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Universidade Estadual de Maringá

02 a 04 de Dezembro de 2015

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROCESSO DE MODERNIZAÇÃO


DO SÉCULO XIX NO BRASIL: A REFORMA COUTO FERRAZ (1854)

VASCONCELO, Mônica
PERIOTTO, Marcília Rosa

Introdução

Este estudo se define por discutir a reforma Couto Ferraz no contexto de


modernização do século XIX no Brasil. O artigo se limita a investigar as contribuições
dessa reforma sobre a formação de professores para o desenvolvimento material do país.
Luiz Pedreira do Couto Ferraz foi um dos intelectuais e políticos que
compreendeu a necessidade histórica de instruir os homens pobres e livres de seu tempo
ao propor uma ampla reforma do sistema de Ensino Público. Ao retornar-se ao passado
é possível melhor compreender os avanços da educação, as relações e ideias
constituídas que determinaram esse modelo educacional em conformidade com
interesses específicos da classe que domina.
Desde a chegada dos jesuítas, em 1549, a instrução tornou-se um dos elementos
fundamentais para formar identidades. Os primeiros jesuítas sob o comando de Manuel
da Nóbrega deu início à missão de catequização dos gentios da América. O padre
Manuel da Nóbrega edificou a primeira escola elementar brasileira, em Salvador, tendo
como mestre o Irmão Vicente Rodrigues, o primeiro professor nos moldes europeus e
por mais de cinquenta anos dedicou-se ao ensino e a propagação da fé religiosa.
Os projetos para a educação brasileira, nessa perspectiva, ao longo das primeiras
décadas do período imperial visavam não apenas a formação do futuro cidadão através
de uma educação de cunho moral e cívico, como também suprir a carência de
professores públicos. Desse modo, várias iniciativas educacionais marcaram
importantes avanços no processo de modernização do Brasil. Uma dessas iniciativas foi
o Decreto n. 1.331A-1854 de Luiz Pedreira do Couto Ferraz que regulou a reforma do
ensino primário e secundário do Município da Corte (Rio de Janeiro).
Couto Ferraz estava insatisfeito com a formação de professores das Escolas
Normais, as quais “eram muito onerosas, ineficientes quanto à qualidade da formação

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que ministravam e insignificante em relação ao número de alunos que nelas se


formavam” (SAVIANI, 2007, p. 133). Portanto, elaborou um projeto que traçava linhas
gerais sobre a instrução pública do Império. Ele trata dos concursos públicos para a
contratação de professores adjuntos, da inspeção, da seriação dos alunos, da admissão
do ensino simultâneo, das condições para o magistério e do funcionamento dos
estabelecimentos, estando no cerne de um sistema de ensino público organizado que
orienta a educação brasileira para a formação de um país fundado no capitalismo:

A preocupação com a existência de estratégias metodológicas ganhou


um intenso debate sobre como educar a população brasileira e qual
seria a melhor organização para a escola primária. É importante
destacar que os envolvidos com o processo de escolarização no século
XIX viram na instrução a possibilidade estratégica para efetivar a
civilização do povo brasileiro além de não apenas indicar os melhores
caminhos a serem trilhados por um povo livre, mas também evitaria
que esse mesmo povo se desviasse do caminho traçado (SOUZA,
2011, p.7).

Era preciso inserir o Brasil na rota da modernização e, para isso, os países


desenvolvidos seriam o modelo ideal a ser seguido. Nesse tocante, o enfoque dado ao
modelo escolar independe dos lugares e das culturas:

A orientação do processo de modernização está sempre referida às


nações desenvolvidas que são o “modelo valorizado positivamente”.
Assim sendo, a analise socioeconômica ou política de um país levará
em consideração os parâmetros externos que condicionam a
formulação do seu projeto nacional, já que será a partir deles que se
definirão o estágio de desenvolvimento interno (GARIA, 1977, p. 21-
aspas do autor).

