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UAB – UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL

UESPI – UNIVERSIDADE ESTADUAL DO PIAUÍ


NEAD - NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
LICENCIATURA PLENA EM LETRAS PORTUGUÊS

Formação Histórica da Língua Portuguesa


Ailma do Nascimento Silva
Iveuta de Abreu Lopes

FUESPI
2012
S5861f Silva, Ailma do Nascimento.
Formação histórica da língua portuguesa / Ailma do Nascimento Silva ,
Iveuta de Abreu Lopes. - Teresina : FUESPI, 2012.
145 p.

ISBN 978-85-61946-13-5

Material de apoio pedagógico ao Curso de Licenciatura Plena em Letras


Português do Núcleo de Educação a Distância da Universidade Estadual do Piauí –
NEAD/UESPI.

1. Língua portuguesa – formação histórica. 2. Língua portuguesa – Brasil.


3. Língua portuguesa – Europa. I. Lopes, Iveuta de Abreu. II. Título.

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Plena em Letras – Português
Ailma do Nascimento Silva UAB/FUESPI/NEAD
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NEAD, Rua João Cabral, 2231, bairro
Coordenadora de Produção de Material Pirajá, Teresina (PI). CEP: 64002-150,
Didático Telefones: (86) 3213-5471 / 3213-1182
Cândida Helena de Alencar Andrade

Autoras do Livro Web: ead.uespi.br


Ailma do Nascimento Silva E-mail:eaduespi@hotmail.com
Iveuta de Abreu Lopes

MATERIAL PARA FINS EDUCACIONAIS


DISTRIBUIÇÃO GRATUITA AOS CURSISTAS UAB/UESPI
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ........................................................................................... 09

UNIDADE 1 FORMAÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA: FATOS HISTÓRICOS ..... 13


1.1 A HISTÓRIA ................................................................................................. 14
1.2 A ROMANIZAÇÃO DA PENÍNSULA IBÉRICA.............................................. 17
1.3 AS INVASÕES BÁRBARAS NA PENÍNSULA ............................................. 22
1.4 EVOLUÇÕES FONÉTICAS EVIDENCIADAS NA PASSAGEM DO LATIM AO
GALEGO-PORTUGUÊS ................................................................................... 23
1.5 EVOLUÇÕES DA MORFOLOGIA E DA SINTAXE EVIDENCIADAS NA
PASSAGEM DO LATIM AO GALEGO-PORTUGUÊS ....................................... 28
1.6 FORMAÇÃO DO VOCABULÁRIO: EMPRÉSTIMOS RELEVANTES QUE SE
FIZERAM ENTRE A ÉPOCA ROMANA E OS PRIMEIROS TEXTOS ESCRITOS .. 29

UNIDADE 2 O DESPERTAR DA LÍNGUA PORTUGUESA: O PORTUGUÊS


EUROPEU ....................................................................................................... 39
2.1 PERIODIZAÇÕES DO PORTUGUÊS: A COMPLEXIDADE ........................ 40
2.1.1 O português arcaico .............................................................................. 43
2.1.2 O português clássico ............................................................................ 46
2.2 O PROCESSO DE LUSITANIZAÇÃO: A EXPANSÃO DO PORTUGUÊS COM
O ADVENTO DAS CONQUISTAS ALÉM MAR ................................................. 56

UNIDADE 3 A LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL: QUINHENTOS ANOS DE


HISTÓRIA ........................................................................................................ 73
3.1FATOS QUE MARCARAM A HISTÓRIA DO BRASIL: DO PERÍODO COLONIAL
AO SÉCULO XIX .............................................................................................. 76
3.1.1 Da Carta à colonização ......................................................................... 76
3.1.2 A chegada da família real portuguesa e a independência do Brasil ....... 82
3.2 A LÍNGUA PORTUGUESA DO BRASIL: TRAJETÓRIA SÓCIO-HISTÓRICA .. 85
3.2.1 A formação da língua portuguesa do Brasil em três fases ............... 85
3.2.2 A formação do português brasileiro: fatores condicionantes ........ 99

UNIDADE 4 A LÍNGUA PORTUGUESA BRASILEIRA: NA


CONTEMPORANEIDADE ........................................................................... 109
4.1 O PORTUGUÊS BRASILEIRO ................................................................. 114
4.1.1 Características sociolinguísticas ...................................................... 115
4.1.2 Heterogeneidade e Unidade? ........................................................... 124
4.1.3 A norma culta do português brasileiro ............................................. 129

REFERÊNCIAS ........................................................................................... 145


UNIDADE 1
FORMAÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA: FATOS
HISTÓRICOS

OBJETIVOS

• Conhecer a pré-história do português com o olhar voltado para seu antepassado


imediato: o latim vulgar;
• Reconhecer as modalidades linguísticas apresentadas pelo latim;
• Identificar as principais evoluções estruturais evidenciadas na passagem do latim
ao galego-português.
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1 FORMAÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA: FATOS


HISTÓRICOS

As armas e os Barões
assinalados
Que da Ocidental praia
Lusitana
Por mares nunca de antes
navegados
Passaram ainda além da
Taprobana,
Em perigos e guerras
esforçados
Mais do que prometia a força
humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;

(Os Lusíadas – Canto I)

As questões históricas relativas à formação e origem da


língua portuguesa, necessariamente, têm de começar pela história
do seu principal componente linguístico: o Latim, oriundo da região
do Lácio (Latium) na Península Itálica. Foi através do processo de
difusão dessa língua no Continente europeu, por meio da força de
expansão do Império Romano, que o latim alcançou o noroeste
da Península Ibérica e, ali, começou a sofrer uma evolução linguística
local, passando a revestir-se da forma de galego-português ou
galaico-português e, posteriormente, português.
Todavia, à formação do novo sistema linguístico, o galego-

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Formação histórica da língua portuguesa

português agregam-se influxos de outras línguas que nem sempre


são fáceis de serem investigados, dada a própria história
demográfica da Península Ibérica.
Assim, concebendo a constatação histórica do domínio da
civilização romana nos territórios por ela conquistados, como a
responsável pela introdução dos principais traços linguísticos que
o latim tomará como fatores de diferenciação, é que esta Unidade
tem como objetivo traçar o percurso histórico do latim ao galego-
português com o propósito de entendermos toda a evolução sofrida
na estrutura gramatical e lexical da língua latina que dará origem
às línguas neolatinas. Para tanto, procederemos ao nosso estudo,
baseados nos trabalhos de grandes autores acerca das origens e
formação da Língua Portuguesa, obedecendo à seguinte
organização: inicialmente, pontuaremos alguns fatos históricos
sobre a Península Ibérica que são indissoluvelmente relacionados
com a própria formação da Língua Portuguesa. Em seguida,
discutiremos as principais evoluções evidenciadas na passagem
do latim ao galego-português no âmbito da fonética, morfologia e
sintaxe. Estudaremos, ainda, os empréstimos relevantes que se
fizeram em diferentes épocas.

1.1 A HISTÓRIA

A origem e formação histórica da língua portuguesa são


marcadas pela história de um latim modificado, levado à Península
Ibérica pelos soldados romanos no século II que em função de
circunstâncias políticas e linguísticas de demarcação territorial sofre
as mais diferentes ramificações que vieram a ser, posteriormente,
conhecidas por línguas neolatinas.
Entretanto, é pontual destacar que as circunstâncias

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históricas, nas quais se formou e desenvolveu-se a língua


portuguesa, estão indissociavelmente relacionadas a fatos que
constituem a história geral da Península Ibérica. Por outro lado, no
entanto, a história geral peninsular é bastante confusa antes da
conquista romana, sobretudo, no que respeita saber quais povos
nela habitavam. Conforme Coutinho (1976), as investigações da
Arqueologia, Etnologia e Línguística possibilitaram a conclusão de
que dois povos primitivamente habitaram o solo peninsular: um
cântabro-pirenaico e o outro mediterrâneo. Destes, teriam se
originado respectivamente o basco e o íbero. Aos iberos coube-
lhes o papel mais relevante na história peninsular, daí, então, que
os historiadores gregos nomearam a região de Ibéria.
Sobre a existência de povos e línguas na região peninsular,
comenta Câmara Jr.:

Pouco se sabe dos povos e línguas nativas por ocasião


da conquista romana. É certo, apenas, que eram
numerosas as nações e muito diferentes de língua e
cultura. Do ponto de vista étnico, havia pelo menos
duas camadas de população bem distintas: uma
antiquíssima, classificada como ‘ibérica’, e outra,
mais recente, dos Celtas, que tinham o seu centro
de expansão nas Gálias e se estenderam pela
península hispânica como o fizeram pelo norte da
Itália (1976, p. 15).

Os romanos aportaram na Península Ibérica ou Hispânica


no século II a.C. O domínio romano deste território constituiu um
dos marcantes episódios da Segunda Guerra Púnica. Ao consolidar
o domínio sobre os povos que ali habitavam, as legiões de Roma
impõem sua civilização suplantando a cultura e, consequentemente,
a sua língua. Todos os povos da Península, a exceção dos bascos,
adotam o latim como língua oficial. Essa é uma fase essencialmente
guerreira que tem como ápice a consolidação do Império.

13
Formação histórica da língua portuguesa

Acalmados os ânimos com a certeza do domínio do Império sob


os povos peninsulares, inicia-se uma segunda fase de paz e
assimilação da cultura romana.
Segundo Coutinho (1976), a história da implantação do
latim na Península Ibérica está relacionada à ocupação romana
cabal e permanente deste território, demarcado e dividido por uma
dominação não só político-administrativa, mas, sobretudo,
linguístico-cultural.
Os fatos históricos evidenciam que, com a expansão
político-militar e cultural na Península Ibérica, o latim consolida-se
nesta região, fazendo desaparecer as línguas nativas ali existentes.
Esse processo ficou conhecido na História como romanização. O
Mapa 1, a seguir, permite-nos a visualização e conhecimento dos
povos pré-romanos que habitavam a Península, bem como a língua
por eles utilizada.
Mapa 1 – Descrição etnolinguística da Península Ibérica

Fonte:<http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Ethnographic_Iberia_200_BCE.PNG>

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1.2 A ROMANIZAÇÃO DA PENÍNSULA IBÉRICA

Em termos gerais, todo o processo de romanização da


Península pode ser descrito a partir das sucessivas divisões que
culminaram em uma nova ordem territorial e, consequentemente,
um novo processo de complexificação político-social. Esta nova
geografia territorial delimitou ao governo de cada província as suas
circunscrições jurídicas e administrativas.
A primeira divisão provinciana da Península, conforme
Mapa 2, ficou conhecida como: a Hispânia Citerior (região nordeste

Mapa 2 – Primeira divisão provincial

Fonte: <http://upload.wikimedia.org>

da Península) e Hispânia Ulterior (região sudoeste da Península).


Segundo Teyssier (1997), Augusto, no ano de 27.a.C.,
divide a Hispânia Ulterior em duas novas províncias: a Lusitânia
(ao norte) e a Béltica (ao sul). Assim, a área linguística do que

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Formação histórica da língua portuguesa

posteriormente virá a ser o galego e o português delineia-se, pois,


desde a época romana. É o que mostra o Mapa 3, a seguir, em
que se redesenha a organização administrativo governamental do
Ocidente peninsular, ficando estabelecido as novas províncias de
Lusitânia e Béltica como correspondentes à antiga província Ulterior
e Tarraconense, à antiga Hispânia Citerior.

Mapa 3 – Segunda divisão provincial

Fonte: <http://www.enciclopedia.com.pt/articles>

Contudo, é preciso ressaltar que apesar das diferentes


divisões geográficas o processo de romanização da Península não
se deu de forma célere, na prática o processo foi moroso,
sobretudo, na região interiorana da Península em que a legião
romana deparou-se com uma maior resistência para impor o seu
domínio linguistico.
Uma vez estabelecido o latim na região peninsular, Roma
torna-se o centro da nova população latina que, dada a sua
organização político-social, tornou-se, também, o centro da língua.
A sua organização social baseava-se na supremacia de uma classe
aristocrática, os “patrícios”, que se encontravam separados em

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todos os aspectos sociais da grande massa de habitantes, cuja


heterogeneidade entre essas duas classes, patrícios e plebeus,
era bastante exaltada por aqueles. Essa dicotomia social
desencadeou uma dicotomia linguística, favorecendo condições
opostas de usos linguísticos, o que culminou em uma divisão teórica
e tradicional: latim clássico e latim vulgar (CAMARA JR., 1976).
O latim clássico (Sermo urbanus) era a língua escrita,
exaltada nas obras dos grandes escritores latinos. Essa
modalidade caracterizava-se pelo apuro do vocabulário, pela
correção gramatical e pela elegância do estilo, configurando-se,
por estas características, uma língua artificial, rígida e imota. O
período do auge do latim clássico é a época de Cícero e de Augusto,
quando grandes artistas da prosa e do verso levam a língua ao seu
maior esplendor (COUTINHO, 1976).
No polo oposto, encontrava-se o latim vulgar (Sermo
populus), falado inicialmente pelas classes inferiores, que se
estendeu por todo o Império Romano. Essas classes
compreendiam a imensa multidão de pessoas iletradas e
semiletradas que encaravam a vida pelo lado prático e objetivo,
sem nenhuma pretensão maior. O uso dessa modalidade linguística
representava a soma de todos os falares das camadas sociais
humildes. Para Câmara Jr. (1976), o latim vulgar é o que
corresponde essencialmente ao nosso conceito de língua viva.
É necessário, no entanto, entendermos que, sendo o latim
vulgar a própria expressão da língua falada não podemos estender
essa definição à literatura, pois não existe, propriamente, uma
literatura em latim vulgar. Tal como uma literatura em latim clássico.
A bem da verdade há, sim, textos influenciados pelo Sermo Populus
que, dependendo do gênero textual, ora se faziam usos
deliberadamente dessa modalidade no caso, por exemplo, dos

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Formação histórica da língua portuguesa

comediógrafos ao retratar nas suas personagens modos populares


de falar.
Dada a sua natureza, o latim vulgar deve ser entendido
como um diassistema, ou seja, um conjunto de fatos complexos e
instáveis modelados por variações regionais que só uma análise
diacrônica poderia precisá-las. Por isso, hoje, temos uma grande
dificuldade de conhecer o que teria sido essa modalidade do latim,
pois sendo uma língua por definição, essencialmente falada,
portanto não-escrita só pode ser reconstituída por processos
comparativos com as línguas dela derivadas cujos resultados serão
sempre considerados como conjecturais, tendo em vista os parcos
documentos que registram essa modalidade. Tais documentos,
tradicionalmente, são considerados como fontes do latim vulgar
e podem ser do tipo: (i) obras gramaticais cuja mais representativa
é o Appendix Probi - trata-se, pois, de uma lista de 227 palavras
que normativiza a forma correta de escrevê-las em detrimento à
forma que, influenciada pela pronúncia do tempo, deve ser
repudiada; (ii) as inscrições cujas fontes têm a vantagem de serem
providas de datas, portanto, de fácil acesso à localização no tempo.
As mais interessantes para o estudo do latim vulgar são: as
lapidares, murais e execratórias; (iii) as cartas documentam-se mais
de 300 redigidas em grego ou em latim por militares e comerciantes
do Egito; (iv) as obras literárias nas quais podem entrever-se
reminiscências da língua falada como: as cartas de Cícero, o Teatro
de Plauto, as Sátiras de Horácio etc; (v) Glosas são anotações
feitas nas margens dos manuscritos latinos.
Assim, pode-se dizer que, reprimido e censurado durante
muito tempo em suas expansões naturais pela ação dos gramáticos,
da literatura e da classe culta, o latim vulgar, já bastante modificado
pela ação dos substratos linguísticos da Península, passa, então,

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a desenvolver-se livremente em cada região, dialetando-se.


Exatamente por esta censura demasiada, exercida pelos escritores
clássicos, não é fácil reconhecer, em detalhes, esta outra
modalidade da língua latina, pois, fechada às manifestações
populares, a literatura clássica inibia qualquer propósito deliberado
de descrever o falar vulgo (COUTINHO, 1976).
Contudo, a essa modalidade linguística, que já trazia em
si o germe da diferenciação, são adicionados elementos dialetais
diversos por meio de invasões territoriais que acentuam, cada vez
mais, essa diferenciação. Identificam-se, dessa forma, duas causas
da dialetação do latim: uma imediata, que é a invasão bárbaro-
germânica, e a outra, mediata, que foi a própria ação do substrato Por substrato, entende-
linguístico1. O produto de todas essas transformações teve como se como toda língua
falada que, numa região
surgimento os diferentes romances e, posteriormente, as várias línguas determinada, por várias
vezes, foi substituída por
neolatinas que preservarão as marcas de todas essas alterações. outra, cumprindo tomar
Nessa perspectiva de diferenciar o latim vulgar (Sermo em consideração a
influência que a língua
Populus) do latim literário, Ilari e Basso, (2007) pontuam que essas anterior pode ter sobre a
língua que a sucedeu.
modalidades distinguem-se parcialmente tanto em sua estrutura Exemplo: os falares
gramatical quanto em seu léxico; e é por conta disso que certas célticos utilizados na
Gália antes da conquista
características marcantes da frase latina, tais como as declinações, romana são substratos
do galo-romano. (Dubois
a voz passiva sintética, a construção de acusativo com infinitivo ou 2004).
o ablativo absoluto não aparecem em todas as línguas românicas;
pelo mesmo motivo encontramos no português casa, boca, espada
em vez de domus, os, gladius.
Por esse exposto, nosso entendimento fica claro que o latim
nunca foi uma língua homogênea e, em se tratando de latim vulgar,
mais evidente fica a diferenciação entre o latim falado em Roma e
o falado nas demais províncias. Essa diferenciação evoluiu para
sistemas linguísticos divergentes cindindo o latim, como temos
conhecimento, em diversas línguas diferentes.

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Formação histórica da língua portuguesa

Pautados, portanto, nesses fatos históricos, que


reconhecemos como principal componente linguístico da formação
do português a língua de Roma - o Latim. É cabível, entretanto,
chamarmos atenção para o fato de que a consequência linguística
da “diferenciação do latim” pode ser abordada sob dois pontos de
vista,harmonicamente, conjugáveis: a) a própria história interna do
latim cuja evolução da estrutura gramatical e lexical favoreceu a
diferenciação em sistemas separados regionalmente e b) a história
externa, ou seja, a influência direta de fatores históricos, político,
geográficos e culturais que exerceram sobre esse sistema linguistico.

1.3 AS INVASÕES BÁRBARAS NA PENÍNSULA

Para Teyssier (1997), um dos pontos mais obscuros da


história linguística peninsular é o que compreende os períodos
entre 409 a 711 em decorrência das invasões dos povos
germânicos (principalmente Suevos e Visigodos) e da invasão
muçulmana, respectivamente. Sobre os Suevos e Visigodos, no
que tange à língua e à cultura pode-se afirmar que a sua contribuição
foi mínima, uma vez que por absorverem rapidamente a cultura e
língua romanas promovem o rompimento da, até então, unidade
romana. Com eles, o latim falado evolui rapidamente. Os
muçulmanos, por sua vez, pode-se dizer que como eram povos
essencialmente árabes e berberes do Maghreb, a língua árabe foi
adaptada como língua administrativa nas regiões conquistadas.
Todavia, a população continuou a falar o latim vulgar, logo da
expulsão destes povos da Península em 1249.
Acresce-se a esses fatos que a invasão muçulmana e a
Reconquista cristã:
[...] são acontecimentos determinantes para a

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formação de três das línguas peninsulares – o galego-


português, oeste da Península, o castelhano, no
centro, e o catalão a leste. Todas as três línguas
foram levadas para o Sul pela Reconquista. Nas
regiões setentrionais, a influência linguística e cultural
dos muçulmanos foi a mais fraca em relação às
demais regiões. No oeste, em particular, a marca
árabe-islâmica é muito superficial ao norte do Douro,
o que compreende, hoje, à região da Galiza e ao
extremo norte de Portugal. Foi na primeira destas
regiões, ao norte do Douro, que se formou a língua
galego-portuguesa, cujos primeiros textos escritos
aparecem no século XIII (TEYSSIER, 1997, p. 6-7).

Um dos pontos relevantes da Reconquista foi a promoção


da mobilidade populacional para áreas anteriormente
despovoadas. Os cristãos repovoaram esses territórios. Assim, o
galego-português recobriu, progressivamente, toda a parte central
e meridional do território português. E, uma vez adotado pelos
moçárabes e demais elementos alógenos integrantes do
repovoamento esta língua - galego-português – passa a sofrer uma
evolução gradativa que, posteriormente, transformar-se-á no português.
Desta forma, os séculos IX a XIII firmam-se como períodos
decisivos para a emergência do galego-português que, já tendo
sofrido algumas inovações e ignorado outras, se distancia muito
dos outros falares ibéricos.

1.4 EVOLUÇÕES FONÉTICAS EVIDENCIADAS NA PASSAGEM


DO LATIM AO GALEGO-PORTUGUÊS

Segundo Teyssier (1997), cronologicamente, é só a partir


do término do período imperial que o latim conhece as evoluções
fonéticas. Tomando-se o latim como o ponto de partida de uma
língua a caminho da evolução, a primeira redução a ser observada,
no vocalismo tônico do latim clássico, diz respeito às perdas de

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Formação histórica da língua portuguesa

oposições de quantidade sofridas pelo latim imperial em relação


ao latim clássico, que se resumem na Tabela 1 a seguir:

Tabela 1: Evolução do vocalismo português

Fonte: TEYSSIER, Paul. História da Língua Portuguesa. São Paulo:


Martins Fontes, 1997. p. 9.

Essa tabela mostra que o latim clássico possuía cinco


timbres vocálicos, pois havia uma vogal breve indicada pelo sinal ¢
(bráquia) e uma vogal longa indicada pelo sinal - (mácron) para
cada timbre, perfazendo um total de dez fonemas.

A partir do século VII, com o desaparecimento da


quantidade, a distinção entre as vogais passou a ser percebida
através da intensidade (COUTINHO, 1976).
À evolução do vocalismo tônico são acrescentadas, ainda,
as alterações que os ditongos æ e œ, assim referidas por Teyssier
(1997), sofreram ao passarem de uma modalidade a outra,
resultando em vogais simples com timbres distintos, tais como
descrevem os exemplos cæcum > port. cêgo e fœdum > port. feo,
22
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hoje feio. O sistema vocálico tônico do latim imperial passa, então, a


ser constituído por sete vogais, resultantes das modificações fonéticas
sofridas pelas dez vogais e pelos dois ditongos do latim clássico.
Vê-se, então, que, nessa passagem do latim clássico para o
latim imperial, as quatro vogais médias permaneceram não se
distinguindo todas pela duração, mas pela diferença de abertura
representada por /e/
. e /e/ e¢ /o/ e /o/;
. todavia, quando em posição átona,
e¢ e o o¢ passaram a ser pronunciadas, respectivamente, como e. e o.
fechadas e como ê e o abertos.
Contudo, é somente na segunda metade do século XIII que
algumas modificações fonéticofonológicas do galego-português são
estabelecidas para o sistema vocálico. Assim, o sistema das vogais
orais tônicas em galego-português medieval permaneceu o mesmo
do latim imperial, com sete vogais (TEYSSIER, 1997, p. 30).

/i/ /u/

/e/
. /o/
.
/ê/ /a/ /o/
Figura 1: Sistema vocálico tônico do galegoportuguês,
segundo Teyssier (1997, p.31)

Ex.: /i/: aqui, amigo; /e/:


. verde, vez; /ê/: perde dez; /a/: mar,
levado: /o/: pôs, boca; /o/:
. pós, porta; /u/ : tu

Todavia, quando essas vogais se encontram em posição


pretônica, as oposições de timbre, entre /e/
. e /ê/, de um lado, e
entre /o/
. e /o/, do outro, neutralizam-se em favor das vogais de timbre
fechado, reduzindo o sistema de sete para cinco fonemas
(TEYSSIER, 1997, p. 31).

