãezinhas”, a iniciativa de oferecimento dos cursos
de puericultura fora formulada por professoras primárias, com experiência
no magistério público, no momento da sua inserção em um campo em
constituição – a educação sanitária –, nascido no âmbito de uma reforma
sanitária que colocava a educação no centro das práticas de saúde, ao mesmo
tempo em que lançava mão dos quadros do magistério para difundir os
preceitos higiênicos.
Distintamente das práticas escolares, os exames finais não assumiam,
nesses cursos, o poder de reprovação. Nessa direção, vale a pena lembrar
as reflexões de Chervel (1990), ao chamar atenção para o lugar ocupado
pelas provas na arquitetura das disciplinas escolares, tanto por seus vínculos
com a especialização de certos exercícios na função do controle, como pelo
peso do exame final sobre a atenção e o interesse do mestre e dos alunos.
Utilizados para a aferição do conhecimento adquirido durante o curso, os

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exames finais podem ter contribuído para manter o interesse das meninas,
oferecendo também subsídios para a avaliação da eficiência da iniciativa por
parte das educadoras sanitárias. No entanto, mais que isso, as práticas de
exame e de classificação das alunas segundo os seus resultados, associadas à
publicação das melhores provas na imprensa, podem oferecer importantes
pistas quando se procura compreender as formas como se procurou conferir
legitimidade e dar visibilidade a essa iniciativa implantada nos centros de
saúde, com base na forma escolar de socialização das mulheres, representadas
sob o signo da função materna.

“Precisamos cuidar bem das criancinhas para que o Brasil


tenha filhos fortes”
Com esta frase, uma das alunas que frequentaram a Escola de Mãezinhas
encerra o seu exame final, em 1930. A iniciativa dos jornais Correio Paulistano
e Folha da Manhã respondeu pela publicação daquelas que foram escolhidas
como as melhores provas finais dos cursos de puericultura ministrados no
Centro de Saúde do Bom Retiro, nos anos de 1929 e 1930. Em 1929, os leitores
dos matutinos puderam conhecer as respostas dadas por Angelina Granuzzo,
aluna do 4º ano do grupo escolar João Kopke às questões formuladas ao final
das atividades da Escola de Mãezinhas. Em 1930, foi a vez de os leitores terem
acesso às respostas de Francisca Barros, aluna do grupo escolar João Kopke,
e de Brigida Calheiros, 12 anos, aluna do grupo escolar Marechal Deodoro.
As provas contavam com quatro questões dissertativas, versando sobre
os cuidados com o recém-nascido, o banho, o uso da chupeta e os benefícios
do ar puro para a saúde do bebê. Presente nas provas aplicadas nesses dois
anos, a alimentação assumiu um peso bastante significativo em 1929, que
parece ter sido atenuado na prova aplicada no ano seguinte. Em 1929, as
alunas foram convocadas a discorrer sobre as seguintes questões:
1) Quais os primeiros cuidados que a mamãe deve ter com o
recém-nascido?

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2) Por que a criancinha deve mamar só ao seio materno até completar
seis meses de idade? A mamãe deve observar horário na alimentação
do bebê? Qual deve ser o horário da amamentação materna?
3) Qual a marcha a ser seguida na alimentação do bebê, desde o primeiro
dia até completar um ano de idade?
4) Quais os cuidados que a mamãe deve ter para que o banho não faça
mal ao bebezinho? (ESCOLAS..., 1929, s. p.)

Já em 1930, a prova assumiu um teor distinto da aplicada no ano anterior,


apresentando algumas perguntas que poderiam facilmente ser respondidas
de forma sintética, o que parece indicar que, menos que verificar a aquisição
dos conhecimentos ensinados, eram a divulgação da Escola de Mãezinhas
e a busca de legitimação das ações da inspetoria que comandavam essa
prática. Assim, nesse ano, as alunas eram, prioritariamente, chamadas a
confirmar a importância de algumas das lições ensinadas, como evidenciam
as perguntas 3 e 4, cuja resposta afirmativa dispensava, de certo modo,
atenção aos conhecimentos ensinados nas aulas do curso:
1) Qual é o 1º cuidado que devemos ter com os recém-nascidos?
2) Qual deve ser a alimentação do bebê desde o dia que nasce até
completar um ano?
3) A mãezinha deve habituar o bebê a chupar a chupeta?
4) O ar é necessário à saúde do bebê? (UMA GRANDE..., 1930, p. 2)

As respostas das três alunas que tiveram suas provas classificadas como
as melhores, nos anos de 1929 e 1930, em relação ao primeiro cuidado a adotar
com os recém-nascidos, indicam a importância da frequência aos centros
de saúde, neste caso, associada à obtenção de medicação a ser aplicada nos
olhos do bebê com o objetivo de evitar doenças. Francisca Barros e Brigida
Calheiros apresentaram respostas muito semelhantes, indicando como deveria
proceder a mãe, sabedora da sua responsabilidade em relação à saúde e ao
desenvolvimento dos filhos. Francisca Barros descreveu os procedimentos
a adotar na utilização do nitrato de prata fornecido pelo centro de saúde:

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Esse remédio vem dentro de uma latinha em duas bisnaguinhas. A
pessoa que vai lidar com o bebê deve pô-lo de costas e lavar um olhinho
com um algodão molhado na boricada; abre um olhinho e pinga duas
gotas do remédio. Faz este mesmo tratamento com o outro olhinho;
mas este deve ser lavado com outro algodão. Para furar a bisnaguinha
é preciso desinfectar o alfinete numa chama. Este remédio é para evitar
a cegueira. No Centro de Saúde distribuem-se se gratuitamente. (UMA
GRANDE..., 1930, p. 2)

Chama atenção na resposta dada pela aluna a descrição minuciosa da


prática de higienização e tratamento dos olhos do recém-nascido, além do
evidente tom de propaganda das iniciativas no campo da saúde pública, que
respondiam pela distribuição gratuita do composto químico nos centros de
saúde. Para além disso, cabe atentar para o uso dos diminutivos com que a
menina, futura mãe, se refere às partes do corpo do bebê e ao tratamento a ser
ministrado. Não é demais lembrar as associações correntes no período entre os
males dos olhos dos recém-nascidos e o “quebranto”, tratado pelas mulheres,
em geral, por meio de práticas que incluíam as rezas e os benzimentos.
A resposta dada por Angelina Granuzzo, em 1929, de caráter mais
abrangente, listava seis cuidados que deveriam ser adotados pelas mães,
abordando não apenas as vacinas e formulações necessárias para prevenir
as doenças que acometiam os olhos e outras doenças, como o tétano e a
tuberculose, mas também os procedimentos a observar em relação ao banho,
ao vestuário e à alimentação.
1º - Evitar a cegueira: Antes do bebê nascer a mãezinha deve pedir ao
“Centro de Saúde” um remédio chamado “Nitrato de Prata”. Esse remédio
vem em duas bisnaguinhas dentro de uma caixinha. A mãezinha deve
queimar a ponta de um alfinete na chama de uma espiriteira e com ele
furar a bisnaga e despejar o conteúdo de uma bisnaguinha numa vista
e de outra, na outra vista.
Antes de fazer este tratamento a mãezinha deverá lavar os olhos do bebê
diariamente com água boricada, utilizando-se de algodão bem limpo.

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2º - O banho: A água deve ser fervida com a temperatura de 37 graus e
depois 33 graus. A mãezinha deverá desinfectar a bacia em que o bebê
for tomar o banho; este deve ser diário para evitar assaduras e feridas
ocasionadas pelos sais e gorduras expedidas [sic!] pelo suor.
3º cuidado - Evitar o tétano: Deverá deitar no umbigo um pó chamado
“Lycopodio”, colocar gaze e algodão esterilizados pegando-os não com
a mão, mas com uma pinça também esterilizadas. É por isso que a água
deve ser fervida e a bacia esterilizada.
4º cuidado - Vestuário do bebê: A mãezinha deverá deixar sob uma
cadeira o vestuário do bebê nesta ordem: Cobertorzinho, sapatos, touca,
manta cinteiro, cueiro, fralda, paletozinho e camisinha.
A mãezinha deve ter o cuidado da roupinha ser asseada, e não roupas
duras e sim roupinhas bem macias sem pregas, sem enfeites, quentes
no inverno, frescas no verão.
5º cuidado - Alimentação: No primeiro dia o bebê deve ter absoluto
repouso, não deve dar chás purgantes e chupeta, só de vez em quando
1 a 2 colherinhas de água filtrada ou fervida. A mãezinha não deve
habituar o bebê ao uso da chupeta, não só é prejudicial à saúde, como
também toma um mau costume.
A criança só deve ter hábitos sadios e nunca adquirir maus hábitos.
Evitar a tuberculose: A mãezinha pode evitar a tuberculose do bebê
mesmo que ele esteja em contacto com pessoas desta moléstia, dando-
lhe nos seus primeiros dez dias de vida uma colherinha (de café) da
vacina B. C. G. É o médico do “Centro de Saúde” quem dá essa vacina.
Deverá ser um dia sim outro não, até perfazer os dez dias. (ESCOLAS...,
1929, s. p.)

O tom prescritivo dos cuidados a serem observados, evidente no uso do


imperativo e no emprego recorrente do verbo “dever”, oferece alguns indícios
dos conhecimentos ensinados e das práticas vivenciadas pelas meninas na
formação recebida nos centros de saúde. O diminutivo, provavelmente
presente na linguagem de que se apropriaram em sua circulação nesses
espaços de formação, é empregado pela aluna para se referir também às

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mães, o que não era de se estranhar quando se observa a forma utilizada
para nomear o curso – escola de mãezinhas. Entre as práticas que se pode
depreender desse conjunto de prescrições a serem observadas pelas mães,
cabe observar a questão do vestuário do bebê, detalhadamente apresentado
em sua composição e na ordem em que seria disposto antes do banho:
“cobertorzinho, sapatos, touca, manta cinteiro, cueiro, fralda, paletozinho
e camisinha”. Os exercícios com as bonecas praticados durante o curso,
certamente, incluíam os cuidados com o vestuário. Mais que isso, entre as
práticas que compunham a formação das meninas, estava a confecção de
enxovais.
O tema da alimentação se traduziu, nas respostas dadas pelas alunas,
em prescrições relacionadas à amamentação,9 o que não parece estranho
quando se observa o teor de algumas perguntas formuladas sobre o tema.
Exemplar, quanto a isso, são as perguntas que compunham o segundo item
da prova de 1929, especialmente a primeira delas, enunciada como uma
prescrição em tom interrogativo: “2) Por que a criancinha deve mamar só
ao seio materno até completar seis meses de idade? A mamãe deve observar
horário na alimentação do bebê? Qual deve ser o horário da amamentação
materna?” (ESCOLAS..., 1929, s. p.).
Prevaleceu, no tratamento dessa temática, a orientação de amamentar as
crianças ao peito até os seis meses de idade; orientação que se fundamentava
na possibilidade de prevenção dos riscos de contrair enfermidades produzidas
por microrganismos. Assim, Angelina Granuzzo afirmava:
A criancinha deve mamar só no seio materno até 6 meses; 1º porque esse
leite evita muitas moléstias (porque não contém micróbios pois jorra
diretamente do peito da mamãe na boca do bebê); 2º O leite materno faz
com que o bebê cresça sadio, e se desenvolva muito melhor. 3º O leite
materno protege o bebê contra as moléstias infecciosas. (ESCOLAS...,
1929, s. p.)