Enquanto instrumento civilizador a educação tinha a função de efetivar


transformações sociais de toda ordem, ao interligar os indivíduos em um único
sentimento nacionalista, permitindo a consolidação e a expansão das forças produtivas.
A instituição escolar era o espaço indicado para iniciar a formação da identidade da
nação sendo o canal para ascender socialmente às classes mais pobres.
Diante desse contexto, o objetivo republicano de formar a nação inclui o
interesse capitalista de capacitar e disciplinar os diversos grupos de trabalhadores para o
trabalho nas indústrias. A educação passa a ter um ‘caráter estratégico de modernizar’ o

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país por difundir um padrão de comportamento, baseado nos ideais de progresso e de


civilização herdados dos países desenvolvidos.
De acordo com Leonel (1944, p.158), a única maneira considerada eficiente
para dominar as camadas subalternas e ao mesmo tempo emancipar a sociedade foi a de
ofertar o Ensino Público, “era preciso assenhorar-se das almas [...], impondo-lhes os
deveres para com Deus, e assenhorar-se dos espíritos, impondo-lhes os deveres para
com o Estado”. Destaca-se ainda na redefinição social residir um desafio no que tange à
inconformidade das condições apresentadas pelo momento histórico.
No raiar do século XIX, a maior parte da população era composta por escravos e
mestiços que resistiam à instrução por não verem algum benefício nela, assim como os
produtores da antiga agricultura tentavam preservar o tradicionalismo e a Igreja, que via
na instrução uma ameaça aos dogmas. Entretanto, as diversas mudanças colocavam o
homem em uma crise de existência. Na mesma medida em que recebe experiência,
crescimento, transformação de si mesmo e daquilo que está à sua volta, ele também se
submete às incertezas e insegurança de um caminho desconhecido (BERMAN, 1986, p.
16). E é, nesse contexto, que a Educação Pública emerge como uma perspectiva capaz
de ressignificar os espaços e ações escolares em torno de um projeto inovador.
Em razão destas considerações, o estudo merece ser aprofundado, pois, abranger
o processo de modernização vigente no século XIX é contextualizar acontecimentos que
contribuíram para as mudanças sociais. Outro ponto fundamental é compreender
historicamente a importância da Reforma Couto Ferraz, um projeto de lei que pretendeu
implantar ações governamentais modernas para superar e solucionar os problemas
adjacentes ao capitalismo.

O PROCESSO DE MODERNIZAÇÃO DO BRASIL NO SÉCULO XIX

As divergências entre pensadores liberais e conservadores foi um dos motivos


que fizeram o Brasil lentamente rumar ao desenvolvimento material quando se pensa no
debate propulsor sobre as transformações. No processo de institucionalização do ensino
público, o campo sociopolítico educacional sofreu com intensas discussões e rupturas,
prova disso foram diversas reformas realizadas ao longo do século XIX, as quais nos

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permitem perceber o avanço da educação em conformidade com interesses específicos


da classe que domina.
A escola deveria promover a emancipação do indivíduo e concomitantemente da
sociedade. Esta visão influenciou intelectuais, políticos, professores, inspetores,
instituições religiosas, movimentos sociais e outros agentes envolvidos no processo de
constituição da escola pública dando suporte a aplicabilidade de uma forma escolar que
segundo Nóvoa (1991), constituem-se por uma construção histórica resultante do
encontro da multiplicidade de dispositivos científicos, políticos, religiosos e
pedagógicos que permitem compreender a especificidade da forma escolar
(CARVALHO, 2005, p. 41).
Os mantenedores do sistema monárquico, protetores da escola conservadora
traziam no interior de suas instituições a herança cultural dos séculos anteriores. O
legado religioso arraigado nas práticas de ensino permaneceu, só que agora sobre a
perspectiva do Estado. Se para os católicos a religião deveria estar a serviço de Deus,
para os repúblicanos ela se dedicaria à religião da pátria.
As dicussões recaiam sobre a questão de qual a melhor maneira para formar o
cidadão brasileiro, o caminho mais indicado seria ofertar instrução para se consolidar
uma sociedade unificada e moderna:

Estados Unidos da América, França, Inglaterra, Bélgica, dentre outros


exerciam a dominância. O peso hegemônico da realidade externa pode
ser identificado na exemplificação de práticas, na demonstração
numérica e na utilização de argumentos baseados em experiências de
outros países para legitimar decisões de políticas públicas de educação
elementar (WERLE, 2008, p.174).

