Você está na página 1de 44

J ò rn Rusen

Raz ã o histó rica


Teoria da hist ória:
os fundamentos da ci ê ncia hist órica

Tradução
Estevão de Rezende Martins

EDITORA
Equipe editorial : Airton Lugarinho ( Supervisão editorial ): Fá tima Rejane
de Meneses ( Acompanhamento editorial ): Sonja Cavalcanti ( Preparação
de originais): Mauro Caixeta de Deus e Sonja Cavalcanti ( Revis ã o ):
Fá tima Rejane de Meneses, Sonja Cavalcanti e Yana Palankof (índice):
Eugê nio Felix Braga (Editora ção eletró nica ): Leonardo Branco ( Capa ).

Copyright © 1983 hy Vandenhoeck & Ruprecht .


Copyright © 2001 hy Editora Universidade de Bras ília, pela tradu ção.

Título original: Historische Vernunft: Grundziige einer Historik I : Die


Grundlagen der Geschichtswissenschaft

Impresso no Brasil

Editora Universidade de Brasília


SCS Q. 02 Bloco C n- 78 Ed. OK 2- andar
70300-500 - Brasília. DF
Tel: (0xx61) 226-6874
Fax: (0xx61) 225-5611
editora ódunb.br

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publica ção poder á scr
armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorização por
escrito da Editora.

Ficha catalogr á fica elaborada pela


Biblioteca Central da Universidade de Bras ília

R íisen , J õ rn
R 951 Razão histó rica : teoria da histó ria : fundamentos da
ci ê ncia hist ó rica / J õ rn R íisen ; tradu çã o de Estev ã o
de Rezende Martins. - Brasília : Editora Universidade de
Bras í lia , 2001.
194 p.

Tradu ção de: Historische Vernunft: Grundziige einer


Historik T: Die Grundlagen der Geschichtswissenschaft
ISBN: 85-230-0615-x

1. Ci ê ncia hist ó rica. 2. Histó ria - teoria . I . Martins.


Estev ão de Rezende . II. Título.

CDU 930.1
Cap ítulo 2


Pragm á tica a constitui çã o do pen -
samento histó rico na vida prá tica

O God! That one might read the book of fate!


Shakespeare , Henrique IV }

Muitas an á lises dos fundamentos da ci ê ncia da hist ó ria que


pretendem assumir o papel de uma teoria da hist ória e d ão valor a
uma elaboração sistem á tica começam com definições gené ricas do
que é hist ó ria e tratam, da perspectiva de como os reconhecer, dos
princípios mais importantes do pensamento hist ó rico.2 Tal proce-
dimento pressupõe a constituição científica específica do pensa-
mento histórico como natural e n ã o pergunta sobre sua origem nem
sobre as razões de sua exist ê ncia , porque ela é assim e n ã o de outro
modo. Ao definir-se, aqui, hist ória como campo de aplicaçã o do
conhecimento hist ó rico, trata-se, regra geral , da hist ória entendida
como o objeto pró prio do pensamento hist ó rico em seu modo espe-
cificamente cient ífico. Por que isso se apresenta assim é raramente
questionado, pois parece bem plausível que, à vista dos resultados
cognitivos obtidos pela ciê ncia da hist ória , se tome por hist ória o
que os historiadores, no sentido mais amplo, entendem ser seu ob-
jeto. Para se investigar por que o conhecimento hist ó rico assume
um modo cient ífico específico e explicar por que sua constitui çã o
científica se d á no modo de uma estrutura de pensamento e, ainda,

Shakespeare, Henrique IV , parte II, ato 3, cena 1, verso 45.


2

Assim , por exemplo, Faber, Theorie der Geschichtswissenschqft (4).
54 J õ rn Rusen

por que o conhecimento hist órico se d á dessa e n ã o de outra manei -


ra , é estritamente necessá rio ir alé m dessas constatações e pergun -
tar pelos fundamentos da ciê ncia especializada que n ão se esgotam
em sua mera existência factual .
Quem busca tais fundamentos é obrigado a pisar o solo inst á-
vel da convicção relativamente difusa, pré-teó rica e assistem á tica
dos especialistas e encontrar, nele, razões seguras para fundamen -
tar a plausibilidade da hist ó ria como ci ê ncia. Tais razões podem ser
encontradas nos pressupostos do pensamento hist ó rico, que sã o
tidos pelos historiadores como dotados de certa obviedade.
N ã o se pode tratar, por conseguinte, 11a fundamenta ção que se
busca, do uso exclusivo de determinado saber , que entraria nos
processos de reflex ã o, por assim dizer , do exterior. Pelo contr á rio,
a questão est á em evidenciar o que já se pressupõe como natural
em tais reflexões desde o in ício e que, por isso mesmo, n ã o recebe
aten ção particular. Esse pressuposto deve ser, pois, explicitado de
tal forma que seja compreendido como algo que sempre se admitiu
como natural - vale dizer , como pressuposto necess á rio, altamente
consensual , do pensamento histórico em seu modo cient ífico.
0* Sã o as situa ções gen é ricas e elementares da vida prá tica dos
r homens (experiê ncias e interpretações do tempo) que constituemo
que conhecemos como consci ê ncia hist óricaT)Elas s ã o fenômenos
comuns ao pensamento hist órico tanto no modo cient ífico quanto
em geral, tal como operado por todo e qualquer homem , e geram
determinados resultados cognitivos. Esses pontos em comum t ê m
de ser investigados como gen é ricos e elementares, isto é, como
processos fundamentais e característicos do pensamento hist órico.
Esses processos representam a naturalidade corriqueira que se deve
sempre pressupor, quando se tenciona conhecer a história cientifi -
camente.
A quest ã o que nos interessa aqui pode ser explicitada mediante

a seguinte consideração: o pensamento é um processo gené rico e
habitual da vida humana. A ci ê ncia é um modo particular de reali -
zar esse processo. O homem n ão pensa porque a ci ê ncia existe ,

mas ele faz ciê ncia porque pensa. Se se puder estabelecer que esse
modo particular, cient ífico, do pensamento humano est á enraizad
no pensamento humano em geral , ter -se -á um ponto de partida pan
Razã o histó rica 55

responder à pergunta: por que o pensamento se d á e se deve dar no


modo cient ífico ?
Neste capítulo investigar-se-ã o os fen ômenos gen é ricos e ele-
mentares do pensamento histórico determinantes da hist ória como
ciê ncia . Como “ pensamento’' é visto aqui como especificamente
cient ífico, pode-se falar em fen ô menos da consciê ncia hist ó rica .
A hist ó ria como ciê ncia deve ser uma realização particular do
pensamento hist órico ou da consciê ncia hist órica - e esse procedi-
mento particular deve ser visto como inserido em seus fundamen -
tos gen é ricos na vida corrente.
Para se saber o que significa conhecer historicamente de modo
cient ífico, é preciso esclarecer o que significa pensar historica-
mente. Tenciono, pois, analisar os processos mentais gen é ricos e
elementares da interpreta çã o do mundo e de si mesmos pelos ho-
mens, nos quais se constitui o que se pode chamar de consciência
hist ó rica . Buscar-se-á identificar , nesses processos, os momentos
em que a hist ó rica como ciê ncia est á “inserida ”.
O t ítulo “Pragm á tica” quer exprimir que as operações da cons-
ciência na vida corrente que se tenciona investigar e que se d ão
sempre que se pensa historicamente só são identificadas quando se
analisa a vida quotidiana dos homens, no curso da qual tais operações

se realizam . A peculiaridade dessas opera ções da consciê ncia -
poder-se-ia design á -las també m como atos de fala - só se evidencia
quando se reconhece qual sua “inserçã o na vida”: por que ocorrem ,
que resultados alcan çam na vida pr á tica quotidiana dos que as rea-
lizam . As funções do pensamento hist ó rico aparecem, à luz de uma
an á lise desse tipo, n ão como algo relativo ao campo de aplica ção
exterior ao saber hist órico, mas como algo intr ínseco ao pensa -
mento hist ó rico, cuja estrutura e forma determinam de maneira
marcante .
Esse tipo de problematiza ção vai al é m da distinçã o entre teoria
e pr á xis, entre conhecimento hist ó rico no â mbito da ci ê ncia da
hist ó ria e aplica çã o desse conhecimento fora da ciê ncia , e busca a
conex ã o íntima entre o pensamento e a vida, na qual as operações
da consciê ncia hist ó rica sã o reconhecidas como produtos da vida
prá tica concreta. Somente a partir desse plano pode-se explicitar o
que é “ teoria ” no sentido de um saber hist órico obtido e constituído
56
J õ rn Rusen

cientificamente, em relação e em contraste com a pr áxis, na qual se


faz uso dele.

Experiê ncia do tempo e auto - identidade - a origem da


consci ê ncia histó rica

Que opera ções da vida quotidiana constituem a consci ê ncia


hist ó rica como fundamento de todo conhecimento hist ó rico ? Essa é
a quest ã o que orienta a presente tentativa de desvelar os funda-
mentos da ci ê ncia da hist ó ria na vida quotidiana concreta e de
constituir a hist ó ria como ciê ncia com base neles.
Para se chegar a esses fundamentos, é preciso demonstrar que
o resultado obtido pela ci ê ncia da hist ó ria, isto é , o conhecimento
hist ó rico, é um modo particular de um processo gen é rico e ele-
mentar do pensamento humano. Para tanto, é necessá rio extrair do
produto cognitivo especificamente hist órico tudo o que for pr óprio
à sua particularidade cient ífica ; com isso, impor-se-á ao olhar o
que nele houver de gen é rico e elementar. Como resultado desse pro-
cesso abstrativo, que deve conduzir aos fundamentos da ciê ncia da
hist ó ria , obt é m-se , como grandeza gen é rica e elementar do pensa-
. jnento histórico, a consciê ncia histórica: todo pensamento hist órico,
C em quaisquer de suas variantes - o que inclui a ciê ncia da história -, é
uma articulação da consciência hist órica. 3 A consci ê ncia hist órica
1 é a realidade a partir da qual se pode entender o que a hIstonã~é,
if como ciência, e porque ela é necessária.
No que se segue , analisar -se-á a consci ência hist órica como
fundamento da ci ê ncia da história. Essa an álise tem por premissa
que nenhuma concepçã o particular da hist ória , vinculada a tal ou
qual cultura, seja pressuposta como fundamento da ci ê ncia da his-
t ó ria ( pois, se assim fosse, requerer -se-ia aquela concepçã o pela
qual a ci ê ncia da história estaria plenamente constitu ída, o que
acarretaria que esta seria o fundamento de si pró pria ). A consciê n-
cia hist órica será analisada como fenômeno do inundo vital, ou seja ,
3
Cf., a esse respeito
• -i
, sobretudo, Jeismann , Geschichtsbewusstsein (6) e també m
U. Becher/J. Rusen, Geschichtsbewusstsem, em M. e S. Greiffenhagen/R. Praetorius
(eds.), Handwõ rterhuch zur politischen Kultur der Bundesrepublik Deutschlcmd,
Opladen, 1981, p. 180-183.
Raz ã o histó rica 57

como uma forma da consciência humana que est á relacionada ime-


diatamente com a vida humana prá tica .4 É este o caso quando se
entende por consciê ncia histórica a suma das operações mentais
com as quais os homens interpretam sua experiê ncia da evolu çã o
temporal de seu mundo e de si mesmos, de forma tal que possam
orientar, intencionalmente, sua vida pr á tica no tempo.
Pressuposto dessa defini ção e pilar de toda a argumentaçã o se-
guinte é a tese de que o homem tem de agir intencionalmente para
poder viver e de que essa intencionalidade o define como um ser
que necessariamente tem de ir alé m do que é o caso, se quiser viver
no e com que é o caso. A consci ê ncia hist ó rica est á fundada nessa
ambival ê ncia antropol ógica: o homem só pode viver no mundo,
isto é, só consegue relacionar-se com a natureza , com os demais
homens e consigo mesmo se n ã o tomar o mundo e a si mesmo
como dados puros, mas sim interpret á-los em função das intenções
de sua a çã o e paixã o, em que se representa algo que n ã o sã o. Com
outras palavras: o agir é um procedimento t ípico da vida humana
na medida em que, nele, o homem , com os objetivos que busca 11a
a çã o, em princípio se transpõe sempre para alé m do que ele e seu
mundo são a cada momento. Na linguagem da tradiçã o filosófica, o
superá vit intencional do agir humano para al é m de suas circunst â n -
cias e condições foi denominado “espírito”. Pode-se falar também ,
contudo, de carê ncia estrutural do homem. Ela se caracteriza pelo
fato de que a satisfação de determinadas carê ncias é sempre tam -
bé m um processo de produ çã o de novas carê ncias."
Pode-se caracterizar e explicar essa constatação antropol ó gica
de um super ávit de intencionalidade do homem como agente e pa -
ciente de mil e uma maneiras. Nosso interesse aqui se restringe ao
fato de que esse superá vit inclui uma relação do homem com seu
tempo, 11a qual se enra ízam as opera ções prá ticas da consciê ncia