9. Vista como questão de saúde pública, a amamentação se configurou como tema central
da agenda dos puericultores, no início do século XX, como assinalam, dentre outros autores,
Carula (2016); Freire (2016, 2008, 2006); Lima (2007); Sanglard (2016).

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Já Francisca Barros apresentava outras vantagens do leite materno,
indicando, inclusive, um cronograma de alimentação do bebê até os seis
meses. Segundo ela, “o primeiro leite da mãe serve de purgante. Depois do
4º dia, até 6 meses, o bebê deve ser alimentado com o leite do peito. Do
quarto dia até o sexto mês, o bebê deve tomar só leite de peito porque é uma
alimentação própria e não tem micróbios” (UMA GRANDE..., 1930, p. 2). As
razões invocadas por Brigida Calheiros para defender a amamentação do bebê
com leite materno sublinhavam um aspecto que ia além dos seus benefícios
para a saúde do bebê e para a prevenção dos riscos de contaminação. Pautada
em representações da maternidade que a associam ao amor que a mãe
naturalmente deve nutrir por seu rebento, a aluna argumentava que o ato
de mamar ao peito contribuiria para fortalecer esse vínculo:
No 1º dia (24 horas) deve dormir bastante, não deve mamar, só uma
ou duas colherinhas de água fervida ou filtrada. 2º e 3º deve mamar de
4 em 4 horas para aprender chupar e para o leite descer. Esse primeiro
leite da mãezinha já está preparado e vai fazer efeito ao bebê como
purgante. 3º e 4º dia deve mamar de 3 em 3 horas até 6 meses porque
o leite da mãezinha não contém micróbios e ao filho ou à filha cresce
o amor à mãe. O leite da mãezinha já sai tudo preparado. Ao passo,
dando-se leite de vaca, não sabemos se o tal leite contém micróbios. E
já isso é perigoso. (UMA GRANDE..., 1930, p. 2)

As respostas das alunas quanto à forma de alimentar a criança até


um ano de idade incluíram aspectos relacionados ao desmame, indicando
que ele deveria ocorrer gradualmente, e introduzindo a figura do médico
como autoridade que ofereceria orientação, além de indicar a sequência que
deveria ser obedecida pelas mulheres. Nessa direção, Angelina Granuzzo
apresenta um roteiro para a alimentação da criança após o sexto mês, com
a introdução dos mingaus, frutas, sopas e alimentos sólidos:
7º mês – 5 vezes o peito, 1 mingau de 3 em 3 horas.

8º mês – 4 vezes o peito e 2 mingaus em horas alternadas.

9º mês – 3 vezes o peito, 2 mingaus e uma sopinha de verduras.

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10º mês – 3 vezes peito, e mingaus e uma sopinha de verduras.

11º mês – 2 vezes peito, 2 mingaus e 2 sopinhas de verduras.

Um ano: – de um ano a criança comerá 5 vezes; de manhã um mingau


ou leite com torradas; à hora do almoço a mãezinha poderá dar um
pouco de arroz, batatas, um bifinho raspado; à hora do lanche um
mingau; ao jantar, arroz, aveia ou macarrão, batata, caldo de feijão e
sempre uma fruta fresca. E à noite um mingau. (ESCOLAS..., 1929, s. p.)

Além de apontar a marcha a ser seguida após o sexto mês e introduzir


uma referência ao uso da mamadeira para a ingestão do mingau, Francisca
Barros ressalta, em sua prova, o papel do médico, assinalando que, “depois
do sexto mês, a mãezinha deve ir ao médico para ele receitar um mingau,
porque o leite já é fraco para o bebê” (UMA GRANDE..., 1930, p. 2). Dando
provas do que aprendera no curso, apresenta um esquema minucioso para
a alimentação da criança até um ano, que inclui os horários em que as
refeições deveriam ser oferecidas, não se furtando de indicar um aspecto
não contemplado na questão: a alimentação após esse primeiro ano de vida:
No sétimo mês, 6 horas de peito, 9 horas mingauzinho de mamadeira,
12 peito, 15 horas peito, 18 horas peito, 21 horas peito. Já deve tomar
caldo de laranja ou limonada. 8º mês – 6 horas peito, 9 mamadeira, 12
peito, 15 horas peito, 18 – mamadeira, 21 peito. 9º mês – Já deve tomar
uma sopinha de legumes na hora do almoço. Já pode comer mamadeira
como sobremesa. 10 meses – Peito só 2 vezes, de manhã e à noite. 6
horas peito – 9 mamadeira, 12 sopinha de legumes, sobremesa, 15 horas,
frutas assadas ou cozidas, banana maçã, etc. 18, mamadeira; 21, peito.
11º mês – Peito só de manhã. Às 9 horas, mamadeira; 12, sopinha, bife
raspado. Daí por diante, o bebê deve habituar a comer as comidas da
mesa. (UMA GRANDE..., 1930, p. 2)

Aluna de outra escola, Brigida Calheiros frequentou o curso no mesmo


centro de saúde que Francisca Barros, o Centro de Saúde do Bom Retiro.
Assim como sua colega, também fazia alusão ao uso da mamadeira como
complementação do leite materno. Um argumento que perpassa as respostas

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é o da insuficiência desse leite, após os seis meses, algumas vezes expresso
pela expressão “leite fraco”. O papel do médico aqui também não deixa de
ser afirmado pela aluna:
(7º mês) A mãezinha deve levar o bebê ao médico para ver outra
alimentação porque só o leite da mãezinha não é suficiente. Então o
medico manda dar um mingau. O bebê mama 5 vezes e a mãe deve
dar 1 vez mingau. 8º mês – Duas vezes mamadeira, 4 vezes peito, 6
horas peito, 9 horas mamadeira, 12 horas peito, 15 horas peito, 18 horas
mamadeira, 21 horas peito. 9º mês – substituir a mamada das 12 horas
por uma sopinha de legumes. 6 horas peito, 9 horas mamadeira, 12 horas
sopinha, etc. 10º mês – leite da mãezinha só às 6 horas da manhã e 9
horas da noite. Às 15 horas frutas assadas ou cozidas, 12 horas sopinha.
Como sobremesa marmelada. Às 6 horas da tarde, mamadeira e às
9 horas da manhã também. 11º mês – Só às 6 horas peito, 9 horas
mingau, 12 horas sopinha, 15 horas frutas, 18 horas sopinha e 21 horas
mamadeira. 12º mês – nem uma vez peito, 6 horas mamadeira, 9 horas
mamadeira, sopinha ou caldo de feijão, bife raspado, 15 e meia horas
frutas, 18 e meia jantarzinho, brinca um pouco e vai dormir. (UMA
GRANDE..., 1930, p. 2)

As alunas que frequentaram os cursos de puericultura tiveram de


responder também a questões relacionadas aos cuidados higiênicos com o
bebê, como já se observou. Nessa direção, Angelina Granuzzo, que frequentou
a Escola de Mãezinhas em 1929, descrevia a prática do banho do bebê,
nuançando o passo a passo que deveria compor o ritual:
A mãezinha deve escolher o quarto que não tenha correnteza de ar;
reunir todos os objetos precisos para o banho; dar o banho o mais
depressa possível para que o bebê não se constipe; a água do banho deve
ter todos os dias a mesma temperatura. Depois que a mamãe fez todos
os preparativos precisos, vestirá o bebê ligeiramente tendo o cuidado
de segurar sempre a cabeça. (ESCOLAS..., 1929, s. p.)

A escolha do local, a disposição dos objetos, o tempo do banho, a


temperatura da água, o modo de segurar o bebê para vestir-lhe mostram-se,

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na resposta de Angelina Granuzzo, mais do que um conjunto de prescrições
memorizadas, dando indícios do regime de práticas instituídas nos centros
de saúde, de modo a assegurar que, no trato com as bonecas, as meninas
ensaiassem o que algumas já realizavam no cuidado dos irmãos. Agora,
porém, o faziam de forma orientada pelos conhecimentos científicos sobre
a criança pequena e supervisionada pelas educadoras sanitárias.
Quanto aos cuidados em relação ao sono do bebê, observava a mesma
aluna:
Deve colocá-lo na caminha que deverá ser só dele. O bebê não deverá
dormir com a mamãe, e a janela de seu quarto, deverá ficar fechada
somente a veneziana. A mamãe deve colocar as roupinhas sujas num
cantinho próprio. A caminha do bebê não deve balançar, o seu colchão
deve ser macio, e o travesseiro não muito alto. (ESCOLAS..., 1929, s. p.)

Brigida Calheiros também abordou os cuidados com o sono e com os


passeios, relacionando-os à importância do arejamento e do ar puro para
a saúde do pequeno:
O ar puro é necessário à saúde do bebê porque fortalece os pulmões
a saúde aumenta mais aumenta o peso, fica mais robusta e mais
coradinha. Geralmente o quarto do bebê é o quarto da mãezinha.
Isso não é prejudicial mas é preciso que seja arejado com venezianas,
etc. Durante o dia o bebê deve dormir em carrinho com véu em cima.
Deve levá-lo a passeio em lugares que haja bastante ar puro, como por
exemplo em jardins, praças, etc. Não se deve levar o bebê ao cinema,
igrejas, bailes, etc. (UMA GRANDE..., 1930, p. 2)

O detalhamento com que as alunas se referem ao quarto do bebê, aos


passeios e aos apetrechos de que o pequeno deveria estar cercado não deixa
de suscitar indagações sobre a possível distância entre os ensinamentos e as
práticas experimentadas na Escola de Mãezinhas e a realidade vivenciada
em seus próprios lares, possibilitando que se interrogue, uma vez mais, as
respostas dadas por essas meninas às questões que lhes eram colocadas nessas
práticas de exame. Do que falavam em suas respostas? Se nem sempre se
assemelham à repetição de enunciados memorizados, aproximando-se talvez