23
Formação histórica da língua portuguesa

Figura 2: Sistema vocálico átono do galego português


/i/ /u/
/e/ /o/

/a/

Exemplos: quitar, pecar, trager, conhecer, burlar

É, então, no período compreendido entre o século XIII e


meados do século XIV que o galego-português medieval apresenta
uma diferenciação entre os sistemas vocálicos tônico e pretônico.
Importa saber, então, se essa diferenciação no sistema vocálico
quando em posição pretônica vai permanecer ou sofrer outras
modificações com a evolução da língua. Esse será um fator de
diferenciação entre o português de Portugal e do Brasil mais tarde?
No que tange às consoantes, para Coutinho (1976) e
Teyssier (1997) o processo de palatalização dentre as inovações
fonéticas do latim imperial é um dos que processos que terão
consequências importantíssimas para o galego-português
medieval. É o caso das consoantes simples:
• dos grupos ci, ce e gi, ge, em que as consoantes c e
g,antes articuladas como oclusivas(quilha, queda, guizo e guerra),
assimilaram o ponto de articulação das vogais i e e, isto é, zona
palatal, tornando a pronúncia palatalizada como: [kyi], [kye] e [gyi],
[gye], em que,[kyi], [kye] passaram a ser pronunciados [tši], [tše] e
-
depois a [tsi], [tse] como em: ciuitatem > port. cidade; centum >
port. cento, retraindo-se a cem. Já para os grupos gi, ge o resultado
do processo de palatalização será primeiro um yod puro e simples
[y], que desaparece em posição intervocálica como em: regina >
port. rainha, frigidum > port. frio. Porém, quando em posição inicial,
este yod passa [d•], como por exemplo: gente(cujo g representa

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na Idade Média a fricativa [d•]). Portanto, em galego-português


medieval os grupos gi, ge e ju eram, pronunciados como [d•i], [d•e]
e [d•u];
• dos grupos fonéticos [ty], [dy], [ly] e [ny] palatalizam-se
em [tsy] e [dzy], [lh] e [nh];
• do yod proveniente de i e e em hiato e depois de –ss-,
esta consoante passou a [š]; ex.: russem > roxo;
• da queda do l e n quando seguidos de um yod passaram
a [lh] e [nh]; ex.: filium > port. filho, seniore > port. senhor.
Estes processos de palatalização tiveram como resultado
o surgimento de seis novos fonemas no galego-português medieval:
/ts/, hoje /s/, como em cidade; /dz/, hoje /z/, como prezar; /d•/, hoje
/•/, como em gente, hoje, vejo; /š/ sem modificação no português
moderno, como roxo; /lh/ sem modificação no português moderno,
como filho; /nh/ sem modificação no português moderno, como
senhor, tenho.
Em relação aos grupos de consoantes contíguas,
focaremos naqueles de procedência românicas porque são neles
que se veem acelerar a deriva que transformará o latim em proto-
romance e surgimento de algumas fronteiras linguísticas. Uma
destas fronteiras separará os falares ibéricos ocidentais, fazendo
emergir daí o galego-português, dos falares do Centro da Península,
origem do leonês e castelhano. Assim, constataremos que os
grupos consonantais românicos -cl-, -fl-, -pl-, quando precedidos
de consoantes modificaram-se para –ch-. E, quando este mesmo
grupo mais –bl- e –gl-, está precedido de vogal, modificam-se
para lh.

25
Formação histórica da língua portuguesa

1.5 EVOLUÇÕES DA MORFOLOGIA E DA SINTAXE


EVIDENCIADAS NA PASSAGEM DO LATIM AO GALEGO-
PORTUGUÊS

Do ponto de vista da estrutura da língua, a questão das


modificações ocorridas na morfologia e na sintaxe é mais complexa
e diversificada porque envolve simplificações nas formas
desinências, o que resulta no empobrecimento da morfologia
nominal do galego-português em relação ao latim. Como não
podemos separar morfologia de sintaxe, sobremodo quando se
trata do latim, as evoluções evidenciadas na morfologia se fazem
refletir na sintaxe. Tais modificações podem ser assim sintetizadas:
• A declinação latina sofre uma severa redução
desaparecerendo muitos dos seus casos, apenas, sobrevivem as
formas oriundas do acusativo: singular e plural;
• O trio genérico do latim - masculino, feminino e neutro -
reduz-se a dois com o desaparecimento do neutro;
• As quatro formas pronominais illum, illam, illos, illas
modfificam-se para lo, la, los, las, como consequência da aférese
sofrida pelo seu emprego proclítico;
• As relações sintáticas expressas pelas desinências
casuais latinas passam a ser expressas pelas preposições ou pela
própria colocação da palavra na frase;
• A morfologia verbal sofre uma considerável simplificação.
Essas modificações estruturais solidificam-se no galego-
português e passam a distingui-lo das línguas do conjunto hispânico,
como também caracterizaram um estado de língua diferente do
que virá ser o português moderno.

26
FUESPI/NEAD - Português

1.6 FORMAÇÃO DO VOCABULÁRIO: EMPRÉSTIMOS


RELEVANTES QUE SE FIZERAM ENTRE A ÉPOCA ROMANA
E OS PRIMEIROS TEXTOS ESCRITOS

• Origem germânica: palavras que pertencem


principalmente a determinados campos semânticos, tais como
guerra(guerra, roubar, espiar), a indumentária (fato, ataviar), a casa
e seu equipamento (estaca, espeto), os animais (ganso). Nomes
de pessoas (Fernando, Rodrigo, Álvaro etc.);
• Origem árabe: palavras que se referem à agricultura, aos
animais e às plantas: arroz, azeite, azeitona, bolota, alface, javali;
às ciências, às técnicas e às artes: alfinete, alicate, alicerce, azulejo;
às profissões: alfaiate, almoxarife, alfândega; culinária e
alimentação: acepipe, açúcar etc.
Entretanto, é válido ressaltar que em relação às palavras
de origem árabe que grande parte destas já não mais é usada na
língua corrente e, até, tratadas como arcaísmos. Na verdade, a
arabização do léxico português em outros tempos foi bem mais
elástica do que hoje.

SAIBA MAIS

TEXTO I

Bem-vindo à Península Ibérica dos árabes


Saiba como o domínio
muçulmano contribuiu
Ao chegar à Península Ibérica, já trazendo na bagagem para cultura ibérica e
alguns desses conhecimentos, os muçulmanos encontraram uma porque a maioria dos
brasileiros tem um
cultura cristã que também misturava elementos herdados de
pouquinho de árabe.
diferentes povos. Havia contribuições dadas pelos pré-latinos, pelos

27
Formação histórica da língua portuguesa

latinos isto é, romanos e por bárbaros, como os visigodos, que


haviam dominado a península numa época anterior.
Embora cientificamente mais adiantados, os árabes não
desprezaram esses conhecimentos: os utilizaram nas escolas e
observatórios que criaram na Península Ibérica e deram a eles a
sua própria contribuição. Assim, surgiu uma cultura riquíssima e
uma ciência que não só produziu obras muito importantes, como
também foi aproveitada na prática.
As grandes navegações, por exemplo, devem muito a
instrumentos como o quadrante e o sextante, desenvolvidos pelos
muçulmanos, assim com aos mapas e às descrições feitas por eles.
Mas não é só. Sob o domínio dos árabes, a agricultura na Península
Ibérica foi incrementada com novas técnicas de semeadura e irrigação.
Os sistemas jurídico e administrativo se tornaram mais eficazes. A
química, a botânica a ciência que estuda as plantas e a farmacologia
a ciência que estuda os medicamentos tiveram amplo
desenvolvimento, assim como a filosofia e as letras. O saber se tornou
mais acessível ao povo do que em qualquer outra região da Europa.
Em Al-Andalus como os árabes chamavam a Península Ibérica , havia
escolas e universidades, observatórios, hospitais e bibliotecas. Dessa
forma, começou a surgir uma cultura cientifica baseada nas tradições
árabes ou adquiridas por meio desses povos.

Fim de uma era

Mas o domínio dos árabes sobre a Península Ibérica um


dia terminou. Não foi de repente: ao longo dos séculos, com guerras,
os cristãos tentaram retomar o domínio nas regiões que os
muçulmanos foram ocupando. Esse processo de retomada ficou
conhecido como Reconquista. Até que conseguiram.

28
FUESPI/NEAD - Português

Detalhe do interior da mesquita de Córdoba: vestígios da presença


árabe na Espanha que ainda podem ser apreciados (Foto: Agência
O Globo).

Com a expulsão dos últimos árabes, os vestígios de sua


dominação sobre a Península Ibérica foram ficando mais
apagados. Porém, seu legado ainda salta aos olhos quando
observamos monumentos como a mesquita de Córdoba um templo
muçulmano localizado na Espanha , quando ouvimos a música de
regiões como o Sul da Espanha onde a presença árabe foi forte
ou quando pensamos em certas descobertas e conquistas
científicas, feitas pelos muçulmanos.
Até nas próprias línguas que se falam na Espanha e em
Portugal e em suas antigas colônias, como o Brasil podemos
encontrar indícios da presença dos muçulmanos na Península
Ibérica. Isso porque, nelas, há palavras de origem arábica, muitas
referentes a artes e ofícios como alfaiate e almofada ou a gêneros
introduzidos na Europa pelos árabes como o azeite, o arroz e o
algodão vendidos no armazém do seu Manuel. Aliás, sabia que
até os tata-tata-tataravós do Seu Manuel podem ter sido árabes?

29
Formação histórica da língua portuguesa

Pois é. Muitos portugueses e espanhóis descendem de


muçulmanos, o que também ocorre, naturalmente, com os seus
descendentes no Brasil!
Mesmo que esse não seja o seu caso, ainda assim, você,
como brasileiro, compartilha essa herança, por meio de tradições
que foram trazidas para cá pelos portugueses, no tempo da
colonização. Alguns contos populares, como A moura-torta , são
de origem árabe, e o mesmo ocorre com certos folguedos
tradicionais, como a festa popular nordestina conhecida como
Chegança. Como o nome sugere, esse folguedo representa a
chegada dos mouros por mar, quando são combatidos e vencidos
pelos cristãos. Sendo que, no final, todos fazem as pazes e a festa
continua!

Os mouros

Mouros são os naturais da Mauritânia, um país africano.


No passado, quando a Mauritânia adotou como religião o
Islamismo, a palavra “mouro” passou a ser usada como sinônimo
de muçulmano ou islâmico, o seguidor do islamismo na Península
Ibérica, embora, na verdade, não tenha esse significado. Ela
também já foi associada ao pagão, ao não-cristão, ao inimigo, aos
negros e, principalmente, aos escravos.
Revista CHC (Edição 152)
Por: Ana Lúcia Merege Correia
Publicado em 20/11/2004 | Atualizado em 04/03/2010

Leia mais sobre a Língua Portuguesa no século XII a XX.


SPINA, Segismundo. História da Língua Portuguesa.
São Paulo: Ateliê, 2008.

30
FUESPI/NEAD - Português

LEITURA COMPLEMENTAR

Para maior aprofundamento do tema acima discutido


recomendamos: FURLAN, Oswaldo Antônio. Latim para o
português: gramática, língua e literatura. Florianópolis: Ed. da
UFSC, 2006.
Para verificação de um ponto de vista interessante sobre
os países que falam a língua portuguesa, visite o site da
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP
www.cplp.org e www.tlfq.ulaval.cal/axl/.

RESUMO

A revisão dos fatos históricos impõe-nos como primeiros


passos obrigatórios a recuperação da genealogia do português.
Para isso partimos de seu antepassado imediato: o Latim. A
riqueza de informações constantes nas origens temporais dessa
língua explica muitas características do português. A propósito, essa
volta à língua-mãe e seus desdobramentos permite-nos identificar
as principais relações de parentesco do português com outras
línguas, como também é o único meio de aquilatar até que ponto o
português se enriqueceu.
Para início de conversa, o latim é uma das línguas que
constituem a “família itálica” do tronco “indo-europeu” no qual
também se agasalha outras famílias de línguas. Assim, passamos
a saber que se integram ao conjunto das línguas indo-europeias o
latim e todas as línguas românicas e, dentre elas, a nossa língua
portuguesa. Conheça, então, a árvore genealógica do português
exposta no Gráfico 1, a seguir.

31
Formação histórica da língua portuguesa

Gráfico 1: Árvore genealógica do Português

Português, Galego, Castelhano,


Catalão, Occitano, Francês, Rético
ou Reto-romance, Italiano, Sardo, +
Dalmático, Romeno
( Itálico) ( Latim)

( Céltico) Galês, Irlandês, Bretão, Gaélico, Gaulês

Albanês
( Hitita)
Indo-europeu ( Grego antigo) Grego moderno
Báltico ( Antigo Prussiano) Letão, Lituano
Balto-eslavo Ocidental: Tcheco, Eslovaco, Polonês etc.
Eslavo Oriental: Russo, Ucraniano, Bielorusso etc.
Meridional: Búlgaro, Macedônio,
Serbo-croata, Esloveno etc.

Oriental: ( Gótico)
Germânico Nórdico: Islandês, Norueguês, Sueco, Dinamarquês, Faroês
Ocidental: Alemão, Inglês, Flamengo, Holandês, Africâner
Armênico
Irânico: Persa etc.
Indo-irânico
Noroeste: Panjabi etc.
Indo-ariano Leste e sudoeste: Guarajati etc.
Centro: ( Sânscrito), Hindi
Leste: Bengali
( Tocário)

Martinet (1987), pontua que este substantivo “indo-europeu”


deve ser entendido no plural, posto que essa língua não deve ser
concebida como estável, estruturada falada por um povo fixado em
um território, mas como um conjunto de línguas que evoluiu de forma
conexa e foi usada por povos não necessariamente aparentados.
Nessa retrospectiva, aprendemos que o berço da língua
portuguesa foi o latim vulgar. Assim, podemos pontuar a formação
do português ressaltando que:
• Ao dizer que o português deriva do latim, relacionamos
indiretamente as suas origens linguísticas a uma terceira variedade
daquela língua: o latim vulgar.
• A diferenciação linguística regional do latim resultou das:
diferentes épocas da romanização; diversidades dos substratos

32
FUESPI/NEAD - Português

linguisticos e culturais dos povos conquistados; descentralização


política e administrativa do Império, ocasionando a criação de
regiões administrativas, o que levou Roma a perder o privilégio de
ditar moda linguística. Toda essa diferenciação configura-se como
a mola propulsora da derivação do latim para as línguas neolatinas.
Esse latim modificado é que deu origem, desde o fim do século V
d.C, aos falares neolatinos regionais, romances ou romanços.
• Da derivação do latim ao galego-português, podemos
pontuar no nível fonético o caráter conservador do vocalismo latino
no galego-português; no morfossintático, a notável simplificação
da declinação nominal e, por fim, o nível lexical sofre o acréscimo
de palavras novas oriundas de empréstimos às línguas dos povos
habitantes da Península quando da chegada dos romanos.
Acrescem-se a esses fatos linguisticos que deram origem
ao português os de cunho políticos como o processo de
Reconquista. Na realidade, houve várias reconquistas que
propiciaram a formação dos reinos de Portugal, Castela e Aragão.
Quais foram, então, os efeitos linguisticos desses movimentos
políticos no sistema linguístico?
• As línguas mais prestigiadas da Península Ibérica (galego,
leonês, asturiano, castelhano e o aragonês) impuseram-se a outras
línguas vizinhas, que desapareceram e ao se expandirem para o
sul da Península acabaram por suplantar também o árabe;
• Formação de Estados fortes cujo centro geográfico
deslocou-se progressivamente para o sul da Península;
• Transferência da capital do Estado português da cidade
do Porto para a cidade de Guimarães e depois para Lisboa,
fazendo com que toda a base territorial da Língua Portuguesa se
deslocasse do norte para o sul do rio Douro. Daí resulta a separação
entre o português e o galego.

33
Formação histórica da língua portuguesa

ATIVIDADE DE APRENDIZAGEM

1 - Considere os textos Bem-vindo à Península Ibérica dos


árabes e Nossa Língua Portuguesa e pontue os fatos
principais que contribuíram na formação da língua
portuguesa.

2 - Tendo em vista todo o exposto, nesta Unidade,


atestamos que é impossível contar a História da Formação da
Língua Portuguesa se não olharmos para o passado. Assim,
proceda:
a) Enumere as razões desse retorno no tempo,
sucintamente.
b) Elabore fichamentos de cada item estudado.

34
UNIDADE 2
O DESPERTAR DA LÍNGUA PORTUGUESA: O
PORTUGUÊS EUROPEU

OBJETIVOS

• Conhecer a pré-história do português com o olhar voltado para seu antepassado


imediato: o latim vulgar;
• Reconhecer as modalidades linguísticas apresentadas pelo latim;
• Identificar as principais evoluções estruturais evidenciadas na passagem do latim
ao galego-português.
FUESPI/NEAD - Português

2 DESPERTAR DA LÍNGUA PORTUGUESA: O PORTUGUÊS


EUROPEU

Fonte:http://www.anpoll.org.br/revista/index.php/rev/article/view/
103/95

“Peço a quem conhecer meus erros que os emende.


E todavia não murmurando em sua casa, porque desfaz em si.”
(OLIVEIRA, Fernão de. Gramática da Língua Portuguesa. 1536, p.40)

Na Unidade I, estudamos as questões históricas relativas


à formação e origem da Língua Portuguesa tendo como marco zero
a própria História da Península Ibérica ressaltando as evoluções
linguísticas que confluíram na formação de um novo sistema
linguísitico: o galego-português. Nesta unidade, daremos
continuidade às discussões históricas, porém concentraremos
nossa atenção para a consolidação da Língua Portuguesa em
consequência da perda da força literária do galego-português.
Grosso modo, pode-se afirmar que o isolamento do galego
em relação ao português, segundo a História, começa a partir do
século XIV com a prosa literária já em português. É, porém, no
século XVI que o galego-português perde sua força na língua

37
Formação histórica da língua portuguesa

literária, sendo usado apenas na oralidade. Por conta disso, passa


a sofrer uma série de evoluções fonéticas que o afastarão cada
vez mais do português.
Uma vez distinto do galego, o português firma-se como
uma língua nacional, praticamente em todo território português,
ignorando os vários problemas surgidos em algumas regiões em
que a fronteira linguística não conseguiu recobrir a fronteira política,
pois mesmo a resistente sobrevivência dos dialetos regionais não
refreou a difusão do português que passará por diversos estágios
evolutivos. É o que veremos nesta unidade cujo objetivo é mostrar
todos os estágios linguísticos transitórios do português antigo e do
português clássico seguidos da expansão da língua, por meio das
conquistas além-mar. Para tanto, dividimos a nossa etapa de
estudo desse tema abordando dois enfoques que, a nosso ver,
descrevem bem o despertar da língua portuguesa: o primeiro, diz
respeito às propostas de periodizações do português, apesar da
sua complexidade, delineam didaticamente os estágios evolutivos
pelos quais passaram o português; o outro enfoque refere-se às
consequências linguísticas da expansão do português fora do
contexto geográfico europeu.

2.1 PERIODIZAÇÕES DO PORTUGUÊS: A COMPLEXIDADE

Do ponto de vista da história da língua portuguesa, é por


demais complexos precisar, satisfatoriamente, os períodos que
compreendem os estágios evolutivos da Língua Portuguesa.
Entretanto, dado o seu caráter de síntese a periodização, em termos
didáticos, ajuda-nos a melhor visualizar, não só as mudanças
estruturais (como as que ocorreram na fonética, morfologia e
sintaxe), mas também as funções sociais desencadeadas por toda

38
FUESPI/NEAD - Português

essa evolução (como por exemplo, poder tornar-se veículo para a


expressão de novos gêneros, quer literários ou não) e, ainda,
perceber gradualmente os padrões de normativização pelos os
quais a língua passou, no que respeita à ortografia e,
consequentemente, no modo de apresentação dos textos.
Temos conhecimento, através de estudos sobre a história
da língua portuguesa, das diversas propostas de periodizações
do português. Todavia, temos consciência dos desacordos
cronológicos ali apresentados e das arbitrariedades de suas
delimitações no fluxo da história, visto que é impossível precisá-
las cronologicamente. Há, no entanto, uma consonância nesses
estudos no que respeita às fases delimitadas dentro da história:
fase arcaica (classificam-se nesta fase as Cantigas dos
Trovadores), fase clássica (Os Lusíadas, de Camões, é a obra
mais representativa desta fase) e fase moderna (exemplificam-
se nesta fase as línguas de Machado de Assis e Eça de Queiroz).
Podemos visualizar melhor os desacordos cronológicos
apresentados por alguns estudiosos da história da língua
portuguesa no Quadro 1, a seguir:

Quadro 1 – Divergências cronológicas entre os períodos evolutivos da língua portuguesa


Leite de Serafim da Pilar Vásquez Luis Felipe Maria Helena
Vasconcelos Silva Neto Cuesta Lindley Cintra Mira- Mateus

Período pré-
Antes de Período pré- Período pré-
literário
900 histórico (882) histórico (882)
(até 1216)
Período pré-
literário
900-1000 Período antigo
(até 1216)
Período proto - Período proto-
histórico (882 histórico
1000-1100 até1214/1216) ( até 1214/1216)

1100-1200

39
Formação histórica da língua portuguesa

1200-1300 Período Galego- Período antigo


trovadoresco português (1216 até 1385/
(1216 até 1420) (1216 até 1385/
1420)
Período arcaico 1420)
1300-1400 (1216 até 138 –
1420) Período comum Período pré- Período médio
(1420 até 1536/ clássico (1420 até 1536/
1550) (1420 até 1536/ Período antigo
1550)
1400-1500 1550)

Período Período Período médio


1500-1600 Período Período
moderno moderno clássico (1550 clássico (1550
1600-1700
até o séc. até o séc.
XVIII) XVIII)
1700-1800

Período Período Período


1800-1900
moderno moderno moderno

1900-2000

Fonte: ILARI, Rodolfo e BASSO, Renato. O Português da gente: a língua que estudamos
a língua que falamos, 2007, pág. 21.

Fica evidente, pelas periodizações da Língua Portuguesa


arroladas no quadro acima, que não há uma coincidência perfeita
entre as propostas de cada autor. Entretanto, é fato consabido que,
para efeito de melhor compreensão dos fenômenos linguísticos não
podemos isolar os fatos históricos da língua dos políticos e dos
sociais. Podemos, sim, considerando os fatos mais relevantes de
cada período, ordenar as principais evoluções linguísticas de cada
fase. Posto que, reiterando a convicção de Mattos e Silva (2006,
p.250) “a história de uma língua se esclarece pela história social e
política do povo que usa essa língua”. Desta forma, destacaremos,
a seguir, os fatos pontuais de cada fase.

40
FUESPI/NEAD - Português

2.1.1 O Português Arcaico

Compreende o período histórico da língua portuguesa que


vai da formação do Estado português, século XIII, até o apogeu
das grandes navegações no século XV. Todavia, chamamos
atenção mais uma vez para o fato de que qualquer tentativa de
delimitação temporal entre as fases é arbitrária, tendo em vista o
fluxo da própria história.
Mattos e Silva (1991) destaca que o nascimento do português
arcaico coincide com a história da escrita da língua portuguesa sendo
marcada pelo registro do Testamento de Afonso II, de 1214, e a
Notícia do Torto, escrita entre 1214-1216. Contudo, ressalta a autora
que, se esta fase é marcada por esses registros o seu limite final, em
termos de fatos linguísticos, está em aberto na expectativa de que se
estabeleça uma cronologia relativa para o desaparecimento de
características linguísticas que configuram esta fase em oposição ao
português moderno. Na verdade, são os acontecimentos externos à
língua que balizam o fim do período arcaico tais como:
√ Surgimento do livro impresso;
√ Incremento da expansão imperialista portuguesa no mundo;
√ Delineamento de um normativização gramatical em 1536
com a gramática de Fernão de Oliveira e 1540 com a gramática
de João de Barros;
√ O Português como a língua da escola ao lado do latim
(língua exclusiva em toda Idade Média).
A título de conhecimento dos primeiros registros escritos
no português arcaico, vejamos os fragmentos a seguir. As letras L
e T indicam dois testemunhos do documento um em Lisboa e outra
em Toledo, daí a designação através das letras supracitadas.

41
Formação histórica da língua portuguesa

Fonte: CASTRO, Ivo. 1991, p.198.

Testamento de D. Afonso II,


1214, segundo Castro (1991) foi
redigido para garantir a paz e a
tranquilidade da família e do reino, no
caso de uma morte prematura, dada a
sua compleição enfermiça. O
documento garantia a sucessão do
reino pela sucessão varonil ou na falta
desta pela filha mais velha. Delega ao
D. Afonso II – Monarca de Papa a tutela dos filhos e filhas
Portugal menores, a proteção do governo e a
execução do testamento, para tanto, na divisão dos bens contempla,
além da rainha e dos filhos, o Papa, a diocese e alguns mosteiros.
A palavra Torto em A Notícia de Torto é uma longa narrativa sobre uma
português medieval
significava “ofensas”, desavença entre as famílias de Gonçalo Ramires e de Lourenço
prejuízos” , “injustiça
feita a alguém, Fernandes, em função de uma quebra de contrato que
“injúrias” etc. desencadeia uma série de violências físicas. Conforme Castro

42
FUESPI/NEAD - Português

Esse relato, na
verdade, trata-se de um
rascunho em que o escriba
registrava a ocorrência na
medida em que os
envolvidos na desavença
iam falando, eram anotadas
tais falas em português e
algumas em latim, língua
que seria utilizada no texto
final. Daí a mistura de
algumas palavras no
português e outras em latim!
Descobriu-se ainda, segundo Ilari e Basso (2007), um
documento ainda mais antigo, o da Notícia de Fiadores, datada
de 1175. O documento registra uma pequena lista de nomes que
termina com uma única frase com morfologia e sintaxe
portuguesas. É o que podemos constatar na figura abaixo.

