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HISTÓRIA DA

EDUCAÇÃO

Kate Rigo
Escola e ensino
durante o
regime militar
no Brasil
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:


>> Relacionar o contexto histórico brasileiro com a tomada do poder militar e
sua influência no campo educacional no período.
>> Identificar as características do ensino tecnicista e sua relevância emer-
gencial para o período de sua implementação.
>> Reconhecer a influência das características de um governo militar no
fluxo e na organização do sistema educacional do Brasil contemporâneo.

Introdução
Do dia 1 de abril de 1964 a 15 de março de 1985, o Brasil viveu um período conhecido
como ditadura ou regime militar, em que diferentes militares se sucederam no
governo. O marco inicial desse regime foi o chamado golpe de 1964, em que militares
em Juiz de Fora se rebelaram contra o governo e tiveram o apoio de parlamentares,
que ratificaram a destituição do então presidente João Goulart. Instaurou-se, a

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partir disso, uma época de tensões, marcadas por autoritarismo, censura, per-
seguição política e, consequentemente, falta de democracia. As consequências
desse regime foram diversas e profundas, atingindo as mais diversas áreas da
vida dos cidadãos brasileiros.
Neste capítulo, portanto, você vai conhecer o período histórico em que o Brasil
estava inserido e o que levou um governo civil a se tornar um governo militar
por 21 anos, tendo como foco de análise a sua influência no desenvolvimento
da educação brasileira no âmbito do ensino básico e superior. Além disso, vai
ver as linhas pedagógicas que vigoraram nessa época e sua implementação por
uma necessidade laboral e de desenvolvimento da indústria brasileira. Por fim,
vai conferir informações sobre os reflexos desse período do regime militar no
sistema de ensino brasileiro que tiveram início no fim da década de 1960 e se
perpetuam até os dias atuais.

Contexto brasileiro: a queda do governo


civil e os impactos na educação
Após a Segunda Guerra mundial, o mundo ficou bipartido com a disputa ideo-
lógica e econômica dos EUA e da União Soviética — ambos os países ofereciam
modelos políticos que resolveriam os problemas globais a sua maneira. De
um lado, tínhamos o discurso capitalista promovido pelos EUA e, de outro,
os ideais socialistas defendidos pela União Soviética, discursos que eram
opostos; logo, o embate era rígido e, se alguém defendia um, era automa-
ticamente inimigo do outro. Foi nesse contexto de rivalidade e radicalismo
ideológico (de ambos os lados) que o Brasil estava inserido e que levaria à
queda do governo civil de João Goulart para a tomada de poder dos militares
em 1964, apoiados pelo parlamento, já que muitos faziam parte da chamada
ala conservadora, que simpatizava com o pensamento norte-americano.
Com a ascensão dos militares ao poder em 1964, a educação, que já sofria
influências da consolidação de um modelo urbano industrial e dos reflexos da
Guerra Fria, passou a ser o foco da adequação nacional do modelo econômico
que tendia à internacionalização e ao controle estrangeiro (ARANHA, 1996).
Como os governos possuem a tendência de internalizar em seus sistemas
educativos suas bases e ideais e como a ala conservadora e militar do governo
brasileiro pós-1964 flertava com a vinda de capital estrangeiro — as potências
externas visavam a exploração mercadológica do Brasil, por sua dimensão
continental, pelo consumo, pela manufatura ou pela mão de obra — decidiu-
-se que, para garantir esse acordo de interesses mútuos, a educação deveria

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ser organizada e alinhada ao propósito de ampliar a qualificação da mão de