4
Sobre o termo “ mundo vital ”, ver E. Husserl , Die Krisis der europàischen
Wissenschaften und die tvanszendentale Phcinomenologie , Den Haag, 1962;
P . Janssen , Geschichte und Lebenswelt . Ein Beitrag zur Diskussion zu Husserls
Spâtwerk , Den Haag, 1970; Berger/ Luckmann , Die geseiischaflliche
Konstruktion der Wirklichkeit (6); Schutz/Luckmann , Strukturen der Lebenswelt (6).
5
Assim , por exemplo, na antropologia de Karl Marx, como exposta no cap ítulo
sobre Feuerbach na “ Ideologia alem ã ” (cf . edi ção cr ítica do texto em Deutsche
Zeitschrift fiir Philosophie, 14 (1966), p. 1.199-1.254, especialmente p. 1.211).
58
J õ rn Rusen

hist ó rica que sã o pesquisadas. Pois esse superavit tem uma rele-
v â ncia temporal: ele se manifesta sempre de modo todo especial
quando os homens t ê m de dar conta das mudan ças temporais de si
e do mundo mediante seu agir e sofrer. Nesse momento tais mu -
dan ças tornam -se conscientes como experi ê ncias perante as quais o
homem tem de formular inten ções, para poder agir nelas e por cau -
sa delas. O homem necessita estabelecer um quadro interpretativo
do que experimenta como mudan ça de si mesmo e de seu mundo,
ao longo do tempo, a fim de poder agir nesse decurso temporal , ou
seja , assenhorear -se dele de forma tal que possa realizar as inten -
ções de seu agir. Nessas intenções há igualmente um fator tempo-
ral. Nelas o homem vai al é m , també m em perspectiva temporal , do
que é o caso para si e para seu mundo; ele vai , por conseguinte,
sempre al é m do que experimenta como mudan ça temporal , como
fluxo ou processo do tempo. Pode-se dizer que o homem, com suas
inten ções e nelas, projeta o tempo como algo que n ão lhe é dado na
êxperi ê ncIã7XTomemos um exemplo radical : ele projeta para si
uma era dourada e sabe que vive num tempo de ferro; ou sonha
com sua pr ó pria imortalidade, a exemplo dos deuses eternamente
jovens, e sabe , pela experiê ncia , que tem de morrer.)
Naturalmente , a divergê ncia entre tempo como intençã o e
tempo como experi ê ncia n ã o deve ser pensada de forma t ã o dico-
t ômica como foi exposto aqui . Na realidade , ambos os momentos
mesclam-se; decisivo é que se possa distinguir com clareza, nessa
mescla , os dois tipos de consci ê ncia do tempo (chamados, aqui , de
“experiê ncia ” e “intenção”). Nessa distin ção funda-se uma din â mi-
ca da consci ência humana do tempo na qual se realiza o super á vit
de intencionalidade do agir (e do sofrer) humano mencionado ante-
riormente.
A consci ê ncia hist ó rica é , assim, o modo pelo qual a relaçã o
din â mica entre experiência do tempo e inten ção no tempo se realiza
no processo da vida humana . ( O termo “ vida" designa , obviamente,
mais do que o mero processo biol ógico , mas sempre tamb é m - no
sentido mais amplo da expressã o - um processo social .) Para essa
forma de consci ê ncia, é determinante a opera çã o mental com a
qual o homem articula, no processo de sua vida prá tica, a experiê n -
cia do tempo com as inten ções no tempo e estas com aquelas. Essa
opera çã o pode ser descrita como orientação do agir (e do sofrer
Raz ã o histó rica 59

humano no tempo. Ela consiste na articulaçã o de experi ê ncias e


inten ções com respeito ao tempo ( poder -se-ia mesmo falar de tem -
po externo e tempo interno): o homem organiza as intenções de-
terminantes de seu agir de maneira que elas n ã o sejam levadas ao
absurdo no decurso do tempo. A consci ê ncia hist ó rica é o trabalho
intelectual realizado pelo homem para tornar suas intenções de agir
conformes com a experiê ncia do tempo. Esse trabalho é efetuado
11a forma de interpreta ções das experi ê ncias do tempo . Estas sã o
interpretadas em fun çã o do que se tenciona para al é m das condi -
ções e circunst â ncias dadas da vida.
Pode-se descrever a opera çã o mental com que a consciê ncia
hist ó ria se constitui també m como constituiçã o do sentido da expe -
riência do tempo . Trata -se de um processo da consciê ncia em que
as experi ê ncias do tempo sã o interpretadas com rela çã o à s inten -
ções do agir e, enquanto interpretadas, inserem -se 11a determina çã o
do sentido do mundo e na auto-interpretação do homem, par â me-
tros de sua orientação no agir e no sofrer. O termo “sentido” expli-
cita que a dimensã o da orienta çã o do agir est á presente na
consciê ncia hist órica , pois “sentido” é a suma dos pontos de vista
que est ão na base da decisã o sobre objetivos. A consciê ncia hist ó-
rica n ão se constitui ( pelo menos n ão em primeira linha ), pois, na
racionalidade teleol ógica do agir humano, mas sim por contraste
com o que poderíamos chamar de “racionalidade de sentido”. Tra -
ta-se de uma racionalidade , n ã o da atribui çã o de meios a fins ou de
fins a meios, mas do estabelecimento de inten ções e da determina -
çã o de objetivos.
Pode-se considerar os resultados interpretativos obtidos pela
consci ê ncia hist órica a partir da distin çã o de duas qualidades tem -
porais neles presentes. As experi ê ncias do tempo sã o carentes de
interpretação na medida em que se contrapõem ao que o homem
tenciona no agir orientado por suas pr ó prias carê ncias. Elas care-
cem de interpreta çã o porque sã o sofridas. O tempo é, assim, expe-
rimentado como um obst á culo ao agir, sendo vivido pelo homem
como uma mudan ça do mundo e de si mesmo que se opõe a ele,
certamente n ã o buscada por ele dessa forma , que, todavia, n ã o
pode ser ignorada , se 0 homem continua querendo realizar suas
inten ções. Pode-se chamar esse tempo de tempo natural . Um
exemplo radical desse tempo impediente e resistente é a morte .
60 Jõrn Rusen

O tempo é experimentado, aqui , como perturba çã o de uma ordem


de processos temporais na vida humana pr á tica, como perturba çã o
de uma ordem na qual o homem tem de pensar seu mundo e sua
vida , para poder orientar -se corretamente. O conceito-sí ntese de tal
perturbaçã o, que só pode ser controlada mediante esforço pró prio
de interpreta çã o, é a contingê ncia .
Por oposi çã o a esse tempo, pode-se chamar de tempo humano
aquele em que as inten ções e as diretrizes do agir sã o representadas
e formuladas como um processo temporal organizado da vida hu-
mana pr á tica. Esse tempo, como inten çã o de um fluxo temporal
determinante das condições vitais, tem influê ncia sobre o agir hu -
mano que projeta , na medida em que os agentes querem afirmar a si
mesmos mediante o agir e lograr reconhecimento. (Analogamente ao
exemplo da morte, referido anteriormente, pode-se mencionar como
exemplos desse tempo os in ú meros símbolos que, na organiza ção
cultural da vida humana , representam a inten çã o de ultrapassar ou
superar os limites de sua própria vida.)
O ato constitutivo da consci ê ncia hist ó rica , que consiste na
interpreta çã o da experi ê ncia do tempo com respeito à intençã o
quanto ao tempo, pode ser descrito, por recurso à distin çã o básica
entre as duas qualidades temporais, como transformação intelectual
do tempo natural em tempo humano. Trata-se de evitar que o ho-
mem, nesse processo de transforma çã o, se perca nas mudan ças de
seu mundo e de si mesmo e de, justamente, encontrar -se no “trata-
mento” das mudanças experimentadas (sofridas) do mundo e de si
pró prio. A consciê ncia hist órica é, pois, guiada pela inten ção de
dominar o tempo que é experimentado pelo homem como ameaça
de perder-se na transforma çã o do mundo e dele mesmo. O pensa -
mento histórico é, por conseguinte, ganho de tempo, e o conheci-
mento hist ó rico é o tempo ganho.
Põe-se agora a quest ã o acerca do “se” e “como” esse resultado
da consci ê ncia hist órica pode ser descrito como uma opera çã o
unit á ria da consciência, como um processo coerente de pensamen-
to. Existe uma interdepend ê ncia estrutural entre as opera ções da
consciência , na qual se d á a constituição de sentido sobre a experiê n -
cia do tempo aqui esboçada ? Deve-se tratar de um ato de fala , cuja
universalidade antropol ógica não pode ser contestada e com res-
peito à qual se pode demonstrar ser ela determinante da especi -
Razão histórica 61

ficidade do pensamento hist órico e, com isso, da peculiaridade do


conhecimento hist ó rico-cient ífico (de uma forma que ainda se
abordar á). Em um ato de fala desse tipo, no qual se sintetizam , em
uma unidade estrutural , as opera ções mentais constitutivas da
consciê ncia hist órica, no qual a consciência histórica se realiza,
com efeito existe: a narrativa ( hist ó rica ) . Com essa expressão ,
designa-se o resultado intelectual mediante o qual e no qual a
consciência hist órica se forma e , por conseguinte, fundamenta
decisivamente todo pensamento- hist órico e todo conhecimento
hist órico cientifico /’
E uma quest ã o aberta se e at é que ponto o fundamento do co-
nhecimento hist órico-cient ífico na vida prá tica est á suficientemente
coberto pelo conceito de narrativa . A consci ê ncia hist ó rica se
constituiria sempre mediante a narrativa? Essa quest ão não será
examinada aqui em pormenor . Ao inv és, ser ã o destacadas que
condições devem ser satisfeitas, na operação mental da narrativa,
para que esta possa ser considerada como constitutiva da consci ê n -
cia hist ó rica . Que fatores participam decisivamente da forma çã o da
consci ê ncia hist ó rica no processo narrativo ? Essa quest ã o tem de
ser posta se se quiser analisar o fundamento do conhecimento his-
tórico na vida prá tica , pois há grande multiplicidade de interpreta-
ções da experiê ncia do tempo mediante narrativa que dificilmente
se consegue harmonizar com o que se entende por pensamento
histó rico em geral e por conhecimento hist ó rico em sua forma cient í-
fica específica, em particular. (Assim , por exemplo, a ficçã o
cient ífica é uma forma de interpreta çã o narrativa da experi ê ncia do
tempo que també m pertence , como orienta çã o ficcional no tempo,
ao â mbito global da orientação (cultural) da vida humana pr á tica
no tempo.)
Para a quest ão da especificação buscada da narrativa como
constituiçã o de sentido sobre a experi ê ncia do tempo, é relevante a
distinçã o tradicional entre narrativa ficcional e n ã o-ficcional, dis-
tin çã o essa que bem deve corresponder à autocompreensã o da

6
-
Cf. H. U. Gumbrecht , Das in vergangenen Zeiten Gewesene so gut erzàhlen, ais ob
es in der eigenen Welt wàre, Versuch zur Anthropologie der Geschichtsschreibung,
in : Koselleck/Lutz/Riisen (eds.), Fonnen der Geschichtsschreibung (3), p. 480-513;
.
J. Riisen , Die vier Typen des historischen Erzáhlens, id , p. 514 - 605.
62 Jõrn Rusen

maioria dos historiadores. Com ela obscurece-se, no entanto, o fato


de que 11a historiografia també m existem elementos ficcionais.
Al é m do mais, essa distin çã o é problem á tica porque o “sentido”
que é constitu ído sobre a experi ê ncia do tempo mediante a inter -
preta ção narrativa est á alé m da distinção entre ficçã o e facticidade.
Nesse “sentido”, como já se indicou, mesclam-se tempo natural e
tempo humano em uma unidade abrangente.
Em que conte ú do se pensa, quando se fala de constitui çã o de
sentido sobre a experi ê ncia do tempo pela consciência hist órica
humana mediante uma narrativa que trata de “ realidade” e n ã o de
“imaginação” (ficcional)? Essa distin ção origina-se de uma tríplice
especificação da opera çã o intelectual da narrativa no mundo da
vida concreta , determinante do que se pode chamar de narrativa
hist órica como constitutiva da consciê ncia hist ó rica .