Fonte: <http://cvc.instituto-camoes.pt/tempolingua/07.html>

43
Formação histórica da língua portuguesa

2.1. 2 O Português Clássico

Compreende o período em que a Língua Portuguesa se


aproxima da Idade Moderna. Apesar de toda a efervescência
linguística da época, os seus registros passam a revelar uma
estabilização das suas estruturas que nos autoriza a arbitrar esse
período como o marco zero de uma reflexão metalinguística.
Caracterizado por uma forte efervescência na cultura e nas artes,
o português clássico é representado, especialmente, por grandes
poetas, historiadores e dramaturgos, como:
Francisco Sá de Miranda – poeta
português, que, sob influência greco-
romana, incorporou a nova poética
renascentista ao seu estilo e introduziu o
espírito renascentista na literatura lusitana.
Suas produções literárias concentram-se
em sonetos, cartas, canções e elegias.
Entretanto, esse poeta apresenta um
paradoxo nas suas produções, pois por um
lado elas revelaram as novidades literárias
do renascimento italiano e espanhol; mas por outro se manteve fiel
às estruturas poéticas tradicionais
como o metro curto e a linguagem
conservadora procedente dos fins da
Idade Média. Abaixo, apresentamos
um poema de Sá de Miranda em
Azulejos da Casa do Barreiro que
denotam essas características.

Fonte:<http://pt.wikipedia.org/wiki/
Luis Vaz de Camões - maior
S%C3%A1_de_Miranda> poeta lírico do classicismo português.

44
FUESPI/NEAD - Português

A língua de Camões constitui, verdadeiramente, o português


clássico. Sua grande obra poética Os Lusíada, 1572, é considerada
a epopeia portuguesa por excelência. Composta por dez cantos,
1102 estrofes, portanto, 8816 versos decassílabos heróicos,
organizados em oitava rima, cuja ação central da obra é a
descoberta do caminho marítimo para a Índia, por Vasco da Gama.
Outros episódios margeiam o núcleo central em que se narram a
história de Portugal, glorificando-se os feitos do povo português.
Confira abaixo a capa da primeira edição de Os Lusíadas, 1572.

Fonte: <http://www.institutocamoes.com.br>

Segundo Moisés (1991), a obra divide-se em três partes:

1ª Introdução (18 primeiras estâncias), subdividida


em Proposição(estâncias 1-3): o poeta se propõe
cantar as façanhas das “armas e os barões
assinalados”, isto é, os feitos bélicos de homens
ilustres; Invocação (estâncias 4 - 5): o poeta invoca
as Tágides, musas do rio Tejo; Oferecimento
(estâncias 6 -18) o poema é dedicado a D. Sebastião,
a cujas expensas se deve a sua publicação; 2ª

45
Formação histórica da língua portuguesa

Narração (Canto I, estância 19 – Canto X, estância


144); 3ª Epílogo (Canto X, estâncias 145 – 156)
(MOISÉS, 1991, p. 57).

Na realidade, a obra Os Lusíadas representa


fidedignamente o espírito novo trazido pela Renascença. Essa
narrativa caracteriza Portugal como terra de “armas e barões
assinalados” representando o papel de herói do poema.
Dentre os poetas portugueses do classicismo, há aqueles
que são ofuscados pelo brilho da poesia camoniana e são postos
em segundo plano, não obstante possuam
significado histórico-literário, é o caso de
Antônio Ferreira (1528-1569), doutrinador
do Classicismo em Portugal, considerado
um dos maiores poetas do classicismo
renascentista. Sua obra de maior destaque
é a tragédia A Castro (1587), cujo núcleo
temático – os amores de D. Pedro I e Inês
de Castro – ainda hoje nos sensibiliza a
interpretação que esse poeta nos ofereceu.
Por outro lado, o registro de todo
feito histórico do povo português no período
de grandeza e esplendor não foi temática
Fonte: <http://www.infopedia.pt/$antonio- restrita à poesia, a onda de apologia
demasiada à pátria contagiou muitos outros
letrados da época a imergir nesse campo e, assim, produzir obras
que expressassem esse sentimento tão dominante, cimentando
com documentos verídicos os fatos históricos observados, é o caso
da Historiografia que tem João de Barros seu maior representante.
Considerado o primeiro historiador português e o pioneiro da
gramática da língua portuguesa.

46
FUESPI/NEAD - Português

Fonte: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Joao_de_Barros>

Em se tratando de gramática da Língua Portuguesa,


Castro (1991) pontua que, cronologicamente, o marco inicial do
português clássico poderia ser assinalado por um evento editorial
de 1536 - a impressão da Grammatica da lingoagem portuguesa
de Fernão de Oliveira - sua importância reside no fato de poder
simbolizar uma nova fase no estudo do português.
Apesar de os estudiosos defenderem em uníssonos o fato
de que qualquer tentativa de precisão temporal é arbitrária, Castro
promove a primeira gramática como o primeiro testemunho da língua
em sua fase clássica, pois para ele:

[...] um tratado que toma a língua vulgar enquanto


bandeira de uma nacionalidade que, atenta, na sua
variação cronológica, regional e social, e que avança
com uma proposta de adopção de um código escrito
uniforme, ostenta assim, um dos mais típicos sinais
do pensamento humanista. (CASTRO, 1991,
pág.244).

Se compararmos o português dos documentos medievais


(português arcaico) com o português do período clássico, veremos

47
Formação histórica da língua portuguesa

que este nos parece mais familiar. Isso é consequência de uma série
de evoluções ocorridas na fonética, na morfologia, sintaxe e léxico e
que se completaram no século XV. A seguir, veremos as evoluções
linguísticas que o português europeu sofreu em cada nível da língua:

I – No nível Fonético

A cronologia da eliminação dos encontros vocálicos,


Para Teyssier (1997, p.
49) a resolução desse especificamente hiatos, data de fins do século XV cujas soluções
processo começa
deste a época dos
fonético-morfológicas apresentadas para supressão desses
Cancioneiros cujos os fenômenos linguísticos foram:
textos dos poetas de
fins do século XV já a) epêntese de uma consoante nasal entre duas vogais
mostram.
que tem a função de suprimir a sequência de vogais instáveis, como
~ ~
no caso de -i-o e -i-a que evoluíram para –inho e –inha; ex.:gall
~ ~ ~ ~
ina > galia > galinha; una > ua > uma;
b) crase de duas vogais em hiato em uma única vogal,
ressaltando-se que quando uma das vogais é nasal cujo resultado
será sempre uma nasal não alterando o sistema fonológico porque
~ ~ ~
estas já existiam na língua [ã], [e], [i], [õ], [u], por ex.: sãna > sãa >
~ ~
sã; tenere > teere > ter. Todavia, quando a fusão se efetivou entre
duas vogais orais o resultado foi o surgimento de um novo fonema,
[ä] pronunciado de forma fechada, em oposição a [a] pronunciado
aberto, por ex.: ga-anha > ganha pronunciado com [ä] e pa-aço >
paço pronunciado com [a]. O sistema vocálico passa a ser, então,
[a], [ä], [e], [i], [o], [u];
c) os três fonemas vocálicos pretônicos abertos que temos
hoje, [E], [a], [O], resultaram da fusão em que o hiato tenha sido
[ee], [oo] e [aa], como por exemplo: pré-egar > pregar com [E]; co-
orar > corar com [O] e ca-aveira > caveira;
d) fusão de duas vogais em ditongo oral, tais como: malu

48
FUESPI/NEAD - Português

> mao > mau; soles > soes > sois;


e) a contração de uma vogal nasal com uma vogal oral deu
origem aos tão característicos ditongos nasais da língua
portuguesa, por exemplo: mã –o > mão, cã –es > cães.
Entretanto, concomitantemente ao desaparecimento desses
hiatos, outra série ia-se formando na língua pela queda do –d, da
desinência da segunda pessoa do plural dos verbos, no final do século
XV, assim desenvolveu-se: estades > esta-es > estaes > estais.
No que respeita à evolução do sistema consonantal,
destaca-se o caso da redução do quadro de quatro unidades
distintivas do sistema de sibilantes a duas. Antes a língua não
deixava dúvidas quanto à grafia, pois tinha-se as pré-dorsodentais
´
´ e sonora /z/;
surda /s/, e sonora /z/ e as ápico-alvolares surda /s/
uma vez fundido o sistema em favor das pré-dorsodentais ficando
uma pré-dorsodental surda /s/ e uma pré-dorsodental sonora /z/,
desencadeou-se a confusão gráfica entre as letras s, ss, c, ç e z.

II – No nível Morfológico, sintático e léxical

Contrariamente ao que ocorreu no nível das unidades


distintivas (os fonemas) em que a evolução do português seguiu a
sua própria deriva, o nível das unidades significativas que
compreendem a morfologia, sintaxe e léxico, por sua vez irá refletir
as modificações da sua própria história política e literária, tais
modificações fixaram a morfologia e a sintaxe de tal forma que
pouco variarão no curso da língua. Na morfologia, por exemplo: a
estrutura mórfica do nome e do adjetivo acolhe as evoluções
fonéticas como os plurais dos nomes em ão são fixados (mãos,
cães e leões) e o feminino do adjetivo em –ão, como são = sã. Os
paradigmas verbais simplificam-se referenciados pela analogia,

49
Formação histórica da língua portuguesa

assim senço, menço, arco foram substituídas sinto, minto, ardo. A


segunda pessoa do plural perde o –d- intervocálico e as formas
passaram a fixarem-se em -ais, -eis e –is, como amais, dizeis e
partis. A sintaxe, por sua vez, alimentou-se do apuro formal da
sintaxe latina com frases longas, sobrecarregadas de
subordinações, mas proporcionando uma nova maleabilidade. Por
fim, o léxico sofreu a inserção maciça de empréstimos feitos ao
latim literário, como lúcido, tuba, trêmulo, flutuar. O vigor da
presença do latim clássico na cultura quinhentista, conforme Ilari e
Basso (2007), põe em relevo um papel que já vinha exercendo
desde a Idade Média: o de ser uma língua de reserva.
Um dado curioso sobre o léxico que precisa ser
destacado, diz respeito aos influxos linguísticos que o português
europeu sofreu em contrapartida à abrangência dos descobrimentos
e, consequentemente, à força dos contatos com mais diversas
realidades exóticas, o que resultou em um elastecimento do léxico
através da incorporação de palavras procedentes dos continentes
explorados, como exemplos destes fenômenos, Ilari e Basso (2007,

Língua de reserva no p. 31) relacionam a procedência linguística das palavras:


sentido de se poder a) zebra (oriunda do etíope);
recorrer a esse “arquivo
linguístico” para criar b) canja (oriunda do malabar, uma língua falada na Índia e
novos termos de
caráter científico ou no norte do Sri-lank);
técnico de acordo com c) chá (oriunda do mandarim);
as necessidades
linguísticas. d) leque (derivado do nome chinês das Ilhas Léquias);
e) condore lhama( oriunda do quéchua);
f) cacau (oriunda nauatl);
g) chocolate (oriunda do azteca);
h) ananás, amendoim, mandioca e tapioca (oriundas do tupi).
Vê-se, então, que as consequências dos descobrimentos
no português, do ponto de vista do enriquecimento do léxico, foram

50
FUESPI/NEAD - Português

bastante relevantes; uma vez que, refletem também a expansão da


presença lusitana nos Continentes.
Assim, caro leitor, para um contato mais direto e concreto
com o português clássico, vale destacar a leitura e comentário de
um dos textos quinhentista mais importante da historiografia do
Brasil: a Carta de Pero Vaz de Caminha, excelente laboratório de
análise linguística do uso da língua da época.
Primeira página da Carta de Pero Vaz de Caminha:

Fonte: <htt//pt.wikipedia.org/wiki/ficheiro:carta-
caminha.png>

Respeitando a mesma marcação de linhas e paragrafação


do original, para transcrição da primeira página acima temos:

51
Formação histórica da língua portuguesa

Snõr

posto que o capitam moor desta vossa frota e asy os outros


capitaães screpuam a vossa alteza a noua do acha mento
desta vossa terra noua que se ora neesta naue gaçom achou,
nom leixarey tambem de dar disso c comta a vossa alteza
asy como eu milhor poder ajmda que pera o bem contar e
falar o saiba pior que todos fazer, pero tome vossa alteza
minha jnoramçia por boa comtade, a qual bem çerto crea que
por afremosentar nem afear aja aquy de poer ma is ca aquilo
que vy e me pareçeo. / da marinha jem e simgraduras do
caminho nõ darey aquy cõ ta a vossa alteza porque o nom
saberey fazer e os pilotos deuem teer ese cuidado e por tamto
Snõr do que ey de falar começo e diguo. /

que a partida de belem como vosa alteza sabe foy sega feira
ix de março, e sabado xiii do dito mes amtre as biij e ix oras
nos achamos antre as canareas mais perto da gran canarea
e aly amdamos todo aquele dia em calma a vista delas obra
de tres ou quatro legoas. e domingo xxij do dito mes aas x
oras pouco mais ou menos ouuemos vista da jlhas do cabo
verde .s. da jlha de sã njcolaao, sego dito de Po escobar piloto
e a noute segujmte aa segda feira lhe amanheçeo se perdeo
da frota Vaasco datayde com a sua naao sem hy auer tempo
forte nem contrairo pera poder seer. fez o capitam suas
diligençias pera o achar a huuas ´´ e a outras partes e nom
pareçeo majs. E asy segujmos nosso caminho per este mar
de lomgo ataa terça feira doitauas de pascoa que foram xxj
dias dabril que topamos alguus ´´ synaaes de tera seemdo da
dita jlha sego os pilotos deziam obra de bje lx ou lxx legoas, os
quaaes herã mujta cam tidade deruas compridas a que os
mareantes chamã botelho e asy outras a que tambem chamã
rrabo dasno / E aa quarta feira seguimte pola ma

É certo que esse documento definido como a Certidão de


Nascimento do Brasil tem muito mais a revelar do que uma

52
FUESPI/NEAD - Português

descrição das primeiras impressões dos portugueses sobre os


povos e a geografia, na realidade a Carta de Caminha reproduz
fidedignamente o uso da língua da época através de ortografias,
construções curiosas, repetições de consoantes, separação de
termos, usos de maiúsculas e minúsculas etc. Podemos extrair do
trecho acima exemplos destacados que atestam tais fatos
linguísticos como:
1) o uso do u por v – (noua, naue, deuem, ouuemos, deuem);
2) o uso de m depois de vogal e do ~ para assinalar a
nasalidade – (capitam, comta, simgraduras, nõ, Snõr, capitaães,
herã, chamã);
3) ausência da letra h antes das formas do verbo Haver –
(aja, auer, ouuemos), nota-se, porém, a presença desta letra em
um certo número de dígrafos (achou, minha, milhor, caminha,
caminho) e, também, diante de um (hum, huumas);
4) a repetição de vogais que se justifica sob dois
argumentos: porque não acompanharam a redução dos hiatos na
língua e para indicar a sílaba tônica (capitaães, aas, vaasco, naao,
´´ synaaes, aa);
alguus,
5) a letra j comporta-se como uma variante do i (jlhas,
segujmte, majs);
6) dada a flutuação entre b e v, biij representa o número
8, ou seja, VIII em algarismos romanos;
7) separação de termos (acha mento, naue gaçom, cam
tidade, mais).
O excurso histórico evolutivo por que passou a Língua
Portuguesa autoriza-nos a afirmar que todas as transformações
sofridas por essa língua estão, indissociavelmente, ligadas às
grandes evoluções no âmbito, político, social, econômico, artístico
e literário que se confluem sob a denominação de Renascimento.

53
Formação histórica da língua portuguesa

2.2 O PROCESSO DE LUSITANIZAÇÃO: A EXPANSÃO DO


PORTUGUÊS COM O ADVENTO DAS CONQUISTAS ALÉM MAR

Ao nos reportamos ao processo de lusitanização nas


terras que se submeteram ao domínio da Coroa Portuguesa, não
só do ponto de vista histórico (colonização) como do ponto de vista
linguístico (contato entre línguas diferentes), é sempre bom pontuar
alguns aspectos que foram determinantes para o nascedouro de
colônias que, por muito tempo, foram alvo de exploração de suas
riquezas naturais e que deram origens as mais diversificadas
situações linguísticas.
Assim do ponto de vista histórico, podemos atestar, via
registros, que a presença portuguesa nas terras conquistadas não
teve um planejamento demográfico, em função do próprio contigente
populacional (cerca de um milhão) da época do ciclo de conquistas
ultramarinas, o que inviabilizava uma maior mobilidade migratória
da corte para as colônias. Por esse motivo, é consensualmente
consabido que a primeira leva de portugueses a estabelecer
residência nas novas terras foram lusitanos condenados pela Corte,
que trocavam a sua pena por uma nova chance de refazer a vida
longe de Portugal, portanto, nas terras descobertas. Embora, a
Coroa Portuguesa tenha enviado administradores e soldados para
manter a ordem política das colônias, ainda assim, o contingente
de portugueses sempre foi pequeno.
No que tange ao aspecto linguístico, a presença de falantes
do português em terras tão diferentes impactou situações
extremamente diversificadas como de bilinguismo, multilinguismo
e a crioulização. Discutiremos, então, como se definem uma e outra
situação linguística:
• Bilinguismo e multilinguísmo – essas situações

54
FUESPI/NEAD - Português

configuraram-se a partir do momento em que o português passou


a ter uma convivência com uma ou mais línguas diferentes. Foi esse
o cenário linguístico que emergiu nas costas da África, da Índia e
América do Sul. No caso da África e América do Sul essas situações
se fazem sentir mais intensamente, dada a influência do tráfico
negreiro.
• Crioulização - situação linguística que surge do contato
entre línguas diferentes, como por exemplo, o contato de línguas
europeias com línguas nativas das regiões colonizadas. Como
línguas naturais os crioulos tem formação rápida dada a
necessidade de comunicação entre indivíduos que se encontram
inseridos em comunidades multilíngues. Todavia, o primeiro
comportamento linguístico dos colonizados para superar a pouca
funcionalidade de sua língua materna recorrem a mecanismos de
comunicação bastante restritos mais eficazes para o momento: o
pidgin. A relevância dessa manifestação linguística se restringe a
contextos bem específicos (era o caso, por exemplo, do contato
verbal no ato de troca de mercadorias). Mecanismo linguístico de
atendimento mediato tinha, portanto, uma sobrevida; porém, quando
esse mecanismo consegue sobreviver por mais tempo o pidgin
desenvolve uma gramática própria diferente das duas línguas de
contatos e, assim, dar origem ao que conhecemos por crioulo. O
Mapa 4, a seguir, mostra o fenômeno linguístico de crioulização de
base portuguesa no mundo.

55
Formação histórica da língua portuguesa

Mapa 4 – A crioulização de base portuguesa no mundo

LEGENDA
Países ou territórios com o português
como língua materna e/ou língua oficial
1 Crioulos da Alta Guiné
2 Crioulos do Golfo da Guiné
3 Crioulos Indo-portugueses
4 Crioulos Malaio-portugueses
5 Crioulos Sino-portugueses
6 Crioulos do Brasil
Fonte:<http://cvc.instituto-camoes>

O termo base portuguesa diz respeito aos crioulos que


têm seu léxico formado, na sua maioria, por palavras de origem
portuguesa. Segundo Pereira (1992), o critério de classificação
dos crioulos no mundo é geográfico; embora, ainda, se possa fazer
alguma correlação entre o geográfico e a língua de substrato no
momento da formação, o que predomina é aquele. Por esse critério,
exporemos no Quadro 2, a seguir, os crioulos portugueses
geograficamente distribuídos.

56
FUESPI/NEAD - Português

Quadro 2: Crioulos portugueses


1. Crioulos da Alta Guiné 3. Crioulos Indo- 5. Crioulos sino-
portugueses portugueses
• Cabo Verde
• Casamanca • DIU • Hong Kong*
• Guiné-Bissau • Damão • Macau*, Macaísta*
• Bombaim
• Chau* e Korlai
6. Crioulos do Brasil
2. Crioulos do Golfo da
• Goa
Guiné • Mangalor • Crioulos de Helvécia
• Cananor*, Tellicherry e
• Príncipe Mahé
• São Tomé • Cohim* e Vaipim*
• Quilom*
• Costa do Coromandel*
• Costa de Bengala
• Sri-lanka(Ceilão)

4. Crioulos malaio-
portugueses

• Kuala Lumpur*
• Malaca, Papiá Kristang
• Singapura
• Java(Batávia e Tugu)
• Flores(Larantuka)
• Timor Leste(Bidau)
• Ternate*, Ambom* e
Macassar*

* Extinto ou em extinção
Fonte: ILARI, Rodolfo e BASSO, Renato. 2007, pág. 41.

Para uma simples análise do cenário linguístico descrito


no Quadro acima, é válido ressaltar que a expansão da Língua
Portuguesa no mundo, via navegações e processo de colonização,
foi de fato o maior movimento político-econômico que propiciou o
contato com manifestações linguísticas diferentes da língua
portuguesa, tais como línguas africanas, línguas asiáticas e línguas
americanas resultando desse contato linguístico tão diversificado,

57
Formação histórica da língua portuguesa

manifestações linguísticas diferentes daquelas: o pidgin, uma forma


de linguagem simples capaz de suprir as necessidades de
comunicação entre duas culturas diferentes em que a língua
materna de ambas apresenta pouca funcionalidade no ato
comunicativo, sobretudo, quando a língua veiculada para o fim
comercial, como árabe, deixava de ser eficaz. Todavia, quando
houve perda parcial ou total da funcionalidade das línguas maternas
em contato acrescidas de uma forte miscigenação (situação
propícia em comunidades multilíngues) dá-se a formação da língua
crioula que, diferentemente dos pidgns, passa a constitur símbolos
de identidade dos grupos que dela fazem uso.

SAIBA MAIS

Texto 1

O português é a língua de Portugal e do Brasil, assim


como dos diversos países da África e da Ásia que estiveram, até
recentemente, sob administração portuguesa.
Existem diferenças entre o português de Portugal e o do
Brasil. Essas diferenças abrangem todos os aspectos da língua:
fonética, vocabulário, morfologia, sintaxe. A própria ortografia não
está ainda totalmente unificada. Assim, cada uma das duas formas
que toma a língua escrita e falada deve ser considerada, no seu
domínio geográfico próprio, como a única válida e «correcta». Há,
portanto duas normas do português, cada uma delas forma um
sistema linguístico coerente. O estrangeiro que aprende a língua
deverá, pois optar, à partida, quer pela norma portuguesa, quer
pela norma brasileira, e não sair daí. Mas quem quiser dominar
verdadeiramente o português deverá, depois de estar seguro dos

58
FUESPI/NEAD - Português

mecanismos próprios daquelas duas normas que tiver escolhido,


adquirir um certo conhecimento das principais características da
outra.
A norma linguística dos países lusófonos da África e da
Ásia é a de Portugal.
TEYSSIER, Paul. Manual de Língua Portuguesa (Portugal
– Brasil), Coimbra: Coimbra Editora, 1989, p. 15.

Texto 2: A Lusitânia

A exemplo do sentido que dou à palavra România no mundo


neolatino, vou chamar Lusitânia ao espaço geolinguístico ocupado
pela Língua Portuguesa, no conjunto de sua unidade e variedades.
Esse será o espaço próprio da lusofonia: os seus usuários
serão os lusofalantes. Como “estágio atual da língua portuguesa
no mundo”, considerarei a situação da Lusitânia após a Segunda
Guerra Mundial.
Nessa perspectiva, vejo cinco faces na Lusitânia atual, que
assim denominarei: Lusitânia Antiga, Lusitânia Nova, Lusitânia
Novíssima, Lusitânia Perdida e Lusitânia Dispersa.
A Lusitânia Antiga compreende Portugal, Madeira e Açores.
A Lusitânia Nova é o Brasil. A Lusitânia Novíssima abrange as cinco
nações africanas constituídas em consequência do processo dito de
“descolonização” e adotaram o português como língua oficial: Angola,
Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.
Lusitânia Perdida são as regiões da Ásia ou da Oceania
onde já não há esperança de sobreviência para a língua
portuguesa. Finalmente, Lusitânia Dispersa são as comunidades
de fala portuguesa espalhadas pelo mundo não lusófono, em
consequência do afluxo de correntes imigratórias.

59
Formação histórica da língua portuguesa

SÍLVIO, Elia. A língua portuguesa no mundo. São Paulo: Ática,


1989, 16-17.