obra das indústrias e do setor produtivo.
Além disso, o país atravessava um período de crise econômica: a crise
mundial da economia capitalista colocou o Brasil para repensar sua “voca-
ção agrícola”, conforme afirma Saviani (1988), e a crise do café, que, com o
movimento de industrialização, passou a mover o nacionalismo. Além disso,
a burguesia nacional (representada pelos empresários) passou a conduzir o
movimento, já que eram os mais interessados na troca do poder que estava
nas mãos das oligarquias rurais. Esse panorama econômico foi consolidador
para a ascensão militar no governo e para as reformas educacionais que seriam
geridas tanto no nível básico quanto no profissionalizante e no universitário.
Esse contexto despertou a atenção dos empresários internacionais que
estavam atentos às mudanças e vantagens de investir no país, uma vez que o
mercado brasileiro ofertava incentivos fiscais, doação de áreas necessárias
a instalação de indústrias, matéria-prima abundante e mão de obra barata.
Ghiraldelli Júnior (2005) comenta que os 21 anos de regime militar foram
pautados por repressão, por privatização do ensino, exclusão de grande
parcela das classes populares e pelo desmantelamento do magistério, por
meio de abundante e confusa legislação. Entre 1964 e 1968, por exemplo,
foram firmados 12 acordos MEC-USAID (Ministério da Educação e Cultura e
Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional — do inglês
United States Agency for International Development), que ligaram a política
educacional brasileira às determinações dos técnicos estadunidenses. No
entanto, esse programa de internacionalização da educação ia contra a
campanha nacionalista propagada pelo próprio governo, e a ideia original
de propagar a indústria nacional e qualificar os cidadãos para melhor servir
a pátria amada foi substituída pela intervenção externa e pela invasão da
indústria estrangeira, que usava apenas a mão de obra nacional.
Um aspecto marcante dos acordos é a abrangência que atingiram em todos
os níveis do sistema de ensino. O objetivo das determinações era organizar
a educação brasileira a fim de atender a demanda e o contexto geral do
cenário internacional.
A seguir, são apresentados quatro pontos que a USAID se esforçou para
modificar e que foram cruciais na estrutura e no funcionamento da educação
brasileira.

„„ Níveis: primário, médio e superior.


„„ Ramos: acadêmico e profissional.
„„ Funcionamento:

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■■ reestruturação administrativa;
■■ planejamento;
■■ treinamento;
■■ controle do conteúdo (publicações e distribuição do material
didático).

De acordo com Romanelli (2002), essas medidas apresentavam uma estru-


tura única: as demandas da sociedade não eram atendidas pelas propostas,
cujo modelo não permitia adaptações; foram, então, empregados órgãos cen-
trais para tomada de decisão e administração educacional a fim de coordenar
e executar os programas propostos, o que gerou profundo desconforto nas
organizações estaduais de educação — a maioria dos acordos sinalizava para
uma análise parcial e tendenciosa dos problemas educacionais brasileiros
ao se valer da crise no sistema para justificar as mudanças.
Foi concebido, então, um financiamento composto por três eixos relacio-
nados à questão financeira:

„„ fornecimento de ajuda financeira;


„„ fornecimento de pessoal técnico estadunidense para prestação de
assessoria;
„„ financiamento de pessoal brasileiro para participar de treinamento.

Essa ajuda financeira seria destinada aos assessores estadunidenses para


bolsas aos brasileiros em treinamento nos Estados Unidos e, caso necessário,
para a realização de experiências-piloto de treinamento de pessoal. O finan-
ciamento de pessoal técnico estadunidense seria destinado à assessoria
técnica, de planejamento e de proposição de programas de pesquisa, e o
financiamento do pessoal brasileiro seria de responsabilidade do MEC e
destinado aos brasileiros que trabalhariam com os técnicos estadunidenses
(ROMANELLI, 2002).
Fonseca (2008) comenta que a escola ficou restringida ao lugar de trans-
missão de conhecimento e, geralmente, limitada a uma única fonte, o livro
didático. Passos como esse faziam parte de um processo que buscava a
descaracterização das humanidades no currículo escolar, que, consequen-
temente, desqualificava os professores. Além disso, outra ação do governo
militar, em 1969, foi permitir o funcionamento de cursos de curta duração
e autorizar habilitações intermediárias em nível superior para atender a
“carência de mercado” (FONSECA, 2008).

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Foi nesse período histórico que os componentes curriculares foram chama-


dos de disciplinas e que as chamadas “disciplinas principais” eram matemática
e língua portuguesa, que possuíam, e até hoje possuem em muitas instituições
escolares, uma carga horária superior à dos demais componentes curriculares.
Nesse sentido, é importante destacar que as aulas eram ministradas a partir
de uma didática rígida que beneficiava a memorização e a reprodução do
conteúdo exposto e havia hierarquia clara entre o professor que ensina e o
aluno que aprende, mas sem espaços para a troca ou a potencialização do
saber por meio do debate e da reflexão.

A Lei nº 5.540, que estabelecia cursos organizados à base de formação


técnica e de habilidades profissionais, foi promulgada dentro desse
espírito. Posteriormente, a Lei nº 5.692/71 concretiza a tentativa de profissio-
nalização, e os acordos MEC/USAID firmados na década de 1970 formalizam uma
orientação tecnicista ao ensino brasileiro (TEIXEIRA, 2003).