( 1) A narrativa constitui (especificamente) a consciê ncia hist ó-


rica na medida em que recorre a lembranças para interpretar as
experi ê ncias do tempo. A lembran ça é, para a constitui çã o da cons-
ci ê ncia hist órica, por conseguinte , a relaçã o determinante com a
experiência do tempo. (Esse tipo de relação com a experiê ncia é 0
que est á , afinal , 11a base da distin çã o entre a narrativa historiográfi -
ca e a ficcional ou “ liter á ria ” em sentido estrito). Esse recurso à
lembran ça deve ser pensado de forma que se trate sempre da expe-
ri ê ncia do tempo, cuja realidade atual deve ser controlada pela
a çã o, mas que també m admita ser interpretada mediante mobiliza -
çã o da lembran ça de experi ê ncias de mudanças temporais passadas
do homem e de seu mundo. O passado é, ent ão, como uma floresta
para dentro da qual os homens, pela narrativa hist ó rica , lançam seu
clamor, a fim de compreenderem , mediante 0 que dela ecoa, o que
lhes é presente sob a forma de experiê ncia do tempo ( mais preci -
samente: o que mexe com eles) e poderem esperar e projetar um
futuro com sentido.
N ã o se deve entender tudo isso, todavia , como se a constitui-
çã o da consciência hist órica pela narrativa hist órica se limitasse

7
Cf., a esse respeito, Hayden White, The fictions of factual representation , in: H.
White (ed .), Topics of discourse. Essays iu culturaI criticism, Baltimore, 1978,
p. 121-134.
Razã o hist ó rica 63

à recupera çã o do passado pela lembran ça . Seja de que modo que a


consciê ncia hist órica penetre no passado - por mais longe que sua
dimensã o temporal se estenda nas profundezas do passado ou que
possa ainda parecer que percamos de vista, no itiner á rio dos arqui -
vos da memória, os problemas do presente o impulso para esse
retorno, para esse resgate do passado, para essa dimensão de pro-
fundidade e para o itinerá rio dos arquivos é sempre dado pelas ex -
periê ncias do tempo presente. N ã o h á outra forma de pensar a
consci ência hist órica, pois é ela o local em que o passado é levado
a falar - e o passado só vem a falar quando questionado; e a
quest ã o que o faz falar origina -se da carê ncia de orientaçã o da
vida pr á tica atual diante de suas virulentas experi ê ncias no tempo.
A apreensão do passado operada pelo pensamento histó rico na
consci ê ncia hist ó rica baseia -se na circunst â ncia de que as expe -
ri ê ncias do tempo presente s ó podem ser interpretadas como
experiê ncias, e o futuro apropriado como perspectiva de a çã o, se as
experiê ncias do tempo forem relacionadas com as do passado, o
que se processa na lembrança interpretativa que as faz presentes.
Somente dessa forma obt é m-se uma visã o de conjunto das experi ê n -
cias do tempo presente e somente ent ã o os interessados podem
orientar -se por elas. Elas se tornam referíveis a outras experiê ncias,
sempre já interpretadas pela lembran ça; sem tal referência seriam
elas pura e simplesmente ininteligíveis, orientar-se por elas seria
impossível e, por conseguinte, tampouco seria possí vel agir com
sentido a partir delas.
A lembrança flui natural e permanentemente no quadro de orien -
ta çã o da vida pr á tica atual e preenche-o com interpreta ções do
tempo; ela é um componente essencial da orienta çã o existencial do
homem . A consciência histórica não é id ê ntica , contudo, à lem -
bran ça . Só se pode falar de consci ê ncia hist ó rica quando, para
interpretar experi ê ncias atuais do tempo, é necessá rio mobilizar a
lembrança de determinada maneira: ela é transposta para o pro-
cesso de tornar presente o passado mediante o movimento da nar -
rativa .8 A mera subsist ê ncia do passado na memó ria ainda não é
constitutiva da consciência histórica. Para a constituição da consciên -
cia histórica requer -se uma correla çã o expressa do presente com o

s Cf
. sobretudo Gumbrecht ( ver nota 6).
64
J õ rn Rusen

passado - ou seja , uma atividade intelectual que pode ser identifi -


cada e descrita como narrativa ( hist ó rica ) .

(2) Uma segunda especificação da narrativa como fundamento


do conhecimento hist ó rico ha vida pr á tica fica clara quando se
examina mais de perto o processo referido, no qual a mem ó ria é
propriamente induzida pela narrativa (hist órica). A narrativa cons-
titui a consciê ncia histórica ao representar as mudan ças temporais
do passado rememoradas no presente como processos cont ínuos
nos quais a experi ê ncia do tempo presente pode ser inserida inter-
pretativamente e extrapolada em uma perspectiva de futuro. As
mudan ças no presente, experimentadas como carentes de interpre-
ta çã o, s ã o de imediato interpretadas em articulaçã o com os pro
cessos temporais rememorados do passado; a narrativa hist ó rica
-
torna presente o passado, de forma que o presente aparece como
sua continuação no futuro. Com isso a expectativa do futuro vin~
cula -se diretamente à experiê ncia do passado: a narrativa hist ó rica
rememora o passado sempre com respeito à experiência do tempo
presente e, por essa rela çã o com o presente, articula-se diretamente
com as expectativas de futuro que se formulam a partir das inten-
ções e das diretrizes do agir humano. Essa íntima interdependência
de passado, presente e futuro é concebida como uma representação
cia continuidade e serve à orientação da vida humana pr á tica atual.9
São pois as representa ções da continuidade que possibilitam,
no processo de constituição de sentido da narrativa hist órica, que
as lembran ças do passado sejam articuladas com o presente de ma -
neira que as experi ê ncias do tempo neste predominantes possam
ser interpretadas. O modo com que a narrativa hist órica mobiliza a
mem ória da evolu çã o temporal do homem e de seu mundo no pas-
sado torna possível que as mudanças temporais experimentadas no
presente ganhem um sentido, isto é, possam transpor-se para as
intenções e as expectativas do agir projetado no futuro. O elo da
ligação do passado com o futuro, pelo presente, é forjado pela nar-
rativa hist órica com as representações da continuidade que abran -

g
A esse respeito , cf. o trabalho fundamental de Baumgartner, Kontinuitat unci
Geschichte (6).
Razã o histó rica 65

gem as tr ês dimensões temporais e as sintetizam na unidade do


processo do tempo. Sem essas representa ções da continuidade, a
memória do passado não poderia ser articulada com a interpretaçã o
do presente e com a expectativa do futuro, de modo que a mem ó ria
seja efetivamente um elemento integrante da consciê ncia humana
do tempo. A narrativa hist ó rica torna presente o passado, sempre
em uma consciência de tempo na qual passado, presente e futuro _ <
formam uma unidade integrada, mediante a qual, justamente
constitui-se a consciê ncia hist órica .
Seria totalmente equivocado, pois, entender por consci ê ncia
histórica apenas uma consciência do passadoytrãta:sé

i
ciê ncia do passado que possui uma rela çã o estrutural com a inter- ^^
preta çã o do presente e com a expectativa e o projeto de futuro*
A narrativa histórica organiza essa relação estrutural das tr ês di-
mensões temporais com representa ções de continuidade, nas quais
insere o conte ú do experiencial da mem ória, a fim de poder inter -
pretar as experiê ncias do tempo presente e abrir as perspectivas de
futuro em fun ção das quais se pode agir intencionalmente. A nar-
rativa hist ó rica constitui a consciê ncia hist órica como rela ção entre
interpreta çã o do passado, entendimento do presente e expectativa
do futuro mediada por uma representa çã o abrangente da continui -
dade. 10 Essa mediação deve ser pensada como especificamente
hist ó rica por operar a inclusã o da interpreta çã o do presente e do
futuro na mem ória do passado.

(3) Uma terceira especificação da narrativa como opera ção in-


telectual decisiva para a constituiçã o da consciência histórica d á -se
quando se pergunta pelos crit é rios determinantes das representa-
ções da continuidade. Com respeito a que se concebe a continuidade ?
O que entra em a çã o no processo de representa çã o da continuidade
mediante a narrativa hist ó rica como elemento unificador da relação
entre passado, presente e futuro ? Do que se trata , afinal, na consti-
tuiçã o da consci ê ncia hist ó rica, quando se afirma que se deve reali-
10
Que a consci ê ncia histó ria seja determinada por uma “ relaçã o entre interpreta -
çã o do passado, entendimento do presente e expectativa do futuro” é ressaltado
por K.-E. Jeismann , Geschichtsbewusstsein , em Bergmann et alii (eds.): Han -
dbuch der Geschichtsdidaktik (2), vol. 1, p. 42.
66
J õ rn Rusen

zar , nela, a unidade interna das três dimensões temporais? Essas


quest ões podem ser respondidas pela remissão à circunst â ncia de
que, na constituição de sentido sobre a experi ê ncia do tempo mediante
a narrativa hist órica, se trata afinal de contas da identidade daque-
les que tê m de produzir esse sentido da narrativa (hist órica), a fim
-
de poderem orientar se no tempo. Toda narrativa ( histó rica) est á
marcada pela inten çã o b ásica do narrador e de seu p ú blico de n ão
se perderem nas mudan ças de si mesmos e de seu mundo, jnas de.
manterem -se seguros e firmes no fluxo do tempo." A experiê ncia
do tempo é sempre uma experiência da perda iminente da identidade
do homem (também aqui a experiência mais radical é a da morte).
A capacidade dos homens de agir depende da aptid ã o em fazer
valer a si próprios, a sua subjetividade, portanto, na rela ção com a
natureza , com os demais homens e consigo mesmos, como perma -
nência na evolu ção do tempo, à qual precisam reagir com suas
a ções e que, simultaneamente, produzem por essas mesmas a ções.
Os homens t ê m de interpretar as mudan ças temporais em que est ã o
enredados a fim de continuarem seguros de si e de n ã o terem de
recear perder-se nelas , ao se imiscu írem nelas pelo agir , o que pre-
cisam fazer, para poderem viver. A resist ê ncia dos homens à perda
de si e seu esforço de auto-afirma çã o constituem-se como identi-
dade mediante representações de continuidade, com as quais rela-
cionam as experiê ncias do tempo com as inten ções no tempo: a
medida da plausibilidade e da consistê ncia dessa rela ção, ou seja , o
crit é rio de sentido para a constituiçã o de representações abrangen -
tes da continuidade é a permanê ncia de si mesmos na evolu ção do
tempo. A narrativa histórica é um meio de constitui ção da identi -
dade humana.
Est á respondida, assim, a quest ão sobre que operações da vida
pr á tica constituem a consciê ncia hist ó rica como pressuposto e fun -
damento do conhecimento histórico: a consciê ncia histórica cons-
titui-se mediante a operaçã o , gen é rica e elementar da vida pr á tica,
do narrar, com a qual os homens orientam seu agir e sofrer no tem -

11
Cf ., a esse respeito, Liibbe, Geschichtsbegriff und Geschichtsinteresse (6); K.
Bergmann , Identitat , in : Bergmann (ed.), Handbuch der Geschichtsdidaktik ( 2),
vol . 1, p. 46-53; O. Marquard / K. Stierle (eds.), Identitat, Miinchen, 1979.
Raz ã o histó rica 67

po. Mediante a narrativa hist órica são formuladas representações


da continuidade da evolu çã o temporal dos homens e de seu mundo,
instituidoras de identidade, por meio da memória, e inseridas, como
determina çã o de sentido, no quadro de orienta çã o da vida pr á tica
humana.

Como surge, dos feitos , a histó ria ?

Subjetivismo e objetivismo do pensamento hist órico

Quando se reformula a pergunta: “ O que é hist ó ria ?” para


“Como surge, dos feitos, a história?”, n ã o se parte mais do pressu -
posto de que exista “a história” como uma realidade pronta e com-
pleta fora da consciê ncia humana, que só precisa ser apreendida e
apropriada, cognitivamente, por esta. Analogamente à quest ão posta
quanto aos fundamentos do conhecimento hist órico-cient ífico na
vida pr á tica , pergunta-se agora pela constituição do objeto desse
conhecimento. Essa quest ã o é eminentemente cr ítica, pois proble-
matiza toda representação ingé nua de um conte ú do previamente
dado que se chame “ a histó ria ” e pergunta o que se pode e deve -
ou n ão - incluir nesse tipo de representa çã o.
A pergunta sobre como, dos feitos, surge a história pressupõe
que a hist ória é algo que só se constitui dos feitos, ou seja , das
ações humanas, uma vez efetivamente realizadas; ela pressupõe,
por conseguinte, que a hist ória não participa da mesma realidade
que as ações humanas, das quais, no entanto, se constitui.
Droysen descreveu esse contexto da seguinte maneira:

O agir e o ser em cada presente determinam -se a partir das oca-


si ões, motivos, finalidades, caracteres presentes a cada vez ; tor-
nam -se histó ria, mas n ão a histó ria. Com outras palavras: as
atividades com as quais nossa ci ê ncia se ocupa ocorrem , pre-
sentemente, sob in ú meras categorias, mas justamente n ã o sob
aquela com a qual as consideramos, vemo-las como histó ria .
Elas só são histó ricas porque nós as concebemos como hist ó ri -
cas, n ã o em si e objetivamente, mas exclusivamente em nossa
concepçã o e por interm é dio dela. Precisamos, por assim dizer,
transpô-las. Ao mesmo tempo fica claro, poré m , que somente
68 J õ rn Rusen

após essa transposição a partir dos feitos se faz hist ó ria, isto é,
recupera-se para a memó ria, para a consciê ncia histó rica, para a
compreensão, o extr ínseco , o ultrapassado, segundo outras cate-
gorias. Apenas o que é rememorado n ã o passou ...12