PAGOTTO, Emílio Goze. Variedades do Português no


mundo e no Brasil. Disponível em: <http://cienciaecultura.bvs.br/
scielo>.
PEREIRA, Dulce. O essencial sobre os crioulos de
base portuguesa. Lisboa: Caminho, 2006.

LEITURA COMPLEMENTAR

Para maior conhecimento sobre crioulização


recomendamos:
LUCCHESI, Dante e BAXTER, Alan. Processos de
crioulização na história sociolinguística do Brasil. In. CARDOSO,
Suzana A. Marcelino et al. Quinhentos anos de História
Linguística do Brasil. Salvador: Funcultura, 2006.
Para maior aprofundamento do tema português arcaico
recomendamos:
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Novos indicadores
para os limites do português arcaico. Disponível em: <http://
www.gelne.ufc.br/revista_ano4_no2_04.pdf>
Visite os Sites:
www.alpi.ca
www.instituro-camoes.pt/cvc/

60
FUESPI/NEAD - Português

RESUMO

Considerando as discussões expostas nesta unidade, o


que fica dito sobre o Despertar da Língua Portuguesa, são de realçar
os seguintes aspectos:
• As delimitações de períodos precisos que caracterizam
os estágios evolutivos da Língua Portuguesa, são por demais
complexos, a bem da verdade elas têm caráter arbitrário haja vista
o próprio fluxo temporal da História das civilizações que não
apresenta precisão cronológica tão delimitada dos seus fatos
sociais, políticos e, consequentemente, linguístico uma vez que não
podemos isolar os fatos históricos da língua dos políticos e sociais
das civilizações;
• O nascimento do português arcaico coincide com a
história da escrita, mas o limite final desse período, em termos de
fatos externos à língua, é marcado pelo surgimento do livro
impresso, da expansão imperialista no mundo e da normativização
gramatical estabelecida com a gramática de Fernão de Oliveira
(1536) e a de João de Barros (1540);
• O período que se caracteriza pela estabilização das
estruturas linguística, efervescência na cultura e nas artes é o que
compreende o Português clássico.

ATIVIDADE DE APRENDIZAGEM

1- Leia o texto abaixo e apresente uma reflexão sobre


a Língua Portuguesa no mundo.

61
Formação histórica da língua portuguesa

O português na China dos cassinos


Macau virou uma ilha de lusofonia ameaçada na China, mas a
língua portuguesa poderá ser salva da extinção pelos negócios
internacionais

Olívia Alonso, de Macau

A cidade de Macau, na China, é cada vez mais conhecida


em todo o mundo pelos seus cassinos. Ultrapassou Las Vegas em
receita (US$ 10,4 bilhões ante US$ 7 bilhões da cidade americana),
tem o maior cassino do mundo, o The Venetian, e recebe anualmente
quase seis vezes mais turistas que todo o Brasil (só no ano passado,
mais de 26 milhões), a maioria para jogar nos cassinos. Nesta década,
a região também virou base natural para a China organizar as suas
relações comerciais com países lusófonos.
Macau é uma ilha de lusofonia, mas de uma lusofonia
ameaçada. Assim como no Brasil, a língua portuguesa é oficial.
Mas, tão oficial quanto, quem predomina é o cantonês, uma variante
um pouco mais complicada do chinês. Embora todas as placas,
anúncios, avisos e letreiros estejam nos dois idiomas - muitas vezes
com engraçados erros de ortografia na versão lusa -, a maior parte
dos moradores de Macau não entende o português. Só 2% dos
538 mil habitantes falam a língua.-
Hoje, a população de língua materna portuguesa é de no
máximo 6 mil pessoas. São os luso-chineses, os macaenses, e
pessoas de outras ex-colônias portuguesas, incluindo brasileiros -
diz Alan Baxter, linguista e diretor do Departamento de Português
da Universidade de Macau.
Já os falantes de português como segunda língua são pelo
menos 2,5 mil, estima Baxter. Por isso, praticamente só se
encontram falantes de português nas proximidades de serviços

62
FUESPI/NEAD - Português

jurídicos, já que a língua portuguesa é predominante no Direito local.


Tanto que, na Universidade de Macau, o Departamento de Direito
tem parte de suas aulas só em português.
A Universidade de Macau talvez nos forneça a primeira
evidência concreta do impacto local dos novos tempos comerciais
vividos entre a China e os países lusófonos, o que promete revitalizar
o idioma português na região. No total, há cerca de 1,5 mil falantes
de português na Universidade de Macau, segundo Baxter, nos
cursos de Direito e de Língua Portuguesa, e boa parte motivada
pelo fato de que a China precisará de falantes em português para
seus negócios internacionais.

Oportunidade

Dois terços dos estudantes de português são de Macau;


os demais são do continente chinês ou de outros países asiáticos,
afirma Carlos Figueiredo, professor do Departamento de Português
da instituição. Um deles é Chio Hou Meng, cujo nome ocidental é
André (os chineses ganham nome ocidental para facilitar a
comunicação com os professores e colegas ocidentais).
Natural de Macau, André não tem ascendência portuguesa
e optou por estudar português por acreditar na importância da língua
para a China.
- Saber a língua portuguesa faz a diferença, principalmente
em Macau, que é considerada uma ponte entre a China e os países
lusófonos - diz o estudante.
A chinesa Sun Yi, de Pequim, também escolheu o português
pela possibilidade de interação comercial. A intenção dela, cujo
nome ocidental é Ana, é virar professora de português em seu país.
- A China vai precisar de muitos professores de português

63
Formação histórica da língua portuguesa

no futuro.
Carlos Figueiredo conta que a procura pelo aprendizado
do português tem crescido entre os jovens chineses e asiáticos.
Eles acreditam que haverá demanda por profissionais que dominem
o português aqui na Ásia, em especial pelas relações mantidas
com Brasil e Angola.
O curso de verão de língua portuguesa oferecido pela
universidade teve 600 inscritos este ano para 250 vagas, afirma o
professor Baxter. Além dos alunos do continente chinês, haverá gente
da Índia, da Malásia, do Japão, da Coréia, das Filipinas e de Macau.

Estampado e escondido

Apesar de não se ouvir o português nas ruas, vê-se o


português nas placas: Ourivesaria Ting Tsai Dong, Restaurante Tai
Ting, Drogaria Fung Tai, Estabelecimento de Comidas Panda,
Supermercado Sam Miu. Não é difícil encontrar falantes de
português em tais estabelecimentos, especialmente no centro da
península. Muitos deles só falam o idioma em situações extremas
nas quais a única interação possível é via português.
A economia vocabular dos chineses de Macau ficou até
lendária entre portugueses e brasileiros que lá vivem. Há chineses
que se orgulham de saber português e falam todas as palavras que
sabem de uma vez só, em voz alta: “Amigo, obrigado, tudo bom, falo
português, muito caro, de nada, meu nome é Fausto, adeus”. Não são
raras as histórias de portugueses e brasileiros que, depois de longas
tentativas de comunicar-se em cantonês ou inglês, estão prestes a
deixar uma loja quando ouvem o atendente chinês murmurar algo
como: “Nós não temos mais do preto, só o vermelho”.
O português também está nos cassinos, com nomes nada

64
FUESPI/NEAD - Português

chineses em forma de homenagem à administração portuguesa.


É o caso de Lisboa, Grand Lisboa, Fortuna, Casa Real e Rio.
Os cidadãos que falam tanto português como cantonês e
têm ascendência portuguesa e chinesa são os chamados
macaenses, ou luso-chineses. Na definição da linguista portuguesa
Maria José dos Reis Grosso, macaenses são bilíngües, luso-
asiá-ticos desde crianças com contato com as duas línguas. No
geral, falam chinês como língua materna, e se comunicam bem em
inglês, mas a competência em português varia de acordo com a
idade, a profissão, o nível de educação, a rede social e o grau de
uso de chinês e inglês.

Ensino

Tradicionalmente, os macaenses freqüentam escolas de


língua portuguesa, apesar da atual tendência de irem a escolas de
língua inglesa ou chinesa. Em casa, as crianças aprendem
português e cantonês ao mesmo tempo e tendem a assimilar com
mais facilidade a língua chinesa do que a portuguesa. Linguistas
dizem que isso acontece pelo fato de o chinês ser monossilábico
e não flexionado, portanto, mais fácil de falar. No entanto, nas
escolas, muitos têm a alfabetização em português. São ágrafos
(não escrevem) em cantonês, apesar de o falarem fluentemente.
- Os jovens usam o cantonês entre os amigos, na escola,
no trabalho, mas são alfabetizados em português ou em inglês.
Falam cantonês, mas não escrevem. Já as gerações antigas,
sobretudo aqueles de famílias que mantiveram laços com
portugueses, têm o português como língua de uso - diz Baxter.
Mas o português macaense não é fiel ao de Portugal.
Segundo Baxter, os luso-chineses têm variações na fala, assim

65
Formação histórica da língua portuguesa

como os brasileiros, que, em ambientes informais, não respeitam


concordância de número e dizem “as casa velha”, por exemplo. Os
macaenses fazem variações de sujeito e verbo, de gênero, além
da tendência de usar pronomes no lugar de objeto direto, como
em “vejo ele”.
Vindo da ressaca colonial, o português da China ganhou
alento com a expansão comercial em países lusófonos. Para
Baxter, não haverá mais a instalação em Macau de falantes de
português como língua materna, mas o português “sempre” terá
uma função importante para Macau, “pelo menos nos próximos 50
anos”. A perspectiva é que, na rabeira do intercâmbio comercial,
Macau se torne a base de um novo começo para o português na
China. Se tal previsão se concretizar, significa esperar que a nação
das Olimpíadas deste ano comece a abrigar, nos próximos anos,
um contingente de falantes de português digno de rivalizar com
outros países lusófonos.

De onde vem “Macau”

Pouco depois de Cabral chegar ao Brasil, outro português,


Jorge Álvares, navegava no outro lado do mundo. Entre 1554 a
1557, os portugueses se estabeleciam no sul da China, em uma
península habitada por pescadores das províncias de Fukien e
Cantão, adoradores de uma deusa chamada A Ma.
Como em chinês, “porto” é “gao”, os habitantes locais
diziam “A Ma Gao” (Porto da deusa A Ma), que, aos ouvidos
portugueses, soou como “Macau”.
Por mais de 400 anos, Macau foi colônia de Portugal até
que passou, em 1951, a ser considerada província ultramarina de
Portugal e, em 1976, território especial, ainda sob a administração

66
FUESPI/NEAD - Português

de Lisboa. Em 2001, Macau voltou à China, passando a ser


considerada uma região administrativa especial, como a vizinha
Hong Kong. De lá para cá, muitos portugueses deixaram o território.

Doce língua de Macau

As variações do português macaense também são


explicadas pela existência, na região, de uma língua própria chamada
patuá, que teria influenciado a língua portuguesa. Derivada do crioulo
de Malaca, na Malásia, o patuá chegou a Macau com o trânsito de
pessoas entre as duas regiões a partir do século 17. “Patuá” vem do
francês patois, “falar rude”, segundo o New Oxford Dictionary of English.
Para Baxter, o termo provavelmente foi introduzido por religiosos no
século 19, quando o patuá foi usado para referir-se a vertentes de
línguas coloniais falados por não-europeus.
A palavra “patuá” começou a ser usada por leigos e tornou-
se popular.
- É uma língua crioula de base portuguesa, com elementos
de várias línguas. É como um aglomerado de reflexos dos contatos
dos portugueses nos séculos 16 a 19. Há elementos da Índia, da
Malásia, há palavras japonesas, por exemplo - descreve
Baxter.Antes, a língua era chamada de “maquista”. É também
chamada de crioulo luso-asiático, crioulo macaense, macaísta,
macauista, papia cristam di macau ou doci papiaçam di macau, e
recebeu cada vez mais influência do português e do chinês a partir
do século 19, afirma o linguista.
Hoje, já não há falantes de patuá em Macau e, no geral, a
população não dá importância à língua. Há esforços isolados pelo
não desaparecimento do idioma, como os do próprio professor
Baxter, que defende o reconhecimento pela ONU de expressões

67
Formação histórica da língua portuguesa

do patuá como patrimônio intangível para a Educação, Ciência e


Cultura (Unesco).
A luta pela difusão do patuá tem sido feita pelo Grupo de
Teatro Dóci Papiaçám di Macau, que todos os anos apresenta,
em patuá, uma peça de humor sobre os traços particulares de
Macau. O grupo teatral é liderado pelo dramaturgo Miguel de Senna
Fernandes, também defensor da “do-ce lingua de Macau”.
Fonte: <http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp>

2- Enumere os principais pontos discutidos nesta Unidade.


3- Faça uma pesquisa em outras fontes bibliográficas e
elabore um fichamento sobre os crioulos de base portuguesa no
mundo.

68
FUESPI/NEAD - Português

UNIDADE 3
A LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL: QUINHENTOS
ANOS DE HISTÓRIA

OBJETIVOS

• Discutir aspectos da língua portuguesa do Brasil, sob o ponto de vista sócio-


histórico e linguístico, levando em conta as suas características e as suas
especificidades.
• Observar fatos da história da constituição da sociedade brasileira que tiveram
relevância para a formação da língua portuguesa no Brasil do período colonial ao
século XIX.

69
FUESPI/NEAD - Português

3 A LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL: QUINHENTOS ANOS


DE HISTÓRIA

O tema que nos reúne neste texto é a “língua portuguesa”,


mas não é uma língua portuguesa falada em outros recantos do
planeta. Vamos nos concentrar, especificamente, na nossa língua
portuguesa de cada dia, na nossa língua portuguesa brasileira.
Iniciemos as nossas apreciações lendo o fragmento de
um texto que representa um importante momento da nossa literatura.
Trata-se do requerimento que o Major Quaresma, personagem da
obra Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, enviara
à Câmara legislativa.
Eis a petição:
Policarpo Quaresma, cidadão brasileiro, funcionário público,
certo de que a língua portuguesa é emprestada ao Brasil; certo também
de que, por esse fato, o falar e o escrever em geral, sobretudo no campo
das letras, se vêem na humilhante contingência de sofrer continuamente
censuras ásperas dos proprietários da língua; sabendo, além, que, dentro
do nosso país, os autores e os escritores, com especialidade os gramáticos,
não se entendem no tocante à correção gramatical, vendo-se,
diariamente, surgir azedas polêmicas entre os mais profundos estudiosos
do nosso idioma – usando do direito que lhe confere a Constituição, vem
pedir que o Congresso Nacional decrete o tupi-guarani, como língua
oficial e nacional do povo brasileiro.
O suplicante, deixando de parte os argumentos históricos
que militam em favor de sua ideia, pede vênia para lembrar que a língua
é a mais alta manifestação da inteligência de um povo, é a sua criação
mais viva e original; e, portanto, a emancipação política do país requer
como complemento e consequência a sua emancipação idiomática.
Demais, Senhores Congressistas, o tupi-guarani, língua originalíssima,

71
Formação histórica da língua portuguesa

aglutinante, é verdade, mas a que o polissintetismo dá múltiplas feições


de riqueza, é a única capaz de traduzir as nossas belezas, de pôr-nos em
relação com a nossa natureza e adaptar-se perfeitamente aos nossos
órgãos vocais e cerebrais, por ser criação de povos que aqui viveram e
ainda vivem, portanto possuidores da organização fisiológica e
psicológica para que tendemos, evitando-se dessa forma as estéreis
controvérsias gramaticais, oriundas de uma difícil adaptação de uma
língua de outra região à nossa organização cerebral e ao nosso aparelho
vocal – controvérsias que tanto empecem o progresso da nossa cultura
literária, científica e filosófica.
Seguro de que a sabedoria dos legisladores saberá encontrar meios para
realizar semelhante medida e cônscio de que a Câmara e o Senado pesarão
o seu alcance e utilidade.
P. e E. deferimento.

BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo:


Ática, 1997.

Vemos, na petição de Quaresma, uma compreensão de


língua como fator de identidade de um povo e, para ele, nenhum
outro identifica melhor o povo brasileiro do que o Índio e a sua
língua. A interpretação é bastante nacionalista, pois reivindica o
reconhecimento do tupi-guarani não só como língua oficial, mas
também como língua nacional, dada a falta de entendimento, de
sincronia, de padronização para o uso da língua. Mas, a língua pode
ser vista dessa maneira?
De certa forma inspirados nesse texto, vamos continuar
conhecendo um pouco da história da nossa língua e, assim, tentar
compreender a “justa” reivindicação de Quaresma!
A discussão aqui focalizada leva em conta que, após

72
FUESPI/NEAD - Português

quinhentos anos, desde o descobrimento do Brasil pelos


portugueses, ainda não temos uma reconstrução satisfatoriamente
detalhada do processo de interação entre a língua portuguesa,
considerada genuína, trazida pelos portugueses, e um número
considerável de outras línguas, proveniente de outros povos que
aqui chegaram ao longo desse período, contribuindo para acentuar
o multilinguismo e revestir a língua portuguesa do Brasil de uma
extraordinária complexidade.
Nesta unidade, objetivamos recorrer aos trabalhos
desenvolvidos por grandes pesquisadores do tema e trazer à
discussão aspectos da Língua Portuguesa do Brasil, sob o ponto
de vista sócio-histórico e linguístico, ao longo desses cinco séculos
de existência do Brasil, levando em conta as suas características
e as suas especificidades. Como não se pode desvincular a língua
da realidade histórico-social, iniciemos essa reflexão revendo
alguns dos fatos da história brasileira que tiveram considerável
relevância para o tema aqui posto em pauta, considerando-se
desde o período do Brasil colônia até o século XIX. Em seguida,
nos concentraremos, especificamente, nos aspectos linguísticos
que dizem respeito à formação histórica da nossa língua,
considerada em fases distintas e em relação aos fatores socio-
históricos envolvidos nesse processo de formação.

73
Formação histórica da língua portuguesa

3.1 FATOS QUE MARCARAM A HISTÓRIA DO BRASIL: DO


PERÍODO COLONIAL AO SÉCULO XIX

3.1.1 Da Carta à colonização

Indiscutivelmente, a história do Brasil começou a ser escrita


em português ainda genuinamente lusitano, no dia 22 de abril de
1500. E coube a Pero Vaz de Caminha a responsabilidade de
escrever-lhe o prólogo, cujo trecho inicial transcrevemos abaixo:

Senhor:
Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim
os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova
do achamento desta vossa terra nova, que ora nesta
navegação se achou, não deixarei também de dar
disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu
melhor puder, ainda que — para o bem contar e falar
— o saiba pior que todos fazer.
Tome Vossa Alteza, porém, minha ignorância por boa
vontade, e creia bem por certo que, para aformosear
nem afear, não porei aqui mais do que aquilo que vi e
me pareceu.
(...) (http://www.culturabrasil.org/carta.htm)

74
FUESPI/NEAD - Português

A Carta, “auto do descobrimento do Brasil” (Cortesão,


1943), descreve com riqueza de detalhes a chegada dos
portugueses ao Brasil. Especialmente no que se refere aos
habitantes nativos, a Carta registra que “Eram pardos, todos nus,
sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas” e, referindo-
se a uma das mulheres índias diz que

E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a


cima, daquela tintura, e certo era tão bem feita e tão
redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão
graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra,
vendo-lhes tais feições, fizera vergonha, por não terem
a sua como ela.(http://www.culturabrasil.org/
carta.htm).

A história registra que a colonização do nosso território,


efetivamente, teve início somente em 1532, com o advento da
instalação das capitanias hereditárias. Nessa primeira fase de
Brasil colônia (1530-1580), os acontecimentos marcantes para a
história foram: a chegada dos primeiros missionários jesuítas,
destacando-se Manuel da Nóbrega e José de Anchieta; o tráfico
de escravos de países da África; a fundação das cidades de
Salvador, sede do governo geral,
do Rio de Janeiro, de Olinda, de
Recife, de São Paulo e de Belém;
a rebelião dos índios tamoios
contra os portugueses; a
pacificação dos tamoios; as
ameaças de ocupação de parte
do sul do Brasil pelos espanhóis;
o início da penetração no interior
do Brasil, dentre outros.
Fonte: <www.jvc.eti.br>

75
Formação histórica da língua portuguesa

Dentre esses fatos, quanto ao aspecto sociocultural,


ecoaram significativamente na vocação linguística do povo da nova
terra: a catequese e a escravidão.
A catequese, liderada pelos padres Manuel da Nóbrega e
José de Anchieta, teve o seu início em 1549. Inicialmente, os padres
usaram duas estratégias em suas obras de evangelização: atraíam
os indígenas para o seu meio para doutriná-los e tentavam fixá-los,
nesse meio, organizando agrupamentos que ficaram conhecidos
como aldeias – missões volantes e aldeamentos (Elia, 2003). A
catequese e a educação eram práticas indissociáveis.
O ano de 1580 marca o término político-cultural do século
XVI na história do Brasil, momento em que Felipe I, em
consequência de lutas sucessórias, ascendeu ao trono de Portugal
e este país perdia sua independência política.

Fonte: <http.portaldoprofessor.mec.gov.br>

No século XVII, o período filipino, em Portugal, chega ao


fim e, assim, é restaurado o trono português. No Brasil, o período

76
FUESPI/NEAD - Português

foi marcado por invasões estrangeiras – francesas, no Maranhão,


e holandesas, em Salvador, Bahia, e em Recife, Pernambuco. Do
ponto de vista da colonização brasileira, o principal fato, no século
XVII, foi a expansão geográfica.
Nessa fase do Brasil Colônia, aconteceram as primeiras
reações dos negros africanos contra o regime de escravidão ao
qual eram submetidos. Os escravos, fugindo dessa condição,
embrenhavam-se nas matas e, aos grupos, formavam os quilombos
de onde, muitas vezes, eram capturados.
Uma dessas comunidades, talvez a mais conhecida,
historicamente, foi o Quilombo dos Palmares, região hoje situada
no Estado de Alagoas. Na segunda metade do século XVII viveu o
seu período de maior prosperidade e, por ter resistido às mais
intensas adversidades e perseguições, tornou-se um símbolo da
resistência do povo africano e da sua condição de escravo, no
Brasil.
Do ponto de vista econômico, no século XVII, a cana de
açúcar destacou-se como a principal riqueza do Brasil. A economia
açucareira do final do século XVII indicava a existência de 528
engenhos na colônia. O monopólio português sobre o açúcar
assegurava lucros consideráveis aos senhores de engenho e à Coroa.
A terceira fase do Brasil Colônia é, historicamente,
contextualizada entre o século XVIII e o início do século XIX.
Compreende uma série de fatos que foram cruciais para a história
do Brasil, em especial, prepararam o terreno para o desenrolar de
outros fatos igualmente importantes.
Dentre os acontecimentos de vulto, destacam-se: os
franceses no Rio de Janeiro, a corrida do ouro, a continuação da
expansão territorial, as lutas com os espanhóis e a colonização do
Sul, a expulsão dos jesuítas e a Conjuração mineira.

77
Formação histórica da língua portuguesa

Ainda que não estejam completamente contemplados


nessa fase, dois fatos merecem um destaque especial porque
marcaram o início de fases completamente distintas daquelas que
a antecederam: a chegada da Família real e a independência do
Brasil.
Dentre os fatos que marcaram o último período colonial
brasileiro, destacamos, aqui, aquele que diz respeito ao ponto de
vista econômico e que caracterizou, significativamente, o século
XVIII - a descoberta de minerais preciosos.
O chamado “Ciclo do ouro” trouxe uma grande
diversificação social para a colônia. A exploração das jazidas não
exigia o emprego de grandes capitais, permitia a participação de
pequenos empreendedores e estimulava novas relações de
trabalho, inclusive com a mão-de-obra escrava.
Um outro acontecimento histórico que marcou esse
momento colonial e que deve ser lembrado é o bandeirantismo -
expedição de homens brancos e mestiços, que iniciaram a marcha
para o sertão. Primeiro pretendiam capturar índios, mas desviaram-
se desse curso e concentraram-se em explorar minerais e pedras
preciosas.
Na Europa, o século XVIII é marcado pelo Absolutismo
cujas práticas são contestadas pelas ideias do Iluminismo. E é à
luz do Iluminismo, pensamento adotado na política religiosa em
Portugal, no tempo do Marquês de Pombal, que ocorreu a
perseguição e expulsão dos Jesuítas, congregação religiosa com
grande aceitação no Brasil. Com claro domínio das esferas da
corte, das missões, do ensino, da cultura intelectual, despertou a
Companhia de Jesus desconfianças dos políticos e rivalidades de
outras ordens religiosas e do clero secular. Estavam assim criadas
as condições para a antipatia pombalina para com estes religiosos.