Ainda que a reformulação da estrutura e o funcionamento do ensino


tenham sido impostos, esse foi o período em que transcorreram as maiores
mobilizações populares, especialmente as dos estudantes. As iniciativas dos
Movimentos de Educação de Base (MEB) e dos Centros de Cultura Popular (CCP),
responsáveis por campanhas de alfabetização de adultos, são exemplos des-
sas mobilizações. Por sua vez, as organizações estudantis eram movimentos
paralelos à organização regular escolar, em que os estudantes (principalmente
os universitários) encontravam espaço para debater suas inquietações e
elaborar reivindicações, conforme Saviani (1988). O autor salienta que os
estudantes também lutaram pela ampliação das universidades, a principal
forma de ascensão social. Por isso, houve forte pressão das camadas populares
e do movimento estudantil pela democratização das universidades. Apesar
disso, não houve modificações na política: os estudantes passaram, então,
a realizar manifestações nos espaços universitários.
O ensino fundamental também passava por problemas. No projeto educa-
cional das décadas de 1960 e 1970, a disciplina de história ensinada no ensino
fundamental e médio foi modificada estrategicamente e teve as seguintes
características (FONSECA, 2008):

„„ a diminuição dos conteúdos foi imposta;


„„ as temáticas eram voltadas para educação, moral e cívica (EMC);

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„„ as aulas de história mantidas pela organização curricular deveriam


focar somente em fatos institucionais, em sequência cronológica;
„„ a visão era eurocêntrica, e a cultura brasileira não deveria ser focada
quando os mitos nacionais eram mencionados;
„„ a ideia de integração nacional para o desenvolvimento econômico
era ensinada.

O ensino de história nas escolas brasileiras, a partir do regime militar, era


complementado por aulas de EMC, Organização Social e Política Brasileira
(OSPB) e estudos de problemas brasileiros (EPB), cuja finalidade era difundir,
durante esse período da história brasileira, os valores da sociedade dominante
(FONSECA, 2008). A Lei nº. 5.692/71 decretou que essas disciplinas estariam
presentes nos 1° e 2° graus, com vistas a “[...] proporcionar a formação ne-
cessária ao desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de
autorregulação, qualificação para o trabalho e preparo para o exercício
consciente da cidadania” (ROMANELLI, 2002, p. 235). Isso quer dizer que a lei
tinha o propósito claro de um modelo específico de formação: a qualificação,
em nível médio, voltada à profissionalização, de forma que o indivíduo se
autorrealizasse na convivência com o meio e nas relações de trabalho. O
termo “autorrealização” é entendido, atualmente, como um processo no qual
“nenhum ato educativo é possível” (ROMANELLI, 2002, p. 236).
Já a educação é um ato coletivo de humanização dos indivíduos que leva
ao autoconhecimento e ao autodomínio, ou seja, “[...] o homem passa agir,
ou melhor, interagir nesse mundo, ao gerar um processo dialético, no qual
o aprofundamento em si mesmo, é, ao mesmo tempo, causa e efeito de sua
atuação sobre o meio” (ROMANELLI, 2002, p. 236). O reflexo desse sistema
ligado a uma história cronológica e positivista pode ser percebido até o final
da década de 1990 nas aulas ministradas pelos professores formados e que
atuaram em salas de aula nesse período. Os movimentos de uma educação
mais autônoma e reflexiva já eram apresentadas ao mundo durante o período
do regime militar, mas sua gradual implementação só ocorreria após a rein-
serção da democracia no Brasil contemporâneo.

Do modelo tradicional ao tecnicista: a


modificação didática
Saviani (1988) faz uma análise do significado político das mudanças impos-
tas pelos governos de viés controlador e, para isso, primeiramente, chama

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a atenção a respeito do resultado proveniente das mudanças produzidas:


a manutenção da ordem socioeconômica, cujo propósito era preservar a
ascensão social da Educação, legitimar as diferenças e justificar privilégios.
O fato de o sistema escolar promover um ensino voltado à memorização e à
classificação de acordo com a repetição feita em instrumentos de avaliação
padronizados provocou um maior distanciamento social entre os grupos
sociais brasileiros. Os alunos que conseguiam seguir esse modelo e agir de
acordo com as exigências de seus professores, sem o questionamento crítico,
eram os que conseguiriam ascender ao sistema de ensino superior e alcançar
o diploma acadêmico e universitário; já os que não se adaptavam a esse modo
de aprender eram colocados à margem do sucesso escolar e iam direto para
o mercado de trabalho com baixa formação instrucional.
A reforma tecnicista manteve o interesse segmentário quando separou
o ensino secundário do ensino profissional, e o padrão de qualidade ficou
garantido às elites nas instituições privadas com o ensino propedêutico. Às
massas, coube o ensino técnico, que garantiria as exigências do mercado de
trabalho imposto pela política estadunidense. O cenário instaurado, por-
tanto, garantiu, prolongou e perpetuou a hegemonia da sociedade política
(SAVIANI, 1988). No entanto, a questão da qualidade é questionável, já que,
nessa época, os estudantes estavam restritos a escolhas ligadas à linhagem
profissional familiar, e não às competências e habilidades do indivíduo. As
ciências humanas foram esvaziadas e o desenvolvimento artístico ficou à
margem do sistema universitário e acadêmico; além disso, as discussões
políticas e filosóficas saíram dos auditórios universitários e ocuparam a vida
boêmia dos grandes centros urbanos.
A clarificação do intuito de dividir o trabalho manual do intelectual se
encontra na Lei nº. 5.692/71, inicialmente liberal (humanista moderna), mas se
revela uma prática tecnicista, com ênfase quantitativa nos métodos (técnicas),
e não nos fins (ideais) e na autonomia, necessária para o desenvolvimento
do indivíduo na sociedade. As mudanças impostas valorizam, ainda hoje, a
formação profissional em detrimento de uma formação para a cultura geral.
Outro importante aspecto a apontar foi o da ampliação da escolaridade, que
passou de quatro para oito anos.
Na contramão do esperado, os índices de analfabetismo e de baixa es-
colaridade ainda prevaleciam, afinal, o modelo didático instaurado primava
pela reprodução informativa, e não pela assimilação da informação e pelo
seu processamento efetivo. Em sintonia com essa premissa, os movimentos
populares buscavam outros métodos de ensino para erradicação do anal-

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fabetismo, a redução da evasão escolar e meios concretos de aumentar a


escolaridade.
O plano do ensino tecnicista, de preparar seus formandos para o mercado
de trabalho, apresentou resultados abaixo do previsto, e não se conseguiu
perceber que o erro estava ligado ao método de ensino, e não à ideia geral.
Consequentemente, o mercado de consumo se voltou para setores sociais mais
ricos e, por fim, o mercado mundial passou a restringir a economia brasileira
(GHIRALDELLI JÚNIOR, 2003). Para o autor, o maior erro da reforma tecnicista
foi a transformação da escola normal para formação de professores em
ensino técnico em formação de professores para as quatro séries iniciais do
ensino básico (na “habilitação magistério”), tido como um golpe à formação
de professores. As disciplinas história e geografia foram reduzidas para dar
espaço a disciplinas de formação especial (FONSECA, 2008), de forma que o
currículo tivesse uma base comum de conhecimentos. O modelo curricular
que se seguiu deslegitimava os saberes históricos e era influenciado pelos
teóricos reprodutivistas: “A escola passa a ser considerada como aparelho
de reprodução de valores e ideias da classe dominante, e o ensino de histó-
ria, como mero veículo de reprodução de memória do vencedor” (FONSECA,
2008, p. 33).
A pedagogia tecnicista foi inspirada nas bases do modelo behaviorista
(criado pelo psicólogo B. F. Skinner), que coloca o progresso do indivíduo a
partir do meio em que ele vive; dessa forma, criar um modelo a ser seguido
condicionaria o sucesso do aluno mediante ações de reforço positivo (prêmio
por desempenho) ou punição (como no caso da reprovação ou dos castigos).
Além disso, era uma pedagogia que se preocupava com o processo, e não
com os indivíduos que estavam nele, uma espécie de “esteira de produção
do conhecimento” que não considerava as especificidades do aprender nas
suas múltiplas esferas. A figura do professor é vista, nesse contexto, apenas
como a de um reprodutor do livro didático e do modelo já estabelecido pelo
currículo, e o estudante deveria ser o receptor dessa informação, apto a
reproduzi-la com êxito e sem atravessamentos de discussões ou reflexões
sobre o que estava sendo transmitido e aprendido. Já a instituição, por sua
vez, era a mediadora e a que aferia o sucesso ou insucesso do aluno no
processo educativo.