Por princípio, nega-se aqui à histó ria como suma de todos os


objetos possíveis do conhecimento hist órico qualquer objetividade:
hist ória é entendida como resultado de uma concepçã o de a ções
humanas (feitos) que somente se produz quando essas a ções já
ocorreram. Com outras palavras: nem tudo o que tem a ver com o
homem e com seu mundo é hist ó ria só porque j á aconteceu , mas
exclusivamente quando se torna presente, como passado, em um
processo consciente de rememora ção.
Parece ent ã o necessá rio concluir que só é hist ó ria o que os
historiadores extraem do que aconteceu . Ela n ã o existiria “em si ”,
mas consistiria apenas no que se extrai do passado post festum.
Essa consequ ê ncia subjetivista do entendimento gnoseológico, que
reconhece ser a “história” constitu ída só pelas operações da cons-
ciência que produzem a instituiçã o de sentido sobre as experi ê ncias
do tempo, foi extra ída , por exemplo, por Max Weber. Para ele ,
“cultura ” (o conjunto universal dos objetos das ciê ncias humanas e
sociais) é “extrato limitado da infinitude sem sentido do mundo,
realizado da perspectiva do homem mediante sentido e significado
refletidos”.13 “Em si”, ou seja , afastado da atribui çã o de sentido
pela consciê ncia hist ó rica humana , o passado humano n ã o tem
sentido, isto é, n ã o está estruturado na forma de um constructo que
possamos compreender como hist ória . O passado só se torna hist ó-
ria quando expressamente interpretado como tal; abstraindo-se
dessa interpretaçã o, ele n ão passa de material bruto, um fragmento
de fatos mortos, que só nasce como hist ó ria mediante o trabalho
interpretativo dos que se debru çam, reflexivamente, sobre ele. Se-
gundo Weber , esse nascimento depende diretamente de valores ou
id éias de valor que são utilizados pelos respectivos sujeitos da
consci ê ncia histó rica como pontos de vista para o conhecimento
hist ó rico ( n ós diríamos: de acordo com os quais esse sujeitos orga-

12
Historik , ed . Leyh (4 ), p. 180.
13
Gesammelte Aufsàtze zur Wissenschaftslehre (4), p. 180.
Razão histórica 69

nizam suas opera ções de rememoração hist ó rica na narrativa ) ,


“ história” surge nessa teoria, pois, de uma importação, para o ma-
terial da experiê ncia do passado, de valores presentes nas intenções
da vida prá tica atual ; somente à luz dessas id é ias de valor o passa -
do aparece como hist ória. Sem essa luz , ele é obscuro e mudo.
Essa resposta subjetivista à pergunta sobre o que é “ história”
como conte ú do da consci ê ncia hist ó rica , propriamente , leva em
conta o fato de que, no tratamento cognitivo do passado , no qual se
constitui uma representação de algo como “ hist ória”, intenções no
tempo desempenham um papel decisivo, que - por defini çã o - vai
alé m da experi ê ncia da evolu çã o temporal do homem e de seu
mundo no passado. As experiências do tempo só servem para orien-
tar a vida prá tica atual quando decifradas mediante essas inten ções.
Sem estas, ou seja , tomadas puramente em si, as experi ê ncias
seriam , com efeito, sem sentido.
Contra essa tese de- que a açã o humana só se torna histó rica
mediante uma reflex ã o posterior, pode-se levantar a seguinte obje-
çã o: certos atores recorrem à hist ó ria para justificar suas a ções
atuais e muitos comentadores do agir contemporâ neo investem na
hist ó ria para destacar a importâ ncia da ação ora em curso. Tam -
pouco é raro que se tenha a impressão, na pr ópria avalia ção dos
acontecimentos contempor â neos, de que “ est á acontecendo hist ó-
ria ”. O que isso quer dizer? Não acontece justamente assim, que
determinada a çã o - embora nem todas - seja hist ó ria no momento
mesmo em que ocorre? Quem atribui a tal a çã o essa qualidade ,
distingue-a assim das demais e empresta-lhe uma propriedade que
a faz entrar na hist ó ria. Essa distinçã o confirma, no entanto, a dife-
ren ça exposta acima entre feitos e hist ó ria . Ela confirma at é mesmo
a tese de que, somente após certo tempo , algo seja visto como
“histórico”.
Na constata ção aqui efetuada , o ponto de vista posterior é to-
mado apenas como um tipo de antecipa çã o fict ícia dos pr ó prios
contemporâ neos. Os contemporâ neos supõem, por conseguinte,
que uma consideraçã o posterior do que est á acontecendo agora ,
uma considera ção, portanto, na qual o acontecimento é passado,
conduz a uma avaliação que pensam poder antecipar desde já.
Mesmo assim, a resposta subjetivista à pergunta sobre o que é
a hist ó ria n ã o satisfaz. O papel desempenhado pela experi ê ncia do
70 J õ rn Rusen

passado na consci ê ncia histórica parece subestimado. A experiência


hist órica conté m , por certo, o que realmente ocorreu no passado.
Essa realidade aparece , 11a teoria subjetivista da hist ória , do jeito
que se gostaria, como uma peteca entre as inten ções de hoje e as
proje ções do amanh ã . A densidade da experi ê ncia , que afirma o
que realmente ocorreu ( mesmo contra todas as inten ções), n ã o é
suficientemente levada em conta .
Diametralmente oposta à resposta subjetivista à quest ã o sobre
o que é a “ história” como conteú do da consciê ncia hist órica, h á a
resposta que reforça seu conte ú do experiencial . Nesse caso, atribui-
se à hist ória , por certo, uma qualidade objetiva: hist ória é vista
como dada nas circunst â ncias respectivas em que se d ã o ou se
deram as a ções humanas. Nessa perspectiva , os processos funda -
mentais de constituição de sentido da consciê ncia histórica aparecem
como receptores de estruturas previamente dadas, ou seja , como
processos de tomada de consciê ncia das circunst â ncias temporais
das a ções humanas passadas que, mesmo se ocorridas sem mem ó-
ria específica , podem efetivar -se na mem ória 11a medida em que
seus efeitos determinam objetivamente o agir atual (seja este histo-
ricamente consciente ou n ã o). Se a vida prá tica humana atual no
tempo, como ato de constituiçã o de sentido da narrativa histórica, é
orientada de forma a levar em conta tais dados (e essa orienta çã o
seria a ú nica a permitir que a a ção humana intencional seja realis-
ta ), ent ã o os dados reais do passado que ainda agem no presente
t ê m de ser reconhecidos historicamente e mesmo sustentados con -
tra qualquer intençã o que os contradiga.
Semelhantemente à concepção de hist ó ria que destaca o papel
das inten ções contempor â neas determinantes de valores, que de -
semboca no subjetivismo, a concepçã o de hist ória que destaca o
papel de experiências, valorativamente neutras, do passado desem -
boca forçosamente no objetivismo. Para este , as opera ções funda -
mentais da consciê ncia hist órica nada mais sã o que um reflexo de
estruturas temporais do agir humano na consciê ncia dos agentes.
Exemplos desse objetivismo est ã o nas variantes do materialismo
hist órico, mais particularmente no marxismo-leninismo ortodoxo.
Subjetivismo e objetivismo são duas respostas possíveis à per -
gunta sobre o que é a “hist ória” como conte ú do da consciência
hist órica. Ambas correspondem a cada um dos fatores que a narra -
Raz ã o histó rica 71

tiva hist órica insere na unidade do constructo significativo chamado


“história”: o subjetivismo leva em conta as intenções determinantes
do agir com relaçã o ao tempo, e o objetivismo, as experi ê ncias do
tempo determinantes do agir. A parcialidade das duas posi ções
evidencia-se quando as radicalizamos; dessa forma pode-se, si -
multaneamente , indicar a dire çã o que se deve seguir para responder
à pergunta sobre o que é a hist ória.
Uma teoria subjetivista da hist ória tende para o decisionismo,
no qual as decisões sobre as perspectivas determinantes da orienta-
çã o para um agir voltado para o futuro estabelecem o que é hist ó-
ria. Aqui, a floresta do passado somente ecoa o que se clama para
seu interior. Em tais circunst â ncias, a memória hist ó rica acaba sem
poder fazer grande coisa diante da supremacia das id é ias valora -
tivas que lhe sã o sobrepostas. Os resultados alcan çados pela
consci ê ncia hist órica são vistos como meras confirma ções do que
se tenciona realizar na vida prá tica atual. O que é história depende,
,

em ú ltima inst â ncia , das chances de sucesso que as perspectivas


orientadoras da a çã o na constitui çã o social do agir humano tenham ,
com respeito a outras possíveis orientações. A história n ão passaria ,
aqui , de uma pirueta cultural por sobre interesses de domina çã o.
O objetivismo tende, inversamente, para o dogmatismo, no
qual assertivas sobre as experi ê ncias dominantes do passado como
fator determinante do agir estabelecem o que é hist ória. N ã o sobra ,
aqui , espaço algum para elaborar, interpretativamente, a experi ê n-
cia do tempo passado no horizonte da orientaçã o temporal da vida
prá tica presente. No ponto em que se deveria fazer valer a experi ê ncia
do tempo passado como condição do agir atual , a consciê ncia his-
t ó rica , pelo contr á rio, é reduzida a mero reflexo de um estado de
coisas acerca do qual nada pode fazer, alé m de tomar dele conhe-
cimento. Como história, o passado diz, por si só, o que ocorreu no
tempo; ele d á a conhecer o passar do tempo como uma sequê ncia
transcorrida de coisas, à qual se deve adaptar , sob pena de ser por
ela engolfado. A compreensã o hist ó rica orienta o agir humano
mediante o crit é rio da submissã o à necessidade compreendida.
També m nessa interpreta çã o da hist ória sã o interesses de domina-
çã o que prevalecem, afinal, na determina çã o do que é hist ória.
Esses interesses n ã o se mostram, todavia, como tais (como no de-
72
J òm Rusen

cisionismo), mas escondem-se por trás de pretensões de estrita


objetividade.
É óbvio que na teoria da hist ó ria se devem evitar tais radica-
lismos e buscar um caminho equidistante de ambos. Uma posição
mediana desse tipo poderia , em contraposição ao decisionismo e ao
objetivismo, chamar-se pluralismo do potencial interpretativo da
consciê ncia hist ó rica , que abriria um espaço n ão arbitrá rio de in -
terpretaçã o do pensamento hist órico. 14 Tal pluralismo estabeleceria
uma relaçã o equilibrada entre mem ó ria e experi ê ncia . Ele projeta
ria o futuro, como ocasi ão de novas constela ções temporais para
-
alé m das do agir humano passado, e asseguraria , empiricamente,
orientações para o agir referidas ao futuro.
Hist ó ria como objeto, como conte ú do da consci ê ncia hist órica ,
n ão deveria ser reificada como uma grandeza fixa da constelaçã o
temporal do agir humano, que bastaria reproduzir na consciê ncia
hist ó rica , nem tampouco ser dilu ída em um constructo do passado
que o presente elaboraria a seu bel-prazer e à sua imagem e seme-
lhança. Propõe -se, com efeito, atribuir à história um cará ter “ plástico ,

ou seja, uma posição mediana entre a ausê ncia caótica de
qualquer
forma (como na teoria do conhecimento de Max Weber) e uma
objetividade rígida (como em algumas variantes dogm á ticas do
materialismo hist ó rico).15 Essa determina çã o da hist ó ria como
estado de coisas tampouco convence, pois limita-se apenas a enun-
ciar o que a história n ã o é (ou seja , nem puramente objetiva , nem
meramente resultado de atribuiçã o de sentido; poder-se-ia mesmo
dizer: nem carne nem peixe). N ã o fica claro, todavia , no que con -
sistiria seu estado de agregado meio objetivo, meio n ão objetivo.
Parece que se teria, aqui, uma mera etapa do processo do conheci
-
mento hist ó rico em direçã o a uma qualifica çã o substantiva da
hist ó ria como estado de coisas, etapa essa na qual come çam a se
delinear, na reconstru çã o dos contextos temporais do agir humano
passado, os elementos básicos do constructo significativo de uma
“ hist ória”, sem que se tenha obtido, ainda, uma determinaçã o defi-

14
Assim, por exemplo, Kocka, Sozialgeschichte. Begriff - Entwicklung -
Probleme,
Gõ ttingen , 1977, p. 40 .
15
Por exemplo, em H.-U . Wehler, Geschichte ais Sozialwissenschaft, 2a ed .,
Frankfurt , 1973, p. 32.
Raz ã o histó rica 73

nitiva de tais contextos. Malgrado essa restrição, a tentativa de


evitar as posições extremadas - e insatisfat órias - na teoria da his-
t ória indica a direção em que se deve olhar, se se quiser encontrar a
resposta à pergunta sobre como, dos feitos, se faz hist ória.
Trata-se, pois, de identificar a hist ória como estado de coisas
justamente quando a operação de constituição de sentido pela nar-
rativa hist órica é condicionada, ocasionada, ensejada mesmo pela
experiência do passado a que se refere. A experiê ncia do passado
representa , nesse momento, mais que a mat é ria-prima bruta de
hist órias produzidas para fazer sentido, mas algo que já possui, em
si, a propriedade de estar dotado de sentido, de modo que a consti -
tui ção consciente de sentido da narrativa hist ó rica se refere direta -
mente a ela e lhe d á continua çã o (decerto com todos os demais
ingredientes que as operações conscientes do pensamento hist órico
engendram ). O passado precisaria poder ser articulado, como esta-
do de coisas, com as orientações presentes no agir contemporâ neo,
assim como as determinações de sentido, com as quais o agir hu -
mano organiza suas inten ções e expectativas no fluxo do tempo,
precisam também elas estar dadas como um fato da experiê ncia.