267 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


mais de práticas encenadas nos centros de saúde, há que se indagar sobre
a distância que os enunciados e práticas guardavam da sua vida cotidiana.
Veja-se, por exemplo, a resposta dada por Francisca Barros, que, como suas
colegas, afirmava que “o quarto de bebê deve ser bem arejado e não deve
dormir muita gente com ele” (UMA GRANDE..., 1930, p. 2).
As vantagens do ar puro, que não poderia ser assegurado em situações
de aglomeração de várias pessoas em um mesmo cômodo ou em ambientes
sem condições adequadas de arejamento, também figuram, nas provas
das alunas, no tratamento do tema dos passeios. Nessa direção, Francisca
Barros destacava que: “Depois do décimo dia, o bebê já pode ir passear,
mas antes não porque o bebê não acostumou com o clima. Isso no verão.
No inverno, só depois de 1 mês, porque o clima faz mal ao bebê e ele não
está aclimatado” (UMA GRANDE..., 1930, p. 2). Assim como no ambiente
doméstico, os passeios com o bebê deveriam ser cercados de cuidados com
vistas a evitar as aglomerações: “Os passeios do bebê devem ser nas praças,
porque há ar puro e faz bem ao bebê. A mãezinha não deve ir nas igrejas
e nem nos lugares de aglomeração onde o ar já esteja viciado, porque faz
mal à saúde do bebê” (UMA GRANDE..., 1930, p. 2). Na enumeração dos
cuidados a serem observados nos passeios ao ar livre, a aluna incluía os que
se relacionavam ao corpo do bebê, ao contato com crianças doentes e ao
vestuário e acessórios adequados:
O bebê, até 2 meses, deve ir no colo porque ele pode ir bem acomodado,
e no carrinho, ao contrário, dá muito soco e irrita o sistema nervoso.
Depois, ele já está mais durinho e pode ir no carrinho. [...]
A ama ou a mãe não devem chegar perto das crianças que tenham
coqueluche ou outras doenças. Quando o nenezinho estiver com 1 ano,
que já saiba andar, ele deve ir sem meias para apanhar o sol nos pés.
A roupa deve ser conforme o tempo. Frescas, no verão e quentes, no
inverno. O chapéu deve ser de palha ou cretone e de aba larga. (UMA
GRANDE..., 1930, p. 2)

À questão de número 3 formulada para as meninas em 1930 – “A


mãezinha deve habituar o bebê a chupar a chupeta?” – Francisca Barros

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e Brigida Calheiros responderam negativamente, como era de se esperar,
identificando o uso da chupeta como um hábito a ser evitado. Ambas
argumentavam que esse objeto poderia ser um vetor de contaminação por
micróbios. Segundo ponderava Brigida Calheiros,
a mãezinha não deve habituar o bebê a chupar a chupeta porque
pousa uma mosca ali, e como a mosca leva nas patas os micróbios já
é perigoso. Também pode ser que a chupeta caia no chão e no chão
há pó e micróbios, gruda-se tudo isso na chupeta, vem o irmãozinho,
torna a pegá-la e dá outra vez ao bebê. E isso não é asseio e é perigoso.
(UMA GRANDE..., 1930, p. 2)

Moscas, poeiras e micróbios cercavam o objeto perigoso de que as mães


lançavam mão para acalmar o choro do bebê, razão pela qual o seu uso se
incluía no rol dos hábitos a serem evitados. De acordo com Francisca Barros:
A mãezinha não deve habituar o bebê a chupar a chupeta porque faz
muito mal. A criança está chupando a chupeta e derruba. O irmãozinho
que não sabe o mal que faz; e dá a chupeta suja? e aí o nenê engole
micróbio. As moscas assentam nos escarros dos doentes e vão na
chupeta. Quando o bebê está gatinhando a chupeta arrasta no chão
e fica impregnada de micróbios de doenças, e depois põe na boca e
engole. E depois, à noite, se ele perde a chupeta, vai amolar a mamãe.
(UMA GRANDE..., 1930, p. 2)

A semelhança entre as situações narradas pelas alunas pode não ter


sido uma mera coincidência. Talvez tal semelhança possa ser lida como um
resultado da aquisição dos conhecimentos com os quais tiveram contato
no curso; é possível supor que as práticas vivenciadas durante o curso se
traduzissem em narrativas bastante próximas na hora de responder às questões
propostas nos exames. Quiçá as meninas tivessem memorizado a resposta ou,
quem sabe, ao narrar as situações que envolviam o perigoso objeto, tivessem
em mente situações com as quais conviviam cotidianamente, as quais, graças
aos ensinamentos assimilados passavam a ser lidas pelo viés dos riscos que
ofereciam para a saúde dos pequenos. A riqueza das situações narradas, que
colocam em cena o bebê no colo da mãe ou engatinhando, a mãe, a chupeta,

269 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


o irmão, contracenando com as moscas, a poeira e os invisíveis micróbios,
é sugestiva das práticas que se articularam na Escola de Mãezinhas e dos
resultados a que visaram as educadoras sanitárias com essa iniciativa.

Considerações finais
Neste texto, procurou-se examinar as noções de puericultura que se
visou ensinar às alunas das escolas primárias de São Paulo, nos anos 1920,
e as práticas por meio das quais se procurou assegurar a assimilação desses
conhecimentos. Para tanto, tomou-se como foco a atuação das educadoras
sanitárias chefiadas por Maria Antonietta de Castro, na Escola de Mãezinhas,
curso de formação das meninas do 4º ano dos grupos escolares ministrado
junto a três centros de saúde localizados na capital paulista: Modelo, Brás e
Bom Retiro. Inserida nas práticas de formação das educadoras sanitárias, em
seu nascedouro, essa iniciativa, que visava ensinar as futuras mães a cuidar
dos seus pequenos, seria assumida pela Inspetoria de Educação Sanitária e
Centros de Saúde, apesar dos protestos, disputas e censuras, por meio dos
quais se procurava insinuar os riscos envolvidos no ensino de determinadas
temáticas a meninas ainda muito novas.
A dimensão prática desse ensino, recorrentemente reafirmada nos
discursos produzidos em torno da iniciativa, encontra sua expressão nos
conteúdos que compunham o programa dos cursos e deixa indícios nos
exames finais realizados pelas alunas, dos quais procuramos nos aproximar
neste texto, que tomou como uma de suas fontes as melhores provas,
selecionadas pelas educadoras e publicadas na imprensa. Sem perder de vista
os limites das fontes, que, evidentemente, tinham o propósito de documentar
o sucesso da iniciativa, consistindo a sua publicação em uma forma de
premiação das melhores alunas e em uma vitrine dos resultados obtidos
pelos trabalhos realizados nos centros de saúde, instituição nova criada no
contexto da reforma sanitária de 1925, o exercício experimentado procurou
exercitar, de alguma forma, uma aproximação das formas de apropriação
daquilo que era ensinado às meninas nesses cursos, sem perder de vista as
representações de mulher e de maternidade produzidas e postas em circulação
nesses ambientes de formação.

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UMA GRANDE cruzada da Inspetoria de Educação Sanitária: o papel que
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Digital da Biblioteca Nacional.

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Os esportes, as juventudes e suas práticas em uma
imprensa alternativa (1969-1980)

Edivaldo Góis Junior

Introdução
Em 1963, a cidade do Rio de Janeiro recebia os jogos da fase final do
IV Campeonato Mundial de Basquetebol masculino. Mas, especificamente,
naquela noite de 23 de maio, no ginásio do Maracanãzinho, vizinho do
imponente e lendário estádio de futebol do Maracanã, havia um ambiente
demasiadamente hostil na recepção da equipe nacional de basquetebol da
União Soviética, que jogaria contra o Brasil. Uma sonora vaia direcionada
aos soviéticos desviava a atenção de todos os envolvidos. Parecia não ser
simplesmente uma disputa esportiva, pois os demais rivais dos brasileiros no
torneio mundial não foram recebidos com a mesma agressividade pela torcida
local (CORREIA; GÓIS JUNIOR; SOARES, 2021). O jornalista Mario Martins,
na crônica “Ameaça crescente”, publicada no Jornal do Brasil, condenava o
comportamento de parte dos brasileiros naquela praça esportiva:
Semelhante espetáculo não deve ser encarado como simples falta de
cortesia. Ele tem raízes mais profundas e mais condenáveis. Mostra a
todos nós que, nos subterrâneos da sociedade brasileira, se está armando
uma mentalidade de agressividade que não é própria dos brasileiros e que

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aos nossos sentimentos não corresponde. Hoje, a perturbar, uma partida
de basquetebol, amanhã perturbando a tranquilidade e a segurança de
toda a população. E, desde já, a todos nós envergonhando e deprimindo.
(MARTINS, 1963, p. 13)

O Brasil vencera o jogo contra a União Soviética, e, posteriormente, o


campeonato mundial disputado em seu território. Entretanto, esta história
vai além dos resultados esportivos, pois naqueles anos, entre as décadas de
1960 e 1980, o mundo vivia uma crescente preocupação com a polarização
política em âmbito internacional. A chamada Guerra Fria opunha os países
capitalistas e comunistas, e o Brasil sentia os seus reflexos em um período
marcado por uma Ditadura Civil-Militar (1964-1985).
Existe um interesse crescente na historiografia internacional sobre o
lugar da América Latina na Guerra Fria, em específico, no papel do Brasil
não como simples ator regional dependente dos Estados Unidos, mas
também com interesses e objetivos próprios, expandindo seu papel global
e intervindo direta ou indiretamente em países sul-americanos como Chile,
Bolívia, Uruguai (HARMER, 2012). Na compreensão do historiador argentino
Carassai (2015), vários estudos enfocaram a violência de regimes militares
ditatoriais latino-americanos na Guerra Fria, por meio dos seus protagonistas,
dos Estados nacionais, entretanto poucos estudos se debruçaram sobre a
dimensão simbólica da violência propagada nesses contextos, o que vem
recentemente abrindo uma nova linha de investigação.
Na historiografia brasileira, o pesquisador Rodrigo Motta destacou que
a Ditadura Civil-Militar é recentemente um assunto candente em relação aos
motivos que levaram à ruptura institucional nos anos anteriores ao Golpe de
1964 (MOTTA, 2014). Os estudos mais recentes têm evitado “representações
simplistas sobre a ditadura que exageram a polarização entre resistentes e
colaboradores, como se os dois polos resumissem as opções dos atores da
época” (MOTTA, 2014, p. 2). Nesse sentido, o historiador brasileiro argumenta
que um dos problemas de análises simplistas, que organizam os atores sociais
dicotomicamente, “é a tendência a colocar na sombra o apoio de segmentos
sociais expressivos ao regime ditatorial, que aderiram de modo espontâneo,
sem necessidade de coação” (MOTTA, 2014, p. 2).