Para melhor visualizar o modelo behaviorista, assista ao filme Tempos


Modernos, de 1937, dirigido, escrito e atuado por Charlie Chaplin.

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A conveniência desse sistema didático para o período militar estava na


construção de uma geração receptora de informação e reprodutora de ações
predefinidas, sem o hábito de questionar ou alterar o processo, já que a pu-
nição era um instrumento bastante utilizado pelos docentes desse período.
Transmitia-se apenas o que estava definido no programa curricular, para
que, assim, os indivíduos pudessem atuar de maneira prática e direta em
suas ações laborais. O acolhimento e o diálogo eram substituídos pelas sus-
pensões ou, em casos mais graves, expulsões da escola. O sistema avaliativo
era padronizado e consistia em verificar o alcance ou não dos objetivos
estipulados no programa.
Em termos de currículo, as leis e os pareceres moldaram os currículos de 1°
e 2° graus e desenvolveram um modelo metodológico atribuído a atividades,
áreas de estudo e disciplinas. O 1° grau, por exemplo, exercia a função de
sondagem de aptidões. Atividades no 1° grau enfocavam experiências vividas,
e as áreas de estudo seriam construídas pela integração de áreas afins. Já os
conhecimentos sistematizados das disciplinas deveriam predominar apenas no
2° grau. As disciplinas do núcleo comum foram fixadas pelo Conselho Federal
de Educação, que considerou os chamados conteúdos mínimos, dentre eles,
as disciplinas de educação moral e cívica, educação física, educação artística
e programas de saúde. O 2° grau oferecia tipos e quantidades distintas de
disciplinas, conforme o curso disponibilizado. Essa conjuntura resultou em
um currículo veiculador de “[...] ideologias, propostas culturais e pedagógicas
com grande poder de penetração na realidade escolar” (FONSECA, 2008, p. 33).
Segundo Fonseca (2008), numerosos princípios desse projeto estão inal-
terados nos currículos e programas até hoje, de modo que resultados dessa
política aplicada na educação durante o regime militar continuam afetando
a escola. Por exemplo, ainda é comum ouvirmos histórias de estudantes
que são reprovados por não se adaptarem a provas de múltipla escolha ou
por não seguirem uma avaliação que exige apenas a memorização, e não a
construção do raciocínio para chegar a uma resposta adequada. Além disso,
ainda estamos diante de um sistema padronizado para o ingresso no ensino
superior, que exige a assimilação de uma quantidade de conteúdos distribuídos
em pelo menos oito componentes curriculares, não importando a área de
domínio do indivíduo ou se serão exigidos na sua futura trajetória acadêmica.

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Impactos do contexto na organização e no


funcionamento do ensino nacional
Muitos acreditam que os reflexos da educação nacional se dá apenas pelas
medidas impostas por um governo, mas a influência de sistemas didáticos e
o desenvolvimento de estruturas educacionais nascem nas universidades,
por meio de pesquisas e da consolidação de teorias que comprovam a efi-
cácia da aplicação técnica e didática no sujeito, bem como mediante a forma
pela qual ele aprende. Desse modo, quando o governo militar interferiu na
dinâmica do funcionamento das universidades e na forma de acesso ao
diploma universitário, toda a macroestrutura educacional sofreu alterações
que possuem forte ação até os dias atuais.
Por esse motivo, durante o período do regime militar, a universidade
brasileira recebeu impulso considerável. Nesse período, foram promulgadas
duas leis essenciais à educação orientadas pelos princípios militares: a Lei
nº. 5.540/68, que tratou do ensino superior e estabeleceu modificações
substanciais na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1961, e a Lei nº. 5.692/71,
que apresentou dispositivos para alterações no ensino fundamental e médio
(BRASIL, [2019], [1982]). Para que você compreenda o quanto é importante co-
nhecer as leis educacionais e seu impacto na educação das gerações futuras,
nesta seção, veremos os impactos dessa legislação na formação do ensino
que ainda faz parte de nossa realidade nacional.
A Lei nº. 5.540/68, que se refere ao ensino superior, foi promulgada ra-
pidamente, por meio da criação, ainda em 1968, de um grupo de trabalho
que apresentou um estudo cuja origem foi uma proposta que atendia as
demandas do novo cenário econômico e político. O estudo deveria garantir
a “[...] eficiência, modernização da Escola e ensino durante o Governo Militar
no Brasil e flexibilização administrativa da universidade brasileira, com vistas
à formação de recursos humanos de alto nível para o desenvolvimento do
país” (SAVIANI, 1988, p. 81). O resultado do trabalho foi a produção da lei que
expressou marcadamente a força de uma tendência pedagógica articulada
à posição político-militar (RIBEIRO, 2003). A Lei nº. 5.540/68 expressou os
princípios do regime militar de 1964 por se ajustar perfeitamente ao modelo
econômico almejado (SAVIANI, 1988). O movimento precisava de ampliação e
fortalecimento dos setores médios para que fosse possível atender a demanda
que surgia com a expansão da produção de bens de consumo duráveis. As
modificações no ensino superior incluíram:

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„„ unificação do vestibular por universidade e região com classificação


e extinção da cátedra;
„„ introdução do regime de tempo integral e dedicação exclusiva dos
professores;
„„ consolidação da estrutura de departamento, que dividiu o curso de
graduação em duas vertentes distintas: ciclo básico e ciclo profissional;
„„ criação do sistema de créditos por disciplinas;
„„ instituição da periodicidade semestral.

O primeiro problema relacionado à lei foi a forma como foi escrita e ar-
ticulada, apenas por um grupo, sem o debate dos demais envolvidos nesse
quesito (reitores e coordenadores dos núcleos de graduação), uma ação que
evidencia a falta de diálogo entre o governo e a sociedade civil e a ausência
de um plano que contemplasse o olhar técnico dos envolvidos diretamente
na educação nacional. A rapidez do seu avanço sem qualquer participação
popular gerou grande desconforto, já que as medidas dificultariam ainda
mais o acesso ao ensino superior, conforme observa Ghiraldelli Júnior (2003).
O vestibular unificado e classificatório, até hoje utilizado como uma das
maneiras de ingressar no ensino universitário, aparentemente resolvia o
problema de excedentes — candidatos aprovados por alcançarem a nota
mínima, mas que não conseguiam vaga. Na verdade, esse método simples-
mente retirou qualquer direito à vaga conquistada de quem não se adaptou
ao ensino de reprodução e memorização do conteúdo. Outro problema foi a
departamentalização com intuito burocratizante: a ideia estratégica de reunir
pesquisadores da mesma área gerou a criação de um departamento — uma
estrutura burocrática — dentro da faculdade — outra estrutura burocrática.
Assim, sucessivamente: os cursos foram subdivididos em disciplinas e também
em créditos, o que tornou o curso fragmentado e submetia os estudantes
a seguir horários disciplinares que não permitiam tempo livre nem outras
atividades acadêmicas. Esse modelo ainda é vigente em grande parte das
instituições de ensino superior, fazendo com que o tempo de formatura se
estenda, principalmente, quando o estudante concilia a vida profissional
com a acadêmica.
O regime militar, além disso, também alavancou diversas mudanças no
ensino superior: professores e pesquisadores experientes foram aposenta-
dos e não houve contratação de novos docentes; reitores foram demitidos
e, em seu lugar, foram nomeados interventores da ditadura; e a autonomia
administrativa e financeira foi restringida. Além disso, o controle policial se
estendeu aos currículos e aos programas das disciplinas, conforme salienta

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12 Escola e ensino durante o regime militar no Brasil