D. João VI preconizou as primeiras ações do Estado sobre a educação no Brasil


elaboradas nos moldes europeus. Ele incentivou a modernização ao criar museus,
escolas, universidades, entre outras obras que acarretou várias transformações para a
sociedade fluminense. A respeito da formação de professores, d. João VI criou cursos
“que garantissem a instrução de técnicos e que pudessem contribuir com a organização
de um país industrial e mais urbano” (SOUZA, 2011, p.3). Assim, mesmo com a forte
mentalidade conservadora dominante, o progresso era requisito na vida social, seja pelo

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trabalho manufatureiro que criava novas relações sociais, seja pelos novos ambientes e
novas ideias surgida no contexto da modernidade:

Até 1854, quando a iluminação a gás começou a se tornar acessível


em algumas poucas ruas, as famílias usavam lampiões de óleo de
peixe ou de baleias, com seu odor desagradável e resíduo de carbono,
ou contavam simplesmente com velas. Desde o começo da década de
1860, as famílias mais ricas solicitaram ligações a gás para suas casas;
assim, em 1874 até 10 mil residências estavam providas de iluminação
a gás em toda casa. [...]. A água encanada e o sistema subterrâneo de
esgotos possibilitaram um fornecimento de água reforçado e mais
confiável e, combinado a uma rede de transportes públicos, alteraram
gradualmente a natureza do serviço doméstico e, a partir daí do
trabalho exigido dos criadores (GRAHAM, 1992, p.69-70 apud
LIMA, 2010, p.236).

O processo de urbanização do Rio de Janeiro era incipiente, mas já podia indicar


novos rumos e objetivos para as políticas educacionais. Verifica-se nos projetos
sociopolíticos para a educação, a necessidade de proliverar as luzes que deveriam ser
aceitas pela sociedade, em particular pelos agentes da escola. De acordo com a
historiografia, no final do secúlo XVIII os impressos começaram a circular entre
estudantes e letrados, livros e manuscritos eram reproduzidos em edições clandestinas
na Tipografia Régia, enquanto os analfabetos propagavam as ideias boca à boca:

O fenômeno da escolarização em massa, configurado a partir da


segunda metade do século XIX, apresentou muitos aspectos comuns
de abrangência global, entre eles: a obrigação escolar, a
responsabilidade estatal pelo ensino público, a secularização do ensino
e da moral, a nação e a pátria como príncipios norteadores da cultura
escolar, a educação popular concebida como um projeto de
consolidação de uma nova ordem social (PEREIRA, FELIPE e
FRANÇA, 2007, p.6-7).

Em síntese, o desenvolvimento da escolarização pública esteve marcado por


ideias liberais que tinham como pré-requisitos o desenvolvimento intelectual e moral
adquiridos por meio da educação. Nesse contexto, pode-se dizer que na passagem da
sociedade feudal para a sociedade capitalista a educação desempenhou um papel
fundamental, ela ampliou a visão de mundo do homem ocidental, o trabalho artesanal
cedeu lugar ao trabalho manufatureiro, novas relações sociais começam a constituir o

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desenvolvimento do indivíduo que se aperfeiçoa para atender as novas exigências do


capital. Criam-se novos ambientes e novas ideias, o conhecimento científico é
transformado em tecnologia, acresce o ritmo de vida e a urbanização; convergindo na
dicotomia entre o velho e o novo, ou ainda, na negação do antigo em prol da
modernidade.
Na teoria da modernização de Garcia (1977, p. 19), o princípio sistêmico de
interdependência compreende uma conexão recíproca entre os pressupostos de
modernidade. O moderno causa efeitos positivos e/ou negativos em toda a sociedade,
mas também é influenciado pelo todo. No processo de modernização as pessoas, os
acontecimentos, as ideias que circulam estão interligadas afetando a vida de todos de
maneira significativa. Neste tocante, a sociedade compõe-se por seis subpartes: 1) pelo
processo de deslocamento do velho para o novo; 2) pelo ritmo que se opera neste
processo; 3) pela aceleração, manutenção ou desaceleração desse ritmo; 4) pelo impacto
característico de cada período da trajetória; 5) pelas várias vertentes e opções a essa
trajetória; 6) pelo impacto resultante da combinação dos fatores citados que, ao se
apresentarem com elementos próprios, formam grupos específicos que atuam também
sobre o processo de mudança:

a modernidade ou é vista com entusiasmo cego e acrítico ou é


condenada segundo uma atitude de distanciamento e indiferença neo-
olímpica; em qualquer caso, é sempre concebida como um monólito
fechado, que não pode ser moldado ou transformado pelo homem
moderno. Visões de vida moderna foram suplantadas por visões
fechadas (BERMAN, 1986, p.24).

