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REGISTROS DE EXPERIÊNCIAS

DE EDUCAÇÃO POPULAR:
HISTÓRIAS E MEMÓRIAS
DE EDUCADORAS (ES) POPULARES
E EDUCADORAS (ES) SOCIAIS
Curso de extensão - Educação Popular: trabalho e formação
de educadoras/es populares de Porto Alegre

Fernanda dos Santos Paulo


Vlamir do Nascimento Seabra
Gilberto João Pavani
Organizadores


REGISTROS DE EXPERIÊNCIAS
DE EDUCAÇÃO POPULAR:
HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE EDUCADORAS (ES)
POPULARES E EDUCADORAS (ES) SOCIAIS

Curso de extensão - Educação Popular: trabalho e


formação de educadoras/es populares de Porto Alegre

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Promoção:

IFRS campus Restinga e Associação de Educadores Populares


de Porto Alegre (AEPPA)

INSTITUTO FEDERAL
Rio Grande do Sul
Campus Restinga

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Conselho Editorial

Dr. Paulo César Carbonari


Presidente
Dr. Iltomar Siviero
Secretário

Área Ciências Humanas


Dr. Adriano Correia (UFG); Dr. Agostinho Both;
Dr. Castor Bartolomé Ruiz (UNISINOS); Dr. Eldon Henrique Mühl (UPF);
Dr. Johannes Doll (UFRGS); Dra. Maria Nazaré Tavares Zenaide (UFPB);
Dr. Miguel García Baró López (UPC, Madrid);
Dr. Ricardo Timm de Souza (PUCRS); Dr. Robinson dos Santos (UFPel);
Dr. Sandro Chignola (UPA, Itália); Dra. Vanderleia Pulga Daron (UFFS)

Área Ciências Sociais Aplicadas


Dr. Antônio Carlos Wolkmer (UFSC); Dr. Astor Diehl (UPF);
Dr. Henrique Aniceto Kujawa (IMED); Dr. Jandir Pauli (IMED);
Dr. João Carlos Tedesco (UPF); Dr. Joviles Vitório Trevisol (UFFS);
Dr. Solon Eduardo Annes Viola (UNISINOS); Dr. Theofilos Rifiotis (UFSC)

Área Saúde
Dra. Alacoque Erdmann (UFSC); Dr. Leocir Pessini (CUSCSP);
Dra. Lia Mara Wibelinger (UPF); Dr. Luiz Antônio Bettinelli (UPF);
Dra. Marilene Rodrigues Porttella (UPF); Dr. Roque Junges (UNISINOS)

Área Linguística, Letras e Artes


Dra. Adriana Dickel (UPF); Dra. Claudia Stumpf Toldo Oudeste (UPF)

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Fernanda dos Santos Paulo


Vlamir do Nascimento Seabra
Gilberto João Pavani
Organizadores

Andreia Soares de Lima Márcia Rejane dos Santos Menger


Carlos Rodrigues Brandão Marcia Selau dos Santos
Catarina Elóia da Rosa Machado Naiara Silveira
Elenita Lopes da Silva Nara Helena dos Santos
Erick Silva de Souza Nara Rosana Godfried Nachtigall
Fernanda dos Santos Paulo Saionara Lemos Rodrigues
Gilberto João Pavani dos Santos Villagran
Gisiane Schneider Ferreira Silvia Elisabete dos Santos Domingos
Ismeria Florinda Silva de Almeida Simone da Costa Andrade Ferreira
Jaqueline da Silva Ciotta Simone Souza Prunier
João Carlos Lucas da Silva Simone Valdete dos Santos
Jorge Pereira de Lima Taís Pereira de Gões
Lorena Martins Florisbal Vlamir do Nascimento Seabra

REGISTROS DE EXPERIÊNCIAS
DE EDUCAÇÃO POPULAR:
HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE EDUCADORAS (ES)
POPULARES E EDUCADORAS (ES) SOCIAIS

Curso de extensão - Educação Popular: trabalho e


formação de educadoras/es populares de Porto Alegre

Passo Fundo
Saluz
2018
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© 2018 Organizadores

Promoção: IFRS campus Restinga e Associação de Educadores Populares de Porto


Alegre (AEPPA)

Os artigos contidos nesta obra são de responsabilidade dos autores.

Edição: Editora do IFIBE


Capa e projeto gráfico: Diego Ecker
Diagramação: Diego Ecker
Imagem da capa: Adaptação de imagem de photoangel/Freepik
Revisão: Araceli Pimentel Godinho

Editora do IFIBE
Rua Senador Pinheiro, 350
99070-220 – Passo Fundo – RS
Fone: (54) 3045-3277
E-mail: editora@ifibe.edu.br
Site: www.ifibe.edu.br/editora
Editora filiada

CIP – Catalogação na Publicação

R337 Registros de experiências de educação popular [recurso


eletrônico]: histórias e memórias de educadoras(es)
populares e educadoras(es) sociais : Curso de extensão -
Educação popular : trabalho e formação de educadoras/es
populares de Porto Alegre / Fernanda dos Santos Paulo,
Vlamir do Nascimento Seabra, Gilberto João Pavani
(organizadores) – Passo Fundo: Saluz, 2018.
E-book ; 9Mb

Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-69343-51-6

1. Educação popular. 2. Educação – Formação de


professores. 3. Educação – Finalidades e objetivos. I. Paulo,
Fernanda dos Santos, organizador. II. Seabra, Vlamir do
Nascimento, organizador. III. Pavani, Gilberto João.

CDU: 371

Catalogação: Bibliotecária Angela Saadi Machado - CRB 10/1857

2018
Instituto Superior de Filosofia Berthier – Editora do IFIBE

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“Ao tempo em que as primeiras foram feitas, percorrendo


direções diferentes, alternativas de trabalho através da Edu-
cação Popular voltavam a tomar, ou a reconquistar, velhos e
novos espaços na prática política de vários tipos de grupos e
movimentos sociais. Voltavam a ser, também, um assunto cujo
poder de motivar velhos e novos participantes de suas questões
e práticas aos poucos se reacendia. Tempos em que, mais do
que antes, uma proposta de trabalho pedagógico “com o povo”
ressurgia como um tipo de educação alternativa e, portanto,
oposta a tudo o que parecesse haver nela de oficial.
Pontos de vista e práticas que hoje começamos a rever.”

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Pensar a prática: escritos de


viagem e estudos sobre a educação. Passo Fundo: IFIBE, 2001.

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Sumário

SUMÁRIO

Notas dos organizadores 11


Fernanda Dos Santos Paulo, Gilberto João Pavani,
Vlamir do Nascimento Seabra

Prefácio 14
Rudinei Müller

Trajetória e histórias de uma professora educadora


popular 17
Márcia Rejane dos Santos Menger

Educação infantil, Educação Popular e assistência


social: as três experiências da minha vida profissional 29
Silvia Elisabete dos Santos Domingos

Os direitos da convivência familiar e comunitária a


partir do Serviço de Convivência e Fortalecimento
de Vínculos: uma reflexão a partir de entrevista com
educador social 37
Saionara Lemos Rodrigues dos Santos Villagran

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Sumário

Seres inacabados: experiências na Educação Popular 44


Catarina Elóia da Rosa Machado

Educadora e educador do MOVA-POA e a busca por


formação 50
Márcia Rejane dos Santos Menger, João Carlos Lucas da Silva

Educador social: trabalho e formação 55


Nara Rosana Godfried Nachtigall

Relato de experiências: um educador popular negro


em busca de formação 61
João Carlos Lucas da Silva

A arte de educar, aprender e transformar 67


Naiara Silveira

Arteterapia e simbologias no contexto da Educação


Popular 71
Gisiane Schneider Ferreira

Educação de jovens e adultos e movimentos sociais:


experiências educativas 90
Marcia Selau dos Santos

O Serviço de Convivência e Fortalecimento


de Vínculos 104
Tanise dos Santos Gonçalves

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Sumário

O assistente social e sua intervenção na formação


permanente dos educadores sociais 107
Andreia Soares de Lima, Fernanda dos Santos Paulo,
Vlamir do Nascimento Seabra

A importância do SCFV 128


Nara Helena dos Santos

Resiliência sempre: na busca de mudanças e


estratégias de mudanças 133
Simone da Costa Andrade Ferreira

Educadora social e as aproximações com a Educação


Popular a partir do curso no IFRS-Restinga 141
Lorena Martins Florisbal

Flores de um amanhã estão nas sementes de hoje:


reflexões sobre ser educadora popular 145
Taís Pereira de Gões

Curso de extensão em Educação Popular


(IFRS-Restinga e AEPPA): e o texto “(Des)encontros
entre a Educação Popular e a Pedagogia Social” 151
Jaqueline da Silva Ciotta

A experiência formativa no e entre o curso de


extensão do IFRS-Restinga em Educação Popular 157
Ismeria Florinda Silva de Almeida

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Sumário

Um texto, o contexto de trabalho e minha


compreensão de o que é ser um educador popular 162
Erick Silva de Souza

Educação profissional e os interesses do capital 171


Vlamir do Nascimento Seabra, Gilberto João Pavani

Formação de educadoras da educação infantil


comunitária de Porto Alegre (RS): relações entre
o público e o privado 179
Fernanda dos Santos Paulo, Simone Souza Prunier,
Simone Valdete dos Santos

Relatos de experiências na Educação Popular:


descobrindo os diferentes conceitos 194
Elenita Lopes da Silva, Jorge Pereira de Lima

Conhecendo uma experiência de pesquisa participante e


educação popular 205
Fernanda dos Santos Paulo, Carlos Rodrigues Brandão

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Notas dos organizadores

NOTAS DOS ORGANIZADORES

É preciso que o educador testemunhe aos educadores o gosto pela pergunta


e o respeito à pergunta. Nos seminários de Educação Popular, um dos temas
introdutórios fundamentais deve ser uma reflexão sobre a pergunta. A per-
gunta é fundamental, engajada na prática.1
(Paulo Freire, 1985, p. 6-7)

Com as palavras citadas na epígrafe, retiradas do livro Vir-


tudes do educador, de autoria de Paulo Freire, e inspirados nele,
que nos brinda com a importância e necessidade de uma peda-
gogia da pergunta, partimos de questões que nos têm orientado:
por que registrar experiências de educadoras que dizem fazer
Educação Popular? Quem é e de onde são os educadores e educa-
doras que utilizam Paulo Freire e a Educação Popular como fun-
damentação das práticas pedagógicas, realizadas em contextos
da educação escolar e educação não escolar?
Com o livro de Freire, pouco mencionado e utilizado en-
tre nós, pesquisadores do tema Educação Popular, assumimos
a partir dessa referência teórica a Educação Popular libertadora
que denuncia a pedagogia do opressor e do colonialismo. Pau-
lo Freire denomina esse colonialismo e opressão como “inva-
são cultural”, que nos impõe seus modelos de vida, entre eles o
de educação. Quando levantamos as duas questões anteriores,
referimo-nos a um contexto de longa trajetória de “cultura do
silêncio” no tocante ao que nós, educadores e educadoras das pe-
riferias, realizamos.
1 FREIRE, Paulo. Virtudes do Educador. In: Pronunciamento verbal realizado no dia
21 de junho de 1985, na Reunião Preparatória da III Assembleia Mundial de Edu-
cação de Adultos promovida pelo CEAAL (Conselho de Educação de Adultos da
América Latina).

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Notas dos organizadores

Para nós três, educadores envolvidos no Curso de Educação


Popular no IFRS- Restinga (POA-RS), recuperar essas histórias e
memórias é uma iniciativa embrionária tanto do ponto de vista
do curso de extensão no Instituto Federal quanto do registro de
experiências de Educação Popular em um livro. Esse trabalho
é um desejo antigo de educadores e educadoras populares inte-
grantes da Associação de Educadores Populares de Porto Alegre
(AEPPA) e do Movimento de educadores Populares (MEP).
Em Boaventura de Sousa Santos, sustentamos que o silen-
ciamento dessas experiências e dos saberes advindos delas é uma
forma de “epistemicídio”. Enquanto nossas instituições forma-
doras de educadores e educadoras continuarem com as práticas
de educação colonial, que é preconceituosa e nega a existência de
uma educação decolonial, estaremos vivenciando uma educação
opressora, silenciosa e dominadora.
Na contramão da pedagogia da opressão, estamos apresen-
tando o resultado de um trabalho realizado entre o Instituto Fe-
deral e o movimento popular, ambos consubstanciados por expe-
riência com formação de educadores e com pesquisas científicas.
Contrários à invasão cultural com o silenciamento das ex-
periências, vivenciamos um movimento inverso da pedagogia
colonialista, partindo da Pedagogia das periferias. Iniciamos
pelo curso de Educação Popular, reivindicado pela Associação
de Educadores Populares de Porto Alegre (AEPPA), que tem uma
longa história de luta por formação de educadores na perspectiva
da Educação Popular.
Consideramos este elo entre movimento popular e Instituto
Federal, emergido desse projeto, uma ousadia, porque quem o
escreve são os educadores e educadoras que estão, praticamente,
invisíveis do mundo da academia. Desejamos que esta obra se
constitua como o início de um trabalho de visibilização dessas
experiências de Educação Popular.
Os capítulos tratam das experiências de cada educador e
educadora; são redigidos a partir do desejo de contar quem é e
o que fazem como educadores populares e educadores sociais.
A proposta deste livro nasceu ao longo de vários encontros da
AEPPA, e foi com o IFRS-Restinga que se tornou viável.

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Notas dos organizadores

Na AEPPA, há um Grupo de Estudos e Pesquisas sobre


Paulo Freire e Educação Popular, além de processos de cursos e
seminários formativos que discorrem sobre temas advindos do
trabalho realizado pelos educadores e educadoras das periferias.
Logo, o livro tem uma relação com estudos, pesquisas e práticas
realizadas em diferentes contextos educativos.
Os autores e autoras dos artigos são todos graduados pela
experiência do e no trabalho, mas nem todos possuem graduação
acadêmica. Essa é uma luta nossa, dos educadores da AEPPA e
dos professores que atuam em instituições públicas de formação
de educadores. Participaram como autores(as) do curso  de ex-
tensão Educação Popular: trabalho e formação de educadoras/
es populares de Porto Alegre; são formadores, coordenadores
de curso e integrantes da AEPPA que colaboram nos processos
de formação de educadores na perspectiva da Educação Popular
com base em Freire.
Alguns dos temas tratados nos artigos apresentados são
advindos de experiências de educadoras que atuaram em espa-
ços escolares e não escolares: Educação Infantil, Ensino Fun-
damental, Educação de Jovens e Adultos, Educação não escolar
vinculada a Assistência Social, Movimento Popular, Ensino Fun-
damental, entre outras importantes experiências realizadas por
educadores e educadoras populares. Alguns artigos são apresen-
tados na forma de relatos de experiências; outros, resultados de
pesquisas acadêmicas, na graduação ou pós-graduação.
Os organizadores deste livro são professores e pesquisado-
res; atuam nas seguintes instituições de ensino: Instituto Federal
do Rio Grande do Sul campus Restinga e Universidade do Oeste
de Santa Catarina (Unoesc) de Joaçaba.

Fernanda Dos Santos Paulo


Gilberto João Pavani
Vlamir do Nascimento Seabra

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Prefácio

PREFÁCIO

Quem, melhor do que o oprimido, se encontrará preparado


para entender o significado terrível de uma sociedade opressora?
Quem sentirá, melhor que eles, os efeitos da opressão? Quem, mais
que eles, para ir compreendendo a necessidade da libertação?
(Freire, 1983, p. 32)

A Educação Popular evita e rejeita, originariamente, diálogos


com os “já instituídos”1, marcadamente heterônomos e opresso-
res2. O compromisso primeiro é com a recuperação dos sujeitos
históricos, com seu dever de ser fundamental, exigência da cons-
ciência histórica social experimentada como oprimidos, na luta
pela sua libertação, mediante a reflexão crítica, na práxis (FREI-
RE, 1983, p. 40). Para a Educação Popular, desde essa elaboração
original, o todo da cultura deve ser repensado e reorganizado. Essa
parece ser a exigência histórica crítica, social, cultural e teórica
imposta à educação, tal qual Fiori a definiu ao afirmar que ‘ela é
libertadora ou não é educação’ (1991, p. 84). Assim entendida, a
proposta da Educação Popular é necessária e radicalmente eman-
cipadora, constitutiva de uma cultura revolucionária, que assume
a tarefa histórica de contribuir para a superação das contradições
da sociedade capitalista, centrada no capital, caracterizadamente
exploradora dos trabalhadores e opressora do ser humano.
1 Pode-se dizer que, de certa forma, a Educação Popular reconhece o processo histórico
de institucionalização como marcadamente conservador, tal qual aparece em Haber-
mas e Hegel, atendendo prioritariamente às exigências do conceito, contrariando o
que Marx já havia afirmado na 11ª tese contra Feuerbach. Para Freire, “há uma radical
exigência de transformação objetiva da situação opressora” (FREIRE, 1983, p. 38).
2 A pedagogia do oprimido é uma proposta pedagógica em oposição à pedagogia dos
opressores, sempre já justificada no discurso institucional dominante.

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Prefácio

A experiência histórica e social fundante da Educação Po-


pular é a contradição radical da sociedade capitalista opresso-
ra, impossível de ser superada pelos caminhos da dominação
(FREIRE, 1983, p. 31), da negociação e do consenso (RAWLS,
2002 ) ou do diálogo universal (HABERMAS, 2003). Nela, ao
mesmo tempo, os trabalhadores se percebem como sujeitos da
cultura mas impossibilitados do exercício efetivo da sua liberda-
de (FREIRE, 1983, p. 35), pois a pedagogia da dominação busca
convencê-los do contrário, da sua dependência alheia, do capital
e dos poderes instituídos. Pois, a pedagogia da dominação bus-
ca convencê-los da incapacidade de dizer sua palavra (FREIRE,
1983, p. 34), de se organizarem e buscarem seus direitos. Dessa
forma, a pedagogia do oprimido, ao optar por pensar a existên-
cia, como prática da liberdade, assume o compromisso de expor
a experiência originária dos oprimidos, na sua luta política social
por libertação, contra qualquer forma de mistificação alienan-
te heterônoma capitalista opressora3. Segundo Molina (2011), a
Educação do Campo se constitui na mesma perspectiva da Edu-
cação Popular: construção da educação do campo4 e não mais
para o campo, coerente com uma proposta emancipadora de to-
dos os homens, em uma sociedade contraditória – capitalista e
democrática (WOOD, 2006).
As experiências fundantes da Educação Popular são as que
organizam esta publicação. São ações, movimentos, vozes – mui-
tas vezes caladas, ignoradas ou simplesmente apagadas – que
aqui aparecem com autoria e significado educacional e social.
Torna-se cada vez mais importante “dizer a sua palavra”. Não
podemos mais aceitar a naturalização dos discursos dominantes
que pretendem definir quem deve falar, o que deve ser publicado,
dito ou exposto. As pessoas precisam dizer a sua palavra, como
acentua Fiori no prefácio à Pedagogia do oprimido.
Saúdo os organizadores, mas principalmente os educadores
populares que qualificaram e tornaram possível esse Curso de

3 Cf. Marx (1999, p. 92), “[...] a mercadoria [...]. Analisando-a, vê-se que ela é algo
muito estranho, cheio de sutilezas metafísicas e argúcias teológicas.”
4 Essa proposta deve ser entendida na perspectiva da Pedagogia de Paulo Freire.

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Prefácio

Extensão no IFRS-Restinga. É de extrema relevância que as nos-


sas instituições saibam dialogar com suas comunidades, aten-
dendo suas aspirações, contribuindo no que nos é mais específi-
co: a educação de qualidade social. Esse curso significa um passo
importante nessa direção. Compreendo que as contribuições
teóricas e os registros de experiência, possíveis por esta publica-
ção, são extremamente relevantes e de significativa contribuição
na luta por direitos sociais no atual momento político social.

Rudinei Müller
Agosto de 2018

Referências

FIORI, Ernani M. Textos escolhidos: V. II.: Educação e Política.


Porto Alegre: L&PM, 1991.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 14. ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1983.
HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tra-
dução Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempos brasileiros, 2003.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I.
Tradução de Reginaldo Snt’Anna. 17. ed. Rio de Janeiro: Civili-
zação Brasileira, 1999.
MOLINA, Mônica. e FREITAS, H. C. de Abreu (Org.). Em
Aberto. Brasília: v. 24, nº 85, p. 1-177, abril de 2011.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisseta e
Linita Maria Rímoli Esteves. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra capitalismo: a
renovação do materialismo histórico. Tradução de Paulo Cezar
Castanheira. São Paulo: Boitempo Editora, 2006.
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Trajetória e histórias de uma professora educadora popular

TRAJETÓRIA E HISTÓRIAS DE UMA PROFESSORA


EDUCADORA POPULAR

Márcia Rejane dos Santos Menger1


profe.marcis.menger@gmail.com

Registrar através da escrita mostrou-se fundamental na ca-


minhada histórica do ser humano. Essa atividade preserva, para
futuras gerações, jeitos, ideias, maneiras de ser das comunidades,
contando histórias e trajetórias. Assim, inicio este relato resga-
tando lembranças de ensinos e aprendizagens.
Pertenço a uma família de oito irmãos, pai e mãe; fui a
primeira a nascer, sendo que praticamente ajudei a criar meus
irmãos. Éramos uma família de pouquíssimas posses, numa
época de poucos empregos e investimentos na área social; em
um tempo no qual os abastados dominavam e não havia tantos
programas sociais como hoje. Era bem difícil para uma mulher
trabalhar fora e ter onde deixar os filhos – principalmente oito
crianças, com idades de zero a dez anos. Porém, na adolescência,
lembro que participávamos de reuniões nas quais se reivindica-
vam melhorias para nossa comunidade, encontros promovidos
pela associação de moradores da vila, na década de 1970. A po-
pulação lutava por água encanada e por energia elétrica; e eu fi-
cava encarregada de escrever a ata das reuniões, porque sabia ler
e escrever e estava fazendo o ginásio.
1 Professora, pedagoga, especialista em Psicopedagogia Clínica e Institucional. Mili-
tante da AEPPA e MEP.

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Trajetória e histórias de uma professora educadora popular

Minha trajetória como educadora iniciou há muito tem-


po; mesmo sem perceber, já agia como tal. Em torno dos anos
1968/69, recordo que tentava ensinar vovó a ler e escrever, pois
havia a preocupação com o fato de que ela usava a impressão
digital para assinar documentos. Também havia as brincadeiras
de aulinha, quando escrevíamos com carvão ou caco de telha
nas paredes dos fundos da casa, local escolhido, autorizado por
mamãe, para que expressássemos nosso saber. Sempre nos ajudá-
vamos fazendo os temas, trabalhos, mesmo em sala de aula, pois
nos anos 70 estávamos quase todos os oitos irmãos na escola.
Mas a iniciação de educadora e militante confirmou-se muitos
anos depois.
No início dos anos 80, com o término do ensino médio, teve
início minha vida profissional (após uma tentativa de vestibular
na UFRGS): o primeiro emprego, em um laboratório de análise
clínicas, no escritório, para quem tinha curso de datilografia (!!!).
Em seguida, veio o casamento; depois, o nascimento dos filhos
(três), como convém à filha mais velha, uma moça de família, que
tinha que casar para dar exemplo aos irmãos. A vida profissional
foi deixada de lado; optei por ficar em casa e investir na educa-
ção dos filhos – do que não houve arrependimento. Deste modo,
durante alguns anos, com muito amor e carinho, cumpri o papel
de mãe e esposa. Quando realizei tentativa de voltar ao mercado
de trabalho, já estava “defasada”, por ficar muito tempo afastada
e devido à idade. A saída foi investir em capacitação. Encontrá-
vamo-nos em plena era dos cursos de digitação e conhecimentos
de informática; quem quisesse um emprego teria de contar com
noções básicas de computação.
Chegados os anos 90, mesmo com curso, não havia colo-
cação para uma mulher entre 30 e 40 anos, com três filhos, que
queria e precisava trabalhar; à época, o salário do funcionalis-
mo atrasava em até seis meses (novidade de hoje em dia) e todos
meus familiares eram funcionários públicos estaduais. Apareceu
a oportunidade de trabalhar em serviços gerais, meio turno, sa-
lário bom, pagamento em dia e outros benefícios. Em seguida, o

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Trajetória e histórias de uma professora educadora popular

trabalho como babá, melhor ainda: ofereciam carteira assinada,


atividades de segunda a sexta-feira, meio turno.
O trabalho na comunidade continuava, como catequista,
participando dos encontros das Comunidades Eclesiais de Base
e da Romaria da Terra. As reuniões da associação de bairro sur-
tiram efeito: a água e a energia elétrica foram conquistadas entre
1981 e 1983. A comunidade precisava, então, de asfalto, pois a
chuva abria crateras nas ruas. Devido a minha vida familiar, já
não tinha muito tempo para participar dessas reuniões de reivin-
dicação; participar das caminhadas pelas CEBs era mais viável,
pois os filhos participavam também – tornamo-nos lideranças
comunitárias e, deste modo, a militância se construía.
No final dos anos 90, surgiu o convite para integrar a AEP-
PA, força que restituiu a autoestima de muitas mulheres e mui-
tos homens. Iniciando o novo século, assumindo uma turma do
Movimento de Alfabetização (MOVA, programa público que,
criado por Paulo Freire, apoia a educação em salas comunitárias,
tendo sido adotado por várias prefeituras), aprendi muito mais
do que ensinei, mesmo porque tinha só o ensino médio. Nesse
trabalho comunitário, assumi mais ardentemente a militância,
percebendo como se fazia necessário que as pessoas tivessem co-
nhecimento, que se informassem sobre políticas públicas, seus
direitos como cidadãos, cidadãs.
Esse momento como educadora popular propiciou mui-
tos aprendizados, inicialmente nas formações promovidas pelo
MOVA, depois com os educandos e suas histórias vividas, vivifi-
cantes, viventes. Foram cinco anos atuando como educadora do
MOVA e, após o encerramento desse, participando do programa
Brasil Alfabetizado. Durante a participação no MOVA, acontece-
ram encontros de formação para a criação de uma cooperativa,
com educadores(as) e educandos(as) do Movimento de Alfabe-
tização. Devido a problemas administrativos e legais, o sonho
da cooperativa não se concretizou, porém o aprendizado ficou
e os participantes aprofundaram conhecimentos e saberes. Sen-
do parte da população carente, em contradição com a socieda-
de mais favorecida, perceberam-se capazes de sair desse estado

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Trajetória e histórias de uma professora educadora popular

de conformados com a situação. Participando dos movimentos


sociais, interiorizaram argumentos para uma sociedade menos
injusta e mais humana. Acreditavam que o educador tinha gran-
de importância para que conseguissem mudanças em suas vidas.
Segundo Gadotti (2007, p. 20), “Paulo era muito otimista, acre-
ditava nas pessoas e as estimulava, com suas palavras, ao enga-
jamento e à luta por um outro mundo possível. Repetir muitas
vezes que o mundo é possibilidade, não fatalidade.”
As formações, as saídas de estudos com os educandos(as)
foram de uma riqueza incomparável. A participação dos grupos
em feiras populares nas comunidades proporcionou geração de
renda para as famílias dos aprendentes. Orgulhosa e humilde-
mente, uma mãe sustentou sua família por dois anos recolhendo
material reciclável nas ruas, fazendo e vendendo pães e cucas ca-
seiras. Também havia quem fazia tricô e crochê, panos de prato,
bordado, colocando sua arte para ser apreciada e vendida, bem
como peças de artesanato. Percebia-se que as pessoas procura-
vam a alfabetização para ter acesso ao emprego ou melhorar con-
dições de trabalho. Incluía-se o saber da história, que seria pas-
sado para seus descendentes, valorizando o saber como melhoria
de vida. Gadotti (2007, p. 20) nos diz que “A educação não é um
tesouro que se perde ao “entregar” a outros. Ao contrário é um
tesouro que aumenta ao ser repartido. Mais tarde ele diria que só
é válido o conhecimento compartilhado.”
No entanto, para além do conhecimento construído, os
educandos viam nos encontros um momento em que podiam
expressar seus sentimentos, suas angústias, expondo habilida-
des e possibilidades, mostrando-se gente, sentindo-se gente. E
gente amada e acolhida, reconhecendo seu lugar, assumindo-o.
Essas atitudes mostraram que havia outro caminho, com pes-
soas cuidando e instruindo outras com afeto e carinho. O gru-
po se percebia capaz de ser diferente, pensando nos familiares,
levando-lhes esse conhecimento e os incentivando a prosseguir
na caminhada. E, nesta andança, a luta por direitos e melhorias
se deu participando em grupos de debates, audiências públicas,

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Trajetória e histórias de uma professora educadora popular

entre outros movimentos comunitários, como o Orçamento Par-


ticipativo. Freire (1996, p. 46) afirma que

Um dos saberes primeiros, indispensável a quem, chegando a favelas


ou a realidades marcadas pela traição a nosso direito de ser, pretende
que sua presença se vá tornando convivência, que seu estar no con-
texto vá virando estar com ele, é o saber do futuro como problema e
não como inexorabilidade. É o saber da História, como possibilidade
e não como determinação. O mundo não é. O mundo está sendo.
Como subjetividade curiosa, inteligente, interferidora na objetivida-
de com que dialeticamente me relaciono, meu papel no mundo não é
só o de quem consta o que ocorre, mas também o de quem intervém
como sujeito de ocorrências.

A atuação como educadora popular do MOVA e, depois, do


Brasil Alfabetizado estava esgotando o conhecimento prévio que
trazia comigo. Os estudantes careciam de maior capacitação da
educadora. O envolvimento com o grupo, o anseio por mais sa-
beres impulsionava a novos desafios. Até ali, o saber nato de cada
um tornava a turma capaz de ir adiante; assim foram encami-
nhados para escolas de ensino regular. Essas pessoas, na maioria,
seguiram estudando, porém quem já tinha idade mais avançada
sentiu-se feliz e contentou-se em aprender a ler e escrever. Seus
familiares sentiram-se motivados a retornar aos estudos em bus-
ca de melhores condições vida e, dentro de sua “compreensão de
mundo”, prosseguiram, formando militância na região, na peleja
por igualdade social. A cada ano, uma nova turma se habilitava
e seguia sua trajetória; esta educadora, que iniciou o Curso Nor-
mal, fazendo o magistério, capacitou-se como professora de anos
iniciais, entre 2005 e 2007, curso que foi demanda da AEPPA2 e
de educadoras da educação infantil de Porto Alegre.
Foi uma experiência marcante, conquistara um título! Era
professora! Podia dar aulas! Aprendera tantas coisas, desde a
educação infantil até os anos iniciais. A equipe da escola era for-
mada por excelentes e competentes profissionais, lutadoras e mi-

2 Sobre a Associação de Educadores Populares de Porto Alegre (AEPPA), Paulo


2010;2013) registra nossa experiência de luta por formação via Educação Popular.

21 de 220
Trajetória e histórias de uma professora educadora popular

litantes. Pensávamos nos alunos com os quais atuaríamos e, para


tanto, a preparação teria que ser adequada, pois o mais importan-
te era o ser em formação. Para Martiniak (2015, p. 53),

Os estudos dessas temáticas desencadearam reflexões e debates


acerca da formação docente, seja ela inicial ou continuada. O desen-
volvimento profissional decorre da mobilização de conhecimentos,
enquanto estratégia para a formação docente, no intuito de buscar
compreender e transformar a realidade complexa, desafiadora e
multifacetada que se apresenta atualmente.

Para atender aos anseios dos estudantes, educadores(as)


procuram por mais conhecimentos, outros aprendizados, mos-
trando-se incentivadores para seus educandos(as). A formação
continuada auxilia os sistemas de ensino destacando o papel do
professor como protagonista na construção de sua autonomia
docente, com base na perspectiva teórica de emancipação crítica
dos alunos e, por conseguinte, melhoria da qualidade de apren-
dizagem da escola pública. No dizer de Freire, no segundo capí-
tulo do Pedagogia da autonomia:

Se, de um lado, não posso me adaptar ou me “converter” ao saber


ingênuo dos grupos populares, de outro, não posso, se realmente
progressista, impor-lhes arrogantemente o meu saber como o ver-
dadeiro. O diálogo em que se vai desafiando o grupo popular a pen-
sar sua história social como a experiência igualmente social de seus
membros, vai revelando a necessidade de superar certos saberes que,
desnudados, vão mostrando sua “incompetência” para explicar os
fatos. Um dos equívocos funestos de militantes políticos de prática
messianicamente autoritária foi sempre desconhecer totalmente a
compreensão de mundo dos grupos populares. Vendo-se como por-
tadores da verdade salvadora, sua tarefa irrecusável não é propô-la,
mas impô-la aos grupos populares. (1996, p. 49).

Assim, com poucos saberes que não se podem dizer verda-


deiros, pois não existe um único saber, não sendo todos iguais,
fez-se necessário aprofundar conhecimentos. As turmas de apren-
dizagem traziam diferentes perfis, exigindo do educador capaci-

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Trajetória e histórias de uma professora educadora popular

dade em solucionar impasses diários – ao mesmo tempo que ensi-


nava, aprendia. Era momento de trocar experiências, reconstruir
conhecimentos.

A consciência do mundo, que viabiliza a consciência de mim, in-


viabiliza a imutabilidade do mundo. A consciência do mundo e a
consciência de mim me fazem um ser não apenas no mundo, mas
com o mundo e com os outros. Um ser capaz de intervir no mundo e
não só de a ele se adaptar. É neste sentido que mulheres e homens in-
terferem no mundo enquanto os outros animais apenas mexem nele.
É por isto que não apenas temos história, mas fazemos a história que
igualmente nos faz e que nos torna, portanto históricos. (FREIRE,
2000, p. 20).

Seguindo a trajetória, dois anos após a formação no Curso


Normal, na Escola Municipal Emílio Meyer, em Porto Alegre,
foram disponibilizadas vagas para o curso de Licenciatura em
Pedagogia no Instituto Metodista Porto Alegre (IPA), para as-
sociadas da AEPPA. As pessoas interessadas teriam que partici-
par do concurso vestibular da instituição. Consegui, assim, uma
bolsa integral, passando na seleção vestibular de 2009; aproveitei
a grande oportunidade, resultado de lutas populares. Seguiria a
formação em nome dos primeiros educandos(as) atendidos(as),
lá no MOVA. À época, ainda trabalhava como cuidadora de uma
criança, sendo que todos ficaram bem satisfeitos com minha
conquista. Meus filhos (dois anos antes, em 2007, havia me sepa-
rado; agora, eu era mãe e pai) e parentes também se apropriaram
dessa felicidade. O caminho, para uma bolsista, vinda da perife-
ria, foi de muitas dificuldades, mas orgulhosamente percorrido
e vencido. Paulo Freire, em seu livro Cartas a Cristina (2003),
descreve a situação financeira difícil que a família enfrentava
naquele momento. Entretanto, numa análise crítica de sua vida,
sentimentos, frustrações, conta a história do sujeito e sua reali-
dade histórica. Fala de idas e vindas, em que se foi tornando o
educador reconhecido.
No início de 2011, assumi como educadora de uma turmi-
nha do jardim, numa instituição de educação infantil na comu-

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Trajetória e histórias de uma professora educadora popular

nidade em que morava. Deixei, então, de ser cuidadora de apenas


uma criança para interagir com vinte e cinco pequenos seres de
cinco anos, em média. Quanta aprendizagem! Muitos momen-
tos de alegria, risos; também aconteceu choro, birra, desentendi-
mento – mas os bons momentos se sobrepuseram. Essa institui-
ção contava com muitas educadoras associadas e militantes da
AEPPA, que já haviam se graduado em Pedagogia. Era um or-
gulho ter pessoas habilitadas, mas que ainda lutavam para serem
reconhecidas como professoras e por salário digno. Vale salien-
tar que fizeram graduação em Licenciatura em Pedagogia com
ênfase em Educação Popular, através do convênio com a univer-
sidade, a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUC-RS). Entretanto, a instituição não manifestou interesse em
editar o curso novamente. No Dicionário Paulo Freire, podemos
ler o seguinte verbete:

O tema da educação das classes populares, largamente denominadas


de oprimidas ou, então, de povo, perpassa e é o centro de sua obra.
É na sua mais importante obra, a Pedagogia do oprimido (2003),
na qual amplia seu referencial teórico, dialogando com autores que
comungam do ideário marxista: Lênin, Marcuse, Fromm, Kosic,
Lukács, etc., que o autor discute, com profundidade, a relação entre
opressores e oprimidos, evidenciando a dimensão política da educa-
ção e contrapondo concepções educativas. (PALUDO, 2010, p. 140).

Reconheço a graduação como um momento histórico, em-


bora bastante difícil, mas nem por isso deixou de ser brilhante.
Foi um período de grandes conhecimentos, contato com mestres
de grande sabedoria, muitas vivências e ensinamentos. Esses en-
sinantes reconheciam e valorizavam a jornada diária ou, melhor,
noturna, pois boa parte da turma estava no terceiro turno estu-
dando à noite, após um dia de trabalho. Incentivavam o grupo,
dedicavam-se com muito carinho aos ensinamentos ministra-
dos. A academia nos fornece um diploma, mas só a experiência e
a humildade em reconhecer que somos pequenos diante de tanta
grandeza podem nos transformar em seres melhores. A passa-
gem pelo IPA foi oportunidade de muito aprendizado, deslum-
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Trajetória e histórias de uma professora educadora popular

bramento por estar na faculdade. Também motivo de orgulho


para pessoas próximas, companheiras de caminhada na militân-
cia, sempre trazendo presente a Associação dos Educadores Po-
pulares de Porto Alegre e a Educação Popular, que propiciou esta
caminhada. Seguindo o dizer de Freire (2000, p. 20),

Gosto de ser gente, pelo contrário, porque mudar o mundo é tão fácil
quanto possível. É a relação entre a dificuldade e a possibilidade de
mudar o mundo que coloca a questão da importância do papel da
consciência na história, a questão da decisão, da opção, a questão da
ética e da educação e de seus limites.

Nesse ínterim, ao me apresentar para o estágio em anos ini-


ciais, fui convidada a assumir uma turma de terceiro ano numa
escola particular. Mesmo com receio, temendo não estar prepa-
rada, aceitei o desafio. Foi assim que, estagiando como profes-
sora de uma turma de terceiro ano, ainda cursando Pedagogia,
realizei o concurso para o magistério na rede estadual de ensino,
que há algum tempo não acontecia. O processo foi muito feste-
jado por todos da área da educação; até então, a secretaria es-
tadual realizava apenas contratos temporários para professores.
Para satisfação e alegria, fui aprovada no concurso, em 2012!!
Aguardava, então, a chamada para assumir a vaga. Fiz a opção
pela escola pública, deixando a escola particular e a escola de
educação infantil.
Com o ingresso na rede estadual, dei-me conta do quão
distante estava a realidade das escolas em relação às teorias da
universidade e da experiência como educadora popular. Havia
um distanciamento entre educador e educando, o estudante não
era visto como um todo; no dizer de Freire, não se fazia uma edu-
cação “com o povo para o povo”. A educação libertadora trans-
forma a sociedade, aguça a curiosidade, promove a problemati-
zação, o diálogo e o protagonismo dos sujeitos. Ainda citando
Paulo Freire (2000, p. 22), pode-se afirmar que

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Trajetória e histórias de uma professora educadora popular

A educadora progressista não se permite a dúvida em torno do direi-


to, de um lado, que os meninos e as meninas do povo têm de saber a
mesma matemática, a mesma física, a mesma biologia que os meni-
nos e meninas das “zonas felizes” da cidade aprendem, mas, de ou-
tro, jamais aceita que o ensino de não importa qual conteúdo possa
dar-se alheado da análise crítica de como funciona a sociedade.

Desta forma, percebendo as dificuldades de aprendizagem


de alguns alunos, iniciei a pós-graduação em Psicopedagogia
Clínica e Institucional em 2014, na tentativa de solução das dú-
vidas surgidas na trajetória das turmas em que atuei. Encontrei
respostas para algumas problemáticas, porém surgiram mais
dúvidas, mais questionamentos quanto à construção do conhe-
cimento dos estudantes. As crianças mereciam um atendimento
que as levasse a compreender sua situação, enfrentar e vencer de-
safios no ensino-aprendizagem. Os alunos têm diferentes habili-
dades e possibilidades que podem ser desenvolvidas, o foco deve
ser nas potencialidades e não nas deficiências. Acentua-se, então,
a necessidade da formação continuada, os adultos envolvidos no
processo podem aprender novas maneiras de ensinar e, por que
não, aprender, posto que adultos já foram crianças e também tra-
zem consigo angústias. Martiniak (2015, p. 55) afirma:

Para que o professor se torne agente de umas práxis transformado-


ras, é necessário compreender o contexto escolar como espaço de
possibilidades de investigação que o desafiarão a encontrar soluções,
estratégias e metodologias diversificadas para a melhoria do proces-
so ensino aprendizagem.

No seguinte ano, após pleito eleitoral para diretores(as), as-


sumi a direção da escola estadual, na qual ainda estou. Apre-
sentou-se como grande desafio, com grandes sonhos e muitas
expectativas. Paulo Freire insistia que somos seres incompletos,
inacabados, inconclusos; por isso estamos sempre aprendendo e
passando por novas experiências que vão também interferindo
na forma como vemos o mundo (1996, p. 54-55).

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Trajetória e histórias de uma professora educadora popular

A organização e a gestão escolar nas escolas públicas de


educação básica exigem aprofundamento teórico. Os sistemas
de ensino (público ou privado) são regulados por normas, que
têm força de lei. A gestão democrática conta com a participação
popular; ora, a Educação Popular deveria se fazer presente, po-
dendo ser uma proposta político-pedagógica, transformadora de
política educacional e social. Portanto, como ser inconcluso, em
formação continuada, prossigo na jornada.

Referências

FREIRE, Paulo. Cartas a Cristina. Reflexões sobre minha vida


e minha práxis. 2. ed. São Paulo: UNESP, 2003.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: EGA,
1996.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e
outros escritos. São Paulo: UNESP, 2000.
GADOTTI, Moacir. A escola e o professor: Paulo Freire e a
paixão de ensinar. São Paulo: Publisher Brasil, 2007.
MARTINIAK, Vera Lucia. Professor como protagonista: a
construção da autonomia docente no processo de formação
continuada. In: BRASIL. Secretaria de Educação Básica.
Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa: Caderno
de Apresentação. Ministério da Educação, Secretaria de
Educação Básica, Diretoria de apoio à gestão educacional.
Brasília, 2015. p. 52-61.
PALUDO, Conceição. Educação popular. In: STRECK, Danilo
R.; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime José (org.) Dicionário
Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

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Trajetória e histórias de uma professora educadora popular

PAULO, Fernanda dos Santos. A formação do(as)


educadores(as) populares a partir da práxis: um estudo de
caso da AEPPA. 2013. 273 f. Dissertação (Mestrado em Edu-
cação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 2013.
PAULO, Fernanda dos Santos. Formação dos/as educadores/
as populares de Porto Alegre formados/as em Pedagogia:
identidade, trajetória e desafios. 2010. 79f. Trabalho de Conclu-
são de Curso (Especialização em Educação Popular) – Instituto
Superior de Educação Ivoti & Instituto de Desenvolvimento
Brava Gente, Porto Alegre, 2010.

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Educação infantil, Educação Popular e assistência social

EDUCAÇÃO INFANTIL, EDUCAÇÃO POPULAR E


ASSISTÊNCIA SOCIAL: AS TRÊS EXPERIÊNCIAS
DA MINHA VIDA PROFISSIONAL

Silvia Elisabete dos Santos Domingos


silvinhadomingos@hotmail.com

Introdução

O presente artigo relata as experiências que vivenciei ao


longo de seis anos após sair da academia, a trajetória percorrida
como coordenadora administrativa de uma escola conveniada
com o município de Porto Alegre e como educadora social de
Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos
(PAEFI) em um Centro de Referência Especializado de Assistên-
cia Social (CREAS).
A minha trajetória pela educação iniciou em 2013, quando
fui contratada para assumir uma vaga de auxiliar administrati-
va em um Serviço de Convivência e Fortalecimento de Víncu-
los (SCFV), antigo Serviço de Apoio Socioeducativo (SASE), que
atende crianças e adolescentes de 6 a 14 anos no turno inverso
ao da escola, após a formação acadêmica pela ULBRA 2012, em
Serviço Social.
A mantenedora da escola me convidou naquele mesmo ano
para, inicialmente, assumir a vaga de auxiliar administrativo da

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Educação infantil, Educação Popular e assistência social

escola de educação infantil, fruto de um convênio com o municí-


pio de Porto Alegre, devido ao remanejo de uma outra colega. Ao
longo dos anos, fui promovida a coordenadora administrativa da
conveniada, tendo me desligado em maio de 2018.
Serviço Social e Educação Popular são minha especializa-
ção, a qual realizei como muito orgulho no Instituto de Desen-
volvimento Social Brava Gente, carinhosamente chamado Brava
Gente. Foi lá que conheci a Educação Popular, e a partir daí me
reconheci educadora popular por concepção.
A nova trajetória profissional começou neste ano (2018),
como educadora social PAEFI em um CREAS.