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Desse modo, não seria suficiente na historiografia narrar as políticas
repressivas e as ações de resistência armada e popular, é importante também
para os historiadores compreender porque parte da sociedade civil apoiou
o autoritarismo, enquanto outra parte tentava colocar-se em uma postura
de pretensa de neutralidade, ou ainda como outros atores resistiram por
meio de práticas que confrontavam simbolicamente o conservadorismo de
maneira mais sutil, como por exemplo, por meio de sua produção cultural,
das artes, do humor e, em particular, das práticas esportivas.
Esta pesquisa teve como objetivo evidenciar, por intermédio da análise
de um corpo documental formado por fontes jornalísticas, como os esportes –
a despeito dos interesses governamentais, mas sim como práticas – eram
mobilizados e associados às juventudes. Em particular, serão observadas as
práticas de uma juventude urbana das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro,
em lento processo de reabertura política. A questão principal do estudo
limita-se à explicação da formalidade das práticas dos esportes mediante
diferentes posturas políticas em relação às juventudes e seus comportamentos.
Neste estudo, os esportes são compreendidos como práticas culturais
nas quais determinados grupos identificados pela representação de juventude
imprimiam suas respectivas identidades. De maneira análoga, seria como
observar o cinema ou o teatro, pois neles indivíduos e grupos dão sentido
e significado a expressões artísticas, mas também a determinadas práticas e
representações (individuais ou coletivas) que “não são reflexos verdadeiros ou
falsos da realidade” (CHARTIER, 2015, p. 7) e sim construções que evidenciam
as muitas divisões do mundo social (CHARTIER, 2015). Da mesma forma,
os esportes, os jogos e as ginásticas se constituem como práticas,1 que são
condizentes com diferentes identidades, como por exemplo, as políticas. São
numerosos os estudos que relacionam os esportes às políticas nacionalistas,
ao militarismo (HOLT, 1995), ao fascismo (SPURR, 2003) ao nazismo
(REICHEL, 1999) e também ao integralismo brasileiro (SIMÕES, 2009).
Enfim, vislumbram práticas esportivas relacionadas a um aspecto político
autoritário e conservador. Contudo, seria necessário também pensarmos

1. Neste artigo, sempre que nos referirmos ao termo “práticas” nos baseamos na acepção
dada por Certeau (2014), como procedimentos que se estabelecem por meio de muitas
formas de fazer entre estratégias e táticas.

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em outros grupos políticos, ou seja, com diversas identidades, que, em
diferentes tempos e espaços, buscavam as mesmas práticas de educação física
(GOIS JUNIOR; SOARES, 2018). Nesse caso, como seriam as formalidades
das práticas esportivas identificadas com a representação das juventudes?
Groppo (2000), ao estudar as juventudes modernas, ensina-nos que a
categoria social “juventude” vai além da determinação de uma faixa etária,
pautada em princípios biológicos e/ou fisiológicos. A juventude é construída
socialmente com base em uma representação ou criação simbólica identificada
com determinados grupos sociais para significar comportamentos e atitudes
atribuídos aos jovens.
Nesse sentido, compreender as representações oriundas desta categoria
social “juventude”, em tempos específicos, permite elucidar problemas
relacionados ao campo cultural, como por exemplo, observar as juventudes
e seus divertimentos, consumos e relações cotidianas. As sociedades
modernas podem, assim, ser explicadas para além das estruturas de classe,
das estratificações sociais, ou seja, sua análise e explicação se constroem
também com base na categorização da infância, velhice, vida adulta, e em
nossa pesquisa, especificamente, das juventudes (GROPPO, 2000).
Ao enfrentar este problema, entendemos que existem diversas formas de
viver a juventude; desse modo, seria mais prudente falarmos em juventudes
com determinadas particularidades. Esta concepção carrega as identidades de
grupos sociais concretos e heterogêneos formados por classes, estratos, etnias,
religiões, diferenças de gênero, mundos urbano e rural (GROPPO, 2000).
Dada esta diversidade, cada juventude pode, à sua maneira, reinterpretar
a experiência de ser jovem, diferenciando-se dos adultos, das crianças, dos
idosos, mas, sobretudo, de outras juventudes.
Essa categorização exige, portanto, uma delimitação mais precisa
para a análise, por isso, exploramos uma juventude urbana em relação aos
comportamentos esperados dos jovens naquele período.
Mesmo diante desta caracterização de uma juventude urbana, foi também
necessário compreender suas particularidades, as quais são evidenciadas
pela formação de grupos heterogêneos. Para Groppo (2000, p. 42), em uma
sociedade moderna, dada sua complexidade, “originam-se vários tipos de

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grupos e agências dirigidos à juventude”, sendo inexequível uma organização
unitária de um grupo etário por ela identificado. Porém, três tipos de grupos
juvenis ganharam evidência nas sociedades ocidentais: os grupos ligados ao
sistema escolar, às agências juvenis controladas por adultos e, por último,
os informais.
O estudo apresentado aqui tem sua delimitação restrita a este
último grupo, os informais, que para Groppo (2000) almejavam uma
identidade própria e autônoma, mas, paradoxalmente, buscavam também
o reconhecimento da sociedade de forma mais ampla. Eles gozavam de certa
autonomia, mas estavam ligados às agências modernas, que tinham como
interesse principal a juventude, pois esses grupos informais eram criados
a partir de reações inesperadas e/ou oposições à tutela destas instituições.
Com estas características, uma parte da juventude tomou o esporte como
locus de lutas simbólicas, que ocorriam na sociedade brasileira naqueles
momentos de repressão e, posteriormente, de uma abertura política lenta.
Em um contexto de disputas políticas e nos embates que envolveram a Guerra
Fria no cenário internacional, é também importante ressaltar os usos da
imprensa em relação aos esportes e os modelos de comportamento com que
deveriam prover as juventudes. Por isso, essas representações extrapolaram o
campo esportivo e tornaram-se, por meio de parte da produção jornalística,
metáfora pertinente de apoio, oposição ou distanciamento em relação ao
autoritarismo.
Antes de propormos esta análise documental, no entanto, é preciso
uma breve reflexão crítica sobre o uso dos jornais como fonte, pois eles
poderiam ser considerados inadequados aos historiadores, uma vez que seus
registros seriam fragmentados e produziriam imagens parciais, distorcidas e/
ou subjetivas. A produção jornalística seria, assim, marcada por um influxo
de interesses e compromissos ancorados em sua linha editorial. Contudo, na
observação de seus discursos, os jornais podem ser bastante úteis, mediante
alguns critérios que envolvem seu manuseio.
Neste sentido, Abreu (1996) argumenta que, nas últimas décadas,
uma quantidade crescente de trabalhos historiográficos vem se utilizando
das informações expressas em periódicos. A autora defende, ainda, que a

278 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


valorização do jornal impresso como instrumento de pesquisa fez com que os
historiadores interessados em trabalhar com esse tipo de fonte desenvolvessem
metodologias que possibilitaram transpor suas limitações.
Por isso, elegemos como fontes os semanários O Pasquim e Movimento,
que tinham uma linha editorial de oposição à ditadura, conhecidos pelo
termo “imprensa alternativa”, não popular ou “nanica”, mas sim alternativa,
levando em consideração seus redatores e seus públicos. “Assinala-se que a
expressão imprensa alternativa se reporta a veículos impressos de abordagem
distinta e formato diferenciado dos jornais convencionais; a maioria tinha
formato tabloide e, sobretudo, de posicionamento crítico e de oposição”
(SOUSA, 2014, p. 12).
Essa imprensa alternativa pode ser compreendida por meio das
sociabilidades de jovens escritores e leitores identificados com uma parcela
das esquerdas brasileiras mais engajada na defesa de uma frente ampla, sob
a bandeira da redemocratização, e não necessariamente comprometida com
as revoluções socialistas; ela surge também como possibilidade de resistência
diante dos desgastes da revolução armada (ARAÚJO, 2004; SOUSA, 2014).
Para a historiadora Araújo (2004), um dos objetivos da imprensa
alternativa era “o de ajudar a forjar um público anti-ditadura militar
(especialmente entre jovens estudantes, universitários e pessoas da classe
média em geral) criando uma opinião pública cada vez mais favorável ao
Estado de Direito e às liberdades democráticas” (ARAÚJO, 2004, p. 170).
As relações entre essa parcela das juventudes, identificada pelo urbano
e com posicionamentos progressistas para o período, são destacadas na
tese de doutorado da historiadora Buzalaf, por meio do protagonismo na
imprensa alternativa do tabloide O Pasquim. Para Buzalaf (2009, p. 34), O
Pasquim não representava apenas as vozes de seus jovens redatores, mas sim
uma voz agregadora para a “geração de 60”. Logicamente, a historiadora não
quer dizer com isto que aquele semanário representava todas as juventudes
dos anos 1960, ou que ela generalizava as juventudes pelo comportamento
do movimento estudantil, ao contrário, ela fez essas ressalvas e argumentou
no sentido de perceber que a produção do O Pasquim explica-se por todo
um contexto cultural que marcou as juventudes dos anos 1960, sobretudo

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em um movimento internacional que eclodiu, principalmente em 1968,
em diversos países. O ano que representou um “redemoinho de imagens”
(REIS; MORAES, 1998, p. 11) vislumbrou juventudes específicas em diversos
contextos nacionais, que tinham em comum uma pauta de mudanças nos
costumes, nos estilos de vida, nas artes e na cultura.
Em particular, O Pasquim tinha uma linha editorial humorística, com
sede no Rio de Janeiro, mas com sucursais em todas as principais capitais
brasileiras. Publicado a partir de 1969, seis meses depois do Ato Institucional n.
5 de 1968, sofreu com a repressão e teve, em 1970, boa parte de seus redatores
presos. Mesmo assim, soube negociar, driblar e resistir aos censores em
momentos distintos, em uma lenta abertura política que ocorria nos anos
de 1970 (BUZALAF, 2009). Mesmo diante das adversidades, o periódico foi
um sucesso, em termos de vendagem, alcançando uma tiragem de 250 mil
exemplares em dezembro de 1969, resultado superior à soma das vendas
das revistas Veja e Manchete (BUZALAF, 2009).
Já o jornal Movimento, publicado também semanalmente, teve sua
primeira edição em 30 de junho de 1975, contando com uma tiragem de 20
mil exemplares em média. Tinha a sede em São Paulo, mas era formado por
uma gama de jornalistas de várias capitais, com sucursais em Belo Horizonte,
Rio de Janeiro, Brasília, Curitiba, Londrina, Recife, Salvador, Campinas,
Belém, Porto Alegre e Rio Branco (SOUSA, 2014).
Segundo a historiadora Sousa (2014), era um jornal que se identificava
como uma propriedade coletiva dos jornalistas, “jornal sem patrão”. Surgiu em
um momento em que a censura prévia tinha sido retirada de alguns jornais,
inclusive d’O Pasquim, mas, nem por isso, deixou de sofrer com a repressão,
tendo 40% de seus conteúdos censurados, redações invadidas por policiais e
recebimento de ameaças por meio de bilhetes. “Assim nasceu o semanário
Movimento, que se destacou por ser o primeiro a expressar, com clareza, seu
programa, defendendo as liberdades democráticas, a independência nacional
e a elevação do padrão de vida dos trabalhadores” (SOUSA, 2014, p. 52).
Com uma linha editorial crítica, que congregou intelectuais, não era
propriamente vinculado a uma “esquerda festiva”, como no caso do O Pasquim,
mas almejava tornar-se um veículo que representasse as esquerdas em um

280 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


movimento de frente ampla, o qual tentava uma aproximação com o cotidiano
das classes populares, com relatos sobre as dificuldades econômicas que
impactavam suas vidas, como por exemplo na coluna “Gente Brasileira”.
Foi também um jornal que deu espaço para pautas como o feminismo, a
homofobia e o racismo.