78
FUESPI/NEAD - Português

No Decreto de expulsão dos Jesuítas eles são ainda


citados “com tantos, tão abomináveis, tão inveterados e tão
incorrigíveis vícios (…) rebeldes, traidores, adversários e
agressores, contra a paz pública dos meus reinos e domínios.” Foi,
então, neste contexto, que os jesuítas foram expulsos do Brasil.
A Inconfidência Mineira, ou Conjuração Mineira, foi uma
tentativa de revolta de natureza separatista abortada pela Coroa
portuguesa em 1789, na então capitania de Minas Gerais, motivada
pela execução da derrama e o domínio português.
A conjuração pretendia eliminar a dominação portuguesa
das Minas Gerais estabelecendo, ali, um país livre. Não havia a
intenção de libertar toda a colônia brasileira, pois naquele momento
uma identidade nacional ainda não havia se formado. A forma de
governo escolhida seria o estabelecimento de uma República,
inspirados pelas ideias iluministas da França e da recente
independência norte-americana. Destaque-se que não havia uma
intenção clara de libertar os escravos, já que muitos dos
participantes do movimento eram detentores dessa mão-de-obra.
O movimento foi desmantelado em 1789, e os seus líderes
foram detidos e enviados para o
Rio de Janeiro, onde responderam
pelo crime de lesa-majestade.
Durante o inquérito judicial, todos
negaram participação, menos o
alferes Joaquim José da Silva
Xavier, que assumiu a
responsabilidade de chefia do
movimento e foi condenado à
morte na forca.
Fonte: <www,brasilescola.com>

79
Formação histórica da língua portuguesa

Tiradentes foi alçado, posteriormente, pela República


brasileira, à condição de um dos maiores mártires da
independência do Brasil e como um dos precussores da República
no país.

3.1.2 A chegada da família real portuguesa e a independência


do Brasil

Considerando-se a importância histórica para o


desenvolvimento do Brasil em todas as suas dimensões e,
consequentemente, para a formação e caracterização da nossa
língua portuguesa, dois fatos não podem deixar de ser mencionados:
a chegada da família real portuguesa ao Brasil e o evento da
independência, ambos ocorridos no século XIX.
A história registra que a família real portuguesa veio para
o Brasil num momento em que a Europa estava agitada pelas
guerras. Inglaterra e França disputavam a liderança no continente
europeu. Em 1806, Napoleão Bonaparte, imperador da França,
decretou o Bloqueio Continental, proibindo que qualquer país aliado
ou ocupado pelas forças francesas comercializasse com a
Inglaterra. O objetivo do bloqueio era arruinar a economia inglesa.
Sem outra alternativa, Portugal aceitou o Bloqueio, mas
continuou comercializando com a Inglaterra. Ao descobrir a trama,
Napoleão determinou a invasão de Portugal em novembro de 1807.
Sem condições de resistir à invasão francesa, D. João e toda a
corte portuguesa fugiram para o Brasil, onde aportou, em janeiro
de 1808, em Salvador, mas transferiu-se, posteriormente, para o
Rio de Janeiro, onde foi instalada a sede do governo.
A transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro
provocou uma grande transformação na cidade. D. João teve que

80
FUESPI/NEAD - Português

organizar a estrutura administrativa do governo. Nomeou ministros


de Estado, colocou em funcionamento diversas secretarias
públicas, instalou tribunais de justiça e criou o Banco do Brasil
(1808).
As mudanças provocaram o aumento da população na
cidade, que por volta de 1820, somava mais de 100 mil habitantes,
entre os quais muitos eram estrangeiros – portugueses,
comerciantes ingleses, corpos diplomáticos – ou mesmo resultado
do deslocamento da população interna que procurava novas
oportunidades na capital.
Para a elite, a presença da Corte e o número crescente de
comerciantes estrangeiros trouxeram familiaridade com novos
produtos e padrões de comportamento em moldes europeus.
A vinda de D. João deu um grande impulso à cultura no
Brasil com a criação de instituições como o Arquivo Central, a
Imprensa Régia, a Biblioteca Real. Criaram-se as Escolas de
Cirurgia e Academia de Marinha (1808), a Aula de Comércio e
Academia Militar (1810) e a Academia Médico-cirúrgica (1813). A
ciência também ganhou com a criação do Observatório
Astronômico (1808), do Jardim Botânico (1810) e do Laboratório
de Química (1818). Em 1813, foi inaugurado o Teatro São João
(atual João Caetano). Em 1816, a Missão Francesa, composta de
pintores, escultores, arquitetos e artesãos, chegaram ao Rio de
Janeiro para criar a Imperial Academia e Escola de Belas-Artes.
Em 1820, foi a vez da Real Academia de Desenho, Pintura,
Escultura e Arquitetura-civil.
Os artistas estrangeiros, botânicos, zoólogos, médicos,
etnólogos, geógrafos e muitos outros que fizeram viagens e
expedições regulares ao Brasil trouxeram informações sobre o que
acontecia pelo mundo e também tornou este país conhecido, por

81
Formação histórica da língua portuguesa

meio dos livros e artigos em jornais e revistas que aqueles


profissionais publicavam. Foi uma mudança profunda, mas que não
alterou os costumes da grande maioria da população carioca,
composta de escravos e trabalhadores assalariados.
Nesse meio tempo, na Europa, os países aliados venceram
Napoleão em 1815 e, com isso, decidiram que os reis dos países
invadidos pela França deveriam voltar a ocupar seus tronos. D.
João VI cedendo às pressões, voltou a Portugal, deixando seu filho
D. Pedro como príncipe regente do Brasil, a quem coube, alguns
anos depois, proclamar a independência do Brasil.
Desde as últimas décadas do século XVIII, assinala-se na
América Latina a crise do Antigo Sistema Colonial. No Brasil, essa
crise foi marcada pelas rebeliões de emancipação, destacando-
se a Inconfidência Mineira e a Conjuração Baiana. Estes
movimentos foram os primeiros da história do Brasil a questionar
o pacto colonial e assumir um caráter republicano. Era apenas o
início do processo de independência política do Brasil, que se
estende até 1822 com o “sete de setembro”.
Se o que definia a condição de colônia era o monopólio
imposto pela metrópole, em 1808 com a abertura dos portos, o
Brasil deixava de ser colônia. O monopólio não mais existia.
Rompia-se o pacto colonial e atendiam-se, assim, os interesses
da elite agrária brasileira, acentuando as relações com a Inglaterra,
em detrimento das tradicionais relações com Portugal.
Com a volta de D. João VI para Portugal e as exigências
para que também o príncipe regente voltasse, a aristocracia rural
passava a viver sob um difícil dilema: conter a recolonização e ao
mesmo tempo evitar que a ruptura com Portugal assumisse o
caráter revolucionário-republicano que marcava a independência
da América Espanhola, o que evidentemente ameaçaria seus

82
FUESPI/NEAD - Português

privilégios. D. Pedro resolveu permanecer no Brasil, proclamou a


independência do país e foi aclamado Imperador Constitucional
do Brasil. Era o início do Império.
A independência não marcou nenhuma ruptura com o
processo de nossa história colonial. As bases socioeconômicas
(trabalho escravo, monocultura e latifúndio), que representavam a
manutenção dos privilégios aristocráticos, permaneceram inalteradas.
O “sete de setembro” foi apenas a consolidação de uma ruptura política,
que já começara 14 anos atrás, com a abertura dos portos.
O período histórico pós-independência, o século imperial
da vida brasileira, tem o seu final com o advento da proclamação
da República, em 1889.
Os fatos acima sintetizados mostram o panorama histórico
a partir do qual se formou a nossa língua portuguesa. Todos esses
eventos tiveram uma repercussão importante na formação da
identidade do povo brasileiro e, como a língua constitui um dos
itens da identidade, eles servem de pano de fundo para a dimensão
linguística, aqui observada numa perspectiva socio-histórica.

3. 2 A LÍNGUA PORTUGUESA DO BRASIL: TRAJETÓRIA SÓCIO-


HISTÓRICA

3.2.1 A formação da língua portuguesa do Brasil em três fases

Durante o período colonial, o Português europeu, o Índio


brasileiro e o Negro africano constituíam as bases da população
do Brasil. Em aqui chegando, os Portugueses encontraram os Índios
mas, depois, importaram da África uma população muito grande
de Negros, que vieram para servir de escravos aos senhores que
estavam instalados nas terras brasileiras.

83
Formação histórica da língua portuguesa

Os habitantes do território brasileiro que aqui residiam à


época do descobrimento foram assim descritos na Carta de Pero
Vaz de Caminha:

Eles não lavram nem criam. Não há aqui boi, nem


vaca, nem cabra, nem galinha, nem qualquer outra
alimária que costumada seja ao viver dos homens.
Nem comem senão desse inhame que aqui há muito,
e dessa semente e fruitos, que a terra e as árvores
de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão
nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo
e legumes comemos. (http://www.culturabrasil.org/
carta.htm)

No que se refere à escravidão, registra-se que o tráfico de


escravos da Guiné, na África, para o Brasil começou a intensificar-
se a partir de 1560. No Brasil, os africanos aportavam na Bahia,
em Pernambuco e no Rio de Janeiro. E o negro precisava integrar-
se à nova cultura, inclusive à língua dominante e, em relação a esse
aspecto, Ribeiro (1992, p. 40), considera que

Aliciado para incrementar a produção açucareira e


depois a mineradora, o negro comporta o contingente
fundamental da mão-de-obra colonial. Nesse passo,
seu papel como agente cultural foi mais passivo que
ativo, absorvendo a cultura adaptativa que aqui
encontrou, bem como a língua do senhor e os parcos
conteúdos culturais que lhe eram acessíveis.

Os estudiosos da língua portuguesa em geral estabelecem


três fases como referência para marcar a história da formação da
língua portuguesa no Brasil: a primeira delas compreende o período
que se estendo do início da colonização à expulsão dos holandeses
(1532-1654); a segunda começa a partir do final da segunda e vai
até o final do século XVIII; e a terceira começa com a chegada da
família real ao Brasil em diante. (SILVA NETO, 1986).

84
FUESPI/NEAD - Português

As fases elencadas acima, no entanto, não estão


relacionadas à dimensão interna da língua, não dizem respeito à
evolução da língua em seus aspectos estruturais, mas à dimensão
de formação histórica externa à língua. Essas fases têm como
parâmetro a observação das composições dos elementos que
constituem a população brasileira, tendo como principais variáveis
o português, o africano e o indígena. A nossa consideração estará
voltada para a verificação de como as manifestações das línguas
se comportam em termos de preponderância.

Fonte:<www.nartube.com>
Na primeira fase, de 1532 a 1654, o branco, representado
pelos portugueses, figura em número bastante reduzido
considerando-se as outras variáveis em conjunto. Ocorrem, nesse
período, os primeiros contatos interraciais: portugueses
desbravadores e índias, dando origem ao que se passou a
denominar de mamelucos. E, com a chegada dos africanos, foi
acontecendo a substituição do escravo índio pelo africano.
O contingente populacional europeu, no Brasil, cresceu
consideravelmente até o início do século XVII e originou o que ficou
conhecido como mameluco bilíngüe. Dada a intensificação dos

85
Formação histórica da língua portuguesa

contatos entre falantes de diferentes línguas, era necessária uma


língua geral, língua tupi, principal língua indígena das regiões
costeiras, modificada, simplificada e gramaticalizada pelos jesuítas
para torná-la uma língua comum, mais acessível a todos. Mas a
língua portuguesa já mostrava sinais de que iria se firmar, sobretudo
porque se oficializava uma vez que era estudada pelos padres em
seus colégios, em Pernambuco e na Bahia; por alguns funcionários;
pelas pessoas letradas; e por senhores de engenho.
A Bahia tem lugar de destaque nesse período. A
implantação de núcleos de brancos atraiu os nativos que, em
contato com os europeus, perdiam traços de sua cultura e
assimilavam a cultura do colonizador. Nesse processo de
aculturação, em decorrência dos choques das culturas, os brancos
assimilavam traços da cultura dos tupis, dentre esses traços,
elementos da língua. Da mesma forma, à fala dos brancos, palavras
vindas da África iam sendo incorporadas.
Em recenseamento realizado no final do século XVI, a
população brasileira, composta de 57.000 habitantes, estava assim
distribuída: 25.000 brancos, 18.000 índios e 14.000 negros. (Silva
Neto, 1986). Como se pode observar, o contingente populacional
de negros era o menor de todos mas, em pouco tempo em muito
cresceu essa população que, juntamente com os brancos fazem
crescer a população de mestiços: mamelucos e mulatos.
A literatura brasileira, extremamente rica e diversificada,
na contemporaneidade, teve manifestadas as suas primeiras
expressões, logo no início do período colonial brasileiro.
Conforme acima destacado, na fase colonial brasileira,
havia a denominada língua comum, principal viabilizadora da
interação linguística, sobrepondo-se às variedades mais marcadas,
coexistindo com a língua escrita, que se sobrepunha à língua dos

86
FUESPI/NEAD - Português

índios, dos negros e dos colonizadores que não tinham o domínio


das letras, como forma considerada superior de comunicação e a
partir da qual despontaram as nossas manifestações literárias
desde o Brasil colônia.
O marco inaugural da nossa literatura é a Carta escrita por
Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal relatando o evento do
descobrimento da nova terra. Nos primeiros anos da colonização,
a literatura brasileira é, essencialmente, a dos missionários
dedicados à catequese, dos viajantes ou dos recém-chegados que
davam notícias sobre a nova terra e o seu povo. Em seguida
apresentamos o trecho final da Carta de Pero Vaz de Caminha e
um trecho do poema Compaixão da Virgem na Morte do Filho,
escrito pelo Padre José de Anchieta, também escrito no período
inicial da colonização brasileira.

Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o


sul vimos até à outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste
porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte
e cinco léguas por costa. Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes
barreiras, delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e
muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é toda praia parma,
muito chã e muito formosa.
Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a
estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos
parecia muito longa.
Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata,
nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em
si é de muito bons ares, assim frios e temperados como os de Entre
Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de
lá. Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-
a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.
Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que
será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa
Alteza em ela deve lançar.
E que aí não houvesse mais que ter aqui esta pousada para
esta navegação de Calecute, bastaria. Quando mais disposição para se
nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber,
acrescentamento da nossa santa fé.
E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza do que nesta
vossa terra vi. E, se algum pouco me alonguei, Ela me perdoe, que o
desejo que tinha, de Vos tudo dizer, mo fez assim pôr pelo miúdo.
87
Formação histórica da língua portuguesa

E pois que, Senhor, é certo que, assim neste cargo que levo,
como em outra qualquer coisa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há
de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular
mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro – o
que d’Ela receberei em muita mercê.
Beijo as mãos de Vossa Alteza.

Compaixão da Virgem na morte do filho

Por que ao profundo sono, alma, tu te abandonas,


e em pesado dormir, tão fundo assim ressonas?
Não te move a aflição dessa mãe toda em pranto,
que a morte tão cruel do filho chora tanto?
O seio que de dor amargado esmorece,
ao ver, ali presente, as chagas que padece?
Onde a vista pousar, tudo o que é de Jesus,
ocorre ao teu olhar vertendo sangue a flux.
Olha como, prostrado ante a face do Pai,
todo o sangue em suor do corpo se lhe esvai.
Olha como a ladrão essas bárbaras hordas
pisam-no e lhe retêm o colo e mãos com cordas.
Olha, perante Anás, como duro soldado
o esbofeteia mau, com punho bem cerrado.
Vê como, ante Caifás, em humildes meneios,
agüenta opróbrios mil, punhos, escarros feios.
Não afasta seu rosto ao que o bate, e se abeira
do que duro lhe arranca a barba e cabeleira.[...]

Dentre os missionários catequistas, aquele que mais se


destacou foi José de Anchieta, que aqui aprendeu a língua nativa,
o tupi-guarani, e escreveu, nessa língua, em 1595, a sua Arte de
Gramática e vários autos, cabendo-lhe o papel de fundador do

88
FUESPI/NEAD - Português

teatro brasileiro. Foi, Anchieta, a figura de maior expressão literária


do seu tempo, no Brasil, tendo escrito Cartas valiosíssimas a
diversos destinatários e, em português, latim e castelhano vários
poemas. Apesar desses importantes registros literários, o
quinhentismo brasileiro é pouco ou quase nada considerado pelos
críticos da literatura.
Do ponto de vista literário, nos primeiros tempos da
colonização merecem destaque, ainda, o Pe. Manuel da Nóbrega,
com seu Diálogo sobre a conversão do gentio e um número
considerável de cartas, ricas de informações sobre a terra, os seus
habitantes, seus costumes, temperamento e nível civilizatório; o Pe.
Fernão Cardim, uma figura importante da Companhia de Jesus no
Brasil, com sua Narrativa Epistolar de uma Viagem e Missão
Jesuítica pela Bahia, Ilheus [...], Clima e Terra do Brasil e Do
Príncipe e Origem dos Índios do Brasil.
Conforme se observa ao longo dessa exposição, no século
XVI, a coexistência e a miscigenação luso-tupi foi indiscutivelmente
grande. O crescimento de mamelucos preparava a população do
século seguinte que, com as atividades bandeirantes propiciou a
rápida difusão da língua geral, tanto nas áreas urbanas quanto nas
áreas rurais. Mas a língua escrita, calcada na variedade culta,
permanecia imutável e fiel ao modelo linguístico da gramática
tradicional adotada pelos portugueses e a norma urbana culta foi
conquistando espaço e afastando para as periferias e ambientes
rurais a fala oral não escolarizada.
Na segunda fase da história da formação da língua
portuguesa, de 1654 a 1808, o indígena, povo nativo da nova terra,
foi desaparecendo por não se adaptar ao convívio com o europeu.
Na mesma proporção em que ia ocorrendo o desaparecimento do
índio, acontecia a aumento da população negra e branca. Dos

89
Formação histórica da língua portuguesa

600.000 negros então existentes, apenas 100.000 vieram da África,


havendo, portanto uma multiplicação considerável desse segmento
populacional, no Brasil do século XVII.

Fonte: <http://www.bbc.co.uk>

Os senhores eram os falantes do idioma oficial e literário,


revestido de prestígio legado pela escrita e por ser a língua do
dominador, expandia-se ao tempo em que absorvia alguns traços
específicos em virtude dos contatos linguísticos sem, contudo,
alterar a estrutura linguística, mas sinaliza para uma diferenciação
do português europeu.
A constatação de que, nas cidades, havia uma grande
diversidade de falares motivou a criação de medidas e estratégias
no sentido de padronizar os falares, especialmente nas escolas. Aliás,
aos missionários cabia a tarefa de ensinar aos índios em língua
portuguesa, por recomendação expressa até do governo português.
Foi neste contexto linguístico que a língua geral aos poucos
foi deixando de ser usada, limitando-se às povoações mais
isoladas e às aldeias dos jesuítas.

90
FUESPI/NEAD - Português

Neste período verificava-se uma intensa expansão


territorial, ocorria a formação de povoamentos, no interior,
originados de considerável massas do litoral, compostas por índios,
negros, mestiços e brancos, que interagiam por meio de um falar
crioulo, desinteressadamente orientados pelos brancos. Mesmo
nesses povoamentos, a língua portuguesa se sobrepunha a qualquer
outra manifestação linguística.
Fora alguns focos de uso de línguas africanas em
aglomerações negras das cidades, a língua dos descobridores e
colonizadores, por ter prestígio de língua escrita e literária foi
absorvendo os focos de falares africanos de língua geral.
No século XVII, começava a despontar, no Brasil, uma
literatura com algumas características brasileiras, ainda que frágeis.
Temos como obra considerada de marco inicial do movimento –
Barroco – a obra Prosopopéia, de Bento Teixeira. Destacaram-
se, ainda, Gregório de Matos e o Pe. Antonio Vieira, dentre outros.
O Barroco, enquanto ampla forma de cultura, chegou ao
Brasil no século XVII e, dentre outros, o Pe. Antônio Vieira, Gregório
de Matos, Diogo Gomes Carneiro, destacam-se nesse contexto.
A seguir, mostramos trechos de Prosopoéia, de Bento
Teixeira e do Sermão da sexagésima, escrito pelo Pe. Antônio Vieira.

Prosopopéia

I
Cantem Poetas o Poder Romano,
Submetendo Nações ao jugo duro;
O Mantuano pinte o Rei Troiano,
Descendo à confusão do Reino escuro;
Que eu canto um Albuquerque soberano,

91
Formação histórica da língua portuguesa

Da Fé, da cara Pátria firme muro,


Cujo valor e ser, que o Céu lhe inspira,
Pode estancar a Lácia e Grega lira.

I
As Délficas irmãs chamar não quero,
Que tal invocação é vão estudo;
Aquele chamo só, de quem espero
A vida que se espera em fim de tudo.
Ele fará meu Verso tão sincero,
Quanto fora sem ele tosco e rude,
Que por razão negar não deve o menos
Quem deu o mais a míseros terrenos.

III
E vós, sublime Jorge, em quem se esmalta
A Estirpe d’Albuquerques excelente,
E cujo eco da fama corre e salta
Do Cauro Glacial à Zona ardente,
Suspendei por agora a mente alta
Dos casos vários da Olindesa gente,
E vereis vosso irmão e vós supremo
No valor abater Querino e Remo.
(...)

EPÍLOGO
XCIV
Aqui deu [fim] a tudo, e brevemente
Entra no Carro [de] Cristal lustroso;
Após dele a demais Cerúlea gente

92
FUESPI/NEAD - Português

Cortando a veia vai do Reino acosso.


Eu que a tal espetáculo presente
Estive, quis em Verso numeroso
Escrevê-lo por ver que assim convinha
Pera mais Perfeição da Musa minha.

Sermão da sexagésima

[...] Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder


de um de princípios: ou da parte do pregador, ou da p arte do
ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por
meio de um sermão, há de haver três concursos: há de concorrer
o pregador com a doutrina, persuadindo; há de concorrer o ouvinte
com o entendimento, percebendo; há de concorrer Deus com a
graça, alumiando[...].

Fonte: <http//:www.mar.mil.br>

93
Formação histórica da língua portuguesa

A terceira fase de história da formação da língua


portuguesa inicia-se em 1808, com a chegada da família real ao
Brasil, fato que proporcionou grandes alterações na vida colonial
brasileira. Uma dessas alterações diz respeito à reorganização
das instituições que comporiam a estrutura administrativa do Brasil.
Dentre os atos de D. João registram-se a nomeação de ministros
de estado, a instalação de tribunais de justiça e a criação do Banco
do Brasil (1808).
As mudanças provocaram o aumento da população na
cidade do Rio de Janeiro, que por volta de 1820, somava mais de
100 mil habitantes, entre os quais muitos eram estrangeiros –
portugueses, comerciantes ingleses, corpos diplomáticos – ou
mesmo resultado do deslocamento da população interna que
procurava novas oportunidades na capital.
Para a elite, a presença da corte e o número crescente de
comerciantes estrangeiros trouxeram familiaridade com novos
produtos e padrões de comportamento em moldes europeus.
Nas cidades, concentrava-se o maior contingente da
população branca da colônia. Isto teve uma consequência linguística
importante uma vez que se criaram traços nos falares que
estabeleceram e estabelecem até hoje, significativas diferenças
entre os falares urbanos e os falares rurais, no Brasil. Assim, do
início da colonização até a chegada da corte portuguesa, e daí em
diante, registram-se traços linguístico-sociais que caracterizam as
diferenças entre a nata social, espaço de brancos e de mestiços que
ascenderam, e a plebe, descendentes de índios, negros e mestiços.
Observe-se, assim, não se deveria falar de uma história
da língua, mas de uma história dos seus falantes, as características
de muitos falares brasileiros, certamente vem mudando através dos
tempos. Tal como observa Silva Neto (1986), “A uma fase índia

94
FUESPI/NEAD - Português

pode ter sucedido a africanização. E é positivamente certo que a


branquização, [...] se foi alargando cada vez mais”.
Considerando-se que cada vez mais se alargava o domínio
da língua portuguesa no território brasileiro, durante a fase colonial
e seguintes, em que momento surgiu o português Brasileiro?
Silva Neto (1986) considera que, levando-se em conta que
somente em 1532 o Brasil começou a ser povoado e que as
gerações se prolongaram por um período de trinta anos, é provável
que as primeiras diferenciações entre o português de Portugal e o
português brasileiro tenham aparecido por volta de 1622. Veja-se,
no entanto, que a língua brasileira foi-se firmando muito lentamente
mesmo com a intensa imigração portuguesa, o que proporcionava a
ação das dos falares portugueses sobre os brasileiros em formação.
Inicialmente, no entanto, a língua escrita dos portugueses era
imitada e a língua que aqui se falava criava características próprias,
tinha as suas particularidades vistas como erros. Somente em meados
do século XIX surgiu uma geração que assumiu a sua língua, com
suas particularidades, capaz de transformar a sua linguagem em arte
sem receio nem temores. A verdadeira literatura brasileira, do ponto
de vista da sua linguagem, surgiu, então, do que se viu constituir nos
centros cultos, no seio das classes mais privilegiadas.
Em resumo: os colonos portugueses falavam o português
europeu, com traços específicos de variações verificadas no
decorrer do tempo, por diversas razões. Os africanos, os indígenas
e os mestiços aprenderam um português com o qual conseguiam
interagir linguisticamente, com algumas dificuldades.
Com o português coexistia a chamada língua geral – língua
tupi, principal língua indígena das regiões costeiras, mas um tupi
modificado, simplificado e gramaticalizado pelos jesuítas para
torná-lo uma língua comum, mais acessível a todos. Durante um

95
Formação histórica da língua portuguesa

período considerável, o português e o tupi conviveram e serviram


como línguas de comunicação. Os bandeirantes, por exemplo,
utilizavam a língua tupi para se comunicarem durante as suas
incursões pelo interior do Brasil. Durante o século XVII, já havia a
percepção da interligação entre os índios e as famílias dos
portugueses proporcionada pela linguagem comum, a dos índios,
e a de uma língua portuguesa ensinada na escola.
A língua geral, no entanto, entra em decadência na segunda
metade do século XVIII, em virtude da chegada de um enorme
contingente de imigrantes portugueses, atraídos pelas descobertas
de minas de ouro e de diamantes e do conhecimento por todos
sobre a proibição do uso da língua geral e da obrigatoriedade do
uso da língua portuguesa por determinação do Marquês de Pombal.
A expulsão dos Jesuítas, em 1759, também contribuiu para a
decadência da língua geral já que eles eram ferrenhos defensores
dessa língua. Algumas décadas mais tarde, essa língua seria
definitivamente suplantada, restando dela apenas alguns itens já
assimilados pelo português local.
A língua dos portugueses, a língua portuguesa, torna-se,
então, a língua oficial e sobrepôs-se à língua dos africanos que
foram trazidos para trabalhar como escravos dos portugueses aqui
radicados, e à dos indígenas, que já habitavam o território brasileiro,
antes da chegada dos portugueses. Há de se considerar, ainda, a
força e o prestígio da língua escrita culta, que circulava entre as
elites dos espaços urbanos e a partir das quais via espelhadas as
manifestações literárias, da Carta de Caminha ao despontar de
uma literatura conscientemente brasileira, no século XIX.
No final do século, XVIII e início do século XIX, mesmo com
o despertar de uma possível ideia de emancipação em relação a
Portugal, como no caso da geração mineira da Inconfidência, a

96
FUESPI/NEAD - Português

língua continua a ser a portuguesa, sem contestação.