Início da trajetória no SCFV

A passagem pelo Serviço de Convivência e Fortalecimento


de Vínculos foi muito rápida. Assumi a vaga por dois meses so-
mente, e a experiência me possibilitou o primeiro contato com a
educação. Lá percebi a realidade dos educandos daquele serviço
e o quanto precisavam que seus direitos fossem minimente ga-
rantidos; o acesso a eles dependia de uma educação conscienti-
zadora.
Observava o quanto a fragilidade de vínculos estava pre-
sente naquele espaço de proteção a crianças e adolescentes. Eu,
como auxiliar administrativa, comecei a me perguntar o que
poderia fazer para ser diferente daquilo que se apresentava na
realidade: precariedade e fragilidades. Notei que a oferta daquele
serviço, naquele momento, era fruto de pouquíssimas interven-
ções pedagógicas e políticas. Tudo ocorria com muita precarie-
dade, devido a diversos fatores: financeiros, recursos humanos e
espaço.
O trabalho de escuta aos educandos e proteção era tudo que
priorizávamos na instituição. Eu e a equipe tínhamos vários pla-

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Educação infantil, Educação Popular e assistência social

nos para o espaço. Desejávamos realizar um trabalho junto com


os educandos articulado com a família, cuja ação fosse inspirada
nas práticas da Educação Popular.
Os serviços de assistência e de proteção era o que eu vinha
desenvolvendo, porém acabei sendo remanejada e o serviço foi
fechado pelas dificuldades mencionadas.

A educação infantil e a escola

A educação como processo de formação permanente, que


inicia na primeira infância e se estende pela vida toda, baseia-
-se na ideia de que estamos sempre aprendendo, como nos ensina
Paulo Freire ao dizer que somos seres em construção permanente:

É na inconclusão de ser, que se sabe como tal, que se funda a edu-


cação como processo permanente. Mulheres e homens se tornam
educáveis na medida em que se reconheceram inacabados. Não foi
a educação que fez homens e mulheres educáveis, mas a consciência
de sua inconclusão é que gerou sua educabilidade. (FREIRE, 1996,
p. 64).

Quando pensamos em um novo modelo de sociedade, exi-


ge-se que pensemos a gestão escolar, uma vez que na escola exis-
tem ou deveriam existir as condições para irmos aprendendo e
ensinando. As questões surgem e começamos a pensar e buscar
realizar a escola que queremos, porque, inspirados em Freire, de-
sejamos que ela seja para todos(as) e, consequentemente, articu-
lada à sociedade que desejamos: socialista.
A vontade mútua de construir juntos um espaço que pudes-
se ser da comunidade por direito e por escolha, assim colaboran-
do na tomada de decisões, foi um dos objetivos; e deveria ser o de
todos os educadores.

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Educação infantil, Educação Popular e assistência social

A educação infantil e a Educação Popular

A minha trajetória profissional na educação infantil come-


çou logo após o fechamento do SCFV. Atuei inicialmente como
auxiliar administrativo e posteriormente como coordenadora
administrativa da escola comunitária. Porém minha formação
acadêmica é em Serviço Social, o que me instigava a conhecer a
Pedagogia.
Buscava saber e pesquisar como eu podia fazer para modi-
ficar a realidade na qual eu exercia uma função não condizente
com minha formação e que possuía uma trajetória de precariza-
ção e má execução da política (PAULO, 2013). Encontrei, porque
necessitava me qualificar naquilo que eu acreditava, o Instituto
Social Brava Gente. Decidi me especializar para compreender a
Educação Popular e a constituição de ser educadora popular. Re-
solvi, então, discutir a gestão na Educação Infantil e a Educação
Popular em meu Trabalho de Conclusão de Curso.
A necessidade de pesquisar esse assunto surgiu a partir das
observações que tive em campo, ou seja, no trabalho. Aprendi,
no meu curso de especialização em Educação Popular e Serviço
Social, que no trabalho nos formamos.
Minhas inquietações eram relacionadas à participação da
comunidade escolar nesse local que possuía uma associação de
moradores como instituição mantenedora. O que fazia essa ins-
tituição ter a definição de comunitária? Os papéis que a consti-
tuíam ou os processos de participação da comunidade lhe confe-
riam tal condição?
Eu sabia e acredito que nossa participação social é funda-
mental para que a sociedade realize o controle social e a demo-
cracia participativa, mas eu não conseguia entender o porquê da
precarização na execução da política da educação infantil, tendo
em vista que ela era oferecida via associação em parceria com a
Secretaria Municipal de Educação. Busquei compreender esses
processos na monografia que escrevi e percebi que

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Educação infantil, Educação Popular e assistência social

O convênio com o município de Porto Alegre das Escolas de Edu-


cação Infantil contextualiza a precarização da educação, é um ser-
viço cujo custeio por criança é mais baixo do que locais públicos
e a profissionalização é de mão de obra barata e também explora-
da com uma jornada de trabalho ultrapassando oito horas diárias.
(DOMINGOS, 2014, p. 14).

Na minha pesquisa, confirmaram-se espaços de participa-


ção efetiva da comunidade escolar dentro do ambiente institu-
cional educativo. Talvez pela característica do próprio espaço: de
associação. Percebemos que os temas ligados ao processo peda-
gógico precisam ser abertos para a comunidade independente-
mente do nível ou cargo que as pessoas possuem. Mas, para tal,
é necessário que educadores tenham formação (PAULO, 2013);
sem ela, a participação efetiva se fragiliza.

Uma sociedade participativa seria então aquela em que todos os


cidadãos têm parte na produção, gerência e usufruto dos bens da
sociedade de maneira equitativa toda estrutura social e todas as ins-
tituições estariam organizadas para tornar isto possível. (BORDE-
NAVE, 1983, p. 25).

A gestão democrática e participativa pode ser um caminho


para garantir uma educação que prepare as pessoas para atua-
rem participativamente no mundo, mas de forma consciente.
Acredito que, implementando na escola outros espaços de apren-
dizagens, como, por exemplo, a participação nas reuniões e nas
decisões que precisam ser tomadas em termos de gestão, é pos-
sível que se garanta, minimamente, uma educação com práticas
emancipatórias, para além do que está escrito na lei e é proposto
pela esfera pública. Desejamos a Educação Popular e, para isto, é
preciso participar e lutar pela mudança social.

O caráter inacabado dos homens e o caráter evolutivo da realidade


exigem que a educação seja uma atividade contínua. A educação é,
deste modo, continuamente refeita pela práxis. Para ser, deve chegar
a ser. Sua duração – no sentido bergsoniano da palavra – encontra-se
no jogo dos contrários: estabilidade e mudança. O método bancário

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Educação infantil, Educação Popular e assistência social

põe o acento sobre a estabilidade e chega a ser reacionário. A educa-


ção problematizadora – que não aceita um presente bem conduzido,
nem um futuro predeterminado – enraíza-se no presente dinâmico
e chega a ser revolucionária. (FREIRE, 1980, p. 81).

Para que esta ação/reflexão, a práxis, da sociedade aconte-


ça, é necessário que homens e mulheres tenham a convicção que
por direito pertencem a esses espaços, e que a qualidade deles
deve ser resultado de sua participação. Por isso, indagar sobre
a proposta de participação e como se dá essa participação é ne-
cessário. Precisamos saber quais espaços da comunidade escolar
nos revelam as demandas para construir espaços participativos e
uma gestão democrática, iniciando um processo de transforma-
ção da realidade a partir da escola e da comunidade.

Uma educadora social de um CREAS

O começo de uma educadora social PAEFI em um CREAS é


experiência nova para mim. Ingressei em maio deste 2018. É um
trabalho dinâmico, que possibilita o conhecimento da Política da
Assistência Social. É um serviço de média complexidade, confor-
me dispõe a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais.
Educador Social é uma profissão; unindo-a com a opção de ser
educadora popular, passei a me desafiar no dia a dia do meu tra-
balho.
Quando problematizamos o que temos de efetivas ferra-
mentas para o nosso trabalho, podemos ir além. Esse exercício
é um compromisso que todos os profissionais deveriam assumir,
pois, para sabermos em que precisamos avançar, é preciso reco-
nhecer onde estamos e qual caminho vamos trilhar. Vejo essa
necessidade na assistência social e por isso acredito que Paulo
Freire e a Educação Popular devam estar mais presentes tanto no

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Educação infantil, Educação Popular e assistência social

curso de Serviço social como nas políticas de assistência, princi-


palmente no tocante aos educadores sociais1.

A educação problematizadora está fundamentada sobre a criativida-


de e estimula uma ação e uma reflexão verdadeiras sobre a realidade,
respondendo assim a vocação dos homens que não são seres autênti-
cos senão quando se comprometem na procura e na transformação
criadoras. Em resumo: a teoria e a pratica bancária, enquanto forças
de imobilização e de fixação, não reconhecem os homens como seres
históricos; a teoria e a prática crítica tomam como ponto de partida
a historicidade do homem. (FREIRE, 1980, p. 81).

A problematização da nossa prática profissional possibilita


que possamos fazer propostas e criar as condições necessárias
para que a participação efetiva da população mude a sociedade;
estamos em um ponto no qual já não podemos nos preocupar
só com a qualidade dos serviços, mas a respeito de a serviço de
quem e do que eles estão aí.

Considerações finais

Minhas experiências profissionais foram pautadas nesses


três espaços – SCFV, PAEFI, CREAS –, nos quais aprendi o quan-
to a Educação Popular é revolucionária e também que precisamos
lutar para garantir melhores condições de espaço de trabalho,
valorização profissional, acesso à garantia dos direitos conso-
lidados, acesso à educação, acesso à saúde, entre tantos outros.
Analisar as práticas é postura democrática que precisa ser incor-
porada seja ao trabalho do educador social (contexto não escolar),
seja ao do educador da escola. Quando nos colocamos a refletir
sobre o que estamos fazendo, mais aspectos se colocam centrais
e importantes para uma prática que pretende ser emancipatória,
democrática e participativa.

1 Realizamos Cursos na AEPPA e Brava Gente para abordarmos este tema.

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Educação infantil, Educação Popular e assistência social

Referências

BORDENAVE, Juan. O que é participação. São Paulo:


Brasiliense, 1983.
DOMINGOS, Silvia Elisabete dos Santos. Gestão e a Educação
Popular: fatores que contribuem para uma gestão comunitária
e participativa na escola de Educação Infantil. Trabalho de Con-
clusão de Curso (Especialização em Serviço Social e Educação
Popular) – Complexo Educacional Faisa e Instituto de Desen-
volvimento Social Brava Gente, Porto Alegre, 2014.
FREIRE, Paulo. Conscientização-teoria e prática da liberta-
ção: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo:
Cortez & Moraes, 1980.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à
prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
PAULO, Fernanda dos Santos. Formação dos/as educadores/
as populares de Porto Alegre formados/as em Pedagogia:
identidade, trajetória e desafios. 2010. 79f. Trabalho de Conclu-
são de Curso (Especialização em Educação Popular) – Instituto
Superior de Educação Ivoti & Instituto de Desenvolvimento
Brava Gente, Porto Alegre, 2010.

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Os direitos da convivência familiar e comunitária a partir do serviço de convivência

OS DIREITOS DA CONVIVÊNCIA FAMILIAR E


COMUNITÁRIA A PARTIR DO SERVIÇO DE CON-
VIVÊNCIA E FORTALECIMENTO DE VÍNCULOS:
UMA REFLEXÃO A PARTIR DE ENTREVISTA COM
EDUCADOR SOCIAL

Saionara Lemos Rodrigues dos Santos Villagran


saiolemos@yahoo.com.br

Introdução

A Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e


do Adolescente, de 1990, foram importantes normativas que pas-
saram a considerar crianças e adolescentes como sujeitos de di-
reitos, pessoas em condição peculiar de desenvolvimento e, por-
tanto, prioridade nas políticas públicas, em especial as sociais.
Seus direitos devem ser assegurados pelo Estado, pela família e
pela sociedade, sobretudo o direito à convivência familiar e co-
munitária. Assim, o Serviço de Convivência e Fortalecimento de
Vínculos (SCFV) – Serviço da Proteção Social Básica – tem como
finalidade fortalecer a função protetiva das famílias e prevenir a
ruptura dos seus vínculos, promovendo acesso e usufruto de di-
reitos e contribuindo na melhoria da qualidade de vida do usuá-
rio. Serão apresentadas, após as primeiras reflexões sobre os di-
reitos, algumas questões referentes ao educador social mediante

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Os direitos da convivência familiar e comunitária a partir do serviço de convivência

os desafios de seu trabalho. As reflexões são resultados das entre-


vistas realizadas em instituições que trabalham com SCFV. Esse
trabalho foi solicitado no Curso de Educação Popular realizado
no IFRS-Restinga em parceria com a Associação de Educadores
Populares de Porto Alegre (AEPPA).

Políticas Sociais

A assistência social nem sempre foi considerada um direi-


to social, sendo vista como prática assistencial e clientelista com
base na caridade e filantropia. Somente a partir da Constituição
Federal de 1988 (CF/88) inaugurou-se um padrão de proteção
social afirmativo de direitos, sendo a assistência social definida
como direito garantido a todas as famílias que dela necessitam
(BRASIL, 1988).
A CF/88 (BRASIL, 1988) estabelece, no seu artigo 226, que
“a família é a base da sociedade” e compete, juntamente com ela,
ao Estado e à sociedade em geral “assegurar à criança, ao ado-
lescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à
saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência fa-
miliar e comunitária” (Art. 227). Isso se confirma no artigo 203,
também da CF/88, que destaca os objetivos da assistência social:

Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar,


independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por
objetivos:
I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e
à velhice;
II - o amparo às crianças e adolescentes carentes;
III - a promoção da integração ao mercado de trabalho;
IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiên-
cia e a promoção de sua integração à vida comunitária;
V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa
portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir

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Os direitos da convivência familiar e comunitária a partir do serviço de convivência

meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua


família, conforme dispuser a lei. (BRASIL, 1988).

Nesse sentido, o Serviço de Convivência e Fortalecimento


de Vínculos (SCFV), previsto na Política Nacional de Assistência
Social (PNAS) como serviço da Proteção Social Básica, tem como
finalidade fortalecer a função protetiva das famílias, prevenir a
ruptura dos seus vínculos, promovendo seu acesso e usufruto
de direitos e contribuindo na melhoria da qualidade de vida do
usuário (BRASIL, 2011a). É um serviço organizado em grupos,
que incentiva a participação social e o convívio comunitário,
atua diretamente nos territórios de vulnerabilidade e “possui ca-
ráter preventivo e proativo, pautado na defesa e afirmação dos
direitos e no desenvolvimento de capacidades e potencialidades,
com vistas ao alcance de alternativas emancipatórias para o en-
frentamento da vulnerabilidade social”.
O desenvolvimento da criança e do adolescente é uma cons-
trução social que se dá a partir tanto das relações familiares, de
amizades, com vizinhos e com outras famílias quanto mediante
participação em espaços públicos, como, por exemplo, ruas, pra-
ças, escolas, igrejas, programas e projetos sociais. Nessa estrita
relação da criança e do adolescente com a comunidade, pode
acontecer um desempenho de novos papéis sociais, regras, leis,
culturas, crenças, tradições e valores.
O SCFV deve ser realizado em grupos, visando garantir
aquisições progressivas aos seus usuários, de acordo com seu ci-
clo de vida, contemplando o trabalho social com famílias e pre-
venindo a ocorrência de situações de risco social. É dividido de
acordo com a faixa etária de 0 até 6 anos, de 6 a 15 anos, de 15 a
17 anos e idosos com mais de 60 anos.
O SCFV, ao mesmo tempo que satisfaz a necessidade das fa-
mílias, trabalha para que, por meio da observação do desenvolvi-
mento e das demandas apresentadas pelas crianças, adolescentes
e jovens, acione a rede de serviços socioassistenciais que integra
o Sistema de Garantia de Direitos e demais políticas públicas,
como saúde e educação, entre outras, viabilizando um processo

39 de 220
Os direitos da convivência familiar e comunitária a partir do serviço de convivência

de inclusão social. Quando essa prática acontece, há o cumpri-


mento de mais dois impactos esperados da política em relação ao
SCFV: “Aumento de acessos a serviços socioassistenciais e seto-
riais”, e “Aumento no número de jovens que conheçam as instân-
cias de denúncia e recurso em casos de violação de seus direitos”.
Promover o fortalecimento de vínculos também é contri-
buir para que a família consiga maneiras de prover o sustento,
trabalhar, usufruir de direitos e, consequentemente, conseguir
melhorar o convívio familiar. Essa importância gera melhoria do
convívio familiar.
O SCFV trouxe melhorias diretas às crianças, adolescentes
e jovens, e, ao mesmo tempo, essas melhorias refletiram num me-
lhor convívio dentro da família e na relação mãe/pai e filhos. Em
relação ao atendimento das necessidades das famílias usuárias
da Política de Assistência Social, os dados sugerem que o fato de
terem conseguido colocar os filhos (e netos) no SCFV contribuiu
para dar a seus filhos alguma atividade, que fossem cuidados e
acompanhados, momento em que podem procurar emprego, tra-
balhar e, além disso, diminuir o gasto com comida em casa, já
que são oferecidas pelo serviço duas alimentações.
As famílias ainda conseguem, por vezes, separar um mo-
mento do dia para saber o que seu filho desempenhou no SCFV
e até aprender com eles, mesmo com a carga de tarefas que as fa-
mílias têm, muitas vezes assumidas por uma só pessoa, na maio-
ria das vezes a mulher; e o momento de conversa ainda acontece
no ambiente familiar, o que torna o fortalecimento da convivên-
cia familiar contemplado.
Assim, o SCFV torna-se um local seguro, em que os filhos
podem ficar no momento em que seus pais estão trabalhando;
caso não houvesse o serviço, as famílias relatam que o abandono
do trabalho seria inevitável, optando por um trabalho parcial e,
consequentemente, com menor renda. As famílias ainda conse-
guem enxergar que, além de acolher suas necessidades, o SCFV
proporciona o desenvolvimento das crianças e adolescentes e ga-
rante seus direitos.

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Os direitos da convivência familiar e comunitária a partir do serviço de convivência

Apesar de verificar se o SCFV tem atuado no sentido de


atender as demandas familiares e contribuir para o fortaleci-
mento de vínculos, este estudo possui limitações, mas pode pro-
vocar discussões que contribuam para a melhoria do serviço no
atendimento e na garantia de direitos tanto da família quanto
da criança e do adolescente. É de extrema importância que seja
fortalecido o Sistema de Garantia de Direitos, tendo como obje-
tivo assegurar o trabalho articulado entre as diferentes políticas
públicas que compõem esse sistema, e que elas, por sua vez, assu-
mam seus papéis. Entendemos que o direito à convivência fami-
liar e comunitária só poderá ser efetivado se houver a articulação
de todas as políticas que atendam as necessidades das crianças,
adolescentes e, principalmente, das famílias.
Embora os resultados sugiram a frequência e a satisfação
das crianças/famílias, são necessários mais estudos para afirmar
se a frequência das crianças resulta do serviço do SCFV realizado
em cada CRAS de referência, demandando maior autonomia das
crianças e adolescentes. Por fim, o estudo realizado nos aproxi-
mou da resposta a nossa questão central: na percepção das famí-
lias usuárias, o SCFV/CAJ tem sido positivo e tem possibilitado
às famílias encontrarem alternativas para cumprir com suas res-
ponsabilidades no campo da educação e cuidado de seus filhos.

Os educadores sociais e os direitos sociais: reflexões de


entrevistas

A visita técnica foi realizada com mais duas colegas: Nara


Helena dos Santos e Raquel Cleni da Silva Delgado. O nome da
instituição não será revelado, mas ela fica em Porto Alegre (RS),
no Bairro Tristeza, e atende mais de 100 crianças de adolescentes
em tempo integral. É instituição filantrópica conveniada FASC
e SMED. A visita à instituição se deu por seu público, que é de
vulnerabilidade social, sendo a ação do(a) educador(a) popular e
ou educador(a) social necessária e de grande importância.
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Os direitos da convivência familiar e comunitária a partir do serviço de convivência

Com o objetivo de entender a forma como funciona a insti-


tuição, o desenvolvimento do trabalho do educador(a) social e da
gestão, assim como observar o trabalho popular junto à comuni-
dade, realizamos entrevistas com ambos os profissionais.
Neste momento, utilizaremos a relação educador social,
Educação Popular e direitos sociais.
Os educadores do SCFV, nessa instituição com grande re-
ferência à Educação popular, nos dizem que a maioria de seus
profissionais tem nível superior mais o curso de educador social.
Todos, segundo a entrevista, são educadores que se identificam
com o trabalho social.
Quando perguntados sobre os autores que embasam seu
trabalho, nos disseram que seguem diferentes linhas, citaram
Paulo Freire, Maria Montesssori, José Pacheco, entre outras con-
tribuições. Referindo-se aos direitos sociais, é importante cons-
truir uma rede de atendimento e qualificação mais especializada
para o público atendido.
Aqui temos questões para finalizar o texto e continuarmos
os estudos sobre os temas. No curso do IFRS-Restinga sobre
Educação Popular, discutimos as suas concepções, pautas e lutas.
Percebemos que existe uma vontade política de educadores so-
ciais e gestão de garantia dos direitos por meio de uma pedagogia
dos direitos (SANTOS; PAULO, 2017), mas necessitamos aliar
essa a outras tantas que nos ajudem a construir uma pedagogia
da igualdade social, com justiça social. Segundo nos diz Freire no
livro Educadores Sociais de Rua, “O processo libertador propos-
to pela educação transformadora tem criado condições de surgi-
mento de agentes multiplicadores da mesma filosofia e engajados
na mesma luta contra as injustiças sociais que geraram o menor
marginalizado.” (1989, p. 14).
O educador entrevistado enfatiza que trabalha com a Edu-
cação Popular por estar relacionada a Paulo Freire e ser vivencia-
da em SCFV. Ou seja, lutar pelo direito à convivência familiar e
comunitária faz da garantia dos direitos uma pedagogia do opri-
mido, “porque do amor à vida” (FREIRE, 1987, p. 37).

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Os direitos da convivência familiar e comunitária a partir do serviço de convivência

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988).


Diário Oficial da União. Brasília, DF, 5 jan. 1988. Disponível
em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/DOU
constituicao88.pdf>. Acesso em: 12 nov. 2018.
BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o
Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências.
Câmara dos Deputados. Brasília, 1990. Disponível em: <http://
www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1990/lei-8069-13-julho-1990
-372211-norma-pl.html>. Acesso em: 12 nov. 2018.
BRASIL. Lei n. 8.742, de 07 de dezembro de 1993. Dispõe sobre a
organização da Assistência Social e dá outras providências. Presi-
dência da República, 1993. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/LEIS/L8742.htm>. Acesso em: 12 nov. 2018.
BRASIL. Ministério da Previdência e Assistência Social. Política
Nacional de Assistência Social. Brasília, DF, set. 2004. Disponível
em: <https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assisten-
cia_social/Normativas/PNAS2004.pdf>. Acesso em: 12 nov. 2018.
BRASIL. Resolução CNAS – 01/2013. Tipificação Nacional
de Serviços Socioassistenciais. Ministério do Desenvolvimen-
to Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistên-
cia Social. Brasília, 2013.
FREIRE, Paulo. Educadores de rua: uma abordagem crítica.
Alternativas de entendimento aos meninos de rua. Bogotá,
Colômbia: Gente Nueva, 1989.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1987.
PAULO, Fernanda; SANTOS, K. (Des)encontros entre a Educa-
ção Popular e a Pedagogia Social. Ensino & Pesquisa, Paraná, v.
15, p. 117-140, 2017.
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Seres inacabados: experiências na educação popular

SERES INACABADOS:
EXPERIÊNCIAS NA EDUCAÇÃO POPULAR

Catarina Elóia da Rosa Machado1


catarinamachado0818@gmail.com

1. Introdução

Este artigo visa apresentar relatos de uma educadora popular


da Associação de Educadores Populares de Porto Alegre (AEP-
PA); sua formação, trajetória social e relação com o projeto Cultu-
ra da Paz pela Música. Ao ser instigada a construir esta produção
textual de experiências, remeto-me às palavras de Paulo Freire:
“gosto de ser gente porque, inacabado, sei que sou um ser condi-
cionado mas, consciente do inacabamento, sei que posso ir mais
além dele” (1996, p. 53). Diante dessa reflexão, faz-se necessário
trazer as práticas do projeto Cultura da Paz pela Música, que nas-
ceu no ano de 2016, no município de Porto Alegre, Rio Grande
do Sul, na comunidade Vila Maria da Conceição, território em
extrema vulnerabilidade social. Mediante tantos desafios diários
em uma ONG, surge um projeto a partir do movimento de uma
educadora com o sentimento de busca por novas oportunidades
para construção de mudanças em prol dos educandos do Serviço
1 Catarina Elóia da Rosa Machado: educadora popular e militante da AEPPA, tecnó-
loga em Gestão Pública, pós-graduada em Gestão Pública, acadêmica de mestrado
em educação da UFRGS 2018/2.

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Seres inacabados: experiências na educação popular

de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) e, para além


disso, o desenvolvimento desse projeto provocou uma educadora
a ir em busca de formação, novos saberes e práticas pedagógicas
para contribuir com as mudanças que queremos no mundo.
A inquietude na Educação Popular motivou a produção
destes relatos de experiências práticas de uma educadora no âm-
bito social, na perspectiva da Educação Popular, que permane-
cem latentes no seu cotidiano de atuação em prol da educação
como fonte transformadora do ser inacabado que somos. Ser ina-
cabado, esta educadora popular que escreve tem nas teorias de
Paulo Freire esperança em toda a caminhada.
Na sequência dos relatos, serão mencionados a origem do
projeto Cultura da Paz Pela Música, a trajetória e formação da edu-
cadora popular, com o objetivo de declarar-se como ser inacabado
e, em busca de sabres novos, com sentimento de amorosidade e
inspiração para novos educadores e militantes de causas sociais.

2. A origem de uma educadora, onde tudo começou

A caminhada na Educação Popular fundou-se em minha


vida em 2008, sem saber todos os significados presentes nesse
método de educação; há dez anos atrás fui selecionada, sim, pas-
sei pela prova da vida de concorrer a uma vaga de emprego, como
todo o trabalhador. A partir disso, começou uma história na área
social, ingressando em uma instituição que atendia crianças,
adolescentes, jovens e suas famílias na luta contra o câncer in-
fantil no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. Ali iniciou a traje-
tória que me traz até aqui, muitas lutas internas e externas venci,
venço todos os dias, pois, consciente do ser inacabado que sou,
muito tenho o aprender e construir saberes.
Durante sete anos, atuei como educadora (sem saber por
completo, inconsciente), educadora na área de captação de recur-
sos; a maestria em escrever projetos sociais traz na essência o que
sei ou, melhor, acredito que sei fazer bem: captar recursos. Na
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Seres inacabados: experiências na educação popular

trajetória de construção de novos saberes, encontrei-me como


educadora popular mergulhada no social em busca de todos os
recursos para contemplar oportunidades aos educandos, e/ou
atendidos-usuários, como alguns os classificam, tipificam.
Foram anos de experiências com o público vulnerável da
saúde em Porto Alegre, Caxias do Sul, Florianópolis, depois
Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, até que retornei a tra-
balhar somente em Porto Alegre em 2015. Por motivos pessoais,
fez-se necessário que me fixasse somente em Porto Alegre; sendo
assim, conheci uma instituição que atua com a extrema pobreza
na Vila Maria da Conceição, a Pequena Casa da Criança.
Atualmente, após mais de quatro anos, permaneço na enti-
dade como educadora popular fazendo o que sei, captar recursos
através de projetos sociais, e na coordenação da aprendizagem
profissional. Nesta oportunidade, enfrentei muitos desafios e
cheguei à conquista do Projeto Cultura da Paz pela Música. Esse
projeto, que hoje se tornou uma Orquestra Popular de crian-
ças, teve início com um grupo de 17 flautistas de idade de dez
até quinze anos, educandos do Serviço de Convivência e For-
talecimento de Vínculos (SCFV). O projeto foi estruturado em
conjunto com saberes de vários educadores e a participação dos
educandos; nesse período, meu encanto pela Educação Popular
se fortaleceu devido a todas as vivências e práticas pedagógicas.
Enfrentamento ao tráfico, marginalização, baixa renda, fal-
ta de alimentação entre outros fatores sociais de vulnerabilidades:
todos esses desafios foram vividos por uma equipe de educadores
engajados em construir relações humanas de afeto e mudança
na vida de cada educando e suas famílias. Retomar meu HD2 de
lembranças e alegrias me emociona, a cada palavra exposta neste
artigo. Entre as lembranças marcantes, destaca-se a participação
dos educandos nos últimos anos do projeto nas diversas aulas de
música, contribuições essenciais para o crescimento de cada ser
humano envolvido. Assim afirmava Paulo Freire no livro Peda-
gogia da esperança: “[...] o educando se reconhece conhecendo
os objetos, descobrindo que é capaz de conhecer.” (1992, p. 24).

2 HD é uma sigla inglesa cujo significado pode se referir a high definition ou hard disk,
“local de armazenamento”. 

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Seres inacabados: experiências na educação popular

Nas palavras iniciais do livro Pedagogia da autonomia,


Freire (1996), em sábias palavras de construção, apresenta sua
reflexão: “[...] reconhecer que a história é tempo de possibilidade
e não de determinismo, que o futuro, permita –se -me reiterar, é
problemático e não inexorável.” (p. 10). Essas palavras conduzem
a uma realidade do cotidiano social: temos que reconhecer que
nosso passado, a história, nos oportuniza possibilidade de mu-
danças e o enfrentamento ao problemático.
Perante as considerações mencionadas, nós, educadores, te-
mos a premissa de construir em conjunto com os educandos as
possibilidades de mudança da história em benefício do futuro. A
boniteza de ser educador perpetua possibilidades.

3. Provocações sociais e a formação como educadora

O bom filho a casa torna...

Este trabalho me remete a pensar como cheguei à escrita


de experiências, a pensar na frase “o bom filho a casa retorna”.
Retomar a participação e luta junto com a AEPPA mudou e pro-
porcionou novos sentidos a minha vida de educadora.
Atuar incondicionalmente na profissão de educadora, com
amor, faz contextualizar minha trajetória acadêmica e militante
na AEPPA. Após dezessete anos sem estudar, apenas com o ensi-
no médio, a realidade social estimulou-me a retomar a busca de
novos saberes para construir transformações sociais. Busquei a
formação e conhecimentos na graduação em Tecnologia em Ges-
tão Pública, MBA em Gestão Pública, MBA em Projetos Sociais e
muitos cursos de educação social, seminários e congressos.
Em 2018, uma nova oportunidade: participar da seleção
do mestrado em Educação na UFRGS. Com anseio de saberes
para construir novas e melhores relações comigo e com o outro,
enfrentei o desafio. Nessa seleção, foram meses de dedicação e
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Seres inacabados: experiências na educação popular

esforço; a cada dia, um pensamento motivador: “tenho que con-


seguir”, “posso chegar lá e ajudar muitas pessoas”. Ao mentalizar
“ajudar”, precisei de ajuda: nesse momento, a educadora popular
e doutora Fernanda dos Santos Paulo, a educadora Eliane Duar-
te, a professora Fernanda Aguiar, o professor Ricardo Cruz, a
professora Karine Santos e muitos outros educadores foram in-
cansáveis em me apoiar. Consegui, ingressei num novo espaços
de construção de saberes: o mestrado acadêmico em Educação.
A leitura que faço dessa estrada é a importância da força de
vontade, de acreditar, da boniteza de ser educador. Quão impor-
tantes são as relações humanizadas para o bem de si e do outro.
Dialogar e refletir a obra de Paulo Freire, na Pedagogia da
autonomia, me entusiasma na clareza de sua afirmação: “Ao
criticizar-se, tornando-se então, permito-me repetir, curiosida-
de epistemológica, metodologicamente “rigorizando-se na sua
aproximação ao objeto, conota seus achados de maior exatidão.”
(1996, p. 31).
Trago comigo nestes relatos a certeza da reflexão crítica so-
bre a importância das práticas educativas, saberes e fazeres na
educação, arte, cultura, política, economia, ecologia e tecnolo-
gias em benefício dos educandos. Ao reforçar saberes novos com
alegria e esperança, afirmo que isso é só o (re)começo de mais
uma educadora popular, de um ser inacabado. A realidade nasce
e morre todos os dias, cada dia é um novo começo.

Considerações finais

No ano em que completamos 50 anos da obra histórica Pe-


dagogia do oprimido (FREIRE, 2011), eu, mulher negra pobre,
filha de analfabetos, mãe, esposa, estudante e educadora popular,
recebo o desafio libertador de escrever minhas experiências, con-
vite oriundo de uma instituição idônea e com longa caminhada
na Educação Popular, a AEPPA, que neste ano de 2018 nos brin-
dou com mais uma conquista: o curso de extensão em Educação
Popular em parceria com o IFRS-Restinga.
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Seres inacabados: experiências na educação popular

Segundo Paulo Freire (1996), em seu livro Pedagogia da au-


tonomia, ensinar exige “alegria e esperança”, “convicção de que a
mudança é possível”, “curiosidade”, “compreender que a educa-
ção é uma forma de intervenção no mundo e que ensinar é uma
especificidade humana”. Humildemente, atrevo-me a endossar
essas passagens do livro com minhas experiências como educa-
dora popular e ser inacabado.
No transitar dos tópicos deste artigo, relatar minha trajetó-
ria profissional e pessoal foi sem dúvida uma experiência ímpar,
um exercício crítico sobre as minhas próprias vivências e possi-
bilidades alcançadas, ou não, e de como colocá-las em produção
textual que tocasse na esperança e no amor de outros educado-
res? Confesso que escrevi e reescrevi até chegar neste momento
feliz de contribuir com novos saberes com práticas-vivências.
Encerro essas considerações com um imenso agradecimen-
to a Deus, minha família, amigos, educadores e militantes de lu-
tas sociais; em especial, à vida, que nos possibilita (re)encontrar
significados, amor, esperança, possibilidades e mudanças atra-
vés da construção de um mundo sem opressão e libertador. Sem
mais e muito além, reafirmo as palavras de Paulo Freire (2011, p.
107) em seu manuscrito da Pedagogia do oprimido: “Se nada fi-
car destas páginas, algo, pelo menos, esperamos que permaneça:
nossa confiança no povo. Nossa fé nos homens, na criação de um
mundo em que seja menos difícil amar.”

Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à


prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1992.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2011.

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Educadora e educador do MOVA-POA e a busca por formação

EDUCADORA E EDUCADOR DO MOVA-POA


E A BUSCA POR FORMAÇÃO

Márcia Rejane dos Santos Menger


profe.marcis.menger@gmail.com

João Carlos Lucas da Silva


silva.joaocarloslucasdasilva@gmail.com

Escritos de João Carlos Lucas da Silva

Provocados em escrever sobre nossa docência no Movimen-


to de Alfabetização de Adultos (MOVA) em Porto Alegre (RS),
apresentamos um pequeno texto com nossos relatos. O traba-
lho com o resgate dessa história faz parte dos planejamentos da
Associação de Educadores Populares de Porto Alegre (AEPPA),
do Movimento de Educação Popular (MEP) cujo grupo de Estu-
dos e Pesquisas Educação Popular e Paulo Freire busca estudar
textos sobre o tema e recuperar experiências de Educação Po-
pular de que já participamos. Neste caso, cabe dizer que temos
há mais de 10 anos um núcleo na AEPPA chamado EJA-MOVA.
Neste, encontramo-nos, esporadicamente, para estudar. Temos
uma representação no Fórum Estadual de Educação de Jovens e
Adultos (FEEJA-RS), estamos trabalhando para que educadores
populares acessem a universidade a fim de estudar esses temas
e, na militância, uma das nossas ações é lutar por formação pro-

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Educadora e educador do MOVA-POA e a busca por formação

fissional. O MOVA foi fundamental na minha caminhada como


educador popular, progressista, no compromisso com a expan-
são da consciência crítica minha e também dos alfabetizados.
Busco acessar a universidade, ainda não consegui. Mas essa não
é uma luta só minha; é de um movimento e um coletivo de edu-
cadores populares. No MOVA, aprendi a Educação Popular; na
AEPPA, estudamos um pouco mais. Além de no MOVA, atuei
como arte-educador e educador social, faço parte dos estudos na
AEPPA e do Grupo de Trabalho que luta por formação. Segundo
Freire (2002, p. 22),

Por isso é que, na formação permanente dos professores, o momento


fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática. É pensando criti-
camente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxi-
ma prática. O próprio discurso teórico, necessário à reflexão crítica,
tem de ser tal modo concreto que quase se confunde com a prática.

Freire é um autor que desde o MOVA venho estudando e


articulando com a Educação Popular.

Figura 1 - Capa do livro MOVA POA – RS

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Educadora e educador do MOVA-POA e a busca por formação

Escritos de Márcia Rejane dos Santos Menger

Ao assumir como educadora popular em uma turma do


MOVA, reconheço que muito mais aprendi do que ensinei, mes-
mo porque tinha só o ensino médio na ocasião. Foi uma expe-
riência que me conquistou. Nesse grupo, junto à inserção na
AEPPA, construí minha militância, percebendo ser necessário
que tivéssemos conhecimento sobre políticas públicas e direitos
como cidadãs e cidadãos.
Foi emocionante ver uma mãe-educanda sustentar a famí-
lia recolhendo material reciclável e vendendo pães e cucas. Para
além do conhecimento construído, as pessoas participavam dos
encontros de maneira efetiva. Era um momento em que podiam
expressar seus sentimentos, expor habilidades e possibilidades.
Mostrar e sentir-se gente, amada e acolhida, reconhecendo seu
lugar e assumindo esse lugar como seu.

Figura 2 - Bilhete de uma aluna do MOVA

Assim, junto com esses grupos, resgatei minha autoestima,


percebendo que, como educadora popular, fazia parte dos excluí-
dos. Eu também era oprimida e também lutava pelo acesso ao
direito à educação: minha, dos mus filhos e da minha comuni-
dade. Nossas histórias, a dos educadores e educandos do MOVA,
foram registradas em alguns livros, como é o caso deste a seguir.
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Educadora e educador do MOVA-POA e a busca por formação

Figura 3 - Publicação de um aluno no livro Palavra do trabalhador

Figura 4 - Luta da AEPPA

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Educadora e educador do MOVA-POA e a busca por formação

Até tínhamos uma certa formação, mas não reconhecimen-


to, nem salário digno, embora o serviço prestado fosse de muita
relevância. Daí surgiu da AEPPA a iniciativa em lutar pela for-
mação profissional e, em conjunto, pela Educação Popular. Na
figura imediatamente anterior, apresentamos uma matéria que
fala um pouco da nossa luta por formação. A militância motivou
a formação continuada e a luta por remuneração digna. Sobre
nossa formação, muitos educadores vêm refletindo; sugerimos,
para mais informações, acessar o trabalho de Paulo (2013), que
indica referências produzidas em mestrado e doutorado que es-
tudaram a nossa formação, a exemplo de Graciete Maria de Oli-
veira e de Lúcio José Dutra Lord.

Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à


prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
PAULO, Fernanda dos Santos. Formação dos/as educadores/
as populares de Porto Alegre formados/as em Pedagogia:
identidade, trajetória e desafios. 2010. 79f. Trabalho de Conclu-
são de Curso (Especialização em Educação Popular) – Instituto
Superior de Educação Ivoti & Instituto de Desenvolvimento
Brava Gente, Porto Alegre, 2010.
PAULO, Fernanda dos Santos. A Formação do(as) educado-
res(as) populares a partir da práxis: um estudo de caso da
AEPPA. Porto Alegre. 2013. 273 f. Dissertação (Mestrado em
Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 2013.

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Educador social: trabalho e formação

EDUCADOR SOCIAL: TRABALHO E FORMAÇÃO

Nara Rosana Godfried Nachtigall1


naranachtigall@ig.com.br

Introdução

O interesse nesse assunto surgiu a partir das reflexões que


fiz ao longo de minha trajetória como educadora social, em
ONGs na cidade de Porto Alegre. Durante esses mais de 16 anos
que atuei como educadora social nos espaços não formais, senti
a necessidade de uma formação que contemplasse as diferentes
exigências do fazer do educador social, uma formação que não
encontrei no curso de licenciatura em Pedagogia, por exemplo.
Porto Alegre, no início dos anos 2000, em parceria com Movi-
mentos Populares e universidades, ofereceu formação para edu-
cadores sociais do município; ainda assim, contemplou pequena
parcela da demanda de formação para educadores do contexto
não escolar (PAULO, 2013). É importante considerar, ainda, que
muitos dos educadores em exercício têm apenas o ensino médio
completo, o que limita ainda mais a atuação junto aos educandos.

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS – 2017/02.


Trabalho, Movimentos Sociais e Educação, Bolsista CAPES. Orientador professor
doutor Johannes Doll.

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Educador social: trabalho e formação

Contudo, não há clareza de quem são os educadores sociais


e suas atribuições, tanto regional como nacionalmente. São eles
que encontram estratégias de formação continuada, cursos de
poucas horas que lhes deem algum subsídio para o seu quefazer
(FREIRE, 1987). Diante disso, ficam as perguntas: de que forma
os educadores constroem suas propostas educativas? Que meto-
dologias utilizam? Onde buscam subsídios para o seu fazer co-
tidiano? E, ainda: quem é o educador social em Porto Alegre?
Quais são suas atribuições? Qual sua formação?
Fica evidente que é necessário conhecer mais profunda-
mente esse cenário para que se pense em formações mais ade-
quadas aos educadores sociais. Também, para compreender
quais são suas necessidades, se reflexionam ou desejam uma
formação específica para o educador social e qual o interesse do
profissional em participar dessa construção. Contudo, conside-
ro necessário pensar e refletir acerca desses aspectos para que
se qualifiquem os serviços não formais oferecidos na atualidade,
tendo em vista que, em Porto Alegre, a maioria das crianças e
adolescentes é atendida no contraturno escolar através de convê-
nios com ONGs2.
Tais instituições têm executado grande parte das políticas
nacionais de assistência social, das quais fazem parte serviços e
projetos de educação não formal ou mesmo socioeducação. Des-
te modo, devem constituir-se em espaços de proteção e educação,
visando contribuir para o fortalecimento dos vínculos familiares

2 Um dos serviços oferecidos à população na cidade de Porto Alegre, no contratur-


no escolar, por exemplo, é o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos,
realizado em grupos, organizado a partir de percursos, de modo a garantir aqui-
sições progressivas aos seus usuários, de acordo com o seu ciclo de vida, a fim de
complementar o trabalho social com famílias e prevenir a ocorrência de situações
de risco social. Forma de intervenção social planejada que cria situações desafiado-
ras, estimula e orienta os usuários na construção e reconstrução de suas histórias e
vivências individuais e coletivas, na família e no território. Organiza-se de modo a
ampliar trocas culturais e de vivências, desenvolver o sentimento de pertença e de
identidade, fortalecer vínculos familiares e incentivar a socialização e a convivência
comunitária. Possui caráter preventivo e proativo, pautado na defesa e afirmação
dos direitos e no desenvolvimento de capacidades e potencialidades, com vistas ao
alcance de alternativas emancipatórias para o enfrentamento da vulnerabilidade so-
cial. (TIPIFICAÇÃO NACIONAL, 2009).