Berman (1986) afirma que a modernidade traz possibilidades e perigos à vida.


Em todo o mundo homens e mulheres compartilham experiências que os colocam numa
condição de constante desenvolvimento e transformação. Ser moderno, portanto:

[...] é encontra-se em um ambiente que promete aventura, poder,


alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas ao
redor – mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo
o que sabemos, tudo o que somos (BERMAN, 1986, p. 15).

A complexidade do processo de modernização, segundo a teoria de Garcia, e a


definição de Berman, nos permite inferir que o desequilíbrio causado neste processo

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consiste num dos elementos determinantes, cria-se desequilíbrios entre as subpartes do


sistema e no indivíduo, instaurando-se as crises necessárias para a transformação. À
medida que se entende a natureza da modernidade, maior domínio sobre a mudança e
maiores traços de unificação interna corresponderá ao modelo para qual foi orientado
(GARCIA, 1977, p. 20).
Os parâmetros internacionais de países desenvolvidos são a base que orienta a
organização interna de países subdesenvolvidos (GARCIA, 1977, p. 21), os índices de
desenvolvimento econômico, científico, tecnológico e político são analisados na
apropriação de modelos, o que implicava tanto no modelo educacional quanto no
modelo de produção para formar cidadãos com o sentimento de pertencimento a nação,
e ao mesmo tempo capacitados para o trabalho.
Na modernidade não se tem como impedir o progresso. Ele é movimento
ascendente e contínuo:

A experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras


geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e
ideologia: nesse sentido pode-se dizer que a modernidade une a
espécie humana. Porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade de
desunidade: elas nos despeja a todos num turbilhão de permanente
desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e
angústia (BERMAN, 1986, p. 15).

Os conservadores negavam viver o presente, os grupos dominantes que detinham


privilégios sobre grupos inferiores, como a Igreja, se sentiam ameaçados, e o medo em
perder as tradições e histórias construídas também afetava a população. Entretanto, no
mundo moderno, uma gama de descobertas, oportunidades, investimentos e saberes
científicos se solidificam, situando as pessoas a todo tempo em atividades de riscos, a
emoção das atividades de risco envolvem diversas atitudes discerníveis: “a consciência
da exposição ao perigo, exposição voluntária a tal perigo, e uma expectativa mais ou
menos confiante de superá-lo” (BALINT 1959 apud GIDDENS, 2002, p. 125).
Berman sintetiza a ideia de Marx sobre o que seria o moderno - Tudo o que é
sólido desmancha no ar. Na modernidade tudo está sujeito às transformações, que
desmancha tudo que é sólido, mesmo o que parece ser estável. Assim a angústia do ser
está em não saber como agir, o que escolher, quem ser:

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A modernidade é inerentemente suscetível à crises, em vários níveis.


Existe uma “crise” sempre que as atividades relativas a importantes
objetivos na vida de um indivíduo ou de uma coletividade
repentinamente parecem inadequadas. As crises nesse sentido tornam-
se parte “normal” da vida, mas por definição não podem ser
rotinizadas (GIDDENS, 2002, p. 171 - aspas do autor).

A modernidade trouxe a desestabilidade do eu, os diferentes estilos de vida antes


desconhecidos provocou uma crise existencial (idem, p. 79) e refugiar-se num estilo de
vida tradicional talvez tenha sido a alternativa mais eficaz para aliviar as ansiedades da
vida moderna. Por essa razão, para o indivíduo sobreviver na modernidade, é preciso
que:
[...] assuma a fluidez e a forma aberta desta sociedade. Homens e
mulheres precisam aprender a inspirar á mudança: não apenas de estar
aptos a mudanças em sua vida pessoal e social, mas ir efetivamente
em busca das mudanças, procurá-las de maneira ativa, levando-a a
diante. Precisam aprender a não lamentar com muita nostalgia as
“relações fixas, imobilizadas” de um passado real ou de fantasia, mas
a se deliciar na mobilidade, a se empenhar na renovação, a olhar
sempre na direção de futuros desenvolvimentos em suas condições de
vida e em suas relações com outros seres humanos (BERMAN, 1986,
p. 94).