-
Tradição como pré hist ória

Há, nos fundamentos existenciais do conhecimento hist órico,


uma unidade pré via entre experiê ncia do passado e perspectiva
valorada do futuro ? Há um fenômeno na vida humana prá tica em
cujo cerne j á esteja embutida a “ hist ória” como unidade intrí nseca
entre experiê ncia e interpreta ção do tempo? Existe um ponto em
que a experiê ncia do passado e a expectativa do futuro se mesclam
diretamente ( mais exatamente: sempre estiveram mescladas)? Sendo
possível demonstrar isso, ter-se-ia encontrado um fato elementar e
gené rico da consciê ncia humana, localizado aqu é m da distinçã o
entre os fatos do passado e as intenções interpretativas do presente
voltadas para eles.
As duas respostas radicais à pergunta sobre o que é a hist ória
como conte ú do da consciência hist órica, já abordadas, n ão põem
em d ú vida que exista tal interdepend ência intr ínseca , mas conce-
bem - na como produto de experi ê ncia e interpreta çã o, de uma
maneira, no entanto, que ou predomina a experiê ncia sobre a inter-
74 J õ rn Rusen

prela çã o ou a interpreta çã o sobre a experi ê ncia. Essa alternativa


insatisfat ória deve ser superada por um procedimento que n ã o mais
suponha um conhecimento hist órico pré vio, cujos componentes
seriam dissecados e cujas intera ções seriam investigadas. Inversa-
mente, esse conhecimento tem de ser pensado como algo que
emerge de determinados processos da vida humana prática.
Como j á se enfatizou no item precedente, a quest ã o que se
põe , nos processos de constitui çã o de sentido pela consci ê ncia
histórica , n ã o diz respeito sobretudo ou exclusivamente ao passado,
mas à interdepend ência entre passado, presente e futuro, pois só
nessa interdepend ê ncia os homens conseguem orientar sua vida ,
seus “feitos”, no tempo. Como representa çã o de um processo de
a çã o que se estende pelo passado, presente e futuro, a própria his-
t ó ria faz parte dos “feitos”, pois os feitos da vida humana pr á tica
pressupõem um m í nimo de orienta çã o no tempo. Sobre o fato de
que os “feitos”, ou seja , os processos concretos da vida humana
prá tica est ão sempre orientados no tempo baseia -se qualquer tipo
de representa çã o da hist ó ria . “ Hist ória ” é exatamente o passado
/ \$ sobre o qual os homens t ê m de voltar o olhar , a fim de poderem ir à
frente em seu agir, de poderem conquistar seu futuro. Ela precisa
T ser concebida como um conjunto, ordenado temporalmente,~3ê
& a ções humanas, no qual a experi ê ncia do tempo passado e a inten -
ção com respeito ao tempo futuro sã o unificadas na orienta ção__dc)
sY
tempo presente.
A quest ão de como se constitui a hist ó ria a partir dos “feitos”
pode ser agora precisada mediante uma quest ão preliminar sobre se
j á estaria presente, e de que forma , nos pró prios feitos, uma repre-
sentação do processo do tempo, como passado, presente e futuro
sempre j á sintetizados nos feitos da vida humana pr á tica atual .
Poder-se-ia falar, pois, de uma “ pré- hist ória” nos pró prios feitos
(obviamente n ão no sentido cronol ógico, mas no sentido de um
pressuposto). E nela que teria in ício o processo de constitui çã o de
sentido da narrativa hist ó rica e é nela que se estatuiria o constructo
significativo “ hist ó ria ” que se efetiva pela narrativa , de modo que
n ã o precisasse ser concebida como produto de uma constituiçã o de
sentido. Nessa pr é-hist ória, o passado ainda n ã o é, enquanto tal,
consciente, nem inserido, com o presente e o futuro, no conjunto
complexo de uma “ hist ória ”. Impossível , portanto, querer antecipar
Raz ã o histó rica 75

e localizar nessa sí ntese origin á ria das três dimensões temporais,


nessa pr é- hist ória dos feitos, todos os resultados interpretativos da
consciê ncia histórica, de forma que não lhe sobrasse espaço algum
para realizar uma apropria ção consciente do passado, reflexiva ,
interpretativa , pois, no â mbito das refer ê ncias de orienta çã o da vida
pr á tica contempor â nea .
Em uma pré-hist ória desse tipo, o passado praticamente se ofe-
receria a ser lembrado no presente, apresentando-se - ainda antes
de ser, como passado, conscientemente tornado presente pela nar-
rativa - como uma espécie de forma pr é- passada ( isto é, ativa-
mente presente 11a vida prá tica), de protonarrativa em que se
baseia qualquer narrativa hist órica. Sendo assim , 0 of ício dos histo-
riadores profissionais n ão pode mais ser entendido como institui -
çã o aut ónoma de sentido, e tampouco a hist ó ria seria apenas o que
os historiadores produzem, pois o constructo significativo “hist ó-
ria” n ã o poderia mais ser pensado como algo criado por um ato
aut ónomo, poé tico ou demi ú rgico que seja , mas apenas como algo
que sempre j á se encontrava institu ído na pré- hist ó ria da vida hu -
mana pr á tica . Mesmo com essa “institui ção origin á ria ”, ainda resta
aos historiadores muito a fazer, pois é dela que se deve extrair o
constructo significativo de uma “ hist ó ria ” e elabor á -lo explicita -
mente.
A quest ã o est á , por conseguinte, em saber se já se encontra
presente, no agir efetivo, uma orienta çã o ( protonarrativa ) do agir
atual , ainda antes da opera çã o de narrar . Para precisar essa quest ã o,
caracterizemos com mais exatid ã o o que se entende, aqui, por “ agir
efetivo”, uma vez que é nesse que estaria realizado o que se conhe-
ce como hist ória do passado humano e que a narrativa hist órica
torna consciente mediante sua instituiçã o de sentido. Nem toda
a ção humana se inscreve automaticamente , no momento mesmo
em que ocorre no passado, na história que serve de referê ncia orien -
tadora para a vida prá tica atual. Uma história que inclu ísse todo o
agir humano passado nã o seria propriamente hist ória , at é mesmo
porque n ã o se poderia narr á-la, pois tal narrativa consumiria todo o
tempo do mundo. Ser meramente passada n ã o basta, porém, a uma
a çã o para conferir-lhe a qualidade de fato hist órico. O mero ser
passado ainda n ã o engendra a rela çã o específica entre as diversas
a ções que faz 0 tempo aparecer como processo intencional , como
76 J õ rn Rusen

continuidade na sequ ê ncia das a ções humanas no passado. Tam -


pouco as ações efetivas e, com isso, passadas, tornam-se automati-
camente histó ricas por serem vinculadas, como conte ú dos da
experiê ncia , a carê ncias de interpretação, pois estamos longe de
poder afirmar que as orientações pr á ticas de que se sente necessi-
dade sejam satisfeitas por elas sem mais nem menos. O simples
fato de serem consideradas n ã o transforma as a ções passadas em
hist ó ria , nem lhes atribui um potencial qualquer de interpretaçã o.
Esse potencial tem de ser desenvolvido, precisa estar presente no
olhar do observador que se volta para elas. Isso significa, ent ão,
que o agir humano passado j á esteja presente no agir presente , ain -
da antes do trabalho especificamente interpretativo da consci ê ncia
histórica ?
Trata-se do fato de que o agir humano jamais ocorre sem pres-
supostos. Em cada ponto de partida de uma a ção se encontram
elementos de outras a ções, anteriores, de tal modo que cada a çã o
se articula com os efeitos de ações j á realizadas. As instituições
constituem um exemplo desses elementos de ações anteriores que,
sedimentados, servem de plataforma para o agir atual, mesmo quando
se tem a inten ção de mud á -las. Por interm é dio dos elementos ins-
titucionais, as ações pretéritas alcançam imediatamente as ações
atuais, a ponto de (co)orient á -las. A forma mais direta, contudo,
pela qual as ações passadas atingem , com intensidade, as ações
presentes (“ com intensidade” no sentido de proximidade das inten-
ções determinantes do agir ) é pelos dados pré vios da tradição .
Aqui e no que se segue, entendo “ tradição” n ão no sentido do
que se cultiva como tal, isto é, um passado tratado intencionalmente
como hist ória , mas sim o fato de que, antes de qualquer pensa-
mento histórico, o passado está sempre presente nas diversas formas
^
,o das inten ções orientadoras do agir. Tradi ção é , por conseguinte, um
v (ffmP nente intencionaTiprévio do agir que vem do passado para o
ur ° ^
presente e influencia as perspectivas de futuro no â mbito da orien-
ta çã o da vida pr á tica atual . Para a argumenta çã o que se segue , é
í decisivo que “tradição” seja um dado prévio do agir, ou seja, que n ão
possua desde logo o cará ter de um sentido intencionalmente cons-
titu ído pela consciência hist órica para fins de orientação existencial.
Tradição é, portanto, a suma das orientações atuais do agir, nas
quais est ão presentes os resultados acumulados por a ções passadas.
Raz ã o histó rica 77

Na tradiçã o, o agir passado indica , ao agir presente , a dire çã o; na


tradição, o agir passado manté m-se presente na forma de uma orienta-
çã o imediatamente eficaz.
Tradi çã o é , pois, o modo pelo qual o passado humano est á pre-
sente nas refer ências de orientaçã o da vida humana pr á tica , antes
da interven çã o interpretativa específica da consciê ncia hist órica .
Seu cará ter pré-hist órico consiste em que, nela , o passado nã o é
consciente como passado, mas vale como presente puro e simples,
na atemporalidade do ó bvio. Na tradiçã o, j á est á presente a orienta -
çã o que a consciê ncia hist ó rica tem de produzir mediante o esforço
adicional da narrativa: uma media çã o consistente entre a experi ê n -
cia do tempo e a inten çã o no tempo - ou , com outras palavras: uma
transforma ção do tempo natural em tempo humano. Tradi çã o é a
unidade imediata entre experiência do tempo e inten çã o no tempo,
tradi çã o é o tempo da natureza transcendido em tempo humano, ela
é a recuperação do. tempo ainda antes de quaisquer resgates do
tempo realizados pela consci ê ncia histórica. Com ela , a recupera çã o
do tempo passado instala -se no â mbito das refer ê ncias de orienta -
ção do presente, antes mesmo de a consciê ncia histórica iniciar, no
presente, o resgate do tempo. Na terminologia de Droysen , pode-se
dizer que a hist ória age na tradi çã o. Nesta , o passado j á exerce uma
função de orienta çã o, sem que seja necessá ria uma reflexão parti-
cular sobre ela . Na tradi çã o, o agir passado subsiste por si , encerra
em si a marca de sua import ância e os elementos do processo tem-
poral com os quais co-determina, mediante orientação temporal do
agir atual , o curso do tempo presente.