56 de 220
Educador social: trabalho e formação

e comunitários, bem como auxiliar na permanência do sujeito


na escola e no distanciamento da violência. Esses espaços muitas
vezes oferecem cultura, educação, cuidados, lazer, alimentação e
garantia de direitos. Sua intencionalidade é tornar o cidadão au-
tônomo e crítico. Para tanto, é necessário que o profissional que
atua na educação social possua conhecimentos sobre as políticas
públicas, sobre os processos educacionais e sociais, entre outros,
o que denota a importância de formação humana e crítica.
Deste modo, penso que é importante ampliar os conheci-
mentos sobre essa modalidade de educação que vem sendo am-
plamente demandada pela própria Política Nacional de Assistên-
cia Social (PNAS), com vistas a pensar em propostas de formação
mais adequadas à realidade desses profissionais. Pretendo, então,
a partir deste estudo, compreender quem são esses profissionais
e como elaboram suas atividades educativas; e quais seus emba-
samentos teóricos, sobretudo no que se refere às metodologias de
trabalho, já que, de acordo com Gatti (2002, p. 33), “a pesquisa
nos serve acima de tudo para dar uma base de entendimento so-
bre uma realidade e a partir disso transformá-la.”
Para tanto, são importantes algumas respostas a essas per-
guntas: quem é o educador social que atua na cidade de Porto
Alegre e como ele constrói suas propostas educativas?
Hoje, o educador social que atua em ONGs é um profis-
sional que possui o ensino médio, mas que também dispõe de
outros saberes: habilidades e competências próprias ou desenvol-
vidas, graduação em alguma área da licenciatura. Esses profis-
sionais são escalados para diferentes funções, mas todas vincula-
das ao critério de ser educador social; atendem o SCFV, abrigos,
serviços de abordagem de rua, trabalhando com crianças, jovens,
adolescentes, adultos e idosos em vulnerabilidade social. Os edu-
cadores tentam criar suas práticas educativas conforme suas bus-
cas por qualificação, diálogo com colegas, e quase sempre pela
práxis. Sua criatividade tem que ser constante para dar conta da
demanda; sua metodologia é a criatividade. Muitas vezes criam
grupos para discutir e fazer capacitações que auxiliem seu fazer
pedagógico diário. Geralmente o educador social de Porto Ale-

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Educador social: trabalho e formação

gre é oriundo de classe pobre, dominada, quase sempre ativo em


movimentos sociais populares. Suas atribuições buscam auxiliar
os atendidos a ter acesso às políticas públicas de assistência social
e a seus direitos.
De acordo com Gomez (2015), o professor deve ter a capaci-
dade de provocar o desenvolvimento das potencialidades únicas
e diversificadas de cada aluno, amar a singularidade e adaptar o
currículo às necessidades de cada aluno. Mas, para que possa de-
senvolver tais aspectos em sua prática, precisa conhecer como se
dão os processos educativos e dominar conteúdos que o auxiliam
a compreender o desenvolvimento do educando.
Entretanto, sabe-se que,

[...] assim como a riqueza, os conhecimentos produzidos pela hu-


manidade também são distribuídos desigualmente na sociedade,
colocando aquele que não tem acesso a esse conhecimento em uma
posição subalterna. Este é o sentido da função equalizadora da edu-
cação: colocar todos num mesmo patamar de igualdade pelo acesso
e apropriação do conhecimento, necessário para a construção de
uma sociedade democrática. (CRAIDY; SZUCHMAN, 2015, p. 95).

Percebe-se que o educador social, que muitas vezes é mo-


rador da própria comunidade na qual trabalha, não tem acesso
à formação.
Acredita-se, assim, que os referencias teóricos da Pedagogia
Social possam auxiliar na problematização da formação do educa-
dor social à medida que ela “parece orientar-se sempre mais para
a prática da educabilidade humana voltada a pessoas que se en-
contram em condições sociais desfavoráveis” (CALIMAN, 2008,
p.19). Um olhar para a história nos mostra que países como Espa-
nha, Portugal e Uruguai têm alcançado grandes avanços a partir
dessa perspectiva. De acordo com Gonh (2010), países como Bra-
sil vêm trabalhando com o viés da Pedagogia Social tardiamente,
apesar de ter mais difundido o conceito de Educação Popular.
Cabe inferir, ainda, que uma formação política empenhada
no processo de libertação dos profissionais que atuam nessa área
contribui para o fortalecimento do trabalho que já existe nesses
58 de 220
Educador social: trabalho e formação

diferentes espaços de educação não formal, fortalecendo a fun-


ção educacional e política, no intuito de propor atividades que
envolvam o desenvolvimento integral dos educandos no âmbito
escolar, ou fora dele, com atendimentos voltados às necessida-
des socioeducativas. Essa formação possibilita a busca de seu ser
mais (FREIRE, 1987).
Nesse sentido, a qualificação da educação requer uma for-
mação permanente do educador, que se funda em uma prática
reflexiva e crítica (FREIRE, 2001a). Tal característica só pode ser
alcançada significativamente a partir de um diálogo profundo
com o conhecimento inovador, que surge da pesquisa, em uma
relação dialética com os saberes oriundos das práticas sociais
(ZITKOSKI; MORIGI, 2013).

Considerações finais

O modelo de Estado que conhecemos é resultado da in-


fluência política exercida pela classe dominante e atua no sentido
de manter a exploração econômica de uma classe sobre as outras.
Dessa forma, é necessário mudar a lógica da mais-valia. O Mo-
vimento Social Popular busca a união das classes oprimidas para
lutar contra a classe opressora e, consequentemente, contra seus
ideais. Ou seja, é preciso a união dos educadores para

a) A melhora da qualidade da educação implica a formação perma-


nente dos educadores. E a formação permanente se funda na prática
de analisar a prática. É pensando sua prática, naturalmente com a
presença de pessoal altamente qualificado, que é possível perceber
embutida na prática uma teoria não percebida ainda, pouco perce-
bida ou já percebida, mas pouco assumida. (FREIRE, 2001a, p.72).

É importante que o educador social tenha sua função regu-


lamentada, e seja remunerado de acordo com sua função, bem
como tenha um currículo para apoiar seu fazer pedagógico.

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Educador social: trabalho e formação

Referências

BRASIL. Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais.


Brasília, 2009.
CRAIDY, Carmen M.; SZUCHMAN, Karine (Orgs.). Socioedu-
cação: fundamentos e práticas. Porto Alegre: Evangraf, 2015.
FLICK, Uwe. Uma introdução à pesquisa qualitativa. Porto
Alegre: Bookman, 2004.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1967.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a
Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1987.
FREIRE, Paulo. Política e educação: ensaios. 5. ed. São Paulo:
Cortez, 2001.
GADOTTI, Moacir. Gestão democrática com participação
popular: planejamento e organização da educação nacional. São
Paulo: Instituto Paulo Freire, 2013.
GATTI, Bernadete Angelina. A construção da pesquisa em
Educação no Brasil. Brasília: Plano, 2002.
GOHN, Maria da Glória. Educação não formal e o educador
social. São Paulo: Cortez, 2010.
MINAYO, Maria Cecília de Souza. Ciência, técnica e arte: o
desafio da pesquisa social. In: MINAYO, Maria Cecília de Souza
(Org.). Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. Petrópo-
lis, RJ: Vozes, 1994.

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Educador social: trabalho e formação

PAULO, Fernanda dos Santos. A Formação do(as)


educadores(as) populares a partir da práxis: um estudo de
caso da AEPPA. Porto Alegre. 2013. 273 f. Dissertação (Mestra-
do em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2013.
PAULO, Fernanda dos Santos. Formação dos/as educadores/
as populares de Porto Alegre formados/as em Pedagogia:
identidade, trajetória e desafios. 2010. 79f. Trabalho de Conclu-
são de Curso (Especialização em Educação Popular) – Instituto
Superior de Educação Ivoti & Instituto de Desenvolvimento
Brava Gente, Porto Alegre, 2010.
PÉREZ GÓMEZ, Àngel I. Educação na era digital: a escola
educativa. Porto Alegre: Penso, 2015.
ZITKOSKI, Jaime J.; MORIGI, Valter (Org.). Experiências
emancipatórias e educação: a docência e a pesquisa. Porto
Alegre: CORAG, 2013.

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Relato de experiências: um educador popular negro em busca de formação

RELATO DE EXPERIÊNCIAS:
UM EDUCADOR POPULAR NEGRO
EM BUSCA DE FORMAÇÃO

João Carlos Lucas da Silva1


silva.joaocarloslucasdasilva@gmail.com

Figura 1 - Eu-Educador popular

Nota explicativa: Esta história eu já contei. Mas agora vou


reproduzir minha história contada e, ao final, falar da minha luta
por formação.

1 Educador popular da AEPPA.

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Relato de experiências: um educador popular negro em busca de formação

Figura 2 - Informe sobre formação de jovens negros

Em 1986, junto com os colegas do Colégio Estadual Júlio


de Castilhos, de Porto Alegre, que fundaram o Movimento de
Consciência Negra (MOCONGRA), elaboramos a primeira ex-
periência do Movimento Negro no Movimento Estudantil e,
por conta disso, realizamos a Primeira Maratona de Atividades
Negras. Naquele mesmo ano (OLIVEIRA, R. 2000), no Colégio
Júlio de Castilhos, e no ano de 1987 passamos a atuar como Cen-
tro Alternativo de Cultura Negra (CAdeCUNE), e realizamos a
Segunda Maratona de Atividade Negras no ano de 1988, com o
tema 13 de maio NÃO “100 anos de luto”.

Figura 3 - Movimento de Consciência Negra

Fonte: Rafaela Ritter

Nos ano de 1991 e 1992, desenvolvemos Oficinas de Teatro


na Lomba do Pinheiro, na Creche Recreio da Divisa, a partir do
Projeto Meninos e Meninas de Rua (Descentralização da Cultura,
proposta pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre), em parceria
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Relato de experiências: um educador popular negro em busca de formação

com Associação de Oficineiros (ACO), CESMAPA/PMPA e Cen-


tro Alternativo de Cultura Negra (CADECUN). Além do Sistema
de Descolonização, que desenvolvemos como processo embrio-
nário, gestamos, em conjunto com a Secretaria de Direitos e Ci-
dadania, a Secretaria de Educação e alguma entidades do Movi-
mento Negro Organizado de Porto Alegre, a Primeira Semana de
Consciência Negra de Porto Alegre, na Lomba do Pinheiro e no
centro da cidade. No ano de 2000, realizamos a Maratona de Ati-
vidade Negras (MAN), com o tema “Basta: os 100 anos de farsa”.
Estudei Augusto Boal, Paulo Freire, a Biodança, Fritjof Ca-
pra e ao Ponto de Mutação.

Figura 4 - Mostras de teatro

No ano de 2000, comecei a militar na Associação de Educa-


dores Populares de Porto Alegre (AEPPA). Ali, reconheço-me um
dos lutadores por formação de educadores que atuam nas comu-
nidades. Fiz o curso normal com ênfase em Educação Popular via
AEPPA. Em uma das escolas que foi demandado o curso, Escola
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Relato de experiências: um educador popular negro em busca de formação

Municipal Emilio Meyer, tivemos formação para educadores sem


o curso normal (PAULO, 2013). Fui educador do MOVA; na AEP-
PA, fazia parte no núcleo de EJA. Com as lutas, conseguimos o
curso de Pedagogia na UERGS para nós, educadores populares.
Não consegui entrar; a demanda era grande e só tivemos uma edi-
ção do curso, extinto depois que Olívio Dutra perdeu as eleições
(conferir matéria no Correio do Povo de 15 de fevereiro de 2007).

Figura 5 - AEPPA na luta por formação

Fonte: http://www.betoalbuquerque.com.br/noticias/volta-s-aulas-em-discusso/

Fui aluno no curso de extensão para educadores populares


no IFRS campus Restinga.

Figura 6 - Curso no IFRS – Restinga

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Relato de experiências: um educador popular negro em busca de formação

A nossa luta é continuar buscando formação par educado-


res como eu, cuja primeira formação foi no trabalho e no Mo-
vimento Popular. A AEPPA tem muito a fazer e utilizamos os
livros de Freire para estudar e buscar formação na universidade
pública ou bolsas integrais na universidade comunitária (PAU-
LO, 2010, 2013). Faremos. E a universidade pública precisa nos
receber porque trabalhamos com educação na escola e fora dela.

Referências

BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políti-


cas. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1980.
CAPRA, F. O ponto de mutação. São Paulo: Círculo do Livro, 1982.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e
outros escritos. São Paulo: UNESP, 2000.
PAULO, Fernanda dos Santos. A Formação do(as) educado-
res(as) populares a partir da práxis: um estudo de caso da
AEPPA. Porto Alegre. 2013. 273 f. Dissertação (Mestrado em
Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 2013.
PAULO, Fernanda dos Santos. Formação dos/as educadores/
as populares de Porto Alegre formados/as em Pedagogia:
identidade, trajetória e desafios. 2010. 79f. Trabalho de Conclu-
são de Curso (Especialização em Educação Popular) – Instituto
Superior de Educação Ivoti & Instituto de Desenvolvimento
Brava Gente, Porto Alegre, 2010.

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A arte de educar, aprender e transformar

A ARTE DE EDUCAR,
APRENDER E TRANSFORMAR

Naiara Silveira1
naryrs@hotmail.com

Introdução

Escrevo sobre minhas experiências. Elas são realizadas no


contexto da Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do
Sul, em escolas públicas de educação básica, dos anos iniciais do
ensino fundamental até o ensino médio (com alunos dos 6 até
os 17 anos). Para as pessoas que não conseguem ter esse atendi-
mento dentro do tempo adequado (dos 6 aos 17 anos), é oferecida
a Educação de Jovens e Adultos (EJAs) de ensino fundamental
(inicial e final) e ensino médio. É uma modalidade da educação
básica que faz parte dos núcleos de EJAs, atendendo alunos com
provas supletivas, feitas e escolhidas pelos próprios alunos.
É numa escola estadual que faço as minhas atividades de
práticas diárias para conduzir a aprendizagem de crianças e
adolescentes na faixa etária de 9 até 12 anos. Vou apresentar as
realidades que vivencio e o trabalho que venho realizando nesse
espaço educativo.

1 Ver <https://naryeducadora.blogspot.com/> (blog em que escrevo sobre minha prá


tica experiência).

67 de 220
A arte de educar, aprender e transformar

Meu cotidiano...

A regente da turma tem o papel de conduzir e prestar o ser-


viço para a comunidade atualizando e construindo os saberes,
trocando aprendizagens e mediando os conhecimentos. Neste
momento, a construção da Educação Popular se socializa junto
aos conteúdos programáticos que precisam ser aplicados, com
uma metodologia participativa junto às disciplinas a serem ensi-
nadas e dialogadas com os alunos. Como trabalho com a divisão
das disciplinas, tento interdiscipliná-las e tornar as aulas mais
práticas, aplicando as mesmas disciplinas de diferentes manei-
ras, sempre obedecendo as necessidades dos estudantes e respei-
tando os saberes trazidos por eles. Esses diálogos possibilitam
a introdução e construção das categorias educativas para uma
aprendizagem contempladora e construtiva. Uso Freire (1996, p.
27) com o entendimento de que “Ensinar não é transferir conhe-
cimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção
ou a sua construção.” No livro Pedagogia da autonomia, Freire
deixa claro que o educador não transfere conhecimento, porque
construímos eles no dia a dia do nosso fazer pedagógico.
Através desse entendimento da educação como processo,
faço uso do enfoque da arte educação como caminhada para nos
reconhecermos uns nos outros (nos revermos, reconhecermo-
-nos e sentirmo-nos pertencentes). Isso é possibilidade de ter
acesso ao mundo mesmo ele estando distante dos sujeitos, do
ponto de vista de ter acesso a cultura, educação, teatro, cinema,
etc. O educador da escola pública que luta pelo direito do educan-
do a ter acessos aos bens culturais produzidos pela humanidade é
um fazedor da Educação Popular. Um trabalho pedagógico que
nos permita ver e nos fazer pertencente a esses lugares da arte
até então longínquos é uma luta cotidiana. Pois, um dos meus
trabalhos foi este: fazer da educação um elo com a arte, a arte
educação a serviço da inclusão social dos alunos que não conhe-
cem, muitas vezes, nem o seu bairro. Começamos a realizar um

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A arte de educar, aprender e transformar

trabalho com a 11ª Bienal do Mercosul, que trouxe a tradução e


as experiências de mundos diferentes e realidades semelhantes,
traduzindo o popular para a educação globalizada (uma outra
globalização que não seja a da exclusão).
Foi através dessa experiência que se traduziu o contexto de
vida da comunidade, pertencente ao todo e fazedora do mundo
um lugar de pertencimento. Queremos que nossos estudantes
sejam produtores do novo e de um novo processo de educação.
Recordo que um aluno olhou um quadro e ficou vislumbrado:
uma imagem que surpreendeu pelo contexto de um aluno que
fazia dele um quase personagem do quadro. Trazer a semelhança
e a veracidade com a realidade vivida e presenciada com a vida
presente dele fez com que as aulas se tornassem mais instigantes
e significativas. Emocionou-me e deixou-me reflexiva sobre essas
sensações: “[...] todo amanhã se cria num ontem, através de um
hoje [...]. Temos de saber o que fomos para saber o que seremos?”
O quadro nos ajuda a refletir:

Figura 1 - Quadro reflexivo – Quem somos

Fonte: Imagem da 11ª bienal do Mercosul (site nas referências)

Por fim, os saberes, os desafios e os conhecimentos media-


dos e trazidas pelos nossos alunos refletem que as ações educati-
vas são atos que levamos para a vida. São vertentes que surgem

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A arte de educar, aprender e transformar

para análises profundas do que somos, porque somos e como


queremos ser e viver nessa sociedade. Ser professor é conhecer o
novo, ler as diferentes realidades e respeitá-las.

Referência

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e


Terra, 1996.

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Arteterapia e simbologias no contexto da educação popular

ARTETERAPIA E SIMBOLOGIAS NO CONTEXTO


DA EDUCAÇÃO POPULAR

Gisiane Schneider Ferreira1


educadoragi.tenccbelem@gmail.com

Introdução

Este artigo destina-se ao relato das condições sócio-histó-


ricas da atuação do educador social, num estudo integrado da
linguagem simbólica aos recursos expressivos da Arteterapia no
Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV), a
fim de esclarecer dúvidas e mostrar a importância desse recur-
so no fazer diário como facilitador nas intervenções e atuação
institucional. Neste estudo, a Arteterapia representa um poten-
cializador de autoconhecimento do profissional dessa área, para
ampliar sua escuta e entendimento dos conteúdos que emergem
da linguagem simbólica, assim como para que possa desenvol-
ver um trabalho com maior segurança. O objetivo do artigo foi
identificar na Arteterapia formas de trabalhar com linguagens
simbólicas através da representação lúdica e dos recursos expres-
sivos que ela proporciona de forma diferenciada na realização

1 Graduanda do curso de Psicopedagogia Clínica e Institucional da Pontifícia Uni-


versidade Católica do Rio Grande do Sul.

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Arteterapia e simbologias no contexto da educação popular

das atividades com os educandos no SCFV e nos mais variados


espaços institucionais.
Conhecer a Arteterapia, um recurso expressivo muito im-
portante aos educadores sociais, é intento deste texto, pois trata-
-se de meio facilitador para a práxis no dia a dia como educador
social e popular, podendo ser utilizado no SCFV. Mostram-se,
então, as contribuições da Arteterapia no contexto escolar e não
escolar, bem como em espaços institucionais como o SCFV, seus
benefícios e sua importância para o educador social e o educan-
do, já que o educador atua como um mediador e facilitador nesse
processo, e o educando vive o aqui e o agora, o momento presen-
te, no qual se dá conta de suas potencialidades, num processo
intrapessoal.
O educador social pode, com a Arteterapia, resgatar o po-
tencial humano do sujeito aprendente, potencializá-lo e empo-
derá-lo para superar suas dificuldades, que podem, inclusive, ser
de ordem emocional. O uso dos recursos expressivos na prática e
atuação do educador social é algo sedimentado na academia (em
cursos de extensão, aperfeiçoamento, especialização e pós-gra-
duação em nível de mestrado). A Arteterapia pode diagnosticar
problemas relacionados à área da linguagem e simbologia quando
se traça um plano de ação para desenvolver as áreas afetadas e se
verificam formas de intervenção para o enfrentamento dos pro-
blemas dos educandos com os recursos expressivos e artísticos.
Foram realizadas duas entrevistas com profissionais da área,
com a psicóloga e coordenadora da CENTRARTE2 Gislene Nu-
nes Guimarães e com a Psicopedagoga Thais R. Amaral de Souza
(coordenadora do Núcleo Psicopedagógico da CENTRARTE).
Foram realizadas coleta de dados (material disponibilizado pela
coordenadora da CENTRARTE), análise documental de vídeos e
transcrição das entrevistas, registro de imagens. Também, trago

2 CENTRARTE – Centro de Estudos em Arteterapia, Psicologia e Educação. Rua


Tomaz Flores, 134, Bom Fim, POA, (51) 3264.3312 / 99557820, fax (51) 30610312,
<centrarte.rs@terra.com.br>. As entrevistas foram realizadas por conta do projeto
do curso de Educação Popular realizado entre o IFRS-Restinga e a AEPPA.

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Arteterapia e simbologias no contexto da educação popular

minha experiência como educadora social, psicopedagoga clíni-


ca e institucional e especialista em Arteterapia.

Arteterapia: definições e campo de atuação

Conforme a Associação Brasileira de Arteterapia, esta é um


modo de trabalhar utilizando a linguagem artística como base
da comunicação cliente-profissional. Sua essência é a criação es-
tética e a elaboração artística em prol da saúde. Utilizam-se, para
isso, as linguagens plásticas, sonoras, dramática, corporal e lite-
rária, envolvendo as técnicas de desenho, pintura, modelagem,
construção, sonorização, musicalização, dança, drama e poesia.
É aplicada avaliação, tratamento, profilaxia (prevenção), reabili-
tação e educação de clientes especiais.
O campo de atuação de Arteterapia estende-se às diferentes
organizações (Saúde, Educação, Comunidade e Profilaxia), per-
mitindo qualidade maior de vida. Atualmente, novas abordagens
estão em formação como a Biblioterapia, lançada em Budapeste
em 2003, e o aprofundamento em Dançaterapia, Musicoterapia e
Ecoarteterapia.
Suas vantagens são diminuir o tempo de trabalho terapêuti-
co devido à redução da transferência; tornar o cliente ativo e mais
criativo, mais independente; utilizar a comunicação averbal, au-
mentando a comunicação plena; desenvolver maior adaptação,
flexibilidade e originalidade; e influenciar no dia a dia relacio-
nando harmonia e senso estético com maneiras equilibradas de
viver.
Seu emprego atualmente tem sido muito importante em
hospitais, clínicas, institutos, escolas, empresas, comunidades,
em diferentes especialidades: treinamento empresarial; psicopro-
filaxia e reabilitação psicopedagógica; arterreabilitação física e
mental; reabilitação psicossocial; projetos comunitários de edu-
cação para saúde; em consultórios e clínicas especializadas com

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Arteterapia e simbologias no contexto da educação popular

doenças degenerativas como câncer, AIDS, Alzheimer, esclerose


múltipla, com deficiências físicas e mentais e psicoterapias indivi-
duais e de grupo (família, criança, adolescentes, adultos e idosos).
A Arteterapia pode ser utilizada sozinha ou como coad-
juvante em outros tratamentos, principalmente em programas
interdisciplinares como os utilizados em psicoses e drogadição.
Podem atuar como arteterapeutas profissionais graduados na
área de saúde – em medicina, psicologia, enfermagem, fisiote-
rapia, etc. – e que tenham curso de extensão em Arteterapia. Os
cursos de Arteterapia devem ser ministrados para alunos que
tenham cursado até, pelo menos, o terceiro ano da graduação,
completem os créditos necessários até o final da especialização
e sejam acompanhados de psicoterapia por profissionais compe-
tentes. A Arteterapia está trabalhando para legalizar a profissão
segundo um código de ética voltado e aprovado junto às autori-
dades competentes e também introduzir a cadeira de Arteterapia
nas universidades brasileiras. Para as associações não ferirem os
requisitos do MEC, apenas poderá clinicar o profissional da área
da saúde.
Os profissionais de arte e educação e educadores sociais po-
derão utilizar-se de arte para pessoas com problemas de ordem
emocional e de aprendizagem. O momento é de transformação.
Até o estabelecimento de cursos de graduação, sugerimos que
cada profissional mantenha sua profissão de origem e acrescente
o termo conquistado pelo curso frequentado como, por exem-
plo, “com formação ou especialização em Arteterapia”. Pedimos
a todos moderação no uso da arte como terapia e tratamento,
respeitando o código de ética de suas profissões originais até que
cursos de graduação possam ocorrer. No entanto, o título de es-
pecialista poderá ser usado para quem fez cursos de especializa-
ção na área. Os institutos também deverão propiciar formações
com professores devidamente treinados e credenciados às asso-
ciações que compartilhem do desenvolvimento gradual e forte
da Arteterapia no Brasil. As Associações Brasileira e Paulista se-
guem à risca as normas e convidam os profissionais para parti-

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Arteterapia e simbologias no contexto da educação popular

cipar na formação de um Conselho Nacional de normas técnicas


para a profissão.

Definição de Arteterapia segundo alguns referenciais


teóricos

Ainda que a noção de “arte-terapia inclui qualquer trata-


mento psicoterápico que utiliza como mediação a expressão ar-
tística (dança. Teatro, música, etc.), Pain e Jarreau, limitam-se ao
que diz respeito a representação plástica: pintura, desenho, gra-
vura, modelagem, máscaras, marionetes... pois têm em comum a
objetivação da representação visual do domínio figurativo a par-
tir da transformação da matéria. (PAIN e JARREAU, 1996, p. 09).

A utilização da arte com fins terapêuticos

O trabalho do arteterapeuta orienta-se de acordo com vá-


rias tendências, sendo que as mais próximas da clínica psicoterá-
pica consideram a atividade plástica como secundária, em que o
efeito terapêutico sobrevive somente das trocas verbais em torno
do conteúdo de sua obra e da expressão plástica para tanto uti-
lizada, como meio de acender a comunicação verbal ou como a
única maneira de estabelecer uma comunicação com o sujeito.
É através do trabalho plástico que o terapeuta através de um
cenário privilegiado faz vier no sujeito o encontro entre aquilo
que Freud chamou de “o princípio da realidade” e “o princípio do
prazer”, visto que as leis da matéria e as leis da ideação estética
devem achar um lugar de acordo. As estratégias do sujeito para
obter a articulação entre as duas ordens constituem o ponto cen-
tral da aventura artística. (PAIN; JARREAU, 1996, p. 15).

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Arteterapia e simbologias no contexto da educação popular

Os âmbitos de aplicação da arteterapia são a saúde física,


saúde mental, bem-estar emocional e bem-estar social em dife-
rentes setores da população. No caso daquelas pessoas que reque-
rem um seguimento específico sobre sua expressão corporal e
movimento, a arteterapia pode ser aplicada mediante as técnicas
estudadas em psicoterapia.
O uso da arte terapia é factível tanto em crianças quanto em
adolescentes e adultos, com a vantagem de poder ser aplicada a
nível terapêutico e a nível educativo. Neste último caso, técnicas
cognitivo-comportamentais podem complementar o emprego da
arteterapia (ou ao contrário), para instruir sobre aqueles aspectos
que influenciam diretamente o desenvolvimento educativo.
É relevante que o arteterapeuta, em sua prática, tenha uma
atenção “flutuante”, pois assim permanecerá permeável às diver-
sas maneiras de expressão dos pacientes – no caso do SCFV, dos
educandos – e deve também ter disponibilidade constante para
ver as produções a partir dos projetos plásticos dos sujeitos, evi-
tando impor soluções que respondam às suas inquietudes, sim
mais às questões claramente postas pela dinâmica criativa do pa-
ciente e/ou educando. Pain (1996) ressalta que é importante que
o terapeuta domine o código das artes, pois desta forma mais
facilmente descobre os valores com os quais o sujeito trabalha e
pode melhor auxiliar a enriquecer sua linguagem e sua capacida-
de de simbolização.

O papel do arteterapeuta e do educador social

O lugar do terapeuta ou educador é de acompanhar o pro-


cesso do paciente ou educando, ser testemunha de sua aventura,
ajudá-lo a superar os obstáculos encontrados, considerando-os,
ao mesmo tempo, de um ponto de vista subjetivo e objetivo. Des-
sa forma, é preciso que haja normas para, por um lado, observar
os sujeitos que estão realizando uma atividade criativa e, por ou-

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Arteterapia e simbologias no contexto da educação popular

tro, decidir a oportunidade e o conteúdo das intervenções. Por


exemplo, na prática do dia a dia com os educandos no SCFV,
o educador social é um facilitador desse processo e, para tanto,
esses profissionais devem ter uma grande capacidade de concen-
tração, já que o processo de construção simbólica é considerado
uma aventura contínua, em que as transformações sucessivas são
mais importantes que o resultado final. Por isso, o número de
participantes deve ser apropriado de maneira que permita ao te-
rapeuta ou educador social acompanhar esse processo criativo; a
atenção deve ser aberta, sem antecipação, sensível à ressonância
afetiva e representativa. A obra de arte em si não interessa mas,
sim, sua significação.
Se o educador social estiver acompanhando esse processo
criativo, deve pensar em formas de ajudar o educando a dar-se
conta do seu potencial criativo, do que surgiu a partir da sua cria-
ção, o que fazer com essa produção, qual o entendimento a partir
do processo criativo, que atitudes devem ser tomadas; deve ter
um olhar atento às demandas que surjam a partir desse processo.
Na consulta psicoterapêutica habitual, a maior parte do
tempo ouve-se o paciente falar; entretanto, na Arteterapia, o pa-
ciente é posto em várias situações. O profissional ou educador so-
cial só observa o paciente ou educando, enquanto este vive uma
experiência nova – assim também acontece no espaço do SCFV
com os educandos. Então, é possível perceber suas reações em
relação à exigência de fazer qualquer coisa com um tipo definido
de material. Cada sujeito considera o ateliê como um lugar de
aventura, onde escolhe os riscos que quer correr – isto também
pode ocorrer nos espaços do SCFV. Pode-se notar como o edu-
cando entra em contato com o material em função dos objetivos
possíveis, assim como suas disposições tônicas e a concentração
que manifesta antes mesmo de começar a trabalhar.
A novidade da situação exige o encaminhar de todas as po-
tencialidades previamente adquiridas. Pode-se perceber como o
sujeito coloca em andamento seu processo de trabalho, suas ex-
periências anteriores, tentando modificá-las para torná-las úteis
na nova situação. Em seguida, deve-se observar como se dá o

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Arteterapia e simbologias no contexto da educação popular

movimento entre o toque e o olhar, visto que esse movimento é


fundamental para o metabolismo da criatividade.
No final da sessão, ou da atividade realizada com o sujeito
ou o educando, este encontra-se com um objeto “determinado”
que lhe é significativo, já que, ao olhar uma obra, é o autor que o
outro procura. Após ter observado como o processo de apropria-
ção se realiza, é interessante ver, enfim, como o sujeito separa-
-se de sua obra, tira-a da parede ou arruma-a, com qual atitude
ele se aproxima dela quando a recupera para si. Nessas questões,
nenhuma ideia recebida deve prevalecer, nenhuma reação em re-
lação a sua própria produção que não seja mais válida que uma
outra. O que nos interessa é descobrir a significação que tem para
ele esse objeto que lhe foi tirado (para guardar, para jogar, para
dar, para destruir, para colecionar, etc.); se constitui, para ele,
uma proteção ou uma dificuldade do superego.
A maior parte dos afetos advém da própria dinâmica do ate-
liê e do que é disponibilizado e oferecido no SCFV. Desta manei-
ra, para começar a trabalhar, o sujeito e ou o educando deve fazer
uma ruptura com a inércia das suas inquietações e experiências
recentes cujo resto útil servirá de motivo de simbolização. O ar-
teterapeuta e/ou educador social tenta preservar as motivações,
evitando que elas parasitem o trabalho.
Certamente, as emoções mais fortes que o arteterapeuta ou
o educador pode sentir provêm da observação da produção do
sujeito: da qualidade emocional, da mensagem traduzida na har-
monia ou na agressividade das formas, através da precisão ou do
erro das proporções, da qualidade dos traços, do tema abordado,
das cores e dos contrastes utilizados, dos eixos de diferenciação
escolhidos. Mas, também, é importante captar o impacto afetivo
que as intervenções de cada participante produzem no grupo e
as reações de cada um em relação às imagens de si que ele lhe dá.
O momento da avaliação da atividade, quando realizada em
grupo, é consagrado ao diálogo, serve-nos para observar a ca-
pacidade de tomar a palavra, assim como a atitude de escuta de
cada participante frente ao grupo, e a capacidade de se interessar
por problemas gerais, de participar das discussões, de procurar

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Arteterapia e simbologias no contexto da educação popular

argumentos, de aproveitar algo da experiência dos outros está di-


retamente ligada aos objetivos da Arteterapia. Daí a importância
da arte ao processo de intervenção terapêutico e nos espaços das
instituições e SCFV: proporciona aos sujeitos um momento de
olhar para si mesmo, é o encontro com o eu autor. Por isso, essa
atividade pode ser realizada tanto em grupo quanto individual-
mente e os resultados são positivos. Esse resultado satisfatório
da terapia depende, às vezes, da capacidade de se ocultar como
objeto da rejeição, procurando a função positiva que se pode pro-
vocar, por exemplo, na autonomia do sujeito.
A relação de transferência é dramática e, por consequên-
cia, de ordem imaginária, usando o simbólico; mas os efeitos que
ela produz nos comportamentos são bem reais. Se nos deixamos
levar respondendo suas expectativas, ajudamo-lo a repetir um
comportamento neurótico. Se damos à antiga relação uma nova
significação, oferecemos ao sujeito a possibilidade de mudar, de
inventar uma nova maneira de se fazer amar. Nosso procedi-
mento é justamente ajudar o paciente a encontrar, no final do
caminho, essa margem de autonomia e de liberdade que faz da
apropriação a diferença.

Corpo, inteligência e símbolo

O objetivo do uso das artes é tornar visível uma forma, é


transformar a matéria amorfa (argila, mármore...) em pele, pé-
talas em luminosidade, dar “vida” à produção. É como no teatro:
através da imagem, a realidade se revela, se torna existência. Os
sons da linguagem, os traços e gestos plásticos não têm signifi-
cação por si só; seus sentimentos dependem mais da ordem em
que eles se inscrevem. E o processo artístico é muito importante
ao sujeito, já que caracteriza todas as linguagens e é fundamental
para a aquisição da expressão verbal da escrita; assim, esse recur-
so é indispensável na terapia.

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Arteterapia e simbologias no contexto da educação popular

É com a produção plástica que o sujeito expressa sua biogra-


fia pessoal, demonstrando suas experiências precoces, identifica-
ções e projeções inconscientes, através do sentido que o sujeito dá
a cores, movimentos e materiais com os quais trabalha. O pro-
blema da orientação do paciente ou educando numa atividade
artística, com fins terapêuticos, é mais uma questão de paixão do
que de talentos. Cada vez que o terreno da criatividade se mostra
a ele como um lugar de emoção e de desafio, onde ele assume um
papel de autor, tal atividade mostra-se proveitosa. É neste pro-
cesso de elaboração da representação que o sujeito encontra uma
melhor imagem de si mesmo.

Possibilidades terapêuticas a partir do uso dos recursos


expressivos

Analisando alguns fatores envolvidos nas dificuldades de


aprendizagem e observando as possibilidades terapêuticas que o
trabalho com a música e outras formas artísticas podem oferecer,
compreendemos o quanto esses recursos podem ser importan-
tes para crianças e adolescentes que apresentam dificuldades de
imaginação, desinteresse pelo ambiente, agressividade em rela-
ção ao seu grupo social. Também as atividades dramáticas, uma
vez que envolvem todo o organismo e possibilitam a interação
com o ambiente, podem constituir um elemento importante no
trabalho com crianças e adolescentes com dificuldades psicosso-
ciais. Conforme Porsher (1982), essas atividades podem ser im-
portante elemento educativo e devem se dar de modo a promover
a expressão das crianças e adolescentes, sem maiores preocupa-
ções estéticas ou técnicas.
O fato de se possibilitar à criança ou ao adolescente criar
e ver sua obra como um resultado bem-sucedido faz com que a
produção musical e artística se torne uma experiência desejada,
na qual o sujeito sente-se capaz de manifestar sua criatividade.

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Arteterapia e simbologias no contexto da educação popular

Em relação a isso, Costa (1989) afirma que é importante que a


criatividade seja estimulada no setting terapêutico, pois, vez que
a forma de agir sofra modificações nesse espaço, a experiência de
transformação poderá ser levada para outras situações da vida.

Arteterapia e terapias expressivas de orientação junguiana

O uso da Arteterapia e de terapias expressivas se deu por


Silveira (apud ANDRADE, 2000); ela propunha a seus pacientes
a execução de trabalhos em pinturas ou desenhos, argila. Suge-
ria-lhes que tocassem músicas, dançassem e fizessem representa-
ções dramáticas, possibilitando-lhes usar uma linguagem através
de imagens simbólicas e dar forma a seus psiquismos. Os inter-
nos manifestavam pulsões primitivas de forma bruta, mescladas
a uma necessidade de controlar, de domesticar os instintos e uso
do desejo, em uma luta entre forças primárias e necessidades re-
pressoras, as quais poderiam levar até a tentativa de supressão
da vida instintiva. Para ela, o ateliê de pintura transformou-se
em um lugar onde pintura e desenho puderam adquirir interesse
científico e artístico. Os pacientes obtiveram consentimento so-
cial para expressar e comunicar ao mundo externo suas manei-
ras de colocar-se mediante a realidade. Externamente, em con-
trapartida ao seu próprio aprisionamento interno (psicológico), a
impossibilidade, na maioria das vezes, de poder ter um discurso
lógico articulado, racional e compreensivo.
Jung interessou-se por estudar os arquétipos e a compreen-
são do comportamento individual através dos sonhos e da pro-
dução plástica produzida no inconsciente; denominou-o incons-
ciente coletivo e utilizou com seus pacientes os recursos plásticos
da arte com fins terapêuticos (ANDRADE, 2014, p. 105).
O “eu” assim formado, como fruto do contato com as ex-
periências na realidade e com a marca da visão do inconsciente,
nunca se torna independente das influências internas; nem a for-

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Arteterapia e simbologias no contexto da educação popular

ma pessoal, individual e única de reinterpretar o mundo deixa


de ser influenciada pelos acontecimentos externos. O consciente
nunca é totalmente independente e absoluto de suas decisões e
motivações. Por isso, acredito ser importante proporcionar aos
sujeitos um momento de contato com o aqui e agora, com o mo-
mento presente.

Figura 1 - Minhas experiências de educadora

Em relação à formação de símbolos, estes têm a função de


estruturar continuamente a consciência, fazendo-se intermediá-
rios entre ela, como um aspecto conhecido pelo Ego.
Como Jung (1977), Nice (2001) passou a usar como método
de pesquisa o diálogo, a dramatização, escrita, dança, pintura,
modelagem, partindo de uma imagem de sonho, ou fantasia, li-
vremente relatada pelo paciente.

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Arteterapia e simbologias no contexto da educação popular

Ao realizarem atividades que permitiam a expressão de vi-


vências não verbalizáveis, os “doentes” liberavam os sentimentos.
Estes estavam mergulhados em profundezas do inconsciente, em
emoção e impulsos. Na maioria das vezes, essas emoções estão
representadas, fora do alcance das elaborações do universo da
razão e do pensamento articulado em palavras. A vida é movi-
mento e, por isso, a utilização do movimento em algumas abor-
dagens e intervenções terapêuticas é essencial, já que são uma
expressão da linguagem. Devem, portanto, ser utilizados o som
e a música como recursos terapêuticos, bem como a Dançatera-
pia, que tem por objetivo a expressão interna completa através
do movimento.
O uso dos recursos expressivos foi significativo na minha
prática psicopedagógica, pois pude perceber, através dos testes e
dos jogos, que “J” (meu paciente) não se autorizava à realização
da atividades. Sempre, ao iniciá-las, dizia que não iria conseguir,
mesmo antes de tentar; tinha medo e vergonha de falar. Quan-
do lhe perguntava por que, respondia que tinha medo de errar,
o que se reflete na escola: segundo as professoras, ele apresenta
dificuldades quando tem que se expressar, contar histórias aos
colegas, ler em voz alta, ir ao quadro escrever. Quando questio-
nei “J” em relação a ler, pois também não gostava de ler nada em
voz alta, e lhe perguntei como era na escola, ele me falou “Tam-
bém não gosto de ler, pois mês colegas ficam rindo quando eu erro,
e por isso não gosto de ler.” Então, trabalhei com ”J” através de
recursos lúdicos e criativos, através de imagens, pois expressam
um outro tipo de linguagem.
Na (re)leitura da teoria psicanalítica, por Jacques Lacan
(1992, p. 212), há a eleição do simbólico para que se trate das
questões do “instituído”:

A palavra é essa dimensão por onde o desejo do sujeito é autentica-


mente integrado no plano simbólico. É somente quando ele se for-
mula, se nomeia diante do outro, seja ele qual for, é reconhecido no
sentido pleno do termo. Não se trata de satisfação do desejo [...], mas,
exatamente, do reconhecimento do desejo.

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Arteterapia e simbologias no contexto da educação popular

A palavra, nos autoriza nos tornarmos sujeitos da lingua-


gem e de aprendizagem. Então, só nos aproximamos da verdade
do nosso saber e fazer psicopedagógico quando nos colocamos
em processo de um conhecimento detalhista e específico sobre
o sujeito com o qual estamos vivenciando e analisando interven-
ções necessárias e esperadas com objetos de equilibração de sua
aprendizagem. Para tanto, há que sustentar e dar significado às
representações verbais e não verbais que vão além do sintoma
do não aprender; elas podem ser trabalhadas através do recursos
expressivos da Arteterapia. E é relevante fazer uma leitura dos
significante e significados implícitos nos discursos, narrativas e
técnicas de expressividade, da percepção, representação e do uso
do corpo, observando a elaboração relativa a autoimagem, au-
toestima e autoconceito, que está constantemente em construção
e possibilita-nos processos de ressignificação.
O arteterapeuta e/ou educador social, por meio dos recur-
sos expressivos da Arteterapia, pode oportunizar e criar condi-
ções de equilibração ao sujeito na busca da verdade, fazendo-o
suportar e viver o processo da (res)significação de sua conflitiva,
para que se autorize como sujeito autor e possa prosseguir sua
vida de forma promissora, através da apropriação do si mesmo,
como sujeito que aprende.
Relacionando imagem e percepção, busco a compreensão
conforme as ideias de Pain e Jarreau (1996): entendo que a ima-
gem não pode dar conta do objeto em sua totalidade, em com-
pensação ela constitui o signo desse objeto, ao qual ela faz alusão
através de uma de suas aparências possíveis. Portanto, a percep-
ção e a imagem mostram um quadro do objeto que depende seja
da posição real do sujeito ao olhar ou de uma escolha subjetiva
da representação (frente, perfil...). A percepção é contemporânea
da sensação, enquanto a imagem, em busca de uma sensação
impossível, indica a falta do objeto que ela visa. Assim, a ima-
gem não pode ser considerada uma percepção diminuída já que,
mesmo que sempre utilize referências sensoriais, sua construção
procede de uma escolha de referências que, portanto, não dão o
objeto visado, mas o que no objeto é fundamental para o sujeito.

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Arteterapia e simbologias no contexto da educação popular

Para ter noção de objeto, é preciso que as diferentes per-


cepções sejam coordenadas em sua totalidade coerente, orde-
nada em um espaço. É a ação exercida sobre o objeto (manipu-
lação, rotação) que permite a integração de suas faces e de sua
conservação. Então, os objetos correspondem aos esquemas em
dois aspectos das experiências, o sensorial e o motor, graças aos
mecanismos de assimilação e de acomodação e reconhecimentos
dos objetos semelhantes. O sujeito não pode reviver, na falta do
objeto, as sensações correspondentes, mas, pelo contrário, pode
reproduzir sempre os movimentos imitando seu perfil (PAIN;
JARREAU, 1996).
Lacan (apud PAIN, 1996) introduziu no pensamento psica-
nalítico uma distinção definitiva entre imagem e símbolo, entre
as configurações e a palavra. Ainda que a teoria vise, especifica-
mente, à imagem do “eu corporal”, considerada ilusão de totali-
dade dada na aparência exterior, esse caráter aleatório a partir do
outro parece ser próprio da imagem. Em outras palavras, toda
imagem do objeto contém a imagem do próprio corpo. A ima-
gem se realiza no olhar do outro, visto que, no espelho, a criança
se assume tal como os outros a veem – nesse estágio, a imagem
corresponde ao seu nome. Mas a imagem não tem a mesma fun-
ção antes e depois que o sujeito adquire a linguagem.
Uma vez que a criança encontra em seu discurso um lugar
irredutível graças ao pronome “Eu”, ao mesmo tempo que seu
universo se torna uma ação da linguagem, estabelece-se, entre a
imagem e as palavras, uma relação estreita de dependência. As
palavras procuram um excedente de forma e de cor, uma outra
substância; as palavras fazem ressoar partículas sonoras ligadas
às palavras que elas encerram, através de enigmas. Constroem-
-se imagens com palavras e discurso com imagens (PAIN, 1996).