3.2.2 A formação do português brasileiro: fatores


condicionantes

A bibliografia relativa à formação e constituição histórica


da língua portuguesa no Brasil é relativamente ampla. Concentram-
se em situar essa constituição nas fases que foram abordadas em
3.2, acima, chamando a atenção para aspectos que dizem respeito
à implantação e expansão da língua portuguesa no espaço
brasileiro focalizando as línguas aqui existentes e outras de falantes
não-nativos do português. Os estudos clássicos de autores
consagrados neste campo como Silva Neto (1950, 1986), Elia
(2003), Melo (1972) apresentam, comparativamente, aspectos do
português europeu e do português do Brasil, ressaltando os
aspectos gramaticais que registram diferenciações entre esses
dois falares e, ainda, os aspectos que ressaltam as diferenciações
linguísticas motivadas pelos contextos sócio-históricos de uso da
língua, no Brasil, e que servem para caracterizar o português
brasileiro. Não obstante os esforços desses estudiosos, que tentam
resgatar a história do português brasileiro, das suas origens com
os primeiros colonizadores, dos seus primeiros registros escritos
do século XVIII até os tempos atuais, não contamos, ainda, com
registros completos e amplamente fundamentados.
Ressalte-se, no entanto, que, desses esforços surgem
elementos que fundamentam e explicam aspectos valiosos como
se pode observar em importante estudo desenvolvido por Mattos
e Silva (2004) cujas informações serão expostas, a seguir, para
reflexão e discussão. Trata-se do item relativo aos fatores de ordem
sócio-históricas que refletiram significativamente na formação do

97
Formação histórica da língua portuguesa

português brasileiro. Esses fatores, tal como assinala a autora, são:


1 – A demografia histórica do Brasil do século XVI ao XIX
Segundo dados apresentados em Silva Neto (1950, 1960),
o primeiro registro demográfico, conhecido como censo do Pe.
José de Anchieta, dá conta de que a população brasileira, nas
últimas décadas do século XVI, girava em torno de cinquenta e
sete mil habitantes, dos quais, mais da metade eram negros e
índios. A etnia branca, até meados do século XIX, constituída por
portugueses e seus descendentes, representava 30% da
população. A população indígena decrescia e, de 50% da
população no início da colonização, passou a responder por 2%
dos habitantes do Brasil, em meados do século XIX. Do ponto de
vista linguístico, tem-se o registro de até 1.500 línguas indígenas
faladas no início da colonização do Brasil, das quais 85% foram
extintas nesses quinhentos anos de história. No processo de
colonização, os portugueses entraram em contato primeiramente
com a língua que os especialistas denominam de tupi, e da família
tupi-guarani, no litoral baiano e paulista, e no Rio de Janeiro.
Os registros históricos relativos à formação da língua
portuguesa do Brasil dão conta da existência de uma língua que
denominaram de língua geral, já anteriormente definida, e que,
segundo os especialistas no tema, essa denominação de língua
geral foi forjada no século XVIII e não no século XVII e não constituiu
uma unidade uma vez que há distinções de origem entre a língua
geral amazônica, a língua geral do Sul paulista, respectivamente
de bases tupinambá e tupiniquim e guarani. Os estudos sobre a
influência das línguas indígenas no português do Brasil focalizam,
sobretudo, as contribuições dos lindigenismos lexicais do
português brasileiro.
A institucionalização do tráfico de escravos africanos para

98
FUESPI/NEAD - Português

o Brasil deu-se logo no início da colonização e não há precisão


quanto ao número de escravos trazidos para as terras brasileiras,
mas em relação à língua desses novos habitantes, estima-se cerca
de 300. Entre os séculos XVII e XIX, os africanos e seus
descendentes, no Brasil, respondem por 60% da população e,
pela impossibilidade de praticar a sua língua de origem, já que
eram subjugados, foram obrigados a adotar a língua do
colonizador e, conforme sugere Mattos e Silva (2004) é esse
contingente populacional que vai dar forma ao português
brasileiro, antecedendo o português popular.
A população branca, sempre em número menor até o
século XIX, cresceu a partir da metade desse século em virtude
da implantação da política migratória adotada pelo Império.
2 – A mobilidade populacional dos africanos e afro-
brasileiros no Brasil colonial e pós-colonial
Discordando de Serafim da Silva Neto e outros, que
consideram que a difusão e adoção generalizada da língua
portuguesa no território brasileiro aconteceu em virtude da
superioridade cultural do colonizador, Mattos e Silva defende que
isso ocorreu por intermédio dos africanos e de seus descendentes.
Até o século XVII, os escravos e seus senhores habitavam
as capitanias litorâneas (Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro),
explorando as lavouras de cana-de-açúcar; em seguida, com o ciclo
da mineração, acorreram para o Centro-oeste e interior paulista; do
século XVIII ao XIX, com o esgotamento da mineração, há um retorno
da população ao litoral; e, já no século XIX, há uma grande
concentração populacional no Vale do Paraíba do Sul, no interior
paulista, no Rio e em Minas Gerais, por ocasião do ciclo do café.
Todos os dados demográficos disponíveis registram a
superioridade numérica dos africanos e seus descendentes no

99
Formação histórica da língua portuguesa

território brasileiro, até meados do século XIX. Para Mattos e Silva


(2004) esse segmento populacional seria o responsável pela
difusão do português geral brasileiro.
3 – As reconfigurações socioculturais, políticas e
linguísticas ao longo do século XIX
A língua portuguesa tornou-se a língua oficial do Brasil, em
meados do século XVIII, com a expulsão dos jesuítas. Instala-se,
então, a primeira rede leiga de ensino, fato que, segundo os
especialistas, foi catastrófico para a escolarização no Brasil.
No século XIX, com a transferência da corte portuguesa para
o Rio de Janeiro e com ela uma legião de migrantes portugueses,
traços dessa língua portuguesa serão privilegiados e difundidos.
Ainda segundo Mattos e Silva (2004), durante o período
do Brasil colonial existia, no Brasil, um multi/bilinguismo
generalizado, principalmente entre a população africana e lusitana
e seus descendentes.
No século XIX, esse multi/bilinguismo torna-se localizado,
caracterizando áreas específicas mas, com configurações
específicas: as línguas dos imigrantes no Sudeste e Sul e as línguas
indígenas no Centro-oeste e na Amazônia.
Estes três fatores sócio-históricos acima arrolados
contribuem, segundo os estudiosos do tema, para uma
compreensão/interpretação da reconstrução da nossa língua
portuguesa. Entretanto, a história da formação da nossa língua em
sua integralidade ainda aguarda um autor. Entretanto, os avanços
de estudos que privilegiam aspectos da atual situação da língua
portuguesa na contemporaneidade têm sido consideráveis, pontos
que serão destacados na unidade que segue.

100
FUESPI/NEAD - Português

SAIBA MAIS

Miscigenação da Língua Portuguesa

Antes mesmo da descoberta do território brasileiro, já se


falavam cerca de 1000 línguas diferentes, decorrentes da
diversidade indígena existente. Após o descobrimento do Brasil,
estabeleceram a língua geral derivada do tupinambá para que os
índios e brancos se comunicassem.
Quando o território passou a ser povoado por portugueses,
houve uma grande confusão gerada pelo bilinguismo e a partir daí
o português se fez predominante no país com data de 1758, em
substituição à língua geral.
A língua portuguesa é originada do latim vulgar que também
se caracteriza como uma língua neolatina, que no período colonial
passou a ser influenciada pelas línguas africanas trazidas pelos
escravos, como é o caso do quicongo, quimbundo, fon, ioruba e outras
que passaram a ser usadas por pessoas que viviam em contato com
os negros. Palavras de origem africana como fubá, moleque, bunda,
jabé, cachimbo, acarajá foram incorporadas no vocabulário brasileiro.
Após a independência do Brasil, houve uma grande
imigração da Itália e Alemanha para o país, o que contribuiu com a
diversificação de dialetos em diferentes regiões do país. Dessa
forma, não é correto pensar que a língua pronunciada no Brasil é de
origem portuguesa somente, pois possui influência indígena,
portuguesa, africana, italiana, alemã e tantas outras aqui não citadas.
Hoje, é fácil miscigenar a língua brasileira, pois com a
constante presença de turistas de todas as partes e residentes de
outras nacionalidades, faz-se uma nova língua a cada dia.
Por Gabriela Cabral

101
Formação histórica da língua portuguesa

Equipe Brasil Escola

Para uma leitura bem humorada das nossas raízes sócio-


históricas.
MENEZES, Angela Dutra de. O português que nos pariu: uma
viagem ao mundo dos nossos antepassados. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2002.
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Ensaios para uma sócio-
história do português brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.

LEITURA COMPLEMENTAR

FÁVERO. Leonor Lopes. Século XVIII-A Língua


Portuguesa no Brasil e o discurso do poder. Disponível:
<www.pucsp.br/pos/lgport>

ATIVIDADE DE APRENDIZAGEM

1 - Atividade: ler o texto abaixo e pesquisar, na web,


outros textos que abordem a mesma temática. Comparar as leituras
e elaborar pequenos resumos dos textos lidos.

De onde se originou a língua portuguesa ?

A língua portuguesa é uma língua neolatina, formada da


mistura de muito latim vulgar e mais a influência árabe e das tribos
que viviam na região.
Sua origem está altamente conectada a outra língua (o galego),
mas,o português é uma língua própria e independente.quando era
quase tão difundida como agora é o inglês.

102
FUESPI/NEAD - Português

Fonte: <http://www.semprealegria.com>

A língua portuguesa é uma língua neolatina, formada da


mistura de muito latim vulgar e mais a influência árabe e das tribos
que viviam na região.
Sua origem está altamente conectada a outra língua (o
galego), mas,o português é uma língua própria e independente.
Apesar da influência dos tempos tê-la alterado,
adicionando vocábulos franceses, ingleses, espanhóis,ela ainda
tem sua identidade única, sem a força que tinha no seu ápice,
quando era quase tão difundida como agora é o inglês.
No oeste da Península Ibérica, na Europa Ocidental,
encontram-se Portugal e Espanha.
Ambos eram domínio do Império Romano a mais de 2000
anos, e estes conquistadores falavam latim,uma língua que eles
impuseram aos conquistados. Mas não o latim culto usado pelas
pessoas cultas de Roma e escrito pelos poetas e magistrados,
mas o popular latim vulgar, falado pela população em geral.

103
Formação histórica da língua portuguesa

Isto aconteceu porque a população local entrou em contato


com soldados e outras pessoas incultas, não magistrados.
Logicamente não podemos simplesmente desprezar a
influência linguística dos conquistados.
Estes dialetos falados na península e em outros lugares
foram regionalizando a língua.
Também devemos considerar a influência árabe, que
inseriu muitas termos nestes romanços até a Reconquista.
Este processo formou vários dialetos, denominados cada
um deles genericamente de romanço (do latim romanice, “falar à
maneira dos romanos”).
Quando o Império Romano caiu no século V este processo
se intensificou e vários dialetos foram se formando.
No caso específico da península, foram línguas como o
catalão, o castelhano e o galego-português (falado na faixa ocidental
da península).
Foi este último que gerou o português e o galego (mais
tarde uma língua falada apenas na região de Galiza, na Espanha).
O galego-português existiu apenas durante os séculos XII, XIII e
XIV, na época da Reconquista.
Após esse período foi desaparecendo, cada vez mais, diferenças
entre o galego e o português.
Este último era falado no sul da faixa ocidental da província, na
região de Lisboa.
Esta língua consolidou-se com o tempo e a expansão do Império
Português.
Do século XII ao século XVI falava-se uma forma arcaica de
português, ainda com a influência do galego (o português arcaico
propriamente apenas desde o século XIV).
Foi com essa linguagem que escreveram os trovadores naquela

104
FUESPI/NEAD - Português

época, enriquecendo a paupérrima (5.000 vocábulos no século XII)


língua portuguesa.
Esta fase da Língua Portuguesa acaba com a nomeação de Fernão
Lopes como crônista mor da Torre do Tombo em 1434.
Mas apenas a partir do século XVI, com a intensa produção literária
renascentista de Portugal, especialmente a de Camões, o
português uniformiza-se e adquiri as características atuais da língua.
Em 1536 Fernão de Oliveira publicou a primeira Gramática da
Linguagem Portuguesa, consolidando-a definitivamente.

RESUMO

Nesta unidade apresentamos, primeiramente, um


panorama do contexto histórico brasileiro, desde o descobrimento,
o período colonial, até o início do século XIX. Nesse período,
destacamos os principais fatos que, de alguma forma, tiveram
repercussão na constituição do português brasileiro.
Em um segundo momento focalizamos a trajetória de
formação da língua portuguesa brasileira, destacando os aspectos
sócio-históricos que foram definitivos na formação dessa língua:
primeiro mostramos as diferentes fases em que se registram os
aspectos relativos à formação da língua e, em seguida, os fatores
condicionantes desse processo. Em toda a apresentação
privilegiamos os estudos de renomados pesquisadores do português
brasileiro, tanto os clássicos , quanto os mais contemporâneos.

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM

1 - Pesquisar textos literários escritos em diferentes


momentos da história literária do Brasil. Comparar esses textos

105
Formação histórica da língua portuguesa

observando os temas apresentados e a estrutura linguística a partir


da qual foram escritos. Identificar as mudanças estruturais
verificadas em cada período.
2 - Enumere os temas apresentados nesta unidade.
3 - Identifique as perspectivas a partir das quais o processo
de formação da língua portuguesa foi abordado.
4 - Elabore fichamentos de cada um dos itens
apresentados.

106
FUESPI/NEAD - Português

UNIDADE 4
A LÍNGUA PORTUGUESA BRASILEIRA NA
CONTEMPORANEIDADE

OBJETIVOS

• Identificar as características sociolinguísticas da língua portuguesa falada no Brasil


na contemporaneidade.
• Verificar aspectos relacionados à norma culta do português brasileiro assim
considerada contemporaneamente.

107
Formação histórica da língua portuguesa

108
FUESPI/NEAD - Português

Na Unidade três, concentramo-nos em falar sobre pontos


da história do Brasil que tiveram repercussões no processo de
formação da língua portuguesa do Brasil. Abordamos, também,
aspectos sócio-históricos desse processo, a partir das suas fases
constitutivas e dos fatores que foram decisivos na formação da
língua, desde a época colonial até o século XIX. Na unidade que
estamos iniciando, daremos continuidade à discussão mas, desta
vez, focalizando a língua portuguesa não mais do ponto de vista da
sua formação histórica, mas observando as características que lhe
são perceptíveis na contemporaneidade. No contexto dessa
discussão abordaremos aspectos relacionados à norma culta da
nossa língua, assim considerada contemporaneamente.
Para começar, um belo poema que fala da nossa língua,
tal como se mostra essa importante dimensão de identificação do
seu povo.

Língua
(Caetano Veloso)

Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões


Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar a criar confusões de prosódia
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?

109
Formação histórica da língua portuguesa

E deixe os Portugais morrerem à míngua


“Minha pátria é minha língua”
Fala Mangueira! Fala!
Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?
Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas!
Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmem Miranda
E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate
E xeque-mate explique-nos Luanda
Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homem
Lobo do lobo do lobo do homem
Adoro nomes
Nomes em ã
De coisas como rã e ímã
Ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã
Nomes de nomes
Como Scarlet Moon de Chevalier, Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé
e Maria da Fé
Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?
Se você tem uma ideia incrível é melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco
Hollywood quer dizer Azevedo
E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo meu medo

110
FUESPI/NEAD - Português

A língua é minha pátria


E eu não tenho pátria, tenho mátria
E quero frátria
Poesia concreta, prosa caótica
Ótica futura
Samba-rap, chic-left com banana
( Será que ele está no Pão de Açúcar?
Tá craude brô
Você e tu
Lhe amo
Qué queu te faço, nego?
Bote ligeiro!
Ma•fde brinquinho, Ricardo!? Teu tio vai ficar desesperado!
Ó Tavinho, põe camisola pra dentro, assim mais pareces um espantalho!
I like to spend some time in Mozambique
Arigatô, arigatô!)
Nós canto-falamos como quem inveja negros
Que sofrem horrores no Gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem, que falem.

Fonte: <http://letras.terra.com.br/caetanoveloso/44738>

Esse texto fala da nossa língua, da língua portuguesa,


desde as suas raízes e registros mais clássicos, aos registros mais
coloquiais, nas mais diversas situaçoes do cotidiano. A discussão
que segue, de alguma forma, busca apoio e inspiração neste belo
poema do cantor e compositor brasileiro Caetano Veloso.

111
Formação histórica da língua portuguesa

4.1 O PORTUGUÊS BRASILEIRO

Fonte: <http//:www.clcefa.wordpress.com>

A língua portuguesa nossa de cada dia, a língua que falamos


hoje nas mais diversas situações comunicativas, das mais informais
àquelas extremamente formais, como vimos, ao longo dos seus
quinhentos anos de formação, recebeu influências as mais diversas:
dos portugueses, dos africanos, dos índios e de tantos outros povos
que passaram e passam pelo território brasileiro ou que aqui
habitaram ou habitam. Vamos, agora, tentar compreender um
pouco da nossa língua, dos nossos falares, na contemporaneidade.
Para tanto, buscaremos apoio no aporte teórico que a
Sociolinguística nos oferece para explicar esses fenômenos, com
base em pesquisas realizadas pelos estudiosos da área.

112
FUESPI/NEAD - Português

4.1.1 Características sociolinguísticas

De Policarpo Quaresma ao mais renomado pesquisador


da linguagem, na atualidade, é indiscutível o reconhecimento de
língua como instituição social e que, por isso mesmo, jamais
teríamos uma compreensão integral dos fenômenos a ela
relacionados sem levar em conta os fatores responsáveis pela
evolução/variação de natureza regional e social à qual a língua está
sujeita. Para discutirmos a língua portuguesa contemporaneamente,
segundo Bortoni-Ricardo (2005), devemos considerar: a dualidade
linguística – modalidade urbana versus modalidade rural, os fluxos
migratórios do século XX e os estágios de desenvolvimento dentro
de um mesmo território e a tendência emancipacionista da literatura
brasileira moderna.
No confronto língua urbana versus língua rural, há de se
levar em conta, conforme vimos na unidade três, acima, o próprio
processo de colonização do Brasil, em que a língua dos portugueses
conservou-se nos centros de colonização do litoral. Os falares
tipicamente urbanos decorrem de compromissos entre os múltiplos
dialetos portugueses falados pelos colonos oriundos de diferentes
províncias lusitanas os quais tenderam a se homogeneizar, uma
vez em contato.
Quanto aos falares rurais, as pesquisas revelam que há
um maior distanciamento entre esses falares e os falares lusitanos,
proporcionado, possivelmente, pela acentuada influência do
adstrato indígena e do pidgin falado pelos negros entre si e nos
contatos com os brancos e mestiços.
Até o século XX, essa situação linguística perdurou,
entretanto, a intensa mobilidade populacional das zonas rurais para
os centros urbanos e a difusão dos meios de comunicação de

113
Formação histórica da língua portuguesa

massa vieram alterar consideravelmente o quadro linguístico


brasileiro. Ocorre, então, nesses centros urbanos o fenômeno
sociolinguístico da diglossia, ou seja, instala-se uma situação de
bilingüismo em que se tem o padrão tradicional de redução flexional
próprio dos falares rurais e a pressão do prestígio da norma culta
evidenciado pelo status das classes mais abastadas. Nesse
processo, os falares rurais transformam-se em dialetos urbanos
falados pelas classes baixas, em consequência da forte
estigmatização que os migrantes percebem haver em relação aos
traços mais acentuados da sua fala regional e, por isso, vão
substituindo a sua forma de falar por aquela do seu contexto atual.
Os estudos revelam, no entanto, que os padrões
fonológicos, interseccionados com os padrões morfossintáticos em
que ocorre a supressão de sufixos flexionais tendem a se manter
em virtude de ser este traço comum às modalidades urbanas
populares.
Ainda em relação à caracterização sociolinguística do
português brasileiro na atualidade, convém destacar os diferentes
estágios de desenvolvimento em que encontram diferentes regiões,
dentro de um mesmo território. É muito comum encontrar-se, no
Brasil, regiões metropolitanas em que o se tenha estabelecido o
contato de falares rurais com dialetos de classe baixa, mas
encontra-se, com muita freqüência, localidades extremamente
recônditas, isoladas, quase comparável ao período da colonização.
Há de se observar, ainda, que, na realidade sociolinguística atual,
encontramos indivíduos oriundos de contextos rurais plenamente
adaptados aos padrões linguísticos dos centros urbanos de
prestígio, após ter passado por processo de escolarização. Por
outro lado, no entanto, encontramos, frequentemente, indivíduos ou
grupos de indivíduos que migraram para as cidades, que cultivam

114
FUESPI/NEAD - Português

os mesmos hábitos linguísticos dos contextos rurais de onde


vieram.
O último fator responsável pela caracterização do português
atual, acima arrolado, diz respeito à afirmação e emancipação da
nossa produção literária, plenamente conquistada em 1922, por
ocasião da Semana de Arte Moderna. Anteriormente, a literatura
produzida no Brasil não estava em sintonia com os falares de nossa
gente, mesmo daquelas pessoas que habitavam os contextos
urbanos e eram escolarizadas. Pautava-se, essa literatura, nos
mais puros padrões gramaticais da língua culta do português
europeu. Com esse rompimento, viu-se florescer uma literatura que
passava a cultivar um vocabulário mais popular e uma sintaxe de
uso corrente no Brasil.
Especialmente, desde a segunda metade do século XX,
muitos pesquisadores têm-se dedicado ao estudo da língua
portuguesa do Brasil, em seus diversos aspectos. Nesse contexto,
destacam-se os estudos de natureza histórica e aqueles de
orientação sociolinguística, numa tentativa de revelar os traços mais
marcantes da nossa língua.
Nesses estudos ressalta-se, particularmente, o caráter
heterogêneo do português falado no Brasil, especialmente no que
se refere à variação linguística numa dimensão social e numa
dimensão regional, bem como a norma linguística considerada de
prestígio e que se rege por preceitos da gramática normativa. Silva
Neto (1986), neste aspecto, assinala que

o português do Brasil não é algo independente da


vontade dos que o falamos – e, decerto, não caminha
inexoravelmente para a desagregação, de acordo com
as tais leis predeterminadas.
Mas, a nosso ver, o ponto fundamental desta
centenária querela de língua brasileira ou dialeto

115
Formação histórica da língua portuguesa

brasileiro, residiu no erro palmar de encarar-se o


nosso português como um bloco, uma massa
uniforme.
Não se dera conta de que há, pelo menos, três tipos
de linguagem:
a) Linguagem corrente falada – é a linguagem
normalmente correta, praticada entre pessoas da
classe média, dotada de certa instrução, quer
adquirida diretamente, quer pelo convívio nesse meio.
Em certas circunstâncias ela toma o aspecto de
linguagem familiar – e então se distingue pelo uso de
palavras e expressões menos policiadas. É o que
podemos chamar de tensa e distensa;
b) Linguagem popular – é a linguagem das pessoas
humildes, das classes mais modestas da sociedade:
o meio é pobre e acanhado: a percentagem de
analfabetos é muito grande;
c) Língua escrita – onde se hão de distinguir a língua
escrita desataviada e a língua escrita cuidada, além
da língua literária, que já comporta personalidade e
preocupação de arte;
d) Linguagem dialetal – é aquela que, relativamente a
um tipo considerado padrão – ou seja a língua comum
– dispõe de menos prestígio social e uso mais restrito.
Por isso, parece regional e rústica.
Que as línguas faladas do Brasil diferem das
portuguesas é fato indiscutível e natural, porque a
língua corrente varia de acordo, não só com os
lugares, como também com as pessoas, as épocas,
e até com as circunstâncias. (SILVA NETO, 1986,
p.19).