As práticas esportivas como engajamento das juventudes


O Pasquim e o jornal Movimento trataram os esportes como práticas
de maneiras muito diversas. Talvez essa diversidade de representações sobre
o esporte tivesse origem nas diferentes posições dos articulistas e redatores
sobre o fenômeno que atraía um público bastante diverso, composto de
espectadores de eventos das mais diversas modalidades. Entretanto, o interesse
de juventudes diferenciadas em relação aos esportes colocava sua prática e
seus usos em disputa no campo cultural, o que reverberava no campo político.
Em 1976, o jornal Movimento divulgou os resultados da pesquisa de
doutorado do Prof. Osmar Salles de Figueiredo, defendida na Unicamp, que
concluía que os maiores interesses dos estudantes universitários naquele
período eram, pela ordem de preferência, política, esportes e economia.
Naquela lenta e gradual abertura política no Brasil, para aquela juventude
universitária, o esporte rivalizava com temas relacionados diretamente
aos problemas brasileiros (EPB, 1976, p. 10). Havia, desta maneira, uma
força catalisadora dos esportes em relação à juventude, mas não a todos os
jovens. Entre os jovens redatores cariocas do jornal O Pasquim, as práticas
esportivas poderiam representar, em um primeiro momento, uma certa
aceitação dos valores considerados dominantes nas sociedades ocidentais:
uma certa disciplina, uma certa violência que contradizia o espírito jovem
de liberdade. Alguns deles, como Roberto Moura, faziam contrastar uma
atitude juvenil de rebeldia com os esportes. Na matéria “Quem tem boca vai
a Roma”, Roberto Moura noticia uma entrevista do líder da banda inglesa
Rolling Stones, Mick Jagger. Nela, o jovem roqueiro fala sobre suas atitudes
rebeldes e as dificuldades que teve na escola com seu próprio pai, professor
de Educação Física. A cobrança por seu desempenho no esporte, afinal o
professor era seu pai, incomodava o jovem. Ele se dizia avesso aos esportes,

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pois “não era a dele”, uma vez que se considerava malicioso e delicado demais
para o esporte. Nos termos de Moura, não haveria espaço no recreio para
um futuro astro do rock (MOURA, 1974, p. 22):
“Quando não conseguia escapar, tentava me manter longe do caminho
da bola, entende? Imaginava que não poderia me ferir se não fizesse mais
do que correr em volta. Era uma droga quando alguém me passava a
bola” (Jagger). O que aterroriza Mick não era só a disciplina do esporte,
mas também as aparentes bravuras da competição masculina. Seu pai
não reconhecia o fato de que o esporte intimidava o filho. Mick tinha
uma agilidade natural. É difícil dizer agora, é claro, mas acho que se ele
tivesse um temperamento diferente poderia ter sido um atleta.

Em algumas oportunidades, quando as juventudes estavam ligadas aos


sentimentos de uma contracultura, os esportes, sobretudo os de maiores apelos
midiáticos, eram criticados. Aquelas práticas poderiam ser percebidas, por
parte dos jovens, como instrumento de desvio do que importava no campo
político, ou seja, opor-se à ditadura brasileira e às manifestações culturais
mais relacionadas ao tradicional ou moralmente aceitas como corretas na
sociedade, de forma mais ampla. Era um movimento que, contudo, não
era exclusivamente brasileiro. Para Almada (2021), a década de 1960 e os
eventos protagonizados pelas juventudes, no maio de 1968 na França e na
resistência à ditadura no Brasil, são suscetíveis a uma política de memória
que, ao longo dos anos, vem modificando os olhares sobre o período em
um sentido de apagamento. No entanto, quando acessamos as fontes, temos
que concordar com um sentimento crescente de oposição à vida cotidiana
naquelas sociedades e no protagonismo de uma juventude representada não
só pelo movimento estudantil, mas também por outras juventudes, em seus
anseios de mudanças profundas no campo cultural, embora certa descrença
já fosse percebida pelos jovens jornalistas daquele tempo.
Por exemplo, para Paulo Francis, já como correspondente da grande
imprensa nos Estados Unidos e colaborador d’O Pasquim, aquela juventude
identificada com a contracultura era fruto de uma década de 1960, imbuída
por um estado de frenesi. Segundo ele, havia um “bocado de mistificação”
no contexto norte-americano, pois, em sua análise, não se tratava ali de um

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movimento contra a cultura dominante, mas uma manifestação de jovens
que ficou na margem, inclusive como um subcultura que vivia das “migalhas
da sociedade de consumo” (FRANCIS, 1972, p. 9).
Por isso, é possível compreender que as juventudes na década de 1960
e 1970 eram muito atuantes nos temas nacionais e internacionais e que a
heterogeneidade de posturas e posições políticas era uma marca tanto dos
redatores como dos leitores daquela imprensa alternativa.
No caso do esporte, mesmo constatando a presença de um discurso
antiesportivo por parte de alguns dos redatores, havia também muitas
manifestações de prazer, alegria e contentamento de viver. Em outras
palavras, era um tema tratado segundo diferentes representações. A estrutura
binária que opõe juventude progressista versus juventude esportivizada não
se sustenta na análise do corpo documental. Embora houvesse em parte
das matérias jornalísticas um viés de crítica ao esporte por sua associação a
estruturas de poder, logo eram apresentados argumentos que incidiam sobre
os usos do esporte por parte daqueles praticantes jovens, em contradição às
intenções dos Estados nacionais, de forma geral, e da ditadura brasileira em
particular. O jornal Movimento, em 1975, publicou o artigo intitulado “Os
décimos lugares”, que criticava a atuação governamental no campo esportivo
e aludia a uma massificação urgente das práticas esportivas. Em seus termos:
Além das declarações do Presidente do Conselho Nacional de Desportos,
Brigadeiro Jerônimo Bastos, conformado com o insucesso em Munique,
mas dizendo que para os Jogos do Canadá o Brasil teria tempo de
preparar melhores equipes, o que se fez de concreto para superar as
deficiências do País no campo do esporte amador? A iniciativa mais
ambiciosa está no estudo elaborado no ano passado pelo sociólogo
Nélson de Melo e Sousa para o Ministério da Educação, visando a
reformulação da estrutura esportiva do País, com o mesmo objetivo
fixado três anos antes pela equipe do Diagnóstico: a massificação do
esporte. (AZEDO, 1975, p. 9)

O historiador do esporte Oliveira (2012) explica que, em termos de


discurso oficial da ditadura, era importante estabelecer uma versão que
explicasse o fracasso do “Brasil Grande” nos jogos olímpicos de 1972, e,

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para isso, enaltecia-se a elaboração do estudo intitulado “Diagnóstico de
educação física/desportos no Brasil”, patrocinado pelos militares e organizado
pelo professor Da Costa (1971). O abandono de políticas esportivas que
democratizassem a prática nas juventudes era causado por governos civis
anteriores, pelo atraso impetrado pelo passado da nação, que relegou aos
jovens altas taxas de analfabetismo, precária educação sanitária, déficit
nutricional e outros problemas sociais. Entretanto, tudo estava na marcha das
mudanças, tudo superado pelas políticas implantadas pelos militares, embora
as ações ficassem restritas ao campo discursivo, sem políticas concretas
(OLIVEIRA, 2012).
Talvez por isso houvesse, por parte da imprensa alternativa, uma maior
tendência a apoiar as práticas esportivas se estas fossem mais disseminadas,
consideradas mais populares e mais afastadas do espetáculo esportivo das
redes de televisão, como o futebol profissional dos grandes clubes. Assim,
modalidades esportivas que não tinham o mesmo apelo comercial e midiático
eram incentivadas tanto pelo jornal O Pasquim, como pelo Movimento. O
jornalista Plínio Marcos, ao cobrir uma excursão da seleção brasileira de
futebol amador, ou seja, uma equipe de jogadores de futebol não profissional,
sem relação com clubes, sem salários, jovens que praticavam futebol em
seus bairros e organizações amadoras, demonstrou total apoio. A crítica do
jornalista era em relação ao descaso da Confederação Brasileira de Desportos
(CBD) com os direitos dos jovens atletas:
A CBD quer fazer boa figura nas Olimpíadas, e até aí tudo certo. Mas,
devia cuidar do esporte amador com carinho, coisa que não faz. O
exemplo está aí mesmo nessa excursão à África. Mas, deixa isso de
lado. O que quero colocar aqui e o que se pesa na balança é que não é
com medalhas olímpicas que um povo se faz digno. Um povo só se faz
digno na medida em que seus direitos são preservados plenamente em
seu País. E os direitos desses craques da Seleção Amadora não estão
sendo preservados. (MARCOS, 1976, p. 10)

Mesmo na linha editorial humorística d’O Pasquim, estavam presentes


os incentivos à popularização dos esportes. Havia ali a compreensão de que
se aproximar do tema, sempre presente nas edições, era aproximar-se de uma

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prática que tinha o gosto de uma parcela importante de jovens leitores, por
isso, a inclinação ao apoio a práticas amadoras e as críticas mais contundentes
ao esporte, como produto econômico da grande mídia ou associado aos
discursos governamentais. No entanto, até mesmo o esporte profissional,
objeto da televisão, era enaltecido. Foi o caso do terceiro título mundial de
futebol masculino em 1970. A imprensa alternativa soube o momento certo
para fazer uma reflexão de que aquela vitória não tinha relação alguma
com a ditadura. Logicamente, o governo ditatorial teve todo o interesse
em relacionar a vitória à sua atuação no campo esportivo, o que gerou uma
reação da imprensa alternativa: não, aquela vitória não era da ditadura,
era democraticamente dividida pelos brasileiros. Nos termos do artigo de
Fernando Pedreira, “Duas lições do México”, publicado no O Pasquim:
Quem é o responsável por esse surpreendente comportamento, tão pouco
“brasileiro”? A intervenção do Estado e o governo revolucionário? Não.
O futebol, felizmente, é uma das poucas coisas, neste País, que não foram
estatizadas e nem sequer dependem do capital estrangeiro, a não ser no
capítulo das verbas de publicidade. Pertence todo à iniciativa popular e
particular: é o que pode haver de democrático. Quem fez a atual seleção
foi a nação propriamente dita. Foram os clubes e entidades esportivas,
com todos os seus defeitos; foi a crítica vigilante da imprensa; foi a
pressão das paixões da opinião pública; foram os próprios jogadores.
Com esses elementos, através de um debate mais livre, mais amplo
e, talvez tão apaixonado quanto os da política, chegamos ao México.
Pode ter sido uma lição. […] Mas a Copa do Mundo deixou-nos com
[água na boca. À espera do tempo em que os problemas reais da Nação
brasileira, como a seca no Nordeste, por exemplo, ou as grandes questões
políticas, possam ser submetidas ao livre debate, à pressão das paixões
populares, ao alto grau de participação coletiva que é hoje, entre nós,
um privilégio do futebol. (PEDREIRA, 1970, p. 11)