A historicidade da rida prática humana

Remetemo -nos à tradi ção e à contemporaneidade “ t á cita ” do


passado nas condições da vida prá tica atual para colocar em evi-
d ê ncia o pressuposto com que a consciê ncia hist ó rica opera para
elaborar sua interpretaçã o do processo pelo qual, dos feitos, se faz
história. É dessa presença ativa do passado no quadro de referências
de orientação da vida pr á tica atual que parte toda consciê ncia hist ó-
rica. É nela que a consci ê ncia se baseia para relacionar inten ções e
experiências, pois tal relação lhe é sempre prévia. A consciência
n ã o procede de modo algum arbitrariamente, relacionando experiê n -
78
J õ rn Rusen

cias quaisquer do passado a inten ções quaisquer do agir; de outra par-


te, ela tampouco é prisioneira das intenções do agir, atribuindo-lhes
uma determina çã o absoluta proveniente das experi ê ncias do passa -
do. Em que se distinguem, no entanto, a interpretação elaborada
pela consciê ncia hist ó rica e a interpretaçã o ínsita à tradição? Para se
poder responder a essa pergunta , deve-se esclarecer por que a orienta-
ção da vida humana prá tica, no tempo, vai al é m da orienta ção efe-
tuada pela tradiçã o e por que se tem de fazer esforço de uma
interpretação do tempo mediante a transposição narrativa do passa-
do para o presente.
As opera ções da consciê ncia histó rica sã o necessá rias sempre
que a orientação temporal passada , pela tradi çã o, nã o basta. Isso é,
logo de in ício, uma situa çã o de fato, pois o conjunto das experi ê n -
cias do presente inclui sempre també m experiências do tempo cuja
interpreta çã o pela tradiçã o n ã o existe ou n ã o é suficiente para que
se possa agir com seguran ça (ou seja : sem uma reflex ã o adicional e
uma constituição específica de orienta ção). Mas n ão é só de fato
que as tradi ções previamente dadas n ã o bastam para a orientação da
vida prá tica no tempo. Também por princípio não seriam suficientes,
pois o superá vit intencional característico do agir humano (a inquie-
tude constante do cora çã o humano, como diria Santo Agostinho) 16
conduz a intenções do agir que vã o além das sendas temporais traça-
das tradicionalmente para a vida pr á tica atual .
Esse argumento pode ser expandido, antropologicamente, para
uma teoria da historicidade da orientação da exist ê ncia humana .
“Historicidade” n ã o significa que o quadro de referê ncias de orienta -
ção da vida prática humana se modifique substancialmente ao longo
do tempo , mas sim que o constructo significativo “ hist ó ria” repre-
senta um momento integrante essencial desse quadro de referências.
 consci ê ncia hist órica n ã o é algo que os homens podem ter ou
n ão - ela é algo universalmente humano, dada necessariamente junto
com a intencionalidade da vida prá tica dos homens. A consciê ncia
v hist órica enraíza-se, pois, na historicidade intrínseca à própria vida
humana pr á tica. Essa historicidade consiste no fato de que os
¥
tf homens, no di álogo com a natureza, com os demais homens e con -
sigo mesmos, acerca do que sejam eles pr ó prios e seu mundo, t ê m

16
Confessiones /, 1.
Raz ã o histó rica 79

metas que vão alé m do que é o caso. A razã o disso est á no fato de
que, nos atos da vida humana prá tica , h á permanentemente situa -
ções que devem ser processadas, com as quais nã o se está satisfeito
e com respeito às quais n ã o se descansará enquanto n ã o forem mo-
dificadas.
Essa transcend ê ncia fundamental da vida humana pr ática ex -
trai da pré via tradi çã o de orientações no tempo a interpreta çã o pela
consciê ncia hist órica e faz com que, dos feitos, se fa ça hist ória.
Que os homens tenham consciência da hist ória baseia -se, afinal , no
fato de que seu pró prio agir é hist órico. Como usam intencionali -
dade, os homens inserem , pois, seu tempo interno (sua â nsia de
eternidade, sua busca de ultrapassar os limites de sua vida tempo-
ral, ou seja l á como se queira caracterizar a dimensão temporal de
sua exist ê ncia que tende, sistematicamente, a ir al é m da natureza )
no contato com a natureza externa , na confrontaçã o com as condi-
ções e as circunst â ncias de seu agir, nas suas relações com os de-
mais homens e com si mesmos. Com isso, o agir humano é, em seu
cerne, hist ó rico. E “histórico” significa , aqui , simplesmente que o
processo temporal do agir humano pode ser entendido, por princí-
pio, como n ã o natural , ou seja: um processo que supera sempre os
limites do tempo natural .
Justamente por isso é impossível considerar as mudan ças do
homem e de seu mundo, essencialmente determinadas pelo agir,
como um acontecimento natural, passível de ser reduzido a leis
universais, com as quais poderia ser tecnicamente controlado. O pen -
samento de um controle t écnico da história é simplesmente sem
sentido, pois tal controle seria por sua vez uma açã o cuja teleologia
vai al é m do que se controlaria: a intencionalidade da a ção, consti-
tutiva do car á ter hist órico do processo temporal da vida humana
prá tica , escaparia sempre, como m ó bil da domina çã o, ao â mbito do
controle .
O super á vit de intencionalidade do agir humano constitui, por
conseguinte, não apenas a consciê ncia histórica, mas constitui-se
simultaneamente como alavanca da própria vida humana pr á tica.
Esse superá vit imprime à a çã o humana, no respectivo fluxo tempo-
ral , o exato movimento necessá rio para situ á-la, como fato da expe-
riê ncia , na consciência hist órica , a fim de poder servir à orienta çã o
da vida pr á tica atual no tempo. Porque o pr ó prio agir humano pode
80
J õ rn R ú sen

ser entendido como processo de uma transformação do tempo natu -


ral em tempo humano, por isso mesmo pode ser inserido, como
fato da experi ê ncia do passado, na opera çã o constitutiva de sentido
da consciê ncia hist ó rica, 11a qual o tempo natural é transcendido no
tempo humano ( mediante a narrativa ). A opera çã o interpretativa da
consciência histórica n ão é, por conseguinte, uma quimera ou fic-
çã o, na medida em que o agir humano, por princ í pio, pode ser pen -
sado como transformaçã o do tempo natural em tempo humano.
Essa transformação operada pelo agir humano por meio do supera -
vit de intencionalidade que lhe é característico torna necessá ria ,
simultaneamente, a interpretação da consciência histórica. Justa-
mente porque as experiê ncias do tempo e as inten ções 110 tempo
são superadas nos processos da vida humana pr á tica, e a orienta çã o
no tempo por meio dos conte ú dos pré vios da tradiçã o n ã o basta, é
que a consciê ncia hist ó rica se faz necessá ria .
Que o agir humano seja histórico, uma vez que é determinado
intencionalmente em seu cerne, em sua subst â ncia , n ã o significa
que se torne, no momento mesmo em que ocorre, “hist ória” (con -
te ú do da consci ê ncia hist órica ). Justamente porque o agir é hist ó ri-
co, ou seja , porque - por princípio - vai al é m do que se busca nas
intenções e do que, por meio delas, se consegue fazer, é que sua
operaçã o de transcender realmente as condi ções e as circunst â ncias
só pode ser expressa a posteriori na interpretação efetuada pela
consci ê ncia hist órica . No ato mesmo do agir , a operação do trans-
cender n ã o constitui , como tal , uma experi ê ncia direta . O agir est á
sempre presente quando se realizam intenções que superam suas
próprias condições e circunst â ncias, conquanto cego para o que
com ele e por ele de fato ocorre , pelo menos quando o resultado
é diverso do que se esperava . E que as coisas saiam diferentes
do que se planeja é uma experi ê ncia quotidiana e repetida 110 tem -
po, que torna necessá ria a reflexão interpretativa da consciência
hist ó rica . O agir humano tampouco pode ser t ã o esperto que ache
que já esteja voltando do lugar para onde vai, quando ainda se en -
contra no caminho de ida. Só a consciência hist ó rica , mediante seu
recurso rememorativo às experi ê ncias do tempo passado, fornece
ao presente uma orientação no tempo que, no movimento mesmo
do agir, não é percebida .
Razã o histó rica 81

A consci ê ncia hist órica é necessá ria a fim de que o agir (e o


sofrer ) humano nã o permane ça cego quando seu super á vit inten -
cional se realiza para al ém de suas condições e circunstâncias, por
assim dizer quando avan ça na transformação do mundo pelo ho-
mem, e se d ê na consciê ncia de que esse avan ço vai 11a direção
correta . Sem essa determina çã o da direção, 0 potencial inovador
das intenções do agir humano n ão poderia realizar-se; sem o dire-
cionamento, esse potencial ficaria desnorteado e n ã o poderia
orientar as a ções 11a forma de inten ções - pois inten ções nada mais
sã o do que as metas substantivas do agir humano. Essa teleologia é
mediada pela consciê ncia histórica por meio de seu recurso à expe-
ri ê ncia do agir passado. Com suas interpretações, ela dota a experi-
ê ncia do tempo 110 passado do vetor intencional do agir , pelo qual a
vida pr á tica atual pode orientar -se, ao avan çar no mundo novo do
futuro. Esse direcionamento é produzido pela consci ência hist órica
mediante uma representação de continuidade entre as ações do
passado e as do presente, de forma que se abram perspectivas de
futuro.

Hist ória como crítica da tradição

De que modo e como o que a historicidade da vida humana


prá tica se constitui, no processo de interpretação da consciência
histó rica , em “ histó ria ” como conte ú do dessa consci ê ncia ?
Quando as tradições j á n ã o bastam mais para orientar a vida
pr á tica atual, ent ã o entrou nessa prá xis algo mediante o qual se
desagrega a unidade dada , na tradição, entre experiência do tempo
e inten çã o no tempo. O mundo pode ter mudado tanto, por exem -
plo, que os homens ressentem novas carê ncias, que ocasionam vi -
sões novas do futuro e, consequentemente, um novo recuo ao
passado, a fim de que as novas perspectivas de futuro possam ser
garantidas por uma representaçã o de continuidade hist ó rica , vale
dizer , sejam sustentadas por uma experi ê ncia hist ó rica nova a ser
realizada. Isso tudo é operado pela consciência hist ó rica , 11a medi-
da em que se debru ça, criticamente, sobre a unidade de passado,
presente e futuro na tradi çã o. Essa atitude “ cr ítica ” n ão consiste em
negar a unidade, pois isso apenas acarretaria um isolamento artifi -
cial entre as experiê ncias do tempo passado e as perspectivas para
82 J õ rn Rusen

o tempo futuro, cuja consequê ncia seria o desaparecimento da


consciê ncia unit á ria do tempo, em que passado, presente e futuro
est ã o juntos. Uma consciê ncia hist ó rica desenvolvida é justamente
o oposto. Rela çã o cr ítica com a tradição significa que esta tem de
ser pensada . (Ela precisa ser refletida porque, como orienta ção no
tempo, n ão basta nem pode ser simplesmente descartada .) Que a
consciê ncia hist órica repouse sobre uma crítica da tradição significa
( no sentido original da expressão “crítica ” como “diferencia çã o”)
que as dimensões temporais do passado, presente e futuro, origi-
nalmente não distinguidas na tradição, passam a ser especifica-
mente consideradas e relacionadas umas às outras. Nesse processo
de reflex ão diferenciador e mediador desenvolve-se o “fato hist ó-
ria ” como a constela çã o temporal do passado na qual o passado,
como passado, serve para apreender a dimens ão temporal da vida
prática atual e també m o futuro como dimensã o pr ópria a essa pr á -
xis. Mediante a crítica da tradiçã o pela consciê ncia hist órica, a
visã o do passado como passado torna-se enfim possível. Essa visã o
n ã o é de coisas arbitrá rias, de modo que o passado como passado já
seria, de alguma forma, histó ria. Ela é uma visã o que se volta para
as experiê ncias do tempo passado que podem assumir a funçã o
interpretativa que o passado diretamente presente na tradi ção n ão
tem como exercer.
A fim de expor como a tradi çã o é “criticada”^ como hist ória, é
necessá rio distinguir previamente três tipos do “estar presente” do
passado no presente :

a) O passado est á presente como tradição) no sentido descrito


acima . Nesse caso, ele é ativo como orientação do agir na
perspectiva do futuro, sem que se tenha consciê ncia_do
passado como tal e que este seja cultivado como tradiçã o.
b) O passado est á presente em todos os resultados das a ções
humanas passadas, que constituem condições de possibili -
dade do agir contempor â neo, condições, pois, que têm de
ser levadas em conta pelos atores do presente, se estes que-
rem alcan çar alguma coisa com seu agir. Diferentemente
-
da tradi çã o, trata se aqui de uma eficá cia do passado no
presente que n ã o se refere à orienta çã o (intencional) da
vida prá tica atual. O passado é eficaz, por conseguinte,
Raz ã o histó rica 83

como conjunto silencioso das condições do agir, seja de


modo impl ícito e natural, como, por exemplo, nas institui-
ções, seja nos bastidores dos processos decisó rios dos
indivíduos (como, por exemplo, no caso das condições
econ ómicas da vida quotidiana , cuja estrutura interna n ã o é
transparente para os que sã o atingidos por elas) ,
c) O passado est á presente na forma de simples vestígios, que
j á n ão tê m mais fun ção alguma gara a vida pr á tica atual
( por exemplo, na forma de uma est á tua ainda enterrada na
areia do deserto).