Desse modo, os projetos sociopolíticos de educação constituem-se numa política


emancipatória, que inibe os obstáculos que afetam de maneira negativa as
oportunidades de vida dos indivíduos e dos grupos. Dois princípios para a política
emancipatória são estabelecidos:

[...] o esforço por romper as algemas do passado, permitindo assim


uma atitude transformadora em relação ao futuro; e o objetivo de
superar a dominação ilegítima de alguns indivíduos e grupos por
outros. O primeiro desses objetivos facilita o ímpeto dinâmico
positivo da modernidade (GIDDENS, 2002, p. 194).

Há a liberdade de expressão dos próprios sentimentos e percepções de modo a


permitir a construção do conhecimento, o que leva ao avanço social em seus aspectos
econômicos, científicos, políticos e culturais. As reformas educacionais são políticas
emancipatória, por meio delas evidencia-se o empenho dos reformadores em
compreender e conformar o presente com as novas tendências, na mesma medida, se

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esboça um caminho para o futuro. A forma da sociedade moderna seria, portanto,


sustentada pela educação. Nessa perspectiva, o currículo desempenha o papel de definir
a formação do futuro cidadão. Como aponta Silva (1996, p.83), ele não é “um elemento
inocente e neutro de transmissão desinteressada do conhecimento social”.
Entretanto, a política emancipatória só funcionaria de maneira eficaz por um
sistema de organização bem articulado, que operasse como instrumento de
desenvolvimento, e nos quais os objetivos devessem estar em consonância com o
ideário da nação e com as reais possibilidades para concretizá-los:

A instrução pública no Brasil, como se depreende dos relatórios


dos ministros do Império, dos presidentes de províncias, dos
inspetores de instrução pública, das falas das autoridades e dos
analistas, de modo geral, caminhou a passos lentos na primeira
metade do século XIX. As críticas principais recaíam sobre a
insuficiência quantitativa, falta de preparo (a tentativa de
resolver esse principal problema com a criação de escolas
normais ainda não surtia efeito e vinha sendo objetivo de críticas
constantes), parca remuneração e pouca dedicação dos
professores; a ineficácia do método lancasteriano atribuída,
sobretudo, à falta de instalação física adequada à prática do
ensino mútuo; e a ausência de fiscalização por parte das
autoridades do ensino, o que tornava frequente nos relatórios a
demanda pela implantação de um serviço de inspeção das
escolas. A situação estava, pois, a reclamar uma ampla reforma
da instrução pública (SAVIANI, 2006, p.5374).

Os debates ocorridos na Assembléia Constituinte de 1823 serviram de inspiração


às mudanças e reformulações no processo de instauração de “um plano de escolarização
sistemático que favorecesse a formação dos homens pobres e livres” (PERIOTTO,
2012, p. 54), no entanto, o Brasil, só viria a conhecer um debate mais conseqüente sobre
a educação no final do século XIX, quando o trabalho escravo passou a ser substituído
pelo trabalho livre, alimentado por levas sucessivas de imigrantes europeus: “no final do
século XIX, a escola popular foi elevada à condição de redentora da nação e de
instrumento de modernização por excelência” (SOUZA, 2000, p.12)
A nascente industrialização exigiu a educação para todos, em doses
diferenciadas para os diversos segmentos de classes e fez, do século XX, o tempo da

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educação, cuja razão de existir encontrava nas novas condições materiais o seu estímulo
e obrigatoriedade.

Formação de professores públicos e de professores na categoria adjunto: a reforma