O esporte era uma metáfora de uma participação política ampla nos


grandes problemas brasileiros. O tricampeonato do futebol era mérito da
participação coletiva, de um amplo debate, da opinião pública e dos jogadores.
Com a democracia, outras dimensões da vida social, além dos esportes,

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que eram um dos poucos temas que podiam ser abordados de forma mais
crítica, seriam mobilizadas no palco de disputas da opinião pública, como
as questões políticas, econômicas e culturais.
Por isso, as práticas esportivas, como aspecto da vida social e de uma
educação não escolarizada, eram recorrentes também na impressa alternativa,
em diversos usos. Representantes da cultura, como artistas atrelados a um
pensamento progressista das juventudes dos anos 1960 e 1970, eram associados
pelos seus gostos e prazeres com o esporte. No jornal O Pasquim, considerando
o conjunto documental pesquisado, são encontradas menções às paixões de
Chico Buarque pelo futebol e pelo Fluminense, Norma Bengel pelo hipismo,
Jô Soares pelo hóquei, Ziraldo pelo basquetebol e outros tantos exemplos.
Quando à questão do esporte, era debatida por meio da ideia de uma
massificação, de uma popularização ou do esporte como educação. Havia
uma tendência da imprensa alternativa a percebê-lo de forma muito mais
positiva, em comparação às práticas presentes na mídia, na televisão, ou
mesmo com esportes identificados com as elites econômicas, como o tênis
e o automobilismo, ou com políticas educacionais mais identificadas com
iniciativas governamentais, como veremos mais adiante neste texto.
No jornal Movimento, na coluna Gente Brasileira, que, como já dissemos,
tinha o objetivo de aproximar a intelectualidade progressista do cotidiano
dos populares, o artigo “A Vida na Rocinha”, publicado em 1977, entrevistava
o líder comunitário, Célio Nogueira. Na entrevista, Nogueira (1977, p. 4)
enaltecia a cultura das comunidades, ressaltando o artesanato, a música e
o esporte.
Verdadeiros artistas em matéria de artesanato que muitas vezes fazem
certos trabalhos aí fora que a gente nem conhece, não sabe dos predicados
destas pessoas, quando vai ver é morador da Rocinha. Uma mão-de-obra
excelente, principalmente em artesanato. […] O brasileiro realmente
é pujante, e não é só no trabalho. Na música, no esporte. Não somos
nós os inventores do futebol? E já somos tricampeões do mundo. Por
isso não é possível simplesmente acabar com a favela.

No entanto, no mesmo jornal e na mesma data, a articulista Dulce


Caldas argumentava que, em relação aos negros e negras, representações

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como essas limitavam a inserção dessas populações na sociedade brasileira
e, em termos mais amplos, em sociedades ocidentais. Segundo ela, não cabia
negar o esporte e a música, mas a constante associação entre jovens negros,
arte e esporte causava restrições à inserção deles em outros campos da vida
social. Em seus termos:
Primeiro, o preconceito de que negro tem que fazer samba, que na
verdade se relaciona com um conceito estreito de vida social. O negro, em
todas as sociedades onde ele se instalou, ou melhor, foi instalado, ainda é
visto pelos olhos do colonizador como um elemento predominantemente
irracional, sensual e emotivo, e só. Com a tendência à integração do
negro na sociedade, dois caminhos se apresentaram basicamente a ele: o
esporte e a arte, além da tradicional culinária. Fora esses setores, poucas
portas se abriram para ele. E foi se afirmando nessas áreas que o negro
adquiriu, nas sociedades ocidentais, o seu status social tão prometido
e tão poucas vezes cumprido. (CALDAS, 1977, p. 17)

Sem dúvida, não era o caso de criar obstáculos às artes e aos esportes na
vida social dos negros e negras, mas ao contrário, era necessário ampliar as
possibilidades de inserção na sociedade, em um combate ostensivo ao racismo.
Sim, sem dúvida, o esporte como prática podia ser também apropriado
por discursos progressistas e antirracistas. Para isso, era preciso ressaltar o
exemplo de alguns atletas de alto nível, por conta de sua representatividade
na mídia, por seu protagonismo diante dos jovens. Foi o caso de Muhammad
Ali no boxe: a imprensa alternativa ressaltava, por meio de sua prática
esportiva, seu pensamento engajado nas lutas em relação aos direitos civis
dos negros nos Estados Unidos e por ter se recusado a lutar na Guerra do
Vietnã. Nos termos do jornalista Luiz Carlos Maciel, no artigo “Muhammad
na Boneca”, publicado em O Pasquim:
Desde que Cassius Marcellus Clay perdeu, oficialmente, o título de
campeão mundial de box [sic], de todos os pesos por ter-se recusado a
servir o exército norte-americano, parece estar sofrendo uma verdadeira
conspiração que pretende levá-lo ao silêncio e esquecimento. Se há um
crioulo que não sabe o seu lugar é Clay, ou Muhammad Ali, o nome

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que adotou passou a fazer parte dos Black Muslims. O establishment
respondeu a suas petulâncias. A peça de teatro que participou em Nova
Iorque foi boicotada descaradamente pela crítica e público brancos. E
até lutas frias, através de computadores, arranjaram para diminuir seu
prestígio como esportista. Contudo, Clay ainda é, no esporte mundial,
um nome mais importante do que – digamos – Pelé. (MACIEL, 1970,
p. 29)

Da mesma forma, quando O Pasquim entrevistou a antropóloga Angela


Gillian, em 1973, sobre a questão do racismo no Brasil, a menção ao boxeador
norte-americano Muhammad Ali também ocorreu em circunstâncias
semelhantes, enaltecendo seu engajamento, em comparação com Pelé.
Ele – Pelé – poderia fazer muita coisa positiva, ser um modelo. Mesmo
com a fama que tem, ele poderia se ligar com aquela criança pobre que é
negra. Poderia ser um modelo mais positivo. Ele se recusa totalmente a
falar no assunto [racismo]. Ou recusa a admitir que, se não fosse quem
é, com essa cara conhecida, sofreria um bocado. […] Eu respeito muito
Muhammad Ali. Porque ele deixou dinheiro pro lado, por questão de
princípios. Ele é um homem simples, que está tentando viver com um
princípio com o qual eu concordo. (GILLIAN, 1973, p. 12)

Em termos gerais, havia na imprensa alternativa, nos anos de 1970,


principalmente em O Pasquim, uma certa representação sobre os esportes
que os associavam, por meio da ironia e do chiste, a uma cultura da televisão,
de interesse do capital e da ditadura. Por isso, era preciso criticá-los. Mas
isto não era uma via de mão única; havia também, de forma recorrente, a
defesa de posturas progressistas por parte de atletas de alto nível, que tinham
a atenção da mídia. Isto ocorria com Ali, mas também com importantes
jogadores de futebol no cenário nacional, como o carioca Paulo César Caju
e suas denúncias em relação ao racismo; o enaltecimento da postura de
jovem rebelde do ídolo do Atlético Mineiro, Reinaldo; a defesa da Anistia
por parte de Zico; as posturas críticas de Tostão e Gérson.
A imprensa alternativa conhecia o apelo das práticas esportivas em
relação às juventudes e, sem dúvida, o papel do ídolo esportivo como
alguém que se opunha, que se rebelava, era fundamental para uma agenda

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de contraponto à ditadura e ao conservadorismo. Por isso, havia, por parte
dos articulistas, uma certa admiração e um certo ressentimento em relação à
figura mais importante da história do futebol brasileiro, exatamente Pelé. Os
elogios a Muhammad Ali e outros jogadores eram consoantes com as críticas
a Pelé. Por que ele não se posicionava? O que um posicionamento por parte
deste ícone representaria no campo das lutas simbólicas? Logicamente, este
debate trazia à tona o papel do esporte em um projeto de redemocratização
e foi neste contexto que um artigo publicado no jornal Movimento, em 1978,
por Roberto Drummond, com o instigante título “Por acaso foi Pelé que
derrubou Jango?”, provocou uma reflexão sobre a forma como os esportes
eram tratados pela intelectualidade de esquerda, nos anos de 1970:
Isso aqui é uma polêmica, não é uma sentença, e eu digo que a verdade
é que as esquerdas brasileiras (eu não diria as neo-esquerdas que
estão surgindo agora) sempre foram dadas a ver assombrações de
dia. Como se não bastassem os fantasmas reais, as nossas esquerdas
criaram, principalmente de 64 pra cá, e mais principalmente ainda
durante o governo Garrastazu Médici, alguns bois de cara preta e esses
bois de cara preta eram quase todos ligados ao futebol. As esquerdas
brasileiras sempre reagiram diante de uma paixão popular (sim, porque
é uma inegável paixão popular) como o futebol com chavões e lugares-
comuns do tipo ópio do povo, pão e circo, etc. Acreditam nas esquerdas
brasileiras, nos seus setores mais infantis, parece que foi um exército
comandado por Pelé e formado por jogadores de futebol que derrubou
o governo João Goulart em 64 e utilizando como armas (em vez de
tanques, canhões, etc.) chuteiras e gols, acabaram com toda a liberdade
que tínhamos. (DRUMMOND, 1978, p. 11)

De fato, O Pasquim, por exemplo, dava esse tratamento a Pelé. Na ocasião


dos mil gols oferecidos às crianças pobres do país, as ironias de Jaguar e Millôr
Fernandes ao feito de Pelé foram veiculadas pelo semanário. A imprensa
alternativa sabia dos usos e apropriações do esporte para os interesses da
ditadura. Logicamente, a imprensa compreendia esses usos, mas as formas
de oposição eram muito variadas, como nesse artigo de Drummond (1978),
que convidava as esquerdas a abandonar os chavões e também fomentar