Se a tradi çã o é refletida criticamente nas operações da cons-


ciê ncia hist órica e diferenciada (“criticada ” no sentido de “ distin -
guida ”) nas dimensões temporais por esta estabelecidas, o passado
pode ent ã o ser mais amplamente relacionado, como hist ória , ao
presente, diferentemente do que ocorre normalmente na contempo-
raneidade imediata da tradi ção: como passado, ela passa a ser en -
contrada també m nas condições t ácitas do agir em que as a ções
humanas passadas se sedimentaram. Al é m disso, torna-se també m
possível descobrir, nos vest ígios que d ão testemunho do agir hu -
mano passado - mesmo sem uma rela ção direta com o presente -,
um passado que, como experi ê ncia do tempo, se torna importante
para a orientação temporal no presente . A hist ó ria emerge de tradi-
ções, nas quais os limites da rela çã o do passado com o presente sã o
ultrapassados: o passado torna-se consciente enquanto tal , adquire
uma qualidade temporal em seu conte ú do experiencial , fornecendo
assim , com essa nova qualidade temporal , novos elementos de
compreensã o da dimensão temporal da vida humana pr á tica .
Qual é o passado que pode assumir essa fun çã o interpretativa,
ou seja , o que, do passado, se torna consciente como hist ória, n ão é
produto de uma arbitrariedade subjetiva , mas resulta , logicamente,
da pró pria tradiçã o. Nessa quest ã o trata-se, inicialmente, apenas do
passado que sempre est á presente na forma da tradição. Esse pas-
sado n ão deixa de ser, pelo ato crítico da consciê ncia hist órica que
o torna consciente como passado, fator de orienta ção, mas ganha ,
com aquele, impulso novo. E isso é assim por que, uma vez torna-
da consciente como passado, a tradi çã o pode ser estendida a tudo o
que ainda subsiste do passado e que pode ser rememorado, mas que
84
J õ rn Rusen

ainda n ão tinha qualquer eficácia na orientação temporal da vida


pr á tica atual.
A consci ê ncia história representa, portanto, uma diferenciação
e uma expansã o da consci ê ncia do tempo, realizada na tradi çã o
como orienta çã o temporal da vida prá tica . Na medida em que só
descobre o passado, como passado , nessa orienta ção, a consci ê ncia
hist ó rica projeta a orienta çã o temporal da vida prá tica atual para
tr ás, de forma que as lembran ças possam ingressar nesta a fim de
superar os d éficits de orienta çã o temporal intr í nsecos à tradi çã o,
diante das novas experi ê ncias do tempo e expectativas no tempo da
vida prática atual. O que se considera hist ó ria, do passado, mede-se
pelo critério de sua utilidade (ou inutilidade) para a expansã o do
quadro de referê ncias de orienta çã o temporal da vida pr á tica atual .
A consciê ncia hist órica n ão se caracteriza apenas pela lembrança ,
mas sempre també m pelo esquecimento: somente o jogo do lem-
brar e do esquecer fornece as referê ncias temporais que o passado
tem de assumir, a fim de poder produzir uma representa çã o de
continuidade instituidora de identidade.
A pergunta inicial , sobre como, dos feitos, surge a hist ó ria
como conteú do da consciência histórica, pode ser respondida, em
suma, da seguinte forma: a hist ó ria, como realidade , constitui -se
nos processos do agir intencional com os quais os homens superam
as condições e circunst â ncias dadas de sua vida pr á tica , a fim de
realizar, na prá tica, a transformação do tempo natural em tempo
humano. Esses processos só podem ser pensados como conte ú do
de algo já acontecido, ou seja, do agir passado. Como conte údo da
/ consci ê ncia histórica, hist ó ria é a suma das mudan ças temporais do
? HõmenTejie seu mundo no passado, interpretadas como transfor-
ma çã o de tempo natural em tempo humano, vale dizer, como ga -
nho de tempo. Como tal interpretaçã o, ela se insere no quadro de
jj
^ referê ncias de orienta ção da vida prá tica atual , no qual pode abrir
perspectivas de futuro.

Crité rios de verdade do pensamento histó rico

O que significa realizar a consciê ncia histórica de modo espe-


cificamente cient ífico e pensar seu conte ú do - a hist ória - igual -
Raz ã o histó rica 85

mente de modo cient ífico ? De que forma fundamentar a hist ó ria


como ciê ncia a partir das operações existenciais da consciência hist ó-
rica? De que modo a histó ria , como conte ú do da consciê ncia
hist ó rica , se torna objeto do conhecimento hist ó rico-cient ífico?
Para se poder responder a essas perguntas, importa constatar
de que maneira a história, em sua versão cient ífica, se distingue das
demais formas da consciê ncia hist ó rica, e se e como essa diferen ça
estaria enraizada nos fundamentos existenciais do conhecimento
hist órico. É de se perguntar inicialmente, pois, por que se faz histó-
ria como ci ê ncia , pura e simplesmente. A resposta a essa pergunta
é: porque com a hist ó ria como ciê ncia quer -se obter certo resulta -
do, um determinado objetivo de validade da narrativa história: a
verdade de cada hist ó ria narrada .
A razã o da diferença qualitativa da versão especificamente cient í-
fica da história com respeito às demais formas da consciê ncia hist ó-
rica surge- no momento em que a interpreta çã o produzida pela
consciê ncia hist órica enuncia pretensões de validade . A ciê ncia eri-
ge-se sempre com a pretensão de que seus enunciados sobre o passado
humano sã o universalmente v á lidos, e de que todos, por princípio,
devem acatar o que ela revela, no conhecimento hist órico, do pas-
sado humano. Ao se querer compreender e fundamentar como e
por que as opera ções intelectuais essenciais à consciência histórica
sã o e t ê m de ser realizadas sob a forma peculiar de uma ci ê ncia ,
requer -se descobrir em que consistem as pretensões de validade
da hist ó ria, às quais conduz o trabalho interpretativo da consci ê n -
cia hist ó rica.
Que momentos das operações narrativas da consciê ncia histó-
rica t ê m import â ncia particular para a versão cient ífica do pensa-
mento hist órico? Trata -se dos momentos diretamente ligados às
pretensões de validade do pensamento histórico. Supõe-se, aqui,
que a validade pretendida por um pensamento hist órico constitu ído
cientificamente n ã o é exclusiva da ciê ncia , mas pode e deve ser
hipostasiada. por princípio, a todo pensamento hist órico. Não fosse
assim , tampouco se poderia falar de validade “ universal” do co-
nhecimento hist ó rico da ci ê ncia da hist ó ria , pois esta valeria ent ão
somente para os que fizessem ci ê ncia e que, por certas razões, esti-
vessem em condi ções de aceitar a pretensã o de validade específica
da ci ê ncia como coincidente com sua própria pretensã o. O pathos
86 J õ rn Rusen

todo da ciê ncia e, com ele, o que torna compreensível, faz valer a
pena e justifica toda a mobiliza çã o cient ífica , residem na circuns-
t â ncia de ambos produzirem resultados sob a forma de um conhe-
cimento hist órico cuja pretensã o de validade tem de ser partilhada
por todos que exigem, das hist ó rias, que elas valham. Justamente
por isso se impõe, ao se tencionar expor o que é a hist ória como
ci ê ncia, que se v á alé m dela ou para seus bastidores, perguntando-
se pelas pretensões de validade do pensamento hist órico que se
encontram em seus fundamentos existenciais.
Esse “ir além” da ci ê ncia não é um processo reflexivo que
possa restringir ou relativizar a ciê ncia. Ele serve exclusivamente
para permitir entender o que a ciê ncia é; ele serve para fundamen-
t á -la. No que se segue, examinar-se-ã o os fundamentos existenciais
da consci ê ncia hist órica na perspectiva de evidenciar se e como se
enra íza neles o que se pensa , quando se diz que tal hist ória é ver-
dadeira e tal outra n ão.
Histórias são verdadeiras quando seus destinat á rios crêem ne-
las. “ Crer” significa aqui - em paralelo com a função existencial -
que as hist órias exercem como que fatores de orientaçã o, no tempo,
da vida humana prá tica: os destinat á rios das hist ó rias est ã o dis-
postos a servir -se delas para orientar -se no tempo, pois est ã o con -
victos de que as histó rias sã o capazes de tanto. Como descobrir ,
porém, o que faz a credibilidade das histórias?
Se n ão se quiser partir de uma teoria expl ícita da verdade, o
melhor é deixar-se conduzir pela pr ó pria histó ria para descobrir em
que consiste sua verdade ou inverdade, supondo-se que, nas opera-
ções existenciais da consci ê ncia hist órica , esteja dispon í vel tal in -
formaçã o. E isso é o que efetivamente ocorre: as hist órias vê m
sempre falar de sua própria verdade, quando levantadas d úvidas
sobre sua credibilidade.
Isso n ã o tem nada de incomum . As hist órias n ã o são cridas as-
2 sim sem mais nem menos - elas t ê m de ser narradas de modo que
? possíveis d ú vidas acerca de seu conteú do j á venham previa mente
$ esclarecidas. Tendo-se presente que as hist ó rias tornam consciente
Ç k identidade)de seus destinatários como permanê ncia no fluxo do
-v tempo
,
e que, mediante essa função, constituem essa identidade, o
\ \* argumento fica claro. A identidade é , contudo, uma rela çã o dos
'
^homens e dos grupos humanos consigo mesmos, a qual se põe, por

*
Razã o histó rica 87

sua vez, em rela ção com os demais homens e grupos humanos.


Identidade é um moménfcre ss ^ ^ircral ã dcializaçãõ humalTaTTus-
^^
^

tamente por isso est á exposta à s cont í nuas dificuldades que os


homens encontram consigo e com os demais, quando se socializam.17
A identidade expressa pela narrativa das hist ó rias n ão é um con -
te ú do fixo e definitivo. O que se é depende sempre do que os de-
mais o deixam ser e do que se quer ser, na relação com os outros.
Identidade é, por conseguinte, um processo social de interpreta çã o
recíproca de sujeitos que interagem entre si. Nesse processo, os
sujeitos mesmos debatem-se continuamente entre si, à busca de
serem aqueles que querem ser e de n ão quererem ser aqueles que
deveriam ter sido. A constituiçã o da identidade efetiva -se, pois,
numa luta cont ínua por reconhecimento entre indiv íduos, grupos,
sociedades, culturas, que n ão podem dizer quem ou o que são, sem
ter de dizer , ao mesmo tempo, quem ou o que sã o os outros com os
quais t ê m a ver .. Porque isso é assim e porque as hist órias são tam -
bé m atribuições de identidade (razã o pela qual se trata igualmente
de uma quest ã o de poder saber quem pode contar a história a
quem, hist ória que diz a este quem ele é), n ão se costuma acreditar
cegamente nas hist ó rias. Elas tê m de ser narradas de forma tal que
as d ú vidas que surgem na luta pelo reconhecimento n ão cheguem a
ser formuladas ou pelo menos venham logo a ser resolvidas pelas
hist órias no movimento de sua narrativa.
As hist órias previnem as d ú vidas à medida que fundamentam
sua credibilidade. Elas fornecem razões para se crer nelas e para
servirem de orientaçã o no tempo. Trata-se, aqui, nesse caso, do que
se chama , na linguagem coloquial , de “verdade”. “Verdadeiras
sã o as hist órias com que se pode consentir; consente-se com as
.

hist ó rias nas quais as possíveis d ú vidas surgidas podem ser resol-
~
vidas com as razões que elas fornecern7Sêmjp7é què í rifficãrim. por
meio de sua narrativa, j) modo de superar as eventuais d úvidas que
suscitem , as hist órias sinalizam sua verdade .
Há , no entanto, uma tal quantidade de sinais, que por vezes se
tem dificuldade em reconhecer, neles, o que de verdade é manifes-
tado. O raciocínio que possa levar a d ú vidas sobre a credibilidade

17
A esse respeito, ver L. Krappmann , Soziologisclie Dimensionai der Idení H á/,
3- ed., Stuttgart, 1973.
88
J õ rn Rusen

das histó rias fornece justamente, todavia, um claro delineamento


da verdade na narrativa de hist ó rias. Trata -se, no fundo, de tr ês
momentos, nos quais podem surgir d ú vidas acerca da credibilidade
das histórias: I) a propósito de seu conteú do experiencial; II) sobre
sua significaçã o; III ) quanto a seu sentido.

I) As hist órias articulam as experiências do tempo passado.