É importante abrir espaços objetivos e subjetivos de


autoria do pensamento. A libertação da inteligência aprisionada
só poderá dar-se através do encontro com o prazer de aprender.
(Fernández, 2001, p. 223)

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Arteterapia e simbologias no contexto da educação popular

Considerações finais

Acredito que os recursos expressivos são instrumentos fun-


damentais e indispensáveis no dia a dia da práxis do educador
social e popular, pois através destas linguagens simbólicas pode-
mos obter resultados positivos de forma lúdica e criativa.
Percebi o quão importante é o uso dos recursos expressivos
na prática no momento em que os utilizei com os educandos;
acredito que os recursos expressivos contribuíram muito para
resgatar sua autoestima e autoria, fazendo com que se tornassem
sujeitos autores, criativos. Através dos processos de simbolização
é que direcionei meu projeto de intervenção e atuação como edu-
cadora social.
Portanto, vejo os recursos expressivos como facilitadores no
processo de intervenção em problemas de aprendizagem e biop-
sicossociais. Através de recursos expressivos o profissional vai
auxiliar a criança ou o adolescente a melhorar sua autoestima,
criatividade, potencial, elaboração de conflitos, auxiliando que
ele se autorize, seja mais autônomo, mostrando que é capaz, aju-
dando na construção de seu conhecimento.
Pude verificar que a Arteterapia possui recursos muito am-
plos, que devem ser explorados, principalmente em nossa área
da Educação Popular, pois será um importante instrumento de
intervenção, já que as manifestações terapêuticas, tais como a
música, a pintura e a dramatização, entre outras, são recursos
terapêuticos muito ricos, que possibilitam às crianças momen-
tos que promovem e estimulam sua criatividade, nos quais elas
passam a acreditar em seu potencial e capacidade de construir e
construir-se.
Através de um estágio voluntário na APORTA3, pude cons-
tatar a real importância dos recursos expressivos no tratamento
terapêutico, pois meu projeto visava desenvolver o potencial hu-

3 APORTA: Associação dos Portadores de Transtorno de Ansiedade – RS

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Arteterapia e simbologias no contexto da educação popular

mano, o autoconhecimento, elevar a autoestima dos sujeitos, para


promover uma melhoria da qualidade de vida desses indivíduos
e resgatar habilidades pessoais, através de técnicas e dinâmicas
grupais, realizadas através do uso dos recursos expressivos e ar-
tísticos proporcionados pela Arteterapia (trabalhei com tintas,
pincéis, argila, papel machê, giz de cera, espelho, música, dra-
matização, expressão corporal, entre outros recursos). Algumas
das atividades realizadas eram técnicas de respiração, meditação
e relaxamento, dinâmicas de grupo, além de trabalhos manuais
artísticos, com a utilização de recursos como a pintura, escultu-
ra, reciclagem, arranjos florais orientais (ikebanaterapia4), com o
auxílio da Terapeuta Ocupacional Selani Bredow5.
Os resultados foram surpreendentes, pois pacientes que
apresentavam transtornos de ansiedade, do pânico, fobias tive-
ram melhoras significativas. Uma das pacientes que tinha fobia
social conseguiu, através dos recursos expressivos, elevar sua au-
toestima, se autorizar como sujeito autor; ela apresentava, no iní-
cio, muita dificuldade de se expressar, mas através dos recursos
expressivos foi transformando seu olhar em relação ao mundo,
vivendo o momento presente, o aqui e o agora; através de téc-
nicas de relaxamento e dos recursos expressivos, foi aos poucos
perdendo o medo de andar de ônibus e de estar em grupo. Em
seu relato, pude observar que realmente estava se autorizando.
A Arteterapia e os recursos expressivos são fundamentais para
baixar a ansiedade dos sujeitos e melhorar sua qualidade de vida,
pois elevam sua autoestima e melhoram sua autoimagem – pude
constatá-lo na minha prática. Acredito, portanto, que o educador
social deve se capacitar e utilizar recursos expressivos em suas
práxis como educador social.

4 Ikebanaterapia é a arte de arranjos florais orientais utilizada há milhares de anos


pelos samurais e imperadores para manter o equilíbrio emocional.
5 Terapeuta ocupacional e arteterapeuta da APORTA.

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Arteterapia e simbologias no contexto da educação popular

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Arteterapia e simbologias no contexto da educação popular

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Educação de jovens e adultos e movimentos sociais: experiências educativas

EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS


E MOVIMENTOS SOCIAIS:
EXPERIÊNCIAS EDUCATIVAS

Marcia Selau dos Santos1


marcia_selau@yahoo.com.br

Introdução

O presente trabalho tem como tema central a Educação de


Jovens e Adultos e os movimentos sociais, tendo como objetivo
conhecer a história da EJA no Brasil e de que forma as lutas dos
movimentos sociais pela educação fortaleceram sua oferta gra-
tuita na educação básica. Para reforçar nossa pesquisa, usamos a
prática documental e real como norteadora: através de pesquisa,
objetivamos conhecer as necessidades da EJA, as práticas peda-
gógicas que orientam essa modalidade de ensino, e como o siste-
ma nacional de ensino a tem ofertado.
Muitos motivos levam uma pessoa a não frequentar ou
abandonar os estudos. A renda familiar, a necessidade de traba-
lho, a insatisfação, reprovação, entre outros, são alguns dos fato-
res que dificultam o acesso à escola de muitos brasileiros. Sabe-se

1 Educadora popular, gestora ambiental, estudante de Pedagogia, integrante do Gru-


po de Estudos e Pesquisas Educação Popular e Paulo Freire.

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Educação de jovens e adultos e movimentos sociais: experiências educativas

que essa situação educacional não é uma realidade nova, mas que
marca o histórico da educação no Brasil, fazendo surgir a oferta
da modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA) na educa-
ção básica.
Nossa pesquisa está embasada na prática documental e real;
pretende-se conhecer a história da Educação de Jovens e Adultos
que permeia o período colonial e compreender o histórico mais
recente que definiu a EJA como uma modalidade da educação
básica nacional em lei. Pretende-se refletir sobre a influência dos
movimentos sociais para a identidade da educação de jovens e
adultos no Brasil e também a colaboração de Paulo Freire para
o fortalecimento da EJA. Desta forma, primando pelo pleno co-
nhecimento dessa modalidade, interessa-nos conhecer e refletir
sobre os desafios atuais da EJA e as práticas pedagógicas que a
sustentam.

2. História da EJA

Ao pesquisar materiais sobre o ensino na EJA no Brasil, ve-


rificamos que os primeiros vestígios surgiram durante o proces-
so de colonização, com os poderes jesuítas em 1549, voltando-se
para a educação de jovens e adultos tanto de nativos como de
colonizadores, diferenciando-se apenas o objetivo para cada gru-
po social (ARANHA, 2006). Em Portugal, para colonizar, foi ne-
cessário instruir, assim introduzindo-se os índios na religião ca-
tólica; os portugueses conseguiram dominar e manter a ordem.
Quando a família chegou ao Brasil, foram criadas instituições
educativas para elites; apenas de 1824 data o ensino primário
gratuito, ao qual os escravos não tinham acesso.
Os primeiros cursos noturnos para adultos são obras sem
fins lucrativos, aplicados por intelectuais das elites interessados
em recuperar e disciplinar as camadas populares (pobres, bran-

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Educação de jovens e adultos e movimentos sociais: experiências educativas

cos, negros, libertos e até os escravos). No Brasil, o discurso de al-


fabetização é antigo: antes mesmo da proclamação da república,
já em 1882, Rui Barbosa, fundamentado em exaustivas análises
da realidade brasileira da época, tornava conhecida a vergonho-
sa má qualidade do ensino para o povo no Brasil e apresentava
propostas de construir mais escolas e melhorar a qualidade do
ensino. Em 1934, a Constituição foi criada com o propósito de
favorecer o Estado, pois tira a responsabilidade de uma popula-
ção sem conhecimento (educação para uma minoria), tornando
a sociedade mais suscetível a aceitar tudo o que lhe é imposto.
Resta nítido que essa constituição não queria que o conhecimen-
to crítico aumentasse; buscava, sim, beneficiar o ensino profissio-
nalizante naquele momento: o ideal a fazer era capacitar jovens e
adultos para o trabalho nas indústrias.
Durante muitos anos, as escolas noturnas eram a única for-
ma de alfabetizar jovens e adultos no começo do século XX. Com
o desenvolvimento das indústrias, percebe-se uma lenta valori-
zação da EJA: apresentou-se a necessidade de mão de obra espe-
cializada e foi nesse período que se criaram escolas para capaci-
tar jovens e adultos. As indústrias se concentravam nos centros
urbanos e a população da zona rural migrava para os centros
urbanos na expectativa de melhor qualidade de vida; daí a neces-
sidade de alfabetizar os trabalhadores e a urgência por escolas de
alfabetização de adultos e adolescentes.

[...] a educação é uma forma de intervenção do mundo. Intervenção


que além do conhecimento dos conteúdos bem ou mal ensinados e/
ou aprendidos implica tanto o esforço de reprodução da ideologia
dominante quanto de seu desmascaramento. Dialética e contraditó-
ria, não poderia ser a educação só uma ou só a outra dessas coisas.
(FREIRE, 1996, p. 110).

Um dos precursores da alfabetização de jovens e adultos foi


Paulo Freire, que sempre quis o fim da educação elitista; ele ti-
nha como meta uma educação democrática e educadora. Freire

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Educação de jovens e adultos e movimentos sociais: experiências educativas

(1970) parte da realidade, da experiência vivida do aluno; pre-


tende superar a separação entre a teoria e a prática: no processo
em que o homem descobre que há saberes que podem interferir
na realidade.

3. Movimentos sociais

A luta pela Educação de Jovens e Adultos segue paralela às


demandas dos movimentos sociais dentro e fora da escola. No
Brasil, sobretudo no início do ano de 1960, surgiram vários mo-
vimentos voltados à alfabetização e promoção da cultura popu-
lar. Movimentos que tratavam da educação dos adultos enfati-
zando o papel da educação como instrumento de poder político e
de problematização das estruturas sociais. Essa educação crítica
na perspectiva da luta (FREIRE, 1996; PAULO, 2018) chama-se
Educação Popular. Esse movimento pode ser localizado no lega-
do de Paulo Freire e na sua persistência pela construção de uma
educação do povo e para o povo. Nos seus textos, Freire (1996,
1970) reivindica uma leitura da realidade que produza proces-
sos de conscientização e libertação do oprimido. A Educação
de Adultos, nesse contexto, está relacionada aos Movimentos de
Educação Popular.

A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanística e libertado-


ra, terá, dois momentos distintos. O primeiro, em que os oprimidos
vão desvelando o mundo da opressão e vão comprometendo-se na
práxis, com a sua transformação; o segundo, em que, transformará a
realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser do oprimido e passa
a ser pedagogia dos homens em processo de permanente libertação.
(FREIRE, 1970, p. 23).

O educador que trabalha na Educação de Jovens e Adul-


tos parte do princípio de que todos os educandos e educadores
aprendem juntos. O objetivo de aprender e ensinar é buscar a

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Educação de jovens e adultos e movimentos sociais: experiências educativas

libertação. Mas, libertar do quê? Para Freire (1996), ensinar exi-


ge respeito, apreensão da realidade, comprometimento e refle-
xão crítica dessa realidade. Assim, uma educação crítica quer
a libertação da ignorância e da ingenuidade. Segundo Paulo
(2010, 2013), os movimentos sociais nos ensinam uma pedago-
gia da luta. Essa luta pela libertação ocorre em diversos espaços
educacionais (educação escolar e não escolar). A construção do
conhecimento deixa de ser uma relação de reprodução para ser
uma relação de aprender com o outro através da leitura crítica
da realidade, não abandonando a nossa história local e global
(FREIRE, 2013).
Como vimos, no Brasil, a história da EJA e a história dos
movimentos sociais têm sido marcadas por muitas lutas, as quais
necessitam da participação popular para que suas pautas sejam
incluídas na agenda pública. Segundo Brandão (1984), e em con-
formidade com Freire (1970), todo ato educativo não é neutro e a
Educação Popular tem um caráter político. A concepção de edu-
cação política, para esses autores, significa uma disputa de poder
entre a classe dominante (elite) e a dominada (trabalhador).
Em 1990, surgiram vários movimentos sociais: tantos os
críticos ao modelo de sociedade capitalista quanto os que dese-
jam manter esse sistema. Um dos movimentos de esquerda foi o
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), que tem apro-
ximação com a pedagogia de Freire (PAULO, 2013). Surgiram,
também, ONGS, cooperativas e fundações; muitas estão envolvi-
das com a educação. No caso da EJA, tivemos algumas experiên-
cias que se deram na relação Estado e terceiro setor: Projeto To-
das as Letras da CUT2, Movimento de Alfabetização de Adultos,
Alfabetização Solidária e Brasil Alfabetizado. Alguns movimen-
tos sindicais de trabalhadores se envolveram com a EJA, como foi
o caso da CUT no projeto Todas as Letras.

2 Podemos conhecer um pouco mais nesse site: <www.fetecpr.org.br/cut-lanca-projeto>.

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Educação de jovens e adultos e movimentos sociais: experiências educativas

Figura 1 – Capa de livro de EJA

Fonte: entrevista, 2018.

Realizamos uma entrevista com uma educadora popular


que trabalhou nesses projetos. Ela nos disse:

Os programas governamentais de esfera federal, municipal e esta-


dual tinham um objetivo comum: erradicar o analfabetismo. O que
diferenciava um programa do outro era a forma de execução através
da autonomia do ente federativo e da instituição parceira. No caso
do projeto Todas as Letras da CUT, ele vinculava-se ao Brasil Alfabe-
tizado. A autonomia da CUT foi político e didático-pedagógica que,
por exemplo, possuía livros sobre alfabetização de jovens e adultos
numa perspectiva da classe trabalhadora. Assim como no MOVA
em Porto Alegre e Rio Grande do Sul, Paulo Freire era um dos au-
tores base. Na política da EJA, a grande luta era por uma educação
não excludente. Ou seja, uma educação que ensine a ler, escrever,
contar e interpretar para mudar a sua história. Não é simplesmente
deixar de ser um analfabeto. É fazer o uso social da escrita e leitura.
É se politizar ao mesmo tempo que aprende e ensina. Você pode não
saber ler, mas tem muitos conhecimentos que pode ensinar. Na Edu-
cação Popular todos os saberes são respeitados e problematizados.
(Educadora Popular, entrevista em maio de 2018).

Como foi dito pela entrevistada, na EJA com referencial


freiriano, as lutas contra pobreza e exclusão social fazem parte
do conteúdo escolar. Elas se tornaram mais nítidas nos governos
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Educação de jovens e adultos e movimentos sociais: experiências educativas

populares ou quando tivemos grandes manifestações sociais rei-


vindicando o direto à educação. A não aceitação da opressão da
classe popular é um tema presente nos livros de Freire e Brandão.
Esses educadores são utilizados como referências dos programas
e projetos de Educação Popular.
Mas, na década de 1990, também tivemos outros movimen-
tos que trouxeram a EJA como direito. A promulgação da Lei das
Diretrizes e Bases (LDBEN 9.394/96), na qual a EJA passa a ser
considerada uma modalidade da educação básica nas etapas do
ensino fundamental e médio com especificidade própria, é uma
conquista de intelectuais e de movimentos sociais. No Rio Gran-
de do Sul, temos um Fórum Estadual de Educação de Jovens e
Adultos, do qual a entrevistada faz parte. Em seu relato, ela diz:
“[...] nesses messes de junho a dezembro [2018] teremos várias au-
diências públicas em defesa da EJA. A deputada Stela Farias está à
frente da comissão especial que visa debater a situação atual dessa
modalidade.” Muitas das conquistas estão expressas no artigo 37
da LDBEN (1996).

Figura 2 – Foto da Comissão Especial da EJA,


citada pela entrevistada

Fonte: entrevista, 2018.

Por fim, a EJA não está isolada das discussões políticas e so-
ciais. É nessa característica que a Educação Popular se aproxima
dos movimentos sociais e da luta em defesa da educação pública
como direito de todos.

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Educação de jovens e adultos e movimentos sociais: experiências educativas

4. EJA como modalidade da educação básica

A Educação de Jovens e Adultos avalia, em uma metodo-


logia apropriada a necessidades e interesses que representam o
curso supletivo, pessoas que não tiveram a oportunidade de rea-
lizar seus estudos no período suposto do sistema educacional,
matriculando-os no programa conhecido como EJA.
A EJA é uma série organizacional constituída de uma es-
trutura educacional que tem finalidade e função específicas. Essa
categoria contém a educação básica e é indicado no atendimento
ao aluno que não teve, na idade correta, oportunidade de acesso
ou mesmo de continuar os estudos no ensino fundamental e mé-
dio. É tratada como um instrumento capaz de ajudar na tarefa
fundamental de eliminação da discriminação, na busca de uma
sociedade mais justa, expressando uma possibilidade real de re-
paração das dívidas sociais, promovendo a todos os interessados
o alcance e domínio da escrita e leitura como bens sociais, dentro
ou fora da instituição de ensino.
Foi fundamentada na lei 9394, de 20 de dezembro de 1996
(LDB), e no parecer CNE/CEB n. 11/200, respondendo a quatro
funções básicas:

• função reparadora: direito a uma escola de qualidade e um


relacionamento de igualdade de todo ser humano, sendo
que a cidadania estará legalizada por meio da integração da
capacitação necessária para inserção no chamado “mundo
do trabalho”;
• função equalizadora: amplia e modifica uma oportunidade
a todos aqueles desvalidos que buscam o acesso à escola e ao
ensino, em vários níveis e períodos;
• função permanente de qualificação: entende que, diante das
diferentes fases de experiência e das exigências de forma
pessoal e profissional, instrumentos constantes de qualifi-
cação devem estar ao dispor de todos;
• função qualificadora: é o próprio sentido do EJA, tendo
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Educação de jovens e adultos e movimentos sociais: experiências educativas

como base o caráter incompleto do ser humano cujo poten-


cial de desenvolvimento e de adequação pode se atualizar
em quadros escolares ou não escolares.

4.1. O que é a modalidade da EJA?

Pode-se dizer que EJA é uma definição simples: uma mo-


dalidade da maneira de ser, tem suas particularidades e diferente
da educação de crianças. O aspecto ou feição diversa pode ser
tomado da educação: por exemplo, o ensino fundamental pode
ser oferecido na modalidade EJA. É um modo, maneira, metodo-
logia de oferta do ensino fundamental diferente da forma tradi-
cional.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB/96),
no seu título V, se define em níveis da modalidade educação de
jovens e adultos: educação profissional, educação especial, legis-
lação nacional e educação a distância.
Conforme os DCNs (BRASIL, 2013, p. 25),

A escola de educação básica é espaço de convívio, onde são privile-


giadas trocas, acolhimento e aconchego para garantir o bem-estar
de crianças, adolescentes, jovens e adultos, no relacionamento entre
si e com as demais pessoas. E uma instancia em que se aprende a va-
lorizar a riqueza das raízes culturais próprias das diferentes regiões
do País que, juntas, formam a nação. Nela se ressignifica e recria
acultura herdada, reconstruindo as identidades culturais, em que se
aprende a valorizar as raízes próprias das diferentes regiões do pais.

O parecer 11/2000, do Conselho Nacional de Educação, de-


termina que a EJA como modalidade deve consistir em:

Ensinar e promover o leitor de livros de várias linguagem visuais


juntamente as dimensões do trabalho e da cidadania, atualmente
isto requer algo mais da modalidade que tem diante das pessoas com
mais experiências mais longas de vidas e de trabalho. Podemos dizer

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Educação de jovens e adultos e movimentos sociais: experiências educativas

que estamos diante da função equalizadora da EJA. A e qualidade


e uma forma que se distribuem os bens sócios de maneira que vai
garantir uma redistribuição e alocação em vista de mais igualdade,
estimada a situação especifica.

Segundo Aristóteles, “[...] a equidade e a retificação da lei


onde esta se revela suficiente pelo seu caráter universal.” (1991,
137b, p. 26). Sendo assim, os desfavorecidos de acesso e per-
manência na escola devem receber proporcionalmente maiores
oportunidades que os outros.
Desta forma, a escola terá que descobrir uma forma de es-
truturar um conhecimento que será produzido pela comunida-
de e socialmente. Assim dará uma resposta ao que se apresenta.
Mas, para isso, a equipe gestora deve encontrar-se alinhada aos
objetivos propostos e desenvolver mecanismos dentro da escola
a fim de gerar respostas positivas no processo de ensino-aprendi-
zagem – além disso, o respeito às identidades sociais e culturais.
Isso também pode ocorrer através da formação de movimentos
escolares como “colegiados, organização estudantil e dos movi-
mentos” (DCNs, 2013, p. 25).

5. Desafios atuais da EJA

Desde 1530 (período colonial), o Brasil busca “instruir” e


alfabetizar os adultos que não tiveram acesso em idade adequada
ao ensino, organizando diferentes programas à população que
não possui acesso à educação formal. A partir da Lei de Diretri-
zes e Bases da Educação Nacional, no ano de 1996, a EJA passou
a ser uma modalidade de ensino.
As definições da EJA constam nos artigos 37 e 38 da LD-
BEN/96:

Art. 37. A educação de jovens e adultos será destinada àqueles que


não tiveram acesso ou continuidade de estudos nos ensinos funda-

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Educação de jovens e adultos e movimentos sociais: experiências educativas

mental e médio na idade própria e constituirá instrumento para a


educação e a aprendizagem ao longo da vida.
Art. 38. Os sistemas de ensino manterão cursos e exames supletivos,
que compreenderão a base nacional comum do currículo, habilitan-
do ao prosseguimento de estudos em caráter regular. (Lei de Diretri-
zes e Bases da Educação Nacional, 1996)

Desta forma, define-se em lei a quem é destinada a EJA e


também sua gratuidade, assegurando a oportunidade educacio-
nal apropriada aos alunos, esclarecendo sobre a oferta de cursos e
exames supletivos pelos sistemas de ensino, habilitando o prosse-
guimento de estudos em caráter regular, para maiores de 15 anos
no nível de ensino fundamental e maiores de 18 anos no ensino
médio. Diante do exposto, o principal desafio da EJA, segundo o
que pesquisamos, trata-se de tornar a escola e o ensino significa-
tivos a ponto de cativar o público que passa a frequentar a Edu-
cação de Jovens e Adultos a continuar seus estudos e, também,
fazer com que os conhecimentos adquiridos colaborem para que
se tornem sujeitos competitivos no mercado de trabalho.

5.2. Práticas pedagógicas

A Educação de Jovens e Adultos é consolidada, em lei, como


modalidade de ensino da educação básica. Porém as práticas pe-
dagógicas que envolvem a EJA diferem. Margarete Terezinha
Costa (2016, p. 102) acrescenta:

Compreende-se, também, que a EJA deve ser diferenciada da educa-


ção de crianças e adolescentes, visto que seus alunos já possuem toda
uma experiência de vida, muitos participam do mundo do trabalho
e precisam ter tais conhecimentos considerados.

Torna-se, então, evidente que o conhecimento e a experiên-


cia do aluno da EJA têm de ser respeitados e valorizados para
uma aprendizagem significativa. E, nessa aprendizagem, o pro-
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Educação de jovens e adultos e movimentos sociais: experiências educativas

fessor torna-se uma peça-chave, pois pode facilitar o processo de


aquisição do conhecimento.

[...] a teoria do norte americano David Ausubel, pensada para o con-


texto escolar, leva em conta a história do aluno e ressalta o papel dos
professores na proposição de situações que favoreçam a aprendiza-
gem [...] (AUSUBEL, 1980 apud SIÉCOLA, 2016, p. 117).

Portanto, assim como em outras modalidades de ensino, o


conteúdo deve ser potencialmente importante para o aluno, ter
significado, assim como ele também precisa estar disposto a se
apropriar desses conhecimentos.
É fundamental que o professor tenha a sensibilidade de não
tratar os jovens e adultos como crianças crescidas, pois possuem
uma bagagem de conhecimentos e experiências. Timothy Ireland
(2017, n.p) nos traz uma reflexão sobre a construção do conheci-
mento na EJA:

Ao partir do que o educando sabe, abrimos a possibilidade de uma


nova construção baseada em diálogo e uma relação mais horizontal
entre o educador e o educando, reconhecendo que em várias áreas
do conhecimento o próprio educando possui mais acúmulo que o
seu educador.

No entanto, as práticas pedagógicas que envolvem a cons-


trução do conhecimento na Educação de Jovens e Adultos exi-
gem um professor capaz de se colocar no lugar do aluno, de res-
peitar a vivência e o conhecimento do educando e, nesse diálogo,
construir um ambiente propício a sua aprendizagem.

Considerações finais

Este trabalho proporcionou um breve conhecimento da


história da EJA e alguns programas que ocorreram dentro das
lutas dos movimentos sociais. Na história da EJA, percebemos
101 de 220
Educação de jovens e adultos e movimentos sociais: experiências educativas

que os primeiros vestígios surgiram durante a colonização com


os padres jesuítas alfabetizando os índios, para posteriormente
ir evoluindo até chegar ao que é a EJA nos dias de hoje. Foi atra-
vés de muitas lutas que movimentos sociais colaboraram para o
fortalecimento da classe trabalhadora e para o incentivo e cons-
trução dessa modalidade como política pública – com a força de
suas mobilizações e com o envolvimento na área da educação
com o objetivo de erradicar o analfabetismo, politizar o cidadão,
reivindicando o direito à educação, a não aceitação da opressão.
Portanto, a EJA não está isolada das discussões políticas e sociais,
e é nesta característica que a Educação Popular se aproxima com
os movimentos sociais.
A Educação de Jovens e Adultos (EJA) é uma modalidade de
ensino amparada por lei e voltada para pessoas que não tiveram,
por algum motivo, acesso ao ensino regular na idade apropriada.
A EJA tem como objetivo tentar ou corrigir algumas questões
sociais como exclusão e exploração, entre outras que geram con-
sequências maiores, como a perigosa marginalização.
Observamos que os alunos integrantes da EJA retornaram
às instituições escolares não só em busca de um certificado ou di-
ploma; esperam muito mais do que ler e escrever: pretendem con-
tinuar os estudos e utilizá-los para sua formação crítica e social.
Diante disto, o desafio da atualidade é manter a EJA como
política educacional de direito, buscando alunos para acessarem
essa modalidade, assim como tornar públicos os espaços escola-
res que ofertam a EJA, minimizando de forma progressiva a eva-
são escolar. No campo pedagógico, é importante que os conteú-
dos sejam significativos, e os professores, comprometidos com
uma educação dialógica.

Referências

ARISTÓTELES. Ética a nicômaco; Poética. 4. ed. São Paulo:


Nova Cultural, 1991. (Os Pensadores, v. 2).
102 de 220
Educação de jovens e adultos e movimentos sociais: experiências educativas

BRANDÃO, Carlos R. A questão política da Educação Popular.


4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.
BRASIL. Lei n. 9.394/96. Estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional. Diário Oficial. Brasília. 1996.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica.
Diretoria de currículos e Educação integral. Diretrizes Curricu-
lares Nacionais Gerais da Educação Básica. Brasília, 2013.
CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Câmara de Educa-
ção Básica. Parecer CNE/CEB 11/2000.
COSTA, Margarete Terezinha de Andrade. Formação docente
para a diversidade. Curitiba, PR: Iesde Brasil, 2016.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1970.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à
prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
PAULO, Fernanda dos Santos. A formação do(as) educado-
res(as) populares a partir da práxis: um estudo de caso da AEP-
PA. 2013. 273 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universi-
dade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013.
PAULO, Fernanda dos Santos. Formação dos/as educadores/as
populares de Porto Alegre formados/as em Pedagogia: identi-
dade, trajetória e desafios. 2010. 79f. Trabalho de Conclusão de
Curso (Especialização em Educação Popular) – Instituto Supe-
rior de Educação Ivoti & Instituto de Desenvolvimento Brava
Gente, Porto Alegre, 2010.
PAULO, Fernanda dos Santos. Pioneiros e pioneiras da Educa-
ção Popular freiriana e a universidade. 268 f. Tese (Doutorado
em Educação) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leo-
poldo, RS, 2018.
SIÉCOLA, Márcia. Legislação educacional. Curitiba, PR: Iesde
Brasil, 2016.
103 de 220
O serviço de convivência e fortalecimento de vínculos

O SERVIÇO DE CONVIVÊNCIA
E FORTALECIMENTO DE VÍNCULOS

Tanise dos Santos Gonçalves


tanisegf@gmail.com

O  Serviço  de  Convivência  e  Fortalecimento  de  Víncu-


los  para  Criança (SCFVC) e o CRAS têm o papel de trabalhar
juntamente com as famílias com vários serviços, desse a criança
que está no ventre da mãe até o idoso. O CRAS tem serviços de
0 a 6, de 6 a 15 de 15 a 17 e idosos. O Serviço de Convivência de
Fortalecimento de Vínculos que atende crianças de 6 a 15 anos,
no município de Viamão, é conhecido como “SER CIDADÃO”;
geralmente tem crianças filhas de pessoas que são beneficiadas
do Programa Bolsa Família. O objetivo desse serviço é trabalhar
o fortalecimento de vínculos da mãe com os filhos, muitas vezes
são fragilizados ou não há uma proximidade. Esse programa, an-
teriormente conhecido como PETI, teve início em 2006; a partir
de 2012, mudou o nome para Serviço de Convivência e Fortale-
cimento de Vínculos para Crianças (SCFVC).
A assistente social tem o papel de trabalhar juntamente com
as famílias, orientando e passando um feedback, estando sempre
presente e participando dos encontros.
O trabalho no SCFV é realizado por educadores sociais
que desempenham uma intervenção com vistas à promoção do
bem-estar social, através de estratégias que buscam melhorar a
qualidade de vida principalmente de pessoas que estão margina-
lizadas socialmente. Esse trabalho objetiva garantir ou resgatar
104 de 220
O serviço de convivênciae fortalecimento de vínculos

os direitos básicos aos quais esse grupo tem direito, violados ou


negados em algum momento. A educação social-popular pode
ser o fator determinante na melhoria das condições de uma co-
munidade desassistida politicamente.
É de suma importância deixar claro que o SCFV não pre-
tende, de maneira alguma, substituir ou tomar para si o trabalho
pedagógico da escola, já que esta está devidamente provida de
profissionais habilitados para o ensino das disciplinas curricula-
res. O objetivo, como já foi afirmado anteriormente, é proporcio-
nar subsídios para que esses(as) educandos(as) possam participar
de atividades que lhes possibilitem desenvolver suas potenciali-
dades, permitindo-lhes emancipar-se como sujeitos.
O tempo/espaço para a realização de trabalhos e tarefas es-
colares também colabora para a permanência das crianças e ado-
lescentes na escola, visto que os responsáveis relatam não dispor
de tempo ou alegam não ter uma formação suficiente para auxi-
liá-los em seus compromissos escolares. Esse tempo/espaço dá
subsídios para que possam realizar seus compromissos de forma
que não sejam prejudicados em função de sua situação familiar.
Como foi possível observar, os elementos trazidos à reflexão
neste texto denotam a importância do trabalho dos educadores
sociais que atuam no Serviço de Convivência e Fortalecimento
de Vínculos com crianças e adolescentes, realizando atividades
educativas que buscam sua emancipação, bem como a relevância
do estreitamento da relação entre ambas as instituições para que
isso se efetive. Apresentou as legislações que deveriam garantir a
“igualdade de condições para o acesso e a permanência na esco-
la” de crianças e adolescentes, como dever da família, do governo
e da sociedade, mas que não consegue efetivar-se em razão das
inúmeras situações escolares e familiares.
A relevância da formação de qualidade dos educadores so-
ciais que realizam o trabalho nas mais diversas entidades se con-
figura inclusive pelo fato de que essas ações devem ser norteadas
não por “achismos” ou conhecimentos de ordem prática, adqui-
ridos empiricamente, mas por uma ciência que tem como objeto
de estudo a intervenção da realidade. A Pedagogia Social vem a

105 de 220
O serviço de convivênciae fortalecimento de vínculos

ser essa ciência, pois agrega valores assistencialistas e educacio-


nais em prol da humanização do sujeito. Os educadores sociais
acabam, por vezes, sendo o elo de articulação que perpassa as
relações entre família e educandos.

Referências

ABRAMOVAY, M. Juventude, violência e vulnerabilidade


social na América Latina: desafios para políticas públicas. Bra-
sília: UNESCO, BID, 2002. 192 p.
BARBOSA, G. T. Avaliação de Serviço de Convivência e For-
talecimento de Vínculos para adolescentes de 15 a 17 anos no
âmbito da Proteção Social Básica. São Paulo: SEMESP, 2014.
Disponível em: <http://conic-semesp.org.br/anais/files/2014/tra-
balho-1000017874.pdf>. Acesso em: 4 jun. 2017.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República
Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1988. 292 p. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso
em: 29 maio 2017.

106 de 220
O assistente social e sua intervenção na formação permanente dos educadores sociais

O ASSISTENTE SOCIAL E SUA INTERVENÇÃO


NA FORMAÇÃO PERMANENTE
DOS EDUCADORES SOCIAIS

Andreia Soares de Lima1


andreiaslima_soares@hotmail.com

Fernanda dos Santos Paulo


fernandaeja@yahoo.com.br

Vlamir do Nascimento Seabra


vlamir@ifam.edu.br

Começando pelo espaço do trabalho...

O presente trabalho é um recorte do trabalho de conclusão


do curso de Serviço Social, resultado de pesquisa. O tema refere-
-se à formação permanente de educadores sociais e à intervenção
do assistente social nesse processo. O interesse pelo tema nasceu
da participação na AEPPA e no curso de extensão realizado em
parceria com a AEPPA na UFRGS sobre Educação Popular. O

1 Assistente social e participante da AEPPA e MEP. A pesquisa teve assessoria e acom-


panhamento de Fernanda Paulo. A produção do texto aconteceu em dias de estudo
realizado no núcleo de formação de educadores vinculado ao Grupo de Estudos e
Pesquisa Paulo Freire e a Educação Popular. No curso de Serviço Social, a orienta-
dora foi Maria Geraldina Venâncio (Uniasselvi). O texto é resultado de uma longa
trajetória de debates sobre esse tema. Além disso, os três autores fizeram parte de
uma jornada de estudos e preparação de pautas temáticas para formação.

107 de 220
O assistente social e sua intervenção na formação permanente dos educadores sociais

espaço de realização da pesquisa foi no Centro de Referência de


Assistência Social – CRAS Noroeste, de Porto Alegre (RS).
O CRAS é uma unidade pública estatal descentralizada
atuando como a principal porta de entrada do Sistema Único de
Assistência Social (SUAS). É responsável pela organização e ofer-
ta de serviços de Proteção Social Básica nas áreas de vulnerabili-
dade e risco social. Além de ofertar serviços e ações de proteção
básica, o CRAS possui a função de gestão territorial da rede de
assistência social básica, promovendo a organização e a articula-
ção das unidades a ele referenciadas. O principal serviço oferta-
do pelo CRAS é o Serviço de Proteção e Atendimento Integral à
Família (PAIF), cuja execução é obrigatória e exclusiva. O CRAS
é uma unidade de proteção social básica do SUAS, que tem por
objetivo prevenir a ocorrência de situações de vulnerabilidade e
riscos sociais nos territórios, por meio do desenvolvimento de
potencialidades e aquisição do fortalecimento de vínculos fami-
liares e comunitários, além de ampliação do acesso aos direitos
de cidadania.
O assistente social, em seu exercício profissional, tem na sua
prática o levantamento de demandas, pautado nos pressupostos
teórico-metodológicos e instrumentais. É a partir desse contexto
que conheci o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vín-
culos (SCFV). Após a aproximação com esse serviço, apresentei
o levantamento de demandas identificadas nesse CRAS. A partir
de então, defini como um tema importante para a minha forma-
ção acadêmica o trabalho realizado pelos educadores sociais no
SCFV. Minha curiosidade era a seguinte: como assistentes so-
ciais poderiam colaborar no processo de formação continuada/
permanente de educadores sociais do SCFV?
Deste então, realizei pesquisas bibliográficas, entrevista es-
truturada com a técnica referência do SCFV e registro em diários
de bordo sobre o desenvolvimento do projeto. Também, partici-
pei do Fórum de Educadores Sociais de Porto Alegre e do Movi-
mento de Educação Popular, espaços que vêm debatendo a rela-
ção entre o trabalho e a formação de educadores sociais de Porto
Alegre. Em outras palavras, o meu tema de pesquisa surgiu do

108 de 220
O assistente social e sua intervenção na formação permanente dos educadores sociais

levantamento de demandas identificadas no ano de 2016. O que


me motivou a estudar o assunto foi o contato com os educadores
sociais do SCFV e ter o conhecimento da demanda por formação
permanente. De forma geral, os educadores sociais que participa-
ram do meu projeto de intervenção são do CRAS Noroeste, Porto
Alegre (RS). Um dos espaços de trabalho deles são instituições go-
vernamentais que executam o SCFV, como nesse CRAS. A partir
disso, comecei a participar dos grupos de estudos do Movimento
de Educação Popular vinculado à Associação de Educadores Po-
pulares de Porto Alegre (AEPPA) e integrei-me à discussão sobre
o tema.
A metodologia de pesquisa utilizada foi bibliográfica e de
campo. É qualitativa, cuja pesquisa de campo, considerada o tipo
mais utilizado no Serviço Social, resulta da aplicação do projeto
de intervenção. As técnicas utilizadas foram observações, entre-
vistas e análise de documentos da instituição e das oficinas apli-
cadas.

Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos

Este capítulo vai descrever e contextualizar o tema e o lugar


dos assistentes sociais no processo de formação permanente de
educadores sociais do SCFV.
O SCFV é um serviço de Proteção Social Básica, decorrente
do novo reordenamento do Sistema Único da Assistência Social
(SUAS). Seu objetivo é o Atendimento Integral à Família (PAIF),
que visa prevenir a ocorrência de situações de vulnerabilidade
e risco social. O SCFV trabalha com os ciclos de vida familiar
buscando o desenvolvimento integral das pessoas, por meio de
atividades de convivência e socialização. Com a aprovação da
Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, o SCFV foi
organizado por faixa etária com o objetivo de prevenir possíveis

109 de 220
O assistente social e sua intervenção na formação permanente dos educadores sociais

situações de risco inerentes a cada ciclo de vida, sendo organiza-


do da seguinte forma:
1. crianças até 6 anos;
2. crianças e adolescentes de 6 a 15 anos;
3. adolescentes e jovens de 15 a 17 anos;
4. pessoas idosas.

O SCFV é um serviço realizado em grupos, de acordo com


seu ciclo de vida, cujo objetivo é garantir o desenvolvimento hu-
mano de seus usuários. Um dos profissionais a trabalhar nesse
serviço é o educador social, além do assistente social. Enquanto
o assistente social busca evitar a oferta fragmentada dos direitos
aos usuários da política da assistência social, o educador social
desenvolve atividades pedagógicas com esses sujeitos de direitos
visando ao fortalecimento de vínculos e à cidadania. Sua base é o
Estatuto da Criança e Adolescente.
O assistente social e o educador social buscam contribuir
para a mudança da realidade excludente na qual a maioria dos
usuários do SCFV se encontram, que é de exclusão social.
O público atendido no SCFV é, na sua maioria, crianças,
adolescentes e pessoas idosas nas seguintes situações:
1. em situação de isolamento;
2. trabalho infantil;
3. vivência de violência e/ou negligência;
4. fora da escola ou com defasagem escolar superior a dois anos;
5. em situação de acolhimento;
6. em cumprimento de MSE em meio aberto;
7. egressos de medidas socioeducativas;
8. situação de abuso e/ou exploração sexual;
9. com medidas de proteção do ECA;
10. crianças e adolescentes em situação de rua;
11. vulnerabilidade que diz respeito às pessoas com deficiência.

O público com o qual trabalhei no campo de estágio foram


os educadores sociais do CRAS, o qual, conforme o Estatuto da
Criança e Adolescente, é assim compreendido:
110 de 220
O assistente social e sua intervenção na formação permanente dos educadores sociais

Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze


anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito
anos de idade. Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se
excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um
anos de idade. (BRASIL, 1990, Art. 2º).

O projeto de intervenção realizado não trabalhou com esse


público diretamente, mas com os educadores sociais que os aten-
diam. Percebia em que o contexto entre educação e violência era
marcante e que os educadores necessitavam de formação perma-
nente.
Como estudante do Serviço Social, futura assistente social,
via que o processo educativo realiza-se em todos os espaços e
que muitos educadores sociais tinham dificuldades de com-
preender o seu papel no SCFV. Conforme a leitura obtida a partir
da realização do projeto de intervenção, percebi que o trabalho
do assistente social poderia contribuir no processo de formação
permanente desses educadores sociais. Vi que o trabalho do as-
sistente social não poderia reduzir-se somente aos usuários do
SCFV, mas ser ampliado ao trabalho formativo com educadores
que atendem crianças e adolescentes de uma realidade de desi-
gualdades sociais.
O educador social, para Paulo (2013), é aquele sujeito que
trabalha no contexto não escolar e que tem essa profissão. Ou
seja, não é um voluntário. Para Fuhrmann e Paulo (2014, p. 559):

Um importante passo para a regulamentação do trabalho em educa-


ção social foi alcançado pelo Projeto de Lei n. 5.346, de 2009, que cria
a profissão de educador social. Embora, num primeiro momento, a
profissionalização do educador social, a partir desse projeto de lei,
seja considerada como avanço, um dos seus limites está na exigência
do ensino médio como requisito para o desempenho da função.

111 de 220
O assistente social e sua intervenção na formação permanente dos educadores sociais

Quem é o educador social e qual sua atuação no CRAS


Noroeste?

Para analisar a atuação do educador social no CRAS No-


roeste e sua formação específica para exercer essa atividade, parti
da análise da Resolução n. 9, de 15 de abril de 2014, que dispõe
sobre as funções do educador social no Conselho Nacional de
Assistência Social, as atribuições dos cargos de nível médio e fun-
damental no Sistema Único da Assistência Social (SUAS), sobre
o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos. Utilizei,
também, o documento que trata das orientações técnicas sobre o
SCFV para crianças e adolescentes de 6 a 15 anos de 2010, com-
parando essas questões documentais com o aspecto das ativida-
des laborais do educador social do CRAS Noroeste Porto Alegre.
O orientador social ou educador social, segundo as reso-
luções do Conselho Nacional de Assistência Social, pode exer-
cer inúmeras atividades; entre elas, podemos citar as seguintes
funções: desenvolver atividades socioeducativas, instrumentais
de registro para assegurar direitos; (re)construção da autonomia,
autoestima, convívio e participação social dos usuários, a partir
de diferentes formas de metodologias, contemplando as dimen-
sões individuais e coletivas, levando em consideração o ciclo de
vida e ações intergeracionais; assegurar a participação social dos
usuários; fazer busca ativa; atuar na recepção dos usuários; apoiar
na identificação e registro de necessidades e demandas dos usuá-
rios; apoiar e participar no planejamento das ações; organizar,
facilitar oficinas; acompanhar, orientar e monitorar os usuários
na execução das atividades; apoiar na organização de eventos ar-
tísticos, lúdicos e culturais nas unidades e/ou na comunidade;
apoiar no processo de mobilização e campanhas intersetoriais
nos territórios de vivência para a prevenção e o enfrentamento
de situações de risco social; distribuir e divulgar materiais das
ações; elaborar registros das atividades desenvolvidas; subsidiar
a equipe com insumos com relação aos órgãos de defesa de di-
reitos; elaborar um Plano de Acompanhamento Individual e/ou
familiar; apoiar na orientação, informação, encaminhamentos e
112 de 220
O assistente social e sua intervenção na formação permanente dos educadores sociais

acesso a serviços, programas, projetos, benefícios, transferência


de renda, ao mundo do trabalho; participar das reuniões de equi-
pe para o planejamento das atividades, avaliação de processos,
fluxos de trabalho e resultado; apoiar na identificação e acompa-
nhamento das famílias em descumprimento de condicionalida-
des do programa; informar, sensibilizar e encaminhar famílias
e indivíduos sobre as possibilidades de acesso e participação em
cursos de formação e qualificação profissional, programas e pro-
jetos de inclusão produtiva e serviços de intermediação de mão
de obra; acompanhar ingresso, frequência e desempenho dos
usuários nos cursos por meio de registros periódicos; apoiar no
desenvolvimento dos mapas de oportunidades e demandas.
Em virtude dessa amplitude de obrigações, o educador so-
cial é um verdadeiro coringa social, um trabalhador multifun-
cional, polivalente, que exerce atividade de prevenção, proteção
e convivência. Essas características são inerentes ao modelo de
sociedade capitalista sob a égide dos valores neoliberais que (res)
significam o sentido do trabalho. Em outras palavras, o educador
social multifuncional, sobretudo no contexto do trabalho tercei-
rizado, torna-se mão de obra barata.
É importante ressaltar que o campo empírico onde foi reali-
zado o estágio é municipal, mas, entre os educadores sociais que
trabalham no SCFV, 90% são oriundos da rede conveniada. Isso
significa que o município de Porto de Alegre, na garantia dos
direitos sociais, tem priorizado parceria público-privada. Nesse
contexto, é mister observar que não são só os educadores sociais
vêm sendo contratados de forma terceirizada; também é caso da
Coordenadora do SCFV, Adriana de Souza, assistente social e es-
pecialista em Serviço Social e Educação Popular, que por várias
vezes discutiu essa problemática durante o período de estágio.
Os educadores sociais em Porto Alegre, na sua grande
maioria, possuem o ensino médio, mas poucos têm formação es-
pecífica na área social. Em breve análise, podemos afirmar que a
carência de formação é fator agravante na garantia da assistência
social de qualidade.
No caso específico do CRAS Noroeste, três educadoras
sociais possuem curso superior completo, dois possuem curso
113 de 220
O assistente social e sua intervenção na formação permanente dos educadores sociais

superior incompleto e uma tem ensino fundamental. A peculia-


ridade em relação ao nível de formação me chamou atenção de-
vido a minha participação na AEPPA e no Fórum de Educadores
Sociais de Porto Alegre. Em um levantamento de dados realizado
em um dos encontros promovidos pela AEPPA, constatamos que
existem dois perfis de educadores sociais: a) educadores com até
ensino médio sem formação específica para atuar na área social;
b) educadores com ensino superior ou estudando em cursos su-
periores que não vislumbram a carreira de educador social como
perspectiva profissional.
No mesmo encontro, avaliamos que se faz necessário discu-
tir em âmbito municipal a identidade profissional do educador
social, associando-o ao debate nacional em torno da regulamen-
tação da profissão. Há dois grandes movimentos controversos
em relação à formação a ser exigida caso a profissão seja regula-
mentada: o grupo de São Paulo, liderado pelo professor Roberto
da Silva (USP), defende a formação em nível médio; o grupo do
Paraná, em especial a partir da professora Veronica Muller, da
Universidade Estadual de Maringá, defende a educação superior.
No caso de Porto de Alegre, ocorre o mesmo embate: al-
guns defendem a educação superior, e outros, o ensino médio,
como podemos observar no relato:

Na AEPPA há mais de 15 anos lutamos pela qualificação e valori-


zação das Educadoras que atuam na Educação infantil, na EJA e no
SCFV. A nossa reivindicação é por formação em nível superior, mas
não qualquer curso, pois queremos participar da discussão curricu-
lar da proposta pedagógica, incluindo temas do cotidiano do nos-
so trabalho. Andreia, eu mesma fiz o curso de Pedagogia através da
AEPPA e no currículo do curso incluímos a Educação não escolar e a
Educação Popular, além de seminários temáticos. Tivemos um curso
específico na PUC-RS e na UERGS. Em nível de especialização tive-
mos dois cursos: 1) Educação Popular e Movimentos Sociais; 2) Edu-
cação Popular e Serviço Social. Eu fiz o primeiro e te garanto que foi
importante discutir, por exemplo, a diferença entre a Educação Social
e a Educação Popular. É claro que nós – enquanto AEPPA – defen-
demos a Educação Superior. (Fernanda Paulo, entrevista out. 2017).