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uma apropriação do esporte para uma educação progressista das juventudes.
Desse modo, não havia sentido em criticar Pelé por ser garoto propaganda
de empresas multinacionais, mas, ao contrário, perceber como o capital era
hábil em se apropriar da imagem de importantes atletas, como exemplo
de conduta moral para os jovens. Era preciso virar o jogo das disputas
políticas, no campo simbólico. Mas algo inesperado ocorreu na redação
d’O Pasquim, no dia em que Pelé concedeu uma entrevista aos articulistas:
ali o que eram críticas e ironias ácidas tornou-se uma boa conversa, uma
espécie de reconciliação.
A linha editorial d’O Pasquim ora ironizava, ora criticava abertamente
a postura política de Pelé. Causava estranheza aos articulistas a postura de
pretensa neutralidade do jogador em relação ao contexto político brasileiro.
Pelé poderia ser um grande porta-voz em defesa da democracia, mas ele
não se envolvia, ao menos da maneira que a imprensa alternativa esperava.
No entanto, é preciso afirmar que seria cômodo para Pelé apoiar a Ditadura
Civil-Militar, jogando no Santos nos anos de 1960, coisa que nunca fez. Pelé
parecia ter aprendido com parte da imprensa esportiva, uma representação
muito presente no campo esportivo, de que a prática e seus praticantes mais
destacados, como figuras públicas, deveriam se conservar “neutras” em
relação às disputas políticas. Esta, por exemplo, era a posição de uma parte
significativa da mídia especializada em esportes, distante de posições políticas
polarizadas. Era uma linha da crônica esportiva mais identificada com Mario
Filho, na qual era central associar uma identidade brasileira homogênea às
práticas esportivas, em um país unido pelo nacional (SOARES, 1999).
Estava claro que esta era uma perspectiva política da qual Pelé não queria
se desvencilhar, e não se tratava de qualquer medo da repressão militar, pois,
quando vai jogar em Nova York, afirma, em relação às eleições americanas:
“Quando me perguntaram nos Estados Unidos se eu ia votar no Ford ou no
Carter, eu disse que o voto é secreto. Os dois são meus amigos. Se eu disser
que vou apoiar um, o outro vai ficar chateado comigo” (PELÉ X PASQUIM,
1976, p. 12). Ziraldo tinha perguntado a Pelé sobre seu apoio à ARENA ou ao
MDB. Pelé sabia não se comprometer com as disputas políticas e despistava,
angariando, com isso, críticos, mas também admiradores, como se explicita
nas palavras de Ziraldo:

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Isto não é a apresentação de uma entrevista. São conclusões a que
cheguei depois de mais de duas horas de conversa com Pelé, de quem
acompanho a vida profissional desde muito antes de ele aparecer na
Seleção, quando Armando Nogueira e Mário de Morais chegaram à
redação de “O Cruzeiro” falando de um fenomenal garoto de quinze
anos que jogava no Santos. […] E hoje, depois do papo, posso confirmar
[…]: Edson Arantes do Nascimento é o melhor cidadão possível ao
alcance de Pelé. Sua vida fantástica e atordoante – uma roda-viva sem
queixas e sem canções – não lhe deu tempo para mais do que o que
ele construiu como personalidade. (PELÉ X PASQUIM, 1976, p. 6)

A figura emblemática de Pelé dava ao esporte e, principalmente ao


futebol, esse lugar contraditório, que movia emoções tão associadas aos
gostos e prazeres populares, como mais um produto da indústria cultural.
Então, era preciso redimir os esportes, notadamente o futebol, por seu
enorme apelo popular. Assim confessava Fausto Wolff que, em 1970, estavam
ele e Millôr Fernandes assistindo à final da Copa de 70 em plena cidade de
Roma; no início torceriam para a Itália, pois sabiam que a ditadura usaria
politicamente aquela vitória esportiva. Mas...
No jogo Brasil-Itália, eu e Millôr nos preparamos para torcer contra pois
sabíamos do proveito que a ditadura tiraria da alegria do povo. Como,
porém, torcer contra um time que ultrapassa os limites do esporte para
transformar-se num fenômeno artístico de rara beleza com monstros
como Pelé, Gerson, Rivelino, Tostão, etc.? logo no primeiro gol da nossa
seleção estávamos aos urros dentro de casa e éramos, sem dúvida, no
raio de alguns quilômetros as únicas vozes destoantes do silêncio que
se abateu sobre a cidade do pescador. […] Lembrem-se que o futebol
é uma das poucas coisas que o povo brasileiro ainda possui. (WOLFF,
1978, p. 38)

Quando tudo vai mal em um país miserável, onde a fome é epidemia,


com mortalidade infantil, censura, perseguições políticas, tortura, educação
e saúde como privilégios, juventudes sem perspectivas, a festa é uma saída
temporária, mas importante. As populações mais pobres do país podiam

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esquecer um pouco o cotidiano difícil e festejar os feitos daqueles jovens
esportistas, que, de tão próximos e semelhantes a eles, eram como seus
representantes. A alegria contagiante de 1970 não perdurou e, nas palavras
de Wolff, em 1978, quando ele voltou do exílio, tudo de ruim que o país
tinha ainda continuava. O resultado daqueles anos de chumbo era que o
Brasil não tinha mais o que fora motivo de orgulho: não havia mais sequer
grandes compositores, jornalistas e jogadores de futebol (WOLFF, 1978).
A imprensa alternativa também soube criticar a ditadura com base no
fracasso no futebol. A equipe técnica, liderada por Claudio Coutinho, era
criticada constantemente. A ironia, especialidade d’O Pasquim, era evidente,
e a política autoritária era exposta por meio do esporte. Em 1978, no artigo
de Ruy Castro, intitulado “Em cima do muro”:
O escrete foi conscientizado, de saída, de que era a pátria em chuteiras.
[…] Nossos jogadores sabiamente furtaram-se a declarações políticas,
certos de que, como em tudo na vida, futebol e política não se misturam.
(Principalmente quando esta política é da oposição). (CASTRO, 1978,
p. 19)

No entanto, entre uma posição e outra, diferentes práticas eram


apropriadas pelas juventudes das mais diversas posições políticas. Talvez
o problema aqui fosse mesmo a magnitude do futebol em relação às outras
práticas esportivas.
Para Millôr Fernandes, este era um ponto que merecia destaque, era
isto que estava por trás das ironias e críticas ao futebol e a Pelé, por tabela.
Millôr afirmava, em uma nota intitulada “Proxenetismo”, que a atleta Silvina
das Graças, medalha de prata nos Jogos Panamericanos de Cali, no atletismo,
iria abandonar o esporte por falta de apoio financeiro. Para Millôr, o futebol
era a causa do abandono, por absorver todas as verbas publicitárias e toda
a atenção dos governos, intelectuais, esmagando as outras modalidades
(FERNANDES, 1971, p. 23). Há, desta maneira, uma maior aproximação da
imprensa alternativa das práticas esportivas relegadas à invisibilidade, tão
populares quanto o futebol e presentes no cotidiano, porém quase invisíveis,
em termos comparativos com o futebol.

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Juventudes e a necessidade de popularizar práticas esportivas
Caso o esporte se restringisse às práticas mais populares oriundas da rua,
o tratamento seria diferente. Havia, nesse sentido, prazer e contentamento
dos jovens naquelas práticas e todo o apoio para o acesso a elas era defendido
em uma política de urbanização, que via a rua como espaço de educação
para a democracia. Para Mollica, no artigo “Só o humor constrói”, publicado
n’O Pasquim em 1980:
Quem nunca brincou na rua? Eu já. Passei minha infância e adolescência
jogando bola, vôlei, queimado, carniça, pique, bandeira, tiro ao alvo, bola
de gude, pingue-pongue, sacanagem, o diabo a quatro descalço de calção
naquela rua do Rio Comprido. […] É a partir do mito e seu culto que
o jogo passa a existir, criando uma ponte entre os seres e as coisas, no
sentido de torná-las humanas, passíveis de usos e apropriações, capazes
de serem imaginadas de diversas maneiras […]. São certamente formas
lúdicas de apropriação do espaço urbano que conduzem a novas situações
sociais propostas pela população anônima das cidades, produzindo
com isso conhecimento ao nível da cultura e do prazer, eu afirmo.
Apropriar-se, fazer usos diferentes de coisas e objetos sob o culto do
Poder, é crítica social. (MOLLICA, 1980, p. 27)

Com base nestas fontes do final dos anos 1960 ao início dos anos de 1980,
foi possível perceber diferentes representações sobre o esporte apresentadas
na imprensa alternativa, além das previsíveis críticas a alguns esportes de
alto rendimento, que, mesmo sem alcançar a visibilidade comercial do
futebol, incomodavam os articulistas, por sua identificação com as elites
econômicas, como o automobilismo e o tênis.
Estas críticas eram mais dirigidas aos jovens praticantes do que às
práticas, pois, se a prática se popularizasse e fosse identificada com outras
juventudes oriundas de outros grupos sociais, as representações em relação
àquele esporte variavam, como no exemplo do surfe, retratado tanto n’O
Pasquim como no jornal Movimento.
Em um primeiro momento, o surfe era identificado como uma prática
relacionada a uma juventude abastada da zona sul do Rio Janeiro e do litoral

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paulista, que, de forma presumível, na visão daqueles jovens articulistas
da imprensa alternativa, poderia ser visto como “descompromissada”
politicamente. Então, por isso, cabia a eles, por meio do chiste e da crítica,
evidenciar certo contragosto com o descompromisso daquela juventude
identificada pelo surfe. No entanto, essas representações são mais complexas
e os surfistas desempenhavam diferentes papéis na imprensa alternativa.
No jornal paulistano Movimento, dificilmente o surfe era referido e,
quando aparecia, não era de forma positiva. Por exemplo, o jornalista Passos
(1976) denunciava que a Secretaria de Turismo, Cultura e Esportes da cidade
de Santos acusava a imprensa paulistana de promover uma campanha de
divulgação da poluição das praias daquela cidade. Na versão do jornalista,
a imprensa paulistana cumpria o dever de informar e denunciar a poluição
das praias e tinha como opositora uma aliança entre os gestores municipais
de Santos e os surfistas, que diziam que as águas não eram poluídas. O jornal
Movimento explicava ao leitor que os jovens surfistas eram premiados com
medalhas por conta deste posicionamento.
Já O Pasquim tinha uma linha mais próxima do surfe. Ao pensarmos na
quantidade de anúncios de venda de pranchas em seus classificados, podemos
conjecturar que os jovens surfistas eram leitores do semanário, por isso havia
naquele periódico mais críticas ao futebol, ao tênis e ao automobilismo do
que ao surfe. Desse modo, existia uma identificação dos jornalistas com uma
juventude “cuca limpa”, nos termos do articulista Athayde (1974).
Havia certa simpatia dos jovens jornalistas d’O Pasquim pela juventude
surfista, isto porque, entre os anos de 1960 e 1970, a prática do surfe foi
considerada uma filosofia de vida que se aproximava da contracultura, da
crítica ao American way of life, pelo modo de vida libertário, pelo discurso de
negação da sociedade de consumo, que afetou os jovens surfistas da zona sul
carioca (ALVES; MELO, 2017). Para Fortes, Melo e Dias (2012, p. 125), nos
anos 1960, “o surfe indicava sim uma certa distensão dos costumes, foi um
dos símbolos de uma juventude atraída pela extravagância do comportamento
e o exotismo da aparência dos surfistas, que adotavam um estilo de vida
marcado pelo descompromisso”, sendo que a partir dos anos 1970, o surfe
passou a dialogar mais com a contracultura, em uma postura de resistência.