A partir de uma orientação eminentemente sociolinguística,


Bortoni-Ricardo (2005) sugere que, para que se possa caracterizar
o português brasileiro, na atualidade, faz-se necessário o arrolar
dos seguintes conceitos:
1. Vernáculos rurais – variedades regional-rurais que
apresentam características especiais na fonética, na morfossintaxe
e no léxico.
2. Língua urbana – inclui as diversas modalidades
estratificadas da língua, usadas nas zonas urbanas, na fala e na
escrita. Vão desde as variedades mais populares às variedades

116
FUESPI/NEAD - Português

cultas e podem ser relacionadas à classe social dos seus usuários,


à profissão, ao local de residência e, principalmente, ao grau de
escolaridade do falante. Observam-se, ainda, na língua urbana,
traços regionais pois a fala da população das cidades está muito
mais relacionada aos aspectos geográficos do que aos aspectos
sociais.
3. Língua oficial – descrita na gramática normativa,
distancia-se, em muitos aspectos, da realidade linguística oral e
literária, na atualidade. É a variedade de prestígio absoluto e é a
usada em documentos oficiais e ensinada nas escolas.
4. Língua literária – até o século XIX, confundia-se com a
língua oficial. A partir de 1922, aproxima-se da modalidade culta
da língua urbana.
Muitos esforços têm sido empreendidos no sentido de
tentar caracterizar sociolinguisticamente o português nosso de cada
dia. Dentre alguns dos estudos mais atuais e resultantes de longos
anos de pesquisas, apresentaremos um dos modelos de
sistematização da variação encontrada no português brasileiro.
Trata-se da teoria dos continua, proposta por Bortoni-Ricardo
(2004).
Bortoni-Ricardo (1985) apresenta uma proposta teórica de
estudo da variação linguística a partir da observação de que os
primeiros estudos dialetológicos no Brasil identificavam, na
ecologia linguística brasileira, diversas variedades distintas entre
si: o português culto, o português popular e o português dialetal. A
pesquisadora, no entanto, considerando que essa identificação
apresentava alguns problemas de classificação por não reconhecer
as características comuns às diversas variedades linguísticas, por
misturar critérios analíticos, por não fazer distinção entre variedades
regionais, socioletais e funcionais e por não levar em conta as

117
Formação histórica da língua portuguesa

características distintas entre a oralidade e a inscrita.


Propõe, então, uma distinção entre: a heterogeneidade
relacionada a fatores estruturais (rural/urbano; região geográfica;
rede das relações sociais) e; heterogeneidade relacionada a
fatores funcionais (grau de formalidade, registro).
Concebe, pois, a ecologia do português do Brasil num
contínuo de urbanização - que se estende desde as variedades
rurais geograficamente isoladas (dialeto caipira) até a variedade
urbana culta, que no processo histórico passou por uma estrita
padronização, podendo-se situar um falante em qualquer posição
ao longo do continuum.
Postula ao longo do continuum rural/urbano dois tipos de
regras variáveis: as que definem uma estratificação descontínua,
que caracterizam as variedades regionais e sociais mais isoladas,
recebendo maior grau de estigmatização na sociedade urbana
hegemônica (exemplo: inté por até, muié por mulher, dispois por
depois), e regras graduais, que definem uma estratificação contínua
e estão presentes no repertório de praticamente todos os
brasileiros, dependendo do grau de formalidade que conferem a
sua fala (exemplo: dexei por deixei, tivé por estiver, dibaxo por
debaixo).
Mais recentemente, Bortoni-Ricardo (1997) propõe a
ampliação de sua proposta analítica a partir de um modelo que
apresenta três continua: a) rural/urbana; b) oralidade/letramento e;
c) monitoração estilística.
O continuum rural/urbano compreende, nos seus polos,
as atividades de fala que registram variedades linguísticas com
características bem marcadas desses dois universos linguísticos.
Em um dos extremos do continuum situam-se os falares rurais mais
isolados e, no outro, situam-se os falares urbanos que, no processo

118
FUESPI/NEAD - Português

sócio-histórico de evolução do português do Brasil, tem sofrido


influência da definição do padrão correto de escrita e de pronúncia,
e também das agências padronizadoras da língua como a escola,
a imprensa, a literatura.
Segundo a autora dessa proposta, qualquer falante da
língua portuguesa do Brasil pode se situar em um ponto
determinado desse contínuo, dependendo da região onde nasceu
e tem vivido. Isso sugere que as fronteiras consideradas no contínuo
rural/urbano não são rígidas
Considerando-se a ideia do continuum para situar
oralidade/letramento, visualizamos o polo de oralidade junto ao polo
rural e o de letramento, em par com o de urbanização. No entanto,
na interpretação desse contínuo devemos observar os eventos de
comunicação a partir dos quais se efetivam as interações
linguísticas: eventos de oralidade, aqueles em que não há qualquer
influência da língua escrita; e eventos de letramento, aqueles que
se efetivam pela intermediação de um texto escrito. Deve-se levar
em conta, ainda, que, normalmente, as atividades próprias da
oralidade são conduzidas em variedades informais da língua,
enquanto para as de letramento os falantes reservam uma variedade
da língua que é mais próxima do padrão culto da língua.
O terceiro parâmetro de observação da variação linguística,
a monitoração estilística, diz respeito a um processo de produção
linguística em que se situam desde as interações totalmente
espontâneas até aquelas que demandam maior atenção e
planejamento. Para operar esse continuum levamos em conta o grau
de atenção e do planejamento conferidos pelo falante à sua interação.
O grau de atenção e planejamento decorre de vários fatores:
a) acomodação do falante ao seu interlocutor;
b) apoio contextual na produção dos enunciados;

119
Formação histórica da língua portuguesa

c) a complexidade cognitiva envolvida na produção


linguística e;
d) a familiaridade do falante com a tarefa comunicativa que
está em curso.
Considerando-se o parâmetro de monitoração estilística
percebe-se que a pressão comunicativa aumenta quando o apoio
contextual é menor e a temática é mais complexa.
A autora assim representa, a sua teoria:
1. Contínuo de urbanização
...............................................................................................................................

variedades rurais isoladas área rurbana variedades urbanas padronizadas

2. Contínuo de oralidade/letramento
...............................................................................................................................

eventos de oralidade eventos de letramento

3. Contínuo de monitoração estilística


...............................................................................................................................

- +

monitorado monitorado

Para entendermos melhor a linguagem, considerada a


partir desses contínuos, observemos os dois exemplos abaixo:
Exemplo 1
Não, assim, esse negóço de cartão pra tirar bolsa-escola
é bom purque as fila são mais piquena e é até dipressa. Mais,
quando se vai tirá, a gente pode até já tê aprendido e sabê qual
dos butão é de apertá, purque as palavra qui sai num dá de sabê,
nunca se sabe o qui qué dizê. Mais num sai aquele papelzim

120
FUESPI/NEAD - Português

depois? Pois é. Mais assim, eu nunca sei vê direito, as letra são


miudinha e é difíço pra saber o que elas diz. Tem uns númuru, lá
na frente, as palavra. (...)
(Fala de uma senhora de 60 anos, residente em Teresina,
de antecedentes rurais, em situação de entrevista informal, durante
uma pesquisa de Lopes, 2006).
Exemplo 2
Encontram-se na epistemologia, entre outros, dois grupos
de filósofos que assumem posturas distintas quanto à relação
entre o conhecimento humano e a “realidade” conhecida: há os
que defendem a ideia de que há uma verdade única, objetiva,
que é procurada pela ciência, e há os que acham que todo
conhecimento é relativo a um momento histórico, a um contexto
ou um conjunto de circunstâncias. Vamos chamar os primeiros
de objetivistas e os segundos de relativistas. (BORGES NETO,
2004, p. 71-72).
Observando-se os exemplos 1 e 2, podemos verificar que
eles diferem, significativamente, no que se refere à linguagem, nos
aspectos que dizem respeito às dimensões fonológica, semântica,
sintática, lexical. Imaginemos os autores dessas falas, a classe
social a que pertencem, o seu grau de escolaridade, o lugar onde
residem, dentre outros aspectos.
Observando-se essas produções linguísticas, podemos
localizá-las nos contínuos da seguinte forma:
• No contínuo de urbanização, a fala do exemplo 1 está
situada mais próxima do polo esquerdo do contínuo enquanto a do
exemplo 2, situa-se no polo da direita. A fala do exemplo 1 é
proferida por uma pessoa de antecedentes rurais, aspecto
claramente identificável em toda a sua fala. Em 2 identificamos
uma fala com fortes características urbanas.

121
Formação histórica da língua portuguesa

• Quanto ao contínuo de oralidade e letramento, está claro


que 1 está bem próxima do polo de oralidade e, 2, do polo de
letramento.
• Quanto ao grau de monitoração, percebe-se que no
exemplo 2, a fala é extremamente monitorada no seu estilo, o que
a aproxima do polo direito do contínuo; já no exemplo 1, observa-
se uma fala com um grau de monitoração quase inexistente. Situa-
se, portanto, no polo esquerdo do contínuo.
As variações linguísticas circunscrevem-se, pois, como um
fenômenos que estão presentes em todas as instâncias de
atividades linguísticas e podem ser detectadas a partir de diferentes
ângulos de observação.
Os construtos teóricos e modelos de análise do português
brasileiro acima apresentados são construídos a partir de fortes
motivações oriundas de observações dos falares brasileiros, dos
mais diversificados usos da nossa língua portuguesa.

4.1.2 Heterogeneidade e Unidade?

A linguagem, entendida como forma ou processo de


interação, postula que sua função social é primordialmente centrada
no aspecto interacional, operada através de símbolos arbitrários
adotados por cada grupo social que dela faz uso. Considerada
como realidade atualizada no processo interacional, a língua é um
fenômeno que pode apresentar-se segundo os diversos fatores
que lhe condicionam o uso. Esses fatores fazem com que a
linguagem utilizada pelos falantes de uma dada língua nem sempre
se apresente da mesma forma em todos os momentos, tal como
vimos acima. Temos, assim, a caracterização do fenômeno da
diversidade linguística ratificando a sua natureza heterogênea.

122
FUESPI/NEAD - Português

No caso específico do português brasileiro, em uma


primeira visão temos, dentre esses fatores que contribuem para a
heterogeneidade linguística, aqueles de natureza sócio-histórica,
determinantes no processo de formação da língua, como vimos ao
longo da unidade três. Mas, fatores outros, assinalados nesta
unidade até aqui, apontam para muitos outros fatores responsáveis
pela realidade linguística da atualidade.
Estranho, porém real, é o fato de a língua portuguesa
comportar tanta heterogeneidade e, mesmo assim, prestar-se à
interação de quase todos os brasileiros, com exceção de alguns
indígenas que não a dominam. Esse seria o fenômeno linguístico
da unidade. Como? Ao mesmo tempo em que é extremamente
heterogênea, já que comporta variações em muitas dimensões, é
una? Vamos verificar isso com calma, a partir do que o mestre
romeno Eugeniu Coseriu (1979a) nos propõe. Para explicar esses
fenômenos linguísticos - ao tempo em que a língua é uma unidade,
apresenta-se extremamente heterogênea - Eugenio Coseriu
propôs um modelo teórico baseado nas noções a partir das quais
a comunicação linguística é viabilizada entre os seus usuários:
sistema, norma e fala.
A noção de sistema, já apresentada discutida por
Ferdinand de Saussure, ao definir o objeto de estudo da linguística
- a língua - como um sistema de signos, seria formada de invariantes
que constituem oposições funcionais, configura-se pela existência
de muitas regras e caracteriza-se por ser um conjunto de
imposições e de liberdades já que admite inúmeras realizações
desde que não afetem as condições de funcionamento do do
instrumento linguístico.
No sistema verificam-se: um conjunto de imposições que
servem para marcar a sua estabilidade e um conjunto de liberdades

123
Formação histórica da língua portuguesa

que se prestam à inovação, mas não permitem que as condições


de funcionamento do sistema sejam alteradas. O sistema, pois,
caracteriza-se pelo equilíbrio entre prescrições e liberdades.
O equilíbrio entre prescrições e liberdades é verificado ao
se perceber que os falantes de uma mesma língua falam essa língua
de maneiras muito diversas e que essas formas diferentes de falar
essa língua específica não impedem que ela continue a ser a
mesma. Por exemplo: no contexto brasileiro, será que um cidadão
amazonense, analfabeto, nascido e criado em áreas isoladas,
conseguiria interagir linguisticamente com um doutor em Filosofia,
nascido e criado em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul? A
resposta é positiva. E o que permite o entendimento linguístico entre
eles é o sistema, é o fato de compartilharem esse conjunto de
prescrições, de compartilharem, então, o mesmo sistema. Isso
implica o raciocínio de que as línguas mudam, porque estão em
ação, as mudanças que ocorrem só são possíveis na medida em
que o sistema permite.
A norma, para Coseriu (1979a, p.74), “é um sistema de
realizações obrigadas, de imposições sociais e culturais, e varia
segundo a comunidade”. Não inclui as variantes individuais e
particulares e se caracteriza por apresentar um grau intermediário
de variação, que se concretiza no uso adotado por cada
comunidade. Dentro de uma mesma comunidade linguística podem
ser verificadas muitas normas - popular, linguagem literária,
linguagem vulgar -, distintas entre si no que se refere à gramática,
à pronúncia e ao vocabulário.
Em uma mesma comunidade podem ser observadas
variações relacionadas a classes sociais, ao espaço físico que o
falante ocupa, ao grupo profissional a que pertence, ao seu sexo, à
modalidade de linguagem que utiliza para se comunicar e à situação

124
FUESPI/NEAD - Português

da interação a que está exposto (o conceito de norma será


retomado na sessão seguinte).
A fala, outro componente do modelo, é definida como “atos
linguísticos de criação inédita, porque correspondem a criações
inéditas, mas são, ao mesmo tempo - pela própria condição
essencial da linguagem, que é a comunicação -, atos de re-criação;
não são invenções ex novo e totalmente arbitrárias do falante, mas
se estruturam sobre modelos precedentes que os novos atos
contêm e, ao mesmo tempo, superam.” (COSERIU, 1979a, p.72).
Os atos de fala, então, atualizam-se a partir de modelos que
se definem na norma e esta, por sua vez, está calcada no sistema.
Vejamos alguns exemplos da oposição norma / sistema
no português do Brasil, com base nos dados de observação de
Brandão (http://jackbram.pro.br).
O conhecido [š], chiante pós-vocálica, variante de [s], é
norma no Rio de Janeiro em todas as classes sociais: gás [gaš],
mês [meš], basta [bašta]. Já no Sul, a pronúncia sancionada pelo
uso (ou norma) é marcadamente alveolar: [basta], [mês], [gás].
No campo da Morfologia, o sistema dispõe dos sufixos -
ada e -edo, ambos com o sentido de coleção. Enquanto, para
designar grande quantidade de bichos, a norma culta prefere o
primeiro (bicharada), a norma geral no falar gaúcho consagrou o
segundo: bicharedo. O mesmo acontece com os sufixos diminutivos
-inho e -ito, ambos disponíveis no sistema funcional: a norma fora
do Rio Grande do Sul é dizer-se salaminho; já em terras gaúchas
o uso sancionou salamito.
No plano sintático, a língua (sistema) portuguesa dispõe
dos advérbios já e mais, que, quando usados numa frase negativa,
indicam a cessação de um fato ou de uma ação. A norma brasileira
preferiu o segundo: “Eu não vou mais”; “Não chove mais”. A

125
Formação histórica da língua portuguesa

portuguesa optou pelo primeiro: “Eu já não vou”; “Já não chove”. O
português do Brasil prefere descrever um fato em progressão
dizendo: “Estou estudando” (aux. + gerúndio); já em Portugal, a
norma é usar-se aux. + infinitivo: “Estou a estudar”. Ainda com
relação à norma brasileira, não podemos deixar de mencionar o
uso consagrado do verbo ter no lugar de haver, com o sentido de
“existir”, uso inclusive já referendado por vários autores brasileiros
de peso, como Carlos Drummond de Andrade (“No meio do
caminho tinha uma pedra”) e Manuel Bandeira (“Em Pasárgada
tem tudo”), dentre outros.
Nesse sentido, cabe ressaltar que certos deslocamentos
da norma, constantes e repetidos, podem, com o tempo, fazer
evoluir (mudar) a língua. É o que vem ocorrendo, por exemplo, com
a pronúncia do adjetivo “ruim”. A norma gramatical em vigor
recomenda pronunciá-lo como hiato: ruím. Entretanto, o que vemos
é a silabada, no português do Brasil , quando esse é pronunciado
como ditongo: rúim. É possível que, no futuro, seja esta a única
pronúncia em vigor, tanto no sistema (língua) quanto na norma (uso).
Na realidade linguística brasileira, não obstante as
diversidades de ordem geográficas e sociais, dentre outras,
verificamos uma unidade linguística, viabilizada pelo sistema da
língua, pelos elementos formais que tornam possível a sua
existência – dimensões fonológica, morfológica, sintática, lexical –
e pelos elementos sociopragmáticos, concernentes à norma.
Todos esses elementos são explicitados na fala, de maneira mais
imediata e, ao tempo em que revelam unidade, revelam também.
Uma grande diversidade, heterogeneidade que não impede de a
língua prestar-se à interação entre os seus falantes.
Então, a presumida unidade linguística do português
brasileiro é uma ficção?

126
FUESPI/NEAD - Português

4.1.3 A norma culta do português brasileiro

A constatação das diversas linguagens, das variações de


que se reveste a língua portuguesa queremos discutir nesse espaço
a constituição e consolidação da norma culta do português do
Brasil. Para isso, retomaremos alguns pontos apresentados nesta
unidade e na unidade três, tendo em vista a maneira como se foi
formando a ideia e a forma e como é, hoje, considerada essa
variedade da língua, a norma culta.

Fonte:<http//:www.clcefa.wordpress.com>

Inicialmente, faz-se necessária uma breve retomada do


conceito de norma, já apresentado na seção anterior, para, em
seguida, discutirmos a ideia de norma culta. A ideia de norma
linguística estabeleceu-se no contexto dos estudos voltados para
a observação dos fenômenos da linguagem relacionados à
variação linguística. Um dos primeiros estudiosos que adotaram
esse conceito nas suas discussões foi o linguista romeno Eugenio

127
Formação histórica da língua portuguesa

Coseriu, acima mencionado, ao propor, para a sistematização da


variação linguística uma tricotomia : sistema, norma e fala, indo do
mais concreto (fala, uso individual da norma) ao mais abstrato
(língua, sistema funcional), passando por um grau intermediário: a
norma (uso coletivo da língua).
Em outras palavras, há realizações consagradas pelo uso
que são normais em determinadas circunstâncias linguísticas,
previstas pelo sistema funcional. É à norma que nos prendemos
de forma imediata, conforme o grupo social de que fazemos parte
e a região onde vivemos. A norma seria assim um primeiro grau de
abstração da fala. Considerando-se a língua (o sistema) um conjunto
de possibilidades abstratas, a norma seria então um conjunto de
realizações concretas e de caráter coletivo da língua.
A norma são modelos abstratos não manifestações
concretas e representam obrigações impostas numa dada
comunidade sócio-linguístico-cultural. Inclui elementos não
relevantes, mas normais na fala dessa comunidade. Dessa forma,
se constitui como realização coletiva, tradição, repetição de
modelos anteriores, estabelecendo códigos e sub-códigos para
diferentes grupos de uma mesma sociedade. Apesar de a norma
ser convencional e opcional, torna-se uma opção dentro de um
grupo a que pertence o falante. Preserva seus aspectos comuns e
elimina tudo o que, na fala, é inédito, individual.•”Vamos atentar
para a sintaxe dos paulistas/ E o falso inglês relax dos surfistas”.

Tipos de Norma

As variantes coletivas (ou subcódigos) dentro de um


mesmo domínio linguístico dividem-se em dois tipos principais:
diatópicas (variantes ou normas regionais) e diastráticas (variantes

128
FUESPI/NEAD - Português

culturais ou registros).
As variantes diatópicas caracterizam as diversas normas
regionais existentes dentro de um mesmo país e até dentro de um
mesmo estado, como o falar gaúcho, o falar mineiro, etc. Por
exemplo, “cair um tombo”, no Rio Grande do Sul; “levar um tombo”,
no Rio de Janeiro.
As variantes diastráticas, intimamente ligadas à
estratificação social, evidenciam a variedade de diferenças culturais
dentro de uma comunidade e podem subdividir-se em norma culta
padrão (ou nacional), norma coloquial (tensa ou distensa) e norma
popular (também chamada de vulgar).
• A norma culta é a modalidade escrita empregada na
escola, nos textos oficiais, científicos e literários. Baseada na
tradição gramatical, é a variante de maior prestígio sociocultural.
Ex.: Há muito tempo não o vejo. Vendem-se carros. Havia dez
alunos em sala.
• A norma coloquial é aquela empregada oralmente pelas
classes médias escolarizadas. Viva e espontânea, seu grau de
desvio em relação à norma culta pode variar conforme as
circunstâncias de uso. Ex.: Tem muito tempo que não lhe vejo /
não vejo ele. Vende-se carros. Tinha dez alunos em sala.
• A norma popular caracteriza a fala das classes populares
semi-escolarizadas ou não-escolarizadas. Nessa modalidade, o
desvio em relação à norma gramatical é maior, caracterizando o
que é considerado “erro”. Ex.: O cachorro-quente custa três real.
Dadas essas informações, vamos voltar ao nosso tópico:
a norma culta brasileira. A nossa discussão tem como suporte as
ideias de Faraco (2008), que considera o conceito de norma culta
semanticamente impreciso porque, no discurso acadêmico, às
como norma gramatical, tal como se apresenta nas gramáticas e

129
Formação histórica da língua portuguesa

nos dicionários. (BRANDÃO, 2009)


Com o advento da linguística, o termo gramática, que até
então representava uma variedade linguística prestigiada e aceita
como correta, enfrentava uma depreciação semântica. Com isso,
o conceito de norma culta, que provinha do discurso científico,
passou a ser usado, em substituição ao desgastado e politicamente
incorreto termo gramática. Em consequência, o próprio contexto
educacional de língua materna modernizou-se ao adotar não só
um nome, mas uma perspectiva diferente.
Essa nova forma de ver a língua e o ensino, um dos
principais fatores de suposta unificação linguística, não tem
acontecido pacificamente, vem provocando debates acalourados
por entenderem, alguns, que essa nova perspectiva propondo um
rompimento definitivo com os preceitos da gramática normativa
quando, na verdade, não era isso que acontecia. Postulavam-se
críticas aos preceitos descontextualizados e distantes da realidade
linguística brasileira dessa abordagem linguística e as estratégias
pedagógicas adotadas no seu ensino.
A expressão norma culta passou, então, a ser usada para
designar o conjunto de preceitos da velha tradição excessivamente
conservadora e pseudopurista. Para Faraco, nessa passagem, o
deslocamento de sentido da expressão norma culta deu-lhe uma
certa personificação sem, contudo, a necessidade de explicitar o
seu conceito com precisão: o que é mesmo a norma culta do
português Brasileiro?
Não se pode deixar de arrolar, nesta discussão, um outro
conceito de norma culta, adotado na mídia e na escola como
equivalente a escrita. Assim considerando, teremos, em relação à
mídia, o equívoco de considerar como norma culta apenas alguns
gêneros escritos, apenas aqueles que devem ser elaborados a

130
FUESPI/NEAD - Português

partir da mais pura tradição gramatical normativa; já em relação à


escola, o equívoco é ainda mais alarmante em virtude de, nesse
contexto, ao ensinar o português aos seus falantes deveria ter como
objetivo oferecer acesso às mais diversificadas normas linguísticas
brasileiras, elege apenas aquela que considera única – a norma
culta.
Conforme lembra Faraco (2008), não podemos esquecer
de que vivemos numa sociedade tradicionalmente pouco letrada,
pois ainda é efetivamente pequeno o número de brasileiro que
domina a escrita de forma autônoma e competente. Temos ainda
a tarefa de compreender e rever as tradições históricas, sociais,
econômicas e culturais que, desde a época colonial, concentra a
riqueza material e simbólica nas mãos de poucos e, a escrita,
sendo um desses bens, ainda não foi suficientemente socializada.
A adoção da expressão norma culta deve ter facilitado os
discursos, especialmente aquele que circula nos contextos
educacionais, mas não tem servido par avançarmos na
compreensão da nossa cultura linguística. Ainda não sabemos
direito qual é a nossa língua culta e, ainda, não reconhecemos a
nossa cara linguística nem conseguimos assumir a nossa
diversidade em termos de língua.
O conceito de norma, como vimos, surgiu em decorrência
da necessidade de estipularmos um nível teórico capaz de captar
a heterogeneidade inerente à língua já que as pesquisas sinalizam
para essa característica essencial de qualquer língua – a língua é o
próprio conjunto de suas variedades. A língua portuguesa do Brasil,
portanto, não é um objeto empírico uno, homogêneo, claramente
delimitável e objetivamente definível por critérios apenas
linguísticos, pois trata-se de uma realidade plural, um conjunto de
inúmeras variedades reconhecidas histórica, política e culturalmente

131
Formação histórica da língua portuguesa

como manifestações de uma mesma língua por seus falantes.