114 de 220
O assistente social e sua intervenção na formação permanente dos educadores sociais

Essa posição é observada na dissertação da entrevistada.


Nela, a autora defende um curso de Pedagogia Social na pers-
pectiva da Educação Popular. O referencial teórico defendido é
semelhante àqueles que se apresentam nos documentos da assis-
tência social no que tange à formação do educador social. Paulo
Freire aparece em quase todos os materiais que tratam do traba-
lho do educador social, mas como referência à Educação Social.
A coordenadora do SCFV do CRAS Noroeste possui um
referencial da Educação Popular e vem percebendo a necessida-
de de uma formação específica para os educadores sociais, se-
jam eles formados em nível superior ou não. Embora o CRAS
Noroeste possua uma equipe de educadores com formação na
área de ciências humanas, existe a necessidade da formação per-
manente para que se possam garantir os conhecimentos básicos
sobre o campo de trabalho, as questões sociais. Observei que
existe uma demanda por referenciais teórico-metodológicos que
fundamentem as práticas socioeducativas não escolarizadas. A
educação realizada na assistência social não é escolar, talvez aí
esteja o grande desafio do trabalho de formação permanente que
o assistente social possa fomentar.
Ao cruzar as entrevistas realizadas, as observações no cam-
po de estágio, os estudos teóricos e minhas reflexões, afirmo que
a formação necessária para os educadores sociais deve ser multi-
disciplinar dialogando com o Serviço Social, a Pedagogia, a Psi-
cologia e a Saúde.

Breve histórico do Centro de Referência de Assistência


Social Noroeste

A Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC), si-


tuada na Avenida Ipiranga, n. 310, é um órgão responsável pela
coordenação e execução de programas e serviços que promovem
direitos e inclusão de cidadãos que estão em situação de risco e
vulnerabilidades. Suas funções foram desenvolvidas através das
demandas que foram absorvidas.
115 de 220
O assistente social e sua intervenção na formação permanente dos educadores sociais

Com o crescimento da população urbana em Porto Alegre,


a prefeitura começou a desenvolver vários projetos de centros co-
munitários e esportivos ligados então à Secretaria Municipal de
Educação e Cultura. A intenção era oferecer esporte, recreação
e cultura para as comunidades que não dispunham desses equi-
pamentos.
O primeiro centro comunitário foi criado no bairro Ipi-
ranga, no Centro de Comunidade Bairro Ipiranga (Cecobi), em
setembro de 1970, e vários outros foram sendo criados poste-
riormente; em 1973, o da Vila Floresta, o Cecoflor. O Cecoflor,
também denominado CRAS Noroeste, fica situado na Rua Irene
Cappone Santiago, n. 290, Vila Floresta, Porto Alegre, Região
Noroeste.
O Cecoflor ficou por 27 anos desenvolvendo as atividades
da FESC. Com a implantação da FASC, passou a ser chamado
Centro de Assistência Social (CEAS) Noroeste, por atender a po-
lítica de assistência dessa região, mas a comunidade mantém a
denominação de Cecoflor até os dias de hoje. A partir da im-
plantação de um sistema único no município de Porto Alegre,
em 2010, fez-se necessário a criação dos Centros de Referência de
Assistência Social (CRAS).
O CRAS atua como a principal porta de entrada do Sistema
Único de Assistência Social (SUAS), dada sua capilaridade nos
territórios, e é responsável pela organização e oferta de serviços
da Proteção Social Básica nas áreas de vulnerabilidade e risco
social. Seus objetivos são promover a autossustentabilidade dos
cidadãos, orientar os usuários dessa região a ter uma condição de
vida melhor e prover ferramentas para a inclusão social.

Características do local de desenvolvimento do projeto

O espaço físico do CRAS Noroeste é organizado de modo


que as famílias que vivem no território de abrangência do Cen-

116 de 220
O assistente social e sua intervenção na formação permanente dos educadores sociais

tro o reconheçam como uma unidade pública que possibilite o


acesso a direitos.
Para a aplicação do projeto de intervenção, foram disponi-
bilizados locais com estruturas necessárias, amplos e com capa-
cidade para receber os educadores sociais, público-alvo traçado.
No quadro a seguir, apresenta-se quem são os educadores,
sua escolarização e funções desempenhadas no SCFV:

Perfil de educadores sociais


Educadores Escolarização Concursado Função
1. Feminina Superior em Peda- Contadora de história
gogia
2. Mascu- Superior incompleto Educador de hip-hop
lino em Educação Física
3. Feminina Superior em Teatro Educadora de conta-
ção de história
4. Feminina Superior incompleto Educadora de artes
em Psicologia
5. Feminina Ensino fundamental Educadora de artesa-
nato
6. Feminina Superior completo em X Monitora
Psicologia
Fonte: Autores

Conforme entrevista com a coordenadora do SCFV, “no


momento estou com a vaga de educador de música em aberto”
e somente uma educadora é concursada, “os outros prestam ser-
viços para uma cooperativa e uma associação” (SOUZA, 2016).

117 de 220
O assistente social e sua intervenção na formação permanente dos educadores sociais

Pesquisas sobre o tema

O levantamento teórico sobre o tema será apresentado na


sequência.

Serviço de convivência e fortalecimento de vínculos


Identificação autor Título Aproximação com o meu
tema
Priscila Cardoso Intervenção profissional Não se aproxima por-
Keli Regina Dal Prá do assistente social no que trata da intervenção
eixo de planejamento e profissional dos assistentes
gestão: uma discussão sociais no eixo de planeja-
a partir da experiência mento e gestão em um dos
na coordenação de um serviços da Proteção Social
serviço de assistência Básica da política de assis-
social no âmbito da tência social no Serviços de
Proteção Social Básica Convivência e Fortaleci-
mento de Vínculos voltados
para crianças e adolescentes
com idade entre seis e 14
anos de idade.
Ana Claudia Soares A voz dos adolescen- Não se aproxima pois trata
dos Santos tes: estudo de caso no do trabalho com adolescen-
Gisele Ghedin serviço de convivência tes e o assunto é a respeito
Carlos e fortalecimento de das ações socioeducativas
Maria de Lourdes vínculos no CRAS do desenvolvidas com os ado-
da Silva Leite Basto bairro Jaqueline no mu- lescentes.
nicípio de Içara/SC
Luciana Francisca Serviço de convivência Se aproxima só no que se
de Oliveira e fortalecimento de refere a o que é o SCFV. Não
vínculos familiares se aproxima no restante
e comunitários com porque trata da experiên-
crianças em situação cia de um SCFV dirigido
de trabalho infanto-ju- a crianças e adolescentes
venil. inscritos no Programa de
Erradicação do Trabalho
Infantil (PETI).
Fonte: Google

118 de 220
O assistente social e sua intervenção na formação permanente dos educadores sociais

Serviço de convivência e fortalecimento de vínculos e educadores sociais


Identificação autor Título Aproximação com o meu
tema
Paloma Monique Papel do educador so- Se aproxima. Este trabalho
Campos Carneiro cial no centro de apoio tem por objetivo compreen-
Marcia Heloísa De a família e a interven- der o papel do educador
Oliveira ção do profissional de social, cujo trabalho
Serviço Social cotidiano é com crianças e
adolescentes que vivem em
um território marcado pela
pobreza e exclusão social.
Busca também discutir a
importância do senso crí-
tico para esse trabalhador,
possibilitando o entendi-
mento da realidade em que
os sujeitos estão inseridos;
aponta também a importân-
cia do assistente social no
processo de capacitação do
educador social.
Lirene Finkler Avaliação de um proje- Não se aproxima porque a
to social para crianças tese avalia o Serviço Ação
e adolescentes em Rua.
situação de rua e suas
famílias
Patrícia Fernanda O serviço de convivên- Não se aproxima. Trabalho
Aguiar Barbosa cia e fortalecimento de de Conclusão de Curso que
vínculos no bairro Má- trata da reflexão sobre o
rio Quintana em Porto campo de estágio supervi-
Alegre/RS: o assistente sionado do curso de Serviço
social e a articulação Social no Lar Esperança
com a rede. de Porto Alegre. O foco
do trabalho é o Serviço de
Convivência e Fortaleci-
mento de Vínculos (SCFV)
e os limites e possibilidades
de atuação do Assistente
Social, nas Entidades de
Assistência Social junto às
crianças, adolescentes e suas
famílias.

119 de 220
O assistente social e sua intervenção na formação permanente dos educadores sociais

Fernanda dos A Formação Dos (As) Se aproxima. Trata da


Santos Paulo (em Educadores(as)Popula- formação de educadores
Educação, pela Uni- res A Partir Da Práxis: populares e sociais de Porto
versidade Federal Um Estudo De Caso Da Alegre.
do Rio Grande do AEPPA
Sul, Porto Alegre)
Alexandre Magno A formação de educa- Não se aproxima. Esse
Tavares da Silva dores sociais e agentes artigo aborda algumas
voluntários interna- experiências e reflexões que
cionais em projetos estão sendo realizadas por
sócio-comunitários: A educadores(as) e voluntá-
contribuição do pensa- rios que atuam em projetos
mento de Paulo Freire sociocomunitários.
Nadia Fuhrmann A formação de educa- Não se aproxima com o
Fernanda dos San- dores na educação não contexto de trabalho, mas se
tos Paulo formal pública aproxima com a questão da
formação de educadores so-
ciais. As autoras discorrem
sobre o Programa de Apoio
Socioeducativo (SASE) hoje
conhecido como SCFV.
Fonte: Google

Diante desse levantamento de dados, escolhi alguns autores


para fundamentar este projeto; uma delas é Oliveira ([2013 ou
2016]). Sobre o SCFV, Oliveira escreve:

[...] é um serviço realizado em grupos, organizado a partir de per-


cursos, de modo a garantir aquisições progressivas aos seus usuá-
rios, de acordo com o seu ciclo de vida, a fim de complementar o
trabalho social com famílias e prevenir a ocorrência de situações de
risco social. Forma de intervenção social planejada que cria situações
desafiadoras, estimula e orienta os usuários na construção e recons-
trução de suas histórias e vivências individuais e coletivas, na família
e no território. Organiza-se de modo a ampliar trocas culturais e de
vivências, desenvolver o sentimento de pertença e de identidade, for-
talecer vínculos familiares e incentivar a socialização e a convivência
comunitária. Possui caráter preventivo e proativo, pautado na defesa
e afirmação dos direitos e no desenvolvimento de capacidades e po-
tencialidades, com vistas ao alcance de alternativas emancipatórias
para o enfrentamento da vulnerabilidade social. (19--?, p. 4).

120 de 220
O assistente social e sua intervenção na formação permanente dos educadores sociais

O quadro de educadores sociais que trabalham no SCFV


do CRAS Noroeste é composto de “uma educadora de contação
de história, uma de artesanato, um de leitura, uma de artes e um
educador de música e outro de hip-hop” (SOUZA, 2016)2. Para a
assistente social entrevistada, “os maiores desafios encontrados
por mim são a falta de entendimento do que realmente é ser um
Educador e a falta de capacitação” (SOUZA, 2016). Para Fuhr-
mann e Paulo (2014), a regulamentação do trabalho em educa-
ção social requer formação inicial e continuada. A formação é
“requisito para o desempenho da função” (p. 559). A regulamen-
tação do trabalho em educação social não foi aprovada ainda, e
o assunto é complexo em se tratando da formação. O que Souza3
disse em entrevista reafirma a necessidade da formação conti-
nuada de educadores sociais. A falta de formação continuada
prejudica o trabalho social realizado no contexto não escolar,
pois muitas vezes usa-se a mesma metodologia de trabalho da
escola no SCFV. Com isto, vejo que o assistente social pode con-
tribuir no processo de formação desses educadores, no sentido
de fortalecer a política social.
No contexto do meu estágio, o “maior entrave está ligado ao
perfil do então ‘educador’, que na verdade não tem esclarecido o
seu papel, e mesmo quando tem, sua baixa remuneração o obriga
a trabalhar em diversos lugares, o que provoca uma perda acen-
tuada na qualidade do trabalho” (SOUZA, 2016). Paulo (2013,
p. 9) fala que esse entrave traz “certa invisibilidade intencional
do trabalho socioeducativo realizado pelos educadores”. Então, a
demanda identificada no CRAS Noroeste Porto Alegre é o pro-
blema da falta de formação continuada dos educadores sociais do
SCFV de 6 a 14 anos.

2 SOUZA, Adriana Ramos. Entrevista concedida pela coordenadora do SCFV do


CRAS Noroeste. Porto Alegre, 8 out. 2016.
3 SOUZA, Adriana Ramos. Entrevista concedida pela coordenadora do SCFV do
CRAS Noroeste. Porto Alegre, 8 out. 2016.

121 de 220
O assistente social e sua intervenção na formação permanente dos educadores sociais
entrave traz “certa invisibilidade intencional do trabalho socioeducativo realizado pelos
Análise
educadores” (p.9).dos dados
Então, da pesquisa
a demanda de no
identificada campo
CRAS e a discussão
– Noroeste Porto Alegre
dos resultados
é o problema da falta de formação continuada dos educadores sociais do SCFV de 6
a 14 anos.

Análise Os
dos dados
dados da pesquisa
apresentados de campo
a seguir foram e aa partir
angariados
discussão dos resultados
do desenvolvimento do projeto de intervenção.
O recolhimento dos dados da pesquisa deu-se através de en-
trevista estruturada com a técnica responsável pelo SCFV, feita
Os dados apresentados a seguir foram angariados a partir do desenvolvimento
através
do projeto de mensagem pelo Messenger – foi possível examinar os
de intervenção.
Odados quanti-qualitativos.
recolhimento Quanto
dos dados da pesquisa aos dados
deu-se através qualitativos, pude-
de entrevista estruturada
com a técnica responsável do SCFV feita através de mensagem pelo Messenger onde
ram ser colhidos através das observações no decorrer do desen-
foi possível examinar os dados quanti-qualitativos, quanto aos dados qualitativos
volvimento
esses puderam do projeto
ser colhidos dedas
através intervenção.
observações no decorrer do desenvolvimento
do projeto deAintervenção
pesquisa realizada e o projeto de intervenção nutriram
A pesquisa realizada e o projeto de intervenção nutriram como foco a proposta
como foco a proposta de uma formação permanente dos educa-
de uma formação permanente dos Educadores Sociais do SCFV de crianças de 6 a
dores sociais do SCFV de crianças de 6 a 14 anos.
14 anos.
Os dadosOs adados
seguira expõem o índice o
seguir expõem deíndice
Educadores com formação
de educadores com superior
for-
completo e incompleto, com nível médio e nível fundamental, gênero, se são
mação superior completo
concursado ou se prestam serviços. e incompleto, com nível médio e nível
fundamental, gênero, se são concursados ou se prestam serviços.
GRAFICO 1- NÚMERO DE PROFISSIONAIS DO SEXO MASCULINO E
FEMENINO
Gráfico 1 – número de profissionais do sexo masculino e feminino
GÊNERO

16%

MASCULINO
FEMININO

84%

Observa-se que o número de mulheres é superior ao núme-


roPode-se
de homens; pode-se pensar que as mulheres, por terem o ins-
observar que o número de mulheres é superior ao número de
tinto maternal, se adequam mais a este serviço, pois trabalham
homens, pode-se pensar que as mulheres por terem o instinto de maternal se
diretamente com crianças e adolescentes.
adequam mais a este serviço, pois trabalham diretamente com crianças e
adolescentes.
122 de 220
O assistente social e sua intervenção na formação permanente dos educadores sociais

Gráfico 2 – Nível de formação dos educadores

ESCOLARIDADE

SUPERIOR
16% COMPLETO
50% SUPERIOR
INCOMPLETO
34%
FUNDAMENTAL

Com base nesses números, pode-se observar o maior nú-


mero de profissionais com ensino superior, mas com profissões
diferentes. Ainda assim, há que pensar a formação permanente
para esses educadores e, principalmente, a regulamentação da
profissão
Com de educador
base nestes social.
números, pode-se observar o maior número de profissionais
A coleta de dados durante toda a pesquisa e a construção do
com ensino superior
projeto mas com
ensejaram profissões
a aplicação diferentes, mas ainda assim pensar a
do projeto.
formação permanente para esses
Visualizando educadores
o primeiro e principalmente
gráfico, percebe-se queaoregulamentação
número da
de mulheres nesse
profissional de Educador Social.espaço é bem maior que o público masculino.
No segundo gráfico, é possível atentar para o fato de que
Através da coleta de dados durante toda a pesquisa e construção do
há profissionais de níveis diferentes de escolarização no SCFV,
projeto,levantando
ensejarammais
a aplicação
ainda ado projeto.
questão de se pensar um curso de nível
superior para aoprofissão,
Visualizando primeiro que já vem
gráfico, há anos sendo
percebe-se que oexercida.
número de mulheres
Os resultados previstos no projeto
nesse espaço é bem maior que o publico masculino. de intervenção não fo-
ram alcançados em detrimento do desmonte na assistência, que
seOdeusegundo
não só gráfico é possível
no município atentar
de Porto que como
Alegre, tem profissionais
também em de níveis
diferentes
tododeo escolarização no SCFV,
Brasil, resultando levantando
no fechamento domais
SCFV ainda
que aatende
questão de se
crianças de 6 a 14 anos no CRAS Noroeste.
pensar um curso de nível superior para a profissão que já vem a anos sendo
exercida
Numa sociedade desigual, assegurar a responsabilidade pública pela
Os resultados previstos
Assistência Social éno
umprojeto defundante
princípio intervenção
para anão foram alcançados
construção de um em
pacto civilizatório centrado na ética e solidariedade entre os povos...
detrimento do desmonte na assistência que se deu não só no município de Porto
É urgente que a sociedade se mobilize para que pelo menos não se
Alegre como também
desmonteemo todo o Brasil
que foi dando
construído até assim o fechamento
aqui. (Plataforma do SCFV
da política so- que
cial4).
atende crianças de 6 a 14 anos no CRAS noroeste.

4 Disponível em: <https://plataformapoliticasocial.com.br/>. Acesso: 20 set. de 2017.


Numa sociedade desigual, assegurar a responsabilidade pública pela
Assistência Social é um princípio fundante para a construção de um pacto
123 de 220
civilizatório centrado na ética e solidariedade entre os povos... É urgente que
a sociedade se mobilize para que pelo menos não se desmonte o que foi
construído até aqui. (Plataforma da política social).
O assistente social e sua intervenção na formação permanente dos educadores sociais

O público-alvo a quem o projeto era destinado – por falta de


pagamentos de salários e desvalorização da profissão – aderiu à
greve e, em seguida, deu-se a demissão em massa de educadores
que trabalhavam nos Serviços de Convivência e Fortalecimento
de Vínculos. Portanto, fiquei impossibilitada de empregar a prá-
tica do projeto de intervenção.
Sobre o direito à greve, de acordo com a CF/88:

Art. 9º É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhado-


res decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses
que devam por meio dele defender.
§ 1º A lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre
o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.
§ 2º Os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei.

O direito à greve é um direito constitucional, momento


em que o trabalhador luta por melhores condições de trabalhos
e salários, por direitos trabalhistas ou para impedir perdas de
benefícios já conquistados; é um instrumento de empoderamen-
to coletivo, fortalecimento de identidade da classe trabalhadora.
Quando aderimos às greves, aprendemos a ser cidadãos, mos-
tramos que somos sabedores do poder que temos e que sabemos
identificar a opressão e as formas de resistências a ela.
A centralidade da pesquisa salienta a preocupação com a
atuação do educador social no contexto do SCFV, espaço no qual
esse profissional usa a mesma metodologia escolar. Portanto,
buscou-se qualidade no planejamento das ações pretendidas do
projeto de intervenção, tendo sido de grande ajuda a minha par-
ticipação nos grupos tanto do MEP, da AEPPA, como nos diálo-
gos e discussões acerca da regulamentação da profissão no grupo
de estudo da UFRGS. Quanto a planejar a ação profissional, Mio-
to e Nogueira (2008, p. 287) afirmam:

[...] Planejar a ação profissional garante a possibilidade d um repen-


sar continuo sobre a eficiência e eficácia do trabalho desenvolvido e
formalizar a articulação intrínseca entre as dimensões ético-politi-
ca, teórico-metodológico e técnico-operativo.

124 de 220
O assistente social e sua intervenção na formação permanente dos educadores sociais

O planejamento do projeto de intervenção foi pensando, re-


pensado e construído junto à supervisora de campo, vislumbran-
do o cumprimento dos objetivos propostos mas não sua aplicabi-
lidade. Fica assim impossível avaliar o que seriam os resultados.
Embora haja o sentimento de impotência, ao mesmo tempo,
alegro-me em poder acompanhar a luta desses profissionais por
seus direitos e reconhecimento da profissão.

Considerações finais

Embora eu tenha atuado como protagonista diante de situa-


ções novas ao meu olhar durante o processo dos estágios I, II e
III, em que desenvolvi a análise institucional, o levantamento de
demandas e a construção do projeto interventivo, foi no estágio
III que houve a impossibilidade de aplicar a prática do projeto
desenvolvido com o propósito de uma formação permanente
para os educadores sociais. O espaço de pesquisa de campo foi o
espaço de estágio.
Todo o processo de construção do projeto de intervenção
descrito neste TG foi feito com muito cuidado e pensado com
muito respeito, para garantir aos educadores a oportunidade de
se aproximarem ainda mais da sua profissão e de seu fazer pro-
fissional. E deu-se por meio de observação, pesquisas, relatórios,
planejamento estudo teórico a partir de grupos de estudos, diálo-
gos com educadores de outras instituições sobre a prática, o que
contribuiu de forma significativa para a construção do projeto.
A falta de oportunidade de aplicar o projeto de intervenção
me fez pensar ainda mais sobre o não reconhecimento do profis-
sional educador social, que não tem sua profissão regulamentada.
Com essa impossibilidade de pôr em prática o projeto de
intervenção, não propus continuidade do projeto no espaço con-
cedente de estágio, embora acredite que novas propostas com a
mesma intencionalidade surgirão a partir de novos estagiários

125 de 220
O assistente social e sua intervenção na formação permanente dos educadores sociais

com o intuito de trabalhar a questão da formação permanente


para educadores sociais, principalmente no que tange à regula-
mentação e valorização desses profissionais.
É na práxis que se pode entender as questões das expressões
sociais, os riscos e vulnerabilidades a que as pessoas estão ex-
postas; e tanto o profissional do serviço social como o educador
social, profissional que se aproxima do serviço social, são funda-
mentalmente importantes nesses espaços de convivência.
Por fim, foi no processo de estágio e na construção do pro-
jeto de intervenção que me compus como futura assistente social,
coadjuvando e apropriando-me das clarezas que as rotinas tra-
zem, despindo-me de hostilidades e prejulgamentos e vestindo-
-me de valores e conhecimentos, oportunizando a mim mesma
um novo olhar para o futuro, através da construção de um novo
projeto de vida e carreira profissional.

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O assistente social e sua intervenção na formação permanente dos educadores sociais

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127 de 220
A importância do SCFV

A IMPORTÂNCIA DO SCFV

Nara Helena dos Santos


nhcarvalho@yahoo.com.br

A partir da Constituição de 1988, os direitos dos cidadãos


foram ampliados, sendo incluídos os direitos sociais. Assim, as
políticas voltadas para assistência social sofreram transforma-
ções, principalmente a partir de 2005, com a criação do Sistema
Único de Assistência Social (SUAS) modificando a elaboração e
execução das políticas públicas no País. Verifica-se, então, a des-
centralização alterando o processo de gestão das políticas públi-
cas atuais, principalmente no destino dos recursos e na qualidade
da assistência. Sendo assim, tomou grande importância a atua-
ção do gestor público municipal nesse contexto. Considerando
que isto se coloca como um desafio ao profissional do serviço
social e aos demais trabalhadores do SUAS, este estudo teve por
objetivo apresentar a história e a realidade de algumas famílias
participantes dos grupos de convivência dos CRAS, procuran-
do perceber até que ponto os objetivos dos SCFV se consolidam
no cotidiano dessas famílias dentro e fora do espaço do CRAS.
Utilizo entrevistas realizadas durante minhas práticas docentes.
O Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos
(SCFV), previsto na PNAS como serviço da Proteção Social Bá-
sica, tem como finalidade fortalecer a função protetiva das famí-
lias, prevenindo a ruptura dos seus vínculos, promovendo seu
acesso e usufruto de direitos e contribuindo na melhoria da qua-

128 de 220
A importância do SCFV

lidade de vida do usuário (BRASIL, 2011a). É um serviço organi-


zado em grupos, que incentiva a participação social e o convívio
comunitário, atua diretamente nos territórios de vulnerabilida-
de e “possui caráter preventivo e proativo, pautado na defesa e
afirmação dos direitos e no desenvolvimento de capacidades e
potencialidades, com vistas ao alcance de alternativas emancipa-
tórias para o enfrentamento da vulnerabilidade social” (BRASIL,
2009b, p. 14).
Os Serviços de Convivência e Fortalecimento de Víncu-
los se organizam por faixas etárias: crianças de zero a seis anos;
crianças e adolescentes de 6 a 15 anos; adolescentes e jovens de
15 a 17 anos; e idosos (60 anos ou mais). Têm o objetivo de pro-
teger e garantir os direitos de crianças e adolescentes – de forma
que possam desfrutar do direito de viver junto à sua família e
comunidade; trata-se de um grande desafio. O reconhecimento
dado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ao direito
à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes
em ambiente protegido e seguro reafirma a proteção integral
a esse segmento sob a ótica dos direitos humanos. Além disso,
procura distanciar-se de um passado no qual crianças e ado-
lescentes, em sua maioria, foram segregados do espaço social e
afastados de suas famílias, em processos longos e traumáticos de
institucionalização, entre outras razões, por sua condição social
e econômica.
A família não é uma instituição perfeita e natural, mas
uma construção histórico-social que precisa ser observada em
seus aspectos contraditórios (não apenas como lócus de felici-
dade, cuidado, apoio, mas também como lugar de conflito, vio-
lência, ameaça e sofrimento). Considerando que as dificuldades
enfrentadas pelas famílias da classe trabalhadora no cotidiano,
bem como suas condições de vida, tornam-se cada vez mais pro-
blemáticas, pensar o exercício da proteção social sem a devida
atuação do Estado na defesa dos direitos e na garantia de políti-
cas públicas universais e de qualidade se torna inviável quando
localizamos esse fenômeno da vulnerabilidade social como ex-
pressão da questão social. Iamamoto (2001, p. 16) reforça esse

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A importância do SCFV

entendimento ao afirmar que “A questão social diz respeito ao


conjunto das expressões de desigualdades engendradas na socie-
dade capitalista madura, impensáveis sem a intermediação do
Estado.”
Outro aspecto diz respeito à sensação de segurança que
sentem ao saber que, quando estão no SCFV, seus filhos então
longe de toda a violência que se encontra na rua, uma vez que na
rua não se tem o controle da companhia que seus filhos terão,
podendo serem eles influenciados ao uso de drogas, entre outras
violências. E, por terem que ir para o mercado de trabalho, aca-
bam não dando todo o cuidado de que as crianças e adolescentes
precisam, levando-os, muitas vezes, a contarem nessa respon-
sabilidade com a ajuda dos irmãos, que, por vezes, também são
crianças ou adolescentes, reforçando assim a cultura familiar do
trabalho infantil doméstico. O SCFV, ao mesmo tempo que sa-
tisfaz a necessidade das famílias, trabalha para que, por meio da
observação do desenvolvimento e das demandas apresentadas
pelas crianças, adolescentes e jovens, acione a rede de serviços
socioassistenciais que integram o Sistema de Garantia de Direi-
tos e demais políticas públicas, como saúde e educação, entre ou-
tras, viabilizando um processo de inclusão social.
Quando essa prática acontece, há o cumprimento de mais
dois impactos esperados da política em relação ao SCFV: “Au-
mento de acessos a serviços socioassistenciais e setoriais”, e “Au-
mento no número de jovens que conheçam as instâncias de de-
núncia e recurso em casos de violação de seus direitos”.
Percebemos ainda que as famílias – muitas vezes compostas
por um só responsável de referência e mulher –, mesmo tendo o
dever de assegurar junto à sociedade do Estado todos os direitos
à criança, adolescente e jovem, com absoluta prioridade, também
precisam garantir seu sustento. Assim, o SCFV torna-se um local
seguro, em que seus filhos podem ficar no momento que estão
trabalhando, pois, caso não houvesse o serviço, as famílias re-
latam que o abandono do trabalho seria inevitável, optando por
um trabalho parcial e, consequentemente, com menor renda. As
famílias ainda conseguem enxergar que, além de o SCFV acolher

130 de 220
A importância do SCFV

suas necessidades, ele luta pelo direito a viver com o mínimo de


dignidade.
O serviço realiza atividades que proporcionam o desenvol-
vimento das crianças e adolescentes e garantem seus direitos.
Além do mais, as famílias ainda conseguem destinar um mo-
mento durante o dia para conversar com os filhos, conforme re-
latado nas entrevistas. Os relatos das famílias apontaram ainda
que as exigências impostas pelo mercado de trabalho – por vezes
precário e com baixo salário – fazem com que o convívio fami-
liar com as crianças e adolescentes (filhos) fique quase nulo, e
quem acaba sofrendo as consequências é a família, cobrada por
ser responsável em garantir os direitos das crianças e adolescen-
tes. Dessa forma, quem sai prejudicado são os filhos, que, muitas
vezes, não têm o apoio necessário do Estado, tampouco da famí-
lia.
Outro fato importante identificado a partir dos relatos das
famílias é que o SCFV, para seus usuários, é como uma extensão
da família, pois os filhos, além de mostrarem interesse e vontade
de frequentar o serviço, conseguiram desenvolver os objetivos
propostos por ele durante o tempo que lá estão inseridos. Assim,
o SCFV promove o fortalecimento de vínculos e também con-
tribui para que as famílias consigam alternativas de prover seu
sustento, usufruir de direitos e, consequentemente, conseguir
melhorar o convívio familiar.

Considerações finais

Com o desenvolvimento do presente estudo, foi possível


concluir que o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vín-
culos para Crianças (SCFVC) tem um papel de fundamental im-
portância no acesso aos direitos básicos de cidadania. O número
de adolescentes e jovens fragilizados é preocupante, fazendo-se
necessária a implantação de programas de informação perma-

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A importância do SCFV

nente que enfatizem a problemática oriunda da falta de convi-


vência dos jovens no campo socioeducativo.
As informações coletadas na secretaria de ação social apon-
taram para um decréscimo no número de adolescentes afastados
da família. Provavelmente, esse fato se deve ao desenvolvimento
do programa Ser Cidadão. Cabe salientar que, apesar dessa redu-
ção, o número de pessoas que não frequentam o programa con-
tinua elevado no local, fazendo-se necessária sua continuidade,
e possível expansão.
 Tendo em vista a complexidade que abrange o tema, torna-
-se importante a capacitação dos profissionais envolvidos com
esse tipo de programa, para que se desnudem de preconceitos,
tornem-se flexíveis e capazes de respeitar as individualidades,
além de serem motivadores do grupo no seu todo, considerando
a história de vida e o cotidiano dos envolvidos no processo.

Referências

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132 de 220
Resiliência sempre: na busca de mudanças e estratégias de mudanças

RESILIÊNCIA SEMPRE: NA BUSCA DE MUDANÇAS


E ESTRATÉGIAS DE MUDANÇAS

Simone da Costa Andrade Ferreira1


monecandrade@gmail.com

Este texto é um relato da minha experiência. Sou assistente


social, educadora social, militante das teorias freirianas, portan-
to, uma educadora popular. Assim defino minha trajetória aca-
dêmica: uma lutadora contra a discriminação social, garantindo
direitos dos desassistidos dos mínimos sociais.
E, por ser uma simpatizante com pessoas em situação de
rua, procuro direcionar minha atuação e formação para assuntos
abrangentes que permeiam essa temática.
Falar sobre Educação Popular nesse contexto é pensar na
proposta de Paulo Freire com seu projeto de criação da Educa-
ção de Jovens e Adultos (EJA), em que educadores procuram um
sentido maior para que o educando aprenda com mais facilidade
sobre a educação do seu cotidiano, privilegiando seus conheci-
mentos prévios, pois os estudos tradicionais não são atrativos
para esse aluno. A Educação Popular, como vimos no curso do
IFRS-Restinga, tem lado: o dos oprimidos; e busca romper com
a educação bancária e opressora. Também, luta contra o sistema
dominador que gera desigualdade e pobreza.

1 Assistente social, especialista em Educação Popular.

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Resiliência sempre: na busca de mudanças e estratégias de mudanças

Na rua, trabalhei com abordagem social de rua, fui técni-


ca responsável pelo serviço oferecido no Centro Pop de Viamão
(Centro de Referência Especializado para a População em Situa-
ção de Rua), fazendo busca ativa de pessoas que se encontravam
na rua e oferecendo os serviços do espaço (banho, refeições, rou-
pas e atendimento psicossocial). Essa abordagem tem por méto-
do uma conversa franca, sincera e direta de pessoas que estão na
rua ou da rua sobrevivem com nós educadores.
Freire (1996) fala da importância da formação científi-
ca, ética, respeitosa e coerente com a capacidade de viver e de
aprender com os diferentes. Em Freire vejo que é preciso trazer
a Educação Popular para a formação de quem trabalha com os
contextos de vulnerabilidade social, como é o caso da minha ex-
periência. Para explicar melhor os conceitos de “rua moradia” e
“rua sobrevivência”, podemos dizer que a primeira se configura
por pessoas que moram na rua por curta ou longa permanência,
já a “rua sobrevivência” se configura por pessoas que retiram da
rua seu sustento informalmente.
Outro livro que norteia bem meu trabalho é o Educadores
de Rua – Uma Abordagem Crítica. Ele foi o disparador de al-
gumas metodologias que criei ao longo desta trajetória, pois se
“[...] precisa inventar uma pedagogia que não seja a da conversão,
no sentido referido, mas a do crescimento, que não se faz sem
a transformação da realidade concreta que está gerando injusti-
ças.” (FREIRE, 1989, p. 16).
Na minha formação, a Educação Popular me proporciona
um olhar diferenciado para a realidade da rua, de quem faz dela
o lugar de sobrevivência. Acredito que estar na rua não é algo
dado, pronto ou acabado, não existem “moradores de rua”, (mo-
rar significa residir e habitar em algum local e não em algum
local público e transitório como a rua), mas sim pessoas que
passam por uma situação em que a rua acaba passa a ser uma
estratégia de sobrevivência. Essa situação pode ser superada com
ajuda técnico-profissional para a conquista da emancipação dos
sujeitos a partir de uma escuta sensível das realidades vividas e
de um trabalho social cuja perspectiva seja a Educação Popular

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Resiliência sempre: na busca de mudanças e estratégias de mudanças

de Freire (PAULO, 2018). A rua é vista como espaço de todos e


de ninguém, em que a liberdade contribui para a permanência.
Então, cabe-nos discutir o que é liberdade.
A abordagem social de rua, nesse contexto, configura-se na
busca ativa de pessoas em situação de rua, estabelecendo-se de
forma espontânea com uma conversa franca e aberta, cuja inten-
ção seja construir processos de libertação. O respeito à indivi-
dualidade e às vivências dos sujeitos é princípio.
Com todas as adversidades e problemas de quem está ou vive
nas ruas, a Educação Popular me ensina que só se vence o estig-
ma, o preconceito e se superam vulnerabilidades se há respeito.
Aceitar o usuário (sujeito) e pensar pela ótica dele, mas também
problematizar as ingenuidades, é nosso papel. Construir saberes
necessários para propor mudanças é o nosso objetivo.

Mas quem são essas pessoas que fazem da rua sua moradia...

Não contabilizados com exatidão pelo Censo Demográfico


(pois o censo contabiliza pessoas que possuem residência fixa),
sobrevivem sob o estigma, sendo por predominância do sexo
masculino, jovens em idade laboral, mas sem conseguir inserção
no mercado de trabalho formal. Possuem baixa escolaridade, são
afrodescendentes e oriundos dos bolsões de pobreza das grandes
cidades brasileiras. Sim, a Educação Popular tem classe (PALU-
DO, 2001; PAULO, 2018).
Outro ponto a ressaltar é sobre quem está na rua. Esse grupo
se divide em pessoas em situação de rua moradia e rua sobrevivên-
cia. Falamos que a pessoa está em situação de rua moradia quando
faz da rua ou de algum espaço público sua casa. Já a rua sobrevi-
vência caracteriza-se por pessoas que usam a rua como forma de
sobrevivência, sustento, trabalham e geram algum tipo de renda
na rua com trabalho informal. Neste caso, temos como exemplos
recicladores, catadores, camelôs, profissionais do sexo, etc.

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Resiliência sempre: na busca de mudanças e estratégias de mudanças

Se analisarmos a Política Nacional para a População em


Situação de Rua (Decreto n. 7053 de 2009), esse grupo é hete-
rogêneo, com diversificadas vivências. São sem moradia fixa e
sem vínculos familiares (que foram rompidos ou estão bastante
fragilizados).

Para fins deste Decreto, considera-se população em situação de rua


o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza
extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a
inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os lo-
gradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia
e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as
unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como mo-
radia provisória. (POLÍTICA NACIONAL PARA A POPULAÇÃO
EM SITUAÇÃO DE RUA, 2009).

Assim, devemos partir da prática reflexiva e crítica pela


própria prática. Mesmo que na abordagem não se consiga supe-
rar a situação de rua, o fato de conhecer e buscar dentro das ad-
versidades algum meio de amenizar o sofrimento, mesmo com a
frustração do profissional que acha que não fez nada, isso pode
ser muito para quem não tem nada.
Na situação atual desses sujeitos e desses usuários da políti-
ca da assistência, não se vislumbra nenhuma expectativa de mu-
dança. Mas nós, no dia a dia do trabalho, notamos as mudanças,
mesmo que pequenas. Isto a Educação Popular nos ensina: a não
ficarmos parados. Somos vocacionados para sermos melhores e
na práxis conseguimos, mesmo com muitas dificuldades, traba-
lhar no processo de libertação do oprimido.
Baseando-nos pela perspectiva freiriana da Educação
Popular, construímos saberes, no cotidiano do trabalho, que
são necessários para trabalhar na rua, mas há os saberes éticos
(FREIRE, 1996), importantes em especial com o público adulto.
Observo o local onde estou, as pessoas que se encontram em meu
entorno, os estabelecimentos comerciais e as casas nas proximi-
dades onde a pessoa ou o grupo vive; com isto, vou planejando
o trabalho a ser desenvolvido. Converso e pergunto para apren-

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Resiliência sempre: na busca de mudanças e estratégias de mudanças

der sobre aquela realidade, porque são eles que vivenciam o que
acontece no dia a dia, inclusive fazendo denúncias das violências.
Outro detalhe importante é saber como funciona a rede de aten-
dimento para esse público no município que oferece serviço de
abordagem de rua. É importante conhecermos a legislação vi-
gente e quais profissionais podem trabalhar na rede de apoio a
essa demanda.
Outra característica a ressaltar: acredito que pessoas em si-
tuação de rua se dividem em três grupos:
A: situação de rua por desorganização: não é usuário de
substâncias psicoativas, mas sofreu uma desestruturação fami-
liar e teve seus laços familiares rompidos, sofre com desemprego
formal e a falta de oportunidades;
B: faz uso abusivo de substâncias psicoativas, provocando
a desestruturação familiar, que resultou na desistência da famí-
lia por uso abusivo dessas substâncias. Gerou desafetos devido à
vida desregrada e dívidas decorrentes do uso, impossibilitando
residir e transitar no território de origem;
C: TM (Transtorno Mental): sem tratamento ou em crise.
Para tentar explicar: a situação A demonstra bem os refle-
xos da crise atual no País; o caso B surge do resultado da guer-
ra química somada ao aumento do tráfico e aliciação de muitos
usuários; o C resulta do movimento de desinstitucionalização
psiquiátrica e das ações desenvolvidas. Nesse sentido,

A institucionalização, ou desmanicomialização, da enfermidade


mental assumiu características distintas, conforme as variadas for-
mas com que foram tratadas em cada país. Assim, a literatura públi-
ca a respeito seguiu essa diferenciação. Alguns textos apontam, com
maior ou menor ênfase, o problema que relaciona que os doentes
mentais ficam na rua como resultado da desospitalização. (PAGOT,
2012, n.p).

Acentua-se mais essa situação quando as características se


acumulam: estar na rua de forma desestruturada pode levar o
indivíduo a começar uma dependência química ou usá-la de for-
ma abusiva. Recordo-me bem de uma situação de abordagem em
137 de 220
Resiliência sempre: na busca de mudanças e estratégias de mudanças

que o usuário, despejado do local onde morava, passou a ficar


na rua; foram vários dias sem dormir ou comer. Ele começou
a ser aliciado por traficantes, e no local onde passou a dormir
todos usavam drogas. Assim, passou a usar para se sentir seguro
e incluso no grupo. Não dormia durante a noite por medo de
algum atentado violento, e este ciclo deflagrou um transtorno
mental, mais tarde diagnosticado como esquizofrenia. O serviço
de abordagem levou-o para uma acolhida ao Centro de Atenção
Psicossocial, local de referência e tratamento para pessoas que
sofrem de transtornos mentais.
O usuário, após muitas abordagens, retomou laços familia-
res, e ficou aos cuidados de uma irmã que não o via há quase dez
anos. Neste caso, aquele ciclo pode ser constatado: A + B origi-
nou um quadro C. O B potencializado, sem medicação e apoio
familiar, pode gerar um C, mas o mais comum é o B, que corres-
ponde ao grande número de pessoas em situação de rua.
O conhecimento desses fatores são importantes para deli-
near uma estratégia de intervenção na busca da veracidade do
que foi dito na abordagem. O confronto de dados com familiares
e instituições que possuem vínculos é de suma importância.
A abordagem de rua serve para construir sentidos e apon-
tar caminhos. A rua ensina e formar educadores populares2 que
lutam e se comprometem com a demanda que atendem. Há um
processo de ação-reflexão-ação sempre inventando caminhos
para novas trajetórias; é na rua que aprendemos todos os dias
uma nova realidade, buscando intervir de forma transversal.
É preciso uma troca de saberes entre equipe de abordagem e
usuário, nunca esquecendo do papel da escuta e do respeito. Sa-
ber ouvir para criar um sentimento de pertença a algo, de apego a
alguma coisa que possa transformar e produzir sua emancipação
social é uma necessidade ética. Finalizo afirmando que trabalha-
mos numa linha muito tênue entre sonhos e insatisfações e esse
é um dos fatores mais desafiadores deste trabalho: amor, respei-
to, ética, compromisso e resiliência, sempre buscando mudanças
através de estratégias de lutas e resistências.
2 Sobre ser educador popular, ver Paulo (2013).