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Mas o surfe não era apropriado somente pelos jovens cariocas abastados
e O Pasquim evidenciava isto. Era uma prática que podia ser apropriada pelas
juventudes populares do litoral brasileiro, desmistificando a representação
de uma prática exclusiva ou distintiva das classes médias e altas do Rio de
Janeiro ou do litoral paulista. Por exemplo, Ziraldo já citava na nota “Esporte
espetacular”, a prática do surfe por crianças potiguares pobres, em Baía
Formosa, no Rio Grande do Norte, com a utilização de tábuas.
Enfim, compreendemos que haveria diversas apreensões da realidade
por parte dos jornais, dos cronistas e dos leitores, evidenciando disputas
simbólicas no campo esportivo, que estavam pautadas e/ou reverberavam
também em diferentes posturas políticas em um contexto de Guerra Fria, que,
no caso brasileiro, eram patentes em um projeto de educação das juventudes
por meio das práticas esportivas. Para parte significativa dos jovens atletas,
torcedores, técnicos, é verossímil compreendermos que o esporte fosse
somente esporte, apartado de qualquer forma de interferência política.
Contudo, mesmo na imprensa alternativa, muitas formas de compreender
as práticas esportivas, em meio a uma disputa simbólica em relação às
posturas das juventudes, evidenciaram que não seria plausível organizar o
embate político por meio de dois grupos antagônicos, como conservadores
e progressistas, comunistas e anticomunistas, direita e esquerda. Para uma
análise mais acurada, naquele cenário de Ditadura Civil-Militar (1964-1985)
no Brasil, foi preciso, mesmo dentro de um mesmo espectro da imprensa
alternativa, abandonar sistemas binários de explicação e perceber diferentes
posições sobre o lugar das práticas esportivas em uma educação não formal.

Fontes
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OLIVEIRA, Marcus. Esporte e política na ditadura militar brasileira: a
criação de um pertencimento nacional esportivo. Movimento, Porto Alegre,
v. 18, p. 155-174, 2012.

297 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


REICHEL, Peter. Festival and cult: masculine and militaristic mechanisms
of national socialism. The International Journal of the History of Sport, v. 16,
n. 2, p. 153-168, 1999.
REIS, Daniel, MORAES, Pedro. 1968, a paixão de uma utopia. 2. ed. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 1998.
SIMÕES, Renata Duarte. A educação do corpo no jornal A Offensiva (1932-
1938). 2009. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2009.
SOARES, Antonio Jorge Goncalves. História e invenções de tradições no
campo do futebol. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 13, n. 23, p. 119-146,
1999.
SOUSA, Inara Bezerra Ferreira. O jornal Movimento: a experiência na luta
democrática. 2014. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de
Brasília, Brasília, 2014.
SPURR, Michael. ‘Playing for fascism’: sportsmanship, antisemitism and the
British Union of Fascists. Patterns of Prejudice, v. 37, n. 4, p. 359-376, 2003.

298 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


Sobre os autores e as autoras

Agustín Escolano Benito é catedrático da Universidad de Valladolid,


fundador e diretor do Centro Internacional de la Cultura Escolar (CEINCE). É
doutor honoris causa pela Universidade de Lisboa. Foi presidente da Sociedad
Española de Historia de la Educación e membro do comitê executivo da
ISCHE. Publicou La escuela como cultura. Experiencia, memoria, arqueología
(2016/2017, espanhol, italiano e português), Educación & emociones. La
construcción histórica de la educación emocional (2018/2021, espanhol e
português).
André Luiz Paulilo é professor associado, livre-docente, da Unicamp.
Doutor e mestre em Educação pela USP; graduado em História pela USP.
Docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Unicamp. É Coordenador do Centro de Memória-Unicamp. Foi pesquisador
no Instituto de Estudos Brasileiros da USP. É bolsista de produtividade 2
do CNPq.   
Anne-Marie Chartier foi professora no IUFM de Versailles,
pesquisadora no Serviço de História da Educação no INRP e na École
Normale Supérieure de Lyon. Desde sua aposentadoria, é pesquisadora
associada ao Larhra-Lyon2. Suas pesquisas têm como objeto principal a
escolarização da cultura escrita e as práticas dos professores. Publicou L’école
et la lecture obligatoire (2007), L’école et l’écriture obligatoire (2022); com
Jean Hébrard, Discours sur la lecture 1880-2000 (publicada no Brasil pela
Ática, em 1995).
Antonia Candela é pesquisadora titular do Departamento de
Investigaciones Educativas do CINVESTAV. Física de formação, combina
a elaboração curricular de ciências naturais no México com investigação
etnográfica e análise do discurso em aulas escolares. Publicou, entre
outros:  Ciencia en el aula: Los alumnos entre la argumentación y el
consenso (Paidós, 1999) e, como coautora: ¿Qué crees que va a pasar?: Las
actividades experimentales en clases de Ciencias (SM/Cinvestav, 2014).

299 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


Diana Gonçalves Vidal é professora titular de História da Educação
na Faculdade de Educação (USP), Pesquisadora 1A do CNPq, líder do
Projeto Temático FAPESP Saberes e Práticas em fronteiras: por uma história
transnacional da educação (1810-...), editora sênior da Oxford Research
Encyclopedia of Education para a área de história da educação, e diretora
do Instituto de Estudos Brasileiros (USP).
Edivaldo Góis Junior é professor doutor da Unicamp e professor no
Programa de Pós-Graduação em Educação da Unicamp, na linha de pesquisa
“Educação e História Cultural”. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do
CNPq e pesquisador associado do Centro de Memória-Unicamp (CMU).
Membro do Grupo de Pesquisa Memória, História e Educação (Unicamp).
Foi professor adjunto da Faculdade de Educação da UFRJ.
Elsie Rockwell é pesquisadora emérita de Investigaciones Educativas,
CINVESTAV (México). Historiadora e antropóloga de formação, tem se
dedicado ao conhecimento comparativo de diversas culturas letradas e
escolares. Suas obras incluem: La experiencia etnográfica (Paidós), Comparing
Ethnographies (em coautoria com Anderson-Levitt, AERA), Vivir entre
Escuelas (CLACSO). Recebeu o prêmio Spindler Award (AAA, 2013) e o título
de Doutorado Honoris Causa da Universidad Nacional de Córdoba (2019).
Fátima Branco Godinho de Castro é doutoranda em História e
Historiografia da Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal do Paraná. Possui graduação em Pedagogia pela
Universidade Estadual de Maringá (1985), especialização em Arte-Educação
pela Faculdade de Artes do Paraná; Mestrado em Educação pela Universidade
Federal do Paraná (2001); Mestrado em Educação pela Universidade Federal
do Paraná (2020).
Gizele de Souza é pós-doutora em Educação pela Università degli Studi
di Firenze/Itália. Professora do Setor de Educação e do Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná. Coordenadora
do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Infância e Educação Infantil. Bolsista
de Produtividade em Pesquisa 2 do CNPQ. É editora-chefe da Educar em
Revista desde agosto de 2018; integra a Comissão Editorial de Coleções e
Livros da Sociedade Brasileira de História da Educação.

300 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


Heloísa Helena Pimenta Rocha é professora associada (Livre-Docente)
na Faculdade de Educação da Unicamp; coordenadora do Programa de Pós-
Graduação em Educação (PPGE/Unicamp); bolsista de Produtividade em
Pesquisa do 1D CNPq. Coordena o projeto CAPES PrInt Práticas educativas,
aprendizagens e formação de professores em diferentes contextos e linguagens;
é pesquisadora associada do Projeto Temático FAPESP Saberes e práticas em
fronteiras: por uma história transnacional da educação (1810-...).
Inés Dussel é professora pesquisadora do Departamento de
Investigaciones Educativas do CINVESTAV-IPN, México. É doutora em
Educação pela Universidade de Wisconsin-Madison. Foi diretora da Área de
Educação da FLACSO/Argentina, entre 2001 e 2008, e professora visitante
nas Universidades de Melbourne, Paris 8 e Humboldt (Berlim).  
Márcia Guedes Soares é doutoranda em Educação no Programa de Pós-
Graduação em Educação da Unicamp. Mestra em Educação pela Unicamp;
mestra em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde
na Infância e na Adolescência da Univesp. Graduada em Pedagogia pela
Unicamp.
Maria Angela Borges Salvadori é graduada e mestre em História (IFCH/
Unicamp); doutora em Educação (FE/Unicamp). Docente da Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo, onde atua na área de história da
educação e historiografia. Membro do grupo de pesquisa NIEPHE (Núcleo
Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em História da Educação). Suas
pesquisas focam sujeitos, tempos e práticas formativas no diálogo com a
história social inglesa, destacando o tema da educação das classes populares
e as relações entre história, memória e patrimônio cultural. 
Patrícia Cristina da Cruz Sá é bacharel em Museologia pela UFPel
(2015), mestre em Educação pela USP (2020). Doutoranda no Programa de
Pós-Graduação da FEUSP. Participa do NIEPHE. Atuou no Museu de Arte
Leopoldo Gotuzzo, Museu e Espaço da Colônia Francesa de Pelotas, Museu
de Antropologia do Vale do Paraíba, entre outras instituições culturais. É
conselheira no Conselho do Sistema Estadual de Museus; atualmente está
à frente da Diretoria de Cultura da Fundação Cultural de Jacareí.

301 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


Rachel Duarte Abdala é professora do Curso de História da Universidade
de Taubaté e colaboradora na Faculdade de Educação (USP), coordenadora
adjunta do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Humano (UNITAU),
docente do Programa de Mestrado Profissional em Educação (UNITAU).
Pesquisadora associada do Projeto Temático FAPESP Saberes e práticas em
fronteiras: por uma história transnacional da educação (1810-...).

302 E-BOOK GRATUITO - PROIBIDO COMERCIALIZAÇÃO


formato: 15,5cm x 22,5cm | 303 p.
tipologias: Minion Pro, Myriad Pro

coordenação editorial: Betânia G. Figueiredo


diagramação e capa: Marcela Paim do Carmo
revisão de textos: Cláudia Rajão

Imagem da capa: Escuela Primaria “Ana María Berlanga”,


Colonia Penitenciaria, México D.F., 4 de mayo de 1947.
Fuente: AGN, Caja 8, Sob-28. Gentileza del Archivo General
de la Nación de México..

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