Cunha (2000). Essa medida refletiu na falta de pesquisas de excelência acadê-


mica nesse período da história do Brasil. Apenas depois da redemocratização
as universidades voltaram a investir em programas de pós-graduação nas
modalidades mestrado e doutorado, além de organizar em núcleos de pes-
quisa seus programas e estabelecer parcerias de fomento para a ampliação
da pesquisa nacional em parceria com a pesquisa internacional.
Segundo Romanelli (2002), a reforma universitária passou por duas fases.
A princípio, o governo defendeu os interesses dos grupos conservadores (os
quais defendiam as cátedras), que seriam os responsáveis por defender o
movimento junto a outros professores e ao movimento estudantil. Depois, o
governo mudou sua posição, ao perceber que a escola superior não modificava
nem ameaçava o status quo. Pelo contrário, a modernização da universidade
determinada por ela ajudaria o desenvolvimento econômico. Dessa forma,
o governo cedeu às pressões e acabou assumindo a responsabilidade de
inovação dentro da linha tecnológica e da saúde.
Teoricamente, o modelo proposto pretendia nacionalizar a administração
da universidade, deixar sua estrutura mais moderna e adequá-la às exigências
do mercado. No entanto, a medida aumentou o controle dos órgãos centrais
sobre a vida acadêmica e estabeleceu um controle externo dos órgãos federais,
como aponta Romanelli (2002). A liberdade de conduzir a administração foi
eliminada: decisões antes tomadas pelas próprias universidades passaram
a ser geridas por instâncias superiores, a exemplo do modelo de seleção
para entrada na universidade. Essa falta de liberdade de ação nas decisões
acadêmicas levou ao estancamento da pesquisa nacional e ao sucateamento
das artes e ciências humanas dentro do âmbito universitário.
Com o ensino superior já definido, era preciso, então, pensar em uma
estrutura do ensino básico que fosse coerente com o modelo profissional que
a universidade desejava preparar para fora de seus auditórios e salas de aula.
Dessa forma, criou-se a Lei nº. 5.692/71, que tratava do ensino fundamental
e do colegial e foi implementada durante o período de maior repressão e
no qual, ao mesmo tempo, grupos da população estavam contentes com o
“milagre econômico”. Conforme Ghiraldelli Júnior (2003), professores apoiaram
a implementação da lei, influenciados pelas propagandas governamentais e
porque acreditavam que o ensino no 2º grau seria de fato profissionalizante. O
projeto de lei, composto por quatro artigos, decorreu de estudos produzidos
por um grupo de trabalho, cujo objetivo era estudar, planejar e propor medidas
para a atualização e para a expansão do ensino fundamental e do colegial
(ensino médio). Ou seja, mais uma vez, o caminho da educação nacional não
foi trilhado pelos seus protagonistas (professores e alunos), mas por um

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Escola e ensino durante o regime militar no Brasil 13

grupo de pessoas que estavam ligadas ao governo, a ponto de destacarem no


primeiro artigo do projeto que o grupo de trabalho deveria ser composto por
nove membros; o segundo artigo seria designado pelo Ministro da Educação
e Cultura; o terceiro estabelecia o prazo de 60 dias para a conclusão dos
trabalhos; e o quarto apenas informava que o decreto entraria em vigor na
data da publicação e revogava as disposições em contrário (SAVIANI, 1988).
Para a efetivação da proposta da Lei nº 5.692/71, uma drástica mudança
de estrutura, modernização, reorganização e programação foi necessária,
uma vez que o currículo deveria atender três áreas econômicas: primária
(agropecuária), secundária (industrial) e terciária (de serviços). Aranha (1996)
comenta que havia cerca de 130 habilitações para que essa demanda fosse
atendida. Destaca-se que essa lei representou o encerramento de um trabalho
de organização política que ajustava a educação brasileira à ordem socio-
econômica imposta pelas políticas estadunidenses. Assim, é possível, para
cada nível educacional, fazer uma reflexão e uma comparação com a proposta
que foi abandonada. No que se refere ao ensino de 1º grau, tendeu-se por
uma redação condensada da nova proposta: foram removidas especificações
quanto à formação de crianças e adolescentes (SAVIANI, 1988) e foi proposta
obrigatoriedade de oito anos no 1º grau. No entanto, a obrigatoriedade não
foi efetivada, já que não havia suficiente contingente de professores nem
infraestrutura que atendesse as demandas.
De modo geral, a Lei nº 5.692/71 buscava aprimorar a escolarização do
trabalhador, que atenderia as solicitações da industrialização crescente
(BRASIL, [1982]). Era preciso garantir treinamento suficiente para o indivíduo
que manipularia técnicas de produção e que, inclusive, fosse incentivado a
melhorá-las. Veja, a seguir, algumas incoerências da lei apontada por Ro-
manelli (2002).

„„ A incoerência da ampliação para oito anos de ensino, cujo objetivo foi


introduzir antecipadamente o jovem no mercado de trabalho — essa
medida exigia acréscimo de recursos para sua execução. O problema se
agravou com sua aplicação na zona rural, com demasiado isolamento
escolar e dificuldade de integrá-la a recursos humanos e materiais.
„„ O currículo, principalmente do 2º grau, cujas disciplinas obrigatórias
foram implementadas a partir de três áreas complicadas para a escola
administrar: a primeira área fixou as disciplinas do núcleo comum
(já mencionado); a segunda área foi fixada pela lei; e a terceira área
estabeleceu a formação especial e habilidades necessárias para a
formação profissional. Esse tipo de organização permitia uma margem

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14 Escola e ensino durante o regime militar no Brasil

muito pequena de organização para a comunidade escolar, de forma


que não seria possível estabelecer uma adaptação à realidade local.
„„ A profissionalização em nível médio supunha que o estudante decidisse
precocemente que profissão exerceria. Aos olhos de estudiosos, essa
seria uma forma de amenizar a crise no sistema universitário, uma vez
que o estudante sairia do colegial e já entraria no mercado de trabalho.