Couto Ferraz

Ministro do Império, Luiz Pedreira do Couto Ferraz instituiu um plano


estratégico de modernização e propôs a reforma do ensino primário e secundário do
Município da Corte. O decreto n. 1.331A, de fevereiro de 1854, demonstra o interesse
do governo em fomentar o desenvolvimento da nação. Esse documento aborda, pela
primeira vez, de maneira contundente, a formação docente. O formulador da Reforma
entendia que o progresso material do Brasil, nos moldes do capitalismo avançado,
exigia a formação de um quadro de professores habilitados para proporcionar a
transformação de uma sociedade agrária e tradicional em uma sociedade moderna e
industrializada, unida por um sentimento de amor à pátria.
A Reforma traz vários elementos que aludem à modernidade. Em específico,
esse estudo se limitou a discutir a questão da formação do quadro de professores - as
condições, exigências e benefícios, portanto, elaborou-se a seguinte pergunta: Quais
iniciativas de Couto Ferraz sobre a formação docente que poderiam levar a nação ao
progresso?
Estabelecido os objetivos de aperfeiçoar a formação de professores definiram-se
os critérios de seleção que atuam como um conjunto de medidas, a partir das quais se
procede a escolha dos candidatos ao cargo. No primeiro capítulo se estabelece algumas
condições para a contratação de professores públicos.
Só podem exercer o magistério público os cidadãos brasileiros que
comprovarem: 1º Maior idade legal, 2º Moralidade e 3º Capacidade profissional
(art.12). A certidão ou a justificação comprova a maior idade legal, o candidato não
deveria ter nenhuma acusação judicial, e a capacidade profissional se confirma em
exame oral e escrito.
Os critérios de seleção apresentam o perfil do professor, submetidos ao plano de
desenvolvimento do Estado burguês.

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O documento também assegura benefícios e vantagens no art. 24, 27, 28, 29 e


31. Os filhos dos professores públicos que tiverem servido bem por 10 anos terão
preferência no número dos professores adjuntos, ou serão admitidos gratuitamente no
Colégio de Pedro II (artigo 27). O artigo 28 estabelece uma gratificação aos professores
que tivessem por mais de 15 anos de serviço efetivo, para o professor que contar 25
anos de serviço efetivo e o artigo 29 estabelece que ele seja jubilado com o ordenado
por intero. O art. 31 assegura direitos: o aumento da quarta parte do ordenado, quando o
Governo o conservar no magistério, sobre proposta do Inspetor Geral, depois de 25 anos
de serviços e a jubilação com todos os vencimentos dispostos no art. 25, se servir por
mais dez anos além do prazo mencionado no artigo 29.
Adiante, ainda no título II Couto Ferraz reserva um capítulo inteiro à questão
dos professores adjuntos. Esta categoria conta com a presença de alunos maiores de 12
anos de idade formados nas escolas públicas e selecionados em exames anuais dos quais
devem ter bom rendimento para o magistério (artigo 35).
Os professores adjuntos ficariam adidos às escolas como ajudantes para se
aperfeiçoar nas matérias e prática do ensino, sendo que no fim de cada ano de exercício
passariam por exames a fim de se conhecer o grau de aproveitamento. A avaliação da
teoria e da prática compreende as matérias de ensino, e em especial, sobre os métodos
respectivos, e o sistema prático de dirigir uma escola (artigos 38 e 39). Após três anos,
os professores adjuntos que não completassem 18 anos deveriam continuar adidos nas
escolas públicas, posteriormente o Governo indicaria os substitutos dos professores nos
seus impedimentos (artigo 40).
A formação de professores está organizada de modo a fornecer formação teórica
e prática. O ensino na prática consiste na ideia-força desse regulamento (SAVIANI, p.
23, 2006), portanto a formação dos professores na categoria dos professores adjuntos
aborda a teoria sobre as disciplinas e a prática sobre os procedimentos de ensino – o
método do ensino nas escolas será em geral o simultâneo (artigo 73).
O documento concebe a relação entre teoria e prática. A formação dos
professores adjuntos versa num sistema de formação e recrutamento (PONTES e
MADER, 2009, p. 79). De acordo com esses referidos autores, do ponto de vista

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institucional, o Estado buscou promover uma aproximação com a atividade docente


tornando-se o promotor da institucionalização desses profissionais:

No caso específico dos professores públicos, além dessa


institucionalização, ocorria também uma estatização, na medida em
que aquele profissional, mediante devida averiguação de suas
capacidades, seria incorporado ao conjunto privilegiado de
funcionários públicos do Estado Imperial (PONTES e MADER, 2009,
p. 79).