138 de 220
Resiliência sempre: na busca de mudanças e estratégias de mudanças

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cação Popular freiriana e a universidade. Tese (Doutorado
em Educação) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São
Leopoldo, RS, 2018. 268 f.

140 de 220
Educadora social e as aproximações com a Educação Popular a partir do curso no IFRS-Restinga

EDUCADORA SOCIAL E AS APROXIMAÇÕES


COM A EDUCAÇÃO POPULAR A PARTIR
DO CURSO NO IFRS-RESTINGA

Lorena Martins Florisbal


lorenaflorisbal@hotmail.com

Nas práticas do curso sobre Educação Popular e educador


popular, encontrei-me como educadora social. No IFRS-Restin-
ga, em curso muito proveitoso, com colegas de curso e formação
profissional de várias áreas, pude perceber e observar quanto
são importantes o estudo e a formação. A capacitação em nossos
dias, diante dos desafios que o educador passa, é um espaço de
trocas e de aprendizagens. Gosto do que Freire diz: “Como pro-
cesso de conhecimento, formação política, manifestação ética,
procura da boniteza, capacitação científica e técnica, a educação
é prática indispensável aos seres humanos e deles específica na
História como movimento, como luta.” (2001, p.10).
Observei que muitas vezes o profissional qualificado cum-
pre com seus compromissos e horários e, quando assume ser edu-
cador popular, se dedica e coloca sua vida a dispor dos seus edu-
candos para que possam viver de forma digna. Notei que, apesar
das diversas fragmentações da classe social trabalhadora que ali
frequentava o curso de Educação Popular, os que estavam ali era
para tornarem-se profissionais melhores, formando-se lutadores
preocupados em qualidade, valorização e reconhecimento do

141 de 220
Educadora social e as aproximaçõescom a Educação Popular a partir do curso no IFRS-Restinga

trabalho realizado. A AEPPA tem na sua história o compromisso


de realizar formações políticas e lutar pela valorização de edu-
cadores sem formação e que trabalham em contextos educativos
escolares (educação infantil comunitária) e educação não escolar
(educadores sociais).
Aprendi que ali os nossos interesses eram comuns e todos
reconheciam-se nas lutam por direitos sociais, que muitas vezes
a lei determina porém não são cumpridos. Vi o quão necessário
é o reconhecimento desses profissionais que trabalham e lutam
por direito à vida com dignidade para crianças, adolescentes e
suas famílias.
O educador social, e me reconheço como tal, possui pouco
conhecimento teológico em se tratando das histórias contadas
por vários educadores populares que participaram nas Comu-
nidades de Bases fundamentadas na Teologia da Libertação, em
relação à qual Freire tem influência (PAULO, 2013). No curso,
tivemos muitos textos para ler e conversar sobre ele. Recebemos
visitantes que falaram de diversos assuntos, inclusive sobre Edu-
cação do Campo, educação da cidade, Educação Popular e seus
lugares e significados, movimentos sociais, lutas por formação e
saberes do trabalho.
A partir do curso, percebo que, além de estudarmos os te-
mas, é preciso muito envolvimento porque às vezes ter uma pro-
fissão sem formação, mas com muita informação e dedicação,
faz com que essa entrega (envolvimento) seja algo isolado e não
refletido sobre outros problemas. Sabemos que o educador vem
lutando pelo direito daqueles que a sociedade capitalista exclui
como se fossem apenas mais uma peça (mercadoria) que já foi
usada e perdeu valor. Porém, não podemos esquecer que, como
aprendemos na Educação Popular, todos somos seres humanos
e temos o direito de viver com dignidade; a pobreza e exclusão
existem porque há uma divisão de classes: uns dominam e outros
são dominados.

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Educadora social e as aproximaçõescom a Educação Popular a partir do curso no IFRS-Restinga

Figura 1 - Curso no IFRS – Restinga

Eu sou do grupo de educadoras que não puderam estudar.


Desejo fazer uma graduação. A AEPPA está lutando por cursos
de graduação no IFRS, na UFRGS e na UERGS. O educador tem
olhos de amor e compromisso, mas não podemos trabalhar de
graça (voluntariado). A gente faz militância, mas não vamos fa-
zer trabalho escravo. Queremos ser reconhecidos e valorizados.
Ouvimos isso durante o curso com a professora Fernanda Paulo.
Também não basta um curso, uma graduação se não usa-
mos a pedagogia do amor e da luta (aulas com Fernanda Paulo).
Eu sempre acreditei que o coração voltado a amar é uma forma
de ensinar e aprender a respeitar. Por isso, aqueles que partici-
param desses cursos mas não são reconhecidos pelo trabalho
devem continuar lutando em espaços como a AEPPA e o Movi-
mento Social. A gente faz um trabalho que muitos não fariam,
seja porque estamos lá na vila e conhecemos o público, seja por-
que somos da comunidade e sabemos como falar, onde pisar e
como trabalhar junto. Na Lomba do Pinheiro, onde moro, sei de

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Educadora social e as aproximaçõescom a Educação Popular a partir do curso no IFRS-Restinga

lugares que muitos não teria coragem de entrar para trabalhar


com os pobres da vila. Lá estamos nós, educadores sociais que
acreditam na Educação Popular. O amor pelo próximo anda jun-
to com o nosso trabalho, mas precisamos aprender o conteúdo
do trabalho para atender nosso povo com mais qualidade. Por
isso, defendemos que as universidades públicas nos recebam e
nos apresentem, junto com a AEPPA, um curso que trabalhe os
saberes da teoria junto com os saberes da nossa prática.
Para concluir, deixo uma frase de Paulo Freire que faz mui-
to sentido para mim e para os colegas que fazem os cursos da
AEPPA: “[...] competência técnico-científica e o rigor de que o
professor não deve abrir mão do desenvolvimento do seu traba-
lho não são incompatíveis com a amorosidade necessária às rela-
ções educativas.” (FREIRE, 1996, p. 4).

Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessá-


rios à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. (Coleção
Leitura).
FREIRE, Paulo. Política e educação: ensaios. 5. ed. São Paulo:
Cortez, 2001.
PAULO, Fernanda dos Santos. Formação dos/as educadores/
as populares de Porto Alegre formados/as em Pedagogia:
identidade, trajetória e desafios. 2010. 79f. Trabalho de Conclu-
são de Curso (Especialização em Educação Popular) – Instituto
Superior de Educação Ivoti & Instituto de Desenvolvimento
Brava Gente, Porto Alegre, 2010.
PAULO, Fernanda dos Santos. A Formação do(as)
educadores(as) populares a partir da práxis: um estudo de
caso da AEPPA. Porto Alegre. 2013. 273 f. Dissertação (Mestra-
do em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2013.
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Flores de um amanhã estão nas sementes de hoje: reflexões sobre ser educadora popular

FLORES DE UM AMANHÃ ESTÃO


NAS SEMENTES DE HOJE:
REFLEXÕES SOBRE SER
EDUCADORA POPULAR

Taís Pereira de Gões


tais.dallasta@gmail.com

Parte das minhas vivências em um relato...

Apresento reflexões da minha experiência como educadora


popular. Reflito a minha presença na Associação de Educadores
Populares de Porto alegre (AEPPA) e a luta por formação e reco-
nhecimento da Educação Popular como educação emancipató-
ria. Somos educadoras do bairro, da vila e lutamos por uma edu-
cação que seja curiosa, investigativa, compromissada e busque o
conhecimento libertador.
Resgatar e ressignificar os conhecimentos a partir dos de-
safios de hoje é o que me movimenta como educadora popular
e estudante de Pedagogia. O padrão de pensamento e compor-
tamento vivido de forma (in)consciente na sociedade capitalista
desliga nosso senso de verdade e conexão com o outro, que tam-
bém é afetado pela minha ação e faz parte de mim. A AEPPA
surge na minha trajetória como possibilidade de romper com es-
ses padrões através da afirmação da dignidade humana que nos

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Flores de um amanhã estão nas sementes de hoje: reflexões sobre ser educadora popular

mantém na busca de nós mesmos e do outro, que nos movimenta


através de brechas que o sistema capitalista dá e que não pode-
mos deixar passar despercebidas. Buda tem um ensinamento que
diz “Faça o bem sempre que possível; se não puder fazer o bem,
tente não fazer o mal.”
A pressão pelo sucesso e o medo do fracasso nos levam a
disseminar e perpetuar uma cultura patriarcal e meritocrata.
Na AEPPA, temos espaço para começar essa modificação atra-
vés de nós mesmos, levando nossa práxis e nossa historicidade
em relevância interna (para nós) e externa (registro de diários,
espaços acadêmicos). Os educadores e educadoras populares não
representam só um trabalho; representam uma luta (educação
crítica e comprometida) e um público específico (filho/ filha dos/
das trabalhadores/trabalhadoras e desempregados/ desemprega-
das). Sou mãe, negra, jovem e de periferia; as lutas da favela com
o asfalto, do condomínio de luxo e da ocupação, do machista e
da feminista são lutas que eu também travo – e faço parte ao lado
dos e das feministas, dos favelados e da ocupação.
Perceber meu inacabamento me fez sair de uma felicidade
ingênua para uma felicidade crítica. Lembro-me do mito da Cai-
xa de Pandora, o qual demonstra que a curiosidade gera o mal;
ou, então, do mito de Prometeu, que, ao levar o fogo aos homens,
foi castigado. É assim que a sociedade capitalista quer que pense-
mos e ajamos. Negar o conhecimento aos que estão sendo priva-
dos de seus direitos ou manter a população que não tem privilé-
gios sem curiosidade é visto como um caminho correto, seguro;
mas trata-se de um caminho que não tem frutos ao ser trilhado.
Eu digo o contrário, sou Pandora e Prometeu, e comprome-
to-me com a vontade que em mim pulsa de combater e dialogar
com todos e todas sobre tudo o que for preciso para que eu e os
outros detenhamos direitos básicos que garantem a dignidade
humana. Experienciar a vida de forma cooperativa é o papel de
um educador e educadora que se compromete com o projeto de
vida de mudar a sociedade. Transito em meu dia com crianças,
adolescentes, seus familiares, a equipe que compõe o Serviço de
Convivência e Fortalecimento de Vínculos. O SCFV, segundo o

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Flores de um amanhã estão nas sementes de hoje: reflexões sobre ser educadora popular

MDS, em seu Caderno de Concepção de Convivência e Fortaleci-


mento de Vínculos (BRASIL, 2013), visa à prevenção e proteção
dos usuários de riscos e quaisquer violações de direitos, por meio
do fortalecimento de seus vínculos familiares e comunitários.
Essa definição é cerne do que o educador social que trabalha
na proteção básica tem que ter como norteador de seu trabalho.
Acabo, muitas vezes, vendo a oficina do SCFV sendo confundi-
da com aula, o educador social perdido em sua própria prática,
por ser algo tão abrangente e de tanta importância. Neste relato,
não trago a experiência como educadora social de CRAS, mas
sim como educadora social de entidades privadas – já se vão seis
anos como educadora social, três de coordenação de Serviço de
Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV). As práticas
pedagógicas embasadas nessa área ainda são muito novas e vêm,
muitas vezes, para os educadores e educadoras com as vestes dos
espaços escolares.
Em um momento de crescimento dessa forma de fazer po-
lítica pública na área da assistência social, demanda-se uma for-
ça de trabalho qualificada para atuar com esses adolescentes e
crianças, mas muitas vezes esse trabalho revela práticas de opres-
são. Por isso minha crença e estudo constante sobre a Educa-
ção Popular, que vem inspirar nossa prática como educadores e
educadoras sociais. Deixo claro que não acredito em uma edu-
cação social; para mim, toda a educação é social. Trago, pois, a
profissão de educador social, que está conectada com a política
pública de assistência social; ela precisa resgatar e ressignificar
as ações desses agentes com os desafios de hoje, e acredito que é
na voz de Paulo Freire e da pedagogia crítica que poderemos re-
fletir sobre a ação desse profissional, para que expresse não uma
forma escolarizada de educação nos espaços de SCFV ou uma
educação enquadrada no modo de vida da elite, mas estratégias
de educação para os direitos de todos e de cada um, articulada e
conectadamente com a Educação Popular. Meu enfoque e amor
pelo Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos é o
que me leva como estudante de Pedagogia a procurar princípios
éticos de ação para o desenvolvimento desses espaços em que o

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Flores de um amanhã estão nas sementes de hoje: reflexões sobre ser educadora popular

trabalho com as famílias é primordial para as construções coleti-


vas de empoderamento e combate aos riscos sociais.

A literatura e as minhas opções: os entrecruzamentos e a


esperança

Freire é um autor da esperança. Com ele, compreendo o


sentido da Educação Popular: “Educadoras e educadores pro-
gressistas têm de estar alerta com relação a este dado no seu tra-
balho de Educação Popular, uma vez que, não apenas os conteú-
dos, mas as formas como abordá-los estão em relação direta com
os níveis de luta acima referidos.” (FREIRE, 2013, p. 38). Uma
Educação Popular, para ele, tem a ver com a luta pela libertação,
a começar pela compreensão de que “não há conscientização sem
desvelamento da realidade objetiva” (2013, p. 88).
Ser educadora popular no Dicionário Paulo Freire (2018)
expressa o que também compreendo, a partir de Fernanda dos
Santos Paulo e Rita de Cássia de Fraga Machado: “Ser educadora
popular e educador popular não é profissão, não está relacionado
ao tipo de tarefa desenvolvida (escolar ou não escolar, ser médi-
co/a ou educador/a social, etc.), mas a uma opção, fundamen-
tada pela Educação Popular. Em outras palavras, ser educadora
ou educador popular é uma opção política que passa pela opção
de classe social, os oprimidos.” Essa afirmação é possível locali-
zar em Paulo (2013). Também localizamos no texto de Santos e
Paulo de 2017.
Para Brandão:

Uma das mais importantes características da Educação Popular


é o fato de que ela emerge historicamente, onde quer que surja no
continente, como um movimento de educação ou, se quisermos,
como a educação em estado de movimento. Como um momento em
que, política, teórica e metodologicamente a educação quer ser uma
transgressão de si mesma. (2001, p. 8).

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Flores de um amanhã estão nas sementes de hoje: reflexões sobre ser educadora popular

Na experiência no trabalho com o SCFV, acredito que a


Educação Popular transgressora (PAULO, 2018; BRANDÃO,
2001) seja o nosso desafio. Como disse antes, toda educação é
social e não me parece plausível substituí-la pela Educação Po-
pular por conta da peculiaridade do espaço em que ela acontece:
trata-se de educação não escolar.
Durkheim (2013), em sua obra Educação e Sociologia, en-
fatiza que o social na educação supera a ideia de educação me-
ramente individualista. Isto é, “Através da educação, o ‘ser indi-
vidual’ transforma-se em ‘ser social’.” (FILLOUX, 2010, p. 15).
Explicitado esse entendimento, toda educação deseja e requer
sociabilidade. Durkheim e outros tantos educadores associam a
educação às necessidades sociais, com vistas a promover a socia-
lização. Embora Durkheim seja um funcionalista e nossa opção
teórica seja diferente da dele, esse autor clássico nos ajuda a cla-
rear os conceitos e a afirmar que toda educação é social; agora,
nem toda educação é popular. Freire nos dizia que a escola con-
servadora acomodava os alunos através de uma educação ban-
cária, em que a socialização dava-se entre colegas (no recreio,
na rua, na família ou quando o professor permitia), procuran-
do fazer com que crianças e adolescentes se modelem ao mundo
como ele é. Nós, da Educação Popular, defendemos uma educa-
ção transgressora e emancipadora.

Referências

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Pensar a prática: escritos de


viagem e estudos sobre a educação. São Paulo: Loyola, 2001.
DURKHEIM, Émile. Educação e sociologia. Rio de Janeiro:
Vozes, 2013.
FILLOUX, Jean-Claude. Émile Durkheim. Tradução: Celso
do Prado Ferraz de Carvalho, Miguel Henrique Russo. Recife:
Fundação Joaquim Nabuco, Massangana, 2010.
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Flores de um amanhã estão nas sementes de hoje: reflexões sobre ser educadora popular

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com


a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.
[Recurso eletrônico].
PAULO, Fernanda dos Santos. A Formação do(as) educado-
res(as) populares a partir da práxis: um estudo de caso da
AEPPA. 2013. 273 f. Dissertação (Mestrado em Educação) –
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013.
PAULO, Fernanda dos Santos. Pioneiros e pioneiras da Edu-
cação Popular freiriana e a universidade. Tese (Doutorado
em Educação) — Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São
Leopoldo, RS, 2018. 268 f.
PAULO, Fernanda dos Santos; SANTOS, K. (Des)encontros en-
tre a Educação Popular e a Pedagogia Social. Ensino & Pesqui-
sa, Paraná. v. 15, p. 117-140, 2017.

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CursodeextensãoemEducaçãoPopular(IFRS-RestingaeAEPPA):eotexto“(Des)encontrosentreaEducaçãoPopulareaPedagogiaSocial”

CURSO DE EXTENSÃO EM EDUCAÇÃO


POPULAR (IFRS-RESTINGA E AEPPA):
E O TEXTO “(DES)ENCONTROS ENTRE A
EDUCAÇÃO POPULAR E A PEDAGOGIA SOCIAL”

Jaqueline da Silva Ciotta1


jaqueciotta@gmail.com

Reflexão teórica: o texto e um convite

Meu texto trata das reflexões sobre um dos materiais estu-


dados no curso do Instituto Federal do Rio Grande do Sul Res-
tinga: Educação Popular e o relato da minha experiência como
educadora social. Observo que Paulo Freire é o autor referência
dos educadores do Serviço de Convivência e Fortalecimento de
Vínculos (SCFV) e que, portanto, é a Educação Popular que bali-
za a práxis dos educadores, como já expressa Paulo (2013). Paulo
Freire é o nosso autor de estudos também nos cursos sobre Edu-
cação Popular e, com ele, aprendemos que esta tem uma história
de luta a favor dos oprimidos. As nossas crianças e adolescentes
do SCFV são oprimidas e possuem histórias de vida de muitas
negações de direitos, inclusive do direito à alimentação.

1 Graduanda em Pedagogia, sob orientação de Fernanda Dos Santos Paulo (Uniasselvi)


e participante da AEPPA.

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CursodeextensãoemEducaçãoPopular(IFRS-RestingaeAEPPA):eotexto“(Des)encontrosentreaEducaçãoPopulareaPedagogiaSocial”

Após a leitura do texto, as relações teórico-práticas estabe-


lecidas com minha experiência profissional sobre o tema ser edu-
cadora serão aqui compartilhadas.
Na minha trajetória profissional, acompanhava uma tia no
clube de mães (quando eu era criança), aprendendo e auxiliando
conforme a solicitação e necessidades das sócias, participava de
eventos promovidos pelo espaço social. Já minha primeira expe-
riência profissional como educadora de educação infantil (já for-
mada no magistério) foi num clube de mães, depois numa asso-
ciação de moradores, num centro comunitário, no CREAS como
auxiliar administrativa no programa de execução de medidas
socioeducativas em meio aberto – experiência maravilhosa com
adolescentes jovens infratores – e, por fim, estava trabalhando
como educadora extraclasse na Associação Beneficente. Obser-
vando e refletindo sobretexto, a vida sempre me encaminhou e
proporcionou experiências no meio social, e identifico-me como
educadora social.
Ser educadora social é acreditar que todos temos o mesmo
direito e compartilhar essa ideia. É acolher, escutar e orientar
os indivíduos em situação de vulnerabilidade social. O que nos
constitui educador social é a contribuição para o melhoramento
e a transformação da sociedade através de projetos e atividades,
de modo a preparar o indivíduo para conviver em sociedade, res-
peitando e lidando com regras, vivendo junto com seus compa-
nheiros.
Entendo, a partir do texto, que ser educador popular é ser
um militante. Lutar por justiça, direitos, pela questão antimani-
comial, por moradia, em defesa dos direitos humanos etc. Trata-
-se de dedicar, ainda que em uma pequena parte dos dias, ta-
lento e energia para uma causa; assumir tarefas de acordo com
as capacidades e fazer o possível para cumpri-las; trabalhar sem
interesse de recompensas, elaborando meios de levantar fundos
financeiros para a luta coletiva. Gostaria que as autoras, Fernan-
da Paulo e Karine Santos, escrevessem sobre qual a situação ou
memória mais marcante na carreira profissional como educado-
ra social e educadora popular que deve ser contada.

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CursodeextensãoemEducaçãoPopular(IFRS-RestingaeAEPPA):eotexto“(Des)encontrosentreaEducaçãoPopulareaPedagogiaSocial”

Eu: estudante de pedagogia e minha experiência como


educadora social

Figura 1 - atividades de uma educadora social

O presente relato tem a finalidade de apresentar um pouco


de minha trajetória profissional. Ao descrever sobre minha traje-
tória, recordo-me experiências vividas e adquiridas. Formei-me
no magistério em 2005, no Instituto Estadual Isabel de Espanha.
Obtive experiência na área de educação (como técnica de de-
senvolvimento infantil) na comunidade em que resido, também
numa associação comunitária e clube de mães; em outra fase de
minha vida, pude obter a experiência de trabalhar na área so-
cial no Centro de Referência Especializada em Assistência So-
cial, com programa de medidas socioeducativas em meio aberto,
como auxiliar administrativo, quando aprendi a olhar o indiví-
duo na sua totalidade. Ao retornar ao mercado de trabalho, fui
selecionada para trabalhar como educadora social com crianças
e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, aprenden-

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CursodeextensãoemEducaçãoPopular(IFRS-RestingaeAEPPA):eotexto“(Des)encontrosentreaEducaçãoPopulareaPedagogiaSocial”

do, conforme o mestre, que “Quem ensina aprende ao ensinar. E


quem aprende ensina ao aprender.” (FREIRE, 1996).
Neste ano de 2018, decidi retornar aos estudos; iniciei peda-
gogia em EAD. Estou muito realizada em aprender, em conciliar
teoria e prática. Na minha visão crítica e investigativa, sentia falta
do estudo e necessidade de aprender para me manter na educa-
ção, como educadora. Segundo Paulo Freire ( 1987) a educação é
sempre uma teoria do conhecimento posta em prática .
Ao acreditar na educação, identifico que ela seja sinônimo
do amor, ou seja, algo que não tem uma definição só. O que mais
sinto vivo em relação à educação é a necessidade de amar o que
faço. Se escolheu ser educadora, ame o que fizer, pois com certeza
vai fazer o que for preciso para que seus “aprendizes” façam jus
à palavra. Falta o amor em educar, o amor em se dedicar, o amor
por evoluir, o amor por amar. Isso é o que está mais vivo sobre a
educação. Segundo Freire (1987), “Não se pode falar de educação
sem amor. Amar é um ato de coragem.” (p. 45)
No início do mês de agosto deste 2018, fui presenteada em
trabalhar como educadora social em Serviço de Convivência e
Fortalecimento de Vínculos, em uma entidade de caráter pú-
blico, sem fins lucrativos, de assistência social. Cheguei em um
ambiente acolhedor, com uma vibração de alegria, respeito e or-
ganização, fui apresentada ao espaço, à rotina e à equipe. Senti-
-me acolhida pela equipe de forma amorosa e simpática. Ao ser
apresentada e ter contato com as crianças e adolescentes, percebi
que a energia da equipe se transparece no SCFV.
A alimentação é rica (farta) para as crianças; os educadores
e educandos participam e auxiliam na organização do refeitório.
É explicada aos educandos a importância de auxiliar e ajudar
as pessoas. Explicito isto porque muitas crianças e adolescentes
atendidos no SCFV são de famílias muito empobrecidas.
A coordenadora está sempre presente, dando suporte para
os educadores. Os recursos estão à disposição conforme a possi-
bilidade real, o que me ajuda no meu trabalho pedagógico.
A forma segundo a qual desempenho meu papel como edu-
cadora se identifica com a educadora que está há mais tempo no

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CursodeextensãoemEducaçãoPopular(IFRS-RestingaeAEPPA):eotexto“(Des)encontrosentreaEducaçãoPopulareaPedagogiaSocial”

serviço. Trabalhamos na perspectiva do teórico “Paulo Freire”,


pois nosso fazer acontecer está vinculado à teoria e não à prática
da Educação Popular, como nos diz Freire em Pedagogia do opri-
mido (1987) e Pedagogia da autonomia (1996): Não há saber mais
ou saber menos. Há saberes diferentes. A teoria sem a prática vira
verbalismo, assim como a prática sem teoria, vira ativismo. No
entanto, quando se une a prática com a teoria tem-se a práxis, a
ação criadora e modificadora da realidade.
Ainda aprendemos com o mestre que “Ensinar não é trans-
ferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua pró-
pria produção ou a sua construção.” (FREIRE, 1996, p.12) assim
dialogamos com os educandos, de forma afetuosa, com olhar crí-
tico construtivo e reflexivo. Estamos elaborando atividades em
equipe de forma lúdica de acordo com o interesse dos educandos
e/ou conforme a necessidade da demanda, sempre com o conteú-
do crítico ao lado do criativo e afetuoso. Portanto, o convite feito
a Santos e Paulo (2017) se estende a mim e a outras tantas educa-
doras que tem histórias para contar e nos brindar com a partilha
de experiências do trabalho como educadora social e educadora
popular no contexto não escolar.

Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessá-


rios à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. (Coleção
Leitura).
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1987.
PAULO, Fernanda dos Santos. A formação do(as)
educadores(as) populares a partir da práxis: um estudo de
caso da AEPPA. 2013. 273 f. Dissertação (Mestrado em Edu-
cação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 2013.
155 de 220
CursodeextensãoemEducaçãoPopular(IFRS-RestingaeAEPPA):eotexto“(Des)encontrosentreaEducaçãoPopulareaPedagogiaSocial”

PAULO, Fernanda; SANTOS, K. (Des)encontros entre a Educa-


ção Popular e a Pedagogia Social. Ensino & Pesquisa, Paraná. v.
15, p. 117-140, 2017.

156 de 220
A experiência formativa no e entre o curso de extensão do IFRS-Restinga em Educação Popular

A EXPERIÊNCIA FORMATIVA NO E ENTRE O CUR-


SO DE EXTENSÃO DO IFRS-RESTINGA EM EDUCA-
ÇÃO POPULAR

Ismeria Florinda Silva de Almeida


ismeriaalmeida@hotmail.com

Eu aqui, ali e acolá...

Neste texto, descrevo o que foi experienciar a participação


no curso de Educação Popular e como ele contribuiu para o meu
trabalho como educadora social e militância na AEPPA, onde,
mais do que ser educadora social (ocupação-cargo-profissão), me
considero uma educadora popular. Venho estudando a Educação
Popular na Associação de Educadores Populares de Porto Alegre
(AEPPA) através do Grupo de Estudos Paulo Freire e Educação
Popular. Diante dessas andanças, situo que lutamos por uma Pe-
dagogia Popular (pedagogia na perspectiva da Educação Popu-
lar), que aborde os diferentes espaços em que educadores podem
atuar. Esse foi um dos aprendizados do nosso curso.
Ao ser convidada a escrever um texto sobre a experiência e
o aprendizado do curso de extensão do IFRS em Educação Po-
pular e sobre as experiências de trabalho, encontrei ali (acho que
todos nós!) uma esperança: a de escrever sobre o que fazemos e

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A experiência formativa no e entre o curso de extensão do IFRS-Restinga em Educação Popular

acreditamos. Essa possibilidade exterioriza o desejo de que este


seja o primeiro livro de muitos.
Ao ser selecionada para participar do curso, preenchi meu
ser de coragem e vontade em compartilhar minhas experiências.
Já sou da AEPPA, mas sempre é bom continuar em formação,
ainda mais com outros grupos. Ao reencontrar amigos e me en-
contrar nas referências, nas leituras, nos relatos, ensinamentos
junto aos que, como eu, bebem da mesma fonte, saía de cada en-
contro fortalecida.
Atualmente atuo em uma instituição católica que exerce
uma parceria juntamente com a prefeitura municipal da cidade
de Porto Alegre (RS) em um CRAS, onde desenvolvo o cargo de
educadora social, com carga horária de 40 horas semanais. Aten-
do crianças de 6 a 14 anos (SCFV1) no contraturno da escola.
Num outro espaço de trabalho militante (sem remunera-
ção) e como educadora popular por opção (PAULO, 2013), parti-
cipo da AEPPA nos grupos de estudos e pesquisas e faço parte da
diretoria da associação. Além da AEPPA, componho a gestão de
uma instituição de educação infantil.
Por meio da AEPPA, componho o GT Formação Educação
Infantil e o núcleo de formação política. A partir desse envolvi-
mento, vamos às escolas da região levando informações e pales-
tras pertinentes às educadoras, contribuindo em suas formações
e lutas por direitos, além de disseminar a Educação Popular.
Mas, voltando ao curso do IFRS-Restinga:

Figura 1 - Curso no IFRS – Restinga

1 Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos.

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A experiência formativa no e entre o curso de extensão do IFRS-Restinga em Educação Popular

As idas e vindas nas noites frias e chuvosas de um inverno


rigoroso só serviram de incentivo para nossos debates e diálogos
nas noites de segundas-feiras nesses dois meses de curso. Nos-
sa professora, Fernanda Paulo, incansável em suas buscas por
atender a uma demanda do grupo, foi mediadora e estimuladora,
contemplando com palestras e esclarecimentos aos que vieram
para o curso cheios de inquietudes. Nossos encontros e nossas
dúvidas eram sanadas com textos, debates e palestrantes.
Entender e compreender que uma Educação do Campo te-
nha seu currículo voltado para a população do campo, em con-
formidade com a identidade cultural de cada região, torna-se
para o educador popular um elemento importante, ainda mais
que na cidade de Porto Alegre temos territórios rurais. Para o
educando, é um elemento de importância e relevância porque
sente-se parte da escola, e a escola busca atender esse sujeito em
sua plenitude. Digo que os contextos de Educação Popular são
diversos.
O tema dos Movimentos Sociais e os seus princípios iden-
tificam as categorias que utilizamos na Educação Popular: diá-
logo, organização, luta e libertação. Ao fazermos parte desse
importante debate com o qual os educadores se identificam,
localizámo-nos como educadores e não meros trabalhadores que
depositam seus saberes aos educandos. Freire já falava sobre isto:
“A educação na verdade é um ato político e, nessa medida, o edu-
cador é um político também, no seu papel que necessariamente
tem a ver com a sua opção política, com aquilo que ele sonha
politicamente.” (1984, p. 5).
O curso possibilitou essa clarificação. Somos políticos, e
todo ato educativo é político. As experiências, relatos e diálogos
pessoais trouxeram para o grupo um contexto de comunidade,
de partilha, em que os objetivos tornaram-se grandes encontros
de filosofia, de educação e de sociologia. Percebemos que a cada
encontro nos empoderávamos de uma vontade política de apren-
dermos mais do que a Pedagogia dos direitos, porque queríamos
uma pedagogia construída pelos diferentes saberes (SANTOS;

159 de 220
A experiência formativa no e entre o curso de extensão do IFRS-Restinga em Educação Popular

PAULO, 2017). A gente falou disto. A gente estudou. A gente


questionou. A gente pensou e estamos escrevendo sobre isto.
Que venha uma Pedagogia radicalmente Popular. Aquela
que é construída com a gente e socializa os saberes da academia
sem discriminar os nossos. Queremos neste espaço formativo,
que é público (Instituto Federal do Rio Grande do Sul), um cur-
so para nós, educadoras populares que trabalhamos ora como
educadoras sociais, ora como educadoras da educação infantil,
da EJA, etc.
Ser uma educadora popular me torna uma pessoa “mais”
humana, responsável com a luta coletiva e com a luta pela Edu-
cação Popular no nosso trabalho e na nossa formação. Vejo-me
com o direito e o dever de identificar a realidade em que trabalho
para que, conhecendo-a, possa fazer uma Pedagogia Popular.

Figura 2 - Eu no trabalho

160 de 220
A experiência formativa no e entre o curso de extensão do IFRS-Restinga em Educação Popular

Referências

FREIRE, Paulo. O papel do educador. Extratos da palestra pro-


ferida no Centro Teotônio Vilela da FEBEM-SP em 15 de junho
de 1984. [Texto digitalizado].
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessá-
rios à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. (Coleção
Leitura).

FREIRE, Paulo. Política e educação: ensaios. 5. ed. São Paulo:


Cortez, 2001. (Coleção Questões de Nossa Época; v. 23).
PAULO, Fernanda; SANTOS, K. (Des)encontros entre a Educa-
ção Popular e a Pedagogia Social. Ensino & Pesquisa, Paraná. v.
15, p. 117-140, 2017.
PAULO, Fernanda dos Santos. Formação dos/as educadores/
as populares de Porto Alegre formados/as em Pedagogia:
identidade, trajetória e desafios. 2010. 79f. Trabalho de Conclu-
são de Curso (Especialização em Educação Popular) – Instituto
Superior de Educação Ivoti & Instituto de Desenvolvimento
Brava Gente, Porto Alegre, 2010.
PAULO, Fernanda dos Santos. A Formação do(as)
educadores(as) populares a partir da práxis: um estudo de
caso da AEPPA. Porto Alegre. 2013. 273 f. Dissertação (Mestra-
do em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2013.
ZUCCHETTI, Dinora Tereza; MOURA, Eliana Perez Gonçalves
de. Práticas socioeducativas e formação de educadores: novos
desafios no campo social. Ensaio: Aval. Pol. Públ. Educ., Rio
de Janeiro, v. 18, n. 66, p. 9-28, jan./mar. 2010.

161 de 220
Um texto, o contexto de trabalho e minha compreensão de o que é ser um educador popular

UM TEXTO, O CONTEXTO DE TRABALHO


E MINHA COMPREENSÃO DE O QUE É SER
UM EDUCADOR POPULAR

Erick Silva de Souza


erick.hallakan@gmail.com

Introdução

Baseado no texto “Práticas socioeducativas e formação


de educadores: novos desafios no campo social”, de autoria de
Dinora Zucchetti e Eliana Perez Gonçalves de Moura, trago
desafios encontrados por mim, durante minha caminhada, na
compreensão de o que é ser um educador popular. Discuto a im-
portância da ética no trabalho com educação e, com isto, relato
experiências de trabalho com minha história de vida. Observo
que a Educação Popular é ferramenta teórica e prática de com-
bate à opressão, de formação de sujeitos conscientes políticos e
históricos. Além do texto base, utilizo-me de outros autores que
discorrem sobre o tema abordado.
Olhando hoje para trás, posso afirmar que meu primeiro
contato com a Educação Popular foi no projeto Cidadão Digi-
tal, da DELL Computers, projeto destinado à inclusão digital de
crianças, jovens, adultos e idosos de baixa renda. Eu tinha 16
anos e nem mesmo havia ouvido o termo “Educador popular”

162 de 220
Um texto, o contexto de trabalho e minha compreensão de o que é ser um educador popular

ou “educador social”. O projeto Cidadão Digital, no entanto, po-


deria ser visto como uma espécie de Serviço de Convivência e
Fortalecimento de Vínculos (SCFV), pois o foco, em si, não era
o aprendizado dos pacotes Office, do HTML básico e internet,
mas algo um pouco além, ainda que não enunciado no corpo do
projeto.
Nas salas de informática, o mundo das crianças e dos jo-
vens encontrava o do adulto e do idoso, havia trocas de saberes,
ajudas, conversas e uma convivência que aproximava pessoas da
mesma comunidade, que, talvez, jamais fossem conviver juntas
sem a existência do projeto.
Muitos anos depois, fui convidado, por um amigo de infân-
cia, a participar do Mais Educação em uma escola do município
de Alvorada. No contraturno escolar, os “alunos” participavam
de atividades recreativas, esportivas e de reforço escolar. Não
havia planejamento das atividades, não havia orientação para
os oficineiros, não havia reuniões ou qualquer tipo de acompa-
nhamento ou “monitoria” sobre o que ou o porquê de se estar
fazendo determinadas atividades, ou seu viés socioeducativo. O
que se cobrava era uma capacidade de “boa relação” com os “alu-
nos” do Mais Educação. Percebo que “Dar-se bem com o jovem
aparece como um atributo natural e/ou necessário a ser desen-
volvido para que o trabalho flua e para que os objetivos sejam
atingidos.”1. Para Freire (2001, p 12),

Aprender e ensinar fazem parte da existência humana, histórica e


social, como dela fazem parte a criação, a invenção, a linguagem,
o amor, o ódio, o espanto, o medo, o desejo, a atração pelo risco, a
fé, a dúvida, a curiosidade, a arte, a magia, a ciência, a tecnologia. E
ensinar e aprender cortando todas estas atividades humanas.

E com base nessa “capacidade de boa relação” e compro-


misso social, inseri-me no primeiro espaço onde, de fato, ouvi
o termo “educador social”: uma entidade católica que oferecia o

1 Disponível em: <https://docplayer.com.br/81529084-Entre-a-pratica-e-a-experien


cia-o-lugar-da-acao-nos-processos-transformadores.html>. Acesso em: 22 out. 2018.

163 de 220
Um texto, o contexto de trabalho e minha compreensão de o que é ser um educador popular

Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos a crianças


e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Sendo eu,
anteriormente em minha vida, um desses jovens em situação de
vulnerabilidade social, e jamais tive a oportunidade de partici-
par de um serviço desses, senti-me tocado. Mesmo com capa-
citações oferecidas pela instituição, o item que me parecia mais
valioso, para eles, era a “capacidade de boa relação”. Não havia
um olhar profundo para temas sociais pertinentes às realidades
dos usuários, ou de suas famílias. Durante os quase dois anos de
atuação na instituição, muita coisa foi agregada ao meu conhe-
cimento, no entanto pouco sobre qual é o verdadeiro papel do
educador popular me foi acrescentado. Obviamente que existem
muitos outros elementos o foram e serviram como crescimento
pessoal, profissional e intelectual. Práxis.
Em paralelo ao meu trabalho-aprendizagem no Mais Edu-
cação (por um ano) e na respectiva instituição católica (por um
ano e oito meses), estava em contato com uma escola no mu-
nicípio de Viamão, contato que ia me ensinando aos poucos e
me cativando com suas ideias, objetivos e realizações que iam
além do papel. Tratava-se de um lugar onde a palavra escrita e
a ação praticada estavam em harmonia. Tive a oportunidade de
trabalhar nessa escola como professor auxiliar e aprender muito
sobre SCFV, sobre educação inclusiva, sobre educação livre de
opressão.
Percebi, lá, que até aquele momento, tudo que eu havia feito
como educador, embora bem-intencionado, era apenas transfe-
rência de uma educação opressora recebida. Que uma educação
diferente era possível, uma educação transformadora. E aprendi,
especialmente, que essa educação começa pela transformação do
próprio educador. Um dos motivos que me fez deixar o SCFV
“oficial” da entidade católica foi trazer a eles essas questões de
transformação social e perceber que o foco do projeto não era
esse, faltava-lhes o olhar do educador popular. O olhar resulta
no pensar, que nos leva a caminhar, caminhar em uma direção
específica e não um andar apenas por andar, apenas por seguir
sem rumo, vagueando.

164 de 220
Um texto, o contexto de trabalho e minha compreensão de o que é ser um educador popular

Após o tempo de aprendizagem-trabalho (e não trabalho-


-aprendizagem, como no anterior), na escola de Viamão, retor-
nei para o SCFV de outra instituição católica. Essa possuía um
planejamento baseado em um PPP (não é que no anterior não
houvesse projeto político-pedagógico, ele apenas não era estu-
dado, cobrado, implementado, modificado, revisitado, etc.), com
capacitações mais voltadas ao social, no entanto apenas no papel.
O que lhes preocupava e o que mais era mencionado nas reuniões
eram as “metas”. Eram cobradas, dos educadores, as metas.
As crianças e adolescentes eram vistos como números a se-
rem atingidos, indiferentemente de se os temas sociais estavam,
de fato, sendo trabalhadas, se os planejamentos estavam alinha-
dos com as demandas, e não porque não sabiam mas porque a
administração estava preocupada com números e valores a se-
rem obtidos.
Dos educadores, era cobrado que os jovens tivessem, sem-
pre, um “bom comportamento”, que não corressem pelos cor-
redores, que não gritassem, e várias outras formas de opressão.
Inclusive, quanto mais rígido e duro fosse um educador, tão mais
competente ele era, na visão dos gestores.

Baseado na concepção de um sujeito materializado em todos os tipos


de ‘faltas’ que lhes são supostamente intrínsecas as instituições se
alinham e se aliam buscando a efetiva consecução do objetivo de
produzir ‘sujeitos civilizados’, bons cidadãos, dóceis trabalhadores,
ainda que muito pouco deste objetivo consiga ser atingido. (ZUC-
CHETTI; MOURA, 2010, p. 16).