Sua credibilidade repousa , por conseguinte, sobre seu con-
te údo experiencial . Esta realidade n ão requer outras expli -
cações.
II ) N ã o é apenas sobre isso que repousa a credibilidade das
histórias. Elas relacionam as experiê ncias do passado à in -
ten ção do tempo presente que se projeta no futuro. Nesse
sentido, uma hist ó ria elabora uma significação que repousa
sobre algo diferente da experi ê ncia do passado: como expe-
riê ncia, só a relaçã o com as intenções torna-a significativa
(poder-se-ia dizer també m “ relevante”, “substantiva ”, “apta
a ser assumida”). O que, ent ão, torna as hist ó rias signifi-
cativas ? Elas sã o significativas à medida que conseguem
relacionar as experi ê ncias do tempo passado com as inten-
ções projetadas de seus destinatá rios. As hist ó rias articulam,
ademais, o acervo experiencial da memó ria e o super á vit
intencional caracter ístico da vida pr á tica de seus destinat á-
rios, a fim de evitar que desemboquem num futuro vazio,
e sim num futuro que , realisticamente , se pode esperar.
E isso o que ocorre quando o super á vit intencional do agir
se concretiza em inten ções precisas do agir , com as quais
suas circunstâncias e condições dadas devem ser superadas
e transformadas. E o que as histó rias absorvem, do dom ínio
das inten ções, para obter significaçã o? Tê m de ser pontos de
vista de que resultem os objetivos a serem alcan çados pelas
inten ções do agir - isto é, o que se tem de fazer para mudar
circunst â ncias e condi ções dadas. Esses pontos de vista sã o
as normas e os valores. D ú vidas e credibilidade, como ati -
tudes que se pode ter diante de uma hist ória, referem-se a
essa relaçã o interna com as normas e os valores da vida
prática atual . Pode-se pô r em d ú vida que as hist órias efeti -
vamente atinjam as inten ções dominantes, ao relacionarem
Raz ã o histó rica 89

as experiê ncias do tempo passado a estas, a fim de impri-


mir -lhes um vetor temporal e tornar o futuro esper á vel nos
termos da experiência acumulada. Inversamente, pode-se
perfeitamente aceitar uma história justamente porque ela
acerta em cheio as normas e os valores com os quais inten -
ções são articuladas com processos temporais futuros de
transforma çã o do homem e de seu mundo a serem efetiva-
mente postos em a çã o. Em suma: trata-se sempre de normas
Ce valores quando se fala da verdade de uma história.
ui) ^ ^
Dispusemos, at é aqui , de dois crit é rios com rela çã o aos
quais as histórias podem ser julgadas duvidosas ou cre-
d íveis e com os quais elas sustentam sua pretensã o de
verdade. No entanto, eles n ão bastam para descrever su -
ficientemente a função orientadora que se espera de
hist ó rias verazes, pois a interdepend ê ncia desses dois
crit érios ainda n ão est á visível, nem a integração, a me-
dia çã o, a síntese entre a experi ência do tempo passado e
a expectativa do tempo futuro produzida pela opera çã o
intelectual da narrativa de uma história. Experiência d <3
tempo e expectativa quanto ao tempo sã o fundidas pela
narrativa hist órica na unidade de uma representaçã o do
tempo na forma de uma continuidade das inten ções
do agir que assegura ao agente, ao mesmo tempo, sua
permanê ncia 11a evolu ção do tempo. Com essa proprie-
dade , a de representar a continuidade constitutiva da
identidade, a s í ntese entre experiência do tempo e expec-
tativa quanto ao tempo, produzida pela narrativa de uma
histó ria , adquire o cará ter de determinadora de sentido da
vida prá tica atual. Como determinadora de sentido, a
história ingressa no quadro de referê ncia de orienta çã o
da vida pr á tica de seus destinatários. Nessa determina -
ção culmina 0 problema da verdade: trata-se da sí ntese
narrativa de experiê ncia e norma, que constitui 0 sen -
tido da hist ó ria . Analogamente ao conteú do experien -
cial e à significa çã o de uma hist ó ria , pode-se falar de
um conte ú do de sentido, quando se pensa numa media -
çã o realmente consistente, plena e concludente entre
experi ê ncia e significado , que “supere” a ambos ( no
90 J õ rn Rusen

duplo sentido da palavra)18 11a unidade de uma repre-


sentação de continuidade constitutiva de identidade.

O conte ú do significativo de uma hist ória coloca em a çã o a


credibilidade ou o aspecto duvidoso de uma hist ó ria com respeito à
sua capacidade de prover a orienta ção que sua narrativa tenciona.
O conte ú do de sentido de uma hist ória n ã o est á dado de imediato
com seu conte ú do experiencial e com seu significado, pois expe-
ri ê ncias do tempo e inten ções normativas quanto ao tempo n ã o se
integram automaticamente para formar a unidade de uma repre-
senta çã o de continuidade constitutiva de identidade. A mera arti -
cula çã o de experi ê ncia , de um lado, e de normas, de outro, ainda
não forma hist ória alguma, mas requer -se ainda a media ção entre
ambas, se se quiser narrar uma hist ória. No princípio (110 sentido de
origem ) de cada hist ória est á seu sentido, e somente na reflexã o
posterior se pode distinguir entre o conte ú do experiencial e o nor -
mativo. A unidade origin á ria entre experiê ncia e norma est á dada
110 fundamento “ pré-histó rico” da consci ê ncia histó rica, ou seja , na
tradi çã o. A consciê ncia histórica , 110 entanto, reflete a unidade
pr é via entre passado, presente e futuro na tradiçã o e distingue
(“critica ”) essas três dimensões, a fim de as mediar , à sua maneira
característica, numa interpretação da experiê ncia do tempo vinculada
às intenções quanto ao tempo. A plausibilidade, a capacidade de
convencimento que uma hist ória possui, como sí ntese narrativa
entre experi ê ncia e norma , depende do princípio unificador, do
crit é rio de sentido (ou de um conjunto de crit é rios) adotado pela
narrativa histórica ou a que ela recorre, quando media a experiê n-
cia do tempo passado com a experi ê ncia do tempo futuro na unida -
de de uma hist ória , de modo tal que seus destinat á rios se valham
dela para se orientar no fluxo temporal de suas vidas pr á ticas, ou
seja, para que se auto-afirmem e valorizem .
Com esse crit é rio de sentido, toda hist ória recorre a um ponto
de vista supremo da orienta çã o existencial humana , situado aqu é m
da distinção entre experi ê ncia e norma e que garante a unidade

1S
J . Rusen utiliza, aqui, 0 termo anfge / ioben no sentido hegeliano: experi ê ncia e
significado est ã o plenamente presentes na unidade sinté tica da narrativa histó ri -
ca que, no ato de sua representaçã o narrativa, n ã o apenas os “absorve ” plena -
mente, mas vai al é m deles (“supera - os”). ( N. do T.)
Razã o histó rica 91

interna, a consist ê ncia da orientação existencial humana , o dom ínio


de si e do mundo como pressupostos de qualquer vida prá tica. A tra-
di çã o filosófica denominou esse ponto de vista “idéia”. Poder-se-ia
falar, mais modestamente, de uma determinaçã o orientadora do
senso comum, no quadro de refer ências de orienta ção da vida pr á -
tica humana . Pouco importa que nome se d ê a essa fun çã o, o deci -
sivo é que se trata de um fator de orientaçã o da vida humana
pr á tica que opera uma unidade pré via de experiê ncia e norma, de
ser e de dever , dentro de uma compreensão consistente, pelo ho-
mem, de si e do mundo.
Temos circunscritas, assim, as pretensões de verdade das his-
t órias. Elas sã o manifestadas pelas hist órias à medida que resolvem
ou enfrentam as d ú vidas. Asjazões da credibilidade das hist órias
sã o indicadas por recurso a: 1) experiê ncias, que preenchérrTsêu
conte ú do factual ; 2) normas e valores, que preenchem seu conte ú -
do de significado e 3) determina ções de sentido, de acordo com as
quais os conte ú dos factual e de significado sã o mediados, narrati-
vamente, para formar a unidade de uma representa çã o de continui -
dade constitutiva de sentido.
As hist órias manifestam essas diversas abordagens de sua
aptid ã o à verdade à medida que resolvem d ú vidas e fundamentam
sua pretensã o de validade de três formas distintas:

I) As hist órias fundamentam sua pretensã o de validade ao


expor que os acontecimentos que narram efetivamente
ocorreram do modo narrado. Isso se d á, no mais das vezes,
pelo fato de que as hist órias indicam suas fontes, mencio-
nam testemunhas e avalistas, o narrador explicita sua pr ó-
pria condição de testemunha ocular - em suma: mediante
uma sé rie de expressões lingu ísticas que designam a expe-
ri ê ncia sobre a qual se baseia o conte ú do factual da hist ó-
ria. A verdade hist órica pode ser caracterizada, nessa
perspectiva de fundamentação, como pertinê ncia empí rica.
Histórias são empiricamente pertinentes quando os fatos
por elas narrados estão garantidos pela experiência
II) As hist órias fundamentam sua pretensã o de validade ao
expor que os acontecimentos que narram possuem signifi-
cado para a vida pr á tica de seus destinat á rios. O narrador
92
J õ rn Rusen

utiliza normas para fundamentar por que estabelece deter -


minadas correla ções temporais entre tais ações humanas
passadas e n ão entre outras, e por que ele as avalia de tal
ou qual maneira e n ão de outra. Isso aparece nos estilos t í-
picos utilizados pelas histó rias para articularem-se com as
normas da vida pr á tica de seus destinat á rios, ou ainda
quando elas se referem ou apelam a elas, etc. Encontramo-
las, por exemplo, nas declara ções de inten ções did á ticas,
ami ú de també m na forma de uma “moral da história” ex -
pl ícita. A verdade hist órica pode ser caracterizada. nessa
perspectiva de fundamentação, como pertinência normati-
va. Hist órias são normativamente pertinentes quando os
fatos por elas narrados est ão garantidos por normas vi-
gentes.
III) As hist órias fundamentam sua pretensã o de validade ao
mediar a facticidade e o significado do que narram na uni-
dade de uma narrativa com sentido em si. Tem -se aqui um
critério de sentido constitutivo de síntese, que dirige o flu -
xo narrativo e determina sua direçã o. Tem -se aqui o ponto
de partida de uma hist ó ria: uma determina çã o orientadora
de sentido (id é ia ) constitui-se simultaneamente como ins-
t â ncia suprema decisiva para a verdade de uma hist ó ria . As
hist ó rias manifestam -no na medida em que expõem esse
crit é rio de sentido ( n ã o raro de forma destacada , logo no
início ou na conclusão) por recurso seja aos sentidos cor -
rentes na vida prá tica de seus destinatá rios, seja aos ele-
mentos de senso comum previamente dados na orientação
no tempo, percebidos por seus destinat á rios como acima
de qualquer d ú vida . A verdade hist órica pode ser caracte -
rizada, nessa perspectiva de fundamentação, como perti-
nência narrativa. Hist órias são narrativamente pertinentes
quando o contexto de sentido entre fatos e normas, por
elas apresentados como continuidade no fluxo temporal,
está garantido por critérios de sentido ( ideias como pon-
tos de vista supremos da constituição de sentido) eficazes
na vida prática de seus destinatários.
Com isso est ã o caracterizadas as pretensões de verdade que
aparecem na constitui ção existencial da consciência hist órica e que
Raz ã o histó rica 93

as hist órias, em geral, t ê m. Cada hist ória pode ter suas pretensões
de verdade controladas a partir de três crit é rios distintos. Esses três
crit é rios de verdade mant ê m uma rela ção complexa entre si . N ã o
podem ser aplicados independentemente um do outro, se se trata de
fundamentar a aceitaçã o de hist ó rias. Se se aplicar apenas o crit ério
da pertin ência empí rica , a hist ó ria resumir -se-ia a uma lista de
senten ças assertivas e negligenciaria todas as demais sentenças que
comporta. Esse crit ério, sozinho, não basta para as sentenças hist ó-
ricas: ele vale para todas as senten ças que enunciam fatos ou con -
juntos de fatos, por exemplo: descrições de paisagens, observa ções
da natureza, relat ó rios médicos, etc.; ele pertence, por conseguinte,
aos fundamentos existenciais de quaisquer ciê ncias.
Se se aplicar exclusivamente o crit é rio da pertin ê ncia nor -
mativa , a hist ória nã o passaria de uma lista de senten ças sobre os
significados que os fatos possuem para a determina çã o do sentido e
do fim do agir e do sofrer humanos, negligenciando que sempre se
lida com fatos e com conjuntos de fatos. També m esse crit é rio n ã o
é, sozinho, específico das senten ças históricas: ele vale para todas
as senten ças que enunciam sentido ou finalidade do agir ou do sofrer
humanos, por exemplo: doutrinas da virtude, preceitos legais, usos e
costumes, mandamentos divinos, etc.; ele pertence, por conseguinte,
aos fundamentos existenciais de todas as ciê ncias normativas.
Somente o crité rio da pertinê ncia narrativa é específico das
hist ó rias. Ele se refere à unidade interna dos fatos e normas efeti-
vada pela constitui çã o de sentido produzida pela narrativa hist óri -
ca. Tampouco pode ele, contudo, ser aplicado independentemente
dos demais crit é rios de determina çã o da verdade das hist ó rias, mas
sempre de forma tal que se tenha em vista a interdepend ê ncia dos
elementos que cada um dos dois outros crit é rios submete à d ú vida ,
à verificaçã o e à fundamenta çã o. As hist órias podem ser , pois,
tanto empírica como normativamente pertinentes, sem acarretar
todavia adesã o direta.
Os três crit é rios de verdade est ã o, por conseguinte, em rela ção
de media çã o, na qual o critério da pertin ê ncia narrativa se situa
num plano superior aos dois outros. E nele que culmina a pretensã o
de validade que as hist ó rias t ê m ao dirigir-se à queles que querem
servir-se delas para orientar-se no tempo.

Você também pode gostar