Autores como Romanelli (2002) observam que o desvio da demanda não


aconteceu: o egresso do sistema continuava sendo um candidato ao ensino
superior. Em suma, a história da educação brasileira, em grande parte, foi de-
senhada por grupos de técnicos ou apenas simpatizantes do governo vigente.
Poucos foram os momentos na trajetória da pedagogia no Brasil em que os
protagonistas foram consultados ou fizeram parte da organização geral do
seu sistema de ensino. O Brasil possui dimensões continentais e uma história
marcada por sistemas educacionais que não tiveram tempo de se adaptar ao
contexto e ao perfil de seus estudantes. Cada período histórico desenhou
a educação com seu traço e, por isso, é tão importante conhecer o contexto
em que se desenvolvem os modelos didáticos para melhor compreendermos
os reflexos que visualizamos nas gerações que por eles passaram.

Referências
ARANHA, M. L. A. História da educação. 2. ed. São Paulo: Moderna, 1996.
BRASIL. Lei nº 5.540, de 28 de novembro de 1968. Fixa normas de organização e fun-
cionamento do ensino superior e sua articulação com a escola média, e dá outras
providências. Brasília, DF: Presidência da República, [2019]. Revogada pela Lei nº 9.394,
de 1996, com exceção do artigo 16, alterado pela Lei nº 9.192, de 1995. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5540.htm. Acesso em: 24 ago. 2020.
BRASIL. Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971. Fixa Diretrizes e Bases para o ensino de
1° e 2º graus, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, [1982].
Revogada pela Lei nº 9.394, de 20.12.1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/l5692.htm. Acesso em: 24 ago. 2020.
CUNHA, L. A. Ensino superior e universidade no Brasil. In: LOPES, E. M. T. et al. (org.).
500 anos de educação no Brasil. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 151–204.
FONSECA, S. G. Didática e prática de ensino de história: experiências, reflexões e
aprendizado. 7. ed. Campinas: Papirus, 2008.
GHIRALDELLI JÚNIOR, P. Filosofia e história da educação brasileira. São Paulo: Manole,
2003.
GHIRALDELLI JÚNIOR, P. História da educação brasileira. São Paulo: Cortez, 2005.
RIBEIRO, M. L. S. História da educação brasileira: a organização escolar. 19. ed. Campinas:
Autores Associados, 2003.

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Escola e ensino durante o regime militar no Brasil 15

ROMANELLI, O. O. História da educação no Brasil: 1930/1973. 27. ed. Petrópolis: Vozes,


2002.
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do ensino. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1988.
TEIXEIRA, P. M. M. Educação científica e movimento c.t.s. no quadro das tendências
pedagógicas no Brasil. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, v. 3,
n. 1, p. 88–102, 2003.

Leituras recomendadas
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Darcy Ribeiro: biografia. [201-?]. Disponível em:
https://www.academia.org.br/academicos/darcy-ribeiro/biografia. Acesso em: 24
ago. 2020.
ARNS, P. E. Brasil: nunca mais. Editora: Vozes, 1995.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Florestan Fernandes: biografia. [201-?]. Disponível
em: https://www.camara.leg.br/deputados/133873/biografia. Acesso em: 24 ago. 2020.
JORDÃO, F. As artes visuais, as universidades e o regime militar brasileiro: o caso do
Núcleo de Arte Contemporânea da Universidade Federal da Paraíba (1978-1985). ARS
(São Paulo), v. 14, n. 27, p. 179–203, 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/ars/
v14n27/1678-5320-ars-14-27-00179.pdf. Cesso em: 24 ago. 2020.
SANFELICE, J. L. O movimento civil-militar de 1964 e os intelectuais. Caderno CEDES, v.
28, n. 76, p. 357–378, 2008.
SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 7. ed. Campinas:
Autores Associados, 2000.
SAVIANI, D. Escola e democracia. 23. ed. Campinas: Autores Associados, 1991.
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Ex-reitores. [2020]. Anísio Teixeira. Disponível em: https://
www.unb.br/estrutura-administrativa/reitoria/2-publicacoes/632-ex-reitores. Acesso
em: 24 ago. 2020.

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