Em minha última e mais recente experiência como educa-


dor popular, obtive o mais profundo ensinamento sobre a ver-
dadeira importância de não desistir de ser educador. E de saber
o que é ser educador. Aprendi, como acabei, por uma dádiva,
lendo Freire (1996) dizer, depois de obter por mim mesmo essa
“realização”, que eu falava, muitas vezes, a partir do meu mundo
de saberes e me pegava desanimado e desmotivado pelo fato de
os outros não compreenderem o que eu estava dizendo. Depois

165 de 220
Um texto, o contexto de trabalho e minha compreensão de o que é ser um educador popular

de quase seis anos atuando como educador social (depois de co-


nhecer e me reconhecer como tal), percebi que a linguagem que o
educador deve utilizar tem de ser a linguagem do silêncio. E isso,
para mim, amante da meditação e da filosofia, foi um choque de
prazer e regozijo.
Não que devamos ficar calados, mas devemos calar nossa
agitação mental que responde o outro antes de ele terminar a
pergunta, que julga saber a necessidade do outro sem esperar que
ele mesmo diga qual sua necessidade. Essa agitação que quer que
o outro seja algo sob o nosso controle, onde nos vemos como re-
ceptáculos imaculados de um saber e de uma “vocação” tão pre-
ciosa que, quando somos desafiados ou contrariados, devemos
fazer valer a nossa persona, em vez de retirar essa persona e olhar
para aquele que nos aponta com carinho e cuidado.
Hoje, convicto de que essa profissão é o que me traz verda-
deira realização profissional, pessoal, intelectual e espiritual, sei
que não sou educador apenas durante a oficina em meu expe-
diente, mas sou educador na minha rua, no ônibus ou no trem,
no almoço em família, na fila do banco, no trânsito e em todo
lugar em que eu esteja presente. Presente em corpo e mente.
Percebi, também, com essa última experiência, que a ética
em nosso serviço, em nossas vidas, deve ser nosso ponto princi-
pal de partida – seja para planejamento, seja para nossas falas,
para momentos livres, em conversas com colegas e “superiores”.
Sem ética individual, não temos como avançar em nossa prática,
seja ela em que âmbito for.
A nossa ética pode, e certamente vai, em algum momento,
ferir o seu oposto (aqueles que praticam o antiético). Foi o que
me aconteceu, e faço questão de deixar aqui esse triste relato, sem
mencionar nomes de envolvidos ou da instituição, pois o tempo
e o aperfeiçoamento da nossa profissão irão ensinar e curar es-
sas máculas: o espaço onde eu atuava se dividia em três núcleos,
bem próximos, em um mesmo bairro. Em um desses núcleos, a
coordenadora possuía alguns problemas (relatados pela própria
gestão como “psicológicos”); em vários momentos, ouvi e vi ela
repreendendo de forma abusiva usuários, constrangendo-os,

166 de 220
Um texto, o contexto de trabalho e minha compreensão de o que é ser um educador popular

gritando de forma descompensada. Relatei esses comportamen-


tos à gestão, que fez pouca coisa, ou menos que isso, para tentar
proteger os usuários do serviço (SCFV deve servir para garantir
direitos e não para violá-los). Aconteceu que, em determinada
situação, adolescentes (do outro dos três espaços) entraram, co-
migo, em um debate sobre o tweet do youtuber Cocielo (na época
da copa do mundo na Rússia), ao que o educador de esportes
(eu atuava com as oficinas de temas transversais, arte e cultura)
respondeu, antes de eu por falar, que o posicionamento do tal
Cocielo não era racista, que na verdade ele estava sendo vítima
daquilo por ser famoso. Muito bem. Na outra semana, em minha
oficina, com comunicado e aprovação da coordenadora do espa-
ço onde os adolescentes frequentavam, preparei um PowerPoint
com vários dados, estatísticas, vídeos e muitas outras coisas para
fomentarmos um debate, já que essa demanda partiu dos adoles-
centes como um tema social. Esse mesmo educador de esporte
fez, na minha oficina, apologia direta ao racismo, entregando,
inclusive, o seu próprio celular a uma usuária e mandando ela
chamar a polícia para prender ele, já que ele fazia “brincadei-
ras racistas na quadra diversas vezes”. O acontecido foi levado à
coordenadora, que levou-o à gestão, que, novamente, fez pouco,
ou menos que isso.
Entre esses dois acontecimentos (o questionamento sobre o
tweet e o debate com apologia ao racismo), a “coordenadora” que
ofendia os educandos no outro espaço, estava, em um dia de reu-
niões à tarde, bebendo cerveja dentro do espaço onde acontecia o
SCFV. Ela havia convidado educandos mais chegados a ela para
irem lá na parte da tarde. Nessa dia, essa senhora falou palavrões
do mais alto nível, insinuou que levaria dois educandos para “fa-
zer um pé de meia para ela, já que eram novinhos”.
Então, no dia após esses eventos, em que eu deveria ir para
esse “centro social” trabalhar com a coordenadora e com o edu-
cador de esportes, eu me recusei e pedi uma reunião com a ges-
tora e o presidente da instituição. Nessa reunião eu fui demitido.
A instituição escolheu manter uma senhora que bebe e viola os
direitos dos usuários e um educador que faz apologia ao racismo

167 de 220
Um texto, o contexto de trabalho e minha compreensão de o que é ser um educador popular

(além de outros posicionamentos muito contraditórios para um


educador popular), em detrimento de alguém que combate tais
práticas. No entanto, tenho certeza de que minha prática, nessa
instituição, foi madura, correta e ética. Os planejamentos eram
elaborados visando às demandas dos usuários.
Esse relato mostrou para mim, e compartilho-o para refor-
çar essa percepção, que existe muito a ser feito, tanto em nos-
sa ação e visão como educadores populares, como no combate
a práticas danosas e desserviços por parte de instituições. Mui-
tas outras instituições devem ter posicionamentos errôneos com
relação aos conceitos que devem guiar a Educação Popular, so-
bre qual é o norte que temos em comum e qual o objetivo da
Educação Popular como ferramenta de combate à opressão, de
formação de sujeitos conscientes de si mesmos, sujeitos políti-
cos e históricos. Uma experiência de formação nessa linha são
as lutas da Associação de Educadores Populares de Porto Alegre
(AEPPA)2, as quais conhecemos no curso de extensão promovido
por esse movimento popular junto ao IFRS-Restinga (PAULO,
2013; SANTOS; PAULO, 2017).
Olhado para trás, com a práxis adquirida até este exato mo-
mento, sou obrigado a repetir a ilustre frase de Sócrates: “Sei que
nada sei.” No entanto, arrisco-me dizendo que “Hoje sei mais do
que ontem.” Também sei que, olhando para o ontem, ele muda, o
passado muda de acordo com nosso olhar. Durante a caminhada
de aprendizagem, muito do meu passado mudou, algumas ques-
tões foram ressignificadas.
Ser educador exige de nós uma abertura constante, uma
não fixação às identidades que possamos criar, às personagens
que criamos para atuar nesse ou naquele espaço. As instituições
criam identidades, objetivos, visões fechadas de mundo e aca-
bam não percebendo que as demandas sociais são outras, que
estão (como ouvi em uma palestra certa vez) “respondendo per-

2 Para conhecer sobre esse movimento, sugerimos ao final do texto uma dissertação
e um artigo. Sobre o curso no IFRS-Restinga, consultar o link <https://ifrs.edu.br/
restinga/curso-de-extensao-para-educadores-populares-recebe-inscricoes/>.

168 de 220
Um texto, o contexto de trabalho e minha compreensão de o que é ser um educador popular

guntas que ninguém mais está fazendo”, e como educadores não


podemos cair nessa armadilha.
Por isso, faz-se extremamente importante uma formação
técnica, uma graduação de ensino superior, para educadores po-
pulares, um ensino que não deixe as pessoas soltas em uma maré
de caminhos diferentes que dizem fazer um mesmo serviço. Um
curso que, mais do que ensinar, nos mostre como aprender com
o tempo em que estamos vivendo, sem que fiquemos presos em
um ponto que vai passando bem em frente aos nossos olhos. É
da nossa natureza nos tornarmos “conservadores”; fundamen-
talistas no sentido de olhar para o nosso passado, para a nossa
vivência e dizer “No meu tempo as coisas eram boas; música que
presta é a da minha época; as brincadeiras de antigamente sim
eram boas!”
Com esse conservadorismo, acabamos deixando passar por
entre nossos dedos a oportunidade de perceber o mundo dos ou-
tros. Assim, não adquirimos a habilidade de enxergar o outro
no seu contexto social (no seu mundo interno e externo); não
conseguindo enxergar o outro, estamos de mãos atadas para per-
ceber suas qualidades positivas e irrigá-las; sem conseguir irri-
gar qualidades positivas, não conseguimos investigar as causas
de suas ações negativas, violentas, de suas depressões e revoltas;
sem conseguir investigar o mundo do outro, não conseguimos
perceber meios de usar a nossa ação para o benefício do outro,
ajudando-o a perceber como suas próprias ações afetam a si mes-
mo e ao entorno; sem perceber esse mecanismo de ação e reação,
não conseguimos, também, perceber que o outro possui capaci-
dade de transformação interna, que irá resultar em transforma-
ções externas, pois, afinal, se não somos nós, sujeitos políticos e
históricos, que causamos a transformação no mundo, quem será?
Gostaria de encerar reproduzindo a fala de um grande mes-
tre budista, moderno, chamado Dzongsar Khyentse Rinpoche,
sobre educação: “Eu sinto que a educação de hoje não ensina a
liberdade. Se eles tentam ensinar liberdade, é apenas sobre direitos
individuais, mas não sobre a liberdade interna, que vem de uma
profunda sensação de ordem. Quando você tem essa estabilidade

169 de 220
Um texto, o contexto de trabalho e minha compreensão de o que é ser um educador popular

interior, você pode se expandir e caminhar pelo mundo caótico. Ao


contrário, às vezes parece que a educação moderna faz o oposto,
nos torna caóticos por dentro e tenta criar algum tipo de ordem
externa.”

Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessá-


rios à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. (Coleção
Leitura).

FREIRE, Paulo. Política e educação: ensaios. 5. ed. São Paulo:


Cortez, 2001. (Coleção Questões de Nossa Época; v. 23).
PAULO, Fernanda; SANTOS, K. (Des)encontros entre a Educa-
ção Popular e a Pedagogia Social. Ensino & Pesquisa, Paraná. v.
15, p. 117-140, 2017.
PAULO, Fernanda dos Santos. Formação dos/as educadores/
as populares de Porto Alegre formados/as em Pedagogia:
identidade, trajetória e desafios. 2010. 79f. Trabalho de Conclu-
são de Curso (Especialização em Educação Popular) – Instituto
Superior de Educação Ivoti & Instituto de Desenvolvimento
Brava Gente, Porto Alegre, 2010.
PAULO, Fernanda dos Santos. A Formação do(as)
educadores(as) populares a partir da práxis: um estudo de
caso da AEPPA. Porto Alegre. 2013. 273 f. Dissertação (Mestra-
do em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2013.
ZUCCHETTI, Dinora Tereza; MOURA, Eliana Perez Gonçalves
de. Práticas socioeducativas e formação de educadores: novos
desafios no campo social. Ensaio: Aval. Pol. Públ. Educ., Rio
de Janeiro, v. 18, n. 66, p. 9-28, jan./mar. 2010.

170 de 220
Educação profissional e os interesses do capital

EDUCAÇÃO PROFISSIONAL
E OS INTERESSES DO CAPITAL

Vlamir do Nascimento Seabra1


vlamir@ifam.edu.br

Gilberto João Pavani2


gilberto.pavani@restinga.ifrs.edu.br

Introdução

Este texto fará um breve relato histórico da educação profis-


sional no Brasil e como ela se articulou a serviço do sistema ca-
pitalista, desde suas origens até o momento atual. Com a amplia-
ção de ofertas de cursos através da implantação dos Institutos
Federais, o sistema de educação profissional federal passou a ter
uma nova tendência paradigmática: além de atender os interes-
ses do capital, passou a ficar atento às demandas dos movimentos
sociais. Essa nova tendência tem sua origem na proposta política
adotada pelo governo neodesenvolvimentista de centro-esquer-
da do PT, que passou a incluir os movimentos sociais no palco
de disputas por demandas na construção de políticas públicas.

1 Professor de Filosofia do Instituto Federal do Amazonas. Doutorando em Desenvol-


vimento Regional pela UNISC.
2 Professor do campus Restinga do IFRS e engenheiro de segurança do trabalho. Um
dos coordenadores do curso de Educação Popular.

171 de 220
Educação profissional e os interesses do capital

Os primórdios da educação profissional

As relações capitalista modernas de produção e de trabalho


colocam o seguinte questionamento em relação à escola: como
preparar os trabalhadores para o mundo do trabalho, onde os
processos de divisão do trabalho estão muito sofisticados, os
conglomerados de serviços operam com novas tecnologias, a
explicações taylorista e fordista de cunho industrialista já não
cabem como instrumento explicativo dos conceitos de trabalho?
A educação profissional e a educação básica serviram como
instrumento de subordinação ideológica dos países capitalistas
periféricos em relação aos países capitalistas centrais. A partir
da década de 1950, a educação profissional esteve ligada umbili-
calmente à ideia de crescimento econômico, a partir da noção de
“capital humano”, a qual acreditava que o subdesenvolvimento
dos países especialmente da América Latina acontecia em vir-
tude da baixa qualificação da mão de obra, portanto fazia-se
necessário investir na educação profissional para dar suporte ao
capitalismo industrial em implantação no Brasil. Nesta visão, da
educação profissional, os trabalhadores são vistos como meros
equipamentos que devem ser formatados para o mercado de tra-
balho.
Desta forma, ao tratarmos sobre a temática da educação
profissional no Brasil, temos que levar em consideração em qual
realidade do mundo do trabalho, nos diversos períodos históri-
cos, está inserida a proposta educacional, à medida que a qua-
lificação da mão de obra operária é característica essencial do
capitalismo moderno.
A educação profissional, a partir de uma proposta de
política governamental no Brasil, remonta ao Primeiro Império,
período histórico em que vivemos uma sociedade agrária e es-
cravocrata, na qual o trabalho manual, que exigia somente es-
forço físico, era realizado por escravos ou pobres. O modelo de
colonização ibérico colocava os trabalhos manuais num patamar
de segunda categoria, portanto existia uma educação voltada
172 de 220
Educação profissional e os interesses do capital

para as elites, com seu modelo aristocrático/propedêutico, e ou-


tra incipiente educação que tinha a preocupação em formar ou
qualificar trabalhadores para atividades manuais.
No caso brasileiro do período imperial, segundo Soares
(2003, p. 26), “as crianças originárias de famílias ricas, após con-
cluírem a instrução primária, iriam cursar um ginásio ou Liceu,
direcionando-se a uma carreira liberal e não optariam por fre-
quentar as chamadas ‘escolas práticas’, de ensino médio.”
As primeiras escolas profissionalizantes eram coordenadas
por iniciativas filantrópicas ligadas especialmente à Igreja Cató-
lica ou a estabelecimentos militares. Com relação a esse período
histórico, podemos afirmar que, num país de economia agroex-
portadora de monocultura, e ainda vivendo sob a égide do escra-
vismo, já recebendo milhões de imigrantes que também vieram
trabalhar no setor agrícola, o interesse pela educação era bastan-
te incipiente, já que nas atividades rurais não se exigia perícia
especial, porque as terras eram fartas e férteis, o que não requeria
técnicas mais apuradas para aumentar a produtividade.
Somente em 1906 o ensino profissional passou a ser atribui-
ção do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, criado
pela Lei 1.606, de 12 de agosto de 1906. Em 1909, através do de-
creto n. 7.566, de 23 de setembro, foram criadas 19 Escolas de
Aprendizes e Artífices, marco do ensino técnico profissional no
País. Apesar da sua preocupação com a formação técnica, esse
modelo de escola tinha um viés de instituição correcional, con-
forme se pode perceber no decreto instituinte:

Considerando: que o aumento constante da população das cidades


exige que se facilite às classes operárias os meios de vencer as di-
ficuldades sempre crescentes da luta pela existência; que para isso
se torna necessário, não só habilitar os filhos dos desfavorecidos da
fortuna com o indispensável preparo técnico e intelectual, como fa-
zê-los adquirir hábitos de trabalho profícuo, que os afastará da ocio-
sidade, escola do vício e do crime; que é um dos primeiros deveres do
Governo da República formar cidadãos úteis à Nação. (Decreto Lei
nº 7.566, de 23 de setembro de 1909).

173 de 220
Educação profissional e os interesses do capital

Os cursos ofertados eram alfaiataria, marcenaria, ferreiro,


serralheiro, mestres agrícolas e outros. A partir da década de
1930, com a tentativa de inserir o Brasil entre as nações indus-
trializadas do mundo capitalista, a educação profissional passou
a ter uma grande importância, pois qualificaria mão de obra para
a indústria nacional. Era o chamado desenvolvimentismo, com a
proposta da substituição de importações, e com a crescente in-
ternacionalização da economia brasileira.
Até a década de 1960, o Brasil tinha uma população de
mais de 70% vivendo no espaço rural; com o fortalecimento e a
implantação de um modelo industrialista, a população brasilei-
ra passou a tornar-se mais urbanizada, ocorrendo a necessidade
de contratação de mão de obra qualificada para trabalhar nas
grandes indústrias em implantação no País, especialmente no sul
e sudeste. A partir desse período, a educação profissional for-
taleceu sua visão produtivista, estando totalmente a serviço do
capitalismo vigente no Brasil. A ideia de crescimento econômico,
a partir da noção de “capital humano”, cimentado na ideologia
da pedagogia das competências, dá suporte para essa visão de
educação profissional; os trabalhadores são vistos como meros
equipamentos que devem ser qualificados para o mercado de tra-
balho.

A educação profissional e o período neoliberal no Brasil

No Governo FHC, a fim de atender os interesses dos grandes


organismos econômicos internacionais, especialmente do Banco
Mundial, e garantir o que estava disposto na nova LDB 9394/96,
que apresentava somente um artigo sobre a educação profissional
(artigo 36, A, B, C), o governo incentivou a formação por com-
petências. A educação profissional foi regulamentada através do
Decreto 2208/97, baseada na formação por competências sociais
(liderança, iniciativa, capacidade de tomar decisões, autonomia

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Educação profissional e os interesses do capital

no trabalho, habilidade de comunicação) e competências técni-


cas (saber fazer bem feito).
Segundo Seabra (2011), o Decreto n. 2208 repousaria no
pressuposto de que a baixa escolaridade e qualificação dos traba-
lhadores não favoreceria o aumento da produtividade necessário
para fazer face à intensificação da competitividade, dada a mu-
dança do paradigma técnico-produtivo. Para justificar sua análi-
se, o autor argumenta que as condições políticas não atenderam
os anseios da classe trabalhadora, mas simplesmente os anseios
das instituições que comandam o mercado internacional. Esse
decreto visava atender a baixa produtividade (pouca escolarida-
de x qualificação) dos trabalhadores brasileiros, em desacordo
com os novos parâmetros produtivos, revelando a necessidade de
ser aumentada rapidamente a qualificação.
Diversos autores realizaram críticas a esse modelo de ensi-
no, dentre eles podemos destacar Silva (1998), para quem o foco
na supervalorização do conhecimento da técnica e de seus pro-
cessos na busca da alta produtividade e aumento do consumo
do capitalismo contemporâneo tem impedido a manifestação de
novas identidades culturais e sua integração na complexidade
dos valores culturais modernos.
A finalidade principal do decreto era atender ao modelo
neoliberal adotado por vários países do terceiro mundo e pelo
processo de globalização da economia, que exige diminuição de
recursos públicos para a educação. Esses países passam para a
categoria de “consumidores de tecnologia”, mesmo porque, para
o ideário neoliberal, a esses países não interessa a “geração de
novas tecnologias”.
A educação, nos últimos trinta anos, tem estado vinculada
à concepção neoprodutivista, servindo para a inserção e parti-
cipação dos trabalhadores no mercado de trabalho vinculada a
uma estruturação taylorista-fordista. Por outro lado, a LDB 9394
exige que a formação dos trabalhadores seja realizada com base
nos direitos a cidadania, liberdades – civil, política e social.
O processo de desenvolvimento deve ir além da questão
econômica, sem a sua exclusão evidentemente. Como questiona

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Educação profissional e os interesses do capital

Frigotto (2013, p. 35-36), “Em que medida nossas insistências no


impacto das novas tecnologias sobre o mundo da produção e do
trabalho, sem entendê-las, elas próprias, como um produto de re-
lações sociais excludentes, não tornam nossas análises limitadas
e adaptativas?”

Considerações finais

O processo de expansão e criação do Institutos Federais


apresenta como características principais reconhecer os saberes
das comunidades locais que não podem ser negados. Na propos-
ta de cursos a serem ofertados, a formação de alunos-trabalhado-
res deve conciliar os conhecimentos científicos produzidos pelas
pesquisas com as identidades das comunidades locais.
Uma das formas de superar a subalternização total ao ca-
pitalismo, que só enxerga nos trabalhadores mão de obra a ser
qualificada, é o fortalecimento dos movimentos sociais junto a
instituições educativas, que a partir de suas práticas sociais po-
dem ser mediadoras de relações sociais, econômicas e culturais
que demonstrem que a produção das desigualdades sociais é algo
histórico e foi produzido por relações de poder econômico que
impedem qualquer mudança estrutural no capitalismo.
No documento “Concepção e Diretrizes: Instituto Federal
de Educação, Ciência e Tecnologia”, publicado em 2008, pelo
Ministério da Educação, aparecem as expressões “mudança pa-
radigmática” e “inversão da lógica até então presente”. Portanto,
os Institutos Federais representam a materialização de um novo
projeto que busca conferir um maior destaque à educação pro-
fissional e tecnológica no seio da sociedade, mediante uma ação
integrada e referenciada na ocupação e desenvolvimento do ter-
ritório, entendido como lugar de vida (BRASIL, 2010, p. 3).
A partir da valorização da dimensão territorial como um
lugar de vida, os Institutos Federais apresentam uma nova di-

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Educação profissional e os interesses do capital

mensão na sua estrutura de construção de políticas educacionais


voltadas para a educação profissional. Os movimentos sociais e
suas demandas passam a ser vistos com a possibilidade de cons-
truírem juntos algumas propostas educacionais oriundas dos
trabalhadores, e não somente do mercado trabalho. Apesar dessa
nova constituição educacional, eles herdaram da antiga estrutu-
ra dos Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFET) e das
Escolas Agrotécnicas Federais a tecnoburocracia que, muitas ve-
zes, impede e limita a participação mais incisiva dos movimen-
tos sociais. No entanto, em virtude de sua capilaridade voltada
para o interior do Brasil, os campi do Institutos Federais poderão
construir junto com os movimentos sociais uma nova dimensão
da relação capital-trabalho e suas contradições.

Referências

ANDRADE, Andréa de Faria Barros. Os Institutos Federais de


Educação, Ciência e Tecnologia: uma análise de sua institucio-
nalidade. Tese de Doutorado em Educação – Faculdade de Edu-
cação- Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade
de Brasília, Brasília, 2014.
BRASIL. Decreto n º 2.208, de 17 de abril de 1997. Brasília, 1997.
BRASIL. Decreto-lei nº. 7.566, de 23 de setembro de 1909. Rio
de Janeiro, 1909.
BRASIL. Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Brasília, 1996.
BRASIL. Lei 11.892, de 29 de dezembro de 2008. Brasília, 2008.
FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação, crise do trabalho assalaria-
do e do desenvolvimento: teorias em conflito. In: FRIGOTTO,
Gaudêncio (Org.). Educação e crise do trabalho. 12. ed. Rio de
Janeiro: Vozes, 2013.

177 de 220
Educação profissional e os interesses do capital

SEABRA. Vlamir do Nascimento. Os impactos do paradigma


do desenvolvimento sustentável na formação dos técnicos
agrícolas do IFAM -Campus Zona Leste. Dissertação Mestrado
em Desenvolvimento Regional – PRODERE-UFAM, Manaus,
2011.
SILVA, Luís Heron da. A escola cidadã no contexto da globali-
zação. Petrópolis: Vozes, 1998.
SOARES. Ana Maria Dantas. Política educacional e configura-
ções dos currículos de formação de técnicos em agropecuária,
nos anos 90: regulação ou emancipação? Tese (Doutorado em
Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade) – Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003.

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FormaçãodeeducadorasdaeducaçãoinfantilcomunitáriadePortoAlegre(RS):relaçõesentreopúblicoeoprivado

FORMAÇÃO DE EDUCADORAS DA EDUCAÇÃO


INFANTIL COMUNITÁRIA DE PORTO ALEGRE (RS):
RELAÇÕES ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO

Fernanda dos Santos Paulo


fernadaeja@yahoo.com.br

Simone Souza Prunier


simoneprunier@hotmail.com

Simone Valdete dos Santos


simonevaldete@gmail.com

Introdução

A exigência da formação de educadoras da educação infan-


til no Brasil é recente, tendo como marco legal a Constituição
Federal do Brasil (1988), o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA, 1990), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDBEN, 1996) e o atual Plano Nacional de Educação (PNE), Lei
13.005 (2014-2024).
A organização dos Movimentos Populares e das educadoras
progressistas garantiu as conquistas presentes nessas legislações,
uma vez que desde a Constituição Federal a educação das crian-
ças pequenas começou a figurar dentro das políticas educacio-
nais, saindo da abordagem da assistência social.

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FormaçãodeeducadorasdaeducaçãoinfantilcomunitáriadePortoAlegre(RS):relaçõesentreopúblicoeoprivado

A trajetória percorrida em Porto Alegre, visando à garantia


do direito à educação infantil conforme previsto na CF (1988),
reafirmada no ECA (1990), resulta em um cenário conflitante,
pois ocorre um avanço exponencial do privado, mesmo que sem
fins lucrativos, na ambiência do público. Diante desse contexto,
surgem inúmeras distinções, ao passo que analisaremos a expe-
riência das políticas da educação infantil no município de Porto
Alegre tendo como foco a formação das educadoras das creches
comunitárias, trabalhadoras das instituições conveniadas com o
poder público municipal. As elaborações de Paulo (2013), Peroni
(2006, 2008, 2012), Saviani (2012), Souza (1984) e Susin (2009)
embasam teórica e metodologicamente o estudo.
Exploramos, nessa conjuntura, o cenário de execução des-
sa política educacional via parceria público-privada com estreita
relação com lutas dos Movimentos Populares.

O contexto da educação infantil em Porto Alegre

O município de Porto Alegre possui 217 instituições de


educação infantil parceiras, ou seja, organizações da sociedade
civil sem fins lucrativos que firmam parcerias com a prefeitura
para a oferta dessa etapa da educação. Há 44 escolas municipais
integradas à rede pública. Numa primeira observação desses
dados, podemos destacar que, diante do número expressivo de
conveniamento, há um contexto de parceria entre o público e o
privado evidenciando a execução da política pública educacio-
nal quase que exclusivamente por instituições não governamen-
tais (associações comunitárias de bairro, fundações, institutos,
etc.). Tal situação é consequência de um frágil investimento em
políticas públicas voltadas para essa etapa da educação básica.
Isso advém de uma política de descentralização na qual o poder
público transfere a execução da política pública, como é o caso
da educação infantil, para a comunidade (sociedade civil orga-

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FormaçãodeeducadorasdaeducaçãoinfantilcomunitáriadePortoAlegre(RS):relaçõesentreopúblicoeoprivado

nizada), continuando a exercer o papel de autoridade, sobretudo


como Estado avaliador (PERONI, 2008). Em outras palavras, o
poder público, ao descentralizar a política pública educacional,
transfere a responsabilidade da execução para a sociedade civil e
apreende para si apenas a responsabilidade de regulação.
Conforme Peroni (2012), ocorre uma reorganização dos
processos educacionais em função dessa nova configuração, ou
seja, das parcerias entre o público e o privado. Em conformidade
com a autora, esse processo decorre do atual momento particu-
lar do capitalismo que redefine o Estado, conduzindo-o a criar
estratégias de manutenção do sistema político atual. Para tanto,
mudam-se as formas de manutenção do status quo e o conteúdo
permanece o mesmo, isto é, a educação no sistema capitalista é
encarada como mercadoria que transforma os espaços educa-
cionais na lógica do empreendedorismo/mercado (MÉSZÁROS,
2008).
Na cidade de Porto Alegre, as primeiras instituições de edu-
cação infantil conveniadas surgiram em 1993, visando garantir
a continuidade da oferta de vagas já ocupadas em instituições
denominadas “creches comunitárias”, até então financiadas pela
Legião Brasileira de Assistência (LBA), órgão assistencial público
de considerável capilaridade no País extinto no ano de 1995.
Além disso, as comunidades exigiam do poder público o
cumprimento legal do que consistia na Constituição Federal de
1988, principalmente referindo-se ao art. 205 e ao ECA (PAU-
LO, 2013). Foi a necessidade que fez o poder público municipal
encontrar essa solução para continuar ofertando a educação in-
fantil através do conveniamento entre instituições não governa-
mentais e Secretaria Municipal de Educação.
Esse baixo investimento do poder público expressa a con-
dição fragilizada dos direitos conquistados, especialmente pelos
movimentos sociais populares. Saviani (2013, p. 754) nos alerta
sobre essa realidade, descrevendo uma forma de precarização ge-
ral do ensino no País:

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FormaçãodeeducadorasdaeducaçãoinfantilcomunitáriadePortoAlegre(RS):relaçõesentreopúblicoeoprivado

[...] essa tendência do Poder Público em transferir a responsabilidade


pela educação para o conjunto da sociedade, guardando para si o
poder de regulação e de avaliação das instituições e dos resultados
do processo educativo, operou uma inversão no princípio constitu-
cional que considera a educação “direito de todos e dever do Estado”,
passando-se a considerar a educação pública como dever de todos e
direito do Estado. Por esse caminho será acentuada a equação per-
versa que marca a política educacional brasileira atual, assim carac-
terizada: filantropia + protelação + fragmentação + improvisação =
precarização geral do ensino no país.

Essas questões nos levam a refletir sobre o direito à educa-


ção infantil para todas as crianças e as relações entre o público
e o privado. Por isso, nosso enfoque trata da formação docen-
te exigida na LDBEN de 1996 no contexto das “creches comu-
nitárias” de Porto Alegre. A formação das educadoras, em sua
grande maioria, é de nível fundamental ou médio, com curso de
qualificação (educador assistente/profissional de apoio), estando
em divergência com o que é estabelecido na LDBEN/1996 em seu
art. 62. Diante dessa realidade, essas educadoras são considera-
das leigas. É importante sublinhar que são raras as educadoras
que possuem o nível superior, conforme previsto nessa legislação
(SUSIN, 2009; PAULO, 2013).
Entretanto, conforme estudos de Paulo (2013), a situação de
parceria público-privada deveria ser modificada; mas o provi-
sório acabou se tornando permanente. Atualmente, constata-se
que não há aumento na ampliação da rede própria e, por conse-
quência, a política de educação infantil vem se expandindo e tem
se fortalecido nesse formato (Terceira Via). Conforme Giddens:

O empreendedorismo civil é qualidade de uma sociedade civil mo-


dernizada. Ele é necessário para que os grupos cívicos produzam
estratégias criativas e enérgicas para ajudar na lida com problemas
sociais. O governo pode oferecer apoio financeiro ou proporcionar
outros recursos a tais iniciativas (2007, p. 26).

Nos estudos de Giddens, teórico da Terceira Via, fica evi-


dente o desejo da administração pública em trazer a participação
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FormaçãodeeducadorasdaeducaçãoinfantilcomunitáriadePortoAlegre(RS):relaçõesentreopúblicoeoprivado

da sociedade civil com objetivo de que esta exerça papel nas po-
líticas que legitimamente se constituíram como dever do Estado.
Vai-se além, ficando entendido que a participação na execução
de políticas públicas por parte da sociedade é característica be-
néfica e proativa sua.
Para Peroni (2012), essa é uma estratégia embasada pelos
fundamentos que justificam a crise do Estado, fazendo com que
impere a necessidade da sociedade civil na participação da exe-
cução das políticas públicas sociais. Isto reforça a ideia de que a
superação da crise do Estado só é possível via parceria público-
-privada; caso contrário, segundo os teóricos do neoliberalismo
e da Terceira Via, a consequência é o enfraquecimento do Estado.
A relação entre o público e o privado pode ser considerada
uma estratégia, que beneficia, a priori, ambos os lados (comuni-
dade e poder público municipal), pois o conveniamento oportu-
niza a oferta de vagas para as crianças das comunidades perifé-
ricas da cidade, além de gerar redução de custos. Também, essa
nova configuração gera renda para os trabalhadores que, em sua
maioria, residem nas proximidades das instituições. Todavia, é
inegável que existe uma disparidade no tocante ao financiamen-
to entre a educação infantil municipal ofertada na rede própria
e na conveniada.

Formação de educadoras da educação infantil


comunitária: entre a existente e a necessária

No que tange à formação dos profissionais que trabalham


na área da educação, a LDBEN/96 define, em seu art. 62,  que
a formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á
em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena,
em universidades e institutos superiores de educação, admitida
como formação mínima para o exercício do magistério na edu-

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cação infantil e nos cinco primeiros anos do ensino fundamental


a oferecida em nível médio na modalidade normal. 
O Conselho Municipal de Educação (CME) de Porto Alegre
regulamentou a Resolução n. 015/2015, que fixa normas para a
educação infantil no Sistema Municipal de Ensino de Porto Ale-
gre. No artigo 11º, especifica a formação admitida para o profes-
sor, estando em consonância com a LDBEN/96.
Entretanto, seu artigo 24° especifica a formação admitida
para o professor e profissionais de apoio respectivamente:

Art. 24 O professor é o responsável pelo processo educativo nas


escolas/instituições e deverá estar presente nos grupos etários, nos
turnos de atendimento.
§1° Será admitida a atuação de profissionais de apoio ao professor,
exigida a formação mínima de ensino médio, acrescido de capacita-
ção específica a ser regulamentada por norma própria.
§2° As ações dos profissionais de apoio devem se dar sempre sob a
orientação e responsabilidade do professor. (Grifo nosso).

A questão que emerge é a de que nos deparamos com a


ausência desses professores, ou seja, em muitos momentos, o
profissional de apoio é aquele que está encarregado da respon-
sabilidade da docência. Os motivos para esse cenário geralmente
percorrem a falta de recursos, por conta da instituição parceira,
para pagamento de profissionais com a qualificação necessária
exigida. Conforme Prunier:

Neste sentido e para as especificidades de Porto Alegre, compreen-


demos que o cenário da Educação Infantil é delicado, não só porque
o regime das profissionais de apoio das IEI parceiras não se dá em
cargo público, e sim no regime de Consolidação das Leis de Traba-
lho (CLT), mas também porque estas profissionais exercem a função
docente, e são contratadas como Técnicas do Desenvolvimento In-
fantil ou Auxiliares do Desenvolvimento Infantil, ou seja, é furtado
até mesmo o reconhecimento perante a sua categoria profissional.
(2018, p.127).

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O curso denominado Capacitação para Profissionais de


Apoio da Educação Infantil é um requisito obrigatório para o
cargo em questão. É oferecido em instituições particulares e
composto por no mínimo 160 horas, organizadas em aulas pre-
senciais, divididas em módulos de conteúdos/temáticas, obser-
vação e prática em instituição de educação infantil.
Em relação à meta 15 do PNE, em vigor desde 2014, todos
os professores e professoras da educação básica deverão possuir
formação específica de nível superior na área em que atuam até
2024. Em 2014, o índice era de apenas 62,4%1 de professores da
educação infantil com curso superior.
Essas contradições nos permitem presenciar um empobre-
cimento quanto à Política da Educação Infantil em Porto Alegre,
pois, de modo disfarçado, faz-se uso da força de trabalho dos
profissionais de apoio à função de professor, sendo que estes pos-
suem a formação em nível médio, resultando no caminho con-
trário ao que está disposto no PNE vigente.
A relação público-privada, atrelada ao trabalho de educa-
dores da educação infantil de Porto Alegre, demarca a década de
1990, quando ocorreu o Termo de Conveniamento, firmado com
instituições de educação sem fins lucrativos (associações comu-
nitárias). Enfatiza-se que o conveniamento foi propulsado pelo
forte protagonismo de Movimentos Populares organizados, que
buscavam a garantia prevista do direito a creches: “Sim, nós pa-
ralisamos Porto Alegre. A gente sabia dos direitos das crianças.
A prefeitura, após o panelaço, nos atendeu.”2 (Relato de educado-
ra da AEPPA).
A educação infantil permanece sendo executada via par-
ceria público-privada, com um número bem ampliado de insti-
tuições sem fins lucrativos. O debate sobre o trabalho docente,
nesse contexto, congelou processualmente. As profissionais de
educação atuantes, conforme Flores (2007), Paulo (2013) e Susin
(2005, 2009), ainda estão aquém do que é previsto nas legisla-

1 Dados disponíveis em <http://www.observatoriodopne.org.br/metas-pne/15-for


macao-professores/indicadores>. Acesso em: 20 mar. 2017.
2 Extraído do Caderno de Registro de Fernanda Paulo (Caderno III de 2017).

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ções. Parece-nos que compreender o trabalho das profissionais


de educação nessas instituições é um desafio urgente.
Essa relação público-privada tem demonstrado, efetiva-
mente, o impacto negativo quanto às grandes discussões sobre
o tema da educação infantil. Em se tratando do trabalho dessas
educadoras, a questão se agrava, porque a maioria não possui sua
carteira assinada como professora (PAULO, 2013).

Movimento Popular e a formação de educadoras das


“creches comunitárias” de Porto Alegre

O movimento de educadoras populares de Porto Alegre ini-


ciou-se nos anos de 1990, e em 2000 foi criada a Associação de
Educadores Populares de Porto Alegre (AEPPA). Uma das ações
desse movimento é a reivindicação da formação de educadoras
das “creches comunitárias” dessa cidade.
As creches comunitárias possuem convênio com a Secreta-
ria Municipal de Educação (SMED), junto a instituições não go-
vernamentais, desde 1993. A SMED repassa recursos financeiros
a essas instituições de educação infantil, assim como as assessora
pedagogicamente e, em contrapartida, as instituições executam
a política educacional referente à primeira etapa da educação bá-
sica. Os convênios permitem o atendimento educacional à infân-
cia, conforme estabelecem as legislações educacionais vigentes.
As instituições de educação infantil conveniadas são ges-
tadas por lideranças comunitárias. São as educadoras populares
que atuam como professoras das crianças da comunidade. Estas
trabalham nas creches comunitárias das periferias de Porto Ale-
gre e, na sua maioria, não possuem a formação inicial prevista na
LDB de 1996. A justificativa da demanda por formação foi devida
a essa exigência, já que a realidade da capital gaúcha estava dis-
tante da determinação legal.

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FormaçãodeeducadorasdaeducaçãoinfantilcomunitáriadePortoAlegre(RS):relaçõesentreopúblicoeoprivado

Por Movimento Popular, na perspectiva da Educação Po-


pular com base freiriana, escolhemos Freire (2005) e Mészáros
(2008) para explicitar a concepção que entendemos ser coeren-
te com uma política de educação de qualidade social. Para am-
bos, a educação libertadora pressupõe transformar radicalmente
a realidade opressora. Com essa acepção, enfatizamos o papel
educativo dos Movimentos Populares no que tange à formação
política, cuja luta é romper com a educação opressora e domi-
nante que divide escola para pobre e escola para elite, por exem-
plo. A relação entre Educação Popular e educação conscientiza-
dora nos Movimentos Populares, como um ato político, busca a
emergência de novas pedagogias. Nesse caso, o movimento de
educadoras populares de Porto Alegre, a AEPPA, pleiteia cur-
sos de graduação na perspectiva da Educação Popular freiriana
(PAULO, 2013).
Duas das realizações concretas da AEPPA se configuram
na experiência da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul
(UERGS) e da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (PUC-RS). Ambas as universidades acolheram a criação
do curso de Pedagogia com ênfase em Educação Popular, des-
tinando-os às trabalhadoras das creches comunitárias de Porto
Alegre. Esses cursos foram promovidos com a parceria entre AE-
PPA, universidades, Ministério da Educação, SMED, Conselho
Municipal de Educação e da Criança e do Adolescente de Porto
Alegre; foi ofertado gratuitamente no caso da universidade pri-
vada, já que a outra é pública estadual.
A AEPPA se organiza por meio de núcleos temáticos, sendo
que um deles é o da Educação infantil. Há, também, o núcleo
geral denominado Formação, o qual tem suas comissões por área
e campo de atuação. No caso aqui discutido, formou-se uma co-
missão de educadoras das creches comunitárias que tinha como
função demandar formação e pensar propostas curriculares dos
cursos. A primeira experiência foi na UERGS, no período da ges-
tão estadual e municipal popular.
A graduação em Pedagogia trouxe a possibilidade de as
universidades construírem parceria entre universidade e Movi-

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mento Popular. A realização dos cursos possibilitou qualificar o


trabalho das educadoras dessas instituições (PAULO, 2010), as-
sim como a AEPPA pôde discutir mais amplamente questões a
respeito da função do educador assistente no lugar do docente,
da precarização do trabalho docente e da necessidade da Educa-
ção Popular na universidade (PAULO, 2013).
Contudo, por conta da inexistência de um Plano de Carrei-
ra para as educadoras das creches comunitárias que valorize a
titulação adquirida no processo formativo, muitas delas, ao con-
cluírem a educação superior, postulam novas oportunidades de
trabalho. Diante dessa realidade, essas instituições de educação
infantil não possuem uma política de permanência de educado-
ras com nível superior, fazendo com que a demanda por forma-
ção se torne infindável.
A AEPPA, por sua vez, tem como bandeira de luta o di-
reito da formação, valorização e reconhecimento de educado-
res(as) populares. Mas, em relação aos direitos do trabalho, cabe
ao sindicato executar ações, acordos e convenções coletivas que
representem a categoria profissional. A AEPPA não tem essa
competência, pois nasce como Movimento Popular que busca
representar a demanda de educadoras de Porto Alegre, sobretu-
do de formação nos pressupostos da Educação Popular, as quais
trabalham nas comunidades periféricas dos diferentes bairros da
cidade.
O sindicato que representa as trabalhadoras das institui-
ções conveniadas, as creches comunitárias, denomina-se Sindi-
cato dos Empregados em Entidades Culturais, Recreativas, de
Assistência Social, de Orientação e Formação Profissional no
Estado do Rio Grande do Sul (SENALBA/RS). Observamos que
esse sindicato não representa a categoria de docentes, no caso da
educação infantil, e sim os seguintes cargos3, ligados à área da
assistência social: Coordenadora de creches comunitárias, Téc-
nico de Desenvolvimento Infantil [qualificado conf. a LDBEN,

3 Conferir em <http://www.senalba-rs.com.br/index.php/conquistas/pisos-salariais-
-e-reajustes>. Acesso em: 20 mar. 2017.

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sendo exigido 1 (um) para cada entidade] e Auxiliar de Desen-


volvimento Infantil (curso de atendente/auxiliar de creche).
O fato de não ser garantido salário de ‘professora’ para
quem tem a formação mínima, conforme a LDBEN, é um proble-
ma estrutural, tendo em vista as legislações e referencial teórico
que defendem e exigem o reconhecimento da educação infantil
como parte da educação básica e não como política da assistência
social.
No caso explicitado anteriormente, no que diz respeito ao
sindicato, as educadoras das creches comunitárias com a forma-
ção mínima exigida na LDBEN (1996) são contratadas com o
cargo de Técnicas de Desenvolvimento Infantil com carga horá-
ria de trabalho, em quase todas as instituições, de 44h semanais.
Para Prunier (2018), isso ocorre devido ao fato de muitas das ins-
tituições de educação infantil parceiras serem associações, origi-
nárias da década de 1990 ou “criadas” na atualidade justamente
para esse enquadramento, estando vinculadas a esse sindicato
representativo devido a sua prevalência, como atividade prepon-
derantemente de assistência social.
Julgamos que, pelo fato de não haver, por parte do municí-
pio, uma política para formação em nível superior, temos uma
precarização da política educacional via processo permanente e
crescente da parceria entre o público e o privado. Sendo assim,
“[...] sustenta-se uma escola pobre para os pobres, não sendo re-
conhecido o trabalho de educadores(as) oriundos(as) das comu-
nidades, portanto precarizando-o.” (PAULO, 2013, p. 222).
Cabe enfatizar que as instituições que executam a política
pública educacional, na compreensão do sindicato, são concebi-
das como entidades de assistência social. Eis aqui um limite no
que concerne à luta da AEPPA, tendo em vista que a formação
não possibilitou a valorização do trabalho realizado nas comuni-
dades, tampouco conseguiu fortalecer a luta por uma educação
de qualidade para todos.
Então, em razão da desvalorização da política educacional,
da fragilidade da parceria público-privada no que diz respeito
ao direito à educação de qualidade social em todas as dimensões

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educativas, ressaltamos a necessidade da ampliação dos espaços


de formação política para educadores e educadoras das comuni-
dades.

Considerações finais

A política municipal da educação infantil em Porto Alegre,


ao se expandir via parceria público-privada, não ampliou os re-
cursos e condições materiais conforme as exigências legais. O fi-
nanciamento disponível é precário em relação às escolas públicas
municipais, assim como a questão salarial dessas educadoras e
suas condições de trabalho. Consequentemente, a precarização
do trabalho das educadoras é visível em vários aspectos, dentre
eles a questão da formação. Em vista disso, a execução dessa po-
lítica educacional por instituições privadas sem fins lucrativos
consubstancia-se numa lógica de escola pobre para pobre, não
garantindo os direitos já conquistados em sua plenitude.
Conforme Paulo (2013), há mais de duas mil educadoras
sem a formação exigida na legislação nacional, vinculadas ao
movimento das educadoras leigas da educação infantil. Também,
verificou-se que a relação público-privada intensifica a correla-
ção entre precarização do trabalho e desvalorização da educação
pública no sentido colocado por Saviani (2013) e Peroni (2012).
Refletimos, a partir do atual PNE (2014-2024), que a meta
15, concernente à política de formação dos profissionais da edu-
cação básica, ainda está distante da realidade das “creches co-
munitárias” de Porto Alegre. Esse é um limite que identificamos
como pauta imprescindível a ser tratada nesse contexto, o qual
é constituído na relação entre estrutura nacional e conjuntura
local. A literatura e documentos utilizados ratificam que há uma
contradição explícita na política de formação das educadoras
das creches comunitárias, particularmente no tocante ao des-
cumprimento das legislações educacionais de âmbito nacional,

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FormaçãodeeducadorasdaeducaçãoinfantilcomunitáriadePortoAlegre(RS):relaçõesentreopúblicoeoprivado

às divergências entre as normas para oferta da educação infantil


no Sistema Municipal de Ensino de Porto Alegre de 2001 – admi-
te-se que pessoas com ensino fundamental e curso de capacita-
ção (educador assistente) possam trabalhar como educadoras da
educação infantil, mesmo sem possuir a habilitação exigida pela
LDBEN de 1996. Atualmente, exige-se o ensino médio com cur-
so de capacitação denominado “profissionais de apoio” e, mesmo
quando algumas educadoras possuem o curso normal de nível
médio, estas não são contratadas como docentes, e sim como
auxiliares ou técnicas de desenvolvimento infantil. A relação
público-privada se materializa em situações de precarização do
trabalho, sendo que uma das suas dimensões refere-se à desvalo-
rização da formação dos educadores.

Referências

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n. 8.069, de


13 de julho de 1990. Brasília, 1990.
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei
n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Brasília, 1996.
BRASIL. Plano Nacional de Educação. Lei 13005, 25 de junho
de 2014. Brasília, 2014.
FLORES, Maria Luiza Rodrigues. Movimento e Complexidade
na garantia do direito à Educação Infantil: um estudo sobre
políticas públicas em Porto Alegre. 2007. 289 f. Tese (Doutorado
em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2007.
FREIRE, Paulo; NOGUEIRA, Adriano. Que fazer – Teoria e
Prática em Educação Popular. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes,
2005.