Apesar dos esforços pouco se conseguiu avançar na aplicação das medidas. O


Ato adicional de 1834 promoveu a descentralização do poder e da administração do
Governo Central, a responsabilidade de ofertar instrução primária e secundária ficou ao
cargo das províncias, que viviam em condições precárias. Além disso, a elite, em nome
de seus privilégios, colocava em segundo plano a instrução. Sobre isso, Almeida diz
que:
[...] a partir de 1840 os relatórios ministeriais consideram como uma
necessidade o estabelecimento da instrução obrigatória, que o
regulamento de 1854 chegou a estabelecer, mas de um modo tão
impreciso que se pode dizer que o ensino não é obrigatório no Brasil
(ALMEIDA, 1989, p.8 apud MIZUTA e SANT’ ANNA 2010:104).

A oficialização de melhorias para o quadro de professores foi um grande


progresso, assim como a obrigatoriedade do ensino. No entanto, ao discutir essas
questões devemos considerar as condições reais da sociedade, nota-se que desde 1834 a
obrigatoriedade do ensino esteve presente em vários documentos oficiais, dessa forma,
se comprova a necessidade de ratificar o que estava escrito. Nesse aspecto a tarefa dos
reformadores deparava-se em modificar não somente a legislação vigente, mas também
o aparato ideológico de um povo preso na escuridão, ignorantes de conhecimentos.
No Relatório Provincial de 1849, Couto Ferraz descreve a deplorável situação da
instrução pública:
Informando-vos sobre esse importantíssimo ramo do serviço público,
sinto assaz ter de comunicar-vos que o seu estado atual não
corresponde à solicitude, e desvelos com o que a assembléia, e o
governo da província tem para ele aplicado a sua atenção (...). Longo
seria relatar-vos as causas que concorrem para este estado. Já por
vezes tem sido elas mencionadas, quer em diversas faltas de abertura
das passadas sessões, quer em muitos dos discursos dos dignos
membros dessa casa (RELATÓRIO PROVINCIAL 1849, p. 57).

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Os empreendimentos do Estado sucediam-se de modo problemático. Daí a


necessidade de instituir um Regulamento que se acreditava contemplar todos os anseios
da elite e regido por forte fiscalização:

Sem uma reforma radical, sem um regulamento, que reduza a


instrução primária a um sistema acomodado as nossas circunstâncias,
e que defina claramente as habilitações e deveres dos professores; que
dê a seu diretor uma ação mais direta sobre eles, e que estabeleça os
meios de se tornar mais severa, e efetiva a vigilância a seu respeito,
unido tudo isto ao maior cuidado no provimento das cadeiras, poucos
melhoramentos devemos esperar, por maiores que sejam as somas,
que se despenderem, por melhores que sejam os desejos da
administração (RELATÓRIO PROVINCIAL, 1849, p. 57).

Couto Ferraz reconhecia a importância de um Estado Centralizador no


direcionamento da Instrução Pública no sentido de construir conhecimento e
desenvolver habilidades para formar o cidadão comprometido com o progresso social.
No entanto, denunciava o descaso da administração pública em relação às ações
reformistas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta deste estudo foi a de discutir o conceito de modernização no século


XIX no Brasil, para isso criou-se um conjunto de elementos que caracterizam esse
período (mudanças e reformulações, ações governamentais modernas, currículo, forma
escolar, política emancipatória, desestabilidade do eu, estilos de vida, atividades de
ricos, sistema de formação e recrutamento, etc.) tendo a Reforma Couto Ferraz como
um artefato estratégico para uma nova organização social, já que o documento aborda
pontos importantes para a modernização do quadro de professores do ensino primário e
secundário, fato que pressupunha levar ao desenvolvimento da nação. Apresentam-se
também alguns critérios de seleção do Estado para a contratação de professores públicos
e na categoria de professores adjuntos, ressaltando certas condições, exigências e
benefícios. Desse modo, concluí-se que as iniciativas de Couto Ferraz para a formação

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docente conformam inovações que contribuíram para a formação do quadro de


professores, em específico no que se refere aos professores adjuntos; pois pela primeira
vez no século XIX, no Brasil, um documento oficial abordou a questão dos concursos
públicos e da formação teórica e prática.

REFERENCIAS

BRASIL. Decreto n.1331 A de 17 de fevereiro de 1854. Aprova o regulamento para a


reforma do ensino primário e secundário no Município da Corte. Disponível em:
http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/fontes_escritas/3_Imperio/artigo_004.ht
ml. Acesso em: 19/04/2015

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