A norma linguística é, pois, constitutiva da língua e, em
relação às normas do português brasileiro, vale ressaltar que há
grupos de falantes que não dominam ou dominam precariamente
determinadas normas. Vejam-se os falantes de cultura urbana em
relação às normas dos contextos rurais e os sujeitos pertencentes
a comunidades rurais em relação aos falares urbanos de grupos
particulares. Temos, também a variável escolarização: os indivíduos
que têm o domínio linguístico comum aos pouco escolarizados, em
comparação àqueles cujo grau de escolarização está no topo.
Certamente, há diferenças entre os falantes quanto ao
domínio de normas linguísticas, mas não há falantes que falem sem
o domínio de alguma norma. Em virtude de suas histórias de vida e
das experiências particulares das pessoas, diferentes grupos
sociais usam normas diferenciadas. Mas, todo e qualquer grupo
social tem sua norma, e uma mesma pessoa pode ter o domínio
de duas ou mais normas.
Em relação à norma culta brasileira, apesar de já
dispormos de um rico acervo de dados dialetológicos e
sociolinguísticos, ainda não temos uma consolidação geral que
apresente uma descrição ampla da nossa cara linguística em termos
de norma culta. Ademais, consideram os estudiosos do tema que
está bastante claro que nenhum corte dicotômico da realidade
linguística brasileira, como português culto/português popular,
português fomal/português informal, português formal/língua escrita,
português informal/língua falada será um caminho seguro para
representar totalmente a realidade linguística nos tempos atuais.
Faraco (2008) considera que um dos modelos que melhor
traduz a realidade linguística brasileira é o modelo dos três
contínuos adotado por Bortoni-Ricardo (2005), apresentado na

132
FUESPI/NEAD - Português

seção anterior. Para o autor esse modelo contempla as dimensões


que não podem deixar de ser consideras na análise da língua
portuguesa do Brasil: históricos, sociais, geográficos,
escolarização, efetiva possibilidade de exposição a eventos de
letramento.
Segundo, ainda, esse estudioso, considerando-se as
características da urbanização do Brasil, especialmente nos últimos
cinqüenta anos, e o alcance dos nossos meios de comunicação
social, pode-se sugerir que as variedades que exercem, hoje, a
maior força de atração sobre as demais são faladas pelas
populações tradicionalmente urbanas, situadas na escala de renda
de média para alta e que, por isso, têm garantido para si,
historicamente, bons níveis de escolaridade e o acesso aos bens
da cultura escrita.
Essas variedades, observadas no entrecruzamento dos
contínuos, estão situadas nos polos urbano e de letramento, são
dominantes nos nossos meios de comunicação social, desde os
estilos mais monitorados – noticiários, telejornais, editoriais - até
aqueles menos monitorados – novelas, alguns programas de
entrevista. Essas variedades, que Dino Preti (1997) denomina de
linguagem urbana comum, identificam-se com as variedades rurais
e rurbanas faladas pelas populações que, por força do êxodo rural,
das últimas décadas, se tornaram urbanas só mais recentemente.
A linguagem urbana comum, então, baliza o falar culto – a
norma culta falada- e, ao mesmo tempo, tem poderoso efeito
homogeneizante sobre as variedades do chamado português
popular brasileiro. (FARACO, 2008).
Resta, ainda, discutirmos um pouco sobre o falante culto.
Quem é ele?
Os falantes da norma culta, no Brasil, são considerados

133
Formação histórica da língua portuguesa

aqueles que concluíram um curso superior, segundo o Projeto


NURC (Norma Linguística Urbana Culta) mas em virtude das
características da sociedade brasileira, seria conveniente
considerar letrados quem, pelo menos, concluiu o nível médio de
ensino, critério esse, assentado, dentre outros, nas pressões
ideológicas do moderno conceito de cidadania que se criou no
século XVIII. Conforme esse conceito, os membros da sociedade
deixaram de ser súditos do rei e passaram a ser cidadãos com
igualdade política e jurídica.
Para que essa cidadania se estabeleça efetivamente, uma
das exigências seria a garantia da educação básica comum a todos
os cidadãos e a educação básica inclui, pelo menos, o ensino
médio. Assim, é mais adequado considerar letrado aquele que
completou o ensino médio, que teve acesso à educação básica
comum a todos os cidadãos. Uma educação que proporcione o
acesso à cultura letrada e, em consequência disso, o domínio da
variedade da língua a ela relacionada.
Para Faraco

O acesso a essa variedade seria, então, em princípio,


um fator de inclusão na cidadania já que
correlacionada com a democratização da cultura
escrita e com o exercício da fala nos grandes espaços
públicos.
No Brasil, porém, esse ideal está ainda longe de se
alcançado. Nós mal conseguimos universalizar a
educação primária de quatro anos. Estamos ainda
distantes de garantir oito anos de escolaridade para
todos. E o ensino médio é ainda quase uma raridade
[...] Uma das consequências disso é que só uma
minoria tem acesso efetivo à cultura letrada, o que
inclui o estudo da chamada norma culta. (FARACO,
2008, p. 60-61).

134
FUESPI/NEAD - Português

SAIBA MAIS

VIVA A FALA BRASILEIRA!


Sônia Bastos Borba Costa
(Professora Associada de Língua Portuguesa do Dep. de Letras
Vernáculas da Ufba)

Nosso festejado João Ubaldo, que sempre nos brinda com


sua verve e seu respeito pela cultura popular, além de nos ter legado
um clássico da literatura brasileira, Viva o povo brasileiro, vez por
outra, manifesta opiniões sobre nosso falar, demonstrando o que,
com boa vontade, poderíamos chamar de preocupação. Creio que
uma pequena reflexão à luz da Linguística moderna poderia trazer
algum alento a João Ubaldo e a outros que com isso se ocupem.
Ser contra a mudança nas línguas é como ser contra o
envelhecimento ou contra o comportamento inovador de nossos
filhos. Simplesmente porque a mudança linguística é natural. Ser
contra a mudança nas línguas é, portanto, atitude rematadamente
inócua: no máximo, podemos gostar ou não dessa contingência.
Além disso, é preciso compreender que ela não é ditada por,
propriamente, razões, respeitáveis ou não, ao menos razões que
dependam de arbítrio, de manifestação volitiva consciente. As
causas da mudança linguística são de várias ordens, externas e
internas, e, nesse último caso, incluem tendências embutidas na
estruturação dos seus subsistemas (fonológico, morfológico,
sintático, lexical, semântico), sementes de mudanças que, às vezes,
podem ser detectadas por estudo sistemático de alterações
pretéritas; mudanças podem, também, por exemplo, decorrer de
contatos interlinguísticos.
É preciso ainda nos conscientizarmos de que a fala

135
Formação histórica da língua portuguesa

espontânea, quer de língua dita “de cultura”, quer de língua ágrafa,


jamais é caótica, aleatória, desordenada. As pesquisas conduzidas
pela Linguística assim o demonstram. Qualquer língua natural tem
uma gramática interna, adquirida pelos falantes nativos na infância,
por combinação de capacidade cerebral inata com os estímulos
que lhes advêm dos falantes adultos da comunidade de fala. A
criatividade linguística obedece, assim, a certas “leis”, mas não de
alguns, e sim de todos, porque todos os falantes nativos de uma
língua as dominam. Aqui, o que denominamos gramática se
identifica com a estruturação natural da língua e não se confunde,
portanto, com a gramática normativa, essa imposta e baseada em
cânones literários, no prestígio de certos gêneros discursivos, de
certas instituições e compêndios, como dicionários e manuais
pedagógicos.
O que resta claro é que as expressões espontâneas, em
qualquer língua, podem ser inopinadas, podem ser até julgadas
feias, mas jamais são descabidas, “sem lógica”.
Toda língua é também multifária e traz implícitos
mecanismos de renovação e ampliação dos seus recursos
expressivos, constituindo conglomerado de falares adaptáveis a
variados contextos, o que lhes confere riqueza e interesse, textura
e sabor. Conscientemente ou não, sabemos que há variação de
fala em qualquer contexto social, numa gradação que vai de
variedades cotidianas, informais a outras mais ou menos formais.
Como disse Guimarães Rosa, na voz do personagem Damásio,
há a fala de “ em dia-de-semana”, a que poderíamos opor uma fala
“de domingo”, ou se preferirmos outra metáfora, falas em estilo
praiano, em estilo esporte casual, em estilo engravatado. Todas
as línguas apresentam essas variações que, se olhadas pelo
prisma da criatividade e respeito (como aliás sempre faz o nosso

136
FUESPI/NEAD - Português

escritor, quando trata a cultura de Itaparica, do boteco do Leblon e


de outros sítios tão autenticamente brasileiros), são motivo de
encantamento e até de diversão, mas jamais de desprezo ou
inconformismo.
Aliás, a perspicácia de João Ubaldo em relação à fala
brasileira está patente na sua crônica. É verdade que se usa A
moça que eu vi o pai ontem e quem disser A moça cujo pai eu vi
corre o risco de não ser entendido. Ou seja, o cujo, na fala, já é um
arcaísmo. Além de cujo, temos também, entre outros, o pronome
vós, o seu (possessivo de terceira pessoa verbal, que já
substituímos pelo dele), o mais-que-perfeito do indicativo, na sua
forma simples, e os pronomes o e a, formas de objeto direto, já
estão bem avançados no desuso. São processos de mudança,
alguns já operados, outros em curso, que não são caóticos,
assistemáticos, têm as suas “regras”.
Um outro exemplo citado pelo autor, eu tinha falo, pode ser
chocante porque parece irregular, talvez excessivamente inovador,
mas pelo mesmo processo temos eu tinha pego e eu tinha pago,
substitutos de eu tinha pegado e eu tinha pagado – como, muito
adequadamente, ele observa. São formas inovadoras dos
chamados “particípios curtos”, ou seja, formas como aceito, expulso,
ganho, gasto, que têm sido estendidos pela fala popular, e quem
se interessa por ouvi-la sem preconceitos, já ouviu também, pelo
menos, eu tinha chego. São, aliás, resultantes de processo análogo
ao que nos deu falto (tão chique, pois não?), usado pelo autor. Ao
estudarmos a história da língua portuguesa, vemos que, no
português medieval, tínhamos corto, e, há não tanto tempo atrás,
tínhamos escrevido e fazido.
O fato de colocar vir destronando pôr e botar, talvez se
deva ao trocadilho sem graça com botar ovo e porque botar sempre

137
Formação histórica da língua portuguesa

foi discriminado como coisa de nordestino... É assim mesmo,


palavras invadem territórios de outras, são submetidas, sucumbem
ou sobrevivem a adversidades. Assim, o debilitado verbo haver
vem sendo derrotado na língua portuguesa pelo verbo ter. O haver
perdeu na acepção de posse (port. arc. hei filhos), vem perdendo
na função de verbo auxiliar (havia lido) e também na acepção de
existir (há preconceitos linguísticos no país)
Em suma, porque temos uma língua própria, nós a
continuamos, nós a enriquecemos, não a fazemos “decair”. A
vitalidade e a legitimidade linguísticas se constróem com inovações:
umas apenas continuam caminhos compridos, começados há
milênios, outras, mais novinhas; umas, por serem modismos,
rapidamente abandonadas; outras, vitoriosas, são incluídas no
domínio comum; umas, tomadas de empréstimo para logo serem
esquecidas, outras para serem apropriadas, salivadas e
mastigadas pela nossa gente e, como diria Oswald,
antropofagizadas.
Creio, enfim, que alguns de nossos intelectuais tomam
direção equivocada nesse terreno. Deveríamos prestar mais
atenção à nossa fala, incorporar o que construímos aqui como
nossa língua. Deveríamos nos ouvir com mais atenção, sem nos
deixar impressionar por modismos, é certo, mas identificando o
português que efetivamente falamos, que nosso povo vem
construindo nesses cinco séculos de existência como nação
multicultural e ricamente multidialetal.
Aproveito a oportunidade para desmistificar a impressão
de que nós, que estudamos a língua de uma perspectiva não
normativista, somos contra o domínio da norma prestigiada.
Constituímos uma sociedade complexa, cuja língua é multifacetada,
tanto na fala quanto na escrita, o que produz a necessidade de

138
FUESPI/NEAD - Português

alguma normatização, para que possam ser cumpridas todas as


suas funções. Por extensão, precisamos de um sistema escolar
que democratize o domínio de alguma norma-padrão. Mas por que
insistir em manter a nossa norma-padrão tão distante da nossa
fala natural, da nossa história, da nosso constituição como povo?
Afinal, para quem não sabe, a norma-padrão brasileira, aquela que
está nas gramáticas normativas, foi “construída” no decorrer do
século XIX, na perfeita contramão da nossa história. Enquanto o
país caminhava no sentido de uma almejada independência política,
e alguns da nossa elite intelectual debatiam a questão de termos
ou não uma língua brasileira, outros intelectuais sedimentavam uma
norma gramatical copiando a lusitana. Por sua vez, nossos irmãos
lusos, em direção bem contrária à nossa, promoviam uma
aproximação entre a sua norma-padrão e novas estruturas
linguísticas, desenvolvidas naturalmente por lá, a partir do século
XVIII... Por que, por exemplo, continuamos ensinando nossas
crianças e jovens a escrever e até tentar falar com pronomes
enclíticos, construção tão avessa ao natural falar brasileiro e ao
falar português anterior ao século XVIII? A mudança que produziu a
ênclise pronominal preferencial se processou lá, e nós a copiamos,
sem que jamais essa mudança se tivesse processado naturalmente
no Brasil. Por que os nossos intelectuais não criticam os
desequilíbrios sintáticos patentes em textos escritos no Brasil, por
tentativa de fazer ênclises, tão estangeiras a nós ?
O linguista Carlos Alberto Faraco, em trabalho publicado
em 2002 cita carta de leitor à Folha de São Paulo, que diz ser
preciso “pôr a nu a hipocrisia dos que se servem da dita norma
culta (ah, essa dona Norma...) para humilhar milhões de brasileiros
e para excluí-los da vida política e dos bens culturais”. Lendo isso,
eu me perguntei onde está essa D. Norma (e, observe-se que aqui

139
Formação histórica da língua portuguesa

se fala de norma culta, que não é o mesmo que norma-padrão).


Norma padrão
brasileira: Insisto. Que ambientes freqüenta a nossa norma-padrão? Manuais
desembaraçando de redação dos considerados grandes jornais do país? A escrita
alguns nós. In:
Marcos Bagno dos nossos jornalistas, literatos, cientistas? Os discursos dos
(org.) Linguística
da Norma, São nossos políticos? Os telejornais, as teleentrevistas? Os arrazoados
Paulo:Loyola. e normas dos juristas? A pregação religiosa? A fala ou a escrita de
profissionais de todas as partes do país? De qual parte? Aí está.
Quem deve ser tomado como modelo? E é muito importante, para
que sejam efetivos, que os modelos prestigiados sejam reais,
audíveis, líveis na realidade que cerca o usuário.
Os que vimos batalhando há décadas no ensino
universitário da língua portuguesa queremos fazer um convite: que
se aproximem os que se motivam pela história da língua que
falamos e que nos fala. Queremos partilhar o que temos conseguido
aprender com nossos compatriotas, desde os Fabianos
atormentados pelo mutismo angustiado, aos loquazes Riobaldos,
aos pitorescos e criativos Odoricos; e chamamos de português
brasileiro, variedade nacional da língua portuguesa, todas as falas
da nossa gente, que nos merecem o mesmo respeito que a
saborosa tagarelice das Emílias e os magníficos discursos das
Mães Rufinas e dos Negos Leléus.
Originalmente publicado em A TARDE, Caderno
CULTURAL, Salvador, 16.06.2007.

LEITURA COMPLEMENTAR

Para a verificação de um ponto de vista interessante sobre


o tema acima discutido recomendamos:
BAGNO, Marcos. A maldição da norma culta. Disponível
em <http//:bagno.com.br/conteúdo/arquivos/artigoscarosamigos>.

140
FUESPI/NEAD - Português

Para aprofundar o tema análise do português brasileiro a


partir da teoria dos contínuos, ler:
BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua
materna: a sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola
Editorial, 2004 (Capítulos 4, 5 e 7).
BORTONI-RICARDO,Stella Maris. Nós cheguemo na
escola, e agora? Sociolinguística e educação. São Paulo:
Parábola Editorial, 2005.
FARACO, Carlos Alberto. Norma culta brasileira:
desatando alguns nós. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.

ATIVIDADE COMPLEMENTAR

1 - Pesquisar, na web, textos que discutam a norma culta


do português brasileiro como a única variedade da língua ensinada
na escola.
2 - De que maneira os Parâmetros Curriculares Nacionais
abordam o ensino da norma culta? Faça uma pesquisa sobre o
tema e responda a esta questão.
3 - E você, como se posiciona diante dessa questão?

RESUMO

Nesta unidade, demos continuidade aos nossos estudos


sobre a língua portuguesa brasileira. Focalizamos aspectos
relativos às características sociolinguísticas do português brasileiro
na atualidade. Ressaltamos, no contexto dessa discussão, as
características sociolinguísticas da língua portuguesa, reveladas a
partir de investigações de pesquisadores brasileiros e dessas
características decorre a heterogeneidade de que se reveste a

141
Formação histórica da língua portuguesa

nossa língua. Já que o português brasileiro apresenta tanta


diversidade, como, então, explicar a sua unidade? Esta resposta
é um dos pontos ressaltados acima. E a norma culta? O que é e
como se caracteriza?

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM

1 - Leias os dois textos apresentados, respectivamente,


nas introduções das unidades três e quatro. Em seguida:
a) Observe que a temática, nesses dois textos, é a língua.
b) Que língua é essa da qual falam os textos?
c) Quanto à abordagem da temática, no que se identificam
e no que diferem os dois textos? Explique e justifique.
d) Como situaríamos as noções de sistema, norma e fala,
nesses dois textos? Exemplificar com elementos dos textos.

2 - Qual a cara da nossa língua, hoje?


3 - Para responder a esta pergunta, retome a leitura desta
unidade e elabore um fichamento dos itens que a compõe. No final,
você terá a resposta à pergunta apresentada.

142
FUESPI/NEAD - Português

REFERÊNCIAS

BORTONI-RICARDO, Stella Maris. The Urbanization of Rural


Dialect Speakers, Cambridge University Press, 1985.

_________. Análise do português brasileiro em três continua:


o continuum rural-urbano, o continuum de oralidade-letramento e o
continuum de monitoração estilística. Palestra conferida no
Congresso Substandard e Mudança no Português do Brasil. Berlin,
outubro de 1997.

_________. Educação em língua materna: a sociolinguística na


sala de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.

_________. Nós cheguemo na escola, e agora?


Sociolinguística e educação. São Paulo: Parábola Editorial,
2005.

BRANDÂO, Jackson de Souza. Sistema e norma. Disponível em:


<http://jackbram.pro.br>. Acesso em:21/062010.

CABRAL, Gabriela. Miscigenação da Língua Portuguesa.


Disponível em: www.brasilescola.com. Acesso em: 20/07/2010.

CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. História e estrutura da língua


portuguesa. Rio de Janeiro: Padrão, 1976.

COSERIU, E. Teoria da linguagem e linguística geral. Trad.


Agostinho Dias. Rio de Janeiro: Presença; São Paulo: EDUSP,
1979a.

COUTINHO, Ismael de Lima. Pontos de Gramática Histórica. Rio


de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1976.

ELIA, Sílvio, Fundamentos histórico-linguísticos do português


do Brasil. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003.

143
Formação histórica da língua portuguesa

FARACO, Carlos Alberto. Norma culta brasileira: desatando


alguns nós. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.

ILARI, Rodolfo e BASSO, Renato. O português da gente: a língua


que estudamos a língua que falamos. São Paulo: Contexto, 2007.

IVO, Castro. Curso de História da Língua Portuguesa. Lisboa:


Universidade Aberta, 1991.

MARTINET, André. Des steppes aux oceans: Indo-européen et


les Indo- europeens. Paris:Payot, 1987.

MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Ensaios para uma sócio-


história do português brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial,
2004.

__________. O português arcaico: fonologia. São Paulo:


Contexto, 1991.

__________. O português arcaico: morfologia e sintaxe. São


Paulo: Contexto, 1991.

__________. Uma compreensão histórica do português brasileiro:


velhos problemas repensados. In. CARDOSO, Suzana A. Marcelino;
MOTA, Jacyra Andrade (Org.). Quinhentos anos de história
linguística no Brasil. Salvador: Funcultura, 2006, p. 221-251.

MOISÉS, Massaud. Literatura Portuguesa. São Paulo: Cultrix,


1991.

PRETI, Dino. A propósito do conceito de discurso urbano oral culto:


a língua e as transformações sociais. In: ____ (Org.). O discurso
oral culto. São Paulo: Humanitas Publicações-FFLCH/USP
(Projeto de estudo da norma linguística urbana culta de São Paulo).
PEREIRA, Dulce. Crioulos de Base Portuguesa. In A. L. Ferronha;
E. Lourenço; J. Mattoso; A. C. Medeiros; R. Marquilhas; M. Barros
Ferreira; M. Bettencourt; R. M. Loureiro. Atlas da Língua

144
FUESPI/NEAD - Português

Portuguesa. Lisboa: Imprensa nacional. Comissão Nacional para


os Descobrimentos, União Latina, 1992, p.120-125.

RIBEIRO, Darcy et alli. A fundação do Brasil. Petrópolis: Vozes,


1992.

SILVA NETO, Serafim.[1950] Introdução ao estudo da língua


portuguesa no Brasil. 5 ed. Rio de Janeiro: Presença, 1975 .

___________. História da língua portuguesa. 4 ed. Rio de


Janeiro: Presença, INL, 1986.

TEYSSIER, Paul. História da Língua Portuguesa. São Paulo:


Martins Fontes, 1997.

145
AVALIAÇÃO DO LIVRO

Prezado(a) cursista:

Visando melhorar a qualidade do material didático, gostaríamos que


respondesse aos questionamentos abaixo, com presteza e discernimento.
Após, entregue a seu tutor esta avaliação. Não é necessário identificar-se.

Unidade:____________ Município: _________________


Disciplina:___________ Data: ____________________

1. No que se refere a este material, a qualidade gráfica está visualmente


clara e atraente
( ) ÓTIMO ( ) BOM ( ) RAZOÁVEL ( ) RUIM

2. Quanto ao conteúdo, está coerente, contextualizado à sua prática de


estudos
( ) ÓTIMO ( ) BOM ( ) RAZOÁVEL ( ) RUIM

3. Quanto às atividades do material, estão relacionadas aos conteúdos


estudados e compreensíveis para possíveis respostas.
( ) ÓTIMO ( ) BOM ( ) RAZOÁVEL ( ) RUIM

4. Coloque abaixo suas sugestões para melhorar a qualidade deste e de


outros materiais.
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