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FormaçãodeeducadorasdaeducaçãoinfantilcomunitáriadePortoAlegre(RS):relaçõesentreopúblicoeoprivado

MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. São


Paulo: Boitempo, 2008.
PAULO, F. S. A Formação do(as) educadores(as) populares
a partir da práxis: um estudo de caso da AEPPA. 2013. 278 f.
Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013.
PAULO, F. S. Formação dos/as educadores/as populares de
Porto Alegre formados/as em Pedagogia: identidade, trajetória
e desafios. 2010. 79f. Trabalho de Conclusão de Curso (Especia-
lização em Educação Popular) – Instituto Superior de Educa-
ção Ivoti & Instituto de Desenvolvimento Brava Gente, Porto
Alegre, 2010.
PERONI, V. M. V. A gestão democrática da educação em
tempos de parceria entre o público e o privado. Pro-Posições,
Campinas, v. 23, n. 2 (68), p. 19-31, maio/ago. 2012.
PERONI, V. M. V. Mudanças na configuração do Estado e sua
influência na política educacional. In: PERONI, V. M. V.; BAZ-
ZO, V. L.; PEGORARO, L. (Orgs.). Dilemas da educação brasi-
leira em tempos de globalização neoliberal: entre o público e o
privado. Porto Alegre: UFRGS, 2006.
PERONI, V. M. V. Políticas públicas e gestão da educação em
tempos de redefinição do papel do Estado. Texto apresentado
na Anped Sul, 2008 (CD). Disponível em: <http://www.ufrgs.br/
faced/peroni>. Acesso em: 13 fev. 2017.
PORTO ALEGRE. Fixa normas para oferta da Educação infan-
til no Sistema Municipal de Ensino de Porto Alegre. Resolução
n. 003 de 25 de janeiro. Disponível em: <http://lproweb.pro-
cempa.com.br/PMPOA/prefpoa/smed/usu_doc/res00301.pdf>.
Acesso em: 4 jan. 2017.
PORTO ALEGRE. Fixa normas para oferta da Educação infan-
til no Sistema Municipal de Ensino de Porto Alegre. Resolução

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FormaçãodeeducadorasdaeducaçãoinfantilcomunitáriadePortoAlegre(RS):relaçõesentreopúblicoeoprivado

n. 015 de 18 de dezembro. Disponível em: <http://lproweb.


procempa.com.br/pmpa/prefpoa/smed/usu_doc/refantil.pdf>.
Acesso em: 5 jan. 2017.
PRUNIER, Simone Souza. A parceria público-privada na edu-
cação infantil em Porto Alegre: suas implicações para o traba-
lho docente. 2018. 192 f. Dissertação (Mestrado em Educação)
– Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, Porto Alegre, 2018.
SAVIANI, D. Vicissitudes e perspectivas do direito à educação
no Brasil: abordagem histórica e situação atual. Educ. Soc.,
Campinas, v. 34, n. 124, p. 743-760, jul.-set. 2013.
SOUZA, H. J. Como se faz análise de conjuntura. Petrópolis:
Vozes, 1984.
SUSIN, M. O. K. A Educação Infantil em Porto Alegre: um
estudo das creches comunitárias. 2005. 248 p. Dissertação
(Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, Porto Alegre, 2005.
SUSIN, M. O. K. A Qualidade na Educação Infantil Comuni-
tária de Porto Alegre: estudo de caso em quatro creches conve-
niadas. 2009. 306 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universi-
dade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.

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Relatos de experiências na Educação Popular: descobrindo os diferentes conceitos

RELATOS DE EXPERIÊNCIAS NA EDUCAÇÃO


POPULAR: DESCOBRINDO OS
DIFERENTES CONCEITOS

Elenita Lopes da Silva1


elenitadacosta@yahoo.com.br

Jorge Pereira de Lima2


pereiralimaobrasereformas@yahoo.com.br

Minhas experiências na Educação Popular iniciaram mui-


to cedo. Hoje, com 46 anos, ainda lembro que com 19 anos tive
minhas primeiras experiências nessa área. Iniciei minha vida
profissional como vendedora de uma loja de departamentos,
multinacional, com recursos financeiros suficientes para fazer
campanhas de solidariedade, assim como projetos de formação
continuada na área da educação.
Esses projetos eram ofertados para instituições de educação
de baixa renda na época conhecidas como “creches comunitá-
rias” – hoje, escolas de educação infantil conveniadas. Na épo-
ca, eu, como vendedora, me colocava à disposição do projeto.
O projeto se chamava Instituto C&A, existente ainda hoje, com
maiores ofertas de projetos na área da sustentabilidade. Do ano
de 1991 até 2000 (durante nove anos), visitei com frequência ins-

1 Pedagoga e coordenadora/ supervisora pedagógica de Instituição Comunitária de


Educação Infantil e SCFV.
2 Liderança comunitária e dirigente de uma instituição comunitária.

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Relatos de experiências na Educação Popular: descobrindo os diferentes conceitos

tituições ligadas ao Fórum das Entidades. Essas visitas me capa-


citaram em termos de experiências com as comunidades e suas
demandas.
Lembro-me que, na época em que me desliguei dessa em-
presa, meu maior sentimento era deixar esse projeto – somen-
te os funcionários poderiam estar inseridos. Minha atuação no
projeto era variada: além das visitas às instituições, também le-
vamos muita alegria e diversão para as crianças. Lembro-me que
meu maior desejo era dar continuidade a esse trabalho. Um dia
comentei com a coordenadora local do projeto, minha chefe na
época, que eu sonhava ter ou fazer parte de uma instituição para
também ofertar esperança para as crianças e para as famílias,
como fazia aquele projeto. Ela, após meu comentário, enfatizou
que esse projeto não obtinha recursos financeiros algum e que
ela particularmente não compartilhava comigo esse desejo, ou
seja, ela só participava porque era uma integrante da empresa e
não da causa.
Por coincidência ou não, após alguns anos, tive a oportuni-
dade, mesmo sem formação na área, de ser aceita em uma insti-
tuição que oferecia atendimento na área da educação infantil a
crianças de zero a seis anos (as antigas creches) e atendimento a
crianças e adolescentes de sete a quinze anos; na época conheci-
do como Serviço de Apoio Sócio Educativo (SASE), hoje Serviço
de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV).
Minha experiência foi no SASE, pelo período de quatro
anos. Esse período foi muito importante em minha vida, pois
pude relembrar minhas experiências lá do Instituto C&A, das
quais eu tinha tanto prazer em participar.
Como educadora popular, acredito ter desempenhado o
melhor de mim nessa instituição. Eu tinha, com meus alunos, o
que chamamos hoje de vínculos. Eu sabia tudo deles, participa-
va de tudo na vida deles. Chorava com eles quando choravam e
sorria com eles quando sorriam. Até hoje, ainda, encontro-os na
rua e, já meninos e meninas de mais de 20 anos, gritam pelo meu
nome de muito longe... “tia Lenita”.

195 de 220
Relatos de experiências na Educação Popular: descobrindo os diferentes conceitos

Essa experiência, nessa instituição, me fez crescer em mui-


tas áreas da minha vida, principalmente em termos de formação.
Foi ali que me reconheci verdadeiramente como uma educado-
ra popular. Comecei a sentir um enorme desejo de poder ajudar
aquelas crianças e adolescentes, também suas famílias nas ques-
tões de conhecimento. Observava que não estava sendo o sufi-
ciente apenas minhas experiências de vida nessa área ou o amor
que eu tinha por essa causa. Eu precisava de mais. Eu precisava
me apropriar de leis e de direitos das crianças em atendimento.
Eu precisava de conhecimento e de formação. Enfim, precisava
me desenvolver como uma profissional capacitada na área. Pre-
cisava trazer para as crianças e os adolescentes, assim como para
as famílias, conhecimento. Pois é a partir do conhecimento que
nasce a esperança e uma nova perspectiva de vida, principalmen-
te para o público atendido nesses programas sociais.
Nessa mesma instituição, tive o privilégio de conhecer a As-
sociação de Educadores Popular de Porto Alegre (AEPPA). Não
tive nenhuma dúvida de que essa associação existia, e existe, exa-
tamente para sanar a lacuna que existe entre o amor à causa e a
qualificação para a causa. Ou seja, são dois aspectos indissociá-
veis que promovem ao atendimento da Educação Popular maior
qualidade. Lá descobri que Educação Popular não era só traba-
lhar com os pobres ou com as instituições mais empobrecidas.
Conforme Carvalho:

Entre o dito e o não dito, a conclusão é óbvia: a formação de profes-


sores será Sempre importante para qualquer mudança educacional,
sobre tudo para a melhoria da qualidade de ensino. É pensar a quali-
dade da educação no contexto da formação de professores, significa
colocar se a disposição da construção de um projeto de educação
cidadã que propicia condições para formação de sujeitos históricos,
capazes de, conscientemente, produzir e transformar sua existência.
(2007, p. 06).

Hoje, formada em Pedagogia, com o conhecimento que eu


tanto almejava em ter, continuo na área da Educação Popular.
Nesse processo de formação, tive o privilégio de conhecer mui-
196 de 220
Relatos de experiências na Educação Popular: descobrindo os diferentes conceitos

tas pessoas militantes na área. Dentre tantas pessoas que muito


admiro, que não caberiam em apenas uma folha, estão Fernanda
Paulo e Maria Edi Coronel, assim como meu atual marido, Jorge
Pereira.

Mas o que é a AEPPA...

Na Carta de Princípios (2013, n.p), temos:

A AEPPA, é um espaço de formação em Educação Popular que pro-


move encontros mensais com o objetivo de lutar pelo ingresso de
educadores(as) no nível superior. Educadores (as) que já trabalham
na área da educação e da assistência social. O movimento das educa-
doras e educadores (AEPPA e MEP) buscam cursos que contemplem
no seu currículo e metodologias a Educação Popular nos seus dife-
rentes espaços educativos. Educação Popular não é trabalho volun-
tário. É militância.

Ainda continuo na AEPPA porque é um dos lugares em que


podemos estudar e lutar. Após formada em Pedagogia pelo IPA,
através da AEPPA, via parceria entre universidade e Movimentos
Sociais, minha visão se ampliou sobre o que é educação. Aprendi
no IPA que não podemos querer uma educação pobre para pobre.
Isto fazia sentido para mim, ainda mais no aspecto de demandas
de vagas nas escolas de educação infantil, assim como no SCFV,
em função de como se dava (e se dá) essa oferta de vagas.
Juntamente com meu marido, também militante na Edu-
cação Popular, inauguramos uma escola de educação infantil no
bairro Belém Velho, hoje com cinco anos de existência e monito-
rada pelo Setor de Regularização dos Estabelecimentos de Edu-
cação Infantil (SEREEI).
Com minha visão cada vez mais ampla nessa área das po-
líticas educacionais, consigo me deslocar de um lado para outro
entre ser gestora de uma escola, supervisora e coordenadora pe-

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Relatos de experiências na Educação Popular: descobrindo os diferentes conceitos

dagógica de outra. Isso, graças à AEPPA, que oportunizou mi-


nha formação, trazendo-me, além de conhecimento, cursos, se-
minários, grupos de estudos sobre os temas do nosso cotidiano.
Hoje, sinto que o mesmo desejo por conhecimento e for-
mação que eu tinha, e tenho, existe e prevalece para muitos(as)
educadores populares, educadores da educação infantil, educa-
dores sociais e dirigentes de instituições de ensino, como é o caso
de meu marido, Jorge Pereira. Quando falo em conhecimento e
experiência na área da educação formal (inclusive a escola de
educação infantil e o SCFV), não consigo me lembrar de outra
pessoa que não seja o Jorge, que luta para qualificar o atendimen-
to das crianças. Quando falamos em militância pela causa, amor
à causa, lembro-me de suas experiências, que aqui vou contar.
Ele iniciou em 2003, hoje completando quinze anos nessa
causa. Sempre esteve preocupado com as crianças que não esta-
vam na escola, cujos pais e mães trabalhavam fora, ou crianças
que ficavam na rua porque suas famílias encontravam-se fragili-
zadas ou tão empobrecidas que as crianças começavam a traba-
lhar ou tornavam-se pedintes para comer.
Iniciou, naquela época, o atendimento a crianças em situa-
ção de vulnerabilidade social. Tudo era realizado na garagem de
sua casa. As educadoras da época eram as próprias mães, que,
muitas vezes, se revezavam para o atendimento às crianças. Fal-
tavam alimentos e as próprias famílias traziam o que podiam
para contribuir com o atendimento, já que o trabalho não conta-
va com dinheiro público e nem as famílias contribuíam financei-
ramente porque viviam em estado de pobreza absoluta.
O desejo dele, do Jorge, sempre foi muito grande. Mas o seu
sonho, para muitos, parecia impossível. Não para ele! Ora, seu
sonho era, mesmo sem muito estudo, um sonho de luta. Com
amor à causa, contagiava com suas ideias de melhorar aquele
atendimento que, até então, era em sua garagem através das mu-
lheres mães-guerreiras que se tornavam educadoras sem forma-
ção.
O tempo foi passando e a demanda por vagas só aumentava.
Isto preocupava Jorge e os envolvidos, pois o espaço da garagem

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Relatos de experiências na Educação Popular: descobrindo os diferentes conceitos

em que atendia inicialmente seis crianças já estava com vinte. E


o atendimento, que até então era feito pelas próprias mães, já não
estava mais funcionando, pois elas precisavam ir em busca de
sustento para suas casas – a maioria delas era responsável, sozi-
nha, por seus filhos.
Aqui começa o desfecho de quem são as educadoras que
fundaram o movimento de Educação Popular que depois se tor-
nou associação para lutar por formação. Todas, a maioria, mu-
lheres da periferia, mães, pobres e com alguma trajetória de luta
no bairro.
Voltando à experiência do Jorge, após a ampliação de crian-
ças e a modificação do perfil de educadores, iniciou-se um traba-
lho com um grupo de educadoras voluntárias, as quais tinham
um perfil semelhante ao anterior – algumas com seus filhos ali,
outras não. Mas, para não tornar o trabalho voluntário, foi com-
binado com as famílias um valor mensal para a manutenção do
sustento das crianças e uma ajuda às mães-educadoras (PAULO,
2013). Com esse valor, comprava-se comida para o mês e o res-
tante, que sobrava, mesmo muito pouco, era dividido entre todas
as pessoas que trabalhavam ali, chegando a valores até de 20,00
(vinte reais) para cada um mensalmente. Muitas vezes, nem
esse valor sobrava. Mas havia um espírito de solidariedade das
educadoras/atendentes: muitas, as que podiam, traziam de casa
alimentos para contribuir com o cuidado, que vinha se transfor-
mando em uma escola.
Foi então que, com muita correria e pedidos por parceria,
da garagem nasceu uma escola. Comprou-se, com muito suor
e muitas prestações, uma casa de madeira. O espaço era maior,
mas as dificuldades ainda eram as mesmas; uma delas, a de que
as educadoras não tinham formação e não tínhamos recursos
para manutenção do espaço, tudo muito precário.
Das vinte crianças da garagem, já se somavam na nova casa
velha de madeira cinquenta crianças. As preocupações do Jorge
já eram muitas. Agora, sua prioridade era a segurança daquelas
crianças. Como disse antes, a casa de madeira era velha e estava
em situação de risco. Foi pensando alto que um dia disse: “Ainda

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Relatos de experiências na Educação Popular: descobrindo os diferentes conceitos

vai ter no lugar dessa casa de madeira um prédio de três anda-


res e todo envidraçado, para que a comunidade, assim como as
famílias das crianças, possam estar visualizando o nosso aten-
dimento, que também será ainda melhor.” Esse pensamento em
voz alta, para alguns, virou motivo de chacotas. Mas isso não o
desmotivou; muito pelo contrário, incentivou-o ainda mais. Às
vezes ficava triste, porque sua visão de crescimento, infelizmente,
não conseguiu contagiar.
Procurando alternativas para dar início ao seu sonho, con-
seguiu parceria com a prefeitura para a construção desse prédio,
que, para muitos, ainda parecia impossível. Com ajuda de muitos
parceiros, além da prefeitura, seu sonho foi realizado. Nasceu um
prédio de três andares, não envidraçado por motivo de seguran-
ça das crianças, mas todo aberto com colunas, com a mesma visi-
bilidade que teria sendo envidraçado. O prédio de três andares já
não comportava mais somente cinquenta crianças; agora, eram
cem. Foi então que começou a chamar a atenção do município.
Com muitos pedidos por convênio, enfim o município
(SMED-POA) resolveu visitar a escola. Mesmo depois do prédio
construído, ainda levou muito tempo para ser conveniada pela
SMED. E, nesse meio tempo, o lindo prédio de três andares aten-
dia as crianças mas ainda com dificuldades de recursos para se
manter. Nesse período, todo o recurso financeiro era oriundo das
famílias, das pequenas contribuições que faziam mensalmente.
O atendimento ainda era feito com educadoras/atendentes
sem formação e sem salário. Passado algum tempo, a SMED cha-
mou a escola para conveniamento, o que traria para a escola uma
melhor perspectiva de recursos financeiros. Então, a Escola de
Educação Infantil Mundo da Imaginação já era reconhecida pela
SMED (Secretaria Municipal de Educação). Iniciaram as adequa-
ções necessárias; dentre elas, a mobília dos espaços da escola, de
acordo com as faixas etárias e suas necessidades de garantia de
qualidade: cozinha, banheiros, matérias pedagógicos e de recrea-
ção, etc. Dentre as exigências do convênio, a formação das edu-
cadoras; todos tiveram oportunidade e tempo para se adequarem
às exigências da SMED. Algumas educadoras dessa época ainda

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Relatos de experiências na Educação Popular: descobrindo os diferentes conceitos

seguem na instituição, já formadas e militantes da causa. Hoje,


há duas com magistério, e as demais educadoras são assistentes.
A exigência da SMED era e continua sendo uma professo-
ra com formação de magistério ou superior no mínimo quatro
horas diárias; as outras horas podem ser com educadora assis-
tente. Pelo correto, teria de haver, no mínimo, três professoras:
para contemplar as quatro horas diárias. Para não demitir as
educadoras da instituição, sugeriu-se oportunizar tempo hábil
para estudos. Hoje, voltamos com o quadro de educadoras sem
formação que exige a Lei Nacional de Educação. Temos educado-
ras militantes que tentam fazer o magistério mas não conseguem
concluí-lo. Sobre esse quadro, em sua dissertação, Paulo (2013)
pesquisa os desdobramentos das parcerias entre poder público
e instituição comunitária, e nos diz que esse modo de oferecer
educação é precário, desumanizador e descompromete o Esta-
do com a execução das políticas sociais. A autora diz isso pre-
cariza na forma e no conteúdo o fazer educação, chamando-se
educação de pobre de Educação Popular. Segue explicando que
desumaniza porque tantos educadores, como militantes da causa
popular, e as famílias atendidas, são tratados como coisas desde
o modo de oferecer a educação com pouco recurso até a questão
de educadores atuarem na educação infantil sem formação.
Hoje, a escola de educação infantil segue em atendimento
com cem crianças no prédio de três andares. Mas desejamos que
nossas crianças sejam atendidas com mais qualidade. Para isso,
precisa-se de recurso, de recurso humano qualificado e de for-
mação diferenciada. É válido lembrar que a mantenedora dessa
escola, que deu início a tudo, se chama ONG USPS (Movimento
de União, Solidariedade Paz e Justiça Social), fundada no dia 10
de maio de 2003, na Avenida Moab Caldas, n. 33, Morro Santa
Tereza, Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Atualmente, atende em
outro prédio, a menos de cem metros, cem crianças de 6 a 15
anos em situação de vulnerabilidade social (SCFV) conveniadas
pela Fundação de Assistência Social (FASC).
É válido lembrar que o sonho maior da ONG USPS, repre-
sentado pelo Jorge, é que a criança inicie na educação infantil,

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Relatos de experiências na Educação Popular: descobrindo os diferentes conceitos

passe para o SCFV e, consequentemente, dê continuidade ao seu


processo de desenvolvimento e perspectiva de futuro dentro da
própria instituição, fazendo cursos profissionalizantes. Dese-
jamos que se qualifiquem para serem selecionados no trabalho
através de um banco de empregos criado na própria comunidade.
Hoje, com toda essa responsabilidade, ainda como constru-
tor na área da construção civil, Jorge continua como dirigente da
ONG USPS, e agora com perspectiva de formação na área social.
Reconhece que, como atuante e militante na área da educação,
seja ela formal ou informal, o critério de qualidade passa pela ne-
cessidade da formação, e o conhecimento é uma forte ferramenta
para continuar nessa luta pelos direitos dos menos favorecidos,
porque, no sistema capitalista, pobre tem que ser pobre. Nós,
contrários à educação capitalista que gera pobreza e desigualda-
de, trabalhamos para ver as nossas crianças e adolescentes da vila
um turno na escola e outro no SCFV, porque assim temos a opor-
tunidade de trabalhar com eles uma educação solidária, contra
os valores do capitalismo, que é egoísta e interesseiro.

Descobrindo os diferentes conceitos na militância...

Nos cursos de formação da AEPPA, em especial no grupo


de estudos sobre Paulo Freire e a Educação Popular, e no curso
do IFRS-Restinga sobre Educação Popular, pudemos entender
que existem muitos conceitos acerca dessa educação. Um que é
assistencialista e tem muito a ver com o que a gente fez; outro é
do acesso do povo às políticas sociais – a gente continua fazendo;
outro, ainda, é um desafio: a Educação Popular libertadora de
Paulo Freire. Para Paulo e Prunier (2017, p. 1341),

Entendemos que Freire pode contribuir teoricamente com o debate a


respeito da emergência de uma política educacional em prol da cons-
trução de um projeto de educação e sociedade comprometido com a
emancipação social e humana. Segundo Freire, “o sistema capitalista

202 de 220
Relatos de experiências na Educação Popular: descobrindo os diferentes conceitos

alcança no neoliberalismo globalizante o máximo de eficácia de sua


malvadeza intrínseca” (1996, p. 128) e essa realidade repercute no
contexto universitário, dificultando a difusão de projetos educativos
de cunho libertador.

Queremos chegar aí, por isso precisamos continuar estu-


dando e pesquisando o que fazemos, para que não sejamos ingê-
nuos ou para que não queiramos ser o Estado. Por isso, encerra-
mos com Freire a nos alertar:

Pensar certo, em termos críticos, é uma exigência que os momen-


tos do ciclo gnosiológico vão pondo à curiosidade que, tornando-se
mais e mais metodicamente rigorosa, transita da ingenuidade para
o que venho chamando “curiosidade epistemológica”. (2001, p. 16).

Que a luta na Educação Popular nos ajude a garantir uma


educação com justiça social para todos, sobretudo para quem
mora na periferia. Por isso, a formação de educadores precisa ser
diferente. O que fazemos e onde fazemos, como nos diz Paulo
(2013), requer uma Pedagogia da Educação Popular. Queremos
estudar na universidade federal, nos institutos federais e na uni-
versidade estadual. Que esse querer seja mais do que um sonho
ou o mesmo sonho de Jorge, meu marido, e de Freire, que sempre
teve esperança.

Referências

Associação de Educadores Populares de Porto Alegre: AEP-


PA [Carta] 10 fev.. 2013, Porto Alegre: RS [para] militantes da
Educação popular. 3f. Trata dos princípios do movimento de
educação popular.

203 de 220
Relatos de experiências na Educação Popular: descobrindo os diferentes conceitos

CARVALHO, Ademar de Lima. Os caminhos perversos da


educação: a luta pela apropriação do conhecimento no cotidia-
no da sala de aula. Cuiabá: EdUFMT, 2105.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e
Terra, 2001.
PAULO, Fernanda dos Santos. A Formação do(as)
educadores(as) populares a partir da Práxis: Um estudo de
caso da AEPPA. 2013. 278 f. Dissertação (Mestrado em Edu-
cação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 2013.
PAULO, Fernanda dos Santos; PRUNIER. Simone Souza. Paulo
Freire e as relações entre política e educação superior: indicativos
de uma universidade popular. p.1341- 1352. In: Anais [recurso
eletrônico] / XXVIII Simpósio Brasileiro de Política e Admi-
nistração da Educação: Estado, Políticas e gestão da educação:
Tensões e agendas em (des)construção. João Ferreira de Oliveira
(Org.). 26 a 28 de abril de 2017, João Pessoa, PB. (Série Cadernos,
v. ANPAE).

204 de 220
Conhecendo uma experiência de pesquisa participante e educação popular

CONHECENDO UMA EXPERIÊNCIA DE PESQUISA


PARTICIPANTE E EDUCAÇÃO POPULAR

Fernanda dos Santos Paulo1


fernandaeja@yahoo.com.br

Carlos Rodrigues Brandão2

Palavras iniciais

Tomemos como base o livro Pedagogia do oprimido (FREI-


RE, 1987), o qual registra a pesquisa como prática de participa-
ção e de engajamento dos sujeitos no processo de investigação do
seu universo vocabular, ou seja, do seu mundo da vida. Nesse li-
vro, localizamos o compromisso de uma metodologia participa-
tiva que possibilita não só o anúncio e a denúncia das opressões,
mas de práticas que pretendem a transformação social. Então,
podemos reiterar que um dos princípios da Educação Popular
freiriana é o da ação politizadora.
As propostas de pesquisas participantes defendem uma re-
lação dialógica entre os sujeitos na mediação: diálogo-organiza-
ção-engajamento e luta. Nesse sentido, lembremos as experiên-

1 Educadora popular. Doutora em Educação pela Unisinos, tendo como orientador


Danilo Streck e co-orientador Carlos Rodrigues Brandão. Militante do Movimento
de Educação Popular e professora do PPGed-Unoesc.
2 Educador popular e antropólogo. Professor doutor da Unicamp. Militante da/na
Rosa dos Ventos, espaço coletivo de formação e convivência comunitária.

205 de 220
Conhecendo uma experiência de pesquisa participante e educação popular

cias dos Movimentos Sociais Populares que nos ensinam que o


sinônimo concreto da Pedagogia do Oprimido é a Pedagogia das
Marchas, também conhecida por Pedagogia da Militância (PAU-
LO, 2018).
Na Pesquisa Participante, o princípio da ação politizado-
ra, por meio do processo de investigação, não corresponde aos
métodos tradicionais de pesquisas científicas, porque esta é uma
alternativa no campo da Educação Popular com compromisso
social, político e pedagógico com a comunidade em que traba-
lhamos na construção de um saber partilhado e significativo.
O ponto de origem da relação entre Pesquisa Participante e
Educação Popular situa-se em uma proposta de pesquisa da rea-
lidade social numa perspectiva da transformação social (BRAN-
DÃO, 1999). Transformação que se realiza em um processo dia-
lógico na práxis pedagógica e política de resistência e luta contra
o projeto dominante de educação e de sociedade. Quer dizer,

A palavra é entendida, aqui, como palavra e ação; não é o termo que


assinala arbitrariamente um pensamento que, por sua vez, discorre
separado da existência. É significação produzida pelas “práxis”, pa-
lavra cuja discursividade flui da historicidade – palavra viva e dinâ-
mica, não categoria inerte, exâmine. Palavra que diz e transforma o
mundo. (FREIRE, 1987, p. 11).

Essa é uma das identificações das aproximações entre a Pes-


quisa Participante inspirada na fundamentação da Educação Po-
pular freiriana. Dizer a palavra comprometida é o outro princí-
pio da Pesquisa Participante, o qual se coloca como oposição da
realidade domesticadora, do blábláblá e do ativismo acrítico, ou
de uma falsa generosidade que separa a teoria da prática e consi-
dera a palavra como instrumental e não como empoderamento
(FREIRE, 1987).

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Conhecendo uma experiência de pesquisa participante e educação popular

2. Educação Popular e a Pesquisa Participante:


experiências dos movimentos sociais populares

“[...] conhecer o mundo de mãos dadas com a sua transformação.”


(BRANDÃO, 2006, p. 9).

Os Movimentos Sociais Populares são os maiores promo-


tores da produção de pesquisas participantes inspiradas na Edu-
cação Popular. A Educação Popular crítica se caracteriza por
essa relação participar-partilhar e aprender-transformando, na
vinculação entre teoria e prática (FREIRE; NOGUEIRA, 1983;
BRANDÃO, 2006; PAULO, 2013).
Percebemos, nas nossas experiências, que a Educação Po-
pular e a Pesquisa Participante são, originalmente, uma alterna-
tiva metodológica dos Movimentos Sociais Populares. Constata-
mos que Paulo Freire é a fundamentação principal da Educação
Popular nos Movimentos Sociais Populares que assumem o com-
promisso social, político e pedagógico na construção de um saber
partilhado e significativo na transformação social da realidade.
Predominantemente, nesses espaços políticos, a Pesquisa Parti-
cipante investiga o universo cultural e social das comunidades,
cujo objetivo é promover espaços de participação crítica e refle-
xiva, via formação político-pedagógica, com vistas à transforma-
ção social. Por isso, as aproximações entre a Educação Popular
freiriana e a Pesquisa Participante dão-se, sobretudo, a partir da:
1. compreensão de que os Movimentos Sociais Populares são
espaços de formação, portanto educativos;
2. percepção da realidade local como uma totalidade que não
está separada de um projeto de sociedade;
3. participação que requer ações coletivas que integrem anún-
cio e denúncia em suas diferentes dimensões: social, políti-
ca, pedagógica e ética;
4. concepção de que a dimensão histórica compõe parte da
análise da investigação da realidade social;

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Conhecendo uma experiência de pesquisa participante e educação popular

Com tais características, reafirmamos que princípios da


Educação Popular freiriana e da Pesquisa Participante são a ação
politizadora e a palavra comprometida, imbricados pelas dimen-
sões citadas e pelas lutas e resistências dos Movimentos Sociais
Populares.

2.1. O Movimento de Educação Popular e a relação com a


formação de educadores populares

O Movimento de Educação Popular e a Associação de


Educadores Populares de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul
(AEPPA-RS), são espaços coletivos que desenvolvem formação
político-pedagógica na militância. A formação destinada a edu-
cadores que trabalham em contextos escolares e não escolares
visa construir uma Pedagogia da Militância, emergida do con-
texto do trabalho de educadores, cujo objetivo é ocupar a uni-
versidade, buscando formação profissional em diálogo com a
Educação Popular. Esses movimentos surgiram, na capital gaú-
cha, nos finais dos anos de 1990, quando foram promulgados o
Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) e a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional de 1996. Esses dois arcabouços
jurídicos sustentaram a luta de mulheres que atuavam em espa-
ços educativos, cuidando de crianças (creches comunitárias) e de
adolescentes (extraclasse).
Atualmente, em Porto Alegre, há mais de 215 instituições
de educação infantil parcerias do município e dezenas de insti-
tuições que oferecem educação em contexto não escolar através
do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos. É a es-
sas instituições que as educadoras da AEPPA estão vinculadas,
e a maioria não possui formação profissional, mas sim curso de
magistério ou Pedagogia.
O Movimento Popular, em seus espaços de formação po-
lítico-pedagógica, discute temas demandados pelos educadores

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Conhecendo uma experiência de pesquisa participante e educação popular

participantes do Grupo de Estudos e Pesquisas Paulo Freire e a


Educação Popular da AEPPA, tais como: 1) Estado e Educação
Popular; 2) trabalho, reforma do Estado e as políticas sociais; 3)
Educação Popular e suas múltiplas concepções; 3) educadores
populares, militância e Movimento Popular; 4) educação não es-
colar, educadores sociais, formação e Educação Popular.
Esses temas são desdobrados em temáticas específicas, tra-
balhados na formação geral (bimestral) e nos núcleos temáticos
separados por espaço de atuação (educação escolar e educação
não escolar). Desses encontros de estudos, é gerada uma série de
agendas, entre elas ações de mobilização do Grupo de Trabalho
(GT) Educação Popular e universidade. Este grupo faz contato
com as universidades públicas, apresenta a demanda por forma-
ção específica e reivindica espaços de diálogos sobre suas pautas.
Também se articula às agendas estatais, buscando compreender,
discutir e combater o trabalho precarizado a partir das parcerias
público-privadas (instituições conveniadas – parceiras do poder
público).
O conjunto de ações desenvolvidas bimestralmente é rela-
tado em uma reunião geral, aberta a quem deseja participar do
debate sobre Educação Popular e seus temas emergentes.

Figura 1 - Movimento Popular AEPPA

A foto anterior explicita o movimento de educadoras exi-


gindo do poder público condições pedagógicas para a realização
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Conhecendo uma experiência de pesquisa participante e educação popular

de suas atividades laborais, formação, reconhecimento e valori-


zação como trabalhadoras da educação. Além disto, reivindicam
do poder público o direito a formação profissional.
Conforme Paulo (2010, 2013), esses movimentos de resistên-
cia emergiram das lutas populares e, neste caso, uma das grandes
reivindicações foi a formação profissional em nível médio (curso
normal) e em nível superior (pedagogia), ambas na perspectiva
da Educação Popular. Primeiro, o movimento conquistou o cur-
so normal com currículo construído junto com o poder públi-
co municipal. Essa conquista foi resultado de muitas reuniões,
estudos, pesquisas e mobilizações. A Pesquisa Participante foi
a metodologia utilizada sob inspiração da Educação Popular e
de Paulo Freire. Carlos Rodrigues Brandão foi o primeiro pales-
trante da Associação de Educadores Populares de Porto Alegre
(AEPPA), como podemos ver na foto a seguir:

Figura 2 - AEPPA nos jornais

O movimento das educadoras populares circulou todos os


bairros de Porto Alegre e, com ele, o tema da Educação Popu-
lar. A Pesquisa Participante colaborou para a organização de
cursos com perspectiva na Educação Popular a partir de temas

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Conhecendo uma experiência de pesquisa participante e educação popular

advindos do mundo do trabalho e da militância em movimen-


tos comunitários. Foram conquistados cursos com projeto e
currículos construídos entre universidade e Movimentos Social
Popular, como foram os casos da Universidade Estadual do Rio
Grande do Sul (UERGS) e da Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Além disso, outras universi-
dades, ao realizarem convênio com a AEPPA, incluíam temas
dos movimentos sociais populares no currículo dos seus cursos,
como, por exemplo, a Educação Popular e educação não escolar
no Centro Universitário Metodista Sul (IPA).
Atualmente, na cidade de Porto Alegre, a maioria dos edu-
cadores possui pouca escolaridade, pois o número de institui-
ções que executam políticas de educação e de assistência social
aumentou e as condições estruturais das entidades são limitadas.
Além disso, os recursos financeiros são insuficientes e os salários
dos educadores são precários (de 1 a 1,5 salários mínimos para
44h semanais).
Junto com a questão da formação de educadores surgiu o
tema do trabalho e, mais uma vez, a Pesquisa Participante vem
contribuindo para o aprofundamento temático sobre que forma-
ção queremos, para que e como a queremos.
Os dados coletados da realidade possuem reconhecimento
no Movimento Popular e algumas educadoras e educadores vêm,
mesmo em quantidade muito pequena, acessando alguns espa-
ços acadêmicos: graduação (+ de 400), especialização (+ de 40),
mestrado (3) e doutorado (1). Nesses espaços, buscam investigar
as suas realidades de trabalho e de militância em consonância
com o referencial teórico da Educação Popular, principalmente
associado às políticas educacionais.
As educadoras e os educadores populares levam às reuniões
(locais e geral) da AEPPA as demandas advindas das suas ativi-
dades socioeducativas: da comunidade, do trabalho, da forma-
ção. Para tanto, estudam temas gerais advindos das temáticas
discutidas nos núcleos temáticos e no Grupo de Estudos e de
Pesquisas: Paulo Freire e Educação Popular. No contexto político
conjuntural e estrutural do mundo do trabalho, estuda-se Edu-

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Conhecendo uma experiência de pesquisa participante e educação popular

cação Popular, movimentos sociais, metodologias participativas


e as políticas sociais. O movimento possui um grupo de estudos
e pesquisas vinculadas ao projeto Paulo Freire e Educação Popu-
lar. Nos encontros, estudam Freire em diálogo com outros auto-
res. No Movimento de Educação Popular (MEP), a AEPPA é a
instituição que formaliza o processo formativo. Também, foram
conquistados três cursos de extensão para estudar os temas da
Educação Popular: na Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS/ Faced) e no Instituto Federal do Rio Grande do Sul
campus Restinga.
Podemos observar, a seguir, parte da recuperação histórica
das experiências de lutas das educadoras e educadores populares
que, mediadas pela Educação Popular e a Pesquisa Participante,
continuam lutando pelo direito a viver com dignidade, resistin-
do ao projeto de sociedade e educação opressor. Constam a se-
guir fragmentos de jornais, um relato de educadores registrado
em diário e uma foto de educadoras populares do curso de Pe-
dagogia com ênfase em Educação Popular realizado na PUC-RS.

Figura 3 - AEPPA nos jornais

Fonte: Correio do Povo, Ensino, segunda-feira, 2 de janeiro de 2006 - 3

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Conhecendo uma experiência de pesquisa participante e educação popular

Figura 4 - AEPPA nos jornais locais

Figura 5 - AEPPA : Curso da PUC em Educação Popular no


Fórum Paulo Freire

“A gente não é voluntária. Trabalhamos e militamos. As nossas pesquisas


mostram que a educação que fazemos na comunidade é diferente da edu-
cação que nos ensinam na universidade. Precisamos de um curso diferen-
te. Um curso que trabalhe a Educação Popular não como educação pobre.
Precisamos de uma pedagogia que converse com a gente daqui.” (Diário
de Pesquisa, Fernanda Paulo, 2012).

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Conhecendo uma experiência de pesquisa participante e educação popular

2.2. Educação Popular em Paulo Freire: algumas notas


aproximativas com a Pesquisa Participante

“Procurar o tema gerador é procurar o pensamento do homem sobre a reali-


dade e a sua ação sobre esta realidade que está em sua práxis.”
(FREIRE, 1979, p. 18).

No livro Pedagogia: diálogo e conflito (FREIRE; GADOTTI;


GUIMARÃES 1985), há passagens que versam acerca da Educa-
ção Popular como experiência e concepção. Com relação à ex-
periência, os autores mencionam a educadora Isabel Hernandez
(Argentina) caracterizando-a como “uma andarilha da Educação
Popular” (p. 9). Depois, rememoram “o caráter interdisciplinar
do livro e de uma pedagogia dialógica” (p. 10). Na segunda pas-
sagem, temos características da Educação Popular (interdiscipli-
nar), conceituada como pedagogia dialógica com perspectivas de
classe e respeito às diferenças. Essas notas são próximas às ca-
racterísticas da Pesquisa Participante, a saber: 1) não é só obser-
vação participante porque pressupõe a dialogicidade; 2) é uma
pesquisa social com abordagem qualitativa e interdisciplinar na
construção de saberes políticos e críticos que façam sentido à
vida. Ainda nesse livro, os autores (Moacir Gadotti, Paulo Freire
e Sérgio Guimarães) utilizam a referência de Oscar Jara com a
sua obra Concepção dialética da Educação Popular, ratificando,
assim, a concepção de Educação Popular com base freiriana.
Já no livro Conscientização: Teoria e Prática da Libertação
- Uma Introdução ao Pensamento de Paulo Freire (1979), iden-
tificamos a Educação Popular como movimento e participação
de “natureza política, social e cultural de mobilização e de cons-
cientização” (FREIRE, 1979, p. 10). Também, constatamos que o
Movimento de Educação Popular pressupõe metodologias parti-
cipativas via círculos de cultura. Esses apontamentos revelam que
a Educação Popular é mais que uma metodologia, porque presu-
me formas de mobilização, formação e transformação social. Si-
milarmente a esses livros, a Educação como prática da liberdade

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Conhecendo uma experiência de pesquisa participante e educação popular

(1967) igualmente concebe a Educação Popular como movimen-


to contra a manipulação dominante, utilizando-se dos círculos
de cultura como meio para suscitar processos de libertação das
classes populares.
Em nossa análise, o reconhecimento da Educação Popular
como concepção de Educação Libertadora afirma a negação da
relação sujeito-objeto na construção de saberes e fazeres no cam-
po popular. Dessa maneira, as pesquisas participativas possuem
uma relação sujeito-sujeito na concepção da teoria da ação dialó-
gica, em que “os sujeitos se encontram para a transformação do
mundo em colaboração” (FREIRE, 1987, p. 96). A partir desses
encontros, a compreensão da realidade social é coletiva, proble-
matizada, crítica e construída através de uma Pesquisa Partici-
pante que se destina a produzir conhecimentos mobilizadores
e transformadores. Á vista disto, a Educação Popular freiriana,
fundamento da Pesquisa Participante, busca a unidade entre a
teoria e a prática na construção da práxis libertadora.
A Pesquisa Participante deve, portanto, intervir na realida-
de das pessoas, modificando, no processo dialógico, as práticas
sociais; e, deste modo, incorporando saberes com compromisso
social. Essa dinâmica possibilita a investigação de caráter político
com o compromisso assumido com os setores populares e com
um projeto de sociedade que luta contra a pedagogia do opressor.

Pressupostos da investigação: a luta e resistência para a


transformação

A utopia exige o conhecimento crítico. É um ato de conhecimento.


Eu não posso denunciar a estrutura desumanizante se não a penetro
para conhecê-la. Não posso anunciar se não conheço, mas entre o
momento do anúncio e a realização do mesmo existe algo que deve
ser destacado: é que o anúncio não é anúncio de um ante-projeto,
porque é na práxis histórica que o anteprojeto se torna projeto.
(FREIRE, 1979, p. 16).

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Na acepção da Educação Popular freiriana, não há neutra-


lidade na produção do saber, pois a produção social e histórica
dos conhecimentos faz parte da nossa existência e do projeto de
sociedade imbricado. A epistemologia da resistência popular não
esteve presente na construção do conhecimento, mas vem sendo
questionada há décadas.
Freire (1987) expressa que a “conscientização não é apenas
conhecimento ou reconhecimento, mas opção, decisão, compro-
misso” (p. 5). Melhor dizendo, a conscientização é um ato polí-
tico da prática educativa e a luta é uma categoria da libertação
que tem por objetivo a recuperação da humanidade roubada dos
oprimidos (FREIRE, 1987).
Na maior parte dos casos, a Pesquisa Participante é realiza-
da pelos Movimentos Sociais Populares, cujo trabalho de Educa-
ção Popular é realizado com a intenção de lutar “pela humani-
zação, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos
homens como pessoas” (FREIRE, 1987, p. 16). Ou seja, a resis-
tência popular vem na direção de combater a desumanização,
“resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opres-
sores e esta, o ser menos” (FREIRE, 1987, p. 16).
A Pesquisa Participante pressupõe compreender que a es-
perança nos mobiliza contra as imposições dos neoliberais que
“[...] sustentam também que a ideologia acabou, que nada mais é
ideológico. Esse discurso não torna velhos os nossos sonhos de
liberdade e não deixa de ser menos justa a luta contra o autorita-
rismo.” (FREIRE; GADOTTI; GUIMARÃES, 1987, p. 10).
A investigação nesse processo de Pesquisa Participante,
embasada pela Educação Popular freiriana, é, portanto, um pro-
cesso de educação libertadora. E os processos metodológicos se
dirigem a ações de transformação social.

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Conhecendo uma experiência de pesquisa participante e educação popular

Considerações finais

O texto nos faz refletir acerca das experiências de pesquisas


participantes inspiradas na fundamentação da Educação Popu-
lar freiriana – originárias de uma epistemologia da resistência e
da luta contra as práticas dominantes e opressoras da educação.
Os Movimentos Sociais Populares, espaços de formação políti-
co-pedagógica, são potentes na realização das pesquisas partici-
pantes na concepção da Educação Popular. Reafirmamos que a
Pesquisa Participante é uma opção metodológica de investigação
da realidade e apresentamos dois princípios: ação politizadora e
palavra comprometida. Salientamos quatro pontos inerentes à
Pesquisa Participante nos pressupostos da educação como luta
e resistência.
Esses apontamentos revelam princípios, dimensões e carac-
terísticas necessárias no processo de investigação da realidade
social. No Brasil, Paulo Freire e Carlos Rodrigues Brandão são
referências importantes no tocante ao tema da Pesquisa Partici-
pante e Educação Popular. Assim, reafirmamos que a Educação
Popular freiriana e a Pesquisa Participante são formas de luta e
resistência contra o projeto neoliberal, que não implica a trans-
formação social libertadora.
Os documentos (fotos e jornais) demonstram um contexto
de lutas em que Educação Popular e Pesquisa Participante são
opções teórico-metodológicas de resistência contra a universida-
de tradicional e excludente. As lutas das educadoras populares,
organizadas em um movimento popular, comprovam que a mo-
bilização política possibilita a reinvenção da universidade.
Ao ocupar a universidade, fica o desafio de produzir epis-
temologias de resistência que vem ao encontro da Educação Po-
pular revolucionária, libertadora, emancipadora. Diante disso, é
importante, indispensável e urgente recuperarmos a nossa traje-
tória, registrando essas experiências como parte complementar
e necessária da continuidade da história da Educação Popular, a
qual a Pesquisa Participante integra.
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Conhecendo uma experiência de pesquisa participante e educação popular

Referências

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